ABOLIR, NÃO REFORMAR Dissertação
ABOLIR, NÃO REFORMAR Dissertação
ABOLIR, NÃO REFORMAR Dissertação
SANTOS
2021
LARISSA RODRIGUES ZAQUEO
SANTOS
2021
LARISSA RODRIGUES ZAQUEO
Aprovado em:
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Primeiramente a quem pisou neste chão antes de mim e lutou, ainda que verbalmente,
pela liberdade através dos séculos, é essa luta que nos une. Agradeço aos Orixás e aos guias
espirituais que providenciaram o caminho que trilhei e colocaram felizes coincidências
quando a luz se apagou e quase desisti, agradeço aos meus pais pelo apoio moral.
Agradeço à minha querida amiga Andrea Almeida Torres pela amizade, fé em mim e
indicações de caminhos e pessoas para buscar caso nosso plano desse errado (como deu); no
mesmo pé agradeço à minha irmã Danielle Fortes por ter estado, literalmente, ao meu lado
desde o momento que decidi tentar entrar neste mestrado, que desceu a serra e torceu por mim
enquanto fazia a prova, que comemorou quando passei, que me deu todo o suporte durante o
difícil processo de luto e revisou meu texto. Valeu, Dani, por ouvir meus falatórios, rompantes
de raiva e explicações sobre este trabalho (e outros), por todo o apoio e fofuras nos momentos
complicados, e celebrações nos bons.
Aos Zaqueos que pisaram neste chão antes de mim e me ensinaram a liberdade e
questionamento a hierarquias; às mulheres Rodrigues por não aceitarem a desistência.
À minha família que mora longe, e é a que escolhi. Taís, Erich e Bielzinho
Leistenschneider, pela preocupação, pelos ouvidos e refeições divididas a milhas de distância;
à Mayara Oliveira, por todo apoio, carinho e irmandade e à Flavia Lopes, por continuar me
apoiando e acreditando em mim.
Ao Matheus Celestino, por ter sido quase que meu acompanhante terapêutico. Saímos
do buraco e chegamos à superfície, mais libertários e inteiros… Ou quase; calos só nascem
com esforço e insistência, né?
Aos amigos que me ouviram e me ensinaram a olhar a vida por outros prismas: Natalia
Figueiredo, Thais Moraes, Henrique Oliveira, Renato Faustino, Murilo Arruda, Mariana
Arraez e Thiago Dias (Archer).
Ao Wellington pelo estoque de chocolate, cafés, pizzas, massagens, paciência, carinho
e colo. Tem que ter coragem pra se meter com alguém que está na reta final de um mestrado
construído em período TÃO tenso.
Ao querido Dr. Paulo César Romão pela amizade, apoio, leitura do trabalho, cafés de
péssima qualidade, cigarros, parcerias e o constante trabalho em tentar melhorar, fazer o
“certo”, ou sei lá o que, falando em artistas, agradeço à professora e cantora Thaíni
Cavalcanti, por ter me ajudado a superar e expressar de maneira criativa tudo que me
atravessou nestes tempos doidos.
Às pessoas que toparam as aulas de inglês nestes três anos, sem incentivo à pesquisa;
vocês foram tudo. À quem confiou em mim para as revisões de suas dissertações, e ao
Lucas Delfin pela ajuda! Agradeço às mestras Juliana Laffront, Veridiana Paes de Barros e
Aline Salinas (de novo!).
Muito amor e gratidão a essas pessoas que me viram crescer, me desafiaram, puxaram
a minha orelha, acolheram e sofreram comigo. Agradeço (mais uma vez) as caronas e todas
aquelas coisas que se passam nas curvas da estrada de Santos, vocês não me deixaram desistir
e se preocuparam, se alegraram com meus retornos e minha resistência pessoal: gratidão
Liduina Oliveira , Priscila Cardoso, Claudia Mazzei Nogueira ,Rosangela Batistoni, Renata
Gonçalves, Terezinha Santos, Tania Diniz e Sonia Nozabielli. É muito doido pensar que quase
tudo que sei sobre Serviço Social foi ensinado por vocês, porque são nove anos de estudo e
trabalho; a relação que se constrói assim é muito particular, e as levarei para sempre comigo.
“(...)Desde que uma teoria penetra em determinado ponto, ela se choca com a
impossibilidade de ter a menor consequência prática sem que se produza uma explosão, se
necessário em um ponto totalmente diferente. Por esse motivo, a noção de reforma é tão
estúpida e hipócrita. Ou a reforma é elaborada por pessoas que se pretendem representativas
e que têm como ocupação falar pelos outros, em nome dos outros, e é uma reorganização do
poder, uma distribuição de poder que se acompanha de uma repressão crescente. Ou é uma
reforma reivindicada, exigida por aqueles a quem ela diz respeito, e aí deixa de ser uma
reforma, é uma ação revolucionária que por seu caráter parcial está decidida a colocar em
questão a totalidade do poder e de sua hierarquia. Isso é evidente nas prisões: a menor, a
mais modesta, reivindicação dos prisioneiros basta para esvaziar o pseudoreforma *Pleven.”
Gilles Deleuze em conversa com Michel Foucault, disponível no livro “Microfísica do
Poder”.
This work seeks to investigate the technologies of power and the resistance to them; focusing
on Criminal Abolitionism. In order to analyze the main elements of Foucault's theory, mainly
with regard to Biopolitics and Disciplinary Society; we resume the process of Brazilian
socio-historical formation in order to understand the fundamental and perpetuated elements of
racial inequality, which influence and consolidate the formation of the working class in Brazil.
We also seek to understand the relationship between the structures of the Penal State and
racism, giving greater prominence to those considered “undesirable”; “underclass” and
“punishable” and, based on Mbembe's concept of necropolitics, we discussed changes in the
power to punish. We end the discussion with the condensation of information about the
theorized penal abolitionisms, understanding this movement beyond the court-prison logic,
placing it as a construction for everyone, regardless of professional performance. This work
was developed from a bibliographic review, with access to documents available online from
some parts of the world. The analyzed data come from public Databases and Hubs, on the
internet, and were analyzed and organized in the following programs: Google Database and
Excel; given the large amount of information.
Keywords: Racism, penal abolitionism, biopolitics, necropolitics.
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS 14
INTRODUÇÃO 22
O PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT 24
1.1 A genealogia: uma outra maneira de olhar a história 24
1.2 Poder Disciplinar 32
1.3 Biopolítica e biopoder 40
1.4 Considerações sobre uma “microfísica do poder”. 45
2. DO RACISMO AO ESTADO PENAL 47
2.1 Racistas, graças a Deus! 48
2.2 Racismo e Racionalidade 56
2.3 Racismo cultural e Estado Penal 74
3. UM MOVIMENTO CONTRA AS CORRENTES 80
3.1 A polícia da morte e a “máquina de moer pobre”. 81
3.1.1 O Estado Penal no Brasil 86
3.1.2 A Necropolítica 97
3.2 O movimento pela liberdade: a abolição das penas e prisões. 100
CONSIDERAÇÕES FINAIS 115
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 120
APÊNDICE A — Projeto Arquitetônico da Casa de Detenção de São Paulo 123
APÊNDICE B — Lista de QR CODES 124
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este trabalho é mais um passo atrás para pegar o impulso necessário para o salto que a
pesquisadora sente urgência de dar há muitos anos.1 Trata-se de uma sistematização de
acontecimentos e discursos que operam do centro à margem e dão margem ao centro. Chegar
neste Abolicionismo Penal apresentado aqui vem de um longo caminho de propostas e
construções, de mão na massa, olhos e ouvidos atentos, de desconfianças em alguns
propósitos e discursos. Aqui existem tentativas de vislumbrar qual sociedade queremos,
quando os “de baixo” se organizam e criam seus próprios mecanismos de organização e
gerenciamento de conflitos.
Não há, neste trabalho, uma pretensão de produzir uma verdade, ou alçar voos pela
ilustre academia brasileira e ocupar uma autoridade vazia, disciplinar e hipócrita. A proposta é
explícita: aproximar discussões e visões que a pesquisadora (se colocando oficialmente
enquanto autora pela primeira vez) teve contato dentro e fora do Serviço Social, e que servem
muito bem para pensarmos em questões que às vezes parecem passar despercebidas pela
profissão, ou são colocadas, quase que preguiçosamente, no balaio da “contradição” — uma
contradição que não parece estar dentro da metodologia do materialismo histórico-dialético, e
sim de defesas corporativistas que tentam se passar por “luta”.
Neste memorial da pesquisa, o esforço foi em trazer as experiências da autora do
trabalho, registradas em diários pessoais — um exercício de elaboração de acontecimentos
que veio a ser útil neste momento — e análises de bases de dados dos período de 2014 a 2018,
durante a experiência de estágio acadêmico na Defensoria Pública do Estado de São Paulo, até
setembro de 2016, e do breve período de conversas e “atendimentos” com familiares na
AMPARAR (Associação de Amigos e Familiares de Presos). Neste momento introdutório,
onde é possível conhecer a pesquisadora e o cenário da pesquisa, visa explicar porque
partimos e sustentamos um abolicionismo penal onde não cabe o reformismo.
Além dos registros pessoais, neste trabalho está reunido aquilo que foi sistematizado
no arco de dez anos. Desde o filme “Leite e Ferro” (2011), que instigou a vontade — quase
1
O processo de pesquisa, elaboração e escrita desse trabalho atravessaram todos os sentidos. A música sempre
foi o elemento aglutinador e significante da minha vida, como uma forma de homenagem a dois queridos amigos
— um DJ amante de vinis e a maior conhecedora de sambas que já conheci — montei uma playlist com
músicas que me acompanharam desde 2012, quando ingressei na graduação, e me ajudaram a não desistir
quando as coisas ficaram ruins. Tive o cuidado de selecionar músicas que fariam sentido na temática e contexto
dessa dissertação; se quiser, ouça enquanto lê. Para acessá-la, basta buscar no Spotify “Abolir, não reformar”, ou
acessar https://open.spotify.com/playlist/6xyDfuwXu8IMKhEVVo0zeu?si=d78ccdc93ad041e1
15
messiânica — de uma jovem entrar em prisões e se meter no olho da briga que vai além da
guerra às drogas (problematizada pela mesma jovem desde uma repressão violenta em 2009
na Marcha pela Legalização da Maconha em São Paulo) e da violência policial. Naquele
momento, em 2012, quando o sonho da universidade pública se concretizou, a questão era o
direito à maternidade violado pelo Estado de São Paulo e o direito ao convívio com a mãe e
uma infância saudável que várias crianças não têm — pelo menos não com a mãe biológica,
porque um bebê de seis meses é rapidamente adotado.
Logo a dimensão interventiva do Serviço Social na prisão foi revelada enquanto muito
limitada pela Profa. Dra. Andrea Almeida Torres — que orientou esta pesquisadora até 2019,
quando faleceu —, a pesquisa dentro das prisões também se mostrou (quase) impossível, por
conta de um comitê de ética que parece ter receio do que se tem a dizer sobre aqueles espaços
quando analisados mais de perto pelos universitários do estado de São Paulo — o que mais
prende e condena no país.
Rapidamente, a pesquisadora curiosa e cheia daquela disposição da juventude dos 18
anos, provinda de família antimanicomial, conhece a obra de Michel Foucault em aulas de
Psicologia (“A emergência da subjetividade”, ministrada pelo Prof. Dr. Alexandre Henz).
Ficou fácil, então, problematizar as reclusões, as instituições totais que nos controlam, o
capitalismo, o racismo e o controle! Só que me deparei com novos obstáculos: que eu não
entendia nem o que queria dizer “a epistemologia”, e a necessidade de embasar tudo que se
pensa, e nem tinha o tempo disponível para tanto.
Foucault e Marx “não se dão”. Os marxistas o chamam de “pós-moderno”; os
foucaultianos dizem que a questão está na ausência de uma leitura da subjetividade. Ao ver as
inquietações de uma anarquista (na época “anarco-comunista”) que entrou na universidade
para estudar, independente dos problemas que os autores tinham uns com os outros, a
professora Andrea Almeida Torres recomendou que eu fosse assistir umas aulas do Prof.
Stéfanis Caiaffo — autor de uma tese de doutorado anarquista, um abolicionista penal e
foucaultiano. Então seguimos assim, até 2014, um pé lá na Psicologia, outro aqui no Serviço
Social.
Em 2014, o estágio na Defensoria Pública de São Paulo exigiu uma redução nos
estudos em Santos, a volta para a cidade de São Bernardo do Campo (cidade natal da
pesquisadora) e um posicionamento mais firme no Serviço Social para não deixar passar a
práxis que está implicada nesta profissão. Afinal, o ingresso na universidade e escolha de
profissão não foram por hobbie, vieram da necessidade proletária (sem herança, pensão ou
mesada dos pais) de ter um emprego formal e retribuir, à classe da qual pertence, os anos de
16
estudo em instituição pública. Foram dois anos e meio atuando diretamente com a questão das
prisões e penas; como um ciclo que se fecha perfeitamente, o trabalho com mulheres na
mesma situação das que me inspiraram em 2011 se realizou, mas o resultado não foi nada
messiânico.
A apreensão do que é um processo (judicial e social), do que envolve o que
registramos em nossos laudos e pareceres, o que realmente é se posicionar a favor da defesa
intransigente dos Direitos Humanos, das políticas sociais e da classe trabalhadora levou a um
olhar cuidadoso para as mudanças no sistema. As reformas sempre estão acontecendo no
sistema penal, embora a população em geral não as acompanhe e elas não resultem em um
decréscimo da população prisional, o que já coloca em questão a eficácia destas reformas.2
Em 2014, a população prisional totalizava 622.202 pessoas (muito mais do que os
“500 mil mano” citados por Criolo)3. Só no estado de São Paulo eram 220.030 presos/as,
35,37% da população carcerária. Neste período ainda não havia audiência de custódia.4 Foi
possível acompanhar o defensor público no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Mauá,
que fazia parte do Projeto de Intervenção de Estágio. Deste período, foram registradas as
visitas em diários, como recurso terapêutico e registro de denúncias,
Estava completamente nervosa, eu não sabia o que me esperava naquele lugar, ainda
que tivesse me preparado por muito tempo pra aquilo (...) o cheiro pior do que os
rios Pinheiros e Tietê juntos, o lugar meio isolado e a torre com algum ASP5
segurando uma arma. Estava no panóptico, (...) mas esse CDP era um prédio, o que
achei estranho. Na hora de entrar vi o maior cadeado da minha vida, muitas “jaulas”
e tudo azul. Guardamos nossas coisas e passamos pelo detector de metais, óbvio que
os defensores públicos são tratados bem ali. (...) notas sobre essa primeira
impressão: todos jovens, todos relataram racismo ou algum outro abuso mais grave
da polícia, todos negros, todos pobres, todos periférios. Com a crise hídrica, não tem
água durante boa parte do dia, às vezes só por 30 min. de manhã e 30 à noite, cerca
de 20 a 30 pessoas na cela. Tinha um moço de 20 anos que foi baleado, não teve
tratamento, está com o braço pendurado, precisando de cirurgia e não vai porque não
tem escolta.6
2
Desde o começo da pandemia de Covid-19, houveram esforços para que, através de medidas emergenciais, a
população prisional diminuísse. Afinal, uma das maneiras de prevenção da doença é o distanciamento social. No
entanto, esse decréscimo da população prisional não é exclusivamente fruto de uma mudança na política de
segurança pública, e sim o mínimo que o Estado deveria fazer em uma situação de calamidade social.
3
CRIOLO. Mariô. São Paulo. Oloko Records. 2011 (3:37).
4
“A Audiência de Custódia é o momento de apresentação da pessoa presa ao juiz ou juíza competente, e deve
acontecer em até 24 horas. Os principais objetivos são avaliar a legalidade da prisão, coibir e investigar a tortura
e a violência policial e estimular o desencarceramento por meio da redução do uso indiscriminado das prisões
provisórias, que não deveriam, mas são a regra no Brasil.”.
INSTITUTO TERRA, TRABALHO E CIDADANIA. ITTC EXPLICA: O que são audiências de custódia?. São
Paulo, 2016. Disponível em:
http://ittc.org.br/ittc-explica-o-que-sao-audiencias-de-custodia/?gclid=Cj0KCQjw1a6EBhC0ARIsAOiTkrH5tPB
YBSFdnPSYgepAhERZskX67keAMoXIL0eqR2_466ot5Yp2i3AaAhQAEALw_wcB. Acesso em: 30 abr. 2021.
5
Agente de Segurança Penitenciária.
6
ZAQUEO, L. R. Diário de estágio: DEPSP –CAM-Mauá e NESC. Mauá e São Paulo: [s.n.], 2014 a 2016. 1
diário de bordo. p. 6-9, “21 de outubro de 2014 – CDP – Mauá”.
17
Ao longo dos registros deste diário, são muitas denúncias de não acesso à saúde,
violência policial na hora da prisão, falta de água (inclusive potável), denúncias e mais
denúncias acerca da comida estragada, (o cheiro de feijão estragado era nítido quando
chegávamos pouco depois das 14:00), muitos trabalhadores, muitos réus primários e uma
demora de cerca de sete (7) meses para o primeiro contato com o juíz.
A estratégia que a estagiária tomou durante esses acompanhamentos foi de colher o
máximo de informações possíveis daquilo que era dito nas salas da universidade nos últimos
dois anos: que a única política social que a periferia tem contato é a polícia, que esta forja
apreensões, persegue alguns jovens e, principalmente, os egressos,
1. (...) 7 meses no CDP, ficou 10 anos preso, polícia forjou o assalto. Trabalhava há
cinco meses como ajudante de pintor e segurança na quermesse. (...) 3. (...) Acesso a
cultura não há, nem aqui, nem do lado de fora. Tem uma biblioteca [pra quem?], tem
celas com 50 pessoas, expliquei o que era o CRAS, ouviu falar do Bolsa Família,
mas não sabia como fazer.7
Foi mais ou menos nesta época que, conversando com a Profa. Andrea Torres,
decidimos que o Trabalho de Conclusão de Curso seria sobre esses pedidos que chegavam nos
defensores públicos e assistentes sociais da Defensoria, porque era nítido que nada havia
mudado dez anos depois de seu doutoramento, mas que a DPESP estava mudando algo, só
não sabíamos o quê. Aos poucos, as denúncias foram mostrando pequenas melhorias — como
uma hora de água a cada refeição e os atendimentos de saúde acontecendo um pouco mais.
Para obter o conhecimento acerca do funcionamento das prisões, foi necessário
participar mais ativamente de audiências públicas e prestar atenção no que os militantes da
Pastoral Carcerária, principalmente dos anos 90, contavam sobre suas atuações e a
proximidade construída com a população carcerária. Com a mudança de postura da estagiária,
houve uma mudança nos próprios diários registrados por ela, com casos mais detalhados e
denúncias mais elaboradas.
Houve um período que a conversa começava com “E ai, tudo bem? Não, né? Nesse
lugar não tem como estar bem, me conta o que tá pegando!”, a posição descontraída que
assumia fazia com que o atendimento fosse um pouco mais leve. Ali o aprendizado mudou,
deixou de ser confirmação de violação e passou a ser um pensar junto como agir para tornar a
sobrevivência possível. Nos diários há pedidos para famílias “trazer cigarro e minha filha para
a visita”, “prestobarba, sabonete e uma roupa de frio”, “pedir transferência pro juiz, porque
sente falta da família que não tem dinheiro para visitar”.
Em 18 de julho, em meio às anotações, uma tensão,
7
ZAQUEO, L. R. Diário de estágio: DEPSP – CAM-Mauá e NESC. Mauá e São Paulo: [s.n.], 2014 a 2016. 1
diário de bordo. p. 27-30, “03 de junho de 2015 – CDP – Mauá”.
