Revista História UEG Dossie Fotog
Revista História UEG Dossie Fotog
Revista História UEG Dossie Fotog
Ana Gandum
Universidade Nova de Lisboa
Lisboa – Portugal
[email protected]
Apresentação
1
Segundo Aline Lacerda (2013, p. 240) acervos fotográficos são “grupos de documentos tão distintos quanto
arquivos estritamente fotográficos, arquivos mais tradicionais que abarcam, além de documentos de gênero
textual, também o material fotográfico, parcelas de arquivos que foram desmembrados e dos quais restam
apenas seu componente fotográfico, coleções mais orgânicas de fotografias (pois que produzidas com alguma
sistemática), coleções menos orgânicas de fotografias (pois que mais fragmentadas), pequenos conjuntos de
fotografias avulsas reunidas sob critérios vários etc.”
2 | Apresentação do Dossiê ARRUDA, R. P; GANDUM, A.
percorridos. Ao serem abrigados por instituições que são concebidas como lugares de memória
(NORA, 1993), – tais como os arquivos, museus, bibliotecas, centros de documentação – estes
acervos adensam o patrimônio histórico e cultural de seus respectivos países. Tanto no Brasil
quanto em Portugal, verifica-se certa sensibilidade para a necessidade de guarda, tratamento
e disponibilização dos acervos fotográficos. Há, nestes dois países, instituições públicas e
privadas que são referências importantes para o trabalho com a história da cultura visual
fotográfica e que se tornaram verdadeiros repositórios, capazes de viabilizar o trabalho com as
memórias dos sujeitos, das famílias, dos governos, dos movimentos sociais e, também, dos
próprios fotógrafos, com suas histórias pessoais, seus aparelhos, técnicas e métodos de
trabalho. Nos limites desta apresentação, não será possível traçar um panorama da situação
dos acervos fotográficos nos dois países, mas podemos indicar alguns aspectos para reflexão.
No caso do Brasil é possível afirmar que três instituições podem ser vistas como
referência para o trato dos acervos fotográficos, pois contribuíram e ainda contribuem para
pensar as políticas de guarda, preservação e difusão: a Funarte, a Biblioteca Nacional e o
Instituto Moreira Salles. A Funarte começou a atuar no final da década de 1970 por meio do
seu Núcleo de Fotografia, renomeado INFoto (Instituto Nacional de Fotografia) em 1984, e
colaborou na implantação de uma política pública para os acervos fotográficos do país
(VASQUEZ, s/d). Graças especialmente ao Programa Nacional de Preservação e Pesquisa da
Fotografia, o INFoto contribuiu para disseminar a importância da valorização dos acervos
fotográficos em arquivos públicos e particulares, universitários e sindicais, nos âmbitos federal,
estadual e municipal (VASQUEZ, s/d). Foi nesse âmbito de atuação que surgiu a colaboração
com a Biblioteca Nacional por meio do Projeto de Preservação do Acervo Fotográfico da
Biblioteca Nacional (PROFOTO), iniciado em 1990, e que se revelou um dos mais importantes
trabalhos com acervos fotográficos do país. A Biblioteca Nacional se tornou, com essa
iniciativa, uma referência “(...) na afirmação e na definição de uma política de tratamento das
coleções fotográficas representada por meio de publicações técnicas, orientação, processo de
identificação e indexação, bem como da guarda desse material” (ZAHER, 2004). Já o Instituto
Moreira Salles afirmou-se nas duas últimas décadas como uma referência na constituição de
acervos fotográficos de caráter autoral, com ênfase especial em fotógrafos do século XIX e
XX, contendo cerca de 800 mil fotografias. Muitas outras instituições no país guardam acervos
fotográficos de relevância, tais como Arquivo Nacional, o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, o Museu Paulista da USP, a Fundação Joaquim Nabuco, o Museu de Comunicação
Social Hipólito José da Costa e o Arquivo Público Mineiro. Para oferecer uma visão mais ampla
do assunto, teríamos que levar em consideração as instituições públicas e privadas do âmbito
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Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Dir. Pat. Hist.
Documentação da Marinha, Fundação Bibliioteca Nacional, Fundação Joaquim Nabuco, Instituto Moreira
Salles, Leibniz-Institut fuer Laenderkunde, Museu Aerospacial, Museu da República e Museu Histórico Nacional.
4 | Apresentação do Dossiê ARRUDA, R. P; GANDUM, A.
a esse trabalho, podemos construir uma visão ampla sobre a presença da fotografia nos acervos
de diversas instituições3. Mais precisamente, nesse contexto, a existência de fotografias em
instituições de memória em Portugal foi exaustiva e até então, a nosso conhecimento,
ineditamente mapeada – ainda que sob a perspectiva da sua inscrição ou afetação a um contexto
colonial. Desde então, alguns desses arquivos e fundos vêm passando por reconfigurações
institucionais, como, por exemplo, o Instituto de Investigação Científica Tropical, hoje sob a
tutela da Universidade de Lisboa. Além disso, foram surgindo outros projetos de pesquisa na
área da fotografia, – como, por exemplo, a OPSIS – Base Iconográfica de Teatro em Portugal,
Mobilizando Arquivos, Photo Impulse, Perphoto –, assim como conferências, publicações,
colóquios e investigações acadêmicas dedicadas ao estudo da fotografia no contexto histórico
português, bem como à relação entre fotografia e (sua representatividade no e do) arquivo.
O arquivo surge então aqui como um conceito sinônimo de instituição de memória,
embora possamos considerar a existência de arquivos não institucionais, tais como os fundos
pessoais e as fotografias “soltas”, ou seja, não consideradas enquanto corpus arquivável. Desde
há cerca de uma década, assistimos igualmente a uma gradual afirmação no panorama cultural
português de instituições de memória dedicadas, direta ou indiretamente, à fotografia, tais
como: o Museu da Imagem em Movimento, em Leiria; a Casa-Estúdio Carlos Relvas, na
Golegã; ou, mais recentemente renovado, o Museu de Fotografia da Madeira – Atelier
Vicente’s, no Funchal. À semelhança do caso brasileiro, outro movimento importante no
contexto português tem sido o da dinamização de projetos de constituição de fundos
fotográficos digitais disponibilizados (exclusivamente ou não) online, que promovem a difusão
de seus acervos e facilitam o trabalho dos pesquisadores4.
Ainda à semelhança do caso brasileiro, para termos uma visão mais ampla da
representatividade dos acervos fotográficos em instituições de memória em Portugal,
deveríamos considerar a sua presença em nível distrital, municipal, das bibliotecas e de centros
de documentação diversos; e, sobretudo, considerar a sua presença nas coleções dos museus de
3
Arquivo Histórico da Marinha, Arquivo Histórico Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Arquivo
Histórico do Patriarcado de Lisboa, Arquivo Histórico do Ex-Banco Nacional Ultramarino, Arquivo Histórico
Militar, Arquivo Histórico Ultramarino, Arquivo Municipal de Lisboa – Fotográfico, Arquivo Nacional da Torre do
Tombo, Biblioteca Nacional da Ajuda, Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, Centro
Português de Fotografia, Fundação Mário Soares, Divisão de Documentação Fotográfica / Direcção-Geral do
Património Cultural, Palácio Nacional da Ajuda, Sociedade de Geografia de Lisboa.
4
Como exemplo podemos citar a base iconográfica do teatro em Portugal, OPSIS; o site em desenvolvimento
dedicado a fotografia vernacular portuguesa Foto-Sintese; coleções digitais fotográficas da Fundação Calouste
Gulbenkian; registos fotográficos do Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa disponibilizados
online; imagens fotográficas da secção Cinemateca Digital da Cinemateca portuguesa; a coleção online do
Centro Português de Fotografia; o repositório digital do Arquivo Científico Tropical.
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arte, onde se privilegia uma prática fotográfica autoral. Consideramos que o balanço da
situação dos acervos fotográficos no caso português é ainda mais incerto do que no caso do
Brasil, tendo sido pouco pesquisado de forma sistemática. Mas, em suma, na última década,
assistimos em Portugal a um processo de consideração da fotografia, quer enquanto
imagem/janela quer enquanto objeto/material, e mais particularmente como fonte de
interesse da disciplina da História (e das ciências sociais em geral). Assistimos ainda ao
aumento dos estudos e cuidados (de restauro, conservação, inventariação, digitalização…) com
as coleções fotográficas, ou ao seu devir institucional: a sua integração em arquivos e acervos,
bem como a uma crescente visibilidade da fotografia em museus e exposições de natureza
diversa.
O presente dossiê reúne duas entrevistas e oito artigos. No que tange às entrevistas,
temos duas conversas bem interessantes com representantes de instituições de alta relevância
para a memória cultural e histórica de seus respectivos países. Pela Biblioteca Nacional do
Brasil, temos Joaquim Marçal Ferreira de Andrade, servidor da instituição há trinta e nove
anos, que fez um amplo balanço do trabalho com os acervos fotográficos que esta vem
realizando há algumas décadas, o que a tornou referência na área. Pelo Arquivo de
Documentação Fotográfica, temos Alexandra Encarnação, que faz um balanço dessa mesma
instituição de grande relevância no que diz respeito ao panorama dos arquivos fotográficos em
Portugal, assim como do trabalho desenvolvido pela mesma na guarda de outros acervos. Na
entrevista, destaca-se ainda alguns exemplos de coleções e imagens no arquivo, fundamentais
quer para a história da fotografia em Portugal quer na Europa.
No que diz respeito aos artigos, talvez devido ao fato de ser esta publicação uma
iniciativa “brasileira”, houve uma resposta mais expressiva em relação às pesquisas que incidem
em coleções fotográficas no Brasil. Na apresentação dos artigos, optamos por trazê-los em
conjuntos. Temos dois artigos nos quais os autores, cada qual partindo de uma fotografia
específica, problematizam a participação das referidas imagens nas práticas sociais. O artigo
de Marcus Vinicius de Oliveira discute as formas de apropriação da fotografia de uma criança
guineense de nome Augusto na época de sua produção, no contexto da Exposição Colonial de
1934, na cidade do Porto. Estuda-se a trajetória da imagem com o objetivo de problematizar
o colonialismo contemporâneo, por meio das reflexões em torno dos usos e funções
desempenhados pela imagem. Já o artigo de Aline Montenegro Magalhães e Maria do Carmo
Teixeira Rainho problematiza a trajetória histórica da fotografia de uma mulher de turbante,
realizada provavelmente no Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX, pelo fotógrafo
alemão Albert Henschel. Em ambos, podemos acompanhar a potência dos estudos de biografia
6 | Apresentação do Dossiê ARRUDA, R. P; GANDUM, A.
das imagens e o quanto uma única fotografia pode constituir-se como instância de sentido, a
partir da qual várias problemáticas podem ser levantas, na medida em que ela é tomada
enquanto fonte histórica polissêmica. Os autores nos mostram que as imagens devem ser
interpeladas em relação às suas características formais, à sua autoria, ao contexto de produção,
bem como analisadas em virtude da produção, circulação, consumo e apropriações diversas ao
longo da história.
Um segundo conjunto de artigos nos leva para dentro de instituições de memória que
lidam com acervos fotográficos, sendo que um deles tematiza a experiência de um museu e o
outro aborda uma escola. O artigo de Guilherme Marcondes Tosetto apresenta um histórico
da atuação do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) na incorporação da fotografia
em seu acervo. A partir do levantamento das exposições realizadas pelo museu e da atuação do
Clube de Colecionadores de Fotografia, o autor constrói uma descrição detalhada do conjunto
fotográfico sob guarda da instituição, indicando os questionamentos artísticos que orientaram
o trabalho de curadoria na constituição da coleção. Já o artigo de Hugo Rodrigues Cunha traz
o relato do encontro fortuito e inesperado com um material fotográfico guardado em uma área
da escola onde é docente da disciplina de Química: o Liceu Camões, em Lisboa. A partir de um
pequeno conjunto formado por objetos, negativos e fotografias, ele realiza algumas reflexões
sobre a relação entre memória e história e os silêncios e invisibilidades, intencionais ou
involuntários, que marcam as ações humanas na escola e em outros espaços.
Outro conjunto formado por três artigos se dedica ao estudo, cada um a seu modo, dos
acervos dos fotógrafos Mario Baldi, Pierre Verger e Paulino de Araújo Ferreira Lopes. Mario
Baldi, fotógrafo austríaco, realizou um amplo trabalho de fotografia, escrita de artigos e
reunião de objetos da cultura indígena no Brasil, entre as décadas de 1930 e 1950. Marcos de
Brum Lopes analisa a coleção do fotógrafo, que é compartilhada por duas instituições de
memória: o Serviço de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural de Teresópolis (SPHAC), no
Brasil; e o Weltmuseum Wien (WMW), na Áustria. O texto de Marcos Lopes discute como o
“Projeto Baldi” vem sendo desenvolvido pelas duas instituições e reflete sobre os motivos e
intenções do colecionismo. O artigo de Marilécia Oliveira Santos e Thiago Machado de Lima
clarifica o trabalho minucioso sobre a constituição da Fundação Pierre Verger, enfatizando o
papel da instituição na guarda do legado fotográfico do fotógrafo e antropólogo francês, que
viajou por muitos lugares do mundo e se radicou na Bahia em 1946. Os autores detalham o
trabalho desenvolvido pela Fundação com o propósito de constituir uma organização interna
que garanta a conservação do acervo fotográfico e permita a memorialização e valorização do
legado fotográfico de Verger. Por fim, o artigo de Marcos Ferreira de Andrade traz um relato
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Referências
LACERDA, Aline Lopes de. Quatro variações em torno do tema acervos fotográficos. Revista
do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n.7, p. 239-248, 2013,
Disponível em: http://wpro.rio.rj.gov.br/revistaagcrj/wp-
content/uploads/2016/11/e07_a11.pdf. Acesso em: 28 jun. 2020.
NORA, Pierre. Entre Memória e História - A problemática dos lugares. Projeto História, São
Paulo, n. 10, p. 7–28, dez. 1993. Disponível em:
http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/12101/. Acesso em: 10 jul. 2010.
VASQUEZ, Pedro. As ações do INFoto. Brasil Memória das artes. s/d. Disponível em:
http://portais.funarte.gov.br/brasilmemoriadasartes/acervo/infoto/as-acoes-do-infoto/.
Acesso em: 10 jul. 2020.
ZAHER, Celia Ribeiro. Comentário IV. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v.12, p. 35-37,
jan./dez. 2004, Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0101-
471420040001&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 08 jul. 2020.
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SOBRE OS AUTORES
Rogério Pereira de Arruda é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG);
professor Adjunto III na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri - Campus JK-
Diamantina.
Ana Gandum é doutora em Estudos Artísticos - Artes e Mediações pela Universidade Nova de Lisboa
(UNL); pesquisadora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa,
Portugal.
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“O ex libris da graça africana”: uma fotografia no
contexto colonial português
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Resumo: O presente artigo busca pensar a trajetória de uma imagem visual dentro de um conjunto que
integra as problemáticas das imagens fotográficas em contexto colonial contemporâneo. Para isso,
percorre os sentidos atribuídos a uma fotografia produzida na I Exposição Colonial Portuguesa de uma
criança nomeada então de Augusto. Seu circuito social foi intenso e marcado por diferentes espaços de
consumo, persistindo ainda hoje no circuito de colecionadores de objetos coloniais. Logo, o itinerário
apresentado permite delinear alguns usos e funções desempenhados pela imagem técnica no contexto
colonial português e abordar algumas questões importantes para o desenvolvimento de estudos históricos
com fotografia no colonialismo contemporâneo.
Introdução
estudos. Logo, o evento era uma forma de ampliar a difusão do conhecimento colonial e
demarcar também Portugal como uma nação colonialista.
A exposição mobilizou também as diversas partes do país com caravanas para
visitar os espaços expositivos e as pessoas expostas no Palácio de Cristal, as quais
consumiam notícias e informações sobre o acontecimento nos jornais e revistas que
apresentavam cada aspecto do evento com ilustrações ou fotografias dos espaços
coloniais recriados na localidade. As imagens fotográficas produzidas por fotógrafos
comunicavam, informavam, educavam e monumentalizavam aquele episódio para uma
população que vivia um regime interessado em reconfigurar a política colonial e angariar
novos partidários para seus objetivos coloniais e, ainda, ampliava os arcos de
comunicação do regime instaurado, já que havia assegurada toda uma cadeia de
circulação dessas imagens visuais1 (jornais, revistas, souvenires, concursos e outras
publicações oficiais).
Nesse sentido, como afirma Ana Mauad (2015, p. 377-400; 2016), a experiência
contemporânea se utilizou de diversas imagens para apresentar seus acontecimentos e
fatos que, em determinada medida, apontam para a centralidade que a visualidade
incorporou na história contemporânea. Neste contexto, a noção de fotografia pública
torna-se central para se refletir sobre a variedade de usos e funções da fotografia nos
cenários de produção, circulação e exposição em situação colonial. A fotografia se
inscreve na cena pública como prática social, em culturas visuais historicamente
estabelecidas, colocando-se como um dos dispositivos visuais mais importantes do
mundo contemporâneo. Trata-se, portanto, de considerar as dimensões históricas da
experiência fotográfica, ou porque não afirmar, dimensões fotográficas da experiência
histórica.
Logo, para refletir sobre essa questão em um cenário colonial, retornamos a
figura 1 que abriu essa breve introdução. Encontrei esse postal em 2018 em duas coleções
privadas diferentes, quando realizava pesquisas nos arquivos sobre fotografias
produzidas na ascensão do regime salazarista que colaboraram com o projeto colonial
que emergiu com o novo regime em Portugal (OLIVEIRA, 2019). Em linhas gerais, a
coleção de Filipa Lowndes Vicente (a qual pertence a figura 1) é composta por diversos
postais fotográficos encontrados em feiras de livre comércio pela pesquisadora. Nela não
se encontram somente postais do colonialismo português, mas também de outras
1
A utilização de “imagem visual” busca reforçar a imagem limitada à dimensão visual, pois se
compreende que o conceito de imagem não se reduz a essa dimensão.
4 | “O ex libris da graça africana”: uma fotografia no... OLIVEIRA, M. V.
2
A discussão sobre coleções privadas de objetos do colonialismo e a presença de coleções privadas em
instituições públicas faz parte do conjunto de questões que venho desenvolvendo no meu doutorado no
Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense.
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3
Hugo Rocha realizou críticas à Exposição Colonial que não foram bem aceitas pelo diretor técnico
Henrique Galvão. O jornalista chegou a suspender a publicação do periódico O Comércio do Porto Colonial
por cinco dias como protesto. No entanto, não teve sucesso e dias depois o jornal O Comércio do Porto
trouxe a seguinte nota: “Tendo a Direcção Técnica da I Exposição Colonial imposto uma censura a O
Comércio do Porto-Colonial, além da censura oficial, resolveu a Direcção deste jornal suspender a
publicação dele” (AZEVEDO, 2005, p. 125).
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colonial posta em prática pelo regime salazarista. Principalmente, porque a cena captada
compreendida como algo mecânico e sem interferência humana projetava a imagem
fotográfica dentro de uma sociedade interessada em conhecer outras paisagens, costumes
e pessoas do império colonial.
Deste modo, no plano governamental, temos a organização de um álbum
comemorativo com 101 fotografias da Casa Alvão (estabelecimento comissionado pelo
governo para registrar o evento) como um bom exemplo dessa importância
desempenhada pela fotografia neste evento. Segundo Henrique Galvão (1935, p. 2)
aquela publicação era a “que mais expressivamente manterá a lembrança de um
acontecimento que interessou profundamente todo o País” e configuraria como a
principal guardiã da memória do acontecimento que durante meses mobilizou os
portugueses. Logo, no plano governamental, a organização de uma narrativa visual
serviria para registrar uma percepção daquele evento pautada em sua monumentalização,
assim como assegurava uma percepção controlada do que foi o certame.
Essa característica fica evidente quando observamos as fotografias selecionadas
para o álbum e a produção fotográfica da Casa Alvão da Exposição Colonial. A
“eternização” de uma narrativa visual alinhada ao ideal mítico do novo regime era o
desejo expresso na confecção da publicação oficial e foi mobilizada para selecionar as
cenas fotográficas que deveriam compor a obra. Logo, as imagens fotográficas que não
reforçavam aquela narrativa não foram escolhidas para compor o álbum, mas não
deixaram também de ocupar outros espaços de consumo, como os periódicos e souvenires
do certame.
A fotografia também desempenhava várias funções neste cenário e desencadeou
outras produções, já que o governo não era o único polo produtor de imagens
fotográficas naquele cenário. Havia propagandas da Kodak incentivando as pessoas a
levarem suas máquinas ao certame para guardar os momentos daquela experiência
(VICENTE, 2014). É possível encontrar também um concurso de fotografia com
diferentes temáticas e seis categorias de premiação (“Paisagem”, “Etnografia” – dividida
em duas –, “Caça”, “Aspectos Econômicos”, “Diversos” e “Assuntos da Exposição”), do
qual participaram fotógrafos e amadores (ULTRAMAR, 1934). Sem contar a produção
fotográfica e antropológica do Instituto de Antropologia da Universidade do Porto, sob
a orientação do antropólogo português António Mendes Corrêa. Essa produção
fotográfica do evento ainda era composta pelas reportagens da imprensa, a confecção de
8 | “O ex libris da graça africana”: uma fotografia no... OLIVEIRA, M. V.
4
A recriação dos espaços coloniais e a organização fotográfica desses cenários estão em diálogo com
uma tradição dos estúdios fotográficos do final do século XIX, na qual as pessoas tiravam retratos dentro
de cenários “exóticos” e “selvagens” de forma a promover a ideia de presença naquele ambiente.
10 | “O ex libris da graça africana”: uma fotografia no... OLIVEIRA, M. V.
avaliar alguns sentidos que promoveram a integração desse objeto do passado numa
coleção de artefatos do período colonial e estabelecem também como as fotografias foram
fundamentais no projeto colonial dentro de diferentes frentes de ações.
O meúdo, que é o encanto da sua aldeia e que está sendo amimado por quantos,
por ali, o vêm saltitar, representa, na verdade, o ex libris da graça africana,
tanto os seus olhos grandes e expressivos e o seu sorriso sádio dão uma nítida
ideia da vida simples e feliz e livre do sertão da Guiné, pletónico de verdura e
batido do Sol... (O COMÉRCIO DO PORTO, 23 de maio de 1934).
expulsando os africanos das cidades e das suas terras a partir do colonato, além de
conceder aos colonos um controle sobre o trabalho dos nativos.
Portanto, as descrições da criança e do território colonial colocavam em evidência
tanto essa possibilidade de imigração para o império de modo a amenizar os estereótipos
que classificavam as colônias africanas como um lugar de degredo, quanto apresentava
justamente essa geografia moral que atribuía valores, costumes e características aos
outros integrantes do espaço colonial. Esse “outro” estava inserido dentro de
determinada escala civilizatória e etária, as quais poderiam ser observadas por qualquer
visitante do certame, ou mesmo por aqueles que consumiam seus produtos visuais. A
imagem fotográfica era usada como prova de veracidade dentro da construção do
argumento colonial que justificava o empreendimento colonizador. No caso de Augusto,
esses elementos eram apresentados pelos periódicos, públicos visitantes ou pelos
potenciais públicos que consumissem essa imagem nos diferentes suportes de circulação.
