A Chama Que Nos Transcende - Thaisa Lins

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COPYRIGHT © 2022 by Thaísa Lins

É proibida a reprodução, transmissão ou distribuição não autorizada


de qualquer parte dessa história. Os direitos da autora foram
assegurados. Plágio é crime.
Esta é uma obra de ficção. Personagens e acontecimentos
descritos aqui são frutos da imaginação da autora. Qualquer
semelhança com acontecimentos reais é mera coincidência.
Essa obra segue as regras do Novo Acordo Ortográfico.

Capa: Genevieve Stowell


Diagramação: Thaísa Lins
01 | Não é bom que o homem esteja só
02 | Mais astuta que todas as alimárias do campo
03 | Se abrirão os vossos olhos – Parte I
04 | Se abrirão os vossos olhos – Parte II
05 | Por um homem entrou o pecado no mundo
06 | E o homem foi feito alma vivente – Parte I
07 | E o homem foi feito alma vivente – Parte II
08 | Se procederes bem
09 | Entre as árvores do jardim
10 | Para o lavrar e o guardar
11 | Multiplicarei grandemente tua concepção
12 | Fugitivo e errante serás na terra
13 | Osso dos meus ossos e carne da minha carne
14 | Fruto da árvore que está no meio do jardim
15 | Maldita é a terra por causa de ti
16 | És pó, e ao pó retornarás
17 | Ela era mãe de todos os viventes
Epílogo
Essa não é uma história sobre uma mocinha.
Essa história é sobre Evangeline, uma mulher impulsiva,
perdida e genuinamente má quando quer. Também é,
principalmente, sobre uma humana. Muitos de vocês vão odiá-la em
certas partes da obra; terão motivos concretos para fazê-lo. Apenas
tenham em mente que o intuito deste livro não é fazer você amar a
personagem principal, não é fazer com que você concorde com
suas decisões e atitudes adversas; o propósito desta obra é
somente fazer com que você pense com Eva. Tal proposta lhe fará
mais sentido ao decorrer dos capítulos, não se preocupe.
A Chama Que Nos Transcende é uma obra complexa. A
história a seguir conterá temáticas como: pensamentos sombrios,
violência explícita e relações abusivas. Se você possui algum
problema com quaisquer desses pontos, então peço, para seu
próprio bem, que não prossiga com a leitura. Ela também retratará
reflexões sobre Inferno/Paraíso e metáforas sobre Anjos/Demônios
que terão importância somente para o desenvolvimento da história.
Minha intenção com esse livro não é ofender nenhum princípio do
cristianismo.
Quero também frisar que essa obra se trata de uma novela,
uma vez que não é pequena o bastante para ser considerada um
conto, nem grande o suficiente para ser considerada um romance
de fato.
Os avisos foram dados. Caso deseje continuar, é por sua conta
e risco. Boa sorte. Você pode precisar.
Me siga no Instagram para mais: @autorathaisa_
Para todos que ainda não conhecem seu lugar no mundo.
Vocês o encontrarão. Eu prometo.
Apenas não percam a esperança durante o caminho até sua
sina, por mais longo e espinhoso que seja. Ela poderá ser seu único
fulgor nas noites mais obscuras pelas quais passarão.
— Você vai ficar cheirando a cigarro na festa. Sua mãe vai
odiar — Freya, minha namorada — ao menos no conceito de meus
pais —, ponderou enquanto colocava seus brincos, em frente ao
espelho de meu quarto.
Eu realmente considerei responder àquilo, mas logo cheguei à
conclusão de que não valia a pena. Minha vida inteira havia sido
baseada em evitar a maior parte de discussões que estivesse ao
meu alcance, e era difícil mudar velhos hábitos. Portanto, apenas
me concentrei em tragar a nicotina enquanto dava um nó em minha
gravata.
Após poucos segundos, Freya se virou para mim, e
desaprovação dançou por seus orbes quando lhe ficou claro que eu
continuaria com o cigarro. Não me importei com isso, contudo. Ela
então se limitou somente a soltar um suspiro pesado, e logo
anunciou:
— Estou pronta.
Assenti, agora prestando atenção em meu colarinho no espaço
livre que Freya enfim tinha deixado no espelho.
— Então, como estou? — acrescentou, parecendo um pouco
indignada por ter que me incitar a elogiá-la.
Ergui o olhar para seu reflexo.
— Linda, Freya. Você está linda — respondi, e estava sendo
sincero.
Ela era uma garota bonita. Tinha um cabelo loiro de um tom
pouco mais claro que o meu, e era liso como papel; tinha olhos
cristalinos e grandes, e seu corpo era tão curvilíneo quanto podia se
esperar de uma jovem de dezessete anos.
Meu conflito unilateral com ela decerto não se devia a nada que
envolvesse sua aparência. De forma alguma. Minha relutância se
devia a aspectos um pouco mais complexos, aspectos que
realmente importavam. Eu e Freya tínhamos personalidades
distintas demais.
Eu conhecera a garota há quase dois meses, quando eu e
minha família nos mudamos para Seattle. Meu pai viera para cá pois
era onde abrira uma nova empresa de sua companhia, e um de
seus sócios era o pai de Freya. Desde o jantar da sociedade,
nossas famílias andaram insistentes para que nós dois entrássemos
em uma espécie de relacionamento. A loira pareceu inclinada a
trazer a ideia para a realidade desde o início.
Freya era uma boa garota, porém podia ser tão esnobe e
prepotente quanto qualquer outra mulher do mundo ao qual
pertencíamos, quanto minha própria mãe. Não que isso fosse
diretamente sua culpa; ela era nova, ainda não parecia ter feito
distinção acerca de quem ela queria ser e de quem seus pais
queriam que ela fosse. De todo modo, aquilo definitivamente não
era algo que eu desejava para mim. No entanto, ao fim, meus
péssimos hábitos de ceder em prol de alguma escassa paz me
faziam levar as coisas com ela em frente, embora eu sempre
estivesse tomando o devido cuidado para nunca ultrapassar certos
limites.
— Acho que podemos ir — balbuciei enfim, vestindo meu
paletó e apagando meu cigarro no cinzeiro.
Freya maneou a cabeça, mas não seguiu até a porta antes de
ajustar o nó de minha gravata.
Quando descemos as escadas de nossa nova casa,
encontramos minha mãe ao telefone, no meio da sala. Quando nos
viu, encerrou a chamada que fazia com aparentemente alguém do
buffet, e então disse:
— Vocês dois estão lindos. Acho que todo o atraso compensou,
não é mesmo? — Ela lançou uma piscadela para quem intitulava de
nora, e Freya soltou um riso nasalado enquanto a agradecia. —
Bem, eu estava só esperando vocês. Queria ter a certeza de que
Tristan não fugiria antes de sairmos — acrescentou, como que em
confidência para a menina ao meu lado.
— Ah, eu nunca deixaria que isso acontecesse, sra. Hawkins —
Freya murmurou, envolvendo meu braço com o seu.
— Pensei que estávamos atrasados — murmurei apenas,
arqueando as sobrancelhas para minha mãe.
— É, acho que você tem razão. Seu pai já está na festa, e o
motorista está só me esperando. Espero vocês logo atrás de nós,
ok?
E sem esperar por uma resposta, ela somente seguiu para a
saída da casa. Inspirei fundo, mas me apressei em fazer o mesmo.
Destravei um dos carros que tinha ganhado de presente de
meu pai de dezoito anos, e Freya pareceu animada diante da
lamborghini, fazendo consecutivos elogios ao automóvel enquanto
ali adentrava. Normalmente, eu fingiria estar menos indiferente às
particularidades que no fundo me eram superficiais que ela
valorizava, mas naquela noite em especial eu não tinha tanta
disposição em meu interior para fazê-lo, não quando sabia que já
teria que enfrentar as próximas três horas fingindo sorrisos e
cordialidade com pessoas intituladas importantes no ramo
financeiro. As festas de inauguração de novas sedes que meus pais
realizavam realmente me deixavam esgotado.
Freya manteve um diálogo unilateral por todo o caminho sobre
como eu deveria aparentar estar mais animado pela oportunidade
de conhecer novas pessoas, afinal, eu era novo na cidade e logo
começaria na Universidade de Washington. Honestamente, foi
aliviante que ela não tivesse me dado a chance de fazer muitos
comentários.
Meia hora mais tarde, eu já entregava as chaves de meu carro
para o manobrista e me dirigia ao interior do mais novo prédio de
negócios de meu pai, em direção ao salão central onde ocorria a
festa.
— Caramba. Seu pai sabe mesmo como dar uma festa —
Freya balbuciou ao meu lado, maravilhada quando chegamos ao
local.
Nisso eu tinha que concordar com ela.
O salão estava lotado de trajes formais e que decerto valiam
uma pequena fortuna, vestidos por pessoas que se achavam muito
mais importantes do que de fato eram; lustres de cristais ofereciam
uma forte iluminação a cada canto do lugar, à direita uma extensa
mesa de comidas variadas se fazia presente, e ao centro mesas de
vidro com cadeiras luxuosas ao redor estavam colocadas; uma
orquestra tocava mais ao fundo, e um projetor jogava a propaganda
da empresa na parede ao lado.
Tudo parecia torturantemente entediante para mim.
— Vamos, seus pais estão ali — a garota ao meu lado sibilou,
já me puxando com uma força impressionante em direção ao
pequeno grupo em que meus pais se encontravam no centro do
salão.
— Aí está você! — meu pai, Simon, disse assim que eu me
aproximei, antes de me apresentar para os homens ao seu redor.
Após longos apertos de mãos e um diálogo sobre o curso de
Economia que em breve começaria, minha mãe finalmente se
intrometeu e puxou meu pai de lado para comentar algo. Aquela foi
a desculpa perfeita para que eu também pudesse dar o fora dali.
— Você convidou Julia e Richard Christie? — minha mãe
questionou em um tom acusatório enquanto mantinha o olhar fixo
em um homem alto de cabelos grisalhos com duas mulheres ruivas
e estonteantes ao seu lado. Uma era sua esposa, e a outra decerto
sua filha.
— Mas é claro que sim, querida — meu pai respondeu como se
fosse óbvio. — Mantenha seus amigos perto, e seus inimigos mais
perto ainda — acrescentou com uma piscadela antes de conduzi-la
para cumprimentar a família de aparências.
— Quem são eles? — Freya, a par de tudo, indagou.
— Os principais rivais da empresa de meu pai quando se trata
de compras de ações de telemarketing. E, ao que parece, também
nossos vizinhos.
Eu sabia quem eles eram porque meu pai comentava sobre a
família Christie corriqueiramente, e com um tom de desdém. Eles
moravam na casa ao lado da minha, em um condomínio de maior
prestígio de Seattle, porém até àquele momento não havíamos visto
nenhum deles. Aparentemente, estavam tirando férias.
Eu também estava ciente de que o casal Christie tinha duas
filhas, o que me fez perguntar por um momento onde estaria a outra
garota. Não tive a chance de pensar muito sobre a resposta,
entretanto, pois Freya logo me puxou em direção ao primeiro
garçom que viu passar e pegou duas taças de champanhe.
— Acho melhor vocês beberem mesmo, e muito, pois isso aqui
está um saco. — A voz de meu primo de apenas três anos mais
velho que eu, Daniel, chegou aos nossos ouvidos, e me virei de
imediato em sua direção.
Arqueei as sobrancelhas.
— Pensei que você não fosse vir, cara — eu disse, mais
aliviado do que deveria. Daniel era provavelmente o único daquele
lugar que continha uma visão similar à minha.
— Fui obrigado. Assim como você, suspeito. — Ele ergueu a
taça para um brinde no ar.
Soltei um riso nasalado ao bebericar minha bebida.
— Você realmente me conhece.
Freya não pareceu muito contente por eu compartilhar do
desgosto de Daniel, e suspeitei que foi por isso que fez menção
para irmos para longe de meu primo.
— Podemos dar mais uma volta? Quero conhecer pessoas —
ela disse, um pouco agitada.
— Você não precisa de mim para isso, Freya. Seu pai está logo
ali, com certeza vai te apresentar para algumas pessoas. — Indiquei
com a cabeça para o homem que se entretinha em uma roda de
conversas.
A garota forçou um biquinho.
— Mas eu não quero meu pai. Eu quero você.
O tom carente provocou um riso baixinho em Daniel, o que fez
com que Freya semicerrasse os olhos para ele.
— Algum problema, seu palhaço? — ela indagou, porém não
esperou por uma resposta. — Você nem pertence a este lugar, e
definitivamente nem...
Freya continuou esboçando desdém com suas palavras até
muito tempo depois daquilo, porém não pude prestar atenção nela
por um período muito extenso, não quando meu olhar estranha e
instintivamente recaiu sobre uma figura que me pareceu tão
cativante.
Era uma garota... não, uma mulher. Estava do outro lado do
salão.
Era tão linda. Embora parecesse ser tentação encarnada,
surpreendentemente também podia se assemelhar a um anjo em
meio a todo aquele inferno.
Seus cabelos eram de um ruivo tão intenso que quase
pareciam rubros; chegavam à metade das costas, e eram
ondulados. Sua pele imaculada parecia ser feita de porcelana; seu
corpo esguio era envolvido por um vestido de seda branco, e se
movia sutilmente conforme realizava seus movimentos graciosos.
Cada aspecto de si me fascinou, mas foi seu sorriso que realmente
tirou o ar de meus pulmões. Era afiado, letal; angelicalmente letal.
Podia ser usado para bem ou para mal.
Continuei a observando enquanto conversava com pessoas
que me eram desconhecidas até que a voz de Freya soou alta o
suficiente para chamar minha atenção:
— Qual seu problema, Tristan?
Daniel desviou o olhar para onde o meu antes era dirigido, e
logo sorriu.
— Eu sei qual o problema dele — ele disse enfim, e acenou.
Ele acenou.
Franzi o cenho, um pouco confuso, mas então percebi que
agora a mulher tinha a atenção centrada onde estávamos. Agora ela
sorria em nossa direção, para Daniel.
Ela conhecia meu primo. E não demorou a caminhar até nós.
Não pude fazer nada além de observá-la se aproximando com
toda a atenção do mundo.
— Estava me perguntando onde você estaria — ela disse para
meu primo ao parar ao seu lado. Sua voz era tão harmoniosa
quanto cada detalhe de sua aparência. Não me surpreendi por isso.
Honestamente, o que mais me deixou assombrado foi o quão
escuros seus olhos eram. Achava que nunca tinha visto orbes de
uma cor tão intensa como os seus em toda minha vida. Foi
inevitável me perguntar, caso os olhos pudessem mesmo ser as
janelas da alma, o que tal particularidade atribuía ao interior daquela
mulher.
— Tristan, Freya, essa é Evangeline.
Evangeline.
Soube que aquele nome ecoaria por cada canto de minha
mente até muito tempo depois de ter me sido apresentado.
— Eva — ela rapidamente corrigiu ao dirigir o olhar para frente.
Para mim.
Ela tinha olhos perspicazes. Me analisou como se pudesse me
despir com toda aquela atenção.
— É um prazer te conhecer — Freya chamou a atenção de Eva
com um tom desconfiado antes que eu pudesse dizer qualquer
coisa, erguendo sua mão para um cumprimento.
A ruiva a encarou sem pressa alguma, e então apenas
bebericou seu champanhe.
— O prazer é meu — disse calmamente, porém ignorou a mão
estendida à sua frente. Freya ficou desconcertada com aquilo, mas
pareceu se acalmar quando Eva elogiou em um tom que me
pareceu sincero: — Você está absolutamente linda com esse
vestido.
— Ah, obrigada — a garota agradeceu. Estava tão lisonjeada
quanto... apreensiva. Parecia ser o efeito da presença de Eva.
No fundo, eu também estava um pouco temeroso, embora não
soubesse ao certo o motivo mais específico por trás disso.
— Podemos ir agora, Tristan? — Freya indagou em seguida,
porém mal tive tempo de respondê-la.
— Ir embora? — Eva questionou subitamente, arqueando as
sobrancelhas também ruivas.
— Hum, não — a loira negou. — Só dar uma volta no salão.
Eva piscou aqueles olhos impetuosamente escuros repetidas
vezes, parecendo legitimamente confusa.
— E por que você precisa de alguém para fazer isso?
Freya não soube como respondê-la. Apenas permaneceu
estática, fitando a mulher à sua frente.
Eva apenas suspirou diante daquele silêncio, mas não por
constrangimento. Pareceu decepcionada por não obter palavra
alguma de Freya.
— Bem, acho que preciso ir agora. Dar uma volta por aí. Talvez
eu veja vocês mais tarde.
E sem de fato se despedir, Eva apenas se distanciou. Freya
engoliu em seco, nitidamente nervosa, e, surpreendentemente,
também disse:
— Eu te encontro depois.
Quando Freya já se encontrava longe, soltei o ar que nem
sabia que segurava.
— Merda. O que foi isso tudo? — questionei a Daniel, que deu
de ombros.
— Gostaria de respondê-lo. Eva tem o péssimo hábito de fazer
ao menos uma pequena confusão por onde quer que passe. Faz
parte da personalidade dela, suponho.
— E você a conhece de onde?
— Olha, cara, eu reconheço que Eva é... Eva. Causa uma
impressão e tanto, mas tenta manter distância. Ela tem o péssimo
hábito de brincar com as pessoas — respondeu ao meu súbito
interesse, não à minha pergunta.
Arqueei as sobrancelhas.
— Não é a resposta pela qual eu procurava.
Ele suspirou.
— Nós estávamos no mesmo curso — admitiu enfim. — Ela
também fazia administração. Mas no último período teve a coragem
de fazer o que eu ainda não consegui.
— O quê?
— Trancar o curso — respondeu como se fosse óbvio.
Naquele momento, eu a admirei. Admirei de verdade, porque
Eva decerto havia ido para aquele curso por incentivo — ou talvez
obrigação — dos pais. Assim como eu e Daniel. Mas tivera a
determinação de começar a tomar suas próprias decisões.
E sentia na pele o quão difícil podia ser aquilo.