18
*Deu merda.
15:20 ouvimos gritos.
16:00 um homem saiu acamado com as duas pernas imobilizadas.8
Mais tarde, no final de agosto de 2015, uma ligação da supervisora de estágio que
estava afastada, enquanto o estágio era cumprido em outra unidade, mudou o rumo e ritmo de
tudo. O cheiro da prisão vertical de Mauá, o funk e pagode que se ouvia nas sextas-feiras,
quando estava calor, na prisão, os defensores muito parceiros e os queridos amigos do CAM
se tornaram gratidão e registros nesta longa memória. O Núcleo de Situação Carcerária
(NESC) se tornou o novo campo de estágio, com Defensores Públicos muito críticos e
abolicionistas, sempre presentes nos eventos que frequentamos, visando aproximações com a
criminologia.
Nesse período, a população carcerária era 698.618 pessoas; só em São Paulo, a
população privada de liberdade somava 233.067, o que representa 33,37% do total no Brasil,
29,01%9 desta população estava presa sem condenação. Era o primeiro ano das audiências de
custódia, implementadas em 24 de fevereiro de 2015. São Paulo era uma “cidade chave” para
a implantação deste modelo de audiência; caso a cidade falhasse, não haveria motivo para o
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) implementá-lo em outros estados.10 Aparentemente, a
experiência deu certo, pois 10.678 paulistas não foram presos naquele ano e, de acordo com o
documento, vinte e um (21) presídios não foram construídos... Mas a superlotação também
não mudou muito...11
No NESC, os atendimentos eram realizados mais próximos às penitenciárias, à
Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), aos movimentos sociais e aos outros
Núcleos Especializados da Defensoria Pública. Assim, foi possível conhecer outras realidades
das prisões em São Paulo, como os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (onde
maior parte dos presos eram pessoas abandonadas pelos familiares e usavam, no máximo,
medicação para controle de pressão arterial e diabetes)12; as unidades femininas de Franco da
Rocha (uma cidade construída em torno de manicômios, prisões e Fundações CASA).
8
Ibid., p. 37.
9
DEPEN: base de dados do Departamento Penitenciário Nacional. Disponível em:
http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/bases-de-dados/bases-de-dados Acesso em: 30abr.
2021.
10
ZAQUEO, L.R. Diário de estágio: DEPSP – CAM-Mauá e NESC. Mauá e São Paulo: [s.n.], 2014 a 2016. 1
diário de bordo. p. 54, “02 de agosto de 2015 – Audiência Pública”
11
Brasil. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Audiência de Custódia, Brasília: CNJ, 2016. Disponível em:
https://www.cnj.jus.br/. Acesso em: 01 maio 2021.
12
Ao fim do cumprimento da medida de segurança, algum familiar tem que buscar quem recebeu “alta”. Como
não há nenhum tipo de trabalho eficaz previsto pela Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) visando o
fortalecimento de vínculos, os presos passam muito mais tempo do que “deveriam” nesses locais.
19
perspectiva reformista, a falta de habilidade para construir bons argumentos e uma tentativa
débil de adotar o materialismo histórico-dialético, mesmo com as inúmeras discordâncias,
problematizações e dificuldades de empregar aquele modelo de análise.
Em 2017, foi a hora de reorganizar a vida. Enquanto assistente social e abolicionista
penal, o emprego nas ONGs de São Paulo não foi possível, a maneira de trazer os
posicionamentos radicais e não permitir leituras pouco embasadas “queimou o filme”, e as
aulas de inglês na região do Carandiru, somada à militância na AMPARAR e nas ruas,
permitiu um outro olhar à mesma questão que tratava há anos.
Naquele período, pensava sobre a educação libertária (e a popular) enquanto
possibilidades melhores para acabar com a prisão, mas não só. Na AMPARAR a percepção
foi para a potência do fortalecimento comunitário e o “nós por nós”, que possibilita mudanças
muito mais significativas comparando com as soluções individualizantes, como a proposta de
educação não-punitiva no seio familiar, e a aposta em penas alternativas, como a busca por
absolvição da Justiça Restaurativa. Naquele ano, a população prisional no Brasil chegou a
726.354, sendo 226.463 em São Paulo, correspondendo a 31,18% dos presos.13
Em 2018 o “sabático” da academia acaba, e ocorre o retorno à UNIFESP, desta vez no
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Políticas Sociais, com um trabalho que
propunha observar questões manicomiais e prisionais. O tempo fora mudou muita coisa
(menos o crescimento da população carcerária), e estávamos em um momento de governo
fascista, embora fosse recomendado (juridicamente) que não usássemos este termo.
O retorno “à casa” envolveu compreender que muita coisa havia mudado na maneira
de olhar o abolicionismo penal e que a criminologia já não fazia tanto sentido para mim, no
Serviço Social, senão como uma ferramenta oportuna para ocupar determinados espaços e
obter uma influência que nunca foi a pretendida. A reformulação do projeto e a pouca
paciência com os espaços da profissão que tratavam da questão prisional dificultaram a
construção de um projeto, além da necessidade de trabalhar 44 horas semanais, por morar só
desde os 18 anos.
Em 2019, no mês que combinamos em fechar o projeto para a qualificação, a Profa.
Andrea Torres foi internada, vindo a falecer no 1o de setembro daquele ano. Em seguida,
houve um esforço para continuar, mas a amizade que envolvia aquela parceria tornou
intragável o movimento de, em luto, observar colegas se aproveitando da morte para se
13
Este dado, do Depen, é de junho de 2017. O último relatório tabulado pelo órgão foi em junho de 2017, desde
então a instituição disponibiliza a base de dados, em modo xsl, o que requer algum conhecimento de
programação e análise de Big Data.
21
promover e deslocando do real sentido a máxima do “ciclano, presente!”, entoada para não
permitir passar despercebida a morte de negros nas mãos de policiais. “Ricardo Ferreira
Gama, presente!”, “Marielle, presente”, “Amarildo, cadê?” e, Andrea Torres, apesar de
importantíssima militante, só está presente em nossos corações.
Em 2020 há um novo retorno às atividades, com o apoio da coordenação do curso, que
não me deixou desistir, e do meu orientador José Fernando Siqueira. Apesar de bem
assessorada, senti o movimento da pesquisa muito mais solitário pois os colegas do Grupo de
Estudos do qual fiz parte desde 2013 deixaram pistas de que minha discussão não seria
bem-vinda ali. Nos movimentos de encontrar novas interlocuções em outras universidades,
chega a pandemia de COVID-19.
O começo da pandemia implicou em um novo luto. A vida que planejava retomar não
existia mais e a quarentena aumentou a insegurança, ansiedade e dúvidas se esse era um
caminho para seguir. Novamente, José Fernando e Liduina Oliveira me apoiaram e
incentivaram a não parar, mesmo com as amarguras, cansaços e elaborações tão próprias de
quem se despede de expectativas de uma outra vida.
Reescrever o projeto dentro do tempo que a gente tinha, sempre muito incerto, foi um
processo bastante duro. Sem saber bem para onde ir, mas conhecendo razoavelmente bem a
discussão Foucaultiana, eu decidi voltar pro projeto no momento que José Fernando me
perguntou “Sobre o que você sabe falar? O que você tem?”. Bom, eu tenho o abolicionismo
penal, mas a perspectiva que ganhei ao viver a realidade do movimento social não havia sido
trazida ainda.
Foram meses pensando em estratégias e tentando organizar os sentimentos e
pensamentos. Eu sabia o que não queria fazer pelo sofrimento que estava passando, e sabia
onde não deveria pisar para que o “tiro não saísse pela culatra”. Foi difícil e bastante tenso,
mas em 1o de setembro de 2020 este trabalho foi qualificado com os Professores Bia
Carvalho, Stéfanis Caiaffo e José Fernando Siqueira da Silva na banca (e Dra.
Priscila Fernanda Gonçalves Cardoso na suplência).
Após a morte de George Floyd, as interlocuções passam a ocorrer com alguns
abolicionistas norte-americanos que constroem linhas de pensamento muito próximas às que
vinha formulando. O movimento “8 to abolish” (8 para abolir, uma proposta de 8 passos para
abolir a prisão) tem muitas assistentes sociais críticas olhando para a questão das prisões
como muito além das prisões. A proximidade virtual com este grupo dá um novo fôlego, uma
22
nova cara e uma nova vontade de discutir o que vinha sendo discutido, indo mais fundo na
questão.
A proposta deste trabalho, dividido em três capítulos, procura manter a intenção inicial
de “mostrar” Foucault e o “Abolicionismo Penal Anarquista”14, mas busca também chamar o
Serviço Social para uma conversa que requer crítica e autocrítica para abandonarmos um
discurso de “abolicionismo prisional”15 em uma profissão que tem tratado da questão racial
desde 2017 a partir de muita luta do movimento negro — e ainda assim, por vezes existem
acadêmicos que tratam da decolonidade como “pós-moderna”, e a “pós-modernidade” como
uma obrigatória superação de algum período, incutido em um pensamento binário que não
cabe nos valores do Projeto Ético-Político profissional.
INTRODUÇÃO
Este trabalho contou com uma profunda revisão bibliográfica, através do acesso a
documentos disponíveis online de algumas partes do mundo, com a finalidade de trazer o
maior número de elementos e informações possíveis acerca do tema. Boa parte das obras
foram consultadas em mídia física ou PDFs e livros disponíveis online. As notícias citadas
vieram, majoritariamente, de sites de importantes veículos de informação, a maioria vem
sendo coletado desde 2012. Os dados provém de Bancos de Dados e Hubs da internet e foram
analisados e organizados nos programas: Google Database e Excel; dado o grande número de
informações.
O objeto dessa pesquisa são as tecnologias de poder e as resistências à elas; focando
no Abolicionismo Penal. Os objetivos desenvolvidos foram: analisar os elementos principais
da teoria Foucaultiana, principalmente no que diz respeito à Biopolítica e Sociedade
Disciplinar; analisar criticamente o processo de formação da desigualdade racial e sua
influência sobre a classe trabalhadora no Brasil, dando maior destaque aos considerados
“indesejáveis”; “underclass” e “puníveis”, analisamos, também o projeto de genocídio em
curso desde a invasão dos portugueses. Por fim, discutimos a ascensão e queda do Estado
14
Uma nota do CFESS separou os abolicionismos em correntes, de uma maneira um tanto controversa, que dá a
entender que podemos falar de muitos caminhos para falar de algo que é nitidamente, e semanticamente, uma
coisa só: Abolir, de extinguir (não de deslocar poderes até se dissolverem as práticas), Penal de penas, punições
autoridades e repressões.
15
Tem se tornado cada vez mais frequente o discurso de manutenção das assistentes sociais na prisão “porque
somos as únicas que garantem os direitos humanos dos presos”, retomando a visão messiânica da profissão e, de
uma maneira cínica, encobrindo o corporativismo e os cafézinhos tranquilos tomados enquanto o Grupo de
Intervenções Rápidas espanca os presos e presas.
23
Michel Foucault é um autor clássico que dedicou boa parte de sua carreira pesquisando
a reclusão, em especial a relação entre o poder e conhecimento e seu uso no controle social
através das instituições e os discursos que as sustentam. Especialmente usado na Psicologia,
Filosofia e Sociologia, o pensamento crítico do autor nos permite olhar para a sociedade a
partir de uma outra perspectiva teórica.
Os trabalhos do autor trazem contextos históricos variados com um direcionamento
crítico: os efeitos das instituições em reprimir e aplanar comportamentos. Um projeto pautado
no casamento “perfeito” entre religiões cristãs e a formação do capitalismo na Europa. Apesar
da crítica à compreensão de origem, o autor ainda nos indica uma determinada origem das
coisas, não linear e com propósito, mas uma origem. Esse capítulo visa compreender a
proposta Foucaultiana em sua apreensão da História.
Buscamos explicitar os conceitos do autor, o método e alguns detalhes importantes da
análise Foucaultiana. Analisamos três pontos importantes: a genealogia da história, enquanto
método de análise; o poder disciplinar; a biopolítica e o biopoder.
17
De acordo com Machado (2019, p. 7) “a inovação metodológica presente em “História da Loucura” é a
resolução de estudar – em diferentes épocas e sem se limitar a nenhuma disciplina – os saberes sobre a loucura
para estabelecer o momento exato e as condições de possibilidade do nascimento da psiquiatria. Projeto esse que
deixou de considerar a história de uma ciência como o desenvolvimento linear e contínuo a partir de origens que
se perdem no tempo e são alimentadas pela interminável busca de precursores. Mas que também se realizava sem
privilegiar a distinção epistemológica entre ciência e pré-ciência, tendo no saber o campo próprio de
investigação.”
25
O que o autor propõe, portanto, é documentar a história não só pela mecânica das
datas, mas também pela compreensão dos tensionamentos discursivos dentro e fora das
instituições, considerando as complexidades de cada período histórico e os serviços aos quais
18
MACHADO, R., Microfísica do poder. 1 ed. Rio de Janeiro, Brasil: Paz e terra, 2019, p. 9
19
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 1. ed. Rio de Janeiro, Brasil: Paz e terra, 2019, p. 55
26
20
Ibid., FOUCAULT, 2019, p. 60
21
Ibid., p.62
22
Ibid., p.62
27
Ao retomar o conceito de Herkunft, Foucault nos diz respeito, de certa maneira, a sua
visão de sujeitos dentro desta história que pretende ser analisada através da genealogia,
compreendendo que a análise da proveniência não diz respeito a encontrar o indivíduo
assimilável com outros indivíduos, mas o indivíduo portador de uma própria expressão
singular de sua existência, o que permite ordená-los por suas diferenças ao invés de
semelhanças. “(...) a análise da proveniência permite dissociar o Eu e fazer pulular nos lugares
e recantos de sua síntese vazia, mil acontecimentos agora perdidos.”.23
Dessa forma, o autor nos permite visualizar uma história que leva em conta a
subjetividade do sujeito, que na genealogia é aquele que está sujeito a um dispositivo, em uma
maneira espiral, na qual o poder se desloca e coexiste entre as partes. Esta visão Foucaultiana
é um dos principais rompimentos do autor em relação às demais visões de poder da filosofia e
sociologia, na qual um o detém e o outro é oprimido. Esta visão nos permite questionar
anacronismos na história.
A genealogia não pretende recuar no tempo para restabelecer uma grande
continuidade para além da dispersão do esquecimento; sua tarefa não é a de mostrar
que o passado ainda está lá, bem vivo no presente, animando-o ainda em segredo,
depois de ter imposto a todos os obstáculos do percurso uma forma delineada desde
o início. (...) é descobrir que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós
somos – não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente.24
Podemos então pensar nessas construções de relações como um “jogo casual das
dominações”. Assim, ao observarmos a emergência de determinado conceito, discurso ou
pensamento, é importante mostrar também o jogo no qual ele surge. Ao não assumirmos o
23
Ibid. p. 62
24
Ibid. p. 63
25
Ibid. p. 66
28
papel de presença (como no “sujeito histórico”) daquela relação, tornamo-nos quase como
narradores de sistemas de pensamentos que têm como objetivo verticalizar as relações de
poder presentes.
O genealogista cuida de olhar para estes movimentos em um não-lugar. Compreende
que as disputas não terminam em paz, ou vitória dos “bons” contra os “maus”. Nesta análise
não cabe uma moral cristã, mas a observância das cenas onde as posições dicotômicas
parecem se distribuir e trocar suas ameaças.
A emergência e a genealogia não são passíveis de proclamação de propriedade por se
produzirem nas fendas, mas remetem a um espaço de representação da dominação e seu
movimento através da História. Em Nietzsche, é tratada enquanto o nascimento da lógica, da
dominação de classes, do homem sobre a natureza, do homem que busca satisfazer suas
necessidades para viver, etc.
E é por isso precisamente que em cada momento da história a dominação se fixa em
um ritual; ela impõe obrigações e direitos; ela constitui cuidadosos procedimentos.
Ela estabelece marcas, grava lembranças nas coisas e até nos corpos; ela se torna
responsável pelas dívidas. Universo de regras que não é destinado a adoçar, mas, ao
contrário, a satisfazer a violência. Seria um erro acreditar, segundo o esquema
tradicional, que a guerra geral, se esgotando em suas próprias contradições, acaba
por renunciar à violência e aceita sua própria supressão nas leis da paz civil. A regra
é o prazer calculado da obstinação, é o sangue prometido. Ela permite reativar sem
cessar o jogo da dominação; ela põe em cena uma violência meticulosamente
repetida. 26
Neste ponto há uma indicação, que dá o tom radical da análise do poder: a dos jogos
de poder punitivo nos tribunais, ruas e prisões, que será analisada com mais profundidade em
“Vigiar e Punir”.
Mas se interpretar é se apoderar por violência ou sub-repção, de um sistema de
regras que não tem em si significação essencial, e lhe impor uma direção, dobrá-lo a
uma nova vontade, fazê-lo entrar em um jogo e submetê-lo a novas regras, então o
26
Ibid. p. 69
27
Ibid. p. 69-70
29
O autor, portanto, retoma sua crítica à construção da verdade e a relação entre verdade
e história para análise das relações de poder, sob a ótica da problematização da construção de
discurso, ciência e outros dispositivos ao longo da história.
Para relacionar os conceitos de Herkunft e Entestehung explicados anteriormente com
a visão de genealogia da história, Foucault propõe um resgate da visão de sentido histórico de
Nietzsche em “Genealogia da moral”, que diz respeito à uma análise da história sob um ponto
de vista supra-histórico.
Uma história que teria por função recolher, em uma totalidade bem fechada sobre si
mesma, a diversidade, enfim reduzida, do tempo; uma história que nos permitiria
nos reconhecermos em toda parte e dar a todos os deslocamentos passados a forma
da reconciliação; uma história que lançaria sobre o que está atrás dela um olhar de
fim de mundo. Essa história dos historiadores constrói um ponto de apoio fora do
tempo; ela pretende tudo julgar segundo uma objetividade apocalíptica; mas é que
ela supôs uma verdade eterna, uma alma que não morre, uma consciência sempre
idêntica a si mesma.29
É nítido que Foucault não está tratando de uma recusa da ferramenta do saber histórico
para criar uma narrativa. A questão para o autor está nos atravessamentos desta narrativa e sua
intenção de um olhar que foge do pensamento binário e dicotômico engessado. Para isso
resgata a compreensão de Nietzsche de que a história afeta o corpo, pois é o corpo formado
pelos regimes que constrói a história e cria resistência a partir dos movimentos da vida.
Para Foucault,
A história “efetiva” se distingue daquela dos historiadores pelo fato de que ela não
se apoia em nenhuma constância: nada no homem – nem mesmo seu corpo – é
bastante fixo para compreender outros homens e se reconhecer neles. Tudo em que o
homem se apoia para se voltar em direção à história e apreendê-la em sua totalidade,
28
Ibid. p. 70
29
Ibid. p. 70
30
Ibid. p. 71
30
31
Ibid. p.71
32
Termo jurídico que diz respeito à possibilidade de ganhos e lucros em uma ação.
33
Ibid. p. 73
34
Ibid. p. 76
31
diversas'', quer dizer, como necessários e modificáveis, assim o autor indica uma possibilidade
de recortes para considerar particularidades presentes nos sistemas analisados40.
A história, genealogicamente dirigida, não tem por fim reencontrar as raízes de
nossa identidade, mas, ao contrário, se obstinar em dissipá-la; ela não pretende
demarcar território único de onde viemos, essa primeira pátria à qual os metafísicos
prometem que retornaremos; ela pretende fazer aparecer todas as descontinuidades
que nos atravessam. 41
40
Ibid. p. 85
41
Ibid. p.83
42
Ibid. p. 81
43
Crítica a Hegel e Fichte.
