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Lúcio Sousa
Universidade Aberta
2019/2020
Apresentação da UC e dos Textos
Sinopse:
Competências:
• No final desta unidade curricular o/a estudante deverá ser capaz de:
• Compreender a especificidade do método e escrita etnográfica.
• Reconhecer obras etnográficas e autores fundamentais no domínio
antropológico.
• Aplicar a perspetiva etnográfica ao trabalho em ciências sociais.
• Desenvolver capacidade de reflexão crítica relativamente a temas de relevância
científica e de cidadania.
1
• Apresentar textos de leitura fundamentais para trabalho de
construção de saberes1;
• Facultar elementos de exploração dos conteúdos trabalhados que
permitam recolher, selecionar e interpretar informação relevante.
• Refletir e ponderar a atuação por parâmetros éticos fundamentais.
1
Atendendo à dispersão geográfica dos estudantes e a eventuais limitações de requisição em bibliotecas
ou aquisição de obras de obras de referência, foi preocupação constante na elaboração deste trabalho
encontrar textos de qualidade disponíveis de forma legal na web, assim como colocar excertos de obras
salvaguardando os limites decorrentes dos direitos de autor. No caso dos textos do docente estes foram
usados de forma mais livre, porquanto pessoais.
2
Conteúdos letivos
3
Objetivos gerais por tema
• Etnografia
• Método • Explicar a emergência da etnografia;
• observação • Entender a sua especificidade enquanto
1. Etnografia e
participante método de investigação;
os/as • escrita • Explicitar as diferentes fases do trabalho
etnográfica etnográfico;
antropólogos/as
• reflexibilidade • Analisar o processo de escrita como parte
• integração do constituinte da experiência e saber
antropólogo antropológico
3. As etnografias
• tradição • Compreender o papel da etnografia em
portuguesas: portuguesa; Portugal
encruzilhadas • ocupação cientifica • Analisar o papel da etnografia no espaço
das colonias; colonial português
coloniais e • ruralidades • Conhecer alguns dos trabalhos de
terrenos • etnografia autores clássicos
contemporânea • Conhecer a emergência da antropologia
contemporâneos contemporânea
4
1. Etnografia e os/as antropólogos/as
2
A institucionalização da antropologia como disciplina académica ocorre no século
XIX. Até à época, o conceito de antropologia (antropos, homem; e logos, discurso)
englobava a dimensão físico-biológica e pré-histórica, associada à história natural da
humanidade (com o contributo da arqueologia). A dimensão sociocultural da
antropologia só adquire relevância à medida que os autores evolucionistas exploram os
domínios da linguagem, da organização social, em particular do parentesco, do religioso,
do político e económico, usualmente disseminados nas diversas tradições nacionais da
altura à etnologia (etno, povo/etnia; logos, discurso) e etnografia (etno, povo/etnia;
grafia, descrição) 3.
Durante o século XIX, a etnografia assume-se como a atividade de recolha de dados
do terreno, passíveis de serem interpretados numa perspetiva comparativista com o
objetivo de elaborar leis científicas (a ambição da antropologia evolucionista, mas agora,
não de forma especulativa, mas assente em dados recolhidos em primeira mão). No
entanto, como refere Sanjek (2004), a etnografia pode ser interpretada
simultaneamente como um produto e como um processo. Como produto resulta nos
estudos elaborados pelos antropólogos, enquanto como processo se manifesta no
trabalho de campo e observação participante (os métodos tradicionais de investigação
antropológica)4.
2
Texto baseado em Sousa, Lúcio. 2014. “A Etnografia e o seu “alcance prático” no Timor “Português”:
1894-1917”. In Timor-Leste nos estudos Interdisciplinares. (org.) Vicente Paulino. Díli. Unidade de
Produção e Disseminação do Conhecimento. Programa de Pós-Graduação e Pesquisa da UNTL. pp. 29-
44.). Disponível em:
https://uab-pt.academia.edu/LúcioSousa ou https://www.researchgate.net/profile/Lucio_Sousa
3
A etnografia, etnologia e antropologia podem ser interpretadas como etapas da investigação
antropológica. Como refere Lévi-Strauss (1996) a etnografia corresponde à fase de investigação no
terreno, a etnologia a uma primeira fase de comparação e síntese dos dados num âmbito regional e a
antropologia, social ou cultural, a uma última fase de síntese global.
4
A investigação antropológica advém da articulação da etnografia, no tema concreto em estudo, com a
comparação, que se sustenta num determinado ângulo teórico, e a contextualização, elementos de
carácter sociogeográficos, políticos e económicos, que enquadram a temática. A triangulação destes polos
distingue o discurso antropológico de outros géneros de escrita, como a de viagens.
5
Todavia, em pleno século XIX subsiste usualmente uma disjunção no papel do
antropólogo na prossecução de cada uma das etapas enunciadas. De facto, são poucos5
os que se deslocam até junto dos povos distantes sobre os quais elaboram teorias para
fazer a componente etnográfica, pelo que dependem de terceiros, usualmente não
antropólogos: viajantes, militares, missionários. Esta etnografia feita por não
antropólogos é a fonte substancial da produção antropológica do século XIX (Pels e
Salemink 1999).
Para ajudar esta pesquisa
Pode consultar a edição de Notes and
desenvolveram-se instrumentos de
Queries on Anthropology de 1892 aqui:
recolha etnográfica. Um exemplo
paradigmático são as Notes and Queries https://archive.org/details/notesandqueries
00readgoog
on Anthropology, editadas pela primeira
vez em 1874, pela British Association for A 6ª edição, de 1951, pode ser consultada
aqui:
the Advancement of Science, e revistas
https://archive.org/details/NotesAndQuerie
por um comité da Royal Anthropological sOnAnthropology.SixthEdition
Institute of Great Britain and Ireland, no
qual participam, entre outros, Edward Tylor e James Frazer, expoentes da antropologia
inglesa da época. A expansão académica e profissional da antropologia faz com que a
edição de 1912 já seja principalmente vocacionada para antropólogos (Petch 2007).
Porém, há exemplos de investigadores que desenvolvem o seu próprio trabalho de
terreno como Cushing entre os índios zuni na década de 1880 (Sanjek 2004). Outro
exemplo é Alice Fletcher que desenvolve na mesma década um trabalho de campo
assinalável entre as mulheres Sioux no Dakota (Casares 2008). No Sudeste asiático tem
relevância o trabalho desenvolvido pela expedição às Torres Straits, em 1889. Tratou- se
de um empreendimento multidisciplinar coordenado por Alfred Haddon da
Universidade de Cambridge e onde participaram William Rivers e C.G. Seligman.
Apesar destes antecedentes o trabalho de campo e a observação participante estão
especialmente associados a Franz Boas (1852-1942) e Bronislaw Malinowski (1884-
1942). O primeiro nos EUA e o segundo na Inglaterra, vão fundar escolas teóricas que se
afastam dos pressupostos evolucionistas. Boas é considerado o “pai” da
5
Estes antropólogos eram designados “armchair anthropologists” (antropólogos de secretária/sofá) por
obterem as suas informações de forma indireta e trabalhá-las no recato dos seus gabinetes.
6
antropologia norte-americana. A sua abordagem, designada de particularismo histórico,
é uma forma de difusionismo moderado, assenta em trabalho de terreno.
Por sua vez, Malinowski, um dos mentores do funcionalismo, realiza o seu trabalho
de campo nas ilhas Trobriand, entre 1914 e 1918. Em 1922, publica o resultado do seu
trabalho: Os Argonautas do Pacifico Ocidental6, que se estabelece como o produto
paradigma do trabalho etnográfico na antropologia.
Com base nestes exemplos o protótipo do trabalho etnográfico passou a conjugar,
tradicionalmente, a estadia no terreno e a observação participante assente no
pressuposto de uma estadia prolongada no campo, junto de uma comunidade ou região,
com a concomitante aprendizagem da língua local e a obtenção de informações de
forma direta junto de informantes, os atores sociais, com os quais se interage,
observando e participando na vivência diária, de forma informal ou formal, com recurso
a entrevistas, usualmente abertas e semiestruturadas.
Como se reverte este saber na sociedade da época? Nos E.U.A. houve uma
preocupação dominante, desde cedo, na aplicabilidade dos conhecimentos
antropológicos na compreensão e resolução dos problemas consequentes da
incorporação da população nativa na agenda política americana. Todavia, foi uma área
de conflito entre os antropólogos e os políticos, cujos objetivos imediatos se
contrapunham à necessidade de tempo e às visões dos antropólogos.
No contexto europeu, a relação da antropologia com o colonialismo é incontornável.
No entanto, como refere Kuper (1996, 2005), no caso da antropologia social britânica
essa dimensão aplicada da antropologia resultou tanto de um comprometimento com o
projeto colonial inglês quanto com o interesse em legitimar a antropologia e sedimentar
a sua posição, na academia e na sociedade. Acresce que o alinhamento dos antropólogos
nem sempre foi concomitante com o das autoridades coloniais, promovendo a defesa
dos “nativos” que estudavam e sendo objeto de indiferença (em alguns casos mútua)
por parte de administradores coloniais.
Na Holanda. a posse das designadas Índias Orientais (futura república da Indonésia)
foi essencial para o desenvolvimento da sua antropologia. Segundo Bŏsković (2008), a
6
No original: Argonauts of the Western Pacific. URL:
https://archive.org/details/argonautsofthewe032976mbp
7
institucionalização da antropologia ocorre na Holanda em 1830, antecedendo as suas
congéneres europeias. Neste contexto, a etnografia desempenhou um papel de relevo,
quer na preparação de futuros funcionários coloniais quer como campo de pesquisa e
produção de etnografias que promoveram o desenvolvimento da antropologia na
Holanda.
No caso português, o desenvolvimento da antropologia metropolitana foi limitado e
a sua relevância colonial tardia. Leal (2000) e Schouten (1998 2001) caracterizaram a
antropologia portuguesa, na esteira da tradição filológica e etnológica romântica, como
“etnológica-folclorista” fazendo parte da chamada “antropologia de construção da
nação” (Stocking 1982). A antropologia colonial só se institui formalmente após o
Congresso de Antropologia Colonial de 1934, privilegiando a antropologia física e a
classificação das características somáticas das populações colonizadas (ver Roque 2001,
2006). Interesses que, como refere Schouten, seguiam “na esteira de teorias
antropológicas do séc. XIX” (1998, 2) e assumindo-se assim, nos termos de Stocking
(1982) como uma “antropologia de construção do império”.
A prática antropológica vai alterar-se substancialmente com o fim dos impérios,
recentrando-se nas sociedades de origem dos antropólogos, obrigando-os a olhar de
novo para o que lhes é familiar com novidade, ao mesmo tempo que se dão renovados
interesses pelos vestígios dos outros, nativos e antropólogos. Dos primeiros a sua
presença impõem-se num contexto museológico, ao mesmo tempo, sobre os segundos,
se abrem os arquivos que o tempo permitiu desvendar. Os “nativos” chegam igualmente
às ex-metrópoles no quadro de migrações de trabalho ou forçadas e passando a
constituir novos campos de investigação.
7
A escrita etnográfica vai ser objeto de acérrimos debates, questionando o
contexto e a forma da sua produção. O antropólogo passa a ser igualmente um objeto. Um
dos primeiros textos pós-modernistas é Writing Culture (Clifford e Marcus, 1986) que
reúne os textos resultantes de uma conferência realizada em 1984. As ideias centrais são:
a antropologia desloca-se do campo (ou devia-se deslocar) da etnografia científica para o
estudo dos próprios textos etnográficos (a sua desconstrução – no caso dos antigos – e a
sua elaboração), a contextualização e reflexibilidade face à
7
Parágrafos adaptados de Sousa, Lúcio. 2016. Textos de Antropologia Geral.
8
metanarrativa (a ideia da grande teoria), a tensão relativa ao papel do antropólogo
face às suas lealdades.
O antropólogo não é um observador neutro, pelo que a situação do tempo e lugar
da investigação tem de ser claramente identificada, sob condição de o método ser
inconsequente. A escrita antropológica é também objeto de crítica, pois se a forma de
recolha dos dados é subjetiva estes não podem ser analisados de forma objetiva. No
limite esta é considerada uma ficção, e como tal é analisada pelos pós-modernistas. A
validade da interpretação é também questionada pelo facto de, no terreno, o
antropólogo trabalhar com um conjunto limitado de informantes, colocando-se assim a
questão de saber até que ponto as suas ideias são representativas de toda a sociedade.
No entanto, não é somente a condição pessoal do antropólogo que está em causa. O
trabalho de campo revela uma relação assimétrica de poder que medeia antropólogo e
os seus sujeitos de, revelando igualmente as posições particulares das suas sociedades,
que em contexto colonial se posicionam como dominante e a dominada. Este contexto
não pode deixar de ser considerado pelo antropólogo.
Todos estes aspetos tornaram prementes a reflexibilidade da prática antropológica.
Uma consciencialização das condições e mutualidade existente entre antropólogo e
informantes, comunidades, as pessoas com quem trabalha, assim como uma reflexão
sobre as políticas, estatais, corporativas e académicas, em presença na produção de
material etnográfico.
Princípios de um método…
Descritas estas jornada da etnografia podemos questionar o que resulta desta
enquanto método, o que lhe é específico? Para debater este tema com os textos que
iremos trabalhar indico aqui, resumidos, os cinco princípios que caracterizam a pesquisa
etnográfica para Stewart (1998, 5-8):
Observação participante: a característica essencial resulta do facto de o
conhecimento etnográfico resultar de uma experiência pessoal do etnógrafo.
Holismo: o etnógrafo sintetiza observações díspares para elaborar um constructo
holístico da “sociedade” ou “cultura” em estudo.
9
Contextualização: a imersão num determinado local permite ao etnógrafo ligar os
diferentes dados de forma compreensiva (permitindo comparações).
Descrição sociocultural: a descrição detalhada e análise das relações sociais e
culturais.
Conexões teoréticas: o papel da teoria antropológica no trabalho etnográfico é objeto
de debate, há quem defenda que não é possível fazer etnografia sem uma orientação
teórica, mas também há quem considere o contrário.
10
1.1 O método, a escrita e a reflexibilidade
11
Urpi Montoya Uriarte
1 É louvável o entusiasmo que a etnografia vem suscitando, nos últimos anos, em diversas
áreas de conhecimento: se fala muito em “fazer etnografia”, adotar a “perspectiva
etnográfica”, “etnografar” isto ou aquilo. Parece que todo mundo pode fazer etnografia.
Até uma antropóloga, Barbara Tedlock, afirma isso ao dizer que “no mundo multicultural
e rapidamente mutante de hoje, todos temos nos tornado etnógrafos” (apud CLIFFORD,
1995). Em artigo recente, Mariza Correia conta como se surpreendeu ao, num congresso
reunindo geógrafos, educadores, filósofos, sociólogos, perceber o quanto a etnografia
estava na moda e quão difundida estava a ideia segundo a qual “todos podem ‘fazer
etnografia’, e a todos é desejável uma ‘perspectiva etnográfica’” (PEIRANO, 2008, p. 3).
Com efeito, entendida apenas como método, ela estaria acessível a qualquer
pesquisador em busca de algum. Mas, precisamente o que Peirano defende é que ela
não é apenas uma metodologia ou uma prática de pesquisa, “mas a própria teoria vivida
/.../ No fazer etnográfico, a teoria está, assim, de maneira óbvia, em ação, emaranhada
nas evidências empíricas e nos nossos dados.” (2008: 3). A teoria e a prática são
inseparáveis: o fazer etnográfico é perpassado o tempo todo pela teoria. Antes de ir a
campo, para nos informarmos de todo o conhecimento produzido sobre a temática e o
grupo a ser pesquisado; no campo, ao ser o nosso olhar e nosso escutar guiado, moldado
e disciplinado pela teoria; ao voltar e escrever, pondo em ordem os fatos, isto é,
traduzindo os fatos e emoldurando-os numa teoria interpretativa.
2 Mas afirmar que o campo é perpassado pela teoria não significa dizer que ele está
submetido a ela. Por definição, a realidade superará sempre a teoria. Em outras
palavras, o campo irá sempre surpreender o pesquisador. Sem cair em contradição,
podemos afirmar que se um campo não nos surpreender, é porque não fomos o
suficientemente bem formados! Justamente porque a formação antropológica consiste
em nos abrirmos para a desestabilização:
12
pensar, permitindo, ao mesmo tempo, novas conexões com as forças minoritárias
que pululam em nós mesmos.” (GOLDMAN, 2008, p.7).
5 Em segundo lugar, nem todos podem ser etnógrafos porque para mergulhar é preciso
não apenas saber mergulhar, mas também gostar de mergulhar. É imprescindível uma
vocação pelo “desenraizamento crônico”, isto é, pelo “não se sentir em casa em lugar
nenhum”. Com efeito, no capítulo “Olhando para trás” do livro Tristes Trópicos, Lévi-
Strauss conta como a sua aproximação da etnografia não foi por meio de um curso, mas
pela vocação: “tal como acontece com as matemáticas ou com a música, a etnografia é
uma das raras vocações autênticas. Podemos descubri-la dentro de nós mesmos sem
nunca a termos aprendido.” (1979, p. 49). Assim, em palavras de Peirano, “a
personalidade do investigador e sua experiência pessoal não podem ser eliminadas do
trabalho etnográfico. Na verdade, elas estão engastadas, plantadas nos fatos
etnográficos que são selecionados e interpretados.” (2008, p. 3,4).
6 O prestígio da etnografia é tal que, até entre os antropólogos, ela se tornou a forma mais
simples de definir a nossa disciplina. Ou seja, o método se tornou mais conhecido do
que a própria disciplina que o engendrou! Esse método marcou tanto a disciplina que
até para os próprios antropólogos é mais fácil se definir por ele.
13
Quando perguntados que diferencia há entre a Antropologia e outras ciências como a
sociologia, a resposta imediata é o método. Como bem disse Geertz (2001), nos
8 Então, para entender como a etnografia tem apreendido e narrado a cidade – que são
coisas bem diferentes –, vou começar falando sobre o que é a etnografia, como nasce,
quando, o que tem postulado inicialmente, o que se postula hoje. Vou fazer um
exercício extremo de síntese porque o que há a se dizer sobre ela corresponde, na matriz
curricular da grande maioria dos departamentos de Antropologia, ao conteúdo inteiro
de uma disciplina obrigatória de 68h.
14
coloniais, material que, no século XIX, se tornou bastante volumoso se comparado ao
existente nos séculos anteriores. Esses antropólogos trabalhavam em seus gabinetes,
lendo esse material, deduzindo e especulando, que eram os dois procedimentos
cognitivos próprios dessa fase da Antropologia. Falavam, assim, dos hotentotes da África
do sul, do “índio americano”, dos “índios canadenses”, sem nunca ter visto um “índio”
de “carne e osso”. Perguntando certa vez se ela tinha visto um, James Frazer, o
especialista em religião e magia nos ditos povos primitivos, respondeu: “Deus que me
livre!”. Nessas condições, não era de se estranhar que os textos antropológicos fossem
um acúmulo de afirmações e teorias etnocêntricas.
10 O panorama começa a mudar quando, no final do século XIX, os antropólogos passam a
integrar as expedições científicas que se tornaram freqüentes na segunda metade desse
século. Pela primeira vez, vêem os “índios”, nem que seja por pouco tempo, nas paradas
rápidas das expedições, e nem que seja sem poder falar com eles, devido ao
desconhecimento das línguas nativas. Foi numa dessas expedições, em 1914, que
Bronislaw Malinowski, um jovem polonês, fazendo o seu doutorado em Antropologia na
London School of Economics, foi parar nas ilhas Trobriand, onde ficou mais de três anos,
aprendeu a língua nativa, colocou sua tenda no meio da aldeia deles e conviveu dia após
dia entre os trobriandeses. Dessa experiência nasceu, em 1922, o livro os Argonautas do
Pacífico ocidental, e, com ele, a primeira formulação do que é o método etnográfico
(que apresenta em sua Introdução)3. O que o levou a romper com a forma de conhecer
própria da Antropologia anterior a ele? Na verdade, um acaso, para nós, um feliz acaso:
enquanto súdito austríaco, na primeira guerra mundial, ele não poderia integrar a
tripulação de um navio inglês, vendo-se obrigado a ficar quatro anos, até 1918, entre os
territórios das ilhas Tulon, Trobriand e Austrália.
11 Essa longa estadia fez Malinowski refletir sobre o método que vinha sendo usado
pela Antropologia. Tratava-se agora, ele propunha, do antropólogo conviver um longo
período entre os “primitivos” que queria entender até passar despercebido por entre
eles (ele acreditava que isso fosse possível). Somente essa experiência de trabalho de
campo lhe permitiria captar o que ele chamou de “o ponto de vista do nativo”, essencial
para conseguir uma visão completa do universo nativo. Com efeito, ele propôs que
este universo poderia ser compreendido captando três tipos de informação: a
numérica e genealógica, o cotidiano e as interpretações nativas. A estes três tipos de
informação denominou o esqueleto o corpo e a alma,
15
sendo as três fontes igualmente fundamentais. Podemos deduzir facilmente que, ao
conviver com os nativos e lhes conceder a palavra sobre si mesmos, a Antropologia do
século XX foi se tornando cada vez menos etnocêntrica, ou seja, o discurso sobre o
Outro – que é a Antropologia – deixou de ser centrado na sociedade do pesquisador e
passou a ser relativizado com a vivência entre os nativos e sua visão deles mesmos. A
Antropologia do século XX é, pois, o fruto de seu método, um método que surgiu de
forma não planejada, que não foi o resultado de uma crítica teórica, mas de um
descobrimento fortuito da importância de conviver e ouvir aqueles que pretendemos
entender. Com o novo método, o seu objeto mudou: de “tribos”, “índios”, “aborígenes”,
“bosquímanos”, “silvícolas”, “esquimós”, “primitivos” passamos a nos interessar nas
sociedades humanas, todas e qualquer uma delas (“atrasada” ou “adiantada”, ocidental
ou oriental, “moderna” ou “tradicional”, o bairro vizinho, a comunidade tal, a favela tal,
as torres tal). O quê nos interessa dessas sociedades? Sua Alteridade, sua singularidade,
a sua outredade, o que faz essas sociedades serem o que são. A Antropologia é o lugar,
dentro do espaço das ciências ocidentais, para pensar a diferença e o antropólogo é
aquele que se interessa pelo Outro: um sujeito bastante raro, é verdade, porque em
lugar de querer defender uma identidade, queremos ser atingidos pelo Outro, em vez
que nos enraizarmos num território de certezas, buscamos o desenraizamento crônico
que nos leva à busca pelo Outro. Somos como os Tupinambás descritos por Eduardo
Viveiros de Castro (2002b): de uma “radical incompletude” que nos deixa absolutamente
atraídos pela alteridade, com um “impulso centrífugo” que nos faz enxergar a alteridade
não como problema, mas como solução.
12 O método etnográfico, assim, se torna inseparável da própria Antropologia, definida
por Márcio Goldman como “o estudo das experiências humanas a partir de uma
experiência pessoal” (2006, p. 167).
O método etnográfico
16
com vários estudos de caso e estaremos usando o método comparativo. Podemos
percorrer a cidade de forma lenta, corporificada e à deriva, estaremos usando o método
do urbanismo errante. Ou podemos nos “jogar de cabeça” na vida de uma rua e
estaremos usando o método etnográfico. O método etnográfico consiste num mergulho
profundo e prolongado na vida cotidiana desses Outros que queremos apreender e
compreender.
“o método etnográfico não se confunde nem se reduz a uma técnica; pode usar ou
servir-se de várias, conforme as circunstâncias de cada pesquisa; ele é antes um
modo de acercamento e apreensão do que um conjunto de procedimentos.”
(MAGNANI, 2002, p.17).
“o que costumamos denominar ‘ponto de vista do nativo’, não deve jamais ser
pensado como atributo de um nativo genérico qualquer, negro, de classe popular,
ilheense, baiano, brasileiro ou uma mistura judiciosa de tudo isso. Trata- se sempre
de pessoas muito concretas , cada uma dotada de suas
17
particularidades, e sobretudo, agência e criatividade.” (GOLDMAN, 2003, p. 456).
17 A essas pessoas, damos voz, não por caridade, mas por convicção de que têm coisas a
dizer. E essa voz não é monológica, é dialógica. O pesquisador e o nativo conversam,
falam, dialogam. É nisso que consiste o cerne do método etnográfico: em trabalhar com
pessoas, dialogando pacientemente com elas.
18 Para o antropólogo, o campo é, durante um bom tempo, uma incógnita, pelo simples
fato de os “fatos” não existirem.
“o trabalho de campo é sobretudo uma atividade construtiva ou criativa, pois os
fatos etnográficos ‘não existem’ e é preciso um ‘método para a descoberta de fatos
invisíveis por meio da inferência construtiva’ (Malinowski, 1935, vol.1, p.317)”.
(GOLDMAN, 2003, p. 456).
19 Como os fatos não existem para serem colhidos, fazer etnografia é uma tarefa difícil,
densa, pois tudo aparece aos nossos olhos como confuso, sem sentido:
18
20 O campo não fornece dados, mas informações que costumamos chamar de dados.
As informações se transformam em dados no processo reflexivo, posterior à sua coleta
(GUBER, 2005). Então, estamos falando de dois momentos em campo. No primeiro, o
antropólogo registra informações mediante o ver e o ouvir, tão bem apontados por
Cardoso de Oliveira como as “duas muletas que lhe permitem trafegar” (1998: 21).
Porém, não se trata de um ouvir qualquer. É um ouvir que dá a palavra, não para ouvir
o que queremos, mas para ouvir o que os nossos interlocutores têm a dizer. E falamos
aqui em interlocutores – não informantes ou entrevistados – porque a palavra cedida se
dá num contexto de diálogo, numa relação dialógica, e é nesse diálogo que os dados se
fazem para o pesquisador. A relação dialógica só é possível de ser estabelecida no meio
de uma posição do antropólogo entre os nativos: a de observador-participante, que cria
familiaridade e possibilita a “fusão de horizontes” da qual falam os hermenêutas,
condição indispensável para um verdadeiro diálogo.
21 Assim, no primeiro momento, o que fazemos é coletar em forma de descrições.
Descrevemos tudo, em detalhes. Transcrevemos longos depoimentos. Ficamos
“perseguindo pessoas sutis com perguntas obtusas”, anotando tudo porque não
sabemos o quê vai ser importante mesmo. Se os arqueólogos estão sempre com uma
corda e o urbanista sempre desenhando croquis, o antropólogo está sempre com um
caderno de campo, tomando nota de tudo.
22 Após um longo período de confusão e muitas anotações, vem a segunda fase do trabalho
de campo, o da “sacada”, isto é, quando começamos a enxergar certa ordem nas coisas,
quando certas informações se transformam em material significativo para a pesquisa.
19
compromissos da universidade. A “sacada” advém do tempo em campo, pois só o tempo
é capaz de provocar um duplo processo no pesquisador: por um lado, conseguir
relativizar sua sociedade e, por outro, conseguir perceber a coerência da cultura
do Outro. Em palavras de Roberto Da Matta, o tempo possibilita que o antropólogo
torne exótico (distante, estranho) o que é familiar e familiar (conhecido, próximo) o que
é exótico (DA MATTA, 1981, p. 144)
24 É conveniente admitir que este tempo – este contato direto e prolongado com
o Outro – é um processo bastante sofrido. Por um lado, porque o pesquisador, longe de
casa, no meio de um outro mundo, sente na pele a marginalidade, a solidão, a saudade.
Mas, principalmente, porque não se estranha apenas o Outro: o processo de
estranhamento afeta o próprio Eu. Nos tornamos seres desenraizados – é isso, afinal,
que faz um antropólogo, segundo Lévi-Strauss – e que acaba se expressando no que
Roberto Da Matta chamou de anthropological blues: uma mistura de sofrimento e
paixão.
A formação teórica
20
centralizado /.../ que vemos a vida dos outros através das lentes que nós próprios
polimos e que os outros nos vêem através das deles” (GEERTZ, 2001, p.66).
A escrita
28 A terceira fase do fazer etnográfico advém após ter encontrado uma ordem das coisas
(em diálogo com o nativo) e consiste em pormos as coisas em ordem para possibilitar a
leitura por parte de um público que não esteve lá 4 e que nos lerá esperando que
façamos um correto casamento entre teoria e prática.
29 Se tivermos de dizer qual das três fases etnográficas é a mais difícil, diríamos
Certamente que é a da escrita, pois como converter tantos dados num texto? Em
quantos capítulos? De quê será cada um? A teoria irá em um capítulo e os dados em
outro? Por onde começar? São perguntas que ansiosamente todos nos perguntamos
quando nos vemos diante de uma escrivaninha abarrotada de depoimentos,
transcrições, fitas, cadernos de campo, fotos, diário de campo, lembranças, sensações,
etc. A dificuldade advém da etnografia e a escrita serem duas coisas radicalmente
diferentes: a etnografia é uma experiência, uma experiência do Outro para captar e
compreender, depois interpretar, a sua alteridade; a narrativa etnográfica é a
transformação dessas experiências totais em escrita, o que, necessariamente exige um
mínimo de coerência e linearidade que não são próprias da vivência. É essa diferença ou
distancia entre experiência e texto que nos ajuda a entender o fundo da pergunta que
Renato Rosaldo reproduz em seu texto Cultura y verdad: “como pessoas tão
interessantes, que fazem coisas tão interessantes podem escrever coisas tão chatas?”
(ROSALDO, 2000: 61)
30 Assim como a etnografia está ligada ao nome de Malinowski, a reflexão sobre
diferença/distância entre experiência e texto está igualmente ligada a este nome. Por
iniciativa da viúva e com uma introdução do antigo discípulo Raymond Firth, em
1967, se publica o Diário no sentido estrito do termo (1997), diário de
Malinowski nas ilhas Trobriand, no qual ele fala de seu sofrimento, mal-humor, sua
vontade de “dar o fora dali”, em que revela seu hipocondrismo, seu ódio dos mosquito
e pulgas, seu desconforto de conviver com porcos e crianças barulhentas, as
chantagens dos nativos para falar, seus desejos sexuais, o descompromisso dos
informantes (chamados de estúpidos, insolentes, atrevidos), a saudade da Europa, das
duas mulheres que amava, etc. No mesmo ano, Clifford Geertz escreve uma resenha
devastadora deste diário chamada “Under the mosquito net” em que vai se
21
perguntar como é que Malinowski conseguiu convencer todo mundo sobre o ponto de
vista do nativo sem nem sequer ter conseguido empatia alguma com os nativos? A
resposta seria: pela forma de narrar, o que importa é o modo como se narra a
experiência etnográfica, isto é, a narrativa, a escrita, o estilo. Na década de 1980, alguns
discípulos de Geertz retomam a reflexão inicial do mestre e se reúnem num seminário
em Santa Fé, cujas apresentações se publicam em 1984 no livro Writing Culture (editado
por James Clifford e George Marcus). Este movimento – chamado de pós-moderno em
Antropologia – vai refletir seriamente sobre como temos escrito sobre os Outros desde
os tempos de Malinowski até agora.
31 Além da distância entre experiência e escrita, outra dificuldade do terceiro momento do
fazer etnográfico radica no fato de não sermos apenas registradores de falas, tradutores
da palavra nativa, transcritores do Outro. Somos autores, pois pôr as coisas em ordem –
montar o quebra-cabeça – é um exercício criativo autoral. A criação faz dos textos
antropológicos, ficções:
22
formação teórica, ele culmina, novamente, na teoria, pois é ela que ajuda a pôr as
coisas em ordem, por mais mínima que essa ordem seja:
33 A escrita é perpassada também pela questão do lugar desde onde fala o antropólogo.
Há um certo tempo existe um consenso: a fala do antropólogo não se confunde com a
do nativo porque ele, por mais perto que tenha chegado deste, simplesmente, não é um
nativo. O Eu não é o Outro. Mas o Eu do antropólogo, sua voz, o posição desde a qual ele
fala, não é tampouco daquele pesquisador que iniciou o trabalho de campo
“a natureza da explicação pela via etnográfica tem como base um insigth que
permite reorganizar dados percebidos como fragmentários, informações ainda
dispersas, indícios soltos, num novo arranjo que não é mais o arranjo nativo (mas
que parte dele, leva-o em conta, foi suscitado por ele) nem aquele com o qual o
pesquisador iniciou a pesquisa.” (MAGNANI, 2002: 17).
“É preciso pensar em que espaço se move o etnólogo que está engajado numa
pesquisa de campo e refletir sobre as ambivalências de um estado existencial onde
não se está nem numa sociedade nem na outra, e no entanto está-se enfiado até
o pescoço em uma e outra.” (DA MATTA, 1981, p. 153,4)
35 Viveiros de Castro deu uma brilhante resposta à pergunta que aqui nos ocupa: a voz
do antropólogo não é a voz do nativo porque uma coisa é o que o nativo pensa e
outra, o que o antropólogo pensa que o nativo pensa. O ponto de vista do
23
antropólogo é, pois, o da sua relação com o ponto de vista do nativo (Viveiros de Castro,
2002). O seu é um discurso que advém de uma relação: mais uma vez, a experiência de
diálogo “para valer” é o que marca a narrativa etnográfica.
36 Então, é o antropólogo que fala, mas esta fala advém de uma relação, o que significa
dizer que há autoridade, mas esta convive com a fragilidade, e seria esta combinação,
precisamente, a característica do discurso antropológico:
24
Conclusão
38 A conclusão é simples: a rigor, fazer etnografia não consiste apenas em “ir a campo”,
ou “ceder a palavra aos nativos” ou ter um “espírito etnográfico”. Fazer etnografia supõe
uma vocação de desenraizamento, uma formação para ver o mundo de maneira
descentrada, uma preparação teórica para entender o “campo” que queremos
pesquisar, um “se jogar de cabeça” no mundo que pretendemos desvendar, um tempo
prolongado dialogando com as pessoas que pretendemos entender, um “levar a sério”
a sua palavra, um encontrar uma ordem nas coisas e, depois, um colocar as coisas em
ordem mediante uma escrita realista, polifônica e inter- subjetiva.
39 Finalizando, gostaria de frisar que dizer o que é a etnografia para um antropólogo não
significa dizer que ela é “propriedade” nossa; significa, apenas, afirmar o quanto ela é
complexa para nós. Como outras disciplinas podem se apropriar dela é uma outra
questão, que ultrapassa o objetivo deste artigo.
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. A inconstância da alma selvagem - e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac
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NOTAS
1 “O que fazemos que os outros não fazem, ou só fazem ocasionalmente, e
não tão bem feito, é (segundo essa visão) conversar com o homem do arrozal
ou a mulher do bazar, quase sempre em termos não convencionais, no estilo
‘uma coisa leva a outra e tudo leva a tudo o mais’ em língua
26
vernáculo e por longos períodos de tempo, sempre observando muito de
perto como eles se comportam.” (GEERTZ,
2001, p. 89,90). “A antropologia não se define por um objeto determinado:
mais do que uma disciplina voltada para o estudo dos povos primitivos ela é,
como afirma Merleau-Ponty, ‘a maneira de pensar quando o objeto é outro e
que exige nossa própria transformação.” (MAGNANI, 2002, p. 16).
2 O “urbanista errante” constitui uma proposta crítica que responde ao
método – planejado e de cima – predominante no Urbanismo. O que Jacques
(2006) propõe é uma postura de apreensão da cidade menos distante da
experiência urbana, uma que retome as formas de apreender própria dos
diversos errantes que existiram ao longo da história (andarilhos, flâneurs,
surrealistas, situacionistas, artistas como João do Rio e Oitica, entre outros).
Três seriam as características deste urbanista errante: se perder, ser lento e
corporizar. Após ser ensinado a se orientar, o urbanista deveria aprender a se
desorientar, se perder, para se reintegrar de uma outra forma, não-ensinada
previamente; após viver mergulhado na velocidade do mundo moderno, ele
teria de aprender o ritmo da lentidão; finalmente, no mundo da virtualidade
o num mundo asseptizado, onde tudo se descorporiza, ele teria de aprender
a corporizar novamente as coisas e as pessoas, isto é, usar, percorrer,
experimentar, tocar, sentir, cheirar.
3 Antes dele, nos Estados Unidos, o antropólogo Lewis Morgan visitou os
iroqueses nos anos de 1844 e 1846, e o antropólogo Franz Boas, entre 1883
e 1884, conviveu entre os nativos da Terra de Baffin, e, logo depois, entre os
Kwakiutl da ilha de Vancouver. Entretanto, o primeiro a formular a etnografia
como método foi Bronislaw Malinowski, bem mais tarde, na referida
introdução dos Argonautas (1922).
4 Retomo aqui expressões de Sahlins para se referir às antropologias de
Malinowski e Boas. Segundo Sahlins, o empirismo de Boas, em contraposição
à teoria funcionalista de Malinowski, o levava a “um compromisso em
encontrar ordem nos fatos, e não em colocar os fatos em ordem.” (SAHLINS,
2003, p. 80).
27
ETNOGRAFIA: SABERES E PRÁTICAS1
28
de interpretação da realidade social que não a teoria antropológica.
Já o método etnográfico é a base na qual se apoia o edifício da formação de um(a)
antropólogo(a). A pesquisa etnográfica constituindo-se no exercício do olhar (ver) e do escutar
(ouvir) impõe ao pesquisador ou a pesquisadora um deslocamento de sua própria cultura para
se situar no interior do fenômeno por ele ou por ela observado através da sua participação
efetiva nas formas de sociabilidade por meio das quais a realidade investigada se lhe apresenta.
Inicialmente, em Antropologia, a preparação para o trabalho de campo implica inúmeras
etapas, uma delas é a construção do próprio tema e objeto de pesquisa desde a adoção de
determinados recortes teórico-conceituais do próprio campo disciplinar e suas áreas de
conhecimento (Antropologia rural, Antropologia urbana, etc.). Não é usual este projeto
contemplar hipóteses iniciais de pesquisa uma vez que estas emergem na medida em que a
investigação avança com a aproximação ao universo a ser pesquisado.
A observação direta
29
grupos ou da instituição a ser estudada para conquistar a concordância de sua presença
para a observação sistemática das práticas sociais.
A interação é a condição da pesquisa. Não se trata de um encontro fortuito, mas de uma
relação que se prolonga no fluxo do tempo e na pluralidade dos espaços sociais vividos
cotidianamente por pessoas no contexto urbano, no mundo rural, nas terras indígenas, nos
territórios quilombolas, enfim, nas casas, nas ruas, na roça, etc, que abrangem o mundo
público e o mundo privado da sociedade em geral.
Logo após o pedido de consentimento por parte dos indivíduos ou das pessoas, ou da
concordância institucional, o(a) pesquisador(a)-observador(a), em sua atitude de estar
presente com regularidade, passa a participar das rotinas do grupo social estudado e sua
técnica consiste então na observação participante. A prática da etnografia se torna mais
profunda e se constitui como uma forma do(a) antropólogo(a) pesquisar, na vida social, os
valores éticos e morais, os códigos de emoções, as intenções e as motivações que orientam a
conformação de uma determinada sociedade.
É recorrente se afirmar que o(a) antropólogo(a) não pode se transformar em nativo(a),
submergindo integralmente ao seu ethos e visão de mundo, tanto quanto não pode aderir
irrestritamente aos valores de sua própria cultura para interpretar e descrever uma cultura
diferente da sua própria (o que consiste no etnocentrismo), sob pena de não mais ter as
condições epistemológicas necessárias à produção da etnografia. O(a) antropólogo(a)
brasileiro Roberto Da Matta (1978 e 1981), denomina este sentimento de estar lá e do estar
aqui como parte das tristezas do(a) antropólogo(a), um eterno desgarrado de sua própria
cultura, mas na eterna busca do seu encontro com outras culturas. Por isto podemos
caracterizar a antropologia como a ciência que trata da diversidade cultural.
O trabalho de conhecer
30
espírito científico” sobre como vencer obstáculos epistemológicos imbuídos de uma cultura
científica. Fascinado pelas generalizações de primeira vista, logo somos mobilizados pela
motivação científica e superamos as armadilhas de explicar o que observamos pelo senso
comum. Ao recorrermos às idéias científicas podemos então ordenar nossas descobertas em
uma lógica inteligente que provoca o conhecimento intelectual sobre o observado, sobre a
situação pesquisada, sobre as dinâmicas sociais investigadas. Bachelard nos ensina aqui que
vivemos no campo científico uma ruptura epistemológica (Bachelard, 1996).
Esta descoberta sobre o Outro, é uma relação dialética que implica em uma sistemática
reciprocidade cognitiva entre o(a) pesquisador(a) e os sujeitos pesquisados.
A acuidade de observar as formas dos fenômenos sociais implica na disposição do(a)
pesquisador(a) a permitir-se experimentar uma sensibilidade emocional para penetrar nas
espessas camadas dos motivos e intenções que conformam as interações humanas,
ultrapassando a noção ingênua de que a realidade é mensurável ou visível, em uma atitude
individual. O observar na pesquisa de campo implica na interação com o Outro evocando uma
habilidade para participar das tramas da vida cotidiana, estando com o Outro no fluxo dos
acontecimentos. Isto implica em estar atento(a) as regularidades e variações de práticas e
atitudes, reconhecer as diversidades e singularidades dos fenômenos sociais para além das
suas formas institucionais e definições oficializadas por discursos legitimados por estruturas
de poder.
A pesquisa se inicia pela aprovação de um projeto que contenha as intenções teóricas e
categorias antropológicas que fundamentam as etapas do desenvolvimento do trabalho de
campo sob a orientação de um professor(a)/pesquisador(a) antropólogo(a). Existem múltiplas
maneiras da inserção em campo ser iniciada, mas em sua maioria, uma etnografia se estréia
com um processo de negociação do(a) antropólogo(a) com indivíduos e/ou grupos que
pretende estudar, transformando-os em parceiros de seus projetos de investigação,
compartilhando com eles e com elas suas idéias e intenções de pesquisa. O consentimento
implica em saber quando e onde ir, com quem e o que se pode ou não falar, como agir diante
de situações de conflito e risco, etc. Algumas vezes o(a) antropólogo(a) é “iniciado(a)” no seu
trabalho de campo por um dos membros do grupo que investiga. Em geral denominamos
este(a) personagem que nos apóia nos primeiros passos no contexto da pesquisa de
“interlocutor principal”, quando não pela carinhosa denominação de padrinho ou madrinha de
iniciação. Outras vezes se coloca em campo a partir do consentimento de uma determinada
instituição que avalia a pertinência da pesquisa para sua concordância ou ainda uma
organização que desenvolve ações junto ao grupo com o qual pretende trabalhar.
31
O antropólogo americano William Foote Whyte (2005) fez sua entrada em campo nas
ruas da cidade. Buscava se aproximar dos moradores do quarteirão italiano de um bairro de
Boston, Cornerville. Esta aproximação é mediada por um trabalhador que lhe apresentará Doc,
chefe de um grupo de jovens que lhe colocará em contato com seus companheiros, através
dos quais irá conhecer uma rede densa de relações no bairro. Fica evidente que a expressão «
entrada em campo » possui uma rica ambigüidade. Para o(a) etnógrafo(a) “entrar em campo”
significa tanto a permissão formal do “nativo” para que ele disponha de seu sistema de crenças
e de práticas como objeto/tema de produção de conhecimento em antropologia, quanto o
momento propriamente dito em que o(a) antropólogo(a) adquire a confiança do(a) nativo(a)
e de seu grupo, os quais passam a aceitar se deixar observar pelo(a) etnógrafo(a) que passa,
por sua vez, a participar de suas vidas cotidianas.
A escuta atenta
A entrada em campo sempre transcorre desde uma rede de interações tecidas pelo(a)
antropólogo(a) no seu contato com um grupo determinado, sendo o trabalho de campo um
laborioso trabalho de entrada do(a) etnógrafo(a) desde uma situação periférica no interior da
vida coletiva deste grupo até seu deslocamento progressivo no coração dos dramas sociais
vividos por seus membros. Obviamente não todos, mas aqueles aos quais o(a) antropólogo(a)
aderiu em seu trabalho de campo. A experiência situada é aquela que orienta a prática da
pesquisa em antropologia que jamais pretende atingir um conhecimento do mundo social a
partir da posição que ele (ela) ocupa no seu interior. Todo o conhecimento produzido e
acumulado pelo pensamento antropológico está referido a experiência singular que o(a)
etnógrafo(a) desenvolve com a sociedade que investiga.