Deste modo, as leituras e interpretações da fotografia constroem outras imagens
e constituem a própria cultura visual da sociedade em questão, ao dialogarem com um
conjunto de imagens visuais que são incorporadas ao longo da nossa vida (MITCHELL,
2005, p. 336-356). Logo, se a fotografia é entendida enquanto prática e experiência, o seu
impacto no receptor provoca também essa capacidade imaginativa que cria, forma e
elabora leituras do mundo social a partir desse suporte visual que possui diferentes usos
e funções na sociedade. Portanto, a tríade formada por emissor, receptor e mensagem
possui diferentes espaços de reflexão e construção da fotografia, já que seu significado e
valor se constroem ao longo do tempo (BERGER, 2013, p. 317-320).
Nesse sentido, como Homi Bhabha (1998) argumenta, o discurso do colonialismo
estava estruturado em uma ambivalência do conhecimento e do poder. Segundo o autor,
há uma fixidez na instituição de características ao outro, na qual a imposição de signos
de diferença cultural/histórica/racial estaria calcada em uma rigidez e ordem imutável,
assim como desordem, degeneração e repetição demoníaca. Essa construção de
estereótipo é vista pelo pesquisador como uma estratégia discursiva apresentada na
forma de conhecimento e identificação que atua nas brechas daquilo que está sempre “no
lugar” (já conhecido) e aquilo que ansiosamente precisa ser repetido para ganhar
veracidade. Afinal, a duplicidade essencial do discurso colonial está na produção e
reprodução dessa ideia enquanto uma verdade indubitável.
Deste modo, para Bhabha (1998), haveria a articulação das diferenças (raciais e
sexuais) na construção do sujeito colonial no discurso, assim como no exercício do poder
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colonial através desse discurso. Nesse sentido, o corpo estaria (mesmo que de modo
conflituoso) tanto inscrito em uma economia do prazer e do desejo, quanto em uma dada
economia do discurso, da dominação e do poder. Portanto, a palavra teria a função de
negar uma identidade “original” ou uma “singularidade” dentro dos objetos da diferença
– sexual ou racial –, na qual ocorreria a construção de um espaço para “povos sujeitos”
através da produção de conhecimentos em torno dos quais se exerce a vigilância e se
estimula uma forma complexa de prazer/desprazer. Logo, ocorreria a produção de
conhecimento do colonizador e do colonizado estereotipado. Sendo esse último associado
a uma população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a
conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução. Assim, o discurso colonial
produz o colonizado como uma realidade social que é ao mesmo tempo um "outro" e
ainda assim inteiramente apreensível e visível.
Assim, se o jornal já apresentava certa interpretação dessa imagem fotográfica e
da própria pessoa fotografada, a sua transformação em um cartão postal (como observado
na figura 1) a colocava em contato com outras formas de experiência fotográfica e
ampliava o itinerário social dessa atribuição de características. Nesta situação, o “ex-
libris da graça africana” do jornal também era acionado como representação simbólica
de um lugar, mas em outro circuito fotográfico, mais precisamente aquele dos postais
fotográficos e suas mensagens afetivas que atribuíam significados distintos para as
fotografias. O retrato de Augusto era agenciado por outros valores dentro da cultura
visual e promovia outra experiência visual dentro daquela sociedade, já que deslocava o
endereçamento da imagem fotográfica do jornal para o postal, assim como a
materialidade da fotografia (a forma de ter contato e ser afetado por esta).
Os postais fotográficos foram um marco dentro da experiência fotográfica do
mundo contemporâneo, pois eles apresentavam cenas, pessoas e acontecimentos de
diferentes lugares que o emissor queria deslocar e enviar para outro lugar, junto com
sua mensagem de afeto e saudade. Este suporte atrelava afeto, mensagem e experiências
visuais que demarcavam uma forma diferenciada de acessar o mundo social e aproximar
pessoas distantes. Sua atribuição enquanto um suporte histórico permite compreender
os outros sentidos atribuídos à imagem fotográfica em contexto colonial e os usos e
funções agregados à fotografia durante a sua vida social por sujeitos históricos do
próprio período.
Logo, tendo em vista o objetivo da “lição do colonialismo” do evento de 1934 e
sua cadeia produtiva, os cartões postais referentes à Exposição Colonial eram produzidos
14 | “O ex libris da graça africana”: uma fotografia no... OLIVEIRA, M. V.
Querida irmã,
O Jaime deve ter recebido um postal meu de Leiria. Fui ver a Exposição
na 5ª feira de dia, está interessante e bonita. Envio este postal como
recordação da Exposição. Este pretinho Augusto é muito falado.
Abraça por mim o Jaime, mamãe, Otília [?] recordações a tua [?]
sogra. À mamãe já enviei um postal ilustrado, um telegrama e uma
carta.
Abraça-te, teu irmão [?] que te deseja as maiores felicidades.
Da mesma forma que a fotografia de Augusto foi selecionada para ilustrar a “vida
na Ilha da Guiné” pelo jornal, o emissor escolheu a imagem fotográfica de Augusto para
sintetizar sua experiência na Exposição e guardar aquele momento junto a sua irmã, pois
a criança era muito falada por aqueles que visitavam o certame e provavelmente a sua
irmã poderia ter ouvido falar sobre o “miúdo encanto da aldeia”. Assim se reunia afeto e
imagens típicas de lugares através de postais fotográficos a fim de proporcionar uma
experiência fotográfica que corroborava na identificação de lugares e eventos a partir de
algumas cenas específicas e extremamente controladas. Vale atentar-se para o fato que
as imagens fotográficas produzidas e publicadas por periódicos também passavam pela
censura do regime salazarista. Logo, seu deslocamento para um postal fotográfico não
apagava esta característica do documento fotográfico presente na sua produção,
tampouco o peso da representação.
Portanto, esses suportes não apenas mandavam notícias para outros lugares, mas
também ampliavam a divulgação das fotografias que passavam também a levar novos
significados com as mensagens afetivas presentes em seu verso. Além disso, elas também
promoviam a formação do espaço público visual compartilhado e experimentado
fotograficamente, pois ao observar o postal, o leitor promovia a sua identificação e
incorporação em uma categoria geográfica específica, como forma de situar no espaço de
onde aquela imagem fotográfica foi produzida. No entanto, como mencionado na
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introdução, esta imagem fotográfica não deixa de possuir uma vida social na atualidade,
o que continua a nos promover questões para pensar a situação dessas imagens visuais
nos cenários pós-coloniais.
Considerações finais
5
As relações estabelecidas com o passado colonial e a constituição de coleções de seus objetos também
compõem o quadro de problemáticas que venho desenvolvendo no meu doutorado em História na
Universidade Federal Fluminense.
16 | “O ex libris da graça africana”: uma fotografia no... OLIVEIRA, M. V.
Logo, as suas visualidades também não deixaram de ter ligações com essas diferenças,
tampouco podem ser entendidas sem levar em consideração as relações sociais que as
construíram. Assim, a fotografia em contexto colonial nos convoca a refletir sobre uma
experiência histórica que marcou sociedades, as quais ainda guardam e consomem suas
cenas dentro de uma economia visual (TAGG, 1988) que vale dizer muito pouco
aprofundada pela historiografia.
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Abstract: This article seeks to think about the trajectory of a visual image within a set that integrates the
problems of photographic images in a contemporary colonial context. For this, it travels through the
meanings attributed to a photograph produced in the first Portuguese Colonial Exhibition of the child
named of Augusto. Its social circuit was intense and marked by different consumption spaces, persisting
today in the circuit of collectors of colonial objects. Therefore, the itinerary presented allows to outline
some uses and functions performed by the technical image in the Portuguese colonial context and to
address some important issues for the development of historical studies with photography in
contemporary colonialism.
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Resumen: El artículo busca pensar en la trayectoria de una imagen visual dentro de un conjunto que
integra los problemas de las imágenes fotográficas en un contexto colonial contemporáneo. Para esto,
repasa los significados atribuidos a una fotografía producida en la Primer Exposición Colonial portuguesa
de un niño llamado después de Augusto. Su circuito social fue intenso y marcado por diferentes espacios
de consumo, persistiendo hoy en el circuito de coleccionistas de objetos coloniales. Por lo tanto, el
itinerario presentado permite delinear algunos usos y funciones realizadas por la imagen técnica en el
contexto colonial portugués y abordar algunos temas importantes para el desarrollo de estudios históricos
con fotografía en el colonialismo contemporáneo.
Referências
Fontes
Bibliografia
APPADURAI, Arjum. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma Perspectiva
Cultural. Niterói: Eduff, 2009.
AZEVEDO, Ercílio. Porto 1934: A Grande Exposição. Porto: Edições do autor, 2005.
EDWARDS, Elizabeth and HART, Janice (org.). Photographs objects histories: On the
materiality of images. London/New York: Routledge, 2004.
MITCHELL, W.J.T. What do pictures want? The lives and loves of images. Chicago:
Chicago University Press, 2005.
SCHAWARTZ, Joan M.; RYAN, James. Picturing place: photography and the
geographical imagination. London/New York: I.B.Tauris. 2006.
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SOBRE O AUTOR
Marcus Vinicius de Oliveira é mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
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Recebido em 06/05/2020
Aceito em 17/06/2020
Produção, usos e apropriações de uma imagem: o
processo de iconização da fotografia da mulher
de turbante, de Alberto Henschel
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Resumo: O artigo tem por objeto o retrato de uma mulher negra portando um turbante, registrado por
Alberto Henschel, por volta de 1870, no Rio de Janeiro. Dentre as muitas imagens de “tipos de negros”
produzidos pelo fotógrafo alemão, ela é, certamente, uma das mais conhecidas e a que tem sofrido mais
apropriações na última década. Nosso objetivo, com a análise da produção, circulação e consumo desta
fotografia, é examinar a relação entre o seu uso maciço e a invisibilidade ou a subalternidade imposta a
negros e negras pelo racismo estrutural. Em especial, problematizamos a identificação anacrônica da
mulher retratada com Luísa Mahin, mãe de Luís Gama, que teria sido uma das lideranças da Revolta dos
malês, na Bahia, em 1835. A produção de sentidos que esta fotografia engendra, os efeitos que produz em
seus usos e deslocamentos, seu potencial de iconização, bem como sua agência, são algumas questões que
buscamos discutir, apostando, na trilha de Ana Mauad, na necessidade de tomar a imagem como agente
da história, não simplesmente como fonte de informação sobre o passado ou tema de um estudo histórico.
Palavras-Chave: Mulher negra. Alberto Henschel. Fotografia, século XIX. Cultura visual.
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Introdução
Figura 1: Mulher negra escravizada de turbante, Alberto Henschel. 1870 circa, 9,2 x 5,7.
Fonte: Brasil/Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro, RJ. Disponível em:
http://brasilianafotografica.bn.br/brasiliana/handle/20.500.12156.1/6847
1
As principais informações que se tem de Luísa Mahin foram escritas por Luís Gama, que registrava ser
seu filho, em carta ao jornalista Lúcio de Mendonça, datada de 25 de julho de 1880. Não se sabe ao certo
se ela nasceu no continente africano, conforme consta na referida carta escrita pelo abolicionista, ou se
teria nascido em Salvador. Há relatos de que, liberta, trabalhou como quituteira e participou de levantes
de escravizados como a Revolta dos malês (1835) e a Sabinada (1837-38), embora sua participação não
tenha sido comprovada pela pesquisa documental sobre os levantes e nem reconhecida pela
historiografia contemporânea. Foi em romances históricos que a personagem ganhou maior
notabilidade como na obra de Pedro Calmon “Malês, a insurreição das senzalas”, de 1933 e, mais
recentemente, no livro de Ana Maria Gonçalves “Um defeito de cor”, de 2006. (BRAZIL e SCHUMAHER,
2000)
2
A fotografia pode ser encontrada também no Ethnologisches Museum, em Berlim, e na Fundação
Joaquim Nabuco (BARBOSA e COUCEIRO, 2018, p. 99-100).
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922002, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 3
Essas situações, por mais variadas que fossem, assim como eram variados os tipos
de fotografias que lhes davam a ver – cartes de visites, paisagens, registros do trabalho
nas fazendas de café – tinham algo em comum: a representação naturalizada da
escravidão, questão que norteou a proposta curatorial.
A nosso juízo, a partir desses produtos culturais e graças ao alcance que
obtiveram, a imagem da mulher negra de turbante chegou a outros espaços – físicos e
virtuais – ganhando vida e, porque não dizer, autonomia. Por conta dos seus atributos
formais e da relevância dos seus aspectos estéticos se vocacionou para um processo de
iconização. Impregnada de sentidos, pôs-se à disposição daqueles que nela depositam
expectativas e desejos. Revela-se também como um somatório de diversas historicidades:
contém o tempo da sua produção mesma, por Henschel; o tempo ao qual se atribui ter
vivido a retratada; os dias de hoje, com os quais a imagem dialoga, quando seus usuários
tentam responder a angústias e pautas associadas ao racismo ou ao feminismo negro,
dentre outras. Neste sentido, e conforme Ana Mauad (2008, p. 21), ao tomar a fotografia
como fonte, ressaltamos a importância de discutir seu estatuto epistemológico,
entendendo que “toda fonte é também objeto de estudo na problematização do passado,
3
Na mostra, a imagem é creditada como “Escrava de turbante, c. 1867. Brasil. Fotografia de Alberto
Henschel/Coleção Gilberto Ferrez/Acervo IMS”. Aliás, chamou a nossa atenção as formas com que a
mulher é identificada nos créditos desses produtos culturais. Escrava como afirmação, escrava como
hipótese ou negra. Encontramos com recorrência a escravidão suplantar outras formas de identificação
da mulher negra nas instituições de guarda e preservação de acervo, seja fotográfico, pictórico ou
tridimensional. É como se o fato de ser negra, já indicasse a escravidão como única possibilidade de
condição social, negligenciando-se outras como as de negras forras e negras nascidas livres, por
exemplo.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922002, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 5
definindo-se também pelo problema proposto para a análise”. À maneira das foto-ícones4,
a imagem da mulher negra de turbante nos fala, ainda, da produção de sentido pelas
fotografias ou de como construímos o mundo visualmente em diferentes momentos da
história humana (MAUAD, 2016, p. 34).
Antes de traçar a biografia da imagem, examinando sua produção, trajetórias,
apropriações e agenciamento, é importante, inscrever nossas escolhas do ponto de vista
metodológico, visando contribuir para o estudo das imagens únicas. Para Ana Mauad
(2008, p. 24), “a análise de uma única foto deve partir dos indícios, dos rastros temporais
deixados dentro do quadro, resultantes do ato fotográfico e partir para o fora de quadro
rumo ao mundo no qual essa imagem se insere como narrativa sintética”. Ulpiano
Bezerra de Meneses, por sua vez, chama a atenção para os cuidados no uso de uma
imagem singularizada. Embora defenda o estudo de séries fotográficas para se chegar a
um resultado mais sólido, observa que as séries não devem constituir objetos de
investigação em si, mas “vetores para a investigação de aspectos relevantes na
organização, no funcionamento e na transformação de uma sociedade”. Sejam imagens
únicas ou séries, “deve-se formular problemas históricos para serem encaminhados e
resolvidos por intermédio de fontes visuais” (MENESES, 2002, p.150).
Seguimos, assim, a trilha aberta por Meneses (2002) em sua análise da fotografia
de Robert Capa que registra o momento da morte do miliciano Federico Borrell García
pelas forças franquistas em 1936. Alinhamo-nos também às propostas de Solange Ferraz
de Lima e Vânia Carneiro de Carvalho (2018), no estudo sobre o circuito e o potencial
icônico da fotografia do corpo do menino sírio Aylan Kurdi realizada por Nilüfer Demir,
em 2015, embora as imagens estudadas por elas, assim como a de Capa, objeto do
trabalho de Meneses, tenham sido geradas por fotógrafos vinculados à imprensa,
gozando de ampla e imediata publicização. Mas, do mesmo modo que estas imagens, a
fotografia da mulher negra de turbante, no nosso entendimento, também é dotada de
uma potência formal que a vocaciona para a iconização, suscitando debates que, quase
4
Conforme examina Mauad, “em âmbito internacional, Hariman e Lucaites por meio da publicação do
livro No Caption Needed (2007) contribuíram para a consolidação da noção de foto-ícone na análise das
imagens emblemáticas do fotojornalismo do século XX. Para a dupla de autores, os foto-ícones são
importantes artefatos da cultura pública por mobilizarem ao seu redor diferentes posições políticas e
aglutinarem expectativas em torno de determinadas situações ou eventos históricos. Definem foto-
ícones como imagens que circulam na imprensa, em mídias eletrônica e digital que são amplamente
reconhecidas e lembradas; são compreendidas por representarem eventos historicamente significativos,
por ativarem respostas ou identificação fortemente emocionais, e são reproduzidas por meio de um
conjunto variado de veículos” (MAUAD, 2018, p. 264).
6 | Produção, usos e apropriações de uma imagem: o... MAGALHÃES, A. M.
150 anos após a sua produção, vão muito além do referente ou da temática a que está
vinculada.
Alberto Henschel não foi o único fotógrafo atuante no Brasil no século XIX
interessado nos “tipos de negros”, mas seus registros se distinguem pela quantidade
significativa; pelo emprego de uma variedade de repertórios visuais; pelas diferentes
5
O acervo dos três colecionadores constitui uma parte substantiva da obra de Ermakoff (2004).
6
Examinando o material das três instituições alemãs, chegamos a 78 registros atribuídos a Henschel, que
perfazem um total de 109 itens, dado que, em alguns casos, imagens similares são encontradas em duas
ou até nas três instituições. Quarenta e uma fotografias são retratos de mulheres; 33 de homens; há três
jovens do sexo masculino e uma fotografia de grupo de escravizados transportando um homem numa
liteira.
8 | Produção, usos e apropriações de uma imagem: o... MAGALHÃES, A. M.
motivações para a sua produção, sem esquecer, naturalmente, que foram feitos em
diferentes locais do país (seus estúdios de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro).
Entende-se por “tipo” uma denominação classificatória das diferenças humanas
físicas e culturais, caras aos estudos de história natural dos séculos XVIII e XIX,
segundo os quais a humanidade é vista como parte da natureza, devendo ser estudada
conforme os mesmos critérios taxonômicos. “Assim, foi-se criando e se afirmando cada
vez mais […] um padrão imagético taxonômico cuja expressão mais evidente pode-se
chamar de documentação de espécimes – sejam botânicos, animais, ou tipos humanos
inseridos em universos sociais” (SELA, 2006. p.65). A classificação humana como “tipo”
foi muito adotada para identificação das populações das áreas colonizadas pelos europeus,
como a América e a África. Destinava-se não apenas, com base na biologia e na
antropologia física, ao conhecimento e ao estudo sobre o “outro”, que se distinguia pelo
seu fenótipo, mas, também, a subalternizá-lo e dominá-lo, sob a perspectiva de lidar com
uma “essência abstrata da variação humana” que é como o “tipo” é definido por Elizabeth
Edwards (apud HIRSZMAN, 2011, p. 48). O termo “tipo” está na base do racismo
científico, ancorado nas teses naturalistas de hierarquização social, objetificação do
“outro” e inferioridade de povos como os negros.
Tratando especificamente dos registros dos “tipos” e do uso das fotografias pela
antropologia na segunda metade do século XIX, Edwards observa que, a despeito da
reprodução em larga escala dessas imagens no final dos anos 1850 – graças à introdução
do negativo de vidro em colódio úmido e ao papel albuminado – o material antropológico
ainda era relativamente limitado nos anos 1860, com raras fotografias de campo. Poucos
fotógrafos possuíam conhecimentos antropológicos; as fotografias eram registradas para
satisfazer a curiosidade de turistas e dos colonizadores brancos em várias partes do
mundo. “Consequentemente muitas imagens representam os estereótipos do século XIX
dos ‘não civilizados’, retratando os sujeitos como o bom selvagem num cenário nebuloso
e romântico ou como um primitivo bárbaro” (EDWARDS, 1982, p. 257).
É difícil precisar se as fotografias de negros e negras feitas por Henschel foram
geradas por demanda de clientes, como os cientistas Stübel e Reiss e, em caso afirmativo,
quantas e quais imagens estariam nesse grupo, ou se foram vendidas a partir da escolha
em catálogos organizados por ele; possivelmente as duas coisas. Analisando-se os
registros de Henschel que se encontram na Alemanha7 e na direção do que aponta Sandra
7
Optamos aqui por centrar nossa análise nos registros dos “tipos de negros” que se encontram nas três
instituições alemãs por serem numericamente significativos e por termos tido acesso a integralidade
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922002, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 9
destas fotografias. Esse conjunto de imagens se constituiu, para nós, numa espécie de mapa para
adentrar as questões formais referentes à produção das fotografias de homens e mulheres de origem
africana por Henschel.
10 | Produção, usos e apropriações de uma imagem: o... MAGALHÃES, A. M.
imagens das moças com os seios à mostra é visível o desconforto associado a uma
vulnerabilidade.
Nesse breve exame dos retratos de negros e negras produzidos por Henschel, fica
clara a dificuldade de agrupá-los sob a denominação de fotos exóticas ou etnográficas.
Há, visivelmente, uma variedade de padrões de representação dos sujeitos e diferentes
propósitos na produção das imagens, sendo provável que fotos registradas como
souvenir tenham sido comercializadas como etnográficas e vice-versa (KOUTSOUKOS,
2006, p. 120). Isso nos obriga a deslocar a atenção da produção das fotografias para a sua
circulação e, sobretudo, para a sua agência, a capacidade das imagens, que são artefatos,
de provocar efeitos, produzir e sustentar formas de sociabilidade, tornar empíricas as
propostas de organização e sustentação do poder (MENESES, 2002, p.145). Em outras
palavras, não reduzir as fotografias às representações, mas buscar em seus
deslocamentos, sua potência de ação. Essa é, em nosso entendimento, a chave para
analisar os usos e as apropriações do retrato da mulher de turbante de Henschel.
seu retrato). Até mesmo a data é uma inferência: como no cartão consta Rio de Janeiro
como local, supõe-se que tenha sido produzida no período em que Henschel atuou na
cidade – seu ateliê na Corte foi aberto em 1870.
De todo modo, é possível falarmos da pose, da indumentária, dos elementos
decorativos, do ângulo, dos enquadramentos. Daquilo que está presente, mas, também
do que está ausente. A partir destes traços temos as primeiras pistas para entender a
ampla circulação e as apropriações da imagem. No lugar do caráter informativo da
fotografia, buscamos um deslocamento para a sua difusão.
O retrato em fundo neutro apresenta uma mulher em meio busto, com vestido
escuro decotado e com uma espécie de bordado contornando o decote. Os ombros estão
à mostra, e de acessórios, apenas os brincos e o turbante estampado.8
Não há mobiliário, apoio, utensílio, instrumento de trabalho ou qualquer outra
referência que pudesse associá-la a alguma atividade ou condição social. Não há marcas
em sua pele. Seu rosto, como o da maioria das negras retratadas por Henschel, não porta
um sorriso, mas um olhar firme, quase desafiador. Sobre a fotografia, vemos o número
518, impresso sobre seu vestido, entre o busto e o ombro esquerdos. Deve ter sido
colocado ali para identificar a retratada ou o artefato em si, em alguma lógica de
arquivamento, muito provavelmente pelo próprio fotógrafo.
