2019 Dis Jsilvarodrigues

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

JÉSSICA SILVA RODRIGUES

TESTEMUNHAS DA NECROPOLÍTICA: IMPLICAÇÕES PSICOSSOCIAIS DOS


HOMICÍDIOS JUVENIS NO COTIDIANO DE SUAS MÃES

FORTALEZA
2019
JÉSSICA SILVA RODRIGUES

TESTEMUNHAS DA NECROPOLÍTICA: IMPLICAÇÕES PSICOSSOCIAIS DOS


HOMICÍDIOS JUVENIS NO COTIDIANO DE SUAS MÃES

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Psicologia da Universidade Federal do
Ceará para obtenção do título de Mestre em Psicologia.
Linha de Pesquisa: Processos Psicossociais e
Vulnerabilidades Sociais.

FORTALEZA
2019
JÉSSICA SILVA RODRIGUES

TESTEMUNHAS DA NECROPOLÍTICA: IMPLICAÇÕES PSICOSSOCIAIS DOS


HOMICÍDIOS JUVENIS NO COTIDIANO DE SUAS MÃES

Dissertação apresentada ao programa de Pós-


Graduação em Psicologia da Universidade Federal do
Ceará para obtenção do título de Mestre em Psicologia.
Linha de Pesquisa: Processos Psicossociais e
Vulnerabilidades Sociais.

Aprovada em: ____/____/____

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________
Prof. Dr. João Paulo Pereira Barros (Orientador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)

__________________________________________________
Prof. Dr. Leonardo Damasceno de Sá
Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________________
Profª. Drª. Cândida Maria Bezerra Dantas
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
AGRADECIMENTOS

Construir uma dissertação sobre violência no período político que vivemos, de


fortalecimento de fascismos cotidianos, não é nada fácil. Afirma-se em uma constante tentativa
de falar sobre e apontar para aquilo (e aqueles) que um conjunto de forças nega a existência e a
visibilidade. Isso nos fere como seres humanos e não há como resistir sozinho nessa empreitada.
Nos caminhos traçados até aqui, aprendi os valores das trocas e encontros que nos
potencializam. Por isso, me encho de gratidão a todos aqueles que cruzaram minha vida, pois
cada um contribuiu direta ou indiretamente para que conseguisse encerrar mais esse ciclo.
Todos vocês são minha rede e me ajudam a desenhar possibilidades nesse caos. Dessa forma,
agradeço imensamente:
A todos os professores que passaram pela minha vida, desde a tia Janete da primeira
série até meu orientador João Paulo. Vocês ensinam e inspiram até quando pensam não estarem
fazendo nada de tão importante. Peço desculpas pelas forças cruéis que os têm como ameaças
a serem caçadas, saibam que não estão sós!
Às mulheres participantes desse estudo que muito me ensinaram sobre o ‘andar na
dor’ e resistência;
Às mulheres da minha família, exemplos de mulheres ‘arretadas’ e que muito me
ensinaram, desde pequena, a não silenciar frente ao que nos assujeita e a nos reconstruirmos
quando nos julgamos incapazes;
À minha mãe, por ser exemplo de força, me inspirando sempre a conseguir aquilo
que quero;
Ao meu pai, por, mesmo com a distância geográfica que nos separa, ser cuidado e
carinho, meu maior exemplo de humildade e paciência;
À minha irmã Tamiris, minha maior companheira, por sempre ter estado em todos
os momentos da minha vida, dividindo todas as horas, inclusive as mais amargas, e por sempre
partir em minha defesa em tudo desde pequenininha;
À minha irmã Amanda, por ser um porto-seguro e minha maior referência do
feminino. Obrigada pela força e por apontar norte e sul sempre que estou meio perdida;
Ao meu pequenino sobrinho Bentinho, por ser luz, docilidade e carinho, regando
de amor a todos nós, nos dando força pra seguir. Obrigada por ter mudado nossas vidas desde
que chegou;
Ao meu irmão Lucas, pelos momentos doces e leves a cada encontro;
Ao meu amigo Edmilson Junior, obrigada por ser apoio incondicional. São mais de
dez anos de amizade que modificaram intensamente minha forma de ver o mundo.
À minha amiga Isabelli, por sempre se fazer presente em todas as horas,
principalmente nas mais difíceis;
À minha amiga Laila, por me acompanhar desde pequenininha dividindo tantas
horas das mais alegres às mais tristes. Obrigada por sempre ser abraço e acolhida nesse mundão;
À minha amiga Milena, pelas escutas pacientes, trocas e suporte emocional. Você
me ensina muito sobre companheirismo;
Aos amigos, Gê, Juliana e Amsraiane, por durantes anos serem apoio, escuta atenta
e suporte;
À minha amiga Camilla Paiva, por ter me ajudado a acreditar que era possível o
mestrado quando eu pensei que não conseguiria a aprovação. Muito obrigada pela força na
transição entre residência e mestrado. Você foi fundamental!
À Michelle Nunes por sempre me ajudar a tentar ver as coisas de formas mais
positivas. Muito obrigada pela escuta e cafés;
A Cris e Helen, amigas da época da escola, pelos encontros divertidos e potentes.
À Natacha pelas trocas teóricas e emocionais durante o mestrado, obrigada por fazer
parte da minha rede. Você me ensina a resistir em união;
À Isadora Dias, minha eterna terapeuta, por compartilhar anos da minha vida, sendo
acolhida incondicional e escuta atenta. Obrigada por ter me ajudado a olhar para determinadas
coisas que não conseguiria sozinha.
Aos amigos do mestrado Natacha, Iara, Lívia, Andréa, Chico e Filipe pelas
conversas, cafés e cervejas que tanto ajudaram a descontrair nos momentos que achei que tudo
ia dar errado;
A Felipe Cardoso, pelo companheirismo nesses dois anos. Obrigada por ser escuta
atenciosa e pela paciência;
A Lilian, Jéssica, Fernando, Alana, por terem me ajudado muito no início do
mestrado, me dando dicas não só teóricas, mas de organização de estudo. Obrigada também
pelas cervejas no paraíba depois dos longos dias de estudo;
A Fernando Benício, pelo constante apoio em todos os momentos, me ajudando a
manter a calma e sempre me fazendo acreditar mais em mim mesma e vislumbrar novos
possíveis;
A todos aqueles que compõem o VIESES, grupo que é suporte e descontração.
Vocês todos enchem de leveza os meus dias. São um respiro no meio do caos. Obrigada por me
fazerem acreditar que ainda é possível viver nesse mundo;
A Camila, Dalgo e Lena, em especial, por terem estado comigo em campo,
compartilhando suas experiências e sabedorias, vocês se garantem demais!
À Lena, que viabilizou a ida a campo diversas vezes e compartilhou comigo as
dores e angústias ao longo da pesquisa;
A Dalgo, pela revisão atenta do texto e pelas trocas literárias ao longo desse tempo;
A Roger pela atenção e sempre presteza, me ajudando com a formatação do texto
tanto na qualificação quanto na defesa;
Ao meu orientador, João Paulo não só pelas orientações, mas pelas desorientações,
tão necessárias, que me fizeram ver o mundo com novos olhos. Obrigada por acreditar em mim,
enchendo minha alma de possíveis e de novas inspirações.
Aos membros da banca de qualificação, Professores Leonardo e Cândida, pelas
indicações dos caminhos possíveis e articulações teóricas;
A Hélder, Eveline, Renê e Isac, por toda a presteza e atenção nesse período. Sempre
me ajudando com os prazos, documentações necessárias, chave do laboratório. Vocês foram
fundamentais nesse processo;
A Simone, pelas conversas nos corredores da psicologia e por animar os dias com
seu bom humor;
A todos aqueles que me ajudaram na articulação de campo, em especial, Joaquim,
por ter viabilizado tantos encontros;
À CAPES, pelo financiamento da bolsa, sem a qual o mestrado teria se tornado
inviável.
Por fim, agradeço a todos os socos no estômago que a vida me deu até aqui, sem
cada um deles não seria quem sou e não veria o mundo como vejo agora.
Quando você foi embora fez-se noite em meu viver
Forte eu sou, mas não tem jeito
Hoje eu tenho que chorar
Minha casa não é minha e nem é meu este lugar
Estou só e não resisto, muito tenho pra falar
(Milton Nascimento - Travessia)
RESUMO

Segundo o Atlas da Violência (2017), entre os anos de 2005 e 2015, 318 mil jovens foram
vítimas de homicídio no território nacional. Além disso, tem-se observado a nordestinação dos
homicídios no País, haja vista as elevadas e crescentes taxas de homicídios juvenis nesta região,
tendo se destacado por serem superiores à média nacional. Os estados nordestinos apresentaram
crescimento superior a 100% nos índices de homicídios. Nesse quadro, o Ceará apresentou taxa
de crescimento de homicídios de 122,8% entre os anos de 2005 e 2015, e Fortaleza registrou,
pela segunda vez consecutiva, o maior índice de Homicídio na Adolescência (IHA),
apresentando, em 2014, índice de 10,94, taxa três vezes maior que a média do País. Ademais,
as chacinas têm se manifestado de forma constante na Capital cearense, atuando como um
emblema das transformações da dinâmica da violência urbana e da intensificação dos
homicídios juvenis. O extermínio de jovens articula-se a diversas questões, como racismo,
criminalização da pobreza e exclusão social, fazendo com que as juventudes negras e pobres
sejam produzidas como uma espécie de inimigo interno a ser aniquilado. Toma-se, neste
trabalho, o fenômeno da intensificação dos homicídios de adolescentes e jovens no Ceará, como
um emblema da necropolítica. Às mães recaem regimes de (in)visibilidade perversa de modo
semelhante ao que ocorre com seus filhos, o que atua na legitimidade das mortes juvenis e
silenciamento de seus sofrimentos. Frente a esse panorama, partimos da seguinte pergunta:
considerando o contexto da cidade de Fortaleza, quais as implicações psicossociais do
homicídio de jovens no cotidiano de suas mães? Considerando-se essas questões, o presente
trabalho tem como objetivo geral analisar implicações psicossociais dos homicídios de jovens
no cotidiano de suas mães no contexto de Fortaleza. Seus objetivos específicos buscam:
conhecer as narrativas sobre homicídios juvenis produzidas por mães de jovens assassinados na
capital cearense; discutir repercussões ocasionadas pelo homicídio de jovens no cotidiano das
mães e identificar estratégias produzidas por essas mulheres para lidar com a perda dos filhos.
Para isso, metodologicamente, utilizamos a cartografia como método de pesquisa-
inter(in)venção e nos ancoramos teoricamente em referenciais da psicologia social1 que
discutem temas como violências e juventudes, em seus diálogos com autores como Mbembe,
Foucault, Deleuze, Guattari, Agamben e Butler. As discussões são norteadas também a partir
dos enfoques psicossocial e interseccional. Participaram deste estudo mães de jovens
assassinados. Os territórios existenciais habitados foram o Grande Bom Jardim e o Fórum
Popular de Segurança Pública do Ceará (FPSP), por meio do qual se acessou mães dos coletivos
organizados ‘Mães do curió’ e ‘Vozes de Mães e Familiares do Socioeducativo e Prisional do
Ceará’. O critério de seleção para escolha do Grande Bom Jardim se deu por este figurar entre
os territórios com mais altas taxas de homicídio. Como estratégias metodológicas, foram
utilizadas entrevista e diários de campo. Quanto ao método de análise de dados, optou-se pela
Análise Cartográfica.

Palavras-chave: Homicídio de Jovens, Mães, Violência, Psicologia Social

1
Nos baseamos neste estudo em vertentes da psicologia social que tematizam relações entre adolescência,
juventude, violência, exclusão social e modos de subjetivação em seus diálogos com áreas afins, como as ciências
sociais, e com estudos transdisciplinares que discutem formas de dominação e sujeição.
ABSTRACT

According to the Atlas of Violence (2017), between 2005 and 2015, 318,000 young people
were victims of homicide in the national territory. In addition, the northeastern homicide has
been observed in the country, given the high and increasing rates of juvenile homicides in this
region, having stood out for being above the national average. The northeastern states showed
growth over 100% in homicide rates. In this context, Ceará presented homicide growth rate of
122.8% between 2005 and 2015, and Fortaleza recorded, for the second consecutive time,
the highest rate of Homicide in Adolescence, presenting, in 2014 a rate three times higher than
the country's average. In addition, the massacres have been constantly manifested in the
capital of Ceará, acting as an emblem of the transformations of the dynamics of urban violence
and the intensification of juvenile homicides. The extermination of young people is linked to
various issues, such as racism, criminalization of poverty and social exclusion, causing black
and poor youth to be produced as a kind of internal enemy to be annihilated. In this work, the
phenomenon of the intensification of homicides of adolescents and young people in Ceará is
taken as an emblem of necropolitics. Mothers fall into regimes of perverse (in) visibility similar
to what happens to their children, which acts in the legitimacy of juvenile deaths and silencing
of their sufferings. Given this scenario, we start from the following question: considering the
context of the city of Fortaleza, what are the psychosocial implications of youth homicide in
their mothers' daily life? Considering these issues, this paper aims to analyze the psychosocial
implications of youth homicides in their mothers' daily lives in the context of Fortaleza. Its
specific objectives are: to know the narratives about juvenile homicides produced by mothers
of young people murdered in the capital of Ceará; discuss the repercussions caused by the
homicide of young people in their mothers' daily life and identify strategies produced by these
women to deal with the loss of their children. We use cartography as a method of research
intervention research. This paper is theoretically anchored in social psychology references that
discuss topics such as violence and youth, in their dialogues with authors such as Mbembe,
Foucault, Deleuze, Guattari, Agamben. and Butler. The discussions are also guided from the
psychosocial and intersectional approaches. Mothers of young murdered participated in this
study. The inhabited existential territories were the Grande Bom Jardim and the Fóum Popular
de Segurança Pública (FPSP), through which we had acess to two mothers’s organized
collectives: Mães do Curió and “ Vozes de Mães e Familiares do Socioeducativo e Prisional
do Ceará’. The selection criterion for choosing Grande Bom Jardim was because it is among
the territories with the highest homicide rates. As methodological strategies, interviews and
field diaries were used. Regarding the method of data analysis, the Cartographic Analysis was
chosen.

Keyword: Youth Homicide, Mothers, Violence, Social Psychology


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 10
2 “É CAMINHANDO QUE SE FAZ O CAMINHO”: CARTOGRAFANDO AS
IMPLICAÇÕES DOS HOMICÍDIOS JUVENIS NAS MÃES DE JOVENS .... 17
2.1 A Cartografia como método de Pesquisa-inter(in)venção e seus processos de
des/reterritorialização .......................................................................................... 17
2.2 Territorialidades da Pesquisa: Grande Bom Jardim e Fórum Popular de
Segurança Pública ................................................................................................ 28
2.3 As Participantes do Estudo .................................................................................. 31
2.4 Ferramentas Metodológicas ................................................................................. 33
2.4.1 Entrevistas ............................................................................................................ 34
2.4.2 Diário de Campo: acompanhando processos de mobilização social e organização
política com a participação de mães e familiares vítimas de violência ............... 37
2.4.3 Análise dos Dados ................................................................................................. 38
2.5 Aprovação no comitê de ética .............................................................................. 38
3 “PRA SER TRATADO COMO BANDIDO, BASTA MORAR NA PERIFERIA”:
HOMICÍDIOS JUVENIS SEGUNDO MÃES DE JOVENS ASSASSINADOS 40
3.1 O relato das mães como analisador das políticas de morte e precarização da vida
............................................................................................................................... 40
3.2 “Porque a favela é os matáveis”: as margens urbanas como zonas de morte .... 43
3.3 “O governo faz, mas às vez ele falha”: Abandono institucional e precarização da
vida como condições para o homicídio juvenil .................................................... 55
3.4 Inscrição dos jovens na dinâmica do tráfico e violências institucionais: vivência
em um fogo cruzado ............................................................................................. 60
3.4.1 “Mãe, (...) se eu sair [do tráfico] eu vou morrer”: Inscrições dos jovens na
dinâmica do tráfico e ficcionalização do inimigo................................................. 61
3.4.2 “ Se errou, tem que pagar o que deve, mas com dignidade, com respeito, como ser
humano”: Políticas de aprisionamento, violências institucionais e maquinarias de
gastar vidas desimportantes ................................................................................. 75
4 “É UMA TORTURA QUE NÃO ACABA NUNCA”: REPERCUSSÕES DOS
HOMICÍDIOS JUVENIS E O SOFRIMENTO PSICOSSOCIAL DAS MÃES 81
4.1 Introdução: um enfoque psicossocial e interseccional do sofrimento das mães
frente à violência letal .......................................................................................... 81
4.2 “Nunca mais a família é a mesma”: Implicações nas dinâmicas familiares ....... 85
4.3 “Você fica procurando um culpado, será que fui eu?”: Processos de
Culpabilização das mães ...................................................................................... 95
4.4 “Só vem a sensação de muito medo”: Medo, Isolamento, Solidão e Silenciamento
............................................................................................................................. 101
4.5 “Eu mesma não sou mais a mesma”: Desterretorializações decorrentes do
homicídio juvenil ................................................................................................ 109
4.6 “É uma dor imperdoável”: Sobre viver na dor ................................................. 113
4.7 Repercussões como expressões do ‘fazer morrer’ ............................................ 118
5 “NÓS COMBINAMOS DE NÃO MORRER”: PERSISTÊNCIAS,
RESISTÊNCIAS E (RE)EXISTÊNCIAS DAS MÃES DE JOVENS
ASSASSINADOS ................................................................................................ 119
5.1 “Era pra mim só trabalhar”: o trabalho como estratégia de “andar na dor” .. 120
5.2 “Entrego na mão de Deus e pronto”: A Fé como modo de persistir ................. 122
5.3 “Cada uma dessas pessoas traz um pouquinho do meu filho”: Rede de Apoio
Socioinstitucional................................................................................................ 124
5.4 "A gente se uniu pela dor": A formação de grupos de mães e familiares ........ 132
5.4.1 “O grupo é muito importante nesse apoio”: Grupo como Dispositivo de Apoio
Psicossocial ......................................................................................................... 134
5.4.2 “Estamos saindo da nossa zona de conforto pelo sangue de nossos filhos”: notas
cartográficas sobre deslocamentos do “luto à luta” .......................................... 137
5.5 A aliança entre os corpos como experiência (do) comum ................................. 150
6 “E NOSSA HISTÓRIA NÃO ESTARÁ PELO AVESSO ASSIM (..) TEREMOS
COISAS BONITAS PRA CONTAR”: FINS COMO NOVOS
RECOMEÇOS........................................................................................................153

REFERÊNCIAS......................................................................................................160
10

1 INTRODUÇÃO

O enterro, a volta
O olhar do menino marejando, pensando longe
Sem entender
E o meu coração apertado, sem conseguir explicar
O tempo foi encaixando tudo
Os pertences dele sempre no mesmo lugar
O velho chinelo abandonado respondem
Ele não vai voltar
Os dias são escuros mesmo com sol quente
O silêncio de Miguelzinho cala
Cada vez mais fundo no peito da gente (...)
Como pode alguém morrer no mesmo dia que nasceu?
(Crisântemo - Emicida)

Este estudo teve como foco de problematização as implicações psicossociais de


homicídios juvenis no cotidiano das mães de jovens assassinados na cidade de Fortaleza. A fim
de justificar o interesse em pesquisar sobre esse tema, trago alguns elementos da minha
trajetória profissional e, também, dados do cenário nacional e local sobre a dinâmica da
violência envolvendo jovens.
O interesse pela investigação dessas questões se deu inicialmente pela minha
experiência como psicóloga em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas
(CAPS AD), no qual pude ter contato com jovens, em sua maioria negros, moradores das
periferias e que estavam inseridos na dinâmica do tráfico, e seus familiares. Nesse trabalho,
pude observar familiares de jovens ameaçados de morte que procuravam o serviço no intuito
de conseguirem internação em comunidades terapêuticas para seus filhos, muitas vezes tida
como uma forma de fuga às ameaças de morte sofridas por facções criminosas. Chamava-me
atenção o sofrimento desses familiares em decorrência dos contextos de violência vivenciados
e as dificuldades de escuta e acolhimento encontrada por estes na Rede de Atenção Psicossocial
(RAPS). A partir dessa experiência, passei a perceber a violência como um tema transversal a
diversas áreas, inclusive à Saúde Mental, cujo referido equipamento demonstrou inúmeras
vezes fragilidades no que concerne ao fornecimento de apoio àqueles familiares.
Após o ingresso no mestrado em psicologia na Universidade Federal do Ceará (UFC),
esse interesse se intensificou a partir da minha vivência como integrante do VIESES: Grupo de
Pesquisas e Intervenções Sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação, em particular a
11

partir da participação na sua pesquisa guarda-chuva, intitulada “Juventudes e Violência Urbana:


Cartografia de Processos de Subjetivação na Cidade de Fortaleza (CE) ”. A referida pesquisa
tem por objetivo cartografar processos de subjetivação constituídos na articulação de práticas
sociais em torno da violência envolvendo segmentos juvenis em territórios de Fortaleza com
elevados índices de homicídio, atuando em bairros da Regional I da Cidade, como Barra do
Ceará, Regional V, como Mondubim e, mais recentemente, Bom Jardim, e Regional VI, como
Jangurussu.
A minha inserção, inicialmente, deu-se no Grande Jangurussu, como integrante da
equipe da pesquisa-intervenção geral do VIESES. A princípio, buscava compreender o
cotidiano de jovens inseridos na dinâmica do tráfico. Entretanto, por conta dos acirramentos
dos conflitos territoriais e de mudanças no contexto institucional no qual nos inserimos para
mediar os vínculos com os possíveis interlocutores do estudo, experimentamos redesenhos na
pesquisa, passando, a partir do mapeamento do coletivo de forças atuantes em campo, a
reconhecer outras possibilidades de investigação. Desse modo, após as vivências e
compartilhamentos em campo, percebemos diversas questões relacionadas aos familiares, com
ênfase nas figuras maternas, que pulsavam em campo, como a invisibilização das dores dessas
mulheres, a organização de algumas delas em coletivos na luta por justiça pelos assassinatos e
a fragilidade das políticas públicas em ofertar apoio a elas. Com isso, o estudo passou a objetivar
escutar as mães de jovens assassinados.
Atrelado a essas experiências, outro elemento que justifica essa tematização é a
intensa notoriedade que o fenômeno da violência tem ganhado nos últimos anos, sendo
referenciada constantemente em matérias jornalísticas de divulgação nacional e local. O
homicídio de jovens tem atingido taxas exponenciais, podendo ser caracterizado como
extermínio das juventudes, tendo em vista que, segundo o Atlas da Violência (2017), o total de
mortos em nosso País, em apenas três semanas, supera o total de mortos em todos os ataques
terroristas no mundo. Ainda de acordo com o Atlas, entre os anos de 2005 e 2015, 318 mil
jovens foram vítimas de assassinato no Brasil. O Nordeste desponta com as mais elevadas e
crescentes taxas de homicídios juvenis, apresentando taxas superiores à média nacional,
fenômeno que tem sido nomeado de “nordestinação dos homicídios no Brasil" (BARROS et al,
2017). Os estados nordestinos apresentaram crescimento superior a 100% nos índices de
homicídios, entre os anos de 2005 e 2014 (MELO; CANO, 2017). O Ceará apresentou
percentual de homicídios por arma de fogo de 235,3%, com 86 mortes por violência policial
apenas em 2015 (CERQUEIRA et al., 2017). Em 2014, Fortaleza destacou-se como o
município que mais mata adolescentes, apresentando Índice de Homicídio na Adolescência
12

(IHA) de 10,94, taxa três vezes maior que o do conjunto do País, e índice de 78,1% de
Homicídio e Morte Violenta com Causa Indeterminada (MVCI). Soma-se a esse cenário, a
crescente frequência de chacinas no Ceará, às quais têm sido emblemas da intensificação e
banalização das mortes de jovens. De acordo com o relatório do Comitê Cearense pela
2
Prevenção de Homicídios na Adolescência (CCPHA, 2017) , 64% dos jovens mortos tiveram

amigos e familiares assassinados anteriormente, o que evidencia que esses jovens são vítimas
em potencial. Quanto ao perfil, jovens entre 15 e 29 anos, negros e com baixa escolaridade
continuam sendo os mais vitimados pela violência letal.
Segundo o relatório “Cada Vida Importa” (CCPHA, 2017), os familiares
(principalmente as mães) dos jovens assassinados são fortemente impactados pelas mortes,
situação que resulta em adoecimento psíquico, o qual pode ser agravado por situações de
ameaça e intimidação. Percebe-se, com isso, a necessidade de nos voltarmos, neste estudo, à
análise das implicações psicossociais dos homicídios juvenis no cotidiano de seus familiares,
enfatizando como familiares de jovens assassinados em Fortaleza narram esses homicídios, os
efeitos psicossociais que essas mortes têm produzido em seus cotidianos e quais estratégias
esses familiares têm encontrado para o enfrentamento de tais perdas.
Partimos da compreensão de violência como um fenômeno difuso, ou seja, como
um fenômeno amplo que abarca diferentes modos de sociabilidade e que possui grande
capacidade de irradiação (BARREIRA, 2015). Rifiotis (1997, 2006) aponta que diferentes
disciplinas lançam olhares e modelos interpretativos acerca da “violência” e facilmente
reproduz-se a perspectiva de que esta representa um mal a ser combatido, haja vista que seria
um aspecto de involução das sociedades associado à ideia de “selvageria”. Sendo visto,
portanto, como algo da ordem do animalesco, acaba se evidenciando como um problema e não
como algo a ser analisado e ponderado a partir de seu cunho teórico. A violência, costuma,
assim, a ser colocada como algo necessariamente ruim, um mal sempre à espreita que precisa
ser extirpado, uma vez que se constitui como a negação da sociabilidade (VIEIRA, 2009; 2014).
Os perpetradores da “violência” são reduzidos ao ato em si, tornando-se a própria violência e,
por conseguinte, sujeitos desviantes que precisam ser controlados ou exterminados (MISSE,
2011). Essa análise, por vezes superficial, que leva à redução da violência apenas a seu caráter

2
O Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência (CCPHA) se apresenta como uma “instância
de estudo, debate, mobilização e projeção” (Governo do Estado do Ceará, p.5) sobre o homicídio de adolescentes
no Ceará. Iniciou suas atividades em 2015, no intuito de congregar diferentes atores e instituições para pensar
estratégias de enfrentamento ao extermínio de jovens. Como fruto desse trabalho, foi gerado um relatório que
expõe o panorama do homicídio adolescentes no Ceará com algumas recomendações para prevenção destes.
13

negativo e ao fortalecimento de discursos como “bandido bom é bandido morto”, incorre no


equívoco de que, em busca de soluções rápidas e fáceis, elejam-se os algozes a serem
exterminados, ao mesmo tempo em que não se atente para as estruturas sociais contemporâneas
que forjam e sustentam as diversas “violências” características das sociedades (VIEIRA, 2009;
2014).
Tendo em vista essas questões, consideramos a positividade do conflito na
antropologia urbana (SIMMEL, 1983), dialogando com a aceitabilidade da violência
(RIFIOTIS, 1997). Para Rifiotis (1997, 2006), o modo de compreensão da violência como um
mal a ser abatido não ‘dá conta’ da complexidade dos fenômenos contemporâneos que a
envolvem. O autor propõe que a pensemos como algo inerente à vida social e que, portanto,
não se constitui como uma negação da sociabilidade. Há, assim, um caráter positivo da
“violência”, que não pode ser desconsiderado na pesquisa aqui proposta. Desta feita,
pretendemos estar atentos no campo de pesquisa àquilo que a violência produz em termos de
relações sociais, modos de subjetivação dos sujeitos em questão (mães), suas interações com os
outros, com os espaços que frequentam e vivem.
Os dados expostos acima remetem a questões sociais amplas e, de certo modo,
perpetuadas historicamente no Brasil, relacionadas à exclusão social, criminalização da
pobreza, racismo e extermínio de jovens negros que habitam as periferias das grandes cidades
brasileiras. Esses homicídios, por vezes, são legitimados por discursos que ressoam em
determinadas camadas da sociedade, ancorados na propagação de ideais neoliberais em que
prepondera a ordem do capital. Nesse processo, dá-se vazão à individualização de questões
sociais mais amplas, prevalecendo a lógica meritocrática que gera a culpabilização dos
indivíduos pelas condições de pobreza em que vivem (BATISTA, 2012).
Vale-se ressaltar que, muitas vezes, busca-se legitimar o extermínio desses jovens
por meio de sua associação com atividades ilícitas, entretanto, sabe-se que não se matam apenas
jovens ditos “envolvidos” com o crime, mas também se vitimam jovens apenas por
corresponderem a certo estereótipo do “bandido”, ou seja, ter em si certos marcadores sociais,
como: ser “ (...)negro, funkeiro, morador de favela, próximo do tráfico de drogas, vestido de
tênis, boné, cordões (...)” (BATISTA, 2003, p. 36).
Nas últimas décadas, a figura do adolescente/jovem negro e pobre frequentemente
é compreendida na condição de inimigo social, passando, então, a ser objeto de ódio, numa
sociedade em que se acredita que, para manter-se vivo, é preciso que o outro morra. Dessa
forma, o direito de punir justifica-se frente a discursos de “defesa da sociedade”. As punições,
mortes e linchamentos passam a ser tomadas como inevitáveis, operando, assim, uma lógica de
14

guerra, na qual os inimigos, representados pelos jovens negros da periferia, devem ser
exterminados. Esse inimigo social é compreendido como um ser despido de qualquer
humanidade, sendo demonizado (BATISTA, 2003). Suas mortes são muitas vezes
invisibilizadas e o sofrimento dos seus familiares, silenciados.
Costa, Njaine e Schenker (2017), em revisão de literatura sobre as repercussões dos
homicídios nas famílias das vítimas, atentam para os processos de adoecimento psíquico,
emocional e comportamental nos familiares após a morte dos jovens. São apontados ainda
alguns elementos que agravam esse sofrimento, como o envolvimento prévio do jovem com
atividades ilícitas e a ineficiência do sistema jurídico, tendo-se em vista que muitas dessas
mortes não chegam sequer a serem investigadas. As autoras ainda atentam para o fato de que o
processo de legitimação dessas mortes pelo envolvimento prévio da vítima com atividades
ilícitas pode agravar ainda mais o sofrimento dos familiares, gerando sentimento de isolamento,
assim como uma privação em seu direito de vivenciar o luto. Interessa-nos problematizar as
questões relacionadas à deslegitimação do sofrimento em decorrência dessas mortes. Cabe
ressaltarmos que, ao trazermos as mães como testemunhas da necropolítica que opera nos
cotidianos das margens urbanas, não buscamos colocá-las em um papel de passividade. Pelo
contrário, compreendemos que essas mulheres também são vítimas da necropolítica, portanto,
utilizamos a palavra testemunhas em um sentido próximo do utilizado por DAS (2007, 2011),
isto é, para demonstrar que essas mulheres, ao narrarem suas dores, dão o seu testemunho sobre
as violências que atravessam seus modos de existir, ao “se encontrarem nos marcos dos
acontecimentos e serem por eles afetadas” (DAS, 2011). Além disso, nos aproximamos das
discussões de Foucault, Deleuze e Guatarri sobre discursos, compreendendo que as narrativas
dessas mulheres são colocadas como discursos “menores” se comparados aos discursos oficiais,
não por terem menor relevância, mas por sua potência micropolítica.
Com base nas questões até aqui apresentadas, o presente trabalho tem como
objetivo geral analisar implicações psicossociais dos homicídios de jovens no cotidiano de suas
mães no contexto de Fortaleza. Seus objetivos específicos buscam: conhecer as narrativas sobre
homicídios juvenis produzidas por mães de jovens assassinados na capital cearense; discutir
repercussões ocasionadas pelo homicídio de jovens no cotidiano das mães e identificar
estratégias produzidas por essas mulheres para lidar com a perda dos filhos.
Apoiando-se na problemática levantada acima, este estudo se norteou pela seguinte
questão: considerando o contexto da cidade de Fortaleza, quais as implicações psicossociais do
homicídio de jovens no cotidiano de suas mães? Para responder à pergunta de partida,
realizamos uma pesquisa à luz da cartografia como método de pesquisa-intervenção e nos
15

ancoramos teoricamente em referenciais da psicologia social 3 que discutem temas como


violências e juventudes, em seus diálogos com autores como Mbembe, Foucault, Deleuze,
Guattari, Agamben e Butler. As discussões são norteadas também a partir dos enfoques
psicossocial e interseccional. O primeiro possibilita pensar, articuladamente ao fenômeno da
violência e da exclusão social, os modos de subjetivação, enfatizando seus agenciamentos
coletivos, imanentes ao próprio registro do social e condições de precarização da vida.
Entendemos que isso permite ampliar a análise das tramas e implicações da violência,
transcendendo uma lógica que concebe sujeito-sociedade binariamente, já que não se trata de
polos separados que interagem, mas sim de processos de co-emergência. A dimensão
psicossocial, portanto, ressalta os múltiplos aspectos, processos e agenciamentos coletivos que
produzem subjetividades em contextos de violência. Já a dimensão interseccional nos auxilia a
pensar de que modo as várias formas de precarização da vida se distribuem desigualmente
(BUTLER, 2015), considerando-se os diferentes marcadores sociais de classe, raça e gênero.
Nesse sentido, o olhar interseccional se faz importante para pensar os silenciamentos e a
(in)visibilização das mães dos jovens assassinados, tendo em vista serem mulheres, pobres e
negras com trajetórias de vida marcadas por distintas violências, em que a perda do filho se
coloca uma delas. Este estudo traz, ainda, como categorias centrais, adolescência/juventude,
homicídio e mães.
Organizamos esta dissertação em quatro capítulos cujas discussões partem das
processualidades cartografadas em campo. Desse modo, o primeiro capítulo aborda os aspectos
metodológicos, apresentando o processo de inserção em campo, as participantes do estudo e as
ferramentas metodológicas utilizadas. O segundo capítulo problematiza o panorama de
intensificação dos homicídios juvenis a partir da perspectiva das mães, ancorando-se nas noções
de necropolítica de Mbembe, racismo de Estado, de Foucault e precarização da vida, de Butler.
O terceiro capítulo discute as implicações psicossociais no cotidiano das mães dos jovens sob
um prisma psicossocial e interseccional. Já o quarto capítulo versa sobre os modos de lidar com
a perda construídos pelas mães, abordando suas formas de resistência e reexistência após as
mortes, assim como a inserção em coletivos políticos de luta por justiça e memória dos filhos.
O presente estudo pretende contribuir em problematizar os elementos que compõem a complexa
teia na qual se produzem as mortes juvenis e o sofrimento das mães em decorrência das perdas,

3
Nos baseamos neste estudo em vertentes da psicologia social que tematizam relações entre adolescência,
juventude, violência, exclusão social e modos de subjetivação em seus diálogos com áreas afins, como as ciências
sociais, e com estudos transdisciplinares que discutem formas de dominação e sujeição.
16

possibilitando reflexões acerca dos modos de subjetivação dessas mulheres no contexto de


acirramento das violências e extermínios daqueles que são produzidos como corpos matáveis.
17

2 “É CAMINHANDO QUE SE FAZ O CAMINHO”: CARTOGRAFANDO AS


IMPLICAÇÕES DOS HOMICÍDIOS JUVENIS NAS MÃES DE JOVENS

2.1 A Cartografia como método de Pesquisa-inter(in)venção e seus processos de


des/reterritorialização

Esta dissertação foi tecida a partir de ricas trocas com mulheres cujos filhos foram
assassinados em Fortaleza. O contato com os contextos nos quais tais interlocutoras estavam
inseridas se deu a partir dos agenciamentos desta investigação com as atividades de extensão e
pesquisa realizadas pelo VIESES4, grupo onde me inseri ao ingressar no Programa de Pós-
Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC).
O cotidiano partilhado com algumas dessas mulheres e as processualidades
acompanhadas em campo, ao mesmo tempo em que me impuseram vultosos desafios, foram de
suma importância para minha experimentação dos liames e tramas da formação de pesquisadora
aliada ao compromisso ético de fazer frente ao recrudescimento de violências e outras formas
de iniquidade social. Desse modo, considerando-se o problema de pesquisa formulado,
metodologicamente, optamos pela realização de uma pesquisa qualitativa alinhada à pesquisa-
inter(in)venção. Utilizamos o termo inter(in)venção, à semelhança de Menezes, Colaço e
Adrião (2018), para ressaltar que os caminhos da pesquisa são traçados ao caminhar, de forma
que seu compromisso é com a produção de novos possíveis e não com a representação do
mundo, conforme argumentaremos ao longo do texto. A escolha por essa perspectiva
metodológica se deu em virtude de constituir-se como “uma tendência das pesquisas
participativas5 que busca investigar a vida de coletividades na sua diversidade qualitativa”, isto
é, atentando para os sentidos que são produzidos mediante as práticas sociais e institucionais
(ROCHA; AGUIAR, 2003, p. 66).

4
VIESES: Grupo de Pesquisas e intervenções sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação, Grupo de Pesquisa
cadastrado no Diretório do CNPQ e ligado à linha Processos Psicossociais e Vulnerabilidades Sociais do Programa
de Pós-Graduação em Psicologia, bem como Programa de Extensão cadastrado junto à Pró-Reitoria de Extensão
da UFC.
5
Rocha e Aguiar(2003) apresenta algumas vertentes de pesquisas participativas: 1)Pesquisa-ação, desenvolvida
nos Estados Unidos, por Lewin (1969) que tem base no funcionalismo e apresenta caráter intervencionista, embora
esse tipo de pesquisa finde por ganhar uma dimensão utilitária tendo em vista que se voltava à compreensão de
disfunções visando ajustamento dos sujeitos à dada realidade pesquisada; 2) Pesquisa-ação crítica, desenvolvida
principalmente em países da américa-latina o desenvolvimento desta perspectiva deu-se de modo diferenciado da
desenvolvida no Estados Unidos uma vez que esteve associado à processos de emancipação e autogestão haja vista
os contextos de repressão política vividos em seus países.
18

Rocha e Aguiar (2003) destaca a historicidade dessa perspectiva metodológica no


Brasil, afirmando que as pesquisas participativas chegaram no País em um período de intensa
repressão política, afirmando-se, naquele contexto, como um importante instrumento de
mudança na forma de conhecer, implicando-se frente aos processos de opressão vividos no
regime militar. A Pesquisa-intervenção se diferencia das demais pesquisas participativas, à
medida que “aprofunda a ruptura com os enfoques tradicionais de pesquisa e amplia as bases
teórico-metodológicas das pesquisas participativas, enquanto proposta de atuação
transformadora da realidade sócio-política, já que propõe uma intervenção de ordem
micropolítica na experiência social” (ROCHA; AGUIAR, 2003, p.63). Cabe pontuarmos a
aliança teórico-metodológica dessa metodologia com as diversas perspectivas institucionalistas
que emergiram na França na década de 1960, como a análise institucional e a esquizoanálise,
que passaram a ganhar espaço em contextos latino-americanos na década de 1970.
Essa perspectiva de fazer pesquisa nos auxiliou a romper com os modelos
tradicionais, uma vez que, além do seu caráter político, afirmou-se como uma “atitude de
pesquisa” (ROCHA; AGUIAR, 2003), o que indica que, mais do que um conjunto de técnicas
e protocolos utilizado como âncora, este estudo adotou uma postura de intercessão entre a
pesquisadora e as mulheres e coletivos acompanhados. Essa postura requereu um investimento
na produção de novas análises que se deram no plano micropolítico, sem abdicar das reflexões
no campo macropolítico. O trabalho de campo foi utilizado como um empreendimento
micropolítico, conforme aponta Damasceno (2009), uma vez que a relação estabelecida com o
outro em campo é uma relação de transformação. Ou seja, buscamos pesquisar e intervir com o
outro, e não corroborar com produções de conhecimento sobre o outro. As intervenções em
campo seguiram, portanto, uma perspectiva de coengendramento, em que as relações
estabelecidas me modificaram como pesquisadora, ao mesmo tempo que se propôs a provocar
modificações no campo e nas mulheres interlocutoras. Essas mudanças que foram ocorrendo,
tanto no delineamento do foco, redefinição de estratégias, aprimoramento das minhas formas
de estar em campo e afetações com os processos acompanhados trouxeram um sentido de
movimento e não de estatização.
Nesse estudo, a pesquisa-intervenção se deu a partir do que autores do campo da
psicologia social como Passos, Kastrup e Escóssia (2015) apontam como ethos da cartografia e
da política de pesquisa que Moraes (2014) chama de PesquisarCom. Pode-se compreender a
cartografia como um método (porém como hodus-metá, isto é, num sentido inverso aos métodos
tradicionais, a fim de que o caminho seja construído no próprio caminhar da pesquisa) ou um
ethos de pesquisa-intervenção (PASSOS; BARROS, 2015). Ou seja, um modo de fazer
19

pesquisa-intervenção que tem por base uma compreensão de metodologia que subverte a dos
modelos tradicionais, uma vez que as metas e objetivos da pesquisa não precedem o ato de
pesquisar, mas se dão no processo de realização desta6; sendo assim, o saber é produzido a
partir do fazer. Cartografar é, portanto, um acompanhamento de processos de produção de
subjetividades e não a representação de objetos, eis a primeira pista apresentada pelos referidos
autores para a prática do método da cartografia. Neste estudo, os processos acompanhados
foram os impactos psicossociais no cotidiano das mães de jovens assassinados, a partir de suas
narrativas. Com isso, os efeitos do ato de pesquisar sobre a realidade acompanhada foram
analisados constantemente, sendo repensados e rearticulados sempre que novas demandas se
apresentavam em campo (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015). Essa análise das
condições que circunscrevem o ato de pesquisar, a qual temos apresentado ao longo deste texto,
é denominada análise de implicação e consiste em uma importante ferramenta da pesquisa
intervenção (PAULON, 2005). Nesse sentido, compreende-se a pesquisa e a intervenção como
instâncias inseparáveis. Esse caráter processual do estudo cartográfico requereu da cartógrafa
uma abertura aos devires do campo, estando atenta às descontinuidades e rupturas que também
constituem o panorama da violência letal e seus efeitos na produção de modos de subjetivação.
A complexidade das interações dos elementos que se conectam, produzindo o panorama
estudado escapam ao método tradicional, o que nos levou a, a partir do método escolhido, a
questionar o que se apresentava como obviedade em campo. Isso requereu de mim, aquilo que
Passos, Kastrup e Escóssia (2015) apontam como mais uma pista do método cartográfico: uma
atenção à espreita, ou seja, uma atenção

que não é de simples seleção de informações. Seu funcionamento não se identifica a


atos de focalização para preparar a representação das formas de objetos, mas se faz
através da detecção de signos e forças circulantes, de pontas do processo em curso
(PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015, p. 33).

De acordo com uma das pistas do método cartográfico apresentados por Passos,
Kastrup e Escóssia (2015), cartografar é habitar um território existencial, o que significa que
“conhecer não é tão somente representar o objeto ou processar informações acerca de um
mundo supostamente já constituído, mas pressupõe implicar-se com o mundo, comprometer-se
com a sua produção” (p. 131). Nesse sentido, habitar não se relaciona à residir no mesmo
ambiente mas sim à inserção, não apenas no território físico (em sua dimensão espacial), mas

6
Na pesquisa intervenção, “O desafio é o de realizar uma reversão do sentido tradicional de método - não mais
um caminhar para alcançar metas prefixadas (metá-hódos), mas o primado do caminhar que traça, no percurso,
suas metas. A reversão, então, afirma um hódus-metá.” (PASSOS e BARROS, 2015, p. 17).
20

de entrar em contato com as vivências dos sujeitos que compõem a realidade estudada. Esse
território existencial, o qual foi adentrado pela cartógrafa ao se inserir nos territórios
pesquisados e conhecer as histórias das mães dos jovens e seus relatos sobre as perdas dos seus
filhos, requereu um mapeamento do campo de forças que atuam na produção dos impactos por
estas mulheres vividos a partir de suas perdas. Adentrar esse território, exigiu “do cartógrafo
um mergulho no plano da experiência, lá onde conhecer e fazer se tornam inseparáveis,
impedindo qualquer pretensão à neutralidade ou mesmo suposição de um sujeito e de um objeto
cognocentes prévios à relação que os liga” (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015, p. 30), o
que, demandou a reafirmação do compromisso ético-político com os processos de emancipação
das mães participantes, contribuindo para visibilização de seus sofrimentos.
A ideia de analisar o plano coletivo de forças consiste em mais uma pista do método
da cartografia e ela “revela a gênese constante das formas empíricas, ou seja, o processo de
produção dos objetos do mundo, entre eles, os efeitos de subjetivação” (PASSOS; KASTRUP;
ESCÓSSIA, 2015, p. 92) ou seja, refere-se ao conjunto de vetores que se conectam de modo a
produzir a realidade estudada. A cartografia, aqui, não mantém um compromisso com
produções de verdades, mas sim com o mapeamento dos vetores que compõe o cenário atual de
intensificação das mortes e (in)visibilidade daqueles que sobrevivem à violência letal.
Considerando-se a temática deste estudo, traçar o plano coletivo das forças que o compõe é, por
exemplo, analisar de que modo elementos como os processos de criminalização, racismo,
genocídio, pobreza, cultura do medo operam na produção da legitimação das mortes de jovens
e silenciamento dos sofrimentos de seus familiares. A fim de traçar esse plano de forças,
buscamos deter o olhar não apenas sobre o homicídio juvenil, mas sobre componentes que
produzem e sustentam esse problema, sendo a repercussão no cotidiano de suas mães um dos
analisadores.
Aqui o processo de análise é compreendido como “o trabalho de desestabilização
do que se apresenta tendo a unidade de uma forma ou de um campo: o instituído, o indivíduo,
o social” (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015, p. 26). Faz-se importante frisar que a
dimensão processual da cartografia não deve ser confundida com laissez faire, uma vez que não
se trata de uma ação sem direção já que requer certa orientação do processo de pesquisa,
entretanto essa orientação é dada pelo próprio processo de pesquisar, não havendo relações
causais entre sujeito e objeto. O rigor dessa proposta de pesquisa consiste em produzir
condições de tornar visível e dizível as conexões, processos e relações que operam em regimes
de (in)visibilidade e silenciamento dessa juventude e suas mães.
21

A perspectiva do pesquisarCom é proposta por Moraes (2014) como um modo de


fazer pesquisa que rompe com a verticalização das relações, ou seja, as discussões sobre método
constituem em debates acerca dos modos de estar com os outros, de pensar o lugar do outro nas
pesquisas. A autora destaca quatro guias centrais nessa perspectiva: 1) a pesquisa é
compreendida como uma forma de produzir o mundo e não apenas de representá-lo; 2) o
participante da pesquisa é visto como um sujeito que contribui ativamente na construção desta,
não se reduzindo a um mero objeto a ser estudado mas sim destacando-se como produtor de sua
história; 3) os sujeitos da pesquisa passam a se relacionar mais diretamente com as implicações
políticas desta, trata-se, assim, de uma política de pesquisa que se baseia no encontro com o
outro e a partir do qual o objeto de pesquisa é delineado; e 4)os mal-entendidos que
eventualmente possam ocorrer em campo tornam-se elementos de análise e, portanto, produto
da pesquisa. Neste estudo pesquisarCOM se expressou nas construções coletivas e
compartilhamentos produzidos com as mulheres participantes deste estudo, não apenas nas
ações coletivas construídas no FPSP, mas na facilitação para que eu pudesse acessar outras
mães, o que denota suas composições também nas estratégias metodológicas deste estudo.
A cartografia se aproxima da perspectiva do PesquisarCom (MORAES, 2014) à
medida que ambas propõem uma articulação entre o pesquisar e o intervir, em que o método
deixa de ser apenas um passo-a-passo a ser seguido, abandonando uma perspectiva ascética de
pesquisa e passando a se afirmar como uma ação política. Além disso, essas duas perspectivas
metodológicas requerem uma inserção em território existencial e carregam em si uma abertura
à mudança, trazendo uma idéia de movimento, o que requer uma receptividade da pesquisa e
da pesquisadora às questões que surgem e se ampliam no processo de pesquisar. A pesquisa é,
então, compreendida a partir de sua processualidade, não havendo início, meio ou fim
estanques. A pesquisadora se insere em um meio, pois dada realidade já estava se dando antes
de sua inserção e se distancia, assim, de formas exatas a serem expostas como representação de
uma verdade. Essas duas metodologias carregam em si um componente de participação, em que
o sujeito pesquisado é percebido como agente construtor da pesquisa.
A partir dessa escolha metodológica, foi traçado o plano coletivo de forças
(ESCÓSSIA; TEDESCO, 2015) que produzem os homicídios juvenis no contexto de Fortaleza
e atuam na construção de regimes de (in)visibilidades perversas aos quais esses jovens e suas
mães estão submetidos. Acredita-se que as análises viabilizadas a partir dessa metodologia
assim como o ethos de pesquisa proposto por esta contribuíram para a problematização do
supracitado regime, percebido, muitas vezes, por um viés naturalizante que banaliza os
assassinatos dessas juventudes. Busca-se assim, por esse percurso metodológico, romper com
22

práticas estigmatizadoras e excludentes que compõem os desafios ético-políticos a serem


superados no cenário pesquisado. Trata-se de borrar os limites postos, a forma de representação
desses jovens e suas famílias, aquilo que Moraes (2014) denominou de fronteiras. Para esta
autora, o rompimento dessas fronteiras se dá:

quando nos engajamos, dia após dia, na tarefa de movê-las e problematizá-las. Sem
dúvida, uma das formas de desfazer e refazer as fronteiras está nas narrativas que
fazemos do nosso trabalho de campo. Ao narrarmos incluímos certas cenas, deixamos
outras de fora. O que fica dentro de nossas narrativas ganha consistência, faz outros
laços, se articula em outros domínios, outros textos. Narrar é, pois, uma das formas
de interferir e de produzir objetividade. (p. 134)

A minha inserção em campo se deu, inicialmente, na região do Grande Jangurussu,


como integrante da equipe de extensão do Projeto Re-Tratos da Juventude e da pesquisa guarda-
chuva do VIESES. As primeiras aproximações com o campo se deram com jovens inseridos
em situação de maior precariedade na dinâmica varejista do tráfico naquela região, tendo como
finalidade, àquela época, mapear conexões entre juventude e violência urbana a partir da análise
do cotidiano e das trajetórias de jovens inscritos na dinâmica do tráfico de drogas em Fortaleza.
Para isso, a equipe de pesquisa se aproximou sistematicamente de uma atividade semanal
desenvolvida por educadores sociais do CUCA7 Jangurussu, que consistia em rodas de conversa
sobre temas variados com aqueles jovens, chamada, informalmente, de “Roda do Chá”. Já
nessas primeiras aproximações, tivemos a oportunidade de propor e acompanhar alguns
processos em curso no Jangurussu, dentre elas duas rodas de conversa, respectivamente, sobre
política sobre drogas e sobre extermínio de adolescentes e jovens no Jangurussu. Além disso,
colaboramos com ações de mobilização para a Marcha da Periferia do ano 2017.
Nessa primeira inserção, alguns desafios já foram postos à execução da proposta
inicial. Por vezes, não sabia como ocupar aquele espaço, chegando a confundir o meu papel
com o dos trabalhadores locais, o que me levou a questionar quais os limites entre a pesquisa-
intervenção a que me propunha desenvolver e o papel dos educadores sociais do CUCA. Faz-
se importante destacar, aqui, o caráter ativo da pesquisa-intervenção, que se baseia em um
processo de co-construção, ao mesmo tempo em que se torna necessário estarmos atentos para
os limites concernentes ao pesquisar, haja vista que a universidade e a pesquisa não estão em
campo com vistas a ocupar o papel de substitutas das políticas públicas, que muitas vezes se
encontram deficitárias ou insuficientes nas regiões periféricas. Desta feita, colaborar e