Quase duas horas mais tarde, eu já me sentia genuinamente


sufocado.
Estava exausto por ter que atender aos chamados de meu pai,
que tinha o interesse de apresentar para todos os sócios e
funcionários mais importantes o filho que futuramente cuidaria de
seus negócios, por fingir as aparências da família supostamente
perfeita para as amigas de minha mãe e também por ter que cuidar
de Freya a todo momento.
Tinha escapado pela porta dos fundos do prédio assim que
meus pais se encontraram simultaneamente distraídos; Freya
também estava imersa em uma nova discussão com Daniel,
felizmente.
Eu estava sentado na calçada rachada e escura, tirando um
maço de cigarros de minha calça social, quando a vi de relance. Sua
presença era lancinante, mas ainda assim o ar fluiu em meus
pulmões mais facilmente quando Eva se aproximou de mim pela
primeira vez em todo aquele tempo.
Levei algum tempo para acreditar que ela estava mesmo ali,
pois realmente não a vira nas últimas horas. Cheguei a pensar que
tinha ido embora.
A ruiva saiu da mesma porta pela qual eu passara minutos
atrás. Segurava seus saltos com uma mão, e parecia um pouco
apressada, porém parou assim que notou que havia alguém do lado
de fora. No entanto, relaxou quando percebeu que era somente eu.
Não continuou caminhando, entretanto. Somente me encarou,
subitamente interessada.
Sustentei seu olhar por cada segundo que pude enquanto
colocava meu cigarro à boca, e então enfim estendi o maço para
ela.
— Quer um?
Ela arqueou as sobrancelhas. E sorriu.
— Ah, ele fala.
Foi só então que Eva se aproximou, e, para minha surpresa,
pegou mesmo um cigarro e se sentou ao meu lado. Não consegui
dizer nada ao pegar o isqueiro do bolso de minha calça, um pouco
afetado por nossa escassez de distância; fiz menção de acender o
cigarro agora dentre seus lábios, porém ela o pegou de minha mão
antes que eu o fizesse. Foi ela quem acendeu seu cigarro e também
o meu.
— Então, o que o anfitrião está fazendo de fora da festa? —
questionou ao dar sua primeira tragada. Parecia realmente curiosa,
e manteve seu tom casual, como se já fôssemos amigos.
A fluidez e rapidez como tudo acontecia me deixava um pouco
atordoado. Estava difícil acompanhar a situação em que me
encontrava quando era Eva quem a induzia.
— Você sabe quem eu sou?
Seu sorriso danoso se alargou.
— Claro que sim. Eu sei de tudo.
— Talvez nem tudo. Afinal, não sou exatamente o anfitrião —
eu disse, honesto, enquanto tragava meu cigarro.
Ela deu de ombros.
— Está treinando para ser — contestou. — Você, seu pai...
aparentemente, são a mesma pessoa. Você está seguindo cada
passo que ele já deu.
Considerei suas palavras por um momento. E quando
permaneci em silêncio, Eva pareceu entender que eu estava
concordando com ela.
— Viu? Eu sei de tudo, garoto.
E apesar de ainda estar um pouco frustrado por sua afirmação
anterior, por Eva estar certa em sua suposição, eu consegui soltar
um riso breve.
— Garoto? Acho que você se equivocou — eu disse
simplesmente, soltando a fumaça pelo nariz.
— Então tenta me provar do contrário. Vou gostar de ver você
tentar.
Franzi o cenho, encarando-a. Ela definitivamente estava se
divertindo com a situação. Honestamente, eu me senti um pouco
intimidado. Mas aquela intimidação era diferente da que meus pais
coagiam sobre mim. Aquela era boa.
Foi por isso que eu ri uma outra vez.
— Para começar, eu sou ao menos vinte centímetros mais alto
do que você.
Ela estalou a língua.
— Esse é o primeiro argumento em que você pensou? Isso é
bem triste.
Sorri.
— Tudo bem. — Maneei a cabeça, pensando um pouco mais.
— Já tenho dezoito anos, o que me faz um adulto aos olhos da lei.
— Você ainda nem pode ingerir bebida alcoólica aos olhos da
lei — objetou.
— Inferno — resmunguei, mas, contraditoriamente, ainda me
divertia. — Bem, vou começar a faculdade em pouco tempo. Isso
deve significar alguma coisa.
— Fazer um curso que seus pais escolheram para você só
prova que você ainda é uma criança.
Traguei a nicotina, ponderando.
— Ou talvez arcar com minhas obrigações me faça um homem
de verdade.
Eu não acreditava em minhas próprias palavras, mas não
queria ceder ali.
— Obrigações? — ela ressoou, um pouco indignada.
— Fui criado para assumir a empresa de meu pai. É a minha
vida. Será minha vida — eu disse. Foi um pouco deprimente como
meu tom soou conformista.
Eva balançou a cabeça negativamente, porém não disse nada
de imediato. E eu não fiz nada para romper aquele intenso silêncio.
Aquela quietude estranhamente acolhedora perdurou até que a
ruiva finalizasse seu cigarro e o apagasse com o pé.
— Tenho uma pergunta para você — anunciou então,
repentinamente.
— E eu vou fazer o possível para respondê-la.
— Qual a diferença entre estar vivo e viver? — indagou
seriamente, com o olhar cravado em mim.
Me esforcei para encontrar algum esclarecimento, porém não
fiz muito progresso, pois mal tinha entendido o significado de sua
pergunta. Sua presença também continuava a afetar um pouco o
modo com o qual eu pensava, então era difícil juntar alguma
racionalidade para pensar adequadamente.
Em poucos segundos, um carro parou na esquina a poucos
metros de distância, e o som de buzinas e da música alta me tirou
de meus próprios devaneios. Eva se levantou em um pulo,
parecendo reconhecer o automóvel.
Ela não se distanciou, contudo, até dizer:
— Não se precipite com a resposta. Teremos muito tempo
ainda.
— Muito tempo? — ecoei, um pouco confuso. Ela assentiu.
— Se você continuar naquela grande casa vitoriana, creio que
sim.
Só tive um vislumbre de seu sorriso torturantemente travesso
antes que seguisse até o carro que a esperava.
Conforme ela ia para longe de mim, somente prestei atenção
nos sutis cachos de seu cabelo que se balançavam com seus
passos, com o vento. Sua cor era realmente tão intensa que me
faziam lembrar de chamas.
Chamas que ela podia ter capturado do próprio inferno, que
eram características dos...
Merda.
Christie.
Evangeline era uma Christie.
— Pai? — Encarei o homem grisalho por trás da mesa de
madeira detalhadamente esculpida de seu escritório.
— Maldito Christie — ele resmungou com o olhar vidrado na
tela do computador, decerto vendo algumas vendas prejudicadas
pelo seu concorrente, mas enfim se deu conta de minha presença.
— O que é, Tristan?
Indiferença transbordou de seu tom. Aquilo não me foi uma
surpresa, então apenas me sentei.
Estiquei as pernas ali, um pouco hesitante. Não sabia ao certo
o que eu estava fazendo, o que queria de meu pai. Apenas estava
consciente de que estava inquieto ultimamente. Mais na última
semana que o comum.
— Qual o problema? — Simon enfim desviou sua atenção
diretamente para mim.
Arqueei as sobrancelhas.
Sua pergunta me chateou um pouco. Ele não deveria pensar
que eu gostaria de falar com ele somente porque estava com algum
problema. Aquilo apenas servia para mostrar o quão desconectados
éramos.
Era um pouco deprimente ponderar que nenhum de nós dois
nunca fizera nada para mudar tal relação tão distante.
— Não tenho nenhum problema — eu disse, e Simon me
encarou por poucos segundos, descrente, até voltar o olhar para o
computador. Suas sobrancelhas logo se uniram, e suas feições se
contorceram em irritação. Sua expressão me pareceu tão raivosa.
Talvez tivesse sido essa percepção que me fez questionar
repentinamente: — Você é feliz?
Meu pai voltou a me encarar de súbito, surpreso com minhas
palavras. Não o culpei. Eu também estava assustado por ter as
verbalizado de um modo tão inesperado.
— O quê? — ele balbuciou, franzindo o cenho.
Suspirei.
— Você gosta do que faz? — indaguei mais especificamente,
porque, no fundo, eu estava temeroso por Evangeline estar certa
sobre sua suposição de uma semana atrás, de que nós dois éramos
a mesma pessoa. Era triste pensar que em um futuro próximo, o
semblante irritadiço de meu pai seria o meu.
— Por que está me perguntando isso?
Dei de ombros.
— Só estou curioso para saber se essa é a vida que você
escolheria para si, caso pudesse mudar tudo.
Ele soltou um ar pesado pela boca, recostando-se na cadeira
enquanto pensava. Não sobre minha pergunta, soube
instantaneamente. Estava escolhendo as palavras certas para me
censurar.
— Tristan, você é novo, então sei que está na fase de enfrentar
muitos desses dilemas. Jovens têm o péssimo hábito de achar que
há algo grande esperando por vocês, mas, vá por mim, o quanto
antes perceber que as coisas não fluem tão utopicamente, melhor.
Eu não preciso gostar do que eu faço para fazê-lo, consegue
entender? Eu faço o que é necessário para mim e para minha
família.
Encarei-o, cético.
— Isso me parece mais como um fardo.
Ele soltou um riso sem humor.
— Bem, esse fardo deu tudo a você desde que nasceu, então
não o deprecie tanto.
— Esse é o ponto. Você não precisa me dar tudo quando o
preço é sua própria vida. Somente precisamos do suficiente, não
acha?
— Tudo bem, essa conversa chegou ao fim — anunciou, um
pouco impaciente. — Tenho que trabalhar — acrescentou ao se
voltar para o computador.
Não me contentei com aquilo, mas não objetei. Não era como
se eu tivesse a capacidade de fazer meu pai refletir por um pouco
que fosse, de qualquer forma. Portanto, simplesmente me levantei
da cadeira e segui para fora de seu escritório em silêncio.
Quando cheguei ao meu quarto, minha cabeça parecia ainda
mais densa do que antes da breve conversa com Simon, por isso
liguei a televisão em busca de qualquer jogo que pudesse me
distrair.
Não foi aquela tela que me tirou dos devaneios incômodos,
contudo.
Foi a mensagem que chegou em meu celular.
Desconhecido: Espero q já tenha achado a resposta para
minha última pergunta, pq está na hora de vc ouvir a próxima
Franzi o cenho. Apenas uma pessoa poderia ser a responsável
por tais palavras, mas, ainda assim...
Eu: Qm é?
E foi então que uma batida estrondosa me assustou por
completo.
Quando transferi a atenção para o lugar de onde o barulho
havia vindo, encontrei Evangeline logo atrás da janela de meu
quarto. Seu sorriso divertido era nítido mesmo através do vidro
grosso.
Somente me dei um segundo para assimilar a surpresa de que
aquela mulher estava mesmo ali e que também tinha conseguido
meu número de alguma maneira, porque, merda... ela estava no
maldito telhado. Corri para abrir a janela para ela.
— Mas que inferno, Eva — resmunguei enquanto a ajudava a
entrar. Meu quarto era no segundo andar, então não tinha ideia de
como ela havia conseguido subir até ali. — Você é louca?
A ruiva apenas soltou uma risada sincera, como se aquela
pergunta a divertisse mais do que tudo.
— Não me faça perguntas de respostas tão óbvias — ela disse
quando, para meu súbito alívio, já se encontrava em meu quarto.
Em segurança. — E então, sentiu saudades? — questionou em
seguida, como se já me conhecesse há algum tempo, ainda como
se já fôssemos amigos. Não me tratava como um estranho, o que
eu de fato deveria ser para ela.
Honestamente, eu esperei vê-la nos dias que se sucederam
após a festa de inauguração. Pegava-me olhando pela minha janela
à sua procura na casa ao lado. Não consegui avistá-la em qualquer
momento, entretanto.
— Você esteve aqui nessa semana? — foi o que eu disse
enquanto fechava minha janela.
— Bem ao seu lado, a todo momento — confirmou, apontando
para o quarto de persianas fechadas. — Acredite se quiser, mas sou
uma garota de vinte e um anos posta de castigo pelos pais.
— Por quê? — questionei, observando-a atentamente enquanto
ela perambulava pelo meu quarto. Ela trajava uma regata branca e
uma calça jeans, e seus cachos ruivos estavam um tanto quanto
rebeldes. Sua pele estava pálida justamente como quando eu a
conhecera. Estava definitivamente mais casual do que na última vez
que a vira, porém tão linda quanto.
— Aparentemente, porque nasci — respondeu simplesmente,
analisando os livros em cima de minha escrivaninha. Sentei-me em
minha cama. — Infelizmente, não sou um clone impecável de
Genevieve.
— Genevieve?
— Minha irmã — esclareceu.
— Sinto muito por isso — eu disse, e a ruiva somente estalou a
língua.
— Por que sentiria? Porque não me preocupo em atender as
expectativas de meus pais? Eu sinto muito é por Genevieve, que
toma suas decisões com base na impressão. Eu vivo minha vida
para mim e estou bem assim.
— Ainda assim, sua família deveria aceitar suas escolhas.
Ela deu de ombros.
— Como podem as decisões que trazem nossa felicidade
também não deixarem todos que nos amam felizes, não é?
Ponderei um pouco sobre aquilo até questionar:
— Então essa é a pergunta?
Ela riu, desviando o olhar da decoração de meu quarto para
meus olhos.
— Não. Não posso te fazer perguntas cujas respostas nem eu
sei — respondeu e então caminhou até mim, sentando-se ao meu
lado. — Você ficaria feliz se revivesse o dia de hoje mais dez vezes?
— O ponto alto do meu dia foi tê-la entrando por minha janela,
Eva, então provavelmente não — eu disse, e ela sorriu. Foi
provavelmente o sorriso mais desprovido de malícia que a ruiva já
havia dado, e foi de tirar o fôlego.
— E qual foi o último dia que você viveu que gostaria de reviver
mais dez vezes?
Hesitei. Não tinha uma resposta pronta dessa vez, pois não
fazia ideia de qual havia sido o último dia que eu fora
verdadeiramente feliz. Leve e descontraidamente realizado.
Diante de meu silêncio, o sorriso que se fez presente dentre os
lábios de Eva agora era mais sombriamente satisfeito.
— Ótimo. Você tem um problema, assim como eu, embora o
seu seja um pouco maior. O último dia que eu gostaria de reviver foi
há mais de dois meses, na minha despedida antes que eu tivesse
que viajar com meus pais. É muito tempo, não acha?
— Não gostou de suas férias?
Ela soltou um riso nasalado.
— Eu não tirei férias — esclareceu simplesmente, mas não me
deu chance de questionar algo quanto àquilo ao perguntar: —
Então, está a fim de mudar isso comigo?
— O que você quer dizer, Eva?
— Quero dizer se você gostaria de viver ao invés de estar vivo,
se gostaria de viver um dia em que ficaria contente em reviver
tantas e tantas vezes mais.
Para falar a verdade, o alerta de Daniel ainda ecoava
vividamente por cada canto de minha mente. Eu mesmo sentia que
o melhor para mim seria manter distância da mulher ao meu lado.
Ainda assim...
Eu fui incapaz de dizer não a ela.
E quando Eva percebeu isso em meus olhos, os cantos de
seus lábios se repuxaram para cima.
— Começamos amanhã — declarou, colocando-se de pé. —
Estou com pressa para voltar a viver e preciso de um parceiro do
crime. Vamos precisar do seu carro porque minha mãe está com a
chave do meu. Saímos à meia-noite, ok?
Ela não esperou por minha resposta. Simplesmente se colocou
de pé, encerrando o assunto.
— Você já vai?
— Já fiz o que tinha que fazer. Aliciá-lo. Agora preciso voltar
antes que meus pais se dêem conta de minha falta.
E como se eu não passasse de um breve passatempo, um
brinquedo novo com o qual Eva estava empolgada, ela
simplesmente se dirigiu até a saída. À janela.
— Você não vai sair por aí — eu disse assim que me dei conta
de suas intenções, mas ela abriu a maldita janela, ignorando-me. —
Evangeline.
Foi somente então que ela parou, e virou a cabeça sobre o
ombro o suficiente para que seus olhos localizassem os meus e
também que eu visse o sorriso mordaz dentre os lábios.
— Diz de novo.
— Dizer o quê? Evangeline?
Seu sorriso se alargou, e sua áurea ficou mais intensa que o
usual. Ela se aproximou de mim uma outra vez com passos
graciosos, e só parou quando nossos lábios se encontraram a
quase dez centímetros de distância. Sua respiração infinitamente
mais estável do que a minha acariciou minha bochecha.
Sua mão direita subiu até minha bochecha, e suas unhas
compridas e vermelhas roçaram a pele quente da região.
Consecutivos arrepios avassalaram toda extensão de minha pele de
uma só vez.
— Meu nome fica tão lindo em sua boca — ela sussurrou como
em confidência, e todos meus sentidos foram despertos diante de
seu toque, cheiro e olhar tão inebriante.
Talvez foi devido a todo aquele sobressalto interior que não
pude impedir quando Eva tornou a se distanciar e passou pela
janela em questão de segundos.
Simplesmente fiquei estagnado no mesmo lugar, não fazendo
nada além de assimilar todo o caos que aquela mulher era capaz de
causar.
Olhei a tela de meu celular pela provável trigésima vez dentre
vinte minutos à procura de alguma mensagem de Eva. Não
encontrei nenhuma.
Eu estava com meu carro estacionado no fim do quarteirão,
exatamente como a ruiva me instruíra em sua mensagem enviada
há pouco mais de meia hora. Estava preocupado, porque ela estava
atrasada.
Eu já começava a me perguntar se seus pais teriam se dado
conta de suas intenções quando a mulher enfim
bateu na janela, indicando que eu lhe abrisse a porta.
Soltei o ar pesado pela boca em alívio enquanto ela adentrava
no automóvel com os saltos em uma mão e uma bolsa grande na
outra.
— Você podia ao menos ter me mandado uma mensagem
avisando que iria se atrasar. Me preocupou.
Ela apenas riu. Deveria rir mesmo. De fato, não fazia sentido
me preocupar com uma garota que eu mal conhecia.
— Que fofo — murmurou simplesmente. — Eu estava cuidando
das bebidas, já que você ainda é um bebê e não poderia comprá-las
— acrescentou então, abrindo a bolsa para mim, que continha uma
garrafa de vodca e um fardo de cerveja.
Arqueei as sobrancelhas.
— Você tem uma obsessão interessante com minha idade, não
é?
— Uma obsessão com a falta dela? — corrigiu ao alargar o
sorriso. — Tenho sim. Para falar a verdade, gosto de ser a mais
experiente.
Soltei um riso nasalado.
— Mais experiente em que, exatamente?
Ela deu de ombros, demonstrando um sorriso dissimulado. Não
precisou verbalizar coisa alguma para que eu entendesse o que
queria dizer.
— Não fique tão convicta disso — eu disse ao também sorrir,
enfim dando partida.
— Ficarei até que você tenha a chance de provar o contrário.
Eva não parecia estar falando totalmente sério, talvez
realmente não tivesse total intenção de me dar aquela chance,
embora, no fundo, eu a quisesse mais do que deveria. Ela estava só
me testando, o que fez com que eu dissesse:
— Seus joguinhos me deixam um pouco confuso.
— Quem disse que eu estou jogando?
— Posso ver isso.
— Você mal me conhece para conseguir reconhecer as
intenções por trás de minhas declarações.
— Eu sei. Ainda assim, acho que consigo o fazer, ao menos um
pouco. Estranho, não acha?
— Acho decepcionante, pois isso talvez signifique que eu sou
superestimada. A maior parte das pessoas diz que sou indecifrável.
— Suponho que você seja mesmo indecifrável — afirmei. —
Mas talvez eu consiga identificar o que você deseja que seja
identificado.
— Acha que eu desejo ser lida?
— Não queria que eu percebesse que você estava me
testando? — contestei.
A ruiva ponderou por um par de segundos.
— Não se deixar cegar por desejos conduzidos por insinuações
diz muito a respeito sobre alguém. Gosto de pessoas que não se
permitem ser manipuladas tão facilmente. São mais interessantes —
respondeu simplesmente. Foi o bastante.
— Eva?
— Hum?
— Tente não fazer mais isso. Já sou testado o suficiente em
minha casa.
Ela suspirou.
— Gosto de você, Tristan. Mas não acho que eu possa atender
esse pedido. Está fora do meu alcance, é instintivo. Porém, não se
preocupe. Meus jogos provavelmente te obrigarão a conhecer a si
próprio um pouco mais e talvez até tenham a capacidade de te fazer
se sentir mais vivo, ao contrário dos de seus pais. Eu nunca vou
tentar te controlar.
Eu nunca vou tentar te controlar, repassei aquelas palavras
silenciosamente por minha mente. Aquela promessa me deixou
mais tranquilo, embora não menos precavido.
Quase meia hora mais tarde, as ruas que Eva me conduziu a
pegar nos levaram a um lugar mais deserto e escuro da cidade, com
casas mais velhas e relativamente distantes umas das outras.
— Acho que esse seria um bom momento para você me
informar para onde estamos indo — balbuciei, pois Eva nunca me
dissera qual seria nosso destino final.
— Pega a segunda estrada — disse somente.
Balancei a cabeça, descrente, mas a obedeci. Não tinha nada
além de reservas naturais ali, e uma escuridão ainda maior nos
abraçou.
— Com medo? — Eva indagou ao meu lado, quase que
maliciosamente.
— Deveria?
— Talvez.
Por longos minutos, apenas segui pela estrada estreita e de
terra, e só desacelerei quando percebi algum sinal de vida. Música.
Alguns carros se encontravam estacionados mais à frente,
perto de um casarão que caía aos pedaços.
Pela minha visão periférica, percebi que os olhos de Eva
brilharam antes de ela se voltar para mim com o mais largo sorriso
que já a vira dar.
— Bem-vindo ao inferno, garoto.
Foi apenas quando estacionei o carro e saí do automóvel que
eu disse:
— Isso não parece com o inferno para mim.
De fato, os escombros do que um dia fora uma casa de campo
encantadora não se assemelhavam com nada maligno.
Já de pé ao meu lado, Eva riu.
— E você já foi ao inferno, por acaso? — questionou, mas não
esperou por uma resposta ao seguir para onde aparentemente uma
festa acontecia. Apressei-me em acompanhá-la. — Mas ok, talvez
você tenha razão. A minha ideia de inferno também não se parece
nada com isso. Porém essa casa ainda pode ser a porta dele.
— Seja mais específica, Eva.
— Alguns boatos que correm pela cidade dizem que os mortos
vivem lá dentro — cantarolou.
— Você quer dizer que essa casa é mal-assombrada? —
questionei, cético, e, quando ela não me respondeu, indaguei: —
Você realmente acredita nisso?
— Não sei. Não acha que é errado tirar conclusões sem antes
procurar pela verdade?
Senti que perderia meu tempo discutindo com ela, então me
mantive em silêncio, sem perguntar como diabos ela procuraria pela
verdade.
Assim que Eva abriu a porta do casarão, deparamo-nos com a
iluminação completamente avermelhada proveniente de lanternas
presas às paredes descascadas. Uma música eletrônica estridente
ecoava de caixas de som à bateria e uma grande aglomeração
ocupava o salão central do local.
Quando a garota ao meu lado adentrou dois passos ali,
algumas pessoas se deram conta de sua presença e a
parabenizaram pelo “ótimo trabalho”.
— Foi você quem organizou tudo? — questionei, surpreso,
porém ela só me olhou como se eu tivesse feito outra pergunta de
resposta óbvia e seguiu em frente.
Forcei-me a acompanhá-la, e só parei quando ela pareceu
encontrar uma roda de quatro amigos no cômodo onde as bebidas
se localizam.
— Caramba, pensei que tinham te pegado — uma garota de
cabelos raspados e pele castanho dourada reluzente exclamou
assim que localizou Eva.
— Ah, como se eu fosse deixar que isso acontecesse, Sam.
Sou mais esperta do que qualquer um de minha família — a ruiva
retrucou, esboçando um sorriso sincero à garota. Pelo pequeno
gesto, percebi que ela realmente gostava dela.
— Quem é ele? — um dos dois garotos ali presentes
questionou à Eva, referindo-se a mim. Suas feições pareciam
contorcidas em alguma espécie de desgosto, porém ela não
percebeu isso, pois colocava as bebidas de sua bolsa em uma das
caixas de isopor.
— Meu mais novo recruta, Chad. Ele vai participar — anunciou
simplesmente, sem menção alguma de meu nome.
Aquilo fez com que eu me apresentasse ao pequeno grupo
diante de nós antes de indagar:
— Participar de quê?
— Você não pode trazer alguém de última hora assim — a
garota loira objetou para Eva antes que eu obtivesse alguma
resposta.
A ruiva apenas lhe lançou um olhar de desdém.
— Ninguém me diz o que eu posso ou não fazer, Alisha.
— Quando eu quis que meu namorado participasse, você disse
que não podia passar de cinco pessoas — continuou.
— Ah, eu disse, não disse? — Eva murmurou em um falso
pesar antes de estalar a língua. — Bem, isso foi porque eu não
gosto dele. Sinto muito. — Ela não sentia nem um pouco.
— Isso é ridículo.
— Fique à vontade para ir embora.
— Eva — Sam a censurou, mas a ruiva já tinha voltado a
atenção para as bebidas enquanto Alisha permaneceu a encarando.
Por fim, quando Eva não voltou atrás de sua declaração, a loira
bufou e deixou o grupo sem sequer olhar para trás.
— Eva, isso foi errado pra caralho. Alisha é nossa amiga, por
que diabos simplesmente não deixou que o seu namorado viesse
conosco? — Sam disse, descontente. Parecia ter muito mais senso
que a amiga.
— O garoto é um imbecil. Já viu como ele a trata?
— Você não pode interferir nas escolhas dos outros. Você não
é uma heroína.
— Acha que estou tentando ser a heroína? — Ela soltou um
riso sem humor algum. — Alisha pode fazer o que quiser com sua
vida. Mas isso não significa que eu sou obrigada a lidar com suas
escolhas.
Honestamente, Eva parecia de fato se incomodar um pouco
com a situação de Alisha. Porém suspeitava que ela nunca iria
admitir aquilo.
— Tudo bem, acho que preciso recuperar a paciência que
vocês fizeram que eu perdesse nesses últimos minutos. Encontro
vocês às três horas.
E sem dizer nada mais, ela somente se distanciou. Sam
suspirou.
— Ela é tão difícil às vezes.
— É, mas acho que é por isso que você a ama — o garoto alto
ao seu lado, que tinha se mantido em silêncio até então, abraçou a
garota.
— É, acho que sim — admitiu, e voltou a esboçar um sorriso
para ele. — Acho que também preciso me distrair um pouco. Quer
dançar?
— E você ainda pergunta? — Ele riu.
Ambos se viraram para mim e disseram quase em uníssono
que fora um prazer me conhecer antes de irem para a pista
improvisada de dança.
Apenas Rob permaneceu ao meu lado, porém, como pareceu
não gostar tanto de mim, logo também me deixou. Uma parte de
mim me dizia que ele sentia algo similar a ciúmes em relação à Eva.
Era compreensível.
A mulher exercia esse tipo de efeito nas pessoas. Fazia elas a
quererem somente para si.
Ainda sozinho, peguei uma cerveja que Eva trouxera e me
recostei na parede enquanto me perguntava o que diabos faria até
às três horas. E o que aconteceria depois disso.
Quase duas horas mais tarde, eu já havia ingerido quatro
garrafas de cerveja e me encontrava envolto de corpos dançantes
ao ritmo da música. Bem, eu me tornara um deles.
Estava dançando com uma garota cujo nome eu não conhecia.
Honestamente, também não estava muito certo de como havíamos
terminado colados um ao outro. Ela era bonita, ao menos de acordo
com minha percepção um tanto quanto embriagada.
No entanto, não me sentia atraído por ela. Sequer era aquela
garota que ocupava minha mente enquanto meu físico encontrava
consigo.
Foi por isso que, quando a garota tentou me beijar, eu me
desvencilhei e pedi desculpas antes de simplesmente me afastar.
Com passos incertos, abri caminho dentre o pequeno tumulto
de jovens e me desloquei somente por um pouco no salão. Parei
quando uma mão etérea envolveu meu antebraço.
— Perdido, garoto?
Quando me virei em direção à voz angelical, foi inevitável me
perguntar se não estava projetando Eva à minha frente. O álcool me
deixara mais propenso a pensar nela que o comum, então a ruiva
não saíra de minha cabeça por muito tempo desde minha primeira
cerveja.
Assim que seus dedos subiram por meu braço, contudo, me dei
conta de que aquilo era mesmo real. Porque eu não podia estar
imaginando as faíscas que vagaram por toda minha corrente
sanguínea como consequência de seu toque.
— Temos cinco minutos antes do show. O que acha de
fazermos algum bom proveito desse tempo? — ela sussurrou em
meu ouvido, e seu hálito fez cócegas em minha pele já suada.
Eva não esperou por uma resposta. Sabia que não precisava.
Simplesmente apoiou uma mão em minha nuca e, com a outra,
conduziu minha própria mão até seu quadril. Mesmo através da
calça de couro que trajava, pude sentir o quão macia era a carne ali.
A ruiva se aproximou o suficiente para que seu aroma de suor e
cerveja, lavanda e sabonete, invadisse minhas narinas de uma só
vez. Aquela fragrância me pareceu mais viciante do que deveria.
Foi apenas quando ela sorriu para mim, contudo, que eu
sucumbi por completo para ela.
— Você é a porra de um anjo, sabe disso? — Minha
embriaguez expulsou as palavras impensadas de minha boca.
Não tive completa certeza se ela realmente me ouviu.
Seu corpo chacoalhava à cadência da música contra minhas
mãos, e, quando ela se virou de costas para mim, parecemos virar
um só. Seu ritmo também era o meu.
Consecutivos arrepios avassalaram toda extensão de minha
pele quando ela pressionou sua bunda contra minha virilha. Eu
sabia que as coisas fugiriam de meu controle caso continuasse
assim, mas simplesmente não podia pedir para parar. No fundo,
tampouco queria o fazer.
Foi um alívio não precisar lutar contra mim mesmo, pois após
um tempo que me pareceu estranhamente tão longo quanto curto,
Eva simplesmente tombou a cabeça em meu ombro e fechou os
olhos ao dizer:
— Chegou a hora.
E então ela somente se afastou.
Não pude segui-la de imediato, não quando precisei me obrigar
a recuperar o oxigênio que ela havia tomado de meus pulmões. Não
pude deixar de me perguntar que espécie de efeito era aquele que
Eva causava em mim. Era lancinante. E não sabia se era de um
modo ruim ou bom.
Por fim, segui com passos largos por onde ela tinha ido, e
quando a alcancei perto de uma entrada pequena localizada no
chão de um cômodo mais vazio, questionei:
— Eva, o que diabos vamos fazer afinal?
A pergunta provocou um sorriso travesso em seus lábios, tão
intenso ao ponto de estranhamente me fazer temer.
— Nós vamos conferir se há mesmo vida após a morte.
— Fantasmas não existem, Eva — eu constatei ao saltar pela
entrada, pouco antes de erguer os braços para ajudá-la a descer
também. Segurei firmemente em sua cintura ao guiá-la para baixo,
embora ela parecesse não precisar tanto assim de mim.
— Não diga fantasmas — ela retrucou, já estável no chão,
enquanto ligava o flash de seu celular. — Parece idiota.
Diante da iluminação que a garota forneceu, percebi que havia
lodo espalhado por boa parte do local; Eva não se importou com
isso, apenas seguiu em frente, como se soubesse exatamente para
onde ir. Conforme eu a seguia, o cheiro de mofo ficava cada vez
mais repugnante.
— E devo chamá-los como? — questionei enfim, descrente.
— Espíritos — respondeu como se fosse óbvio.
— Isso é absolutamente ridículo. Pensei que fosse mais
inteligente que isso, Evangeline.
Foi só então que ela se virou abruptamente para mim. O flash
do seu celular me cegou instantaneamente.
— Acha que sou menos inteligente por indagar o que há depois
da morte? — murmurou, insatisfeita.
— Acho que os métodos que está usando para achar as
respostas são um tanto quanto insensatos.
— Esses métodos me parecem mais sensatos do que de fato
morrer, não acha? Não tenho certeza se ainda estou pronta para
isso.
Suspirei.
— Eu definitivamente estou bêbado demais para essa
conversa.
— Ótimo. Apenas se mantenha em silêncio. Você estava
começando a me decepcionar com todo esse seu pré-conceito com
perguntas. Cada uma delas é válida, apesar do quão boba ela
aparente ser.
Ela então simplesmente voltou a seguir em frente, e eu, agora
em silêncio, fui atrás.
Conforme seguíamos com nossos passos, mais a música do
andar de cima desaparecia, sendo substituída por ruídos
incessantes de goteiras. O lugar também ficava um pouco mais
grotesco, e eu via alguns insetos passarem correndo por nós ao
fugirem da luz do celular de Eva.
Quando chegamos ao fim do extenso cômodo, a ruiva abriu
uma pequena porta de tábuas e sequer hesitou em adentrar no
pequeno quarto à sua frente, iluminado por algumas velas. Assim
que fiz o mesmo, deparei-me com o grupo de mais cedo espalhado
pelo chão.
— Então o moleque vai mesmo participar? — Chad murmurou
em um genuíno descontentamento quando me viu, arqueando as
sobrancelhas.
Eu o ignorei, mas Eva não.
— Ele está aqui por mim, então vê se dá um tempo, ok?
— E não estamos todos aqui por você? — ele resmungou de
volta, mas a ruiva somente se virou para Sam, que se encontrava
sentada no chão imundo ao lado de seu aparente namorado.
— Trouxe a mochila?
E então a garota empurrou a bolsa para Eva, que pegou e
também se sentou. Quando ocupei o lugar ao lado dela, nós cinco
formamos um círculo perfeito. A ruiva parecia se divertir como
nunca, e seu sorriso se alargou quando retirou um tabuleiro da
mochila.
— O que é isso? — questionei, encarando o pedaço de
madeira.
— Um tabuleiro ouija.
— Tipo o do filme? — questionei, franzindo o cenho.
— Exatamente o do filme — foi Sam quem me respondeu. —
Nós até pegamos as falas dele. — Ela riu.
Virei-me para Eva.
— Só tentando me certificar aqui: isso é realmente sério?
— Não sei. É? — ela retrucou, e então se virou para o restante
do grupo enquanto colocava o tabuleiro entre nós. — Prontos?
Todos imediatamente colocaram dois dedos no objeto triangular
presente em cima do tabuleiro, e eu expirei o ar pesado pela boca
antes de me obrigar a fazer o mesmo.
— Ter esperanças faz bem para a alma — Eva murmurou mais
consigo mesma, como se também acreditasse que tudo aquilo era
tolo, porém ainda quisesse se convencer do contrário.
Em seguida, ela informou que deveríamos fazer um círculo com
o objeto triangular para cada participante, e, assim que o rodamos
cinco vezes, a ruiva recitou algumas palavras sobre invocação de
espíritos.
Um silêncio brutal se instalou no recinto a partir daí. A música
do andar de cima não era mais audível naquele cômodo, e sequer
os ruídos de goteiras haviam nos seguido. Tudo estava apenas...
quieto. Legítima e desconfortavelmente.
— Olá? — Eva sussurrou após alguns segundos. Não havia
vestígio algum de medo em sua voz. — Tem alguém aí?
— Que besteira do caralho.
— Cala a boca, Chad — a ruiva disse impacientemente antes
de continuar: — Vamos lá. Ninguém aí gostaria de se comunicar
conosco?
Todos voltaram a ficar calados, e dessa vez pude sentir as
vibrações que viam do andar superior. Bem, eu não negaria que, por
mais ainda achasse que tudo aquilo não passasse de uma idiotice,
alguma adrenalina começava a invadir minha corrente sanguínea.
— Não tem nenhum espírito aí irritada por estarmos fazendo
uma festinha no lar de vocês? — Eva gritou dessa vez, um pouco
irritada.
— Eu tenho certeza de que não é assim que se fala com um
espírito, Eva — o namorado de Sam murmurou, abafando um riso.
— Olha, se eu fosse um espírito, me valorizaria o suficiente
para não me comunicar por um tabuleiro comprado em uma loja de
brinquedos — Sam acrescentou.
Eva ignorou ambos.
— Estou evocando qualquer força incomum dessa casa. Exijo
que apareça — a ruiva disse firmemente, fechando as pálpebras de
um modo brusco.
Naquele mesmo momento, algo rangeu logo acima de nós, o
que fez com que Sam se assustasse e soltasse um grunhido
estrangulado. Foi instinto, mas transferi a atenção à Eva, que já
tinha olhos abertos e alertas. Pareceu um pouco pensativa, e, por
uma fração de segundo, pude jurar que um fantasma de sorriso
tomou seus lábios.
Voltei a desviar o olhar para Sam para conferir se ela estava
bem, porém mal tive a chance de me concentrar nela antes que um
grito ecoasse por cada canto do pequeno quarto. Um grito que era
aterrorizante por ter vindo da garganta de Eva.
Décadas pareceram se passar até que eu localizasse
Evangeline uma outra vez; ao girar a cabeça em sua direção, notei
os olhares horrorizados de cada pessoa ali presente, senti mais
intensamente as vibrações que vinham do andar superior e escutei
ainda mais rangidos se fazerem presentes acima de nossas
cabeças. E, quando enfim coloquei meus olhos em Eva, ela já
estava caída no chão.
Um sentimento agonizante tomou conta de mim. Mas não era
exatamente medo. Era... preocupação. Tão veemente que beirava
ao pânico.
— Eva — seu nome saiu de um modo estrangulado de minha
garganta enquanto eu colocava sua cabeça em meu colo.
Escutei vagamente algumas vozes também chamarem por Eva,
e o tom de sua maior parte parecia transbordar um genuíno medo
pelo que o quer que estávamos feito tivesse surtido efeito. Senti a
presença deles mais de perto, porém não liguei.
Mantive meu olhar centrado apenas em Eva, porque era a
única coisa que importava naquele momento.
— Eva — gritei dessa vez, um pouco mais apavorado,
enquanto levava meus dedos até sua bochecha tão fria e
aproximava meu rosto do seu. — Evangeline.
E se antes tudo não poderia acontecer mais devagar, agora era
o completo oposto. Mal assimilei o movimento que fez com que Eva
espalmasse minha mão que se encontrava em seu rosto, fazendo
com que eu o envolvesse, e também o que fez com que seus lábios
selassem os meus.
Só soube que não pude fazer outra coisa senão corresponder
seu beijo em uma fração de segundo, como se fosse uma resposta
instintiva do meu corpo ao seu. Quando seu gosto de menta e
nicotina invadiu meu paladar e seu riso travesso reverberou por
meus lábios, toda aflição presente em meu interior foi dissipada
quase que de imediato.
— Só pode estar de brincadeira. — As palavras mal-humoradas
de Chad chegaram aos meus ouvidos vagamente, e Sam também
reclamou um pouco por tudo não ter passado de um jogo de Eva —
ou boa parte, porque suspeitava que ela só tinha recorrido às
brincadeiras após perceber que não obteria resposta sobre o outro
mundo de forma alguma. Não me incomodei com eles, no entanto.
Minha atenção era apenas de Eva.
Quando cada um deles deixou o quarto, a ruiva sentou-se em
meu colo sem desgrudar a boca da minha, e pressionei seu quadril
contra mim com uma força excessiva enquanto sentia minha
racionalidade se esvair a cada segundo que se passava e uma
adrenalina ainda mais intensa corria por minha corrente sanguínea.
— Estou te ajudando a descobrir a resposta sobre minha
primeira pergunta? — Eva sussurrou contra meus lábios por um
momento, e, embora minha sanidade estivesse ameaçada, forcei-
me a pensar sobre aquilo.
Em qual era a diferença entre estar vivo e viver.
Eu não tinha dúvidas de que estava vivendo ali. Suspeitava que
nunca fora tão consciente em relação aos meus sentimentos e
sensações àquela maneira.
Era bom ser impulsivo. Muito bom.
No entanto, tal percepção me fez pensar demais, porque,
apesar de a precipitação me incitar, ela ainda poderia ser nociva em
aspectos mais caros do que o ideal.
— Merda. Eu... — eu disse com a voz torturantemente falha
quando precisei de todas minhas forças para me distanciar de Eva.
A ruiva não pareceu chateada pelo distanciamento abrupto, apenas
curiosa. Sombriamente curiosa. — Eu não posso me deixar levar
assim, Eva. Não na situação em que me encontro agora.
Ela arqueou as sobrancelhas, parecendo achar graça de
minhas palavras. Tentei não prestar atenção demais nos lábios que
eu deixara inchados, em como tinha sido prová-los.
— E por que não?
— Não posso me permitir colocar meus sentimentos como
prioridade quando há outros em jogo. Não sou tão egoísta a esse
ponto.
Ela ponderou.
— Suponho que esteja falando de Freya.
— Ela é uma menina e eu deixei que acreditasse que temos
algo. Tenho que arcar com minhas responsabilidades. — Senti que
estava cometendo o pior erro de minha vida ali. Porém, sabia que
isso era apenas um falso senso, que era afetado pela presença de
Eva.
Eva pareceu decepcionada, mas somente pelo modo com o
qual eu estava lidando com minha vida. Estava um pouco
decepcionado também por eu nunca ter tomado decisão alguma
quanto à Freya e à persuasão de meus pais, pois isso me obrigara a
fazer agora uma escolha que em nada me agradava.
— Então espero que arque com suas responsabilidades
começando a ser honesto com você mesmo e com as pessoas ao
seu redor — ela disse casualmente ao sair de meu colo, colocando-
se de pé em um gesto assustadoramente gracioso. — Nada é pior
do que enganar quem está ao seu redor sobre seus próprios
sentimentos. Isso é falhar com os outros e principalmente consigo.
Comodidade não faz bem para absolutamente ninguém, Tristan.
E então Eva simplesmente se dirigiu à saída do local, porém
não me deixou sozinho com minha própria frustação em relação à
minha vida até dizer:
— Me procure quando fizer algo a respeito das amarras que
estão te matando pouco a pouco, garoto. Para o seu próprio bem,
espero que não demore tanto tempo. Suspeito que sua vida já tenha
sido desperdiçada o suficiente.
Ela não estava mentindo.
Eu estava em meu quarto quando escutei gritos da casa ao
lado. Da casa dos Christie.
Honestamente, foi um pouco assustador o fato de alguma briga
ser audível de seu interior, porque nossas casas eram distantes uma
da outra. As coisas realmente deveriam estar feias para chegarem a
esse ponto.
Eu estava vendo um jogo de basquete na televisão, mas o
coloquei no mudo no segundo em que me perguntei se Eva poderia
estar envolvida na aparente discussão. Uma parte de mim já estava
certa da resposta.
Levantei-me quase que por instinto e caminhei até a janela que
dava visão para o casarão. Foi então que a vi.
Eva estava na cozinha, de costas para a larga janela do local.
Eu sabia que era ela porque seus cabelos ruivos eram um pouco
mais rebeldes do que os de sua irmã ou mãe. Logo também localizei
seu pai, que se aproximara da filha. Ele gritava algo que agora me
era ininteligível; apenas sabia que estava berrando porque mexia a
boca e gesticulava as mãos de um modo violento.
Meu interior se alarmou instantaneamente a partir daí.
Richard exterminou o restante da distância pendente entre ele
e Eva, elevando o dedo até seu rosto enquanto lhe dizia algo. A
ruiva simplesmente desvencilhou dele após poucos segundos, indo
para o jardim. Ele foi atrás, contudo.
Quando eles entraram em ambiente aberto, pude ouvi-lo
dizendo que as coisas já haviam passado do limite e que sua filha, a
qual chamava de Angel, deveria fazer jus ao seu sobrenome.
Quando ele se aproximou novamente enquanto gritava essas
coisas, cogitei em sair dali e, de algum modo, ir até os dois. Cogitei
mesmo, porque a situação parecia estar saindo do controle com
muita facilidade.
No entanto, antes que eu sequer pudesse girar os calcanhares,
ouvi Eva gritar para o pai que seu sobrenome não era nada além de
algo desprezível para ela, e que, mesmo se tivesse todo o tempo do
mundo, não perderia um instante sequer vivendo de acordo com os
termos daquele nome. Foi então que a mão aberta de Richard foi ao
encontro da bochecha esquerda da filha.
Enrijeci por completo naquela mesma fração de segundo.
O homem não poupara força no tapa, eu não tive dúvidas
disso. Eva, entretanto, cambaleou uma só vez para trás antes de
recuperar o equilíbrio, e sequer levou a própria mão para pressionar
a região golpeada. Seus olhos também não reluziram surpresa
alguma, somente ódio cru.
Ela já estava acostumada com aquilo. E tal percepção partiu
meu coração.
Eu tremia um pouco, e minha respiração estava alterada. Eu
sabia que isso se devia a toda raiva e repulsa que também senti por
Richard Christie. Uma parte de mim desejava quebrar cada osso de
sua mão ou até amputá-la para que ele nunca mais pudesse usá-la
contra Eva.
Não hesitei em sair de meu quarto e descer as escadas para o
primeiro andar com a maior agilidade que pude assim que recuperei
parte de minha razão. Quando saí de minha casa, contudo, Richard
já retirava o carro de sua garagem e o acelerava para longe. Pulei a
cerca baixa de sua casa e segui para os fundos pela lateral, sem me
importar muito se o homem poderia ter me visto pelo retrovisor.
Quando cheguei ao jardim, Eva ainda estava ali, em pé no
mesmo lugar, encarando o chão com aqueles olhos agora mais
vazios do que raivosos. Seu pai não parecia ter tocado nela outra
vez após eu ter deixado a janela, pois somente sua bochecha se
encontrava vermelha.
Foi aliviante saber que ela se encontrava bem fisicamente,
embora interiormente a situação não fosse a mesma.
Quando avancei mais alguns passos, ela enfim se deu conta de
minha presença, já lançando um olhar alerta em minha direção. Ela
abriu a boca para verbalizar algo, porém interrompeu a si mesma,
soltando o ar pesado pela boca. Por fim, se dirigiu a uma das
cadeiras perto da extensa piscina e sequer olhou para mim ao dizer:
— Até perguntaria o que diabos você está fazendo aqui, mas já
sei a resposta.
Esfreguei as têmporas com as mãos ainda trêmulas enquanto
avançava mais alguns passos até ela.
— E eu até perguntaria como você está, mas também sei essa
resposta.
Quando só dois metros pendiam entre nós, percebi que o tom
rubro se fazia presente em toda sua bochecha, e não tive dúvidas
de que um forte hematoma ocuparia a região por alguns bons dias.
Eva decerto estava sentindo alguma dor, mas se recusava a deixar
transparecer isso.
— Eu estou ótima — respondeu, apesar de minha constatação.
— Eu sei que isso não é verdade.
— Mais uma vez, você não me conhece o suficiente. Não sabe
quando estou mentindo ou não.
— Eva, você acabou de...
— Eu acabei de ser punida por ser honesta comigo mesma e
com as pessoas ao meu redor. Porque eu disse que meu
sobrenome é insignificante para mim, que não diz nada sobre quem
eu sou ou quem eu deveria ser. Não me importo de enfrentar as
consequências de ser fiel a mim mesma. São melhores do que as
consequências de ignorar meus princípios.
Corri os dedos pelos meus cabelos, um pouco frustrado diante
da personalidade da ruiva. Senti que seria difícil fazê-la contar sobre
o que de fato sentia. Por fim, sentei-me na cadeira ao seu lado. Ela
já não me encarava mais, àquela altura.
— Não há vergonha em não estar tão bem às vezes, Eva. E
definitivamente não há vergonha em admitir isso. Eu estou aqui,
você pode falar comigo, ok? Eu quero que fale comigo.
Foi então que um riso de escárnio escapou de sua garganta.
— Você não é meu amigo, garoto. Se tem alguma esperança
de que eu tenha algo para desabafar e que o faria justo com você,
pode esquecer.
Honestamente, suas palavras me machucaram um pouco. Eu
sabia que era ridículo, afinal, nós dois realmente não éramos
amigos. Ainda mal nos conhecíamos. Ainda assim...
— Gostaria que confiasse em mim — eu murmurei simples e
repentinamente. A declaração fluiu de modo quase espontâneo,
porém brutalmente sincero.
Foi somente então que seu olhar encontrou o meu uma outra
vez.
— Tristan, pelo que eu me lembre, na última vez em que
conversamos, eu lhe disse para me procurar somente quando
estivesse disposto a tomar algumas medidas a respeito de sua
comodidade. Então, a não ser que você já tenha o feito, está
desperdiçando não somente o seu tempo aqui, mas também o meu.
Exalei o ar pesado pela boca.
Desde que vira Eva pela última vez, poucos dias atrás, eu
estivera com Freya apenas uma vez, em um jantar de negócios com
nossas famílias. Na ocasião, eu tentara esclarecer o que ocorria
entre nós dois sob meu ponto de vista enquanto nossos pais
discutiam na mesa à nossa frente; eu chegara a verbalizar as
palavras. No entanto, ela escolhera não me escutar, distraindo-se
com as conversas superficiais que nos rondavam.
A garota andara evitando me encontrar a sós desde então,
como se soubesse que eu traria o assunto à tona outra vez na
melhor oportunidade.
Era difícil se comunicar com alguém que se encontra tão
determinado a simplesmente não ouvir. Era justamente o que
também acontecia em relação à ruiva ao meu lado.
— Não faça isso.
— O quê?
— Não construa essa barreira de autopreservação ao ser redor
para manter as pessoas que te querem bem longe.
— Eu não faço ideia do que você está falando.
— Sério? Então por que eu tenho que você ama ler outras
pessoas, mas se recusa a se deixar ser lida no que mais importa?
Que não deixa que ninguém se aproxime de você de fato?
Ela revirou os olhos.
— Você não...
— Eu não te conheço, já entendi, Eva — cortei-a, adivinhando
suas palavras. — Mas gostaria que você me permitisse conhecê-la.
Imagino que a solidão deva ser um pouco cansativa para você,
principalmente quando você se esforça tanto para escondê-la.
A ruiva engoliu em seco, e passou a encarar o nada à sua
frente. Uma parte de mim pôde jurar que ela enfim assimilava o que
eu dizia. Contudo, por fim, pediu:
— Apenas... vai embora, Tristan.
Embora não pudesse esperar tanto quando fazia sequer um
mês que nos conhecíamos, me senti um pouco decepcionado por
Eva, mesmo após absorver minhas palavras, ter se recusado a se
abrir um pouco que fosse comigo.
— Então venha comigo — eu balbuciei após poucos segundos.
Ela arqueou as sobrancelhas. — Não me sinto confortável em deixá-
la aqui.
— Não preciso da proteção de ninguém — alegou quase em
instinto.
— Eu sei que não — aleguei, e ainda estava sendo honesto.
Ainda assim, continuei: — Você pode dormir no meu quarto. Durmo
no chão, se você quiser. Eu dou um jeito de te colocar lá sem que
meus pais a vejam.
Eva somente suspirou antes de se colocar de pé.
— Agradeço a preocupação, garoto, mas ela é absolutamente
desnecessária. E, se te deixa mais tranquilo, meus pais passarão os
próximos dias fora em uma viagem de negócios. Toda essa briga
ocorreu porque eu me recusei a acompanhá-los e defender seus
interesses, que não poderiam ser mais diferentes dos meus.
Aquilo não me deixou tão calmo, na verdade. Porque a ideia de
deixar Eva sozinha em nada me agradava.
A ruiva começou a caminhar em direção à sua casa, querendo
encerrar o assunto, porém parou quando eu disse:
— Então é assim que as coisas serão a partir de agora?
Ela suspirou, mas girou os calcanhares em minha direção. De
algum modo, soube que ela entendeu o que eu queria dizer.
— Resolva seus problemas e venha conversar comigo depois
— insistiu.
— Bem, talvez isso não seja tão fácil igual você pensa que é,
Eva. Talvez eu esteja um pouco perdido e não faça ideia de como
fazer que a bola de neve que minha vida virou simplesmente pare.
Não pode me punir se retraindo tanto por isso.
— Acha que estou te punindo?
— Não está?
Eva não me respondeu. Somente trincou o maxilar com uma
força excessiva por um momento antes de dizer:
— Vou fazer uma pequena reunião em minha casa na sexta à
noite. Você pode vir, mas traga sua própria bebida dessa vez.
E sem dizer nada mais, ela simplesmente adentrou em sua
casa, fechando a porta dos fundos sem sequer olhar para trás.
Honestamente, não tive ideia do que Eva desejava passar com tal
convite, se queria provar que não estava mesmo me punindo.
Uma parte de mim duvidou um pouco de tal probabilidade,
porque eu já tinha alguma ideia de que não era de seu costume dar
satisfações ou confirmações de suas intenções para ninguém. Não
me deixei pensar tanto nisso, no entanto, pois sabia que nunca
obteria resposta alguma a respeito de Eva caso elas não viessem
dela própria.
Eva estava tramando algo.
Eu sabia disso porque Freya estava na sua casa. Quando ali
entrei, sem precisar tocar interfone algum pois a porta da extensa
sala estava aberta, deparei-me com a garota sentada no sofá ao
lado de Daniel, suas feições esboçando uma leve irritação enquanto
aparentemente discutia com meu primo, que por sua vez se divertia
com isso.
No sofá ao lado, estavam Sam, seu namorado, Chad e Alisha.
Não havia sinal algum de Eva.
— Cara, já estava começando a pensar que não viria — Daniel
disse quando se deu conta de minha presença. Somente então me
esforcei a inspirar fundo e sair de perto da porta de entrada, mesmo
não tendo ideia de onde de fato estava adentrando ao seguir com
meus passos.
— Onde Eva está? — questionei de modo quase abrupto.
Precisava falar com ela.
— Estamos nos perguntando exatamente a mesma coisa — foi
Alisha quem me respondeu.
— Oi para você também, querido — Freya murmurou
sarcasticamente, revirando os olhos. Esfreguei as têmporas, um
pouco nervoso.
— Oi, Freya — eu soprei, fechando os olhos por um momento
para recuperar a maldita calma. Quando tornei a abri-los, desviei o
olhar para Daniel. — Você pode vir até aqui por um momento? —
Indiquei com a cabeça à minha direita, onde um largo corredor se
fazia presente.
Meu primo se levantou em silêncio e me seguiu, e sequer
hesitei em questionar quando nos encontramos sozinhos:
— O que todos nós estamos fazendo aqui?
— Hum... tentando se divertir?
— Por que Freya está aqui, Daniel?
— Do que está falando?
Suspirei, correndo os dedos por meus cabelos.
— Escuta... estou falando sério. Por que ela está aqui? Eva mal
a conhece. Por que a chamou?
Ele franziu o cenho, um pouco mais sério.
— Olha, Eva apenas me mandou uma mensagem dizendo para
que eu aparecesse aqui hoje e trouxesse Freya. Eu até perguntei
para ela o porquê de eu ter que trazê-la, mas ela não me
respondeu. Pensei que não estivesse conseguindo falar com você e
por isso tinha me pedido.
— E você não pensou em falar comigo antes?
— Eu... — Ele expirou o ar pesado pela boca. — Não, não
pensei.
Fiquei um pouco confuso, porque Daniel não era alguém tão
insensato. Antes que eu pudesse insistir naquele assunto, contudo,
escutamos alguém descendo os degraus.
— Você está atrasada — alguém murmurou da sala. Alisha.
— Não estamos todos? — A voz angelical de Eva chegou aos
meus ouvidos, e quase pude sentir o sorriso que se esboçara dentre
seus lábios ao acrescentar: — Hoje estamos mais atrasados do que
nunca.
Cheguei na sala a tempo de ver Sam dizer um “engraçadinha”
à Eva. A ruiva, no entanto, não se importou tanto com isso, pois logo
transferiu a atenção para mim. Com seu rosto completo em meu
campo de visão, percebi que sua bochecha esquerda estava
imaculada. Não achava que era possível o hematoma que seu pai
decerto deixara ali ter sumido em dois dias, então supus que ela o
escondera com maquiagem.
Um fantasma de sorriso dançou por seus lábios enquanto
sustentava meu olhar, mas não de um sorriso doce. Era um dos
sorrisos travessos que somente ela sabia dar. Fiquei um pouco mais
preocupado a partir daí.
— Então, vai finalmente nos dizer quais são os planos para
hoje? — Alisha questionou. — Você não chamou gente suficiente
para uma festa de fato e nem tão poucas para uma festa do pijama.
— Planos? Por que acha que eu teria feito planos para hoje?
Talvez o fato de eu estar com meus amigos já seja o bastante para
me alegrar — Eva retrucou inocentemente.
— Rá rá. Seu senso de humor está ótimo hoje — Chad disse,
um pouco descrente.
— A fé de vocês sobre mim é tão escassa assim? — a ruiva
continuou, sentando-se ao lado de Freya, que agora se mantinha
calada.
— Bem, em nossa defesa, você nunca nos deu motivos
concretos para botarmos alguma confiança em você. — O
namorado de Sam soltou um riso nasalado.
— Então, acho que vou decepcionar vocês por agora — ela
declarou simplesmente, conectando seu celular a algumas caixas de
som presentes na casa e colocando uma música para tocar ali —,
porque por enquanto só desejo que fiquemos um pouco bêbados.

