Retprica Na Escola Prof Ferreira

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Aidil Soares Navarro

A retórica, mesmo em suas formas mais primitivas, tem sido

Retórica, P ersuadir e convencer estão no

Ferreira
Ana Lúcia Magalhães utilizada como instrumento, desde que existe a linguagem cerne da dimensão argumentativa
humana, para transcender a mera descrição utilitária do que e, nesse sentido, há, também, uma
Andreia Honório da Cunha se percebe como realidade. Assim como a própria humanidade dimensão retórica fundamental para
Carla Moreira de Paula Prada
Éber José dos Santos
cresceu com a retórica, a escola, central para a formação e para
o crescimento, usa a retórica mesmo inconscientemente. Os escrita a interação verbal. A partir dessa
constatação, o Grupo de Estudos

Retórica, escrita e autoria na escola


textos que compõem esse livro, de autoria dos pesquisadores do Retóricos e Argumentativos (Grupo
Elioenai dos Santos Piovezan

e autoria
Grupo de Estudos Retóricos e Argumentativos – ERA, exploram ERA) objetiva abordar, a partir dos
Fernanda Martin Sbroggio a retórica na escola nesse tempo de grandes transformações conceitos estudados pela retórica,
em que vivemos. os efeitos persuasivos obtidos por
João Hilton Sayeg-Siqueira
Com foco na produção de texto, portanto, o livro busca meio da articulação da linguagem

na escola
Joelma Batista dos Santos Ribeiro a sociorretórica e a argumentação como norteadoras. Assim, no discurso. Paralelamente, cumpre
Leonardo Tavares destaca a importância do auditório, evidencia os conceitos ao grupo um processo de síntese
retóricos de ethos, pathos e logos, enfatiza as partes do discurso e integração das ideias dos vários
Luanny Vidal e ocupa-se dos vários aspectos capazes de auxiliar na leitura e estudiosos da retórica contemporânea.
Luisiana Ferreira Moura autoria desde o ensino básico até o nível superior.
Como os sentidos são captados por
Luiz Antonio Ferreira
meio de dimensões amplas, de natureza
Márcia Silva Pituba Freitas Ana Lúcia Magalhães cognitiva, pragmática e passional, o
Mariano Magri Luiz Antonio Ferreira Grupo leva em conta as modernas
organizador contribuições dos estudos linguísticos
Nathalia Melati
para analisar a consecução dos atos
Ricardo Ugeda Mesquita retóricos e a verificação da força
Roberta de Souza Piovezan Grupo de Estudos retórica como ação capaz de traduzir
Retóricos e Argumentativos percepções, valores, sentimentos,
Rosíris Flocco posicionamentos e ações discursivas
Tiago Ramos e Mattos em textos.

ISBN 978-85-8039-365-1
Retórica, escrita
e autoria na escola

Luiz Antonio Ferreira


organizador

2018
Retórica, escrita e autoria na escola
© 2018
Editora Edgard
Artimanhas Blücher
do dizer: Ltda.
retórica, oratória e eloquência
© 2017
Revisão
Editora Técnica:
Edgard Blücher Ltda.
Nathalia Melati
Revisão Técnica:
Diagramação e Capa: Luana Ferraz
Fernando Bertolo
Conselho Editorial:
Conselho Editorial: Ana Cristina Carmelino – UNIFESP
Ana Cristina Carmelino - UNIFESP Ana Lúcia Magalhães – FATEC
Ana Lúcia Magalhães - FATEC
Ana Paula Pinto – Universidade Católica de Portugal
Ana Paulo Pinto - Universidade Católica de Portugual
Cândido Oliveira Martins – Universidade Católica de Portugal
Cândido Oliveira Martins - Universidade Católica de Portugual
Eliana Magrini Fochi – FATEC
Eliana Magrini Fochi - FATEC
João Hilton Sayeg-Siqueira – PUC-SP
João Hilton Sayeg-Siqueira - PUC-SP
Lia Cupertino Duarte Albino – FATEC
Lia Cupertino Duarte Albino - FATEC
Luiz Antonio Ferreira – PUC-SP
Luiz Antonio Ferreira - PUC-SP
Maria Cecília de Miranda N. Coelho – UFMG
Maria Cecília de Miranda N. Coelho - UFMG
Maria Flávia Figueiredo – UNIFRAN
Maria Flávia Figueiredo - UNIFRAN
Orlando R. Kelm - Universidade do Texas Orlando R. Kelm – Universidade do Texas

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Angélica Ilacqua CRB-8/7057
Angélica Ilacqua CRB-8/7057
Artimanhas do dizer : retórica, oratória e eloquência
Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4° andar [livro eletrônico] / organizado por Luiz Antonio
04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Retórica, escrita-–eSão
Ferreira. autoria
Paulona: escola / Luiz
Blucher, Antonio Ferreira (org.).
2017.
Tel 55 11 3078-5366 3--Mb
São; ePUB
Paulo : Blucher, 2018.
[email protected] 196 p.
Bibliografia
www.blucher.com.br
Bibliografia
ISBN 978-85-8039-288-3 (e-book)
ISBN
ISBN978-85-8039-287-6
978-85-8039-367-5(impresso)
(e-book)
Open Access
ISBN 978-85-8039-365-1 (impresso)
Segundo Novo Acordo Ortográfico, conforme 5. ed.
1. Linguística 2. Análise do discurso 3. Oratória
do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa,
4. Fala em público I. Ferreira, Luiz Antonio
Academia Brasileira de Letras, março de 2009. 1. Retórica 2. Retórica - Aspectos sociais 3. Autoria
4. Escrita 5. Educação I. Ferreira, Luiz Antonio
17-1482 CDD 410
18-1989 CDD 808
É proibida a reprodução total ou parcial por
Índice para catálogo sistemático:
quaisquer meios, sem autorização escrita da Editora.
1. Linguística
Índices para catálogo sistemático:
Todos os direitos reservados pela Editora 1. Retórica
Edgard Blücher Ltda.
Prefácio

A retórica, mesmo em suas formas mais primitivas, tem sido utilizada como
instrumento, desde que existe a linguagem humana, para transcender a
mera descrição utilitária do que se percebe como realidade. Assim como a
própria humanidade cresceu com a retórica, a escola, central para a formação
e para o crescimento, usa-a retórica mesmo inconscientemente. Os textos que
compõem esse livro, de autoria dos pesquisadores do Grupo de Estudos Re-
tóricos e Argumentativos – ERA, exploram a retórica na escola nesse tempo
de grandes transformações em que vivemos.
No artigo de abertura, Aidil Navarro e Fernanda Sbroggio discorrem sobre
perspectivas retórico-argumentativas para o processo de ensino-aprendizagem
de leitura e escrita no ensino básico. No percurso apresentado, as contribuições
da sociorretórica incluem sobretudo dois pontos: a constituição do auditório
pelo professor e a contextualização do espaço comunicativo no trabalho com o
texto. Essas duas ações localizam o momento da escrita ou da leitura, orientam
o processo, fazem surgir compreensões e percepções necessárias ao exercício
e não subtraem do estudante o papel da criação.
Luiz Antonio Ferreira, em seu texto “A dimensão da escrita na escola”,
considera a escrita como construção simbólica, traduzida em um ato discursivo
(ato retórico) exercido em contexto determinado temporal e espacialmente
por um orador que deve se manifestar sobre questões ligadas ao ser e ao estar
no mundo. Lembra que computador e recursos tecnológicos da contempora-
neidade podem ajudar bastante a invenção-inventário, mas não a construção
do ethos, logos e pathos associados à invenção-criação.
A abordagem de “Teoria social da retórica”, por João Hilton Sayeg-Siqueira,
lembra que o discurso é planejado para levar determinado auditório, universal,
particular ou de especialistas, a adquirir empatia com as emoções expostas
pelo orador e por suas premissas, estimulando-o, se necessário, a reforçar ou
alterar o discurso-opinião para conferir uma condição de verdade. Os gêne-
ros atualizam uma ação social, pela realização individual de uma tipificação
comunitária.
A abordagem de Ricardo Ugeda Mesquita e Rosíris Flocco tem foco no
processo e procura endereçar problemas no ensino de produção textual no
Brasil. Os autores apontam como problemas centrais a insistência de professo-
res em considerar apenas o resultado final (ou produto) da escrita do aluno, o
predomínio do ensino de regras gramaticais descontextualizadas, entre outras
perspectivas críticas sempre consideradas como “problemas”. Segundo os auto-
res, o ensino da produção textual deve ter foco retórico no processo da escrita.
O capítulo que trata de “Autoria e retórica em produções escritas na escola”,
de autoria de Elioenai Piovezan e Roberta Piovezan, focaliza o aluno como autor,
que revisa por iniciativa própria seu texto, com ao menos alguma qualidade e
com unidade de sentido. O aluno-autor é também um negociador de distâncias,
que interage com os colegas para verificar a eficácia de seu discurso, atento à
presença de outras vozes que contribuem para a identificação de polifonia e
possibilidades criativas que a escola pode oferecer com certa primazia.
Luanny Vidal e Luisiana Moura iniciam seu artigo mencionando a resistência
dos alunos ao trabalho de produção textual e a dificuldade sempre presente na
transposição das ideias e pensamentos para o texto escrito com intencionali-
dade, articulação e clareza. Entendem que é possível trabalhar com contextos
significativos para o aluno-autor, considerando que, ao proporcionar melhor
compreensão dos meandros da escrita, a abordagem sociorretórica motiva
por meio do sistema retórico e torna possível vencer o desafio de planejar e
articular textos persuasivos sobre situações do contexto social.
A sociorretórica é também tema do artigo de Joelma Ribeiro e Márcia
Pituba, que comentam o acesso crescente à internet como motivo de se ter
atingido diretamente as formas de ler e escrever, pois traz um universo cheio
de imagens, letras, sons e códigos. Ainda, há uma diversidade de gêneros tex-
tuais digitais que convidam a participar como leitores e escritores. A partir da
construção de um repertório (conhecimento prévio), aliado à memória (tanto
individual quanto coletiva), a intertextualidade e a retórica (particularmente
a inventio), é exemplificado o uso de um meme como ponto de partida para
o aperfeiçoamento da leitura e da produção de textos argumentativos a ser
utilizado no ensino.
Andreia Honório e Carla Prada abordam os processos simbólicos como
elementos produtores de sentidos pelo estudo do gênero narrativo multimodal
presente em tiras, sequências de quadrinhos que geralmente fazem crítica aos
valores sociais. As tiras são mostradas como instrumentos de leitura e produção
textual em âmbito escolar com enfoque na inventio.
A insuficiência de textos voltados especificamente a elementos linguísti-
cos é o tema do trabalho de Leonardo Tavares e Mariano Magri. Segundo os
autores, tal ausência deixa um vácuo na consciência do autor, caso despreze os
elementos que fogem ao sistema da língua, como, entre outros, o contexto, os
costumes, as crenças, as figuras de linguagem, muito utilizadas no cotidiano.
Embora seja importante discutir os erros que os textos apresentam, participar
ativamente na construção de cada parte do texto é uma experiência ainda mais
enriquecedora.
Nathalia Melati traz a análise de uma prova de redação do Enem. Explica
que para serem bem sucedidos nessa redação, os estudantes devem compreender
as características essenciais de um texto, inclusive de uma produção argumen-
tativa. Comenta que lhes falta, no entanto, a compreensão do que diferencia
a escrita de uma redação excelente de uma apenas regular, em perspectiva
avaliativa e, sobretudo, persuasiva. Compreender aquilo que é esperado dos
alunos durante a prova de redação do Enem e quem seria seu auditório permite
uma assimilação do motivo que há por trás da produção textual.
A produção de artigos acadêmicos pode ser ensinada desde os primeiros
semestres de um curso universitário e proporciona aos alunos excelentes
oportunidades de formação, conforme mostra Ana Lúcia Magalhães. A escrita
acadêmica competente inclui um conjunto de habilidades e posicionamentos
como planejamento, estabelecimento de metas, resolução de problemas e ava-
liação criteriosa. O maior desafio dos professores tem sido motivar os alunos,
que tendem a considerar tal tipo de produção escolar como tarefa árdua e,
principalmente em cursos tecnológicos, separada da realidade cotidiana de
um profissional.
Éber Santos e Tiago Mattos abordam a escrita biográfica no ensino superior.
Biografia é a apreciação da vida e vidas não são estáticas, tampouco o espaço
biográfico. Trata-se, portanto, de um eu-para-si não constitutivo da forma, mas
da relação que cada um de nós tem para com os outros, contemporâneos que
participam conosco do dia a dia e integram um grupo de pessoas que vivem
o hoje. E, nisso, há uma característica social fundamental: os costumes. Nas
palavras dos autores: “a boa glória junto aos contemporâneos, o homem bom
e honesto e não a glória histórica junto aos descendentes”.
Com foco na produção de texto, portanto, o livro busca a sociorretórica e a
argumentação como norteadoras. Assim, destaca a importância do auditório,
evidencia os conceitos retóricos de ethos, pathos e logos, enfatiza as partes do
discurso e ocupa-se dos vários aspectos capazes de auxiliar na leitura e autoria
desde o ensino básico até o nível superior.

Ana Lúcia Magalhães


Sumário Desvendando os memes:
uma proposta para o ensino
de leitura e escrita
O processo de ensino- Joelma Batista dos Santos Ribeiro
aprendizagem de leitura Márcia Silva Pituba Freitas............ 97
e de escrita sob o viés
retórico-argumentativo Reflexões sobre a relação palavra
Aidil Soares Navarro imagem em processos de leitura
Fernanda Martin Sbroggio............ 13 e produção escrita: uma proposta
com tiras da Turma do Xaxado
A dimensão da escrita na escola Andreia Honório da Cunha
Luiz Antonio Ferreira ................... 23 Carla Moreira de Paula Prada..... 115

Teoria social da retórica Estratégias sociorretóricas


João Hilton Sayeg-Siqueira........... 37 na construção de textos
argumentativos
O ensino de produção textual Leonardo Tavares
com foco no processo: a versão Mariano Magri............................. 129
textual da ação retórica
Ricardo Ugeda Mesquita Motivos: uma análise da
Rosíris Flocco................................. 51 prova de redação do Enem
Nathalia Melati............................ 145
Autoria e retórica em
produções escritas na escola Ensino da produção de
Elioenai dos Santos Piovezan artigo acadêmico: uma
Roberta de Souza Piovezan........... 63 abordagem sociorretórica
Ana Lúcia Magalhães................... 159
Sociorretórica: da leitura
e da escrita para além Biografismo e retórica: a escrita
do contexto escolar biográfica no ensino superior
Luanny Vidal Éber José dos Santos
Luisiana Ferreira Moura................ 81 Tiago Ramos e Mattos................. 179
O processo de ensino-
aprendizagem de leitura
e de escrita sob o viés
retórico-argumentativo

Aidil Soares Navarro1


Fernanda Martin Sbroggio2

E ste capítulo discorre sobre perspectivas retórico-argumentativas para o


processo de ensino-aprendizagem de leitura e escrita no ensino básico.
Por ser a escola, e mais precisamente a sala de aula, um espaço comunicativo,
no qual as relações são mediadas pela linguagem, as estratégias discursivas
e persuasivas postuladas pela retórica podem contribuir para elucidar como
se dá a construção desses processos discursivamente.
A retórica aristotélica tinha como foco o emprego da linguagem fa-
lada, perante uma multidão reunida em praça pública, a fim de obter a
adesão desses espíritos a uma determinada tese, e dessa forma utilizava-se
do discurso oral, servindo-se especialmente dos recursos da eloquência
e da oratória. A Nova Retórica, de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014),
debruça-se sobre a linguagem escrita, preocupando-se mais diretamente
com a estrutura da argumentação escrita. Ambas fundamentam as teorias
sociorretóricas, de Charles Bazerman (2015), sobre leitura e escrita como
atividades sociais situadas, em que a compreensão de gênero é essencial à
construção da situação comunicativa pelo escritor e pelo leitor.

1 Mestre em Língua Portuguesa pela PUC-SP, possui graduação em pedagoga, licenciada em


História e especialista em Psicopedagogia Institucional e Clinica e Direito Educacional pela Universidade
Iguacú, especialista em Metodologia do Ensino Superior pela Fundação Santo André; Membro do Grupo
ERA.
2 Mestre em Língua Portuguesa pela PUC-SP, possui graduação em Letras pela Unesp de São
José do Rio Preto (2001) e Pedagogia pela Faculdade Soares de Oliveira de Barretos (2011); Membro do
Grupo ERA. 13
O ensino da leitura e da escrita, por exigir decisões cognitivas comple-
xas e uma série de ações de linguagem, é por si só uma tarefa árdua, mas
se revela ainda mais desafiadora quando se consideram todas as demais
variáveis nela envolvidas, que compreendem desde a estrutura da escola,
os materiais didáticos ofertados até a heterogeneidade social e formativa da
comunidade escolar brasileira. Nesse contexto, uma abordagem que pre-
tendesse dar conta de todas essas nuances ou que se propusesse a oferecer
receitas milagrosas para execução dessa tarefa poderia revelar-se ingênua
e até presunçosa. Por isso, este capítulo apresenta-se como um convite à
reflexão sobre o processo de ensino-aprendizagem de leitura e de escrita
no ensino básico, com enfoque retórico sobre o auditório e o gênero como
conceitos fundamentais para o desenvolvimento do protagonismo do leitor
e do escritor.

Atenuação do medo e desenvolvimento


do protagonismo do aluno
“Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu” (POM-
PÉIA, 1997, p. 30). Essa passagem de O Ateneu, de Raul Pompéia, coloca,
oportunamente, a escola como um microcosmo da sociedade, onde estão
imbricadas diferenças de ordem religiosa, social e cultural que tornam esse
espaço um terreno fértil para os conflitos, divergências de opiniões e de
interesses que, em uma comunidade civilizada, são negociados pela lingua-
gem. Essas idiossincrasias interferem no trabalho pedagógico na medida
em que influenciam os objetivos de aprendizagem dos alunos e colocam
o professor diante do desafio de conciliá-los e de motivar os sujeitos. A
escola é um contexto retórico por excelência, por isso as estratégias dis-
cursivo-argumentativas postuladas por esta perspectiva discursiva podem
contribuir para a negociação das distâncias que se formam nesse ambiente.
A retórica foi conceituada por Aristóteles como “a faculdade de ver
teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar persuasão” (s/d
[384-322 a.C.], p. 33), isto é, é a arte de persuadir pelo discurso, levando as
pessoas a aderirem a determinada tese. Na perspectiva de Reboul (1998, p.
24), a retórica diz respeito à “arte de encontrar meios de persuasão que cada
caso comporta”, trata-se do uso estratégico do discurso. Para Meyer (2007,
p. 25), “a retórica é a negociação da diferença entre os indivíduos sobre uma
14 questão dada”. Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014, p. 6) preocupam-se espe-
O processo de ensino-aprendizagem de leitura e
de escrita sob o viés retórico-argumentativo

cialmente com a maneira pela qual se efetua a comunicação com o auditório,


já que, para eles, “é em função de um auditório que qualquer argumentação
se desenvolve”. Como se vê, a retórica não se preocupa em oferecer definições
abstratas sobre o código, mas sim em instrumentalizar o usuário da língua de
recursos estratégico-argumentativos a fim de que este possa usar as palavras
para alcançar seus objetivos em situações concretas de comunicação.
A escrita surgiu, segundo Fischer (2006), aproximadamente em 440 a.C.
na Mesopotâmia a partir da necessidade de preservar acordos comerciais,
valores de mercadorias, enfim, para atender às demandas práticas da so-
ciedade. Com ela, nasceu também a leitura, que inicialmente se restringia
à declamação e à obtenção de informações visuais. Desde então, a relação
entre leitura e escrita vem se transformando e modificando a sociedade, que
hoje é orientada pelo letramento, cujo principal produto de comunicação é o
texto. Mas, apesar de essa relação remontar ao início da civilização humana
e de a sociedade estar exposta a inúmeros tipos de texto em circulação, o
processo de aprendizagem de leitura e escrita sistematizadas ainda desafia
professores, alunos e comunidade científica.
Não se pode negar que a escola tem progredido muito em relação à
compreensão desses processos e que procura diariamente lançar mão de
pedagogias capazes de tornar o ensino de leitura e escrita mais eficiente. No
entanto, apesar de todos os esforços, a conquista da proficiência em leitura
e escrita é ainda um processo nebuloso, pelos quais os alunos parecem não
se sentir atraídos, o que acaba se evidenciando, entre outros indicadores,
pelos baixos índices apontados pelas avaliações do ensino básico.
De modo geral, os estudantes demonstram ainda manter com a leitura
uma relação muito pautada na decodificação, o que Leffa (1996) chamou
de “leitura extração-de-significado”, cuja direção é do texto para o leitor, e
o propósito é encontrar o sentido do texto, que possui significado “preciso,
exato e completo” (LEFFA, 1996, p. 12). A leitura realizada dessa forma
reserva ao leitor um lugar de subordinação ao texto, cujo sentido é extraído
palavra por palavra e a compreensão global do texto, assim, a construção do
sentido por meio da atuação do leitor não ocorrem. Nesse modelo, a ênfase
acaba residindo em aspectos semânticos obtidos a partir da decodificação
da língua escrita e da identificação de informações.
Algumas abordagens que buscam explicar o desapreço dos estudantes pelas
atividades de produção textual referem-se às situações de escrita altamente
monitoradas, que, com um percurso previamente definido, atribuem ao pro-
cesso certa artificialidade e relegam aos alunos o papel de mero cumpridor
de tarefas, inviabilizando sua participação consciente na construção do texto. 15
Isso acontece, por exemplo, quando são apresentadas propostas de produção
textual com temas distantes da realidade do auditório, ou a partir de gêneros
trabalhados apenas como um conjunto de características pré-estabelecidas.
Uma tarefa que se apresenta artificial ou distante do sujeito tem uma resposta
também artificial, pois o aluno tende a não se envolver e apenas cumprir os
requisitos observados na avaliação, que em geral questionam aspectos for-
mais do texto. Por outro lado, atividades de escrita muito livres de orientação
causam igual desconforto, pois deixam os estudantes sem saber que direção
tomar. Em ambas as situações, as sensações geradas são o medo e a aversão.
Esse cenário aponta para a necessidade de que o aluno assuma o pro-
tagonismo no processo de aprendizagem de leitura e escrita, de modo que
ele consiga construir o sentido do texto a partir da mobilização das suas
experiências e se enxergar como autor da sua produção textual. Para isso,
é importante o professor ter em mente o auditório com o qual está traba-
lhando, a fim de conseguir atingi-lo eficazmente e oferecer a ele situações
contextualizadas de leitura e produção textual. Leitura e escrita envolvem,
sobretudo, criatividade e protagonismo.
Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014, p. 22) afirmam que o “auditório é
o conjunto daqueles que o orador deseja influenciar com a sua argumen-
tação”. Cabe ao orador pensar nos indivíduos que pretende persuadir a fim
de que o auditório presumido seja o mais próximo possível do auditório.
A questão retórica é condição básica para o início de qualquer discurso,
por isso precisa ser apresentada em função desse auditório de modo que
ele se sinta motivado a se envolver e a elaborar uma construção discursiva
capaz de intervir nessa questão. De acordo com Reboul (1998, p. 91), “a
eficácia do ensino de matemática não se demonstra matematicamente”, o
que no contexto em que foi empregado ilustra a sua concepção de que entre
a demonstração científica e as provas há todo um domínio da argumenta-
ção. Esse é um dos pontos em que que se ancora essa reflexão, o exercício
docente pode tornar-se ainda mais frutífero à medida que o professor focar
no auditório e na organização do seu discurso em função dele.
A reflexão do professor sobre a composição do seu auditório permite
a ele localizar o contexto sócio-histórico em que esses indivíduos estão
inseridos. Neste momento, emerge o segundo ponto destas considerações: o
contexto comunicativo no qual se ancoram as atividades de leitura e escrita.
No ensino de leitura e escrita, o texto é elemento central e sua concei-
tuação pelo interacionismo sociodiscursivo de Bronckart (2012) é o ponto
de partida para reflexões aqui propostas sobre o papel do gênero textual na
16 contextualização do ensino de leitura e escrita. De acordo com o autor, o
O processo de ensino-aprendizagem de leitura e
de escrita sob o viés retórico-argumentativo

texto, em uma primeira acepção, é “toda unidade de produção de lingua-


gem que veicula uma mensagem linguisticamente organizada e que tende
a produzir um efeito de coerência sobre o destinatário” (BRONCKART,
2012, p. 71), ou seja, os textos são produto da atividade humana, “articu-
lados às necessidades, aos interesses e às condições de funcionamento das
formações sociais no seio das quais são produzidos” (BRONCKART, 2012,
p. 72). Como os contextos sociais são muito diversos, no âmbito de cada
comunidade surgem diferentes formas de construção dos textos, organizados
por meio da linguagem em função do contexto comunicativo, do propósito
da comunicação e do sujeito ao qual ela se destina (auditório). Bronckart
(2012) chamou essa variedade textos de “espécies de textos”, Bakhtin (1997),
de gêneros textuais e Bazerman (2015), de contexto comunicativo, que, para
ele, é essencial para o processo de ensino aprendizagem de leitura e escrita.
Os gêneros textuais evidenciam o lugar sócio-histório a partir do qual
a escrita e a leitura se desenvolvem e localizam o produtor do texto assim
como seu auditório. Como os textos escritos não possuem a interação
instantânea da comunicação verbal, pois viajam no tempo e no espaço, a
leitura de qualquer texto, para ser significativa, precisa, antes, ser situada,
ou seja, os elementos que dela participam precisam ser conhecidos. Essa
contextualização é feita pelos gêneros, que para além da forma e do con-
teúdo, veiculam informações implícitas essenciais ao entendimento do
texto. De acordo com Bazerman (2015), os gêneros

corporificam compreensões de situações, relações, posições,


humores, estratégias, recursos apropriados, metas e muitos
outros elementos que definem a atividade e formam meios de
realização. Os gêneros são modos de fazer as coisas – e como
tais corporificam o que se deve fazer, trazendo marcas do tempo
e lugar no qual se realizam tais coisas, bem como os motivos e
ações realizadas nesses lugares. (BAZERMAN, 2015, p. 34-35).

Essa perspectiva aponta para o contexto comunicativo como fator


essencial ao trabalho com leitura e produção textual, pois estar em um
espaço socialmente reconhecível dá ao aluno o conforto necessário para
participar mais ativamente de ambos os processos.
Piovezan (2017, p. 19) considera que “atividades de produção escrita,
quando realizadas de forma contextualizada, com propósitos claros e com
procedimentos de autoria do aluno” têm como resultado a atenuação,
ou até anulação, do medo e favorecem o aprimoramento da escrita, pois
um ambiente conhecido ajuda nesse enfrentamento, dá objetivo para a 17
construção do texto, determina o auditório e suas prováveis expectativas e
possibilita a constituição de um ethos compatível com a situação comuni-
cativa que se apresenta. Nesse sentido, é um dos desafios do trabalho com
a escrita reproduzir situações de uso da linguagem nas quais os alunos se
reconheçam social e historicamente e assumam o seu protagonismo. O
aluno precisa se sentir convidado para a discussão, precisa acreditar que
a sua atuação retórica pode interferir na situação inicial, mas para isso ele
deve estar em um ambiente confortável, conhecido, no qual se sinta seguro.
Nessa mesma direção encontra-se o trabalho com a leitura, que é atividade
investigativa, da qual o leitor precisa participar ativamente, e que envolve,
não apenas o código escrito, mas uma série de informações externas a ele
e que são extremamente significativas, como a folha de papel utilizada, a
disposição das palavras na página, o tipo de letra, enfim, informações que
contribuem para a compreensão do propósito do texto, do seu escritor e
do destinatário. Como afirma Bazerman (2015, p. 18), a “interpretação
se funda não somente na decifração do código, mas também na constru-
ção do contexto de uso dentro do qual o enunciado foi significativo”. A
identificação do gênero permite ao aluno participar mais ativamente da
leitura, pois as informações oferecidas por esse contexto mobilizam a sua
atenção, possibilitam um contato mais próximo com o texto, ativam os
conhecimentos prévios e suscitam lembranças.
De acordo com Trevisan (1992), a atividade de leitura é apenas o ponto
de partida na busca pela compreensão, pois o sentido não está no texto.
O leitor e seus conhecimentos prévios têm papel essencial na construção
de sentido e coerência de um texto, que só são alcançados à medida que o
leitor ativa os seus conhecimentos armazenados e realiza inferências. Nessa
mesma página, Kleiman (1989) aponta dois caminhos que conduzem à
compreensão na leitura e que também envolvem o trabalho com o contexto
comunicativo: a ativação do conhecimento prévio referente ao assunto do
texto e o estabelecimento de objetivos e propósitos claros para a leitura. Para
ela, a interação dos diversos níveis de conhecimento prévio - linguístico,
textual e de mundo – é o que faz da leitura um processo interativo e que
permite ao leitor a construção do sentido do texto. De igual importância
é o estabelecimento de objetivos e propósitos claros, já que a capacidade
de processamento e de memória é significativamente ampliada quando é
fornecido um objetivo a uma tarefa. O estabelecimento de objetivos fa-
vorece a formulação de hipóteses, ou seja, o leitor ativo vai formulando e
testando hipóteses durante a leitura, o que corrobora o entendimento de
18 que o texto não é um produto acabado que o leitor recebe passivamente,
O processo de ensino-aprendizagem de leitura e
de escrita sob o viés retórico-argumentativo

ao contrário, o leitor precisa envolver-se ativamente na construção da


significação e exercer o seu protagonismo.

Considerações finais
A retórica, entre as ciências que estudam o discurso, possui um caráter
prático e ajuda a compreender como as palavras podem ser usadas mais
eficazmente para que os propósitos comunicativos sejam alcançados. No
percurso aqui apresentado, em que se buscou refletir sobre o processo de
ensino-aprendizagem de escrita e de leitura no contexto escolar do ensino
básico, as contribuições da sociorretóricas fizeram emergir dois pontos prin-
cipais que podem contribuir para auxiliar o professor a vencer o desafio de
motivar os alunos e torná-los protagonistas nesse processo: a constituição
do auditório pelo professor e a contextualização do espaço comunicativo
como ponto de partida no trabalho com o texto. Essas duas ações oferecem
conforto ao aluno e atenuam seu medo porque localizam o momento da
escrita ou da leitura, orientam o processo, fazem surgir compreensões e
percepções necessárias ao exercício e não roubam dele o papel da criação.

19
Referências
ARISTÓTELES [384-322 a.C]. Arte retórica e arte poética. Trad. Antônio
Pinto de Carvalho. 14 ed. São Paulo; Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
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20
A dimensão da escrita na escola

Luiz Antonio Ferreira1

U ma pergunta secular revolve-se no interior de cada educador: como


ensinar nossos alunos a escrever eficientemente? Ao longo do tempo,
estudiosos se debatem para bem posicionar, em língua, os impulsos criativos
ou a falta de inspiração dos educandos. Todos, porém, concordam que a escrita
é um poderoso instrumento de demonstração do pensamento, um caminho
para demarcação de identidades, uma válvula encantadora para ressaltar os
sentimentos mais recônditos, demonstrar nossas crenças e imprimir verossi-
milhança ou verdades no discurso. Concordam, também, que escrever é um
exercício profundo de humanidade, de esforço de interação e demonstração
de nossa inequívoca capacidade de operar com a linguagem verbal.
Na gênese da escrita, então, há uma premissa que precisa ser levada em
conta em qualquer atividade escolar sobre o ato de registrarmo-nos por meio
da língua: somos seres retóricos. Essa máxima tem implicações profundas com
todo e qualquer projeto pedagógico que se apresente: é preciso, sobretudo,
para praticar nossos desejos de bem dizer e de movimentar um auditório ra-
cional ou passionalmente, entender como um texto opera num determinado
contexto retórico para bem cumprir a intencionalidade do autor. Escrever,
nesse aspecto, então, é dominar os efeitos que um texto pode provocar num
auditório. Essa proposição fundamental – que inscreve o outro como figura

1 Professor doutor, coordenador do Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua Portuguesa


da PUC-SP e coordenador do Grupo ERA, que possui sede na PUC-SP. 23
primordial do discurso – poderia encabeçar qualquer manual de escrita es-
colar, pois daria ao estudante a dimensão necessária do alcance de seu dizer
e o alertaria para os princípios fundamentais que dirigem o ato de escrever:
não há escrita ou qualquer atividade comunicativa sem que se leve em conta
três fatores elencados por Aristóteles (384-322 a.C.) em Arte Retórica (s/d): o
logos, o pathos e o ethos. O logos é o discurso em si; o pathos representa o poder
do orador de, por meio de seu discurso, despertar emoções em seu auditório;
o ethos é a imagem, verdadeira ou não, que o orador constrói de si no intuito
de persuadir seu auditório. É importante que, no ato de produzir textos na
escola, o autor-aluno entenda a dimensão dessa escrita e compreenda que
existe, como afirma Burk (1968), um motivo intrinsecamente retórico situado
no uso persuasivo da linguagem e que o valer-se das palavras é propriedade
de “agentes” humanos para formar atitudes ou para induzir ações em outros
agentes também humanos.
Neste artigo, consideramos que a escrita é uma construção simbólica,
traduzida em um ato discursivo (também chamado ato retórico) exercido
em um contexto, determinado temporal e espacialmente, por um orador
que, colocado diante de um auditório, precisa manifestar-se sobre questões
que envolvem problemas ligados ao ser e ao estar no mundo. Consideramos,
ainda, a importância da figura do orador na tessitura textual e os componen-
tes fundamentais para a constituição das formas de representar seu caráter
no discurso (ethos). Ressalte-se que todos as reflexões aqui feitas merecerão
aprofundamento teórico e prático nos capítulos constantes deste livro, escritos
por meus colegas, todos empenhados na desmistificação da escrita na escola
e na viabilização pedagógica dos aspectos teóricos propiciados pela retórica
antiga, pela Nova Retórica e pela sociorretórica.

Escrever como ação sobre o mundo


Escrever é caminhar para a consecução de um ato retórico que, por sua
natureza, demonstra a capacidade do escritor de envolver seu auditório no
tempo e no espaço para provocar reações positivas ou negativas. Um auditório
se move positivamente quando o autor prova competência para desenvolver
um tema com coerência, elegância, concisão e demonstração de conhecimento
seguro do assunto a ser tratado. Se o propósito é respeitar o auditório, escre-
ver é também e fundamentalmente um exercício de verificação contínua da
clareza que se pretende imprimir a um texto, do tom e do ritmo que melhor
A dimensão da escrita na escola

se conforma às expectativas do leitor ou do ouvinte para expandir o grau de


aceitabilidade do que se objetiva dizer. Escrever é, em outra perspectiva, ati-
vação dinâmica do cérebro para vigiar, durante todo o percurso de criação,
os cuidados exigidos pelo código: a pertinência do uso dos termos e índices
formais que estruturam a sequência linguística e promovem a adequada co-
nexão entre as divisões que estruturam o texto. Escrever, porém, não é apenas
utilizar o código abstratamente. É, sim, valer-se da língua como uma atividade,
como elemento físico que dá suporte à interação. Para Bazerman (2015), o
código “é um recurso a ser empregado em situações concretas com objetivos
e atividades individuais e coletivos, seu objeto primeiro (BAZERMAN, 2015,
p. 22). Escrever é, ainda, pela exteriorização inequívoca de conhecimento das
especificidades inerentes à tipologia do texto criado, para bem além de con-
tornar necessariamente as dificuldades da sintaxe, utilizar expressivamente o
léxico em situações concretas, preocupar-se com a marcação singular de uma
personalidade estilística e, sobretudo, ter consciência de que esses fatores de
textualidade complementam necessariamente o ato retórico bem-sucedido.
Escrever, enfim, é um movimento estratégico de mostrar-se para o outro.

Escrever na escola
Quando o auditório ganha relevo, o ato de criar um texto concentra toda
a atividade do orador e regula a tensividade que se imprime ao processo de
interação e ao curso da ação pretendida. Dar um texto ao mundo é, nessa
perspectiva, praticar a arte de utilização de recursos linguísticos, conceituais,
estratégicos e criativos com propósitos bem definidos e precipuamente é a
prática de um gesto de interação com o outro em um contexto instaurado.
Para dotar o texto de significação expressiva e de fato relevante para o
auditório, é fundamental, para bem além de configurá-lo fisicamente por
meio da língua, revelar com nitidez, no artefato verbal, um propósito que
se cumpre de modo adequado em situações de uso social efetivo. Essa é,
cremos, uma afirmação que mereceria reflexão aprofundada na escola:
toda escrita precisa ter um propósito bem definido e claro para autores
e oradores. Para externar os propósitos a que se destina, a escrita requer
capacidade do orador para recriar, pelo uso da língua, pelo entendimento
e pela análise, o que o autor processa cognitivamente, mas, principalmente,
solicita o encontro de um bom modo de “atender às condições para fazer
o que tem a fazer” (BAZERMAN, 2015, p. 107). 25
Uma das vocações da escrita é tornar-se inteligível. Esse princípio sempre
norteou o ensino de produção escrita na escola e é positivo em si mesmo. A
natureza dinâmica das situações sociais, porém, exige que a legibilidade se
traduza em desdobramentos intelectuais que revelem envolvimento efetivo
de um autor com seu auditório no processo de intervenção simbólica que
se dá pela escrita. A escola, então, ao voltar-se para a eficácia da produção,
pode ressaltar que escrever, seja onde e como for, é precipuamente um exer-
cício de retórica: arte prática e reflexiva que solicita coordenação acurada do
pensamento para traduzir intenções e objetivos do orador. Quando assim
vista, as metas da escrita envolvem orador e auditório na exteriorização de
pensamentos que reforçam a racionalidade do existir, a amplificação das
percepções de si e dos outros no imenso universo em que se revolvem os
valores, as preferências e paixões humanas. Se há propósitos, há uma exi-
gência que se impõe e, se assim é, a escrita atua como resposta humana a
uma situação proposta ao orador e ao auditório.
Dentre as múltiplas formas implicadas no ato de escrever, há um momento
processual que envolve o aprender e a análise de reações à produção apresentada.
Por isso, o ato de escrever impõe um período de aprendizagem significativa
de liberdade e de aprisionamento do ser que escreve diante das trincheiras da
própria linguagem e das situações sociais. A escola pode auxiliar nessa missão
primeira e fundamental: se há um processo natural que aprimora e regula o ser
que se mostra por meio de recursos da linguagem, escrever na escola poderia
ser, sobretudo, um exercício de autoria. Há alguém (aqui denominado orador
ou autor-aluno) que exercita as diversas funções exercidas por um texto para,
assim, criá-lo e aprimorá-lo em função de objetivos plenamente definidos. A
prática da escrita na escola, em resumo, poderia ser vista como a consecução
de um ato retórico que exige engenho e arte do orador para encontrar, na
constituição do discurso, a índole das premissas necessárias para obter eficácia.
Nesse sentido, a decisão de envolver-se num movimento dialético-discursivo
(e seria interessante que os alunos-autores assim se sentissem no processo de
escrita) requer, além do natural esforço cognitivo e afetivo, a reflexão acurada
sobre a utilização dos elementos do sistema retórico: invenção (inventio),
disposição (dispositio), elocução (elocutio), memória (memoria) e ação (actio).
Primeiramente, considere-se a inventio (quid dicat), ligada etimologicamente a
“achar” (invenire) e “julgar” (iudicare). É importante refletir que não basta ter
propósitos definidos e capacidade de bem gerir a língua em situações sociais
diversas. É preciso, também, levar em conta o aspecto passional que envolve o
auditório no instante da actio (aqui, didaticamente considerado como o produto
26 final de um texto e a leitura ou apresentação para um auditório), uma vez que
A dimensão da escrita na escola

não se pode negar a existência de valores e de uma inevitável hierarquia do


preferível em cada um dos leitores ou ouvintes. É na inventio que nasce o futuro
texto e é nela que o outro se presentifica como causa indelével do escrever.
Essa preocupação primeira envolve preocupações outras, de natureza
temática, que precisam consolidar-se, depois e afirmativamente, na dispositio
(momento em que o orador coloca cada um dos propósitos da escrita em seu
devido lugar). Esse exercício de imaginar e de dar atenção à ordem e eficácia
do texto demanda encontrar meios de alterar opiniões, de perscrutar no au-
ditório regiões que vão da ignorância à dúvida e, dela, à certeza que leva ao
agradar, ao comover, ao ensinar, pois, sem deixar de levar em conta que, seja
qual for a natureza da produção, há um conselho gritando ao final, fortemente
recomendado por Aristóteles em Retórica a Alexandre: aquele que profere
um discurso de persuasão precisa deixar claro que as causas que defende
são justas, legais, apropriadas, honrosas, prazerosas, exequíveis e necessárias
(ARISTÓTELES, 2012). Nesse sentido, o exercício da inventio requer três
posturas oratórias muito necessárias e primordiais: o orador responsabiliza-se
pelo que diz, pontua o seu dizer pelos conhecimentos prováveis que possui do
auditório e é em função dele que irá desenvolver sua argumentação. Produzir
textos, nessa perspectiva, é um manifestar interativo e pragmático que, com
o respeito exigido por cada auditório, expõe, dimensiona e mostra possíveis
perspectivas de observar as questões humanas. As demais partes do sistema
retórico ligam-se estreitamente à invenção porque é na prática de criar o dis-
curso que se encontram, para qualquer questão, os meios de prova.

