3 Por Ouvir Voce (Por Voce) - Mariana Vaz
3 Por Ouvir Voce (Por Voce) - Mariana Vaz
3 Por Ouvir Voce (Por Voce) - Mariana Vaz
Mariana Vaz
Prólogo
Eduardo
Três...
Dois...
Um...
O chiado alto da exaustora número cinco soou acima de nossas
cabeças, no tempo exato em que deveria soar.
O operador de uma empilhadeira passou sem se importar com a
interrupção, mas notei que um outro funcionário deu um pulo de susto com o
barulho repentino. Provavelmente era um novato, mas que logo estaria
habituado com toda aquela sinfonia.
Aquele era o maior indício de que a exaustora funcionava. E bem.
Logo ele aprenderia que a ausência de barulho, essa sim, era um sinal a que
as pessoas deveriam atentar-se.
Máquinas eram precisas. Previsíveis. Metódicas.
Bastava ouvi-las, antecipando cada falha, e elas lhe atendiam com
perfeição.
Andar por aqueles corredores era meu trabalho, e também meu
prazer. Era reconfortante saber que dali a exatos trinta e três minutos a
exaustora sete deveria soar de maneira exatamente igual à cinco, e dali a
cinquenta e sete minutos seria a vez da grande e imponente misturadora, peça
central daquele setor, fazer um barulho ruidoso e mais agudo.
Por mais que as máquinas fizessem cada vez menos barulho, com
suas tecnologias e a preocupação com a qualidade do local de trabalho,
alguns sons precisavam permanecer. Eram as máquinas se comunicando
comigo e dizendo que estavam ali, bem, cumprindo seus papéis.
E meu dom era ouvir cada uma delas.
Dei a volta por mais alguns corredores, inspecionando o ritmo de
produção, e então subi as escadas, saindo do setor três e indo até os
escritórios, onde ficava minha sala.
Ao passar por minha secretária, ela me entregou alguns documentos
sobre os índices de produção do dia e avisou:
— O senhor Ricardo disse que o senhor já pode subir. A reunião foi
adiantada alguns minutos.
— Ok. — A intenção era entrar em minha sala, mas girei nos
calcanhares e saí de novo.
Dos quatro sócios eu era o único que não ficava no prédio
administrativo. Logo depois da reforma insistiram que eu me alojasse em
uma das imensas salas do último andar, mas recusei.
Meu lugar, como diretor de Produção, era ao lado das máquinas.
Exatamente no coração da fábrica, onde tudo acontecia.
Atravessei rapidamente os corredores barulhentos do setor três e em
menos de dez minutos já entrava no prédio administrativo. Fui direto para a
sala do Ricardo onde ele, Benício e Gustavo já me aguardavam.
— Bom dia, Du — Ricardo me cumprimentou com aquele apelido
que eles adoravam me chamar. — Trouxe os índices de produção?
Concordei com a cabeça e lhe entreguei as planilhas, depois de
cumprimentar os outros.
— Estou analisando esses dados diariamente há três meses —
pontuei. — Só preciso dos funcionários que te falei, e conseguimos reativar o
setor cinco em um ou dois meses.
— Já passei a demanda para o RH. — Ele abriu um sorriso largo,
bem típico de Ricardo, mas que era coisa rara nos últimos meses, depois do
término do seu noivado. — Nem acredito que finalmente vamos conseguir
reativar cem por cento da fábrica.
— Merecia até uma festa — Gustavo sugeriu com um sorriso
imenso. — Reunimos toda a fábrica e anunciamos a tão esperada reativação
do setor cinco para os funcionários e a imprensa.
— Calma lá, senhor fanfarrão! — Benício tentou aplacar a euforia
dele. — Estamos economizando há no mínimo dois anos para conseguir
todos os equipamentos desse setor, e agora você quer dar uma festa para
centenas de pessoas?
— Por isso você é o diretor Financeiro. — Gustavo apontou para
Benício. — Sua preocupação deve ser essa. A minha, é fazer com que nossa
marca tenha cada vez mais força e visibilidade. O país inteiro precisa saber
que reativamos todo o complexo. Um momento importante como esse vai
sim ser noticiado. — Cruzou os braços relaxado e concluiu: — Deixem que
cuido de tudo.
Ricardo suspirou resignado antes de intervir:
— Gustavo tem razão. Esperamos por esse momento há sete anos.
Vai ser bom mostrar o quanto já conseguimos crescer.
— Ok — Benício resmungou, sentando-se na cadeira ao meu lado.
— Mas me passe todos os gastos o quanto antes.
— Vou passar, seu mão de vaca. — Pareciam dois namorados
brigando sem parar. — Me diz uma coisa: Por que não é a Laila que está
nessa reunião? — ironizou. — Prefiro quando é ela. Laila diz os mesmos
nãos que você, mas sem essa grosseria habitual e o tom mandão.
— Laila é pior do que eu, mas vocês ainda estão crus demais para
entender isso. — Um sorriso pequeno surgiu no rosto de Benício.
— Ah, isso ela é — Ricardo concordou. — Foi um sufoco passar
aquele pedido de nova envasadora das mãos dela.
— Porque é cara e precisamos ter certeza da necessidade antes de
sair comprando. — Benício espalmou as mãos à frente do corpo, como se
demonstrasse o óbvio. Era um pouco irritante a forma como ele e Laila
pensavam iguais. Nada passava pelo Financeiro da LBK sem que um dos
dois, ou os dois, soubessem.
— Por falar nisso, cadê a Laila? — questionei.
— Em uma reunião externa, com uma rede de lojas de Cuiabá
interessada na nova linha de produtos hipoalergênicos. Como Laila conhecia
algumas pessoas, achamos que seria melhor que ela fosse.
Ricardo arregalou um pouco os olhos e questionou com a expressão
séria:
— E como ela está para ir sozinha em uma reunião com pessoas da
sua antiga cidade natal depois que tudo estourou na mídia?
Laila era gerente financeira da fábrica e noiva de Benício. Há cerca
de um mês havia denunciado seu antigo chefe por assédio. Por mais que ela
não morasse mais em Cuiabá, onde tudo aconteceu, e seu nome tenha se
mantido em sigilo pela polícia, a verdade é que algumas pessoas logo
descobriram a identidade dela como denunciante.
Ela teve que lidar com mensagens inconvenientes nas redes sociais,
algumas até ofensivas, mas dizia ter valido a pena, já que teve o prazer de ver
seu antigo chefe ser preso e ter o nome da sua rede de supermercados jogado
na lama em nível nacional.
— Laila está bem — Benício dizia, mas percebi que seu tom de voz
desceu algumas notas e um brilho sombrio tomou seu olhar. — Mesmo
chateada com as denúncias terem sido aceitas somente como assédio e não
estupro, ela sente que cumpriu seu papel. Não é ela quem tem que se
esconder, e sim ele. E se ela mesma fez questão de ir a essa reunião
representando a LBK, talvez seja importante para ela.
— E o desgraçado não passou nem um mês na cadeia... — Gustavo
murmurou indignado.
— Mas ele vai cair... — A voz de Benício assumiu um tom
ameaçador. — E o tombo final está chegando.
— Ainda está em contato com aquele auditor em Cuiabá? —
Ricardo questionou.
— Nunca desisti de acabar com aquele filho da puta. — Seu tom era
glacial. — Não comentei com Laila porque sei que por um tempo ela quis
esquecer sua história, mas desde que encontramos aquelas falsas declarações
de faturamento, quando quase fechamos com eles, tenho conversado com
contadores e um auditor fiscal de lá para ver as contas da rede. — Um sorriso
sarcástico surgiu em seu rosto. — E é lógico que um velho safado e abusador
de funcionárias também seria um estelionatário que sonega impostos e lava
dinheiro com as cabeças de gado que cria nas fazendas do interior do Mato
Grosso.
— Então realmente tem muita coisa? — questionei. Eu, Ricardo e
Gustavo éramos os únicos a saber daquela pequena investigação que Benício
fazia nos últimos dois anos, meio por baixo dos panos.
— Parece que sim. Estou afastado das investigações. Meu nome
jamais pode aparecer, mas pelo que sei, logo, logo a bomba vai explodir.
Com todas as denúncias de assédio estão doidos para pegá-lo, e vão
conseguir. De um jeito ou de outro. Todo o império dele vai afundar,
exatamente como uma âncora jogada ao mar.
— Nossa, Benício, quero você sempre do meu lado — Gustavo
brincou.
— Então trate de fazer do nome da LBK o mais forte desse país,
transformando essa fábrica em um complexo sólido e rentável por décadas —
pediu de modo autoritário. — Laila está cada vez mais apaixonada por essa
cidade e decidiu que não quer se mudar daqui. Quer ter filhos e viver a vida
inteira aqui. Então tratem de fazer o trabalho de vocês e manter essa fábrica
sólida e onde está por uns cinquenta anos, que eu garanto o meu.
— Anotado — anuí, seguido por Ricardo e Gustavo que ficaram
rindo.
— E por falar em fortalecer nossa marca — Gustavo começou a
dizer —, acabei de repassar para a Bia todas as informações do Congresso da
semana que vem. Vai nos render boas menções em alguns jornais.
Ah... O Congresso...
— Foi bom você ter tocado nesse assunto, Gustavo — lembrei. —
Nosso voo sai na segunda bem cedo. Espero que não se atrase.
A linha eco, lançada há dois anos, vinha rendendo frutos. Elevou o
nome da LBK a outro patamar, sendo mencionada em congressos e feiras do
setor. A empresa de siglas internacionais adquirida por quatro investidores
malucos após falência finalmente se revelava jovial e atenta às mudanças de
mercado, e sem aquele ar tradicional e inacessível que tinha anos atrás, e que
causou sua bancarrota.
Seríamos homenageados em um congresso que discutia novas
tendências no mercado de cosméticos, com mesas redondas e debates sobre a
linha eco e também o recente sucesso da linha hipoalergênica. Iríamos eu e
Gustavo como representantes da LBK.
— Então, Eduardo... — Gustavo tinha a voz cautelosa, e girou o
rosto na direção de Ricardo, que abriu um sorriso de canto. — É que... vamos
ter mudanças na viagem.
— Como assim?
— Tive uns imprevistos na agenda e... — Conheço Gustavo há
muito tempo, e sei que aquele tom evasivo escondia alguma coisa. — Não
poderei ir.
— Por que não me avisou antes? O Congresso nos mandou dois
convites. Eu poderia encontrar outra pessoa a tempo.
— Ah, não se preocupe. — Ele bateu as mãos no ar, demonstrando
tranquilidade. — Já defini outra pessoa para ir no meu lugar, representando o
departamento de Marketing.
— Quem?
Escutei uma risadinha baixa de Benício segundos antes de Gustavo
informar com um sorriso triunfante:
— Ana.
Filho da mãe!
Ana...
De todas as pessoas daquele departamento ele tinha que escolher
justamente a Ana?
Ana Catarina...
Um nome tão bonito e ela não gostava...
— Quantas pessoas têm no departamento de Marketing? — Tentei
disfarçar a repentina ansiedade. Gustavo deu de ombros e nada disse. — E
você tinha que escolher justamente a Ana?!
— Eu disse que ele reagiria assim... — Ricardo falou em tom
apaziguador, embora também tivesse o mesmo sorriso idiota e dúbio que
Benício e Gustavo não disfarçavam em demonstrar.
— Qual é o problema da Ana, posso saber? — Gustavo desafiou.
— Você sabe muito bem! — Apontei para ele. — A Ana não é um
problema. A questão é que...
Droga!
Sem saber o que falar, calei-me, enquanto Gustavo soltava uma
gargalhada imensa, visivelmente satisfeito com minha reação.
— Ana é uma das minhas melhores funcionárias. É competente,
responsável, e esteve presente em toda a ação de Marketing da linha eco. Não
vejo nome mais qualificado. — O bastardo tentava parecer profissional, mas
seu sorriso ladino o traía.
Afundei meu rosto na mesa e suspirei resignado.
— Então vocês todos sabiam disso, não é? — Apontei para Benício
e Ricardo. — Esse imbecil do Gustavo não planejaria essa idiotice toda
sozinho.
— Não tenho nada a ver com isso — Benício defendeu-se,
levantando as mãos brevemente. — Mas também quero entender o motivo de
toda essa resistência sua. Ana não é só uma amiga?
Agora foi a vez de Ricardo gargalhar.
Muito bom ser motivo de piada daqueles três imbecis.
— Ela é só uma amiga.
— Ah, não é não! — Gustavo negou algumas vezes com a cabeça.
— Não mesmo — Ricardo reforçou com deboche.
— Vocês querem parar?
— Não! — Gustavo apontou para mim. — Não vou parar. Du, olha
sua reação só de saber que vai viajar com a Ana! Vai enfartar? Vou ter que
chamar a secretária para te socorrer? Seu rosto mais parece um pimentão!
Acha que a gente é idiota? Aproveita logo essa chance e vê se sai desse
chove-não-molha!
— Você gosta dela — Benício concluiu o óbvio.
— Sim! Como amiga! — Levei as mãos para cima, incapaz de
esconder a impaciência. — Ela é uma amiga, como todas as outras garotas do
grupo.
— Com a Ana é diferente — Gustavo insistia. — Ela mexe com
você, e não é de hoje.
Sim, Ana mexia comigo.
Muito.
Sempre a notei na fábrica, com aquele jeito meio “nem aí” de se
vestir, típico de um publicitário, com meias na altura da canela e colorindo
suas botas marrons, saia plissada e camiseta folgada. Quando fazia muito
calor, trocava as botas e meias por um all star azul ou branco, sempre
fazendo par com vestidos ou jeans e camiseta.
Ana era a única pessoa em toda a fábrica — se não o fosse em todo o
mundo — que poderia ir trabalhar com meias caneladas com estampas de
planetas e uma camiseta dos Simpsons e ainda assim estar nada menos do que
linda e profissional.
Os cabelos castanhos cortados na altura dos ombros, e a franja
cobrindo grande parte da testa, repuxando um pouco seus olhos e deixando-a
com um ar ainda mais inocente.
Fisicamente, sempre a achei linda, mas foi só quando a conheci
pessoalmente e nos aproximamos como amigos, depois que Laila e Benício
começaram a namorar, que as coisas ficaram mais intensas.
Tudo em Ana era tão típico de Ana...
O jeito atropelado e sem papas na língua para falar, o sorriso aberto
e sincero, a lealdade e disposição com seus amigos...
Certa vez escutei Laila chamá-la de “chicletinho sem freio”. A
expressão, por mais estranha à primeira vista, era ideal para Ana. Era ela,
juntamente com Gustavo, quem unia todo o grupo. Ana era a amiga que dizia
sim para todos os convites, que estava sempre disposta, que sempre tomava a
frente na organização das reuniões.
Ao mesmo tempo, lhe faltava freio entre o cérebro e a língua, e Ana
tinha um dom peculiar de dizer verdades sem qualquer pudor, mas sem
jamais ferir alguém.
A maioria dos nossos amigos até tentava cortá-la às vezes.
Eu a deixaria falar por horas e horas...
Era tão evidente assim a forma como ela me afetava?
— Me diz que compromisso tão urgente você tem? — Me virei para
Gustavo. — Vamos ser homenageados e, apesar de você ser um idiota na
maior parte do tempo, grande parte do sucesso dessa linha é mérito seu.
— Mérito da minha equipe, e que Ana vai representar muito bem. —
Ele parecia imensamente feliz em me pregar aquela peça. — É só uma
viagem, Eduardo. Vocês só vão dividir algumas horas de voo, passar uma
semana inteira juntos e provavelmente dormir em quartos vizinhos no hotel.
Não tem problema algum nisso.
— Assim ele vai desistir da viagem... — Ricardo debochou.