Pouco mais de uma hora mais tarde, as expectativas de Eva


tinham sido atendidas em sua maior parte. A embriaguez já
começava a tomar conta de todos. Menos de mim e da própria
anfitriã, pois não tínhamos ingerido uma gota sequer de álcool.
Eu não tinha feito muito durante aquele tempo, tinha sequer
conversado. Estava apreensivo demais para esboçar alguma
descontração. Eva tampouco tinha dito muito, parecia apenas se
limitar a observar.
Achei que ela estava esperando. O que, eu não fazia ideia.
Somente reagi quando a ruiva se levantou do chão e foi até a
cozinha sozinha. Nem mesmo hesitei em segui-la, pois não achava
que chamaria muita atenção. Freya ainda discutia com Daniel
acerca de suas opiniões divergentes sobre suas perspectivas, e o
restante do grupo estava dentre um diálogo acalorado e quase fútil
do qual eu não participava.
Suspirei quando encontrei com Eva. Ela já esperava por mim.
Estava escorada na bancada da pia, de frente para a larga porta.
Não fiz rodeios, então.
— Que jogo você está fazendo hoje, Evangeline?
A ruiva apenas arqueou as sobrancelhas.
— Vamos lá, você sabe do que estou falando.
— Nunca disse que não sabia — contestou.
— Então me dê uma resposta.
— Caramba. Tem alguém tenso por aqui.
— Mas é claro que estou tenso. Eu não faço ideia do que
diabos você está fazendo e de quais são suas intenções.
— Uau. Quer me falar exatamente quando eu me tornei uma
vilã para você? — questionou, e não soube dizer se estava falando
sério ou somente brincando.
— Você não é uma vilã para mim, Eva — admiti, mesmo a
algum contragosto. Não gostei de como o assunto havia sido
desviado.
— Então por que você parece me temer?
— Você não é uma vilã, mas decerto também não é a vítima.
Não é de seu feitio fingir o contrário — respondi simplesmente.
— Bem, você está tentando dizer que há alguma vítima aqui?
— Inferno — resmunguei, inspirando fundo. — Pare de
manipular essa conversa, Eva.
Ela me ignorou.
— Só para deixar claro, tomar decisões que outras pessoas
têm medo de tomar não me torna a vilã. E isso tampouco torna
essas pessoas vítimas. Isso é mais uma questão de coragem e
covardia.
— Evangeline, o que diabos você está fazendo? — indaguei,
um pouco mais firme, porque sua declaração não poderia significar
algo muito bom.
— Tomando algum controle que as pessoas ao meu redor
andaram perdendo. Alguém precisava o fazer.
— Espera, o que...
— Já chega de perguntas. Você terá todas as respostas que
precisa em alguns momentos — anunciou, cortando-me, e então
pegou uma cerveja em sua geladeira, abriu-a e deu um longo gole
no líquido. Foi a primeira vez na noite que consumiu álcool.
Em um segundo, ela veio em minha direção, e antes de passar
por mim, empurrou a garrafa contra mim, obrigando-me a pegá-la.
— Fique com isso. Talvez você precise em alguns minutos.
Ela fez menção em voltar para sala, mas envolvi seu braço
antes que tivesse a chance. Seus olhos se voltaram para mim de
uma forma mais centrada, mais ambiciosa. A tensão que se
estabeleceu entre nós foi quase palpável.
— O que você quer de mim, Eva? — sussurrei, porque ela
realmente parecia buscar arrancar algo de mim.
Ela me encarou por segundos que me pareceram
intermináveis, porém enfim respondeu com uma sinceridade crua e
em um tom quase impiedoso:
— Eu quero tudo que você tem a oferecer, Tristan. Nada mais,
nada menos. Quero vê-lo livre para saber o que pode e o que não
pode dar de si, mas não somente em relação a mim, e sim a todos
que no momento sugam algo de você.
— Por quê?
Evangeline olhou bem no fundo dos meus olhos, e, naquele
segundo, eu realmente pensei que não me responderia. Contudo,
por fim, ela apenas se aproximou, e adotou um tom mais ameno,
porém nunca menos intenso, ao questionar:
— Lembra quando você disse que eu era um anjo?
Não entendi seu ponto, mas tudo que eu fiz foi suspirar antes
de responder:
— Claro que sim, Eva.
— Acontece que eu não sou um anjo bom. Eu sou como um
anjo caído à procura de almas, Tristan, e não estou nada feliz por
você ainda não ter me entregado a sua.
Foi somente então que ela desvencilhou seu braço de meu
toque, não me dando sequer tempo o suficiente para assimilar cada
uma de suas palavras bruscas.
— Agora vamos. Algumas atitudes precisam ser tomadas ainda
hoje. Alguns de vocês já as adiaram por tempo demais para seu
próprio bem.
Não a segui de imediato. Contudo, mesmo da cozinha, pude
escutá-la dizer aos demais presentes na sala:
— Sam, Alex, Chad, Daniel e Freya, o que acham de fazermos
algo para esquentar a noite?
Meu coração pareceu parar por uma fração de segundo diante
de tais palavras que não deveriam ser tão assustadoras quanto
foram. Foi quase como se eu já tivesse previsto tudo que estava por
vir.
Eva propusera um jogo de perguntas e respostas.
Parecia inofensivo. O problema era que era a Christie quem
estava conduzindo a brincadeira.
Minutos mais tarde, já havíamos nos organizado em uma roda
no chão — eu não estava muito determinado a participar do maldito
jogo, mas algo me dizia que eu não tinha muita escolha —, e foi
então que Eva disse:
— Então... funcionará assim: cada um daqui fará perguntas a
cada pessoa do grupo, e essa pessoa poderá responder ou escolher
beber. Nada de mentiras. Eu começo.
— Por que você começa? — Alisha arqueou as sobrancelhas.
— Porque a ideia foi minha — a ruiva respondeu simplesmente.
— Ok, mas como escolhemos o próximo? — o namorado de
Sam questionou, o que fez com que Eva soltasse um breve riso.
— Não se preocupe com isso — ela respondeu, quase como se
estivesse certa de que a brincadeira não chegaria a tanto.
A essa altura, meu coração já se encontrava acelerado no
peito.
— Tudo bem, vamos lá — Eva continuou, varrendo a roda com
o olhar vagarosamente até parar em um lugar específico. — Alisha.
Quase pude jurar que a garota se encolheu um pouco.
— Então, você se considera uma pessoa de amor próprio?
Não precisei de tanto para entender a natureza daquela
pergunta. Eu me lembrava de Eva reclamar como o namorado de
Alisha a tratava.
— Claro que sim — a garota respondeu, o que fez com que
Eva a encarasse ceticamente.
— Mais uma regra: quem mentir, bebe — a ruiva anunciou,
ainda fitando Alisha, que entendeu o que havia por trás daquelas
palavras.
— Quem disse que estou mentindo?
— Porque como você ama a si mesma é como você ensina as
pessoas ao seu redor te amarem.
— O que diabos isso quer dizer?
— Reflita um pouco. Fará bem para você — Eva murmurou
apenas, um pouco impaciente. — Quanto à regra da mentira, vamos
deixar para aplicar a partir da próxima pergunta. Vou te livrar dessa,
porque acho que o álcool poderá atrapalhar sua clareza. O restante
dela, quero dizer.
Alisha abriu a boca para respondê-la, mas Eva foi mais rápida
ao dizer:
— Sam.
Sua amiga arqueou as sobrancelhas, atenta.
— Qual o preço para si de se manter tão resoluta pelas outras
pessoas, de pensar tanto nelas? — a ruiva questionou, mas
acrescentou quando Sam pareceu confusa: — Deve ser um pouco
cansativo interceder pelos outros, ser forte por eles, não é? Se
preocupar tanto.
Sam não pareceu contente com a pergunta. Ainda assim,
respondeu:
— Alguém aqui precisa pensar nos sentimentos das outras
pessoas, Eva.
— Mas e quando todos esses sentimentos podem obstruir
nossos próprios? Quais as consequências?
— Essa é outra pergunta.
— É a segunda parte de uma mesma pergunta.
A garota suspirou.
— Honestamente, não faço ideia de como responder a isso —
Sam admitiu, quase irritada pela primeira vez desde que a
conhecera. Também pela primeira vez, Eva quase pareceu
pesarosa, ainda que não arrependida por ter feito tal pergunta.
Ela não mandou a amiga beber, simplesmente foi para a
próxima pergunta.
— Vou escolher uma pergunta mais direta para você, Daniel —
declarou, transferindo a atenção para o garoto. — Me diga, seu
primo sabe que você está começando a ter uma quedinha pela
namorada dele?
Franzi o cenho, também desviando o olhar para ele, que tinha
os olhos arregalados diante do questionamento. Ele estava
surpreso, porém não mais do que eu.
Levei mais tempo do que o ideal para processar as palavras de
Eva, porém, assim que o fiz, percebi que elas faziam sentido. Aquilo
poderia ser a explicação de Daniel não ter falado comigo antes de
trazer Freya a pedido da anfitriã; talvez o desejo de passar algum
tempo com a garota lhe tivesse custado a sensatez.
Honestamente, eu não o julgava. Sequer estava bravo. Àquela
altura, infelizmente, já havia começado a entender que alguns
sentimentos tinham o poder de nos tirar a razão.
— Esse jogo está começando a fugir do controle, Eva — Sam
se manifestou, firme, enquanto encarava Freya, que tinha ficado
atordoada. Aparentemente, a informação era uma surpresa para ela
também.
— Esse jogo só está acontecendo em prol do controle de vocês
próprios. Ele é a prova de que vocês andaram o perdendo sobre
suas vidas — a ruiva retrucou.
— Não acho que você gostaria que eu revelasse seus segredos
a todos aqui, nesse exato momento — Sam insistiu, e uma tensão
recaiu entre as duas por um momento.
— Meus segredos me fazem ter o controle de minha própria
vida, ao contrário dos seus — Eva respondeu por fim, antes de
desviar o olhar para a direita de Daniel e à minha esquerda. —
Freya.
Foi a primeira vez que ela se dirigiu à garota naquela maldita
reunião, e eu temi por isso. Porém não tive ideia de como fazê-la
parar, porque Eva era como um furacão. Inevitável, indomável e
dizimador.
Naquele instante, eu estava no olho dele.
— Você tem alguma noção de que está desperdiçando o tempo
de uma pessoa que não deveria perdê-lo ainda mais? E que,
enquanto isso, está se permitindo desperdiçar o seu próprio tempo
com alguém que não o merece? Você ao menos sabe o quão
valiosa é essa perda, o quão escasso esse bem é para se dar ao
luxo de esgotá-lo por alguém que não vale a pena para você? Por
que está fazendo tudo isso consigo mesma? Você não deveria ser
suficiente para si mesma? Todos nós não deveríamos?
— Evangeline — eu censurei quase em instinto, mas ela me
ignorou. Somente permaneceu fitando a garota ao meu lado, não
por estar esperando por uma resposta, e sim porque queria ver se
Freya realmente tinha entendido a magnitude de sua pergunta.
Ela havia o feito, de fato.
Senti-me angustiado ao ver Freya desviar o olhar para o chão
em um gesto nervoso, quase aflito. Fiquei assim principalmente por
saber que, embora Eva tivesse sido a catalisadora de tal reação, eu
havia sido o responsável por ela.
Freya não me encarou ao simplesmente se levantar e se dirigir
à saída daquela casa.
Fiz menção em segui-la, mas Eva logo chamou:
— Tristan.
— Não, Eva. Apenas... não. Não acha que já fez o suficiente?
— eu disse ao me colocar de pé, realmente frustrado ali.
Ela me ignorou, contudo, e questionou em um tom mais suave,
porém com olhos densos e árduos:
— Não acha que eu acendi o primeiro lampião do caminho pelo
qual você andava perdido poucos dias atrás? Talvez esteja na hora
de você fazer bom proveito do fogo que eu lhe forneci e acender o
restante. Não pode esperar que outros tomem todas as decisões por
você para sempre.
Balancei a cabeça em descrença com a respiração já alterada.
Dei-lhe as costas então, pronto para tomar rumo até Freya, porém,
antes que eu desse um segundo passo, virei a cabeça pelo ombro e
inevitavelmente disse em não mais que um sussurro:
— Diga a seus amigos o que você esconde por trás da
maquiagem nesse exato momento se pensa que a sinceridade crua
é tão louvável, Eva. Acho que eles também merecem ouvir a
resposta para essa pergunta.
Não me deixei ver a reação da ruiva ao tomar de uma vez o
rumo que Freya tomara. Em um par de minutos, a encontrei sentada
na calçada em um canto mais afastado da casa de Eva, debaixo de
uma árvore. Ela abraçava o próprio corpo diante da brisa fria, e
também estava encolhida.
Quando me aproximei lentamente, percebi também que
algumas lágrimas escapavam de seus olhos. Suspirei, quase
exausto e culpado, e então me sentei ao seu lado, embora a garota
decerto não quisesse minha companhia.
— Freya — sussurrei.
Ela sequer me encarou.
— Escute, eu não sou idiota, ok? Eu já sei há algum tempo que
você não queria nada comigo. Eu apenas deixei que isso se
prolongasse tanto porque... porque estava tentando ser boa o
suficiente para você. Achei que conseguiria — disse em disparada,
como se estivesse guardando tudo aquilo por muito, muito tempo.
— Pelo amor de Deus, Freya. Esse não é o porquê de eu não
desejar nada com você. Você é mais do que o suficiente para mim e
para qualquer outra pessoa. Nós dois apenas... somos distintos.
Não temos as mesmas opiniões, não temos os mesmos gostos e
sequer somos muito compatíveis como pessoas. No fundo, sei que
você não poderia ter mais consciência disso. Mas isso não quer
dizer que algum dos nossos modos de ver o mundo seja errado, que
sua personalidade é inferior à minha. Isso tudo apenas significa que
não teríamos um futuro muito bom juntos, com um desaprovando e
criticando o outro a todo tempo. Honestamente, não acredito muito
que os opostos possam se atrair. Talvez seja algo interessante no
início, mas depois, talvez, a convivência se torne apenas...
exaustiva. Não acha que deveríamos nos encontrar ao menos um
pouco na pessoa com quem escolhemos viver?
Freya não me respondeu. Somente permaneceu fitando o nada
à sua frente, decerto ainda chateada. Magoada.
— Eu sinto muito pelas coisas terem ocorrido dessa maneira.
Eu também não deveria ter permitido que as coisas chegassem a
esse ponto, deveria ter sido mais firme com você ao esclarecer o
que penso de nós dois como um casal anteriormente. Mas você vai
superar isso, Freya. Sei que é obstinada, vai apenas levar essa
situação como aprendizado. Vai entender que não devemos nos
esforçar para sermos felizes e deixarmos as pessoas ao nosso
redor felizes.
Eu estava mesmo muito triste por tê-la machucado. Porém,
talvez isso tivesse sido necessário, embora eu pudesse ter
amenizado um pouco as consequências de nossas circunstâncias.
Suspirando, coloquei-me de pé ao dizer suavemente:
— Vem, eu vou te levar em casa agora.
Ela me ignorou, enxugando as lágrimas. Esfreguei as
têmporas, um pouco desorientado, porque era óbvio que ela queria
ir embora, porém não desejava ir comigo.
— Eu levo ela. — A voz de Daniel soou por trás de nós. Percebi
que ele já se aproximava. — Tudo bem para você? — questionou
Freya então, que, surpreendentemente, concordou com a cabeça.
Fiquei aliviado por isso, na verdade.
Freya se levantou e caminhou até o carro de Daniel, ansiosa
para ir para longe de mim. Meu primo logo a acompanhou, mas não
sem antes questionar cautelosamente:
— Nós podemos conversar depois?
Concordei com a cabeça. Precisaríamos mesmo esclarecer
algumas coisas, aparentemente. Embora eu realmente não
estivesse irritado com ele, alguma sinceridade seria bem-vinda.
Mesmo a de minha parte.
Em um par de minutos, seu carro já virava a esquina da rua, e
então permaneci estático na calçada, sem ter ideia do que fazer
agora. Eu definitivamente não estava muito disposto a voltar para
aquela festa que mais fora uma armadilha, mas ainda... ainda não
parecia ser o momento de voltar para casa. Meus instintos pareciam
gritar isso, por algum motivo.
Por isso, continuei ali, confuso mental e sentimentalmente até
que algo chamou minha atenção pela minha visão periférica. Era
Eva, saindo de sua casa sozinha com passos largos e
devastadores.
Ela não pareceu notar minha presença à esquerda de sua
casa. Somente tomou rumo em direção à direita, apressada.
Perguntei-me o que diabos acontecera no interior de sua casa
para lhe fazer deixar o lugar àquela maneira, então cheguei à
conclusão de que seus amigos provavelmente entraram em alguma
desavença ali diante de sua brincadeira.
Honestamente, eu não estava de fato com raiva de Evangeline,
mas só porque não achava que era capaz de nutrir tal sentimento
tão drástico em relação a ela. No entanto, isso não significava que
eu concordava com suas atitudes. Odiei o modo como ela escolhera
intervir em minha vida e na de outras pessoas ao seu redor.
Estava um pouco desapontado com ela, e foi por isso que
considerei deixá-la ir. Eu talvez precisasse de um tempo sozinho
para esfriar a cabeça também. Porém... no fim, não pude tomar tal
decisão. Não consegui.
Embora uma pequena parte de mim continuasse um pouco
hesitante, forcei-me a segui-la. Em poucos minutos, eu já a
alcançara, porém Eva não dirigiu uma palavra sequer a mim.
Apenas continuou seguindo em frente, obstinada e irrefreável.
Também permaneci em silêncio por um tempo, limitando-me a
somente acompanhá-la; entretanto, aquela quietude abriu espaço
para que pensamentos demais ocupassem minha mente, e então,
eu logo disse:
— Escute, eu não deveria ter feito menção alguma sobre a
marca que seu pai deixou em si. Eu estava com a cabeça quente,
ok? Mas não posso pedir desculpas aqui, Eva, não quando o
estrago que você fez hoje foi de uma magnitude muito maior, e não
só em relação a mim. Você tocou na ferida de diversas pessoas
hoje, você ao menos compreende isso?
Ela não me respondeu. Simplesmente manteve o olhar
centrado à sua frente, o que me fez suspirar.
— Você ao menos poderia reconhecer que errou hoje?
Pela primeira vez em algum tempo, seu olhar recaiu em mim.
— Não, acho que não. Verdades dolorosas são melhores do
que mentiras suaves, garoto. Não me sinto culpada por tê-las dito.
— Mas como você as disse, a ocasião que escolheu para
isso... Inferno, Eva, você magoou pessoas. Não é assim que
tentamos ajudar as pessoas.
— Às vezes, pessoas precisam ser magoadas. Para seu
próprio bem.
— Não finja que é tão altruísta, Evangeline. Todos sabem que
essa não é a verdade.
— Quer saber de uma coisa? — ela disse repentinamente,
parando de andar e girando os calcanhares em minha direção. —
Eu não dou a mínima se pareço desprezível para vocês, se vocês
me acham cruel somente porque eu os machuco quando é
necessário e deixo cicatrizes que servirão de lições mais tarde,
porque, ao invés de dizer que tudo está bem, eu mostro o que está
errado para que vocês corrijam tais lapsos. Me crucifiquem por isso,
eu não poderia me importar menos. Apenas não aja como se todos
vocês fossem as vítimas, porque, acredite em mim, vocês não são.
E espero que entenda de uma vez que eu não sou a vilã; pelo
contrário, creio que vocês são os vilões de suas próprias histórias.
Eva retomou seus passos sem que eu tivesse a chance de
dizer algo a mais, e eu cerrei os dentes com uma força excessiva.
Aquele diálogo conseguia estar se saindo pior do que o esperado
por mim, e eu não tinha ideia de como fazer com que Eva me
ouvisse.
Por fim, obriguei-me a voltar a acompanhá-la, e então somente
sussurrei:
— Não se isole tanto, Eva. Você não está sozinha, então não
aja como se estivesse. Eu e seus amigos não estamos tentando
crucificá-la, estamos apenas... tentando fazê-la nos escutar um
pouco que seja. Você não vê isso?
Ela soltou um riso de escárnio.
— Vai por mim, não estou agindo como se eu estivesse
solitária. Não o faço porque eu de fato estou sozinha, irrevogável e
descontroladamente. Você acha que eu não os escuto? Bem,
deveria pensar na possibilidade contrária. São vocês quem não me
escutam, Tristan. São vocês quem me odeiam quando eu faço o
que vocês não fazem por si mesmos. Sobretudo, são vocês quem
não me compreendem enquanto eu grito para que me entendam.
Talvez aquela fosse a primeira vez que Eva fora brutalmente
sincera sobre si mesma comigo. E foi inevitável me deixar abater
por suas palavras.
Por isso, eu não disse mais nada. Pelos intermináveis minutos
que se seguiram, caminhei ao seu lado em um silêncio atroz,
sufocante, perguntando-me se ele também poderia ser cruel para
Eva tanto quanto para mim, se Eva poderia abominar a solidão tanto
quanto qualquer outra pessoa.
Quando dobramos a sétima esquina, Eva caminhou até um bar
cuja placa estampava um “Bar 2516”, e então se virou para mim.
— Prontinho. Caso tenha me acompanhado por aqui por
desencargo de consciência, pode ir embora agora. Estou sã e salva
em meu destino — ela declarou em um sarcasmo frio.
Ignorei-a.
— Que lugar é esse?
— Aparentemente, o único lugar onde sou ouvida.
— Tudo bem.
— “Tudo bem” o quê?
— Tudo bem, eu aceito conhecer o único lugar onde você é
ouvida.
— Eu definitivamente não estava o convidando, Hawkins. Sério,
vai embora agora.
— Hum, acho que não — eu disse, firme e sério. — Vamos, vou
acompanhá-la essa noite. Talvez eu aprenda um pouco como
escutá-la também — acrescentei, abrindo a porta de madeira do bar
enquanto continuava a ignorar uma Evangeline irritadiça.
Quando transferi a atenção para o interior do local, foi inevitável
ficar um pouco surpreso. O aparente refúgio da garota ao meu lado
era sereno e reservado. Uma iluminação escassa se fazia presente
ali, e cerca de trinta pessoas se encontravam sentadas a mesas
redondas estrategicamente espalhadas pelo pequeno lugar; todas
elas mantinham o olhar fixo no baixo palco presente mais ao fundo.
Uma pessoa recitava uma espécie de poema ali em cima.
— Que ótimo — Eva resmungou atrás de mim, irônica, mas
enfim passou pela porta. Fechei-a por trás de mim.
— O que é isso tudo? — sussurrei para ela.
Eva não me respondeu. Somente seguiu em frente, ocupando
uma mesa vazia no canto do bar que era usado para alguma
espécie de apresentação naquela noite. Mesmo sem convite, sentei
ao seu lado.
— Você vai me explicar o que é...
— Se for para ficar aqui, é para ficar em silêncio — Eva me
cortou, cruzando os braços em frente ao peito enquanto encarava o
palco.
Expirei o ar pesado pela boca, mas fiz o que me fora indicado.
Foi só então que escutei a pessoa ao palco terminando de recitar
um poema sobre a volatilidade da vida. Minutos mais tarde, quando
o finalizou, uma salva de palmas ecoou pelo local antes que outra
pessoa substituísse aquela no palco. Não prestei atenção no poema
novo, contudo, pois logo uma mulher de meia-idade apareceu
perante nossa mesa.
— Eva, querida! Nós sentimos tanto sua falta por aqui — a
mulher cumprimentou em um sussurro, porém seu tom ainda era
acalorado. Ela apertou o ombro da ruiva ao se sentar ao seu lado,
encarando-a com alguma felicidade genuína.
Eva esboçou o sorriso mais sincero que já a vira dar.
— Passei alguns meses fora. Voltei para a cidade
recentemente — ela explicou, e a mulher assentiu.
— Bem, imaginei que algo tivesse acontecido. Mas não importa
agora, estou muito feliz de vê-la aqui — a mulher disse
sinceramente, e então pareceu se dar conta de minha presença. —
E olhe só. Vejo que enfim trouxe algum convidado. Já estava na
hora — acrescentou, como se estivesse acostumada em ver Eva
sozinha ali.
O sorriso da ruiva sumiu em seus lábios diante de suas
palavras.
— Eu não o trouxe.
— Sou Tristan — apresentei-me, apesar de sua declaração. Ela
apertou a mão que eu estendi a ela em cumprimento.
— Muito prazer, Tristan. Me chamo Lyle, sou a coordenadora
do Slam.
Slam, a palavra ressoou por minha mente. Fazia sentido, então.
Mas ainda estava um pouco confuso por Eva fazer parte disso.
— Então, você também escreve, Tristan?
— Não, ele não escreve — Eva respondeu antes que eu
tivesse a chance.
— Ah. Que pena — a mulher murmurou, decepcionada, porém
logo esboçou um largo sorriso ao se dirigir à Eva. — Então, o que
acha de ser a próxima ali? Todos nós sentimos muita saudade de
suas...
— Não, Lyle — a ruiva a cortou, mais séria. — Estou aqui só
para escutar hoje.
— O quê? Mas de jeito nenhum! Você sumiu por três meses,
todos nós precisamos ouvir o que você guardou por todo esse
tempo. Não há possibilidade alguma de você não subir naquele
palco hoje.
Arqueei as sobrancelhas, assimilando a surpresa.
Aparentemente, Eva escrevia. Não pude deixar de ficar
assombrado por isso. E genuinamente curioso.
— Lyle, eu agradeço pelo entusiasmo, mas...
Lyle se levantou antes que a ruiva finalizasse seu protesto,
quando a pessoa ao palco finalizou seu poema, e anunciou que a
próxima ali seria Eva. Quando todos se deram conta da presença da
ruiva, aplaudiram em um frenesi admirável.
— Viu? — Lyle soprou, virando-se para ela outra vez. —
Ninguém aqui vai aceitar um não como resposta.
Eva trincou o maxilar, um pouco irritada, o que fez com que eu
aproximasse dela para sussurrar:
— Devo considerar essa relutância como vergonha? Você
sabe, de eu estar aqui, ouvindo-a?
Ela semicerrou os olhos em minha direção.
— Não superestime tanto o efeito que você exerce sobre mim,
garoto.
— Bem, não vejo outro motivo pelo qual você está hesitante em
subir no palco hoje, já que aparentemente você já o fez diversas
vezes antes de mim.
— Eu não hesito.
— Parece-me que essa é a primeira vez que você me dá
provas do contrário.
Eu acabava de deixar Eva puta. E mais centrada, ao menos.
Ela desviou o olhar para o palco, e pude jurar que faíscas de
impiedade dançaram por seus orbes. Por fim, ela apenas suspirou.
— Tenho que admitir, você jogou bem, garoto. Creio que eu não
esteja te dando um bom exemplo — Eva admitiu, ciente do que eu
fizera.
Somente quando ela pegou uma pequena caderneta de sua
bolsa e se levantou que me deixei me sentir triunfante de fato.
Enquanto Eva se dirigiu ao palco, Lyle ocupou o lugar em sua
cadeira ao meu lado e questionou:
— Então, você é amigo dela?
Ponderei por um momento.
— Sinceramente, não tenho ideia.
Ela soltou um riso nasalado.
— Pelo que já conheço daquela garota, imagino que, se ela
permitiu que você viesse até aqui, é porque ela ao menos deseja
que a resposta seja positiva. Talvez isso signifique algo para você.
Bem, eu definitivamente esperava que Lyle estivesse certa.
Porém, não me deixei iludir tanto, e foi por isso que fiz a seguinte
pergunta repentinamente, mudando de assunto:
— Ela é boa? Como escritora, digo.
— Honestamente?
Assenti.
— A melhor que já conheci.
Fiquei ainda mais ansioso diante daquela resposta. Estava
quase desesperado para ouvir o que Eva proferiria naquele palco,
para falar a verdade.
Quando Evangeline pegou o microfone e cumprimentou a
pequena plateia sem desinibição alguma, percebi que todos já se
encontraram inertes no palco à sua frente. Assim como eu.
Prestei toda a atenção do mundo em Eva enquanto abria sua
caderneta, procurando por algo ali com olhos atentos e veementes.
Foi inevitável prender todo meu ar quando ela voltou a encarar o
público com íris tão pujantes ao proferir as seguintes palavras:
— Você me protegeria?
Eva me lançou apenas um olhar antes de transferir a atenção à
sua caderneta.
— "Se eu estivesse sozinha e despreparada em um mundo
mau, um mundo terrível que faz inocentes sofrerem e deixa impune
os culpados, um mundo em que não há salvação, não há perdão,
não há absolutamente nenhuma esperança, um mundo em que há
somente solidão, caos e trevas, você me tiraria dele? Você me
levaria para longe, o mais longe possível, até parecer um lugar
distante e irreal?
Se eu estivesse morrendo, se cada segundo pudesse ser meu
último, se a minha existência, já insignificante, passasse a ser não
existente, passasse a ser o nada, você daria um jeito de bancar
Deus? Você seria o meu Deus?
E se eu estivesse tendo um sonho, um pesadelo horrível, o pior
dos pesadelos, você me acordaria? Você chamaria pelo meu nome,
abraçaria meu corpo morbidamente frio e diria que tudo vai ficar
bem mesmo se soubesse que isso não é verdade?
Mas e se eu não estivesse simplesmente tendo um pesadelo?
E se eu estivesse em um pesadelo?
E se em meu sonho horripilantemente real, eu estivesse em
uma roda gigante da angústia que gira e gira e gira, sem nunca
parar, sem nunca acelerar ou desacelerar, sem nunca mudar o
sentido ou direção, você me tiraria desse movimento constante e
frequente? Você o pararia por mim? Você o pararia para mim?
O que você faria?