7
Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte. Equipamento municipal de proteção social voltada para
juventudes em periferias de Fortaleza. Ao todo existem na Capital cearense três equipamentos que compõem a
rede CUCA, nos bairros Barra do Ceará, Jangurussu e Mondubim.
23

desempenhar papel ativo na pesquisa-intervenção deve respeitar os limites pertinentes ao


exercício da pesquisa. Acredito que nesse movimento, de certa ânsia até, não estive atenta para
a importância de observar e aprender fazendo. Desse modo, foi-se delineando, para mim, a
relevância da observação e do respeito às processualidades, algo que requer experenciar o
campo. Com isso, passei a exercitar a atenção à espreita (que transcende a atenção meramente
cognitiva, conforme pontuaremos adiante), em um processo de estar mais atenta aos meandros
e às relações em campo.
Além dessas questões, tomando como referencial a análise de implicação requerido
de uma cartógrafa, o primeiro semestre de inserção foi importante para que eu me questionasse
acerca das diferenças em campo. Eram visíveis as disparidades que havia entre mim e os jovens
que participavam das atividades, marcados por histórias de vida e contextos sociais distintos.
Me preocupava como lidar com aquelas diferenças que se inscreviam em nossos corpos,
vestimentas, maneiras de interagir e nos modos como éramos atravessados pela violência em
nossos cotidianos, algo que se tornou perceptível quando, em conversa com um dos jovens, ele
me falou do impacto da perda de um primo que também trabalhava para o tráfico. Apesar de,
verbalmente, negar sentir medo, o jovem roía excessivamente as unhas, ao me falar sobre as
ameaças que já tinha recebido e como a todo momento precisava estar atento para preservar sua
vida. Naquele momento, pude perceber como a violência cotidiana nos assolava de modos
distintos. As leituras e discussões foram fundamentais para que pudesse compreender essas
diferenças não como abismos que nos separavam, mas como elementos a serem considerados,
refletidos e, de algum modo, explorados em seu potencial positivo (positivo no sentido de
produção), conforme coloca Foucault (2001). Nesse ponto, evidencia-se a relação de
revezamento entre teoria e prática, algo já apontando por Foucault e Deleuze (1979), em que a
prática em campo e as teorias estudadas operam conjuntamente, não havendo dissociação entre
elas. Esses primeiros aprendizados, que antecederam a mudança do foco do estudo, foram
importantes para a formação de uma postura mais crítica e observadora, fundamentais para as
demais incursões em campo.
Em setembro de 2017, houve mudanças no percurso metodológico deste estudo,
que me levaram a redesenhos de seu objeto de investigação e a redefinições quanto ao lócus da
pesquisa. O acirramento das disputas entre facções criminosas e a intensificação dos homicídios
juvenis passaram a dificultar a participação dos jovens nas atividades semanais em que nos
inserimos e impediram que aprofundássemos os vínculos com aqueles sujeitos, condição
importante para o desenvolvimento da primeira proposta. As mudanças das equipes de
educadores sociais fizeram com que alguns dos profissionais mais vinculados com os jovens da
24

Roda do Chá fossem desligados, o que também repercutiu na frequência dos jovens naquele
espaço e na própria dinâmica metodológica da atividade. Somado a isso, ocorria o acirramento
dos conflitos territoriais com o fim da pactuação entre as facções, mais conhecida por
“pacificação”. Em paralelo, mediante a aproximação com uma das mães do Curió,
identificamos a necessidade de escuta de familiares de jovens assassinados, diversas vezes
silenciados e esquecidos, o que denunciava que as questões relacionadas às mães de jovens
assassinados pulsavam em campo. A partir da escuta desse plano de forças em ação no campo
em que nos inserimos, este estudo passou a enfocar a problemática dos homicídios de jovens
sob a perspectiva de suas mães, destacando as implicações das mortes juvenis no cotidiano
dessas mulheres. Essa mudança de objeto foi propiciada pela escolha metodológica abordada
neste estudo, haja vista ter requerido uma atenção à espreita, ou seja, uma abertura aos processos
e elementos que compunham o campo naquele momento, assim como uma flexibilidade às
novas possibilidades de pesquisa que se apresentavam, ao devir que pulsava naquele cenário
(KASTRUP, 2015). A cartografia convoca a cartógrafa a uma abertura, expressa nesse ponto
pela abdicação do projeto de pesquisa inicial, com vistas a ouvir o que os espaços e contextos
falavam (PASSOS; BARROS, 2015). Esse movimento realizado pode ser considerado uma
intervenção, haja vista que, segundo Kastrup (2008), a pesquisa-intervenção é também uma
intervenção no contexto e campo de pesquisa. Essa receptividade ao não-planejado, à escuta
daquilo que não necessariamente é dito, mas se faz presente virtualmente, é um dos elementos
fundamentais na construção de um estudo cartográfico.
Frente à emergência dessa nova problemática de pesquisa, deparamo-nos com o
desafio: como acessar os familiares dos jovens vitimados pela violência letal? Em um primeiro
momento, optamos pela articulação de visitas a esses familiares junto à Rede Acolhe 8, programa
da Defensoria Pública do Ceará. Em trocas com os profissionais desse programa, traçamos
novas possibilidades de pesquisar e intervir junto a essa população. Estive em campo nessa
frente no intuito de estabelecer alguns primeiros contatos, assim, participei de algumas mesas
e articulações territoriais junto à rede, auxiliando na construção de uma das frentes de atuação
do VIESES, sua extensão no Grande Bom Jardim, compondo reuniões de articulação com
professores do Departamento de Psicologia. Dessa maneira, a dimensão interventiva da minha
pesquisa se deu de modo articulado à atuação do VIESES. Desenhamos em conjunto
possibilidades de atuação do Departamento de Psicologia no referido território visando
desenvolver ações no âmbito da violência urbana e da prevenção de homicídios juvenis,

8
O referido projeto se propõe a ofertar apoio aos familiares de jovens assassinados e foi colocado em execução
no ano de 2017.
25

tomando como referencial as recomendações do Comitê Cearense pela Prevenção de


Homicídios na Adolescência. Inicialmente, pensamos em, a partir de visitas com a Rede
Acolhe, vincularmo-nos com familiares do Grande Bom Jardim, já que nossa inserção nesse
contexto seria facilitada pelo fato dele ter se tornado um campo de extensão do VIESES, onde
uma das equipes de extensionistas e outras pesquisadoras já estavam em processo de inserção
inicial. Pretendíamos, após estabelecimento do vínculo, entrevistar os familiares e,
possivelmente, montar um grupo de apoio psicossocial a ser formulado com estes.
A estratégia adotada para aproximação com as interlocutoras foi mapearmos
equipamentos e organizações da sociedade civil que fossem atuantes no território a fim de
conhecermos atores locais e de criarmos maior vinculação com o campo. Esse movimento
possibilitou nossa aproximação com o Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ) e a Rede
Desenvolvimento Integral e Sustentável do Grande Bom Jardim (DLIS). Mediante conversa
com atores locais, articulamos reuniões com as escolas da região e as primeiras conversas com
mães. A aproximação com as escolas foi uma estratégia sugerida por articuladoras e
articuladores sociais que atuam no Grande Bom Jardim como de meio acessarmos as mães de
jovens assassinados, de modo a guardar discrição e prezar por sua segurança, haja vista a
intensificação dos conflitos territoriais. Como se pode perceber, as táticas de aproximação
foram pensadas juntamente a trabalhadores e moradores do território do Grande Bom Jardim,
de modo que o outro aqui “é tomado como sujeito agente e expert e não como objeto passivo,
como alvo de nossas ações” (MORAES, 2014, p. 132). A metodologia se deu mediante o
processo de inserção, sendo constantemente repensada, inspirando-nos na perspectiva de que o
método, na cartografia, é na verdade um hodos-metá (PASSOS; BARROS, 2015). Os
desencontros e impossibilidades com os quais nos deparamos foram compreendidos como os
mal-entendidos apresentados por Moraes (2014) “pistas relevantes que podem anunciar novas
e interessantes versões de mundo” (p. 132), sendo pistas para entendermos também as
dificuldades vividas pelas famílias após o homicídio na adolescência.
Conforme exposto, no nosso percurso, as aproximações por vias institucionais não
se mostraram as mais frutíferas, haja vista as dificuldades de acesso e vinculação entre serviços
e familiares. Com isso, as articulações comunitárias se mostraram mais profícuas e, portanto,
pensamos ser mais propícia nossa aproximação junto a grupos já existentes por intermédio de
atores locais. Durante todo o semestre de 2017.2 e 2018.1, a formação do grupo de apoio
psicossocial se mostrou de grande dificuldade, tendo em conta que o contexto de acuamento e
silenciamento dos familiares se dava de tal forma que estes não aceitavam a participação em
grupo, o que exigiu novas reinvenções nos modos de estar em campo. Já em 2018.2, tentei me
26

inserir no Jangurussu por meio de uma das extensões do VIESES, que estava trabalhando com
mulheres naquele território.
As entrevistas no território do Grande Bom Jardim foram acontecendo e, em
paralelo a isso, fui percebendo que as tentativas de inserção no Jangurrussu estavam sendo
inviabilizadas por diversas barreiras. Isso me levou à escolha de concentrar as atividades de
campo no contexto do Grande Bom Jardim e no acompanhamento de ações do FPSP.
Importante destacar que mais do que a experiência do dizer, as entrevistas também tiveram uma
dimensão interventiva, à medida que, mediante a escuta, quando reconhecidas certas demandas
e, quando partia da vontade da entrevistada, eram feitas as devidas articulações com o território.
Dessa forma, algumas das mães entrevistadas passaram a ser acompanhadas pelas estagiárias
de psicologia que estavam desenvolvendo atividades e atendimentos clínicos nos territórios,
assim como na clínica escola. Quando as demandas estavam relacionadas a outros setores,
foram feitas articulações com a rede sócio-assistencial e acionada a Rede Acolhe. De certo
modo, as entrevistas funcionaram como pontes entre essas mulheres e as políticas públicas de
seus territórios. Além disso, iniciou-se a colaboração junto ao Fórum Popular de Segurança
Pública na construção do novembro de lutas, a partir do qual pude me aproximar mais
efetivamente dos coletivos ‘Mães do Curió’ e ‘Vozes de Mães e Familiares do Socioeducativo
e Prisional do Ceará’.
A Pesquisa inter(in)venção foi se constituindo como uma prática ético-estético-
política9, o que significa dizer que o ato de conhecer/produzir conhecimento se deu de modo
implicado com a formação política, numa proposta de abandono do, até então, preponderante
ideal de neutralidade política da ciência (ROCHA; AGUIAR, 2003). A pesquisa também foi
pensada como um ato político, uma vez que corroborou a problematização de processos sociais
e institucionais cristalizados e naturalizados concernentes à banalização dos assassinatos dos
filhos das nossas interlocutoras. O caráter político desse aporte metodológico se fez de suma
importância para a investigação dos homicídios juvenis e suas implicações nos cotidianos das
mães, haja vista o conjunto de processos sociais, históricos, econômicos e culturais que se
articulam na produção de mortes visibilizadas socialmente como legítimas e apagamento das
dores daqueles que choram suas perdas. Frente a esses processos, fomos percebendo a

9
Rocha e Aguiar (2003), baseada nas reflexões de Guattari (1992), afirma que: a Ética está referida ao exercício
do pensamento que avalia situações e acontecimentos como potencializadores ou não de vida; a Estética traz a
dimensão de criação, articulando os diferentes campos do pensamento, da ação e da sensibilidade; a política
implica a responsabilização frente aos efeitos produzidos, ou seja, sobre os sentidos que vão ganhando forma
através das ações individuais e coletivas (p. 67).
27

impossibilidade de partilhar desses cotidianos e produzir conhecimento acerca deles sem


problematizar o panorama que os compõem.
Trabalhar com a cartografia como método de pesquisa-inter(in)venção
representou um deslocamento, conforme requereu um movimento de “transformar para
conhecer”, uma transformação das práticas cotidianas, da formação acadêmica ou do ato de
pesquisar (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015). O caráter participativo deste estudo
possibilitou a criação de dispositivos de análises coletivas, como as trocas com as mães, os
espaços no FPSP, a construção coletiva da VI Marcha da Periferia e os debates para
planejamento da instalação/exposição das maiores chacinas ocorridas no Ceará. As relações
estabelecidas com essas mães basearam-se no rompimento com os especialismos,
compreendendo o conhecimento como resultante da combinação das forças que compõem o
coletivo, ponto que também enuncia o caráter participativo das intervenções (ROCHA;
AGUIAR, 2003). Vale-se ressaltar que na pesquisa-intervenção ocorre a radicalização do
caráter interventivo, de modo que a própria intervenção é colocada constantemente em análise,
surgindo nos processos de problematizar e questionar os elementos que se interpõem ao campo
(AGUIAR; ROCHA, 2007).
Acerca dos efeitos da intervenção, podemos destacar ressonâncias: em mim, como
pesquisadora, ao passo que as narrativas escutadas e processos acompanhados ao longo do
processo foram produzindo reflexões e deslocamentos não apenas como pesquisadora, mas
como mulher, negra, em movimentos de aproximação com as dimensões de sofrimento
psicossocial que assola as nossas existências; nas mulheres que participaram deste estudo, algo
dito por Maria ao expressar o quanto nossa conversa foi importante para ela, uma vez que “pedia
à Deus alguém para conversar nem que fosse um instante” (sic); no problema de pesquisa, haja
vista os redesenhos feitos no problema/foco do estudo e no campo de investigação,
considerando-se as reverberações que as ações coletivas construídas no FPSP tiveram no
contexto social, pautando o homicídio juvenil. Esses níveis nos quais operam os efeitos da
intervenção, já haviam sido destacados por Kastrup (2008), tendo pontuado que a intervenção
produz ressonâncias em quatro diferentes níveis: em quem pesquisa, nos participantes, no
problema de pesquisa e no campo de investigação.
Nas intervenções realizadas, percebemos as possibilidades de fissuras tanto nos
processos de naturalização das mortes juvenis quanto no silenciamento dos sofrimentos de seus
familiares. A pesquisa inter(in)venção à luz da cartografia nos proporcionou a articulação de
espaços de escuta sensível às mães que, em sua maioria, têm seus sofrimentos em decorrência
da perda agravados pelos desamparos institucionais e pelas aviltantes condições de
28

desigualdades sociais. Além disso, essa metodologia se mostrou interessante para a realização
de um exercício crítico sobre o objeto do estudo. Por crítica, compreende-se o ato de “tornar
difíceis os gestos fáceis demais” (FOUCAULT, 2010, p. 356). O gesto por demais fácil, no
contexto explorado, seria corroborar as vozes que ecoam e endossam discursos do tipo:
“bandido bom é bandido”, “se morreu, é porque estava fazendo algo errado”, “era ‘envolvido’
porque vinha de família desestruturada”; o difícil é nos questionarmos: de que modo esses
discursos são produzidos? O que os sustentam? De que forma atuam na produção das mortes e
legitimação destas? Como operam no silenciamento das dores das mães?
O uso desse aporte metodológico significou debruçar-se sobre o estudo das
variações (MORAES, 2014), rompendo com as repetições que findam por representar o
homicídio de jovens e o sofrimento de seus familiares como práticas legítimas endossadas por
um discurso de defesa dos “cidadãos de bem”. Interessa-nos questionar, nesta dissertação: o
que escapa aos estereótipos? Quais discursos sustentam a legitimação e indiferença frente às
mortes desses jovens e sofrimentos dos seus familiares? Quais elementos se relacionam na
composição desse cenário em Fortaleza? Quais efeitos de subjetivação o processo de construção
dessa pesquisa produz nos sujeitos que dela participam?

2.2 Territorialidades da Pesquisa: Grande Bom Jardim e Fórum Popular de


Segurança Pública

A pesquisa foi realizada na cidade de Fortaleza por esta ser a capital brasileira com
maior índice de Homicídios na Adolescência (IHA), conforme dados apresentados na
introdução deste trabalho. Mais especificamente, habitamos o território do Grande Bom Jardim,
um dos bairros da capital cearense que apresentaram maiores taxas de homicídios em 2017, e,
considerando-se as discussões acima esboçadas sobre território existencial, acompanhamos as
processualidades do Fórum Popular de Segurança Pública (FPSP), por meio do qual acessamos
algumas mães participantes de coletivos organizados politicamente. Cabe destacarmos que a
noção de território existencial redimensiona a noção de “lócus da pesquisa” e se faz importante
aqui, uma vez que ela nos leva a transitar e compartilhar de vivências e processualidades que
extrapolam as dimensões geográficas. Dessa forma, os territórios acompanhados neste estudo
não se limitam aos seus contornos geográficos (ALVAREZ; PASSOS, 2015).
29

Quanto ao Grande Bom Jardim, trata-se de uma região composta por cinco bairros
que se destacam entre os 12 mais vulneráveis de Fortaleza 10, são eles: Bom Jardim, Siqueira,
Canindezinho, Granja Lisboa e Granja Portugal. O Grande Bom Jardim já tem sido lócus de
diversas investigações no campo das ciências humanas e sociais que enfocam ou
transversalizam o tema da violência, tais como Carlos (2014); Bezerra (2015) e Paiva (2007).
Essa região é marcada, historicamente, por altos índices de violência, que vêm se intensificando
ao longo dos anos. Segundo dados da SSPDS, sistematizados e divulgados pelo CCPHA, apenas
em 2017, foram vitimadas no Grande Bom Jardim 97 pessoas (população geral), das quais 28
eram adolescentes. Paiva (2007) busca compreender de que forma os moradores desse território
lidam com o estigma de periculosidade que recai sobre ele e como vivenciam as violências
cotidianas que os assolam. Bezerra (2014) aponta como os moradores da referida região
constrem significações acerca da pobreza e do fato de habitarem um território sobre o qual recai
fortemente o estigma de periculosidade, repercutindo em suas vidas. Carlos (2014) explora
como se articulam as práticas políticas e movimentos de resistência no Grande Bom Jardim,
enfocando um dos movimentos locais, a Rede de Desenvolvimento Local, Integral e Sustentável
(DLIS), demarcando seus históricos de luta e resistência, o que anuncia que o Grande Bom
Jardim não se resume às suas estatísticas de violência, expressos pelas altas taxas de homicídio,
mas se destaca também como um território vivo e articulado na produção de modos possíveis
de vida. Desta feita, a escolha pela exploração desse território como lócus de pesquisa, deu-se
não apenas pelas expressivas taxas de homicídio, mas também pela maior articulação territorial
com juventudes e familiares, característica do processo histórico do Bom Jardim. Além disso,
tínhamos, nesse território, maior facilidade de aproximação com os familiares, haja vista que o
VIESES já havia estabelecido vinculações com articuladores comunitários locais por meio da
pesquisa guarda-chuva e projetos de extensão 11.
No que concerne ao acompanhamento das processualidades do FPSP, este se deu
de modo articulado, também, a ações já desenvolvidas na extensão do VIESES, pelo projeto
Entretantos, que tem sua atuação pautada pelo mapeamento e acompanhamento de coletivos
organizados para construção de práticas de resistência em torno da violência. A inserção nesse
território se deu como forma de aproximação de mães participantes dos coletivos organizados
‘Mães do Curió’ e ‘Vozes de Mães e Familiares do Socioeducativo e Prisional do Ceará’.
Formado por entidades, organizações sociais, coletivos organizações da sociedade civil e

10
De acordo com os dados do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (IPECE), 2010.
11
Informações retiradas da carta de princípios do Fórum Popular de Segurança Pública do Ceará e de sua página
no facebook, disponível em: https://www.facebook.com/FPSPCeara/
30

pesquisadores, o FPSP tem se efetivado como um espaço de articulação, monitoramento,


denúncias e construção de intervenções no âmbito da Segurança Pública do Ceará. Suas ações
são pautadas pelos seguintes princípios: promoção e respeito aos direitos humanos, defesa da
democracia e participação popular (Fórum Popular de Segurança Pública). Passei a habitar o
território do FPSP participando quinzenalmente das reuniões de articulação, de agosto a
dezembro de 2018. Além disso, inseri-me mais especificamente na comissão de exposição,
durante a construção do novembro de lutas período, em que vários movimentos sociais se unem,
articulando atividades em diferentes localidades no intuito de construir resistências às opressões
e violências direcionadas ao povo pobre e negro da periferia. A comissão de exposição
trabalhou na construção de uma exposição itinerante sobre as maiores chacinas ocorridas no
Ceará, coletando áudios de familiares sobre jovens assassinados, materiais para montagem de
cenário e layout da exposição. Desse modo, acompanhei algumas visitas em campo,
participações em mesas e eventos do FPSP, nos quais diversas mães estavam presentes, e
marchas. Além disso, a composição desse espaço se mostrou profícua para a construção coletiva
de ações políticas em torno da violência letal e compartilhamento do cotidiano de luta dessas
mulheres, tendo em vista que, no período vivido, foi construído coletivamente o novembro de
lutas.
Alguns momentos se destacam nesse processo: 1) Participação em reuniões de
articulação do novembro de lutas; 2) Composição da comissão de exposição e 3) Participação
no novembro de lutas efetivamente:
1) Durante todo o período de 2018.2, pude acompanhar a articulação das mães
junto ao FPSP na construção do novembro de lutas. Essas mulheres atuaram ativamente nessa
construção coletiva, desde as decisões sobre as temáticas, notas, comissões, até a articulação
efetiva para angariar materiais e apoio ao mês em que se intensificam as lutas pela memória da
juventude assassinada e invisibilizada de Fortaleza e do Ceará.
2) Pude compor ativamente a comissão de exposição, cuja finalidade foi construir
as memórias das maiores chacinas do Estado, dando visibilidade às vítimas e às violências que
assolam a juventude periférica. Nesses espaços, pude construir vinculação com algumas mães,
participando de momentos em que estas compunham mesas falando sobre suas lutas, momentos
informais de interações e visitas a museus.
3) Lançamento do filme “nossos mortos têm voz” no Cine-teatro São Luiz como
uma das atividades que compuseram a primeira Semana Cada Vida Importa. Um dos maiores
desafios que se colocaram à minha vivência como aprendiz de cartógrafa foi conseguir dar
vazão às vozes das mães, fazer jus à confiança das mulheres que me contaram suas histórias e
31

tentar, pela escrita, repassar a dimensão das dores que essas mulheres carregam. Tem-se aqui,
certo nível de intransponibilidade, uma vez que, ao narrar já perdemos algo da dimensão da
experiência, e ao escrever também. Superar esse desafio de escrever fugindo às capturas das
representações é algo difícil. Conseguir transpor para o papel as emoções do momento é quase
da ordem do impossível. É desafiador produzir uma dissertação que não reproduza
silenciamentos, acuamentos e aprisionamentos. A pesquisa por diversas vezes aguçou em mim
sensações de impotência e tristeza frente ao contexto macroestrutural de produção das mortes
e condições indignas de vida, assim como, as trocas com as mães, muitas vezes, encharcaram-
me de persistência e re-construções de caminhos. Essas afetações denotam os estreitamentos
entre ‘objeto’ de pesquisa e pesquisadora, denunciando que a separação entre a pesquisadora e
o mundo que passa a habitar é algo ficcional.

2.3 As Participantes do Estudo

Mediante as aproximações com o campo, percebemos que a figura materna, que


transcende os laços biológicos, era a mais citada nas nossas conversas e aproximações com
atores locais. Dessa forma, o estudo foi realizado com mães de jovens assassinados no território
do Grande Bom Jardim e aquelas vinculadas aos coletivos organizados politicamente: ‘Mães
do Curió’ e ‘Vozes de Mães e Familiares do Socioeducativo e Prisional do Ceará’. Nos
aproximamos mais diretamente, neste estudo, de oito mulheres, com as quais foram realizadas
entrevistas. As vivências em campo, entretanto, possibilitaram-nos aproximações e trocas com
outras mães que perderam filhos, permitindo-nos tecer as reflexões destacadas nesta dissertação
como componentes de diário de campo, muito embora, não tenham sido realizadas entrevistas
diretas com essas mulheres.
Perguntei nas entrevistas quais nomes gostariam de ser chamadas, apenas uma
escolheu o nome: Maria. As demais deixaram a escolha a meu critério. Dessa forma, escolhi
nomes de mulheres escravizadas que viveram no Brasil e têm seus nomes gravados na história
por suas trajetórias de lutas pela liberdade e resistência a um sistema colonial que as
assujeitavam e violentavam. De modo semelhante, essas mulheres vêm escrevendo as suas
histórias marcadas por violentos processos de silenciamento, não escrevem apenas os seus
nomes, mas, a partir de suas narrativas e lutas, recobram as memórias de seus filhos. Ao
sentirem e viverem suas perdas, essas mulheres afirmam o valor das existências de seus filhos
em um contexto que desqualifica sistematicamente segmentos juvenis a que pertencem como
indignos de vida (ZACCONE, 2015). Considerando-se isso, os nomes escolhidos foram: Maria,
32

Anastácia, Luiza, Felipa, Adelina, Mariane, Tereza e Esperança. A seguir, narraremos de forma
breve alguns elementos centrais da trajetória dessas mulheres como forma de apresentá-las.
Maria trabalha como serviços gerais em uma escola do grande Bom Jardim.
Separada do companheiro, cuidou dos filhos sozinha, dividindo-se entre a jornada de trabalho
e o cuidado com a casa. Perdeu um filho há 1 ano (no mês da nossa entrevista, completava um
ano de morte). Segundo ela, era o filho com quem tinha maior proximidade e que mais
colaborava no ambiente doméstico. Seu filho foi assassinado aos 29 anos, deixando 2 netos sob
seus cuidados.
Anastácia é artesã. É católica desde criança, a religião tem forte influência sobre
sua vida, algo explícito nas diversas imagens, santinhos e terços distribuídos pela casa. É
casada, vive com o marido que sofre de depressão há anos e teve dois filhos frutos dessa união
conjugal. Seu filho mais velho trabalhava para o tráfico desde os 14 anos de idade e foi
assassinado aos 26 anos. Sua filha mais nova, com quem tem uma relação conflituosa, mora na
sua residência. Anastácia se queixa de que a filha faz uso abusivo de drogas, que se intensificou
após a perda do irmão.
Luiza tem 63 anos, passou a participar do grupo de mães do socioeducativo quando
o seu neto, considerado como filho, foi apreendido. É casada há 46 anos e seu companheiro faz
uso abusivo de álcool. Seu filho teve muitas passagens pelo sistema socioeducativo, fugindo
dos centros diversas vezes. No momento da entrevista, já havia 10 meses que seu filho fora
assassinado.
Felipa tem 47 anos e, atualmente, trabalha como cozinheira. É casada, mas segundo
ela, tem grande vontade de pedir divórcio, haja vista os desgastes na relação com seu
companheiro. Teve dois filhos, dos sexos feminino e masculino. Perdeu seu filho quando este
tinha 17 anos, em 2015, na Chacina do Curió, fato que modificou radicalmente sua vida,
levando-a a entrar para militância pela garantia dos direitos humanos.
Adelina tem 43 anos, é funcionária pública da prefeitura, trabalhando como Agente
Comunitária de Endemias. É natural do Maranhão e casou-se a primeira vez em seu estado
natal, tendo dois filhos, os quais ficaram sob os cuidados do primeiro marido e de sua mãe.
Após separação, mudou-se para o Ceará e se casou novamente, agora, com um cearense, tendo
mais dois filhos. Quando os filhos ainda eram pequenos, separou-se do segundo marido, ficando
responsável pelos cuidados destes sozinha e longe de sua família. Seu filho mais novo, passou
a praticar atos ilícitos aos 15 anos, fato que a deixou muito abalada. Após ele ser apreendido,
passando a cumprir medida socioeducativa em regime fechado, Adelina entrou para o grupo de
mães e familiares do socioeducativo. Quando seu filho finalizou o cumprimento da medida, ela
33

já havia comprado passagens e organizado sua estadia em outro estado, como modo de evitar a
morte dele, algo em que obteve êxito. Entretanto, Adelina foi surpreendida pela morte do outro
filho que residia com ela e não era envolvido em atividades ilícitas. O rapaz foi vitimado em
março de 2018 por não respeitar os limites geográficos impostos por facções no território em
que residiam.
Mariane tem 59 anos, reside no Grande Bom Jardim e é costureira. Anteriormente,
trabalhou como serviços gerais. No momento da entrevista não estava trabalhando,
considerando que após o homicídio do filho ela teve seu potencial laboral afetado. Mariane teve
três filhos, viveu maritalmente com um companheiro, mas criou seus filhos sozinha com auxílio
da família. Teve um dos filhos assassinados há cinco anos, quando este tinha 16 anos e, desde
então, vivencia as experiências de solidão de isolamento de forma intensa, haja vista que este
era o filho mais próximo a ela.
Tereza trabalhava como auxiliar de cozinha e teve três filhos, dos quais dois
moravam com ela. Ela também criou os filhos sozinha e sem ajuda da família, pois seus
familiares residem todos em São Paulo, sua cidade natal. Os dois filhos que moravam com ela
faziam uso abusivo de drogas e, em uma discussão, um dos irmãos matou o outro, de acordo
com ela, de modo acidental. A arma utilizada no assassinato pertencia ao seu genro que reside
em uma casa ao lado da sua. O filho foi assassinado há 5 anos, quando tinha 19 anos, e, desde
então, Tereza está sem trabalhar, reunindo esforços no intuito de ajudar o filho, que ainda mora
com ela; ele intensificou o uso de drogas após assassinar o irmão, desenvolvendo estado
depressivo.
Esperança tem 48 anos. É casada e, no momento da entrevista, havia se passado 10
meses desde a morte de seu filho, que estava trabalhando para uma facção. Foi assassinado aos
17 anos, logo após cumprir medida socioeducativa em regime fechado. Segundo ela, os
perpetradores do homicídio são familiares da namorada, vinculados a uma facção rival.
Atualmente, trabalha em uma escola cuidando de crianças.
Como se pode observar, abordamos diferentes marcos temporais das perdas vividas
por essas mulheres, o que nos possibilitou pensar as repercussões dos homicídios em diferentes
temporalidades. Além disso, tomamos o critério de raça não a partir de auto-declarações nem
de seus fenótipos, mas a partir do que Mbembe (2014) traz como devir-negro no mundo, em
que o referido autor aponta para uma extensão das condições de subalternidade e precarização
da vida características do regime escravocrata sobre os negros a outros grupos.

2.4 Ferramentas Metodológicas


34

A produção do corpus da pesquisa se deu por meio de duas estratégias: entrevistas


semiestruturadas e a produção de diário de campo do acompanhamento de mobilizações sociais
das quais participamos com a presença de mães de jovens assassinados.

2.4.1 Entrevistas

As entrevistas semiestruturadas caracterizam-se como uma das modalidades de


entrevista, apresentando um roteiro minimamente ordenado sobre as questões acerca do
cotidiano das mães após a morte de seus filhos, do modo a contemplar alguns eixos centrais
com vistas a atender os objetivos propostos no estudo. Seguindo a proposta metodológica deste
estudo, a entrevista se constitui como uma intervenção, à medida que proporciona um espaço
de escuta sensível dos participantes da pesquisa. Desta forma, a entrevista, aqui, não se limitou
a ser uma simples troca de informações entre a pesquisadora e as mães de jovens assassinados.
Estas entrevistas foram conduzidas a partir de um manejo cartográfico, de forma que se deu
vazão à experiência do dizer e às conexões possíveis que surgiram a partir desta. Em campo,
pudemos observar que foi comum às entrevistadas a escassez de espaços nos quais pudessem
falar sobre suas dores, haja vista que muitas vezes, como aprofundaremos no capítulo três desta
dissertação, essas mulheres assumiram papel de suporte aos demais membros familiares. Dessa
forma, a entrevista também atuou como um importante espaço de elaboração de sentidos e livre
expressão sobre as significações das mortes em seus cotidianos. A entrevista propõe-se, na
perspectiva cartográfica (PASSOS; KASTRUP; TEDESCO, 2016), a ouvir a polifonia de
vozes, entendendo que as múltiplas vozes que ecoam e constituem os discursos das mães
escutadas, compreendendo que as suas falas acerca dos homicídios, o cotidiano de violência e
os sofrimentos pertinentes às vivências desse cotidiano são transversalizados por questões de
ordem macro e micropolíticas. Algumas temáticas foram previamente orientadas a partir da
proposta de pesquisa, o que não impossibilitou a emergência de outras no momento das
entrevistas. Essa característica se fez de grande relevância, dada a impossibilidade de abranger
e esgotar a complexidade dos elementos que configuram a tessitura do cotidiano dessas
mulheres. As mães foram escolhidas por conveniência, ou seja, foram escolhidas conforme se
mostraram acessíveis e interessadas em participar do estudo no percurso de inserção em campo.
Foi utilizado critério de saturação teórica, de modo que as entrevistas foram encerradas à
medida que percebemos certa repetição de conteúdo.
35

Nesta pesquisa, a intervenção se deu não apenas pela inserção em campo e


contribuição com este12 , mas também pelo supracitado aspecto interventivo da entrevista. Não
nos propomos a fazer uma simples coleta de dados, mas proporcionamos espaços de escuta
sensível aos familiares, sob um manejo cartográfico da entrevista, buscando manter, a
perspectiva de colaboração com os territórios. Nesse sentido, almejamos o fortalecimento das
redes (saúde, assistência, sociedade civil organizada), conforme foi iniciado no Grande Bom
Jardim, algo expresso pelas tentativas de contato com esses familiares que nos levaram a um
engajamento com o território. Partimos aqui do pressuposto de que a entrevista produz
subjetividades, podendo atuar como uma prática de cuidado e acolhimento desses familiares no
território. O caráter interventivo também se deu pela potencialização de intervenções no
território do Grande Bom Jardim e no FPSP.
Acerca dos processos de articulação das entrevistas, direcionamo-nos para
realização de entrevistas individuais com as mães e acompanhamento de coletivos de mães já
formados. A intermediação dos articuladores de campo foi de fundamental importância nesse
processo pois, apesar de estar em campo desde 2017.1, ainda não tinha estabelecido contato
sistemático com nenhuma das mães inseridas no território. Ao longo do processo de 2018.2
iniciei as entrevistas com as mães de jovens assassinados no Grande Bom Jardim. Além disso,
me inseri em uma das extensões do VIESES que estava desenvolvendo atividades grupais com
mulheres no Jangurussu, no intuito de alcançar mães de jovens assassinados neste território.
A inserção no grupo no Jangurussu não se deu de modo profícuo haja vista que, as
três mães de jovens assassinados que compunham o grupo não se sentiram confortáveis em
“mexer” em suas dores o que as fez evadir do grupo após o segundo encontro, inviabilizando o
contato com estas. Naquele momento, a articuladora desse território também se mostrou receosa
para articular as entrevistas. Esse período foi bem difícil, por um lado, me sentia ansiosa por
causa dos prazos acadêmicos, por outro, entendia que aquele era mais um devir do campo.
Vivenciar esse processo me trouxe questionamentos, uma vez que percebia uma relação de
tutela estabelecida pela articuladora local com essas mulheres, que inviabilizava minha
aproximação. Essa relação de tutela se faz compreensível haja vista o lugar que, muitas vezes,
a academia tem ocupado nos territórios, levando os sujeitos participantes a se sentirem “usados”

12
Acreditamos que a pesquisa poderá contribuir com o território não apenas pelas articulações intersetoriais que
vem sendo realizadas nas tentativas de alcançar os familiares, mas também pelo fato de que as ações da pesquisa
se desenvolvem junto às atividades da pesquisa guarda-chuva e extensões do VIESES-UFC, atividades realizadas
numa perspectiva de contribuição com os territórios em que atua. Além disso, as ações realizadas no Grande Bom
Jardim, fazem parte de um projeto interventivo maior do departamento de psicologia da UFC, que, a partir da
demanda apresentada, realizou, em conjunto com atores locais, um desenho de atividades voltadas para o território.
36

nas pesquisas sem que estas lhes apresentem algum retorno (ou aquilo que eles entendem como
retorno). Esse movimento me fez questionar o meu lugar ali como pesquisadora ou a relevância
da pesquisa. Ouvir essas mulheres ainda as deixaria em suas dores, o que eu poderia mudar
efetivamente naquela realidade? Qual seria o alcance da intervenção? Uma nova sensação de
estranhamento me tomava, voltando a questionar o papel da universidade nesses espaços.
Muitas vezes, é comum que a população tenha muitas expectativas em torno das intervenções
propostas pela universidade haja vista as fragilidades das políticas públicas e isolamento de
determinados espaços sociais. A universidade, ao extrapolar seus muros, chega a estes
territórios assolados por mazelas sociais, cabendo à pesquisadora, juntamente com os
extensionistas, apresentar os limites das suas atuações, explicitando as diferenças dos papéis
das políticas públicas e da universidade.
As primeiras entrevistas, foram, portanto, realizadas com mães que residiam no
Grande Bom Jardim, sob manejo cartográfico. Aqui, cabe expormos aqui um acontecimento
que se coloca como analisador dessa questão. Uma das entrevistas foi articulada na comunidade
do Pantanal, no Grande Bom Jardim. Ao chegarmos nos deparamos com um território
“esquecido” conforme muitos daqueles com quem conversamos o caracterizaram. Um local
sem rede de esgoto, sem calçamento e com lamas pelas ruas. Percebemos a presença de várias
crianças e animais nas ruas e calçadas. Era dia 12 de outubro, dia das crianças, e, na associação
coordenada por um dos nossos articuladores, haveria logo mais a noite, uma comemoração para
as crianças da localidade. No contato por telefone e whatsapp, havíamos marcado entrevista
com apenas uma das mães, mas, ao chegarmos, as demandas eram tantas e a empolgação do
nosso articulador foi tamanha, que ele já havia conversado com 4 famílias certificando-se de
estas nos receberiam. Desta forma, realizamos as 4 visitas, das quais três foram colocadas no
presente estudo e uma delas não foi inserida por estar fora do nosso recorte, mas como a família
precisava de orientações acerca dos encaminhamentos para serviços, nos dispomos a ouvi-los
e fazer os devidos encaminhamentos necessários. Das quatro casas visitadas, nenhuma das
pessoas tinham tido acesso a políticas públicas de assistência ou saúde, não sabendo localizar
os equipamentos no território, que ficavam a apenas 4 quadras do local onde estávamos. Além
disso, não tinham conhecimento dos projetos que trabalhavam com arte e cultura no território.
Dessa forma, a dimensão interventiva da nossa pesquisa também se deu no sentido do
fornecimento de orientações básicas acerca de quais serviços essas pessoas dispunham e quais
direitos poderiam acessar, assim como da realização de encaminhamentos para os
equipamentos. Nosso papel ali, além de nos aproximarmos da realidade vivida pelas mulheres
37

participantes de nosso estudo, também era tensionar as malhas do poder que invisibiliza,
silencia e isola essas mulheres.
Neste dia, realizamos as entrevistas de Mariane, Tereza e Esperança. Havíamos
programado a volta para 17h, antes de escurecer, por questões de segurança, entretanto, pelos
devires do campo, nos prolongamos até as 18h30min. Ao sairmos da casa de Esperança, já
estava escuro o interlocutor nos acompanhou até a volta ao carro, que estava há uns 10 minutos
de distância a pé. A experiência de transitar por este território à noite, foi algo importante, pois
como aprendiz de cartógrafa pude experienciar a sensação de medo, algo que, naquele
momento, escapava às minhas tentativas de racionalização. Sensação esta que aumentou
quando o nosso interlocutor, olhando para buracos de bala na parede, apontou para uma esquina
afirmando que ali ele tinha renascido, pois havia levado 11 tiros naquele local. Essa dimensão
experiencial foi de suma importância não apenas para a articulação e aproximação com as
nossas interlocutoras, mas também contribuiu para posteriores reflexões acerca dos estigmas
impostos àquele território e de que maneira isso nos afeta como pesquisadores, ao adentramos
um território incomum à nós.
Além das entrevistas com as mulheres que viviam no território do Grande Bom
Jardim, também consegui viabilizar entrevistas com mães que residiam em outros bairros da
cidade, por meio da inserção no território existencial do FPSP, no qual pude me aproximar de
grupos como As mães do curió e Vozes de Mães e Familiares do Socioeducativo e Prisional do
Ceará.
Faz importante destacar que, em relação ao tempo das entrevistas, em média, cada
uma teve duração entre 60 a 120 minutos, excetuando-se a de Mariane que, por não conseguir
verbalizar sobre a perda do seu filho, teve duração de 20 minutos. As entrevistas foram
realizadas em diferentes localidades, de acordo com a preferência das interlocutoras, de modo
a preservar conforto e comodidade às mesmas. As entrevistas de Felipa e Adelina ocorreram na
Universidade Federal do Ceará (UFC), a de Maria ocorreu em uma escola do Grande Bom
Jardim, local em que trabalha, a de Luiza se deu no CEDECA, já as de Anastácia, Mariane,
Tereza e Anastácia foram realizadas em suas casas. A escolha das mães para entrevista se deu
por conveniência a partir da mediação dos articuladores comunitários.

2.4.2 Diário de Campo: acompanhando processos de mobilização social e organização


política com a participação de mães e familiares vítimas de violência
38

As sensações, percepções, conversas e trocas vividas no campo foram registradas


no diário de campo, anotações estas que foram constantemente revisitadas nos processos de
análise e da inserção em campo. Medrado, Spink e Méllo (2014) consideram o diário de campo
como elemento atuante na realização de uma pesquisa, uma vez que “com ele e nele a pesquisa
começa a ter certa fluidez, à medida que a pesquisadora dialoga com esse diário, construindo
relatos, dúvidas, impressões que produzem o que nominamos de pesquisa. Esse
companheirismo rompe com o binarismo sujeito-objeto” (p. 278), funcionando, portanto, como
agente potencializador do estudo. Ao longo da dissertação, foram realizados diálogos com os
elementos registrados nos diários.

2.4.3 Análise dos Dados

Foi utilizada a análise cartográfica dos dados. A cartografia requer certa subversão
da noção dos dados de pesquisa à medida que compreende o pesquisar como um processo.
Desse modo, um dado cartográfico surge como um produto das diferentes interações em um
conjunto de forças que compõe a realidade pesquisada. Um dado, portanto, não se encontra
exposto em campo, como algo a ser colhido; mas sim, dá-se como um efeito a partir, inclusive,
do ato de pesquisar (PASSOS, KASTRUP; TEDESCO, 2016). O objeto a ser analisado, não é
estático, mas efetiva-se como “o ponto de partida para acessar a experiência (PASSOS,
KASTRUP; TEDESCO, 2016, p. 177). A análise cartográfica é guiada pelos problemas que
pulsam no campo de pesquisa e o ato de analisar atua como um elemento ampliador de
problematizações, gerando novas inquietações.
Para Rodrigues (2012) toda análise cartográfica efetiva-se como uma análise de
implicação à medida que pressupõe a construção e compartilhamento coletivas das experiências
entre o pesquisador e o objeto pesquisado, que são constantemente (re)visitadas e postas sob
reflexão. Nessa análise “o pesquisador cabe a construção de analisadores” (PASSOS,
KASTRUP; TEDESCO, 2016, p. 179) que compõem elementos importante na desnaturalização
do instituído. Uma análise cartográfica se constitui a partir da problematização do campo de
força, radicalizando o caráter interventivo da pesquisa sendo construída ao longo do processo
de pesquisa.

2.5 Aprovação no comitê de ética


39

O projeto obteve aprovação do Comitê de Ética da UFC (CAAE:


89196718.7.0000.5054) e seguiu os aspectos dispostos nas Resoluções 466/12 e 510/16 do
Conselho Nacional de Saúde.
40

3 “PRA SER TRATADO COMO BANDIDO, BASTA MORAR NA PERIFERIA”:

HOMICÍDIOS JUVENIS SEGUNDO MÃES DE JOVENS ASSASSINADOS

3.1 O relato das mães como analisador das políticas de morte e precarização da vida

Neste capítulo, objetivamos conhecer narrativas sobre homicídios juvenis


produzidas por mães de jovens assassinados, mapeando e problematizando, a partir de seus
relatos, linhas de forças que engendram condições para o crescimento dos homicídios juvenis
no contexto cearense.
Nos últimos anos, como uma das manifestações da colonialidade e do seu ódio à
diferença, tem-se assistido a um panorama de intensificação das mortes de segmentos
infantojuvenis em diversos contextos brasileiros, dentre os quais se destacam o estado do Ceará
e sua capital, Fortaleza. Considerando-se o período de 2005 a 2015, Cerqueira et al. (2017)
destacam que, em relação às taxas de homicídio, o Ceará despontou da 17º posição entre os
estados brasileiros para a 3ª. Segundo a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do
Ceará (SSPDS), entre 2015 e 2017, ocorreram 2.453 crimes violentos letais e intencionais
contra adolescentes no estado, dos quais 1.018 ocorreram na capital.
Ainda de acordo com a SSPDS, 42% dos homicídios, no estado, concentram-se em
Fortaleza. Considerando-se os homicídios por arma de fogo, Fortaleza que ocupava em 2004 o
9° lugar dentre as capitais brasileiras, para o 1º lugar em 2014 (WAISELFISZ, 2016). Em 2016,
655 adolescentes entre 10 e 19 anos foram assassinados no Ceará, destas mortes, 217 ocorreram
em Fortaleza. Já em 2017, 981 adolescentes foram assassinados no estado, dos quais, 414
concentraram-se na capital. Ainda de acordo com a SSPDS, de janeiro a dezembro de 2018
foram registrados 4460 crimes violentos letais intencionais. Soma-se a esse cenário o aumento
de chacinas ocorridas no estado. No ano passado, houve pelo menos quatro chacinas de maior
repercussão em diferentes localidades: Maranguape, Cajazeiras, Itapajé, que aconteceu na
cadeia, e Benfica (sendo este último um bairro da cidade de Fortaleza; os outros são municípios
do Ceará), que vitimaram, respectivamente, 4, 14, 10 e 7 pessoas.
Segundo os dados apresentados pelo Comitê Cearense de Prevenção ao Homicídio
de Jovens13, um terço dos assassinatos de adolescentes ocorreu numa área que corresponde a

13
O Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência apresenta-se como uma “instância de
estudo, debate, mobilização e projeção” (Governo do Estado do Ceará, p.5) sobre o homicídio de adolescentes
no Ceará. Iniciou suas atividades em 2015, no intuito de congregar diferentes atores e instituições para pensar
estratégias de enfrentamento ao extermínio de jovens. Como fruto desse trabalho, foi gerado um relatório que
expõe o panorama do homicídio adolescentes no Ceará com algumas recomendações para prevenção destes.
41

4% da capital, onde vivem 13% da população, mostrando a intensa concentração territorial


desses homicídios. Os jovens entre 15 e 29 anos do sexo masculino apresentam risco 13,52
maiores de serem assassinados. Os negros apresentam risco de morte 2,88 vezes maior se
comparados com homens brancos (IHA, 2014), indicando a contundência do racismo estrutural
em nossa sociedade e sua relação com a vitimização por homicídio (ALMEIDA, 2018). Esses
dados, além de demonstrarem o panorama de intensificação dos assassinatos juvenis, sugerem
que a análise de tal fenômeno demanda atentarmos para a participação de questões históricas
como racismo, segregação social e urbana, bem como a associação entre periculosidade e
pobreza nessa complexa engrenagem genocida.
Foi nesse panorama que se deram as mortes dos filhos das oito mulheres
participantes deste estudo. O filho de Felipa, uma das vítimas da Chacina do Curió 14, foi
assassinado na calçada da casa de um dos amigos enquanto conversavam. Felipa relata que
estava dormindo na hora da morte e ficou sabendo apenas no dia seguinte quando estava no
trabalho:
Quando aconteceu, eu estava dormindo. (...) nesse tempo eu trabalhava numa creche,
com criança, cheguei cansada, fiz a janta e fui me deitar. E ele tinha ido jogar bola no
São Cristóvão, na quadra do São Cristóvão. O primo do [nome] chamou ele lá pra
casa dele no Curió, quem foi? O [nome do filho]! Aí pronto, só foi chegar, chegou na
hora de morrer. Aí então, eu não soube no mesmo dia, eu vim saber no outro dia, às
11 horas do dia, que eu tava no colégio (...) Eu num aceito não, porque meu filho não
deve nada à justiça, só tem emboscada pra quem deve, pro meu filho não tem
emboscada! (...) eu disse, “não! Ele não tá morto! Ele não pode tá morto! Meu filho
não tá morto!” Então, aquilo ali foi o chão que se abriu pra mim, certo, mais aí, já vai
fazer 3 anos, né, que eu estou nessa luta.

Já Luiza nos conta que seu filho morreu após cumprir medida socioeducativa
privativa de liberdade, por pessoas que lhe eram conhecidas “Vei 2 menina buscar ele, levou
ele, levou ele… pra matar. Tinha saído, já! Tinha saído, já tava em casa. Ele foi pro Lagamar,
não deixaram ele voltar não” (Luiza).
Por sua vez, Anastácia assinala que o seu filho foi assassinado logo após sair do
presídio. Conta-nos ainda que estava ameaçado por diferentes grupos e também por policiais,
tendo uma morte tão violenta que sua mãe teve dificuldade em reconhecer o seu corpo e sequer
conseguiu doar os órgãos.
O filho de Maria, segundo versão desta, também foi assassinado por grupos rivais,
logo após sair do presídio e sofrer ameaças. “Tava com 30 minuto que eu tinha terminado de
falar com ele. Eu me sentei, liguei, o celular toca e ele não atende mais. Aí eu, quando eu volto,

14
Explicar o que foi a chacina do curió, ocorreu em 2015, na madrugada de 12 de novembro. Policiais militares
assassinaram 11 pessoas deixando 7 feridas.
42

aí o celular toca (...). “Mãe, acabaram de matar o [nome do filho]”. Aí pronto, pra mim eu perdi
o chão (...) não deixaram eu ver porque disse que tava muito (…) não dava pra mim, sabe?
Reconhecer foi tiro, foi faca” (Maria).
Segundo Adelina, seu filho foi assassinado por discordar e não respeitar regras
impostas por facções no bairro em que vivia. Conta-nos que estava em casa quando ouviu os
tiros que vitimaram seu filho 5 minutos após este sair de casa.
Por seu turno, Mariane nos diz que seu filho foi assassinado por conhecidos que
residem próximo à sua casa, tendo sido retirado de casa para ser morto, atrelando o homicídio
a também a conflitos entre facções. Já Tereza declarou-nos que o seu foi assassinado pelo irmão,
dentro de casa, de forma acidental. O filho de Esperança foi morto após cumprir medida
socioeducativa de internação. Segundo ela, ele foi assassinado por familiares da namorada
ligados a uma das facções que atuam no bairro onde mora. Abaixo, nos conta o último diálogo
que teve com o jovem: “eu tô sentindo. Mais eu vou te dizer uma coisa meu filho, meu coração
tá pedindo pra tu não ir pra essa viagem, aí ele, ‘eu vou, mãe. É jogo bala, eu venho já’ (...) lá
no Alto Alegre. Morreu à míngua (...) Era 3 hora, quando deu 3 e 20, a notícia chegou, que
tinham matado ele. Os caras já tavam só esperando, ela levou só pra matarem mesmo, os cara
tava esperando ele” (Esperança).
Todas as mortes são marcadas pela ausência de responsabilização. Dos 8 filhos
assassinados, só houve investigação acerca da morte do filho de Felipa. Apesar disso, o caso
ainda não foi julgado e consequentemente não houve responsabilização legal dos autores da
chacina em que o jovem foi vitimado, os quais, segundo investigações, seriam policiais. Nas
palavras de uma das mães acompanhadas em campo, apesar de, em janeiro de 2019, ter
completado 5 anos de morte de sua filha, ela tem vivido esses anos para “ver nada acontecer”,
o que é um elemento que ilustra como esses corpos são construídos como matáveis.
Nas próximas seções, a reboque das histórias contadas pelas participantes do
estudo, serão percorridas duas questões principais: Qual a perspectiva das mães de jovens
assassinados sobre a problemática de intensificação das mortes juvenis? Em quais condições e
tramas esses homicídios têm se dado?
A partir dessas questões, tomaremos como operadores conceituais as noções de
necropolítica e política de inimizade, desenvolvidas por Achille Mbembe, e de vidas precárias
e não passíveis de luto, discutidas por Judith Butler, destacando conexões e deslocamentos
dessas noções tanto em relação às ideias de Michel Foucault sobre disciplina e biopolítica,
quanto em relação às discussões de Giorgio Agamben sobre estado de exceção e homo saccer.
Tais ferramentas teóricas, assim como diálogos com a Psicologia Social e áreas afins no tocante
43

ao debate sobre violência, serão utilizadas ao longo do capítulo à medida que nos auxiliem a
pensar as articulações das forças que constituem o campo vivido na pesquisa e que atuam na
produção da morte em contextos da periferia do capitalismo, como o Brasil. Considerando-se o
contexto contemporâneo de intensificação da violência, que tem suas raízes no desejo de
aniquilamento do Outro (ARENDT, 2004), as referidas noções se fazem profícuas para
analisarmos questões como a criminalização e o genocídio de jovens pobres e negros no Brasil.
Para tanto, tomaremos caminhos semelhantes aos de Lima (2017) e optamos por
experimentar a reinvenção das contribuições de autores como Butler, Foucault e Agamben,
localizados em países do centro do capitalismo, utilizando-nos, para tanto, do pensamento de
Achille Mbembe que, partindo de África, reflete sobre as realidades vivenciadas nas periferias
do capitalismo, uma vez que este último demonstra a possibilidade do “exercício periférico da
teoria crítica” (HILÁRIO, 2016, p. 198).

3.2 “Porque a favela é os matáveis”: as margens urbanas como zonas de morte

Para Filipa, a morte do filho, assim como a de outros jovens, está relacionada ao
preconceito e à estigmatização direcionados aos corpos que vivem nas periferias urbanas:

As mortes que hoje acontece no nosso Brasil, no nosso Ceará, é só pelo genocídio de
Estado, é só pelo preconceito, é só pelo racismo, certo? Porque a favela é os matáveis,
a favela é os digno de morte, a favela são os alma sebosa, na favela não tem homem
de bem, não tem criança de bem, não tem mulheres de bem, tudo é bandido para a
mídia suja para os programas policialescos, certo, para os empresários, para os
políticos corruptos, na favela, só serve a favela pra votar pra eles, mais depois do voto,
a favela passa a ser os matáveis (Felipa).

