Abolicionismo Angela Davis e Criminologia Crítica
Abolicionismo Angela Davis e Criminologia Crítica
Abolicionismo Angela Davis e Criminologia Crítica
CURITIBA
2021
LUANA FERNANDA ALVES VIEIRA
CURITIBA
2021
Dedico este trabalho ao povo negro brasileiro,
cujos gritos históricos hão de ser ouvidos por este
país. Em especial, dedico àqueles que foram
vítimas do Estado, pela bala ou pelo cárcere, bem
como às suas mães e aos seus familiares. Esta
brava gente, presente!
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Valda e Fernando, pelo apoio e amor de uma vida. Obrigada por
sempre terem acreditado em mim, pelo investimento que despenderam em meu favor, e por
nunca terem largado a minha mão. Digo, com sinceridade: sem vocês, o presente momento,
de estar escrevendo os agradecimentos de uma monografia que finda o curso de Direito em
uma universidade pública, não teria sido possível.
À minha irmã Laísa, por sempre estar apenas um quarto de distância a me aconselhar,
animar e ajudar a assoprar para longe os desânimos que sempre acompanham o fazer de um
trabalho como este e, de um modo geral e contínuo, na vida. Obrigada pelos conselhos e
companhia nos mais diversos dos momentos.
Aos amigos que cultivei ao longo da faculdade e fora dela, por toda as experiências de
alegrias e dramas partilhadas em conjunto. As conversas, as risadas, os consolos, as ajudas, os
conselhos, enfim, todos os momentos em companhia fizeram estes anos mais leves, especiais
e memoriosos.
Aos meus professores, do ensino infantil à graduação, por toda a carga que fora
dedicada a possibilitar a minha formação. Agradeço em especial àqueles que serviram para
mim como inspiração de luta para transformação da realidade, para a busca constante de um
mundo mais justo e igual. Os ensinamentos destes, tenham certeza, estão alocados em cada
canto deste trabalho.
Logo o Estado, que é o Crime Organizado em
Pessoa, vem taxar os nossos filhos de “suspeitos”
ou “bandidos” e, além do mais, decretar
sumariamente a “pena de morte”, em flagrante
contradição com as suas próprias leis?! Que
moral tem este Estado e seus agentes para falar
de quem quer que seja?! Ainda mais de Nós e de
nossas Famílias de Trabalhadores?! O quê os
seus agentes conheciam da história, das famílias
e das trajetórias dos meninos e meninas mortos
nas ruas a esmo, simplesmente por serem pobres
e pretos, ou por estarem “na hora errada no
local errado”?! Qual o critério para se taxar,
julgar e se decretar a pena de morte a quem quer
que seja?! Até que ponto eles acham que podem
chegar tirando seus próprios “cidadãos” de
otários, de imbecis – como fazem desde os
tempos da colônia e da escravidão?! Será que
eles acham que a população comum, o povo
pobre, negro, das periferias, a maioria da
sociedade, enfim, nunca vai se rebelar frente a
tanta violência e mentira?!
(Depoimento das Mães de Maio sobre o
assassinato pelo Estado dos mais de 500 jovens
pobres e negros nascidos e criados na periferia
de São Paulo – seus filhos – entre os dias 12 e 20
de maio de 2006)
RESUMO
O presente trabalho argumenta que o abolicionismo penal no Brasil deve estar aliado à luta
antirracista. Para tanto, em um primeiro momento, buscou-se evidenciar, a partir dos
instrumentos oferecidos pelo pensamento decolonial latino-americano, de autores do
pensamento negro brasileiro e de autores que pensam raça e racismo, a intrínseca relação que
o sistema penal travou, desde o seu nascedouro, com a população negra, por meio do resgate
dos signos que a colonização, o genocídio e a escravização deixaram na formação social
brasileira e no tipo de relacionamento que o Estado travaria com este segmento. Em um
segundo momento, utilizando-se dos aportes da criminologia crítica, buscou-se evidenciar o
estado de deslegitimação que o sistema penal fora deixado após o seu encontro com este
marco teórico, apresentando, também, a política-criminal alternativa mais radical que surge
neste mesmo contexto de deslegitimação: o abolicionismo penal. A partir de todas estas
conquistas teóricas, procura-se demonstrar, então, a crítica da crítica: a percepção,
majoritariamente por autoras e autores negras(os), de que o potencial da criminologia crítica e
do abolicionismo penal têm sido subaproveitados, pela falta de incorporação radical do debate
da questão racial. Apontam-se, neste sentido, lacunas do campo em debater sobre
colonialidade, epistemicídio, branquitude e relações raciais, das quais é levantada como
hipótese explicativa a hegemonia branca e masculina da academia brasileira. Exemplo de tal
fato é a falta de pesquisas acadêmicas acerca do abolicionismo penal que dialoguem com os
escritos de Angela Davis sobre o tema. Nesses termos, apesar de Davis ser estadunidense e
levar o sistema penal deste país em conta em suas análises, há um elemento que liga nossa
realidade com à daquele país: as heranças da escravidão que ainda podem ser notadas na
atuação contemporânea de ambos os sistemas penais. Por ser assim, Davis, ativista e
pesquisadora negra, que defende abertamente a abolição das prisões há mais de duas décadas,
realiza análises que contêm percepções e esclarecimentos indispensáveis para uma
compreensão efetiva do modo de atuação do sistema penal no Brasil. O silenciamento de suas
produções pela academia brasileira é um grave déficit epistemológico e político aos estudos
abolicionistas do Brasil.
This paper argues that penal abolitionism in Brazil must be articulated with the anti-racist
movements. To this end, it was sought to show, at first, from the perspectives offered by latin
american decolonial thought and from authors of Brazilian black thought and that think race
and racism, the intrinsic relation that the penal system have been having, since its birth, with
the black population, through the rescue of the signs that colonization, genocide and
enslavement obtained in the Brazilian social formation and in the type of relationship that the
State would have with this segment. In a second step, using the contributions of critical
criminology, we sought to highlight the state of delegitimization that the penal system was
carried out after meeting with this theoretical framework, presenting, as well, the most radical
alternative criminal policy that emerged in this same context of delegitimization: the penal
abolitionism. Based on all of these theoretical achievements, we seek to demonstrate, then, the
critique of the criticism: the perception, mainly by black female and male authors, that the
potential of the critical criminology and the penal abolitionism have been underutilized, due
to the lack of radical incorporation of the racial debate. In this sense, gaps in the field are
pointed out in debating coloniality, epistemicide, whiteness and race relations, of which the
white and male hegemony of the Brazilian academy is raised as an explanatory hypothesis.
An example of this is the lack of academic research on penal abolitionism that dialogs with
Angela Davis' writings on the subject. In these terms, despite Davis being American and
taking the penal system of this country into account in her analyzes, there is an element that
links our reality with that country: the legacies of slavery that can still be found in the
contemporary performance of both penal systems. Because of this, Davis, a black activist and
resercher, who has openly defended the abolition of prisons for more than two decades,
carries out analyzes that allow insights and clarifications that are essential for an effective
understanding of how the penal system operates in Brazil. The silencing around her
productions by the Brazilian academy is a serious epistemological and political deficit in
abolitionist studies in Brazil.
Keywords: Racism. Penal System. Critical Criminology. Penal Abolitionism. Angela Davis.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................07
2 O “PROJETO DA MODERNIDADE": O SISTEMA PENAL BRASILEIRO COMO
PRODUTO COLONIAL...................................................................................................12
2.1 DO COLONIALISMO À COLONIALIDADE: A CONSTRUÇÃO DA IDEIA DE
RAÇA...................................................................................................................................12
2.2 DA EXPLORAÇÃO NO ESCRAVISMO AO ABANDONO NO “TRABALHO
LIVRE” ...............................................................................................................................18
2.3 DOS AÇOITES ÀS PRISÕES: RAÍZES COLONIAIS E CONTINUIDADES
RACISTAS DO SISTEMA PENAL BRASILEIRO...........................................................28
3 DESVENDANDO A SELETIVIDADE RACIAL DO SISTEMA PENAL
BRASILEIRO PELA CRIMINOLOGIA CRÍTICA E O PENSAR
ABOLICIONISTA PENAL...............................................................................................37
3.1 CRIMINOLOGIA TRADICIONAL E CRIMINOLOGIA CRÍTICA..........................37
3.2 PENAS PERDIDAS: O SISTEMA PENAL DESLEGITIMADO..............................43
3.3 OS SISTEMAS PENAIS NA AMÉRICA LATINA: UMA LÓGICA GENOCIDA..51
3.4 DELINEANDO O GENOCÍDIO: O RACISMO DO SISTEMA PENAL
BRASILEIRO EM NÚMEROS...........................................................................................54
3.5 ALTERNATIVAS: O PENSAR ABOLICIONISTA PENAL.....................................61
4 POR UM ABOLICIONISMO PENAL ANTIRRACISTA............................................67
4.1 QUESTIONAMENTOS À CRIMINOLOGIA CRÍTICA E AO ABOLICIONISMO
PENAL.................................................................................................................................67
4.2 O ABOLICIONISMO PENAL DE ANGELA DAVIS................................................74
4.2.1 Breve apresentação de Angela Davis: vida e obra..........................................................74
4.2.2 “Da prisão da escravidão à escravidão da prisão”: aproximações do contexto
estadunidense com o brasileiro........................................................................................76
4.2.3 A democracia da abolição: aspectos centrais da teoria abolicionista de Angela Davis...82
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................89
REFERÊNCIAS......................................................................................................................93
9
1 INTRODUÇÃO
1
MOURA, Clóvis. Escravismo, colonialismo, imperialismo e racismo. Revista Afro-Ásia, n. 14, 1983. p. 124.
2
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Tradução de Marina Vargas. Rio de Janeiro: DIFEL, 2018. p.
15.
3
ALMEIDA, Silvo. Racismo estrutural. Coleção Feminismos Plurais. São Paulo: Pólen, 2019. p. 18.
9
Apesar de ser uma construção fantasiosa, a ideia de raça forjou efeitos muito reais,
sendo estes sentidos através do racismo. Nestes termos, o racismo não se resume ao
comportamento isolado de um indivíduo ou de um grupo – segundo Silvio Almeida, o
racismo é sempre estrutural. Dizer que o racismo é estrutural significa, em primeiro lugar,
entender a dimensão do poder como elemento constitutivo das relações raciais e, em segundo
lugar, compreender o racismo como componente orgânico da estrutura social, isto é, “o
racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’ com que se
constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma
patologia e nem um desarranjo institucional”.4 Por ser assim, o racismo é a regra e não a
exceção na nossa ordem social.
O racismo age, em última instância, a partir da construção da diferença (o sujeito
negro é visto como diferente, pois o grupo branco tem o poder de se definir como “norma”)
que é, essencialmente, uma diferença hierárquica (brancos como superiores e negros como
inferiores).5 Por tudo isso, o racismo, nas palavras de Ana Flauzina, “existe e produz efeitos;
cria assimetrias sociais; delimita expectativas e potencialidades; define os espaços a serem
ocupados pelos indivíduos; fratura identidades; é o fiel da balança que determina a
continuidade da vida ou a morte das pessoas”. 6
Apesar de ser um fenômeno mundial, por ser também processo histórico, as
particularidades de cada formação social fornecem as especificidades da dinâmica estrutural
do racismo. Na trajetória singular do Brasil, o “racismo à brasileira” possuiu algumas
peculiaridades, como a ideologia da democracia racial – negação da existência de racismo no
Brasil pela suposta existência de uma “harmonia entre as raças”, o que contribui para
deslegitimar as demandas por igualdade racial – e a política de branqueamento – estratégia de
desaparecimento da raça negra no Brasil por meio do clareamento através da “mulatização”.
Nesse sentido, o uso do termo genocídio para designar os processos históricos de extermínio
da identidade, física e simbólica, do negro brasileiro foi cunhado pelo teórico, político e
4
ALMEIDA, Silvo. Racismo estrutural. p. 33.
5
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio
de Janeiro: Cobogó, 2019. p. 75-76.
6
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado
brasileiro. 2006. 145f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília,
Brasília, 2006. Disponível em:
<https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/5117/1/2006_AnaLuizaPinheiroFlauzina.pdf>. Acesso em: 10 out.
2020. p. 12.
9
7
“Devemos compreender ‘democracia racial’ como significando a metáfora perfeita para designar o racismo
estilo brasileiro: não tão óbvio como o racismo dos Estados Unidos e nem legalizado qual o apartheid da África
do Sul, mas institucionalizado de forma eficaz nos níveis oficiais de governo, assim como difuso e
profundamente penetrante no tecido social, psicológico, econômico, político e cultural da sociedade do país. Da
classificação grosseira dos negros como selvagens e inferiores, ao enaltecimento das virtudes da mistura de
sangue como tentativa de erradicação da ‘mancha negra’; da operatividade do ‘sincretismo’ religioso à abolição
legal da questão negra através da Lei de Segurança Nacional e da omissão censitária – manipulando todos esses
métodos e recursos – a história não oficial do Brasil registra o longo e antigo genocídio que se vem perpetrando
contra o afro-brasileiro. Monstruosa máquina ironicamente designada ‘democracia racial’ que só concede aos
negros um único ‘privilégio’: aquele de se tornarem brancos, por dentro e por fora”. NASCIMENTO, Abdias do.
O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 93.
8
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão.
Rio de Janeiro: Revan, 2012. p. 261.
9
Esta pesquisa não é pretensiosa a ponto de querer esgotar toda a produção que seja
relevante ao tema, mas, dentro de seus limites, foi dividida em três capítulos, que visam
compreender as relações que o sistema penal brasileiro travou com os corpos negros ao longo
da história, buscando as críticas que demonstram como o crime é resultado de uma construção
social de incriminação seletiva de determinados sujeitos e condutas, as quais levam à
constatação da falência do sistema penal a partir das bases do abolicionismo penal, buscando
as teorizações de Angela Davis sobre este movimento.
O primeiro capítulo busca demonstrar, dentro das limitações do presente trabalho,
como se deu o surgimento da violência sistemática direcionada aos corpos negros no Brasil.
Este mapeamento histórico nos remete, de início, ao processo histórico da colonização das
Américas, que, através da produção da ideia de raça e da violência colonial (genocídio,
extermínio simbólico, epistemicídio, coisificação, exploração do trabalho), produziu relações
de dominação e subalternização, orientadas pelo projeto da modernidade a partir do
eurocentrismo e das ideias de superioridade e inferioridade que dividiram binariamente
brancos e negros em posições opostas que permanecem no presente. Para tal, o referencial
teórico usado foi o pensamento decolonial latino-americano, que insere o Brasil nas
permanências advindas da colonialidade. Na sequência, o capítulo se dedica a analisar o
período do Brasil escravocrata até a abolição da escravatura, contextualizando o
engendramento das particularidades essenciais para entender o modo como o racismo opera
no Brasil, como a política do embranquecimento e a ideologia da democracia racial. Percorrer
este caminho é essencial para se articular, em seguida no capítulo, a relação umbilical entre o
racismo e o sistema penal. Neste ponto, busca-se demonstrar que, desde o seu nascedouro, o
sistema penal possuiu no racismo um condicionante estrutural, o qual permaneceu na maneira
de atuar deste sistema em um eterno continuum punitivo, que foi essencial para sedimentar a
distância social que separa brancos e negros no Brasil.
O segundo capítulo se concentra em apresentar o abolicionismo penal a partir dos
debates específicos que reconheceram a deslegitimação do sistema penal. O referencial
teórico é, portanto, o da criminologia crítica, desde sua apropriação latino-americana, pois
apta a demonstrar a direção dos sistemas penais marginais ao genocídio. Inicia-se o capítulo
com a exposição do desenvolvimento histórico do pensamento criminológico, a fim de
demonstrar a revolução de paradigmas em criminologia que propiciou a emergência da
criminologia crítica, dedicando-se a apontar as bases fundantes, o método, o objeto de estudo
e as reflexões desta perspectiva criminológica. Na sequência, são demonstradas as críticas
mais relevantes que efetua ao sistema penal, a partir das ideias, dentre outras, da discrepância
9
entre suas funções declaradas e suas funções reais, sua seletividade estrutural, a cifra oculta da
criminalidade, os processos de criminalização e o papel do poder punitivo na reprodução do
status quo capitalista. Em seguida, o capítulo busca articular tal discussão com a realidade
racial brasileira, demonstrando o porquê se afirma que o sistema penal é genocida. Apresenta-
se, assim, os números da variável racial no encarceramento, nos homicídios e na desigualdade
social, além de demarcar as contribuições do Estado, precipuamente pela atuação da polícia,
na produção desses números. Todo esse esforço é empreendido para apresentar, por fim, a
única saída que se vê possível, qual seja, o abolicionismo penal, pincelando, nesta parte do
capítulo, algumas das teorizações abolicionistas dos autores mais reconhecidos
internacionalmente deste movimento.
Por fim, o capítulo final se dedica a argumentar a relevância da teoria abolicionista
penal de Angela Davis para a construção de um abolicionismo num contexto que, a partir do
acúmulo dos capítulos anteriores, tentou se demonstrar ser o brasileiro. Argumenta-se, em um
primeiro lugar, que a academia brasileira é marcada por um silenciamento em torno da teoria
de Davis, bem como de uma insuficiência de perspectivas críticas do sistema penal que
incorporem os marcos teóricos sobre as relações raciais no Brasil, esforço necessário para
radicalizar a centralidade da variável racial na compreensão dos fenômenos sociais deste país.