Ato retórico e argumentação na escola


É preciso acentuar uma dificuldade inerente ao processo de escrita na
escola: por mais que tente se aproximar da realidade, escrever em bancos
escolares é sempre um artifício pedagógico. Há, entretanto, meios realísticos
de contornar essa artificialidade natural, pois, ao assumir a autoria, o orador
atento analisa e leva em conta o contexto retórico em que atua. Por contexto
retórico entendemos o conjunto de fatores temporais, históricos, culturais,
sociais etc. que exercem influência no ato de produção e de recepção dos
discursos (FERREIRA, 2010). Ao escrever, o autor-aluno pratica um discurso
retórico, aquele que se configura pela intenção de persuadir um auditório que
se encontra diante de uma questão polêmica. O momento primeiro da escrita,
então, leva em conta que praticar a escrita para um auditório específico pauta- 27
se numa concepção de retórica vista como a negociação da distância entre os
homens a propósito de uma questão, de um problema (MEYER, 1998).
Fundamental, então, é considerar que há um propósito do orador e uma
questão que se impõe realística e necessariamente. Por isso, o grau de acei-
tabilidade de um argumento se relaciona de modo objetivo com os valores
e as hierarquias do preferível (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996)
arraigados no auditório e, em função deles, torna-se imperativo, primeiramente,
adequar a fala a esses valores conhecidos para conseguir objetivos persuasivos.
Nesse sentido, reiteramos, analisar previamente a natureza do auditório a quem
se dirige é um exercício muito necessário, pois a prática da inventio pressupõe
duas posturas primordiais: o orador pontua o seu dizer pelos conhecimentos
prováveis do auditório e é em função dele que irá desenvolver sua argumentação.
Sempre e sempre, o orador necessita demonstrar clara e coerentemente o que
julgar plausível para construir o verossímil, o provável que, se bem exposto,
atingirá o acordo pretendido e levará à persuasão. Assim, é importante que
o autor considere que há uma tensividade retórica em cada ato de escrita. A
tensividade é característica da dinâmica da comunicação social, possui graus e,
em maior ou menor proporção, reivindica o entendimento das dimensões dos
conflitos de conceitos, de choques semânticos, de diferentes visões de mundo,
de diferenças ideológicas, de crenças antagônicas. O orador competente, em
princípio, considera a tensividade e exprime-se em consonância com as ideias
do interlocutor, quer para concordar, quer para opor-se às teses do outro. Essa
posição oratória é necessária porque, nesse exercício de influenciar o outro,
reitere-se, é relevante considerar o auditório como início e fim das decisões a
serem tomadas; é necessário levar em conta o presente, o passado e o futuro da
causa que defende, e ainda prestar atenção à aquiescência ou não a princípios
que se ligam à moral, a valores em vigor, a bom-senso, a interesses pessoais e
de grupo, à intensidade das paixões. Por todos esses motivos, o orador, durante
a inventio, aceita ponderar sobre o que é conveniente, justo, legal, útil, nocivo,
vergonhoso, honrável e aceitável para aquele auditório específico e para os
propósitos persuasivos que erigem o texto.
A finalidade precípua de um ato retórico, então, concentra-se na persuasão.
Etimologicamente, a palavra vem de persuadere (per + suadere). Suadere significa
“aconselhar” (não impor) e per equivale a “de modo completo”. Assim, o sentido
de persuadir é levar, habilidosamente e de modo suave, alguém a aceitar um
ponto de vista. Persuadir, em retórica, é considerado gênero e compreende três
espécies: ensinar (docere), comover (movere) e agradar (delectare). A primeira
diz respeito à lógica (mover pela razão, instruir), a segunda à afetividade e a
28 terceira à estética (TRINGALI, 1988). Essas três espécies concentram-se no
A dimensão da escrita na escola

exercitar de dois propósitos didaticamente resumidos para facilitar o pensar:


persuadir (mover pelo coração, pela emoção) e convencer (mover pela razão,
pelas provas de natureza lógica). No interior delas, a terceira (agradar) é ainda
elemento importante, pois determina os aspectos mais artísticos da constru-
ção do texto, embora, por muitos motivos, tenha sido relegada a um plano
secundário na história da retórica contemporânea, mais preocupada com os
aspectos argumentativos do ato de escrever e de falar.
Assim, para que um autor-aluno crie bases para identificar e entender a
situação de escrita, é importante que leve em conta que a interação orador-audi-
tório possui muitas facetas fundamentais, envolve procedimentos de construção,
categorias perceptuais, conhecimentos prévios recebidos ou desenvolvidos na
interação social e, também, burilamento adequado da língua em cada situ-
ação ou propósito. Tais princípios, que nascem na inventio, ordenam, por si,
a categoria dos auditórios e imputam responsabilidade a quem enuncia. Por
isso, o orador, diante de uma situação de conflito, analisa, pondera que um
discurso nunca está sozinho, não é um acontecimento isolado, já que nasce de
outros discursos e aponta para outros, complementa ou opõe-se a outros que
o precederam. Nesse jogo de discursos que se entrecruzam, o orador atua nos
limites de uma área de valores aceitáveis e atribui aos membros do auditório
algumas funções, bastante conhecidas na retórica dos antigos gregos e latinos:

POSIÇÕES DO AUDITÓRIO
atuar como juízes: aqueles que analisam uma causa passada, ponderam
sobre o justo, o legal e sobre o injusto, o ilegal, consideram a ética envolvida
e, a partir da reflexão, condenam ou absolvem.
atuar como assembleia: aqueles que, diante de uma causa que aponta para
o futuro, refletem sobre o útil, o conveniente e sobre o prejudicial, o nocivo.
A partir dessa ponderação, aconselham ou não a tomada de uma decisão.

atuar como espectadores: aqueles que analisam a capacidade do orador


no ato de louvar ou censurar algo ou alguém, no ato de versar sobre um tema
do presente, atual, que causa interesse hoje e agora. Depois do discurso, os
espectadores declaram se gostam ou não, se concordam ou discordam, se acham
belo ou feio o que foi dito, da forma como foi dito, sem que, necessariamente,
precisem tomar uma posição definitiva sobre o que foi exposto, ainda que o
discurso possa ter causado profunda influência no auditório, possa ter posto
em crise os valores vigentes. Discursos dessa natureza ligam ao agradar.
Fonte: Ferreira (2010) 29
Se o autor-aluno estudar previamente a natureza do auditório, começará
um processo de entendimento de como o texto poderá operar em determinadas
circunstâncias e, sobretudo, como poderá transformar, pela argumentação,
uma situação para realizar seus objetivos (BAZERMAN, 2015). Caminhará,
também, para um processo de operações cognitivas necessárias para traba-
lhar mais eficazmente as estratégias, as formas possíveis de desenvolvimento
do conteúdo e de organização do trabalho da escrita. Para Aristóteles (Arte
Retórica, I, III, 1), é a necessidade de adaptar-se aos três tipos de auditório
que confere traços específicos a cada um dos gêneros oratórios (judiciário,
deliberativo – ou político – e epidítico). Adaptar-se é a palavra fundamental
para o autor, posto que não falamos da mesma maneira com todas as pessoas
com quem interagimos. Por isso, os três atos de discursos não são os mesmos.
O discurso judiciário toma como base discursiva um tribunal e, por isso,
acusa ou defende uma ideia para mostrar o que é justo ou injusto na questão
tratada. O uso do gênero deliberativo implica aconselhar ou desaconselhar
uma assembleia para ressaltar o que será útil ou nocivo ao interesse coletivo.
O auditório, diante de discursos pautados nesse gênero, reflete sobre questões
referentes à cidade, à paz ou à guerra, à defesa, ao orçamento ou à legislação,
por exemplo. Quando o gênero escolhido é o epidítico, o orador censura ou
elogia, diante de espectadores, algo ou alguém. O auditório entende que o
orador pretende que se admire ou vilipendie alguém por suas qualidades ou
defeitos, por sua nobreza ou vilania e traz para a memória do auditório o
presente, ainda que, para praticar o gênero epidítico, extraia argumentos do
passado ou do futuro. Esse gênero não implica decisões imediatas do auditório
e é muito utilizado para exaltar ânimos no plano cívico ou patriótico. É o mais
comum nas propagandas e nas pregações religiosas. Todos pretendem dispor
favoravelmente o auditório por meio de argumentos sensatos, aparentemente
sinceros e simpáticos à plateia.
Como um texto opinativo sempre se encontra no espaço da opinião (doxa),
fundamentalmente não discute verdades e certezas, mas, sim, impressões sobre
o mundo, opiniões que precisam ser consideradas, ponderadas e estabeleci-
das no acordo entre orador e auditório. Por isso, o movimento persuasivo
é dialético, uma vez que permite a discussão de valores, de hierarquias, de
preferências e, consubstanciado em discurso, consagra a própria dialética
como objeto material da retórica. Assim sendo, a boa escolha do gênero é
fundamental para a boa realização do ato retórico. O autor-aluno, se bem
assimilar os conceitos que envolvem os gêneros oratórios e a natureza dos
auditórios, poderá se empenhar, em menor ou maior grau, na prática de ob-
30 jetivar seu discurso para persuadir diversos interlocutores. Quando pretende
A dimensão da escrita na escola

que, ao final do discurso, o auditório apenas se manifeste se gosta ou não do


que foi apresentado, poderá valer-se do gênero epidítico. Quando pretende
condenação ou absolvição, que se leve em conta um crime de qualquer na-
tureza e se discuta a dimensão do castigo merecido por alguém que enfrenta
uma situação polêmica, o gênero mais adequado é o judiciário. Se, porém, o
objetivo é o voto, favorável ou contrário a algo ou a alguém, o gênero esco-
lhido é o deliberativo. Nesse caso, o orador irá aconselhar ou desaconselhar
o auditório para que se posicione firmemente sobre um fato futuro.
Para reforçar a intensidade da adesão do auditório, portanto, a relação de
valores com outros valores e de hierarquias com outras da mesma natureza é
interessante levar em conta que o exercício da inventio requer o encontro de
“provas” para bem sedimentar a argumentação pretendida e, sobretudo, sedi-
mentar, discutir sua validade argumentativa. Para Aristóteles (Arte Retórica, I,
II, 3), três espécies constituem provas dependentes do discurso: umas residem
no caráter moral do orador; outras nas disposições criadas nos ouvintes e
outras, no próprio discurso, pelo que ele demonstra ou parece demonstrar.
Neste artigo, que se preocupa sobremaneira com a autoria, trataremos de
modo mais delongado sobre a primeira delas: o ethos.

As três provas retóricas


Como afirmamos na introdução, a reflexão sobre a trilogia retórica (ethos,
pathos e logos) é fundamental para a criação do verossímil e da construção
do discurso persuasivo, pois são considerados por Aristóteles como instru-
mentos do persuadir (pisteis). O logos é de ordem racional. Ethos e phatos
são de ordem afetiva.
O logos corresponde à estrutura argumentativa do texto, é uma proposta
verbalizada como solução para um problema que se instaura em uma de-
terminada instância retórica e, sempre, requer elaboração argumentativa,
proposições e julgamentos capazes de levar o auditório à persuasão. É pela
utilização do espaço discursivo que o orador pratica as estratégias persuasivas
adequadas para impressionar positivamente um auditório ou outro e demons-
trar, de modo explícito ou não, pela linguagem, sua capacidade de enfatizar,
ilustrar confirmar, negar ou corroborar ideias. No logos, então, imbricam-se,
indissociavelmente, a força argumentativa do orador, os sentidos explícitos
ou implícitos, figurativos ou literais da linguagem utilizada para atingir, por
força da criação da verossimilhança, o acordo com o auditório. 31
O pathos refere-se às emoções despertadas no auditório. A convivência
social reveste os homens de múltiplas tonalidades do sentir: amam, odeiam,
tornam-se esperançosos, desanimados, calmos ou desesperados, revelam e
escondem desejos. Entre o prazer e o desprazer cotidianos, o ser humano
modula a intensidade de suas paixões pelo que acredita ser justo, injusto,
moral, imoral, certo, errado, belo e feio. É justamente aí que reside a força
do pathos, entendido como o poder do orador de despertar o auditório
para as emoções decorrentes do seu discurso. Para obter o acordo, como
ressaltamos acima, o orador coloca o auditório em posições emocionais
diferenciadas: ora exige que atue como juiz, ora como participante de uma
assembleia que precisa chegar a um consenso, ora apenas como espectador
de uma determinada situação que se problematiza no seio social. Esses papéis
sociais, quando assumidos, envolvem o auditório em situações passionais
distintas e, de modo consequente, revolvem o interior de cada um e de
todos em tonalidades mais pálidas ou mais intensas do sentir. Por isso, a
força do pathos – a intensidade das paixões evocadas pelo orador – provoca
diferentes respostas do auditório e consolida-se num julgamento sobre
aquilo que está em questão. Assim, diante de um auditório, o orador pode
provocar paixões disfóricas ou eufóricas por meio de sua capacidade de levar
o outro a aderir, recusar, completar, modificar, calar-se, aprovar, reprovar,
demonstrar interesse ou desinteressar-se por um evento do mundo que
requer uma posição estética, deliberativa ou judiciária. Pathos, portanto, em
retórica, é uma ferramenta poderosíssima para mobilizar emocionalmente
o auditório a favor de uma tese. Saliente-se que é pelos efeitos patéticos que
o auditório aclama, louva, censura, indica se uma ação é justa ou injusta,
decide em função do útil ou prejudicial e que a intensidade de qualquer
uma dessas ações é sempre estabelecida pela força persuasiva provocada
pelo orador (FIGUEIREDO; FERREIRA, 2016).
O elo entre logos e pathos se dá pela atuação do ethos. Os gregos enten-
diam o termo ethos como a criação da imagem de si mesmo. Ligavam-no,
assim, à personalidade, aos traços comportamentais, à escolha revelada
de um modo de viver e de determinar, pelo discurso, suas concepções do
existir de modo reto e aceitável socialmente (ética). O ethos refere-se ao
“caráter que o orador deve assumir para inspirar confiança no auditório”
(REBOUL, 2004, p. 48). É, pois, uma imagem, verdadeira ou não, que o
orador constrói de si no intuito de persuadir e convencer seu auditório.
Tal imagem desenha-se na mente do auditório, muitas vezes, de forma
inconsciente, por força da maneira como o discurso é interpretado e a
32 postura do orador é analisada. Assim sendo, por ligar-se a um processo
A dimensão da escrita na escola

de representação do orador diante de um auditório específico, no ethos


reside a força de autoridade que se impõe ou não sobre o auditório, e,
quando adequadamente apresentado como um recurso de identificação,
provoca adesão e acordos favoráveis às intenções persuasivas do orador.
De modo bem singelo, o ethos é a revelação do poder do orador: “Você
pode confiar em mim” (FIGUEREDO; FERREIRA, 2016, p. 61-2). Como
a retórica é, historicamente, amoral, a verossimilhança é mais importante
do que a suposta “verdade”, pois o ethos constrói uma “verdade” aparente,
contingente, plausível (ou não) do orador e do discurso que é manifesta-
do. Aristóteles, no livro I de sua Retórica, enfatiza a importância da boa
constituição do ethos e da verossimilhança ao afirmar que se persuade pelo
caráter quando o orador deixa a impressão de ser digno de confiança, que é
adquirida como resultado do discurso. Como se percebe, o filósofo salienta
que o ethos se constrói discursivamente e não por meio de uma valoração
prévia do caráter do orador. No livro II, o filósofo grego informa que três
são as causas de persuasão que não exigem demonstração: a prudência
(phronesis), a virtude (arete) e a benevolência (eunoia).
Por força da juventude ou da pressa de muitos alunos-autores, nem
sempre esses fatores de persuasão são levados em conta no propósito de
dirigir-se a um auditório pela escrita. Uma pedagogia da escrita, então,
pode recomendar o cuidado de si que um escritor precisa ter para bem
atingir seu auditório. Na escola ou na vida, a instauração do ethos no dis-
curso é uma ferramenta psicológica que se fundamenta no verossímil e na
adaptação do discurso às expectativas do auditório. Revela-se nos logos e
um escritor consciente pode levar em conta, no ato da produção textual,
uma advertência muito feliz de Plantin (2008):

Em última análise, o ethos corresponde a uma forma de afeto


ameno, durável, que define o tom de base do discurso; ao afeto
tímico, de tipo temperamento, humor, virão se acrescentar as
modulações fásicas que são as emoções propriamente ditas. A
problemática do ethos e do pathos se recobrem. (PLANTIN,
2008, p. 118).

33
Conclusão
Por motivos explicáveis historicamente, a escola refletiu longamente sobre
o processo de produção de textos a partir da correção gramatical, das etapas
do discurso e sobretudo dos valores inegáveis da elocução (lexis), que diz
respeito propriamente à redação do texto. Como nos lembra Reboul (2004),
elocução, antes de ser uma questão de estilo, diz respeito à língua como tal.
Em função disso, para os antigos, o primeiro problema da elocução centrava-
se na correção linguística. Ainda hoje, a questão da correção é fundamental
para um autor, pois, como rememora esse estudioso, “o orador deve pôr-se a
serviço, ou melhor, sentir-se responsável por aquilo que os gregos chamavam
de hellenizein, os latinos de latinitas, e que traduzimos por bom vernáculo”
(REBOUL, 2004, p. 61). E complementa: “Hoje em dia, também, quem quiser
persuadir o grande público não poderá permitir-se incorreções nem precio-
sismos, salvo em ocasiões muito precisas” (REBOUL, 2004, p. 61).
A inventio, entretanto, por parecer óbvia, quase não aparece nos manuais
escolares como uma etapa de reflexão necessária, ainda que faça parte do
plano-tipo clássico muito difundido para bem escrever um texto: invenção,
disposição, ação, memória e ação. Reboul (2004) dá algumas explicações sobre
o assunto ao refletir que a própria noção de invenção pode parecer muito
ambígua por situar-se em dois polos opostos: invenção-inventário (detecção
pelo orador de todos os argumentos e procedimentos retóricos disponíveis)
e invenção-criação (criação de argumentos e de instrumentos de prova). O
computador e os recursos tecnológicos da contemporaneidade podem ajudar
sobremaneira para a invenção-inventário. A invenção-criação, porém, depende
unicamente do poder humano de inspirar, pelo discurso, um ethos de confiança
como produto efetivo e representativo de um discurso particular de autoria.
Do mesmo modo, um discurso de autoria procura inspirar nuances patéticas
no seio do auditório por meio da força incontestável existente no manancial
contido nas dobras do logos. A invenção é parte primordial da construção
de um discurso persuasivo. Nesse aspecto, a questão da originalidade, tão
exigida por avaliadores de redação, passa a ser secundária, pois, em retórica,
inventar liga-se a procurar e achar o que está escondido, o que está guardado
e ainda não plenamente revelado. Limita-se à busca de provas que constituem
a substância da invenção e, por isso, é fruto da arte, da arte da prática e a da
arte de ensino e de aprendizagem.

34
A dimensão da escrita na escola

Referências
ARISTÓTELES. Retórica a Alexandre. Trad. Edson Bini. São Paulo: EDIPRO,
2012.
____________. Arte Retórica. Trad. Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo;
Rio de Janeiro: EDIOURO, s/d.
BAZERMAN, Charles. Retórica da Ação Letrada. Trad. Adail Sobral, Ângela
Dionísio, Judith Chamblis Hoffnagel, Pietra Acunha. São Paulo: Parábola, 2015.
BURKE, K. Language as symbolic action Essays on life, literature and method.
Berkeley: University of California Press, 1968
FERREIRA, L. A. Leitura e Persuasão Princípios de análise Retórica. São Paulo:
Contexto, 2010.
FIGUEIREDO, M. F.; FERREIRA, L. A. A Dimensão do Ethos nos Gêneros
Retóricos. In LIMA, E. S. de; GEBARA, A. E. L.; GUIMARÃES, T. F. (Org.). Estilo,
éthos e enunciação. Franca: Unifran, 2016.
MEYER, M. Questões de retórica: linguagem, razão e sedução. Trad. António
Hall. Lisboa: Edições 70, 1998.
PERELMAN, C.; OLDBRECTS-TYTECA, L. Tratado de Argumentação: a nova
retórica. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
PLANTIN, C. A argumentação. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola
Editorial, 2008.
REBOUL, O. Introdução à retórica. Trad. Ivone Castilho Benedetti. 2 ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2004.
TRINGALI, D. Introdução à Retórica A Retórica como Crítica Literária. São
Paulo: Duas Cidades, 1988.

35
Teoria social da retórica

João Hilton Sayeg-Siqueira1

Q uintiliano (1916, IX.4.3-23) estabelece a distinção entre discurso e


texto, ao considerar que este é o tecido linguístico daquele. Em seu
estudo sobre oratória, considera que, na composição, as palavras, após
serem escolhidas, devem ser organizadas de forma orgânica e arranjadas
em um delicado tecido (textus, textum), ou seja, em uma trama, em uma
urdidura, como uma ação de tecer (texere) o discurso, fixando-o pela
escrita, em uma tessitura multimodal, plurissemiótica e plurissemântica.
A tessitura multimodal se irradia em formações plurissemióticas,
constituídas por semioses, que são unidades de interpretação decorrentes
não só da manifestação linguística, mas também de sistemas gráficos, ti-
pográficos, ilustrativos, diagramadores. Da percepção semântica decorrem
unidades de significado com diferentes graus de complexidade: fonoló-
gico, ortográfico, morfológico e sintático. As formações plurissemiótica
e plurissemântica articulam o texto como uma unidade de significação
multimodal instituída por múltiplas formas de linguagem que manifestam
multiformes efeitos de sentido.
A articulação multimodal fixa uma discursivização de natureza retórica,
arte do bem dizer em busca de um enredamento sedutor, que compreende
todas as virtudes do discurso e ao mesmo tempo as qualidades do orador

1 Professor doutor, titular do Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua Portuguesa da


PUC-SP, Coordenador do curso de Letras: Língua Portuguesa da PUC-SP. 37
(CÍCERO, 1995). A ação argumentativa, na tentativa de criar recursos
persuasivos, deriva do caráter do orador (ethos), da emoção que desperta
no auditório (pathos) e da consistência dos argumentos (logos) (ARIS-
TÓTELES, 2005), sejam verdadeiros ou apenas prováveis que, no jogo
enunciativo da intencionalidade proposta e da aceitabilidade prevista,
consolida-se na verossimilhança, pois, nesse lance, nada é absolutamente
verdadeiro ou absolutamente falso, tudo goza de uma relativa condição de
verdade ou de falsidade.
O discurso retórico é cuidadosamente planejado para levar um determi-
nado auditório, universal, particular ou de especialistas, a adquirir empatia
com as emoções expostas pelo orador e por suas premissas, estimulando-o
a reforçar ou alterar a opinião, caso necessário, reconhecendo-lhe, assim,
uma condição de verdade. O discurso elaborado decorre de uma discur-
sivização, ação sócio histórica de significar um termo ou expressão por
meio da dimensão política, econômica e cultural. As expressões linguísticas
assumem uma função não-gramatical e passam a cumprir uma função
pragmática (MARTELOTTA et al, 1996).
Por a discursivização ser o processamento do discurso por unidades
linguísticas, concebem-se variações semânticas por efeito dos contextos
interacionais que se configuram em dois campos bem distintos, o campo das
relações textuais, por meio dos articuladores de recorrência e de sequen-
ciação, e o campo das relações entre o discurso e os indivíduos, por meio
da interação entre interlocutores. Essa divisão possibilita que se distinga
entre os operadores argumentativos, no nível textual; o processo de argu-
mentação, no nível discursivo; e a argumentatividade, no nível cognitivo.

Constituição teórica
A distinção entre texto e discurso estabelecida por Quintiliano pode
ser ampliada, primeiramente, pelas considerações teórico-práticas desen-
volvidas por Bakhtin (2003 [1979]), sobre gênero de discurso e enunciado
concreto; por Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996 [1958]), sobre a revisão
elaborada à retórica aristotélica quanto às ocorrências argumentativas; e
por Carolyn Miller (1994 [1984]), sobre o redimensionamento da ação
retórica na concepção de uma sociorretórica.
Com relação à definição de gênero, Bakhtin (2003) registra que cada
38 enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua
Teoria social da retórica

elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denomi-


namos gêneros do discurso. Quanto à noção de enunciado, observa que a
utilização da língua se efetua em forma de enunciados (orais e escritos),
concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera
da atividade humana.
Para Bakhtin (2003), “cada esfera dessa atividade comporta um repertório
de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida
que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa” (BAKHTIN, 2003, p.
262-280). Assim, o autor faz uma distinção entre gêneros de discurso primário
(simples), próprios da comunicação espontânea do cotidiano, e gêneros de
discurso secundário (complexo), característicos do uso formal das instituições.
Por essa perspectiva, todas as atividades discursivas se manifestam em
gêneros que são a verdadeira forma de vida interacional em sociedade, por
organizarem as esferas de atividades humanas e delas decorrerem. Destarte,
a língua não é apenas um sistema de comunicação nem um simples siste-
ma simbólico para expressar ideias, mas, muito mais, uma forma de ação
(WITTGENSTEIN, 2009). É estabelecida, portanto, uma distinção entre
expressão linguística e enunciado, importando para a análise de discurso
muito mais este e menos aquela, que servirá de base para as perscrutações
das peculiaridades organizacionais dos argumentos.
As mais variadas formas de expressão linguística são organizadas
em enunciados que são, de fato, unidades reais da comunicação verbal,
realizadas em condições próprias, que possibilitem o cumprimento do
certame interacional intencionalidade/aceitabilidade. Nessa visão, as ex-
pressões linguísticas, em si, se encontram em um estado de incompletude
ou inacabamento, pois só ganham sentido na relação com os enunciados
já proferidos ou na projeção dos que ainda serão realizados, isto é, estão
em função das formas de enunciações, realizadas nos momentos de inte-
ração. Para que sejam compreendidos os efeitos de sentido produzidos no
processo de enunciação, é preciso que se considerem suas condições de
produção, isto é, em que condições se deu sua ocorrência.
Essa acepção, dada ao vocábulo enunciado, faz alusão ao ato concreto
de uso da linguagem, que aponta para a enunciação como sendo de natu-
reza sócio histórica e constitutivamente ligada a enunciações anteriores e a
enunciações posteriores, produzindo elos por onde circulam os discursos.
No enunciado concreto, não está presente apenas a formulação individual
das expressões linguísticas, mas também e, principalmente, a função in-
teracional dos gêneros de discurso, circunscrita ao contexto e delineada
pelo enunciado de outrem. 39
O enunciado concreto, composto por uma interface linguística-tex-
tual-social, é endereçado a alguém e tem um propósito de incitá-lo. De
acordo com Aristóteles (2005), a retórica é a arte de descobrir, em cada caso
particular (por intermédio de enunciados concretos), os meios adequados
de incitação, em que se empregam discursos persuasivos, para expor uma
ideia, defender uma tese ou contrapor um argumento.
Os estudos aristotélicos são revisitados e revitalizados por Perelman
e Olbrechts-Tyteca (1996). A nova retórica veio como um movimento
associado à melhoria do ensino da composição argumentativa, por meio
de postulados que indicam a necessidade de se adaptarem as estratégias
discursivas para o exercício da persuasão. O destaque é dado, principalmen-
te, na preocupação de condicionar o discurso de acordo com o auditório,
focalizando não só as artimanhas da língua, mas também as relações do
artefato linguístico com domínios extralinguísticos, como os valores sócio
históricos: político, econômico e cultural; que envolvem convicções, ne-
cessidades e crenças da audiência.
O processo argumentativo de persuasão, a partir da convergência
entre linguístico e extralinguístico, traz à tona a noção de contexto social,
consubstanciado pela ideia de objetivo ou propósito comunicativo, por se
pensar a persuasão baseada na adaptação à ocorrência sócio histórica do
discurso. Essas considerações de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) se
expandiram nos estudos sociorretóricos, pela ampliação do campo de visão
do orador, ao tirar o foco exclusivamente do texto e passar a observar tam-
bém o extratextual, tecendo estratégias discursivas entremeadas pelo social.
As noções preliminares da sociorretórica foram desenvolvidas por
Miller (1994), ao considerar, primeiramente, gênero de discurso como
uma ação social, pois o que se depreende do estudo de gênero de discurso
não é apenas um padrão de formas e métodos para se atingir objetivos,
mas também e sobretudo, quais objetivos podem-se ter para conseguir
participar das ações de uma comunidade. Mas, para que a ação social se
efetive, o gênero precisa ser socialmente identificado, o que só é possível
pela repetição (recorrência) e pela similaridade (forma e substância) da
produção de textos que dão ao gênero uma configuração social.
Aprender, entender e compreender as situações enunciativas encon-
tradas determinam as possibilidades de fracasso ou sucesso da ação social
circunscrita pelo gênero de discurso, uma vez que ele abarca aspectos dos
padrões de convicções, necessidades e crenças do auditório a que se destina.
O gênero como forma de ação social, torna-se dependente da estrutura e
40 da complexidade de cada sociedade, envolvido em dois aspectos relevantes:
Teoria social da retórica

a noção de situação retórica recorrente, entendida como tipificação, e a


fusão entre forma, substância e situação.
Gênero de discurso, como uma ação retórica tipificada, ganha uma
configuração sócio-discursiva, assim explicitada por Miller (1994):

É por meio do processo de tipificação que criamos recorrência,


analogias, similaridades. O que recorre não é uma situação material
(um evento real, objetivo, verdadeiro), mas nosso construto de um
tipo. A situação tipificada, incluindo tipificações de participantes,
sustenta a tipificação em retórica. A comunicação bem-sucedida
requer que os participantes compartilhem tipos comuns; isso é
possível na medida em que os tipos são socialmente criados (ou
biologicamente inatos). (MILLER, 1994, p. 157).

Os gêneros de discurso são ações retóricas tipificadas que, necessa-


riamente, implicam situação e motivação, uma vez que a ação humana é
sobremaneira motivada e só a partir dessa motivação as ações podem ser
interpretadas. Dessa forma, além dos critérios clássicos, já consagrados,
para análise do gênero de discurso, conteúdo temático, construção com-
posicional e estilo, para a referida autora, é essencial incluir a noção de
motivação, pela intenção e pelo efeito, e a de situação retórica, pelo contexto
e pelas demandas situacionais.
A motivação, no caso, não é individual, mas decorrente de um propó-
sito ou de uma necessidade sociais convencionados pela recorrência de
produção textual, consolidada como uma ação retórica tipificada, repro-
duzida incessantemente, tornando-se um propósito social, presente no
gênero, em que as ações particulares se inter-relacionam com as sociais. As
relações e os sistemas sociais são produzidos, reproduzidos e estruturados
em interações sociais ao longo do espaço e do tempo; e as estruturas são
constituídas por regras que concretizam a manutenção e a consolidação
dos sistemas a partir da recorrência quase que natural delas.
Miller (1994) considera que o gênero pertence ao comunitário e não ao
individual e que tem a função de estabelecer a mediação entre eles, entre o
público e o privado, sendo o elo estruturador que liga, a meio caminho, a
mente individual à grupal. O gênero tem o caráter estruturado por essa me-
diação, da qual aflora o conceito de comunidade retórica, que busca suprir os
propósitos e as necessidades em uma perspectiva sociorretórica. Comunidade
retórica não se refere a uma condição geográfica ou temporal, mas à consti-
tuição interacional discursiva, ou seja, representada e desenvolvida por meio
do discurso, entendido como a linguagem investida de uma prática social. 41
É por meio da convencionalização, dada pela recorrência e pela situação
interacional, que as práticas retóricas se transformam em ações sociais,
construídas e mantidas socialmente, o que também explica a dinamicida-
de do gênero, que pode evoluir, involuir, emergir. Conforme a convenção
comunitária se altera, os gêneros também vão se modificando, podendo
alguns se extinguirem e outros surgirem, na dependência das necessidades,
das relações e da complexidade de comunicação e ações sociais.
Para identificação de gêneros de discurso, Miller (1994) os considera,
primeiramente, como categorias convencionalizadas de discurso que se
baseiam em ações retóricas tipificadas e que adquirem significado no
contexto, na situação em que estão envolvidos; em segundo lugar, como
passíveis de interpretação por intermédio das regras que os moderam;
em terceiro, como sendo diferenciados pela associação entre substância e
forma; em quarto, como constitutivos da vida cultural, pela recorrência;
e, por último, como mediadores entre as intenções, as exigências e as mo-
tivações que intermediam o particular e o social, o privado e o público, a
idiossincrasia e o recorrente.
As noções de propósito e contexto trouxeram contribuições signifi-
cativas para o aprofundamento do estudo dos gêneros de discurso, pois
passa-se a divisar a produção textual como uma instância cujo objetivo é
atingir determinado propósito em certa situação social, em vez de se prestar
atenção exclusiva ao texto ele mesmo, como artefato linguístico apenas. Por
essa complementação conceitual, o discurso ganha força como forma de
ação social, e os gêneros que o conformam, como artefatos culturais que
se configuram em ações retóricas recorrentes, atualizadas nos movimentos
argumentativos que se entrelaçam na tessitura textual.

Exemplificação prática
As ações sociais, impreterivelmente, para serem realizadas, envolvem
linguagem. Toda linguagem é conformada por uma prática social que se
configura a partir do arcabouço de conhecimentos prévios, individuais e
comunitários, armazenados pelo sujeito. O sujeito, por desempenhar um
papel social, transforma seus conhecimentos em discurso por meio de
uma ação retórica que é o processo de discursivização moldado por uma
intencionalidade argumentativa, identificada como argumentatividade.
42 O discurso produzido se configura sob a forma de gêneros tipificados,
Teoria social da retórica

ou seja, recorrentes, socialmente contextualizados e argumentativamente


motivados; é instaurado o processo de argumentação. O discurso é tecido
linguisticamente pelo texto, instância em que os argumentos se explicitam
e a ação retórica se consolida.
À guisa de ilustração, serão analisados dois textos, um descritivo e outro
narrativo, tendo por critérios a configuração como gênero, a expansão textual
por meio dos tipos de argumentos apresentados e a ação retórica motivadora.
Ser descritivo, narrativo ou dissertativo não implica classificação de gênero
de discurso, mas sim, tipologia de texto, que não é socialmente institucio-
nalizada, mas histórica e culturalmente constituída. O gênero discursivo,
por ter sua configuração contextualizadamente estabelecida, necessita de
uma recorrencialidade, para ser tipificado, e, por isso, goza de uma relativa
estabilidade. A tipologia textual, por sua tradição histórico-cultural, mantém
uma formação que independe da recorrência para ser identificada, pois está
prototipicamente consolidada.
Estar em prosa ou em verso não é traço caracterizador de gênero, pois não é
uma característica própria do discurso, mas sim da arquitetura do texto, de sua
multimodalidade configurativa. O texto de Manuel Bandeira, que vem a seguir,
está em um livro de poesias, mas apresenta um aspecto mais apropriado a uma
prosa narrativa. E, dada a relatividade de identificação do gênero de discurso,
pode ser classificado, até, como uma crônica, estilo também explorado pelo
autor. Se assim o for, é uma crônica-ensaio, por seu atributo argumentativo,
que revela uma visão abertamente crítica da realidade cultural e ideológica do
Brasil; escrita em linguagem literária, no molde ficcional. O mesmo acontece
com o texto de Carlos Drummond de Andrade, poeta também cronista, só
que acrescido de um tom humorístico, irônico e sarcástico.

tragédia brasileira2

Misael, funcionário da Fazenda com 63 anos de idade;


Conheceu Maria Elvira na Lapa _ prostituída, com sífílis,
dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em
petição de miséria.
Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado
no Estácio, pagou médico, dentista, manicura... Dava tudo
quanto ela queria.

2 BANDEIRA, 1993, p. 160. 43


Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou
logo um namorado.
Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro,
uma facada.
Não fez nada disso: mudou de casa.
Viveram três anos assim.
Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael
mudava de casa.
Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General
Pedra, Olaria, Ramos, Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de
Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio,
Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos...
Por fim na rua da Constituição, onde Misael, privado de
sentidos e de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi
encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul.

O texto traz um percurso narrativo, com a apresentação de uma situação


inicial em que são identificadas as personagens e as características delas
que são pertinentes para o desenrolar da trama: Misael, funcionário da
Fazenda com situação financeira estável, e Maria Elvira, prostituta falida.
O primeiro conflito é este, relacionado a ela, que será solucionado quando
ele, nela, investir. O segundo conflito surge para ele, diante da volubilidade
atitudinal dela, que o leva a um desfecho criminoso.
O crime praticado por Misael procede de uma série de acontecimentos
decorrentes da conduta de Maria Elvira. Neste percurso, cada localidade em
que eles moram caracteriza o tipo de amante que ela foi tendo e a sua dege-
nerada degradação. O primeiro amante faz referência ao próprio fundador
da cidade do Rio de Janeiro, ou seja, alguém de uma família tradicional; o
segundo, um homem forte, firme, inabalável. Talvez, pelas características
desses dois primeiros amantes é que fez Misael recuar e não tomar uma
atitude mais severa e brusca: “Podia dar uma surra, um tiro, uma facada.”
Isso se agrava e o acanha mais pelos perfis do terceiro e do quarto
amantes, pois um é do Catete, bairro, na ocasião, em que se localizava o
palácio, residência do presidente da República, e o outro, um general de
linha dura, “Pedra”. E a diversificação aumenta continuadamente, pelos
operários, “Olaria” e “Lavradio”; pela referência ao eixo central de um
tronco, ou seja, de um homem poderosamente potente, “Ramos”; pelas
experiências sexuais excêntricas, “Isabel” e “Encantado”; pelo integrante
44 da família real, “Marquês”, pelos representantes da raça indígena, “Niterói”
Teoria social da retórica

e “Catumbi”; pela naturalidade estrangeira, “Clapp”; pela reincidência,


outra vez “Estácio”; pelos representantes do clero, “Todos os Santos”; pela
localização, independente da pessoa, na “Boca do Mato”; por fim, pelos
indivíduos enfermos, incapazes, mutilados, “Inválidos”; etc., “...”.
São argumentos baseados na estrutura do real, elaborados a partir
de uma realidade construída para estabelecer juízos de valor admitidos
ou para os quais se busca admissão. Por essa natureza, é um tipo de ar-
gumentação que não se apoia na lógica, mas na experiência com função
explicativa das ocorrências. Tem-se, assim, argumentos de direção, que
consistem em procedimentos críticos de atos ou acontecimentos, com
base no perigo das tendências que os orientam, no caso, a volubilidade
desenfreada e irresponsável de Maria Elvira; e argumentos de pessoas e
atos que compreende avaliar alguém pela articulação entre seu caráter re-
velado por seus atos, no caso, a irresponsabilidade inconsequente e ingrata
da personagem em questão.
Convém que a atitude de Misael também seja analisada, pois ele come-
teu o crime na “rua da Constituição”, símbolo dos direitos e deveres dos
cidadãos, garantidos pela lei fundamental e suprema da nação. Misael e
Maria Elvira tinham seus deveres, ele de prover e ela de respeitar e res-
guardar-se. Misael empenhou-se, “Misael não queria escândalo. Podia dar
uma surra, um tiro, uma facada. / Não fez nada disso: mudou de casa. /
Viveram três anos assim. / Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado,
Misael mudava de casa.”. Maria Elvira desvirtuou, “Quando Maria Elvira
se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado.[...] Os amantes
moraram...”; o que deu o direito a Misael de defender a honra, restabelecer
a ética, termo originário do grego ethos, que significa modo de ser, costume
ou hábito e que reflete o caráter e a natureza de cada indivíduo, e, dessa
forma, resgatar sua integridade.

Cidadezinha qualquer3

Casas entre bananeiras


Mulheres entre laranjeiras
Pomar amor cantar.

3 DRUMMOND, 2013, p. 49 45
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus.

O texto é construído por meio de sinédoques que apresentam partes


selecionadas de uma cidade e que por ela passam a valer como um todo.
As partes selecionadas são: casas, bananeiras, mulheres, laranjeiras, pomar,
homem, cachorro, burro e janelas. O conhecimento prévio de cidade não
se restringe apenas a esses elementos, mas a muitos outros. Mas esses
foram os escolhidos para caracterizar a cidadezinha em questão que não
é identificada uma especificidade, uma vez que é “qualquer”.
A sinédoque é um recurso próprio da construção de uma expressão
metafórica, portanto, pela triagem feita, “cidadezinha” tem um valor
metafórico. Metáfora, aqui, precisa ser entendida na extensão conceitual
dada por Lakoff e Johnson (2002), de que o nosso sistema conceptual é
fundamentalmente metafórico, pois as metáforas não se encontram na
linguagem, mas sim no pensamento inconsciente, infiltradas na vida co-
tidiana, tanto na linguagem, quanto no pensamento e na ação. O papel da
linguagem é apenas o de explicitar essas metáforas conceptuais por meio
de “expressões metafóricas”.
Se na expressão metafórica está implicada uma ação de linguagem,
conceptualmente constituída pela vida cotidiana, tem-se aí uma configu-
ração sociorretórica de um propósito intermediador do individual com o
comunitário e isso, por meio da configuração argumentativa presente no
texto. Assim, a configuração sinedótica não é outra coisa senão uma eleição
de argumentos que conduzem e dão sustentação à conclusão avaliativa
apresentada: “Eta vida besta, meu Deus!”
Vida besta por ser de uma cidadezinha, diminutivo desprestigioso, que
tem mulheres e um só homem, estúpido, obtuso, não só por se assemelhar
instintivamente a um cachorro e a um burro, no fazer, mas também por
ser a junção dos dois e, assim, se identificar com uma besta, animal estéril,
que não se reproduz por ser híbrido, fruto do cruzamento de duas espécies
diferentes, de jumento com égua ou de cavalo com jumenta.
O texto é organizado por uma tipologia descritiva que apresenta,
inicialmente, um referente, de forma genérica, “cidadezinha qualquer”,
46 que, em seguida, é exibido por traços, selecionadamente convenientes,
Teoria social da retórica

“casas, bananeiras, mulheres, laranjeiras, pomar, homem, cachorro, burro,


janela”, para atribuir-lhe características, “vai devagar e devagar ... olham”,
que propiciarão uma avaliação final, “vida besta”, do todo por meio das
partes, pois cada parte equivale ao todo, é uma “cidadezinha qualquer”
porque “vai devagar” e bisbilhota a vida alheia - “janelas olham”. O recur-
so sinedótico articula uma expressão metafórica e revela o movimento
argumentativo pautado.
Quanto à manifestação argumentativa presente no texto, pode-se conside-
rar, dos argumentos quase lógicos, a contradição como recurso de ironia, na
relação entre “mulheres” e ‘um (só) homem”, estéril, estúpido e obtuso, por ser
irracionalmente animalizado, pela analogia estabelecida entre ele, o cachorro,
o burro e a besta, o que traz uma miscigenação com a argumentação fundada
na estrutura do real. Há, também, do recurso quase lógico, a reciprocidade, que
trata da mesma forma situações que são contrapartes uma da outra, criando
uma sensação de simetria que incide sobre o que é comum e que coloca em
segundo plano o que as diferencias, “um homem vai devagar”, “um cachorro
vai devagar”, “um burro vai devagar”, “devagar... as janelas olham”. Outros
argumentos existem, mas, por ora, ficarão esses, a título de exemplificação.
Nos dois textos analisados, a ação retórica motivadora é fruto de nor-
mas e de convenções determinadas pelas práticas sociais, pelas formas de
interação e pelas recorrências de produção da postura crítico-avaliativa
caracterizadora do gênero crônica-ensaio. Esse gênero representa a posi-
ção enunciativa do orador por meio da movimentação argumentativa que
articula vários tipos de argumento, baseados tanto na estrutura do real
quanto em fundamentos quase lógicos.

Considerações finais
Os gêneros atualizam uma ação social, por meio da articulação de uma
dinâmica retórica de argumentos, decorrente de uma motivação que representa
a realização individual de uma tipificação comunitária em que o agir retórico se
adapta socialmente, pelo gênero eleito, aos vários contextos e circunstâncias da
vida. O sujeito do discurso avança em seus interesses, molda suas significações
no interior de complexos sistemas sociais, atribui valores e avalia consequências
de interações verbais ao utilizar, adequadamente, diferentes gêneros.
A linguagem, como produto de uma evolução sócio histórica, vale-se
de técnicas de emprego de vocábulos e de expressões sintáticas, a fim de 47
consolidar interações pela qualidade dos argumentos selecionados e orga-
nizados mediante um raciocínio lógico e coerente. Assim se configura o
gênero circunscrito por requisitos fundamentais para que se compreenda
o funcionamento social do discurso, atualizado por sequências tipológicas
textuais e ajustado aos modos de comunicação do grupo ao qual o sujeito se
vincula ou aspira se conectar, permitido pelo comportamento sociorretórico
da comunidade discursiva que é o fator determinante para a comunicação.

48
Teoria social da retórica

Referências
ARISTÓTELES. Retórica. Trad. e notas Manuel Alexandre Júnior, Paulo
Farmhouse e Abel do Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da
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BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
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49
O ensino de produção textual
com foco no processo: a versão
textual da ação retórica

Ricardo Ugeda Mesquita1


Rosíris Flocco2

O trabalho com as palavras é sempre um desafio. Apesar de encantadoras,


as palavras são, também, perturbadoras por trazerem em si um caráter
polissêmico e dependerem de um usuário competente e de um intérprete
não menos eficaz. As palavras mais simples vêm carregadas de posicio-
namentos, sentimentos, visões de mundo e opiniões. Assim, na escrita,
estamos muito ligados às nossas palavras pelo impulso de comunicar e
transmitir as significações que brotam de nós mesmos a fim de alcançar o
outro, nosso auditório. Quem fala quer persuadir, ainda que diga que não.
Quem escreve quer persuadir, também, por meio de seu texto.
Diante disso, a retórica impõe-se como a arte de persuadir um au-
ditório. O discurso oratório é essencialmente dialético e persuasivo. Por
conseguinte, a retórica alia-se com a produção escrita e tem a dialética
como elemento componente. Afinal, como afirma Tringali (2014, p. 22):
“Tudo que é discutível é dialético”. Assim, a persuasão e a dialética são
partes integrantes do processo de escrita.
A escrita apresenta um discurso que supõe, como todo discurso, um
outro, anterior, com seus valores, opiniões e sentimentos. O “novo” discurso,

1 Mestrando pela PUC-SP; Bacharel em Direito pela Mackenzie/SP; Licenciado em Letras (Por-
tuguês/Inglês) e Pedagogia, com extensão em Supervisão Escolar (UnG); Membro do Grupo ERA; Bolsista
CAPES.
2 Mestranda em Língua Portuguesa pela PUC-SP; Especialista em Língua Portuguesa pela PUC-SP;
Membro do Grupo ERA; Bolsista CAPES. 51
materializado pela escrita, corresponde a um outro discurso para negá-lo
ou afirmá-lo, e essa propriedade decorre da natureza dialética do texto
retórico. O texto, na escola ou no mundo, dialoga (ou deveria dialogar)
com outro discurso posto ou contraposto. Essa característica contribui
para dar o tom de realismo ao ato de escrever: há sempre um auditório
delineado no momento da produção.
Como bem lembra Bazerman (2015), no percurso da escrita - a versão
textual da ação retórica - deve-se enfocar a identificação e a cristalização do
espaço comunicativo. Apesar de o produto final da escrita ser externo ao
escritor - por depender do outro polo da relação comunicativa permeado pelo
texto - a maior parte do trabalho e da significação que faz o texto realizar-se
plenamente e atingir sua eficácia comunicativa advém do trabalho do escritor.
Em meio a esse trabalho, o escritor não só tem o direito à palavra, mas,
sobretudo, o direito de tomá-la com liberdade, franqueza e destemor. Essa
é uma grande descoberta grega, a parrésia, como ensina Tringali (2014).