A inserção no contexto social objetivado pelo(a) pesquisador(a) para o desenvolvimento
do seu tema de pesquisa, o(a) aproxima cada vez mais dos indivíduos, dos grupos sociais que
circunscrevem seu universo de pesquisa. Junto a estas pessoas o(a) pesquisador(a) tece uma
comunicação densa orientada pelo seu projeto de intenções de pesquisa.
A presença se prolonga e o(a) antropólogo(a) participa da vida social que pesquisa,
interagindo com as pessoas no espaço cotidiano, compartilhando a experiência do tempo que
flui. Esta comunicação se densifica com a aprendizagem da língua do “nativo” para a
compreensão de suas falas quando necessário, com o reconhecimento dos sotaques ou das
gírias, com a aprendizagem dos significados dos gestos, das performances e das etiquetas
próprias ao grupo que revelam suas orientações simbólicas e traduzem seus sistemas de
32
valores para pensar o mundo. O antropólogo americano Clifford Geertz (1978) sugere aqui
que estaremos desvendando o tom e a qualidade da vida cultural, o ethos e o habitus do grupo,
ou seja, estaremos interpretando o sistema simbólico que orienta a vida e conforma os valores
éticos dos grupos sociais em suas ações e representações acerca de como viver em um sistema
social. Isto significa estar junto nas situações ordinárias vividas como possibilidade
interpretativa dos ditos e não ditos que se constituem como parte fundamental das
aprendizagens de seu métier.
A disposição de escutar o Outro, não é tarefa evidente. Exige um aprendizado a ser
conquistado a cada saída de campo, a cada visita para a entrevista, a cada experiência de
observação. Os constrangimentos enfrentados pelo desconhecimento vão sendo superados
pela definição cada vez mais concreta da linha temática a ser colocada como objetivo da
comunicação. Diz-se então que a prática etnográfica permite interpretar o mundo social
aproximando-se o pesquisador do Outro “estranho”, tornando-o “familiar” ou no
procedimento inverso, estranhando o familiar, superando o pesquisador suas representações
ingênuas agora substituídas por questões relacionais sobre o universo de pesquisa analisado
(Da Matta, 1978 e Velho, 1978).
33
O esforço de construir este cenário social é então fundamental em toda monografia para
que os futuros leitores possam compartilhar dos matizes que orientaram os procedimentos
sociais nos atos interativos, bem como ter o mínimo de dados sobre as disposições sociais que
estavam em jogo nas interações cotidianas. Este contexto é elaborado a partir de dados
observados, estudos históricos, revisão bibliográfica de pesquisas já desenvolvidas sobre o
tema, análise de discursos e de documentos históricos, estudo de imagens produzidas, etc,
enfim, uma gama de dados empíricos e conceituais coletados e interpretados nesta atitude
arqueológica de reconstruir o saber produzido sobre o universo social pesquisado.
A cada investida “em campo”, o(a) etnógrafo(a), segue o modelo clássico fundado pelos
primeiros antropólogos que se aventuravam em viagens para conhecer os povos nominados
na época de exóticos, simples e distantes. Trata-se do registro escrito em notas, diários ou
relatos das experiências observadas ou escutadas no cotidiano da investigação.
O que se escreve? Recorremos aqui ao famoso antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro
(2006) que responde de forma muito simples:
Meus diários são anotações que fiz dia a dia, lá nas aldeias,
do que via, do que me acontecia e do que os índios me diziam.
Este ato de escritura define a capacidade de recriar as formas culturais que tais
fenômenos adotam e permite exercitar a habilidade de lhes dar vida novamente, agora na
forma escrita, com base em uma estrutura narrativa. Eis alguns pontos em comum entre o
método etnográfico e o romance, e que aproxima a Antropologia da Literatura.
O antropólogo brasileiro Roberto Cardoso de Oliveira recorre a uma expressão em inglês
para definir esta experiência de escrever sobre a experiência de observar o Outro e escutar o
Outro: Semantical Gap. Isto quer dizer que o(a) antropólogo(a) vivencia seja na interação face
a face, seja no ato de refletir sobre esta experiência, o momento de descoberta do Outro, mas
onde o pesquisador faz sempre um retorno a si mesmo porque ele também se redescobre no
Outro. O(a) antropólogo(a) reconhece, ao se relacionar na pesquisa de campo, uma diferença,
uma separação de valor, um abismo entre valores que é definido desde a fundação da premissa
de estranhar o Outro como de relativismo cultural.
34
Este momento é uma experiência única e intransferível. Uma busca de conhecimento
orientada por conceitos de um campo semântico da teoria antropológica que nos estimula a
questões anti-etnocêntricas, quer dizer, de não fazer com que os juízos de valores da
sociedade do(a) próprio(a) pesquisador(a) persistam ao olhar o Outro evitando a armadilha de
ver o Outro com os valores de uma sociedade tão distante que gere e reproduza o preconceito.
Para muitos uma mescla entre arte e ciência, o método etnográfico se conforma num
processo lento, longo e trabalhoso de acesso as inúmeras camadas interpretativas da vida
social, e que conforma os fenômenos culturais tanto quanto num laborioso procedimento de
reapresentar as formas culturais na qual tal vida social se apresenta para seus protagonistas.
A antropóloga americana Margareth Mead (1979) em um artigo célebre já havia
pontuado entre seus colegas que uma das peculiaridades da antropologia, desde suas origens,
é a de ser uma disciplina de palavras. A autora ao desenvolver seu argumento revela que a
prática etnográfica se traduz na memorização de acontecimentos orais complexos
(cerimônias, conversas, relatos, comentários, interações verbais, etc.) que necessitam ser
registrados, classificados, correlacionados, comparados e, logo após, retomados pelo
etnógrafo na forma de estudos monográficos, através do uso de conceitos teóricos e
metodológicos do seu campo disciplinar e não do próprio “nativo”. Todo(a) o(a) etnógrafo(a)
é por assim dizer um(a) escriba.
Para muitos cientistas sociais a sua formação no oficio de etnógrafo passa pelo
espinhoso processo da escrita de uma monografia, ou seja, um estudo pontual e denso sobre
uma prática cultural qualquer analisada onde necessita transpor para a escrita sua experiência
com o grupo pesquisado. O sofrimento que a escrita traz para este aprendiz de etnógrafo(a) é
mais complexa quanto mais ele ou ela se dedicarem ao estudo de práticas cujos contextos
culturais são marcados pela forte presença da oralidade na sua forma de expressiva, caso dos
estudos de contos e de lendas do folclore popular, de cantos e mitos em sociedades indígenas
ou tribais.
A prática da etnografia traz para o campo do debate, hoje, as questões da restituição
etnológica, isto é, o retorno ao grupo pesquisado das informações e dados que o(a)
etnógrafo(a) deles retirou quando de sua estadia entre eles. Esta foi, sem dúvida, uma das
grandes contribuições dos antropólogos americanos que reivindicam uma antropologia pós-
moderna. Estes se preocuparam fortemente com estas questões da autoridade etnográfica
dos escritos dos antropólogos e do lugar de autor que este ocupa no momento de oferecer a
comunidade dos antropólogos suas interpretações da cultura do Outro. Produção de estudos
monográficos que apresentam dados, situações, acontecimentos da
35
vida cotidiana do “nativo” cuja natureza é diversa daquela dos dados obtidos no trabalho de
campo.
Não cabe no computo deste artigo discutir, mas vale lembrar que a prática da escrita
em antropologia (e o trabalho de edição, revisão e editoração) representa um rito de
passagem importante para a formação de um antropólogo precisamente pela forma como a
linguagem escrita permite ao próprio pensamento antropológico dar conta da natureza do
construto intelectual que orienta a representação etnográfica.
Importante se ressaltar que o trabalho de escrita etnográfica tal qual aparece nos
estudos monográficos clássicos foi, obviamente, concebido a posteriori, geralmente com o
apoio de casas de edições interessadas na venda de tais monografias sob a forma de livros. A
leitura dos clássicos, tal qual se apresenta no espaço livresco não pode ignorar que a realização
de um trabalho etnográfico necessita a prática de um dispositivo de pensamento especulativo
preliminar onde a escrita exploratória e ensaística é fundamental para o seu processo de
pensar seu próprio pensamento. A organização do trabalho de campo em fases bem precisas,
totalmente esquemáticas (preparação, coleta de dados, análise dos dados e escrita final do
estudo monográfico, dissertação ou tese) é, neste sentido, uma ilusão criada pelo espaço
livresco por onde circulam as etnográficas clássicas do pensamento antropológico e do qual
todo(a) o(a) aprendiz de etnógrafo(a) precisa ter acesso.
A escrita etnográfica desde a contribuição de Clifford Geertz (O antropólogo como
autor), de James Clifford (A experiência etnográfica) e de Paul Rabinow (Antropologia da
razão) supõe atualmente a pesquisa com novas formas de escritas etnográficas como forma
de acomodar as questões da controversa da restituição etnológica da palavra do Outro.
36
técnica da observação rigorosa contínua e regular da vida social a partir da localização do
investigado no interior das formas da vida social que pretendia estudar. Procurava impregnar-
se lenta e sistematicamente dos grupos humanos com os quais mantinha, então, estreita troca
e interação. Nas palavras do antropólogo alemão Franz Boas:
37
A etnografia como método de investigação das modernas sociedades complexas como
método de investigação, influenciou as formas de se fazer pesquisa entre os sociólogos da
Escola de Chicago. Este grupo de sociólogos americanos e europeus tinha por interesse comum
nos anos 30 do século XX, desenvolver um método e conceitos pertinentes para tratar do
fenômeno urbano e industrial. Suas descobertas para compreender a sociedade moderna
amplificaram seus efeitos nos questionamentos no campo da pesquisa em ciências sociais pela
forma como a etnometodologia encontrou nos estudos clássicos dos antropólogos sua fonte
de inspiração para o estudo microscópico das formas de vida social de nossas próprias
sociedades na cultura ocidental, urbano-industrial.
No inicio do séc. XX, principalmente após as crises dos anos 1930, eram inúmeros os
cientistas sociais que participavam de instituições públicas ou privadas que tinham por centro
de suas ações o trabalho com grupos e/ou indivíduos vivendo em situações de crise social.
Muitos destes cientistas fizeram destas experiências seu tema e objeto de teses em
universidades efetuando-se assim a passagem da participação para a observação das
situações vividas por tais indivíduos e/ou grupos, numa tentativa de reuni-los no interior de
um mesmo procedimento metodológico.
A etnometodologia foi neste caso fundamental para a pesquisa no campo das ciências
sociais migrarem de procedimentos e técnicas de pesquisa influenciadas por uma sociologia
funcionalista ou positivista para uma microsociologia com grande influência do método
etnográfico, em Antropologia. Um exemplo paradigmático é a Escola de Chicago que
influenciou grandemente os estudos antropológicos em sociedades complexas, em especial
orientando para a análise das práticas culturais no contexto da vida social nos grandes centros
urbanos. Reunindo esta experiência ao método etnográfico, a área de conhecimento da
Antropologia inovou em suas formas de pesquisar os fenômenos sociais nas modernas
sociedades urbano-industriais ao propor o conceito de relativização como inerente à pesquisa
em ciências sociais, resultado do jogo polêmico entre participação e distanciamento do
pesquisador em relação ao seu próprio território de pesquisa.
Outra forma de se produzir conhecimento em ciências sociais se expande desde aí tendo
como foco o tema das necessárias rupturas epistemológicas, conforme Pierre Bourdieu (1999).
Para o sociólogo francês tal pesquisa necessita contemplar o sentido reflexivo da trajetória dos
conceitos e teorias produzidos superando a força e a qualidade heurística das ditas ciências
duras. A apresentação do mundo subjetivo do pesquisador como parte integrante dos
procedimentos científicos de objetivação a pesquisa do mundo social e não como
impedimentos a sua realização encontram na história das técnicas de pesquisa em
antropologia uma fonte de inspiração.
38
Aprender a etnografia lendo etnografias
Quem faz o quê nestas situações? Quem é quem na ordem destes acontecimentos? Quais
as razões de tudo aquilo se passar da forma como está se passando? Quais as razões das coisas
serem como são?
8
2 Cursinho Walita resultou de uma publicidade da venda de liquidificadores Walita que sugeriam
receitas de culinária rapidamente elaboradas com o uso do aparelho.
39
Baseado no aprendizado da leitura etnográfica, o(a) pesquisador(a) perde este lugar de
“mal necessário” e se torna provocador de questões mais pontuais sobre a vida das pessoas e
dos grupos com as quais está dialogando, convidando-os a pensar sobre o sentido de suas
práticas cotidianas. No interior deste diálogo o(a) etnógrafo(a) transforma, assim, os
acontecimentos ordinários da vida dos indivíduos e/ou dos grupo com os quais interage em
evento extraordinário, promovendo entre eles o desafio de refletir conjuntamente sobre si
mesmos.
40
transcorrido de um dia compartilhado no interior de uma família moradora de uma vila popular,
com quem passou um tempo para pesquisar o tema da violência urbana. Ele é o espaço
fundamental para o(a) antropólogo(a) arranjar o encadeamento de suas ações futuras em
campo, desde uma avaliação das incorreções e imperfeições ocorridas no seu dia de trabalho
de campo, dúvidas conceituais e de procedimento ético. Um espaço para o(a) etnógrafo(a)
avaliar sua própria conduta em campo, seus deslizes e acertos junto as pessoas e/ou grupos
pesquisados, numa constante vigilância epistemológica.
Evidentemente que o diário de campo não é algo que possa ser escrito ao mesmo tempo
em que me encontro compartilhando com os outros suas vidas, no dia a dia! Ele resulta de
outro instrumento: o caderno de notas. É no caderno de notas de campo, onde o(a)
antropólogo(a) costuma registrar dados, gráficos, anotações que resultam do convívio
participante e da observação atenta do universo social onde está inserido e que pretende
investigar; é o espaço onde situa o aspecto pessoal e intransferível de sua experiência direta
em campo, os problemas de relações com o grupo pesquisado, as dificuldades de acesso a
determinados temas e assuntos nas entrevistas e conversas realizadas, ou ainda, as indicações
de formas de superação dos limites e dos conflitos por ele vividos.
O caderno de notas e o diário de campo são instrumento de transposição de relatos orais
e falas obtido desde a inserção direta do(a) pesquisador(a) no interior da vida social por ele
ou por ela observada. Muitos destes cadernos de notas e diários contendo dados brutos de
observações diretas em campo conduziram os antropólogos ao estudo e a pesquisa, por
exemplo, com as gramáticas e os vocabulários que constituem os diferentes dialetos de uma
mesma língua falados pelas sociedades por eles pesquisadas, com as genealogias de
parentesco que organizam seu corpo social; os mitos e os rituais que vivificam o sentido
coletivo de suas vidas, etc.
Nos termos de Roberto Cardoso de Oliveira (2000), ver, ouvir e escrever como parte
integrante da prática da etnografia não se limita a ações simples, mas giram em torno das
implicações do pesquisador com sua pesquisa uma vez que ela repousa sobre a qualidade e
densidade das trocas sociais do(a) antropólogo(a) com os grupos com os quais esta
compartilhando experiências. O resultado de um trabalho de campo se mede pela forma como
o(a) próprio(a) antropólogo(a) vai refletir sobre si mesmo na experiência de campo. A
confrontação pessoal com o desconhecido, o contraditório, o obscuro e o confuso no interior
de si-mesmo é uma das razões que conduzem inúmeros autores a considerar a etnografia
como uma das práticas de pesquisa mais intensas nas ciências sociais. Não raro, os diários são
hoje publicados ou revistos para publicação pelos(as) próprios(as)
41
antropólogos(as) como é o caso do “Os diários e suas margens, viagem aos territórios Terêna
e Tükúna” de Roberto Cardoso de Oliveira em uma clara intenção de devolução da obra escrita
e fotografada aos povos indígenas hoje em crescente índice de alfabetização e tomados agora
como leitores potenciais de sua própria história registrada e relatada pelo antropólogo
(Cardoso de Oliveira, 2002, p. 13).
Esta crescente circularidade das produções etnográficas elaboradas no âmbito
acadêmico para contextos além-muros universitários consiste numa perspectiva de
democratização e compartilhamento político do trabalho de pensar o mundo social. Como
esclarece o antropólogo americano Marshall Sahlins:
42
detrimento da concretude da experiência etnográfica traduzida, por exemplo, pela via da
fotografia e do filme. Na produção textual, segundo o autor, o “nativo” se deixa ver pela mão
do etnógrafo, desde um ponto de visa generalizante, abstrato e normativo da palavra escrita
em seu desespero de expressar as formas como os fenômenos foram vividos em campo pelo(a)
antropólogo(a). Outro fator determinante da escrita etnográfica é que na medida em que o
texto circula e é reinterpretado pelo ato da leitura, os dados etnográficos se depositam na
forma de uma produção textual e se tornam pouco a pouco independentes de seu contexto
original de enunciação, pois são reinterpretados desde outros lugares e contextos de leituras.
Estas questões sobre as modalidades de escrita do pensamento antropológico tecer
suas interpretações sobre a cultura “nativa” são aspectos fundamentais do avanço nos usos
dos procedimentos e técnicas dos recursos audiovisuais para a prática da pesquisa de campo
em Antropologia nos últimos 30 anos. Se antes a expressão figurativa do outro poderia ser
vista negativamente porque congelava a cultura do nativo e o próprio nativo numa imagem
determinada, alusiva apenas a um momento de sua vida compartilhada com o etnógrafo que
o fotografou e o filmou, durante seu trabalho de campo, hoje, este mesmo traço figurativo já
se coloca de outra forma: através do olhar de uma tradição interpretativa em antropologia
que, longe da ingenuidade positivista, não atribui a imagem técnica seu estatuto de duplo ou
cópia do real.
Acumulados ao longo dos anos nos acervos pessoais dos antropólogos ou nos arquivos
institucionais as imagens visuais e sonoras captadas e registradas do nativo e de sua cultura
durante os vários momentos do trabalho de campo permitem precisamente avaliar o grau
de impacto da presença do etnógrafo entre a população por ele estudada.
Para David MacDougalll (2006) o caráter figurativo da imagem fotográfica e filmica (hoje,
cada vez mais videográfica) ao mesmo tempo em que permite a quem as manipula pensar nas
semelhanças e diferenças entre ele e a cultura retratada na imagem, conduz a uma reflexão
sobre a passagem do tempo do qual estas imagens resultam. Precisamente por que é o seu
traço figurativo que podemos perceber quase como pistas, desvendando os gestos e
motivações simbólicas que orientaram o olhar etnográfico para a composição daquela
forma de representação do nativo e não de outra.
43
Etnografia e as novas tecnologias
44
etnográficos em web tanto para o pesquisador quanto para sua comunidade lingüística, o que
contempla uma alteração na forma como até então as ciências sociais vinham produzindo
conhecimento.
Conclusões
45
exemplo, das lutas pelos direitos humanos e dos direitos sexuais no mundo contemporâneo.
Esta complexidade decorre da interdependência que une hoje o oficio do(a) antropólogo(a) as
formas de vida dos interlocutores, onde muitas vezes se vê constrangido a participar das
atividades de lutas de defesa das suas culturas.
Se antes o ato de participar que configurava a técnica da observação participante não
trazia consigo o engajamento do(a) antropólogo(a) nas mudanças das formas de ser da cultura
nativa, hoje, o método etnográfico não pode ignorar que o próprio trabalho de campo do(a)
antropólogo(a) provoca nela intervenções, a ponto de ser um fator de transformação da
cultura do “nativo”.
Acusada inúmeras vezes de produzir um conhecimento insípido e inodoro das sociedades
humanas, pela forma inicial com que advogava a necessidade do(a) antropólogo(a) conservar em
campo uma certa distância do fenômeno observado, tendo em vista suas preocupações com o
rigor científico, a tradição etnográfica se transformou lentamente em expressão de uma
forma de produção de conhecimento engajada e, por vezes, até mesmo militante. Com o passar
das décadas, em fins do séc. XX, situados na defensiva diante de um modelo positivista ou da
radicalidade de um modelo militante nas formas de procederem às apropriações do método
etnográfico, alguns antropólogos inspirados numa tradição interpretativista re-orientam para as
tensões entre participação e distanciamento como inerentes à condição do tradicional ato de
“etnografar” as culturas nas mais diversas sociedades.
Mais ou menos participante, o debate em torno das tipologias da técnica da observação
participante que orienta o método etnográfico e seus graus variados de implicações do(a)
antropólogo(a) com o grupo pesquisado (até se chegar a controversa da pesquisa-ação ou
pesquisa participante) fez avançar a própria importância deste método para a formação de um
cientista social no campo da produção de conhecimento antropológico. O que coloca a
etnografia como uma forma fundamental de construção de conhecimento nas ciências sociais
é justamente esta sua abertura ao mundo das interações sociais e culturais que unem o
pesquisador às culturas e sociedades por ele investigadas e que reside em algumas perguntas
cruciais sem que por isto se tenha para elas uma resposta única: Como conciliar a necessidade
metodológica do pesquisador se implica na vida cotidiana de um grupo humano e a implicação
do(a) pesquisador(a) que desde aí decorre com a forma da vida humana que ele configura?
Como evitar nos tornarmos nós mesmos
« nativos » ou de transformar os “nativos” em nós?
46
A ruptura com o senso comum sem dúvida é hoje uma questão que provoca verdadeira
vertigem entre os cientistas sociais se pensarmos que neste “senso comum” estão as suas
próprias produções teóricas e conceituais. Na figuração de um tempo pós- colonial, o Outro, o
Diferente, é ameaçado de se tornar o Mesmo, o igual, e isto pelas mãos dos próprios etnógrafos
ou dos “nativos” transformados em antropólogos imbuídos da invenção ocidental da figura do
“nativo” universal.
Segundo Sahlins (2001) no desencaixe espaço-tempo do mundo pós-colonial, no
encurtamento das distâncias que colocam o pesquisador e sua produção no interior do “olho
do furacão” das guerras e disputas entre povos e culturas em busca de seus destinos, o apelo
moral da noção de nativo universal e da privação que ela impõe as possibilidades de
compreensão da experiência nativa, fora de suas particularidades ou pressupostos culturais,
como sugere a teoria perspectivista, se tornou hoje outro dos grandes desafios da
permanência do método etnográfico no campo das pesquisas sociais.
A prática etnográfica tem por desafio compreender e interpretar tais transformações
da realidade desde seu interior. Mas, sabemos também, que toda produção de conhecimento
circunscreve o trajeto humano. Assim o oficio de etnógrafo pela observação participante, pela
entrevista não-diretiva, pelo diário de campo, pela técnica da descrição etnográfica, entre
outros, coloca o(a) cientista social, o(a) antropólogo(a), mediante o compromisso de ampliar
as possibilidades de re-conhecimento das diversas formas de participação e construção da vida
social.
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48
1.2 Os/as antropólogos/as: testemunhos do terreno
Texto 3:
Irene Rodrigues, « Ser laowai: o estrangeiro antropólogo e o estrangeiro para os migrantes
chineses entre Portugal e a China », Etnográfica [Online], vol. 16 (3) | 2012, Online desde 08
Outubro 2012, consultado em 26 Setembro 2016. URL : http://etnografica.revues.org/2118 ;
DOI : 10.4000/etnografica.2118
49
Irene Rodrigues,
No terreno, o etnógrafo quase sempre tem de lidar com o facto de ser visto como um estranho
pelas pessoas com quem interage, mas, em contextos etnográficos chineses, um etnógrafo não
chinês pode experimentar uma forma particular da condição de estranho encerrada na ideia de
laowai, uma categoria nativa de estrangeiro. A partir de experiências etnográficas com chineses
na China e em Lisboa, este artigo reflete sobre as condições de produção de conhecimento
etnográfico em terrenos chineses, descrevendo e discutindo o modo como a categoria de
laowai, emergente num contexto social, político e histórico específico, envolve o etnógrafo
numa complexa teia de relações que o colocam de modo ambivalente e simultaneamente em
posições de distância e de proximidade.
Entradas no índice
Keywords :
ethnography, fieldwork, foreigner, unpredictability, China
Palavras-chave :
etnografia, trabalho de campo, estrangeiro, imprevisibilidade,China
Plano
O que é um laowai?
A emergência histórica do paradoxo fascínio/ aversão pelos laowai
Auto-orientalização e ocidentalismo
Waidiren e dangdiren: chineses distantes e chineses próximos
Etnografia para principiantes: ser estrangeira na própria terra
De estrangeiro distante a estrangeiro familiar
Conclusão
1Há alguns meses, estava eu em Pequim (China) em trabalho de campo, quando encontrei
casualmente, em casa de familiares seus, uma mulher chinesa que conheci há vários anos em
Lisboa. Durante o almoço, ela convidou-me a acompanhá-la à sua terra natal nessa noite. À tarde
dirigimo-nos a uma das estações ferroviárias mais movimentadas da cidade para comprar o meu
bilhete (ela já tinha o seu). Enquanto aguardávamos na fila de uma das bilheteiras, uma mulher
de aspeto rude, com uma criança de meses ao colo, abordou a minha amiga e questionou-a
sobre qual o seu destino. Perante a resposta, a mulher sussurrou-lhe que já não havia bilhetes à
venda, mas que ela ainda tinha alguns “lá atrás”. E, olhando para mim, acrescentou: “Se quiseres
vens lá atrás, mas só tu. Nós não vendemos a laowai”. As duas mulheres afastaram-se e
combinaram o preço. A minha amiga pediu-me 300 yuans e as duas desapareceram na multidão.
Cerca de dez minutos depois, a minha amiga regressou com o meu bilhete.1
50
2A atitude desta mulher ao identificar-me como laowai reflete, não uma ética especial do
mercado negro chinês de não vender bilhetes a estrangeiros, mas o reconhecimento da minha
pessoa como pertencente a uma categoria diferente de pessoas. A vendedora recusou-se a
negociar comigo porque a categoria de pessoas em que ela me classificou – os estrangeiros – é
para muitos chineses correspondente a pessoas toldadas por uma perspetiva não chinesa e
“ocidental” do mundo que implica, entre outros, uma incapacidade de compreensão do modo
de ser e de estar chinês. A vendedora procurou assim evitar entrar num processo de
comunicação que ela previa repleto de equívocos.
3Laowai é um termo que, para a minha interlocutora e de forma mais geral em muitos contextos
chineses, identifica um “estrangeiro”, “ocidental”. A categoria tornou-se para mim um elemento
crucial da minha identidade ao longo destes vários anos de trabalho de campo entre chineses.
Neste artigo, parto da condição de laowai – “estrangeira”, “ocidental” – para refletir sobre as
condições de produção de conhecimento etnográfico em contextos chineses, através da
descrição e discussão sobre a ambivalência e a complexidade da relação simultaneamente
distante e próxima que, enquanto etnógrafa, estabeleci com os meus interlocutores.
4Sentir-se como um estranho e ser tratado como um estranho no momento em que se inicia o
trabalho de campo é uma experiência frequentemente relatada na literatura etnográfica. Nos
seus trabalhos seminais, tanto Evans-Pritchard (1974) como Malinowski (1922) referem como
lhes foi difícil ultrapassar a barreira de stranger imposta pelos habitantes locais e como, para
conseguirem aproximar-se, tiveram de quebrar com o estereótipo do white man, comportando-
se de modo diferente dos outros “brancos” que por ali viviam. Contudo, não é apenas neste
sentido que pretendo explorar a problemática da condição de estrangeiro no terreno.
Recorrendo a vários recortes etnográficos registados em Lisboa, Pequim e Wenzhou, durante o
meu trabalho de campo com migrantes chineses, procuro demonstrar como, desde o início da
investigação, ao ser classificada como pertencente a uma determinada categoria de pessoas –
os laowai –, a minha posição no terreno ficou marcada pela perceção que os meus interlocutores
tinham dessa categoria de pessoas, passando a integrar de modo determinante a minha
etnografia.
6No final do artigo, integro esta reflexão sobre a trama de sentidos envolvidos na categoria de
laowai nas ideias de “estrangeiro próximo” e de “estrangeiro distante” formuladas por Georg
Simmel (1979 [1908]). A condição de estrangeiro descrita por Simmel ajuda-nos a situar as
ambivalências inscritas na categoria de laowai, que tornarei explícitas a partir desta reflexão.
Perceber o que resultou da condição de estrangeira com que lidei com os meus interlocutores,
tanto na fase inicial de campo como em situações de maior proximidade, é aqui tomado como
desafio propriamente etnográfico. A relevância do argumento aqui apresentado
51
é dupla e alicerça-se em lacunas na literatura. Por um lado, a literatura etnográfica sobre a China
é parca em reflexões sobre a interferência do estatuto de estrangeiro na investigação, e menos
ainda sobre o que podemos aprender e resgatar como conhecimento etnográfico a partir do
confronto com essa classificação. A temática do etnógrafo estrangeiro na China tem sido
abordada, pontualmente, a propósito dos entraves políticos e formais à obtenção de autorização
para a realização da investigação, e das reorientações temáticas que daí advieram (Wolf 1985;
Yang 1994; Pieke 2000). Por outro lado, a condição de estrangeiro em contextos chineses tem
sido abordada através da problemática dos chineses enquanto estrangeiros – sojourner – a viver
em sociedades como os EUA e o Reino Unido (Chan 2005; Siu 1952).
7Argumento neste artigo que a ideia de estrangeiro difundida na China tem fortes continuidades
e nuances históricas, já que ela não reflete apenas o modo como são percecionados os
“ocidentais” na China, mas também o sentido de modernidade na China e a própria ideia de ser
chinês na atualidade.2 O argumento constrói-se a partir da reflexão sobre várias situações de
interação social, como a que descrevi no início do artigo, e que fui experienciando ao longo dos
anos da minha interlocução de campo e dos diversos modos de me posicionarem como
estrangeira (laowai). É a partir dessa diversidade de interlocuções e interpelações que exploro
aqui etnograficamente os sentidos da categoria de laowai (estrangeiro), e procuro
responder a perguntas que têm formatado o debate sobre a questão, tais como: Como é que se
pode compreender que o estrangeiro seja uma categoria tão definitiva e tão ameaçadora na
China? Como é que se entende este paradoxo do fascínio e da aversão dos chineses por pessoas
que eles próprios classificam como laowai?
O que é um laowai?
8A minha primeira experiência de terreno aconteceu com uma família luso-chinesa de Macau.
Estávamos em 1999. A família fora-me apresentada por uma amiga comum, que lhes explicou
que eu era uma estudante, e que queria fazer a história da família como trabalho final de curso
(era na realidade a investigação para a tese de licenciatura). Esta ideia de escrever sobre a
história de uma família surgiu quando li Cisnes Selvagens, de Jung Chang (1998). A minha
intenção era fazer a história de uma família luso-chinesa de Macau, através de três mulheres de
gerações diferentes (avó, filha e neta). A história desta família era muito cativante,
principalmente a da avó, uma senhora de 80 anos nascida na cidade portuária de Nagasaki, no
Japão, mas educada em Pequim, donde fugira aquando da invasão japonesa de 1937. Apesar da
riqueza do material e da afabilidade da família, ao longo dos meses que com ela interagi nunca
deixei de me sentir algo desconfortável, o que terá resultado das dúvidas e ansiedades próprias
do primeiro trabalho de terreno.
9A minha ideia inicial para essa primeira investigação foi a de realizar um trabalho sobre
migrantes chineses. Rapidamente compreendi, contudo, que, apesar de já frequentar um curso
de língua e cultura chinesas, e de ter estabelecido contactos esporádicos com alguns chineses,
as dificuldades de comunicação eram excessivas para que conseguisse levar a bom termo um
trabalho de investigação. Assim, optei por adiar esse projeto e, um ano mais tarde, fui estudar
língua chinesa para Pequim. Esse foi o meu primeiro contacto com a China. Nessa época, as
informações de que dispunha sobre a China atual eram escassas. Eu lera algumas etnografias
sobre contextos chineses fora da China continental e outras tantas obras de
52
história geral da China, mas, poucos dias depois de chegar, constatei que a ideia que eu
construíra sobre a China pós-maoista era confusa, muito contraditória e pouca relação tinha
com aquilo que eu observava. Os primeiros tempos foram dominados por uma admiração e
estranheza perante tudo o que testemunhava.
10As minhas experiências de viagem até então tinham sido limitadas à Europa e, pela primeira
vez, deparou-se-me o facto de ser fisicamente diferente da maioria das pessoas que habitavam
o espaço social que me rodeava, e vista como “estrangeira”, “ocidental”, “europeia”. Esta
perceção da diferença começou por chegar de modo muito evidente pelas reações
comportamentais das pessoas à minha presença em locais de comércio e nos transportes
públicos. Estas reações alternavam entre a curiosidade e o tratamento diferenciado pela
negativa.
12Com o passar das semanas, e à medida que fazia progressos na língua local, comecei a
aperceber-me de que os olhares que me eram lançados na via pública eram frequentemente
acompanhados por um dedo indicador e um par de gritos exclamando “Laowai! Laowai!” Outras
vezes, as pessoas timidamente aventuravam-se a perguntar-me se eu era meiguoren
(americana). Laowaisignifica literalmente “velho (lao) de fora (wai)” e é utilizado pelos chineses
para se referirem aos ocidentais, caucasianos. Trata-se de uma expressão controversa porque,
por um lado, o carácter lao pode ser interpretado positivamente, como uma forma de
tratamento familiar, se pensarmos noutras expressões em que é utilizado, como em laopengyou
– velho amigo, oulaodifang – o lugar onde nos costumamos encontrar. Por outro lado,
laowaitende a ser usado nas situações em que se presume que a pessoa que está a ser alvo da
referência não o vai compreender – não é suposto que um laowaidomine a língua chinesa – e é
frequentemente acompanhado por risos e proferido num tom irónico. Se a expressão laowai é
usada para tratar os caucasianos ou indivíduos de aparência euro-americana, já os meus amigos
de origem africana eram referidos como heiren – pessoa preta. Deste modo, laowaioscila entre
uma expressão familiar e preconceituosa – mesmo racista em certas situações.4
13Durante uma visita a uma exposição dos melhores trabalhos de pintura do ano de 1999 numa
galeria de arte de Pequim, eu e uma amiga chinesa parámos diante de um dos quadros. A tela,
com cerca de dois metros por um, representava de forma mais ou menos realista o
bombardeamento das forças americanas à Embaixada Chinesa em Belgrado em Maio desse ano.
O episódio tinha ocorrido há poucos meses e fizera crescer entre a população um surto de furor
nacionalista, antiamericano e antiocidental. A minha amiga, uma dócil estudante de inglês de
17 anos, oriunda da província de Hebei, inesperadamente exclamou em inglês, num
53
tom contundente: “I hate foreigners!” A rapariga ficou visivelmente embaraçada quando lhe
perguntei se me odiava também, uma vez que eu era uma foreigner, uma waiguoren,
umalaowai. Ela olhou para mim e atalhou que apenas se referia aos americanos. Claramente ela
não estava a falar de mim, eu era alguém que estava ali próximo, e ela referia-se a um inimigo
distante, diferente, e com o qual quase nada existe em comum. Naquele momento duas versões
de estrangeiro surgiram amalgamadas – distante e próximo – e geraram uma ambivalência sobre
o sentido das suas palavras. Ela encontrou uma saída na minha identidade não americana, mas
como seria se eu fosse americana?
15No célebre ensaio “The stranger”, Simmel (1979 [1908]) descreve um tipo de estrangeiro
especial, um “estrangeiro próximo” que encerra em si, simultaneamente, as qualidades opostas
de distância e de proximidade, que lhe asseguram uma forma específica de interação social. O
“estrangeiro próximo” de Simmel é elaborado a partir da condição do comerciante judeu na
Europa no século XIX, enquanto a condição de estrangeiro que aqui descrevo apresenta
configurações ligadas ao contexto chinês em particular, e que se consubstanciam na categoria
de laowai.
16Assim, ser laowai é uma forma particular de ser estrangeiro, constituída a partir de processos
históricos, políticos, sociais e culturais específicos. Tal como os gregos, mencionados por Simmel
(1979 [1908]), também os chineses consideravam bárbaros os povos que habitavam a periferia
do Império na antiguidade (Gernet 1974-1975; Fairbank 1992; Dikötter 1992; Fay 1997). Ao
longo dos séculos, a Grande Muralha funcionou como barreira que estabelecia os limites
culturais (e por vezes também políticos) entre a China interior (nei), a sul, e a China exterior
(wai), a norte (Gentelle 1994).6 Este forte sentido de diferença cultural / civilizacional dos
agricultores han em relação aos criadores de gado das estepes permaneceu, mesmo com a
entrada destes povos nos limites do império e a conquista do poder dinástico em importantes
períodos históricos (Dinastia Yuan ou Mongol, 1279-1368, e Dinastia Qing ou Manchu, 1644-
1911), permanecendo para a história como dinastias estrangeiras (não han).
17Ainda que as ligações às regiões ocidentais do continente eurasiático, primeiro pela Rota da
Seda e posteriormente pelas rotas marítimas, tivessem feito chegar estrangeiros ocidentais,
nomeadamente jesuítas, à corte imperial chinesa, pelo menos desde o século XVI, a gestão das
relações com os estrangeiros seguiu enquadrada no modelo de relações com os povos
“bárbaros” das estepes. O Império chinês entendia-se a si próprio como tian xia diyi – o primeiro
país debaixo do Céu –, e o Imperador, detentor do título de Filho do Céu, seria o seu
representante máximo na Terra. Todos os outros povos e reinos eram entendidos como
inferiores e seus tributários (Gernet 1974-1975).
54
18A partir do século XIX, a pressão das potências ocidentais provocou transformações profundas
na conceção da China sobre si própria e na sua perceção dos estrangeiros. O sentido mais forte
do termo laowai deve ser procurado, principalmente, na relação dos chineses com a
modernidade ocidental e suas facetas de ambivalência, de fascínio e de aversão. De facto, se,
por um lado, a superioridade tecnológica e militar ocidental humilhou e vergou a China, por
outro lado, o pensamento iluminista e as sociedades ocidentais constituíam a principal fonte de
inspiração dos intelectuais chineses na busca de respostas para a transformação da China numa
nação moderna. No espectro das influências iluministas, o darwinismo social foi uma das teorias
mais influentes entre as elites intelectuais chinesas desse período (Schwarcz 1986; Dikötter
1992; Mitter 2004).
20O encerramento da China ao exterior durante o maoísmo perpetuou uma imagem dos
estrangeiros como uma ameaça ao país, no âmbito da luta de classes e de colonizadores e
colonizados. Depois de 1978, o país foi aberto aos estrangeiros, mas de um modo muito
controlado. Até meados da década de 1990, muitas municipalidades e algumas províncias
estavam vedadas a visitas de estrangeiros. A Política de Abertura em 1978, apesar de procurar
tirar partido do interesse económico e financeiro dos estrangeiros pela China, inicialmente
baseou o seu modo de relacionamento nas anteriores práticas discriminatórias.
21Em suma, podemos dizer que a humilhação da China perante os poderes ocidentais no século
XIX constitui uma importante componente da aversão dos chineses em relação aos ocidentais,
mas, paradoxalmente, o sentimento de inferioridade infligido foi também catalisador de
fascínio. Como copiosamente demonstra Frank Dikötter em Exotic Commodities (2006), a
superioridade tecnológica ocidental corporificada na cultura material deslumbrou a China. A
apropriação de produtos estrangeiros começou por ocorrer nas classes altas, como símbolo de
prestígio, e perpassou às classes populares através das imitações de manufatura chinesa,
operando uma revolução na vida quotidiana (Dikötter 2006). Esta perceção dos produtos
“estrangeiros”, “ocidentais”, como “superiores” e dos produtos chineses como “inferiores”
impregnou-se e manteve-se muito para além do período da República da China. Na China pós-
Mao, a ideia de superioridade da cultura material ocidental continua a manifestar-se numa
cultura de consumo transversal à sociedade chinesa (Chao e Myers 1998; Latham 2006). Este
fascínio por produtos ocidentais é marcado pelo consumo de produtos de luxo, mas também
por um encantamento pelas indústrias culturais ocidentais, da moda ao cinema. Em conjunto,
estes produtos comunicam ideias de prestígio, modernidade e superioridade.
55
Auto-orientalização e ocidentalismo
22Xiaomei Chen (1995) analisa a relação da China com o Ocidente como um processo de auto-
orientalização que terá conduzido a um ocidentalismo. O discurso do ocidentalismo, com origem
no início do século XX (Dikötter 1992), é ainda hoje evocado por vários grupos na sociedade
chinesa, com duas finalidades diferentes: por um lado, tem sido uma forma de o governo chinês
suportar o nacionalismo que tem como efeito a contenção interna; por outro lado, é também a
forma como a imaginação chinesa constrói um outro ocidental para disciplinar e dominar o self
chinês em casa. Este ocidentalismo popularizado pela propaganda nacionalista do governo é
dominante e continua a fazer parte de uma forma defensiva de estar da China. O ocidentalismo
de que fala Chen Xiaomei é reflexo de uma ideia do “ocidental” como estrangeiro distante, mas
aqui oscilando entre a ameaça e o ideal a alcançar.
24A minha primeira experiência desta visão mais ampla da China e dos sentidos mais vastos da
expressão laowai aconteceu no fim da década de 1990, quando residi durante dois anos num
campus universitário chinês em Pequim. No interior da universidade, estudantes chineses e
estudantes estrangeiros viviam em edifícios separados, situados em extremos opostos do
campus, a uma distância que poderia ser de quase um quilómetro. O mesmo sucedia com as
residências de professores estrangeiros e professores chineses. Os professores chineses viviam
com as suas famílias num bairro modesto contíguo ao campus, enquanto os poucos professores
estrangeiros (leitores) eram colocados num edifício de pequenos apartamentos localizado na
área dos dormitórios dos estudantes estrangeiros e dos edifícios onde eram lecionados os cursos
de língua chinesa para estrangeiros.
25Os edifícios das aulas para estudantes chineses e estrangeiros eram diferentes e igualmente
localizados em áreas opostas do campus. Apenas a biblioteca se constituía como área comum,
sem divisões predeterminadas. Havia ainda cantinas para chineses e uma cantina para laowai.
Esta última era mais cara e tinha alguns pratos classificados como “estrangeiros”. O acesso às
cantinas, bares, cafés, casas de chá e campos de jogos do campus era livre, mas os preços dos
produtos e os serviços oferecidos determinavam uma segregação entre estudantes chineses e
estudantes estrangeiros.
26Quando eu queria que algum dos meus amigos chineses me fosse visitar ao dormitório, ele/
ela tinha de se identificar na shifu (a porteira). Se não o fizesse, era interpelado para o fazer, e
tinha um horário específico para fazer a visita. Ashifu tomava nota da sua identificação e do
horário de entrada e de saída. Tal não acontecia com os estrangeiros, que circulavam livremente
nos dormitórios dos estudantes estrangeiros. O mesmo se repetia quando eu ia visitar os meus
amigos chineses nos seus dormitórios, na mesma universidade ou noutra.
56
27Neste campus os custos com a educação também eram diferenciados: um estrangeiro pagava
de propinas anuais dez vezes mais do que um estudante chinês. Era também inferior o valor
cobrado pelo alojamento aos estudantes chineses em relação ao alojamento mais barato
disponível para estrangeiros. Os dormitórios para estrangeiros eram aquecidos no Inverno (os
mais caros tinham inclusivamente ar condicionado), acomodavam no máximo duas pessoas (a
maioria era individual), tinham casa de banho e cozinha coletivas (os mais caros tinham casa de
banho individual), água quente corrente, máquina de lavar roupa e uma televisão com acesso a
canais estrangeiros.
28Os dormitórios para chineses acomodavam cerca de oito estudantes em vários beliches, num
espaço pouco maior do que os quartos dos estrangeiros. Também tinham aquecimento, mas
este era menos funcional. As roupas eram lavadas num tanque, e eram os próprios estudantes
que tinham de carregar a água quente para a sua higiene pessoal a partir de um local no campus,
mas fora do dormitório.