O anonimato da retratada, o fato de existirem poucos elementos na composição
da foto, seu olhar e a presença do turbante remetendo aos africanos de origem
muçulmana, que se rebelaram na Bahia em 1835, são indícios que podem nos ajudar a
entender as razões da identificação da mulher fotografada como sendo Luísa Mahin. Mas,
nos indagamos sobre como essa apropriação foi possível e tão largamente difundida
diante de uma inconsistência básica: quando da Revolta dos malês a fotografia ainda não
existia, o que inviabiliza qualquer relação entre o evento e o registro fotográfico de seus
participantes.9
Outro aspecto que inviabilizaria essa associação é o fato de que, segundo o
Instituto Moreira Salles, um dos detentores da imagem, sua produção teria sido realizada
8
Sobre o uso dos turbantes em Salvador no século XIX e as trocas culturais promovidas entre diferentes
etnias, como os praticantes do Islã e os praticantes do culto aos orixás, ver Bernardo (2005) e Lima (2017).
Para informações sobre os significados do uso dos turbantes pelas mulheres negras em uma perspectiva
de longa duração, cf. Silva (2017). A indumentária dos malês no levante de 1835, incluindo seus amuletos,
abadás e turbantes foi estudada também por Reis (2003).
9
O daguerreotipo, processo fotográfico desenvolvido por Joseph Nicèphore Niépce (1765-1833) e Louis
Jacques Mandé Daguerre (1787-1851) foi anunciado em Paris em 19 de agosto de 1839 por François Arago
(1786 – 1853).
12 | Produção, usos e apropriações de uma imagem: o... MAGALHÃES, A. M.
por volta de 1870, trinta e cinco anos após o levante. Neste sentido, a notável juventude
da retratada não corresponde à idade que Luísa Mahin poderia ter à época.
Na busca de explicações sobre o que possibilitou a atribuição anacrônica da
fotografia da mulher de turbante de Henschel a Luísa Mahin, encontramos na sua ampla
circulação e uso reiterativo um caminho para a reflexão e tentativas de respostas. Uma
rápida pesquisa na Internet com as palavras “Luísa Mahin”, “negra de turbante”, “escrava
de turbante” e, sobretudo, associando-se estas expressões a Henschel ou Alberto
Henschel, nos leva a inúmeros registros e usos desta fotografia – nem sempre
identificada como Luísa Mahin – na divulgação de eventos, especialmente sobre a
Revolta dos malês e Luísa Mahin como uma das principais lideranças;10 em capas de
livros, como a edição de O genocídio do negro brasileiro de Abdias Nascimento;11 em
divulgação de eventos, como o lançamento do livro Ocupação Luiza Mahin;12 impressa
na pele de pessoas como tatuagem;13 gravada em rótulos de cerveja;14 e presente em
obras de arte, como em uma colagem de Rosana Paulino,15 exposta na mostra “Costuras
da Memória” que esteve em cartaz na Pinacoteca de São Paulo e no Museu de Arte do
Rio.
Mas, o que justifica este processo de iconização? Que atributos induziram tal
processo? O fato é que este potencial independe das motivações que lhe deram origem.
Em outras palavras, os sentidos jamais se encontram nas imagens mesmas, “engastados
10
Ver, entre outros: o material de divulgação da palestra Autografias Luíza Mahin: um mito libertário no
Feminismo Negro, promovido pelo SESC, em São Paulo, em 2015. Disponível em:
https://centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br/atividade/luiza-mahin-um-mito-libertario-no-
feminismo-negro. Acesso em 10 jul. 2019; do Colóquio Internacional Subjectividades Escravas nos
Mundos Ibéricos (Séculos XV-XX), realizado em 2018, promovido pelo Instituto de Ciências Sociais da
Universidade de Lisboa, em Lisboa, Portugal. Disponível em:
https://www.ics.ulisboa.pt/sites/ics.ulisboa.pt/files/events/cartaz/diptico_subjective_hd1.pdf. Acesso
em 20 ago. 2019.
11
Disponível em: https://www.editoraufv.com.br/produto/o-genocidio-do-negro-brasileiro--processo-
de-um-racismo-mascarado-3-edicao/1784951. Acesso em 29 fev. 2020. Ver também a capa de Luiza
Mahin, romance de Armando Avena. Disponível em: http://geracaoeditorial.com.br/luiza-mahin/
Acesso em 19 mai. 2020; o cartaz do evento Sarau das Pretas – Luiza Mahin vive!. Disponível em:
https://www.londrinatur.com.br/agenda/sarau-das-pretas-luiza-mahin-vive/. Acesso em 20 ago. 2019.
12
Disponível em: http://www.sindipetroba.org.br/2017/noticia/8337/lancamento-do-livro-
%E2%80%9Cocupac%C3%A3o-luisa-mahin%E2%80%9D-tem-feijoada-e-m%C3%BAsica. Acesso em
20 ago. 2019.
13
Tatuagem apresentada como “Portrait de Luiza Mahin uma das figuras africanas mais importantes da
história”, disponível em: http://picdeer.org/thiago.maga.tattoo. Acesso em 20 ago. 2019.
14
Rótulo da cerveja Mahin. Disponível em
https://www.facebook.com/1984215361805614/photos/a.1985548531672297/1985548365005647/?type
=3&theater. Acesso em 20 ago. 2019.
15
Catálogo da exposição “Rosana Paulino: a costura da memória”, p. 134. Disponível em:
http://pinacoteca.org.br/wp-content/uploads/2019/07/AF_ROSANAPAULINO_18.pdf. Acesso em 18
mai. 2020.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922002, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 13
16
Entre as imagens que compõem a capa, identificamos alguns elementos das gravuras Roda de
capoeira, de Rugendas; Execução do castigo de açoite e O colar de ferro, castigo dos negros fugitivos, de
Debret.
14 | Produção, usos e apropriações de uma imagem: o... MAGALHÃES, A. M.
fotografia, ao cortar uma parte considerável da sua indumentária, desloca nossa atenção
para o colo e os seios da retratada, evidenciando uma sensualidade. A ênfase no erotismo
aparece também nas falas do autor do romance que descreve Luísa Mahin como “símbolo
da mulher livre”; “talvez amante do líder muçulmano de nome Ahuna”; “uma mulher que
traz no sangue a sensualidade das heroínas de Jorge Amado e a força das negras que
morreram lutando pela liberdade”.17 No resumo da obra os adjetivos utilizados para
qualificá-la são: “guerreira negra, linda e sensual”.18 Repetem-se aqui estereótipos
associados às mulheres negras, como o uso de atributos físicos e a sensualidade, também
revelados por Pedro Calmon, em 1933, no romance Malês: a insurreição das senzalas,
para definir a personagem. A frase que acompanha o título do livro de Avena, na capa,
ao hierarquizar “os amores” à frente da “luta da líder da rebelião”, reforça o peso atribuído
à vida privada da biografada. Ao insistir nestes atributos associados à Luísa Mahin,
teríamos aqui o que a filósofa Grada Kilomba (2019, p. 78-79) qualifica de racismo
cotidiano que:
17
Conferir Avena, Armando. Heroína negra, Luiza Mahin é tema de livro de Armando Avena, A tarde, 12
de dezembro de 2019. Disponível em: http://atarde.uol.com.br/coluna/armandoavena/2112050-heroina-
negra-luiza-mahin-e-tema-de-livro-de-armando-avena-premium. Acesso em 12 dez. 2019.
18
Resumo do livro divulgado no site da Geração Editorial. Disponível em:
http://geracaoeditorial.com.br/luiza-mahin/. Acesso em 15 mai. 2020. Informações sobre a obra no site
da Livraria da Travessa. Disponível em: https://www.travessa.com.br/luiza-mahin-os-amores-e-a-luta-
da-lider-da-rebeliao-que-reuniu-todas-as-etnias-para-libertas-os-escravos-e-fundar-um-estado-
islamico-no-brasil-1-ed-2019/artigo/303c19db-7359-450b-a946-b02244bfce95. Acesso em 18 mai. 2020.
Resumo no site da Amazon. Disponível em: https://www.amazon.com.br/Luiza-Mahin-rebeli%C3%A3o-
libertar-escravos/dp/8581304311. Acesso em 20 mai. 2020.
16 | Produção, usos e apropriações de uma imagem: o... MAGALHÃES, A. M.
Alves Pires19. Neste caso, a imagem e a personagem ali referenciada assumem um papel
diferente daquele exibido na capa do livro de Avena. Como homenagem à Luísa Mahin,
a fotografia deveria agregar valor estético, ideológico e histórico ao produto a ser
consumido. Segundo o grupo de mulheres responsável pela marca,
19
Leinimar de Jesus Alves Pires é Mestre e Doutora em Letras pela PUC-Rio (2006). Foi pesquisadora
convidada na Freie Universität (Universidade Livre de Berlin), Alemanha (2011). Atua com os seguintes
temas: Filosofia, Arte, Literatura e Cultura Brasileira. Dados retirados do Currículo Lattes, disponível em:
http://lattes.cnpq.br/4027767812830342. Acesso em 29 mai. 2020.
20
Apresentação do grupo de mulheres fabricantes da cerveja. Disponível em:
https://www.foodbevg.com/XX/Unknown/1984215361805614/Cerveja-da-Mulher-Guerreira---
Artesanal-e-Feminista. Acesso em 29 mai. 2020.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922002, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 17
da bebida para quem deseja brigar por seus direitos e contra a opressão, a exemplo do
que teria feito a personagem homenageada.
Depois de Luísa Mahin, as outras homenageadas foram Maria Clandestina,
representando as mulheres que combateram a ditadura militar e Vanda Ferreira,
liderança do movimento negro contemporâneo. Ao lado da imagem de cada
homenageada, o rótulo apresenta uma notícia biográfica. A que foi impressa no rótulo da
cerveja “Mahin” é a seguinte:
Luísa Mahin ou Kehinde foi uma mulher negra, talvez africana, talvez baiana,
escravizada no Brasil. Sua biografia, assim como a história do povo negro
brasileiro não foi devidamente preservada, nem valorizada e muitos dados de
sua complexa história de vida são uma combinação entre realidade, ficção e
construção de mitos heroicos negros. Guerreira, lutou nos levantes pela
abolição da escravatura no Brasil, na Bahia do século XIX, como na Revolta
dos malês e a Sabinada. Quituteira, pelas ruas, conseguia mais facilmente
enviar recados em árabe para companheirada articular os movimentos. A
cerveja da Mulher Guerreira lhe rende uma tão tardia quanto devida
homenagem com uma Red Ale, que oferece a partir da complexidade do
encontro de maltes variados e na lupulagem única, um intenso e peculiar sabor
de luta.21
21
Disponível em: https://bityli.com/0Uadr. Acesso em 20 ago. 2019.
18 | Produção, usos e apropriações de uma imagem: o... MAGALHÃES, A. M.
e lutadora difundida nos rótulos da cerveja como uma referência para as mulheres,
especialmente, as mulheres negras da nossa sociedade.
Figura 4: As filhas de Eva, 2014 Colagem, lápis conté e acrílica sobre papel. Fotografia de
divulgação da exposição "A costura da memória" no Museu de Arte do Rio.
Fonte: Sopa Cultural, 5 de abril de 2019. Disponível em: https://bityli.com/THF8H. Acesso
em 20 ago. 2019.
qualquer associação da retratada com uma personagem histórica específica, como Luísa
Mahin. A foto inserida na narrativa artística simboliza uma experiência comum a
mulheres negras do passado e do presente, como a objetificação do corpo.
público das ruas nos advertindo sobre questões como racismo e o direito à educação
superior.
Se a mulher negra de turbante é objetificada quando da produção da imagem e
em algumas apropriações recentes – quando seu corpo volta a ser uma commodity a
serviço de um produto – no caso específico da colagem, ela revela-se sujeito.22 Mas, o
que quer essa imagem? Que potência ela emana? A quem ela se dirige? Embora não
tenhamos localizado a data em que a montagem foi produzida é difícil não relacioná-la
às políticas de ações afirmativas na educação superior, voltadas para os estudantes afro-
brasileiros, iniciada em 2001, quando a Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ) e a Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF)
instituíram o sistema de cotas.23 A escolha pelo uso de atributos que associam a retratada
ao curso de medicina também não é acidental e a insere em um restrito grupo de
estudantes.
Considerações Finais
22
Conforme Bell Hooks (1989 apud Kilomba, 2019, p. 28) os sujeitos são aqueles que “têm direito de
definir suas próprias realidades, estabelecer suas próprias identidades, de nomear suas histórias”.
23
A política de cotas, com o objetivo de ampliar o acesso de negros e pardos ao ensino superior, foi
estendida para as universidades federais apenas em 2012, com a Lei n. 12.711. Esta foi além da questão
racial, considerando também critérios sociais. Pesquisas sobre os impactos da política de cotas nas
universidades, tendo a UERJ como estudo de caso, revelam que a iniciativa foi bem-sucedida, tanto
porque democratizou o acesso aos cursos de graduação, que eram majoritariamente realizados por
estudantes brancos e com boas condições financeiras, quanto pelo fato de os alunos cotistas terem tido
desempenho semelhante e às vezes até melhor do que o dos não-cotistas (BEZERRA e GURGEL, 2011).
22 | Produção, usos e apropriações de uma imagem: o... MAGALHÃES, A. M.
registro de Henschel, esperamos ter contribuído para a análise das dinâmicas sociais
contemporâneas e de como as fotografias atuam como mediação.
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PRODUCTION, USES AND APPROPRIATIONS OF AN IMAGE: THE PROCESS OF ICONIZATION OF
THE PHOTOGRAPH OF THE WOMAN IN A TURBAN, BY ALBERTO HENSCHEL
Abstract: The article focuses on the portrait of a black woman wearing a turban, taken by Alberto
Henschel, around 1870, in Rio de Janeiro. Among the many images of black “types” produced by the
German photographer, this is certainly one of the best known and most appropriated in the last decade.
The analysis of the production, circulation and consumption of this photograph aims to examine the
relationship between its massive use and the invisibility or subordination imposed on black people,
especially black women, by structural racism. We problematize, in particular, the anachronistic
identification of the woman portrayed as Luísa Mahin, Luís Gama's mother, who would have been one of
the leaders of the malês Revolt, in Bahia, in 1835. The production of meanings that this photograph
engenders, the effects it produces in its uses and displacements, its potential for iconization, as well as its
agency, are some questions that we seek to discuss, following Ana Mauad’s analyses about the need to
take the image as an agent of history, not simply as a source of information about the past or the subject
of a historical study.
Keywords: Black woman. Alberto Henschel. Photography, XIX century. Visual Culture.
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PRODUCCIÓN, USOS Y APROPIACIONES DE UNA IMAGEN: EL PROCESO DE ICONIZACIÓN DE LA
FOTOGRAFÍA DE LA MUJER CON TURBANTE DE ALBERTO HENSCHEL
Resumen: Este artículo toma como objeto de análisis el retrato de una mujer negra con turbante registrado
por Alberto Henschel, alrededor de 1870 en Rio de Janeiro. Entre las muchísimas imágenes de "tipos" de
negros efectuadas por el fotógrafo alemán, esta es sin duda, una de las más conocidas y la que ha sufrido
más apropiaciones en esta última década. Nuestro objetivo con el análisis de la producción, circulación y
consumo de esta fotografía, es examinar la relación entre su uso masivo y la invisibilidad o subalternidad
impuesta a los negros y las negras por el racismo estructural. En particular, problematizamos la
identificación anacrónica de la mujer retratada como Luísa Mahin, la madre de Luís Gama, que habría sido
una de las líderes de la Revuelta de malês, en Bahía en 1835. El presente estudio busca discutir la
producción de sentidos que engendra esta imagen, los efectos que producen sus usos y desplazamientos,
su potencial de iconización, así como su agencia, siguiendo el camino de Ana Mauad, cuando habla sobre
la necesidad de mirar la imagen como agente de la historia, no simplemente como fuente de información
sobre el pasado o como el tema de una investigación histórica.
Palabras clave: Mujer negra. Alberto Henschel. Fotografía del siglo XIX. Cultura visual.
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Referências
Gestão de Projetos Culturais e Eventos) – USP, São Paulo, 2017. Disponível em:
http://celacc.eca.usp.br/?q=pt-br/celacc-tcc/973/detalhe Acesso em 18 jun. 2020.
VASQUEZ, Pedro. Karp. Fotógrafos alemães no Brasil do século XIX. São Paulo:
Metalivros, 2000.
VIEIRA, Andressa Santos. Sob peles negras: imaginário, repressão e representação
visual de mulheres negras no Brasil dos séculos XIX e XX. Trabalho de Conclusão de
Curso (Graduação em Artes Visuais) – Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia,
2017.
WANDERLEY, Andrea C. T. O alemão Alberto Henschel (1827 – 1882), o empresário
da fotografia, Brasiliana Fotográfica. Disponível em:
http://brasilianafotografica.bn.br/?p=1138. Acesso em 2 mar. 2020.
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SOBRE AS AUTORAS
Aline Montenegro Magalhães é doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ); técnica em assuntos culturais/história no Museu Histórico Nacional.
Maria do Carmo Teixeira Rainho é doutora em História pela Universidade Federal Fluminense
(UFF); pesquisadora do Arquivo Nacional.
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Recebido em 31/05/2020
Aceito em 26/06/2020
A fotografia na história do Museu de Arte
Moderna de São Paulo (MAM-SP)
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Resumo: Este artigo busca evidenciar a importância da fotografia na coleção do Museu de Arte Moderna
de São Paulo (MAM-SP), tanto por refletir os momentos históricos relativos às aquisições desse tipo de
obra de arte, quanto por evocar as relações que se estabelecem com os curadores, diretores e exposições
que legitimaram a presença da fotografia dentro do museu. A primeira aproximação do museu com a
fotografia acontece ao longo de exposições no final dos anos 1940, mas as primeiras incorporações de
obras em suporte fotográfico somente acontecem no começo dos anos 1980, através da realização de
eventos voltados exclusivamente para esse tipo de mídia. Nesse momento, estabelecem-se as bases da
coleção, atualmente em constante crescimento em razão das incorporações efetivadas pelo Clube de
Colecionadores de Fotografia, sempre em busca de dar conta da multiplicidade de imagens fotográficas
produzidas por artistas brasileiros.
Introdução
estreitas com as novas instituições culturais do país, seja através do Office of the
Coordinator of Inter-American Affairs (Escritório do Coordenador de Assuntos
Interamericanos, ou CIAA na sigla em inglês) ou do MoMA (The Museum of Modern
Art), que integrava uma comissão para constituição de um museu de arte moderna em
São Paulo.
Importantes publicações no Brasil, entre livros, teses e dissertações, dedicaram-
se a contar a história da formação do MAM-SP (NASCIMENTO, 2003; BARROS,
2002). A maioria se ocupa da relação entre seu surgimento e a agitação cultural e o
crescimento da cidade de São Paulo a partir da década de 1930. Há também documentos
que analisam o período da criação efetiva do museu, em 1948, até a crise de 1963, quando
todo o seu acervo foi doado para a Universidade de São Paulo (USP) por Ciccillo
Matarazzo, o próprio fundador e primeiro presidente do MAM-SP. O empenho deste
artigo é resgatar esses antecedentes históricos no sentido de melhor compreender o
exato contexto e determinar, com maior precisão, em que período da historiografia do
museu teve início a formação da coleção de fotografias.
Parte-se do pressuposto de que as coleções constroem um discurso próprio,
caracterizado pelas intenções, escolhas e empenho do colecionador ou da instituição
colecionadora. São constituídas sobretudo pelo tipo de objetos que avivam seu interesse,
incluindo as visualidades e a história que cada peça pode revelar sobre as condições
materiais da cultura da qual procede. As coleções também são carregadas pelo desejo de
posse: o colecionador, indivíduo ou instituição, procura manter, consigo, uma amostra
das coisas do mundo que lhe interessam e, ao assumir este papel, constrói um discurso
peculiar, sem a obrigatoriedade de ser linearmente histórico, nem monotemático, basta
esses itens representarem parte de um universo de afinidade nos domínios estabelecidos
pela coleção.
Segundo Aurora León (2000), encontra-se, no colecionismo, a localização da
origem do museu e, para defender esse ponto de vista, a autora ressalta alguns aspectos
importantes: o primeiro deles é que o colecionismo afirma um mundo de preferências
ideológicas ao definir-se de acordo com as decisões dos participantes ativos, que possuem
intenções distintas em momentos históricos específicos. “Em segundo lugar, o
colecionismo incide na função ideológica da cultura. A clientela da arte representa uma
classe determinada que dirige, controla e instrumentaliza os objetos de cultura de acordo
com seus interesses e objetivos” (LEÓN, 2000, p. 48, tradução do autor).
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922003, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 3
1
O Museu de Arte Contemporânea foi fundado para abrigar a coleção transferida para a Universidade de
São Paulo. Juntamente com a coleção Matarazzo, foram doados à USP não só as obras incorporadas ao
MAM-SP ao longo dos seus primeiros quinze anos de existência, mas também os prêmios da Bienal de
São Paulo conferidos até aquela data (COSTA, 2008, p. 146).
6 | A fotografia na história do Museu de Arte... TOSETTO, G. M.
Oliveira conclui o texto assumindo que a Trienal "permite uma visão, ainda que
incompleta, das principais tendências da produção fotográfica brasileira no momento",
que se reerguia no período final da ditadura militar. O Grande Prêmio da I Trienal, que
contou com a participação de 71 fotógrafos, foi dado ao fotógrafo Miguel Rio Branco,
pela série Coração, espelho da carne: Interiores, composta de seis imagens. Outros cinco
profissionais do ramo foram contemplados com o Prêmio Aquisição e, assim, formou-se
o núcleo inicial da coleção de fotografias do MAM-SP. Em 1980, apenas duas imagens
da série de Rio Branco entraram para a coleção do museu, e as outras quatro fotografias
premiadas na I Trienal foram doadas pelo artista, ao acervo, décadas depois, em 2007.
Os demais artistas que receberam o Prêmio Aquisição foram: Vera Albuquerque,
Orlando Brito, Caíca, Leonardo Tiozo Hatanaka e Anna Mariani, que apresentaram
trabalhos de caráter documental/fotojornalístico.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922003, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 7
2
O Panorama da Arte Brasileira, ou apenas Panorama, como é conhecido, foi criado em 1969 com o
propósito de reconstruir o acervo do MAM-SP. O evento é realizado a cada dois anos, como um espaço
de experimentação para curadores e de mapeamento da produção contemporânea em todas as regiões
do país.
10 | A fotografia na história do Museu de Arte... TOSETTO, G. M.
Após essa afirmação, no ano seguinte (1999), o MAM-SP recebe uma série de
doações de artistas e empresas que fazem crescer consideravelmente sua coleção de
fotografias. Um exemplo de doação empresarial foi a realizada após o Prêmio J.P.
Morgan de Fotografia, promovido pelo Banco J.P. Morgan, cujo júri (Eder Chiodetto,
João Paulo Farkas, Marcos Santilli e Paulo Klein) premiou 28 fotógrafos e os integrou
ao acervo do museu. Alfredo Gutierrez, presidente do J.P. Morgan, revelou, na ocasião,
as intenções dessa premiação: "É com satisfação, também, que doamos uma cópia dessa
coletânea ao acervo permanente do MAM – Museu de Arte Moderna de São Paulo para
a apreciação do público brasileiro". O banco, instalado no país na década de 1960, deu
início a uma importante coleção de arte brasileira, que inclui as fotografias desse prêmio.
Segundo Luiz Camillo Osorio, um dos curadores da coleção, "tem-se um núcleo de
fotografia ecoando a política do próprio acervo institucional, que na última década
apostou fortemente no meio fotográfico" (OSORIO, 2003, p. 168).