Bem, eu sei o que você não faria.


Você não me protegeria, pois, no momento em que você se desse
conta, eu já estaria inevitável e irrevogavelmente perdida. Não
importa como, onde ou quando, eu já teria voltado ao completo
vazio do qual ninguém poderia me proteger, aquele que esteve
sempre à espreita, seja em meus sonhos ou em minha realidade.
Aquele que sempre esteve me esperando, aquele que não se
cansaria até tomar tudo de mim, até tornar minha vida na completa
e mais pura escuridão."
Quando Eva acabou de proferir aquelas palavras tão vigorosas,
lancinantes e sombriamente fascinantes, todos da plateia se
levantaram para aplaudi-la. Com uma única exceção.
Não consegui me colocar de pé, não consegui esboçar reação
alguma diante de seu poema. Ainda estava imerso na tentativa de
assimilar tudo que eu acabara de ouvir, tudo o que Eva era.
Ela não era tão resoluta quanto gostava de deixar as pessoas
ao seu redor acreditarem. Não era infalível, decerto não era sempre
tão intrépida. Era apenas... humana.
Uma pessoa comum com seus medos e pensamentos
incontornáveis. De fato, era solitária, e podia se sentir apavorada
com isso como qualquer um.
Quando Eva chegou à mesa, eu ainda estava um tanto quanto
absorto. Assustado. Fascinado.
Lyle a encheu de elogios quando Eva se sentou, tão admirada
quanto eu. A ruiva a agradeceu, mas não disse muito mais até que a
mulher se despedisse e deixasse a nossa mesa, após alguns
minutos.
Evangeline não olhou em minha direção. Não soube dizer se
ela estava arrependida por ter se deixado ser tão transparente com
alguém próximo a si. De todo modo, se fosse mesmo o caso,
duvidava que ela admitiria que tinha se equivocado, então eu não
lhe fiz pergunta nenhuma quanto a isso.
Quando a pessoa seguinte começou a recitar seu poema no
palco, a ruiva pegou um maço de cigarro e o estendeu para mim.
Não disse nada ao fazê-lo.
Peguei um cigarro porque sentia que precisava da nicotina, e
ela fez o mesmo pelo provável mesmo motivo. Eva acendeu meu
cigarro com seu isqueiro antes de acender o dela.
Em um silêncio que agora me parecia ser mais reconfortante
para nós dois, escutamos o restante da dezena de poemas que
foram recitados pela hora seguinte.
No fim, a plateia escolheu o poema de Eva como o vencedor da
noite. E quando chegamos em nossas respectivas casas, antes que
entrássemos, eu me dirigi a ela pela primeira vez desde que subira
no palco.
— Eva?
Ela já estava na porta de entrada de sua casa, porém não
seguiu com seus passos. Seu corpo instintivamente respondeu ao
meu chamado, fazendo com que ela transferisse o olhar para mim
de imediato.
— Eu faria muito mais do que você poderia cogitar para
protegê-la.
Eu e minha família estávamos em um jantar organizado pelos
Sinclair, uma outra família pioneira da exportação de gás natural da
região. Eram pessoas importantes na cidade e até no país, e,
fazendo jus às regras implícitas da posição que ocupavam na
sociedade, ocasionalmente promoviam eventos para firmar laços
com sócios de outras companhias de grande significância. Como
nós, os Christie também se incluíam nisso.
Evangeline, surpreendentemente, tinha vindo acompanhar seus
pais e irmã. Ela se encontrava do outro lado da mesa naquele
momento, e não tínhamos feito muito mais do que nos encararmos.
Ela arqueava as sobrancelhas para mim toda vez que me pegava
fitando-a — que era quase sempre.
Fazia poucos dias desde que tínhamos nos visto pela última
vez, a noite em que ela me dera uma pequena amostra de quem
realmente era.
Honestamente, aquele fora todo o tempo necessário para que
eu pensasse em… tudo. E eu não estava mais irritado em algum
aspecto sequer, ainda que eu estivesse um pouco inconformado
com o rumo que as coisas tomaram para Freya.
De todo modo, eu não culpava Eva por completo pelos
sentimentos da menina terem sido feridos. Era eu quem não deveria
ter permitido que ela tivesse sentimentos por mim para serem
machucados, de toda forma. Todos nós cometíamos erros, e não
achava que eu estava em posição de julgá-la.
Evangeline tampouco parecia chateada comigo, na verdade.
Ela não era alguém exatamente fácil de ser lida, porém, o olhar que
ela fixava em mim não carregava uma fração sequer de mágoa ou
cólera. Pelo contrário, ele era mais límpido, estranhamente
purificador.
Pouco antes de o jantar ser servido, peguei o celular em meu
bolso e entrei no chat com Evangeline.
Eu: Oi.
Observei a ruiva pegar seu celular sem pressa alguma e um
fantasma de sorriso dançando por seus lábios quando ela viu minha
mensagem. Ela não me encarou ao digitar a resposta.
Evangeline: Oi.
Eu: Devemos esperar por alguma surpresa hoje?
Evangeline: O que está tentando dizer?
Eu: Que, se você aceitou acompanhar seus pais nessa noite, é
porque possui um motivo pessoal. Estou certo?
Foi só então que ela me fitou por um par de segundos. Ela
sorria mais descaradamente ali.
Evangeline: Não está errado.
— Com quem está conversando logo agora, Tristan? — minha
mãe disse baixinho para mim, desaprovando o fato de eu estar
ignorando todas aquelas pessoas importantes ao meu redor.
— Com uma amiga — foi tudo que eu respondi, e ela expirou o
ar pesado pela boca antes de se virar para meu pai e voltar para a
conversa que mantinha com outros convidados.
O celular logo vibrou em minha mão.
Evangeline: Uma amiga?
Não demorei a chegar à conclusão de que ela era esperta o
suficiente para ter feito a leitura labial.
Evangeline: Mesmo depois de tudo?
Eu: Sua fé em mim é tão escassa para ter cogitado o contrário?
Nós nos encaramos. Eva estava mais séria agora.
Ela não me respondeu, e então digitei algo em esclarecimento.
Eu: Não tenho ressentimentos de você, Evangeline. Não
poderia nem se quisesse.
Evangeline: Não que eu tenha feito algo que poderia provocar
qualquer ressentimento…
Soltei um riso nasalado, e logo vi que ela também sorria. Não
demorei a voltar a ficar sério, contudo.
Eu: Eu ainda penso que você poderia ser minha amiga, se
quisesse. Eu gostaria muito disso, na verdade.
Evangeline: De uma segunda chance para nós dois?
Eu lhe lancei o olhar, e deixei que ela tivesse sua total atenção
em mim antes de assentir uma vez. Eu queria que ela visse que eu
estava sendo sincero.
Evangeline me fitou por apenas mais algum tempo antes de
desligar o celular e apoiá-lo em cima da mesa. Acabei fazendo o
mesmo, e, em um par de minutos, o jantar enfim foi servido por meia
dúzia de funcionários.
Foi então que o anfitrião, ao centro da mesa, se colocou de pé,
chamando a atenção dos convidados para um brinde. Ele elevou
sua taça e disse:
— Vou ser breve, porque, honestamente, eu estou realmente
faminto aqui, e o porco parece estar suculento. — Risadas ecoaram
pela mesa quase que de imediato, provocando um sorriso no
homem grisalho. — Só preciso agradecer a cada um de vocês por
terem comparecido a esse jantar. Eu, mais do que ninguém, sei o
quão ocupados são, como trabalharam para conquistar tudo que
possuem hoje, então me sinto extremamente honrado de terem me
presenteado com um pouco do tempo de vocês. Eu sinto orgulho do
quão dedicados todos vocês são em seus objetivos.
Travei o olhar em Eva, que revirou os olhos para mim. Ela sabia
tanto quanto eu que a maior parte dos ali presentes havia herdado
as companhias que possuíam hoje, inclusive nossos pais.
— Também me sinto grato por ter amigos como vocês, cujos
conselhos posso confiar e com quem posso contar sempre. —
Desde que outros também tenham benefícios com os pequenos
favores, claro. — Então, meu mais sincero “obrigado”. Um brinde à
presença de cada um nessa mesa. — O homem ergueu sua taça,
assim como os demais em resposta.
O homem se sentou então, e todos fizeram menção de
começarem a se servir. Evangeline, entretanto, se colocou de pé
rapidamente, chamando a atenção de todos ali. Seus pais
arregalaram os olhos nela de imediato. Até eu o fiz, inevitavelmente.
— Com a licença do anfitrião, eu também gostaria de propor
um brinde — Eva disse, sorrindo para o homem, que assentiu de
imediato, nem mesmo cogitando tudo que decerto estava por vir. —
Bem, antes de mais nada, gostaria de me apresentar: sou uma
Christie. Essa informação já é mais que o suficiente para vocês, não
é?
Todos soltaram um risinho, como se a ruiva realmente tivesse
feito uma piada ali.
— É, foi o que eu pensei. Um sobrenome diz muito a nosso
respeito. Ao menos em nosso mundo — Eva murmurou, esboçando
um sorriso afiado. — Afinal, duvido muito que eu estaria aqui caso
carregasse um sobrenome comum como “Smith” ou “Jones”, não
importando o quão esforçada eu fosse. O quão ocupada, dedicada
eu fosse, ou se já tivesse trabalhado por mais da metade de minha
vida. Porque, no fundo, não são esses valores que importam para
cada um de vocês. A única ligação entre todos nessa mesa, na
verdade, é o poder que os sobrenomes carregam, poder este que,
em sua grande maioria, não foi conquistado; foi herdado. E, ainda
assim, cada um aqui se orgulha de tal poder como se tivessem de
fato batalhado tanto por eles, como se não tivessem o mantido a
custas de um trabalho de engrenagens há muito já ordenadas por
um sistema injusto. Como se merecessem mais esse poder do que
a maior parte das pessoas; arrisco dizer que, para cada um aqui,
mais do que a pessoa ao seu lado.
Levei a mão à boca, mas não por estar chocado com tais
palavras, porque eu não estava. Eu apenas estava segurando o
riso, porque os olhares nos rostos de todos ali era impagável.
— Ok, não vou me prolongar tanto mais porque, como o
anfitrião bem disse, o porco parece estar suculento, então… Um
brinde aos sobrenomes, por significarem muito mais do que
deveriam. Sorte a sua e azar de outros.
Evangeline ergueu sua taça e, sem se importar que ninguém a
tivesse acompanhado, engoliu o líquido ali de uma só vez antes de
simplesmente girar os calcanhares e deixar o recinto. Seus pais
estavam atordoados como todos os outros, mas sua mãe ao menos
se esforçou para pedir desculpas aos demais por aquilo.
— Que garotinha pirada, por Deus. Que vexame — minha mãe
sussurrou para mim, porém parecia se divertir com tudo aquilo. Se
satisfazia com o estado do casal rival à sua empresa. Assim como
meu pai e muitos ali, eu suspeitava.
Era um jantar de farsas, afinal.
Não respondi à minha mãe, ao invés disso, quase que
involuntariamente, me coloquei de pé, e também não importei com
todos os olhares desviados para mim.
— Tristan…
Não esperei para ouvir o que quer que minha mãe tivesse a
dizer. Somente segui o caminho pelo qual Eva tinha tomado e,
quando passei pela porta de entrada do casarão, encontrei a ruiva
recostada na parede ao lado, como se…
Como se me esperasse.
— Oi. — O sorriso que ela esboçou foi mais sincero do que
qualquer um que ela dera lá dentro. Assim como o meu.
— Oi.
— Sou Evangeline. Só Evangeline. — Ela ergueu a mão em
cumprimento para mim, e eu soltei um breve riso antes de apertá-la.
— Sou Tristan. Só Tristan — eu soprei, pouco antes de me
recostar ao seu lado. — Sabe, o que você fez lá dentro foi uma das
coisas mais incríveis que eu já presenciei. Você deve ser mesmo
corajosa para provocar pessoas daquele nível naquela maneira.
Alguém que vale a pena se conhecer.
Ela deu de ombros, fingindo estar tímida.
— Você acha? — ela retrucou, piscando os olhos. — Isso quer
dizer o que? Que você gostaria de ser meu amigo?
— Mais do que deveria.
Ela riu, feliz.
— Tem certeza? Porque, devo alertá-lo, eu não sou uma
pessoa exatamente fácil de se conviver. Eu ainda posso testá-lo
ocasionalmente, e provavelmente te levarei ao limite mais vezes do
que você gostaria.
— É, eu posso imaginar — eu respondi, arqueando as
sobrancelhas. — Mas, se quer saber… Algo me diz que pode valer
a pena. É quase um pressentimento impossível de se ignorar.
— É?
— É. — Assenti.
— Tudo bem, então.
— “Tudo bem” o quê?
— Tudo bem, podemos ser amigos.
Eu ainda sorria, mas fiquei um pouco mais sério ali ao observar
cada traço de seu rosto. Ao notar a diversão singela explícita em
suas feições, o cabelo ruivo e rebelde que dava um indício de toda
travessão presente em seu interior, o sorriso arrebatador e
genuíno…
— Então, já que somos amigos… Se eu te perguntar algo, você
responderia com sinceridade? — ela sussurrou após um tempo que
não foi tão longo quanto deveria.
— Sempre.
— Em que está pensando agora?
Fitei seus orbes escuros, que estavam tão intensos como
sempre, enquanto procurava pela resposta verdadeira para sua
pergunta. Eu não demorei a achá-la.
— Que você é doentiamente bonita, Evangeline.
— E isso é bom ou ruim?
Um canto de meus lábios se retorceu para cima
involuntariamente.
— Honestamente? Preciso de algum tempo para chegar a uma
conclusão, porque não poderia estar mais perdido agora.
Tudo que ela fez foi sorrir.
— Não tenhamos pressa, então.
E, por fim, ela pegou em minha mão e me guiou para longe
daquele lugar horroroso, e não tive ressalva alguma em segui-la.
As coisas entre mim e Eva tinham evoluído, de alguma forma.
No dia seguinte à noite do jantar, ela subira até meu quarto pelo
telhado.
Eva passara a tarde comigo, e não fizemos nada além de
conversar. A partir daí, passamos a nos encontrar todos os dias,
com exceção daqueles poucos em que ela sumia sem dar
satisfação alguma, apenas para continuarmos a dar vida a diálogos
tanto fúteis quanto mais profundos. Era quase como se Lyle
estivesse certa. Evangeline parecia querer um amigo; mais do que
isso, desejava ser ouvida. Fiquei contente por, aparentemente, ela
ter chegado à conclusão, naquela noite do Slam, que eu poderia ser
um bom receptor.
Talvez, até que ela poderia confiar em mim.
Naquele dia em especial, nós tínhamos ido a um pequeno lago
que ficava a alguns quilômetros de distância de Seattle. Eu o achei
no Google Maps, e sugeri a Eva que o visitássemos. Ela se
prontificou no mesmo momento, e então, ali estávamos, amparados
pela grama macia e verde, de frente para a água.
Já havia algum tempo que cessáramos a conversa. Estávamos
em silêncio, apenas observando o lugar ao nosso redor. Era
confortante. Só a presença daquela mulher me bastava como
distração.
— Sabe, a vida pode ser difícil, mas é sempre bonita — ela
enfim murmurou após algum tempo. Estava deitada comigo sentado
ao seu lado, atentando-se ao movimento da água diante de nós e ao
céu limpo e azulado.
O comentário aparentava ter sido destinado mais a si mesma, e
foi por isso que não a respondi. Ao invés disso, inevitavelmente,
questionei:
— É por isso que você é tão apegada a ela?
Pela primeira vez em algum tempo, seu olhar encontrou o meu.
Ela ponderou minha pergunta por um momento, e então respondeu:
— Possivelmente.
— E também é por isso que você teme o fim dela?
Dessa vez, Eva arqueou as sobrancelhas, um pouco surpresa
pela pergunta. Eu provavelmente não devia tê-la feito, afinal, como
mencionado, nunca fizemos alusão alguma ao seu poema.
No entanto, parecia ter sido impossível deixar aquela
oportunidade passar. Eva me deixava genuinamente curioso ao seu
respeito. Ela era um enigma que eu ansiava desvendar.
Eu já entendera que ela tinha uma obsessão com a morte. Ela
ficara explícita pela escuridão que a ruiva citara na noite de Slam.
Após escutar seu poema, também cheguei à conclusão de que, na
primeira noite em que saímos juntos, Eva não estava apenas
brincando. Uma parte de si esperava mesmo obter alguma resposta
sobre o pós-vida.
Eu esperava que, àquela altura, Eva já se sentisse um pouco
mais confiante não só sobre mim, mas também sobre si mesma,
para se permitir ser clara a respeito de seus pensamentos e
sentimentos.
— Eu não sei — respondeu por fim, surpreendentemente.
Estranhei um pouco a declaração, pois não era de seu feitio
assumir que podia se confundir com alguma pergunta.
— Acho que o desconhecido me aflige, de certa forma —
continuou, desviando o olhar enquanto se sentava.
Também refleti um pouco sobre aquilo por um tempo.
— E você pensa mesmo muito nisso? — balbuciei, ainda
fitando-a.
Eva soltou um riso nasalado.
— Pensei que era eu quem fazia as perguntas, garoto.
— Bem, por isso mesmo, talvez seja sua vez de responder
algumas de minhas perguntas. Não acha que eu já respondi muitas
das suas?
— Você nunca tem respostas para meus questionamentos,
Tristan — declarou simplesmente. Foi a minha vez de soltar um
breve riso.
— Ok, mas, ao menos, eu penso sobre eles. Até demais. E dou
meu melhor para achar as respostas — constatei sinceramente. —
Vamos lá. Me fale um pouco sobre o que se passa em sua mente,
Eva. Eu quero ouvi-la. Estou aqui para ouvi-la, não vê?
Evangeline permaneceu silêncio por alguns segundos. E esses
segundos logo se transformaram em intermináveis minutos.
E, quando achei que ela não me responderia, admitiu:
— Ultimamente, penso muito sobre isso, sim. Principalmente
quando estou sozinha.
A ruiva ainda não me encarava ao continuar:
— Sei que meu poema entrou em sua cabeça. Mas precisa
entender que, o que está nele, não é tudo. Eu o escrevi quando
estava fora nesses últimos meses, quando meus pais me obrigaram
a viver em seus termos e ignoraram minhas necessidades mais
primitivas de ser livre, as mesmas que se sobressaem a quaisquer
outras emergências. Foi um período meio obscuro para mim,
suponho. Provavelmente estava me sentindo mais sozinha que o
habitual. Momentos assim são danosos para o nosso senso, não
acha?
Eu não tinha dúvidas daquilo.
Finalmente desviei o olhar de Evangeline para o céu. Onde
pássaros de diferentes espécies voavam. Onde vida se fazia
presente.
— O que é o resto?
— Como?
— Você disse que o que está no seu poema não é tudo. O que
você pensa sobre a morte além da escuridão?
— Muito, provavelmente. Eu penso em muito.
Então eu pensei que aquela resposta vaga seria a única coisa
que eu obteria de Eva, mas, para minha contínua surpresa, ela
começou:
— Se pesquisarmos qual o significado da morte no Google, ele
dirá que é o fim definitivo da vida humana, mas, se procurarmos na
bíblia, por exemplo, o conceito pode ser diferente, como em Gênesis
2.17, quando Deus dissera a Adão: “... mas da árvore do
conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em
que dela comeres, certamente morrerás”. Acontece que, quando
Adão comeu a fruta, ele não perdeu sua existência, entende? A
morte aí assume um significado diferente.
“Também há outra passagem sobre seu conceito na parábola
do filho pródigo em que diz: ‘Entretanto, era preciso que nos
regozijássemos e nos alegrássemos, porque este teu irmão estava
morto e reviveu, estava perdido e foi achado’. O filho, mais uma vez,
não estava inexistente, ele estava simplesmente vivendo em
pecado.”
Eva fez uma curta pausa, como se soubesse que eu
necessitava de algum tempo para processar todas aquelas
informações.
— Já no alcorão, há as passagens: “Ninguém entrará no
Jannah exceto pela misericórdia de Deus”, e “Então, aqueles, cujos
pesos em boas obras forem pesados, esses serão bem-
aventurados. E aqueles, cujos pesos forem leves, esses se
perderão a si mesmos; serão eternos na Geena”. Na percepção
islâmica, Jannah é a definição de paraíso e Geena, de inferno. Suas
crenças também abrangem a vida após a morte, portanto —
explicou, cautelosa e precisamente. De um modo quase fascinado.
— No espiritismo, a morte pode significar uma passagem do mundo
tridimensional para um mundo de dimensões diferentes do nosso.
Ela seria como a altura para um ser bidimensional que está preso
em um quarto de paredes fechadas, porém sem teto. A única
maneira de escapar dali seria escalando, mas ele não sabe disso,
porque conhece apenas duas dimensões, que são a largura e o
comprimento.
“Agora, sobre a ciência: ela é cética quanto à vida após a
morte, mas há um postulado de Lavoisier, o pai da química
moderna, que é amplamente disseminado em todas escolas, em
que se diz: ‘Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma’. Se
nada se perde, como a morte pode ser realmente o fim da vida?
Está entendendo a contradição?”
Ela virou o rosto em minha direção, chamando minha atenção
para si novamente.
— Portanto, há tantas e tantas coisas em que pensar. Há
inúmeras teorias sobre a morte que começam definindo a vida, pois
o mistério por trás de um está entrelaçado ao mistério do outro. Há
hipóteses que temos alma, que somos energia, que somos apenas
frutos de atividades cerebrais perfeitamente funcionais.
Honestamente, na maior parte dos dias eu descarto essa última
possibilidade, porque deve haver mais por trás de nossas vidas
além de lógica e ciência. Já parou para pensar em quantas e
quantas coincidências tiveram que acontecer para estarmos aqui
hoje? Elas são infinitas. A explosão do universo, a junção de
partículas específicas de nosso planeta que permitiram a vida, os
encontros consecutivos de nossos incontáveis ancestrais na fração
de momento e lugar corretos... Somente um segundo a mais que
algum de nossos antepassados poderia ter levado para chegar ao
seu destino teria a capacidade de atrapalhar toda a linha do tempo
de nossa ancestralidade, nossa árvore genealógica poderia ter sido
alterada por completo pelo Efeito Borboleta, impedindo, assim,
nossa existência. Então, não acho que seja só sorte fundamentada
estarmos aqui hoje. Isso me parece tão... impossível. Talvez,
alguém ou algo tenha conduzido isso, seja Deus ou qualquer outra
força que não pode ser conhecida neste plano, apenas... no outro.
Que seria após a morte.
Honestamente, àquela altura, eu já estava sem palavras.
Parecia-me um tanto quanto assustador o afinco com o qual Eva
pensava sobre tudo. Também era sombriamente admirável.
— Sendo mais direta agora: eu realmente penso em muito, mas
não tenho uma opinião formada sobre o pós-morte. Há crenças que
me parecem mais plausíveis que outras, porém nada mais que isso.
Você provavelmente já entendeu que suposições não me bastam.
Espero sempre por respostas concretas, anseio por elas. A pergunta
acerca do outro plano, contudo, é o único questionamento que não
posso ter alguma explicação certeira acerca de sua explicação.
Talvez seja por isso que eu me sinta tão aflita diante da morte.
Somos seres que nascem com um desejo natural de
esclarecimento, Tristan. Às vezes acho que esses instintos recaíram
sobre mim com uma intensidade ainda maior que o comum.
Eva não mais me observava. Ela me analisava.
Por longos instantes, a ruiva se manteve inerte em mim, e
também me perdi um pouco nela enquanto refletia sobre tudo que
havia me sido dito. Quando a vi esboçar um sorriso tão
incomumente sincero e genuíno, entretanto, tudo em que pude me
concentrar foi nela por um momento, e não em suas palavras.
— Você está me ouvindo de verdade, não está? — Sua voz
soara tão vívida, quase radiante. Era um tom tão incomum para ela,
mas, ainda assim, caía tão bem em si.
O sorriso que se esboçou entre meus lábios foi tão legítimo
quanto o seu, se não mais.
— Eu sempre estou ouvindo-a de verdade, Eva.
Um curto silêncio se estabeleceu então, e foi reconfortante.
Somente me manifestei quando me senti preparado para isso.
— Então, se você tem opiniões sobre um outro plano, deve
também pensar um pouco no juízo final. Não necessariamente o da
bíblia, mas em alguma espécie de julgamento acerca de seus atos
nesse plano que determinaria a sina de sua essência.
Ela não concordou nem discordou, porque eu não fizera
pergunta alguma.
— Não o teme?
— Por que temeria?
— Não se considera uma pecadora?
— Não, não exatamente. Acredito que somos julgados de
acordo com a dor que causamos, assim como pela paz que
trazemos. Honestamente, eu prefiro pensar que cometo erros, mas
nunca com intenções maléficas, e as consequência de minhas
decisões podem ser mais benéficas a longo prazo do que
torturantes. Eu não faço nada além de usufruir da vida da melhor
forma possível e tentar fazer com que as pessoas ao meu redor
façam exatamente o mesmo. Considero que meus atos me tornam
merecedora do melhor presente que me foi dado. Não seria justo
ser punida por isso, desde que o melhor para mim não signifique o
pior para as pessoas próximas a mim.
— Acha que iria para o Paraíso, se realmente houvesse um,
então?
— Não posso responder essa pergunta porque não creio que
seja tão simples. Como eu disse, eu cometo erros. Eu sei disso,
embora vocês pensem o contrário. E, embora eu acredite que não
seria punida pelas decisões que tomei em prol de viver, deve haver
algum preço pela dor mais duradoura que causei durante minha
existência, mesmo que não tenha sido intencionalmente.
Ela suspirou, voltando a encarar o lago.
— Eu não sou uma pessoa ruim, garoto. Confie em mim.
— Eu nunca achei que fosse.
Ela não me respondeu, e então eu deitei no gramado verde,
lançando o olhar para o céu de um azul vivo. Eva não demorou a
fazer o mesmo, colocando a cabeça logo ao meu lado.
Senti-me feliz ali. Naquele lugar, com sua companhia.
Estranhamente, eu estava quase... livre. Achei que tudo isso se
devia ao fato de eu estar me apaixonando por aquela mulher.
— Evangeline?
— Hum?
— Obrigado por falar comigo.
Ela entendeu o que havia por trás de minhas palavras. E foi por
isso que respondeu após um tempo que me pareceu mais curto do
que deveria:
— Obrigada por me ouvir, garoto.
— Sua sala será bem... aqui — meu pai apontou para uma
porta do lado de sua própria sala, minutos após chegarmos ao
último andar do prédio onde ele trabalhava. De seu prédio. —
Começaremos com uma carga horária mais leve, de seis horas
diárias. Seu curso será matutino, então você ficará com uma hora
de almoço e então virá para cá. Sairá às seis da tarde, então estou
certo de que terá muito tempo durante a noite para adiantar seus
trabalhos da faculdade.
Nós estávamos conversando sobre meu estágio, que teria
início em pouco mais de um mês, com o começo de minhas aulas.
Bem, na verdade, meu pai estava falando, e eu somente estava
ouvindo. Ele já parecia ter delineado todos os planos para meus
próximos quatro anos sem precisar de nenhum auxílio de minha
parte, então minha manifestação não parecia mesmo se fazer
necessária.
— Claro que precisaremos organizar alguma papelada para
que você comece o estágio na empresa tão cedo dessa maneira,
mas isso não será nenhum empecilho tão desafiador. Em pouco
mais de uma semana, seu lugar já vai estar assegurado aqui,
entendeu? — ele continuou quando eu o segui para sua sala. Ele se
sentou atrás de sua mesa e indicou silenciosamente para que eu
ocupasse a cadeira à sua frente. — Faremos um contrato de três
anos para o estágio não-obrigatório. Depois faremos de um ano
para o obrigatório, e, então, um outro contrato para trabalho integral.
Nesse ritmo, você poderá se tornar um sócio da empresa talvez em
oito anos. Claro que precisará de atividades extracurriculares para
que...
As palavras rigorosas continuaram fluindo de sua garganta de
modo quase interminável, mas parei de prestar atenção nelas.
Tudo que eu conseguia pensar era que estava tendo apenas
uma amostra de como seria minha vida de acordo com os termos do
meu pai. Eu continuaria a acatar imensuráveis ordens, minha vida
decerto giraria em torno de papeladas e números, e eu sequer teria
outras perspectivas senão me tornar sócio daquela empresa.
Honestamente, semanas atrás, eu achava que continuaria a
escutar meu pai ali, e, embora estivesse apavorado tanto quanto
agora, eu não diria nada porque acharia que não haveria o que
dizer.
Contudo, agora, não era aquele caso. E foi por isso que me vi
falando repentinamente:
— Não.
Meu pai comprimiu os lábios de imediato, nitidamente confuso.
— O quê?
Inspirei fundo. Eu não estava habituado a manifestar minhas
opiniões quando isso significaria escutar ainda mais censuras e
discursos árduos de minha família. Mas achei que já permanecera
em silêncio por tempo demais para meu próprio bem. Já era hora de
eu começar a tomar algumas decisões antes que fosse tarde
demais.
— Não — eu me forcei a repetir. Minhas mãos tremiam um
pouco àquela altura. — Não vou fazer nada disso. Eu não quero
nada disso.
O homem à minha frente ficou estático por um momento, e
então, surpreendentemente, ele riu.
— Você está de brincadeira com a porra da minha cara, certo,
Tristan?
— Não, pai. Eu não estou brincando aqui. Suspeito que nunca
tenha falado algo tão sério em toda minha vida, na verdade — eu
respondi entredentes. — Eu não quero trabalhar com você.
Certamente não quero fazer o que você faz, não quero me tornar
você em um futuro breve. Sequer quero cursar Economia.
Meu pai não ria mais. Pelo contrário, seu maxilar se encontrava
fortemente trincado e seu rosto começava a ficar vermelho.
— E o que diabos você quer dizer com isso? Que não quer ir
para a faculdade? Que não quer aceitar os privilégios que tem, os
mesmos privilégios que eu batalhei para dar a você? Que não quer
ter a merda de um futuro, inferno?
— É claro que eu quero ter um futuro. Mas não quero que essa
empresa se encontre nele.
— E o que você acha que fará, então? Vai viver sob meu teto
sem estudar, sem trabalhar, sem arcar com a droga das suas
obrigações? — Àquela altura, ele já berrava dentro de sua sala. Não
me importei muito com isso, contudo. Estava mais preocupado com
o amanhã.
— Não ficarei sem trabalhar. Já tenho dezoito anos, tenho
consciência de que você não tem mais responsabilidades comigo.
Vou arranjar algum emprego, mas não vou começar na faculdade
por agora. Preciso pensar no que quero fazer, preciso me encontrar,
porque acho que nunca tive abertura para fazê-lo até agora.
— Que besteira do...
— E essa empresa não é minha obrigação, pai — eu cortei-o.
— Nunca foi.
— Chega. — Ele se levantou abruptamente de sua cadeira, e a
palma de sua mão encontrou a mesa em um gesto brusco,
estrondoso. — Você não está falando sério. Eu não permito isso,
está me escutando? Que você jogue fora seu futuro por pura
imaturidade.
Meu coração se encontrava assustadoramente acelerado, mas
me mantive firme. Sequer hesitei em também levantar da cadeira e
dizer em um tom baixo ao homem que deveria me apoiar, não me
reprimir:
— Sinto muito. Eu já fiz minha escolha.
E então girei os calcanhares para seguir até a saída, mas parei
quando meu pai exigiu:
— Não dê as costas para mim, garoto.
Permaneci no mesmo lugar somente até responder:
— Não sou mais um garoto, pai. Não a partir de hoje.

