Marxismo e Questao Racial Silvio Almeida Edit

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MARXISMO

E QUESTAO
RACIAL
)OSSl£
MARC 11 M ESQUERDA

SILVIO
ALMEIDA (ORG.)
M ARXISM O
E QUESTAO
RACIAL
D O S S IE M A R G E M E S Q U E R D A

SILVIO
A LM EID A (ORG.)
Copyright © Boitempo Editorial, 2021

Este livreto foi produzido a partir do dossie dc capa da cdi^ao I). 27 da


Margem Esquerda —revista da Boitempo, publicada originalmcmc cm
outubro de 2016.

Dire9ao geral: Ivana Jinkings


Edi^ao: Artur Renzo
Prepara^ao: Thais Rimkus
Revisao: Mariana Tavares
Diagramacao e capa: Heleni Andrade
Projeto grafico: Bode
Produ^ao: Livia Campos
Impressao e acabamento: Lis Grafica

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Camila Nakazone, Carolina Merces, Dibora Rodrigues, Elaine Ramos,
Frederico Indiani, Higor Alves, Ivam Oliveira, Jc-ssica Soares, Kim Doria,
Luciana Capelli, Marcos Duarte, Marina Valeriano, Marissol Robles,
Marlene Baptista, Mauricio Barbosa, Pedro Davoglio, Rai Alves, Tulio Candiotto

ISBN 978-65-5717-060-1

E vedada a reprodu^ao de qualquer parte deste livreto


sem a expressa autorizapio da editora.

l a edi^ao: m ar^o de 2 0 2 1 ; l a reim pressao: setem bro de 2021

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SUM ARIO

Apresentagao 7
SILVIO LUIZ DE ALMEIDA

Estado, racismo e materialismo 11


ALESSANDRA DEVULSKY

Dilemas da luta contra o racismo no Brasil 23


DENNIS DE OLIVEIRA

Pensamento social e relagoes raciais no Brasil:


a analise marxista de Clovis Moura 37
MARCIO FARIAS

Feminismos negros e marxismo:


quem deve a quem? 49
ROSANE BORGES

Sobre os autores 63
Apresenta$ao
Silvio Luiz de Almeida

Ao contrario do que apregoam as leituras liberais, ra­


cismo nao e apenas um problema etico, uma categoria
juridica ou um dado psicologico. Racismo e uma rela^ao
social, que se estrutura politica e economicamente1.
Por ser uma rela^ao social - portanto, dotada de ma-
terialidade e historicidade o fenomeno do racismo
nao escapou das lentes da teoria marxista. Ja nas obras de
Marx e de Engels, assim como na dos “classicos” marxis-
tas (Vladimir Lenin, Karl Kautsky, Rosa Luxemburgo e
Bruno Bauer), reflex6es acerca da rela^ao entre racismo,
nacionalismo, colonialismo e a forma^ao da economia
capitalista ocupam posi^ao dc destaque.
Com efeito, o debate racial no interior do pen-
samento marxista aprofundou-se a medida que os

1 Como enfatiza Etienne Balibar, “o racismo e uma rela^ao social, nao um^
simples delfrio de sujeitos racistas”. Etienne Balibar e Immanuel Wallerstein,
Raga, nagao, classe: as identidades ambiguas (trad. Wanda Caldeira Brant,
Sao Paulo, Boitempo, 2021), p. 79.
8

impactos das grandes transforma^oes sociais do seculo


XX exigiram um reposicionamento teorico. Temas como
constituigao de subjetividade e ideologia, Estado capitalista
e as crises e papel das minorias na luta de classes, bem
como os dialogos com a psicanalise, a fenomenologia,
o estruturalism o e o pos-estruturalismo, am pliaram as
possibilidades de uma analise marxista do racismo.
Assim, diversos foram os pensadores e as pensadoras
que trataram do racismo partindo da analise de ex-
periencias historicas distintas e de multiplas interpre-
ta^oes e apropria9oes dos conceitos presentes na obra
de M arx. M uitos desses estudiosos da conexao entre
racismo e capitalismo estiveram diretam ente envolvi-
dos nas lutas sociais em seus respectivos pafses. Sao
apenas alguns exemplos, que nem de longe encerram
a lista de autores e autoras cuja perspectiva, de al-
gum modo, liga-se ao marxismo: nos Estados Unidos,
O liver C. Cox, Angela Davis e Stokely C arm ichael
sao referencias fu n d am en tais na lu ta dos negros
estadunidenses; no continente africano e no contexto
da resistencia anticolonial, Amflcar C abral, Kwame
N krum ah e Frantz Fanon produziram obras de grande
influencia; sobre a realidade da escravidao c do racismo
segundo a perspectiva caribenha, W aller Rodney,
C. L. R. James e Eric W illiams gestaram obras de re-
levo; no Brasil, destaca-se a im portancia de Florestan
Fernandes, Guerreiro Ramos c Clovis Moura.
Se e possivel dizer que o marxismo perm ite um a
com preensao cientffica da questao racial, tam bem se
9

pode afirmar que a analise do fenom eno racial abre as


portas para que o marxismo cum pra sua voca^ao de
tornar inteligfveis as r e la te s sociais historicas em suas
d e te rm in a te s sociais mais concretas. Os conceitos de
classe, Estado, im perialismo, ideologia e acumula^ao
prim itiva, superexplora^ao, crise e tantos outros ga-
nham concretude historica e inteligibilidade quando
informados pelas d e te rm in a te s raciais. Nesse sentido,
e im portante dizer quao essencial o estudo das r e d o e s
raciais e para a compreensao das especificidades de cada
forma^ao social capitalista, especialmente nos pafses da
Amcrica, do Caribe, da Africa e da Asia.
C o m base nessas preo cu p a^o es, este dossie
“Marxismo e questao racial” traz quatro artigos que - de
forma com plementar - introduzem algumas perspecti-
vas possfveis de um debate ainda inconcluso.
Estado, racismo e
materialismo
Alessandra Devulsky

Estado e materialismo historico

A ideia de Estado contem plada pelo m etodo do m ate­


rialismo historico nao pode dissociar seus princfpios e
sua dimensao legal do modo de produ^ao economico no
qual ele se esteia. “O Estado e um derivado necessario da
propria reprodu^ao capitalista”, como ensina M ascaro1,
de m odo que a forma-Estado e um a especificidade do
capitalismo, cujas praticas sao moduladas pela fase de
acumulacpao experimentada, bem como por suas crises
cfclicas, ou organicas. C om preendido como instancia
apartada a interm ediar e garantir a troca de mercado-
rias, assegurar a venda da for<ja de trabalho constitui seu
papel fundam ental. A im prescindibilidade do am bito

1 Alysson Leandro Mascaro, Estado eforma politica (Sao Paulo, Boitempo,


2013), p. 19.
12

regulador estatal deve-se ao fato de que o capitalismo


tende a abolir a concorrencia, o que pode leva-lo a ni'veis
autodestrutivos de concentrac^ao de renda2.
A partir da a9ao legalizadora do Estado sobre cer-
tas praticas polfticas, Edelm an caracteriza a capta^ao
do m ovim ento paredista a partir do direito de greve,
plasmado no ordenam ento jurfdico como uma a^ao de
sepultam ento de seu proprio carater revolucionario3.
Tambem althusseriano, Edelman indica que a insurrei-
9ao de trabalhadores contra a explora^ao sistemica, ou
aquela que elege um ponto especifico como pauta rei-
vindicatoria, torna-se indesejavel ao extrapolar os limites
preestabelecidos pelas institui9oes. Por isso, criminalizar
a9oes legftimas de movimentos sociais passa por legalizar
certos aspectos de suas interven9oes. A rcgula9ao estatal
do direito de greve como interven9ao politica potencial-
m ente contestadora da forma-valor e da forma-merca-
doria joga os movimentos sociais para o campo da ilega-
lidade previamente construfdo para capta-los.
Se o movimento trabalhador nao e capaz de atingir o
centro nevralgico da forma-valor carregando consigo as
estruturas sexistas e raciais, o racismo tambem nao pode
ser eliminado sem que haja pari passo outra forma de
sociabilidade sendo gerada. Esse e um ponto de reflexao
im portante para as lutas antirracistas em geral. A propria

2 Cf. M ichel A glietta, Regulation et crises du capitalisme (Paris, O dile


Jacob, 1997).
3 Bernard Edelman, La Legalisation de la classe ouvriere (Paris, Christian
Bourgois, 1978), p. 65 [ed. bras.: A legalizagdo da classe operdria, coord,
trad. Marcus Orione, Sao Paulo, Boitempo, 2016].
13

ideia de povo - proveniente, segundo Wallerstein, da ar-


cicula^ao entre os conceitos de rafa, na^ao e grupo etnico
- e uma nota distintiva do desenvolvimento do capital4,
cujos com ponentes geneticos, sociopolfticos e culturais
comunicam-se, dando a tonica da organizacjao das massas
dentro de um Estado-na^ao, limitado pela posi^ao cen­
tral ou periferica da distribuic^ao dos valores. O racismo
colabora na diferencia^ao das tarefas por meio do estabe-
lecimento de um a hierarquia baseada no recorte racial,
na qual “certos trabalhadores perdem um a parte maior
do mais-valor que eles criaram do que outros”5. A for^a
de trabalho e revestida de uma roupagem etnica indisso-
ciavel da produ^ao de valor no capitalismo. Portanto, sua
organiza^ao e perpassada por esse elemento que, embora
nao seja fundador, e essencial em sua reprodu^o.
Desse m odo, a convergencia necessaria entre a luta
anticapitalista e a luta antirracista nao e viavel se vis-
lum brada como fim, em vez de meio. Nao ha for^a ima-
nente de atra^ao entre os segmentos sociais explorados
sob a mesma estrutura, inclusive porque a exploraijao
e experimentada distintam ente em modo e intensidade.
N o materialismo historico, e a realidade a pedra de to­
que do pensamento, nao o contrario. Os arranjos sociais
que escamoteiam essa amarra^ao de fundo a forma-mer-
cadoria existem justam ente para dificultar essa conver­
gencia necessaria: a de que o fim do racismo passa pela