— Não pode — foi a vez de Benício ordenar. — Um de nós quatro
têm que ir, e você é o mais indicado. — Apontou para mim.
Suspirei resignado.
Impossível competir com um mandão, um idiota debochado e um
inteligente e carismático juntos!
— É o seguinte, Eduardo! — De todos, Gustavo era visivelmente o
mais empenhado em me convencer. — Nenhum de nós vai estar lá. Só deixe
as coisas fluírem e pronto! Conversem...
— Ou deixa a Ana falar enquanto você escuta... — Benício brincou.
— ... Se aproximem — Gustavo prosseguia. — Só assim você vai se
decidir se realmente quer continuar só como amigo da Ana ou se quer tentar
alguma coisa. Ninguém lá vai rodar uma garrafa vazia e fazer você beijá-la.
Dessa vez, só depende de você.
Me lembrei do último aniversário de Laila, em que bebemos todas e
Luciana, uma das amigas de Ana, inventou de brincarmos de Verdade ou
Consequência. Em dado momento Luciana me tirou e eu, burro que sou, pedi
a consequência. E o que ela escolheu?
Como em uma conspiração coletiva e perversa, a escolha foi que eu
beijasse Ana. Um selinho só, mas que me rendeu semanas de chacota dos
meus amigos e sócios da fábrica.
Os mesmos amigos que agora me empurravam em uma viagem,
sozinho, com Ana.
— Vocês três me pagam... — rangi os dentes, já disposto a sair da
sala de Ricardo.
— Não sei, Eduardo... — Gustavo e seu sorriso maldito. — Acho
que há grandes chances de você nos dever algo ao final dessa viagem...
Capítulo 2
A criança que era levada no colo, logo à minha frente, parecia bem
interessada em pegar minha colorida echarpe, jogando as mãozinhas gordas
para trás, enquanto sua mãe jogava seu peso de um lado para o outro nos
braços, na fila do check-in.
— Oi, bonitinha... — puxei assunto com a criança, exibindo o tecido
enrolado em meu pescoço. — É linda, não é? — A mãe dela se virou para
mim e sorriu, e vi ali a chance para continuar minha aproximação. — Achei
que nunca fosse usar essa coisa no nosso calor do cerrado, mas parece que
finalmente vou ter minha chance! Olhei na previsão do tempo, e vem vindo
uma frente fria para Curitiba. — A mãe, que levava malas e um imenso
carrinho, agora girou todo o corpo para me encarar. Finalmente atraí sua
atenção. — Máxima de treze graus! — Ergui meus dedos na direção da
mulher, mas eram só dez. — Você tem noção do quanto isso é frio?!
A mulher sorriu de volta e finalmente respondeu:
— Para nós acostumados com o calor de Goiânia, realmente é muito
frio.
E esse frio todo só combina com uma comida para os goianos... Será
que lá...
— Será que lá tem pamonha? — A pergunta veio rápida, antes que
eu pudesse controlar.
A mulher gargalhou, tentando arrancar as mãozinhas da bebê que
agora se emaranhavam nos seus cabelos.
— Deve ter... — E se virou para o balcão da companhia aérea.
— Sua filha é muito linda — de novo, falei antes que pudesse
pensar. — As mãos gordinhas é a coisa mais fofa que já vi.
Ela se virou para mim de novo e tornou a sorrir.
— Obrigada. — Achei que ela fosse me dizer mais alguma coisa,
mas a atendente do aeroporto a chamou, fazendo finalmente a fila andar.
Dei tchau para a menininha e esperei mais alguns minutos antes de
ser chamada.
Eu estava ansiosa.
Levemente ansiosa.
Nunca gostei de andar de avião e, para piorar tudo, ainda pegaríamos
uma conexão em São Paulo.
Saí da imensa fila do guichê e procurei pelo portão de embarque.
A maioria das pessoas passavam apressadas ao meu lado, levando
pequenas malas de mão e distraídas em seus celulares.
Enquanto seguia em direção ao meu portão de embarque, procurava
por Eduardo no meio de todos aqueles rostos.
Não seria tão difícil assim encontrá-lo. Eduardo era um dos homens
mais altos que já conheci, e aquela altura toda com certeza serviria para
alguma coisa, como encontrá-lo em meio àquela multidão que aguardava nas
cadeiras ou de pé.
Levei pouco mais de vinte segundos para encontrá-lo.
Não disse que a altura serve de algo?
Ele estava de pé, recostado à uma pilastra e olhava para a tela do
celular, distraído.
— Du! — gritei, talvez um pouco alto demais, já que ele levantou o
rosto rápido feito um raio e me olhou com uma certa dose de susto.
Droga!
Eu e minha mania de achar que estou na casa da minha avó, em uma
pamonhada, com meus outros quinze primos e vinte e sete parentes.
— Foi mal... — Dei alguns passos até me aproximar dele. Vários
passos, na verdade. Prova de que estava realmente longe quando gritei seu
apelido. — Sei que você não gosta de ser chamado assim...
— Ah... O meu... apelido? — Ele ajeitou os óculos finos por um
momento e sorriu sem graça. — Não me importo...
— É que vejo o Gustavo te chamar assim às vezes. Acho bem fofo...
Eduardo ficou algumas escalas de tom mais vermelho, puxando para
o quase luminoso de semáforo. Eu quase ri do jeito dele, mas então notei que
ele usava uma roupa social, bem similar às roupas que costumava usar na
fábrica. Calça social, camisa dobrada na altura do antebraço e aquele cabelo
castanho bem claro e meio liso caindo nos olhos.
Mas e o frio de Curitiba e do avião?
— Cadê sua blusa de frio? — Ele me fitou por um segundo e eu
prossegui: — Eu vi na internet. Uma frente fria vai chegar em Curitiba essa
semana. Treze graus! E isso é a máxima!
E então ele começou a rir daquele jeito à vontade que ele assumia às
vezes.
Eu gostava quando ele ria assim.
Achava que Eduardo ficava ainda mais lindo quando sorria sem
pudor.
Já comentei que acho Eduardo lindo?
Pois ele é.
Tem uma altura imensa e um sorriso de lado que sempre me provoca
a falar. Nunca entendi muito bem o porquê.
Já tive a impressão, por uma ou duas vezes, que ele me olha como se
esperasse que eu sempre dissesse algo, e quando vejo seu olhar me incitando,
em silêncio, disparo a falar.
— Por isso o cachecol? — Ele apontou para o meu colo, que
ostentava a peça rosa neon.
— Echarpe — corrigi. — Cachecol seria de um tecido mais grosso.
— Ele concordou com a cabeça e apontou para uma cadeira vaga à nossa
frente.
— Echarpe — repetiu, sorrindo meio tímido. — Gostei das... cores.
— Apontou para meu pescoço e ficou dando voltas com os dedos, enquanto
eu me sentava.
Ajeitei o tecido rosa neon e abri um pouco mais o nó frouxo que
havia feito. Quando levantei os olhos novamente, percebi que Eduardo
continuava me fitando, mudo.
— Que foi?
Vermelho de novo...
— Nada... — Deu um passo atrás e voltou a se recostar na pilastra.
Eu usava um vestido preto e botas marrons. Por cima do vestido,
uma pequena jaqueta cinza e, não sei por que motivo, comecei a sentir um
calor intenso e uma vontade sufocante de tirar a tal jaqueta.
— Olha, você já deve ser acostumado com o frio de lá. Passou a
infância em Curitiba e tudo mais. Então não se surpreenda se eu andar
empacotada para todo canto. Vou passar o dia no treinamento do senhor
Miyagi... — disparei, enquanto tirava a jaqueta que agora parecia me pinicar.
Nem sei muito bem o porquê.
— Treinamento o que? — Ele tinha os olhos colados em mim.
— “Tira casaco, bota casaco...” — Eduardo ainda me olhava como
seu eu fosse uma besta do fim dos tempos e eu expliquei. — Karatê kid!
Um brilho de compreensão passou por seus olhos e ele gargalhou
alto, atraindo a atenção de alguns.
Eduardo gargalhando? Tá aí uma coisa rara de se ver... E gostosa.
— Entendi a referência... — Ele ainda parou alguns segundos para
me observar, descendo os olhos nos meus braços. Talvez eu estivesse branca
demais... E então decidiu-se por se sentar ao meu lado. — Você não está indo
para o Alasca, Ana. Relaxa um pouco.
Suspirei alto uma vez e acabei rindo.
— Tem razão... — Me deixei cair na cadeira e uma mecha da franja
tampou minha visão. Afastei-a com um sopro. — Ainda demora a chamar
nossa vez?
Ele olhou um segundo para o relógio e então anunciou:
— Não. No máximo uns cinco minutos.
— Ótimo! Porque a minha gastrite não nasceu para aguentar mais do
que alguns minutos...
— Você parece tensa. — Ele suavizou a voz e aproximou-se alguns
centímetros. — Tudo bem?
— Tudo. — Voltei a soprar a franja, já que aquilo me acalmava. —
Não é nada. Aeroportos me deixam assim...
Ele ainda me analisou alguns segundos. Os olhos parando na minha
testa e medindo a franja. Então, concordou com a cabeça e voltou a afastar o
rosto, mas percebi que ficou um bom tempo me olhando de canto.
Ao menos Eduardo tinha razão. Mais alguns minutos e finalmente
liberaram a fila de embarque.
Gustavo tinha me comunicado há pouco mais de uma semana que
não poderia ir ao congresso e que eu iria em seu lugar. Mal tive tempo de
comprar um remédio para dormir, ou mesmo reservar meu assento próximo
das asas, onde o barulho alto me distrairia e sentiria um pouco menos as
turbulências. Cuidados que só uma pessoa apavorada com voos pensaria em
tomar.
Suspirei resignada quando Eduardo me indicou dois assentos bem no
início da aeronave. Longe do barulho acolhedor das asas e mais próximos da
morte.
Por que se essa porcaria metálica cai, os que estão na frente
morrem primeiro, não é?
Se uma das turbinas explodir, as pessoas que estão no meio sequer
vão ver a sua morte, enquanto eu verei os corpos voarem segundos antes de
morrer.
E se eu não perder a consciência?
Por que só eu pensava nisso?
A mulher do outro lado abria um pacote de biscoitos e ria faceira,
como se estivesse no sofá da sala. O moço de trás falava ao telefone sem
nenhuma preocupação e parece que somente eu me atentava ao fato de que
todos nós passaríamos bem perto da morte nos próximos minutos.
O nosso lugar era bem mais espaçoso que os assentos de trás.
Provavelmente a escolha ideal de homens com pernas compridas como
Eduardo e ombros largos como Gustavo.
Acontece que eu ainda preferia o refúgio seguro e apertado do meio
da aeronave.
Eduardo havia me oferecido o local que ficava na janela, e a
primeira coisa que fiz foi fechá-la. Enquanto ele ajeitava nossas malas, tentei
me distrair com uma revista velha que estava no porta-objetos logo à minha
frente.
— Por que não atualizam um pouco essas revistas? — Apontei para
uma figura aleatória. A verdade é que nem sei o que estava escrito ali. —
Poderiam colocar um kit palavras-cruzadas também. Ou um tabuleiro de
xadrez... Ou comida. Muita comida.
Eduardo continuava de pé, me olhando, e fez uma expressão
estranha ao questionar pela segunda vez:
— Tá tudo bem, Ana?
— Tá! — Ai que nervoso! — Eu que falo demais. Nunca reparou?
O sorriso de lado que sempre me provocava a falar surgiu.
— Você até fala bastante, mas parece realmente ansiosa. É o voo?
— É! — confessei, sentindo-me uma bosta por isso. — Morro de
medo.
O que eu mais gostava em Eduardo era a maneira como ele me
olhava. Sempre do mesmo jeito. Meio profundo, meio incerto. Meio tímido,
meio desafiador.
Era estranho, pois às vezes parecia que não era igual com os outros.
Mas eu gostava.
E foi aquele olhar que ele dirigiu a mim. Com sua íris castanha
brilhando em minha direção.
Sem falar qualquer palavra, ele sentou-se em seu lugar e continuou
me olhando, até que começou a dizer com suavidade:
— Tente respirar fundo e não pensar muito no voo. Pense em outras
coisas... No congresso, que tal?
— Se eu pensar no congresso, minha vontade é de matar o Gustavo!
— bradei um pouco alto. — Ah, ele é meu chefe, mas às vezes me esqueço
disso. Me avisou em cima da hora que eu iria substituí-lo e tive pouquíssimo
tempo para me preparar para a apresentação.
Ele abriu um sorriso antes de revidar, a voz mais baixa que a minha:
— Então entre na fila. Também tenho vontade de estrangular aquele
idiota às vezes. Muitas vezes.
— Mas vocês parecem bem unidos... — opinei. — Os quatro, na
verdade. — Desviei meus olhos para o corredor, onde uma aeromoça passava
fechando todas as portinhas onde ficavam as malas. — É raro um grupo de
quatro amigos que dividem um negócio, são sócios, trabalham juntos todos os
dias, e ainda assim se dão bem.
— Acho que porque somos muito diferentes. — Eduardo se ajeitou
na cadeira, parecendo absolutamente relaxado. — Cada um foca naquilo que
sabe e confia no trabalho do outro. Ninguém precisa revisar as contas da
fábrica, pois Benício é o melhor no que faz. Ricardo conduz tudo com uma
maestria sem fim e Gustavo é, sem dúvidas, a melhor pessoa para lidar com a
imagem e o marketing da empresa.
— E você cuida das máquinas — completei, observando a forma
como os olhos dele brilharam antes de ajeitar os óculos, parecendo sem jeito.
— É a parte mais fácil.
— Porque é feita pelo melhor. — O vermelho voltou com violência
para suas faces. — Imagine só o Benício cuidando da parte operacional?
O vi gargalhar pela segunda vez no dia.
— Metade da fábrica já teria pedido demissão. As máquinas são
previsíveis, assim como os números, mas um pouco mais subjetivas.
Precisam de paciência, coisa que ele não tem.
Sorri de volta, analisando o rosto de Eduardo e a forma como alguns
fios dos seus cabelos caíam no rosto enquanto ele falava das máquinas e do
seu trabalho. Quando sorria, pequenas rugas surgiam na lateral dos olhos, e
nem mesmo as hastes finas dos óculos eram capazes de esconder.
Senti um solavanco forte e meu peito acelerou.
Ai minha Nossa Senhora das Pessoas que tinham medo de avião!
Essa porcaria vai cair antes mesmo de decolar!
Grudei meus dedos no encosto dos braços e tentei, relutantemente,
relaxar. Olhei para cima e vi o aviso luminoso que pedia que os passageiros
colocassem os cintos.
Aquela era a maior prova de todas de que aquela porcaria não era
segura! Para que colocar cinto?! Estávamos a malditos duzentos, trezentos...
sei lá quantos quilômetros por hora! Se aquela carcaça de metal batesse em
um cone e capotasse, aquele cinto serviria para que? Para localizar meu corpo
carbonizado em meios aos escombros mais facilmente?
Sem aviso, e sempre com aquela violência aterrorizante, o avião
acelerou e começou a empinar o bico, levantando rapidamente na pista.
E eu estava nas malditas cadeiras da frente, onde aquilo parecia
ainda pior!
— Calma. Respira fundo. — Escutei uma voz suave ao meu lado,
mas não adiantou muito.
Eu evitava ao máximo viajar de avião porque sempre ficava nervosa
naqueles minutos que se seguiam à decolagem, e também na aterrissagem.
Nunca consegui me acalmar, mesmo depois de adulta, e não seriam algumas
palavras suaves que me fariam mudar agora.
— Você por acaso sabe a probabilidade de se sobreviver a uma
queda de avião?! — Minha voz saiu agoniada e sussurrada. O frio na barriga
me consumindo.
