3 Por Ouvir Voce (Por Voce) - Mariana Vaz

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Por Ouvir Você @2022.

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Obra protegida pela Lei 9.610 de 1998
(Lei de Direitos Autorais)
É proibida a reprodução integral ou parcial desta obra, seja de forma gratuita ou comercial, sem a
autorização da autora e os devidos créditos. Por Ouvir Você é uma obra de ficção. Qualquer
semelhança com pessoas ou fatos reais é mera coincidência.

Capa: L.A. Designer Editorial


Sumário
Nota da Autora
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Epílogo
Agradecimentos
Nota da Autora

Por Ouvir Você é o terceiro livro de uma série. A cada livro


principal eu escrevi contos (todos curtinhos) que mostram a evolução dos
personagens e também apresentam fatos externos à história de cada casal.
A ordem dos livros segue uma sequência cronológica de
acontecimentos. Então, caso você esteja começando a série por esse casal,
saiba que terão vários spoilers dos livros anteriores. Isso não impede a
compreensão da história, mas recomendo que as leituras sejam feitas em sua
sequência original.
Aos que já leram os livros anteriores, sejam bem-vindos novamente
ao universo da LBK, os sócios e o grupo de amigas. Ao ler esse livro vocês
vão perceber que os detalhes, as dicas, os easter eggs sempre estiveram lá. E
estarão nesse livro também.
Boa leitura.

Mariana Vaz
Prólogo

Doze anos antes...

Eduardo

“Há exatos dez anos um acidente aéreo com o jato particular


modelo Learjet 31A matou o então governador do estado do Paraná, Elias
Venturini, e candidato à presidência do país na época. No mesmo acidente
também faleceram sua esposa, Andrea Venturini, três de seus assessores, o
candidato à vice, João Antônio, e o piloto...”
A televisão do imenso restaurante da universidade estava ligada no
máximo, e era impossível não escutar a chamada dos apresentadores do
jornal da hora do almoço, por mais que eu tentasse ignorar.
“Um laudo pericial na época comprovou falha mecânica em uma
peça do sistema de refrigeração da nave, o que causou a explosão do motor
em pleno ar, quinze minutos depois da decolagem...”
O âncora do jornal seguia falando sem parar, e a cada palavra dele
eu queria me enterrar mais na pequena cadeira de metal, enquanto tentava
comer.
Todo ano era aquele inferno...
“José Carlos Venturini, político famoso do Paraná e pai de Elias,
sempre questionou as investigações, alegando falha humana. O que nunca
foi comprovado.”
Houve um corte para uma imagem de um senhor corpulento, alto e
de cabelos grisalhos, que falava a plenos pulmões, rodeado pela imprensa.
“O que aconteceu com meu filho e minha nora não foi um acidente.
Foi negligência da empresa responsável pelo jato. Dez anos se passaram e
lutamos na justiça para que a memória de meu filho não seja esquecida.
Elias Venturini dominava as pesquisas na época, e teria se tornado
presidente desse país não fosse por aquela queda...”
Céus, será que ele nunca se esqueceria daquela história?
O senhor grisalho — meu avô — continuava a falar, e senti um
gosto amargo de bile que tirou todo o meu apetite.
Só de ouvir aquela ladainha eu sentia meu corpo enrijecer-se.
Para meu avô, o fato de o filho dele ter morrido pouco antes de
assumir o mais alto cargo político do país era inaceitável. O que José Carlos
Venturini não aceitava não era a morte, mas as expectativas frustradas com
aquele acidente.
Ele nunca foi presidente...
Teve um filho que quase foi, não fosse aquele maldito acidente...
E agora, via todas as suas fichas serem desperdiçadas no neto, que
seguia uma carreira completamente diferente.
Aquele era um dia triste para mim.
Relembrar a morte dos meus pais não era fácil.
E a mim sequer era dada a oportunidade de viver aquele luto em
silêncio. Lá estavam os jornais estampando o acidente com insistência.
Mostrando as fotos da sucata que virou o avião quando explodiu no ar e caiu
em uma área de pastagem a alguns minutos de Brasília.
Brasília...
A mesma cidade que escolhi para fugir de toda a cobrança de meu
avô, mas que ainda me amedrontava às vezes.
Saí de casa assim que terminei o Ensino Médio. A faculdade surgiu
como o passaporte que enfim me libertaria daquela casa vazia e sem vida,
onde só se respirava política e poder.
Era irônico que eu tivesse escolhido justamente aquele lugar para
estudar, mesma cidade em que tudo aconteceu, e às vezes me perguntava
quando aquela escolha faria algum sentido. Se é que faria.
Tentei me concentrar na comida fortemente temperada do
restaurante universitário, ignorando a voz de meu avô, que seguia bradando
na TV, e pedindo a Deus que ninguém me reconhecesse nas imagens que
passavam na tela.
“Ele deixou um filho único”, escutei ele dizer, e quis me enterrar ali
mesmo ao sentir o rosto queimar. “E meu neto é tão traumatizado de todo o
acidente que preferiu seguir outros caminhos...”, falou com voz chorosa,
como sempre adorava fazer.
A menção ao meu nome me fez erguer os olhos mais uma vez para a
TV, no momento exato em que eu aparecia, então com dez anos, chorando ao
lado de dois caixões enfileirados.