O tema da premiação foi O Brasil na virada do século e as perspectivas para o
novo milênio. Eustáquio Neves ficou com o Grande Prêmio; Ed Viggiani, Paulo
Fridman, João Urban e Penna Prearo receberam o Prêmio Ensaio e tiveram todas as
fotografias apresentadas incorporadas à coleção. Já o Prêmio Aquisição, em que apenas
uma fotografia de cada autor seria integrada ao museu, foi dado aos outros 23 fotógrafos
participantes, incrementando, de maneira significativa, o número de autores na coleção.
Esse foi o momento, no desenvolvimento da coleção brasileira, com maior número de
autores incorporados ao mesmo tempo, em sua grande maioria com produções
documentais, incluindo fotojornalistas. Entre os membros do júri, estava Eder
Chiodetto, editor ligado ao fotojornalismo e futuro curador de fotografia do MAM-SP,
reafirmando a potência da vertente documental na coleção fotográfica.
Os premiados com a aquisição foram: Alexandre Santana, Cássio Vasconcellos,
Claudia Jaguaribe, Claudio Edinger, Claudio Elisabetsky, Claudio Feijó, Cris
Bierrenbach, Eduardo Muylaert, Eduardo Simões, Egberto Nogueira, Fabiana
Figueiredo, Fausto Chermont, Gal Oppido, Iatã Cannabrava, Juvenal Pereira, Marcos
Prado, Marlene Bergamo, Maurício Simonetti, Monica Zarattini, Paula Simas, Rogério
Reis, Rubens Mano e Willy Biondani. Alguns desses fotógrafos tiveram outras obras
incluídas na coleção do MAM-SP nos anos seguintes, indicando continuidade em suas
produções.
12 | A fotografia na história do Museu de Arte... TOSETTO, G. M.
entraram para a coleção outras cinco fotografias de Lorca, sendo uma através do Clube
de Colecionadores de Fotografia e as demais, por meio de aquisição.
O segmento de fotografias da cidade de São Paulo foi um dos que mais cresceram
no começo dos anos 2000, e trouxe, para a coleção, nomes importantes como o do
húngaro Thomaz Farkas. Esse fotógrafo, além de ter sido o primeiro a expor no MAM-
SP e um dos pioneiros da fotografia moderna no Brasil, foi também responsável, ao lado
de Geraldo de Barros, por estabelecer a base experimental para a fotografia brasileira, já
na década de 1940, o que se reflete em muitos trabalhos contemporâneos que entraram
para o acervo nos anos 2000. Outro pioneirismo relevante na biografia de Farkas foi em
1959, quando uma de suas imagens se tornou a primeira fotografia brasileira a entrar
para a coleção do MoMA, em Nova York.
De certo modo, essas aquisições também apontam para a postura curatorial do
MAM-SP à época, de seguir ampliando, não apenas o núcleo de obras ligado a uma
tradição da visualidade fotográfica, mas também o de viés experimental. Deixando,
assim, evidente que o museu seguia com o "propósito de transformar-se, de fato, num
importante centro de preservação, exibição e estudo da fotografia brasileira moderna e
contemporânea" (CHIARELLI, 2002, p. 16).
Entre 1999 e 2000, um dos programas desenvolvidos pelo MAM-SP para a
ampliação de sua coleção afetou diretamente a área da fotografia: o evento Imagem
Experimental, patrocinado pela empresa Telesp Celular.
Era composto por uma série de exposições simultâneas de jovens artistas que
trabalhavam com fotografia e novas mídias. O MAM-SP escolhia os artistas
e as obras a serem expostas, das quais selecionava uma ou mais, de cada
artista, para ser comprada pela empresa e doada para o Museu (CHIARELLI,
2005, p. 12).
Por meio desse programa pago pela iniciativa privada, entraram para a coleção
obras de Caio Reisewitz, Dora Longo Bahia, Paulo D'Alessandro e Helena Martins-
Costa.
Na sequência, em 2001, uma importante mostra faz uma análise sobre o acervo
de fotografias do MAM-SP, sob o título Fotografia/Não Fotografia e com curadoria
executiva de Rejane Cintrão. Essa exposição reuniu, principalmente, obras adquiridas
pelo museu nos anos anteriores, ainda sob gestão de Tadeu Chiarelli, propondo uma
reflexão sobre os limites, fronteiras e possibilidades expressivas que a fotografia
14 | A fotografia na história do Museu de Arte... TOSETTO, G. M.
apresenta. Além disso, essa exposição tornou explícitas "duas das grandes preocupações
da gestão anterior: a exibição e a catalogação da fotografia contemporânea"3.
Segundo Chiodetto (2010, p. 80), um dos fatores que ajudaram na criação desse
clube "foi o trabalho que o museu estava fazendo no sentido de recuperar a fotografia de
uma maneira geral, investindo também nas vertentes mais experimentais", mesmo que
a princípio só fossem aceitas fotografias em suporte preto e branco.
Apesar de não ter sido partidário, inicialmente, da ideia de um Clube de
Fotografia, proposta pela então curadora assistente, Rejane Cintrão, Chiarelli acredita
que ele vem ajudando a ampliar o acervo do MAM-SP, e lembra, em entrevista de 2010,
seu envolvimento no projeto e com os artistas, a partir da visita que fez ao fotógrafo João
Luiz Musa "para convidá-lo a participar do Clube. Escolhemos juntos a fotografia".
3
MAM exibe a arte inspirada na foto. In Agência Estado, 2001. Disponível em:
http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,mam-exibe-a-arte-inspirada-nafoto,20010131p8740.
Acesso em 01 set. 2017.
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4
MAM define nova comissão curatorial. In: Agência Estado (2002). Disponível em:
http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,mam-define-nova-comissao-curatorial,20020813p7513.
Acesso em: 01 set. 2017.
16 | A fotografia na história do Museu de Arte... TOSETTO, G. M.
Em 2005, o clube traz, para a coleção, obras de Rafael Assef, Thomaz Farkas,
Walter Firmo e Klaus Mitteldorf. Ainda naquele ano, dois acontecimentos na área da
fotografia merecem destaque: o primeiro é a exposição individual de Luiz Braga
intitulada Retratos Amazônicos, comemorativa de seus 30 anos de carreira, e com
curadoria de Tadeu Chiarelli. Foram exibidas 60 imagens, sendo seis delas pertencentes
à coleção do MAM-SP, doadas em 1999 pelo próprio artista. No ano seguinte, em 2006,
a coleção recebeu, através de doação do Banco Itaú, outras 50 fotografias do artista que
haviam integrado a exposição.
Em 2005, um ano antes de assumir a curadoria do Clube de Colecionadores de
Fotografia, Eder Chiodetto doou uma série de 25 retratos em preto e branco, feitos de
escritores brasileiros. No ano seguinte, em 2006, acontecem duas exposições de
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922003, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 17
ano seguinte, em 2013, o MAM-SP abrigou a mostra Lady Warhol, com curadoria e
fotos de Christopher Makos. As imagens foram feitas no início da década de 1980, com
Andy Warhol travestido de mulher, e deram origem à série Mistaken Identity.
De volta ao Clube de Colecionadores, Eder Chiodetto torna a explicar seu
funcionamento, após o anúncio dos artistas da edição de 20145:
5
Mídia Ninja fará parte do acervo do MAM-SP. Blog Entretempos, Folha de S.Paulo (2013). Disponível em:
http://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2013/11/08/midia-ninja-fara-parte-do-acervo-do-mam-sp/.
Acessado em setembro de 2017.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922003, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 21
Considerações Finais
2008, ele também trabalha em parceria com o curador do MAM-SP, Felipe Chaimovich.
Ao estabelecer frentes de pesquisa para o clube, a coleção de fotografias caminha no
sentido de preencher lacunas e ampliar a coleção de maneira coerente, sem deixar de lado
a possibilidade de correr riscos ao integrar artistas contemporâneos, que voltam seus
trabalhos para esse suporte artístico documental e de construção da memória coletiva.
Depois da gênese da coleção de fotografias do MAM-SP na década de 1980, em
consonância com a histórica aceitação da fotografia no âmbito internacional pelos
museus de arte, os movimentos internos foram guiados por ações do curador e,
posteriormente, pelo Clube de Colecionadores. Externamente, a coleção do museu foi
influenciada pelo documentarismo advindo do momento político no período de sua
formação. Essa característica ainda é evidente se notarmos as recentes aquisições e
exposições de trabalhos sobre questões políticas da atualidade.
Assim, é possível identificar na coleção do MAM-SP a existência de um sistema
para o colecionismo de fotografia, sinalizado já desde a sua gênese – quando das
tentativas de estabelecer exposições trienais e quadrienais voltadas à premiação e
incorporação de fotografias. A influência do colecionador em relação à fotografia também
fica evidente a partir da atuação dos curadores na década de 1990, e se consolida
atualmente com um curador exclusivo para esse suporte, Eder Chiodetto, nome com
experiência no fotojornalismo e que conduz as frentes de pesquisa para a coleção
fotográfica do museu.
Além disso, fatores históricos como a ditadura militar e a abertura política foram
decisivos na produção fotográfica no Brasil durante duas décadas, entre 1964 e 1985.
Muito ligada ao fotojornalismo, a imagem fotográfica se afasta dos movimentos de arte,
mas abre caminho dentro das coleções de museus como o MAM-SP.
Se o ato de colecionar é retirar as coisas de sua cronologia histórica e inseri-las
em um sistema próprio, o conhecimento sobre essa coleção provém tanto das relações
que os objetos estabelecem entre si, quanto da relação que estabelecem com aspectos
externos: mesmo que as coleções sejam arquitetadas por indivíduos (colecionadores,
curadores e diretores), elas são construções sociais.
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PHOTOGRAPHY IN THE HISTORY OF THE MUSEUM OF MODERN ART OF SÃO PAULO (MAM-SP)
Abstract: This article aims to highlight the importance of photography in the collection of the Museum
of Modern Art in Sao Paulo (MAM-SP), both in relation to the historical moments concerning the
acquisition of this type of work of art, and by evoking the links that are established with the curators,
directors and exhibitions that have legitimized the presence of photography within the museum. The
museum's first approach to photography took place through exhibitions in the late 1940s, but the first
incorporations of photography works did not take place until the early 1980s, through events focused
exclusively on this type of media. Currently, the foundations of the collection are established, and it
continues to grow thanks to the incorporations made today by the Club of Photography Collectors, always
in search of dealing with the multiplicity of photographic images produced by Brazilian artists.
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Résumé: Cet article se propose de souligner l’importance de la photographie dans la collection du Musée
d’Art Moderne de Sao Paulo (MAM-SP), à la fois par rapport aux moments historiques liés à l’acquisition
de ce type d’œuvre d’art, et aux liaisons qui sont établies avec les conservateurs, les réalisateurs et les
expositions qui ont légitimé la présence photographie au sein du musée. La première approche du musée
à la photographie se déroule tout au long des expositions à la fin des années 1940, mais les premières
incorporations d’œuvres en image photographique n’ont eu lieu qu’au début des années 1980, à travers
des événements axés exclusivement sur ce type de média. En ce moment, les bases de la collection sont
établies, et elle ne cesse de croître grâce aux incorporations réalisées aujourd’hui par le Club des
Collectionneurs de Photographie, qui cherche constamment à s’occuper de la multiplicité des images
photographiques produites par des artistes brésiliens.
Referências
BARROS, Regina Teixeira de. Revisão de uma história: A criação do Museu de Arte
Moderna de São Paulo (1946-1949). Dissertação de Mestrado, Departamento de Artes
plásticas da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 2002.
BAUDRILLARD, Jean. The system of Collecting. In: CARDINAL, Roger (Ed.). The
culture of collecting. Cambridge: Harvard University Press, 1994.
CHIARELLI, Tadeu (Ed.). O Museu de Arte Moderna de São Paulo. São Paulo: Banco
Safra, 1998.
D'HORTA, Vera. MAM: Museu de Arte Moderna de São Paulo. São Paulo: DBA Artes
Gráficas, 1995.
LEÓN, Aurora. El museo -Teoría, praxis y utopía. 7. ed. Madrid: Ediciones Cátedra,
2000.
OSORIO, Luiz Camillo. História de uma coleção: arte brasileira entre os anos 1960-1980
no acervo do Banco J. P. Morgan Chase. São Paulo: Banco J. P. Morgan S.A, 2003.
PEARCE, Susan. Museum objects. In: PEARCE, Susan (Ed.). Interpreting objects and
collections. New York: Routledge, 1994.
____________________________________________________________________________________
SOBRE O AUTOR
Guilherme Marcondes Tosetto é doutorando em Belas Artes pela Universidade de Lisboa (UL,
Portugal); docente do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e coordenador do
Bacharelado Técnico em Fotografia.
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Recebido em 30/05/2020
Aceito em 29/06/2020
Os negativos de vidro no fundo da gaveta (ou
como a Fotografia na escola não é arquivo)
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Resumo: A Escola é, pela sua natureza, uma instituição de memória pela forma como é obrigada a arquivar
inúmeros documentos. No entanto fotografias, apesar das memórias que transportam e do registo visual
que constituem, não são na maioria das vezes alvo de um arquivamento sistemático nas escolas. Neste
artigo utiliza-se como exemplo a Escola Secundária de Camões, e o acaso da descoberta de negativos
antigos em vidro no fundo de uma gaveta, como meio para refletir sobre o papel da fotografia nas escolas
em Portugal, mobilizando-se os conceitos de memória colectiva, individual e de história.
Introdução
1
O Clube de Fotografia terá surgido no final dos anos 70 numa das divisões da antiga casa do Reitor.
Dado que não existia na escola qualquer disciplina relacionada com a fotografia, tudo leva a crer que o
Clube tenha sido criado por professores e alunos com o intuito de trabalhar a fotografia na escola
enquanto atividade extracurricular.
2 | Os negativos de vidro no fundo da gaveta (ou... CUNHA, H. R.
fundo de uma das gavetas que encontrei uma caixa de cartão fechada com fita cola muito
envelhecida contendo sete negativos em vidro 18x24 cm, sem data, mas evidentemente
bastante antigos. As imagens eram da escola. Mas onde se integram aquelas chapas de
vidro? O que mostram realmente e que significado têm?
História e Memória
Pierre Nora (1993, p. 9), no seu artigo intitulado “Entre Memória e História”
distingue:
há tantas memórias quantos grupos existem; que ela é, por natureza, múltipla
e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A história, ao contrário,
pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação para o universal. A
memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto.
A história só se liga às continuidades temporais, às evoluções e às relações das
coisas. A memória é um absoluto e a história só conhece o relativo.
O Lyceu de Camões
2
História do Parlamentarismo. Disponível em:
<https://www.parlamento.pt/Parlamento/Paginas/historia-do-parlamentarismo.aspx>.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922004, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 5
Sobre o espólio da Escola, Marta C. Lourenço (2014, s/p.) refere, no seu Parecer
sobre o património e coleções da E.S. de Camões, Lisboa, que:
destacando ainda:
Municipal Lisboa - Sala Leitura”, [s.d.]) que surgiram mais entradas, treze, incluindo
três onde a escola aparece apenas em segundo plano. Das restantes dez, nove são vistas
exteriores do edifício e uma do interior do ginásio central numa ocasião especial, eleições
em 1911, onde se vê o edifício cheio de homens (fotografia de Joshua Benoliel)
(BENOLIEL, [s.d.]). Todas as dez fotografias têm um carácter bastante formal, ainda
que com qualidade variada. Apresentam-se os fotógrafos e as datas das fotografias:
Joshua Benoliel - 3 fotografias: 1909 (2), 1911 (1) - 9x12 cm – negativos em vidro;
Alberto Carlos Lisma - 3 fotografias: 1909 (1), s/data possivelmente 1909 (2) - 9x12 cm
– negativos em vidro; Arnaldo Madureira - 2 fotografias: 1960 - 6x6 cm – negativos em
acetato de celulose; Augusto Fernandes – 2 fotografias: 1967 - 6x6 cm – negativos em
acetato de celulose; Autor desconhecido – 1 fotografia: 1914 - 9x12 cm - negativo em
vidro.
As fotografias da Direção-Geral de Arquivos/ Arquivo da Torre do Tombo
reproduzidas no Livro de Adamopoulos e Falcão de Vasconcellos (2009) correspondem
todas a ocasiões oficiais (jantares de gala, reuniões oficiais, exames de admissão à
faculdade, discursos de personalidades, …) feitas, na sua maioria, com a carga formal que
cada um daqueles acontecimentos impunha, não sendo atribuída autoria às fotografias.
Ainda no mesmo livro, das imagens pertencentes a arquivos pessoais, a maioria
mostra retratos de grupo, com alunos e professores, feitos no espaço escolar ou em visitas
de estudo, mas que denotam alguma descontração e descompressão da formalidade e
austeridade que se sabia existir nas escolas antes do 25 de abril de 19743. É curioso
verificar que, após esta data, o conteúdo das fotografias evolui num sentido de mostrar
não só a descontração, mas também uma crescente informalidade e ousadia no dia-a-dia
e nas atividades extracurriculares de alunos e professores.
A realidade é que, na escola, não existe qualquer arquivo fotográfico organizado.
Os registos fotográficos sujeitos a catalogação encontram-se fora da escola, como os já
referidos Arquivo Municipal de Lisboa e a Torre do Tombo. É bastante provável que se
encontrem fotografias da escola organizadas em periódicos (como os jornais Diário de
Notícias ou o extinto O Século) mas tal não foi possível verificar para este artigo. Na
própria escola existem apenas algumas fotografias soltas espalhadas pelo espaço escolar.
Assim não é de estranhar que a maioria das imagens de Liceu Camões - 100 anos 100
3
O 25 de abril de 1974 foi a data da revolução que pôs termo a mais de quatro décadas da Ditadura do
Estado Novo em Portugal. Ficou conhecida como a Revolução dos Cravos pois os militares que ocupavam
as ruas tinham cravos vermelhos nos canos das espingardas como símbolo da revolta sem violência
armada.
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Os laboratórios de Física e Química das fotografias são os anteriores à construção dos Gabinetes em
1927. Sendo de prever que as fotografias dos sete negativos tenham sido feitas em momentos próximos,
haver uma planta aparentemente de obra indicia poder a escola estar a ser alvo de obras.
8 | Os negativos de vidro no fundo da gaveta (ou... CUNHA, H. R.
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10 | Os negativos de vidro no fundo da gaveta (ou... CUNHA, H. R.
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A verdade é que, seguindo a visão de Nora (1993), estas fotografias podem ser
fontes históricas, podem até ser vistas enquanto pertencentes a uma memória coletiva
do edifício, mas não são a memória de um indivíduo (aluno, professor, …) nem remetem
para um acontecimento concreto. São imagens materiais (vidro e emulsão fotográfica
exposta à luz) que me transmitem a agitação de estar a viver um pouco da história do
que foi o Lyceu, mas não me fazem recordar nem remetem para um acontecimento
histórico concreto. A memória daquelas fotografias não está no passado, mas está no
futuro, no meu futuro, sempre que as recordar, sempre que recordar o Camões.
Quando recordo o passado, quando evoco uma memória e uma memória pelas
fotografias, evoco a minha memória. Ainda que possa fazer a história pela fotografia, a
recordação do aluno, do professor ou de outro qualquer funcionário que tenha passado
pelo Liceu Camões não será feita por estas fotografias, mas pelas suas próprias
fotografias, ou dos seus colegas, ou dos seus amigos. Se um profissional pode pensar que
está a fazer uma fotografia para a história, o residente Camoniano (como por vezes são
referidas as pessoas que passaram pelo Liceu) foi sempre fazendo as fotografias para si.
Enquanto instituição de memória, a fotografia de Escola, da escola de cada um de
nós, na escola que cada um de nós frequentou, é a sua fonte de memória, mesmo que não
o seja para mais ninguém. O retrato da turma da 1ª classe que o fotógrafo foi à escola
fazer é, em si, uma instituição da memória coletiva daqueles alunos e daquele ou aquela
professora. Se conseguisse ter todas as fotografias de todas as turmas do 1º ano de
Portugal num determinado ano letivo, continuava a não ter as memórias de ninguém.
Podia ver e comparar as roupas, os penteados, os cenários, mas nada sabia sobre cada
uma daquelas pessoas, e não podia fazer história só por si. Enquanto fotografia, todas as
imagens que encontrei nas gavetas dos exercícios dos alunos do Clube de Fotografia,
todos os negativos nos dossiês, têm muito mais memórias do que eu poderei alguma vez
suspeitar. Posso ver como eram antigamente as caves, ou como campos de jogos se
tornaram parques de estacionamento, e agora monoblocos de aulas durante as obras de
requalificação, mas nunca posso adivinhar o que a pessoa que fez a imagem sentiria se a
voltasse a ver.
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Figura 10: Dossiê contendo negativos do antigo Clube de Fotografia E.S. Camões (fotografia atual).
Fonte: Escola Secundária de Camões.
14 | Os negativos de vidro no fundo da gaveta (ou... CUNHA, H. R.
Figura 11: Gaveta com ampliações feitas por elementos do antigo Clube de Fotografia E.S. Camões
(fotografia atual).
Fonte: Escola Secundária de Camões.
Figura 12: As Caves da E.S. Camões (assinado no verso Alexandra – s/data – arquivo da gaveta).
Fonte: Escola Secundária de Camões.
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Figura 13 e 14: O mesmo espaço enquanto campo de jogos (assinado no verso: Susana
Fonseca – s/data – arquivo da gaveta) e com monoblocos (fotografia atual – 2020).
Fonte: Escola Secundária de Camões.
Mas a escola, o Lyceu, é mais do que um espaço físico com materiais e recursos
pedagógicos com caráter histórico. É um local de relações, emoções e sentidos onde se
ensina e aprende um pouco de tudo. A memória da história de uma escola é, primeiro que
tudo, uma memória individual, de cada aluno, de cada professor, de cada funcionário.
Destas as mais importantes são, sem dúvida, as memórias dos alunos. São em muito
maior número, mais intensas, mais puras e mais emocionais pela idade dos seus
intervenientes. É também para e pelos alunos que a escola existe. Não faz sentido pensar
e fazer história da escola sem alunos. Pela idade com que frequenta a escola, o aluno não
a vê pensando no filtro da História, não é essa a sua preocupação primeira. Mesmo em
adulto, o ex aluno recorda a sua escola tal como a via enquanto aluno, no tempo e no
espaço, pois é na vivência da experiência individual que reside a sua a memória.
Considerações Finais
e salas, da sua organização. São, neste aspeto, documentos históricos que contribuem
para o conhecimento da história do edifício. Mas para mim foram memória da Fotografia,
descobrir documentos originais, imagens feitas diretamente no espaço que mostram, foi
poder sentir de que forma uma câmara de grande formato terá sido colocada num tripé,
as chapas carregadas no escuro e tratadas com o cuidado que uma preciosidade de vidro
exige, quer antes, quer depois de expostas. À minha frente tinha o Camões fixado numa
forma de fotografia que nunca tinha tocado. Foi como encontrar um tesouro. Aquelas
chapas, ainda que sejam história da escola, são para mim um mais a acrescentar a tudo,
são a memória da Fotografia. Eduardo Lourenço e Souza (2016, p. 237) escrevem:
Ainda que aquelas chapas tenham começado por ser prosa, rapidamente se
revelaram em mim como poesia.
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THE GLASS NEGATIVES AT THE BOTTOM OF THE DRAWER (OR AS THE SCHOOL PHOTOGRAPHY
IS NOT AN ARCHIVE)
Abstract: School is, by its nature, a memory institution due to the way it is obliged to archive numerous
documents. However, photographs, in spite of the memories they bring and the visual record they
compose, are most often not the target of systematic archiving in schools. In this article, we use the
circumstance of discovering old glass negatives in the bottom of a drawer in Escola Secundária de Camões
as an example, and a mode to reflect on the role of photography in schools in Portugal, mobilizing the
concepts of collective memory, individual and history.