— Mais de cinquenta por cento — ele respondeu sem pestanejar.
O que?!
— Se você considerar todos os acidentes aéreos registrados, e que
são coisa rara, as chances de sobreviver passam de cinquenta por cento —
Eduardo despejava com tranquilidade, ajeitando os óculos no nariz, e aquilo
me deixou chocada. — Lembrando que quando um avião cai e todas as
pessoas morrem, o número de vítimas é imenso. Se desconsiderar essas
quedas fatais, contando somente pequenos acidentes, o número sobe para
mais de setenta por cento.
Ele levou a sério minha pergunta?!
Ele realmente levou a sério minha pergunta idiota?
Meu queixo caiu, em choque, e só consegui murmurar:
— Você está de graça com minha cara?
— Não! — Ele arregalou os olhos, um pouco surpreso. — Estou
falando números reais.
— Eu... eu... o que eu falei nem era uma pergunta! — Ele continuava
me observando calado, e parecia bem sério, realmente considerando a minha
pergunta como intencional.
— Estou tentando te acalmar mostrando que você está no meio de
transporte mais seguro do mundo.
— Seus pais morreram em um acidente de avião e você quer me
dizer isso?!
Opa!
Acho que falei demais.
E um pouco alto também, pois notei que algumas pessoas se
voltaram para nós.
Merda de ausência de filtro!
Mas então o inesperado aconteceu, e Eduardo abriu um sorriso de
lado, antes de responder calmamente:
— Exatamente por isso posso falar com propriedade: é seguro. O
acidente que matou meus pais é o evento um em um milhão das
probabilidades. Já viajei outras dezenas, senão centenas de vezes, e nunca
passei por uma situação de risco. — Eu continuava com as mãos cravadas no
descanso dos braços e ele desceu os olhos um momento para o local, antes de
prosseguir. — A cada um milhão de voos, menos de dois vão apresentar
algum tipo de problema. Desses, menos da metade vai ter acidentes com
vítimas fatais.
— Se você já viajou centenas de vezes, está cada dia mais próximo
da sua vez!
— As mesmas probabilidades que eu tenho são as que você tem
nesse momento.
— E você tem um histórico familiar trágico! — Finalmente consegui
soltar o assento e levei as mãos para cima, apontando para ele. — Isso
também deve contar!
Falei demais de novo...
— Desculpa... — emendei logo em seguida. — Não deveria ter
tocado nesse assunto.
— Tudo bem. — Eduardo riu. Ele riu! — Acho que muitas pessoas
devem pensar isso internamente, mas você em todo o planeta é a única que
teria coragem de falar, e sem parecer que está querendo ofender.
Ai, Minha Nossa Senhora da boca desregulada! Vou ser demitida
antes mesmo de chegar nesse Congresso...
Adeus sentir o frio curitibano com minhas botas de cano alto e
minha echarpe rosa neon.
— E não quis mesmo ofender!
Num ato de rompante, peguei uma das mãos dele que descansava no
banco e grudei com as minhas. Eduardo deu um pulo no assento e arregalou
os olhos, encarando vidrado minhas mãos encobrindo as dele.
— Tu-tudo bem, Ana. — Ele parecia um pouco constrangido, e me
perguntei se não havia ido longe demais mais uma vez.
É lógico que foi, sua destrambelhada!
Falou duas vezes da morte dos pais dele e agora fica lá, agarrando a
mão do coitado que, a propósito, é extremamente quente e sedosa, mas você
não está pensando muito nisso pois está mais preocupada com a decolagem
e...
Peraí...
O avião decolou!
Ainda com as mãos grudadas nas de Eduardo criei coragem e olhei
ao redor. Nossa janelinha seguia fechada, contrariando as ordens da
aeromoça, mas algumas ao lado estavam abertas e por elas vi que já
estávamos alto, bem acima das nuvens, e aquela sensação de zumbido nos
ouvidos que sempre sentia durante a decolagem havia desaparecido por
completo.
Relaxei um pouco minhas mãos e respirei fundo. Aquela foi a
primeira vez na vida que passei por uma decolagem sem usar medicamentos
e sequer perceber que ela acontecia.
Como isso foi possível?
— Viu? — Eduardo sorria de lado para mim. — Já passou. E você
nem percebeu os sacolejos do avião.
— Ele sacolejou?!
Mais rugas apareceram quando seu sorriso se expandiu.
— Vou deixar você sem saber essa.
— Eu não sei o que você fez, Eduardo, mas de alguma forma você
me distraiu como ninguém nunca havia conseguido.
Suas faces se coloriram de leve e ele permaneceu mudo.
— Quantas horas de voo até chegarmos? — questionei.
— Uma hora e quarenta minutos, em média, até São Paulo. Lá,
pegamos outro voo que leva mais uma hora para chegar a Curitiba...
— E eu vou passar por isso mais uma vez antes de chegar... —
reclamei.
— Não havia voos diretos para Curitiba.
— Pois eu não vou desgrudar da sua mão até lá! — exclamei um
pouco mais alto. Ele tornou a arregalar os olhos e, de forma instintiva,
apertou mais meus dedos.
Aquilo me confortou?
É... confortou.
Que esquisito...
Como Eduardo nada disse, nem tentou se afastar, travei seus dedos
nos meus, até que os nós ficassem brancos. Olhei para nossas mãos unidas e
percebi mais uma vez como a pele dele estava quente. Quase febril.
— Você vai ter que parar de suar um pouco, Eduardo. — Eu e minha
boca solta. — Não pretendo soltar sua mão até chegarmos em Curitiba, e
você parece mais ansioso do que eu... — Como ele seguia em silêncio, ergui
meu rosto para fitá-lo, e dei de cara com ele bem próximo, me observando
atentamente. A pergunta saiu antes que eu pudesse raciocinar. — Tudo bem
para você se ficarmos assim?
— Por mim, tu-tudo ótimo. — Sua voz saiu bem baixa, e eu tive um
pouco de dúvida se entendi direito o que ele disse.
Dei de ombros e me recostei no banco.
Curiosamente, me sentia calma. As palavras objetivas de Eduardo,
suas probabilidades matemáticas e a tranquilidade com que ele lidava com o
voo, mesmo sendo vítima de uma tragédia familiar que repercutiu em toda a
imprensa nacional, me deixaram mais calma.
Pela primeira vez em toda a minha vida, consegui relaxar em um
voo. Até fechei os olhos um pouco, ouvindo aquele murmurinho constante
dos outros passageiros e das turbinas ao fundo.
Quando os abri, fitei Eduardo de relance. Ele olhava sem parar para
nossas mãos unidas e, quando percebeu que era observado, levou os olhos até
meu rosto. Parou um momento para me observar e então sorriu pequeno,
meio de lado.
Nossa...
Eu gostava mesmo daquele sorriso...
Capítulo 3
Ana emanava calor por todas as partes, o que fazia o suor escorrer
por minhas têmporas. Ela seguia recostada em meu corpo, ressonando de
leve, e mesmo com uma dormência em toda a lateral do braço, nada no
mundo me moveria dali.
Mais meia hora, no máximo, chegaríamos em Curitiba, e eu
aproveitava aqueles preciosos minutos para observá-la de perto.
A franja encobria os olhos de forma irregular. Seu cabelo estava
solto, grudado no tecido da minha camisa, e sua echarpe de cores chamativas
descansava inútil em seu colo. Ana era quente, e com nossas mãos ainda
grudadas tive a impressão de que nenhuma frente fria de Curitiba seria páreo
para aquela sensação que me invadia agora.
Seu vestido preto tinha um formato bem largo, descontraído, e havia
subido vários centímetros em suas pernas, dada a forma como ela se retorcia
sem parar enquanto dormia. Volta e meia meus olhos se voltavam para baixo,
onde sua pele branca estava exposta, e eu me forçava a desviá-los.
Isso é vergonhoso, Eduardo! Não pode ficar olhando para as pernas
de uma mulher enquanto ela dorme, ainda que essa mulher seja sua amiga!
Amiga!
Amiga!
Repita isso quantas vezes forem necessárias:
Ana é uma amiga!
Me atrevi a apreciá-la de novo e notei suas botas. As mesmas que ela
usava na fábrica nas parcas semanas de inverno goiano, com suas meias de
planeta.
Dessa vez, por baixo da bota, usava uma meia de fios brilhosos, de
um tom cinza, similar à jaqueta que estava esquecida no canto.
Ela realmente estava preparada para o tal frio “absurdo” de treze
graus...
Sorri de novo, lembrando de tudo que conversamos no primeiro voo.
Ela relaxou rapidamente e começou a tagarelar sobre o frio, a vontade de
conhecer a neve e outras coisas sem nexo algum com o assunto, mas que
pareciam acalmá-la. Pareceu esquecer-se por completo do voo, só voltando a
ficar tensa quando aterrissamos, cravando as unhas nos meus dedos e me
fazendo suar.
Nosso tempo de conexão era ínfimo, e logo estávamos no segundo
voo. Dessa vez, a decolagem foi bem mais tranquila e quase não vi a
ansiedade tomando os olhos dela. Algo tinha mudado desde a primeira
decolagem e Ana mal sentiu os últimos sacolejares da subida, recostando-se
naturalmente ao meu lado e adormecendo em questão de segundos.
Ela tinha um cheiro quente, assim como todo seu corpo.
Pode parecer estranho um cheiro que é “quente”, mas eles existem. É
como o cheiro abafado do óleo passando pelas máquinas da fábrica e
fazendo-as funcionar. O cheiro do óleo quando aquecido era bem distinto do
cheiro do óleo frio. Ele entrava nas narinas e dali não mais saía, se
impregnava no tecido das roupas e nos fios de cabelo.
O cheiro de Ana era assim, só que muito mais agradável que o de
óleo queimado. Era cheiro de chá de hibiscos e rosas. Bem quente. Quase
fervendo. Segundos antes de você desligar a chaleira e servir a caneca. Só
que era um cheiro tão sutil e singular que só o notei naquele momento, dentro
daquela aeronave, com nossa proximidade.
Também lembro de sentir esse cheiro na noite em que nossos lábios
se colaram por milésimos de segundos.
Uma garrafa vazia em cima de uma mesa, duas alternativas, e eu
tinha como desafio beijar Ana. Todos os nossos amigos riram da cena, já que
eu era o cabeção tímido do grupo, enquanto Ana era a falante, expansiva e
nada tímida.
Nosso “selinho” durou segundos, mas lembro de cada detalhe.
Da forma como os cabelos dela caíam nos ombros totalmente
despenteados. Ana estava completamente despenteada aquela noite, depois de
tanto conversar e beber com as amigas, e quando ela ficava assim, seus
cabelos enrolavam um pouco nas pontas.
Lembro dos olhos brilhando divertidos enquanto ela esperava que eu
me aproximasse, e lembro com clareza como ela corou segundos antes de
fechar os olhos e me esperar.
Ana fechou os olhos...
Eu não.
Marquei algumas sardas que ela tinha no rosto, e também o cheiro
quente que agora se impregnava em minha camisa. Marquei a maciez da sua
boca e da sua pele.
Durou segundos, mas foi o suficiente para que eu marcasse tudo,
como eu costumava decorar o apito de cada uma das máquinas da fábrica.
Depois daquele beijo rápido, Benício, Gustavo e Ricardo não
pararam mais de me infernizar. Eles sempre desconfiaram que eu tivesse
uma... queda por nossa amiga mais maluquinha, mas sempre consegui
esconder aquela atração muito bem.
Ou tentei, pois tão logo perceberam a forma como Ana me afetava,
começaram a me infernizar. Em festas que íamos juntos, jantares, na fábrica...
Até chegar àquela viagem estrategicamente planejada pelos três para me
aproximar dela.
Mas se Ana só me via como um amigo, eu jamais me aproximaria
dela, correndo o risco de estragar tudo e perdendo assim nossa única e tão
bonita conexão.
Meu braço estava dormente, e senti um coçar irritante no nariz, na
altura das hastes dos óculos, mas não me movi. Fiquei quieto, agora
observando a boca entreaberta de Ana, fortemente pintada de batom
vermelho.
Pare de olhar para a boca dela, Eduardo!
Desviei os olhos de uma vez, e com o movimento acabei mexendo
um pouco os ombros. Ana remexeu-se no assento e abriu os olhos, focando-
os exatamente na altura do meu rosto.
Ela levou três ou quatro segundos para me analisar, como se
estivesse confusa, sem saber muito bem o que fazia ali.
— Desculpa se te acordei — murmurei sem graça com a intensidade
dos seus olhos.
— Eu dormi no seu peito?! — Só que Ana tinha esse dom de crescer
tudo com aquela voz mais alta e o jeito sem freio. — Ai, minha Nossa
Senhora! Eu babei em você? — Ela soltou minhas mãos e começou a esfregar
minha camisa, procurando por alguma mancha de baba.
Foi frustrante ver nossas mãos se desunirem, mas a sensação dos
dedos dela friccionando meu peito compensou.
Respire fundo, Eduardo!
Se o Gustavo te visse agora, cairia na gargalhada.
Ana finalmente terminou a tarefa de limpar a tal baba imaginária da
minha camisa e voltou sua atenção para a janelinha do avião, que seguia
fechada, como ela mesma quis assim que entrou.
Um pouco indecisa, ela abriu a pequena janela ovalada e olhou por
um tempo para a imensidão azul ao longe.
— Por que eles pedem para as janelas ficarem abertas na decolagem
e no pouso? É para que possamos ver a morte chegar? — perguntou de
repente, com a voz baixa.
— Ajuda na visualização em caso de socorro — expliquei. — É um
procedimento de segurança e, quanto mais as pessoas que estão dentro do
avião conseguem ver o que acontece do lado de fora, mais podem se prevenir.
— Ela virou o corpo para me encarar, e tinha uma ruga de estranhamento na
testa. — Por exemplo, em um pouso forçado no mar, a tripulação consegue
ver a altura da água na aeronave e até mesmo se um lado do avião está
afundando mais que o outro.
A ruga que se formou em seu rosto acentuou-se um pouco antes que
ela dissesse:
— Você sempre vai responder as minhas perguntas?
— Se eu souber as respostas...
Ela olhou de relance para minha cabeça e então voltou a questionar:
— Como sabe tanta coisa?
Tive de rir.
— Sobre aviões, sei pois precisei me ater a esses dados técnicos
depois do acidente dos meus pais. Meus avós nunca deixaram de viajar de
avião, e me fizeram compreender cedo que aquilo tudo havia sido uma
fatalidade. — Fiz uma pausa. Não porque me incomodasse em falar do
acidente. Aquele acidente realmente era algo que conseguia narrar com
naturalidade. Era a lembranças dos meus avós que me incomodava.
Ela concordou com a cabeça e voltou a olhar para o horizonte azul.
Ficou alguns segundos distraída e logo se viu atraída ao comunicado da
tripulação de que todos deveriam colocar os cintos, pois a aterrissagem seria
em minutos.
Vi o momento que Ana olhou insegura para as próprias mãos, como
se não soubesse o que fazer com elas.
Estendi minhas próprias mãos na direção dela, em silêncio. Ela me
olhou de lado e então sorriu, pegando com força minha mão.
Assim pousamos.
E dessa vez ela não parecia ansiosa ou com medo. Só sorria e fazia
perguntas aleatórias sobre a fuselagem de um avião, testando meus
conhecimentos.
— Já parou para pensar em como uma coisa tão pesada consegue
voar?
— Leis da Física. Basicamente com impulso, o que se consegue com
velocidade e aerodinâmica. Por isso, o formato das asas.
— Com mais velocidade seria possível fazer uma imensa bola de
ferro e sem asas voar? Ela não teria a aerodinâmica.