Tudo o que eu queria, na faculdade e aos vinte anos de idade, era
esquecer aquilo. Sentia saudade dos meus pais, mas desde que me mudei de
Curitiba e fui para Brasília, cerca de três anos atrás, eu só queria seguir em
frente. Encontrar meu caminho. As minhas motivações.
Mas me sentia um pouco perdido.
Eu nunca quis a carreira política e meu avô sabia disso. No entanto,
insistia em me colocar como o garoto traumatizado que fugia de seu destino.
O que eu teria que fazer para provar a ele que aquele não era meu destino?
E quando é que encontraria o meu destino?
— Você é o Eduardo Venturini? — Escutei uma voz baixa atrás de
mim.
Droga!
Provavelmente era alguém de um jornal qualquer, me procurando
para mais uma entrevista...
— Sim?! — respondi com um gemido, já imaginando as desculpas
que teria que inventar para não falar com ele.
— Meu nome é Ricardo, tudo bom?
Virei meu rosto e mirei meu interlocutor. Era um jovem mais ou
menos da minha idade, de cabelos e olhos castanhos, uma barba meio
malcuidada e um sorriso no rosto. Ao lado dele outro jovem, de mesma idade
e bem menos simpático, me observava com atenção. Tinha olhos e cabelos
claros, meio tons de mel.
— Esse aqui é meu amigo Benício. — O tal Ricardo apontou para o
outro, que seguia me analisando. — Estamos no sexto período de
Administração. Você é da turma de Mecatrônica, certo?
— Sim.
— Estamos com um projeto para a Feira Anual de Administração de
Empresas e Indústrias. — Ele coçou um pouco a barba e olhou para meu
prato. — Desculpa te incomodar a essa hora, mas... podemos sentar?
Concordei com a cabeça e os dois desconhecidos sentaram-se. Aos
menos me distrairiam daquela palhaçada que passava no jornal.
— Vimos o seu projeto que foi apresentado no Simpósio da semana
passada.
— O do software que gerencia máquinas industriais a longa
distância?
— Esse mesmo! — O jovem parecia empolgado. — Achamos aquilo
genial, e casa muito bem com um projeto nosso, de automação de indústrias
por meio de aplicativos. Sabe que os aplicativos são o futuro da evolução
industrial, não sabe? No futuro, o empresário vai conseguir controlar tudo
com a palma da mão. De qualquer lugar.
Comecei a gostar da conversa... Parecíamos falar a mesma língua.
— Concordo — murmurei. — Estou procurando alguém para
financiar meu projeto, mas ainda não consegui muita visibilidade.
— Startups — o rapaz de cabelos cor de mel finalmente se
pronunciou. Sua voz era seca e levemente autoritária. — O caminho passa
por elas.
— Estamos em contato com algumas, e o interesse delas é real no
nosso projeto — Ricardo dizia.
— E o que querem comigo?
— Precisamos de alguém da área técnica. Da Mecatrônica seria o
ideal. E gostamos do seu projeto. Se encaixa perfeitamente com nossas
ideias...
Olhei para eles por alguns segundos. A turma de Mecatrônica era
composta substancialmente por homens. Todos meio calados, cada um
focado nos seus projetos. Somado ao fato de que eu era filho de um político
famoso, quase nunca era convidado para os grupos de financiamento.
Aqueles dois ali provavelmente desconheciam esse fato. Ou não ligavam.
Era a primeira vez em três anos que me ofereciam parceria.
— Vocês dois são da Administração... Quem ficaria com as contas?
Apesar do curso de Exatas, não gosto muito de finanças.
O de cabelos claros ergueu a mão de leve.
— Faço Administração, mas sempre gostei das Exatas. Pretendo
fazer um MBA em Análise de Finanças ou algo assim.
— Ele é o melhor que você vai conhecer quando o assunto é contas.
— Ricardo tentava me convencer.
— Posso ver o projeto de vocês e aí conversamos? É algo que me
interessa sim. A linha industrial sempre me atraiu.
— Sem problemas! — Ricardo estendeu a mão em minha direção.
Apertei e vi que ele cumprimentava forte. Com intenção e carisma.
— Podemos combinar amanhã à tarde, aqui mesmo, no campus. —
Benício abriu seu primeiro sorriso, levemente arqueado, e também me
cumprimentou. — Tenho uma planilha com o controle de gastos e tudo. É
coisa séria.
— Tudo bem... A questão nem é pelo dinheiro, e sim para entender o
projeto. — Olhei de relance para a TV, que agora noticiava outros assuntos.
— É coisa boa. Se tudo der certo, vamos vender essa tecnologia em
no máximo um ou dois anos, e por uma pequena fortuna.
Analisei os dois por um momento, refletindo.
A forma como pareciam diferentes e complementares era curiosa.
Um, sorridente e carismático, enquanto o outro parecia mais sério, porém
confiante.
Seria aquele o caminho que eu buscava nos últimos três anos?
Seria aquele o destino que eu aguardava desde que perdi meus pais?
Ingressei no curso de Mecatrônica não só para fugir da dominação
opressora do meu avô, mas para tentar me reencontrar. Eu só queria um lugar
em que pudesse ser eu mesmo. Em que fosse lembrado por ser o Eduardo, e
não o garoto solitário que chorava ao lado do túmulo dos pais. Nada além da
sombra de uma tragédia.