4 Etienne Balibar e Immanuel Wallerstein, Race, nation, classe: les identites


ambigues (Paris, La Decouverte, 1997), p. 106. [ed. bras. Ra$a, nagao, classe: as
identidades ambiguas (trad. Wanda Caldeira Brant, Sao Paulo, Boitempo, 2021]
5 Ibidem, p. 113.
14

aboli^ao da forma-mercadoria, ao mesmo tem po que a


viabilidade de um a nova forma-social que nao regresse
a forma-valor esta atrelada a extincpao do racismo e dos
arquetipos construfdos para a manuten^ao do trabalho
como instancia significante do sujeito. C om o processo
sem sujeito6, o sentido de ambas as lutas e o mesmo.
Juntas sao mais fortes, separadas opoem-se, eclipsando
a constru<jao do horizonte em comum. O Estado e uma
das instancias desses embates, mas nao pode constituir-
se no horizonte excludente de nenhum a delas.
£ im portante reconhecer nesse processo que a bran-
quitude7 constitufda como mascara identitaria da ponpao
“civilizada” do Brasil, m uito alem de restringir o status
“hum ano” aqueles que nao preenchem os criterios eu-
rocentristas de aparencia e cultura, estabelece uma rede
de afetos baseada na exclusao. Desse m odo, e preciso
inverter o sentido da cobran^a de “consciencia de classe”
pendente hoje sobre as interven^oes poh'ticas de recorte

6 Recuperando Althusser, Almeida afirma: “Dizer que o racismo e um


processo sem sujeito significa dizer que ‘penetra^ao’ e ‘renova^ao’ do racis­
mo a cada gera^ao dependem, essencialmente, de condi^oes estruturais e
institucionais para que praticas discriminatorias possam ‘atingir’ a forma^ao
dos afetos e da consciencia dos individuos. O u seja, os sujeitos racistas sao
o resultado mais bem-acabado destas condi^oes estruturais e institucionais,
nao o contrario”.
7 Schucman reelabora o conceito de “branquitude”: “Portanto, 6 nesses
processos historicos que a branquitude come^a a ser construlda como um
constructo ideologico de poder, em que os brancos tom am sua identidade
racial como norma e padrao, e dessa forma outros grupos aparecem, ora como
margem, ora como desviantes, ora como inferiores”; Lia Vainer Schucman,
Entre o encardido, o branco e o branquissimo: branquitude, hierarquia epoder
na cidade de Sao Paulo (Sao Paulo, Annablume, 2014), p. 46.
15

racial, buscando com preender de que m odo e possivel


construir saberes voltados a emancipacao completa por
meio da integra^ao do racismo e do s^xismo como par­
tes estruturantes da reflexao. Enfatiza-se: o esteio anti-
capitalista da luta contra o racismo e fundamental; sem
ele, as interven^oes resumem-se a integra^ao dos negros
a sociedade salarial de m odo precario. N ao e possivel
abandonar a superficialidade da reflexao sobre o capita-
lismo na America Latina sem levar em conta o racismo,
sobretudo no Brasil.
£ preciso considerar que o recorte racial isolado de sua
rela^ao com a forma-mercadoria e tao inutil a luta antir-
racista quanto e o apartam ento do m ote revolucionario
do povo. Balibar e Wallerstein preocupam-se com um
tipo de nacionalismo europeu que se reestrutura na atu-
alidade, conjugado ao racismo. Aquele fenomeno que na
Europa associa-se a xenofobia e a intolerancia adota, na
America Latina, contornos nacionalistas indissociaveis da
resistencia aos avan^os do capitalismo central, cabendo
ao racismo o papel de hierarquizar a instancia do traba-
lho8. Ambos os autores cercam-se de cautela em nao imis-
cuir as especificidades de cada fenomeno no centro e na
periferia, apontando que o nacionalismo e o racismo, de
modo geral associado ao negro, adquire um contorno es­
pecial, no qual o processo identitario promovido entre os
nacionais pode obstaculizar a organiza$ao dos explorados
em torno da instancia da luta de classes em determinadas

8 Etienne Balibar e Immanuel Wallerstein, Race, nation, class, cit., p. 14.


16

circunstancias9. Ao analisar o caso frances, Balibar ex-


pressamente retira o racismo de dentro do conjunto de
expressoes da estrutura de classes, como um a “forma tf-
pica de aliena<jao politica inerente a luta de classes no
campo do nacionalismo”10. Wallerstein indica que muitas
a^oes politicas que utilizam os referenciais da categoria
de classe sao praticadas por grupos que nao reconhecem
a terminologia marxiana e suas implica9oes, tampouco
atribuem a suas praticas a9oes que visem ao polo capital/
trabalho. No entanto, suas praticas estao inexoravelmente
ligadas a desconstitui9ao da forma-mercadoria na medida
em que sao radicalizadas. Portanto, “nao pode haver uma
atividade de classe para si totalmente dissociada de uma
atividade politica fundada sobre a ideia de povo”11, o
que implica afirmar que a elimina9ao do racismo e parte
constitutiva da luta de classes propriamente dita.

0 racismo e a luta de classes

O processo que move a historia nao tem sujeito,


mas sujeitos em um plural tao vasto que geralmente

9 Balibar assim relaciona nacionalismo e racismo: “E o nacionalismo sai


do racismo, no sentido de que ele nao se constitui com o um a ideologia
da nova na$ao se o nacionalismo oficial contra o qual ele reagia nao fosse
profundam ente racista; assim o sionism o prov£m do antissem itism o,
e os nacionalism os do terceiro m undo provem do racismo colonial”;
ibidem , p. 77.
10 Ibidem, p. 23.
11 Ibidem, p. 115.
17

constituem-se em um a massa12. Uma massa pouco uni­


forme, mas portadora de identidades especificas no que
concerne ao grau de explora^ao diapte do trabalho re-
gido pela forma-mercadoria e das condifoes materiais de
sobrevivencia a que estao submetidos. Eis que, portanto,
a agudiza(;ao da explora^ao de um a parcela da massa
trabalhadora com base no recorte racial, a opressao de
hom ens contra mulheres e a discriminacao de grupos
por causa da origem nacional ou do credo religioso sao
aspectos que nao devem deixar de ser avaliados por meio
do materialismo historico, pois constituem elementos da
realidade que podem potencialm ente prom over novos
ciclos de desenvolvimento da luta de classes. A filosofia
e, em ultim a instancia, luta de classes na teoria13, ca-
bendo ao teorico a tarefa de nao se desligar da insurrei-
<;ao nascida nas ruas, das denuncias legitimas proprias
daqueles que nao sofrem por procurat^ao.

12 M otta sublinha a recusa da ideia de “messias” nas narrativas historicas:


“Q uando Althusser afirma que a historia e ‘um processo sem sujeito e sem
fim’, significa dizer que a historia nao e um processo teleol6gico com um
Sujeito ja dado, um Sujeito da historia, mas sim que o processo historico
movido por contradigoes nao tem um fim, pois ha acasos, rupturas, descon-
tinuidades nesse processo. Ademais, nao ha um sujeito da historia (como
uma concep^ao messianica de entendimento do mundo), mas sim sujeito na
historia, ja que o sujeito revolucionario pode ser o operariado urbano, mas
tambem o campones na China e os guerrilheiros oriundos da classe media
em Cuba”; Luiz Eduardo M om ., A favor de Althusser: revolugdo e ruptura na
teoria marxista (Rio de Janeiro, Gramma, 2014), p. 26.
13 O filosofo insiste que “ultim a instancia” nao e primeira instancia, ten-
tando antecipar a defesa acerca de possiveis condena^oes sobre o que seria
a simplista transposi$ao tout court do objeto nascido na ideologia para a
filosofia; ver Louis Althusser, Reponse a John Lewis (Paris, Francois Maspero,
1973), p. 11.
18

Cabe a teoria buscar seus objetos de reflexao junto


aos m ovim entos sociais e aos ativismos da periferia,
ainda que haja o posterior tratam ento epistemologico
com o preparativo ao m etodo de analise. N a m edida
em que o Estado sequestra a pauta de reivindicacoes
desses movimentos, estabelece-se um processo que “dis-
ciplina” o movimento, predeterm inando seus limites e
seus metodos. Tudo o que nele ha de espontaneo, legi-
tim o e horizontal passa a ser regulam entado pela im-
posi9ao de lideran^as pouco representativas, invertendo
aquelas caracteristicas durante seu enquadram ento ins-
titucional. E o rigor mortis do m ovimento trabalhador.
Nessa medida, a dimensao racial da luta de classes esta
em sua escala mais revolucionaria dentro do m ovi­
mento negro periferico, denunciativo e intervencionista.
(Periferico nao so pelo distanciam ento fisico do poder,
mas porque e capaz de m odular ondas excentricas de
transforma^ao que partem de fora para dentro.)
A necessidade constante de reestruturacpao da econo-
mia politica assume um carater racial no Brasil, no fito de
impactar a redu^ao do salario nominal de referenda. Em
paises de capitalismo central, o contingente do exercito de
reserva adquire outros contornos - como o da forga de tra-
balho migrante espraiando seus efeitos de redu^ao sala-
rial para fora do raio do grupo diretamente estigmatizado.
A superexplora^ao no caso brasileiro e a luta empreendida
pelos negros em sobreviver diante do racismo se apresen-
tam como a nota distintiva de um sistema guiado pela
necessidade de produ^ao incessante de valor. Nos paises de
19