30O campus murado, com guardas e cancelas de alta segurança nos vários portões, funcionava
como uma pequena aldeia. Da janela do meu quarto, um primeiro andar do dormitório feminino
para estudantes estrangeiros, facilmente se ouviam, às primeiras horas da madrugada, os
treinos militares dos guardas da universidade e, diariamente, ao final da tarde, os altifalantes
espalhados por todo o campus ecoando as posições governamentais sobre acontecimentos da
atualidade.
31Fora do campus, na cidade de Pequim, havia bairros específicos onde os estrangeiros eram
obrigados a residir; não eram autorizados a fazê-lo fora desses bairros, a não ser em
campus universitários, em residências ou hotéis específicos. Estes bairros concentravam-se na
zona sudeste da cidade e neles não viviam chineses, que apenas ali trabalhavam como
empregados de limpeza, cozinheiros, motoristas e amas para a população estrangeira residente.
Os bairros, conhecidos por compounds, tinham vedações, cancelas e guardas à entrada, como
um condomínio privado. Se algum chinês quisesse entrar tinha de se identificar, dizer quem ia
visitar, o motivo da visita, e qual a sua ligação com essa pessoa. Com a liberalização do mercado
imobiliário em Pequim no início da década de 2000, esta segregação residencial esbateu-se. Nos
antigoscompounds e nos novos bairros residenciais da cidade coexistem chineses e estrangeiros.
A capacidade económica é agora “peneira” para a disposição residencial.
32Os locais de diversão na cidade estavam também muito segmentados; segundo os meus
amigos chineses, havia “locais para estrangeiros” e “locais para chineses”. Nestes locais, não
havia proibições ou necessidade de identificação por força de lei, mas nalguns locais de diversão
noturna frequentados por chineses só entravam estrangeiros quando acompanhados por outros
chineses.
57
33A diferenciação entre chineses e estrangeiros ocorria, e ainda hoje continua a ocorrer, nas
relações comerciais em geral. Qualquer aquisição feita com base num preço que não esteja
afixado tem de ser regateada. Se o cliente for estrangeiro, o preço inicial será imediatamente
inflacionado, muitas vezes para o dobro ou triplo, dificilmente baixando de um determinado
valor. Os produtos em causa podem ir de algumas peças de fruta num mercado de rua a um
bilhete de autocarro nalgumas regiões do país.
34Quando questiono os meus interlocutores chineses sobre este facto, respondem-me quase
sempre da mesma forma: “Na China pensa-se sempre que os estrangeiros são ricos e que os
chineses são pobres, por isso pede-se sempre mais dinheiro a quem é estrangeiro”.
35Ainda hoje, mais de três décadas depois do início da Política de Abertura, e estando a China a
tornar-se a maior potência económica mundial, permanece a ideia de que o “estrangeiro” (neste
sentido identificado como o ocidental/ moderno) é necessariamente mais rico. Esta riqueza do
estrangeiro expressa muito mais do que ter dinheiro, significa ter poder por se encontrar numa
situação historicamente percepcionada como privilegiada. Esta noção de riqueza, ligada ao
poder e não apenas ao dinheiro, é transversal à sociedade chinesa. Ellen Hertz (1998), na sua
etnografia sobre a Bolsa de Valores de Xangai, confrontou-se com o facto de os seus
interlocutores, alguns deles homens de negócios chineses, se considerarem mais pobres do que
ela, uma estudante de doutoramento vinda dos Estados Unidos.
36Assim, tal como acima descrevo, o estrangeiro no sentido de laowai acaba por ter ainda mais
dimensões sociológicas do que as descritas por Simmel. A complexidade da relação da China
com o “ocidente” e a modernidade parece, pois, estar bastante presente nesta categoria.
58
38Em Pequim, estes migrantes internos eram classificados como waidiren(forasteiros), por
oposição aos beijingren (pequineses). Mas o termo não significava inocuamente forasteiro,
antes era usado num sentido extraordinariamente pejorativo, pressupondo tratar-se de pessoas
em situação ilegal e potencialmente criminosas. Estes migrantes internos, que o governo
designa por liurenkou (população flutuante), são tolerados por serem economicamente
necessários às grandes cidades chinesas como Pequim. Politicamente, eles são descritos como
ameaças latentes à paz, tranquilidade e segurança dos locais. Por toda a cidade era possível
observar um elevado número de trabalhadores humildes a fazer trabalhos, sobretudo físicos e
mal pagos, rejeitados pelos pequineses, principalmente na construção civil, que teve uma
enorme explosão nesse período. Esta população flutuante ocupava as áreas mais degradadas
da cidade, não tinha acesso a proteção social por terem um hukou (registo de residência) rural
e residirem ilegalmente na cidade.
39Na realidade, em 1999, os waidiren em Pequim não eram um fenómeno tão recente quanto
Yi parecia julgar. Já em 1995, o governo central e o município de Pequim haviam levado a cabo
uma campanha política contra a presença descontrolada de migrantes internos, nomeadamente
contra a Zhejiangcun(aldeia de Zhejiang), um dos maiores enclaves da capital, cujo poder e
autonomia crescentes eram vistos como uma potencial ameaça ao Estado socialista (Zhang
2000:173).
40As relações do Estado chinês com a população flutuante tem sido dúbia ao longo das duas
últimas décadas, alternando entre campanhas de “limpeza” com a sua expulsão das cidades em
determinados períodos, alegando razões de segurança, e uma maior flexibilização das regras do
hukou, permitindo às pessoas encontrarem trabalho fora das suas áreas de residência dentro do
limite da lei.7
41Waidiren e laowai têm em comum o facto de não pertencerem ao grupo interior e para ele
poderem constituir uma ameaça. Todavia, também podem ser benéficos. Os waidiren são
economicamente necessários, mas ao mesmo tempo são criminosos em potência. Os
laowai são benéficos pelo investimento e conhecimento sobre a economia e capitalismo global
que trouxeram e trazem à China, mas são percecionados como uma ameaça latente de
destabilização da integridade e unidade da nação. No passado foram as Guerras do Ópio, a
invasão de Pequim e a imposição de uma situação semicolonial à China, mais recentemente
apoiam causas como a soberania do Tibete, de Xinjiang ou de Taiwan e agitam a bandeira dos
direitos humanos. Na ótica de muitos chineses, estas atitudes revelam que os laowai não têm
capacidade, nem abertura, para compreender a China e os chineses, que não existe uma
gongtongdeyuyan – uma linguagem comum. É esta perceção da inexistência de uma linguagem
comum que torna os estrangeiros, nomeadamente os “ocidentais”, distantes. Este é o mesmo
motivo pelo qual a vendedora de bilhetes na estação de Pequim se recusou a negociar comigo
– a perceção e o preconceito de que “chineses” e “ocidentais”, em muitos domínios, possuem
visões do mundo incompatíveis.
42Voltei a Lisboa, vinda de Pequim, em meados do ano de 2001. Foi então que me dediquei a
uma segunda investigação com chineses, desta vez sobre mulheres chinesas migrantes em
59
Lisboa (Rodrigues 2009). Nesta segunda experiência de terreno, iria trabalhar com migrantes
chineses recém-chegados da República Popular da China, com muitos indivíduos em situação de
permanência irregular no país. A experiência em Pequim tornou-me consciente do modo como
os chineses me viam como uma estrangeira e de que esta barreira era inultrapassável, dada a
minha aparência não chinesa. Eu sabia agora que nunca conseguiria passar despercebida no
grupo e que teria necessariamente de lidar com a condição de estrangeira no terreno, mesmo
tendo um domínio razoável da língua. Falar mandarim (embora como uma estrangeira) e ter
vivido na China eram aspetos favoráveis, mas, como “estrangeira”, eu tinha de estar preparada
para lidar, e se possível desmistificar, os estereótipos subjacentes à categoria de laowai entre
os chineses. Ser laowai implicava não apenas que eu poderia ser uma potencial ameaça, mas
também ser considerada muito diferente no meu modo de vida, moralidade e visão do mundo.
43Numa fase inicial pensei ultrapassar as dificuldades mostrando, ingenuamente, que poderiam
confiar em mim por ser uma investigadora séria e profissional. A minha primeira entrevistada,
que conheci através de uma colega no meio universitário, era uma mulher licenciada que fazia
um MBA numa faculdade de economia em Lisboa. Nessa altura eu estava em início de carreira,
era monitora na universidade, e fui-lhe apresentada como uma antropóloga, docente na
universidade, interessada em fazer um trabalho de investigação sobre mulheres e migração
chinesa. Quando lhe falei do meu trabalho, ela acedeu a participar, e passei várias tardes em sua
casa a conversar.
44Ela interessou-se pelo meu trabalho e apresentou-me a dona de um restaurante chinês onde
costumava ir, perto de sua casa. Perante a amiga, a dona do restaurante concordou receber-me
e falar comigo dali a algumas semanas. Porém, quando voltei a contactá-la, fui interpelada pelo
marido, que me perguntou se eu era jornalista, uma vez que queria entrevistar a sua mulher.8
Sem conseguir convencê-lo totalmente das minhas intenções, ele lá acabou por me dizer que,
se a mulher quisesse, poderia falar comigo. Marquei encontro com ela ainda nesse dia à tarde,
quando a cozinha encerrasse no final dos almoços.
45Quando cheguei ao restaurante, uma empregada foi chamá-la, e ela apareceu na sala de
refeições pronta para sair com um casaco vestido e a carteira a tiracolo. Disse-me então que não
podia falar comigo porque estava doente e tinha de ir ao médico. Fiquei surpreendida por nada
me ter dito nessa manhã. Disse-lhe então que voltaria noutro dia e, desejando-lhe as melhoras,
saí do restaurante. Enquanto entrava no meu carro, do outro lado da rua, fiquei estupefacta
quando a vi voltar a entrar na área reservada do restaurante e regressar sem casaco nem carteira
para se juntar aos empregados que comiam numa das mesas. Apesar do compromisso assumido
perante a amiga, ela não queria falar comigo.
46Este episódio foi muito marcante no início do meu trabalho de campo. Se uma imagem de
seriedade profissional funcionava com pessoas com educação superior, que conseguiam confiar
na natureza do meu trabalho de investigação, esta estratégia não funcionava com migrantes
chineses com baixo nível educacional, o que correspondia à maioria dos migrantes chineses em
Lisboa.9Durante semanas refugiei-me na literatura à procura de uma estratégia milagrosa para
os convencer, pelo menos, a falar comigo. Ainda sem uma resposta para o problema, apercebi-
me da abertura revelada pelos donos do restaurante chinês perto da
60
universidade, um casal oriundo de Zhejiang, vindo de Espanha há alguns anos, e que eu já
conhecia antes de ir para Pequim. Por falar mandarim, frequentemente eles solicitavam-me que
lhes ensinasse português ou que os ajudasse a resolver um ou outro problema relacionado com
o seu fraco domínio da língua portuguesa. Ao contrário da experiência com o outro casal, estes
não me afastavam e até pareciam ter interesse em relacionar-se comigo. O facto de a relação
ter começado com uma casual relação comercial, e já durar há alguns anos, gerou uma base de
confiança da parte deles, permitindo a minha aproximação.
48Na prática, poucas ligações ou até interações consegui manter com eles fora do contexto da
aula. Contudo, no Natal enchiam-me a mesa com as lembranças mais diversas, acompanhadas
por um tímido e fugidio “Feliz Natal!” De entre todas aquelas pessoas, consegui estabelecer
relação com três famílias. Desde o início que me foi sempre mais fácil estabelecer relações com
pessoas com um nível de escolaridade mais elevado, mesmo que trabalhassem em Lisboa como
empregados de mesa ou ao balcão de lojas, e com mulheres. Foi através dos meus antigos alunos
chineses dessas aulas de português que comecei a frequentar restaurantes, lojas e casas de
migrantes chineses na cidade de Lisboa. Quando lhes aparecia em casa ou no trabalho, num
encontro previamente combinado, quase sempre me confrontava com pedidos de ajuda na
resolução de problemas. Os pedidos mais comuns eram explicar o conteúdo do correio, como
funcionam os seguros, como funciona o Sistema Nacional de Saúde, falar com os professores na
escola dos filhos, esclarecer sobre documentação pedida pelo Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras (SEF), entre outros. Muitas vezes, pediam-me também que fosse lá ensinar-lhes um
pouco de português. Este foi o modo como lentamente entrei nas suas vidas.
49Logo a partir dessa altura passei a ser vista como professora e não tanto como antropóloga
ou investigadora (a maioria não compreendia o significado destes termos), não apenas por
lecionar na universidade, mas principalmente por ter ensinado português a chineses. A
classificação de professora foi-me muito útil na realização do trabalho de campo para mestrado
e doutoramento. Não é fácil explicar qual o trabalho de um antropólogo, ou que tipo de
investigação é que realiza, nomeadamente a chineses com baixo nível de instrução,
principalmente quando já existe uma forte resistência devido à minha identidade de estrangeira.
Aprendi a não usar a palavra entrevista, mas a designar estes eventos por
61
conversas – que na realidade eram. Acompanhar chineses pelo Martim Moniz permitiu-me fazer
observação participante e alargar a minha rede de interlocutores, o que foi largamente
compensatório, permitindo-me vivenciar de perto as suas experiências como migrantes. Como
referem Sarró e Lima (2006: 18), a partilha do quotidiano com as populações que se estuda é
um dos eixos definidores do trabalho de campo, tanto em terrenos metropolitanos como na
etnografia clássica. Assim, ao adaptar a minha forma de estar no terreno à forma de estar na
vida dos meus interlocutores, eu acabei por partilhar com eles o seu quotidiano, ter a
oportunidade de fazer observação participante e, com o tempo, de conversar com eles também
sobre assuntos que me interessavam. Em última instância, ao deixar que fossem os meus
interlocutores a encontrar o meu lugar nas suas vidas, consegui encontrar os pontos de contacto
de que falam Viegas e Mapril na introdução a este dossiê. Porém, a minha atitude por vezes mais
contemplativa de apenas “estar por lá” não deixou de causar uma certa estranheza aos meus
interlocutores, que me perguntavam: “Hoje tens tempo? Não tens de trabalhar?”Normalmente
respondia: “Quando converso contigo / com vocês eu estou a aprender coisas para o meu
trabalho, e por isso estou a trabalhar”. Geralmente reagiam a esta resposta com um sorriso.
50Um dia em 2003, quando visitava uma aluna na sua loja no Martim Moniz, ela apresentou-
me uma das suas duas filhas, recém-chegada da China. Três semanas mais tarde chegou o neto
de 10 anos, filho da filha, e ela perguntou-me se não me importava de dar aulas de português
ao neto duas vezes por semana, ali mesmo na loja. O filho desta mulher também estava em
Lisboa e, passado alguns anos, regressou à China para casar com uma rapariga da terra natal dos
pais. Depois do casamento, ela juntou-se ao marido em Lisboa. Cerca de um ano depois nasceu
o primeiro filho do casal e eu fui convidada a ser madrinha. Alguns meses mais tarde, os pais da
mulher vieram a Lisboa conhecer o neto. Quando me desloquei à China em 2010, visitei-os na
sua terra natal.
51Ao longo do trabalho de campo, nas minhas visitas e deambulações por lojas, armazéns
chineses e restaurantes chineses do Martim Moniz, testemunhei várias versões do diálogo que
me humanizava como “estrangeira distante” aos olhos dos chineses.
— Ah. [OK]”
52A esta descrição normalmente seguia-se um sorriso e uma curta conversa para confirmar se
eu falava mesmo mandarim. Nalgumas situações eu quase passei por chinesa. Numa véspera de
ano novo chinês, eu estava no estabelecimento de uma família no Martim Moniz, onde os donos
resolveram organizar uma pequena festa. Durante a tarde assistiu-se à gala anual de Ano Novo
transmitida pela CCTV, fizeram-se jiaozi (pequenos pastéis de massa recheada com carne e/ ou
vegetais), comeram-se amendoins, tangerinas e doces. Clientes, amigos e
62
conhecidos acorreram ao estabelecimento para espreitar o programa (transmitido via
parabólica) por alguns minutos, ou para deixar as crianças a assistir. A anfitriã divertiu-se
bastante com as conversas dessa tarde em reação à minha presença:
— Ah?! [o quê?!]…”
53Em momentos de celebração como este, contagiados por uma intensa alegria e boa
disposição, os meus amigos chineses entusiasmados exclamavam: “Ta yiban shi zhongguoren!”
– Ela é metade chinesa! Em situação oposta a esse momento em que fui considerada (quase)
meia-chinesa, a minha presença em momentos de tensão social e familiar gerou situações
desconfortáveis e remeteu-me para a minha condição de ignorância, por ser laowai. Quando
perguntava o porquê da atitude de uma determinada pessoa perante uma situação difícil, ou
até quando me atrevia a aventar uma solução mais “à portuguesa”, a resposta que
invariavelmente eu ouvia era: “Tu não és chinesa. Não percebes”. Nestas ocasiões eu voltava a
ser a estrangeira distante e sem capacidade de compreensão da sua visão do mundo. Os
benefícios da minha presença iam além da resolução de problemas práticos do quotidiano e do
ensino de português. Nalgumas situações, aparecer com uma amiga “estrangeira” era
capitalizado pelos chineses que eu acompanhava, perante outros chineses, como uma forma de
promover a sua mobilidade social ascendente. Desta forma expressavam o seu sucesso em
Portugal.11
54Ao longo dos anos, a minha presença desafiou os meus interlocutores a encontrarem para
mim um lugar no seu mundo. Se em Lisboa eu sou professora, antiga estudante estrangeira em
Pequim, quando fui visitar Wenzhou, a terra natal de muitos dos meus interlocutores em Lisboa,
um casal (Zhou e Li) que conheci em Lisboa há vários anos resolveu adotar-me e apresentar-me
perante os seus vizinhos e amigos na aldeia como a sua quarta filha. Quando Zhou e Li diziam
aos vizinhos que eu era a sua quarta filha, eles olhavam muito atentamente para mim e
exclamavam: “Não pode ser! Ela éwaiguoren!” Mesmo no interior da família, onde fui
estimulada a chamar aos meus pais adotivos A-Ma (mamã) e A-Ba (papá), ou jiejie (irmã mais
velha) egege (irmão mais velho) aos meus irmãos de adoção, mantinha a condição de
estrangeira perante a geração mais nova.
55Quando eu tentava falar com os meus sobrinhos adotivos, crianças e adolescentes entre os
12 e os 17 anos, não havia da sua parte nenhuma reação corporal – não me olhavam sequer.
Apenas murmuravam qualquer resposta muito rápida e escapatória quando coagidos por algum
adulto para o fazerem: “Responde à Ayi! A Ayi está a falar contigo! Estás a ouvir?!” Apesar do
termoAyi ser de aparente proximidade, já que significa tia – um termo educado usado para
chamar as mulheres da geração da mãe –, eles viam-me como uma estranha, uma estrangeira.
Por isso não me falavam nem me olhavam diretamente. Mas havia uma exceção: a atitude de
uma das crianças, nascida e educada em Portugal, que estava apenas temporariamente na China
a passar férias em casa dos avós. Com esta criança eu interagia frequentemente e ela falava
comigo e olhava-me de frente. Uma noite os adultos tomaram
63
este contraste de atitudes das crianças para exporem verbalmente o que pensavam sobre a
minha posição ali e mais ainda sobre o que justificava essa diferença entre as crianças. Uma das
irmãs dizia que a reação dos filhos e sobrinhos chineses, por oposição ao sobrinho português, é
um reflexo do facto de as crianças chinesas serem ensinadas desde tenra idade a não
interagirem com estranhos de modo nenhum. Apesar de os pais e avós assegurarem às crianças
que eu era da família e que deveriam tratar-me como a xiaoyi – a tia mais nova –, elas nunca
conseguiram ultrapassar essa barreira. A sua relutância em se relacionarem comigo estaria
relacionada com o facto de eu não pertencer à sua rede de relações até ali, mas em parte
também devia-se à minha ausência de ancestralidade chinesa.
56Na China, a prole é considerada um bem valioso para a família, pois assegura a sua
continuidade, tanto nas gerações vindouras, como pelo sustento das gerações mais velhas em
vida e depois da morte. Por esse motivo, as crianças sempre foram protegidas das ameaças dos
estranhos. Na atualidade, as crianças chinesas vivem condicionadas por uma vivência muito
limitada no interior da família e da escola. À medida que vão crescendo, vão formando vários
círculos de segurança – a família, o grupo de pessoas da sua terra de origem, o grupo de pessoas
da mesma origem nacional, expressando receio em interagir com pessoas exteriores. Assim,
quando se encontram num país estrangeiro, como Portugal, os chineses tendem a reatualizar
esta forma de entender o mundo baseada na diferenciação entre pessoas de dentro (família,
terra de origem, nacionalidade) e pessoas de fora (estranhos, forasteiros, estrangeiros), e a
preferirem interagir com quem consideram que os compreende. Durante o trabalho de campo,
vários migrantes chineses me falaram sobre os seus sentimentos de solidão e de isolamento em
Lisboa, mesmo em relação a outros chineses, confessando-me a sua dificuldade em fazerem
amigos chineses (para não mencionar portugueses) em quem pudessem verdadeiramente
confiar, como se confia na família e nos amigos de longa data.
Conclusão
57A minha situação de estrangeira entre chineses foi uma condicionante fundamental do
percurso etnográfico. Descrevi aqui o caminho que percorri, não tanto pelos seus meandros
reflexivistas sobre a experiência de campo como experiência pessoal, mas como parte do
processo de conhecimento etnográfico: neste caso, sobre ser laowai. Se a descoberta do terreno
foi para mim um percurso em direção à familiaridade com o espaço, que de longínquo passou a
próximo (Sarró 2008: 151), para os meus interlocutores foi um processo de humanização da
minha pessoa estrangeira, dotando-me, aos seus olhos, de alguma capacidade de compreensão
da sua forma de estar no mundo. Este processo só foi possível porque categorias de classificação
distantes e vastas como ocidental, americano, ou chinês foram deixadas para segundo plano, a
partir do momento em que foram encetadas relações sociais mais próximas, abrindo a
possibilidade de compreensão mútua.
58Os sentidos implicados nesta categoria poderiam ser então e por último pensados a partir do
que Simmel nos diz sobre a condição de estrangeiro em “The stranger” (1979 [1908]),
nomeadamente da tensão existente nesta relação, que é simultaneamente de distância e
proximidade. A minha descrição da categoria de laowai neste artigo pretendeu mostrar que a
compreensão mútua e até a proximidade também fazem parte dos significados de se serlaowai.
Para a compreendermos, temos de a situar na própria história de exclusão / inclusão
64
que mostrei estar inscrita na história chinesa e estar presente nos modos de relacionamento e
categorização de pessoas entre os chineses emigrados em Lisboa. Ao mesmo tempo, mostrei
que, mesmo quando essa proximidade parecia íntima e estabelecida, essa mesma condição de
serlaowai podia projetar-me de novo para a minha condição de estrangeira, e novamente ser
vista como uma laowai.
59Ao ser laowai, experimentei os limites que a categoria implica no acesso a determinados
níveis de proximidade e de interação. A abordagem epistemológica da condição de
laowai possibilitou alcançar um sentido mais analítico do modo como se desenvolveram os
processos de interação entre a etnógrafa e os interlocutores no terreno e proceder a uma
reconfiguração das categorias de conhecimento considerando laowai como uma categoria
nativa historicamente situada.
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possibilidade da produção etnográfica”, em Antónia Pedroso de Lima e Ramon Sarró (orgs.),
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66
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B. Entwistle e G. E. Henderson (orgs.), Re-Drawing Boundaries: Work, Households and Gender
in China. Berkeley e Londres, University of California Press, 171-196.
Notas
1 Parte da etnografia usada neste artigo foi financiada pela Fundação para a Ciência e a
Tecnologia (FCT), através de uma bolsa de doutoramento. Quero agradecer à Susana de Matos
Viegas e ao José Mapril os seus comentários e sugestões, que contribuíram de modo indelével
para refinar o argumento e tornar o texto mais escorreito. Ainda numa fase inicial foram muito
importantes os comentários do Ramon Sarró, da Madalena Patriarca e do Max Ramos. Por
último, quero agradecer a leitura, as sugestões e os comentários muito oportunos dos dois
pareceristas anónimos. Os erros que permanecem são obviamente da minha responsabilidade.
2 The Discourse of Race in Modern China (1992), de Frank Dikötter, é um dos poucos trabalhos
que lateralmente toca esta temática, ao realizar uma análise histórica do discurso de raça na
China moderna.
3 Atualmente existe um debate na opinião pública chinesa sobre se o Yuan Ming Yuan (nome
chinês do Antigo Palácio de Verão) deverá ou não ser alvo de recuperação. Por um lado,
recuperar as ruínas seria reerguer um monumento destruído num momento de fraqueza do país
e demonstrar metaforicamente como a China se reergueu. Por outro lado, os opositores à
reconstrução do palácio argumentam que reconstruí-lo seria apagar da memória coletiva a
humilhação e os atos vexatórios perpetrados pelos ocidentais.
5 Esta campanha é semelhante a outras lançadas pelo governo, destinadas a elevar a qualidade
(suzhi) da população chinesa, tais como a campanha para banir as cuspidelas na via pública ou
o uso de pijama na rua.
67
mencionado pelos locais, apesar do modo como naturais de Wenzhou foram tratados em
Pequim por serem waidiren.
8 Os jornalistas são percecionados pelos chineses em Lisboa como personas non gratas, que
fazem perguntas incómodas e que têm uma “agenda” contra as posições chinesas.
9 Na sua investigação sobre famílias da elite financeira de Lisboa, Antónia Pedroso de Lima
(2003) também verificou que a erudição dos seus interlocutores facilitou a compreensão da
tarefa da investigadora, muito embora neste caso tal não impedisse que os interlocutores
tivessem imposto limites aos momentos e formas de interação, colocando um desafio
metodológico à etnografia no sentido mais clássico.
11 Esta situação remete para o modo como a categoria de laowai, historicamente imbuída numa
relação de poder de tipo racial e colonial, se articula com a noção de guanxi (contactos sociais
privilegiados) e também de mianzi (face) (Yang 1994) entre os chineses, e que resultam em
formas de acumulação de prestígio social. Porém, a análise da importância das guanxi e da
mianzi no trabalho de campo está para além do âmbito deste artigo.
68
Bibliografia – Tema 1
Kuper, Adam. 1996. Anthropology and Anthropologists: The Modern British School.
London: Routledge.
Langham, Ian. 1981. The Building of British Social Anthropology: W.H.R. Rivers and his
Cambridge disciples in the development of kindship studies, 1898-1931. Dordrecht: D.
Reidel Publiching Company.
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Sociological Review, 2008, Vol. 73 (August: 589–612)
Stewart, Alex. 1998. The ethnographers`s method. Thousand Oaks:, Sage Publications
69
Stocking, George. 1982. “Afterword: A View from the Center”, Ethnos, 47: 72-86.
70
rrar
Lúcio Sousa
Universidade Aberta
2019/2020
1
2.Percursos: das etnografias clássicas às abordagens
contemporâneas1
Texto 7: Silva, Adelina (s.d.) Ciberantropologia. O estudo das comunidades virtuais 154
1
© Este é trabalho em desenvolvimento pelo que as sugestões serão bem-vindas [[email protected] ]. O
uso deste recurso é limitado ao trabalho individual e colaborativo no âmbito estrito da unidade curricular
41101 Etnografias e não pode ser objeto de divulgação/disponibilização exterior à plataforma moodle.
2
Atendendo à dispersão geográfica dos estudantes e a eventuais limitações de requisição em bibliotecas ou
aquisição de obras de obras de referência, foi preocupação constante na elaboração deste trabalho encontrar
textos de qualidade disponíveis de forma legal na web, assim como colocar excertos de obras salvaguardando
os limites decorrentes dos direitos de autor. No caso dos textos do docente estes foram usados de forma
mais livre, porquanto pessoais.
2
Introdução: sinopse do tema em estudo
Para complementar esta leitura devem ver o filme “fora da varanda”, dedicado a Bronislaw
Malinowslki. A leitura e visionamento permitiram ter uma visão dinâmica do que o autor concebeu
a empresa etnográfica e a influência da sua obra. Permitirá ainda analisar a dupla forma como a
obra pode mostrar e ocultar simultaneamente sentimentos diferentes perante esse mesmo
trabalho e a relação com os sujeitos em estudo, os “nativos”. A saída em 1967 do diário íntimo de
Bronislaw Malinowski3 vem colocar em causa a narrativa antropológica asséptica e isenta de
constrangimentos pessoais. Um bom texto para compreenderem o impacto desta obra é Clifford
Gertz "Do ponto de vista dos nativos": a natureza do entendimento antropológico4
O subtema 2.1 é completado pela proposta de visionamento de mais três filmes sobre autores
de referência clássica: Franz Boas, Margaret Mead e Evans-Pristchard. Nestes filmes poderá ter uma
perceção do trabalho realizado por estes antropólogos e a sua influência no desenvolvimento da
prática etnográfica.
O subtema 2.2 Críticas e novos cenários: o local e a voz em etnografia pretende apresentar a
evolução mais recente das práticas etnográficas, marcadas fortemente pelas críticas pós-
modernistas, analisando para isso o Texto 2: Caldeira, Teresa (1988) A Presença do Autor e a Pós-
modernidade em Antropologia.
No mesmo tema os textos 3 e 4, respetivamente: Silvano, Filomena, 2002, “José e Jacinta nem
sempre vivem nos mesmos lugares: reflexões em torno de uma experiência de etnografia multi-
situada”, e Salgado, Ricardo.(2015) A Performance da Etnografia como Método da Antropologia,
permitem examinar dois aspetos centrais do desenvolvimento da investigação etnográfica: a
dimensão multi-situada da pesquisa (no caso do artigo de Silvano, a dimensão transnacional da
pesquisa mostra a atualidade da etnografia e a voz dos seus interlocutores no terreno), não assente
agora somente num local, e a presença de outras vozes na narrativa etnográfica, a do Outro, e a do
autor em diálogo e a do seu sujeito de estudo, agora parceiro essencial na construção da narrativa.
O capitulo termina com o subtema 2.3 (Re)descobrir objetos e terrenos: arquivos, corpos e
ciberespaço, no qual se analisa de forma exploratória três terrenos de investigação: a
(re)descoberta dos objetos como meios de compreender as sociedades e os homens e mulheres
que os usam (Texto 5: José Reginaldo Gonçalves (2007) Teorias Antropológicas e Objetos Materiais).
Ao mesmo tempo, a questão da transação assimétrica de materialidades múltiplas em contexto
colonial, presentes nos museus e arquivos das ex-metrópoles, assumem-se como uma
3
fonte de estudo, mas igualmente de disputa e de reclamação por parte das pessoas e grupos de
onde esses objetos foram retirados, que exigem o seu repatriamento5.
Por fim, considerando novos espaços e comunidades, passiveis de novas práticas culturais e
sociabilidades, a etnografia virtual do ciberespaço, assume-se cada vez mais como um campo de
estudo fértil, analisado aqui no texto de Adelina Silva: Ciberantropologia. O estudo das comunidades
virtuais.
1. Os princípios éticos6
Há um conceito que faz parte dos objetivos deste capítulo que não se encontra em nenhum dos
textos facultados: o conceito de ética na prática etnográfica. Esta preocupação assume-se na
antropologia como central, quer na académica quer na aplicada.
Quais são então os princípios essenciais da ética antropológica? Apesar de podermos distinguir
na antropologia a existência de princípios éticos que se delimitam à atividade académica e os que
se aplicam na antropologia aplicada, esta distinção não é exclusiva. De facto, pode dizer-se que
ambos se influenciaram tendo a prática antropológica aplicada incentivado uma maior
reflexibilidade no domínio académico. Segundo Ervin (2000,30), há quatro princípios essenciais:
1. Consentimento informado
4. A disseminação do conhecimento
1. Consentimento informado
5
http://www.bbc.com/culture/story/20150421-who-should-own-indigenous-art ou Indigenous Peoples'
Cultural Property Claims: Repatriation and Beyond, por Karolina Kuprecht, de 2014, parcialmente disponível
em Google Books (coloque o título do livro em pesquisa Google).
6
Baseado em Sousa, Lúcio (2007) A prática da antropologia. Lisboa, Universidade Aberta e Sousa, Lúcio
(2014) Antropologia aplicada: desenvolvimento, modelos de trabalho e desafios éticos, In Revista VERITAS,
Díli: Programa de Pós-Graduação e Pesquisa da UNTL. Vol. 2, nº 4.. pp. 81-97
4
2. O modelo “clínico” de informação consentida
Há situações em que determinados estudos se realizam tendo por base um contrato legal
que vincule antropólogo e cliente face à comunidade em estudo, ou o individuo que providencia a
informação. O compromisso assenta em dois tipos de contrato: um explica os objetivos, métodos e
plano, o que é esperado dos participantes bem como os riscos e benefícios que estes poderão
correr. O segundo documento, muitas vezes elaborado como uma ficha, será preenchido pelo
participante que reconhece ter conhecimento dos objetivos, riscos e benefícios da sua participação.
4. Disseminação de conhecimentos
Algumas associações de antropologia criaram guias éticos. dois guias éticos redigidos por
associações representativas de antropólogos com trabalho aplicado.: National Association for the
Practice of Anthropology (NAPA) e Society for Applied Anthropology (SFAA).
NAPA SFAA
Fonte:http://www.practicinganthropology.org/about/?section=ethical_guidelines;
http://www.sfaa.net/sfaaethic.html
6
2.1 O contexto e conceção de um terreno: do colonialismo
ao transnacionalismo
7
8
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29
2.2 Críticas e novos cenários: o local e a voz em etnografia
30
Texto 2
A PRESENÇA DO AUTOR
E A PÓS-MODERNIDADE
EM ANTROPOLOGIA
Já vai longe o tempo em que o antropólogo, depois de passar algum tempo junto a
um grupo estranho, escrevia textos em que retratava culturas como um todo e em que
tranqüilamente afirmava como os Trobriandeses vivem, o que os Nuer pensam, ou no que
os Arapeshi acreditam. O antropólogo contemporâneo tende a rejeitar as descrições
holísticas, se interroga sobre os limites da sua capacidade de conhecer o outro, procura
expor no texto as suas dúvidas, e o caminho que o levou à interpretação, sempre parcial.
As regras implícitas que regem a relação entre autor, objeto e leitor, e que permitem a
produção, a legibilidade e a legitimidade do texto etnográfico, estão mudando. Esta
mudança está associada ao processo de autocrítica por que passa a antropologia hoje, em
que os mais variados aspectos de sua prática vêm sendo questionados e desconstruídos.
Neste texto, pretendo abordar alguns aspectos da mudança nas condições de produção do
trabalho antropológico, e ver a que novas alternativas as críticas estão levando. E vou fazer
isso a partir de uma perspectiva específica: a do papel do autor no texto etnográfico.
133
Presença ambígua
Analisando a função do autor na modernidade, Foucault (1984) mostra que ela não
se dá sempre da mesma maneira em diferentes sociedades e em relação a distintos
discursos. Assim, desde o século XVIII, nas sociedades ocidentais,
os discursos científicos começaram a ser recebidos por eles mesmos, no
anonimato de uma verdade estabelecida ou sempre redemonstrável; era a sua
pertinência a um conjunto sistemático e não a referência ao indivíduo que os
produziu que estabelecia a sua garantia. (...) Da mesma maneira, discursos literários
passaram a ser aceitos apenas quando dotados da função de autor. (1984:109)17
Se tomarmos essa caracterização como a descrição do que ocorreu na definição do
papel do autor nos discursos científicos, fica evidente a posição peculiar ocupada pela
antropologia. Ao contrário do que acontece em outras ciências e mesmo nas outras ciências
sociais, em que o analista e pesquisador procura o mais possível estar ausente da análise e
da exposição dos dados, como meio de garantir uma posição neutra e objetiva
7
(1)Todas as traduções de citações são minhas.
31
legitimadora da cientificidade, o antropólogo nunca esteve ausente de seu texto e da
exposição de seus dados. Ao contrário: produtor ele mesmo de seus dados, instrumento
privilegiado de pesquisa, a presença do antropólogo profissional tanto no trabalho de
campo quanto no texto etnográfico foi essencial para a constituição do conhecimento
antropológico. Baseando a sua produção de conhecimento na experiência pessoal de uma
outra cultura, a antropologia legitimou seus enunciados na fórmula: "eu estive lá, vi e,
portanto, posso falar sobre o outro". Trabalhos como os de Clifford (1983) e Marcus e
Cushman (1982) mostram a importância dessa fórmula na construção da autoridade
etnográfica.
Mas que tipo de presença é essa? Seguramente não é o mesmo tipo de presença do
escritor que cria textos literários de ficção. A ficção antropológica (Geertz 1973:Cap.l) tem
algumas características peculiares: ela pretende, de uma maneira objetiva (científica,
diriam alguns) fazer a ponte entre dois mundos culturais, revelando para um deles uma
outra realidade que só o antropólogo, este sujeito que experimenta e traduz, conhece.
Presença ambígua, portanto, que precisa, ao mesmo tempo, mostrar-se (revelando a
experiência pessoal) e esconder-se (garantindo a objetividade). Esta ambigüidade é a marca
da presença do antropólogo nos textos28.
A crítica contemporânea desenvolvida nos Estados Unidos ao modelo etnográfico
analisa a maneira pela qual os antropólogos têm aparecido em seus textos desde
Malinowski até os anos 80. Ela vai dizer, por um lado, que se trata de uma presença
excessiva. Na verdade, seria a única presença real nos textos, ainda que ocultada. Ela
apagaria as vozes, as interpretações, os enunciados daqueles sobre quem fala. Na melhor
das hipóteses, seria uma presença que subsume tudo à sua própria voz. O outro só existe
pela voz do antropólogo que esteve lá, viu e reconstruiu a cultu-
134
ra nativa enquanto totalidade em seu texto. Mas essa presença excessiva do antropólogo
corresponderia a uma ausência: a do questionamento do antropólogo sobre a sua inserção
no campo, no texto e no contexto em que escreve.
Por isso, a mesma crítica vai acrescentar: presença insuficiente. Na verdade,
presença insuficientemente crítica a respeito de si mesma, a respeito de seu papel na
produção de representações; presença que tende a ignorar que o conhecimento
antropológico produz-se, de um lado, em um processo de comunicação, marcado por
relações de desigualdade e poder, e, de outro, em relação a um campo de forças que define
os tipos de enunciados que podem ser aceitos como verdadeiros.
8
(2) Afirmar que o tipo de presença é o mesmo não é afirmar, contudo, que os estilos pelos quais os
antropólogos a realizaram tenha sido sempre o mesmo. Isto fica extremamente claro na análise que Geertz
(1988), utilizando e criticando a leitura de Foucault sobre a função do autor, faz sobre quatro "fundadores de
discursividade" (a expressão é de Foucault) na antropologia. Para ele, a discursividade que Lévi-trauss, Evans-
Pritchard, Malinowski e Ruth Benedict inauguraram tem muito pouco em comum.
32
A crítica americana contemporânea, ao analisar e criticar o tipo de autoria e de texto
que marcaram a antropologia nos últimos sessenta anos, quebra as condições que
permitiam a produção de mais etnografias dentro do mesmo gênero, e a legibilidade das
antigas, a não ser de modo histórico e crítico. Ao mesmo tempo, propõe uma série de novas
alternativas. Antes de analisá-las, contudo, convém esclarecer o contexto em que a crítica
surgiu e vem se desenvolvendo, e quais serão em detalhe os seus argumentos.
Embora as análises elaboradas nos Estados Unidos sobre a etnografia clássica não
esgotem todo o universo da crítica — e muito de sua inspiração teórica é de origem
européia (Barthes, Foucault, Bakhtin, entre outros) —, vou deter-me aqui na análise
elaborada por antropólogos americanos, ou melhor, por "meta-etnógrafos" (Rabinow
1986, Geertz 1988),aqueles que tomam como seu "outro" os textos etnográficos39. Essa
crítica realiza-se em um momento em que tanto o contexto em que se dá a pesquisa de
campo, quanto as referências teóricas mudaram.
Começo pelo contexto. O modelo clássico de etnografia — que se estabeleceu a
partir dos anos 20 — desenvolveu-se no âmbito do que tem sido chamado de encontro
colonial (Asad 1973). Os grupos estudados pelo antropólogo eram, de um modo geral,
povos coloniais. Sobre eles, o antropólogo escrevia para os membros de sua própria
sociedade (a metrópole), sem colocar em questão o caráter da relação de poder que se
estabelecia entre essas duas sociedades. Esse macrocontexto em que se dava o trabalho
antropológico obviamente mudou. O desmantelamento dos impérios coloniais, a
reestruturação das relações entre as nações dos chamados Primeiro e Terceiro Mundo, e a
atenção para as sociedades complexas — as dos antropólogos — mudaram as condições
em que se faz o trabalho de campo e o contexto em que se escreve sobre o outro. O
antropólogo não defronta mais membros de culturas isoladas ou semi-isoladas, mas
cidadãos de nações do Terceiro Mundo que se relacionam por complexos caminhos
culturais e políticos com a nação de onde vem o antropólogo. Ou então defronta membros
de sua própria sociedade.
135
Essas transformações no macrocontexto têm levado ainda a uma mudança nos
temas pesquisados e na maneira de encará-los. Os antropólogos contemporâneos se
preocupam com transformações, com história, com sincretismo e encontros, com práxis e
9
(3) As referências principais são: Boon 1982; Clifford 1981, 1983, 1986a e b; Clifford e Marcus 1986; Fabian
1983; Marcus e Cushman 1982; Marcus e Fischer 1986; Rabinow 1985 e 1986; Stocking 1983a, 1984, 1985,
1986; Strathern 1987a. As principais revistas onde se têm publicado essas críticas são cultural Anthropology,
Dialectical Anthropology e Representations. É freqüente nesses textos o uso dos termos etnografia e
antropologia de maneira intercambiável. Tentarei, no entanto, usá-los de acordo com seus significados
específicos, concebendo etnografia como o texto resultante da pesquisa de campo sobre uma cultura, e
antropologia como a disciplina mais ampla onde a etnografia se insere junto com outros tipos de estudo e de
análise.
33
comunicação, e principalmente com relações de poder410. Apesar dessas transformações,
contudo, é interessante observar que os antropólogos americanos estudam
predominantemente culturas estranhas à sua própria, e que nos artigos críticos de que
estou tratando "o outro" continua a ser pensado como alguém do Terceiro Mundo e
freqüentemente membro de uma cultura sem tradição escrita ou que não produz
conhecimentos sobre si mesma.
Mas, como já disse, a mudança foi também teórica. As discussões epistemológicas
se modificaram, e essa mudança não é apenas resultado da transformação do contexto em
que se dá a pesquisa de campo, mas se sobrepõe a ela: as dúvidas não são apenas sobre
como representar ex povos coloniais, mas sobre representação em si. As novas discussões
teóricas se definem no contexto intelectual das culturas de que fazem parte os
antropólogos e se expressam nos debates sobre modernidade e pósmodernidade. A "meta-
antropologia" não se explica simplesmente pela derrocada do colonialismo, mas é a
expressão de um estilo de crítica pósmoderna em antropologia (Rabinow 1986)511. Para
entender a crítica convém rever rapidamente como ela vem construindo em seus textos a
imagem do que seria a "etnografia clássica", ou seja, aquela que se firmou a partir dos anos
20.
O historiador James Clifford — para quem o termo meta-etnógrafo foi cunhado —
é seguramente uma das figuras centrais no processo de desconstrução da etnografia
clássica. Em um de seus mais importantes trabalhos (1983) ele tenta mostrar os dispositivos
através dos quais os antropólogos criaram em seus textos uma autoria legítima para falar
sobre os outros, uma "autoridade etnográfica". Antes de mais nada, segundo ele, foi
necessária a constituição da figura do antropólogo-cientista612. Era o profissional em
trabalho de campo, cuja imagem contrastava com a do antropólogo de gabinete, de um
lado, e com a do missionário e agente colonial, de outro. Ele realizava seu trabalho de
campo segundo regras específicas, e legitimava seu texto evocando a experiência que tinha
de uma outra cultura. O seu modo predominante de autoridade do trabalho de campo
moderno está marcado: "você está lá, porque eu estive lá" (Clifford 1983:118). A
legitimação da figura do antropólogo profissional, conseguida basicamente por Malinowski
(1976[1922]) veio junto com a legitimação de um método para o conhecimento de "outras
culturas": a observação participante. A idéia que legitima o método é a de que apenas
através da imersão no cotidiano de uma outra cultura o antropólogo pode chegar a
compreendê-la. O antropólogo profissional deve passar por um processo de transformação
pelo qual ele, idealmente, torna-se nativo. Mas se essa transformação é condição essencial
para o conhecimento, ela não é sufi
10
(4) Um apanhado geral de todos os novos temas e caminhos de pesquisa encontra-se em Marcus e Fischer
(1986), uma útil resenha do que eles chamam de "momento experimental nas ciências humanas".
