Tá Na Rua
Tá Na Rua
Tá Na Rua
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
T1
Tá na Rua : teatro sem arquitetura, dramaturgia sem literatura e ator sem papel
Organizadores Licko Turle e Jussara Trindade. - Rio de Janeiro : Instituto Tá na Rua, 2008.
256p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-61637-00-2
1. Tá na Rua (Grupo teatral) - História. I. Turle, Licko. II. Trindade, Jussara. III. Instituto Tá na Rua
para Artes, Educação e Cidadania.
Ponto de Cultura - Equipe de Digitação: Barbara Braga, Beatriz Flores da Silva, Cássia
Melo Olival, Cintia Santana, Fabiana Erana, João Herculano Dias, Karina Assunção, Liana
Ébano, Rejane Ramos da Silva, Rica Pereira Mota, Roberto Zanato e Silvia Muniz Werneck
teatral da cidade, porque o mais livre e aberto, apesar das arquibancadas incômodas), mas o
teatro - o edifício, é claro - sofria muito com minhas aulas, e aqueles passaram então a me
oferecer espaços menos convencionais. Minha inquietação com a questão do espaço
ultrapassou as experiências vanguardistas dos anos 60 e início dos anos 70, entrou pelo final
de 70 ao início dos 80.
Depois das quadras, percebi que somente nas ruas eu poderia saber melhor sobre as
limitações do espaço aberto. Paradoxalmente,
só num espaço maior e sem paredes
eu poderia descobrir os limites do espaço do meu espetáculo, e de que forma
este espaço poderia se fechar ou abrir em ruas e praças públicas, ou nos dois. E também,
que tipo de ator seria necessário desenvolver para a atuação nesse espaço.
Aí é que as pessoas se espantam. Então
você não foi à rua para salvar os
pobres? Para ensinar os ignorantes? Para levar cultura aos incultos?
Para dar lições de saúde? Higiene? Sexualidade? Política? Não!
Fomos às ruas porque minhas descobertas sobre espaço e as relações do ator e do público
no espaço aberto, seus limites e possibilidades me levaram a isso. Não havia em minha
atitude nenhuma postura messiânica, evangelizadora-evangélica. Pelo contrário! Não
fui à rua para
salvar ninguém, mas sim para salvar a mim mesmo da morte, da pasmaceira em que eu
me via metido, em um teatro brasileiro envergonhado e acovardado, ou segregado.
O teatro era a minha opção de vida, e não acreditava que eu pudesse ter me enganado tão
profundamente. Mas estava também cada vez mais evidente que os procedimentos
tradicionais das salas fechadas não nos ofereciam qualquer alternativa de saída. Assim,
minhas perguntas começaram a obrigar-me a buscar respostas em outros lugares, em outros
espaços. Recusava-me ao conformismo ou à cooptação. Tinha, portanto, a necessidade de
atuar em outros espaços. Dos palcos às salas abertas, das quadras às ruas e às
praças, eu estava abrindo meu caminho em direção a um teatro que eu
queria vivo e transformador, para quem o visse e fizesse.
146 } Escritos sobre a mesa de Amir Haddad
Altemar Di Monteiro
Vital Brasil. Bela e difícil metáfora, justo neste
tempos nos quais a vida política do país arde.
Altemar Di Monteiro
Nóis de Teatro e a potência do
caminhar no Teatro de
Rua Contemporâneo
Altemar Di Monteiro
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CAMINHARES PERIFÉRICOS –
NÓIS DE TEATRO E A POTÊNCIA
DO CAMINHAR NO TEATRO DE
RUA CONTEMPORÂNEO
EDITORA PISEAGRAMA
6
2º Ancoragem
Nova Sede
do Nóis de
Teatro
para hospedar
a alteridade
indicação
realizar a pausa na
caminhada e adentrar
para uma vivência
184 185
Sinto que é tempo de desperdiçar tempo, e nenhum veículo inserido ou mesmo com os territórios da economia da cultura. Refletir
dará transporte igual ao dos pés, ambiciosos da marcha; (…) sobre esse processo tem sido um exercício bem complexo na história
um andar-em-mim, por mim, comigo (…) O ato de andar recente do grupo, sobretudo pela nossa militância política na cidade
vale por si mesmo, sublinha o entendimento do corpo com o que, durante muito tempo, esteve fincada num desejo de fuga dos meca-
que se costuma chamar de espírito, e naquele vigia e sofre. nismos de cooptação da nossa arte.