capitalismo periferico, essa tendencia e extremada, o que


leva, em contrapartida, a abertura de um processo contes-
tatorio do poder e de seus privilegios.
N o centra e na periferia, portantp, e forjada a tenden­
cia para baixo de valoriza^ao da forca trabalho e do salario
nominal de referenda, o que e perfeitamente compatfvel
com a necessidade reprodutiva do capital que precisa pre-
ver e modular suas atividades em face da lei sobre a baixa
tendencial da taxa de lucro. Contudo, a armadilha de que
o movimento operario mundial parece nao ter conseguido
escapar - e para a qual o movimento negro brasileiro pre­
cisa estar preparado - e o fato de que a sociedade salarial,
ao ser naturalizada como unico e instranspomvel campo
de luta, esgota seus flancos de atuacao nos limites impostos
pela sociabilidade capitalista. Por mais necessaria em ter-
mos imediatos que pare^a estar a conquista de direitos no
cenario atual das lutas emancipatorias, a luta polftica nao
pode encerrar-se no ambito da legaliza^ao, pois o direito
civil que confere status de sujeito de direito a mulher e ao
negro e o que mantem os privilegios daqueles que gozam
dos beneficios de acumula^ao do capital e de seu entesou-
ramento individual.
E significativo que Marx tenha elucidado certas con-
tradi^oes da econom ia polftica tradicional de Smith e
Ricardo justamente quando foi capaz de avan^ar sobre a
teoria do valor. Com o ensina Harvey, rom per a camisa
de forija da econom ia polftica convencional em bebida
da ideologia da form a-m ercadoria significa “encarar a
produ^ao e a distribui^ao no contexto das r e la te s de
20

classe”14. E provavel que o mesmo deva ser feito para


com preender o racismo como processo nao destacado
da condiijao de classe. Desse modo, a constru^ao de es-
trategias de elim inafao do racismo sistemico no Brasil
passa tam bem por seus elos com unicantes com a luta
anticapitalista. O estreitamento dessa rela^ao colabora-
tiva pode renovar ambos os movimentos.
A falsa oposi9ao entre a luta antirracista e a luta an­
ticapitalista promove o enfraquecimento teorico em sua
medida epistemologica e polftica, bloqueando a conver-
gencia de seus potenciais de mobiliza^ao que nao preci-
sam estar vinculados a homogeneiza^ao da classe traba-
lhadora. Por isso, o enfrentamento das contradi9oes do
desenvolvimento do capital enseja um a reabilita^ao da
comunica9ao daquelas instancias em termos de comple-
mentaridade, em um processo cujas diferen^as nao sao
lanijadas para fora do sistema para lhe dar uma coerencia
falseada. O racismo e o sexismo, enquanto forem expul-
sos da problem atica marxiana como fenomenos de or-
dem menor, continuarao a existir como impeditivos do
exerdcio politico voltado a emancipa^ao total.

14 David Harvey, Os limites do capital (trad. Magda Lopes, Sao Paulo,


Boitempo, 2013), p. 92.
“A falsa oposigao entre a luta
antirracista e a luta anticapitalista
promove o enfraquecimento teorico
em sua medida epistemologica e
politica, bloqueando a convergencia
de seus potenciais de mobilizagao
que nao precisam estar vinculados
a homogeneizagao da classe
trabalhadora.”

Alessandra Devulsky
Dilemas da luta contra
o racismo no Brasil
Dennis de Oliveira

Desigualdades raciais estruturantes

O m ovim ento negro e antirracista cum priu papel im-


portantfssim o quando, em 1995, durante a m archa a
Brasilia de celebraijao dos trezentos anos de Zum bi dos
Palmares, fonjou o governo brasileiro, pela prim eira
vez, a reconhecer oficialmente a existencia do racismo
no pais. N aquele m om ento, o entao presidente da
Republica Fernando H enrique Cardoso recebeu um a
comissao executiva da marcha e nom eou um Grupo de
Trabalho Interministerial para pensar polmcas publicas
de combate ao racismo.
Ja no ano 2001, houve um a aijao por parte de se-
tores do governo brasileiro, como o M inisterio das
Relacoes Exteriores e a Fundacao Palmares (vinculada ao
M inisterio da Cultura), junto com o movimento negro
24

organizado na prepara^ao do pais para participar da


III Conferencia M undial de Com bate ao Racismo, con-
vocada pela O N U e realizada em Durban. Organizou-se
uma serie de reunioes, pre-conferencias tematicas e semi-
narios, e o resultado foi um docum ento e um a posi^ao
do Brasil na conferencia de D urban de comprometer-se
com a im plem enta^ao de polfticas de a<jao afirmativa,
a fim de com bater o racismo no pafs. D iante desse ce-
nario, cresceu a bandeira das cotas raciais e de outras
polfticas de ac,;ao afirmativa, dentro da perspectiva de
que as polfticas publicas generalistas, por si so, nao eram
suficientes para resolver as disparidades raciais.
N esse perfodo, houve avansos in stitu cio n ais
significativos:
• a tipifica^ao do racismo como crime inafianipavel e
imprescritfvel na Constituiijao de 1988, regulamen-
tada pela Lei Cao (Lei n. 7.716/89);

• Lei n. 10.639/03, que altera a Lei de Diretrizes e


Bases da Educa^ao N acional e torna obrigatorio o
ensino de historia da Africa e de cultura africana e
afro-brasileira no ensino basico;

• o Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. 12.288/10),


de autoria do senador Paulo Paim, que no artigo
1° define como objetivo “garantir a popula^ao ne-
gra a efetiva^ao da igualdade de oportunidades, a
defesa dos direitos etnicos individuals, coletivos e
25

difusos e o combate a discrim inate) e as demais for­


mas de intolerancia etnica”;

• a criafao de organismos especfficos para tratar de


polfticas de com bate ao racismo e de promocpao da
igualdade racial;

• a implantacpao das cotas raciais e sociais nas


universidad es federais p o r m eio da Lei n.
12.711/12 e das cotas raciais para os concursos
publicos (Lei n. 12.990/14), que reservam 20% das
vagas para aqueles que se autodeclararem negros.
Alem desses dispositivos legais, varias m edidas re-
ferentes as especificidades do racism o foram tom a-
das nas areas de saude, educa^ao, assistencia social e
esporte (princip alm en te com a cam p an h a co n tra o
racism o na C opa do M undo), entre outras. Assim, o
com bate ao racismo transcendeu da denuncia para o
reconhecim ento de sua existencia e, finalm ente, para
ser inclufdo na dim ensao institucional da form ulafao
das polfticas publicas.
Um elemento im portante a ser considerado no pro­
cesso e a implanta^ao do modelo de polftica publica
baseado na transversalidade e no controle social, p rin­
cipalmente apos a vitoria do P T para a presidencia em
2003. Esse modelo tem como um a de suas caracterfsti-
cas fundamentals a construcao de espa<;os de dialogo en­
tre o governo e os movimentos sociais para avalia^ao e
26

formula^ao de polfticas publicas em um modelo que se


convencionou chamar de “democracia participativa”.
Esse elem ento singular associado ao processo de
transi^ao da luta contra o racismo - que converge na
situai^ao de um reconhecim ento oficial da existencia
do problem a, da necessidade de polfticas especfficas
de com bate ao racismo e da m aior presen^a do tem a
nas agendas institucionais - resultou em um desloca-
m ento da luta antirracista para um a dim ensao insti-
tucional, e o debate se coloca na eficacia ou na efici-
encia das polfticas publicas de com bate ao racism o.
Por essa razao, ao mesm o tem po que se percebem os
avamjos institucionais, crescem tam bem as angustias
e as ansiedades para a resolu^ao do problem a que pa-
rece cada vez mais complexo.
Essa situa9ao possibilitou que o m ovim ento ne­
gro avan^asse para a conceitua^ao do racismo insti­
tutional, isto e, a reflexao sobre os problemas de na-
tureza institucional, da m aquina responsavel pela
implantagao das polfticas publicas, como um dos prin­
cipals entraves para que as medidas institucionais se-
jam efetivamente aplicadas. Estudos que dem onstram
a pequena aplica^ao de dispositivos legais, como a
Lei n. 10.639/03 e a criminaliza^ao do racismo, entre ou-
tras, vao nesse sentido. O despreparo e mesmo o pensa-
mento racista presente nos agentes publicos, ou a forma
como a maquina administrativa e montada, entre outras
coisas, sao expressoes desse racismo institucional.
27

Os limites da agao institucional

Alguns dados dem onstram que, a despeito dos avan-


90s institucionais, o problem a do com bate ao racismo
ainda e m arginal na estrutura do Estado brasileiro.
N o caso das conferencias participativas, por exemplo, as
de igualdade racial sao as que menos tem suas resolu^oes
incorporadas na agenda oficial do governo.
Segundo estudos de Viviane Petinelli1, apenas 41%
das resolu9oes das duas primeiras conferencias de igual­
dade racial foram aproveitadas nas agendas de politicas
publicas do governo, contra 57% da conferencia da
pesca e 44% da de mulheres. O onjamento da Secretaria
de Politicas de Prom o9ao da Igualdade Racial (Seppir)
e um dos menores dos ministerios. Em 2013, o or9a-
m ento desse orgao equivaleu a R$ 0,62 ao ano para
cada negro brasileiro - contra um per capita por mulher
de R$ 0,99 da Secretaria da M u lh er e mais de
R$ 1.300 por indigena da Funai. Assim, nao obstante
os avan90S, a tem atica racial ainda ocupa os subterra-
neos da institucionalidade.
Essa situa9ao leva parcela do movimento negro a tra-
9ar como estrategia a presen9a maior de negros e negras
na maquina institucional, avaliando que a pequena par-
ticipa9ao de afrodescendentes - os mais interessados em

1 Viviane Petinelli, “As conferencias publicas nacionais e a forma^ao da


agenda de politicas publicas do governo federal (2003-2010)”, Opinido
Publica, v. 17, n. 1, 2011. Dispomvel em: <http://dx.doi.org/S0104-
62762011000100008>. Acesso em: 20 jul. 2014.
28

com bater o racismo - e um dos elementos que explica


o racismo institucional. O utra parcela aposta na forma-
<;ao desses agentes publicos com a realiza^ao de cursos e
seminarios, partindo da avaliat^ao de que o problem a e
causado por “despreparo” ou “ma forma^ao”.
O racismo nao e um problem a de formaijao nem de
comportamento. O racismo deve ser visto como questao
estrutural. As singularidades historicas sao im portantes
para que se trace uma configuragao da sociedade “libe­
ral” brasileira e de sua “esfera publica”.
1. O racismo como elemento estruturante das divisoes de
classe, um a vez que o processo transitorio do modo
de produ^ao do escravismo colonial para o capitalista
aconteceu sem rupturas e protagonizado pelas mes-
mas elites dirigentes do perfodo anterior.