11
(5) Para caracterizar a "meta-antropologia" — a discussão crítica que toma como seu objeto textos
antropológicos — como um estilo de crítica pós-moderna, Rabinow (1986) apoia-se na caracterização de
pósmodernismo elaborada por Jameson (1985). Os seus elementos essenciais seriam o uso do pastiche, a
importância de imagens e o achatamento da história. Como afirma Rabinow: "O achatamento da história
encontrado no pastiche dos filmes nostálgicos reaparece no achatamento metaetnográfico que faz todas as
culturas do mundo produtoras de textualidade. Os detalhes nessas narrativas são precisos, as imagens
evocativas, a neutralidade exemplar, e o gênero retrô "(1986:250).
12
(6) A este respeito ver também Stocking 1986b.
34
136
ciente. A experiência cotidiana não é sistemática, e até que a cultura apareça retratada
coerentemente no texto etnográfico, um longo caminho há que ser percorrido.
Naquele que pode ser considerado como o texto-fundador do método da
observação participante — a Introdução ao Argonautas do Pacífico Ocidental —,
Malinowski fala sobre isso ao se referir à "imensa distância entre a apresentação final dos
resultados da pesquisa e o material bruto das informações coletadas pelo pesquisador
através de suas próprias observações, das asserções dos nativos, do caleidoscópio da vida
tribal" (1976:23). A experiência é necessária para o conhecimento, mas não deve
permanecer em estado bruto. Do mesmo modo que o antropólogo tem que se transformar
ao entrar em uma outra cultura, ele tem que reelaborar a sua experiência ao sair dela, de
modo a transformá-la em uma descrição objetiva (científica) da cultura como um todo. Esta
reelaboração é inspirada por uma teoria da cultura específica.
Como mostra Clifford (1983), a legitimação do trabalho de campo como o método
de pesquisa antropológica associa-se à formulação de uma teoria que concebia as culturas
(ou sociedades) como unidades discretas, existentes sob forma unitária e acabada,
passíveis de ser observadas e conhecidas — desde que olhadas pelos olhos certos, os olhos
treinados do antropólogo profissional. Culturas eram totalidades que deveriam ser
recompostas pelo antropólogo e descritas como tais, embora não se apresentassem à
experiência dessa maneira. Além disso, sendo as culturas todos complexos difíceis de serem
apreendidos em um período relativamente curto de tempo, os antropólogos tenderam a
se fixar em temas ou em instituições. Assumiu-se, assim — como mostra Clifford (1983) —
, que partes eram microcosmos ou analogias do todo e que, consequentemente, através
do estudo de partes — o kula — chegava-se ao conhecimento do todo — a cultura
trobriandesa. Finalmente, a ênfase na observação participante como o método etnográfico
associou-se à idéia de que as culturas deveriam ser estudadas e representadas
sincronicamente: consagrou-se nos textos o uso do presente etnográfico713.
Os dados obtidos no trabalho de campo feito e reelaborado segundo a concepção
resumida acima foram expressos em um novo gênero literário, o realismo etnográfico, "um
modo de escrita que pretende representar a realidade de todo um mundo ou forma de
vida" (Marcus e Cushman 1982:29). Para que esse efeito de realidade holística fosse obtido,
as etnografias clássicas usaram uma série de convenções textuais. Marcus e Cushman
(1982) apontam nove delas. Primeiro, nas etnografias clássicas o texto está em geral
estruturado seqüencialmente, apresentando as unidades nas quais considerava-se que as
culturas (ou sociedades) estavam divididas. Segundo, o antropólogo, para garantir a
cientificidade e a neutralidade de seu texto, retirava-se do texto Simples observador,
13
(7) Vale lembrar que a ênfase nos estudos sincrônicos está também associada a uma crítica ao
evolucionismo e a sua construção de histórias conjecturais.
35
não usa a primeira pessoa (eu observei que eles fazem isso ou aquilo... 14.), mas expressa
sua
137
autoridade em uma terceira pessoa coletiva (eles são isso, eles fazem aquilo)8. O resultado
desse seu afastamento do texto — para o qual eu voltarei adiante — é paradoxal, já que a
legitimação da autoridade depende também da exposição da experiência do antropólogo.
Essa exposição — a terceira convenção — é relegada a posições marginais no texto, como
apêndices, prefácios, notas de rodapé etc., e é acompanhada da publicação de fotos, mapas
e desenhos, que reafirmam o sentido de realidade e a presen ça do antropólogo no lugar
pesquisado. Quarto, o indivíduo não tem lugar na etnografia realista: fala-se do povo em
geral, ou de indivíduos típicos. Quinto, para enfatizar o caráter de realidade das vidas
retratadas, acumulam-se detalhes da vida cotidiana. Sexto, pretende-se apresentar não o
ponto de vista do antropólogo, mas o ponto de vista nativo, idéia que se assenta no
pressuposto de que esse ponto de vista existe pronto lá para ser representado aqui (no
texto). Sétimo, apesar de cada trabalho de campo ser muito específico, nas etnografias
tendeu-se a generalizações; o que era particular rapidamente vira típico, e assim se
distancia a experiência de campo (sempre particular) do texto. Oitavo, usa-se o jargão,
exigência científica. Nono, faz-se a exegese de termos e conceitos nativos — e reafirma-se
a competência lingüística do antropólogo.
Os críticos pós-modernos argumentam que através do uso das convenções
mencionadas acima, inspiradas pela teoria que concebia as culturas como totalidades e
pelos requisitos de cientificidade que obrigavam à reelaboração da experiência de campo,
o que se acabou produzindo nos textos foi uma visão deformada tanto das culturas, quanto
da experiência do antropólogo junto a outras culturas. Muito estaria sendo perdido ou
sendo substancialmente modificado na transformação que ocorre entre a pesquisa de
campo e o texto. O que era uma experiência de campo fragmentada e diversa acaba sendo
retratado como um todo coerente e integrado. O que era um processo de comunicação, de
troca, de negociação entre o antropólogo e seus informantes, vira algo autônomo (diários
de campo, gráficos de parentesco, mitos etc.). O que era um diálogo, vira um monólogo
encenado pelo etnógrafo, voz única que subsume todas as outras e sua diversidade à sua
própria elaboração. O que era interação vira descrição, como se as culturas fossem algo
pronto para ser observado e descrito (e por isso nos textos as imagens são sobretudo
visuais, em detrimento de imagens que enfatizem a fala ou a audição (Fabian 1983)).
Apagam se as relações inter-pessoais e generaliza-se o nativo. Para usar uma expressão de
Clifford (1983), o que era discursivo vira puramente textual.
Em suma, nesse processo de transformações o caráter da experiência cultural é
completamente modificado 915. Apesar de ela ser usada como retórica legitimadora do
14
(8) Para uma análise do uso da terceira pessoa do presente como modo dominante dos textos
etnográficos, ver Fabian 1983:cap. 3.
15
(9) A crítica pós-moderna produziu uma série de reanálises da experiência de trabalho de campo que não
estou considerando aqui uma vez que meu foco são as etnografias. Ver, por exemplo, Dumont 1978 e
Rabinow 1977.
36
conhecimento do antropólogo, nos textos ela é negada enquanto tal. A experiência que
aparece mencionada nos textos só pode ser uma evocação legitimadora: o que conta como
sendo a cultura é a descrição final, obtida através da reelaboração da experiência inspirada
pela reflexão teórica. Assim, a disjunção entre experiência e texto, o
138
16
(10) Os mecanismos textuais que produzem essa distância são os mais variados. Fabian (1983), por exemplo,
analisa o que ele chama de "uso esquizogênico do tempo" em etnografias, ou seja, o fato de os conceitos de
tempo usados no trabalho de campo nunca coincidirem com aqueles das etnografias. Nas etnografias, os
conceitos de tempo sempre acabam produzindo distanciamento entre o antropólogo e seus objetos. Apesar
de sua variedade, "os dispositivos de distanciamento que nós podemos identificar produzem um resultado
global. Eu vou chamá-lo negação de contemporaneidade (denial of coevalness). Por isso eu entendo uma
tendência persistente e sistemática de colocar os referentes da antropologia num tempo outro do que aquele
do presente do produtor de discurso antropológico".(1983:31)
37
lembrar: o paradigma de Frazer era o evolucionismo; os outros, apenas diferentes estágios
do eu. A novidade de Malinowski e dos antropólogos que lhe seguiram foi justamente a de
criar um novo contexto para descrever os outros. Nesse novo contexto, o outro e a sua
cultura eram distanciados e definitivamente apresentados como diferentes. A diferença
não era mais de estágios de evolução, mas de perspectiva. O ponto de vis
139
ta nativo, ao se reproduzir o seu contexto específico, não poderia mais ser incorporado ao
da cultura do antropólogo e de seus leitores. No máximo, os pontos de vista poderiam ser
justapostos pelo antropólogo, este ser privilegiado que se movimenta entre dois mundos,
que conhece o estranho, descobre seu caráter corriqueiro, e traduz essa perspectiva
diferente para os leitores de sua própria cultura. A partir de Malinowski, os antropólogos
têm que criar em seus textos uma consciência sobre a diversidade do mundo. Eles têm que
criar uma "ficção persuasiva" (Strathern 1987a:257) sobre um outro que é radicalmente
diverso.
O relativismo cultural é uma das conseqüências centrais da criação desse novo
contexto e, nesse sentido, marca do modernismo em antropologia. Entretanto, o
relativismo cultural, ao marcar a diferença entre as culturas, ao enfatizar a unidade de cada
uma delas e a impossibilidade de que uma fosse avaliada em função dos valores e da visão
da outra, acabou paradoxalmente dificultando que os antropólogos trabalhassem com o
fato da diferença de uma maneira que não fosse para acentuar a distância entre as culturas.
As diferenças acabaram sendo tão marcadas que ficou cada vez mais difícil fazer com que
uma cultura falasse a outras em termos críticos. A denúncia do etnocentrismo que
caracterizou a antropologia modernista e que veio junto com o relativismo cultural também
teve o mesmo efeito. Desse modo, a possibilidade de crítica cultural, uma das bases em
que se assentou a antropologia clássica e que foi de fato exercida nos seus primeiros anos
(por exemplo, na crítica ao racismo) acabou perdendo intensidade. Ela sempre continuou
no horizonte da antropologia, mas foi muito pouco praticada — a ênfase no entendimento
das culturas nos seus próprios termos e o distanciamento dos contextos culturais acabaram
brecando suas possibilidades.
Alternativas pós-modernas
38
dos antropólogos, e à cultura dos antropólogos em si. As alternativas propostas pelos pós-
modernos tentarão reinventar esses dois aspectos: os textos e a crítica cultural.
Entretanto, esses dois aspectos não recebem a mesma ênfase nos artigos críticos. A
maioria das alternativas pós-modernas à antropologia não se refere a discussões sobre o
contexto político em que ela ocorre, ou às
140
possibilidades críticas da antropologia em relação às culturas das sociedades do
antropólogo ou às culturas do Terceiro Mundo que ela continua a estudar. As alternativas
são basicamente textuais: referem-se a como encontrar uma nova maneira de escrever
sobre culturas, uma maneira que incorpore no texto um pensamento e uma consciência
sobre seus procedimentos.
A reflexão sobre esses procedimentos e a sua incorporação aos textos não surgiu
obviamente com os pós-modernos, mas está presente em seus antecessores, os
antropólogos hermeneutas representados por Clifford Geertz. A antropologia
interpretativa, concebendo as culturas como textos, e a análise antropológica como
interpretação sempre provisória, seguramente contribuiu para o estranhamento da
autoridade etnográfica clássica. No entanto, segundo os críticos pós-modernos (Clifford
1983, Marcus e Cushman 1982, por exemplo) seu rompimento com o modelo anterior é
parcial: ela questiona o processo da produção de interpretações, mas não rompe com a
separação radical entre observador e observado e suas culturas. A interpretação seria ainda
sobre uma outra cultura entendida como entidade autônoma e separada do antropólogo,
e uma atividade que reelabora a experiência e recria a totalidade. Os pós- modernos vão
tentar romper tanto o caráter de separação das culturas, quanto o de recriação da
totalidade. Para eles a etnografia não deve ser uma interpretação sobre, mas uma
negociação com, um diálogo, a expressão das trocas entre uma multiplicidade de vozes.
Quem melhor resumiu esta alternativa foi James Clifford.
Um modelo discursivo da prática etnográfica dá preeminência à intersubjetividade de
toda fala, e ao seu contexto performativo imediato. ...As palavras da escrita
etnográfica... não podem ser construídas monologicamente, como uma afirmação de
autoridade sobre, ou interpretação de uma realidade abstrata, textualizada. A
linguagem da etnografia é impregnada de outras subjetividades e de tonalidades
contextualmente específicas. Porque toda linguagem, na visão de Bakhtin, é "uma
concreta concepção heteróglota do mundo". (Clifford 1983:133)
A proposta é, então, escrever etnografias tendo como modelo o diálogo ou, melhor
ainda, a polifonia. Ter como modelo não significa necessariamente transcrever diálogos,
embora alguns autores tenham interpretado isso literalmente (Dwyer 1977, 1982). A idéia
é representar muitas vozes, muitas perspectivas, produzir no texto uma plurivocalidade,
uma "heteroglossa", e para isso todos os meios podem ser tentados: citações
dedepoimentos, autoria coletiva, "dar voz ao povo" ou o que mais se possaimaginar. O
objetivo final, no que diz respeito ao autor, seria fazer comque ele agora se diluísse no
texto, minimizando em muito a sua presença, dando espaço aos outros, que antes só
apareciam através dele. "Autoria dis
39
141
persa (Marcus e Cushman 1982, Clifford 1983) e a expressão que se usa para descrever
este processo que corrigiria o excesso da presença do antropólogo nos textos.
Esse processo vem junto com uma mudança no conceito de cultura e do que é
possível representar nas etnografias.
(O princípio da produção textual dialógica) situa as interpretações culturais em
diferentes contextos intercambiáveis e obriga os escritoresa encontrar diversas
maneiras de apresentar realidades, que são de fato negociadas, como inter-
subjetivas, cheias de poder e incongruentes. Nesta visão, "cultura" é sempre algo
relacional, uma inscrição de processos comunicativos que existem, historicamente,
entre sujeitos em relações de poder. ...Assim que o dialogismo e a polifonia são
reconhecidos como modos de produção textual, a autoridade monofônica é
questionada, aparecendo como uma característica de uma ciência que pretendeu
representar culturas. (Clifford 1986a:15)
A discussão chega, assim, ao seu limite. O antropólogo não se encontra mais numa
situação privilegiada em relação à produção de conhecimentos sobre o outro. Ele não é
mais aquele que reelabora uma experiência para explicitar a realidade de uma cultura com
uma abrangência e uma coerência impossível para aqueles que a vivem no cotidiano. O
antropólogo não é mais um sujeito cognoscente privilegiado. Perdendo o status de sujeito
cognoscente privilegiado, o antropólogo é igualado ao nativo e tem que falar sobre o que
os iguala: suas experiências cotidianas. É por isso que se requer que o etnógrafo reproduza
o mais possível em seus textos a sua experiência tal qual vivida no campo, e não tal qual foi
reelaborada depois dele. Essas experiências de campo são basicamente diversificadas. Se
os etnógrafos clássicos sabiam disso, acreditavam que no processo de reelaboração
poderiam ir além dessa diversidade de modo a reconstruir a totalidade. Os antropólogos
pós-modernos, contudo, dão valor de objetividade à diversidade, pressupõem sua
irredutibilidade e negam a possibilidade de reconstruir uma totalidade que dê sentido a
todas as posições diversas. A diversidade irredutível de experiências é, então, o dado com
que o antropólogo pós-moderno tem que trabalhar e achar meios de representar.
Nesta situação, tudo o que o antropólogo pode fazer em seus textos é inscrever
processos de comunicação em que ele é apenas uma das muitas vozes. As vozes são todas
equiparadas: o que se representa são sujeitos individuais e não papéis sociais — dos quais
um poderia ser o do antropólogo. Assim, o etnógrafo pode evocar, sugerir, provocar,
ironizar, mas não descrever culturas17. Finalmente chega-se ao lado oposto da etnografia
clássica: o autor não se esconde para afirmar sua autoridade científica, mas se mostra para
dispersar sua autoridade; não analisa, apenas sugere e provoca. Com isto, a concepção do
leitor muda radicalmente: ele
142
17
(11) Sobre o papel da ironia nos textos pós-modernos, ver Strathern 1987a e b.
40
não é mais aquele que se informa, mas deve ser agora participante ativo na construção
do sentido do texto, que apenas sugere conexões de sentido.
Antes de mais nada, é preciso que se diga que não são todos os crí ticos pós-
modernos que reiteram este modelo. Uma crítica a ele pode ser encontrada em Rabinow
(1985 e 1986). Ela é importante porque permite nos trazer de volta à segunda dimensão da
crítica pós-moderna que mencionei anteriormente: a dimensão política e de crítica cultural
que deveria estar presente na antropologia.
É uma constante nos textos de autores pós-modernos a menção à perspectiva
política. Não deixa de ser significativo, neste sentido, o título da coletânea que reúne os
mais importantes teóricos desta tendência: Writing Culture — The Poetics and Politics of
Ethnography (Clifford e Marcus 1986). A impressão que se tem da leitura da maioria dos
textos, contudo, é a de que política no caso é basicamente uma política do texto. Discute
se sobre o estilo e opções textuais em detalhes, às vezes obsessivos, mas as questões
políticas são apenas sugeridas. Na verdade, talvez elas sejam assumidas como dadas, e pós-
modernisticamente invocadas no texto através de menções à crítica ao colonialismo, ou às
relações de poder entre pesquisador e informantes. Mas não se vai além de evocações e
de menções genéricas em que se assume indiretamente que uma autoridade dispersa seria
melhor porque mais verdadeira e superior politicamente (Rabinow 1985:7). Seguramente
a etnografia é sempre escrita e é textualmente que ela tem que enfrentar seus problemas
políticos. No entanto, a questão é saber se é através da forma que ela pode enfrentar
problemas políticos. Mais ainda, se é através de uma forma que dispersa a autoria e,
portanto, o peso da visão do autor, que ela pode tanto conseguir formular uma crítica
cultural, quanto expressar uma posição política. Pode-se mesmo chegar a perguntar se a
mudança na concepção do autor e a produção de um novo tipo de conhecimento são
apenas ou basicamente um efeito textual, ou se a produção de um novo tipo de texto em
etnografia seria suficiente para produzir um novo enquadramento do autor e de seu
conhecimento.
Rabinow (1985) não acha que seja possível passar sem uma discussão específica da
dimensão política. Para ele, "política, experimentação formal e epistemologia podem ser
variáveis independentes, ...(e) a associação de experimentos formais de vanguarda com
uma política progressista continua questionável" (1985:6). Experimentos textuais podem
abrir novas possibilidades mas, como diz Rabinow, não garantem nada (p. 8).
Teoricamente, os autores podem escolher qualquer estilo, qualquer modo de organização
de texto, porque em si mesmos "eles não nos oferecem nenhuma garantia, não contêm
nenhum poder secreto, não fornecem nenhuma senha (password) textual para a verdade
ou a política" (1985:8).
Para Rabinow, a discussão textual nunca vai se sustentar por si só. Ela deveria estar
aliada a uma análise como a que é feita por Bourdieu (1983), e que tenta localizar autores
em instituições, autores, textos e instituições
143
41
num campo epistemológico e de poder, com estratégias próprias e marcado
historicamente. Deveria estar também associada a uma análise inspirada em Foucault, que
tentasse analisar as relações de poder que definem quais enunciados podem ser aceitos
como verdadeiros em cada momento. A discussão textual seria ainda insuficiente, da
perspectiva de Rabinow, por não incorporar uma análise sociológica que estabeleça as
mediações entre, por exemplo, as críticas ao colonialismo realizadas em um nível macro e
os experimentos textuais. O que estaria faltando, em suma, seria questionar a academia
americana nos anos 80 e seus jogos de poder. Até hoje, contudo, os pós-modernos parecem
não terem se atrevido a isso.
Mas a dimensão política da crítica antropológica não se limita a uma apreciação das
condições de produção do conhecimento. Como já mencionei anteriormente, discute- se a
possibilidade da antropologia vir a realizar uma crítica cultural das sociedades que estuda
ou das sociedades dos antropólogos.
Esta perspectiva esteve presente na antropologia modernista de um modo peculiar,
se se compara com o que aconteceu no modernismo nas artes. O modernismo em
antropologia, como foi dito, caracterizou-se pelo estabelecimento de uma distância entre
as culturas e pela criação de um contexto para se falar sobre a diversidade. O modernismo
nas artes também usava o efeito de distanciamento, ao pretender desfamiliarizar a cultura
e a sociedade do próprio artista. A distância e o estranhamento tinham por objetivo chocar
— postura que o surrealismo levou às últimas conseqüências18. A antropologia, contudo,
tinha como um dos seus objetivos básicos tomar o distante e estranho e torná-lo familiar
— sem aproximá-lo. O que ela buscava era revelar o cotidiano no bizarro, desmanchar o
exótico revelando seu sentido próprio.
Pode-se dizer, no entanto, que a postura modernista do choque e da crítica à
sociedade burguesa também estava no horizonte da antropologia. Ao criar um novo
contexto para falar de culturas estranhas e ao insistir que as culturas fossem entendidas
em seus próprios termos, ao revelar o sentido familiar do bizarro, a antropologia criticou o
etnocentrismo e o racismo. Além disso, através da desfamiliarização da sociedade
burguesa, conseguida pela justaposição de suas características com as das sociedades
primitivas, a antropologia poderia realizar uma crítica cultural à sociedade ocidental —
afinal, o mito do bom selvagem está nas bases da antropologia. No entanto, se esta postura
foi tentada algumas vezes, e Margaret Mead e Ruth Benedict são exemplos claros nessa
direção, não se pode dizer que a crítica cultural tenha ido além de uma promessa (Marcus
e Fisher 1986:caps. 5 e 6), que provavelmente o relativismo cultural ajudou a frustrar.
Neste ponto é importante introduzir uma relativização. A frustração das
possibilidades de crítica cultural é característica sobretudo da antropologia realizada nas
metrópoles — e que são o objeto de análise dos críticos pós-modernos americanos.
Antropologias "nativas" como a nossa, que sempre estudaram a sua própria sociedade, são
claramente um caso
18
(12) Sobre as relações da antropologia com o surrealismo, ver Clifford 1981. Sobre as relações de
modernismo na arte e antropologia, ver Holston (no prelo: cap.1). Sobre asrelações da antropologia,do culto
ao primitivo e daarte modernista, ver Rubin 1984.
42
144
à parte: o processo de entender um outro que faz parte da nossa própria cultura conduz
quase que inevitavelmente a pensar criticamente sobre a nossa relação com ele e sobre o
seu lugar na nossa sociedade13. Constituíram também um caso à parte as antropologias
feitas por grupos minoritários, de que talvez a antropologia feminista seja o melhor
exemplo. Ser crítica a respeito da situação da mulher era parte constitutiva dos objetivos
dessa antropologia. Mas excetuando-se esses casos específicos — e marginais em relação
à antropologia produzida nas metrópoles — a crítica cultural continuou a ser uma promessa
não cumprida. A antropologia pósmoderna tenta resgatar esta postura, apresentando-a
como um dos caminhos por onde a antropologia contemporânea deveria seguir. Vários
autores têm insistido nessa perspectiva, mas ainda são poucas as tentativas de levá-la a
efeito. O pós-modernismo em antropologia tem se caracterizado mais por um trabalho de
desconstrução de textos etnográficos clássicos e de proposição de alternativas textuais do
que pela produção de etnografias que levem em conta as novas regras, não só em relação
ao texto, mas também à crítica cultural. Algumas experiências, contudo, já foram feitas.
Passo a analisar agora três delas, selecionadas por se referirem a ambos os aspectos: são
experiências textuais e enfrentam de diferentes maneiras problemas políticos e de crítica
cultural. Reinventando a etnografia First-Time (1983) de Richard Price, Waiting (1985) de
Vincent Crapanzano, e Shamanism, Colonialism and the Wild Man (1987) de Michael
Taussig são experiências textuais e, nos três casos, a posição do antropólogo como autor
do texto é foco de questionamento e redefinição. Taussig nega explicitamente a
possibilidade de o antropólogo dizer o que os outros são: seu texto é basicamente sua
construção, concebida enquanto crítica cultural de sua própria sociedade e da cultura que
lhe é específica. É a sua perspectiva construída a partir da análise dos outros que aparece
no primeiro plano. Já Price e Crapanzano são, segundo ambos explicitam, uma voz entre
várias no texto; suas autorias se dispersam, como se diluem as suas análises, a ponto de
desaparecer, no caso de Crapanzano. Em suma, se é através de experiências textuais
que os três autores se expressam, seus objetivos e seus resultados são bastante
diferentes. Apesar disso, nenhum dos três pretende retratar holisticamente uma cultura: o
que é possível representar são sempre aspectos parciais. Em First-Time Price está
preocupado em estudar o conhecimento que os Saramakas, descendentes de escravos que
vivem no Suriname, têm sobre um período crucial de sua história. Este é o First-Time, ou
seja, o período que compreende a fuga em massa desses escravos das plantations em que
viviam, sua contínua resistência a tentativas de reescravização, e finalmente a "Grande Paz"
que selou a sua libertação em 1762. Primeiro
145
problema: memória oral sobre um evento que ocorreu há mais de dois séculos e cujas
informações só se mantêm de modo fragmentário. Mas a maior dificuldade está em que,
no caso dos Saramakas, o conhecimento do passado está explicitamente articulado a
questões de poder.
43
Entre os Saramakas, o conhecimento sobre o passado, e especialmente sobre o
First-Time, é privilégio de alguns velhos, e é algo que não deve ser contado
indiscriminadamente. As histórias mais importantes não podem ser reveladas porque são
perigosas. São histórias de fugas e lutas por liberdade e há sempre o risco de que, ao se
contar a história, ao entregá- la para outros, eles entreguem também a sua liberdade. Eles
acreditam que têm que proteger o que sabem, ou o seu conhecimento vai ser usado por
outros, especialmente os brancos, contra eles. A força principal subjacente à sua maneira
de relembrar o passado é uma idéia de "nunca mais", uma preocupação de impedir que a
escravidão possa ocorrer de novo. Além disso, memória e história sobre o First-Time são
importantes em termos da preservação da identidade do grupo e de seu senso de auto-
respeito: elas contêm as raízes do que realmente significa ser Saramaka. Assim sendo, só
se contam fragmentos, e as pessoas interessadas em história, sobretudo na história do
First-Time, têm que juntar fragmentos dispersos oferecidos em diferentes momentos pelos
velhos. Foi através desta proteção do conhecimento sobre o passado que as histórias sobre
o First-Time foram preservadas com uma considerável riqueza de detalhes por dois séculos.
Ao escrever First-Time Price teve, então, que enfrentar uma série de questões
impostas pelo próprio objeto de análise. Ele teve que descobrir a forma cultural específica
— canções, lendas, histórias, encantamentos ditos eventual e ritualisticamente — pela
qual o conhecimento sobre o passado é transmitido. Ele teve que lidar com a memória dos
Saramakas e com documentos sobre a sua história, com diferentes versões sobre o passado
e a impossibilidade de dizer o que ele realmente foi; e teve que enfrentar a questão sobre
a melhor maneira de expressar as diferentes versões. Mas ao escrever Price teve que
encarar outros problemas, e o mais importante deles se refere ao agrupamento de um
conhecimento que supostamente deveria ser mantido em fragmentos, e à revelação de
algo que é considerado perigoso e supostamente deve ser mantido em segredo. Price só
foi informado sobre o First-Time após nove anos de trabalho de campo e quando os velhos
o consideraram pronto para isso. Nessa consideração interveio o fato de que Price por
vários anos estudou a história dos Saramakas nos arquivos coloniais holandeses e tinha em
seu poder algumas informações ignoradas pelos velhos para oferecer-lhes. E ele estava
consciente da relação de poder a ser então estabelecida, e de quanto ele ia, assim, interferir
no próprio caráter do conhecimento sobre o First-Time. De outro lado, quando Price obteve
as informações dos Saramakas e foi solicitado pelos velhos para ser uma espécie de
cronista, a sociedade dos Saramakas estava sofrendo, mudanças irreversíveis, a tradição
estava morrendo e os velhos decidiram que o pouco de conhecimento que eles tinham
deveria
146
ser preservado. Mas ao deixarem o seu conhecimento ser agrupado e escrito, eles mesmo
mudaram irreversivelmente o caráter do seu conhecimento.
Numa situação como esta, em que o antropólogo se transforma com toda clareza
em um agente de interferência na sociedade estudada e qualquer coisa que faça representa
uma opção ética e política, não é de se estranhar que Price tenha refletido
44
sobre o seu próprio poder e o papel de seu trabalho enquanto antropólogo. Suas dúvidas
e as decisões que tomou fazem parte do livro.
A primeira questão era a de identificar ou não os informantes. Price decidiu
identificá-los publicando uma foto de cada um dos velhos que lhe falaram sobre o First-
Time, seguidas de seus nomes e uma pequena biografia. A decisão, que Price diz de sua
total responsabilidade, tem por trás a idéia de incorporar os Saramakas como co-autores
em sua tentativa de contar a sua história. Eles, afinal, é que detinham a maior parte do
conhecimento.
Uma segunda questão era a do possível impacto do livro no sistema de
conhecimento dos Saramakas. Ele sabia que o que escrevia era parcial, uma seleção da
história, mas que corria o risco de, ao ser publicada, se transformar em cânone, em uma
versão com mais autoridade. Por isso ele insiste o tempo todo no caráter incompleto e
parcial de sua versão, publicada como uma celebração da tradição historiográfica
Saramaka, que guardou coletivamente e por tanto tempo verdades sobre o First-Time, e
como "um tributo à dignidade (dos Saramakas) em face da opressão, e à sua contínua
recusa em deixar que fossem definidos como objetos" (1983:24).
Cada detalhe do livro foi, assim, decidido considerando-se seus possíveis efeitos e
as relações de força em que o conhecimento estava sendo gerado. Uma das decisões mais
importantes referiu-se ao estilo do texto propriamente dito. Price concebeu seu livro como
uma experiência textual. A página é separada em duas partes. Na parte superior
encontram-se as histórias tais como reveladas pelos Saramakas: são fragmentos, frases,
canções, lendas, encantamentos etc., agrupados por temas, obviamente de acordo com a
seleção feita por Price. Na parte de baixo, estão os resultados das pesquisas em arquivos
revelando a visão do colonizador da mesma história, e a interpretação de Price. Cada parte
representa uma versão (ou mais de uma), e Price convida o leitor a fazer a sua própria
interpretação e a ir e voltar na leitura, relendo os fragmentos depois de ler a interpretação.
Temos em First-Time o que se poderia chamar de uma perspectiva local: as relações de
poder são aquelas definidas na relação com os informantes e sua cultura. Não há uma
tentativa de inserir as discussões sobre os Saramakas em um contexto mais amplo. Só de
um modo muito indireto — e que caberia aos leitores deduzir — a análise da memória dos
Saramakas se constituiria em elemento para pensar as sociedades ocidentais. A crítica
cultural não faz parte dos horizontes do texto. O que fica óbvio em tudo isso é o caráter
seletivo e parcial da "ver-
147
45
verdade, se a voz de Price é diluída, o fato é que de uma certa perspectiva ela se ouve
muito mais claramente, reservando para si um espaço específico na página.
No caso de First-Time o estilo do texto e a sua organização são indissociáveis do
objeto estudado e de como Price percebe sua relação com ele. Em boa medida, mas não
completamente, foi o caráter da memória social dos Saramakas que ditou a Price a maneira
de expressá-la. O estilo "pós-moderno" do texto não se impôs, então, aprioristicamente; se
o objeto fosse outro, a forma poderia ser outra.
Em Waiting, Vincent Crapanzano tem um projeto até certo ponto semelhante ao de
Price. Ele quer que seu livro seja um experimento em termos de texto e em termos da
representação do outro: ele quer explicitamente escrever uma etnografia pós-moderna.
No seu caso o estilo vem de fora e, a meu ver, essa imposição cria impasses sérios para a
análise, a ponto de comprometê-la.
No caso de Crapanzano, os outros estudados são um grupo dominante: os brancos
da África do Sul. Waiting é descrito por Crapanzano como enfocando "efeitos da dominação
na vida cotidiana — não na vida cotidiana de pessoas que sofrem a dominação, mas de
pessoas que dominam... É sobre o discurso de pessoas que são privilegiadas por aquele
poder e, paradoxalmente, no seu privilégio vítimas dele" (1985:XIII). No caso dos brancos
sul-africanos, o apartheid domina todas as dimensões de suas vidas, e eles são tão
aterrorizados por ele quanto as pessoas de cor. Não se trata apenas de um sistema de
dominação social e político: o apartheid tem dimensões lingüísticas, morais, psicológicas.
Ser branco na África do Sul significa não reconhecer a existência de nenhum outro grupo.
Os dois grupos brancos — africânderes e ingleses — constituem sua identidade um em
relação ao outro e ignoram completamente os outros grupos. Tomar os negros, asiáticos e
coloureds como "outros significantes" a partir dos quais os brancos pudessem construir o
discurso de sua identidade, seria conceder-lhes uma existência que os brancos insistem em
lhes negar. As conseqüências desse total não- reconhecimento dos outros são, para
Crapanzano, o mutilamento moral dos brancos e a visão estática que eles têm da realidade.
Os brancos são, assim, "aprisionados no tempo particular e paralisado da espera (waiting)"
(1985:42).
Esperar por alguma coisa, qualquer coisa acontecer era uma preocupação constante
nas histórias que eu estava ouvindo. ...Eu acho que a experiência de esperar fornece
uma unidade temática para o que
148
46
mesmos. Nesse sentido, o objetivo de Crapanzano é semelhante ao de Price: transformar
seus informantes em uma espécie de co-autores, através da reprodução de suas vozes.
O livro constitui-se basicamente da citação de testemunhos entremeados de
pequenos comentários contextualizadores. O objetivo é claro: "eu tentei" — diz
Crapanzano — "re-criar alguma coisa da cacofonia da minha-sul-africana experiência. Na
estrutura, Waiting me pareceu com um romance — romances, como observou o crítico
literário russo Mikhail Bakhtine, são essencialmente plurivocais" (1985:XIII). Através da
plurivocalidade, ele quer reproduzir a "qualidade barroca da vida cotidiana" (1985:XIV),
segundo ele geralmente perdida nas análises sociológicas. Seguramente Crapanzano
conseguiu em seu texto recriar uma cacofonia pela justaposição de depoimentos de
informantes. Mas nessa plurivocalidade há algo insuficiente: a voz do autor quase que não
é ouvida. Ao contrário de Price, que representou várias vozes mas guardou no texto o
espaço para a sua própria voz e interpretação, Crapanzano preferiu quase não falar.
Como notou Strathern (1987b) em uma resenha do livro, se os outros personagens
são claramente individualizados (não são típicos, não representam posições gerais), em
Waiting o autor não se objetiva: ele não determina o lugar a partir do qual fala, a
perspectiva de sua fala — ou de seu silêncio; ele aparece como um interlocutor nos diálogos
reproduzidos, ou como alguém que emite julgamentos sobre diferentes aspectos, mas não
como antropólogo, como intelectual, como escritor, analista ou crítico
— no máximo, aparece como um americano que se sentiu incômodo na África do Sul. Ele
não especifica que tipo de fala e de interpreta ção pode ter e que lhe sejam específicas. Ele
simplesmente se omite, desaparece, se recusa a interpretar, a fornecer de forma direta
qualquer análise. No entanto, esse desaparecimento é obviamente relativo: ele está lá
selecionando citações, reproduzindo diálogos; introduzindo capítulos, observando,
apresentando material, escrevendo. Sendo mais clara: o que está ausente é a objetivação
do autor e de seu papel — como mostra Strathern — , é a contextualização da sua
intervenção sobre a realidade estudada e sobre aquela a que o livro se dirige. Não existe
plurivocalidade só dos outros; o papel do autor tem que ser claro nessa plurivocalidade. Ao
se negar a contextualizar sua própria voz e a falar de uma perspectiva própria no
149
texto, Crapanzano, ironicamente, acabou definindo para si uma posição semelhante à que
ele descreve para os ingleses brancos na África do Sul.
A "vaga comunhão", maneira pela qual um sul-africano descreveu a identidade dos
ingleses, não se compara com o nacionalismo monolítico dos africânderes. O inglês
não tem uma tradição, uma visão do mundo segura e uma ideologia articulada. Eles
não têm nem mesmo uma linguagem com raízes sul-africanas... Eles não têm
interpretação da história. A eles só resta o comentário. (1985:35)
Após a leitura de Waiting a questão que me instigou foi a seguinte: por que
Crapanzano, tão consciente sobre a necessidade de desautorizar a voz única do autor,
acabou sendo incapaz de encontrar o lugar dessa voz? Talvez uma das razões para isso
esteja na sua relação com o objeto: os brancos da África do Sul não eram um grupo com o
47
qual pudesse se identificar ou pelo qual pudesse ter simpatia — pelo contrário, política e
eticamente Crapanzano se opunha a eles. A sua experiência de campo foi difícil.
Eu experimentei uma claustrofobia moral durante toda minha estada na África do
Sul. Tentei colocar entre parênteses meu ultraje, minha pretensão cínica e a minha
tristeza para ser o mais "objetivo" possível. ...Aprendi que é possível ter alguma
simpatia mesmo por pessoas cujos valores achamos repreensíveis. Estive, e ainda
estou, confuso com isso. (1985:24-25)
Talvez a confusão de Crapanzano venha da estranha maneira pósmoderna pela qual
ele resolveu ser "objetivo" (neutro?). Ele preferiu que os brancos sul-africanos falassem
apenas por si mesmos; não quis falar nem por eles, nem sobre eles. Ele interpretou a idéia
de que os outros não devem ser transformados em objeto e devem se fazer ouvir no texto
etnográfico de uma maneira literal, e não soube ir além disso. Ele teve que dar ao discurso
dos brancos sul-africanos o centro da cena, e não foi capaz de deslocá-los de lá. No campo,
a sua relação com eles foi marcada por um distanciamento moral e político, mas no texto
ele não foi capaz de estranhá-los, de construir uma distância crítica e política que permitisse
analisar seus discursos e — por que não? —, criticá-los. No texto de Crapanzano a
preocupação de incorporar o outro (entendido sempre como indivíduo) como co-autor
acabou impedindo que ele procurasse mecanismos de distanciamento crítico e de choque
que talvez fossem tentados em um ensaio modernista.
Crapanzano queria produzir uma etnografia pós-moderna, e provavelmente ele foi
bem-sucedido. Afinal, o que mais caracteriza o pósmodernismo senão o pastiche dos
comentários, o jogo de imagens, o achatamento da história, a descontextualização, a
neutralidade, a textualidade
150
48
da voz do autor, mas ausência de análise. É nesta recusa que queremos transformar a
antropologia? A mim parece claramente que não. Da maneira que eu a vejo, a crítica pós-
moderna à antropologia terá sentido se, ao questionar a autoridade monológica do
antropólogo, ao quebrar a sua condição de única voz ou voz totalmente dominante, criar
condições para que sua presença se transforme em uma outra coisa, mas sem desaparecer.
E essa outra coisa é, a meu ver, uma presença crítica, que não se furte a considerar a sua
relatividade, a sua existência entre outras, mas que também não se furte a entrar rio jogo
de forças em que a pesquisa antropológica se faz para fornecer uma interpretação que se
define em termos críticos e políticos. Essa parece ser também a opinião de Michael Taussig.
Afirmei anteriormente que Taussig nega a possibilidade de dizer o que os outros são.
Essa sua perspectiva fica clara em um texto que escreveu como resposta a críticas ao seu
primeiro livro, The Devil and Commodity Fetishism in South America (1980). Ele fala sobre
o caráter da análise aí desenvolvida:
A ênfase, se não todo o objetivo dessa interpretação, está no que essas histórias têm
a dizer para nós, em oposição ao que nós temos a dizer para elas. ...Explicação e
interpretação — do significado da história do pacto com o diabo, por exemplo —
tornam-se, então, crucialmente e da maneira mais radical algo distinto do que está
envolvido nos esforços de estrangeiros, como os antropólogos, em localizar a história
em uma suposta rede de funções estritamente locais. A história por necessidade é
também para nós — e é a tarefa do antropólogo, nessa era de persistente
imperialismo, lê-la enquanto tal.
151
49
sociedade. A crítica de Taussig, contudo, à diferença por exemplo da crítica marxista, apesar
de também querer chegar a novos significados, só quer sugerir e provocar. Ele não tem
uma resposta definitiva, uma explicação sistemática sobre os significados da experiência
do outro, mas só quer provocar reações. Sua interpretação e seu texto são, assim,
construídos de maneiras radicalmente diferentes. O livro Shamanism, Colonialism and the
Wild Man foi concebido para ser um experimento formal e um contradiscurso em dois
níveis: um contradiscurso à antropologia e à maneira acadêmica ocidental de pensar e
escrever; e um contradiscurso à violência e ao terror. Nesse sentido, o contradiscurso não
é apenas o objeto de análise, mas é a análise mesma, ou o resultado almejado da análise.
Assim, é extremamente interessante contrapô-lo a Waiting. Como Crapanzano, Taussig
analisa um tema do qual ética e politicamente se distancia — a violência e o terror. Só que
sua análise e seu texto são construídos para produzir um distanciamento crítico em relação
a ele. No seu caso, não existe "objetividade" possível, se por ela for entendida uma atitude
de pretensa neutralidade em relação aos discursos em que o tema se circunscreve. O livro
de Taussig é construído como um ensaio modernista — e não pós- modernista19 — que
deve provocar distanciamento e estranhamento em relação ao seu objeto — o terror — e,
através disso, criar uma visão crítica de procedimentos "naturais" em sociedades
ocidentais. As
152
idéias de Taussig sobre a produção de distanciamento e de choque são tiradas das teorias
de Walter Benjamin e Bertold Brecht. A técnica textual básica usada no livro é a montagem.
Não existe um objeto único a ser representado. O que existe são vários discursos diferentes
justapostos lado a lado, um aludindo ao outro e ao terror, mas as possíveis associações e
ligações entre eles não são expressas; no máximo, são sugeridas. Nesse sentido, trata-se
de um texto aberto. Marcus resumiu algumas características do ensaio modernista que
servem para descrever o texto de Taussig.
Em vez de tentar representar o sistema de eventos principais através do cômputo
ordenado desses eventos, para o que o realismo é parcial, o ensaio moderno permite,
ou melhor sanciona, o supremo subterfúgio (hedge) — ele legitima a fragmentação,
limites toscos, e o objetivo consciente de atingir um efeito que perturbe o leitor. ...A
etnografia enquanto ensaio modernista rompe profundamente o compromisso com o
holismo que está na base da maioria das etnografias realistas e que vem se tornando
crescentemente problemático. ...Ela não promete que os seus objetos fazem parte de
uma ordem maior. Ao contrário, pela abertura de sua forma, ela evoca um mundo
mais amplo de ordem incerta — essa é a postura que o ensaio modernista cultiva ao
extremo. (Marcus 1986:191-2)
Em seu texto Taussig justapõe relatórios coloniais sobre o terror durante o período
do boom da borracha na Amazônia colombiana, o testemunho de um argentino que foi
submetido a tortura, sessões de xamanismo, imagens populares de santos católicos, suas
19
(14) As classificações de modernista e pósmodernista no caso de Taussig são ambíguas. Seu texto é
modernista, mas a concepção de seu livro pode ser considerada pósmoderna, por representar uma crítica à
etnografia clássica feita em diálogo com a crítica americana contemporânea.