De modo semelhante, Luiza aponta os estigmas sociais que recaem sobre as pessoas
que vivem nas periferias, fomentados pelos processos de desigualdade social, em que aos
pobres e negros são reservadas violência e truculência. Algumas mães, como Felipa, Luiza e
Adelina, apresentam críticas aos processos de criminalização das juventudes pobres e negras e
às desigualdades sociais que levam à marginalização de determinadas vidas. Em suas falas,
essas mulheres apresentam posicionamentos firmes, os quais também se fazem presentes em
seus discursos em espaços públicos como as marchas da periferia acompanhadas em 2017 e
2018 e mesas redondas das quais participaram, em que denunciam a violência de Estado
mediante a exacerbação de uma lógica punitiva que tem assassinado não só os corpos de seus
filhos mas de tantos outros jovens que partilham de condições de precariedade semelhantes. A
produção de vidas matáveis que permeia o cotidiano das mães e jovens, expressa em suas
44

narrativas, nos remete ao debate foucaultiano sobre racismo de estado 15 e aos seus
desdobramentos em reflexões como as de Mbembe, que desenvolve o conceito de necropolítica.

No que concerne às produções foucaultianas, vale-se ressaltar que, apesar de as


relações de poder adquirirem caráter fundamental, Foucault (1995), ao realizar uma espécie de
inventário de sua obra, explicita que o objetivo de seu trabalho “não foi analisar o fenômeno do
poder nem elaborar os fundamentos de tal análise (...) ao contrário, foi criar uma história dos
diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos”
(FOUCAULT, 1995, p. 273). Dessa forma, a questão central para o filósofo sempre foi o
problema do sujeito em sua relação com o saber, o poder e consigo. Nessas análises, o poder é
pensado como uma tecnologia difusa, presente nas diversas práticas sociais. É tratado, então,
“como um exercício ou como um jogo de forças instável e permanente, e não como um atributo”
(PASSOS, 2013, p. 9). O poder, logo, deve ser analisado em sua positividade, ou seja, a partir
do seu potencial de produção. Interessa a Foucault discutir os modos pelos quais o poder opera,
assim como seus efeitos. Analisando o contexto europeu, o filósofo francês fala em três
principais formas de poder que predominam em diferentes épocas do percurso histórico da
humanidade e que não se excluem, mas coexistem. Seriam elas: o soberano, o disciplinar e o
biopoder.
Em sua discussão biopolítica a partir do tema da guerra, Foucault (2016) argumenta
que o direito de matar atua como um dos elementos característicos do poder soberano. Ao
soberano seria reservado o direito de decidir entre aqueles que deveriam morrer e aqueles que
poderiam viver (nas palavras do autor, “fazer viver e deixar morrer”). É legítimo ao soberano
causar a morte ou decidir poupar a vida de outrem e “é porque o soberano pode matar que ele
exerce o seu direito de vida” (FOUCAULT, 2016, p. 202). O crime, então, é tido como uma
afronta ao poder soberano e por isso deve ser punido, não havendo espaço para reflexões acerca
da natureza do crime ou do criminoso em si (VIANNA; NEVES, 2011). Em fins do século
XVII e primeira metade do século XVIII, tem-se o redimensionamento das técnicas de poder
que culminaria no que o filósofo denomina de poder disciplinar, tecnologia de poder que passa
a atuar no controle e docilização dos corpos individuais. “Eram todos aqueles procedimentos

15
No que concerne às noções foucaultianas, faz-se importante frisar que as discussões aqui presentes concentram-
se nas discussões genealógicas deste autor, desenvolvidas em meados da década de 1970. Foi nesse período que
ele analisou, por exemplo, as mudanças na forma de punir (Vigiar e Punir, 1975), a invenção da anormalidade nas
tramas das práticas médicas e jurídicas (Os Anormais, 1975), a guerra como um analisador das relações de poder
e a questão do racismo (Em Defesa da Sociedade, 1976), os dispositivos de segurança (Segurança, Território e
População, 1977) e da sexualidade (História da Sexualidade - A vontade de saber, 1976) e o papel do intelectual
(Microfísica do Poder, 1979).
45

pelos quais se assegurava a distribuição espacial dos corpos individuais e a organização em


torno desses corpos individuais, de todo um campo de visibilidade” (FOUCAULT, 2016, p.
203). Tem-se aqui novas técnicas de vigilância, sanção e exame, visando a normatização dos
indivíduos, na perspectiva de torná-los economicamente eficientes e politicamente submissos.
Foucault aponta para o surgimento de uma outra tecnologia de poder na segunda
metade do século XVIII, que seria o poder que incide sobre a vida do corpo espécie, em seus
modos de viver, atuando não mais sobre os corpos individuais, mas sim sobre um coletivo: a
população. Nas palavras do autor, “trata-se de um conjunto de processos como proporção de
nascimento e óbitos, a taxa de reprodução, a fecundidade de uma população” (FOUCAULT,
2016, p. 204). O biopoder é, portanto, voltado para regulamentação da vida ou, em outras
palavras, para o ‘como’ se vive. Trata-se de não mais fazer morrer diretamente, como no poder
soberano, mas sim de “deixar morrer” ou prolongar-se a vida. Posto isto, de que modo a gestão
da morte e sua aceitabilidade se tornariam possíveis em uma sociedade da normalização
biopolítica, segundo as ideias foucaultianas?
O conceito de racismo de Estado é colocado pelo filósofo como o modo pelo qual
a morte se torna possível no Estado Moderno, no seio da própria biopolítica, que se caracteriza
pela preocupação eminente com a gestão da vida e regulamentação dos modos de viver, com
vistas ao seu prolongamento e à sua produtividade. O racismo teria a função de segregar a
população em grupos distintos: de uma lado, os que “devem viver” e, de outro, os que “devem
morrer”. Ou seja,

O racismo vai permitir estabelecer, entre a minha vida e a morte do outro uma relação
que não é militar e guerreira de enfrentamento, mas uma relação do tipo biológico:
quanto mais as espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais os indivíduos
anormais forem eliminados, menos degenerados haverá em relação à espécie, mais eu
viverei. A morte do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que seria
minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior é o
que vai deixar a vida em geral mais sadia e mais pura (FOUCAULT, 2016, p. 215).

Pode-se observar que a premissa da relação guerreira atualiza-se de modo que, para
que o grupo dos que “devem viver” sobreviva, faz-se necessário que o grupo dos que “devem
morrer” seja eliminado. A atualização se dá à medida que essa relação passa a não ser apenas
de cunho de força (sobrevivência do mais forte ou mais fraco) mas sim de risco biológico, ou
seja, determinado grupo social deve ser exterminado a fim de garantir a sobrevivência de uma
espécie, tida como superior ou “normal”. O racismo, assim, volta-se aos que estão fora da
norma, que podem ser caracterizados como desviantes, anormais e, portanto, perigosos.
Portanto, esse mecanismo, além de atuar como modo de dividir a população entre os grupos
46

que devem viver e aqueles que devem morrer, atua na aceitabilidade dessas mortes que podem
se dar por ação direta (assassinato direto) ou indireta (deixar morrer mediante a inviabilização
da vida).
Explicitada essa noção foucaultiana, apresentamos aqui de que modo ela tem sido
utilizada por autores da psicologia social (SCISLEKI et al., 2017; BARROS et al., 2017) para
analisar os diversos dispositivos de controle e punição destinados ao segmento juvenil mais
pauperizado, atuando na produção de “vidas matáveis”, o que supõe a criação de mecanismos
que legitimem essas mortes, algo que, conforme explicitado acima, é vivido pelas mães,
constituindo suas narrativas acerca das mortes de seus filhos. Tomando como analisadores
algumas políticas e ações voltadas para segregação, controle e, em muitos casos, morte de uma
parcela da juventude, esses estudos demonstram como o racismo de Estado opera na criação de
condições de aceitabilidade do extermínio desse segmento da população. Em pesquisa com as
juventudes periféricas de Fortaleza, Barros e Benício (2017), ao problematizarem sobre os
modos de subjetivação juvenis em contextos de exacerbação da violência letal, apontam os
imbricamentos entre os processos de sujeição criminal, que associa esses jovens às ideias de
risco e periculosidade, e a produção destes como jovens matáveis. Essas questões também
foram expressas por algumas das mulheres em nosso estudo à medida em que estas traziam uma
leitura do panorama de intensificação dos homicídios juvenis. Para Luiza, a morte do seu filho
se relaciona às desigualdades sociais em que os jovens figuram como alvos fáceis dentro de
uma política de matabilidade que os rotulam como inimigos da sociedade:

Aquele bandido, ele tem uma família, ele tem uma mãe que ama, ele tem uma vida
familiar. Como eles chama “bandido bom é bandido morto”, nera pra ter mais nenhum
político vivo, nenhum governante era pra tá vivo. Olhe que… em que situação tá o
nosso país!? Num é uns menino desse, que é uns adolescente, viu, porque a corda só
quebra do lado fraco, sabe? Eu duvido que lá da Aldeota, um fi de papaizim, de
barãozim, ele cometa um delito, e a polícia pegue ele e vá expor ele ao ridículo, vai
não! Vai colocar na parede, vagabundo, filho de chocadeira, bandido safado, tu devia
tá era morto, pobre, humilde, da periferia, esse aí é exposto ao ridículo (Luiza).

As mulheres explicitaram diversas vezes os modos como percebiam os


atravessamentos entre as mortes juvenis e os estigmas relacionados às questões de classe e de
raça. Viver em zonas periféricas é também carregar os estigmas lançados sobre esses lugares.
Para elas, essas mortes, assim como as negações de direitos dos seus filhos ao longo de suas
vidas, deram-se em decorrência dessas questões, sobre as quais podemos refletir a partir das
contribuições de Mbembe que, partindo das noções de biopolítica e de racismo de Estado
47

foucaultianas, examina o modo como se dá a centralização da morte como operador político,


caracterizando a atuação de um necropoder, em que a raça aparece como critério fundamental
de fragmentação entre grupos ‘vivíveis’ e ‘matáveis’. Partindo das discussões de biopolítica de
Foucault e contribuindo com as discussões de racismo, Mbembe (2017) chama atenção para a
questão da colonialidade, traços que se refletem nas realidades vividas pelos jovens
assassinados e suas mães. Essa ‘virada periférica’ se faz importante porque o autor passa a
considerar em suas análises o contexto de escravidão vivenciado na África e na América Latina,
no século XVII e XVIII, período caracterizado pelo silenciamento das culturas nativas e pelo
genocídio dos povos indígenas e negros, questões que passaram ao largo das reflexões
foucaultianas e cujas continuidades e descontinuidades podem ser problematizadas com mais
afinco pela noção de necropolítica. Segundo o camaronês:

O poder necropolítico opera por um mecanismo de reversão entre vida e morte como
se a vida não fosse o médium da morte. Procura sempre abolir a distinção entre os
meios e os fins. Daí sua indiferença aos sinais objetivos de crueldade. Aos seus olhos,
o crime é parte fundamental da revelação, e a morte dos seus inimigos, em princípio,
não possui qualquer simbolismo. Este tipo de morte nada tem de trágico e, por isso, o
poder necropolítico pode multiplicá-la infinitamente, quer em pequenas doses (o
mundo celular e molecular), quer por surtos espasmódicos - a estratégia dos pequenos
massacres do dia a dia segundo uma implacável lógica de separação, de
estrangulamento e de vivissecção, como se pode ver em todos os teatros
contemporâneos do terror e do contraterror (MBEMBE, 2017, p. 65).

Como observado acima, embora Foucault (2016) já elucide a inserção e gerência


da morte no Estado Moderno através da supracitada noção de racismo de Estado, pela qual o
Outro passa a atuar como um inimigo que precisa ser eliminado para garantir a sobrevivência
de uma espécie, as contribuições de Mbembe se fazem relevantes à medida que produzem um
deslocamento no olhar sobre essas questões ao nos convocar a pensar a colonialidade como a
maior expressão da exploração e negação do Outro. A noção de necropolítica possibilita uma
leitura não apenas da inserção da morte e legitimação desta nos cálculos do poder, mas de como
a produção da morte opera de modo radicalizado e racializado nas periferias do capitalismo,
vitimando, sobretudo, corpos afroameríndio-descendentes, movimentando uma forte economia
da violência como motor do fortalecimento do capital, a despeito das retóricas pacifistas da
democracia liberal, que, para Mbembe (2017), sempre se constituiu mantendo um viés
imperialista e colonialista. Em comparação com a discussão já iniciada por Foucault acerca do
racismo, é importante frisar como Mbembe trata diferencialmente essa questão. Em Foucault,
o racismo é colocado de modo mais amplo, já em Mbembe esse debate considera os processos
48

de racialização nos contextos coloniais como pontos centrais para a atuação da segregação
racista.
O conceito de biopoder, de acordo com a leitura pós-colonial de Mbembe, apesar
de importante, passa a ser insuficiente para analisar o contexto característico de países da
periferia do capitalismo na atualidade. Apontando a insuficiência, e não a impertinência, da
noção de biopolítica, Mbembe desenvolve o conceito de necropolítica, em que a morte se
radicaliza de tal modo que passa a ser produzida em série, ocupando lugar central na economia
política e nos modos de sociabilidade. O autor toma o sistema colonial e de plantation como
analisador da exacerbação da morte baseada em um critério racial, e analisa como isso se
atualiza de forma a permanecer prevalecendo no colonialismo tardio. Mbembe (2017), em sua
obra intitulada Políticas da Inimizade, demonstra que “a ocupação do colonialismo tardio se
diferencia dos vários métodos da ocupação pré-moderna, especialmente ao combinar disciplina,
biopolítica e necropolítica” (MBEMBE, 2017, p. 132).
As mães nos falam de que modo opera em seus cotidianos a radicalização da morte.
A morte se torna tão presente na vida dessas mulheres, a ponto de que, ao saírem de suas casas,
deparam-se com corpos no chão, como narrou Felipa em uma das conversas no cotidiano.
Segundo ela, houve um tiroteio no seu bairro e, ao chegar em casa, havia um corpo em sua
calçada. A impressão de que a intensificação das mortes leva à banalização destas é um dos
aspectos compartilhados pelas mães de jovens de diferentes territórios. Essas cenas cotidianas
nos dão pistas para pensar os modos de funcionamento do necropoder que se caracteriza pela
radicalização do poder de morte nas margens urbanas, às quais consistem em espécies de
“colônias contemporâneas”, espaços marcados pelo abandono do poder público em que,
conforme explicitaremos, as diversas violências se tornam possíveis. Ocorre, outrossim, uma
totalização da morte, a exemplo daquilo que ocorria no sistema colonial:

Às vezes você conversa com uma pessoa, como ali perto da minha casa já morreu
várias pessoas cê tá almoçando e aí, “mataram fulano”, cê vem trabalhar, quando você
entra: “mataram fulano”, você vai dormir: “mataram fulano”. É uma bola de neve, né?
Como tá acontecendo aqui no bairro muito, muito, como a minha neta, ela
conversando comigo, “oh vó, tem 15 dias que eu perdi minha prima, mataram minha
prima lá no Tianguá, agora mataram meu tio”. A minha neta tem 12 anos! Aí ela
chorou muito, eu conversei muito com ela mas, é, o que tá acontecendo no mundo é
isso, toda família que tá perdendo seus marido, seus filhos (Maria).

A condição necrobiopolítica de não-sujeitos, corpos abjetificados e vidas invivíveis


(BENTO, 2018) sustenta a lógica de que estes não podem acessar direitos e para quem a morte
torna-se um desfecho quase que inevitável. Essa condição de não-sujeitos, sob a ótica de Butler
49

(2014), é comum a corpos que partilham a maximização da condição de precariedade,


caracterizada pelas negações de condições mínimas de uma vida vivível. Considerando também
essa negativa de estatuto político a certos corpos, Mbembe (2017) propõe uma leitura que difere
do discurso filosófico da modernidade segundo o qual a razão é colocada como verdade do
sujeito; a política como modo de se exercer a razão na esfera pública e a liberdade como um
princípio fundamental para desenvolvimento da autonomia dos povos.
A partir da crítica mbembeana, pode-se questionar: para quais populações esse
modelo de soberania existe? Pode-se falar em democracia quando, para certas populações,
como as juventudes periféricas, ocorre a negação da possibilidade de ocupação dos espaços
políticos?
Mbembe (2016; 2017) defende o posicionamento de que a contemporaneidade é
marcada pela inversão da democracia, em que se assiste à subjugação dos povos a uma lógica
de dominação que se baseia na imbricação entre capital, tecnologia digital, natureza e guerra.
Nesse contexto, a força da democracia se sustentaria na ocultação de seu caráter violento nas
metrópoles (atualizadas nas zonas “nobres” das cidades) e opressor destinado a determinadas
populações, cujos sofrimentos são silenciados, invisibilizados e vividos nas colônias (atualizada
nas favelas e periferias). Nesse sentido, podemos pensar articulações com Butler em suas
críticas à democracia liberal. A autora aponta para a relação entre o neoliberalismo e a
precarização maximizada de determinadas vidas. Essas condições se relacionam ao devir-negro
no mundo, apontado por Mbembe (2014), em sua Crítica da Razão Negra, segundo o qual
ocorre a extensão das condições negras de existência, marcadas pela subalternização de seus
corpos, a outros modos de vida, transcendendo a cor da pele ou fenótipo. Compõem-se,
portanto, de corpos dispensáveis 16 ao capital, uma vez que estão à margem.
Atenta-se, então, por meio dos relatos das mães sobre os homicídios juvenis, para a
inexistência de uma pacificação nos Estados democráticos, pois a mesma democracia que
apregoa autonomia, liberdade e participação política de certos povos também permite a
expressão de violências e brutalidades a outras populações. Seguindo a lógica de segregação do
racismo de Estado, essas democracias seriam cindidas em grupos caracterizados por Mbembe
(2017) como “semelhantes” e “não-semelhantes”, em que os não-semelhantes seriam objetos
de expurgo. Como exercício dessa reflexão, o autor camaronês nos convoca a pensar as
realidades das colônias e o regime de escravidão, colocando-os como os dois principais pilares

16
Dispensáveis no sentido de que suas vidas são destituídas de valor e facilmente substituíveis, mas que operam
sim na lógica produtiva do capital, para tanto, basta observarmos as quantias movimentadas no mercado ilícito de
drogas. Esses jovens compõe a ponta mais frágil e substituível.
50

da expansão do capitalismo. Sob tal prisma, a colonização foi o modo pelo qual se deu a
inserção dos países do sul na modernidade e funcionava como meio de expulsão daqueles
considerados indesejáveis ao país colonizador. Nesse contexto, os escravos eram destituídos de
seus lares, de seus corpos e de seus direitos políticos, reduzidos à condição de “coisa” a ser
possuída e mercantilizada pelo colonizador.
Diversas juventudes que vivem nas periferias dos grandes centros urbanos se
assemelham aos maus objetos17 descritos pelo autor. Esses jovens correspondem a uma
atualização contemporânea da figura dos escravos, assim como as periferias equiparam-se às
colônias descritas em seus textos. São sujeitos “sem lar, sem corpo, sem estatuto político. ”
(MBEMBE, 2017, p. 122), aspecto que pode ser ilustrado nas repercussões das chacinas
ocorridas em Fortaleza, em que, inicialmente, foram levantadas suspeitas de envolvimento das
vítimas com atividades ilícitas numa tentativa de legitimar seus assassinatos, seguidos de
argumentações por parte do secretário estadual de segurança pública de que a maior parte dos
mortos estava envolvida com o tráfico ou tinha passagem pela polícia. Um outro exemplo da
objetificação desses corpos juvenis é a recorrência de relatos das mães sobre violências
institucionais sofridas por seus filhos, como invasão de casas nas periferias e as abordagens
policiais conhecidas localmente como ‘baculejos’, ancoradas na estigmatização de juventudes
negras e periferizadas como ‘elemento suspeito’ (RAMOS; MUSUM, 2005). Associa-se a isto
algumas expressões do poder soberano nas periferias, que podem se dar pela atuação do Estado
ou das facções criminosas nesses territórios. Essas figuras de soberania têm como foco “a
instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos
humanos e populações” (MBEMBE, 2017, p. 111):

Nas colônias, o soberano pode mandar matar a qualquer hora, de qualquer maneira. O
armamento colonial não está sujeito a regras institucionais nem legais. Não se trata de
uma atividade legalmente codificada. Pelo contrário, o terror colonial entretém-se
constantemente com fantasias de barbárie, de morte e ficções, com o intuito de criar
o efeito do real. (MBEMBE, 2017, p. 128).

Tem-se a radicalização da morte explícita, considerando-se que esses não-sujeitos


não apenas devem ser mantidos à distância, mas devem não existir, a eles está reservada a morte.
A paz, então, era sustentada com base em uma política colonial do terror, haja vista a
democracia, nesses espaços, impor-se a partir da publicização de execuções e imposição do
medo.

17
Os maus objetos referem-se às figuras dos escravos e colonos, compreendidos como fontes de todo mal e
ameaças ao colonizador.
51

A democracia moderna, desde sua origem, mascara a violência extrema que a


sustenta. Para Mbembe, “Democracia, plantação e império colonial fazem parte de uma mesma
matriz histórica” (MBEMBE, 2017, p. 41), em que diversos fatores políticos, econômicos,
sociais e tecnológicos contribuíram para o fortalecimento das metrópoles e desenvolvimento de
suas democracias, em detrimento da exploração e morte em massa nas colônias. O sistema
colonial destaca-se como “um campo privilegiado de experimentações. Dariam lugar a um
emergente pensamento da força e da técnica, que (...) abriu caminho aos campos de
concentração e às ideologias genocidas modernas” (MBEMBE, 2017, p. 45).
Em nosso estudo, a maioria dos filhos assassinados era negra. Com a noção de
necropolítica, portanto, Mbembe (2017) faz uma análise colonial do racismo, trazendo o regime
escravocrata como uma primeira expressão da biopolítica. Utiliza-se do pensamento de Hannah
Arendt ao reafirmar a ligação entre a política de raça e a de morte, uma vez que para ele “mais
do que a ideia de classe (...) A raça sempre foi uma sombra presente na prática e no pensamento
político ocidental” (p. 116). Esse autor vai além quando afirma que a percepção do outro como
uma ameaça à existência ou sobrevivência de uma espécie pode ter se tornado mais visível com
o Estado nazista, muito embora já seja característico do Estado pré-moderno, sendo o contexto
colonial uma evidência disso. O extermínio nazista teve como base o imperialismo colonial, no
que concerne à legitimação da eliminação de determinados grupos populacionais, e o
desenvolvimento de técnicas mortíferas, que levou à mecanização dos meios de execução,
fazendo com que a morte se tornasse um procedimento técnico e impessoal. Com isso, passou-
se a matar mais em menor tempo, uma espécie de produção de morte em série e em massa.
Pelos dados expostos no primeiro tópico deste capítulo, essas mortes que se
intensificam nas periferias dos centros urbanos, ao obedecerem a um recorte racial, podem ser
analisadas como parte de um genocídio, entendido aqui como a utilização de medidas
planejadas e contínuas que visem o extermínio de determinado grupo populacional. O genocídio
abarca não apenas o assassinato direto dos corpos juvenis, mas também todas as tentativas de
solapar e negar a existência dessas juventudes. Para Nascimento (2017) “da escravidão, no
início do período colonial, até os dias que correm, as populações negras e mulatas têm sofrido
um genocídio institucionalizado, sistemático, embora silencioso” (p. 19), que encontra no
extermínio da juventude negra, sua expressão máxima. Entre os anos de 2006 e 2016, a taxa de
homicídio de negros cresceu em 23,1%, enquanto o mesmo índice para os não negros teve uma
redução em 6,8% nesse mesmo período (CERQUEIRA et al, 2018), apontando, aqui, que essa
intensificação das mortes de negros é um dos principais sinais da atualização do genocídio em
um cenário necropolítico.
52

Considerando-se esse processo de racialização da morte, as discussões de Mbembe


sobre necropolítica produzem o que podemos chamar de um enegrecimento da biopolítica.
Barros et al. (2017) e Barros e Benício (2017) apresentam algumas noções inspiradas em
estudos foucaultianos (biopolítica, racismo de Estado e governamentalidade), utilizando-as
como ferramentas18 para pensar as situações de criminalização e genocídio das juventudes
pobres e negras de Fortaleza. Nas reflexões, também são consideradas as singularidades
concernentes ao histórico colonial do País, a partir das articulações com Mbembe no que tange
suas discussões sobre as colônias e sistemas de “plantation”. As juventudes periféricas
constituem, assim, vidas que não merecem ser vividas, que podem ser facilmente exterminadas,
ideia que nos remete à obra Homo Saccer de Agamben (2009). Aqui, o Homo Saccer representa
um paradoxo: é a vida que se caracteriza como matável e insacrificável, concomitantemente.
Em campo, fatores como os raciais e de classe se mostraram predominantes na segregação
racista entre os grupos juvenis ‘vivíveis’ e ‘matáveis’, ou nas palavras de Mbembe,
‘semelhantes’ e ‘não-semelhantes’, conforme este trecho da entrevista de Luiza:

Massacrado! É esculachado! Pra ser bandido, basta morar na periferia, entende? Então
se fosse pra corrigir, bandido bom é bandido morto, o normal, o correto, o certo, o
justo era começar por eles...eles, os governante que anda roubando direitos de um ser
humano, que a população tem, principalmente a população carente, porque em favela
mora cidadão! Em favela, mora cidadã! Em favela, tem jovens honestos! Mais você
num vê um Mauricinho na Aldeota, você num vê um filho de papaizinho caído na
calçada porque mataram porque tava fazendo isso e aquilo. Se ele fizer, e alguém fizer,
e acontecer de fazer com ele, aí ele vai ter a justificativa dele, um cidadão! Um jovem!
Universitário! Aí bota mil curso, mil coisa naquele ali, aí virou santo, se santificou
aquele ali. Porque? Porque ele é lá da zona sul. Se ele for da zona da periferia aqui,
ele pode ter feito faculdade, ele pode ser universitário, mais ele vai ser um bandido,
hum, né? Ele vai ser taxado como bandido, porque ele é da periferia. Isso, é o governo,
que faz isso(...) o perigo maior, que é a polícia, que essa quando olha pra gente parece
que já vê escrito “favelado”, e já vem em cima (Luiza).

Ao narrar a morte de seu filho, Luiza nos dá elementos concretos para entendermos
como Necropolitica e Biopolítica se articulam nos cotidianos das juventudes periféricas. Ao
propor o termo necrobiopoder, Bento (2018), tomando como base o contexto das periferias
brasileiras e as articulações entre Foucault, Mbembe e Butler, argumenta que necropolítica e
biopolítica se conectam na produção e gestão de vidas matáveis e vivíveis. Para essa autora, o
necrobiopoder não tem apenas um campo de incidência e um agente de operação, em que o
fazer morrer atua por meio de “técnicas planejadas e reiteradas” (p. 4). O necrobiopoder atua

18
No texto “Os intelectuais e o poder” (1998), Foucault e Deleuze propõem a utilização das teorias enquanto
ferramentas, ou seja, que possam ser utilizadas a partir de sua utilidade para compreensão de dado fenômeno, não
visando, portanto à totalização das teorias nem a produção de verdades.
53

senão por meio de múltiplos agentes e em múltiplos campos, como o da produção de


subjetividades. A fala de Luiza também é um analisador das formas como essas forças dos
diferentes campos e formas de incidência se entrelaçam criando diferentes zonas de morte
(favelas, presídios, unidades de internação dos adolescentes), ou seja, espaços em que matar e
morrer se torna legítimo, haja vista que as vidas que as ocupam são tidas como vidas não
passíveis de luto. As diferentes zonas conferem legitimidade ou não para as mortes. Algo que
também surge na narrativa de Felipa, em uma das mesas acompanhadas em campo, quando esta
questiona o porquê do seu filho ter sido assassinado próximo à casa e não em uma das suas
várias idas à Beira-mar (zona “nobre” da cidade). Podemos pensar uma relação entre os espaços
das margens urbanas e as colônias, que se destacavam por serem os locais “sem lei” em que
todos os tipos de crueldade, como maus tratos, humilhações, punições, execuções, tornavam-se
possíveis e legítimas. Estes, são locais em que “a soberania consiste fundamentalmente no
exercício de um poder à margem da lei e onde a paz mais parece adquirir a face de uma guerra
sem fim (MBEMBE, 2017, p. 126).

São regiões que se estabelecem a partir da demarcação de fronteiras (MBEMBE,


2017), as quais demonstram a desigualdade do poder sobre a vida, característica do necropoder.
Essas fronteiras urbanas são impostas às juventudes periféricas e resultam no cerceamento de
suas liberdades de locomoção pela cidade. Agier (2015), pensando a construção dos guetos,
aponta que, historicamente, estes foram formados a partir do impedimento de que certos grupos
populacionais ocupassem determinados espaços. É essa exclusão baseada na manutenção de
determinados sujeitos à margem que leva à organização dos guetos. Pensando o contexto do
nosso estudo, podemos afirmar que a dinâmica da violência nas periferias produz prisioneiros
a céu aberto, ou, utilizando-nos das palavras de Boyer (2015), “presos do lado de fora”, pessoas
cujos acessos espacial, político e institucional são restritos, uma vez que estes não se estendem
às margens e guetos que ocupam, algo que recai às periferias e às pessoas que nelas habitam
por rótulos que as relacionam à periculosidade. Adelina afirma de que modo isso se fez presente
em seu cotidiano. Ela desconhece os motivos que levaram o seu filho à morte, haja vista que o
filho assassinado não foi aquele que estava “envolvido” com facções, atribuindo à morte a
violência cotidiana que se expressa em seu cotidiano e que impunha limites de trânsito ao seu
filho, aos quais ele não obedecia:

Por essa violência, que até hoje eu não tenho explicação, assim, não tenho motivo, e
a gente vê que a única explicação que eu tenho é justamente por essa guerra, que hoje
54

o adolescente não pode mais andar nos bairros, ter cuidado com o que fala, e quando
foi agora no dia 25 de março, que é o [nome do filho], ele ia pra uma praia, que ele
gostava muito de praia, ele tinha o costume, o hábito de ir todo dia à praia. (...)
(Adelina).

Enquanto a guerra, em Mbembe, produz e é produtora de políticas de inimizade, em


Butler (2018), a lógica da guerra passa pela fragilização do “nós”, haja vista os modos de
resistência e enfrentamento serem colocados pela referida autora como produto do
aliançamento entre os corpos, isto é, só se resiste junto àqueles que compartilham das mesmas
condições de precariedade de vida. Para Mbembe, ocorre uma associação entre a guerra sem
fim e as colônias contemporâneas, já que que essa guerra se dá principalmente em determinados
territórios, obedecendo a limites impostos pelas fronteiras estabelecidas entre as zonas “nobres”
e periféricas. A exemplo disso, temos o atual contexto vivido em Fortaleza e em todo o estado,
em que, após declaração do secretário da recém-criada Célula de Administração Penitenciária
sobre o fim das divisões por facções nos presídios, foi iniciada uma série de ataques em vários
municípios do estado, principalmente na capital.

A partir dessas questões, quando a violência borra alguns limites fronteiriços, (diga-
se alguns, pois, apesar dos ataques distribuírem-se por toda a capital, ainda continuou vitimando
mais fortemente as zonas periféricas) torna-se uma preocupação de todos, algo a ser resolvido.
O acirramento dos conflitos territoriais decorrentes de disputas das facções se tornou comum
nesses territórios, levando as juventudes que ocupam esses espaços a vivenciarem uma espécie
de campo minado. No contexto de Fortaleza, com o fim do acordo de “pacificação” entre as
facções, os limites territoriais tornaram-se mais expressivos, conforme apontado por Barros et
al. (2018). Vale-se destacar que os limites territoriais não se dão apenas pelas condições
impostas pelas facções, mas também se expressam pelas diferenças colocadas socialmente entre
as ditas zonas “nobres” e periféricas. “Essas limitações de trânsito implicam em um menor
acesso às políticas públicas e uma restrição das possibilidades de vivência da cidade,
corroborando para segregação social dessas juventudes” (BARROS et al, 2018, p. 120). O
estabelecimento de fronteiras é mais uma expressão da ideia de segregação racista apresentada
por Mbembe (2017):

as colônias são semelhantes às fronteiras. são habitadas por selvagens (...) são zonas
nas quais a guerra e a desordem, figuras externas e internas da política se alinham lado
a lado ou alternam entre si. Em si, as colônias são o local por excelência, onde os
controles e as garantias da ordem jurídica podem ser suspensos - a zona onde a
55

violência do Estado exceção está condenada a operar a serviço da civilização


(MBEMBE, 2017, p. 127).

É interessante notarmos que os mesmos territórios considerados violentos pela alta


concentração de mortes, são aqueles marcados pelos piores índices dos determinantes sociais
da saúde e onde o Estado tem se apresentado, sobretudo, em sua face repressiva, punitiva e
penal em seu braço armado, deixando nítidas outras formas de fazer morrer, por sua vez, não
tão diretas quanto os assassinatos. Não é que não se produza vida ou resistência nessas regiões,
mas nelas têm atuado forças cujos interesses são de que esses espaços só sejam vistos e
reconhecidos a partir de seu potencial de morte e violência e aqueles que ali vivem sejam
reduzidos a sujeitos ‘envolvidos’ ou ‘suspeitos’.
Cabe ainda ressaltar que, segundo o autor, esses espaços são lugares de “má fama”
habitados por gente de “má fama”, fato comum aos bairros periféricos que são reduzidos aos
seus índices de violência, reconhecidos como territórios perigosos, estigma que recai nos seus
moradores. Ainda sobre o espaço, Mbembe destaca três características relativas ao necropoder,
que seriam: fragmentação territorial, selagem e expansão dos assentamentos. A fragmentação
seria uma expressão evidente do poder soberano sobre a distribuição e ocupação espacial que
também é pensada de forma a preservar a vigília e controle das populações que ali habitam.
Algo que se reproduz nos grandes centros urbanos como Fortaleza, à medida que temos uma
divisão nítida entre bairros nobres e periferias, lugares “destinados” à violência e reduzidos aos
seus estigmas de “perigosos”, que são visivelmente separados dos espaços “habitáveis” e
“seguros” da cidade. Cabe-nos, aqui, destacar que a atuação das políticas de segurança pública
se dá de maneiras distintas nesses territórios, de modo que, nas áreas “nobres”, essas ações se
voltam para “proteção” dos “cidadãos de bem”, enquanto que, nas áreas periféricas, essas ações
se dão para contenção dos “elementos suspeitos” e elimináveis. Visam, portanto, à contenção
da violência às margens urbanas de forma a não perturbar a ordem estabelecida nas áreas
“nobres”.

3.3 “O governo faz, mas às vez ele falha”: Abandono institucional e precarização da
vida como condições para o homicídio juvenil

Ao falar sobre as trajetórias dos seus filhos, foi comum as mães narrarem algumas
situações nas quais se faziam explícitas as desigualdades e exclusões sociais que compunham
o cotidiano deles. Nesse bojo, a morte surge não como um evento isolado, mas como
culminância de um processo de precarização da vida encarnado em trajetórias juvenis marcadas
56

por diferentes negações. Sobre essas questões, Maria aponta algumas falhas do governo
relacionadas à educação. Para ela, que deixava seus filhos e netos na escola enquanto
trabalhava, a referida instituição deveria propor atividades no contraturno escolar que fossem
interessantes e formativas para os jovens, como uma forma de oferecer-lhes outras
possibilidades de se desenvolverem:

Eu gostaria que o governo fizesse alguma coisa mais assim, porque eles tão se
perdendo muito. Tasse mais por esses menino. Não é só a questão de tá numa escola,
passar o dia pra tá comendo 5 alimentação por dia, tem que ter alguma coisa, assim,
depois do almoço tem que ter alguma coisa pra eles fazer, pra eles não ficar perdido
na escola. As menina também tão se envolvendo muito, e às vezes a… eu sei que o
governo faz, mas às vez ele falha. Ele falha. Eu acho que se ele tivesse mais, assim,
oportunidade de dar emprego mais pro jovem, não tinha tanta coisa no mundo (Maria).

Em Fortaleza, 73% dos jovens assassinados haviam abandonado a escola (CCPHA,


2017), dado que aponta que a escola, mesmo que encontrando diversas limitações cotidianas
relacionadas ao processo ensino-aprendizagem e acompanhamento das crianças e jovens, ainda
pode ser um importante fator de proteção à vida das juventudes periféricas.
Conforme explicitado acima, ao considerarmos as lógicas pelas quais operam a
morte, percebe-se que esta não atua apenas pelo assassinato direto, mas também pelas formas
indiretas de se fazer morrer. Dessa forma, o abandono desses jovens e a individualização do
cuidado (como se este fosse responsabilidade apenas da família) consistem em formas de fazer
morrer que operam nos cotidianos dessa juventude. Butler (2014) demonstra de que modo as
condições de reconhecimento precedem o próprio reconhecimento, de modo que o
entrelaçamento das forças sociais, econômicas e culturais operam na produção das condições
para que determinadas vidas sejam enquadradas como passíveis ou não passíveis de luto. Para
a autora, as vidas humanas são marcadas por condições de precariedade que se distribuem de
forma desigual aos diferentes recortes, podendo ser “apreendida e pressuposta por certas
normas de reconhecimento” (p. 30). Ou seja, a depender do enquadramento que determinada
vida receba, obterá diferentes condições de existência e, como essa distribuição se dá de modo
desigual, determinadas vidas estão expostas ao que ela denomina de precarização maximizada,
sobre os quais atuam mais fortemente dadas vulnerabilidades. Nas palavras da autora:

os sujeitos são constituídos mediante normas que, quando repetidas, produzem e


deslocam os termos por meio dos quais os sujeitos são reconhecidos. Essas condições
normativas para a produção do sujeito produzem uma ontologia historicamente
contingente de modo que nossa própria capacidade de discernir e nomear o “ser” do
sujeito depende de normas que facilitem o seu reconhecimento (BUTLER, 2014, p.
17)
57

Em meio a essas discussões, Butler afirma que a determinadas vidas são limitadas
ou negadas as possibilidades de acesso a condições sociais de viver dignamente. Podemos
pensar de que forma isso opera produzindo a matabilidade desses corpos, a partir de Mbembe,
que pensando os modos pelos quais se dão a gerência das mortes no cenário necropolítico,
afirma que ocorre uma articulação de diferentes técnicas de neutralização, cuja finalidade é
assegurar que os jovens vistos como ameaças não ultrapassem os supracitados limites impostos
geograficamente e simbolicamente, sendo preciso que se fortaleça a lógica securitária:

Os movimentos de ódio, formações que investem na economia da hostilidade, da


inimizade e nas mais variadas lutas contra o inimigo, contribuíram, em conjunto, para
um significativo aumento de formas e de graus de aceitação da violência que se pode
(ou deve) infligir aos fracos, aos inimigos e aos intrusos (todos aqueles e aquelas que
não são considerados nossos) (...) Contribuíram também para que surgisse e se
consolidasse o que passamos a chamar de estado securitário e de vigilância.
(MBEMBE, 2017, p. 89).

Essas técnicas de neutralização do inimigo consistem numa guerra de


infraestruturas, na fragilização de elementos básicos à manutenção da vida, como alimentos,
água, comunicação, vias de acesso, eletricidade. Nas periferias, essa neutralização se dá pela
negação de condições básicas à dignidade da vida humana, faltam empregos, escolas, creches,
alimentos, água, moradias. Esse conjunto de precariedades aponta para a ingerência de
determinadas vidas tidas como desimportantes, são vidas que sempre estão “de alguma forma,
nas mãos do outro” (BUTLER, 2014, p. 31). Consiste, pois, na negativa das condições sociais
e econômicas mínimas para que se estabeleça como vida. Portanto, a fragilidade das políticas
públicas e condições de vida para as populações que habitam as margens urbanas em Fortaleza
caracterizam-se como uma atualização dessas técnicas de neutralização.
Além disso, no que concerne à lógica securitária, Felipa aponta para a truculência
policial, que tem sua atuação pautada na estigmatização das juventudes periféricas como
sujeitos perigosos. Vale-se ressaltar que o filho de Felipa foi assassinado por policiais enquanto
estava reunido com amigos na calçada da casa de um deles. Em relação à polícia ela afirma:

Eles são funcionários públicos, eles são pagos com nosso dinheiro, para que eles
possam trazer a segurança, trazer é… o controle, certo? Se existe alguma briga, eles
vim apartar, eles vim apaziguar, mas não matar. Eles entram nas favela pra deixar
corpo no chão (Felipa).

A atuação policial é, portanto, marcada por processos de estigmatização, visando


conter corpos negros “favelados”, direcionando a estes olhares de suspeição (RAMOS;
MUSUMECI, 2005). A respeito desses processos de estigmatização, historicamente, tem sido
58

associado o caráter de periculosidade à pobreza, denotando que os pobres deveriam ser


disciplinados e controlados, tendo em vista que suas “más” condutas eram atribuídas a questões
hereditárias. O século XIX e XX foram marcados pelo desenvolvimento de teorias racistas e
eugênicas19, que em muito contribuíram para a associação entre pobreza e perigo. Com o
desenvolvimento do capitalismo, a pobreza passa a ser compreendida como fruto da “preguiça”
e do “ócio”, características que recaíam, consequentemente sobre os pobres, numa perspectiva
de individualização e culpabilização das pessoas pelas condições precárias em que viviam.
Dessa forma, defendia-se “a esterilização dos chamados degenerados como profilaxia para os
males sociais” (COIMBRA; NASCIMENTO, 2003, p. 7). No Brasil, o movimento higienista,
composto por alguns cientistas, compreendia a pobreza como uma epidemia, um mal a ser
evitado e controlado. Baseados em um darwinismo social, defendiam que as “más condutas”
dos pobres eram hereditárias, daí a necessidade de voltarem esforços aos controles e vigília das
crianças e jovens pobres, que possuíam em si a tendência para o mal (COIMBRA;
NASCIMENTO, 2003). Desse modo, considerando-se o contexto de escravidão e
desigualdades sociais característicos do nosso País em seu processo histórico, os jovens pobres
e negros que vivem nas margens urbanas têm sido objeto de suspeição, sendo alvos de diferentes
dispositivos de controle e disciplina (BATISTA, 2012).

Apesar dos avanços jurídicos no que concerne à regulamentação legal dos direitos
das crianças e adolescentes, que teve como marco o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA
1990), notoriamente ocorre uma dissonância entre aquilo que é garantido por lei e o que ocorre
no cotidiano de adolescentes e jovens das periferias. Tem-se uma explícita segregação entre as
juventudes pobres das periferias e os demais jovens, o que pode ser pensado como uma das
expressões do racismo de Estado, considerando-se que à juventude periférica recai a pecha de
‘envolvidos’ ou ‘periculosos’, enquanto outros grupos juvenis são compreendidos como
sujeitos de direitos. Sales (2004) denomina esse impasse de fratura ético-política e intelectual
do ECA. Vale-se ressaltar que, muitas vezes, as ações que visam a garantia da proteção integral
(algo previsto em lei) geram repúdio social, repercutindo como “privilégios” ou proteção a
“bandidos”. Essa questão se expressa nos discursos que fundamentam a redução da maioridade
penal, por exemplo. Quanto à ideia de segregação dessas juventudes, Mbembe (2017) afirma
que a explícita separação entre os grupos de semelhantes e não-semelhantes é uma constante
no projeto colonial e atua de modo contínuo na contemporaneidade, fato que se explicita nos

19
Coimbra e Nascimento (2003) apontam algumas dessas teorias que contribuíram para segregação e
estigmatização das classes pobres, dentre elas “O tratado das degenerescências” de Morel, “A teoria das
disposições inatas para a criminalidade” de Lombroso, “A origem das espécies” de Darwin.
59

modos de organização das cidades e nos estigmas que recaem sobre as periferias, acima
mencionados.
É imposto a essas juventudes aquilo que Coimbra e Nascimento (2003) denominam
de “mito da periculosidade”, uma vez que esses jovens representam um risco à sociedade,
encarnando a figura de um potencial inimigo interno. A ideia de periculosidade estaria
relacionada à uma herança genética em que a degenerescência das classes pobres e negras seria
repassada para seus descendentes. Desse modo, as crianças e jovens pobres teriam uma
predisposição ao mau comportamento, devendo, portanto, “ser considerado pela sociedade ao
nível de suas virtualidades e não a nível de seus atos” (FOUCAULT, 2006, p.85). As técnicas
de controle e disciplina dessas juventudes, então, passam a atuar não sobre ações concretas, mas
sobre aquilo que os jovens podem vir a ser ou fazer. Frequentemente, a alternativa para lidar
com os jovens pobres e negros se dá pela exacerbação de uma lógica penal-punitiva que
repercute em práticas de confinamento e extermínio das juventudes, nas quais se ancoram o
estado securitário (BARROS, ACIOLLY E DIAS, 2016). Como expressões do poder
disciplinar às quais estão submetidas as juventudes negras periféricas, temos em Fortaleza a
construção de torres de vigilância nos CUCAS à semelhança do Panóptico de Bentham, que
consistem em uma espécie de atualização dos esquemas do panoptismo. Esses jovens, ao serem
rotulados como ‘envolvidos’ ou ‘suspeitos de envolvimento’, são enquadrados como não-
cidadãos ou, na perspectiva de Mbembe, não-sujeitos. Reduzidos à condição que Arendt (2004)
denomina de opacidade social, que seria uma espécie de invisibilidade desses jovens como seres
de direitos. A violência passa a ser compreendida sob um prisma individualizante e moralizante,
recaindo numa análise simplista de culpabilização dos jovens pelos seus contextos de vida.
Fazendo uma crítica a esse estado securitário, Butler (2018) afirma que “o oposto da
precariedade não é a segurança, mas luta por uma ordem social e política na qual uma
interdependência possível de ser vivida se torne possível” (p.215). Ou seja, para a autora, uma
alternativa à exacerbação da lógica securitária, que apenas corrobora a construção do que
Mbembe denominou de inimigo ficcional, dependeria, mediante o reconhecimento da
interdependência dos corpos, inerente à condição humana, do autogoverno desses corpos
reunidos coletivamente em constante luta para que os governos garantissem uma distribuição
menos desigual das condições de precariedade.
Adelina, cujo filho esteve inserido no sistema socioeducativo, aponta de que modo
as omissões do Estado e as falhas das políticas públicas repercutem nas vidas dos jovens a ponto
de que estes não encontram outras oportunidades, voltando a atuar em atividades ilícitas:
60

Pelo que eu vivi, até certo tempo eu poderia até pensar como muitas outras pessoas,
“ah, tá preso, não tem chance. Aquele ali é lixo, tem que ficar lá”, depois que eu vivi
a situação, eu vejo que não é assim, eu acredito, que tanto esses adolescentes
(chorando), como até mesmo o maior, que esteja no presídio, que ele, se tiver
oportunidade, eles podem sim, se recuperar, se ele tiver um apoio, dos governantes,
porque as famílias já estão ali. A maioria delas não abandona. Eu acho triste, quando
eu vejo em alguns programas de policiais, né, falando, que a gente sustenta os presos,
nos presídios. Isso é mentira! É porque, se 1 preso vale 6 mil, 5 mil, pro estado, esse
dinheiro tá sendo desviado, porque, você vê, as famílias que sustentam os presos, lá
dentro. Então, eu acredito que se houvesse boa vontade dos governante, eu não falo
só em Fortaleza, a nível nacional, de tentar recuperar, de tentar resgatar, de ter
parcerias, ia ter gente que ia se recuperar, porque você imagina, um preso desse,
principalmente agora ó, agora é que a situação tá mesmo crítica, ele sai...ele já sai
discriminado. Quem é que vai dar um emprego pra ele? (..)eu acho que os governantes
deviam ter parcerias, ter aquele acompanhamento (Adelina).

As falhas das políticas públicas se dão, portanto, pela ausência demarcada tanto em
suas trajetórias como em suas possibilidades de “reinserção” após cometerem algum tipo de
infração. Ou seja, nega-se assistência a essas juventudes, aprisionando-as a rótulos e encarando-
as sob óticas de suspeição. Não bastasse isso, caso esses jovens pratiquem algum ato
considerado ilícito, a mesma lógica penal-punitiva entra em ação, o que constitui a lógica
perversa de visibilidade destinada a eles. Só são visibilizados a partir da possibilidade de
cometerem atos considerados criminosos ou quando da efetivação destes (COIMBRA, 2001;
SCISLESKI et al, 2012).

3.4 Inscrição dos jovens na dinâmica do tráfico e violências institucionais: vivência em


um fogo cruzado

Nas trajetórias juvenis, além de serem comuns as insuficiências ou ausências das


políticas públicas voltadas para garantia de direitos das juventude e os regimes perversos de
(in)visibilização, também se fazem presentes as inserções na dinâmica do tráfico e as violências
institucionais. Essas vidas se encontram em um fogo cruzado, em que de um lado têm-se os
agenciamentos que tornam a inserção precarizada em facções como uma opção sedutora e do
outro se encontram as violências institucionais somadas às negativas da sociedade em garantir
condições dignas de vidas. Duas facetas da necropolítica. Essas diferentes nuances são
atravessadas por uma lógica punitivista que, ancorada na desumanização de seus corpos e
construção ficcional destes como inimigos, legitima suas mortes. Por merecerem
aprofundamentos, essas questões serão discutidas em dois subtópicos distintos: Inscrições dos
jovens na dinâmica do tráfico e Violências institucionais.
61

3.4.1 “Mãe, (...) se eu sair [do tráfico] eu vou morrer”: Inscrições dos jovens na
dinâmica do tráfico e ficcionalização do inimigo

6 das 8 mães relataram “envolvimento” do filho nas dinâmicas do tráfico. Em geral,


de acordo com as narrativas das mães, os jovens passaram a trabalhar em facções no início da
adolescência, em idades próximas aos 14/15 anos. Nas conversas com essas mulheres, algumas
apresentaram maior facilidade para falar sobre os modos como se deram a inserção dos filhos
nessa dinâmica, outras, como Mariane, demonstraram certo desconforto ao falar sobre esse
assunto. Em diversos momentos da nossa conversa, Maria, assim como Anastácia e Esperança,
interrogou-se sobre os motivos que levaram seu filho a se inserir no tráfico:

[nome do filho] você não precisa disso. E ele disse: “mãe, eu não posso mais sair da
vida que eu tenho, entendeu? Porque quando a gente tava preso a gente fez um
juramento, lá dentro da cadeia, se eu sair eu vou morrer” (Maria).

A inserção desses jovens nas dinâmicas do tráfico é uma pista do fortalecimento


das facções em seus territórios. A resposta dada pelo filho à Maria denúncia de que modo o
fortalecimento do crime organizado se relaciona com o encarceramento em massa. Nunes
(2013) aponta para a relação entre a política de encarceramento e a faccionalização do crime,
algo que se reflete nas periferias, vulnerabilizando ainda mais a vida de jovens já abandonados
socialmente. No caso do Ceará, houve peculiaridades nesse processo, haja vista que,
diferentemente da formação de grupos criminosos como o Primeiro Comando da Capital (PCC),
criado em presídios paulistas, e o Comando Vermelho (CV), criado em presídios cariocas,
algumas facções atuantes nos territórios cearenses formaram-se nas periferias e, posteriormente,
ocuparam os presídios (PAIVA, 2019). Esse fato, obviamente, não contradiz a argumentação
apontada por Nunes (2013) de que ocorre uma retroalimentação entre as dinâmicas prisionais e
o crime organizado nas periferias. Faz-se importante ressaltar que, no Ceará, o crime organizado
é dominado por pelo menos quatro facções (uma delas criada no Ceará) e as primeiras ações
organizadas foram iniciadas no ano de 2005, quando se deu o estreitamento das relações entre
criminosos locais e os integrantes de facções nacionais, até então, o crime era caracterizado por
disputas violentas entre gangues locais (PAIVA, 2019). O grupo local foi criado em 2015,
atuando inicialmente junto a facções nacionais, mas em 2016 houve o rompimento desse pacto.
Essas questões mostram que a disputa territorial e a atuação de coletivos criminais não são
62

novidade, mas esses processos vêm se transformando dos anos 90 aos dias atuais. Desta feita,
os envolvimentos dos filhos de 6 das participantes não deve ser explicado por vias moralizantes
ou psicologizantes, mas sim por uma análise psicossocial, o que foge do escopo deste estudo.
Entender os aspectos que estão envolvidos na inserção desses jovens nessas dinâmicas serve
para evitar medidas paliativas. As facções são fenômenos de massa no Brasil, com presença
muito forte e capilarizada no controle dos modos de viver nas periferias, e fortaleceram sua
organização na esteira de investimentos na política de guerra às drogas e no encarceramento em
massa de populações negras e periféricas taxadas de “traficantes”, embora a maioria dessas
juventudes periféricas, aprisionadas por tráfico, seja formada pelo que Zaccone (2007) chama
de “acionistas do nada”. Ao serem presos, para que se mantenham vivos, os jovens, mesmo que
ainda não trabalhem para facções, fazem juramentos que os mantêm ligados a estas mesmo após
o cumprimento de suas penas.

Aí foi que eu não sabia que ele tava usando, né. Aí foi que a mãe dela [mãe da nora]
me chamou e disse que ele tava usando as coisa, né, que ela, pra não dizer o que é ela
disse, essas coisa né, as coisa, aí eu, meu Deus, meu filho, por quê? Aí fomo em cima
dele, fomo em cima dele, “mãe, eu tento sair mais não consigo”, “você quer ajuda?”,
“não mãe” (Anastácia).