2. A concentragao de riquezas como elemento central na


sociedade capitalista brasileira, um a vez que ela se
constitui como capitalismo dependente e, portanto,
voltado ao atendim ento prioritario das demandas ex-
ternas, a m anuten^ao da concentrafao da posse da
terra oriunda do perfodo colonial e a superexploracao
do trabalho como instrum ento central da reprodu^io
do capital.

3. A violencia como prdtica politico, permanente e nao


episodica, tendo em vista que a manuten^ao de uma
ordem social nesses termos —racista e concentradora
de riquezas - so e possfvel por meio da permanencia de
instrum entos de repressao continuada. As demandas
29

sociais sao tratadas como “casos de polfcia”, o espago


para a negociagao e reduzido, e a criminalizagao dos
movimentos sociais se mostra uma constante.
Por isso, o racismo aparece como um a ideologia que
faz parte dessas matrizes de opressao, estruturantes do
autoritarismo social que permeia as r e la te s sociais.
A ausencia dessa reflexao estrutural e que tem inter-
ditado avan^os mais profundos no enfrentam ento ao
racismo brasileiro, mesmo no contexto de avango das
polfticas publicas. Isso por causa de tres questoes. A pri-
meira e mais im portante delas e a redu^ao ou a perda de
um a visao crftica do Estado brasileiro em sua dimensao
institucional e historica, como um aparelho construfdo
e edificado para a m anutengao de um capitalismo sin-
gularizado pela forma de dependencia externa, concen-
tra^ao de riquezas e racismo estrutural. A segunda ques-
tao, decorrente da primeira, e o afastamento do debate
ideologico no cam po da sociedade civil. Finalm ente,
a terceira consequencia e o afastamento do debate do
com bate ao racismo das questoes mais estruturais do
capitalismo brasileiro.
De qualquer forma, a pequena inserijao de afrodes-
cendentes nos ultim os anos, bem como a amplia^ao
dos espa^os de discussao desse tema, vem criando novas
demandas, das quais as estrategias meramente institucio­
nais tem cada vez mais dificuldade de dar conta.
30

0 contexto da agao direta do capital e a luta contra o


racismo hoje

O capitalismo brasileiro se insere, atualm ente, em um


novo contexto do capitalismo global, que chamamos de
“a^ao direta do capital”. Em um artigo publicado na re­
vista Arace, definimos esse conceito da seguinte forma:
O capital, m onopolizado e transnacionalizado, uti-
liza todos os mecanismos de pressao e constrangimento,
inclusive violentos, para im pedir qualquer a<jao regula-
toria ou controladora. A a$ao direta do capital inclui ate
mesmo a “desobediencia” explfcita de normas existentes,
utilizando o seu poderio para criar um a situacao de facto
que transforma a situacao de jure em algo sem sentido.2
A a^ao direta do capital e produto da reorganiza<jao
do paradigma produtivo que se consolida nos anos 1980
e 1990. Essa reorganiza<jao tem os seguintes tra^os:
1. A configuracao da produ^ao de bens materials e ima-
teriais em redes globais que articulam nichos produ-
tivos espalhados por varios paises.

2. Essa rede estabelece uma divisao internacional do tra-


balho em tres niveis basicos: o primeiro, do desenvol-
vim ento cientffico-tecnologico nos paises centrais, e
o “com ando” da rede, a parte “limpa” da produ^ao;
o segundo, da producao m anufatureira, da aplica-
gao tecnica dos conhecim entos tecnico-cientificos
2 Dennis de Oliveira, “Movimentos sociais e um a nova cultura politica
em tempos de afao direta do capital”, Arace, ano 1, n. 1, 2014, p. 98.
31

desenvolvidos no prim eiro nfvel, a parte “suja” da


producpao; e o terceiro, o de fornecim ento de mate-
rias-primas para a produ^ao.
Para que esse m odelo se realize, e necessaria um a
convergencia norm ativa das r e la te s de trabalho a par-
tir das necessidades das “cabe<;as” da cadeia produtiva,
razao pela qua! ha um a pressao pela total desregulagao
das r e la te s de trabalho. O utra dem anda desse capital
articulado nessa cadeia produtiva e a imposigao do livre
fluxo de capitais. Finalmente, que todas as instituiijoes
sociais se direcionem para o atendim ento imediato das
demandas do capital - como uma educa^ao voltada para
a formacao de profissionais adestrados tecnicamente ou
para a formula^ao de conhecimentos aplicados a produ-
(jao industrial, entre outros.
Ha, assim, um esvaziamento da esfera polftica. Essa se
direciona para tematicas que nao contradizem os interes-
ses estrategicos do capital. Se, em ultima instancia, como
esta presente na teoria marxiana, o Estado tem o papel
de construir e m anter um a ambiencia social favoravel a
plena realizagao e a m anutenfao das relagoes capitalis-
tas, nesse novo paradigma de acumulatjao e reprodufao
do capital, o Estado necessario nos pafses fora do centro
do capitalismo e o Estado minirno.
Para tanto, e necessario construir um discurso de
“condena^ao da polftica” e de valoriza^ao das a^oes indi-
viduais e/ou grupais que tenham uma perspectiva pon-
tual. No caso da luta contra o racismo, a acpao direta do
capital pressiona para que o movimento negro se limite
32

a agoes contra os preconceitos nos comportamentos in­


dividuals e na transformagao das polfticas publicas em
compensatdrias ou de promogdo social3.
Nao se trata de mera retorica. A concepgao de “pro-
mogao” significa instituir mecanismos para elevar um se-
tor ou um segmento social a um patamar superior sem,
necessariamente, levar em conta que tal processo exigiria
uma “redistribuigao de riquezas, bens materials e ima-
teriais” e que, portanto, sinaliza mudangas estruturais.
A ocupagao desses espagos institucionais de “pro-
mogao” da igualdade racial por pessoas ligadas ao
movimento social de negros, ao mesmo tempo que
deu visibilidade a tematica do racismo, criou uma ar-
madilha: guetificar as polfticas especfficas e deixar sob
a responsabilidade dos proprios atingidos pela violencia
racial estruturante o gerenciamento de mecanismos de
uma eventual superagao.
Processos como esse ocorrendo em um contexto em
que o capital constrange e pressiona pela total desregu-
lagao das relagoes sociais e submetendo-as a logica do
capital fazem com que voltem ideias como a de “pre-
parar” negras e negros para a insergao no mercado, na
universidade, entre outros. Assim como nas relagoes de
trabalho, o conceito de empregabilidade (que significa
um conj unto de atributos necessarios para conquistar a
vaga) substitui o de desemprego.

3 Interessante notar que os orgaos formados no ambito do Executivo


federal, estadual e municipal para discutir politicas espedficas de combate
ao racismo foram denominados “polfticas de promocpao da igualdade racial”.
33

Um aspecto im portante a ser considerado no con­


texto da afao direta do capital e a for^a do capital
rentista. Capital rentista que tern imposto as na^oes
politicas ortodoxas de ajuste fiscal a fim de garantir
seus interesses. Pode-se dizer que a unica politica de
Estado consolidada nos ultimos anos, um verdadeiro
consenso estabelecido principalm ente por parte da
aijao dos meios de comunica^ao/a politica fiscal orto-
doxa que implica priorizar o pagamento dos juros da
divida publica, o controle inflacionario e a liberdade
dos fluxos internacionais do capital. Essa politica de
Estado se expressa por uma hegemonia no pensamento
economico dessa op<jao que se espraia tanto na cober-
tura midiatica como na manuten^ao dessa politica por
parte do Banco Central - que se mantem autonomo
em rela9ao a esfera politica a despeito das politicas
governamentais neodesenvolvimentistas.
Hoje, cerca de 42% do or^amento federal sao des-
tinados ao pagamento dos juros da divida publica. O
ajuste fiscal imposto aos municipios e ao Estado difi-
culta enormemente investimentos em politicas publicas
nessas esferas de governo. Nao e a toa que, a despeito
das politicas neodesenvolvimentistas, o setor bancario
continua sendo o que mais lucra no Brasil.
Com um orijamento comprometido com a divida,
sobram menos recursos para investimentos em politicas
sociais, inclusive as especificas de combate ao racismo. Com
um cobertor curto, poucas sao as possibilidades de abra-
<jar todas as demandas. E elas sao muitas, conforme se
verificou no inicio deste texto.
34

Com isso, a luta contra o racismo sinaliza para uma


agao contra o capital que remete tanto a uma recons-
truijao da esfera polftica, esvaziada pela a9ao direta do
capital, como por sua apropria^ao no sentido de uma
profunda reforma do Estado nas perspectivas contrarias
a sua formaijao historica: desconcentraijao de renda e pa-
trimonio, universalizacao plena da cidadania e desmonte
dos aparatos de violencia sistemica. O racismo dever ser
enfrentando nao apenas na dimensao comportamental
e relacional, mas fundamentalmente como mecanismo
estruturante do autoritarismo social que sustenta as va-
rias logicas do capital.
“A agao direta do capital pressiona
para que o movimento negro se limite
a agoes contra os preconceitos nos
comportamentos individuals e na
transformagao das polfticas publicas
em compensatorias ou de promogao
social.”