Em seguida, o capítulo busca demonstrar que Angela Davis articula em um projeto
abolicionista, seja em sua produção acadêmica, seja em sua militância política, os dois
principais pontos deste trabalho (que, em verdade, por consubstanciarem uma relação
simbiótica, nunca devem ser vistos em separado), quais sejam: o racismo e o sistema penal.
Adianta-se, aqui, que o racismo ocupa espaço central nos argumentos que Davis desenvolve
para reivindicar a abolição das prisões: deve-se abolir as prisões porque elas são instituições
racistas, ponto. Isso já que, para Davis, um sistema penal não racista é um oximoro, tão
umbilical é a ligação desta variável com este sistema, já que o ódio racial conformou,
historicamente, o modo de atuar e de ser das prisões – elas são hoje o que são porque as
ideologias históricas anti-negras as fizeram ser assim. Assim, uma sociedade sem racismo é
uma sociedade sem prisões. Disto emerge o seu abolicionismo radical, que rejeita o racismo, a
dominação masculina, o sistema capitalista, o colonialismo, enfim, todas as estruturas de
dominação que sustentam as prisões.
9
Cheguei ao mundo pretendendo descobrir um sentido nas coisas, minha alma cheia
de desejo de estar na origem do mundo, e eis que me descubro objeto em meio a
outros objetos.
Franz Fanon9
9
FANON, Frantz. Pele negra máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
p. 103.
10
FANON, Frantz. Pele negra máscaras brancas. p. 26.
11
FANON, Frantz. Pele negra máscaras brancas. p. 28.
12
DAVIS, Angela apud STREVA, Juliana Moreira. Teoria Descolonial de Frantz Fanon: anti-racismo, novo
humanismo e luta. Conversações: Política, Teoria e Direito. Revista Discente da Pós Graduação - PUC/Rio,
2015. p. 121.
13
GUIMARÃES, Jonhathan Razen Ferreira; QUEIROZ, Marcos. Frantz Fanon e criminologia crítica: pensar o
Estado, o direito e a punição desde a colonialidade. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 135, 2017. p.
312.
9
14
GORDON, Lewis R. Prefácio. In: FANON, Frantz. Pele negra máscaras brancas. Tradução de Renato da
Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 15.
15
FANON, Frantz. Pele negra máscaras brancas. p. 90.
16
QUIJANO, Aníbal. !Que tal raza!. Revista Del CESLA, n. 1, 2000. p. 192.
17
QUIJANO, Aníbal. “Raza”, “etnia” y “nación” em Mariátegui: cuestiones abiertas. In: Cuestiones y
horizontes: de la dependência histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. Buenos Aires:
CLACSO, 2014. p. 757.
18
Tradução livre de “las vidas humanas pasaban a ser prescindibles en aras de incrementar la riqueza, y dicha
prescindibilidad se justificaba através de normalizar la clasificación racial de los seres humanos”. MIGNOLO,
Walter D. La colonialidad – la cara oculta de la modernidade. In: MIGNOLO, Walter D. Desobediencia
epistémica: retórica de la modernidade, lógica de la colonialidad y gramática de la descolonialidad (org.).
Buenos Aires: Ediciones del Signo, 2010. p. 41.
19
Aqui, torna-se necessária a diferenciação entre colonialismo e colonialidade. Segundo Aníbal Quijano, o
colonialismo se refere ao período específico da colonização histórica na qual um povo está sob o poder político e
9
ideia de raça é, com toda certeza, o mais eficaz instrumento de dominação social inventado
nos últimos 500 anos”.20
O conceito de “colonialidade do poder”, cunhado pelo sociólogo peruano Aníbal
Quijano, é essencial à compreensão de tal aspecto. Tal conceito traz à luz as continuidades
entre o passado colonial e as atuais hierarquias internacionais globais – isto é, o fato de que
continuamos vivendo em um mundo colonial – com base no caráter estruturante que a ideia de
raça tomou na organização do sistema-mundo capitalista. Elucida Quijano:
econômico de outro. O colonialismo desaparece, assim, quando este poder cessa, ou seja, com a independência
ou descolonização da colônia. Em contrapartida, a colonialidade é mais profunda e duradoura do que o
colonialismo, pois se refere ao vínculo entre passado e presente do qual emerge um padrão de poder resultante da
experiência colonial, em que a independência não foi suficiente para garantir a emancipação político-econômica
e cultural dos países colonizados. Assim, a colonialidade não desaparece com o fim do colonialismo, pois há
uma continuidade das formas coloniais de dominação, mesmo após o fim das administrações coloniais.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de Souza;
MENESES, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009. p. 73.
20
Tradução livre de “La idea de raza es, con toda seguridad, el más eficaz instrumento de dominación social
inventado en los últimos 500 años”. QUIJANO, Aníbal. !Que tal raza!. p. 192.
21
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. p. 73.
22
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). A
colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires:
CLACSO, 2005. p. 117.
9
23
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. p. 118-119.
24
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. p. 119-120.
25
GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais:
transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 80,
mar. 2008. Disponível em: < http:// journals.openedition.org/rccs/697>. Acesso em: 28 dez. 2020. p. 123.
26
GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais. p.
124.
27
GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais. p.
124.
28
GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais. p.
131.
9
29
CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Ciências sociais, violência epistêmica e o problema da “invenção do outro”. In:
LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-
americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 89.
30
CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Ciências sociais, violência epistêmica e o problema da “invenção do outro”, p.
89.
31
CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Ciências sociais, violência epistêmica e o problema da “invenção do outro”. p.
91.
32
CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Ciências sociais, violência epistêmica e o problema da “invenção do outro”. p.
91.
33
CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Ciências sociais, violência epistêmica e o problema da “invenção do outro”. p.
90.
34
GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais. p.
137.
9
saberes não-europeus são tidos como inválidos, carentes e arcaicos, o saber europeu assume
um ponto de vista universalista, neutro e objetivo.35
Essa ideia de conhecimento universal coloca o pensamento eurocêntrico como único,
silenciando formas de pensar que se distanciam do padrão. Isso se configura em uma peça
fundamental à manutenção da estrutura de poder dominante, pois permite que determinada
visão de mundo e da história se imponha sobre outras, alternativas ou não-hegemônicas.36 É
essencial à afirmação de um sentido de coletividade aos povos dominados a concepção de
uma percepção diferenciada de seu passado e de sua trajetória histórica, longe dos
pressupostos eurocêntricos,37 pois estes só os enxergam através de posições de subjugação,
nunca de afirmação ou resistência. Nesses termos, a pretensa superioridade do saber europeu é
um instrumento de dominação colonial – a chamada “colonialidade do saber”. Grosfoguel
evidencia esta cumplicidade das ciências sociais com a hegemonia do poder:
Esta estratégia epistêmica tem sido crucial para os desenhos – ou desígnios – globais
do Ocidente. Ao esconder o lugar do sujeito da enunciação, a dominação e a
expansão coloniais europeias/euro-americanas conseguiram construir por todo o
globo uma hierarquia de conhecimento superior e inferior e, consequentemente, de
povos superiores e inferiores. Passamos da caracterização de “povos sem escrita” do
século XVI, para a dos “povos sem história” dos séculos XVIII e XIX, “povos sem
desenvolvimento” do século XX e, mais recentemente, “povos sem democracia” do
século XXI. (...) Todos estes fazem parte de desenhos globais, articulados
simultaneamente com a produção e a reprodução de uma divisão internacional do
trabalho feita segundo um centro e uma periferia, que por sua vez coincide com a
hierarquia étnico-racial global estabelecida entre europeus e não-europeus.38
35
GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais. p.
118.
36
SILVA, Fabricio Pereira da; BALTAR, Paula; LOURENÇO, Beatriz. Colonialidade do saber, dependência
epistêmica e os limites do conceito de democracia na América Latina. Revista de Estudos e Pesquisa sobre as
Américas, v. 12, n. 01, p. 71.
37
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 106-107.
38
GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais. p.
120.
9
39
MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de um concepto.
In CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Rámon. (org.). El giro decolonial: reflexiones para uma
diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007. p. 130.
40
MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de um concepto.
p. 140.
41
MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de um concepto.
p. 148.
9
O território chamado hoje de Brasil foi a porção da colonizada América que recebeu o
maior número de africanos escravizados ao longo dos quase quatro séculos de escravidão.42
Forçadamente trazidos à terra brasilis a partir do século XVI, o negro africano e seus
descendentes contribuíram com tudo aquilo que era necessário para dinamizar a economia
brasileira durante os longos séculos do escravismo. Durante o Brasil-Colônia, praticamente só
quem trabalhava era o escravizado, atuante em todos os níveis da divisão do trabalho; em
contrapartida, trabalhava para enriquecer os impérios europeus e os seus senhores: o negro
escravizado, gerador da riqueza e dinamizador da economia desde os primórdios destas terras,
se via excluído da divisão dos frutos de seu trabalho.43
Clóvis Moura nos atenta à necessidade de conceber o funcionamento da dinâmica do
sistema escravista a partir das suas contradições e antagonismos, isto é, deve-se conceber o
escravismo a partir da perspectiva do conflito entre as duas classes fundamentais da sua
estrutura social: senhores e escravizados.44 Trata-se, portanto, de negar as correntes
sociológicas que colocam a estabilidade e a acomodação da massa escravizada como
constitutivas deste sistema e, ao contrário, atribuir à dicotomia contraditória de relações o seu
lugar no centro do debate:
Assim, a relação entre esses dois segmentos é marcada por dois extremos de conflito,
que nunca podem ser perdidos de vista: de um lado, o clima de terrorismo permanente que
viviam os escravizados na mão de seus senhores e, de outro, as diversas formas de rebeldia e
de contestação da sua condição, das quais se destaca o quilombo.
42
RODRIGUES, Jaime. Navio Negreiro. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; GOMES, Flávio (org.). Dicionário da
escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 362.
43
MOURA, Clóvis. História do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1992. p. 7, 20-21.
44
MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Anita, 1994. p. 15-24.
45
MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. p. 23.
9
Vê-se bem que, sendo estas as suas condições de convivência, o mito da escravidão
benevolente, em decorrência de uma suposta relação cooperativa e harmônica entre os
senhores e escravizados, ideia que é um dos pilares da ideologia da democracia racial, não se
sustenta.
A experiência da captura, da viagem insalubre e deteriorante, da venda, da compra e
do trabalho compulsório que os africanos foram submetidos por séculos promoveram o seu
desenraizamento, com o rompimento de todos os seus laços familiares, de clã e de
comunidade. Dessocialização que resultou em despersonalização ou coisificação: o
escravizado é reduzido a coisa, objeto, mercadoria;46 é sujeitado de forma absoluta à condição
de propriedade do senhor, pois “circulava como mercadoria, idêntica àquela a qual ele próprio
produzia”.47 Clóvis Moura retrata os significados dessa sua condição de ser semovente:
o negro escravo vivia como se fosse um animal. Não tinha nenhum direito, e pelas
Ordenações do Reino podia ser vendido, trocado, castigado, mutilado ou mesmo
morto sem que ninguém ou nenhuma instituição pudesse intervir em seu favor. Era
uma propriedade privada, propriedade como qualquer outro semovente, como o
porco ou o cavalo. 48
46
MATTOSO, Katia M. de Queiróz. Ser escravo no Brasil. Tradução de James Amado. 3. ed. São Paulo:
Brasiliense, 2003. p. 101.
47
MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. p. 25.
48
MOURA, Clóvis. História do negro brasileiro. p. 15-16.
49
MOURA, Clóvis. História do negro brasileiro. p. 18.
50
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000. p. 148.
51
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. p. 148.
9
princípio do partus sequitur ventem, segundo o qual o filho segue a condição jurídica da mãe.
Isto é, filhos de escravizadas assim o serão também.52
Ainda, às mulheres negras escravizadas, o nível de exploração excedia ao seu uso
sexual por parte dos senhores, através da violência comum e rotineira do estupro. A sua
condição jurídica de propriedade se traduzia na intervenção violadora de seus corpos,
historicamente vistos como promíscuos, e a mistura desse sangue resultava em um dos pilares
da ideologia da democracia racial: o mestiço.53
É nesse sentido que Lélia Gonzalez, intelectual negra brasileira e defensora de um
feminismo afrolatinoamericano, ironiza o fato de que é no carnaval, através da figura da
mulata, que o mito da democracia racial se atualiza com toda a sua força simbólica – já que,
nele, ela é endeusada, transformada na “mulata deusa do meu samba”. Porém, o que o mito
não revela é o momento em que o ritmo das festas carnavalescas se transforma na banalidade
do cotidiano: quando a mulata se transfigura na empregada doméstica, visto que ambas são
atribuições de um mesmo sujeito histórico, a mulher negra.54
Lélia, ao explicar essa “confusão que o branco faz com a gente porque a gente é
preto”, lembra-nos de um dos papéis sociais da escravizada no regime escravocrata, a função
de mucama que, nas palavras de June E. Hahner, citada por Lélia:
a escrava de cor criou para a mulher branca das casas grandes e das menores,
condições de vida amena, fácil e da maior parte das vezes ociosa. Cozinhava, lavava,
passava a ferro, esfregava de joelho o chão das salas e dos quartos, cuidava dos
filhos da senhora e satisfazia as exigências do senhor.55
Sua denúncia, assim, fica bem clara: a função da mucama, cuidadora dos lares das
senhoras brancas, nunca abandonou a mulher negra, mesmo após se ver mulher “livre”; em
verdade, atualizou-se para a função de empregada doméstica dos lares da elite branca
brasileira,56 com toda a precariedade e subjugação que lhe são próprias, sendo a figura de tal
52
MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo Machado. Mulher, corpo e maternidade. In: SCHWARCZ, Lilia
Moritz; GOMES, Flávio (org.). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2018. p. 335-356.
53
Gilberto Freyre, grande propagador do mito da democracia racial e teorizador do lusotropicalismo, glorificava
a proeza dos portugueses ao “criarem” o Brasil, essa civilização tropical portuguesa, através da miscigenação.
Porém, o que Freyre oculta é que a miscigenação se deu às custas do estupro da mulher negra e indígena.
GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-econômica. In:
RODRIGUES, Carla; BORGES, Luciana; RAMOS, Tania Regina Oliveira (org.). Problemas de gênero.
Coleção Ensaios Brasileiros Contemporâneos. Rio de Janeiro: Funarte, 2016. p. 400.
54
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984.
p. 228.
55
HAHNER, June apud GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. p. 229.
56
Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2019 demonstra que o trabalho doméstico no
Brasil é realizado dominantemente por mulheres negras advindas de famílias de baixa renda. Em 2018, dentre os
6,2 milhões de pessoas, entre homens e mulheres, que estavam empregadas no trabalho doméstico, mais de 4
9
milhões eram pessoas negras e, destas, 3,9 milhões eram mulheres negras, totalizando, assim, 63% do total de
trabalhadores (as) domésticos (as). IPEA. Os desafios do passado no trabalho doméstico do século XXI:
reflexões para o caso brasileiro a partir dos dados do PNAD Contínua. Brasília, 2019. Disponível em:
<http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/9538/1/td_2528.pdf>. Acesso em: 05 dez. 2021.
57
PEREIRA, Bergman de Paula. De escravas a empregadas domésticas: a dimensão social e o “lugar” das
mulheres negras no pós-abolição. XXVI Simpósio Nacional de História ANPUH: 50 anos, São Paulo, 2011.
p. 04.
58
MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. p. 48
59
MOURA, Clóvis. Escravismo, colonialismo, imperialismo e racismo. p. 124.
60
NASCIMENTO, Beatriz. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. Afrodiáspora, ano 3, n. 6 e 7,
p. 41, 44 e 48.
61
GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: abordagem político-econômica. p. 401.
62
Clóvis Moura considera a quilombagem como “o movimento de rebeldia permanente organizado e dirigido
pelos próprios escravos que se verificou durante o escravismo brasileiro em todo o território nacional”. Assim, o
quilombo é o centro organizacional da quilombagem, mas esta não se esgota nele – também engloba diversas
outras formas de protesto individuais ou coletivas, como as guerrilhas. MOURA, Clóvis. História do negro
brasileiro. p. 22 e 23.
63
MOURA, Clóvis. História do negro brasileiro. p. 22.
64
AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século
XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 180-198.
9
65
MACHADO, Maria Helena apud ALBUQUERQUE, Wlamyra de. “A vala comum da ‘raça emancipada’”:
abolição e racialização no Brasil, breve comentário. Revista História Social, Campinas, n. 19, p. 91-108,
jul./dez. 2010. Disponível em: <https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/view/317/273>. Acesso
em: 12 dez. 2020. p. 92.
66
AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco. p. 181.
67
AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco. p. 213.
68
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 63.
69
AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco. p. 214.
70
ALBUQUERQUE, Wlamyra de. “A vala comum da ‘raça emancipada’”: abolição e racialização no Brasil,
breve comentário. p. 94-95.