Subir em um telhado era mais difícil do que Eva me levara a


acreditar. Perdi o equilíbrio em cima das telhas exatamente quatro
vezes, mas, com alguma sorte, consegui chegar ao meu destino
intacto.
Quando bati na janela de um quarto específico da casa ao lado
da minha, tive que me segurar firme no parapeito para me manter
firme ali. Um par de minutos se passou, e comecei a ficar um pouco
apreensivo de Eva não se encontrar ali. Na verdade, era uma
possibilidade concreta, pois ela sumira nos últimos três dias, sequer
me fornecendo informação alguma de seu paradeiro.
Eu já tinha começado a me perguntar se arriscar minha vida ao
subir até ali tinha sido em vão quando a janela enfim foi aberta.
— Finalmente decidiu mostrar suas habilidades de Homem-
Aranha, foi? — A voz de Eva fez com que um alívio imediato se
alastrasse por meu interior.
— Você não estava respondendo minhas mensagens —
respondi enquanto suas mãos esguias me ajudavam a adentrar em
seu quarto. — E suspeito que seus pais não me deixariam subir de
modo algum pelas escadas caso eu tocasse o interfone, então... o
telhado foi a única alternativa restante. Eu precisava te ver.
— Tudo bem, e o que é tão urgente para precisar ser dito ao
ponto de fazê-lo ser tão impulsivo, para variar um pouco?
— Precisava te dizer que... eu fui honesto com meu pai hoje,
talvez pela primeira vez em minha vida — eu declarei quando já me
encontrei de pé em seu quarto, enquanto ela fechava a janela por
trás de mim.
Analisei seu quarto por um momento.
Era uma bagunça. Papéis se encontravam por cada canto do
local; alguns estavam amassados, jogados ao chão, e outros,
pregados nas paredes. Também havia livros espalhados por toda
parte, e também alguns cadernos. Soltei um breve riso, porque
aquele parecia mesmo ser o habitat natural de Eva.
— Eu lhe disse que... — E, quando enfim me virei para a ruiva
e a analisei com mais atenção pela primeira vez, as palavras
fugiram de minha mente, porque me deparei com um de seus olhos
inchados. Sua esclera estava ferida, vermelha.
Sua pele também estava estranhamente pálida. Mais que o
normal.
— Eu estou bem — ela disse apenas diante de meu silêncio
súbito, um pouco impaciente. — Continue. — Eva passou por mim e
se sentou em sua cama.
Fiquei sem reação por um instante, porque um sentimento
terrivelmente angustiante me domou por completo. Forcei-me a
fechar os olhos, apenas para não perder a maldita cabeça ali.
Inspirei fundo e expirei o ar pela boca, sentindo meu coração se
acelerar muito mais do que qualquer momento anterior naquele dia.
Engolindo em seco por fim, puxei a cadeira de sua escrivaninha ao
meu lado e me sentei nela.
Não me senti pronto, no entanto, para dizer qualquer coisa. E,
diante daquele silêncio, Eva exalou um suspiro de modo quase
irritadiço.
— Coisas ruins acontecem a todos nós, absolutamente todos
os dias. Acho desnecessário nos deixarmos afetar tanto por elas.
Agora, você vai acabar de dizer o que veio dizer de uma vez ou
prefere sair para se recompor?
Ignorei-a, porque não conseguia pensar em outra coisa senão
no meu estranho e tão intenso desconsolo por Eva morar sob um
mesmo teto de um homem que nunca deveria ter tido filhos caso
não estivesse disposto a aceitá-los como fossem.
Queria mais do que tudo evitar que a mulher à minha frente
tivesse de enfrentar a ira de Richard Christie mais uma vez, porque,
surpreendentemente, eu já me importava com ela. Possivelmente,
mais do que eu o fazia em relação à maior parte das pessoas de
minha vida, embora, àquela altura, fizesse apenas pouco mais de
um mês que nos conhecêssemos. Era assustador o efeito que ela
causava sobre mim, mas também era inevitável.
— Tudo bem — ela murmurou por fim, levantando-se de sua
cama e caminhando até sua janela. — Acho que não há
necessidade alguma de você permanecer aqui para...
— Quer sair daqui?
A pergunta tinha fluído de forma irrefreável, quase instintiva.
— Não acho que eu esteja com muita disposição para dar volta
alguma hoje.
— Evangeline — chamei-a, mais firmemente. Foi só então que,
já próxima ao parapeito, a ruiva fixou o olhar em mim. — Você quer
sair daqui?
Ela piscou. Uma, duas, três vezes.
E foi só então que entendeu o que eu de fato dizia. Eva
permaneceu estática por um tempo quando o fez, apenas me
analisando com toda a atenção do mundo. Naquele segundo, soube
que não havia muito no mundo que eu não daria para saber o que
se passava por sua mente.
— Você iria comigo? — questionou enfim, desconfiada.
Retraída.
Ponderei com mais firmeza sobre a possibilidade. Era loucura,
e eu tinha total consciência disso. Também entendia que eu estava
sendo um tanto quanto insensato para propor algo tão
repentinamente para alguém que eu não devia conhecer tanto
quanto achava que o fazia.
Ainda assim...
— Honestamente? — eu sussurrei. — Sim. Eu provavelmente
lhe seguiria para onde fosse, Eva.
Ela desviou o olhar por um instante. Pareceu afetada de
alguma maneira por minha resposta. E, por fim, suspirou, e então
optou por deixar que a janela permanecesse fechada. Quando
voltou a se sentar em sua cama, de frente para mim, não me
encarou de imediato. Simplesmente deixou que seus pensamentos
continuassem a vaguear, não se importando tanto em parecer...
exposta.
— Eu já pensei em ir embora daqui — admitiu quando seu
olhar encontrou o meu. — Cogito tal possibilidade todas as noites
antes de dormir, na verdade.
— E por que nunca levou a ideia à frente?
— Porque ainda não descobri qual caminho seguir para
encontrar meu lugar no mundo, e não posso me dar ao luxo de
perder tempo com experiências destinadas ao fracasso.
Eva então suspirou e se deitou em sua cama, encarando o teto
acima de si. A partir daí, não consegui permanecer naquela cadeira
por muito mais tempo.
Apenas me levantei e ocupei o lado vazio de sua cama,
deitando a cabeça no travesseiro ao lado do seu. A ruiva se virou
para mim, e, somente quando seus olhos escuros como breu
encontraram os meus, eu disse:
— Quando descobrir, me conte, está bem?
Inevitavelmente, levei meus dedos até o hematoma levemente
arroxeado perto de seu olho, e logo sussurrei:
— Mas, até lá, me chame quando estiver com medo. Eu virei
correndo.
Tudo que Eva fez foi esboçar um sorriso sem vida ao replicar:
— Eu não tenho medo de nada.
Ela levou sua mão até a minha e retirou de sua bochecha. Ao
levá-la até o colchão, não a soltou, entretanto. Eva apenas
continuou-a segurando, mesmo quando voltou a se virar para
encarar o teto.
O calor de sua pele contra a minha me reconfortava de uma
maneira impetuosa que eu nunca havia experimentado antes.
— E então, vai me contar sobre a conversa que teve com seu
pai ou vou precisar implorar antes?
E, embora eu ainda estivesse assombrado pelo fato de Eva ter
de continuar a viver com seu pai por mais algum tempo, eu fui capaz
de soltar um riso nasalar. Fraco, mas, ainda, sincero.
— O mundo provavelmente ruirá no dia que você implorar algo
a alguém, Eva.
O riso que também ecoou de sua garganta em seguida foi a
única coisa me obrigou a continuar falando ali. Contei-a sobre o que
eu tinha dito ao meu pai, contei sobre os planos que tinha tomado a
liberdade para fazer pela primeira vez em minha vida e lhe agradeci
por ter me permitido conhecê-la quando mais precisava. O sorriso
que se esboçara dentre seus lábios enquanto me ouvia fez valer a
pena cada palavra que me forcei a pronunciar, apesar da vertigem
que ainda me devastava toda vez que eu localizava seus
hematomas.
Eu fiquei em seu quarto até tarde naquela noite.
E, antes de ir embora, eu a beijei como nunca tinha beijado
ninguém.
— Ok, quantos anos você teria se não soubesse quantos anos
tem? — Eva me lançou a provável décima pergunta em um período
pouco maior de meia hora.
Naquele dia em específico, estávamos passando o tempo
daquela maneira. Eu respondia seus questionamentos consecutivos
enquanto víamos um curta-metragem de algum desenho animado
no cinema. Não prestávamos atenção na tela à nossa frente de fato,
nós apenas tínhamos pegado a sala porque ela estava vazia.
Achava que aquele era o primeiro programa mais normal que
fazíamos. E eu gostei daquilo.
— Hum... essa é mais difícil — murmurei, jogando uma pipoca
em minha boca enquanto transferia o olhar para os personagens
esboçados pelo projetor para pensar. — Não sei... dezesseis?
Talvez um pouco mais novo que isso. Não creio que eu tenha tantas
experiências para minha idade.
Voltei minha atenção para ela.
— E você?
Eu não tinha retrucado pergunta alguma até aquele momento,
mais porque achava que Evangeline ainda ficava um pouco
desconfortável ao sair de sua zona de conforto quando era
questionada.
De início, ela ficou um pouco relutante. Mas, por fim, deu de
ombros.
— Provavelmente quase trinta anos.
Fiquei contente por Eva estar definitivamente confiando em
mim cada dia mais para se deixar ser honesta comigo.
— Por quê?
— Porque há dias que eu tenho a sensação de já ter vivido
dezenas de vezes — respondeu apenas.
Arqueei as sobrancelhas ao assimilar a informação. Quis fazer
mais perguntas quanto àquilo, porém, no fim, meu desejo de distraí-
la foi mais intenso do que minha curiosidade.
— Então talvez seja prudente eu procurar por novas
experiências o quanto antes. Você ter o dobro de minha idade, junto
ao fato de eu ser menor de idade, pode te trazer alguns problemas.
Ela riu.
— Você fala como se tivéssemos alguma relação.
— E não temos?
A ruiva me encarou de cima a baixo vagarosamente antes de
balançar a cabeça em desaprovação. Ela não disse nada no fim,
contudo. Somente passou para a próxima pergunta.
— Qual foi a última experiência que teve em que sentiu uma
adrenalina genuína correr por sua corrente sanguínea, Tristan?
Sorri diante do desvio sutil do assunto, porém logo me forcei a
me concentrar em sua pergunta.
— Provavelmente foi naquela sua tentativa estúpida de invocar
algum espírito. — Soltei um inevitável riso. De fato, aquilo tinha sido
uma idiotice, mas também havia sido... intenso. De um modo bom,
eu achava.
Ela estalou a língua.
— Isso já faz algum tempo.
— Esse é o meu ponto.
— Então é isso que você gostaria de mudar? — Ela alargou
seu sorriso travesso. Não a respondi dessa vez porque percebi que
eu já tinha dado combustível o suficiente para a criatividade danosa
de Eva. A ruiva, no entanto, tampouco precisou de uma
confirmação. Somente deu de ombros e disse: — Tudo bem.
Desafio aceito. Mas eu não posso cuidar de suas experiências mais
vívidas para sempre, Tristan. Você vai ter que aprender a se sentir
vivo sem mim.
Não sabia se um dia iria desejar aprender tal lição, mas não
tive tempo de declarar nada disso, pois, em uma fração de segundo,
Eva se colocou de pé e seguiu para o corredor da sala de cinema ao
dizer:
— Venha. Vamos para outro lugar. Essa monotonia me agrada
tanto quanto agrada a você.