Referências
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SOBRE O AUTOR
Hugo Rodrigues Cunha é doutorando em Arte Contemporânea pela Ar.Co - Centro de Arte e
Comunicação (Lisboa); docente da Escola Secundária de Camões, Liboa - Portugal.
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Recebido em 02/05/2020
Aceito em 06/07/2020
Um tesouro austro-brasileiro: compartilhando
responsabilidades sobre a Coleção Mario Baldi
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Resumo: O texto apresenta a trajetória da herança documental do fotógrafo Mario Baldi (1896-1957),
dividida entre Áustria e Brasil, e os esforços bilaterais para reunir as informações que complementam as
duas coleções. São expostos alguns dados básicos sobre a obra do fotógrafo, além das formas como sua
produção foi veiculada ao público, durante sua vida e postumamente. Enfatiza-se a passagem de uma
coleção cindida em duas partes incomunicáveis, para uma proposta de compartilhamento de
responsabilidades.
Introdução
1
Nas referências das imagens, utilizamos “WMW, Coleção Mario Baldi” seu para indicar os documentos
do Weltmuseum Wien, e “SMCT/SPHAC, Coleção Mario Baldi” para indicar aqueles que pertencem ao
Serviço de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultura da Secretaria Municipal de Cultura de Teresópolis.
Da perspectiva arquivística, os dois conjuntos constituem “Fundos” documentais, entretanto as duas
instituições usam a nomenclatura “Coleção”.
2 | Um tesouro austro-brasileiro: compartilhando... LOPES, M. B.
2
Este documento consiste num projeto de livro genealógico da família Baldi, com o título Stammbaum
(Árvore Genealógica). Há biografias escritas pelo fotógrafo e por alguns de seus parentes. É um conjunto
de originais datilografados, sem paginação e sem data precisa, compilado ao longo de vários anos.
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Figura 1: Mario Baldi com duas moradoras do interior do Estado do Rio de Janeiro. Ca 1921-22.
Fonte: SMCT/SPHAC, Coleção Mario Baldi. Fotógrafo não identificado.
em posse dos clientes, e é quase certo que os negativos (possivelmente de vidro) tenham
se perdido.
Depois dessa fase de itinerância, Mario Baldi se tornou o fotógrafo particular de
D. Pedro de Orleans e Bragança, neto de D. Pedro II. Com o fim do exílio à família
imperial, no início dos anos 1920, o príncipe voltou ao Brasil. Pouco tempo depois, Baldi
foi trabalhar em Petrópolis como copeiro em sua casa. Como a família Baldi possuía
relações com a nobreza austríaca na Europa, uma carta de recomendação da grã-duquesa
da Toscana promoveu o copeiro a fotógrafo e secretário de D. Pedro. Baldi, então, pode
documentar as viagens do seu novo e inesperado mecenas, num tempo em que a
monarquia ainda gozava de algum prestígio no país (BALDI, s/d.).
Em 1928, Baldi retornou à Europa, ainda a serviço do príncipe. Em 1932,
participou de uma expedição científica ao norte da África, produzindo fotografias e
artigos jornalísticos sobre a Líbia e outras regiões próximas. A volta ao Brasil só
aconteceu em 1934, na companhia de Emmy Baldi, com quem havia se casado pouco
tempo antes. O retorno gerou a primeira participação efetiva num projeto com indígenas,
entre os Bororo. Como contratado pela missão salesiana no Mato Grosso, Baldi produziu
um filme e muitas fotografias do processo histórico e cultural vivido pelos índios e pelos
religiosos. Depois do projeto, realizado no Mato Grosso, o fotógrafo voltou ao Sudeste
com material suficiente para garantir espaço em algumas revistas ilustradas do período,
como Rio Ilustrado, Espelho e Ilustração Brasileira. Em 1936, D. Pedro retornou ao
Brasil e, mais uma vez, Mario Baldi fotografou a visita dos imperiais (agora com D. Pedro
Gastão) aos Bororo e à Ilha do Bananal, onde conviveram com os índios Karajá. Começou
neste tempo o contato mais próximo com a imprensa brasileira (LOPES, 2014).
Vale destacar aquela que pode ser considerada a primeira iniciativa de
agenciamento de fotografias destinadas à imprensa, no Brasil: a Yurumí. O termo vem
do Tupi e é um dos nomes do tamanduá. Baldi já usava a imagem e o nome desse animal
tropical como identidade visual de seu trabalho de fotógrafo. Aproximadamente entre
1935 e 1937, ele e Harald Schultz – que viria a se especializar em Etnologia –
trabalharam juntos e assinaram reportagens, no Brasil e na Alemanha, produzidas no
âmbito da Yurumí, denominada brasilian press-photo (BALDI; SCHULTZ, s/d.).
A segunda rodada de viagens com D. Pedro, em 1936, valeu ao fotógrafo uma
série de reportagens em A Noite Illustrada (BALDI, 1936) e, consequentemente, um
contrato com A Noite, do Rio de Janeiro, que publicava a revista (Figura 2). Para esta
que era uma das maiores empresas de comunicação do Brasil, o fotógrafo fez a cobertura
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922005, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 5
da filmagem de Doralice Avellar entre os Karajá, em 1938 (Figura 3), entre vários outros
trabalhos.
Figura 2: “Sentimento de morte entre os Karajás”. Parte da reportagem de Mario Baldi, publicada
em A Noite Illustrada, e preservada pelo fotógrafo em seu arquivo pessoal.
A Noite Illustrada, 5 de janeiro de 1937.
Fonte: SMCT/SPHAC, Coleção Mario Baldi. Periódicos Avulsos.
6 | Um tesouro austro-brasileiro: compartilhando... LOPES, M. B.
Figura 3: BALDI, Mario. Cobertura fotográfica, para A Noite Illustrada, da filmagem de Doralice
Avellar entre os índios Karajá. Ilha do Bananal. 1938.
Fonte: SMCT/SPHAC, Coleção Mario Baldi, n. 4935.
nas filmagens dos Karajá), tornara-se o depositário do espólio do fotógrafo, que não
deixou descendentes. Após consultas judiciais, inventários e negociações de preço,
Gewert vendeu o material, que era composto por um acervo de 386 objetos etnográficos
Karajá e o que parecia ser seu arquivo fotográfico: quatorze caixas contendo ampliações
ordenadas tematicamente, folhas-contato organizadas em cartões, mais de dez mil
negativos e uma quantidade pequena de diapositivos. A quase total falta de informações
documentais escritas fez com que a coleção fosse catalogada primariamente, ainda que o
seu valor e interesse tenham sido prontamente reconhecidos.
Assim, parte da produção de Mario Baldi juntava-se a várias outras coleções, no
museu que, hoje, preserva o maior conjunto de documentos, imagens e objetos brasileiros
fora do Brasil.
Depois de mais de duas décadas, e sem o conhecimento do museu vienense, o
Serviço de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural (SPHAC) da Secretaria Municipal
de Cultura de Teresópolis recebeu a outra parte da herança de Mario Baldi. A doação foi
feita pelo médico, escritor, artista e político Arthur Dalmasso (1920-2006). Desta vez, o
material incluía não só ampliações fotográficas, mas também artigos ilustrados, cartas e
demais documentos pessoais referindo-se ao fotógrafo e suas atividades.
Nesta época, o SPHAC estava ainda começando suas atividades no campo da
preservação dos acervos históricos da cidade de Teresópolis. O órgão nasceu no final dos
anos 1980, como uma repartição da área cultural da municipalidade teresopolitana
responsável pela preservação da memória e dos acervos locais. Atualmente, o SPHAC
encontra-se instalado na Casa da Memória Arthur Dalmasso, prédio tombado pelo
Instituto Estadual do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro (INEPAC). O conjunto de
documentos de Mario Baldi, que teve relações próximas com a cidade ao longo da vida e
onde residia por ocasião da sua morte, foi o primeiro a compor as coleções da instituição.
A professora Regina Rebello, responsável pela recepção da doação e pela organização
imediata do material, observou que o acervo se tratava de uma preciosidade, pois
continha relatos sobre a região serrana do Estado do Rio de Janeiro, sua produção
agrícola e descrições urbanas feitas na década de 1920 por Baldi (REBELLO e MUNIZ,
2006). Além disso, a diversidade cultural brasileira representada em milhares de
fotografias de diversas regiões do país e um inédito diário da Primeira Guerra Mundial
completavam o tesouro histórico e cultural que seria doravante preservado. Hoje
sabemos que, no Brasil, entre contatos fotográficos e ampliações, existem mais de 7.000
documentos visuais, além dos escritos.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922005, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 9
3
Durante o processo de traslado dos documentos de Mario Baldi para Viena, Etta Becker-Donner tentou
recuperar os cadernos de campo do fotógrafo, sem sucesso.
12 | Um tesouro austro-brasileiro: compartilhando... LOPES, M. B.
citar alguns exemplos clássicos, colocam desafios importantes para a pesquisa e para a
crítica histórica (SCHWARTZ; RYAN, 2006; HIGHT; SAMPSON, 2004).
Por outro lado, exatamente por serem suportes de relações sociais, as fotografias
precisam ser recolocadas no fluxo multitemporal do evento da fotografia, como sugere
Ariella Azoulay (2010; 2012). Nós, hoje, que olhamos, criticamos, preservamos,
digitalizamos e admiramos as fotografias, também fazemos parte desse fluxo. O
engajamento historiográfico com as imagens enriquece o evento da fotografia, por meio
da crítica e da exposição das assimetrias sociais que marcaram a produção da imagem,
mas também através do reconhecimento de que há passados que só chegam até nós,
visualmente, porque foram fotografados.
Como um arquivo pessoal, o conjunto de documentos preservados no Brasil
colocam desafios de outra natureza, para pesquisadores: a tarefa de valorizar a
construção do sujeito-fotógrafo, sem cair na fácil armadilha da ilusão biográfica
(BOURDIEU, 2006). As cartas e fotografias, artigos e desenhos, cartões-postais e
diários, são conjuntos que visam, seletivamente, entre palavras e imagens, dar um “rosto”
para a figura “Mario Baldi”. Não é sem razão que as coletâneas de jornais e revistas para
os quais Baldi contribuiu como jornalista e fotógrafo tem o título Brazilien: são conjuntos
de informações sobre a atuação – e sucesso – de um imigrante austríaco no Brasil. A
primeira série de textos do autor chama-se Nach Brasilien, que pode significar tanto Para
o Brasil quanto Depois do Brasil, ou seja, assume a condição de imigrante como
transformadora, espécie de rito de passagem. Assim, desde muito cedo Mario Baldi
cuidou da sua autoimagem por meio de seus textos e fotografias.
A maioria das suas reportagens é dedicada às suas expedições, quase sempre de
caráter aventureiro, elemento que Baldi sempre cultivou sobre seu próprio caráter. Boa
parte da sua autobiografia também destaca esse “traço sertanista”. É comum a todas as
pessoas a construção de memórias. Seja qual forem os meios utilizados, o resultado final
é sempre complexo e subjetivo. A memória é algo fluido e sempre passível de ser refeita,
reorganizada. Ângela Gomes (1998), quando tratou da memória construída através de
arquivos pessoais, atribuiu a essas coleções o caráter de feitiço. Isso porque, por se tratar
de documentos pessoais, revelariam a figura do produtor de forma verdadeira e real. Esta
“ilusão de verdade” é, entretanto, um esforço de construção de uma imagem para si e
para os outros (GOMES, 1998, p. 7). Dialoga, portanto, com identidades, status e
memória.
14 | Um tesouro austro-brasileiro: compartilhando... LOPES, M. B.
Mesmo que os arquivos privados não necessariamente sejam criados para que,
um dia, se façam públicos, o autor afirma que
Figura 5: Fotógrafo não identificado. Mario Baldi trabalhando na sua coletânea de artigos, no
escritório da rua São Clemente. Rio de Janeiro, década de 1940.
Fonte: WMW, Coleção Mario Baldi, n. 10.005.
Figura 6: Página de abertura do sítio virtual da Coleção Mario Baldi. Design de Ricardo Guarilha.
Fonte: Sítio virtual da Coleção Mario Baldi.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922005, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 17
Figura 7: Página de apresentação do sítio virtual da Coleção Mario Baldi. Design de Ricardo Guarilha.
Fonte: Sítio virtual da Coleção Mario Baldi.
Considerações finais
Com certeza a Coleção Mario Baldi constitui um tesouro cultural, uma vez que
contém documentação inédita sobre a Europa, África e América do Sul (Além do Brasil,
Baldi também produziu uma série fotográfica no Peru). Os processos históricos
contemplados pela documentação são bastante variados e merece destaque a Primeira
Guerra Mundial, representada por um diário com narrativa e fotografias; os complexos
encontros de sociedades e diversidade étnica no Brasil, representados pelas séries
fotográficas sobre a atuação do Serviço de Proteção ao Índio e Fundação Brasil Central;
desenvolvimento da linguagem fotojornalística no Brasil, sendo Baldi um dos primeiros
fotógrafos modernos da imprensa no país.
Atualmente, tanto o Weltmuseum Wien quanto o Serviço de Patrimônio de
Teresópolis vivem momentos distintos em relação ao contexto do início do projeto.
Algumas pessoas já não fazem parte das equipes originais, tanto no Brasil como na
Áustria. Portanto, o Projeto Baldi passa por um momento chave, no qual as duas
instituições de guarda devem buscar os apoios necessários e manter o diálogo aberto
para que continuem preenchendo as lacunas de seus conjuntos documentais. Para tanto,
se faz necessário ir adiante: só assim será garantida a preservação e união virtual do que
chamamos de Coleção Mario Baldi, um tesouro de milhares de imagens sobre a
diversidade cultural brasileira.
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Abstract: The text presents the trajectory of the documental estate of the photographer Mario Baldi
(1896-1957), divided between Austria and Brazil, and the bilateral efforts to bring together the
information needed to supplement both collections. We expose some basic data about the work of the
photographer, along with the ways through which his production was brought to the public, both during
his life and posthumously. Finally, we emphasize the passage from a collection split into two
incommunicable halves, to a proposal of shared responsibility.
Referências
Fontes
REBELLO, Regina; MUNIZ, Laura. Entrevista sobre Mario Baldi concedida a Marcos
de Brum Lopes. Teresópolis, 30 de novembro de 2006. Mídia de áudio digital. Arquivo
do autor.
Bibliografia
AZOULAY, Ariella. The civil contract of photography. New York: Zone Books, 2010.
LOPES, Marcos de Brum e FEEST, Christian. Mario Baldi: fotógrafo austríaco entre
índios brasileiros. Rio de Janeiro: F. DUMAS História e Ciências Sociais, 2009.
POPESCU, Adam. “How Will We Remember the Pandemic? Museums Are Already
Beginning to Decide”. New York Times, 25 de maio de 2020. Disponível em:
https://bityli.com/o9Fon. Acesso em 09 jul. 2020.
20 | Um tesouro austro-brasileiro: compartilhando... LOPES, M. B.
WEIL, Stephen E. “From being about something to being for somebody: the ongoing
transformations of the American museum”. Making museums matter. Washington:
Smithsonian Institution Press, 2002.
WEINKAMER, Kurt. “Die familie Baldi”. In: Salzburger Landeskunde INFO. Salzburg.
2000.
_____________________________________________________________________________________
SOBRE O AUTOR
Marcos de Brum Lopes é doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense
(UFF); professor visitante do Departamento de História da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) e Técnico em Assuntos Culturais - História do Museu Casa de Benjamin
Constant, Ibram (Licenciado).
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Recebido em 29/05/2020
Aceito em 01/07/2020
Os olhares de Fatumbi: o lugar da fotografia na
Fundação Pierre Verger
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Resumo: O presente texto tem como objetivo compreender o lugar da fotografia na Fundação Pierre
Verger a partir de uma perspectiva histórica. Analisamos o processo de construção do acervo, seu
tratamento técnico, sua disponibilização para o público e alguns dos seus usos sociais. A investigação
destes pontos está permeada ainda pela apreciação de aspectos biográficos do fotógrafo e da estrutura de
funcionamento e financiamento da Instituição.
Palavras-chave: Fundação Pierre Verger. Fotografia. Bahia
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Introdução
Em 1988 o fotógrafo francês Pierre Verger criou uma Fundação com seu nome
na cidade de Salvador, capital da Bahia. A Instituição teve como objetivo ser um espaço
de guarda de todo seu acervo produzido ao longo de uma rica trajetória profissional
marcada por intensas viagens e imersões culturais. O projeto foi instalado na casa do
próprio criador no bairro do Engenho Velho de Brotas e contou com sua direção até o
ano do seu falecimento em fevereiro de 1996, tendo o trabalho prosseguido pelas mãos
de outros colaboradores, a exemplo do pintor Carybé, Solange Bernabó e Gilberto de
Freitas Sá.
Permanecendo em atividade atualmente, e com uma estrutura que foi ampliada
para incluir um centro cultural, a Fundação Pierre Verger tornou-se uma instituição
importante para estudiosos de diferentes áreas. Além de expressar uma narrativa sobre
a história do fotógrafo, o espaço reúne vasta documentação composta por películas,
objetos de arte e uso pessoal, manuscritos, fichas, livros e mais de sessenta mil negativos
e doze mil ampliações reunidas pelo fotógrafo entre as décadas de 1930 e 1970. Todo
2 | Os olhares de Fatumbi: o lugar da fotografia na... SANTOS, M. O.
esse material tem servido de base para trabalhos acadêmicos e artísticos com temáticas
marcadas, principalmente, pelas conexões atlânticas da cultura negra baiana e de regiões
do continente africano, com destaque para o Golfo do Benin.
O presente texto tem como objetivo compreender o lugar da fotografia na
Fundação Pierre Verger, a partir de uma perspectiva histórica. Analisamos o processo
de construção do acervo, seu tratamento técnico, sua disponibilização para o público e
alguns dos seus usos sociais. A investigação destes pontos está permeada, ainda, pela
apreciação de aspectos biográficos do fotógrafo e da estrutura de funcionamento e
financiamento da Instituição.
a fotografia teve nas sociedades ao longo do século XX, assim como as transformações
nos paradigmas das diferentes áreas acadêmicas.
Verger demonstrou ter consciência da importância da sua obra e do seu papel
para legá-la ao futuro. Além de organizar suas fotografias e seus escritos publicados em
diferentes suportes como jornais e livros, ele se empenhou em catalogar sua
correspondência fazendo inclusive cópia de cartas emitidas. Ângela de Castro Gomes
(1998, p.125) chama a atenção para os problemas enfrentados pelo historiador na análise
específica de materiais oriundos de arquivos privados, pois eles geram uma suposta
“ilusão da verdade” que acaba exercendo um encantamento no pesquisador, processo que
ela denomina como o “feitiço do arquivo privado”. A marca da pessoalidade dessa
documentação induz o pesquisador a imaginar que ela revelaria seu produtor de maneira
mais “verdadeira”. Além disso, é preciso ter cuidado com uma possível condução da
pesquisa que corre o risco de ser orientada por quem deixou a documentação organizada
e hierarquizada de acordo com sua própria expectativa. Para a autora o pesquisador deve
deixar claro para o leitor que foi ele quem conduziu a fonte, e não foi “por ela
conduzido/possuído”.
Hoje a Fundação Pierre Verger é uma importante referência para os estudos da
e com a fotografia. Atende a pesquisadores de áreas distintas e tem a fotografia na
centralidade dos projetos e ações que desenvolve. Seu acervo possibilita investigações
sobre seu fundador, suas práticas fotográficas, considerando as técnicas empregadas ao
longo do vasto período de sua atuação como fotógrafo bem como sobre as diferentes
culturas e experiências que viu e deixou registros.
Pierre Eudoard Leopold Verger nasceu em Paris no ano de 1902, membro de uma
família socialmente abastada. Com quase trinta anos de idade, tinha perdido seus pais e
irmãos e diante da desagregação do seu núcleo familiar, resolveu sair do ambiente
parisiense e se aventurar em viagens exploratórias pelo mundo. Nesse período, tinha
iniciado seu fascínio pela arte fotográfica e começou sua caminhada fora da França com
uma Rolleiflex1 usada nas mãos (MARTINI, 1999, p.13).
1
A câmera Rolleiflex, de produção alemã, surgiu no fim da década de 1920 e tornou-se um modelo
inovador para a arte fotográfica no século XX. Ao contrário das tradicionais máquinas, a Rolleiflex tinha
um peso leve, era de tamanho compacto e, através de duas lentes objetivas, possibilitava uma melhor
6 | Os olhares de Fatumbi: o lugar da fotografia na... SANTOS, M. O.
Segundo relata o próprio Verger, no início de seus trabalhos fotográficos, ele não
tinha um estilo definido. Sua ação se dava pelo encantamento dos detalhes que a
Rolleiflex lhe permitia captar de tão curta distância. Assim, ele podia “valorizar o
contraste do rugoso e do liso, do brilhante e do fosco, o veio da madeira, a espuma de
uma onda vindo morrer na areia granulosa de uma praia”. Captava “as gotas do orvalho
sobre um talo de erva, um canto de calçada asfaltada, alguns paralelepípedos e um bueiro”
e, até mesmo, “um lagarto engolindo uma mosca” (VERGER, 2011, p.12).
As pretensões iniciais de Verger era ter a fotografia como um hobby. Contudo,
os primeiros aprendizados técnicos que teve com seu amigo e reconhecido fotógrafo
francês, Pierre Boucher, o levou para um interesse mais profissional da arte de clicar.
Munido de material e conhecimentos básicos, seu aperfeiçoamento se deu num processo
de imersão nas primeiras viagens que realizou aliado ao estudo de noções de antropologia
e etnografia. Ainda no início da década de 1930, Verger fotografou em países como
Rússia, Itália e Taiti. Este último, onde permaneceu por alguns anos, foi onde registrou
uma das suas imagens mais conhecidas e que deu projeção ao seu nome na ocasião, Pesca
e Arpão (MARTINS, 2019, p.15-16).
Sua relação com o Brasil começou nos anos quarenta, quando já acumulava uma
vasta experiência de viagens e trabalhos fotográficos incluindo passagens pelas Antilhas,
Polinésia Francesa, Estados Unidos, Japão, China, Argentina e Peru (LUHNING, 1998-
1999, p.317-318). Na cidade de São Paulo, Verger estabeleceu contato como o sociólogo
francês Roger Bastide que lhe fez relatos sobre a cultura negra na Bahia e a influência
africana. Verger já era interessado pelo tema e tinha lido anos antes o livro Jubiabá do
escritor Jorge Amado. Com desejo de conhecer o que tanto já tinha ouvido falar, decidiu
ir para a cidade de Salvador. Antes de se instalar na capital baiana, o fotógrafo ainda
passou um curto período no Rio de Janeiro, onde prestou os primeiros serviços para a
revista O Cruzeiro por intermédio da professora Vera Pacheco e estabeleceu vínculo para
atuar como correspondente da Revista na Bahia (ROLIM, 2009, p.2). De acordo com o
documentário Fotografação (2020), Verger atuou como repórter da Revista de 1946 a
1959 e neste período teria realizado mais de 200 matérias jornalísticas e suas fotografias
também acompanharam textos de outros profissionais. O documentário enfatiza que, por
meio das fotografias de Verger, muitos aspectos da cultura do Nordeste, particularmente
da Bahia e dos cultos afro-brasileiros, passaram a ser mais conhecidos nacionalmente. A
nitidez nos cliques. Pensada exclusivamente para o uso de profissionais da fotografia, os fabricantes da
Rolleiflex acabaram criando outras linhas de qualidade para uso amador, popularizando a marca.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922006, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 7
revista O Cruzeiro, indica Ana Maria Mauad (2005), foi um dos periódicos que mais
contribuiu para a difusão e a instituição de um padrão para o fotoperiodismo no Brasil.
