Palhaços Excêntricos Musicais
Palhaços Excêntricos Musicais
Palhaços Excêntricos Musicais
Rio de Janeiro
2014
Autores
Celso Amâncio, Ermínia Silva, Lilian Moraes e Richard Riguetti.
Conselho Editorial
Celso Amâncio, Ermínia Silva, Lilian Moraes e Richard Riguetti.
Direção de Arte
Cristhianne Mandalozzo Vassão.
Foto da capa
Marcus Gullo
Revisão
Erica Resende
Produção
Lilian Moraes, Richard Riguetti e Simone Dutra.
Realização
Grupo Off-Sina
Patrocínio
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro / Secretaria Municipal de Cultura.
Inclui Bibliografia.
ISBN
CDD: 791.33
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1
PALHAÇOS EXCÊNTRICOS MUSICAIS: debates e origens
CAPÍTULO 2
PALHAÇOS MUSICAIS E EXCÊNTRICOS: os autores conduzidos pelas mãos de artistas, mestres e parceiros circenses
2.1 Nego Beijo: acrobata, palhaço, cantor, instrumentista, ator, autor, diretor e excêntrico (Erminia Silva)
2.2 Doracy Campos e Alvina Campos – Palhaço Treme-Treme e Palhaça Corrupita (Erminia Silva)
2.2.1 Formação do artista
2.2.2 Menino em fuga, casaca-de-ferro, palhaço, domador – destaque na mídia
2.2.3 Dos vários processos herdados e alçou grandes voos
2.2.4 Doracy – Treme-Treme e Alvina Campos
2.2.5 Diversos sentidos, diversos sons no Circo Treme-Treme mistura total: circo/rádio/shows/TV/circo-teatro/
teatro – décadas 1950 e 1960
2.2.6 Polifonia e polissemia artística – mistura total: circo/rádio/shows/tv/circo-teatro/teatro – décadas 1950 e 1960
2.2.7 Treme-Treme e Corrupita vão para Televisão
2.2.8 De volta ao Rio de Janeiro e boa parte do Brasil
2.2.8.1 Vamos falar um pouco do Táxi Maluco
2.2.8.2 Treme-Treme vai para a Barra da Tijuca – funda o Teatro de Lona
2.2.9 Breve análise final que é outro início
2.3 Teófanes Silveira – Palhaço Biribinha (Celso Amâncio de Melo Filho)
2.3.1 Biribinha e sua turma
2.3.2 No solo do inusitado
2.4 Circo Amarillo e o espetáculo Sem Concerto (Celso Amâncio de Melo Filho)
2.4.1 Circo Amarillo no Brasil
2.4.2 Sem Concerto
CAPÍTULO 3
GRUPO OFF-SINA: encontros e afetos
REFERÊNCIAS
APRESENTAÇÃO
Luís Alberto de Abreu
Esta obra é o resultado de uma série de encontros felizes que aconteceram ao longo de anos,
encontros e trocas realizadas por pessoas com desejos e anseios comuns que se descobriram parceiras
como artistas, pesquisadores ou simplesmente enquanto seres sensíveis e afetuosos que partilham os
mesmos ideais.
Em 1991, Richard Riguetti e Lilian Moraes, os artistas do Grupo Off-Sina, iniciaram seu intercâmbio
com Doracy e Alvina Campos, os palhaços Treme-Treme e Corrupita, mestres e parceiros fundamentais
a esse grupo para o entendimento e aprofundamento da poética dos palhaços e das singularidades do
universo circense. Sem poder prever onde chegariam, a dupla começou a carregar uma bagagem cada
vez mais ampla de experiências, aprendizados e possibilidades artísticas, permeadas pela busca das
linguagens do palhaço, do circo-teatro e do teatro de rua enquanto suas opções criativas. Somou-se a
essa bagagem de vivências o acervo de uma memória de grande valor para o entendimento das histórias
circenses no Brasil. Após o falecimento de seus mestres e amigos, o Grupo Off-Sina herdou de Márcia
Campos, filha do casal Doracy e Alvina Campos, os arquivos pessoais com uma série de álbuns e pastas
contendo fotografias e notícias de jornal que ilustram suas trajetórias artísticas.
A historiadora circense Erminia Silva, uma das autoras deste livro, trouxe ao convívio do grupo uma
visão mais aprofundada sobre as artes circenses no Brasil, por meio de sua pesquisa sobre Benjamim do
Oliveira, tornando-se parceira e coordenadora de pesquisas do Grupo Off-Sina. Iniciou-se então o estudo
do material de Doracy Campos, com o intuito de realizar um registro de seu legado artístico e também
compreender melhor sua poética. Todo o material foi então higienizado, cuidadosamente catalogado e
arquivado em pastas, graças à parceria com a bibliotecária e pesquisadora Érica Resende, que realizou
também a revisão deste livro. Esse conjunto de materiais, com o qual foi possível mapear o percurso do
casal Campos, tornou-se uma das principais fontes utilizadas na constituição desta obra.
Nestes entremeios, um outro achado foi encontrado entre os pertences pitorescos da bagagem
de Treme-Treme: a arte dos palhaços excêntricos musicais. O Off-Sina iniciou então seu trabalho nessa
maneira peculiar de fazer arte. Como consequência, o artista e pesquisador Celso Amâncio de Melo Filho,
o outro autor deste texto, que fora aluno de Erminia Silva na UNESP, aproximou-se também do Grupo Off-
Sina durante a realização de sua pesquisa de mestrado, que teve como temática a música como recurso
cênico de palhaços. Entre tantos encontros e cumplicidades, e após a experiência de trabalhar já em vários
projetos com Erminia Silva e ter Celso Amâncio como colaborador, o Grupo Off-Sina idealizou este livro
como uma obra que integrasse todas essas pesquisas compartilhadas ao longo de anos.
Assim, essa obra é o diálogo entre as pesquisas pessoais dos dois autores, o material herdado pelo
Grupo Off-Sina e a própria experiência prática desse grupo na construção de sua poética de palhaços
excêntricos musicais, tanto em suas criações quanto em seu trabalho como educadores. Nesse sentido,
Richard e Lilian se tornam, ao mesmo tempo, pesquisadores e artistas abordados, além de serem os
promovedores desta publicação.
Nesta jornada entre memória e invenção, é fundamental lembrar e agradecer a colaboradores
imprescindíveis: Simone Dutra, produtora do Grupo Off-Sina; Renato Riguetti, que realizou a gravação em
vídeo da entrevista com o Grupo Off-Sina; Márcia Campos, a filha de Doracy e Alvina Campos; Teófanes
Silveira, Marcelo Lujan e Pablo Nórdio, que gentilmente nos cederam um pouco de suas histórias;
Cristhianne Vassão, que fez todo o projeto gráfico e diagramação do livro; Luís Alberto de Abreu, um dos
principais dramaturgos brasileiros, que compartilhou seu conhecimento e sensibilidade para o texto
de apresentação; e por fim, a todos os artistas que emprestaram suas vozes em entrevistas, versos ou
testemunhos, expressando a grande multiplicidade e diversidade da arte musical dos palhaços.
Este livro é parte integrante do projeto: Circo do Rio – Manutenção Grupo Off-Sina 26 anos,
contemplado pelo Primeiro Programa de Fomento à Cultura Carioca, no ano de 2013.
Sobre o que iremos tratar nesta publicação, que é produto de uma pesquisa realizada pelos autores,
a partir do projeto proposto pelo Grupo Off-Sina?
São muitas as respostas, mas o principal tema é o palhaço e, em particular, o palhaço excêntrico.
Mas, não é possível realizar essa tarefa sem entender o quanto há, aí, inscritas histórias de vidas e de
existências, experiências fabricadas por vários artistas, circenses que construíram e constroem a
diversidade de formas de se produzir o circo/circo-teatro/música/teatro/dança, tudo junto e ligado,
coproduzidos ao mesmo tempo, rizomáticos.
Quando se trata destes conceitos, em particular: circo, circo-teatro e palhaço, há certo “senso
comum” de definições “prontas” ou mesmo uma urgência por definições, como se não carregassem
em si história, potências, disputas no campo das relações de poder e saber. Nesse sentido, o debate
realizado tem a intenção de trazer à tona a ideia de que conceitos como estes efetivamente têm história,
são compostos por multiplicidades e precisam ser analisados a partir de quem os inventou(a), além do
como e quando foram e são inventados. Devem ser analisados pelos diálogos que realizam com uma rede
quase que infinita de intensas criações, invenções e disputas em cada um dos processos históricos. E,
mesmo assim, não se pretende que feito tudo isso se esgote o entendimento de um ou vários deles, pois
como multiplicidade, não há conceito que não remeta a outro e assim infinitamente. Os “conceitos se
acomodam uns aos outros, superpõem-se uns aos outros” 1, agenciam-se.
Não são poucas as vezes que várias perguntas são feitas, hoje em dia, sobre os temas acima, sendo
que muitos dos interlocutores nesse campo, de diversas origens (acadêmicas ou não) – alunos/artistas,
professores/artistas, pesquisadores, jornalistas – acabem aguardando uma definição única e precisa,
como se isso fosse possível, a não ser no contexto de que um pensamento pode de fato representar uma
realidade como se ela fosse fixa e plenamente transparente a esse modo de pensar.
Cada vez que uma pesquisa sobre a produção das artes do circo tem início, inúmeros conceitos são
levantados. É normal, isto vale para qualquer campo de estudo – acadêmico ou não. Mas, é preciso pensar
que alguns (ou muitos) conceitos utilizados para definir o que significa “circo” ou “palhaço”, em como as
várias práticas circenses, carregam em si uma firme proposta de serem “a verdade”, ou respostas únicas
contendo “verdades” sobre o que se pretende demonstrar.
Primeiro: conceitos únicos que pretendam ser totalitários são conceitos representação, ou seja,
pretendem dar uma mesma noção do “que é circo” tanto para três mil antes de Cristo, como no final do
século XVIII e agora na primeira metade do século XXI. Neles, não há histórias e mudanças, transformações
culturais na produção do que seja um espetáculo circense a ponto desse não poder conter uma definição
clara a priori, fora de si como um fazer. Por isso, em vez de se ter uma definição formal, representacional do
que é circo, por exemplo, é possível e necessário responder de outra forma: a produção circense só pode
ser vista e falada no ato de sua fabricação, no momento em que está acontecendo. Portanto, a “definição”
depende dos processos relacionais vivenciados em cada acontecimento histórico. Daí o pensamento não
estar antes, representando, ele está aí no acontecer, quer dizer, não há “conceito pronto” antes de um
fazer no seu lugar, suas relações políticas, sociais, culturais, no seu momento histórico.
Segundo: conceitos de representação tendem a deixar de fora aquilo que não se quer falar, pensar,
aquilo que não se pretende visível. Por exemplo, para muitos que só entendem a partir do campo do
pensamento representação, circo é: “um espetáculo realizado sob a lona, nômade e de famílias”. Bom, a
rigor esta “definição” vale, de fato, para apenas uma parte dos mais de 200 anos de história da produção
circense, e assim sendo, será que este conceito dá conta de pensar a diversidade da produção histórica
da linguagem circense desde o final do XVIII? Será que este conceito dá conta de pensar a diversidade de
produção histórica da linguagem circense contemporânea, particularmente depois das escolas de circo,
do circo social, da formação de grupos, etc.? Aqui está se falando de circo, imagina para o conceito de
palhaço? Seria outro arsenal de perguntas.
Terceiro: ao ser “único” e não dar visibilidade à multiplicidade histórica cultural circense, o
que expõe são silêncios como nas histórias oficiais do teatro, da música, da dança que não incluem as
produções dos artistas circenses – homens e mulheres – nos seus processos históricos, ali no seu fazer o
circo. Além disso, dependendo de quem fala as disputas de saberes e poderes em relação ao que acredita
que “deva ser circo”, “qual é de fato a verdadeira história do circo”, acabam por excluir aqueles que não se
enquadram, criam até certa visão de anomalias.
Estas três questões levantadas valem para todo e qualquer lugar que a pessoa que estuda
circo se coloca, seja nos chamados “tradicionais”, ou nos chamados “novos“ e mais recentemente
“contemporâneos”, ou nas pesquisas acadêmicas que leem muito rapidamente a bibliografia sem se
aprofundar nas histórias das existências e produções circenses, bem como nas próprias constituições
históricas das atividades culturais artísticas dos inúmeros países, cidades, bairros, ruas e grupos pelos
quais os circenses passaram, contaminaram, construíram, copiaram, protagonizaram, divulgaram, etc.
Em primeiro lugar, cada conceito remete a outros conceitos, não somente em sua história,
mas em seu devir ou suas conexões presentes. Cada conceito tem componentes que
podem ser, por sua vez, tomados como conceitos [...]. Os conceitos vão, pois ao infinito
e, sendo criados, não são jamais criados do nada. 2
Deleuze e Guattari, no livro O que é a Filosofia?, realizam um importante debate a respeito do que
seja um conceito. Não é possível entendê-lo como algo simples. Não existem conceitos simples, todos são
compostos por multiplicidades.
Evidentemente todo conceito tem uma história. [...]. Numa palavra, dizemos de qualquer
conceito que ele sempre tem uma história, embora a história se desdobre em ziguezague,
embora cruze talvez outros problemas ou outros planos diferentes. Num conceito, há, no
mais das vezes, pedaços ou componentes vindos de outros conceitos, que respondiam
a outros problemas e supunham outros planos. Não pode ser diferente, já que cada
conceito opera um novo corte, assume novos contornos, deve ser reativado ou recortado. 3
Essas questões já faziam e fazem parte há anos de nossas pesquisas, particularmente de uma
das autoras – Erminia Silva (2007, 2009a, 2009b, 2011b) – mas, nos últimos 40 anos estão presentes na
maioria dos debates que vêm ocorrendo sobre a produção da dramaturgia do circo-teatro e do palhaço,
o que resulta em elaborações constantes em torno da estética e da ética. Claro que, como historiadora/
pesquisadora, um dos focos de elaboração da autora tratou da produção das memórias sobre a
multiplicidade de significados acerca do conceito circo-teatro em geral, e do palhaço em particular. Para
Celso Amâncio de Melo Filho (2013) este debate em termos de pesquisa acadêmica é mais recente, o que
não significa que como palhaço/músico não estivesse presente o tempo todo.
Assim, o que apresentamos a partir de agora são conceitos/temas que estudamos, pesquisamos nas
fontes e a partir delas construímos nossas análises. Dialogamos com as fontes (orais, escritas, periódicos,
etc.), bibliografias, existências distintas que nos informaram sobre os seus fazeres, suas ações. Dentre as
inúmeras existências iremos destacar: Benjamim de Oliveira, Doracy Campos, Alvina Campos, Teófanes
Silveira, Marcelo Lujan e Pablo Nórdio. Cada nome mencionado é trabalhado como um coletivo.
1.1 Palhaço Excêntrico: debate histórico
Há pesquisas que não só “delimitam” o que deve ser palhaço, como o fazem também para alguns
dos inúmeros modos de se produzir este personagem, dentro ou fora da linguagem circense, sendo quase
o mesmo durante longo período histórico. O caso destes muitos modos de atuação nos espetáculos dos
artistas que construíram seus palhaços era o denominado “palhaço excêntrico”.
Entendendo, como dissemos, que todo “conceito tem uma história”, sem se propor a esgotar
todas as fontes de pesquisas de ambos os autores, levantaremos apenas alguns exemplos nos quais
nos propomos dar visibilidade de algumas formas como historicamente a denominação de excêntrico e
palhaço excêntrico foi abordada.
O conceito de excêntrico, em si, dá margem à uma infinidade de possibilidades que vão desde
denominações na área da saúde (esta pessoa é excêntrica no sentido de portador de transtorno mental) até
a tentativa de denominar palhaço excêntrico “apenas” aquele que toca instrumentos “não usuais” em seus
espetáculos. Ao pesquisarmos em dicionários disponíveis na internet, excêntrico no sentido de “fora do
comum” apresenta os sinônimos: bizarro, esdrúxulo, esquisito, esquisitório, estapafúrdico, estapafúrdio,
estrambólico, estrambótico, estranho, estúrdio, excepcional, exótico, extravagante, heteróclito, incomum,
irregular, mirabolante, singular, surpreendente.
Mas, há outras formas de utilizá-los para uma pessoa por ser: caprichoso, novo, louco, diferente,
lunático, maníaco, grotesco, ridículo, extraordinário, incrível, insólito, tipo, rato, delirante, desnatural,
esquipático, funambulesco, gozado, original, sistemático, sofisticado, voluntarioso, baldoso, barroco,
psicodélico.
Não é difícil supor que a produção histórica dos milhares de artistas que construíram seus palhaços
(e nos últimos 40 anos as palhaças) inclua todos esses sinônimos desde bizarro a surpreendente, desde
caprichoso a psicodélico. Além de todo conceito ter uma história, ele ou a produção dele é rizomática.
Construir novos percursos, desenhar novos territórios a cada ponto de encontro que os homens e mulheres
circenses operavam e operam como resistências e alteridades, com os quais a linguagem dialogou de
modo polissêmico e produziu diferentes configurações nesse campo de saber e prática, inclusive velhas/
novas, distintas e inúmeras definições.
E sim, palhaço é tudo isso e muito mais que não cabe aqui, por isso que às vezes tentar entender
um “conceito único” para ele, bem como colocar um adjetivo como se resolvesse tudo, torna-se muito
complicado. Mas afinal, como será que “excêntrico” foi tratado em nossas fontes da pesquisa? Desta forma
mesmo, pois em cada fonte, em cada autor, todos os sinônimos estavam presentes, por exemplo, Alice
Viveiros de Castro 4:
Ao discutir sobre o que seria o palhaço no primeiro parágrafo acima, Castro coloca o debate
em termos das dificuldades em ter uma única definição, mas ao mesmo tempo, no seguinte o conceito
excêntrico surge como mais uma das características misturadas que essa figura se apresentou e se
apresenta. Assim, temos que ele teria inúmeros nomes em seu processo histórico, rizomático. Mas, no
segundo já aparece como um entre as diversas denominações.
Continuando, quando Castro descreve a formação de duplas de palhaço, informa que no “começo,
quem mandava era o branco – autoritário e cruel –, exibindo-se no picadeiro com seus trajes majestosos,
repletos de bordados de paetês e lantejoulas.” Já o parceiro da dupla “o pobre augusto, que também pode
ser chamado de tony ou excêntrico, sofria na mão do clown”, mas, aos poucos este segundo teria assumido
o picadeiro jogando “para longe o velho branco… Hoje estaríamos vivendo o reinado absoluto do augusto,
depois da queda irremediável do clown branco.”5
Nesta proposta da autora, uma das muitas denominações dadas ao palhaço (que também foi
ou é ainda) clown, seria de duas opções semelhantes “tony ou excêntrico”. No decorrer de seu trabalho,
especifica mais essa opção, quando, por exemplo, lista diversos palhaços brasileiros e suas especificidades.
Para Juan Cardona, que chegou ao Brasil na segunda metade do século XIX, casado com a artista Lili
Cardona (ambos os tios de Oscarito), Alice6 o descreve como “um excêntrico, um augusto exagerado, mas
quando queria montava números de clown clássico.”
Aqui excêntrico ligado a “augusto exagerado”, igual à descrição que faz do sobrinho de Juan,
Oscarito que “era mais um excêntrico, o palhaço sem medidas, que abusava das caretas, tinha um jeito
desajeitado de ser, um giro de corpo de quem ia, mas não foi, malícia ingênua - tudo isso ele herdou
de seus antepassados, honrando os 400 anos de humor que trazia nas veias”. Nesse sentido, a autora
concorda com a fala de Grande Otelo, seu parceiro em 34 filmes, que declarou: “Eu acho que eu era um
ator mais completo. Oscarito era mais um excêntrico, ao passo que eu procurava valorizar o diálogo e a
interpretação, em busca de um tom adequado. Pode ser que eu esteja enganado, mas ele era mais um
excêntrico e eu um comediante.”7
É interessante aqui a questão colocada por alguns pesquisadores, e mesmo alguns artistas com
relação à diferença entre “ser um ator mais completo” e o outro ser “um excêntrico”, complementando
que ele valorizava o diálogo e a interpretação, sempre em busca de um “tom adequado”, enquanto o outro
era “mais excêntrico”. Será então que “ser excêntrico” não significava ou significa ser um bom ator? Será
que pelo fato de que Oscarito era um ator completo, que ele tinha sucesso como excêntrico, pois também
tinha que saber valorizar o diálogo, a interpretação, ter um tom adequado? Será que aqui uma diferença
entre a hierarquia de ser ator e ser palhaço? Mas, com certeza “ser excêntrico” no sentido do exagero, sem
medidas, abusando das caretas, desajeitado, malícia ingênua para uma parte “oficial” do teatro não é ser
bom ator, não tem capacidade de valorizar o diálogo, e como diziam os circenses nas propagandas do
século XIX: etc., etc. e etc.
Mario Fernando Bolognesi8 ao analisar as raízes etimológicas do termo clown afirma:
Clown é uma palavra inglesa, cuja origem remonta ao século XVI, derivada de cloyne,
cloine, clowne. Sua matriz etimológica reporta a colonus e clod, cujo sentido aproximado
seria homem rústico, do campo. Clod, ou clown, tinha também o sentido de lout, homem
desajeitado, grosseiro, e de boor, camponês, rústico. Na pantomima inglesa o termo clown
designava o cômico principal e tinhas as funções de um serviçal. No universo circense o
clown é o artista cômico que participa de cenas curtas e explora uma característica de
excêntrica tolice em suas ações.
Este mesmo autor, quando discute as divergências dos pesquisadores, em particular dos
historiadores circenses, sobre as “origens” do chamado “augusto” (sendo o outro chamado de branco),
o faz mencionando a questão de como este personagem é descrito como uma forma diferenciadora para
distinguir de seu parceiro, sendo que a excentricidade no vestir, na forma de atuar seriam algumas das
características:
Em seu projeto de pesquisa, Celso Amâncio de Melo Filho (2013 – um dos autores deste texto),
também analisa a dificuldade de precisão quando das inúmeras definições sobre o que seria palhaço
excêntrico. Para ele, essa definição, assim como parte da terminologia clownesca, não alcança exatidão,
havendo certa divergência quanto ao seu uso. Há, entretanto, em alguns autores pesquisados por Melo
Filho, particularmente aqueles que apontam as “origens” destes personagens ou conceito no século XIX,
que parece haver uma “convergência que talvez seja capital para o entendimento desse tipo seja o fato
de estarem mais associados aos music halls, ou seja, ao espaço teatral do que ao picadeiro”. 10 Um dos
pesquisadores foi Robert Beauvais 11, que segundo ele o excêntrico teria surgido “justamente da adaptação
do clown tradicional à estrutura de palco, uma ‘nova arte de rir’ que contaminou a raiz do cinema nascente
por meio de artistas que migraram dos teatros de variedades aos cinemas, como Charles Chaplin, Buster
Keaton e, mais recentemente, Jacques Tati”. O excêntrico seria, grosso modo, o “elo” entre os clowns e
essas personagens cinematográficas que o senso comum reconhece como palhaços.
Há certo “consenso” ou “senso comum” no meio dos circenses e de pesquisadores sobre a relação
entre palhaço e música (cantada, dançada e, principalmente, tocada), que, em geral, é denominado palhaço
excêntrico. Mas, como veremos, também há uma diversidade ou um leque de análises que associam
formatos de como o palhaço usa a música, principalmente instrumental, é que teria como característica
a excentricidade. Castro 12, ao mencionar Piolin formando dupla com Alcebíades Pereira (no circo do
segundo) descreve:
Alcebíades, o clown, tocava pistom e Piolin, o excêntrico, tocava bandolim. Até que uma
pulga mordia a perna de Piolin que, desesperado, interrompia o dueto para procurar
a pulga, apesar dos protestos de Alcebíades. O concerto recomeçava e novamente a
pulga atacava outra parte do corpo de Piolin que, desesperado, interrompia o dueto
para procurar a pulga, apesar dos protestos de Alcebíades. O concerto recomeçava e
novamente a pulga atacava outra parte do corpo de Piolin, que parava de tocar, procurava
a pulga e deixava Alcebíades furioso.
Tristan Rémy dedica um capítulo aos clowns musicais, domadores, humorísticos e políticos, dando
especial atenção aos primeiros e chegando a afirmar que “um clown menos engraçado se salva se for um
pouco músico”.
Apesar de abordar o clown músico com certa diferenciação, Rémy também compreende
a arte musical como própria das ferramentas do trabalho clownesco, afirmando que os
clowns são frequentemente instrumentistas hábeis e ressalta que, independentemente
do surgimento de grupos de clowns que se denominavam “musicais”, não podemos
limitar essa denominação exclusivamente a estes, já que alguns utilizam a música como
ferramenta cômica ocasionalmente, desenvolvendo números musicais ao lado de seus
outros números. Para tanto, o autor cita exemplos como os Cairoli; o clown Antonet, que
tocava violino; Dario Meschi, que era acordionista; os Fratellini que possuíam algumas
entradas musicais; Rico Briatore, que tocava violão e cantava; e Grock em especial, multi-
instrumentista que desenvolveu a partir da música as grandes linhas de seus números. 13
Rémy14, segundo Melo Filho, também associa os excêntricos aos palcos dos music halls, analisando as
ferramentas cômicas destes nos excêntricos solitários. De acordo com esse autor, os excêntricos possuem as
mesmas fontes de riso que os clowns, tendo inclusive deixado os traços de sua originalidade em numerosas
entradas clownescas. Seriam oriundos diretamente do augusto tradicional, tendo herdado o uso de acessórios
da tradição inglesa e também dos tramps americanos. O tramp, que em inglês significa vagabundo, é um
tipo particular de cômico circense surgido nos Estados Unidos, uma figura de face enegrecida e de vestes
maltrapilhas resultado da Guerra de Secessão Americana, que deixou vítimas esfarrapadas vagando pelas
estradas do país. Segundo Bolognesi15, “é um tipo de palhaço que passou a ocupar o espetáculo juntamente
com o augusto e o clown branco, mas permanecendo à margem do picadeiro tal qual sua origem”.
Como se pode observar, pesquisadores europeus e brasileiros, em algum momento de suas pesquisas,
fazem associações entre o conceito de excêntrico ligado aos palhaços que tocam instrumentos na sua diversidade.
Mas, há também um caminho traçado por vários autores (que serão nomeados) e fontes pesquisadas, para
especificar o palhaço excêntrico musical somente aquele que tocava “instrumentos inusitados”.
1.2 Dramaturgia do Palhaço Excêntrico – artes circenses/música/teatro/dança – tudo isso?
Como observamos, não vamos atrás das “origens” da excentricidade cômica, entretanto, foi
importante a realização de uma cartografia, não exaustiva, mas suficiente para assinalarmos várias
formas utilizadas e denominadas do palhaço excêntrico. E a relação da questão da música e palhaço é
talvez a que mais tempo vem sendo construída, até agora, relacionando palhaço excêntrico como palhaço
musical.
A cartografia realizada pelos autores deste texto, em suas pesquisas e publicações, vem
demonstrando o quanto o entrelaçamento, a transversalidade, as misturas das diversas linguagens
artísticas sempre fizeram parte das produções históricas de todas elas, seja do teatro, música, dança e
das artes circenses – nas suas mais diversas formas de produção, atuação e estética.
Os artistas que circularam pelas ruas, praças e feiras, antes que se construíssem os primeiros teatros
e se organizassem em companhias circenses tinham na versatilidade uma das principais características
de sua expressão. Eram artistas que, sem se preocupar com delimitações de seu ofício, podiam ser a um
só tempo: acrobatas, atores, dançarinos e músicos. Música e circo, assim como teatro e circo, sempre se
entrelaçaram nas criações de diversos tipos de profissionais que contribuíram para a construção do que
hoje percebemos como a arte de atores cômicos e palhaços. Muito antes da palavra: palhaço ser de uso
corrente, diversos tipos de artistas valiam-se de técnicas e linguagens artísticas variadas em suas criações
e seus modos de produção. Podemos citar exemplos que abarcam diferentes épocas e períodos históricos,
como os mimos greco-romanos, os saltimbancos, bufões e artistas de feira durante a Idade Média, os
atores da chamada commedia dell’arte, entre os séculos XVI e XVII, dentre muitos outros que circularam
por diversos espaços de encenação e que as fontes não conseguem abarcar. Os palhaços e os tipos
cômicos que os precederam são oriundos de contextos nos quais o entendimento do que significava ser
um artista consistia dominar uma multiplicidade de técnicas e recursos. Esses artistas eram profissionais
versáteis e detentores das linguagens artísticas de sua época. A compreensão da poética de artistas como
estes implica um olhar distinto da noção de artista enquanto alguém dedicado a uma única técnica e
separadamente discriminado como músico, ator, dançarino ou acrobata. O ofício de palhaço e de artista
circense caracteriza-se por sua multiplicidade.
Multiplicidade não somente de técnicas, mas também de tendências e artistas de universos muito
diversificados, pois a partir aproximadamente de 1780, uma grande variedade de profissionais passou a
fazer parte da nova organização espetacular que eram os circos, artistas que
se apresentavam nas ruas, praças e teatro de feiras, mas também havia artistas dos
teatros fechados italianos, elisabetanos, arenas, hipódromos, ciganos, prestidigitadores,
bonequeiros, dançarinos, cantores, músicos, artistas herdeiros da commedia dell’arte,
acrobatas (solo e aéreo), cômicos em geral – que se apresentavam em seus entreatos,
com o objetivo de imprimir ritmo às apresentações e dar um entretenimento diferente
ao público.17
Portanto, sem que houvesse delimitações de seus ofícios, a atuação dos palhaços representou, e
ainda representa, uma síntese de diversas linguagens que circularam pelas ruas e feiras, sendo abarcadas
pelo circo e também pelo teatro.
Além disso, havia ainda a necessidade de execução de trabalhos muito diversos ao fazer artístico,
como os cuidados com o material de trabalho, a confecção dos figurinos, os encargos de transporte, a
montagem e a desmontagem dos palcos, dos cenários, ou das tendas, além da versatilidade para encarnar
diferentes funções e papéis de acordo com as necessidades do grupo com o qual se trabalhava, fosse
este uma trupe de saltimbancos, uma família de bufões ou uma companhia circense. O circo moderno
manteve esse modo de trabalho compartilhado, no qual seus agentes precisam atuar em diversas funções
para viabilizar o espetáculo, sendo geralmente os mesmos artistas que executam os números acrobáticos,
as apresentações cômicas e teatrais, assim como os trabalhos técnicos de produção.
Ao incluirmos os palhaços como herdeiros e propagadores deste modus operandi, torna-se evidente
que a música, em suas variadas possibilidades, é parte intrínseca de sua poética cênica. Ademais, outros
fatores pertinentes à história da arte circense também contribuem para acentuar essa característica. Um
desses fatores diz respeito ao contexto inicial das entradas e reprises de palhaços, quando eram construídas
como paródias de números circenses, desde os números equestres às apresentações musicais. Para que
as paródias pudessem acontecer era importante que o palhaço tivesse ao menos uma noção mediana a
respeito do que debochava, isso quando não era necessário um domínio ainda mais amplo, já que no ato
de parodiar muitas vezes está implicado a representação da falha e sua superação por meio de situações
ainda mais adversas que a própria habilidade impõe em suas condições usuais.
1.3 Quem são os excêntricos para autores estrangeiros?
Alguns palhaços excêntricos musicais tornaram-se marcantes na memória circense europeia, como
por exemplo, os Irmãos Price, os Chesterfilds e Grock.
Os irmãos John e William Price, em meados do século XIX, reuniam o triplo talento de serem
equilibristas, saltadores e músicos, mas sendo “primeiramente e sobretudo acrobatas músicos”. Dentre
os números musicais desses artistas estão os violons sauteurs (violinos saltadores), “duos acrobáticos
intercaladas por saltos mortais e contorcionismos, entremeados de árias executadas ao violino nas
posições mais inacreditáveis”. A dedicação à música também figurava nas vestimentas dos Irmãos Price,
que eram decoradas de signos da escrita musical, como notas, fermatas, claves diversas, entre outras
figuras.18
Os Chesterfields19 interpretavam músicos desajeitados, em uma atuação virtuose que trabalhava
a comicidade em gestos insignificantes e desajeitados, em atitudes esquisitas e em automatismos que
saiam totalmente do controle.
O artista suíço Adrien Wettach (1880-1959), que interpretava o palhaço Grock, “um excêntrico
musical de gênio”20 também transitou tanto entre palcos quanto picadeiros, tornando-se um dos
excêntricos musicais lendários no começo do século XX. Grock era acrobata, excelente mímico e sabia
explorar a comicidade das palavras, aliando estas habilidades ao universo musical. “A comédia musical
foi a fonte principal de inspiração de Grock. Violino, piano, saxofone, concertina, tais são os fios de seu
bordado clownesco”21 Um dos vários instrumentos que dominava tratava-se de um violino minúsculo
que carregava em um estojo enorme, executando nesse violino insólito melodias tão complexas quanto
em um violino convencional. Dentre os filmes que esse artista realizou, o filme Grock (1931)22, pode ser
facilmente assistido na internet.
Outros nomes que Pierre Levy cita em sua obra, já da segunda metade do século XX são: “Pipo
Junior, Grigorescu, Eötvöus, os Francesco, os Sipolo e os Rastelli”.23
Um outro tipo cômico que também trabalhava acentuadamente com a linguagem musical era
os chamados blackfaces ou minstrels (menestréis), cujas apresentações, os minstrel shows, eram os
entretenimentos mais populares nos Estados Unidos entre 1840 e 189024, uma popularidade que emigrou
para a Europa, onde o modelo americano de blackface se tornou preponderante a similares europeus.
Os blackfaces americanos eram tipos cômico-musicais que satirizavam a fala e os costumes de
afrodescendentes, apropriando-se de seus aspectos culturais. Na maior parte das vezes, os blackfaces
eram interpretados por homens brancos com o rosto pintado por cortiça queimada, graxa preta ou
manteiga de coca. Nos primeiros anos possuíam lábios exageradamente pintados de vermelho e nos anos
tardios eram brancos ou sem pintura. O público branco da época inicial não aceitava negros nesses papéis
sem que utilizassem a maquiagem preta, porém, a partir da década de 1860, aproximadamente, é possível
encontrar já homens negros interpretando esses papéis com a cor de sua pele. Em fontes do período é
possível perceber que a popularidade do fenômeno está relacionada a tensões entre interesses contrários
e favoráveis ao regime escravocrata, já que parte da comicidade desses espetáculos era criada por meio
de estereótipos racistas das populações afrodescendentes americanas. Mas outra parte do fascínio que
esses artistas exerciam estava vinculada à música, pois suas apresentações tinham como base um grupo
de músicos, todos com caracterização, geralmente tocando banjos, tamborins, ossos25 e rabecas.
Na Europa do final do século XIX, havia tanta procura por excêntricos musicais que muitos blackfaces
de origem americana eram contratados para temporadas em teatros e circos. Assim, esses artistas também
contribuíram e influenciaram os números musicais cômicos de palhaços, trazendo instrumentos típicos
dos minstrel shows, como o banjo, o tamborim, a gaita de boca, os ossos, e teriam também enriquecido a
construção de instrumentos cômicos com objetos de uso cotidiano. A despeito de uma grande ocorrência
deste tipo cômico nos Estados Unidos, personagens de face pintada de preto podem ser verificados em
outros momentos e locais, havendo incidência já nos teatros de moralidades medievais e na Commedia
dell’arte italiana.
1.4 E no Brasil?
No Brasil dos finais do século XIX e começo do século XX, aconteceu um fenômeno relativamente
similar na popularidade dos palhaços cantores que se valiam das gírias, das danças e dos ritmos das
populações escravas. Podemos encontrar ainda personagens cômicas de caras pintadas de negro em
manifestações populares do ciclo do boi, como o Cavalo-marinho, especialmente na representação de
máscaras que cumprem funções similares aos palhaços.
Música e comicidade também são elementos constitutivos dos folguedos populares brasileiros,
assim como a indumentária, a coreografia e as representações teatralizadas. Dentre as personagens
mascaradas de manifestações como as festas do ciclo do boi (Cavalo-marinho, Boi-bumbá, Reizado, entre
outras), as Folias de Reis e os Pastoris Profanos, existem personagens cômicas que encarnam as funções
dramáticas dos palhaços, aproximando-se desses pela maneira de atuação, visualidade e jogo cômico,
mas também por aspectos antropológicos mais profundos, especialmente se considerarmos as raízes
ritualísticas de nossos brincantes. Segundo o pesquisador Ivanildo Piccoli dos Santos:
É uma banda fixa, fixa assim. Fixo o cargo, vamos dizer assim. Tem que ter um trombone,
não necessariamente tem que ter aquele professional […] Eu chamo a bateria de circo,
porque é uma bateria meio percussão: em buzina, tem um bocado de breguetes, o
zabumbeiro que faz a parte. Olha que cada um tem um naipe, é o grave, o médio e o
agudo. E três de cada um grave, o violão, o médio o bandolim; e o cavaquinho lá fazendo
o agudo. Trombone fazendo o grave, trompete fazendo o médio; e o sax o agudo. Na
percussão, tem a mesma coisa. O bombão, o do meio faz tudo é a coisa pequena, ganzá
triângulo, não sei o quê [...] uma orquestrinha uma minibanda de circo, uma mini-
orquestra. É uma minibanda com nove integrantes.
Muitos artistas que realizavam acrobacias de solo também as faziam tocando. Porém,
o artista que desempenhava o palhaço era identificado como músico instrumentista,
sendo chamado muitas vezes de cômico excêntrico, palhaço excêntrico e, cada vez com
mais frequência, no final do século XIX, de clown excêntrico. Seus instrumentos variavam
desde o violino e o trompete, até “gaitinhas, apitos, guizos, pratos e tambores – uma
bateria completa!”, sempre executando saltos acrobáticos e de dança, com a peripécia
de nunca desafinar 30
Várias famílias de artistas circenses permaneceram por aqui, dentre estas, algumas eram
anunciadas como clowns instrumentistas excêntricos, como os Seyssel, os Temperani e os Ozon 31 dando
continuidade em solo brasileiro ao trabalho múltiplo dos palhaços europeus.