Anastácia fala sobre os modos de como insistiu com o seu filho para que ele estudasse,
o que nos dá pistas para pensarmos os modos como se dava a relação entre eles. Foi comum às
mães reforçar junto aos filhos algumas ideias relativas àquilo que, de certo modo, apresenta-se
como o socialmente requerido:

E então, a gente quer, o que a gente quer pros filhos da gente nem sempre é o mesmo
que eles querem, né, e ela me deu trabalho pra estudar, né? E ele também, meu filho
também me deu trabalho, mas eu era firme e forte com eles no colégio, botava pra ir,
seguia, ia ver se tavam no colégio, desse jeito, só vivia no colégio, já tava pra se mudar
pro colégio, mas eu ia deixar, ia buscar no colégio (...) Aí quando ele começou a se
envolver começou a ficar ignorante, estúpido, me desafiava (Anastácia).

O envolvimento desses jovens no tráfico é um elemento importante para


entendermos as dinâmicas da violência produtoras dos homicídios. Paiva (2019) aponta ainda
que, frente a este contexto, em que as facções operam a partir da articulação territorial que
envolve diversas pessoas em suas malhas, faz-se necessário que se esteja atento às suas formas
de atuação e captação de jovens para compreender os elementos que os fortalecem. Em geral,
esses grupos se utilizam de elementos afetivos, como a construção de elo entre seus membros,
em contrapartida, o que tem feito o Estado por via das políticas públicas junto a essas
63

juventudes? Analisar a inserção dos jovens nas dinâmicas do tráfico apenas por questões
financeiras parece ser uma explicação insuficiente para uma questão tão complexa. Damasceno
(2011), em estudo etnográfico nas periferias de Fortaleza, discute como se dá a construção do
jovem assaltante a partir do exercício de atos criminosos e violentos como formas de obtenção
de reconhecimento e respeito, pela imposição do medo e violência, apontando a busca por ser
“considerado” como um dos aspectos psicossociais importantes para a análise dessas inscrições
juvenis em coletivos criminais.

Barros et al (2018) e Fraga (2004) apontam para os agenciamentos que se articulam


para a inserção dos jovens nas dinâmicas do tráfico, além de que, em geral os jovens que vivem
nas periferias narram o medo que sentem em serem confundidos com jovens “envolvidos”, haja
vista que isso significa estar com sua vida em risco (BARROS et al., 2018). Anastácia fala
sobre como se deu a prisão do seu filho, que estava atuando no mercado de drogas ilícitas. Esses
jovens atuam como acionistas do nada (ZACONNE, 2007) à medida que ocupam a parte mais
frágil do varejo de drogas ilícitas, tornando-se corpos facilmente matáveis.

Era droga, acharam droga no quarto dele, muita droga, muita, muita, muita droga, tava
vendendo droga. Aí quando foi, parece que ele tava dormindo, ele e a [nome da nora],
almoçaram e foram dormir, e alguém denunciou, aí a polícia entrou na hora que eles
tavam dormindo, não deu pra eles fugir, diz que ele ainda tentou jogar a droga por
cima da casa, assim, pra rebolar, mas parece que o homi viu, né, as polícia viu
(Anastácia).

Impera nas periferias brasileiras aquilo que Mbembe (2017), dialogando com
Agamben (2007), caracteriza como estado de exceção permanente, haja vista o aumento
exponencial de mortes de jovens ocorrer de forma arbitrária e, na maioria dos casos, sem
investigação e responsabilização dos autores da violência, contando com discursos que visam
à naturalização e legitimação das mortes ao ser atribuído aos jovens assassinados o rótulo de
“envolvidos” (BARROS; BENÍCIO, 2017; BARROS et al, 2017). Conforme aponta Barros et.
al (2018), ao tratar das implicações das transformações da dinâmica psicossocial da violência
urbana em Fortaleza no cotidiano de juventudes periféricas, esses jovens se encontram no
cruzamento entre uma política de segurança pública militarizada e a ascensão de organizações
criminosas que se fortalecem frente à ineficiência das políticas públicas. Muitas das questões
que permeiam os cotidianos dos jovens fora da prisão também se reproduzem no sistema
prisional, como exemplo temos as perseguições entre os grupos rivais. Isso mostra como a
volúpia punitiva e a gestão penal da insegurança social, representadas pelo investimento em
políticas de aprisionamento, retroalimentam dinâmicas da violência e constituem dispositivos
64

necropolíticos correlatos à problemática da intensificação dos homicídios juvenis. Opera-se,


assim, a gestão de uma política de morte por meio de processos simbólicos que transformam as
vidas dessas juventudes em descartáveis, por um lado, sob a lógica das organizações
criminosas, ao posicionarem esses jovens nas partes mais frágeis do mercado varejista de
drogas, podendo ser facilmente substituídos, e, por outro, indesejáveis aos olhos do Estado, que
os vê como inimigos internos e objetos de práticas institucionais militarizadas com foco
eminentemente repressivo (BARROS et al, 2018).
A experiência vivida por essas mães é de intensa preocupação com o risco de morte
dos filhos e seus esforços se dão no intuito de tentar evitar esse desfecho. Anastácia tomou
conhecimento dos modos de funcionamento dessa dinâmica, em que após cumprirem medida,
os jovens se encontram marcados para morrer, após a morte de um dos melhores amigos do seu
filho, que, ao sair do centro socioeducativo, foi assassinado no dia seguinte, o que a fez
anteceder-se e programar a mudança do filho para outro estado:

No dia que ele foi liberado, eu já tinha programado tudo, organizado tudo, na hora que
ele foi liberado do juizado da adolescência, ele já foi imediatamente, entrou dendo
ônibus e foi embora. Porque como a gente via a situação dos adolescentes, morrendo,
mesmo aquele adolescente que quando ele sai, ele não quer mais entrar naquele meio,
ou ele é coagido por outros, ou às vezes, a gente tá vendo muito isso, de certa forma,
eles são obrigados, porque, quando você entra, pelo que eu percebi, pra você sair é
mais difícil (...) Pelo ato que ele (seu filho) cometeu, ele deveria responder à justiça,
sim, mas, quando chega lá dentro desses centros, você vê que aquele jovem, que ele
não tem pra onde correr. Os órgãos competentes do governo não fazem a parte dele,
não fazem, e aí, um jovem daquele, por mais que ele queira, por mais que ele tente, é
complicado (Adelina).

Determinados jovens, negros, pobres e tidos como “envolvidos” se encontram no


fogo cruzado: se, por um lado, não são devidamente assistidos por políticas públicas, sendo
eleitos como inimigos pelas políticas de segurança sob o respaldo de um imaginário social
autoritário, por outro, na linha de frente do mercado varejista de drogas ilícitas, as facções os
têm como mão de obra descartável (SCISLESKI; HÜNING, 2016). Dessa forma, estar no fogo
cruzado dessa política de morte significa ter a morte os aguardando como desfecho
aparentemente inescapável (SÁ et al, 2015; ZACONNE, 2007; FEFFERMAN, 2009). A morte
violenta parece estar sempre à espreita no caso de jovens como os filhos das nossas
interlocutoras. Podemos pensar esse “não ter pra onde correr” a partir dos dispositivos
necropolíticos, já que são constituídos como um dos modos de operação da morte, ao deixar os
jovens “encurralados”, situação que, de modo semelhante, também recai sobre as mães. Mantê-
65

los vivos passa a ser central nas suas existências, criando modos de enganar a morte, que se
coloca como destino quase que inescapável aos não semelhantes.

Alguns dos jovens, como no caso do filho de Tereza, iniciaram aproximações com
as facções por serem usuários de drogas, como uma forma de custearem seu uso. No caso de
Tereza, segundo seu relato, o filho não chegou a trabalhar para o tráfico:

Aí eu pedia muito a ele que saísse né, dessas companhias, não se ajuntasse com essas
pessoas que roubava, né? Aí foi mudando mais, depois dos 17 anos foi mudando, né,
pra melhor. E aí ficou usando só as coisa réa dele, as droga dele, né. Essas drogas tem
destruído tanta gente, viu. Não se acaba não, eu penso tanto, “meu Deus, como será
que vai acabar isso aqui”, alguém dizia assim, “hoje é o último dia dessas coisa ruim,
desarmar essas armas assim, da mão dessas pessoas que tem aqui, que me fizeram
medo”, mataram essa pobi dessa aleijadinha ali, por nada (...)arrastaram ela daqui da
casa dela até a esquina, tacaram fogo nos ouviro. Foi uma agoniação tão grande nesse
dia, eu assisti, também tava ali sentada, eu me senti tão agoniada, porque eu cheguei
a falar com os bandidos, tu acredita ? (...) a gente vê uma cena dessa assim na frente
da gente, a gente fica assim ,sei lá, paralisada, angustiada né, é uma vida. Acho que
eu não sei como é que a filha dela ficou não, porque,com tudo assim vendo, né, tudo
assistindo. (...) Acho isso triste, né mulher, de você acabar com essa humanidade
desse jeito. Tirando esses governo, que nós tamo votando, não tá mais, né...mais é um
negócio que a metade dos policiais são corruptos, muitos deles são corruptos, não vou
dizer que é todos (Tereza).

O perigo iminente personificado na figura dessas juventudes, associado ao apelo


midiático, que contribui para a monstrualização destas, faz crescer uma demanda coletiva por
castigo e punição, processo denominado por Batista (2012) de “adesão subjetiva à barbárie”.
Faz-se importante frisar que a necropolítica também opera de forma difusa, apresentando
múltiplos campos de incidência, como o da produção de subjetividades, atuando, portanto,
numa produção desejante que se ancora no aniquilamento do outro. Nesse sentido, as noções
de Mbembe sobre os maus objetos e o desejo de aniquilamento nos ajudam a lançar luz sobre
essas questões, pensando de que modo opera essa coletivização da barbárie. As ações de
extrema violência nas colônias, à semelhança das que ocorrem nas periferias, adquiriam tom de
legitimidade por se ancorarem na angústia de aniquilação vivida pelo colonizador, medo de
estar cercado pelos maus objetos (escravos e colonos) que seriam uma ameaça à sua
sobrevivência, daí o extermínio destes se tornar a única alternativa para manter-se vivo:

Matar é a maneira mais econômica de sobreviver (...) Na lógica de sobrevivência, cada


pessoa é inimiga de outra qualquer. Indo mais longe, na lógica de sobrevivência o
horror que alguém sente perante a morte transforma-se em satisfação quando é outra
pessoa a ser morta. É a morte do outro, da sua presença física enquanto cadáver que
faz o sobrevivente sentir-se único. A cada inimigo morto, maior é a confiança do
sobrevivente. (MBEMBE, 2017, p. 146)
66

Partindo dessa lógica de sobrevivência, em que matar se torna o único meio de


sobreviver, a angústia de aniquilação do outro passa a ser fonte de satisfação. A sobrevivência
passa a ser um modo de poder, pois, à medida que se mata, evita-se a sua própria morte. O
medo, aqui, atua como um importante fator que leva ao desejo de aniquilamento; fomenta-se
um estado de medo, já que esses jovens, os maus objetos, são traduzidos como ameaças.
Acerca dessas questões, De Castro e Perrone-Moisés (2011) faz uma analogia entre
os perigos de sujeição vividos pelo sujeito contemporâneo frente às ameaças e aqueles
encontrados pelos indígenas nos encontros sobrenaturais, partindo do perspectivismo
ameríndio. Para ele, a sociedade contemporânea se dispõe como uma civilização pautada pelo
medo, “organizada em torno do risco que ela própria cria: uma sociedade com medo de si
mesma, de sua capacidade de aniquilar suas condições de existência. Parece que a Razão, ao se
disseminar, aumentou brutalmente as razões para se ter medo. Se não é que se tornou ela mesma
aquilo que se deve temer” (DE CASTRO E PERRONE-MOISÉS, 2011, p. 888). O referido
autor nos convoca a pensar, portanto, a partir de uma perspectiva ameríndia, como se constrói
o medo do outro, do diferente de mim; para ele, “Quem quer que responda a um “tu” dito por
um não humano aceita a condição de “segunda pessoa” do outro, e quando por sua vez assumir
a posição de “eu”, já o fará como não humano. A forma canônica de tais encontros consiste,
portanto, em descobrir repentinamente que o outro é “humano”, isto é, que é o outro o humano,
o que automaticamente desumaniza e aliena o interlocutor” (p. 903). Nesse ponto, podemos
refletir sobre como se consiste a captura do outro, do estranho a mim, como sujeito a ser
aniquilado. Algo semelhante ocorre com aqueles que defendem os direitos humanos em nosso
país, uma vez que, ao tentarem restituir a humanidade daquele que é objetificado e reduzido ao
lugar da insignificância, tornam-se também alvo de ataques e desrespeito. A “caça às bruxas”
realizada em nosso país àqueles que insistem em defender e resgatar essas humanidades é um
emblema desses processos. É preciso que não se duvide da narrativa que impõe como verdade
o outro como uma ameaça, tirá-lo desse lugar desorganizaria as engrenagens de morte que vêm
operando e se atualizando ao longo dos séculos de extermínios. Para Adorno (1996), o medo se
dá à medida o indivíduo passa a conceber o outro como ameaçador, passando a ter medo do
contato com o desconhecido, protegendo-se dele. O modo de enfrentamento desse medo,
segundo o referido autor, dá-se pela aproximação do indivíduo com os seus semelhantes na
massa. Freire (2015), em diálogo com Veena Das e utilizando como analisador a realidade
vivida em condomínios fechados no Rio de Janeiro, pensa de que modo se estabelecem a
sobreposição de formas de vida mediante o pagamento de taxas condominiais pelas quais se
estabelecem níveis gradativos de cidadania e fortalecimento de uma fronteira entre os
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condomínios e as favelas que os rodeiam. Para a autora, o investimento na construção desses


fortes de segurança produz a auto-segregação ancorada na imposição do medo. Sustenta-se,
portanto, numa lógica de que o perigo mora ao lado e é preciso defender-se.
Essas considerações nos auxiliam a pensar de que modo as juventudes negras e
periféricas vêm sendo construídas como os objetos ameaçadores e como o medo se articula na
produção da adesão subjetiva à barbárie. Opera-se, então, uma política de subjetivação a partir
da qual a necropolítica se faz possível; numa espécie de ciclo que se retroalimenta, a
necropolítica fomenta o desejo de morte nos sujeitos ao mesmo tempo em que se constitui a
partir desse desejo. Nesta engrenagem, a morte se dá seja pela ação direta, em sua forma de
assassinato pelo Estado ou facções criminosas, seja pela ação indireta, via negação de direitos
e não acesso às políticas sociais.
Cabe ressaltarmos a lógica de ficcionalização do jovem como inimigo. Para o
pensador camaronês, a legitimação do expurgo em massa se dá a partir da imbricação de três
elementos: o desejo de inimigo, o desejo de apartheid e a fantasia de extermínio. O inimigo é
ficcional, ou seja, a figura do inimigo inexiste, mas é produzida mediante a necessidade de um
objeto que justifique o ódio ao Outro, ao diferente de mim. Assim, esse Outro constitui-se como
receptáculo de fantasias de extermínio, pois que é o portador de todos os malefícios e, portanto,
uma ameaça. Com isso, constroem-se muros de separação, os quais servem “supostamente para
resolver o excesso de presença, a qual se diz ser a causadora de insustentáveis sofrimentos”
(MBEMBE, 2017, p. 73). Independentemente de sua natureza (simbólicos ou geográficos), é
por meio desses muros que se dá a segregação entre os semelhantes e os não-semelhantes.
Mbembe demonstra como esses três elementos foram se atualizando no percurso histórico da
humanidade, desde as colônias até a contemporaneidade, visando sempre a destruição desses
maus objetos e a sua rápida substituição por outro também eliminável.
Vale-se ressaltar que esses maus objetos também têm uma constituição psíquica, à
medida em que as marcas coloniais se inscrevem em suas peles, em seus modos, em suas
subjetividades, por fim, na construção desses sujeitos, produzindo modos de subjetivação a
partir dos processos de objetificação e redução dessas populações à condição de ‘nada’. O
inimigo é, portanto, ficcional e essa ficção é fundamental para fazer funcionar as maquinarias
de morte. A ficcionalização do inimigo, somada ao estado de exceção supracitado, formam a
base normativa do poder de matar, segundo Mbembe, tendo o racismo como motor
necropolítico. Recai sobre eles a pecha de envolvidos e suas vidas passam a não ser passíveis
de comoção social à medida que encarnam o perigo (COIMBRA, 2001).
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(...) Então, isso me dói muito, porque as pessoas, a sociedade acha que depois que tá
preso, num vale mais nada e não é assim! (...) Então você diz assim, “ah, tem que
morrer”, e eu acho que muitos, não é desejando, mas eu acho que muitos que pensam
assim, só vão mudar de ideia quando passar pela situação (Adelina).

A fala das mães é uma pista importante para entender que a produção de corpos
abjetos, desumanizados, é uma das formas pela qual se opera a necropolítica e a massificação
dos homicídios juvenis. Essas mulheres tentam contrapor as narrativas de naturalização dessas
mortes, afirmando que seus filhos não eram “envolvidos” ou que eram “envolvidos”, mas eram
seres humanos. Seus discursos, portanto, recobram a humanidade de seus filhos:

Passou por outros também, lá no bairro, aí assim ,se você chegar no meu bairro e
perguntar o comportamento dos meus filhos, você não vai encontrar ninguém que
diga, “olha, era uns menino que fazia...baderneiro, de confusão, de briga”, um vizinho
desconhecido, que chegasse e desse um conselho, eles ouviam, sabe? Eles nunca
foram meninos de dar trabalho em casa, de confiança, de deu deixar dinheiro, eu
deixar minhas coisa e não pegarem, eles sempre foram assim, aí as vezes eu ficava
“onde foi que o [nome do filho] se perdeu?”, porque ele tem noção disso (...) Quando
ele passou esses 10 meses apreendido, ele se envolveu numa rebelião, dentro do
centro, justamente pra defender um educador. Ouve a rebelião no momento do lazer
deles e ele sabia que ia ter a rebelião, ele disse, “mãe, eu sabia que ia ter a rebelião
mesmo”, e ele disse que tava sentado no campo que tinha lá dentro, aí ele disse que
quando viu, foi os menino agredindo o educador, tentando furar o educador com
aquelas arma artesanal, então, quando ele viu, ele correu e se abraçou com o educador,
(...) E quando acontece alguma coisa, as vezes só em você tá perto, você pode… Pode
responder por isso, e outra, a tua palavra lá dentro não vale nada (Adelina).

Para Butler (2014) existe um conjunto de condições e de forças que operam no


enquadramento de certas vidas como matáveis. A morte que ronda as existências juvenis se
estabelece a partir da suspensão da humanidade de seus corpos. Desse modo, ocorre uma
articulação entre os estatutos políticos que regem determinadas vidas, enquadrando-as como
não passíveis de luto, e os modos pelos quais funcionam as engrenagens que produzem suas
mortes em série. Nesse ponto, as contribuições de Butler e Mbembe se articulam, dando-nos
pistas para refletirmos criticamente sobre o panorama de intensificação das mortes mas também
para pensarmos as possíveis estratégias de enfrentamento. Se partimos da ideia de que a
quantidade exorbitante de mortes juvenis caracteriza um projeto político de extermínio em
curso, conforme já explicitamos acima, ancorados em Mbembe, cabe-nos, a partir dos diálogos
com Butler, que apresenta as formas de enquadramento dessas vidas, angariarmos formas de
produzir novos enquadramentos, de modo a tornar essas vidas vivíveis, questões que serão
aprofundadas no último capítulo desta dissertação. A desumanização opera de modo a
possibilitar que determinadas vidas, ao serem compreendidas como inumanas, não sejam tidas
como sujeitos de direitos, o que leva à violação inclusive do seu direito à vida, legitimando seus
69

extermínios. Isso reitera a ideia acima mencionada de que esses extermínios consistem em
projetos políticos, não sendo, portanto, resultados de políticas de segurança mal elaboradas.
Precariedade e necropolitica se dão, assim, de forma articulada aos processos de desumanização
de determinadas vidas. As condições precárias desumanizam e essa desumanização é necessária
para que se sustente a lógica de um inimigo ficcional que faz operar as engrenagens
necropolíticas.

Frente a esse cenário necropolítico e legitimação das mortes de determinados


grupos juvenis, algumas mães, como Maria, afirmam não entender de que forma o assassinato
se torna algo legítimo, retirando a possibilidade de que essas juventudes tenham seus direitos
preservados:

Eu não sei o porquê que as pessoas matam os outro, eu não entendo isso aí. Eu acho,
assim, que quando a pessoa errou, tem que ficar lá pra pagar o que tava fazendo, o que
fez, ninguém tem direito de tá matando ninguém (Maria).

As mães produzem outros discursos sobre seus filhos. Narram a si mesmas,


destacando os seus não envolvimentos com o que denominam “coisa errada” e suas repreensões
ao verem seus filhos “envolvidos”. Destacam nas histórias de seus filhos as suas humanidades,
constroem, assim, outras narrativas possíveis para esses jovens. Além disso, em suas narrativas,
apresentam as diferentes formas pelas quais tentaram manter seus filhos vivos; por vezes, essas
tentativas consistiam em angariar outras possibilidades de trabalho ou de estudo, conforme foi
dito por Anastácia:

E assim que ele se soltou, a [nora] botou ele num curso de cabeleireiro. Já tinha
inscrito ele a uns 3 meses atrás, aí porque custa vaga, né, e era pago, nois pagamo,
nois duas, eu e ela, não tinha a ajuda do meu marido mais tinha a ajuda dela. Aí
pagamo o curso dele, o curso, aí quando foi o dia, o último dia, (...) quando chegamo
lá, a professora, “oi, a senhora é a mãe dele? Ave Maria, ele é muito carinhoso,
abraçava as professora e me beijava. A senhora tá de parabéns, que a senhora tem um
filho muito carinhoso, ele é muito carinhoso mesmo, a senhora tá de parabéns, ele é
um dos melhores (Anastácia).

Está em jogo, dessa forma, o estatuto ontológico desses corpos. As narrativas das
mães são uma reação à condição social de corpos matáveis de seus filhos. Mbembe (2017) e
Butler (2016) ajudam a entender este aspecto crucial da maquinaria necropolítica: a produção
de corpos matáveis, indignos de vida. As mães fazem um contraponto, tentando responder a
uma narrativa que difama, estigmatiza, desqualifica seus filhos como indignos de vida
70

(ZACCONE, 2007). Como no caso das mães que compunham movimentos políticos, que
constroem suas lutas em torno da humanização desses corpos:

É isso que acontece no nosso Brasil e é nisso aí que eu estou focando, é nisso aí que
eu estou lutando, que a favela, os jovens da favela, são jovens trabalhadores, são
jovens que estudam, que tem seus sonhos igual o filho do rico tem, que ele tem seus
planos, que tem seus projeto de vida, só que a polícia, para dar resposta aos poderosos,
aos rico, aos dono de fábrica de bala, da bancada da bala, eles matam os jovens pobres,
eles não consideram que os jovens pobres tenham sonhos (Felipa).

A criação do inimigo, encarnado na figura do jovem negro da periferia, fomenta um


constante estado de alerta na população, em que se vive cotidianamente um estado de ameaça.
É nesse sentido que o medo passa a atuar como um operador político e psicossocial, o medo
constante desse inimigo que fora inventado. Dessa forma, experimenta-se o ‘viver acuado’
(BARREIRA, 2008), um contínuo e progressivo estado de insegurança social. É importante
destacar que a segurança funciona como um elemento importante da governamentalidade
neoliberal, uma vez que é por meio dela (em sua articulação com o medo fomentado) que se
governam as condutas dos sujeitos, legitimam-se leis e ordens e repressões. O Estado securitário
ao mesmo tempo em que fomenta a insegurança se sustenta pela mesma, constituindo um ciclo
que se retroalimenta. O medo e a insegurança sociais, articulados com a criação do inimigo
projetado na figura desses jovens, leva a demandas pela exacerbação de medidas violentas e
punitivas voltadas a esse segmento da população, produzindo um estado de guerra permanente.
Percebe-se, portanto, que a cultura da violência e do medo se articulam e são faces da
necropolítica, uma vez que atuam na legitimação da radicalização do matar.
Sales (2004) traz a figura do jovem como uma metáfora da violência ao elucidar
as estratégias de emudecimento e a invisibilidade ao qual está submetida. O Estado e suas
classes dominantes se esforçam para manter essas juventudes sob um regime de invisibilidade,
de modo a “ impedir o seu aparecimento ou negar a sua palavra e existência” (SALES, 2004, p.
199). Com base na supracitada ideia de que a necropolítica mobiliza certa política de
subjetivação, sugere-se aqui um deslocamento da reflexão proposta por Sales (2004) a fim de
pensarmos, a figura do jovem pobre e negro como um emblema da necropolítica, tendo em
vista as diversas ações e políticas de extermínio às quais está submetida, assim como o apartheid
social que marca suas trajetórias de vida através de diferentes expressões da violência social
como desigualdades, violações de direitos, exclusões e processos de estigmatização. Segundo
Coimbra e Nascimento (2003):
71

Se no capitalismo liberal os jovens pobres foram recolhidos em espaços fechados para


serem disciplinados e normatizados na expectativa de que fossem transformados em
cidadãos honestos, trabalhadores exemplares e bons pais de família, hoje no
neoliberalismo eles não são mais necessários ao mercado, tornaram-se supérfluos,
suas vidas de nada valem- daí justifica-se o extermínio (COIMBRA; NASCIMENTO,
2003, p. 11).

Conforme demonstrado por Barros e Benício (2017) e Barros et al. (2018), em


estudos sobre a juventude periférica de Fortaleza, os jovens que vivem nas margens urbanas se
atualizam como virtuais homo saccer, já que às mortes destes recaem, em geral, duas
possibilidades: ou são vistas pelo viés da espetacularização ou são relegadas à obscuridade.
Representam, portanto, a “vida nua”, 'despida' de qualquer direito ou estatuto político. Pensar a
transversalidade da violência e dos homicídios dos jovens a partir da vida nua se torna
importante ao se ter em vista as violações e negações de direitos básicos como saúde e educação
que os são tantas vezes negados em suas trajetórias de vida, demarcando a ineficiência do
Estado e falhas das políticas públicas voltadas para as juventudes. Essas vidas, facilmente
extermináveis, são “vidas que são como se não tivessem existido, vidas que só sobrevivem do
choque com um poder que não quis senão aniquilá-las, ou pelo menos apagá-las”
(FOUCAULT, 2003, p. 210).
Fazendo uma leitura do homicídio juvenil nas periferias brasileiras a partir das
noções de necropolítica, pode-se pensar que a essa juventude recaem os tratamentos, derivados
do estado de exceção, antes direcionados aos “selvagens” e escravos. As mortes de jovens
negros e pobres consistem, portanto, em uma limpeza racial que se dá através da violência
armada, a qual, para se legitimar, opera processos simbólicos de destituição do estatuto de
humanidade desses jovens, tornando-os matáveis, situação que se agrava pela inexistência ou
escassez de cidadania que caracteriza o cotidiano das periferias habitadas pelas juventudes
vítimas de homicídio (SALES, 2004). Nascimento (2017), problematizando o mito da
democracia racial no Brasil, demonstra como, após o abolicionismo da escravidão, não houve
políticas voltadas para inserção dos negros no mercado de trabalho, escolas e universidades,
sendo relegados à posição de subalternidade na sociedade. Batista (2003) afirma de que modo
os negros no Brasil foram ocupando as periferias, em geral, com péssimas condições de vida e
desigualdade social, e como, nesse processo histórico, foi recaindo sobre essa população o mito
de classes perigosas e inserção de parte dela em mercados varejistas de drogas. Essas questões
se atualizam na contemporaneidade ao analisarmos que esses são os jovens (negros, moradores
da periferia, com baixa escolaridade) que mais morrem, fato que demonstra o quanto essas
72

questões históricas se relacionam ao panorama atual de exclusão social, racismo, homicídio


juvenil e violência letal.
Neste cenário, a política de guerra às drogas desponta com um dos principais
dispositivos necropolíticos que opera nas margens urbanas e se relaciona com a militarização
da política de segurança pública, cuja base se faz numa lógica de guerra e combate a um
inimigo. No discurso de guerra às drogas, o tráfico e o traficante surgem como o mal a ser
extirpado da sociedade, legitimando a exacerbação da militarização do Estado, que só se
apresenta nos territórios das periferias em seu braço armado de vigília e punição. Frente à
eleição desse inimigo comum, torna-se necessário que se lute contra ele e que ele seja vencido.
Com isso, os assassinatos e violações de direitos em massa nas periferias passam a ser
necessários e justificáveis, já que são feitos em nome da segurança e defesa dos ‘cidadãos’. A
guerra às drogas, então, se efetiva como uma política de derramamento de sangue (BARROS,
2017), sendo, portanto,

uma das responsáveis pela política de extermínio crônica e institucionalizada de


“sujeitos matáveis”. Reiterando sua marca colonial, a “guerra às drogas” tem sido
efetivamente um dispositivo moral, religioso, político e racial voltado ao massacre de
jovens negros e pobres das periferias urbanas, transformados em “inimigos internos”.
(BARROS et al., 2017, p. 1057)

Batista (2003), em estudo sobre criminalização da juventude pobre por uso de


drogas, demonstra que o processo de criminalização e suspeição dessa juventude se embasa no
estigma que associa o jovem pobre e negro que vive nas periferias ao estereótipo do ‘bandido’
ou traficante. Nesse estudo, a referida autora mostra que o inimigo ficcional passou a ser a
figura do traficante da favela no contexto de guerra às drogas. Ribeiro Junior (2016) discute a
política de criminalização e combate às drogas como um dos dispositivos de Biopolítica que
atua sobre as juventudes, já que esta “é utilizada como subterfúgio para viabilizar práticas
racistas e classistas” (p. 595) de segregação e controle das juventudes negras e pobres.
Benevides e Prestes (2014) analisam o modo como a política de drogas atua no governo da vida,
ressaltando que os jovens que usam drogas são taxados como “vulneráveis, desqualificados
politicamente e juridicamente e potencialmente perigosos” (p. 283). Faz-se importante frisar o
recorte de classe social e raça sobre o qual se embasa essas políticas de governo da vida, posto
que incidem de modos distintos nos diferentes grupos: aos jovens da alta classe social, brancos,
recai o estereótipo de ‘adicto’ enquadrado em uma questão de saúde; aos jovens pobres e negros
recaem os rótulos de traficante, envolvido ou suspeito, mesmo que estes nem façam uso de
drogas, ou façam uso esporádico. Trata-se aqui de uma gestão dos ilegalismos (PERALVA;
73

TELLES, 2015) em que o Estado também tem papel ativo na “transitividade permanente entre
o legal e ilegal” (p. 18), de modo que determinada prática tonar-se-á legal ou ilegal a depender
de dado grupo ou espaço social que a exerça. São formas de governo dos corpos juvenis que
incidem de modos diferentes, mas que operam no controle e disciplinarização destes.
Um exemplo de como os jovens negros e pobres da periferia estão submetidos aos
processo de criminalização se encontra na legislação de drogas, a qual não deixa explícito em
seu texto o quantitativo de drogas que se enquadraria como tráfico ou para uso pessoal,
deixando a critério da autoridade fazer esse enquadramento, o que é feito com base em
estereótipos. A criminalização é um dos dispositivos através dos quais opera a necropolítica,
sendo uma forma de estabelecer a fronteira entre os corpos que podem morrer, aos quais se
destinam as mais diversas formas de aniquilamento. Trazendo a perspectiva de Mbembe acerca
do desejo de inimigo supracitado (que é produzido mediante a necessidade de um objeto
receptáculo do ódio ao não-semelhante), temos a personificação dessa figura no jovem negro
da periferia, muitas vezes visto como traficante, seja pela sua inscrição subalternizada no varejo
de drogas, seja por residir em territórios onde grupos criminosos disputam os mercados ilegais
de drogas e armas.
A necropolítica cotidiana, no Brasil, opera por meio da intensificação da lógica de
produção de vidas indignas e de processos de sujeição criminal, segundo a qual, sobretudo,
juventudes negras, pobres e habitantes das periferias urbanas passam a ser a personificação do
crime, isto é, são compreendidas socialmente como portadoras do crime (MISSE, 2011). São
vítimas dessa sujeição criminal não apenas os jovens diretamente envolvidos em atividades
ilícitas mas também aqueles que carregam em si determinados marcadores sociais, como
vestimentas, modos de falar, de interagir com outros. Com isso, ao fazer um combate ao crime,
combate-se o ‘criminoso’, já que este é tido como sua ação em si. Muitas vezes, o envolvimento
ou ‘suspeita de envolvimento’ (caso dos autos de resistência) com atividades ilícitas é utilizado
como elemento legitimador tanto do recrudescimento das técnicas penais-punitivas quanto das
mortes desses jovens. Como resultado da incorporação da lógica guerreira, segundo a qual “Se
você quer viver é preciso que você faça morrer, é preciso que você possa matar”(FOUCAULT,
2016, p. 305), esses jovens encarnam o inimigo interno, os não-semelhantes que precisam ser
banidos do convívio social ou abatidos sob escusas de defesa da sociedade já que são vidas
indignas e, portanto, não passíveis de luto.
Mbembe nos fala de um estado permanente de guerra, o qual é característico
no cotidiano das periferias que vivenciam o estado securitário. Para ele,
74

Uma vez que o Estado securitário pressupõe a impossibilidade de pôr fim às


hostilidades entre nós e aqueles que ameaçam o nosso modo de vida - e, portanto, a
existência de um inimigo irredutível em constante metamorfose- esta guerra é agora
permanente. Para responder às ameaças internas, várias atividades extramilitares são
mobilizadas e enormes recursos físicos são requeridos. Por fim (...) o Estado
securitário está menos preocupado com a distribuição de empregos e de lucros do que
com o projeto de dispor da vida de seres humanos, quer sejam as suas pessoas ou
aqueles a quem chama de seus inimigos. (MBEMBE, 2017, P. 90).

Dessa forma, os esforços se centram na manutenção do traficante e das juventudes


negras e periféricas como inimigos, os vitimando pela sustentação da lógica de guerra às drogas,
que funciona como um dos principais vetores que compõem esse estado permanente de guerra.
Segundo Mbembe (2017), o estado de guerra permanente se dá, na contemporaneidade, não
mais entre exércitos de Estados soberanos distintos, mas sim “entre grupos armados que atuam
em prol do Estado, e grupos armados que, não possuindo qualquer Estado, ainda assim
controlam vários territórios, acabando o alvo de ambos por ser a população civil, desarmada ou
organizadas em milícias” (MBEMBE, 2017, p. 144). Pensando esses elementos no contexto de
Fortaleza, torna-se possível fazer uma relação entre as facções de drogas ilícitas e aquilo que
Mbembe, baseado nas discussões de Deleuze e Guattari, denomina de máquinas de guerra, uma
vez que estas se caracterizam por manter uma relação de mobilidade com o território,
condensam diversas funções associando interesses mercantis e políticos e atuam também na
imposição de imobilizações e restrições aos povos, levando-os a deslocamentos territoriais.
Dessa forma, essas máquinas atuam

Como categoria política, as populações são então desagregadas em rebeldes, crianças-


soldados, vítimas ou refugiados, ou em civis mutilados ou apenas torturados (...)
enquanto os sobreviventes, depois de um êxodo penoso, ficam confinados campos e
zonas de exceção”. (MBEMBE, 2017, p. 143).

Podemos pensar aproximações dessa noção tanto em relação aos corpos juvenis,
que funcionariam como máquinas em si, no sentido supracitado, em que são descartáveis para
o crime organizado, o Estado e a sociedade em geral, quanto em relação às facções, à medida
que a atuação destas se dá também pela imposição do medo, muito embora, de forma bem
diferente das imposições coloniais. Atuam sobre os modos de viver e transitar pelos territórios,
infligindo castigos físicos àqueles que descumprirem suas ordens, algo decidido em “tribunais”
feitos pelos próprios membros. Nas palavras de Mbembe (2017), na contemporaneidade, estaria
ocorrendo uma gradativa substituição dessas técnicas: “as técnicas de policiamento e de
repressão e a escolha entre obediência e simulação que caracterizam o potentado colonial e pós-
colonial são gradualmente substituídas por uma alternativa que é mais trágica por ser mais
75

extrema. ” (p. 143). Vale-se destacar que essas formas coexistem, haja vista que esse processo
de substituição está em curso. Não se trata, portanto, do fim das já discutidas técnicas coloniais,
mas do surgimento de novas tecnologias de destruição, cujo principal interesse deixa de ser a
disciplinarização dos corpos e passando a ser “inscrevê-los, a seu devido tempo na ordem
máxima da economia, hoje em dia representada pelo massacre” (MBEMBE, 2017, p. 144).
Nesse estado de guerra permanente nas periferias, a morte é algo cotidiano e,
portanto, banal, conforme já argumentado acima. Essa guerra finda por vitimar não apenas os
jovens supostamente “envolvidos”, mas também os policiais que estão na linha de frente da
(in)política de segurança pública alicerçada no paradigma da guerra, os quais, em geral, também
são jovens negros e periféricos. Ambos são (des)subjetivados como “soldados” e “guerreiros”,
numa perversa dicotomia entre “direitos humanos” e “segurança pública”. Ocorre uma
atualização da relação morte-corpo, em que a morte é tida como uma forma de escapar ao estado
de exceção permanente. Já que ao “viver sob a ocupação pós-moderna é experimentar uma
condição permanente de estar a sofrer” (MBEMBE, 2017, p. 150), a morte apresenta-se como
fuga ou como um risco que se corre na tentativa de escapar ao estado de exceção.

3.4.2 “ Se errou, tem que pagar o que deve, mas com dignidade, com respeito, como ser
humano”: Políticas de aprisionamento, violências institucionais e maquinarias
de gastar vidas desimportantes

Os filhos de Maria, Anastácia, Luiza, Adelina e Esperança passaram pelos sistemas


socioeducativo e/ou carcerário. Em suas narrativas, essas mulheres explicitam as diversas
violações vividas pelos seus filhos nas passagens por esses sistemas. Vale-se destacar que,
conforme podemos vivenciar em campo, através de narrativas não apenas das mães
entrevistadas, mas nos discursos de outras mães e familiares proferidos em espaços de debate
acerca de segurança pública e violência, os sistemas socioeducativos e prisional têm atuado
como verdadeiras máquinas de moer gente, atuando como um importante dispositivo
necropolítico. No que concerne às mães entrevistadas neste estudo, os filhos de Maria,
Anastácia, Luiza e Esperança foram mortos após passagem por esses sistemas. Muitos deles,
passaram pelo denominado “batismo” em facções dentro desses sistemas. Acerca das questões
vividas pelos seus filhos quando em cumprimento pena, Anastácia destaca:

ele [o filho] não foi, ficou na ala dos abençoado, como diz o outro, né, ficou na ala
errada, né. Mais ele dizia pra mim que nois num entendia, “vocês não entende, eu não
posso ficar lá, eu tenho que ficar é aqui. Ele disse que sofria muito lá dentro, que
76

chegou lá dentro e tinha o chefe, lá dentro quando ele chegou tinha um chefe que
mandava em todo mundo ali, em todo mundo. Todo mundo tinha que baixar a cabeça.
Quando eu fui visitar ele, eu senti tanto no meu coração, porque(...)Quando ele via a
pessoa lá, ele baixava assim a cabeça e eu não entendia, quando ele passou, eu
perguntei, “que foi [nome do filho]?”, “não mãe, é porque quando o chefe passa a
gente tem que dar reverência” (Anastácia).

As histórias desses jovens são analisadores da relação entre encarceramento em


massa e dinâmica da violência que subalternizam e vitima jovens periféricos. As desigualdades
sociais e os corpos negros e pobres indesejáveis são geridos nessa engrenagem a partir uma
lógica punitivo-penal e, ao lidar com a segurança pública com recrudescimento e violência, o
Estado possibilita o fortalecimento das facções, intensificando ainda mais o cenário de
violência, conforme aponta Paiva (2019). Com isso, podemos refletir de que modo a lógica
punitivista na qual se ancoram as políticas de segurança pública tem produzido mais violência,
não se mostrando resolutivas de tal forma que a ampliação do encarceramento em massa atua
no fortalecimento das facções. A opção por políticas de aprisionamento em massa, apesar de
sustentar uma retórica ressocializadora, consiste, muitas vezes, em uma quase sentença de
morte ao promover um adensamento da trajetória criminal dos jovens. Assim sendo, o
punitivismo atua como produtor de morte aos não semelhantes, no qual se ancoram a produção
de maquinarias de gastar vidas enquadradas como desimportantes. Luiza narra as péssimas
condições em que seu filho sobrevivia quando estava cumprindo medida socioeducativa em um
dos centros:

Meu filho quando entrou nesse Centro, não teve mais conserto, porque...porque o
Estado não dá oportunidade pra nenhum, nem pro meu, nem pro de ninguém que tá lá
dentro. Porque eles entram, como é que, eles entram, dizendo que vão botar os menino
em sala de aula, fazendo curso, é mentira! É só mentira! Tinha uns 2 ou era 3 menino
lá que se… era rebelde. Um deles era o filho da irmã [nome], porque o menino era
danado. não ia pra sala de aula, porque o menino era danado demais, não ia pra
frequentar a sala de música, o que é isso? Se os mais abençoado é que tem procurar.
Fazer pra se conscientizar! É por isso que eu sempre digo, uma vez eu disse até nua
reportagem que nós fizemos lá em frente a superintendência, o juíz, é tudo camuflado,
a justiça, as lei é camuflada, tudo é muito lindo e maravilhoso, mais num funciona. Ó,
ele vai ser internado, é hospital? Ele tá doente? Ele vai pro hospital? Vai pro
socioeducativo, centro de reeducar. Num é colégio, é um presídio. Muitas palavra.
Eles num tão na cela, tão no dormitório. Hum! Dormitório eles tem em casa, a cama,
o guarda-roupinha, como eles tem. Cadê amigo, a cela aqui, amigo, e com uns rato
desse tamain andando em cima deles. Eu falei isso, na reportagem. Porque tanta
demagogia? Porquê Centro Socioeducativo? Porque esse nome? Camuflagem do
governo! Devia ser assim, presídio mirim, seria mais… talvez até os menino sentisse
aquele impacto “vixe, vou ser preso”, mais eles se prevalece como tem muito dele que
inocentemente, chega na frente de uma televisão e diz assim, “vou pra engorda”, como
eu disse uma vez também numa reunião lá no Passaré, quando ele tava lá (Luiza).
77

Em nossa conversa, Luiza direcionou muitas críticas à forma como o governo tem
conduzido as políticas de segurança no estado. Ao serem tratados como “bichos”, utilizando
palavras de Luiza, caracteriza-se a violação de direitos desses jovens, no intuito de que a
população em geral visibilize a gestão governamental como resolutiva.

o governo do estado, ele diz “tá tudo sob controle”, “tá tudo muito bom, tá tudo muito
bem”, tem escola aí, do projovem aí, em tempo integral, tem num sei o que,
socioeducativo, tem pea, pea! Orientador que chega, embreagado, e mete a pea,
tortura, viu? Muita tortura, comida com bicho,com tapuru, viu? Como o meu disse
que uma vez foi obrigado a comer. Tudo isso! Isso lá reeduca! (indignada). Como é
que você pega um ser humano e bota alí, porque errou, certo, vamo pagar seu erro,
não sou contra. Se errou, tem que pagar o que deve, mas com dignidade, com respeito,
como ser humano.Porque um erro num justifica o outro, minha fia! Um erro não
justifica o outro! (indignada). A violência gera a violência! Não se pode se tratar o ser
humano como animal, porque nem os animal é mais aceito tratar mal, nem os animal!
Você ve que se uma pessoa for pegue maltratando um animal, vai é presa! (Luiza).

Nas palavras do atual secretário de segurança, “está tudo sob controle”. Controle
sobre quem? Às custas de quais vidas? O discurso de controle sustentado em um viés punitivista
corrobora para a naturalização das mortes juvenis e para a violação dos direitos de determinada
parcela da sociedade, não aplacando a violência que assola a população cotidianamente, mas
intensificando-a. Não temos, portanto, uma crise do sistema carcerário e socioeducativo, temos
um projeto político em que a morte figura não como um efeito colateral, mas como elemento
central. Conforme viemos discutindo ao longo deste capítulo, esses jovens começam a morrer
bem antes do homicídio através da inviabilização e precarização das suas vidas, da precarização
também da inscrição em dinâmicas institucionais que o estigmatizam como indignos de vida e
corpos matáveis. As internações, no caso do filho de Luiza, e o encarceramento, no caso do
filho de Maria, Anastácia, Adelina e Esperança, apontam não para a “pretensa”
“ressocialização” mas para o agravamento das inscrições desses jovens nas tramas da
necropolítica. O “tá tudo sob controle” foi uma resposta institucional diante das chacinas. As
mortes juvenis, se tornam inexoráveis a ponto de que nos discursos oficiais sempre aparecem
como resultantes de acertos de contas entre facções. Para Luiza, cujo filho cumpriu várias
medidas no sistema socioeducativo, estas políticas enfrentam o subfinanciamento estatal, o que,
nas palavras de Luiza, se relaciona os tratamentos desumanos direcionados aos jovens:

Ele entrou com 13 ano a primeira vez. E o que foi que o Centro Socioeducativo fez
com meu neto (filho)? O estado, o que foi que ele fez, pelo meu neto? O que foi?
Tiraram a vida! (Luiza).
78

No bojo das violações vividas por esses jovens, as mães também destacaram as
violências policiais sofridas não apenas dentro dos centros socioeducativos e prisões, mas
também quando estavam em liberdade. O filho de Anastácia estava ameaçado de morte tanto
por pessoas ligadas à facção na qual trabalhava como por policiais. Pouco antes de morrer, ele
sofrera um atentado por parte de um policial chegando em casa com a cabeça ensanguentada, o
qual foi narrado por sua mãe:

aí eu perguntei: “o que foi isso, [nome do filho]?”, “mãe, foi o…”, aí disse o nome,
foi um policial, que ele disse o nome, que conhecia esse policial e esse polícial só
vivia perseguindo ele, entendeu? Que era lá do bairro e disse que era carne ruim, “mãe,
ele é ruim, mãe, hoje eu tô contando a história, eu tô vivo, mãe, porque Deus me
ajudou, pois ele me pegou ali, eu vinha sozim, ele me pegou”, pegou ele, tacou a
cabeça dele no poste, assim (Anastácia).

Anastácia chegou a ir à delegacia com o filho para realizar denúncia, mas ao chegar
no local, o filho identificou policiais que sempre andavam junto àquele que o violentou, de
modo que desistiu de fazer a denúncia, dias depois, o jovem foi assassinado. De modo
semelhante, o filho de Tereza sofreu diversas ameaças por parte de policiais, sendo agredido
fisicamente:
Esse meu menino já apanhou tanto, esse [nome do filho] é tão riscado, todo riscado as
pernas dele, de faca. Ele tirou faca...olha, se eu tivesse uma câmera, se eu tivesse uma
câmera eu filmava, pra mim mostrar as pessoas que eles...dizem coisas que a gente
fica até com medo, pra filmar o que eles [os policiais] fez com essa meninazinha aqui,
uma moreninha, uma viciada, ele tirou as calça da menina, mandou a menina ficar de
bunda pra cima, se ela tinha dinheiro escondido nas partes (..)O policial homem não
é pra fazer isso (...) (Tereza).

Muitas vezes, essas pessoas reconhecem os seus direitos em uma abordagem


policial, no entanto, naquele momento específico, não se tem a quem recorrer. Frente às
ameaças, se corre risco de morte, de modo que falar sobre os direitos que têm, não é garantia
de que estes sejam respeitados. Isso foi perceptível em campo, quando em conversa sobre
direitos humanos com um jovem em equipamento voltado à juventude de Fortaleza, ele riu
quando falei sobre seus direitos. Em uma expressão clara de que tinha os seus direitos
cotidianamente violados, e, muitas vezes, frente a isso, vivencia a sensação de impotência.
O encarceramento em massa pode ser pensado como uma forma de gerenciar e
controlar as vidas de sujeitos tidos como indesejáveis (BORGES, 2018). Mbembe (2017)
pensou a relação entre a passagem do biopoder para o necropoder considerando-se o contexto
sócio-histórico de desenvolvimento do capitalismo. Segundo ele, a crise de produção capitalista
79

do século XX, caracterizada pela substituição da força produtiva do homem pela força produtiva
das máquinas, tornou o trabalho dispensável. Nesse processo, produziu-se um excesso de mão
de obra em que os sujeitos passaram a ser descartáveis, sendo relegados ao mercado informal e
às margens urbanas. Frente à essa massa de vidas irrelevantes, passou-se a operar políticas de
morte e não só de vida. Esse processo, para o autor, marca a passagem de uma biopolítica para
um necropolítica, à medida que se deixa de gerir a vida e passa a se gerir a morte dos
indesejáveis do ponto de vista econômico e social. O conceito de necropoder se torna importante
para pensarmos as questões que envolvem violência, negação de direitos e exclusão social aos
quais estão submetidas as vidas dos jovens no contexto de periferia do capitalismo, vidas
excluídas, que por não se inserirem do processo produtivo do capital, tornam-se supérfluas e,
portanto, matáveis. Sá et al (2015) analisando os dispositivos que se encontram no cerne dos
ditos “problemas” urbanos, apontam para as diferentes formas de precarização que atingem
grandes contingentes populacionais nas cidades. Para as autoras, a manutenção de determinadas
vidas sob condições subalternas se dá por meio da gestão da pobreza e das formas de
territorialização de modo que a integração social dessas pessoas, quando ocorre, se dá de modo
parcial e precária. Desta feita, grande parte da população nos centros urbanos, do qual os jovens
e seus familiares, encontram-se à margem da sociedade sendo
alvos de um processo de criminalização que lhes retira do campo social e simbólico
da vida citadina, transformando-os em alvo de extermínio com a complacência e
mesmo a determinação dos gestores das políticas públicas. Territórios de exclusão,
circuitos econômicos “informais” e opacos, ordens políticas e jurídicas marcadas pela
ilegibilidade e formas variadas de estigmatização e de extermínio formam o conjunto
no qual a precariedade, como parte da vida urbana, se tece hoje nas cidades (SÁ et
al, 2015, p. 16)

Frente à crise do Estado de Bem-Estar Social, apela-se para o recrudescimento de


técnicas de eliminação e controle do outro uma vez “que a questão social já não é mais solúvel
no interior das instituições sociais capitalistas, a sua consequente militarização e barbarização
aparece como modelo de gestão possível” (HILÁRIO, 2010, p. 205).

A execução em série, uma vez mecanizada, acabou transformada num procedimento


puramente técnico, impessoal, silencioso e expedito. Tal processo foi desencadeado
em parte pelos estereótipos racistas e pelo brotar de um racismo de classes que ao
transpor os conflitos sociais do mundo industrial em termos raciais, acabou por
sucubir à comparação das classes operárias e dos marginais do mundo industrial com
os selvagens do mundo colonial. (MBEMBE, 2017, p. 119)

As sociedades da periferia do capitalismo analisadas pelo autor são definidas como


sistemas que funcionam apenas no Estado de Emergência; caracterizadas pelo predomínio do
estado de exceção. Nesse ponto, Mbembe (2017) estabelece diálogo explícito com Hannah
80

Arendt e Giorgio Agamben, deslocando, assim como em sua interlocução com Foucault, o
debate para as vicissitudes das periferias do capitalismo. Nestes contextos, o poder se manifesta
pelo controle sobre a vida e a morte dos sujeitos, essas categorias, então, se tornam centrais nas
análises, haja vista a exacerbação desse direito de morte. A morte, aqui, estaria no vórtice de
uma economia política pós moderna, sendo produzida em série no intuito de exterminar dadas
populações tidas como indesejáveis, de modo semelhante ao que ocorria nas colônias. Em suas
análises, Mbembe (2017) toma como base as relações entre a noção de biopoder, de soberania
e de estado de exceção. Por Estado de exceção pode-se compreender um contínuo e não uma
simples suspensão temporária de direitos. É o não ter direitos, é o sobreviver em condições
inumanas, é a negação da escuta das vozes excluídas que ecoam. Nestes locais, a guerra deixa
de ser um meio de dominação ou conquista passando a ser um fim em si mesma; em seu objetivo
de produzir mortes e extermínios.