Uma hora mais tarde, eu e Eva não tínhamos feito


absolutamente nada que envolvesse algum risco. Após deixarmos o
cinema, apenas tínhamos ido parar na esquina mais à frente, onde
um pequeno bar se fazia presente.
Estávamos na extremidade da cidade, onde o ambiente mais
pacato se contrastava com o movimento intenso do movimento da
cidade. Já começava a anoitecer, e eu sabia que teríamos que ir
embora logo.
No entanto, eu tinha alguma noção de que isso não aconteceria
enquanto Eva não colocasse seus planos em prática, quaisquer que
fossem eles.
— Então, com base na vida que você levou até hoje, quem
você realmente é, Tristan? — a ruiva questionou ao comer seu
último petisco que nos fora servido de acompanhamento com as
bebidas.
Aquela era a primeira pergunta que ela me fazia desde que nos
sentáramos à mesa de madeira redonda, presente de fora do bar.
Recostei-me na minha cadeira, cruzando os braços em frente
ao peito.
— Com base em tudo que eu vivi... — murmurei, mais
pensando alto.
Aquele questionamento era definitivamente o mais complexo da
noite.
— Vamos lá, você consegue me dar uma resposta — Eva me
incentivou quando decerto viu confusão dançar por meus orbes.
Expirei o ar pesado pela boca. Alguns poucos minutos se
arrastaram enquanto eu pensava, e, por fim, quando cheguei a uma
conclusão, não gostei nem um pouco dela. Ainda assim, a disse em
voz alta, porque eu confiava em Eva e, sobretudo, porque eu sentia
como se pudesse desabafar com ela.
— Rasa. Eu sou uma pessoa rasa, suponho.
A ruiva simplesmente maneou a cabeça, como se esperasse
por essa resposta.
— A superficialidade é consequência da estagnação, Tristan —
soprou em seguida. Entendi o que ela queria dizer mais do que
deveria.
Arqueei as sobrancelhas.
— Espero que tenha alguma noção de que algumas de suas
perguntas realmente possuem o poder de provocar uma crise
existencial sobre mim, Evangeline.
Ela riu, como se minhas palavras de fato implicassem uma
genuína diversão.
— Só estava me certificando de que você tem mesmo a
autoconsciência dos efeitos de uma vida oca.
— E precisava dessa confirmação para que, exatamente?
— Porque eu precisava de um passe-livre para tomar decisões
drásticas.
Encarei-a por um momento, estático. Um sorriso perverso já se
fazia presente dentre os lábios.
— Evangeline... o que diabos você vai fazer?
Foi então que aquele sorriso torturantemente cruel se alargou.
— Corre!
E, antes que eu sequer pudesse assimilar o movimento, a ruiva
simplesmente pegou minha carteira de cima da mesa e saiu
correndo do local em que estávamos. Provavelmente gastei um par
de segundos inteiros para me dar conta do que ela de fato fizera.
Eva tinha acabado de furtar a merda do local em que
estávamos. E, ao pegar todo o dinheiro que eu tinha, não me dera
outra opção senão fazer o mesmo que ela.
Eu a mataria.
Mas somente depois de cuidar de minha própria fuga naquele
momento.
Saltei da cadeira em um movimento abrupto demais quando o
dono do bar saiu para ver o que diabos acontecia diante dos clientes
que começaram a gritar ali, e então segui pelo caminho que Eva
percorrera.
Corri como nunca tinha corrido em toda minha vida.
Enquanto forçava minhas pernas a me levarem para longe dos
gritos dos bartenders e do dono daquele bar com a maior agilidade
possível, quase pude sentir meu coração saltando pela boca. Minha
respiração se encontrava acelerada pelos efeitos não do físico, e
sim do emocional, porque, enquanto eu corria daquela maneira,
canseira alguma se fazia presente em meu interior; muito pelo
contrário, uma energia descomunal percorria toda minha corrente
sanguínea, deixando-me alerta e frenético.
Eu simplesmente me encontrei imerso demais no presente,
como se eu não pudesse fazer nada além de vivê-lo. Nada mais
importava. Apenas aquele momento. Foi uma sensação de fato
incomum, e, por uma fração de segundo, peguei-me indevidamente
pensando que eu deveria experimentá-la mais vezes, apenas para
me lembrar de como a vida poderia ser poderosa.
Após minutos que mais me pareceram horas, alcancei Eva. E
então corremos lado a lado até muito tempo depois disso, com os
risos da ruiva ecoando alegremente até meus ouvidos.
— Evangeline... — eu disse entre a respiração ofegante,
quando começamos a desacelerar ao nos encontrarmos decerto a
quase um quilômetro de distância do maldito bar. — Mas que
inferno... eu simplesmente não posso acreditar que eu acabei de
furtar comida.
E foi então que ela definitivamente parou, caindo na calçada da
rua deserta e com iluminação escassa enquanto continuava a rir,
apesar do seu estado exaurido. Seus pulmões faziam um chiado
pela falta de ar, e sua pele sequer tinha cor. Seu rosto inteiro estava
pálido.
Ainda assim, ela se divertia como nunca. E estava ainda mais
linda que o comum por isso. A alegria lhe caía bem.
Não me deixei prestar atenção nisso, no entanto, embora tenha
sido uma tarefa genuinamente árdua.
— Eva... Por Deus — resmunguei, correndo os dedos pelos
meus cabelos molhados pelo suor. — Isso foi errado pra caralho.
Não acredito que fizemos isso. Agora nós temos que voltar lá e
pagar tudo que consumimos, ok? Além de dar uma gorjeta generosa
para o dono do bar e implorar para que ele não chame a polícia... se
é que ele ainda não a chamou. Porra... Meu carro está estacionado
naquela mesma rua. Provavelmente não poderemos voltar lá tão
cedo. Sério, seu plano foi horrível de mil maneiras diferentes. O que
nós fizemos foi horrível.
Eva continuava a rir freneticamente, mas dessa vez disse:
— Em minha defesa, o que você fez foi horrível.
Transferi o olhar a ela de imediato.
— O quê?
A ruiva se apoiou nos cotovelos, ainda deitada na calçada. Um
sorriso realizado ainda iluminava todo seu rosto.
— Bem... pode ser que na minha passagem no banheiro, eu
tenha me esbarrado sem querer com o dono do bar e ter lhe dado
algum dinheiro para recompensar uma suposta cena que estaria
prestes a acontecer ali. Portanto, eu já sabia que não estava
furtando absolutamente nada desde o início... Já você, por outro
lado... — Sarcasmo transbordava de seu tom.
Abri a boca para respondê-la. Mas então a fechei.
Simplesmente permaneci ali, estático, enquanto Eva alargava seu
sorriso a cada maldito segundo que se passava. Mal podia acreditar
naquilo.
Quando me deixei assimilar tudo que acabara de acontecer,
contudo, permiti-me... absorver o agora, já com a consciência mais
limpa — ao menos por um pouco. Concentrei-me no ritmo ainda
frenético de meu coração, na energia que continuava a correr por
toda minha corrente sanguínea, em cada um dos meus sentidos que
mais alerta do que nunca, no modo veemente com o qual meus
neurônios pareciam funcionar...
Tudo havia sido uma loucura. Mas também havia sido vívido.
Eu me sentia vivo. E me senti relutante em admitir isso a mim
mesmo, porque...
— Não se culpe tanto por agir impensadamente — Eva logo
disse, como se adivinhasse o que se passava por minha mente. —
Não que eu esteja te aconselhando a furtar algo pelo restante de
sua vida, mas, fale sério... Qual foi a última vez que você correu
tantos riscos quanto os hipotéticos que você enfrentou hoje? Se
deixe sentir agradecido por viver, Tristan.
Encarei-a por longos segundos demais. E então, talvez pelo
meu estado ainda irracional, aprazivelmente racional, eu ri de
descrença por tudo que acabara de acontecer.
Por fim, sentei-me na calçada ao seu lado e me deixei tentar
tomar o controle de minha própria respiração, mas não sem antes
dizer:
— Você deve ser a pessoa mais singular que eu um dia
conheci e também virei a conhecer.
Seu sorriso foi de travesso para estonteantemente saciado.
Forcei-me a acrescentar:
— Mas isso definitivamente não te isenta do sermão que lhe
darei quando recuperar o raciocínio lógico.
A ruiva apenas deu de ombros ao voltar a se deitar na calçada
e transferir o olhar para o céu estrelado acima de nós enquanto
murmurava:
— Então melhor aproveitarmos enquanto você se concentra
mais em suas sensações do que pensamentos.
Eu não disse mais nada enquanto também me deitava naquela
calçada um tanto quanto suja. E também não me deixei pensar em
tanto por um bom tempo que se seguiu naquela noite.
Eu me encontrava em um jantar de família em minha casa. Um
jantar que, honestamente, mais me parecia ser de negócios.
Estava diante de meus pais, Daniel e sua família. Meu pai e
seu irmão, que era seu sócio, mantinham um diálogo desprovido de
emoções sobre as reuniões que enfrentariam na próxima semana.
Ao canto da mesa, minha mãe e a mãe de Daniel conversavam
sobre a prataria utilizada na noite em um tom baixo para não
incomodarem os maridos.
Eu e meu primo estávamos em silêncio. Não tínhamos nos
visto desde a noite em que Eva declarara as intenções do garoto
para com Freya.
Tédio assolava todo meu interior de um modo pungente. Mal
mexera em meu prato. Desejava mais do que tudo sair dali. E
também me perguntava o que estava me prendendo ao ponto de me
fazer relutar aos meus instintos.
Suspirei.
Pedi licença para ir ao banheiro então, e ninguém deu muita
importância para isso. Tomei rumo ao jardim, e lá tirei um cigarro do
bolso de minha calça ao optar por me sentar no gramado ao invés
de em um dos inúmeros bancos ali presentes.
Traguei a nicotina lentamente e transferi a atenção à casa
vizinha. O quarto de Eva estava com as luzes apagadas, e me
questionei o que ela estaria fazendo agora. Eu não tinha muitas
notícias suas há dois dias. Estava acostumado com seus sumiços
repentinos, mas ainda sentia falta de sua companhia. Eu gostava de
quem eu era quando estava ao seu lado, ao contrário do que o fazia
em relação à minha versão ao lado de minha família.
Pensando um pouco mais naquilo, cheguei à conclusão de que
eu não sabia qual das versões me representava melhor quando eu
estava sozinho. Isso me chateou um pouco.
— Ela está mesmo fodendo com sua cabeça, não está?
Transferindo a atenção para trás, vi Daniel caminhando em
minha direção. Ele estava ciente do que eu encarava há um
instante.
Quando meu primo se sentou ao meu lado, eu disse
calmamente:
— Não fale desse modo.
Ele expirou o ar pesado pela boca, descontente.
— Escute, eu sei que você tem bons motivos para estar puto
com ela. Mas Eva não é uma má pessoa. Só é uma garota perdida
às vezes — eu acrescentei ao oferecer a ele um cigarro.
Ele recusou.
— Suponho que esteja guiando-a, então.
Ponderei um pouco.
— Não sei se ela pode aprender tanto comigo. Na maior parte
do tempo, é ela quem me ensina algo. E, de todo modo, não acho
que alguém tenha o poder de orientá-la. Evangeline parece pensar
que sabe muito bem o que faz.
— Ela não sabe.
Mantive-me em silêncio.
— Mas não estou puto com o que ela fez na última noite em
que nos vimos. — Ele suspirou. Surpreendi-me com sua declaração.
— Acho que Eva toma muitas decisões inconsequentes, de fato,
mas nem todas são infundamentadas, embora isso não signifique
que elas sejam íntegras. Enfim, de todo modo, não estou em
posição de julgá-la quanto aos acontecimentos naquela noite porque
ela foi honesta por mim quando eu evitei o ser por algum tempo.
— Você não me deve satisfações, Daniel.
— Devo, sim — ele discordou. — Como seu primo e amigo, eu
devo uma explicação sobre a situação que envolveu Freya.
Eu não disse mais nada, pois senti que Daniel precisava dizer o
que quer que andava guardando. Permiti-o fazê-lo.
— Controlar meus sentimentos em relação a ela não pareceu
estar ao meu alcance, ok? Eu só... passei a gostar dela mais do que
deveria, foi inevitável, apesar de não menos errado. Gostava de
provocá-la, de ouvi-la reclamar, de rir dela. Com ela. Comecei a ter
algum apego por ela nesses jantares de família, comecei a escutá-la
quando você não parecia muito interessado em fazê-lo. Nutri esses
sentimentos porque eles eram estranhamente intensos. De um
modo bom, eu acho. Mas nada disso significa que eu teria algo com
ela por suas costas. Eu somente... gostava de criar expectativas.
Nunca trairia sua confiança ao expor para ela o que eu sentia sem
antes te contar sobre isso. De todo modo, minha posição estava
errada. Ela era sua namorada, e tenho consciência disso. Eu sinto
muito.
Traguei meu cigarro uma outra vez, assimilando cada uma de
suas palavras. E, por fim, os cantos de meus lábios se repuxaram
para cima.
— São sentimentos realmente inexplicáveis, não são?
Daniel franziu um cenho, um pouco atordoado pela única
resposta que eu tinha a dar à sua confissão. Porém, em poucos
segundos, pareceu aliviado, embora ainda estivesse aparentemente
um pouco desconfortável. Ele soltou um breve riso.
— Sim, eles são.
Maneei a cabeça.
— Você está com ela agora?
— Não. Não converso com ela desde aquela noite.
— Por quê?
— Bem... pareceu-me errado manter contato com ela,
principalmente porque eu adiei essa nossa conversa por tanto
tempo.
Antes que eu tivesse a chance de dizer algo a mais, a voz de
minha mãe ecoou atrás de nós:
— O que estão fazendo aí, meninos? Voltem para cá. A comida
de vocês está esfriando.
Virei a cabeça somente o suficiente para ver minha mãe nos
esperando na porta dos fundos. Expirei um suspiro pesado ao
apagar o cigarro na grama sem que ela visse. E então, antes de me
colocar de pé, apenas sussurrei ao meu primo:
— Não perca mais tempo, Daniel.
Quando todos voltamos à sala de jantar, meu pai se deu conta
de minha presença quase que imediatamente. Foi a primeira vez em
dias que ele me lançou diretamente o olhar.
— Aí está ele. O garoto que de uma hora para outra decidiu
virar um rebelde — disse, como se eu tivesse sido o foco do assunto
dele e de meu tio nos últimos minutos.
— Seu pai me contou sobre seu comportamento dos últimos
tempos, filho — meu tio disse enquanto eu me forçava a me sentar.
— Não acha que está sendo um tanto quanto imprudente?
— Honestamente? — eu indaguei ao arquear as sobrancelhas,
mas não esperei por uma resposta. — Acho.
Meu tio e meu pai se mantiveram em silêncio por um momento,
sem saberem o que dizer. Por fim, foi o anfitrião que rompeu o
silêncio com uma risada de escárnio.
— Veja, isso é realmente uma fase de rebeldia — meu pai
disse ao irmão. — Não pode durar por muito.
— Jesus Cristo, pai — eu murmurei, chamando sua atenção
para mim uma outra vez. Não havia mais vestígio de sorriso algum
em seu rosto. — O que eu preciso fazer para que você me leve a
sério? Para que respeite minhas decisões? Eu não vou para a
faculdade de economia. Não vou assumir sua empresa. Você não
poderia me apoiar um pouco que seja nas minhas próprias
escolhas?
— Te apoiar... — ele ressoou com sarcasmo, e uma veia saltou
de seu pescoço. — Aja como a porra de um adulto, Tristan.
— Aparentemente, nossas definições de amadurecimento não
poderiam ser mais diferentes.
— Isso tudo já foi longe demais — ele soprou de um modo
frenético, levantando-se da cadeira. — Você deve obediência à sua
família, a mim. Você não faz ideia do que é o melhor para você, seu
garoto ingrato. Eu não vou permitir que você estrague sua vida com
decisões tão inconsequentes.
— Você pode estar certo. Eu não faço ideia do que pode ser o
melhor para mim, mas ao menos sei o que não é. E, sinceramente,
eu ainda mal posso me conformar que o sucesso de nosso
sobrenome, a continuidade do seu legado, seja realmente mais
importante para você que a felicidade de um filho.
— Por que eu deveria reconhecer a felicidade de um filho
quando você se nega a agir como tal?
— Quando eu me nego a agir como tal? — ressoei, incrédulo.
— Então eu devo agir de acordo com os seus termos para que você
me considere como seu filho? Para que você também aja como um
pai?
— Isso é o suficiente! — ele berrou, e meu tio se colocou de pé
também ao chamá-lo pelo nome. Simon não o escutou. — Não
quero mais escutá-lo, mal posso olhar para você agora. Suma da
porra da minha frente.
— Pai...
— Eu estou te deserdando.
As palavras escaparam de minha mente. Encarei-o por um
momento, perguntando-me se ele podia mesmo ter pronunciado tal
declaração que significava muito mais do que deveria.
Para ele, aquilo não se tratava apenas de dinheiro.
Sua decisão implicava que ele de fato não me considerava
mais como filho. Que eu não era mais parte de sua família.
Obriguei-me a lançar minha atenção para minha mãe, ainda um
pouco encolhida em seu lugar. Ela somente encarava a mesa, sem
fazer menção alguma de se manifestar, de impor sua opinião. Se é
que podia mesmo ter alguma.
Foi difícil, mas enfim me obriguei a me colocar de pé. Estava
magoado, até desolado.
Entretanto, não me deixei continuar surpreso por muito mais
tempo. Porque, no fundo, eu já sabia que as pessoas mais próximas
nem sempre eram as que te faziam bem. Família era um termo que
ia muito além de um laço sanguíneo, eu achava.
Passo por passo, forcei-me a seguir em frente. Porém, ao me
aproximar de Simon, parei por tempo o suficiente somente para
dizer:
— Eu não preciso de seu dinheiro. Nunca precisei, na verdade.
Nunca pareci necessitar de nada além de seu afeto. Mas, quer
saber de uma coisa? Eu acho que não preciso mais dele, e
tampouco o quero. Seu preço não vale a pena. De um modo ou de
outro, eu encontrarei um jeito de ficar bem sem ele. Melhor do que
com ele, talvez.
Não olhei para trás ao me distanciar por definitivo nos mais
diversos aspectos possíveis.
— Se eu soubesse que estaria tão deprimido, teria optado por
passar o dia em minha própria casa. Seu humor está tão obscuro
quanto o humor usual de meus pais — Eva murmurou
repentinamente. Havíamos passado a última hora em silêncio, e,
honestamente, até estava um pouco surpreso por ela ter se mantido
tanto tempo quieta.
Suspirei enquanto colocava o jogo de basquete de minha
televisão no mudo.
— Essa comparação me ofendeu de inúmeras maneiras
diferentes — eu soprei apenas, descontente.
Eva soltou um riso nasalado enquanto se deitava de lado para
me encarar.
— Tudo bem, eu posso ter exagerado um pouco. Ainda assim,
preferiria que você estivesse disposto a brincar comigo. Ficar
deitada aqui com a atenção fixa em uma criação mundana cujo
propósito único é nos fazer distrair de nossas próprias vidas está me
chateando.
Arqueei as sobrancelhas.
— Distrair-me de minha própria vida me parece uma ótima
opção no momento.
— Essa é uma fuga totalmente insensata. Não resolve
absolutamente nenhum de seus problemas, apenas desperdiça um
tempo que você não deveria se dar ao luxo de perder quando há
tanto em sua vida de fora dos eixos.
— Bem, talvez eu não saiba quais escolhas realizar para fazer
com que elas entrem nesses malditos eixos, Eva, principalmente
quando sequer sei se algum dia ela esteve dentre eles. Agora, por
favor, podemos voltar a ignorar nossos problemas e nos
concentrarmos no jogo? — eu resmunguei, pegando o controle
remoto para aumentar o volume da tevê outra vez.
Eva pegou o controle antes que eu o fizesse, contudo. Ela
então se sentou ao meu lado de súbito, e minha pele queimou
diante de seu olhar impiedoso.
— Você não pode deixar que os contratempos se transformem
em uma âncora e te mantenham presos em um lugar que não
deseja estar, Tristan. Você tem que lutar contra a maré até enfim
encontrar segurança, entendeu?
Fechei as pálpebras por um momento, um pouco frustrado pela
ruiva estar dando continuidade àquele assunto. Por fim, sentei-me
também.
— Eu estou cansado, ok? Não sei qual caminho seguir, não sei
o que fazer. Pensei que soubesse, mas... pareço mais perdido do
que nunca. Sequer tenho mais um lar, a vida que eu conheci desde
que nasci está desmoronando dia após dia. Tomar decisões com
base somente em nossas perspectivas nem sempre é fácil quanto
você crê, Evangeline.
— Eu nunca acreditei que fosse fácil — ela refutou
simplesmente, ainda me encarando de um modo cruamente árduo.
— Escute, eu sinto muito que sua família seja igual à minha.
Mesmo. A falta de apoio de pessoas que deveriam ser nosso porto
seguro às vezes pode ser cruel, até angustiante. Mas as coisas são
como são, Tristan. Devemos aceitar o que não podemos mudar e
termos coragem para modificar o que nos é possível.
— Estou cansado — repeti, expirando o ar pesado pela boca.
Eu não tinha mais o que dizer.
Eva pareceu chateada com minhas palavras, e talvez tenha
sido por isso que se manteve algum tempo em silêncio até enfim
sussurrar:
— Não desista de realizar seus sonhos, Tristan.
— Mal sei quais são meus sonhos.
— Então descubra-os. Você tem tempo para isso. Uma vida
toda pela frente.
— Não sei se tenho forças para tal processo, Eva. Parece-me...
exaustivo, principalmente quando contrario tantas pessoas por ele.
— Você é mais forte do que imagina.
Soltei um riso sem humor.
— Você me superestima.
— Não desista de si mesmo — ela insistiu, mais séria do que
nunca.
Cerrei os dentes com uma força excessiva por um instante.
— Pessoas são movidas à esperança, Tristan. Não a perca.
Quando você a tem, você pode conquistar tudo. Deixe que ela o
guie quando achar que está irreparavelmente perdido.
Permaneci em silêncio, o que fez com que a ruiva soltasse um
suspiro pesado ao meu lado.
— Minhas palavras não estão exercendo efeito algum em você
hoje, não é?
Encarei-a pela primeira vez em algum tempo.
— Eu gosto de ouvi-la falar, Eva — eu constatei com toda
sinceridade do mundo.
Percebi que ela entendeu que, apesar disso, palavras
encorajadoras não eram o que eu precisava ouvir naquele dia. Eu
estava perdido, de fato, e ainda precisava achar a luz no fundo do
túnel de lamúrias que eu cavara para mim mesmo por toda minha
vida. No entanto, eu apenas... queria descansar um pouco por
agora. Sentia que precisava de um momento para respirar antes de
enfrentar tudo que ainda estava por vir.
— Então o que eu preciso dizer para que você recupere a si
mesmo?
Consegui esboçar um sorriso fraco. Era o primeiro sincero que
dava em dias.
— Você parece verdadeiramente incomodada com minha
infelicidade.
Ela trincou o maxilar ao desviar o olhar, quase irritada pela
suposição. Foi sua vez de permanecer quieta, mas, por fim, após
longos segundos, resmungou:
— Eu estou.
Eu ri diante da admissão inesperada. Tanto porque ela me
divertiu quanto porque me deixou feliz, pois sua declaração
implicava que Eva realmente se importava comigo. Quando a ruiva
voltou a ficar em silêncio, forcei-me a pensar um pouco sobre sua
pergunta.
— Honestamente, eu acho que gostaria de ouvir quaisquer
palavras que contenham o poder de me distrair. Acredite, eu
entendo que ainda estou procurando por uma fuga de meus
problemas, mas eu preciso disso, Eva. Somente por mais hoje. Às
vezes, quando esgotados, alguma pequena abstração pode nos ser
necessária a fim de nos recompormos para a realidade uma outra
vez.
Eva não me contestou dessa vez. Contraditoriamente, pareceu
assimilar cada uma de minhas palavras por um longo tempo que se
seguiu. Deixei-a ponderar em interrupção alguma.
— Troque de roupa — ela disse após minutos que me
pareceram se confundir com horas enquanto enfim se levantava de
minha cama. — Vou te esperar lá embaixo.
— Para onde vamos?
Ela não parou de caminhar até minha janela ao responder:
— Você sabe para onde.
De fato, eu o fazia.
A ruiva então fez menção de abrir a janela, porém também me
coloquei de pé e caminhei até ela em um gesto mais determinado
do que eu tivera em algum tempo. Espalmei o trinco, o que a fez
lançar a atenção a mim.
— Hoje não. Você vai sair pela porta, comigo. Não há nada que
devemos esconder mais.
Eva arqueou as sobrancelhas, aparentemente surpresa pelo
tom firme que eu adotara, quase absoluto. E, embora a parte
teimosa de si nitidamente desejasse me desobedecer, no fim, ela
somente sorriu de um modo genuinamente orgulhoso,
deslumbrante.
Ela não disse nada ao girar os calcanhares e caminhar até a
porta de meu quarto para me esperar no corredor.
Minutos mais tarde, quando descemos as escadas, meus pais
estavam na sala de jantar. Ambos ficaram assombrados assim que
se deram conta de qual era o sobrenome que a ruiva ao meu lado
carregava. Nenhum deles disse algo, contudo. Já sabiam que seria
em vão, pois não continham mais poder algum sobre minhas
decisões.