— Muito provavelmente ela não conseguiria se manter pairando no
ar. A velocidade do impulso inicial, que fez a bola sair do chão, nunca
poderia diminuir, ou ela começaria a cair.
— Já testaram isso?
— Provavelmente sim. — Sorri. — Mas talvez perceberam que o
gasto em combustível para manter uma bola no ar seria imenso e não
compensaria.
— Balões são grandes bolas no ar.
— Balões são movidos por uma técnica diferente. Eles usam ar
quente, e não velocidade.
— Hum... — Ela mordeu de leve os lábios vermelhos e voltou a me
fitar. — Você realmente é um cabeção.
Eu só consegui sorrir, sentindo os dedos dela se apertarem nos meus.
Quando finalmente conseguimos descer e pegar nossas malas, já era
quase hora do almoço. Pegamos um carro até o hotel que ficava no centro da
cidade. De lá até o imenso salão de eventos reservado para o congresso, eram
pouco mais de cinco minutos de caminhada. Por mais que o hotel fosse
requintado e, nesse momento, abrigasse grande parte dos participantes do
evento, não havia espaço compatível com a magnitude do congresso.
O local reservado para os encontros era bem localizado e estava
cercado dos principais hotéis da cidade.
Fizemos nossas credenciais e pegamos toda a programação para os
próximos dias.
Na volta, enquanto caminhávamos, reparei que Ana observava com
atenção os detalhes do centro.
— Está com muita fome? — tomei coragem para perguntar. —
Conheço um restaurante aqui perto onde podemos comer.
— Estou faminta! — ela exclamou sorrindo, acertando os passos
para me alcançar. Ajeitou a inseparável echarpe rosa no colo e soprou a franja
uma vez, antes de perguntar: — Se lembra de muitos lugares daqui?
— Nasci aqui e passei toda a infância e adolescência. Só me mudei
para Brasília na faculdade, quando conheci Benício e Ricardo.
— Vai ser meu guia oficial! — Ana sentenciou de forma pomposa.
— Quero conhecer ao menos o Jardim Botânico e sair na noite com minhas
roupas de frio.
Era incrível o dom que ela tinha de me fazer sorrir.
— Temos um congresso para participar, Ana... — lembrei, mas ela
pareceu não se abalar, pois fez um muxoxo com a boca e me olhou com cara
de decepção.
— A apresentação da linha eco é amanhã, mas depois somos só
plateia na maioria dos painéis. Não é possível que não podemos escapar por
uma única tarde! — Deu uma corridinha rápida, postando-se na minha frente.
A vi erguer o queixo ao máximo para me olhar nos olhos. — Uma fugidinha
só, por favor! Duas horinhas, no máximo...
Parei no meio da calçada, fitando-a por um momento.
— Eu juro que não conto para o Gustavo e os outros sócios... — ela
suplicava.
— Como se o Gustavo fosse se importar com isso...
Ela deu de ombros e ficou aguardando por minha resposta.
— Está bem! — Suspirei resignado, sentindo-me um idiota fodido
por ser incapaz de dizer não a Ana. — Vamos ver na programação um dia
mais...
— Tedioso.
— Ou menos importante. E então te levo ao Jardim Botânico.
Ela deu um gritinho alto e então impulsionou o corpo na minha
direção, claramente querendo me abraçar. Era involuntário, e tudo que
consegui fazer foi abrir meus braços e acolher seu corpo, sentindo o cheiro
quente que ela emanava.
Ana abraçava forte. Daquelas pessoas que se firma em seus braços
por segundos sem fim. E mesmo que eu fosse vários centímetros mais alto
que ela, era como se ela me envolvesse ali.
Senti um calor me tomar e xinguei Gustavo pela milésima vez no dia
por me forçar a viver aquilo.
Totalmente alheia à forma como me afetava, Ana soltou meus braços
e levou uma mão até meu rosto, ajeitando ela mesma meus óculos, que agora
estavam um pouco caídos no nariz.
— Pode ficar tranquilo que não vou comentar com ninguém. —
Tentou me convencer do impossível.
Estreitei os olhos e a encarei, cético.
— Realmente não vai contar para ninguém que foi ao Jardim
Botânico em Curitiba? Nem para as meninas?
— Só para as meninas... — Ela passava despretensiosamente as
mãos na minha camisa.
— Que é o mesmo que contar para todos — concluí, recomeçando a
andar, numa tentativa de fazê-la parar com aquela proximidade
desesperadora.
— Verdade... — Ela riu atrás de mim e decidiu me seguir.
Almoçamos sem grandes percalços e, como não havia nada na
programação para aquela tarde, voltamos para o hotel.
Gustavo foi tão “malditamente” sorrateiro, que nossos quartos eram
realmente colados um do outro. Uma pequena parede nos dividia, e me deitei
na cama incomodado com toda aquela proximidade.
Aquela facilidade...
Disposto a não pensar muito naquilo, foquei em alguns papéis que
havia levado para a apresentação. Na verdade, quem falaria quase tudo seria
Ana, mas Gustavo havia sugerido que eu também apresentasse alguns
números da fábrica, afinal, segundo o debochado idiota, eu era o nome que
havia criado aquela linha.
Ainda no fim daquele dia, seria oferecido um imenso coquetel no
salão de eventos do prédio onde acontecia o congresso. Minha ideia era
descansar um pouco do voo, revisar os últimos detalhes da apresentação, e
me arrumar para o coquetel.
Estava entretido com alguns slides que falavam sobre os ganhos da
empresa com os projetos de recolhimento de embalagens plásticas quando
meu telefone vibrou na mesa.
Quando vi quem era, minha vontade foi ignorar, mas sei que não
adiantaria.
— Oi — atendi, seco.
— Atendeu rápido demais. Achei que pudesse estar atrapalhando,
mas pelo visto... não.
Trouxa.
— O que você quer, Gustavo?
— Ué, saber como foi o voo. Só isso! Nenhum de vocês deu sinal de
vida... Sou um amigo preocupado.
— E debochado.
— Eu não disse nada. Tenho um conhecido que viajou no mesmo
voo que vocês e me disse que o viu atracado a uma mulher de franja...
— Ele viu?! — gritei exasperado. — Ela só estava dormindo no meu
ombro!
— Ah, ela dormiu agarradinha em você, então?
Desgraçado...
— Não tinha conhecido nenhum, não é? — rosnei para o aparelho.
— Não — ele assumiu sem o menor traço de culpa. — Mas se
tivesse, ele teria visto bastante coisa nesse voo. Estou errado?
Respirei fundo e resolvi ignorá-lo.
— Não teria visto nada. O voo foi tranquilo — comecei a relatar
com voz monótona. — Já pegamos nossas credenciais e a programação. Sete
da noite vão servir um coquetel e, até lá, quero revisar alguns detalhes da
apresentação de amanhã.
— Ok. Plínio Barros me ligou hoje. Disse que vai assistir ao painel
da LBK amanhã. Depois que tudo terminar, apresente ele à Ana. Ela vai
mostrar nosso plano de marketing da linha para ele. Já está sabendo de tudo.
Plínio Barros era um publicitário ricaço que patrocinava prêmios de
mídia de alcance internacional, e estava interessado em inscrever algumas
peças da campanha da nossa linha eco para o prêmio daquele ano.
Satisfeito por ver o rumo da nossa conversa seguir para o cunho
profissional, conversei com Gustavo por um bom tempo sobre o congresso, a
apresentação do dia seguinte e possíveis contatos que pudéssemos fazer
naquela semana.
E como Gustavo não voltou a falar ou fazer brincadeiras sobre Ana,
relaxei e me esqueci do assunto.
Talvez ele tivesse razão.
Eu era o único que ficava ansioso com aquele assunto e, por
perceber isso, Gustavo era o primeiro na fila a me importunar.
Mas a verdade é que tudo não passava de fruto da minha cabeça, e
não me restava nada a não ser tentar esquecer um pouco a insanidade que era
minha atração por Ana.
Era só o jeito maluquinho dela que me fascinava. Sua franja bonita
batendo na testa, e seu sorriso marcante, proporcional à sua presença. Era só
a admiração de um amigo meio tímido que via a amiga extrovertida da turma
com carinho e respeito.
Nada além disso.
O coquetel foi tranquilo, com Ana conversando com vários
representantes de outras empresas e mostrando-se, assim, uma ótima opção
para representar o marketing.
Gustavo tinha razão mais uma vez...
Acabamos nos afastando durante a noite, já que eu me vi rodeado de
representantes de empresas parceiras e concorrentes que queriam falar sobre
as estratégias da linha eco e sobre o painel, enquanto Ana fazia contatos com
publicitários e veículos de imprensa.
Foi ela quem respondeu a todas as perguntas de um pequeno jornal
que estava cobrindo o evento, e também detalhou para os organizadores do
Congresso sobre os próximos passos da LBK, a linha hipoalergênica, o
projeto de reativação de toda a fábrica, e outras coisas que eu sequer fazia
ideia de que ela estava ciente.
Como estava tarde, voltamos de carro para o hotel e nos despedimos
um pouco constrangidos no corredor.
Esperei que ela entrasse em seu quarto para então entrar no meu.
Tomei um banho demorado, vesti uma calça e sentei-me em uma das
cadeiras da pequena sacada do quarto, sentindo o frio da noite e imaginando
Ana enrolada em cobertas e mais cobertas, festejando sua primeira noite em
uma cidade em que as temperaturas beiravam os cinco graus.
Ainda repassava na cabeça alguns detalhes para a apresentação do
dia seguinte quando escutei uma batida suave na porta.
Imaginei que pudesse ser alguém batendo no quarto errado e fui
atender descalço e sem camiseta.
Mas quando abri, tudo que vi não foi um desconhecido e sim Ana,
enrolada no roupão do hotel, mal encobrindo uma camisola fina demais, com
os cabelos soltos e o rosto sem nenhum traço da maquiagem que ela usava
poucas horas atrás. Um sorriso travesso e um calhamaço de papéis nas mãos.
Linda, como somente Ana conseguia ser.
Merda!
Capítulo 4
Ok...
Talvez não tenha sido uma boa ideia aparecer no quarto do Eduardo
às dez horas da noite, de camisola e toda descabelada, já que, de todos os
cenários imagináveis, eu jamais adivinharia que ele pudesse abrir aquela
porta só com uma calça de moleton e...
Puta que pariu!
O Eduardo é gostoso e só eu sei disso!
Porque uma coisa era vê-lo sem camisa de longe, durante o futebol
dos funcionários da empresa, mas outra bem diferente era dar de cara,
literalmente, com seu corpo inteirinho exposto, nu, recém-lavado e cheirando
a sabonete.
É bem gostoso de perto, posso garantir, já que meu nariz quase bateu
no peitoral largo e alto quando me convidei para seu quarto, sem qualquer
aviso.
— Errr... — Escutei ele arranhar a garganta e me vi forçada e desviar
os olhos do seu peito e subir até seu rosto. — Algum problema, Ana?
Sim! O problema é que você sempre me pareceu bem bonito, só que
subiu várias posições nesse momento, e minha vontade é gritar para meio
mundo de gente que você é gostoso para caramba e esconde o jogo com
esses óculos de intelectual que, a propósito, só te deixam ainda mais
interessante...
Vi o rosto de Eduardo corar violentamente e então me perguntei se
não tinha dito tudo aquilo em voz alta.
— Eu não disse isso em voz alta, disse? — perguntei, sem querer
acreditar que minha boca grande tivesse ido tão longe.
— Sim. — Ele parecia mais constrangido que eu ao concordar. —
Você disse...
Droga!
Bom, desculpas eu não vou dizer porque é verdade, então...
— Mentira não foi, mas... vamos fingir que isso nunca saiu da minha
cabeça?
Quase a contragosto ele riu.
— Certo... Agora... — Eduardo apontou para os papéis que eu
levava nas mãos, fazendo eu me lembrar do motivo da minha visita noturna.
— Ah! Quase esqueci. — Sem esperar por um convite, entrei no
quarto. — É que essa porcaria de apresentação de amanhã está me
enlouquecendo. O Gustavo me avisou muito em cima da hora, e estou com
medo de falar merda. — Com alguns passos, cruzei o imenso quarto e sentei-
me na imensa cama de casal. — Você viu o tamanho daquele auditório? Vou
falar para todas aquelas pessoas?
— Bom... — Percebi que Eduardo manteve certa distância da cama,
escorando-se na pequena mesinha que havia ao centro do cômodo. — Acho
que você se saiu muito bem hoje, no coquetel. E nem tinha uma apresentação
de slides para te apoiar.
— É... — Pesei suas palavras por um momento. — Ainda assim,
estou um pouco ansiosa. É muita responsabilidade representar uma empresa
como a LBK para todas aquelas pessoas... Eu participei das campanhas da
linha eco, mas quem sempre teve tudo na cabeça é o Gustavo.
— Hum... Ultimamente aquele lá só tem besteira na cabeça... —
Eduardo fez uma careta retorcendo a boca, decidindo-se e sentando-se em
uma das cadeiras da mesa. Nunca havia notado o quanto ele se movia ereto e
com boa postura. Por mais que fosse tímido, seus ombros eram grandes e
retos e seus olhos castanhos pareciam sempre observar os mais sutis
movimentos de seu interlocutor. — Mas do que, realmente, você tem receio?
— De falar merda, como eu fiz agorinha quando te chamei de
gostoso e estou fazendo agora de novo. — Tentei sorrir, já que não me
restava nada além disso.
Eduardo abriu aquele sorriso de lado que eu gostava de ver e, mesmo
que suas faces tenham ficado levemente rosadas novamente, não desviou os
olhos dos meus.
— Você não fala merda, Ana. Só diz exatamente aquilo que pensa
sem...
— Pensar.
— É. Ou pesar. E isso durante uma apresentação pode ser bom.
Você pensa rápido. Quase tão rápido quanto fala. Tenho certeza que vai dar
tudo certo amanhã.
— Quer parar de me elogiar? — Entrei naquele quarto incomodada
com a expectativa daquela apresentação, mas agora o que me afetava era o
homem de óculos e sem camisa que me olhava com um brilho que nunca
notei em seus olhos.
Má ideia ter batido àquela porta.
— Só tentei te acalmar... — Ele desceu um pouco os olhos e parou
em algum ponto do meu corpo abaixo do pescoço. Instintivamente olhei na
direção que ele fitava e quase infartei quando vi que, com o movimento de
me sentar na imensa cama, o roupão tinha caído de um dos ombros,
revelando tudo que havia abaixo dele.
Minha Nossa Senhora das camisolas transparentes!
Nesse momento eu tinha dois faróis acesos e apontando na direção
de Eduardo, mal encobertos pelo tecido fino e molenga da camisola,
enquanto ele parecia bem atento à sinalização, como se esperasse o momento
em que enfim pudesse avançar com seu carrão.
Deus queira que eu não tenha dito isso em voz alta...
— É o frio... — Melhor falar uma besteira pequena do que outra
gigantesca.
Eduardo desviou os olhos para o chão por um momento e esperou
enquanto eu me recompunha. Passada a situação constrangedora, levantei da
cama com rapidez, disposta a voltar para meu quarto.
Eu só queria sugerir algumas mudanças na apresentação e quase
fiquei nua para ele!
— Quer repassar os detalhes da apresentação? — ele chamou de
repente, levantando-se de uma vez.
— Se você não se importar... — Essa era minha intenção desde o
início, mas tudo estava tomando rumos estranhos e inesperados.
Ele apontou com a cabeça para a pequena sacada do quarto, onde
algumas cadeiras descansavam no frio.