Assim, ao nos debruçarmos sobre o tema da música nos espetáculos circenses, até pelo menos a
década de 1960, em particular no Brasil, esta não deve ser vista apenas como acompanhamento para os
números em geral. As produções musicais nos picadeiros acompanharam a multiplicidade de variações
de ritmos e formas, que aconteciam nas ruas, nos bares, nos cafés-concerto, cabarés, nos grupos
carnavalescos, nas rodas de música e de dança dos grupos de pagodeiros, seresteiros, sambistas, de lundu,
do maxixe, no teatro musicado com suas operetas e sua forma mais amplamente usada e consumida, que
foi o teatro de revista. Enfim, as manifestações artísticas musicais que eram inteligíveis para a população
tiveram sua representatividade e expressividade nos palcos/picadeiros.
Normalmente, a primeira imagem que se tem quando o tema é música no circo é de uma banda
ou charanga – antiga denominação dada a pequenas bandas formadas basicamente por instrumentos de
sopro. De fato, desde Philip Astley, a banda, independente do número de componentes, foi importante
para qualquer circo. Com seus instrumentos de sopro, metais e percussão, em alguns casos tocados pelos
próprios artistas ginastas e cômicos, as bandas eram responsáveis pela veiculação da propaganda nas
cidades, anunciando os espetáculos, por vezes junto com os palhaços-cartaz. Antes de iniciar o espetáculo
ela dava as boas-vindas ao público, nas portas dos circos. Durante o espetáculo, eram elas que davam a
cadência dos números e marcavam o compasso da teatralidade dos mesmos, utilizando desde ritmos
da música clássica aos mais populares, dependendo da velocidade dos movimentos dos artistas para
desenvolver suas apresentações, aumentando o suspense, a tensão ou acentuando a irreverência dos
palhaços.
Nas pantomimas a música tocada não era um simples adorno ou acompanhamento; era
intrinsecamente ligada à mímica, explicitando o enredo da peça, compondo a teatralidade. Os circos
destacavam em suas propagandas que possuíam uma banda própria, como um sinal de status, colocando-a
como chamariz entre os principais números do espetáculo. O circo de Manoel Pery, por exemplo, em 1881,
em propaganda no jornal de Campinas, anunciava que tinha dezoito artistas, dez cavalos e “uma excelente
banda de música”, que executava “lindas peças de seu repertório, a qual tem sido muito aplaudida, em
todos os pontos onde se há exibido” 32. Em 1884, o mesmo circo anunciava uma “grande banda de música
com 10 professores, confiada a regência ao hábil maestro Leandro Paraná”, a exemplo do que ocorria no
mundo musical das bandas. Muitos circos, como o Chiarini, chegavam mesmo a chamá-las de orquestras,
dando-lhes um lugar de destaque, abrindo o espetáculo com uma sinfonia, e iniciando a segunda parte
com uma ouverture 33. Mário de Andrade informa que na segunda metade do século XIX organizavam-se,
por toda parte no Brasil, orquestras, o que sugere a importância dada pelos circos de assim nomearem o
conjunto de seus músicos. 34
Houve uma rápida incorporação e intercâmbio entre as bandas circenses e as locais quanto aos
seus profissionais e ritmos. Neste processo de inserção no universo social e cultural nas cidades, circos e
bandas transitavam por territórios diversos, reforçando, entre as suas várias funções, o “poder simbólico
de saudação e boas vindas.” 35 A partir da década de 1880, os circos formariam suas bandas com forte
presença dos músicos locais, além de incorporar as bandas das cidades, em suas variadas origens, para
tocar na entrada do circo, recebendo os espectadores, nos intervalos e nas próprias apresentações dos
espetáculos. Os intervalos circenses, geralmente em torno de 20 a 30 minutos, tornaram-se um espaço
importante para que o público também pudesse ouvir música, como destacou a propaganda do Circo
Casali, quando, no Rio de Janeiro, anunciou que nos intervalos tocaria a banda do I Batalhão de Infantaria.
36
Alguns teatros, entre os quais o Teatro São Carlos, em Campinas, na década de 1870, “apresentavam
espetáculos com vários atos, com diversos cenários que tornavam os jogos de cena e troca de figurinos
muito lentos devido à estrutura acanhada das instalações”; dessa forma, normalmente os entreatos eram
muito demorados. O público, já prevendo isto, preparava uma espécie de piquenique dentro do teatro; e,
a este “recreio” se juntavam as bandas de música. 37
Para Maria Luisa Duarte do Páteo, a pluralidade de tipos de bandas expressava algumas
características da cidade naquele momento, indo além de uma simples representação ou reflexo dela.
“Mais do que apenas reproduzir grupos sociais, etnias, universos de trabalho”, as bandas, através de
sua “performance musical, interferiam no cotidiano, nas relações, nas formas de comunicação entre
as pessoas, alterando os espaços de sociabilidade, imprimindo novos sentidos aos lugares e situações
por onde circulava” 38. As parcerias entre bandas locais e circos, independentemente de suas origens e
tamanhos, serão, também, importantes veículos de uma “polifonia cultural e lúdica”, que imprimiu novas
formas de viver o cotidiano urbano, principalmente através das bandas formadas pelos próprios circenses,
que, devido ao seu nomadismo, percorriam espaços e territórios mais amplos, em todos os sentidos, seja
no geográfico, cultural ou social. Além dos vários ritmos musicais do repertório, os próprios músicos e
maestros circenses adaptavam todas as músicas que acompanhavam as pantomimas, peças teatrais,
cenas cômicas e sainetes. Como a maioria das cidades visitadas não tinha banda, as dos circos divulgavam
a multiplicidade de sons, a combinação de várias melodias, de instrumentos e vozes, resultante das
incorporações e trocas que realizavam ao longo de seus trajetos. Juntavam-se a essa polifonia das bandas
os circenses que também trabalhavam nas pantomimas e, em destaque, os que representavam o papel
de palhaço, que, de um modo geral, além de ginastas, acrobatas, saltadores, tocavam algum instrumento
musical e cantavam.
Para Tinhorão, o clown de rosto pintado de branco, no estilo da commédia dell’arte, seria a figura
produzida pelo “microcosmo artístico internacional do circo”, destinada “a emprestar sua universalidade
à criação – adaptando o modelo importado às características regionais – de um dos mais curiosos
exemplos culturais de diluição do geral no particular”. Afirma ainda que uma importante contribuição
“sul-americana à criação internacional do circo” teria sido o “aproveitamento dos múltiplos talentos
histriônicos e musicais exibidos pelos diferentes clowns europeus, para a criação de dois tipos locais que
lhes sintetizariam todas as virtudes: o palhaço-instrumentista-cantor (equivalente do chansonnier do
teatro musicado) e o palhaço-ator (responsável pelo aparecimento da originalíssima teatrologia circense
das canções representadas, até hoje ignorada por historiadores e estudiosos do teatro)” 39.
A construção do espetáculo circense, inclusive do personagem palhaço, que temos analisado neste
texto, passou por constantes transformações e adaptações, o que leva a crer que não se pode entender
os dois tipos a que se refere Tinhorão apenas como criações locais. Para ele, a combinação entre circo e
teatro somente teria ocorrido e se consolidado, de fato, a partir de 1884, em particular na Argentina, com
a experiência do personagem cômico representado por José Podestá, o palhaço Pepino 88. Entretanto,
não é possível concordar com a defesa de uma invenção latino-americana da “teatrologia circense” e
nem que ela tenha ocorrido a partir de uma única experiência. As definições de palhaço-instrumentista-
cantor e palhaço-ator são importantes para se observar e entender a produção dos espetáculos circenses
sul-americanos, em especial os brasileiros, que, se não eram originais, de fato acabaram por desenvolver
características diferenciadoras das produções circenses europeias e americanas do final do século XIX e
início do XX. Apesar de realizarem múltiplas funções, alguns palhaços se destacavam por serem de fato
atores. Dos artistas circenses, que sobressaíam como os cômicos da companhia, eram exigidos “boa dose
de talento dramático”. O sucesso de uma cena cômica, uma entrada, uma reprise, uma mímica, e tudo
aquilo que envolvia representação baseava-se, sobretudo, na qualidade dos intérpretes.
A combinação dessa tradição do palhaço-instrumentista europeu com as bandas e a presença cada
vez maior de brasileiros entre os circenses resultaram numa transformação do palhaço-instrumentista-
cantor-ator. Os gêneros como o vaudeville e o melodrama, através de diferentes modelos de pantomimas,
misturados aos ritmos e musicalidade locais, tiveram a comicidade como a tônica daquelas produções.
Os sainetes, peças curtas de um ato, com características burlescas e jocosas, que alinhavavam danças e
músicas, assim como as cenas cômicas, eram representados quase na sua totalidade pelos palhaços que já
dominavam a língua, portanto, eram falados e cantados em português. Isso possibilitou que em todos os
gêneros – pantomimas, cenas cômicas, sainetes, arlequinadas, entremezes e entradas – se incorporassem,
de maneira parodiada, a música e os assuntos corriqueiros do dia-a-dia das culturas locais, ao mesmo
tempo em que se mantinha a forma do espetáculo que migrou.
Além de valsas, polcas e mazurcas, as bandas tocavam também quadrilhas, fandangos, dobrados,
maxixes, frevos, cançonetas, modinhas e lundus. Os palhaços não só tocavam vários destes ritmos, como
também os dançavam, ao som principalmente do violão. As cenas cômicas e os entremezes também eram
produzidos nos moldes dos que eram realizados nos palcos teatrais e levados ao picadeiro pelos palhaços
circenses. Assim, tendo em vista essa constituição, o espetáculo circense e o teatro musicado, principalmente
a revista, não podem ser vistos isoladamente. Ambos foram mais que parceiros, complementando-se o
tempo todo. Enquanto estavam juntos nas grandes e médias cidades, compartilhavam e disputavam
palcos, artistas e públicos. Nas pequenas cidades, lugarejos e bairros afastados dos centros das grandes
cidades, em particular o Rio de Janeiro, eram principalmente os circos, devido ao seu nomadismo, que
veiculavam as músicas e os gêneros do teatro.
Os ritmos e danças tocados e dançados nos circos não eram novidade. Vale lembrar que, desde
a década de 1830, os artistas já dançavam, principalmente ao final do espetáculo e acompanhando as
pantomimas – eram os bailes de ação ou pantomímicos, cômicos e jocosos, anunciados como “bailes da
terra”, nos quais as experiências dos artistas migrantes misturavam-se com as experiências dos artistas,
ritmos e danças locais, inclusive escravos e libertos.
Para os folcloristas e pesquisadores da música, é difícil precisar a diferença entre os vários ritmos
musicais e suas danças, em particular a chula, o fandango e o lundu. Mário de Andrade, ao definir a chula,
refere-se a uma dança portuguesa, na qual os dançarinos ficam “um indivíduo defronte do outro, com
os braços levantados, dando estalos com os dedos, ora afastando-se ora aproximando-se um do outro
e girando sempre em círculo, ou sobre os calcanhares”. Mas, para o autor, algumas referências à chula,
quando se observa a união desse tipo de dança com cantiga baiana, que falava em mulatas sensuais e
alguma comicidade, podia ser identificada com o lundu, no Brasil. 40
Câmara Cascudo afirma que no Brasil a chula-canto e a chula-dança foram independentes, e que
o bailado variava em cada região, indo desde uma coreografia agitada, ginástica e difícil, a uma forma
mais tranquila. Quando cantada ao violão, “era buliçosa, erótica, assanhadeira”, em particular no que se
denomina “nordeste tradicional, do Sergipe ao Piauí.” 41 Mas a chula também podia ser confundida com o
fandango. Já para Tinhorão, a coreografia tradicional do fandango ibérico, castanholando ou estalando os
dedos, e a dança marcada por umbigadas, de origem africana, foram os elementos que deram origem ao
lundu. Tinhorão define as chulas, conhecidas genericamente como chulas de palhaço, como um “recitativo
rítmico à base de perguntas e respostas dos desfiles dos palhaços de circo e da criançada, anunciando os
espetáculos pelas ruas das cidades”. Cantigas que continham um número variado de versos, que iam se
misturando, transformando e incorporando as chulas e toadas, tocadas e cantadas pelos tocadores de
violão das cidades nas ruas e festas 42, assim como temas dos folclores dos lugares por onde passavam. As
mais conhecidas têm como refrão:
E a partir daí iniciavam-se perguntas e respostas entre o palhaço e um coro, normalmente crianças:
Hoje tem espetáculo? Tem, sim senhor.
Hoje tem marmelada? Tem, sim senhor. 43
Nas cidades, os ritmos das canções e das danças se entrelaçavam; os circenses, brancos ou
negros, estrangeiros ou nacionais, que não ficavam alheios ao que ia pelas ruas e pelo gosto do público,
mantinham a proposta de um espetáculo heterogêneo – um complexo mosaico de danças e estilos
coreográficos, apresentados para diversas outras áreas urbanas e rurais. Nas várias cidades pelas quais os
circos passavam mesmo as mocinhas dos salões, que não frequentavam as ruas ou os batuques, iam com
certeza ver os circenses palhaços cantarem e dançarem as chulas, lundus e modinhas, reforçando o seu
papel como primeiros divulgadores dos ritmos musicais, da dança e do teatro musicado.
Ao se incorporarem aos circos como cantores (palhaços ou não) e compositores, inúmeros artistas
que fazem parte da história oficial da chamada “música popular brasileira”, juntaram seu repertório ao
que a teatralidade circense já possuía, resultando em um rico diálogo entre a produção musical nacional
e estrangeira, literária e dramatúrgica. O teatro musicado nos palcos/picadeiros, nos seus mais variados
gêneros, que já compunha parte das representações circenses através das pantomimas e cenas cômicas,
ao dialogar com vários outros que vem “de fora da lona”, passou por diferentes fases da produção das suas
montagens; mas isso não implicou exclusão ou diminuição do conjunto das pantomimas e composições
musicais anteriormente encenadas. Apesar daquela parte do espetáculo ainda ser denominada pantomima,
as representações faladas e cantadas em português foram adquirindo cada vez mais espaço. Havia uma
relação clara entre continuidade e transformação, no sentido mesmo da inovação e criatividade.
Ritmos, sons, representações cênicas e paródias por onde passavam faziam parte da caixa de
ferramentas dos circenses. Assim, por exemplo, no Brasil, como comentamos o lundu enquanto canção
tem origens complexas, sendo primeiro identificado como uma dança que unia a percussão dos batuques
africanos com os movimentos do fandango europeu. 44 Para nosso estudo, é importante ressaltar que esse
gênero, em sua forma cantada, herdou características rítmicas da dança acrescidas de letras cômicas que
satirizavam a situação de submissão dos negros e as particularidades de sua fala. Nesse aspecto, é curioso
notar certa semelhança ao que aconteceu nos Estados Unidos com os minstrels. Os lundus, por seu caráter
cômico, satírico e licencioso, tornaram-se muito presentes em representações teatrais, dos picadeiros aos
teatros de revista. Muitos palhaços dos circos brasileiros da virada do século XIX para o século XX tinham
em seus anúncios o destaque de serem cantores, tocadores ou dançarinos de lundu.
Tanto no Brasil quanto em outros países da América Latina, parece haver existido uma ênfase maior
na canção do que em outros recursos e gêneros musicais em relação ao trabalho musical dos palhaços.
Foi também uma singularidade dos palhaços desse continente, em comparação com os europeus, “o fato
de terem um repertório que abrangia não somente canções cômicas, mas também aquelas de natureza
sentimental ou romântica, como as modinhas e outros gêneros que estavam em voga na época”. 45
No caso brasileiro, e na parte que interessa mais diretamente à música popular, o circo
ia revelar durante quase um século a importância de veiculador das formas de teatro
musicado das cidades, com suas bandas e seus números de show, ficando reservado
especialmente à figura do palhaço – ao lado de sua função cômica específica – a de
equivalente das cançonetistas de teatro e, mais tarde, dos cantores de auditórios de
rádio. 46
Como visto anteriormente, um exemplo marcante de palhaço músico e divulgador de canções foi
José Podestá, o Pepino 88. Podestá era violinista, tocava violão e cantava, tendo se inspirado nos payadores:
cantores peregrinos e populares argentinos que realizavam composições improvisadas acompanhadas
de violão. 47 Podestá explorou e se desenvolveu em todas as modalidades do gênero circense, começando
como acrobata e se tornando palhaço.
Na trajetória das artes circenses brasileiras, especialmente na primeira metade do século XX, é
possível encontrarmos alguns palhaços cujo trabalho musical ficou registrado por pesquisadores e
memorialistas. Um dos mais conhecidos dentre esses é José Manoel Ferreira da Silva, o Polydoro (1853?
-1916), artista de origem portuguesa que foi considerado por memorialistas do circo o “pai dos palhaços
brasileiros” 48.
Polydoro foi possivelmente uma influência forte para a difusão e o desenvolvimento dos palhaços
cantores brasileiros. Castro comenta que antes dele o palhaço cantor e tocador de violão, dançarino de
maxixes e lundus era um “tipo inferior”, mais presente nas feiras e nas propagandas do circo, nas ruas.
“Sabemos que ele não foi o primeiro palhaço-cantor, mas certamente foi ele o primeiro a conquistar para
o gênero o reconhecimento do público, que o aclamou como o melhor palhaço do seu tempo” 49.
Roger Avanzi, que por décadas se destacou como o Palhaço Picolino nos circos Nerino e Garcia, cita
com destaque o artista João Bozan, que no começo do século XX teria sido “um dos maiores excêntricos
musicais do circo brasileiro”, cuja arte consistia em “transformar objetos comuns em instrumentos
musicais. Ele tirava música de serrote, garrafa, moedas, canos e guizos, entre outros objetos” 50. Para
Avanzi, João Bozan era da linhagem dos palhaços gordos e sabia tirar grande vantagem de seu tamanho,
realizando números com guizos presos no corpo e vestia também um capote cheio de buzinas de tamanhos
diversos, além de tocar vários instrumentos inusitados. Teófanes Silveira, palhaço Biribinha, cujo trabalho
será tratado no próximo capítulo deste livro, recorda-se também do número realizado com as buzinas
escondidas dentro da roupa, especialmente colocadas em locais cuja movimentação pudesse provocar
som, como nas articulações dos braços e das axilas.
Avanzi descreve também o número Os Sete Músicos Infernais, que seria conhecido também como
La Murga Gaditana, que o Circo Nerino exibiu por anos e exigia “o entrosamento de sete bons palhaços: o
maestro, o saxofonista, o bombeiro-percussionista, o anão tocador de tuba, o clarinetista perna-de-pau, o
barrigudo também tocador de tuba e o trombonista” 51. Barry Charles Silva, pai de Erminia Silva, em uma
das várias entrevistas realizadas, narrou que também seu pai, que nasceu em 1900, fazia a cena cômica
(como era chamada) com vários palhaços tocando instrumentos musicais, que não eram apito ou guizos,
mas alguns dos que Avanzi menciona. Barry fala que o número chamava Murga. É interessante observarmos
a semelhança no Cortejo cênico do grupo Lume Teatro (Campinas – SP). Trata-se de espetáculo cênico-
musical em forma de cortejo, sendo composto por
Mesmo que o grupo não descreva como uma apresentação de palhaços musicais, quando se vê
pela primeira vez e se sabe das Murgas de palhaços, não há como não comparar, ou pelo menos analisar
como possíveis heranças transformadas.
Em um encontro realizado na sede do grupo Doutores da Alegria53, Roger Avanzi comentou a
respeito da importância das habilidades musicais para os palhaços, lembrando que ele próprio tocava
pistão, aprendido na banda do Circo Nerino. Disse ainda que na Europa todos os palhaços tocam pelo
menos um instrumento musical e isto é uma “exigência do público”, completando que “tal exigência não
acontece com a mesma força no Brasil”.
Outro exemplo descrito por Teófanes Silveira é a família de Juca Lima, uma família circense que
era proprietária do Circo-Teatro Show, um dos maiores circos do Nordeste, segundo o entrevistado. Em
conjunto com seus filhos, Juca Lima, que era o maestro do grupo e tocava instrumentos de sopro, criou
uma orquestra Os Sete Pierrots da Lua. Dentre os integrantes dessa família ele se recorda especialmente
de Alda Lima, a caçula, que tocava uma concertina de tamanho pequeno, e de Tagiba, o palhaço Saçarico,
lembrado como o primeiro palhaço músico a que assistiu. Saçarico tocava vários instrumentos e objetos
como piano, chocalhos e taças de cristal, mas, dentre seus esquetes, o número das “moedas musicais” é
citado com destaque pela beleza de seu efeito sonoro, que consiste na execução de melodias com moedas
preparadas para ressoarem com a altura de notas musicais ao serem percutidas em um “picadeirinho”
de mármore. Teófanes Silveira associa a utilização de instrumentos inusitados à capacidade inventiva e
transgressora dos palhaços nordestinos que tiravam “um tanto essa seriedade da música feita de uma
forma toda correta, com obediência cifrada e começaram também a fazer instrumentos malucos, tipo
uma bateria de penicos, com latas, panela e inventando coisas”.
Teófanes Silveira lembra também de outro exemplo do Circo Nerino, o palhaço Bil Bom, que
executava o número do “homem dos doze instrumentos”. Tinhorão chama esse tipo de artista de “homem
dos sete instrumentos”, citando-o como uma das personagens presentes nas ruas do Rio de Janeiro desde
o Segundo Império.
Em toda a história da música das ruas, nenhum personagem do povo ligado à produção
de sons com intenção musical será mais original, mais heroico e mais estranho do que o
chamado Homem dos Sete Instrumentos.
Herdeiro direto daqueles saltimbancos de feira da Idade Média, que depois passariam
aos circos […] e que se especializariam como “músicos excêntricos”, o homem dos sete
instrumentos constituía, no fundo, um atleta musical. 54
Outro exemplo importante de citarmos é Abelardo Pinto (1897-1973), o palhaço Piolin, um dos
mais destacados palhaços brasileiros do século XX, que em sua carreira destacada teve participações no
cinema e permaneceu muitos anos com seu circo armado no Largo do Paissandú, na capital paulista.
Piolin tocava violino e bandolim, tendo números musicais com o clown branco Alcebíades.
A teatralidade circense ia adquirindo cada vez mais visibilidade, com o imbricamento entre a
produção musical nacional e a produção teatral, em particular com os gêneros do dito teatro ligeiro.
No início do século XX os circenses protagonizaram papéis de agentes produtores, transformadores e
difusores, ao ampliarem a incorporação e adaptação para o espaço circense das produções musicais e
literárias e do teatro também musicado.
CAPÍTULO 2
PALHAÇOS MUSICAIS E EXCÊNTRICOS:
os autores conduzidos pelas mãos de artistas, mestres e parceiros circenses.
• Benjamim de Oliveira - passagem do século XIX para o XX, por Erminia Silva;
• Doracy e Alvina Campos – Treme-Treme e Corrupita: a partir dos anos 1940 até inícios de
2000; por Erminia Silva;
• Teófanes Silveira – Biribinha (a partir da década de 1950 até a atualidade), por Celso
Amâncio de Melo Filho;
• Marcelo Lujan e Pablo Nórdio - O Circo Amarilho – (a partir de meados da década de 1990
até a atualidade), por Celso Amâncio de Melo Filho.
• Grupo Off Sina – Richard Riguetti e Lilian Moraes (a partir da década de 1980 até a
atualidade) – Este grupo terá abordagem no capítulo III, por Erminia e Celso.
2.1 Nego Beijo: acrobata, palhaço, cantor, instrumentista, ator, autor, diretor e excêntrico
Por Erminia Silva
Benjamim de Oliveira nos possibilita observar o diálogo criativo e permanente entre circenses e
as outras produções culturais na passagem do século XIX para o XX. Através de sua trajetória, é possível
compreender o circo como espaço que permitia a seus integrantes tornarem-se produtores culturais e
considerar as complexas relações estabelecidas entre os distintos agentes envolvidos na construção
do espetáculo: os circenses, os artistas não-circenses que se apresentavam nos picadeiros, o público
e empresários dos veículos de comunicação e dos distintos espaços da produção cultural. Por isso,
sua história revela outras histórias de outros artistas (circenses ou não), que também produziram e
consolidaram o circo-teatro, bem como as relações de intercâmbio entre os vários tipos de manifestações
culturais urbanas e em particular o teatro e a música.
O convívio e o intercâmbio entre artistas, palcos e gêneros no final do século XIX, como se observa
na própria forma de se apresentarem – “Companhia Equestre, Ginástica, Acrobática, Equilibrista,
Coreográfica, Mímica, Bailarina, Musical e ... Bufa” – resultaram em permanências e transformações dos
espetáculos, nos quais homens e mulheres circenses copiaram, incorporaram, adaptaram, criaram e
se apropriaram das experiências vividas, transformando-se em produtores e divulgadores dos diversos
processos culturais já presentes ou que emergiram neste período, contribuindo para a constituição
da linguagem dos diversos meios de produção cultural do decorrer do século XX. O espaço circense
consolidava-se como um local para onde convergiam diferentes setores sociais, com possibilidade para a
criação e expressão das manifestações culturais presentes naqueles setores. Através de seus artistas, em
particular os que se tornaram palhaços instrumentistas, cantores e atores, foi se ampliando o leque de
apropriação e divulgação dos gêneros teatrais, dos ritmos musicais e de danças das várias regiões urbanas
ou rurais, elementos importantes para se entender a construção do espetáculo denominado circo-teatro.
Para a maior parte dos estudiosos, esse tipo de produção circense somente ocorreria a partir da década
de 1910, porém, na prática, todas aquelas atividades já faziam parte das experiências circenses.
A partir das biografias dos vários Benjamins observa-se que os circenses brasileiros, do período,
disputavam a construção de novas linguagens culturais urbanas e o público dos diferentes setores sociais
das cidades. Na sua forma de organização, apreendiam, recriavam, produziam e incorporavam referências
culturais múltiplas e eram assistidos pelos mais abastados, intelectuais, artistas, trabalhadores ou não.
Nascido em 11 de junho de 1870 na fazenda dos Guardas, que pertencia à cidade Pará de
Minas, antiga Patafufo, foi o quarto filho de Malaquias e Leandra. A mãe, por ter sido uma “escrava de
estimação”, segundo seu relato, teve todos os seus filhos alforriados ao nascer. Em 1882, aproveitando
a ausência do pai, uma espécie de capataz, frequentemente incumbido de capturar os negros fugidos,
coincidindo também com o dia que o Circo Sotero, armado naquela cidade, estava partindo, saiu de casa
com o tabuleiro e fugiu com a companhia. Registrando-se, futuramente, com o sobrenome Oliveira em
substituição a Chaves, o de seus pais, os relatos de Benjamim possuem todas as riquezas e problemas de
fontes registradas oralmente, destinadas a serem publicadas em veículos dos meios de comunicação de
massa: jornais, revistas e depois o rádio.
O aprendizado de Benjamim, nos circos por onde passou, permitiu que aperfeiçoasse as técnicas
circenses, garantindo-lhe ser contratado por outras companhias, que tinha em sua programação um amplo
cardápio de gêneros artísticos do período: equestres, ginásticos, acrobáticos, bailarinos, coreográficos,
zoológicos, musicais e principalmente a representação teatral, inicialmente como pantomimas e depois
com a mistura de música, dança e texto falado.
O final do século XIX e início do XX, no Brasil, foi um período de intensa movimentação cultural,
sobretudo nas grandes cidades, com ampliação e construções de novos espaços de apresentação como
teatros, circos, cafés-concertos, music halls, pavilhões, politeamas, variedades, feiras e exposições,
choperias, tablados, salões e clubes carnavalescos.
Nos circos, a produção do teatro musicado e dos palhaços cantores foi se organizando de forma
mais presente do que nos cafés-concerto. Quando novos repertórios de cenas cômicas, entradas de
palhaço, músicas e pantomimas apareciam, rapidamente entravam no circuito circense e acabavam por
se espalhar por todas as regiões. Por conta do grande trânsito de circos, em particular nesse período, pela
capital e interior paulista, o intercâmbio entre os mesmos e com os outros espaços era permanente.
A combinação da tradição do palhaço instrumentista europeu – continuada no Brasil com os
palhaços tocadores de violão – com as bandas e a presença cada vez maior de brasileiros entre os circenses
resultou numa transformação do palhaço/instrumentista/cantor/ator. Os gêneros como o vaudeville e
o melodrama, através de diferentes modelos de pantomimas, misturados aos ritmos e musicalidades
locais, tiveram a comicidade como a tônica daquelas produções. Os sainetes, peças curtas de um ato, com
características burlescas e jocosas, que alinhavavam danças e músicas, assim como as cenas cômicas,
eram representadas quase na sua totalidade pelos palhaços que já dominavam a língua, portanto eram
faladas e cantadas em português. Isto possibilitou que em todos os gêneros – pantomimas, cenas cômicas,
sainetes, arlequinadas, entremezes e entradas – se incorporassem, de maneira parodiada, a música e os
assuntos corriqueiros do dia-a-dia das culturas locais. Os palhaços Benjamins na história do circo foram
herdeiros e ao mesmo tempo protagonistas de mudanças e transformações.
Além de valsas, polcas e mazurcas, as bandas (formadas pelos próprios circenses ou locais) tocavam
também quadrilhas, fandangos, dobrados, maxixes, frevos, cançonetas, modinhas e lundus. Os palhaços
não só tocavam vários destes ritmos, como também os dançavam, ao som principalmente do violão. As
cenas cômicas e os entremezes também eram produzidos nos moldes dos que eram realizados nos palcos
teatrais e levados ao picadeiro pelos palhaços circenses.
Os palhaços cantores, nos palcos/picadeiros circenses, foram responsáveis, no final do século XIX
até pelo menos a década de 1950, pela divulgação dos principais ritmos musicais; não só das músicas
produzidas individualmente, mas, também, dos enredos musicais compostos para o gênero revista, nos
teatros. Naquele período, com a crescente popularidade daqueles gêneros e ritmos, duas outras formas
de disseminação possibilitaram outra etapa para divulgá-los e comercializá-los, das quais os artistas
circenses também participaram: o crescente aumento de venda de publicações em forma de livretos ou
jornais de músicas, contendo coleções de letras de modinhas, lundus, cançonetas, entre outras; além da
recém-criada indústria fonográfica Casa Edison – fundada por Fred Figner, que já demonstrava força de
penetração em todos os setores sociais, divulgando gravações em cilindros, desde 1897, e os primeiros
discos (chamados chapas), em 1902, de modinhas e lundus cantados por Cadete e Baiano. Acrescente-
se a isso as músicas gravadas pela banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, formada e dirigida
pelo maestro e compositor Anacleto de Medeiros, e aquelas produzidas por vários músicos que tocavam e
cantavam nos cafés, cabarés, rodas de samba e circos que passavam pela cidade.
Acontece que tanto Baiano (Manoel Pedro dos Santos), como Cadete, Medeiros, bem como
Pixinguinha (Alfredo da Rocha Vianna), Mario Pinheiro, Catulo da Paixão Cearense, Eduardo das Neves e
o próprio Benjamim de Oliveira, entre outros, que foram os primeiros a gravar discos no Brasil pela Casa
Edison, todos estes ou eram artistas circenses ou já se apresentavam cantando nos espetáculos de circo,
uns como palhaços-cantores, outros nas pantomimas, tudo isso bem antes de gravar discos.
Isto tudo leva a crer que, antes da virada do século XIX, os circenses e os palhaços cantores tivessem
cruzados com a maioria deles, fosse nos cafés, fosse nos palcos. Mas também se cruzaram frequentando os
mesmos espaços dos batuques e pagodes das casas das mães de santo, na Cidade Nova, onde nasceram
ou conviviam. Segundo Maria Clementina Pereira Cunha, naquelas casas se “mesclavam o baile, o sarau,
a roda de samba, o candomblé, e por onde circulavam todas as esferas da sociedade (do esnobe literato
ao policial ou ao partideiro capoerista da Saúde)”; entretanto, é possível afirmar que muitos dos palhaços
cantadores de circo que já exerciam a profissão, ou que iria exercê-la, já estivessem presentes naqueles
encontros.
Quando o Spinelli e Benjamim estabeleceram-se no Rio de Janeiro, a partir de 1905, muitos deles
foram seus companheiros de trabalho como palhaços cantores, atores nas pantomimas, parceiros de
autorias das músicas feitas para as cenas cômicas e peças. Benjamim também foi parceiro desses músicos
na nascente indústria fonográfica, fazendo parte do primeiro elenco de cantores profissionais da Casa
Edison, ao qual, além dos já mencionados acima, acrescenta-se Nozinho. A relação de trabalho e de
parcerias entre aquele grupo e os circenses, principalmente com Benjamim de Oliveira, ocorreu na década
seguinte, quando muitos deles irão trabalhar com Benjamim no Rio de Janeiro, não só no circo Spinelli,
como em gravações de discos para a Casa Edison, autorias de músicas e peças teatrais.
Os produtos do trabalho dessas parcerias adquiriram grande visibilidade nos jornais, evidenciando
que as expressões de sua teatralidade circense, na sua multiplicidade, foram baseadas nas atividades
realizadas nesse período. Entretanto, nos cartazes e propagandas dos circos nos jornais, na segunda
metade do século XIX, desde que começaram a aparecer notícias sobre os artistas circenses, e em
especial sobre os palhaços cantando nos espetáculos, quase não há referências sobre os compositores do
repertório musical. Essas informações são encontradas em depoimentos de pessoas que vivenciaram os
circos no período, como no caso do Lundu do Escravo, cantado pelo palhaço Antonio Correa e mencionado
por Mário de Andrade. As músicas cantadas pelos circenses em seus espetáculos geralmente pertenciam
aos próprios artistas que as compunham e que as iam alterando ao longo do percurso do circo, nas várias
regiões por onde passavam, incorporando chistes ou nomes de pessoas. Podiam pertencer ainda à tradição
das cantigas de domínio popular, também relativas a cada região, como as chulas, que continham um
número variado de versos que iam se misturando, se transformando e se incorporando às chulas e toadas
que os tocadores de violão das cidades tocavam e cantavam pelas ruas e festas, assim como temas do
folclore regional dos lugares pelos quais passavam.
Em 23 de novembro de 1901, o jornal O Estado de São Paulo, na coluna Palcos e Circos, informava
que havia recebido um “cartão de cumprimentos”, enviado pelo “aplaudido clown Benjamim de Oliveira”,
cujo centro era ocupado pelo “retrato fotográfico” do artista. O motivo de tais saudações fazia parte da
estratégia de divulgação da estreia do Circo Spinelli, naquele mesmo dia, no Largo da Concórdia. Alguns
dias depois, o circo publicava, no mesmo jornal, sua propaganda, na qual estava estampada a referida
foto, provavelmente em litografia.
Apesar das possíveis semelhanças nas formas de se vestir, as funções dos personagens cômicos
passaram por transformações, releituras e resignificações. Por exemplo, na propaganda abaixo do Circo
Spinelli, quando este estava armado em São Paulo, em 1901, anunciava clowns musicais com novos
instrumentos; o clown argentino Crozet e o clown brasileiro Benjamim apresentariam novas pilhérias e
modinhas, acompanhados ao violão, e o “tony imbecil” faria sua burlesca entrada.
Em 2 de janeiro de 193660 nascia, na cidade de Itararé, interior do Estado de São Paulo, Doracy
Campos, filho de Maria Elestina Corrêa Campos e João Campos. Como a maioria dos que construiu o que
se chama de população no Brasil, ele também era de descendência estrangeira – neto de russo e brasileiro
tornou-se um brasileiro louro e com olhos azuis.
Como Benjamim de Oliveira, Doracy também fugiu com circo ainda criança. Há algumas informações
desencontradas sobre o período e lugar de quando iniciou sua vida no circo. Em entrevista concedida ao
Almanaque Off-Sina 21 anos [circo teatro de rua], em 2008, afirmou que quando tinha 6 ou 7 anos de idade,
o Gran Circo Sudan passou em sua cidade. Em uma reportagem para a revista O Mambembe, de 1983,
relatou que tinha 9 anos quando fugiu de casa para tentar ingressar no Circo. A cidade não era Itararé (local
de nascimento), mas Uruguaiana, cidade gaúcha. Segundo entrevista ao Almanaque Off-Sina (2008), o Rio
Grande do Sul foi um dos estados em que morou com os pais, bem como em outro país, como a Argentina.
Assim, percebemos uma variação de idade entre 6 a 9 anos, entre 1942 a 1945, a passagem pela
sua vida do Gran Circo Sudan. O que não varia em suas diversas entrevistas é que de fato ele, por diversas
vezes, tentou fugir com esse circo. Na primeira tentativa de fuga foi:
[...] devolvido à sua casa pelo palhaço Mocotó. Mas voltou a fugir e acabou entrando
mesmo para o circo [...] Minha mãe me buscava sempre até que um dia ela cansou e me
entregou para o dono do circo. ‘Vocês então tomam conta dele’, disse ela. Nunca mais saí
do circo. 61
Outra informação importante, nessas fugas, permanências e voltas para casa, é que o pessoal do
Sudan ia montar uma peça para Nossa Senhora de Fátima e ele passou no teste para fazer o papel de
Jacinto.
Como era característico da maior parte dos circos da época, na América Latina, o modo de
organização da teatralidade circense dava-se com os artistas realizando números (acrobacias de solo,
aéreo, equilíbrios, animais, palhaços, magia, etc.), shows musicais, dança e representação teatral que
denominamos circo-teatro. Foi com essa forma de constituir o que significava artista e espetáculo
circense, ou seja, o artista portador de uma multiplicidade, que os olhos azuis do menino se encantaram
pelo circo.