Carlos Drummond de Andrade
Hostilidade e Hospitalidade:
A periferia urbana é metáfora da periferia da mente, dos Da Favela-tour às Caminhadas Periféricas
resíduos do pensamento e da cultura. É nesses lugares, e não
na falsa natureza arcaica dos desertos, que é possível formular Neste percurso de estudo, tem sido importante para o Nóis de
novas perguntas e elaborar hipóteses de novas respostas Teatro refletir sobre a apropriação do mercado capitalístico na inser-
Francesco Careri in A Odisseia Suburbana ção dos percursos urbanos pelas periferias e favelas dentro da lógica do
consumo e do turismo. Em grandes metrópoles como o Rio de Janeiro,
por exemplo, cidade em que a produção cultural das Escolas de Samba é
Depois da caminhada pelos três quarteirões da Av. José Torres, realizada, em sua maioria, por mão de obra periférica, é fácil encontrar,
chegamos enfim ao número 1211: a Nova Sede do Nóis de Teatro. Inaugu- dentro dos roteiros de turismo, os favela-tour: expedições realizadas por
rada no dia 03 de dezembro de 2016, este é o espaço da nossa segunda empresas que levam os turistas para subir o morro e conhecer, de modo
ancoragem no livro e pausa na caminhada que vimos realizando desde a espetacularizado, um modo de viver bem diferente do das classes so-
primeira parada na Praça da Juventude. É aqui neste espaço que, a partir ciais que consomem o que é produzido por essas populações no período
da experiência de 16 anos de Nóis de Teatro, lançaremos um conjunto carnavalesco. Não é novidade, como já pontuado, que a sociedade do
de reflexões que encaminham a finalização desse percurso realizado no espetáculo captura todas as formas de sociabilidade para dela usufruir o
Granja Portugal e dão abertura para outras abordagens sobre o espe- seu valor capital. Sambas de mesa, funks, raps e outras manifestações mu-
táculo estudado. Antes, porém, talvez seja relevante lembrar, junto à sicais que, em sua essência, partem das esquinas, guetos e organizações
história do Nóis de Teatro, a memória recente desse lugar que, antes de populares, já foram facilmente apropriados pela máquina midiática e
ser a sede de um grupo de teatro, já foi uma igreja evangélica e depois viraram produtos a serem consumidos em grande escala[69]. Desse modo,
um mercadinho. Esta memória nos dá abertura para as reflexões que
[69] Distante do morro, rodeado de sistemas de segurança eletrônica, ao jovem de
empreenderemos a partir daqui, seja pela ressignificação que propomos classe média alta, mesmo impregnado da imagem de violência e preconceito que sua base
ao espaço, pelo que ele carrega de relação com o mercado de cultura ou formativa impõe, foi dado o direito de consumir o que é produzido no fundo do quintal dos que
mesmo pelo que nossa chegada até aqui empreende de relação com o se relacionam com essa produção de modo cotidiano, como parte da sua leitura de mundo. As
apropriações do circuito da cultura periférica avançam a passos largos, e mesmo o medo en-
turismo de grande escala. tranhado pode ser disfarçado por uma estrutura que oferece comodidade e segurança para
que o “asfalto” possa romper barreiras e “subir o morro”. Certeau (2014, p. 43) nos diz que “a
Sejam bem vindos à Nova Sede do Nóis de Teatro! ― lugar-sím- figura atual de uma marginalidade não é mais a de pequenos grupos, mas uma marginalida-
bolo de um acúmulo de vivências do grupo, seja com o bairro onde está de de massa; atividade cultural dos não produtores de cultura, uma atividade não assinada,
não legível, mas simbolizada, e que é a única possível a todos aqueles que no entanto pagam,
pode ser vendido, gerando “o próprio”, tal como Certeau já nos alertou Estando na Nova Sede do Nóis de Teatro, o visitante que cami-
na Av. José Torres, lembrando-nos ainda que nhou até aqui poderia simplesmente deslumbrar-se com o prédio ocu-
Sem dúvida continua havendo diferenças, sociais, pado, com as estruturas cenográficas que ocupam o salão de entrada,
econômicas, históricas, entre os praticantes (camponeses, ou mesmo ater-se como observador do conjunto de programações que
operários etc) dessas astúcias e os analistas, neste caso, nós. realizamos junto à comunidade[72], contudo, acredito que o mais inte-
Não se dá por acaso que toda a sua cultura se elabora nos ressante a ser percebido e compreendido não está apenas no que já está
termos de relações conflituais ou competitivas entre mais dado pela própria imagem que o grupo anfitrião circula na cidade, mas
fortes e mais fracos, sem que nenhum espaço, nem legendário
CERTEAU, pelo inesperado que pode ser vivido de um encontro que se faça para
2014, p. 81 ou ritual, possa instalar-se na certeza de neutralidade.