9
Quanto aos escravizados, os consideravam como uma massa passiva, somente acordada após
as chamadas dos abolicionistas; ou então que, apesar de insurgentes, não teriam a capacidade
de conferir um sentido político a essa rebeldia, dada a incapacidade de adquirirem por si só
uma consciência de classe em virtude do grau de alienação que se encontravam, necessitando,
assim, das ações do branco redentor.71
Entretanto, a divisão destes papéis políticos entre “raça emancipadora” e “raça
emancipada” negam ao negro o papel de sujeito da história – da própria história –, situando-os
como flutuantes e sem história, tendo em vista que
Tais juízos bem evidenciam o lugar pensado que deveria ser ocupado pelos libertos no
Brasil pós-escravista. Saído da senzala, agora cidadão, o negro brasileiro teria uma grande
decepção: sua cidadania não passava de um símbolo, engenhosamente elaborado pelas classes
dirigentes, para que os mesmos instrumentos de dominação, prestígio e exploração
continuassem atuantes, agora sob as escusas de que “todos são iguais perante a Lei”.
Lilia Schwarz argumenta que é nesse contexto de realização de um novo projeto
político para o país, marcado também pelo fim da monarquia e início do Brasil República, que
as teorias científicas raciais se apresentam como modelo teórico viável na justificação do jogo
de interesses que se montava. Nesse momento, as teorias raciais europeias pareciam capazes
de justificar cientificamente as organizações e hierarquias tradicionais fundadas em critérios
raciais que, pelo fim da escravização, estavam sendo publicamente colocadas em questão.
Assim, o argumento racial é política e historicamente construído no país, bem como a
categoria “raça” passa a receber uma interpretação biológico-social. 73
Thomas Skidmore explica que, durante o século XIX, pensadores da Europa, a fim de
encontrarem justificativas científicas às dominações desta pelo mundo,74 teorizaram o racismo
71
AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco. p. 175-180.
72
MOURA, Clóvis. Escravismo, colonialismo, imperialismo e racismo. p. 125.
73
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-
1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 17-18.
74
SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Tradução de Raul
de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. p. 43-44.
9
75
SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. p. 65.
76
Falaremos sobre as ideias deste autor no próximo tópico, ao abordarmos a recepção do positivismo
criminológico no Brasil.
77
RIBEIRO, Darcy apud STREVA, Juliana Moreira. Corpo, raça, poder: extermínio negro no Brasil. Uma
leitura crítica, decolonial e foucaultiana. Rio de Janeiro: Grupo Multifoco, 2018. p. 88.
78
SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. p. 70-72.
79
SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. p. 45-48.
80
AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco. p. 76 e 91.
81
NABUCO, Joaquim apud AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco. p. 91.
9
de divisões raciais asseguraria a vitória do seu projeto de abolição pacífica e não radical.82 No
mais, essa imagem de que no Brasil reinava uma harmonia racial seguirá enérgica, recebendo,
sobretudo com Gilberto Freyre na década de 1930, outros contornos através do mito da
democracia racial.
A miscigenação como prática normal brasileira combinada com a crença da
inferioridade africana e superioridade branca – secularmente presente no senso comum
brasileiro e agora, com as teorias raciais, impressa com selo de “ciência” – levaram a elite
brasileira a buscar o sonho de tornar o país mais branco por meio da transformação da
população nacional mestiça em uma população pura de sangue ariano, livre da influência
maléfica das raças não-brancas: eis o projeto de embranquecimento. Tal projeto baseava-se na
crença de que, por ser a taxa de natalidade negra baixa e o gene branco mais forte, a
miscigenação, ao contrário de produzir “degenerados” – como assim acreditaram os teóricos
raciais europeus –, levava cada vez mais ao embranquecimento da população, através de
cruzamentos sucessivos. 83
O negro, visto como o motivo do atraso e da estagnação da nação brasileira, não seria
mais um problema: “é lógico esperar que no curso de mais de um século os métis tenham
desaparecido do Brasil. Isso coincidirá com a extinção paralela da raça negra em nosso meio”,
relatou João Batista Lacerda, diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro à época, no I
Congresso Universal de Raças em 1911. 84 O extermínio dos corpos negros: esse era (e ainda
é) o ideário daqueles no poder no Brasil.
A mais clara elaboração política dessa tese foi o impulsionamento dos projetos
imigrantistas que, já em voga durante todo o período que marca o declínio da escravidão,
objetivavam a substituição do trabalhador negro, agora livre, pelo imigrante europeu.85 Sendo
os africanos considerados inferiores, e estando o país carregado deles, ao recém aberto
mercado de trabalho livre brasileiro tornava-se preciso trazer sujeitos pertencentes a uma
“raça superior” – única maneira de colocar o Brasil nos trilhos do tão-almejado progresso. O
imigrante foi visto como o tipo ideal de trabalhador, que traria prosperidade e civilização à
nação:86
82
AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco. p. 92 e 96.
83
SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. p. 81.
84
SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. p. 81.
85
Segundo Skidmore, a percentagem de brancos no Brasil passou de 44% em 1890 para 62% em 1950. A
imigração de europeus é um dos fatores que explica esse branqueamento, sendo que, segundo o autor, três
milhões de imigrantes europeus se estabeleceram no Brasil a partir de 1890. SKIDMORE, Thomas E. Preto no
branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. p. 61.
86
AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco. p. 140.
9
pode-se discernir duas imagens bem distintas que caracterizam o período pós-
escravista: de um lado o imigrante, significante de riqueza, de trabalho livre, de
vida; de outro, o liberto, aquele que não tem nenhuma renda e que pode significar
vagabundagem e, portanto, necessidade de trabalho sob coação. Em suma, o
imigrante significa a ordem, o progresso, e o negro poderia vir a ser a desordem, o
retrocesso.87
As diversas políticas desse período que visaram atrair europeus ao país tiveram
delineações claramente embranquecedoras: o branco deveria substituir o negro não só no
trabalho e na produção, mas também na predominância étnica da população local – só assim o
Brasil teria no futuro uma “raça vigorosa e forte” (branca).88
O grande tema debatido tão longamente ao longo do século XIX – “o que fazer com
o negro livre ou quais os controles institucionais necessários para mantê-lo subordinado ao
branco”89 – estava, assim, resolvido. Segundo Florestan Fernandes, a competição econômica
com os estrangeiros excluiu negros e negras do mercado de trabalho, confinando-os a tarefas
ou ocupações brutas, mal retribuídas e degradantes.90 A estruturação da sociedade não-
escravista continuava marcada por ideais racistas e de exclusão dos corpos negros. As
estruturas de poder e domínio sobreviveram à Abolição; de fato, estão presentes até hoje. Nos
sintetiza bem Clóvis Moura:
87
AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco. p. 222-223.
88
AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco. p. 143-144.
89
AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco. p. 205.
90
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes: (o legado da “raça branca”). 5 ed.
São Paulo: Globo, 2008, vol. 1. p. 41.
91
MOURA, Clóvis. História do negro brasileiro. p. 62.
9
92
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 39.
93
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 84.
94
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 46.
95
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 45.
9
tinha por objetivo impedir uma resposta coletiva à violência sofrida.96 A partir disso, já se
consegue enxergar a fixação que o sistema penal passa a ter pelo controle do povo negro,
instando pela sua desarticulação, bem como suas origens repressivas e autoritárias, num
movimento que precisa “coordenar os corpos, conformá-los ao trabalho compulsório e,
finalmente, naturalizar o lugar de subserviência”.97 Estas se configuram, de fato, como as
funções primeiras do sistema penal brasileiro, tendo na população negra sua primogênita
inspiração.98
Como diz Nilo Batista, quem que se debruçar apenas nos textos legais do período
colonial, a exemplo das Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, nunca saberá
realmente o que se passou.99 Com efeito, o escravismo, acompanhado da lenta implantação
das burocracias estatais na colônia, situou o exercício do controle social do sistema colonial-
mercantilista no âmbito privado, dentro da unidade produtiva (engenho), configurando-se em
um poder punitivo doméstico, aplicado de forma desregulamentada pelos senhores contra a
mão de obra negra escravizada. 100 Por ter sido assim, “é da relação entre casa-grande e
senzala que serão concebidas as matrizes de nosso sistema penal”.101
Esse sistema punitivo, consubstanciado na autonomia do castigo pelos senhores,
exercia-se, essencialmente, sobre o corpo.102 De fato, manejava-se através de ilimitadas
atrocidades e crueldades, o que pode ser evidenciado por esta passagem de Zaffaroni e Nilo
Batista na qual, em 1700, um jesuíta se questionava se “seria castigo racionável queimar ou
atazanar com lacre aos servos; cortar-lhes as orelhas ou os narizes; marcá-los nos peitos e
ainda na cara; abrasar-lhes os beiços e a boca com tições ardentes”.103
Apesar de situar-se no doméstico, havia uma situação em especial em que a direção
das práticas punitivas ultrapassava os limites do engenho: quando se voltava para os
quilombos. Os quilombos, resistência constante ao longo da trajetória da escravidão,
96
DUARTE, Evandro Charles Piza. Criminologia e racismo: uma introdução ao processo de recepção das
teorias criminológicas no Brasil. 1998. 416f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito,
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis (SC), 1998. Disponível em:
<https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/77655/139612.pdf?sequence=1>. Acesso em: 10 jan.
2021. p. 208-209.
97
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 45.
98
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 45-46, 52.
99
BATISTA, Nilo. Novas tendências do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004. p. 108.
100
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
brasileiro: Teoria geral do Direito Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, v. 1. p. 412-414.
101
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 46.
102
BATISTA, Nilo. Novas tendências do direito penal. p. 106.
103
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
brasileiro. p. 414-415.
9
Assim, conforme elucida Flauzina, o sistema penal se consolidou num aparato que,
além da repressão física violenta perpetrada, visava um projeto de desarticulação simbólica do
segmento negro, através da naturalização da subalternidade e a internalização da inferioridade
como constitutiva do seu ser.107
Esse ódio racial que moldou as práticas punitivas coloniais, mesmo após o fim deste
período face à Independência, não abandou o nosso sistema penal. De fato, o sistema
imperial-escravista presenciou um notável paradoxo: em 1824, uma Constituição liberal e, em
1830, um Código Criminal calcado nos princípios iluministas, os quais estabeleceriam ideais
como igualdade e liberdade, ambos, no entanto, em uma sociedade que manteve o regime
escravista. Estava estabelecido, assim, um ordenamento jurídico que abertamente instituiria
diferenças punitivas de acordo com a condição social (racial) do sujeito (se cidadão ou
escravizado), permitindo a criminalização preferencial da população negra.
Um exemplo deste falso direito penal liberal consiste no não usufruto pelo segmento
escravizado de inúmeras das garantias previstas aos cidadãos pela Constituição (a exemplo do
princípio da reserva legal, a proscrição de açoites e outras penas cruéis, e a proibição da
responsabilidade penal por fato alheio, previstas no referido diploma normativo no art. 179,
incs. XI, XIX e XX). Enfatiza-se, ainda, a previsão do art. 113 do Código Criminal, que
104
DUARTE, Evandro Charles Piza. Criminologia e racismo. p. 213.
105
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 49.
106
DUARTE, Evandro Charles Piza. Criminologia e racismo. p. 49.
107
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 50-52.
9
108
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
brasileiro. p. 424-425.
109
DUARTE, Evandro Charles Piza. Criminologia e racismo. p. 222.
110
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 56.
111
Ana Flauzina destaca duas disposições normativas neste sentido: “o art. 1º do Decreto de 20 de março de
1829 determinava que os escravizados que estivessem nas ruas sem uma cédula devidamente assinada pelo seu
senhor, seriam presos e castigados pelo seu proprietário” e “no art.3º do mesmo Decreto, os pretos forros
deveriam solicitar passaporte junto a um Juiz de Paz ou Criminal que, a seu arbítrio, concederia ou não a
liberação”. FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida
do Estado brasileiro. p. 56-57.
112
KOERNER, Andrei. Punição, disciplina e pensamento penal no Brasil do século XIX. Lua Nova, São Paulo,
n. 68, 2006. p. 219.
113
DUARTE, Evandro Charles Piza. Criminologia e racismo. p. 244.
9
repressor estatal. Cabível, aqui, a reflexão do sociólogo negro estadunidense W.E.B. Du Bois:
“o escravo libertou-se; ficou ao sol por um breve momento; e então retornou à escravidão”.114
Nesse sentido, esclarece Ana Flauzina:
Com efeito, o arcabouço jurídico do Império foi colecionando leis que regulavam o
modo de vida da população negra. Vinculava-se, assim, o pertencimento a determinado grupo
racial à criminalidade. Entre elas, se destacam as que se destinavam à criminalização das
manifestações religiosas e culturais de matriz africana, sob o argumento de perturbação da
ordem pública, num claro movimento de “proibir o negro de ser negro”.116 Ana Flauzina
sintetiza algumas das leis municipais que incidiam sobre o cotidiano desse contingente:
A Lei nº 1.030 de 1876 da Câmara Municipal de São João do Monte Negro, por
exemplo, vedava aos escravos vender ou administrar nas casas públicas de negócio,
configurando uma restrição no acesso a certos postos no mercado de trabalho. Nessa
mesma lei, havia uma vedação expressa aos escravos de serem proprietários de
imóveis, sendo multada a pessoa que vendesse o local. A Câmara Municipal de
Santo Amaro, pela Lei nº 1.420 de 1883, controlava a circulação dos escravos,
prendendo por doze horas, aqueles que estivessem nas ruas após o toque de recolher
sem a devida autorização de seus senhores. Por fim, a Lei nº 454 de 1860 da Câmara
Municipal de Alegrete, vedava aos escravos viverem longe do jugo de seus senhores
dentro das cidades e seus subúrbios, sem a devida autorização da autoridade policial.
A gerência do modo de vida da população negra, como se vê, foi pauta
prioritária da política imperial.117 (grifos nossos)
114
DU BOIS, W.E.B apud ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa.
Tradução de: Pedro Davoglio. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 58.
115
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 58-59.
116
GÓES, Luciano. A “tradução” do paradigma etiológico de criminologia no Brasil: um diálogo entre
Cesare Lombroso e Nina Rodrigues da perspectiva centro-margem. 2015. 242f. Dissertação (Mestrado em
Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis (SC), 2015. p. 165.
117
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 57-58.
9
118
No segundo capítulo, abordaremos, novamente, a criminologia positivista. Lá, focaremos brevemente na sua
importância para a formação do pensamento criminológico e, especialmente, nas suas diferenciações em relação
a criminologia crítica. Por ora, o objetivo é apresentar de forma breve sua recepção e influência no Brasil no
tocante ao controle da população negra no processo de transformação do Império em República.
119
A importação das teorias do racismo científico, no século XIX, não pode ser considerada como causa das
práticas racistas na sociedade brasileira, mas, tão somente, como legitimadora de práticas já existentes. No caso
das teorias criminológicas raciais, surgem como forma de perpetuarem as práticas discriminatórias presentes no
controle social. Aqui, as relações materiais eram compatíveis com as teorias importadas. DUARTE, Evandro
Charles Piza. Criminologia e racismo. p. 269, 382-383.
120
RODRIGUES, Raimundo Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. Rio de Janeiro:
Centro Edelstein de Pesquisa social, 2011. p. 44
121
RODRIGUES, Raimundo Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil.
122
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 72.
9
para legitimar as práticas truculentas da polícia brasileira face à população negra, que, apesar
de contar, a partir deste sistema republicano, com a pena privativa de liberdade como a
principal forma de punição, nunca prescindiu das táticas punitivas corporais, oriundas do
colonialismo. 123 Sobre a forma histórica de atuar da polícia no Rio de Janeiro e, de forma
abrangente, em solo pátrio, explicita Melicio et al:
123
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 73.
124
MELICIO, Thiago B. L.; GERALDINI, Janaina R.; BICALHO, Pedro P. G. Biopoder e UPPs: alteridade na
experiência do policiamento permanente em comunidades cariocas. Fractal, Revista de Psicologia, Rio de
Janeiro, v. 24, n. 3, p. 599-622, set./dez. 2012. Disponível em: <
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-
02922012000300011&lng=en&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 12/12/2020.
125
DUARTE, Evandro Charles Piza. Criminologia e racismo. p. 416.
126
GÓES, Luciano. A “tradução” do paradigma etiológico de criminologia no Brasil: um diálogo entre
Cesare Lombroso e Nina Rodrigues da perspectiva centro-margem. p. 157.
9
no texto legal nem na orientação das práticas punitivas. Isso impede uma constatação explícita
dos preceitos racistas que o governam, dificultando a sua denúncia.127
De fato, se a ideia de democracia racial tivesse sequer alguma correspondência com o
real, o perfil do criminoso objeto da repressão penal teria se alterado substancialmente. Algo
que não ocorreu. A perseguição a esse perfil foi, em verdade, sofisticada com as
transformações empreendidas pelo neoliberalismo, no final do século XX. A partir dali viu-se
uma expansão descontrolada do sistema penal (legislativa, policial e prisional), 128 em muito
creditada à política proibicionista, que foi bem sucedida em sedimentar a figura do traficante
de drogas como a do jovem negro periférico e a legitimar, assim, o hiperencarceramento e o
genocídio da juventude negra e pobre. Flauzina aponta algumas noções sobre esses novos
tempos:
127
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 74-75, 78.
128
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão.
Rio de Janeiro: Revan, 2012. p. 164.
129
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 85.
130
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro.
9
131
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência
do controle penal. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 45-52.