Como muitas das histórias de meninos e meninas durante toda a história do circo, ou seja, desde o
final do século XVIII, o de Doracy não foi diferente: se aboletou no meio dos circenses do Gran Circo Sudan,
e segundo seu relato:
[...] acabou entrando mesmo para o circo, passando de empregado para casaca-de-ferro,
domador e palhaço, até chegar a ser dono do seu próprio circo, continuando a carreira
de artista de palco e picadeiro e, mais tarde, astro de TV e empresário. 62
A criança no circo, oriunda ou não de uma família circense, nascida ou fugida para o circo, seria não
só a continuadora da tradição, mas também um futuro mestre. Para ser um circense tinha que assumir
a responsabilidade de ensinar à geração seguinte. Ao longo de sua aprendizagem, a criança “aprendia a
aprender” para ensinar quando fosse mais velha. O “ritual de iniciação” – aprendizado e estreia – era um
rito de passagem, a possibilidade de tornar-se um profissional circense. O contato com a geração seguinte
era permanente, havendo um envolvimento direto na aprendizagem. A partir da adolescência, muitas
crianças começavam a ensinar aos mais novos – irmãos, primos, e outros.
A partir de tudo isso, o que se conclui é que as atividades circenses, desenvolvidas por homens
e mulheres, continham uma rica produção cultural, com uma multiplicidade de linguagem artística –
que não só a acrobática – o que transformava o circo em uma escola única e permanente. Além disso, é
importante assinalar a sua contemporaneidade com os demais produtores culturais, vivenciada em cada
período histórico. Havia e há um intercâmbio permanente entre as várias produções artísticas, qualquer
que fosse o lugar onde estivesse acontecendo. No picadeiro, o campo de originalidade e experimentação
se desdobrava, e se desdobra inclusive como referência para estruturar outros lugares de produção. E
não é por acaso que, ao pesquisar as histórias do teatro, do teatro de revista, da música, da dança etc., no
Brasil, encontra-se um entrelaçamento de artistas circenses ocupando todos esses espaços, não apenas
como partners, mas como produtores e criadores dessas várias linguagens.
Foi nesse contexto, mais geral, que Doracy fugiu com o Gran Circo Sudan, na década de 1940.
Como era a estrutura organizacional e arquitetônica do Sudan?
Pelos relatos de Doracy, pouco se sabe a respeito. Em suas entrevistas, ele raramente fala sobre
isso, o que não torna fácil responder a essas questões. Entretanto, ao se localizar uma pesquisa realizada
por Ricardo Somazz Reis, foi possível inferir como era constituído o modo de organização na produção do
circo Sudan como espetáculo.
Pode-se inferir que, a partir de seus relatos do artista múltiplo que se tornou, o modo de organização
do trabalho e processo de ensino/aprendizagem pelo qual Doracy passou, corresponde ao que a maioria
dos circos ainda vivenciava naquele período. Através das descrições do trabalho de Ricardo Somazz Reis 63
– Histórias e Lembranças. Circo Sudan. Palavras de Neyd Alves Somazz – identifico semelhanças importantes
com minhas análises sobre a constituição do circo-família até pelo menos as décadas de 1950/60. 64
Segundo Reis 65 esta obra:
Numa parte do livro chamada Uma Lona, Um Sonho, este trabalho de Reis nos revela o circo com
o qual Doracy Campos fugiu. De acordo com a avó do autor - Neyd Alves Somazz, o irmão mais velho,
Osmar Alves, nascido em março de 1910:
[...] sempre gostou de Circo. Osmar era casado com Pierina, conhecida carinhosamente
como “Piara”, com quem tinha três filhos, Valter Alves Goes e Laércio Alves Goes, gerados
em seu útero e Nery Alves Goes, adotado aos 5 anos de idade.
Por volta de 1935 adquiriu um pequeno Circo Teatro. Uma lona pequena, que precisava
de reparos e glamour para a época. Com muito amor e carinho, iniciou então sua busca
para tornar-se um grande Circo do interior Paulista.
Sudan era o nome dado ao Circo por Osmar. Sem um significado específico, apenas por
gostar do nome, Osmar iniciou as atividades juntamente com sua família e irmãos. Por
coincidência, naquela época havia um cigarro chamado Sudan. Como era de se esperar,
a empresa produtora do cigarro chegou até a patrocinar o Circo por conta do nome, uma
ação comum para os dias de hoje.
Osmar era conhecido como o apresentador do Circo e também como um dos palhaços,
chamado “Mocotó”. 66
Assim, a partir dessa pesquisa de Reis, chega-se a algumas informações importantíssimas: primeiro,
confirma que o circo que Doracy foge era circo-teatro; segundo que o palhaço Mocotó, que ele relatou
acima ter sido quem o devolveu à mãe pela primeira vez que fugiu para o circo, de fato existiu. E não é só
isso, era o próprio dono do circo.
Quando o menino de olhos azuis fugiu com o Gran Circo Sudan, a empresa já tinha perto de 10
anos de existência. Se Doracy fugiu com o circo no Rio Grande do Sul, por volta de 1945/46, sendo que a
empresa circense só “deixou de existir”, segundo sua avó, “por volta de 1962”. Pelo relato da avó de Reis,
de 1930 a 1960, o circo esteve preferencialmente no interior paulista. Mas, sabe-se que ele viajou bastante,
chegando até o interior gaúcho. Assim, o que se pode observar é que Doracy tenha viajado com esse circo
durante o período inicial de sua aprendizagem, não só tendo ficado com a companhia durante toda sua
trajetória gaúcha, mas também um bom período pelo Estado de São Paulo.
2.2.1 Formação do artista
Seus filhos seguiram o mesmo caminho, fazendo de tudo um pouco no circo, algo
comum em famílias circenses. Valter por exemplo foi trapezista e tinha um número com
seu irmão Nery, também tocava acordeom e entre outras coisas fazia o papel de escada
para Laércio, que também era palhaço, conhecido como “Espirro”.
Minha avó Neyd conta que começou a trabalhar ainda na adolescência e apenas duas
de suas irmãs não quiseram trabalhar no Circo, todos os demais se juntaram ao irmão
Osmar, cada um com uma função.
No início o picadeiro era no chão, não havia uma estrutura muito elaborada, até por
conta da pequena lona. No auge, o picadeiro era alto, com 1,20m (um metro e vinte) de
altura, as cortinas eram vermelhas em veludo, muito bem arrumadas.
A disposição para atender ao público estava de acordo com os padrões da época com
a geral e os camarotes. Pierina era a responsável pela alimentação de todos os artistas,
ajudantes e amigos que trabalhavam no circo, além de dar uma mão com as roupas e
figurinos.
Em cena Piara fazia o papel de escada para seu marido Osmar, o palhaço Mocotó. Os
filhos Nery e Walter aos 15 anos de idade começaram a fazer trapézio, um dos números
mais aguardados pelo público.
Osmar, sabendo do sucesso das irmãs Neyd e Conceição, as chamavam para se
apresentarem no Circo, certo de que seus fãs viriam assisti-las, fato consumado.
A estrutura do Circo Sudan era a mesma de um Circo Teatro tradicional, com a primeira
parte focada em variedades e a segunda com uma apresentação teatral. Não havia
animais e “no máximo um cachorrinho” era utilizado em cena, de acordo com relatos de
minha avó Neyd. 68
É importante assinalar essa referência às “irmãs Neyd e Conceição”, avó e tia-avó do autor
(conhecida carinhosamente como “Tia Titi”), pois segundo ele eram cantoras na adolescência, Neyd com
10 anos e Conceição com 16 aproximadamente.
O início das apresentações era marcado pela banda, que iniciava seu percurso nas ruas
da cidade, convidando e atraindo o público para o Circo. Quando o público já estava
aglomerado em frente à lona, a bilheteria era aberta e a banda seguia para dentro,
posicionando-se para receber o público até o início das apresentações.
Com o público já posicionado, às 21h00min, sem atrasos, o espetáculo começava. Ao som
da banda uma tradicional “barreira humana” era formada por todos os artistas do Circo,
mulheres de um lado, homens do outro, todos muito bem vestidos. Logo, percorriam o
picadeiro apresentando-se. Era então que Osmar iniciava o seu discurso para o público,
dizendo “Boa Noite” e apresentando a programação daquele dia. 70
A estrutura do espetáculo do Sudan, assim como a maioria dos circos-teatro do século XIX, e que
perdura até hoje em vários circos da região norte e nordeste do Brasil, não se alterava na maior parte dos
circos. Mantinham um conjunto de números acrobáticos em uma primeira parte, seguida de apresentações
musicais, danças, shows de convidados, finalizando com uma segunda de representação teatral.
O que se observa nessas descrições e em várias outras a partir das diferentes experiências que
foram criadas pelos circenses.71 É a mistura de distintos usos das múltiplas formas de divulgação da
música e das releituras e adaptações da literatura, bem como dos vários gêneros teatrais para o espaço do
circo. Essa forma predominante de produzir a representação teatral/musical no espetáculo fez parte do
processo de consolidação dos circenses como produtores de uma multiplicidade de linguagens artísticas
que foi denominada circo-teatro, ou, como se diz ainda hoje na linguagem circense, o “circo de primeira
e segunda parte”.
Pelas descrições do espetáculo e as funções dos artistas, é possível analisar a importância que foi
esse circo como uma escola única e permanente e o diálogo constante com as produções contemporâneas,
bem como com os veículos de comunicação de massa presentes naquele período. Nele havia: banda,
cantores/cantoras que já faziam sucesso nos circos e nas rádios – aqui em particular, na Rádio Educadora
de Campinas (SP) e no auditório da PRC9; acrobacias, aéreos, danças, duplas sertanejas, teatro.
É interessante que pela memória da avó de Ricardo, no Circo Sudan não havia animais, apenas
cachorros, entretanto, pelos relatos de Doracy, teria sido nesse circo que ele teria aprendido a doma e sua
iniciação como palhaço.
Ao se focalizar a trajetória de palhaço, na medida em que temos poucas fontes sobre as outras
atividades artísticas as quais realizou no circo, percebemos pelos relatos do autor, que Doracy teve uma
gama considerável de vivências e experiências com a diversidade do que representava o processo de
constituição do circo como um todo: como empresa, como espetáculo, como divulgação das principais
linguagens artísticas, etc.
Como espetáculo, voltando aos exemplos de palhaços tem-se dois que foram importantes: Mocotó
e Espirro. Na figura de número 2, acima, vemos Walter (Clown); Osmar (Apresentador); Laércio (Espirro). O
que se sabe é que Osmar atuava tanto como apresentador, quanto como o palhaço Mocotó, atuando em
particular nas peças teatrais.
Além dos palhaços, a dupla formada pelo tio avô e a avó – Tiolfo e Fiica dão uma dimensão da
diversidade representada pela música no circo, antes mesmo de duplas desse tipo “aparecerem ou
estrearem”, como querem alguns autores, no rádio e na televisão. Eles já se apresentavam muito antes
nos circos. Como descrito na citação anterior, entravam para animar e cantar com o público, sempre que
havia um espaço entre cada um dos atos.
Em entrevista dada ao Almanaque Off-Sina 21 anos [circo teatro de rua], em 2008, Doracy afirmou
que o artista do período em que ele entrou no circo, “tinha que saber trapézio, malabares, etc., e ainda
ser ator”. Segundo ele, além de ator, também foi domador e trabalhou no globo da morte. É um relato que
vem de encontro com a minha produção teórica, bem como a análise que Ricardo Somazz Reis faz em sua
pesquisa.
É interessante observar que, apesar das várias atuações desenvolvidas por ele no circo, e dessa
diversidade que entrou em contato: acrobacias, música e os palhaços, Doracy afirmou naquela entrevista
que só teve um mestre, que era um artista cômico no Circo Sudam de nome: Bicho Colorado, e que para
Doracy, foi quem o influenciou, “foi o meu mestre, foi com quem aprendi tudo”.
Em entrevista ao Jornal do Brasil, em abril de 1970, ele fala de Mocotó como quem o teria criado,
mas o mestre mesmo foi Bicho Colorado:
Nesse momento, a relação entre o que revelam as fontes pesquisadas por Ricardo – fontes orais
e iconográficas da família –, e os relatos de Doracy, há alguns pontos que não se assemelham. Pois, na
pesquisa do Circo Sudan daquele autor não aparece em nenhum momento um palhaço ou artista que
pudesse ser visto como o Bicho Colorado. Isto nos leva à possibilidade de que o encontro de Doracy com
este profissional tenha ocorrido em outro circo que tenha trabalho, mas não no Sudan.
Por outro lado e por tudo o que desenvolveu enquanto artista circense é muito provável que ele
tenha tido vários outros mestres. Pelo que nos mostra Ricardo S. Reis nos processos de aprendizagens dos
artistas nesse circo de sua família, muito dificilmente alguém que “entrasse” para ele, não tivesse passado
por diversos tipos de aprendizagens – diretas ou indiretas – no seu processo de formação. Nesse modo de
organização do trabalho, que pressupunha o circo-família, mesmo sendo uma criança e aprendiz, como
era o caso do Circo Sudan, dificilmente esta criança e depois adolescente, iniciava um trabalho artístico
no picadeiro sem que um adulto ou outro jovem fizesse um acompanhamento mínimo de sua formação.
Nesse sentido, não era e não é possível, por exemplo, trabalhar no globo da morte ou domador,
sem uma iniciação e/ou aprendizagem com companheiros de trabalho com quem já tenha trabalhado
com esse tipo de número. Há que se considerar que o processo de observação é, além disso, um excelente
método de aprendizagem, o que Doracy fez com muita constância.
Entretanto, o que se deve realçar aqui é a importância que, quando deu entrevista ao Almanaque
Off-Sina 21 anos, por exemplo, em 2008, ele tinha cerca de 78 anos de idade, o que considerava importante
na época, enquanto artista circense era ser palhaço excêntrico-musical. E aqui, o artista Bicho Colorado
adquiriu um significado maior do que todos os outros mestres, ou as outras atividades que tenha aprendido
ou feito. Segundo ele:
Era um palhaço inglês de cabelos e pelos vermelhos pelo corpo todo. Ele me ensinou
tudo. Eu era muito jovem e levei um ano para pegar a confiança dele. Aí ele começou a
me ensinar. Só trabalhava com instrumentos. Saxofone, acordeão, bumbo nas costas. Eu
aprendi tudo com ele, até a fazer roupa. Mestre só Bicho Colorado.
Com certeza, toda a sua formação enquanto ator, no circo-teatro, favoreceu muito seu processo de
aprendizagem enquanto palhaço. É importante frisar que, como a maioria dos circenses e, em particular
os palhaços, era obrigatória no processo de aprendizagem, a formação em instrumentos musicais.
Na entrevista para o Almanaque, a descrição no texto de como “nasceu” o nome de palhaço Treme-
Treme, já aponta outras atividades que realizava como o de domador de animais.
O Doracy Campos nasceu em São Paulo, foi criado no Rio Grande do Sul e na Argentina,
neto de russo com brasileira, daí a altura (ele é enorme!) e os olhos azuis, (lindos e
profundos!). O Treme-Treme nasceu dentro da jaula do leão do circo com o qual eu fugi
pequenino. Era minha forma de fazer graça. Eu entrava na jaula, tremia de medo (risos!!!)
e aí passaram a me chamar de Treme-Treme. Já lá se vão mais de 60 anos. 74
O que tudo indica tornou-se artista múltiplo de circo, mas fazer palhaço deu novos significados em
sua vida circense, pois será esse o papel que irá desempenhar durante pelo menos os últimos 50 anos de
sua experiência profissional artística.
É interessante ter como fontes essas fotos, na medida em que a relação do surgimento do nome do
palhaço Treme-Treme vem sempre ligada, em seus relatos, quando deu início a essa função de doma. Em
reportagem do jornal O Globo, de novembro de 1976, num breve histórico de sua vida, Doracy relatou que
se iniciou como domador aos 19 anos de idade e tinha o nome de Capitão Pacheco. Entretanto, mudou
de ideia de continuar com essa profissão quando foi atacado dentro da jaula, durante um espetáculo.
Até o momento, não tínhamos fontes que mostrassem a presença do artista Doracy Campos e seu
palhaço Treme-Treme para fora do Rio de Janeiro, mas durante a pesquisa no Acervo, encontramos entre
suas fontes um artigo de ninguém menos que Tito Neto, de São Paulo, no ano de 1958, onde escrevia
sobre: a vida, o palhaço e o domador. 75
É importante ressaltar aqui que em 12 anos, ou seja, após 1946 quando fugiu e esta fonte que é de
1958, já era tema de reportagem de um dos importantes circenses e também jornalista Tito Neto (Raphael
de Paula Neto), na A Gazeta Esportiva. Apesar de um periódico temático ligado aos esportes, escrevia sobre
circo e circenses na sua coluna “No Mundo Circense”.
Nas décadas de 1940/1950, Doracy entrou em novos canais de transes e transformações, levando-o
a inúmeras experiências, constituindo-se acrobata-músico-cantor-palhaço-ator-diretor, ou seja, um
“artista circense completo” – profissional que é ao mesmo tempo herdeiro de saberes e portador de futuro,
que tem em si a capacidade de criar, inspirar e provocar mudanças.
Dentre as várias heranças, está a própria constituição da indústria do disco e da música, que
tem tudo a ver com a história que Doracy entra e que ele futuramente irá colocar em prática tudo o que
aprendeu, sendo, contudo, totalmente contemporâneo e em sintonia com todas as invenções tecnológicas
do setor cultural – como muitos circenses como Benjamim de Oliveira, Eduardo das Neves, George Savalla
Gomes (palhaço Carequinha), Waldemar Seyssel (palhaço Arrelia), para citar apenas alguns.
Acompanhando o processo histórico do circo, e neste os passos de alguns artistas circenses, como
é o caso de Doracy, é possível compreender o circo como um ofício que abria um leque de atuação dos
artistas, convertendo-os em verdadeiros produtores culturais. Sermos conduzidos por suas mãos, de seus
mestres e parceiros, nos permitiu observar características significativas que compunham o conjunto do
trabalho circense e que reafirmam a contemporaneidade da linguagem circense, a multiplicidade da sua
teatralidade e o diálogo e a mútua constitutividade que estabeleciam com os movimentos culturais da sua
época. É possível, assim, lançar novos olhares e questões sobre as complexas relações entre os agentes
envolvidos na construção do espetáculo: os circenses; os artistas não-circenses, que se apresentavam nos
picadeiros; o público e empresários da comunicação.
Tudo isso está mais interligado do que se imagina. Não se pode estudar a história do teatro, da
música, da indústria do disco, do cinema e das festas populares no Brasil sem considerar que o circo foi
um dos importantes veículos de produção, divulgação e difusão dos mais variados empreendimentos
culturais. Os circenses atuavam num campo ousado de originalidade e experimentação. Divulgavam e
mesclavam os vários ritmos musicais e os textos teatrais, estabelecendo um trânsito cultural contínuo das
capitais para o interior e vice-versa. É possível até mesmo afirmar que o espetáculo circense era a forma
de expressão artística que maior público mobilizava durante todo o século XIX até meados do XX.
Dentro desse processo, Doracy Campos foi um dos personagens importantes. Desde que fugiu com
o Sudam, atuou como ginasta, acrobata, palhaço, palhaço-excêntrico, músico, cantor, dançarino, ator e
autor de músicas e peças teatrais, trabalhou no cinema e na televisão, assim como vários outros artistas
daquela época.
2.2.3 Dos vários processos herdados e alçou grandes voos
Quando surgem as publicações e os discos, os artistas já eram conhecidos pelo público de várias
cidades brasileiras, pois a maioria dos cantores e atores já cantava e representava nos palcos/picadeiros
e, por isso, os empresários não “trepidavam” em publicar suas canções, poemas etc., foi o caso de Fred
Figner, que já tratamos anteriormente, mas que agora vale a pena ampliarmos um pouco.
O jornal Correio da Manhã de 5 de agosto de 1902 registrou:
A maior novidade da época chegou para a Casa Edison, Rua do Ouvidor 107. As chapas
(records) para gramophones e zonophones, com modinhas nacionais cantadas pelo
popularíssimo Baiano e pelo apreciado Cadete, com acompanhamento de violão, e
as melhores “polkas”, “schottisch”, “maxixes” executados pela Banda do Corpo de
Bombeiros do Rio, sob a regência do maestro Anacleto de Medeiros.
Entre 1902 e 1927, período que corresponde à chamada fase mecânica de gravação, foram lançados
cerca de 7 mil discos, dos quais mais da metade pela Casa Edison. Até 1903, a Casa Edison produziu 3 mil
gravações, conferindo ao Brasil o terceiro lugar no ranking mundial (estavam à frente os Estados Unidos
e a Alemanha). Se se observar a relação dos cantores e músicos que gravaram esses primeiros discos no
Brasil, a maior parte já cantava e tocava nos palcos/picadeiros circenses há muito tempo. Não é por acaso
que Figner os contratou para gravarem disco, pois seus rostos, suas canções e letras já eram conhecidas,
cantadas e dançadas não só nos teatros ditos ligeiros ou alegres, mas, principalmente, nos circos. 76
Os palhaços-cantores e suas bandas, na virada do século XIX para o XX, além de serem autores,
compositores e intérpretes das canções publicadas e gravadas, nas suas turnês com os circos constituíam-
se divulgadores e comerciantes privilegiados de seus trabalhos, usufruindo a própria capilaridade que o seu
nomadismo permitia, conquistando novos públicos consumidores. A permanência e o desenvolvimento
de uma tradição cômica, com a produção musical, a constituição de um mercado cultural e o intercâmbio
com o teatro ligeiro são apenas alguns dos fatores que podem ser associados à presença marcante
daqueles artistas, constantemente em voga, nas páginas dos jornais.
Em 1913, a Casa Edison começou a fabricar seus próprios discos com a instalação da Fábrica de
Discos Odeon, no Rio de Janeiro. Dentre os cantores que já gravavam por ela, desde 1902, eram palhaços
cantores de circos, como: Eduardo das Neves, Cadete, Mario Pinheiro, Baiano, entre outros.
O período quando Doracy Campos entrou para o circo e ai se fixou, tornou-o herdeiro também de
outros processos de multiplicidade nas produções culturais artísticas. Os artistas como ele, para levar
avante seus projetos, precisavam articular, ter conhecimentos e formação sobre teatro, literatura, cinema,
música, coreografia, cenografia, entre outros. O que circenses e não-circenses transportaram para o palco/
picadeiro resultava de sucessivas reelaborações. Esse procedimento acabava gerando sempre novas
versões para esse espetáculo, que, pelo menos até a década de 1970, ficou conhecido pelo nome de circo-
teatro.
É importante assinalar o quanto Doracy cruzou e se tornou herdeiro de um modo de produção e
organização do trabalho circense que pressupunha sintonia com as principais produções artísticas do
contemporâneo.
Para além das questões musicais, foi, também, um momento de consolidação e surgimento de
inovações tecnológicas – eletricidade, telégrafo, telefone, transportes coletivos. Na produção cultural,
todas essas tecnologias foram fundamentais para a implementação de pelo menos duas importantes
indústrias: a do cinema e a do disco. Esse conjunto de inovações, aliado ao crescimento populacional das
cidades, favoreceu a formação progressiva de uma cultura urbana e uma produção artística diversificada.
O desenvolvimento de um mercado cultural aliado “ao aparecimento de novos suportes e
tecnologias de reprodução de imagens e textos” contribuiu para o surgimento de um público novo,
diferente, “com novos padrões de gosto e exigência”, que demandava produtos culturais específicos.
Desde a década de 1910, os cinemas no Brasil, mas principalmente na chamada Cinelândia, no
Rio de Janeiro, ofereciam cardápios variados de temas. Entre alguns historiadores desse campo, houve
uma fartura de oferta de números, espetáculos e enredos nos quais o circo foi privilegiado. Em 1913,
por exemplo, na Praça Tiradentes do Rio, na programação do Cinema Paris, constou o filme O Circo a
Domicílio – “interessantíssima comédia em dois atos e 204 quadros: macacos, tigres, leões, panteras, etc.,
em liberdade. Cenas interessantes em situações originalíssimas”. Em 1916 estreava no Cinema Paris, RJ,
os filmes A filha do Circo e O salto famoso. No ano seguinte, no Cine Tijuca, RJ, o filme O Circo de Fiolinsky –
“episódio humorístico a lápis – [...] história de circo para crianças, contada pelo lápis admirável do grande
caricaturista dinamarquês que serve para as crianças de todas as idades”.
Numa produção polissêmica e polifônica, artes e artistas, palcos, picadeiros e ruas, se cruzavam,
misturavam, dialogavam, disputavam espaços de trabalhos, de visibilidade e divulgação de seus trabalhos.
Durante todo o período desde o momento em que Doracy entrou para o Gran Circo Sudan até
o início do século XXI, quando foram encerradas as atividades circenses do empresário Doracy (depois
tratarei disso), é possível descrever os vários espaços, produções, artistas de todos os gêneros (teatro,
música, dança, circo, artes plásticas, etc.) pelos quais ele com certeza cruzou, com alguns estabeleceu
relações profissionais, com outras relações de amizade. Várias delas estão elencadas acima, que era parte
de artistas de São Paulo, que Doracy conheceu, cantou junto, etc. Quando se encontra no Rio de Janeiro,
amplia-se mais ainda esses encontros e aprendizagens.
***
Desde a entrada no Gran Circo Sudan e durante as décadas de 1940 a 1960, não param as polifonias e
polissemias que os circenses praticavam. O que se procurou mostrar até aqui, a partir de alguns exemplos,
é como o espetáculo circense quando da inserção de Doracy no circo e no circo-teatro, era polissêmico
e polifônico, dialogando, incorporando, copiando, criando, produzindo, protagonizando, a diversidade
artística de seus contemporâneos. Como ele mesmo afirmou, todo artista de circo tinha que ser acrobata,
cantor, ator, dançarino, e no linguajar das propagandas circenses: etc., etc. e etc.
Nesse modo de organização do espetáculo circense, rizomático, contemporâneo, em sintonia com
tudo o que se produzia no mundo cultural artístico, não é surpresa observarmos a quantidade de fontes
que nos mostram a complexidade de redes artísticas, culturais, de produção que Doracy estabeleceu em
seu fazer como circense/empresário a partir de um determinado momento.
Há pontos que desconhecemos sobre os vários circos por onde ele passou. Ao confrontarmos
as fontes, o que se observa é que nas décadas de 1940 e 50, é conhecido em São Paulo, mas também
localizamos algumas fotos que sugerem estar no Estado do Rio de Janeiro.
Um dos focos que privilegiamos até aqui foi a música, o quanto os espetáculos eram musicais e
a presença de diversos cantores que já se apresentavam nos palcos/picadeiros circenses, sendo que a
maioria daqueles cantores se apresentava nos circos como palhaços-cantores. Com a constituição da
indústria do disco, o rádio, cinema, aqueles artistas estiveram presentes na produção de todos esses
campos de comunicação ou mass midia. E, a partir da década de 1950, vários circenses estarão presentes
também na emergente televisão. Esse é o caminho que também Doracy herdou e também percorreu.
Mas, antes de entrarmos nesse campo, vamos conhecer aquela que foi sua companheira por mais
de 50 anos, Alvina Alves.
2.2.4 Doracy - Treme-Treme e Alvina Alves
Do período de formação até o momento em que conheceu Alvina Alves, não encontramos
informações a respeito. A fonte que existe é a dada por Doracy para Almanaque Off-Sina 21 anos, relatando
que quando a conheceu ela era trapezista do mesmo circo em que trabalhavam e ele já era o Treme-
Treme. Segundo informação, Alvina Alves nasceu em Pernambuco, no ano de 1928, ela era oito anos mais
velha do que Doracy.
Eu me apaixonei pela trapezista, aos poucos fui tirando ela do trapézio clássico, trouxe
ela para perto do palhaço, até que ela se tornou minha crom 77 [sic], a palhaça Corrupita.
E foi assim os 50 anos em que estivemos casados. Tivemos uma filha, Márcia, que desde
um ano de idade entrava no palco com a gente. E foi assim a vida inteira. Nós três sempre
juntos. “A gente faz rir e faz chorar. A gente toca as pessoas pela emoção”.
Pelos cálculos, eles se conheceram em torno do final da década 1950, portanto não muito distante
de quando ele também informa que se tornou Treme-Treme, pois afirma, em 2011, que tinha uns 60 anos
de palhaço.
Quando se deu esse conhecimento, Alvina Alves não só se tornou Alvina Alves Campos, por causa
do casamento, como desceu do trapézio e se tornou também a palhaça Corrupita. Mas, não do mesmo
“status” que Treme-Treme, mas o que na linguagem circense se denomina de “crom”, “clown”, “branco”,
“escada”, do palhaço principal que é o “augusto”.
A partir desse encontro, podem-se percorrer inúmeros caminhos, lugares, espaços pelos quais
Treme-Treme e Corrupita através das fontes que foram fornecidas pela filha do casal Márcia. A década de
1950 foi bem produtiva na vida de Doracy e Treme-Treme. Diversas são as fontes que mostram os vários
lugares por onde se apresentava, cujo Acervo está em poder do Grupo Off-Sina.
Algumas observações que merecem destaque. O primeiro é que até o momento, não existem
informações suficientes para refazermos o processo de construção do Homem Banda. Apenas podemos
inferir que de início foi a partir de Bicho Colorado, referência principal do mestre Doracy, na aprendizagem
em ser palhaço e músico. Entretanto, já havia artistas que realizavam esse número, então pela observação,
método pedagógico importante, é possível que de vários exemplos ele tenha constituído seu número.
Nunca é demais lembrar que desde o Gran Circo Sudan, Doracy teve contato direto com música, músico,
instrumentos e uma diversidade de encontros com palhaços.
O segundo destaque é sobre outro texto encontrado de Tito Neto, de 1961, escrito na A Gazeta
Esportiva, uma “Chamada de palhaço”:
Para quem tem algum conhecimento sobre a história dos circenses no Brasil, sabe da importância
de Treme-Treme estar elencado entre os principais fazedores de graça, entre as referências de palhaços.
É interessante que Tito Neto elenca não só aqueles reconhecidamente circenses, mas outros artistas
cujas biografias não constam mais e que passaram pelo circo como palhaços pelo menos: Walter Stuart,
Mazzaropi, Simplício, Nhô Fio, Barnabé.
Além deste destaque, vale a menção de que há uma referência sobre “Los Maestris”, que divertiam
o público do Circo Treme-Treme “com seus impagáveis números excêntricos musicais. São ótimos artistas
circenses”. Como se pode ver na foto abaixo, na bateria atrás de Treme-Treme e Corrupita, tocando guizos,
é o nome Los Maestris.
Já trabalhamos e analisamos bastante o quanto o conceito de palhaço excêntrico passou por
diversas interpretações. Para Doracy, ele havia se tornado, também, um excêntrico na medida em que
tocava aparelhos musicais, mas considerados instrumentos bizarros como serrote, guizos, piano de lata,
mas também tocava: bombardino, pistão, etc.
O terceiro destaque é uma referência que Tito Neto fez em seu texto, é sobre o fato de que, já
em 1958, ele informa que Doracy já havia trabalhado em “em diversas películas nacionais”. Pelas nossas
fontes, existem apenas duas indicações, mas não antes de 1960 que são: foto do filme Samba em Brasil,
Rio de Janeiro; e outro filme, mas já em 1975 O Caçador de Fantasma, de Flávio Migliacio, com o Táxi
Maluco. Desconheço outros filmes na década de 1958, é preciso realizar outra pesquisa a respeito.
O último destaque (mas que não deve ser entendido como que esgotados as possibilidades de
destaques) é o fato de que eles também frequentavam e trabalhavam na Rádio Tupy do Rio de Janeiro,
em 1959, o que será importante, na medida em que o leque de relações artísticas e sua sintonia com a
produção cultural contemporânea era bem grande.
Nessas fontes, o que observamos é que no final da década de 1950, Doracy e Alvina não trabalhavam
apenas em circo, mas ocupavam espaços dos meios de comunicação de massa da época, particularmente
o rádio. Entretanto, como se verá agora em outras fontes para o período, não foram apenas eles que
ocuparam espaços, como já analisado acima, com exemplos de diversos artistas que provavelmente
Doracy tenha cruzado em seu processo de constituição enquanto artista.
Ainda apenas nos restringindo ao período do final da década de 1950 e início de 1960, no Rio de
Janeiro, na maioria das vezes Doracy e Alvina se apresentavam como Treme-Treme e Corrupita, com
seus números musicais tocando diversos instrumentos: trompete, clarineta, sax alto, trombone, moedas,
guizos.
Segundo o autor e parceiro deste livro, Celso Amâncio de Melo Filho, as partituras que compõe
o acervo de Doracy Campos fazem referência a poucas obras, no entanto, é importante observar duas
coisas: primeiro a preocupação do artista com relação ao registro de seu repertório por meio de grafias
bem feitas, no caso da música intitulada “Treme-Treme vai à lua”, composta por Walzé Silva, há também
um arranjo cuidadoso para uma segunda voz, um contraponto. Consequentemente, constatamos a
preocupação com o ofício musical, com a escrita musical e com o registro de seu repertório. Em segundo,
há a repetição das mesmas obras em tonalidades variadas e em versões transpostas para instrumentos
diferentes, especialmente de sopro, possibilitando ao artista que se apresentasse fosse facilmente
acompanhado por músicos diferentes. Esse fato nos indica que tal prática era corriqueira entre os músicos
e palhaços circenses, confirmando que não se trata de um trabalho amador, mas de artistas que eram sim
músicos profissionais.
Se por um lado as fontes das partituras mostram que são variações do mesmo tema, ou seja, são
partituras das mesmas músicas para os diversos instrumentos acima relacionados; por outro, observa-se
que quando Doracy e Alvina se tornam proprietários de circo, empresários, o modo de organização do
espetáculo vai seguir a “tradição” da contemporaneidade dos espetáculos circenses até então: eles serão
compostos por números circenses ditos tradicionais, mas as principais atrações serão os artistas que
antes já ocupavam os palcos/picadeiros, depois foram gravar discos, ocuparam os espaços radiofônicos,
em parte deles televisivos, mas não deixaram de se apresentarem nos circos, em particular destes dois
artistas.
2.2.5 Diversos sentidos, diversos sons no Circo Treme-Treme mistura total: circo/rádio/ shows/TV/circo-
teatro/teatro – décadas 1950 e 1960
Na figura 10 aparece a informação que o Circo Treme-Treme estava armado em Comendador Soares
Morro Agudo. Como já escrito anteriormente, o espetáculo ainda no formato de circo-teatro, era dividido
em duas partes, sendo que na primeira eram oferecidas variedades e atrações circenses, incluindo aí o
próprio palhaço Treme-Treme - O Rei do Riso. Na segunda parte as atrações do rádio, da televisão, como
Emilinha Borba, Orlando Gil, Carlos Galhardo, Jorge Veiga, Zé Gonzaga, etc.
Ao contrário do que se afirma sobre a “invasão” da indústria do disco ou das duplas sertanejas
tornando o espetáculo circense impuro, como já visto os artistas que vão gravar disco já trabalhavam nos
circos ou eram circenses pertencentes ao modo de organização do circo-família. Durante toda a história
da produção industrial fonográfica brasileira, até o advento da televisão, o trânsito entre os artistas do
disco e do circo aumentou significativamente, pois os primeiros continuaram a usar os palcos/picadeiros
circenses não só como espaço de divulgação e comercialização de seus discos, mas também como os
espaços que davam visibilidade ao artista, pois se incorporavam ao nomadismo circense viajando por
grande parte do território nacional.
Quando na década de 1920 iniciavam-se as primeiras transmissões radiofônicas, no Brasil, os
artistas que trabalhavam nos teatros, nos circos, no cinema e gravavam disco estavam presentes, também,
na construção daquele novo veículo de comunicação de massa. Mesmo durante os próximos 30 anos,
na década de 1950, quando já está consolidado o rádio, ainda assim isso é presente, como expõe Alcir
Lenharo, um importante historiador brasileiro, em seu livro Cantores do rádio: a trajetória de Nora Ney e
Jorge Goulart e o meio artístico de seu tempo, ao analisar o período de intercâmbio, mistura, trocas entres
os vários espaços artísticos, em particular circo, rádio, disco e televisão:
cantar no circo significava pisar o palco mais cobiçado pelos artistas do rádio e do disco,
o meio mais fácil de se apresentar a públicos diversos das cidades do interior pelo país
afora. Vicente Celestino cansou de fazer as plateias chorarem por causa do “Ébrio”.
Cantores do rádio, como Emilinha Borba, tinham nos picadeiros dos circos o grande
trunfo de seu estrelato; Dalva, Herivelto, Galhardo, Nelson Gonçalves, todo mundo ia
ao circo, rico celeiro de artistas; daí rumavam para a revista, a chanchada, ao rádio, ao
disco. Gente célebre como Oscarito, Grande Otelo, Derci Gonçalves, Araci Cortes, todos
passaram e repassaram pelo circo, e fizeram dele sua escola de aprendizado artístico.
Também os cantores de música caipira tinham no circo o meio ideal para chegar a suas
plateias preferidas das cidades do interior. Em geral, os cantores costumavam denominar
o circo de “boate de lona”, e encaravam-no como a melhor escola de canto. Os recursos
acústicos eram mínimos, geralmente só um violão ao microfone, que mal se ouvia na
plateia. O artista que atuava no circo perdia, sem demora, o medo do público, diante
de uma “plateia acordada”, composta de muita criança e de um público indócil. Quem
vencia no circo sentia-se consagrado. 79
Uma parte daqueles músicos, cantores e autores musicais, circenses ou não, trabalhavam
ativamente nas representações teatrais dos circos e teatros fixos. Por isso, as histórias dos vários artistas
revelam os diálogos, as fusões – tensas ou não – com as várias histórias das origens dos veículos da
chamada indústria cultural. Além disso, produziram e consolidaram o circo-teatro, bem como as relações
de intercâmbio entre os vários tipos de manifestações culturais urbanas, em particular o teatro e a música,
no Brasil, do final do século XIX até pelo menos a década de 1970.