Dennis de Oliveira
Pensamento social
e reiagoes raciais
no Brasil: a analise
marxista de
Clovis Moura
Marcio Farias

Clovis Steiger de Assis Moura (1925-2003) esta entre


os mais importantes intelectuais que no seculo XX se
propuseram a pensar o Brasil, enfatizando a dimensao
das rela<joes raciais como elemento estruturante da for-
ma^ao do pais. O que sempre preocupou Moura e di-
rigiu suas indagacpoes foram os dilemas da constitui^ao
da na^ao. Em 1959, publicou seu primeiro e marcante
livro, Rebelioes da senzala, uma interpreta^ao marxista da
escravidao no pais pelo vies da resistencia escrava1.

1 Erica M esquita, “Clovis M oura (1925-2003)”, A fro-Asia, Salvador,


Editora da UFBA, n. 31, 2004.
38

Nesse livro, Moura parte de uma interpretacao oposta


a de Gilberto Freyre e outros escritores que entendiam a
escravidao como um sistema basicamente convergente,
composto de escravos, em geral ajustados a condi^ao ser-
vil, e senhores despoticos, ainda que protetores. Moura
buscou analisar a resistencia dos cativos e seu impacto na
transformacao ou na destruicao da sociedade escravista2.
Seu segundo livro, Introducao ao pensamento de Euclides
da Cunha, foi lan^ado em 1964. Nele, temos uma analise
exegetica de Moura em rela^ao ao conjunto da obra do
autor carioca. Assim sendo, expoe um Euclides da Cunha
menos progressista. Alias, a analise mouriana apresenta-o
como um autor vinculado ao pensamento conservador
brasileiro, cuja matriz esta alicer^ada no pensamento ra-
cista europeu do seculo XIX.
O utra obra relevante para a compreensao do pen­
samento mouriano sobre as rela^oes de classe e racpa no
Brasil foi publicada em 1976. Trata-se de um estudo so­
bre cultura popular e racismo, chamado O preconceito
de cor na literatura de cordel. Nesse ensaio explorato-
rio, Moura apresenta 25 folhetos de cordel, recolhidos
aleatoriamente, que estabelecem categorias de analises
descritivas e sistematizando questoes de conteudo do
material. Levando em conta que a literatura de cor­
del sempre gozou de grande prestfgio, por ser uma
expressao cultural muito significativa entre as classes
oprimidas e exploradas do nordeste brasileiro, Moura
se propos a demonstrar que o racismo, expresso no

2 Idem.
39

“preconceito de cor”, tambem estava presente no ima-


ginario dos setores populares.
Quando posicionamos este trabalho diante do con-
junto da obra de Clovis M oura, percebe-se que ha
aperfei^oamento qualitativo de sua pesquisa. Essa in-
flexao permite ao autor, a partir de varios instrumen-
tos e materials, ter acesso a conteudos mais especificos
sobre as singularidades das re la te s raciais no Brasil,
de maneira a entender e refletir a presen^a do racismo
entre a classe trabalhadora.
Em Sociologia de la praxis - langado no Mexico em
1976 e traduzido para o portugues dois anos depois,
com o titulo Sociologia posta em questao temos uma
obra circunscrita no campo da teoria do conhecimento.
Nela, Clovis Moura sustenta a impossibilidade de uma
sociologia critica voltada as demandas da classe trabalha­
dora nos meios universitarios daquele periodo. Segundo
o autor, todo cientista social comprometido com a
transforma 9ao do sistema social do capital, por conta
dos entraves academicos, deveria ser um pensador auto-
nomo, vinculado apenas aos movimentos sociais.
Ainda do periodo das decadas de 1960-1970, Sacco
e Vanzetti: o protesto brasileiro (1978) e Didrio da guer-
rilha do Araguaia (1979) sao textos que destoam, em
alguma medida, da linha de estudos que M oura de-
senvolvia. Por outro lado, o autor sempre se manteve
comprometido com as lutas contra injusti 9as, opres-
soes e negligencias perpetradas pelo sistema do capital,
apontando a centralidade da diade “ra9a e classe” para
40

a compreensao do conjunto da luta anticapitalista no


Brasil. Isso nao o impediu, e nao parece ter sido a pro-
posta dele, de atomizar a luta do negro em rela^ao as
demandas da classe trabalhadora.
No fim da decada de 1970 e no infcio da de 1980,
M oura se aproxima de setores do movimento negro,
sobretudo o M ovimento Negro Unificado (M NU).
Esse processo de dialogo entre o intelectual e os ati-
vistas do movimento negro se estreita nos anos 1980
e 1990, quando da publica^ao dos notaveis livros
Sociologia do negro brasileiro (1988) e Dialetica radical
do Brasil negro (1994).
Sobre essas obras, os elementos centrais devem ser
destacados. Escritas por um autor ja sexagenario, marcam
um momento de inflexao no conjunto de suas compo­
s ite s que, ainda que sob um constrangedor silencio da
academia, figura entre os grandes interpretes do Brasil.
O livro Sociologia do negro brasileiro foi lancado no
ano do centenario da aboli^ao e difere de suas produces
anteriores. Moura, ainda que tenha discutido as con-
di<joes das p o p u la te s mais pauperizadas na sociedade
brasileira, tem como marca em seus escritos, ao menos
ate o lancpamento de Sociologia do negro brasileiro, uma
producao hermetica, nao acessfvel ao grande publico.
Aqui, no entanto, trata-se explicitamente de um texto
para dialogo com o conjunto da populacao, como ma-
neira de divulgar o acumulo teorico que produzira ao
longo de quase quatro decadas de estudos e pesquisas.
Estamos diante de um escritor maduro, que alicer^ou
41

um pensamento singular e se propoe a dialogar com os


setores estrategicos para a revolu9ao socialista no Brasil.
N a primeira parte, apresenta um estudo sobre relasoes
raciais no pai's. Na segunda, introduz alguns elemen-
tos de sua interpretac^ao da forma^ao brasileira, levando
em conta a participa^ao ativa da popula^ao negra. O
Quilombo dos Palmares e apresentado enquanto experi-
encia poli'tica das mais sofisticadas, como expressao mate
bem-acabada da capacidade dinamizadora do africano
escravizado de se colocar enquanto for^a opositora ao re­
gime colonial. Moura identifica uma contradicao estru-
tural entre senhores e escravos, como primeira expressao
da luta de classes no Brasil.
Em linhas gerais, para ele a historia da popula^ao
negra e a historia do segmento da sociedade que cons-
truiu o pais. Como observa, “o trabalho manual passa,
por isso, a ser considerado infame, somente praticavel
por escravos”3.
Esse trabalho sera executado, quase exclusivamente,
pelo escravo negro: “O escravo negro foi, em algumas
regioes, a mao de obra exclusiva desde os primordios da
colonia. Durante todo esse periodo, a historia do traba­
lho e, sobretudo, a historia do escravo”4.
A escravidao surge em decorrencia de dois fenome-
nos distintos, mas que se entrela^am. Primeiro, como
consequencia dos interesses das na^oes colonizadoras
em fase de expansao comercial e mercantil, ou seja, do

3 Clovis Moura, Sociologia do negro brasileiro (Sao Paulo, Atica, 1988), p. 48.
4 Ibidem, p. 14.
40

a compreensao do conjunto da luta anticapitalista no


Brasil. Isso nao o impediu, e nao parece ter sido a pro-
posta dele, de atomizar a luta do negro em relacao as
demandas da classe trabalhadora.
No fim da decada de 1970 e no inicio da de 1980,
M oura se aproxima de setores do movimento negro,
sobretudo o M ovimento Negro Unificado (M NU).
Esse processo de dialogo entre o intelectual e os ati-
vistas do movimento negro se estreita nos anos 1980
e 1990, quando da publica^ao dos notaveis livros
Sociologia do negro brasileiro (1988) e Dialetica radical
do Brasil negro (1994).
Sobre essas obras, os elementos centrais devem ser
destacados. Escritas por um autor ja sexagenario, marcam
um momento de inflexao no conjunto de suas compo­
s ite s que, ainda que sob um constrangedor silencio da
academia, figura entre os grandes interpretes do Brasil.
O livro Sociologia do negro brasileiro foi lan^ado no
ano do centenario da aboli^ao e difere de suas producoes
anteriores. Moura, ainda que tenha discutido as con-
di^oes das p o p u la te s mais pauperizadas na sociedade
brasileira, tem como marca em seus escritos, ao menos
ate o lan^amento de Sociologia do negro brasileiro, uma
produ^ao hermetica, nao acessivel ao grande publico.
Aqui, no entanto, trata-se explicitamente de um texto
para dialogo com o conjunto da popula^ao, como ma-
neira de divulgar o acumulo teorico que produzira ao
longo de quase quatro decadas de estudos e pesquisas.
Estamos diante de um escritor maduro, que alicer^ou
41

um pensamento singular e se propoe a dialogar com os


setores estrategicos para a revolu^ao socialista no Brasil.
Na primeira parte, apresenta um estudo sobre re la te s
raciais no pais. Na segunda, introduz alguns elemen-
tos de sua interpreta^ao da forma^ao brasileira, levando
em conta a participacao ativa da populagao negra. O
Quilombo dos Palmares e apresentado enquanto experi-
encia polftica das mais sofisticadas, como expressao mafs
bem-acabada da capacidade dinamizadora do africano
escravizado de se colocar enquanto fonpa opositora ao re­
gime colonial. Moura identifica uma contradi^ao estru-
tural entre senhores e escravos, como primeira expressao
da luta de classes no Brasil.
Em linhas gerais, para ele a historia da popula^ao
negra e a historia do segmento da sociedade que cons-
truiu o pafs. Como observa, “o trabalho manual passa,
por isso, a ser considerado infame, somente praticavel
por escravos”3.
Esse trabalho sera executado, quase exclusivamente,
pelo escravo negro: “O escravo negro foi, em algumas
regioes, a mao de obra exclusiva desde os primordios da
colonia. Durante todo esse perfodo, a historia do traba­
lho e, sobretudo, a historia do escravo”4.
A escravidao surge em decorrencia de dois fenome-
nos distintos, mas que se entrela^am. Primeiro, como
consequencia dos interesses das na^oes colonizadoras
em fase de expansao comercial e mercantil, ou seja, do