O princípio de adequação determina a funcionalidade de tudo


no discurso. Os gregos chamavam esse princípio de prépon =
o que convém e kairós = no momento oportuno. Os latinos
diziam: decorum, convenientiaque traduzimos como decoro e
conveniência. (TRINGALI, 2014, p. 33).

Diante desse panorama, levantamos questionamentos relativos às práticas


de ensino de produção textual, no ambiente escolar, à luz da sociorretórica,
cujo arcabouço teórico ressalta a importância dos gêneros também na es-
crita, pois por meio de um gênero, como explica Miller (1984), é possível
entender melhor as situações em que nos encontramos e as possibilidades
de fracasso ou sucesso ao agirmos juntos. O gênero, recorrentemente, en-
globa um aspecto da racionalidade cultural e serve tanto como um índice
de padrões culturais quanto como ferramenta exploratória das realizações
de alguns falantes ou escritores em particular; para o estudante, por sua
vez, ainda de acordo com Miller (1984), os gêneros servem como chaves
para a compreensão de como participar das ações de uma determinada
comunidade. Assim, a sociorretórica funda-se em princípios práticos e
reflexivos do enunciado estratégico em contexto, do ponto de vista dos
participantes do processo comunicativo, o que se apresenta extremamente
salutar no contexto da produção textual escolar.
É comum, entre os teóricos da linguagem, a crítica ao ensino de pro-
52 dução textual nas escolas brasileiras. Apontam-se como problemas gerais
O ensino de produção textual com foco no processo:
a versão textual da ação retórica

dessa atividade de escrita a pouca utilidade social dos textos produzidos


pelos alunos, a insistência de muitos professores em apenas considerar o
resultado final, ou produto, da escrita do aluno, o predomínio do ensi-
no de regras gramaticais descontextualizadas, entre outras perspectivas
críticas sempre consideradas como “problemas”. Por isso, propomo-nos,
neste capítulo, a pensar o ensino de produção textual com foco retórico
no processo da escrita, no fazer que pressupõe uma relação do produtor
do texto com o seu possível leitor.

A produção textual escolar:


do produto ao processo
Normalmente, nas redações escolares, o texto é dirigido a apenas um
auditório, o professor. Isso faz com que o aluno (que deveria ser um autor)
amplie cada vez mais a superficialidade em seu texto e afaste-se cada vez
mais da autenticidade de sua produção. No entanto, a partir das lições de
retórica, somos impelidos a pensar o conceito de auditório, imprescindível
para a existência do diálogo (orador - auditório) e, por isso, o orador (autor
do texto) deve estar atento, segundo explica Tringali (2014):
a) à reação do auditório;
b) ao objetivo do auditório; e
c) ao tempo em que a questão é tratada pelo auditório e ao valor a ela
atribuído.
Para fins retóricos, o auditório é muitíssimo importante. Logo, é impor-
tante identificá-lo e conhecê-lo, o quanto possível. Um discurso retórico,
como ensina Ferreira (2015) não pode prescindir de um auditório. Em
nosso caso, o auditório pode ser representado pelo leitor do texto. “É o
auditório que, como leitor ou ouvinte de um ato retórico, concentra toda
a atividade do orador”, conforme Ferreira (2015, p. 21).
A partir dessa ideia, busca-se, durante o processo de escrita, suscitar no
aluno um olhar para o modo de funcionamento real da argumentatividade
implícita em seu texto, ou seja, a relação dialética presente na produção
textual. Busca-se, ademais, orientar seu olhar para o auditório (o leitor) a
que se dirige. Poderíamos pensar que nem todo discurso é argumentativo,
que nem todo texto a ser solicitado como proposta ao aluno é argumentativo
- se pensarmos na argumentação em sentido estrito -, porém, na verdade,
a atitude dialética presente no processo criador do texto é uma relação de 53
sentido que se estabelece entre enunciados na comunicação verbal. Todo
texto é dotado de argumentatividade, independentemente do gênero, e o
orador é certamente a causa eficiente do discurso.
Nesse sentido, Geraldi (1998) adverte que, ao produzir seu texto, o
aluno deve ser considerado como sujeito produtor, a fim de que possa
ampliar habilidades de escrita, porque será interpretado e avaliado não só
pelo professor, mas, também, por diversos leitores. Isso seria o ideal, mas a
prática demonstra que nem sempre é assim. Nessa perspectiva do processo
de construção da escrita, Antunes (2003), em sintonia com Geraldi (1998),
evidencia que um dos maiores problemas do ensino de produção textual é
que o aluno possui uma escrita mecânica e artificial, visando a simplesmente
cumprir tarefas propostas. Além disso, os docentes das escolas brasileiras
mostram-se muito mais preocupados com o momento da correção e da
avaliação do que como percurso. Por conta disso, a redação na escola ainda
é um discurso dirigido a um auditório particular (o professor) e tal fato
amplia a artificialidade e afasta a autoria do aluno que escreve.
A simples correção gramatical e devolução do texto ao aluno não pro-
picia um momento de reflexão sobre a própria produção. Por isso, no que
se refere ao auxílio na prática da produção textual, Geraldi (1998) consi-
dera viável que o professor verifique as maiores incidências nas produções
textuais de seus alunos e, mediante a constatação, conduza o autor (aluno)
para os ajustes necessários em seu texto. Ao fazê-lo, o foco do ensino de
produção textual desloca-se do produto (a redação pronta) para o processo
(etapas de produção textual).
Ainda nesse diapasão, outro aspecto a ser considerado é a visão do aluno
com relação à correção textual. Se o aluno considerar o ato do professor
como um exercício interpretativo em vez da correção formal, irá tornar-se
mais próximo daquilo que representa ser autor e não mero reprodutor ou
produtor de texto. O autor reflete e admite as teses do auditório e repensa
tais teses para assegurar o melhor dizer para um determinado argumento,
assunto ou tema. O aluno, se inserido nessa nova perspectiva, pode com-
preender que escrever não é apenas uma atividade voltada para transcrever
normas e regras gramaticais para um único auditório (professor), mas para
diversos tipos de leitores, inclusive o professor, interpretarem o seu texto.
No contexto escolar, interpretar constitui sempre uma inferência ou
conclusão autorizada por sinais, indícios ou indicadores presentes em um
texto, como explica Macedo (2002). Interpretar pressupõe, outrossim,
acrescentar sentido, ler nas entrelinhas, preencher os vazios e, dentro dos
54 limites possíveis do texto, ampliar o conteúdo. Tal ampliação pode ser
O ensino de produção textual com foco no processo:
a versão textual da ação retórica

um pouco daquilo que o professor pode realizar ao corrigir o texto de um


aluno. Podemos dizer, inclusive, que esse ato interpretativo está contido
na correção. Apesar de curioso, esse novo olhar pode cooperar para que o
professore o aluno entendam a correção como uma atividade de interpre-
tação e não como um mero “caça-erros”.
Outra medida que contribui com a interação entre professor e aluno,
proposta por Passarelli (2012), é a escolha de uma produção para se realizar
um ajuste coletivo. Tal exercício ativa os momentos retóricos clássicos, ainda
que o aluno não conheça cada um deles. Os aspectos retóricos envolvidos
na produção com ajuste coletivo são esquematizados por Barthes (1975):

Fonte: Barthes (1975, p. 182)

Se escrever, de fato, é uma atividade de interação social e de ação con-


textualizada, precisamos garantir que haja uma saudável intervenção de
todos nesse processo. Certamente, os ajustes não serão apenas no plano
formal, mas, também, no plano do conteúdo, uma vez que os colegas, na
condição de leitores, produzem sentidos tanto locais como gerais no texto.
O professor, por sua vez, auxilia o aluno que produziu o texto com sugestões
e explicações sobre fatos da língua e adequações discursivas. Essa atividade
contribui consideravelmente para a inventio e a dispositio nos próximos
trabalhos, uma vez que tais momentos retóricos são diretamente acionados,
ainda que sem a consciência dos alunos.
Ao considerar esses aspectos retóricos, os professores são convidados
a repensarem suas práticas pedagógicas e orientarem os alunos a ressigni-
ficarem seu texto, com o intuito de torná-lo gradativamente mais coerente
e coeso. O papel do professor, como parece ser consenso, é o de atuar como
um mediador da aprendizagem e participar do processo de construção.
O problema é que, ao auxiliar os alunos, muitos professores costumam
priorizar apenas a construção de textos de maneira mecânica. Nessas
produções textuais, os estudantes prendem-se às normas gramaticais e 55
ortográficas e limitam-se a produzir textos apenas para atingir uma nota
suficiente para sua aprovação.
Diante disso, Cavalcante (2014) afirma que o texto só existe se tiver
coerência comunicativa, não exclusivamente linguística e gramatical, uma
vez que depende da participação de um interlocutor no processo da escrita.
Um texto composto apenas pela superficialidade textual é um material
linguístico que necessita ser moldado até que atinja a sua completude.
Para auxiliar o aluno no desenvolvimento da competência escritora,
Passarelli (2012) propõe aos docentes formas de ensinar a produção de
textos por meio de etapas que enfatizam o processo de construção do texto.
A seguir, abordaremos um pouco dessas etapas, jungidas aos princípios
que compõem o sistema retórico.

A construção textual passo a passo:


uma proposta desafiadora
Inserir-se num episódio de escrita cria desafios, que podemos preferir
não ter. Primeiramente, um episódio de escrita solicita um trabalho cogni-
tivo, em geral, bastante árduo, que pode de acordo com Bazerman (2015,
p. 184), “ dar dores de cabeça”, mas também prazeres finais de realização e
descoberta. Em segundo lugar, esse trabalho exige um compromisso que
impõe uma obrigação. Nem sempre nós, professores, ou nossos alunos
estamos dispostos a isso. Em terceiro lugar, a escrita estabelece uma relação
com os outros, representada no texto ou a quem o texto é dirigido. Assim,
atuar em uma situação de produção de texto representa um risco real de
fracasso ou sucesso.
Diante de tal constatação, como já explicitamos anteriormente, a escrita
deve ser considerada como processo. Portanto, destaca-se a importância de
levar o discente a seguir etapas: planejar, escrever, revisar ou reescrever e
editar. Cada um desses momentos precisa ser monitorado, na escola, pelo
professor e, também, pelo próprio aluno, que deve ser, gradativamente,
munido de estratégias para automonitorar-se.
Antes de mais nada, o primeiro passo nessa proposta é motivar o
aluno para a atividade a ser desenvolvida. É hora de ativar conhecimentos
prévios, levantar hipóteses, instigar a ação. É o momento de contextualizar
a atividade e certificar-se de que o estudante já tem uma percepção da
56 situação, pois, conforme lembra Bazerman (2015), o impulso de escre-
O ensino de produção textual com foco no processo:
a versão textual da ação retórica

ver baseia-se em um tipo de orientação psicológica para a ação. O autor


esclarece que esse impulso é chamado pelos psicólogos de excitação.
Nesse sentido, declara:

Algo chama nossa atenção como precisando potencialmente de


alguma atitude, então reagimos, colhemos informações e come-
çamos a pesar opções de ação, de forma consciente ou não. É
importante perceber o reconhecimento desse estado de atenção
especificamente dirigido à ação, para não negá-lo ou combatê-lo,
mas aproveitá-lo ao máximo. (BAZERMAN, 2015, p. 180).

Uma vez motivado, o aluno deve ser orientado para o planejamento


da escrita. Ao contrário do que muitos pensam, o planejamento é uma
forma de ganhar tempo. Assim, o aluno é levado a pensar o quê e para
quem irá escrever, de forma a conseguir criar um modelo mental de suas
primeiras ideias. Nessa primeira etapa, não há necessidade de uma con-
fecção escrita. Essa etapa é chamada, no contexto retórico, de inventio3,
fase que se ocupa de encontrar o que dizer, ou no texto escrito, buscar-se
o que escrever. Nesse momento, levanta-se um estoque de material. É
o momento de seleção e não necessariamente de invenção das provas,
argumentos que embasarão o discurso. É a retórica do conteúdo chamada
ao plano de ação do escritor.
Na etapa do planejamento do texto, devem ser dadas ao aluno as orien-
tações sobre vários dos aspectos que envolvem a produção do texto: qual
é o gênero a ser desenvolvido e seus elementos constitutivos principais;
qual o perfil do público a que se destina o texto – o foco no auditório; em
que suporte e veículo o texto será divulgado; qual a variedade ou o registro
linguístico mais adequado à situação; dentre outros detalhes da proposta.
Na sequência, ou seja, na segunda etapa, é o momento de passar para
o papel e traduzir em palavras o que se pretende comunicar. É hora de
transcrever as primeiras ideias sobre o que fora planejado mentalmente

3 A retórica se divide, de acordo com Tringali (2014), em cinco partes, a saber:


a invenção, a disposição, a elocução, a memória e a ação. A partir de uma apresentação
bastante difundida, a retórica – aqui entendida como ciência do discurso voltada para
a argumentação – preconiza que para se fazer um discurso é preciso cumprir etapas:
encontrar o que dizer (invenção), organizar o encontrado (disposição), colocá-lo em
palavras (elocução), memorizar as palavras (memória) e, por fim, proferir o discurso
(ação). 57
para que o texto comece a tomar forma provisória e o aluno esboce um
rascunho. Segundo as lições da retórica, estamos diante da fase da dispo-
sitio, que almeja organizar o encontrado e planejar a maneira de dispor as
diferentes partes do texto. Nessa etapa, é importante identificar e observar
os principais elementos que deverão compor cada uma das partes do texto
- do exórdio à peroração.
A seguir, é hora de colocar em palavras, fase na retórica chamada de
elocutio (elocução). O aluno, nessa etapa, passa a ter maior atenção na forma
de apresentar o seu texto com clareza, concisão, adequação e elegância. Nesse
momento, o professor pode solicitar aos alunos que troquem os textos e
leiam em voz alta, pois na interação o processo enriquecer-se-á muito mais.
De posse da primeira versão ou texto provisório, o aluno entra na
terceira etapa. Trata-se de fazer uma revisão e posterior reescrita de seu
texto. É nessa fase que o escritor pode dialogar com seu próprio texto.
Muitas vezes, o professor ou o outro colega que leu a primeira versão per-
cebe pontos que podem ser aprimorados pelo aluno produtor e auxiliar
no processo de revisão.
Essa é a oportunidade, segundo Passarelli (2012), de recriar sentenças,
amarrar as ideias, refazer trechos, entre outras ações. O aluno é o próprio
revisor de seu texto e atua como uma espécie de “guardião”. Essa prática
de correção de texto não é realizada só pelo professor, mas, também, como
destacado acima, por um colega e possui uma significativa contribuição
no processo da composição da escrita.
Chega-se, então, à quarta etapa, o momento da editoração, da diagra-
mação visual, do processo de acabamento do texto. Nessa etapa, o professor
pode orientar o aluno para as possíveis mudanças e ajustes finais com as
modificações que julgar necessárias, no intuito de levar o aluno a adquirir
domínio pleno da modalidade discursiva da qual participa e do gênero em
que se insere sua produção. Essa abordagem é responsável pela construção
de um ambiente efetivo de criação.
As produções realizadas nesse espaço criador e resultante de pro-
postas relevantes devem, sempre que possível, ser expostas ao público,
pois assim os alunos podem avaliar seu percurso criador: por exemplo,
podem rever suas produções de um ano para o outro; de uma proposta
para a outra; podem incorporar, por conseguinte, com mais facilidade,
as observações do professor sobre suas dificuldades, de maneira a tor-
narem-se naturalmente mais críticos em relação ao próprio texto e ao
de seus colegas.
58
O ensino de produção textual com foco no processo:
a versão textual da ação retórica

O interessante de práticas dessa natureza é que os alunos:


• produzem textos para um determinado público, estabelecido
previamente. Há, portanto, um leitor/interlocutor/auditório real,
que exige um texto coerente, coeso e interessante;

• passam a ter maior consciência da necessidade de revisar com


cuidado seu texto; afinal, têm em vista um leitor/interlocutor/
auditório real, além de seu professor;

• são envolvidos em diferentes práticas, individuais e coletivas, que


vão desde o contato, o estudo e a produção de textos de diferentes
gêneros até práticas secundárias, mas não menos importantes,
como tomada de notas, distribuição de tarefas, interação com
pessoas de dentro ou de fora da escola;

• sentem necessidade de ler muitos outros textos, do mesmo gênero


ou de outros com a mesma temática, para produzirem o seu, para
saberem como se organizam, quais são as suas características e seus
elementos constitutivos;

• ampliam seu universo cultural, à medida que precisam do envolvimento


de várias áreas com seus saberes.

Considerações finais
Diante do exposto, entendemos que o ensino de produção textual, embora
seja uma tarefa árdua, pode ser mais produtivo quando focado no processo.
Como bem lembra Bazerman (2015):

Escrever é, inevitavelmente, um processo, mesmo que sejam apenas


dois minutos para ler um e-mail, reconhecer que precisamos res-
ponder, decidir o que precisamos comunicar, escolher as melhores
palavras e revisar antes de pressionar o botão “enviar”. Não importa
que o processo dure dois minutos ou uma década: os impulsos e
as palavras iniciais na página podem não estar nem perto do que o
documento final será. (BAZERMAN, 2015, p. 188).

Confiar no processo, especialmente nos estágios iniciais da escrita, é muito


importante, pois as ideias sobre como o texto final será podem não estar for-
madas, com pouco sentido concreto. Essa é uma realidade muito pertinente 59
à escrita escolar, pois os alunos precisam dessa condução processual para que
se efetive o real aprendizado da escrita.
O professor, nesse contexto, deixa de ser um mero corretor de textos e ad-
quire o papel de intérprete, de colaborador, de coautor, de alguém que conhece
as dificuldades de seus alunos e atua no sentido de superá-las. Obviamente,
isso requer um novo olhar, uma mudança de paradigma pautada em um tra-
balho gradativo de interlocução e de devoluções da produção escrita em um
processo contínuo que passa pelas etapas sugeridas.
Por fim, vale ressaltar que a feitura e a refeitura de um texto é um processo
interminável, porque o que acaba mesmo é o tempo para a entrega final da
produção textual, mas o caminho percorrido deverá fazer toda a diferença na
tomada de consciência do professor, do aluno e de seu texto.

60
O ensino de produção textual com foco no processo:
a versão textual da ação retórica

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61
Autoria e retórica em
produções escritas na escola
Quanto mais pudermos escrever
para além dos limites de prescrições
burocráticas opressoras, tanto mais
obteremos o poder de nos definir
e representar no mundo letrado
Charles Bazerman

Elioenai dos Santos Piovezan1


Roberta de Souza Piovezan2

Para iniciar uma conversa inacabada

A autoria de textos escolares por muito tempo foi considerada como


tarefa de somenos importância, como mais uma das tantas ativi-
dades de Língua Portuguesa para se verificar a competência escritora
e a gramática do aluno. Como produto de um sujeito em formação, o
texto do aluno geralmente é tratado como cópia de modelos que lhes
são apresentados desde os primeiros anos escolares. Isso não deixa de
ser verdade. No entanto, o processo de escrita, quando realizado com as
condições adequadas que possibilitem ao aluno momentos de reflexão,
troca de ideias e revisão, pode produzir resultados mais positivos do que

1 Doutorando em Língua Portuguesa pela PUC-SP; Mestre em Língua Portuguesa pela PUC-SP;
Especialista em Língua Portuguesa pela Unicamp; Membro do Grupo ERA; Bolsista CAPES.
2 Doutoranda em Língua Portuguesa pela PUC-SP; Mestre em Língua Portuguesa pela PUC-SP;
Membro do Grupo ERA; Bolsista CAPES. 63
a fórmula tradicional da escrita sem propósito ou descontextualizada,
visando mais a forma e a correção gramatical do que o conteúdo e a
eficácia do ato discursivo do aluno.
Nesse sentido, o exercício de autoria de textos escolares pressupõe uma
reflexão que se inicia pelo propósito de escrita e passa inevitavelmente pelo
sistema retórico aristotélico. Esse sistema, juntamente com outras categorias,
possibilita não apenas a produção de discursos que busquem a eficácia na
comunicação, mas também dá condições para que o professor verifique a
competência escritora do seu aluno. O sistema retórico, de alguma forma
presente nas redações dos alunos, é constituído, segundo os gregos, de
quatro partes: inventio, dispositio, elocutio e actio.
A inventio, ou invenção, segundo Mosca (2004), “é o estoque de material,
de onde se tiram os argumentos, as provas e outros meios de persuasão
relativos ao tema do discurso” (MOSCA, 2004, p. 28), é a busca de argumen-
tos nos lugares retóricos que, de acordo com Ferreira (2010), “são grandes
armazéns de argumentos, utilizados para estabelecer acordos com o audi-
tório”, mas sempre com o objetivo de persuadir (FERREIRA, 2010, p. 69).
Dessa forma, pode-se afirmar que a invenção representa parte estratégica
do conteúdo, do que dizer e para quem dizer. A dispositio, ou disposição,
para Tringali (2014), é uma arte de organizar em que “o orador constrói
seu discurso como um arquiteto constrói um edifício” (TRINGALI, 2014,
p. 158). É, portanto, a organização do conteúdo, o modo de dizer aquilo
que se pretende dizer. A elocutio, ou elocução, é o “estilo ou as escolhas que
podem ser feitas no plano da expressão para que haja adequação forma/
conteúdo” (MOSCA, 2004, p. 28-9). Trata-se da “redação do discurso”
(REBOUL, 2004, p. 61). E a actio, a ação, “é a ação que atualiza o discurso,
a sua execução” (MOSCA, 2004, p. 29) ou “o arremate do trabalho retórico,
a proferição do discurso” (REBOUL, 2004, p. 67).
Transportadas para os tempos atuais de uma sociedade preocupada
com o letramento, tanto a invenção como a disposição, a elocução e a ação
podem funcionar bem como estratégias de escrita, a pensar nas etapas
que a compõem, como ações antecedentes, concomitantes e posteriores à
produção de um texto. Tais estratégias permitem que o aluno desenvolva
um repertório, esquematize sua escrita e tenha uma visão panorâmica
do processo de feitura e recepção de seu texto. Assume, finalmente, a
função de autor.
De outro modo, a invenção propicia ao aluno momentos de reflexão, de
consulta a fontes de informação, coleção de dados, formação de repertório,
64 troca de ideias com os colegas e contribui, enfim, para o amadurecimento
Autoria e retórica em produções escritas na escola

sobre o tema. A disposição pressupõe o arranjo estrutural, para a arquite-


tura do texto, para que as escolhas do que dizer possam ser utilizadas na
produção textual de forma adequada ao propósito discursivo. A elocução
é a atuação sobre o material obtido na disposição, a fim de que a macro-
estrutura textual, construída pela disposição, revele a superfície textual,
como significação global do ato retórico, e chegue ao auditório, o leitor
(FERREIRA, 2010, p. 116).
Outro aspecto que abordaremos mais adiante é a pertinência do trabalho
com a escrita a considerar a contribuição da sociorretórica, preconizada
por Charles Bazerman (2015). Dessa forma, conceitos como kairós, fatos
sociais, atos de fala, significação da forma e paisagem, podem contribuir
para preencher possíveis lacunas deixadas pelos gregos que dedicaram boa
parte de suas vidas para sistematizar a fala e a escrita e formarem cidadãos
capazes de intervir, com eficácia, na vida social e política de seu país.
Afinal, conforme Aristóteles (2013),

seria absurdo afirmar que alguém deve envergonhar-se por ser


incapaz de defender-se com seus membros físicos, mas não de
ser incapaz de defender-se mediante o discurso racional quando
o uso do discurso racional distingue mais o ser humano do que
o uso de seus membros. (ARISTÓTELES, 2013, I, p. 43).

Logo, desenvolver a capacidade escritora do aluno, por meio do exercício


de autoria, é uma tarefa inestimável para o professor diante das exigências
e desafios do mundo contemporâneo. Para tanto, apresentamos a seguir um
breve panorama sobre a retórica aristotélica, a sociorretórica de Bazerman
(2015) e indícios de autoria. Por fim, a partir dessas contribuições teóricas,
analisamos uma carta argumentativa produzida por uma aluna de 6º ano
do Ensino Fundamental II.

Da retórica antiga aos gêneros textuais


Assim como a escrita, a retórica surgiu da necessidade humana de re-
solver problemas do cotidiano. De acordo com Ferreira (2010), o primeiro
tratado de retórica foi escrito em 465 a.C. por Córax e seu discípulo Tísias,
dois notáveis oradores que defendiam as vítimas de Trasíbulo, tirano de
Siracusa que havia tomado as terras de muitos cidadãos. Em um ambiente de 65
contendas jurídicas, os cidadãos pleiteavam, com uso de oratória e retórica,
a devolução de suas terras. Lançavam-se dessa forma as bases da retórica,
que nascia amparada por uma “oratória caracteristicamente probatória, que
buscava provas (pisteis)” e também “assumia o aspecto técnico de uma arte
com preceitos assentados cientificamente e tinha por objetivo demonstrar
a verossimilhança de uma tese proposta” (FERREIRA, 2010, p. 41).
A retórica possuía, então nos tempos de Sócrates, Platão e Aristóteles
e sob as condições de uma sociedade democrática, um valor social in-
questionável. Coube a Aristóteles, entretanto, sistematizar a força dos atos
discursivos, da oratória, em um sistema retórico que permitisse a qualquer
pessoa elaborar discursos eficazes para um propósito determinado.
Segundo Ferreira (2010), a obra “Arte Retórica” (s/d), escrita por Aristóteles,
legou à humanidade um “verdadeiro guia sobre como criar um texto persuasivo
e trouxe ensinamentos, muito válidos até hoje, sobre elementos da gramática,
de Filosofia, Filosofia da Linguagem, Lógica e Estilística” (FERREIRA, 2010,
43-4). Desde então, a retórica esteve presente em maior ou menor grau tanto
nos debates políticos como nos currículos escolares. Aperfeiçoado por Cícero
(século II a.C.), que “demonstrou aos romanos a força e a beleza da palavra”
(FERREIRA, 2010, p. 44), e Quintiliano (século I-II d.C.), que estabeleceu “a
pedagogia da retórica aristotélica” (FERREIRA, 2010, p. 44), a retórica entrou
em decadência após o fim do período republicano, uma vez que sob governos
autoritários não há espaço para o debate de ideias.
Dessa forma, a retórica ficou, por séculos, relegada à artificialidade da
palavra em situações mais fictícias do que reais e viu “diminuir sua carga
efetiva de ação” (FERREIRA, 2010, p. 45). Após o fim da Idade Média e até
o século XX, a retórica enfrentaria “adversários poderosos”, como

o Positivismo, que rejeitou a retórica por só acreditar na verdade


científica; depois o Romantismo, que rejeitou a retórica, pois
queria enaltecer a sinceridade a toda prova. Em 1895, a retórica
despareceu do ensino francês e foi substituída pela História das
literaturas grega, latina e francesa. (FERREIRA, 2010, p. 45).

Mas foi somente com os novos retóricos, a partir da segunda metade


do século XX, que a retórica, renovada e adaptada aos novos tempos do
mundo midiatizado, conseguiu restabelecer seu status de arte e ciência do
discurso. De forma bem simples, a Nova Retórica e diferentes teóricos que
a representam, como Perelman e Olbrechts-Tyteca, Meyer, Reboul, Grize,
66 Dubois, entre outros,
Autoria e retórica em produções escritas na escola

acentuam que é no mundo da opinião que se tecem as relações


entre os homens e é a retórica do verossímil que permite o espaço
persuasivo para a inserção do não racional no domínio retórico.
Abre-se, pois, espaço para o sentimento, para o universo passional
e sua força retórica. (FERREIRA, 2010, p. 47).

Paralelamente ao ressurgimento da retórica e a se considerar a impor-


tância da produção de discursos como forma de interação social, temos a
partir das contribuições de Bakhtin e seu Círculo uma verdadeira revolução
nas relações entre linguagem e sociedade. O filósofo russo, “descoberto”
apenas na década de 1970 pelos linguistas, apresenta os gêneros do dis-
curso como concretização da ação comunicativa humana e estabelece as
condições para a abordagem de enunciados que, por serem relativamente
estáveis, podem ser reconhecidos, agrupados e estudados.
Assim, os gêneros discursivos também compreendidos como gêneros
textuais, por sua propriedade e consistência, foram adaptados para o ensino
de língua materna de vários países. Pesquisadores como Dolz e Schnewuly
(2004) organizaram os gêneros, a partir de seus aspectos tipológicos e
capacidades de linguagens globais, em cinco agrupamentos: narrar, rela-
tar, expor, argumentar e descrever ações. Esses agrupamentos de gêneros
permeiam todo o currículo de Língua Portuguesa dos sistemas de ensino
brasileiro, em uma espiral progressiva de retomadas e aprofundamentos
de conteúdos.
Ressaltamos que, na perspectiva bakhtiniana, o gênero sempre é me-
diado por relações de interação social, pois

a língua materna – a composição de seu léxico e sua estrutura


gramatical –, não a aprendemos nos dicionários e nas gramáticas,
nós a adquirimos mediante enunciados concretos que ouvimos e
reproduzimos durante a comunicação verbal viva que se efetua
com os indivíduos que nos rodeiam. (BAKHTIN, 1997, p. 301).

Logo, como a fala é moldada nas formas do gênero, o interlocutor


reconhece ou prevê de imediato tal gênero, considerada sua estrutura
composicional. Na escola, o aluno, após algum contato com determinado
gênero, passa a reconhecê-lo em outras ocasiões, obviamente respeitan-
do-se o grau de complexidade desses enunciados. Assim, nos 6º e 7º anos
do Ensino Fundamental II, os textos selecionados geralmente são curtos
e apresentam baixa complexidade em sua estrutura textual e discursiva,
como fábulas, contos de fada, crônicas literárias, memórias literárias, tiras, 67
cartas de leitor, cartas argumentativas, artigos de divulgação científica (para
crianças), notícias, poemas, entre outros. Enfim, o trabalho com gêneros
textuais coloca o aluno em contato com a língua materna em suas diferentes
manifestações e lhe propicia uma aprendizagem significativa, desde que
haja propósitos de leitura e escrita.

Kairós, fatos sociais, atos da


fala e propósito de escrita
Os propósitos de escrita estão relacionados ao que Bazerman (2015)
chama de kairós, o momento oportuno, que para os gregos são “esses amplos
movimentos da história”, cuja função é “levar à contemplação consciente esse
sentido do momento certo”, ou ainda, que “nos ajuda a considerar a posição
temporal, momentos que se agrupam e se desfazem, oportunidades passageiras
que podemos perceber e utilizar, com vistas a modificar o curso dos eventos
por meio de nossa intervenção oportuna” (BAZERMAN, 2015, p. 58-9).
Dessa forma, podemos inferir que o propósito da escrita surge com
o tempo kairós, pois um motivo para escrever “corporifica um desejo ou
necessidade de modificar a situação” (BAZERMAN, 2015, p. 85). Nesse
sentido, a situação ou questão retórica “é uma situação exigente marcada por
uma imperfeição que pode ser corrigida pela linguagem” (BITZER, 1968,
apud BAZERMAN, 2015, p. 85). Por isso, cabe a cada indivíduo perceber o
momento oportuno para intervir no meio social. Em uma situação de aula,
o aluno é convidado a escrever a partir de um problema hipotético e com a
apresentação de um repertório básico de informações.
Sabemos que o multiletramento do mundo contemporâneo exige cada
vez mais das pessoas o uso de capacidades leitora e escritora para realizar
tarefas cotidianas e compartilhar seus conhecimentos ou posicionamentos.
De fato, a partir de problemas ou necessidades que surgem cotidianamente,
“uma situação só vem à consciência e toma forma a partir da percepção de
uma exigência” (BAZERMAN, 2015, p. 85). As pessoas só se mobilizam pela
linguagem quando o assunto é de interesse para suas vidas.
Se todo discurso é um ato retórico, pois pressupõe uma ação responsiva
do leitor, e se somos “seres retóricos” (FERREIRA, 2010), logo, “influenciar
seres humanos por meio da linguagem é igualmente uma questão de avaliação,
seleção de campos de ação e adaptação a condições existentes, mesmo na
68 tentativa de transformá-las” (BAZERMAN, 2015, p. 87). É possível consi-
Autoria e retórica em produções escritas na escola

derar aqui o contexto retórico, em que Bazerman (2015) expande o alcance


do discurso ao afirmar que

os fatos sociais são condicionados pelas condições materiais e pelas


experiências disponíveis para as pessoas, e responsáveis perante
elas, mas, em última análise, o mundo simbólico da comunicação
deve falar à consciência e ao componente emocional de nossos
públicos. Nossas afirmativas devem tornar-se fatos para eles, parte
da paisagem simbólica na qual vivem. (BAZERMAN, 2015, p. 88).

Disso, o autor conclui que “atos de fala criam fatos sociais que alteram
o modo como as pessoas veem suas paisagens interiores e exteriores, as re-
lações com aqueles que as cercam, suas condições materiais e a si mesmas”
(BAZERMAN, 2015, p. 88). Assim, podem resultar atos responsivos, desde
uma neutralidade emocional diante de uma conta de luz até uma perturbação
que altere a consideração sobre pessoas e seus comportamentos moralmente
questionáveis. Afinal, “atos de fala devem tornar-se fatos sociais ao serem
bem-sucedidos” (BAZERMAN, 2015, p. 88).
De qualquer forma, “a ligação entre situação retórica, ato de fala, fato
social e gênero pode colaborar para uma ação efetiva” (BAZERMAN, 2015,
p. 90), pois dada a estabilidade do gênero, o autor de um texto tem melhores
condições de adequar seu discurso a uma determinada situação. Porém, “as
condições da escrita costumam estar apartadas do ambiente imediato, com
o escritor e o leitor não visíveis um ao outro e separados no tempo” (BA-
ZERMAN, 2015, p. 93). Logo, na sala de aula é necessário que se faça um
exercício de imaginação para se considerar o interlocutor ideal a quem será
direcionado o discurso, pois o propósito da escrita é modificar a paisagem
e, por meio do ato de fala, criar um fato social.

Autoria e sistema retórico


A considerar que a sociedade atual precisa de cidadãos letrados (ou
multiletrados), sabemos que essa tarefa é realizada primordialmente pela
escolarização, que tem focado, desde a educação infantil, as práticas de
linguagem como a oralidade, a interpretação, a escrita e os estudos dos
fatos linguísticos (BRASIL, 2017). Diante disso, é fácil concordar com
Bazerman, quando afirma que
69
a escrita pode ser um potente instrumento de pensamento, sen-
timento, identidade, engajamento e ação. Ao transformar nossos
impulsos em palavras, podemos revelar-nos a nós mesmos e ao
mundo, podemos participar de importantes debates, movimentos
e atividades. (BAZERMAN, 2015, p. 8).

Portanto, o trabalho com autoria na escola pressupõe que o aluno produza


significações, pois “escrever, como em toda a linguagem, é um veículo para
evocar significações na mente de outras pessoas” (BAZERMAN, 2015, p.
130). Podemos afirmar, então, que é a partir da invenção (do sistema retórico)
que o aluno começa a exercitar sua função de autor, passa a refletir sobre
o tema e as instruções apresentadas pelo professor, reúne as informações
disponíveis (disposição) e pensa na melhor forma de persuadir seu leitor
com o discurso pronto (elocução) e publicado (ação).
Esse exercício permite que a questão retórica seja contextualizada, em
princípio, mentalmente e depois em forma de anotações, registros ou es-
quemas. Pensar na recepção do texto, na perspectiva do outro, é uma boa
oportunidade de exercitar a capacidade de alteridade. De qualquer modo, é
ponto pacífico que a ausência de textos mobilizadores, de discussão prévia
e de tempo para pesquisar e refletir sobre o tema apresentado dificulta ou
mesmo inviabiliza a produção de textos que contenham “indícios de autoria”
(POSSENTI, 2002).
Nesse sentido, entendemos que uma proposta de redação que considere
as condições de escrita e contextualize a situação retórica contribui para o
aluno exercer autoria. Entretanto, para verificarmos a constituição efetiva
da presença do autor, é preciso atentar-se para algumas categorias que con-
tribuem com essa tarefa. Dessa forma, com base na retórica antiga e nas
contribuições do Círculo bakhtiniano, Piovezan (2017) sugere o trabalho
com seis categorias de análise: unidade de sentido, marca de posição de
autor, autoconsciência de linguagem, polifonia, qualidade e criatividade.
A unidade de sentido é garantida pela coesão e coerência textuais, que
juntas representam a concatenação, a indissociabilidade entre macroestrutura
e microestrutura do texto, em que o autor já consegue contemplar sua criação.
A marca de posição de autor pode ser verificada pela modalização
do dizer, que envolve o uso de dêiticos (pronomes pessoais, advérbios de
lugar) e revelam a presença com distância maior ou menor do orador em
relação ao seu auditório.
A autoconsciência de linguagem é percebida pela presença de fatos
buscados no mundo real que, conforme Bakhtin (1997), refletem e refratam
70 a realidade vivida e compreendida pelo autor.
Autoria e retórica em produções escritas na escola

A polifonia, conceito desenvolvido por Bakhtin (1997), considera os


diversos agrupamentos de gêneros textuais e discursivos (e não apenas os
narrativos), pode ser constatada pela presença, intencional ou involuntária, de
outras vozes, como citações diretas ou indiretas, aforismos, lugares-comuns
(com ampliação ou subversão do sentido de clichês ou chavões).
A qualidade envolve a capacidade de utilizar os recursos textuais e dis-
cursivos, que atendam minimamente à forma composicional do gênero e que
consigam coadunar com elegância, equilíbrio e responsabilidade o conteúdo
proposto pelo professor. Percebemos a qualidade de um texto pelo uso de
conectivos, referenciação, concordância, pontuação e outros recursos que
dão ao texto fluidez e não o tornam prolixo.
A criatividade pode ser verificada no estilo de linguagem adotado pelo
autor. No Ensino Fundamental, é muito provável que o aluno não apresente
autonomia criativa em suas produções. A tendência é que siga modelos, que
tenha contato com textos canônicos quando se tratar da literatura ou com
textos técnico-profissionais quando se tratar de gêneros midiáticos, expositivos
ou prescritivos. É um momento de descobertas de possibilidades textuais e
discursivas. Somente com a prática de leitura e escrita é que o aluno-autor
poderá desenvolver um estilo de linguagem e expressar maior criatividade.
Todos esses elementos também são observáveis na disposição do texto, ou
seja, na organização do discurso, pois é a partir da arquitetura textual (dispo-
sição) que o aluno utiliza estratégias de dizer, com argumentos, explicações e
exemplos, para convencer, comover ou persuadir o leitor (elocução). Dessa
forma, acreditamos que a eficácia discursiva seja resultado da capacidade
textual e discursiva do aluno que, ainda com limitações de conhecimentos
linguísticos, sabe que precisa produzir uma escrita com responsabilidade,
coesão e coerência (ação). Logo, o sistema retórico reflete a capacidade or-
ganizacional do texto do aluno e revela sua autoria que, nessa fase da vida e
no âmbito da escola, está em pleno desenvolvimento.

Um olhar retórico sobre


a carta argumentativa
Após uma breve passagem por algumas teorias do texto e do discurso,
buscamos agora identificar a presença de autoria e a capacidade escritora do
aluno. Para tanto, utilizaremos o sistema retórico aristotélico, as contribuições
de Bakhtin (1997) e de Bazerman (2015), bem como as categorias sugeridas 71
por Piovezan (2017), para análise de autoria, em um texto produzido na escola.
Para um leigo ou mesmo educadores com pouca experiência, uma
produção escrita pode não dizer muito. Mas, sob um olhar atento e com
conhecimentos sobre os gêneros textuais e procedimentos de autoria, e apoio
do sistema retórico, um professor terá condições de verificar o desempenho
de seu aluno tanto no domínio de habilidades textuais quanto discursivas.
Nesse sentido, apresentamos adiante uma breve sequência de atividades
que devem comprovar as teorias até aqui desenvolvidas. Para esse fim, foi
solicitada a uma turma de alunos de 6º ano do Ensino Fundamental II de
uma escola estadual, localizada em Itapevi (Grande São Paulo), a realização
de duas produções de texto: uma totalmente descontextualizada e focada no
produto final; e outra contextualizada e com foco no processo produtivo.
A primeira proposta foi apresentada na lousa com a seguinte redação:

Produção de texto 1
Elabore uma carta a ser dirigida a uma autoridade municipal
pedindo providências sobre a falta de coleta de lixo no seu bairro.

Os alunos tiveram pouco mais de dez minutos para concluírem e entre-


garem suas produções. Como não houve maiores explicações do professor
sobre procedimentos e propósitos de escrita, os alunos, repletos de dúvidas,
produziram textos que não apresentavam características do gênero carta
argumentativa. Não sabiam se se tratava de uma carta de leitor, de solicitação
ou familiar, pois não estava claro como a carta deveria ser escrita nem para
quem exatamente seria dirigida. Com isso, os estudantes produziram textos
incompletos, focados mais no referente “falta de coleta de lixo” do que na
argumentação necessária para atingir resultados. Os textos apresentaram
também unidade de sentido sofrível, com linguagem informal e estrutura
desorganizada.
Já a segunda proposta foi apresentada em folha impressa com as seguintes
instruções:

Produção de texto 2
Imagine que você foi convidado(a) a participar de uma
reunião com moradores do seu bairro para discutir um pro-
blema que atinge a todos há mais de um mês: a falta de coleta
de lixo e os problemas decorrentes disso.
Ao final da reunião, você foi escolhido(a) para escrever
72 uma carta ao prefeito da cidade apresentando a opinião
Autoria e retórica em produções escritas na escola

dos moradores e explicando o porquê da urgência em se


resolver o problema.
A sua carta precisa ser argumentativa e deverá ter uma
linguagem formal e tentar convencer o prefeito para que
atenda a reivindicação com urgência. Você pode pesquisar
sobre o tema saneamento básico e limpeza pública para
reforçar seus argumentos e explicações.

O professor leu a proposta de forma compartilhada, esclareceu dúvidas


pontuais e chamou atenção para os termos destacados. Explicou se tratar
do gênero carta argumentativa3 e que para o texto alcançar seu propósito
era preciso pensar em argumentos e exemplos que comovessem e conven-
cessem o destinatário (o prefeito), a resolver o problema (falta de coleta de
lixo). Nesse ponto, sugeriu-se que os alunos pesquisassem em casa o tema
da limpeza pública e os riscos causados pelo acúmulo de lixo em calçadas
e terrenos baldios. Na aula seguinte, deveriam trazer suas anotações e
registros de pesquisa.
Nem todos realizaram a pesquisa, por isso foi solicitado que relacio-
nassem o que soubessem sobre o tema. Antes de iniciarem a produção de
texto, o professor apresentou um modelo de carta argumentativa (fictícia),
conforme segue:

3 Optamos pelo termo “carta argumentativa”, mas como correlata à “carta de


solicitação” que, conforme Leal e Brandão, poderia ser utilizada em “qualquer etapa
de escolarização, mas os objetivos didáticos e as demandas em relação aos alunos
podem mudar radicalmente, sendo necessário, para isso, diagnosticar o que eles já
sabem e delimitar o que precisariam saber, considerando o nível de escolaridade em
que se encontram” (LEAL e BRANDÃO, 2007, p. 62). 73
Imagem 1: Modelo de carta argumentativa fictícia com descrição da estrutura.

Após leitura compartilhada do texto acima, os alunos tiveram cerca de


dez minutos para produzirem seus textos. Durante a produção, foi possível
observar que:
• Os alunos apresentaram maior tranquilidade e certeza em sua
produção;

• O propósito tornou-se mais claro, pois conheciam o seu interlocutor;

• Com informações a respeito das consequências do acúmulo de lixo


nas ruas, os alunos puderam selecionar e organizar argumentos,
com exemplos, comparações e evidências;

• A estrutura do gênero carta argumentativa foi respeitada, conforme


modelo apresentado.

• Houve momentos de reflexão sobre o papel e a força da escrita


74
para resolver problemas do cotidiano e da vida social.

• Os alunos ficaram mais satisfeitos com o resultado.


Autoria e retórica em produções escritas na escola

Para uma verificação mais atenta, selecionamos a carta de uma aluna


produzida a partir da proposta de produção de texto 2:

Imagem 2: Transcrição de carta argumentativa produzida por uma aluna de 6º ano.