Pierre Verger chegou a Salvador em agosto de 1946 e se deparou com uma cidade
que foi um marco na sua carreira fotográfica e trajetória de vida. Em solo baiano,
estabeleceu relações com um grupo de artistas formado por Jorge Amado, Dorival
Caymmi e Carybé. Conforme analisa Washington Drummond (2009, p.10), seja na
literatura, na música ou na pintura, tais artistas criticavam o processo de modernização
urbana e desenvolviam suas produções “explorando as ruas, a arquitetura colonial e a
cultura negra da cidade na contramão do gosto oficial”. Em sintonia com essa visão,
Verger iniciou sua peregrinação fotográfica pelas ruas da capital da Bahia, depois
seguindo para o interior. Drummond identifica que esse “deambular pelas ruas, o fascínio
pela vida urbana prestes a desaparecer, as ruínas arquitetônicas do centro histórico e a
iluminação antropológica”, são traços da influência do surrealismo no olhar de Verger,
Amado, Caymmi e Carybé, embora na “forma estética” não se assemelhassem ao
“surrealismo clássico”.
Fascinado com a dinâmica local que encontrou em Salvador e seu entorno, Pierre
Verger passou a registrar o cotidiano da população negra centrando o foco de suas lentes
nas festas populares e na atividade laboral de trabalhadores e trabalhadoras pobres, a
exemplo das imagens intituladas Festa do Bonfim (1947) e Festa dos navegantes (1948).
O fotógrafo fez uma imersão na religiosidade afro-baiana passando a visitar terreiros e
documentar cerimônias e rituais. Dentre os mais frequentados estava o Ilê Axé Opô
Afonjá, de Maria Bibiana do Espírito Santo, conhecida como Mãe Senhora. Nesse
período, Verger passou a aprofundar seus conhecimentos sobre o Candomblé (COELHO,
2006, p.90).
Ainda no fim dos anos quarenta, o fotógrafo conseguiu uma bolsa pelo Institut
Français d'Afrique Noire (IFAN) para estudar na África por um ano. Com a
oportunidade, passou a estabelecer conexões entre a cultura negra baiana e a cultura
africana. Foi nesse período que Verger teve que se dedicar não só ao campo da fotografia,
mas também da escrita mais sistemática e investigativa. O IFAN não aceitou apenas o
volumoso número de dois mil negativos que ele clicou e entregou como resultado de
todo o projeto de pesquisa. Foi necessário que o artista escrevesse sobre tudo que tinha
visto (LIMA, 2008, p.58). Seguindo nas suas investigações, em 1949 encontrou uma
documentação do século XIX correspondente ao tráfico de escravos entre o Golfo da
Guiné e a Bahia, o que levou a aumentar seu interesse pelo tema (GUARIGLIA, 2020).
8 | Os olhares de Fatumbi: o lugar da fotografia na... SANTOS, M. O.
Não sei que espécie de babaquice atacou Verger, padre François e os demais
velhinhos filhos-de-santo, ogãs, babalaôs, sábios titulares do candomblé
baiano, mestres de tudo quanto se refere às seitas afro-brasileiras, ao
sincretismo religioso e cultural, estudiosos das relações África x Brasil,
conhecedores das similitudes e das diferenças, sabendo que elas existem e
porque existem, de repente, sem prévio aviso, se fazem puristas africanos,
negros imaculados. Pretendem que cerimônias, rituais, designações, a língua
ioruba, o culto a nagô, o candomblé enfim se processe na Bahia igualzinho ao
da África, sem tirar nem pôr: muito se tirou, muito se pôs (AMADO, 2006,
p.334).
o título Pierre Verger: mensageiro entre dois mundos e contou com a narração de
Gilberto Gil. A Fundação Cultural do Estado da Bahia também promove, anualmente, o
Prêmio Nacional de Fotografia Pierre Verger que está na sétima edição e explora as
categorias Ancestralidade e Representação, Fotografia Documental, e Trabalhos de
Inovação e Experimentação.
2
A referência indicada remete ao livro intitulado “Memórias de Pierre Verger”, publicado pela Fundação
Pierre Verger no ano de 2015. A partir deste ponto, toda citação do material no texto aparecerá com a
sigla FPV-Memórias. A referência completa encontra-se no final do texto.
3
Tais informações foram retiradas do site oficial da Fundação Pierre Verger no corrente ano de 2020. A
partir deste ponto, todas as citações de dados do site aparecerão no texto referenciadas com a sigla SITE-
FPV e a respectiva janela digital. A referência completa encontra-se no final do texto.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922006, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 11
por meio da Lei Rouanet, foi posto em prática o projeto intitulado Memórias de Pierre
Verger. O objetivo foi restaurar e digitalizar para melhorar a guarda e a disponibilidade
do acervo. Toda a operacionalização do projeto contou com o trabalho de técnicos,
compra de equipamentos específicos e ação de outras instituições de pesquisa e
preservação no Brasil além de ampliação do espaço físico da instituição (FPV- Memórias,
2015, p.9-49).
O trabalho de digitalização das centenas de negativos foi coordenado pela
fotógrafa espanhola Fernanda Sanjuan, que contou com o apoio de César Barreto e
Tassia Novaes, além de outros técnicos. Ao longo do processo, cada técnico digitalizou
cerca de quarenta negativos por dia. O método de digitalização em alta qualidade
permitiu que a Fundação percebesse erros de classificação que existiam no acervo, assim
como identificar datações específicas de certos negativos e informações complementares
dos lugares onde de fato teriam sido tiradas. Tudo isso foi feito pela técnica de análise
das bordas dos negativos digitalizados, que permitiu determinar com qual Rolleiflex a
imagem foi clicada. O estudo das bordas dos negativos e do enquadramento das imagens
possibilitou ainda aos técnicos do projeto uma compreensão mais aprofundada sobre a
maneira pela qual Pierre Verger operava suas máquinas fotográficas, chegando-se a
conclusão que ora o fotógrafo optava por clicar com a câmera na frente da barriga ou em
cima da cabeça (SITE-FPV, Digitalização do Acervo, 2020).
Já o processo de restauração dos negativos danificados ficou a cargo, a partir do
ano de 2014, do Instituto Moreira Salles. A técnica Maria Nazareth foi enviada pelo
instituto para formar profissionais em Salvador que puderam proceder todo o trabalho.
Cada negativo teve que ser tratado de forma específica de acordo com os danos existentes
(FPV-Memórias, 2015, p.53). O referido Instituto é um espaço de excelência no trato de
imagens, além de possuir um amplo acervo de música, cinema e literatura. Criado no
início dos anos noventa, a instituição tem sedes nos estados do Rio de Janeiro, Minas
Gerais e São Paulo.
Igualmente no ano de 2014, o projeto deu início à elaboração de um novo
inventário das ampliações fotográficas e dos trabalhos de melhoria da acomodação desses
materiais. O esforço foi no sentido de adquirir armários adequados, pastas especiais,
envelopes de poliéster e caixas do tipo portfólio com material de PH neutro. Todo o
material, após higienizado e reconfigurado, foi recondicionado em salas que receberam
também equipamentos como ar-condicionado, desumidificador e sensores. Essa nova
12 | Os olhares de Fatumbi: o lugar da fotografia na... SANTOS, M. O.
de Verger com destaque para as que tratam sobre ele ou que trazem suas fotografias. O
acervo livresco computa cerca de quatro mil títulos (SITE-FPV, Biblioteca, 2020).
A partir dos anos 2000, em meio ao processo de investimento nas condições do
acervo fotográfico, a Fundação Pierre Verger também ganhou um espaço de
atendimento à comunidade e realização de cursos de aprendizagem ligados a expressões
artísticas assim como a promoção de diversos eventos que ajudam a perpetuar a memória
do fotógrafo. Em 2005 foi inaugurado um centro cultural ao lado da Fundação e no ano
de 2008 o local virou um Ponto de Cultura mediante projeto do Ministério da Cultura
no governo Dilma Rousseff, algo que passou a sofrer impacto com a extinção do
ministério nos governos que se seguiram. Contudo, A Fundação e o Centro Cultural
ainda contam com o apoio do Fundo de Cultura da Secretaria de Cultura do governo do
estado da Bahia (SITE-FPV, Espaço Cultural, 2020).
que divulgam a obra de Verger fora dos muros da sua Instituição. Estas ações se
configuram em exposições de séries fotográficas, venda de artefatos com reproduções de
fotos, além da organização, edição e reedição de livros com imagens e textos do artista
francês.
No que concerne às exposições, a Fundação mantém um calendário intenso que
contempla tanto a cidade de Salvador, quanto outras regiões do Brasil e outros países.
As exposições são feitas em parceria com instituições financiadoras, assim como museus
e centros culturais. Podemos destacar uma que foi realizada no ano de 2018. Intitulada
Janela para o mundo: a mídia e Verger nos anos 30, o projeto foi composto por fotografias
de Verger que foram publicadas em diferentes mídias impressas europeias antes da
chegada do fotógrafo na cidade de Salvador. As publicações originais foram ampliadas e
permitiram aos visitantes conhecer a relação entre texto verbal e texto visual nas
mesmas. O curador da exposição, Alex Baradel, afirmou que Verger foi muito publicado,
mas que muitas vezes não controlava o resultado final do trabalho. Isso porque algumas
fotografias ganhavam legendas pejorativas que desqualificavam as culturas fotografadas
o que não coadunava com os escritos do próprio fotógrafo. Baradel afirma que Verger
não trabalhava com exclusividade para um jornal e que seu vínculo com a agência de
fotografia Alliance Photo lhe deu liberdade para fazer as viagens que desejava, e a
agência, por sua vez, também tinha liberdade para negociar suas imagens com jornais e
revistas sem interferência do artista. Essa e outras exposições podem ser visitadas
virtualmente pelo site da Fundação (SITE-FPV, Exposições, 2020).
A respeito da venda de artefatos com reproduções fotográficas de Verger, o site
oficial da Fundação possui uma loja online onde é possível ter acesso a livros, CDs,
DVDs, pôsteres, canecas, camisetas e bolsas estampadas com os cliques vergeanos. No
centro histórico de Salvador, cartão portal da capital da Bahia tantas vezes retratado por
Verger, também existe uma Galeria no Portal da Misericórdia que funciona como um
anexo da Fundação. O espaço fica aberto todos os dias e atende um grande contingente
de visitantes, entre pesquisadores e turistas, que podem comprar os diferentes produtos.
Além disso, a Galeria conta com exposições temporárias e o público pode conhecer ou
revisitar fotografias de Verger.
No que diz respeito a organização, edição e reedição de livros, a Fundação
promove um intenso trabalho, principalmente após o falecimento do fotógrafo em 1996.
São livros bem produzidos, com alta qualidade de impressão e que permitem uma grande
circulação dos cliques de Verger. Podemos citar os seguintes: Olhar viajante de Pierre
16 | Os olhares de Fatumbi: o lugar da fotografia na... SANTOS, M. O.
Fatumbi Verger (2002); O Brasil de Pierre Verger (2006); Carybé & Verger: gente da
Bahia (2008); e a reedição de Retratos da Bahia (2005), proporcionado em parceria com
a editora Corrupio.
Todos esses usos públicos que a Fundação Pierre Verger faz das imagens do
fotógrafo para além da guarda do acervo, seja com exposições, venda de artefatos com
estampas fotográficas ou publicação de livros, tem a importância de permitir o acesso
das novas gerações à obra do francês, expor trabalhos menos conhecidos do artista e
preservar e apresentar olhares sobre diferentes culturas ao longo do século XX. Numa
época em que a prática de fotografar foi transformada num ato cotidiano ao alcance de
todos sem exigência de profissionalização e sem uma reflexão sobre a mesma, o papel da
Fundação também ajuda a preservar uma memória da fotografia e dos profissionais da
fotografia.
Por outro lado, muitos estudiosos que analisam a obra de Verger e a circulação
das suas imagens, principalmente desde os anos oitenta até os tempos atuais, atentam
para a problemática da reprodutibilidade da obra do fotógrafo, o que resulta muitas vezes
em transfigurar a própria lógica que o artista dava às suas produções, a maneira como
estabelecia suas sequências fotográficas e como criava suas narrativas (DRUMMOND,
2009, p. 99-100).
Para Walter Benjamin (1994, p.167-169), “mesmo na reprodução mais perfeita,
um elemento está ausente: o aqui e o agora da obra de arte, sua existência única, no lugar
em que ela se encontra. É nessa existência única, e somente nela, que se desdobra a
história da obra”. Para o pensador alemão, “a esfera da autenticidade, como um todo,
escapa à reprodutibilidade técnica, e naturalmente não apenas à técnica”. Ele entende
que “a técnica da reprodução destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido”. No
momento “em que ela multiplica a reprodução, substitui a existência única da obra por
uma existência serial. E, na medida em que essa técnica permite à reprodução vir ao
encontro do espectador, em todas as situações, ela atualiza o objeto reproduzido”.
A Fundação Pierre Verger, ao intensificar uma “reprodutibilidade técnica” das
imagens do fotógrafo para além do seu espaço de guarda, acaba “atualizando” a obra. Seja
estampando séries fotográficas em roupas ou canecas, seja reeditando ou produzindo
novos livros, a Instituição interfere na autenticidade, nos sentidos, nos traços
característicos das escolhas feitas por Verger no seu período de atuação. Há, nesse
processo, uma ação que rompe uma tradição técnica e artística construída numa
trajetória profissional de mais de cinquenta anos.
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Ele sabia muito bem o que queria. Nosso papel era o de ficar acompanhando e
dando alguns palpites. Às vezes, aceitava uma ideia ou outra, mas acho que ele
sabia muito bem o que queria. Apesar de ter milhares de negativos, sabia
especificamente os que queria, em qual sequência, com qual casamento de
página. Parece que a coisa estava pronta na cabeça dele, e dificilmente ele
acatava alguma outra solução. Às vezes a gente dizia: “Verger, vamos botar
esse daqui?” Ele respondia: “É, pode ser”. Mas dali a pouco ele encostava a
mão sorrateiramente e tirava a foto fora (NOBREGA; ECHEVARRIA, 2002,
p. 298).
Considerações finais
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FATUMBI'S LOOKS: THE PLACE OF PHOTOGRAPHY AT THE PIERRE VERGER FOUNDATION
Abstract: This text aims to understand the place of photography in the Pierre Verger Foundation from a
historical perspective. We analyzed the collection construction process, its technical treatment, its
availability to the public and some of its social uses. The investigation of these points is also permeated
by the appreciation of the photographer's biographical aspects and the Institution's operating and
financing structure.
Keywords: Pierre Verger Foundation. Photography. Bahia-Brazil.
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EL ASPECTO DE FATUMBI: EL LUGAR DE LA FOTOGRAFÍA EN LA FUNDACIÓN PIERRE VERGER
Resumen: Este texto tiene como objetivo comprender el lugar de la fotografía en la Fundación Pierre
Verger desde una perspectiva histórica. Analizamos el proceso de construcción de la colección, su
tratamiento técnico, su disponibilidad al público y algunos de sus usos sociales. La investigación de estos
puntos también está permeada por la apreciación de los aspectos biográficos del fotógrafo y la estructura
operativa y financiera de la institución.
Palabras clave: Fundación Pierre Verger. Fotografía. Bahia-Brasil.
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Referências
BATISTA, Flávia Damares Soares. Fotografia & cidade: o espaço urbano de Salvador –
Ba nas lentes de Pierre Verger (1946-1952) Dissertação (Programa de Pós-Graduação
em Geografia). Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2012.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e cultura.
Obras escolhidas – Volume 1. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CARVALHO, Vânia Carneiro de; LIMA, Solange Ferraz. Fotografia: usos sociais e
historiográficos. In: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCCA, Tania Regina de. O historiador
e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2011.
CARVALHO, Vânia Carneiro de; LIMA, Solange Ferraz. Cultura material e coleções
em um museu de História: as formas espontâneas de transcendência do privado. In:
20 | Os olhares de Fatumbi: o lugar da fotografia na... SANTOS, M. O.
FONSECA, Brenda Coelho; CERQUEIRA Telma Soares. In: LIMA, Francisca Helena
Barbosa et al (coord.). Cadernos de Pesquisa e Documentação do IPHAN 4 – A fotografia
na preservação do patrimônio cultural: uma abordagem preliminar. Ministério da
Cultura. Pesquisa e Documentação do IPHAN, 2008. p.15-32.
KOSSOY, Boris. Fotografia e História. 2ªed. rev. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
LEITE, Miriam Moreira. Retratos de família: leitura da fotografia histórica. 3ª ed. São
Paulo: Edusp, 2001.
LUHNING, Ângela. Pierre Fatumbi Verger e sua obra. Revista Afro-Ásia, 21-22 (1998-
1999), 315-364.
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ROLIM, Iara Cecília Pimentel. Primeiras imagens: Pierre Verger entre burgueses e
infrequentáveis. Tese (Doutorado em Sociologia). São Paulo: USP, 2009.
VERGER, Pierre. Retratos da Bahia 1946 a 1952. Salvador: Corrupio – Fundação Pierre
Verger, 2005.
_____________________________________________________________________________________
SOBRE OS AUTORES
Marilécia Oliveira Santos é doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG); professora adjunta do curso de Licenciatura em História da Universidade do Estado
da Bahia (UNEB-Campus II Alagoinhas).
Recebido em 29/06/2020
Aceito em 07/07/2020
Instituições de memória e acervos fotográficos: a
experiência do Centro de Memória Cultural do Sul
de Minas
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Resumo: O objetivo deste artigo consiste em discutir a importância das instituições universitárias na
constituição de centros de memória e de documentação, particularmente daquelas que detêm acervos
fotográficos e que envolvem políticas de preservação, catalogação, acesso público e produção de pesquisas a
partir dos fundos sob sua custódia. A experiência aqui relatada se reporta à criação do Centro de Memória
Cultural do Sul Minas, inaugurado em maio de 2000, na unidade da Universidade do Estado de Minas Gerais
– UEMG, na cidade de Campanha/MG, com atenção especial ao acervo fotográfico Paulino de Araújo Ferreira
Lopes.
Introdução
1
Durante o tempo que trabalhei na Instituição (1995 a 2005), a antiga FAFI-Sion pertencia à Universidade do
Estado de Minas Gerais na condição de unidade associada, uma situação jurídica bastante indefinida, uma
vez que, do ponto de vista acadêmico estava submetida às orientações e normas da reitoria da UEMG,
localizada em Belo Horizonte, mas do ponto de vista financeiro era mantida pela Fundação Cultural
Campanha da Princesa (FCCP). As primeiras unidades a serem incorporadas foram as unidades de Belo
Horizonte. A unidade de Campanha foi uma das últimas, o que ocorreu no ano de 2013, com a absorção do
2 | Instituições de memória e acervos fotográficos: a... ANDRADE, M. F.
(1994, p. 95), a História é a memória coletiva em sua forma científica, aplicando-se ambas a
dois tipos de materiais: os documentos (escolha do historiador) e os monumentos (herança
do passado). Nesse sentido, apesar da necessidade de se opor termo a termo para
percebermos cada um na sua especificidade é importante destacar a interconexão entre
ambos e percebermos qual o papel social dos profissionais científicos da memória
(historiadores, antropólogos, sociólogos, etc.). Como afirma o autor estes devem “fazer da
luta pela democratização da memória social, um dos imperativos prioritários da sua
objectividade científica” (LE GOFF, 1984, p. 47).
É indiscutível a importância que têm os documentos para a realização de qualquer
investigação histórica sobre indivíduos, grupos sociais ou nações e os seus significados estão
intimamente ligados aos tipos de concepções da História. O triunfo do documento,
especialmente o texto escrito, ocorre com a escola metódica. O documento era condição
indispensável para estabelecer os fatos históricos e a sua crítica residia principalmente nos
aspectos que permitiam verificar a sua autenticidade (SILVA, 2006). Com os historiadores
dos Annales a noção de documento se ampliou, uma vez que todo e qualquer tipo de registro
deixado pelo homem poderia e deveria ser matéria-prima para a escrita da história (BURKE,
1991). Segundo Lucien Febvre (apud LE GOFF, 1984, p. 98), em texto escrito em 1949,
A história se faz com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem.
Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não existem.
Com tudo o que a habilidade do historiador lhes permite utilizar para fabricar o
seu mel, na falta das flores habituais. Logo, com palavras. Signos. Paisagens e
telhas. Com as formas do campo e das ervas daninhas. Com os eclipses da lua e a
atrelagem dos cavalos de tiro. Com os exames de pedras feitos pelos geólogos e
com as análises de metais feitas pelos químicos. Numa palavra, com tudo o que,
pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem,
demonstra a presença, a actividade, os gostos e as maneiras de ser do homem.
bem nos lembra o historiador inglês Erick J. Hobsbawn (1995, p. 13), ao refletir sobre o
século passado, mas que é extremamente atual, vivemos numa sociedade em que
2
A título de exemplo cito algumas iniciativas muito bem-sucedidas e que se tornaram referência em termos
de centros de documentação e de pesquisa para a história do Brasil, como o Centro de Memória da Unicamp
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922007, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 5
O campo de atuação do historiador tem ampliado cada vez mais. Isso está
diretamente ligado à profissionalização na área. A consolidação e ampliação dos cursos de
pós-graduação em História no país têm contribuído para a conscientização e o
desenvolvimento de ações concretas na preservação do patrimônio documental, matéria-
prima de extrema importância para novas investigações e olhares sobre inúmeros aspectos
da história brasileira. É cada vez mais comum observarmos historiadores atuando junto a
instituições públicas (prefeituras) e privadas (empresas), ONGs, sindicatos, grupos
organizados da sociedade civil, na implementação de centros de documentação e de memória
(ANPUH-BRASIL, 2012).
Mas conforme indicam os arquivistas há distinções importantes a fazer em relação
às três entidades responsáveis pela custódia de acervos os mais diversos: arquivos, centros
de documentação e centros de memória. Os arquivos estão diretamente relacionados às
atividades de gestão de sistemas arquivísticos. Os centros de documentação têm a função de
apoiar a pesquisa científica, acadêmica e individual, sendo geralmente de caráter híbrido,
pois “representa uma mescla das entidades de custódia do patrimônio documental, sem se
identificar com nenhuma delas. Reúne, por compra, doação ou permuta, documentos únicos
ou múltiplos de origens diversas” (TESSITORE, 2017, p. 20). Já os centros de memória
podem ser definidos como um “arquivo ampliado, com largo espectro de abrangência e alto
poder informativo” (CAMARGO; GOULART, 2015, p. 107 apud TESSITORE, 2017, p.
24). Os especialistas ainda chamam atenção para o fato de que essas distinções, muitas vezes,
não são tão claras e muitos centros de memória são também centros documentação.
Possivelmente essa observação se aplica à maioria dos centros de memória das instituições
de ensino superior no Brasil.
Em relação aos centros de documentação e de memória pertencentes às
universidades, a constatação de Célia Reis Camargo (1999) é bastante pertinente. Eles têm
uma função social importante e
– CMU, o Arquivo Edgar Leuenroth – AEL, também da Unicamp e o Centro de Pesquisa e Documentação em
História Contemporânea do Brasil – CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas – FGV.