Só naquele momento notei que aquela porta estava aberta. Desde que
voltamos para o hotel, tranquei-me no quarto e sequer abri a porta da minha
sacada. A noite em Curitiba estava muito fria para meus padrões, e me
aconcheguei aos cobertores, lendo todos aqueles rascunhos. Foi quando
decidi bater à porta de Eduardo e repassar com ele alguns dados da
apresentação. Minha ideia era mudar um pouco a ordem das nossas falas, e
precisava alinhar isso com ele.
Sem parecer se importar com o vento congelante, ele sentou-se em
uma das cadeiras da área externa. Mal coloquei os pés do lado de fora e senti
um arrepio na espinha com o clima gelado.
Eu estou só de camisola e roupão! Meus pés vão congelar em
minutos aqui!
— Vou pegar uma coberta para você — anunciou de repente, e me
dei conta que, mais uma vez, pensei alto demais.
Eduardo voltou com um imenso edredom e o jogou nos meus
ombros, apontando uma cadeira para mim.
Sentei-me e ajeitei o quente e fofo edredom nas pernas, tirando do
colo os papéis que levava e colocando na mesinha pequena que havia logo à
frente.
— Eu não tenho receio de apresentar os dados — comecei a falar, e
percebi que ele prestava atenção. — Fiz parte da equipe que trabalhou com o
marketing de criação da linha, que divulgou as campanhas, tudo. Só sinto que
é uma responsabilidade muito grande. Era para ser o Gustavo no meu lugar,
entende? E ele é o diretor e dono da empresa!
— Se ele te escolheu para substituí-lo, é porque sabe que você é a
pessoa ideal. — Ele olhava para mim com os olhos brilhantes. — E nesse
ponto tenho que concordar com Gustavo.
Dei de ombros e questionei:
— Você também está ansioso?
— Muito mais do que você. Tenho pânico de falar em público.
— Por que diz pânico?
Eduardo pensou por um momento antes de responder:
— Sempre fui calado, tímido e, por anos, me vi forçado a aparecer
nos jornais e programas de TV.
— Seus pais te forçavam?
— Não. Eles sempre respeitaram meu lado mais reservado. Meu avô
é quem sempre quis que eu seguisse a carreira política da família e, por isso,
sempre me levou para o palanque. — O vi suspirar por um momento e
recostar o corpo na cadeira. Aquele homem não sentia frio? E cadê a timidez?
Estava me sentindo uma tarada olhando sem parar para ele sem camisa e ele
nem aí? — Ele achou que fosse despertar meu gosto para o palco, mas tudo
que conseguiu foi gerar minha aversão.
Dos quatro sócios da LBK, Eduardo era o que tinha o passado mais
conhecido da maioria dos funcionários. Filho único de um estadista
importantíssimo da década de 1990, sua família era conhecida pela tradição
política no estado do Paraná. Seu pai era governador quando candidatou-se à
presidência do país, mas a queda do pequeno jato que levava ele, a esposa, o
candidato a vice e alguns assessores mudou os rumos das eleições daquele
ano, transformando o rosto de Eduardo, ainda pré-adolescente, ao lado do
caixão dos pais, em uma cena emblemática da era.
Para uma pessoa que fugia dos holofotes como ele, deve ter sido
difícil passar por toda a adolescência vivendo aquela pressão de seguir os
passos do pai que morreu de forma trágica.
— Seu pai achava que você seria político como ele?
— Não. — Eduardo era incrivelmente alto, e precisou afastar um
pouco sua cadeira do vidro da sacada para conseguir esticar as imensas
pernas. — Aquela era a carreira dele, e não a minha. E ele sempre entendeu
isso. Mas quando meus pais morreram e eu virei o único Venturini da
família...
— Seu avô quis continuar em você a tradição política do nome.
— Isso. — Ele ficou em silêncio um pouco, como se tivesse
encerrado o assunto, mas percebeu que eu o olhava com atenção, e decidiu
continuar. — A adolescência foi um saco, com ele me levando a eventos do
partido e me forçando a falar em entrevistas e comícios. Quando veio a
universidade, consegui me afastar daquele mundo. — O sorriso de lado
brotou do seu rosto. — Foi fácil convencê-lo a estudar em Brasília. Ele achou
que finalmente eu estava seguindo os passos da família, morando no centro
político do país...
— Mas você só estava fugindo para o mais longe possível daquela
pressão e seguindo seu sonho de estudar um curso de Engenharia.
— Isso. Na faculdade conheci Benício e Ricardo, e o resto você já
sabe.
— Acho chique uma pessoa que perdeu os pais em um acidente de
jatinho e teve que fugir do destino na política para seguir seus sonhos...
Eu acabei de dizer que acho chique ele ter perdido os pais?
Escutei Eduardo gargalhar baixinho e me tranquilizei.
— Ah, Ana... Só você para dizer uma coisa dessas...
— Tive um tio que morreu porque bateu o fusca em uma vaca. Isso
não é nada chique de se contar... — Olhei para ele e notei que Eduardo
escondia a risada. — Está vendo? É impossível contar sobre esse acidente
sem rir um pouco. Até minha tia faz piada com a morte do marido. Lá na
minha família ninguém usa a expressão “pensando na morte da bezerra”.
Todo mundo fala: “Estava pensando na morte do tio Zé”.
Eduardo ainda escondia o rosto com uma das mãos quando disparou
a gargalhar, como se perdesse o controle.
— Pode rir — autorizei. — Eu também riria.
— Sua família parece ser bem animada.
— São muitos, barulhentos e vivem se metendo uns na vida dos
outros. — Estiquei meu corpo na cadeira e ajeitei melhor o edredom, para me
proteger do frio. — Se você tem medo de enfrentar um palco lotado, deveria
temer uma reunião de Natal da minha família.
Ele voltou a rir, antes de brincar:
— Então pense que a apresentação de amanhã vai ser fichinha se
comparada às suas reuniões familiares...
— Vai sim. — Sorri de volta, ajeitando minha franja que coçava em
meus olhos com o vento frio da noite. — Só estava sem sono e querendo
conversar com alguém. — Eduardo sem camisa estava começando a me
incomodar. Eu sentia sua presença cada vez mais forte, e a grande verdade é
que nesse momento me enroscava no cobertor não para me proteger do frio,
mas dos seus olhos, que me sondavam o tempo inteiro. Talvez fosse melhor
eu voltar para meu quarto. — Nossa conversa já ajudou...
— Ainda podemos repassar a apresentação de amanhã... — ele me
interrompeu, levantando-se de uma vez e, se tinha um lugar pior do que seu
tórax para eu fixar meus olhos, foi exatamente naquele lugar que eles se
fixaram no momento.
Melhor nem pensar em nada, senão acabo dizendo em voz alta...
Cravei os olhos no rosto dele e recorri à minha melhor tática quando
não sabia o que dizer: fazer perguntas idiotas.
— Como é possível que eu esteja embrulhada no meio das cobertas,
me escondendo do frio, enquanto você nem parece sentir o vento e ainda está
sem camisa?
— Metabolismo. — Ele deu de ombros. — Geralmente homens têm
uma taxa metabólica mais alta que mulheres.
Sério, eu vou esganar esse homem se ele continuar respondendo às
minhas perguntas assim.
— O que foi? — Pela primeira vez eu fiquei muda, e era Eduardo
quem questionava.
— É uma pergunta aleatória! — Me aproximei do beiral da sacada e
levei as mãos para cima. — Faço perguntas aleatórias como essa o tempo
inteiro e ninguém se importa!
— Eu me importo.
Uau! Aquilo foi tão...
Fato: Eduardo sem camisa, respondendo minhas perguntas aleatórias
com real interesse e com o volume das calças um pouco saliente estava me
afetando.
E muito!
— Quais são as chances de se sobreviver a uma queda dessa altura?
— Apontei para a imensidão escura da sacada. Estávamos no décimo
primeiro andar e eu precisava mudar o foco.
— Isso é uma pergunta aleatória?
— Sim.
— Quase nulas. Não sei de probabilidades, mas mesmo se a queda
fosse na água, as chances de morrer seriam imensas.
Ponderei suas palavras, em silêncio.
— Você não vai pular, vai? — Ele me olhava com desconfiança.
— É uma pergunta aleatória?
O vi sorrir de lado e acabei sorrindo também.
Eduardo me olhava nos olhos, e parecia que havia algo diferente em
seu olhar. Aquilo me capturou alguns segundos, e, sem saber muito o que
dizer, deixei que o vento frio da noite soprasse em silêncio, enquanto nos
encarávamos naquela sacada minúscula.
O diretor de Produção da LBK sempre me pareceu só isso mesmo:
um diretor jovem, que usava óculos e era bem calado. As primeiras vezes em
que vi Eduardo, antes mesmo de nos tornarmos amigos, o achei um pouco
esquisito e quieto demais. Foi bem aos pouquinhos que ele se revelou uma
pessoa reservada, mas com bom humor e educação invejáveis.
Gostava da forma como ele transparecia o que sentia, corando
violentamente ao menor sinal de pudor, ou escondendo um pouco o rosto
quando parecia sem jeito. Tudo o que Eduardo sentia no momento ficava
sempre evidente em suas feições, e agora seu rosto transparecia algo que, por
mais que eu quisesse, não conseguia nomear.
Ou não queria enxergar.
— Segundo o cronograma do Gustavo — recomecei a falar com
rapidez —, você faria a apresentação inicial da empresa, nossas linhas e
novos projetos, e então eu falaria das nossas peças de campanha. Depois,
quando abrissem as perguntas para a plateia, você responderia.
— Isso.
— E se invertermos tudo? Eu falo primeiro, porque quando estou
nervosa disparo a falar. Falo o que sei da empresa rapidamente e apresento
nossas ações de marketing. Depois, mais calmo, você fala das projeções e
ações futuras, e então nós dois responderíamos às perguntas.
— Você prefere assim? — Ele aproximou-se um passo e eu quase
recuei três.
— Sim. Eu despejo logo toda a minha ansiedade enquanto você
perde um pouco o pânico. Responder perguntas para mim é tranquilo e, pelo
visto, para você também é.
Eduardo deu mais um passo em minha direção e sorriu.
Eu vou ter que mandar esse homem por essa camiseta? Meus
hormônios estão gritando já.
E é o Eduardo que está na minha frente, droga!
— Acho que pode dar certo. Na verdade, acho que será melhor do
que o planejamento do Gustavo.
— Ótimo! — disparei. Deus do céu! Levei meia hora para dizer
isso. — Vou ter que refazer alguns slides, mas é coisa rápida. Então é melhor
eu ir, que amanhã o dia é longo...
— Ok... — Vi o sorriso sumir um pouco do seu rosto.
Entrei no quarto novamente e me encaminhei para a porta. Um
Eduardo acanhado — e sem camisa — levou as mãos até a maçaneta da porta
e pareceu titubear, como se não quisesse abri-la.
— Err... — ele arranhou a garganta, sem jeito, finalmente abrindo a
porta. — Boa noite então, Ana.
— Boa noite, Du.
Me aproximei dele e enlacei seus ombros, como eu sempre fazia
quando me despedia de um primo ou mesmo de amigos.
Como várias vezes me despedi do próprio Eduardo.
Mas dessa vez eu estava de camisola e ele sem camisa.
Dessa vez, ele me olhava com um brilho estranho e eu não parava de
pensar na coisa enorme que vi mal contida entre suas pernas.
Dessa vez, eu sentia um calor inexplicável no corpo enquanto os
pelos dele se arrepiavam quando o abracei.
E ao invés de me afastar, dessa vez levantei o rosto até o dele e dei
um beijo estralado em sua bochecha. Seria um beijo normal, entre amigos, se
dessa vez eu não tivesse sentido suas mãos se apossarem da minha cintura
quase instantaneamente, cravando um pouco em minha pele.
Quando me afastei, percebi que os olhos dele focaram em meus
lábios, para rapidamente desviarem-se, olhando com desatenção para o
corredor vazio.
Dois passos e eu estava de fora.
Eduardo estava quase fechando a porta quando me lembrei que
levava seu cobertor.
E foi só quando o entreguei e ele fechou a porta que tive certeza:
O que me aqueceu naquele quarto não foi aquela peça de cama.
— Seu tempo de fantasiar beijar um dos sócios gatos do Quarteto
Fantástico já passou, Ana. Bota um pouco de gelo nessa periquita e esqueça
aquela calça de moletom frouxa com um volume que seria barrado na Receita
Federal. Você está aqui a trabalho!
Olhei para o fundo do corredor e vi uma câmera de monitoramento
imensa me observando.
Será que alguém me ouviu?
Capítulo 5
Ana era muito mais do que sempre sonhei. Mais do que desejei e
mais do que imaginei.
Ana era real, com seu jeito puro e falante, seu cheiro quente e seu
sabor maravilhoso.
Ana, com sua boca extremamente deliciosa, seus gemidos baixos,
suas curvas perfeitas e sua pele aveludada.
Ela brincava com os dedos, espalhando a secreção que saía da ponta
do meu pau. Apertei os dentes, contendo o gemido, quando ela se inclinou na
cama, ficando de quatro, começando a me sugar.
Perfeita...
Sua língua passava por toda a minha extensão lubrificando tudo com
destreza, me chupando e apertando a base com as mãos. Me ajeitei na cama,
deixando-a mais à vontade, e ela me olhou de viés, os olhos brilhando
provocantes. Cheios de tesão.
Ela usava uma das mãos para me apertar, enquanto com a outra
acariciava minhas pernas, talvez sem sequer perceber.
Só que eu estava atento a cada movimento dela.
À forma como a sua franja caía no rosto, tampando os olhos feito
cortina.
Em seus lábios de um vermelho vivo e natural, que me fascinaram
no Jardim Botânico, finalmente tomando coragem para beijá-la, e agora me
engoliam por inteiro. Famintos, habilidosos. Sedentos.
Ela passou a língua, me arranhou com a ponta dos dentes, e eu
guardaria aquela cena para o resto da vida.
— Você está me excitando só de me olhar assim... — ela brincou
depois de um tempo, sem nunca deixar de me acariciar nas pernas.
— Você é linda, Ana. E está mais linda ainda agora.
Ela sorriu meio sem jeito e voltou a me chupar. Movi meus quadris,
estabelecendo um ritmo para seus movimentos. Sentindo sua garganta se
apertar em mim.
Levei uma mão até seus seios e os acariciei. Eram volumosos, e
enchiam minhas mãos como se fossem o meu número. Percorri sua pele com
os dedos e voltei a acariciar seu clitóris, úmido. Ela arfou contra meu
membro e se retorceu um pouco.
— Quero fazer você gozar primeiro — ela pediu, arqueando o corpo
e tentando fugir do meu contato.
— Só vou dentro de você.
Ela ergueu de leve uma das sobrancelhas e me olhou.
— Isso é um desafio.
— É um fato.
Ana estreitou os olhos e, como se desafiada, aumentou ainda mais o
ritmo da boca, estralando a língua e me engolindo inteiro, quase se
engasgando de tanta gula.
Desafio aceito, minha mão que acariciava seu clitóris aumentou o
ritmo, até vê-la perder o controle de novo, dessa vez de quatro, retorcendo-se
feito bicho, e fazendo seus lábios tremerem enquanto me lambia.
— Agora vem cá. — Puxei-a para meu colo, acariciando seus
cabelos.
Eu não tinha pressa em me entregar ao prazer. Queria conhecer mais
de Ana. Ver seu corpo nu se retorcer. Sua língua me provocar.
Aquilo era só o início.
Ela suspirou longamente e então sorriu, antes de sussurrar:
— Ainda não desisti.
— Eu sei.
— Posso pedir uma camisinha no delivery da farmácia.
— Calma, Ana. Temos muito tempo. — Girei meu corpo e fiquei de
frente para ela. — Preciso saber o que você sentiu.