3 Clovis Moura, Sociologia do negro brasileiro (Sao Paulo, Atica, 1988), p. 48.
4 Ibidem, p. 14.
42

desdobramento das grandes navega^oes e do primeiro es-


tagio do capitalismo, o mercantilismo. Segundo, devido
a continua^ao e ao desenvolvimento interno da socie-
dade colonial nos moldes em que se realizava sua evolu-
<;ao desde a chegada dos colonizadores portugueses5.
A escravidao no Brasil e em outras partes do mundo
a partir do seculo XVI sera uma das molas propulsoras
para o capitalismo e o desenvolvimento industrial da
Europa. Devido a esse aparato economico envolvido no
trafico de pessoas, as grandes metropoles europeias in-
termediavam o negocio, ate o momento em que ele vi-
rou exclusividade da Inglaterra, que obteve o monopolio
da venda de humanos6.
No Brasil, a medida inicial para por fim ao trafico de
africanos ocorre nas primeiras decadas do seculo XIX,
tendo sua implementa^ao efetiva somente em 1850. A
crise do escravismo golpeou fortemente as entranhas
desse regime economico baseado no trabalho compul-
sorio, pois, com o fim do abastecimento de escravos,
os senhores nao teriam mais meios de garantir por
muitos anos a escravidao. Com o fim da escravidao e
inserido o trabalho assalariado, a situa^ao se renova,
mantendo tra^os do regime anterior7. Todavia, Moura
descreve o modo como, nesse processo “complexo e ao
mesmo tempo contraditorio da passagem da escravidao
para o trabalho livre, o negro e logrado socialmente e

5 Idem.
6 Idem.
7 Ibidem, p. 23.
apresentado, sistematicamente, como sendo incapaz de
trabalhar como assalariado”8.
Para o autor, o periodo exposto e o auge da ideolo-
gia de branqueamento, sendo o Estado conivente com a
exclusao do negro ao incentivar a vinda do trabalhador
branco europeu.
Segundo Moura, diante desses processos, a popula^ao
negra no Brasil sempre se organizou em novos grupos
ou se envolveu em grupos ja existentes no intuito de se
preservar, manter sua cultura, tentar encontrar momen-
tos de lazer entre os pequenos periodos de descanso da
labuta, preservar padroes africanos e resistir ao regime de
opressao durante a escravidao. No pos-aboli^ao, diante
da sociedade competitiva e da marginaliza^ao a que a
popula^ao negra foi exposta deliberadamente, coube
ao negro novamente se organizar em espa^os e grupos.
“Podemos dizer, por isso, [...] que o negro brasileiro,
tanto durante a escravidao como posteriormente, orga-
nizou-se de diversas formas, no sentido de se autopre-
servar tanto na situa^ao de escravo como de elemento
marginal apos o 13 de Maio”9.
Esses grupos variam em rela^ao aos objetivos, que
sao os mais diversos, e Moura propoe que essas orga-
niza 5oes, independentemente do motivo pelo qual se
aglutinavam, podem ser compreendidas por grupos di-
ferenciados e grupos especificos.

8 Ibidem, p. 65.
9 Ibidem, p. 112.
44

Os grupos diferenciados sao “unidades organiza-


cionais que, por um motivo ou uma constela^ao de
motivos ou racionalizaijoes, diferenciam-se de outras
que, no piano da interafao, compoem a sociedade”10.
Os grupos diferenciados sao aqueles que, “do ponto
de vista interno do grupo, tern padroes de comporta-
mento criados a partir do momento em que seus mem-
bros se sentem considerados e avaliados por meio da
sua marca pela sociedade”11.
O u seja, a relacpao de distin^ao entre esses grupos
tem a ver com o fato de o grupo diferenciado ser iden-
tificado, enquanto o grupo especffico se identifica. Essa
qualidade que o segundo grupo adquire num a socie­
dade dividida em classes sociais possibilita a criacao de
interioridade, identidade e, a partir disso, emergencia
de valores. Adquire tambem consciencia e percep^ao
de que a sociedade o diferencia, de maneira geral, de
forma depreciativa e, confrontando a isso, “passa a en-
carar a sua nova marca como valor positivo, revaloriza
aquilo que para a sociedade o inferioriza e sente-se um
grupo especffico”12.
Para Moura, na sociedade brasileira, que preconiza o
branqueamento da populacao, “o negro somente podera
sobreviver social e culturalmente sem se marginalizar to-
talmente, agrupando-se”13.

10 Ibidem, p. 116.
11 Idem.
12 Ibidem, p. 117.
13 Ibidem, p. 120.
45

Em linhas gerias, Sociologia do negro brasileiro e um


livro que tem como funijao ser um instrumento de qua-
lifica^ao de uma militancia negra e anticapitalista in-
serida no contexto das lutas pela redemocratizafao do
pais. No entanto, a desertificacao neoliberal da decada
de 1990 colocou novos desafios analfticos no horizonte
dos militantes sociais ligados a classe trabalhadora.
E nesse contexto que Clovis Moura escreve sua obra
mais importante, Dialetica radical do Brasil negro, que
volta a ter o carater hermetico de outros momentos. O
livro busca reencontrar as frestas para a abertura da janela
historica para a revolu^ao brasileira. Ainda que atualize
categorias de analises que ja haviam surgido na decada de
1980, ha nesse momento indiscutivelmente um estudos
minucioso da forma^ao do Brasil, elevando as categorias
que outrora subsidiaram suas pesquisa a um grau teorico
rico e sofisticado.
Em linhas gerais, a interpretaijao de Clovis Moura
sobre a fo rm a^ o do Brasil tem os seguintes eixos
conceituais: no Brasil colonia, ainda que esteja apre-
sentado o papel de empreendimento comercial de
extra^ao de recursos naturais, na fase do capitalismo co­
mercial que possibilitou a acumulafao primitiva do ca­
pital na Europa, existe um eixo dinamico interno na so­
ciedade constitufda por escravizados e senhores. Como a
revolta do escravizado na condiijao de objeto e constante,
entende-se essa a<jao permanente como “quilombagem”,
que dinamiza o perfodo do escravismo pleno. Por sua
vez, as mudan^as externas e internas na configura^ao do
46

capital internacional consolidam uma nova perspectiva


em rela^ao ao processo de exploracao da for^a. O u seja,
ha uma pressao para transi^ao do trabalho escravo para o
trabalho assalariado. A burguesia nacional enfrentou essa
pressao de maneira distinta, transitou de um regime po­
litico colonial para um regime monarquico, mantendo
a escravidao. Por outro lado, setores ligados ideologica-
mente ao capital ingles assumem a postura abolicionista
com fim de modernizar o Estado brasileiro, que era es-
trangulado pela escravidao. Ainda que a a<jao do escra-
vizado em rela9ao a superac^ao de sua condiijao de cativo
permaneca ativa - vale pensar nas revoltas baianas na pri-
meira metade do seculo XIX, motins, fugas e demais acoes
nos centros urbanos do Rio de Janeiro e de Sao Paulo,
sobretudo nas fugas em massa das fazendas de cafe - ,
o abolicionismo no Brasil do ponto de vista legal foi cons-
tituido majoritariamente por brancos da classe media que
queriam acabar com a escravidao, mas nao tinham, em
geral, nenhum projeto efetivo para a popula^ao negra pos
-liberdade. A esse ultimo periodo Clovis Moura deu o
nome de escravismo tardio.
Na transi^ao para o trabalho livre assalariado, a socie-
dade brasileira se torna mais complexa, em especial no
que tange ao racismo, que, elaborado pela elite branca
brasileira, penetrou como ideario no seio da classe tra-
balhadora. Portanto, diante de uma sociedade classista
e racista, cabe ao negro o papel potencialmente revolu-
cionario de explicitar uma das mais efetivas contradicoes
da modernidade brasileira: o mito da democracia racial.
“Diante de uma sociedade classista
e racista, cabe ao negro o papel
potencialmente revolucionario de
explicitar uma das mais efetivas
contradigoes da modernidade
brasileira: o mito da democracia racial.”

Marcio Farias
Feminismos negros e
marxismo: quem deve
a quem?
Rosane Borges

Nao existe tal coisa como uma luta de uma so questao,


porque nos nao vivemos vidas de uma so questao.

—Audre Lorde

Escrever sobre feminismos e marxismo continua mo-


tivo de dissenso entre ativistas e estudiosas, pois, ainda
que tenham ramifica9oes comuns, que se enrai'zam na
confronta^ao da explora^ao capitalista, persistem seve-
ros obstaculos idcologicos e epistemologicos. Estudos,
reflexoes e pesquisas se acumulam e nos franqueiam a
possibilidade de produ<jao de um inventario em que se
sobreleva a reitera^ao de alguns termos —casamento e
divorcio, tensoes, aproximugdes e distancias, inadequagoes,
50

indissociabilidade - , deixando ver os antagonismos que


ainda pairam sobre o tema.
Conviria, assim, relembrar a linha do tempo do cha-
mado feminismo ocidental desenhada em fases ou on-
das, a fim de detectarmos os pontos de inflexao nos quais
foi possivel delinear conjun^oes/disj undoes entre um e
outro (feminismo/marxismo). Caberia, igualmente, si-
tuar o feminismo negro como teoria e pratica politicas,
dotado de parametros proprios, vinculado as realidades
simbolica e material de cada tempo, sem desconsiderar
que a domina^ao masculina e um fenomeno que atra-
vessa a historia humana (da narrativa biblica a legisla<jao
brasileira em curso). Sabedor de que a domina^ao com
fundamento de genero e anterior ao modo de produ^ao
capitalista, o feminismo negro interpreta a politica de
feigao marxista como uma teoria e uma categoria dina-
mizadas nas relafoes sociais1que, conjugadas com as ex-
plora9oes de genero, rafa, orientacao sexual e correlatos,
potencializaria tanto o escopo da luta de classes quanto
o da luta antirracista e antissexista - lutas que assumem
certa configura9ao pelo laijo indissoluvel que as amarra
no contexto das sociedades modernas.
A militante comunista Amelinha Telles situa a do-
mina^ao masculina/explora^ao feminina num lugar

1 De acordo com a pensadora Daniele Kergoat, conhecida como aquela que


aparentemente opoe teoria da interseccionalidade a da consubstancialidade,
a relagdo social e dinamica, e um a tensao em torno da qual se criam grupos
(eles nao estao dados de imcio), enquanto categoria e apenas um marcador
descritivo. Para falar em rela^ao social, ainda segundo Kergoat, e preciso
que esta domine, oprima e explore.
51

amplificado em que e possfvel divisar as re la te s de po-


der ao longo da historia:

Falar da mulher, em termos de aspirafao e projeto, rebeldia e


constante busca de transforma^ao, falar de tudo o que envolva
a condifao feminina, nao e so uma vontade de ver essa mulher
reabilitada nos pianos economico, social e cultural. E mais do
que isso. E assumir a postura incomoda de se indignar com o
fenomeno historico em que metade da humanidade se viu mi-
lenarmente exclui'da nas diferentes sociedades no decorrer dos
tempos.