44
Ibid., p. 83-85
33
O poder aqui é um recurso do qual se utiliza quem o tem à seu dispor, em posições
estratégicas. Portanto sua relação com a “classe dominante” é de uma recondução de recursos
possíveis, não necessariamente de maneira direta e vertical,
[...] Esse poder, por outro lado, não se aplica pura e simplesmente como uma
obrigação ou uma proibição, aos que “não têm”; ele os investe, passa por eles e por
meio deles; apoia-se neles, do mesmo modo que eles, em sua luta contra esse poder,
apóiam-se por sua vez nos pontos em que ele os alcança.. O que significa que essas
relações se aprofundam dentro da sociedade, que não se localizam nas relações do
Estado com os cidadãos ou nas fronteira das classes e que não se contentam em
reproduzir ao nível dos indivíduos, dos corpo, dos gestos e dos comportamentos, a
forma geral da lei ou do governo; que se há continuidade (realmente elas se
articulam bem, nessa forma, de acordo com toda uma série de complexas
45
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro: Vozes, 2014, p. 29
46
Ibid., p. 30
34
Os elementos materiais e técnicas que operam nesse corpo político tratam de uma
retomada de regulamentos técnico-político dos corpos, que surgem com maior destaque no
século XVII na Europa. O poder-saber dos filósofos, médicos, e outros profissionais que
atuavam em espaços militares, escolares, hospitalares e afins, tem, inicialmente, a finalidade
da correção, do adestramento e, mais a frente na história, da docilidade. “É dócil um corpo
que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”. 49
[...] A escala, em primeiro lugar, do controle: não se trata de cuidar do corpo, em
massa, grosso modo, como se fosse uma unidade indissociável, mas de trabalhá-lo
detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao mesmo
nível da mecânica — movimentos, gestos, atitude, rapidez: poder infinitesimal sobre
o corpo ativo.50
47
Ibid., p. 30
48
Ibid., p. 31
49
Ibid., p. 134
50
Ibid., p. 135
35
disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma
dominação acentuada. 51
51
Ibid., p. 136
52
Ibid., p. 137
53
Ibid., p. 155
54
Ibid., p. 164-165
36
A distribuição dos indivíduos no espaço, seja nas prisões, nas escolas, nos quartéis, ou
nas áreas da periferia com policiamento ostensivo e tanques de guerra. Há um
desenvolvimento de tecnologia de poder das prisões como as de “segurança máxima”, com
seus muros gigantescos para as prisões a céu aberto que são as “favelas” brasileiras. Como
veremos nos capítulos seguintes.
A reflexão Foucaultiana acerca da disciplina nos permite refletir acerca de estruturas
empregadas na política brasileira, principalmente durante os anos 60, com a ditadura militar.
A política, como técnica da paz e da ordem internas, procurou pôr em
funcionamento o dispositivo do exército perfeito, da massa disciplinada, da tropa
dócil e útil, do regimento no acampamento e nos campos, na manobra e no
exercício. Nos grandes Estados do século XVIII, o exército garante a paz civil sem
dúvida porque é uma força real, uma espada sempre ameaçadora,mas também
porque é uma técnica e um saber que podem projetar seu esquema sobre o corpo
social.55
55
Ibid., p. 165-166
56
Ibid., p. 166
57
Ibid., p. 167
37
coordenar melhor os cuidados; a forma dos edifícios, pela cuidadosa separação dos
doentes, deve impedir contágios; a ventilação que faz circular em torno de cada leito
deve enfim evitar que os vapores deletério se estagnem em volta do paciente,
decompondo seus humores e multiplicando a doença por seus efeitos imediatos.58
Essa fiscalização é inerente aos sistemas disciplinares e tem sua lógica no mecanismo
penal com suas próprias leis, sanções e instâncias de julgamento. “As disciplinas estabelecem
uma “infrapenalidade”; quadriculam um espaço deixado vazio pelas leis; qualificam e
reprimem um conjunto de comportamentos que escapava aos grandes sistemas de castigo por
sua relativa indiferença.”60
A partir deste aparato de vigilância e punição é que se garante, de certa forma, o
funcionamento da disciplina pelo esforço de evitar as sanções que se inscrevem nos corpos
em forma de castigos corporais e sutis mecanismos repressores de comportamentos.
(...) Trata-se ao mesmo tempo de tornar penalizáveis as frações mais tênues da
conduta, e de dar uma função punitiva aos elementos aparentemente e indiferentes
do sistema disciplinar: levando ao extremo, que tudo possa servir para punir a
mínima coisa; que cada indivíduo se encontre preso numa universalidade
punível-punidora.61
58
Ibid., p. 169
59
Ibid., p. 174
60
Ibid., p. 175
61
Ibid., p. 175
38
Essa dicotomia de valores permite uma espécie de economia que pode “absolver” os
castigos e promover hierarquias. Um sujeito que é considerado “bom”, que segue as normas
em boa parte do tempo e é constantemente recompensado, tem uma espécie de "crédito" para
seus erros. Em alguns casos pode ter uma posição hierárquica maior, deste modo o que é
punido é o indivíduo, não o ato, podendo essa punição ser um rebaixamento de posição.
Em suma, a arte de punir, no regime do poder disciplinar, não visa nem expiação,
nem mesmo a repressão. Põe em funcionamento cinco operações bem distintas:
relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto,
que é ao mesmo tempo campo de comparação, espaço de diferenciação e princípio
de uma regra a seguir.(...) A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e
controla todos os instantes das instituições disciplinares compara, diferencia,
hierarquiza, homogeniza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza.65
Nisso, difere das penalidades judiciárias que balizam o proibido e permitido, legal e
ilegal através da condenação e a partir das normas, que ditam o “normal”. O funcionamento
jurídico, ao contrário do que as teorias clássicas liberais discorrem, não parte de um
humanismo ou razão, mas da imposição e construção deste normal.66
Para manutenção do controle e vigilância, a partir da hierarquia, existe a ferramenta do
exame, que diferencia e sanciona os sujeitos.
62
Ibid., p. 223
63
Ibid., p. 176
64
Ibid., p. 177
65
Ibid., p. 179
66
Ibid., p. 180
39
No coração dos processos de disciplina, ele manifesta a sujeição dos que são
percebidos como objetos e a objetivação dos que se sujeitam a superposição das
relações de poder e das de saber assumir no exame todo o seu brilho visível (...) pois
nesta técnica delicada estão comprometidos todo um campo de saber, todo um tipo
de poder.67
O ritual do exame, que nasce nos hospitais, é fundamento para essa construção de
saber-poder. O médico, a partir de seu olhar técnico e especializado, é o centro deste ritual,
aquele que dá a palavra final sobre a condição do paciente.
Na escola, os exames periódicos garantem a troca de saber e a torna local de
elaboração da pedagogia. “O exame supõe um mecanismo que liga um certo tipo de formação
de saber a uma certa forma de exercício de poder”.68
A princípio o poder é algo visível, sua força está no que se exibe a partir daquilo que
se quer mostrar. O exame inverte essa lógica pois torna o poder disciplinar invisível, quem é
visto é o alvo dessa tecnologia de poder, e a condição de sempre ser visto garante que o
indivíduo mantenha-se sujeito a ele.
O exame é a técnica pela qual o poder, ao invés de emitir os sinais de seu poderio, ao
invés de impor sua marca a seus súditos, capta-os num mecanismo de objetivação.
No espaço que domina, o poder disciplinar manifesta, para o essencial, seu poderio
organizando os objetos. O exame vale como cerimônia dessa objetivação.69
O exame constrói um inventário sobre o objeto a ser examinado, tornando tudo aquilo
que diz respeito à individualidade parte de um documento, reduz os sujeitos à escrita e
anotações, que captam e fixam uma face da questão, captada por quem o conduz. Esse
documentário possibilita classificações e agrupamentos.
Graças a todo esse aparelho de escrita que o acompanha, o exame abre duas
possibilidades que são correlatas: a constituição do indivíduo como objeto
descritível analisável, não contudo para reduzi-lo a traços "específicos", como fazem
os naturalistas a respeito dos seres vivos; mas para mantê-los em seus traços
singulares em sua evolução particular, em suas aptidões com capacidades próprias,
sob o controle de um saber permanente; e por outro lado a Constituição de um
sistema comparativo que permite a medida de fenômenos globais a descrição de
grupos a caracterização de fatos coletivos, a estimativa dos desvios dos indivíduos
entre si sua distribuição numa “população”.70
67
Ibid., p. 181
68
Ibid., p. 185
69
Ibid., p.183
70
Ibid., p.186
40
Ademais, é a partir do exame que vemos complexas histórias de famílias (nos casos da
Vara de Família, por exemplo) reduzidas a “caso”, retirando a humanidade e subjetividade dos
sujeitos.
(...) O caso não é mais vivo como na casuística ou na jurisprudência, um conjunto de
circunstâncias que qualificam um ato e podem modificar a aplicação de uma regra, é
o indivíduo tal como pode ser descrito, mensurado, medido, comparado a outros e
isso em sua própria individualidade; e é também o indivíduo que tem que ser
treinado ou retreinado, tem que ser classificados, normalizado, excluído etc.72
Essa maneira de utilização da escrita inverte a lógica das biografias heroicas e passa a
ser um atestado, ou prova, de que algo foge da norma. É o caso dos loucos e prisioneiros, que
são fonte de estudos para criar padrões de comportamento, como é o exemplo do “serial
killer”, que em seu julgamento convidam uma professora dos seus primeiros anos de infância
para que ela traga um exemplo bruto de criança que arrancava a cabeça de bonecas, batia nos
colegas e não pedia desculpas.
No livro “Em defesa da sociedade”73, Foucault discorre sobre um dos conceitos mais
importantes de sua teoria, que embasa um outro olhar para as intervenções dos dispositivos
nos corpos, em especial ao racismo de Estado, a biopolítica. O pensamento do autor é
desenvolvido a partir de um olhar sobre o poder soberano e a análise de elementos acerca do
gerenciamento da vida e da continuidade das tecnologias de poder.
Na sociologia e na filosofia existem diversas discussões acerca das teorias de
soberania (Bodin, Rousseau, Kant); a perspectiva de Foucault analisa o gerenciamento e
escolha de vida e morte no poder soberano. Para o autor, a soberania se encontra enquanto
pano de fundo para a análise do racismo, da “guerra das raças”.
71
Ibid., p. 187
72
Ibid., p. 187
73
O título original “Il faut défendre la société” tem uma ironia perdida em seu título na tradução para o
português. Na tradução livre, o título seria “Devemos defender a sociedade”. A ironia está nos temas trazidos
pelo autor ao fazer a genealogia desta sociedade, que revela ser indefensável.
41
Em certo sentido, dizer que o soberano tem o direito de vida e de morte significa, no
fundo, que ele pode fazer morrer e deixar viver; em todo caso, que a vida e a morte
não são desses fenômenos naturais, imediatos, de certo modo originais ou radicais,
que se localizariam fora do campo do poder político. Quando se vai mais além e, se
vocês quiserem, até o paradoxo, isto quer dizer no fundo que, em relação ao poder, o
súdito não é, de pleno direito, nem vivo nem morto. Ele é, do ponto de vista da vida
e da morte, neutro, e é simplesmente por causa do soberano que o súdito tem o
direito de estar vivo ou tem direito, eventualmente, de estar morto.74
74
Foucault, Michel. Em defesa da sociedade. 2 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes. 2010, p. 202
75
Ibid. p. 204
42
76
Ibid., p. 205
77
Ibid., p. 206
78
Ibid., p. 207
43
79
Ibid., p. 209
80
Ibid., p. 211
44
O último ponto, que alinhava esses elementos e incursões de poder sobre o corpo e a
população, é o racismo que, conforme veremos a seguir, toma uma nova forma para atender
ao poder político do “fazer morrer” do próprio “cidadão”. No Brasil,
O que inseriu o racismo nos mecanismos do Estado foi mesmo a emergência desse
biopoder. Foi nesse momento que o racismo se inseriu como mecanismo
fundamental do poder, tal como se exerce nos Estados modernos, e que faz com que
quase não haja funcionamento moderno do Estado que, em certo momento, em certo
limite e em certas condições, não passe pelo racismo.83
Em linhas gerais, o racismo tem como função a hierarquia das raças a partir de um
recorte biológico, discursivo e cultural, que age através de sutilezas e também pela baliza de
vida e morte das raças.
De uma parte, de fato, o racismo vai permitir estabelecer, entre a minha vida e a
morte do outro, uma relação que não é a relação militar e guerreira de
81
Ibid. p. 212
82
Ibid. p. 213
83
Ibid. p. 214
45
É a ideia de perigo biológico, a “raça ruim que precisa ser exterminada”, ou seja, uma
norma racial que tem enquanto imperativo a morte e eliminação do outro. Para Foucault, o
poder de morte do Estado só se faz pelo racismo. Ele é “condição para que se possa exercer o
direito de matar”85, que pode ser direto — como através de uma polícia e um judiciário que
selecionam a partir da cor quem será seu alvo — quanto indireto, como no caso da negação do
acesso às políticas sociais e mínimos para sobrevivência que iniciam com sua cor, a exemplo
dos negros “libertos” que são preteridos para o trabalho e terra em comparação com o
imigrante europeu recém chegado (questões que ressoam fortemente até hoje).
Por fim, antes de discutirmos o racismo mais a fundo, vale pensarmos na ligação entre
racismo e criminalidade, tão fortemente presente nos discursos de seletividade penal e
reclusões em nossa sociedade.
[...] Se a criminalidade foi pensada em termos de racismo, foi igualmente a partir do
momento em que era preciso tornar possível, num mecanismo de biopoder, a
condenação à morte de um criminoso ou seu isolamento. Mesma coisa com a
loucura, mesma coisa com anomalias diversas.86
A compreensão de poder para Foucault pode se relacionar com a ideia de uma negação
da sociedade de classes, justamente por ir contra categorias fundamentais para o marxismo
como ideologia e dominação. Entendemos, à luz da crítica muito presente no Serviço Social,
principalmente entre autores marxistas87, como ecletismo a utilização de Marx e Bakunin
neste trabalho, posta esta limitação teórica.
A ideia de relações de poder como parte dessa estrutura de sociedade é um ponto que
precisa ser exposto neste trabalho, por tratarmos de elementos basilares do autor. No entanto,
não é somente a partir desta concepção que este trabalho se direciona. Uma questão que nos
chama a atenção na concepção de poder Foucaultiana é sua compreensão e análise da história
84
Ibid., p. 215
85
Ibid., p.216
86
Ibid., p. 217
87
O importantíssimo trabalho de Sheilla Nadíria Rodrigues Rocha, que fundamentou em sua tese de
doutoramento o caráter sincrético do Serviço Social em sua tradição; este sincretismo diz respeito a uma junção
de muitos autores que não necessariamente dialogam, para justificar e explicar o mesmo fenômeno na sociedade.
46
através da genealogia, que nega radicalmente a metafísica e nos permite olhar para a realidade
a partir de uma materialidade.
Sob essa lógica, então, conseguimos compreender a história como um
desenvolvimento belicoso, dotado de materialidade e discursos norteadores, intenções
demonstradas pelo uso e desenvolvimento de tecnologias de poder (ainda que um poder
relacional e distante da compreensão de dominação pressuposta nas análises marxistas).
Insistimos, portanto, em uma análise que utilize os pensamentos Foucaultianos e os
exponha, com a finalidade de negar o determinismo histórico, que reforça a ideia de uma
realidade como está dada. Concordamos que vivemos numa sociedade desigual, não somente
pela centralidade das questões derivadas da relação capital–trabalho e extração de mais-valia,
mas também pelas questões que atravessam um poder que se manifesta, materialmente, como
inegavelmente violento. A violência e a autoridade são pontos que não excluímos ao pensar
em poder.
A utilização de qualquer autor supõe a crítica respeitosa. Arriscar-se sair do escopo
teórico tradicional do Projeto Ético-Político é um desafio ímpar, pois há o perigo de soar
como em defesa de um outro Serviço Social. Não é nosso objetivo. Existem críticas
anarquistas que se embasam em Michel Foucault88, e esses autores serão utilizados no
decorrer desta dissertação por apontar nossa concordância teórico-política.
É sabido que, historicamente, o socialismo libertário olhou para a sociedade e interviu
em sentido de horizontalidade, participação popular, alinhamento de teoria e prática e,
sobretudo, a defesa da liberdade. Anarquistas e comunistas historicamente — com inúmeras
divergências — lutaram e intervieram em conjunto para a transformação desta sociedade e por
uma nova ordem social. É neste sentido, do anticapitalismo, humanismo radical, ética e práxis
que há o encontro com os valores do Serviço Social que acreditamos. Com destaque para as
possibilidades de uma classe trabalhadora que fala de si, para si e utiliza de ferramentas para
que suas reivindicações e lutas sejam feitas sem intermediários.
É necessário destacar que o uso de Foucault neste trabalho diz respeito a uma lacuna
de utilização do autor no Serviço Social, na íntegra e para fora da compreensão de uma crítica
à pós-modernidade e diálogo com seus princípios libertários, a partir da crítica à reclusão e ao
saber-poder. Usamos o autor como uma “caixa de ferramentas”89, cuja a análise de uma
88
No Brasil: Abdias Nascimento, Silvio Almeida, Edson Passetti, Acacio Augusto, Margareth Rago, Silvio
Gallo, Salete Oliveira, Stéfanis Caiaffo e Thiago Oliveira. Também é importante destacar o trabalho de Salvo
Vaccaro.
89
Em “Microfísica do poder” Foucault usa esse termo em uma conserva com Deleuze; tá aí uma discussão que
pode ser usada.
47
movimento acadêmico e social busca, sobretudo, intervir. A divisão dos subcapítulos propõe
analisar a questão racial através dos três momentos propostos por diversos autores91: o
momento místico, o momento científico e o momento cultural.
O primeiro ponto trata da desigualdade racial no Brasil, embasada em um discurso
teológico no período colonial. Para esta análise, é necessário voltarmos nossa “lupa
genealógica” aos discursos que sustentaram a sujeição de povos e corpos ao longo da história.
Desta maneira contamos com a contribuição de pensadores acerca da questão racial (Abdias
Nascimento, Aimé Césaire, Clóvis Moura e Lilia Schwarcz) e punitiva deste período e do
decurso da “transição” para a República Velha, a partir das análises de Fernando Salla.
Ao resgatar esses autores, buscamos ressaltar algumas questões essenciais para
pensarmos na abolição das penas para além da prisão, a partir de um recorte histórico: a
utilização de recursos discursivos a fim de justificar a escravidão e sequestro da população
africana para exploração da mão-de-obra barata; a reflexão crítica sobre a história formal e
suas inconsistências; o papel do eurocentrismo cristão nos primórdios da formação
socio-cultural do Brasil; a eugenia presente nos disposivitos centrais desta pesquisa e as
heranças destes períodos que perpetuam o “racismo à brasileira”, tema discutido no segundo
capítulo.
Fechamos esse capítulo com o levantamento de elementos que sustentam um
punitivismo de Estado e a militarização da vida social. Na discussão sobre o racismo cultural,
compreendemos como os discursos se mantiveram desde a colônia através de reformas e
propagandas que mantiveram o racismo como estrutura de nossa sociedade. Terminamos a
discussão refletindo sobre as punições do Estado na ditadura, a fim de compreender o que se
mantém desde o militarismo.
Visando a análise cuidadosa dos discursos, assimilações e práticas destes momentos,
neste primeiro capítulo, a divisão dos pontos buscou passar, cuidadosamente, pelas bases e
mecanismos das instituições que permitiram o enraizamento da imposta sujeição dos povos
africanos e ameríndios à perversa proposta de civilização europeia. Apesar das dificuldades
em reunir documentos oficiais, acreditamos que este ponto explicita a relação indivisível de
raça e classe em nosso país, pontos fundamentais para o desenvolvimentos das reflexões
objetivadas nesta pesquisa.