— O que eu senti? — Ana me fitou confusa. — Nunca me
perguntaram o que eu senti.
— É uma pergunta aleatória. — Dei de ombros. — Também tenho
as minhas.
— Você está brincando?! — Ela ergueu um pouco a voz. — Acabei
de quase transar com um dos integrantes do Quarteto Fantástico!
— Integrantes do que? — O que ela estava dizendo?
— Nada! — Ana tampou minha boca com um dos dedos. — Só
posso dizer que foi a melhor de todos os tempos. E, minha nossa senhora,
você nem colocou essa coisa enorme em mim!
Era impossível não rir com Ana ao lado.
— Penetração não é tudo, Ana.
— Acabei de ver que não é mesmo... Há mais de dois anos não... não
me sentia assim.
— Dois anos?
— Sim. Os homens não costumam gostar de mulheres que falam
demais. Então, não fui a pessoa mais namoradeira. Conheci poucos homens, e
a grande maioria nunca me fez chegar até lá só com... — Ana passou os
dedos por meus lábios e então me beijou.
Como sua boca era boa. Com o meu sabor, misturado ao seu sabor.
Nos beijamos com calma, nos acariciando, e a verdade é que durante todo
aquele tempo eu seguia duro por aquela mulher.
Ana, percebendo isso, começou a rir e chamou:
— Vamos para o chuveiro. Não aguento ver essa indecência que
humilha todos os meus antigos parceiros olhando para mim com essa cara
pidona.
Gargalhei e deixei que ela me levasse.
Uma vez lá dentro, com a água escorrendo em nossos corpos, ela
ajoelhou-se e recomeçou a me chupar. Ana lambia com vontade, puxando
meu corpo em sua direção. Quando julguei não mais conseguir suportar suas
carícias, puxei-a para cima.
Levantei seu corpo até quase a altura do meu tórax para que pudesse
chupá-la e ela se apoiou na parede do banheiro, em busca de estabilidade.
Suas mãos encontraram a chave do registro de água e Ana apoiou-se na peça,
forçando-a para baixo.
Foi o suficiente para a peça se abrir em um estralo alto, rodando nas
mãos de Ana e jorrando água no encaixe com o azulejo.
— Ahhh... O que foi que eu fiz?! — ela gritou assustada enquanto
era colocada no chão.
— Calma. Você só abriu um pouco o registro. — Fechei a peça ao
máximo, mas ela parecia frouxa no encaixe.
— Continua vazando — ela apontou para o pequeno risco de água
que continuava a escorrer pelos azulejos.
— Tem nada não. — Dei mais uma volta na peça e me virei para ela.
— Daqui a pouco deve parar. Provavelmente não mexem aqui há séculos.
— É. — Ana deu uma risadinha sem graça. — Acho que esse foi o
sinal divino de que devemos parar. Logo começam os painéis da tarde e,
querendo ou não, estou aqui representando o Gustavo.
Concordei com a cabeça e dei um beijo em sua testa. Ana sorriu e se
inclinou, oferecendo os lábios. Peguei um sabonete e esfreguei em seus
ombros, ajudando-a a tomar banho.
Não sei o que seria de nós depois daquele quarto. Eu sempre me vi
atraído por Ana, mas julgava ser uma paixonite boba. Algo platônico.
Só que a grande verdade é que nós dois nos encaixávamos. No
palco, diante de uma plateia imensa, e também na solidão da cama.
Incerto do que viria depois daquele quarto, daquele congresso ou
daquela viagem, eu só tinha uma certeza no momento: o que tive de Ana era
especial.
Ela despertou em mim algo que parecia dormente há anos.
Guardado, sem que eu mesmo soubesse o motivo, e que ela facilmente
acessava, sem explicação alguma.
Porque ela era o fogo que queimava todo o gelo.
Voltamos para o quarto e ela se vestiu. No celular, vi algumas
mensagens não lidas de Ricardo e Gustavo, e percebi que já passava da hora
do início dos painéis da tarde.
Descemos o elevador e nos afastamos um pouco daquele clima
idílico da manhã. Fomos tragados por conversas na entrada do salão do
congresso, elogios à apresentação do dia anterior e convites para reuniões no
dia seguinte.
Acabamos nos separando e percebi que Ana entreteu-se com um dos
painéis da tarde, sobre marketing em redes sociais.
Já era noite quando enfim voltamos ao hotel. Sem que ela
percebesse, saí em um dos intervalos e comprei camisinhas em uma farmácia
ali perto.
Ela pegou minhas mãos enquanto subíamos ao apartamento,
enlaçando nossos dedos, e me beijou no queixo enquanto eu abria a porta de
madeira, como se o fizesse todos os dias.
Fui eu quem dei o primeiro passo para o interior do quarto, sentindo
imediatamente meus sapatos se encharcarem sob um ruidoso splash...
— Meu Deus, Du! — Ana levou as mãos à boca, entrando no quarto
na ponta dos pés. — O que aconteceu aqui? Por acaso choveu só dentro do
seu quarto?
E então eu me lembrei do registro do chuveiro.
Merda...
Corri para o banheiro e a pequena válvula, que tenho absoluta
certeza de que deixei fechada, havia sumido da parede. Em seu lugar, a água
esguichava do cano feito uma cachoeira sem controle.
Fui encontrar a válvula caída do outro lado do banheiro, arrancada
da parede com a violenta pressão.
Tentei recolocar a peça, mas a força da água me impedia. Quando
voltei para o quarto, minhas roupas estavam ensopadas. Deparei-me com Ana
colocando todas as malas e pertences em cima da cama. A maioria delas
estava pingando de tão molhadas.
— Vou chamar o gerente — anunciei, pegando no aparelho
telefônico.
Ficamos por quase duas horas esperando que o impasse do meu
quarto se resolvesse. Minhas coisas todas acumuladas em um canto do
saguão de entrada, formando uma poça de água ao redor.
Sugeri a Ana que fosse para seu quarto, mas ela recusou-se,
permanecendo ao meu lado e tentando me distrair com suas perguntas
aleatórias.
“Qual sua banda favorita?”
“O que gosta de comer quando está triste?”
“Suas notas eram sempre altas na escola?”
“Se precisasse escolher uma única cor para usar pelo resto da vida,
que cor seria?”
“Já conheceu a neve?”
— Você tem a fala apressada — pontuei em um momento que ela
disparou a falar sobre um casal que entrou com cara de poucos amigos, como
se tivessem brigado. — Fico me perguntando quantas palavras você consegue
dizer em um minuto.
Ela riu e me fitou.
— Essa é uma pergunta aleatória. Sou eu quem devo fazer. Quantas
palavras uma pessoa pode dizer em um minuto?
Sorri de volta.
— Bom. — Comecei a raciocinar. — Quanto menor a palavra, mais
vezes ela pode ser repetida em um minuto. Uma palavra de duas a três
sílabas, como o seu nome, pode ser repetida umas... confesso que não sei.
Mas com certeza é bem mais de cem, se pensarmos que podem ser ditas em
menos de um segundo.
— Ana, Ana, Ana... — começou a repetir, e me segurei para não
gargalhar no saguão. — Quantas Anas cabem em um minuto? — questionou-
se.
Quantas Anas?
Pouco depois, o gerente aproximou-se de nós. Pela sua cara de
poucos amigos, as notícias não eram nada boas.
— Não sabemos o que aconteceu, senhor, mas o registro quebrou de
repente, e agora não conseguimos consertar. — Olhei de viés para Ana e
percebi que ela sorria safada, embora houvesse um pequeno rubor em suas
faces. — O encanador disse que vai ser preciso quebrar a parede.
Infelizmente vamos ter que interditar o quarto.
— Tudo bem. — Levantei-me disposto a dar um fim logo naquilo.
— Não me importo de mudar de quarto.
— O problema, senhor... Eduardo, não é? — Concordei e ele
continuou: — O problema é que não temos quartos disponíveis. O hotel está
cheio por conta do congresso e também da onda de frio.
— Podemos dividir o quarto — Ana sussurrou em meus ouvidos.
— O quarto da senhora é o do lado, não é? — O gerente se voltou
para Ana e, pelo olhar que lançou a ela, previ que estávamos em maus
lençóis. — O encanador pediu que olhasse seu quarto também. A encanação
dos dois banheiros é conjunta, e acreditamos que também seja preciso
interditar seu quarto para finalizar o reparo.
— Então estamos os dois sem quarto? — Me voltei para o gerente.
— Sinto muito, senhor. Já entrei em contato com hotéis da região,
buscando uma vaga para os dois, mas está tudo cheio... — Ele me olhava
com certo pânico. — O hotel faz questão de ressarci-los pelos prejuízos, e
prometo que nas próximas horas encontraremos uma hospedagem, sem custo
algum.
Ana me olhava com os olhos arregalados, sem nada dizer.
Nós nem podíamos reclamar do hotel. A culpa daquela situação era
essencialmente nossa e, de repente, me vi com pena do pobre gerente, que
falava apressado com seus funcionários, enquanto fazia ligações para todos
os hotéis da cidade, sem sucesso.
Suspirei profundamente e me levantei do pequeno sofá do saguão,
indo em direção ao balcão.
Às vezes não dá para fugir do destino, e parece que aquele era o
meu.
— Não precisa se preocupar com nós dois — anunciei com voz
resignada. — Tenho familiares em Curitiba e vou para a casa deles. Ela vai
comigo.
O homem suspirou e sorriu com imenso alívio.
— Vou chamar um carro para levá-los. É por nossa conta. E se
precisarem de um carro para o congresso amanhã cedo, eu envio.
— Agradeço.
Ana subiu para apanhar suas coisas no quarto e eu fiquei no saguão
do hotel avisando sobre a pequena mudança. Avisei aos meus sócios e depois
à minha avó, que conseguiu esconder a surpresa de saber que o neto estava
em sua cidade natal e não havia comunicado a ninguém. Ela simplesmente
concordou em silêncio, educada como sempre. Escondendo suas palavras e
omitindo suas verdades.
No carro, a caminho da mansão dos Venturini, mantive-me calado,
rememorando a última vez em que fiz aquele trajeto. Coisa de três anos ou
mais, depois de pedidos incessantes de dona Rose, minha avó, de que eu
visitasse meu avô, recém-operado de uma catarata.
Passei o final de semana inteiro ouvindo reclamações sobre minhas
escolhas profissionais e como eu afundava o nome dos Venturini no
esquecimento e anonimato.
Suspirei fundo quando entramos na imensa rua que levava ao
casarão de esquina branco.
Ladeado por sinuosos pinheiros e um imenso pé de araucária
ostensivamente vigilante em uma esquina, o terreno era cercado por pilastras
em estilo grego, uma das extravagâncias do velho José Carlos Venturini.
No suntuoso portão de entrada, onde um segurança já nos aguardava,
uma imensa letra V deixava claro a quem pertencia aquele terreno. Uma
espécie de brasão para o sobrenome que comandou a política por anos no
Paraná.
E agora vivia seu ostracismo com o neto único desgarrado.
Descemos do carro em silêncio até que Ana o rompesse, em uma
exclamação baixa, percorrendo todo o terreno com os olhos:
— Uau!!! É impressão minha ou essa casa ocupa todo o quarteirão?
— Sim. — Cumprimentei o segurança e ele nos indicou a imensa
entrada, com sua escadaria em estilo romano. Mais ostensivo, impossível.
— E tem até a marca do seu sobrenome... — Ela olhava a tudo
encantada. — Por que se hospedou no hotel, se poderia vir para cá?
Eu teria preferido um motel na saída da cidade àquele lugar...
Entramos no imenso salão que levava à sala íntima. Não havia
ninguém para nos receber, então tomei, por conta própria, o rumo até a sala
de estar, bem mais pequena, e que ficava contígua à cozinha. Ali era o
refúgio de minha avó e, se alguém estivesse em casa, estaria lá.
Encontrei-a sentada no velho sofá vermelho de fios dourados,
assistindo ao jornal da noite e descansando as pernas em um pequeno banco
almofadado.
— Oi, vó.
Ela sorriu de maneira aberta para mim.
— Oi, Du! — Me chamou com uma das mãos. — Não fui te receber
na porta porque minhas pernas estão cansadas. Vem cá cumprimentar sua
avó.
Aproximei-me e dei um beijo em seu rosto. Ela me olhou alguns
segundos e então se virou para Ana.
— Essa aqui é Ana. Trabalhamos juntos na fábrica e ela também está
participando do congresso.
— Muito prazer, dona Rose. — Ana tinha perguntado o nome dos
meus avós no caminho.
Minha avó aceitou o cumprimento, mas percebi a forma como
analisou as botas marrons de Ana, suas meias de fios brilhosos, a blusa
folgada e a calça jeans por baixo do sobretudo absolutamente desnecessário,
coloridos por sua echarpe exageradamente rosa.
Rose Venturini era uma mulher singela, de tons pastéis e que
costumava dizer que as mulheres não podem se sobressair aos homens nas
fotos.
Ana era como um escrito em neon que atraía todas as atenções para
si, enquanto minha avó preferia cumprir o papel de holofote, sempre
iluminando os demais.
— Pedi que a empregada servisse o jantar quando vocês chegassem.
Seu avô está no quarto.
— Estamos morrendo de fome! — Ana retorceu sua echarpe,
cumprimentando também a empregada, que eu não conhecia, e sentando-se
em um dos sofás da sala. — Por sorte Eduardo tem parentes aqui, ou agora
estaríamos desabrigados, com fome, e ele com todas as roupas molhadas —
finalizou, apontando para mim.
— Quando chegaram na cidade? — minha avó interrompeu o
falatório de Ana com uma pergunta.
— Segunda-feira. — Ana não se abalou nenhum pouco.
— E nem ia visitar os seus avós? — Ela se voltou para mim. Aquela
voz suave e doce que nunca dizia o que pensava, mas que deixava tudo
transparente em seus olhos.
— É uma viagem a trabalho. — Sentei-me em uma das poltronas,
esperando o momento em que o soberano José Carlos Venturini entraria na
pequena sala, finalmente autorizando todos a sentarem-se na mesa.
— Já mandei arrumar o seu antigo quarto, e também o quarto de
hóspedes para a sua amiga.
Ana sorriu em agradecimento, esperando a ação de algum de nós.
Passaram-se vários minutos até que a empregada entrasse novamente na sala
e informasse que “o patrão” já estava sentado.
Em silêncio, atravessamos o pequeno corredor que levava à sala de
jantar íntima. Havia uma outra, imensa, para convidados e cafés com a
imprensa, enquanto aquela era para a “família”, com uma mesa de mármore
curta e um aparador cheio de cristais e pratas nunca usados.
— Boa noite, vô.
— Só assim para você visitar seus avós, Eduardo. — A voz alta e
sonora do homem acostumado aos discursos invadiu o ambiente. — Não se
fazem mais hotéis como antigamente. Um vazamento no banheiro? No meu
tempo, uma coisa dessas jamais teria acontecido, e muito menos os hóspedes
seriam obrigados e encontrar uma casa para se abrigar.
Olhei de viés para Ana e percebi que ela sorria. Me permiti sorrir
também pela primeira vez desde que havíamos chegado.
— Os hotéis da região estavam todos lotados por conta do congresso
e, somado a isso, muitas pessoas vieram aproveitar o frio na cidade.
— Mesmo assim, as coisas hoje em dia estão muito erradas. Foi-se a
época em que respeitavam um cliente — meu avô bradou, servindo-se de
uma salada e sem fazer qualquer gesto de educação para os demais.
Os galanteios, gestos finos e falar suave ele guardava para a
imprensa, seus colegas partidários e quem mais tivesse para agradar.
Em silêncio, começamos o jantar.
Até que Ana, talvez no limite do suportável para ela, rompeu com o
clima visivelmente tenso.