Tal exclusao milenar nos leva a considerar prio-


ritariam ente as variaveis “genero” e “ra^a”, ba-
nidas da nascente sociologia do seculo XIX,
visto que a forma^ao das sociedades modernas concebeu
os sujeitos tao somente como derivados das classes so­
ciais. Eis a astucia da historia: a emergencia desse “novo
homem” se deu sem que se conseguissem soterrar os ar-
cafsmos de tempos preteritos. A chamada expansao eu-
ropeia sobre as Americas se deu embasada em formas
de exploracjao extintas ou em declfnio no Ocidente
e na Europa oriental, a exemplo da escravidao e da
servidao de povos indfgenas e africanos. A coexis-
tencia desses dois mundos fez com que genero e
ra9a pudessem disputar, tanto no ambito da teoria social
quanto no da a^ao polftica, a presen^a indigesta no jogo
da conforma^ao das desigualdades e das hierarquias. Este
e um dos postulados essenciais que instaurou em defini­
tive o feminismo negro. Reservemos essa questao por ora
e avancemos nas chamadas fases do feminismo ocidental.
52

Trajetorias do movimento feminista: evolugao da


experiencia marxista?

De acordo com a literatura especializada, o rico patrimo-


nio teorico-polftico do movimento feminista (que deu
a ele o atributo de vitorioso, em virtude de ter abalado,
no seculo XX, os alicerces das normas e dos codigos que
regiam os espa^os publicos e privados) se acumulou a
partir do chamado feminismo liberal, filho indesejavel
da Revolu^ao Francesa. Como se sabe, muitas mulhe-
res passaram a denunciar o projeto iluminista em seu
escopo excludente, visto que os homens continuavam
tendo primazia no jogo social. E amplamente conhecida
a obra de Mary Wollstonecraft, Reivindicagao dos direitos
da mulher (1792)2, na qual se denuncia a inferioridade
das mulheres face aos homens. Do feminismo liberal, as
lutas se ampliam.
O chamado feminismo marxista poe em cena as de-
sigualdades de classe, fomentadas pelo desenvolvimento
do capitalismo via Revolugao Industrial. Tem como
pano de fundo as expressivas lutas proletarias, com a
burguesia desempenhado um papel fundamental na
manuten^ao das hierarquias e das desigualdades. A eco-
nomia e o mundo do trabalho constitufam as causas da
subordina^ao feminina.
Ja o feminismo radical ganha proeminencia em torno
dos anos 1970. O termo “radical” vem da crenga de que

2 Em 2016, o livro ganhou uma edifao brasileira publicada pela Boitempo.


53

a “raiz” da domina^ao masculina se justificaria pela vi-


gencia do patriarcado. Tendo como uma de suas prin­
cipals representantes a filosofa Simone de Beauvoir, o
feminismo radical considera o patriarcado uma ideolo-
gia que organiza o mundo dicotomicamente, superva-
lorizando atributos “supostamente masculinos” e sub-
valorizando os “supostamente femininos”. Em suma, o
patriarcado atribui uma natureza inferior e inalteravel
as mulheres.
O feminismo pos-moderno ganha visibilidade no ini-
cio da decada de 1990. Visa a desafiar ou a evitar aquilo
que ve como defini^oes essencialistas da feminilidade.
Uma interpreta^ao pos-estruturalista do genero e da se-
xualidade e central para essa variante. A micropolitica
e as multiplas diferencas que transitam na plataforma
social foram um dos principals capitais desse tipo de
feminismo. Algumas referencias feministas negras ou
nao brancas, como Gloria Anzaldua, bell hooks, Chela
Sandoval, Cherrie Moraga, Audre Lorde, Maxine Hong
Kingston, foram ai situadas. Demoremo-nos um pouco
sobre essa questao.
Face a esse painel, Nancy Fraser elabora criticas acer-
bas ao que ela considera uma coopta 9ao, por parte do
feminismo, ao neoliberalismo. Para ela, se, por um lado,
o feminismo radical (ou a segunda onda) avan^ou em
substituir uma visao monista de justi9a, oferecendo uma
compreensao tridimensional da realidade (economica,
politica e cultural), pondo em cena uma pletora de in-
justi9as que so poderiam ser combatidas caso se levassem
54

em conta a ma distribui^ao, a falta de reconhecimento


e a falta de representacpao, por outro, e absorvido pelo
ideario neoliberal:

Claramente emancipatorias no periodo do capitalismo or-


ganizado pelo Estado, as crfticas ao economicismo, ao an-
drocentrismo, ao estatismo e ao westfalianismo agora
aparecem cheias de ambiguidades, suscetfveis a servir as neces-
sidades de legitima^ao de uma nova forma de capitalismo. [...]
Somos as vi'timas de uma coincidencia infeliz, e aconteceu de
estarmos no lugar errado no momento errado e assim cafmos
como presas do mais sedutor dos oportunistas, um capitalismo
tao indiscriminado que instrumentaliza qualquer perspectiva
que seja ate mesmo uma inerentemente estranha a ele? [...] No
momento atual, essas duas crfticas a autoridade tradicional, a
feminista e a neoliberal, parecem convergir.

Ainda que reconhe 9a que essa fase do feminismo


nunca duvidou da centralidade da justi^a distri-
butiva e da crftica da economia polftica no pro­
jeto da emancipa 9ao das mulheres, Nancy Fraser
argum enta que o m ovim ento tornou-se incapaz
de interpelar as estruturas e as institui 9oes, res-
ponsaveis por manter e ampliar as desigualdades e
as injusti9as. Ainda de acordo com Fraser, a coopta 9ao
das polfticas de genero pelo “novo espfrito” do capita­
lismo pos-fordista e a subordina 9ao de sua crftica radical
a uma agenda neoliberal sao um golpe desferido a uma
polftica antes nucleada pela luta de classes numa pers­
pectiva acentuadamente economica.
55

Quer nos parecer que a multiplicidade de enfoques,


as varias perspectivas e as tendencias que caracterizam a
praxis feminista sao vistas, segundo nos demonstram as
cri'ticas de Fraser, como um recuo da agenda de combate
ao capitalismo, vertebrada pela perspectiva economica.
Ademais, o esquema da divisao da historia do feminismo
em fases ou ondas deixa algo fora de sua sistematica
classificafao. E escusado dizer que as teorias e as filia-
$6es politicas nao sucedem umas as outras em progressao
linear. Os vestxgios e as reminiscencias provocam a re-
nova9ao do ja estabelecido, do ja pensado, sem fazer
das teorias automoveis jogados no ferro-velho. Antes
de imprimirmos “sobretons evolucionistas darwinia-
nos”, talvez seja mais rico e operacional observamos
como o feminismo de extra^ao liberal, capitalista ou
pos-moderno enfatiza determinado programa politico
e, ao faze-lo, propoe novos modos de reorganiza^ao do
social e do politico.

Feminismo negro: uma plataforma de expansao da


teoria marxista

Nosso eiUendimento e que, em seu universo multi-


facetado - daf falarmos em feminismos negros —, o
papel e o lugar das mulheres negras afiguram-se como
incontornaveis para compreendermos as hierarquias
e as d isc rim in a te s cujos contornos se perdem sob
56

os lenfois do tempo. Tornou-se lugar-comum o reco-


nhecimento de que a teoria marxista conseguiu retirar
as classes sociais do dominio explicativo da natureza,
apontando seu carater fundamentalmente historico e
socialmente construido.
O discurso moderno solapa com a no^ao de honra
para dar legitimidade a de dignidade, usada num sen­
tido universalista e igualitario: ao contrario da honra, a
dignidade supoe uma partilha coletiva de todos, valor
compativel com a assun^ao das sociedades democra-
ticas. Na esteira do reconhecimento e da dignidade, a
identidade individual e a autenticidade compoem-se na
mesma atmosfera politica. Nas sociedades hierarquicas,
o que hoje e chamado de identidade era fixado pela po-
sigao social de cada um, por papeis ou atividades vincu-
lados com essa posi^ao.
Em O capital, Marx define classes sociais no escopo
da teoria da economia politica, forjadas pela produ-
fao capitalista na dinamica da mudan^a historia. No
entanto, nao consegue adotar o mesmo procedimento
para o genero e a ra 5 a, acatando que sao ideologias e
hierarquias que se ligam a “natureza”, enquanto outras,
tais como a religiao, nao seriam peculiares ao modo de
producao capitalista, mas a experiencias anteriores.
O feminismo negro vai operar um duplo movimento,
que se mostra fundamental para o alargamento de pers-
pectivas teoricas no campo da teoria social: tira do do­
minio das classes sociais a chave explicativa para pensar
as discrim inates e as hierarquias e insere a dimensao
57