As guerras coloniais são concebidas como a expressão de uma hostilidade absoluta


que predetermina um conquistador sobre um inimigo absoluto. Todas as
manifestações de guerra e de hostilidade que costumavam ser marginalizadas por um
imaginário europeu de legalidade encontram nas colônias um espaço para florescer.
Aí a ficção de uma distinção entre os fins da guerra entra claramente em colapso assim
como a narrativa que diz que a guerra funciona como disputa regulada pela lei, ao
contrário do puro abate sem riscos nem justificações instrumentais. (MBEMBE, 2017,
P. 128)

As relações de poder estariam voltadas à produção do estado de exceção e da figura


do inimigo a ser eliminado (encarnado na figura desses corpos juvenis), fruto da relação de
inimizade; estes seriam os dois pilares nos quais se ancoram o direito de matar. A construção
do criminoso como inimigo da sociedade é uma das marcas de uma sociedade punitiva. A
relação entre política e morte nestes sistemas são pensadas a partir do conceito de Racismo de
Estado de Foucault, tendo em vista que a relação de inimizade se ancora no desejo de produção
de um inimigo que não existe e na segregação entre grupos (colonizador x colono, estrangeiro
x nativo, cidadão de bem x bandido) que passam a encarnar a figura do inimigo que precisa ser
combatido. Com isso, a violência passa a ser o desfecho inevitável e necessário, destinada ao
grupo de pessoas consideradas ‘inferiores’ ou ‘perigosas’, rótulos que legitimam o constante
estado de exceção em que vivem.

Em larga medida, o racismo é motor do princípio necropolítico, enquanto este é o


epíteto da destruição organizada, o nome de uma economia sacrificial cujo
funcionamento requer que por um lado, se reduza o valor da vida e, por outro, se crie
o hábito da perda” (MBEMBE, 2017, p. 65).
81

Como podemos observar nestas discussões, os relatos das mães sobre as condições
em que a morte de seus filhos se deram nos permitem assinalar que os homicídios juvenis são
expressão de uma sociedade seletivamente punitiva. Ademais, os relatos dão elementos
concretos que possibilitam frisar como a criminalização é uma das formas de perpetuar
hierarquias raciais, gestão diferencial da pobreza e dar continuidade a práticas de genocídio.

4 “É UMA TORTURA QUE NÃO ACABA NUNCA”: REPERCUSSÕES DOS


HOMICÍDIOS JUVENIS E O SOFRIMENTO PSICOSSOCIAL DAS MÃES

Eu sinto como se a gente fosse soterrada com os filhos da gente, e a gente fica só com
a cabeça pra fora, tentando sair daquele buraco. Uma parte da gente é enterrada, não
é só o filho da gente que é enterrado, né só a história do filho da gente que é enterrada,
uma parte da sua vida é enterrada, e você fica lutando com aquele pouco que lhe resta,
que praticamente é só sua cabeça que fica de fora, porque o seu corpo tá todo lá dentro.
E a gente tenta respirar com o pouco que lhe resta, e com esse pouco que me resta,
você tem que ter forças para lutar, para lutar e você vencer essa luta, porque é difícil,
é muito difícil (Felipa).

4.1 Introdução: um enfoque psicossocial e interseccional do sofrimento das mães


frente à violência letal

O presente capítulo objetiva discutir repercussões dos homicídios juvenis no


cotidiano dos seus familiares, destacando expressões de sofrimento psicossocial das mães de
jovens assassinados em Fortaleza. Partimos de questionamento semelhante à Das (2011), em
estudo com mulheres em situação de violência extrema, quando esta se interroga de que modo
essas mulheres reconstroem seus cotidianos. Na psicologia social, algumas produções têm se
proposto a analisar a dimensão coletiva do sofrimento. É o caso, por exemplo, de Sawaia (1999),
que desenvolve a noção de “sofrimento ético-político” para compreender as implicações
psicossociais dos processos de inclusão/exclusão social. Por sua vez, outras produções na área
têm lançado mão da noção de “sofrimento psicossocial”. Nesse sentido, destacamos o estudo
de Acosta (2018), que, ancorado na noção de trauma psicossocial de Martin-Baró (1990),
analisa, a partir da noção de “sofrimento psicossocial”, as implicações das situações sociais de
crise nos sujeitos, e Hur (2018), que discute o sofrimento psicossocial na contemporaneidade a
partir de uma leitura que articula os estudos foucaultianos sobre biopolítica e a esquizoanálise.
Por uma questão de maior proximidade epistemológica e pelo objetivo aqui proposto,
utilizaremos como operador conceitual a noção de “sofrimento psicossocial” a partir dos dados
produzidos no contato com as mães.
82

Hur (2018), ao pensar a relação entre psicologia, esquizoanálise, biopolítica e


psicopolítica, destaca o sofrimento psicossocial como resultante dos agenciamentos entre
sujeitos e coletivos, considerando-se o contexto capitalista e suas operações nos modos de
subjetivação contemporâneos, assim também entendemos os sofrimentos das mães e familiares
de jovens assassinados face à violência. Ao discutir a dimensão psicossocial do sofrimento, Hur
(2018) frisa que o sujeito vivencia uma constante sensação de crise crescente pela aceleração e
fluxo intenso como marcas da sociabilidade contemporânea, impossibilitando ou dificultando
a decodificação dos acontecimentos que o cercam (HUR, 2018). No campo da biopolítica, essa
experiência de crise dos sujeitos está relacionada aos processos de subjetivação capitalísticos,
orientados pela máxima do capital, pelos apelos ao consumo desenfreado, produção de riquezas
e acúmulos de bens (HUR, 2018, p. 262). O sofrimento psicossocial seria característico das
subjetividades produzidas nesse contexto, marcadas pelo sentimento de desagregação e levando
sujeitos e coletivos a vivenciarem de modo intenso e individualista a sensação de desamparo.
Essa discussão se torna relevante para o presente estudo à medida que considera a
produção de subjetividade contemporânea de modo entrelaçado com os processos capitalísticos,
que, baseados em imperativos de consumo e acúmulo de capital, produzem silenciamentos e
invisibilizações do sofrimento de certos sujeitos, em concomitância à perpetuação de exclusões
sociais e intensificação das violências que corroboram com a manutenção de determinadas
vidas sob condições desiguais de precarização. Nesse contexto, os sujeitos vivenciam
constantemente experiências de desterritorializações que geram sentimentos de desagregação
ancorados em máximas individualizantes e homogeneizantes que constrangem possibilidades
de singularização (GUATTARI; ROLNIK, 2006). Essas produções capitalistas não atuam
como mero pano de fundo na realidade vivida pelas mães, mas constituem vetores de produção
de seus sofrimentos e de marginalização de suas experiências. Nesse sentido, podemos pensar
aproximações com as discussões de Caniato, Cesnick e Araújo (2010) que, ao analisarem o
enlace entre sofrimento e injustiça social, consideram as relações de poder e dominação
estabelecidas na sociedade capitalista contemporânea como produtoras de exclusões sociais que
se relacionam diretamente na produção do sofrimento. Apesar de desenvolverem suas reflexões
a partir das relações de trabalho, interessa-nos utilizá-las como ferramentas para pensarmos a
produção do sofrimento na sociedade capitalista, à medida que esses autores atentam para o
processo de naturalização do sofrimento e restrição deste ao âmbito individual, operando na
produção de culpabilização dos sujeitos pelas situações de sofrimento em que vivem, o que
dificulta suas reivindicações frente aos processos que os violentam.
83

À medida que abordamos o sofrimento dessas mulheres sob um prisma


psicossocial, estamos nos propondo a compreendê-lo não apenas nas esferas individuais (como
cada mulher sente e lida com a perda de seu filho), mas também a entendê-lo como expressão
de forças históricas, psicossociais, políticas e econômicas da necropolítica, que produz,
instrumentaliza e gerencia as mortes juvenis, ao mesmo tempo em que invisibiliza as dores e
marcas dessas perdas. Ou seja, considerar o sofrimento das mães em sua dimensão
‘psicossocial’, além de englobar a dimensão compartilhada da violência vivida por elas, busca
abranger as peculiaridades existentes no processo de luto dessas mulheres, haja vista que não
se trata de qualquer morte, mas de assassinatos que são engendrados em uma teia complexa de
violências, exclusões e invisibilidades sociais que se agenciam para a produção da matabilidade
de determinados corpos e silenciamento daqueles que testemunham a necropolítica. Dessa
forma, o sofrimento dessas mães se relaciona com o recorte histórico e temporal produtor de
uma política de morte que radicaliza os assassinatos juvenis em um setor específico da
sociedade, composto, em sua maioria, por negros e pobres.
Conforme esboçado no capítulo anterior, as mortes juvenis estão relacionadas a um
conjunto de condições sociais, econômicas, históricas e políticas que se relacionam ao
enquadramento dessas vidas como matáveis. São vidas para as quais as condições de
precariedade são postas de maneira radical, constituindo um projeto político de extermínio em
que se soma a negação de políticas que visem o aplacamento das vulnerabilidades de seus
corpos (BUTLER, 2014). Desta feita, as mortes dos filhos, ao mesmo tempo em que surgem
como efeitos de um conjunto de condições precarizadas da vida que permeiam os cotidianos
das mães, são indutoras de maior precarização nas vidas dessas mulheres, à medida que seus
sofrimentos são tantas vezes silenciados, postos sob regimes de (in)visibilidade em que se
fomenta a individualização das dores e culpabilização pelas mortes. Reduzir o sofrimento
dessas mulheres ao âmbito individual pode levar à compreensão de que estas são culpadas pelas
mortes dos filhos ou envolvimentos destes com atividades ilícitas, acarretando a intensificação
dos sofrimentos e isolamento que funcionam como modos de fragmentação e docilização de
seus corpos.
No que tange à compreensão das forças que compõem o sofrimento das mães,
utilizaremos a interseccionalidade como uma ferramenta (CRENSHAW, 2002) que nos auxilia
a visibilizar as variadas formas de dominação a que estão submetidas essas mulheres, uma vez
que suas dores são atravessadas por diferentes marcadores sociais de desigualdade que
produzem seus modos de subjetivação. A interseccionalidade passa a ser discutida na década
de 1970 a partir do black feminism, pondo em questão, além do reconhecimento das diversas
84

opressões que operam nas categorias classe, gênero e raça, o modo que estas se articulam e
funcionam como sustentáculo de relações desiguais (HIRATA, 2014, p. 63). Considerando-se
as distintas ondas dos feminismos e a pluralidade de discussões envoltas neste movimento, faz-
se importante destacar que as discussões aqui propostas se embasam em diferentes autoras
feministas que diferem epistemologicamente em suas reflexões. Nos propomos, assim, a
construir pontos de diálogos que nos auxiliem e pensar o sofrimento psicossocial das mães deste
estudo de modo interseccional.
Considerando que as condições de precariedade são distribuídas de formas
desiguais, assolando determinada parcela da sociedade de forma mais intensa (BUTLER, 2014),
o olhar interseccional nos leva a compreender de que modo essas condições precárias de vida
compõem o cotidiano das mães de forma múltipla e inter-relacionada, por serem mulheres,
pobres e, em sua maioria, negras (AKOTIRENE, 2018; BIROLI, 2018, 2014; HIRATA, 2014,
NOGUEIRA, 2017; RIBEIRO, 2017). Cada marcador leva a opressões e violações distintas e,
conforme discute Hirata (2014), considerar a atuação conjunta das diferentes opressões nos
possibilita evidenciá-las e, consequentemente, instrumentaliza-nos em seus enfrentamentos.
Essa possibilidade de reflexão e construção de estratégias de enfrentamento evidenciam a
interseccionalidade como um instrumento analítico e ao mesmo tempo de luta política à medida
que, ao questionar os processos de dominação que inteseccionaliza marcadores categoriais de
diferença, oportuniza o rompimento com a reprodução das formas de dominação capitalística
(AKOTIRENE, 2018; NOGUEIRA, 2017, HIRATA, 2014).
O compartilhamento de experiências de opressão e sofrimento vivido pelas mães
de jovens assassinados (o fato de serem mulheres, negras, periféricas e mães) indica a
necessidade de um olhar interseccional (LIMA, 2018; CRENSHAW, 2002; AKOTIRENE,
2018) para o sofrimento psicossocial destas, haja vista a impossibilidade de falar sobre as dores
que permeiam seus cotidianos sem considerarmos o lugar social de subalternização que
ocupam, marcado pelo supracitado imbricamento das questões de gênero, classe e raça, em que
o homicídio do filho figura como uma das violências em uma trajetória marcada por diversas
violações, por vezes, não tão visíveis quanto as mortes. A interseccionalidade é, portanto, uma
questão transversal à discussão sobre a repercussão dos homicídios juvenis no cotidiano de seus
familiares, com destaque para o sofrimento psicossocial das mães, uma vez que a perda de um
filho por homicídio exposto aos regimes de (in)visibilidade, já discutidos no capítulo anterior,
não é vivida por toda e qualquer mulher. Essa perspectiva nos ajuda não apenas a compreender
os lugares de fala dessas mulheres (RIBEIRO, 2017), mas também a entender como certas
repercussões e sofrimentos operam e se relacionam em suas vidas.
85

Vale-se destacar que a interseccionalidade também pode ser tomada como um


“projeto de conhecimento” (HIRATA, 2014, p. 69). Desse modo, este estudo também denota
sua relevância ao produzir implicações políticas que almejam romper com os modos de
(in)visibilização dessas mulheres ao abordar as dimensões coletivas e interseccionais dos
sofrimentos destas como analisadores das repercussões dos homicídios juvenis no cotidiano de
seus familiares. A análise das implicações dos homicídios sob a perspectiva das mães torna-se
algo relevante, pois faculta a produção de novos modos de visibilizar os sofrimentos que
marcam seus modos de viver. Em suma, partimos da consideração de que o sofrimento das
mães em decorrência do homicídio juvenil é de ordem psicossocial e vivido
interseccionalmente.
Dessa forma, organizamos as discussões a partir dos seguintes eixos analisadores,
traçados mediante aproximações com o campo: Implicações nas dinâmicas familiares;
Processos de Culpabilização das mães; Medo, isolamento, solidão e silenciamento;
Desterritorializações decorrentes do homicídio juvenil; e Sobre(viver) na dor.

4.2 “Nunca mais a família é a mesma”: Implicações nas dinâmicas familiares

Ao abordarmos as implicações nos familiares, faz-se importante esboçarmos


algumas pontuações acerca dessas famílias. O termo família recebe diferentes conceituações,
considerando-se os contextos sociais, históricos e culturais, e expressa relações de poder em
seus múltiplos arranjos, que são transversalizados por questões políticas e institucionais
(BIROLI, 2014; MIOTO, 2010). Silva (2017), partindo da problematização de que, na
atualidade, tem-se uma suposta crise da família e considerando uma perspectiva histórica e
transcultural, aponta que o discurso de crise da instituição familiar em muito se dá pelas
mudanças contemporâneas ocorridas naquilo que se conhecia por família. A
contemporaneidade é marcada, portanto, por transformações nas funções da instituição familiar,
que dão abertura para maior diversidade de suas composições, estruturas, funções e dinâmicas,
o que engloba as composições familiares acompanhadas neste estudo. De todas as participantes,
quatro eram casadas, das quais duas viviam processo de separação, e as demais haviam criado
seus filhos sozinhas. Muitas vezes, os pais não contribuíram afetivamente nem financeiramente
no cuidado dos filhos. A maior parte das composições familiares, portanto, rompiam com uma
noção de família nuclear burguesa.
Esses arranjos familiares, caracterizados pela centralidade da figura feminina como
cuidadora, são também marcados por questões de classe, à medida que o termo família adquire
86

sentidos diferentes para os sujeitos de acordo com as classes sociais a que pertencem
(FONSECA, 2005). A discussão de classe se faz profícua nesse ponto porque, ao romper com
o modelo de nuclearização burguês, essas famílias cujas mães ocupam lugares centrais
costumam receber a pecha de “famílias desestruturadas”, a qual é uma das pilastras de uma
narrativa preconceituosa sobre os motivos que levam às mortes dos jovens. Acerca das
confluências entre os arranjos familiares e gênero, Biroli (2014) afirma que ocorre um
apagamento das conexões hierárquicas na instituição familiar à medida que as relações de poder
dentro e fora dela, assim como seus problemas internos e de definição/possibilidades de arranjo,
são negligenciadas, de modo que, muitas vezes, as desigualdades de gênero se tornam
explícitas. Nos processos acompanhados em campo, as questões de gênero pulsaram como uma
das expressões das relações de poder em funcionamento pela instituição família, denotando-se
nos arranjos familiares marcados predominantemente pelas figuras femininas, em que mães,
filhas, avós e companheiras destacam-se como testemunhas da necropolítica que operam nesses
territórios. Vale-se destacar que o testemunho dessas violências se dá na vida dessas mulheres
não apenas nas recordações e ressignificações de suas dores, mas no modo como operam em
seus cotidianos, nas alterações de seus modos de viver (DAS, 2011). Acerca dos impactos das
mortes na família, Felipa narra:

Até hoje, minha filha chora, até hoje eu choro, sempre choro, porque nunca mais a
família é a mesma, nunca mais a família é a mesma. Porque, depois que você perde
um filho, que uma irmã perde um irmão, ainda mais na situação que nois perdemos,
nunca mais nois somos as mesmas. A gente sempre tem aquela tristeza dentro da gente,
ali guardada dentro da gente, certo? (Felipa).

Ao falar sobre as mudanças produzidas em suas vidas após a morte de seus filhos,
foi comum as mães pontuarem as implicações no cotidiano dos demais membros familiares. No
que concerne à dinâmica familiar, após o homicídio, a ausência do jovem morto passa a pairar
no cotidiano das famílias. O silêncio surge como uma forma de agir frente à dor da perda, de
modo que não se fala sobre o jovem morto ou sobre os sofrimentos concernentes ao luto. Assim
sendo, uma espécie de recolhimento dos parentes mais próximos dos jovens assassinados
caracteriza uma importante alteração na dinâmica familiar:

Elas ficam calada. Elas não toca no assunto. Elas não tocam. Ninguém lá em casa toca
no assunto (...) Assim, ele (um dos netos) não fala. Ele passa o dia dentro de casa com
a gente, se você conversa ele conversa, principalmente depois que meu filho morreu.
Ele não é de conversar muito. Assim, quem conversa mais é meu outro filho, um
pouquinho. A gente não toca no assunto. Lá em casa é assim, como se, vamo supor,
você entra aqui nessa sala, a gente conversa outras coisa, mas a gente sabe que é uma
87

coisa que lhe tortura, que lhe magoa, que lhe chateia, que você… você sente, às vezes,
bem... você tem que ter outra visão de uma coisa diferente pra você não tá lembrando,
tá lembrando (Maria).

Em conversa com Felipa, durante o traslado para uma das reuniões do FPSP,
falamos um pouco sobre como se conformaram suas relações em casa após a morte do filho.
Nessa ocasião, pude perceber que a morte não modificou apenas a vida dessa mulher, mas
também a vida da filha e do marido. Segundo ela, a filha tornou-se mais insegura e triste do que
era anteriormente, passando a recorrer mais frequentemente ao seu apoio afetivo, e a sua relação
com o esposo, que antes da morte já não destacava como boa, piorou, fazendo-a cogitar a
separação. Esses elementos nos dão pistas para pensarmos as alterações das relações familiares.
As mortes podem produzir desestabilizações dos papéis na dinâmica familiar, conforme aponta
Domingues e Dessen (2013) e Almeida, Garcia-Santos e Haas (2011), produzindo afastamentos
ou aproximações entre os membros da família. Domingues e Dessen (2013) apontam que as
formas de lidar com a perda se dão de modos distintos: enquanto certos membros familiares
podem isolar-se dos demais, não conseguindo dedicar-se afetivamente aos outros componentes
da família, outros podem, a partir da perda, ressignificar suas relações manifestando
aproximações. Após a perda do filho, Esperança afirma que passou a sentir vontade de se isolar
de todos, o que alterou a dinâmica familiar. Para ela, o filho perdido era o seu preferido, a quem
devotava mais amor e com quem tinha maior proximidade. Ao passar por esse sofrimento da
perda, ela sente que não tem conseguido cuidar dos demais familiares como antes,
principalmente do filho mais novo, que é adotivo:

Eu tinha um amor, dormia com esse menino, cheirava, era um amor danado, aí eu me
afastei do bichim, ele me cheira, diz que eu sou a melhor mãe do mundo, eu dou um
cheirim de longe. Fico assim, pra mim ele tá roubando o canto do meu filho, o amor
do meu filho. Eu penso que ele tá roubando o amor do meu filho, se eu dedicar o amor
a esse menino, eu vou esquecer o meu filho (...) só que eu me afastei, depois que o
meu fi morreu. Eu me deito na cama, ele deita perto, né, eu me lembro que o outro era
do mesmo jeito, descia, vinha dormir aí mais eu e o pai dele: “me deitar aqui, ó mãe,
mais tu”; “se deita, meu filho”. Aí ficava os dois, agora eu acho assim, eu tô tirando o
amor do meu filho e dando a quem não é. Não sei se eu tô pensando certo (Esperança).

Os impactos na rede familiar são expressos de diferentes formas. Na família de


Anastácia, a filha, que já fazia uso de drogas ilícitas antes de perder o irmão, intensificou o uso
após a morte, chegando a pedir ajuda à mãe para que pudesse dar início ao acompanhamento
no CAPS:
88

Agora ela tem 19 e quando ela veio, ela sentiu muito a morte dele né (...). [O uso de
drogas] piorou, piorou. Aí ela já chegou pra mim, pediu até ajuda, né, aí pronto, pediu
ajuda (Anastácia).

De modo semelhante, o filho de Tereza também acentuou o uso abusivo e


prejudicial de drogas após a perda do irmão. Durante nossa inserção em campo, ela pediu várias
vezes que a ajudássemos a conseguir cursos para seu filho, pontuando em diferentes momentos
os talentos que ele tinha para desenvolver trabalhos artísticos e manuais. O sofrimento do seu
filho se deu de forma devastadora, haja vista que ele assassinou o irmão dentro de casa de forma
acidental e, após isso, passou a ser culpabilizado pela morte:

Entrou em depressão, entrou em depressão, sabe, sofreu o psicológico dele não tava
muito bom, ele chorava (...) porque ele... chora. Ele disse que... sente uma tristeza
dentro dele, porque o pessoal acusaram ele de criminoso, disse “você é assassino!”. O
psicológico não aguentou e ele entrou em depressão, tentou se matar, fez muita coisa
errada. Ele foi pra igreja, pra ver se libertava mais ele, né. É… mais… hoje em
dia...hoje tá tendo é com crise (Tereza).

Nos casos dos jovens que tinham envolvimento com atividades ilícitas, o
sofrimento das mães e também dos demais familiares se deu de modo processual até a irrupção
da morte que marcou a intensificação desse sofrimento. O companheiro de Anastácia já havia
sido diagnosticado com depressão, mas, após as dificuldades enfrentadas pelo envolvimento do
filho com facções e posterior morte, os sintomas do transtorno depressivo se agravaram.

O pai (...) é uma pessoa que não fala, muito sério, muito calado, uma pessoa que tem
depressão, uma pessoa que já se internou, uma pessoa que já foi pro Mira Lopez, passei
8 dias com ele no Mira Lopez, porque eu nunca pensei que eu ia passar por isso, mas
já passei por tanta coisa, que só Deus sabe o que eu passei na minha vida, mas assim
mesmo ele tá aqui comigo, até hoje, graças a Deus (...). Eu acho que é porque ele foi
descobrindo os problema do nosso filho (Anastácia).

Dessa forma, após o assassinato do filho, recaiu sobre Anastácia a tarefa de cuidar
da filha e do companheiro. De modo semelhante, após a morte do filho, Luiza também exerceu
papel de cuidadora do seu companheiro, que, segundo nos conta, intensificou o uso de álcool.
Na situação vivenciada por Maria, o filho deixou sob sua responsabilidade duas netas, cujas
mães não tinham condições de ofertar cuidado. A morte do jovem alterou de forma intensa o
cotidiano das crianças.

Quando eu vi a menina [filha mais nova do jovem assassinado], a menina tava bem
magrinha, tava até doente. Aí tem a mais velha, porque a mais velha, ela chora muito,
ela tem 11 anos, no dia dos pais, que é dia dos pais na escola, ela não consegue fazer
nada na escola, é tanto que a mãe dela foi na escola e explicou o motivo, né? (...) Nesse
89

dia dos pais, a menina chorou o dia inteiro e uma noite inteira. Ela vai pra escola, ela
é uma menina assim, se você vê ela você já nota, ela é uma menina, assim, bem
reservada. É uma menina triste porque era a primeira filha dele, e ela é muito apegada
com ele (Maria).

Conforme pôde-se perceber, Felipa, Esperança, Luiza, Anastácia e Maria


apresentam em comum, assim como as demais mães que participaram deste estudo, o exercício
da função de cuidadoras dos demais membros familiares. No caso de Tereza, vê-se a
preocupação intensa em fortalecer e ajudar o seu filho frente ao processo de culpabilização pela
morte do irmão, mas também a sua filha, que se sente culpada, haja vista que a arma utilizada
no assassinato foi fornecida pelo seu companheiro:

As vezes eu digo assim, “meu filho, vá prum colégio, você, vá pras igrejas lá, que é
tão bom”, ele é inteligente, você tem estudo, sabe desenhar, sabe fazer pintura, sabe
fazer quadro, tudo que você pensar assim, na imaginação, ele faz pra você (...) Não,
minha filha ela ficou muito doente né, minhas meninas, sim, porque elas sentiu assim,
que através, né, familiar tudo, foi eles que entraram pra buscar arma, entregaram a
arma pra ele ver, elas sentiram assim, ela sentiu que… culpada né, acho que ela sentiu
assim, poxa, família, ela sentiu triste porque essa arma veio do marido, né. Se sentiu
assim, triste, né (Tereza).

Dessa forma, essas mulheres acabam por exercer, em meio aos seus sofrimentos,
papel central de suporte e cuidado para os demais membros familiares, incluindo os seus
companheiros, conforme apontado acima nas trajetórias de Anastácia e Luiza. Nesse contexto,
foi perceptível a luta dessas mulheres para permanecerem firmes e não sucumbirem ao que
chamavam de “desmoronamento” por serem ponto de apoio para os demais:

Eu conversei muito: “não chore não, seu pai tá bem. Ela disse: “ Vó, é uma dor tão
grande, tão grande, que não tem como, vó”. Eu disse: “minha filha, eu sei. Mas você
tem que estudar, você tem crescer, você em que se formar, você tem que se… você
tem que ser alguma pessoa boa na vida, ter uma coisa boa na vida pra ajudar a sua mãe
e seu irmão”, entendeu? (Maria).

O fato de ter que cuidar dos familiares, sem muitas vezes ter espaço para vivenciar
plenamente a dor e o luto pela perda do filho, diz-nos da dimensão interseccional do sofrimento
psicossocial vivido por essas mulheres. Por ocuparem o lugar no qual se imbricam as questões
de gênero, classe e raça, a demanda para que exerçam o papel de cuidado e sustentáculo dos
demais recai sobre elas de modo mais intenso. No que concerne às opressões relacionadas às
questões de gênero, historicamente, à mulher foi reservado o lugar social de provedora do
90

cuidado na família, numa perspectiva que naturaliza a associação entre mulher, maternidade e
cuidado (BIROLI, 2014).
Ao problematizarmos a centralidade da figura feminina na família como executora
do cuidado, faz-se importante destacarmos que nos arranjos familiares convencionais são
reproduzidas as hierarquias e relações de poder que engendram formas de dependência e
vulnerabilidades (BIROLI, 2014). O feminismo, ao inserir em suas pautas de reivindicação
questionamentos acerca dos modelos familiares, o faz tendo em vista que o modelo
convencional de família (nuclear burguês) está diretamente relacionado à manutenção das
desigualdades de gênero, uma vez que se assenta na dicotomia público x privado, em que a
família é responsável pelo seu próprio gerenciamento, fazendo com que os problemas
concernentes ao âmbito familiar sejam tratados como questões privadas (BIROLI, 2014; 2016).
Esses arranjos, somados à divisão sexual do trabalho, “favorecem a reprodução da pobreza, da
exploração e da marginalização das mulheres, do androcentrismo e das desigualdades de renda,
no uso do tempo e nas garantias de respeito” (BIROLI, 2014, P. 49). Às mulheres recaem, em
geral, as responsabilidades com o trabalho doméstico a partir do qual se organizarão as demais
atividades de seus cotidianos, de modo que:

a responsabilidade exclusiva pela gestão da vida doméstica corresponde, ao mesmo


tempo, à vulnerabilidade na vida privada (em que os arranjos convencionais, ou quase
convencionais, produzem desvantagens para as mulheres, que têm menos tempo e
recurso para qualificar-se e investir em sua vida profissional, permanecendo
dependentes ou obtendo rendimentos menores do que os dos homens) e na vida pública
(em que as habilidades desenvolvidas pelo desempenho dos papéis domésticos serão
desvalorizados e, em alguns casos, vistas como indesejáveis para uma atuação
profissional satisfatória) (BIROLI, 2014, p. 49).

A autora faz uma crítica não apenas aos modelos clássicos familiares, mas também
às correntes maternalistas, que pensam a figura feminina sob uma ótica essencialista, em que o
cuidado surge como um atributo inerente ao gênero feminino, o que a colocaria como uma
figura a ser respeitada, de modo que o desenvolvimento moral da mulher estaria relacionado à
responsabilidade pelo outro e cabendo a ela lugar central no desempenho do cuidado, não
apenas em âmbito privado, mas também em âmbito social. Dessa forma, o cuidado é
socialmente colocado e esperado das mulheres, entrelaçando-se e produzindo seus modos de
subjetivação de tal modo que muitas delas passam a definir “seu valor a partir da capacidade de
cuidar dos outros e de renunciar seus interesses” (BIROLI, 2014, p. 50). Nesse sentido, a
narrativa de Adelina nos dá pistas para pensarmos de que modo essas questões operam em sua
vida, haja vista que reiteradas vezes, em processo de auto-culpabilização pela morte do filho
91

mais velho e envolvimento do filho mais novo com atividades ilícitas, ela afirma que foi uma
boa mãe, associando à ideia de “boa mãe” à total abdicação de sua vida em prol dos filhos. Em
determinados momentos, carregada de emoção, ao se perguntar qual erro tinha cometido para
que as vidas de seus filhos tomassem o destino que tomaram, ela diz: “eu vivi pra eles, porque
depois da minha separação, eu não casei mais, então eu vivia pra eles, pro trabalho” (sic). De
modo semelhante, outras mães também afirmaram ocupar o lugar de cuidado dos filhos, como
uma forma de justificar-se, de assegurar que não foram negligentes quanto ao cuidado com eles.
Dessa forma, a imposição e requerimento social de que essas mulheres desempenhem esse papel
e a individualização das questões familiares parecem funcionar de um modo perverso, à medida
que, muitas vezes, essas mulheres se vêem sozinhas nos cuidados com os filhos e demais
familiares, não disponibilizando de apoios sociais e coletivos na lida cotidiana e recaindo sobre
elas a culpa pelas mortes ou envolvimentos dos filhos com atividades ilícitas. A seguir,
discutiremos em um tópico específico a dimensão alcançada pelos processos de culpabilização
no sofrimento psicossocial vividos por essas mulheres.
Ainda no que concerne ao cuidado, faz-se importante apontarmos que a imposição
da execução do papel de cuidadora associada a um ideal de maternidade se deu de maneira
distinta entre mulheres brancas e negras. Pensando os atravessamentos entre gênero,
maternidade e raça, Davis (2016) discute de que modo a escravatura foi base para a construção
de uma nova “natureza” feminina. Segundo ela, no contexto da escravidão, as mulheres negras
eram objetos de exploração inicialmente pela sua força de trabalho, diferindo, portanto, daquilo
que era o padrão de feminilidade imposto socialmente e que recaía às mulheres brancas. Desse
modo, “as mulheres negras eram praticamente uma anomalia” (DAVIS, 2016, p. 10), uma vez
que o trabalho compulsório direcionava o papel de mães dóceis e donas de casa exemplares em
segundo plano. O papel ocupado pelas mulheres negras em suas famílias era, pois, radicalmente
diferente daquele ocupado pelas mulheres brancas, tendo sido marcado pelos trabalhos
extenuantes dos homens e mulheres e, no que concerne à divisão do trabalho doméstico, não
havia uma divisão hierárquica de papéis (DAVIS, 2016). As negras sofriam as mesmas
explorações em relação à força de trabalho que eram destinadas aos homens negros, havendo
distinções, uma vez que a elas eram direcionadas outras formas de violências, como os abusos
sexuais, muitas vezes praticados como formas de punições a seus companheiros. No que tange
às relações maternidade/raça, Davis (2016) aponta que as mulheres escravas negras passam a
ser associadas à ideia de maternidade apenas a partir da abolição internacional do comércio de
escravos, quando a reprodução natural passou a ser a forma de ampliação da mão de obra
escrava. Nesse contexto, a capacidade reprodutiva das mulheres negras passa a ser cobiçada por
92

questões econômicas, de forma que a essas mulheres não recaía a valorização ou exaltação da
maternidade como ocorria com as mulheres brancas. A mulher negra passa, então, a ser
objetificada não apenas nas relações de trabalho e sexuais, mas também nas reprodutivas, à
medida que garantia o aumento da mão de obra escrava (DAVIS, 2016). Muitas vezes, essas
mulheres não podiam ficar com os seus filhos, haja vista que, após o nascimento, estes também
eram submetidos à relações de exploração ou venda.
Podemos pensar as relações entre esse processo histórico e a atualidade das questões
que perpassam o cotidiano das famílias negras e pobres no Brasil a partir das contribuições de
Santos (2015), que, em estudo sobre famílias negras brasileiras, aponta para a intrínseca relação
entre gênero, classe e raça, demonstrando que as famílias negras são as mais pauperizadas e
que, em sua maioria, são constituídas por mulheres e seus filhos. Dessa forma, historicamente,
as mulheres negras têm ocupado um papel ativo em suas famílias, não apenas no cuidado, mas
também no âmbito financeiro, sendo provedoras em seus lares, algo comum no cotidiano dessas
famílias nos dias atuais. A partir desses elementos, faz-se importante questionarmos: Quem
cuida dessas mulheres e de seus filhos? Abordando uma perspectiva racializada dessas questões
e alinhada às discussões do feminismo negro, Ribeiro (2015) problematiza o estereótipo de
‘mulheres guerreiras’ construído em volta das mães negras e pobres. Para ela, essas mulheres
precisam se fazer fortes frente às condições de desamparo que vivenciam. Desta feita, o rótulo
de guerreiras as furta das possibilidades de elaborar o sofrimento em decorrência das perdas,
assim como retira da análise a violência de Estado a que tais mulheres são submetidas pela
condição de subalternização e desassistência, que induzem a maximização da precarização de
suas vidas. Cabe-nos, aqui, atentar para os sofrimentos acarretados por esses processos nas
vidas dessas mulheres. Em nosso estudo, algumas das mães vivenciavam o rótulo construído
socialmente, impondo-se a não expressarem as dores de suas perdas, já que precisavam
continuar trabalhando, cuidando dos demais, lutando. Entretanto, as dores permanecem em seus
cotidianos, as modificam, alterando as formas como se veem e como vivem, produzindo
desterritorializações em seus modos de ser, ocuparem os espaços e se relacionarem.
A essas questões, soma-se o fato de que aquelas pessoas que são provedoras do
cuidado, em geral, são as que partilham de condições semelhantes de precarização da vida e,
frequentemente, essas atividades são destinadas às mulheres negras e pobres (HIRATA, 2014).
Conforme apresentado nos aspectos metodológicos, as mulheres acompanhadas em nosso
estudo desenvolviam atividades de cuidado não apenas no ambiente doméstico
(tradicionalmente ocupado pelas mulheres de forma gratuita e sem reconhecimento social), mas
também nos trabalhos desempenhados na esfera pública, exercendo funções como: cuidadora
93

de idosos e serviços gerais, por exemplo. Ao pensarmos as ocupações das mulheres deste
estudo, podemos perceber a igualdade nas condições dos care workers, já apontadas por Hirata
(2014), quando coloca que essas condições assemelham-se às de precarização do trabalho:
"trabalho pouco valorizado, baixos salários, pouco reconhecimento social" (p. 68). O
dispositivo das escutas sensíveis e o acompanhamento das processualidades das lutas dessas
mães em campo nos possibilitaram destacar alguns elementos em suas trajetórias que denotam
de que modo elas se encontram expostas não apenas a uma série de violências e violações
sistemáticas, como a lida cotidiana com trabalhos extenuantes sem reconhecimento social e a
sobrecarga em cuidar dos filhos sozinhas, como também a regimes de (in)visibilidade perversa
semelhante aos vivenciados por seus filhos, visando o apagamento de seus sofrimentos e seus
silenciamentos.
Nesse contexto, a perda dos filhos se apresenta como um evento intensificador dos
sofrimentos em suas vidas, a partir do qual advieram diversas mudanças em suas formas de
viver. Veena Das (2011), em estudo com mulheres que vivenciam contextos de violência
extrema, fala-nos que está presente na vida dessas mulheres o que ela denomina de
“conhecimento venenoso”, que seria um conhecimento que se dá pelo sofrimento, pelo ato de
testemunhar violências e violações cotidiana, pertencendo, portanto, à ordem do indizível. A
autora, partindo de uma leitura antropológica acerca da violência, articula discussões sobre
gênero, violência e subjetividade, analisando de que modo a vivência de violências extremas
por mulheres modifica suas formas de ser e seus modos de sociabilidade. A antropóloga propõe,
então, que pensemos a violência que se faz no cotidiano, ordinariamente, e não apenas aquela
posta como algo extraordinário ou extremo, expressas pelas mulheres em seus silêncios:

A violência infligida às mulheres não se referia apenas ao silenciamento de suas vozes,


mas à transformação das mulheres em testemunhas da violência brutal, testemunhas
silenciadas, mas que tinham em seus corpos os signos da violência – corpos
apropriados numa disputa pela soberania que operava por uma gramática violenta de
gênero. Essas mulheres, cujos corpos são signos dessa gramática violenta de gênero,
expressavam-se numa zona de silêncio (PEREIRA, 2010, p. 360)

Cabe-nos destacar aqui os diversos sofrimentos que essas mulheres vivenciam ao


longo de suas trajetórias e que não são necessariamente da ordem do dito, mas que se fazem
pesar em seus cotidianos, a exemplo das relações abusivas vivenciadas com os companheiros,
no caso de Luiza, e a violência policial narrada por uma das mães acompanhadas em campo,
que chegou a ser detida enquanto trabalhava. Essas são algumas das violências cotidianas que
compõem o cotidiano das nossas interlocutoras, frente às quais os modos de resistência também
94

operam. Reiteramos, com isso, que as resistências, aqui, subvertem as formas pré-estabelecidas,
denunciando-se na ordinariedade dos fatos cotidianos (DAS, 2011;1999; PEREIRA, 2010).
Dessa forma,

a agência não está no heróico e no extra-ordinário, mas na descida ao cotidiano, no


preparo diário da alimentação, na arrumação e organização dos afazeres, no cuidado e
cultivo persistente das relações familiares. São essas ações cotidianas que possibilitam
a criação de um discurso de reparação” dos seus cotidianos (PEREIRA, 2010, p. 364).

Esses acontecimentos formam, assim, um mosaico composto por diferentes


violações, que modificam as formas como essas mulheres lidam com seus cotidianos. O recorte
de gênero, classe e raça se sobressai ao percebermos que se trata aqui de mulheres pobres e
negras que vivenciam o cenário de intensificação das mortes não apenas em seu papel materno,
mas em seus papéis como filhas e companheiras. Ao mesmo tempo que testemunham essas
violências, também são alvo das mesmas, à medida que têm suas vidas profundamente abaladas
e marcadas pelas perdas. Algumas vezes, podem ser suporte entre si, como é o caso de Maria,
que, como avó, forneceu apoio as netas; de Tereza, apoiando sua filha; e de Anastácia que teve
como importante suporte emocional o apoio de sua nora, alguém que lembra com muito carinho.
Vale-se ressaltar que, durante a entrevista, em diversos momentos, Anastácia perguntou se eu
conhecia sua ex-nora ou tinha algum parentesco com ela, pela semelhança física, narrando
diversos momentos compartilhados com ela e pontuando os impactos que a morte do filho teve
nas suas vidas:

Aí foi que, ela também não conseguia ter ninguém, passou ainda 1 ano, chorando por
ele, com as roupa dele lá dentro de uma caixa, aquela coisa toda, a bichinha, aí foi que
ela já...esse que ela conseguiu foi na igreja, começou a ficar amigo dela, aquela peleja
toda, e se casaram (Anastácia).

As companheiras dos jovens são fortemente marcadas pela dor da perda, sendo
produzidos impactos nas suas formas de se relacionar e viver. Marinho (2014), em pesquisa
desenvolvida com jovens viúvas em periferias de Fortaleza, demonstra as reverberações das
perdas dos companheiros nos modos de viver das mulheres. Muitas delas narraram que, em um
primeiro momento, negavam acreditar na morte do companheiro, o que se dava de modo
atrelado à vontade de morrer com eles. Além do desejo de morte, a solidão também foi citada
pelas entrevistadas como algo que sentiam de modo recorrente. Outro fato destacado pela autora
como intensificador dos sofrimentos dessas mulheres foi o fato de as mortes se darem de forma
95

abrupta, de modo a impossibilitar “o desfecho das histórias de amor” (MARINHO, 2014, p.


169).
Conforme destacado neste tópico, pudemos notar que os sofrimentos psicossociais
vividos pelas mães dos jovens estão relacionados aos papéis desenvolvidos por estas na
dinâmica familiar, que, atravessados por questões políticas históricas, sociais e culturais, podem
atuar como reproduções de opressões e desigualdades de gênero, raça e classe. Ao pensarmos
o lugar das mulheres negras e pobres, é importante pensarmos que, conforme aponta Davis
(2016),
talvez estas mulheres aprenderam em extrair das circunstâncias opressivas das suas
vidas a força que precisavam para resistir diariamente à desumanização da escravatura.
A sua consciência da sua capacidade sem fim para o trabalho duro pode -lhes ter
comunicado a confiança na sua capacidade para lutar por si mesmas, pelas suas
famílias e pelo seu povo (p. 15).

Embora se faça importante reconhecer as forças dessas mulheres, faz importante


não romantizarmos as suas resistências, nos atentando aos processos políticos de opressão que
atuam na manutenção das desigualdades constituintes de seus cotidianos. Como forma de
reduzir essas desigualdades, Biroli (2014) aponta para a necessidade de se investir nas
“responsabilidades públicas e socialmente compartilhadas pelo cuidado” (p. 58). O cuidado
compartilhado e a responsabilização do Estado surgem como uma alternativa à sobrecarga
imposta a essas mulheres e os sofrimentos vividos em decorrência desse processo.

4.3 “Você fica procurando um culpado, será que fui eu? ”: Processos de
Culpabilização das mães

Porque, a sociedade, no geral, eles discriminam muito, não só os jovens, mas as


famílias, (...)as vezes a sociedade acha que muitos desses meninos cometem isso,
esses delitos, mudam de caminho, porque os pais não cuidaram, isso não é verdade!
(Adelina).

Foi comum, nas entrevistas e conversas, as mães falarem sobre os processos de


culpabilização social que recaem sobre elas pelas mortes ou envolvimentos dos filhos em
atividades ilícitas. As mães cujos filhos eram estigmatizados sob o rótulo de “envolvidos”
afirmaram que em diferentes situações sentiram-se apontadas como responsáveis pelas ações
de seus filhos, conforme narra Maria: “eu já ouvi muito, você passava a mão na cabeça, porque
ele era vagabundo, porque ele é bandido porque é isso, porque é aquilo. Eu já ouvi muito isso”
(sic).
Entendemos, aqui, os processos de culpabilização como funções da sujeição
capitalística (GUATTARI; ROLNIK, 2016). Ou seja, os processos de culpabilização vividos
96

pelas mães dos jovens assassinados não podem ser pensados sem que se considere seus
atravessamentos com modos de subjetivação regidos pela máxima do capital, que se dão de
forma normatizada e serializada, em que os sujeitos são compreendidos e narram a si sempre a
partir de “uma imagem de referência” (GUATTARI; ROLNIK, 2016, p. 49). Imperativos do
que seriam “boas mães” ou “famílias estruturadas” permeiam, portanto, esse conjunto de
referências, a partir do qual essas mulheres passam a se indagar sobre suas culpas nas mortes
dos filhos, de modo a excluir os agenciamentos coletivos que se relacionam a esses processos
de culpabilização.
É comum a construção de narrativas baseadas em perspectivas moralizantes da
violência urbana que questionem o meio familiar dos jovens e suas “influências sociais” frente
aos seus envolvimentos com atividades ilícitas ou assassinatos (BRITES; FONSECA, 2013;
ARAÚJO, 2012; FREIRE, FARIAS; ARAÙJO, 2009). As concepções de família compõem um
campo de disputas marcado pela forte atuação de vetores que corroboram para a produção de
rotulações, tantas vezes responsáveis pelos processos de culpabilização e estigmatização das
famílias e figuras maternas que vivem nas periferias. Cabe-nos questionar o estigma de
“desestruturação” que recai sobre essas famílias a fim de visibilizarmos as articulações entre as
questões de gênero e as de classe, haja vista que essas famílias têm como principais
responsáveis mulheres pobres, e “durante as primeiras gerações de estudo da família, os pobres
eram vistos como “a massa amorfa” dos “sem-família”” (FONSECA, 2005, p. 55). Com isso,
foi recaindo às famílias mais pauperizadas o rótulo de ‘desestruturadas’, muitas vezes, por estas
não se enquadrarem no modelo nuclear de família e não corresponderem ao padrão de
funcionalidade imposto. Faz-se importante frisar que o mesmo rótulo não é utilizado para
famílias de classes sociais mais abastadas, mesmo que elas apresentem configurações e
comportamentos semelhantes. Produz-se, assim, uma dicotomia ancorada em questões de
classe. Conforme apontado por Fonseca (2005), o processo de rotulação e segregação incide
intensamente sobre as famílias mais pauperizadas, ocorrendo uma associação entre pobreza,
vulnerabilidade, “desestrutura familiar” e exposição precoce à morte.
Essa discussão nos interessa, pois, a maior parte das famílias vítimas de homicídio
reside nas margens urbanas e em condições de pobreza. Frente ao assassinato de jovens, é
comum que se voltem os olhares para suas famílias, de modo a questionar o papel destas sob
tom acusatório. Araújo (2012) afirma que os familiares muitas vezes são vistos, em suas lutas
por justiça, como associados ao crime por residirem em territórios taxados como perigosos,
marcados pela atuação do tráfico. Produz-se, assim, a culpabilização das famílias pelo
envolvimento dos jovens com atividades ilícitas recorrendo ao supracitado termo
97

“desestruturadas” como meio de explicar o envolvimento do jovem com práticas que o levaram
à morte. Vale-se ressaltar que o mesmo rótulo recai aos familiares de jovens não envolvidos
com práticas ilícitas, tendo em vista que a estes também são direcionados os ‘olhares’ de
suspeição (“Se morreu, é porque devia estar “envolvido”) (ARAÚJO, 2012).
Nesse sentido, ao considerarmos a centralidade das mães nesses arranjos familiares,
uma perspectiva romantizada e naturalizada da maternidade pode levar à culpabilização dessas
mulheres pelos destinos de seus filhos, de modo que, no senso comum, se interrogue “onde
estavam as mães desses jovens? ”, “não lhes foi ofertado amor e cuidado? ”, em uma ótica que
individualiza o cuidado. Biroli (2014) critica as correntes maternalistas que, segundo ela,
caracterizam-se pelo negligenciamento das questões políticas, históricas, sociais e culturais que
permeiam a esfera doméstica e familiar. Ao se pensar o cuidado sob uma perspectiva
individualista, denota-se a reprodução das condições precárias de vida que se distribui de forma
desigual entre mulheres e homens, ricos e pobres, negros e brancos. Considerando-se que, em
geral, o cuidado fica a cabo das mulheres, ao se interseccionarem com outros fatores como a
raça e a classe social, o somatório das opressões vividas a partir desses marcadores dirá quais
acessos essas mulheres terão a apoios públicos ou privados na execução do cuidado, o que
reflete nas outras atividades que poderão desenvolver em suas vidas, como investir em suas
carreiras profissionais ou estudar, por exemplo (BIROLI, 2014; 2016). Mioto (2010) destaca
que, atualmente, existe uma maior aceitabilidade das diversidades de arranjos familiares no
tocante às suas estruturas e composições, entretanto, no que concerne às funções familiares, não
se pode afirmar o mesmo. Ou seja, “apesar das mudanças na estrutura, a expectativa social
relacionada às suas tarefas e obrigações continuam preservadas” (MIOTO, 2010, p. 53).
Considerando-se as famílias aqui discutidas, caracterizadas pela centralidade das mães no
desempenho dos cuidados, existe uma expectativa social de que essas famílias, independente
da sua composição e estrutura, consigam corresponder a um padrão de funcionalidade que
abarca a garantia da sobrevivência e bem-estar de seus membros, de modo independente de
suas condições sociais, econômicas ou culturais. Portanto, esses papéis são exigidos dessas
mulheres independentemente dos contextos de exclusões e opressões que vivenciam, recaindo
facilmente sobre elas o rótulo de “negligentes” e, portanto, culpadas. Faz-se importante
problematizarmos o que socialmente tem se estabelecido como negligência materna, levando
em consideração a construção de um ideal materno de total abdicação de sua vida para dedicar-
se aos cuidados dos filhos e da família. Até que ponto o fato de a mãe impor limites sobre esse
estereótipo imposto a elas não se confunde com negligência?
98

A fala de Adelina nos dá pistas para pensarmos de que modo essas questões operam
no cotidiano e processo de sofrimento psicossocial dessas mães. Ela nos falou, emocionada,
sobre as discriminações que já viu algumas mães amigas suas passarem por terem seus filhos
cumprindo medidas socioeducativas. Foi perceptível o modo como enfatizou em diversos
momentos de sua fala que ela, assim como as outras mães, não era negligente com os seus filhos
e que as mortes destes e seus envolvimentos com atividades ilícitas não estavam relacionadas à
ausência de cuidado, atenção ou amor por parte delas:

Então a gente tem essa discriminação, vejo...eu vejo muitas mães passando, porque,
assim, e das poucas, das mães que conheci, Jéssica, sinceramente, eu me lembro de
poucas, daquelas que a gente vê que era negligente com o filho. Eu vi poucas. A
maioria das mães que eu conheci, eram igual a mim, que contava o relato de vida e
não foram mães negligente com os filhos, e que aconteceu a mesma coisa que
aconteceu com o meu, e que sofre até hoje, né? Mas, é discriminado! Você é
discriminado em todo o lugar, todo o lugar que você chega, você é discriminado. E aí,
tem uma coisa que eu não aceito, eu não aceito! (...) Mas a primeira coisa é botar a
culpa no pai ou na mãe, aí eu te digo, dizem, “ah! (Adelina).