6 | Instituições de memória e acervos fotográficos: a... ANDRADE, M. F.
O grande desafio para a implementação desses centros está relacionado com a sua
manutenção. A produção do conhecimento científico de qualquer natureza demanda
investimentos e recursos que só apresentam resultados no médio e longo prazo. A captação
de recursos, seja nos órgãos de fomento públicos ou na iniciativa privada, é bastante
irregular e, muitas vezes, limita as ações e os objetivos para os quais estes centros são
criados. Embora essas dificuldades sejam de conhecimento de todos os profissionais
envolvidos na área, muitos desses centros têm prestado contribuições relevantes para a
preservação da história, cultura e memória do país, tanto na divulgação dos resultados de
pesquisa em inúmeras publicações, quanto na preservação dos documentos originais.
O relato da experiência de constituição do Centro de Memória Cultural da unidade
da UEMG, em Campanha, que trato a seguir, demonstra não só o esforço de estabelecer
garantias de preservação do patrimônio documental, mas também do papel essencial das
universidades no levantamento dos acervos de natureza histórica e cultural, de criação de
centros de documentação e de memória, da garantia do acesso público e da produção de
pesquisas a partir dos conjuntos documentais sob sua custódia. E que, nas dimensões desse
artigo, a ênfase será dada ao acervo fotográfico Paulino de Araújo Ferreira Lopes.
3
O Projeto foi desenvolvido em parceria com a Universidade Federal de São João del-Rei e contou com a
seguinte equipe: os professores coordenadores Marcos Ferreira de Andrade, Maria Tereza Pereira Cardoso e
Rachel de Souza Rocha e aos bolsistas Marília Ferreira Pinto, Andréa Silva Adão, Selma de Souza Carvalho,
Ana Lúcia Alves (Aperfeiçoamento), Reinaldo Alves, Vanila Aparecida Alves, Ivanilda Vilela Vilas Boas e
Luziara Aparecida Goulart dos Santos (Iniciação Científica) e Agnamari Marçano da Cunha (secretária do
CEMEC).
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4
Conforme indicado na nota 1, no ano em que foi inaugurado, o Centro de Memória Cultural do Sul de Minas
estava vinculado à FAFI-Sion, unidade associada à UEMG. É importante destacar que a criação do Centro
esteve diretamente ligada ao Programa Memória e Identidade Regional, lançado pela reitoria da UEMG, em
setembro de 1996. Um dos objetivos do Programa consistia na criação de centros de memória nas unidades
pertencentes à UEMG, mesmo que na condição de associadas. A primeira experiência bem-sucedida ocorreu
na unidade associada de Diamantina, com a realização do Projeto Memória Cultural do Vale do Jequitinhonha,
financiado pela FAPEMIG e iniciado em 1997.
8 | Instituições de memória e acervos fotográficos: a... ANDRADE, M. F.
correspondentes aos séculos XVIII, XIX e XX. Milhares de processos criminais, cíveis,
documentação cartorial (inventários, testamentos, divisão de terras, etc.) foram higienizados
e catalogados. Em 2002, o CEMEC foi uma das instituições contempladas no primeiro edital
de digitalização de documentos de natureza histórica e cultural lançado pela FAPEMIG. O
projeto foi desenvolvido em parceria com o Arquivo Público Mineiro (APM) e resultou na
produção de 14 CDs relativos aos à documentação da Câmara Municipal de Campanha –
século XIX, existentes no CEMEC e no Centro de Estudos Campanhenses Monsenhor
Lefort. Também foram digitalizados os livros de testamentos de Campanha e Baependi,
pertencentes ao CEMEC, que foram lançados em 2006, juntamente com um CD-ROM
contendo banco de dados do acervo do Fórum de Lavras. Essas produções ficaram assim
intituladas: a) Acervos digitalizados do Sul de Minas: Documentação da Câmara Municipal
de Campanha e Livros de Testamentos de Campanha e Baependi; b) Fontes cíveis e criminais
do Fórum de Lavras: séculos XVIII e XIX5.
O processo de estadualização da unidade de Campanha ocorreu a partir da aprovação
da Lei nº 20.807, de 26 de julho de 2013. Quanto à mudança no nome do CEMEC, a mesma
ocorreu no dia 28 de novembro de 2013, com objetivo de homenagear o Desembargador
Manuel Paiva de Vilhena, idealizador e criador da antiga FAFI-Sion e de sua entidade
mantenedora, a Fundação Cultural Campanha da Princesa (FCCP)6.
5
Esse trabalho foi realizado pela seguinte equipe: Marcos Ferreira de Andrade (coordenador geral), Ana
Cristina Pereira Lage, Patrícia Vargas Lopes de Araújo (professores); Raphaela Aparecida Ferreira, Elizabete
Sales de Paulo, Adrimara Rodrigues, Cássia de Souza, Cristina Yuri Jisenji, Alessandra Milne Adão e Luciana
Cláudia Oliveira de Souza (bolsistas); professora Sílvia Maria Jardim Brügger (consultora); Álvaro José de
Paiva Ribeiro e Mariangela da Silva Tapia (sistema de busca); Rachel de Souza Rocha e Agnamari Marçano
da Cunha (colaboradoras).
6
Ver Projeto Pedagógico do curso de História – unidade de Campanha. Campanha, maio de 2016, p. 81-83.
Disponível em: http://intranet.uemg.br/comunicacao/arquivos/Arq20161223154713PP.pdf. Acesso em: 11
jun. 2020.
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O acervo original pertence ao neto do Sr. Paulino, Almir de Araújo Ferreira Lopes, que deu continuidade à
profissão do avô, na casa comercial Photo Araújo. Almir, gentilmente, possibilitou o acesso para fins de
higienização, catalogação e pesquisa. O acervo de negativos em vidro e celuloide foram doados ao CEMEC e
foram reproduzidos por ele. As reproduções também fazem parte do acervo do CEMEC.
10 | Instituições de memória e acervos fotográficos: a... ANDRADE, M. F.
8
Para fins de catalogação, adaptou-se uma ficha elaborada pela Profa. Jussara Frissera, em um projeto de
catalogação de fotografias executada no ano 1989, intitulado “Memória Histórico-Fotográfica de Minas
Gerais 1870/1930” desenvolvido pelo Centro Audiovisual da Universidade Federal de Minas Gerais em
convênio com a Diretoria de Assessoramento e Programas Especiais - DAPE - da Fundação João Pinheiro.
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Informações disponíveis no Projeto Pedagógico do Curso de História – Unidade de Campanha/MG, maio de
2016, p. 83. Disponível em: http://intranet.uemg.br/comunicacao/arquivos/Arq20161223154713PP.pdf.
Acesso em: 11 jun. 2020.
10
A invenção da fotografia foi anunciada no dia 19 de agosto de 1839, em Paris. Embora a daguerreotipia
derive do nome de Louis Jacques Mandé Daguerre, a invenção só foi possível a partir da parceria estabelecida
com Joseph Nicèphore Niépce, que, em 1826, já havia experimentado um processo fotográfico. Após o
falecimento de Niépce, em 1833, Daguerre prosseguiu com os experimentos que permitiram a invenção do
daguerreótipo (KOSSOY, 2019, p.128). O sucesso do primeiro processo de fotografia se explica pelo seu
preço não tão caro, embora não estivesse ao alcance de muitos grupos sociais, mas também pelo fato de
proporcionar “uma representação precisa e fiel da realidade, retirando da imagem a hipoteca da
subjetividade; a imagem, além de ser nítida e detalhada, forma-se rapidamente” (FABRIS, 2008, p. 13).
11
A história da fotografia no Brasil, nos séculos XIX e XX, foi objeto de abordagem de diversos autores.
Algumas obras tornaram-se referências obrigatórias (FERREZ & NAEF, 1976; KOSSOY, 1980; KOSSOY,
2002; VASQUEZ, 2003; MAUAD & SERRANO, 2015). Para Minas Gerais oitocentista também temos alguns
estudos relevantes como o de Maraliz Christo, que analisa a fotografia em Juiz de Fora a partir dos anúncios
de jornal, e o de Rogério Arruda, que investiga a expansão da fotografia na província de Minas Gerais,
também a partir dos anúncios fotográficos em jornais do século XIX, além de reconstruir a trajetória de vários
fotógrafos, como por exemplo: Francisco Manoel da Veiga, Guilherme Liebenau, Luiz Costa e Ehrhard Brand
(CHRISTO, 2000, p. 127-146; ARRUDA, 2013 e 2014, p. 231-256).
12 | Instituições de memória e acervos fotográficos: a... ANDRADE, M. F.
Figura 3: Paulino de Araújo Ferreira Lopes montado a cavalo. Segunda década do século XX. Coleção
Paulino Araújo.
Fonte: REIS, 2013, p. 56
Já a outra série é formada por uma coleção de fotografias datadas do século XX,
mais precisamente estas vão de aproximadamente 1903 a 1970, cujo volume
expressivo se refere à primeira metade do século XX. Consistem num conjunto de
negativos em vidro, fotos originais e suas respectivas reproduções, sendo que
algumas fotografias anteriores à 1907 não são de autoria de Paulino,
possivelmente são de Etienne Farnier, seu mestre de ofício (REIS, 2013, p. 78).
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922007, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 15
A autora destaca que esse acervo possui cerca de 1300 imagens e historiciza parte do
processo, quando esses negativos em vidro foram doados ao CEMEC, no final da década de
1990, ressaltando que “a ausência de registros sobre os procedimentos de organização e
contexto que envolveu a doação da coleção de imagens, impossibilitou que se tivesse um
conhecimento claro sobre sua organização prévia em arranjos” (REIS, 2013, p. 79).
Conforme relatado nesse tópico, a organização e catalogação do acervo fotográfico Paulino
de Araújo Ferreira Lopes foi um dos subprojetos desenvolvidos e que compunha o projeto
Memória Cultural do Sul de Minas. Na época havíamos produzido um sistema de arranjo e
classificação com base em experiências de projetos semelhantes. É importante destacar que,
antes de ser incorporada definitivamente à UEMG, a unidade de Campanha passou por
sérios problemas administrativos e financeiros, como a própria autora ressalta. Creio que o
mais relevante a ser destacado é a importância desse acervo para a história da fotografia em
Minas Gerais, particularmente da região sul, e como as imagens registradas por Paulino de
Araújo são fundamentais para compreender as representações de inúmeros aspectos do
cotidiano dos indivíduos, famílias, grupos sociais, a paisagem urbana e rural, além da história
do próprio fotógrafo.
16 | Instituições de memória e acervos fotográficos: a... ANDRADE, M. F.
Figura 4: Paulino Araújo Ferreira Lopes por volta dos 80 anos. Acervo Particular da família.
Fonte: REIS, 2013, p. 76.
Considerações Finais
________________________________________________________________________________________
Abstract: The main goal of this paper is to examine the relevance of universities in the establishment of
institutions for the preservation of memory and documentation, especially the ones that house photographic
archives and deal with preservation policies, listing, classification and that grant access to their catalogs to
the public and researches. Here we describe the establishment of the Centro de Memória do Sul de Minas,
founded in May of 2000 in a unity of the Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG, in the city of
Campanha, MG, with special attention to the Paulino de Araújo Ferreira Lopes house photographic archive.
Referências
ANDRADE, Marcos Ferreira de. Elites regionais e a formação do estado imperial brasileiro:
Minas Gerais – Campanha da Princesa (1799-1850). 2. ed. Belo Horizonte: Fino Traço,
2014.
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ARAUJO, Patrícia Vargas Lopes de. De Arraial a Vila - A criação da Vila de Campanha da
Princesa: reivindicações locais, estratégias políticas e reafirmação da soberania portuguesa.
Curitiba: Prismas, 2016.
ARRUDA, Rogério Pereira de. O ofício da fotografia em Minas Gerais no século XIX, 1845-
1900. Belo Horizonte: Edição do autor, 2013.
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Fora (1877-1910). Lócus: Revista de História, Juiz de Fora, v.6, n.1, p.127-146, 2000.
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Santarrita; Revisão técnica Maria Célia Paoli. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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________. O mistério dos daguerreótipos do Largo do Paço. São Paulo, Revista USP, n.
120, p. 127-152, jan./fev./mar. 2019.
LAGE, Ana Cristina Pereira. A instalação do Colégio Nossa Senhora de Sion em Campanha:
uma necessidade política, econômica e social sul mineira no início do século XX. Dissertação
(Mestrado). Campinas: Universidade de Campinas, Faculdade de Educação, 2007.
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Maria & SERRANO, Ana (Eds.). Dicionário Histórico-Biográfico da fotografia e dos
fotógrafos no Brasil. Niterói: PPGH-UFF, 2015. Publicação on-line do Laboratório de
História Oral e Imagem da UFF.
Disponível em: http://www.labhoi.uff.br/verbetesfotografia/node/9#_ftn3. Acesso em: 11
jun. 2020.
20 | Instituições de memória e acervos fotográficos: a... ANDRADE, M. F.
VASQUEZ, Pedro Karp. O Brasil na fotografia oitocentista. São Paulo: Metalivros, 2003.
________________________________________________________________________________________
SOBRE O AUTOR
Marcos Ferreira de Andrade é doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF);
docente do curso de História da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).
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Recebido em 22/05/2020
Aceito em 22/06/2020
Imagens de povos indígenas: das fotografias do
século XIX às fotografias de Claudia Andujar
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Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar o modo como as fotografias de Claudia Andujar rompem com
um determinado repertório imagético e discursivo consolidado ao longo dos séculos XIX e XX acerca da
representação de povos indígenas. A construção de um discurso sobre povos indígenas no século XIX é analisada
através da produção fotográfica de missionários que participavam das expedições organizadas para explorar o
território brasileiro. No que se refere à produção fotográfica do século XX, a investigação parte das imagens
produzidas pela Comissão Rondon e pelas fotorreportagens da revista O Cruzeiro. A partir de 1970, Claudia
Andujar introduz um modo inovador de produzir essas fotografias: resultado de uma longa relação de afeto e
engajamento com os Yanomami, seu trabalho concilia a estética das imagens a uma tentativa de tradução da
experiência xamânica, central para a existência do povo yanomami.
Introdução
1
Ver a catalogação realizada por Moura (2012) das representações iconográficas de mais de 220 povos
indígenas do século XVI ao século XX.
2 | Imagens de povos indígenas: das fotografias do... KONTIC, L. Z.
O corpus dessa análise foi constituído pela pesquisa de material fotográfico em acervos
dos fotógrafos E. Thiesson, Albert Frisch, Marc Ferrez, José Medeiros, Claudia Andujar e da
Comissão Rondon. A documentação textual, audiovisual e fotográfica da Comissão Rondon é
abrigada pelo Museu do Índio, instituição de preservação e promoção do patrimônio cultural
indígena da Fundação Nacional do Índio (Funai). As imagens utilizadas neste artigo foram
acessadas no banco de dados do acervo online do museu, aberto para livre consulta2. As
fotografias de Albert Frisch encontram-se no acervo digital da Biblioteca Nacional, que conta
com mais de dois milhões de documentos digitalizados também de livre acesso3. Os acervos
de Marc Ferrez e José Medeiros estão sob responsabilidade do Instituto Moreira Salles, uma
das principais referências de preservação de acervos fotográficos do Brasil. O acervo digital
pode ser consultado no site do instituto, embora disponibilize online apenas parte das coleções
dos fotógrafos4. O acervo do Museu do Quai Branly, em Paris, abarca antigas coleções de
etnologia do Museu do Homem e do Museu Nacional de Artes da África e da Oceania. Hoje
utilizado para auxiliar pesquisadores que se dedicam à pesquisa em etnologia, antropologia e
estéticas não ocidentais, o acervo iconográfico do museu está digitalizado e disponível para
livre consulta online5.
Por fim, as imagens digitalizadas de Claudia Andujar me foram concedidas pela
Galeria Vermelho, responsável pela conservação dos negativos e pelas negociações de venda
das imagens. Para cada fotografia vendida, um terço do valor é voltado para uma associação
dos Yanomami, um terço para Andujar e um terço para a galeria. A seleção do corpus deste
artigo tem como objetivo mostrar as principais tendências das fotografias de cada época e em
que sentido as fotografias de Andujar podem ser consideradas uma maneira inovadora de
registro.
Pretende-se mostrar a confluência dessas imagens que vêm sendo produzidas desde o
século XIX com a construção de um discurso sobre as populações indígenas do Brasil, tendo
em vista o potencial do trabalho de Claudia Andujar para propor novas formas de utilizar a
fotografia para tratar de um povo com costumes e valores outros. O trabalho de Andujar entre
os Yanomami evidencia a possibilidade de mobilizar novas formas de produção dessas
imagens, que levam em conta o próprio regime de realidade do povo yanomami.
2
Disponível em: https://bityli.com/PZoSC. Acesso em 09 jul. 2019.
3
Disponível em: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.html. Acesso em 09 jul. 2019.
4
Disponível em: https://bityli.com/SWAS4. Acesso em 09 jul. 2019.
5
Disponível em: https://bityli.com/hLKno. Acesso em 09 jul. 2019.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922008, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 3
6
Uma discussão sobre a influência do programa de Von Martius para os estudos de historiografia encontra-se
em Guimarães (2000).
4 | Imagens de povos indígenas: das fotografias do... KONTIC, L. Z.
7
O termo Botocudo foi utilizado pelos portugueses durante o século XIX para nomear os indígenas que usavam
botoques labiais e auriculares. Entretanto, eles podiam pertencer a etnias diversas. Para uma discussão mais
aprofundada sobre o assunto, ver Paraíso (1998).
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922008, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 5
essas fotografias eram utilizadas para coletar e comprovar dados científicos, o que contribuía
para os discursos racistas da época.
Figura 2: Alto Amazonas ou Solimões (du Brésil), 1867, foto de Albert Frisch.
Fonte: Acervo digital da Biblioteca Nacional.
Somado a isso, as legendas das imagens buscavam informar o nome dos objetos que
compunham o ambiente e o parentesco dos indígenas fotografados, com a finalidade de
comunicar ao público europeu a respeito da região amazônica, ainda pouco conhecida pelos
brancos. Tanto os elementos que compõem as imagens como as legendas estavam em
conformidade com o compromisso científico de Frisch, cujas fotografias foram distribuídas
pela Europa para mostrar uma Amazônia exótica e selvagem para os olhares estrangeiros
(MOURA, 2012).
Em 1874, o principal fotógrafo brasileiro da época, Marc Ferrez, foi contratado pelo
Império para acompanhar uma expedição científica pelo Brasil para a elaboração de um mapa
geológico do território. Conhecida como Comissão Geológica do Império (1875-1878), a
expedição percorreu diversos estados do sudeste e do nordeste brasileiro, adentrando pela
região amazônica, e permitiu a Ferrez elaborar uma documentação fotográfica significativa.
Em 1876, entrou em contato com os indígenas conhecidos como "botocudo", do sul da Bahia,
produzindo as primeiras imagens desses indígenas, retratados de perfil e de frente, com o
dorso nu e com uma régua de medição antropométrica posicionada ao lado direito,
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Figura 4: Distribuição de brindes aos Paresi, 1900-1922, foto de Luiz Thomaz Reis.
Fonte: Acervo digital do Museu do Índio.
Publicados dez anos depois, o segundo e o terceiro volume são compostos por imagens
de indígenas supostamente "civilizados", isto é, dóceis e pacíficos, vestindo roupas, escutando
atentamente os discursos de Rondon sobre a República e sobre os fatos históricos do Brasil e
assumindo funções na construção das linhas telegráficas. Fernando de Tacca, em um extenso
comentário sobre um filme produzido por Luiz Thomaz Reis sobre os rituais e festas Bororo,
questiona para quem se destinava a produção dessas imagens:
(...) certamente não era para os próprios Bororo daquela época mas para olhares
distantes comprobatórios que se deixavam seduzir pela ideia da catequização dos
índios e de sua conversão aos valores cristãos, portanto rebatidos como os valores
de uma sociedade civilizada. (TACCA, 2002, p. 204).
10 | Imagens de povos indígenas: das fotografias do... KONTIC, L. Z.
voz à fotografia enquanto formadora de discurso. A edição das matérias contava também com
pequenas legendas que acompanhavam as fotos, direcionando a leitura e constituindo uma
narrativa própria à imagem, que materializava a visão de mundo construída e selecionada pelo
editor. Neste período, a revista O Cruzeiro atuou como um amplificador da valorização das
políticas de desenvolvimento introduzidas pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, refletindo o
ideário de modernização do Brasil que o governo tanto prezava (COSTA, 2012).
Dentre as temáticas abordadas pela revista, as fotorreportagens sobre os povos
indígenas brasileiros eram recorrentes, principalmente devido à crença de que a imagem do
indígena era um empecilho para o progresso da civilização brasileira e, portanto, incompatível
com o modelo de nação incitado e divulgado pelas reportagens (COSTA, 1994). A construção
de um discurso em torno do processo de aculturação desses povos ganhou destaque sobretudo
com o projeto de interiorização do Brasil – conhecido como a "Marcha para o Oeste" –
concebido em 1943 pelo governo de Getúlio Vargas, contexto no qual foi criado o Parque
Nacional do Xingu. Nessas reportagens, as fotografias passavam a ideia da superioridade da
"civilização" – simbolizada pela tecnologia, pela ciência e pela cultura – em contraposição a
uma cultura indígena que tinha arcos e flechas, mas não armas; malocas, mas não casas;
adornos, mas não roupas. Pressupunha-se que o indígena não só deveria ser civilizado, mas
era propriamente uma vontade dele. Como destaca Moura (2012, p. 90), nesse processo de
construção de um outro, “os índios são apresentados como recursos naturais disponíveis a
serem utilizados em benefício da modernização do Brasil”, sendo subjugados a uma
interpretação imposta pelas fotorreportagens, sujeita a edições que procuravam estabelecer
uma relação entre imagem e legenda.
Um fotógrafo importante da revista O Cruzeiro foi José Medeiros, cujas fotografias
ganharam destaque não só por seu reconhecimento como um dos principais especialistas em
reportagens sobre povos indígenas, mas também pela qualidade da composição de suas
imagens. Ele produziu uma série de fotografias durante a expedição Roncador-Xingu, em
1941, que fazia parte do projeto de interiorização do Brasil desenvolvido pelo governo de
Getúlio Vargas. Além delas estarem em conformação com o discurso civilizatório de O
Cruzeiro, sua estética chama a atenção para uma questão central da fotografia de povos
indígenas: por que essas imagens são consideradas belas aos olhos ocidentais?
12 | Imagens de povos indígenas: das fotografias do... KONTIC, L. Z.
para realizar uma reportagem sobre a Amazônia em 1970, entrando em contato pela primeira
vez com o povo yanomami. Nesse contexto, Andujar viveu entre os Yanomami da região do
Catrimani, oeste do estado de Roraima, e decidiu largar o fotojornalismo. Subsidiada por duas
bolsas da Fundação Guggenheim (em 1971 e 1974) e uma da Fapesp (em 1976), morou entre
os Yanomami do Catrimani de 1971 a 1977.