As trajetórias dos vários artistas do período fizeram parte da então emergente indústria do disco,
do rádio e do cinema. Observa-se, porém, certo silêncio sobre essa presença circense na maior parte
da bibliografia que estuda e pesquisa a história das distintas expressões culturais da época. Quando os
pesquisadores, acadêmicos ou não, do final da década de 1970, voltaram-se para os circos, restringiram-
se a analisar a presença circense no disco, no rádio e na televisão, bem como os artistas daqueles espaços
no circo, como “invasão”. Por outro lado, a dramaturgia veiculada nos circos-teatro pelos artistas circenses
misturados aos outros não circenses, oriundos daqueles veículos, representava a “decadência” do “circo
puro”.
Abaixo estão algumas descrições de músicos e artistas que diversificavam palcos/picadeiros em
suas apresentações. Seus nomes estão citados nas figuras 10, 11 e 12. Alguns não foram localizados,
mas é interessante notar que Zé Gonzaga seja apresentado aqui como que possuía ou coordenava uma
“caravana” de artistas. Em nenhuma de suas biografias é apresentado esse dado, muito menos os artistas
que a ele estão vinculados se apresentando no Circo Treme-Treme.
Emilinha Borba – Vários são os contemporâneos circenses que informam sobre a participação dessa
cantora nos espetáculos de circo. Entretanto, ao se observar os dois links de pesquisa sobre a sua vida
artística, em nenhum momento isso aparece. Por isso a importância de fontes como as organizadas e
protegidas por Doracy e Alvina Campos, para comprovar as várias fontes orais. Além disso, o pesquisador
Alcir Lenharo, acima mencionado, também aponta Emilinha como uma das cantoras de rádio que utilizou
o circo como divulgador de seu trabalho. 80
Orlando Gil – não há um verbete dele nos links pesquisados. Ele aparece em vários outros como de
Otolindo Lopes, Arnô Provenzano, como quem teria sido o interprete da marcha “Com você eu fico”, com
Arnô Provenzano e José Batista, foi gravada em 1962 por Orlando Gil no LP Maravilha morena” do selo
Albatroz. 81
Arlindo e seu “violão elétrico” – não se conseguiu localizar, pois o sobrenome é desconhecido. Há vários
“Arlindos” nesse período que tocavam na Rádio Mayrink da Veiga e Rádio Nacional. De qualquer forma é
interessante a menção ao “violão elétrico”.
Carlos Galhardo – Não há referência sobre a participação desse artista em circos nos links pesquisados.
Mas, para além das fontes de Doracy, das fontes orais de circenses, abaixo, um depoimento de José Vítor
Galvão, coordenador do Jornal Arte e Diversões, publicado no mesmo:
Esperávamos ansiosos para chegar a segunda-feira, pois íamos passar o dia no Café
Jucá Pato. Ali, era como se fosse uma família reunida que há uma semana não se via.
Jogávamos palitinho para tomar cafezinho, comíamos pirolito, que era pão com queijo
derretido e a noite íamos ao Restaurante Natal. Como o aglomerado era muito grande,
o que impedia a passagem dos pedestres, o guarda pedia que dispersassem um pouco.
Uns ficavam dentro do Café e outros pelo lado de fora na calçada. As conversas não
acabavam. Eram noticias de todos os Circos, da capital, do interior e de todos os estados.
Ninguém ficava sem trabalho. As duplas sertanejas eram agendadas para a semana
inteira em todos os circos, entre elas, Raul Torres, Florencio e Rieli, Tónico e Tinoco,
Nhô Pai e Nhô Fio, Ariovaldo Pires o Cap. Furtado. Vários programas de rádio, com os
cantores, Caco Velho, Carlos Galhardo e Orlando Silva. O burburinho era grande. Olhava-
se para um lado e se via o Raul Soares acertando negócios. O Alaor Prata tratando com
artistas. Júlio Moreno, marido da Zazá, abraçando colegas. Rodolfo Vila mostrando suas
composições. Armando Garcia, trapezista do Circo Seissel, assim como Adalberto Garcia,
aramista com sua esposa Lola O ensaiador Artur Carvalhal em conversa com Olindo Dias
e sua esposa. Nesta verdadeira Babilónia, se encontravam, Manoel Leme e sua esposa
Pingo, João Pedro Berlanda, que dirigia o Pavilhão Cruz-Maltino em Santos e a atriz
Vilma Duarte. Liendo e Simplício poucas vezes apareciam, pois possuíam um escritório
em frente ao Largo Paissandu, assim como o Batista da D. Antonieta. Ele era dono do
Circo Teatro Umuarama e morava em cima do café, onde hoje se reúnem os artistas. Fui
galã de sua companhia sob a direção de Manoel Leme e tinha como colega a atriz Julieta
Stankovich. Bartolo e Mário Robatini raras vezes apareciam, pois estavam sempre para
o norte. Alcebiades e Piolin às vezes davam os ares da graça. (Carta do ator, produtor e
diretor Edson D’ Ávila para José Vítor Galvão, publicada no Jornal Arte e Diversões – set/
out 1999)
Jorge Veiga - Nasceu no bairro suburbano do Engenho de Dentro, onde teve uma infância de pobreza. [...]
Quando adulto, passou a trabalhar como pintor de paredes. Costumava cantar durante o serviço e um dia
o proprietário de uma casa comercial em que Jorge trabalhava gostou do que ouviu. Graças à indicação
deste homem, Jorge conseguiu se apresentar como calouro em um programa da Rádio Educadora do Brasil
(PRB-7). A partir de 1934 iniciou sua carreira artística apresentando-se em circos e pavilhões populares do
Rio de Janeiro.
Zé Gonzaga - Começou cantando em programas de calouros. Em 1948, já no Rio a convite do irmão,
foi contratado pela Rádio Guanabara. Alavancado pela enorme popularidade do irmão, então já muito
famoso, gravou em 1949 pela Star o seu primeiro disco, interpretando ao acordeom os choros: “Teimoso”
de Zé Januário Gonzaga e “Vira o outro lado” de Cipó. Não se conseguiu localizar nada que indicasse
a presença de Zé Gonzaga em apresentações circenses, muito menos que fale de sua “caravana”. Por
exemplo, Borrachinha pelo que pesquisamos fazia parte de um Trio, mas não mais que isso.
Cidamar – além da informação que era cantora da Rádio Mairink Veiga, não foram localizadas outras
referências.
Cacau – existe apenas um link - http://www.recife.pe.gov.br/mlg/gui/Biografia.php - “Memorial Luiz
Gonzaga”, da Prefeitura de Recife, que na biografia deste artista, em 1953, consta a informação: “Catamilho
é afastado por Gonzaga do seu conjunto, e Zequinha o acompanha. Gonzaga contrata Jurai Nunes, o
Cacau, para tocar zabumba, e Oswaldo Nunes Pereira, o Xaxado para o triângulo. Mais tarde, por causa
de sua baixa estatura, Xaxado seria apelidado de Salário Mínimo.”
Zé passinho – não foi localizada nenhuma referência.
É muito interessante observar a análise de Alcir Lenharo, pois quando realizou sua pesquisa na
década de 1990, no Rio de Janeiro, não teve conhecimento do Circo Treme-Treme, mas mesmo assim,
quase que listou todos os artistas que estavam no disco, rádio e na emergente televisão, e que constam
nos cartazes (Figuras 10, 11 e 12). Ressalta-se que apesar da importância da televisão como veículo de
massa, até a década de 1960 poucos eram os programas gravados e, principalmente, de caráter nacional.
Portanto, muitos dos artistas que utilizaram os palcos/picadeiros circenses o faziam como forma de
adquirirem visibilidade, o que os canais de TV ainda não proporcionavam. São os circos que iriam cumprir
esse papel.
Mas, não era apenas a visibilidade a nível nacional, mas local também, pois mesmo tendo sucesso
no rádio e TV, eram contratados para trabalharem nos circos espaços privilegiados de trabalho, como se vê
nos cartazes do Circo Treme-Treme armado em Comendador Soares – Morro Agudo; e outro em Engenho
de Dentro.
Junto com o Circo Treme-Treme, outra referência importante contemporânea a ele era o circo do
seu Dudu. As semelhanças artísticas e empresariais entre Doracy e seu Dudu, devem ser ressaltadas.
Um relato que confirma essas análises sobre a polifonia que representavam Doracy e Alvina Campos
é do cantor Jorge Goulart, que nas décadas de 1950/60 foi um dos “cantores do rádio”. Em entrevista a
Alcir Lenharo informou do valor que era ser contratado para trabalhar com os circos:
Quando pisou no recinto do circo do seu Dudu, na Praça da Bandeira, o jovem Jorge
Nunes Bastos estava certo de aquele era um momento decisivo para suas ambições.
Soubera nos dancings da Lapa, numa das “canjas” com os amigos, que seu Dudu estava
selecionando nomes para um contrato fixo em seu circo. Nas segundas-feiras o circo do
seu Dudu costumava apresentar somente shows musicais, quando atraía grande público.
Nesse dia as lonas ficavam rebaixadas, e o espetáculo acontecia ao ar livre. Nos outros
dias da semana os cantores contratados se exibiam em recinto fechado, e seus números
musicais ou intercalavam ou fechavam a programação do dia.
Preparara-se com cuidado: vestiu um terno branco de panamá, selecionou com carinho
os números que apresentaria no teste. Estava confiante. Acreditava em suas qualidades,
sabia-as reconhecidas nas serestas que tomavam conta de Andaraí, seu bairro de
moradia. [...]
Seu Dudu, muito conhecedor da música popular, realizava-se como um palhaço-
empresário bem-sucedido, um palhaço do tipo bacalhau, aquele de sapato branco
e gola bem larga. Para quem não se lembra, ou não sabe, o palhaço Bacalhau usava
sapato grande, assim como os colarinhos. Trazia à mão uma gaiola com um periquitinho,
e antecedia a entrada do palhaço, aquele de tipo careca, de nariz grande e vermelho,
acompanhado de um “Toni”, seu ajudante, de quem suportava todo tipo de malcriações.
2.2.6 Polifonia e polissemia artística – mistura total: circo/rádio/shows/tv/circo-teatro/teatro – décadas
1950 e 1960
Em 1939, após oito anos da inauguração mundial da TV realizou-se na Feira de Amostras do Rio de
Janeiro a primeira transmissão de televisão, feita em caráter experimental, com equipamento alemão e
em circuito fechado, montada pela Telefunken.
A partir de 1950, novo e importante canal de comunicação de massa entra nos lares brasileiros:
a televisão. Não vai ser possível detalhar todo o histórico dos artistas, produtores, diretores que fizeram
parte da construção desse veículo que já faziam parte, ou iriam fazer, da história circense no Brasil. Mas,
pegar nas mãos de Doracy é possível para entrarmos nesse mundo, pelo menos como uma pequena
mostra.
Vamos analisar o cartaz/propaganda abaixo, onde anuncia os “maiores cartazes da Televisão Tupi
do Rio de Janeiro”. Antes de nos determos nos artistas, vamos analisar a presença da televisão no espaço
circense. Considerada como “a grande vilã”, responsável pela “decadência, morte”, entre outras, dos
circos, o surgimento da televisão, pelo menos nesse momento da década de 1950, estava totalmente em
sintonia com o circo e vice-versa.
Em diversas entrevistas, documentários dados por aqueles que estiveram presentes nas origens
históricas do rádio e da televisão ou fazem pesquisa sobre o tema, é comum a relação do modo de
organização daqueles espaços, em particular no Brasil, com o modo de organização dos espetáculos
circenses, pois os mesmos pressupunham a participação de todas as expressões artísticas contemporâneas.
Isso já acontecia nos circos, vai acontecer no rádio, na televisão e, os artistas, como num processo que
parece a pororoca, voltam-se para si mesmo, e retornam aos picadeiros circenses.
Ao anunciarem os maiores cartazes da TV Tupi do Rio de Janeiro, além do fato de reconhecer que a
televisão adquiriu um status diferenciado dos outros espaços produtores de cultura artística; entretanto,
ainda no final da década de 1950, as fronteiras desses espaços ainda não eram tão definidas ou tão
categorizadas (em categorias profissionais mesmo).
Se levantarmos o histórico da TV Tupi Rio de Janeiro S/A Rádio Tupi, vemos que ela foi fundada em
janeiro de 1951, extinta em julho de 1980, sendo que sua sucessora foi a TV Manchete do Rio de Janeiro. A
TV Tupi foi fundada por Assis Chateaubriand. Em 1951 este se associou a Ademar Casé que criou programas
considerados inovadores como “Noite de Gala”. Lembrando que antes da TV, Casé trabalhou por 19 anos
produzindo programas de rádio. Tanto o sucesso desse produtor artístico no rádio quanto na televisão, é
comum encontrarmos falas ou pesquisas atestando o quanto seus programas tinham semelhanças com
os espetáculos circenses: músicas e músicos diversificados, plateia, números diversos (inclusive circense),
etc. Isto pode ser encontrado na fala de Boni no documentário feito sobre Ademar Casé.
A programação da Tupi ia ao ar entre 18 e 23 horas. Em 1951 teve início o “Circo na TV” apresentado
por Walter Stuart com patrocínio da empresa BomBril. Os primeiros shows ficaram na memória dos
telespectadores como o: “Desfile Musical Jardim”. Naquela época Hebe Camargo já participava dos
programas de TV. Em novembro de 1950 Cassiano Gabus Mendes dirigiu o primeiro teleteatro, adaptando
o filme norte-americano: “A Vida por um fio”
Entre as várias informações coletadas do produtor Casé, uma delas foi o fato de que uma das
inovações introduzidas no rádio brasileiro foi o fato de ter sido o primeiro a pagar cachê aos artistas (1932)
e a fazer contrato de exclusividade com, por exemplo, Silvio Caldas. Mas, não há falas de que vários artistas
já eram contratados por empresários circenses, como, por exemplo, Jorge Goulart, que foi contratado
pelo – Democrata Circo, proprietário Pedro Gonçalves – Seu Dudu, localizado na Praça da Bandeira – Rio
de Janeiro – onde vários cantores do rádio se apresentavam ou eram contratados.
Boni tem razão em suas declarações, na medida em que várias biografias desses artistas ou
produtores, não mencionam o fato de que Silvio Caldas já cantava em circos, conhecia e era parceiro de
Candido das Neves, irmão de Eduardo das Neves, palhaço-cantor e ator, um dos primeiros a gravar discos
no Brasil.
A intenção em “contar” a história da televisão, de alguns artistas e produtores é para voltarmos
ao cartaz/propaganda do Circo Treme-Treme e esmiuçarmos as atrações que constam no mesmo, e
reafirmarmos a polissemia das expressões artísticas daquele momento e o quanto Doracy e Alvina estavam
em sintonia com seu tempo, o que reforça a contemporaneidade da “tradição”.
Detalhando o cartaz/propaganda:
Santa Cruz – Jonjoca (João Pessoa, 14 de março de 1929) foi comediante e um dos principais dubladores
brasileiros. Começou a sua carreira na Rádio Tabajara, ainda na Paraíba. Em 1948, foi trabalhar na
Rádio Clube de Pernambuco como Bombinha em Pensão Paraíso. Fez também o Anjinho Cara Suja,
contracenando com Aguinaldo Batista, o Azarildo, em Atrações do Meio-dia. Na extinta TV Rádio Clube de
Pernambuco, continuou sua atuação como comediante, no papel de Jojoca, contracenando com Lúcio
Mauro (Zé das Mulheres).
O seu personagem mais conhecido foi Jojoca, que repetia para as mulheres tudo o que Zé das Mulheres
(Lúcio Mauro) falava.
Lúcio Mauro - Zé das Mulheres - (Belém do Pará, 14 de março de 1927) Iniciou sua carreira artística no
Recife na companhia de teatro de Mário Salaberry e, com seu falecimento em acidente, participou da
companhia de teatro de Barreto Júnior e depois entrou para o elenco da Rádio Clube de Pernambuco e
depois da TV Rádio Clube. Aí fez seu primeiro programa de humor, contracenando com José Santa Cruz.
Coronel Ludugero - Luiz Jacinto Silva - (Caruaru, 1929 — Belém, 14 de março de 1970) foi um humorista
brasileiro que começou sua vida artística na Rádio Clube de Pernambuco, onde fazia o programa das
12h30min sob o patrocínio da Manteiga Turvo. Em 1960 conheceu Luiz Queiroga, que, com o incentivo
do radialista Hilton Marques, criou o personagem Coronel Ludugero. Logo no início, o Coronel Ludugero
se apresentava sozinho, mas logo depois conheceu também Irandir Peres Costa (Otrópe). Apesar de
muita gente não saber, e o personagem de Dona Felomena ser mais conhecido com a atriz Mercedes Del
Prado, nos primeiros programas o mesmo personagem, com o nome de Dona Rosinha, era interpretado
por Rosa Maria, outra atriz de muito talento. Durante longo tempo interpretou a personagem Coronel
Ludugero, criação de Luiz Queiroga, passando a confundir-se com o próprio personagem. Durante longo
tempo interpretou o personagem Coronel Ludugero, criação de Luiz Queiroga, passando a confundir-se
com o próprio personagem. No mesmo ano, a atriz, Mercedes Del Prado dava a vida a personagem Dona
Felomena (esposa do Coronel) que, junto ao ator Irandir Costa (Otrópe), formaram um trio humorístico, de
simplicidade típica de nordestinos pacatos e puros, inundados de irreverência. Uma trupe que fazia rir um
país inteiro. No dia 14 de março de 1970, morre Luiz Jacinto e Irandir Costa, com toda sua equipe, vítima
de desastre aéreo na Baía de Guajará, em Belém do Pará. O corpo de Jacinto só foi encontrado no dia 30
de março e sepultado um dia depois, em Caruaru. Depois da morte do Coronel Ludugero e de Otrópe,
lançaram-se outros personagens tentando resgatar o riso perdido com a triste tragédia. Entre eles, Coroné
Ludrú e Gerômo, Coroné Caruá e Altenes, Seu Pajeú e Zé Macambira, esses com a produção e direção de
Luiz Queiroga. Coronel Ludugero - Retratava com bom humor a figura lendária dos coronéis, muitos dos
quais pertenciam à Guarda Nacional e gozavam de grande prestígio junto a população. Era um homem
simples de poucas palavras, amante da verdade e sincero. Gabava-se de si próprio. Contador de histórias
fantásticas era casado com dona Filomena. Bom aboiador, bom cantador de viola e poeta. Mantinha um
secretário Irandir Peres Costa (Otrópe) que o orientava nos negócios e nas questões políticas. Ludugero
se sentia feliz em contar histórias, dando expansão ao seu gênio brincalhão, quando não estava em crises
de impaciência e nervosismo.
O detalhamento do cartaz/propaganda (Figura 13) além de pretender mostrar a diversidade
artística: musical, cômica, atrações, etc., que compunham a organização do espetáculo circense, bem
como a contemporaneidade dos proprietários com as várias frentes de produção nessa área (como rádio,
televisão), gostaria de registar mais duas análises.
Em suas breves biografias retiradas em sua maior parte da Wikipédia, a enciclopédia livre, mas
também do Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, não há referência de que os mesmos
tenham trabalhado em circos, muito menos no Circo do Treme-Treme. Por que será?
2.2.7 Treme-Treme e Corrupita vão para Televisão
A outra observação é que todos relacionados no cartaz acima, de alguma forma, passaram pela
emissora de televisão de Recife, onde a partir do início da década de 1960, Doracy e Alvina trabalharam
por um período, tendo inclusive programa próprio, como foi o caso de seus contemporâneos o Circo do
Arrelia82, em São Paulo e Circo do Carequinha83, no Rio de Janeiro. Além é claro, de que em 1951 teve início
o “Circo na TV” apresentado por Walter Stuart com patrocínio da empresa BomBril.84
É interessante essa pesquisa, pois não só Doracy já conhecia esses artistas em suas trajetórias
cariocas, mas, principalmente, vai estar com eles em outro espaço que não o circo itinerante de lona, mas
em um programa de televisão.
Há uma farta documentação entre fotos e jornais, com a qual é possível seguir quase toda a
trajetória que Doracy e Alvina fizeram com seu programa na TV Rádio Clube Canal 6 de Recife, de 1960 até
cerca de 1963. Toda essa documentação faz parte de um vasto material herdado por Richard Righetti e
Lilian Moraes, quando do falecimento de ambos, passado a eles pela filha Márcia Campos.
Na realidade, o programa do Circo Treme-Treme ou Cirquinho Canal 6, era gravado em uma lona
montada nos fundos da TV. Em uma das várias reportagens, na revista – Tvlandia informava:
Antes de darmos continuidade sobre a vida de Doracy e Alvina, antes deles irem para Recife
contratados para trabalhar no canal de televisão, nasceu Marcia Campos, filha do casal, que com um ano
de idade já os acompanhou nessa nova reinvenção circense do casal, dirigir, organizar e protagonizar circo
na televisão.
Continuando com o Cirquinho Canal 6 ou Cirquinho Fratelli Vita, apesar de ocuparem um veículo de
comunicação de massa totalmente diferente na forma de acesso a uma quantidade de telespectadores,
com uma linguagem totalmente inovadora frente ao rádio e cinema, há alguns pontos importantes a
serem observados. Se observarmos os cartazes/propagandas, as possíveis apresentações de artistas que
aconteciam no Rio de Janeiro, tanto em: teatros, teatro de revistas, “chops” berrantes, palcos ao ar livre,
circo-teatro, picadeiros circenses, rádio, televisão, primeiro veremos que eles estão ocupando os mesmos
espaços já ocupados desde o início do século XX, ou os espaços que iam sendo construídos como foi o
rádio, cinema e televisão. Mas, todos ocupavam antes tudo o que pudesse dar visibilidade e ser um espaço
de emprego, trabalho remunerado.
Além de tudo isso, ao observarmos as fotos dos bastidores da produção do cirquinho, no formato da
programação, dos artistas se apresentando e, até na produção do que para a TV se chamaria “cenografia”,
mas para o circo é sua própria casa de espetáculo, é possível analisar que há muitas mudanças e
transformações, mas não eliminam as permanências. Há o rizoma dos circenses e as produções
tecnológicas culturais de massa, mas talvez Boni tenha razão: a televisão brasileira se espelhou no circo,
diferente da televisão americana que o fez mirando a já consolidada indústria do cinema.
O programa era realizado nos fundos do Canal 6 – e o local, ou cenografia era um toldo de circo.
Observem que numa série de fotos da época, Doracy e sua equipe são os próprios construtores daquele
espaço arquitetônico. Em duas fotos 9 e 10, abaixo, é possível se ver os mesmos palombando o toldo do
circo.
Desde que os circenses introduziram a cobertura de tecido, em particular a de algodão e depois
de lona, desde os anos de 1840, ou seja, no século XIX, todos os circenses trabalhavam na confecção e
manutenção dessa cobertura. Primeiro era preciso nesgar o pano para dar a forma de guarda-chuva;
depois marcar e costurar todos os pedaços para fazer a palomba. A lona era feita em gomos costurados
um a um com corda. Palombar consistia em arrematar com cordas as costuras dos panos para reforçá-
las. Diariamente se ferrava o pano, ou seja, era retirado e guardado. Era preciso também canoar, pois
quando o pano estava estendido e o tempo prometia chuva ou tinha caído muito sereno, este deveria ser
afrouxado ficando igual a uma “canoinha”.
Boa parte das fontes está repleta de reportagens, entrevistas, fotos sobre o programa do Cirquinho
Fratelli Vita Canal 6 de Recife, que foi denominado de Palácio da Lona.
Dentre várias que podem ser analisadas, destacaremos algumas. Uma delas é a informação no
Diário de Pernambuco, na coluna “Imagem & Som”, de que no sábado dia 23 de junho de 1962, haveria:
Festival – O Popular palhaço Treme-Treme que lidera a equipe do ‘Cirquinho Fratelli Vita’,
fará realizar amanhã, ás 18 horas, no palácio de lona, armado por traz do edifício da
TV-Rádio Clube, o seu anunciado Festival Artístico. A primeira parte do programa será
transmitida pelo Canal 6, seguindo-se o show só para os presentes ao cirquinho. Haverá
venda de ingressos e prêmios para os que comparecerem.
Segundo informações de Marcia Campos, ela acredita que por volta de 1965 eles – Doracy, Alvina
e ela – tenham retornado ao Rio de Janeiro. Entretanto, pelas fontes, sabemos que o trânsito dos três foi
mais amplo, pois há referências de Goiás, Minas Gerais, São Paulo.
Além disso, vários foram os circos pelos quais ele passou, entre os que Marcia citou foram: Circo
Tihany, Circo Garcia, Circo da Dona Dali, Circo Orlando Orfei, Circo Berlim. Mas, apesar dos vários circos e
trajetórias, há uma concentração maior no Estado do Rio de Janeiro.
2.2.8.1 Vamos falar um pouco do Táxi Maluco
Depois dos instrumentos musicais, de suas apresentações como palhaços excêntricos musicais:
homem banda, guizos, bombardino, piano de lata, pistom, moedas, etc.; o número que mais tenha feito
sucesso e que permaneceu por muitos anos foi o Táxi Maluco.
Segundo informação de Marcia Campos, a estreia do Táxi Maluco com a equipe Treme-Treme e
Corrupita teria sido por volta de 1966, quando ela estava com 6 anos de idade. É mesmo possível que a
principal estreia do carro produzido por Doracy tenha sido por essa data, mas ele já conhecia esse tipo de
número de outros circos e, inclusive, já havia se apresentado em um no ano de 1960, no Rio de Janeiro,
antes de sua ida para Recife, quando Marcia tinha apenas um mês.
Essa informação é confirmada pela reportagem feita pelo jornal O Globo, de 29 de agosto de 1960,
anunciando:
É possível que Doracy tenha trabalhado em um táxi maluco, mas com a contratação no Canal 6
de Recife, onde ficou por volta de três a quatro anos, o Táxi tenha ficado um pouco no aguardo de outro
momento. Quando Marcia tinha uns seis anos de idade, é que se recorda de fato da “primeira” estreia do
Táxi Maluco.
A partir das fontes iconográficas do acervo de Doracy e Alvina, há uma do Táxi Maluco informando
sua estreia no dia 15 de agosto de 1966, mas não em um circo e sim na TV Excelsior Canal 2 – Guanabara
(RJ), na qual aparecem três palhaços: Treme-Treme, Corrupita e um palhaço desconhecido.
Em novembro de 1976, ainda no jornal O Globo, na coluna “Grande Rio”, temos a notícia da
comemoração dos 30 anos de circo: “De Doracy Campos a Treme-Treme”, e nesse ano ele está como
proprietário do Circo Águias Humanas, montado no Largo da Pechincha, em Jacarepaguá (RJ). Na crônica
somos informados que não haveria espetáculo, mas que o circo estaria aberto a todos “os amigos e
admiradores de Doracy Campos, o palhaço Treme-Treme”, sendo que fora da lona, haveria “muito
churrasco e muito chope”, mas só beberia e comeria quem primeiro fizesse uma “exibição no picadeiro”.
Na sequência do texto, há um breve histórico da vida de Doracy – Circo Sudan, Mocotó. Além disso, há uma
menção que no domingo seguinte eles estarão no Maracanã, para a visita do Papai Noel.
Mas, a informação que queremos ressaltar nesse momento é que para a comemoração em
Jacarepaguá, no circo Águias Humanas, o público contaria com a apresentação do “Táxi-Maluco, criado em
1966 para a Feira de Amostras de Goiás”86. Já informamos que alguns dos trajetos que ele havia percorrido
na volta de Recife foi o Estado de Goiás e, nessa reportagem, aparece a confirmação de sua presença na
Feira, bem como a “criação” de seu próprio Táxi-Maluco em 1966.
Nas fotos abaixo, três das muitas que se encontram nos álbuns de Doracy e Alvina, aparece, segundo
Marcia e uma legenda, de que seria a estreia do Táxi-Maluco. Nelas Treme-Treme, Corrupita, Marcia com
6 anos e um palhaço desconhecido. Aliás, é preciso relatar que Marcia foi uma excelente contorcionista,
trabalhando até pelo menos seus 17 anos de idade.
Desde essa estreia, diversos foram os carros produzidos para a função de Táxi-Maluco, com
distintos modelos, design, pinturas, funções, etc. Esse número, assim como Treme-Treme, acompanhou
Doracy e Corrupita até a morte de ambos. O último carro construído foi adquirido por Richard e Lilian,
coordenadores do Grupo Off-Sina.
O Táxi-Maluco é também um analisador importante do conjunto de saberes que os circenses
portavam principalmente para se debater com afirmações equivocadas sobre a pseudoausência de
conhecimento tecnológico ou domínio dos saberes científicos tecnológicos por parte desses artistas.
Doracy Campos em suas diversas produções e construções dos Táxis-Malucos e do sucesso que
esse número e seu carro faziam, foi convidado a construir, em 1973, um “aparelho” de trabalho da dupla
Shazan e Xerife, representados por Paulo José e Flávio Migliaccio, respectivamente, originariamente
personagens da telenovela O Primeiro Amor, de Walter Negrão. O sucesso da dupla foi tanto que, com o
fim da novela, a TV Globo decidiu dar continuidade às suas aventuras no seriado. Shazan, Xerife & Cia. foi
um seriado infanto-juvenil brasileiro da Rede Globo, exibido entre 26 de outubro de 1972 e 1 de março de
1974. Escrito por Walter Negrão, Adriano Stuart, Sylvan Paezzo, entre outros. Dirigido por Adriano Stuart,
Reinaldo Boury, David Grimberg, João Loredo, Gonzaga Blota, com supervisão de Daniel Filho. 87
Pela primeira vez na televisão brasileira, personagens de uma telenovela ganhavam seu próprio
programa após o término da mesma. Em reportagem de novembro de 1973, na TV Tudo, temos “a camicleta
de Shazan e Xerife é de um palhaço”:
Os trajetos e trajetórias que Doracy e Alvina seguiram, dentro ou fora das lonas, mantiveram as
relações polifônicas e polissêmicas que os artistas circenses herdaram, renovaram e reinventaram.
Percebemos que o modo de fazer circo e produção artística, foi comparável e compatível com diversos
circenses que se “fixaram” e deram continuidade com a sintonia com as principais produções artísticas
culturais de seu período.
Espaços ocupados como rádio, televisão, teatro, penitenciária, estádios de futebol, praças, ruas,
lonas, e como os circenses do século XIX descreviam: etc., etc. e etc., a dupla Treme-Treme e Corrupita
passou por todos eles. É interessante fazer um paralelo com a vida de Benjamim de Oliveira, que também
dá essa noção de um rizoma, da possibilidade de traçarmos uma cartografia que nos permite visibilizar
parte importante da produção cultural artística e tecnológica, no Rio de Janeiro, mas também em vários
outros Estados, do que de mais novo estava acontecendo.
Entretanto, equivoca-se quem analisa a produção desses “fazedores de histórias circenses”, como
estando apenas a reboque do que ia acontecendo pelo mundo da indústria do rádio, do cinema e da
televisão. Até aqui é possível se ter uma noção do quanto Doracy e Alvina eram produtores e criadores. A
partir de 1970 essas relações ampliam e percebemos essa cartografia e o rizoma.
Segundo Marcia Campos, a partir da década de 1970, Doracy abre um escritório de produções
culturais, que teve o nome de Saturno Produções, para crianças. Como já tinha vínculos estreitos com as
principais áreas artísticas do Rio de Janeiro, em sua diversidade e heterogeneidade, em particular com o
principal canal de televisão do período, a TV Globo, ele torna-se um agente cultural para diversos artistas
em diversos tipos de programas dessa emissora.
Uma pequena mostra disso é num dos cartazes anunciando um “Forró do Treme-Treme”. Como
podemos observar no mesmo, do lado esquerdo há uma relação dos shows, no qual constavam os
artistas que já faziam parte de seu casting desde as décadas de 1950/60, bem como outros que estavam
no ar dos programas globais. Do lado direito, uma programação com artistas circenses, mas que também
ocupavam vários espaços artísticos. E, claro, a famosa camicleta. Além disso, o Forró prometia além das
tradicionais danças “juninas”, a mistura de samba, 30 stands, parque de diversões, barraquinhas, etc. Ou
seja, a mistura que o circo herdou e reinventou, contemporâneo à década de 1970.
Além disso, que é um “pequeno” exemplo, incluímos algumas ações de Doracy que acrescentam
a importância de seu papel na produção cultural carioca. Em 1981, com Saturno Produções, realização
da Rede Globo, promoção do Sindicato da Ordem dos Economistas do Estado de São Paulo, em favor das
obras da L. B.A., ele criou: O Circo dos Astros, sob a direção de Regis Cardoso e Treme-Treme.
Figura 22 – Circo dos astros
Fonte: Acervo da Família Doracy e Alvina Campos
Na época o Gran Bartholo Circus, estava armado na tradicional Praça Onze. Não há nenhum texto
descritivo de como se deu esse processo, no entanto a quantidade de fontes iconográficas, e um folheto
descritivo do modo de organização desse evento o 1º Circo dos Astros, dão pistas que podemos inferir
como isso aconteceu.
Proprietário da empresa Saturno Produções, segundo Marcia Campos, seu pai tinha um amplo
conhecimento de um grande número de artistas globais, além do fato de que tinha uma relação de
proximidade com Roberto Marinho.
Na lista abaixo, é possível se ter uma noção das relações de Doracy e o quanto ele tinha potência
para mobilizar artistas não só atores e atrizes, mas cenógrafo, figurinista, cabelereiro, diretor de produção,
entre outros, que também trabalhavam na Rede Globo.
Figura 24– Lista do Circo dos Astros
Fonte: Acervo da Família Doracy e Alvina Campos
Tudo indica que a proposta foi: convidados os artistas, estes passariam um tempo com circenses
reconhecidamente profissionais, com o qual trabalharia e apresentaria um número, incluindo a produção
do figurino, maquiagem e a utilização de aparelhos. Estiveram presentes para o elenco como astro do
circo 45 artistas, que como está escrito que era o “Elenco da TV Globo”.
Após o período de “aprendizagem” do artista global junto a um mestre circense, era o momento de
apresentar seu “número” para um corpo de jurados, que misturava artistas também “estrelas” e artistas
circenses com visibilidade na imprensa, televisão e mídia em geral, como foi o caso de Carequinha, Luiz
Olimecha, Orlando Orfei. Acompanhando o espetáculo, havia uma banda com 18 músicos sobre a direção
do Maestro Wander.
Esse evento foi criado por Doracy em 1981. Em 2007 estreava na TV Globo, no programa do Faustão
um programa chamado Circo dos Famosos, com a mesma fórmula, mas sem nenhuma menção a nada do
que o circense dirigiu 26 anos antes. No site da TV Globo, no link do programa do Faustão, encontramos o
texto abaixo:
Para o leitor que está atento até aqui: é pura coincidência ou no programa do Faustão: o circo
dos famosos é a mesma fórmula criada por Doracy em 1981?
2.2.8.2 Treme-Treme vai para a Barra da Tijuca – funda o Teatro de Lona
Segundo reportagem do O Globo, de julho de 1999, Doracy Campos construiu um circo de toldo
cujo nome foi Teatro de Lona, no ano de 1980, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Durante pelo menos
uns quatro anos, ocupou vários terrenos próximos ao Freeway e ao Cebolão, até ocupar em 1984, no que
o autor do texto João Pimentel chamou de “território livre da cultura”, ao lado do Mercado Produtor, na
Avenida Ayrton Senna.
Ele será injustamente arrancado em 2001, com uma ação de despejo movida pelo Departamento
de Estradas e Rodagem e pelo Rio Previdência, com a justificativa de que no lugar seria construída uma
estação de esgoto da Barra.89
Durante esses mais de vinte anos, foi um espaço de produção cultural, apenas isso. O palco/
picadeiro tornou-se o lugar ideal para a exibição de novos talentos musicais. Bandas como Tribo de Jah,
Baia e os Rock Boys, Tafari Roots, Sexta Sim e Alonjah, algumas delas hoje conhecidas, na época tiveram
a oportunidade de iniciarem suas carreiras e lotavam a lona.
Segundo entrevista de Doracy, ao O Globo, ele disse que o circo era fruto de um investimento na
região. É interessante o quanto nessa reportagem ele, que estava iniciando uma atividade considerada
“inovadora” para a época, fez referência o quanto esse conjunto de saberes era devedor de todo o modo
de organização que vivenciou no circo, desde seus oito anos de idade:
Mas, não era só para jovens talentos musicais se apresentarem no palco/picadeiro do Teatro de
Lona. Segundo Marcia Campos, artistas como Alceu Valença, Simonal, Marcelo D2, Roberto do Recife,
Zeca Pagodinho, entre muitos e muitos outros também ai estiveram presentes.
Além da música, o espaço era utilizado como espaço de ensaio das escolas de samba, bailes, shows
diversos, alugada para festas de aniversários e, principalmente, para muitos grupos teatrais, como é o
caso do Off-Sina – Circo Teatro de rua. Mas, antes de embarcar nessa história, é importante ressaltar que
diversos tipos de cursos artísticos foram dados naquele espaço, inclusive um com Alian Zalec que realizou
um inédito curso experimental de Teatroterapia.
2.2.9 Breve análise final que é outro início
Pela história de Doracy e Alvina Campos, até que ponto ao se reinventarem o tempo todo, não se
transformavam também, no dia-a-dia em novos sujeitos históricos?