— Já conhecem Goiânia?
Minha avó negou com a cabeça algumas vezes e meu avô respondeu,
ainda fitando o prato:
— Estive lá algumas vezes em viagens partidárias e de campanha.
Também de passagem para Brasília.
— Devem estar acostumados com o clima mais ameno daqui. Lá é
muito quente em setembro, outubro... Oito graus como fez hoje cedo é coisa
que não estamos acostumados. Só durante o inverno, mas dura pouquíssimos
dias.
— Percebe-se. — Meu avô a analisou, mas Ana parecia blindada.
— Estou amando a cidade. — Sua voz ergueu-se um pouco e aquilo
me fez sorrir de novo. — É bonita, bem cuidada e com um clima ótimo. —
Meu avô mastigava a comida sem pressa e limitou-se a concordar. — A casa
de vocês também é linda. Ali na sala de entrada era uma escultura de
“Ceschiatti”?
Aquilo finalmente atraiu a atenção do velho político.
— É sim. Conhece?
— Sim. — Ana voltou-se para mim com os olhos brilhando. — Tive
que fazer um trabalho na faculdade sobre escultores da arte moderna. Aquele
monumento em frente ao STF da mulher sentada com olhos vendados, A
Justiça, sabe? É do Ceschiatti.
— Não sabia. — Se não fosse por Ana jamais saberia que aquela
mulher seminua e deitada que ocupava grande parte de uma das paredes
laterais do salão de entrada da casa dos meus avós era de alguém tão famoso.
— Estudamos as obras dele e me lembro de ver uma escultura muito
parecida com aquela. Ele tem traços femininos muito marcantes. Impossível
não reconhecer. — Ana prosseguia em seu falatório, numa tentativa clara de
quebrar o clima.
Sempre aquele “chicletinho sem freio”, disposta a unir, agregar,
alegrar e que eu adorava.
— Fez que curso, Ana? — Meu avô agora dava atenção a ela.
— Publicidade.
— E trabalha na fábrica do Eduardo?
— Isso. — Ela estufou o peito com orgulho evidente.
— Hum... Qual seu sobrenome mesmo?
Droga! Estava demorando...
Ana retorceu de leve o rosto e me fitou antes de responder:
— Meu nome é Ana Catarina Diniz. Mas eu detesto o Catarina. Daí
todos me chamam só de Ana.
— Catarina é um nome muito bonito. Nome de uma imperatriz russa
— minha avó opinou.
— Não me lembro de um político Diniz em seu estado. — Meu avô
ignorava a interrupção. Deus do céu, dai-me paciência. — Seus pais são
empresários?
— Meu pai é marceneiro e minha mãe, dona de casa. — Ana tinha
os olhos brilhando por ser o centro das atenções.
Vi o momento em que minha avó levantou a sobrancelha de leve e
meu avô comprimiu os lábios.
— E o que estão fazendo nesse congresso?
— É o Congresso Latino-Americano de Indústrias de Cosméticos.
Participamos de um painel no primeiro dia e seremos homenageados em uma
mesa redonda no encerramento, como uma das empresas destaque pelas
iniciativas sustentáveis. Eduardo é o responsável pela linha eco, com uso de
materiais recicláveis, insumos de pequenos produtores e sistema de
recolhimento das embalagens. Temos pontos de coleta espalhados em todo o
país e nos tornamos pioneiros no sistema de logística reversa do setor.
— Ao menos dessa vez vai receber os louros por isso? — meu avô a
interrompeu, virando-se para mim.
— Não é como o senhor diz...
— Não?! — Abriu um sorrisinho de escárnio. — Quantas vezes seu
rosto aparece nos jornais ligado a essa... fábrica?
— Sabe que não gosto de aparecer...
— É o único com nome tradicional. Influência política... e prefere
deixar os outros levarem toda a fama, enquanto brinca de peão de fábrica
sujando as mãos de graxa.
Ali estava o motivo que me fazia evitar aquela casa.
— Vô...
— A menina vai concordar comigo. — Voltou-se para Ana. —
Você, que trabalha na área de publicidade, não concorda que Eduardo deveria
aparecer mais? LBK é uma sigla falida, de uma empresa internacional e que
sequer atua mais no país. Um nome de tradição como Venturini seria muito
mais atrativo.
— Acho que Venturini é um nome bonito sim, mas seria mais
interessante para uma empresa familiar. A LBK é uma sociedade entre
amigos. — Ana não se intimidou.
— Mais ou menos, Ana — meu avô argumentava. — Quando
Eduardo entrou nesse negócio, avisei que ele seria o que mais sairia
perdendo. Você deve ter reparado nesta casa. Reconheceu a Ceschiatti que
temos na entrada. Não sei se você sabe, mas na época em que Eduardo e os
outros que se dizem seus amigos compraram a fábrica, ele foi o que mais
gastou dinheiro.
— Isso não é verdade — o interrompi, já impaciente por ter que
tocar naquele assunto novamente. — Eu tinha mais dinheiro disponível
quando compramos a massa falida, mas todos eles injetaram dinheiro e
investimentos depois. Nenhum de nós tirou vantagem em momento algum.
— Injetou dinheiro em uma massa falida. — Ele voltou a me olhar,
parecendo enojado com minhas falas.
— Que voltou a crescer e se tornou uma das maiores empresas do
país.
— E quanto você ganha por mês paga todo o dinheiro que
desperdiçou da herança dos seus pais? — Suspirei, cansado daquela
conversa, e ele prosseguiu. — Primeiro, fugiu da sua carreira política para
estudar um curso operário e, depois, enfiou todo o dinheiro que tinha em
meia dúzia de máquinas velhas dando ouvidos a pessoas que se dizem seus
amigos...
— Eduardo teve uma carreira política? — Ana perguntou em voz
alta, de um jeito que somente Ana conseguia. Intempestiva. Inocente. E
extremamente ciente de cada palavra que dizia.
— Filho de Elias Venturini, um dos políticos mais importantes da
sua era, e que só não chegou à presidência desse país por um acidente de
avião, com certeza Eduardo já teve uma carreira política. Ainda que nunca
tenha assumido cargo algum.
— Pelo que sei, ele nunca quis seguir a carreira política.
— Algumas decisões estão acima de nossas vontades. — Meu avô
deu de ombros. — Vocês são jovens demais para entender isso.
— A decisão do que fazer para o resto da vida é algo que sempre
estará nas nossas mãos. Eduardo é o diretor de Produção da fábrica. Não
aparece nos jornais, mas é seu nome que está em todas as embalagens como
responsável técnico. O senhor já procurou ler?
Aquilo me fez sorrir de novo. E foi ali que eu entendi.
Havia me apaixonado por Ana. Antes de nos beijarmos no Jardim
Botânico. Antes de ficarmos nus e nos tocarmos naquele quarto de hotel. Me
apaixonei por Ana porque ela era, de longe, a pessoa mais verdadeira,
espontânea e sincera que teria o prazer de encontrar.
Naquela mesa de jantar, era como se Ana fosse um cristal. Uma peça
rara e reluzente, totalmente diferente da opacidade dos preconceitos velados
da minha avó, sempre calada e julgando a todos de cima, e da rigidez fria do
meu avô, que aos olhos do povo era simpático e sorridente, mas torcia o nariz
para qualquer um que não tivesse uma “linhagem” procedente.
Ana talvez fosse a segunda mulher em décadas capaz de falar alto
naquela mesa e debater de frente com o velho José Carlos Venturini sem
abaixar a cabeça ou exibir pudor.
A primeira foi minha mãe.
— Não consumo os produtos da marca. — Meu avô sorriu irônico.
— Como não? — Ana arregalou os olhos. A cozinheira apareceu
com uma jarra imensa de suco e Ana voltou-se para ela. — Qual é a marca do
detergente que vocês usam aqui?
A mulher olhou para Ana com expressão de espanto, como se não
estivesse habituada a lhe dirigirem a palavra, ainda mais para um assunto
irrelevante como aquele.
— É... é o Limpex.
Um sorriso involuntário surgiu no meu rosto.
Acertou em cheio, Ana.
Ela se voltou para mim, também sorrindo, como se pudesse ouvir
meus pensamentos, e informou:
— LBK. O produto já existia na linha antiga da marca, mas Eduardo
reformulou a composição e hoje é simplesmente o mais vendido do país.
— Eu só uso esse. — Ana conseguiu inserir a empregada na
conversa, e agora ela parecia empolgada. — O outros não rendem nadinha.
— E toda aquela prataria ali? — Ana apontou para a cristaleira.
— Eu sempre oriento as minhas funcionárias a usar um produto
importado — minha avó finalmente se pronunciou, com afetação.
Mas ela de fato não conhecia Ana.
— O Pratex, não é? Sabia que ele é importado pela LBK? Tenho um
tio que trabalha no setor de envasamento dele.
— Detergente e lustrador de prata? — Meu avô olhava para mim.
— Itens de higiene, cosméticos e perfumaria — corrigi.
— No Natal do ano passado, fizemos uma série de ações em uma
comunidade carente de uma cidade do interior do estado. Além de cestas
básicas, montamos kits de higiene para as famílias e visitas guiadas à fábrica
e alguns pontos da capital. Sabia que a maioria das pessoas nunca sequer
tinha saído da cidade em que moravam? — Ana seguia tenaz. — Não
mudamos muito a realidade delas, ainda falta muito o que fazer, que na
minha opinião caberia aos políticos da região com iniciativas a longo prazo,
mas o que fizemos foi transformador no fim de ano daquelas pessoas. Muitas
delas nunca tinham comprado uma escova de dentes na vida. Acho que isso
também é fazer política, e seu neto o faz muito bem.
Meu avô olhou para Ana em silêncio. Pela primeira vez, vi o orador
inabalável encontrar um oponente disposto a debater a noite inteira sem se
intimidar com sua voz sonora ou seu sobrenome importante. E esse oponente
era uma mulher de echarpe rosa, botas marrons e uma franja descabelada na
testa.
Como bom político que era, resolveu dar atenção à Ana, ao passo
que me perdi observando-a falar, completamente à vontade em uma mesa de
jantar com duas pessoas que, minutos atrás, tentaram intimidá-la.
Eu já disse que me apaixonei por Ana?
Pois é... E isso só aumentava a cada segundo.
Capítulo 8
— Eu beijei o Eduardo...
Despejei logo a informação de uma vez, olhando para a tela do
celular que era dividida em pequenos quadros por Bia, Lis e Luciana, que me
olhavam sem entender o motivo da chamava em grupo àquela hora da noite.
— Sério? — Luciana deixou cair o queixo, ao passo que Lis deu um
grito e começou a gargalhar.
— Ahhh! Já não era sem tempo! — Bia exclamou do seu
quadradinho.
— Como assim, “já não era sem tempo”? — Não entendi o tom de
voz dela.
— Só uma pessoa muito cega, ou você, para não perceber a forma
como o Eduardo te olhava!
Hein?
A tela começou a piscar e era Laila querendo participar da chamada.
Ela foi a única que não atendeu na hora.
— Quem morreu? — Laila perguntou assim que seu rosto surgiu.
— As bolas roxas do Eduardo, que finalmente beijou a Ana — Bia
contou por mim.
— Então deu certo? — O rosto de Benício surgiu ao lado de Laila.
Eles estavam nus?
— Não! — gritei alto. — Essa ligação é para surtar com minhas
amigas, e não para contar sobre quem eu beijo com um dos meus chefes que,
por coincidência, é amigo do assunto.
— Sai daqui, Benício. — Laila remexeu-se com o celular nas mãos e
deu para ver vários lençóis se movimentando.
— Beleza! Tenho que ligar para o Gustavo. — Ainda escutei a voz
de Benício ao fundo.
— Pronto — ela disse alguns segundos depois. — Ele já saiu. Agora
conta tudo. Sem esconder nenhum detalhe.
— Eu... Foi muito louco! — comecei a narrar, deitada na imensa
cama do quarto de hóspedes. — Hoje cedo fomos ao Jardim Botânico. Lá é
lindo e fazia um frio gostoso. A gente conversou várias coisas e... rolou.
— Fugindo do congresso, não é? Seus safadinhos! — Laila brincou.
— Ai, que cena mais romântica... — Lis suspirou alto. — Conta
como foi o beijo.
— O Eduardo não só beija bem. Ele humilha os outros homens.
Vocês não têm noção! Eu não sabia nem o que dizer! Fiquei sem palavras.
— Ahahahah! — Bia não parava de gargalhar. — Você está caidinha
já...
— Eu estou impactada, isso sim! Aquela boca lá me levou para o
céu!
— Como assim? — Laila questionou. — Rolou mais que um beijo?
Despeja logo tudo.
— Tem certeza de que o Benício não está ouvindo?
Laila virou a tela do celular, revelando o quarto na penumbra e
completamente vazio.
— Agora conta.
— Nos beijamos no Botânico, conversamos, comemos... Ficamos o
tempo inteiro de mãos dadas, daí voltamos para o hotel. E então ele me
chamou para o quarto dele e... botou aquela boca deliciosa para trabalhar de
novo.
— Vocês transaram? — Acho que duas delas perguntaram ao
mesmo tempo.
— Não. Quer dizer, só faltou os “finalmentes” mesmo, porque de
resto... Foi boca naquilo, aquilo na boca... E eu gozei duas vezes!
— Uau! — Luciana se abanava de forma exagerada.
— Vocês não têm ideia! — Será que eu estava falando alto demais?
— Eu acho que nunca cheguei lá com uma chupada de homem. Eles sempre
parecem estar só bebendo leite no pires, o que é bem decepcionante. Mas o
Eduardo... — Suspirei alto. — O Eduardo parecia que estava sem beber há
semanas e eu era uma nascente de água bem gelada. Era como se a vida dele
dependesse daquilo.
— Chocada — Lis brincou.
— E para completar o pacote, ainda tem aquela imensa... coisa que
ele esconde nas pernas. O homem é um tripé!
— O bom da Ana é que a gente nem precisa pedir os detalhes. — Lis
chorava de rir.
— Eu nunca fui tão detalhista assim com o Benício. Depois a
ninfomaníaca sou eu. — Laila também sorria de orelha a orelha.
— Só me explica porque não rolou o pacote completo — Bia
questionou.
— A gente não tinha camisinha na hora. Daí fomos para o chuveiro,
começamos a fazer umas safadezas lá e eu arrebentei o registro da parede,
encharcando o quarto dele.
— Por isso vocês precisaram sair do hotel! — Laila começou a
gargalhar.
— Sim... Viemos para a casa dos avós dele e... — Minha
empolgação diminuiu um pouco. — E ele mudou completamente.
— Como assim? — Lu perguntava.
— Lembram do Eduardo de anos atrás, que não sorria e era
introspectivo? Pois ele está exatamente assim desde que chegamos na casa
dos seus avós.
— Benício já me contou que ele tem problemas com os avós,
principalmente o avô — Laila dizia. — Ele nunca aceitou a escolha de
Eduardo em fazer uma faculdade de Engenharia, largando assim a tal carreira
política que ele tanto sonhou para o neto. E os dois praticamente romperam
quando Eduardo decidiu investir grande parte da herança comprando a LBK
em sociedade com eles.
— O velho é tão bom na oratória que em vinte minutos de jantar já
tinha conseguido tocar em todos esses assuntos na mesa — narrei para elas.
— Me lembra muito aqueles políticos que em época de campanha vão lá na
periferia beijar as crianças e conversar com as donas de casa, mas não sabem
nem o nome da cozinheira que faz sua comida. Ele e a mulher acham que me
enganam. Bem vi a cara torcida que fizeram quando eu disse que meu pai é
marceneiro e minha mãe, dona de casa, mas fiz questão de mostrar que não
sou uma analfabeta idiota.