A partir de 1970, o investimento do governo em políticas de ocupação demográfica e
desenvolvimento econômico estimulou a exploração das terras para a obtenção de recursos
naturais, resultando na invasão da parte sul do território yanomami, localizado no oeste de
Roraima. Somado a isso, em 1974, o governo militar começou a construção da rodovia
Perimetral Norte (BR-210), que fazia parte do investimento em políticas de ocupação
demográfica e desenvolvimento econômico, cuja intenção era introduzir a indústria na
Amazônia pela conexão entre os estados do Amazonas, Roraima, Pará e Amapá. Os conflitos
com os garimpeiros e a construção da rodovia no território Yanomami – que, até então, tinham
tido pouco contato com os brancos – teve como resultado a devastação de parte dessas terras
e a disseminação de epidemias, causando a morte de muitos indígenas8.
Em 1977, a proximidade de Andujar com os Yanomami fez dela uma persona non grata
pelo governo civil-militar, sendo expulsa de Roraima pela Funai e enquadrada na Lei de
Segurança Nacional. Como resposta, criou um grupo de estudos em defesa do território
indígena e, um ano depois, tornou-se integrante fundadora da Comissão pela Criação do
Parque Yanomami (CCPY)9, uma ONG cuja principal pauta era o reconhecimento e
demarcação das terras Yanomami. Nos anos 80, auge da campanha pela demarcação de terras,
Andujar conheceu Davi Kopenawa, mediador intercultural de seu povo, com quem viajou pelo
Brasil e pelo exterior fazendo campanha em prol da demarcação de terras10 (ALBERT, 1995).
A parceria entre Andujar e Kopenawa em defesa do território yanomami contava, de
um lado, com a divulgação das fotografias em âmbito nacional e internacional e, de outro, com
a ênfase no discurso sobre a importância da floresta para os Yanomami, cujos fatores
ambientais e cosmológicos estão intrinsecamente entrelaçados para a sobrevivência desse
povo. Para os Yanomami, a floresta é considerada uma entidade viva que possui um princípio
8
Os primeiros contatos diretos dos Yanomami com os brancos ocorreram entre 1910 e 1940. Entre 1940 e 1960,
alguns postos do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e missões católicas e evangélicas marcaram o primeiro
contato permanente em seu território. Mas a submissão dos Yanomami a formas de contato maciço ocorreu
em meados da década de 1970 e na década de 1980 com os projetos de desenvolvimento do governo e com a
"corrida do ouro", principalmente no oeste de Roraima.
9
Hoje conhecida como Comissão Pró-Yanomami.
10
Fernando Collor assumiu a presidência em 1990. Após uma visita à região – e sob pressão nacional e
internacional – assinou o decreto de homologação da Terra Indígena Yanomami, em 1992. Mesmo assim, as
invasões garimpeiras clandestinas continuaram acontecendo.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922008, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 15
de fertilidade inerente a ela e um sopro vital muito longo ou, em outras palavras, um ciclo de
vida muito maior do que o período de vida e morte dos seres humanos. A floresta “é um ser
vivo composto de incontáveis seres vivos, um superorganismo constantemente renovado pela
atividade de seus guardiões invisíveis, os xapiri” (CASTRO, 2015, p. 13).
A história da origem dos Yanomami gira em torno de Omama, pai do primeiro xamã
e criador dos espíritos auxiliares dos xamãs, os xapiri. Omama deu para os Yanomami e para
suas gerações a floresta dos seres humanos (yanomae thëpë urihipë), regida por uma série de
fenômenos de ordem cosmológica: nas colinas e nos rios, vivem os seres maléficos que
provocam doenças e mortes; no topo das montanhas, vivem as imagens dos ancestrais que se
transformaram em espíritos xapiri, criados para proteger os humanos; no fundo das águas,
moram os espíritos yawarioma, cujas irmãs seduzem os caçadores yanomami (ALBERT,
1995).
Através da inalação do pó alucinógeno yãkoana – resina ou fragmentos da casca
interna da árvore Virola sp. seca e pulverizada – os xamãs chamam os xapiri para protegerem
seu povo dos poderes perversos humanos e não humanos, e de forças que movem a ordem
cosmológica. Cobertos de penugem branca e emitindo cantos melodiosos, eles descem por
caminhos resplandecentes de luz que se ramificam por todos os lados para se alimentar da
yãkoana inalada pelo xamã. Como não se deslocam pela terra, fazem sua dança para o xamã
em cima de espelhos – descritos por Davi Kopenawa como uma espécie de solo transparente
que brilha muito – que ficam espalhados por toda extensão da floresta.
Segundo Kopenawa em A queda do céu: palavras de um xamã yanomami, os xapiri são
visíveis somente aos xamãs sob o efeito da yãkoana. Eles aparecem primeiro através de cantos;
aos poucos, os olhos enxergam luzes cintilantes vindas do céu e os espíritos vão se revelando,
dançando lentamente, minúsculos e pintados de cores brilhantes. De súbito, os xapiri
provocam uma série de rasgos no corpo e levam o princípio vital consigo – ou, como Kopenawa
denomina, “as partes imateriais do corpo” – para as costas do céu e, mais tarde, recompõe o
corpo, mas “virado do avesso”, isto é, juntam a cabeça no lugar do traseiro e as pernas no lugar
dos braços. Passado o estado de transe, o Yanomami que passou pelo ritual de iniciação torna-
se xamã, podendo responder aos espíritos e imitar seus cantos.
O papel do xamã entre os Yanomami é central para a manutenção da vida,
principalmente no que diz respeito às relações estabelecidas com os xapiri, seres responsáveis
por auxiliar os xamãs tanto na ordem da vida cotidiana como da extra-humana. Mas, se os
xapiri são visíveis somente aos xamãs sob o efeito da yãkoana, como fotografar um regime de
realidade invisível aos olhos comuns?
16 | Imagens de povos indígenas: das fotografias do... KONTIC, L. Z.
11
A série "O Invisível" compõem o livro "Yanomami: a casa, a floresta, o invisível", de Claudia Andujar, publicado
em 1998.
18 | Imagens de povos indígenas: das fotografias do... KONTIC, L. Z.
A parte da mostra chamada "O invisível", e que trata do xamanismo, reflete o mundo
dos espíritos, que é muito importante para os yanomami. O que me interessava era
recriar esse sentido deles de se dar com o mundo sobrenatural. (...) Eu tentei criar
uma linguagem que correspondesse ao que eu sentia de como eram os yanomami
(ANDUJAR apud CYPRIANO, 2001, p. 1).
Anos depois, Andujar produziu a série “Sonhos Yanomami” para integrar a exposição
Yanomami, l'esprit de la forêt, na Fundação Cartier, em Paris, entre maio e outubro de 2003.
As imagens que compõem a série são sobreposições coloridas de fotografias produzidas
durante a convivência de Andujar com os Yanomami no início da década de 1970, cujo
processo de intervenção técnica consiste em refazer em preto e branco as cópias das fotografias
coloridas, retrabalhar essas fotos em novo colorido com projeção de luz e, por fim, refotografá-
las (HERKENHOFF, 2005).
faz parte das crenças deles [...] Eu diria, eu uso a tecnologia nossa, ocidental, isso
sim. Mas tentando manipular as coisas com o que eu conheço da tecnologia ocidental.
Mas entrando no universo deles. [...] Mas, o que me dá uma certa satisfação é que
quando eu mostro esse trabalho aos Yanomami eles percebem isso. Eles fazem o que
faziam com os desenhos, ele vê essa imagem com toda essa invasão de luz e ele
começa a contar a sua história (ANDUJAR apud MAUAD, 2012, p. 139).
Figura 9: Floresta Amazônica, da série “Sonhos Yanomami”, 1971, foto de Claudia Andujar.
Fonte: Galeria Vermelho.
sob o efeito da yãkoana; relevante, porque impele um entendimento de um mundo outro, que
opera por uma lógica outra e cujas soluções para a sobrevivência e resolução de conflitos são
outras. Na medida em que os conteúdos das fotografias de Claudia Andujar transbordam os
limites do retângulo fotográfico, o movimento entre visível e invisível, humano e não humano
rompe com a tradição fotográfica ocidental que utiliza as imagens de povos indígenas para
construir e sustentar um discurso que não lhes diz respeito.
Não à toa, a beleza das fotografias de Andujar está menos associada a um tipo estético
do que a um jogo de luzes e movimentos análogos à beleza dos xapiri e aos sonhos xamânicos.
Em um contexto no qual a ontologia que envolve o conceito de imagem de um povo é tão
diferente da noção que permeia a história da fotografia, as imagens de Andujar introduzem
um novo paradigma na fotografia de povos indígenas ao conciliar a beleza estética de suas
imagens a uma tentativa de tradução da experiência xamânica, absolutamente central para a
existência do povo yanomami. A longa relação de afeto e de engajamento com os Yanomami
permitiu a ela conhecer seus costumes e crenças para mostrar por meio de uma linguagem
ocidental – a fotografia – o eixo central que envolve a vida desse povo, possibilitando um
vislumbre de ontologias distantes do entendimento hegemônico ocidental e de uma forma
outra de pensar o mundo.
22 | Imagens de povos indígenas: das fotografias do... KONTIC, L. Z.
Considerações finais
__________________________________________________________________________________________
Abstract: This article aims to analyze the way Cláudia Andujar's photos break with a certain image and
discursive repertoire consolidated over the 19th and 20th centuries about the representation of indigenous
peoples. The construction of a discourse on indigenous peoples in the 19th century is analyzed through the
photographic production of missionaries who participated in expeditions organized to explore Brazilian
territory. Regarding the photographic production of the 20th century, the investigation starts from the images
produced by the Rondon Commission and by the photo reports from the magazine O Cruzeiro. In 1970, Claudia
Andujar starts to introduce an innovative way of producing these photographs: result of a long relationship of
affection and engagement with the Yanomami, her work combines the aesthetics of images with an attempt to
translate the shamanic experience, central to the existence of the Yanomami people.
__________________________________________________________________________________________
Resumé: Cet article se propose d'analyser comment les photographies de Cláudia Andujar se démarquent d'un
certain répertoire iconographique et discursif consolidé tout au long des XIXe et XXe siècles sur la
représentation des peuples indigènes. La construction d'un discours sur les peuples indigènes au XIXe siècle est
analysée à travers la production photographique des missionnaires qui ont participé aux expéditions destinées à
prospecter le territoire brésilien. En ce qui concerne la production photographique du XXe siècle, l'enquête
commence par les images produites par la Comissão Rondon et les photoreportages du magazine O Cruzeiro.
Depuis 1970, Claudia Andujar a introduit une manière innovante de produire ces photographies: résultat d'une
longue relation d'affection et d'engagement avec les Yanomami, son travail concilie l'esthétique des images à une
tentative de traduire l'expérience chamanique, centrale à l'existence du peuple Yanomami.
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SOBRE A AUTORA
Laila Zilber Kontic é graduanda em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP).
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Recebido em 26/05/2020
Aceito em 18/06/2020
Entrevista com Joaquim Marçal Ferreira de
Andrade, pesquisador da Biblioteca Nacional
(BN) e curador do portal Brasiliana Fotográfica
Introdução
Entrevista
Rogério Pereira de Arruda: Qual o balanço, mesmo que breve, pode ser feito sobre o trabalho
realizado pela BN, em relação aos arquivos fotográficos nos últimos anos?
portanto, que a coleção de fotografias do imperador d. Pedro II ali depositada – e que seguia, em
sua maior parte, sem qualquer tratamento de identificação e catalogação e, portanto, inacessível
aos pesquisadores – precisava receber uma atenção especial.
Nesse sentido e inspirados pelo Programa Nacional de Preservação e Pesquisa da
Fotografia, instituído no recém-criado Núcleo de Fotografia da Funarte e capitaneado por
Solange Zúñiga, iniciamos estudos, na primeira metade dos anos 1980, visando resgatar e
disponibilizar aquele tesouro fotográfico. Trata-se, sem dúvida, da mais abrangente coleção de
fotografias reunidas por qualquer governante do século XIX, cobrindo os principais campos do
conhecimento que a fotografia foi capaz de adentrar, naqueles tempos.
O projeto interdisciplinar e interinstitucional foi desenvolvido ao longo de alguns anos,
envolvendo intenso debate, pesquisa e viagens de estudo; sua realização iniciou-se ao final
daquela década. De lá até aqui, passaram-se mais de três décadas de atividades ininterruptas,
envolvendo todos os setores da instituição. Tornamo-nos uma referência inescapável sobre o
tema em nosso continente e cultivamos, sempre, as relações com os principais centros
disseminadores de conhecimento da matéria. Ademais, seguimos ampliando o acervo através da
aquisição, sempre por doação, de importantes conjuntos autorais. Hoje, já estamos tratando da
entrada do primeiro acervo nato-digital.
RPA: Em linhas gerais, quais são os parâmetros institucionais que balizam o trabalho de gestão
do acervo fotográfico da BN, no que tange à guarda, conservação e preservação das imagens?
JMFA: A Biblioteca Nacional desenvolveu e implantou, ao longo das últimas décadas, uma
extensa política de conservação preventiva, de preservação e de guarda de seu acervo fotográfico.
Isto inclui desde a identificação, catalogação e indexação automatizadas (que possibilitam a
melhor gestão das coleções além de otimizar o seu uso); a reprodução digital (que minimiza o
manuseio dos originais, além de ser medida essencial de preservação de memória); o
acondicionamento individual dos itens, sempre guardados com um ou dois níveis de proteção
além do mobiliário específico; as regras para o acesso e o manuseio; o monitoramento permanente
do clima e as medidas de prevenção de desastres. Sobre todos estes temas, há farto material
disponível no portal da Fundação Biblioteca Nacional, em https://www.bn.gov.br.
RPA: Nos últimos anos, a digitalização dos acervos históricos em arquivos e instituições
congêneres tem sido uma forma de preservação dos documentos originais e uma maneira de
viabilizar a ampliação do acesso. Tendo isso em vista, o senhor poderia nos explicar como esse
trabalho tem sido realizado na BN e quais têm sido os maiores desafios enfrentados pela
instituição?
4 | Joaquim Marçal Ferreira de Andrade ARRUDA, R. P.
RPA: Um assunto que pode ser destacado da pergunta anterior, que aborda a digitalização de
acervos, é o projeto “Brasiliana Fotográfica”, do qual o senhor é curador. O senhor poderia nos
apresentar como o projeto funciona e como ele tem contribuído para os avanços das pesquisas
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922009, jul./dez. 2020 ENTREVISTA| 5
JMFA: O portal Brasiliana Fotográfica é, como afirmamos na sua apresentação, um espaço para
dar visibilidade, fomentar o debate e a reflexão sobre os acervos deste gênero documental,
abordando-os enquanto fonte primária, mas também enquanto patrimônio digital a ser
preservado. Durante uma consulta aos acervos, o usuário pode salvar o resultado de sua pesquisa
no próprio portal, retomando-a em outro momento. Pode, ainda, compartilhá-lo em suas redes
sociais.
Vale enfatizar que esse portal, além de conter um blog, é também um repositório voltado
à preservação digital, desenvolvido em DSpace – um software livre, largamente utilizado por
entidades públicas e privadas em todo o mundo. Para interoperar com outros sistemas de
bibliotecas digitais, foi adotado o protocolo da Iniciativa dos Arquivos Abertos (Open Archives
Initiative Protocol for Metadata Harvesting/OAI-PMH), um mecanismo para transferência de
dados entre repositórios digitais.
A iniciativa surgiu em 2015, a partir da união de esforços da Fundação Biblioteca
Nacional e do Instituto Moreira Salles, responsáveis pela curadoria e gestão. Na sequência,
outras instituições do Brasil e do exterior, públicas e privadas, detentoras de acervos originais
de documentos fotográficos referentes ao Brasil, foram aderindo ao portal, num processo que
segue até hoje. No presente momento somos onze instituições e há outras em processo de adesão.
As instituições participantes contribuem com arquivos digitais e respectivos metadados, tudo em
concordância com os padrões adotados internacionalmente. Acreditamos que assim, estamos
contribuindo para maior a conscientização e avanço desse campo.
Já são mais de seis mil fotografias de onze instituições, no portal. Ao longo desses cinco
anos, foram mais de trinta e cinco milhões de visualizações; hoje, a média mensal gira em torno
de um milhão e trezentas mil. Já tivemos publicações no blog – onde são postadas semanalmente
novas publicações relacionadas ao seu conteúdo, escritas pelos membros das instituições
participantes ou por convidados externos – com mais de três milhões de visualizações. Muitas
dessas publicações trazem, nos textos, links para páginas da Hemeroteca Digital Brasileira –
hoje, o site mais acessado da Biblioteca Nacional Digital, ficando o portal Brasiliana Fotográfica
em segundo lugar. Sem dúvida, há um público crescente e de todas as idades, que vamos
cativando através de publicações variadas e que se prestam aos mais variados usos.
RPA: O senhor esteve à frente de trabalhos de grande relevância para o patrimônio fotográfico
do país, entre eles o projeto junto ao acervo fotográfico de D. Pedro II, que compõe a Coleção D.
Thereza Christina Maria. O senhor poderia nos explicar no que consistiu esse trabalho? E
acredita que no Brasil há acervos fotográficos de relevância ainda não revelados?
6 | Joaquim Marçal Ferreira de Andrade ARRUDA, R. P.
RPA: Nos últimos anos temos visto discursos negacionistas e propostas de revisionismo
histórico, negando, por exemplo, a existência de ditadura civil-militar de 1964 e, até mesmo, os
aspectos nefastos da escravidão no Brasil. Como o senhor vê o lugar das instituições de memória
frente a estas perspectivas de negação do conhecimento cientificamente referenciado? Esse
processo fragiliza as instituições públicas de memória?
RPA: O senhor é um servidor com longa trajetória de trabalho na BN, que se iniciou no começo
dos anos 80, já são quase quarenta anos de dedicação. De certa forma, poderíamos dizer que sua
trajetória profissional revela não somente os desafios pessoais, mas também os desafios, ações e
projetos da própria BN. Como o senhor avalia os caminhos trilhados?
JMFA: São trinta e nove anos de BN, quarenta no Serviço Público Federal – onde iniciei minhas
atividades como fotógrafo, atuando junto à Secretaria de Assuntos Culturais do MEC bem antes
da criação, em 1985, do agora já extinto Ministério da Cultura. Desde quando cheguei à BN em
1981 (então integrante da administração direta e subordinada ao MEC) defrontei-me com uma
8 | Joaquim Marçal Ferreira de Andrade ARRUDA, R. P.
série de desafios, não apenas internamente, mas também no plano nacional e, por que não o dizer,
internacional. Participei/participamos dos muitos momentos importantes havidos ao longo
deste percurso, quando as questões de patrimônio e de memória foram intensamente pensadas,
discutidas e importantes avanços foram conquistados. A própria Biblioteca Nacional ganhou
relativa autonomia e viveu momentos muito positivos. Valeu a pena cada dia dedicado à nossa
instituição, com certeza. Mas apesar das vitórias, muito deixou de ser conquistado, infelizmente.
Preocupa-me, hoje, o fato de não haver uma rotina de concursos públicos para preencher
as muitas vagas abertas pela aposentadoria dos colegas da minha geração que estão saindo. A
crescente terceirização dos serviços é feita de maneira que eu considero danosa aos interesses da
instituição, pois a presença de servidores de carreira, que se disponham a dedicar suas vidas
profissionais à instituição, é ponto essencial para o sucesso da missão. Trata-se de uma instituição
de estado e não de governo, com objetivos muito claros e que não podem sofrer solução de
continuidade. As décadas de experiência e de conhecimento acumulado é que asseguram a
preservação de uma certa cultura sem a qual, a instituição pode sucumbir. Ademais, a
terceirização é uma prática injusta uma vez que servidores e terceirizados desempenham funções
iguais embora trabalhando sob condições contratuais muito diferenciadas.
Ademais, já passa da hora de investirmos, a sério, no projeto de nova edificação – para
uma Biblioteca Nacional do século 21. Em pleno 2020, e apesar de dispormos de um prédio anexo,
já quase lotado, seguimos sediados em uma edificação inaugurada há cento e dez anos, no início
do século 20. São constantes os investimentos de nossos dirigentes na manutenção predial, que
vem sendo bem realizada, apesar das restrições orçamentárias e financeiras. Mas não há mais o
que esperar; não podemos seguir adiando este projeto. Afinal, a Biblioteca Nacional é a
representação maior da memória da cultura brasileira, com suas portas abertas para o mundo.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922009, jul./dez. 2020 ENTREVISTA| 9
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SOBRE O AUTOR
Rogério Pereira de Arruda é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG); professor Adjunto III na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri
- Campus JK-Diamantina.
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Recebido em 26/05/2020
Aceito em 13/07/2020
Entrevista com Alexandra Encarnação,
coordenadora do Arquivo de Documentação
Fotográfica (ADF), Lisboa - Portugal
Ana Gandum
Universidade Nova de Lisboa
Lisboa – Portugal
[email protected]
Introdução
Entrevista
Figura 2: Lisboa. Museu do Carmo. Autor: Carlos Relvas [1838-1894] / Lisboa, 1870 - 1880.
Fonte: Arquivo de Documentação Fotográfica / DGPC. Papel montada em cartão / Albumina,
imagem:7,6 x 7,6 cm; montagem: 8,4 x 17,5 cm Fotógrafo: José Paulo Ruas, 2016.
4 | Alexandra Encarnação GANDUM, A.
AG: Que outros acervos fotográficos e fundos esta instituição tem em depósito?
AE: Ao longo da sua existência o ADF foi constituindo uma coleção histórica, fruto de
aquisições e doações diversas, mas tem igualmente à sua guarda documentação
fotográfica de Museus, Palácios e Institutos dependentes da DGPC. Sendo o único
departamento daquela Direção Geral com competências técnicas na área da conservação
e restauro de fotografia, faz parte da sua missão o apoio técnico regular neste âmbito.
Figura 3: Retrato de estúdio. Almada Negreiros. Autor: Vitoriano Braga, séc. 20. Vidro / Gelatina sal
de prata, 13x18cm.
Fonte: Arquivo de Documentação Fotográfica / DGPC. Fotógrafo: Luísa Oliveira, 2017.
6 | Alexandra Encarnação GANDUM, A.
AE: O ADF tem à sua guarda importantes acervos da história da fotografia portuguesa.
Destacaria no século XIX, os autores Carlos Relvas, João Francisco Camacho, Francisco
Rocchini, Emílio Biel, Alfredo Fillon, e ainda temáticas como a Fotografia Colonial,
Patrimonial, Retrato e Paisagem. No século XX destaque para os espólios de Silva
Nogueira, Manuel Alves San Payo, João Martins, Adelino Furtado.
Especial relevo para o espólio de um dos pioneiros da fotografia portuguesa,
apesar de origem escocesa, o calotipista Frederick William Flower. O ADF tem
igualmente sob a sua responsabilidade outros espólios, ao nível da sua preservação e
conservação, como é o caso das coleções e espólios de instituições como a Biblioteca da
Ajuda, Museu Nacional de Arte Antiga, Museu Nacional de Arte Contemporânea e
Instituto José de Figueiredo.
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SOBRE A AUTORA
Ana Gandum é doutora em Estudos Artísticos - Artes e Mediações pela Universidade Nova de
Lisboa (UNL); pesquisadora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova
de Lisboa, Portugal.
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Recebido em 26/05/2020
Aceito em 13/07/2020
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922010, jul./dez. 2020 ENTREVISTA| 7
Figura 4: Expedição África central. Acampamento de Serpa Pinto. Teodolito geodésico sobre tripé.
Autor desconhecido, 1877. Positivo digital a partir de negativo em suporte de vidro / Gelatina sal de
prata, 13 x 18 cm.
Fonte: Arquivo de Documentação Fotográfica / DGPC. Fotógrafo: Luísa Oliveira, 2018.