Ao pensarmos a subjetividade como um processo, compreendemos não haver


separação entre o individual e o social. De modo, que, ao falarmos sobre o rótulo de
‘negligentes’ e, consequente culpabilização das mães dos jovens, faz-se fundamental
considerarmos os processos históricos e sociais que se relacionam à construção da mulher como
figura central de cuidado familiar. Similarmente, a culpabilização não pode ser pensada como
processo isolado (culpabilização social e auto-culpabilização), mas como algo que se constrói
conjuntamente, na constante interação entre o singular e o coletivo em que se forma os modos
de subjetivação dessas mulheres. Assim sendo, a culpabilização social se relaciona com a auto-
culpabilização, processo em que as mulheres se sentem responsáveis pelas mortes dos seus
filhos, questionando-se, frequentemente, sobre o que poderiam ter feito de diferente para evitar
o desfecho trágico da trajetória deles. A auto-culpabilização as leva a rememorar o percurso de
vida compartilhado com os filhos, buscando entender os motivos dos assassinatos, como nos
fala Maria:

Me senti culpada na vida do [nome do filho], assim...não sei. O que foi que faltou pra
ele chegar no que chegou? O que foi que faltou? (...)As vezes eu penso, “o que foi que
faltou? Será que faltou alguma coisa que eu não fiz, pra poder ele ter chegar no ponto
que chegou?” Eu não sei! É uma coisa que eu… não tem explicação não! Que as vezes
eu penso: “Será que talvez se eu tivesse feito alguma coisa a mais, será que
teria...é...evitado?”(...), ontem a noite mesmo eu tava dormindo, comecei a cochilar,
abri o olho e fiquei pensando, “e se eu tivesse feito alguma coisa a mais? Tinha
melhorado? Tinha acontecido? Por que que ele passou por isso? Por que que a pessoa
99

tem que passar por isso? Tem que ser desse jeito? Por que que a pessoa não vê que
não pode ser desse jeito? Sabe? Eu não entendo essas coisas do mundo, das pessoas
(Maria)

De modo semelhante, Adelina se questiona acerca do que poderia ter feito de


diferente para evitar o envolvimento do filho mais novo com atividades ilícitas e a morte do
filho mais velho:
Aí você não imagina, você fica procurando um culpado, será que fui eu? Será se não
fui eu? O que será que eu deixei a desejar? Mas aí depois eu parei pra pensar e muita
gente conversando comigo, “ tu não é a culpada! Se tu fosse uma mãe negligente, se
tu fosse...era outra coisa” eu até falava assim pro [nome do filho], “Se eu fosse uma
daquelas mães que não tem responsabilidade com os filho, que vai aí pros forró, pras
festa e bebe e deixa os filho passar fome, talvez tu num tivesse passando isso, porque
tu num tem necessidade, tu num tem necessidade de fazer isso”, porque assim, eu
sempre procurei dar a eles, eu vivi pra eles, porque depois da minha separação, eu
não casei mais, então eu vivia pra eles, pro trabalho (Adelina)

Historicamente, isso se reproduz, principalmente, quando pensamos o lugar da


mulher negra pobre na sociedade, à medida que a ela, desde o período colonial, foi reservado o
lugar de subalternidade, de exploração sexual e de sua força de trabalho (DAVIS, 2016). Pensar
essas questões sob o prisma interseccional nos auxilia a questionar sobre quem fornece o
cuidado e de que modo o oferta, dentro de uma perspectiva histórica e social dessas práticas
(BIROLI, 2014). Ao considerarmos as intersecções das opressões nas vidas dessas mulheres
negras e pobres, faz-se importante questionarmos: quem cuida dos seus filhos enquanto elas
trabalham? De que modo o suposto lugar de cuidado se articula com a dimensão dos seus
sofrimentos psicossociais? Ao tornar o cuidado como algo individual e uma questão
concernente ao âmbito privado, a mulher passa a exercer o papel central de cuidadora, tornando-
se a única responsável pelas vidas daqueles que estão sob seus cuidados, de modo que, a morte
ou envolvimento com atividades ilícitas ressoam como fracasso no desempenho dessa função,
reiterando uma lógica de negligência. É requerido dessas mulheres que desempenhem um papel
de heroínas, uma vez que não são disponibilizadas condições de aplacamento das
vulnerabilidades vivenciadas, mas exige-se delas um esforço sobrehumano para sustentar e
atender todas as demandas que lhes são impostas, o que produz uma sobrecarga em seus
cotidianos e se relacionam diretamente com seus sofrimentos psicossociais. Na maioria das
vezes, são mães solteiras, em condições de vulnerabilidade social, que vivenciam contextos de
pobreza e ocupam postos de trabalho precarizados, de forma que precisam enfrentar duras
jornadas de trabalho para sustentar a família, dividindo-se entre a oferta de cuidado aos
familiares e os trabalhos extenuantes.
100

Nesse sentido, Tereza fala sobre a falta de apoio do restante dos familiares, ao
mesmo tempo em que afirma sentir-se culpada pela família pelo envolvimento dos filhos com
drogas ilícitas, questionando-se sobre sua dedicação ao trabalho e falta de tempo para estar com
os filhos quando pequenos:

Eu não tive força de lutar, botar um assim separado, botar um no canto, botar a
família… eu acho que tinha pra ter sido mais… mais a gente, sabe como é família, né.
Sempre é o culpado, não quer tá tendo dor de cabeça com os filhos dos outros, né. E
ela dizia não quer mais trabalho, tanta gente, não tem tempo, sossego pra nada. Até os
filhos da gente, moram com os pais e é estudando direto pra poder se formar e tudo,
as menina assim, elas são… muito sabe...corretas, eu acho elas muito… eu não sei
como é que seus filhos dão tanto trabalho a vocês, porque os meus dão trabalho mais
a gente sempre foi… eu disse, “é, acho que é porque eu trabalhei muito e não dei
atenção”, porque não tinha pai, não tinha como eu ser duas pessoas no mesmo canto,
no mesmo jeito… é… no mesmo canto, né, pra mim ficar com eles e trabalhar. Ou
trabalhava ou ficava com eles, aí eu tive que mais trabalhar pra poder (Tereza).

De modo semelhante, Mariane sentia-se culpada por ter deixado o filho em casa
quando pequeno para ir trabalhar, apesar de reconhecer a necessidade de trabalhar para poder
sustentar os filhos, já que não podia contar com o apoio financeiro do pai das crianças e de
familiares.

Depois eu fiquei me culpando que eu fui trabalhar e deixei meu fi jogado, mas tanta
mãe que trabalha, né, pra dar uma vida boa pros fi; dizia a ele, “meu fi eu vou trabalhar,
tu fica dende casa” (Mariane).

Faz-se importante destacar que, no caso de Esperança, o seu companheiro também


a culpa pela morte do filho, já que ele não apoiava a sua decisão de trabalhar fora de casa. Em
discussões após a morte do filho, ele chegou a alegar que ela deveria ter sido mais presente na
infância do jovem. Com isso, Esperança passou se questionar se o destino do filho teria sido
diferente caso ela tivesse recusado os empregos:

É essa culpa que me mata, que eu fico pensando que ele morreu porque eu fui inventar
de trabalhar, ele novinho, se perdeu no mundo do crime, né. Num foi porque precisou
não! (...) O pai dele: “tu foi inventar de trabalhar, com ele ficando adolescente”, o pai
dele sempre me culpa, quando eu brigo, aí eu digo, “cala a boca, infeliz, eu não quero
mais ouvir isso não”, quando eu discuto com ele. Ele errou, eu errei, de inventar de
trabalhar (Esperança).

Conforme discutido acima, as famílias desses jovens, em geral, têm como cuidadora
central as mulheres, sejam mães e/ou avós, que, além de manterem a casa financeiramente,
precisam se dispor como suportes emocionais e afetivos para os membros familiares. Divididas
entre jornadas de trabalho extenuantes, os cuidados com a casa e com filhos, netos e, muitas
101

vezes, companheiros, essas mulheres vivenciam uma sobrecarga de responsabilidade. Dessa


forma, além das diversas obrigações de ordem financeira e material, é cobrado dessas mães que
mantenham uma atenção e cuidado constantes com os filhos, tornando-se únicas responsáveis
pelas ações deles e também por suas mortes. Esse processo de culpabilização social surge então
como uma das expressões de uma sociedade patriarcal.

4.4 “Só vem a sensação de muito medo”: Medo, Isolamento, Solidão e Silenciamento

O medo é vivido de modo intenso por várias das mulheres que acompanhamos em
campo. Maria afirma não saber exatamente do que ela tem medo, mas estar em espaços abertos,
com outras pessoas que não a conheçam, a faz vivenciar um medo que a paralisa, o qual foi
expresso de distintos modos no nosso encontro. Ao ser contatada para conversarmos, ela passou
a se questionar sobre quem éramos e o porquê de estarmos interessadas em conversar com ela.
O fato de não nos conhecer despertou medo e ansiedade, de modo que não conseguiu dormir
na noite que antecedeu o nosso encontro. Ao nos conhecer, Maria estava trêmula. Aos poucos,
após nossa apresentação e conversa, ela foi se sentindo mais à vontade para falar.

Tomei um susto. Quando ela me falou, ela me falou bem relax, sabe? Assim, que ela
é muito educada, a minha cabeça rodou, ar minha lágrima desceu, então me… alguém
vinha, talvez… não sei, alguém poderia me seguir pra saber o que era. Eu fiquei
assustada, até que eu chorei depois, né, “mas porque que eu chorei? Porque que eu
fiquei desse jeito? Mas é porque eu fiquei com medo, fiquei com medo! Eu disse
“pois tá bom” assim né… a gente precisa mesmo de conversar com alguém, com
pessoas que a gente não conheça, eu fiquei assustada porque foi assim, ela me falou e
eu pensei “será que é alguém que me conhece?” se for alguém que eu conhecesse, eu
não ia falar, porque a gente tem medo, por isso que muitas vezes a pessoa não fala
nada, porque tem medo (Maria).

Durante a entrevista, ouvimos algumas explosões de fogos e, com isso, Maria


ficou visivelmente assustada, recolocando-se na cadeira e segurando fortemente a mesa na qual
nos apoiávamos. E então, chorando, falou sobre os medos que vivencia após a morte do seu
filho.
Não tem esse negócio: “Ah, tu vai passear não sei aonde…”, porque se eu for prum
canto é muita gente, é muita gente, sabe? E pra mim aquilo alí me tortura. Pra mim eu
tô vendo, assim, vamos supor, nós tamo aqui, aí chega um monte de gente aqui, eu já
tento “eu vou rever alguma coisa alí, eu volto já”. Já tento me sair, porque pra mim já
vem, assim, uma coisa assim pra… sei lá, te agredir, te bater, te matar, eu já fiquei
com a minha cabeça assim, sabe? Eu num… às vezes quando tem muito assim, eu não
gosto de muito movimento (chora) (Maria ).
102

Trata-se de um medo difuso (BARREIRA, 2013), em que qualquer espaço ou


relação estabelecida a faz ter a sensação de risco iminente. Como se ela ou os seus familiares
fossem os próximos a morrer. Qualquer pessoa ou espaço desconhecidos passam a ser sentidos
como possíveis ameaças. As sensações de medo e insegurança difusas são produtos daquilo que
Barreira (2013; 2015) denomina de violência difusa, que se propaga indiscriminadamente por
todos os segmentos sociais. Dessa forma, apesar de haver segmentos mais vitimados, conforme
explicitado no capítulo anterior, a violência se caracteriza pela sua “amplitude e capacidade de
irradiação” (BARREIRA, 2015, p. 57) por todo o tecido social, em que todos podem ser vítimas
de práticas violentas, a qualquer momento. Nesse panorama, o medo e a insegurança assumem
distintos significados e formas, operando de modos imensuráveis e incontroláveis. Nos
territórios pesquisados, soma-se a esse panorama de medo e insegurança generalizados, a forte
atuação de grupos criminosos e os altos índices de homicídio e violências que os assolam
cotidianamente. Adorno (1996) aponta a relação entre a generalização das sensações de medo
e insegurança com a ascensão e fortalecimento do crime organizado, não apenas nacionalmente
mas também internacionalmente. Para o autor, frente ao cenário de intensificação das violências
e aumento das descrenças no Estado como instância de resolução dessas questões, os sujeitos
vivenciam a intensificação das supracitadas sensações, uma vez que estas passam a operar em
seus cotidianos mobilizando preocupações coletivas. De modo que o medo e a insegurança não
podem ser reduzidos a meras “histerias coletivas” ou, nas palavras do autor, transcendem seus
componentes ideológicos e culturais, à medida que têm bases materiais e concretas que
influenciam as formas de organização e interações sociais (ADORNO, 1996).
Nesse contexto, a ausência de responsabilização legal dos perpetradores dos
homicídios é um aspecto que pode repercutir na revitimização das famílias, produzindo inserção
de outros membros familiares em um circuito de morte (RODRIGUES E DAMASCENO,
2015). Vale-se ressaltar que, muitas vezes, aqueles que cometeram o homicídio moram próximo
às famílias vitimadas, o que contribui para a intensificação do sentimento de medo ou mudanças
de endereço. Frequentemente, “o medo impede que as pessoas acionem os meios legais, pois se
assim o fizerem podem ser também assassinadas” (SANTOS, 2007, p. 79). Desse modo, o medo
opera em conjunto com a descrença no sistema criminal por parte dos familiares (COSTA,
NJAINE; SCHENKER, 2017). Maria e seus familiares conhecem os perpetradores do
homicídio de seu filho, que residem próximo à sua casa e chegaram a ameaçar outros membros
da família: “a gente também foi ameaçado ali onde nós mora (...) tava todo mundo ameaçado
mesmo” (Sic).
103

Algumas das mães não receberam ameaças explícitas, embora tenham ocorrido
atividades consideradas suspeitas por estas. Como é o caso de Felipa, que, após a mudança de
domicílio, foi procurada por homens que não a conheciam no seu antigo endereço. Fato que
também ocorreu com Anastácia, que afirmou ter sentido medo por ter sido procurada por
homens em uma moto todas as noites na esquina de sua antiga casa, logo após a morte de seu
filho. Essas narrativas nos dão elementos para pensarmos o contexto de acirramento das
violências urbanas vivenciadas cotidianamente por essas mães. Apesar de não ter sido
ameaçada diretamente ou perseguida como Felipa e Anastácia, Adelina afirma ter sido exposta
a várias situações de violência, o que a levou a vivenciar um medo intenso:

Aqui, não tem como, aqui não tem como! Qualquer coisa, eu já me apavoro. Se eu
escuto um barulho, eu já penso que é tiro, porque? Porque eu ouvi muito isso. Eu vi
isso! Eu vi, eu presenciei! Então, tudo pra mim me desperta. Pronto! Eu ando na rua,
é com medo, porque a gente vê, eu deixei até de assistir esses programas policiais,
porque é só violência! É só violência, é só morte, é só morte, é só morte, é só morte,
é só morte! (Adelina).

Além disso, muitas dessas mulheres experienciam, em seus territórios, os limites


impostos pelas facções para transitar pelo bairro. Com isso, andar pelo território, assim como
falar, tornam-se ações perigosas. O medo passa a operar em seus cotidianos, restringindo suas
possibilidades de ser e de viver.

Só vou pra missa, venho trabalhar, minha filha também, a outra também fica em casa
com os filho dela e o marido, também eles não têm tempo de sair, também não querem
sair que eles têm medo também, têm uma menina de 12 ano também, eles têm medo
de sair também, fica mais em casa. Mas lá em casa a gente fica mais é em casa. Pra
mim eu acho que você sair assim, pra mim já vem uma pessoa nas tuas costa, já vem
ela pensando em alguma coisa. Eu num quero, sabe? Ter esses muito, muito essas
conversa, muito esses movimento não que eu tenho medo(...)Não sei...não sei...não
sei, ainda não descobri um porque. Só vem a sensação e de muito medo, como se
tivesse alguém na tuas costa, sabe? Aquela coisa assim ,como que diz assim “eu vou
fazer contigo também, vou te pegar, vou fazer isso contigo”, você fica bem assustada
(Maria).

Conforme apontado por Passos e Carvalho (2015), em estudo desenvolvido no


território do Grande Bom Jardim, predomina em territórios marginalizados e estigmatizados
como periculosos, o que as autoras denominam de “viver acuado”, em que preponderam as
sensações de desproteção e risco iminente. Esse estudo apontou que nem mesmo as residências
de seus interlocutores eram vistas por estes como lugares seguros e invioláveis, haja vista que
tanto policiais quanto membros de facções já haviam invadido as mesmas. Frente ao panorama
de violência vivido em seus territórios, muitas vezes essas mulheres sentem medo de perder
104

outros filhos ou netos, empenhando-se nas tentativas de evitar outras mortes. É o caso de
Anastácia, que temia pela perda de sua filha.

Perto da minha casa, entendeu? Aí eu disse, “meu Deus, será que nois tamo sendo
julgado?” Eu tinha medo nera nem de mim, era da [nome da filha], que ela andava
com ele, ela vivia com ele, entendeu? Todo canto que...ela sabia das coisa dele,
entendeu? Olhe lá se não tava fazendo as mesma coisa que ele tava fazendo
(Anastácia).

Adelina vivenciou sensação semelhante, uma vez que, ao perder o filho,


imediatamente, resolveu todas as burocracias para o enterro ser realizado o quanto antes, pois
temia que o filho mais novo, que residia em outro Estado por estar sob ameaça, resolvesse
regressar: “quando ele soube da morte do irmão, ele queria vir pra participar do velório, e eu
não deixei, disse: ‘não! Não venha. ’” (sic). Essas mulheres se encontram imersas em uma teia
de vulnerabilidades, em que, ao perder um filho é necessário que cuidem dos demais, na
tentativa de evitar mais mortes e dores em decorrência de perdas, conforme analisado nos
tópicos anteriores. Mariane, ao falar sobre como tem sido a sua vida após a morte dos filhos
afirma: “É só preocupação com os outros, né” (sic). Em uma das mesas, a mãe de uma jovem
assassinada afirmou que “O Estado não me deu sequer o direito de ter luto" (sic), haja vista que,
sua neta de menos de um ano ficou sob seus cuidados, a impossibilitando de trabalhar.
Muitas vezes, torna-se necessário calar frente às dores como uma forma de proteger
os que ficaram, haja vista que impera nos territórios habitados a lei do silêncio, que intimida as
denúncias e delações (MISSE, 2008). Assim, a imposição do medo que advém de possíveis
retaliações consiste em um dos principais motivos para as inexpressivas taxas de denúncias.
Soma-se a isso a baixa confiança da população na polícia e a intimidação moral em “ser um
delator”, consistindo este último como um importante fator para essas taxas serem baixas, tendo
em conta o estigma de deslealdade que acompanha aquele que rompe a lei do silêncio imposta
pelas facções. O medo atua como um operador político, ao passo que regula não apenas os
modos de sociabilidade dos sujeitos e suas relações com os territórios em que vivem, mas
também age na produção de subjetividades acuadas (BARROS et al., 2018). Desse modo a
intensa sensação de medo, pode levar essas mães e familiares ao isolamento.
Isolar-se surge como uma forma de lidar tanto com o medo em decorrência do risco
que os outros e as diferentes situações passam a representar em suas vidas como com a ausência
do filho morto. Para Maria, a experiência de isolamento estava relacionada à sensação de medo.
As outras pessoas tornaram-se possíveis ameaças não apenas pela insegurança vivida no
105

território, mas também pelas perguntas que elas poderiam fazer acerca da morte, como se essas
perguntas viessem a fazer Maria entrar em contato com a dor que negava acessar.

Se tiver muita gente aqui e tiver alguém mais assim, eu evito, procuro fazer alguma
coisa, porque podem me perguntar alguma coisa que eu não vou gostar, e eu também
não vou responder, prefiro ficar calada (Maria).

Ensimesmar-se também surge como uma das principais alternativas frente à


intensificação da violência vivenciada nos cenários micropolíticos. Mariane afirmou não
confiar nas pessoas de seu bairro e não se sentir segura para ocupar os espaços de seu território,
de tal modo que compartilha com poucas amigas as dores relacionadas à perda do filho. Afastar-
se do seu território e ocupar outros lugares é uma das formas que a faz sentir-se mais tranquila:

Eu não saio pra canto nenhum, só a viagem que eu vou, é só pro interior, quando eu
vou lá pra casa dá...de uma amiga minha, que mora lá também, que é muito minha
amiga também, a moça, né (Mariane).

Mariane também afirma ter modificado a sua relação com o trabalho. Após a morte
do filho, ela começou a trabalhar em casa com costura, passando mais tempo em domicílio e
restringindo as trocas e relacionamentos com outras pessoas:

Não, não voltei mais não. Não tive mais condições de ir mais não. Eu parei, só em
casa mesmo (...) Eu...O que eu sei fazer, é só as minhas coisa que eu faço mesmo, né?
Só o que eu faço em casa mesmo, eu gosto de fazer. Eu faço só o que eu faço em casa
mesmo, minhas coisas (Mariane).

As experiências de isolamento vão operando em seus cotidianos de modo a


modificar suas rotinas e os lugares que frequentam, fazendo-as se manterem cada vez mais em
casa sozinhas, conforme nos fala Esperança:

Saio pra nenhum canto, não vou mais pra igreja, fiquei balançada na fé. Gostava muito
de ir, pros cultos, pras coisas, mais eu num vou mais não. Tu acha que eu tô normal?
Não né? Da fé eu não tô não. Eu preciso de Deus. Mais por enquanto eu quero ficar
só(...) As vezes eu tô...eu passei 5 meses sem sair de casa, botava nem a cabeça aí
fora, aí um dia eu abri o portão e saí (Esperança).

Uma das dimensões do medo se dá na sua atuação como forma de controle dos
corpos dessas mulheres e seus modos de circulação e ocupação dos espaços públicos, o que se
relaciona diretamente ao isolamento, uma vez que, para Arendt (1989), ser considerado
socialmente, ou seja, ser visto e ouvido no contexto social, constitui-se como requisito
fundamental para a vida pública e política dos sujeitos (FRAGA, 2004). A despotencialização
da ação política dos sujeitos é apresentada por Arendt (1989) como produtora do isolamento,
106

de modo que, ao ocorrer o esfacelamento da esfera política da vida dos sujeitos, resta a eles o
isolamento de seus corpos, algo característico dos regimes totalitários. O isolamento dos
sujeitos, então, relaciona-se à ruína da vida pública (FRAGA, 2004). No caso das mães deste
estudo, o isolamento opera como um produto de diversas forças que visam a despotencialização
dessas mulheres para a ocupação dos espaços públicos políticos, forças que objetivam calar as
suas dores, que pretendem, pelo sofrimento, impedi-las de compartilhar a construção de um
comum social e político.
Após a morte do filho, Esperança afirmou vivenciar intensa vontade de calar, não
falar sobre a dor de sua perda com outras pessoas, de modo a “nunca conversar com ninguém”
(sic). Em sua forma de se expressar, destacavam-se as sensações de indignação frente à morte
do filho; as palavras eram pronunciadas com certo desespero ao colocar as mãos na cabeça,
com o olhar perdido nas lembranças dele, tudo em sua casa lembrava ele. Esperança afirmou
que ninguém poderia compreender a dor que ela estava sentindo. E então, calar e isolar-se foi a
forma de lidar com a falta, recluindo-se no quarto do filho, chorando abraçada com suas roupas
e conversando sozinha imaginando que ele a ouvia. Conforme apontado por Rodrigues e
Damasceno (2015), em estudo sobre o sofrimento de mães em luto pela perda de seus filhos nas
periferias de Fortaleza, diversas são as influências das perdas nas relações familiares e pessoais
que podem atuar na produção de silêncios, distâncias e tensões. Vale-se ressaltar que os
sentimentos das mães, ao vivenciarem suas perdas, por vezes são ambíguos, haja vista que,
frente à experiência de isolamento, Maria também desejava poder dividir sua dor com outras
pessoas, de falar sobre isso abertamente:

Porque eu pensei, “meu Deus, será que um dia, que Deus vai aluminar uma pessoa pra
conversar comigo um pouquinho? Aí eu disse, “Oh Senhor, bota uma pessoa pra
conversar comigo meno 2 minuto, pra mim já era importante e pra mim tá muito,
sendo gratificante. Eu agradeço de coração (Maria).

Já Anastácia vivenciou de modo intenso a solidão, por sentir que não tinha com
quem dividir sua dor. O companheiro trabalhava, a filha saía com os amigos e restava a ela ficar
sozinha com as lembranças do filho. Com a mudança de bairro, ocorrida após o assassinato de
seu filho, Anastácia vivenciou de maneira intensa a sensação de isolamento e solidão, tendo em
conta a distância entre sua nova residência e o bairro em que morava anteriormente, local onde
obtinha suporte de amigos, de familiares, da igreja e de equipamentos sociais:

Eu fiquei...fiquei arrasada! Me mudei pra cá, fiquei sozinha aqui nessa casa, meu
marido saia de manhã e só chega de noite e eu aqui dentro dessa casa, sem conhecer
107

ninguém aqui, ninguém, ninguém, ninguém. As vizinha, essa vizinha ainda não tava
aí, só tava aquela, tinha gente que nem morava ainda aqui. Aí eu só vivia chorando
dende casa, ia lá pro quarto, ia olhar as foto dele, as carta, umas cartas que ele passou,
pra [nome da nora], que ele deu pra ela, eu chorava, carta de amor, lindas as cartas,
né, quando ele tava preso ele fazia umas carta, toda semana ele fazia aquelas carta pra
ela, né, pra mim...dizia alguma coisa pra mim, sempre dizia alguma coisinha pra mim,
né, e pra irmã, né, aí eu olhava e chorava, chorava tanto chega soluçava, aí ia pro
espelho, chorava olhando pro espelho, era desse jeito, tomava banho (Anastácia).

A solidão, de acordo com Arendt (1989), consiste em minar o potencial criativo dos
sujeitos, transcendendo, portanto, a esfera pública e atingindo a esfera privada de suas vidas
(ARENDT, 1989, FRAGA, 2004). Dá-se pelo ensimesmamento e anulação da possibilidade de
que essas mulheres percebam outros possíveis, outras formas de andar na dor que as assolam.
“A solidão produz o desarraigamento das pessoas (...) apresenta-se, então, como experiência de
desumanização” (FRAGA, 2004, p. 94). A intensificação da violência e o sofrimento
psicossocial vivenciado por essas mães apresentam-se como fatores que, se não impedem,
dificultam suas possibilidades de atuação política. Como se pode observar, medo, isolamento
e solidão atuam tanto como elementos concernentes ao processo de enlutamento nas
singularidades de cada mãe (medo de perder outros filhos, medo das ameaças sofridas), como
também participam da operação necropolítica, como reguladores dos comportamentos
individuais e coletivos.
O medo funciona como um operador não apenas do isolamento mas também do
silenciamento dessas mulheres. O silenciamento transcende o ato de não falar sobre um evento
traumático como as mortes dos filhos, mas surge como uma expressão da colonialidade,
atingindo sobretudo mulheres negras (KILOMBA, 2010). Constitui-se a partir de forças
históricas e sociais sistemáticas que operam na produção de subjetividades marcadas pela
subalternização das suas existências e objetificação de seus corpos, destituídos de valor e
inscritos pelas violências sofridas. Essas forças se relacionam com a reprodução de uma
segmentação racista, endossando discursos de que as vidas dessas mulheres e de seus filhos são
merecedoras das condições precárias em que vivem (BUTLER, 2014). Acerca da legitimação
das mortes juvenis e produção de (in)visibilidade, que permeiam as existências tanto dos jovens
como de seus familiares, Maria narra uma situação vivida por ela, em que, logo após a morte
do seu filho, um vizinho a abordou proferindo um discurso alinhado à uma perspectiva
legitimadora do homicídio:

Por que assim, né? Assim, cê tem que vê aquilo ali como, assim, uma ignorância da
pessoa, num sei… acho que é a expressão da pessoa, num entendo ah, machuca,
machuca porque você acha que, alguém chega perto de você e te faz a mesma
pergunta, e você tem vergonha, eu me senti com vergonha quando a criatura chegou
108

pra mim, eu fique assim, sabe? Tipo quando você leva assim um murro? (...) às vezes
eu tô assim sozinha, eu me lembro, sabe? “Tu já esperava matarem teu filho, de
qualquer jeito”. Quando, meu vizim também falou né, que foi esse que perdeu os 2
filho também, “quando a mãe tem um filho, que ele nasce com dor na barriga de ser
vagabundo, ele morre sendo vagabundo”; essas coisa, a gente escuta, é uma coisa que
você olha pra pessoa, você não tem resposta, você não tem resposta, você procura,
você não tem. Você tem o quê? Você tem vergonha, você tem medo, você se sente
pra baixo, você perde o chão. Então, todo mundo, a maioria das pessoa passa por isso,
a maioria das pessoa passa por isso, quem perde familiar, é isso aí (Maria).

A invisibilização das existências desses jovens também recai sobre as suas mortes
e dores das mães, ocorrendo uma articulação entre legitimidade da morte juvenil e ilegitimidade
do sofrimento das mães. Desse modo, a legitimação das mortes não apenas intensifica o
sofrimento psicossocial que caracteriza o cotidiano das mulheres após as perdas dos jovens,
mas também o processo de silenciamento vivido por elas como mulheres negras e periféricas.
À medida que a morte é vista como destino esperado e merecido, o sofrimento em decorrência
dessa morte passa a ser vivido, tanto por Maria como por outras mães, como algo que
envergonha, que produz medo e as machuca. Pela vergonha, finda-se silenciando em suas dores.
Esse dado corrobora com pesquisas feitas anteriormente, como as de Njainer; Schenker (2017),
que apontam que determinadas famílias podem sentir-se privadas de vivenciar o luto, haja vista
que, muitas vezes, a morte dos filhos “envolvidos” são socialmente desejadas.
O sofrer em silêncio também constitui as pequenas violências cotidianas de que
nos fala Venna Das (2011), às quais essas mulheres estão à mercê. Muitas vezes, essas mães
encontram-se sozinhas e caladas em suas dores, calam frente a processos macroestruturais e a
suas expressões no cenário micropolítico, que as impõem que há algo de errado em sofrer pela
morte dos filhos, pois eles eram “bandidos” e, no senso comum, “ser bandido” se torna
sinônimo de desumano, descartável. Esses processos foram comuns nas narrativas das mães dos
jovens “envolvidos” em atividades ilícitas, como é o caso de Maria, Anastácia, Luiza e Tereza.
As vidas dessas mulheres, assim como suas dores, precisam, pois, resistir a processos que visam
os seus silenciamentos. Lorde (1977) aponta, a partir de sua experiência singular como mulher,
que os silêncios se dão em decorrência dos medos vividos pelas mulheres, estabelecendo-se
como forma de proteção de si. Essa autora atenta para o fato de que o silêncio não protege as
mulheres, mas as deixam mais vulneráveis às forças que as oprimem, reiterando a importância
de que se rompam os silêncios, transformando-os em linguagem e ação.
Compartilhar das histórias dessas mulheres produziu deslocamentos em mim como
pesquisadora. Em conversa com Maria, ela me falou da impossibilidade de esperar a morte de
um filho mesmo que este tenha envolvimento com facções criminosas ou esteja ameaçado de
morte, em suas palavras: “Ele tava sendo ameaçado. Mas você não espera. É uma coisa que
109

você não espera” (sic). A reiteração da morte como algo inesperável para os familiares, mesmo
frente às ameaças, também suscitou em mim rupturas, tendo em vista que, antes de vivenciar o
campo, pensava haver alguma expectação de morte frente às constantes ameaças e riscos
vivenciados pelos filhos. A morte surge, então, como um evento para o qual inexiste a
possibilidade de preparar-se emocionalmente, mesmo frente a contextos de ameaça e risco, e
com o qual cada membro familiar deverá encontrar uma forma de lidar, podendo também ter a
própria família como suporte.
Conforme pudemos perceber, as sensações de medo, isolamento, solidão e
silenciamento operam de forma conjunta, produzindo novas formas de sociabilidade dessas
mulheres e de subjetivação, que se dão a partir das marcas que ficam após as mortes dos filhos.
O isolamento, a solidão e o silenciamento surgem frente à experiência de perigo iminente de
outras mortes que precisam ser evitadas e se dão de modo articulado com o medo como
operador político.

4.5 “Eu mesma não sou mais a mesma”: Desterretorializações decorrentes do


homicídio juvenil

A perda de um filho surge como uma experiência devastadora nas construções


subjetivas dessas mulheres, produzindo diversas desterritorializações e reterritorializações em
si mesmas e com o mundo. Considerando-se a forma abrupta que se dão as mortes, algumas das
mães passam a ter alucinações com seus filhos, o que consiste em um modo de continuar
compartilhando seus cotidianos com estes, amenizando a saudade:

Eu via ele engatinhando no chão, eu fechava meus olho, tapando o meu ouvido, eu via
ele passando a mão no meu rosto: “Mãe, para com isso”. Eu via ele deitado perto de
mim. Entendeu? pra mim eu perdi o chão, eu num… sabe? Eu via ele assim, como às
vezes eu vejo, assim, sabe? Cê vê a pessoa assim, ó. Cê vê a pessoa engatinhando, cê
vê a pessoa mexendo na tua barriga, cê vê a pessoa mamando no teu peito... Cê vê a
pessoa chorando, cê vê a pessoa caindo. Como dia 4 agora vai fazer 11 meses que ele
faleceu, quando chega assim, perto, eu fico assim, sabe? Sensível (Maria).

As narrativas de todas as mães acompanhadas são repletas de boas memórias sobre


seus filhos. Em geral, elas estabeleciam relações de muita proximidade com o filho perdido.
Luiza, alternando entre o choro e o sorriso ao falar sobre suas recordações, narra com muito
carinho as lembranças que tem do filho, que, consanguineamente era seu neto, mas segundo
ela: “Eu tive 6 filho e criei esse neto, mas nenhum dos meu filho deu amor a mim como ele
deu” (Sic). Ao mesmo tempo que falava sobre algumas das situações vividas com o filho, fez
110

questão de mostrar diversas fotos, vídeos e audios de Whatsapp trocados com ele. A relação
estabelecida com o jovem morto é, assim, imbuída de um significado especial. Para Maria:
Meus filho são tudo bom pra mim, mas ele era o único filho, ele era muito carinhoso
comigo, sabe? Aí, quando aconteceu isso aí(..)ele era um menino de dentro da minha
casa, quando ele morava lá em casa, ele era um menino bom, pra mim ele era um
menino bom, sabe? Ele arrumava a casa, ele fazia comida, ele cuidava dos irmãos
dele. Se a minha casa tivesse assim, meia bagunçada ele arrumava, pegava a
mangueira, quando um dia eu cheguei daqui da escola, de noite, eu quase eu morro,
porque quando eu cheguei ele tava lavando as telhas dende casa, a casa toda molhada
e as coisas tudo no mei da rua (Maria).

Algumas intensificaram sua aproximação com os filhos mediante as passagens


destes pelos sistemas socioeducativos ou carcerários, pontuando que eram os filhos que
requeriam maior atenção de sua parte, como narra Esperança:

Era danado, era um menino que dava problema, deu muito problema, mais eu senti
tanta falta dele com todo problema, não queria que meu fi tivesse morrido(...)o que eu
amava mais era ele, não sei porque me deu tanto trabalho, e era o que eu amava mais.
Aí eu fico assim, meio pertubada da cabeça, tem dia que choro, grito, deixei o quartim
dele do jeito que era, não tirei nada, nem roupa nem nada, vai fazer 1 ano, mais eu não
me conformo com a perda dele (Esperança).

Esses filhos eram suporte para essas mulheres em diferentes esferas da vida
(emocional, afetiva, financeira), em uma existência já marcada pela ausência de apoio, tendo
em conta suas trajetórias, em que, muitas delas foram deixadas pelos companheiros e tiveram
que tomar para si toda a responsabilidade da casa e do cuidado com os filhos. Nesse contexto,
a morte dos filhos destaca-se como uma experiência aniquiladora, por significar a perda de um
dos poucos suportes que essas mulheres tinham. Em uma das mesas redondas acompanhadas,
uma das mães do Curió expôs a sua dor falando que era com o filho que planejava o seu futuro,
que com ele sentia a certeza de que iria ser cuidada em sua velhice, mas após sua perda, não
tinha mais essa certeza.
Em decorrência dessas perdas, algumas das implicações podem se dar no âmbito da
saúde, podendo desencadear processos de adoecimento físico e mental. Diversos estudos
(DOMINGUES; DESSEN, 2013; SCHENKER; NJAINE, 2017; COSTA, NJAINE;
SCHENKER, 2017; ALMEIDA, GARCIA-SANTOS; HAAS, 2011; CREMASCO,
SCHINEMANN; PIMENTA, 2015; DOMINGUES, VILLA-BOAS; DESSEN, 2011;
SANT’ANNA, AERTS; LOPES, 2005; BARBOSA, MELCHIORI; NEME, 2011 E
DOMINGUES, DESSEN E QUEIROZ, 2015) abordam os impactos emocionais e afetivos das
perdas dos jovens em seus familiares, como sentimentos de tristeza, solidão, isolamento, apatia,
vontade de morrer, sensação de vazio e medo destacados na maior parte dos estudos avaliados.
111

Também são recorrentes nessas literaturas os relatos de saudade, desejo de vingança (tanto em
relação às pessoas no seu meio social comunitário quanto à pessoa que cometeu o assassinato)
e culpabilização pela morte. Alguns fatores são apontados como intensificadores do sofrimento
e luto dos familiares, como a imprevisibilidade das mortes e o fato de estas ocorrerem
precocemente. Os sofrimentos psíquicos em decorrência das mortes podem ocasionar
adoecimentos como Transtorno de Estresse Pós-Traumático e Depressão (COSTA, NJAINE;
SCHENKER, 2017). Dessa forma, os sofrimentos em decorrência das perdas estão
intrinsecamente relacionados à qualidade de vida dessas mulheres, pois é comum que se
produzam somatizações dos sofrimentos que são de ordem psíquica (SANTOS, 2010), o que
acarreta prejuízos à condição geral de saúde das mulheres:

É.. articulares, é anti-inflama, é joelho, inflamação, é tendinite, bursite, e depressão.


Depressão (...) Hoje eu só durmo à base de remédio, porque eu não consigo dormir
direito, normal não, tem que ter a medicação. Eu faço a psicoterapia toda semana,
todas as sextas feiras. Tenho acompanhamento, que agora tá sendo de 2 em 2 meses,
com o psiquiatra e assim que eu vou vivendo e levando (Adelina).

Ainda no âmbito da saúde, após a morte dos filhos, Maria, Tereza, Esperança e
Adelina desenvolveram problemas com insônia e falta de apetite:

Eu durmo mal! 3 hora eu me acordo e não durmo de jeito nenhum. Durmo ruim. Passo
o dia trabalhando, durmo tarde e me acordo cedo (...) O trabalho melhorou um
pouquinho, tava pior, ficava sem comer, só fumando, aí manerei mais no cigarro,
voltei a me alimentar, mais eu me alimento mei ruim ainda, num entra a comida.
(Esperança).

Adelina narra o processo de adoecimento que tem vivido após a morte do filho:

Os problemas articulares, já vinha apresentando, né, e aí quando veio essa...esse


problema todo e eu me vê sozinha, sem ninguém pra onde correr, sem ter que pedir
ajuda pra ninguém, de ter que dar conta do recado, né, aí eu me vi entrando numa
depressão. Eu me vi entrando numa depressão, eu me vi lutando muito (chorando).
Pelo [nome do filho vivo], e hoje, eu digo que eu não vivo, eu sobrevivo, porque, além
de eu já ter passado esse problema todo com o [nome do filho vivo], a preocupação
que é constante, perder o filho que eu não esperava perder, de uma forma dessa, então,
querendo ou não, eu não vivo, eu sobrevivo. Tem semanas que eu estou melhor,
quando eu esqueço de tudo. Tem semanas que eu não consigo trabalhar, porque
quando eu saio, é… eu não posso vê uma moto com 2 homem em cima, eu tenho pra
mim que vai me assaltar, que vai… porque, além disso, devido ao meu trabalho, eu já
vi… passei por várias situações muito...pesadas (Adelina).

Essas mulheres passaram então a construir uma relação de dependência de


medicações para que possam conseguir dormir ou sentir-se bem. É o caso de Maria, que não
consegue dormir sem a medicação:
112

É tão ruim você perder um filho… isso dói tanto. É tão ruim, tão ruim. Você não tem
ideia disso aí. Tem hora, ó, ontem, ontem a noite, eu fui dormir era 3 hora, eu não
consegui dormir, eu tive que tomar um remédio pra dormir, eu me levantei, fui tomar
banho, e disse: “Meu Deus, amanhece o dia logo” (Maria).

De modo semelhante, Tereza e Adelina, além de usar medicamentos para dormir


também os utiliza para tratar a depressão, desencadeada a partir das dificuldades vivenciadas
juntos aos filhos quando vivos e intensificadas após as mortes destes: “Eu tô tomando a
medicação, eu tô tomando remédio pra nervo, tomo remédio pra depressão (...) porque eu só eu
não sinto sono” (Tereza). Nesse sentido, a medicalização do sofrimento dessas mulheres faz
parte de um contexto mais amplo de medicalização social característico da sociedade
contemporânea do rendimento, em que os sujeitos só são valorizados mediante seus
desempenhos, levando-os à uma busca incessante para alcançar um lugar no futuro que nunca
chega (SEVERIANO, 2013). Para Han (2017), o sujeito contemporâneo é marcado pelo
cansaço e exaustão produzidos na busca incessante de algo inalcançável, que diz dos nossos
modos de subjetivação capitalísticos, em que prepondera o estrangulamento de outras formas
de lidar com os sofrimentos. Desse modo, destacamos uma outra dimensão da violência que
não se articula diretamente ao homicídio, mas que atua no imperativo de que não se sofra, pois
não há tempo para viver e elaborar essas perdas. Somando-se a isso, os recortes de gênero, haja
vista que a maior parte dos usuários de benzodiazepínicos são mulheres (PONTES; SILVEIRA,
2017) e de classe social (SILVA; BATISTA; ASSIS, 2013), uma vez que precisam continuar a
trabalhar e cuidar dos demais familiares. Medicaliza-se como uma forma de dopar esses corpos,
controlá-los e não os fazer sentir. A medicalização, surge, portanto, como uma outra forma de
silenciamento desses corpos.
Outro ponto comum nas vidas dessas mulheres foi a mudança de domicílio após a
morte dos filhos. Essas mudanças, em geral, foram ocasionadas não só pelo medo da violência,
mas pelas lembranças relacionadas aos filhos que eram despertadas nas residências anteriores.
Felipa, Adelina, Luiza, Mariane e Anastácia optaram pela mudança de residência após a perda
do filho:

Me mudei! Eu me mudei porque o lugar me dava muita lembrança triste, né. Como
ele andava toda noite de skate, na pista, aquelas ruas eram muito parecida com ele,
né? E também pelos comentário dos vizinhos que ainda tava tudo no início e eu não
queria discutir com ninguém, eu não tava com cabeça de discutir com ninguém, então
eu acabei me mudando, certo? Até porque, foi até bom eu me mudar, porque quando,
na mesma noite em que eu me mudei, teve um carro, que a vizinha lá, disse que não
sabia de quem era o carro, o carro preto chegou procurando a família, né, isso na
mesma noite… no dia que eu enterrei meu filho (Felipa).
113

A perda do filho tem um efeito desterritorializador que sobrepuja as mudanças de


domicílio. Essas mulheres perdem referências sociais e comunitárias, enfrentam isolamentos
em novos territórios, sejam eles físicos ou existenciais, tendo em vista que esses isolamentos,
frequentemente, são acompanhados dos processos de adoecimento e medicalização
supracitados. No campo das desterritorializações existenciais, destacam-se ainda as alterações
na forma como essas mulheres sentem e percebem a vida. Essas mães narraram que lidar com
a falta e com a saudade é algo que elas vão vivenciando a cada dia de suas vidas, na
impossibilidade de compartilhar o cotidiano com os filhos perdidos:

Eu era feliz (suspiro). Eu era feliz. Você nunca vai imaginar o que vai acontecer. Eu
me sentia feliz. Assim, eu não vou dizer que eu sou infeliz, eu sou feliz que eu tenho
meus outros filho também, mas é difícil assim, você tem isso aqui, aí isso aqui sai
daqui, aí você pergunta o porquê, né? Você quer que teja alí. Eu me sentia bem feliz,
mesmo ele tando preso, como eu ia visitar ele, eu já ficava, nos finais de semana, eu
já sabia que eu tinha que ir comprar aquele malote, o kit do presídio, mesmo na
situação que ele tava lá, sabe? Mas ele tava lá! E agora? E agora? Né? (Maria )

Essas mulheres vão, portanto, vivenciando suas dores como um processo que vai
sendo construído paulatinamente, permeado por rupturas e descontinuidades que o
complexificam:
Mais de vez em quando eu quero dar uma melhorada, aí eu me lembro dele, caio. Hoje
eu não entrei no quartim dele, quando eu tô em casa eu subo, entro, cheiro as roupinha,
as coisa (Esperança).

4.6 “É uma dor imperdoável”: Sobre viver na dor

Vivenciar a perda de um filho se mostra como uma experiência traumática. Maria,


na tentativa de nomear como tem sentido a perda do filho, nos fala que foi tomada por uma
sensação de vazio.
É muito dolorido. Eu sei que ele foi preso, fez as coisa dele errado, mas é um filho
que tá na tua barriga! É muito ruim. Eu tento às vezes assim, sabe, eu não quero
chorar... mas às vezes é mais do que a gente, não é porque você queira, entendeu?
Não é porque você queira, mas é, assim, uma dor. É, não tem explicação. Se você
perder um pai, vamos supor, ou uma mãe, é muito ruim. Mas um filho não, é diferente
(...) Um vazio (Maria).

Pensando nas afetações e repercussões geradas pela perda dos jovens, Santos (2010)
pontua que o homicídio produz alterações na dinâmica das relações familiares e comunitárias,
efetuando rupturas com os modos de organização da vida familiar e relações interpessoais. A
ausência do jovem morto é então metaforizada por Santos (2010) como um vão, remetendo ao
vazio que passa a caracterizar o cotidiano dessas famílias. Muitas vezes, as afetações decorridas
114

das mortes não conseguem ser articuladas em palavras para que sejam verbalizadas,
pertencendo à ordem do inenarrável. Falar sobre as mortes se torna uma constante tentativa de
dar sentido à dor vivida pela perda repentina de um filho amado. Essa impossibilidade de
construir uma narrativa sobre a violência vivida, nos remete aos estudos de Das (2007), quando
esta reflete sobre o silêncio que impera no que tange às verbalizações das violações vividas.
Para a autora, essas violências se inscrevem em seus corpos, constituindo-se para além do
silenciamento dessas mulheres. Os corpos dessas mães se tornam signos das violências vividas.
Anastácia compara essa sensação a uma inexistência de si e, após três anos da morte
do filho, ela não sabe falar sobre como conseguiu superar o estado de apatia e tristeza profunda
em que viveu, reconhecendo a processualidade do luto.

Só que eu tava sem chão, né, porque fazia pouco tempo que ele tinha morrido, aí tinha
que arrumar muita, as coisa logo e eu tenho muita coisa, porque eu sou artesã, aí
começa a juntar coisa, juntar coisa aí eu, fiquei assim, parece que eu não existia, eu
num tinha chão, eu não sei como é que eu consegui, só Deus mesmo, pra eu me
levantar e arrumar tudo, meu marido não me ajudava em nada, ele também ficou muito
triste, né, e eu tô até melhor, tô bem. Eu tô é bem, já tive pior, em recuperação, mais
a gente não esquece, né, porque a ferida, é devagarzim mesmo (...) (Anastácia).

Ainda sobre a impossibilidade de verbalizar a dor, faz-se importante destacarmos a


nossa conversa com Mariane. Essa foi uma das entrevistas mais breves, valendo observar que
ela não conseguia falar sobre o filho morto, chegando a nos pedir desculpas por ter aceitado
participar do estudo e não se sentir bem para falar sobre a perda. A experiência do ficar sem
palavras para expressar a dor diz das marcas profundas dessa perda em sua vida, que repercutem
de forma atemporal. A dor permanece mesmo após outras significações dadas ao longo dos
anos, sendo, portanto, um luto que difere de qualquer outro vivido.

Ai mulher, não gosto nem de pensar, porque foi tão triste, ó! São 5 anos mais pra mim
foi ontem, eu não gosto de falar não. Vocês me desculpa aí viu? Eu não esqueço dele
um minuto (Mariane).

Maria compara a dor de perder um filho a uma tortura, uma saudade que nunca será
aplacada, uma ausência com a qual nunca vai se acostumar, não importa o quanto tente levar o
seu cotidiano de uma forma “normal”:

Mas, assim, às vezes me tortura assim, por que? Já vai fazer quase um ano, né? É uma
tortura! Quem perde família é uma tortura, é uma tortura que não acaba nunca. Você
tem que pedir muita força a Deus, pra amenizar, amenizar sabe? Mas é uma tortura
grande, uma coisa que te machuca eternamente, uma saudade que não acaba, viu? É
uma coisa que, se você tiver com fome, toma uma água, tudo bem. Você vai dormir,
115

cê acorda, aí quando cê vai dormir, cê acorda, “vou ligar pra fulano, vou falar”, aí
você diz… Eu passei bem mais de 15 dias, quase todo dia eu ligava pra ele, quase
todo dia ( falando com voz triste) (Maria).

A comparação da perda com uma tortura é algo emblemático, tendo em vista


estarmos falando a respeito de corpos negros, pobres e subalternizados que são torturados de
diferentes formas ao longo da vida e dos séculos de marginalização social. A tortura, aqui,
revela-se como uma outra face do açoite colonial, como demarcado por Kilombra (2010) e
Mbembe (2017). Maria, assim como Esperança, chega a se questionar acerca da sua sanidade
frente ao intenso sofrimento e dor, que são constantes. O luto as modificam de tal modo que
elas sentem que nunca mais serão as mesmas:

Às vezes eu me sinto, assim: “será que eu to ficando louca? Será que tem alguma coisa
dentro de mim que eu não descobri ainda?” (Maria).

As narrativas das mães vão na contramão de um discurso que visa a construção de


seus filhos como corpos matáveis, discurso esse que pressupõe a espera ou certa previsibilidade
de suas mortes, considerando o envolvimento prévio deles com atividades ilícitas. Não esperam
pela morte dos filhos e, ao choraram e sofrerem por suas perdas, as mães recobram a
humanidade desses jovens alvos da política de matabilidade que visam seus extermínios.

Aí, quer dizer, aí aconteceu isso aí também mais porque tinha que acontece, ele tava
sendo ameaçado de todas as forma. Ele tava sendo ameaçado. Mas você não espera.
É uma coisa que você não espera. Você não espera (...). Você entra em estado de
choque mesmo que você não queira. É uma coisa imperdoável isso aí. É uma dor
grande demais, demais, demais. Parece que quanto mais você tenta se controlar, você
não consegue. O seu peito dói muito. Muito, muito, muito. Não tem, assim, natal, não
tem ano novo, não tem isso, não tem aquilo, não tem nada. Não tem nada. Você não
tem explicação pra morte (Maria).

Nas conversas com as mães, fica evidente que, após a perda dos filhos, passa-se a
conviver com o luto e a dor, o que envolve as constantes lembranças dos filhos mortos,
procurando vê-los em outros jovens de mesma idade:

Eu queria só olhar… só olhando, queria só ver ele, nos menino que passava parecido,
eu queria ver ele, hoje em dia a gente ainda sente assim, vinha no mei do caminho
dendo ônibus, ouvi uma música, que tem uma música que é muito, que é dos crente,
que quando eu escuto, eu chorava que eu não podia escutar, dentro do ônibus mesmo,
longe eu escutava, pronto, eu começava a chorar, a chorar, aquela coisa. Mais hoje em
dia eu não sou assim, eu choro um pouco, né, mais eu escuto, já tô me controlando, aí
vejo uma pessoa parecida com ele, aí eu, tentando ver ele, eu quero ver ele, é ele, é
ele, é ele! Será que é ele mesmo? Querendo… aí eu boto na cabeça que não é ele, que
ele não tá mais aqui com a gente, né. E foi muito… assim pra mim, quando eu cheguei
aqui, eu não conseguia fazer nada, às vezes nem a comida, e eu sempre gostei de fazer
116

minhas coisinhas artesanais, que eu sou artesã, invento as coisas, nem isso, eu num
quis saber de nada, queria saber de nada, de nada, de nada, foi horrível (Anastácia).

Outra forma de relembrar os filhos mortos, rompendo com a barreira temporal e


espacial imposta pela morte, é a contemplação de fotografias. Foi comum nos nossos encontros
as mães mostrarem fotos de seus filhos; Luiza chegou a mostrar uma carta que seu filho havia
escrito para ela no último dia das mães que passaram juntos. Lima (2013), em estudo com um
grupo de mães que perderam seus filhos, aponta que as fotografias são fundamentais nos
processos de elaboração das dores das mães, fornecendo uma imagem em que o “real, o
imaginário e o simbólico se entrecruzam” (p. 135). São, portanto, elementos importantes no
ritual da dor das perdas.
Algumas das mães passam a narrar a si mesmas a partir das tristezas e angústias
que permeiam seus cotidianos após as perdas.

Angústia, tristeza, dor, toda noite eu choro. Não tem um dia, um dia, um diazinho que
eu diga pra você que ele não teja aqui, ó? Assim, na minha frente, um dia, um dia, um
dia. Eu mandei fazer um banner des tamain, com as fotos dele e botei ali. Todo dia eu
tô sentada assistindo televisão, eu olho e choro, não tem um dia que eu não me lembre
dele, não tem um dia que eu não sinta saudade (...) me sinto assim, amargurada,
angustiada (...) E daí, assim, eu, sinceramente, hoje eu… eu não sou mais aquela
pessoa que eu era, né? Eu era alegre, mesmo o meu filho passando pelos centros tudo
mais quando ele ia solto, eu vinha naquela satisfação, naquela alegria com ele, né?
Mas agora, mulher, eu passei muitos dias quando perdi meu filho, que eu pulava da
rede, dia de sábado, trocando de roupa pra ir pro SECAL, aí que caia a ficha.Ai meu
Deus do Céu, não tem mais quem visitar não!(...) Pronto! Foi a última vez que eu fui
feliz, foi essa aí (Luiza).

Ao mesmo tempo em que Luiza fala sobre o sentimento intenso de tristeza que
marca os seus dias, afirma que a perda do seu filho a fez enfrentar os seus medos para lutar por
justiça, passando a não ficar em silêncio frente às situações de opressão.

Quando elas disseram que tinham matado ele, dali eu perdi medo de tudo na minha
vida. Eu perdi medo de tudo na minha vida! (...) Medo assim, de enfrentar assim, de
dizer a verdade pra polícia, dizer a verdade pra quem quer que seja. (...)Falo e falo
mesmo e não tô nem aí, quero nem saber, falo mesmo! E pra mim, minha filha, o
estado é uma merreca, pra não dizer outra palavra, né (Luiza).

Felipa nos fala de algumas mudanças que percebeu em si após a perda de seu filho,
chegando a perder o sentido de sua vida e ter ideação suicida. Por mais que reconheçam o apoio
recebido de diferentes partes, sentem que as pessoas não sentem a mesma dor:

Então, eu perdi, no começo eu perdi um pouco da vontade de viver, porque eu não…


a decepção foi muito grande, além de eu perder um filho, vei a decepção junta, então
foi muito grande, como… foi uma punhalada muito grande, né? (...)Então, eu luto
117

muito, mais a gente não é a mesma pessoa, sempre a gente guarda aquela tristeza, e a
dor, a gente compartilha com todas as pessoas a nossa dor, mas na verdade, ninguém
sente a dor que você sente. Com as pessoa é solidária? É! Compartilha? Compartilha!
Chora com você, sente com você, aquela sua tristeza, mas a dor mesmo, não existe
ninguém que possa sentir, e essa dor não é transferível, ela não transfere pra
ninguém(...) (Felipa).