50
próprias visões sob o efeito da droga alucinógena yagé etc., etc. A racionalização para isso,
contudo, não se vincula apenas a preocupações com representação textual em
antropologia. Taussig está interessado em achar por esse meio um efetivo contradiscurso
ao terror na Colômbia e em qualquer outro lugar.
Que espécie de compreensão — que espécie de fala, de escrita ou de construção de
sentido, seja de que modo for — pode lidar com isso e subverter isso? Contrapor ao
eros e à catarse da violência meios igualmente místicos é mais que contra- produtivo.
Mas oferecer as explicações racionais padronizadas sobre a tortura em geral ou sobre
essa ou aquela situação específica é igualmente sem sentido. Porque atrás do
interesse consciente que motiva o terror e a tortura — desde as altas esferas da busca
de lucro das corporações e a necessidade de controlar a força de trabalho, até
equações mais estritamente pessoais de interesse — existem formações culturais —
modos de sentir — intrincadamente construídas, duradouras, inconscientes, cuja rede
social de convenções tácitas e imaginárias repousa num mundo simbólico e não
naquela débil ficção "pré-kantiana" representada pelo racionalismo ou pelo
racionalismo utilitário. Talvez não haja explica-
153
51
tentativas desoladas das ciências sociais. Em vez disso, ele é oferecido como alguma
coisa que você tem que tentar por você mesmo, sentindo seu caminho cada vez mais
fundo no coração das trevas até que você sente do que se trata, a loucura da paixão.
Isso é muito diferente de moralizar a partir de posições à margem, ou estabelecer as
contradições envolvidas, como se o tipo de conhecimento com o qual nós estamos
preocupados fosse de algum modo não poder e conhecimento em unidade e
portanto imune a esses procedimentos. O talento político envolvido na subversão
mítica do mito tem que envolver uma imersão profunda no naturalismo mítico do
inconsciente político da época. (198:10-11).
O livro de Taussig é, sob muitos aspectos, uma imagem especular do seu objeto.
Logo no começo ele afirma que se vale da montagem, e acrescenta que esse é um princípio
que ele aprendeu com o modernismo, mas também com o terror e com "o xamanismo
Putumaio e o seu uso sa
154
gaz, embora inconsciente, da mágica da história e seu poder de curar" (1987: XIX).
De fato, a concepção de Taussig da subversão mítica do mito espelha a sua descrição do
que ocorre numa sessão xamanística. Da mesma maneira que Taussig em seu livro, o xamã
orquestra uma montagem, e as pessoas seguem o seu curso até que elas "sentem" algo.
Nada é explicado, apesar das coisas serem, em um certo sentido, "trabalhadas". Mas essa
talvez seja a principal e crucial diferença entre a sessão xamanística e o texto de Taussig. O
xamã Putumaio atua, intervém no corpo, provoca vômitos, faz as pessoas terem fantasias,
alucinações, "pinturas" e as faz colocarem essas imagens em palavras, exteriorizarem-nas.
Através dessa intervenção, através da atuação das pessoas, o xamã, um índio, um espírito
da selva, lida com mau-olhado, age, e cura. O livro de Taussig, no entanto, é uma
intervenção, mas não uma ação. Ele quer provocar reações no leitor, talvez náuseas, mas
só tem palavras impressas para fazer isso. Essa é uma das razões pelas quais o xamã é muito
mais poderoso do que Taussig pode ser para se contrapor ao terror e à violência. Se ele
pode construir um poderoso contratexto à antropologia, a sua efetividade em construir um
contradiscurso ao terror e à violência não é muito clara. Isso porque não pode haver
contraposição ao terror e à violência apenas através de discursos. A sua lógica é imune às
palavras, mesmo àquelas elegante e poderosamente escritas.
Além disso, cabe perguntar se, ao manter intactas as ambiguidades e ao reproduzir
em seus textos (Taussig 1987 e 1988) o mesmo clima fragmentário, de sentido incerto,
angustiante e oscilante do terror e da violência, Taussig não estará, ao invés de construindo
um contradiscurso, apenas se mantendo preso dentro do mesmo círculo, e ajudando a
reproduzi-lo. Não estará fazendo isso se conseguir produzir em nós, seus leitores, o
estranhamento, o distanciamento crítico em relação ao terror e à violência — mas que seja
esse o efeito de seus textos, é pelo menos discutível.
O que me interessa aqui, contudo, não é apenas ver até que ponto Taussig terá sido
bem-sucedido em sua tentativa de construir um contradiscurso, mas é basicamente
52
reter a sua intenção de construir esse contradiscurso. Pois é ela que nos fala sobre o
papel do autor na antropologia contemporânea.
Dispersão ou responsabilidade?
53
definir como ele quer que a sua voz seja ouvida politicamente — Taussig está fora de sua
bibliografia.
Na descrição do papel que Geertz antevê para a antropologia no mundo moderno
fica claro o abandono dessas questões. Para ele, no futuro a antropologia poderia ser usada
para "permitir conversas através de linhas societais — de etnicidade, classe, gênero,
linguagem, raça — que se tornaram progressivamente nuançadas, mais imediatas e mais
irregulares" (1988:147). A antropologia deveria permitir discursos e conversas entre
pessoas que se diferenciam entre si pelos mais diferentes critérios, mas que compartilham
o mesmo mundo e estão sempre e necessariamente em contato.
156
Claramente Geertz não está mais pensando em sociedades tribais nem
necessariamente em sociedades do Terceiro Mundo — a referência onipresente dos
críticos pós-modernos — mas em sociedades complexas contemporâneas, em qualquer
lugar. Mas será que a sua proposta para a antropologia e seus autores é essencialmente
diferente da da antropologia clássica, que via o antropólogo como mediador, inscritor e
tradutor, só que agora transpondo esses papéis para o mundo moderno? Não me parece
haver muita diferença. E essa visão peca por ingenuidade política. Como é possível
promover conversas entre pessoas que se separam por diferentes linhas societais no
mundo moderno sem pensar no caráter político dessas divisões? Donde vem a neutralidade
possível para mediar as diferenças que são sociais e políticas? Pelo menos desde a II Guerra
a questão da diferença cultural é claramente uma questão política: como é possível mediá-
las a não ser a partir de uma posição específica, que só pode ser uma perspectiva política?
Se Geertz soube reconhecer as responsabilidades do autor contemporâneo de
textos antropológicos, ele, tanto quanto muitos dos críticos pós-modernos, foi incapaz de
enquadrar a antropologia numa perspectiva mais política, como foi incapaz de pensá-la do
ponto de vista da produção de uma crítica cultural, uma perspectiva que parece insistir em
continuar como a promessa nunca realizada da antropologia feita nos países do Primeiro
Mundo.
Do meu ponto de vista, para se repensar, como quer Geertz, o aumento da
responsabilidade do antropólogo/autor no mundo contemporâneo é impossível restringir
as referências ao processo de produção de textos, como tende a fazer a maioria dos pós-
modernos. É necessário incorporar questões como as que Taussig enfrenta, ou seja, não
apenas pensar que tipo de representação é possível criar sobre os outros e quais os nossos
procedimentos ao construir interpretações, mas que tipo de crítica e de política nós
queremos fazer. E essas questões obviamente não se decidem de um modo genérico. Não
consigo imaginar o antropólogo crítico se referindo a um paradigma textual apenas, seja
ele dialógico, monológico, polifônico ou qualquer outro, do mesmo modo que não é
possível pensar em um modelo único de relação com os objetos ou em um único modelo
de crítica. O estilo do texto se define em função do objeto e do tipo de análise que se
pretende — e talvez seja da consciência dessa flexibilidade mais do que de receitas textuais
que nós precisemos. Segundo eu o vejo, faz parte do novo papel do
54
antropólogo/autor a busca do estilo que melhor se adapte aos seus objetivos, a definição
crítica desses objetivos, e a responsabilidade pelas suas escolhas.
157
Teresa Pires do Rio Caldeira é pesquisadora do Cebrap e professora de Antropologia da Unicamp. Já publicou
nesta revista, em co-autoria com Danielle Ardaillon,"Mulher: Indivíduo ou Família" (vol. 2, Nº 4). Novos
Estudos CEBRAP Nº 21, julho de 1988 pp. 133-157-
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Taussig, Michael 1988 Terror as usual. MS.
56
Texto 3
1. Os lugares da cultura
Num contexto de produção intelectual que pensou a cultura no interior de uma relação
indissociável com o espaço, a viagem impôs-se como uma prática obrigatória para quem
queria observar outras culturas. O etnógrafo foi, por isso, concebido pela antropologia
clássica como um viajante que, para conhecer outras culturas, tinha uma experiência de
etnógrafo não teria existido sem uma outra que lhe está intimamente associada. A do nativo
O que isso significa não é apenas que os nativos são pessoas que são de certos
lugares e que pertencem a esses lugares, mas também que eles são aqueles que
estão de algum modo encarcerados, ou confinados, nos seus lugares. O que
precisamos de examinar é essa atribuição, ou suposição, de encarceramento,
aprisionamento ou confinamento. Porque é que há pessoas que são vistas como
confinadas a, e pelos, seus lugares? (Appadurai 1988b : 37).
Esse encarceramento discursivo determinou uma concepção específica das
os como seres confinados pelo que sabem, sentem e acreditam. Dito de outra forma, como
seres aprisionados pelos seus modos de pensar. Ao contrário dos nativos, o antropólogo -
tal como o explorador, o administrador ou o missionário - foi visto como uma personagem
dotada de mobilidade, portanto não confinada a um lugar e não aprisionada por uma
cultura.
57
Deste modo a etnografia reflecte o encontro circunstancial entre a deslocação
voluntária do antropólogo e o "outro" involuntariamente localizado (Appadurai 1988a
:16).
É claro que tudo isso teve, e tem, implicações cívicas. Enquanto as elites ocidentais
são concebidas como viajantes, e a palavra viagem sempre foi acompanhada de alguma
aura, as outras pessoas que viajam são concebidos como imigrantes, e, nessa qualidade,
são sempre associados a uma cultura de origem, localizada num lugar diferente do lugar
onde residem.
É nesse sentido que se pode falar do lugar como sendo uma construção conceptual
trabalho de terreno tradicional pressupôs a existência, ao mesmo tempo que lhe deu forma,
do lugar antropológico, uma figura que, segundo o mesmo autor, tem origem na concepção
que Augé faz questão de relativizar, afirmando que, até certo ponto, corresponde à ilusão
concebido como identitário, relacional e histórico. Fazer equivaler uma cultura a um lugar
associados à deslocação das pessoas, tal como conceber pessoas como nativos equivaleu
58
movimentarem. Daí resultaram textos que mostram as culturas mais como realidades
monolíticas e abstractas do que como realidades diversas e indissociáveis das
representações, das emoções e das práticas das pessoas concretas que as produzem
e transformam.
Como James Clifford (1997) comenta, a situação actual está ainda sobretudo
atravessada por interrogações -
59
- mas não deixam de surgir algumas propostas bem sucedidas de etnografias de um novo
dois personagens centrais do trabalho etnográfico. Do etnógrafo, que passa a não poder
centrar a sua observação num só lugar, e do "informante", que passa a não poder ser
observado enquanto pessoa artificialmente confinada a um lugar. A figura do antropólogo
viajante - mas que agora viaja para acompanhar os “informantes” viajantes - reaparece assim
como uma possibilidade metodológica. Como propõe Marcus (1995a), “seguir as pessoas”
é talvez a forma mais óbvia de materializar uma etnografia multi-situada, tanto mais que se
A primeira dificuldade de uma etnologia do "aqui" é o facto de ela ter sempre que se
confrontar com o "além", sem que o estatuto desse "além" possa ser constituído em
objecto singular e distinto (exótico) (Augé 1992 : 137).
60
A organização do espaço e a constituição de lugares são, no interior de um
mesmo grupo social, um dos enjeux e uma das modalidades das práticas
colectivas e individuais. As colectividades (ou aqueles que as dirigem), tal como
os indivíduos que a elas se ligam, têm necessidade de pensar simultaneamente
a identidade e a relação, e, para o fazer, de simbolizar os componentes da
identidade partilhada (pelo conjunto do grupo), da identidade particular (de tal
grupo ou de tal indivíduo em relação aos outros) e da identidade singular (do
indivíduo ou do grupo de indivíduos enquanto não semelhantes a nenhum
outro). O tratamento do espaço é um dos meios desse empreendimento (...)
(Augé 1992 : 67).
61
Essa alteração de escala passa, necessariamente, pela constante introdução
no trabalho etnográfico dos efeitos da mobilidade; tanto do ponto de vista das práticas
e das representações do observador como do ponto de vista das práticas e das
representações das pessoas observadas.
98, um segundo projecto de filme, a rodar em Lisboa durante o Verão de 98. Na altura,
fazer mais um filme correspondia, para mim, a criar condições de trabalho para
desenvolver algumas das questões que tinha colocado durante as primeiras filmagens.
momento, poder
62
deslocar a família para o meu próprio terreno, alterando assim o sentido do movimento:
deslocar os "informantes" e localizar o etnógrafo. Interessava-me também observar os
efeitos, em pessoas com identidades fortemente marcadas pela diáspora, de uma
visita à capital do País - tinham-nos perguntado como era Lisboa, se era uma cidade
tão grande como Paris - no momento em que aí se realizava uma exposição com
visibilidade internacional, assim como observar os mecanismos de construção de uma
nova componente das identidades pessoais, a identidade de turista. A vinda da família
à Expo conjugava dois tipos diversos de viagem: a do emigrante que retorna à pátria
e, visto que não conheciam Lisboa, a do turista que visita uma cidade desconhecida.
A ideia de fazer um novo documentário - Viagem à Expo - acabou por agradar
a todos e começámos, cineastas, "actores" e antropóloga, a prepará-lo a partir do
Outono de 1998. Entretanto foi terminada a montagem do primeiro filme, que a família
teve oportunidade de ver, em casa primeiro e, depois, na televisão, durante as férias
do Verão de 98, já com a rodagem do segundo acabada. Na Primavera de 99,
terminou-se a montagem do segundo, que a família também viu antes de ser mostrado
pela primeira vez na televisão, no dia em que se comemorou a passagem de um ano
sobre a abertura da Expo.
vividas. O texto que aqui apresento resulta da minha relação com esses dois tipos de
63
3. “Residindo-viajando” e “Viajando-residindo”
64
diferentes, é impossível pensar a relação entre cultura e espaço de um ponto de vista
estável. A família apresenta condições para tentar responder à proposta de trabalho
formulada por James Clifford (1997):
(...) aquilo que está em causa é uma abordagem comparativa por parte dos
estudos culturais de histórias, tácticas e práticas quotidianas específicas de
residir e viajar: viajando-residindo, residindo-viajando (Supra : 36).
Foi o que tentei fazer durante o primeiro ano de filmagens, em que acompanhei
o quotidiano e os percursos da família. Queria perceber como é que os seus membros
construíam as suas identidades pessoais e como é que cada um representava a sua
condição de pessoa em constante movimento entre a ruralidade de um país
semiperiférico (Sousa Santos 1993) e a urbanidade de um país central. Nesse sentido,
procurei sempre interpretar os dados etnográficos colocando-os no interior da
conjuntura específica que é a vida de uma família de emigrantes e, no seguimento das
propostas sintetizadas por Hall (1992, 1996), conceber as identidades dos seus
membros no interior das dinâmicas processuais que vão orientando o movimento das
suas vidas.
Ainda que pareça invocarem uma origem a partir de um passado histórico com
o qual continuam em correspondência, as identidades, de facto, referem-se a
questões de como usar os recursos da história, da linguagem e da cultura no
processo de nos tornarmos em vez de sermos: não é tanto o «quem somos nós»
ou «de onde viemos», como aquilo em que nos podemos tornar, como é que
temos sido representados e como é que isso tem algo a ver com o como é que
nos poderemos representar a nós próprios (Hall 1996 : 4).
discursos, imagens, valores e capitais diferentes. A viagem cultural a que todos foram
sujeitos não foi vivida da mesma forma, tornando-se claro, talvez porque a observação
clivagem de género. Tentarei aqui traduzir algumas das componentes dos discursos e
65
quotidianas, de José e Jacinta, porque me parece serem ilustrativas, enquanto
manifestações individuais e subjectivas, das negociações mais gerais que se desenvolvem
no interior de um campo social preciso, que é o da emigração de portugueses de origem
rural para países centrais europeus.
2
4. Actores de um filme sobre emigrantes
Uma observação atenta dos discursos e das práticas de José permite desenhar os
contornos daquilo que parece ser, para ele, a imagem ideal do “emigrante português”. Essa
imagem revela-se com um forte poder identificador e como um elemento central do
processo de construção das suas identidades pessoal e familiar. De início, quando o
contactámos para fazer o primeiro filme, justificou a sua aceitação dizendo que achava
importante que as próximas gerações soubessem o que foi a vida dos pais; a vida dos
emigrantes. Sem que isso lhe fosse pedido - a nossa vontade ia justamente no sentido
10
66
imagem e de um discurso que integram os valores que ele próprio quer atribuir à referida
categoria. Se a sua vida e a da sua família são adequadas para encarnar a memória da
comunidade emigrante portuguesa (mostrar às próximas gerações o que foi a vida dos pais),
isso significa que, segundo ele, ambas são pautadas pelos valores que devem representar,
4
publicamente, essa comunidade. Foi a crença numa concepção realista do documentário
que o levou a conceber o filme como uma possibilidade de fixar publicamente aquilo que
pensa ser a concepção “emic” da categoria “emigrante português”. Ao longo das filmagens,
foi-se tornando claro que, a partir do momento em que foi testemunhada por uma câmara, a
opção, feita anteriormente, de se identificar, de forma a encontrar nela uma narrativa que dá
sentido à sua própria vida, com a figura do “emigrante português”, se reforçou. Essa opção
identitária conduziu-o a uma atitude performativa (Turner 1982) que se traduziu numa
postura de grande confiança face às câmaras : José esteve sempre a representar o papel
do personagem que escolheu como referente para a construção da sua identidade pessoal.
A rigidez da sua atitude, que quase lhe permitiu elidir as contradições e os conflitos inerentes
aos processos de construção das identidades, tornou-se tanto mais evidente quanto
contrastava com a da mulher, muito mais flexível e, por isso, mais hesitante.
A diversidade das posturas face à câmara, e a importância etnográfica dessa
observação, coloca algumas questões relacionadas com o facto de um filme documental se
rodar no interior de processos de comunicação intersubjectiva (Crawford 1995). O facto de
a vida quotidiana de uma pessoa ser registada por uma câmara manipulada por uma outra
pessoa coloca a primeira, inevitavelmente, numa situação de auto-reflexão. Primeiro porque,
como acabámos de ver, a aceitação de fazer um filme passa por uma reflexão prévia que
implica a definição das suas próprias motivações. Segundo, porque a presença da câmara
significa a presença de pessoas com valores culturais diferentes e consequentemente
implica a interacção com esses mesmos valores 5. Terceiro, porque o facto de a câmara
registar o quotidiano das pessoas as coloca numa posição de exterioridade face a si próprias,
na medida em que as leva a ter consciência de que se estão a transformar numa imagem
que vai ser vista e interpretada por outros 6.
Face ao processo descrito, José manteve uma voz "pública", no sentido de ser uma
voz dirigida ao exterior, marcada pela firmeza de quem se identifica com o papel que está a
representar. Jacinta, pelo seu lado, nunca revelou as razões que a levaram a participar no
filme. A rodagem tornou no entanto evidente que as suas motivações não eram as mesmas
de
67
uma família de emigrantes - a palavra emigrante raramente surge no seu discurso e, quando
aparece, não é para ser utilizada como uma forma de classificação aplicável a si própria -
mas antes enquanto pessoa que vive de forma única o seu percurso de vida7. A sua postura
esteve sempre mais próxima de alguém cuja identidade está marcada pela construção do
self (Giddens1994) e que, por esse motivo, se sente desconfortável quando a colocam no
interior de uma categoria identificadora de um grupo. Mas, e apesar da diferença de postura
face à câmara que os dois membros do casal revelaram, Jacinta “manipulou”, tal como o
marido, a nossa presença desde as primeiras filmagens. Envolta num universo social que
reserva muito pouco espaço para o seu discurso, utilizou a presença da câmara sobretudo
para se fazer ouvir, consciente de que esta era um importante instrumento de fixação das
suas palavras 8. Os membros da equipa de filmagens transformaram-se assim, num contexto
de negociação de uma identidade pessoal que procura fazer a difícil articulação entre os
valores do mundo rural português e os da classe média urbana francesa, em interlocutores
privilegiados. A câmara registou uma voz envolta num universo privado - muito mais
hesitante do que a de José e, por isso, destituída do poder de construção e fixação da
"verdade" que a voz deste pretende ter - e reveladora de um personagem marcado pela
curiosidade pelo desconhecido, pela abertura à diversidade cultural e pela disponibilidade
para colocar a experiência das filmagens no interior de um processo reflexivo de constante
recriação da identidade pessoal.
As filmagens deram-me acesso às vozes subjectivas dos “informantes” e,
consequentemente, aos seus pontos de vista, mas, mais do que isso, permitiram-me, tal
como preconiza MacDougall (1995), ver a cultura como um processo constante de
negociação, interpretação e reinvenção de diferentes práticas e valores.
José passa a maior parte do seu dia a trabalhar na oficina de sapateiro de que é
proprietário. É conhecido no bairro pelas suas qualidades profissionais e pela sua simpatia,
e por isso possui uma sólida carteira de clientes. De algum modo, encarna a atitude positiva
seu êxito profissional são uma evidência reconhecida tanto pelos franceses como pelos
emigrantes do bairro, facto que o coloca numa posição privilegiada para assumir o duplo
estarem
12
68
fortemente marcadas pelo facto de ter assimilado com êxito os valores da sociedade francesa,
que se apresenta assim, a este nível, como a sua comunidade de referência. O investimento
na escolarização dos filhos, que acompanha com visível interesse, revela um projecto de
educação que se pauta pelos mesmos objectivos de integração económica e social que
orientaram a sua própria vida. Mas, e apesar disso, a comunidade de origem - constituída
primeiro pelos parentes em primeiro grau, depois pelos considerados próximos (ou por serem
familiares ou por serem vizinhos em Trás-os-Montes) e, por fim, por todos os emigrantes
portugueses em França - parece ser para ele o único espaço social possível para um
emigrante desenvolver as suas relações interpessoais9. À excepção de um amigo argelino,
proprietário de uma loja perto da sua oficina, não lhe conhecemos qualquer relação exterior
ao trabalho que não se situasse no espaço social referido. Esse universo cultural também
parece conter todas as orientações necessárias à construção de um estilo de vida, porque é
nele que se encontram as pessoas que servem tanto de modelos como de interlocutores e,
consequentemente, de avaliadores.
Um pequeno episódio que se passou durante a viagem de Paris para Lisboa, em que quase
não parámos e em que frequentemente viajámos a 170 Km por hora, pode servir aqui de
exemplo. A certa altura, preocupados com o facto de estarmos a pôr as nossas vidas em risco,
perguntámos: Porque é que não páram? Isto assim é perigoso. José teve dificuldade em
justificar racionalmente um comportamento que se revelava claramente imprudente e
refugiou-se no interior da única comunidade que reconhece enquanto avaliadora dos seus
comportamentos. Respondeu-nos: Porque é assim a vida do emigrante. É uma vida de
sacrifício. E como a resposta era pouco convincente, ainda acrescentou: Até os árabes fazem
assim. Vão até Marrocos sem dormir. A comunidade de referência pode por isso, em casos
de extrema necessidade, incluir emigrantes do Norte de África. O mesmo exemplo pode
ilustrar a diversidade das posturas dos dois membros do casal. Enquanto José e a mãe
fizeram sempre questão de não parar durante a viagem, Jacinta mostrou-se incomodada com
aquilo que sabia ser, aos nossos olhos, um comportamento civicamente condenável10. Por
isso aproveitou a nossa presença para tentar argumentar contra as opções do marido e da
sogra, dizendo que ela não gostava de viajar assim, que era perigoso e enervante e que era
por isso que muitos emigrantes nunca chegavam a chegar à terra. O nosso papel de
testemunhas parece aliás ter jogado a seu favor. No ano seguinte fomos esperar a família à
fronteira de Quintanilha e, logo à chegada, quando perguntámos se tudo tinha corrido bem,
responderam-nos que sim, que a viagem tinha sido boa e que daquela vez tinham parado
mais vezes. Jacinta manifestou ainda
13
69
o seu agrado pelo facto de a partir dali sermos nós a marcar o ritmo, dizendo que sabia que
assim ia haver tempo para ver tudo sem pressas ("ver tudo" é uma expressão de Jacinta que
caracteriza bem a sua forma de estar na "viagem cultural" a que a emigração a sujeitou).
filmadas durante uma missa na Primavera de 1997, ilustram essa postura, embora o contexto
em que foram filmadas justifique uma parte da compostura, algo nervosa, que o casal exibe:
na presença do padre e da comunidade portuguesa do bairro, José e Jacinta assumiam
naquele domingo o papel de actores principais de um filme sobre emigrantes. Ou seja,
apresentavam-se publicamente como os representantes da comunidade presente. A
possibilidade de assumir essa postura reflecte a posição de prestígio que conseguiram
construir no interior da comunidade, manifesta nos comentários da professora de português,
uma figura detentora de alguma autoridade no meio e que considerou que tínhamos escolhido
uma família exemplar: gente honesta e de trabalho. Muito bem escolhida.
70
projecto de manter, no ciclo geracional, o ensino da língua portuguesa. A associação desse
projecto à paróquia que acolhe os portugueses do bairro indicia o importante papel da
religiosidade, e da instituição Igreja Católica Apostólica Romana, no processo de construção
de mecanismos de identificação simbólica da comunidade13: a perpetuação da herança que
sustenta a “comunidade imaginada” passa pela partilha, na língua nativa, de um discurso
religioso.
Antes de filmarmos a missa destinada à comunidade portuguesa, dirigimo-nos ao
pároco responsável, que nos recebeu, revelando grande disponibilidade para apoiar o nosso
projecto. Foi ele quem mais tarde nos conduziu junto de um grupo de portugueses que
ensaiava os cânticos relativos à missa que iríamos filmar, e foi também ele que nos
apresentou, no fim da referida missa, explicando que estávamos ali a realizar um filme sobre
emigrantes portugueses. Trata-se de um pároco francês, consciente das dificuldades que
decorrem do facto de trabalhar numa paróquia que recebe comunidades de imigrantes de
diferentes nacionalidades (a missa de sábado à tarde destina-se à comunidade tâmil e a
paróquia integra também uma comunidade espanhola). A recente partida do pároco português
torna as coisas ainda mais complicadas, porque a comunidade portuguesa insiste no seu
desejo de manter a missa na língua nativa. Face a isso, o pároco aprendeu a dizer algumas
partes do texto religioso em português e optou pela utilização das duas línguas. Explicitou,
primeiro numa conversa com a equipa de realização e, depois, em frente aos portugueses
que preparavam os cânticos, as razões dessa sua opção: a comunidade portuguesa não pode
ficar fechada sobre si própria e a missa tem de poder ser acessível aos outros membros da
paróquia. Mas essa opção, que se prende com o carácter universalista da religião católica,
não é recebida de bom grado pelos portugueses14: aos argumentos do pároco, contrapõem o
seu desejo de comunicar, na única altura em que a comunidade se reúne, na sua língua natal.
As filmagens foram percepcionadas como um momento de produção de uma imagem
pública da comunidade e, por isso, acabaram por revelar alguns dos investimentos colectivos
desenvolvidos pelos seus membros. Primeiro, a preparação dos cânticos para a missa que
filmámos implicou uma dura negociação, em que um grupo de emigrantes se bateu por cantar o
máximo possível em português, e depois, uma vez definida a coreografia da cerimónia, a angústia
em torno da imagem da comunidade que o filme iria construir levou-os a lamentar o facto de
estarmos a filmar numa altura em que haveria pouca gente: as férias já tinham começado, e por
isso as aulas de catequese e de português tinham acabado, o que faria com que muitos
15
71
presentes. O pároco descansou-os dizendo que nós queríamos filmar as coisas tal como
são, ao que eles responderam que então era preciso voltar em Outubro, porque nessa altura
é que se via como a igreja enchia. Face à impossibilidade de manter na sua paróquia a
exclusividade da língua portuguesa, o mesmo grupo de emigrantes referiu-se com orgulho à
Igreja da Srª de Fátima, essa sim, grande, com missa em português e gerida por
portugueses. No dia das filmagens, depois da missa da paróquia de St. Josephe, que se
inicia às nove horas da manhã, a família Fundo, acompanhada por um casal de amigos,
levou-nos à referida igreja, onde assistimos a uma parte de uma cerimónia que se desenrola
debaixo de uma notável organização - quando chegámos fomos recebidos por hospedeiras
que nos orientaram para um lugar vago no interior - e onde, segundo José, todos os
emigrantes de Paris vão pelo menos alguns domingos por ano. A dimensão da Igreja, a
quantidade de pessoas presentes e o orgulho com que os emigrantes nos afirmavam que a
igreja é propriedade da comunidade portuguesa, transcrevem a importância que a
religiosidade também parece ter para a afirmação pública da sua existência. Nesse dia fomos
almoçar à casa da campanha e, apesar de a família já ter assistido à missa dominical, o rádio
Jacinta participa de todas as actividades sociais descritas, mas mantém uma postura
mais discreta e menos entusiasta que José. A sua posição no interior da comunidade
prática social revela a vontade de a manter inalterada. No entanto, em paralelo vai criando
uma pequena teia de relações sociais exterior à comunidade portuguesa, e é nela que vai
procurar os modelos para o estilo de vida que tenta construir para ela e para a sua família.
Na impossibilidade de construir, como o marido, uma identidade profissional que lhe atribua
um lugar no exterior das teias de relacionamento privado, dando assim forma a uma vida
pública mais marcada por padrões urbanos, Jacinta investe na vida privada, que tenta
integrar nos modelos culturais da sociedade parisiense. A sua profissão, porteira do prédio
onde a família vive e empregada na casa de uma médica francesa, coloca-a no interior da
vida doméstica da classe média francesa e permite-lhe observar outros estilos de vida,
72
dessas práticas está sujeita a constantes negociações, que colocam em confronto os
diferentes projectos de vida dos membros da família. A compreensão das opções territoriais
relacionadas com a definição do sistema residencial da família nuclear depende, a meu ver,
do entendimento dos pontos de vista que integram essas negociações15.
Para José, não parece ser muito importante ter uma casa que permita reproduzir o modelo de vida
urbano francês. Por isso privilegia a proximidade do trabalho e a manutenção dos laços familiares.
Viver num espaço minúsculo em Paris e passar os fins de semana numa pequena moradia ao pé
dos pais parece-lhe um modelo de vida aceitável. Além disso, corresponde à situação de muitos
emigrantes, que prescindem do conforto quotidiano para poderem ter uma residência secundária
na periferia16. Pelo contrário, para Jacinta o investimento no espaço doméstico quotidiano da
família parece ser prioritário. O estilo de vida que enquadra o seu desejo - baseado numa
concepção moderna das relações matrimoniais, em que a ligação emocional entre o homem e a
mulher se desenvolve num quadro íntimo (Giddens 1995) - conforma-se dificilmente com a
promiscuidade a que um apartamento de porteira obriga. Uma longa sequência filmada (que
aparece, embora cortada, no filme Esta é a minha casa) ilustra o que acabei de referir. Encostada
a uma parede do pequeno apartamento de porteira, Jacinta confessa-se desconfortável naquela
casa e revela o seu desejo de ir viver para a casa da campanha17 : Mas é mais conforto. E tem
aquela janela. Abro as janelas e bebo o cafézinho ao sol e tudo ... Lá parece que estamos mesmo
em nossa casa, aqui parece que estamos na casa dos outros. Ao contrário do apartamento de
porteira, a moradia é suficientemente grande para permitir que o casal e os filhos tenham os
seus próprios espaços, o que corresponde a uma condição necessária tanto para o
desenvolvimento de uma “relação íntima” com o marido, como para a construção dos selves
dos membros da família. Os brinquedos de Léa, por exemplo, estão no quarto da moradia,
porque os carros de Johnny já enchem o espaço livre do apartamento de Paris. Além disso,
tudo o que permite a existência, no interior do espaço doméstico, de uma vida social virada
para pessoas exteriores ao círculo mais restrito da família - uma grande mesa de jantar,
talheres, louças - está também na moradia. Nas refeições que nos foram oferecidas pelo
casal, Jacinta mostrou o seu perfeito domínio das normas burguesas de hospitalidade que
determinam, numa situação em que se recebem pessoas desconhecidas, o comportamento
de uma dona de casa. O prazer com que o fez revela que as relações com grupos sociais
diferentes da comunidade emigrante fazem também parte do estilo de vida que deseja
desenvolver. Esse estilo de vida implica um tipo de espaço doméstico e um tipo de consumo
incompatíveis com a dimensão e a falta de
17
73
privacidade de uma casa de porteira. A presença de um espaço de representação como
uma sala de jantar com dimensões razoáveis seria, nesse quadro, indispensável.
Pelo seu lado, José sabe que o estilo de vida que Jacinta deseja poria em causa a sua
concepção de família e, por isso, resiste, na medida em que o seu poder lhe permite fazê-
lo. Essa resistência passa, em termos espaciais, pela fixação simbólica e material no lugar
de origem, neste caso na aldeia e na casa dos pais em Trás-os-Montes, e pela
subvalorização do quotidiano parisiense. Numa sequência filmada na casa dos sogros de
Trás-os-Montes no dia a seguir à chegada de Paris, Jacinta aparece no quarto do casal,
sentada numa cama, ao lado de um enorme caixote de papel. Vai mostrando o seu
conteúdo – um serviço de mesa Vista Alegre, que depressa percebemos que fez parte dos
presentes de casamento - e vai dizendo que o marido não quer que se tirem dali aqueles
objectos, nem para os usar, nem para os levar para casa da mãe dela nem, deduz-se, para
os levar para Paris. É uma cena forte, porque deixa o espectador desarmado face ao
absurdo da situação: uma mulher casada e mãe de família desembrulha as suas prendas
de casamento e diz-nos, numa voz em que transparece a tranquilidade da resignação, que
aqueles objectos estão ali, confiscados, à espera de um futuro que nem ela própria
consegue adivinhar.
74
Depois de ver as duas sequências, percebe-se que o modelo de fixação na terra de
também a uma opção de estilo de vida que, apesar de investir na posse de objectos domésticos
de origem urbana – o que, por si só, produz um efeito de distinção (Bourdieu 1979) face a
alguns habitantes da aldeia menos dotados economicamente - prescinde do seu valor de uso
O facto de o habitus que envolve os referidos objectos não ter estado presente conduziu a essa
fractura entre objectos e práticas sociais. Quando foi possível comprar os objectos já era
demasiado tarde para integrar práticas que não faziam parte do habitus da família e a táctica
desenvolvida restringiu-se, por isso, aos efeitos sociais que resultam da simples posse de
dimensões que podemos observar quando procuramos ler a vida dos nossos informantes como
que tentei apresentar até agora como sendo uma dinâmica identitária pode, de facto, ser lido
de um ponto de vista que, ao integrar outras dimensões, nos conduza à questão da cultura que,
75
em contexto de emigração, integrarem uma diferenciação de género. No caso observado, a
a partir dos lugares de origem. A reprodução, numa cidade como Paris, do modelo de
masculinidade que parece estar presente - marcado pela exposição pública de uma
autoridade absoluta e indiscutível sobre a família nuclear e pela efectivação dessa autoridade
Confrontados com os modelos identitários femininos urbanos, que não reconhecem o tipo de
autoridade que estão habituados a representar, temem pela estabilidade das suas identidades
Uma situação vivida antes do início das filmagens revela a transcrição pública que
essas tácticas, que se desenrolam sobretudo na esfera privada, podem assumir. Alguns dias
depois de chegarmos a Paris, eu e o João Rui esperávamos na loja de José por um momento
livre para falarmos um pouco sobre o nosso projecto de filme quando entrou uma rapariga
com uns sapatos para arranjar. Dirigiu-se em francês a José, que na altura conversava com
outros homens emigrantes, e este, antes de iniciar um diálogo em torno do arranjo dos
sapatos, disse-lhe que ali se falava português. A rapariga não se demoveu da sua posição
inicial e respondeu, em francês, que estavam em França e que por isso a língua que se falava
era o francês. Face à firmeza da posição da rapariga, José formalizou- se e disse que, se ela
não lhe falasse em português, ele não lhe arranjaria os sapatos. Ao mesmo tempo pôs a tocar
uma música da brasileira Roberta Miranda e afirmou que era para provar que ali era Portugal.
A rapariga não cedeu. Partiu com os sapatos na mão enquanto nós, as duas pessoas que
tinham acabado de chegar e que estavam ali porque queriam fazer um filme sobre emigrantes
portugueses, ficámos a olhar, perplexos com a cena mas convencidos da convicção com que
José vive a sua identidade de português emigrante20.
A importância que a língua portuguesa, que como vimos também pode estar presente na
aqui claramente. Ao mesmo tempo, o episódio relatado permite introduzir uma nova problemática,
20
76
quando observamos as práticas e os discursos que integram as negociações internas que
conduzem à construção cultural da denominada “comunidade portuguesa”, verificamos que elas
revelam conflitos e lutas de poder que se transcrevem em tentativas da apropriação, por parte
de alguns agentes, dos símbolos que lhe estão associados, no sentido de os utilizarem num
processo de resistência à modernidade21. Quando a luta de poder se assume no interior de um
confronto de géneros, como aconteceu no caso descrito, essa estratégia parece ser sobretudo
desenvolvida pelos homens. A firmeza que a jovem mulher de origem portuguesa manifestou,
face ao grupo de homens emigrantes portugueses, ao recusar-se a partilhar a língua da
comunidade, corresponde à afirmação de um distanciamento face às opções culturais
conservadoras que essa partilha pode implicar e, paralelamente, à afirmação de uma
proximidade com os valores modernos que a língua do país onde vive pode veicular.
Um outro exemplo, relativo a uma família residente em França, mas muito ligada aos valores
tradicionais da comunidade portuguesa, permite-nos perceber como é que as tácticas de
afirmação da identidade masculina atrás referidas se apoiam na transmissão, feita no interior da
sociabilidade intergeracional, de modelos de práticas ritualizadas de exercício de poder. Quando
começámos as filmagens, o filho mais novo de um casal já reformado tinha iniciado uma relação
com uma jovem de origem francesa. Em conformidade com as práticas parisienses, os dois
jovens começaram, por vezes, a dormir juntos nas casas dos respectivos pais. Tudo parecia
decorrer num relativo entendimento até que, alguns meses depois, um conflito revelou, segundo
o discurso das mulheres mais novas da comunidade, a má influência do pai do rapaz no
comportamento deste. Face à passividade que o velho emigrante via no comportamento do filho,
aquele começou a pressionar o jovem no sentido de bater na namorada, argumentando que, se
não o fizesse naquele momento, nunca mais teria mão nela.
Pelo seu lado, as mulheres, sobretudo quando as suas vidas profissionais se desenrolam
no interior das vidas domésticas das classes médias francesas, concebem os modelos
para serem utilizados nas suas próprias tácticas identitárias. É óbvio que também os utilizam
para negociarem com os homens das suas famílias o exercício da autoridade masculina. Nesse
jogo surgem situações de conflito que, como vimos no exemplo anterior, podem conduzir a
uma parte significativa das porteiras é portuguesa. Conhecem-se umas às outras e desenvolvem
entre elas mecanismos de controlo e protecção que passam pela partilha das suas histórias de
21
77
viveram um longo, e por vezes doloroso, quando não violento, processo negocial com
os maridos. As mais velhas parecem, no fim de uma vida em Paris, ter chegado a
situações relativamente estáveis que, numa parte significativa dos casos, dependeu
fortemente dos filhos. Ao fomentarem a integração dos filhos (rapazes e raparigas) na
sociedade francesa elas produzem aliados que, quando adultos, se manifestam
frequentemente a seu favor, contrabalançando assim o poder dos pais. Maria-
Engracia Leandro, no seu estudo sobre a emigração portuguesa em Paris, refere, num
capítulo dedicado à personagem da porteira, o mesmo tipo de dinâmica
intergeracional. Depois de apresentar alguns extractos de entrevistas ilustrativos, a
autora comenta :
Ressalta destes comentários que o contacto com um novo meio social vai
provocar uma ruptura social entre pai e filhos. Ora, a profissão de porteira
conduz ao estabelecimento de relações que têm uma grande influência no
futuro das crianças. Se é verdade que o apartamento de porteira forma uma
unidade à parte e dita a conduta dos seus habitantes - as relações com os
vizinhos, com os diferentes grupos sociais - ele abre também a via ao contacto
e à observação de outros modelos de comportamento sociocultural que podem
ter efeitos sobre a ascensão social (Leandro 1995 : 90).
Neste contexto, podemos ler as vidas de José e de Jacinta como duas formas
resolveram aventurar-se. Para José, essa viagem parece significar antes de mais a
possibilidade de terminar com êxito um processo de integração económica em França
que se traduzirá pela efectivação de uma mobilidade social ascendente. Mas esse
do desejo de estar junto (Hall 1992). Esta atitude, que é reproduzida por outros
que se sustenta na evocação do lugar de origem. É claro que Jacinta participa, como
todos os emigrantes com que mantém relações próximas, nesse processo colectivo
de produção de cultura. Mas para ela a viagem comporta, mais do que para o marido,
a possibilidade de
22
78
construir uma identidade pessoal com referências exteriores ao lugar de origem. Para lá de a
transformação da cultura de origem por via da sua exaltação e da sua objectificação, a viagem
colocou-a ainda numa situação de abertura a outras culturas, o que a leva a um tipo de acção
1.“Na história da Antropologia do século XX, os “informantes” primeiro apareceram como nativos;
emergem como viajantes. De facto, como irei sugerir, são misturas específicas de ambos” (Clifford
1997: 19).
“Na minha problemática actual, o objectivo não consiste em substituir a figura cultural do “nativo” pela
figura intercultural do “viajante”. Mais especificamente, a tarefa é focalizar as mediações concretas entre
os dois, em casos específicos de tensão e relação históricas. Em diferentes graus, ambos constituem
aquilo que irá ser determinante como experiência cultural. Eu recomendo, não que façamos da margem
um novo centro (“nós” somos todos viajantes), mas que dinâmicas específicas de residindo/viajando
sejam comparativamente compreendidas” (Supra: 24).
2. Escrevo aqui emigrantes (e não imigrantes ou migrantes) porque, como se verá ao longo do texto, a
condição de emigrante foi colocada por José (e, por arrastamento, mas não de forma passiva, pelo resto
da família) no centro da representação que fez de si próprio. Além disso, o facto de a equipa de
filmagem ser constituída exclusivamente por portugueses convocou, desde o princípio, para o interior da
interacção que estabelecemos com a família, essa mesma categoria.
3. Como comentei noutro lugar (Silvano 1997b), a metodologia de trabalho que presidiu às filmagens
privilegiou a autonomia dos trabalhos respectivos do cineasta e da antropóloga : o cineasta recolheu as
imagens em função dos seus critérios pessoais de selecção, não tendo havido interferência de critérios,
de carácter conceptual ou analítico, previamente estabelecidos pela antropóloga. Essa metodologia
permitiu que as imagens recolhidas obedecessem sobretudo a uma vontade, neste caso do cineasta, de
ver e de dar a ver, a partir de um ponto de vista pessoal, as pessoas nos seus percursos subjectivos. O
trabalho com um cineasta permitiu-me assim algum distanciamento relativo às técnicas de observação
etnográfica mais clássicas, necessariamente formatadas por uma concepção do social que coloca as
pessoas no interior de categorias predeterminadas. Como refere Marcus (1995a), a ruptura com o tópico
da estrutura, organizador da “etnografia realista”, conduziu à vontade de fixar em texto as “vozes
indígenas”, sem que estas sejam previamente colocadas no interior das categorias que
convencionalmente deram forma à estrutura. Esse trabalho de convocação das pessoas é, como
Marcus também refere, mais facilmente realizado pela câmara do que pela escrita. Nesse sentido,
penso que o presente texto não pode nunca substituir-se ao tipo de leitura que os filmes permitem.