91
Entre eles: Aimé Césaire, Achille Mbembe e Frantz Fanon
49
92
MOURA, Clóvis. Racismo e luta de classes no Brasil:textos escolhidos de Clóvis Moura. 1 ed.. Terra Sem
Amos. 2020. p. 19
93
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. 1st ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora. 1978. p. 14-15
50
O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, aos pés uma
alcatifa por estrado; e bem vestido, com um colar de ouro, mui grande, ao pescoço.
E Sancho de Tovar, e Simão de Miranda, e Nicolau Coelho, e Aires Corrêa, e nós
outros que aqui na nau com ele íamos, sentados no chão, nessa alcatifa.
Acenderam-se tochas. E eles entraram. Mas nem sinal de cortesia fizeram, nem de
falar ao Capitão; nem a alguém. Todavia um deles fitou o colar do Capitão, e
começou a fazer acenos com a mão em direção à terra, e depois para o colar, como
se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E também olhou para um castiçal de
prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá
também houvesse prata!
Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo
na mão e acenaram para a terra, como se os houvesse ali.
Mostraram-lhes um carneiro; não fizeram caso dele.
Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a
mão. Depois lhe pegaram, mas como espantados.Deram-lhes ali de comer: pão e
peixe cozido, confeitos, fartéis, mel, figos passados. Não quiseram comer daquilo
quase nada; e se provavam alguma coisa, logo a lançavam fora.94
94
CAMINHA, Pero Vaz de. “A Carta.”. Domínio Público, 1500. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua000283.pdf. Acesso em: 19 jan. 2021.
95
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 3rd ed. São
Paulo: Perspectivas, 2016. p. 50
51
O último censo demográfico sobre a população indígena96, feito há mais de dez anos,
em 2010, contabilizou 896 mil pessoas que se declararam indígenas. Desta população, apenas
57,5% moravam em Terras Indígenas oficialmente reconhecidas.97 98
Durante o processo de expansão do império português há um outro elemento
fundamental para nossa discussão: o uso de trabalho escravo do povo capturado na África e
trazido em navios, bem como a construção da narrativa sob o território africano e seu povo
durante o período. Um exemplo destas escolhas narrativas é o episódio da “descoberta” da
Bacia do Congo, em 1482, narrada por de Barros:
Agora é chamado de Congo, pois passa pelo reino nomeado assim, descoberto por
Diogo Cão em sua viagem, porém é chamado de Zaire pelos nativos: mais famoso
por suas águas do que pelo nome; durante aquela estação do ano, inverno na região,
a água do rio vem de encontro abundantemente com o Oceano e é possível avistá-la
a vinte léguas da margem.99
Nesta ocasião, Diogo Cão marcou a chegada dos portugueses na região em uma
pedra, na primeira grande catarata do Congo. Decidiu também levar alguns nativos da região
para Portugal, a fim de anunciar sua “descoberta”, deixando alguns portugueses de sua
embarcação como garantia. No retorno, os portugueses induziram o rei do Congo a aceitar a
condecoração de Lorde por parte do Rei João e tornar-se cristão, segundo documentos
consultados. É neste período que a colonização portuguesa começa na África.
Ao tratarmos desta permuta entre os corpos portugueses e africanos, encontramos o
elemento de uma sociedade desenvolvida de sua própria maneira, que competia com os países
do continente europeu em sua expansão e fluxos migratórios. A história formal, em sua
construção de saber eurocentrada, parece esconder a história de riquezas e construção de
conhecimento do restante do mundo, em especial da África. Este apagamento histórico, que
será tratado no próximo ponto, também constrói uma narrativa e construção de um “devir
negro” construído pelo branco.
A resistência de povos originários não deve ser ignorada; no Brasil-colônia, a luta dos
povos ameríndios resulta na proibição da escravidão em 1570. Entre as consequências deste
96
A Base para este censo reuniu dados da autodeclaração e da população residente em áreas indígenas, ainda que
não se declarem parte desta população, e pessoas que se consideram indígenas. Apesar do aumento destes povos
no censo, a metodologia aponta para falhas. No período desta pesquisa, o genocídio indígena segue em plena
evolução. Com a ingerência do Estado no enfrentamento à pandemia de COVID-19, os cortes orçamentários do
governo Bolsonaro impedem o desenvolvimento de novo censo em 2021, mas as mortes de indígenas
representam 0,29% da população (1046 mortes de 378.000).
97
Fundo Nacional do Índio. Índios no Brasil: O Brasil indígena. 2010, IBGE. Disponível em:
http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/o-brasil-indigena-ibge. Acesso em: 21 abr. 2021.
98
ARTICULAÇÃO dos Povos Indígenas Brasileiros. Dados covid 19: Emergência indígena. 2021, Disponível
em: https://emergenciaindigena.apiboficial.org/dados_covid19/. Acesso em: 21 abr. 2021.
99
HISTORICAL Section of the Foreign Office. The Formation of the Portuguese Colonial Empire. 1 ed.,
London, H.M. Stationery Office, 1920. (A Formação do Império Colonial Português). Disponível em:
https://www.wdl.org/pt/item/11921/view/1/1/. Acesso em: 04 fev. 2021. Tradução nossa
52
ato está a diferença dos mecanismos e efeitos deste racismo, embora muitos mecanismos
sejam os mesmos.
É difícil analisar a sociedade e os costumes indígenas, porque se lida com povos de
cultura muito diferente da nossa e sobre a qual existiram e ainda existem fortes
preconceitos. Isso se reflete, em maior ou menor grau, nos relatos escritos por
cronistas, viajantes e padres, especialmente jesuítas. Existe nesses relatos uma
diferenciação entre índios com qualidades positivas e índios com qualidades
negativas, de acordo com o maior ou menor grau de resistência oposto aos
portugueses. Por exemplo, os aimorés, que se destacaram pela eficiência militar e
pela rebeldia, foram sempre apresentados de forma desfavorável. De acordo com os
mesmos relatos, em geral, os índios viviam em casas, mas os aimorés viviam como
animais na floresta. Os tupinambás comiam os inimigos por vingança; os aimorés,
porque apreciavam carne humana. Quando a Coroa publicou a primeira lei em que
se proibia a escravização dos índios (1570), só os aimorés foram especificamente
excluídos da proibição.100
certo ar de legalidade, aos padrões de quem mensurava a moral da época) à atuação europeia
nos territórios africanos e latino americanos.
É muito comum, neste período, a falsificação de fatos para naturalizar as violências;
um exemplo é o discurso prevalecente de que o próprio povo africano cultivava a escravidão e
a trouxe para as Américas. Neste caminho, também segue o discurso da superioridade
europeia, base para a justificar o genocídio da população africana, os saques das obras de arte
(que seguem expostas em museus franceses até hoje), e o epistemicídio.103
Em verdade, o papel exercido pela Igreja Católica tem sido aquele de principal
ideólogo e pedra angular para a instituição da escravidão em toda sua brutalidade. O
papel ativo desempenhado pelos missionários cristãos na colonização da África não
se satisfez com a conversão dos “infiéis”, mas prosseguiu, efetivo e entusiástico,
dando apoio até mesmo à crueldade, ao terror do desumano tráfico negreiro.104
Também nos cabe lembrar que o período que tratamos neste momento é o do
absolutismo da monarquia Europeia, que tem seus reis “escolhidos por Deus”, usando das
mais diversas ferramentas para justificar a superioridade de um grupo étnico sobre outro.
Desta forma, Moura (1942) indica que
(…) as tentativas feitas para justificar a dominação europeia sobre os indígenas eram
fundadas em crenças sobrenaturais. Como os europeus eram cristãos, ao contrário
dos povos submetidos, nada mais lógico e natural de que o Deus todo-poderoso dos
cristãos recompensasse os seus adeptos. Os donos de escravos negros podiam
inclusive justificar a escravidão em uma passagem do Velho Testamento, no qual se
lê que os filhos de Cam foram condenados a ser lenhadores e aguadeiros.105
Retomando a fábula acerca dos filhos de Cam, é importante nos atentarmos a esta
passagem bíblica e o significado do rito do batismo para o povo europeu (judaico-cristão).
103
Ibid. p. 60.
104
Ibid. p. 59.
105
MOURA, Clóvis. Apud Linton, R. Estudio del hombre. México: Fondo de Cultura Econômica, 1942, p. 59.
106
Ibid., p. 63.
54
Cam era herdeiro de Adão, filho de Noé, que após sobreviver ao dilúvio, na arca do pai,
cometeu o pecado de ver seu pai embriagado, e nu, e “quebrado o pudor do segredo da
intimidade” contando para seus irmãos sobre o que viu. Noé, então, amaldiçoou seu filho e
herdeiros, o enviando em exílio para uma terra onde seu povo exercia diversas ocupações
(inclusive na arte e filosofia). No entanto, seus filhos nunca foram batizados e, embora
trabalhassem arduamente, seguiam com esta marca dos primeiros homens pecadores.
O cristianismo acredita que o batismo é um ritual onde se “nasce novamente”;
limpando a alma dos pecados e ajustando as condutas à vontade de Deus. Até o filho de Deus,
Jesus, foi batizado para cumprir seu sacrifício (santo ofício). Os padres então se apropriaram
desta base para dizer que:
“Segundo a oratória de Vieira, as águas do batismo cristão possuíam as diversas
virtudes justificativas do escravizamento do africano e, mais ainda, tinham o poder
mágico de erradicar sua própria raça — um desgraçado limpo e branco!”.107
107
Ibid. p, 64.
108
COSTA, Duane B.; AZEVEDO, Uly C. “Das Senzalas às Favelas: Por onde vive a população negra brasileira.
Revista Socializando Número 3 1, n. 1, jul. 2016. p. 152
55
114
Não cabe a este trabalho aprofundar nas leituras desenvolvidas pela criminologia. Aqui há um interesse de
conhecimentos dos acontecimentos e uma reflexão acerca daquilo que persevera. De antemão, é importante dizer
que o abolicionismo penal, embora considerado por alguns autores questão de uma criminologia crítica moderna,
não está apenas neste campo e nesta episteme. Seria, inclusive, ingenuidade atribuir exclusivamente ao direito
penal (ou qualquer profissão) o papel de se implodir; assim como um apagamento das lutas sociais históricas que
estão envolvidas neste embate.
115
Ibid., p. 6
57
A primeira prisão do Brasil foi construída em torno de 1804, o que nos indica que até
então a distribuição de castigos, a vigilância, as normas e os “tribunais” eram de
responsabilidade e balizados pelo próprio senhor de escravos, com seus funcionários:
capatazes para vigiar o trabalho e punir os escravos, os capitães-do-mato para “caçar” aqueles
que rejeitavam a condição e se organizavam para fugir. A não-conformação e busca por
domínio de sua vida é comum desde o momento do sequestro, se jogando ao mar, e durante
todo o processo de exploração. O suicidio é resistência e maneira de ser senhor de si, a fuga e
o quilombo são saídas para o retorno à sua maneira de sociabilidade e liberdade.
O termo liberdade passa a ser utilizado com outros significados no Brasil colonial a
partir dos ideais liberais que chegam ao país e penetram de maneira lenta, com algumas
expressões na classe média de Minas Gerais e Bahia. Soma a crise das monarquias, inspirada
pela Revolução Francesa (1789–1799) trazendo o início de um movimento por um novo
regime, pautado por uma suposta racionalidade e incentivado pelas teorias de livre-mercado.
No ponto discursivo, o liberalismo surge a partir do processo da revolução burguesa,
que tensiona a doutrina cristã ao, por exemplo, cortar as cabeças dos monarcas, e cria suas
próprias teorias de “liberdade, igualdade e fraternidade”. Essa nova forma de governo instaura
outras instituições, ou outras tecnologias de poder para determinadas instituições, tornando o
argumento em torno da alma e salvação da população não-branca insuficiente — o que não
significa uma mudança de paradigma e um “despertar” a partir da “iluminação” de uma
determinada racionalidade, e sim a criação de novos discursos para justificar velhas práticas e
desenvolvimento de novas tecnologias de poder.
116
ZAQUEO, Larissa R. "Desassistências" na prisão: os rebatimentos no Serviço Social da Defensoria Pública
do Estado de São Paulo. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado Serviço Social). Santos. 2016. p. 20
58
Aos poucos a Colônia perde a finalidade exclusiva de exploração, o que traz diversos
desdobramentos ao lidar com a população crescente. A existência de uma nova classe média e
das revoltas acontecendo na Colônia e Metrópole culminam em um processo de
independência no qual “muitos negros e mulatos imolaram suas vidas combatendo a tirania
portuguesa. E quando o Brasil, em 1822, se tornou independente de Portugal, continuou o
mesmo país escravizador do africano”.118
A independência do Brasil não implicou, imediatamente, em uma República com
valores liberais; seguimos com a monarquia e um imperador português, embora as pressões
para a dissolução do absolutismo fizeram com que o país passasse a funcionar com quatro
poderes (os três poderes clássicos do Estado liberal, e um poder moderador, soberano) as atas
dos conselhos do Estado119 e a constituição de 1824 trazem o tom de disputa das oligarquias
agrárias e o autoritarismo do governo.
A partir da ruptura com o antigo sistema colonial, o país poderia firmar-se e evoluir
sobre os seus próprios pés. A ausência de riquezas, que pudessem estimular outras
formas de acomodação no nível do mercado mundial e das estruturas internacionais
de poder, acabou favorecendo uma linha de desenvolvimento bem diversa da que
prevaleceu em outras regiões do globo. Por conseguinte, o poder político,
organizado em bases independentes, iria desempenhar funções socialmente
construtivas, tanto como mera condição e agente ordenador da formação de uma
economia integrada em escala nacional quanto como o fulcro imediato e o pólo
dinâmico permanente da construção de uma Nação moderna.120
ocorreu de maneira desigual, enquanto boa parte da população ainda vivia a as dinâmicas de
um país colonial, as guerras para a expansão territorial e manutenção da escravidão, a fim de
extrair o maior lucro possível para a importação de bens cultivados no território.
No setor agrícola, a extinção do sistema colonial não provocou o colapso das antigas
estruturas econômicas coloniais; ao contrário, as exigências do mercado mundial e
da comercialização das matérias-primas em larga escala exigem sua persistência,
como garantia ao aumento contínuo da oferta e dos grandes lucros dos importadores
europeus. Assim, nesses países, “ revolução agrícola" continuou a ser, mesmo depois
de longo período de vida política independente e de experiência com o crescimento
do capitalismo no setor urbano, incorporação de novas áreas territoriais na produção
de matérias-primas exportáveis (nesse sentido, “áreas inexploradas” tomavam-se
ricas e prósperas, participando dos ciclos econômicos vinculados aos negócios de
exportação através de estruturas e técnicas econômicas arcaicas). Assim, as
estruturas económicas e sociais, constituídas sob a égide do sistema colonial,
permaneceram mais ou menos intactas, ao lado das novas estruturas sociais e
econômicas, criadas sob o impulso da expansão urbana e da implantação do setor
capitalista correspondente, montado através de processos de modernização
incentivados, orientados e comercializados a partir de fora. Se se atentar bem para a
natureza das evidências, a principal fase da acumulação originária de capital, nas
sociedades subdesenvolvidas, ocorreu nesse intervalo, entre a emancipação nacional
e a aceleração do crescimento econômico interno (precipitada pela inclusão no
mercado mundial ).121
O segundo reinado, por sua vez, é marcado por uma questão que muda — mas não
muito — a sociedade brasileira. As ondas liberais, provenientes das mudanças decorrentes da
industrialização da Europa, vão se tornando tsunamis neste período marcado pelas reformas
da abolição da escravatura122 e a “europeização” do país. Tal elemento nos revela um
comportamento das classes dominantes (ainda muito presente hoje em dia) de manter as
instituições e ordenações portuguesas de maneira que tais normas direcionaram o
comportamento do restante da população.123
Em semelhante contexto histórico-social, "modernização” significava mais e menos
que "europeização”. Era mais, porque estava em jogo a implantação, em bloco, de
uma civilização demasiado complexa, diferenciada e instável para as condições
ecológicas, materiais, sociais e morais dadas na situação sociocultural existente. Era
menos, porque nenhum grupo social possuía meios para saturar historicamente,
imprimindo-lhes plena eficácia, as técnicas, as instituições e os valores importados
da Europa. Um exemplo banal é suficiente para esclarecer esse aspecto: o
liberalismo, em suas conexões ideológicas e utópicas com os interesses dos
estamentos dominantes, servia como um disfarce para ocultar a metamorfose dos
laços de dependência colonial, para racionalizar a persistência da escravidão e das
formas correlatas de dominação patrimonialista, bem como para justificar a extrema
e intensa concentração de privilégios econômicos, sociais e políticos na aristocracia
agrária e na sociedade civil, que lhe servia de suporte político e vicejava à sua
sombra.124
121
FERNANDES, 2008, Op. Cit. p. 44
122
Fruto da pressão externa e interna; alguns países da Europa e diversos movimentos de resistência de africanos
e abolicionistas, que se organizavam de diversas formas (diversos quilombos, terreiros, associações como “O
clube dos mortos”, revoltas como a “Revolta dos Malês, etc…).
123
FERNANDES, 2008 Op. Cit. p. 26
124
Ibid., p. 27
60
125
Op. Cit. SALLA, 2006, p. 77
126
Lei que dispõe sobre a proibição do comércio de escravos (por navios), ameaçando o Brasil de embargos.
127
BRASIL. Ata 3: Terceiro Conselho do Estado, 1842–1850. 1 ed. Vol. 6. 12 vols. Rio de Janeiro: Terceiro
Conselho de Estado. 1850, p. 110 Disponível em: http://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/ Acesso em: 08
maio 2021.
61
Este decreto produz dois acontecimentos, ambos cruéis e apontando para um poder de
“deixar morrer”, voltado ao africano que foi escravizado e naquele momento estava recém
liberto. O primeiro é a morte de milhares de escravos nas guerras.
Obtinham soldados prometendo liberdade para os escravos que se alistassem no
serviço militar. Para se tornarem, mesmo que precariamente, livres, muitos se
inscreveram: buscaram a liberdade de morrer nas guerras dos colonizadores
escravocratas. A covardia de tal processo de conscrição se demostrava revoltante
através do comportamento dos filhos do senhor branco: quando convocados para
128
Id. p. 117
129
Id. p. 111
130
BRASIL. “Decreto nº 3.725-A.” In: Coleção de Leis do Império do Brasil — 1866. Legislação Informatizada
— DECRETO Nº 3.725-A, DE 6 DE NOVEMBRO DE 1866 — Publicação Original. 1866 Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-3725-a-6-novembro-1866-554505 Acesso em:
08 maio 2021.
62
servir o exército, enviavam em seu lugar o escravo, preferindo arriscar a vida negra
antes de sua própria vida branca.131
O discurso do Conselho de Estado discutia a punição das condutas dessas pessoas que
estavam apenas existindo. Porém, como dito anteriormente, esses africanos livres não se
restringiam apenas às ruas, muitas vezes eram capturados e presos nas Casas de Correção,
hospícios e seminários. Por vezes, havia famílias inteiras vivendo nestes espaços, prestando
serviços públicos para retribuir a moradia e tendo sua circulação pelas cidades rigorosamente
vigiada.133
A falta de autonomia destes indivíduos era absoluta, pois, em março de 1859 se tem
exemplo disso quando uma autoridade completamente estranha à Casa de Correção,
como era fiscal da Câmara Municipal, requisitou o recolhimento de um africano
livre de nome Cypriano, que se achava nela prestando serviços. Mais frequentes, no
entanto, eram as anotações como a seguinte, constantes dos mapas: "foi recolhido
em depósito a ordem do Dr. Delegado de Polícia o africano livre Boaventura". A
maior parte destes recolhimentos envolvia a autoridade policial à qual estava
subordinada a administração da Cadeia e das diversas delegacias.134
131
NASCIMENTO, 2016, Op. Cit. p. 80
132
Ibid., p. 79
133
SALLA, 2006, Op. Cit. p. 78-79.