Algumas situações de sofrimento são tão intensas antes da perda do filho, que a
morte surge como uma espécie de alento para as mães. No caso de Tereza, que vivia intenso
conflito domiciliar entre os dois filhos que eram usuários de drogas ilícitas, a morte de um dos
filhos a possibilitou, apesar da dor, vivenciar maior sensação de tranquilidade.

Mais ele deu muito trabalho (...) Mais assim, um pouco...pra mim mudou assim , a
menos a preocupação, né, que eu ficava muito preocupada né, quando os 2 tavam
juntos, né. Muito nervosa, eu ficava assim...quando eles tavam querendo discutir um
com o outro, eu ficava assim em pânico, porque eu sabia que não ia terminar bem
aquilo ali. Aí assim...no momento assim eu só, sem dinheiro, foi tirado uma vida
assim...muito ruim, mais aí eu fiquei...com...assim, quanto ao [nome do filho]
eu...ganhou um desconto, não ficar todo tempo...tá correndo, tô no trabalho, “a menina
disse que lá em casa tá uma confusão, os meninos tão em tempo de se matar”.
Diminuiu [Conflito em casa], ficou um silêncio, tá entendendo? Ficou um silêncio.
Mais, com meu coração, ele foi descansando um pouco na minha mente, viu, eu
estava...fiquei em tempo de pirar (Tereza).

Durante as entrevistas e contatos em campo, muitas foram as memórias dessas


mulheres com seus filhos. As suas narrativas não apenas os humanizam como também
caracterizam o processo de cuidado e dedicação que tiveram com eles. Esperança fala sobre
uma situação em que conseguiu evitar o linchamento de seu filho, entrando na roda de pessoas
que o espancavam para protegê-lo até que a polícia chegasse:

Eu agarrei a cabecinha dele, né, botei nos meus peito, não levante a cabeça meu filho!
Cada uma capacetada que eles davam pegava nos meus braços, nas costas, ficavam
dando chute assim atrás de pisar nos peizim dele e eu protegendo com o corpo! (...)
mais não deixei matar meu filho, mas morreu, mesmo assim. Com toda luta, ainda
perdi, né. Eu fiquei desacreditada, não acredito mais em nada, tô desacreditada da
vida, num acredito mais em nada não (Esperança).

Ao narrar sobre os “trabalhos” (sic) que o filho a deu, Esperança revive as emoções
e tristezas que viveu junto a ele. Enquanto o filho estava vivo, ela tentava fazer aquilo que
julgava como boas ações (em suas falas: frequentar a igreja, adotar uma criança, ajudar os
demais, não desejar a morte de “bandidos”) no intuito de preservar os males e riscos que o seu
filho estava à mercê. Entretanto, após sua perda, afirma ter crescido nela a sensação de
inconformidade, raiva e desejo de vingança. Além disso, há o sentimento de impotência, de não
ter podido fazer mais nada para salvar a vida do seu filho.
118

4.7 Repercussões como expressões do ‘fazer morrer’

Conforme argumentamos ao longo do capítulo, as repercussões dos homicídios são


diversas e se dão em diferentes âmbitos da vida, não só das mães dos jovens como também dos
demais membros familiares. Ouvi-las se torna importante, uma vez que pode fornecer pistas
sobre seus modos de subjetivação, possibilitando discutir o lugar político que elas têm ocupado.
Mantivemos o compromisso de mostrar de que modo os sofrimentos dessas mulheres se
articulam a processos políticos, históricos e sociais, demarcando as formas distintas pelas quais
operam as diferentes opressões que se interseccionam a partir dos marcadores sociais de gênero,
classe e raça. Essa perspectiva interseccional nos auxiliou a visibilizar os sofrimentos dessas
mulheres a partir dos imbricamentos das distintas opressões vividas por elas em suas trajetórias.
Além disso, no intuito de rompermos com perspectivas individualizantes das dores advindas
das perdas, abordamos o sofrimento em sua dimensão psicossocial, que se dá na confluência
entre os processos singulares (de cada sujeito) e os coletivos (relacionados aos processos
macropolíticos), englobando questões como a falta de reconhecimento social, os processos de
exclusão e de violação de direitos.
Desse modo, compreendemos a articulação de diversas forças nos agenciamentos
coletivos que produzem os sofrimentos, destacando não apenas os processos de adoecimento
psíquico e físico, já tão abordados em estudos sobre os lutos de mães e familiares, mas
entendendo que estes se dão de forma articulada com a política de matabilidade de corpos
negros e periféricos, cujos enquadramentos reiteram imperativos de que são vidas que não
valem a pena serem vividas.
As diferentes repercussões discutidas, como as alterações nas dinâmicas familiares;
os processos de culpabilização vividos pelas mães; o medo que opera psicossocialmente
produzindo isolamentos, silenciamentos e solidão; as desterritoralizações produzidas a partir
das perdas e a convivência diária com as dores constituem-se como diferentes vetores que
compõem o mosaico do sofrimento psicossocial dessas mães. Operam, portanto, como
expressões do genocídio da população negra e pobre, um dos modos de “fazer morrer” sem que
se constitua assassinatos diretos dessas mulheres.
119

5 “NÓS COMBINAMOS DE NÃO MORRER”: PERSISTÊNCIAS,


RESISTÊNCIAS E (RE)EXISTÊNCIAS DAS MÃES DE JOVENS
ASSASSINADOS

O presente capítulo objetiva cartografar estratégias produzidas pelas mães


participantes desta dissertação para lidar com o assassinato dos seus filhos. Para tanto, partimos
de elementos das entrevistas e das inserções em espaços e ações de mobilização social em torno
da questão da violência contra jovens na cidade, que, ao longo da pesquisa-intervenção,
contaram com a participação de familiares de jovens vítimas de homicídio.
Trazemos aqui diferentes formas de enfrentamento que foram percebidas,
ressaltando que o engajamento em coletivos organizados para luta política por memória e
justiça não foi a única forma encontrada pelas nossas interlocutoras para persistirem, resistirem
e (re)existirem. Pretendemos, então, romper com hierarquizações das estratégias de lidar com
as dores encontradas por essas mães, que poderiam reproduzir regimes de (in)visibilidade que
silenciam certas mulheres e a complexidade de suas experiências. Queremos, com isso, pontuar
que a convivência diária com essas perdas e diferentes formas de enfrentar os impactos dessas
mortes em seus cotidianos são aqui vistas não como meras questões individuais, mas como um
processo (micro)político, interessando-nos que coletivos de forças agenciam e as faz funcionar.
O desprendimento de uma perspectiva representacional proposto pelo viés
cartográfico nos possibilita, neste estudo, ouvir os sofrimentos presentes tanto quando
transformados em lutas nos espaços políticos quanto nos transformados nas diferentes formas
de resistência, de modo a não reproduzir engessamento dos seus modos de viver com as dores
oriundas das perdas. Como visto no capítulo anterior, o sofrimento é transversal às narrativas
das oito mães entrevistadas, apresentando-se de formas singulares e sendo elaborado de
diferentes maneiras. Ao ouvir suas trajetórias, denota-se que, por vezes, o ato de persistir
tocando a vida, mesmo desprovida de condições necessárias a uma vida vivível, dado o quadro
de desigualdades e desassistências (BUTLER, 2018), apresenta-se como uma das formas de
resistência e de enfrentamento a processos de silenciamento e invisibilização a que são
submetidas as populações precarizadas e subalternizadas, destacadamente mulheres negras
(CARNEIRO, 2003). As narrativas sobre as formas encontradas para lidar com a morte dos
filhos nos dão pistas dos modos singulares que essas mulheres têm encontrado de “andar na
dor” (LIMA, 2018, p. 72). Esta autora, analisando alguns acontecimentos-dispositivos de
violências que vitimaram mulheres negras, traz-nos questionamentos acerca dos processos de
120

violações e exclusões sociais que compõem o cotidiano de mulheres brasileiras em uma


perspectiva interseccional. Partindo desses questionamentos, interessa-nos ouvir essas vozes
silenciadas, compreendendo de que modo essas mulheres têm construído suas (re)existências
frente a processos que as levam a compor um dos alvos mais suscetíveis à política de
matabilidade que opera nas colônias contemporâneas.
Na aproximação que tive com algumas dessas mães em campo, evidenciaram-se,
além do engajamento em coletivos, outras formas de "andar na dor", outros modos de lutar e
(re)existir tecidos micropoliticamente por estas mulheres. Apenas uma das mães estava tendo
suporte de alguma política pública, 3 delas engajaram-se em movimentos políticos cuja pauta
envolvia a luta por memória e justiça pelas mortes dos filhos, duas delas apontaram o trabalho
como meio importante de lidar com a dor, três disseram encontrar apoio na religião e fé.
Percebe-se que, de modo geral, os apoios institucionais têm sido bastante insuficientes,
inclusive porque algumas das mães ouvidas sequer chegaram a ser alcançadas pelas políticas
assistenciais e vivenciavam mais fortemente as sensações de isolamento e acuamento discutidos
no capítulo anterior. As existências dessas mulheres passaram a ter novos sentidos após as
mortes, tendo suas lutas focos e estratégias distintas: lutam para continuarem vivas, em uma
sociedade que, tal qual fez com seus filhos, também visa apagá-las e silenciá-las; lutam contra
a precariedade maximizada pelas desigualdades sociais e violência de Estado; lutam por
memória e justiça diante da perda dos filhos e contra o extermínio juvenil.
Considerando-se os elementos postos até aqui, traçamos, ao longo da pesquisa-
intervenção, alguns eixos-analisadores que nortearão a discussão deste capítulo, são eles:
Trabalho, Fé, Engajamento em coletivos de lutas políticas e Rede de apoio socioinstitucional.

5.1 “Era pra mim só trabalhar”: o trabalho como estratégia de “andar na dor”

Frente à precariedade induzida pelas desigualdades e violências que leva à


construção das existências dessas mães como corpos indignos de vida, as formas de apoio
surgem como algo fundamental e característico das diferentes formas de resistência vividas por
essas mulheres. Em meio às dores inenarráveis de um cotidiano marcado pela ausência, o
trabalho surge como um dos espaços não apenas de “distração” que tem lhes possibilitado se
afastar momentaneamente do sofrimento, mas também de criação e fortalecimento de vínculos
com outras pessoas. Dessa forma, Maria e Esperança citam o trabalho como um dos modos que
encontraram de “andar na dor”:
121

Aí me chamou pra trabalhar, ela falou pra essa amiga dela que eu tava com depressão
“oh, chama ela pra trabalhar! Com criança ajuda!”Aí eu fui e dei uma melhorada
mesmo, os meninozim um mais lindo que o outro, mais tem hora que eu tô...assim, dá
aquela perturbação no meu juízo, eu quero vir mimbora, fico assim pertubada (...) O
trabalho melhorou um pouquinho, tava pior (...) Mas quando eu penso nele, cuidando
dos fi dos outros eu fico me lembrando dele, quero vir mimbora (Esperança).

No contato que tive com Esperança, fazia-se perceptível a inconformidade com a


perda do filho e o semblante de desolação e apatia frente à vida, com uma constante interpelação
a mim se estava enlouquecendo, já que me identifiquei como vinculada também à psicologia.
Ela havia abandonado o trabalho após a morte do filho, passando 5 meses sem conseguir sair
de casa, e decidiu retornar em um outro emprego, agora com crianças em uma escola, na
tentativa de amenizar sua tristeza. A relação de cuidado estabelecida com essas crianças a tem
ajudado a conviver com sua dor, ainda que, em dados momentos, esse convívio a remeta a
lembranças do filho.
Maria trabalha também em uma escola, no mesmo bairro de Esperança. Com as
sensações de acuamento e isolamento vividos de forma intensa por ela, só sai de casa para ir à
missa ou ao trabalho, que funciona como uma espécie de refúgio à sua dor.

Assim, meu ponto forte é a escola [lugar em que trabalha]. Eu vindo trabalhar pra
mim tá bom demais (...) gosto mais de ficar assim: vou pra minha casa, fico em casa,
de manhã eu me levanto, vou trabalhar, pra mim tá bom (Maria).

Ela assinala que o trabalho é um modo de desempenhar uma função que a ajude a
evitar esmorecer diante da dor da perda, já que os dias de fins de semana são uma “tortura”.
Ansiosamente, realiza a contagem regressiva dos dias até que chegue ao momento em que o
deparar-se com a dor da perda se torna inevitável:

Quando chega essas data comemorativa eu não gosto, pra mim não era pra ter mais
nenhum feriado. Era pra mim só trabalhar, trabalhar, eu não quero saber de domingo,
sábado, não sei quê, não sei quê, entendeu? Pra mim é uma coisa assim, que… não dá
não pra mim não (...) Você conta segunda, terça, quarta, quinta e sexta, o que me
perturba mais é quinta e sexta. Sexta, sábado e domingo, que eram os dias que ele
largava dele. Quando chega sexta-feira, pra mim é uma tortura (Maria).

Após a perda do filho, os fins de semana e datas comemorativas passam de


momentos bons para estar com a família a momentos de mal-estar em que se destaca a ausência.
Passar esses dias sem o filho evoca com maior intensidade a dor da perda, de modo que seria
preferível que esses dias não existissem, assim como seria preferível que não o tivesse perdido.
Além disso, foi no trabalho que Maria estabeleceu relações de confiança que a fazem sentir
apoio:
122

Quem conversou comigo foi (nomes dos profissionais da escola) aqui na escola que
eu gosto muito delas tudim aqui. Eu gosto muito deles. A (outros nomes) conversa
muito comigo também. Mas, eu agradeço muito, entendeu? (....) Eu acho que toda
família tá passando (em relação ao sofrimento) assim, talvez até pior, porque, pelo
meno, eu venho trabalhar, e tem família que perde, que não vem trabalhar aí eu tenho
esse apoio todinho direito, sabe? (Maria).

Estudos como os de Domingues e Dessen (2013) e Costa, Njaine e Schenker (2017)


mostram que as relações com os colegas de trabalho são uma das formas de apoio encontradas
por familiares de jovens assassinados. Como podemos perceber no trecho acima, em sua
narrativa, Maria explicita de que modo o estabelecimento de relações com outras pessoas se faz
fundamental no convívio com a dor. Para Butler (2018), os modos de resistência se dão pela
construção de alianças com outros sujeitos. É pela união com aqueles que compartilham as
mesmas condições precárias de vida que os sujeitos podem descobrir modos de viver uma vida
boa em uma vida ruim (BUTLER, 2018). Essas trocas, de certo modo, as auxiliam a seguir
vivendo em suas condições dolorosas ou “andar na dor” em uma vida que parece estar parada.

5.2 “Entrego na mão de Deus e pronto”: A Fé como modo de persistir

Conforme discutido no capítulo anterior, existe uma escassez na oferta de apoio


psicossocial aos familiares de jovens assassinados. Frente a isso, outra forma de lidar destacada
pelas mães é apegar-se à fé em Deus e na justiça divina. Vale-se pontuar que esta última é,
muitas vezes, a forma de justiça que resta a muitas das mães acreditar, haja vista o baixo
percentual de responsabilização dos homicídios de seus filhos, questão pautada por Domingues
e Dessen (2011) em um de seus estudos sobre reorganização familiar após o homicídio, no qual
demonstram a espera de uma mãe por uma resolução divina para o assassinato de seu filho.
Segundo dados do CCPHA, do total de jovens assassinados entre os anos de 2012 e 2016,
apenas 2,8% foram elucidados. Esses dados apontam para a ineficiência do sistema jurídico,
frente ao qual, segundo Costa et al:

As famílias encontram no “divino” a possibilidade de um conforto inscrito,


principalmente, na ideia da “justiça de Deus” que, no ditado popular, “tarda mas não
falha”. Na opinião de Bussinger e Novo, na medida em que as mães se distanciam da
justiça no plano das ações concretas, se aproximam de um plano abstrato, marcado
pela crença numa “ação divina” de justiça." (COSTA et al, 2017, p. 3092)

Vale-se pontuar que a pouca efetividade da justiça se dá de forma mais intensa ao


se considerar o contexto social e econômico dessas famílias. Vianna (2015), em estudo com
123

familiares de jovens assassinados por policiais, destaca a luta dessas pessoas por justiça,
ressaltando o longo tempo de espera, os sofrimentos decorrentes disso e os regimes de
(in)visibilidade a ques estes familiares e mortos estão à mercê. Pudemos perceber nas narrativas
das mães que aquelas cujos filhos eram rotulados como “envolvidos”, muitas vezes, nem
chegavam a procurar a justiça; havendo mais fortemente a exigência por investigação e punição
por parte das mães dos filhos que não recebiam o referido estigma. O filho de Maria foi
assassinado por um outro jovem que era seu amigo e reside no mesmo bairro. Quando
interpelada acerca das investigações sobre a morte de seu filho, ela afirma não querer “mexer”
na sua dor, preferindo não procurar por justiça. Para ela, restaria confiar naquela que provém
de Deus:

Uma coisa que me machucou muito, eu… entreguei a Deus, sabe? (...) Eu entreguei a
Deus, que Deus tome de conta, porque eu acho que... uma coisa, assim, sabe? que
acontece… eu sei que acontece tanta coisa que você... entrega a Deus, gente. Deus é
maior de tudo. Deus toma de conta. Entendeu? (Maria).

É interessante destacar que ela não sabe dizer se o fato de não procurar o sistema
judiciário tem relações com as sensações de medo e acuamento que vivencia no território,
embora, ao falar sobre isso diminua o tom de voz, tornando-se quase inaudível. Tomando a
noção de discurso como algo que transcende a literalidade daquilo que é verbalizado, a entrega
e confiança na justiça divina em detrimento da responsabilização legal do perpetrador do
homicídio parece ser a alternativa que resta àquelas mães que vivem assoladas por uma política
de precarização induzida e do medo como formas de governamentalização das vidas
periferizadas, em que as condições de cidadania não lhe são garantidas. A fé se coloca, então,
como um apoio importante, não apenas pela esperança em obter algum tipo de justiça em um
cenário de injustiças sociais diversas e persistentes, mas também como uma forma de obtenção
de suporte espiritual, conforme narra Anastácia:

Aí eu queria muito entrar no grupo de oração pra eu me reabastecer, pra mim pegar
exemplo, entendeu, pra mim seguir alguém, né. Aí tinha um pastor lá, um homem lá,
pregando, ele disse que o filho dele foi preso, aí eu, “igual o meu”, pensando, né, e no
dia do...que ele foi ter o depoimento dele, né, o julgamento, eu fiquei lá em frente o
fórum, de joelho, rezando pra nossa senhora e pedindo (Anastácia).

A fé e espiritualidade também aparecem em outros estudos como importantes


formas de apoio aos familiares vítimas de violências (COSTA, NJAINE; SCHENKER, 2017;
DOMINGUES; DESEN, 2013, DOMINGUES, BOAS; DESSEN, 2011; ALARCÃO,
CARVALHO; PELLOSO, 2008). Esses estudos destacam que, frente ao sofrimento pela perda
124

dos filhos, a espiritualidade surge como uma fonte de fortalecimento e amparo importante nas
tentativas de reestruturação da vida dos familiares de jovens assassinados. É pela fé que eles
encontram meios de significar as perdas, inclusive pela escassez de acesso a espaços
institucionais em que possam contar com apoio psicossocial na elaboração desses processos.

no começo que eu perdi meu filho, né? Eu senti muito aflita, né? Eu sentia muito
angustiada, mas, pedindo a Deus que, livrasse assim, tirasse aquela mágoa do meu
coração, né, aquela tristeza, pra eu poder...viver né (...) (Tereza).

Neste estudo, a espiritualidade também é colocada como importante apoio, sendo


atribuídas à fé sentidos distintos. Como exemplo, nas narrativas de Tereza e Maria, a fé surge
como um modo de aceitação da morte, na tentativa de assimilação e conformidade da perda do
filho como um desígnio de Deus, por vezes incompreensíveis. Na narrativa de Anastácia, a
religiosidade aparece como modo de ampliação das relações sociais e apoio emocional, já que,
ao inserir-se em atividades da igreja, passou a desempenhar funções na referida instituição,
fazendo novas amizades e construindo uma rede de apoio até então inexistente. Muitas vezes,
é através do suporte religioso que essas mulheres conseguem ampliar suas interações sociais,
obtendo ali auxílio para enfrentar os sofrimentos decorrentes da perda dos filhos. Ou seja, se
por um lado a religião pode aparecer como um meio de aceitação das mortes, por outro, fornece
apoio emocional não encontrado em outros espaços.

Mais aí eu comecei a rezar, fui atrás da igreja, né, porque aqui não conhecia nada, né,
aí comecei a ir pra igreja, aí arranjei uma amiga, Deus me deu uma amiga, uma
ministra também, igual a mim, aí… mas também não é a todo mundo que eu conto as
minhas coisas, né, mas pra ela eu me abri porque eu… primeiro eu quero conhecer a
pessoa pra saber se é pessoa que não fofoca (Anastácia).

Conforme pode-se perceber, a religiosidade funcionou como meio de inserção em


um novo grupo social na igreja, que foi de fundamental importância para que Anastácia se
sentisse apoiada em sua dor.

5.3 “Cada uma dessas pessoas traz um pouquinho do meu filho”: Rede de Apoio
Socioinstitucional

Por ‘rede de apoio socioinstitucional’ compreendemos um espectro amplo de


suporte a essas mães que englobam além do trabalho, religião e coletivos políticos, aqueles
relacionados a algumas instituições, no caso das participantes deste estudo, os suportes do
125

Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECA), Centro de Defesa da Vida Herbert


de Souza (CDVHS), movimentos em prol dos direitos humanos, políticos, universidades.
Pretendemos, neste ponto, refletir de que modo os apoios socioinstitucionais têm sido ofertados
às mães e familiares de jovens assassinados. Para tanto, partimos do pensamento de Butler
(2018) quando esta aponta para a interdependência dos corpos. A dependência é, dessa forma,
característica das existências dos sujeitos, o que torna a todos vulneráveis. Entretanto, para a
filósofa, essa vulnerabilidade se distribui de forma desigual, de modo que recai mais fortemente
sobre determinados corpos, como negros, mulheres, LGBT’s, pobres, imigrantes. Frente a essa
maior suscetibilidade de alguns grupos à condição de vulnerabilidade, faz-se necessário que
sejam articuladas políticas que possibilitem o enfrentamento das condições precárias de vida
que os assolam. Ou seja, grupos subalternizados, caso das mulheres deste estudo, vivenciam
mais fortemente as condições de vulnerabilização expressas pelas desigualdades sociais e
desamparos institucionais.
Durante a inserção no território do grande Bom Jardim, uma das estratégias de
aproximação que havíamos proposto era contatarmos as mães por intermédio dos equipamentos
de saúde e assistência da região, o que, ao longo da inserção, mostrou-se ineficaz. Foi-se
delineando, mediante essas observações, que essas mulheres vivenciavam contextos de intenso
isolamento e acuamento que corroboravam para seus distanciamentos das diversas políticas
públicas. Vale-se ressaltar que o acuamento atua por duas vias, de modo que não apenas as
mães e familiares não procuram os serviços, mas estes também encontram dificuldades que
inviabilizam a aproximação com esse público. Opera, nesses territórios, uma política de medo
em decorrência da intensificação das violências e dos limites de deslocamento impostos pelas
facções, questões que levam ao isolamento e acuamento tanto dos familiares quanto dos
profissionais das políticas públicas. Essas percepções em campo foram reiteradas nas
entrevistas, haja vista que, nas narrativas das mulheres, houve poucas menções às políticas
públicas. Muitas delas, inclusive, demonstraram não conhecer os equipamentos, sem nunca os
haver acessado, e as que conheciam demonstraram certa desconfiança em relação a eles. Dessa
forma, o baixo índice de acesso às políticas, a falta de confiança por parte dos familiares e o
medo estão intrinsecamente relacionados ao acuamento social dessas pessoas. Pode-se observar
alguns desses elementos em uma conversa com Maria, quando esta afirmou ter confidenciado
algumas questões a nós, como pesquisadoras, mas que não se sentia à vontade de conversar
sobre aquilo com outras pessoas do território, muito menos de procurar os serviços públicos,
como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), por exemplo:
126

Eu já fui lá, já passei por lá (...) Eu tive no CAPS, não sei. Têm 3 anos e eu fiquei lá,
acho que uns 2 meses por aí. Não tenho interesse no CAPS não. No momento, não
(Maria).

Dados do CCPHA apontam que menos de 10% dos familiares de jovens


assassinados tiveram apoio socioinstitucional no pós-homicídio (organizações da sociedade
civil, ministério público, juizado da infância e da juventude, conselho tutelar e defensoria
pública) (BARROS, MOURA JR, SEGUNDO; BENÍCIO, 2018). Esse dado dialoga com o
apresentado pela Rede Acolhe, relativos ao seu primeiro ano de atendimento, que aponta que
78,3% das famílias acompanhadas não receberam visitas de serviços públicos. Nesse sentido,
o estudo realizado por Domingos e Desen (2013) aponta, ainda, que os familiares que sentiram
menor apoio foram aqueles cujos filhos estavam envolvidos com atividades ilícitas, ponto que
nos auxiliam a pensar de que modo a legitimação das mortes se relaciona com o acuamento
vivido pelos familiares e mães. Esses índices demonstram a falta de suporte que esses familiares
encontram para lidar com as mortes dos jovens e com as mudanças em suas vidas decorrentes
das perdas. Frente a esse contexto de desamparo e intensa vulnerabilidade, faz-se importante
destacar o papel desempenhado por organizações da sociedade civil no que concerne ao apoio
a esses familiares.
Foi perceptível a relevância da atuação dessas organizações no território do Bom
Jardim, na medida em que a nossa inserção só se tornou possível graças à articulação desses
atores locais, que têm construído relações de proximidade com o território, desenvolvendo
intervenções no contexto micropolítico junto aos familiares e às juventudes. Dentre essas
organizações, destaca-se o Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza (CDVHS), a Rede
Desenvolvimento Sustentável do Grande Bom Jardim (DLIS), e ações e grupos desenvolvidos
por terreiros de umbanda e candomblé. Além dessas organizações, o Centro Cultural Bom
Jardim e o Fórum das Escolas foram grandes articuladores no território, haja vista as relações
de proximidade de alguns profissionais desse equipamento com familiares de alguns jovens
assassinados. Denota-se que poucas são as iniciativas de intervenção junto aos familiares,
embora haja uma estreita relação destes com alguns profissionais das organizações
supracitadas, que reconhecem a extrema necessidade e urgência de cuidado com esse público.
Algumas ações têm sido desenvolvidas nesse sentido pelo CDVHS e Centro de Umbanda Pai
Neto junto a mães de jovens, numa perspectiva de prevenção e fortalecimento de vínculos, mas
sem nenhum recorte específico para familiares que tiveram jovens vitimados. Vale-se destacar
que, das mães entrevistadas, nenhuma estava participando das ações supracitadas, pois estas
foram propostas recentemente. Já nos demais territórios pesquisados, Luiza e Adelina destacam
127

que, no que concerne a apoio institucional, apenas o CEDECA atuou como suporte a elas em
seus sofrimentos, afirmando não terem recebido apoio de instituições da rede de saúde,
assistência social ou jurídica.
Durante os processos de luta acompanhados em campo, delineou-se fortemente a
atuação de organizações em defesa dos direitos humanos junto aos familiares não apenas no
Bom Jardim, mas também com as mães dos outros territórios 20. No bojo das discussões sobre
o enfrentamento das condições de precariedade, faz-se importante destacarmos os direitos
humanos como uma questão a ser problematizada, tendo em vista alguns processos de
naturalizações e capturas ocorridas em seu processo histórico que se relacionam à produção
contemporânea de discursos contrários a sua efetivação endossando jargões como “direitos dos
manos” e que implicam diretamente no cotidiano dos familiares, à medida que constituem
forças de legitimação dos assassinatos e violações vividas pelos jovens e familiares. Em seu
berço, os direitos humanos foram propostos visando assegurar os princípios de uma soberania
democrática, garantindo os ideias de liberdade e igualdade para os sujeitos, entretanto, como
nos mostra Coimbra, Lobo e Nascimento (2008), historicamente esses direitos têm sua
efetivação restrita à uma minoria elitizada, resguardando privilégios das elites sociais enquanto
aos menos favorecidos resta a docilização dos seus corpos por meio da crença na participação
social e efetivação desses direitos para todos, que, no cotidiano, têm encontrado diversas
dificuldades em serem concretizados. Nesse contexto, os direitos da população subalternizada
acabam sendo vistos como privilégios para “bandidos” na contemporaneidade.
Conforme pudemos vivenciar em campo, o trabalho desenvolvido por equipes que
atuam em defesa desses direitos tem sido de fundamental importância, pois se trata de uma
verdadeira potência de revolução molecular à medida que se dá nas entrelinhas, nas trocas
cotidianas, nos afetos, no investimento e transformações micropolíticas (GUATTARI, 1977).
Essas associações estão compartilhando o cotidiano de violações junto às famílias e aos jovens,
fortalecendo-os, informando-os sobre seus direitos, fornecendo amparo jurídico em casos de
violações, pautando as violências às quais essa população, muitas vezes relegada pelo poder
público, está a mercê cotidianamente. Vale-se ressaltar que os trabalhadores dessas instituições,
muitas vezes, são moradores do mesmo território. Dessa forma, rompendo com uma visão
naturalizada, já apontada pelas autoras supracitadas, percebemos em campo que os direitos
humanos longe de serem algo garantido pela elaboração de suas cartas e convenções, afirmam-

20
Faz-se importante reiterarmos, aqui, que neste estudo, operamos com a noção de território existencial, que
transcende os limites impostos pela compreensão geográfica de território. Algo já explicitado no capítulo 1 desta
dissertação.
128

se como uma luta constante, uma disputa de narrativa, um processo em curso. Não é algo dado,
é uma constante luta por conquistas diárias que podem parecer pequenas, mas que têm um
potencial transformador à medida em que se tecem conjuntamente por sujeitos que estão
partilhando as mesmas condições de subaltenização (COIMBRA; LOBO; NASCIMENTO,
2008).
As ações de enfrentamento pautadas por essas organizações desenvolvidas nos
territórios, na prática, têm constituído uma incessante luta pela garantia de direitos de
populações subalternizadas e amenização das distribuições desiguais de acesso e exclusões
sociais. A exemplo disso, podemos citar um filme curta-metragem21 que foi desenvolvido por
jovens de escolas do Bom Jardim pautando o homicídio juvenil e seus impactos no cotidiano
da escola. Um espaço para falar sobre a violência que os assolam, exposto no Cineteatro São
Luiz, um dos principais cinemas de Fortaleza. Essas ações são modos dessas juventudes
ocuparem, de serem vistas e ouvidas tanto por vários outros jovens que compartilham das
mesmas experiências quanto pela população em geral. Após a exibição do filme, mães de jovens
assassinados puderam falar sobre suas lutas e dores e, naquele momento, uma delas mostrou-se
feliz e demarcou a importância de estar falando para tantos jovens, pois sua luta era por eles
que estavam ali e que tinham a mesma idade ou idades muito próximas à do seu filho quando
fora assassinado. Cenas como essas se tornam possíveis graças à disposição de cada um em
compor aquele momento, de se dispor a falar, a ouvir, a ocupar os espaços e a se unirem com
os apoios sociointitucionais em torno de uma luta comum. Desse modo, as organizações de
direitos humanos têm se afirmado no cotidiano de algumas das mães e familiares que perderam
jovens como um importante ponto de apoio.
Incorporamos, aqui, as reflexões de Coimbra, Lobo e Nascimento (2008), que
propõem que pensemos os direitos humanos a partir de uma perspectiva crítica, porque esses
direitos foram historicamente destinados a uma determinada parcela da sociedade que detinha
privilégios sociais e econômicos, de modo que os grupos sociais mais subalternizados, nos quais
se encaixam as mulheres deste estudo e seus filhos, não estavam incluídos. Ações como a
supracitada se tornam subversivas à medida que trazem à tona a dimensão crítica da efetivação
desses direitos, ecoando que “os nossos mortos têm voz” e que todos deveriam ter o direito a
terem suas existências respeitadas. A partir dessa leitura crítica, as referidas autoras afirmam a
necessidade de adotarmos uma perspectiva ética dos direitos humanos, de modo que possam se
voltar à defesa e garantia dos direitos daqueles que vivem a constante negação de condições

21
Curta “Não pare de sonhar”, disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=2i-rm8vuGVo
129

dignas de vida. As organizações de direitos humanos acompanhadas nos territórios têm atuado
a partir de uma perspectiva ética (COIMBRA, LOBO; NASCIMENTO, 2018) na luta pela
efetivação dos direitos dessas mulheres e familiares, haja vista que em suas ações afirmam
direitos humanos para todas e todos, e não apenas para “humanos direitos”, parafraseando
alguns dizeres do senso comum, mesmo em um período político que tem se mostrado aversivo
a essas pautas.
Além da importante atuação das instituições em defesa dos direitos humanos, os
suportes de amigos e familiares também se destacam como fundamentais. Mariane e Tereza,
apesar de não terem recebido nenhum tipo de apoio institucional no pós-homicídio, apontam
outras formas de apoio. Mariane reconhece o suporte que recebeu de suas amigas, as únicas
pessoas que sente que pode confiar: “ali elas são tudo na minha vida”. Tereza, ao falar sobre o
suporte, destaca o sofrimento e autocupabilização de sua filha pela morte do irmão, o que indica
um processo de reconhecer sua dor em um outro. Já na trajetória de Felipa, o apoio de uma
ampla rede de solidariedade foi apresentada como meio de enfrentamento de sua dor:

Eu recebi apoio de uma grande rede de solidariedade, foi nisso, a defensoria nos
procurou também, certo? E com ela veio assim, uma grande rede de solidariedade e
[nome], ele mandou o [nome profissional dos direitos humanos] nos procurar, me
procurar e procurar as outras mães, certo? E, que era os direitos humanos e que ali o
[nome] me abraçou e disse, “você não está só”, aquilo ali foi uma segurança que eu
tive, muito grande. Então, eu tive apoio de muita gente (...) do partido do [nome
partido político], eu tive apoio de uma grande rede de solidariedade, que se juntou a
muitos movimentos, que têm hip hop, “cada vida importa”, é… de prevenção contra
o ...no homicídio na adolescência, certo? Então, muito, muito, muito mesmo assim,
uma grande rede de apoio, então, eu só tenho a agradecer, porque o meu filho dizia
que não ia me deixar só e ele está cumprindo, porque ele nunca me deixou só, em
momento algum, e você é uma dessas pessoas, né? Que veio, nesse meio dessa rede
de solidariedade e está aqui conosco (Felipa).

Durante os processos vividos e acompanhados em campo, pudemos perceber a


integração das mães organizadas em coletivos tanto entre si quanto com pessoas de outros
movimentos sociais, de organizações em defesa dos direitos humanos, de professores,
pesquisadores e extensionistas vinculados às universidades. De forma que se tornavam
explícitas as proximidades e construções de redes de apoio com esses atores e atrizes sociais.
Essas percepções são esboços dos vínculos e aproximações com outros corpos já verbalizados
pelas mães em entrevistas, reuniões e mesas que acompanhamos.
De modo distinto ao que se deu com Felipa, Anastácia viveu mais fortemente as
sensações de isolamento e acuamento por um período mais extenso, de forma que, durante o
primeiro ano da morte do filho, esteve afastada de todos os equipamentos, instituições e pessoas
130

que lhe davam suporte durante os momentos anteriores de sua vida em que acompanhava seu
filho nas passagens pelo sistema carcerário. Apenas após a morte do filho, Anastácia obteve
suporte da rede de atenção psicossocial. Ela afirma que não recebeu nenhum tipo de apoio
socioinstitucional até ter procurado o CAPS. Vale-se ressaltar que a sua busca por esse serviço
se deu em decorrência do uso abusivo de drogas por parte de sua filha, que se intensificou após
a morte do irmão. Frente a isso, Anastácia buscou o apoio desse equipamento após orientação
de uma das profissionais de referência do CRAS da região em que morava anteriormente:

Não! [resposta relativa à pergunta sobre ter recebido algum suporte de instituições
fora a igreja] Agora é que eu tô indo pra… pra esse CAPS, porque, né nem pela morte
dele, é pela [nome da filha], porque a ela tá indo… tava indo, começou a ir, aí não foi
mais, (...). A psicóloga, “não, a senhora também tinha que vir, pro grupo”, ah, é grupo
de família, é o que eu comecei ir agora, eu tô com umas 3 quarta-feira só, que eu tô
indo, que é todas as quartas, mais tô bem melhor, sabe? Melhor assim, porque a gente
escuta o que a pessoa fala ali, o problema dela parecido com o meu, aí às vezes é pior
que o meu. Aí a gente vai pegando alguma coisa, pra ver se joga no nosso, pra ver se
dá certo (Anastácia).

A partir dos diferentes suportes obtidos e dos variados modos lidar com os
assassinatos, podemos questionar quais condições de acessos a suportes as mães obtiveram em
seus lutos e de que modo estes suportes as auxiliaram a vivenciar as perdas de formas distintas.
Para tanto, partimos do seguinte questionamento: os apoios têm sido suficientes para que essas
mulheres e familiares enfrentem as condições de precariedade em que estão vivendo?
Ao longo da pesquisa-intervenção, pudemos perceber que o desamparo
institucional é um dos modos pelos quais opera o isolamento das mães e familiares. Com base
nas narrativas das mães e nos processos vividos em campo, acreditamos que o apoio
socioinstitucional se afirma, potencialmente, como um elemento diferencial na trajetória das
mães que tiveram seus filhos vitimados pela violência letal, sendo que, a partir desse suporte
ampliado, elas têm a possibilidade de se fortalecerem mediante as alianças construídas com
outras pessoas e, nesses encontros, ressignificar suas perdas. A importância desse apoio se
denota ao percebermos que aquelas mulheres que não obtiveram acesso a uma rede ampliada
de suporte experimentaram de modo mais intenso as sensações de isolamento e acuamento.
Apesar dessa relevância, faz-se importante pontuarmos a escassez desses apoios, o que nos leva
a refletirmos que essa escassez constitui uma espécie de projeto necropolítico, uma vez que a
falta de suporte também se estabelece como modos de “fazer morrer” dessas mulheres, que
muitas vezes, imersas em seus sofrimentos, silenciam, tornando-se reféns de uma política do
medo e da solidão que obstaculizam seus modos de (re)existência.
131

As formas apresentadas até aqui constituem também modos de resistir que são
construídos cotidianamente. Apesar das dores, continuar trabalhando, cuidando dos demais,
engajando-se em novos grupos. São modos de (re) existir e de resistir. Trazemos o “seguir
vivendo” apesar das dores e violências sofridas à semelhança das discussões feitas por Das
(2011) quando esta trabalha a resistência como modos de reconstrução e reabilitação do
cotidiano. Para a autora do mesmo modo que a violência se inscreve no cotidiano das mulheres,
caracterizando-se como ordinário, os processos de resistência também são da mesma ordem. A
resistência é, portanto, construída ao seguirem com suas vidas marcadas pelas dores e
violências, denunciando-se nos silêncios. Nesse sentido os modos pelos quais o tempo opera
em suas reconstruções são fundamentais, assumindo um papel agente (DAS, 2011; PEREIRA,
2010). “Saber lidar com o tempo significa atuar diretamente na reconstrução das relações e
permite reabitar o mundo. O trabalho do tempo possibilita colocar essas mulheres na condição
de sujeitos, no processo de reconstrução de suas relações familiares” (PEREIRA, 2010, p. 361).
Das 8 mães entrevistadas, apenas três estavam inseridas em coletivos políticos.
Longe de pautarmos a inserção nesses coletivos como a forma “certa” de lidar com a dor,
percebemos que essas mulheres tiveram acesso a uma rede mais ampla de apoio. Desse modo,
muitas vezes, a luta as possibilitou não apenas compartilhar dores com outras mulheres que
vivenciavam experiências semelhantes, mas também obter apoio de grupos diversos em suas
dores (diferentes movimentos sociais; instituições como CEDECA, CDVHS, universidades e
grupos de pesquisa, por exemplo). Não queremos com isso criar uma valoração dessas
estratégias, mas sim, explicitar de que modo a ampliação da rede de apoio lhes garante um
enfrentamento das condições de silenciamento e acuamento que se dão pelo medo. Faz-se
relevante pensarmos que os suportes ofertados a essas mães auxiliaram nos processos de
exploração das dimensões políticas de suas dores de modo a possibilitar que elas, a partir do
compartilhamento, percebessem as mortes dos seus filhos como reflexo de uma política de
matabilidade que vitima a juventude negra e periférica de forma massiva, sendo esses
sofrimentos também coletivos, dadas essas condições políticas que permeiam os contextos de
morte de seus filhos. A partir dessa discussão, podemos destacar que se faz de suma importância
o fortalecimento dessas políticas, a fim de fornecer meios de suporte a esses familiares frente
às suas dores no intuito de amenizar as suas condições precárias de vida.
132

5.4 "A gente se uniu pela dor": A formação de grupos de mães e familiares

Destacamos, neste tópico, a inserção de mães em coletivos organizados que, dentre


outros aspectos, dirigem sua ação à luta por memória e justiça frente ao assassinato de jovens.
Buscamos compreender de que maneira esses grupos operam como dispositivos de apoio
psicossocial, constituindo linhas de luta, assim como analisar de que modo a aliança desses
corpos consistem em formas de enfrentamento e resistência à rede de violências posta em
funcionamento por maquinarias necropolíticas. Para tanto, a discussão se organiza em torno de
dois principais eixos: O grupo como apoio psicossocial e como transformação do luto em luta.
Seguimos, aqui, com uma breve apresentação dos coletivos acompanhados neste estudo: Mães
do Curió e Vozes de Mães e Familiares do Socioeducativo e Prisional do Ceará.
O movimento Mães do Curió foi organizado após três meses da chacina ocorrida
na madrugada do dia 12 de novembro de 2015, que vitimou 11 pessoas e deixou 7 feridos. O
coletivo reúne mães que, em meio a suas perdas abruptas e dores de enfrentar a reorganização
de seus cotidianos sem os filhos assassinados, fortaleceram-se, mesmo em meio a tantas
dificuldades, a fim de marchar na contra-mão das forças que legitimam a matabilidade da
juventude negra e periférica. Essas mulheres transformaram suas existências em lutas por
memória e justiça de seus filhos. O grupo tem uma página no Facebook, na qual as mães expõem
suas pautas de reivindicação, dores pertinentes ao processo de luto e o engajamento em atos,
mobilizações e articulações políticas. Nas palavras de uma das integrantes, durante a I Semana
Cada Vida Importa, realizada em novembro de 2018, o movimento tem “duas lutas, uma por
justiça e outra luta pelos que estão vivos” (Diário de campo). Felipa, umas das mães do Curió,
narra como se iniciou o grupo:

Quem começou ir pras ruas foi a [nome de uma das mães] e a [nome de uma das
mães], mais o marido dela, mas o grupo, ele iniciou através da minha luta, né, que eu
fui pras ruas depois, e cheguei pras mães e disse, “gente, vamo fazer o grupo das mães
do Curió, não vamos mais usar só as blusas dos meninos, porque aí a gente fica, é
cada uma lutando pelo seu filho e não dá certo, então vamos formar o grupo das mães
do Curió, né (...) aos pouco, é… o grupo foi tomando corpo, certo, aos pouco ele foi
tomando corpo, ele foi se gerando, ele foi sendo criado, gerado e hoje existe o grupo
das mães do Curió, né? Porque aí, hoje não é mais só a mãe do (nome de um dos
jovens assassinados), a mãe do (nome de um dos jovens assassinados), a mãe do
(nome de um dos jovens assassinados), a mãe do (nome de um dos jovens
assassinados), não. Hoje é as mães do Curió, porque nós estamos lutando (...) (Felipa).

Já o coletivo ‘Vozes de Mães e Familiares do Socioeducativo e Prisional do Ceará’


reúne mães e familiares de jovens que estão cumprindo medida socioeducativa em Fortaleza
(CE) e tem como uma de suas pautas principais a luta contra violações de direitos desses jovens.
133

O grupo atua como importante meio de suporte a esses familiares, fornecendo apoio afetivo
entre as mães e outros familiares que vivenciam sofrimentos em relação ao envolvimento dos
filhos com atos ilícitos:

E assim, eu conheci as meninas, as mães, numa mobilização que elas fizeram (...)nesse
dia eu tava muito mal, eu e ele [o filho], porque a gente chorava assim, mesmo
descontrolado. E quando as meninas chegaram, [nome de uma das mães] me
convidou, “a gente tem esse grupo de mães, e vamos nos apoiar”, e me explicou tudo
e foi quando eu comecei a ir, (..), na primeira reunião que eu fui, eu me senti muito
bem, e decidi que eu ia abraçar a causa, independente de eu ter um filho no
socioeducativo ou não. E aí eu ainda participo, às vezes eu tô bem, as vezes eu tô mal
(...) (Adelina).

Além do suporte emocional, o referido grupo também atua fornecendo orientações


acerca dos direitos dos familiares e jovens, pautando a importância de se unirem contra as
violências destinadas à referida juventude, conforme podemos perceber na fala de Luiza:

Sem saber pra onde correr, aí corri e fui pro grupo, eu vou já falar daquela mulher que
me botou aqui, aí falei com a [nome da pessoa que a ajudou], o que que eu fazia com
meu filho, isso assim, assim, “vá lá no AJA, procure o defensor público e vá no
Conselho tutelar, foi quando ela me orientou, aí foi quando eu fui aprendendo a ir
na...na porta certa, né? Aonde tinha gente, mais do que aqueles inseto lá de dentro pra
resolver, né? Aí eu fui, no conselho tutelar, fui na defensoria, falei com o defensor,
graças ao Senhor Jesus, era uma pessoa excelente, “amanhã é terça-feira, vá pra lá que
eu vou tá lá e seu filho vai tá lá”, realmente eu cheguei lá, meu filho tava (Luiza).

Algumas mães, como Adelina e Luiza, já estavam inseridas no coletivo, quando


tiveram seus filhos assassinados após eles terem cumprido a medida. Elas encontraram no grupo
uma importante rede de apoio no enfrentamento a essas perdas. Esse coletivo, além de dar
suporte às mães e familiares, luta por melhores condições do sistema socioeducativo, fazendo
um enfrentamento à política de desumanização de seus filhos. Como se pode perceber, a
inserção de Adelina no grupo se deu à medida que seu filho passou a vivenciar a desumanização
imposta pelo referido sistema, processo este que ela percebe como macroestrutural:

Quando eu conheci o grupo de mães, né, foi nesse período, as mães do socioeducativo,
então eu me engajei nessa luta, porque a gente… eu vi isso também, é… os meninos
que ficam lá, ociosos, que na realidade, não é só ele [em relação a seu filho], é todo o
sistema carcerário, tanto faz o de adolescente como o de adulto, são pessoas que ficam
ociosas. É tipo assim, coloca um curso ali, no socioeducativo, que é onde eu tenho
mais conhecimento, pra mim, é uma fachada! É só pra dizer, pra enganar a sociedade,
pra enganar as mães que tá colocando alguma coisa, porque aquele curso ali não vai
1 mês, 2 meses e só é pra alguns jovens (...) (Adelina).
134

Faz-se importante destacar que a formação de grupos de mães de jovens


assassinados como forma de apoio e luta é algo que existe em outras cidades, estados e países,
formando uma rede mais ampla de apoio e enfrentamento a partir das dores que as unem. A
inserção de mães em coletivos surge como uma forma de organização de suas dores, como
“uma busca por dar sentido ao que não tem sentido” (DAMASCENO; RODRIGUES;
AGUIAR, 2014, p. 12) em que a dor surge como elemento de ligação entre essas mulheres e
suas formas de socializar. Esses autores destacam ainda que a coletivização das dores dessas
mulheres, de atuação em contextos políticos se dão como forma de superação do luto. Conforme
destaca Viana e Farias (2011) o processo de politização das dores levam essas mulheres a
pautarem questões como a invisibilidade das mortes dos seus filhos relacionando-as às questões
sociais de exclusão pela classe social que ocupam, raça e o fato de residirem nas periferias.

5.4.1 “O grupo é muito importante nesse apoio”: Grupo como Dispositivo de Apoio
Psicossocial
O grupo é muito importante nesse apoio, de mães que se apoiam, famílias, tias, porque
lá tem todo tipo, tem pai, tem tio, tem gente que é irmão, é companheiro, como
também pra mim entender como era esse processo do socioeducativo (Adelina).

As mortes abruptas dos filhos levam à intensa transformação nos modos de viver
das mães e familiares. Os grupos, nesses casos, atuam como um importante dispositivo de
fortalecimento das mulheres e de apoio psicossocial à medida em que são espaços de partilha
dos sofrimentos e suporte mútuo. Assinalar a atuação dos grupos como dispositivo de apoio
psicossocial requer que os pensemos a partir de diferentes eixos, compreendendo de que forma
eles se entrecruzam, produzindo apoio para essas mulheres. Para Luiza, o grupo de mães e
familiares do socioeducativo surgiu como um apoio “quando eu achei que ninguém ia me
ajudar. Ninguém ia me apoiar”. Em campo, pude perceber a dimensão desse apoio ao
presenciar, na VI Marcha da Periferia, uma das mães que, ao chegar no local, visivelmente
abatida, fora acolhida por outra mãe apenas pelo olhar. Nesse momento, a primeira mãe deixou-
se abraçar em prantos. Não foram necessárias palavras para que, naquele abraço, ela pudesse
chorar sua dor. É pelo grupo, ao estabelecerem alianças que se dão através do reconhecimento
de suas condições de precariedade umas nas outras, que as mães se fortalecem:

Aonde eu ainda tenho assim esse apoio, que me dá força, que me alevanta com as
palavra, essas mulher aí, guerreiras desse grupo, e esse povo do CEDECA (...).
Primeiro Deus, segundo, Deus colocou esse povo na minha vida (...). Que tem
ajudado muito! E espiritualmente, fisicamente, moralmente, demais (Luiza).
135

Dessa forma, pode-se perceber que os grupos atuam como dispositivos de


desinvidualização do sofrimento, à medida que por ele se dá a coletivização das implicações da
violência no cotidiano dessas mulheres além de compor um espaço de trocas afetivas.

O único apoio que eu tive foi do grupo de mães e do CEDECA. Só! (...) o grupo foi
muito importante pra mim, muito mesmo, e até hoje (chorando). Porque eu me sinto
abraçada, porque são pessoas que viveram a mesma situação que eu. São pessoas que
sempre estão me dando força, por mais que às vezes uma teje passando por outro
problema, sempre tem uma palavra de conforto (...). até hoje, quando eu encontro
alguma mãe em alguma situação, eu oriento (Adelina).

Na contramão de uma lógica individualizante, modo hegemônico de percepção das


dores dessas mães, esses grupos têm operado como uma aposta ético-estético-política não
apenas de coletivização, mas também de politização dos sofrimentos das perdas. É pelo
compartilhamento que essas mulheres conseguem perceber que os seus lutos são diferentes
daquele sofrido por mães que perderam os filhos por outras causas. À medida que o
compartilhamento de histórias e dores se dão, elas começam a questionar a “naturalidade”
imposta às mortes dos seus filhos, problematizando as forças sociais e históricas que
ocasionaram as mortes precoces desses jovens, percebendo que, assim como os filhos que
perderam, outras mães passam por dores similares, nas palavras de Felipa:

O Estado não tinha o direito de matar, a polícia não tinha o direito de matar, eles não
são matadores de alugueis, eles não são pra matar, eles são pago para trazer paz, para
trazer… apaziguar a tempestade, se tiver teno a confusão, seja o que for, eles não são
pagos para matar, eles são funcionários públicos (Felipa).