Tentarei no entanto - apesar da utilização de algumas das denominadas categorias de estrutura, sem as
quais a leitura antropológica dos dados apresentados se torna difícil, se não mesmo inoperante - fazer
um exercício de produção de um texto que, sempre que necessário, convoque as pessoas, através da
única forma possível de o fazer, ou seja, tentando traduzir as suas expressões subjectivas. Muitas vezes
esse exercício será feito a partir de uma leitura das imagens cinematográficas, que aparecerão assim
como um suporte do texto.
4. Também aqui podemos referir a existência de algum desencontro entre as concepções que
presidiram ao trabalho da equipa de filmagem e aquelas que presidiram ao trabalho do “actor”.
Primeiro, nós queríamos filmar a especificidade dos percursos individuais, com tudo o que eles têm de
paradoxal e de contraditório, e apercebemo-nos de que José queria que o seu percurso fosse
transformado num percurso tipo, portanto limpo dessas vicissitudes; depois, queríamos que o filme
fosse claramente marcado por um olhar, que tivesse uma autoria, e verificámos que José acreditava no
realismo cinematográfico, ou seja, num cinema destituído de olhar. O primeiro desencontro nunca foi
alvo de comentários, mas o segundo sim. Por delicadeza, José nunca fez, depois de os visionar,
qualquer comentário menos positivo aos filmes. Limitou-se a lamentar a ausência de alguns planos
sobre os quais alimentava expectativas particulares, por exemplo, o da chegada a Quintanilha no Verão
das filmagens de Viagem à Expo, e a pedir cópias, se possível, da totalidade dos planos. No entanto
exprimiu a Rabia Bekkar, uma socióloga sua vizinha que nos havia posto em contacto com José, a sua
perplexidade face ao tipo de planos realizados. A questão essencial prendia-se com o facto de a
representação cinematográfica mais clássica, centralizada na cara, ou seja, na parte do corpo que a
cultura ocidental associa directamente à identidade pessoal, não presidir às opções de colocação de
câmara do realizador.
79
5-
“Os filmes etnográficos raramente revelam tais ocorrências; no entanto, relações de dependência e a
abertura de novos horizontes criadas pelas filmagens afectaram, sem dúvida nenhuma, profundamente
alguns dos sujeitos
filmados, para o melhor ou para o pior. Através de filmes etnográficos, certos participantes alcançam
uma medida de gratificação e de prestígio nas suas próprias comunidades” (MacDougall 1955 : 246).
6.É sabido que a presença do etnógrafo produz sempre a situação de auto-reflexão aqui referida. A
presença da câmara torna no entanto esse facto mais óbvio, na medida em que potencializa as suas
características. A relação de familiaridade que os informantes possuem com a narrativa cinematográfica
– e que não possuem com a escrita etnográfica - facilita a tomada de consciência dos mecanismos de
exposição de si próprios que estão presentes em qualquer situação de registo etnográfico. Esse facto
coloca aliás algumas questões relativas à natureza diferenciada dos dados etnográficos, conforme são
recolhidos através da câmara ou através de uma relação mais tradicional entre o etnógrafo e o informante.
Quando a câmara não está presente, a consciência da exposição pública tende a diluir-se e, nesses
contextos de registo etnográfico, as dimensões mais íntimas, e até mais conflituais, da vida dos
informantes podem surgir mais facilmente.
7. Como veremos, Jacinta convoca, para a construção da sua identidade pessoal, a dupla categoria de
emigrante/imigrante. Não tendo optado, como José, por uma fixação na categoria de emigrante, vai
convocando, de forma circunstancial, aquela que melhor se adapta às suas táticas identitárias.
8.
Segundo MacDougall (1955), a subjectividade pode ser tratada no interior de diferentes modos
cinematográficos. Um deles – aquele que produz uma “perspectiva” – pode constituir-se a partir da voz de
alguém que fala na primeira pessoa, ou seja, de alguém que testemunha : “O testemunho é o que nos dá
a voz subjectiva da pessoa histórica; no entanto, nós estamos implicados no destino dos outros através
da narrativa (...)” (Supra : 250)
9.A estratégia identitária de José aproxima-se do modelo descrito para dar conta da história da
permanência americana das comunidades de Japoneses e de Judeus: “A sua característica mais visível
foi o sucesso económico da primeira geração, mesmo sem se ter dado uma profunda aculturação. Pelo
contrário, ambos os grupos combateram ferozmente para preservar a identidade cultural e a
solidariedade interna” (Portes 1999 : 46).
10. Penso que Jacinta estaria consciente do facto de aquele comportamento integrar a imagem
negativa que os portugueses não-emigrantes fazem dos emigrantes.
11. As opções linguísticas contêm também as marcas do percurso cultural da diáspora. Apesar de
estudarem o português e de frequentarem a catequese em língua portuguesa, os filhos do casal têm
nomes franceses, o que pressupõe uma opção de integração simbólica na sociedade francesa.
12..“(...) a convergência do capitalismo e das técnicas de impressão com a fatal diversidade da linguagem
humana criou a possibilidade de uma nova forma de comunidade imaginada que, na sua morfologia
básica, preparou a cena para o aparecimento da nação moderna” (Anderson 1991 : 46).
13..Tal como Maria-Engracia Leandro (1995) demonstra, o associativismo da comunidade portuguesa
em França encontra-se fortemente ligado às instituições católicas, mesmo quando cobre actividades
que extravasam o âmbito religioso, como é o caso do ensino da língua. A definição da língua em que é
dada a catequese é alvo de negociações em que a comunidade portuguesa se bate pelo português,
reforçando assim a vontade de associar a língua à partilha das narrativas religiosas.
14. Maria-Engracia Leandro refere o facto de existirem diferenças substanciais nas formas observadas
de praticar e vivenciar a religiosidade das comunidades portuguesas, maioritariamente rurais e iletradas,
e das comunidades francesas dos bairros onde habitam. A associação que os emigrantes portugueses
fazem entre religiosidade e nação passa por uma identificação com formas rurais e localistas de
representar, praticar e vivenciar a religião católica, e por uma correlativa subvalorização do seu carácter
universal. Os esforços que desenvolvem para obter a presença nas suas paróquias de padres
portugueses prende-se também com essa concepção localista da religiosidade. No caso em estudo,
essa relação pareceu-me evidente. A sofisticação intelectual que orienta a postura religiosa e cívica do
pároco francês é claramente percepcionada como algo de distante pelos membros mais activos da
comunidade portuguesa.
15. Surge aqui, mais uma vez, a dupla condição de emigrante/imigrante.
16.“É muito raro encontrar num apartamento de porteira portuguesa móveis pesados, de prestígio, que
possam assinalar uma promoção social em Paris. É para a moradia de periferia, que se possui ou que
se sonha possuir, que se investe no mobiliário” (Leandro 1995 : 87).
17. A proximidade excessiva da casa dos sogros obriga a compromissos exteriores ao estilo de vida que
procura e, nesse sentido, a opção ideal seria um apartamento em Paris. Mas, dada a dificuldade da
negociação, durante o período em que decorreu o trabalho de terreno, apesar de fazer referência a essa
possibilidade, Jacinta conformou-se com a opção da moradia que, por esta estar perto da casa dos pais
de José, respondia melhor ao projecto de vida deste.
18..As propostas de trabalho referidas implicaram, no essencial, uma deslocação dos estudos de cultura
material - com base em trabalhos precursores de autores clássicos como Simmel (1978) e Mauss
80
(1974), e em trabalhos mais recentes de autores como de Certeau (1990), Baudrillard (1968, 1972) e
Bourdieu (1979) - do pólo da produção
24
para o pólo do consumo. Essa deslocação implicou uma revisão, e uma consequente complexificação,
das teorias sobre o consumo nas sociedades capitalistas, que passaram a incluir a dimensão
culturalmente produtiva do acto de consumir, agora entendido como um processo de apropriação : “Eu
sugeri que o consumo deve ser entendido como uma actividade social que se tornou, enquanto lugar
através do qual nós mudamos e desenvolvemos as nossas relações sociais, progressivamente mais
importante do que quer a produção quer a distribuição. (...) Por conseguinte, o consumo é mais do que
apenas comprar, ele é melhor compreendido como uma luta que começa com o facto de no mundo
moderno vivermos cada vez mais com instituições e objectos em cuja criação não sentimos que tenhamos
participado. Em consequência disso temos, logo à partida, uma espécie de relação de segunda mão com
o mundo cultural. Podemos no entanto não aceitar isto de uma forma passiva; o nosso objectivo é
frequentemente apropriar e usar essas formas para os nossos próprios propósitos” (Miller 1997 : 26).
19. Sobre a noção de “estilo de vida”, Celia Lury afirma: “Enquanto modo de consumo, ou atitude de
consumo, refere-se às formas que cada pessoa procura para exibir a sua individualidade e o seu sentido
de estilo através da escolha de uma série particular de bens e da subsequente customizing ou
personalização desses bens. Esta actividade parece ser um projecto de vida central para o indivíduo.
Enquanto membro de um grupo particular de estilo de vida, o indivíduo utiliza activamente bens de
consumo – roupas, a casa, mobiliário, decoração interior, carro, férias, comida e bebida, e também bens
culturais como música, filmes e arte – de formas que indicam o gosto ou estilo desse grupo. Nesse
sentido, o estilo de vida é um exemplo da tendência dos grupos de indivíduos para usar bens para
estabelecer distinções entre si próprios e outros grupos de indivíduos, o que suporta o ponto de vista
segundo o qual as práticas de consumo podem ser entendidas em termos de luta pelo posicionamento
social. Todavia, a noção de estilo de vida enfatiza a dimensão simbólica ou estética desse esforço” (Lury
1997 : 80).
20. E esse era, provavelmente, um objectivo que José também pretendia atingir com a dramatização a
que sujeitou as suas opções identitárias (Turner 1982). O facto de a cena ter sido presenciada por duas
pessoas que lhe eram então quase desconhecidas - mas que ele sabia que procuravam “actores” para
rodar um documentário sobre a emigração portuguesa - colocou José numa situação particular, em que a
“apresentação de si próprio” (Goffman 1973) foi feita em função do papel que pretendia assumir no futuro
filme.
21. A facilidade com que as políticas populares de localização assumem valores conservadores e
antifeministas é também assinalada, tendo por referência etnográfica a actual sociedade americana, por
Akhil Gupta e James Ferguson (1992) : «(...) a associação do lugar com memória, perda e nostalgia
favorece os movimentos populares reaccionários. Isto é verdade não só no que diz respeito às imagens
nacionais explícitas, há muito associadas com a direita, mas também no que diz respeito aos locais
imaginados e aos ambientes nostálgicos como a “América das cidades de província” ou “a América dos
cowboys”, que frequentemente favorecem e complementam as idealizações antifeministas de “lar” e
“família”» (Supra :13).
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ANTROPOlógicas
2015, nº 13, xx-yy
Texto 4
RESUMO
Pensamos a etnografia enquanto modo de ação e, na sua relação aberta e íntima com a teoria, também enquanto
modo de expressão. A própria comparação deixa de estar na cultura para passar a estar na etnografia, no destino
que o antropólogo dá aos dados etnográficos. A etnografia constitui-se como o modo epistemológico da antro-
pologia. É justamente pela sua natureza que se percebe a relação entre a prática etnográfica e a teoria antropoló-
gica. Serve este artigo para dar conta do procedimento construtivista do conhecimento, de como ele emerge e se
sedimenta por via da metodologia que afinal caracteriza a antropologia.
ABSTRACT
We understand ethnography as a mode of action as well as a mode of expression, in its open and intimate
relationship with theory. Comparison itself is no longer in the culture but is to be found in ethnography, at the
destination anthropologist gives to his ethnographic data. Ethnography becomes the epistemological mode of an-
thropology. It is precisely because of the ethnography nature we perceive the relationship between ethnographic
practice and anthropological theory. This article serves to account for the constructive procedure of knowledge,
how it emerges and settles through the methodology that ultimately characterizes anthropology.
86
que se adquire com as práticas incorporadas do encon- do tradicional, ao recusar reduzir a experiência vivida
tro dialógico com o outro, que considera o dialógico a modelos mecânicos que representam o essencial da
como um evento1, decorrente das interações sociais experiência vivida no terreno, “dos” e “com os” inter-
entre investigador e seus interlocutores. A etnografia locutores. Na antropologia, esta proposta é sistema-
pretende explicar e analisar a partir da tradução da ex- tizada sobretudo a partir de Jackson (1989), e advém
periência resultante com o outro, e reconhece, identifi- do regresso do corpo como categoria central na teoria
ca e regista como essa experiência embarca no fluxo da antropológica, por volta da década de oitenta do sé-
história. É por isso que requer participação, é aqui que culo XX, onde o método se dilui com a filosofia (num
se eliciam, extrai e suscitam os dados, o lugar onde período da crítica pós-modernista).
emerge e sai informação. É através da participação que Para Jackson, o foco de interesse privilegiado desta
se produz informação, induzindo um mais profundo estratégia metodológica, o empiricismo radical, refere-
entendimento da realidade estudada. Ao induzir-se, se à importância do encontro etnográfico, da prática no
leva-se alguém a praticar um ato, mas também, por via terreno. É no encontro, nas interações com aqueles com
desse ato induzido, se deduz e infere outra multi- quem o antropólogo vive ou estuda que se pode
plicidade de dados (e é aqui que pode surgir a potên- produzir uma espécie de energia empática da parti-
cia da combinação das várias escalas de análise). Esta cipação corpórea do antropólogo, da sua experiência
consciência da participação, enquanto modo de com- pessoal participada com os outros, os interlocutores.
preensão das outras culturas, foi sempre o âmago da Há uma clara primazia na interação observador/
antropologia, já desde Malinowski. A observação par- observado, enquanto ponto crucial da etnografia. O
ticipante implica, portanto, a performance, um estar e contexto que enquadra o encontro entre investigador e
ser com o outro, de forma a melhor o compreender, interlocutor (em confronto com o desenho da inves-
enquadrando o seu habitat de significado, o enqua- tigação) contém e é afetado por se realizar numa deter-
dramento da sua vida ao contexto de análise. A perce- minada circunstância, demarcado por se realizar num
ção de uma situação é radicalmente influenciada pela determinado local e num tempo próprio (com todas as
personalidade do observador, pelas suas ansiedades, contingências ou imprevistos que podem acontecer e
manobras de abordagem (algumas, até, defensivas), as que o investigador tem que estar preparado em lidar);
suas estratégias de investigação, as metodologias, as é no encontro que se situa e acontece a história parti-
suas decisões e posições que atribuem significado às lhada, uma intersubjetividade partilhada ao nível do
observações, a própria razão em ter optado estudar corpo, quando entendido na sua função percetiva, e
este aspeto e não aqueloutro (Devereux, 1967). que obriga a inclusão dos cinco sentidos na perceção
A etnografia é igualmente multivocal, procura-se etnográfica. A antropologia envolve uma atividade de
sempre registar as várias interpretações e formas de reciprocidade e de inter-experiência (Devereux, 1967).
agir dos vários agentes, um imperativo para a obser- Este posicionamento vai-se mostrar fulcral para as
vação participante. Privilegiam-se várias vozes, ativa- opções metodológicas realizadas em certos contextos.
se o debate e trocam-se pontos de vista com os inter- Como nos diz Jackson (1989), interessa justamente a
locutores num “verdadeiro diálogo”, onde se trocam e experiência resultante da viagem etnográfica, em que
negoceiam pontos de vista em conjunto, com um obje- a experiência do investigador se define no campo ex-
tivo claro comum. E neste sentido, não chega “lançar perimental de interações e intersubjetividade, tornan-
as redes” no local certo e esperar que algo caia nelas do-se ela própria um modo de experimentação em que
(como comentou Mauss (in Fortes, 1973, p. 284), é ne- se testa e explora a forma como as nossas experiências
cessário ser um caçador ativo, conhecedor das marés, se conectam com a dos outros.
e lançar bem ao fundo, conduzir para as redes a sua A relação estabelecida no fazer, coloca a centralida-
presa e segui-la até aos esconderijos mais inacessíveis de da pesquisa na experiência física, sensorial, e afeti-
(Malinowski, 2002, p. 7). É a qualidade deste trabalho va do investigador, incluindo-o como agente da inves-
que legitima a autoridade etnográfica. tigação, em relação ativa com os interlocutores. Tem,
A questão da participação torna-se de fulcral im- igualmente, a vantagem de se poder integrar vários
portância para a legitimidade que o etnógrafo adquire modos de participação. É, portanto, necessário refletir
ao jogar na íntima conexão entre a experiência da vida o tipo de participação que se imprime à observação, o
quotidiana partilhada no terreno, a prática, e a con- seu conjunto de características, uma vez que dele de-
ceptualização da vida que produz pela análise conse- corre o tipo de dados etnográficos relevantes para a
quente, a teoria. Aqui, a posição epistemológica e me- investigação. O mais importante torna-se a viagem, o
todológica de uma certa perspetiva construtivista das processo etnográfico propriamente dito.
leituras fenomenológicas, existencialistas e pragmáti- Na viagem etnográfica destaca-se o papel de inves-
cas, permitiram a afirmação de um empirismo radical tigador-antropólogo. O investigador anda por ali to-
herdado de William James (Jackson, 1989). Este,difere dos os dias, atento, participante, e acaba por criar uma
relação afetiva, de amizade com os seus interlocutores.
Este papel de investigador-antropólogo decorre do tipo
de relação formal do trabalho de campo mas cru- za-se
1 Uma extensa bibliografia aborda a questão da etnografia como um com todos os outros papéis adjacentes possíveis
encontro dialógico. Ver, por exemplo Castañeda, 2006; Conquer- good, (contingentes ou não) que integram a observação par-
1991; Conrad, 2008; Denzin, 2001; Fabian, 1990; Madison, 2005; 2006 a);
2006 b). ticipada de uma investigação. Para dar exemplos mais
[p.28]
87
experimentais, quando se trata da realização de um Há, portanto, uma diferença fundamental entre dois
filme etnográfico, o papel de investigador-realizador tipos de participação: a participação que coloca o
cruza-se com o de investigador-antropólogo; ou quan- antropólogo em posição de público, de se referenciar o
do se performatiza a etnografia teatralmente e se faz interlocutor como ator social observado ou, dito de
etnoteatro2 com os interlocutores, se cruza igualmen- outra forma, o antropólogo como espectador da reali-
te o papel de investigador-diretor de uma peça teatral; dade social; e a participação que coloca o antropólogo
ou quando o investigador é convidado a performar como coparticipante, referenciando, agora, a própria
eventos, manifestações performativas organizados pe- relação com o interlocutor, privilegiando a interação
los interlocutores (seja um ritual de passagem, seja um como o foco de perceção do horizonte de uma deter-
baile, seja uma manifestação política) onde se acabam minada situação, ação essa que é sempre consequente,
por revelar experiencialmente (também no corpo do induzindo diferentes modos de se envolver na comu-
investigador) os processos de incorporação que cole- nidade e, portanto, diferentes meios de se produzir
tivamente se constroem, contribuindo para uma even- informação. Também o empiricismo radical coloca o
tual melhor compreensão da domesticação dos cor- foco no fazer em conjunto, na experiência que faz do
pos; ou ainda quando se recorre à foto-eliciação, o uso antropólogo mais um ator do fluxo da experiência vi-
de imagens para a realização de uma entrevista, e se vida do grupo, ou contexto estudado. É na relação en-
conversa com os interlocutores com um sentimento de tre estes diferentes papéis do investigador que o tipo
partilha, de ambos terem experimentado a vivência e de participação se configura e é ditado, revelando os
o estado de espírito daquela situação, mesmo que um diferentes processos de criação, as diferentes formas
seja o retratado e o outro esteja por detrás da câmara. de produção de conhecimento e, finalmente, os dife-
A este respeito, e enquanto metodologia que ex- rentes modos de expressão etnográfica.
pressa inerentemente essa consciência metodológica Pela combinação destes diferentes papéis, o antro-
da necessidade de perscrutar o outro por via de uma pólogo torna-se uma espécie de “espect-actor”3, como
sensibilidade performativa, a foto-eliciação revela-se Boal (2005) definiu para a metodologia do Teatro do
de uma eficácia surpreendente em eliciar a memória e Oprimido. A equiparação que procuro fazer de “es-
evocar diferentes tipos de informação, como se cap- pect-actores” aproxima-se mais do seu papel na me-
turasse elementos mais profundos da consciência, co- todologia do Teatro Invisível (e que se relaciona igual-
nectando com o âmago das definições do self. Permite mente com o happening4). Aqui, o público não tem
aos entrevistados verem-se de uma outra perspetiva, a noção da sua condição de espectador e, como refere
capturada pela objetiva, representação das subjeti- Boal “todos os presentes podem intervir a qualquer
vidades incorporadas no enquadramento. Parece que momento na busca de soluções para os problemas tra-
praticamente não é necessário perguntar nada para se tados” (Boal, p. 20), qualquer que seja a circunstância
iniciar o discurso. Basta manter uma conversa so- bre da performance (artística mas como aqui quero expli-
cada imagem para surgirem comentários sobre os citar, também etnográfica).
mais variados temas envolventes, disparando para vá- Vale a pena notar que a combinação de vários pa-
rios planos de fuga passíveis de serem percecionados péis que o investigador pode criar, em ordem a poten-
como potencial de análise. ciar o tipo de participação, o coloca mais facilmente na
Como se vê, os papéis que o investigador pode as- posição clandestina (de “undercover”), que burila a
sumir devem assentar no fazer “entre” e “com” o gru- condição específica de investigação e o recoloca estra-
po estudado e que, por isso, se enevoa ou obscurece o tegicamente no território interno da comunidade estu-
papel de investigador propriamente dito, ou a separa- dada, mesmo que provisoriamente. Em certo sentido,
ção clássica investigador/investigado, em que o pri- a dimensão de investigador é ofuscada, fica encoberta
meiro é simplesmente aquele que inquire e que detém por outros papéis que o investigador promove. Bau-
a autoridade do discurso. Jogando com os diferentes man (2003) talvez chamasse ao desempenho de um
papéis que ele pode ter na perceção do encontro etno- determinado papel pelo investigador, a identidade
gráfico, há um deslocamento da perceção que se tem decorrente de uma “comunidade-cabide” (cloakroom
do investigador, há uma supressão dessa relação insti- community)5. Naturalmente que isso só é viável salva-
tucional, ela dilui-se, reconfigurando a relação clássica
88
guardando antecipadamente todas as questões éticas zida sem as suas expressões (do discurso e das ações),
que se prendem com a proteção dos interlocutores aquelas que o antropólogo localiza para responder às
(caso seja imperativo), a informação clara dos objeti- suas questões, no limbo das suas próprias posições,
vos da investigação, as autorizações institucionais, etc. também elas performativamente constituídas. Uma
Os “espect-actores” constroem um drama da vida real simples entrevista pode dar conta de uma miríade de
que performam, a partir de temas da comunidade e, assuntos e de equiparações possíveis, quando se inter-
onde “atores [como os interlocutores] e espectadores preta a partir dos atos performativos a ela inerentes.
[como o antropólogo] encontram-se no mesmo nível Dar conta dessa performatividade é, justamente, parte
de diálogo e de poder, não existe antagonismo entre do que se entende por fazer etnografia, da prática para
sala e a cena, existe superposição” (Boal, 2005, p. 20). a teoria.
Foi Castañeda (2006) que primeiramente propôs esta
analogia com o Teatro Invisível, sendo mais que uma
metáfora para o trabalho etnográfico. Para ele, a et- 2. Etnografia enquanto modo de expressão
nografia constitui-se como uma forma específica, um
modo ou manifestação de Teatro Invisível, estrutura- Numa segunda aceção, a etnografia refere igual-
do e concebido a partir da lógica disciplinar e teórica mente um género de texto da ciência social (Clifford,
da antropologia. Marcus, 1986). Aqui, a proposta de Geertz, da etnogra-
Os “espect-actores” (antropólogo e interlocutores) fia poder ser compreendida como um modo particular
são os protagonistas da ação, no sentido de resultar de de inscrever cultura, como um tipo de “descrição den-
um ato, de uma situação que precipita um aconte- sa” (Geertz 1993), produz a viragem interpretativa na
cimento, uma ação que causa uma invocação automá- antropologia e que haveria, então, de ser remexida por
tica de um procedimento, de onde se retém dados e se Michael Jackson. Sem separar de todo, o simbólico do
interpreta a integridade referencial, as propriedades corpo, a ideia do corpo refletir os valores sociais, Jack-
que os dados detêm. Nesse sentido, o antropólogo é son precisa que a ideia de não haver nada fora do tex-
um ativador (ibidem): faz perguntas constantemente, to parece absurdo no mundo real onde o antropólogo
anda por ali, conversa, observa, ouve, lembra-se de faz a etnografia, no fluxo das relações humanas, “the
questões e fá-las emergir, envolve-se com as pessoas, ways meanings are created intersubjectively as well as
solicita e sugere coisas, elicia, ativa, aciona, partilha ‘intertextually’, embodied in gestures as well as in
histórias e experiências, entrevista, etc., uma série de words, and connected to political, moral, and aesthetic
procedimentos que desencadeiam, estimulam, eli- interests. Quite simply, people cannot be reduced to
ciam, ou colocam em funcionamento respostas, ten- do texts any more than they can be reduced to objects”
em conta os objetivos e desenho da investigação. E (Jackson, 1989, p. 184).
assim se recolhe dados, se faz trabalho de campo. O Chama-se, por isto, à atenção para a dimensão per-
antropólogo tem uma ideia pré-imaginada que pro- formática6 da vida. O etnógrafo tem que ler o “texto da
duz uma agenda, implicando estratégias de entrada no cultura”, tem de o interpretar, vivendo-o em inte-
campo, táticas, métodos, de forma a intervir ativa- ração participativa. O paradigma da teoria da perfor-
mente no mundo a estudar. Esse envolvimento resulta mance fala-nos nas limitações da visão “textualista”
das questões que põe mas também da sua atitude, da com o despertar para a centralidade da performance
forma como se apresenta a si próprio, da forma como na dramaturgia da vida quotidiana. Victor Turner foi,
promove a interação que vai caracterizar a observação talvez, o primeiro a alertar para as consequências me-
participante. todológicas deste novo paradigma:
A sensibilidade performativa, como uma prática da
interpretação, conduz-nos para a ideia de que vivemos The movement from ethnography to performance is a pro-
e habitamos numa cultura dramática, baseada na per- cess of pragmatic reflexivity. (…) If anthropologists are ever to
formance. A vida é sempre fazer algo. Não há ser sem take ethnodramatics seriously, our discipline will have to
o fazer e, por isso, todas as dimensões sociais se defi- became something more than a cognitive game played in our
nem enquanto se age, atualizando-se constantemente, heads and inscribed in – let’s face it – somewhat tedious jour-
como a dimensão performativa em Butler (1993) dos nals. We will have to become performers ourselves, and bring
próprios atos linguísticos, onde o próprio discurso é to human, existential fulfillment what have hitherto been only
performativo, espaço onde a identidade se constrói. mentalistic protocols (Turner, 1992, p. 100-101).
Dito de outra forma, as palavras têm efeitos materiais
nas pessoas (falante e ouvinte), constituindo-as através
e ao longo dos seus atos performativos, o espaço onde À intertextualidade, acrescentaram-se os fenóme-
as posições da vida se tomam e as pessoas se definem. [p.30]
Então, não há identidade performativamente produ- 6 O adjetivo performático, adotando a sugestão de Taylor (2007), serve
para denotar a forma adjetiva do reino não-discursivo da performance.
“Why is this important? Because it is vital to signal
the performatic, digital, and visual fields as separate form, though
interesses semelhantes em indivíduos diferentes e que os reúna du- rante of that same logocentricism rather than a confirmation that there’s no
certo tempo em que outros interesses – que os separam em vez de uni- there there” (Taylor, 2007, p. 6).
los – sejam temporariamente postos de lado, deixados em lume brando
ou inteiramente silenciados (Bauman, 2003).always embroiled with, the
discursive one so privileged by Western logocentricism. The fact that we
don’t have a word to signal that performatic space is a product
89
torna absurda a ideia de um todo a priori da realidade
nos da incorporação e a intersubjetividade do corpo7.
(Strathern, 1991). Ao nível das partes sociais, o ato de
Reclamava-se, portanto, pelo reconhecimento da na-
corte pode revelar o que a autora chama de “exten-
tureza corporal do trabalho de campo e a importância
sões” e evocar a perceção de relações resultantes do
da experiência, da perceção de algo que se constitui
encontro etnográfico, a que chama de “conexões par-
enquanto é expresso, e que por essa via adquire um
ciais”.
significado. Turner e Turner (1982) viu realmente o
etnógrafo como um etnodramaturgo e chegou mes-
[E]xtensions – relationships and connections – are inte-
mo a realizar workshops em que se performativizava a
grally part of the person. They are the person circuit. The ef-
cultura teatralmente8. Agora, aqui, trabalham-se as
extensões possíveis entre investigador e investigado, fect of the ‘same material’ produces a perception of the
distinguindo o conhecimento textual do performati- common background to all movement and activity. Hence the
vo. Tratava-se de alertar para a importância do modo further importance of the creative act of severance, the burst
como o antropólogo lê o “texto performativo da cultu- of infor- mation that makes one person visible as an extended
ra”, por oposição ao modo como lê o “texto dramático part of an- other; that makes mother’s brothers feel they are
da cultura”9. only partially connected to their sister’s sons, and that
Uma outra questão que importa clarificar sobre a differentiates between the locations of the person’s identity.
dimensão textual da etnografia é a forma como se esta- The cutting/extension is equally effective, the figures equal to
belece a conexão entre a prática etnográfica e a teoria, one another in substance (….)” (Strathern, 1991, p. 118).
e de expressar esse conhecimento na monografia (ou
no filme etnográfico, ou no etnoteatro). Daí a impor- É essa erupção súbita, essa manifestação repentina
tância em se separar a etnografia como modo de ação e de informação (burst of information), essa emergência
a etnografia como modo de expressão. Clifford (2002), súbita de informação, que torna a pessoa visível en-
discute a ideia de se escreverem etnografias como o quanto parte estendida de uma outra, e que resulta do
modelo de collage, de uma reunião de diferentes for- efeito que determinado material etnográfico contribui
mas que criam um novo todo. Strathern (1991) trabalha para o que está a ser trabalhado, da força que se se-
a proposta de Clifford de forma a evitar a totalização dimenta na perceção de um plano de sentido comum
da cultura, enquanto todo orgânico, a ideia de que as (conectando diferentes escalas de análise). Segundo
partes de que o etnógrafo faz uso são cortadas de um Strathern (2006), a própria prática social funciona já
todo pré-imaginado e concebido. De qualquer forma, pelo processo de corte/extensão. Corte e extensão é já
é sempre pressuposto que os dados de campo arquiva- o procedimento de como se dá sentido à vida. Aliás,
riam esse todo em forma de notas de campo (escritas, uma mera entrevista é já esclarecedora deste facto. Um
fotografadas, filmadas, representadas teatralmente), interlocutor pode estar a falar de um evento e produ-
bem como ao nível da experiência incorporada do in- zir uma extensão repentina com a vida social ao nível
vestigador. Mas seguindo a autora, o problema é que dos costumes para, de seguida, notar algum pormenor
as “partes textuais” são confundidas com as “partes sobre a vida política do país e, logo de seguida, da re-
sociais” da realidade. lação que tem com a sua família, ou com um belo dia
No que diz respeito às partes sociais, a autora su- de sol. Os entrevistados constroem igualmente uma
gere que é por via da comparação, que é por via da narrativa, uma montagem de eventos e ideias por via
analogia, que é por via daquilo a que ela chama de um da colagem, fraturando o tempo, de modo que ele não
rompimento, uma separação, um “ato de corte” (act of é propriamente linear e que os momentos temporais
severance), como diz, um ato que tem sempre uma for- podem surgir em colapso, não sendo introduzidos por
te dimensão criativa e que, justamente por ser criativa sequências causais. Como argumenta Denzin:
Time, space and character are flattened out. The intervals
between temporal moments can be collapsed in an instant.
7 Acerca da dialogia na própria intertextualidade ver Bakhtin (1997). More than one voice can speak at once, in more than one tense.
8 Estas experiências desenvolvem-se no seio da University of Vir- ginia The text can be a collage, a montage, with photographs, blank
com estudantes de Antropologia, e no Department of Perfor- mance
spaces, poems, monologues, dialogues, voice-overs, and
Studies da Tisch School of New York – New York University, com
estudantes de Drama, onde Victor Turner se encontrou com Ri- chard interior streams of consciousness (Denzin, 2001, p. 29).
Schechner, e que veio a resultar no desenvolvimento de uma nova área Como refere Strathern, tanto o corte como a exten-
do saber, os Estudos da Performance. são são igualmente efetivos, igualam-se um ao outro
9 Há aqui uma exportação operativa dos conceitos definidos por Richard em substância. O ato de corte é um ato criativo que
Schechner para as artes performativas. “Performance texts: everything
that takes place on stage that a spectator experiences, from the exibe as capacidades internas das pessoas e o poder
movements and speech of the dancers and/or actors to the lighting, sets, externo das relações (Strathern, 1991), e que é desta
and other technical or multimedia effects. The perfor- mance text is forma que a sociedade parece prosseguir, como uma
distinguished from the dramatic text. The dramatic text is the play, script, configuração de sentido sobre um background de pes-
music score, or dance notation that exits prior to being staged”
soas e relações que constituem um contexto sociocul-
(Schechner, 2006, p. 227). Pretende-se apenas, com esta equiparação, dar
conta das consequências metodológicas que a teoria da performance traz tural. Sendo assim, a antropologia define-sejustamen-
para a observação participante. O texto dramático da cultura poderia não te por via do seu método: a etnografia e a comparação
dar conta de dimensões perfor- mativas que a experiência “da” e que é feita na própria realidade, constituída por via de
“naquela” cultura ainda permi- tem, e que decorrem da natureza da [p.31]
participação etnográfica.
90
conexões parciais. Estas conexões parciais, ao contrá- mando o facto de que todos somos co-performers nas
rio do discurso hegemónico da modernidade na an- nossas vidas, devolvendo aos leitores, ao público, ou
tropologia, operam entre realidades comensuráveis e aos interlocutores, precisamente essa experiência.
incomensuráveis, como veremos, e expressam e tradu- A escrita performativa (Phelan, 1998; Pollock, 1998)
zem questões mais amplas, sobretudo tendo em conta é uma escrita que se expressa simultaneamente a si
que o encontro etnográfico é um encontro informado própria e a partir do que a motivou (é o que faz a escri-
e densificado. ta falar como escrita, algo que implica a desconstrução
No que diz respeito às partes textuais, são a colagem das formações discursivas). Em vez de ser a descri- ção
na escrita e na composição monográfica propriamen- de um evento performativo como “representação
te dita, que procuram justamente dar uma coerência direta”, esta escrita apodera-se novamente da força
retórica ao processo experienciado pelo antropólogo, e afetiva do evento performativo. Ela dirige-se a si pró-
procuram traduzir as extensões produzidas nesse es- pria e às cenas que a motivaram, recriando aquilo que
tar e ser no mundo com a “vida do outro”. No fundo, descreve, tal como pode acontecer, por exemplo, no
é o que a vida vivida faz emergir a partir da qualida- filme etnográfico. Pollock (1998) sugere que a escrita
de do encontro e a partir das múltiplas comparações performativa toma forma no território em que está
possíveis decorrentes das extensões entre si e o outro localizado e que simultaneamente marca, determina,
(antropólogo e interlocutor). Trata-se de traduzir as transforma. Segundo a autora, a escrita performativa
partes, as frações, os encontros, e apresentar as per- evoca mundos que de outro modo eram intangíveis,
formances e os momentos particulares, estabelecendo inlocalizáveis, mundos da memória, do prazer, da sen-
as analogias, as conexões e equiparações necessárias sação, da imaginação, do afeto; tende a favorecer as
para compreender a imaginação cultural, dentro do capacidades generativas e lúdicas da capacidade da
contexto em causa. Na prática social, resultante do linguagem e dos encontros da linguagem (entre o au-
encontro etnográfico e do tipo de relação estabelecida tor e o leitor; o autor e os temas abordados), numa pro-
com o outro, existe já um texto dramático e performa- dução conjunta de significado. Não descreve como no
tivo onde, seletiva ou mesmo assistematicamente, se sentido tradicional um evento ou processo verificado
reconstroem ideias e posições sobre o mundo. Existe já objetivamente. Usa a linguagem como a pintura para
material de sobra para se perceber a integração com o criar o que é mais ou menos evidente, uma versão do
coletivo e as conexões passíveis de reconhecer a socie- que foi, ou do que é. Conduz o leitor-espectador para
dade ou a cultura. Na vida, as ideias do mundo estão uma imediação projetada (mimeticamente) que nunca
sempre a ser colocadas em jogo. O encontro etnográ- esquece a sua genealogia na performance. Ela move-se
fico acaba por ser uma construção, uma fabricação, e opera também através da escrita científica. O escritor
ficção persuasiva que permite a interpretação, arranjo e o mundo dos corpos interligam-se na escrita evoca-
e ordenamento das várias dimensões do mundo estu- tiva, numa co-performance íntima da linguagem e da
dado. Qualquer forma em que se traduzam os dados experiência. Segundo a autora, esta escrita é reflexiva,
etnográficos (monografia, filme etnográfico, ou etno- questiona a estabilidade dos significados porquereco-
teatro) é já o reflexo dessa disposição. nhece que eles são ideologicamente constituídos. E é
A partir da crítica à escrita monográfica, por via do metonímica, e na exposição metonímica, na sua pró-
paradigma da performance, Conquergood (2002) pria materialidade, a escrita sublinha a diferença de
alertou justamente para os problemas do centrismo da um fenómeno baseado no impresso, no corpóreo, no
escrita (scriptocentrism), das monografias se pode- rem afetivo. Ironicamente, a escrita metonímica evoca uma
centrar mais no texto dramático da cultura que no presença do que não está, elaborando aquilo que está.
texto performativo da cultura; alertou ainda para E fá-lo de uma forma parcial, multivocal sendo, igual-
o facto de mais facilmente a escrita olvidar, colocar na mente, consequente, no sentido de ser uma atitude es-
margem, nas fronteiras, todo esse conhecimento tética, ética e política.
humano tácito e performático, sem esquecer que esta Também o filme etnográfico pode bem expressar a
omissão põe em causa a ética da representação. Isto dialogia do encontro e está igualmente engajado com
não quer dizer que a tradução possível numa mono- o tema que o motiva, expandindo-se em mundos sen-
grafia não consiga dar conta das conexões parciais que síveis, permitindo o acesso a realidades do foro da
esse conhecimento possa permitir fazer. Apenas abriu experiência, permitindo uma leitura reflexiva e críti- ca
espaço à experimentação de diferentes formas de tra- por parte do público, ao convocá-lo e transportá-lo
dução cultural e, acima de tudo, de uma sensibilidade justamente para a partilha dessa experiência. E assim,
pertinente para as técnicas de estar e ser na observa- o filme também comunica conhecimento etnográfico
ção participante, nos diferentes tipos de participação ao público por via da sua “escrita” particular. O es-
possíveis, e no que dos papéis de investigador resul- pectador é convocado a interpretar os sentidos subja-
tantes podem contribuir para a qualidade da etnogra- centes ao encontro, nas várias dimensões da realidade
fia. Abriu espaço à sensibilidade performativa e trou- representada. É como se a memória, pelo discurso pro-
xe novas óticas para a perceção e análise do material duzido, se tornasse tangível. Há uma objetivação da
cultural. Enquanto forma de tradução e de expressão história pelo modo reflexivo de construção discursiva
etnográfica, tanto o filme etnográfico como o etnotea- dos interlocutores e que, com a edição, pode resultar
tro surgem como possibilidades para explorar e trans- numa troca de vozes, relativizando os factos sociais,
formar informação em experiência partilhada, confir- destrinçando a sua operacionalidade na vida, expres-
[p.32]
91
sando e acentuando a performatividade da etnografia. dispersa por todo o mundo, construindo o mosaico da
O que importa ainda clarificar em relação à etno- diferença cultural. Fruto do trabalho etnográfi- co em
grafia é que ela não é politicamente inocente. A retó- diferentes locações culturalmente definidas, e com a
rica reflexiva da etnografia tem ajudado a politizar a retórica do discurso antropológico baseada na
própria etnografia no que diz respeito à posição do construção de ideias comensuráveis, formaram-se as
antropólogo no processo de construção e tradução do estratégias localizantes (Fardon, 1990), uma estratégia
conhecimento cultural. Sem descartar os textos, o narrativa de descrever o mundo que ancora concei- tos
paradigma da performance questiona a representação a topografias concretas10. Elas tornam-se no modo
do outro ao trazer para o debate a performance dialó- como a antropologia produz a cultura através da com-
gica como um imperativo ético. Ela assume-se como paração produzindo, assim, diferentes contextos (no
um modo alternativo de saber, responsabilizando o et- seu sentido topográfico). Aqui, a comparação torna-se
nógrafo quanto à qualidade do seu testemunho sobre simultaneamente um fenómeno de fixação e circula-
o outro, e impondo a necessidade de uma vigilância ção de ideias entre diferentes lugares (podendo serem
epistemológica decorrente da responsabilidade ine- exportadas ou importadas). Acontece que no processo
rente à representação que produz a razão da etnogra- de comparação, frequentemente, essa circulação toma
fia. O que daí resulta é que a etnografia constitui-se a forma de uma negação ou inversão da relação que
como o modo epistemológico da antropologia. É isso existe entre os termos aplicados (da mesma família de
que determina o conhecimento produzido, e que legi- significado) e consequentemente, se produz uma ima-
tima a produção de teoria, pela comparação intrínse- gem reprovativa ou pejorativa do conceito (Strathern,
ca à interpretação e análise das partes sociais que se 1990). Por outras palavras, um conceito que produz
convertem em partes textuais, não só aquelas que a asserções eficazes para explicar uma identidade per-
monografia trabalha, mas também as partes resultan- mitiria dizer, no processo de comparação, que uma ou-
tes do encontro etnográfico filmado, das equiparações tra identidade em que isso não se verifica é uma “não-
possíveis que esse material completa e permite com- -identidade” relativamente ao aspeto que o conceito
produziu. Definindo a identidade pela negação enfra-
por. No filme, por exemplo, pode-se justapor imagens
representativas (do arquivo), adensando a descrição; quece-se, escusadamente, a sua capacidade analítica11.
ou ainda as partes sociais que se utilizam para se fazer Até que ponto é que os conceitos limitam ou não o
etnoteatro, quando se entra no processo de construção conhecimento cultural? Serão estes conceitos a tra-
de um espetáculo teatral, no domínio do “como se”, e dução de características hegemónicas de determinada
se trabalha a representação de modos de estar e ser no cultura, do processo de invenção da cultura, ou serão
mundo historicamente determinados criando, por formações discursivas que se sedimentam a partir de
isso, um texto dramático e performativo particular que uma ontologia prévia do mundo real? Perguntas como
pode ser feito com os interlocutores que se pensam (e estas produziram uma crise no seio da antropologia,
aqui, o etnoteatro torna-se igualmente metodologia). permitindo a crítica a todos os literalismos adjacentes.