Kairós, atos de fala e fato social


O texto acima foi elaborado (e mantida a escrita original) a partir de
uma pequena, mas necessária, reflexão em que o tempo oportuno, kairós,
conforme Bazerman (2015), ajuda a perceber a posição do momento
adequado para agir e “modificar o curso dos eventos por meio de nossa
intervenção oportuna” (BAZERMAN, 2015, p. 59)”. Observamos que a
aluna-autora assimilou as instruções no tocante à necessidade de intervir
para resolver uma questão hipotética, que mobilizou seus vizinhos e amigos.
Há uma exigência (convencer o prefeito) para corrigir uma imperfeição
(acúmulo de lixo nas ruas) que precisa ser resolvida. Uma vez imbuído de
redigir um texto (ato social) que represente o interesse coletivo para uma
causa comum, a aluna-autora lança mão de diversas habilidades linguísticas,
textuais e discursivas, ainda que de maneira simples como uma carta que
reivindica solução do problema local de uma comunidade.
Nesse momento, a aluna-autora toma consciência da necessidade de 75
utilizar estratégias de dizer direcionadas a uma autoridade que possui
poder de resolução do problema. A aluna-autora está prestes a criar um
fato social a partir de seu ato de fala, que deverá se manifestar pela escrita
da carta ao prefeito. Afinal, “atos de fala devem tornar-se fatos sociais ao
serem bem-sucedidos” (BAZERMAN, 2015, p. 88).

Sistema retórico
Analisadas a conjuntura local e a tarefa que lhe foi dada, a aluna-autora
teve um momento de reflexão para pensar no que dizer e para quem dizer
(invenção). Optou por demonstrar consequências do acúmulo de lixo: mau
cheiro, entulho e sacos de lixo amontoados, impedimento da mobilidade
urbana. Também propôs uma solução imediata: pessoas para limpar a rua
(disposição). Há dois argumentos básicos aqui: um lógico, que apresenta
causa e consequência, como o lixo amontoado causa mau cheiro e não per-
mite que se use a calçada; e outro psicológico, que apela para o interlocutor
reconhecendo nele uma autoridade e a gratidão dos moradores, ou seja,
busca sensibilizar o prefeito por sua benevolência (elocução).
Em sua construção textual, verifica-se que faltou uma revisão gramati-
cal (ação), mas isso não prejudica em nada a intencionalidade expressada
pelo conteúdo temático. Nesse aspecto, a disposição e a elocução revelam
unidade de sentido e certa qualidade com a distribuição correta dos itens
da carta, organização das orações, concordância, coesão e coerência. A
autoconsciência de linguagem pode ser verificada no trecho: “na calçada
nem dá para sentar de tanto lixo”, pois reflete o fato de que os moradores
de bairros periféricos, muitas vezes por falta de opções de lazer, costumam
ficar sentados na calçada onde conversam, ouvem música, brincam ou
passam o tempo.

Gênero textual
A partir do modelo de carta argumentativa, a aluno-autora, ao con-
trário da proposta de redação 1, passa a conhecer a forma composicional,
o tratamento adequado ao conteúdo temático e começa a desenvolver um
estilo de linguagem, refletido na escolha de palavras e na formalidade
apropriada para cada caso. Na carta em análise, a aluna-autora atende à
76 estrutura do gênero, apresenta local e data, vocativo identificando o desti-
Autoria e retórica em produções escritas na escola

natário, tema-problema, argumentos, conclusão, despedida e identificação


do emissor. Assume sua posição de autor em primeira pessoa do discurso,
com marca de posição de autor, e revela a ação coletiva de seu texto em:
“Eu e os moradores do meu bairro”, “decidimos fazer”, “precisamos urgente”
e “todos nós do meu bairro ficaremos agradecidos”.
Ressaltamos que o uso de exemplo, para Bazerman (2015) é fundamental
para o aluno conhecer as exigências formais e que as seguir bastaria para
tornar o texto eficaz, pois quaisquer informações adicionais poderiam con-
fundir o leitor. Mas, também pondera que alguns gêneros “têm a expectativa
de novidade, originalidade, pensamento inovador, uma aptidão situacio-
nal particular e outras capacidades de inventio mesmo para cumprir com
sucesso os pré-requisitos básicos do gênero” (BAZERMAN, 2015, p. 126).
Além disso, polifonia e a criatividade são indícios que dependem do
nível de desenvolvimento do aluno e de sua prática de leitura, de escrita
e de conhecimento de mundo. Na carta em análise, é possível perceber a
voz dos moradores adultos que sabem bem que um prefeito é a autoridade
que “resolve” os problemas da cidade. De forma um pouco atabalhoada,
a aluna-autora diz “decidimos fazer essa carta para que o senhor resolva”.
A falta de um referente anafórico, como “o problema”, por exemplo, po-
deria ser reparada com uma revisão geral do texto, assim como marcas de
oralidade (“tipo”) e questões gramaticais (“mal cheiro”, “calsada” e “nois”).
Enfim, a aluna-autora exerceu sua autoria a partir de uma situação
hipotética, mas, que por imitar a realidade, coloca-se como um proble-
ma a ser resolvido pela ação letrada. Diante do desafio de escrever com
propósito bem definido, com procedimentos de autoria e com condições
de escrita, a partir de um modelo e explicações sobre o gênero, a carta
argumentativa produzida revela um aluno capaz de intervir em seu meio
para modificá-lo ou melhorá-lo. Cumpre assim talvez um dos preceitos
mais caros a qualquer educador: formar cidadãos críticos e autônomos.

Para finalizar o início de uma


conversa inacabada
O texto, para muitos escritores experientes, nunca está acabado. Sem-
pre queremos modificar algo aqui ou ali, dizer de outro modo ou mesmo
excluir parte do que foi dito. Pois bem, no processo de ensino e aprendiza-
gem, o sujeito aprendente, aos poucos, torna-se aluno-autor, responsável 77
pelo dizer, com marca de posição de autor e dotado de autoconsciência
de linguagem que lhe permite considerar os fatos da realidade; torna-se
arquiteto da estrutura de seu próprio texto, com certa qualidade e com
unidade de sentido; torna-se, enfim, um negociador de distâncias, uma
vez que pode aprender a interagir com os colegas para verificar a eficácia
de seu discurso retórico, atento à presença de outras vozes que contribuem
para a identificação de polifonia e possibilidades criativas que a escola pode
oferecer com certa primazia a partir dessa etapa da vida.
Com essas condições de produção escrita e com procedimentos de
autoria bem delimitados, o aluno-autor estaria preparado para derrotar o
“medo do papel em branco” (PASSARELLI, 2012) ou o “monstro da escrita”
(MAGALHÃES, 2012) e ver-se como aquele que agora tem o que dizer,
para quem dizer e como dizer.
Finalmente, o aluno como autor, para além de uma função que pos-
sibilita a identificação em meio à dispersão discursiva, como nos explica
Foucault (1969), assume responsabilidade pelo dizer, e as implicações dela
decorrentes (CHARTIER, 1999), e dizer com conhecimento e qualidade
(POSSENTI, 2002). Mas, acima das possibilidades textuais e discursivas
que o professor de língua materna pode apresentar ao aluno-autor, está a
oportunidade de torná-lo um sujeito atuante em seu meio para melhorá
-lo (“modificar sua paisagem”); que consiga identificar o tempo oportuno
(kairós) para exercer sua “ação letrada” (BAZERMAN, 2015); que possa
se interessar pela vida de sua cidade, de sua pólis; que se expresse com
competência, por meio da palavra escrita, da ação letrada, de atos de fala,
e crie fatos sociais a partir de textos argumentativos eficazes.

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Autoria e retórica em produções escritas na escola

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REBOUL, O. Introdução à retórica. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo:
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TRINGALI, D. A retórica antiga e as outras retóricas: a retórica como crítica
literária. São Paulo: Musa, 2014. 79
Sociorretórica: da leitura
e da escrita para além
do contexto escolar
A viagem textual move e transforma o leitor
em um novo tipo de agente, com novos recursos,
percepções, posições, pensamentos e informações.
Charles Bazerman

Luanny Vidal1
Luisiana Ferreira Moura2

T odas as vezes que propomos uma produção escrita, deparamo-nos


com a resistência dos alunos, pois eles encaram a atividade como algo
complexo com obstáculos intransponíveis. A questão é que essas dificul-
dades são construídas pelo aluno sob a concepção de que não conseguirá
realizar a tarefa ou de que o resultado será medíocre. As afirmativas que
corroboram esse cenário, repetindo-se de aluno a aluno, são as de que não
sabem colocar no papel o que “está na cabeça”, ou seja, não conseguem
fazer a transposição das ideias e dos pensamentos para o texto escrito com
intencionalidade, articulação e clareza. Outras vezes, dizem que não sabem
o que escrever ou que não têm sobre o que falar.
Passarelli (2012, p. 37) afirma que os alunos não dispõem da profi-
ciência requerida para produzir bons textos, uma vez que não possuem
repertório para desenvolver o tema nem dominam os procedimentos do
processo de escrita. Assim, o desenvolvimento da competência escritora,
ao lado da competência leitora, é prioridade. Entretanto, o que torna a
primeira um desafio não só para o aluno, mas também para o professor,

1 Doutoranda pela PUC-SP; Mestre em Linguística pela UNIFRAN-SP; Membro do Grupo ERA;
Bolsista CAPES.
2 Mestranda em Língua Portuguesa pela PUC-SP; Membro do Grupo ERA; Bolsista CNPq. 81
é o fato de que ela se desenvolve, na maior parte das vezes, em situações
artificiais: “por falta de identificação dos alunos com o que aprendiam na
escola, que excluía a relação do que nela se ensina com as situações reais
de comunicação fora dela” (PASSARELLI, 2012, p. 34).
Desse modo, com o intuito de trazer sugestões que possam ajudar nas
práticas diárias de ensino de escrita a partir de situações do contexto real
do aluno, propomos uma sequência em etapas para a produção escrita a
partir da leitura e com base em estratégias que explicitam os mecanismos
de construção do discurso por meio do sistema retórico e da perspectiva da
sociorretórica, entendida como a junção das teorias que tratam do estudo
da linguagem e do discurso.

Uso da metodologia como estímulo


O ser humano, para se fazer entender, perpassa o ato da linguagem por-
que esta é a principal ferramenta da comunicação. Segundo Fiorin (2015),
comunicar é um ato de agir sobre o outro, e não somente o fato de receber
e compreender mensagens, mas é fazer o interlocutor aceitar o que lhe é
transmitido, crer naquilo que se diz e fazer aquilo que é proposto. Isso quer
dizer que comunicar não é apenas fazer saber, mas, principalmente, fazer
crer, pois “Comunicar significa obter adesão. Esta depende de opiniões
prévias, de crenças, de aspirações, de valores, de normas, de emoções, de
sentimentos, de visão de mundo [...]” (FIORIN, 2015, p. 76). Nesse sentido,
usamos a linguagem para nos comunicar e para defendermos determinados
pontos de vista. Para isso, podemos utilizar as teorias da retórica.
Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014), a retórica é o estudo de
técnicas que utilizam a linguagem para persuadir e convencer, isto é, por
meio dos recursos discursivos, que buscam a persuasão e o convencimento,
obtém-se a adesão dos espíritos. Conforme Ferreira (2017), todo ser humano
é um ser retórico, uma vez que utiliza da força da palavra para manipular
e influenciar o outro, com vistas a “guiar suas ações, a causar interesses
e estabelecer acordos” (FERREIRA, 2017, p.12). Portanto, se somos seres
retóricos, pretendemos de alguma maneira influenciar o outro, logo, o que
produzimos ou escrevemos também é criado para influenciar ou mesmo
manipular o nosso auditório.
A retórica, na concepção aristotélica, organiza o discurso, deixando-o
82 latente de modo que se torne persuasivo, assim, a construção de textos que
Sociorretórica: da leitura e da escrita
para além do contexto escolar

considerem as etapas do sistema retórico, construído ainda na retórica


antiga por Aristóteles (2005 [384-322 a.C.]) e, mais tarde, ampliado com
as contribuições de novos teóricos, como Perelman e Olbrechts-Tyteca
(2014), é uma maneira de produzir textos mais eficazes.
O sistema retórico, ou mesmo edifício retórico, foi definido em quatro
pilares que são as partes que constituem o discurso, a saber: a invenção
(heurésis), a disposição (taxis), a elocução (lexis) e a ação (hypocrisis). De
acordo com Reboul (2004), o autor ou o orador que deixar de cumprir
alguma fase do sistema retórico tornará a sua escrita ou o seu discurso
vago, confuso, incoerente ou difícil de ser ouvido.
A invenção (heurésis, em grego), de acordo com Ferreira (2017), é uma
palavra originada da língua latina inventio, a qual se une ao verbo invenire:
que significa descobrir, achar, encontrar. Em uma leitura retórica, é a pri-
meira etapa, aquela em que o orador busca técnicas discursivas que irão
sustentar o seu texto. Ainda é nesse momento que o autor procura saber
para que tipo de auditório-leitor ele vai direcionar a sua escrita e em que
gênero irá desenvolvê-la. Nesse ponto, também busca os argumentos que
considera eficazes para que se tenha um texto persuasivo.
A segunda parte do sistema retórico é a disposição (taxis). Nela, pro-
cura-se colocar os argumentos extraídos da primeira etapa, a invenção em
ordem, ou melhor, é o momento de escrever tudo aquilo que foi pensado
na etapa anterior. Dessa forma, a disposição é dividida em quatro partes:
o exórdio, a narração, a confirmação e a peroração.
Em todo discurso retórico, o orador visa provocar paixões-emoções no
auditório, e é na fase do exórdio que ele procurará suscitar esses sentimen-
tos. É nela, também, que irá colocar os seus primeiros argumentos para
manter o auditório benevolente ao discurso proferido. Sobre isso, Reboul
(2004, p. 55) descreve que o “exórdio é a parte que inicia o discurso, e sua
função é essencialmente fática: tornar o auditório dócil, atento e benevo-
lente”. Ferreira (2017) reitera que o exórdio estabelece identificação com o
auditório e chama a atenção por meio de um conselho, um elogio ou uma
censura, mas isso vai depender do gênero do texto em questão.
No que compete à narração (diegésis), os argumentos são colocados
em ordem, com vistas aos interesses do orador. Nessa etapa, o logos ganha
relevância, pois é o discurso materializado que irá ser trabalhado. Para
isso, segundo Reboul (2004), é preciso ter três qualidades: ser objetivo,
nítido e acreditável.
Outro aspecto da disposição é o elemento confirmação (pistis), pelo
qual se busca expor todas as provas em razão de destruir os argumentos do 83
adversário. Nesse sentido, Reboul (2004, p. 56) expõe “que a confirmação
é um conjunto de provas seguido por uma refutação”. Dessa maneira, é o
momento no qual compete, ao orador, ordenar os argumentos em fortes
ou fracos.
A peroração é o quarto momento da etapa da disposição. Citelli (2005,
p. 13) ratifica que ela “é o epílogo, a conclusão”. Portanto, é a fase da con-
clusão do discurso, que se faz pela união da paixão ao argumento para,
então, finalizar a ação.
Voltando às etapas do sistema retórico, a elocução (lexis), que carac-
teriza a terceira parte, pode ser conceituada, consoante Ferreira (2017, p.
116), como a etapa da “redação do discurso retórico”. Logo, infere-se que
a elocução é a escrita propriamente dita do texto, momento de reunião de
tudo o que foi imaginado nas fases anteriores. Nele, o texto fica transpa-
rente e tanto as perfeições quanto as imperfeições do processo criativo se
tornam perceptíveis.
Finalmente, a ação (hypocrisis), última fase do sistema retórico, diz
respeito mais à parte do discurso declamado. Depois de fazer um apanhado
de todas as fases anteriores (invenção, disposição e elocução), o sistema
concretiza a ação, concluindo o discurso. De acordo com Ferreira (2017,
p. 138), o discurso “trabalha com os componentes emotivos da emissão da
palavra: a gestualidade (kinésica) e a interação com o espaço (proxêmica)”.
Nesse momento, o auditório irá fazer um juízo de valor sobre a eficácia
do discurso do orador.
Além de mediar a interpretação de textos, o sistema retórico pode ser
bastante útil como ferramenta didática para a sala de aula, uma vez que,
na perspectiva do ensino de língua portuguesa, opera como um suporte
didático para a construção da escrita, de modo que o resultado sejam textos
atraentes que “podem fornecer experiências organizadas, interpretáveis
e significativas para os leitores” (BAZERMAN, 2015, p. 152). O teórico
acrescenta ainda que, para a escrita do texto ser persuasiva e conseguir
prender a atenção do leitor, o autor deve escolher bem as estratégias a serem
utilizadas, de acordo com cada gênero textual, para, dessa maneira, incitar
paixões-emoções no auditório-leitor e prendê-lo ao texto. Uma dessas
estratégias é a disposição dos elementos de coesão, que estão relacionados
com a coerência do texto e, desse modo, são recursos que orientam a leitura.
Nessa perspectiva, a sociorretórica é uma abordagem que pode sub-
sidiar e nortear o professor de língua portuguesa no desenvolvimento da
competência escritora, pois, de acordo com os autores Freedman e Medway
84 (1994), é uma teoria que trabalha com o conhecimento humano e com
Sociorretórica: da leitura e da escrita
para além do contexto escolar

as questões da linguagem. Por isso, uma orientação sociorretórica pode


atender os professores que buscam suporte para a melhoria do processo de
ensino e aprendizagem, principalmente em relação à escrita, à leitura e à
interpretação de textos. Formando com isso, o aluno-autor que percebe os
seus discursos como dispositivos de persuasão e de ação social, dado que
“a viagem textual move e transforma o leitor em um novo tipo de agente,
com novos recursos, percepções, posições, pensamentos e informações”
(BAZERMAN, 2015, p. 166).
Entendemos, a partir disso, que é possível trabalhar com contextos
significativos para os alunos, considerando que, ao perceber melhor os
meandros textuais que a retórica pode desvelar, motivações emergirão
diante do desafio de planejar e articular recursos para produzir um dis-
curso eficaz. Deriva daí a decisão de relacionar a leitura e a escrita com o
trabalho mediado pelos gêneros textuais dos mais diversos.
De acordo com Bazerman (2011), gêneros são fenômenos de reco-
nhecimento psicossocial partícipes dos processos de estabelecimento de
atividades socialmente organizadas. Eles emergem dos processos sociais
em que as pessoas tentam compreender umas às outras por meio do com-
partilhamento de significados. Portanto, surgem e se modificam de acordo
com as transformações e as inovações sociais, uma vez que são fenômenos
históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social. Sendo assim,
a escrita do aluno pode ser facilitada com a leitura de gêneros variados que
tenham significado em sua vida e aos quais demonstre interesse.

Um pouco sobre leitura


Os entraves para o desenvolvimento de uma escrita competente também
são agravados pelas dificuldades encontradas na leitura, haja vista que,
muitas vezes, a escrita insere-se num campo contínuo de intercâmbio, ainda
mais quando compartilhamos uma situação ou nos inserimos em uma em
andamento, a qual exige a articulação de outras competências, entre elas
a leitora. Ademais, no âmbito escolar, o desenvolvimento da leitura traz
benefícios para o desenvolvimento da escrita, pois agrega maior reflexão
sobre o ato, tendo em vista que o aluno-autor constrói um arcabouço sólido
baseado em gêneros e em temas variados e, quando exposto a uma situação
de escrita, ainda que de forma subjetiva, aciona esse arcabouço. Diante
disso, o desenvolvimento da escrita, atravessado pelo desenvolvimento da 85
leitura, permite que uma competência amplie a outra.
De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais,

A leitura é um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo


de construção do significado do texto, a partir dos seus objetivos,
do conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que
sabe sobre a língua: características do gênero, do portador, do
sistema de escrita etc. [...] Qualquer leitor experiente que conse-
guir analisar sua própria leitura constatará que a decodificação
é apenas um dos procedimentos que utiliza quando lê: a leitura
fluente envolve uma série de outras estratégias como seleção,
antecipação, inferência e verificação, sem as quais não é possível
rapidez e proficiência. (BRASIL,1998, p. 69-70).

Esse posicionamento define a leitura como uma atividade de produção


de sentido e deixa claro que o leitor não é apenas um decodificador, mas,
sim, que o discurso é construído numa relação que vai além da decodificação
e que também articula um conjunto de saberes e estratégias. Outrossim,
a produção de sentidos numa leitura põe em movimento um conjunto de
conhecimentos armazenados na memória, os quais são ativados segundo
os “aspectos contextuais que dizem respeito ao conhecimento da língua,
do mundo, da situação comunicativa enfim” (KOCH; ELIAS, 2011, p. 59).

Além disso, as autoras apontam que a construção de sentidos entre os


sujeitos do discurso exige que haja, ao menos parcialmente, o comparti-
lhamento de conhecimento.

A leitura como um caminho expressivo


Decidimos pela leitura como etapa inicial para fomentar conteúdos para
a escrita, mas também para, de forma prática, apresentar a aplicabilidade
do sistema retórico tanto na leitura quanto no processo de construção
do discurso escrito. O professor pode selecionar textos sobre qualquer
assunto que esteja na mídia, ou que seja interessante aos interlocutores,
porque, ainda que os alunos não tenham o hábito da leitura, podem ter
ouvido falar a respeito em casa, na escola ou em qualquer círculo que
frequentem. Trata-se, nesse caso, de trazer, para o ambiente escolar, temas
86 que façam parte do dia a dia do aluno. A escolha do gênero pode estar
Sociorretórica: da leitura e da escrita
para além do contexto escolar

atrelada ao atendimento de demandas associadas ao conteúdo e à etapa


escolar, já que o sistema retórico pode espelhar as estruturas de gêneros
de diferentes tipos textuais. Reforçamos, apenas, que é profícuo que haja a
transposição de um gênero a outro, isto é, que a leitura seja em um gênero
do discurso e a proposta de escrita, em outro, pois, assim, fomenta-se o
exercício da escrita criativa e a reflexão sobre o que é adequado ou não a
cada gênero e situação.
Após o trabalho com a leitura, debates e tarefas orientadas ao tema e
às suas significações, aos alunos pode ser proposto o desenvolvimento de
um texto que analise, explane ou problematize as reflexões levantadas. Su-
gerimos, a título de exemplo, que, da leitura de notícias, seja desenvolvida
uma crônica; da análise de textos publicitários, seja proposta a elaboração
de um artigo de opinião; entre outras associações que se voltem ao aten-
dimento dos objetivos almejados.
Desse modo, chamaremos a atenção para alguns aspectos da constru-
ção do texto “Desculpas de Neymar são ridicularizadas pelos internautas”
escrito pelo colunista Fraga, que podem ser evidenciados numa proposta
de leitura orientada à produção escrita.
À época de Copa do Mundo de 2018, ocasião na qual se desenvolvem as
presentes reflexões, e partindo do pressuposto de que todos tiveram contato
com alguma informação sobre o campeonato em jornais, redes sociais, sites
ou conversas, selecionamos, para exemplificar a aplicabilidade do sistema
retórico, um texto publicado numa coluna esportiva que problematizava
a repercussão da propaganda “Um novo homem todo dia”, protagonizada
pelo jogador Neymar.

87
Fonte: https://noticias.r7.com/prisma/coluna-do-fraga/desculpas-de-neymar-sao-ridi-
cularizadas-pelos-internautas-30072018 – Acesso em 01 de agosto de 2018

Ao critério do professor, selecionado o texto, ou os textos, com a fina-


lidade de preparar os alunos para a atividade de produção textual escrita,
inicia-se a mediação da leitura com o objetivo de provocar a construção
de inferências que levem o aluno, além da compreensão do texto, na di-
reção de possíveis interpretações e reconhecimento dos posicionamentos
assumidos, através de algumas estratégias:
• A leitura apenas da manchete do texto e o seu subtítulo, o local de
publicação, o autor e, a partir disso, o levantamento de hipóteses
sobre:

° Tema do texto;
° Tipo de leitor ao qual se destina;
° Imagem com a qual o texto se relaciona.
• Confirmação, ou não, das hipóteses levantadas com a leitura na
íntegra;

• Debate de ideias entre e com os alunos;

88
• Anotação das ideias e das suposições levantadas.
Sociorretórica: da leitura e da escrita
para além do contexto escolar

Feito esse primeiro contato com o texto, passamos à leitura com o crivo
do sistema retórico para demonstrar como a retórica pode ser utilizada para
ensinar a leitura e a escrita aos alunos de Ensino Fundamental e Médio,
por meio das etapas de construção do discurso.

O sistema retórico como recurso


didático: da leitura à escrita persuasiva
Segundo Ferreira (2017), a construção do discurso, sob uma perspectiva
retórica, prevê algumas etapas, abordadas abaixo num duplo movimento
de leitura e sugestão de ensino da escrita Essa estratégia visa explicitar as
etapas do processo de criação do discurso a partir da análise de textos que
façam parte da configuração do contexto retórico e da delimitação do tema
que serão trabalhados pelo professor. Haja vista ser possível, com a leitura,
ressaltar as técnicas utilizadas para tornar o discurso persuasivo. Com isso,
evidenciamos que o sistema retórico é um recurso que pode ser aplicado
tanto para o desenvolvimento de uma leitura proficiente, quanto para o
ensino de uma escrita persuasiva e competente.
Assim, colocado em contexto, durante a Copa do Mundo de 2018 e,
principalmente, após a eliminação da seleção brasileira nas quartas de final,
o jogador Neymar foi criticado pela sua atuação em campo. Quase um
mês após a eliminação, foi veiculada uma campanha publicitária da marca
de aparelhos para barbear Gillete, na qual o jogador se dirige ao público
brasileiro para se desculpar pela sua má atuação nos jogos. Tal ato gerou
novas críticas por conta dessas desculpas virem em forma de propaganda, a
qual está embasada em um contrato comercial. Em resumo, nesse contexto
retórico, temos alguém que fala (Neymar) para um auditório particular
(brasileiros) em dado momento (logo após a eliminação da seleção brasileira
na Copa de 2018), em virtude de um porquê (para desculpar-se por sua
atuação e atitudes), contra os que criticam a sua imagem ou questionam o
seu profissionalismo e caráter, escolhendo um modo de propagar essa fala
(campanha publicitária).
A invenção (inventio), primeira etapa da construção do discurso, é o
momento no qual o aluno-autor (orador) busca as ideias que irão sustentar o
seu texto. Em “Desculpas de Neymar são ridicularizadas pelos internautas”, o
colunista esportivo Fraga mostrou manifestações de internautas em resposta
à campanha publicitária na qual o jogador pede desculpas. 89
Na etapa da disposição (dispositio), o aluno-autor decide sobre a organização
do discurso, a qual deve estar orientada para as suas intenções de persuasão. O
exórdio, que é o primeiro elemento da dispositio, consiste no início do discurso,
situação em que o orador falará ou escreverá. Assim, é o momento em que o
orador deve proceder de modo a cativar a atenção do auditório (leitor) e chamar
a atenção para o que será dito ou escrito. Portanto, o colunista, ao afirmar que
as desculpas foram ridicularizadas pelos internautas que entenderam “que as
palavras do jogador atendiam simplesmente a uma estratégia de marketing e
pareciam tão falsas quanto as ‘quedas artísticas’ durante a Copa do Mundo”,
demonstra que concorda com a opinião do público, o que torna a frase “Parece
que não deu certo” irônica, uma vez que utiliza um recurso figurativo retórico,
que faz parte da superfície do texto, com o seu significativo valor persuasivo,
pois, ao usar o verbo “parecer”, o jornalista coloca o julgamento em dúvida,
prendendo a atenção do leitor para os desdobramentos do texto.
Após a invenção e a disposição, o orador-autor faz a construção linguística
do texto, ou seja, a elocução (elocutio), decidindo e privilegiando escolhas na
tessitura do discurso (texto), o que o torna eficaz.
Por fim, na ação (actio), etapa de pronunciamento do discurso, que é o
resultado das etapas anteriores, captar a atenção e persuadir o auditório são
ações colocadas à prova. Em virtude de sua atuação, o jogador projetou um
ethos (uma imagem de si) amplamente criticado durante o campeonato. O mo-
vimento de reconstrução dessa imagem não foi eficaz, e é isso que o colunista
deixa evidente aos seus leitores, ainda que Neymar, estrategicamente, tente se
aproximar do seu auditório, negociando a distância, ao chamá-lo de “parça”.
A análise efetuada evidencia o uso do sistema retórico, o que propicia não
apenas uma leitura significativa, mas também uma estratégia para os profes-
sores desenvolverem a escrita com os seus alunos. Dessa forma, a proposta
de transposição de um gênero a outro está em consonância ao levantamento
já comentado de temas que estejam engajados ao cotidiano do aluno para a
construção de atividades significativas de escrita, evitando que o processo esteja
centrado apenas no produto (texto final) e na avalição (resultado). Propomos
uma sequência técnica por meio da qual o professor pode adequar a sua reali-
dade para que, com o aporte da sociorretórica, sejam valorizados o processo
de escrita e a superação de obstáculos que essa atividade normalmente traz.
Vejamos, a seguir, um quadro orientador produzido para fornecer uma
visão geral das etapas a serem desenvolvidas nas atividades:

90
Sociorretórica: da leitura e da escrita
para além do contexto escolar

ETAPAS SISTEMA ATIVIDADES CONSIDERAÇÕES


RETÓRICO
1 Construção 1.a - Seleção de tema/ O professor fará a seleção do texto
do texto (Notícia, peça condutor, que consolida o tema, e
contexto publicitária, texto orientará a leitura identificando o
retórico literário e outros.) contexto retórico. Ao seu critério,
1.b - Analisar o texto, a tarefa poderá ser realizada pelo
identificando o contexto aluno ou grupos de alunos para
retórico (Quem fala? A confronto das respostas.
quem fala? Quando fala?
Por que fala? Contra o
quê? Como fala?).
2 Invenção 2.a - Ampliar a pesquisa O aluno tem como tarefa
com a leitura de textos ampliar a pesquisa, ampliando
relacionados ao tema. seu repertório. Comentários
2.b - Debater os textos de internautas, por exemplo,
para favorecer o fomento mostram diferentes pontos de
de ideias. vista. As ideias consolidadas
devem ser debatidas com os
outros alunos e professor.
3 Disposição 3.a - Planejamento do O aluno decidirá sobre as ideias
texto: que farão parte do texto, tomará
decisão sobre as ideias notas e decidirá como elas
que farão parte do texto e serão articuladas e apresentadas
como serão apresentadas ao leitor. Refletirá, inclusive
ao leitor. nos imperativos do gênero.
Importante que tenham tido
contado com o gênero escolhido
para a tarefa de escrita.
4 Elocução Construção do texto: Somente nessa etapa e com
articulação do conteúdo base nas anotações e reflexões
e da forma. anteriores, o aluno iniciará a
escrita do texto, articulando o
conteúdo à forma.
5 Ação 5.a - Revisão dos textos Os alunos serão os primeiros
pelos alunos (primeiros leitores dos textos, para os quais
leitores); farão comentários e sugestões, que
5.b - Reescrita a partir o aluno-autor pode ou não acatar
dos comentários e no processo de reescrita. Após
considerações efetuadas; essa etapa, que pode ser retomada
5.c - Socialização das quantas vezes o professor
produções. considerar necessário, os textos
podem ser socializados em rodas
de leitura, saraus, blogs, jornais.

Fonte: as autoras

91
O quadro orientador pode ser aplicado a partir de quaisquer gêneros,
tanto na etapa de leitura e definição do tema condutor, como na produção
escrita, permitindo que o professor adeque a sequência a diferentes gêneros
previstos nos programas de diferentes séries e níveis. Nesse intuito, não
definimos, também, a quantidade de aulas que o tornam viável porque,
antes de tudo, é uma sugestão de aplicabilidade estratégica para o ensino
de produção escrita, que outorga ao professor a liberdade de alinhá-la a
sua realidade.
Em suma, reafirmamos que trabalhar com a transposição de um gênero
a outro é uma estratégia profícua que esboça o caminho a ser percorrido
no processo de produção textual escrita, o que permite, além disso, que o
aluno entre em contato com um gênero em relação ao outro, reconhecen-
do as características próprias de cada um, por meio da evidenciação da
aplicabilidade retórica e das diferentes maneiras de dizer, produzindo, em
seu viés sociorretórico, a ressignificação da escrita em contexto escolar.

Considerações finais
Todo ser humano é movido por motivações, que podem ser emocionais,
profissionais ou educacionais. Diante desse pressuposto, a motivação, no
contexto escolar, torna-se indispensável às diferentes situações do processo
de ensino e aprendizagem. De acordo com Bazerman (2015), essas motiva-
ções são tensionadas por preocupações de longo prazo e pelo atendimento
de situações emergentes moldadas pelo reconhecimento de como essas
situações se organizam. Em cada etapa a ser trabalhada durante o processo
de leitura e escrita, a ação acontecerá de acordo com a percepção, o lugar
de preocupações e os interesses do aluno-autor. Sendo assim, a situação
emergente é “reconhecida e moldada por nossas tipificações sobre como
as situações se organizam e como as formas de ação se tornam disponíveis
diante delas” (BAZERMAN, 2015, p. 99).
Cotidianamente, ressalta Bazerman (2015), somos expostos a situações
claras de escrita, reguladas em forma e ocasião, para as quais empreendemos
uma ação definida porque esperamos atingir um fim, que é o objetivo da
demanda. São formas de ação tipificadas para as quais precisamos apenas
decidir se atendemos ou não. A autonomia é estreita e a aceitação deter-
mina que sigamos a regulação, ou que lidemos com as consequências.
92 Assim, os momentos de escrita, na escola, pressupõem que o aluno atenda
Sociorretórica: da leitura e da escrita
para além do contexto escolar

à emergência da situação que se configura, muitas vezes, na obtenção de


uma avaliação positiva, em prejuízo à reflexão durante e sobre o processo
de escrita. Tal cenário cria um simulacro de que é uma situação artificial,
ainda mais quando situações emergentes e cotidianas são desprezadas.
Enfim, exercitar técnicas e inovar na prática diária é uma demanda que
emergem da inquietação docente. Por isso, entendemos que é possível tra-
balhar com contextos significativos para o aluno-autor, considerando que,
ao perceber melhor os meandros da escrita, que a abordagem sociorretórica
motiva, por meio do sistema retórico, será possível vencermos o desafio de
planejar e articular textos persuasivos sobre situações do contexto social.

93
Referências
ARISTÓTELES. Retórica. Ver. Levi Condinho. 2 ed. Lisboa: Biblioteca de
Autores Clássicos, 2005.
BAZERMAN. C. Gêneros textuais, tipificação e interação. São Paulo: Cortez,
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PASSARELLI, L. M. G. Ensino e correção na produção de textos escolares.
São Paulo: Cortez, 2012.
PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a
nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
REBOUL, O. Introdução à retórica. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo:
Martins Fontes, 2004.

94
Desvendando os memes:
uma proposta para o ensino
de leitura e escrita

Joelma Batista dos Santos Ribeiro1


Márcia Silva Pituba Freitas2

O acesso cada vez mais frequente à internet tem atingido diretamente as formas
de ler e escrever das pessoas, pois traz um universo cheio de imagens, letras,
sons e códigos. Ao mesmo tempo, há uma diversidade de gêneros textuais digitais
que emergem e fazem-nos interagir, além de nos estimularem e nos convidarem
a participar como leitores e escritores. Muitas vezes, no ciberespaço, o leitor não
é passivo, antes, é um produtor de textos que lê e estabelece seu próprio itinerário
de leitura ao escolher os materiais que acessará.
Atualmente, com a utilização de aplicativos e mídias eletrônicas diversificadas
nos processos de comunicação e de interação social, notamos uma crescente
circulação de gêneros textuais emergentes, que compõem o mundo letrado e
convocam cada vez mais participantes a tomarem parte desse universo. Bazer-
man (2015) afirma que:

À medida entramos no mundo letrado, passamos a reconhecer,


quase como uma segunda natureza, um grande número de gêneros
e as situações que eles acarretam. Fazemos isso quase sem refletir,
respondendo imaginativamente aos mundos que cristalizados quase
assim que os vemos. (BAZERMAN, 2015, p. 34).

1 Doutoranda em Língua Portuguesa pela PUC-SP; Mestre em Língua Portuguesa pela PUC-SP;
Especialista em Língua Inglesa pela USP; Membro do Grupo ERA.
2 Doutoranda em Língua Portuguesa pela PUC-SP; Mestre em Língua Portuguesa pela PUC-SP;
Especialista em Linguagens da Infância pelo Centro Universitário Ítalo Brasileiro (UniÍtalo); Membro do
Grupo ERA; Bolsista CAPES 97
Ao interagirmos com o universo digital e, consequentemente, com os gêneros
textuais que o compõem, facilmente podemos tanto reconhecê-los quanto iden-
tificar sua natureza, bem como os meios nos quais aparecem. Dentre os gêneros
midiáticos que circulam no ciberespaço, elegemos, para o trabalho com o ensino
de leitura e escrita em Língua Portuguesa, o meme, que vem conquistando um
espaço cada vez maior, pois é um gênero que carrega em si tanto a linguagem
verbal quanto a não verbal. Geralmente, transmite uma mensagem de humor ou
ironia e pode ser formado por imagens, figuras, fotografias, frases ou qualquer
elemento que transmita uma mensagem.
Os memes podem ser entendidos como uma construção retórica, à medida
em que são elaborados com o intuito de atingir o outro, ou seja, fazê-lo mudar
o ponto de vista, as convicções ou até o comportamento. Embora se utilizem do
humor e, por diversas vezes, da ironia, que são inerentes ao gênero, o intuito não
é apenas fazer o leitor rir ou informá-lo, mas, além disso, movê-lo de maneira a
possibilitar uma outra resposta por meio da reflexão, ou da mudança de perspec-
tiva da questão ou, ainda, suscitar uma paixão, que seria uma resposta imediata.
Esse gênero carrega um alto teor persuasivo, pois manifesta diferentes posi-
cionamentos ideológicos apresentados às redes em que circula. Embora difícil de
mensurar seu alcance, a sua resposta pode ser obtida por meio dos comentários,
das curtidas e dos compartilhamentos, ou seja, a resposta retórica pode ser dada
quase que imediatamente. Nessa perspectiva, a argumentação acha solo fértil a
partir desse gênero midiático, que carrega uma construção de sentido apoiada na
imagem, na intertextualidade e no contexto, ou seja, para dominar a leitura
e a produção do gênero em questão, é necessário identificar fatores externos
ao texto como a memória e a atualização dos fatos que o originaram.
O caráter persuasivo do meme está internamente relacionado com os
estudos de retórica que, desde os seus primórdios, não se ocupa com as
teses aceitas e provadas; antes, encarrega-se do que pode ter sido, com o
provável, com o verossímil, que atua no campo da doxa, ou seja, da opinião.
Aristóteles (2005), filósofo que viveu entre 384 a.C. e 322 a.C., já definira a
retórica como sendo capaz de achar o que cada caso comporta de persuasivo.
É nessa perspectiva, aliada à sociorretórica de Bazerman (2015), que sugerimos
a utilização do meme como ponto de partida para o ensino de leitura e produção
textual argumentativa em Língua Portuguesa.
Para tanto, traçamos um breve histórico sobre a origem, as características
e a taxonomia dos memes como um gênero textual midiático, um panorama
teórico sobre retórica, e, por fim, fazemos um percurso de leitura de um
meme que, potencialmente, baliza o processo de invenção da escrita de um
98 texto argumentativo.
Desvendando os memes: uma proposta
para o ensino de leitura e escrita

Origem do meme
Os memes são um gênero textual digital que circula na internet em
redes sociais como o Whatsapp, o Faceboook e o Twiter. Eles podem ser
formados por imagens, figuras, fotografias, frases ou qualquer elemento
que transmita uma mensagem irônica ou humorística. Alguns chegam
a viralizar na rede, em uma velocidade impressionante, outros, todavia,
não são tão propagados, mas podem permanecer por mais tempo na web.
O termo meme foi cunhado pela primeira vez por Richard Dawkins,
zoólogo e teórico social, em 1976, no seu livro “O gene egoísta”. O estudioso
se dedicou à pesquisa da evolução da cultura na sociedade, por meio de uma
comparação entre a evolução genética (Charles Darwin) e a evolução cultural,
ou seja, a transmissão cultural seria semelhante à transmissão genética, no
sentido de que, apesar de conservadora, pode dar origem a uma forma de
evolução. Portanto, para o autor, assim como o gene é o agente da evolução
genética, os memes o são da evolução cultural. Em outras palavras, o meme
é o replicador, o transmissor cultural que se dá por meio de ideias, melodias,
slogans, modas do vestuário, maneiras de fazer que se disseminam de uma
pessoa para outra dentro de uma cultura (DAWKINS, 1979). Sua propagação
se dá, em amplo sentido, por meio da imitação. Blackmore (2000, p. 65) ilustra:
“Quando você cumprimenta com o aperto de mãos, canta ‘Feliz aniversário’
ou vota em uma eleição, você está perpetuando memes3” (tradução nossa).
Dawkins (1979) esclarece que o termo meme provém da abreviação da raiz
grega “mimeme”, mas ressalta que “pode-se, alternadamente, pensar que a pala-
vra (meme) está relacionada à memória, ou à palavra francesa même (mesmo)”
(DAWKINS, 1979, p. 192). Para o autor, os memes são os replicadores, no
entanto, não significa que são cópias idênticas, antes se replicam resguardando
apenas algumas características, isto é, geram memes diferentes. Esse processo de
replicar está estreitamente relacionado com a cultura e o tempo. O termo meme
na internet passou a ser usado com grande frequência, pois nomeia um gênero
textual marcado pela linguagem verbal e não verbal, ou seja, a multimodalidade
textual, que requer de seus leitores e produtores4 estratégias de leitura e produção.

3 “Whenever you shake hand as, sing “Happy birthday” or cast your vote in an election, you are
giving life to memes”. Blackmore (2000, p. 65)
4 Salientamos que nesse trabalho adotaremos a terminologia produtor em detrimento a autor
para os que produzem os memes. Segundo Chartier (2014, p. 28): “[...] Aquele que assina uma carta privada
ou um documento legal e aquele que inventa uma publicidade não são autores, mesmo tendo sido eles os
produtores do texto. A ‘função autor’ resulta, portanto, de operações específicas, complexas, que relacionam
a unidade e a coerência de alguns discursos a um dado sujeito”. 99
No processo de replicação dos memes, Dawkins (1979) aponta três
características: longevidade, fecundidade e fidelidade. A longevidade é a
capacidade do meme de permanecer no tempo; a fecundidade, por sua vez, é
a capacidade de gerar cópias; já a fidelidade está relacionada à capacidade de
gerar cópias semelhantes ao meme original. Com base nos estudos de Dawkins
(1979), Recuero (2007) realiza uma taxonomia dos memes e adiciona mais
uma característica: o alcance, que está relacionado com a aproximação ou o
distanciamento dos memes replicados. Essas características apontam para o
valor de sobrevivência dos memes e norteiam a construção de sua tipologia.
Dessa forma, Recuero (2007) aponta:
• Quanto à fidelidade, os memes podem ser: replicadores, alta
fidelidade ao original e reduzida variação, seu principal objetivo
parece ser informar; metamórficos, têm alto poder de mutação
e recombinação, são difíceis de serem associados com o original
devido sua variabilidade, também consiste em uma forma de
estímulo à interação, como forma de propagação; miméticos, a
estrutura do meme permanece inalterada, apesar de sofrer mutações
e combinações, são facilmente reconhecidos como imitação do
original, no entanto, a sua essência está na personalização. A autora
ainda salienta que é possível um tipo de meme se transformar
em outro, por exemplo, um meme metamórfico pode ser apenas
referenciado em um link e, assim, transforme-se em meme de
replicação.

• Quanto à longevidade, há os memes persistentes, que são aqueles


que permanecem sendo replicados por mais tempo, ou ainda
aqueles que desaparecem por um tempo, mas depois voltam a se
replicar. Esses tipos de memes, segundo Recuero (2007), associam-
se facilmente com os miméticos e replicadores, devido às suas
poucas variações. Os voláteis têm um curto período de exposição,
podem até ser copiados na rede, mas são esquecidos rapidamente
ou modificados, o que os tornam memes mórficos.

• Quanto à fecundidade, podem ser: epidêmicos, ou seja, se espalham


rapidamente por várias redes de weblogs, como uma epidemia;
fecundos, são memes que se espalham apenas por grupos menores
e alguns weblogs. Todos os memes são potencialmente fecundos,
ou seja, necessitam algum grau de disseminação.