134
Ibid., p. 82
63
135
Brasil. Ata 6 — Terceiro Conselho do Estado, 1865 — 1867. 1 ed. Vol. 6. 12 vols. Rio de Janeiro: Terceiro
Conselho de Estado. 1867. Disponível em:
https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/AT_AtasDoConselhoDeEstado.asp Acesso em 09 de maio de
2021.
136
Ibid. 93
137
Op. Cit. FOUCAULT, 2010, p. 204
64
notar as tentativas do uso da retórica, usando os dados para justificar a manutenção do modelo
de exploração, mas tendendo a entender, os escravos que estavam sob suas propriedades como
uma futura população.
Acontecerá o mesmo no Brasil? É de presumir porque o clima é análogo ao de
muitos daqueles países de escravidão, porque a natureza do trabalho é a mesma,
porque os dois sexos se acham em grande desproporção, sendo que o número de
homens está para o das mulheres na razão de 100:64, porque, finalmente, no estado
de escravidão há sempre um concurso de causas, que opõe obstáculo à procriação.
Estabelecidas estas premissas, cumpre investigar qual é provavelmente no Brasil a
população escrava (...) 138
Aqui, a criação de leis e discursos estão embebidos de um certo pensamento que toma
conta do ideário da sociedade no século XVIII, na Europa.
De uma parte, vê-se como discurso, que fora originalmente ligado a reação
nobiliária, se generalizou, não tanto, não somente pelo fato de que se teria tornado a
forma de certo modo regular, canônica, do discurso histórico, mas também à medida
que se tornou um instrumento que já não era utilizada pela nobreza, e sim, em última
análise, numa estratégia ou noutra. O saber histórico, de fato, ao longo do século
XVIII, claro que por meio de certo número de modificações nas proposições
fundamentais, tornou-se por fim uma espécie de arma discursiva utilizável, exibível
por todos os adversários do campo político.139
A manobra de dados, tão brilhante quanto o ouro e as pedras que seus escravos
mineravam, feita pelo visconde, apesar de ser completamente risível, nos mostra muito sobre
os primeiros momentos de uma preocupação com a população negra neste país.
(...) Entretanto, em um artigo que publicou na Revista dos Dois Mundos, de 15 de
julho de 1862, o Sr. Elisei Reclus diz que os negros e os mulatos reduzidos à
escravidão excedem, segundo alguns economistas, a quatro milhões de homens; que
outros indicam como mais provável o número de três milhões, e que, se estiver pelo
testemunho dos plantadores, que têm interesse em ocultar o número de escravos por
causa do imposto de capitação, não poderá fixar-se em menos de 2.500.000 o
algarismo dos africanos, e dos homens de cor condenados à escravidão. (...)
138
Op. Cit. BRASIL, 1867, p. 94
139
Op. Cit. FOUCAULT, 2010, p.159
65
Esses dados embasam a resposta reformista que este visconde vê como a melhor
estratégia para a abolição da escravidão e não considera outras questões importantes,
atribuindo à filantropia a responsabilidade de lidar com as consequências da abolição:
Receio pelo contrário que as Juntas, a que o projeto se refere, com o aparato que as
reveste, sejam para a população livre um susto permanente e para a escrava um
incitamento perigoso. Não há dúvida que o auxílio de associações filantrópicas
poderá ser muito útil à ação da autoridade; mas quem deve criá-las não é o poder do
Governo, é a espontaneidade da opinião, ou o sentimento nacional. Somente
associações desta natureza poderão prestar uma eficaz coadjuvação à ação do
Governo.141
Quanto à paz pública, o visconde trouxe o fato (sem números) de que não haveria
força policial o suficiente para lidar com a questão. O Visconde de Abaeté não estava sozinho
em seu voto, e as preocupações seguiram as mesmas. No documento consultado, é bastante
repetitiva a questão dos escravos da união libertos para lutar na guerra do Paraguai e como
esse número aumenta. De fato, uma das medidas discutidas (dentre as cinco) é um projeto de
lei que parece apontar para a lei do ventre livre, que gerava preocupações ao Visconde de
Itaboraí:
Ninguém desconhece hoje que é forçoso pôr termo à escravidão; mas ninguém há
também, cuido eu, que pense de ver-se abolir de chofre uma instituição criada há
mais de três séculos, fazendo espiar as culpas dela por uma única geração. Assim,
penso que o meio que temos de abolir a escravidão no Brasil, e decretar a liberdade
do ventre, e contar de um prazo que dê ao Governo tempo de prover o modo de
executar esta medida. A emancipação se fará lenta e gradualmente, mas de uma
maneira eficaz e infalível, e satisfará as aspirações dos que desejam vez a raça
escrava recuperar os direitos que lhe deu o Criador, sem ser à custa do aniquilamento
de seus senhores, Não acredito, todavia, que tal medida mesma seja isenta de
perigos. E, em verdade, nem é preciso terem os escravos muito atilamento para
compreenderem que os mesmos direitos dos filhos devem ter seus progenitores, nem
se pode supor que vejam com indiferença consumir-se-lhes as esperanças de
liberdade, que têm afagado em seus corações. Os assassinatos, as insurreições mais
ou menos extensas, e quem sabe se mesmo a guerra servil, poderão ser o resultado
daquela medida, se não for acompanhada da organização de meios materiais que as
possam coibir.142
A ideia de uma abolição pela reforma, gradual e iniciando pelas crianças é uma das
crueldades postas nessa proposta. Tornar uma criança “livre”, sem garantir o mesmo para seus
140
Op. Cit. BRASIL, 1867, p. 95
141
Ibid., p. 97
142
Ibid., p .98
66
pais, é uma forma de assegurar a manutenção da sujeição, mesmo sem a atribuição do termo
“escravo”.
Outro ponto importante dessa ata do Conselho é a questão da indenização e de quem
deveria ser indenizado; além do aparente desprezo de um direito dos africanos livres desde
1831, o salário. O conselheiro Queiroz segue:
(...) é certo que em um País, em que se pode dizer que quase toda a produção era
obtida por trabalho escravo, abolir de um dia para outro a escravidão seria pôr tudo
em perigo. Essa propriedade, embora injusta e desumana foi por todo País, e há
pouco tempo por todo o mundo civilizado, e especialmente por todas as Nações que
possuíam colônias, respeitada como um direito. Assim, pois, é necessário acabá-la;
mas é necessário que esse erro, que foi geral e animado mesmo pelos legisladores,
não seja extirpado à custa unicamente dos agricultores, que foram nesse erro geral
acoroçoados; que não se lhes negue a indenização possível, e que um abuso de força
não venha a emendar outro. Sei que uma indenização completa é impossível, mas ao
menos tentemos os meios possíveis, que não são de certo uma lei emancipando de
chofre, e sem indenização, ou, o que vem a ser o mesmo, adiando a indenização para
leis futuras, que sabemos não se poderão fazer.143
143
Ibid., p. 99
67
“crise”, já que desde 1850 o preço dos escravos vinha subindo, dificultando a compra de mão
de obra para realizar o trabalho.
Nesse espírito, foi promulgada a Lei de Terras de 1850144, onde a monarquia e a
burguesia brasileira determinaram que a região campesina do país seria latifundiária. Essa
decisão visava coibir a aquisição de terras por parte dos africanos livres, pois desde 1823 as
doações de terras (as sesmarias) por parte da coroa foram proibidas pelo imperador. Dessa
maneira se formou parte do campesinato brasileiro, composto pela população que se
apropriou da terra e produzia para sua própria subsistência.
O preço deve ser elevado para que qualquer proletário que só tenha a força do seu
braço para trabalhar não se faça imediatamente proprietário comprando terras por vil
preço. Ficando inibido de comprar terras, o trabalhador de necessidade tem de
oferecer seu trabalho àquele que tiver capitais para as comprar e aproveitar. Assim
consegue-se que proprietários e trabalhadores possam ajudar-se mutuamente.145
Pode-se afirmar que, a partir dessa decisão, a estrutura de desigualdade no que diz
respeito ao direito de terras se firmou nos moldes coloniais. Após a aprovação da lei, muitos
camponeses perderam suas terras e a exploração por parte dos latifundiários passou a ter mais
liberdade, afinal, quando uma terra se tornava improdutiva, poderia mudar para outra ou
derrubar mais florestas e assassinar mais povos indígenas.
Em setembro de 1871, a Princesa Isabel sancionou a Lei do Ventre Livre, que
conservou muitos daqueles pontos absurdos discutidos no conselho de 1867. O objetivo da lei
era, além de conservar a escravidão em outros termos, apaziguar as revoltas e conflitos entre
escravos e senhores. No sentido das reformas, que caminham para a abolição, além das
crianças que estavam “livres”:
144
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L0601-1850.htm
145
Ibid., p. 128
68
§ 5º Em geral, os escravos libertados em virtude desta Lei ficam durante cinco annos
sob a inspecção do Governo. Elles são obrigados a contractar seus serviços sob pena
de serem constrangidos, se viverem vadios, a trabalhar nos estabelecimentos
publicos. Cessará, porém, o constrangimento do trabalho, sempre que o liberto
exhibir contracto de serviço.146
Antes de chegarmos no ponto da Lei Áurea, que como sabemos não libertou ninguém
na prática, é bom olharmos para a maneira como a história “formal” é registrada e contada.
No Brasil escravocrata, em oposição à oralidade de africanos e indígenas, a fama de Dom
Pedro II de “rei filósofo”, através de mecanismos algumas vezes sutis, outros abertamente
impositivos, controlava a intelligentsia da época, especialmente os historiadores. Era uma
visão política, na área cultural, que devemos reconhecer como orquestrada em minúcias para
um fim negativo, eficiente durante o reinado de D. Pedro II.147
A fundação do primeiro Instituto Histórico e Geográfico em 1838 responde também
à lógica do contexto que segue à emancipação política do país. Sediado no Rio de
Janeiro, o IHGB surgia como um estabelecimento ligado à forte oligarquia local,
associada financeira e intelectualmente a um “monarca ilustrado” e centralizador.
Em suas mãos estava a responsabilidade de criar uma história para a nação, inventar
uma memória para um país que deveria separar, a partir de então, seus destinos dos
da antiga metrópole europeia.148
146
BRASIL. Lei n°. 2040 de 28 de setembro de 1871 (Lei do Ventre Livre). In: MOURA, C. Dicionário da
escravidão negra no Brasil. São Paulo: EDUSP, 2004. p. 238-240.
147
Op. Cit. MOURA, 2020, p. 6
148
SCHWARCZ, Lilía M. O Espetáculo das Raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 6 ed. São
Paulo, SP: Companhia das Letras. 1995, p. 24
69
Não é à toa que a “miscigenação” tenha sido citada pela primeira vez por Von Martius,
naturalista integrante do IHGB que defendeu “O Brasil de três raças”, em 1844. Além disso,
sabemos que o Brasil foi construído com um referencial (nada espontâneo) do modelo
patriarcal. O machismo implicado neste modelo objetifica as mulheres, colocando-as em
posição de inferioridade ao homem. Neste “Brasil de três raças”, a miscigenação, da qual o
brasileiro tanto se orgulha, é produzida do estupro da mulher africana. Afinal, como vimos
anteriormente, os escravos eram considerados sub humanos.
Queria isso dizer que os africanos escravizados não mereciam nenhuma
consideração como seres humanos no que diz respeito à continuidade da espécie no
quadro da família organizada. Daí que a proporção mulher para o homem estava
perto de uma para cinco, e as relativamente poucas mulheres que existiam estavam
automaticamente impedidas de estabelecer qualquer estável estrutura de família. A
norma consiste na exploração da africana pelo senhor escravocrata, e este fato ilustra
um dos aspectos mais repugnantes do lascivo, indolente e o caráter da classe
dirigente portuguesa. O costume de manter prostitutas negro-africanas como meio de
renda, como entre os escravocratas, revela que além de licencioso alguns tornavam
também proxenetas.150
149
Ibid., p. 31–32
150
NASCIMENTO, 2016, Op. Cit., p. 73
151
“Branca pra casar,
Negra pra trabalhar,
Mulata para fornicar.”
70
Nessa versão, ao reconhecimento geral do povo de que a raça negra foi prostituída, a
previsão de baixo preço. Já que a existência da mulata significa o “produto” do
prévio estupro da mulher africana, a explicação está em que após a brutal violação a
mulata tornou-se objeto de fornicação, enquanto a mulher negra continua o legado
na sua função original, ou seja, o trabalho compulsório. Exploração econômica e
lucro definem, ainda outra vez, seu papel social.152
152
Ibid., p. 75
153
Op. Cit. FAUSTO, 2006, p. 218.
154
Ibid., p. 220
71
Na “Guerra das Raças” brasileira temos muitos atores, como apresentado: os donos de
escravos com suas próprias maneiras de gerir os corpos; o Estado comandado por estes
mesmos donos de escravos, que produzem dados e leis à seu favor; a ciência que busca
embranquecer o país, legitimando estupros e outras violências e, o último ponto que vamos
observar neste período, a ciência que cria as normas.
A vinda dos imigrantes europeus para o Brasil servia a dois lados da história — que
convergem em expressões do racismo na atualidade. Com a imigração, segundo Schwarz,
iniciou a lógica do “espetáculo das raças”, trazendo argumentos como o de Silvio Romero, de
que o Brasil era um país de mestiços; quando não no sangue, na alma. A intenção de trazer
mais europeus era parte de um esforço de tornar o país mais branco.
[...] Em várias oportunidades no período de 1921 a 1923, a Câmara dos Deputados
considerou e discutiu leis nas quais se proibia qualquer entrada no Brasil "de
indivíduos humanos das raças de cor preta”. Quase no fim do seu governo ditatorial,
Getúlio Vargas assinou em 18 de Setembro de 1945, o Decreto-Lei nº 7967,
regulando a entrada de imigrantes de acordo com “a necessidade de preservar e
desenvolver na composição étnica da população, as características mais
convenientes da sua ascendência europeia".156
Um ponto muito importante apontado neste período é o incentivo aos fascistas brancos
expulsos das recém liberadas colônias da África à imigração no Brasil. O discurso da ciência
e da racionalidade, por mais primitiva e infundada, sobressaia ao discurso do desalmado. Na
era da razão, a alma pouco importa, o centro da questão aqui é a maturidade intelectual e de
sua psique.
Neste período, médicos como Nina Rodrigues buscavam estudar uma “criminalidade
étnica”, baseando-se no atavismo Lombrosiano, e considerando a questão biológica central
para a “inadaptabilidade” dos povos “de pele vermelha e negra”. O médico retratava os
africanos enquanto povos primitivos, com comportamentos que beiravam a selvageria, a fim
de apontar determinismos jurídicos.157
Como as Escrituras se revelaram insuficientes, o racismo vulgar, primitivo,
simplista, pretendia encontrar no biológico a base material da doutrina. Seria
fastidioso lembrar os esforços empreendidos nessa altura: forma comparada do
crânio, quantidade e configuração dos sulcos do encéfalo, características das
camadas celulares do córtex, dimensões das vértebras, aspecto microscópico da
epiderme etc.158
155
Ibid., p. 79
156
Op. Cit., NASCIMENTO, p. 86
157
RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1935, p. 409
158
FANON, Frantz. Racismo e Cultura. Brasil: Editora Terra Sem Amos, 2021.
72
Os presos nas Casas de Correção, assim como os internados nos Hospícios, eram o
objeto de estudo desta ciência que vinha quebrar a expectativa liberal do indivíduo genérico e
universal, portador de direitos.
No relatório do Dr. Luiz Vianna de Almeida Valle, de março de 1870, é saliente a
preocupação em estudar a variedade dos criminosos recolhidos à Casa de Correção
da Corte, pois tais “tipos, sem dúvida diversos... reclamão diversos meios para sua
regeneração, quando ela é possível”. Suas observações o levam a oscilar entre uma
visão determinista do crime, de cunho biológico (“os crimes são como que
constitucionais, hereditários") e outra mais de ordem social (“as desordens, vícios e
crimes, que diariamente testemunhamos, são originados dos maus exemplos, e da
falta de educação e instrução”). Seus relatórios constituem o primeiro ensaio, no
sentido de eleger o criminoso, sua vida anterior à condenação, seu comportamento
na prisão, como chave para entender o crime e propor as formas de seu combate.
Para classificar os condenados, segue uma fórmula cujo o critério é ação do
criminoso segundo grau de sua consciência, o grande crime. Acreditava, portanto,
que a aplicação das penas disciplinares seria mais justa se tivesse presente a
classificação do condenado pela sua premeditação do crime, se é um vicioso que se
entrega ao “mal” por ser indiferente ao bem ou por faltar-lhe discernimento ou ainda
se é um inepto que não entende porque foi condenado.159
Essa figura do indivíduo que rompe o pacto social por vontade própria, assume o lugar
do sujeito enfermo, atravessado por questões biológicas, psicológicas e sociais. O crime e a
prisão passam a ter uma relação muito parecida com a patologia e o hospital; sob essa
perspectiva, a polícia e o aparato penal deveriam responder a essa nova questão. Outra
consequência desta nova ciência e maneira de olhar para o crime é o aumento do aparato de
vigilância do Estado.
Por consequência da Lei de Terras (1870), os ex-escravos que saíam das terras da
burguesia brasileira iam para as cidades para tentar empregos com baixa remuneração. Uma
maneira de garantir a moradia e sobrevivência. Neste período, os imóveis nas regiões centrais
das cidades tiveram o preço inflacionado, levando os negros recém libertos para as periferias,
criando assim o que conhecemos como “favelas”.
Além das favelas nas periferias, neste período houve a criação de cortiços, casas na
região central, construídas durante o período imperial que foram ocupadas por famílias
pobres. No ideário da classe dominante, os moradores dos cortiços e favelas eram perigosos, e
se atribuía a eles as doenças que se alastraram pelas cidades, reforçando a ideia de que negros
precisavam de tratamentos hospitalares e reclusão, além do estereótipo de “malandro”,
“vagabundo” e “sujo”.
A violência e a disciplina se transformam na República, tornando-se mecanismos em
exercício dentro das instituições, fábricas, prisões, manicômios e conventos que seguiam
oferecendo o catequismo de negros como caminho para a salvação.
159
SALLA, 2006, Op. Cit. p. 129
73
Para conter a crescente preocupação da burguesia agrícola e fabril, a polícia passa a ter
um treinamento especializado que integra disciplinas como “A história natural dos
malfeitores”. Ser negro, neste período, era estar em uma espécie de limbo classificatório, entre
o escravo, objeto a ser repreendido, e o sujeito livre e assalariado.
O racismo de autoridades policiais está em transcrições de depoimentos, nos
relatórios de delegados, rompendo-se em certos casos critérios classificatórios
prévios. Assim, a menção a “cor” não consta em regra das folhas de qualificação
dos indiciados com indicações impressas (nome, idade, profissão, etc.) e espaços em
branco correspondentes, a serem preenchidos. Não obstante, o qualificativo
“negro”, “pardo” é às vezes introduzido a tinta, em letras bem nítidas, na margem
das páginas.161
Por outro lado, desde quando sequestrados para o Brasil, os africanos mantiveram
organizações, como os quilombos, visando o apoio mútuo, solidariedade interna e resistência
cultural. Citamos anteriormente o sincretismo religioso e os tambores africanos, mas é
importante frisar que, no século XX, houve a criminalização de diversas manifestações
culturais como a capoeira, o candomblé e o samba.162
A preocupação da época era como eliminar os negros do Brasil e torná-lo um país
totalmente branco. Em 1911 ocorreu o Primeiro Congresso Universal de Raças, em Londres.