Sempre me interessei por projetos da área de administração
industrial, e o surgimento daqueles dois desconhecidos parecia ser a grande
chance de, quem sabe, me encontrar.
Foi naquele momento que tomei a decisão que mudaria para sempre
a minha vida, embora eu não soubesse disso à época.
— Contanto que não me façam dar as entrevistas quando formos
famosos — arrisquei uma brincadeira.
Os dois riram ao mesmo tempo, ao passo que Ricardo brincou:
— Então vamos ter que encontrar um quarto integrante para a
equipe.
Capítulo 1

Três...
Dois...
Um...
O chiado alto da exaustora número cinco soou acima de nossas
cabeças, no tempo exato em que deveria soar.
O operador de uma empilhadeira passou sem se importar com a
interrupção, mas notei que um outro funcionário deu um pulo de susto com o
barulho repentino. Provavelmente era um novato, mas que logo estaria
habituado com toda aquela sinfonia.
Aquele era o maior indício de que a exaustora funcionava. E bem.
Logo ele aprenderia que a ausência de barulho, essa sim, era um sinal a que
as pessoas deveriam atentar-se.
Máquinas eram precisas. Previsíveis. Metódicas.
Bastava ouvi-las, antecipando cada falha, e elas lhe atendiam com
perfeição.
Andar por aqueles corredores era meu trabalho, e também meu
prazer. Era reconfortante saber que dali a exatos trinta e três minutos a
exaustora sete deveria soar de maneira exatamente igual à cinco, e dali a
cinquenta e sete minutos seria a vez da grande e imponente misturadora, peça
central daquele setor, fazer um barulho ruidoso e mais agudo.
Por mais que as máquinas fizessem cada vez menos barulho, com
suas tecnologias e a preocupação com a qualidade do local de trabalho,
alguns sons precisavam permanecer. Eram as máquinas se comunicando
comigo e dizendo que estavam ali, bem, cumprindo seus papéis.
E meu dom era ouvir cada uma delas.
Dei a volta por mais alguns corredores, inspecionando o ritmo de
produção, e então subi as escadas, saindo do setor três e indo até os
escritórios, onde ficava minha sala.
Ao passar por minha secretária, ela me entregou alguns documentos
sobre os índices de produção do dia e avisou:
— O senhor Ricardo disse que o senhor já pode subir. A reunião foi
adiantada alguns minutos.
— Ok. — A intenção era entrar em minha sala, mas girei nos
calcanhares e saí de novo.
Dos quatro sócios eu era o único que não ficava no prédio
administrativo. Logo depois da reforma insistiram que eu me alojasse em
uma das imensas salas do último andar, mas recusei.
Meu lugar, como diretor de Produção, era ao lado das máquinas.
Exatamente no coração da fábrica, onde tudo acontecia.
Atravessei rapidamente os corredores barulhentos do setor três e em
menos de dez minutos já entrava no prédio administrativo. Fui direto para a
sala do Ricardo onde ele, Benício e Gustavo já me aguardavam.
— Bom dia, Du — Ricardo me cumprimentou com aquele apelido
que eles adoravam me chamar. — Trouxe os índices de produção?
Concordei com a cabeça e lhe entreguei as planilhas, depois de
cumprimentar os outros.
— Estou analisando esses dados diariamente há três meses —
pontuei. — Só preciso dos funcionários que te falei, e conseguimos reativar o
setor cinco em um ou dois meses.
— Já passei a demanda para o RH. — Ele abriu um sorriso largo,
bem típico de Ricardo, mas que era coisa rara nos últimos meses, depois do
término do seu noivado. — Nem acredito que finalmente vamos conseguir
reativar cem por cento da fábrica.
— Merecia até uma festa — Gustavo sugeriu com um sorriso
imenso. — Reunimos toda a fábrica e anunciamos a tão esperada reativação
do setor cinco para os funcionários e a imprensa.
— Calma lá, senhor fanfarrão! — Benício tentou aplacar a euforia
dele. — Estamos economizando há no mínimo dois anos para conseguir
todos os equipamentos desse setor, e agora você quer dar uma festa para
centenas de pessoas?
— Por isso você é o diretor Financeiro. — Gustavo apontou para
Benício. — Sua preocupação deve ser essa. A minha, é fazer com que nossa
marca tenha cada vez mais força e visibilidade. O país inteiro precisa saber
que reativamos todo o complexo. Um momento importante como esse vai
sim ser noticiado. — Cruzou os braços relaxado e concluiu: — Deixem que
cuido de tudo.
Ricardo suspirou resignado antes de intervir:
— Gustavo tem razão. Esperamos por esse momento há sete anos.
Vai ser bom mostrar o quanto já conseguimos crescer.
— Ok — Benício resmungou, sentando-se na cadeira ao meu lado.
— Mas me passe todos os gastos o quanto antes.
— Vou passar, seu mão de vaca. — Pareciam dois namorados
brigando sem parar. — Me diz uma coisa: Por que não é a Laila que está
nessa reunião? — ironizou. — Prefiro quando é ela. Laila diz os mesmos
nãos que você, mas sem essa grosseria habitual e o tom mandão.
— Laila é pior do que eu, mas vocês ainda estão crus demais para
entender isso. — Um sorriso pequeno surgiu no rosto de Benício.