9
não como meio para modificar ou reformar o delinquente, mas sim como instrumento para
defender a sociedade do crime, a partir das ideias de necessidade e utilidade da pena.132
Por sua vez, a criminologia positivista, já mencionada no primeiro capítulo, emerge
na Europa do século XIX e, inspirada na concepção naturalista de Ciência que outorga pela
primeira vez à criminologia a qualificação enquanto disciplina autônoma, concede ao
fenômeno criminal um rígido determinismo biológico. Assim, tem-se como objeto de estudo
não o delito, mas o autor do delito, buscando-se todo o complexo das causas do crime na
totalidade biológica, psicológica e social deste indivíduo (paradigma etiológico). Sendo uma
de suas principais expressões a tese do “criminoso nato”, do professor de psiquiatria e
antropologia criminal Cesare Lombroso,133 o positivismo criminológico enxerga o
comportamento criminoso como elemento da personalidade patológica do autor, intrínseco à
sua natureza, como se ele já fosse predisposto naturalmente ao cometimento de atos
antissociais. Portanto, tais sujeitos seriam diferentes dos indivíduos “normais”. 134 Assim, os
seus adeptos consideravam a criminalidade como um dado ontológico preexistente à reação
social e ao direito penal em uma criminologia reduzida à “explicação causal do
comportamento criminoso”.135 Apesar destas diferenças em relação à escola clássica, ambas
possuem como ideologia comum a ideologia da defesa social. 136
132
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do Direito
Penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 31.
133
Cesare Lombroso, expoente da escola positiva, tem como livro de maior destaque a obra L’uomo delinquente,
de 1876, na qual defende a existência de um tipo penal, o “criminoso nato”, o qual seria originado, por meio da
hipótese do atavismo, do reaparecimento acidental de caracteres ancestrais desaparecidos no curso da espécie
humana. Tomava como ponto de análise os caracteres anatômicos, biológicos e psicológicos daqueles
aprisionados, que, através da observância de suas “anormalidades”, indicavam sua propensão ao crime.
DUARTE, Evandro Charles Piza. Criminologia e racismo. p. 147-150.
134
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 29, 38-39.
135
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 43.
136
O conteúdo da ideologia da defesa social é enunciado por Alessandro Barrata nos seguintes princípios: "A)
Princípio de Legitimidade. O Estado, como expressão da sociedade, está legitimado para reprimir a
criminalidade, da qual são responsáveis determinados indivíduos, por meio de instâncias oficiais de controle
social (legislação, polícia, magistratura, instituições penitenciárias). Estas interpretam a legítima reação da
sociedade, ou da grande maioria dela, dirigida à reprovação e condenação do comportamento desviante
individual e à reafirmação dos valores e das normas sociais. B) Princípio do bem e do mal. O delito é um dano
para a sociedade. O delinquente é um elemento negativo e disfuncional do sistema social. O desvio criminal é,
pois, o mal; a sociedade constituída, o bem. C) Princípio de culpabilidade. O delito é expressão de uma atitude
interior reprovável, porque contrária aos valores e às normas presentes na sociedade mesmo antes de serem
sancionadas pelo legislador. D) Princípio da finalidade ou da prevenção. A pena não tem ou não tem somente, a
função de retribuir, mas a de prevenir o crime. Como sanção abstratamente prevista pela lei, tem a função de
criar uma justa e adequada contramotivação ao comportamento criminoso. Como sanção concreta, exerce a
função de ressocializar o delinquente. E) Princípio da igualdade. A criminalidade é violação da lei penal e, como
tal, é o comportamento de uma minoria desviante. A lei penal é igual para todos. A reação penal se aplica de
modo igual aos autores de delitos. F) Princípio do interesse social e do delito natural. O núcleo central dos
delitos definidos nos códigos penais das nações civilizadas representa ofensa de interesses fundamentais, de
condições essenciais à existência de toda sociedade. Os interesses protegidos pelo direito penal são interesses
comuns a todos os cidadãos. Apenas uma pequena parte dos delitos representa violação de determinados arranjos
9
os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui o desvio, e
ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como outsiders. Desse
ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma
consequência da aplicação por outros de regras e sanções a um “infrator”. O
desviante é alguém a quem esse rótulo foi aplicado com sucesso; o comportamento
desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal.144
143
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 86.
144
BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. 1 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p.
21-22.
145
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 86-89.
9
(objetos de estudo do paradigma etiológico) mas sim à reação social, ao sistema de justiça
criminal e aos processos de criminalização.146
O paradigma da reação social foi a base fundacional para uma crítica à ação dos
sistemas punitivos, vez que com ele, segundo Zaffaroni, “o discurso jurídico-penal ficou
irremediavelmente desqualificado pela demonstração incontestável de sua falácia e a
criminologia etiológica [...] viu-se irreversivelmente desmentida”. 147 Contudo, ainda restavam
lacunas macrossociológicas a serem preenchidas, visto que tal enfoque se mostrava
insuficiente ao esclarecimento do papel das dinâmicas de poder e dominação, típicas de uma
sociedade de classes (assim como racista e sexista), na determinação de quem atribui a quem
um rótulo negativo, isto é, as razões políticas do porquê um certo sujeito é criminalizado. Sem
explicitar a realidade estrutural (social, política e econômica) em que o crime se insere, a
criminalização aparece quase como um simples acidente.148
Emerge, então, a criminologia crítica 149 que, para superar essas lacunas, insere o
estudo da questão criminal numa perspectiva materialista que alcança as relações de poder e
de propriedade em que se estrutura conflitivamente a sociedade capitalista,150 historicizando,
assim, a realidade comportamental do desvio a partir das estruturas sociais, do
desenvolvimento das relações de produção e de distribuição.151 Há, assim, entre os autores da
criminologia crítica uma forte influência marxista e, portanto, uma crítica radical a respeito do
direito e da sociedade capitalista.
Punição e estrutura social, de Rusche e Kirchheimer, foi a primeira grande obra a
basilar a criminologia crítica que, ao analisar historicamente as relações entre estruturas
sociais, mercados de trabalho e sistemas penais, 152 demonstrou que este último se modula de
acordo com os interesses da regulação do mercado de mão de obra, segundo a tese marxista
de que “todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondem às
suas relações de produção”.153 Assim, suas reflexões foram elementares por demonstrarem
146
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 86-89.
147
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. p. 61.
148
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Ilusão da segurança jurídica. p. 214-216.
149
Vera Andrade diferencia as criminologias “crítica”, “radical” e “nova” nos seguintes termos: “(...) sob a
denominação de ‘Criminologia crítica’ designa-se um estágio avançado da evolução da Criminologia ‘radical’
norte-americana e da ‘nova Criminologia’ europeia, englobando um conjunto de obras que, desenvolvendo um
pouco depois as indicações metodológicas dos teóricos do paradigma da reação social e do conflito, e os
resultados a que haviam chegado os criminólogos radicais e novos, chegam, por dentro desta trajetória, à
superação deles”. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia. p. 89-90.
150
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia. p. 91.
151
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 160.
152
BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. p. 91.
153
RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Tradução de Gizlene Neder. 2. ed.
Rio de Janeiro: Revan, 200. p. 20.
9
que o poder punitivo não pode ser analisado abstratamente – ele sempre deve ser pensado a
partir do sistema de produção no qual está inserido. Da mesma maneira que o escravismo viu
nas penas corporais o seu principal método punitivo, por ser funcional à manutenção das suas
relações de produção, o capitalismo elege a prisão como sua pena por excelência, pela mesma
razão.
Influenciado por esta obra,154 Michel Foucault, em Vigiar e Punir, ao tomar as
medidas punitivas para além de seu aspecto repressivo, salientando seus efeitos positivos,
configuradores da vida social, mostra a configuração da “disciplina”, no decorrer dos séculos
XVII e XVIII, em uma fórmula geral de dominação, uma espécie de “economia política do
corpo”: ela teria o condão de fabricar corpos submissos e dóceis, aumentando a sua utilidade
econômica e obediência política, tornando-os funcionais, assim, às relações de produção.
Ainda, em seus estudos sobre as instituições prisionais, Foucault aponta que as críticas às
prisões as acompanham desde seu nascimento – do mesmo modo que suas sempre frustradas
tentativas de reforma –, revelando que este fracasso,155 em verdade, é ilusório: ele faz parte do
próprio funcionamento do sistema carcerário, vez que este foi concebido para organizar as
infrações das leis numa tática geral das sujeições. Neste sentido, o sistema de justiça criminal
funciona não para conter as ilegalidades (isto é, para “combater o crime”), mas sim para geri-
las diferencialmente, servindo aos interesses de uma classe dentro de mecanismos estruturais
de dominação.156
O movimento criminológico crítico bebeu muito das reflexões destas obras que, nas
palavras de Vera Malaguti Batista, “mudaram todo o cenário”,157 tendo a produção
criminológica, a partir deste momento, passado a analisar as “condições objetivas, estruturais
e funcionais que originam, na sociedade capitalista, os fenômenos de desvio, interpretando-os
separadamente conforme se tratem de condutas das classes subalternas ou condutas das
classes dominantes”. 158 A criminologia crítica consolida-se, assim, pela discussão estrutural
da produção do crime, da criminalidade e do criminoso, a partir do olhar macrossociológico
sobre o poder e processos de criminalização seletiva, relacionando as relações econômicas,
jurídicas e políticas, e inserindo a questão criminal dentro do processo contraditório que é o
capitalismo.
154
BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. p. 91.
155
Segundo Foucault, estão entre alguns dos denunciados “fracassos” da prisão a manutenção da delinquência, a
indução em reincidência e a transformação do infrator ocasional em delinquente. FOUCAULT, Michel. Vigiar e
punir: o nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 2000. p. 299.
156
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 298-300.
157
BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. p. 91.
158
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica. p. 217.
9
159
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 41-43.
160
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia. p. 135.
161
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. p. 15-21.
9
penal, com suas funções declaradas, e a sua realidade operacional, através da revelação das
suas funções reais.162
Vera Andrade aponta que são funções oficialmente declaradas do sistema penal a
proteção de bens jurídicos que interessam a todos os cidadãos através do combate à
criminalidade pela imposição de uma pena, a qual teria a função de retribuição (castigo)
combinada com as de prevenção geral (intimidação de todo o estrato social pela ameaça da
pena, com o intuito de desmotivar o cometimento de futuros crimes) e especial (reabilitação
do dito criminoso para voltar mais adaptado à convivência social), tudo feito conforme os
mais rigorosos princípios penais e processuais penais (legalidade, igualdade jurídica e
devido processo legal).163
Não obstante essa discursividade – que justifica e legitima a existência do sistema
penal –, Andrade aponta a eficácia invertida que o caracteriza: ao passo que suas funções
declaradas possuem apenas eficácia simbólica, já que não são e nem podem ser cumpridas,
o sistema penal cumpre funções reais que, além de ocultas, são inversas àquelas declaras
pelo discurso que o legitima:
A eficácia invertida significa, então, que a função latente e real do sistema penal não
é combater (reduzir e eliminar) a criminalidade, protegendo bens jurídicos universais
e gerando segurança pública e jurídica, mas, ao invés, construí-la seletiva e
estigmatizante, e neste processo reproduzir, material e ideologicamente, as
desigualdades e assimetrias sociais (de classe, de gênero e de raça).164
162
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia. p. 135-136.
163
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia. p. 134.
164
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia. p. 136.
165
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia. p. 136-137.
9
sistema penal. Dizer que o sistema penal é seletivo é enunciar que ele incide
diferencialmente na sociedade de acordo com as posições sociais e de poder ocupadas pelos
indivíduos na estrutura social.
Nada evidencia isso melhor do que olhar para quem ocupa as celas carcerárias
brasileiras: a seletividade salta aos olhos. Isso porque o perfil criminal que foi lá amontoado
(jovens negros, pobres, periféricos e de baixa escolaridade) é pura e simplesmente a
criminalidade registrada, passando longe de ser representativa da criminalidade real. São os
estudos sobre a cifra oculta da criminalidade, baseados em questionários de vitimização e
autodenúncia, que demonstraram este fenômeno, ao revelarem a existência de uma
defasagem entre todas as condutas criminalizáveis efetivamente praticadas no meio social
(criminalidade real) e a criminalidade das estatísticas criminais (criminalidade registrada).
Nesse sentido, as estatísticas criminais não abarcam todo o volume de práticas delituosas
que ocorrem todos os dias, já que “nem todo delito cometido é perseguido; nem todo delito
perseguido é registrado; nem todo delito registrado é averiguado pela polícia; nem todo
delito averiguado é denunciado; nem toda denúncia é recebida; nem todo recebimento
termina em condenação”.166
Assim, a população carcerária não é exemplificativa da real dimensão da
criminalidade, muito menos da noção etiológica das características daqueles que seriam os
“criminosos”. É, apenas, o resultado final de um longo processo com numerosas perdas (e
filtragens seletivas), do qual remanesce, dentre todos aqueles que cometeram delitos,
principalmente a criminalidade dos estratos inferiores.
Tal fenômeno gera interpretações errôneas de que as práticas criminais seriam
concentradas nesses segmentos, sendo pouco representada nos estratos superiores.
Entretanto, segundo Baratta “a criminalidade não é comportamento de uma restrita minoria,
como quer uma difundida concepção (...), mas, ao contrário, o comportamento de largos
estratos ou mesmo da maioria dos membros de nossa sociedade”.167 A seletividade racial,
classista e de gênero na repressão penal, entretanto, distorce a percepção desta realidade.
Com efeito, os estudos sobre os crimes de colarinho branco mostraram que há uma
tendência de se ocultar e imunizar a criminalidade econômica e política dos membros dos
grupos privilegiados e da elite, enquanto há uma repressão desproporcional dos sujeitos dos
segmentos subalternos. Juarez Cirino dos Santos, propositor de uma verdadeira criminologia
radical, esclarece esta distribuição desigual da criminalização de condutas:
166
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica. p. 262-263.
167
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 103.
9
Nesse sentido, o mito do direito penal igualitário é desmascarado: (i) o direito penal
não defende a todos e somente os bens jurídicos essenciais, de interesse de todos os
cidadãos, e quando pune o faz de modo desigual e fragmentário; (ii) o status de criminoso é
distribuído desigualmente entre os indivíduos; e (iii) o grau de efetividade da tutela e da
distribuição do status de criminoso independe da danosidade e gravidade das ações.169 Esta
seletividade estrutural é apresentada por Vera Andrade nas seguintes palavras:
168
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A Criminologia Radical. 3. ed. Curitiba: ICPC/ Lumen Juris, 2008. p. 13-
15.
169
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 162.
170
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia. p. 138.
9
171
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 126.
172
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 176.
173
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica. p. 260.
174
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 176-177.
9
175
O aprofundamento da composição do perfil carcerário será aprofundado na seção 2.4 deste capítulo.
176
Expressão utilizada com o intuito de demonstrar que as agências formais de controle ainda se orientam de
acordo com o paradigma etiológico da criminologia positivista.
177
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica. p. 270.
178
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
estado brasileiro. p. 26-27.
179
DIAS, Jorge de Figueiro; ANDRADE, Manuel da Costa apud FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo
negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do estado brasileiro. p. 26.
9
social capitalista. Como resultado, a prisão serve à reprodução das desigualdades sociais
funcionais do capitalismo – como um lugar de controle e gestão de classe, que é
complementar ao mercado de trabalho – e, por isso, sua função não é combater à
criminalidade pela ressocialização, castigo e intimidação (funções declaradas), mas sim a
fabricação seletiva de uma população criminosa. 180
Essa construção social do criminoso pela prisão se dá porque ela se consubstancia em
um lugar que estigmatiza aqueles que passam por ela, criando dificuldades à reintegração
social dos setores marginalizados no ciclo formal da economia, perpetuando, assim, os
indivíduos no status social no qual eles se encontram.181 Não é por acaso, portanto, que o
cárcere se alimenta majoritariamente de condutas contra o patrimônio e da criminalização das
drogas: tudo está interligado em um movimento que visa a manutenção das contradições do
capitalismo (capital/trabalho assalariado, burguesia/proletariado, miséria/riqueza abundante,
englobando, também, as contradições raciais e de gênero). Cirino dos Santos descreve bem
este fenômeno:
Os objetivos reais do aparelho penal consistem numa dupla reprodução:
reprodução da criminalidade pelo recorte de formas de criminalidade das
classes e grupos sociais inferiorizados (com exclusão da criminalidade das classes
e grupos sociais dominantes) e reprodução das relações sociais, porque a
repressão daquela criminalidade funciona como ‘tática de submissão ao poder’
empregada pelas classes dominantes. Assim, a explicação da justiça penal não
reside nos objetivos aparentes, de repressão da criminalidade e controle do crime,
mas nos objetivos ocultos do sistema carcerário, de reprodução da
criminalidade e reprodução das relações sociais, através do controle diferencial
do crime […] a prisão produz e reproduz os fenômenos que, segundo o discurso
ideológico, objetiva controlar ou reduzir. A constituição e reciclagem de uma
massa criminalizada apresenta várias utilidades: controla a população não-
criminalizada - a força de trabalho integrada nos processos produtivos; funciona
como camuflagem da ilegalidade dos grupos dominantes; concentra a ilegalidade
das classes dominadas em áreas sem consequências econômicas, como o
lumpenproletariadoe desempregados crônicos; possibilita controle social mais geral,
pela infiltração em grupos, a organização da delação, a constituição de uma massa-
de-manobra do poder, a polícia clandestina etc.; finalmente, atua como centro
controlador, porque a delinquência é, ao mesmo tempo, efeito do sistema e
instrumento de controle social: a polícia fornece infratores, a prisão reproduz a
delinquência e a massa criminalizada (objeto de controle) atua como
instrumento auxiliar de controle social.182 (grifos nossos)
180
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia. p. 304-308.
181
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia. p. 304-308.