Na ocasião, João Batista de Lacerda especulava que até 2012 os mestiços e negros seriam
“extintos” do país. Esse pensamento aponta
[...] Que esta ideia da eliminação da raça negra não constituía apenas uma teoria
abstrata, mas, calculada estratégia de destruição, está claro nos argumentos do
mesmo teórico, na explícita sugestão de se deixar os afro-brasileiros propositalmente
indefesos: “expostos a toda espécie de agentes de destruição e sem recursos
suficientes para se manter”.163
A fala reforça e torna explícito a função de manter essa população enquanto periférica,
de direcionar os maiores sofrimentos possíveis à população negra. Nesse sentido, percebe-se
como a eugenia se estabeleceu enquanto regime discursivo e prática em diversos saberes no
século XX, no Brasil. Conforme apontamos, muitas ciências e profissões surgem nesse
processo, muitas vezes voltadas ao corpo negro, inclusive o Serviço Social.164
160
SERAFIM, Jhonatan; AZEREDO, Jeferson Luiz. “A (des)criminalização da cultura negra nos Códigos de
1890 e 1940.” Amicus Curiae 6, no. 6 (jan): 17.
161
Op. Cit. FAUSTO, 2001. p. 55
162
Cf. Decreto 847 de 1890, Capítulo XIII. “Dos vadios a capoeiras”.
163
NASCIMENTO, 2016, Op. Cit., p. 88
164
OLIVEIRA, R. Nasci errado e estou certo: a presença da Eugenia no processo de institucionalização do
serviço social brasileiro. Santa Catarina: n.I. 2019
74
Esse racismo que acusa um primitivismo intelectual e emocional, guiado por estudos
que se baseiam em genótipos e fenótipos e montam uma determinada imagem do não-branco
europeu tem seu discurso reforçado na literatura da época. Diversos autores, com alta
circulação de seus livros defendiam a eugenia como Monteiro Lobato, Oliveira Vianna,
Renato Kehl, Euclides da Cunha e outros.
A circulação de uma racionalidade existente e financiada, desde antes da colonização
— por tratar-se de herança dos colonizadores. No entanto, é dentro deste discurso que temos o
desenvolvimento de um terceiro mecanismo do racismo: a cultura.
Após a falsa abolição da escravidão, em 1888, a notória exclusão no que diz respeito
aos “direitos sociais”, a hierarquização da raça e os elementos tratados no ponto anterior
gerararam uma relação de difícil dissolução, tratada enquanto estrutural. As desigualdades
geradas por uma sociedade na qual, juridicamente, todos os sujeitos são livres, se arrastaram
pelos 130 anos que se seguiram.
O negro e os indígenas nunca deixaram de ser, na lógica da burguesia, uma
mercadoria; um ser inferior a ser educado e domado; um indigente; um ser de cultura
criminalizável; de autonomia restringível; de subjetividade inexistente; um alvo para as
tecnologias desenvolvidas para ferir o corpo: o chicote, a arma, o fuzil, a bomba, o tanque de
guerra, a faca, a espada, o fogo atado em sujeitos pelo país a fora.
O problema na República Velha era a identidade brasileira. A literatura e os pasquins
buscavam definir como esse povo tão diverso se comportava. A cada década do século XX,
notamos uma construção de discurso de um povo que convive democraticamente com a
diferença, que assimila e constrói sua própria identidade a partir de uma visão de diversidade,
termo que não comporta a inclusão ou garantia de cidadania e dignidade para todos.
A exemplo da literatura, observamos as caricaturas e personagens que marcam este
ideário; os indígenas de “Iracema” e “o Guarani” (satirizado e ironizado em Macunaíma); o
sertanejo construído a partir de um darwinismo social da República Velha em “Os sertões”; o
negro de Freyre e Lobato — este reforçado por uma defesa da eugenia e embranquecimento
desde a literatura infantil; a busca de um “sentimento Tupi” de Policarpo Quaresma; entre
outros discursos e personagens marcados em nossa constituição cultural.
Ainda que na década de 1950 o racismo tenha passado a ser discutido com outras
lentes, as consequências do nazi-fascismo e do extermínio que ocorreu na Segunda Guerra
75
Mundial trouxeram novos posicionamentos, novos olhares, novas pesquisas e uma nova
maneira de compreender o genocídio. Em termos de como gerenciar esse Estado, que mantém
o genocídio do negro e indígena entranhado, a história do Brasil parece ser demarcada por um
constante movimento de uma instituição militar que busca ser soberana e “saltos” pela
democracia.
Aqui podemos perceber estruturas que não se vão: o capital e o processo de exploração
para acumulação de riquezas e a desigualdade fruto desse sistema; a intenção de “deixar
morrer” apenas uma parcela da população; a vigilância militar e o policiamento da população
— sempre dirigido a negros — e um discurso lírico que mantém as impressões aplanadas.
Sabemos que o racismo está institucionalizado e difundido por diversos meios, embora
tenham havido diversas maneiras de justificar o genocídio do afro-brasileiro sem abrir mão da
falácia da “democracia racial”.165
Além dos órgãos do poder — o governo, as leis, o capital, as forças armadas, a
polícia — as classes dominantes brancas têm à sua disposição poderosos
implementos de controle social e cultural: o sistema educativo, as várias formas de
comunicação de massa — a imprensa, o rádio, a televisão — a produção literária.
Todos esses instrumentos estão a serviço dos interesses das classes no poder e são
usados para destruir o negro como pessoa e como criador e condutor de uma cultura
própria. O processo de assimilação e aculturação não se relaciona apenas a
concessão aos negros, individualmente, de prestígio social. Mais grave, restringe a
sua mobilidade vertical na sociedade como um grupo; invade o negro e o mulato até
à intimidade mesma do ser negro e do seu modo de autoavaliar-se, sua autoestima.166
165
Tratamos de falácia, pois é perceptível sua intencionalidade de embranquecer o negro através dos mecanismos
da miscigenação, aculturação e assimilação do branco. Cf. NASCIMENTO, 2006.
166
Ibid., p. 112
167
Ibid., p.112
76
âmbito individual, naquilo que entendemos como preferências, mas continua operando para
hierarquizar as raças.
(...) Não se trata, portanto, de apenas um ato discriminatório ou mesmo de um
conjunto de atos, mas de um processo em que condições de subalternidade e de
privilégio que se distribuem entre grupos raciais se reproduzem nos âmbitos da
política, da economia e das relações cotidianas. O racismo articula-se com a
segregação racial, ou seja, a divisão espacial de raças em localidades específicas
– bairros, guetos, bantustões, periferias etc. – e/ ou à definição de
estabelecimentos comerciais e serviços públicos – como escolas e hospitais –
como de frequência exclusiva para membros de determinados grupos raciais,
como são exemplos os regimes segregacionistas dos Estados Unidos, o apartheid
sul-africano e, para autoras como Michelle Alexander e Angela Davis, o atual
sistema carcerário estadunidense.168
Algumas questões são centrais para pensarmos nos motivos para esse racismo sutil
operar em nossa sociedade. A primeira que podemos observar ao longo desta nossa reflexão é
o discurso da tolerância e respeito; no primeiro ponto, levantamos a questão das
manifestações culturais africanas que eram “permitidas” pelos senhores de escravos, ainda
que sob diversas críticas. Em um mundo globalizado, podemos ver movimento bastante
semelhante quando se trata, por exemplo, da tolerância desenvolvida pelo funk, novo tipo de
música de exportação do Brasil para o mundo, como foi com o samba e a bossa nova.169
Ambos os casos tratam de um exotismo moderno, semelhante à descrição absurda de
Pero Vaz de Caminha acerca do povo indígena brasileiro e às expedições portuguesas à
África, que vinham mostrar os negros como um ser completamente diferente. Somando-se à
construção de verdade da biologização no racismo primitivo, produziu-se um discurso de “eu
sei como esse povo se comporta” e uma consequente generalização do negro e do indígnena,
que segue perpetuada.
A partir de 1930, a necessidade de unificação nacional e a formação de um
mercado interno, em virtude do processo de industrialização, dão origem a toda
uma dinâmica institucional para a produção do discurso da democracia racial, em
que a desigualdade racial – que se reflete no plano econômico – é
transformada em diversidade cultural e, portanto, tornada parte da paisagem
nacional.170
É neste período também que a classe trabalhadora passa a ter um protagonismo maior
nas reivindicações e cenário social, a partir dos sindicatos e na conquista de direitos como a
legislação trabalhista. Neste cenário, o Estado passa a ter uma característica mais
intervencionista, aumentando sua característica persecutória e de busca de meios de
168
ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Jandaira. 2019. p. 22
169
Inclusive, no ano de 2021, a cantora Anitta lançou uma música e videoclipe chamados “Girl from Rio”, com
um sample de Garota de Ipanema e descrição da vida “real” no Rio de Janeiro na atualidade, mostrando um Rio
de Janeiro vivido por sujeitos periféricos — como a cantora foi até seu estrelato em 2016.
170
Ibid., p. 64
77
Diante dos fatores citados, notamos uma academia branca e eurocentrada ao decorrer
dos séculos XX e início do século XXI. A partir do crescimento de ações afirmativas e
inserção de negros e periféricos nas universidades públicas do Brasil, temos uma inversão das
relações raciais nesse ambiente, trazendo, inclusive, um confronto com o “estatuto de
verdade” dessas teorias e autores que negam um pensamento racializado.172
O confronto epistemológico que questiona o apagamento racial e expõe as minúciais
deste genocídio que segue em curso parece dificultar a compreensão de importantes figuras e
autoridades. Não é incomum vermos juízes progressistas defendendo, ainda que em redes
sociais consideradas informais, métodos como atavismo, campo de concentração e punições
esdrúxulas a quem pensa ligeiramente diferente. Também é frequente a atribuição do
conhecimento de “tudo que é de negro” ao negro, como se a cor definisse tudo sobre o sujeito.
Talvez por isso, tornou- se muito comum a deturpação do conceito de “lugar de fala”173
para se moldar em um “lugar que cala”, de brancos que não querem se indispor ao se
171
Op. Cit. NASCIMENTO, 2006 p. 142
172
Cf. CARVALHO, J. J. O confinamento racial do mundo acadêmico brasileiro. Revista USP, (68), 2006. p.
88-103.
173
Cf. GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural da amefricanidade. Tempo Brasileiro. Rio de
Janeiro, n.º 92/ 93.(jan.jun.).1988.
78
174
Op. Cit. ALMEIDA, 2019. p. 69
175
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l1390.htm
176
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l2889.htm
177
FLAUZIANA, Ana Luiza P. Corpo negro caído no chão: O sistema Penal e o Projeto Genocida do Estado
Brasileiro. Tese de Doutorado. 2006. p. 75
79
178
Ibid., p. 79
179
Cf. Fausto, Boris. Crime e Cotidiano. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 2001.
180
Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-314-13-marco-1967-366980-publicacaoorigi
nal-1-pe.html
80
instaurar o socialismo no país ( apesar do que os liberais chamariam de “avanços nas pautas
sociais”, como as legislações dos anos 50), no conjunto de legislações da época, estava
inscrita a condenação à prisão perpétua e pena de morte e a criação de um aparato militar,
incluindo a militarização da polícia, para reprimir as práticas subversivas.
Entre 1964 e 1970, a ditadura criou um sistema multifacetado para coleta de dados e
informações dessas práticas subversivas. O Serviço Nacional de Informações (SNI) coletava
dados a partir das Divisões de Segurança e Informações (DSI) e de Assessorias de Segurança
e Informação (ASI). Em maio de 1967, criou-se o Centro de Informações do Exército (CIE)
que cortava intermediários, existentes no Código Penal de 1940 e suas instituições, e reprimia
diretamente as tais práticas subversivas.
É importante lembrar do sistema de informações financiado por empresários paulistas,
a OBAN (Operação Bandeirantes), em 1969, que deu origem aos Centros de Operação e
Defesa Interna (CODI) e os Destacamentos de Operação Interna (DOI), durante o comando de
Orlando Geisel, nos piores tempos da ditadura. As informações de boa parte desses sistemas
seguem em segredo de justiça, impossibilitando saber a dimensão exata da repressão durante a
ditadura e o número de mortos.181
Com a redemocratização, em 1984–1988, o Código Penal volta a ser o de 1940, com
algumas alterações,182 mas mantendo seu caráter colonialista, com a perseguição da população
negra. É dentro deste Código Penal, inspirado em um racismo (ir)racional, que nossas
instituições jurídico-penais seguem existindo. No entanto, os anos 90 trazem um novo
panorama para o mundo todo: o neoliberalismo, que vem acompanhado de uma outra maneira
de gerir o Estado: o Estado Penal, que trata as manifestações da Questão Social com
judicialização e prioriza a criminalização e sitiamento das cidades.
181
De abril a agosto de 2021 houveram várias tentativas de recuperação de alguns documentos acerca da ditadura
pelo site do arquivo nacional (https://www.gov.br/arquivonacional/pt-br). No entanto, as informações
desapareceram do site, em tenebrosa coincidência com o governo mais saudosista da ditadura militar, desde
1988.
182
Cf. FLAUZINA, 2006.
81
183
Lema da cidade nos anos 50 “A locomotiva do país não pode parar!”, que surge pelo aumento acelerado da
industrialização do país, centralizada na cidade de São Paulo e região metropolitana. A frase traz notória
conotação burguesa e, com a intensa migração de nordestinos no processo de urbanização e edificação da cidade
têm, em suas entrelinhas, uma classe trabalhadora que deve estar a serviço do “bem-comum”, apesar da
segregação, preconceito e falta de acesso à bens comuns e direitos sociais mínimos. São Paulo é uma cidade
construída por negros e nordestinos, mas desfrutada pelos brancos e classe média emergente de uma política
racial que privilegiou imigrantes europeus e, posteriormente, asiáticos e árabes.
184
Esse período é conhecido como “desenvolvimentismo”, presente em diversos países da América Latina, com
destaque para Brasil e Argentina conforme estudado por Ruy Mauro Marini, Florestan Fernandes, Albert
Hirschman e outros.
185
Ainda assim, os empregos formais eram preferencialmente para brancos. À população negra eram dirigidos os
trabalhos informais e mal pagos, baseados em trabalho intensivo, os chamados subempregos Op. Cit.
NASCIMENTO, 2006.
82
Embora a desigualdade social fosse significativa nos anos 70, a renda per capita e a
taxa de pobreza absoluta foram impactadas positivamente pelo desenvolvimentismo
(respectivamente 6,1% por ano e um queda de 53% para 27% até o final da década)189,
criando um otimismo de “tempos melhores” para os anos 80 — que ficou conhecido como a
“década perdida”.190 Como consequência da crise do Capital dos anos 70191 — da qual ainda
não saímos — durante a década de 80, o país encontrou grande dificuldade para controlar a
inflação, aumentando consideravelmente os índices de pobreza e a crise no setor industrial.
186
CALDEIRA, Teresa P. Cidade de muros: Crime, segregação e cidadania em São Paulo. 3rd ed. São Paulo:
Editora 34/Edusp –Editora da Universidade de São Paulo. 2000. p. 47
187
Ibid., p. 48
188
Ibid., p. 48
189
ROCHA apud. Caldeira, Ibid., p. 49
190
Ibid., p. 48
191
Cf. HARVEY, David. O Enigma do Capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo.2010.
192
De acordo com a pesquisa desenvolvida pelo Asociación Latinoamericana de Derecho Penal y Criminología
(ALPEC), no período de 1985 a 2011 o ritmo de publicação de leis penais por ano dobrou em comparação com o
período de 1940 a 1985.
83
As tecnologias de poder disciplinar estão mais acomodadas a partir dos anos 90, com
as privatizações e sucateamento (ainda maior) das políticas sociais, ações da adoção de um
modelo neoliberal de economia durante o governo Fernando Henrique Cardoso. O que resulta
na ausência de política social nas periferias das cidades.
Os novos tipos penais e o surgimento de um novo inimigo público, o tráfico de drogas,
agravam os medos sociais — alimentados pela mídia e propagandas como a campanha
“Drogas, diga não” e novelas com personagens, geralmente negros e vilões, instigando uma
associação racista no senso comum.
Para a ofensiva neoliberal funcionar, além da operação do discurso de um mal comum,
é necessário
193
Ibid., p. 55
194
Cf. HOLSTON;CALDEIRA. 1998
195
Op. Cit. CALDEIRA 2000, p. 55 –56
84
[...] expandir o Estado penal que lhes permite, em primeiro lugar, abafar e conter as
desordens urbanas geradas nas camadas inferiores da estrutura social pela simultânea
desregulamentação do mercado de trabalho e decomposição da rede de segurança
social. Também permite que os eleitos para cargos majoritários contenham seu
déficit de legitimidade política com a confirmação da autoridade estatal nessa
limitada área de ação, em um momento no qual têm pouco para oferecer a seus
eleitores.196
196
WACQUANT, Loic. Rumo à militarização da marginalização urbana. Discursos Sediciosos: Crime, Direito e
Sociedade. Ano 11, Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 203
197
Op. Cit. CALDEIRA, p. 122
198
SILVESTRE, Giane; MELO, Felipe A.“Encarceramento em massa e a tragédia prisional brasileira.” Boletim
293. Disponível em:
https://arquivo.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5947-Encarceramento-em-massa-e-a-tragedia-prisional-brasileira
2017. Acesso em: 28 jul. 2021
199
Apêndice 1
85
Fracasso para uns, sucesso para outros. Os números oficiais do massacre apontam para
133 mortos201 em um período de vinte minutos. Os sobreviventes passaram cerca de 12 horas
sentados nus no pátio da prisão, ocorrendo neste período vários casos de mordidas de
cachorros e outros abusos. A comoção da sociedade civil não tendeu à empatia, afinal, no
ideário, “bandido bom, é bandido morto” e, em 2021, pela recusa da construção de um
memorial respeitoso às vítimas, os frequentadores do Parque da Juventude pouco sabem da
história daquele lugar.202
200
OLIVEIRA, A. 2013
201
Até a reportagem da Folha, em 2015, eram 111. Os militantes e sobreviventes estimam mais de 250 mortos.
202
Para mais informações sobre Carandiru, há o livro de Jocenir, o sobrevivente do massacre que foi um dos
compositores da música “Diário de um detento”. O livro homônimo é facilmente encontrado. Há também os
livros de Drauzio Varella, Carcereiros e Estação Carandiru, e o filme “Carandiru”.
86
O Brasil adentra o século XXI como portador de um dos sistemas prisionais mais
cruéis do mundo, sendo denunciado constantemente por organismos de defesa dos
direitos humanos e observatórios mundiais de prisões. Faz parte desta realidade: as
torturas, os espancamentos, a corrupção e o abuso de poder por parte dos agentes do
Estado, acrescidas das inúmeras desassistências na área judiciária, social e material,
à saúde, à educação, ainda que previstas na Lei de Execução Penal (no. 7.210 de
11/07/1984)203 em vigor.204
Com o avanço da política mundial de “guerra às drogas”, que direciona boa parte do
potencial bélico mundial, e emprega a vigilância de cada sujeito à imagem do traficante, a
sociedade brasileira, em especial a paulistana, caminha para uma “generalização do poder de
punir”, ou “giro punitivo”, característica das políticas de segurança pública do neoliberalismo.