— Ah, isso ela é — Ricardo concordou. — Foi um sufoco passar
aquele pedido de nova envasadora das mãos dela.
— Porque é cara e precisamos ter certeza da necessidade antes de
sair comprando. — Benício espalmou as mãos à frente do corpo, como se
demonstrasse o óbvio. Era um pouco irritante a forma como ele e Laila
pensavam iguais. Nada passava pelo Financeiro da LBK sem que um dos
dois, ou os dois, soubessem.
— Por falar nisso, cadê a Laila? — questionei.
— Em uma reunião externa, com uma rede de lojas de Cuiabá
interessada na nova linha de produtos hipoalergênicos. Como Laila conhecia
algumas pessoas, achamos que seria melhor que ela fosse.
Ricardo arregalou um pouco os olhos e questionou com a expressão
séria:
— E como ela está para ir sozinha em uma reunião com pessoas da
sua antiga cidade natal depois que tudo estourou na mídia?
Laila era gerente financeira da fábrica e noiva de Benício. Há cerca
de um mês havia denunciado seu antigo chefe por assédio. Por mais que ela
não morasse mais em Cuiabá, onde tudo aconteceu, e seu nome tenha se
mantido em sigilo pela polícia, a verdade é que algumas pessoas logo
descobriram a identidade dela como denunciante.
Ela teve que lidar com mensagens inconvenientes nas redes sociais,
algumas até ofensivas, mas dizia ter valido a pena, já que teve o prazer de ver
seu antigo chefe ser preso e ter o nome da sua rede de supermercados jogado
na lama em nível nacional.
— Laila está bem — Benício dizia, mas percebi que seu tom de voz
desceu algumas notas e um brilho sombrio tomou seu olhar. — Mesmo
chateada com as denúncias terem sido aceitas somente como assédio e não
estupro, ela sente que cumpriu seu papel. Não é ela quem tem que se
esconder, e sim ele. E se ela mesma fez questão de ir a essa reunião
representando a LBK, talvez seja importante para ela.
— E o desgraçado não passou nem um mês na cadeia... — Gustavo
murmurou indignado.
— Mas ele vai cair... — A voz de Benício assumiu um tom
ameaçador. — E o tombo final está chegando.
— Ainda está em contato com aquele auditor em Cuiabá? —
Ricardo questionou.
— Nunca desisti de acabar com aquele filho da puta. — Seu tom era
glacial. — Não comentei com Laila porque sei que por um tempo ela quis
esquecer sua história, mas desde que encontramos aquelas falsas declarações
de faturamento, quando quase fechamos com eles, tenho conversado com
contadores e um auditor fiscal de lá para ver as contas da rede. — Um sorriso
sarcástico surgiu em seu rosto. — E é lógico que um velho safado e abusador
de funcionárias também seria um estelionatário que sonega impostos e lava
dinheiro com as cabeças de gado que cria nas fazendas do interior do Mato
Grosso.
— Então realmente tem muita coisa? — questionei. Eu, Ricardo e
Gustavo éramos os únicos a saber daquela pequena investigação que Benício
fazia nos últimos dois anos, meio por baixo dos panos.
— Parece que sim. Estou afastado das investigações. Meu nome
jamais pode aparecer, mas pelo que sei, logo, logo a bomba vai explodir.
Com todas as denúncias de assédio estão doidos para pegá-lo, e vão
conseguir. De um jeito ou de outro. Todo o império dele vai afundar,
exatamente como uma âncora jogada ao mar.
— Nossa, Benício, quero você sempre do meu lado — Gustavo
brincou.
— Então trate de fazer do nome da LBK o mais forte desse país,
transformando essa fábrica em um complexo sólido e rentável por décadas —
pediu de modo autoritário. — Laila está cada vez mais apaixonada por essa
cidade e decidiu que não quer se mudar daqui. Quer ter filhos e viver a vida
inteira aqui. Então tratem de fazer o trabalho de vocês e manter essa fábrica
sólida e onde está por uns cinquenta anos, que eu garanto o meu.
— Anotado — anuí, seguido por Ricardo e Gustavo que ficaram
rindo.
— E por falar em fortalecer nossa marca — Gustavo começou a
dizer —, acabei de repassar para a Bia todas as informações do Congresso da
semana que vem. Vai nos render boas menções em alguns jornais.
Ah... O Congresso...
— Foi bom você ter tocado nesse assunto, Gustavo — lembrei. —
Nosso voo sai na segunda bem cedo. Espero que não se atrase.
A linha eco, lançada há dois anos, vinha rendendo frutos. Elevou o
nome da LBK a outro patamar, sendo mencionada em congressos e feiras do
setor. A empresa de siglas internacionais adquirida por quatro investidores
malucos após falência finalmente se revelava jovial e atenta às mudanças de
mercado, e sem aquele ar tradicional e inacessível que tinha anos atrás, e que
causou sua bancarrota.
Seríamos homenageados em um congresso que discutia novas
tendências no mercado de cosméticos, com mesas redondas e debates sobre a
linha eco e também o recente sucesso da linha hipoalergênica. Iríamos eu e
Gustavo como representantes da LBK.
— Então, Eduardo... — Gustavo tinha a voz cautelosa, e girou o
rosto na direção de Ricardo, que abriu um sorriso de canto. — É que... vamos
ter mudanças na viagem.
— Como assim?