Era noite de Slam no Bar 2516. E eu não poderia ser mais


grato por isso.
Eu e Eva estávamos ali já há mais de uma hora. Não faláramos
muito desde que chegamos. Meu silêncio era consequência de toda
atenção que eu mantinha centrada no palco, enquanto o da ruiva ao
meu lado era fruto da concentração que mantinha em sua
caderneta. Ela escrevia algo ali, e, embora eu estivesse
genuinamente curioso a respeito do conteúdo, obriguei-me a me
distrair com outras poesias para não a incomodar.
Assim que Eva levantou seu olhar pela primeira vez em algum
tempo, entretanto, sequer hesitei em virar a cabeça em sua direção.
Observei-a tampar sua caneta de tinta preta antes de questionar:
— O que estava escrevendo?
Ela não me respondeu. Simplesmente fechou sua caderneta,
sem me encarar. Parecia um pouco hesitante, então eu não fiz mais
pergunta alguma, embora tivesse me esforçado muito para isso.
Somente algum tempo mais tarde, quando mais oito pessoas
passaram pelo palco e a noite de Slam parecia prestes a ser
encerrada, eu quebrei o silêncio:
— Isso é incrível, não é?
— As poesias? — ela indagou baixinho, ainda sem me fitar.
— As palavras. Acho que às vezes nos esquecemos do poder
que elas contêm, quando utilizadas de maneira delineada. São
armas e tanto, não acha? Eu poderia tanto me perder nelas quanto
ser salvo por elas.
Foi somente então que o olhar de Eva se deparou com o meu.
Ela abriu a boca para dizer algo, mas logo a fechou. Voltou a
atenção ao palco, e percebi que sua garganta oscilou um pouco.
Estava nervosa. Com o que, eu não fazia ideia.
— Quer que eu faça algo?
— O quê? — ela balbuciou.
— Você está nitidamente tensa, Evangeline. Estou perguntando
se precisa que eu faça algo para que essa sensação passe.
A ruiva expirou pela boca o ar que só naquele momento percebi
que segurava. Alguns segundos de silêncio perduraram entre nós,
mas, por fim, ela sussurrou:
— Diz pra mim que não podemos nos dar ao luxo de deixar
para depois o que podemos fazer hoje.
Franzi o cenho, um pouco confuso.
— Como?
— Diga, Tristan. — Ela voltou a me observar. Seus olhos
pareciam mais densos que o comum.
Ainda estava incerto, mas me obriguei a dizer:
— Não podemos nos dar ao luxo de deixar para depois o que
podemos fazer hoje, Eva.
— Diz que amanhã pode ser tarde demais.
Quis fazer mais perguntas a respeito do que diabos estava
acontecendo ali, mas tudo que escapou de minha boca foi:
— Não preciso dizer isso para que você saiba que é verdade.
Ela então inspirou fundo quando a última pessoa a recitar uma
poesia na noite deixou o palco.
— Estou prestes a fazer algo que nunca fiz por ninguém,
Tristan. Falar sobre meus sentimentos mais profundos em relação a
uma pessoa prontamente para ela mesma. Então, não se esqueça
dessa noite. E lembre-se dela como a maior abstração de seus
problemas que você já experimentou e um dia poderá experimentar
outra vez.
Não me permiti pensar no real significado de suas palavras,
porque não queria criar expectativas demais. Estava com medo de
simplesmente pensar na remota possibilidade de Eva se expor mais
do que nunca sem coação ou incentivo algum, pois isso parecia algo
tão distante.
Era algo distante, de fato. Até não ser mais.
— Espero que estejam tendo uma boa noite. E espero que a
pessoa para quem escrevi a poesia que recitarei aqui, a única
pessoa à qual me permiti dirigir diretamente as palavras que tomo o
cuidado de escrever nessa pequena caderneta, passe a também ter
uma boa noite a partir dos próximos minutos. Estou aqui por ela,
hoje.
Repentinamente, meu coração pareceu bombear duas vezes
mais sangue para todo meu corpo, e as palmas de minhas mãos
começaram a suar. Eu estava nervoso. De um modo bom, mas,
ainda, aflito.
Decerto ainda não estava preparado para ouvir tudo que Eva
tinha a me dizer quando ela abriu sua caderneta e aproximou a boca
do microfone outra vez, porém centrei toda a atenção do mundo
nela mesmo assim.
Ela inspirou fundo e expirou o ar pela boca antes de começar.
Eu sorria mesmo antes de ela pronunciar qualquer palavra.
— “Eu costumava achar que a solidão era mais do que uma
sensação. Eu estava predestinada, quase condenada a tê-la como
uma melhor amiga. Ela podia ser tangível às vezes, tão tangível ao
ponto de me fazer perguntar se eu estava mesmo sendo
assombrada.
Eu conversava com ela. Eu lhe dizia coisas que não podiam ser
confidenciadas a absolutamente mais ninguém, aceitava sua
presença a cada segundo de meu dia e a abraçava, mesmo quando
doía envolvê-la, mesmo quando eu me machucava ao agarrá-la.
Aprendi a me conformar com sua companhia torturantemente cruel,
cruel e límpida, límpida e sincera. Ajustei-me a ela porque ela era
tudo que eu tinha. Minha amiga. Minha amiga mais fiel e
inabandonável.
Essa presença estranha e ao mesmo tempo tão íntima, ouvinte,
mas silenciosa, de fato, esteve sempre à espreita. Nas sombras, na
caligem tão escura quanto o nada. E essa sua permanência era tão
intensa que, dia após dia, eu me cegava um pouco mais.
Temerosamente. Inevitavelmente. Mas não irreversivelmente.
Um dia... um dia... a obscuridade, por algum motivo, se tornou
uma fração mais vítrea. Vítrea e então cristalina. Cristalina e, por
fim, pouco mais fúlgida. Ela estava sendo vagarosamente iluminada
por uma chama ardente. Foi o bastante para que eu conseguisse
enxergar que, talvez, eu não tivesse sido prometida à devoção da
solidão para todo o sempre. Somente estava fadada a ter sua
companhia docemente preceptora, preceptora e clemente, clemente
e ímpar até o último minuto do segundo tempo.
Simples assim, como nada em minha vida nunca havia sido, eu
enxerguei a presença que trazia tal fulgor consigo, a presença agora
mais vigorosa e não tão taciturna. Mais concreta. De fato,
incontestável.
Linda. Uma linda presença.
Meu adversário em nome, mas confidente como pessoa. Meu
inimigo em uma tese tola, porém ainda um amigo em matéria. Um
aprendiz. Um aprendiz e mentor. Um mentor e semelhante. Um
parceiro. Talvez um amante. O garoto que me encontrou e o homem
que me salvou da perdição. De meu sonho horripilantemente real.
Do caos e trevas.
O homem que enfim me mostrou que, na verdade, eu nunca
estive só, que tornou toda a obscuridade tão translúcida ao ponto de
eu conseguir notar que, durante todo o tempo, eu apenas estive
esperando por ele, esperando por essa chama que me
transcendeu.”
Provavelmente, foi naquela noite, após aquelas palavras, que
eu percebi que não estava somente apaixonado por Evangeline
Christie. Eu estava fascinado por ela. Estava arrebatado e extasiado
também. Estava perdido nela.
Eu a amava. De modo impetuoso e inalterável. Não importaria
quanto tempo passasse, quantas pessoas entrariam ou sairiam de
minha vida, Eva sempre seria a única mulher pela qual eu viveria ou
morreria.
Foi diante de tal percepção que eu me coloquei de pé e me
encontrei com Eva no caminho até nossa mesa. Antes sequer que
ela dissesse algo, puxei-a em direção aos banheiros e nos fechei
em uma cabine.
Ali, naquele local minúsculo e quase imundo, meus lábios
encontraram os seus de uma forma insondável e necessitada, de
ambos lados. Senti-la em tantos aspectos possíveis foi como
experimentar um pouco de meu Éden particular.
Eu pequei no paraíso por todo o tempo que me foi concedido.
Eu dirigia muito acima do limite de velocidade permitida na
estrada em que me encontrava.
Estava um pouco nervoso diante do volante, porque não sabia
o que estava prestes a encontrar.
Evangeline tinha desaparecido nas últimas duas semanas. Já
estava habituado com seu sumiço repentino e inexplicável, mas
apenas por um período de poucos dias consecutivos. Catorze dias
sem vê-la fora um recorde.
Eu procurara por ela após a primeira semana. Ligara mais que
o necessário, escalara seu telhado até seu quarto e até entrara em
contato com Sam em busca de notícias. Eva, contudo, nunca me
atendera ou retornara, não abrira sua janela, se é que estivesse
mesmo atrás dela, e sua amiga disse que não poderia me dar uma
explicação antes da própria Evangeline.
Eu estava quase entrando em um colapso quando Eva enfim
me mandou uma única mensagem. Pediu para que eu a
encontrasse no lago presente a alguns quilômetros de Seattle em
que uma vez já estivemos. Também disse para que eu levasse bens
materiais aos quais eu era apegado em uma caixa.
Não fazia ideia do que diabos estava acontecendo. E a ruiva
tampouco se importou em me dar alguma explicação quando eu
pedi por uma.
Estava no escuro. Mesmo assim, ainda dirigia em direção ao
destino indicado por ela. Não era como se eu tivesse muitas outras
opções, de todo modo.
Pareceu levar uma eternidade até que eu enfim chegasse ao
lago. Assim que estacionei meu carro, peguei a pequena caixa de
sapatos onde eu havia guardado alguns dos meus objetos e desci
do automóvel. Meus olhos disparavam por cada canto em busca de
Eva.
Levei um tempo que também me pareceu longo demais até
encontrá-la. Suspirei de alívio assim que o fiz.
Ela estava agachada diante da maior árvore nas proximidades
do lago. Seus cabelos estavam secos, e o ruivo dos fios parecia um
pouco mais claro que o habitual. Sua pele, como sempre, estava
pálida, e olheiras emolduravam seus olhos escuros como breu.
Uma pequena enxada estava jogada ao seu lado, assim como
um amontoado de terra. Suas mãos pareciam cavar o fundo de um
buraco ali presente.
— O cavalheirismo ainda existe? Sabe como é, oferecer um
favor serviria de grande ajuda para minhas unhas no momento.
Expirei o ar pesado pela boca, mas me aproximei.
— Eva… eu mal consigo pensar em qual deveria ser a primeira
pergunta das inúmeras que tenho a você a ser pronunciada.
Ela revirou os olhos.
— Ande logo. Me ajude aqui. Sua habilidade de falar não
depende dos movimentos de suas mãos. Você consegue fazer duas
coisas ao mesmo tempo.
Balancei a cabeça em descrença. E, por fim, agachei-me à sua
frente.
— Primeiro de tudo… — comecei ao arregaçar as mangas de
minha camisa antes de ajudá-la. — Para que diabos estamos
cavando esse maldito buraco?
— Para colocarmos nossas cápsulas do tempo. Próxima
pergunta.
Encarei-a.
— Espera, o quê?
— Vamos fazer uma cápsula do tempo. Por isso pedi para que
trouxesse seus bens materiais aos quais você é apegado. Vamos
guardá-los aqui.
Levei um tempo maior que o necessário para assimilar aquela
informação. Estava atordoado.
— Eva... você devia ter me dito isso por mensagem, mas que
inferno. Eu teria escolhido coisas diferentes para trazer caso
soubesse que estaria prestes a deixar meus pertences em um
buraco por anos.
— Bem, é justamente por isso que não lhe avisei nada antes.
Qual seria a graça para nossos eus do futuro desenterrarem algo
que sequer continham total afeto de nossos eus do passado?
— Eu ainda não tenho certeza se entendi o propósito disso
tudo — eu resmunguei apenas, ainda sem voltar a cavar o buraco à
minha frente.
— O primeiro propósito é: desapego — ela anunciou como se
fosse óbvio, também parando de cavar. O buraco já estava fundo o
bastante, aparentemente. — Não levamos nenhum de nossos bens
materiais quando morremos. Por que deveríamos ficar tão
preocupados com eles em vida? Nossas experiências fazem nossas
vidas, não nossos pertences. Agora, o segundo propósito é: os
objetos que você trouxe decerto possuem um significado para você.
Não será agradável relembrar, ao desenterrá-los em um futuro
distante, quais eram nossas definições de “significante” e então
notar como e quanto nossos preceitos mudaram? Nossos princípios
acerca do que realmente nos importa?
— Evangeline... isso é definitivamente drástico demais.
— O mundo precisa de mais pessoas que tomem decisões
drásticas.
— Você pode, por favor, parar de me lançar filosofias de vida e
conversar um pouco mais sério comigo? O que diabos está
acontecendo, Eva? Você sumiu por duas semanas inteiras e agora
somente vem com um papo de cápsula do tempo, como se nada
tivesse acontecido... Não é assim que as coisas funcionam.
A ruiva, que antes se encontrava em lacrar sua caixa cujo
material eu não tivera a chance de ver, lançou a atenção para mim
enfim. Ela suspirou.
— O que quer escutar, Tristan?
— Por onde andou durante todo esse tempo? Eu procurei por
você em cada minuto dos últimos dias.
— As respostas para suas perguntas não importam. Afinal, eu
estou aqui agora, não estou?
— Eva...
— Tristan, só... confie em mim. Você ainda não precisa escutar
as explicações para seus questionamentos, ok?
— Por que não?
— Porque elas lhe farão menosprezar o que realmente importa.
O agora.
— Escute, Evangeline, eu realmente não estou entendendo
absolutamente nada do que você quer dizer.
— Bom. — Ela sorriu. — Isso é bom.
Suspirei, exausto, porque ficou muito óbvio que eu não obteria
resposta alguma dela. Ao menos, não naquele dia. Não fiz mais
pergunta alguma sobre as últimas duas semanas, porém foi
inevitável sussurrar após alguns instantes.
— Apenas... não suma mais dessa maneira, tudo bem? Eu
fiquei preocupado.
O sorriso de Eva então se tornou mais puro. Suave, porém, de
alguma maneira, mais intenso.
— Sabe o que eu realmente gosto ao seu respeito? — Ela não
esperou por uma resposta. — Que você expressa o que sente.
Sempre. Sem planejamento, sem total consciência. Você
simplesmente... diz. Isso é admirável, sabe?
Fiquei um pouco surpreso diante daquela declaração tão
repentina. Estava contrariado, de fato, por ela ter desviado um
pouco o assunto do foco principal, por não ter feito a promessa que
eu gostaria de ouvir. Entretanto, foi inevitável me encontrar imerso
em suas palavras, distrair-me ao menos um pouco com elas.
Elas me levaram à última noite em que estivéramos juntos. A
noite em que Eva expressara os sentimentos que ela nutria em
relação a mim. Eu não tivera a chance de correspondê-los em voz
alta, não quando parecia necessitar mais de declarar o que eu
sentia com gestos. A ruiva não parecera infeliz pelo modo que eu
escolhera agradecer a tudo que ela recitara em cima do palco.
Nada disso, no entanto, significava que eu não gostaria de
também ter colocado a cabeça no lugar naquela noite para ter lhe
dito tudo que se passava por minha mente. Por meu coração.
No dia seguinte, tampouco tive a oportunidade de encontrá-la,
de conversar com ela. Ela já tinha sumido, sem me fornecer
explicação alguma.
Eva voltara a fixar sua atenção em sua caixa, porém, seu olhar
voltou para mim em questão de poucos segundos, assim que toquei
em seu braço. Estava um pouco mais séria diante do contato
repentino.
— Acho que você não está me levando muito a sério aqui... Eu
estou lhe dizendo que senti sua falta, ok? Muito.
Desci minha mão até a sua e a envolvi. Sua pele estava fria,
então apertei seus dedos com uma força excessiva, tentando
transferir um pouco de meu calor para ela.
— Queria ter te visto ao menos uma vez depois da noite do Bar
1625. Queria ter conversado com você, justamente porque sei que
não possuímos a mesma facilidade de falar sobre nossos
sentimentos. Sei que você se esforçou em cima daquele palco para
ler o que escrevera acerca do que se passa em sua cabeça. E eu
queria ter te contado que cada uma daquelas palavras significou
mais para mim do que você um dia provavelmente poderá se dar
conta.
Então eu me sentei mais próximo dela, apenas para tentar ter
toda sua atenção para mim.
— Acho que... acho que você mudou minha vida de um modo
que nem eu mesmo possivelmente ainda posso me dar conta. Eu
nunca percebi o quão solitário eu era até te conhecer. Você foi a
primeira pessoa para quem eu confessei meus medos, Eva. Para
quem eu contei minhas verdadeiras perspectivas, minhas crenças,
meus anseios mais gerais e também mais particulares. E você
nunca me julgou. Nunca me persuadiu de absolutamente nada,
nunca tentou contornar quem eu realmente sou. Apenas...
permaneceu ao meu lado. Eu não fazia ideia do quão
desesperadamente precisava tê-la ao meu lado até de fato o fazer
— eu disse, fixando toda minha atenção em seus orbes escuros. —
Eu acho que não esperei por você por toda minha vida. Na verdade,
eu estive buscando por você durante todo esse tempo, ainda que
inconscientemente.
Àquela altura, os olhos de Eva já começavam a lacrimejar, o
que foi um indício de que ela estava mesmo escutando, assimilando
cada uma de minhas palavras. Mais do que isso, de que estava
entendendo tudo que ela significava para mim.
Aquela era a primeira vez que eu a via chorar, e foi inevitável
me perguntar, por um momento, se alguém já a vira naquele estado.
Eu achava que não.
— Você fez uma bagunça em minha vida, sabe? Entrou nela
como um dos piores furacões, destroçando absolutamente tudo que
estava intacto, que parecia resplandecer segurança. Isso
provavelmente me assustou um pouco no começo, mas foi algo
necessário, porque só então percebi que os destroços que você
deixou vieram de estruturas que nunca tiveram suas bases
inabaláveis; pelo contrário, elas já estavam fracas há algum tempo.
Você me obrigou a começar a construir novos alicerces, Eva. Mas
dessa vez com pilares mais concretos, mais imperturbáveis. Mais
seguros para mim mesmo.
Foi só então que uma lágrima escorreu por sua bochecha. E
Eva sequer se esforçou para secá-la.
Não pude conter o sorriso que logo se esboçou por meus
lábios.
— Estou contente que você tenha me submetido a mudanças
tão drásticas, Evangeline Christie. Porque eu não gostava nem um
pouco de minha vida antes de tê-la nela.
Em um ato aparentemente quase inconsciente, magnetizado, a
ruiva se aproximou de mim. E eu sequer hesitei em conduzi-la até
meu colo.
Alarguei meu sorriso quando ela também sorriu diante de
tamanha proximidade.
— Eu admiro cada traço seu. Cada pequena particularidade,
cada detalhe. Eu me apaixonei por você de um modo irredutível e
ininteligível, e me fascino cada dia mais por quem você é. Eu nunca
amei alguém como amo você, Eva.
Quando ela me beijou, o mundo ao meu redor ruiu. Nada
existia além de seus lábios que pressionavam os meus, da
sensação de sua pele ainda fria contra minhas mãos, de seus
cabelos que acariciavam meu rosto diante do vento gélido.
Era uma sensação tão única, a de tê-la para mim tanto
fisicamente quanto internamente.
Não estava pronto para ser privado de sua boca quando ela se
distanciou tão repentinamente, mas apenas o suficiente para
conseguir sussurrar:
— Lembra da primeira vez em que estivemos aqui? Sobre
nossa conversa sobre o outro plano?
— Claro que sim, Eva — eu respondi, quase instantaneamente.
Eu me recordava de cada uma de nossas conversas.
— Você nunca me perguntou o que o Paraíso significaria para
mim.
Os cantos de meus lábios voltaram a se erguer.
— E o que ele significaria para você?
— Acho difícil explicar. Mas talvez eu possa lhe mostrar.
Inevitavelmente, eu ri. Porque eu estava feliz. De uma forma
genuína e preenchedora.
O riso de Eva também reverberou por meus lábios quando ela
se aproximou para mais um rápido beijo antes de se colocar de pé.
Levantei-me logo depois dela, mas parei quando ela também o fez
de súbito.
— As caixas — anunciou apenas, quando o buraco diante de
nós lhe chamou a atenção. — Vamos, coloque a sua.
Eu hesitei por um breve momento. Mas enfim suspirei ao ceder,
porque tinha chegado à conclusão de que meus pertences em nada
importavam naquele momento. E, provavelmente, em nenhum outro.
Porque eles nunca teriam o poder de exercer um efeito tão intenso
sobre mim quanto Eva o fazia. Eram somente aqueles sentimentos
que importavam no fim. Os que me faziam me sentir vivo.
A ruiva colocou sua caixa logo acima da minha naquele
estreito, porém fundo buraco. Ela não fez menção de tentar
descobrir o que eu guardara, e eu também não fiz em sua relação.
Ter a certeza de que eu me surpreenderia com Eva ainda em um
futuro distante tempo me reconfortava imensamente.
— Quanto tempo? — questionei somente.
— Não sei. Vinte anos lhe parece uma boa opção?
— É muito tempo.
— Talvez seja o tempo necessário para termos certeza de
quem somos. Não nos afetaremos tanto ao desenterrar o passado,
dessa maneira.
Não queria continuar discutindo, então apenas murmurei.
— Então nos encontraremos nesse mesmo lugar e nessa
mesma data daqui a vinte anos.
Eva sorriu, ainda de um modo sincero e puro.
— Não importando quais destinos estejam à nossa espera, um
encontrará o caminho até o outro nesse dia.
Suas palavras foram mais revigorantes do que qualquer outra
coisa.
Ela não disse mais nada ao correr para o lago, ainda rindo
diante do nada. Do tudo.
E eu fiz o mesmo ao segui-la.
Roupa alguma envolvia nossos corpos quando adentramos na
água gélida. Sua temperatura não nos incomodou por muito tempo,
pois logo encontramos o calor um do outro.
A partir daquele instante, esquecemos nossos nomes. O que
éramos e até o que viríamos a ser. Nada mais importou além de
nossas respirações ofegantes e das sensações pujantes que um
propiciou ao outro. Absolutamente nada, naqueles não tão infinitos
momentos quanto eu gostaria que fossem, significou mais para nós
do que a liberdade de estarmos nos braços um do outro.
Aquela seria a última vez em algum tempo em que eu sentiria
que tinha encontrado meu lugar no mundo.
Eva voltara a sumir após a tarde em que passamos no lago.
Dessa vez, contudo, foram necessários somente dois dias para que
eu recorresse a decisões mais drásticas. Eu não me conformaria em
esperar até que Eva decidisse me ver, não mais.
Toquei a campainha de sua casa.
Um minuto inteiro se passou sem que houvesse resposta
alguma, então pressionei o dedo ali uma segunda vez. E uma
terceira, e uma quarta.
Continuei nesse ritmo até que a porta à minha frente enfim foi
aberta de um modo brusco demais. Quem apareceu logo atrás dela
foi Richard Christie. Suas feições, já habitualmente lamuriosas, se
contorceram em desgosto assim que seus olhos me localizaram.
Não deixei que isso me detivesse por um momento sequer.
— Quero ver sua filha — foi simplesmente o que eu declarei.
Aquele homem não merecia explicação alguma.
Ele franziu as sobrancelhas.
— Angel?
Neguei com a cabeça.
— Evangeline. Vim para ver Evangeline.
Ele bufou, decerto me depreciando.
Richard, infelizmente, ainda não se dera conta de que Angel ou
até Eva não eram sinônimos de Evangeline.
A primeira era a garota sobre a qual ele botara expectativas
demais. Era uma filha idealizada, uma utopia criada de acordo com
seus próprios princípios. A segunda era a mulher que vivia somente
por si mesma, uma pessoa de pensamentos independentes, de
sentimentos que não podiam ser manipulados.
Era uma pena que Richard provavelmente nunca perceberia
que não era Evangeline a culpada por não ser do modo que ele
delineara até mesmo antes de seu nascimento. A responsabilidade
da decepção era somente daquele homem, que nunca se preparara
para a autossuficiência e liberdade de alguém que não seria
somente sua filha, e, sim, um indivíduo. Uma pessoa não deveria
idealizar suas próprias perspectivas sobre outra apenas porque
compartilhavam do mesmo sangue.
— Eu não faço ideia do que você quer com minha filha, mas ela
não se encontra em casa.
Ele então fez menção em fechar a porta, mas coloquei o pé
logo em frente à batente. Quando Richard voltou a abrir a porta
perante a obstrução brusca, seus orbes pareciam reluzir ira crua.
— Então me diga onde ela está.
Aversão reluziu do homem grisalho diante da ordem explícita
por minhas palavras.
— O que diabos você acha que está fazendo, garoto? Seu pai
ao menos sabe que você está aqui, procurando por uma Christie?
Eu riria em outra situação pela máscara que escorria de seu
rosto. Não me recordava de tal avareza em momento algum da festa
de inauguração da empresa de Simon, embora isso não fosse uma
surpresa. Afabilidade, falsa afabilidade, não existia para pessoas
como a que se encontrava em minha frente em momentos que não
lhe eram convenientes, por trás das cortinas.
— O sobrenome de Evangeline importa para mim tanto quanto
importa para ela. Suponho que isso nos isente de quaisquer
explicações para com vocês. Agora, por favor, onde infernos ela se
encontra?
Ele soltou uma risada sem humor algum.
— Eu não posso pensar em um motivo pelo qual eu deveria
responder a essa pergunta.
Quando Richard voltou a tentar fechar a porta, eu a espalmei.
Empurrei-a para trás dessa vez, impaciente. Adentrei um passo em
sua casa sem convite algum, e, embora soubesse que as coisas
estavam fugindo do controle, eu não conseguia me conter. Por
algum motivo, eu sentia que algo estava errado. Não fazia ideia do
que, mas eu pressentia isso em minha... alma. Como se ela
estivesse interligada à de Eva.
— Engraçado, porque eu consigo pensar em vários. O principal
deles sendo que eu consigo me preocupar mais com ela do que o
pai o faz.
— Desculpe-me? — ele murmurou de uma forma áspera, nada
compatível com suas palavras. — Me diga, você perdeu a cabeça,
garoto?
Meu ímpeto foi respondê-lo, alastrar aquela discussão um
pouco mais. Porém, por fim, somente suspirei, genuinamente
exausto. Eu não podia me dar ao luxo de me esquecer do propósito
que me guiara até ali. Por isso, simplesmente saí da frente de
Richard, aproximando-me das escadas de sua casa que levavam
para o segundo andar.
— Evangeline! — gritei. Não tive a chance, contudo, de
continuar chamando pelo seu nome, pois logo Richard envolveu
meu braço bruscamente com sua mão e me puxou para trás.
— O que está acontecendo aqui? Você realmente perdeu o
juízo, garoto? O que te faz achar que pode invadir minha casa e
chamar pelo nome de minha filha tão deliberadamente?
— Se você conhecesse a filha que tem por um pouco que
fosse, saberia a resposta para essa pergunta.
O homem abriu a boca para me responder, mas logo a fechou,
como se lhe faltassem palavras a serem pronunciadas. Ele franziu
as sobrancelhas, nitidamente desconfiado, e sua respiração passou
a ficar ainda mais alterada, como se os pensamentos que passavam
por sua mente naquele momento não lhe agradassem em
absolutamente nada.
— Onde ela está? — eu insisti novamente, mais baixo dessa
vez, mas não menos firme.
— Se acha que eu darei satisfação alguma para um Hawkins,
você não poderia estar mais enganado. Agora pare de desperdiçar o
tempo de nós dois e volte para sua casa, Tristan. Isso é uma ordem.
Não tive pressa alguma ao lhe dizer:
— Sinto muito, mas ninguém me dá ordens, senhor. Não mais.
Não sairei daqui enquanto não tiver alguma informação sobre o
paradeiro atual de Eva.
— Já chega — ele vociferou, mais descontrolado do que
qualquer momento anterior. —Se você não sair agora, eu vou
chamar a porra da polícia.
— Então vamos lá. Chame-a. Também tenho algumas
acusações curiosas para fazer a seu respeito. O fato de você vir
deixando hematomas em sua filha talvez realmente possa despertar
o interesse deles.
— O que você disse? — Richard se aproximou um passo. Não
cedi.
— Exatamente o que você escutou.
— Escute aqui, seu merdinha, sequer pense que possuí o
direito de opinar sobre como educo minha filha. E se você está
realmente cogitando que eu, Richard Christie, poderia ser preso,
principalmente por exercer um direito que tenho como pai, você
realmente puxou toda a burrice de seu pai.
Náusea me domou por completo por um instante.
— Você deve ser a pessoa mais oca e pretensiosa em quem já
botei meus olhos. Não se envergonha de dizer que abusar de
alguém, principalmente fisicamente, se enquadra em um de seus
direitos? Não tenho ideia de como você consegue encarar a si
mesmo no espelho. Sequer posso imaginar como alguém como
você pode fazer parte de uma espécie racional e supostamente
evoluída.
Ele chegou um pouco mais perto de mim. Não havia mais do
que dez centímetros de distância entre nós agora.
— Eu tomo atitudes necessárias, garoto, mas não acho que
você tenha a capacidade de compreender isso. Só espero que
entenda que eu nunca perdi uma noite de sono por isso, nunca me
arrependi por fazer o que fui obrigado a fazer — ele disse amarga e
asperamente. Fiquei ainda mais enojado diante de seu tom
totalmente desprovido de emoções.
Richard enfim fez menção de se distanciar, mas, antes,
declarou baixinho:
— E, sinceramente, você está até mesmo me fazendo cogitar
que, talvez, eu ainda não tenha criado minha filha de um modo
apropriado, tomado providências ainda mais rigorosas para sua
educação. Porque, se em algum momento Eva chegou a se
envolver com você, seus preceitos não foram adestrados como
deveriam. E eu não poderia sentir mais vergonha dela.
Não pensei. Somente agi.
Fechei minha mão em um punho e a levei até seu rosto. O
estalo do encontro de meus dedos com seu nariz soou como música
em meus ouvidos.
Richard cambaleou para trás de um modo súbito ao levar a
própria mão até o sangue que começava a escorrer de suas
narinas. Seus olhos estavam arregalados, desorientados. Homens
como ele não estavam acostumados a serem contestados,
principalmente dentre os aspectos nos quais eu o fizera.
Aquela visão fez valer a pena toda a dor que avassalava meus
ossos perante o choque brusco.
Estava prestes a avançar contra Richard mais uma vez. Eu
estava quase cedo pela fúria, na verdade. Mas então uma voz
familiar logo chegou aos meus ouvidos:
— Tristan?
Em instinto, virei meu corpo em direção às escadas, de onde
veio a voz. Não demorei a encontrar Sam no primeiro andar
oscilando o olhar assustado entre mim e Richard. Ela parecia um
pouco cansada, e sustentava uma bolsa grande em um dos ombros.
— Sam? Eva está lá em cima? — questionei de súbito,
esquecendo-me do homem que sangrava atrás de mim. Nada mais
importava naquele momento além da ruiva.
— Tristan, o que você está fazendo?
— Sam, me responda — eu disse. Quase implorei, na verdade.
Eu estava realmente cansado de toda aquela escuridão que me
rondava.
A garota suspirou, porém enfim respondeu:
— Não, ela não está.
— Então onde ela está?
Sam hesitou, ainda das escadas, e foi então que eu sussurrei:
— Por favor, Sam. Eu preciso que você me diga o que está
acontecendo, porque a essa altura está bem óbvio que há algo
acontecendo aqui.
Ela inspirou fundo, tomando alguns intermináveis segundos
para assimilar minha súplica.
— Você não vai gostar da resposta, Tristan — foi o que ela
sussurrou de volta. — E eu também não sei se deveria ser eu a dá-
la.
Suas palavras me assustaram ainda mais. Meu coração
palpitava fortemente no peito, e adrenalina passou a invadir toda
minha corrente sanguínea. Entrei em um completo estado de alerta
naquele momento, mas não de um modo bom.
Honestamente, nunca me senti tão apavorado quanto naquele
momento.
— Mas talvez eu possa fazer com que a pessoa certa a lhe
oferecer alguma luz o faça — ela disse ainda mais baixo, inspirando
fundo. — Eva já esperou tempo demais para isso, suponho.
Ela então não hesitou mais. Somente lançou um último olhar a
Richard, e, embora seus olhos tivessem reluzido um pouco de
preocupação, Sam não fez nada para o ajudar. Até mesmo uma
pessoa afável como ela podia tomar a ciência de que o homem
merecera o que eu lhe dera.
A garota simplesmente apertou a bolsa em seus ombros e
começou a seguir em frente. Fiz menção em segui-la, mas parei
repentinamente.
Eu ainda tinha apenas uma coisa para fazer ali, algumas
últimas palavras para dirigir a Richard Christie. Foi por isso que girei
os calcanhares e caminhei até ele. O homem ainda não se esforçara
para se levantar, como se ainda não tivesse conseguido digerir o
que lhe acontecera.
Quase tive pena dele. Quase.
— Quer saber de uma coisa? — eu sussurrei ao agachar logo à
sua frente. Não esperei por uma resposta. — Eu sequer sinto raiva
ou ressentimento de você nesse momento. Na verdade, não sinto
nada além de pena, porque você não conhece a filha que tem,
nunca nem mesmo se esforçou para isso. E eu posso te garantir
que não há, nesse mundo, alguém mais íntegro ou coerente que
ela. Sincero ou cativante. Ela é a pessoa mais incrível que eu já tive
a sorte de conhecer, e se você cogitaria sentir vergonha dela ou por
ela... isso diz mais a respeito de você do que de sua filha, porque
seus princípios não poderiam ser mais diferentes dos dela. E,
sinceramente, qualquer um que possua tantos preceitos tão
distantes dos de Eva é realmente digno de piedade.
Ele não disse nada ao me ver me distanciar. E, embora| eu
soubesse que um homem como aquele nunca poderia ter
processado minhas palavras da forma que eu gostaria, que ele
sequer valia a saliva que eu gastara ao verbalizá-las, seu silêncio
me foi mais prazeroso do que deveria.