além das formalidades de uma visita. Fernanda Eugénio e João Fiadeiro
Não era tão fácil como aparenta, por exemplo, marcar as estações chegam à nossa sede compreendendo essa dimensão e, ao nos dizer que
do espetáculo. Já que precisávamos marcar as cenas, preparar materiais o encontro é uma ferida, nos alertam que
cenográficos em calçadas e esquinas, por vezes tivemos que reelaborar
o percurso por conta da hostilidade de algum morador, que não per-
[72] A Sede do Nóis de Teatro, localizada na Av. José Torres, é constituída de um salão
mitia que os materiais fossem anexados às suas propriedades ou que se amplo, seguido de um jardim de inverno com lavanderia e banheiro, tendo aos fundos uma
negava a colaborar e guardar algum material que seria usado durante cozinha e um escritório. É nesse espaço que realizamos ensaios dos espetáculos, oficinas
de teatro e percussão para crianças e adolescentes, além de uma programação mensal onde
o percurso. Em uma das apresentações tivemos a faixa indicadora das convidamos grupos e artistas da cidade para apresentar seus espetáculos para a comunida-
cenas cortada pela moradora que tinha permitido que ela fosse fixada à de. Atualmente o grupo está em processo de montagem de um novo espetáculo, a partir do
livro “Quarto de Despejo”, de Carolina Maria de Jesus.
Primeira percepção: a própria criação dessa cena foi Exatamente por isso é que cada vez mais me parece que a potên-
um ato prático de flanar. Uma cena comum, porém acontece em cia do plural está na especificidade do singular, que a política do mundo
espaço longo de tempo, está em carne viva para perceber e dar está nas micropolíticas do cotidiano, e que a potência de ação da arte
importância a tal ação. Onde olhar essa cena que estamos acos- está nas conjunturas e contextos das suas processualidades e não na
tumados a ver desde a nossa infância e perceber algo que movi- obra-fixa manufaturada de um produto exclusivamente direcionado a
menta a cidade e moradores (...). Segunda percepção: quando a
ser vendido.
cena acontece e passa pelas ruas, a ação dos moradores de sair e
abrir o portão ou ficar na sua cobertura ouvindo é a ação de fla- Chegamos ao cruzamento da Av. José Torres com a Rua Coronel
nar que a intervenção causa inconscientemente no morador que Fabriciano, onde um semáforo se coloca bem à nossa frente, apontando
está passeando seus olhos sobre aquele momento, e mais, distin- um sinal verde para a caminhada, para que adentremos ao bairro Bom
NÓIS DE TEATRO,
gue as informações ali postas que são: cântico religioso, batida de Jardim calcorreando pela Rua Três Corações. Nessa entrada final, o que
2015, p. 63 tambor, imponência de vozes e a fluidez do pedinte ao suplicar.
interessa pontuar é o caráter processual da caminhada que realizamos
A partir dessa experiência, talvez possamos dizer que seja mais até aqui. Interessa-me a possibilidade de sermos todos este caminhan-
valioso pensarmos a cidade a partir da noção de processualidade, colo- te que celebra a lentidão, o desperdício do tempo, distraídos, arrastan-
cando o corpo criador, seja do artista ou do espectador, num lance de do-nos por uma tartaruga talvez, mas abertos para o encontro com a
afetação e atravessamento para, a partir de um contexto e uma con- potência do Outro, formulando novas perguntas e elaborando novas e
juntura, lançar-se de fato a uma produção poética inventiva, algo bem emergentes respostas sobre a nossa cidade.
similar ao vivenciado pelo pesquisador Thiago de Araújo Costa, em Belo
A faixa de pedestres está livre. Caminhemos rumo ao inesperado.
Horizonte. A dissertação de mestrado do pesquisador, intitulada “De-