— Tive uns imprevistos na agenda e... — Conheço Gustavo há
muito tempo, e sei que aquele tom evasivo escondia alguma coisa. — Não
poderei ir.
— Por que não me avisou antes? O Congresso nos mandou dois
convites. Eu poderia encontrar outra pessoa a tempo.
— Ah, não se preocupe. — Ele bateu as mãos no ar, demonstrando
tranquilidade. — Já defini outra pessoa para ir no meu lugar, representando o
departamento de Marketing.
— Quem?
Escutei uma risadinha baixa de Benício segundos antes de Gustavo
informar com um sorriso triunfante:
— Ana.
Filho da mãe!
Ana...
De todas as pessoas daquele departamento ele tinha que escolher
justamente a Ana?
Ana Catarina...
Um nome tão bonito e ela não gostava...
— Quantas pessoas têm no departamento de Marketing? — Tentei
disfarçar a repentina ansiedade. Gustavo deu de ombros e nada disse. — E
você tinha que escolher justamente a Ana?!
— Eu disse que ele reagiria assim... — Ricardo falou em tom
apaziguador, embora também tivesse o mesmo sorriso idiota e dúbio que
Benício e Gustavo não disfarçavam em demonstrar.
— Qual é o problema da Ana, posso saber? — Gustavo desafiou.
— Você sabe muito bem! — Apontei para ele. — A Ana não é um
problema. A questão é que...
Droga!
Sem saber o que falar, calei-me, enquanto Gustavo soltava uma
gargalhada imensa, visivelmente satisfeito com minha reação.
— Ana é uma das minhas melhores funcionárias. É competente,
responsável, e esteve presente em toda a ação de Marketing da linha eco. Não
vejo nome mais qualificado. — O bastardo tentava parecer profissional, mas
seu sorriso ladino o traía.
Afundei meu rosto na mesa e suspirei resignado.
— Então vocês todos sabiam disso, não é? — Apontei para Benício
e Ricardo. — Esse imbecil do Gustavo não planejaria essa idiotice toda
sozinho.
— Não tenho nada a ver com isso — Benício defendeu-se,
levantando as mãos brevemente. — Mas também quero entender o motivo de
toda essa resistência sua. Ana não é só uma amiga?
Agora foi a vez de Ricardo gargalhar.
Muito bom ser motivo de piada daqueles três imbecis.
— Ela é só uma amiga.
— Ah, não é não! — Gustavo negou algumas vezes com a cabeça.
— Não mesmo — Ricardo reforçou com deboche.
— Vocês querem parar?
— Não! — Gustavo apontou para mim. — Não vou parar. Du, olha
sua reação só de saber que vai viajar com a Ana! Vai enfartar? Vou ter que
chamar a secretária para te socorrer? Seu rosto mais parece um pimentão!
Acha que a gente é idiota? Aproveita logo essa chance e vê se sai desse
chove-não-molha!
— Você gosta dela — Benício concluiu o óbvio.
— Sim! Como amiga! — Levei as mãos para cima, incapaz de
esconder a impaciência. — Ela é uma amiga, como todas as outras garotas do
grupo.
— Com a Ana é diferente — Gustavo insistia. — Ela mexe com
você, e não é de hoje.
Sim, Ana mexia comigo.
Muito.
Sempre a notei na fábrica, com aquele jeito meio “nem aí” de se
vestir, típico de um publicitário, com meias na altura da canela e colorindo
suas botas marrons, saia plissada e camiseta folgada. Quando fazia muito
calor, trocava as botas e meias por um all star azul ou branco, sempre
fazendo par com vestidos ou jeans e camiseta.
Ana era a única pessoa em toda a fábrica — se não o fosse em todo o
mundo — que poderia ir trabalhar com meias caneladas com estampas de
planetas e uma camiseta dos Simpsons e ainda assim estar nada menos do que
linda e profissional.
Os cabelos castanhos cortados na altura dos ombros, e a franja
cobrindo grande parte da testa, repuxando um pouco seus olhos e deixando-a
com um ar ainda mais inocente.
Fisicamente, sempre a achei linda, mas foi só quando a conheci
pessoalmente e nos aproximamos como amigos, depois que Laila e Benício
começaram a namorar, que as coisas ficaram mais intensas.
Tudo em Ana era tão típico de Ana...
O jeito atropelado e sem papas na língua para falar, o sorriso aberto
e sincero, a lealdade e disposição com seus amigos...
Certa vez escutei Laila chamá-la de “chicletinho sem freio”. A
expressão, por mais estranha à primeira vista, era ideal para Ana. Era ela,
juntamente com Gustavo, quem unia todo o grupo. Ana era a amiga que dizia
sim para todos os convites, que estava sempre disposta, que sempre tomava a
frente na organização das reuniões.
Ao mesmo tempo, lhe faltava freio entre o cérebro e a língua, e Ana
tinha um dom peculiar de dizer verdades sem qualquer pudor, mas sem
jamais ferir alguém.
A maioria dos nossos amigos até tentava cortá-la às vezes.
Eu a deixaria falar por horas e horas...
Era tão evidente assim a forma como ela me afetava?
— Me diz que compromisso tão urgente você tem? — Me virei para
Gustavo. — Vamos ser homenageados e, apesar de você ser um idiota na
maior parte do tempo, grande parte do sucesso dessa linha é mérito seu.