No banco do passageiro do carro de Sam, eu não fiz mais


pergunta alguma durante o trajeto até nosso destino. Ao meu lado, a
garota também não se prontificara a esclarecer algo em relação ao
lugar para onde nos dirigíamos.
Quando o carro foi parado em um estacionamento de hospital,
eu ainda me mantive em silêncio, mas foi porque eu não tive forças
para pronunciar palavra alguma. Assim também permaneci quando
segui Sam até a porta giratória da grande instituição.
O chão parecia desabar sob meus pés pouco a pouco
enquanto eu caminhava cada vez mais para o interior do local que
cheirava a álcool e éter. Minhas mãos tremiam, minhas pernas
pareciam prestes a ceder a qualquer momento e meus pulmões
nem mesmo tinham mais a capacidade de segurar uma fração do
pouco oxigênio que eu conseguia inalar.
Antes mesmo de entrar no elevador, de o elevador parar no
terceiro andar e de eu chegar no final do longo e largo corredor que
dava para consecutivos quartos hospitalares, eu já sabia. Minha
vida nunca mais seria a mesma após a resposta que eu estava
prestes a obter.
Em uma espécie de transe, eu segui Sam para uma sala de
espera. Lá, meus olhos opacos localizaram a mãe de Eva e sua
irmã sentadas em um sofá confortável e aparentemente macio.
Meus ouvidos quase obstruídos por completo ouviram Sam entregar
uma bolsa a elas e dizer que tinha pegado as roupas mais
confortáveis que achara em seus closets.
Não me importei com nada daquilo.
Apenas deixei que meus pés continuassem a me guiar em
frente, como se eles soubessem exatamente onde deveriam chegar.
Não foram necessários mais do que poucos segundos até que
não somente a terra acabasse de ruir totalmente sob meus pés, mas
que o mundo ao meu redor também fosse inteiramente dizimado de
uma só vez.
Quase caí de joelhos ao, através de uma larga janela, ver Eva
em uma cama de um quarto hospitalar.
Três dias se arrastaram desde minha chegada ao hospital.
Durante todo esse tempo, eu nunca saí da sala de espera, embora
eu fosse nitidamente indesejado pela família Christie. Não me
importei com aquilo, não liguei nem mesmo com a permanência de
poucas horas de Richard no recinto. Eu sabia que ele também
somente não fizera alarde quanto à minha presença porque havia
enfermeiros e médicos por todos os cantos, e ele ainda prezava por
sua imagem pública. Por isso, permaneci quieto em um canto
isolado do local, esperando até o momento em que seriam
permitidas visitas não familiares.
Sam também estava sendo mantida de fora, assim como seu
namorado, Alisha, Daniel e Chad, os quais chegaram um dia após
mim. Eles também foram elucidados da situação de Eva por Sam, e
eu não queria pensar no motivo que a levou enfim avisá-los sobre a
doença da ruiva.
Eu não escutara muito da conversa entre especialistas e Julia
Christie, porque ainda estava muito afetado com... tudo. Eu achava
que estava em uma espécie de inércia, consequência de um
genuíno e mais profundo pânico. No entanto, conseguira captar que
Eva estava em meio a uma luta com um tumor cancerígeno.
Tumores, no plural, na verdade.
Talvez, no fundo, eu tivesse tomado a decisão inconsciente de
não ouvir muito mais a partir daí, de controlar o que eu deixava ou
não de assimilar. Eu já tinha muito para digerir, e parecia que eu iria
desabar a qualquer momento caso a carga emocional que eu
carregava ficasse uma fração que fosse mais pesada. Eu estava
tentando manter a calma, embora isso fosse exaustivo demais,
quase impossível.
Eva passara boa parte daqueles três dias inconsciente. Nos
poucos momentos em que estava acordada, era somente Julia
quem adentrava no quarto. Genevieve, sua irmã, também tinha
passe livre para vê-la, porém não o fez muito. Honestamente, eu
estava um pouco irritado com os termos insensatos de que somente
pessoas com laços sanguíneos poderiam ver Eva. Aquelas pessoas
não eram quem mais a amavam e quem mais se preocupavam com
ela, de forma alguma.
Foi na noite do terceiro dia em que foram permitidas a entrada
de amigos ao quarto de Eva. Só podíamos ir um por vez, e Sam foi
a primeira a ser chamada pela própria Evangeline. Ela ficou por
quarenta e sete minutos inteiros lá dentro, e, quando saiu, seus
olhos estavam um pouco inchados. A garota disse a Daniel, que
estava sentado ao meu lado em silêncio até então, que ele podia
entrar, e então se dirigiu à saída do hospital, provavelmente para
pegar um ar.
Eu me senti mais perto de um colapso ao assimilar suas
palavras. Uma parte de mim tinha erroneamente concluído que Eva
iria querer me ver logo após a amiga. Meu instinto foi de segurar
Daniel, impedi-lo de entrar no quarto hospitalar a poucos metros de
distância de nós. Contudo, contive-me, porque eu não tinha o direito
de interferir nos desejos de Evangeline. Ninguém deveria ter tal
direito, na verdade.
Contei os minutos em que meu primo permaneceu naquele
quarto. Eles mais me pareceram como horas, décadas. Foi difícil
manter parte de minha sanidade restante durante todo esse tempo.
Daniel gastou vinte e quatro minutos ali dentro. Quando saiu,
parecia quase tão abalado quanto Sam. Ele avisou à Alisha que era
sua vez, e foi então que entrei em um desespero maior. Meu primo
sentou ao meu lado quando a garota fechou a porta do quarto
hospitalar por trás de si.
— Acalme-se — foi o que ele sussurrou para mim.
Tentei inspirar fundo e expirar o ar pela boca. Minha perna se
mexia incansável e constantemente em um gesto ansioso, e toda
extensão de minha pele suava frio.
Na falha tentativa de me distrair, forcei-me a questionar a
Daniel:
— O que ela lhe disse?
Ele suspirou.
— Disse basicamente que sabia que tinha errado ao tomar
várias decisões nos últimos meses. Mas que não se arrependia de
nenhuma delas. E então respondeu cada uma das perguntas que eu
tinha para lhe fazer com toda sinceridade possível, como se tivesse
chegado a hora de ela ser honesta quanto aos seus próprios
sentimentos e pensamentos. Como se ela sempre estivesse
esperando por esse momento. E, no fim, ela me escutou. Quis ouvir
tudo que eu tinha a lhe dizer, quaisquer que fossem minhas lamúrias
ou agradecimentos. Não me contestou, pediu desculpas ou me
agradeceu, apenas... realmente assimilou cada uma de minhas
palavras como nunca.
Meu coração acelerou ainda mais no peito. Suas palavras me
assustaram mais do que me distraíram, principalmente porque elas
deixaram subentendido que Eva estava... se despedindo.
Não quis, não podia aceitar isso, então voltei a contar os
minutos que a porta do quarto de Eva se manteve fechada. Alisha
demorou trinta e dois minutos lá dentro, e o namorado de Sam, vinte
e cinco minutos. Quando ele anunciou que eu enfim poderia ali
entrar, não hesitei por uma fração de segundo sequer.
Somente segui em frente com a maior agilidade possível, e, ao
adentrar no quarto hospitalar assustadoramente extenso, encontrei
Evangeline lúcida em sua cama, com olhos um tanto quanto já
alertas sobre mim, decerto já à minha espera. Por um momento, não
pude fazer nada além de observá-la, de tentar me convencer que
ela estava mesmo ali. Seus cabelos ondulados estavam espalhados
por todo seu travesseiro, e, embora seus fios estivessem opacos,
eles ainda podiam transmitir um pouco de todo o fulgor presente em
seu interior; sua pele, já geralmente pálida, agora parecia ser feita
de mármore, como se nenhuma veia ou artéria se encontrasse por
trás dela; ela estava mais magra também, e não soube dizer se ela
já se encontrara assim na última vez em que a vira, no campo, e
apenas não pude me dar conta disso porque estava extasiado
demais ao simplesmente tê-la por perto.
Cada um de seus detalhes pareciam desprovidos de vida.
Mas... ela ainda estava ali. E era tudo que me importava.
Eu pareci soltar o ar que inconscientemente andei prendendo
nos últimos três dias de uma só vez.
— Olha, só para constar, o que eu tenho não é contagioso, ok?
Você pode se aproximar.
Sua voz era arrastada, torturantemente rouca, porém ainda
continha uma fagulha de seu usual humor. Aquilo foi o suficiente
para me fazer soltar um riso, ainda que fraco.
Eu não disse nada ao me aproximar, e também permaneci em
silêncio ao puxar uma cadeira e me sentar ao lado de sua cama.
Meu olhar ainda estava fixo nela quando, em um ímpeto, eu segurei
uma de suas mãos gélidas e a trouxe para perto de mim. Eva não
protestou contra o toque repentino em nenhum aspecto.
Ao tocá-la, senti que meus maiores anseios enfim tivessem
sido atendidos de um modo arrebatador e inigualável. Eu
simplesmente estava necessitado dela.
Segundos se confundiram com horas enquanto nos encaramos
ali. Certamente não havia mais vestígios de humor em nossos
rostos; por incrível que parecesse, Eva estava tão séria quanto eu,
senão mais.
Ela não fez questionamento algum quanto ao que eu fazia ali,
quem me trouxera até ali. Era quase como se soubesse que o
momento de mostrar sua verdade tinha chegado, e estava
conformada com isso.
— Por que demorou tanto para me chamar?
— Porque eu senti que você precisaria de mais tempo comigo
do que eles... e, sinceramente, porque eu também senti que
precisaria de mais tempo com você do que com eles.
Engoli em seco, assimilando a informação.
— Por que não me disse nada antes? — eu indaguei então,
sem rodeios.
Ela também não hesitou em me responder.
— Porque eu não queria que você se importasse com minha
morte quando podia se importar cegamente comigo em vida.
— Não... Jesus, não fale isso, Eva — eu disse baixinho,
subitamente. As palavras em tom de súplica escapuliram quase que
inevitavelmente.
— O quê? Minha morte? — ela murmurou, porém não esperou
por minha resposta. — Vai acontecer, Tristan. Muito, muito em
breve, e... e eu sinto muito por não ter te dado o tempo que você
precisava para assimilar isso, porém você tem que começar a lidar
com a minha ida.
Foi aí que meus olhos começaram a ficar úmidos. Eu também
comecei a tremer um pouco. Eva não se deteve por isso. Ela
somente inspirou fundo, tomando fôlego para dizer tudo que
aparentemente precisava dizer.
— Descobrimos um tumor em meu fígado há quase um ano. Eu
estava sentindo dores abdominais muito fortes, mas pensei que não
fosse nada. Quando somos jovens, muitas vezes achamos que...
somos invencíveis, sabe? Mas isso certamente não é verdade.
Enfim, após alguns meses enganando essa dor insistente com
analgésicos, eu decidi tirar alguns exames sozinha. Recebi o
diagnóstico de que estava com um tumor Metastático, o que
significa que os tumores se disseminaram para os linfonodos. Eu
estava com câncer há provavelmente muito mais tempo do que
posso me dar conta. Essa é uma doença silenciosa, na verdade. Os
primeiros sintomas costumam ser fadiga e perda de peso, mas... eu
achei que eu somente estava depressiva. Não dei muita importância
para isso, e meus pais... bem, eles nunca se importaram comigo o
suficiente para notar que algo estava mesmo errado comigo, de todo
modo.
“No começo, quando lhes contei sobre meu diagnóstico, eles
também não ligaram muito. Quer dizer, para eles, o dinheiro resolve
tudo, entende? Ele compra os melhores tratamentos, os melhores
médicos... portanto, ele compraria minha cura. Meu pai insistiu que
eu deveria viver minha vida normalmente enquanto começava o
tratamento, pois isso era somente um pequeno empecilho para meu
sucesso. Eu o ouvi no início porque... eu estava com tanto medo. Eu
queria acreditar nele, Tristan. Eu continuei com a faculdade que ele
escolhera para mim, permaneci dando o meu melhor para
conquistar um futuro que eu sequer queria, mesmo quando eu
morria por dentro, mesmo enquanto a quimio e a radio me
destroçavam pouco a pouco. Eu continuei vivendo uma vida que
não era minha até que os resultados dos tratamentos chegaram. O
tumor havia avançado de estágio.”
Eva apertou minha mão, como se fosse eu quem realmente
precisasse de consolo ali, e não ela. A primeira lágrima
inevitavelmente escorreu por minha bochecha.
— Foi somente então que a ficha de meus pais caiu. A minha
também. Eu podia não ter tanto tempo a perder. Foi aí que eu fechei
minha matrícula na universidade. Que comecei a viver por mim, que
disse e fiz tudo que quis, porque eu podia. Sempre pude, na
verdade, e reconhecer isso foi simplesmente tão... libertador. Viver
cada dia como se fosse o último pode lhe parecer triste, mas eu
nunca fui tão feliz em toda minha vida, porque eu me deixei guiar
por mim mesma pela primeira vez, Tristan.
“Deixei de comparecer às sessões de tratamento porque elas
estavam tirando toda minha disposição, e, embora pudessem estar
aumentando minha expectativa de vida, eu não queria viver mais
dias que não valeriam a pena ser vividos. Vivi no limite até meus
pais me internarem em uma instituição especialista em casos como
o meu, em outro estado. Era lá em que estávamos quando você se
mudou para a casa ao lado da nossa. Eu relutei o quanto pude
contra as medicações que eu estava tomando lá, pois, mais uma
vez, elas não tinham o poder de me curar, apenas de prolongar uma
vida cansativa e digna de pena. Lutei contra eles até que a
instituição onde eu me encontrava dissesse aos meus pais que era
impossível prosseguir com meu tratamento. Eles não tinham a
liberdade de fazer nada contra minha vontade, pois eu já era maior
de idade. Meus pais me trouxeram de volta para casa revoltados
como nunca, porém eu não me importei nem um pouco com isso.
Seus sentimentos me significavam nada quando comparados aos
meus próprios.”
Recostei-me na minha cadeira quando a ruiva tomou uma
pausa para que eu absorvesse todas as informações que ela me
confidenciava pela primeira vez. Os poucos segundos que ela me
deu não foram suficientes para isso. Eu sentia que... poderia
precisar de anos até entender como tanto podia ter acontecido a
alguém como Eva. Ela não merecia isso. Nada disso.
— Voltei a viver cada dia como se fosse o último, mas, dessa
vez, tentei fazer com que as pessoas ao meu redor fizessem o
mesmo, porque meu tempo estava acabando a cada segundo mais,
e eu senti que precisava fazê-los aprender o que pudessem comigo,
algo que lhes valesse para a vida inteira. E… eu admito que cometi
alguns erros no caminho, tentando fazer com que aprendessem a
usufruir de um tempo que eu mesma não teria, mas... não me
arrependo de nada disso, Tristan. Não tenho arrependimentos de
absolutamente nada acerca dos últimos meses. Somente lamento
por todos os anos de minha vida que foram controlados pelos meus
pais, em como eu me deixei ser manipulada. Mas, de toda forma,
isso também não importa. Os poucos meses que tive em liberdade
valeram como uma vida inteira para mim. E até mais.
Permaneci em silêncio, arrebatado. Apavorado, zangado.
E Eva enfim permitiu que eu sentisse esse misto de
sentimentos depreciativos e tão angustiantes sem dizer
absolutamente nada.
Eu ainda mal tinha acabado de processar cada fração de
desconsolo que avassalava todo meu interior quando falei:
— Isso não é justo. Essa porra não é justa com você, comigo.
Eu sabia que aquelas não eram as palavras que eu devia estar
proferindo, que eu não devia estar transmitindo toda a frustração e
raiva que eu sentia justamente para ela, porque era Eva quem mais
sofria com tudo. Porém, era inevitável. Eu não consegui parar. Meus
pensamentos continuaram a ser verbalizados, continuaram a fluir
com quase tanto descontrole quanto minhas lágrimas.
— Você não deveria estar morrendo, Eva. E você também não
deveria estar aceitando isso, ok? Você deveria ter uma vida longa
pela frente, você merece isso. Você merece conquistar cada sonho
que um dia teve, merece ter a chance de continuar cometendo erros
e ainda mais acertos. Mais pessoas deveriam ter a oportunidade de
conhecê-la, de amá-la por quem você é, e eu... eu... — àquela
altura, lágrimas ofuscavam toda minha visão, e eu mal conseguia
respirar. — Eu deveria ter mais tempo com você. Eu deveria ter toda
uma vida com você.
— Tristan... — ela sussurrou, balançando a cabeça. — Tudo
que tivemos foi tempo emprestado. Você deveria ficar grato pelo que
pudemos viver, e não frustrado pela vida que não poderemos ter.
Quis rir com suas palavras.
— Pare de agir como se tudo isso fosse... fácil, de me dizer
como... como...
— Superar — ela soprou o que eu não consegui dizer.
Um curto silêncio, porém ainda intenso, recaiu sobre nós a
partir daí. Recostei em minha cadeira então, tentando me recompor
pelo pouco que fosse e fazer com que minhas lágrimas cessassem,
porque eu não queria passar aquele tempo com Eva que eu
esperara tanto para ter de modo tão descontrolado.
Eva esperou que eu me estabilizasse sem pressa alguma, e
então disse com uma serenidade calmante:
— Não estou agindo como se fosse fácil. Minha morte e seu
luto. Mas eu não tenho o poder de alterar nada acerca da minha
situação, apenas o modo como lido com ela, então, não me peça
para ficar com raiva ou inconformada com tudo que está
acontecendo, porque isso somente piorará as coisas para mim. Eu
prefiro olhar para tudo que eu tive a oportunidade de viver até aqui e
sorrir do que para o futuro que não terei e derramar lágrimas por
isso.
Por algum motivo, minha pele começou a se arrepiar por
completo, como se suas palavras reverberassem por ela.
— Havia dias na instituição onde fui internada em que eu ficava
apavorada, sabe? — ela começou a falar, e me forcei a escutar tudo
que ela teria para me dizer, a me concentrar e a me apegar somente
a isso. — Estavam me ensinando a lutar contra algo inevitável lá. A
morte. A cada dia que eu acordava, eu sentia que estava um dia
mais próxima dela. Passei dias terríveis naquele lugar, e minha
mente era prisioneira de algo que me fizeram achar ser meu
propósito. Viver o máximo de tempo possível. O tempo se tornou
relativo para mim com isso, e eu mal conseguia respirar ao pensar
em quantos segundos eu gastava apenas para inalar algum ar.
Também pensava muito sobre a própria morte, e entrava em pânico
com isso. Mesmo quando eu saí da clínica, quando eu fiquei sã o
suficiente longe dali para voltar a entender que nosso propósito
nunca deveria ser viver o máximo de tempo possível, e sim viver o
máximo possível, eu ainda temia um pouco o dia de minha ida, era
inelutável. Mas... quer saber quando eu parei de receá-la por
completo?
Apertei sua mão com ainda mais força, preparando-me para
sua resposta, e então assenti uma vez.
— Quando eu te conheci. Não quando eu te vi, mas quando eu
te conheci de verdade.
Inevitavelmente, lágrimas voltaram a invadir meus olhos.
— A cada dia em que eu acordei a partir daí, eu não me senti
aflita por estar um dia mais próxima da morte em nenhum momento.
Eu me senti realmente afortunada por viver mais um dia em que eu
poderia ser ouvida, em que eu poderia ouvi-lo; pelo tempo a mais
que eu teria para estar ao seu lado. Você também foi a primeira
pessoa que me aceitou, Tristan. Que, embora não concordasse com
algumas de minhas atitudes, permaneceu ao meu lado
incondicionalmente, que nunca questionou minhas intenções.
Sempre afirmou quais de minhas decisões não achava corretas,
porém continuou se deixando... me amar. Por isso, eu sou
incondicionalmente grata a você, Tristan. Por ter sido meu parceiro,
meu confidente e amante nos últimos nanossegundos do meu
segundo tempo. Você fez tudo valer a pena.
Quando enfim entendi o quão literal seu último poema havia
sido, desatei a chorar mais uma vez. Só que dessa vez, o choro foi
mais profundo, primitivo. Lágrimas escorriam de meus olhos como
nunca, e cada centímetro de meu interior parecia se encontrar
trêmulo.
Larguei sua mão apenas para levar ao meu rosto, e, quando
encostei a testa na grade de sua cama hospitalar, Eva a apoiou em
minha cabeça.
— Eu não vou conseguir.
Eu não iria conseguir tantas e tantas coisas sem ela. E, como
se Evangeline entendesse tudo que eu deixara subentendido, ela
sussurrou:
— Vai ser difícil no começo, eu suponho. Mas você vai
conseguir, Tristan. Vai seguir em frente, vai continuar se
encontrando cada dia mais porque você é capaz disso. Tudo só
depende... de si mesmo. Tudo sempre dependeu somente de si
mesmo. E, enquanto você percorre o caminho que nasceu para
percorrer, enquanto você corre à procura de seu propósito, aos
poucos, a dor do luto começará a se tornar apenas uma lembrança
de uma tragédia que te fez forte. E então, algum dia, essa dor enfim
cessará ao ponto de você conseguir ver tudo que ela ofuscou, a
felicidade anterior ao desconsolo. Você apenas precisará ter
paciência e... esperança durante as tempestades que estão por vir.
E, quando o arco-íris finalmente chegar, você será grato pela
tormenta que o proporcionou.
Inspirei fundo, e me forcei a levantar a cabeça para encará-la.
— Está tudo bem. Tudo vai ficar bem, eu prometo — foi o que
ela sussurrou.
Fiquei bravo comigo mesmo naquele momento, porque não
deveria ser ela a me consolar ali. Foi então que eu me forcei a tomar
forças somente para questionar:
— Você não está mesmo com medo?
Ela pareceu ser sincera ao negar com a cabeça. Estava sendo
honesta.
— Se a morte for o fim da consciência, não haverá dor ou
sofrimento nela. E, caso eu esteja indo para algum outro plano, eu
acredito que deve haver coisas boas à minha espera. Não há o que
temer.
Assenti, tentando assimilar cada uma de suas palavras e não
temer por Eva.
Evangeline sorriu para mim por um momento, como se
quisesse passar parte de toda sua segurança para mim, como se
ainda quisesse me reconfortar. Ela então chegou para o lado de sua
estreita cama e fez um gesto para que eu me deitasse ao seu lado.
Nem mesmo hesitei em ocupar o lugar, embora aquilo
provavelmente fosse proibido.
Não importei com nada além do calor de seu corpo. Deitei a
cabeça no travesseiro ao lado do seu, e a puxei para o mais perto
possível, como se nenhuma proximidade do mundo fosse o
suficiente para mim. Deixei-me segurá-la pelo tanto que foi possível.
Quase inconscientemente, peguei-me prestando atenção em
seu cheiro. No modo como o toque entre nossas peles me fazia
arrepiar por completo, na forma como ela se movia e até em sua
respiração calma e irredutível.
Não quis admitir a mim mesmo que eu estava tornando aqueles
momentos em memórias às quais eu poderia recorrer quando mais
precisasse em um futuro muito mais próximo do que deveria.
— Eu não sei o que farei sem você — eu admiti em um
sussurro após minutos que não foram tão longos quanto deveriam.
— Viva. Viva por você. Encontre pessoas que façam por você o
que você sempre fez por mim, Tristan. Ame e se deixe ser amado.
Permita-se tomar decisões inconsequentes e veja até onde elas o
levam, e, caso não goste destes caminhos, nunca hesite em fazer o
que for necessário para tomar outro rumo na primeira oportunidade
que tiver. Erre, erre muito, mas sempre aprenda com suas falhas. E
nunca peça desculpas por tentar fazer o melhor por si e pelas
pessoas com quem você se importa.
Fechei os olhos por um momento, também memorizando o
modo como sua voz soava como música aos meus ouvidos. Algum
tempo se passou sem que disséssemos algo mais, e não me
entristeci por isso. Somente sua presença era suficiente para mim.
Muito mais do que suficiente, na verdade.
Eu senti que daria minha vida pela dela caso fosse possível.
Nem mesmo hesitaria antes disso. Porém, isso não era possível.
Então, eu faria o que estivesse ao meu alcance para viver por
nós dois. Contudo, pensaria sobre isso mais tarde, pois naquele
momento... eu não faria nada mais do que me permitir usufruir o
máximo possível do agora.
Eu não queria me despedir, e também não achei que Eva
estava esperando por isso, portanto, quando eu quebrei aquela
quietude, foi apenas para dizer:
— Você é o amor da minha vida, Eva. Sempre será.
Ela sorriu com minhas palavras, e, após um instante, transferiu
o olhar para mim ao questionar baixinho:
— Quer saber qual é o caminho até meu lugar nesse mundo?
A atenção que lancei a ela foi o bastante como resposta.
— É o caminho que me levou até você.
Eu consegui sorrir sinceramente pela primeira vez em dias. E
subitamente soube que aquele também seria o último sorriso singelo
e genuíno que daria ao menos em algum tempo.
Não soube exatamente como, mas, no calor consequente da
junção de nossos corpos, eu acabei caindo no sono. E, em meus
sonhos, vi Eva correndo em um jardim repleto de cores
resplandecentes e de músicas lindas compostas por cantos das
mais diversas aves. Um jardim saturado de vida.
Quando eu acordei, Eva de fato já havia partido, como se sua
alma enfim tivesse cumprido todos seus deveres naquela terra.
Foi assim que Evangeline Christie me deixou, de um modo tão
repentino quanto o com o qual entrara em minha vida.
O enterro de Evangeline foi uma farsa. E eu me recusara a
participar dela.
Honestamente, eu sabia que não era o que Eva desejaria para
sua morte. Pessoas que nunca se importaram com ela em vida com
lágrimas que nada significavam escorrendo por suas bochechas
perante seu caixão. Contudo, no fim, eu não achava que Eva
também poderia chegar a se importar tanto com isso.
Eu observava toda aquela cena protagonizada pelo que deveria
ser sua família e seus supostos amigos de longe.
Permaneci ali até seu caixão ser de fato enterrado. Não para
me despedir, mas por respeito.
Eu nunca diria “tchau” a Eva em qualquer modo. Ela sempre
estaria comigo, porque, de uma forma ou de outra, sempre exerceria
alguma influência a qualquer decisão que eu tomasse a partir dali.
Eu a levaria para onde quer que eu fosse até o fim de minha vida, e
provavelmente, até depois disso.
— As coisas não deveriam ocorrer assim.
A voz de Sam chamou minha atenção, e logo percebi que ela
se aproximava de mim por trás. Não fiquei surpreso com sua
surpresa, embora não a tivesse visto em nenhum momento até ali.
Eu suspeitava que, quem realmente se importava com Eva, não
fizera menção alguma em participar ativamente daquele evento
fúnebre. Assim como eu, eles podiam identificar que seus pais
esbanjavam uma mentira ali, o que não poderia distinguir mais aos
preceitos de sua filha em vida.
— Não, não deveriam — eu concordei baixinho quando ela
parou ao meu lado.
— Mas as coisas...
— São como são — completei inevitavelmente.
A garota soltou um riso fraco.
— Ela realmente nos deixou alguns legados bem interessantes,
não foi?
— Suponho que sim — respondi, arqueando as sobrancelhas.
— Acho que nos resta dar continuidade a eles.
Sam assentiu ao meu lado, e então permanecemos em
silêncio. Não derramamos lágrima alguma quando terra começou a
ser jogada em cima do caixão de Eva, mas não porque não
estávamos profundamente tristes ou desconsolados — nós
estávamos. Não choramos porque, no fundo, ambos sabíamos que
Evangeline odiaria que estivéssemos lamentando acontecimentos
imutáveis.
Nós seguiríamos em frente, justamente como ela gostaria.
Daríamos nosso melhor para aprender a seguir em frente, nos
levantaríamos após cada queda que decerto sofreríamos no
caminho, viveríamos a vida que nós mesmos gostaríamos de viver,
pois seria isso que deixaria Eva feliz. Suspeitava que nunca
sentiríamos menos sua falta nos dias que ainda estavam por vir,
mas de fato faríamos das memórias, um espólio.
Eu e Sam ficamos ali até todos deixarem as redondezas do
buraco onde o corpo de Eva agora se encontrava. Não estava
pronto para ir embora, porém... eu tinha que ir. Não havia nada mais
que me segurava ali, nem eu mesmo. Eu precisava me encontrar,
no fim.
— Para onde você vai? — Sam questionou quando eu peguei
minha única mochila deixada no chão.
— Honestamente... eu não faço ideia. Mas suponho que eu
tenha que vagar sem rumo por um pouco para descobrir qual minha
sina. Ainda tenho que achar meu lugar no mundo, Sam, e estou
determinado a procurar por ele.
Ela assentiu, não me contestando por um momento sequer.
Apenas suspirou e se aproximou por um pouco para um abraço de
uma despedida momentânea.
— Dê notícias. Para todos nós.
— Eu vou.
Soltei-a, e ela se distanciou sem nem mesmo hesitar, como se
realmente soubesse que eu precisava ir.
Lancei a ela um breve sorriso antes de lhe dar as costas. Não
cheguei a me distanciar cinco passos, entretanto, antes de ouvi-la
chamar:
— Tristan?
Virei o rosto até que eu pudesse avistá-la.
— Tenha uma vida feliz — ela sussurrou, e percebi que seus
olhos estavam úmidos. Algo me disse que aquelas lágrimas em
específico se deviam unicamente à esperança.
— Eu vou tentar, Sam. Com todas minhas forças e com todo
meu coração, eu vou tentar.
Não olhei para trás ao sair ao encontro de meu destino,
qualquer que fosse ele. Por ela. Mas também por mim.
19 anos, 11 meses e 23 dias depois

Ainda não havia amanhecido. Não pude esperar pelo nascer do


sol. Já o tinha feito por anos demais.
Apenas com a iluminação proveniente dos faróis de meu carro
eu cavava a terra à minha frente. Eu cravava a enxada no solo mais
e mais fundo a cada momento, sem nunca parar, sem nunca
descansar.
Minutos se confundiram com horas conforme eu buscava pelo
que já havia descansado por tempo suficiente. E pareceu se passar
de fato uma eternidade até que eu sentisse a enxada se chocar
contra um material mais sólido. Joguei a ferramenta de lado e me
agachei quase que de imediato, afastando com as mãos a terra
restante até que eu avistasse por completo duas caixas.
A minha se encontrava logo em cima, e eu a peguei primeiro.
Mas apenas para conseguir retirar a caixa de Evangeline em
seguida. Voltei a segurar a minha então, e a encarei, quase
sorrindo. Era quase engraçado como o que eu achava que poderia
me importar vinte anos antes não tinham a mesma importância
agora. Não tive necessidade de abri-la, e foi por isso que voltei com
ela para o buraco diante de mim.
Algumas coisas não precisavam ser desenterradas, afinal.
Envolvi a pequena caixa de madeira de Evangeline com as
mãos novamente, e então me sentei na terra mesmo, sentindo que
podia respirar mais calmamente pela primeira vez em algum tempo.
O último dia tinha sido um tanto quanto caótico, afinal.
Há menos de vinte e quatro horas, eu pisara em Seattle pela
primeira vez em duas décadas. Nunca houve o porquê de voltar até
agora.
Contudo, eu passara o último dia inteiro visitando alguns
lugares que mereciam ser visitados. Primeiro estivera na casa de
Daniel e Freya, e conhecera seu terceiro filho, que tinha apenas
alguns meses de idade. A última vez que eu os vira já havia dois
anos, quando eles organizaram uma viagem em família e puderam
me visitar. Eu almoçara junto a eles, e o que uma vez vivemos
surgiram como histórias de descontração para as crianças. Apesar
da dor do passado, sempre haveriam memórias capazes de trazer
felicidade e conforto, aparentemente.
Mais à tarde, eu visitara Sam, com quem eu nunca perdera o
contato, embora não tivéssemos nos visto de fato desde que eu
deixara a cidade. Agora ela vivia com sua noiva, uma mulher com
quem começara a namorar há cerca de cinco anos. Alex morrera há
menos de uma década, em um acidente de carro; ele e Sam não
estavam mais juntos naquela época, porém ela sempre tivera um
carinho grande demais por ele.
Em uma parede de sua sala de estar, Sam emoldurara diversas
fotos que tinha com Evangeline e Alex. Havia até mesmo alguns
retratos onde apenas Eva se fazia presente, sorrindo. Ela nunca a
esquecera, afinal. Eu duvidava de que qualquer um que a
conhecera tivesse o feito, na verdade.
À noite, passara no Bar 2516, que surpreendentemente ainda
estava de pé. Mais do que isso, ele agora pertencia a Lyle. Ela
ainda organizava as noites de Slam lá, e agora mais do que uma
vez na semana, já que construíra uma comunidade sólida demais ao
longo de todos aqueles anos. Muitas pessoas mais que ansiavam
ser ouvidas conseguiram encontrar Lyle, segundo o que a própria
me contara.
A decoração do local era outra, e eu poderia apostar que
Evangeline teria a aprovado. Atrás do palco, alguns poemas
estavam pendurados; alguns mais simples, anônimos, e outros de
quem agora eram importantes autores, que antes começaram ali.
Um poema de Evangeline se encontrava no centro de todos, o que
ela recitara pela última vez.
Segundo Lyle, fora naquela noite que Eva lhe contou sobre seu
destino; eu me lembrava vagamente de a garota ter sumido logo
após sairmos do maldito banheiro com roupas e cabelos
desgrenhados; devia ter sido naquele momento. A garota arrancara
a folha de sua caderneta, dando-a à mulher como uma lembrança.
Seria provavelmente a última vez que ela passaria por ali, afinal;
Evangeline sabia que seu destino se aproximava.
Meus olhos se encheram de lágrimas quando eu tinha visto a
página rasgada por trás do vidro da moldura, escrita à mão. Eu não
pude deixar as palavras sobre o que uma vez eu signifiquei a
alguém tão vívidas em minha mente após tanto tempo, então
relembrá-las foi como as viver novamente.
Lyle me dissera que foi aquela última conversa que tivera com
Evangeline que a incentivou a correr atrás de seus sonhos. A
mulher começara a se comprometer realmente a fazer as noites de
Slam se tornarem maiores do que já eram após Eva lhe confidenciar
que elas ajudaram a fazerem-na chegar à conclusão de que sua
curta vida tinha valido a pena. Eva encontrava a felicidade no Bar
2516 mesmo dentre tanto medo e anarquia, porque ali ela podia ser
sincera quanto ao que lhe afligia quando não o fazia com ninguém
mais.
Fui sair do bar apenas na madrugada, porque naquela noite
haveria o Slam, por sorte. Escutei cada confissão das dezenas de
pessoas que subiram ao palco, e ao fim delas, sorri, porque eu
podia perceber um reluzir de alívio em seus olhos no momento em
que fechavam suas cadernetas.
Tomei rumo direto ao jardim então, e tinha chegado às quase
cinco da manhã. Ali estava, portanto.
Exalei o ar pesado pela boca, ainda segurando a caixa de
madeira em meu colo com uma força excessiva. Tinha chegado a
hora, enfim. Aquela seria um último presente dos infinitos que
Evangeline tinha deixado para mim.
Meus dedos estavam trêmulos quando os levei à fechadura de
aço, e meu coração palpitava fortemente no peito. Quando levantei
a tampa da caixa, encontrei uma folha solta, logo acima de uma
caderneta. Sua caderneta. Ela nunca tinha sido achada por nós
após sua morte.
Eu chegara a pensar que Evangeline tinha a jogado fora, não
desejando que todos seus pensamentos nos fossem expostos.. Eu
já devia ter imaginado que a caderneta estaria ali, era
provavelmente o único bem material ao qual ela era apegada o
suficiente para desejar colocar em uma cápsula do tempo.
Peguei a caderneta, e sorri ao sentir a textura da capa preta.
— Oi, Eva — eu sussurrei. Eu tinha em minhas mãos ao menos
um pouco de sua essência.
Não abri a capa, entretanto. Eu ainda teria muito tempo, e
provavelmente não teria pressa para acabar com seu conteúdo.
Ao invés disso, então, peguei a folha dobrada da caixa. Ela não
continha absolutamente nada de especial, estava até um tanto
quanto amassada. Ainda assim, eu a segurava com toda cautela do
mundo, como se fosse de fato um artefato.
Lágrimas invadiram meus olhos quando encontrei uma letra
familiar, uma linguagem há muito familiar.
Obrigada por não me esquecer e por ainda desejar me
desvendar após tanto tempo, garoto.
Ou você enfim se tornou um homem? Eu aposto minha vida
que sim.
Adeus, Tristan.
— Engraçadinha — eu murmurei, soltando um riso
estranhamente embargado.
Ela não tinha dito muito. Não precisava. O fato de Eva ter me
deixado aquele pertence já significa muito mais do que quaisquer
palavras poderiam o fazer. Eu signifiquei para ela tanto quanto ela o
fez em relação a mim. E eu sempre seria grato por isso, Evangeline
sempre faria parte de minha vida.
Dobrei a carta novamente e a guardei dentre as páginas de sua
caderneta. Deixei-a em meu colo antes de pegar o livro que eu
deixara ao meu lado e colocá-lo em sua caixa de madeira. Fechei-a
e coloquei de volta em seu devido lugar.
— Aposto minha vida que você continuou fazendo a diferença
desde que se foi e que continuará a fazendo por muito tempo mais
— eu disse por fim, e me coloquei de pé para selar o buraco, dessa
vez para sempre.
No momento em que coloquei o último punhado de terra no
lugar do qual tinha o tirado, peguei a caderneta mais uma vez e girei
os calcanhares em direção ao meu carro. Instantaneamente,
deparei-me com dois olhinhos alertas encarando-me através do
vidro frontal.
Soltei um riso nasalado.
— Como você foi parar aí, espertinho? — eu perguntei baixinho
para o menino de seis anos de cabelos rebeldes presente no banco
do motorista quando me aproximei da janela aberta de sua porta. —
Você vai acordar sua mãe.
Eu indiquei para a mulher que dormia no banco ao seu lado.
— O que você estava fazendo, papai? — ele retrucou apenas,
sem se importar em responder à minha pergunta.
— Um dia eu te contarei — eu respondi sinceramente. — Mas,
por enquanto, você vai voltar para o banco de trás e continuar a
dormir. Temos um caminho longo de volta até casa.
— Não quero voltar para casa. — O garoto fez um beicinho. —
Eu gostei daqui. Da tia Sam e da tia Lyle.
— Eu sei. — Assenti. — Você poderá voltar se quiser, eu
prometo. Porque…
Arqueei as sobrancelhas, e ele sorriu.
— Porque poderei escolher a vida que desejar para mim —
completou, genuinamente feliz.
Eu tinha construído meu lar. E daria a liberdade que meu filho
construísse o seu quando tivesse a idade.
Eu ri diante de sua pequena euforia, mas também levei meu
indicador aos lábios.
— Ande, vá para trás — falei. — Sua mãe está cansada. Foi
um dia longo para ela também.
Ela tinha estado ao meu lado por todo tempo, afinal. Porque
éramos uma família. Uma família de verdade.
O garotinho finalmente murmurou um “tá bom, papai” e foi para
o banco de trás enquanto eu segui para o porta-malas. Guardei a
enxada ali e fechei a porta. Estava pronto para voltar para o banco
do motorista, mas então algo chamou minha atenção.
O sol começava a nascer naquele momento, trazendo um tom
rubro para o céu.
Estranhamente, tive a súbita certeza de que, de onde quer que
Evangeline estivesse, ela se orgulhava de minha vida, porque fora
eu quem a escolhera.
Era tudo que ela um dia desejou para mim, eu sabia.
Eu ainda sorria quando sussurrei:
— Adeus, velha amiga.
Honestamente, eu não faço ideia de qual tenha sido a
impressão desse livro para vocês. É uma obra subjetiva, penso eu.
Ela dá a vocês a liberdade de crerem no que optarem por.
Essa não é uma história religiosa. Mas, ainda, é uma história
que abrange Deus, Que é em Quem eu escolho acreditar.
Por isso, Ele será o Primeiro a Quem agradecerei hoje. Sua
presença me conforta, e é a minha crença que me dá esperança a
cada segundo do dia.
Devo muito mais do que um simples agradecimento aos meus
pais, por não serem nada parecidos com os pais de Evangeline.
Obrigada por me apoiarem e terem orgulho de mim. Também sou
muito grata ao restante de minha família, minha família de verdade.
Eu sinto o amor de vocês em tudo que fazem por mim, e eu não
poderia amá-los mais por isso.
Também agradeço às meninas com as quais divido uma casa
atualmente. No dia anterior ao dia em que escrevo isso, tive uma
conversa instigante sobre Espiritismo com algumas delas, o que me
deu informações a mais sobre esse assunto para acrescentar a
certos diálogos de alguns capítulos. Elas provavelmente não lerão
isso tão cedo, mas, de todo modo, gostaria de deixar meu
“obrigada” eternizado aqui. E devo acrescentar, é interessante
conviver com pessoas das Humanas.
Obrigada também aos personagens deste livro. Eu não vou
mentir aqui, foi um pouco difícil para mim escrever sua história, pois
ambos protagonistas possuem uma carga emocional pesada. Havia
dias em que me sentia um pouco vazia, porque eles consumiam boa
parte de minha energia durante a escrita. Mas acho que valeu a
pena. Espero, com todo meu coração, que vocês tenham aprendido
um pouco que seja com os dois.
Por fim, agradeço a vocês, leitores, por terem chegado até
aqui. Essa é uma obra com uma premissa diferente do que
geralmente escrevo, porém não menos especial. Espero também
que vocês tenham sentido isso. Tudo que faço aqui é por vocês.

Com amor,
Thaísa.

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