• Quanto ao alcance dos memes dentro da rede, podem ser: globais,


100 alcançam indivíduos que estão distantes entre si, ou ainda podem
Desvendando os memes: uma proposta
para o ensino de leitura e escrita

ser locais, restringem-se à vizinhança de indivíduos, ou seja, são


propagados por pessoas que já interagem. Apesar de serem restritos
a poucos, podem se tornar globais.
Cabe salientar que, embora a tipologia de memes esteja organizada
separadamente, um meme pode se enquadrar ou se transformar em outras
categorias de acordo com o grau de espalhamento e variação.
Os produtores e leitores de memes, muitas vezes, utilizam-nos intui-
tivamente. No processo de interação produtor, leitor e texto (meme), as
partes podem desenvolver um repertório de informação e conhecimento,
pois é necessário para quem o elabora que o faça a partir de uma escrita
persuasiva, sagaz e inteligível (inventio) – explicaremos o conceito mais
adiante – e para quem vai ler, que o faça da forma mais competente
possível. Assim, Bazerman (2015) aponta que a familiaridade com um
determinado gênero textual, a partir de um contato frequente, faz com
que o utilizemos sem refletir sobre suas minúcias, uma vez que a pró-
pria constância no contato se retroalimenta e possibilita a construção
interiorizada de um cabedal, fruto das experiências de escrita e leitura,
respectivamente.
O trabalho com memes pode despertar nos alunos um olhar mais apurado
para questões culturais que os cercam, pois é o resultado da convergência
de fatores culturais e sociais que se replicam e se propagam à medida que os
memes são produzidos, lidos e compartilhados. Além disso, pode levá-los
à reflexão sobre a linguagem, a partir de outros viéses, como sua natureza
persuasiva e as muitas possibilidades de construções de novos sentidos a
partir de uma abordagem interpretativa mais crítica desse gênero.

Da memória à intertextualidade
Outros fatores estão estreitamente relacionados com a produção e
a leitura dos memes. Destacamos a memória e a intertextualidade, uma
vez que podemos considerá-las como peças-chave tanto para a produção
quanto para uma leitura competente de um meme.
A memória é comum tanto para o produtor quanto para o leitor dos
memes e é também considerada, em retórica, a quinta parte da composi-
ção do discurso. Assim, quando há a produção de um meme, o produtor
assume o papel de guardião de um momento, uma vez que o registro,
embora carregado de humor e crítica, destaca uma situação que merece 101
ou tem relevância social. Podemos dizer, então, que o produtor do meme
usa de sua memória individual, a mesma que o orador utiliza quando
profere um discurso.
Posteriormente, essa memória individual amplia seu alcance e torna-
se uma memória coletiva, uma vez que ao circular por um auditório, seja
ele particular ou universal, o meme passa a pertencer não mais a um só
sujeito, mas a um grupo de sujeitos. Por isso, Le Goff (2014) afirma que:

A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar


identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das ativi-
dades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje,
na febre e na angústia. Mas a memória coletiva é não somente
uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder.
São as sociedades cuja memória social é, sobretudo, oral, ou que
estão em vias de constituir uma memória coletiva escrita, aquelas
que melhor permitem compreender esta luta pela dominação
da recordação e da tradição, esta manifestação da memória. (LE
GOFF, 2014, p. 435) (grifo do autor).

Assim, damos relevo à questão da identidade como fator que une ou


dispersa os integrantes de um auditório, pois o meme é uma manifestação
individual que almeja a adesão do maior número de sujeitos possíveis.
Dessa forma, pode ocorrer, quando une, o fenômeno da viralização. Esse
posicionamento que acontece em um espaço-tempo, demarca não só a
presentidade de um fato em um lugar, como também, o seu decurso his-
tórico no tempo. Ricouer (2014) asserta que:

[...] é à memória que está vinculado o sentido da orientação


na passagem do tempo; orientação em mão dupla, do passado
para o futuro, de trás para frente, [...] mas também do futuro
para o passado, segundo o movimento inverso de trânsito da
expectativa à lembrança, através do presente vivo. (RICOUER,
2014, p. 107-108).

Dessa forma, a intertextualidade provoca instintivamente a memória


do leitor e pode ser considerada uma das primeiras manifestações dos hi-
perlinks, característicos dos textos midiáticos em que se inserem os memes.
Quando ocorre uma referência intertextual provocada propositadamente
no processo de leitura, uma das alternativas cabíveis ao leitor é prosseguir
com a leitura ou, outra, voltar ao texto original e retomá-lo para uma me-
102 lhor compreensão do que se segue (CARDOSO e SILVA, 1997).
Desvendando os memes: uma proposta
para o ensino de leitura e escrita

Por isso, a fim de esclarecer a respeito da intertextualidade, afirma-nos


Kristeva (2012) que:

[...] todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto


é absorção e transformação de um outro texto. Em lugar da
noção de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade, e
a linguagem poética lê-se pelo menos como dupla. (KRISTEVA,
2012, p. 142) (grifo da autora).

Assim, retomamos a memória como referência. O uso do conhecimen-


to prévio (textos anteriores) do leitor é um facilitador de entendimento
para a leitura do meme. É preciso compreender o contexto de construção:
desconstruir as partes (texto e imagem), preencher as lacunas necessá-
rias, decodificar e interpretar, pois a partir desse procedimento pode se
dar de forma competente e eficiente a leitura, cumulando-a de sentido e
significado para o leitor.

Retórica e gêneros textuais


No contexto midiático, muitos gêneros textuais têm emergido e anga-
riado leitores e produtores que participam ativamente do campo virtual.
Segundo Bazerman (2015), “os gêneros corporificam compreensões de
situações, relações, posições, humores, estratégias, recursos apropriados,
metas e muitos outros elementos que definem e formam meios de reali-
zação” (BAZERMAN, 2015, p. 35). O autor ainda afirma que, além dos
gêneros trazerem marcas do tempo e do lugar no qual se realizam ações,
também assessora o escritor a dar forma e objetivo ao texto produzido.
Assim, auxilia a enfrentar o desafio do papel em branco, que tantas vezes
atormenta os alunos de diferentes faixas etárias.
A produção textual dirigida por gênero, segundo Bazerman (2015),
ajuda a identificar a expectativa dos leitores. Perspectiva essa centrada
no receptor e compartilhada pela retórica que, desde a Antiguidade,
principalmente com Aristóteles (2005), que a sistematizou, já apontava
para o auditório como alvo do discurso, ou seja, todo discurso tinha
como objetivo atingir o outro, trazer o outro para si no sentido de fazer
mudar o comportamento ou, ao menos, negociar o ponto de vista. Dessa
forma, quando um produtor de texto o constrói tendo em vista a adesão 103
do interlocutor, produz construções retóricas e, assim, objetiva a eficácia
persuasiva por meio da construção argumentativa apresentada.
Salientamos que utilizamos os termos da retórica orador e auditório
para nos referirmos aos participantes do processo de produção e recepção
do discurso. A retórica, na Antiguidade, se ocupava dos discursos orais
elaborados e entregues por oradores ao seu auditório na pólis grega, que
deliberavam sobre as causas apresentadas pelos retores (oradores). Aris-
tóteles (2005), inclusive, classificou os gêneros oratórios de acordo com
a atitude do auditório após ouvir o discurso: julgar (gênero judiciário),
apreciar (gênero laudatório) ou deliberar (gênero deliberativo). Ao nos
referirmos ao auditório, é válido lembrar que ele poderá ser composto
tanto por um indivíduo ou um coletivo, como esclareceremos mais adiante.
No processo de sistematização da retórica, Aristóteles (2005) dividiu
a composição do discurso em quatro partes: invenção, disposição, elocu-
ção e ação, mais tarde, a retórica latina acrescentou a memória. Vejamos,
brevemente, cada uma das partes, segundo Tringali (2014):
• A invenção consiste na busca de argumentos e outros meios de
persuasão relativos ao tema do discurso. É a etapa da seleção
de argumentos que podem ir da persuasão ao jogo das paixões,
desde que suscite uma resposta favorável ao problema levantado.

• Em segundo lugar vem a disposição, que diz respeito à organização


desses argumentos no discurso, em outras palavras, é o plano do
discurso, que se divide em: exórdio, início do discurso, que tem
a função de tornar o auditório receptivo; narração, exposição da
solução de maneira clara de forma a beneficiar as necessidades
de acusação ou defesa; confirmação é a exposição do conjunto
de provas seguido de uma refutação; por último, a peroração
e a digressão, a primeira tem a função de pôr fim ao discurso,
pois mostra a adequação da solução ao problema apresentado,
que pode inclusive dividir-se em partes; a digressão é quase
um momento de descontração do auditório, no qual o orador
pode tanto distrair, apiedar ou indignar o auditório.

• A terceira fase de composição do discurso, a elocução, se


concentra na redação do discurso, é o momento no qual são
empregadas as figuras de estilo, e o orador precisa se empenhar
para produzir um estilo formal; para atingir esses fins o orador
deveria adaptar o estilo ao assunto, ser claro e se mostrar vivaz.
104
Desvendando os memes: uma proposta
para o ensino de leitura e escrita

• Já a ação está ligada à execução oral do discurso, ou seja, gestos,


voz e demais fatores que efetivam o alcance do auditório pela
presença do orador.

• Por fim, a memória que é utilizada tanto pelo orador, como


recurso para se lembrar do discurso, quanto pelo auditório, que
pode fazer as relações necessárias durante o discurso, buscando a
partir do seu repertório – conhecimento prévio – dados essenciais
para melhor compreensão do exposto pelo orador. Nos textos,
observamos essa ocorrência por meio das intertextualidades que
resgatam lembranças e constroem novos discursos.

A divisão da composição do discurso consiste em um meio valioso para


o produtor de textos enfrentar o desfio da escrita. Cada uma das partes,
como discorremos brevemente, discrimina ações da elaboração da escrita
até a sua exposição. Bazerman (2015) afirma que, no processo de escrita,
o produtor desenvolve vários tipos de atividades como: pré-escrita, inven-
ção, planejamento, escrita de esboço, revisão, edição e revisão de provas,
que influenciam no aprimoramento do texto final em vários níveis, pois
“a sequência geral de atividades ajuda o escritor a criar o texto, transfor-
mar pensamentos iniciais em prosa bem elaborada” (BAZERMAN, 2015,
p.73). O autor ainda menciona que no momento de elaboração (invenção)
o escritor não deverá se incomodar com problemas como ortografia ou
digitação correta, pois haverá o momento propício para essa etapa.
O momento da invenção, parte que enfatizamos nesse estudo, não se
limita à busca do que se irá dizer, antes, inclui a seleção das provas, isto
é, em retórica, provas consistem em tudo que possa persuadir. Invenção
não significa inventar, como a própria palavra pode sugerir, mas signifi-
ca achar e julgar, ou seja, buscar provas e selecionar as pertinentes para
a situação em questão, empregando-as, em seguida, na composição da
disposição e da elocução.
As provas retóricas não pretendem chegar à verdade, como as provas
científicas, mas ao verossímil, não à certeza, mas à opinião (TRINGALI,
2014). Essas mesmas características assinalam o gênero meme, que busca,
por meio da ironia e do humor, a adesão à tese apresentada, pela exposição
das provas retóricas que são transmitidas por intermédio da linguagem.
Nesse processo, o auditório estará inclinado a responder à tese. Assim,
o orador, com o intuito de convencer seu auditório, faz suscitar uma paixão
que, aliás, é uma excelente prova retórica para mobilizá-lo, a favor de uma
determinada tese. Aristóteles (2000) as classificou em quatorze: cólera, 105
calma, temor, segurança, (confiança, audácia), inveja, impudência, amor,
ódio, vergonha, emulação, compaixão, favor (obsequiosidade), indignação
e desprezo. Assim, um meme pode suscitar respostas do auditório em
forma de paixões, as quais podem tanto unir, como o amor ou o favor,
como causar uma separação, como o ódio ou a vergonha. É importante
ressaltar que nem todos respondem da mesma forma às paixões suscitadas,
por isso, o orador deve conhecer bem o seu auditório.
Perelman e Tyteca (1996) assinalam que, para o orador escolher os argu-
mentos adequados para o auditório, é necessário que se estabeleça um acordo
prévio entre as partes, que poderá versar sobre valores, gostos e costumes do
auditório e, assim, o orador utilizará premissas aceitas por ele.
Tais autores, em seus estudos da Nova Retórica nos anos 60, apresenta-
ram os conceitos de auditório universal e auditório particular. O primeiro é
composto pela grande maioria das pessoas adultas, racionais e normais, mas
os autores salientam que em cada cultura poderá haver um conceito dife-
rente sobre esse auditório. Já o auditório particular pode ser constituído por
uma pessoa ou por um grupo, bem como pelo próprio sujeito, quando esse
delibera intrinsicamente sobre suas ações. Nessa perspectiva, não é demais
assinalar que é imprescindível para uma boa performance do orador que ele
se adapte ao auditório ao qual se dirige, partindo de premissas aceitas por ele.
É na invenção que o escritor busca as provas que se adequem ao seu
auditório e ao gênero que produzirá. Mesmo que no ciberespaço o auditó-
rio pareça imensurável, ao publicar um discurso, o escritor poderá fazê-lo
para um grupo específico que se encontra na rede, isto é, será direcionado
para um auditório particular, composto por pessoas que compartilham as
mesmas premissas. É comum encontramos memes de política que atendem
a um auditório particular, composto por simpatizantes, partidários e outros
que apoiam o político ou a questão. Há, também, os memes sobre derrotas e
vitórias de times de futebol que despertam paixões específicas nos auditórios
que os compartilham.
A escrita de textos na perspectiva dos gêneros textuais, como assinala a
sociorretórica, possibilita a construção do texto a partir de uma perspectiva
de organização de pessoas e atividades que são estabelecidas por meio do
universo letrado em que o indivíduo toma parte, à medida que interage nele,
e supõe o que se espera do texto, ou seja, é necessário conhecer o auditório
para o qual se produz o texto. No entanto, Bazerman (2015) acrescenta que:

Muitos gêneros têm expectativa de novidade, originalidade,


106 pensamento inovador, uma aptidão situacional particular ou
Desvendando os memes: uma proposta
para o ensino de leitura e escrita

outras capacidades de inventio mesmo para cumprir com o


sucesso os pré-requisitos básicos do gênero. O gênero dirige o
caráter da invenção, aponta ao escritor determinadas espécies de
trabalho e aguça o apetite dos leitores por determinada espécie
de surpresa. (BAZERMAN, 2015, p. 128) (grifo do autor).

O autor esclarece que há gêneros textuais, como a piada, em que a


novidade e a surpresa fazem parte do gênero e devem ser trabalhadas pelo
escritor. O meme trabalha com o humor e a surpresa, embora ocorram
várias replicações do original, geralmente, surpreende pela inovação, por
isso, pode viralizar na rede e originar outros.
Além das provas patéticas, as paixões, há também as provas éticas, ou
ethos, e as lógicas, o logos. O ethos é a imagem que o auditório constrói do
orador por meio das escolhas discursivas que esse realiza. Para ser persu-
asivo deverá se mostrar honesto, humilde e amável. Já o logos carrega o
discurso, ou seja, os raciocínios que Aristóteles (2005) dividiu em indutivos
e dedutivos. Perelman e Tyteca (1996) ampliaram os estudos de Aristóteles
sobre argumentação e classificaram vários tipos de argumentos como o de
comparação que, segundo os autores, consiste em se cotejar vários objetos
para avaliá-los em relação ao outro, podendo ser distinguidos devido ao seu
caráter identificatório ou analógico.

Leitura de meme como ponto de partida


para a produção argumentativa
Propomos nesta seção um percurso de leitura de um meme como
sugestão para o desencadeamento do processo de invenção de um texto
argumentativo. Para tanto, selecionamos um meme publicado na véspera
da votação do impeachment da ex-presidente Dilma Roussef. Fato esse
que gerou grande alvoroço nas redes sociais e, da mesma forma, a publi-
cação de vários memes com diferentes posicionamentos sobre a votação.
Observemos5:

5 Disponível em http://gersoncpidapetrobras.blogspot.com/2016/04/veja-os-melhores-memes-
sobre-o-processo.html - acessado em julho/2018. 107
O meme “Digam ao povo que eu fico” originou-se de uma tela ilus-
trativa de Dom Pedro I, príncipe regente do Brasil, sobre o “Dia do Fico”,
data conhecida pelo seu pronunciamento sobre sua permanência no Brasil,
apesar da pressão da coroa portuguesa, que havia solicitado sua volta a
Portugal como estratégia de impedimento da independência e recoloni-
zação do Brasil.
O partido liberal do Brasil chegou a colher milhares de assinaturas
para a permanência de Dom Pedro I, que proclamou no dia 9 de janeiro
de 1922: “Se é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, estou
pronto! Digam ao povo que fico” (FAUSTO, 1995, p. 132). No entanto, a
primeira parte da declaração de Dom Pedro I: “Se é para o bem de todos
e felicidade geral da Nação, estou pronto!”, não é resgatada no meme, pois
o próprio contexto de votação, para a permanência ou não da presidente,
revela que nem todos ficariam satisfeitos com a permanência de Dilma.
Dessa forma, estrategicamente, resgatou-se apenas a parte do discurso que
poderia alicerçar a tese.
Segundo a classificação de Recuero (2007), podemos considerar esse
meme, quanto à fidelidade, mimético, pois a estrutura do meme permanece
inalterada, apesar de sofrer mutações e combinações. Além disso, é facil-
mente reconhecido como imitação do original, no caso, da tela original. No
entanto, a sua essência está na personalização, no caso, a cabeça de Dom
Pedro I é trocada pela da presidente. Quanto à longevidade, é volátil, de
108 curto período de exposição, pode até ser copiado na rede, mas esquecido
Desvendando os memes: uma proposta
para o ensino de leitura e escrita

rapidamente. Esse meme provavelmente não foi replicado após o resultado


da votação que tirou a ex-presidente da cena política brasileira, pois não
teria força argumentativa diante do novo contexto político. Também pode-
mos considerá-lo fecundo, em detrimento de epidêmico, pois espalhou-se
apenas por grupos menores e alguns weblogs. Apesar disso, seu alcance pode
ser considerado global, pois atingiu indivíduos distantes entre si. Ainda
que não tenha viralizado de uma forma instantânea, indivíduos que não
interagiam entre si o compartilharam.
A invenção construiu-se a partir de uma relação de intertextualidade
tanto com a tela original (fato histórico do passado) quanto com o mo-
mento histórico, político e social em que se vivia (fato do momento), o que
levou, em decorrência, a se estabelecer uma analogia. Para tanto, a prova
ética, que é demanda do ethos, é evidenciada à medida que o leitor aciona
a memória histórica do significado político do “Dia do fico”, que culminou
com a independência do Brasil meses depois.
Fica evidente o posicionamento ideológico em que se dá o texto (meme),
que busca persuadir o auditório, utilizando-se da imagem da presidente
como percussora de um movimento de “independência da nação”. A postura
da presidente na imagem e o comportamento das pessoas, que parecem
ovacionar e comemorar, são, sem dúvida, indicativos de sua honestidade,
amabilidade e sua superioridade, apresentadas ao auditório no intuito de
fazê-lo aderir à tese apresentada a favor da presidente.
O meme pode suscitar no auditório e nos interlocutores, o pathos, as
já mencionadas paixões aristotélicas. Perelman e Tyteca (1996), ao discor-
rerem sobre auditórios, esclareceram que o orador deve conhecê-los para
que parta de premissas aceitas por eles, a fim de conduzir a argumentação.
Nessa perspectiva, a grosso modo, o meme é construído a partir de um
fato histórico, provavelmente conhecido por aqueles que afirmam lutar
pelo país. Em outras palavras, o acordo se dá a partir de um fato histórico
incontestável, que mudou as diretrizes do país naquela época, e chama
atenção do auditório para as possíveis semelhanças entre os ocorridos, o
que culmina na reflexão e possível adesão à tese apresentada.
Embora tenha partido de uma imagem que carrega o processo de cons-
trução da história de independência do Brasil, o meme analisado oferece a
afirmação do auditório que partilha da ideia de permanência da presidente.
Mas, por outro lado, pode incitar certa indignação por aqueles que não parti-
lham do mesmo ideal. Aristóteles (2000, p. 7) identifica a indignação como a
“atualização de uma opinião acerca do que não parece digno de consideração”.
Portanto, a indignação funciona como uma resposta ao meme e a afirmação 109
de posicionamento do auditório que não compartilhava a tese apresentada.
A imagem do meme, a tela de Dom Pedro I com a cabeça de Dilma,
sugere uma comparação entre os dois personagens e os dois momentos
históricos. Perelman e Tyteca (1996) afirmam que a comparação permite
a justificação de um termo pelo outro, ou seja, comparam-se os elementos
para avaliá-los em relação ao outro, o que pode tanto aproximar como
afastar os elementos. No caso do meme, a comparação coloca Dilma no
mesmo patamar de importância histórica de Dom Pedro I naquele mo-
mento, isto é, peça fundamental para a “independência da nação”, por isso
sua permanência fora tão aclamada pelo povo.

Considerações finais
O percurso de leitura que ilustramos acima fornece ao produtor de
texto um vasto repertório de provas retóricas cabíveis de serem utilizadas.
Reiteramos que prova em retórica consiste em tudo que possa persuadir.
Dessa forma, ao abordar os aspectos persuasivos oferecidos pela leitura
do meme, acreditamos que o aluno, naturalmente, criará um repertório
de provas a serem adequadas e aperfeiçoadas na sua produção argumen-
tativa. As provas encontradas, por meio da leitura, devem ser escolhidas
e avaliadas, o que corresponde ao processo de invenção. Posteriormente,
esses argumentos serão organizados na disposição, parte da composição
responsável por organizar o texto.
Cabe salientar que segundo Tringali (2014), baseado em Aristóteles,
as provas não são inventadas, mas encontradas, avaliadas e empregadas.
Nessa perspectiva, a produção textual argumentativa que parte da análise
de um outro gênero persuasivo oferece, além da oportunidade de leitura, as
possibilidades de acesso a diferentes tipos de argumentação que comporão,
além do texto a ser produzido imediatamente, textos futuros dos alunos.
No caso do meme “Digam ao povo que eu fico”, a construção argumen-
tativa oferece, além dos aspectos sociais, históricos e políticos, a riqueza
da construção de sentido, ativada pela memória e pela intertextualidade.
Recursos que podem ser adotados posteriormente pelo produtor de texto
por meio de argumentos éticos, patéticos e lógicos.
O ensino de leitura e escrita dirigido por gêneros textuais propicia ao
aluno integração ao universo letrado, inclusive ao midiático, que tem cada
110 vez mais atraído pessoas e fidelizado adeptos à sua tecnologia. Não podemos
Desvendando os memes: uma proposta
para o ensino de leitura e escrita

negar a leitura e produção de gêneros emergentes que circulam na rede,


dentre eles, os memes, que carregam em sua natureza, por meio da ironia,
a persuasão. Bazerman (2015) afirma que os gêneros facilitam o desafio
da escrita, ou seja, o enfrentamento do papel em branco, exatamente por
dar ao produtor uma segurança das características textuais do gênero que
produzirá, além de esclarecer a expectativa do seu receptor.
Dessa forma, a partir da construção de um repertório (conhecimento
prévio), aliado à memória (tanto individual quanto coletiva), a inter-
textualidade (textos anteriores) e a retórica (inventio), sugerimos nesse
capítulo o uso de um meme como um dos meios de ponto de partida para
o aperfeiçoamento da leitura e da produção de textos argumentativos a ser
utilizado no ensino de Língua Portuguesa.

111
Referências
ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Trad. Antônio Pinto de Car-
valho. 17 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
_____________. Retórica das paixões. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BAZERMAN, C. Retórica da ação letrada. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.
BLACKMORE, S. The meme machine. Oxford University Press, 2000.
CARDOSO-SILVA, E. Leitura: sentido e intertextualidade. São Paulo:
Unimarco, 1997.
CHARTIER, R. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. Trad. Luzmara
Cursino e Carlos Eduardo Bezerra. São Carlo, SP: Edusfscar, 2014.
DAWKINS, R. O gene egoísta. IN: Coleção: O homem e a ciência. Trad. por
Geraldo H. M. Florsheim. São Paulo: EDUSP, 1979; p.189-201.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 2 ed. São Paulo: Edusp: Fundação de
Desenvolvimento da Educação, 1995.
KRISTEVA, J. Introdução à semanálise. Trad. Lúcia Helena França Ferraz.
3 ed. rev. e aum. São Paulo: Perspectiva, 2012.
LE GOFF, J. História & Memória. Trad. Bernardo Leitão et al. 7 ed. rev. 1
reimpressão. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014.
PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado de argumentação. São
Paulo: Martins Fontes, 1996.
RECUERO, R. Memes em weblogs: proposta de uma taxonomia. In: Fame-
cos, 32, 2007
RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François
et al. 6 reimpressão. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2014.
TRINGALI, D. A Retórica como Crítica Literária. São Paulo: Musa, 2014.

112
Reflexões sobre a relação
palavra imagem em processos
de leitura e produção escrita:
uma proposta com tiras
da Turma do Xaxado

Andreia Honório da Cunha1


Carla Moreira de Paula Prada2

E ste capítulo parte do pressuposto de que o homem é um animal


simbólico, retórico e plurissemiótico3 cujas relações comunicativas
se presentificam em redes complexas de inter-relações que, aliadas umas
às outras, colaboram para entendimento profundo da linguagem e de
seu funcionamento nas relações sociais. Especificamente, trata dos pro-
cessos simbólicos como elementos produtores de sentidos delimitados
ao gênero narrativo multimodal presente nas tiras como instrumento
de leitura e produção textual em âmbito escolar. Por sua materialização,
esse gênero utiliza diversos recursos semióticos4 comunicativos passíveis
de negociações e acordos via argumentação, não apenas em uma ação
combinatória entre palavra-imagem, mas também dialógica entre elas.
Essa relação interacional é aqui tratada sob o ponto de vista pedagógico,
tendo em vista que se concretiza em proposta de leitura e produção escrita
com a utilização de tiras da turma do Xaxado, relativas às temáticas sociais

1 Mestre em Língua Portuguesa pela PUC-SP, possui pós-graduação em Língua Portuguesa pela
faculdade D.Domênico (1998) e graduação com licenciatura plena em Letras pela Universidade Católica
de Santos (1996); Membro do Grupo ERA.
2 Mestranda em Língua Portuguesa pela PUC-SP; Membro do Grupo ERA.
3 Que se vale dos recursos das linguagens verbal e não-verbal para se comunicar.
4 Semiótica/ semiologia: para Charles S. Peirce 1839-1914, teoria geral das representações, que
leva em conta os signos sob todas as formas e manifestações que assumem (linguísticas ou não), enfatizando
esp. a propriedade de convertibilidade recíproca entre os sistemas significantes que integram. 115
pertinentes ao nordeste brasileiro, criadas pelo cartunista Antônio Cedraz.
Entendemos que tanto a leitura quanto a escrita, antes delimitadas
apenas ao recurso visual da letra, por meio dos estudos científicos da
multimodalidade, se ampliam com a presença da imagem e dos demais
recursos típicos da linguagem quadrinística. Tradicionalmente, em âm-
bito escolar, leitura e escrita são vistas por uma ótica restrita relativa aos
processos de ensino-aprendizagem que precisa ser ressignificada e, cons-
tantemente, revisitada pelas abordagens científicas, devido, sobretudo, à
evolução tecnológica e ao surgimento dos novos recursos comunicativos
ampliados com a presença da imagem, perceptíveis em diversas áreas da
comunicação humana.
O caráter narrativo das tiras dialoga com o recurso da narratividade
imagética, como a propaganda, entre outros, que se valem da imagem para
a comunicação. Esses métodos, que a modernidade vem imprimindo à
comunicação, podem e devem se refletir no trabalho docente por meio do
aprimoramento de níveis de processamento de leitura e produção escrita
dos alunos. Essas atividades são de suma importância no âmbito escolar,
pois se voltam para a dinamicidade e renovação dos meios de apreensão
da linguagem como instrumento de construção, que podem se refletir nas
técnicas argumentativas.
Na contemporaneidade e fora dos círculos escolares, os produtores, em
larga escala, têm se valido desses recursos para, dentre outros objetivos,
ratificar a manipulação e a dominação das massas por intermédio dos
recursos semióticos, comunicativos e persuasivos, não mais delimitados à
letra, em uma perspectiva grafocêntrica na condição de instrumento con-
densador do pensamento. No entanto, as massas, incluindo os estudantes,
ainda estão pouco cientes dessa postura manipulatória. Em virtude disso,
torna-se relevante uma análise profunda e a utilização desse escopo em prol
de auxiliá-los a perceber esse tipo de postura valendo-se, cientificamente,
das vertentes da sociossemiótica e sociorretórica, nas quais já há pesquisas
que se valem dos sentidos visuais como objeto de estudo.
Depreende-se, por meio de um percurso histórico da comunicação
humana, que o deslocamento dos recursos semióticos, antes delimitados
à letra, traz para a atualidade a dimensão significativa da observação e o
uso dos sentidos humanos e demais formas de expressão comunicativas
como fatores importantes na representação bem como na compreensão
da produção de sentidos que confluem para a busca e ciência de melhores
níveis argumentativos.
116 Nesse quadro, a leitura da imagem agrega sentidos e ultrapassa a
Reflexões sobre a relação palavra imagem em processos de leitura e
produção escrita: uma proposta com tiras da turma do xaxado

mera decodificação do escrito no reconhecimento da forma linguística,


pois amplifica o plano de conteúdo instituído como instrumento para a
construção de novos sentidos na busca de uma eficácia comunicativa que
devem se refletir nas produções escolares dos alunos. A relação complexa
entre palavra e imagem, por meio da análise e da produção textual de tiras,
propicia reflexões pertinentes sobre a própria comunicação humana por
retratá-la mimeticamente valendo-se da composição de uma linguagem
específica pertinente aos quadrinhos.
Em razão dessa necessidade de ultrapassar a mera decodificação, os
processos de compreensão da relação palavra-imagem permitem a incor-
poração de práticas retóricas reflexivas para além dos domínios de ler e
escrever como ato decodificativo. Por ser um instrumento de massa, as
tiras permitem a inserção de práticas cotidianas como instrumentos re-
construtores das atribuições de sentidos/significados dados por meio da
indissociabilidade dos sentidos humanos na construção de novas formas
comunicativas.
A atitude de empoderamento do leitor leigo, quando observada por
um olhar histórico, demonstra ser um meio pelo qual o homem desenvolve
níveis de interação com menores índices de desigualdade e, consequen-
temente, se embrenha na criação de instituição de possíveis mundos
mais dinâmicos em níveis sócio-históricos-culturais mais igualitários por
meio da educação e atividades pertinentes a esse âmbito. Afinal, cultura,
conhecimento, educação são questões intrinsecamente humanas, pois são
inerentes ao homem na condição de ser retórico, plurissemioticamente
simbólico e comunicante.
Mediante o exposto, trataremos de demonstrar como ocorre a am-
pliação na produção de sentidos por meio da relação palavra-imagem
numa postura interativa/dialógica utilizando pressupostos teóricos dos
quadros da Gramática do Design Visual (GDV) de Kress e Van Leeuwen
(1996) aliados a conceitos da retórica da ação letrada, fundamentada por
Bazerman (2015) e Reboul (1998); e, por fim, propor atividade de leitura
e escrita com tiras que enfoquem com predominância as problemáticas
sociais relativas ao sertão nordestino brasileiro.

Uma breve reflexão sobre tiras e ensino


Teoricamente, as tiras possuem, por sua materialização, conceitos 117
ambíguos, pois alguns teóricos as consideram, por suas semelhanças, um
subgênero pertencente às Histórias em Quadrinhos, e há outros que as
consideram, por contrastes, um gênero independente avaliando-as por sua
estrutura de condensação das narrativas, envolta geralmente pelo tom hu-
morístico, irônico ou sarcástico. Há, ainda, aqueles que as diferenciam por
sua materialização, uma vez que, por vezes, se concretizam em apenas um
quadro, aproximando-as, consequentemente, das características pertinentes ao
cartum. Consideramos aqui as tiras pertinentes à segunda classificação – um
gênero próprio que, por contraste, se distancia das HQs por seus elementos
materializadores, embora se valham da relação palavra-imagem para sua
concretização comunicativa.
Mediante o exposto, cogitamos igualmente o proposto por Bazerman
(2015) a respeito das formas convencionais e hábitat dos gêneros:

Embora muitas vezes reconheçamos gêneros por meio de carac-


terísticas explícitas de forma e conteúdo, eles são mais que uma
série de convenções regulando forma e conteúdo [...] os gêneros
corporificam compreensões de situações, relações, posições, hu-
mores, estratégias, recursos apropriados, metas e muitos outros
elementos que definem a atividade e formam meios de realização.
(BAZERMAN, 2015, p. 34).

Dessa forma, ponderamos que a relação comunicativa humana jamais


deixou de se prefigurar na relação imagem-palavra na condição de retratar o
mundo em uma possível realidade em forma de veracidade nele constituída.
Por essa ótica, o texto multimodal quadrinístico contém em sua estruturação
primitiva a força de representação do real, mesmo que esta representação
em sua estrutura composicional apresente distanciamento da prefiguração
do modelo de realidade assumido de forma historicamente dinâmica pelo
homem. Nesse sentido, tanto a imagem quanto a palavra assumem posturas
dinâmicas.
Tais ações são igualmente pertinentes à escola, em uma postura de le-
tramento crítico, mais que mera transmissora de conteúdos, pois a relação
ensino-aprendizagem necessita ter por princípios básicos os procedimentos
de aquisição, construção e transformação do conhecimento, pautados em
relação dialógica (PALMA & TURAZZA, 2014).
Assim, consideramos, igualmente, as tiras pertencentes ao gênero multi-
modal por se valerem de dois ou mais recursos semióticos comunicativos dos
quais o layout, dentre outras características, tornam-se marcas definidoras
118 de suas instâncias materiais ampliando a comunicação que funciona em um
Reflexões sobre a relação palavra imagem em processos de leitura e
produção escrita: uma proposta com tiras da turma do xaxado

sistema de rede. Por isso, novas demandas sociais geram novas demandas
textuais e discursivas nas quais se fazem necessários ajustes de nominaliza-
ções mediante a utilização dos recursos semióticos que atuam nessa nova
relação do homem com a representação da realidade dada por ele ao mundo.
A escolha pelas tiras da turma do Xaxado remete à implicação com as
relações de poder e as desigualdades sociais relativas ao nordeste brasileiro,
partilhadas socialmente no e pelo discurso, passíveis de negociações e acor-
dos por meio das semioses polarizadas e distribuídas conforme as categorias
pessoas, lugares e coisas aliadas aos quadros da Gramática do Design Visual,
a saber: quadro comunicacional vinculado a uma percepção retórica e com-
posto pela paisagem semiótica– entorno comunicativo na qual as semioses5
se materializam e podem ser partilhadas, negociadas e acordadas por meio
das interações entre os participantes - e as metafunções: representacional,
interacional e composicional, a serem expostas a seguir.

Aplicação teórica em
ambientes educacionais

O artefato textual pode durar anos sem ser usado ou mesmo


sem ser olhado. Enquanto textos do futuro ainda são objeto de
ficção científica, qualquer texto ainda sobrevivente do passado está
disponível para nosso uso atual. Todavia, os textos surgem de situações
em momentos históricos, dirigem-se a outras pessoas localizadas
em momentos históricos, com a intenção específica de realizar fins –
influenciar pessoas e eventos na história.
Charles Bazerman

A proposta de análise evidenciada, primeiramente, corresponde a


uma nova e possível estratégia de leitura que agrega valores pertinentes à
imagem aliados ao verbal escrito, ambos materializados no gênero mul-
timodal tiras. Ao esquematizarmos o quadro comunicacional atrelado a
retórica e aliarmos às esquematizações das metafunções, representacional,
interacional e composicional, torna-se possível perceber o adensamento

5 Entendida, neste capítulo, como qualquer ação ou influência para sentido comunicante pelo
estabelecimento de relações entre signos que podem ser interpretados por alguma audiência. 119
de níveis de leituras por meio do aguçamento das relações estabelecidas
entre as semioses presentificadas na paisagem semiótica, nos processos de
ação e suas respectivas transitividades, nos processos de reações emitidos
e trocadas pelos olhares entre os participantes juntamente com os valores
distribuídos e polarizados das informações. Por isso, consideramos ser
possível partilhar com os alunos as esquematizações como proposta de
letramento visual.
Consideramos também que essa aprendizagem corresponde a uma
forma de empoderamento dos alunos, enquanto leitores, tendo em vista que
o mundo atual está repleto de estímulos visuais nem sempre trabalhados
e refletidos na escola sobre seus respectivos poderes de ação em nossas
decisões de consumo, escolhas e afins.
Da mesma maneira, opinamos pela a utilização da análise em propostas
de produção escrita tendo em vista o pensamento de Bazerman (2015) a
respeito do ato de escrever:

A escrita pode ser um potente instrumento de pensamento,


sentimento, identidade, engajamento e ação. Ao transformar
nosso impulso em palavras, podemos revelar-nos a nós mesmos
e ao mundo, podemos participar de importantes debates, mo-
vimentos e atividades. Escrever compõe os campos de atuação
de nossa época letrada, e cada texto que escrevemos reivindica
um lugar, uma identidade, uma significação, uma ação nesses
campos da vida. Quanto mais pudermos escrever para além
dos limites das prescrições burocráticas repressoras, tanto mais
obteremos o poder de nos definir e representar o mundo letrado.
(BAZERMAN, 2015, p. 8).

A escrita escolar, portanto, não deve estar restrita apenas a leitura para
mera avaliação de um único leitor: o professor, na condição de avaliador. Por
isso, consideramos também a possibilidade de que os produtos produzidos
pelos alunos se transformem em projetos de livros coletivos, motivo de
discussões, debates e demais atividades que possam fazer os textos alçarem
novos leitores. Atitudes desse tipo colaboram para o entendimento de que
o ato de escrever, embora isolado e parcialmente solitário, está a serviço do
outro: um público-alvo, seja para influenciá-lo, comovê-lo ou persuadi-lo.

120
Reflexões sobre a relação palavra imagem em processos de leitura e
produção escrita: uma proposta com tiras da turma do xaxado

O quadro comunicacional em análise


Conforme Kress e van Leewven (1996), o quadro comunicacional
corresponde ao entorno comunicativo que participa como elemento sim-
bólico e significativo que se presentifica nas interações comunicativas dos
participantes representados, no caso específico em análise, nas tiras. Os
termos codificador e decodificador referem-se especificamente ao emissor e
receptor e são terminologias específicas utilizadas por Watson e Hill (1980).

Fonte: < http://tirasemquadrinhos.blogspot.com/search?update-


d-max=2012-11-13T04:06:00-08:00&max-results=7&start=7&by-date=false >

No quadro comunicacional, a origem desencadeadora dos processos


interacionais está expressa nas semioses vegetação verde, flores e borboleta,
materializadas no primeiro quadrinho da tira. Nota-se que há um con-
fronto entre os campos da experiência. Primeiramente o experienciado
pelos sertanejos empregados na fazenda do patrão e que não condiz
com o campo da experiência vivenciado pelos sertanejos fora dessas
respectivas terras.
É por intermédio dessa exposição que as relações interacionais se
desenvolvem evidenciando as desigualdades sociais presentes no sertão
nordestino brasileiro. A semiose rico denota verbalmente essas diferenças
sociais claramente marcadas, pois implica que o patrão é detentor de uma
riqueza, confirmada por suas condições financeiras, por isso consegue
comprar água e suprimentos para suas terras e mantê-las férteis, indepen- 121
dente da disposição climática a que se submete a maioria dos moradores
menos favorecidos economicamente que habitam aquela região.
A demonstração da riqueza do patrão continua sendo evidenciada no
segundo quadrinho, pois as semioses gado gordo e pasto verde se inter-re-
lacionam com o processo verbal do sertanejo 1 que elenca como motivo
de riqueza do patrão o que ele vê a seu redor: a presença de “bicho gordo”,
“pranta verdinha”, e a presença constante de água expressa em seu enunciado
“nunca farta água”. Sob o ponto de vista retórico, o sertanejo 1 vale-se de
uma prova extrínseca para fundamentar seu argumento. Esta postura está
legitimada pelo olhar de ambos direcionar-se aos bichos e as plantas, para
assim convencer seu auditório que naquela propriedade não falta água.
Tanto o sertanejo 1 quanto o 2 denotam tristeza e perplexidade ante o que
veem, pois as condições consideradas como riquezas deveriam ser as condi-
ções básicas mínimas de sobrevivência para qualquer ser humano. Afinal, é
a presença de água que propicia que a vegetação esteja sempre verde, que o
gado tenha pasto verdejante e esteja sempre gordo e que, também, no caso
específico da tira, marca as diferenças e desigualdades sociais da maioria dos
moradores do sertão do nordeste brasileiro. Dessa forma, o que se prefigura
para seus destinos é a evidente representação da humilhação que se concretiza
na postura de seus corpos encurvados e na personificação da seca verificável
no enunciado do sertanejo 2 como destino e conclusão da interação ocorrida
entre eles na materialização da tira. A relação palavra-imagem, portanto auxilia
na percepção da construção do ethos dos respectivos sertanejos, pois além de
seus discursos evidenciarem seus lugares de fala, temos a imagem como ins-
trumento reafirmador dessas posturas de humilhação e desigualdade social.

Esquematização das metafunções


Para facilitar o entendimento das esquematizações, subdividimos por
legendas as respectivas metafunções. A metafunção representacional está
expressa por vetores em preto, evidenciada exclusivamente pelo uso de
caixas representativas dos corpos dos participantes sertanejos; a intera-
cional, com vetores envoltos em caixas contornadas em branco para os
balões e os demais, em vetores relativos aos processos de reação – olhares
– e processos verbais inseridos nos balões; e a composicional, com vetores
em relativos ao enquadramento e a polarização das semioses expressas por
122 caixas contornadas em preto para a vegetação, flores e borboletas.
Reflexões sobre a relação palavra imagem em processos de leitura e
produção escrita: uma proposta com tiras da turma do xaxado

Fonte: as autoras.

Quanto à esquematização da metafunção representacional, os par-


ticipantes representados6 estão expressos por seus aspectos corporais
evidenciados especificamente em formas de caixas. No terceiro e último
quadrinho, a postura encurvada dos PRs denota aspecto interacional, pois
demonstram sentimentos de tristeza e humilhação ante o discutido no
decorrer dos processos de ação e reação.
Os olhares dos sertanejos expressam igualmente perplexidade mediante o
uso de pontuação expressiva (!) ante o que observam da paisagem semiótica,
por estarem diante de cenário tão discrepante ao que estão acostumados
a vivenciar. A presença das semioses vegetação verde, flores e borboletas
ratificam a desigualdade social que se materializa em ausência de água,
portanto, em seca personificada.
O enunciado do sertanejo 1, “O patrãozim é rico, aqui na fazenda dele
inté parece qui a seca tá proibida de botá os pé”, ressalta essa personificação.
Ao falar “inté parece” o sertanejo 1 vale-se de uma das características do
ethos, a phronesis, pois ele pondera e exprime uma opinião competente e
razoável, com isso despertar a confiança em seu auditório. Dessa forma,

6 PRs, segundo a GDV, correspondem aos participantes representados; espe-


cificamente, os inseridos nos quadrinhos. 123
em vez de termos um causador real para justificar essa desigualdade, o
que ocorre é a ausência de um fator humano específico que parece não
estar sendo expresso mais pelo medo do poder instituído naquela região
através da figura de um coronel, geralmente o patrão que agrega muitos
trabalhadores, tais como os expressos na tira, do que pelo desconhecimento
desses sertanejos de como se estrutura essa desigualdade.
Do ponto de vista do participante interativo7 (PI) produtor, a escolha
pela personificação da seca como ser humano corrupto serve para denunciar
as relações de poder e trazer à tona essas reflexões para seu PI leitor como
instrumento de crítica e discussão sobre o que ocorre nessas respectivas
regiões. A personificação da seca, sob esse aspecto, serve possivelmente
como reflexão a respeito dos reais causadores do problema, afinal corruptos
são os homens mais ricos da região. São eles os reais causadores da seca,
que tiram proveito da situação para se enriqueceram à custa dos menos
favorecidos do ponto de vista, não somente econômico, mas em todos os
demais aspectos sociais, como o de privação de água, escolaridade, etc.
Os processos verbais e os olhares, enquanto elementos de reação, de-
monstram a incapacidade dos moradores daquela região em se posicionarem
abertamente sobre os cerceamentos de condições básicas em que vivem.
Mediante o exposto das metafunções representacional e interacional, é
perceptível que na polarização entre dado e novo referentes à metafunção
composicional, expressa por vetor que subdivide o último quadrinho em
duas partes, há a predominância dos aspectos relativos ao dado, pois os
quadrinhos antecessores, evidenciados à direita, ratificam as desigualdades,
o poder instituído sendo apenas quebrado no desfecho crítico e irônico
que se concretiza na seca personificada pela metáfora enunciada em tom
perplexo do sertanejo 2: “rapaiz, nesse país inté a seca é corrupta”.
Nota-se que a crítica ultrapassa os limites do sertão, pois no enunciado
do sertanejo 2 a conclusão relaciona o país inteiro no contexto de personi-
ficação da seca. Esse enunciado possibilita a abertura de inúmeras outras
discussões a respeito da política brasileira, a ausência de políticas públicas na
resolução dos problemas seculares tal como este referente à seca nordestina.
Por consequência, o professor tem brechas para abrir espaços de discus-
sões a respeito de pesquisas prévias que podem ser propostas aos alunos,

7 Participante Interativo, segundo a GDV, se constituem nos participantes


fora do contexto da imagem, correspondem ao produtor, em relação a suas intencio-
124 nalidades, e ao leitor, como observador e crítico da imagem.
Reflexões sobre a relação palavra imagem em processos de leitura e
produção escrita: uma proposta com tiras da turma do xaxado

tais como o tratamento dado ao assunto seca, desde os períodos coloniais


e imperiais, dentre outros temas atuais correlacionados não só a seca no
nordeste, mas também com a corrupção presente no país, dentre outras
questões, antes de concluir com tema para produção textual.