— Mérito da minha equipe, e que Ana vai representar muito bem. —
Ele parecia imensamente feliz em me pregar aquela peça. — É só uma
viagem, Eduardo. Vocês só vão dividir algumas horas de voo, passar uma
semana inteira juntos e provavelmente dormir em quartos vizinhos no hotel.
Não tem problema algum nisso.
— Assim ele vai desistir da viagem... — Ricardo debochou.
— Não pode — foi a vez de Benício ordenar. — Um de nós quatro
têm que ir, e você é o mais indicado. — Apontou para mim.
Suspirei resignado.
Impossível competir com um mandão, um idiota debochado e um
inteligente e carismático juntos!
— É o seguinte, Eduardo! — De todos, Gustavo era visivelmente o
mais empenhado em me convencer. — Nenhum de nós vai estar lá. Só deixe
as coisas fluírem e pronto! Conversem...
— Ou deixa a Ana falar enquanto você escuta... — Benício brincou.
— ... Se aproximem — Gustavo prosseguia. — Só assim você vai se
decidir se realmente quer continuar só como amigo da Ana ou se quer tentar
alguma coisa. Ninguém lá vai rodar uma garrafa vazia e fazer você beijá-la.
Dessa vez, só depende de você.
Me lembrei do último aniversário de Laila, em que bebemos todas e
Luciana, uma das amigas de Ana, inventou de brincarmos de Verdade ou
Consequência. Em dado momento Luciana me tirou e eu, burro que sou, pedi
a consequência. E o que ela escolheu?
Como em uma conspiração coletiva e perversa, a escolha foi que eu
beijasse Ana. Um selinho só, mas que me rendeu semanas de chacota dos
meus amigos e sócios da fábrica.
Os mesmos amigos que agora me empurravam em uma viagem,
sozinho, com Ana.
— Vocês três me pagam... — rangi os dentes, já disposto a sair da
sala de Ricardo.
— Não sei, Eduardo... — Gustavo e seu sorriso maldito. — Acho
que há grandes chances de você nos dever algo ao final dessa viagem...
Capítulo 2

A criança que era levada no colo, logo à minha frente, parecia bem
interessada em pegar minha colorida echarpe, jogando as mãozinhas gordas
para trás, enquanto sua mãe jogava seu peso de um lado para o outro nos
braços, na fila do check-in.
— Oi, bonitinha... — puxei assunto com a criança, exibindo o tecido
enrolado em meu pescoço. — É linda, não é? — A mãe dela se virou para
mim e sorriu, e vi ali a chance para continuar minha aproximação. — Achei
que nunca fosse usar essa coisa no nosso calor do cerrado, mas parece que
finalmente vou ter minha chance! Olhei na previsão do tempo, e vem vindo
uma frente fria para Curitiba. — A mãe, que levava malas e um imenso
carrinho, agora girou todo o corpo para me encarar. Finalmente atraí sua
atenção. — Máxima de treze graus! — Ergui meus dedos na direção da
mulher, mas eram só dez. — Você tem noção do quanto isso é frio?!
A mulher sorriu de volta e finalmente respondeu:
— Para nós acostumados com o calor de Goiânia, realmente é muito
frio.
E esse frio todo só combina com uma comida para os goianos... Será
que lá...
— Será que lá tem pamonha? — A pergunta veio rápida, antes que
eu pudesse controlar.
A mulher gargalhou, tentando arrancar as mãozinhas da bebê que
agora se emaranhavam nos seus cabelos.
— Deve ter... — E se virou para o balcão da companhia aérea.
— Sua filha é muito linda — de novo, falei antes que pudesse
pensar. — As mãos gordinhas é a coisa mais fofa que já vi.
Ela se virou para mim de novo e tornou a sorrir.
— Obrigada. — Achei que ela fosse me dizer mais alguma coisa,
mas a atendente do aeroporto a chamou, fazendo finalmente a fila andar.
Dei tchau para a menininha e esperei mais alguns minutos antes de
ser chamada.
Eu estava ansiosa.
Levemente ansiosa.
Nunca gostei de andar de avião e, para piorar tudo, ainda pegaríamos
uma conexão em São Paulo.
Saí da imensa fila do guichê e procurei pelo portão de embarque.
A maioria das pessoas passavam apressadas ao meu lado, levando
pequenas malas de mão e distraídas em seus celulares.
Enquanto seguia em direção ao meu portão de embarque, procurava
por Eduardo no meio de todos aqueles rostos.
Não seria tão difícil assim encontrá-lo. Eduardo era um dos homens
mais altos que já conheci, e aquela altura toda com certeza serviria para
alguma coisa, como encontrá-lo em meio àquela multidão que aguardava nas
cadeiras ou de pé.
Levei pouco mais de vinte segundos para encontrá-lo.
Não disse que a altura serve de algo?
Ele estava de pé, recostado à uma pilastra e olhava para a tela do
celular, distraído.
— Du! — gritei, talvez um pouco alto demais, já que ele levantou o
rosto rápido feito um raio e me olhou com uma certa dose de susto.
Droga!
Eu e minha mania de achar que estou na casa da minha avó, em uma
pamonhada, com meus outros quinze primos e vinte e sete parentes.