A repentina e obsessiva reafirmação do “direito à segurança" por destacados
políticos, tanto da direita quanto da esquerda, acontece ao mesmo tempo em que o
silencioso desgaste do “direito ao emprego”, na sua forma tradicional (isto é,
trabalho de tempo integral, por período indeterminado e com salário adequado), e o
crescimento dos meios de fortalecimento legal tornam-se úteis para compensar o
déficit de legitimidade sofrido pelas lideranças políticas pelo fato de terem
abandonado as tarefas do Estado no campo social e econômico.206
203
“Segundo Carvalho (2001:170), tomou corpo no Brasil, principalmente a partir de 1970, a corrente penal que
advogava a necessidade de jurisdicionalizar a execução da pena, reconhecendo à pessoa condenada seus direitos
fundamentais. Houve a reforma da parte geral do Código Penal e a elaboração da Lei Execução Penal, ambas em
1984. No entanto, somente com o advento da Carta de 1988 é que o tratamento da execução penal adquiriu
feição constitucional, como instrumento de reconhecimento de direitos e garantias individuais e sociais. A Lei de
Execução Penal em vigor determina que os condenados sejam classificados segundo seus antecedentes e
personalidade, para orientar a individualização da execução da pena. Os presos provisórios devem ser separados
dos condenados, e os primários, dos reincidentes. No Brasil a execução da pena se dá em três modalidades:
privativa de liberdade, que seria a reclusão ou detenção; pena restritiva de direitos (pena prestação pecuniária,
perda de bens e valores; pena de prestação de serviços à comunidade ou entidades públicas, interdição
temporária de direitos e limitação de fim de semana e multa). As penas restritivas de direitos — também
chamadas de penas alternativas, foram concebidas para substituir as penas privativas de liberdade.” (TORRES,
2005, p. 57–58)
204
TORRES, Andrea A. 2005. Para além da prisão: Experiências significativas do Serviço Social na
Penitenciária Feminina da Capital/SP (1978 — 1983), Dissertação. N.p.: PUC/SP.
205
Op. Cit ZAQUEO, 2016.
206
WACQUANT, Loic. As duas faces do gueto. São Paulo: Boitempo. 2018. p. 94
87
Os anos de 2003 - 2016 foram, sem dúvida, os fortalecedores dessa política criminal,
que resultou em um encarceramento massivo. Uma grande decepção para os militantes que,
nos anos 70, previam um crescimento das medidas alternativas de punição e, nos casos mais
otimistas, um possível abolicionismo penal.210
O aumento do encarceramento e da criminalização, levando a uma judicialização da
vida social, como veremos a seguir, foi uma tendência mundial. Nesse mesmo ritmo acelerado
207
Rodrigo Castelo e Raquel Raichellis, são bons exemplos.
208
É importante destacar que nos últimos anos, os dados do CNJ e os dados do DEPEN foram conflitantes.
Enquanto o DEPEN informou uma população prisional de 725 mil em 2019, o CNJ aponta o número de 812 mil.
Assim, o gráfico seria ainda pior se fosse utilizado esse último dado. É importante ressaltar que devido a falta de
clareza dos dados oferecidos pelo INFOPEN e o abandono dos relatórios anuais (desde 2017), os gráficos
atualizados são fruto de análise de dados feita pela pesquisadora através do método de análise de Big Data. O
INFOPEN disponibiliza dados tratados com a mesma metodologia, no entanto, há uma supressão de dados
referente à composição racial.
209
Dados referentes a dezembro de 2019, a proporção é de 1 para 1000. Além disso, nos anos 91, 95 e 98 não
houve a divulgação de dados
210
Nilo Batista
88
211
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Rio de Janeiro: Difel. 2020.
89
Um último dado importante para nossa análise acerca da relação do Estado Penal,
polícia, judiciário e prisão é o aumento de crimes violentos desde os anos 90.
91
Este aumento dos crimes violentos, embora seja multifatorial, se evidencia nas
periferias. Nas últimas décadas, houveram diversas chacinas e ações deliberadamente
violentas por parte da polícia militar — e outros dispositivos semelhantes. Este ajustamento
da tecnologia do poder de punir, enquanto dispositivo biopolítico, é um dos três aspectos
levantados por Wacquant em sua discussão acerca do Estado Penal, a despacificação213 da
vida diária e a erosão do espaço público.
212
Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/dados-series/17
213
Um importante elemento para a despacificação da vida nas periferias, apresentado por Wacquant, é a
emergência de poderes paraestatais, responsáveis por gerir a vida nesses espaços. Sabemos que a população
periférica é preterida em diversos aspectos da vida social, como por exemplo, empregos formais (é comum o
argumento da não contratação de profissionais moradores de periferias por conta da possibilidade de tiroteios,
toques de recolher, enchentes no caminho do trabalho e “atrasos”), e, por conta disso, muitos vivem de maneira
marginalizada; sem acesso à nenhum tipo de política social. Nos espaços onde os poderes paraestatais têm maior
atividade, as execuções ganham o espaço da punição, como em um retorno aos suplícios e forcas. Todos sabemos
que existem milícias, comandos e partidos responsáveis pelo gerenciamento da vida na periferia, no entanto, o
máximo que temos são tropas em determinados territórios, tornando-os verdadeiros cenários de guerra, mas sem
- pelo até o presente momento - resolver ou, de fato, pacificar a vida nesses espaços. O que há, é, portanto, uma
despacificação e crescimento de uma violência “ilegal”, afinal, para quem denunciaríamos um poder paralelo,
compactuado com governantes, e com seus advogados em cargos importantes do judiciário federal?
92
Em certos conjuntos habitacionais públicos do gueto, tiroteios são tão frequentes que
as crianças aprendem ainda pequenas a se jogar no solo para evitar balas perdidas,
tão logo ouvem tiros; quanto às meninas, elas também aprendem a se proteger dos
estupradores. (...) Os perigos a que se expõem as crianças desses bairros são em
ordem decrescente, tiros, extorsão por gangues e escuridão, propícia a toda espécie
de violência — ao passo que uma amostra aleatória de mães suburbanas indica o
medo de sequestro, acidentes de caso e drogas como as principais ameaças contra
seus filhos.214
Durante o isolamento social, ao qual apenas uma parcela da população teve acesso,
houve uma evidência maior deste fator e sua relação com a desigualdade social. Enquanto
garotos e garotas passavam dias tediosos em frente à seus computadores e smartphones nos
bairros de classe média, crianças como João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, eram mortas
com tiros de fuzil dentro de sua própria casa.215
Ao mesmo passo, em um Brasil de “Deus acima de todos” com um Ministério da
mulher, família e Direitos Humanos comandado por uma pastora evangélica de ações e
discursos extremamente retrógrados, uma criança de 10 anos que sofreu diversos abusos
sexuais em sua casa sofria todo o tipo de violência dos fundamentalistas religiosos216, ao
exercer seu direito ao aborto legal.
214
Ibid., p. 37
215
Disponível em:
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/05/25/joao-pedro-mandou-mensagem-para-mae-momentos-a
ntes-de-ser-baleado-estou-dentro-de-casa-calma.ghtml
216
Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-15/estuprada-desde-os-6-gravida-aos-10-anos-e-num-limbo-inexplicavel
-a-espera-por-um-aborto-legal.html
93
217
O Atlas de 2019 traz uma seção inédita, sobre a violência contra a população LGBTQIA+. Segundo uma das
bases utilizadas pela pesquisa (o canal de denúncias Disque 100), houve um forte crescimento nos últimos seis
anos das denúncias de homicídios contra a população LGBTQIA+, que subiram de cinco em 2011 para 193 em
2017, ano em que o crescimento foi de 127%. Os pesquisadores compararam esses dados com informações do
Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), do Ministério da Saúde, e encontraram um mesmo
resultado qualitativo. Em mais de 70% dos casos, os autores do crime são do sexo masculino, enquanto que a
maioria das vítimas é de homo ou bissexuais do sexo feminino.
94
Em outras palavras, ainda que não haja em São Paulo uma unidade de pacificação no
mesmo modelo que no Rio de Janeiro, a taxa de letalidade da polícia e a diferença pequena na
notificação dos crimes220 da região considerada mais perigosa para a mais segura nos trazem
218
Disponível em: http://www.ssp.sp.gov.br/Estatistica/Pesquisa.aspx
219
Op. Cit. FRANCO, 2014, p. 45
220
Os dados acerca do tráfico de drogas não constam na tabela consultada. Ainda assim, é sabido que, no estado
de São Paulo, boa parte dos crimes estão relacionados à propriedade privada, considerado o “crime de moda”.
95
Esse panorama remonta a situação trazida nas considerações iniciais deste trabalho, na
realidade dos sujeitos aprisionados no CDP de Mauá que, muitas vezes, tinham como política
social mais presente a de segurança pública.
Nesse processo, a punição, que dá estrutura à arquitetura do Estado penal, não de
forma isolada, mas na complexidade da sua combinação com a assistência, deve ser
vista além do foco da repressão. Novas categorias foram articuladas, no campo das
políticas públicas, buscando a combinação das alternativas no campo da assistência
e no âmbito do combate à criminalidade. Para isso, são forjadas políticas de
governos e vários tipos de tecnologias governamentais, apresentando-se como um
modelo moderno e qualificado. 221
Nossos estudos indicam uma relação direta entre o modelo da violência, no período
ditatorial de Estado dos anos 70 e o modelo atual gerido por militares. Talvez a
descontinuidade seja apenas para a classe média (branca), que pôde voltar a criticar seu
governo sem o medo da repressão. Não negamos os avanços em políticas sociais e
221
Ibid., p. 45
222
Cf. ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo:
Boitempo, 2018.
223
Op. Cit, WACQUANT, 2008, p. 29
224
Op. Cit. FRANCO, 2014, p. 46
96
Há uma disputa de narrativa em torno desses sujeitos, mas algo que chama a atenção
do autor, e também a nossa, é a atribuição do termo apenas às pessoas negras. Na academia
brasileira e nas Organizações Não-Governamentais (ONG), existe um termo semelhante, o
“Preto, Pobre e Periférico”, ou “PPP”.
Os Jornalistas da Times haviam encontrado o termo no novo discurso desenvolvido
pelas principais organizações filantrópicas do país, para as quais a "descoberta" de
um novo grupo de favorecido, definida por sua Indiferença a "qualquer tipo de
tentativa de contato" (como afirmou Mitchell Sviridoff, vice presidente da Fundação
Ford), oferecia uma desculpa perfeita tanto para o fracasso dos programas de
combate à pobreza quanto para uma nova agenda de intervenção dirigida.226
Esse discurso guarda características que devemos nos atentar, pois sujeita todos que
não estão na norma desta sociedade a respostas filantrópicas e messiânicas. Afinal, há o
reconhecimento de falência das instituições como prisões, comunidades terapêuticas e afins,
alternando os discursos entre “sujeitos perigosos” que arruinarão a vida de quem não está
nessa dinâmica e sujeitos dignos de pena e salvação.
O perigo das intervenções de ONGs e sujeitos cooptados por esse discurso é a própria
dinâmica do Estado neoliberal em responder às manifestações da questão social por duas vias:
a da ausência de respostas, ou a da terceirização. Nesse contexto, diversas agências de
pesquisa em Direitos Humanos e institutos de pesquisa e cultura nas regiões periféricas
financiam ações, pesquisas e até pautas sociais para "combater a violência”, ou “combater a
pobreza”.
Essa relação com o terceiro setor é, sem dúvidas, contraditória e delicada. A ausência
de políticas sociais e direitos sociais para apenas uma parcela da população não é uma
condição abstrata e, na materialidade, é violenta por diversos ângulos. No entanto, não
225
Op. Cit., WACQUANT, 2008, p. 44
226
Ibid., p. 45
97
podemos ignorar que esta é uma outra tecnologia de poder. Ou uma atualização de algo que já
houve no passado.
Dos "teórico” das questões de raça do final do século XIX até Charles Murray,
passando por Edward Banfield, existe uma longa tradição de analises
pseudo-científicas que visam a reforçar a representação estereotipada dos negros do
gueto como seres preguiçosos, transviados, anormais e instáveis que se banham em
uma cultura patogênica radicalmente divergente da cultura norte-americana
dominante. 227
3.1.2 A Necropolítica
227
Ibid., p. 49
228
Ibid., p. 51
98
Além disso, devemos nos atentar ao que realmente diz respeito ao termo
“necropolítica”. Na compreensão de biopolítica de Foucault, há uma impressão de que o
direito - e o gerenciamento - da vida era para todos, independente de seus extratos de classe.
No entanto, Mbembe aponta um aspecto perdido pelo autor: Nos países que não houveram um
Estado Social, como Socialismo ou Estado de Bem-Estar Social existe uma parcela da
população que nem ao menos é considerada.
Aos que estão à margem resta apenas a luta pela ascensão social, a fuga desta condição
de morte - não apenas do corpo, mas da subjetividade, da razão, da cultura, linguagem etc… -
é a única saída possível. É o sujeito que nunca conseguiu, por exemplo, alcançar a cidadania
mas é objeto dos projetos de extermínio estatais e paraestatais. Essa condição tende a se
agravar durante o neoliberalismo, exibindo a fragmentação da democracia e do Estado de
Direito, que operam na contradição da exclusão.
O Estado de exceção moderno está entre a política e o Direito, se apresentando como
“a forma legal do que não pode ter forma legal” em cenários de crises como guerras civis e
movimentos significativos de resistência. “(...) é a resposta imediata do poder estatal aos
conflitos internos mais extremos”.229
De acordo com o autor, após o totalitarismo da II Guerra Mundial e o genocídio dos
judeus, os Estados modernos criaram um regime de emergência permanente para eliminar os
grupos que não se adequassem ao regime disciplinar de suas instituições.
229
AGAMBEN,Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 10 -11
99
Diante do incessante avanço do que foi definido como uma “guerra civil mundial”, o
estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de governo
dominante na política contemporânea. Esse deslocamento de uma medida provisória
e excepcional para uma técnica de governo ameaça transformar radicalmente — e,
de fato, já transformou de modo muito perceptível — a estrutura e o sentido da
distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição. O estado de exceção
apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre
democracia e absolutismo.230
O direito de fazer guerra significava duas coisas. Por um lado, reconhecia-se que
matar ou negociar a paz eram funções proeminentes de qualquer Estado. Isso ia dep
ar com o reconhecimento de que nenhum Estado deveria exercer qualquer poder
para além de suas fronteiras. Em troca, o Estado não reconheceria nenhuma
autoridade superior à sua dentro de suas fronteiras. Por outro lado, o Estado se
comprometeria a “civilizar” os modos de matar e atribuir objetivos racionais ao
próprio ato de matar.233
230
Ibid., p. 12
231
Conforme noticiado em:
https://noticias.r7.com/internacional/fotos/a-vida-dos-dreamers-jovens-imigrantes-ameacados-nos-eua-31012018
e https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/os-campos-de-detencao-da-era-trump/.
232
SEBASTIÃO Júnior, Acácio Augusto. Política e polícia: medidas de contenção de liberdade: modulações de
encarceramento contra os jovens na sociedade de controle. 2009. 181 f. Dissertação (Mestrado em Ciências
Sociais) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009.
233
MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona. 2017. p. 126
100
Entre as favelas com seus becos, vielas e cantões as pessoas sobrevivem em meio a
ação policial, os projetos sociais, a atuação de ONGs e o governo das empresas do
tráfico. Entregam suas vidas aos pastores da ocasião venham eles na pele de líderes
das igrejas pentecostais (a ostentação do luxo cafona nas periferias), na pele dos
líderes de posses ou grupos de rap (como o mais ilustres deles, Mano Brown), na
pele dos líderes comunitários (da vida real ou da novela), na pele do bem
intencionado estudante universitário (mesma que ele esteja apenas trabalhando ou
comprando alguma coisa), na pele do policial militar comunitário (mesmo que ele
esteja armado), na pele do chefe do tráfico (mesmo que ele vá levar alguém à
execução mais tarde), na pele do pastor da comunidade científica com os respingos
ordinários da linguagem policial-acadêmica, enfim, uma pluralidade de pastores para
todos os gostos, que mantém cada um no seu devido lugar e amando o lugar onde
nasceu, dissolvendo potenciais singularidades.
mundo, a exemplo do “Black Power” nos Estados Unidos, que reivindicavam seus direitos
civis; e os movimentos de esquerda que, através da crítica ao Estado de bem-estar social, nos
anos 60, passaram a questionar a razão da pena e prisão.
No século XVIII já havia a crítica à razão moderna e sua relação com a intenção
corretiva da pena. As influências cristãs na punição ditavam a lógica dessa suposta redenção,
afinal, Goldwin já utilizava o exemplo da punição de Damiens para apresentar a
intencionalidade e estudo por trás da punição, ressaltando a finalidade de empregar o
sofrimento na medida do crime.234
Além disso, o autor ressalta a defesa da propriedade privada nas penas, trazendo a
discussão de um judiciário (ou juiz) corrupto e pouco inclinado ao que os autores
contemporâneos consideravam justiça. Se a ofensa, ou crime, era dirigida ao rei, ninguém
teria coragem de contrariá-lo; quando dirigida ao direito de propriedade do burguês, não é
diferente. Nessas primeiras críticas às punições do Estado, há uma importante crítica: a
desigualdade de classes onde, quem tem os meios de produção dita, não só a maneira — e
quantidade — de exploração da mão-de-obra, mas também o funcionamento da legislação e
das instituições às quais elas têm domínio.235
Dessa forma, as considerações do autor acerca das punições e liberdades eram
direcionadas às possibilidades dos indivíduos e influenciaram libertários que também
buscavam estudar as penas e instituições burguesas, incluindo Proudhon, anos mais tarde, que
trazia suas discussões sob um ponto de vista mais coletivo.
Devido às discussões que associam os crimes à propriedade privada e soberania,
existem abolicionistas penais que tratam do tema como uma utopia a ser alcançada em outra
sociedade, preferencialmente após a revolução socialista. No entanto, sabemos — pelos
elementos trazidos anteriormente — que a abolição das penas é uma urgência. As reformas
das penas (do suplício à forca, da forca à masmorra, da masmorra à prisão, da prisão à pena
alternativa, da pena alternativa à justiça restaurativa…) não alteram a incidência de violência.
Ademais, a definição de punição do autor, resume a dinâmica das penas sob os
sujeitos.
234
O livro “Vigiar e Punir” abre com a descrição rica em detalhes do suplício de Damiens, um longo processo de
punição em praça pública, com a presença da Igreja para expiar os pecados em terra. A crença, na época, era de
que o sofrimento em terra seria descontado no pós vida. Segundo Goldwin, o último crime de Damiens foi contra
a vida do rei Luis XV, talvez a maior ofensa possível na época, contornar o direito de espada, trocando as
posições com o soberano.
235
GOLDWIN, William. Enquiry Concerning Political Justice. Washington: Domínio Público. p. 8
102
Devido à correlação de forças implicada no castigo, para o autor, a punição tem, em si,
mecanismos para moldar o comportamento dos sujeitos — como discutido por Foucault, anos
mais tarde. A questão posta neste raciocínio do século XVIII é que a punição aponta o erro,
mas não o corrige, apenas cria a dicotomia utilitária para a sociedade guiada pela propriedade
privada.237
O tema da punição é talvez o mais fundamental na ciência da política. Homens
associados em prol da proteção e benefício mútuo. Parece que os assuntos internos
de tais associações têm uma importância inexprimivelmente maior do que os
externos. Aparentemente, a ação da sociedade, em garantir recompensas e
supervisionar a opinião, é de efeito pernicioso. Daí se segue que o governo, ou a
ação da sociedade em sua capacidade corporativa, dificilmente pode ser de alguma
utilidade, exceto na medida em que é necessário para a supressão da força pela
força; para a prevenção de ataque hostil de um membro da sociedade, a pessoa de
seu patrimônio ou outro, prevenção essa que costuma se chamar Justiça Criminal, ou
punição.238
Foucault, anos mais tarde, discutiu, como vimos, essa punição que move as
engrenagens de nossa sociedade ainda hoje. Embora William Goldwin não seja um autor
traduzido no Brasil, seu pensamento é fundamental para compreendermos a dimensão social
do abolicionismo penal, desvinculando a ideia de um pensamento exclusivo — e iniciado —
pela criminologia crítica.