racial no escopo das reivindicagoes de genero. Desse


modo, nasce com uma proposta radical, pois interpela,
de um lado, analises e polfticas presas apenas a visao
de classe e, de outro, poe em questionamento a visao
universalista de genero que teve primazia na polftica an-
tissexista na primeira metade do seculo XX.
Sueli Carneiro chama atengao para a exploragao co­
lonial que condicionou as relagoes de genero no Brasil e
nas Americas com a prevalencia da componente racial.
No Brasil, alem de Sueli Carneiro, nomes como Lelia
Gonzalez, Luiza Bairros e Jurema Werneck sao algumas
referencias inescapaveis para pensarmos a formagao do
feminismo negro que, ao decretar sua autonomia frente
a teoria marxista, nunca desertou de um campo que in­
terpela a divisao de classes, ainda que tomando outras
categorias e outros parametros que nao aqueles nati-
vos da teoria marxiana. Em outros lugares do mundo,
constitufram-se referencias Angela Davis, Patricia Hill
Collins, Angela Gilliam e Kimberle Crenshaw, com sua
proposta de interseccionalidade que ganhou aderencia
nas formulagoes polfticas em solo brasileiro e que foi
vista como contraposta a ideia de consubstancialidade de
Daniele Kergoat, quando na verdade se complementam.
I'ara suavizar os antagonismos teoricos, talvez se pu-
dcsse assegurar que sc trata, antes, de operar uma vigi-
lancia epistemologica e oferecer outros ferramentais para
analises mais precisas das desigualdades, mormente nas
sociedades marcadas pelo colonialismo e pela escravidao.
Analises orientadas pelos agenciamentos das trajetorias
58

individuals (Jurema Werneck), dos movimentos sociais


(Luiza Bairros) e do poder (Sueli Carneiro) coexistem
com estudos mais diretamente associados as investiga­
t e s de extra^ao marxista.
Disso dao prova expressiva as colabora^oes de pensa-
doras e ativistas como Lelia Gonzalez e Angela Davis. A
primeira, uma das vozes mais expressivas do feminismo
negro brasileiro, embasa seus argumentos nas ideias de
Marx. De acordo Lelia, o racismo e uma ideologia que
sustenta a explora^ao capitalista:

Embora o grupo capitalista branco figure como o principal


operador dessa ideologia, a inscrifao de seus efeitos no nfvel *
da estrutura social ocasiona que um grupo mais amplo se be-
neficie da “mais-valia psicologica, cultural e ideologica” por ela
institufdos: [...] tanto brancos quanto negros pobres sofrem os
efeitos da explora^ao capitalista. Mas, na verdade, a opressao
racial faz-nos constatar que mesmo os brancos sem propriedade
dos meios de produ^ao sao beneficiarios do seu exerci'cio. Claro
esta que, enquanto o capitalista branco se beneficia diretamente
da exploracpao ou superexplora^ao do negro, a maioria dos bran­
cos recebe seus dividendos do racismo, a partir de sua vantagem
competitiva no preenchimento das posigoes que, na estrutura
de classes, implicam nas recompensas materials e simbolicas
mais desejadas.3

Angela Davis, no livro Mulheres, raga e classed, insiste


que sem um reexame do entrela^amento de raija e ge-
nero a luta anticapitalista e deficitaria, pois dele advem

3 Lelia Gonzalez, “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, Revista Ciencias


Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-44.
4 Em 2016, o livro ganhou uma edi$ao brasileira publicada pela Boitempo.
59

uma percep^ao mais apurada da logica do capital. Essa


indissociabilidade coloca o feminismo negro num a
posi^ao perpetua de confronta^ao do capitalismo.
Segundo ela,

as organizaijoes de esquerda tem argumentado dentro de uma


visao marxista e ortodoxa que a classe e a coisa mais importante.
Claro que classe e importante. E preciso compreender que classe
informa a ra^a. Mas raga., tambem, informa a classe. E genero
informa a classe. Raga e a maneira como a classe e vivida. Da
mesma forma que genero e a maneira como a racpa e vivida.
A gente precisa refletir bastante para perceber as intersecfoes
entre racpa, classe e genero, de forma a perceber que entre es-
sas categorias existem rela^oes que sao mutuas e outras que sao
cruzadas. Ninguem pode assumir a primazia de uma categoria
sobre as outras.5

Pela voz dessas pensadoras e ativistas, acreditamos


ter dito o suficiente para afastar as inevitaveis vozes
discordantes que costumeiramente contrapoem femi­
nismo negro e marxismo pelo improdutivo par geral
versus especffico. A tentativa aqui nao e fazer desapa-
recer as discordancias, mas apontar que o feminismo
negro se poe em outra dimensao para interrogar o
marxismo: coloca-se no lugar de desnaturalizar, num
golpc so, ra^a c genero, tarefa nao efetuada por Marx,
conlbrme ja assinalamos.

5 Angela Davis, “As mulheres negras na construfao de um a utopia”,


I Jornada Cultural Lelia Gonzalez, Sao Luiz, Centro de Cultura Negra do
Maranhao, 13 dez. 1977.
60

Os vituperios costumeiramente desferidos contra o


feminismo negro, que o encapsulam numa agenda redu-
cionista e redutora, que o associam ao pos-modernismo,
revelam uma nao compreensao de sua incidencia na teo­
ria social e na pratica polftica. Ainda que nao adote, em
certos casos, a regua unfvoca do marxismo, mantem-se
como uma praxis que por vias diversas poe em cena a
exclusao do capital. Essa redugao destitui o feminismo
negro de seu carater radical e pluralista.
Essa vulgaridade com a qual a crftica embotada
se reveste para avaliar os feminismos negros sob uma
lupa embagada so aumenta as supostas distancias entre
aquele e o marxismo. Ser mulher, negra e ter determi-
nada orientagao sexual nao corresponde apenas a uma
marcagao do jogo das diferengas (tarefa muito associada
ao pos-modernismo), mas significa assinalar que tais di-
ferengas instituem desigualdades. E e essa nefasta dobra-
dinha que faz com que os influxos teoricos e as propos-
tas advindas do feminismo negro ganhem um estatuto
plural e uma estatura elevada para responder aos desafios
reelaborados incessantemente pela exclusao capitalista.
Se e lfcito falarmos em dfvidas, incompreensoes e re-
ducionismo, e a teoria marxista que devemos cobrar a
fatura por nao ter pensando concomitantemente a ins-
tauragao das desigualdades e das hierarquias em con-
sorcio com o racismo e o sexismo, variantes perpetua-
mente utilizadas para o triunfo do capital. Mas, como
preferimos pensar a questao de maneira proativa, ousa-
mos afirmar que os fem inismos negros tem a potencia
61

de efetuar uma influencia no sentido anti-horario, tal


como as grandes obras da literatura, ao se instalar nas
brechas abertas pelo receituario marxista, oferecendo
ferramentas para que tonifique seu diagnostico sobre
a estratifica^ao das classes, levando em conta a mate-
ria-prima (racismos e sexismos, fundamentalmente) de
uma realidade que molda a vida de mais da metade da
popula^ao do planeta.
SOBRE OS AUTORES

A lessandra DBVUlsky e advogada, professora universitaria e direto-


ra executiva do Instituto Luiz Gama. £ mestre em direito po­
litico e economico pela Universidade Mackenzie e doutora em
direito economico e financeiro pela Universidade de Sao Paulo.

Dennis de Oliveira e chefe do Departamento de Jornalismo e


Editoraijao da Escola de Comunica^ao e Artes da Universidade
de Sao Paulo onde leciona como professor livre-docente.
Coordenador cientifico do Centro de Estudos Latino-
Americanos sobre Cultura e Comunica^ao (Celacc) e membro
da Rede Andrracista Latinoamericana Quilombagao.

M arciO Farias e graduado em psicologia pela Universidade


Presbiteriana Mackenzie e doutorando em psicologia social
pela PUC-SP. Autor de Clovis Moura e o Brasil: um ensaio
critico (Dandara, 2019), coordena o Nucleo de Estudos Afro
Americanos (Nepafro) e e colaborador do Instituto Amma
Psique e Negritude.

Rosane Borges e jarnalista e professora na Universidade Estadual


de Londrina (UEL). Pos-doutoranda em Comunica^ao, pela
Escola de Comunica9ao e Artes da Universidade de Sao Paulo,
integra a Comissao de Jornalistas pela Igualdade Racial e o gru-
po Comunicadoras Negras. Escreve esporadicamente para o
Blog da Boitempo.

Silvio Luiz de A lm eida e presidente do Instituto Luiz Gama.


Pos-doutor do direito pela Universidade de Sao Paulo, le­
ciona na Universidade Presbiteriana Mackenzie e na Escola
de Administraijao de Empresas de Sao Paulo da Fundafao
Getulio Vargas. E autor, entre outros, de Sartre: direito epolitica
(Boitempo, 2016) e O que e racismo estrutural (Jandaira, 2019).
Escreve para o Blog da Boitempo esporadicamente.
PARA APROFUNDAR A LEITURA

Margem Esquerda n. 27: marxismo e questao racial


Sueli Carneiro, Silvio Almeida, Perry Anderson et. al.

Mulheres, raca e classe


Angela Davis

Uma autobiografia
Angela Davis

Raca, nagao, classe: as identidades ambiguas


Etienne Balibar e Immanuel Wallerstein

Osjacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolugao de Sao Domingos


C. L. R. James

A nova segregagao: racismo e encarceramento em massa


Michelle Alexander

Pensamento feminista negro: conhecimento, consciencia e a politica do


empoderamento
Patricia Hill Collins

Sartre: direito e politica: ontologia, liberdade e revolugao


Silvio 1.11i/. do Almeida

Minha carne: diario de uma prisao


Preta Ferreira

Escritos politicos
Frantz Fanon
“Ao contrario do que apregoam as
leituras liberals, racismo nao e apenas
um problema etico, uma categoria
juridica ou um dado psicologico.
Racismo e uma relagao social, que se
estrutura politica e economicamente.”

Silvio Luiz de Almeida

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