Considerações finais sobre aplicabilidade


para produção de texto
O percurso interpretativo e analítico que apresentamos propicia tanto
ao professor quanto ao aluno/produtor de texto uma percepção crítica
quanto ao gênero multimodal, no que tange à compreensão do encadea-
mento palavra-imagem e a ampliação desses recursos comunicativos como
instrumentos argumentativos na produção escrita dos alunos.
O aluno, valendo-se desse percurso, tem condições de se tornar um
produtor de texto apto a implementar aspectos críticos e reflexivos a sua
produção. Consequentemente, será capaz de utilizar diferentes figuras de
linguagem, bem como ironia, metáforas, entre outras, na qualidade de
técnicas argumentativas.
O uso das tiras como gênero multimodal proporciona, não só o letra-
mento crítico, mas auxilia nos processos mentais interpretativos, no que
se refere a perceber minúcias da manipulação que aparece em diversos
textos que circulam socialmente. Para tanto, o professor desempenha papel
fundamental nesse percurso.
Para o pedagogo Paulo Freire (1996), a escola tem a função de formar
um cidadão crítico e reflexivo, portanto garantir ao aluno uma apreciação
de um gênero textual multimodal lhe dará a oportunidade de reverberar
sua posição.
Posto isto, sugerimos o uso e o aprofundamento do gênero multimodal
tiras para inspirar e incentivar as produções escritas no ensino de Língua
Portuguesa.

125
Referências
BAZERMAN, C. Retórica da ação letrada. 1 ed. São Paulo: Parábola Edi-
torial, 2015.
CUNHA, A. H. da. Tiras e Gramática do Design Visual: A produção de
sentidos no gênero multimodal. 2017. Dissertação (Mestrado em Língua Portu-
guesa). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa.
São Paulo: Paz e Terra, 1996.
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KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading Images: The Grammar of Visual
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PALMA, D. V., TURAZZA, J. S. (orgs) Educação linguística e o ensino de
língua portuguesa: algumas questões fundamentais. São Paulo: Terracota, 2014
REBOUL, O. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
WATSON, J; HILL, A. A Dictionary of Communication and Media Studies.
London: Edward Arnold, 1980.

126
Estratégias sociorretóricas
na construção de textos
argumentativos
São os conteúdos que engajam a mente de um leitor,
dando as informações desejadas, aguçando o pensamen-
to, evocando uma perspectiva compartilhada sobre o
mundo ou fomentando indignação e ação.
Charles Bazerman

Leonardo Tavares1
Mariano Magri2

S egundo o INAF3, em seu último relatório elaborado com dados de pes-


quisa de campo em 20164, somente 8% da população brasileira possui
proficiência em leitura e escrita. Do lado da leitura, esse dado demonstra
que é muito baixa a população capaz de interagir com um texto, seja na
compreensão de seu conteúdo ou na necessidade de tomar alguma ação
proposta, como instruções para tomar um medicamento, montar um
equipamento, preencher algum cadastro. Do lado da escrita, objeto de
preocupação deste capítulo, esse dado demonstra que a maioria das pessoas
não é capaz de criar um texto inteligível, especialmente se o conteúdo for
mais complexo, como é o caso dos textos argumentativos.
Para argumentar, o autor precisa ter ciência de quais elementos linguísticos
estão disponíveis para construção de um raciocínio: a coesão, a coerência, a

1 Mestrando em Língua Portuguesa pela PUC-SP; Membro do Grupo ERA; Bolsista CAPES.
2 Mestrando em Língua Portuguesa pela PUC-SP; Membro do Grupo ERA; Bolsista CAPES.
3 O Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF) é uma pesquisa idealizada em parceria entre
o Instituto Paulo Montenegro e a ONG Ação Educativa e realizada com o apoio do IBOPE Inteligência
com o objetivo de mensurar o nível de alfabetismo da população brasileira entre 15 e 64 anos e avaliar suas
habilidades e práticas de leitura, de escrita e de matemática aplicadas ao cotidiano.
4 Disponível em https://drive.google.com/file/d/0B5WoZxXFQTCRRWFyakMxOTNyb1k/view 129
referenciação, a pontuação e os conectivos são alguns exemplos. Ter ciência do
que a língua nos coloca à disposição para argumentar é de suma importância.
Contudo, a preocupação voltada somente aos elementos linguísticos deixa
um vácuo na consciência do autor, se desprezar os elementos que fogem ao
sistema da língua, como o contexto, os costumes, as crenças, as figuras de
linguagem, muito utilizadas no cotidiano, entre outros.
Portanto, preocupamo-nos neste capítulo com dois focos: a) os ele-
mentos extralinguísticos, essenciais para a formação do escritor; e b) as
estratégias para a relação entre professor e aluno no momento da produção
do texto argumentativo.
Para atingir esses objetivos, entender o que está às voltas com o ato
de argumentar é essencial. Iniciamos, então, com uma afirmativa muito
difundida entre os falantes de língua portuguesa: “Contra fatos não há
argumentos!”. Não nos preocupa de onde surgiu essa expressão, mas sim
que ela recebeu a significação de que os fatos falam por si, ou seja, não
adianta argumentar. Para alguns, essa expressão assumiu status de verda-
de, mas a primeira premissa adotada por nós nessa linha de raciocínio é a
negação desse provérbio. Para explicar o porquê, partiremos do trabalho
de Ferreira (2015), que nos apresenta o conceito “universo da doxa”. Esse,
apesar de não poder ser explicado por uma tradução literal, pode, todavia,
ser entendido pela interpretação da questão apresentada abaixo.

Se você fosse uma velha senhora e descobrisse que, por um


terrível engano, jogara cinquenta mil dólares no lixo, processaria
um vizinho desempregado que, repentinamente e na mesma
época da perda, enriquecera com um dinheiro achado também
no lixo? (FERREIRA, 2015, p.11).

Na questão formulada pelo autor, não é difícil acreditar que a velha


senhora e o desempregado entenderiam a questão de formas distintas.
Se um processo fosse instaurado para apurar o caso, os advogados das
partes se enfrentariam discursivamente para provar que seus clientes são
os verdadeiros donos do dinheiro. Em argumentação, o orador/escritor,
num primeiro momento, adota determinado ponto de vista para sustentar
seus argumentos, vale-se de raciocínios e exemplos para fazê-lo, então, a
princípio, não há certo ou errado, verdades ou mentiras, mas fatos que são
observados de formas diferentes e que são passíveis de questionamentos
e/ou críticas. Nas palavras do autor, por “termos crenças, valores e opi-
130 niões, valemo-nos da palavra como um instrumento revelador de nossas
Estratégias sociorretóricas na construção
de textos argumentativos

impressões sobre o mundo, de nossos sentimentos, convicções, dúvidas,


paixões e aspirações” (FERREIRA, 2015, p. 12). Em consonância com Fer-
reira (2015) temos Mosca (1997), que complementa o autor com a ideia de
que “é no mundo da opinião, da doxa, que são tecidas as relações sociais,
políticas e econômicas, uma vez que é a esta que se tem acesso e não ao
que se chamaria ‘mundo da verdade’” (MOSCA, 1997, p. 21).
Esses autores nos ensinam que a realidade não é autoexplicativa, mas
sim composta de “verdades”, tantos quantos forem os pontos de vista que
as pessoas conseguirem lançar sobre ela. A única forma de expressarmos
a “verdade” sobre um determinado fato é por meio da linguagem que, por
sua vez, apreendida pelo falante, é recheada de ideologias, crenças, mitos,
que, invariavelmente, servirão de lentes para observar os fatos. Logo, é
impossível que uma pessoa transcreva um fato da realidade sem que pelo
seu discurso não perpassem todos os seus valores, todas as suas formas de
entender e enxergar o mundo. Qual seria a importância da argumentação,
se todos os argumentos não passam de um ponto de vista lançado sobre os
fatos? Formulamos uma possível resposta a essa pergunta: na atualidade,
segundo o IBGE5, o Brasil conta com aproximadamente 208 milhões de
habitantes, que disputam o mesmo espaço geográfico, as mesmas verbas
públicas, transitam pelas mesmas vias, usam os mesmos transportes, con-
correm pelas mesmas vagas em escolas, assim por diante. Antes de qualquer
coisa, somos capazes de imaginar que espaços sociais de compartilhamento
geram, em virtude da convivência, muitos desentendimentos de naturezas
diversas e, nesses embates, faz-se necessário que as pessoas não prescindam
da necessidade de estabelecer acordos. No entanto, uma vez que não vivemos
em barbárie, podemos concluir que o ato de argumentar é fundamental.

O que é argumentar?
Num regime democrático, argumentar é fundamental para a convivên-
cia pacífica. Mas o que é, efetivamente, argumentar? O que está em jogo
quando defendemos um ponto de vista?
Para responder a essas questões, recorremos à retórica, pois o objetivo

5 Disponível https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pesquisa/53/49645?tipo=grafico.
Consultado em julho/2018. 131
da argumentação é persuadir, é levar o outro a concordar com as teses que
lhe são apresentadas. Segundo Aristóteles (2013 [384-322 a.C.]), a retórica
pode ser definida como a faculdade de observar, em cada caso, o que pode
criar a persuasão e, por isso, não está presa a nenhum gênero particular.
Enquanto a medicina se ocupa com o que é saudável ao paciente, a geo-
metria com as propriedades da grandeza, a aritmética com os números, a
retórica tem o poder de estar diante de qualquer questão apresentada. Por
essas definições, portanto, a retórica oferece alguns conceitos fundamentais
para entendermos o que é argumentar.
Segundo o próprio Aristóteles (2013), há três tipos de meios de persuasão
supridos pela palavra, conhecidas como provas retóricas: quem fala, quem
ouve e a mensagem falada, que são difundidas, respectivamente, como
ethos, pathos e logos. Sobre a primeira prova, devemos ter em mente que,
ao falar (ou escrever), o orador transmite um caráter que lhe é pessoal e
incute em sua fala algo que pode ou não dar confiança a quem o escuta
(ou lê). A segunda prova está ancorada no que o autor chama de “espíritos
do auditório”, que se referem às emoções de quem ouve, a pré-disposição
que as pessoas têm de serem tocadas emocionalmente. A terceira prova é o
discurso em si, a fala, a escrita, a mensagem transmitida em sua disposição
de argumentos com o objetivo de levar o auditório a concordar, ou seja,
persuadi-los. Ainda que a argumentação esteja materializada no discurso,
a retórica canoniza essas três provas como indissociáveis. Para ser eficaz,
portanto, o argumento (logos) tem de ser proferido por quem transmite
confiança (ethos) e consegue levar o auditório6 (pathos) a aderir às teses
que lhe são apresentadas.
Vale ressaltar que as provas retóricas não são meras nomenclaturas
que Aristóteles (2013) deu às partes envolvidas no discurso. O leitor pode
pensar: “parece óbvio que o ato de argumentar envolva alguém que fale,
uma ou mais pessoas que escutem e um ou mais argumentos construídos”.
Contudo, conforme demonstra Perelman & Olbrechts-Tyteca (1996), du-
rante muitos anos, a corrente positivista conseguiu tornar dominante a ideia
de que a ciência, por meio de evidências, como características da razão,
seria a única forma de reconhecer algo como verdadeiro. Nas palavras do
autor, toda “prova seria redução à evidência e o que é evidente não teria
necessidade alguma de prova” (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA,

6 Auditório, em retórica, está relacionado à pessoa ou ao grupo de pessoas


132 às quais o discurso é destinado.
Estratégias sociorretóricas na construção
de textos argumentativos

1996, p. 4). Por esse conceito, só poderíamos pensar a argumentação sob


o ponto de vista da razão, de algo que se pudesse demonstrar em fatos ou
em números e o conceito de argumentar se igualaria a evidenciar, somente.
Os autores ressaltam, ainda:

O que caracteriza a adesão dos espíritos é sua intensidade de


ser variável: nada nos obriga a limitar nosso estudo a um grau
particular de adesão, caracterizado pela evidência, nada nos
permite considerar a priori que os graus de adesão a uma tese à
sua probabilidade são proporcionais, nem identificar evidência
de verdade. (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 4).

Portanto, distintamente, há raciocínios relativos à verdade e os que são


relativos à adesão. Nesse viés, o orador (ethos) formula seu discurso (logos)
para provocar e aumentar a adesão do auditório (pathos). Nas palavras de
Aristóteles (2013, p. 46), “a persuasão é obtida através do próprio discurso
quando demonstramos a verdade, ou o que parece ser verdade, graças
à argumentação persuasiva apropriada ao caso em pauta” (grifo nosso).
Argumentar, por consequência, não tem relação com provar a verdade,
mas sim com achar a melhor maneira de fazer com que o auditório adira
às teses apresentadas, que podem ser possíveis de acontecer ou ter acon-
tecido; ser verossímeis, não necessariamente verdadeiras. Não se trata de
fomento à mentira. O que buscamos quando argumentamos é que nosso
auditório concorde com nossos argumentos, sejam eles, a título de exemplo,
hipóteses ou probabilidades, não verdades.
Somado a isso, não argumentamos sem que saibamos o contexto com
o qual estamos envolvidos. Saber quem é o nosso auditório, quais são os
principais valores morais e éticos que pactuam, é fundamental para a ar-
gumentação obter êxito. Por isso, nas palavras de Bazerman (2013, p. 14),
“um problema fundamental da escrita é ser capaz de entender a recriar a
circunstância social e a interação social de que faz parte a comunicação”.

A escrita contextualizada
Durante vários anos – e ainda é possível encontrar na matriz curricular de
muitas escolas –, o ensino da língua portuguesa ficou centrado na descrição
da língua, ou seja, na sua gramática. Embora não se descarte a importância
da gramática, é possível constatar, como afirma Pauliukonis (2013), que: 133
[...] é lugar-comum a insatisfação generalizada dos professores
diante do fracasso dos alunos, em qualquer grau de ensino, quan-
do solicitados a redigir e a interpretar texto, principalmente os
literários e os argumentativos. Os resultados avaliativos em níveis
nacionais nunca são animadores: queixam-se os professores de
que alunos interpretam e redigem mal, embora passem grande
parte do ensino fundamental aprendendo classes de palavras,
memorizando listas de coletivos, fazendo análise sintática e
repetindo modelos de conjugação de verbos, decorando regras
para acentuação gráfica, de concordância, regência, colocação
etc., temas recorrentes nas aulas de língua, em qualquer nível
de ensino. (PAULIUKONIS, 2013, p. 240).

Traçar um sinal de igual entre uma língua e a sua gramática faz com que
o ensino da escrita e da leitura se atenha às relações internas do texto: os
termos de uma oração e as conexões existentes entre eles. O que defendemos
até então foi que argumentamos para conseguir a adesão do auditório e é
pouco provável que tenhamos eficácia se nos preocuparmos somente com
os elementos linguísticos presentes na materialização do texto.
Acerca dos elementos extralinguísticos, tomamos como base o trabalho
de Bazerman (2013). Segundo esse autor, podemos superar os problemas
com a escrita se entendermos como superar a dificuldade que os falantes
têm de recriar as circunstâncias da comunicação e uma das formas de se
fazer isso é tornar evidente o que fazemos de forma automática, como
na comunicação face a face. Ressalta ainda que, na interação face a face,
o diálogo acontece no mesmo tempo, no mesmo lugar e o espaço comu-
nicativo é compartilhado, ou seja, há troca de turnos7. A todo instante,
todos os referentes são compartilhados. Se o falante A diz ao falante B
sobre pessoa não presente, por exemplo, essa terceira pessoa precisa ser
conhecida de ambos ou, no caso de o falante B não conhecê-la, o falante A
fará uma introdução antes de fazer qualquer menção sobre ela, sob a pena
de o falante B não entender de quem se fala. “O alinhamento é tão crucial
para a manutenção da conversação que as pessoas restauram regular e
consistentemente a conversão quando sentem que houve alguma violação
que vai interromper o fluxo” (BAZERMAN, 2013, p. 16).
Na escrita, por sua vez, não dispomos das mesmas características. O

7 Para uma conversa não ficar incompreensível, os falantes alternam suas


falas – quando um fala o outro escuta – sob pena da conversa ser incompreensível.
134 A essa alternância, dá-se o nome de turno.
Estratégias sociorretóricas na construção
de textos argumentativos

momento da escrita não é o mesmo da leitura e o espaço comunicativo


não é compartilhado. A escrita que é incapaz de recriar o contexto comu-
nicativo gera muito desentendimento. Na atualidade, com as facilidades de
troca de mensagens, quantas vezes nos questionamos se é melhor ligar ao
invés de mandar e-mail. Geralmente, isso acontece quando a quantidade
de referentes é muito grande, exigindo tantas explicações que é preferível
usar a oralidade e partilhar o espaço comunicativo, assim, qualquer dúvida
do interlocutor é sanada na troca de turno.
Todavia, sair da escrita para a oralidade nem sempre é possível. Reda-
ções do Enem(Exame Nacional do Ensino Médio) e dos vestibulares, por
exemplo, são duas situações típicas nas quais o aluno terá de argumentar
sem ter a chance de se explicar caso o corretor não o entenda. Por isso,
especificar ao aluno para que ele tenha ciência, no ato da escrita, o que
está em jogo quando escrevemos a distância (oposto a face a face), parece-
nos uma estratégia que auxilia sobremaneira atingir a eficácia no ato de
escrever. Nesse sentido, a retórica poderá nos ajudar.

O problema fundamental do desenvolvimento de uma retórica


da escrita consiste em caracterizar a situcionalidade dos textos
escritos, pois a escrita viaja muito facilmente pelo espaço e pelo
tempo. A portabilidade da escrita significa que o texto escrito
pode deixar para trás a posição física e o momento no tempo em
que se produziu. Ela também escapa às circunstâncias sociais,
relações e atividades imediatas e afeta locais e atividades diferentes
à distância, ainda que essas novas posições não sejam visíveis nos
ambientes físicos imediatos nos quais o texto se produz. Essas
novas situações e interações têm de ser construídas imaginati-
vamente pelo escritor e assinaladas bem apropriadamente no
texto, para que o leitor as reconstrua. (BAZERMAN, 2013, p. 31).

Portanto, na escrita, que carrega a premissa de situar o autor e o leitor em


contextos diferentes, o trabalho de reconstrução de contexto na materialização
do texto é o que contribuirá para o leitor entender os argumentos utilizados.
Em síntese, o nosso raciocínio apresenta os seguintes propósitos: a)
para argumentar, não devemos nos preocupar em criar “a verdade”, pois não
temos acesso ao “mundo das verdades”, e sim ao mundo das opiniões, das
crenças, das ideologias e, com isso, devemos construir argumentos que sejam
plausíveis, verossímeis e que não ofendem os valores de nosso auditório; b)
o auditório não estar suscetível a argumentos baseados na razão, somente;
c) há diferenças entre raciocínios relativos à verdade e raciocínios relativos
à adesão e nossa preocupação deve recair sobre a adesão. 135
Para construção de argumentos sob a ótica da retórica, temos de ter
as três premissas acima em mente e conhecer o que Aristóteles (2013)
chamou de partes componentes do sistema retórico8: inventio, dispositio,
elocutio, actio e memória. Dessas, a que mais acreditamos contribuir para
a construção do argumento é a dispositio. Segundo Tringali (2008), a
dispositio tem as seguintes premissas: a) a construção do discurso precisa
de um modelo geral, em que todos os outros serão colocados; b) colocar
cada discurso dentro do melhor lugar possível; e c) os argumentos devem
harmonizar-se entre si, ou seja, ter lógica, ser verossímil. O critério para a
harmonização está associado ao objetivo do autor. Para sair desse modelo
abstrato, a dispositio também conta com algumas divisões internas, quais
sejam, exórdio, narração, proposição, partição, argumentação e peroração.
É, portanto, em cada parte da dispositio que explicaremos como criar o dis-
curso argumentativo. Assim, faremos uma proposta de texto argumentativo
e usaremos as partes da dispositio para mostrar qual preocupação devemos
ter em cada uma das partes e como conseguiremos recriar o contexto, para
trazer o leitor ao mesmo espaço e tempo, e mostrar como construímos
argumentos verossímeis para conquistar a adesão do auditório.

Estratégias para construção de


textos argumentativos
Em geral, os vestibulares e o Enem colocam situações-problema ao
candidato, como forma de verificar a capacidade de articulação das ideias
e se elas não se perdem em meio ao calor das paixões do candidato. Para
simular uma situação desse tipo, elegemos uma proposta de redação com
tema atual e polêmico, extraído – e adaptado – do site guiadoestudante9:

Nas últimas semanas, a Faculdade de Medicina da Universidade de


São Paulo (FMUSP) ganhou destaque nas manchetes dos jornais.
As notícias não tratam da excelência do ensino de uma das maiores

8 Vários são os trabalhos que detalham cada parte da retórica. Indicamos dois:
Mosca (1997) e Tringali (2008).
9 O original pode ser consultado em https://guiadoestudante.abril.com.br/
blog/redacao-para-o-enem-e-vestibular/proposta-de-redacao-violencia-de-genero-
136 nas-universidades-brasileiras/. Consultado em julho/2018.
Estratégias sociorretóricas na construção
de textos argumentativos

faculdades da América Latina, mas de uma lista de denúncias de


atos violentos que vão muito além das práticas tradicionais de trote
– já por si só condenáveis – que as universidades não conseguem
banir. Essa lista inclui dez casos de estupro e relatos de tortura, ho-
mofobia e racismo. As denúncias causam tanto mais perplexidade
por envolverem jovens de educação esmerada, que lhes permitiu ter
sucesso num dos vestibulares mais disputados do país. A pergunta
é por que esses crimes ocorrem num ambiente acadêmico que de-
veria ser seguro? A maioria dos casos de estupro aconteceu durante
festas universitárias, em que o consumo de bebida foi apresentado
como justificativa para os crimes. As meninas alegam que foram
desencorajadas pela universidade a denunciar os agressores.

Temos, portanto, uma situação-problema, repleta de questões entrelaçadas:


• Quem elaborou a questão já emitiu juízo de valor, pois condenou
o trote nas universidades, além de se dizer perplexo pelo fato de os
crimes serem praticados por jovens com educação esmerada, ou
seja, de famílias de condição social privilegiada e, por consequência,
afirmar o seu oposto: os crimes cometidos por jovens de classes
sociais mais baixas deixariam a situação menos perplexa. Criou-se
uma relação de nexo causal entre crime e pobreza.

• Há a afirmação de que o ambiente escolar, especificamente na


FMUSP, deveria ser seguro.

• A questão polemiza as festas universitárias e o consumo de álcool


como justificativa para os crimes.

• Há uma acusação em relação à postura institucional, pois afirma


que as vítimas foram desencorajadas a denunciar.

Como podemos observar, esse caso evidencia o que afirmamos no


início do capítulo: a linguagem é permeada de ideologias, crenças, mitos,
os quais, invariavelmente, servirão de lentes para observação dos fatos.
Ainda que o autor que elaborou a proposta de redação quisesse trazer à
baila uma situação para oferecer condições de melhorá-la, não conseguiu
fazer sem que suas lentes deixassem suas marcas. Porém, essas marcas são
importantes para dar pistas sobre os valores do nosso auditório. Sabemos
que, no caso em tela, o auditório não gosta de trote na universidade – uma
vez que os idealizadores da proposta tonam-se o auditório do aluno – associa
pobreza a crime, entende que a universidade deve ser um local seguro, que
as festas universitárias oferecem riscos e que há uma tentativa de abafar os 137
crimes de homofobia, racismo e estupro nas universidades.
Na situação ilustrada, temos um contexto, um orador que deixou
transparecer alguns de seus valores e uma questão elaborada: por que esses
crimes ocorrem num ambiente acadêmico que deveria ser seguro? Vamos
iniciar as estratégias para a construção dos argumentos pelo exórdio. Se-
gundo Tringali (2008), o exórdio é a parte introdutória, o momento em
que autor e leitor estabelecem a relação e é de suma importância que o
autor se mostre com clareza, simplicidade, dê um mote para contextualizar
os seus argumentos e conquistar a condescendência do auditório, para
não haver resistência nas primeiras palavras do texto. Vale à máxima: “a
primeira impressão é a que fica”. Exemplo de exórdio para a questão da
redação proposta:

Os crimes de tortura, homofobia e racismo não são recentes


na sociedade brasileira, mas pouco se debatia sobre a questão.
Recentemente, com a introdução de políticas públicas de inclusão
das minorias, o assunto vem deixando de ser tabu, embora os
debates pareçam não ser suficientes, pois sequer conseguiram
conter a incidência desses crimes em instituição universitária
de renome. Se a FMUSP tentou barrar as denúncias, há indícios
de que saiba da existência dessas práticas e o quanto elas são
recriminadas. A tentativa de esconder esses crimes dá mais
importância ao status institucional do que a necessidade de
proteção das pessoas que frequentam seu campus?

O exemplo supracitado introduz as seguintes preocupações: a) entra no


assunto polêmico com ideias que não ferem os valores do auditório; b) con-
corda que os crimes de tortura, homofobia e racismo devam ser combatidos,
por presunção de que ninguém, publicamente, declararia o oposto; c) não
faz nenhuma afirmativa enfática e usa modalizadores, como “há indícios”;
d) faz uma introdução toda contextualizada no tempo (atualidade) e no
espaço (campus da FMUSP), que faz com que qualquer leitor entenda o
que foi dito, independentemente da leitura da proposta da redação; e e)
oferece um mote, ou seja, a questão que será argumentada: a tentativa de
esconder esses crimes dá mais importância ao status institucional do que
a necessidade de proteção das pessoas que frequentam seu campus?
Na sequência, vamos para a narração. Ensina-nos Tringali (2008, p.
164-165) que a narração é o momento em que se introduz o pano de fundo
138 da discussão. “Na narrativa contam-se os fatos que definem o estado da
Estratégias sociorretóricas na construção
de textos argumentativos

questão: se foi, o que é, quais as circunstâncias. Ela não serve como prova,
documenta” (TRINGALI, 2008, p. 164-165). Deve-se tomar cuidado para
não confundir com exemplos. Não se trata de fornecer exemplos, mas de
usar a narrativa em função dos interesses de quem argumenta. Intentamos
responder positivamente à questão formulada, ou seja, mostramos que o
status institucional é mais importante do que a proteção da pessoa. Por
isso, faremos a narrativa de forma verossímil com vistas a chegar a essa
conclusão. Exemplo de narrativa:

Trotes e festas fazem parte da vida universitária e não são


eventos promovidos pela instituição, mas uma tradição herda-
da de uma turma pela outra, especialmente pelos momentos
de alegria que farão parte da memória de seus integrantes,
já que o curso de medicina na FMUSP tem um vestibular
muito concorrido e, na maioria do tempo, os alunos estarão
envolvidos com questões acadêmicas, pois o curso é bem exi-
gente. Contudo, a falta de limite de alguns alunos ultrapassa
a barreira do que se entende por descontração e adentra ao
campo do crime. O excesso de álcool, de drogas e de qualquer
outro entorpecente não serve como justificativa para a prática
de atos ilícitos e a instituição deveria punir, com rigor, todos
os que assim agissem.

O exemplo acima demonstra que as festas são tradição entre os membros


do grupo, que sempre há os que excedem os limites e que não podem usar
os entorpecentes como justificativa para a prática de crimes. Vejam que a
“falta de limite” não é dada no caso em tela, mas um fato que colocamos
como verossímil, ou seja, passível de acontecer. O pano de fundo, portanto,
é: os alunos excedem e a instituição não pune.
Feita a narração, vamos à proposição. Para Tringali (2008), a proposição
é o momento em que a questão da controvérsia é colocada; enuncia-se o
aspecto que será debatido. Exemplo de proposição:

Embora a instituição não promova as festas, elas são re-


alizadas dentro de seu campus, o que, indiretamente, a torna
responsável pelos danos morais e físicos cometidos por seus
integrantes.

A questão controvérsia que colocamos foi: não importa que a institui- 139
ção não promova a festa. O fato de a festa acontecer dentro do campus da
instituição a torna corresponsável pelo evento.
A proposição é, quase sempre, feita em conjunto com a partição, que
enumera os pontos principais da proposição. (TRINGALI, 2008). Exemplo:

A omissão em relação às consequências de ato criminoso


dentro do campus é pressão dos autores dos crimes para evi-
tar punição ou da instituição para evitar escândalos, ambos
lançados sobre a vítima?

É possível verificar que elencamos duas proposições como forma de


enumerar os pontos que iremos argumentar.
Com isso, passamos para a próxima parte da dispositio que é a argu-
mentação. Na argumentação, como mostra Tringali (2008,), o autor vai
confirmar os itens elencados na proposição/partição ou refutá-los, se a
ideia for negá-los. No nosso exemplo, a ideia é confirmar, pois entendemos
que há responsabilidade da instituição. Segue o exemplo da confirmação:

À instituição cabe o papel de averiguar e instaurar os proce-


dimentos adequados, dentro da lei, para punir os responsáveis
e legitimar a necessidade de respeito às regras, independente-
mente da responsabilidade da organização do evento.

É possível verificar que a argumentação somente reforçou as proposições


colocadas. Para fechar, contamos com a peroração. Tringali (2008) diz que a
peroração é o fechamento, é o momento em que o leitor (auditório) precisa
saber que o discurso está no seu término. É o momento de amplificar o que
o autor entende como expressivo, momento de apelar às paixões. Exemplo:

Não é admissível que uma instituição coloque sua reputa-


ção acima da dignidade da pessoa humana. Uma instituição
que reconhece atos ilegais cometidos em suas dependências
e pune os responsáveis com rigor, demonstra idoneidade,
passa a mensagem que não aprova conduta criminosa e que,
embora não consiga coibir na totalidade, não será conivente
com nenhum ato reprovável e agirá com rigor para punir os
responsáveis.

140 Perceba que o fechamento invoca paixões, como “dignidade da pessoa


Estratégias sociorretóricas na construção
de textos argumentativos

humana”, “demonstra idoneidade”, “agirá com rigor”. Amplifica expressões


que vão ao encontro dos nossos objetivos e, ao mesmo tempo, fecha o texto.

Considerações finais
A nossa proposta não teve o objetivo de refutar as estratégias pedagógicas
realizadas até então. Sabemos que os elementos linguísticos presentes na
superfície de um texto são essenciais para concatenar ideias e organizar um
discurso e não podemos prescindir deles, contudo, para a construção de um
texto argumentativo, temos elementos extralinguísticos que são essenciais
para o convencimento e a sociorretórica oferece alguns instrumentos muito
bons para isso. Em primeiro lugar, permite que o autor entenda a relação
do leitor com a realidade que o cerca; o hiato que existe entre o tempo que
se escreve e que se lê. Em segundo lugar, pelas técnicas da retórica, permite
conduzir o ensino por meio de uma construção, ao invés de ficar somente
na correção gramatical do texto. Fazer a devolutiva sobre os erros que os
textos apresentam é importante aos alunos, mas participar ativamente na
construção de cada parte do texto nos parece uma experiência muito mais
enriquecedora.
Para finalizar, se o leitor agregar, na ordem, todos os exemplos demons-
trados na construção do texto argumentativo, terá uma redação típica de
vestibular. Nossa proposta foi sugerir que seguir as partes da dispositio é
uma das formas de construir um texto argumentativo com começo, meio
e fim, do ponto de vista linguístico, além de levar em consideração que do
outro lado há um leitor (auditório) capaz de se deixar levar pelos apelos
utilizados na construção dos argumentos.

141
Referências
ARISTÓTELES (384-322 a.C.). A retórica. Trad. Edson Bini. São Paulo:
Edipro, 2013.
BAZERMAN, C. Retórica da ação letrada. São Paulo: Parábola. 2013.
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FERREIRA, L. A. Leitura e persuasão: princípios de análise retórica. São
Paulo: Contexto, 2015.
INSTITUTO MONTE NEGRO & AÇÃO EDUCATIVA. Indicador de
alfabetismo funcional – INAF: estudo especial sobre alfabetismo e mundo do
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MOSCA, L. (Org). Retóricas de ontem e de hoje. São Paulo: Humanitas, 1997.
PAULIUKONIS, M. A. Texto e Contexto. São Paulo: Contexto, 2013.
TRINGALI, D. A retórica antiga e as outras retóricas: a retórica como crítica
literária. São Paulo: Musa, 2008.

142
Motivos: uma análise da
prova de redação do Enem

Nathalia Melati1

O ensino da produção textual é um desafio comum aos professores de


Língua Portuguesa. Para o Ensino Médio, é ainda mais latente a exigência
de capacitar os alunos para que possam realizar as mais diversas provas pre-
vistas no início da vida adulta. Às vésperas do vestibular e do Enem (Exame
Nacional do Ensino Médio), esses estudantes compreendem as características
essenciais de um texto, inclusive de uma produção argumentativa. Falta-lhes,
no entanto, a compreensão do que diferencia uma redação excelente de uma
mediana numa perspectiva avaliativa e, sobretudo, persuasiva.
Como profissionais da língua, há uma tendência natural de o professor
corrigir apenas os erros presentes na superfície do texto, sem levar em conta
a propriedade maior de um discurso: agir sobre o mundo. Escrevemos com
o objetivo de criar um texto que possa causar efeito, em momentos e locais
diferentes (BAZERMAN, 2015). Isso significa que, ao produzir texto, espera-
mos uma reação a ele. Ao escrever um comentário reclamando de qualquer
produto nas redes sociais, espera-se, claramente, que o responsável pela
produção desse produto se manifeste e resolva o problema.
Isso é o que Bazerman (2015) estabelece como o motivo do texto; para
a retórica clássica, essa motivação está na busca do orador em mover um
auditório a aceitar uma determinada opinião sobre um assunto controverso.
Dessa forma, há situações específicas de uso da língua em que a motivação

1 Doutoranda em Língua Portuguesa pela PUC-SP; Mestre em Língua Portuguesa pela PUC-SP;
Membro do Grupo ERA; Bolsista CAPES.
145
é clara. Preencher um formulário para renovação de qualquer documento é
motivado pelo desejo de se renovar o documento. Assim, o leitor desse texto
(auditório) precisa compreender as informações ali presentes para reagir ao
texto e realizar a renovação.
Muitas vezes, no ensino de produção textual, a força intrínseca das palavras
é ofuscada diante de aspectos gramaticais e pouco retóricos. A realidade, no
entanto, é que o texto, ainda que formalmente correto, pode não persuadir
os examinadores na intensidade do desejo do orador, uma vez que o texto
parece descolado da realidade. É uma produção que não indica o seu autor,
seu leitor ou a sua motivação.
O ensino médio recebe alunos que já completaram, pelo menos, nove
anos de educação formal, e, no mínimo, mil horas de aulas de Língua Por-
tuguesa. O texto, para eles, já é um produto final de um longo processo de
escrita e, assim, termina num ponto final que não leva em conta o ecoar
do discurso. Não é viável para um professor ensinar a produção de texto a
partir da estaca zero. Parte do desafio, pois, consiste em como demonstrar
para esses alunos que a noção de erro não está na escrita do texto, mas no
processo que se inicia com a leitura da proposta de redação.
Com o objetivo de contribuir para o debate sobre práticas em sala de
aula, este capítulo parte da perspectiva retórica para compreender a leitura
crítica das propostas de redação do Enem como um possível instrumento
auxiliar no desenvolvimento de dois itens essenciais: a motivação do autor
da redação do Enem; e a definição dos papeis do autor e leitor dessa redação.
É necessário fazer, neste momento, uma ressalva. Assim como muitos
outros, este texto tem como motivação contribuir para a prática pedagógica
do ensino de Língua Portuguesa. Acreditamos que cada texto produzido
sobre a prática docente se insere em um longo diálogo entre professores e
pesquisadores. Nesse sentido, cada e toda pesquisa com ênfase em educação
colabora, a seu modo, para o aprimoramento da educação e para o consequente
aprimoramento humano de cada um dos alunos que frequentam as salas de
aula deste país tão ricamente repleto de contrastes e de paixões edificantes.

A importância da motivação
De acordo com Bazerman (2015, p. 21), “a retórica é a arte prática
reflexiva do enunciado estratégico em contexto do ponto de vista dos
146 participantes, tanto falantes quanto ouvintes, escritores e leitores”. Isso
Motivos: uma análise da prova de redação do Enem

significa que a função da retórica é pensar como podemos usar as palavras


de maneira eficaz para conseguirmos alcançar objetivos específicos, uma
vez que a linguagem humana é baseada na interação em contexto. Isto
é, não produzimos discursos sem propósitos ou deslocados de situações
de uso práticas.
Apesar disso, o autor explica que os estudantes estão, no ambiente
escolar, afastados da maioria das atividades que nos envolvem, assim o
objetivo maior dos estudantes está voltado à escolarização. As atividades
envolvendo a escrita são, na maioria das vezes, destinadas à aprovação
ou à reprovação dos alunos, ou seja, produções que serão avaliadas pelo
professor ou outro avaliar externo. É por isso que “as tarefas de escrita,
muitas vezes, servem apenas para treinar capacidades de escrita em vez
de dedicar-se a um interesse substantivo em termos de conteúdo ou de
ação” (BAZERMAN, 2015, p. 107). Mesmo as produções escritas com
objetivos reais, como uma carta de reclamação, são simulações, uma vez
que não fazem parte de uma situação e necessidade.
Além disso, os estudantes estão sempre presos em uma primeira fase
da escrita. Identificamos o problema e, por meio da escrita, agimos sobre
ele. Na vida real, um e-mail de reclamação receberá uma réplica e, por
vezes, haverá uma tréplica. Dessa forma, é possível compreender como
as produções escritas inserem-se nas atividades reais. Bazerman (2015, p.
107) salienta que isso não acontece na escola já que o aluno “está sempre
em fase de aquecimento, tentando fazer algo acontecer”. O objetivo da
escrita escolar é, portanto, a avaliação. Apesar dessa questão, o exercício
da produção textual é essencial durante o período escolar uma vez que
ele culmina, invariavelmente, em uma prova de vestibular ou, até mesmo,
na prova de redação exigida para assumir um posto de trabalho. Dessa
forma, o papel do professor, especialmente frente a estudantes do ensino
médio, é tornar a atividade escrita mais significativa ao relacioná-la com
situações reais.
A prova de redação do Enem, por sua vez, está inserida em uma
atividade real que tem como objetivo, hoje, ser a porta de entrada de
muitos jovens no universo universitário. O Enem foi criado em 1998 pelo
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
(INEP). A ideia inicial centrava-se na possibilidade de, por meio de como
um exame individual e voluntário, colher dados que pudessem trazer
à tona o resultado palpável de anos de estudos dos alunos concluintes
do ensino médio. O objetivo, pois, era avaliar, a partir de competências
e habilidades, o conhecimento geral dos alunos. No período de 1998 147
a 2008, o Exame foi realizado uma vez por ano com uma prova de 63
questões interdisciplinares. O Enem, durante essa primeira etapa, “se
prestava, principalmente, a oferecer uma referência de autoavaliação
para os participantes, embora algumas instituições já o utilizassem como
instrumento de seleção para ingresso no Ensino Superior” (BRASIL,
2013, p. 12). Com o lançamento do Programa Universidade para Todos
(ProUni), em 2004, o ingresso no Ensino Superior realizado pelo Enem
foi intensificado. E, em 2009, ocorreu uma reformulação metodológica
do Exame com o objetivo de consolidar a sua utilização como forma de
seleção unificada nos processos de acesso à educação superior. A partir
dessa data, o Exame passou a adotar quatro provas –Ciências da Natureza
e suas Tecnologias; Ciências Humanas e suas Tecnologias; Linguagens,
Códigos e suas Tecnologias; Matemática e suas Tecnologias –, realiza-
das em dois dias, cada uma com 45 questões objetivas, totalizando 180
questões, e uma produção escrita do candidato.
A história do exame nos mostra que ele é, de fato, uma atividade
real. Bazerman (2015) afirma que as instituições que permeiam o nosso
mundo, como o INEP, criam gêneros de comunicação para realizarem
suas atividades. Por exemplo, a Receita Federal no Brasil criou um pro-
grama especializado para produzirmos a declaração do imposto de renda.
Essa declaração pode ser compreendida como um gênero produzido
para auxiliar a atividade desenvolvida pela Receita Federal. A redação
do Enem, e a sua própria proposta, também são gêneros criados para
a tarefa de avaliar nacionalmente a população em seus últimos anos de
educação básica.
Ainda que consideremos a artificialidade natural de uma avaliação
nacional e escolar, a intencionalidade que sustenta a prova é retórica, pois
cria uma mensagem com o objetivo de alcançar um determinado fim e
levar um auditório a praticar uma ação definida. A proposta de redação
deseja traçar um conjunto de limitações e restrições, como o tema e o
gênero da redação a ser produzida, para conseguir avaliar o autor desse
texto com base em critérios pré-estabelecidos. Há uma expectativa sobre
o texto do aluno, ou seja, acaso sejam seguidas todas as regras ali pre-
sentes, o aluno-autor será visto como apto a receber uma nota maior e,
consequentemente, a disputar uma vaga no ensino superior. Por isso, a
prova de redação é a apresentação de um problema retórico que oferece
uma questão também retórica a ser resolvida, um auditório delimitado
e um conjunto de limitações e restrições que especificam o contexto. No
148 plano da ação retórica, o auditório, diante da questão proposta, transfor-
Motivos: uma análise da prova de redação do Enem

ma-se imediatamente em orador. A partir da leitura de seus componentes,


portanto, é possível traçar o que o conjunto de limitações e restrições,
que serão o próprio contexto do discurso a ser elaborado pelos alunos,
nos ensina sobre os papéis de cada um dos envolvidos nessa situação.
É possível, então, basear-se nesse fato para tornar a experiência da escrita
escolar mais significativa ao fazer com que o aluno compreenda as motivações
envolvidas nessa avaliação. Analisar a proposta de redação do Enem, por meio
de uma leitura retórica, é uma forma de tornar-se mais familiarizado com
a atividade da prova em si. Compreender os avaliadores, os alunos e o tipo
de discurso esperados torna-se uma forma de dotar a produção escrita em
sala de aula relevante e inserir esse discurso em um diálogo entre os textos.
A produção textual, assim, não seria mais um aquecimento, mas um diálogo
entre produções que culmina na realização da proposta de redação do Enem.

Leitura: prova de redação


A prova de redação do Enem estrutura-se da seguinte forma: instruções
para a redação, textos motivadores e proposta de redação.
As instruções, apodíticas, da prova do Enem de 2009 e 2010 eram as
seguintes:

Instruções
Seu texto tem que ser escrito à tinta, na folha própria.
Desenvolva seu texto em prosa:
não redija narração, nem poema.
O texto com até 7 (sete) linhas
escritas será considerado em branco.
O texto deve ter, no máximo, 30 linhas.
O rascunho da redação deve ser feito no
espaço apropriado. (INEP, 2009, p. 2).