Assim como Proudhon, Goldwin é considerado um “anarquista de estilo de vida”, ou
reformista. O que indica que as mudanças propostas por esses militantes estão relacionadas
236
Ibid., p. 56 (tradução nossa)
237
Ibid., p. 122 (tradução nossa)
238
Ibid., p. 243 (tradução nossa)
239
PASSETTI, Edson. 2000. Anarquismo e Sociedade de Controle. Colóquio Foucault/Deleuze. 2000. p. 4
103
aos micropoderes, ao que podemos fazer hoje a partir de nossos recursos objetivos e
subjetivos, mantêm em sua práxis o questionamento da autoridade e instituição.
Se os anarquismos não esperam pelo futuro, mas operam pelo presente, fazendo
existir vida livre e igualitária no presente diante de uma política da qual não se
aparta, a vida somente pode ter existência libertária mediante a abolição do súdito.
Abolir a condição de súdito é por si a abolição da soberania, seja ela centralizada no
Estado ou no indivíduo autônomo. Não se trata de inverter sinais, do Estado para o
sujeito autônomo, o que seria algo semelhante ao que faz acontecer a continuidade
da democracia no capitalismo por meio da representação renovada por eleições e
exercício do sufrágio universal.240
240
Ibid., p. 5
241
PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. São Paulo: Editora Revan. 2004. p. 30
104
Ou seja, “a lei cria o criminoso”. Se hoje houvesse a descriminalização das drogas, por
exemplo, o varejo das substâncias deixaria de ser equiparado a crime hediondo, e aqueles que
são tratados como “delinquentes” passariam a ser apenas “bons vendedores”. Na questão de
drogas, temos mais uma questão — levantada por Hulsman — fundamental no que tratamos
enquanto seletividade penal.
242
Desses autores, apenas Mathiesen não tem uma versão brasileira de seus livros, e, embora Davis tenha sido
uma referência na crítica abolicionista, seus livros chegaram no Brasil há apenas dois anos.
243
HULSMAN, Louk. Penas Perdidas. Rio de Janeiro: LUAM. 1993. p. 64
105
A cifra negra diz respeito àqueles crimes que não são denunciados e são resolvidos
dentro da comunidade, de maneira que as duas partes entendem um erro como parte da
natureza humana e negociam formas de lidar com os danos. Trata, dos casos como acidentes
de trabalho, que são, no máximo, indenizados, sem que o dono da empresa seja preso (porque
seria considerado, na visão de muitos, como um exagero, afinal “foi um acidente, não houve
intenção”). Sabendo que a seletividade penal, além da questão da raça, tem um ponto de
preferência, podemos inferir que abolir as penas e resolver os conflitos fora das instituições, e
da compreensão no lugar da punição, é uma realidade, não utopia.
Assim como há uma sede de punir em nossa sociedade, também encontramos uma
flexibilidade e compreensão das instituições com determinados crimes, como helicópteros
com quilos de cocaína pousando em fazendas de políticos, crimes do colarinho branco que são
ignorados, tráfico de drogas de jovens brancos de classe média e outras ações que passam
direto pelo sistema penal; além da baixíssima taxa de resolutividade de crimes como os de
homicídio, que têm uma taxa de resolutividade de 30%.
(...) Como achar normal um sistema que só intervém na vida social de maneira tão
marginal, estatisticamente tão desprezível? Todos os princípios ou valores sobre os
quais tal sistema se apóia (a igualdade dos cidadãos, a segurança, o direito à justiça,
etc...) são radicalmente deturpados, na medida em que só se aplica àquele número
ínfimo de situações que são os casos registrados.245
Neste abolicionismo penal libertário, proposto por Hulsman, não há coerência entre a
humanização das prisões e o que é, de fato, possível para construir uma sociedade sem penas.
O que ocorre nessas iniciativas é um ciclo vicioso, pois a situação não melhora na prisão —
afinal é impossível humanizar um projeto que se pauta em tortura e já inicia falido — e nem
para os sujeitos apenados.
Outro ponto importante é a questão da linguagem: abolir estruturas de linguagem,
como o discurso sobre danos e erros. O termo crime, assim como criminalidade e justiça
criminal retiram o contexto de interações sociais e pressupõem um culpado e uma vítima, e o
pertencimento do primeiro ao mundo dos “maus”.248
maneira pública ou que pode ser constatada pela sociedade. O suplício original era a tortura em praça pública
(exemplo do Damiens, citado por Goldwin e Foucault); e é essa tecnologia que foi reformada até chegar às
prisões.
247
Op. Cit. FOUCAULT, 2014. p. 42-43
248
Op. Cit. HULSMAN, 1993, p. 95-96
107
Seria preciso se habituar a uma linguagem nova, capaz de exprimir uma visão não
estigmatizante sobre as pessoas e situações vividas. Falar de "atos lamentáveis",
"comportamentos indesejados", "pessoas envolvidas", "situações problemáticas", já
seria um primeiro passo no sentido de se formar uma nova mentalidade, derrubando
as barreiras que isolam o acontecimento e limitam as possibilidades de resposta, que
impedem, por exemplo, que se compare, do ponto de vista emocional ou do
traumatismo experimentado, um "furto com arrombamento" a dificuldades no
trabalho ou nas relações afetivas. Livre da compartimentalização institucional, uma
linguagem aberta facilitaria o surgimento de novas formas de enfrentar tais
situações.249
249
Ibid., p.96
250
Política da abolição (tradução nossa).
251
Associação Nacional Sueca para Humanização do Sistema Criminal.
252
MATHIESEN, Thomas. The politics of abolition: essays in political action theory. Oslo: Universitetsforlaget,
1974.
108
Ou seja, para que a nova proposta seja viável, ela tem que contrapor algumas
premissas do sistema antigo, enquanto compete com ele para substituí-lo. No entanto, para
que seja minimamente aceita, a alternativa tem que guardar alguma semelhança com esse
sistema. Qualquer proposta muito “acabada” poderia ser reprovada de início, por ser
irreconhecível e, portanto, pouco crível.
O conceito de competição requer, como ponto de partida, um ponto fixo subjetivo de
satisfação do sistema-membro que é confrontado com a oposição. A tarefa política é
expor a esse membro a insuficiência da satisfação com o sistema como está. Quando
há essa exposição, a oposição compete.255
A teoria e proposta de Mathiesen foi revisitada e criticada por outros autores (como
Justin Pinché, no Canadá), por caracterizar-se enquanto reformista e, portanto, servir à
reformas “progressistas” da prisão, ou até mesmo às reformas das alas mais conservadoras do
modelo, como as prisões privadas. Porém, o autor se considera abolicionista — e outros
abolicionistas também o consideram — pois, a partir da negação do que está posto se tem a
possibilidade de construção de outro sistema.
Nils Christie, também referência na discussão do abolicionismo em países nórdicos,
compartilha da ideia de que é necessário criar alternativas à pena de prisão para, assim, abolir
a prisão. Nota-se que a proposta do autor é de uma reformulação do sistema penal desde sua
base, focando na assistência material e psicológica da vítima e no estigma que carrega aquele
assujeitado à pena que, mesmo após o cumprimento, não consegue retomar suas atividades.256
O fator decisivo é o crime ou delito (o pecado), não os desejos da vítima, nem as
características individuais do culpado, nem as circunstâncias particulares da
sociedade local. Ao excluir todos esses fatores, a mensagem oculta do
neoclassicismo se converte em uma negação da legitimidade de toda uma série de
opções e possibilidades que devem ser levadas em consideração.257
e sim a prisão, ou, nas palavras do autor, "olhar para as alternativas à punição, não punição
alternativas”.258
As contribuições dos autores de países nórdicos para o abolicionismo penal são, sem
dúvida, muito importantes. No entanto, ao longo desse debate houve, por muito tempo, o
apagamento de importantes autores e de um movimento fundamental para as motivações
brasileiras (e estadunidenses) para abolir as prisões: o movimento dos Panteras Negras.259
Fundado em 1966, por Huey Newton e Bobby Seale, jovens negros da California, o
movimento Panteras Negras pautava o fim da violência policial contra os jovens negros,
principalmente após os movimentos pelos Direitos Civis. Com influências de Marx e Fanon,
suas reivindicações eram:
258
Ibid., p. 126
259
Existe, inclusive, uma polêmica de que Michel Foucault conheceu o movimento nos anos 70 em visita aos
Estados Unidos, o que chegou a render uma foto com jovens militantes do movimento. Segundo militantes do
movimento, o autor aprendeu muito com eles, mas nunca deu os devidos créditos à Davis e Jackson, que
discutiam o abolicionismo na época.
260
Disponível em: https://www.ucpress.edu/blog/25139/the-black-panther-partys-ten-point-program/. Acesso em:
28 ago. 2021
110
rapidamente nos Estados Unidos, haviam resultado em mudanças importantes para os negros
do sistema prisional no país.261
Outra ação importante através do Jornal do partido era a de abaixo-assinados para a
soltura de militantes presos por motivos pífios. Além de denúncias e exposições de decisões
arbitrárias dentro das prisões, como a divulgação de documento proibindo que um militante
visitasse a prisão por “comportamentos disruptivos” e por ter “inflamado os outros
aprisionados durante uma visita, contra os oficiais, os chamando de assassinos”.262 No caso,
uma semana antes da divulgação do jornal ao qual nos referimos, George Jackson havia sido
assassinado por um guarda da prisão com um tiro. 263
Davis traz a discussão sobre abolicionismo penal, orientada pela teoria marxista e com
importantes críticas ao recorte de gênero no sistema penal desde o século XVII, quando
mulheres eram punidas no âmbito doméstico. As torturas em praça pública também eram
torturas dentro das casas, como o amordaçamento, e por vezes essas mulheres eram obrigadas
a desfilarem pelas ruas da Inglaterra.
261
The black panther, august 28th 1971, Disponível em:
http://www.freedomarchives.org/Documents/Finder/DOC513_scans/George_Jackson/513.BPP_paper_GJ.8.28.7
1.pdf. Acesso em: 28 ago. 2021
262
Ibid., p.71
263
A história de George Jackson foi documentada através de suas cartas no livro “Soledad Brother”. Disponível
em: https://libcom.org/files/soledad-brother-the-prison-letters-of-george-jackson.pdf. Acesso em: 28 ago. 2021
264
DAVIS, Angela Y. Estarão as prisões obsoletas? Rio de Janeiro: Difel. 2020, p. 43
111
265
Ibid., p. 48
266
(tradução nossa). Disponível em: https://www.8toabolition.com/why Acesso em: 28 ago. 2021.
112
muitas vezes dentro de casa, e retornam ao domicílio sem maneiras de subsistência — e, por
vezes, não podiam acompanhar os filhos na escola ou consulta médica por causa da distância
que era permitido circular sem acionar a tornozeleira eletrônica.
Além disso, tem se tornado comum a promoção da Justiça Restaurativa em casos da
assistência social, como na cidade de Santos, associando a prática ao abolicionismo penal. Foi
a partir dessa informação que passamos a dividir Abolicionismo Penal de Abolicionismo
Prisional.
A Justiça Restaurativa é um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos,
técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais,
institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os
conflitos que geram dano, concreto ou abstrato são solucionados de modo
estruturado.267
A Justiça Restaurativa não altera a lógica do sistema penal por ainda partir da lógica
“ofensor” e “vítima”; propõe a discussão acerca do “dano” com todos os envolvidos —
incluindo família — e representantes que foram direta ou indiretamente atingidos, além dos
mediadores que são capacitados para lidar com a dinâmica. O foco é a satisfação para ambas
as partes, e responsabilização por quem cometeu o ato.
§ 2° A aplicação de procedimento restaurativo pode ocorrer de forma alternativa ou
concorrente com o processo convencional, devendo suas implicações ser
consideradas, caso a caso, à luz do correspondente sistema processual e objetivando
sempre as melhores soluções para as partes envolvidas e a comunidade.268
Da maneira como está disposta, a Justiça Restaurativa pode ser interpretada como uma
“sobrepena” que, em um país onde as verbas de saúde e atenção à saúde mental são cortadas
de maneira significativa, pode resultar em maior sofrimento para ambos os lados. Basta
imaginar um sujeito que passa dois anos em regime fechado, sob as condições mais
degradantes possíveis, paga a sua “dívida com a sociedade” e tem que buscar o perdão e
satisfação da outra parte.
Art. 7º. Para fins de atendimento restaurativo judicial das situações de que trata o
caput do art. 1º desta Resolução, poderão ser encaminhados procedimentos e
processos judiciais, em qualquer fase de sua tramitação, pelo juiz, de ofício ou a
requerimento do Ministério Público, da Defensoria Pública, das partes, dos seus
Advogados e dos Setores Técnicos de Psicologia e Serviço Social.269
O debate no Serviço Social sobre a Justiça Restaurativa é pertinente, mas ainda inicial.
No entanto, a profissão tem compactuado atualmente que o sistema punitivo no Brasil propõe
267
Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/justica-restaurativa/. Acesso em 23 ago. 2021.
268
Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/atos-normativos?documento=2288. Acesso em: 28 ago.
2021
269
Ibid.
114
algo que não cumpre: a ressocialização270, o que aproxima o Serviço Social da prática, por
compactuar de seus princípios — a priori.
No entanto, há uma divergência importante que tange a discussão da mediação de
conflitos: toda a característica de Justiça Restaurativa trazida pelo CNJ aponta para uma
prática à qual o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) se posicionou contra em
2016271, por considerar, na época, que não havia um debate aprofundado da questão, e de seus
recursos metodológicos.
270
Op. Cit. TORRES.
271
Disponível em: http://cress-sp.org.br/wp-content/uploads/2016/03/cress_nota_mediacao_online.pdf
272
A justiça restaurativa é promovida pela ONU a partir da resolução 2002/12.
115
CONSIDERAÇÕES FINAIS
profissionais que lidam com a realidade das violências dirigidas à Classe Trabalhadora no
cotidiano. Para nós, a experiência é o berço da teoria, e não seria de bom tom distribuir
conclusões baseadas em opiniões de uma ou duas pessoas.
Porém, encontramos nos elementos para a disciplina um farto território de articulação
com práticas profissionais que vêm sendo desenvolvidas e precarizadas em tempos de
neoliberalismo. É difícil falarmos sobre o exame e não pensarmos sobre como vem sendo
conduzidas as perícias judiciais, onde temos profissionais autônomos, sem nenhuma estrutura,
criando discursos acerca de famílias para decidir o futuro delas. Esse é só o começo da
uberização da profissão, que pode voltar a se ver a serviço da caridade através da terceirização
das políticas sociais, e o crescimento da desigualdade.
A atuação do assistente social é bastante peculiar, quando pensamos nas relações de
poder, pois pode tender a algo punitivo e disciplinar (sob os prismas mais conservadores da
profissão), ou elementar para a construção de um poder popular. O caráter contraditório da
profissão também diz respeito às limitações presentes em nossa atuação; por vezes é melhor
fazer o possível e manter a forma de subsistência, do que resistir só e perder seu emprego.
Outro ponto que nos reforça a necessidade de lutar pelos serviços públicos e autonomia da
profissão (ainda que seja relativa).
De toda forma, as relações de poder que construímos com os usuários se alteraram ao
longo do tempo, e nisso o curso deste trabalho segue próximo do Serviço Social. Em todos os
momentos de resistência e construção de algo novo, de reflexão e ação, estivemos presentes
em nossas heterotopias; palavra que parece definir não apenas um tipo de abolicionista penal,
mas também a nossa profissão, compromissada com a mudança social.
Esse trabalho nasceu, inclusive, em meio a importantes mudanças e retomadas de
discussões na profissão. Nos anos 50, quando o Movimento Negro Unificado seguia com
conquistas importantes, o Serviço Social discutia a questão racial atrelada aos elementos de
desigualdade entre as classes, em 2016 começou (pelo menos no sudeste do país), um forte
movimento de discussão do elemento racial na composição da classe trabalhadora.
Há uma relevância, portanto, em citar trabalhos como o que relaciona Serviço Social e
seu “nascimento” em tempos de eugenia sob a análise foucaultiana, e em nosso resgate
histórico dos diferentes tratamentos de raças no país. É nítido que o tema requer
aprofundamentos e adensamentos teóricos ainda maiores, mas para a reflexão crítica de nossa
visão de mundo (que sempre está mudando), os elementos de cada momento do racismo no
Brasil nos da expectativa de subsidiar discussões que extrapolam o teor de nossa discussão
neste trabalho.
118
O terceiro ponto, no que diz respeito à discussão com a profissão, invoca reflexões
acerca do caráter policialesco e de nossas possibilidades de atuações “contra as correntes”. A
esperança aqui é do último ponto ter inspirado aos leitores microações, possíveis de serem
construídas coletivamente, com a participação dos usuários de serviços, para enfrentar as
assoladoras estatísticas e dados da primeira parte. De toda forma, acreditamos que esse
trabalho seja relevante para a profissão por se comprometer com nossa melhor parte: os
esforços para a mudança social.
Por fim, acreditamos que há muito a ser investigado em próximos trabalhos sobre os
enclausuramentos e dinâmicas da sociedade de controle. Sabemos que a existência de
mecanismos paraestatais são assustadoras para os profissionais que estão na linha de frente,
não de uma pandemia de saúde como a covid, mas de banalização de um poder de punir. Se
por um lado a medicalização e o estupor por substâncias lícitas e ilíticas parece crescer, por
outro lado, acordamos todos os dias, há alguns anos, com duas dúvidas: Por que ninguém se
move para derrubar um presidente genocida? E quem mandou o morador do condomínio de
uma notória figura de poder matar Marielle Franco?
Será que essas questões dizem respeito ao Estado? Ou será que elas dizem respeito às
organizações que pagam o gás do morador da periferia, e dão o toque de recolher das cidades?
Quem está controlando as prisões e por que a violência que, até meados dos anos 2000, era
presente nas prisões de São Paulo estão cada vez pior na região norte e nordeste do país? Será
que há um caminho entre as fronteiras, aéreo, terrestre ou aquático, que financia a violência
neste país do tráfico (varejo de crime hediondo?)?
Além disso, talvez devêssemos começar a pensar sobre o que significaria o fim das
prisões em uma sociedade de celulares com GPS, tornozeleiras eletrônicas, chips
localizadores, periferias sitiadas, reconhecimentos faciais e um poder paralelo de execução.
Pode parecer distópico pensarmos nisso, mas cada dia mais nos parece urgente. Como ficarão
os CRAS, CREAS, UBS, USF, CAPS e afins após o grande desencarceramento? Qual será o
papel que o Serviço Social será designado a atuar? Quais são nossas possibilidades agora para
evitar que haja um regresso em nosso projeto de profissão?
Sabemos que levantamos mais questões do que respostas neste último momento, mas
acreditamos que construções importantes são assim: partem de perguntas e chegam em novas
perguntas. De toda forma, é com muito respeito por profissionais que são comprometidos com
a Classe Trabalhadora que levantamos esses questionamentos, mas acabamos com uma única
certeza: O abolicionismo penal é uma realidade e um movimento no qual o Serviço Social
119
está, ainda que sem saber, inserido a todo momento que age em seu princípio de defesa
intransigente dos direitos humanos, assim como outras profissões.
120
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Fonte: https://www.saopauloinfoco.com.br/historia-carandiru/
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