Essas questões vão denotando o caráter ativo desses grupos, um constante


movimento que brota a partir das perdas dos filhos, podendo passar por momentos de
silenciamento (por exemplo, o caso de Felipa que passou os três primeiros meses após a morte
do filho isolada) e, de forma processual, ocorrendo o compartilhamento com outras mulheres,
com outras pessoas. No processo das mães do Curió, esse compartilhamento, aos poucos,
tornou-se uma rede, uma página no Facebook, iniciando diálogos com mães de todo o Brasil
que já estavam em luta. Esse processo de constante devir é uma das formas do grupo de operar
como dispositivo, exposta por Benevides (1997). Nessa perspectiva, o grupo transcende uma
ordem molar, relativa à apreensão "dos objetos em seu estado já constituídos" (BENEVIDES,
1997, p. 99), à medida que corresponde também a um nível molecular caracterizado não apenas
pelas representações, mas sim pelos fluxos, devires e processualidades.
136

Considerando-se o grupo como um emaranhado de linhas, nos processos


acompanhados, linhas de visibilidade e de enunciação se encontravam de modo intrinsecamente
relacionadas, sendo relativas aos modos como os processos de luto e sofrimento se tornam
visíveis ou dizíveis nos diversos momentos compartilhados por mim como pesquisadora. Ao
compreendermos a realidade acompanhada a partir dos “modos de iluminação e de regimes
discursivos” (BENEVIDES, 1997, p. 100), pudemos perceber as formas como os modos de
(in)visibilidade perversa que, sobretudo, frente às mortes dos filhos dessas mulheres,
questionavam os seus “envolvimentos” ou pressupunham o não sofrimento de suas mortes, pois,
para àquelas cujos filhos eram “envolvidos” já deveria ser esperada sua morte. Nas palavras de
Maria: “não há como uma mãe esperar a morte de um filho”. Esse ponto nos leva a questionar
os modos como essas mortes e sofrimentos são visibilizados e como repercutem nos modos de
tornar essas dores dizíveis. Em nosso acompanhamento, não atuamos no intuito de descobrir
uma realidade desses grupos que fosse pressuposta, de modo, que nos possibilitasse dar vazão
a outros modos de se tornarem visíveis e dizíveis essas dores. Os processos acompanhados não
se apresentavam como um continuum, mas sim como uma série de rupturas e fissuras, como,
por exemplo, a ruptura com a identidade pressuposta das “mães que apenas choram pelas mortes
dos filhos” sem haver momentos de alegria e de descontração nos grupos e “mãe de filho
envolvido já espera sua morte”. As mulheres que acompanhei me mostraram que, mesmo em
seus lutos, vivem um constante movimento. Desse modo, as linhas de força se dão na
transversalidade rompendo com as linearidades, dando vazão àquilo que é múltiplo, às distintas
possibilidades à “manutenção/desmanchamento das instituições, da
naturalização/desnaturalização dos modos de viver/sentir, do acompanhamento dos fluxos que
se deslocam no tempo, produzindo modificações nos territórios constituídos” (BENEVIDES,
1997, p. 101).
Esse devir grupo também é constituído por linhas de subjetivação que dizem
respeito à produção de modos de ser e de existir que se dão como um processo, algo não
encerrado. Estabelecem-se no convívio grupal entre essas mulheres a partir de conexões entres
seus modos singulares de existir, o que possibilita a criação de diferentes composições e modos
de subjetivação. Trata-se de uma “desterritorialização nos modos dominantes de subjetivação”
(BENEVIDES, 1997, p. 102), que dá espaço para as diferenças e dissonâncias entre elas. Os
coletivos acompanhados também são compostos por dissidências e discordâncias entre as
mulheres sobre os modos de lidarem com as dores e sobre os modos de se engajarem na luta.
Umas se mostram mais dispostas a falar, a dar entrevistas, explicitando a relevância que essas
ações têm na luta por visibilidade e justiça, outras se mostram mais reservadas, não se sentem
137

confortáveis em se tornarem visíveis, apresentam maior desconforto ao falar sobre o filho. Mas
é nessas diferenças que os encontros acontecem e, a partir desses encontros, as possibilidades
de transformações de si já que “O estar frente a outros pode disparar movimentos inesperados
porque é o desconhecido - não só enquanto experiência, como também enquanto modo de
experimentar que passa a percorrer as superfícies dos encontros” (BENEVIDES, 1997, p. 102).
Existem, portanto, diversas linhas de subjetivação possíveis que se dão mediante o jogo de
forças que compõem a realidade dos grupos. O entrar em contato com outras linhas de
subjetivação de outras mães possibilita o processo de desindividualização que se dá pela
manifestação das multiplicidades e de uma variedade de possibilidades de combinação de
forças.
É importante ressaltar que essas diferentes linhas não se dividem. Não há uma
separabilidade explícita entre o âmbito individual e o grupal, entre o singular e o coletivo. As
trocas em grupo e os novos rearranjos de si vão se moldando no fluxo dos acontecimentos-
grupo de modo que aquilo que é repercussão a partir dos assassinatos também é modo de lidar
com as perdas e vice-versa. Nos discursos de Luiza e Felipa, sobressaem-se os sentimentos de
inconformidade, raiva, vontade de justiça e culpabilização das macroestruturas pelas suas
perdas, não apenas pelas falas verbalizadas nas entrevistas, mas pelos modos incisivos de se
colocarem em reuniões e espaços públicos, mantendo tons de vozes firmes articulados com
gesticulações e expressões faciais expostas em diferentes momentos. Esse conjunto de
elementos demonstram os modos como suas vidas estão atravessadas pelos processos de luta e
reivindicação por justiça, não havendo limites nítidos sobre os entrelaçamentos entre suas vidas
e a luta, de modo que esta pode ser por vezes repercussão, à medida em que as mulheres
mudaram seus modos de viver, e estratégias de lidar com essas perdas; o que torna as divisões
deste capítulo meramente didáticas. Ou seja, ao mesmo tempo em que o engajamento político
opera como uma repercussão, haja vista as mudanças em seus modos de viver, também atua
como uma estratégia de lidar com o assassinato dos filhos.

5.4.2 “Estamos saindo da nossa zona de conforto pelo sangue de nossos filhos”: notas
cartográficas sobre deslocamentos do “luto à luta”

Esboçamos, aqui, uma cartografia das práticas micropolíticas pelo


acompanhamento das processualidades em campo, traçando o plano coletivo das forças e, pela
minha inscrição no território existencial do FPSP, aliançando-nos com os corpos que o compõe.
Destacamos os modos pelos quais as mães, a partir das rupturas ocorridas em suas vidas em
138

decorrência das mortes dos filhos, constroem, nesses espaços, outras linhas de subjetivação e
de lutas, enfatizando a centralidade que estas últimas adquirem em suas vidas após as mortes
dos filhos. Traçamos algumas linhas nas quais se constroem esses processos de luta, sendo eles:
por justiça, por memória, pelo fortalecimento de si e contra processos de silenciamento e
apagamento.
As mães que têm seus filhos assassinados se vêem, subitamente, tendo que suportar
uma dor lacerante que modificam a si mesmas, as relações intrafamiliares, os modos de
organização da casa, enfim, o funcionamento de suas vidas. Essas mulheres, muitas vezes,
encontram na militância um modo de lidar com a ausência e o sofrimento que decorrem de suas
perdas. Faz-se relevante pontuarmos que a inserção em movimentos sociais “pode ter um efeito
curativo aos seus integrantes, tanto de ponto de vista psicológico como somático” (HUR, 2018,
p. 174). Para esse autor, o processo de autogestão vivenciado nesses coletivos atua como uma
revolução molecular, que ocorre nos espaços de construção e interação micropolíticos em que
se dá vazão à criação de novos modos de sociabilidade e se constroem vínculos com outros
corpos.
Até a morte de seu filho, Felipa afirma que vivia uma vida “normal”, não se
preocupando com questões como os direitos humanos e os homicídios juvenis. Disse também
que pensava que essas questões não lhe diziam respeito, haja vista a lida cotidiana com os dois
filhos, o marido, as atividades do lar e o emprego. Sua vida se resumia a essas preocupações
centrais, às quais demandavam todos os seus esforços e atenção. Até que fora surpreendida com
a notícia jamais imaginada de que a vida do seu filho havia sido interrompida, em um dia, que,
para ela, seria como um outro qualquer. Nesse trecho, Felipa narra de que modo, após o
assassinato do filho, a militância passou a fazer parte de seu cotidiano:

Até antes assim da chacina, eu era uma pessoa que eu não era militante, pra iniciar
logo, né eu não entendia porque as pessoas… aliás, eu nem conhecia quem lutava por
justiça (...) Eu comecei a ir pra militância, lutar, buscar é… justiça, e hoje tá perto,
próximo de fazer 3 anos, estou na militância, lutando, para que os verdadeiros
culpados sejam presos, condenados, como bandido que são (Felipa).

Com o sentimento de devastação ao ter que conviver com a ausência do filho nas
mais simples atividades cotidianas (como fazer a sobremesa predileta dele, esperar ele voltar
para casa, vê-lo sair para andar de skate) e contando com uma ampla rede de apoio, Felipa, aos
poucos, encontra na militância e engajamento político uma forma de lidar com sua dor. De
modo semelhante às mudanças que ocorreram na vida de Felipa, Luiza também encontrou na
luta novos sentidos para seu sofrimento, muito embora sua inserção no coletivo ‘Vozes de Mães
139

e Familiares do Socioeducativo e Prisional do Ceará’ tenha se dado antes da morte de seu filho.
O encontro de Luiza com o referido grupo se deu quando o seu filho fora apreendido, passando
a cumprir medida socioeducativa. Ela pontua que, após a morte dele, sua existência passou a
ter um novo sentido, o de lutar por justiça:

Tudo dentro de mim mudou. Tudo! Hoje eu tenho sentimento sabe de quê? Só não de
vingança, de justiça, de luta, de vencer e de ter vitória, sabe? (Luiza).

A luta passa a ser central na vida dessas mulheres, trazendo novos sentidos para
suas existências de tal modo que, em conversa com uma dessas mães, ela nos disse que havia
trocado de emprego para que pudesse se dedicar mais intensamente à luta. Apesar dessa troca
resultar em uma diminuição considerável da renda familiar, somente assim ela teria maior
flexibilidade de horário para que estivesse engajada nos movimentos. O luto vai sendo
elaborado em luta por justiça:

Eu quase não me levantava, mais aí eu me levantei, com 3 meses depois, praticamente,


eu me levantei, me ergui, e disse, “eu vou lutar pelo meu filho”, porque esse meu filho,
se tivesse sido ao contrário, se tivesse sido eu que tivesse morrido, ele ia lutar por
justiça, por mim, então eu comecei a lutar, e lutar mesmo! Já viajei pro Rio de Janeiro
2 vezes, já viajei pra Bahia, pra lutar por justiça, certo? E é isso, enquanto eu tiver
vida, enquanto eu tiver fôlego de vida, eu estarei lutando sim (Felipa).

A ideia de justiça para essas mulheres, muitas vezes, não se resume a um ideal
punitivista de prisão e julgamento do perpetrador do homicídio, mas sim por uma reivindicação
mais ampla acerca das condições de vida da juventude negra e pobre. Nesse sentido, dialogamos
com Lima (2013), a partir de seu estudo com um coletivo de mães que tiveram seus filhos
assassinados, quando a autora aponta que, para essas mulheres,

O ideal de justiça não se resume à punição, seguindo as normas legais em vigor, dos
culpados pela morte de seus filhos. Pelo contrário, são partes integrantes de seu
combate o aperfeiçoamento do aparato jurídico vigorante e a transformação dos
costumes que levam à violência, além da luta pela paz . (LIMA, 2013, p. 101).

Nos aproximamos dessas questões apresentadas por Lima (2013) à medida que as
nossas trocas em campo evidenciaram que a concepção de justiça das mães transcendia o
aparato legal, de modo que estas mulheres pautavam a construção de um modelo de sociedade
mais justo e igualitário em que os jovens pudessem dispor de outras oportunidades. Em geral,
para as interlocutoras cujos filhos carregavam o estigma de “envolvidos” o clamor por justiça
se dava de modo mais amplo, envolvendo questionamentos acerca das exclusões sociais que
140

culminaram em suas perdas e não tão direcionadas à sua perda singular. Esta questão, tornou-
se explicita quando muitas das mães revelaram não acompanhar o processo judicialmente ou
não terem procurado o apoio judicial mesmo sabendo que tinham direito. Desse modo, os
processos de luta não se dão apenas pelos filhos mortos, mas pela vida dos jovens ainda vivos,
para que suas histórias não se repitam:

Nós temos 2 lutas, porque a gente não pode esquecer dos vivos, a gente não pode
esquecer que, só porque o meu filho morreu na Chacina do Curió, eu tenho que lutar
só pelo meu filho, não! Eu tenho que lutar pelo filho da minha vizinha, que tá vivo,
pelo outros [nome de jovem vitimado] que tá com a arma na cabeça, por outros [nome
de jovem vitimado], então isso é que faz esse grupo crescer, é você lutar por outras
vidas (Felipa).

Nas palavras de uma das mães do Curió: “A cada chacina é como se o Estado
tivesse matado o meu filho novamente” (Diário de campo). A ausência de alteração no cenário
de extermínio da juventude negra e periférica atua, então, como um elemento intensificador do
sofrimento dessas mães. Temos, aqui, um ponto importante que é o processo em que elas
reconhecem que suas dores não são apenas suas, mas também algo do âmbito coletivo e se
relacionam a questões macroestruturais que vitimam diversos jovens, devastando o cotidiano
de muitos familiares. A partir dessa percepção, suas lutas deixam de ser modos singulares de
lidar com suas dores e passam a se coletivizar, a pautar as condições de vida dos jovens negros
da periferia numa perspectiva de prevenir homicídios e sofrimentos de outras mães e familiares.

Se um dia, se Deus me desse oportunidade, pela idade que eu já tenho, seja com 80
ano, com 90, que eu teja lúcida, pra mim ver um país onde vejo menos criança morrer,
jovens morrer, mulher se acabar na mão de pilantra, de homi ruim, sabe? Que quer ser
o feitor daquela mulher, sabe? De ver um país bom, um país governado, com um
governo digno, da gente dizer assim, esse aí eu tiro o chapéu. Pra Deus, nada é
impossível, né minha filha? (Luiza).

A invisibilidade que recai sobre a vida dos jovens assassinados e das mães que
clamam por justiça e pela memória de seus filhos, caracteriza as vidas não passíveis de luto,
destinadas ao total desamparo frente ao risco de sucumbir. O luto dessas mães constitui aquilo
que Butler (2018) se refere como luto entre os não enlutáveis, haja vista que, assim como seus
filhos, essas mães partilham das mesmas condições precárias de vida. Assim sendo, viver o luto
surge como uma forma de persistência ou resistência que ocorrem “à sombra do público,
ocasionalmente escapando e contestando os esquemas pelos quais são desvalorizados ao
afirmar o seu valor coletivo” (Butler, 2018, p. 217). É por meio da afirmação de um valor
coletivo dessas vidas que são perdidas que se produz tensionamentos nas maquinarias de morte,
141

“decretando valor em meio a um esquema biopolítico que ameaça destituir essas populações de
valor” (BUTLER, 2018, p. 228). Por compartilharem dessas mesmas condições de
precariedade, essas mulheres partilham das dores de comporem parte da população cujas vidas
são indignas de vida, haja vista que foram negadas aos seus filhos condições mínimas para que
eles pudessem viver e a elas se impõem os processos de silenciamento das dores frente aos
discursos e práticas que visam seus apagamentos. Cabe a elas, portanto, criar possibilidades de
uma vida possível em meio a tantos sofrimentos, violações e silenciamentos e, segundo Butler
(2018), isso só se torna possível mediante a interdependência dos corpos. É por meio dessas
alianças que esses sujeitos podem impor suas vozes frente às condições precárias a que são
destinadas, o que se reflete na fala de uma das mães durante uma das ações da I Semana Cada
Vida Importa ao expor os objetivos de suas lutas: “lutar para que outros jovens tenham uma
chance” (Diário de campo). Ter uma chance, para utilizar a mesma expressão da qual a mãe se
utilizou, nos contextos das periferias de Fortaleza seria sobreviver, mas também, como Butler
(2018) nos ajuda a pensar, mais do que isso, seria tornar a vida vivível.
Percebe-se, nas narrativas dessas mães, não apenas a transformação do sofrimento
em busca por justiça, mas também por memória, no intuito de que suas perdas não tenham se
dado em vão, que se lembrem dos seus mortos e que, a partir disso, outras mortes sejam
evitadas. Podemos perceber isso na seguinte fala de Felipa:

Então, a minha militância, que eu tenho entrado, é pra isso, não só pra lutar pelo [nome
do seu filho], pelas vítimas do Curió, mas pelas vítimas do Curió, pelas vítimas do
forró do gago, pelas vítimas do Benfica, pelas vítimas que morreram, que você não
conhece, que eu não conheço, mais não importa eu conhecer, não precisa eu conhecer,
pra gente sentir a dor de alguém, não precisa ser da família, basta ser ser humano
(Felipa).

Grisales (2016) aponta a importância de ações e rituais de memória como uma


maneira de fazer persistir a vida social das pessoas, mantendo a vivacidade das lembranças.
Trazemos, aqui, “os usos políticos da memória – como resistência política nos espaços do
cotidiano, do íntimo, do familiar ou do comunitário” (GRISALES, 2016, p.87) realizados pelas
mães em seus atos políticos, seja através de suas falas, cartazes segurados nos atos, marchas e
manifestações. O uso das fotografias dos jovens assassinados com frases pedindo justiça, as
afirmações de mães do grupo Mães do Curió alegando “eu financiei a bala que matou meu
filho” são ações que representam a luta para que as outras pessoas não esqueçam essas mortes.
Segundo essas mães, em suas falas na VI Marcha da Periferia, “os filhos morreram, mas as
mães ficaram” (Diário de campo) para lembrar esses jovens em atos coletivos que mostram não
142

só as indignações com suas perdas, mas também os manterem vivos na memória coletiva da
cidade.
Essa luta engloba também o processo de manter-se fortalecida para permanecer na
busca por justiça e memória:

A gente luta pra gente não ficar… como eu estou à frente dessa luta, eu tento muito
é… sempre me alegrar de um jeito ou de outro porque eu sei que se eu cair numa
depressão, se eu cair numa… num problema sério, quem vai ganhar é o Estado e a
polícia militar (...) aí, eu não fui olhar pra esse lado e não fui me abater, eu fui lutar,
fui lutar pra que isso não viesse mais acontecer (Felipa).

Vale-se destacar que a luta dessas mulheres não é apenas por memória, justiça e
fortalecimento de si diante do assassinato dos filhos, mas também uma luta contra processos
que visam silenciá-las e apagá-las, conforme apontam Ribeiro (2017) e Borges (2018), ao
analisar diferentes condições e práticas que (re)produzem desigualdades e hierarquias
estruturais e históricas em relação a mulheres subalternizadas. Tomaremos aqui, como grupo
subalternizado, as mulheres negras moradoras da periferia por englobarem as participantes
deste estudo. Acerca dos processo de silenciamento, apagamento e dominação do povo negro
nas sociedades coloniais, Kilomba (2010) e Spivak (2016) questionam quem pode falar, sobre
o que se pode falar e o que ocorre quando se fala. Essa reflexão se faz relevante para pensarmos
os processos de silenciamento vividos pelas mulheres deste estudo, em sua maioria negras e
moradoras da periferia, analisando de que modo às mães dos jovens assassinados são
designados processos de silenciamento que em muito se assemelham aos vividos pelos negros
e negras nas sociedades coloniais. Essas mulheres ocupam o lugar do ‘outro’ ameaçador que,
ao falar, forçaria o colonizador a entrar em contato com suas verdades, tidas a partir do lugar
que ocupam. “Verdades que têm sido negadas, reprimidas e mantidas guardadas, como segredos
(...) segredos como a escravidão. Segredos como o colonialismo. Segredos como o racismo”
(KILOMBA, 2010, p. 117). A invisibilização da mulher negra, portanto, dá-se como um retrato
da colonialidade e, ao falar sobre suas dores, suas perdas e lutas contra violações cotidianas de
seus corpos-subjetividades (seus e de seus filhos), essas mulheres trazem à tona verdades
indesejáveis, assim nomeadas pelo desconforto que causam ao tentarem se fazer ouvidas.
Ao reivindicarem memória e justiça pelas mortes dos seus filhos, as mães
denunciam as estruturas de poder que vilipendiam suas existências e insistem em relegar ao
esquecimento o genocídio da juventude negra e periférica. Numa sociedade caracterizada pela
fragmentação racista em que não há espaço para alteridade, é preciso que não se questione o
estatuto de verdade que coloca determinada parte da população como inimigos a serem
143

aniquilados, pois é essa verdade que sustenta as maquinarias de morte. Desse modo, as falas
dessas mulheres sobre suas dores, narrativas que recobrem de humanidade seus filhos mortos,
são negadas, pois elas insistem em criar tensionamentos, ocasionando fissuras na estrutura
colonial em que não cabem as versões do ‘outro’. É preciso que os sujeitos do outro lado da
fronteira possam ser capazes de ouvir essas vozes que ecoam, haja vista que “ o ato de falar é
uma negociação entre quem fala e quem escuta, isto é, entre os sujeitos que falam e seus/suas
ouvintes. Ouvir é, nesse sentido, o ato de autorização em direção à/ao falante. Alguém pode
falar (somente) quando sua voz é ouvida” (KILOMBA, 2010, p. 178).
Ribeiro (2017), ao falar sobre o feminismo negro, aponta a relevância de se
visibilizar e ouvir as vozes das mulheres negras silenciadas e negadas por tantas décadas pelo
feminismo hegemônico. Podemos fazer um paralelo e interrogarmos: De que modo tem se
produzido uma demora em se ouvir essas mães, também negras e periféricas? A situação de
violência constante a que são expostas essas mulheres, o abandono e a falta de apoio diante
dessas situações de violência (como a morte do filho) explicitam justamente a condição que
Mbembe (2014) chama de devir-negro do mundo produzido pelo neoliberalismo e seus
desmantalamentos em termos de suporte social e precarização da vida.
Historicamente, essas mulheres, através dos seus gritos, vêm construindo suas
resistências coletivas e singulares; são vozes dissonantes contra forças que insistem em negar
suas existências, mas que continuam “produzindo insurgências contra o modelo dominante e
promovendo disputas de narrativas” (p. 24). Quem as escuta? De onde falam? Ribeiro (2017)
faz uma reflexão acerca do lugar de fala a partir do feminismo negro, há muito, silenciado. Ela
apresenta a mulher negra como o outro do outro, que caracterizaria a negação histórica dos seus
direitos de fala, inclusive dentro de movimentos sociais cujas pautas seriam reinvindicar esses
direitos, como os feminismos e o movimento negro. A referida autora aponta-nos que pensar
lugar de fala é uma questão ética à medida em que exige repensar hierarquias e desigualdades
que assolam dada população, ou seja, nos convoca a considerar as questões (psico)sociais e
históricas que constituem a experiência de dado grupo social. Significa, portanto, partirmos da
premissa de que determinados grupos sociais compartilham as mesmas condições de
precariedade de vida e, portanto, partilham um lugar social comum nas hierarquias de poder
(RIBEIRO, 2017). Recai sobre esses grupos, dando ênfase às mães de jovens assassinados,
aqui, um processo de silenciamento que é estrutural e visa apagá-las ao “terem seus saberes e
vozes tratados de modo igualmente subalternizado” (RIBEIRO, 2017, p. 63). Spivak (2010)
aponta para uma desvalorização daqueles que ocupam os espaços de subalternidade, denotando
a relevância de que esses grupos possam falar sobre si, tomando para si seus lugares de fala.
144

Apresentamos, aqui, uma situação analisadora da resistência construída por essas


mães: no período das eleições, o FPSP foi tomado por pautas emergenciais que se interpuseram
a ações previamente estabelecidas, de modo que alguns encontros foram desmarcados. Em
alguns compromissos cancelados, ela se fez presente nos espaços e locais marcados, uma forma
simbólica de demonstrar que, apesar dos desmontes políticos, sua voz permanecia entoando. A
presença dessas mães no referido coletivo foi fundamental para reafirmar seu compromisso com
a luta por justiça e memória dos jovens principamente frente ao contexto político atual, marcado
pela ameaça aos direitos humanos e retrocessos em diversas esferas como as sociais e
econômicas. As vozes dessas mulheres reverberam e se mantém ecoando. Esse acontecimento-
analisador nos remete às discussões de Freire, Farias e Araújo (2009) ao afirmarem que:

O laço de obrigatoriedade com este coletivo se sustenta no laço de sangue que uma
mãe tem com um filho. Paula entremeia o nome do coletivo com os nomes dos filhos
como se este primeiro mantivesse vivas a maternidade e a relação mãe/filho. Passa a
ser uma obrigação de uma mãe deixar viva a memória do filho (FREIRE; FARIAS;
ARAÚJO, 2009, P. 9).

Nos processos acompanhados neste estudo, percebemos que as mulheres mudaram


o tom da própria luta, que se iniciou por reivindicações individuais por justiça pelas mortes dos
filhos passando a pautarem questões mais amplas como o extermínio da juventude. Nesse
processo, nos diversos momentos de luta política em marchas, assembleias e reuniões, essas
mães deixavam evidente que não precisavam de outros que falassem por elas. O
compartilhamento de condições comuns de vulnerabilidade por essas mulheres as têm levado à
construção de processos de resistência. Pudemos perceber isso em campo durante o processo
de construção e realização da VI Marcha da Periferia, cujo tema foi: “E se fosse seu filho? E se
fosse sua filha? Todas as vidas importam! ”. A referida marcha fez parte da programação do
novembro de Lutas de 2018 e contou com a participação de diversos movimentos sociais, dentre
eles as Mães do Curió, Mães do Socioeducativo, Movimento Negro, LGBT, coletivos juvenis
e organizações da sociedade civil. Fui à marcha junto aos demais integrantes do VIESES e, ao
chegarmos, logo avistamos as mães do Curió reunidas, nem todas haviam chegado ainda. Elas
estavam vestidas com as blusas do coletivo Mães do Curió e com bandanas vermelhas nas quais
estavam escritas a frase: “ninguém solta a mão de ninguém”, além disso seguravam faixas
grandes que continham as seguintes palavras: “Ninguém morre enquanto permanece vivo no
coração de alguém”, “Transformei meu luto em luta! Mães do Curió”. Uma das mães nos
recebeu com um abraço e demonstrou bastante fervor em compor aquele momento; ela estava
segurando as faixas, recebendo as outras mães que chegavam, organizando os materiais,
145

interagindo com as demais pessoas de outros coletivos. Havia sido a primeira do grupo a chegar
ao local e havia guardado algumas bandanas vermelhas para distribuir às demais. Uma das
mães, que chegou depois, demonstrou estar bastante emocionada e preferiu não falar conosco.
Nesse momento, fui apresentada a outras mães do coletivo; todas elas demarcaram a
importância de estarem naquele momento como uma forma de lutar por justiça e pela memória
de seus filhos. Algumas estavam muito emocionadas, bastante mobilizadas pela dor, mas
também pela vontade de lutar. Denota-se, aqui, outras descontinuidades, à medida que não se
destacava naquele momento linearidades nos modos como essas mulheres ocupavam aquele
espaço, mas sim formas múltiplas de lutas por ideais comuns, uma aliança a partir das suas
multiplicidades de vozes e modos de ser.
A importância coletiva daquele momento foi perceptível, também, a partir dos
modos singulares de cada uma viver aquela experiência compartilhada. Enquanto algumas
mães, conforme demonstrado acima, apresentavam corporeamente seu caráter ativo na luta,
outras também demonstravam suas forças pelo enfrentamento das dificuldades encontradas para
estar ali, como é o caso de uma delas, que afirmou, em fala para o coletivo Nigéria: “Estou
dopada, mas tem que ir pra essa luta, né? ”.
A Marcha da Periferia tem se afirmado, ao longo dos anos, como símbolo de luta e
de enunciação de vidas que se tornam muitas vezes invisíveis e “invivíveis”, de dores que são
silenciadas, de direitos que são negados. Caracteriza-se, diferentemente dos outros espaços de
articulação, pela visibilidade da performatividade dos corpos. Portanto, a importância desse
movimento é demarcada pela disputa para tornar visível suas dores e as violências às quais
estão submetidas, um lugar de denúncia. Nesse espaço se torna manifesta a aliança entre esses
sujeitos por meio da performatividade dos corpos, seja segurando cartazes, tocando tambores,
gritando palavras de ordem, cantando músicas de resistência. Vozes que reafirmam suas
existências e persistências em criarem fissuras no cenário necropolítico que visa ao apagamento
dos mortos e de determinadas vidas. Essas vozes persistem em ecoar, gritando: “Mataram
nossos filhos, mas as mães ficaram! As mães ficaram! ” entoado de forma firme e estridente,
fortalecido por palmas e gritos de aclamação. As palavras proferidas por aqueles que ocupavam
os espaços urbanos, que muitas vezes os são negados22: “Arrasta a mulher negra, some com o
pedreiro, a guerra às drogas tá matando o povo negro”; “Mata juventude, mata policial, a guerra

22
Vale-se destacar aqui que a VI Marcha da periferia ocorreu no bairro Serrinha e a concentração se deu entre os
muros da Universidade Estadual do Ceará. Pontuamos aqui, que, historicamente, os espaços das universidades são
pouco ocupados pela juventude negra e que vive nas periferias.
146

às drogas tá matando geral”; “Olê, olê, olê a juventude quer viver” eram entoados cheio de
energia, evidenciando a força em permanecer na luta.
As Mães do ‘Vozes de Mães e Familiares do Socioeducativo e Prisional do Ceará’,
dentre as quais algumas de nossas entrevistadas, seguravam faixas com as seguintes frases:
“Lute como uma mãe”; “Nossos meninos e meninas querem viver! Por um sistema
socioeducativo que não torture, EDUQUE!” e “Contra o extermínio da juventude pobre e
negra”, denotando o caráter político de suas lutas. Conforme aponta Spivak (2010) é
importante, ao narrarmos essas formas de resistência, estarmos atentos para não cairmos na
romantização destas (RIBEIRO, 2017), evitando, assim, gerarmos o aprisionamento e a redução
desses processos à beleza de se produzir vida em meio a tantas condições precárias. É preciso
questionarmos essas condições precárias, apontando seus esquemas de operação. Dessa forma,
concordamos com Ribeiro (2017, p. 75) quando esta aponta que “os saberes produzidos pelos
indivíduos de grupos historicamente discriminados, para além de serem contradiscursos
importantes, são lugares de potência e configuração do mundo por outros olhares e geografias”,
não deixando de apontar os sofrimentos, dores e exclusões que permeiam esse processo.
Podemos pensar que essas organizações coletivas que incluem a participação direta
de mães formam o que Hur (2018) chama de “movimentos sociais nômades”, a partir de
diálogos entre psicologia, política e esquizoanálise. Esse autor apresenta a relevância da
construção de linhas de fuga e de resistência frente à sociedade capitalista contemporânea
marcadamente conservadora em que imperam os ideais de rendimento e a manutenção da
colonialidade. Nesse bojo, os movimentos sociais exercem uma função importante, à medida
que operam na construção de outros possíveis que façam frente ao individualismo resultante
dos modos de governamentalização neoliberais, assumindo, portanto, papel subversivo ao
produzirem agenciamentos coletivos baseados no aliançamento dos corpos. Os movimentos
sociais tornam-se nômades ao transcenderem uma simples organização coletiva, agenciando
linhas de fuga a partir de seus lugares sociais e de fala que estão à margem (HUR, 2018). Nesse
sentido, os coletivos de mães acompanhados vão engendrando rupturas com o instituído que
intenta à legitimação das mortes dos seus filhos e à docilização de seus corpos por meio do
envergamento à tristeza e isolamento. Esses grupos de mulheres seguem, assim, a um devir-
minoritário já exposto no tópico acima, em que suas diferenças são expostas. A insurgência
característica desses grupos de mulheres se encontra em ir na contramão daquilo que está posto,
permanecendo aos gritos ou não, na luta por justiça e pela visibilidade, ao pautar essas questões
dentro do FPSP, ao ocupar as universidades compartilhando suas experiências, ao fortalecer
outras mães e jovens, ao participar das organizações de rodas de conversa e saraus coletivos em
147

que o extermínio da juventude periférica é (re)pensado junto a jovens da periferia. Hur (2018)
compreende que os movimentos sociais classificam-se como nômades à medida que operam
como como máquinas de guerra23, sendo característicos desses movimentos seu compromisso
com os processos de transformação e a ruptura com o instituído que os colocam como práticas
insurgentes. As organizações coletivas dessas mulheres conformam-se como movimentos
sociais nômades ao agenciar linhas de fuga e resistência, compartilhando “de um diagrama de
forças contra a dominação” (HUR, 2018, p.170) que lhes são impostas. O ato de não se deixar
silenciar perante o sofrimento e se organizarem em movimentos coletivos as põem em um devir
semelhante ao das máquinas de guerra, posto que subvertem a lógica imposta de sucumbir frente
às políticas de silenciamento e acuamento.
As resistências desses grupos se encontram não apenas na performatividade de seus
corpos ao ocuparem as ruas e se manifestarem, mas na articulação micropolítica com outros
movimentos e ocupação de outros espaços sociais como: atuação junto a organizações da
sociedade civil, como o Fórum Popular de Segurança Pública do Ceará (FPSP), e ações em
mobilizações políticas por memória e justiça, como o Novembro de Lutas. O FPSP foi um dos
territórios existenciais habitados ao longo da pesquisa e caracteriza-se como um espaço de
grande potência e relevância por conectar os dois grupos de mães entre si e com outros
coletivos, o que possibilita a discussão de pautas mais ampliadas acerca das questões
relacionadas à segurança pública e violência urbana. Isso se torna perceptível ao refletirmos
sobre algumas alterações e agregações de pautas ao movimento, expostas nos seguintes
acontecimentos-analisadores. 1) Na página oficial, a definição do movimento Mães do Curió
consta: “Essa página foi criada, para divulgar nossa luta por justiça, nossa dor, nosso
sofrimento, e para que o Estado pague por todos os seus crimes, que tem cometido” e 2) A fala
de uma representante, numa das mesas acompanhadas ainda em 2017, estava muito relacionada
às dores pelas mortes dos jovens e à culpabilização generalizada da polícia pelas mortes, como
exemplo, podemos citar uma das mesas, intitulada “Polícia para quem?”, acompanhada em
outubro de 2017, em que uma das mães afirmou: “Hoje eu não ouvi o meu filho falar, mais
importante é o meu filho que a polícia, o Estado me roubou”. Nota-se que, após as trocas com
outros movimentos sociais, tanto nas postagens quanto nas falas passou-se a considerar outras
pautas, como o racismo, o cuidado para não ‘demonizar’ a figura do policial, de modo que
podemos pensar, mediante essas trocas, as mudanças ocorridas na organização coletiva. Algo

23
Conceito já abordado no capítulo 2 desta dissertação.
148

que podemos refletir a partir de uma das postagens da página das Mães do Curió, realizada em
julho de 2018:

Julho Negro é luta, é transforação, é amor ao próximo, é doação, é aprendizado, é


companherismo, é igualdade, é resistência, é cultura, é compartilhamento, é
compaixão, é partilha, é mundança. E as mães do Curió fazem parte de tudo isso.
Porque onde tiver lutando pelo o bem dos outros estaremos lá, para apoia-lós (página:
Transformei meu luto em luta: mães do curió).

Umas das dimensões interventivas da pesquisa se deu participando das reuniões do


FPSP na montagem da programação das ações de novembro de 2019 e, em específico, na
composição de uma das comissões das mobilizações de novembro, em conjunto com
representantes das Mães do Curió e das Vozes de Mães e Familiares do Socioeducativo e
Prisional do Ceará’, voltada a pensar a construção de uma instalação/exposição sobre as
principais chacinas ocorridas no Ceará a ser inaugurada em 2019, com depoimento de mães e
familiares de pessoas assassinadas. A construção desses momentos junto a algumas dessas mães
nos possibilitou maior aproximação com elas, convivendo em contextos diversos (visitas a
espaços públicos, participação delas em debates, reuniões de articulação, marchas, momentos
informais do cotidiano, como compartilhamento de cafés e merendas). Esse convívio mais
próximo foi crucial para que não fossem reproduzidos aprisionamentos dessas mulheres sob
diversos rótulos. A força e persistência, tidas como características dessas mães, muitas vezes,
corroboram para a capturas delas sob rótulos de “guerreiras”, o que, de certo modo, lhes furtam
outras possibilidades de ser ou se mostrar como, por exemplo, dar vazão a sensações de
fragilidade, de intenso sofrimento ou, até mesmo, de alegria. Algo apontado no estudo
desenvolvido por Lima (2013), quando afirma que é socialmente esperado que as mães que
perderam seus filhos correspondam à uma imagem de mater dolorosa, aquela que chorará
eternamente pela morte dos seus filhos, entregando-se à tristeza e à solidão. A autora demonstra
a importância de romper com uma política representacional dessas mães ao afirmar que a
“decisão de ultrapassar o umbral do, socialmente, exigido da imagem de mater dolorosa é
crucial. Surge, a um tempo da consciência da dor e da percepção de que há algo a fazer. Vem
da partilha da experiência e do trauma profundo causado pela dor" (LIMA, 2013, p. 100).
Conviver com essas mulheres nos mostrou que as suas forças e resistências operam
não de modo linear ou engessado, mas sim por uma constante disputa, com sentimentos muitas
vezes contraditórios. É, por vezes, sentir-se frágil e ter vontade de desistir de lutar, mas, ao
relembrar dos filhos, se encher de vontade de justiça novamente; é ter a certeza de que não se
está sozinha na luta, mas, por vezes, também questionar isso e sentir que a dor que carrega, de
149

certo modo, é só sua. É viver também momentos de alegria, redescobrir outros modos de existir
em que têm a possibilidade de “tirar de foco o problema” (Luiza) nem que seja por alguns
instantes.

Coisas boas da minha vida, eu até tenho pra contar que ninguém vive só ruim depois
que eu conheci o CEDECA e esse grupo de mães do CEDECA (...)Foi aonde eu viajei,
fui pra anistia internacional, (....)! E fui conhecendo coisas boa que me tirou assim do
foco do meu problema da minha vida por alguns dias e algumas horas, que já é muito
bom (Luiza).

Essas mulheres se colocam a postos na construção daquilo que Hur (2018)


denomina de linhas de luta, que seriam “uma dobra na linha de força, que constitui um novo
vetor” (HUR, 2018, p. 177). Muito mais do que a reinvenção de novas linhas que as permitam
fugir ao instituído, esses coletivos impõem-se como elementos subversivos, operam no
enfrentamento do instituído, no combate, na disputa direta nos espaços políticos. “As linhas de
luta são as forças desejantes e de resistência direcionadas à transformação e à construção de
outros mundos possíveis, distensões da contração, irrupção de intensidades, que causam
rachaduras e fendas no instituído” (HUR, 2018, p. 177). Faz-se importante salientar que
compreendemos, conforme Butler (2018), que a luta se dá não apenas pela sobrevivência, mas
também por uma reivindicação mais ampla pelas condições de viver uma vida vivível, já que,
para que se viva uma vida possível de ser vivida, é preciso mais do que a mera sobrevivência,
é preciso que se tenha condições de viver a própria vida. Segundo a autora, “Quando pessoas
se reúnem para protestar contra condições induzidas de condição precária, elas estão agindo de
forma performativa (...)” (BUTLER, 2018, p. 228). Essas políticas contemporâneas da
performatividade são apresentadas, então, como modos de resistir às políticas que consideram
determinadas vidas indignas de apoio.
As ações dessas mães em espaços políticos como o FPSP, a Marcha da Periferia e
a construção da exposição são importantes, porque denotam não apenas a união desses corpos
na criação de alianças como forma de resistência, mas também se mostram potentes à medida
que operam na produção de um plano comum. Nesse processo, atuar como cartógrafa envolveu
não apenas acessar esse plano comum, o que se deu pela participação nesses espaços, mas
também pela criação desse comum, haja vista que essas ações foram resultantes de uma
construção coletiva da qual pude atuar em conjunto com os atores dessas lutas. Conforme
explicitado nos aspectos metodológicos, é desafiante construir conhecimento com as pessoas e
não sobre elas. Desse modo, compor esses cenários como participantes nos possibilitou
pesquisarCOM a heterogeneidade que compõe o campo, acessando e produzindo o plano do
150

comum (KASTRUP; PASSOS, 2013). Por comum, compreendemos não a negação das
diferenças existentes entre as mães e demais atores dos cenários acompanhados, mas nos
colocarmos a partir do eixo de transversalidade em que as diferenças são postas e ouvidas,
conforme demonstrado Kastrup e Passos (2013) quando afirmam que o “comum se dá pela
comunicação entre singularidades heterogêneas” (KASTRUP; PASSOS, 2013, p. 265). Trata-
se de escutar as diferentes vozes que ecoavam nos espaços, acompanhando o diálogo entre elas.
O plano comum surge na partilha do cotidiano, a partir da experiência compartilhada de nossas
singularidades e heterogeneidades estarmos juntos pautando temas relacionados à violência,
extermínio da juventude, segurança, e traçando ações construídas coletivamente. A exemplo
disso, temos as reuniões de articulação da exposição itinerante sobre as chacinas, em que os
cenários foram pensados junto às mães e representantes de outros coletivos, assim como a
elaboração das listas de materiais necessários e pesquisa de preços, a coleta de histórias e áudios
de familiares dos jovens assassinados. Todas essas ações foram pautadas em coletivo,
conversadas, ideias sugeridas por essas mulheres. Destacamos a seguir, alguns modos pelos
quais a organização de coletivos tem operado nas vidas dessas mães.

5.5 A aliança entre os corpos como experiência (do) comum

Para encerrar este capítulo, procuramos mostrar a multiplicidade das experiências


e estratégias desenvolvidas pelas mães de jovens assassinados, tomando cuidado para não
corroborarmos com valorações e hierarquizações dos modos de enfrentamento encontrados por
elas. Essas estratégias partilham de algo em comum, seja no trabalho, na igreja, nos coletivos
políticos ou nas redes extensas de apoio: essas mães resistem ao aniquilamento, às zonas de
invisibilidade, ao silenciamento, ao isolamento e à precariedade maximizada induzida pelos
assassinatos de seus filhos e os impactos em seus cotidianos por meio da aliança com outros
corpos. Dessa forma, o apoio é imanente e transversal às diversas formas de enfrentamento
encontradas pelas mães permeando os diferentes espaços e relações estabelecidas com outros.
Esse é o elemento que une as mulheres: lidar com a dor e resistir ao aniquilamento da violência
significa estar com outros, apoiada em outros corpos, como forma de minimização da condição
precária. As formas de conviver com suas dores desenvolvidas por essas mulheres criam
fissuras nas macroestruturas que induzem à precarização, ao apagamento e à (in)visibilização
de seus corpos, conforme destacado por uma delas em um dos espaços políticos acompanhados:
“se eu cair só quem vai ganhar é o Estado” (Felipa). Percebe-se, aqui que o não cair, em si, já é
151

um modo de andar na contramão de uma política de morte em curso, que, como afirmamos, não
tem como alvo precípuo apenas os jovens que compõem majoritariamente as estatísticas de
homicídio, mas também seus familiares, sobretudo as mães.
A fim de pensarmos os processos de resistência vividos por essas mães para além
de um prisma individualizante, trazemos as contribuições de Butler (2018) quando ela nos
mostra que resistimos à precariedade e a uma vida ruim, injusta e desigual, sempre com outros,
através da construção de alianças coletivas entre os corpos-subjetividades. Desconsiderar os
processos macropolíticos que se relacionam à indução de condições precárias da vida dessas
mulheres, de modo a esperar que estas resistam sem nenhuma forma de apoio ou aliança
constitui-se uma violência ética, nos termos de Butler (2018). As alianças com outros corpos se
apresentam como estratégias de seguir vivendo fora dos referenciais que pressupõem uma
possessão do sujeito de si mesmo, responsável pelo autocontrole em que imperam os ideais
neoliberais de autorresponsabilização, os quais corroboram para os processos de culpabilização
das mães pelas condições em que vivem e pelas mortes de seus filhos.
A autora coloca que a vida boa é uma vida partilhada. O isolamento e solidão
produzidos pela maquinaria de morte tiram dessas mulheres 'outros' importantes em suas vidas,
considerando-se a relação de intensa proximidade que essas mulheres tinham com seus filhos.
Eliminar esse outro constitui uma fragilização ou tentativa de fragilização da resistência dessas
mulheres ao seu próprio silenciamento e apagamento. Entretanto, existem diversas formas de
estar com outros que foram reconhecidas neste estudo. Trata-se do que Butler denomina de
transformação pela conexão com o outro, ponto fulcral para a transformação do luto em luta. A
partir dessas novas conexões com o outro, essas mulheres têm descoberto novas possibilidades
de si, construindo suas linhas de luta. Ao partilhar das condições precárias, luta-se
coletivamente para produção de condições de uma vida vivível. A "exposição compartilhada à
condição precária é apenas um fundamento de nossa igualdade potencial e das nossas
obrigações recíprocas de produzir conjuntamente condições para uma vida possível de ser
vivida" (BUTLER, 2018, p. 239).
Se, como dissemos anteriormente, o que há de comum entre essas diferentes
estratégias de enfrentamento e resistência é a aliança com outros corpos, que sustenta relações
de interdependência às quais atenuam a precaridade, faz-se importante pontuar que, segundo
Butler, essas estratégias se situam também no âmbito da política e pressupõem uma noção
descentralizada e renovada de sujeito. Desse modo, a luta, aqui, implica a politização da dor
evocada por essas perdas, constituindo, portanto, o processo de desindividualização e
152

coletivização destas, ainda que não necessariamente implique a participação direta dessas
mulheres em movimentos organizados.
153

6 “E NOSSA HISTÓRIA NÃO ESTARÁ PELO AVESSO ASSIM (..) TEREMOS


COISAS BONITAS PRA CONTAR”: FINS COMO NOVOS RECOMEÇOS

Terminar, segundo o dicionário, significa “fazer chegar ou chegar ao seu termo;


acabar(-se), findar(-se), concluir(-se)”. Quisera eu ter a liberdade poética de clarice para que
pudesse começar e terminar textos com vírgulas, isso porque a vida, assim como o sofrimento
que lhe é imanente não cabem em um texto, bem como não se findam em uma escrita. Eles
permanecem. Estavam sendo no momento que estive em campo, continuaram sendo enquanto
estive escrevendo e se prolongarão. Entretanto, faz-se necessário, talvez, não concluir, mas
retomar algumas pistas sobre os processos cartografados no intuito de traçar alguns arremates,
apontando possibilidades de investigações.
Tomando os términos como elo, suportar a falta que se afirma cotidianamente nos
coloca em novos ou permanentes sofrimentos. A constante é a dor e como diz Carlos Jobim e
Vinícius de Moraes “tristeza não fim, felicidade sim”, trecho que me remete à fala de uma das
mães quando afirma que a morte do seu filho simbolizou o fim de sua felicidade. Após a morte,
a felicidade passou a ser vivida como pequenos lampejos em uma grande tristeza. A dimensão
do sofrimento se destacou ao longo do percurso deste estudo, ao acompanharmos as dores das
mães em suas convivências cotidianas com a morte que nem sequer por um minuto é esquecida.
Com essas mulheres pude aprender que, por vezes, não se trata de não sofrer, mas de aprender
sobre sua dor, aprender a conviver com a perda que mudou suas existências e as marcaram para
o resto de suas vidas. São, portanto, modos de “andar na dor”, no qual não existe uma
superação, mas uma conciliação com esta. Essas mães, em seus modos de existir, nos dizem
sobre as possibilidades de organização em meio ao caos, de criação de si mesmas e de
reinvenção.
Ao tomarmos as implicações psicossociais dos homicídios juvenis no cotidiano das
mães como objeto deste estudo, nos deparamos com os sofrimentos em suas dimensões
singulares e coletivas. Elementos sociais, culturais e históricos se faziam transversais tanto na
produção das mortes quanto no sofrimento decorrente destas. Desse modo, o campo estava
composto de um emaranhado de fios que se entrelaçavam de tal forma, que as divisões para
análises, por vezes, tornaram-se difíceis, sendo postas muito mais por questões didáticas do que
por separabilidade das forças que as compunham.
A compreensão da dimensão psicossocial do sofrimento dessas mulheres requis,
primeiramente, que nos detivéssemos na análise do panorama de homicídio juvenil,
154

compreendendo de que modo operam as políticas de morte. Nas tramas das relações de poder,
engendram-se as condições de precariedade destinada a determinadas vidas, um conjunto de
vidas enquadradas como desimportantes, postas em visibilidade somente sob rótulos que
justifiquem suas exclusões. É preciso que se tenha um inimigo que justifique que o medo atue
como operador político e psicossocial, é preciso que se fomente o medo para que se implante o
desejo de aniquilamento daqueles que, supostamente, guardam em si o crime e o perigo. Essas
são forças que operam historicamente, principalmente ao considerarmos o recorte de raça e
classe que as mortes operam, ceifando vidas e marcando tantas outras. Com isso, as
problematizações acerca dos modos de operação da necropolítica somadas às condições de
precariedade da vida foram importantes para articularmos os processos acompanhados em
campo. Os corpos pobres e negros são subalternizados em um estado em que as
vulnerabilidades se tornam regras que pautam os cotidianos e formas de sociabilidades.
Discussões relevantes, principalmente, em um contexto político social em que se exacerbam o
punitivismo e a política de ódio a um inimigo ficcional.
O sofrimento psicossocial afirma-se, pois, como uma forma de fazer morrer. Mata-
se diretamente os filhos para que se faça morrer, indiretamente, suas mães e familiares. A dor
é uma forma de anestesiar e fragilizar essas mulheres e, apesar de se fazer presente ao longo de
suas vidas, se maximiza com as perdas dos filhos. Ao acompanhar as processualidades em
campo, compartilhando das dores das mães e de seus cotidianos marcados pela ausência dos
filhos, muito além das aprendizagens acadêmicas, aprendi sobre a vida. A morte que se
apresenta de modo radical e em série nas margens urbanas, ceifando as vidas matáveis preenche
de sofrimento as existências daqueles que sobrevivem. Lidar com tamanha dor, intensificada
pela forma abrupta com que se deram, deixa profundas marcas que as modificam como
mulheres e como mães. Conforme uma das participantes desse estudo afirma é um não
reconhecer-se. Passasse-se a ser um outro, a vida muda e a forma de ver o mundo muda. O
prisma interseccional de análise nos foi importante em tal discussão, uma vez que, em suas
condições de gênero, classe e raça, essas mulheres vivenciam diferentes formas de precarização
da vida e sofrimento psicossocial. É esperado que por serem mulheres negras e pobres sejam
“guerreiras” e fortes, não se pode sofrer e, se sofre, deve silenciar. O silêncio passa a ser
requerido não apenas pela legitimidade social imposta às mortes dos filhos, mas porque
precisam ser suporte, precisam ocupar o lugar de cuidado que lhes é reservado. Vivem não só
as repercurssões das lógicas punitivas preponderantes em nossa sociedade pautada pela
exacerbação das violências, mas também processos de silenciamento, acuamento, e
(in)visibilidade sociais de formas intensas.
155

Há uma dimensão política das dores que transcende a individualização do luto e


levam essas mulheres a perceberem as implicações das questões macropolíticas nas vidas e
mortes de seus filhos. Em seus processos de luta, reluz uma certa teimosia em persistir, em dar
continuidade à vida, ao trabalho, aos cuidados daqueles que ficaram, denotando formas de
resistência que se inscrevem na lida cotidiana, conforme nos apresenta Veena Das. Esse refazer
de suas histórias, em que muitas vezes, se faz presente os silêncios são formas de lidar e,
conforme, DAS (2011) também são formas de resistir que rompem com uma ideia pré-
estabelecida de resistência. As lutas organizadas em coletivos também são formas de resistir,
espaços em que são pautadas a relevância das vidas de seus filhos. Os gritos dessas mulheres
são entoados como modos de enfrentamento ao silenciamento imposto. Elas se unem a partir
do reconhecimento das condições de precariedade que as assolam de forma semelhante, por
serem mulheres, pobres, negras, e terem seus filhos assassinados. Essas mulheres, por vezes,
fazem da morte de seus filhos uma espécie de novo começo para si, e o engajamento em lutas
políticas por memória e justiça apresenta-se como um dos meios de caminhar na dor. Em meio
à dor latejante, o compartilhamento dessas condições de precárias e apoio mútuo as levam a
reconhecer suas dores e potências em outras e saberem que, ali, já não se encontram mais tão
sós. Andam na dor, mas em aliança a outras, potencializando-se mutuamente.
As trocas em campo apontam para a insuficiência das políticas públicas no que
concerne a assistência e cuidado às mães e familiares de jovens assassinados. Conduzimos as
discussões no intuito de compreendermos de que formas as questões aqui abordadas se
articulam e operam, o que nos permite entender que o desinvestimento nessas políticas não se
dá de modo aleatório, mas sim, como produto das relações de poder que assujeitam as
existências engendradas como extermináveis. Trata-se de um modo de ‘fazer morrer’, refletir
sobre isso é importante, do mesmo modo que se faz relevante apontarmos para possíveis, e
esses possíveis saltaram aos olhos nas resistências compartilhadas, estar com o outro nos
enfrentamentos se mostrou como elemento importante nos processos acompanhados.
O recorte aqui escolhido, não nos possibilitou analisar mais profundamente as
implicações no contexto familiar, algo que, sem dúvidas, renderia possibilidades de
investigações. Além disso, mesmo optando por focar nas mães dos jovens, ressaltando algumas
condições de precariedade, tivemos algumas limitações quanto ao esmiuçamento de suas
trajetórias, já que nos propomos a analisar o homicídio juvenil. A análise mais aprofundada das
trajetórias de cada mulher focando nas violências vivenciadas seria também um campo fecundo
de investigações.
156

Por fim, encerro essa dissertação, com mais questionamentos acerca dos
imbricamentos e produções da violência nos modos de subjetivação do que com certezas
catedráticas. A produção de subjetividades marcadas pelas violências é um campo muito
complexo, não linear, em que diversas questões de cruzam e em que os caminhos de análise
tomados podem nos levar a novas reflexões e problematizações.
157

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