182
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A Criminologia Radical. p. 82-84.
183
Loïc Wacquant denuncia, na realidade, que o sistema penitenciário brasileiro sequer cumpre a função de
disciplinar, isto é, não serve nem mesmo para alguma das funções penalógicas (como dissuasão, neutralização ou
9
repreende e uniformiza os detentos, a vida no cárcere exerce sobre eles uma forte pressão que
os desadapta da vida tal como ela é no mundo externo, rompendo sua conexão com os valores
do resto da sociedade (desaculturação), ao tempo que os faz assumir as atitudes,
comportamentos e valores próprios da subcultura carcerária (prisionalização). Tal processo é
reforçado pelas constantes humilhações, rebaixamentos e degradações sofridas por esses
indivíduos no cárcere, além da falta de condições dignas e humanas de cumprimento de pena.
Tudo isso causa efeitos negativos sobre a personalidade do preso, que perde contato com o
seu “eu” real, dissociado que está de inúmeros aspectos de sua individualidade, levando-o a se
ver como “lixo social” e adotar como sua a identidade desviante e estigmatizada que lhe é
imposta pela instituição carcerária. Sendo assim, a passagem pelo sistema carcerário, ao invés
de ressocializar e reeducar, determina, em muitos casos, a consolidação da identidade
desviante do condenado, inserindo-o em uma verdadeira carreira criminosa (desvio
secundário), fato que explicaria a elevada taxa de reincidência criminal. 184
Assim, a presença quase unívoca de certos grupos na população carcerária, pela sua
criminalização seletiva, gera a justificação para a continuação incessante desta mesma
criminalização, em uma lógica retroativa que cria a falsa percepção de que estes grupos, por
estarem presos, são os inimigos, os perigosos, os criminosos – a associação produz o
estereótipo – e, por isso, “tem mais é que serem presos mesmo” (quando não exterminados).
Sendo o corpo negro o alvo por excelência desta lógica perversa que povoa as mentes e os
imaginários, Lélia Gonzalez faz um comentário a respeito:
A primeira coisa que a gente percebe, nesse papo de racismo é que todo mundo acha
que é natural. Que negro tem mais é que viver na miséria. Por que? Ora, porque ele
tem umas qualidades que não estão com nada: irresponsabilidade, incapacidade
intelectual, criancice, etc. e tal. Daí, é natural que seja perseguido pela polícia,
pois não gosta de trabalho, sabe? Se não trabalha, é malandro e se é malandro é
ladrão. Logo, tem que ser preso, naturalmente. Menor negro só pode ser pivete
ou trombadinha, pois filho de peixe, peixinho é. Mulher negra, naturalmente, é
cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou prostituta. Basta a gente ler
jornal, ouvir rádio e ver televisão. Eles não querem nada. Portanto têm mais é
que ser favelados.185 (grifos nossos)
reinserção). Para o autor, as prisões brasileiras se parecem mais com campos de concentração para miseráveis
que, a partir da rotina de maus-tratos e torturas aos condenados, se consubstancia na continuidade da escravidão.
WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
184
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. p. 89-92, 183-185.
185
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. p. 225-226.
9
que coage, reprime, tortura e mata, visa a manutenção do status quo. A rigor, o sistema penal
acaba por reproduzir a mesma realidade que supostamente diz combater. Deste desequilíbrio
entre o declarado e o latente resulta a grave crise de legitimidade do sistema penal que, depois
de verificada, arrancou todas as possibilidades de sua justificação racional, inclusive em
escala global, vez que tais inconsistências possuem um caráter estrutural e não meramente
conjuntural, isto é, são verificáveis em todos os sistemas penais mundiais, como bem aponta
Zaffaroni:
Hoje, temos consciência de que a realidade operacional de nossos sistemas penais
jamais poderá adequar-se à planificação do discurso jurídico-penal, e de que todos
os sistemas penais apresentam características estruturais próprias de seu exercício de
poder que cancelam o discurso jurídico-penal e que, por constituírem marcas de sua
essência, não podem ser eliminadas, sem a supressão dos próprios sistemas penais.
A seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maiores
condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a
verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias não são
características conjunturais, mas estruturais do exercício de poder de todos os
sistemas penais.186
186
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. p. 15.
187
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. p. 12, 38.
188
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. p. 13, 39.
9
189
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. p. 124-125.
190
As especificidades do sistema penal marginal levaram à construção de uma criminologia crítica latino-
americana que, ao problematizar a tradicional importação de teorias e paradigmas eurocêntricos, torna-se
engajada na busca pela adoção de um modelo alternativo ao controle penal comprometido com os interesses
periféricos, como as teorizações do Realismo Marginal de Zaffaroni e da Criminologia da Libertação de Anyiar
de Castro. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia. p. 113-114.
191
ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação. Rio de janeiro: Revan, 2005. p. 131-132.
192
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. p. 137.
193
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 30, 33.
9
Brasil. Mostramos que tal vínculo iniciou-se com a colonização ibérica e a empresa
escravista, não se findando com a independência, como produto da colonialidade que o é,
mas, pelo contrário, se viu atualizado pelas elites nacionais, remanipulado pelo mito da
democracia racial, tudo sob o aval dos interesses das potências hegemônicas no
neocolonialismo, 194 durando até os dias de hoje, pois esta elite “nunca abriu mão do uso
ostensivo do sistema penal no controle da população negra” 195 – o nosso sistema penal se
apresenta, de fato, como o legado mais indigesto da modernidade.196
O que se quer destacar, nesta oportunidade, é o fato de Ana Flauzina afirmar, sem
hesitações e de forma direta, que os nossos sistemas penais são ferramenta fundamental ao
projeto genocida contra corpos negros em curso pelo Estado brasileiro. Há um projeto de
Estado em curso que, a partir de diversos âmbitos que investem sobre o segmento negro de
forma a fragilizá-los e vulnerabilizá-los mental e fisicamente (como a pobreza, saúde pública,
educação, espacialidade urbana, impedimento à construção de uma identidade negra), visam,
como destino final, a produção da sua morte material e simbólica. Dentro dos mecanismos
institucionais que possibilitam este projeto, a movimentação do sistema penal encontra espaço
privilegiado.197 Às objeções que refutam a utilização da categoria genocídio no contexto
brasileiro pela falta de uma enunciação expressa do Estado, isto é, de um projeto declarado,
Flauzina responde:
Nesse sentido, negar a existência de um projeto de Estado voltado para a eliminação
da população negra pela falta de explicitação, é desconhecer a lógica de
funcionamento assumida pelo Estado brasileiro desde a abolição da escravatura.
Uma lógica que pretende desconectar a atuação institucional genocida da agenda
política que a preside. Um processo que visa desvincular os efeitos das práticas
discriminatórias de suas causas, como forma de resguardar o papel “cordial”
reservado ao Estado brasileiro no que tange à matéria racial. Reclamar por uma
declaração expressa da atuação institucional genocida no país é, portanto,
desconsiderar que, numa relação extremamente complexa, essa agenda tem nos
processos de ocultação ensejados pela democracia racial, um de seus principais
sustentáculos. (...) Aqui, o genocídio está nas bases de um projeto de Estado
assumido desde a abolição da escravatura, com o qual nunca se rompera
efetivamente. A agenda genocida é recepcionada pelos sucessivos governos que
assumiram a condução do país desde então, sem que se alterassem os termos desse
pacto. Daí a grande dificuldade em se ter acesso ao projeto: ele não é episódico, mas
estrutural.198
194
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. p. 118-119.
195
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 33.
196
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 29.
197
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 110-111.
198
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 120.
9
Assim, nas regiões periféricas não se verifica uma ruptura “evolutiva” entre o passado
e o presente, mas sim uma continuidade de métodos punitivos desde a colonização, o
mercantilismo e a escravidão, até a globalização do capitalismo.200 A realidade marginal tem
historicamente o poder punitivo como marca de torturas e extermínios sistemáticos, que
mantem o status quo de uma visão de mundo classista, racista e patriarcal. Por ser assim, a
seção a seguir cuidará de mostrar o explícito predomínio do segmento negro entre os números
dos presos e dos mortos pelo aparato penal, delineando a discutida contribuição do sistema
penal para o genocídio deste segmento.
realidade, que demonstraremos neste tópico, evidenciam tal fato. Isso porque estes números
bem demonstram a naturalização do terror que acomete os corpos negros no Brasil, aos quais
se torna uma possibilidade constante a segregação: ora pelos processos de encarceramento,
ora pela eliminação física.
No atual contexto brasileiro do hiperencarceramento, em que o controle social
através da prisão é visto pelo país como a primeira saída para os conflitos sociais, a população
carcerária saltou de 90 mil pessoas em 1990 para 726 mil em 2017, de acordo com dados do
Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2017, realizado pelo
Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Neste cenário, o Brasil adentra a posição de
uma das cinco maiores populações carcerárias mundiais, contabilizando chocantes 726.354
corpos privados de liberdade, sendo que, dentre estes, 33,29% são presos provisórios, isto é,
pessoas privadas de sua liberdade sem uma resposta definitiva do Judiciário quanto à sua
culpabilidade.201
Dentre a composição da população carcerária do Brasil, há desproporcionalidade no
tocante aos perfis raciais, condição explicada pelo discutido fenômeno da seletividade: pretos
e pardos (classificação do Censo Demográfico do IBGE) totalizam 63,6% da população
prisional nacional, enquanto que, do total da população brasileira, eles representam 55,4%.
Demonstra-se, assim, a sobrerrepresentação do segmento negro no quadro penitenciário do
país, afastando qualquer discurso de proporcionalidade desses números. Ainda, os jovens são
maioria no sistema carcerário, sendo de 54% a taxa de detentos entre 18 e 29 anos; e apesar de
não haver cruzamento entre raça e faixa etária pelos dados ora analisados, infere-se que tais
jovens são em sua maioria negros. Destaca-se, ainda, o grau de escolaridade do contingente
prisional, composto por 73,8% de pessoas com baixa escolaridade (analfabetos, alfabetizados
e pessoas com ensino fundamental incompleto e completo).202 A partir desses números,
percebe-se a quais grupos o sistema penal direciona suas práticas punitivas: jovens, negros,
periféricos e de baixa escolaridade.
Tal quadro, inadmissível por si só, agrava-se devido às condições precárias do
sistema carcerário brasileiro, que em 2017 contava com um déficit total de 303.112 vagas e
201
BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias:
Infopen – julho de 2017. Brasília: Ministério da Justiça, 2017. Disponível em: <https://www.gov.br/depen/pt-
br/sisdepen/mais-informacoes/relatorios-infopen/relatorios-sinteticos/infopen-jun-2017.pdf >. Acesso em: 11
jan. 2021. p. 7-9, 14.
202
BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias:
Infopen – julho de 2017. Brasília: Ministério da Justiça, 2017. Disponível em: <https://www.gov.br/depen/pt-
br/sisdepen/mais-informacoes/relatorios-infopen/relatorios-sinteticos/infopen-jun-2017.pdf >. Acesso em: 11
jan. 2021. p. 30-32, 34-35
9
uma taxa de 171,62% de ocupação das unidades prisionais. 203 Sendo um lugar de perpetração
de violações aos direitos humanos, consubstanciado em torturas, abusos e maus tratos, ele
aparece como mais uma porta para o genocídio, pois as condições sub-humanas do cárcere
brasileiro e o mal atendimento de saúde lá prestado aumenta em 3 vezes a chance de morrer
de uma pessoa encarcerada em relação a alguém fora do sistema prisional,204 além dos riscos
de doenças graves, suicídios, agressões físicas e verbais e violências sexuais.
Em um país que construiu seu sistema penal visando o controle dos corpos negros,
certamente estes dados não são aleatórios ou mera coincidência. A rigor, constituem a própria
lógica de funcionamento do sistema, em uma sociedade que reproduz estruturas racistas
edificadas secularmente. De fato, tem-se todo um quadro mais amplo de marginalização e
exclusão social do contingente negro que, iniciado no período da escravidão, foi naturalizado
nas relações sociais. Assim, as posições sociais desfavoráveis no Brasil têm cor: dados
divulgados pelo IBGE, referentes ao ano de 2019, apontam que a população ocupada de raça
branca ganhava, em média, 73,4% mais do que a de raça negra (preta ou parda); a população
negra estava mais inserida em ocupações informais do que a branca; a população negra
compunha 77% dos 10% com menores rendimentos, enquanto a população branca, entre os
10% com maiores rendimentos, compunha 70,6%; dentre os brasileiros vivendo na extrema
pobreza, mais de 70% eram negros, sendo as mulheres negras 39,8% dos extremamente
pobres; a proporção de pessoas brancas de 25 anos ou mais com nível superior era de 24,9%,
enquanto os negros registravam 11,0%; do total das pessoas negras acima de 25 anos, 44,8%
não possuem instrução ou o ensino fundamental incompleto, enquanto em relação às pessoas
brancas, essa taxa é de 31,5%.205
Esses números contribuem para o cenário de morte que assombra a população negra,
em vista da sua inserção em um quadro social que degrada as suas condições e expectativas
de vida, alargando seus riscos de adoecimento, superexploração etc. Para além dessas formas
indiretas de se produzir a morte, a identificação racial das mortes intencionais por homicídio
apaga qualquer dúvida acerca do caráter racial de quem morre no Brasil. A afirmação é bem
simples: vivemos em um país que mata negros, sobretudo jovens, em larga escala: em 2019,
negros representaram 74,4% das vítimas de mortes violentas intencionais, em uma proporção
203
BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias:
Infopen – julho de 2017. Brasília: Ministério da Justiça, 2017. Disponível em: <https://www.gov.br/depen/pt-
br/sisdepen/mais-informacoes/relatorios-infopen/relatorios-sinteticos/infopen-jun-2017.pdf >. Acesso em: 11
jan. 2021. p. 07
204
CONECTAS DIREITOS HUMANOS. Dados. Carcerópolis, 2018. Disponível em:
<https://carceropolis.org.br/dados/>. Acesso em: 11 jan. 2021.
205
IBGE. Síntese de indicadores sociais 2020. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101760.pdf. Acesso em: 11 jan. 2021.
9
em que, para cada homem branco, morreram aproximadamente 3 homens negros;206 entre o
decênio de 2008 e 2018, as taxas de homicídios entre negros aumentou em 11,5%, ao passo
que entre os não negros diminuiu em 12,9%; as mulheres negras representaram 68% do total
das mulheres assassinadas no Brasil em 2018;207 quanto aos homicídios por arma de fogo, em
2014 foram assassinadas 9.766 pessoas brancas e 29.813 negras, em uma taxa de vitimização
negra de 158,9% (isto é, morreram por arma de fogo 158,9% mais negros do que brancos).
Destes, as vítimas estão entre os jovens de 15 a 29 anos de idade. 208
Neste quadro de banalização da vida negra, a atuação da polícia é bastante
contributiva: dentre as 6.375 intervenções policiais que resultaram em morte em 2019, 79,1%
das vítimas eram negras.209 Essa altíssima taxa de mortes de corpos negros produzida pela
polícia se elucida ao se constatar a existência de filtragens raciais no dia a dia do
policiamento, isto é, há um padrão discriminatório na ação do sistema de segurança pública.
Sinhoretto et al. aponta que a vigilância policial é praticada de modo racializado, na medida
em que, pelas práticas da “fundada suspeita” e do “tirocínio policial”,210 a percepção pela
polícia de “suspeitos” da prática de crimes recai sobre um grupo social específico, marcado
pela “faixa etária, pertença territorial e que exibe signos de um estilo de vestir, andar e falar
que reivindica aspectos da cultura negra, e que é, em muitos casos, também constituinte de
uma cultura ‘da periferia’”.211 Sinhoretto afirma que, a despeito dos policiais não
reconhecerem a discriminação racial nas abordagens – admitindo, no entanto, a discriminação
de classe –, a utilização de critérios racializados na identificação de suspeitos não pode ser
negada:
206
O conjunto das mortes violentas intencionais é composto de mortes por homicídios dolosos, latrocínios,
lesões corporais seguidas de morte e mortes decorrentes de intervenção policial. Anuário Brasileiro de Segurança
Pública de 2020, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em:
<https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/02/anuario-2020-final-100221.pdf>. Acesso em: 11
jan. 2021. p. 63, 66.
207
IPEA. Atlas da violência de 2020. Rio de Janeiro: IPEA/Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020.
Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/3519-
atlasdaviolencia2020completo.pdf>. Acesso em: 11 jan. 21. p. 47.
208
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2016: homicídios por armas de fogo no Brasil. Disponível
em: <https://www.mapadaviolencia.net.br/pdf2016/Mapa2016_armas_web.pdf>. Acesso em: 11 jan. 2021. p. 49,
55, 60.
209
Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/02/anuario-2020-final-100221.pdf>.
Acesso em: 11 jan. 2021. p. 90.
210
“A fundada suspeita é fruto, segundo os interlocutores, da experiência que o policial adquire nas ruas para
identificar um suspeito ao primeiro olhar e os signos da suspeição. Esta experiência adquirida é nomeada de
tirocínio policial, uma qualidade positivada entre os interlocutores e construída mediante o ‘tempo de rua’ que
um policial possui”. SINHORETTO, Jacqueline et al. A filtragem racial na seleção policial de suspeitos:
segurança pública e relações raciais. In: Segurança Pública e Direitos Humanos: temas transversais. Coleção
Pensando a Segurança Pública. Brasília: Ministério da Justiça, 2014, v. 5. p. 133.