— Eles te trataram mal? — Lis questionou.
— Não. Pelo contrário. O velho conversou comigo a noite inteira,
mas pensa que me engana. Fica fazendo discursos políticos, sempre dando
um jeito de fazer o assunto girar em torno dele e suas opiniões, enquanto a
avó do Eduardo passa o tempo inteiro calada, mas avalia até a cor do seu
esmalte com aqueles olhos de quem se sente superior. Na verdade, não estou
nem aí para eles ou o que pensam de mim. Muito provavelmente nunca mais
vou vê-los de novo depois dessa viagem...
— A não ser que role algo mais sério entre você e o Eduardo... —
Bia sugeriu, e aquela leve insinuação fez meu peito acelerar.
— Vocês acham?
— Diz o que você sentiu quando o beijou.
Aquela pergunta simples me fez lembrar da forma como Eduardo,
carinhosamente, quis saber como eu me sentia depois do que fizemos.
— Eu gostei. — Meu peito batia acelerado só em lembrar aquele
beijo no Botânico. — Corrigindo: eu amei! Com ele me senti diferente. Me
senti ouvida. Me senti desejada. Me senti mulher... E não foi só no nosso
beijo. Foi em todos os momentos da viagem. Quando estávamos no avião,
depois, quando conversamos no quarto dele... Durante o congresso... Ele
realmente me tocou.
Profundamente...
— Ana, você está até vermelha... — Luciana brincou.
— Estou nada!
— Está sim! — todas concordaram e começaram a rir.
— Eu estou adorando tudo isso... — Laila voltou a falar. — Mas me
diz uma coisa. Por que é que você está conversando com a gente e não se
atracando com ele?
— Porque agora estou dentro de um quarto de hóspedes imenso e ele
no seu antigo quarto de adolescência, que fica do outro lado da mansão
faraônica. — Fiz uma pausa, olhando para a porta. — E não sei o que vai
acontecer agora que viemos para cá.
— Está com vergonha de transar com ele na casa dos avós? — Bia
perguntou.
— Não. Essa casa é gigante, e meu quarto fica em outro andar.
Duvido que qualquer pessoa escute. — Essa, realmente, não era uma
preocupação. — Eu quero muito continuar o que começamos no hotel, mas
não sei o que fazer depois que ele pareceu se fechar.
— Deixa rolar, amiga — era Laila quem aconselhava. — Pelo que
Benício já me contou, ele realmente tem muitos problemas com os avós.
Talvez só precise de um tempo para digerir essa situação e logo ele voltará ao
normal.
— É... Só sei que preciso beijar aquela boca outras vezes, além de
que estou alucinada com a ideia de sentir aquele tripé dentro de mim.
— Pelo amor de Deus, Ana... — Luciana recomeçou a rir.
— Gente! Ele é um dos integrantes dos Quarteto Fantástico! —
bradei. — Vocês têm noção? É como um... um...
— Um fetiche se realizando... — as quatro disseram juntas, como se
tivessem combinado.
Começamos a rir no momento em que escutei uma batida baixa na
porta.
Espero que ele tenha trazido as camisinhas...
— Estão batendo na porta... — Era para eu sussurrar, mas minha voz
saiu quase gritada. — Espero que esteja com as camisinhas agora.
As meninas começaram a gargalhar e, antes que eu pudesse
dispensá-las, elas mesmas começaram a desligar, me deixando só.
Abri a porta para Eduardo e ele parecia indeciso, sem saber se
deveria entrar ou não.
— Eu queria saber como você está... — ele murmurou, ainda
recostado ao batente da porta, como se criando coragem para entrar.
— Acho que sou eu quem deveria fazer essa pergunta. — Levei
minha mão até seu rosto, ajeitando rapidamente a armação de seus óculos. —
Como você está, depois de rever os seus avós?
— Me desculpe se eles te deixaram constrangida ou ofendida de
alguma forma.
— Não tem que se desculpar pelo comportamento dos outros. —
Tomei coragem e me ergui na ponta dos pés, dando um selinho rápido nos
seus lábios. — Não me importo com o que eles pensam de mim.
— Mas eu me importo... — Quando fiz menção de me afastar,
Eduardo circundou minha cintura com seus braços e me apertou contra si.
Estava de volta o homem de olhar intenso e desejo evidente que me tomou no
quarto de hotel. — Se eles te ofenderem de alguma forma, quero que me
diga. — E desceu os lábios até os meus, em um beijo carinhoso e cheio de
promessas.
— Esqueça seus avós. Quero saber das camisinhas... — Puxei sua
camiseta para cima, sem me importar muito de ainda estarmos com a porta do
quarto aberta.
Eduardo deu uma risada alta e levou uma mão ao bolso da calça de
moletom. A maldita calça de moletom que nada escondia. Tirou de lá um
bolo de camisinhas e as jogou na cama, virando-se rapidamente e fechando a
porta do quarto.
— Tudo bem para você se nós fizermos isso aqui? Na casa dos meus
avós? — Ele se aproximou e tocou meu rosto.
— Só se for um problema para você. — Me voltei para a cama e
apontei as camisinhas. — Mas pelo visto não é...
— Você ainda não entendeu, Ana? — Ele passava o polegar com
lentidão pelo meu rosto. — Eu sempre vou ouvir você. Sempre.
E me beijou de novo. Dessa vez, furioso. Incontido. Incontrolável.
Seus lábios dançavam em minha boca. Me exploravam com ânsia.
Aquela, definitivamente, era a boca mais habilidosa que já tive o
prazer de encontrar.
Sem pressa, ele me empurrou até a beirada da cama. Ainda de lábios
colados, me despiu. Primeiro, a camiseta. Depois, a calça de pijama que eu
usava e, quando fiquei só de calcinha, ele passeou com os dedos por meu
corpo. Provocando. Explorando. Tateando. Levou sua mão quente até o
tecido da calcinha e a afastou de lado, testando minha umidade.
— Ana... — Seus olhos estavam escurecidos, cravados em meu
rosto. — Pensei em você o dia inteiro.
— Eu também...
— Pensei em seu corpo... — Ele passou uma das mãos por meus
seios, apertando-os de leve. — Pensei em seu gosto... — Me provocou com a
outra mão, que continuava em minha virilha, me fazendo gemer de leve. —
Em sua boca. — E voltou a me beijar, dessa vez mordendo meus lábios.
— Você é bem falante entre quatro paredes.
— É você quem desperta isso.
Ele me empurrou para o colchão e eu caí sem oferecer resistência,
abrindo as pernas e oferecendo meu corpo. Eduardo me olhou uma última
vez, antes de tirar os óculos e jogá-los na mesinha.
Ainda que ele nada dissesse, a verdade é que sequer precisava. Ali,
naquela cama, somente entre nós, era como se eu conseguisse ver sua alma
através da íris. Ele até poderia não ser de falar muito, mas a verdade é que eu
conseguia ouvir cada palavra não dita dentro dos seus olhos.
Sem tirar uma única peça de roupa, ele se debruçou sobre mim.
Voltou a me beijar antes de descer, lentamente, traçando uma linha de
arrepios até o ponto do meu corpo que implorava por ele. Eu latejava por sua
presença. Ardia por antecipação.
E quase explodi quando sua boca novamente me encontrou.
Preciso. Sedento. Perfeito.
Fechei os olhos e deixei que todos os meus sentidos se
concentrassem naquele momento. Ele me sugava com calma, me abrindo
com a ponta dos dedos e me invadindo com sua língua voraz.
Eduardo queria que eu gozasse em sua boca, e eu jamais o
decepcionaria. O fiz com uma facilidade absurda, contendo um gemido alto
que teimou em se libertar.
Quando ergueu o rosto, ele tinha os lábios brilhantes, e prosseguiu
com aquele prazer lento de me beijar e sugar em vários pontos do corpo. No
abdômen, nos seios, braços e pescoço.
Puxei seus cabelos em minha direção, fazendo-o me olhar nos olhos.
— Me deixa fazer o mesmo agora.
Ele me olhou e corou de leve, o que achei bem sexy. Então,
ajoelhou-se na cama e começou a desamarrar o cordão da sua calça,
baixando-a em movimentos rápidos.
— Você usa camisinha normal ou tem um tamanho específico?
Tipo... extragrande?
— Isso é uma pergunta aleatória?
— Meu amor! — Levei minhas mãos em seu membro e apertei com
gosto. — Meu interesse nessa questão não tem nada de aleatório.
— Ana, você é única! — Eduardo abriu aquele sorriso meio de lado
que eu amava, e entendi porque gostava tanto daquele sorriso.
Porque ele sempre sorria assim só para mim.
Apertei-o em minhas mãos e o vi fechar os olhos momentaneamente,
rendido. Abaixei meu tronco e o coloquei inteiro na boca, saboreando a
pequena lubrificação que saía de sua extremidade. Suguei, me lambuzei, e o
provoquei.
Ele estava de joelhos. Os punhos, fechados, travados ao lado do
corpo.
Mas seus olhos...
Estes seguiam abertos. Me analisando, devorando e contemplando.
Senti seus dedos percorrerem meu corpo e massagearem meus seios.
Ele fechou as mãos em meus cabelos e puxou meu rosto, interrompendo
minhas carícias. Me fez ficar de joelhos também, de frente para ele, e me
beijou de um jeito que eu só poderia descrever como “sexo oral do andar de
cima”.
Eduardo nos deitou na cama, pegando uma das camisinhas. Colocou-
a lentamente, me olhando com olhos de quem pergunta: “Tem certeza?”
Minha vontade era gritar: “Nunca tive tanta certeza de nada em
minha vida!”.
— Me come, Eduardo.
Ele arregalou os olhos e sorriu um pouco. Com extremo carinho,
abriu minhas pernas e se encaixou, descendo lentamente. Milimetricamente.
— Preferia que eu fosse uma mulher mais calada nessa hora? Que
não fosse tão direta ou desbocada? — perguntei, enquanto ainda nos
encaixávamos.
— Essa é você, Ana. E a grande verdade é que sempre vou preferir
você. — Eu já soltava os primeiros gemidos ao senti-lo me preencher, mas
quando terminou essa frase, Eduardo escorregou inteiro para dentro, e aquilo
me fez querer gritar.
Cravei as unhas no colchão, sentindo toda sua extensão me invadir.
A sensação de ser preenchida por completo era única, mas foi quando ele
começou a movimentar as pernas que o ar faltou.
Ele se movia com facilidade, dançava em cima de mim. Seus cabelos
meio lisos caindo no rosto e seus olhos castanhos me sondando a todo o
tempo.
Eu pensei que já havia sido agraciada demais com toda aquela
habilidade oral, mas a verdade é que Eduardo realmente escondia tudo que
era capaz de fazer.
Ele ia em um vai-e-vem ritmado e constante, feito uma máquina
funcionando em velocidade máxima. E, droga, eu já estava quase gozando de
novo.
Impulsionei meu corpo em sua direção, tentando controlar meu
próprio prazer, e ele capturou um dos meus seios com as mãos, apertando-o
com força. Puxando o mamilo, ele levou-o até sua boca, sugando-o com
maestria, e me fazendo arrepiar-me inteira.
— Eu vou gozar, Eduardo.
— Então goza. — E abocanhou meus seios, aumentando ainda mais
o ritmo dos seus movimentos.
Eu fui, chamando por seu nome, e me esquecendo por completo de
que estávamos na casa dos seus avós!
Vi seu rosto iluminar-se em um sorriso no momento em que soltou
meus seios. Ele beijou meus olhos e passou os dedos em minha testa,
afastando minha franja. Depositou ali mais um beijo e então pegou minhas
pernas, ainda trêmulas, e encaixou-as em seus ombros.
A intenção era me empalar?
— Você é deliciosa, Ana. Nada do que idealizei para nós dois chega
perto do que é sentir você.
E recomeçou a estocar.
Naquela posição, eu não via estrelas. Eu via planetas. Extraterrestes.
O big-bang inteiro.
Estava louca, querendo gritar tudo o que aquele vai-e-vem
incansável me provocava, mas palavras não seriam suficientes.
Sentia a cama bater com força no piso caro de mármore, e a cada
movimento ele me afundava mais no colchão.
Agarrei seus braços quando a inesperada terceira onda me varreu.
Gritei por ele, dizendo em alto e bom som o nome do homem que eu descobri
naquela viagem e que, se dependesse de mim, nunca mais iria embora.
Eu precisava de Eduardo.
Daquele Eduardo, que parecia me oferecer algo que nunca havia
dado a mais ninguém.
Eu queria Eduardo.
Aquele Eduardo, que me ouvia o tempo inteiro e, ao mesmo tempo,
me fez perder a voz na cama.
Ainda pulsando de prazer, senti o momento em que ele também se
entregou. Suspirando alto, rugindo forte, Eduardo fechou os olhos e deixou
seu rosto cair em meu pescoço. Ficou ali, pulsando, movendo-se cada vez
mais lento, até parar completamente e aspirar com força meus cabelos.
— Você tem cheiro de chá — sussurrou em meus ouvidos. — Chá
de rosas e hibiscos.
— Isso é um cheiro bom?
— É o melhor. — E passou a ponta do nariz nas minhas bochechas,
subindo até meus cabelos. Voltou a cheirá-los e então girou o corpo,
deitando-se na cama ao meu lado.
Me deixei envolver por seus braços longos. Seu peito imenso me
apoiando enquanto dávamos as mãos, brincando de entrelaçar nossos dedos.
— Pergunta aleatória — sussurrei.
Eduardo sorriu e voltou a beijar meu pescoço, esperando que eu
continuasse.
— Dorme aqui comigo hoje?
Seu sorriso alargou-se, e senti seus lábios se colarem em meu colo,
mordendo de leve.
— Tem certeza de que quer só dormir?
— Tenho certeza de que quero você do meu lado a noite inteira.
Ele parou com os beijos para me olhar nos olhos. Havia ali uma
dúvida que não consegui entender.
Será que me precipitei demais?
— Você não se precipitou, Ana. — Mais uma vez, eu falando mais
rápido do que consigo pensar. — Quero você. Muito. Sempre quis, na
verdade. E... de repente é real e isso me assusta.
— Por que te assusta?
Ele não respondeu de imediato. Passou os dedos por minha cintura,
em uma carícia leve, como se buscasse ali as palavras.
— Você é tão perfeita... — Ele passava os dedos com lentidão, e
minha pele se arrepiava com aquele contato. — Alegre. Segura. Linda... O
que vou fazer com o que sinto por você, Ana? Com o que você desperta?
Não sei a que sentimentos Eduardo se referia, mas era realmente
assustador pensar que em tão pouco tempo eu também era capaz de sentir
algo por ele de uma forma que me pesava o peito e preenchia a alma.
Se ele sentisse toda a confusão e intensidade que eu agora sentia,
entendia seu medo.
— Hoje foi um dos melhores dias da minha vida — confessei,
deixando para lá conversas sobre sentimentos. — Mesmo depois de quase
alagar o hotel inteiro com minha desatenção e te obrigar a rever seus avós.
Ele encolheu os ombros de leve.
— Nada disso é culpa sua. E quanto aos meus avós, mais uma vez
peço desculpas por eles.
— Acabamos de transar na casa dos seus avós. Acho melhor
ficarmos quietinhos, isso sim.
Ele riu baixinho, voltando a afundar o rosto em meu pescoço. Passei
meus dedos em seus cabelos, penteando-os levemente, e Eduardo beijou
meus lábios. Continuamos nos acariciando por um tempo até que o cansaço
me abateu.
Dormi nos braços mais quentes e firmes que já tive o prazer de me
deixar envolver.
Cansada.
Feliz.
Em silêncio e escutando nada além da batida ritmada e constante do
seu peito largo.
Capítulo 9