O que se pode analisar é o quanto os circenses em geral, mas Doracy e Alvina em particular, a
partir do conjunto de saberes herdados do que consideramos a “tradição circense” era sinônimo de ser
contemporâneo, assim sempre se mostraram rizomáticos. Ou seja: construíram percursos, desenharam
territórios a cada ponto de encontro que operavam como resistências e alteridades, com os quais essa
linguagem dialogou de modo polissêmico e produziu diferentes configurações nesse campo de saber e
prática. O surgimento de novos espaços de realização artística como rádio, cinema e televisão não se
mostraram inimigos nem excludentes nesse primeiro momento, até porque os principais artistas que
estiveram nas origens desses lugares, eram circenses ou passaram pelos palcos/picadeiros.
Nestes percursos rizomáticos, nos encontros que de certa forma nunca deixaram de provocar, ir à
busca, se misturar, tencionar e dialogar, foi que DORACY E ALVINA ao se encontraram com RICHARD E LILIAN
RIGUETTI se reconheceram – pois os quatros possuíam corpos vibráteis artísticos e estavam abertos aos
encontros. Não encontros casuais, mas que pressupõem vínculos, afetos e se permitiram ser afetados,
com afecções inúmeras. No capítulo 3 estes encontros serão descritos e analisados. Colocamos partes,
pois sabemos que nunca conseguiremos passar tudo o que ocorreu nos corpos vibráteis dos dois casais.
2.3 Teófanes Silveira – Palhaço Biribinha
Por Celso Amâncio de Melo Filho
Quando nos voltamos ao passado, especialmente em relação às artes circenses, podemos ter
a impressão de que toda aquela pluralidade e multiplicidade tão popular se encontra escassa e em
processo de desaparecimento no mundo de múltiplas mídias que vivemos. No entanto, um olhar um
pouco mais atento pode perceber que em meio às transformações inevitáveis dos modos de produção, as
artes circenses, antes concentradas na força circular do picadeiro, hoje germinam muitos outros espaços
artísticos além de sua influência fundamental na televisão e seu hibridismo com as formas teatrais. As
artes circenses e os palhaços também fecundam manifestações e formas artísticas como performances e
intervenções, encontrando especialmente a rua enquanto espaço de encenação. Em minha dissertação
de mestrado, tive a oportunidade de conviver, entrevistar e analisar dois grupos contemporâneos de
origens diversas que pesquisam e reelaboram práticas musicais, contribuindo tanto para a continuidade
de números que são considerados tradicionais, quanto para a exploração de novas possibilidades de
espaços e recursos. Estes grupos são a Cia. Teatral Turma do Biribinha, idealizada e dirigida por Teófanes
Silveira, Palhaço Biribinha e o Circo Amarillo, grupo constituído por Marcelo Lujan e Pablo Nórdio.
Esses artistas foram estudados a partir da observação de espetáculos, gravações em vídeo,
intervenções e realização de entrevistas entre os anos de 2011 e 2012. Apresentarei aqui alguns aspectos
de suas trajetórias e experiências enquanto palhaços excêntricos musicais. Por fim, apresentarei também
algumas considerações e conclusões da pesquisa como um todo, tanto por seu levantamento histórico
quanto sua abordagem da poética dos artistas estudados.
2.3.1 Biribinha e sua turma
Teófanes Silveira, não tão conhecido pelo seu primeiro nome de batismo quanto pelo nome artístico,
Biribinha Silveira, tem uma trajetória que acompanhou diversos modos de produção das artes circenses em
uma contínua reinvenção de suas práticas e espaços de atuação. Teófanes nasceu em uma empresa circense
familiar de propriedade de seu pai, Nelson Silveira, e com seus familiares atuou desde os sete anos de idade
em apresentações artísticas.
A família Silveira é originária da região do Nordeste. Nelson Silveira era o diretor artístico da família,
tendo preparado também sua esposa, Expedita Silveira, que se tornou atriz versátil, cantora e dançarina.
Teófanes Silveira nasceu na cidade de Jequié, na Bahia, em 1951, no Zoológico Mundial Circo, um circo
de teatro e variedades. Ainda na década de 1950 o casal Nelson e Ditinha Silveira criou seu próprio
empreendimento, o Circo-Teatro Nelson, que foi destruído em uma tempestade na cidade de Ilhéus, Bahia.
Após esse incidente, a família migrou para o Sudeste e, na cidade de Rio de Janeiro, fundou um pavilhão, o
qual não possuía picadeiro, mas um palco destinado à representação de peças teatrais, sendo assim criado
o Pavilhão Teatro Copacabana. Foi nesse circo, no ano de 1958, na cidade de Angra dos Reis, Rio de Janeiro,
que Teófanes Silveira, com apenas sete anos, fez sua estreia protagonizando a adaptação teatral do filme
Marcelino Pão e Vinho, que estava em destaque nos cinemas da época. Nessa época, quando começou a
participar com boa desenvoltura tanto em melodramas quanto comédias circenses, Nelson Silveira resolveu
testar o filho também como palhaço. Nas palavras de Teófanes Silveira:
Papai olhou e disse: “Bom, se fez drama, fez comédia e passou nos dois não tem dúvida,
tem que ser palhaço.” Ele pinta meu rosto, chama minha irmã mais velha, Mércia, e ensina
para ela umas músicas, ensina umas entradas e vamos entrar no palco. Só que no momento
de entrar não tinha nome. Que nome se dá ao palhaço? Existia um caipira no circo, que era
também eletricista, que se chamava Zé Lapada, e o Zé Lapada chega na hora e fala: “Bota
Biribinha! É filho do Biriba, e diminutivo de Biriba é Biribinha. Põe Biribinha”.90
Nelson Silveira interpretava o palhaço Biriba, sendo essa a justificativa de que o eletricista se valeu
para sugerir o nome. A partir de então, Teófanes ou Biribinha Silveira, que desde essa tenra idade “já conseguia
diferenciar o cheiro de verniz teatral para o cheiro da maquiagem feita artesanalmente pelos atores”,
iniciou sua carreira como palhaço e ator nos palcos do circo-teatro, sob direção de seu pai. Com relação
ao aprendizado de outras técnicas circenses, os filhos de Nelson Silveira não experimentaram a acrobacia,
mas alguns aprenderam malabarismo e equilibrismo. Teófanes Silveira realizava malabarismo com pratos,
conhecido como pratos chineses, adestrou um cavalo e desenvolveu um número de adestramento de pombos.
O entrevistado comentou em entrevista há continuidade de números “de picadeiro” em sua família, citando
alguns sobrinhos seus que realizam atualmente números acrobáticos e desenvolvem carreiras circenses,
inclusive em âmbito internacional. A despeito de alguns períodos em que a família Silveira contou também
com presença de números de adestramento e doma de animais, o foco da produção artística era o circo-
teatro, cujas apresentações eram divididas, como vimos anteriormente neste livro, em duas partes, sendo a
primeira dedicada a números de variedades e a segunda ao repertório teatral circense que englobava tanto
peças transmitidas oralmente quanto novas produções baseadas em filmes que estivessem em voga e novos
textos. Nesses casos, Nelson Silveira acumulava as funções de ator, dramaturgo e encenador.
Além do cotidiano que o circo-família demandava, Teófanes Silveira enfatiza que era prioridade para
seu pai que ele e seus nove irmãos frequentassem também a escola regular. Comenta que seu pai chegava
às vezes a ter que insistir em escolas que, por preconceito, não aceitavam a matrícula em trânsito que
possuíam, e nesse caso, Nelson Silveira ditava à direção de escolas o número da lei que sancionava o direito
de filhos de artistas itinerantes a frequentar escolas regulares. Assim, Teófanes Silveira define a educação
recebida como “esmerada, religiosa e patriarcal”, envolta por um cotidiano repleto de afazeres e obrigações
pertinentes àquela estrutura social.
Teófanes trabalhou no empreendimento de seu pai até seu falecimento, quando o então Circo Mágico
Nelson encerrou suas atividades, em 1980, na cidade de Arapiraca - AL. Teófanes Silveira fundou o circo de
sua propriedade no ano seguinte, mantendo-o em funcionamento até 1989. Nesse mesmo ano fundou a Cia.
Teatral Turma do Biribinha, que era uma companhia de apresentações recreativas.
Foi quando iniciei, na mesma cidade, teatro nas escolas, na rua, clubes. Tudo como
alternativa de sobrevivência e de experiências novas, e também por não ter na minha cidade
um espaço adequado. Dessa vez saí realmente debaixo da lona de minha propriedade.
Aquelas que depois trabalhei, era através de projetos e festivais. Até hoje faço espetáculos
em baixo da lona, quando surge a oportunidade, o que me faz muito bem, e acho até que
o trabalho flui melhor, é o meu hábitat. Levei o circo e o teatro para todos os espaços,
reinventando suas formas, utilizando o que eu sabia fazer com o que eu ainda não tinha
experimentado. 93
Teófanes Silveira continuou o aprendizado circense com seus filhos, que constituíam o elenco e a
equipe técnica inicial da Cia. Teatral Turma do Biribinha, que era formada por Nelson Alves da Silva Neto
e Teófanes Silveira Júnior, respectivamente palhaços Mixaria e Mixuruca, músicos e atores, que estrearam
no picadeiro ainda na infância, antes dos oito anos de idade; Helga Soares, aderecista e sonoplasta do
grupo; Daniela Soares, que entrou algum tempo depois fazendo figuração e contrarregragem. Atualmente,
a Cia. Teatral Turma de Biribinha é formada também por Seliane Silva, atual esposa de Teófanes, contando
também com participação dos filhos de Teófanes Silveira, seu irmão Hiran Silveira e até seu filho caçula,
Júlio Silveira, que tem apenas seis anos e já se apresenta como palhaço. Teófanes Silveira comentou em
entrevista a Erminia Silva 94 que teve muita resistência em inscrever-se em festivais por não querer participar
de mostras competitivas, mas que esses eventos proporcionaram uma diversidade de experiências e de
aprendizagem.
2.3.2 No solo do inusitado
Teófanes recorda-se da arte musical como marcante em vários momentos do trabalho circense.
Nas entrevistas concedidas para minha pesquisa de mestrado, citou tanto a experiência dos circos no
qual trabalhou quanto de circos que assistia e acompanhava. Ele define como “momentos musicais”
as ocasiões em que a música tinha uma função capital, confirmando por sua experiência que a música
sempre foi fundamental em espetáculos circenses, sejam em circos de grande ou pequeno porte.
Segundo Teófanes Silveira, a música nos circos que conheceu começava na rua, como uma maneira
essencial para a divulgação dos espetáculos, cabendo principalmente ao palhaço recitar ou improvisar
versos de chulas, dos quais relembra aqueles versos já citados no capítulo anterior: “Ó raio de sol suspende
a lua, viva o palhaço que está na rua [...]”, sendo respondido pelas crianças em conjunto com a distribuição
de panfletos aos transeuntes. O segundo momento seria já no próprio circo, era o “quarto de hora”, uma
apresentação exclusiva das bandas ou orquestras circenses, com duração de quinze minutos antes de
começar o espetáculo. A banda era disposta em locais estratégicos, como no local que ele designa de
“túnel da entrada”, um coreto que alguns circos possuíam entre as arquibancadas e as cadeiras.
Outro momento citado, que também está ligado à presença de uma banda é a retreta. O termo
retreta usualmente refere-se às apresentações das bandas, militares ou não, em locais públicos, mais
usualmente o coreto de uma praça. No caso do relato de Teófanes Silveira, ele utiliza o termo para
descrever uma prática das empresas circenses, que se valiam de sua banda para conduzir o público ao
circo. Mediante uma autorização da prefeitura, a banda do circo apresentava-se na praça, executando
os ritmos que estivessem em voga. Em um determinado momento, quando já havia uma aglomeração
numerosa de pessoas, a banda saía do local e se dirigia, ainda tocando, até a entrada do circo, onde a
companhia já aguardava aquele público para iniciar o espetáculo. Trata-se da mesma prática descrita
anteriormente por Ricardo Somazz Reis ao falar das lembranças do Circo Sudan.
Teófanes Silveira associa as bandas ou orquestras especialmente aos circos de grande porte, mas
ressalta que mesmo os circos de menor porte, como os circos-teatros, também tinham um grupo musical
que acompanhava o espetáculo, um “regional”. Trata-se de uma formação instrumental praticada pelos
conjuntos de choro urbano e refere-se a um grupo de quatro a cinco instrumentistas, geralmente uma
flauta, dois violões, um cavaquinho e um instrumento de percussão. Os regionais foram usados pelos
circos como uma alternativa menos onerosa para as bandas ou orquestras, tal procedimento também foi
utilizado em programas de rádio. A formação instrumental citada por Teófanes Silveira é constituída de
dois violões, cavaquinho, acordeom, pandeiro e, às vezes, uma flauta. Este grupo, assim como as bandas,
era responsável pelo acompanhamento musical de cantores, dançarinos e também para a realização da
música que acompanhava as encenações teatrais.
Teófanes Silveira fala também com destaque das “Duplas Caipiras”, um tipo de formação cômica
que os palhaços tinham com suas esposas, trabalhando um repertório de paródias e anedotas para serem
cantadas e recitadas em duplas, geralmente simulando uma disputa entre o homem e a mulher. Além de
cantar, o homem sempre tocava violão e podia estar caracterizado como palhaço ou como um caipira,
enquanto a mulher, que também cantava, geralmente dançava ou executava acordeão, sendo chamada
de baiana. Essas duplas cômicas trabalhavam uma oposição cômica peculiar em relação ao clássico
antagonismo entre branco e augusto, já que traziam o jogo para a oposição entre masculino e feminino.
Seus pais também realizaram esse tipo de paródia musical.
Em São Paulo tinham muitas Duplas Caipiras, Minas Gerais nem se fala. Só que eu achava
interessante é que eles estavam aqui, no Sudeste, e apelidavam assim, por exemplo: aqui
teve uma dupla famosa do Querido, Querido era um caipira, Querido e sua Baiana. O
cara era paulista e de repente ele tinha sua baiana. A baiana porque dançava os lundus.
Essas duplas ficavam muito famosas porque eles acabavam criando uma divisão de
preferência na plateia, pelo palhaço ou pela baiana. Então sempre anunciavam assim:
“Agora com vocês Biriba e Ditinha Silveira”, era o papai e a mamãe. Depois papai mudou
para Zé e Dita.95
Além de Querido e de sua Baiana, que eram do Sudeste, ele cita também Jujubinha e sua Baiana,
que no Nordeste seriam a dupla com o repertório mais vasto que conheceu.
Dentre tantas tendências musicais vividas e experimentadas nos caminhos artísticos da Família
Silveira são exatamente os números musicais cômicos de palhaços que têm um destaque na memória de
Teófanes Silveira, um tipo de trabalho que ainda é desenvolvido em seu trabalho atual. Ele chama esses
números de “musicais inusitados” e os reconhece como resultantes tanto da influência dos palhaços
europeus quanto da inventividade dos palhaços nordestinos.
O palhaço nordestino, por falta de uma determinada condição financeira para comprar
até instrumentos convencionais, tinha no máximo uma violinha, uma rabeca, um
pandeiro e começou a investir em outro lado: cantar paródias. Músicas que faziam
sucesso na época, como hoje também, e os próprios palhaços escreviam suas paródias.
Entravam de violão, uns deles até eram especialistas em cantar paródias. Encerrava uma
primeira parte de espetáculo, ou nos entreatos de uma cena para outra do teatro, ele
ficava na frente da cortina, com um violão cantando paródias, ou um pandeiro quando
eram músicas mais rápidas. 96
Os musicais inusitados começaram em sua família com Nelson Silveira que tinha conhecimentos
de teoria musical, apesar de não ter se desenvolvido como músico. Após ter assistido a um palhaço que
tocava números com instrumentos inusitados, Nelson resolveu treinar um de seus filhos, Hiran Silveira,
nesse tipo de número. Esse trabalho se iniciou no ano de 1972, na cidade de Arco Verde, em Pernambuco:
Ele (Nelson Silveira) chama o Hiran e fala: “Hiran, eu vou ensinar pra você um número
que vai lhe dar a possibilidade de viver muito bem. Eu vi um artista, tal tempo, assim,
assim, que tocava serrote, não era com arco de violino, era batendo num pauzinho com o
serrote, e eu vi que esse mesmo cara tocava garrafas com água, e afinava aquelas garrafas
e tal e tocava chocalhos”. Chocalhos de amarrar no pescoço de ovelhas, bode. […] E aí
passou para o Hiran e eu sendo coadjuvante do número. Eu era o escadinha e tocava
com ele bomba de encher pneu. Tocávamos outros instrumentos de percussão, mas o
Hiran sempre no solo do inusitado. Aí foi dando certo, Hiran tinha 15 anos de idade, foi se
aperfeiçoando, aperfeiçoando, até que chega um momento que o papai diz: “Bom, agora
eu vou lhe ensinar as taças de cristal, pra tocar com a palma das mãos”. Hiran afinou
algumas taças, ao ponto de já ter afinado 22, ou 26, e dali ele já criou outras coisas, foi
inventando e ensina para meus filhos. 97
Hiran Silveira também é palhaço e herdou de seu pai o nome, apresentando-se hoje como palhaço
Biriba. Os filhos de Teófanes Silveira, Teófanes Silveira Junior, palhaço Mixuruca, e Nelson Alves da Silveira
Neto, palhaço Mixaria, aprenderam esses esquetes com o tio e tornaram-se artistas hábeis nesse tipo de
número, tanto que chegaram a ganhar prêmios em quadros de programas televisivos como o “Se Vira
nos 30”, do Domingão do Faustão, executando o chorinho Brasileirinho, de Valdir Azevedo, no piano
de garrafas. Hiran Silveira, após a premiação de seus sobrinhos, também participou e foi premiado no
mesmo programa de TV executando cálices de cristal. No programa de TV “Qual é o seu talento?”, Teófanes
Silveira Junior e Nelson da Silveira Neto apresentaram-se executando um instrumento similar ao piano
de garrafas, mas constituído com penicos e panelas que ressoam em altura de notas musicais com boa
precisão de afinação.
Atualmente, como continuidade e reinvenção da trajetória familiar, a Cia. Teatral Turma do
Biribinha herdou e trabalha um repertório já consolidado e universal dos palhaços excêntricos musicais,
mas adaptando-o a suas necessidades, seu regionalismo e seus anseios criativos. Fazem parte desse grupo
as paródias, as canções cômicas, os números inusitados, a música tanto como acompanhamento cênico
quanto parte do enredo das cenas. A importância da corporalidade cômica pode ser claramente observada
na performance tanto de Hiran Silveira quanto de Teófanes Silveira e de seus filhos, reafirmando que, no
caso dos palhaços, o recurso cômico da música conta também com o corpo do artista, que potencializa
o efeito provocado pelos instrumentos, sejam estes inusitados ou convencionais, afirmando a prática
musical de palhaços em uma região limiar, na qual as fronteiras entre artes cênicas e musicais aparecem
totalmente imbricadas. Não é possível alcançar o efeito completo da cena sem o trabalho híbrido entre
a encenação, especialmente centrada no corpo dos artistas, e a música executada de maneira diversa de
suas convenções, seja por instrumentos de timbre atípico, seja pela mistura de ritmos e melodias díspares,
mas que remete ao discurso cênico.
Em minha pesquisa, abordei dois trabalhos do grupo, o espetáculo O Reencontro de Palhaços na
Rua é a Alegria do Sol com a Lua, e uma intervenção que se vale quase os mesmos números do espetáculo
e se intitula Palhaçada Musicada. O Reencontro de Palhaços (abreviando o nome para tornar mais fluente
o texto) é um espetáculo marcante nas mudanças das formas de produção dos grupos dirigidos por
Teófanes Silveira. É um espetáculo de rua que busca fazer uma homenagem à tradição circense de sua
família, reunindo aspectos de circo-teatro com entradas de palhaços e música inusitada, composto por
um elenco constituído, em sua quase totalidade, por familiares. As analises que apresento são feitas com
base na apresentação acompanhada no Largo do Machado, na cidade de Rio de Janeiro, no dia 20 de
abril de 2012. Estavam no elenco Teófanes Silveira, Seliane Silva, Hiran Silveira, Gutenberg Silveira, filho
de Hiran, e uma participação especial de Júlio Silveira, o filho mais novo. A apresentação fazia parte do
projeto “Pelas Ruas da Cidade”, produzido pelo Grupo Off-Sina. 98
Esse espetáculo é considerado por Teófanes Silveira como o trabalho de maior alcance do
grupo Cia. Teatral Turma do Biribinha, tendo proporcionado uma visibilidade considerável por meio de
apresentações e temporadas em várias cidades brasileiras e também no exterior, ao longo de aproximados
sete anos de existência. Teófanes Silveira destaca a importância desse espetáculo pelo mérito de manter
o trabalho do grupo fora da lona circense, provando “por A mais B” as possibilidades de realização de
trabalhos artísticos sem a lona circense, valendo-se e explorando a rua como espaço cênico.
Teófanes Silveira comenta que a criação começou no ano de 2006, na cidade de Curitiba, Paraná,
quando seu colega Eugênio Talma, palhaço e ator, apresentou-lhe um roteiro para um espetáculo que
trata da história de dois palhaços que trabalharam juntos em um mesmo circo e que se separaram quando
o mesmo vai à falência. Um dos palhaços continua a vida artística e a peça começa com os artistas
chegando em uma praça para se apresentar, logo na primeira entrada são interrompidos por um mendigo
aparentemente embriagado. Esse mendigo se revela como o outro palhaço e é convidado a retornar à
trupe para realizar as entradas e números que gostavam. Para Teófanes Silveira, o Reencontro de Palhaços
tem um caráter autobiográfico, já que remete diretamente à história de sua família, sendo uma junção de
“ficção com realidade”.
O Reencontro de Palhaços trabalha com números tradicionais de palhaços costurados por um
enredo. Seus efeitos cênicos também fazem alusão à atmosfera dos melodramas circenses e privilegiam a
música, que faz parte tanto enquanto trilha sonora como em números musicais inusitados. Os instrumentos
que compõem o conjunto musical são o piano de garrafas, os cálices com água, os sinos, o serrote, uma
bomba de bicicleta e, ainda, o teclado convencional, a guitarra e o violão, havendo variações quanto aos
instrumentos convencionais de acordo com as variações no elenco de palhaços.
A característica espetacular da música desse espetáculo, além do estranhamento e das curiosidades
despertadas pelos instrumentos inusitados em sua visualidade e sonoridade peculiar, está principalmente
no virtuosismo, atraindo um público numeroso e variado na praça pública, provocando um fascínio que
é reforçado pela escolha de um repertório de temas musicais amplamente conhecidos, como Asa Branca,
Aquarela do Brasil, Brasileirinho e Luzes da Ribalta. Na apresentação que acompanhei para a pesquisa
era o próprio Hiran Silveira quem executava os instrumentos inusitados e sua habilidade no piano de
garrafas fica especialmente evidente quando ele toca Brasileirinho, de Waldir Azevedo, um chorinho
caracterizado por sua velocidade, exigindo habilidade técnica e destreza em qualquer instrumento em
que seja executado. O piano de garrafas é também o centro do palco e o cenário principal da peça. O
piano de garrafas, ou garrafafone 99, é o nome dado aos instrumentos construídos a partir de garrafas com
quantidades diferentes de água, de modo a ressoarem em alturas variadas, sendo possível realizar escalas
completas de doze tons. Tanto no Reencontro de Palhaços, quanto na intervenção Palhaçada Musicada, as
garrafas são percutidas por uma baqueta, esta é a maneira mais comum de fazê-las ressoar, mas podem
também ser sopradas, à maneira de uma gigantesca flauta de pã.
Um efeito diverso é obtido no serrote friccionado por um arco de violino, que faz a trilha sonora
emotiva do momento em que os dois palhaços se reencontram executando a Ave Maria de Gounod,
acompanhado por um teclado. O serrote utilizado como instrumento musical é um recurso amplamente
utilizado por palhaços excêntricos, alguns autores, como Beatriz Seibel comenta o fato dessa utilização
ter se originado em lenhadores argentinos. 100
Um exemplo de corporalidade cômica e junção dos números musicais com o enredo, em uma
“amarração” dramatúrgica das cenas acontece logo depois da primeira execução do piano de garrafas.
O palhaço Biriba perde o fôlego, devido à velocidade da música executada, e segue até o centro da cena.
Depois de uma caminhada desequilibrada, pontuada por sons executados no teclado ou na guitarra,
agacha-se como se seu corpo murchasse. O palhaço Biribinha busca a bomba de encher pneu, coloca em
sua boca e bombeia, o palhaço enrijece seus membros, Biribinha tenta abaixar os membros endurecidos
iniciando uma série de gags típica de palhaços que inclui tapas e quedas. Ao fim dessas ações, Biribinha
convida o colega a fazerem música com aquele objeto. Na apresentação do Rio de Janeiro, os dois irmãos
realizaram o número que o entrevistado citou como parte de sua trajetória: Teófanes Silveira bombeava
enquanto Hiran Silveira variava as alturas do som em afinação de notas musicais, alcançavam essa proeza
por meio de um bico de mamadeira acoplado à saída de ar. Nesse instrumento, executam o tema do
programa de TV Show de Calouros.
Nesse número fica ainda mais evidente a corporalidade dos palhaços para que o efeito cômico do
número musical se intensifique. Tanto Biriba quanto Biribinha movimentam-se de acordo com o ritmo e
a melodia extraída da bomba de bicicleta, o primeiro fazendo rebolados e o segundo com gestos largos e
expressões faciais e terminando com um gesto trêmulo das pernas nas notas finais.
Outro destaque inusitado são os sinos. Conjuntos de sinos afinados também são instrumentos que
se tornaram típicos dos excêntricos musicais, mas no caso destes há uma característica regional, trata-se
de sinos que são utilizados no nordeste para amarrar em pescoço de bodes. Teófanes Silveira comenta
que, para se encontrar tamanhos diversos de sinos a fim de se obter ressonância em alturas diferentes, é
preciso procurar bastante, mas podem ser encontrados em feiras de cidades nordestinas, como a feira de
Caruaru e a feira de Arapiraca. Richard Riguetti, do Grupo Off-Sina, encontrou outra maneira de solucionar
esse problema, como veremos no próximo capítulo.
Antes da finalização do espetáculo acontece um desafio cantado entre dois palhaços. Segundo
Teófanes Silveira, esse desafio faz parte do repertório das Duplas Caipiras Cômicas, como aquelas que
já foram abordadas neste livro. Os dois palhaços dividem a plateia em dois grupos, determinando que
cada metade torça por um palhaço. O desafio tem um refrão que se repete constantemente entre os
versos que os palhaços improvisam em uma entoação recitada. A música inusitada volta a ser trilha na
cena final do espetáculo, quando Teófanes Silveira conta com a participação de seu filho mais novo, Júlio
Silveira, o palhaço Cuscuz. Biribinha chama a Cuscuz, que durante toda a apresentação esteve em cena,
geralmente em um canto com instrumentos de brinquedo, e interpreta alguns diálogos cômicos, em
forma de pergunta e resposta, demonstrando que a criança, mesmo tão jovem, já se desenvolve nas artes
circenses, mais especificamente como palhaço. Assim como no início, o ambiente emotivo é criado com
a música inusitada, dessa vez é o tema de Luzes da Ribalta, de Charlie Chaplin, que Hiran Silveira executa
no jogo de copos. 101
A intervenção Palhaçada Musicada é considerada por Teófanes uma filha do Reencontro, por ser
constituída de alguns dos números da peça, mas sem o enredo. Na apresentação da intervenção assistida,
no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo, no dia 17 de junho de 2012, a apresentação contou com
Teófanes Silveira, Seliane Silva, Coré Valente e Thiago Sales 102. Thiago Sales aprendeu os instrumentos
inusitados com Hiran Silveira, sendo o primeiro que ensinou fora do âmbito familiar.
Thiago Sales apresenta na intervenção um número musical diferente, o único que não é parte
do Reencontro, que se vale do mesmo tipo de sino que Hiran Silveira utiliza, no entanto o número de
Thiago Sales compõe-se com a participação do público. O palhaço chama algumas pessoas da plateia,
posicionando-as enfileiradas e dando a cada uma um sino com ressonância em uma altura diferente.
Colocando-se como um maestro diante da orquestra e empunhando uma batuta, o artista aponta para
cada um dos participantes solicitando que toque o sino de maneira contínua. Após “testar” a execução
de cada um, realizando sempre alguns gracejos, o palhaço pede atenção para o início da música, nesse
instante, Coré Valente começa a tocar, no acordeão, uma introdução para a canção La Vie en Rose. Assim
que a melodia começa, Thiago Sales passa a apontar à pessoa que segura o sino cuja nota corresponda
àquela que está sendo tocada naquele momento pelo acordeão, nesse caso, como relata Teófanes
Silveira, o acordeão tem a função de ser o guia. Toda a música, enquanto melodia e harmonia, está já
sendo executada pelo instrumentista, os sinos realçam as notas principais e mais longas da melodia. Este
número tem um efeito cômico mais sutil, no entanto, alcança uma efetiva participação de uma parcela
do público, independente de seus conhecimentos musicais. Podemos observar o efeito inusitado tanto
quanto em um número tradicional de sinos musicais, como o observado no Reencontro de Palhaços, mas
o virtuosismo e a proeza da execução de uma melodia amplamente conhecida e rápida, como Asa Branca,
são substituídos pela participação dos espectadores, possibilitando que estes surpreendam a música
emergir de uma ação simples que eles próprios realizam.
Após entrevistar Teófanes Silveira e acompanhar um pouco de suas criações, pude constatar tanto
em seu discurso quanto em sua prática um entendimento da arte musical como fundamental, não somente
para o trabalho artístico dos palhaços, mas também para o circo e sua espetacularidade. Ao comentar
o interesse de seu pai, herdado por si próprio, em aprimorar-se enquanto músico, ele não pensa nesse
aspecto como complemento ao trabalho que realiza, mas como necessidade inerente à arte dos palhaços,
concluindo que estes são como “clínicos do picadeiro”, ou seja, seriam aqueles artistas que, mesmo em
um ambiente onde todos tenham um trabalho múltiplo, precisam realmente entender e praticar de
maneira mais aprofundada as diversas técnicas que se apresentam em um picadeiro. A família Silveira,
centralizada primeiramente na figura de Nelson Silveira e atualmente no próprio Teófanes, lançou meios
diversificados de aprimoramento de suas técnicas musicais, valendo-se de conhecimentos teóricos, mas
principalmente da transmissão de conhecimentos orais. O principal músico da família é Hiran Silveira,
tendo sido quem desenvolveu mais tecnicamente as habilidades musicais e quem as transmitiu para os
familiares.
Biribinha e sua turma promovem seus conhecimentos, suas habilidades, sua tradição familiar
e seus anseios poéticos adaptando-os à realidade da qual dispõem, de maneira orgânica articulam o
universo circense e teatral com o mercado artístico contemporâneo e suas demandas. Suas produções
artísticas são uma festiva e carnavalesca celebração de sua arte que reconhecem como complexa, sem
perder toda a espontaneidade e potência de comunicação com seu público por todos os espaços, palco e
ruas que aprenderam a transitar.
2.4 Circo Amarillo e o espetáculo Sem Concerto
Por Celso Amâncio de Melo Filho
O segundo grupo que propus a estudar, também tem se dedicado a pesquisas acerca dos palhaços
excêntricos. Os artistas do Circo Amarillo, formado pela dupla: Marcelo Lujan e Pablo Nórdio, hoje residem
e trabalham em São Paulo, desenvolvendo projetos com seu grupo e com o Circo Zanni, do qual são
cofundadores. O grupo é originário da Argentina e já completa mais de dez anos no Brasil. O espetáculo
Sem Concerto é uma obra central no percurso desses artistas, sendo marcante em tanto em suas pesquisas
musicais quanto em seus modos de produção.
Marcelo Lujan e Pablo Nórdio são exemplos peculiares de trajetória artística, eles não se iniciaram
como circenses, nem tinham o espetáculo de circo como ideal, mesmo quando o envolvimento com o
malabarismo se tornou preponderante. Porém, ao longo de sua carreira, marcada por interesses diversos
e por uma constante inquietação, cultivada segundo as oportunidades que dispunham e alimentada pelo
frescor das próprias experiências vividas, encontraram na palavra “circo” o termo mais apropriado para o
trabalho múltiplo que realizavam. Pouco a pouco eles fizeram das artes circenses o norte de sua pesquisa
poética. O circo, mesmo que inicialmente sem lona ou picadeiro, revelou-se o lugar onde suas expressões
artísticas puderam ser compreendidas. Nesse contexto, os palhaços excêntricos musicais, tornaram-se
para eles uma possibilidade de pesquisa consciente, dialogando diretamente com as intenções poéticas
assimiladas no percurso do grupo.
A dupla é natural da cidade de Río Cuarto, na província de Córdoba, Argentina. Esses artistas não
vieram de famílias de artistas, mas em sua infância, Marcelo Lujan teve contato com aulas de violão e
com desenho, seguindo carreira universitária em artes plásticas. O artista relata que em sua universidade
teve forte interesse pelos movimentos ligados à Pop Art e outras correntes artísticas das décadas de 1950
e1960, vindo a integrar um coletivo de artistas que realizavam performances e intervenções que se valiam
recursos múltiplos, como música e pinturas corporais. Nesse mesmo período, Pablo Nórdio dedicava-se a
modalidades esportivas e por convite de Marcelo Lujan, passou também a integrar o grupo.
O grupo passou a realizar intervenções artísticas em casas noturnas, chegando a ter uma grande
demanda por trabalho. Durante as experiências com esse grupo, a dupla começou a frequentar convenções
de malabarismo e a interessar por técnicas circenses. Tais convenções, realizadas especialmente nas
cidades de Buenos Aires e Santiago do Chile, passaram a influenciar seus caminhos artísticos. Segundo
Marcelo Lujan:
Por volta de 1998, o Circo Amarillo começou suas primeiras incursões ao Sul do Brasil, ao Balneário
de Camboriú, em Santa Catarina. Nesse local apresentavam-se em um teatro de revistas. Entre idas e
vindas da Argentina, o grupo passou três anos trabalhando nesse teatro, até que houve mais uma
dissolução no grupo, permanecendo somente Marcelo Lujan e Pablo Nórdio. Em 2001, diante da crise que
sofria a Argentina, a dupla seguia para Salvador, de onde pretendia iniciar uma temporada no Brasil que
prosseguisse pela América Latina até retornar pelo Chile à Argentina.
Nas ruas de Salvador a dupla apresentou e desenvolveu o espetáculo Experimento Circo, que ainda
faz parte do repertório do grupo. Circularam também por outros locais no Nordeste, como Fortaleza e
chegaram a se apresentar na Mostra SESC Cariri de Teatro106. Por fim, incentivados por uma convenção de
malabarismo que acontecia na cidade de São Paulo, os artistas do Circo Amarillo entraram em contato
com os organizadores do evento e conseguiram espaço para se apresentar.
Eles chegaram a São Paulo em novembro de 2002, na convenção, além de se apresentarem,
começaram a estreitar laços com grupos paulistanos. Pablo Nórdio conheceu Luciana Menin, sua esposa,
que foi intermediária para que a dupla conhecesse outros artistas, em especial a Cia. La Mínima107 e a
Central do Circo.
Nessa época eles foram convidados para fazer parte da Central do Circo, um espaço para ensaios
e apresentações constituído pelos grupos: La Mínima, Linhas Aéreas e o Circo Mínimo. O Circo Amarillo
passou a ser associado da Central do Circo, pagando uma quantia mensal para ensaiar, treinar e guardar
seu material de trabalho. Pablo Nórdio comenta que foram criados vínculos de amizade com os membros
de todos os grupos, mas principalmente com o La Mínima.
Esse contato com o grupo La Mínima foi fundamental para o trabalho desenvolvido pelo Circo
Amarillo em relação ao palhaço e ao entendimento da dupla cômica antagônica entre o branco e o augusto:
Ao ser indagada acerca do início do trabalho de palhaços músicos, as lembranças da dupla também
remetem ao convívio com o grupo La Mínima.
Eu acho que nessa época que encontramos com o Domingos e o Fernando a gente já
tinha uns números em que eu tocava um trompete, o Pablo estava começando a tocar
sax, eu tocava uma sanfona, mas não pensando: “ah, sou um palhaço músico, sou um
palhaço excêntrico musical”. Aí a gente começou a se encontrar com o Domingos e o
Fernando e a Central do Circo já tinha um encontro de palhaços músicos.111
Na Central do Circo aconteciam cabarés mensais, que tinham como suporte musical uma banda
de palhaços que tocavam instrumentos e praticavam semanalmente, era a banda Di, Da, Dó. Pablo Nórdio
e Marcelo Lujan se envolveram com esse grupo, que tinha como maestro o músico Atílio Marsiglia. A
experiência e interação com os artistas da Central do Circo começaram a fomentar o projeto de um circo.
Segundo Nórdio e Lujan, foi a partir de uma iniciativa de artistas do grupo Circodélico que os componentes
da Central do Circo se juntaram na empreitada de alugar uma lona e arriscar uma temporada no litoral. Na
Praça do Pôr do Sol, em Boiçucanga, Município de São Sebastião, no Litoral Norte de São Paulo, estreou
o Circo Zanni. Nessa primeira temporada, eles levaram a experiência da banda para as apresentações do
circo e Marcelo Lujan assumiu a coordenação musical. Com o sucesso, seguiu-se outra temporada e todos,
em uma associação de nove membros, começaram a planejar a compra de uma lona própria. Em 20 de
novembro de 2004 aconteceu a primeira apresentação do Zanni com lona própria na cidade de São Paulo.