Estas três formas de expressão etnográfica (monogra- A “morte do sujeito”, a morte das categorias univer-
fia, filme etnográfico, e etnoteatro) envolvem lógicas sais, desmantelaram o argumento comparativista vi-
de pensamento, diferentes níveis de interpretação, de gente. Contudo, o problema da comparação persiste,
perceção, racional e afetiva, determinado por uma ex- ainda hoje, pouco claro. Permanece o perigo em se co-
periência etnográfica própria. Elas complementam-se meter o erro fundador, a ideia de que a antropologia
e aperfeiçoam-se umas às outras, quer por via dos seus mapeia culturas, agora num cenário fragmentado, e
processos de construção distintos (do seu modo par- que agora o trabalho da antropologia seria refazer o
ticular de fazer etnografia e traduzir conhecimento), mapa na mesma lógica de sentido, apenas num mun-
quer pela possibilidade de se produzirem diferentes do transformado.
campos de perceção para o leitor-espectador. Investe-
92
Para Bauman (1992), o conceito de “habitat” ocupa dependente da presença e da qualidade da participa-
o lugar na teoria social onde a agência opera, produ- ção.
zindo-se no curso dessa operação, sugerindo que a no- Os modelos de análise cultural proporcionam uma
ção de agência deve ser combinada com a ideia flexível fonte de compreensão que dá sentido à experiência no
de habitat, o habitat em que a agência opera, onde se terreno, no cruzamento entre habitats de significado e
encontra as suas fontes e os seus objetivos. Então, o ha- a socialidade criada. E por modelo cultural enten- de-
bitat oferece à agência os recursos de toda a ação pos- se um sistema de referência que modela os com-
sível. Como argumenta, é o território dentro do qual a portamentos de determinado coletivo, privilegiando
liberdade e a dependência da agência são constituídas, valores, compondo-os e hierarquizando-os, para dar
o palco onde a ação e o significado se tornam possí- sentido às ações da vida. Qualquer que seja a força
veis. Também para Hannerz, esta ideia estende-se a motivadora dos modelos culturais, ela é condicionada
“habitat de significado” (o nome que optamos usar), e pela prática, e não por um qualquer código abstrato
que inter-relaciona o sentido físico (o sentido de (Hastrup, Hervik, 1994). Deste modo, os modelos de
presença, da experiência de estar, da energia do fazer análise cultural valem enquanto interpretações in-
que Bauman fala), com as capacidades, as competên- formadas da experiência, ou seja, enquanto concep-
cias e possibilidades interpretativas (Hannerz, 1996), tualizações que as diferentes culturas constroem, de-
uma ecologia do self. A produção do habitat de signi- corrente da forma como validam o conhecimento na
ficado só é possível com extensões, relações, conexões experiência das suas vidas. E como isso só é acessível
parciais que se estabelecem entre si e o outro, entre as através das partes sociais que acontecem no encontro
múltiplas agências (corpos, espaços, objetos). E aqui, é etnográfico, são elas que informam o antropólogo no
o corpo físico (e o lugar em que se encontra) que acaba jogo que conecta igualmente a sua própria experiên-
por produzir a ilusão do conceito ser topográfico. O cia e que ele terá de fazer traduzir, enquanto jogo da
corpo assegura a perceção e a expressão, revela a per- etnografia. É, por isso, imperativo participar. A com-
formatividade da vida. É no cruzamento e sobreposi- paração deixa de estar na própria cultura para passar
ção de vários habitats de significado que se podem for- a estar na etnografia, no destino que o antropólogo dá
mar coletivos, grupos, comunidades. Assim, o habitat aos seus dados etnográficos, às equiparações entre as
de significado é constituído num processo que conecta partes sociais que a sua experiência com o outro per-
o nosso capital emocional, a nossa história, memória mitiu construir ou induzir. Para compreender essas
afetiva e pensamento, e que se consuma através de um equiparações no processo de comparação, estas partes
corpo num determinado lugar. Mas também é sociais podem ser comensuráveis ou incomensuráveis
constituído pela forma como uma pessoa se constrói, entre si e, ainda assim, produzirem uma lógica de sen-
os métodos e estratégias que incorpora e de que faz tido.
uso para experimentar relações. É, portanto, conteúdo Lambek (1993; 1998), argumentou que o conceito de
(posições ideológicas e éticas, sentimentais e afetivas), incomensurabilidade é distinto de contradição, opo-
mas também modo de operar com ele (competências, sição, incompatibilidade ou incomparabilidade. Ele
motivações, capacidades). A ideia de habitat lembra- opõe-se a comensurabilidade e, portanto, à impossi-
nos que apropriamos o espaço construindo um mapa bilidade de se poder mediar duas coisas com um ins-
topográfico de significado. Contudo, é antes um mapa trumento de medida comum. A incomensurabilidade,
impregnado de afetividade, de história que se espar- diz Lambek, pode ser um potencial de mais-valia da
tilha ao longo das nossas emoções ressonantes, é um comparação, ao tornar visíveis processos complexos,
mapa simbólico da vida, o habitat de significado. aparentemente incompatíveis no seio de uma, ou mes-
Para resolver o problema da comparação na antro- mo entre várias culturas. Porque na própria prática so-
pologia, tem de se procurar na forma como se con- cial, nos mecanismos culturais de socialização, as par-
ceptualiza o conhecimento, como os membros de um tes comensuráveis e incomensuráveis estão sempre a
determinado grupo objetivam e materializam esse ser comparadas, podendo conjugar vários planos de
conhecimento. Perceber esta questão é revelar a na- sentido e várias lógicas de pensamento em conjunto,
tureza construída do conhecimento etnográfico e sa- mesmo que as pessoas não tenham consciência que o
ber relacionar a prática com a teoria. Na verdade, a fazem, é o que configura o habitat de significado. A
própria realidade sociocultural, na complexa ilha de incomensurabilidade dos discursos e das ações terá de
significado em que o etnógrafo se move, se constitui já ser sempre articulada pela hermenêutica local, em que
em muito material para o antropólogo comparar, e que um constrói a interpretação do outro (Lambek, 1993;
se poderá manifestar nas equiparações que a tradução 1998).
cultural deve fazer. Aqui, continuando com Jackson Para exemplificar a conexão parcial entre modelos
(1989, p. 4), o método comparativo torna-se mais uma que emergem da etnografia, Wikan (1991; 1992), numa
questão de encontrar similitudes e diferenças da nossa etnografia sobre o modo de vida em Bali, revela um
própria experiência em conjunção com a experiência possível caminho para a comparação em termos me-
dos outros, do que encontrar as similitudes e diferen- todológicos. Ao perceber que o “sentir-pensar” (fee-
ças “objetivas” entre culturas. Se há um mapa, será um ling-thinking) é o modo de compreensão e inscrição
mapa de experiências, e dos habitats de significado fundamental para validar o conhecimento das pessoas
configurarem uma espécie de ilha de significado para de Bali, produz-se um modelo cultural que não sepa-
perceber a escala do coletivo. Tal enquadramento será [p.34]
93
ra a razão dos sentimentos12. O modelo em Bali anco- lugar, há a possibilidade de importação (e exportação)
ra o conhecimento com a experiência de uma forma de modelos analíticos culturais, refinando os conceitos
que questiona a ideia na perspetiva ocidental. O sen- em termos da sua heurística, agora para um novo con-
tir-pensar implica envolvimento, e a consciência que texto cultural. Aqui, o trabalho do antropólogo seria,
se tem dele parece ser incorporada. O conhecimento então, a análise dos modelos culturais, podendo im-
ocidental teve sempre a tendência de menosprezar o portar modos de análise se eles entrarem em diálogo
sentimento, porque subjetivo, e sempre suspeito de direto com a interpretação da realidade estudada. A
nebulosidade racional. Ao se perceber o modo como interpretação do grupo estudado pode sugerir já simi-
as pessoas de Bali conceptualizam a forma como se litudes com um modelo cultural já conhecido. E esse
adquire conhecimento, Wikan sugere que talvez o sen- modelo conhecido, para o antropólogo, constituiu a
tir-pensar seja um processo crucial para se adquirir priori um novo conhecimento de si próprio, de enten-
conhecimento sobre si, sobre o outro e sobre o mundo der a sua própria cultura. Pode então reter, dessa aná-
(em Bali, mas também no Ocidente). lise dos modelos culturais, conhecimento suplementar
No Ocidente, por exemplo, a partir de uma inves- para percebermos uma qualquer outra realidade es-
tigação que conduzi a um grupo de teatro univer- tudada. Se a viagem etnográfica necessita da partida,
sitário, e para o que aqui importa, o modo como os que seja o jogo teórico analítico e comparativo, o mo-
membros do grupo percecionam a prática teatral, bem vimento do regresso.
como aquele período da sua vida social, assenta num Miller (2007) propõe a extensão do olhar antropo-
sentir-pensar diferente do hegemónico ocidental. As lógico na sua radicalidade metodológica para com-
emoções trabalhadas, e os sentimentos ensaiados no preender, dentro de uma atualização assumida, o
jogo dramático, bem como toda a sua operacionalida- “macrocosmo” e a sua interligação com o “microcos-
de (sistematizável em modelos, ou em metodologias mo”. O holismo presente em cada indivíduo leva à
teatrais), enquanto mecanismo de produzir extensões, proposta desta ideia de comparação que temos vindo
são igualmente um modo de trabalhar posições no a debater (a comparação intrínseca às partes sociais, e
mundo, mas também de se sedimentarem essas posi- a comparação que a análise destas partes sociais per-
ções e os mecanismos envolvidos para a ação. A partir mite). Agora, um indivíduo pode ser uma sociedade.
das competências do corpo, interfere-se no processo O diálogo entre os dois extremos da análise sociocul-
de incorporação ao longo da vida, e que é trabalhado tural, o muito pequeno e o muito grande, impele à
de forma muito intensa no teatro, onde se tem de estar observação microscópica (o individuo como elemento
sempre disponível para, a partir da sua experiência, se de uma sociedade; o “interlocutor privilegiado” den-
engajar com mundos outros, outras possibilidades de tro de uma comunidade que servia para a antropolo-
vida, outros modos de relação. O jogo dramático gia fazer analogias e perceber “o todo”, como se do
trabalha e atualiza uma géstica, tendo influência no “todo” a comunidade se tratasse). Segundo o autor,
modo de sentir-pensar a realidade, como uma força, e essa observação micro também participou nas “gene-
que se ancora na experiência individual e coletiva, ralizações do mundo”. Contudo (e curiosamente), esse
configurando aquilo que denominamos por ilha de mesmo mundo se tem manifestado numa simultânea
significado. Sendo assim, torna-se possível a equipa- maior particularização da identidade. O indivíduo
ração do modelo cultural que caracteriza as pessoas de torna-se a possível escala da comunidade que se pode
Bali ao da produção da identidade deste grupo, e em cruzar com o mundo. Miller propõe “assumir a pers-
habitats de significado completamente díspares (algo petiva mais holista e englobante que encarcera o indi-
que, aparentemente, pareceria à primeira vista víduo como uma sociedade, recorrendo ao trabalho de
inverosímil porque incomensurável). Este passo com- campo” (Miller, p. 122). Segundo o autor, os mesmos
parativo é heurístico e apenas serve para compreender conceitos operatórios e categorias sociais podem ser
a realidade estudada, não tendo qualquer tipo de am- metodologicamente usados para estudar uma pessoa
bição comparativa essencialista ou universalista. ou o contexto mais amplo em que se insere, a socieda-
Em primeiro lugar, há a comparação que opera na de. Há uma lógica, uma cosmologia, uma “sociedade
realidade social, quer entre comensuráveis, quer entre autónoma” em cada indivíduo, expressão de um ha-
incomensuráveis, com a qual o antropólogo se con- bitus que lhe é peculiar mas que traduz um determi-
fronta no encontro etnográfico porque são imanentes nado contexto social e histórico. Os dados biográficos
da realidade sociocultural. É ao nível da análise produ- de uma escala micro podem caracterizar uma escala
zida pelas etnografias enquanto prática, dos conceitos macro, mais ampla.
operatórios emergentes da lógica de ser e estar local, Entre a perspetiva de baixo para cima e a de cima
que as comparações podem ser encetadas, enquanto para baixo, para estudar o indivíduo (que é estudar a
estratégia de produção do conhecimento. Em segundo sociedade), as “tecnologias de objetivação”13 cons-
[p.35]
12 O trabalho de Damásio (1994) coloca em causa este mito oci- dental, 13 Para Michael Lambek (1993, p. 307), a objetivação é interdepen-
da razão estar separada das emoções, precisamente através do discurso dente da incorporação, há uma dialética particular entre ambas. A
das ciências biológicas que o produziram. Curiosamen- te, é na altura em objetivação é encarada como um processo que segue o curso dos corpos
que Unni Wikan escreve que já prolifera no Oci- dente literatura em vários e das pessoas “na” e “dentro” da esfera pública. Refere-se às
domínios científicos a pôr em causa esta incomensurabilidade. características que são externalizadas e com um certo grau de inde-
pendência dos corpos, signos, regras, efeitos, ou constrangimentos
94
tituem o elo teórico que fazem da prática etnográfica a a variação de escalas de contexto é importante para se
génese da produção de modelos de análise. Assim, perceber todas as dimensões do fenómeno sociocultu-
Miller propõe-nos duas dimensões de análise que, me- ral em análise. A escala de análise é, sem dúvida, um
todologicamente, o etnógrafo terá que identificar. Por tópico inviolável da pré-imaginação etnográfica, bem
um lado, uma dimensão vertical que corresponde ao como dos contínuos ajustamentos ao longo da investi-
que os interlocutores, agora “agentes totais”, enquan- gação. A este propósito, Cordeiro diz-nos que
to pessoa, informam e fundamentam numa ordem an- a macro-escala da ‘sociedade global’ faz parte das micro- reali-
cestral existente (a história da pessoa e seu habitat de dades, territoriais ou outras, constr[uindo] ela também a mi-
significado, o background sociocultural, a geração a que cro-escala. Só conceptualmente se pode introduzir esta sepa-
pertenceu, o seu papel e a sua visão do grupo, etc.), e ração artificial, e só como estratégia metodológica se acentua
que cabe à análise detetar a sua referencialidade. São mais a grande-escala, tentando agarrar a perspectiva emic do
estas objetivações dos sujeitos sociais/culturais em real vivido, ou uma escala mais pequena, mudando a lente de
análise, que nos conduzem, por analogia, ao estado do observação para uma perspectiva mais etic e distanciada de
mundo na sua visão macro. Por outro lado, deve- se uma determinada realidade social. (Cordeiro, 1997, p. 444).
ter em conta, para todos os casos etnográficos, uma
dimensão horizontal, um campo da vida, “estético”, É necessário olhar o local e o global como duas di-
produtor do habitus [como em Bourdieu (2002; 2005)], mensões da realidade, da reprodução sociocultural. O
ou o contexto homólogo interveniente que justifica de- local é relacional e contextual, uma dimensão da vida
terminada ocorrência sociocultural coerente, influente social, uma propriedade fenomenológica estruturada
na identidade, como viável e produtora de sentido. A em práticas e em modos e formas particulares de as
dimensão de análise vertical apresenta-se como com- reinventar, produzindo efeitos materiais específicos
plementar à horizontal. É justamente neste cruzamen- nas relações coletivas (Appadurai, 1997). Constituem
to que, segundo Miller, se determina, hoje, a produção ilhas de significado que organizam e dão sentido à
da identidade. vida partilhada. Já a dimensão global refere-se a tudo
O foco de estudo deixa de incidir sobre as estru- o que é produzido para além das relações face-a-face
turas, padrões, os produtos sociais, para passar a na vida quotidiana e opera através das novas tecno-
trabalhar as lutas, as histórias, tensões, os desejos, as logias da comunicação e das estratégias espetaculares
nostalgias, símbolos e performances que produzem e que daí decorrem, no sentido das novas “encenações”
são produzidas pelas estruturas, padrões, e produtos e estratégias que a consciência coletiva usa para a pro-
sociais, tal como na antropologia que Conquergood dução de dramaturgias (Chaney, 1993). Com as duas
(1991) (Madison, 2005; Madison, 2006a) defende. O dimensões produz-se o contexto. Por isso importam as
terreno intersubjetivo dos modos de ser e estar num ferramentas analíticas e mecanismos de que a ciência
determinado coletivo produz então, as partes sociais social se faz munir para capturar, perceber e intersec-
que o antropólogo trabalha, dialogicamente, numa ob- tar estas dinâmicas aceleradas da identidade no seu
servação que decorre da participação ativa. O próprio contexto. Que limite micro e macro apropriado para a
encontro etnográfico expressa isso mesmo, uma jus- explicação/interpretação dos territórios de influência
taposição ou colagem em que se compara por níveis de em que o observador se move, o da diferença cultu-
equiparação e, assim, dando sentido à realidade ral? Como os assumir e articular? Passará, com certe-
vivida. Deste modo, é pela natureza da comparação za, pela elaboração metodológica, e na determinação
que se percebe a relação entre a prática etnográfica e a de fontes que tenham em conta as duas dimensões da
teoria antropológica, no que diz respeito às partes vida sociocultural. É através da combinação das es-
sociais de que o antropólogo se serve no processo do calas que, por outro lado, se constroem os níveis do
trabalho de campo. Como vimos, na própria realida- espaço de fronteira que constitui o objeto de estudo e
de, a comparação na vida vivida opera já por via da melhor se gerem as esferas de controlo metodológico
incomensurabilidade, de informação que aparece co- implicadas.
nectada e relacionada nos encontros sociais, inseridos
num determinado contexto, e decorrentes das exten- Bibliografia
sões produzidas pela pessoa e das conexões parciais Appadurai, A. (1997). Modernity at Large: Cultural
que o antropólogo visibiliza. Dimensions of Globalization. Delhi: Oxford University
Para definir o contexto de análise (o constituir e di- Press.
mensionar) é necessário uma tomada de decisão me-
todológica acerca do alcance e detalhe que se pretende Appadurai, A. (1986). Theory in Antropology: Center and
investigar. Uma mudança de escala implica uma mu- Periphery. Comparative Studies of Society and Geography, 28
dança de fenómeno e cada escala revela fenómenos e (2), (April): pp. 356-361.
omite ou distorce outros (Santos, 1987). É por isso que
[p.36]
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97
2.3 (Re)descobrir objetos e terrenos: arquivos,
corpos e ciberespaço
98
Texto 5
Teorias Antropológicas e Objetos Materiais
josé reginaldo santos gonçalves
20
(1) Para uma reflexão original e problematizadora da categoria “indivíduo” no contexto da sociedade
eda cultura brasileira ver a obra de RobertoDaMatta (1980)
100
Na medida em que os objetos materiais circulam
permanentemente na vida social, importa acompanhar descritiva e
analiticamente seus deslocamentos e suas transformações (ou
reclassificações) através dos diversos contextos sociais e simbólicos:
sejam as trocas mercantis, sejam as trocas cerimoniais, sejam aqueles
espaços institucionais e discursivos tais como as coleções, os museus e
os chamados patrimônios culturais. Acompanhar o deslocamento dos
objetos ao longo das fronteiras que delimitam esses contextos é em
grande parte entender a própria dinâmica da vida social e cultural, seus
conflitos, ambigüidades e paradoxos, assim como seus efeitos na
subjetividade individual e coletiva. Os estudos antropológicos
produzidos sobre objetos materiais, repercutindo esse quadro, têm
oscilado seu foco de descrição e análise entre esses contextos sociais,
cerimoniais, institucionais e discursivos.
102
tecnológica, o que indicaria a posição similar das socieda- [p.16] des que
as produziram na grande escala da evolução sócio-cultural da
humanidade (Stocking 1968; 1985; Chapman 1985; Dias 1991; 1991a;
1994; Gonçalves 1994; ver Capítulo II deste livro).
103
Esses paradigmas, com suas divergências e convergências,
forneceram os modelos museográficos dos grandes museus
enciclopédicos do século XIX (Schwarcz 1998; Dias 1991a). O objetivo
destes era narrar a história da humanidade desde suas origens mais
remotas, reconstituindo esse longo caminho até chegar ao que
entendiam como o estágio mais avançado do processo evolutivo: as
modernas sociedades ocidentais. É a partir dessas coordenadas teóricas,
fundadas numa concepção de cultura como um agregado de objetos e
traços culturais, que veio a se delimitar uma área de pesquisa: os
chamados estudos de “cultura material”. Como se possível [p.17] fosse
separar na vida social e cultural o material e o imaterial (ver Capítulo XII
deste livro).
A antropologIa pós-boasiana
105
material” a uma posição marginal na disciplina, em grande parte devido
ao desgaste sofrido pela perspectiva etnocêntrica da antropologia
vitoriana. Apesar disso, é importante enfatizar que os objetos materiais
jamais vieram a se ausentar das páginas das monografias
antropológicas. Esse período da história da antropologia, marcado pela
sua profissionalização e pela junção dos papéis de “etnógrafo” e de
“antropólogo” distingue-se pelo afastamento dos antropólogos
profissionais em relação aos museus. A produção científica da
antropologia social ou cultural desloca-se dos museus para os recém
criados departamentos de antropologia nas universidades (Clifford
1988: 21-54; Jacknis 1996; Stocking 2004;
Stocking 1985; Schwarcz 1998).
106
demarcação de identidades e posições na vida social. No início [p.19]
dos anos sessenta, o antropólogo Edmund Leach (1910-1989), ao refletir
sobre o que ele pensava ser a diferença fundamental entre o conceito
de “sociedade” e o conceito de “cultura” dizia:
107
Os estudos de antropologia simbólica
108
suas eventuais mudanças de status ao longo de sua biografia. Enquanto
“objetos cerimoniais”, eles não apenas demarcam posições sociais, mas
permitem que os indivíduos e os grupos sociais percebam e
experimentem subjetivamente suas posições e identidades como algo
tão real e concreto quanto os objetos materiais que os simbolizam
(Mauss 1967 [1947]; Turner 1967; Sahlins 2004 [1976]; Seeger
1980).221
21
(2)Para uma fonte notável de dados e interpretações estimulantes sobre objetos
materiais (mobiliário, roupas, meios de transporte, comidas e bebidas) seus usos e
significados na sociedade brasileira, são indispensáveis as obras de Gilberto Freyre
(1981; 2000; 2004); e especialmente as de Luis da Câmara Cascudo (1957; 1983 [1959];
1962 [1954]; 1983 [1963]; 1986 [1968]; 2001); artigos que publiquei sobre algumas das
obras de Cascudo podem ser úteis (Gonçalves 2000; ver Capítulo X deste livro)
109
A historicização da antropologia: a reaproximação entre
antropólogos e os museus
111
pensamento fundamentais para o ocidente moderno em suas relações
com as culturas não ocidentais: civilizado / primitivo; natureza / cultura;
civilização /culturas; passado / presente; tradição / modernidade;
erudito / popular; nacional / estrangeiro; ciência / magia e religião
(Stewart 1984; Haraway 1989; Schwarcz 1998; Santos 1988;
1992; 2003; 2004; Pearce 1992; Kury; Camennietzki 1997; Cavalcanti
2001; Latour 2002). Entre essas categorias cabe certamente sublinhar o
papel desempenhado pela noção de “autenticidade”, cuja notável
função social, política e cognitiva já foi assinalada por diversos autores
(Sapir 1985; MacCannell 1976; Handler 1986; Clifford 1988; ver Capítulo
VII deste livro).
112
O colecionamento como categorIa de pensamento
113
do século XX e princípios do século XXI, essa instituição parece traduzir
ou representar, em suas estruturas materiais e conceituais, concepções
diversas da ordem cósmica e social (Oliver Impey 2001; Kury &
Camenetzky 1997; Sherman & Rogoff 1994). Além disso, a instituição
parece estar intimamente associada aos processos de formação
simbólica de diversas modalidades de autoconsciência individual e
coletiva no ocidente moderno.
114
comparativa (Baudrillard 1989; Alexander 1979; Hainard & Kaehr 1982;
1985; Pomian 1987; 1991; 1997; 1997a; 2003; Clifford 1988; ver
Capítulo III deste livro) .[p.25]
22
(3) É interessante observar que essa discussão (sobre modos alternativos de
representação etnográfica), que, para muitos, teria sido uma criação dos chamados
“pósmodernos”, é, na verdade, um problema já assinalado por Clifford Geertz no início
dos anos 70: “...a maior parte da etnografia é encontrada em livros e artigos, em vez
de filmes, discos, exposições de museus, etc. Mesmo neles há, certamente, fotografias,
desenhos, diagramas, tabelas e assim por diante. Tem feito falta à antropologia uma
autoconsciência sobre modos de representação (para não falar de experimentos com
elas)” (1973:30).
115
“...nós usamos objetos para fazer declarações sobre nossa
identidade, nossos objetivos, e mesmo nossas fantasias. Através dessa
tendência humana a atribuir significados aos objetos, aprendemos
desde tenra idade que as coisas que usamos veiculam mensagens sobre
quem somos e sobre quem buscamos ser. (...) Estamos intimamente
envolvidos com objetos que amamos, desejamos ou com os quais
presenteamos os outros. Marcamos nossos relacionamentos com
objetos (...). Através dos objetos fabricamos nossa auto-imagem,
cultivamos e intensificamos relacionamentos. Os objetos guardam ainda
o que no passado é vital para nós. (...) não apenas nos fazem retroceder
no tempo como também tornam-se os tijolos que ligam o passado ao
futuro.” (Weiner 1987: 159).
116
Esses dois textos apontam de formas distintas para a função
simbólica dos objetos materiais nos processos de formação de
modalidades de autoconsciência individual e coletiva. A sugestão é que
sem os objetos não existiríamos; ou pelo menos não existiríamos
enquanto pessoas socialmente constituídas. Sejam os objetos materiais
considerados nos diversos contextos sociais, simbólicos e rituais da vida
cotidiana de qualquer grupo social; sejam eles retirados dessa circulação
cotidiana e deslocados para os contextos institucionais e discursivos das
coleções, museus e patrimônios; o fato importante a considerar aqui é
que eles não apenas desempenham funções identitárias, expressando
simbolicamente nossas identidades individuais e sociais, mas na
verdade organizam (na medida em que os objetos são categorias
materializadas) a percepção que temos de nós mesmos individual e
coletivamente (Clifford 1985).
117
guardados sob o controle de determinados grupos (Mauss 2003;
Gregory 1982; Weiner 1992; Godelier 2001; Hénnaf 2002:135-207).
É possível que essa categoria universal de bens nos possa ser útil
para entender ao menos parcialmente aqueles objetos que, uma vez
retirados da circulação cotidiana, vêm a ser, no contexto das modernas
sociedades ocidentais, classificados como “patrimônio cultural”.
Objetos que compõem coleções particulares podem ser vendidos e
comprados; e mesmo objetos que integram o acervo de museus podem
eventualmente ser vendidos ou trocados; mas, em princípio, não é
admitido esse procedimento para aqueles objetos classificados como
“patrimônio cultural” por determinado grupo social. Na medida em que
assim classificados e coletivamente reconhecidos, esses objetos
desempenham uma função social e simbólica de mediação entre o
passado, o presente e o futuro do grupo, assegurando a sua
continuidade no tempo e sua integridade no espaço.
23
(4) Para a já extensa produção bibliográfica sobre patrimônio cultural no Brasil, vale
a pena consultar: Arantes 1984; Gouveia 1985; Abreu 1996; 2003; Londres 1997; 2001;
Rubino 1991; Santos 1992; Lima Filho 2001; Proença 2004; entre muitos outros. Para
a discussão dessa categoria no contexto francês, especialmente do ponto de vista dos
historiadores, ver (Nora 1997).
118
(nações, grupos étnicos, grupos religiosos, bairros, regiões).
Aparentemente, menos ênfase vem sendo dada à natureza mesma dos
objetos eleitos como patrimônio (sua forma, o material com que são
produzidos, as técnicas de produção adotadas, seus usos sociais e
rituais) para representar uma determinada “identidade” e “memória”.
Em alguns estudos, a sugestão implícita ou explícita é de que a escolha
desses objetos seria de natureza arbitrária, contingente, materializando
o que seriam emblemas de “tradições inventadas” (Hobsbawm&Ranger
1992). As ações que levariam a tais escolhas seriam conscientes e
intencionais, visando propósitos ideológicos e políticos em contextos
sociais marcados pelos conflitos de interesses e valores. [p.28] Se
formos coerentes com a perspectiva que estamos explorando, teremos
que efetivamente perguntar se afinal é assim arbitrário e contingente
esse processo de escolha e se, ao legitimarmos essa tese, não
estaremos nos prendendo à lógica etnocêntrica da “razão prática”
(Sahlins 1976). A tese da “invenção dos patrimônios” vem se tornando
uma verdadeira obsessão e penso se não seria tempo de explorarmos a
sugestão segundo a qual mais importante que a “invenção das
tradições”, seria pensarmos na “inventividade das tradições” (Sahlins
1999). Ou, parafraseando a rica sugestão de Roy Wagner, se não será
oportuno considerar se não são afinal os “patrimônios culturais” que
nos “inventam” (no sentido de que constituem nossa subjetividade), ao
mesmo tempo em que os construímos no tempo e no espaço. Em outras
palavras: quando classificamos determinados conjuntos de objetos
materiais como “patrimônios culturais”, esses objetos estão por sua vez
a nos
119
“inventar”, uma vez que eles materializam uma teia de categorias de
pensamento por meio das quais nos percebemos individual e
coletivamente. Por esse prisma, a categoria “patrimônio cultural”
assume uma dimensão universal e não seria apenas um fenômeno
ocidental e moderno: na verdade, manifestar-se-ia de formas diversas
em toda e qualquer sociedade humana.524 Nesse sentido, os processos
sociais e culturais que levam à escolha desses objetos escapam em
grande parte às nossas ações conscientes e propositais de natureza
política e ideológica. Seria importante para o entendimento de sua
natureza o trabalho de acompanhamento dos processos sociais e
simbólicos de circulação, deslocamento e de reclassificação que os
elevam à condição de “patrimônios culturais”. É nesses processos de
reclassificação que podemos surpreender a construção e os efeitos
daquelas categorias fundamentais de objetos situados para além da
condição de mercadorias ou dádivas: objetos que, retirados da
circulação mercantil e da troca recíproca de presentes, acedem à
condição de “bens inalienáveis”, e que circulam, paradoxalmente, para
serem guardados e mantidos sob o controle de determinados grupos e
24
(5) Do ponto de vista das ideologias das modernas sociedades ocidentais, a categoria
patrimônio tende a aparecer com delimitações muito precisas. É uma categoria
individualizada, seja enquanto patrimônio econômico e financeiro; seja enquanto
patrimônio cultural; seja enquanto patrimônio genético; etc. Nesse sentido, suas
qualificações acompanham as divisões estabelecidas pelas modernas categorias de
pensamento: economia; cultura; natureza; etc. Sabemos no entanto que essas divisões
são construções históricas. Podemos pensar que elas são naturais, que fazem parte do
mundo. Na verdade resultam de processos de transformação histórica e continuam
em mudança. A categoria patrimônio, tal como ela é usada na atualidade, nem sempre
conheceu fronteiras tão bem delimitadas. Em contextos não modernos (e mesmo em
contextos específicos das modernas sociedades ocidentais) ela tende a assumir formas
totais, incorporando amplas dimensões cosmológicas e sociais, exigindo assim o seu
entendimento como “fatos sociais totais” (ver Capítulo VI deste livro) .
120
instituições, assegurando para estas sua continuidade no tempo e no
espaço. [p.29]
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131
Texto 6
1 CORPO PRESENTE
ANTROPOLOGIA DO CORPO E DA INCORPORAÇÃO
A ideia inicial para a construção deste volume colectivo surgiu ainda du-
rante o processo de redacção de um livro relativo à minha investigação an-
terior sobre género e masculinidade (Vale de Almeida, 1995). A produção e
reprodução das categorias de género, explicadas então sobretudo ao nível
de discursos e práticas, pareciam necessitar de um entendimento da incor-
poração1 mais ou menos inconsciente de posturas, movimentos, entendi-
mentos e ocultações dos corpos dos sujeitos com género.
A abordagem deste tema teve de ficar suspensa por razões tanto de
economia da escrita, como da novidade relativa do campo e da ausência de
técnicas não logocêntricas no trabalho etnográfico que pudessem dar conta
dos processos de incorporação. No regresso ao quotidiano académico suce-
deu que — e para lá do trabalho de recensão bibliográfica em torno do tema
— a experiência pessoal de aprendizagem da arte marcial chinesa tai-chi-
chuan fez-me descobrir (usando-me a mim mesmo como sujeito e objecto de
questionamento) em que consistia o processo de incorporação. Para aprender
tai chi não é preciso ler manuais. Considera-se, inclusive, que é melhor não
os ler. Não é necessário transmitir informações orais. Não é necessário
conceptualizar ou sequer contextualizar a aprendizagem na fi- losofia
chinesa. Basta aprender fazendo com o corpo, aprender imitando, até que o corpo
reproduza os movimentos certos e estes abram portas para no- vos níveis de
consciência incorporada. Então, sim, premissas, regras e filosofia fazem
sentido. Experiências semelhantes aconteceram com os an- tropólogos
Jackson (1989) e a sua aprendizagem de hatha-yoga; ou com Ots (1994) e a
sua entrada na prática de chi-kung durante o seu trabalho de cam- po na
China.
Para Jackson (1989), aliás, a subjectividade está localizada no corpo,
contrariando assim a ideia de cultura como algo de superorgânico. Usando
um conjunto de ideias fenomenológicas e terapêuticas, segundo comenta
A. Strathern (1995), que em princípio são gerais e transculturais, Jackson vai
132
contra a posição simbolista, afirmando que o corpo não se limita a reflectir a
sociedade. Ele não é apenas inscrito, como nas teorias de Durkheim e Mary
Douglas; constitui-se a si mesmo como body subject. O próprio conhecimento
derivaria da empatia e do envolvimento prático e sensual — e não de princí-
pios gerais. O uso mimético do corpo seria a base para alcançar o sentimento
de viver em comum com os outros.
As questões epistemológicas e metodológicas que se colocam à antro-
pologia contemporânea estão intimamente ligadas a aspectos como o acima
mencionado: desde o papel do antropólogo no terreno, na escrita, na respon-
sabilidade pública do seu trabalho e nas metodologias que permitam conhe-
cer “por dentro”, sem esquecer a política da relação de observação, até à
reavaliação do que significam conceitos como sociedade, indivíduo, pessoa,
self, sujeito e, consequentemente, corpo.
Um autêntico boom sobre o tema do corpo e da incorporação tem surgi-
do nas ciências sociais na última década. Seja no enquadramento teórico de
uma teoria da prática ou do regresso da fenomenologia, o tema ganhou esta-
tuto de coqueluche nos grandes centros de produção académica, especial-
mente no mundo anglo-saxónico. Duas perguntas se impõem a quem, como
os autores deste livro, recebe as exportações dos centros académicos globais:
trata-se de um movimento genuíno de reavaliação das nossas premissas
epistemológicas e metodológicas através de um novo tema? Ou trata-se de
uma estratégia de política académica para a conquista de “feudos” temáti-
co-teóricos? Esta é, desde logo, uma questão que esteve na raiz deste livro. A
perplexidade sentida por muitos dos participantes em torno da questão “de
que falamos quando falamos de corpo?” assemelha-se em tudo à exposta por
José Gil (1995):
Acontece, porém, um facto curioso: justamente enquanto esta moda revela uma cada
vez maior sensibilização aos problemas do corpo com a tendência para afir- mar a sua
importância nos mais diversos campos, volta-se a velhos conceitos (…), idênticos
àquelas ordens de signos que serviram para explorar o corpo. Este tornou-se o
significante despótico capaz de resolver todos os problemas, da de- cadência da
cultura ocidental até aos mínimos conflitos internos dos indivíduos. Semelhante
concepção não seria perigosa se não elevasse o “corpo” à categoria de significante
supremo que, enquanto preenche um vazio, substitui tudo aquilo de que foram
privados os nossos corpos, pelo menos a partir da desagregação das culturas arcaicas
(1995: 201-202).
133
algo liceal e auto-reprodutivo, das nossas universidades, bem como a margi-
nalidade em que nos encontramos na economia-mundo do conhecimento, le-
vou a uma perplexidade expectante em relação aos desenvolvimentos desta
área. Mas, paradoxalmente, as nossas desvantagens parece serem também as
nossas vantagens, pois podemos manipular fontes de origens nacionais di-
versas, somos híbridos de cidadãos da periferia e membros de uma elite cul-
tural transnacional, e encontramo-nos numa “zona de contacto” (Hastrup,
1995) propícia ao desenvolvimento do “momento experimental” em que a
antropologia se encontra (Marcus e Fischer, 1986).
A estratégia para a organização deste livro partiu, pois, da curiosidade
em saber que pensariam os colegas sobre o assunto, particularmente que sen-
tido fariam as expressões “corpo” e “incorporação” se confrontadas com os
dossiers das suas pesquisas, mesmo que estas não tivessem aqueles por ponto
de focagem privilegiado. Neste sentido, é um livro-experimentação, em que
se assume a bricolage de diversos contextos e tendências confrontados à luz
de palavras-chave. Por isso, e ao contrário do que é costume, o livro não cons-
titui as “actas” de um seminário académico, actas essas minuciosamente
revistas após a recepção e discussão dos textos. O livro, pelo contrário, apre-
senta-se à discussão.
A maioria dos convidados pertence ao que se poderia chamar uma nova
geração de antropólogos, formados em Portugal no seio de academias que,
por sua vez, floresceram após 1974 com académicos vindos do estrange- iro
ou formados no estrangeiro. Pertencem a uma geração que quer partici- par
de igual para igual na produção científica internacional e nos fora de
discussão e circulação apropriados. As questões colocadas aos participantes,
se bem que a partir do questionamento do estatuto do corpo na antropologia
e do surto de produção internacional em torno do tema, implicavam um con-
junto de outros questionamentos.
Por um lado, os de tipo metodológico, propondo uma reflexão sobre o
logocentrismo, a escrita, a visualidade ou a performance como instrumentos
expositivos questionáveis ou potenciáveis a partir do corpo. Por outro lado,
pretendia-se estimular uma reflexão sobre se a temática abordada poderia
ser uma ponte (ou, pelo contrário, um corte) entre modelos linguís- tico-
textuais, simbólicos, cognitivistas, fenomenológicos, hermenêuticos, ou
pragmatistas. Tendo sempre como pano de fundo a experiência da investiga-
ção antropológica que tantas vezes nos ensina que é preferível o diálogo en-
tre teorias à luz da diversidade de objectos de análise e experiências de
terreno, do que um manual monolítico para a leitura do mundo. Precisamos
hoje mais de “itinerários” do que de “mapas” (Hastrup, 1995).
Este trabalho é um desafio no sentido de, num contexto algo periférico
de produção teórica, não desistirmos de avaliar a relevância do que chega de
fora, não hesitarmos em confrontar essas contribuições com as nossas etno-
grafias, sejam elas nacionais ou não. Igualmente, é um desafio no sentido de
134
nos engajarmos no momento histórico em que vivemos, momento esse que
apela a uma “política da vida”, como diria Anthony Giddens (1992), em que
o corpo é um terreno privilegiado das disputas em torno quer de novas
identidades pessoais, quer da preservação de identidades históri- cas, da
assunção de híbridos culturais ou das recontextualizações locais de
tendências globais.
Quando se fala de corpo em antropologia, é incontornável o legado de
Marcel Mauss, para quem toda a expressão corporal era aprendida, uma afir-
mação entendível no quadro da sua preocupação em demonstrar a interde-
pendência entre os domínios físico, psicossocial e social. Tanto Mauss como
Van Gennep mostraram que as técnicas do corpo correspondem a mapea-
mentos socioculturais do tempo e do espaço. Mauss argumentou que o corpo
é ao mesmo tempo a ferramenta original com que os humanos moldam o seu
mundo e a substância original a partir da qual o mundo humano é moldado.
O famoso ensaio sobre as técnicas do corpo 1980 (1936) abordava os modos
como o corpo é a matéria-prima que a cultura molda e inscreve de modo a cri-
ar diferenças sociais. Isto é, o corpo humano nunca pode ser encontrado num
qualquer suposto “estado natural”.
As premissas de Mauss foram contemporaneamente desenvolvidas por
Mary Douglas:
135
nas nossas agendas de investigação. Como se só houvesse duas possibilida-
des: ou o remetimento (excludente) para o domínio do biológico, ou o mape-
amento da acção das categorias sociais sobre os corpos enquanto argamassa e
não pessoas.
Não se pretende aqui historiar a abordagem do corpo e noções correla-
tivas em antropologia — o que resultaria em mais uma (necessariamente má)
história da disciplina e do pensamento ocidental, bem como das sucessivas
malaises do Ocidente e dos seus encontros e confrontos com os Outros. Cabe,
sim, resumir a produção que tem sido feita sobre o corpo em antropologia,
imediatamente antes e durante o surto desta “moda” ou, para evitar o juízo
de valor, deste facto social académico. Comparem-se dois textos genéricos
separados por vinte anos: a introdução de Blacking (1977) a The Anthropology
of the Body e a recensão de Lock Cultivating the Body (…) (1993).
Blacking iniciava então a sua obra colectiva com uma citação de Merle-
au-Ponty:
É através do meu corpo que compreendo as outras pessoas; assim como é através do
meu corpo que percepciono as “coisas”. O significado de um gesto “com- preendido”
deste modo não está escondido por ele, está sim entrelaçado com a estrutura do
mundo (1962: 186).
De seguida, porém, como que pede desculpa aos leitores, dizendo que, em-
bora comece com esta citação — para ele “demasiado fenomenológica” —,
procura estudar as fundações biológicas e afectivas das nossas construções
sociais da realidade, sendo a sua preocupação central os processos e produ-
tos que são exteriorizações e extensões do corpo em vários contextos de inte-
racção social. Referindo-se aos fundadores Mauss e Durkheim, diz que as
técnicas do corpo não se aprendem apenas com os outros, mas descobrem-se
através dos outros.
As premissas que Blacking estabelece para uma antropologia do corpo
são emblemáticas de algumas preocupações da época “pré-corpo”. Contras-
tam por ausência com algumas das que, mais adiante, definirei como as
nossas contemporâneas. Em primeiro lugar, baseando-se em Durkheim, en-
tende que a sociedade não é um ser nominal criado pela razão, mas um siste-
ma de forças activas; não é um mero organismo singular, mas sim um
fenómeno biológico, um produto do processo evolutivo, sendo a linguagem
uma forma de comunicação entre outras — e tardia. Em segundo lugar, todo
o membro normal da espécie teria um repertório de estados somáticos e um
potencial comum para alcançar estados alterados de consciência, mas tam-
bém as mesmas propriedades específicas da função cognitiva. Em terceiro
lugar, se a condição básica da sociedade é um estado de fellow-feeling que
pode ser percepcionado pelas sensações de organismos individuais, as for-
mas de interacção não verbais são fundamentais. Por fim, a mente não pode
136
ser separada do corpo. As preocupações dos textos daquele livro giram so-
bretudo em torno do interface entre evolução / biologia e comunicação, ou
então em torno de etnografias dos sistemas de classificação simbólica elabo-
rados a partir do corpo e dos sentidos.
Lock (1993) não começa por dizer placidamente, como Blacking, que o
corpo é o laço entre a natureza e a cultura, mas sim que o corpo medeia toda a
reflexão e acção sobre o mundo — uma diferença substancial. Descrevendo
primeiro a influência de Durkheim e Mauss, as análises simbólicas ou o anti
universalismo de Mary Douglas (e suas críticas em relação a Freud e Lévy-
Strauss), termina uma parte introdutória dizendo que a inflexão feita por
Douglas constituiu uma reformulação do problema do corpo como pro-
blema de semiosis; ou seja, como funciona o corpo enquanto transmissor e re-
ceptor de informação — uma função do posicionamento do indivíduo na
sociedade que teria a ver com a dificuldade de as pessoas simultaneamente
terem e serem corpos.
A recensão de Lock aborda sete tópicos, que servem aqui de mapea-
mento das áreas mais focadas pela antropologia contemporânea em torno do
corpo. O primeiro diz respeito à incorporação, em que acentua a redefinição
feita por Bourdieu a partir de Mauss. O seu contributo é equiparado ao de De
Certeau (1984) e Elias (1978), sendo colocado na linhagem da filosofia de
Husserl e do combate aos modelos cognitivistas e linguísticos. Importante é a
referência ao esforço de Jackson (1981, 1989) em desenvolver uma teoria da
incorporação baseada no mimetismo: as práticas corporais mediariam uma
realização pessoal de valores sociais, uma afirmação com reminiscências de
Victor Turner.
Em segundo lugar, o tema da construção do self e do Outro. Embora a psi-
canálise não permita, na sua opinião, uma perspectiva radical da incorporação,
Lock relembra a necessidade de a antropologia do corpo incluir uma teoria da
emoção, sendo emblemática a ideia de M. Rosaldo (1984) das emoções como
pensamentos incorporados e marcados pela consciência do envolvimento do
sujeito em certas situações de interacção. Alternativamente, uma etnografia dos
sentidos poderia, como lhe parece indicar o trabalho de Desjarlais (1992), con-
duzir a uma política da estética assente na experiência sentida.