— Foi mal... — Dei alguns passos até me aproximar dele. Vários
passos, na verdade. Prova de que estava realmente longe quando gritei seu
apelido. — Sei que você não gosta de ser chamado assim...
— Ah... O meu... apelido? — Ele ajeitou os óculos finos por um
momento e sorriu sem graça. — Não me importo...
— É que vejo o Gustavo te chamar assim às vezes. Acho bem fofo...
Eduardo ficou algumas escalas de tom mais vermelho, puxando para
o quase luminoso de semáforo. Eu quase ri do jeito dele, mas então notei que
ele usava uma roupa social, bem similar às roupas que costumava usar na
fábrica. Calça social, camisa dobrada na altura do antebraço e aquele cabelo
castanho bem claro e meio liso caindo nos olhos.
Mas e o frio de Curitiba e do avião?
— Cadê sua blusa de frio? — Ele me fitou por um segundo e eu
prossegui: — Eu vi na internet. Uma frente fria vai chegar em Curitiba essa
semana. Treze graus! E isso é a máxima!
E então ele começou a rir daquele jeito à vontade que ele assumia às
vezes.
Eu gostava quando ele ria assim.
Achava que Eduardo ficava ainda mais lindo quando sorria sem
pudor.
Já comentei que acho Eduardo lindo?
Pois ele é.
Tem uma altura imensa e um sorriso de lado que sempre me provoca
a falar. Nunca entendi muito bem o porquê.
Já tive a impressão, por uma ou duas vezes, que ele me olha como se
esperasse que eu sempre dissesse algo, e quando vejo seu olhar me incitando,
em silêncio, disparo a falar.
— Por isso o cachecol? — Ele apontou para o meu colo, que
ostentava a peça rosa neon.
— Echarpe — corrigi. — Cachecol seria de um tecido mais grosso.
— Ele concordou com a cabeça e apontou para uma cadeira vaga à nossa
frente.
— Echarpe — repetiu, sorrindo meio tímido. — Gostei das... cores.
— Apontou para meu pescoço e ficou dando voltas com os dedos, enquanto
eu me sentava.
Ajeitei o tecido rosa neon e abri um pouco mais o nó frouxo que
havia feito. Quando levantei os olhos novamente, percebi que Eduardo
continuava me fitando, mudo.
— Que foi?
Vermelho de novo...
— Nada... — Deu um passo atrás e voltou a se recostar na pilastra.
Eu usava um vestido preto e botas marrons. Por cima do vestido,
uma pequena jaqueta cinza e, não sei por que motivo, comecei a sentir um
calor intenso e uma vontade sufocante de tirar a tal jaqueta.
— Olha, você já deve ser acostumado com o frio de lá. Passou a
infância em Curitiba e tudo mais. Então não se surpreenda se eu andar
empacotada para todo canto. Vou passar o dia no treinamento do senhor
Miyagi... — disparei, enquanto tirava a jaqueta que agora parecia me pinicar.
Nem sei muito bem o porquê.
— Treinamento o que? — Ele tinha os olhos colados em mim.
— “Tira casaco, bota casaco...” — Eduardo ainda me olhava como
seu eu fosse uma besta do fim dos tempos e eu expliquei. — Karatê kid!
Um brilho de compreensão passou por seus olhos e ele gargalhou
alto, atraindo a atenção de alguns.
Eduardo gargalhando? Tá aí uma coisa rara de se ver... E gostosa.
— Entendi a referência... — Ele ainda parou alguns segundos para
me observar, descendo os olhos nos meus braços. Talvez eu estivesse branca
demais... E então decidiu-se por se sentar ao meu lado. — Você não está indo
para o Alasca, Ana. Relaxa um pouco.
Suspirei alto uma vez e acabei rindo.
— Tem razão... — Me deixei cair na cadeira e uma mecha da franja
tampou minha visão. Afastei-a com um sopro. — Ainda demora a chamar
nossa vez?
Ele olhou um segundo para o relógio e então anunciou:
— Não. No máximo uns cinco minutos.
— Ótimo! Porque a minha gastrite não nasceu para aguentar mais do
que alguns minutos...
— Você parece tensa. — Ele suavizou a voz e aproximou-se alguns
centímetros. — Tudo bem?
— Tudo. — Voltei a soprar a franja, já que aquilo me acalmava. —
Não é nada. Aeroportos me deixam assim...
Ele ainda me analisou alguns segundos. Os olhos parando na minha
testa e medindo a franja. Então, concordou com a cabeça e voltou a afastar o
rosto, mas percebi que ficou um bom tempo me olhando de canto.
Ao menos Eduardo tinha razão. Mais alguns minutos e finalmente
liberaram a fila de embarque.
Gustavo tinha me comunicado há pouco mais de uma semana que
não poderia ir ao congresso e que eu iria em seu lugar. Mal tive tempo de
comprar um remédio para dormir, ou mesmo reservar meu assento próximo
das asas, onde o barulho alto me distrairia e sentiria um pouco menos as
turbulências. Cuidados que só uma pessoa apavorada com voos pensaria em
tomar.
Suspirei resignada quando Eduardo me indicou dois assentos bem no
início da aeronave. Longe do barulho acolhedor das asas e mais próximos da
morte.
Por que se essa porcaria metálica cai, os que estão na frente
morrem primeiro, não é?
Se uma das turbinas explodir, as pessoas que estão no meio sequer
vão ver a sua morte, enquanto eu verei os corpos voarem segundos antes de
morrer.