211
SINHORETTO, Jacqueline et al. A filtragem racial na seleção policial de suspeitos: segurança pública e
relações raciais. p. 132-133.
9
a “atitude suspeita” não se relaciona a nenhum ato suspeito, não é atributo do “fazer
algo suspeito” mas sim de ser, pertencer a um determinado grupo social; é isso que
desperta suspeitas automáticas. Jovens pobres pardos ou negros estão em atitude
suspeita andando na rua, passando num táxi, sentados na grama do Aterro, na Pedra
do Leme ou reunidos num campo de futebol.213
zona do “não-ser”, como diria Fanon. Tal visão ativa o modo violento com que o Estado se
relaciona com esses corpos, operacionalizando o mencionado projeto político de morte
direcionado a eles, em curso desde a formação do país. Flauzina explica os motivos deste
projeto se lançar preferencialmente contra os jovens:
O recado mais claro e atordoante desse cenário não se limita ao fato de os corpos
negros somarem a maior parte dos alvos do homicídio no país, mas que a eliminação
física tem por base a inviabilização do segmento enquanto coletividade. Ou seja, os
números que revelam o grau de vitimização da juventude negra apontam para um
projeto que investe claramente contra o futuro, contra as possibilidades de todo um
contingente existir e se reproduzir. Não há flagrante mais incontestável de uma
política de extermínio em massa: deve-se matar os negros em quantidade, atingindo
preferencialmente os jovens enquanto cerne vital da continuidade de existência do
grupo. Dentro dessa perspectiva, o aumento das taxas de vitimização da juventude
ao longo da última década revela que não se trata de um processo herdado de um
passado que tende a desfalecer, mas, ao contrário, de um investimento
diuturnamente renovado, em que o Estado, como sócio majoritário, não poderia
mesmo intervir.215
215
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 116-117.
216
De maneira geral, os autos de resistência se referem aos inquéritos policiais destinados a apurar os homicídios
de civis pela polícia decorridos de intervenção policial que teriam (em tese) sua ilicitude excluída pela
classificação do ato como legítima defesa da vida dos policiais (artigos 23 c/c 25 do Código Penal) ou estrito
cumprimento do dever legal (artigo 23 do Código Penal), uma vez que permite-se o emprego de força pelos
policiais no caso de resistência à prisão (artigo 292 do Código de Processo Penal). Ocorre que tais mortes
acabam sendo relevadas e legitimadas pelas altíssimas taxas de arquivamentos desses autos sem investigações
mais densas, pelos órgãos da Justiça, do contexto destas ações policiais que resultaram em morte: “tal
procedimento pode camuflar ilegalidades, abusos e violência, reproduzindo o estereótipo da vítima como
inimigo, conformando a seletividade dessa espécie de violência institucional e gerando a relativização de direitos
fundamentais de setores sociais específicos”. BEZERRA, Thays Alves. Autos de resistência e violência
policial: estratégias utilizadas para negar a violência institucional no registro das mortes dos acusados na guerra
contra as drogas em duas capitais brasileiras. 99 f. Monografia de graduação (Bacharelado em Direito) -
Universidade de Brasília, Brasília, 2014. p. 18, 20.
9
policial a perpetrar a sua morte”.217 Dessa forma, confere-se, com o proibicionismo, “uma
nova legitimação ao genocídio negro jamais interrompido”.218
Não obstante estas constatações assustadoras, este estado de coisas é
insuficientemente questionado. Freitas destaca que a longevidade e intocabilidade de um
sistema de justiça criminal tão violento e letal quanto o nosso, que articula fortes imagens de
horror e violência sistemática contra corpos negros através do encarceramento em massa e da
morte, só é possível pois se estabeleceu um forte quadro de indiferença social ao sofrimento
negro. Tal indiferença decorre, em primeiro lugar, da privação dos negros do sentido de
humanidade, de sorte que seu enclausuramento ou morte não causará revolta pública. Assim,
coloca-se para funcionar, anos após anos, um sistema de tal monta como se fosse algo trivial,
sem causar nenhum assombro, já que não conta com a mobilização expressiva de nenhum tipo
de censura pública ou de reação política e social. 219
Como já pontuado neste trabalho, o racismo não é mera característica do sistema de
justiça criminal brasileiro, mas o seu próprio elemento fundante. Por ser assim, Freitas destaca
que o hiperencarceramento e a morte negra por este sistema não se revelam como um acidente
ou um erro pontual, mas, pelo contrário, estes se constituem em seu traço central, em seu
objetivo, uma vez que, como pontuamos anteriormente pelos apontamentos da criminologia
crítica, os sistemas punitivos se prestam à manutenção do poder e do status quo. No caso da
sociedade brasileira, presta-se à conservação de uma sociedade hierarquizada racialmente, que
assegura a concentração de privilégios nas mãos da elite branca, em um eterno continuum da
escravidão:
No caso brasileiro, é em torno da eliminação, segregação e controle de corpos
negros que se desenrola um modo de gestão da vida nas cidades que é organizado
em função de processos de representações desumanizadas de pessoas negras e de
uma constante atualização do escravismo como argumento estruturador das relações
e códigos sociais. Mais do que gerar desvantagens econômicas para o segmento
negro da população ou produzir exclusão de pessoas negras dos espaços de direção
política, econômica e cultural, o principal legado do escravismo foi a produção de
um modelo racial com lastro na desumanização de pessoas em função de suas
características físicas. (...) Na prática, o quadro obsceno das prisões e seu
alargamento exponencial produz um contexto em que é como se a escravidão
estivesse, aqui e agora, sendo reeditada com toda a força diante de nossos olhos,
contando inclusive com a chancela e o estímulo da autoridade política e do discurso
jurídico e social.220
217
ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015. p. 23-24, 27-30.
218
GÓES, Luciano. O realismo marginal racial brasileiro. Nuestrapraxis. Revista de Investigación
Interdisciplinaria y Crítica Jurídica, n. 2, jan./jun. 2018. p. 51.
219
FREITAS, Felipe da Silva. A naturalização da violência racial: escravismo e hiperencarceramento no Brasil.
Revista Perseu: história, memória e política, n. 17, ano 12, 2019. p. 50, 53.
220
FREITAS, Felipe da Silva. A naturalização da violência racial: escravismo e hiperencarceramento no Brasil.
p. 53-54.
9
Tendo em mente todos os fatores abordados ao longo deste trabalho, não se poderia
deixar de problematizar a própria existência de um sistema tão problemático quanto o penal.
Com efeito, na próxima seção abordaremos a corrente de pensamento mais radical de crítica a
este sistema, por postular justamente o seu fim: o abolicionismo penal.
221
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia. p. 260.
222
ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio
de Janeiro: Revan, 2008. p. 695.
223
Tradução livre de “trascender los modelos, clasificaciones y presunciones tradicionales, pero sin presentar
pruchas acabadas de esas nuevas ideas ni el inventario de sus propias herrramientas conceptuales y
metodológicas. SCHEERER, Sebastian. Hacia el abolicionismo. In: HULSMAN, Louk et al. Abolicionismo
Penal. Tradução Mariano Alberto Ciafardini e Mirta Lilián Bondanza. Buenos Aires: Sociedad Anónima, 1989,
p. 21.
224
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas. p. 97-98.
225
Vera Andrade expõe os teóricos do movimento abolicionista e as organizações que fundaram: “Foucault
fundou o “Grupo de informação sobre os cárceres” (Groupe d'Informacion sur les Prisions); Hulsman iniciou a
9
Não obstante sua característica plural, no que se refere aos seus pressupostos comuns,
podemos dizer que o movimento abolicionista questiona a necessidade mesma da punição.226
Com efeito, o objeto da abolição não é apenas o Direito Penal (programação normativa do
exercício do poder dos juristas), mas também o sistema penal que, como institucionalização
do poder punitivo do Estado, engloba “tanto a engenharia quanto a cultura punitivas, tanto a
máquina quanto a sua interação com a sociedade”.227 Isto é, entende-se por sistema penal a
totalidade das agências penais, das normas jurídicas e dos saberes cognitivos que, ao se
relacionarem com o controle social global (família, escola, mídia, lugar de trabalho, etc.),
formam e reproduzem a cultura e o senso comum punitivos que se enraízam dentro de cada
um de nós.228 E, por ser assim, mais do que abolir o sistema penal estatal, o abolicionismo
penal visa a desconstrução da própria lógica de castigo e de costumes autoritários presentes
nas relações sociais – o imaginário punitivo –, a qual começa, por sua vez, em cada um de
nós. Nesse sentido, coloca Edson Passetti:
“Liga Coorhhert”; a qual, entre outras ações, apresentava todos os anos um orçamento alternativo para o
Ministério da Justiça; Mathiesen fundou o KROM (1969) norueguês, abreviatura de Norsk Forening for
Kriminal Reform (Associação Norueguesa para a Reforma Penal) e seus contrapontos escandinavos são o
KRUM (Suécia, 1966) e o KRIM (Dinamarca e Finlândia, 1967), organizações que, sob o amparo dos projetos
abolicionistas, declaram como objetivo estratégico a abolição do sistema carcerário. Na Inglaterra existem as
“Radicais Alternativas à Prisão” (RAPs), com defensores inclusive nos Estados Unidos da América”.
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia. p. 255-256.
226
CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 243.
227
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia. p. 260-261.
228
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia. p. 261.
229
PASSETTI, Edson. A atualidade do abolicionismo penal. In: PASETTI, Edson (org.). Curso livre de
abolicionismo penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan 2004. p. 16.
230
PASSETTI, Edson. Ensaio sobre um abolicionismo penal. Revista Verve, n. 9, 2006. p. 83-84.
9
231
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. p. 98.
232
HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernart de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Tradução de
Maria Lúcia Karam. Rio de Janeiro: Luam, 1993. p. 95-96.
233
Segundo Hulsman, se deixarmos as pessoas diretamente envolvidas lidarem com seus próprios conflitos, uma
gama de reações, para além da punitiva, apareceriam, como a compensatória, a terapêutica e a conciliadora, além
de medidas sanitárias, educativas, de assistência material ou psicológica, reparatórias, entre outras. HULSMAN,
Louk; CELIS, Jacqueline Bernart de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. p. 100.
234
HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernart de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. p. 100-101.
235
É necessário fazer a ressalva de que, embora Nils Christie seja reconhecido como um abolicionista e suas
teorizações serem fundamentais ao movimento, ele estaria mais próximo do minimalismo, por acreditar que “o
abolicionismo, em sua forma pura, não é uma posição alcançável. Não podemos abolir totalmente o sistema
penal. Mostrei também nos capítulos anteriores que, no entanto, podemos avançar muito nessa direção. (...) [o
minimalismo] está próximo do abolicionismo, mas aceita que, em certos casos, a pena é inevitável”. CHRISTIE,
Nils. Uma razoável quantidade de crime. Tradução de: André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p.
130-131.
9
236
ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. p. 709.
237
HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernart de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. p. 60
238
CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. p. 251.
239
ANITUA, Gabriel. História dos pensamentos criminológicos. p. 707.
240
CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. p. 245-247.
9
A abolição do sistema penal não pode mais ser pensada como utópica; não deve ser
vista como um sonho impossível.241 Em verdade, “uma sociedade sem direito penal já existe,
aqui e agora”.242 Hulsman demonstra tal condição através do conceito de cifra oculta,
explanado anteriormente, pela ideia de que a efetiva criminalização, no universo de todas as
condutas criminalizáveis, é a exceção, pois só atinge os crimes cometidos por uma camada
específica da população, como este trabalho vem chamando a atenção. Portanto, em relação a
todas as outras condutas e a todas as outras pessoas, a regra é a impunidade.243 Isso demonstra
que o sistema penal não é indispensável para a nossa sociedade, pois tais conflitos que não
alcançam a intervenção penal são resolvidos, diariamente, à sua própria forma (acordos,
mediações, decisões privadas dos interessados), fora do sistema. 244 Por ser assim, Hulsman
clareia “longe de parecer utópica, a perspectiva abolicionista se revela uma necessidade
lógica, uma atitude realista, uma exigência de equidade”.245 No mesmo sentido vão Guilherme
e Noronha de Ávila:
241
MATHIESEN, Thomas. A caminho do século XXI – abolição, um sonho impossível? In: PASSETTI, Edson;
SILVA, Roberto B. Dias (org.). Conversações abolicionistas: uma crítica do sistema penal e da sociedade
punitiva. São Paulo: IBCCrim, 1997.
242
HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. A aposta por uma teoria da abolição do sistema penal.
Revista Verve, n. 8, 2005. p. 247.
243
HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline. Penas perdidas: o sistema penal em questão. p. 65-66.
244
HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline. Penas perdidas: o sistema penal em questão. p. 74.
245
HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline. Penas perdidas: o sistema penal em questão. p. 66.
246
GUILHERME, Vera; NORONHA DE ÁVILA., Gustavo. Abolicionismos Penais. Belo Horizonte:
D’Plácido, 2017. p. 150-151.
9
críticas que reivindicam a abolição das prisões, a partir da abordagem do racismo como
fundamento e princípio de inteligibilidade do sistema penal. Para tentar dar uma contribuição
a este desafio, no próximo capítulo abordaremos o abolicionismo antirracista de Angela
Davis, para quem as prisões são uma atualização do escravismo como forma de controle de
corpos negros, num impedimento ao gozo pleno da liberdade no pós-abolição.
9
247
GÓES, Luciano. Entre a abolição e o abolicionismo penal: insurgência marginal crítica por uma sociologia do
sistema de controle racial brasileiro. In: GÓES, Luciano (org.). 130 anos de (des)ilusão: a farsa abolicionista em
perspectiva desde olhares marginalizados. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2018. p. 313-314.
248
Sobre a estruturação e o fortalecimento que a discussão criminológico crítica vem ganhando nas últimas
décadas no Brasil, desde a sua emersão na década de 1960, destaca Felipe Freitas: “a discussão sobre a
criminologia, seus pressupostos epistêmicos e suas implicações teóricas e práticas no campo jurídico nacional
vem ganhando destaque no Brasil, sobretudo a partir dos anos 2000. A criação, articulação e o fortalecimento de
grupos de pesquisa em criminologia em universidades, bem como o ingresso de criminólogos e criminólogas
críticos como professores de cursos de graduação e pós-graduação (sobretudo na área de direito) marcam a
instauração de um novo período do debate da criminologia e consolidam um longo processo – iniciado nos anos
1970 – de estruturação do campo criminológico no país.” FREITAS, Felipe da Silva. Novas perguntas para a
criminologia crítica brasileira: poder, racismo e direito no centro da roda. Caderno do CEAS, Salvador, n. 238,
2016. p. 489.
9
(...) estas constatações do perfil racializado das vítimas ou dos clientes preferenciais
do sistema penal não foram suficientes para proporcionar um debate sério sobre as
questões raciais e sistema penal, nem para promover uma qualificada aproximação
entre a criminologia crítica e as agendas do movimento negro e suas denúncias sobre
o caráter estrutural do racismo na sociedade brasileira. Mesmo que a criminologia
estivesse denunciando os efeitos do racismo, ela jamais se interessou em investigar o
racismo como parte da estrutura e da própria lógica de funcionamento do sistema,
daí o rechaço à ideia de genocídio e a busca por caminhos “menos radicais” de
aproximação da temática racial, caminhos que indicassem os sintomas do problema,
mas que evitassem o racismo como centro do debate. (...) Além de falar que os
negros morrem mais, as discussões da criminologia não deram outros passos neste
campo, não incorporaram leituras negras no debate e nem foram atrás de
explicações que conseguissem distinguir os modos de funcionamento das
hierarquias raciais na composição da vulnerabilidade deste grupo.249
De forma geral, os autores que impulsionam esta crítica defendem que não basta a
criminologia enunciar que são os negros os clientes preferenciais do sistema penal e de sua
violência (repetição enfadonha, segundo Freitas250) se esta não traz, em contrapartida ao
desvelamento deste fato, a discussão sobre o racismo para o centro do debate, através da
incorporação das contribuições do pensamento negro brasileiro – quase que completamente
ignorado em sua trajetória. 251 Cabe destacar que o genocídio da juventude negra e pobre vem
sendo denunciado pelos movimentos negros brasileiros há décadas, desde, pelo menos, 1978,
ano da fundação do Movimento Negro Unificado – MNU252 e ano da publicação da obra O
genocídio do negro brasileiro, de Abdias do Nascimento, bem como por meio de campanhas
como a Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto, lançada em 2005 e articuladora de
movimentos e comunidades de negras e negros que defendem explicitamente causas
abolicionistas penais por meio da luta “contra a brutalidade policial, pela causa antiprisional e
249
FREITAS, Felipe da Silva. Novas perguntas para a criminologia crítica brasileira: poder, racismo e direito no
centro da roda. p. 491-494.
250
FREITAS, Felipe da Silva. Novas perguntas para a criminologia crítica brasileira: poder, racismo e direito no
centro da roda. p. 493.
251
“Paralelamente às omissões da criminologia crítica, o movimento negro, intelectuais negros(as) e
pouquíssimos aliados(as) foram construindo interpretações divergentes que buscaram dialogar com outras
abordagens sobre o tema. Os textos de Abdias Nascimento sobre genocídio durante grande parte do século XX,
os estudos de Lélia Gonzalez sobre racismo e sexismo na sociedade brasileira, ou, mais recentemente, as
discussões de Sueli Carneiro, Jurema Werneck, Luiza Bairros, Vilma Reis e Edson Cardoso, são antecedentes
importantes quase que completamente ignorados tanto pelo positivismo hegemônico quanto pela criminologia
crítica. O pensamento negro seguiu trafegando fora da pista, seguiu pelo acostamento, pois não encontrou espaço
nem na faixa da direita e nem na faixa esquerda”. FREITAS, Felipe da Silva. Novas perguntas para a
criminologia crítica brasileira: poder, racismo e direito no centro da roda. p. 492.