Na primeira temporada com lona própria o circo manteve Atílio Marsiglia como maestro, mas com
a saída de Marsiglia do grupo, Lujan assumiu sua função. Encarnando a figura do maestro, ele passou a
pesquisar como seria a sonoridade adequada para fazer música no circo, comenta que no começo era
confuso e tinha a impressão que tudo estava sempre desafinado. Certamente, essas impressões devem-
se, em parte, às dificuldades acústicas de uma lona, mesmo com os instrumentos estando amplificados.
Nesse primeiro ano de Circo Zanni, devido a um período de repouso por uma lesão no joelho, Fernando
Sampaio emprestou a Marcelo Lujan uma fita de VHS com o título: Excêntricos Musicais.
Nesse vídeo conheceu o trabalho de Spike Jones112, que provocou impacto na dupla, passando a
ser a principal influência quanto ao excêntrico musical.
Eu botei a fita, excêntricos musicais? Fiquei surpreendido! Foi com Spike Jones que
comecei a ver o excêntrico musical. Esse cara foi quem detonou, porque já trazia a figura
do maestro, maestro louco, que toca um monte de coisas. Bom, e aí, estando no circo, a
história do palhaço já começou a nos afetar muitíssimo, já estávamos com uma estética
forte de palhaço mesmo, a roupa muito colorida, peruca e aí veio um furacão de coisas
musicais. A banda era um destaque do circo, era um grande barato fazer aquela banda.
E ainda é, porque o Zanni se destacou por ser o circo que voltou a ter banda ao vivo.113
Eles entendem o excêntrico não somente como um músico, mas aquele que conhece várias técnicas
e as desconstrói. Marcelo Lujan passou a executar o papel de excêntrico enquanto Domingos Montagner
e Fernando Sampaio encarnavam, respectivamente, o clown branco e o augusto, já Pablo Nórdio assumia
o tony de soirée. Marcelo Lujan comenta que o excêntrico era uma alternativa interessante para ele, que,
não podendo ser um virtuose em uma técnica circense, encontrava na comicidade uma ferramenta
interessante para diferenciar seu trabalho acrobático, na técnica de arame, por exemplo, uma das quais
a que se dedica.
Por seis anos empenharam-se exclusivamente no Circo Zanni, parando momentaneamente de
trabalhar como Circo Amarillo. Foram anos intensos, com temporadas variadas, além do forte interesse
em explorar uma vida circense em sentido lato, isto é, trabalhando as possibilidades espaciais da lona e
as particularidades organizacionais que esse tipo de trabalho demanda. Comentam que a experiência do
Zanni contribuiu com “poesia” para seu trabalho, um entusiasmo e uma vivência peculiar, influenciada
pelo imaginário que circunda o picadeiro e a lona circense. Assim, o circo passou a existir não somente no
corpo e nas habilidades dos artistas, mas em um espaço físico que o justifica. Designam a sedução dessa
experiência como a vivência de um sonho.
Após esse período, houve necessidade da dupla de retornar ao Circo Amarillo, inclusive por
questões financeiras relacionadas às dificuldades em se manter as despesas do circo. Compensaram o
tempo parado com muito trabalho.
Mas a gente parou mesmo o Circo Amarillo para fazer só o Zanni, então meio que você
fica fora de mercado fazendo o circo e pra voltar tem que dar um gás muito mais forte,
para poder entrar de novo e começar a mandar projeto, poder escrever em edital e
mandar material pra festival. Só que mandar material exige ter alguma coisa já feita, um
processo que demorou uns dois anos até a gente começar.114
A criação do espetáculo Sem Concerto se deu justamente nessa retomada, entre 2006 e 2007, que
possibilitou um retorno definitivo de Marcelo Lujan e Pablo Nórdio a seu grupo de origem. Além desse
espetáculo, é importante ressaltar que o Circo Amarillo dá continuidade a sua pesquisa artística em
torno dos excêntricos musicais em sua produção seguinte, intitulada Claque, que teve suas primeiras
apresentações enquanto eu já escrevia a dissertação e infelizmente não pude abordar em minha pesquisa.
2.4.2 Sem Concerto
O Sem Concerto foi particularmente criado com base em dois motivadores: o interesse em
trabalhar um espetáculo de excêntricos musicais e a utilização de um aparato tecnológico específico, o
pedal de loop115. A dupla narra que já havia a vontade de trabalhar com a encenadora Carla Candiotto e
convidaram-na para assumir a direção do espetáculo, cabendo a ela o auxílio para criação do enredo,
sendo responsável pela dramaturgia do espetáculo, mas não pela sua concepção.
O espetáculo teve uma primeira versão sem muitos recursos, ainda sem cenário, quando eles se
valeram apenas de uma arara de roupas, o quadro com a inscrição luminosa “No Ar” e os instrumentos
musicais. Ao conseguirem verba do Edital ProAC116, na categoria Manutenção de Espetáculo, toda a
cenografia pôde ser criada e o espetáculo cresceu em aparatos, possibilitando que Carla Candiotto
novamente auxiliasse na apuração de alguns números e algumas cenas. Esse edital proporcionou também
uma renovação dos recursos do outro espetáculo, o Experimento Circo.
O enredo do Sem Concerto traz a história de dois músicos que se preparam para o evento de
lançamento de seu último e único disco, tratando-se de um único exemplar. Em meio a uma pequena
solenidade, o excêntrico que encarna mais o tipo augusto, interpretado por Marcelo Lujan, quebra
a disco. A dupla passa, então, a realizar uma gravação improvisada e ao vivo para salvar sua estreia. A
dramaturgia do Sem Concerto tece a sequência dos quadros, ou das cenas, que são designados por tracks
e correspondem, em alguns casos, a números que podem ser executados separadamente como entradas
de palhaço. Alguns deles, inclusive, foram utilizados dessa maneira no Circo Zanni. Esta é outra virtude da
concepção dramatúrgica proposta: a incorporação de elementos próprios da dramaturgia das entradas
de palhaços na constituição tanto do todo quando das cenas em si. Cada track é uma das faixas do disco
que será regravado. A peça tem uma atmosfera de teatro de variedade e as personagens vestem fraques,
trazendo no rosto uma maquiagem sutil que remete ao tipo que cada um deles encena. Pablo Nórdio tem
a sobrancelha desenhada à maneira dos clowns brancos, enquanto Marcelo Lujan tem o nariz levemente
avermelhado, aludindo ao augusto. Esses aspectos visuais, como o uso de fraques e uma maquiagem mais
sutil, coincidem com descrições que autores estrangeiros fazem acerca da visualidade dos excêntricos.
O cenário da peça que é revelado assim que o disco é quebrado, remete a um estúdio de
gravação, mas com um caráter cômico, há uma placa de letras luminosas com a inscrição: No Ar. Logo
abaixo há um toca-discos que representa o novo exemplar a ser gravado. Assim que a cortina é aberta,
revelando esse cenário, a dupla diz à plateia: “Silêncio, estamos gravando!” A fala é proibida, mas não
interdita. As personagens, no decorrer de suas excentricidades, subvertem constantemente a própria
proibição. Entretanto, é interessante reparar que a dramaturgia propõe uma situação de proibição
para a fala semelhante àquelas sofridas pelos artistas circenses e que caracterizou o desenvolvimento
de particularidades de sua poética. Independente do fato de as personagens falarem sem represálias, a
situação de proibição existe.
A música desse espetáculo mescla instrumentos convencionais, trilha pré-gravados em playback,
recursos inusitados para produção do som, o recurso do pedal de loop e muita conjugação entre música
e malabarismo, bem como com recursos e gags típicas de entradas de palhaços. A trilha sonora pré-
gravada executa efeitos sonoros de ruidagem e também serve de acompanhamento da execução ao vivo,
quando as personagens tocam saxofone, violão ou escaleta. Acontecem também satirizações com outros
elementos relativos ao universo musical, como o microfone e a postura séria dos músicos.
Alguns quadros trazem como temática a música que não consegue ser efetivada devido as
confusões excêntricas das personagens. O quadro que melhor ilustra esse aspecto é aquele que chamei
em minha dissertação de “Uma canção sentimental”. Esse quadro começa com a personagem de Pablo,
que devido às características apresentadas vou tratar como Branco, que anuncia: “Senhoras e senhores,
uma canção sentimental”. A personagem de Marcelo Lujan, que interpreta um palhaço que na dupla
constituída nesse espetáculo cumpre a função de um augusto, sendo portanto, o mais atrapalhado, não
concorda e pela gestualidade tenta expressar o desejo por uma música festiva. Assim, com o branco ao
saxofone e o augusto na escaleta, a dupla começa a tocar uma música em tonalidade menor, que são as
tonalidades que convencionalmente associamos à seriedade e a melancolia. Augusto não consegue tocar
mais do que alguns compassos e constantemente irrompe em choro, iniciando um típico conflito de dupla
de palhaços. As tentativas de executar a canção sentimental são constantemente frustradas e o conflito
entre as personagens cresce progressivamente, culminando na expulsão do augusto, mas que retorna
constantemente para tentar roubar a cena. Em um momento acontece uma série de gags envolvendo o
microfone e o pedestal e ao final a música não é executada.
No quadro do “Músico convidado”, os artistas interagem com uma pessoa da plateia e a transformam
em um homem banda. Após anunciar a participação de Roberto Carlos, que obviamente não entra em
cena, as personagens escolhem uma pessoa, geralmente uma criança, e a levam para o palco chamando-a
de Roberto Carlos. Além de colocar um casaco azul, eles “vestem” também o voluntário de instrumentos,
como ovinhos-chocalhos nas mãos, pratos presos nas pernas, pandeiro nos pés e a ainda a escaleta.
Eles então ensinam no próprio palco uma sequência de sons a executar, e após guiarem o começo dessa
sequência e, estando a pessoa com certo ritmo, eles executam junto com o participante o tema musical
que abriram o quadro. A comicidade maior está no próprio desjeito do espectador escolhido, alguns destes
tentam ainda seguir a coreografia que os excêntricos realizam, tornando sua figura ainda mais cômica.
O pedal de loop é utilizado pela primeira vez em um quadro que anunciam como “música
minimalista” e no qual colocam em repetição um pequeno fragmento gravado pelo pedal. Enquanto o
fragmento fica em repetição as personagens disputam uma cadeira em mais uma série de gags na qual
se valem de seu trabalho acrobático. Após vários quadros, o espetáculo segue em um grande crescendo,
por meio da acumulação e sobreposição de efeitos, como a música e o malabarismo, e uma aceleração
do próprio ritmo da atuação. A dupla utiliza nessa sequência final um aparato cênico criado para o
espetáculo: um triciclo-bateria. Trata-se de um triciclo ao qual estão acoplados objetos sonoros, como
um prato, umas buzinas, uma caixa, uma campainha, além de suporte para baquetas e “malabares”.
Figura 28 – Triciclo-bateria
Fonte: Entrada do triciclo-bateria. Foto: divulgação.
Figura 29 – Triciclo-bateria.
Foto: Celso Amâncio de Melo Filho.
Nesse momento os artistas realmente fazem uma gravação ao vivo, gravando fragmentos diversos
que são sobrepostos em repetição, construindo uma música por meio da sobreposição dos fragmentos
gravados. Gravam sons vocais, uma base de acordes no violão e sons feitos soprando garrafas com água.
Ao mesmo tempo, eles executam instrumentos musicais convencionais e fazem malabarismo com claves,
valendo-se das claves, baquetas e outros instrumentos musicais acoplados ao triciclo-bateria, como
buzinas, campainhas, um prato e um tom-tom.
Valem-se do malabarismo com claves que executam em dupla, há um momento em que Augusto
toca o trompete com a mão direita e joga as claves recebidas de Branco com a mão esquerda. No ápice
da cena o triciclo-bateria se encontra posicionado no meio do palco, entre os artistas, os quais, junto com
as claves, arremessam também baquetas que, ao serem recebidas, são utilizadas para percutir em algum
dos instrumentos acoplados ao triciclo. O ritmo, nesse caso, pode ser compreendido como um elemento
central e integrador das duas habilidades que se combinam na composição da cena, sendo o ponto em
comum, inclusive por ser elemento inerente tanto ao malabarismo quando à execução musical.
Por fim, o espetáculo chega ao epílogo e os excêntricos voltam-se ao novo disco, repetindo sua
cerimônia de lançamento. No entanto, novamente o palhaço que interpreta o augusto tropeça com o
disco em mãos, mas dessa vez se levanta e mostra que o disco não foi quebrado. Ele então corre para
cumprimentar o companheiro e no abraço ouvimos o som do disco se quebrando. Entra uma trilha em
playback, o augusto observa os pedaços com perplexidade enquanto o outro palhaço, que representa
o branco, começa a esbravejar. Na confusão burlesca típica de palhaços, as duas personagens saem na
clássica perseguição do branco ao augusto. É interessante notar como a peça é elaborada com base na
comicidade dos palhaços, tendo um enredo que se estrutura de maneira similar às entradas circenses,
já que o desencadeamento do conflito está articulado com as características da dupla cômica: branco
e augusto, servindo ainda de mote para inserções diversas. A repetição da queda, no momento em que
as personagens alcançavam a resolução de seu conflito, remete aos finais de entradas clownescas e sua
peculiar tragicidade. O disco quebrado novamente no calor da própria emoção de sua recriação traz a
maravilha e o absurdo da condição humana que a arte dos palhaços evoca, destrói e acalanta em uma só
queda.
***
Os dois grupos abordados, Cia. Teatral Turma do Biribinha e Circo Amarillo, mostraram-se
significativos não somente pelo trabalho que realizam enquanto palhaços músicos, mas pela possibilidade
de averiguarmos artistas de origens tão diversas. Vários aspectos têm características comuns nos dois
grupos, como a atuação corporal cômica, que se alia à execução musical, a utilização de recursos inusitados
e a efetivação de proezas extraordinárias em uma apresentação musical corriqueira, estando a proeza
tanto nos instrumentos inusitados quanto na destreza corporal e na conjugação com o malabarismo.
A importância da corporalidade cômica pode ser claramente observada na execução tanto de Hiran
e Teófanes Silveira quanto em Marcelo Lujan e Pablo Nórdio, reafirmando que, no caso dos palhaços, o
recurso cômico da música conta também com o corpo do artista, que potencializa o efeito provocado
pelos instrumentos, sejam estes inusitados ou convencionais. Assim a prática musical de palhaços se
encontra em uma região limiar, na qual as fronteiras entre artes cênicas e musicais aparecem totalmente
imbricadas. Não é possível alcançar o efeito completo das cenas abordadas sem o trabalho híbrido entre
a encenação, especialmente centrada no corpo dos artistas, e a música executada de maneira diversa de
suas convenções, seja por instrumentos de timbre atípico, seja pela mistura de ritmos e melodias díspares,
mas que remete ao discurso cênico.
Os musicais excêntricos, além da comicidade, também configuram de maneira própria a realização
da proeza, que está na base das artes circenses. Bolognesi relaciona a proeza corporal do circo com a
proeza vocal que a ópera busca em seu efeito estético:
A própria definição dos instrumentos como “inusitados” já revelam a intenção de que sejam
incomuns e extraordinários. Assim, a utilização de objetos do cotidiano como copos, garrafas, bombas de
ar, serrotes, panelas e penicos não somente transgride a utilização cotidiana destes, mas realizam uma
ação aparentemente sobre-humana: a proeza de conseguir sons musicais em utensílios que não foram
criados para tal. Podemos lembrar ainda que esse ato de ressignificação de objetos, independente de sua
transformação em instrumentos musicais, faz parte da poética dos palhaços em suas relações cênicas
com objetos.
É importante ressaltarmos que para que tal efeito seja inteligível e reconhecido pelo público é
necessário que os sons sejam identificados como musicais, ou seja, não se tratam simplesmente de ruídos
desordenados, mas de sons que alcançam a frequência de notas musicais, ou pelo menos se aproximam
destas a tal ponto que suas combinações possibilitem que sejam reconhecidas melodias. Assim, nos
musicais inusitados, como estes que são exibidos em Reencontro de Palhaços, não há aparentemente uma
preocupação em apresentar melodias inéditas ou composições novas ao público, antes disso, interessa
aos artistas trabalhar com um repertório sumariamente popular e que tenha reconhecimento imediato
por parte do público, para que não exista qualquer dúvida que aquela sequência de sons seja música. No
caso do Sem Concerto, os recursos inusitados têm um certo experimentalismo, já que estes não se tratam
de números tradicionais e típicos de excêntricos, mas de criações que se valem de outras tecnologias
e que utilizam o inusitado de maneira diferente, causando seu efeito pela sobreposição de elementos
(música gravada em repetição, música executada ao vivo e malabarismo). Nesse sentido, os artistas
não se preocupam em trazer melodias conhecidas pelo público, mas justamente em surpreendê-lo pela
novidade. No caso do trabalho do Circo Amarillo, a estética da proeza está também na acrobacia em si,
tendo seus efeitos intensificados pelo fato de ser executada concomitante à música.
Nos musicais excêntricos típicos, como os que são trabalhados pela Cia. Teatral Turma do Biribinha,
a proeza corporal é transferida para outras instâncias, centrando-se em uma habilidade extraordinária
específica: a execução e transformação de objetos comuns em instrumentos musicais, como se o artista
tirasse “leite de pedras. No refinamento de sua arte, artistas como Hiran Silveira e Thiago Sales valem-se
também da proeza corporal, já que não somente obtém conteúdos melódicos cognoscíveis, mas também
o fazem com habilidade e com destreza, seja esta a execução de uma melodia intricada e rápida, como é o
caso de Brasileirinho, seja a possibilidade de dançar e rebolar enquanto tocam, como na cena da bomba
de ar.
Com o levantamento histórico que apresentei em minha dissertação, levantamento este que faz
parte do primeiro capítulo deste livro, pude constatar que os palhaços realizaram em seu trabalho musical
uma experimentação intensa da linguagem musical que não é abordada pela história da música. Esse
experimentalismo musical de palhaços é anterior a recursos similares que somente seriam utilizados nas
vanguardas musicais do século XX. Segunda a história da música que é tomada como oficial, a utilização
de ruídos de objetos, como as garrafas, pratos, taças, entre outros, só é considerada quando verificada em
compositores ligados às vanguardas artísticas do século XX.
Uma das definições existentes para o ruído condissera-o enquanto os sons que não são afinados
em notas musicais, ou seja, qualquer som de frequência irregular. José Miguel Wisnik, em sua obra O
Som e o sentido, utiliza essa definição de ruídos para compreender o que chama de recalque e retorno
do ruído na música europeia, que desde o canto gregoriano eliminou os sons de frequência irregular do
discurso musical por considerá-los profanos e indesejáveis, consequentemente, a música de concerto
que se desenvolveu fora do contexto sacro também foi composta sem elementos puramente percussivos,
pois mesmo os tímpanos das sinfonias clássicas possuem alturas definidas. O retorno dos ruídos, que
nunca foram excluídos das tradições populares, contribuiu para a ruptura de paradigmas da música que
se pretendia artística e erudita. Segundo Wisnik:
A partir do início do século XX opera-se uma grande reviravolta nesse campo sonoro
filtrado de ruídos, porque barulhos de todo tipo passam a ser concebidos como
integrantes efetivos da linguagem musical. A primeira coisa a dizer sobre isso é que os
ruídos detonam uma liberação generalizada de materiais sonoros. Dá-se uma explosão
de ruídos na música de Stravinski, Schoenberg, Satie, Varèse (para citar alguns nomes
decisivos).118
Em muitas cenas de excêntricos musicais, as melodias são transformadas em ruídos que simulam
os erros, os tropeções, as falhas típicas dos palhaços, assim, no âmbito cênico, os ruídos podem também
ter uma função dramatúrgica. Mesmo que os ruídos dos objetos que constituem os instrumentos
inusitados trabalhem com sons afinados, eles alcançam-na em objetos aparentemente improváveis para
tal, os palhaços fizeram desses objetos protagonistas do discurso sonoro em uma experiência radical de
exploração e de transgressão da linguagem musical. A música de palhaços não se vincula diretamente
à trajetória registrada como oficial da música, mas nos apresenta aspectos de um outro meio musical
que acontecia entre artistas de feira, teatro musicado e em espaços como cabarés e circos. Os “musicais
inusitados” são uma amostra desse universo artístico.
Assim como os próprios palhaços, os ruídos no discurso musical representam o mundo irracional,
instintivo e profano do qual a música europeia buscou se distanciar no contexto sacro em que iniciou
suas convenções. Ruídos tendem ao despropósito, ao exagero e ao descontrole, enquanto sons
musicais e afinados pressupõem ordem, disciplina e comedimento. Os ruídos de objetos estranhos, que
surpreendem ao se tornarem afinados, são como as resoluções cênicas de muitas entradas nas quais a
ação é admiravelmente realizada no meio do erro, do tropeção e da queda.
A arte dos palhaços aliada à música resulta em uma poética singular, exigindo de seus intérpretes
um domínio tanto de encenação teatral quanto de instrumentos musicais, além das particularidades
cômicas dos palhaços. No desenvolvimento de sua arte, os palhaços extrapolaram as possibilidades
de realização de proezas musicais, buscando os efeitos extraordinários em um sentido mais amplo do
que o domínio técnico do instrumento. Trata-se de um tipo peculiar de música, cujo resultado sonoro é
consequência da estética circense e das suas necessidades específicas, relacionando-se ainda com seu
espaço cênico, com a visualidade de seus intérpretes e a exibição de capacidades extraordinárias, como
é próprio das artes circenses.
No capítulo seguinte, voltaremos a unificar nossas vozes para abordar o trabalho de um grupo que
desenvolve atualmente um trabalho intenso de exploração artística e o incentivo às pesquisas sobre os
palhaços excêntricos musicais: o Grupo Off-Sina, constituído por Richard Riguetti e Lilian Moraes.
CAPÍTULO 3
GRUPO OFF-SINA: encontros e afetos
Na sequência da proposta de falar dos palhaços excêntricos, debates sobre o conceito, as origens,
os sujeitos históricos, vamos iniciar uma narrativa sobre encontros e afetos de Doracy Campos e Alvina
Campos com Richard Riguetti e Lilian Moraes, do Grupo Off-Sina. Quatros fazedores de histórias do circo e
dos palhaços e podemos dizer também musicais/excêntricos. Mas, como temos trabalhado até aqui, não
é possível tratarmos dessa proposta sem nos perguntar: Em que momento do processo histórico circense
estavam inseridos quando ocorreram os encontros?
Nesse sentido, antes de darmos início aos encontros propriamente ditos, é importante sabermos
como Richard Riguetti e Lilian Moraes se tornaram de um lado herdeiros da chamada “tradição circense”
e, do outro, novos sujeitos históricos produtores desta linguagem artística.
Ao mesmo tempo - e é assim que temos que pensar ao narrar acontecimentos, vivências,
experiências, experimentos, encontros –, então, ao mesmo tempo em que tudo estava ocorrendo tanto
na vida de Doracy e Alvina até pelo menos os anos 2000, também outros vários movimentos, constituições
diversas da produção da linguagem circense também aconteciam.
A partir das décadas de 1950/60, esta produção passou por profundas transformações em seu
modo de organização do trabalho e em seu processo de aprendizagem. Até esse período, a construção do
que significava ser um artista circense estava fundamentada basicamente na forma coletiva familiar de
transmissão dos saberes e práticas, por meio da memória e do trabalho, e na crença e aposta de que era
necessário que a geração seguinte fosse portadora de futuro, ou seja, depositária dos saberes circenses.
Contudo, em meados daquelas décadas foram se consolidando, no interior dos grupos familiares
circenses, mudanças que alterariam os diversos significados de ser artista e, principalmente, uma quebra
na transmissão oral dos saberes que garantiriam que a geração seguinte fosse portadora de tais saberes
e, consequentemente, portadora de futuro daquela forma de produzir o espetáculo.
Em última instância, foram os próprios circenses itinerantes de lona, denominados tradicionais,
que deram sentido e realidade às mudanças. O processo de socialização/formação/aprendizagem e a
organização do trabalho, entendidos na constituição do circo-família como elementos intrinsecamente
relacionados, passaram, a partir das décadas de 1950/60, por mudanças que revelaram não serem mais
articulados e interdependentes.
Se para dentro dos circos e grupos itinerantes de lona, o processo de transmissão do saber havia
passado por mudanças significativas de continuidade, a teatralidade circense se mostrou rizomática, foi
construindo novos percursos, desenhando novos territórios, a cada ponto de encontro, que operavam
como resistências e alteridades, com os quais essa linguagem dialogou de modo polissêmico e produziu
diferentes configurações nesse campo de saber e prática. Aliás, o novo foi e é um dos elementos
constitutivos do processo histórico da arte circense. O surgimento de novas modalidades de formação
dos circenses como nas atuais escolas de circo “fora da lona”, é um componente desse rizoma.
Desde a década de 1920, quando em Moscou, na antiga União Soviética, foi construída a primeira
escola de circo fora da lona, houve uma divulgação e debates em torno disso em vários países do mundo,
inclusive entre os circenses brasileiros.
A ideia de que deveria haver um espaço de ensino para filhos de gente de circo, que não só o da lona
esteve presente em quase todos os debates circenses desde aquele período. Mas foi somente a partir de
1975 que a proposta passou a se concretizar. Assim, concomitantemente aos movimentos de construções
de escolas de circo, que estava ocorrendo em alguns países como: Austrália, França, Inglaterra e Canadá,
em 1978, no Brasil, teve-se a primeira experiência voltada para o ensino das artes circenses fora do espaço
familiar e da lona, a Academia Piolin de Artes Circenses, fundada na cidade de São Paulo. É interessante
notar que foi uma iniciativa dos circenses chamados “tradicionais” em parceria institucional com o
governo do Estado, pois foi proposta pela Associação Piolin de Artes Circenses, com apoio da Secretaria
de Estado da Cultura, através da Comissão de Circo.
A movimentação circense resultou no Rio de Janeiro, na criação da Escola Nacional do Circo em
1982, com a participação significativa de Franco Olimecha – pertencente à família que trabalhou com
Benjamim de Oliveira, na década de 1910. Os argumentos para esta criação baseavam-se em pressupostos
semelhantes aos de seus congêneres paulistas, ou seja, de que a tradição familiar não seria suficiente para
garantir a perpetuação da arte circense ao longo do tempo; que um número maior de pessoas talentosas
nascidas dentro ou fora das famílias circenses deveria ter condições de aprimoramento e, por fim, que
como o processo ensino-aprendizagem era inerente à vida do circo, uma escola seria a extensão lógica
dos pequenos núcleos familiares para a grande família circense, promovendo uma democratização da
informação e da ampliação de oportunidades.
Quando as primeiras escolas de circo surgiram no Brasil, um dos principais objetivos que motivaram
aqueles profissionais, em sua maioria constituída de artistas circenses tradicionais, ou seja, que vieram da
lona era dar continuidade à aprendizagem dos filhos dos próprios circenses, que estariam, segundo suas
justificativas, deixando de aprender essa arte. Entretanto, o que de fato acontecia é que os filhos de gente
de circo dificilmente tinham condições de participar dessas escolas. Quem acabou por se transformar em
aluno e depois artista circense ou de teatro foram pessoas fixas das cidades, vindas dos mais diferentes
grupos sociais e com propostas e objetivos diversos e múltiplos. Foram pessoas como Richard Riguetti
e Lilian Moraes, que mesmo que não tenham frequentado escolas de circo fizeram parte de todo esse
processo de mudanças e transformações porque passou a construção da linguagem circense e o modo de
organização do trabalho.
Quais as consequências desta instituição de ensino das artes e saberes circenses “fora
da lona”? São muitas, nas quais apenas se iniciou as pesquisas das várias possibilidades,
sem ainda se chegar à totalidade destas. Acrescenta-se a isto, o fato de que o fazer artístico
circense atual dificilmente apresenta diferenças entre os gêneros, como acontecia no
circo-família, uma vez que as construções e as participações da mulher atualmente está
[sic] em todos os fazeres e saberes, inclusive como palhaça. O feminino nesta criação
cômica, que não era permitido na teatralidade do circo-família, começou a mudar desde
a constituição das instituições escolas de circo “fora da lona”, nas quais sua presença foi
inevitável. 119
Para a autora acima, além da iniciativa de ensino das artes circenses em geral e da palhaçaria em
particular, a partir do contexto da Escola de Moscou, foram fundadas a Ringling Bros. and Barnum & Bailey
Clown College, em 1968, nos Estados Unidos da América, fundada por Irvin Feld um dos sócios do Barnum
& Bailey College 120, a L’école Nationale du Cirque em 1974, na França, pela artista e clown Annie Fratellini.
Sobre estas, destaca-se que a Ringling Bros. and Barnum & Bailey Clown College pareceu estar mais
diretamente ligada aos circos de lona, do que aquela visualizada desde a Escola de Moscou. Esta última
apresentou um maior impulso a partir dos interesses teatrais e do engajamento político. Não se diminuem
em absoluto a importância de ambas as iniciativas a partir de seus propósitos, mas, no que se refere aos
interesses da escola americana, a necessidade de se manter e difundir as artes circenses apresentava
uma característica mais voltada à empresa e ao mercado de trabalho. Interessante observar que, nesta
instituição, a atuação de mulheres na arte do palhaço foi percebida em maior número do que em outras.121
Criada por Irvin Feld na Flórida em 1968, a Ringling Bros. teve, como principal objetivo, preencher,
aumentar ou garantir o número de artistas, em particular o de palhaços, no espetáculo. Tal impulso
originou-se a partir da percepção de que grande parte de seus artistas possuía idade avançada (em torno
de 60 anos45) e da ausência de jovens preparados para substituí-los. Por esse motivo, Feld teria procurado
preservar, difundir e formar novos profissionais, através desta iniciativa de ensino. Santos, citando o texto
de Rodney Huey 122:
Dono do The Greatest Show on Earth, Feld ainda empregou a maior parte dos clowns
nos Estados Unidos. A maioria deles tinha cerca de sessenta anos. Feld percebeu, que
se encontrava diante da seguinte e irônica situação: “Eu sei que eles podem cair, mas
poderão levantar-se novamente?” Prontamente fundou Clown College em 1968 como
uma possibilidade de formar novos clowns e conseguiu persuadir os melhores e veteranos
clowns para ensinar em sua “escola de bobos”, um modo de preservar e perpetuar a
arte de se ensinar a palhaçaria nos circos americanos. [...] Clown College formou cerca
de 1.300 homens e mulheres inexperientes nesta dramaturgia, criou uma instituição
que esperava garantir a continuação e a transmissão desta arte às gerações futuras, e
proveria um salto na palhaçaria e a prosperidade de diversos formatos e atuações.
Alguns anos após a criação desta escola de circo norte americana surgiu, no continente europeu,
especificamente na França, a L’école Nationale du Cirque Annie Fratellini, criada por Annie Violette
Fratellini (1932-1997), em 1974. Esta artista, oriunda de família circense tradicional, atuava na função de
augusto com o marido Pierre Étaix, no Cirque Pinder. Posteriormente, Étaix cede seu papel de clown para
sua filha, Valerie Fratellini, que passa a formar com sua mãe, uma das primeiras duplas de mulheres a
protagonizarem esta dramaturgia. Sobre o ensino das artes circenses nesta iniciativa, em particular a do
palhaço, Valerie Fratellini ressalta que para a escola francesa, este personagem seria assexuado, fora do
tempo. 123
E no Brasil? A novidade das escolas de circo fora da lona foi um dispositivo para novos processos de
formação, sendo que os alunos formados nas mesmas, portadores de distintas formações artísticas, como
teatro, dança, cenografia, coreografia, entre outros, mesmo que não tenham sido inseridos no processo
de formação/ socialização/aprendizagem – a estrutura metodológica que o artista do circo-família tinha
ao nascer ou se incorporar ao circo –, acabaram, por si, realizando suas próprias misturas. Não obstante
o modo de organização, de trabalho e de formação serem distintos do anterior, os alunos constituíram-se
em grupos que resinificaram a linguagem circense no seu caráter múltiplo, polissêmico e polifônico.
Entretanto, destaca-se, ainda, que durante o processo de amadurecimento das metodologias e
do ensino destas artes e saberes, muitos circenses não concordaram com o surgimento destas iniciativas
de ensino, em particular no que se refere à formação de palhaços. Nas palavras do artista circense Roger
Avanzi – palhaço Picolino (nascido no Circo Nerino), – que foi professor tanto na Academia Piolin de Artes
Circenses e no Circo Escola Picadeiro, em relação ao ensino da arte do palhaço.
Muita gente de circo, dos tradicionais, não queria escola de circo, principalmente porque
acreditavam que a arte do palhaço não se ensinava. Quando comecei a ensinar, alguns
circenses vieram falar comigo e me dizer que eu estava errado, porque acreditavam que
o palhaço tinha que nascer naturalmente. Eu ouvia aquela charamela deles todos, mas
ficava quieto, pois não gostava de causar atrito. O meu pensamento era outro: ninguém
nasce sabendo. Todo mundo tem que aprender! O palhaço também. Não basta nascer
com o dom.124
Ou seja, não houve (e ainda não há) nas escolas de circo uma disciplina específica voltada para a
formação de palhaços. Somente a partir de 2012 (até os dias de hoje) é que mais adiante abordaremos
uma escola de formação, fundada por Richard Riguetti e Lilian Moraes chamada Escola Livre de Palhaço
(ESLIPA) que terá um conteúdo programático voltado exclusivamente para esta construção.
Por um lado não há nas escolas de circo institucionalizadas proposta para esta formação. Essas
pessoas procuram para a constituição de suas caixas de ferramenta de comicidade, caminhos distintos e
acabam por formá-las também em uma grande diversidade e em vários lugares do Brasil e do mundo. Essa
pelo menos é a proposta, por exemplo, da ESLIPA (será tratado especificamente ainda neste capítulo).
O processo rizomático da produção da linguagem circense, e do palhaço em particular, está
sempre em processo de educação permanente, a aprendizagem se dando no fazer do ofício, seja onde e
como for. Se a questão musical e teatral deixou de acontecer nos espetáculos de circo itinerante de lona,
principalmente nas regiões sul e sudeste; os vários grupos que se constituíram no bojo desse caldo de
novos dispositivos que aconteceram no período do final dos anos de 1970 até hoje, a partir de trocas,
encontros e, principalmente muita pesquisa, refazem trajetórias incorporando elementos artísticos que
os circenses sempre utilizaram: como a música, teatro, coreografia, incorporação de artistas, saberes,
práticas e dramaturgias disponíveis e fazendo parte dos encontros. Estão abertos a eles. A região nordeste,
com já se analisou, mesmo os circos itinerantes de lona e os grupos “fora da lona”, não passaram ou
passam pelos mesmos tempos dos acontecimentos, são outros processos de caminhar a produção da
linguagem circense. Apesar de que, com os inúmeros festivais, encontros de palhaços, oficinas, escolas,
etc., as trocas e o intercâmbio entre regiões, especificamente entre os grupos circenses, têm ampliado
muito.
A utilização da linguagem circense como ferramenta no processo pedagógico, “fora da lona”, que
inclui a música, o teatro, a dança, a capoeira, a cenografia e o figurino é, portanto, um novo sentido de
produção coletiva do saber.
De 1988 a 2003, até como resultado de um intenso trabalho de militância política, de pesquisa e
ação, houve um aumento da pesquisa sobre o circo para dentro das universidades. Isto se deu por conta dos
vários profissionais artistas circenses não ligados à academia, mas vinculados a processos pedagógicos de
formação nessa área – como as Escolas de Circo e a própria Escola Nacional de Circo (ENC) localizada no
Rio de Janeiro, bem como grupos artísticos autônomos – a ampliação dos conhecimentos e metodologias
para atenderem aos alunos oriundos dos mais diversos lugares da sociedade. Muitos daqueles alunos
eram e são universitários de institutos de artes cênicas (teatro, dança), de música, de educação física, de
história, de jornalismo, de arquitetura, entre outros.
Mas, além disso, o que se desenvolveu mesmo foi a compreensão sobre a importância de se realizar
pesquisa dos processos históricos circenses brasileiros. Nesses últimos anos, o debate que temos realizado
sobre a necessidade do reconhecimento do circo como patrimônio cultural brasileiro possibilitou que
não só os novos entrassem em contato com a riqueza da história do circo no Brasil, como os próprios
“tradicionais” revitalizassem a própria memória.
Com todo esse caldo de movimentos voltados para a recuperação da memória ou das memórias
circenses, o tema do circo e correlatos se fez muito presente no cotidiano das cidades, em toda a sua
capilaridade, principalmente no dia-a-dia dos vários artistas. Isto possibilitou que tanto os velhos
circenses retornassem à cena, retomando-a, quanto surgissem novos sujeitos históricos realizando
técnicas circenses nas ruas, semáforos, shoppings, festas raves, rodeios, desfiles de carnaval, boates,
aniversários, casamentos, etc.
Enfim, não há hoje praticamente nenhum evento em um município, independentemente do
tamanho, em que não se veja uma pessoa desempenhando uma atividade artística circense. Até o
surgimento das escolas de circo, final da década de 1970 e início da seguinte, esta atividade era realizada
quase que exclusivamente sob a lona.
As diversas frentes que se voltaram para a pesquisa da produção histórica circense, para o trabalho
e realização daquelas técnicas – como o Grupo Off-Sina –, não eram, num primeiro momento, oriundas da
forma de organização dos circos itinerantes de lona ou de origem familiar circense.
Com todo esse movimento nos últimos 40 anos, no Brasil, o que se observa é que a linguagem
circense, também chamada por alguns de “técnicas ou atividades circenses” (não é o caso dos dois
autores deste texto), tornou-se uma prática que transcendeu o ambiente do circo de lona e as próprias
escolas especializadas.
Os artistas formados no circo social, nas escolas de circo, ou oriundos do teatro, da dança, da
música, da educação física e que foram fazer circo, bem como os grupos autônomos, que também se
tornaram formadores nesses espaços, moradores fixos, desenvolveram e desenvolvem novos modos
de organização do trabalho. Esses desdobramentos têm criado novas necessidades para a produção do
conhecimento sobre o circo, gerando demandas para a ampliação de pesquisas. Tudo isso é de fato novo
na história do circo.