O terceiro bloco corresponde ao tema dos corpos dóceis e resistentes. A
noção de biopoder de Foucault é fortemente castigada por não demonstrar a
implementação da microfísica do poder na prática, mas a obra do filósofo
francês é resgatada pela vertente da reintrodução da História. A referência à
obra de Comaroff (1982, 1985) — em que se discute como o controlo políti-
co-ritual é imposto nos domínios da produção, troca, sexualidade e cuidados
maternos, através de uma focagem na significação corporal da memória soci-
al — pretende realçar que as mudanças na ordem social e política têm de ser
acompanhadas por mudanças no “esquema mnemónico inscrito numa for-
ma física”.
137
O quarto tópico aborda a doença como performance cultural: os muitos
trabalhos sobre doenças de “nervos” mostram como estas são performances
culturais, parte de um repertório que permite o exercício de alguma força por
parte de quem está destituído de poder. Um exemplo seria o trabalho de Ong
(1988) sobre possessão em operárias de multinacionais na Malásia, que assim
negoceiam alterações no sentido auto-identitário de género, condições de
trabalho e modernização.
O quinto bloco aborda a montagem, a mimesis, a alteridade e a agência:
trata-se de um parágrafo feito à medida do trabalho de Taussig (1993), no
qual o autor apela a uma ciência das mediações, em que self e Outro estejam
ambos explicitamente implicados no processo de justaposição de “dissimila-
res” — a “montagem” —, explorando a faculdade mimética ou a compulsão
de se tornar no Outro verificada na história de colonizadores e colonizados.
O sexto tópico aborda a epistemologia e política do corpo. Nesta área
têm surgido muitos trabalhos sobre os discursos biomédicos e epidemiológi-
cos e seus sistemas classificatórios, bem como abordagens radicais do conhe-
cimento e das práticas médicas (“como é que os médicos e os doentes sabem o
que sabem?”), produzindo-se assim um corpo instável, resultado de trocas
entre conhecimento local e global.
Por fim, a normalização e reconstrução de corpos, com ênfase em Rabi-
now (1992) (e no seu trabalho sobre o projecto do mapeamento do genoma
humano, o qual, refazendo a natureza em cultura, levará a uma “biossociali-
dade”), e em M. Strathern (1992), cujo trabalho sobre novas tecnologias
reprodutivas explora os efeitos destas nas ideias sobre parentesco e relacio-
namento entre seres humanos.
Embora no presente livro não se pretenda fazer uma abordagem com-
pleta da área do corpo, a fertilização mútua entre sociologia e antropologia
obriga a incluir uma referência a M. Featherstone e B. Turner (1995), os quais,
ao iniciarem a mais recente revista sobre o tema, Body and Society, fazem um
balanço das investigações na área da sociologia, em que uma recensão dos te-
mas abordados não parece ser substancialmente diferente da antropologia,
exceptuando alguma ausência da perspectiva etnográfica e comparativa e
uma maior concentração nas transformações da tardo-modernidade ociden-
tal. Quatro grandes tópicos são delineados, porém, no que respeita às priori-
dades de investigação actual e futura. Em primeiro lugar, procurar respon-
der às questões sobre o que são o corpo e a incorporação. A questão da natu-
reza do corpo levanta a da natureza do self; autores como Shilling (1993) e
Synnott (1993) dizem que o self na sociedade modernaéo projecto do corpo, e
Giddens (1991) ao falar do self reflexivo associa-o à ideia de que o corpo pode
ser moldado na sociedade moderna de modo a exprimir as narrativas au- to-
reflexivas.
Em segundo lugar, dizem ser necessário desenvolver uma noção incor-
porada do ser humano como agente social e das funções do corpo no espaço
138
social. Em terceiro lugar, afirma-se ser preciso mais do que a noção do corpo
cultural e representacional: é necessário compreender como a incorporação é
fundamental para os processos de reciprocidade e troca — a partir de Goff-
man —, mas enveredando pelo estudo da cultura de consumo, mostrando
como o self moderno é representacional, mas procedendo também a uma
análise dos afectos, emoções e imagem corporal nas reciprocidades e solida-
riedades. Em quarto lugar, é afirmada a necessidade de mais história do cor-
po, à semelhança da abordagem feita por N. Elias sobre a domesticação das
emoções através das maneiras e controlos corporais.
Um lugar de destaque deve ser conferido a Anthony Giddens, por ve-
zes acusado pelos sociólogos do corpo de não ter uma visão específica da in-
corporação. Mas a sua tentativa de entender as relações entre agência e
estrutura pode ser ideal para o pragmatismo epistemológico. Reconhecendo
que na teoria social recente, o tema do corpo está associado ao nome de Fou-
cault, a análise deste da relação entre o corpo e os mecanismos de poder con-
centrou-se na emergência do poder disciplinar da modernidade. O corpo ter-
se-ia tornado no foco deste poder e este, em vez de marcar aquele, sujei- ta-o
uma disciplina interna de auto controlo, produzindo os corpos dóceis.
Giddens, todavia, acha isto incompleto, por Foucault não analisar a relação
entre corpo e agência.
Giddens afirma claramente que o corpo não é apenas uma entidade físi-
ca que possuímos (ainda que para a criação da auto-identidade, segundo La-
can, seja preciso o estádio do espelho, em que a criança se vê separada do seu
corpo). Ele é um sistema-acção, um modo de praxis, e a sua imersão prática
nas interacções quotidianas é essencial para a narrativa da auto-identidade.
Em termos de self e auto-identidade, Giddens presta atenção sobretudo à
aparência, posturas, sensualidade e regimes do corpo. Se o corpo era um as-
pecto da natureza, com a invasão do corpo pelos sistemas abstractos (isto é, o
conhecimento científico aplicado), o corpo como self torna-se um local de in-
teracção, apropriação e reapropriação.
Não estão atrás delineadas — nas abordagens do corpo (mas não por
acaso no corpo?) — algumas das tendências e problemas que se colocam à an-
tropologia contemporânea? No seu texto “Introduction to culture” incluído
na Companion Encyclopaedia of Anthropology, Tim Ingold define quatro suces-
sivas abordagens da cultura na história da disciplina. Primeiro, as noções de
escala de progresso teriam igualado cultura a civilização. Em segundo lugar,
o relativismo, que teria correspondido a uma pluralização da noção de cultu-
ra, sendo cada cultura uma tradição específica. Num terceiro momento, ter-
se-ia dado uma mudança desde o enfoque nos padrões de comportamen- to
para um enfoque nas estruturas de significado simbólico subjacentes,
opondo-se assim cultura a comportamento, do mesmo modo que língua a
fala, e sendo cada cultura um sistema partilhado de representações mentais.
Por último, a disciplina teria começado a procurar a fonte generativa da cul-
139
tura nas práticas humanas situadas no contexto relacional do envolvimento
mútuo das pessoas no mundo social, e não nas estruturas de significação com
que o mundo é representado (Ingold, 1994).
É certo que não estamos perante paradigmas sucessivos e excluidores
dos anteriores, sobretudo no caso dos dois últimos, que são complementares
no trabalho da etnografia, da comparação e da discussão teórica. A possível
complementaridade entre análises de estruturas sociais, classificações sim-
bólicas e práticas agenciadas é mesmo uma das questões implícitas da co-
lectânea que aqui apresento. Ingold reconhece que a questão de vulto subja-
cente às diferenças apontadas (sobretudo entre a terceira e a quarta aborda-
gens) diz respeito à forma como os seres humanos percepcionam o mundo.
Será que os dados brutos da sensação corporal são processados pelos intelec-
tos em termos de esquemas conceptuais contrastantes? Ou será que as pes-
soas são treinadas, através de diferentes tarefas práticas, implicando movi-
mentos corporais? A primeira hipótese implica que o sujeito apreende o
mundo desde fora. A segunda situa o sujeito num envolvimento activo; a
percepção não será, então, uma conquista da mente, mas de toda a pessoa-
-corpo. Trata-se, grosso modo, de uma divisão entre posturas cognitivistas e fe-
nomenológicas.
Uma divisão que está a ser ultrapassada por antropólogos como Toren
(1993) que, em antropologia cognitiva, demonstram como os processos cog-
nitivos implicam a localização da pessoa no mundo, cujo sentido é mediado
pelo seu envolvimento nas relações sociais, podendo assim a cognição ser en-
tendida como um processo histórico. A esta questão não é alheia uma outra,
de cariz metodológico, colocada por Maurice Bloch (1995) quando afirma que
a antropologia tem vivido em simultâneo e em conflito com duas heran- ças:
uma que exige a cientificidade a la Durkheim e outra, interpretativa, que surge
do contacto pessoal do antropólogo com os informantes. Assim se teria
formado uma “epistemologia bastarda” que estaria mesmo na origem dos
sucessos da antropologia. Segundo ele, ela deveria prosseguir, posicionan-
do-se tanto contra o integrismo cientifista quanto contra o integrismo anti
objectivista.
Apesar destas tentativas antropológicas para “temperar” as demar- ca-
ções epistemológicas, a questão do corpo é central no debate entre cogniti-
vismo e fenomenologia. Em primeiro lugar, o estatuto ontológico do corpo
surge como instrumento passivo na primeira tendência e como activo na se-
gunda. Em segundo lugar, a estabilidade da forma cultural é vista, na pri-
meira, como estando assente na transmissão geracional de informação con-
ceptual linguisticamente codificada, ao passo que na segunda está contida na
corrente contínua das relações humanas. Assim, o que as gerações preceden-
tes fornecem não são esquemas, mas sim condições específicas de desen-
volvimento sob as quais os sucessores adquirem as suas capacidades e dis-
posições incorporadas. Por fim, e no que respeita à atenção etnográfica, para
140
sabermos o que o mundo significa para as pessoas, a primeira tendência diz-
nos que prestemos atenção às representações mentais, a segunda que
olhemos para a “quinética” do corpo, triunfando numa o “conceito” e na ou-
tra a “performance” (Ingold, 1994).
Nos últimos vinte anos tem-se assistido, quer do lado da antropologia
quer do lado da sociologia, a uma tentativa para ultrapassar a separação ra-
dical entre conhecimento e prática, descentrando a construção cognitiva do
conhecimento, pelo que as novas interpretações procuram abolir as dualida-
des entre mente e corpo, o que advém do reconhecimento da dificuldade de
as pessoas terem e serem (e fazerem) corpos. Comecemos pela ponte entre as
duas disciplinas, e igualmente entre cognitivismo e fenomenologia: Pierre
Bourdieu.
Bourdieu toma de Mauss o conceito de habitus, como repetição de práticas
corporais inconscientes e mundanas. Procura assim ultrapassar o dualismo lé-
vi-straussiano entre estruturas mentais e o mundo dos objectos materiais. O ob-
jectivo metodológico de Bourdieu para uma teoria da prática é delinear uma
terceira ordem de conhecimento para lá tanto da fenomenologia como de uma
ciência das condições objectivas da possibilidade da vida social (in Csordas,
1990). Ou seja, passar da análise do facto social como opus operatum para a sua
análise como modus operandi. Pretende claramente acabar com a dualidade
corpo-mente e signo-significado através do conceito de habitus.
Se bem que este tenha sido introduzido por Mauss para se referir à totali-
dade dos usos culturalmente padronizados do corpo numa sociedade, Mauss
antecipou que o corpo era simultaneamente objecto de técnica e meio técnico,
bem como identificou a natureza subjectiva da técnica. Bourdieu vai mais lon-
ge do que a ideia do habitus como colecção de práticas, definindo-o como um
sistema de disposições duradouras, princípio inconsciente e colectivamente
inculcado para a geração e estruturação de práticas e represen- tações. Este
princípio não é mais do que o corpo socialmente informado.Éa propósito da
temática do género — e não por acaso — que Bourdieu estabelece uma das
suas análises mais conseguidas. Duas citações do ensaio sobre a dominação
masculina são suficientemente ilustrativas:
E ainda:
141
nhecimento e de reconhecimento prático da fronteira mágica que produz a diferença
entre os dominantes e os dominados (...). Este conhecimento pelo corpo é que o leva
os dominados a contribuírem para a sua própria domina- ção (1990:12).
142
terceiro lugar, a percepção baseia-se no comportamento, em ver, ouvir, tocar,
por exemplo, enquanto formas de conduta baseadas em hábitos culturais ad-
quiridos. Assim, o relato de Merleau-Ponty não é um relato da nossa expe-
riência “da” incorporação. A incorporação não é experienciada, é a base
mesma da experiência. Experienciamos através da nossa incorporação sensí-
vel e sensorial. O nosso corpo é o nosso modo de ser (estar)-no-mundo, como
exemplificado quando dizemos que “nos” dói o pé: o corpo é o terreno da ex-
periência e não objecto dela.
Csordas (1990) parte do postulado de que o corpo não é um objecto para
ser estudado em relação à cultura, mas deve ser antes considerado como suje-
ito de cultura. Ele afirma que uma teoria da prática necessita de assentar no
corpo socialmente informado, sendo que o paradigma da incorporação leva-
rá à destruição das dualidades mente / corpo e sujeito / objecto. Assim, para
Merleau-Ponty, a principal dualidade, no domínio da percepção, é entre suje-
ito e objecto, e para Bourdieu, no domínio da prática, é entre estrutura e práti-
ca. Ambos invocam a incorporação como o princípio metodológico para
abolir estas dualidades. Csordas afirma que os antropólogos têm considera-
do a percepção como uma função da cognição, e raras vezes a têm colocado
em relação com o self e as emoções. Têm isolado os sentidos, focando sobre-
tudo na percepção visual, e raras vezes examinaram a síntese e inter- relação
dos sentidos na vida perceptual. Têm focado a investigação em tarefas expe-
rimentais abstractas, em vez de ligarem o estudo da percepção ao da prática
social.
A perspectiva de Csordas não contempla — assimilando-a ou critican-
do-a — a influência teórica de Foucault e, por outro lado, parece possuir um
pendor universalista, que não contempla os casos etnográficos de elaboração
de claras distinções entre corpo e pessoa. O efeito sedutor do seu texto de
1990 parece desvanecer-se perante uma avaliação mais sensata — porque
questionadora da história das ideias e ancorada na experiência do terreno —
de Terence Turner (1994), o qual situa o interesse moderno pelo corpo em algo
de semelhante à “política da vida” e da identidade pessoal de Giddens (1991),
devido ao facto de a apropriação da corporalidade ser a matriz funda- mental
da produção da noção de pessoa e da identidade social no Ocidente.
Todavia, T. Turner — em cuja abordagem me basearei profusa e abusi-
vamente no que segue — chama a atenção para dois defeitos das abordagens
comuns do corpo: a ignorância ou não reconhecimento da natureza social do
corpo, e das formas várias como é constituído nas relações com outros cor-
pos, a favor de uma concepção reificada do corpo como sujeito com fronteiras
marcadas;ea propensão para ignorar o carácter primário do corpo como ac-
tividade material a favor de uma ênfase no corpo como objecto conceptual do
discurso.
O discurso contemporâneo sobre o corpo teria emergido de uma das
maiores manifestações de uma crise na epistemologia e política do pensa-
143
mento ocidental, que levou ao questionamento de muitas premissas sobre a
interdependência entre indivíduo e sociedade. A rejeição da subjectivida- de,
a negação do acesso a uma realidade social e histórica objectiva, a rejei- ção
de uma teoria social sistemática ou mesmo de uma noção de sociedade, e a
abolição do sujeito como entidade metafísica, teriam contribuído para a
substituição do sujeito pelo corpo. A elevação do corpo ao lugar ocupado
pelo sujeito, agente e indivíduo social, tem implicado uma focagem em re-
presentações conceptuais ou linguísticas do corpo, explicado por vagas for-
ças trans-históricas, como o “poder” ou a “disciplina”. Num ataque ao pós-
estruturalismo, enquanto cripto-estruturalismo pós-moderno, T. Tur- ner
diz:
144
discursos de poder sobre o corpo e sobre disciplina pode ser uma forma de
acção política.
No entanto, para o pós-estruturalismo, o corpo é “o corpo”: um indiví-
duo abstracto, singular, intrinsecamente auto-existente e socialmente desco-
nexo. Para os novos movimentos políticos de resistência pessoal, social,
cultural e ambiental, “o corpo” consiste essencialmente em processos de acti-
vidade auto produtiva, ao mesmo tempo subjectiva e objectiva, significativa
e material, pessoal e social, um agente que produz discursos, bem como os re-
cebe.
Noutro texto, T. Turner (1995) afirma que a proeminência teórica do cor-
po é em parte efeito e em parte causa de uma tendência reducionista geral
para rejeitar categorias abstractas e construções teóricas totalizantes que não
sejam directamente acessíveis à percepção, consciência e participação indivi-
duais. O corpo preencheu o vácuo criado pela evacuação do conteúdo social,
cultural e político da teorização da condição humana na era moderna pós-
moderna (ou, como prefiro, tardo-moderna, segundo Giddens).
Mas a corporalidade tem, de facto, importância como categoria unifi-
cadora da existência humana. Assim, a apropriação social da corporalidade
é o protótipo de toda a produção social; a pessoa constituída por uma sub-
jectividade socializada e incorporadaéo protótipo de todos os produtos. O
“corpo socialmente informado” (Bourdieu, 1977) age como produtor e pro-
duto neste processo de apropriação. T. Turner defende que a antropologia
pode oferecer documentação etnográfica comparativa e uma análise da va-
riação social e cultural nas concepções e tratamentos dos corpos e da corpo-
ralidade. Em segundo lugar, pode levar para a arena da discussão teórica
ocidental os conceitos e teorias implícitas ou explícitas dos povos não oci-
dentais.
Partindo de uma análise da etnografia kayapo (Amazónia), T. Turner diz
que as representações da corporalidade dos Kayapo, tal como no pensamen-
to pragmatista ocidental, começam com o imbricamento do corpo na praxis
social, através da qual os indivíduos se produzem e definem como agentes e
pessoas, sujeitos e objectos, reproduzindo, nesse processo, os seus corpos e o
seu mundo social. Não se trata nem de um conceito de um sujeito unitário e
transcendental, nem da noção de um “corpo” unitário e abstractamente ho-
mogéneo com o qual teóricos do corpo como Foucault tentaram substituí-lo
(T. Turner, 1995: 164).
Assim, o corpo social não é redutível nem a um corpo biológico consi-
derado como um dado a priori ao seu envolvimento nas actividades social-
mente padronizadas, nem às formas de consciência social ou discurso através
das quais essas actividades são mediadas como formas cultural- mente
partilhadas de significado. O corpo individual não é tomado como um todo.
Os Kayapos concentram a sua atenção em subsistemas ou aspec- tos da
corporalidade, como sejam a sexualidade, as faculdades sensoriais, a
145
saúde e a doença, etc. Classificação que, por sua vez, assenta nas proprieda-
des e capacidades distintivas de corpos de diferentes idades e géneros (T.
Turner, 1995: 164).
T. Turner usa o termo “sujeito” para se referir a uma consciência incor-
porada com propósito, vontade e capacidade de agência. Isto não tem de cor-
responder necessariamente ao “indivíduo” ocidental. A subjectividade e a
agência podem ser representadas, como entre os Kayapo, como “dividuais”
— uma noção desenvolvida por M. Strathern (1988), acentuando o carácter
relacional, processual e contextual da identidade pessoal), e como incorpora-
das em processos corporais e modos de actividade distintos. Não como atri-
butos de um ego cartesiano desincorporado e íntegro.
Esta perspectiva parece aproximar-se mais de uma teoria da prática do
que o excessivo pendor fenomenológico de Csordas. Todavia, mais duas áre-
as de reflexão são de importância central para uma abordagem do corpo: a
antropologia da experiência e a memória social incorporada. O movimento
de Victor Turner contra a ortodoxia estrutural-funcionalista, inspirado na
noção diltheiana de Erlebnis (experiência vivida), viria a ser sistematizado
como “antropologia da experiência”. Bruner (1986) confessa que o epíteto se-
ria igualmente traduzível como “antropologia processual”, “pós-estrutural”,
“hermenêutica ou interpretativa”, “simbólica” (no sentido norte-americano),
ou “hermenêutica comportamental” a la Clifford Geertz. suficientemente
ecléctico, o campo tem por expressões-chave “experiência”, “pragmática”,
“prática” e “performance”.
Para Dilthey, a experiência tem carácter primordial, pelo que a reali-
dade só existe em factos da consciência dados pela experiência interna. A
experiência, assim, não é só cognição, mas também sentimentos e expecta-
tivas, e não “chega” só verbalmente, mas também através de imagens. A
experiência reporta-se sempre a um self activo, em situações de intersub-
jectividade.2 A noção de experiência é complementada pela de “expres-
sões” (representações, performances, objectificações, textos), fechando-se o
círculo hermenêutico no facto de a experiência estruturar as expressões e
estas aquela.
Segundo Bruner, os selves, as organizações sociais e as culturas estão em
constante produção. A mudança cultural, a continuidade, a transmissão,
ocorrem simultaneamente nas experiências e nas expressões da vida social.
São todas processos interpretativos e são todas experiências nas quais o sujei-
to se descobre a si próprio. Por isso, a comparação de culturas far-se-ia supos-
tamente melhor através dos seus rituais, teatros, contos, baladas, etc — mais
do que através dos seus hábitos.
Mas será só assim? Paul Connerton (1993, 1989), que aborda igualmen-
te o ritual como forma de memória social (insistindo mais no seu carácter in-
corporado do que textual ou paratextual), refere dois tipos de prática social
que garantem a memória social: a incorporação e as práticas de inscrição. As
146
primeiras referem-se, por exemplo, à memorização de posturas cultural-
mente específicas (o poder e a posição exprimem-se em posturas). É atra- vés
da natureza corporizada da existência social e das práticas incorporadas
baseadas nessas corporizações que os termos opostos nos fornecem as
metáforas pelas quais pensamos e vivemos (1993: 90). O alfa- beto, por
contraste, é uma prática de inscrição. As práticas corporais en- volvem uma
combinação de memória cognitiva e de memória-hábito. Mas é necessário ver
como as práticas são incorporadas, compreender a sua qualidade de hábito.
Assim, os hábitos são mais do que uma competência técnica, pois eles
impelem-nos, são disposições afectivas. Um hábito é mais do que uma
disposição, pois o termo transmite o sentido de operati- vidade de uma
actividade continuamente praticada, a realidade do exercí- cio. Por fim, o
hábito não é apenas um símbolo. A experiência corporizada não pode ser
entendida só pelo cognitivismo e pelo modelo de significação linguística,
reduzindo o corpo ao estatuto de símbolo. O significado não pode ser
reduzido a um símbolo que existe num nível separado, exterior às acções do
corpo. O hábito é um conhecimento e uma memória existente nas mãos e no
corpo, e ao cultivarmos o hábito é o nosso corpo que “com- preende” (1993:
114).
A hermenêutica nasceu, de facto, da filologia e a actividade de interpre-
tação tomou a inscrição como objecto privilegiado. Privilegiou-se a inscrição,
negligenciou-se a incorporação. Assim, o corpo só tem sido “legível” como
texto ou código, mas sempre olhado como contentor arbitrário de significa-
dos. O império da linguagem, tanto nas escolas wittgensteiniana, como es-
truturalista ou pós-estruturalista, postulou a linguagem como conjunto de
normas sociais, sistema de símbolos ou discurso de poder, pelo que o corpo
humano só é incluído de forma sublimada. Do lado da análise da estrutura
social, é preciso ver que as práticas corporais têm um grau de segurança con-
tra os questionamentos que todas as práticas discursivas acarretam. Por isso
persistem tanto como sistemas mnemónicos. Existe assim uma inércia nas es-
truturas sociais que não pode ser explicada adequadamente pelas ortodoxias
correntes sobre estrutura social. Os antropólogos que reconheceram a impor-
tância das performances perceberam como elas “explicitam” a estrutura exis-
tente, mais do que sublinham, marcam ou definem uma continuidade com o
passado (Connerton, 1993, 1989).
Num livro da natureza deste que aqui se apresenta não pode nem deve
formular-se uma escolha teórica programática. A riqueza dos trabalhos co-
lectivos apela a um movimento no sentido contrário. No trabalho individual
as apostas devem ser mais temerárias. É o caso de Csordas (1990), como já ha-
via sido o de Jackson (1981), que pretendia criticar as tendências intelectua-
listas que, segundo ele, assimilam a experiência corporal a formulações
conceptuais e verbais, vendo as práticas como “simbólicas” de qualquer coi-
sa exterior a elas mesmas. Neste volume colectivo, a postura é de pluralismo,
147
procurando o diálogo entre símbolo e prática, estrutura e agência, verbalida-
de e corporalidade.
Os textos que se seguem falarão por si, e dialogarão em torno das vári-
as perspectivas que o corpo e a incorporação abrem ou encerram dentro de
si. Voltando ao início, à pergunta “de que falamos quando falamos de cor-
po?”, o desafio lançado aos meus colegas para reflectirem sobre o lugar do
corpo e da incorporação nas suas pesquisas resultou num conjunto de tex-
tos que abordam as perspectivas acima recenseadas, avaliando-as à luz dos
seus dossiers etnográficos, isto é, das experiências concretas dos seus infor-
mantes em contextos culturais concretos, sejam eles terrenos sociais ou bi-
bliográfi-cos. Confirmando a suspeita inicial, cada texto permite ainda, a
partir da temática proposta, ramificar no sentido de outros problemas teóri-
cos, epistemológicos, metodológicos, temáticos e políticos da antropologia
contemporânea.
Nélia Dias contribui com um texto em que a própria disciplina antropo-
lógica se constitui em objecto de análise. Nele, o corpo é encarado como sus-
tentáculo para a visibilidade da diferença. Isto torna-se patente quando se
analisam os modos de representação visual nas exposições antropológicas,
quer de antropologia física, quer de artefactos. Subjacente à apresentação da
diferença via corpos e objectos está a definição de categorias do “natural” e
do “cultural”. A abordagem do corpo e da incorporação deve, pois, começar
pela “antropologia da antropologia”: como é que temos vindo a representar e
reapresentar os Outros enquanto diferenças corporalizadas?
Rosa Maria Perez defende a tese de que, no contexto indiano por ela es-
tudado, se pode inferir que a intocabilidade das mulheres e dos intocáveis
constitui um sistema. A sua perspectiva foca o corpo como sustentáculo de
uma lógica classificatória, em que são evidentes as homologias entre as hie-
rarquias de casta e as de género. A fonte simbólica subjacente a ambaséa co-
dificação dos corpos como potencialmente poluentes pela sua natureza social
e em instâncias específicas de relações sociais de desigualdade. O texto é um
claro exemplo de que as potencialidades das abordagens simbólicas não
estão esgotadas, necessitando, sim, de serem reformuladas à luz da in-
trodução de novas variáveis.
Maria Cardeira da Silva também aborda um contexto “exótico”, marca-
do no imaginário ocidental — à semelhança da Índia — como assente em di-
visões de género com base na impureza dos corpos femininos. Todavia, a sua
abordagem não segue a análise estrutural simbólica, mas antes a via do ques-
tionamento das relações entre tradição, modernidade e pós-modernidade
num contexto urbano de Marrocos, em que as suas informantes fazem, nos
seus corpos, uma bricolage de influências plurais e globais, para a redefinição
das suas identidades. A própria estratégia retórica — na primeira pessoa,
como narradora de episódios com personagens concretas — releva de preo-
cupações reflexivistas e intersubjectivas.
148
Manuela Cunha traz-nos de volta a Portugal. Não se trata de um terre-
no tradicionalmente associado à antropologia, mas sim de uma prisão femi-
nina. Partindo da análise da prisão como instituição total, é no corpo que se
dá e verifica sobremaneira a tensão entre a instituição e as reclusas, estreitan-
do-se mesmo na prisão a conexão entre corpo e self. Sujeitas a uma disciplina
institucional que incide sobretudo sobre os aspectos corporais, é também
através de estratégias que têm o corpo como suporte da identidade pessoal
que as reclusas resistem à desidentificação causada pelas circunstâncias pri-
sionais. É um caso em que, às definições e limitações impostas pela cultura e
pelas relações sociais, se sobrepõe ainda a força de uma instituição do estado
definida pelos eixos da punição da criminalidade e da segregação de género.
Jean-Yves Durand, antropólogo de origem francesa radicado em Portu-
gal, socorre-se das suas experiências de terreno em França e em Portugal para
comparar os conhecimentos de hidrogeólogos e de vedores de água. Os pri-
meiros são vistos, normalmente, como detentores de um saber intelectual e
científico desincorporado, ao passo que aos segundos seria de senso comum
atribuir a utilização de “técnicas do corpo”. O apelo a uma antropologia si-
métrica (Bruno Latour) é seguido por Jean-Yves Durand, que assim entende
os conhecimentos e práticas dos dois tipos de especialistas como analisáveis
em pé de igualdade. A principal diferença reside na presença ou ausência de
“cartesianismo” entre a inscrição num corpo-objecto e um corpo-sujeito faze-
dor de cultura.
A participação de Inácio Fiadeiro, psicólogo e acupunctor, não preten-
de ser uma forma de introduzir interdisciplinaridade no volume. As ques-
tões abordadas no texto constituem um exemplo concreto de algumas das
preocupações correntes em antropologia, não deixando de ser irónico que um
não antropólogo esteja entre quem as leve mais longe — em si próprio. A sua
abordagem da ciência cognitiva, da percepção da arte e da medicina chi- nesa
permite um fluir de cruzamentos epistemológicos em torno dos temas da
percepção, emoção e representação. A experiência do cientista ocidental que,
depois da aprendizagem científica, incorpora a teoria e a prática da me- dicina
oriental surge, assim, como objecto de (auto) análise dos processos de
pensamento sobre o corpo e dos processos de incorporação.
Paulo Raposo, antropólogo com fortes laços com a prática teatral, re-
flecte sobre como o corpo do actor é transformado in acto pela performance,
de modo análogo àquele que leva o “primitivo” que enverga a máscara de
veado num dos seus exemplos a ser ao mesmo tempo o homem que a enver-
ga e o veado. É na noção de personagem que as relações entre a pessoa, o
corpo e a persona mais se evidenciam, assim como as sucessivas situações de
liminalidade propiciadas. Neste texto pode-se encontrar uma explana- ção
sistemática da área da antropologia da performance, uma proposta que
parece estar a vingar na disciplina, a partir das relações sugeridas entre tea-
tro e ritual.
149
Maria José Fazenda, com formação dupla em dança e antropologia,
aborda o caso concreto da ideia de “corpo natural” tal como surgiu na dança
teatral americana, elaborando a sua análise a partir das figuras de Isadora
Duncan e de Steve Paxton. O “corpo natural” surge claramente como um
projecto próprio de uma forma artística ocidental em que a naturalidade se
coloca como objecto perdido e exótico — acabando por ter de ser reconstruí-
da. O texto reflecte igualmente sobre os problemas que se colocam quando se
faz um discurso sobre dança, problemas que são análogos aos que se põem
quando se discursa sobre o corpo e a experiência incorporada.
Susana de Matos Viegas aborda os processos intersubjetivos de cons-
ciência do tempo no envelhecimento, baseada em trabalho de campo em Por-
tugal. O seu texto constitui uma crítica aos excessos do “paradigma do
corpo” como reacção ao “paradigma linguístico”. Partindo da obra de Victor
Turner e da noção diltheyiana de “experiência vivida”, o seu enfoque é na no-
ção de pessoa mais do que na de corpo. No seu estudo de caso, o corpo surge
sempre como um indefinido. Susana de Matos Viegas defende a focagem
preferencial nos interstícios de qualquer ontologia dualista. Trata-se de uma
defesa da ideia de que é a intersubjectividade que informa os modos de o cor-
po fazer sentido, sobretudo no caso abordado, em que a ausência ou presença
dos idosos em situações de interacção é um marcador do processo de enve-
lhecimento.
Clara Saraiva explora alguns aspectos da sua investigação sobre o culto
dos mortos em Portugal. Utilizando um estudo de caso do Minho, aborda a
questão da corporalização do morto, defendendo a teoria local de justaposi-
ção entre pessoa e corpo, mesmo depois da morte. A ilustração etnográfica
privilegia a sociabilidade feminina no cemitério, a expressão das emoções e a
primazia da continuidade da “casa” minhota como relação social contextua-
lizadora das relações com os mortos e subsequente corporalização. Neste
sentido, é um texto em que “incorporação” é substituída por “corporaliza-
ção”: a fixação em imagens, memórias e discursos do morto tal como era num
dado momento da sua vida.
Cristiana Bastos apresenta um texto que abre caminhos na forma de fa-
zer e apresentar antropologia. O seu principal “informante” — Alfredo Gon-
zález—é reconhecido como co-autor, sendo o seu relato o núcleo central do
texto. Trata-se do relato de um homem infectado com o virus HIV-sida e da
sua experiência corporalizada como paciente com o “hospital cravado na
pele”, através das tecnologias médicas que assim abolem ou redefinem as
fronteiras do corpo nos tempos da sida. O estudo, localizado em Nova Ior-
que, é apresentado sob a forma mais próxima possível do hipertexto, numa
postura claramente experimental ao nível da escrita etnográfica, bem como
engajada do ponto de vista da política do corpo.
A João Pina Cabral foi feito o convite para ser o discussant dos contribu-
tos para este volume. Pretendeu-se assim que um antropólogo de renome na
150
academia portuguesa e internacional, e sem uma ligação directa ao processo
de elaboração do livro, discutisse as vozes plurais que nele circulam à luz do
momento actual da antropologia, das especificidades nacionais e das suas
próprias preocupações. Esta solicitação constituiu também um desafio para
o organizador e os contribuintes, já que em relação ao discussant não se esta-
beleceu nenhum controlo editorial. Com a participação do discussant, preten-
deu-se a abertura dos contributos para lá de uma hipotética lógica de
fechamento num grupo.
Um agradecimento muito especial é dirigido a Rui Pena Pires, que sou-
be compreender o potencial de interesse editorial, científico e social num pro-
jecto deste tipo. De igual modo, o Centro de Estudos de Antropologia Social
do ISCTE associou-se à organização da reunião fechada que juntou os auto-
res para a discussão das pontes e valas que os unem e afastam.
Algumas contribuições inicialmente previstas não vieram a concreti-
zar—se, devido a circunstâncias pessoais dos convidados: Nuno Porto, João
Leal, Antónia Pedroso de Lima, Ana Câmara Leme, Joaquim Pais de Brito,
João Vasconcelos, Catarina Alves Costa e Paulo Valverde. Mas não poderia
deixar de referir o contributo que alguns deles deram na reunião de discus-
são e nas trocas de correspondência, nomeadamente João Leal, Nuno Porto e
Antónia Pedroso de Lima.
Notas
1 O termo “incorporação” foi escolhido como tradução do inglês embodiment. Julgou-se que o
termo seria mais feliz do que as alternativas “corporalização”, “encarnação”, “somati- zação” ou
outras, por serem estas ou demasiado fechadas semanticamente ou mal sonan- tes. A
ambiguidade de “incorporação” está também presente no inglês embodiment; mas a expressão
deve ser entendida, neste livro, como tendo que ver apenas com a aprendiza- gem e assimilação
feita pelo corpo e só nele observável, e não nos seus sentidos de “interi- orização” ou
“exemplaridade”.
2 A abordagem diltheyiana e a sua subsequente influência em Victor Turner são desenvol- vidas no
texto de Susana de Matos Viegas, pelo que me restrinjo aqui a uma mera enuncia- ção. A
abordagem da performance é desenvolvida no texto de Paulo Raposo.
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Texto 7
Universidade Aberta
Índice
• Índice
• Introdução
• Ciberespaço / Cibercultura
• Ciberantropologia
• Comunidades Virtuais - as salas de Chat
• Conclusão
• Bibliografia
Introdução
A cultura pode ser entendida como um sistema simbólico, tal como a arte, o
mito, a linguagem, na sua qualidade de instrumento de comunicação entre
pessoas e grupos sociais, que permite a elaboração de um conhecimento
consensual sobre o significado do mundo.
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Segundo Levy (1998), o ciberespaço representa um estágio avançado de auto-
organização social, ainda que em desenvolvimento - a inteligência colectiva - .
O Ciberespaço aparece como um Espaço do Saber, em que o conhecimento é
o factor determinante e a produção contínua de subjectividade é a principal
actividade económica. O ciberespaço surge, assim, como o quarto espaço
antropológico: o primeiro, a terra; o segundo, o território; o terceiro, o
mercado; o ciberespaço, o último.
Ciberespaço / Cibercultura
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suportadas por computador. Contudo, a Internet, não é a única instância de
Comunicação Mediada por Computador (CMC), e por extensão, de suporte ao
Ciberespaço.
Ciberantropologia
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Assim, a abordagem externa efectua a Antropologia do Ciberespaço
considerando-a como mais um aspecto de outras realidades, enquanto que a
abordagem interna tenta estabelecer uma Antropo-logia noCiberespaço, uma
Ciberantropologia.
Para Levy (1994), o espaço da rede suporta uma realidade social, constituída
por um conjunto de actividades coordenadas e construída por diversos
interlocutores dispersos pelo espaço físico. Ou seja, caracteriza-se pela
multiplicidade dos sujeitos envolvidos, pela coordenação que existe entre eles
e, sobretudo, pela convergência de actividades no sentido de alcançar um
sentido comum.
Vive-se a Era Digital, marcada pela revolução tecnológica que está a mudar as
formas de pensamento, os costumes e os hábitos. A evolução das redes e a
utilização cada vez maior da Comunicação Mediada por Computador (CMC),
no dia-a-dia, está a fazer com que a sociedade readeque os hábitos dos
indivíduos tendo em conta, por um lado, a expansão quantitativa da
informação, e por outro, a distribuição da mesma. Caminha-se para o que hoje
se chama de sociedade de informação ou auto-estradas da informação. A está
em vias de se tornar um fenómeno de massas, uma vez que toda a economia,
cultura, saber, etc. passam por um processo de negociação, distorção,
apropriação do ciberespaço - nova dimensão espaço-temporal - (Lemos, s/d).
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Na perspectiva da Antropologia, a dimensão simbólica da cultura é concebida
como capaz de integrar todos os aspectos da prática social. Os antropólogos
tenderam sempre a conceber os padrões culturais não como um molde que
produziria condutas estritamente idênticas, mas antes como regras de um
jogo, isto é, uma estrutura que permite atribuir significado a certas acções e
em função da qual se jogam infinitas partidas (Durhan, cit. in Fleury, 1987).
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• Ritos de passagem;
• Ritos de degradação;
• Ritos de confirmação;
• Ritos de reprodução;
• Ritos para redução de conflitos;
• Ritos de integração.
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identidade virtual, em que o ciberespaço constitui a metáfora da pessoa - o
utilizador é levado a reinscrever a sua identidade, que pouco tem a ver com a
sua voz, aparência física ou mesmo personalidade.
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• a consciência da existência de interesses comuns, que permitem aos
seus membros atingirem objectivos que não seriam alcançados
individualmente;
• a participação numa obra, que sendo a realização desses objectivos é
também uma força de coesão interna da comunidade.
Rheingold (1994), por seu lado, define-as como agregações sociais que
emergem na Internet quando um número de pessoas conduz discussões
públicas por um tempo determinado, com suficiente emoção, e que forma
teias de relações pessoais no ciberespaço.
Uma vez que as salas de chat, estão dividas por temas (#portugal;
#porto;#30-40; etc), as comunidades virtuais, construidas à volta de interesses
e não de proximidades físicas, sugerem a formação de ``subúrbios virtuais''. Os
utilizados destes serviços ligam-se às salas de Chat, pelos títulos (assuntos) que
lhes dizem alguma coisa. É nesse convívio que desenvolvem as suas personas,
que desenvolvem um senso comunitário e que fazem ou desfazem amizades.
Criam-se laços estruturais que unem os participantes.
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Ao contrário das comunidades geográficas, as ciber-comuni-dades podem ser
efêmeras. Um participante num canal de chat só faz parte da comunidade
quando se ligar a ela. Assim, que deixa o canal, deixa também de pertencer
àquela comunidade virtual.
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Fig 1.: janela principal do Mirc (comunicação pública)
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Acrónimo A Tradução em português Acrónimo A Tradução em português
AFAICT É o máximo que eu posso GIGO Lixo vem...lixo vai
falar
AFAIK Tanto quanto sei ILY Amo-te
AIUI Como eu percebi IME Pela minha experiência
BBL Voltarei mais tarde OIC Ah! Percebo
BRB Volto em breve OMG Oh, meu Deus!
F2F Cara a cara SITD Continuo sem resposta
FAQ Perguntas frequentes MORF Homem ou mulher?
B4 Antes IR Na realidade
AFK Afastado do teclado JAM Espere um minuto
BTW A propósito TIF Beijo na face
BSF Falo sério pessoal FYI Para tua informação
RUOK Estás bem? FOC Gratuito
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+:-) padre :-> com
sarcasmo
,-} de ironia a piscar :-] de cabeça
o olho dura
:,( de choro constipado
:-
:- de homem :-7 sorriso
charmoso
(:-( muito triste :-C muito
infeliz
:-e de :-O de
desapontamento tagarela
:-Q de fumador >- feminino
de um génio de burrice
@: <:-
:-X beijo babado O:-) de anjo
P-( de pirata B-) à batman
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É possível definir três pilares psicossociais da comunicação pessoa-pessoa
através do ciberespaço (Riva & Galimberti, cit. in Cunha, s/d):
2) a conversação virtual;
3) a construção da identidade.
O espaço das interacções sociais não pode ser descrito apenas em termos
físicos. Os espaços construídos com base na realidade virtual caracterizam-se
por níveis de simulação cada vez maiores: é a co-presença de discursos, mais
do que a co-presença física de interlocutores que determina a construção das
capacidades cognitivas e a performance.
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modificado por este meio: as pessoas podem interagir durante dias, semanas
ou anos (através do chat, por exemplo), independentemente das mudanças
geográficas que tenham lugar. A comunidade está onde a pessoa estiver. É um
excelente suporte, dentro daqueles que estão actualmente disponíveis, para
manter o contacto social com pessoas distantes.
Conclusão
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caracteriza e os une, apresentam um senso de respeito pelas convenções do
grupo, de responsabilidade pelo chat, e os que não o respeitam são
marginalizados.
Este novo espaço com áreas de privacidade - um novo mundo virtual ou mundo
mediatizado - é um suporte aos processos cognitivos, sociais e afectivos, os
quais efectuam a transmutação da rede de tecnologia electrónica e
telecomunicações em espaço social povoado por seres que (re)constroem as
suas identidades e os seus laços sociais nesse novo contexto comunicacional.
Geram uma teia de novas sociabilidades que suscitam novos valores. Estes
novos valores, por sua vez, reforçam as novas sociabilidades. Esta dialéctica é
geradora de novas práticas culturais.
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As redes e serviços telemáticos geram novos espaços de encontro, novos
espaços antropológicos, há que questionar em que medida esses novos
espaços representacionais (re)criam as identidades e as práticas culturais.
Bibliografia
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• Levy, Pierre (1998), A Inteligência Colectiva - Por uma Antropologia do
Ciberespaço, Loyola, S. Paulo
• MacKinnon, Richard C., (1995), Searching for the Leviathan in Usenet,
in Jones, Steven G., CyberSociety - Computer-Mediated Communication
and Community, Sage, Londres
• Primo, Alex Fernando T. (1997), A Emergência das Comunidades
Virtuais, aprimo/pb/comuni.htm
• Rheingold, Howard (1994), The Virtual Community: Finding Connection
in a Computerized World, Minerva, Londres
• Rheingold, Howard (1996), A Comunidade Virtual, Gradiva, Lisboa
• Rheingold, Howard (1998), The Virtual Community,
http://www.rheingold.com/vc/book/
• Ribeiro, Gstavo Lins (s/d), The Condition of Transnationality: Exploring
Implications for culture, Power and Language,
http://www.ibase.org.br/ esocius/anais.html
• Rodrigues, Adriano (1999), Comunicação e Cultura, Editorial Presença,
Lisboa
Notas de rodapé
... Silva1
Mestre em Relações Interculturais pela Universidade Aberta.
...flood2
Repetição seguida de mensagens em pouco espaço de tempo. O Flood
atrapalha o andamento do canal. Repetir 3 vezes a mesma linha é considerado
flood em alguns canais.
...kickada3
Quando um dos operadores disconecta uma pessoa do canal.
...banida4
Ser disconectado do canal e ser impedido de entrar nele por alguns minutos.
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