252
“Esse movimento nasce em resposta à discriminação racial sofrida por quatro garotos do time infantil de
voleibol do Clube de Regatas Tietê, bem como para denunciar a prisão e a morte de Robison Silveira da Luz,
acusado de roubar frutas numa feira. É a partir desses dois fatos que representantes de várias entidades negras
convocam homens e mulheres negros a reagir à violência racial à qual eram submetidos. Em resposta a esse
chamado, em 7 de julho de 1978, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, tem-se o ato histórico de sua
fundação”. CALAZANS, Márcia Esteves de; DUARTE, Evandro Piza; PRANDO, Camila; CAPPI, Ricardo.
Criminologia crítica e questão racial. Cadernos do CEAS, Salvador, n. 238, 2016. p. 454.
9
pela reparação aos familiares de vítimas do Estado (execuções sumárias e extrajudiciais) e dos
esquadrões da morte, milícias e grupos de extermínio”. 253
A falta de engajamento das produções deste campo dito crítico com as denúncias e
propostas dos movimentos negros evidencia que, mesmo já havendo trabalhos que
demonstram ser o racismo de elementar importância para a compreensão da lógica de
funcionamento dos órgãos dos sistemas penais e da violência por eles perpetrada este
fenômeno não tem sido integrado aos debates equivalentemente à sua importância pelas
pesquisas do pensamento criminológico crítico e abolicionista brasileiro. Nesse sentido,
anunciam Calazans et al:
(...) entendemos que uma criminologia que não dê conta de nossas relações raciais
não está minimamente municiada para compreender o sistema penal. O que vimos
assinalando, entretanto, não se confunde com as análises corriqueiras que dispõem
da categoria raça, apenas como meio de indicar as práticas discriminatórias do
sistema. Desde uma abordagem diferenciada, o que está sendo pautado é a
necessidade de se trabalhar teoricamente os dados do racismo que se avolumam em
torno do aparato penal. O esforço está, portanto, em sistematiza-los enquanto
prática, em dar coerência à sua materialização, em enxergar o projeto que os torna
factíveis. 255
253
Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta. Disponível em: < https://reajanasruas.blogspot.com/p/quem-
somos.html>. Acesso em: 15 fev. 2021.
254
CALAZANS, Márcia Esteves de; DUARTE, Evandro Piza; PRANDO, Camila; CAPPI, Ricardo.
Criminologia crítica e questão racial. p. 454-455.
255
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: sistema penal e o projeto político do Estado
brasileiro. p. 135.
9
256
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. p. 102.
257
ORTEGAL, Leonardo. Raça, Criminologia e sociologia da violência: contribuições a um debate necessário.
Caderno do CEAS, Salvador, n. 238, 2016. p. 528.
258
DUARTE, Evandro Piza; QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa; COSTA, Pedro Argolo. A hipótese colonial,
um diálogo com Michel Foucault: a modernidade e o Atlântico negro no centro do debate sobre racismo e
sistema penal. Universitas Jus, v. 27, n. 2, 2016. Disponível em:
<https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/jus/article/view/4196/3266>. Acesso em: 20 jan. 2021. p. 26,
27.
9
Ou seja, segundo os autores, a construção negativa da raça negra não poderia ter
existido sem o sistema penal, bem como não se pode compreender o sistema penal sem a
construção das relações raciais. Isso porque as sociedades ocidentais constituíram (assim
como reconstituíram) a identidade negativa das raças através da punição: “a ideia e a prática
da ‘raça’ (no sentido do racismo) dependeu sempre da segregação espacial proporcionada por
sistemas punitivos”.260 Ou seja, no momento em que determinados grupos humanos (negros e
indígenas) foram tachados como inferiores, pela colonização europeia, eles foram
automaticamente incluídos numa comunidade de vítimas reais ou potenciais da violência dos
sistemas punitivos. 261
Mas, pergunta-se: por que a crítica não avança neste sentido? Freitas diz que o que
está em jogo é a existência de uma relação entre este ocultamento com a manutenção de
posições de poder e de hierarquias neste campo. Para ele, “trata-se de considerar como as
posições (raciais, de classe e de gênero) dos(as) pesquisadores(as) têm influenciado para que a
categoria raça ou gênero sigam ausentes das escolhas teóricas e metodológicas da
criminologia crítica”. 262
Thula Pires aponta que os silêncios criminológicos são mantidos pela existência de um
pacto narcísico – expressão cunhada por Maria Aparecida Bento – pela academia, pois
composta em sua maioria de intelectuais homens brancos, heterocisnormativos e
proprietários. Tal pacto seria uma espécie de “acordo tácito entre os brancos de não se
reconhecerem como parte absolutamente essencial na permanência das desigualdades raciais
do Brasil” 263 que, ao se manter intacto pelos intelectuais brancos da criminologia, revela-se
apto a perpetuar, desta forma, os privilégios da branquitude.
259
DUARTE, Evandro Piza; QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa; COSTA, Pedro Argolo. A hipótese colonial,
um diálogo com Michel Foucault. p. 22.
260
DUARTE, Evandro Piza; QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa; COSTA, Pedro Argolo. A hipótese colonial,
um diálogo com Michel Foucault. p. 26.
261
DUARTE, Evandro Piza; QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa; COSTA, Pedro Argolo. A hipótese colonial,
um diálogo com Michel Foucault. p. 26.
262
FREITAS, Felipe da Silva. Novas perguntas para a criminologia crítica brasileira: poder, racismo e direito no
centro da roda. p. 494-495.
263
BENTO, Maria Aparecida apud PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminologia crítica e pacto narcísico: por
uma crítica criminológica apreensível em pretuguês. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v.
135, ano 25, set. 201. p. 542-543.
9
264
PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminologia crítica e pacto narcísico: por uma crítica criminológica
apreensível em pretuguês. p. 549.
265
PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminologia crítica e pacto narcísico: por uma crítica criminológica
apreensível em pretuguês. p. 543.
266
PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminologia crítica e pacto narcísico: por uma crítica criminológica
apreensível em pretuguês. p. 549-550.
267
DUARTE, Evandro Piza. Editorial: direito penal, criminologia e racismo. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, São Paulo, vol. 135, ano 25, set. 2017. p. 32.
9
268
PASSOS, ALINE. O abolicionismo penal brasileiro e o desembarque da branquitude. Revista Cult, São
Paulo, 15 dez. 2020. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/o-abolicionismo-penal-brasileiro-e-o-
desembarque-da-branquitude/>. Acesso em: 16 fev. 2021.
269
FREITAS, Felipe da Silva. Novas perguntas para criminologia crítica brasileira poder, racismo e direito no
centro da roda. p. 496.
270
BARTOLOMEU, Priscilla Conti; ROMFELD, Victor Sugamosto. A ausência de Angela Davis nas pesquisas
acadêmicas abolicionistas. In: VIANA, Ana Cristina Aguilar et al. (org.). Pesquisa, gênero e diversidade:
memórias do III encontro de pesquisa por/de/sobre mulheres. Curitiba: Íthala, 2020. p. 290.
9
271
DAVIS, Angela. A democracia da abolição: para além do império, das prisões e da tortura. Tradução de:
Artur Neves Teixeira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. p. 22.
272
DAVIS, Angela. Uma autobiografia. Tradução de Heici Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2019.
9
273
MENDIETA, Eduardo. De la prisión de la esclavitud a la esclavitud de la prisión: el abolicionismo de Angela
Y. Davis. In: DAVIS, Angela. Democracia de la abolición: prisiones, racismo y violência. Madrid: Trotta,
2016. p. 11-13.
274
DAVIS, Angela. A democracia da abolição: para além do império, das prisões e da tortura. p. 123.
9
debates a respeito da abolição das prisões, bem como a abolição de todas as formas de
opressão que fazem a persistência da prisão possível.
Angela Davis, ao longo de toda a sua obra a respeito das prisões, toca em um tema
fundamental: as maneiras pelas quais a escravidão, mesmo após abolida, continua a existir no
sistema de justiça criminal contemporâneo. Busca teorizar, assim, em que medida a prisão e a
escravidão compartilham características estruturais importantes. A partir deste esforço em
acentuar as ligações e os paralelos entre a prisão e a escravidão, Davis direciona sua denúncia
ao caráter racializado da instituição da prisão: enfatiza, em sua análise, a prisão enquanto
instituição profundamente conectada com a manutenção do racismo.275 Em decorrência do
tipo de análise que este trabalho se propõe a fazer, tal aspecto é de fundamental importância.
Os Estados Unidos, país de origem de Davis e aquele sobre o qual ela dedica seus
estudos, guarda uma semelhança com o Brasil: o seu passado escravagista. Por isto,
abordaremos neste tópico, através do trabalho de Davis, a herança da escravidão nos Estados
Unidos, tocando nos pontos que esta se assemelha ao contexto brasileiro para, assim,
podermos pensar a nossa experiência.
Em um primeiro momento, Angela Davis argumenta que a pena de morte, ainda
vigente nos Estados Unidos, é o mais claro legado da escravidão naquele país. Para ela, isso
explica o fato desta pena ainda não ter sido abolida nos Estados Unidos, bem como o fato de
que ela é cominada desproporcionalmente aos réus negros quando em comparação com os
brancos. Sua relação com a escravidão torna-se clara quando Davis argumenta que o regime
escravagista serviu como um receptáculo para aquelas formas de punição consideradas
violentas demais para serem infligidas aos cidadãos brancos:
275
DAVIS, Angela. A democracia da abolição: para além do império, das prisões e da tortura. p. 40.
9
A abolição legal da escravidão nos Estados Unidos se deu com a Décima Terceira
Emenda à Constituição, em 1865. Entretanto, tinha-se uma exceção crucial, pois na redação
da emenda constava: “nem a escravidão nem a servidão involuntária, exceto como punição
por crime do qual a parte tenha sido devidamente condenada, deve existir nos Estados
Unidos ou em qualquer lugar sujeito à sua jurisdição”.277 Assim, se um sujeito fosse
criminalizado, poder-se-ia impor a sua escravização como pena. Nestes termos, aponta
Angela Davis: “ex-escravos, que tinham acabado de ser libertados de uma condição de
trabalho forçado perpétuo, podiam ser legalmente condenados à servidão penal”. 278
Com efeito, após a abolição, os estados estadunidenses aprovaram uma série de leis
que objetivaram regular o comportamento e condutas cotidianas de pessoas negras, agora
livres, de modo similar à escravidão: “os novos Códigos Negros proibiam uma série de ações
– como vadiagem, ausência no emprego, quebra de contrato de trabalho, porte de arma de
fogo e gestos ou atos ofensivos – que eram criminalizadas apenas quando a pessoa acusada
era negra”.279 Política semelhante de controle de negros livres também fora adotada pelo
Brasil, como exposto no primeiro capítulo.280
Um instituto específico dos Estados Unidos foi o chamado “sistema de arrendamento
de condenados”. A partir dele, os estados do Sul estabeleceram um sistema de justiça criminal
que lucrava com a criminalização negra: negros livres que fossem encarcerados pelo Estado
por certas condutas poderiam ser “arrendados” à proprietários de terras mediante pagamento
276
DAVIS, Angela. A democracia da abolição: para além do império, das prisões e da tortura. p. 43-44.
277
Tradução livre de: ““Neither slavery nor involuntary servitude, except as a punishment for crime whereof the
party shall have been duly convicted, shall exist within the United States, or any place subject to their
jurisdiction”.
278
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Tradução de Marina Vargas. Rio de Janeiro: DIFEL, 2018.
p. 30.
279
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. p. 30.
280
A respeito da criminalização da vadiagem – relevante para nós, pois igualmente criminalizada em nosso país
– Angela Davis expõe: “Os Códigos Negros do Mississippi, por exemplo, declaravam como vadio ‘qualquer um
que fosse culpado de roubo, tivesse fugido [de um emprego, aparentemente], estivesse bêbado, tivesse conduta
ou proferisse discurso imoral, tivesse negligenciado o trabalho ou a família, tivesse usado dinheiro de maneira
negligente e (...) todas as outras pessoas indolentes e desordeiras’. Dessa forma, a vadiagem era codificada como
um crime de negros, punível com encarceramento ou trabalho forçado, às vezes nas mesmas plantations que
antes exploravam o trabalho escravo”. DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. p. 30-31.
9
de quantias muito baixas, com objetivo de explorarem o seu trabalho. Segundo Davis, em
muitos aspectos, este sistema era pior do que a escravidão, pois, devido ao fato dos
condenados não constituírem propriedade daqueles que os arrendavam, e sim do Estado,
reinava uma mentalidade de “morreu um, arrume outro”.281 Assim, como aponta Eduardo
Mendieta na introdução do livro de Davis A Democracia da Abolição, “com a abolição da
escravidão, os negros deixaram de ser escravos, mas imediatamente se tornaram criminosos –
e, como criminosos, tornaram-se escravos do Estado”.282
Os efeitos deste sistema arrendamento de condenados é exposto por Davis, que revela
que antes da abolição, 99% dos detentos nas penitenciárias do estado do Alabama eram
brancos; após as novas legislações e práticas, em um curto período de tempo, a maioria
tornou-se negra.283
Passa-se, assim, a se ter uma grande integralização de pessoas negras aos sistemas
penais do Sul, sendo esta prática racializada de punição, para Davis, nada mais era do que a
continuação da escravidão: “a locação de mão de obra prisional foi um esforço totalitarista
para controlar a mão de obra negra na era pós-Emancipação, tendo servido apenas como um
lembrete simbólico aos negros de que a escravidão não havia sido totalmente abolida”.284
W.E.B Du Bois, pensador político afro-americano cujo trabalho inspirou Davis, argumenta:
281
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. p. 30, 33-34.
282
MENDIETA, Eduardo. Introdução. In: DAVIS, Angela. A democracia da abolição: para além do império,
das prisões e da tortura. p. 13-14.
283
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. p. 31.
284
MENDIETA, Eduardo. Introdução. In: DAVIS, Angela. A democracia da abolição: para além do império,
das prisões e da tortura. p. 11-12.
285
DU BOIS, W.E.B apud MENDIETA, Eduardo. Introdução. In: DAVIS, Angela. A democracia da abolição:
para além do império, das prisões e da tortura. p. 11.
9
encarcerados pelos motivos mais fúteis e recebem sentenças longas ou multas pelas
quais eles são compelidos a trabalhar como se fossem novamente escravos ou
criados contratados. A consequente escravidão econômica de criminosos se estendeu
para todos os Estados do Sul e levou às situações mais revoltantes.286
286
DU BOIS, W.E.B apud MENDIETA, Eduardo. Introdução. In: DAVIS, Angela. A democracia da abolição:
para além do império, das prisões e da tortura. p. 13.
287
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. p. 39-40.
288
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. p. 91.
9
comunidades que são objeto de vigilância policial têm muito mais chances de
fornecer indivíduos para a indústria da punição289.
a prisão é a solução punitiva para uma gama completa de problemas sociais que não
estão sendo tratados pelas instituições sociais que deveriam ajudar as pessoas na
conquista de uma vida mais satisfatória. Esta é a lógica do que tem sido chamado de
farra de aprisionamento: em vez de construírem moradias, jogam os sem-teto na
cadeia. Em vez de desenvolverem o sistema educacional, jogam os analfabetos na
cadeia. Jogam na prisão os desempregados decorrentes da desindustrialização, da
globalização do capital e do desmantelamento do welfare state. Livre-se de todos
eles. Remova essas populações dispensáveis da sociedade. Seguindo essa lógica, as
prisões tornam-se uma maneira de dar sumiço nas pessoas com a falsa esperança de
dar sumiço nos problemas sociais latentes que elas representam.292
Angela Davis nos mostra, portanto, que há um grande interesse privado ao redor da
prisão. O complexo industrial-prisional é um fenômeno que se globaliza em decorrência do
poder hegemônico que os EUA exercem sobre o resto do mundo. Por meio dele, grandes
289
DAVIS, Angela. A democracia da abolição: para além do império, das prisões e da tortura. p. 47.
290
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. p. 92-93.
291
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. p. 96.
292
DAVIS, Angela. A democracia da abolição: para além do império, das prisões e da tortura. p. 47-48.
9
293
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. p. 95.
294
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. p. 93.
295
DONZIGER, Steven apud DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. p. 101.
296
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. p. 21-22.
9
297
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. p. 111-112.
298
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. p. 70.
299
Tradução livre de “La prisión es el lugar donde la tecnología política de los cuerpos es más explícitamente
productora del género y la raza. Es también donde la simultánea producción del género y la raza aparecen en sus
formas más violentas.” MENDIETA, Eduardo. De la prisión de la esclavitud a la esclavitud de la prisión: el
9
entre os encarcerados, as últimas décadas têm sido marcadas por significativos aumentos nas
taxas de encarceramento feminino tanto nos EUA como no Brasil, e a maioria dessas
mulheres são negras.