As escolas de circo e os grupos formados por elas ou não, representaram algo novo para o
processo de constituição da atual teatralidade circense. As pessoas envolvidas com a aprendizagem
desta linguagem não a faziam mais, necessariamente, debaixo da lona do circo, como acontecia com a
maioria dos circenses até pelo menos a década de 1970. As escolas ou grupos voltados para o ensino das
artes circenses têm projetos pedagógicos e sociais dos mais diversos tipos, a partir de iniciativas privadas
ou governamentais, e isto é novo na história do circo no Brasil. Apesar de muitos mestres que ensinam
nesses espaços serem circenses vindos das chamadas famílias tradicionais, eles não atuavam mais como
antes, ou seja, ensinando as crianças que nasceram no circo ou as pessoas que a ele se incorporam, nem
utilizavam o mesmo processo pedagógico que desenvolviam sob a lona. O modo de ensinar e formar
tinha que passar por mudanças, estava lidando com sujeitos distintos, apesar de que a técnica parecia
(e às vezes parece) não tão distinta quando observamos os artistas oriundos de escolas, autônomos
ou autodidatas se apresentarem. Pode-se considerar, hoje, que uma das grandes contribuições deste
movimento é a reafirmação do quanto a linguagem circense e o modo como os circenses produzem seus
espetáculos estão permanentemente abertos para as articulações com as várias linguagens artísticas,
demarcadas pelas suas características polissêmicas e polifônicas. Com este movimento amplia-se, em
qualidade, quantidade e variedade, o número de pessoas que se envolvem e divulgam a linguagem
circense. A entrada das escolas não deixa de retomar de certo modo as várias linguagens que já estavam
presentes na formação do circense até a década de 1950: exercícios acrobáticos, teatro, música, dança,
além da necessidade de se aprender a montar e desmontar o circo, ser cenógrafo, coreógrafo, ensaiador,
figurinista, instrumentista etc. Não é, contudo, apenas um retorno ao passado: com as escolas, há de fato,
novos profissionais utilizando-se da linguagem circense, demonstrando o quanto ela dá e permite.
Os novos sujeitos históricos que representam a linguagem circense, são moradores fixos das cidades,
estabelecem relações sociais, políticas e culturais com os municípios que os circenses do chamado circo
itinerante ou tradicional não estabeleciam. O grupo circense chegava (e ainda chega) na cidade, bairro,
vila ou rua, povoava a imaginação de todas as pessoas de qualquer classe social, mas depois de algum
tempo ia embora. Esses novos fazedores de circo, que não vão embora como um itinerante, relacionam-se
com os habitantes, procuram explorar cada evento, canto ou espaço para se apresentarem.
Nessas relações de afecções 125 são construídas demandas políticas importantes, tanto para o nível
local quando nacional. Por exemplo, há hoje uma luta política por espaços públicos para apresentações,
há envolvimento nos debates políticos das instâncias governamentais municipais, estaduais e federal,
voltados para se conquistar direitos nunca antes dirigidos aos grupos. Richard e Lilian são importantes
representantes dessa militância e compõem esses novos sujeitos históricos 126.
3.1 Doracy e Alvina Campos, Richard Riguetti e Lilian Moraes
Foi nesse ou nesses momentos do processo histórico circense, lá pelos idos da década de 1990, que
Richard e Lilian, Doracy e Alvina estavam inseridos quando se encontraram. Chegaram ao Circo Teatro
de Lona, de propriedade do palhaço Treme-Treme e da Palhaça Corrupita, instalado na Avenida Ayrton
Senna, na Barra da Tijuca, em 1993, num momento muito especial do Grupo Off-Sina. Segundo Riguetti:
Foi nessa época que conhecemos Doracy Campos e Dona Alvina. Estávamos ampliando
a temporada do espetáculo intitulado Palhaço de Rua, a 3ª criação do grupo para a rua
e a 5ª criação da companhia. Anteriormente tínhamos criado e produzido pela ordem:
1. Colagem de Bodas de Sangue, de Garcia Lorca, com as músicas da ópera Carmem, de
Bizet, ainda na Escola de Teatro Martins Penna;
2. As Mamas de Tirésias, de Guilherme Apolliner, na Escola de Teatro Martins Penna;
3. Auto de Natal, colagem de texto de Maria Clara Machado, Thiago Santiago, José
Saramago e Richard Riguetti, no Mercadinho São José, em Laranjeiras;
4. Auto do Natal, idem, primeiro espetáculo do Off-Sina, totalmente para a rua,
percorremos diversos Conjuntos Habitacionais, praças e favelas;
5. Palhaço de Rua, baseado no texto de Ronaldo Ciambroni, cujo personagem central era
o Palhaço Zé, que morava num ponto de ônibus, pois assim imaginava que morava para
lá ou para cá, conforme a direção do ônibus. 127
Conforme nos narrou Richard Riguetti, depois de circular com a peça Palhaço de Rua por diversos
espaços públicos abertos, receberam uma proposta de levar a peça para o Circo Teatro de Lona.
Já para Lilian Moraes, que ao lado de Richard Riguetti fundou o Grupo Off-Sina – Circo Teatro de
Rua, é interessante ressaltar o outro lado do processo de vivência pessoal entre ela e Alvina Campos. A
palhaça de Lilian chamada Currupita e a palhaça de Alvina que se chamava Corrupita.
Em 2006, começou um novo momento para as interações e afetos entre as duas duplas de casal.
Nesta época, Doracy e Alvina já não mais se apresentavam como palhaços ou artistas circenses, mas com
o projeto Palhaço na Praça a convivência retornou, bem como uma relação enquanto coprodutores, mas
também enquanto artistas que dividem o mesmo espaço, no caso, o picadeiro do Grupo Off-Sina colocado
ao ar livre. Intensificou-se também o vínculo que transformaria e influenciaria intensamente os trabalhos
deste grupo a partir de então, trata-se do vínculo enquanto herdeiros, novos portadores dos saberes da
dupla, fato este que foi ainda acentuado pela sessão de todo material dos arquivos que Doracy Campos
cuidadosamente organizada, fornecendo um mapeamento e um registro de sua trajetória em notícias de
jornal que atravessavam décadas.
Richard e Lilian também se tornaram herdeiros dos aparelhos cênicos principais que foram
construídos por Doracy Campos, como o Piano de Latas e o Táxi Maluco, além de seus guizos e da bomba
de bicicleta que era utilizada como instrumento musical inusitado.
Para que possamos entender o quanto essa reaproximação significou para o Grupo Off-Sina, é
preciso compreender como a arte do palhaço e a arte musical já estavam em um processo contínuo de
experimentação para culminar no interesse e na pesquisa sistematizada sobre os palhaços excêntricos
musicais.
3.2 Trajetória do Grupo Off-Sina: da rua para a lona.
Falar da trajetória do Grupo Off-Sina – Circo Teatro de Rua atualmente é também falar de palhaços
excêntricos em boa parte dos sentidos que o conceito historicamente abarcou e abarca, como analisamos
no início deste livro, pois além de se constituírem como artistas polissêmicos e polifônicos, passaram a
ser herdeiros de procedimentos como também se tornaram músicos excêntricos. Mais ainda, tornaram-se
divulgadores, fomentadores e transmissores desse saber.
Desde o espetáculo Palhaço de Rua (entre 1992 e 1994), o Grupo Off-Sina deu continuidade ao
trabalho de palhaço, dedicando-se quase exclusivamente a esse tipo de expressão artística. A rua também
se tornou uma escolha do grupo, definindo-se assim de maneira mais clara o subtítulo do Off-Sina: Circo
Teatro de Rua. Essa nomenclatura e continuidade a partir do encontro com Doracy e Alvina, no Circo Teatro
de Lona, já deixara marcas, mesmo que inconsciente, nos anseios poéticos de Richard e Lilian.
Em entrevista realizada para este livro, Richard Riguetti 130 falou acerca dos novos interesses e
desejos resultantes das temporadas do Palhaço de Rua e do contato com Doracy Campos:
Com esse encontro com o Treme, no Circo Teatro de Lona, com a estrutura do circo-
teatro, nós ficamos encantados com o circo teatro. Então fui para a Biblioteca Nacional,
fui para a biblioteca que tinha no INACEM e encontrei um grande arsenal sobre o circo-
teatro. O primeiro movimento, logo depois que nós saímos lá do circo do Treme-Treme
foi estudar o circo-teatro e fiz um projeto que foi proposto para uma fundação que
fazia financiamento e não fomos aprovados. E aí levantei todas as peças, começamos
a ler muito sobre Circo Teatro, vi muito material de reportagem e de matérias em livros.
Paralelo a isso continuamos com o Palhaço de Rua, levando-o para todos os lugares.
Viajamos bastante e começamos a despertar para a possibilidade de fazermos reprises
e entradas de palhaço. Naquela época, os grupos de teatro como a Intrépida Trupe,
o Manhas e Manias, como Os Irmãos Brothres, as Marias da Graça um pouco depois
também, o Teatro de Anônimo, estavam pesquisando a linguagem do palhaço, pela ótica
do teatro. E aí a gente começou a elencar a fonte do palhaço de picadeiro de pequeno
e médio porte, e aí começamos a ir ao circo e a conversar com outros palhaços de circo,
a fazer oficinas, a estudar sobre isso, e a partir daí, de um projeto frustrado que era do
circo-teatro, nasce a pesquisa mais aprofundada sobre o palhaço focada na dramaturgia
contida na entrada e da reprise (cenas típicas de palhaço de picadeiro).
Nessa época ainda não havia uma sistematização do estudo de palhaço, era o Tigre
que fazia na rua, era o Treme que estava lá na Barra da Tijuca e alguns palhaços que
estavam nos circos. Então nós íamos a circos mesmo, então nós fomos assistir os circos
de pequeno porte, de médio porte, onde o palhaço é a centralidade do espetáculo. Ali,
naquele contato, com a conversa com eles, nós começamos a fazer a pesquisa. Depois,
só em 1998 que começou a ter uma sistematização das oficinas, aí nós fizemos oficina
com Luiz Carlos Vasconcelos, com Ângela de Castro e com vários outros que já tinham
uma sistematização.
Nesta mesma entrevista, Lilian Moraes 131 também falou sobre como se deu seu aprendizado da
arte dos palhaços.
Ao falar sobre a experiência de buscar uma compreensão da poética dos palhaços, por meio da
observação de artistas de circo, Lilian 132 completa:
Richard e Lilian seguiram suas carreiras apresentando-se como Chorão e Currupita. Em 1994,
criaram o espetáculo Os Presentes Encantados, baseado em um conto de fadas registrado pelos Irmãos
Grimm e, a partir de 1995, sentiram necessidade de experimentar as relações cênicas e dramatúrgicas
com a incorporação de um terceiro palhaço convidado. Essas parcerias alternaram-se e resultaram em
criações distintas. No Alamanque Off-Sina 21 anos, esta fase do trabalho é comentada ao ser abordado o
primeiro espetáculo realizado nesse formato:
A esse espetáculo seguiram: Chorão, Currupita e Come-Come (1995), com participação de Emanuel
Santos, Palhaço Come-Come. Chorão, Currupita e Coça-Coça (1996), com participação de Darli Perfeito,
Palhaço Coça-Coça, realizando circulação por todos os estados da região Sudeste do Brasil. Chorão,
Currupita e Giramundo (1997), com participação de Yeda Dantas, Palhaço Dr. Giramundo e também com
circulação pelos estados de Rio de Janeiro e São Paulo. A partir de 1998, devido a uma situação vivida
no Encontro Anjos do Picadeiro, que acontecia na cidade de São Paulo, Richard Riguetti reelabora seu
personagem palhaço e surge Café Pequeno:
Seguiram-se então outros trabalhos, agora da dupla de palhaços Café Pequeno e Currupita,
consolidando na poética do grupo o palhaço como linguagem expressiva e a rua enquanto território de
atuação e militância. Seguiram-se os seguintes espetáculos: E o Palhaço o que é (2000), La Mama Currupita
(2002), Café Pequeno da Silva Psiu (2003), Oba! O Circo Chegou (2005), As Rainhas do Riso (2006) e A
Borralhona (2007). Neste entremeio o grupo idealiza e passa realizar periodicamente o projeto Palhaço na
Praça, que venceu o prêmio Carequinha de Estímulo ao Circo da FUNARTE, nos anos de 2005 e 2007 e tem
continuidade em todos os projetos que o grupo realiza para manutenção do grupo. Esse projeto consiste
na realização de apresentações em praças públicas que contam com a presença de uma banda de música
acompanhando a apresentação do Grupo Off-Sina e de palhaços convidados, à maneira das bandas que
trabalhavam em conjunto com os espetáculos circenses. Para a realização dessas atividades, é montado
um circo sem lona, um tipo de espaço de encenação conhecido no linguajar circense como “tomara que
não chova”. Neste caso, é chamado de Circo Penico Sem Tampa. Na descrição dos artistas do Grupo Off-
Sina:
O Circo Pinico sem Tampa – Território Circulante do Grupo Off-Sina - é um circo sem
lona onde acontecem, gratuitamente, os espetáculos, oficinas, prosas e seminários
itinerantes do grupo.
Consiste numa estrutura de madeira coberta com tecido azul e estrelas amarelas. Tem
5,40 m de boca de cena, 3,70 m de altura e 2,50 de profundidade. É composto por 04
lonas de piso (picadeiro), 01 placa Hoje tem Espetáculo e 01 placa Patrocínio. Pode ser
montado em ruas, praças, jardins, parques, entre outros.
Pinico sem Tampa lembra o estilo dos circos-teatro de antigamente que, com uma
estrutura leve, prática e de fácil montagem e desmontagem, percorriam as cidades do
interior levando a magia do circo para o público de todas as idades.
A estrutura central para a realização das apresentações do Palhaço na Praça está descrita abaixo e
tem como fonte o Almanaque Off-Sina 21 anos.
As atividades começam com a presença de uma banda, estilo as retretas dos antigos
circos, tocando ritmos brasileiros enquanto os artistas vestem-se e maquiam-se aos olhos
do público, montando seu circo. Além da banda, o evento conta com a apresentação de
um trabalho do repertório do Off-Sina e com a participação de um palhaço ou grupo
convidado. Depois das apresentações, segue-se uma conversa solta na qual o público
presente entrevista os artistas, transformando a praça pública num grande quintal
coletivo. 135
Em 2006, o convite foi feito para Doracy e Alvina Campos 136, reestabelecendo os laços de parceria
e intercâmbio que haviam iniciado cerca de doze anos antes. Treme-Treme e Corrupita são retomados
como mestres e reforçam o vínculo entre os palhaços do Grupo Off-Sina e as práticas dos circos de lona
tradicionais. Trata-se de um parentesco poético, ao mesmo tempo um compartilhamento de saberes e
práticas, reforçados pela herança concreta de registros e aparatos cênicos. Richard e Lilian se tornam
os continuadores do trabalho de Doracy e Alvina, disseminando sua memória e contribuindo para seu
registro definitivo na história do circo brasileiro.
Segundo Richard Riguetti 137:
Tivemos três experiências com nossos queridos mestres Treme e Corrupita dentro do
projeto Palhaço na Praça. Todas elas distintas e instigantes, além de divertidas e ricas
no aprendizado. Na primeira edição em que eles participaram ficamos surpresos com o
esmero, capricho e profissionalismo, que tinham na preparação do figurino, maquiagem,
montagem dos adereços, material de cena, formulação do roteiro, escolha das músicas
nos dias que antecediam a apresentação. Treme foi ao Largo do Machado para assistir
uma atividade antes da sua para se ambientar, conhecer o público, saber da dinâmica do
Palhaço na Praça, que era (é) composto de uma Banda, um espetáculo convidado, um do
Grupo Off-Sina, seguido de uma conversa com o público, que pergunta sobre a vida e a
obra dos artistas. No dia da apresentação eles chegaram cedo, incorporaram a Banda no
roteiro, Treme ensaiou com o Maestro Norberto e nos convidou para fazer uma participação.
Treme e Corrupita encantaram o público, que compareceu em massa para rever os ídolos.
O segundo ano foi ainda mais emocionante. Treme e Corrupita prepararam um roteiro
especial e nos incluíram na cena do Touro. Eu e Lilian fizemos a parte da cabeça e do rabo,
respectivamente, o Treme fazia o domador e a Corrupita a Clownete (nesse dia, lindamente
vestida com uma roupa de Clown Branco). Com a cena do Piano de Latas, Treme e Corrupita
puderam mostrar todo talento e graça. Incluíram, novamente, a Banda Rio nas cenas. Teve
gente que riu tanto que caiu para trás.
Na edição seguinte as apresentações foram realizadas no Piscinão de Ramos e na Praça
Patriarca, em Madureira. Três dias antes, fui colocar a faixa na Praça dos Patriarcas. Do alto
de uma escada de 7 metros avistei um senhor de chapéu azul e bengala, que caminhava
pela praça. Desci rapidamente e espantado dei de cara com o Treme. Perguntei a ele o
que estava fazendo ali, visto que seus olhos azuis percorriam todas as direções da praça.
“Eu vim conhecer o local que vamos trabalhar, assim posso criar um roteiro que se adapte
melhor ao público”. Respondeu. Essa maneira de agir me deixou intrigado: 60 anos como
artista e ainda queria oferecer ao público o melhor.
Em Madureira, a Márcia Campos, filha do Treme, substituiu a Dona Alvina que havia falecido.
Após as apresentações, no momento da entrevista (bate papo com a plateia, um detalhe e
que todas as perguntas eram direcionadas para o Treme), uma menina de 7 ou 8 anos se
aproximou do Treme sentado, na mão um microfone e lhe deu um demorado abraço. Ele
respondia e afagava a cabeça da menina. Ela voltou para a plateia. Em seguida veio outra,
e depois outra, e formou um fila enorme de crianças que queriam abraçar demoradamente
aquele palhaço, o nosso querido Treme-Treme. Nesse momento entendi o porquê de toda a
dedicação que eles cultivaram ao longo da vida.
No dia 25 de março 2010 fizemos uma apresentação no SESC de Duque de Caxias, região
metropolitana do Rio de janeiro, em comemoração ao Dia Nacional do Circo (27 de março).
A filha do Treme, Márcia, não queria mais fazer palhaça. Eu e Lilian entramos com o Treme
para que ele pudesse realizar o seu repertório. Foi uma honra estar ali ao lado dele.
Ficamos horas no camarim conversando, falando sobre a vida no circo, números antigos
de palhaços, tiramos fotos. No momento da entrevista, um garoto de aproximadamente 12
anos pegou o microfone e disse:
Sabe palhaço, depois de assistir você eu descobri o que quero ser quando crescer: vou ser
Palhaço. Para fazer com outras crianças o que você fez comigo.
Esse dia foi uma espécie de despedida.
Durante as edições do Palhaço da Praça em que trabalharam juntos, o Grupo Off-Sina passou a
conhecer melhor o repertório artístico de Treme-Treme e Corrupita, em meio a conversas para escolha
dos números a serem realizados, a rememoração da trajetória artística da família Campos trouxe consigo
a bagagem poética dos palhaços excêntricos musicais. Segundo Richard Riguetti 138:
Nas conversas da casa de Treme-Treme, ele falava dos números que não estava fazendo
mais, então falava do homem-banda: “Eu não toco mais o trombone por causa da
embocadura, porque eu perdi a embocadura”. Às vezes eu via o bumbo ali, em cima do
caminhão, dentro do Táxi Maluco ou em cima do Táxi Maluco, mas ele nunca fez, eu nunca
vi ele fazendo o número. Lembro do dia que ele falou da cena que tocava uma música
jogando moedas na pedra. Eu saí lá de Olaria com aquilo na cabeça: “Mas como tocar uma
música jogando moedas na pedra?”. Depois ele falou dos guizos, aí me mostrou a bomba
de bicicleta, me lembro de que ele mostrou a bomba de bicicleta. Então, nessas visitas,
ele falava dos números que não estava fazendo mais. Nós não víamos os aparelhos, mas
aquilo ia enchendo nossa imaginação.
O Treme-Treme nos dizia que ele se intitulava como palhaço músico ou seja o palhaço
excêntrico musical. Eu me lembro dele falar do Gugu Olimecha, por exemplo, do Yang, que
era o mágico que trabalhava com ele, me lembro que falava que quando chegava num
local sempre colocava a banda para tocar com ele. Isso começou com a banda, o Palhaço
na Praça, então a gente começou a ver que estava muito próximo do que ele falava, do que
a gente fazia, existiam alguns pontos de conexão.
O Palhaço na Praça tem sido realizado de maneira contínua, sendo sempre incluído nos projetos de
manutenção das atividades do grupo, em 2014 alcançou sua décima edição.
A partir de 2009, as produções do Grupo Off-Sina passam por novas maneiras de viabilização.
Nesse ano, o grupo consegue o Prêmio Myriam Muniz de Teatro, da FUNARTE, para a realização de um
espetáculo, o Nego Beijo, a primeira obra do grupo a ser realizado com financiamento público, permitindo
subsídios também para o treinamento e aprofundamento de técnicas e uma pesquisa sistematizada.
Esse espetáculo foi inspirado na figura de Benjamim de Oliveira, personagem escolhido pelo grupo para
colocar em cena o homem brasileiro. Segundo o Almanaque Comemorativo de 25 anos do Grupo Off-Sina:
Abrimos nosso novo ciclo de criações registrado neste Almanaque com um trabalho que
foi um marco em múltiplos sentidos. Um marco em nossas maneiras de criação, em nossos
modos de produção, na aspiração de novos desejos e em nosso aprofundamento enquanto
artistas e criadores. O primeiro desejo era colocar em cena o homem brasileiro, um homem
comum que convive com a magnitude cultural do país em contraste com as condições
de desigualdade social. Encontramos em alguém que foi filho de escravos a história de
uma parcela da população do povo brasileiro, Benjamim de Oliveira, mais conhecido
como Nego Beijo, um homem de origens singelas que se tornou um grande artista, capaz
de potencializar a linguagem do circo-teatro. Um símbolo desse homem que atravessa a
história com luta e inventividade. 139
Como vimos anteriormente, Benjamim de Oliveira foi um artista polifônico e polissêmico, ou seja, a
multiplicidade e as ações rizomáticas presentes o tempo todo. Teve a música como uma das ferramentas
fundamentais em suas produções e sua trajetória artística. Assim, o grupo pôde, graças ao financiamento
recebido, realizar não somente uma produção musical e agregar outros profissionais ao trabalho com
também aprimorar seu próprio treinamento musical. Esse projeto marca o começo de um envolvimento
mais intenso dos artistas do Off-Sina com a música, que se tornou um novo pilar de sua poética.
A produção desse trabalho também envolveu um processo de pesquisa acerca de Benjamim de
Oliveira, coordenado por Erminia Silva. Foi também a primeira vez que o grupo teve uma direção realizada
por alguém externo ao núcleo artístico, sendo convidada Lygia Veiga, da Cia. Brasileira de Mystérios e
Novidades para fazer a encenação, enquanto a dramaturgia foi assinada por João Batista. A direção
musical foi realizada por Marcelo Bernardes, com preparação vocal de Alda Lírio e composição de canções
por Mônica Besser. Nas palavras do Grupo Off-Sina em seu Almanaque de 25 anos:
Em meio a esse processo a música ganhou mais espaço, de repente a peça tinha
dezessete músicas e já era mais musical que imaginávamos no começo. A música foi
uma descoberta, abrindo as portas para o palhaço excêntrico musical! Estávamos
procurando petróleo e encontramos diamante. 140
A partir desse espetáculo, o Off-Sina passou a realizar suas produções concorrendo a editais
públicos, possibilitando não somente novas produções mas também a manutenção de outros projetos
como o Palhaço na Praça e o Pelas Ruas da Cidade. Em 2010, com incentivo do FATE – Fundo de Apoio
ao Teatro, da cidade do Rio de Janeiro, o Off-Sina realizou a montagem de O Príncipe da Maçonaria, uma
comédia do repertório tradicional de circo-teatro que contou com a participação da família de artistas do
Circo Tropical.
Em agosto de 2010, Doracy Campos faleceu. O projeto seguinte se tornou a continuidade das
pesquisas a treinamentos musicais, mas dessa vez voltadas objetivamente para a poética dos excêntricos
musicais, projeto esse que foi motivado pelo desejo de realizar uma homenagem ao Treme-Treme e a
Corrupita. Um dos resultados desse anseio é o espetáculo Tremelicando 141.
Vale ressaltar que todos os processos de pesquisas que resultaram neste livro foram iniciados
com o projeto que culminou no Tremelicando, assim como o trabalho anterior, essa empreitada recebeu
incentivos financeiros do FATE. Em conjunto com Erminia Silva, os artistas partiram para uma pesquisa
sobre Doracy Campos, por meio da análise dos materiais de imprensa de seu arquivo organizado
e guardado cuidadosamente durante toda a vida. Márcia Campos, a filha do casal Doracy e Alvina,
também foi fundamental para esse trabalho, especialmente quanto à reconstrução dos números. Um dos
motivadores do desejo de realizar uma homenagem foi a herança do Táxi Maluco e a possibilidade de
colocá-lo em cena.
Na imersão de pesquisas realizada a partir do material de imprensa de Doracy Campos, o grupo
pôde perceber mais acentuadamente que a atuação como excêntrico musical era um dos destaques de
Treme-Treme. Tanto nas matérias e entrevistas que foram realizadas com o artista, bem como no trabalho
de recuperação de seus números, muitos dos quais por meio do relato oral de sua filha, percebe-se
claramente a opção pelos números musicais e por sua definição como palhaço excêntrico musical. Nesse
sentido, os musicais inusitados e o Táxi Maluco seriam os dois universos que melhor representam o casal
homenageado.
Nas palavras expressas no Almanaque Comemorativo de 25 anos do Grupo Off-Sina:
Muitos recursos utilizados por Treme-Treme permaneciam um enigma a ser solucionado pelos
artistas do Off-Sina, já que, além do Piano de Latas e Guizos, não havia mais nenhum dos aparatos e
instrumentos inusitados. Teve início, então, um processo de descobertas, investigações e experimentações
para poder realizar números com buzinas, bomba de bicicleta, sinos, homem-banda e moedas musicais.
É importante destacar como a versatilidade dos artistas do Off-Sina e sua experiência já ampla
com a arte dos palhaços foi fundamental para esse processo de recuperação, descoberta e inventividade.
Assim como muitos artistas circenses que construíram sua trajetória por meio de uma intensa versatilidade
e adaptabilidade às situações mais adversas, Richard Riguetti também se entregou a um trabalho
artesanal, uma pesquisa pessoal que precisou mesclar informações orais, observações e muitas soluções
próprias para a realização dos números que eles próprios do grupo Off-Sina não tiveram oportunidade de
presenciar.
Para Riguetti 143:
O Mauro [Bruzza] veio para a gente construir o bumbo juntos, e eu que tinha sido torneiro
mecânico, lá no passado tinha trabalhado muito com ferramentas. Eu resgato esse prazer
de fazer com as mãos. Ao fazer o casal banda, dá um processo assim, uma percepção:
posso fazer com as mãos. E aí começo então a fazer os instrumentos musicais, no caso os
sinos, os badalos, depois fui para as buzinas de bicicleta e de padeiro, as moedas, e aí pego
gosto em fazer os instrumentos do excêntrico musical.
Citaremos a seguir um resumo de como se deu a construção de alguns dos aparatos cênicos do
espetáculo Tremelicando e, a partir dessa prática, foram também criados novos instrumentos inusitados
pelos artistas do Grupo Off-Sina.
Os Sinos – Têm-se registros da utilização de sinos musicais por palhaços desde o século XIX. No
Brasil, os palhaços nordestinos utilizaram os sinos que são amarrados nos pescoços de cabras para
criar números musicais. Esses artistas vasculham suas feiras tradicionais em busca de sinos de diversos
tamanhos e que possam ressoar em diferentes tons. No Rio de Janeiro não é tão fácil encontrar toda
essa variedade, assim, Richard Riguetti resolveu fabricar seu próprio arsenal: com a ajuda de um esmeril
improvisado o artista lixou os sinos que encontrou na feira de São Cristóvão, diminuindo-lhes o tamanho
e, consequentemente, modificando a altura do som.
As Buzinas – Para as buzinas musicais, que também são muito utilizadas por palhaços desde o século
XIX, Richard Riguetti recorreu aos diapasões soprados, pequenos objetos fabricados para que os músicos
tenham referência sonora para a afinação das cordas de seus instrumentos (utilizou diapasões de violão,
violino e cavaquinho). A ideia foi acoplar às buzinas esses diapasões, já que trazem notas precisamente
afinadas. Valendo-se de um esmeril, Richard conseguiu diminuir seus tamanhos e obter variações nas
notas, chegando à uma escala completa de doze tons. Ainda foi preciso muita experimentação com os
materiais para que as buzinas ressoassem sem dificuldade nos tons graves (buzinas de padeiro) e nos tons
agudos (buzinas de bicicletas), para que o som pudesse ser provocado facilmente e com boa projeção e
qualidade sonora, adequando-se às necessidades das cenas criadas, muitas com base no desempenho
acrobático e corporal próprio dos palhaços.
As Moedas – O número das moedas musicais, que ressoam na altura de notas musicais ao serem
percutidas em um pedaço de mármore, tornou-se lendário entre artistas e pesquisadores das artes
circenses. Teófanes Silveira, ao relembrar de vários palhaços músicos e excêntricos, enfatiza este número
pela beleza do efeito sonoro das moedas lançadas sobre um “picadeirinho” de mármore. Treme-Treme
também tinha esse número em seu repertório, no entanto, suas moedas musicais estavam perdidas. O
processo de entendimento e criação desse aparato cênico é cuidadosamente descrito por Richard Riguetti
no Almanaque de 25 anos:
Pois é, em meio ao processo do Tremelicando concluímos que não seria possível que esse
grande acessório cênico finalizasse o espetáculo. Assim, nossa nova construção cênica, O
Circo de uma Nota Sol, tinha o título inicial de Calhambeque, para ser o momento em que o
Táxi Maluco estaria no centro da criação. Mas quando fomos visitar o táxi junto com Teófanes
Silveira, palhaço Biribinha, nosso amigo e colaborador do último projeto, percebemos mais
uma vez uma série de fatores que inviabilizavam a utilização do Táxi. Reunindo com Biribinha
resolvemos aprofundar nosso trabalho de excêntricos musicais aproveitando um momento
circense conhecido como ¼ de Hora. Apoiados na percepção de que o palhaço excêntrico
musical havia tocado profundamente o grupo, percebemos que o Táxi Maluco não era um
caminho do grupo, mas a continuidade do desejo de homenagear o Treme-Treme, o que já
acontecera em Tremelicando. Entretanto, a vontade de colocar o táxi na rua está viva, já que
há um compromisso com a família do Treme-Treme, que antes de falecer deixou claro que
somente os artistas do Off-Sina poderiam fazer esse calhambeque andar novamente. 145
O Circo de uma Nota Sol é a continuidade da pesquisa acerca da poética dos palhaços excêntricos
musicais, dessa vez com direção de um artista que também trabalha com musicais inusitados, como vimos
na abordagem sobre a Cia. Teatral Turma do Biribinha, no capítulo anterior. Por influência dos saberes
do encenador, alguns aspectos musicais novos foram trabalhados, como a recuperação de números e
paródias das Duplas Caipiras, como as que foram citadas no capítulo anterior tanto na abordagem sobre
o Circo Sudan quanto nos relatos de Teófanes Silveira.
Em meio ao processo contínuo de pesquisa e treinamento da linguagem musical dos palhaços,
Lilian e Richard não somente aprimoraram sua execução dos instrumentos inusitados já trabalhados
no espetáculo anterior, como também incluíram as taças de cristal e dos instrumentos inventados por
Richard Riguetti: a bombofina 146 e a Canecofonia, formada por um conjunto de panelas, canecas e pinicos
percutidos, uma recriação particular das inúmeras variações de baterias e “pianos” com materiais diversos
que os excêntricos exploram em seus números.
As Taças de Cristal – O som das taças de cristal é produzido pelo atrito do dedo molhado nas
bordas. As mudanças de tom são alteradas pelo tamanho e formato das taças, assim como a quantidade
de água dentro da taça. Menos água – mais agudo. Mais água- mais grave. O uso de taças como instrumento
musical é um recurso clássico dos palhaços.
A Bombofina – Esse instrumento aplicou a tecnologia utilizada para as buzinas, mas se valendo de
bombas de pulverização para a propulsão do ar. Para fixar as bombas a uma base, Richard Riguetti construiu
uma armação feita de alumínio inspirada nas armações conhecidas como colete de bumbo e caixa de guerra
de fanfarra. Para aprimorar o sistema, Richard utilizou molas nas hastes das bombas, permitindo que essas
fossem puxadas ao invés de apertadas.
A construção de um instrumento como a bombofina demonstra uma fluência com relação aos
procedimentos estudados e praticados, uma maior desenvoltura para o uso dos recursos inusitados ao se
comparar com as experiências anteriores do grupo. Enquanto a preocupação anterior estava centrada na
recriação de números e procedimentos do palhaço Treme-Treme, muitos destes já considerados números
clássicos, agora o Grupo Off-Sina expande sua pesquisa para a criação de seus próprios aparelhos. A bombofina
é fruto da experiência também intensamente criativa de buscar soluções para construir os instrumentos
já conhecidos, nesse sentido, o grupo, especialmente Richard Riguetti em sua lutheria inusitada, já revela
uma apropriação da poética musical dos palhaços excêntricos, que não abrange somente a execução de
números, mas a construção de aparatos cênicos e a invenção de novas possibilidades a partir de materiais
aparentemente esdrúxulos, como as bombas de pulverização.
3.4 Escola Livre de Palhaços - ESLIPA
Além de pesquisar e se aprimorar como músicos excêntricos, nos últimos três anos, as ações do grupo
são também marcadas por um trabalho pedagógico e uma preocupação em fomentar o aprimoramento do
trabalho de novos palhaços, partindo do princípio da diversidade. Em 2014, o Off-Sina promoveu a terceira
turma da Escola Livre de Palhaços (ESLIPA). Assim como os demais projetos contínuos do grupo, a ESLIPA
acontece com recursos de leis de fomento e fundos de apoio, como o FATE e o Programa de Fomento ao
Teatro da cidade do Rio de Janeiro.
As atividades da ESLIPA são organizadas em módulos com duração de uma semana em cada mês.
Cada módulo recebe a visita e a orientação de um mestre ou de uma mestra palhaço/a, que durante aquele
tempo divide sua experiência e seus saberes com a turma. Além dos artistas da comicidade, há também
instrutores, professores de várias áreas como: música (instrumentos, tocada e dançada), história do circo,
cenografia, figurino, mímica, entre outros. Richard e Lilian optam por oferecer às turmas uma amplitude
de visões, convidando artistas de origens, locais e procedimentos diversos, como Teófanes Silveira e Esio
Magalhães. Além dos mestres, há também o acompanhamento de instrutores de técnicas diversas, como
magia cômica, mímica e instrumentos musicais. Abaixo segue uma listagem com os nomes dos artistas que
têm trabalhado nesse projeto desde 2012, segundo o Almanaque Comemorativo de 25 anos:
Para os autores desta obra, a ESLIPA representa, como no título do texto de Michelle Cabral 148: a
ousadia pioneira de uma dupla de palhaços. Palhaça, diretora teatral e pesquisadora de teatro, em sua
narrativa é possível entrarmos em contato com uma análise de alguém que, mesmo não tendo sido aluna
da Escola, sabe das dificuldades de inserção nos processos de formação de palhaço/a no Brasil; bem como
da importância em se ter uma proposta pedagógica que aposta na ideia de que essa formação só é factível a
partir de pluraridade de informações, formações, influências, saberes. Ou seja, muito do que ela coloca vem
de encontro com o que os autores têm trabalhado sobre o significado da produção das artes do circo e da
palhaçaria, em particular.
Além disso, Michelle Cabral trabalha com o entendimento de que a linguagem circense e suas inúmeras
formas de construções é transversal em si, cruzando com outras linguagens artísticas. Historicamente, a
constituição destas artes, independente do território: no circo-família, nas escolas de circo, circo social,
grupos e artistas autônomos, universidade, entre outros, atravessou e enviesou diversos modos de se
formar, por exemplo, um palhaço. A ESLIPA entende assim a relevância da construção do palhaço/a. O artigo
de Michelle Cabral está no final deste capítulo como texto complementar, podendo ser lido na íntegra.
Em meio à multiplicidade expressa no conjunto dos saberes adotados pela ESLIPA, é possível notar que
a música ocupa um lugar fundamental, tal qual as artes corporais e teatrais. Acordeom, percussão, trombone/
trompete, canto, bem como a convivência com artistas como Teófanes Silveira, Marcelo Bernardes, Kiko Horta,
Daniel Gonzaga, Mônica Besser, Ricardo Pavão, Pedro Paes, Paula Leal, Gabriel Leite, Bruno Araújo, Nilo Maia e
Mauro Bruzza, enfatizam a relevância que a música adquiriu para Grupo Off-Sina e para seu entendimento da
arte dos palhaços. A ESLIPA compreende a poética dos palhaços como diversa, multifacetada, estruturada em
muitas possibilidades expressivas e técnicas. Assim, dentro do ideal de uma escola livre, os artistas do Grupo
Off-Sina organizam uma metodologia centrada na autonomia dos palhaços-aprendizes, que por meio de um
panorama vasto de possibilidades podem complementar, repensar e expandir usa própria poética.
Na entrevista realizada, os artistas do grupo conversaram sobre as suas relações com a descoberta de
suas habilidades musicais e de suas expectativas de desenvolvimento como palhaços músicos.