No total, compreendem cinco itens que delimitam a extensão do texto,


o lugar destinado para o texto final e para o rascunho e o tipo do texto
(prosa). É relevante notar que a prova de redação durante esses anos dia-
logava diretamente com o seu auditório, o aluno, ao realizar marcações
textuais como o uso dos pronomes “seu”.
As instruções da prova de 2011 já apresentam algumas alterações, mas
a presença de “deve” ainda é preponderante: 149
Instruções
O rascunho da redação deve ser feito no espaço apropriado.
O texto definitivo deve ser escrito à tinta, na folha própria,
em até 30 linhas.
A redação com até 7 (sete) linhas escritas será considerada
“insuficiente” e receberá nota zero.
A redação que fugir ao tema ou que não atender ao tipo
dissertativo-argumentativo receberá nota zero.
A redação que apresentar cópia dos textos da Proposta de
Redação ou do Caderno de Questões terá o número de linhas
copiadas desconsiderados para efeito de correção. (INEP,
2011, p. 2).

A partir dessas instruções é possível compreender que a prova do Enem


passa a apresentar um estilo mais formal. Não há mais o diálogo explícito
entre orador (avaliador) e auditório (estudante). O estilo mais formal e
neutro adotado pelas instruções já é uma indicação do estilo do discurso
esperado pela avaliação.
Percebe-se também que não é mais suficiente apenas elaborar um texto
em prosa, conforme as provas de 2009 e 2010, o discurso do aluno deve
atender ao tipo dissertativo-argumentativo. Há, portanto, uma delimitação
maior quanto ao gênero esperado desse texto.
Outra alteração marcante é a explicitação sobre o caráter avaliativo
da produção. Até 2010, não havia indicações sobre o critério de avaliação
de textos com menos de sete linhas, apesar de ser implícita a sua descon-
sideração. A partir de 2011, há a delimitação de dois critérios que são
pré-requisitos para a correção: textos de até sete linhas escritas e textos
que não sejam dissertativos-argumentativos. Qualquer produção que não
atenda esses critérios receberá nota zero. Além disso, a prova exige do aluno
um caráter de autoria ao definir que cópia de textos, tanto motivadores
quanto questões do restante da prova, serão desconsideradas.
Em 2012, é acrescido mais um pré-requisito para a correção do texto:

Instruções
O rascunho da redação deve ser feito no espaço apropriado.
O texto definitivo deve ser escrito à tinta, na folha própria, em
até 30 linhas.
A redação com até 7 (sete) linhas escritas será considerada “in-
suficiente” e receberá nota zero.
A redação que fugir ao tema ou que não atender ao tipo disser-
tativo-argumentativo receberá nota zero.
A redação que apresentar proposta de intervenção que desrespeite
150
Motivos: uma análise da prova de redação do Enem

os direitos humanos receberá nota zero.


A redação que apresentar cópia dos textos da Proposta de Redação
ou do Caderno de Questões terá o número de linhas copiadas
desconsiderados para efeito de correção. (INEP, 2012, p. 2).

É possível perceber que as instruções da prova do Enem dividem-se em


instruções propriamente e situações em que o texto será desconsiderado.
Com isso em mente, a partir de 2013 as instruções da prova são apresen-
tadas em duas partes distintas:

INSTRUÇÕES PARA A REDAÇÃO


O rascunho da redação deve ser feito no espaço apropriado.
O texto definitivo deve ser escrito à tinta, na folha própria, em
até 30 linhas.
A redação que apresentar cópia dos textos da Proposta de Redação
ou do Caderno de Questões terá o número de linhas copiadas
desconsiderado para efeito de correção.
Receberá nota zero, em qualquer das situações expressas a seguir,
a redação que:
tiver até 7 (sete) linhas
fugir ao tema ou que não atender ao tipo dissertativo-argumentativo.
apresentar proposta de intervenção que desrespeite os direitos
humanos.
apresentar parte do texto deliberadamente desconectada do tema
proposto. (INEP, 2016b, p. 2).
Farah (2016) avalia que a inclusão do último item das instruções, “apre-
sentar parte do texto deliberadamente desconectada do tema proposto”,
foi realizada a partir de críticas realizadas pela imprensa sobre a correção
da prova, como ter passado despercebido pelos corretores a inclusão de
receitas culinárias e um hino de um time de futebol.
É interessante notar que o Enem 2016 foi o primeiro a contar com as
instruções para a redação antes dos textos motivadores e da própria pro-
posta de redação. A prova, portanto, assumiu uma formatação diferente
dos anos anteriores. Como as instruções apresentam os casos em que a
produção de texto terá nota zero, talvez a inversão de diagramação objetive
destacar essas informações.
A análise das instruções da prova do Enem de 2009 até 2016 permite
algumas observações: em primeiro lugar é possível afirmar que as instru-
ções, ao longo dos anos, passaram por mudanças para que a avaliação do
discurso produzido pelo aluno fosse cada vez mais refinada. Apesar de o
estudante não saber o tema da prova, é claro o que é esperado da sua pro-
dução. É possível garantir, portanto, que as instruções trazem estabilidade 151
para o orador. Farah (2016) indica que a estabilidade é essencial para definir
o gênero exigido pela prova e que as mudanças realizadas nas instruções
corrigiram quaisquer inadequações percebida durante a correção.
Quanto ao tema, desde 2009, foram abordados pelas provas principais,
e transcritos com respeito à formatação de publicação para que seja nítida
a alteração do destaque, foram:

2009: “O indivíduo frente à ética nacional”

2010: “O Trabalho na Construção da Dignidade Humana”

2011: ”Viver em rede no Século XXI: os limites entre o


público e o privado”

2012: “O movimento imigratório para o Brasil no século XXI”

2013: “Efeitos da implantação da Lei Seca no Brasil”

2014: “Publicidade infantil em questão no Brasil”

2015: “A persistência da violência contra a mulher na


sociedade brasileira”

2016: “Caminhos para combater a intolerância religiosa


no Brasil”

Para Aristóteles (2011, p. 48), a retórica versa sobre todas as questões


“sobre as quais deliberamos e a respeito das quais não dispomos de artes
ou sistemas que nos guiem”. O campo da retórica é o da opinião, da con-
trovérsia, da crença; é o embate das ideias e dos discursos, da dialética
(MOSCA, 2001). Nos últimos anos, as provas versavam sobre o combate
a intolerância religiosa, a violência contra a mulher, a publicidade infantil,
a implantação da Lei Seca e o movimento migratório. Todos esses temas
estão sujeitos às contingências da História, do meio social e, sobretudo, das
tendências ideológicas em vigência no período em que foram criados. Em
função disso, pode-se afirmar que a prova de redação do Enem constitui
um problema retórico, já que incita a criação de um discurso retórico a
partir de uma questão dialética, uma vez que o debate acerca dos temas
152 propostos e exige a articulação de argumentos acerca de uma opinião
Motivos: uma análise da prova de redação do Enem

preferível, mas não matematicamente lógica.


É, no entanto, apenas em 2012, que o enfoque do tema passa a ser
explicitamente a sociedade brasileira. Esse recorte chama a atenção pelo
contexto nacional da prova. A delimitação da sociedade brasileira como
um todo exige que o autor do discurso pense não só na sua cidade ou no
seu estado, mas compreenda a questão de forma mais ampla e respeite,
inclusive, a extensão territorial do país em que está inserido.
Todos os temas têm a característica predominante de serem atuais e
próximos ao cotidiano dos estudantes de forma geral. São temas debati-
dos pela mídia e, portanto, é dada aos alunos a possibilidade de já terem
refletido sobre eles previamente à prova.
Sobre a elaboração da proposta de redação por si, observam-se algumas
alterações. Em 2009, lia-se:

Com base na leitura dos textos motivadores e nos conhecimentos


construídos ao longo de sua formação, redija texto dissertati-
vo-argumentativo em norma culta escrita da língua portuguesa
sobre o tema O indivíduo frente à ética nacional, apresentando
proposta de ação social, que respeite os direitos humanos. Se-
lecione, organize e relacione coerentemente argumentos e fatos
para a defesa de seu ponto de vista (INEP, 2009, p. 2).

No ano seguinte, a “proposta de ação social” foi alterada para: “apre-


sentando experiência ou proposta de ação social, que respeite os direitos
humanos” (INEP, 2010, p. 2). Em 2011, houve nova alteração quanto ao texto:
“apresentando proposta de conscientização social que respeite os direitos
humanos” (INEP, 2011, p. 2). Finalmente, em 2012, o texto foi ajustado para:
“apresentando proposta de intervenção, que respeite os direitos humanos”
(INEP, 2012, p. 2). É possível que a opção do termo “proposta de intervenção”
tenha sido possível graças a popularização da prova e, consequentemente, a
compreensão dos professores e estudantes das exigências do exame.

Motivação: definindo papéis


Para a retórica, o orador é o responsável pela produção do discurso. No
entanto, pelo caráter avaliatório do Enem, a proposta de redação prevê um
orador ideal e avalia os discursos elaborados em vista desse orador ideal.
Em primeiro lugar, o orador precisa redigir o texto “em modalidade 153
escrita formal da língua portuguesa”. É esperado um orador capaz de
produzir um discurso sem desvios da norma padrão de escrita do idioma e
com adequação de registro. Já foi mencionado que a escrita das instruções da
prova foi adaptada para um estilo formal e neutro, semelhantemente ao da
escrita esperada em textos dissertativos de modo geral. Esse estilo é, portanto,
esperado também por parte da produção do orador.
De acordo com o documento Redação no Enem 2016, Cartilha do
Participante (INEP, 2016), o orador deve ser capaz de escrever um discurso
com ausência de marcas de oralidade e de registro informal, com precisão
vocabular e com obediência às regras de concordância nominal e verbal; re-
gência nominal e verbal; pontuação; flexão de nomes e verbos; colocação de
pronomes oblíquos (átonos e tônicos); grafia das palavras; e divisão silábica
na translineação. A primeira característica do orador ideal é, portanto, ser
especialista na modalidade escrita da língua portuguesa.
A próxima exigência do exame é que o discurso seja redigido “com base
nos conhecimentos construídos ao longo de sua formação”. Assim, o orador
ideal deve demonstrar que sabe informações de várias áreas do conhecimento
e é capaz de relacionar esse conhecimento com a realidade do mundo. Tam-
bém é importante que o orador apresente marcas de autoria ao ser solicitado,
pela Cartilha do Participante, que “evite recorrer a reflexões previsíveis, que
demonstram pouca originalidade no desenvolvimento do tema proposto”
(INEP, 2016, p. 16).
O exame também favorece o orador experiente, uma vez que avalia a
capacidade do aluno em selecionar, organizar e relacionar, de forma coerente
e coesa, argumentos e fatos para a defesa de seu ponto de vista. Nesse sentido,
a prova requisita do orador que elabore um discurso eficaz no convencimento
do auditório em defesa de um ponto de vista.
Por fim, o orador deve ser um crítico da sociedade em que vive para que
seja capaz de elaborar uma “proposta de intervenção que respeite os direitos
humanos”. É necessário ser um crítico da sociedade no sentido de compre-
ender qual proposta poderia contribuir para o tema da prova e, para além
disso, como esta proposta poderia ser aplicada.
Sobre o auditório, a Cartilha do Participante informa que cada texto será
lido por dois professores de forma independente, ou seja, um não saberá a
nota atribuída pelo outro. Se por acaso houver uma discrepância entre as
notas, como uma diferença de cem pontos no total ou oitenta pontos em cada
uma das competências, a prova ainda será avaliada por um terceiro professor.
Não é possível desconsiderar a artificialidade de uma avaliação que possua
154 a abrangência do Enem. Assim como em produções textuais realizadas em
Motivos: uma análise da prova de redação do Enem

sala de aula, o aluno-orador é encorajado a considerar o seu auditório como


universal quando, na verdade, o discurso final é sempre dirigido a um avaliador.
A partir disso, compreende-se que o auditório da prova de redação Enem
é um professor de português com nível de conhecimento mediano sobre o
tema, o que significa dizer que ele não é um especialista no assunto. Apesar
de ser um público altamente versado em questões de linguagem, o tema da
prova aborda questões sociais, políticas e culturais. E, mesmo com a prepa-
ração minuciosa a que são submetidos, os avaliadores não são absolutamente
especialistas em relação ao tema. Ou, ao menos, não o são como em relação
às estruturas linguísticas da redação.
Por fim, a prova de redação do Enem espera a produção de um discurso
“dissertativo-argumentativo em modalidade escrita formal da língua portugue-
sa”. É importante que esse discurso defenda uma tese apoiada em argumentos
consistentes, de acordo com a Cartilha do Participante.
Por respeitar a estrutura pedagogicamente chamada de dissertativa na
escola, compreende-se que esse discurso terá um mínimo de três parágrafos:
introdução, desenvolvimento e conclusão. Além disso, o último parágrafo do
discurso esperado terá que apresentar uma proposta de intervenção referente
a uma questão que envolve a sociedade como um todo.
Dentro da perspectiva retórica, o discurso que será produzido a partir
da prova de redação do Enem pertence ao gênero deliberativo, uma vez que
determina um procedimento (proposta de intervenção) como aconselhável
para solucionar uma questão referente à sociedade. Nesse gênero, é acon-
selhável que o aluno comprove a sua tese a partir do uso de exemplos. Esse
tipo de argumento é compatível como o perfil do orador ideal ao fazer uso
de informações compreendidas em diversas áreas de conhecimento. Isso é
possível a partir do momento em que os exemplos dos textos deliberativos
são baseados em situações passadas, já que é impossível narrar com base em
acontecimentos futuros (ARISTÓTELES, 2011).

Considerações finais
Como futuro cidadão crítico, o aluno deve ser capaz de reconhecer os
atos retóricos que o cercam diariamente; deve entender como esses atos
objetivam mudar suas atitudes, crenças, opiniões e comportamentos; e
deve reconhecer se obtêm sucesso ou fracasso quando atingem um audi-
tório. Enfim, ao assumir um papel de crítico, é necessário que o indivíduo 155
descreva, interprete e avalie os discursos que o cercam para compreender
o motivo do êxito de cada um e, essencialmente, tenha clara para si a sua
finalidade de um discurso público.
Compreender aquilo que é esperado dos alunos durante a prova de
redação do Enem e quem é o seu auditório permite uma assimilação do
motivo por trás da produção textual. Ainda que artificialmente, simular
a motivação da escrita faz com que a produção textual seja inserida em
um conceito mais palpável para o estudante e, assim, possa contribuir
com seu crescimento. Bazerman (2015) postula que a evolução da escri-
ta tende a acontecer com uma interação que se desenvolve ao longo do
tempo, uma vez que “problemas se definem, os papéis de participantes
emergem, o trabalho a ser realizado fica mais claro, os fatos da situação
e o conhecimento relevante tornam-se salientes” (BAZERMAN, 2015,
p. 109). Dessa forma, a leitura retórica da prova de redação em sala de
aula por professores e alunos pode ser um instrumento importante para
o desenvolvimento da escrita.

156
Motivos: uma análise da prova de redação do Enem

Referências
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução, textos adicionais e notas Edson Bini.
São Paulo: EDIPRO, 2011.
BAZERMAN, C. Retórica da ação letrada. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.
BRASIL. Exame Nacional do Ensino Médio (Enem): relatório pedagógico
2009-2010/ Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.
Brasília: O Instituto, 2013.
FARAH, N. E. Proposta de desenvolvimento da produção textual na
perspectiva da Educação Linguística – para além do Enem. 2016. Dissertação
(Mestrado em Língua Portuguesa). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo, 2016.
INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Tei-
xeira. Exame Nacional do Ensino Médio. Prova de Redação e de Linguagens,
Códigos e suas Tecnologias. Prova de Matemática e suas Tecnologias. Brasília: O
Instituto, 2009.
INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Tei-
xeira. Exame Nacional do Ensino Médio. Prova de Redação e de Linguagens,
Códigos e suas Tecnologias. Prova de Matemática e suas Tecnologias. Brasília: O
Instituto, 2010.
INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Tei-
xeira. Exame Nacional do Ensino Médio. Prova de Redação e de Linguagens,
Códigos e suas Tecnologias. Prova de Matemática e suas Tecnologias. Brasília: O
Instituto, 2011.
INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Tei-
xeira. Exame Nacional do Ensino Médio. Prova de Redação e de Linguagens,
Códigos e suas Tecnologias. Prova de Matemática e suas Tecnologias. Brasília: O
Instituto, 2012.
INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.
Redação no Enem 2016: cartilha do participante. Brasília: O Instituto, 2016.
MOSCA, L. Velhas e Novas Retóricas: Convergências e Desdobramentos. In
_________. (Org.) Retóricas de Ontem e de Hoje. 2 ed. São Paulo: Humanitas, 2001.

157
Ensino da produção de
artigo acadêmico: uma
abordagem sociorretórica

Ana Lúcia Magalhães1

A escrita acadêmica competente inclui um conjunto de habilidades e posi-


cionamentos como planejamento, estabelecimento de metas, resolução
de problemas e avaliação criteriosa. O maior desafio dos professores tem sido
motivar os alunos, que tendem a considerar tal tipo de produção escolar como
uma tarefa muito separada da realidade cotidiana de um tecnólogo2. Existem
outros problemas como o plágio e a dificuldade de estruturar e desenvolver
escrita mais complexa do que qualquer outra vivenciada anteriormente. Uma
das soluções que pode contribuir para essa questão é o estudo de gêneros
textuais, que fornece ferramentas para o ensino da produção acadêmica,
uma vez que o artigo acadêmico é, em si, um gênero textual.
Há basicamente três perspectivas teóricas para estudar gêneros tex-
tuais: sociossemiótica (Halliday, 1994; e Fairclough, 2001), centrada na
léxico-gramática e contextos sociais; sociodiscursiva (Bakhtin, 2006; e
Maingueneau, 1997), que privilegia o caráter social em prejuízo do es-
trutural; e sociorretórica (Swales, 2004; e Bazerman, 2013), que se ocupa,

1 Doutora em Língua Portuguesa pela PUC-SP, possui graduação em Letras pela Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena (1974) e mestrado em Língua Portuguesa pela PUC-SP (2001);
Membro do Grupo ERA.
2 Os cursos de tecnologia são faculdades com forte componente mercadológico e duração de
três anos. A diferença entre o tecnólogo e um bacharel ou licenciado é que a formação do primeiro é mais
focada, com disciplinas bastante específicas, enquanto os outros dois são mais generalistas.

159
sobretudo, da organização retórica e das soluções comunicativas dos textos.
Embora essas correntes não sejam as únicas a tratar dos gêneros comen-
tados, representam aqui o pensamento teórico pertinente.
Este capítulo fundamenta-se ainda em Aristóteles (2003 [230 a.C.]),
Meyer (2007), Perelman e Tyteca (1999 [1958]) e Toulmin (2003 [1958]),
que esclarecem sobre a Retórica em âmbito profundo, no sentido de não
ser possível a elaboração de qualquer texto – e acrescentamos, em particu-
lar o artigo acadêmico – sem levar em conta os sujeitos e suas colocações
argumentativas, representadas nas estruturas discursivas.
O domínio do entendimento sobre ethos, pathos e logos ligados, respec-
tivamente, a orador, ouvinte/leitor e discurso, assim como a compreensão
das estruturas internas do argumento (TOULMIN, 2003) são essenciais
na construção do artigo acadêmico, embora possam não aparecer objeti-
vamente nesses textos.
A partir dessas considerações, a proposta deste trabalho é apresentar
uma experiência com inclusão da sociorretórica na prática do ensino em
escola tecnológica de nível superior, cujos cursos são tipicamente voltados
para o mercado e envolvem, muitas vezes, disciplinas da área de exatas.
Os alunos esperam desses cursos o desenvolvimento de competência e
habilidades próprias e costumam considerar como irrelevantes as maté-
rias que não proporcionam formação específica. No entanto, é esperado
de qualquer profissional competência em se comunicar, entendida não
apenas como capacidade de troca de informações, mas também o domínio
de habilidades argumentativas, sob pena de ter seu progresso dificultado.
À medida que o profissional se desenvolve na carreira, as aptidões não
técnicas aumentam de importância.
Desse modo, este capítulo toma como base a experiência com estu-
dantes de cursos tecnológicos das Fatecs3 das cidades de Guaratinguetá
e Cruzeiro (estado de São Paulo) ao longo de seis anos. Foram, no total,
vinte turmas com cerca de quarenta alunos cada, ou seja, uma observação
de aproximadamente oitocentos alunos. Evidentemente não se pode dizer
que todos apresentaram o mesmo desempenho, até porque os trabalhos são
feitos em grupos de três integrantes, o que pode mascarar os resultados,
tendo em vista que nem sempre se dá a participação efetiva e completa de
cada um dos indivíduos em processos dessa natureza.

3 As Fatecs são escolas tecnológicas de nível superior localizadas no Estado


160 de São Paulo.
Ensino da produção de artigo acadêmico:
uma abordagem sociorretórica

Acrescentamos que é comum graduandos, ao ingressarem no nível


superior, apresentarem dificuldade na elaboração dos textos solicitados
pelos docentes e tal dificuldade pode se estender por todo o curso caso a
habilidade correspondente não seja exercitada, portanto, trata-se de desafio
permanente. Observa-se, ainda, um crescimento do ensino de gêneros
textuais, principalmente em trabalhos direcionados à docência e à pesquisa
da língua escrita. Acreditamos, dessa forma, que o ensino do gênero artigo
acadêmico (CASTELLÓ, 2010) exercita todas aquelas capacidades, além
de fortalecer a autodisciplina. Além do mais, uma vez que a competência
(BRZOVIC, FRASER, LOEWY e VOGT, 2006) dos alunos para escrever
com clareza e eficácia afeta o desempenho em todo o currículo, há razões
para introduzir esse gênero textual já no primeiro semestre dos cursos
superiores, independentemente dos desafios envolvidos.
Para tanto, pretendemos, com este trabalho, responder à seguinte questão
de pesquisa: quais as estratégias retóricas estão privilegiadas nos artigos aca-
dêmicos? Tencionamos, como proposição, mostrar que o exercício da escrita
de artigo, já a partir do primeiro semestre do nível superior, em quaisquer
cursos, auxilia em várias etapas da aprendizagem para além dos aspectos
formais do texto e permite alcançar uma análise sociorretórica conforme
proposta por Swales (1990), Bazerman (2013) e Bakhtin (2003), que tratam
dos gêneros textuais. Ao final mostramos o resultado de uma pesquisa
realizada com alunos e professores, sobre a produção de artigo acadêmico.
Carolyn O’Hara, em artigo publicado pela Harvard Business Review
(2014), escreveu um conjunto de instruções sobre como melhorar a escrita
organizacional. O primeiro conselho diz respeito a pensar antes de escrever,
para não confeccionar uma colcha de retalhos de pensamentos avulsos
e pouco conectados, o que acontece com relativa frequência, ao menos
entre alunos de escolas tecnológicas. A escrita acadêmica é estruturada
quase por definição. Outra diretriz dessa autora trata da necessidade de
objetividade nesse tipo de texto. Um artigo acadêmico afirma seu objetivo
no início e mostra, nessa mesma instância, a questão (ou questões) de
pesquisa. O’Hara (2014) também recomenda evitar jargões e, portanto,
uma cuidadosa seleção de palavras. A orientação inclui, também, revisão
constante do que se escreve e opção por períodos menores, mais diretos.
Tais recomendações se aplicam, na íntegra, à prática de produção do artigo
acadêmico, que apresenta as mesmas exigências de clareza e objetividade
da escrita organizacional.

161
Competências
As habilidades que se deseja desenvolver nos estudantes, e com base
nos conceitos da sociorretórica, dizem respeito à organização retórica e
capacidade de comunicação, conforme Swales (2004), Bhatia (1993) e
Bazerman (2013). A Tabela 1 a seguir, fundamentada em esquema criado
por Brzovic et all. (2006), no contexto de ensino de comunicação, mostra
algumas competências da escrita acadêmica que, segundo os autores, apuram
a capacidade de produzir boa comunicação e estrutura retórica relevante.
Existem duas palavras para competência, em inglês: competency, que
designa características comportamentais (difíceis de adquirir, o que torna
particularmente importantes as ferramentas eficazes), e competence, que se
refere a predicados técnicos e funcionais. As tabelas tratam das competencies.

Tabela 1 - Competências formais

compe- básico intermediário avançado


tência
Criar, produzir Compor, revisar e editar Selecionar estratégias
Comunicação

e revisar textos documentos em resposta retóricas apropriadas


acadêmicos que a estudos de casos que para persuadir
sejam: claros, sejam: informativos, bem públicos diversos a
Escrita

corteses, completos, organizados, lógicos, aceitar conclusões.


corretos: aceitáveis. persuasivos.
Expor uma Desenvolver e expor uma Criar e apresentar
apresentação breve apresentação acadêmica uma apresentação
Comunicação

e informal. formal que seja: acadêmica e


articulada, inteligível, moderar discussões
ensaiada, organizada, com utilização de
dinâmica, visualmente recursos retóricos
Oral

interessante apropriados.
Escrever textos que Escrever recomendação Escrever textos
contenham resumo que selecione, analise analíticos refinando
Pesquisa de Informação

e documentação de e organize informação determinado


informação obtida recolhida de fontes tópico: seleção,
de várias fontes múltiplas, inclusive avaliação, síntese e
fontes eletrônicas documentação de
informação complexa
de várias fontes, com
inclusão de artigos
acadêmicos

162
Ensino da produção de artigo acadêmico:
uma abordagem sociorretórica

Tabela 2 - Competências filosóficas

compe- básico intermediário avançado


tência
Identificar elementos- Definir um problema, Avaliar situações
Pensamento Crítico

chave em pesquisas formular os objetivos, da elaboração de


acadêmicas propor e analisar textos em termos de
informadas soluções razoáveis e forças e fraquezas do
concisamente. fazer recomendações argumento, ameaças
sobre casos. e oportunidades
dos contextos/casos
escolhidos para estudo
Usar linguagem direta, Saber escolher Aplicar princípios
evitar exageros e soluções apropriadas de ética acadêmica a
falácias lógicas e saber a dilemas éticos que decisões.
reconhecer práticas envolvam várias partes
Ética

não-éticas. interessadas.
Identificar Usar argumentos Aplicar conjuntos
causa e efeito de de fato, políticas explícitos de critérios
decisões sobre acadêmicas e valores. para avaliar os
Decisão

encaminhamento de problemas de pesquisa


textos simples. e encontrar a melhor
solução.
Aplicar somente Determinar como Definir, avaliar e
conhecimentos fatores éticos, globais, resolver problemas
relevantes. políticos, tecnológicos de comunicação que
Realismo

e culturais afetam o afetam o texto.


desenvolvimento do
texto e as conclusões.
Fonte: a autora (adaptado de Brzovic et all., 2006)

Sociorretórica
A sociorretórica ocupa-se da comunicação e das estruturas retóricas,
mas de que forma isso se manifesta? Sem se desligar completamente dos
conceitos aristotélicos, Bazerman (2013, p. 22) escreveu que “A retórica
também difere das outras artes da língua porque adota o ponto de vista
dos usuários, em vez da posição não comprometida do analista do código”.
Tal postura privilegia a capacidade de comunicação efetiva, centrada no
auditório (PERELMAN, 1999) e detalhada nas Tabelas 1 e 2 adaptadas
de Brzovic et all. (2006), que favorecem a construção de argumentos. Ao
lembrar que “(...) a retórica constrói-se para a ação, em vez de para a des- 163
crição estática” (BAZERMAN, 2013, p. 13) e que “as questões fundamentais
da retórica têm a ver com maneiras de realizar coisas, e não com o que as
coisas são” (idem) o autor reforça o caráter sociorretórico que, a nosso ver,
pode ser aplicado aos textos acadêmicos, ou seja, “definir, avaliar e resolver
problemas de comunicação que afetam o texto” (ibidem) (Tabela 2).
Podemos dizer que tanto as competências formais avançadas da Tabela
1 quanto as filosóficas avançadas da Tabela 2 estão centradas em Bazer-
man, quando afirma que “(...) Vale a pena saber como funciona a língua
em contexto, porque isso permite saber como usá-la. (...) localizar-se na
atividade, a definir seus interesses e a reconhecer e mobilizar recursos para
a interação” (BAZERMAN, 2013, p. 22).
Swales (1990), para quem o entendimento dos objetivos da comuni-
cação é central ao tratamento sociorretórico, influenciou o pensamento
de Bhatia (1993), que justifica o estudo do gênero como entendimento do
propósito comunicativo. Assim, o autor define e comenta gênero como:

uma instância de sucesso em um propósito comunicativo espe-


cífico com utilização do conhecimento de recursos linguísticos e
discursivos adaptados para o convencional. Como cada gênero,
em certos aspectos importantes, estrutura o mundo estreito da
experiência ou realidade de um modo particular, está implicado
que a mesma experiência ou realidade irá requerer um modo
diferente de estruturação ao se operar em um gênero diferente.
(BATHIA, 1993, p. 116) (tradução da autora).

O gênero artigo acadêmico se enquadra nas observações de Swales


(1990), Bhatia (1993) e, ainda, no que diz Bazerman (2013):

os gêneros emolduram e situam o momento da escrita, mas


não a obscurecem em generalidades. Os gêneros, poderíamos
dizer, identificam um espaço e um evento e implicam algumas
orientações, compreensões típicas instrumentos e trajetórias
possíveis, mas não nos dizem exatamente como o evento vai se
desenvolver. (BAZERMAN, 2013, p. 45).

Em outras palavras, o artigo estabelece um momento na escrita, iden-


tifica um espaço, implica em orientações e trajetórias plausíveis. É possível,
muitas vezes, que o gênero escolhido neste trabalho (artigo acadêmico)
tome caminhos diversos daqueles definidos inicialmente, por isso, ainda
164 conforme Bazerman (2013, p. 45), “haverá demasiadas coisas envolvidas
Ensino da produção de artigo acadêmico:
uma abordagem sociorretórica

para conseguirmos ver claramente para onde todas as nossas compreensões,


pensamentos e impulsos nos levam”.
Embora Toulmin (2013) não esteja especificamente ligado à sociorretórica
e não tenha trabalhado estritamente com gêneros textuais, seu método de
análise estrutura o argumento de modo a nos levar a crer na possibilidade
de integração ao corpo de conhecimento da sociorretórica, uma vez que
a maneira como está constituído seu método conduz a uma comunicação
mais eficaz. O artigo acadêmico implica em desenvolvimento estruturado
de argumentos da mesma forma que a sociorretórica.

Solidez do argumento e sociorretórica


Toulmin (2013) desenvolveu um modelo denominado layout do ar-
gumento. De acordo com autor, o argumento possui seis componentes,
representados no esquema da Figura 1. Os seis elementos se relacionam
de diversos modos, embora a identificação de cada um deles seja feita por
meio da função que cada um exerce. O diagrama mostrado permite a análise
da interrelação de microargumentos e subargumentos que compõem uma
estrutura maior. Para facilitar a compreensão, o esquema inclui um exemplo.

Figura 1: Modelo argumentativo de Toulmin

Evidência: Reivindicação:
Partidas vencidas Presentemente, o
O melhor time é o
pelo S.Paulo: 3 S. Paulo é um time
que ganha mais
Partidas vencidas melhor que o
vezes
pelo Palmeiras: 1 Palmeiras.

Backing: Refutação
Período Pode ser usado
considerado de outro período ou
2009 a 2015 analisados outros
dados.

Respaldo:
Em futebol, o que
conta são os
resultados.

Fonte: a autora. 165


Um argumento assim elaborado se desdobra e revela os pontos fortes
e limites: nenhuma alegação deve ser mais forte do que o necessário nem
ir além de sua própria pretensão. A questão, segundo Toulmin (2013), não
é ganhar ou perder os contra-argumentos, mas chegar o mais próximo da
verdade ou o mais perto de uma solução realista ou possível. Tal afirmação
pode funcionar como elemento tranquilizador, uma vez que retira do orador
ou produtor do texto a obrigação de ganhar a questão a qualquer custo.
Assim, responder a um argumento ou compreendê-lo vai muito além
de concordar ou discordar dele: é determinar a base do acordo ou desacor-
do. Em outras palavras, analisar um argumento passa a ser um processo
de descoberta de como as estratégias argumentativas são trabalhadas, de
que maneira e por quais níveis elas transitam e nos conduzem a responder
aos conteúdos a que somos expostos. Algumas vezes, tais análises podem
modificar nossa compreensão ou julgamento e fazer com que nossos ar-
gumentos sejam afetados. A sociorretórica, conforme comentado, prevê
mudanças de rota (BAZERMAN, 2013).
O método de Toulmin (2013) pode se tornar, assim, maneira efetiva de
mostrar a maneira e em que níveis alcançamos os argumentos ou somos por
eles afetados. É uma forma de análise que permite dividir um argumento
em diferentes elementos. Essa anatomia, esse estudo, permite entender o
argumento mais profundamente, sumarizando-o. Possibilita ainda discutir
ou verificar sua eficácia ou ineficiência. A sociorretórica prevê a comu-
nicação efetiva, o que implica no que foi sugerido por Toulmin (2013).
As partes do argumento, de acordo com esse autor, são: pretensão,
reivindicação, razões, evidência, antecipação, objeções e refutação.
1. Pretensão/conclusão (claim): são fatos ou evidências utilizadas para
comprovar o argumento; proposição que defende, sustenta, afirma, nega
ou solicita algo. Trata-se do objetivo do argumento, o que se tenta provar,
a tese. O primeiro passo para analisar e criticar o argumento é entender,
com segurança, onde se quer chegar (Toulmin, 2013). Como exemplo,
podemos pensar a definição do objetivo do artigo. Esse é o argumento
que se deve provar válido.
2. Razões/dados (grounds/data): trata-se da proposição em processo
de discussão. São os fatos ou dados que sustentam a conclusão. Em outras
palavras, são os motivos, as evidências, as causas ou circunstâncias que
apoiam a conclusão, que justificam a tese. Considera-se, nessa etapa, qual
tipo de razão será necessária para que a conclusão se torne aceita como
confiável (Toulmin, 2013). No caso da produção de um artigo, podem ser
166 citadas as entrevistas, o estudo de campo, os questionários.
Ensino da produção de artigo acadêmico:
uma abordagem sociorretórica

3. Garantia (warrant): nessa etapa estão as declarações lógicas gerais,


hipotéticas e, muitas vezes, implícitas que servem de ponte entre as pre-
tensões e os dados. A garantia estabelece um vínculo entre a conclusão e
as razões (pode ser uma fórmula, uma regra formal, a interpretação de um
princípio). É importante verificar se as razões realmente fornecem um apoio
para a conclusão e não se tratam apenas de informações irrelevantes que
nada têm a ver com a conclusão levantada (Toulmin, 2013). Isso significa, na
estruturação de artigos, a existência de uma lógica argumentativa entre os
dados obtidos na pesquisa de campo e a teoria escolhida para fundamentar
aquele texto, ou seja, a coerência entre as respostas dos entrevistados e a
proposição do trabalho.
4. Respaldo (backing): são declarações que limitam a força do argumen-
to ou que propõem as condições sob as quais o argumento é verdadeiro;
o fundamento que valida ou dá suporte à garantia: fundamento sólido,
material; aquilo que, em regra, não é alvo de questionamento. Além das
razões que fundamentam determinado argumento, Toulmin (2013) diz que
“é preciso descobrir a fonte genérica de informações”. Na elaboração de
artigos, o respaldo seria o uso de metodologia comprovada e, por exemplo,
a qualificação dos entrevistados.
5. Qualificador (qualifier): não se trata, necessariamente, de provas que
reforçam o argumento principal. Podem ser contra-argumentos ou decla-
rações que indicam as circunstâncias em que o argumento geral não seja
verdadeiro. Sempre que aparecem são mostrados por meio de advérbios ou
adjetivos, que definem a força da conclusão, comumente expressa por meio
de termos como necessariamente ou possivelmente. Qualquer conclusão é
apresentada com certa força ou fraqueza, condições ou limitações (Toul-
min, 2013). No exemplo, pode-se afirmar que o esforço não será válido e
não terá resultados se o artigo não for devidamente planejado, pois corre
o risco de se transformar em um texto sem direcionamento. Nesse caso,
pode aparecer, na conclusão ou nos resultados, o advérbio possivelmente,
que limita a força do argumento.
6. Refutação (rebuttal): são afirmações que podem reduzir ou anular
a força do argumento, marcada por ressalvas, restrições, anuladores, ou
seja, uma hipótese em que o argumento principal não se sustente. Toulmin
(2013) afirma que se trata de circunstâncias extraordinárias ou excepcio-
nais que chegam a comprometer a alegação. Uma refutação ao argumento
da utilidade da escrita de artigo seria qualquer contra-argumento a essa
utilidade. Uma forma de anular a refutação seria antecipá-la e responder,
no próprio texto, para garantir a solidez do argumento. 167
Estudo de caso: elaboração
de artigo por alunos
Este trabalho tomou como exemplo o ensino de artigos acadêmicos
para alunos de primeiro semestre das disciplinas de Leitura e Produção de
Texto e Métodos da Produção do Conhecimento. Conforme comentado, a
pesquisa tem sido feita durante seis anos a um total de aproximadamente
800 alunos.

Uso da metodologia como estímulo


A fim de enfrentar o problema da falta de motivação, uma das várias
abordagens tentadas tem produzido resultados significativamente positivos.
A metodologia pode ser resumida em dois pontos estritamente ligados
à sociorretórica: 1) basear cada trabalho em pesquisa percebida como
relevante – desenvolvimento de artigo com tema de interesse do aluno
e 2) garantir que os estudantes desempenhem um papel ativo, com suas
próprias decisões sobre os caminhos e métodos de pesquisa, sem esquecer
a preocupação com um monitoramento cuidadoso e uma instrução de-
talhada. Ainda em obediência aos princípios sociorretóricos, a estrutura
retórica é garantida pelo uso do layout do argumento de Toulmin (2013).
O desenvolvimento de artigos acadêmicos nas escolas tecnológicas
selecionadas tem sido solicitado a estudantes de duas disciplinas: uma es-
pecializada em escrita: Leitura e Produção de Textos, e outra em pesquisa:
Método da Produção do Conhecimento. Há uma coordenação centrali-
zada de trabalhos acadêmicos para auxiliar os professores, uma vez que a
atividade é essencialmente multidisciplinar e envolve, ao mesmo tempo,
pesquisa e escrita.
Os alunos recebem uma lista de temas que sejam significativos a eles
e que tenham relação estreita com o curso, no caso, Tecnólogo em Ges-
tão4. Por exemplo, se um estudante está particularmente interessado em
esportes, um tema típico seria a viabilidade de organizar um torneio de
futebol amador entre algumas cidades vizinhas. Os temas são selecionados
pelos grupos de alunos, em número de, no máximo, três. A estudantes que
se interessam por cultura, pode ser apresentado, como tema, a influência

168 4 Especialidade Gestão em Eventos, curso multidisciplinar


Ensino da produção de artigo acadêmico:
uma abordagem sociorretórica

da cultura local nos eventos. Existem dois tipos de motivação: a própria


curiosidade, induzida pelo tema escolhido, e a preparação para a vida
profissional, objeto de conversas de incentivo planejadas, para mostrar
como tal esforço é importante para alcançar o mercado de trabalho com
maior preparo.
O plágio tem sido abordado em duas linhas: a investigação e a discus-
são. Cada parágrafo produzido pelos alunos é verificado por meio de, pelo
menos, dois softwares de investigação de plágio que, quando encontrado,
é exposto. Além disso, aulas específicas sobre ética são ministradas, com
incentivo a discussões sobre o caráter de fraude do plágio.
No início do esforço, se ministrava uma aula de ética, que rapidamente
evoluiu para duas, graças ao interesse dos estudantes no tema. As ques-
tões éticas são abordadas à luz do utilitarismo e do imperativo categórico
(SANDEL, 2009), e a falta de qualquer possibilidade de defesa para o plágio
é exaustivamente demonstrada.

Aulas teóricas e entregas intermediárias


São ministradas aulas teóricas sobre metodologia científica e retóri-
ca, ambas as disciplinas pelo mesmo professor. Um curso rápido (crash
course) sobre metodologia de estudo de caso é efetuado após a atribuição
dos temas, para que os estudantes entendam os fundamentos do método,
conforme Robert Yin5 (2013). As etapas da pesquisa estão listadas a seguir,
juntamente com as atividades correspondentes solicitadas aos estudantes.
Tais fases estão associadas à sociorretórica, conforme mostrado em pa-
rágrafos anteriores, embora de maneira indireta. O artigo é construído e
entregue em várias etapas.
Questões de estudo, também chamadas de questões de pesquisa, são
as perguntas que o aluno elabora a si mesmo, com a intenção de nortear
a investigação. Exemplos de questões são: por quê, como, qual a maneira?
Tais perguntas são analisadas pelo professor e discutidas com os alunos ou
grupos. A clareza dessas questões está diretamente relacionada à excelência
da comunicação com o leitor, um cânon da sociorretórica.
As equipes, após escolher os temas, decidem sobre tais questões e con-

5 Robert Yin é teórico norteamericano que elaborou metodologias para o


desenvolvimento de trabalhos acadêmicos, neste capítulo focado no estudo de caso 169
cebem um programa de investigação histórica, entrevistas com cidadãos,
líderes empresariais ou políticos, locais ou representantes de outros espaços
considerados significativos, além do recolhimento de informações junto a
indivíduos com conhecimento relevante para a pesquisa.
Proposições de estudo: não se trata exatamente do que o pesquisador
quer saber, mas daquilo que ele está tentando alcançar. É comum que os
estudantes apresentem dificuldade em compreender a diferença entre
questões de estudo e proposições, essas últimas equivalentes aos objetivos
de um trabalho acadêmico. Uma boa forma de superar tais dificuldades é a
utilização da maiêutica (método socrático), ou seja, por meio de perguntas,
os alunos são instados a explicar sobre o que pretendem realizar com sua
pesquisa ou, em outras palavras, onde desejam chegar.
Unidade de análise e dados: a definição da unidade de análise tem
se revelado importante, uma vez que os estudantes apresentaram forte
tendência a perder o foco. Nessa fase, eles definem o que exatamente irão
pesquisar: o local, um evento específico, um fato, um caso definido.
Lógica que liga os dados às proposições: uma forma de ensinar esse
passo é por meio de uma pergunta simples: o que se vai fazer com os dados
coletados? Trata-se de etapa importante na estruturação e organização da
pesquisa e, apesar da simplicidade da questão sobre o que fazer com os
dados, é conveniente que o momento seja acompanhado pelo professor.
Nesse momento o professor pode apresentar uma lista de referências,
livros, artigos acadêmicos, revistas, ciberespaços confiáveis sobre o tema.
Os alunos são incentivados a efetuar leituras antes da entrega, que consiste
na descrição da unidade de análise e o detalhamento da lógica de vin-
culação de dados com as proposições. A experiência tem mostrado que,
quando a fundamentação teórica é solicitada antes dessa fase, os estudantes
apresentam maior tendência a efetuar colagem de textos e acham que o
trabalho está finalizado.
Após a avaliação dessa entrega6, cada equipe é convidada a apresentar
um protocolo de pesquisa, que compreende tema, questões, proposições,
dados a serem obtidos e uma descrição de como os dados serão organizados
para realizar as proposições. A relevância de saber colocar por escrito a
conexão entre dados e proposições é bastante enfatizada, por ser necessária
para a comunicação priorizada pela sociorretórica.

6 Conforme mencionado, existem entregas intermediárias, a primeira delas


170 com as questões de pesquisa, proposições, unidade de análise e dados.
Ensino da produção de artigo acadêmico:
uma abordagem sociorretórica

Pesquisa de Campo: consiste no levantamento efetivo dos dados por


meio de 1) questionários previamente elaborados e corrigidos a serem
entregues a populações determinadas e/ou 2) roteiros de entrevistas com
indivíduos conhecedores de aspectos da pesquisa.

O trabalho final
Em meio à construção das etapas, os alunos recebem instrução formal
sobre a estruturação e formatação de um trabalho acadêmico: como es-
crever resumo, introdução, bibliografia, fundamentação teórica, normas
sobre citações diretas e indiretas.
A entrega seguinte é uma versão quase finalizada do artigo já forma-
tado. Mesmo após instrução prévia, é possível haver alguma dificuldade
em diferenciar introdução, conclusões e resumo. Eles recebem os projetos
anotados e produzem novas versões até que o texto esteja considerado pronto.
Geralmente, o trabalho é finalizado após a segunda ou terceira revisão. Tais
atividades auxiliam a desenvolver qualidades que irão ajudá-los profissio-
nalmente: organização do pensamento, apresentação deles de forma concisa,
entendimento do que são chamados a realizar e concentração em tarefas
específicas, características que atendem aos princípios da sociorretórica e
suas implicações, mostradas, em parte, nas Tabelas 1 e 2, no início deste
capítulo, nomeadas como Competências Formais e Filosóficas.