Ao particularizar a experiência do gênero na prisão, Davis aponta que um homem
preso é aceito com mais naturalidade do que uma mulher presa. Isso se deve ao fato que,
historicamente, os homens delinquentes eram tidos simplesmente como criminosos, ao passo
que as mulheres delinquentes eram tidas como anormais e insanas.300 O que explica esse mito
é a construção social dos papeis de gênero, nos quais as mulheres são ligadas às
características de docilidade, submissão, obediência, entre outas. Este aspecto ideológico se
refletiu na crença perpetrada durante muito tempo de que a prisão feminina deveria se
constituir em espaços destinados à assimilação, por parte das mulheres aprisionadas, de
“comportamentos femininos adequados”, especialmente no que tange à vida doméstica.
Dentro deste contexto, Davis nos mostra uma das facetas das intersecções entre raça, gênero e
classe: enquanto este treinamento se destinava a produzir esposas e mães melhores, isso só
ocorria dentre as mulheres brancas de classe média, pois dentre as mulheres negras e pobres,
ele acabava por conduzi-las aos serviços domésticos, fazendo estas se tornarem, depois de sua
libertação, em empregadas, cozinheiras e lavadeiras de mulheres mais ricas.301
O fato de a mulher negra ser a categoria da mulher mais encarcerada também explica,
na visão de Davis, a hiperssexualização que é associada às mulheres “criminosas”, bem como
os estupros e abusos sexuais rotineiros nas prisões. Isso porque a figura da mulher negra é
historicamente associada à promiscuidade e ao erotismo, e Davis aponta que os estupros dos
senhores contra as escravizadas no contexto da escravidão podem ser lidos como uma espécie
de punição imposta a elas, pelo simples fato de serem escravizadas.302 Esta devassidão
enxergada no corpo negro feminino contribuiu para institucionalizar o abuso sexual na prisão
como algo rotineiro e generalizado, algo que acaba por ampliar a violência que os sujeitos
racializados e marcados com gênero sofrem no contexto da sociedade em geral. Além disso, a
revista íntima é, na opinião de Davis, claramente um abuso sexual legalizado, estando o
Estado, assim, diretamente implicado nessa rotineirização do abuso sexual, usando-o como
forma de controle dessas mulheres. 303
abolicionismo de Angela Y. Davis. In: DAVIS, Angela. Democracia de la abolición: prisiones, racismo y
violência. p. 20.
300
DAVIS. Estarão as prisões obsoletas?. p. 71-72.
301
DAVIS. Estarão as prisões obsoletas?. p. 69, 76.
302
DAVIS. Estarão as prisões obsoletas?. p. 73.
303
DAVIS. Estarão as prisões obsoletas?. p. 86, 88
9
Angela Davis nos diz que a compreensão da violenta sexualização da vida prisional
feminina é um elemento importante para aprofundar a crítica radical ao sistema penal, críticas
que postulam a sua abolição. Isso porque “a demanda por abolir a prisão como forma
dominante de punição não pode ignorar que a instituição da prisão armazenou ideias e
práticas que, espera-se, se aproximam da obsolescência na sociedade em geral, mas que retêm
toda a sua horrenda vitalidade por trás dos muros da prisão”.304 Nesses termos, a prisão é o
local em que as assimetrias raciais, de gênero e de classe – e de maneira mais complexa, a sua
intersecção – são expostas de maneira mais translúcida e onde adquirem suas mais terríveis
consequências, além de, por sua vez, reforçarem as condições que as reproduzem.
Assim, para Angela Davis, o abolicionismo penal deve estar vinculado às lutas
antissexistas, antirracistas, anticapitalistas, anticolonialistas, enfim, às lutas pelo fim de todo e
qualquer tipo de opressão. O abolicionismo penal de Angela Davis é efetivamente radical,
pois busca as raízes mais profundas das violências e das opressões estruturais. O seu projeto
de abolição das prisões não busca tão somente o desmantelamento isolado das instalações que
chamamos de presídios e cadeias. Com efeito, a noção apresentada por Davis de complexo
industrial-prisional justamente demonstra o grau em que as prisões estão profundamente
estruturadas por condições sociopolíticas e econômicas – por isso, o seu projeto de abolição
propõe o desmantelamento desta miríade de condições estruturais em que o racismo, a
dominação masculina e econômica continuam a serem firmados, e que, por sua vez, sustentam
a permanência da prisão.305 Em suas palavras:
Por ser assim, o abolicionismo penal de Angela Davis propõe que a sociedade precisa
ser radicalmente transformada. Eis uma reflexão dela na obra A Democracia da Abolição:
304
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. p. 89.
305
DAVIS, Angela. A democracia da abolição: para além do império, das prisões e da tortura. p. 85-86.
306
DAVIS. Estarão as prisões obsoletas?. p. 121.
9
É nesse sentido que a autora teoriza que “um dos requisitos fundamentais para a
revitalização da democracia é a abolição mais do que urgente do sistema prisional”. 308 Devido
ao fato de o sistema penal estar engendrado em bases coloniais que tem no racismo, no
sexismo e na exploração econômica a sua sustentação, a abolição das prisões se torna
condição sine qua non para a concretização do que Davis, ao resgatar os termos de W.E.B Du
Bois, chama de “democracia da abolição”. Este conceito chama atenção para o fato de que a
abolição da escravidão e de suas heranças continua sendo incompleta e permanece inacabada
e, por isso, o tipo de democracia que temos hoje é uma democracia racial e racializada, e que
devemos imaginar uma nova democracia, a democracia da abolição:309 uma democracia
orientada por princípios abolicionistas.
Com base nessas ideias, Davis articula um projeto abolicionista que é composto de
dois movimentos: em primeiro lugar, “um processo negativo de demolição”, isto é, de
abolição do complexo industrial-prisional e dos vestígios e heranças da escravidão contidos
nele e que têm sido renovados pelo sistema prisional; e em segundo lugar, um processo de
construção e criação de novas instituições alternativas e radicalmente democráticas que
atendam os conflitos sociais que empurram as pessoas ao cárcere.310
O abolicionismo de Davis pensa na emergência de uma democracia que renuncia suas
origens racistas, uma democracia que rejeita o conjunto das estruturas sociais, políticas e
econômicas que levaram ao surgimento e à consolidação do sistema penal, uma democracia
na qual “os problemas sociais que possibilitaram o surgimento do complexo industrial-
prisional serão, se não completamente solucionados, pelo menos confrontados e
reconhecidos”.311 Neste processo, Davis enfatiza a importância da imaginação: ela enxerga o
abolicionismo como “um projeto que envolve reimaginar as instituições, ideias e estratégias, e
criar novas instituições, ideias e estratégias que tornarão os presídios obsoletos”.312
Este processo emancipatório é fundamental para um abolicionismo penal. A ideia da
democracia da abolição é sintetizada por Davis nos seguintes termos:
307
DAVIS, Angela. A democracia da abolição: para além do império, das prisões e da tortura. p. 27-28.
308
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. p. 41.
309
MENDIETA, Eduardo. De la prisión de la esclavitud a la esclavitud de la prisión: el abolicionismo de Angela
Y. Davis. In: DAVIS, Angela. Democracia de la abolición: prisiones, racismo y violência. p. 10, 22.
310
DAVIS, Angela. A democracia da abolição: para além do império, das prisões e da tortura. p. 86-87.
311
DAVIS, Angela. A democracia da abolição: para além do império, das prisões e da tortura. p. 55.
312
DAVIS, Angela. A democracia da abolição: para além do império, das prisões e da tortura. p. 89.
9
313
DAVIS, Angela. A democracia da abolição: para além do império, das prisões e da tortura. p. 112-114.
314
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. p. 116.
315
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. p. 117, 119.
316
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. p. 123.
9
outras,317 resistindo diante de respostas fáceis e resoluções prontas, por meio de teoria e
prática criativas e experimentais.
Um dos maiores desafios ao abolicionismo, segundo Davis, é convencer as pessoas
que um mundo sem prisões é concebível. A grande dificuldade de se imaginar alternativas ao
atual sistema penal reside na naturalização do cárcere no imaginário social: as prisões
geralmente são consideradas como um elemento inevitável, permanente e insubstituível de
nossas vidas sociais, ao ponto que é extremamente difícil fazer exercícios de pensar a vida
sem elas.318 Ao mesmo tempo, as pessoas em geral têm medo de pensar sobre a realidade que
se passa dentro do cárcere, muito porque a prisão se mostra – para aqueles que não as tem
como ameaça constante em suas vidas – como um destino que, desde o início, é reservado a
outros, a outros racializados.319 Eduardo Mendieta, na introdução da obra de Davis A
Democracia da Abolição, faz as seguintes observações:
317
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. p. 117.
318
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. p. 9-10.
319
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. p. 16.
320
MEDIETA, Eduardo. Introdução. In: DAVIS, Angela. A democracia da abolição: para além do império, das
prisões e da tortura. p. 16.
321
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. p. 16-17.
9
322
Tradução livre de: “a effective abolitionist campaign will have to directly adress the role of race in the
criminalization processes”. DAVIS, Angela. Racialized Punishment and Prison Abolition. In: LOTT, Tommy L.;
PITTMAN, John P. A Companion to African-American Philosophy. Blackwell Companions to Philosophy,
1988.
323
DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. Tradução de: Heici Regina Candiani. São Paulo:
Boitempo, 2018.
9
liberdade para todos, para todas as pessoas’”. 324 Afinal, para Angela Davis, como o título de
uma de suas obras bem elucida, a liberdade é uma luta constante.
324
DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante [LEGENDADO]. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=7Lff8ScaF1Y&t=1330s>. Acesso em: 18 mar. 2021.
9
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A metáfora para o “corpo negro caído no chão” está estampada nos dados oficiais, nas
notícias de todo o dia, nos programas policialescos midiáticos, nos discursos e campanhas
eleitorais e na mentalidade de grande parte da sociedade civil.
Para a compreensão desta realidade, resgatamos a formação social brasileira,
observando que a colonização ibérica e o regime escravista empreenderam, através das mais
diversas formas de violência e de genocídio, o padrão de relacionamento que o Estado travaria
com o corpo negro que vigoraria até os dias atuais. O tratamento do projeto moderno colonial
foi o da desumanização, da objetificação, da infantilização e da escravização, heranças que
permanecem no mundo contemporâneo, em formas atualizadas de violência física e
simbólica.
O sistema penal foi uma faceta essencial do Estado para que esse tipo de
relacionamento fosse posto em prática. A partir da observação dos diferentes sistemas penais
ao longo da história do país, constatamos um padrão de atuação instituído na sociedade
colonial que nunca fora rompido. Em verdade, o relacionamento entre o corpo negro e o
sistema penal não poderia ser diferente no Brasil. Isso porque, com a criminologia crítica foi
possível perceber como o sistema penal em uma sociedade hierarquizada e desigual como a
capitalista, desde a criminalização primária a partir de leis penais, até a aplicação dessas leis
pelas polícias e pelo Judiciário, age com o objetivo de manter o status quo e as desigualdades
existentes. No caso brasileiro, o status quo é de uma ordem de assimetrias raciais, em que a
classe trabalhadora mais precarizada é profundamente racializada. Os etiquetados como
criminosos são, assim, os jovens, negros, pobres, moradores da periferia, de baixíssima
escolaridade.
Por toda essa crítica apta a deslegitimá-lo, o sistema penal só merece ser pensado a
partir de seu fim. O abolicionismo penal propõe a busca por outras formas de se lidar com os
conflitos em sociedade que não pelo sistema punitivo estatal, pois este tem na prisão a
resposta exclusiva em face de práticas tão diversas tais quais são os conflitos sociais.
Se sabemos ser a justiça penal o instrumento que mais contribui ao genocídio negro,
à quais denúncias deve ser direcionado o discurso abolicionista? Se sabemos ser a mão
armada do Estado o instrumento de incontáveis tragédias negras, ao longo da história, o que
deve ser centralizado nas discussões abolicionistas? Se dentro das penitenciárias, em frente
aos seus portões, nas fichas de identificação, nas filas de visita, nos lutos das mães que
9
choram as mortes de seus filhos assassinados pela polícia, uma tonalidade específica de pele
é mais facilmente percebida, com quem deve conversar o abolicionismo?
Esta pesquisa tentou responder estas questões demonstrando que, no Brasil, não há
como haver um abolicionismo penal que não seja antirracista. Um projeto abolicionista para
a realidade brasileira deve ser pensado a partir do problema racial, problema este tão
entranhado em nossa realidade. Em outras palavras, o abolicionismo penal no Brasil deve
colocar o fim do racismo na vanguarda de suas lutas, isto é, ele somente pode ser projetado a
partir da destruição do racismo estrutural de nossa sociedade, o qual serviu como ideologia a
fornecer as tecnologias punitivas essenciais para à conformação e à modelação do nosso
sistema punitivo estatal atual. Isso porque o racismo não é o efeito acidental das práticas
punitivas, mas o próprio objetivo perseguido por este sistema.
Por se acreditar ser assim, este trabalho defende que, na primeira fila de argumentos
à abolição, bem como nas primeiras preocupações dos autores abolicionistas, tem de estar a
violência massificada, sistemática, histórica e cotidiana que o sistema penal vem
perpetrando contra a população negra brasileira. Defende-se que o abolicionismo brasileiro
deve enxergar os impactos reais do sistema penal sobre a vida e sobre os corpos que sofrem
a maior parte desta violência. A vida das pessoas negras circula historicamente ao redor da
ameaça da punição pela mão armada do Estado: o sistema penal faz com que este segmento
seja sistematicamente assassinado; que jovens negros no começo de suas vidas sejam
retirados dos espaços sociais de convivência pelo seu isolamento nas instituições
penitenciárias, perdendo, por isso, oportunidades e experiências de vida; que pais de família
sejam retirados do convívio familiar, deixando muitas mulheres negras cuidando sozinhas de
seus filhos; que muitas crianças negras cresçam sem a presença de seu pai, porque
encarcerado pelo Estado; enfim, há um ciclo infindável de violências perpetradas pelo
sistema penal que desarticula este segmento, retira a sua força enquanto grupo e pré-
determina os seus lugares sociais.
Assim, a demanda pelo fim das prisões em nossa sociedade é, antes de mais nada,
questão de sobrevivência e existência plena para a população negra brasileira. De fato, a
resistência e luta pela liberdade e humanidade da população negra advém desde o seu
deslocamento forçado pelas rotas do Atlântico – e continua firme através dos movimentos
negros. Nesses termos, o abolicionismo penal somente é concretizável com o cumprimento
efetivo da abolição da escravidão que fora prometida, e que nunca de fato se concretizou. A
retomada do processo abolicionista do século XIX é premissa básica para um abolicionismo
penal brasileiro, sob o risco de se conseguir, finalmente, abolir o sistema penal, mas dotando
9
as novas formas de se resolver conflitos que não a punitiva de uma nova discursividade e
legitimante que seriam aptas a manter incólume as assimetrias raciais. 325
A tomada de posição desta pesquisa se justifica na medida em que, como apontado
no trabalho, pesquisadoras e pesquisadores do campo criminológico crítico, em sua maioria
negras(os), vêm criticando que o campo de estudos críticos ao sistema penal, em sua fatia
hegemônica, ainda não incorporou em suas análises o fenômeno do racismo em toda sua
complexidade e radicalidade, pois a raça é colocada, em muitos estudos, como uma
categoria subsidiária das ideias de seletividade ou de vulnerabilidade à criminalização. A
disputa, assim, é por repactuar os termos do debate: torna-se necessário que a academia
branca, masculina e heterossexual quebre com o seu pacto narcísico, se confrontando com os
seus privilégios advindos da branquitude, os quais são entraves para atingir a plena
igualdade racial.
É nesse contexto que abolicionismo no Brasil precisa colorir suas referências, que
são, na sua quase homogeneidade, brancas, europeias, masculinas e etilizadas. É importante
que sejam incorporados nos marcos teóricos das pesquisas abolicionistas autoras e autores
negros que discutem as relações raciais no Brasil. Assim, defende-se que o abolicionismo
penal deve racializar o seu debate, caminhando de mãos dadas com a luta por respeito
travada todos os dias por negras e negros no Brasil. Isso pois, as escritas de negras e de
negros possuem o potencial político de trazer às palavras ditas suas urgências de vida, na
medida em que, como elucida Conceição Evaristo:
Por isso a relevância de Angela Davis. Mulher, negra, ativista, que sentiu na pele a
violência racista do Estado que a encarcerou. Que tem se engajado durante toda a sua vida
em lutas sociais contra a opressão do racismo, do machismo e do sistema carcerário. Que
defende um projeto abolicionista penal que desmantele as estruturas em que as opressões de
325
GÓES, Luciano. Abolicionismo penal? Mas qual abolicionismo, “cara pálida”? Revista InSURgência,
Brasília, v. 3, n. 2, 2017. p. 97, 104 e 118.
326
CONCEIÇÃO, Evaristo. Da grafia-desenho de minha mãe um dos lugares de nascimento de minha escrita. In:
ALEXANDRE, Marcos Antônio (org.). Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas
interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. p. 21.
9
raça, gênero e classe continuam a ser firmar, e que tornam a prisão uma prática possível. O
desmantelamento das estruturas opressoras em sua integralidade é a condição primordial
para se alcançar modelos radicalmente democráticos e igualitários. Ao enxergar o
encarceramento como continuum da escravidão, o abolicionismo de Angela Davis é, para
nós, de uma relevância ímpar, e o silenciamento de suas produções é um grave déficit
epistemológico e político aos estudos abolicionistas do Brasil.
9
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