Para Lilian Moraes 149:
Então, quando começo a estudar o número dos sinos, é um piano de sinos, me identifico de uma
maneira tão profunda, me reconheço naquilo e fico até surpresa porque a minha inabilidade
musical até um tempo atrás era tão grande, de repente me encontro como palhaça excêntrica
musical. E percebo também, mais para frente, no momento em que a gente vai aprofundando
a pesquisa sobre o excêntrico musical, de que realmente esse é o meu lugar. Esse é um lugar
onde me sinto bem, e que até então a música para mim era um fantasma, era um monstro,
do qual eu tinha muito medo inclusive de me aproximar. Isso foi um fator muito importante e
enriquecedor para o meu trabalho de palhaça. [...] Desde 2010 que a gente vem conseguindo,
sistematicamente, a dar continuidade a nossa formação musical, isso se deve muito também
à oportunidade de ter os projetos fomentados. O trabalho desse aperfeiçoamento e dessa
qualificação musical é para sempre, ele tem que ser diário mesmo, é o trabalho do músico,
o trabalho do bailarino, é um estudo constante. A gente agora está para começar a nossa
parte de qualificação desse ano. Paralelo a isso a gente também vem tentando aperfeiçoar
os instrumentos, aperfeiçoar o nosso treinamento, ou seja, treinar mais. A parte de produção
ainda nos toma boa parte do nosso treinamento, mas a gente vem se dedicando também a
aprofundar o estudo e a prática do ensino musical.
A ideia também é atingir uma alta performance. Então nós fizemos o básico, tudo que a gente
podia fazer, meio no tapa e na coragem e agora esse momento é de aprofundar e qualificar
aquilo que a gente faz e criar novos instrumentos. Já tenho dois projetos de construção
de novos instrumentos, vamos aperfeiçoar os que nós já construímos, compramos uma
máquina diferente, o primeiro fiz tudo no esmeril, agora comprei uma mini-retífica, que é
uma ferramenta multifuncional que vai nos ajudar muito a fazer pequenas coisas.
Nos últimos anos, é perceptível que a máscara do palhaço tem adquirido uma diferente popularidade
daquela que alcançou com as práticas circenses, já que hoje é ferramenta disseminada em cursos e oficinas
de formação de atores, tendo muita procura por parte dos estudantes de teatro, que muitas vezes utilizam o
nome clown. A nós não interessa tal distinção, bem como não nos cabe agora entender as razões dos porquês
para que alguns artistas façam essa discriminação; entretanto, há uma pluralidade de artistas de origens
diversas que se interessam e se dedicam ao palhaço. No caso do Grupo Off-Sina, tal interesse é anterior a
essas tendências, estando mais ligadas às descobertas de um tipo de artista popularizado cuja linguagem
vinha de encontro a seus anseios artísticos e políticos. Assim, junto com todo o interesse pela linguagem
dos palhaços que tem crescido acentuadamente, esse tipo de personagem também começa a ser mais
compreendido enquanto um tipo de artista com características visíveis de multiplicidade e transversalidade,
possível de transitar entre diferentes linguagens e espaços. Sua relevância, enquanto músicos, também pode
ser verificada em diversos outros grupos e companhias além daqueles já citados anteriormente.
Quadro 1
A superioridade do homem está no saber. Nele muitas coisas são guardadas que os reis, com
todos os seus tesouros, não podem comprar, sobre as quais sua vontade não impera, das quais
seus espias e informantes nenhuma notícia trazem, e que provêm de países que seus navegantes
e descobridores não podem alcançar. Hoje, apenas presumimos dominar a natureza, mas, de fato,
estamos submetidos à sua necessidade; se, contudo nos deixássemos guiar por ela na invenção,
nós a comandaríamos na prática. 151
A cidade do Rio de Janeiro cedia desde 2012, uma importante iniciativa pedagógica no âmbito das
artes circenses, mais precisamente da palhaçaria. A Escola Livre de Palhaços, ou simplesmente ESLIPA
como é conhecida, é resultado da luta e do desejo de compartilhar uma técnica e uma arte cunhada ao
longo de anos de existência do Grupo Off-Sina, ou ainda de seus fundadores a dupla de palhaços Richard
Riguetti e Lílian Moraes.
Muitas iniciativas de ensino e aprendizagem na arte da palhaçaria já foram desenvolvidas em
diferentes formatos, oficinas, cursos, residências, retiros e trocas diversas. Logo, o que a ESLIPA traz
de novo para este universo tão complexo que é a formação do palhaço? Para entendermos o que esta
trajetória que já entra para seu terceiro ano de existência significa, é necessário retomarmos um pouco do
universo da palhaçaria na história do circo no Brasil.
No chamado circo tradicional a formação do artista se dá pela transmissão de forma oral e prática
pelos mestres às novas gerações dentro do universo da lona, perpetuando ao logo de séculos a tradição
circense. Assim, o saber era repassado e apreendido de forma empírica e gradual ao longo de toda uma
existência de vida. Em outras palavras o artista era forjado sob a lona, dia após dia, durante anos de
formação contínua, que incluía também além da repetição e do treinamento diário, a observação e as
relações pessoais vividas naquele universo. Assim, a formação do artista circense, para além da arte e do
saber adquirido, era também um modo de vida.
Essas características da tradição circense também se aplicam às artes da palhaçaria. No circo
tradicional o palhaço também se revela de forma natural durante a vida circense daquele artista. Esta
“formação” incluía a observação dos palhaços mais experientes, a repetição das entradas e reprises e na
interação contínua com diferentes públicos. Isto quer dizer que para a tradição circense “não se ensina a
ser palhaço”, contudo percebe-se que os palhaços eram artistas que dominavam diferentes modalidades
do saber circense e com grande habilidade para desconstruí-las na busca do risível. Assim, é comum
encontrarmos relatos de como este ou aquele artista se tornou palhaço movido pela necessidade do circo
surgida no momento e de como este aprimorou esta arte ao longo de anos de experiência. Este breve
resgate se faz necessário para entendermos que o conhecimento da palhaçaria é um campo vasto ainda
sem sistematização e elaboração teórica, particularmente no que se refere às metodologias de ensino e
aprendizagem específicas para este saber. Na contramão desta realidade, podemos destacar o aumento
cada vez maior de importantes pesquisas (algumas publicadas, outras restritas ao âmbito acadêmico)
sobre o palhaço, sua história e procedimentos técnicos.
Atualmente a linguagem do palhaço adentrou todos os espaços, a rua, o palco, e também as
universidades. Percebe-se neste contexto, que a busca por uma formação e/ou capacitação nesta
linguagem fora do universo circense tradicional recebe uma forte influência de métodos “importados”
de escolas europeias, particularmente da escola francesa, além do cruzamento com teorias e métodos,
comumente utilizados nos estudos teatrais de formação de atores. Um espaço de formação que se
proponha a desenvolver uma metodologia de ensino específica para formação do palhaço de forma
continuada enfrenta desde sempre, grandes desafios. Assim, a ESLIPA, vem para preencher esta lacuna
contribuindo para o ensino da arte do palhaço, como também fazendo história pelo seu pioneirismo.
O ensino da palhaçaria na ESLIPA parte da relação entre dois pilares iniciais: a práxis e a experiência.
É a práxis que vai fundamentar a construção do saber, rompendo as dicotomias entre pensar e fazer.
O conhecimento não é adquirido somente no exercício intelectual no decurso de uma aula, como também
é colocado à prova na atividade do jogo do palhaço, e na observação reflexiva. Desta forma, conceitos
abstratos são conectados com a realidade vivida. Assim, a metodologia de ensino parte da experiência de
cada um e da experiência-ação com o outro. Mas afinal o que é experiência? Como podemos definir que
algo foi experienciado? Segundo Bondia 152:
O sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando
um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua
oportunidade, sua ocasião. A palavra ex – periência tem o ex de exterior, de estrangeiro,
e exílio, de estranho e também um ex de existência. A experiência é a passagem da
existência, a passagem de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas
que simplesmente “ex-iste” de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente.
Podemos perceber nas palavras do autor que a experiência é algo único e singular. “Não é o que
acontece, mas o que nos acontece”, e por ser assim, não pode separar-se do sujeito que a vivencia.
Na relação ensino/aprendizagem com os mestres em sala de aula, nos exercícios individuais, na
observação do outro e nas apresentações coletivas em praça pública, alunos/palhaços e mestres dividem
o mesmo palco, relacionando entre si e com o público, num grande exercício de experiência estética e
humana.
A experiência é, portanto, algo pessoal e intransferível, não pode ser repetida, não está fora de
nós, antes nos consolida, configura uma tessitura concreta e singular, uma “forma humana de estar no
mundo”.
A ESLIPA tem reproduzido, de forma transversal, as relações de troca que encontramos no circo
tradicional, onde o mestre compartilha seu saber com o aprendiz, que por sua vez também o constrói
a partir das multi-relações produzidas neste contato. Na escola, mestres e alunos/palhaços de diversas
regiões do Brasil, com culturas e sotaques díspares, com experiências artísticas e de vida diversas, se
relacionam e interagem num grande espaço de trocas coletivas e de buscas individuais.
Uma pedagogia de formação compartilhada, não é de forma alguma de fácil realização. A valorização
do saber de cada um e do conhecimento que é construído coletivamente requer de aprendizes e mestres
um desprendimento e uma entrega que somente é possível no mais absoluto respeito e dedicação, para
transformar em material de trabalho todas as tensões e contradições que possam surgir neste processo
de formação.
Gerada do amor de uma dupla de palhaços, a ESLIPA deu o primeiro passo. Que possamos caminhar
juntos, desbravando cada vez mais o caminho rumo à formação de um palhaço genuinamente brasileiro.
CAPÍTULO 4
A MULTIPLICIDADE DE VOZES:
com quantos artistas/músicos se faz um excêntrico musical?
Durante a trajetória do Grupo Off-Sina, muitos artistas têm contribuído para suas experiências como
palhaço e músicos excêntricos. Neste momento, os autores cedem lugar a uma multiplicidade de vozes e
olhares que complementam nossa abordagem com seus próprios estudos e descobertas. Narram a partir
de seus lugares, de suas afecções, afetos, descobertas quando se envolveram nesse caminhar de projetos
e pesquisas que Lilian e Richard ofertaram; encenadores, instrutores, preparadores e parceiros diversos
que também se entregaram ao entusiasmo e às possibilidades poéticas dos excêntricos musicais. Tais
testemunhos ampliam nossa discussão e trazem-nos importantes constatações, percepeções e muitas
reverberações. São as vozes daqueles que se envolveram especialmente na prática artística, descobrindo
a poética dos excêntricos musicais tanto em suas ações pessoais quanto como parceiros e colaboradores
do Grupo Off-Sina.
4.1 As vozes de amigos e parceiros
4.1.1 Amir Haddad
Encenador e dramaturgo fundador do Grupo Tá na Rua
RESPEITÁVEL PÚBLICO,
O Palhaço
que não troca de roupa,
Que traz na cara pintada
a possibilidade de todas as caras,
de todas as bocas,
De um único Nariz.
O nariz do Palhaço!
A habilidade técnica,
A melodia!
O instrumento musical
inesperado
E surpreendente!
Off-Sina!!
Uma novidade neste mundo
tão antigo.
Um prazer e uma emoção.
4.1.2 Daniel Gonzaga
Diretor Musical dos espetáculos Tremelicando e O Circo de Uma Nota Sol
É tremelicando, é tremelicando
É tremelicando que eu vou me espalhando
É tremelicando, é tremelicando
É tremelicando que eu vou
É tremelicando, é tremelicando
É tremelicando que eu vou me espalhando
É tremelicando, é tremelicando
É tremelicando que eu vou
É tremelicando, é tremelicando
É tremelicando que eu vou me espalhando
É tremelicando, é tremelicando
É tremelicando que eu vou
4.1.4 Biribinha Silveira
Encenador e Dramaturgo do espetáculo O Circo de Uma Nota Sol
No processo de criação do espetáculo com excêntrico musical minha inspiração foi a trama instigante
do circo-teatro. A mistura do instrumento convencional com os inusitados amplia a possibilidade de criação
e execução da música, com eles podemos fazer coisas que só podem ser feitas com essa junção. Além disso,
é um recurso visual e sonoro muito legal para o espetáculo. A possibilidade de montar um espetáculo de
excêntrico musical hoje em dia é muito importante, pois apesar de ser uma arte antiga, os instrumentos e a
execução dos mesmos sempre será inovadora, chama a atenção e surpreende a plateia.
Era uma vez um menino que nasceu quando o circo teatro se acabou!
Ele tinha em seu coração um desejo imenso de saber mais sobre aquela arte que tanto
ouvia falar e mesmo só por ouvir, ele ficava encantado.
O tempo passou e um dia ao entardecer, o menino foi tomado por uma explosão de
sons... businas, apitos, chocalhos e concertina, rufar de tambores e vozes compunham
melodias engraçadas que o tocaram profundamente.
Seduzido por aquele som, o Meninio dobra a esquina e o que vê faz seu coração bater
mais forte! Como se o céu tivesse descido à terra, um casal de palhaços traz para o
menino o seu sonho realizado.
Sobre um céu estrelado, Café pequeno e Currupita apresentam o Circo de uma Nota Sol.
(Texto de divulgação do espetáculo O Circo de Uma Nota Sol)
Leite Ninho
Leite Ninho
Leite Ninho
Leite Ninhoooooooooooo
Currupita –
A meia noite o galo pinica o pinto
O pinto pinica o galo
E o galo corococó 1ª Parte
Currupita –
A meia noite o galo pinica o pinto
O pinto pinica o galo
E galo corococó 2ª Parte
Café Pequeno – Pensei que a segunda parte fosse diferente da primeira, mas é igual.
Currupita – Não!!!! A primeira é irmã da segunda e prima da terceira, que eu vou cantar agora.
Café Pequeno – Ah é? Então canta!
Currupita -
A meia noite o galo pinica o pinto
O pinto pinica o galo
E o galo corococó 3ª Parte
Café Pequeno – Chega, Currupita! Você já cantou muito. Agora é a minha vez.
Currupita – Você também é cantor? Então vai lá!
Café Pequeno –
Entrei no mato crioula 1ª Parte
Currupita – Que música é essa? Você não canta outra música, não?
Café Pequeno – Canto! Vou cantar a segunda parte que não tem nada a ver com a primeira.
Currupita – Ah é? Sendo assim, eu quero ouvir. Pode cantar.
Café Pequeno –
Entrei no mato crioula 2ª Parte
Entrei no mato crioula 3ª Parte
Currupita – Chega! Não aguento mais! Você quando entra no mato com essa crioula não quer mais sair.
Café Pequeno – E você quando pega no pinto não quer mais soltar.
4.1.5 Marcelo Bernardes
Diretor Musical do Nego Beijo
O Projeto “Encontro do Riso com o Choro”, em que se misturava o choro com os palhaços, foi para mim
um achado, me fez reviver o tempo do cinema mudo. Bem nas raízes do choro, que se adapta perfeitamente
à função de acompanhante das cenas, pois tem na sua estrutura de três partes uma variação de nuances
que naturalmente se encaixam nas cenas em diferentes momentos.
A criação da música no “Nego Beijo” teve uma parte interessante, que foi quando os atores mesmo
estavam tocando e cantando. Então, nestes trechos especificos, as composições e arranjos levavam em conta
o nível técnico de cada ator na função músico. O resultado foi muito bom e melhorando a cada dia.
Os instrumentos inusitados mostram acentuadamente o lado lúdico da música, e de como os sons
gerados por objetos, sendo explorados em suas variações de tamanho, produzem diferentes frequências
que organizadas musicalmente são as mesmas notas dos instrumentos convencionais, que apoiam na
gravação. Ouvindo os palhaços tocando melodias nestes instrumentos inusitados, acompanhamos as
infinitas possibilidades de criação musical no dia a dia.
4.1.6 Mônica Besser
Autora e compositora das músicas Dá Licença, O espetáculo acabou, Chorão, Borralhona e Café Pequeno
Uma tarde ensolarada de 1995 fui visitar minha madrinha numa casinha em Laranjeiras. E lá prás
tantas da conversa ela me diz: Monica, tenho um amigo que é palhaço e está querendo uma música especial
para o seu ‘personagem’, o Chorão…, e começou a me descrever um pouco o palhaço e o ser humano por trás
do tal Chorão. Depois de alguns minutos, tive que sair correndo para aula (estava no último ano da escola
ainda), entrei num ônibus cheio e fui no engarrafamento até a Gávea, com o caderno na mão e uma melodia
que ia virando letra. Eu ria sozinha e as cores brincavam em minha imaginação e eu ria mais alto (as pessoas
ao redor me olhavam como se eu fosse uma louca qualquer), e chegando na escola liguei diretamente para
ele: - secretária eletrônica - não tive vergonha de cantar em pé no meio do pátio, à capela, a melodia recém
“recebida”. O inspetor me deu uma bronca e eu entrei na aula já iniciada…
quaquaraquaquaquaqua
Qual a criança que não sabe rir
E como parar de fazer xixi
Não sei como adulto consegui ficar
Sem dar gargalhada
Rir até chorar
Ahahahahahaha (riso que vira choro)
Alguns dias depois, fui conhecer este ser humano brilhante, Richard Riguetti, que se tornou um grande
amigo. Me encantei com seu trabalho, sua família (que eram praticamente uma coisa só), Lilian e os dois
filhos lindos pequenos, aqueles figurinos para todo lado, brinquedos, baús coloridos, a casa cheia de ideias
e ideais…
Alguns anos depois Richard me puxou numa conversa depois de uma festa no terreiro, e ali mesmo,
no barro vermelho, começou a contar sobre o Café Pequeno, este outro palhaço que estava ‘baixando’ agora,
e um papo que o Chorão tinha ido embora… (perguntei para onde? mas ele também não soube responder) e
fiquei toda feliz com a incumbência e confiança. No dia seguinte, acordei cedo e fui varrer o terreiro, quando
de repente começa a soprar um vento forte rodopiando, levantando a folhas, e me pega de novo aquela
risada sozinha (que quem olha de fora acha que você é doida). Aquelas cores, e eu varria e rodopiava com
a vassoura e ria e quando chegava uma parte que dizia “um coração que cabe o mundo inteeeeeeeiro”, o
eeeeeeeeeeeiro ecoava e ressonava por todo o vale, e isso me fazia rir ainda mais…
Já mais confiante e com mais intimidade, eu mesma reclamei: - e a Currupita? Lilian também tinha
que ter uma música só para ela, oras. Pedi que ela me falasse sobre essa encantadora palhacinha… toda
delicada… - “Nada! ela gosta é de funk, Monica! E tá doidinha pra se casar” - me contou com aquele olho que
sorri que ela tem, sobre a sua palhaça. Pronto. Cheguei em casa sentei no cajon (instrumento de percussão) e
comecei a rir sozinha, a imaginar a pobrezinha rezando pelos cantos ao São Palhaço, desajeitada dançando
com a mão nas cadeiras… que alegria. Até hoje, toda vez que sento num cajon canto essa musica e que
automaticamente gruda na cabeça das pessoas que ficam sempre curiosas pra saber quem é essa “currupita
tá” que “tá doidinha pra se casar”…
A vida me levou pra outras terras, por outros mares e acabei me mudando pra Espanha em 2009. Não
é nada fácil morar fora. Quem já morou sabe, quem não morou imagina: outras pessoas, outra língua, outra
água, outra comida, outro ar, outro clima, enfim. Haja adaptabilidade. Um dia daqueles de coração apertado
fui resgatada por um email do Richard: “Querida Monica, estamos montando novo espetáculo e precisamos
de uma música para abrir o show”. Fiquei emocionada quando aquelas cores, aquele riso largo começou a
brotar das frestas do pé direito alto, daquele apartamento do século passado, comecei a imaginar aquela
banda de palhaços coloridos chegando na praça convidando as pessoas para uma viagem ao encantado…
a tarde caiu suave, os pássaros cantavam leves e ficou mais familiar aquela terra distante. Eu estava em
casa. Acabei ouvindo no mesmo suspiro a melodia de despedida, o adeus saudoso do circo partindo para
outras bandas… E percebi que é natural eu estar também cantando em outros cantos deste mundão de
deus… o espetáculo tem que continuar…
Estupendo, retumbante,
Tirulirulirulá,
O Grupo Off-Sina
Acaba de chegar.
Olha que sensacional!
Venham todos para cá
O espetáculo vai começar
Mensageiros da verdade
Brilha o sol com todo amor
Queremos a liberdade
A justiça onde for
Para todos, para todas
As pessoas do Brasil,
Somos voz, somos o povo,
Somos pátria, mãe gentil.
O espetáculo acabou
Amigos muito obrigado
Um dia nós voltaremos
Num domingo ou feriado
O Grupo Off-Sina agradece à você
Que nos dá com seu sorriso
A razão pra nós viver
O seu sorriso
É a razão pra nós viver.
Me surpreendi quando, depois de alguns anos, fui ao Rio e vi meu amigo Richard, que só tocava
buzina quando eu o conheci, tirando som do acordeon, do sax, e de instrumentos de percussão. Que rápido!
Me lembro como ele se dizia desafinado e sem jeito pra música… Que superação!
No espetáculo chamado “Tremelicando” ele já apresentava uma musicalidade nova dentro do
universo que eu conheci. Alguns anos depois, na próxima volta ao Rio, sou surpreendida em plena praça
pública com o espetáculo “O Circo de Uma Nota Sol” aonde Richard e Lilian (outra que estava escondendo
seu talento musical) cantam e tocam vários instruementos: além do acordeon, sax, percussão, bateria,
sinos, e outros tantos instrumentos criados e desenvolvidos por eles mesmos! Feitos de objetos diversos, que
brincam com os sons das coisas mais inusitadas, e apresentam um show inteiro musical, com tudo executado
ao vivo por eles! Que emoção! Eles me tocam fundo… ri e chorei algumas vezes durante aqueles momentos
que parecem parar o tempo e a cidade ao redor daquele Largo do Machado repleto de crianças de todas as
idades.
Fazer parte desta história linda que o grupo Off-Sina está escrevendo há quase 30 anos é um orgulho.
Um presente da vida.
Há mais de 20 anos trabalhando profissionalmente com música, como cantora e compositora, sempre
busquei inspiração no universo lúdico encantado, ou como diz a frase de Andy Warhol “Art is what you can get
away with”. Arte é aquilo que ‘te leva’, que ‘te tira deste mundo’, te transporta para outra dimensão, te coloca
em outro estado de percepção, abre portas e janelas dentro da cabeça e coração, dá asas aos sonhos, nos faz
suspirar e acreditar que a vida não é só esta rotina vazia de significado que se tornou o dia a dia do cidadão
urbano contemporâneo.
Com apenas 17 anos conheci o Richard, que traduz tudo isto que escrevi acima dedicando sua vida ao
teatro e circo de rua. Trabalhando nas praças para levar um pouco de cor, de riso, de alegria, para crianças
que, muitas vezes não tem visto nada além de concreto e esgotos a céu aberto, e para adultos e idosos,
deficientes, gentes de todo tipo, de qualquer parte, gente que muitas vezes se pensa invisível à sociedade,
que no olhar deste nobre artista podem sorrir e se esquecer de tudo, ou se lembrar de tudo, nem que por
alguns instantes.
A música, assim como a dança, o teatro, a magia, o malabarismo, a acrobacia, enfim, todas as artes
que compõem o circo, são fundamentais para a formação do palhaço. Em minha opinião, não precisa ser
um especialista em cada uma dessas e sim beber um pouco de cada fonte, para que com a técnica, a pureza
e a simplicidade o palhaço possa tocar o coração do público que o assiste. A música por sua essência é
uma arte universal que toca a todos, é a principal ferramenta para criar um ambiente, levar o público a
uma determinada época, lugar ou sentimento. A música cria o clima, desperta, gera tensão, relaxa e sempre
será parte fundamental de qualquer espetáculo, não só como música propriamente dita, mas também como
sonoplastia.
Para um palhaço a música também pode ser usada para jogos de “ping-pong” com o público, números
participativos, convocatórias, desfechos, jogos de improviso. Assim como a arte do palhaço, a música tem
um campo de atuação infinito e fica realmente muito difícil especificar onde ela atua, pois a música está em
tudo, inclusive no silêncio.
Entendo e admiro a ESLIPA, pois ela compreende que o palhaço, em sua formação e atuação, pode
desenvolver um pouco de cada arte para poder eleger e atuar de uma forma mais ampla e completa.
Criar um “Homem-Banda” sempre é uma experiência magnifica, pois abrange diversos tipos de arte
e percepção. Para isso é preciso estudar um pouco cada artista, conhecer suas habilidades e seus limites,
não só musicais como também físicos. Deve-se criar um multi-instrumento completo, simples, leve, portátil
e de fácil montagem e desmontagem. Entender o que se busca com estes instrumentos e por fim criar algo
que contemple seus anseios e necessidades, um multi-instrumento completo que possa ser tocado por uma
pessoa e que por si só forme uma banda completa, com percussão, harmonia, melodia e elementos surpresa.
Junto com o Grupo Off-Sina criamos o “Casal Banda”. Foi um processo muito interessante. Em
princípio, em alguns encontros em festivais e eventos produzidos pelo grupo, tive a oportunidade de conversar
e conhecer bastante, além de seu trabalho, o seu desejo de montar um “Casal Banda”. Desta forma pude
começar a produzir seu primeiro multi-instrumento em meu atelier, em Porto Alegre. Esta primeira parte de
estudo do artista e montagem do esboço do mecanismo é a base para o início do processo. Em uma semana
junto com o grupo finalizamos o primeiro multi-instrumento, que é constituído basicamente por bumbo e
pratos em uma estrutura para ser levada como uma mochila nas costas e acionados por cordas que ficam
ligadas aos pés. O segundo multi-instrumento é um instrumento puramente de percussão, com um tarol,
canecas e apitos que são tocados com a boca e baquetas.
O mais importante para mim sempre é fazer um instrumento que possa ser adaptado e consertado
pelos próprios instrumentistas. Um “Homem Banda” é algo muito particular e, por isso, é importante que
o artista participe de sua montagem, uma vez que em sua trajetória sempre será necessário adaptações
e melhoramentos. O grupo teve consciência disto, o que facilitou nossa comunicação a distância e a cada
ano que passa eles próprios podem adaptar seus instrumentos a suas necessidades. A montagem do Casal
Banda foi algo muito significativo, pois o sucesso do trabalho e a independência dos artistas foi alcançada.
Hoje eles mesmos podem difundir e ensinar outras pessoas como produzir seus próprios instrumentos, o que
para mim é muito gratificante sendo que busco isso em meus trabalhos.
4.1.8 Cristiano Pena
Teatro Terceira Margem/ Fanfalhaça
COM A PALAVRA...
Pensando o público-alvo:
O palhaço-menestrel,
Pra bom começo ressalvo:
- Rimar não é sopa no mel!
É peleja em travessia...
Com a palavra, a poesia,
Poesia de Cordel.
Se abordo a estética
De Cordel Para Palhaço,
Conto, sem estardalhaço,
Por entre dedos, a métrica,
Por onde escorre a poética...
Melodia por adiante,
Como quem diz: - Povo, cante!
Cante e perceba a essência
Da música na experiência
De ser palhaço-brincante
Bom, a ESLIPA tem sido por inteiro uma ótima experiência para mim como palhaço, muito bom o
desenvolvimento em grupo que a ESLIPA nos proporciona, é muito delicado o trabalho em grupo de palhaços,
ainda mais na parte musical, os instrutores tem sido verdadeiros regentes de uma orquestra, não como nas
convencionais, mas sim uma orquestra colorida! Repleta de narizes vermelhos e com muito humor. As aulas
de acordeon tem sido maravilhosas, coisa inédita, creio eu, para um professor lecionar pelo menos 20 alunos
sedentos de conhecimento e com dedos nervosos para teclar o instrumento e fazê-lo rir ou chorar. Está sendo
uma ótima experiência também no quesito experimentação de novos instrumentos antes jamais tocados por
mim, como tambores, taróis e pandeiro, que já tenho uma certa afinidade. Incrível também é o despertar, se
assim posso dizer, de alunos que antes jamais tocaram um tambor e de forma coletiva têm descoberto dons
predispostos, todos aflorando em meio ao turbilhão de ideias e novidades que acontecem dentro da ESLIPA.
Minha relação com a música já existia antes da ESLIPA, pois como palhaço de rua já havia descoberto
o acordeon e tem sido meu fiel escudeiro na lida, na rua. Outro grande instrumento de paixão (e bem
brasileiro) que tenho tido afinidade (ainda mais na ESLIPA) é o pandeiro, sempre ditando meu baião ou
quiçá até meu samba e a tocar nos corações do nosso querido público, os protagonistas do espetáculo de
todos nós, artistas públicos. Sinto como se um “cristal bruto” estivesse sendo lapidado a cada aula, seja de
acordeon com Marcelo Guerini, seja de percussão com Ricardo Pavão, seja de voz com Paula Leal ou seja de
cordel com Edmilson Santini, aliado forte da musicalidade do palhaço!
Assim como a poesia está para alcançar as pessoas e afetá-las com muitas emoções na forma escrita,
ou melhor declamada, a música está para o palhaço, pois remete às pessoas uma certa nostalgia, sensações
vindo à tona, momentos que se foram e voltam a aflorar dentro dos corações e mentes dos que estão dispostos
a se afetarem e assistirem ao espetáculo do palhaço. Afinal, nesse mundo tão de plástico, tão artificial, nada
como um trabalho jocoso (e realmente trabalhoso!) como aprender um instrumento musical e utilizá lo da
melhor forma possível, muitas das vezes fazendo rir, e também em alguns momentos fazendo chorar.
Sem sombra de dúvidas pretendo continuar, foi um casamento perfeito! Assim como diz o ditado
“música através da vida, e vida através da música”, também vale pra arte, pois arte, música e vida são
sinônimos pela forma como enxergo a vida. Não é à toa que digo:
E essa minha relação com o circo, com a arte e com a música tenho mais que certeza que será um caso de
amor eterno...
4.2.2 Diogo Maroja - Palhaço Moleza
A formação musical que tenho vivenciado na ESLIPA me deu a oportunidade de desmistificar a música
como alguma coisa complicada, na qual se tem que estudar horas e horas e descobrir o instrumento como
uma espécie de brinquedo, um equipamento de diversão com o qual eu me comunico.
Antes de ingressar na ESLIPA eu não tocava nenhum instrumento. Cheguei a tentar tocar violão e
gaita quando era adolescente, mas a didática das aulas de música, o excesso de teoria e a disciplina que a
música exige fizeram com que naquele momento eu não progredisse muito. Até porque, como nem passava
pela minha cabeça ser palhaço naquele momento, para mim, aprender música não era tão importante
quanto é hoje.
A ESLIPA me apresentou a escaleta, instrumento que passei a inserir no meu trabalho pelos ônibus e
pelas ruas dos locais, onde passo. Como foi um trabalho que foi bem recebido, aproveitei o retorno e investi
em uma sanfona, a minha “esposa” Molezina, com a qual me casei há menos de 3 meses. Ela igualmente
tem me dado muitas alegrias e ressignificou totalmente meu trabalho, me dando mais segurança em cena e
mais material para cativar o público.
A música é extremamente potente para o palhaço porque ela é uma linguagem universal... ela
transcende os idiomas e comunica sem a fala. A palavra em excesso é um dos males contra os quais eu
sempre batalho... e a música tem se prestado muito bem a isso. Me sinto muito privilegiado de passar os dias
surpreendendo as pessoas com uma bela música no meio do cotidiano caótico.
Muitas das experiências positivas que já vivi com meu palhaço foram a partir do encanto que o
trabalho musical gerou nas pessoas... Em junho desse ano estava trabalhando no centro de Ilhéus com
minha sanfona e uma senhora me parou e disse assim “Moço, você que estava tocando o Asa Branca ontem
aqui?” “Sim”, disse eu. “Você poderia tocar de novo? É porque ouvi ontem, mas estava em uma correria louca
e não tive como parar para escutar”. Eu prontamente atendi ao pedido da senhora e ela foi se emocionando
no decorrer da música, e terminou chorando debruçada sobre meus ombros. Como ela me explicou mais
tarde, seu pai, que falecera há 4 anos, tocava também sanfona e tocou muitas vezes essa música para ela,
mesmo depois de cego.
É isso que mais me encanta na música: a possibilidade de falar muito por si só, dispensando as
palavras, e de tocar em lugares muito profundos onde a palavra não chega.
Desenvolver o estudo da música nesse momento é uma das questões mais importantes e cruciais da
minha vida, pois vem de uma relação de identificação muito forte com o que ela me proporciona e com o
desejo de apresentar um trabalho cada vez melhor ao público.
4.2.3 Bruno França – Palhaço Felizardo Tum Tum
As experiências musicais da ESLIPA só têm somado de forma positiva nas minhas atividades artísticas
tanto quando palhaço, tanto quando em grupo. Reparei que minha percepção musical melhorou muito depois
que comecei a vivenciar as atividades musicais da ESLIPA, principalmente com as provocações criativas do
professor Ricardo Pavão aguçando tanto a parte cômica quanto a musical, trazendo o entendimento de
mesmo trabalhando música não esquecer de colocar a comicidade nela, deixando-a ainda mais interessante.
Agora posso construir cenas cômicas de musicalidade junto com o diretor musical do meu grupo.
Antes minha relação musical era ruim, mas sempre tive o sonho de aprender a tocar acordeon e estar
na ESLIPA me possibilitou a realizar esse sonho, e estou aprimorando o toque da “sanfoninha de ouro” no
acordeon.
Com relação à música poder potencializar a arte do palhaço respondo essa questão utilizando o
ensinamento do Leris Colombaioni, dito por Esio Magalhães em seu módulo na ESLIPA: “O Palhaço tem que
saber um pouco de malabares, um pouco de dança, um pouco de música, um pouco de acrobacia e um pouco
da arte do ator para poder ser completo”. O palhaço tem de saber um pouco de tudo para potencializar cada
vez mais seu ofício.
Sempre procuro praticar acordeon pelo menos três vezes por semana, procuro permanecer o máximo
de tempo com ele para poder humanizá-lo e construir cenas com ele.
Acredito que se não fosse à existência do Palhaço musical não existiriam tantos números belos como,
por exemplo, a clássica reprise “O Concertista” e também as inúmeras possibilidades que ele tem de costurar
cenas e harmonizá-las. Tive a oportunidade na ESLIPA de construir cenas cômicas baseadas em músicas e
sambas clássicas, onde foram obtidos belos resultados.
4.2.4 Cíntia Nunes – Palhaça Rita Roberta
Foi na ESLIPA que tive meu primeiro contato com atividades musicais.
Eu tinha vergonha de cantar em público e não sabia soltar a voz, a aula da Paula Leal me fez entender
que eu posso trabalhar a voz e ser capaz de cantar afinada, corretamente, desde de que faça os exercícios,
pratique, saiba usar a respiração, o diafragma. Então foi fundamental para mim, porque me sinto capaz
agora, sei que é possível me propor a cantar. Sinto que posso trazer de volta músicas clássicas, ricas, que as
crianças de hoje precisam conhecer.
No caso dos instrumentos, senti que eu deveria ter tido esse contato antes, entrei na turma de
percussão e me identifiquei logo com o pandeiro. Comprei um para mim na primeira oportunidade. Tive
facilidade e achei prático, por caber na minha mala de palhaça, onde posso leva-lo sempre comigo. Fiquei
encantada na aula de cordel, onde pude criar e consegui cantar e tocar ao mesmo tempo.
Senti que o artista com habilidades musicais pode se tornar melhor e mais completo. Depois dos
contatos com a música que a ESLIPA me proporcionou, sinto que posso acrescentar a música de maneira
mais direta em todos os meus trabalhos.
Antes da ESLIPA, eu não me arrisquei a ir até alguma aula de canto, nem tinha tido a oportunidade
de tocar ou tentar tocar nenhum instrumento. Meu contato com a música era através da dança e dos meus
números de circo, tentava encaixar meus passos na música. Era o mais próximo que eu fazia. Depois da
ESLIPA fui procurar aulas de acordeon e estou fazendo até hoje. Planejo tocar nos espetáculos e futuramente
cantar também. Quanto ao pandeiro, sempre que posso toco com alguém que já sabe. Ou se escuto uma
batucada em algum lugar, corro, pego e tento acompanhar.
Sinto que o palhaço que toca algum instrumento é mais encantador, poético, parece ser mais
valorizado pela plateia. A música ao vivo é mais sedutora do que a gravada. Potencializa porque o público,
além de ouvir e sentir a música, pode ver a música. O artista se torna mais completo, com mais habilidades.
Além disso é mais uma possibilidade para o improviso.
E vou continuar! Vou seguir firme no acordeon. Eu amo aquele som. Parece que ele foi criado
especialmente para o circo (apesar de ficarem pedindo pra eu tocar forró). Estou torcendo para chegar logo
o dia que eu vou tocar a minha primeira música acompanhada do meu nariz!!!
4.2.5 Gzuz Lima – Palhaço Mijolino
I. Fontes Impressas
a. Periódicos e revistas
- A Gazeta Esportiva. São Paulo, ano 32, n. 11.229, 23 de novembro de 1961 – TITO NETO: “Chamada de Palhaço”.
- Almanaque Off Sina 21 anos [circo teatro de rua]. Rio de Janeiro, 2008.
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- Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 5 de agosto de 1902.
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b. Memorialistas
TITO NETO. Minha vida no circo. São Paulo: Ed. Autores Novos, 1985.
c. Dicionários/Enciclopédias
CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 5. ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada, 1984. Clássicos
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II. Entrevistas
MORAIS, Lilian; RIGUETTI, Richard. Entrevista concedida a Erminia Silva e Celso Amâncio de Melo Filho. Rio de Janeiro, jul. 2014.
MORAIS, Lilian; RIGUETTI, Richard. Entrevista concedida Erminia Silva. Rio de Janeiro, 03 abr. 2012.
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NOTAS