Exemplo de artigo produzido por


alunos de primeiro semestre
O trabalho aqui tomado para exemplificar teve como tema encontrar
a ação mais eficaz para auxiliar uma cidade na área onde a Fatec está lo-
calizada a se tornar um polo logístico e, dessa maneira, atrair empresas
e gerar empregos. A cidade foi espaço de um entroncamento ferroviário
histórico importante entre os anos 1890 e meados dos anos 1960, e tem
experimentado alguma decadência após a extinção da linha ferroviária.
Ainda está bem localizada, a meio caminho entre Rio de Janeiro e São
Paulo, e abriga áreas complementares em produção e consumo. A Tabela
3 mostra, resumidamente, as aproximações metodológicas, retóricas e
sociorretóricas que se pode verificar na confecção de um artigo.
171
Tabela 3: Relação entre metodologia de desenvolvimento,
sociorretórica e análise do argumento

Artigo escolhido Yin Toulmin Sociorretórica


Verificação das Tema Início do argumento Desenvolvimento da
possibilidades de capacidade de elaboração
uma cidade do do pensamento
Vale do Paraíba
restabelecer
proeminência como
centro logístico
A história da cidade Questões de Orientação da Capacidade de análise do
leva a crer que seja Pesquisa coleta de dados para tema para elaboração do
um polo logístico? backing, evidência pensamento complexo
A cidade é ou pode e argumentação e desenvolvimento da
ser alavancada como presente na argumentação
centro logístico na conclusão
região
Verificação dos Proposição Orientação da Desenvolvimento
setores mais reivindicação de pensamento
representativos argumentativo voltado
economicamente para a comunicação e de
e que poderiam competências filosóficas
contribuir para a
criação de um polo
logístico
Cidade determinada Unidade de Backing Capacidade de análise
(não citação do nome Análise retórica e de competências
para evitar problemas para escolha de local
ligados à ética) apropriado para análise
Respostas a Dados Evidência e backing Desenvolvimento da
questionários com capacidade argumentativa
perguntas fechadas (na comunicação oral e
a profissionais do escrita) para formulação e
ramo logístico da aplicação do questionário
cidade escolhida e e entrevistas
entrevistas
Escolha de assuntos Fundamenta- Evidência e respaldo Capacidade de escolha e
pertinentes e autores ção Teórica de desenvolvimento da
confiáveis estrutura retórica a ser
utilizada
Resultados e Análise dos A pretensão está Desenvolvimento da
Conclusões dados nos resultados; o capacidade argumentativa
qualificador está na e das competências
argumentação que avançadas de comunicação
suporta os resultados, escrita
que devem conter
argumentos que
refutem uma possível
objeção (refutação)
Fonte: a autora.
172
Ensino da produção de artigo acadêmico:
uma abordagem sociorretórica

Resultados
Os resultados têm sido, em geral, gratificantes para alunos e profes-
sores. Um questionário curto foi aplicado a 480 alunos após a conclusão
e apresentação de seus trabalhos. As respostas estão na Tabela 4 a seguir.

Tabela 4 – Resultado da pesquisa de satisfação dos alunos

concorda concorda não concorda discorda discorda


fortemente nem discorda fortemente
Tive prazer em 32% 22% 22% 10% 14%
escrever o artigo
Fui bem orientado 48% 28% 5% 10% 9%
Aprendi muito 51% 18% 12% 10% 9%
Fonte: a autora.
Conforme verificado na Tabela 4, a maioria dos alunos demonstrou
ter prazer na atividade (54%), ou seja, concordam fortemente ou concor-
dam; 76% consideram ter sido bem orientados e 79% concordaram ter
aprendido bastante.
Um questionário que permitia respostas múltiplas foi encaminhado a
73 professores e as respostas se encontram na Figura 2, a seguir.

Figura 2: Benefícios do ensino da produção de artigos


acadêmicos no 1º semestre de cursos de nível superior

Alunos de primeiro semestre não têm


capacidade

Não vejo essas habilidades como


importantes

Experiência em pesquisa de campo

Experiência em levantamento e organização


de texto

Treinamento em argumentação escrita

Treinamento em escrever conforme normas

Estruturação do Pensamento

173
Fonte: a autora.
Conforme se observa, os professores concordam, em sua maioria, com
a necessidade e importância do ensino do artigo já a partir do primeiro
semestre nos cursos superiores. As porcentagens mostram que essa pro-
dução acadêmica pode auxiliar na estruturação do pensamento, permite o
treinamento do estudante no uso da argumentação e trabalha a organização
textual, três princípios da sociorretórica apontados por Swales (2004).
Bazerman (2013) reforça que a retórica, diferentemente das outras artes
da língua, adota o ponto de vista dos usuários, em vez da posição não
comprometida do analista. Tal postura privilegia a capacidade de comu-
nicação efetiva, centrada, o que realmente ocorre na produção do artigo
acadêmico, conforme se pode perceber no estudo de caso e na Tabela 3.
Apenas 4,5% não percebem tais habilidades como importantes e 9,1%
consideram que os alunos de primeiro semestre não têm capacidade para
a produção de textos dessa natureza. Nas respostas livres, 1% considera
mais importante o nivelamento de Português e Matemática, 1% respondeu
que tais habilidades promovem contato com a linguagem acadêmica, o que
reforça os itens anteriores e um professor afirmou que se trata do “ingresso
no mundo científico do qual nenhuma instituição superior deveria abrir
mão, pois dele depende o progresso do país”.

Considerações finais
A produção de trabalhos acadêmicos tem sido acompanhada, conforme
mencionado, por seis anos (doze semestres), e percebe-se que a metodo-
logia evoluiu no período. Com o tempo, o número de entregas durante o
desenvolvimento de cada artigo aumentou. Cerca de metade dos alunos
passou a considerar o artigo acadêmico de maneira mais séria. Para parte
deles ainda se configura, principalmente, como um obstáculo a ser vencido,
porém esse número tem se reduzido.
O plágio, até certo ponto, continua uma dificuldade a ser combatida
por meio de convencimento durante as aulas de Métodos da Produção
do Conhecimento e nas orientações efetuadas junto aos grupos. Embora
a investigação e escrita acadêmica tenham se mostrado eficazes, o plágio,
infelizmente, parece se manter, talvez como consequência de algum tipo
de cultura. Não ocorre apenas com alunos de primeiro semestre: apesar
das informações e cobranças, os estudantes mantêm esse costume, mesmo
174 após muito debate. Para combatê-lo, o plágio tem sido exposto e é fornecido
Ensino da produção de artigo acadêmico:
uma abordagem sociorretórica

novo prazo para que os alunos reformulem seus textos em caso de cópia.
Conforme verificado, a orientação está concentrada na elaboração
de questões de pesquisa e determinação dos dados, avaliação e debate
do protocolo de pesquisa, revisão dos rascunhos e preparação da versão
final. Todas essas instâncias, somadas à determinação de uma pesquisa de
campo, elaboração de questionários, entrevistas e a própria produção do
texto reforçam o caráter sociorretórico da escrita acadêmica, tendo em
vista que se trata da elaboração de argumentos voltados à comunicação
de temas escolhidos.
Embora não seja possível medir a melhora nas redações, considerando
que se trata de resultados intangíveis, percebe-se que o aperfeiçoamento
textual evolui naturalmente com a maturidade, desenvolvida ao longo dos
semestres. Além dos resultados da pesquisa entre alunos e professores que
nos leva a acreditar que a escrita acadêmica aperfeiçoa a capacidade de
produzir documentos em geral, uma das indicações de progresso reside
justamente no desempenho escrito e oral observado entre os professores
e pelos próprios alunos em comentários informais. Docentes demonstram
satisfação com textos de seus alunos após os semestres de treinamento e os
próprios estudantes percebem o progresso no desenvolvimento de textos
e maior facilidade de comunicação oral após as apresentações.
Por outro lado, alguns estudantes nem sempre gostam desse trabalho,
que é cansativo, com muitas repetições, correções, das cobranças e do
esforço, mas os professores de todos os departamentos têm manifestado
entusiasmo com a produção de artigos acadêmicos, conforme verificado
por meio da pesquisa cujos resultados são mostrados na Figura 2, ou seja,
o desenvolvimento de uma investigação e produção de artigos acadêmicos
propicia amadurecimento intelectual e na comunicação, conforme preco-
niza a sociorretórica.
A ideia de utilizar o layout de Toulmin (2003) para verificar a integri-
dade e consistência dos argumentos pode ser aplicada, principalmente, na
finalização do artigo.
Em outras palavras, acreditamos que o emprego da sociorretórica
conforme Swales (2004) e Bazerman (2015), o uso da metodologia de
Yin e uma verificação argumentativa do artigo, conforme Toumin (2003),
proporcionam confiabilidade e consistência ao trabalho e suas conclusões.

175
Referências
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Rio de Janeiro, Ediouro, 2003 (trabalho original publicado em cerca de 320aC).
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BAZERMAN. C. Retórica da ação letrada. Trad. Adail Sobral et all. São
Paulo: Parábola Editorial, 2015.
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New York: Longman, 1993.
BRZOVIC, K., et all. Core Competencies and Assessment in Business
Writing. University of California, Fullerton, 2006.
CASTELLÓ, M. El proceso de composición de textos académicos. In: CASTEL-
LÓ, M. (Coord.) Escribir y comunicarse en contextos científicos y académicos.
Barcelona: GRAÓ, 2010.
FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Trad. Maria Izabel Maga-
lhães. Brasília: UnB, 2001.
HALLIDAY, M. An introduction to functional grammar. London: Edward
Arnold, 1994.
MAINGUENEAU, D. Novas Tendências em Análise do Discurso. 3 ed.
Campinas: Pontes Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1997.
MEYER, M. A Retórica. 1 ed. Portugal: ASA, 1997.
O´HARA, C. Article November 20. Disponível em https://hbr.org/2014/11/
how-to-improve-your-businesswriting
PERELMAN, C. e TYTECA, L. O. Tratado da Argumentação – A Nova
Retórica. São Paulo: Martins Fontes. 1999, (Trabalho original publicado em 1958).
SANDEL, M.: What’s the Right Thing to Do? New York: Farrar, Straus and
Giroux, 2009.
SWALES, J. M. Research genres: explorations and applications. New York:
Cambridge University Press, 2004.
TOULMIN, S. The Uses of Argument. Cambridge University Press, 2003.
(Trabalho original publicado em 1958).
YIN, R. Case study research: design and methods. Thousand Oaks: Sage.
2013, (Trabalho original publicado em 1984)

176
Biografismo e retórica: a escrita
biográfica no ensino superior

Éber José dos Santos1


Tiago Ramos e Mattos2

B iografia é a apreciação da vida, e nossas vidas não são estáticas, tam-


pouco o espaço biográfico. Trata-se nesse espaço de um eu-para-si
que não é constitutivo da forma, mas da relação que cada um de nós tem
com os outros, contemporâneos que participam conosco do nosso dia a
dia e integram um grupo de pessoas que vivem o hoje. O meu hoje é seu
hoje, do qual todos nós participamos. Na biografia de cada um de nós,
busca-se a constituição de uma identidade e o encontro da identificação
com valores sociais.
A partir desse contexto e com enfoque na escola, levantamos o seguinte
questionamento: por meio do princípio de alteridade (interação entre o
eu e o outro), quais os lugares retóricos3 que o aluno, orador-autor, utiliza
para imprimir veracidade, convencimento e persuasão, quando escreve
um texto biográfico?
Desse modo, este capítulo tem como objetivo saber, achar e avaliar os
argumentos encontrados na escrita do gênero biografia que justifiquem
a busca pela veridicção. Para cumprir essa tarefa, buscamos analisar um

1 Mestre em Língua Portuguesa pela PUC-SP; Membro do Grupo ERA.


2 Doutorando em Língua Portuguesa pela PUC-SP; Mestre em Língua Portuguesa pela PUC-SP;
Membro do Grupo ERA e LEDIMI (Leitura Discurso e Mídia); Bolsista CAPES.
3 “Os lugares são grandes armazéns de argumentos, utilizados para estabelecer acordo com o
auditório” (FERREIRA, 2010, p. 69). 179
texto biográfico produzido por um aluno do Ensino Superior Tecnológico
que escreveu sobre a vida do amigo. Pela análise sóciorretórica4 realiza-
da, foi possível identificar que as preferências do aluno-biógrafo quanto
a argumentos são: enaltecer as qualidades do aluno-biografado e de seu
valor como pessoa.

Escrita e retórica
Cotidianamente, e de maneira insistente, somos requisitados pela
escrita, seja nas mídias digitais – nos anúncios incômodos que invadem
nossas retinas quando tentamos ver um vídeo no YouTube – no Whatsapp,
na internet de um modo geral, assim como no trabalho, nas entrevistas
de emprego e em formulários e relatórios intermináveis. Na escola, de um
modo geral, aparece em gêneros discursivos bastante conhecidos por todos
nós: a poesia, o conto, a crônica, o romance etc.
Somos convidados à leitura o tempo todo pela escrita em outdoors,
placas de trânsito, anúncios, bilhetes, e-mails e propagandas das mais va-
riadas, portanto, nesse contexto, nada faz mais sentido do que a afirmação
de que a escrita é uma prática social. Se perguntássemos aos alunos o que
pensam sobre escrever, a resposta seria: “para escrevermos – e fazê-lo bem
–, é preciso conhecer as regras gramaticais da língua e ter um bom voca-
bulário”, afirmam Kock & Elias (2009, p. 32). Bazerman (2015), ao tratar
de contexto, escrita e retórica, chama-nos a atenção para isso:

A escrita nos chega em folhas de papel ou telas digitais que se


parecem muito umas com as outras, obscurecendo de onde a
mensagem pode ter vindo, qual seu destino e que objetivo se
destinava a realizar e em que circunstâncias. Se os textos viajam
pelo tempo e pelo espaço, onde está seu contexto? Eles mesmos
criam seus próprios contextos, aqueles a quem então falam? A
menos que tenhamos meios de escrever essas perguntas, nossas
abordagens sobre a compreensão do que é escrever e a significação
de escritos alheios vão se limitar a questões de código (orto-
grafia, vocabulário, gramática, sintaxe e estilo) e significações
descontextualizadas (supondo que tais coisas possam, de fato,
existir). As respostas a essas perguntas nos darão a base sobre a

180 4 Trata da organização retórica e dos propósitos comunicativos do texto.


Biografismo e retórica: a escrita
biográfica no ensino superior

qual desenvolver uma retórica da língua escrita. (BAZERMAN,


2015, p. 21).

A escrita na escola como foco na língua é relativamente uma prática


normativa e gramatiqueira, que implica atenção aos erros de pontuação,
regência, concordância, pronomilizações, classe de palavras em geral e
sintaxe, negligenciando o processo de criação, de escolhas lexicais, que
privilegiem a adesão daquele que lê e a interação escritor-leitor.
Ao adotar esse procedimento, evidentemente, a norma, o contexto, a
interação e o sujeito-criador perdem a força, dando lugar à codificação,
propriamente dita, de determinado texto.
Sayeg-Siqueira, na década de 1990, já havia entendido o texto como
um novo saber, como uma troca de saberes entre escritor-leitor, mesmo ao
considerar e reconhecer o fato de que o texto necessita sim de uma unidade,
uma introdução, uma organização macro e microestrutural, uma referência
e uma tematização. Contudo, nas palavras do autor, o texto emana de uma
proposição: “quando iniciamos uma comunicação escrita, temos o propósito
de que nossa mensagem atinja o leitor” (SAYEG-SIQUEIRA, 1990, p.28).
E acrescenta:

Sempre quando escrevemos um texto, temos uma certa inten-


ção e só encerramos o texto, colocamos o ponto final, quando
sentimos que essa intenção está cumprida , ou seja, dissemos
tudo que queríamos dizer. Para um texto ser um texto, não basta
simplesmente ter uma referência e uma tematização, ele precisa
trazer uma informação nova, isto é, algo que o autor considere
como não sendo do conhecimento de todos, não sendo, por-
tanto, do saber partilhado. Imagine se fossemos escrever um
texto sobre a guerra e começássemos assim: Guerra é sempre
uma coisa terrível. Certamente o leitor acharia inútil, pois o
texto não traz nenhuma informação nova. Sendo assim, por que
esse texto foi escrito? Para que lê-lo? Sempre que se escreve um
texto é porque se tem algo de novo a dizer. Sempre que se lê um
texto é porque se busca uma informação nova sobre o assunto
(SAYEG-SIQUEIRA, 1990, p. 28-29).

É nesse sentido que pensar uma retórica da escrita é fundamental. “A


retórica é a arte reflexiva do enunciado estratégico em contexto do ponto de
vista dos participantes, tanto falantes quanto ouvintes, escritores e leitores”
(BAZERMAN, 2015, p. 21). “Escrever um texto não é simplesmente lançar
no papel uma série de palavras, de frases”, contribui Sayeg-Siqueira (1990, 181
p. 21). Para Bazerman (2015), “a retórica ajuda-nos a pensar em maneiras
como poderíamos usar mais eficazmente palavras para alcançar nossos
fins no intercâmbio social” (BAZERMAN, 2015, p. 21-22) e entendemos
a escrita, efetivamente, como uma prática de ação, de interação, intrinse-
camente social.

Invenção
As quatro partes da retórica ou etapas do processo persuasivo, como
mencionam Figueiredo, Magalhães e Rodrigues-Alves (2016), são: inven-
ção, elocução, disposição e ação. Para este capítulo daremos enfoque na
primeira delas.
A invenção tem relação direta com o orador. Mas quem é o orador? É
aquele que escreve o discurso? Não necessariamente! Contudo, aquele que
escreve o discurso e o sujeito que o transmite podem ser a mesma pessoa. Se
o orador pode ser aquele que escreve e enuncia o próprio discurso - como
no caso da autobiografia -, pressupõe-se, neste caso, essa relação intrínseca
entre orador, invenção e autoria.
Ao considerar que nosso olhar está voltado para o autor, que também
é orador, interessa-nos, a partir desses dois primeiros ensinamentos, apre-
sentar mais detidamente a primeira etapa do processo persuasivo.
A invenção tem origem no verbo “invenire”, cujo significado para a
Retórica é o de achar, encontrar, não no sentido de buscar algo novo, mas
o que já existe, entretanto, não basta apenas descobrir os argumentos, é
preciso julgar se são adequados para o fim que se pretende com o discurso
(TRINGALI, 2014). Refere-se ao estoque de material de onde se extraem os
argumentos, afirma Mosca (2004). Ferreira (2010) completa ao dizer que
“é também nesse momento que se interroga sobre o auditório, identifica-se
com ele para que possa estabelecer acordos, encurtar distâncias por meio
do assunto que irá desenvolver” (FERREIRA, 2010, p. 63).
Com base nas citações, percebemos que há, de certa forma, um mo-
mento de autoria; trata-se da busca por provas que sustentarão o ambiente
discursivo. É no momento da invenção que o orador mostra seu conheci-
mento sobre o assunto e se faz parecer sincero para ganhar a confiança do
auditório, do público-alvo, do leitor. Falamos aqui das três provas retóricas
que colaboram para o processo persuasivo: ethos, pathos e logos. A primei-
182 ra reside no caráter do orador; a segunda refere-se às paixões e emoções
Biografismo e retórica: a escrita
biográfica no ensino superior

suscitadas no auditório; e a terceira está centrada no próprio discurso.


Para reconhecer esse orador, toda informação é válida, “informações
que ajudem a entender o contexto o autor e suas posições” (FERREIRA,
2010, p.52). Portanto, algumas perguntas são feitas para o texto, a fim de
buscar uma aproximação com o orador: Quem fala? A quem fala? Quando
fala? Por que fala? Contra o quê? Como fala?.
Fiorin (2015) colabora ao afirmar que no estoque de material, denomi-
nado por ele como inventário, encontram-se os lugares (topói), objeto de
estudo dos autores da Nova Retórica, Perelman & Tyteca (2014), quando
escreveram o Tratado da Argumentação. Esses autores os definem como
depósito de argumentos e mencionam que Aristóteles distinguia os lugares-
comuns (utilizados por qualquer campo discursivo) dos lugares específicos
(usados em um gênero oratório bem definido).
Apresentamos no Quadro 1, com base nos ensinamentos de Ferreira
(2010, p. 70-76), as definições sintetizadas dos lugares-comuns da quanti-
dade, da qualidade, da ordem, do existente, da essência e da pessoa.

Quadro 1: Lugares-comuns

Lugares Descrição
Da é o que afirma que uma coisa é preferível a outra em razão
quantidade de dados quantitativos, que uma coisa é superior à outra por
ser mais proveitosa a um número maior de pessoas, ser mais
durável, mais útil. É um lugar que fundamenta anúncios
publicitários.
Da qualidade é preferível aquilo que se sobrepõe ao outro por ser
raro, original, extraordinário. A opinião de determinado
indivíduo é melhor que a de todos. Trata-se de um
argumento elitista
Da ordem afirma a superioridade da causa sobre o efeito, do anterior
sobre o posterior. Glorifica-se o passado e menospreza-se
o presente. Também pertence a esse lugar o argumento
contrário.
Do existente declara superioridade daquilo que é sobre aquilo que
somente é possível, do prático sobre o teórico
Da essência contempla os argumentos que mostram indivíduos que
representam um padrão, uma essência
Da pessoa apela ao valor da pessoa, pelo seu valor, sua importância;
valoriza o que é feito com cuidado, carinho, que requer um
esforço
Fonte: Os autores (adaptado de Ferreira, 2010, p. 70-76).
183
Assim, o autor-orador, ao preparar o seu discurso, aciona o seu inven-
tário e busca nele aqueles argumentos que julga ser mais apropriados à sua
intenção argumentativa. Naturalmente que em um discurso podem conter
todas as tipologias aqui apresentadas, mas cumpre ao analista retórico
identificar quais são as preferências do autor, ou seja, quais lugares-comuns
se sobressaem.

Biografia

Quer a linha biográfica de um indivíduo esteja registrada nas


mentes de seus amigos íntimos ou nos arquivos de pessoal de uma orga-
nização, e quer ele porte a documentação sobre sua identidade pessoal
ou esta documentação esteja armazenada em arquivos, ele é uma
entidade sobre a qual se pode estruturar uma história – há um caderno
a sua espera pronto para ser preenchido.
Ele é, certamente, um objeto para biografia.
Erving Goffman

Biografia é a descrição, apreciação e observação de vida e nossas vidas


estão em constante movimento. A partir desse pressuposto, é possível afirmar
que não vivemos sem a interferência direta ou indireta de outrem. O outro
tem uma influência significativa na vida de cada um de nós. Enxergamo-
nos muito sob a perspectiva do olhar de outrem. Trata-se de como o outro
efetivamente nos vê. Nossa história inspira o outro? Somos amados pelas
outras pessoas? Odiado por elas?
A biografia é um encontro da identidade com a identificação, portanto,
em um cenário biográfico, uma atmosfera biográfica, composta por diários
íntimos, diários de viagem, biografias e autobiografias, conversas do coti-
diano, revistas de fofoca, tabloides, talk e reality shows etc., centralizado
na vida dos outros, “eu”, como espectador dessa vida e ser humano, posso
“me” identificar tanto com o herói quanto com o vilão.
Nesse sentido, o autor de biografia, aquele que escreverá sobre a vida
de outrem, deve olhar o mundo sob a perspectiva deste, olhar o mundo
com os olhos do biografado, ter com ele uma relação de parentesco e, por
isso, o processo de autoria no gênero biografia se dá pensando, primeiro,
em um auditório particular, que é o próprio biografado – quando vivo – e,
184 depois, nos outros, auditório universal, seres humanos como o biografado,
Biografismo e retórica: a escrita
biográfica no ensino superior

que trabalham, têm uma religião, uma posição política etc.


Goffman (1982) discorre assertivamente sobre a identidade biográfica e
divide a personagem biografada sob duas perspectivas: identidade pessoal e
identidade social. A identidade pessoal vai depender do grau de informação
que biógrafo-autor poderá colher dessa pessoa, o que pressupõe, no caso
da biografia, verdade e veridicção, ou seja, os fatos da vida de determinado
indivíduo não podem ser desarticulados e nem contraditórios. “Note-se
que essa unicidade inclusiva da linha da vida está em flagrante contraste
com a multiplicidade dos ‘eus’ que se descobrem no indivíduo ao encará-lo
sob a perspectiva do papel social”, afirma Goffman (1982, p. 73).
Se uma pessoa tem uma história retroativa, um passado negativo, ruim,
ou uma história que a desabone, essas informações são características de
uma identidade social. Para Bakhtin (2010), o eu-para-si não é um valor
biográfico constitutivo da forma e sim tem relação com a identidade pessoal:
o que eu sei sobre “mim mesmo” que gostaria de ignorar ou esconder das
outras pessoas? “De qualquer forma, a informação prontamente disponível
sobre a manipulação da identidade pessoal deve ser buscada nas biografias
e autobiografias de pessoas famosas ou de má reputação”, assinala Goffman
(1982, p.83).
É nas palavras desse mesmo autor que encontramos uma elucidação
mais direta para a questão da identidade pessoal e identidade social:

A identidade pessoal, assim como a identidade social, estabelece


uma separação, para o indivíduo, no mundo individual das ou-
tras pessoas. A divisão ocorre, em primeiro lugar, entre os que
conhecem e os que não conhecem. Os que conhecem são aqueles
que têm uma identificação pessoal do indivíduo; eles só precisam
vê-lo ou ouvir o seu nome para trazer à cena essa informação.
Os que não conhecem são aqueles para quem o indivíduo é um
perfeito estranho, alguém cuja biografia pessoal não foi iniciada.
(GOFFMAN, 1982, p. 77).

A identidade pessoal do indivíduo não é uma particularidade só dele,


mas também daqueles que o conhecem, ou seja, é a partir dela que se es-
tabelece também a identidade social.
Acrescenta Goffman (1982), ainda:

Dentro do círculo de pessoas que tem uma informação biográfica


sobre alguém – que sabem coisas sobre ele – haverá um círculo
menor daqueles que mantêm com ele um vínculo “social”, quer
185
superficial ou íntimo, e quer como igual ou não. Conforme
dissemos, eles não só sabem “de” ou “sobre” ele, como também
o conhecem “pessoalmente”. Eles terão o direito e a obrigação
de trocar um cumprimento, uma saudação e “bater um papo”
com ele quando se encontram na mesma situação social, e isto
constitui o reconhecimento social. (GOFFMAN, 1982, p. 78).

Quando o biógrafo-autor escreve para aqueles que conhecem o biogra-


fado, o faz para um auditório particular, que conhece sua identidade social,
mas é, ao buscar a identidade pessoal do biografado, que o biógrafo-autor
vai procurar a novidade, o novo, o desconhecido, no intuito de alcançar
um auditório mais universal.
Bakhtin (2010, p. 138) afirma “não haver um limite acentuado e de
princípio entre biografia e autobiografia” e delineia dois tipos de consciência
biográfica: aventuresco-heroica e social de costumes. Para este capítulo,
abordaremos o segundo tipo.
No social de costumes, nos é ofertado um viés não histórico, mas
essencialmente social. Em um ponto de vista social, a perspectiva de uma
verdade pura, inquestionável é ocupada pelos valores sociais e, acima de
tudo, familiares. De acordo com Mattos (2015), o sucesso junto aos con-
temporâneos é o bom homem, honesto e não a glória histórica junto aos
descendentes. Trata-se da raça humana e seu cotidiano, na rotina dos heróis
vivos. E acrescenta: “Nessa consciência biográfica, não se trata de estar no
mundo e ter importância nele, mas de estar com o mundo, observá-lo,
vivê-lo e revivê-lo repetidas vezes” (MATTOS, 2015, p. 68).
Nessa consciência biográfica, a fronteira da narração pode invadir
a fronteira da personagem biográfica. É verdadeiramente possível, nos
gêneros biografia e autobiografia, um intercambiar de posições narrativas.
Leiamos a respeito em Mattos (2015):

Sem me desvincular da vida em que as personagens são os outros


e o mundo é o seu ambiente, eu narrador dessa vida me identifico
com as personagens dessa vida. É assim que o narrador se torna
personagem, caracterizando um primeiro movimento para um
processo teoricamente de descuido saudável, frutífero e relevante
em que autor, narrador e personagem se confundem, num processo
autobiográfico da voz do autor no narrador e, consequentemen-
te, no linear da personagem. É, portanto, de vital importância o
conhecimento de parte considerável da biografia por meio das
palavras alheias, das pessoas íntimas: a origem, o nascimento, os
acontecimentos da vida familiar da personagem; aos quais eviden-
186 temente o autor da biografia tem acesso. (MATTOS, 2015, p. 66).
Biografismo e retórica: a escrita
biográfica no ensino superior

A importância do outro no gênero biografia justifica o realismo e a


simplicidade descritiva da vida. Sempre sob a óptica do outro – que está
presente também na relação entre narrador e personagem – seja o narrador
começando a narrar sobre o outro que lhe é íntimo, com quem vive uma só
vida na família, na nação, na sociedade humana, no mundo, seja o outro
a narrar sobre o narrador é um processo possível de escrita essa troca no
limiar da personagem entre o narrador-autor e a personagem. Em outras
palavras, a narração divide espaço entre a primeira e terceira pessoa entre
o gênero biografia e o gênero autobiografia.

O texto biográfico na universidade


– apresentação do corpus
No intento de demonstrar o processo de autoria biográfica no ensino
superior, foi selecionado um texto produzido pelo aluno Willian Veríssimo
da Cruz sobre a vida de Rodolfo Luiz de Oliveira, ambos concluintes do
Curso Superior de Tecnologia em Eventos, de uma faculdade pública,
situada na cidade de Cruzeiro, SP, Região Metropolitana do Vale do
Paraíba. Os estudantes foram convidados por um de seus professores,
autor deste capítulo, para ser o biógrafo e o biografado, respectivamente.
A orientação passada foi que Willian considerasse o período em que se
conheceram – no caso, há três anos, quando prestaram o vestibular – e
pontuasse aspectos sobre a vida, qualidades, preferências, atitudes, com-
portamentos, principais realizações, enfim, tudo que fosse relevante ser
mencionado em uma breve biografia limitada a duas páginas. A produ-
ção atingiu o objetivo proposto e o texto gerado por Willian Veríssimo
apresentou o resultado de uma biografia propriamente dita, portanto,
encontra-se no corpo deste trabalho e será objeto de análise quanto a
aspectos relacionados à produção biográfica e aos lugares preferidos do
autor. A participação de Rodolfo de Oliveira foi a de ceder a história de
sua vida para que seu amigo o biografasse.

187
O corpus

Sonhador

Meu nome é Willian Veríssimo da Cruz e conheci Rodolfo


Luiz de Oliveira, cruzeirense de 39 anos, no primeiro dia em que
fui à faculdade por meio de um colega em comum. A partir daí
iniciou-se uma amizade, no qual, pretendo levar para a vida toda.
Rodolfo é um sonhador convicto! Ele é o caçula de uma
família de 4 filhos. Vive com seu pai, sua mãe, dois irmãos e um
sobrinho. Um de seus sonhos lhe fez ir até a cidade de São Paulo
para conseguir se tornar um ator com registro profissional e ter o
reconhecimento de seus familiares pelo seu esforço e dedicação.
Rodolfo conheceu muitas pessoas boas nesta sua passagem
pela megalópole, uma delas é filha do ex-presidente do São Paulo
Futebol Clube, que foi uma de suas melhores amizades feita em
São Paulo, chamada Claudia. Ela levava Rodolfo pra baixo e
pra cima, inclusive para visitar sua mansão em um dos bairros
mais ricos da cidade. Em uma dessas visitas ele foi convidado a
jantar e encabulado por não saber utilizar-se de tantos talheres,
sua amiga Claudia lhe dava dicas preciosas de como se portar à
mesa. Ele diz que até se saiu muito bem porque todos o deixavam
bem à vontade.
Neste seu período em que viveu na “selva de pedra” ele escrevia
em um caderno, que acabou virando um rico diário, digno de
roteiro de cinema. Tudo que ele vivia, desde quando acordava
até o seu adormecer era catalogado. Ali ele também registrava
seus objetivos, suas dúvidas até quando sonhava e ele percebia
que naquele contexto poderia sair uma história teatral ou um
programa de TV ele lançava em seu diário.
Tive a oportunidade em folhear suas histórias e é de se emo-
cionar, são inúmeros detalhes que, pensando bem, um filme não
comportaria tanta riqueza de detalhe.
Rodolfo sofreu sim, mas sua experiência de vida é de se
aplaudir de pé, como um espetáculo de Shakespeare, só que da
vida real, nua e crua.
Diante de toda a dificuldade ele saiu de tudo isso fortalecido
188 e com a certeza de que seu maior sonho que ele levou de Cru-
Biografismo e retórica: a escrita
biográfica no ensino superior

zeiro para ser realizado em São Paulo, irá se concretizar na sua


cidade Natal.
Rodolfo trabalhou em uma academia de dublê, participou de
pegadinhas no SBT, RecorTV, RedeTV! E nas gincanas também
na TV do “Homem do Baú”.
Na sua volta a Cruzeiro, ele decidiu voltar a estudar e esco-
lheu o curso técnico em Marketing, no qual, deu base para ele
desenvolver um de seus projetos denominado Natal em 3 Atos,
em prol do Asilo da cidade.
Terminado seu curso, ele sofreu um forte golpe que foi o
falecimento de sua avó, no qual, tinha uma forte ligação.
Passado a dor, ele fez inscrição para o curso Superior em
Tecnologia em Evento da Fatec Cruzeiro, no qual, foi muito
bem colocado.
Junto com ele, sua sobrinha, Kayane, também prestou con-
curso para o mesmo curso, orgulhando seu tio porque ele foi
fundamental na escolha dela.
Nesses quase 3 anos de amizade, sinto que meu amigo so-
freu uma metamorfose pro bem, se tornando muito responsável
perante sua Companhia Teatral, em que ele é o fundador, fruto
da sua competência a frente dos cursos de verão e inverno que
ele realizou na Fatec.
Essa fase em que ele está se tornando um profissional do
ramo de eventos teve a oportunidade em participar de um projeto
chamado Arte na comunidade em que percorreu, desenvolvendo
e passando aos alunos da rede municipal de ensino a história da
cidade de Cruzeiro.
Rodolfo está se tornando uma pessoa que está sabendo
absorver as dificuldades que a vida oferece, está sabendo passar
por cima sem fazer muita força, porém se mostra extremamente
sensível quando tocamos em assuntos delicados como: drogas,
bebidas e amores.
Hoje, o vejo outra pessoa daquele do primeiro dia de aula,
cada vez mais obstinado, focado, profissional, que nunca perdeu
sua fé, sempre está de sorriso aberto fazendo suas piadas sem
graça, outras vezes com humor negro e outras vezes com a graça
que lhe é peculiar.
Meu amigo cresceu e se tornou uma pessoa com asas gi-
gantes para voar e chegar a um patamar nunca antes alcançado. 189
Uma breve análise
Ao pensarmos em um discurso, podemos inferir que o orador do
discurso pode não ser necessariamente aquele que o escreveu. No caso
da autobiografia, o orador – com raras exceções – é aquele que ora o
discurso assentado em um posicionamento enunciativo-discursivo de
primeira pessoa do singular.
Observemos no texto do aluno Willian Veríssimo da Cruz que o
posicionamento enunciativo discursivo é cambiante, pois muito embora
ele escreva sobre Rodolfo Luiz de Oliveira, na maior parte do texto em
terceira pessoa, característica do gênero biografia, o autor, em muitos
momentos, se coloca como orador desse texto marcado pela primeira
pessoa:

Meu nome é Willian Veríssimo da Cruz e conheci Rodolfo


Luiz de Oliveira, cruzeirense de 39 anos, no primeiro dia em
que fui à faculdade por meio de um colega em comum. A
partir daí iniciou-se uma amizade, no qual, pretendo levar
para a vida toda.

O orador começa a narrar sobre o outro que lhe é íntimo, com quem
vive uma só vida na faculdade, na sociedade, em primeira pessoa. Trata-se
de descuido frutífero no limiar do processo de criação, que é a linha tênue
que difere biografia de autobiografia. O Exórdio5 é em primeira pessoa.
Assim como todo o desenvolvimento, o segundo parágrafo é em
terceira pessoa:

Rodolfo é um sonhador convicto! Ele é o segundo filho


de mais 3. Vive com seu pai, sua mãe, dois irmãos e um
sobrinho. Um de seus sonhos lhe fez ir até a cidade de São
Paulo para conseguir se tornar um ator com registro pro-
fissional e ter o reconhecimento de seus familiares pelo seu
esforço e dedicação.

5 Refere-se à primeira parte de um discurso. Pode ser comparado a uma fala


190 introdutória, inicial.
Biografismo e retórica: a escrita
biográfica no ensino superior

Na peroração6 o texto volta a ser em primeira pessoa:

Hoje, o vejo outra pessoa daquele do primeiro dia de


aula, cada vez mais obstinado, focado, profissional, que nunca
perdeu sua fé, sempre está de sorriso aberto fazendo suas
piadas sem graça, outras vezes com humor negro e outras
vezes com a graça que lhe é peculiar.
Meu amigo cresceu e se tornou uma pessoa com asas gi-
gantes para voar e chegar um patamar nunca antes alcançado.

Observamos aqui esse orador-autor cambiante bem alinhavado na


afirmação de Mattos (2015), que reconhece florescer um relaxamento
sadio e frutificante dessa relação autor, narrador, personagem, em que
as três funções intercambiam posições e se confundem. Trata-se da pre-
sença autobiográfica da voz do orador-autor no narrador e da voz do
orador-autor na personagem.
Para reconhecer esse orador, toda informação é válida, “informações
que ajudem a entender o contexto, o autor e suas posições” (FERREI-
RA, 2010, p.52). Portanto, algumas perguntas são feitas ao texto, a fim
de buscar uma aproximação com o orador e entender o procedimento
argumentativo utilizado para encurtar a distância deste orador com seu
auditório:

Quem fala?
Fica claro que o orador é o aluno Willian Veríssimo da Cruz:

Meu nome é Willian Veríssimo da Cruz.

A quem fala?
O orador escreve para um auditório particular: o seu interlocutor direto,
aquele que cede a história, no caso ao aluno Rodolfo Luiz de Oliveira e aos pro-
fessores que acompanharam a atividade, que, ou seja, os autores deste capítulo.

6 Diz respeito ao final do discurso, à conclusão. 191


Contudo, o orador sabe da publicação do texto e toma alguns cuida-
dos para proteger a face do biografado. Ele olha nesse momento para um
auditório universal:

Rodolfo está se tornando uma pessoa que está sabendo


absorver as dificuldades que a vida oferece, está sabendo
passar por cima sem fazer muita força, porém se mostra ex-
tremamente sensível quando tocamos em assuntos delicados
como: drogas, bebidas e amores.

O biógrafo e o biografado se omitem. A identidade pessoal do indi-


víduo não é uma particularidade só dele, mas também daqueles que o
conhecem, ou seja, é a partir da identificação pessoal do indivíduo que
se estabelece também sua identidade social. Esse cuidado leva o novo,
a novidade do texto à condição de coadjuvante. “Sempre que se escreve
um texto é porque se tem algo de novo a dizer. Sempre que se lê um texto
é porque se busca uma informação nova sobre o assunto” (SAYEG-SI-
QUEIRA, 1990, p. 28-29).

Por que fala?


Fala para apresentar o amigo, contar um pouco da história de vida dele,
mas também para preservar e enaltecer seu ethos e convencer o auditório
de que o biografado é uma pessoa de bem, um batalhador:

Rodolfo trabalhou em uma academia de dublê, participou


de pegadinhas no SBT, RecorTV, RedeTV! E nas gincanas
também na TV do “Homem do Baú”.
Na sua volta a Cruzeiro, ele decidiu voltar a estudar e
escolheu o curso técnico em Marketing, no qual, deu base
para ele desenvolver um de seus projetos denominado Natal
em 3 Atos, em prol do Asilo da cidade.
Terminado seu curso, ele sofreu um forte golpe que foi
o falecimento de sua avó, no qual, tinha uma forte ligação.
Passado a dor, ele fez inscrição para o curso Superior em
Tecnologia em Evento da Fatec Cruzeiro, no qual, foi muito
bem colocado.
192
Biografismo e retórica: a escrita
biográfica no ensino superior

Fala contra o que?


Contra a ideia de seu amigo ser visto como um vilão, alguém indese-
jável, de má reputação.
Se alguém tem um passado negativo, ruim ou uma história que o
desqualifique, essas informações são características de uma identidade
social. Como afirma Bakhtin (2010), o eu-para-si não é um valor biográfico
constitutivo da forma. O eu-para-si tem relação com a identidade pessoal:
O que eu sei sobre “mim” mesmo que gostaria de ignorar ou esconder das
outras pessoas?

..., porém se mostra extremamente sensível quando toca-


mos em assuntos delicados como: drogas, bebidas e amores.

Como fala?
O orador-autor opta por uma escolha lexical que legitime a ideia do
biografado ser um vencedor enaltecendo suas qualidades.

Hoje, o vejo outra pessoa daquele do primeiro dia de aula,


cada vez mais obstinado, focado, profissional, que nunca
perdeu sua fé, sempre está de sorriso aberto...

Trata-se, portanto, de um caminho baseado em dois lugares retóricos:


o lugar da qualidade e o lugar derivado do valor de pessoa. O orador-autor
faz uma propaganda de seu amigo ao ressaltar suas qualidades e apresenta,
de certa forma, o biografado como alguém único, raro:

Meu amigo cresceu e se tornou uma pessoa com asas


gigantes para voar e chegar um patamar nunca antes alcan-
çado: lugar da qualidade.

O humano, traço característico do gênero biografia, também é muito


ressaltado no texto. Valores como a dignidade, a coragem, a superação,
importância da personagem e a valorização do que é feito com cuidado,
carinho e que requer um esforço: lugar derivado do valor de pessoa.

193
Considerações finais
A escrita biográfica dos alunos, neste capítulo, aconteceu sob uma perspectiva
sóciorretórica, de onde o canal de acesso entre o orador e o auditório está na
ação, na interação, na relação biógrafo-biografado, orador-autor e o texto, orador
e a busca por argumentos, que apresentassem a personagem biografada e suas
qualidades como pessoa. As escolhas lexicais apresentadas levaram aos lugares
retóricos da qualidade e do valor de pessoa, que depreendem de uma intenção:
convencer o auditório de que o biografado é um sonhador, batalhador, de boa
reputação e bem-intencionado. Há uma característica social fundamental: os
costumes. “A boa glória junto aos contemporâneos, o homem bom e honesto
e não a glória histórica junto aos descendentes” (MATTOS, 2015, p.68) é uma
característica visível no texto. Goza de uma alteridade enunciativa entre pri-
meira e terceira pessoas, que contempla a relevância das relações humanas e da
máxima bakhtiniana do dialogismo em que “eu” só existe diante de um “você”.
Este estudo é um caminho ou sugestão na abordagem do gênero biografia e da
relação orador-autor que ela implica para o trabalho em sala de aula.

194
Biografismo e retórica: a escrita
biográfica no ensino superior

Referências
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 5 ed. São Paulo:
Martins fontes, 2010.
BAZERMAN, C. Retórica da ação letrada. Trad. Adail Sobral, Angela Dionisio,
Judith Chambliss Hoffnagel, Pietra Acunha. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.
FERREIRA, L. A. Leitura e persuasão: princípios de análise retórica. São
Paulo: Contexto, 2010.
FIGUEIREDO, M. F.; MAGALHÃES, A. L.; RODRIGUES-ALVES, M. S. P.. O
ethos de Maria na música popular brasileira. In: MAGALHÃES, A. L.; FERREIRA,
L. A.; FIGUEIREDO, M. F. (Orgs.). As mulheres que a gente canta. v. 2. Franca /
São Paulo: Cristal / Grupo ERA, 2016. p. 9-36.
FIORIN, J. L. Argumentação. São Paulo: Contexto, 2015.
GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada
Trad. Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. 4 ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.
KOCH, I. V.; ELIAS, V. M. Ler e Escrever: estratégias de produção textual. 2
ed. São Paulo: Contexto, 2009.
MATTOS, T. R. Biografia e Autobiografia: um estudo do estilo em ambos os
gêneros do discurso. São Paulo: Novas Edições Acadêmicas, 2015.
MOSCA, L. Retóricas de ontem e de hoje. São Paulo: Humanitas, 2004.
PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a
nova retórica. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 3 ed. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2014.
SAYEG-SIQUEIRA, J. H. O Texto. São Paulo: Selinunte, 1990.
TRINGALI, D. A retórica antiga e outras retóricas – a retórica como crítica
literária. São Paulo: Musa, 2014.

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