E se eu não perder a consciência?
Por que só eu pensava nisso?
A mulher do outro lado abria um pacote de biscoitos e ria faceira,
como se estivesse no sofá da sala. O moço de trás falava ao telefone sem
nenhuma preocupação e parece que somente eu me atentava ao fato de que
todos nós passaríamos bem perto da morte nos próximos minutos.
O nosso lugar era bem mais espaçoso que os assentos de trás.
Provavelmente a escolha ideal de homens com pernas compridas como
Eduardo e ombros largos como Gustavo.
Acontece que eu ainda preferia o refúgio seguro e apertado do meio
da aeronave.
Eduardo havia me oferecido o local que ficava na janela, e a
primeira coisa que fiz foi fechá-la. Enquanto ele ajeitava nossas malas, tentei
me distrair com uma revista velha que estava no porta-objetos logo à minha
frente.
— Por que não atualizam um pouco essas revistas? — Apontei para
uma figura aleatória. A verdade é que nem sei o que estava escrito ali. —
Poderiam colocar um kit palavras-cruzadas também. Ou um tabuleiro de
xadrez... Ou comida. Muita comida.
Eduardo continuava de pé, me olhando, e fez uma expressão
estranha ao questionar pela segunda vez:
— Tá tudo bem, Ana?
— Tá! — Ai que nervoso! — Eu que falo demais. Nunca reparou?
O sorriso de lado que sempre me provocava a falar surgiu.
— Você até fala bastante, mas parece realmente ansiosa. É o voo?
— É! — confessei, sentindo-me uma bosta por isso. — Morro de
medo.
O que eu mais gostava em Eduardo era a maneira como ele me
olhava. Sempre do mesmo jeito. Meio profundo, meio incerto. Meio tímido,
meio desafiador.
Era estranho, pois às vezes parecia que não era igual com os outros.
Mas eu gostava.
E foi aquele olhar que ele dirigiu a mim. Com sua íris castanha
brilhando em minha direção.
Sem falar qualquer palavra, ele sentou-se em seu lugar e continuou
me olhando, até que começou a dizer com suavidade:
— Tente respirar fundo e não pensar muito no voo. Pense em outras
coisas... No congresso, que tal?
— Se eu pensar no congresso, minha vontade é de matar o Gustavo!
— bradei um pouco alto. — Ah, ele é meu chefe, mas às vezes me esqueço
disso. Me avisou em cima da hora que eu iria substituí-lo e tive pouquíssimo
tempo para me preparar para a apresentação.
Ele abriu um sorriso antes de revidar, a voz mais baixa que a minha:
— Então entre na fila. Também tenho vontade de estrangular aquele
idiota às vezes. Muitas vezes.
— Mas vocês parecem bem unidos... — opinei. — Os quatro, na
verdade. — Desviei meus olhos para o corredor, onde uma aeromoça passava
fechando todas as portinhas onde ficavam as malas. — É raro um grupo de
quatro amigos que dividem um negócio, são sócios, trabalham juntos todos os
dias, e ainda assim se dão bem.
— Acho que porque somos muito diferentes. — Eduardo se ajeitou
na cadeira, parecendo absolutamente relaxado. — Cada um foca naquilo que
sabe e confia no trabalho do outro. Ninguém precisa revisar as contas da
fábrica, pois Benício é o melhor no que faz. Ricardo conduz tudo com uma
maestria sem fim e Gustavo é, sem dúvidas, a melhor pessoa para lidar com a
imagem e o marketing da empresa.
— E você cuida das máquinas — completei, observando a forma
como os olhos dele brilharam antes de ajeitar os óculos, parecendo sem jeito.
— É a parte mais fácil.
— Porque é feita pelo melhor. — O vermelho voltou com violência
para suas faces. — Imagine só o Benício cuidando da parte operacional?
O vi gargalhar pela segunda vez no dia.
— Metade da fábrica já teria pedido demissão. As máquinas são
previsíveis, assim como os números, mas um pouco mais subjetivas.
Precisam de paciência, coisa que ele não tem.
Sorri de volta, analisando o rosto de Eduardo e a forma como alguns
fios dos seus cabelos caíam no rosto enquanto ele falava das máquinas e do
seu trabalho. Quando sorria, pequenas rugas surgiam na lateral dos olhos, e
nem mesmo as hastes finas dos óculos eram capazes de esconder.
Senti um solavanco forte e meu peito acelerou.
Ai minha Nossa Senhora das Pessoas que tinham medo de avião!
Essa porcaria vai cair antes mesmo de decolar!
Grudei meus dedos no encosto dos braços e tentei, relutantemente,
relaxar. Olhei para cima e vi o aviso luminoso que pedia que os passageiros
colocassem os cintos.
Aquela era a maior prova de todas de que aquela porcaria não era
segura! Para que colocar cinto?! Estávamos a malditos duzentos, trezentos...
sei lá quantos quilômetros por hora! Se aquela carcaça de metal batesse em
um cone e capotasse, aquele cinto serviria para que? Para localizar meu corpo
carbonizado em meios aos escombros mais facilmente?
Sem aviso, e sempre com aquela violência aterrorizante, o avião
acelerou e começou a empinar o bico, levantando rapidamente na pista.
E eu estava nas malditas cadeiras da frente, onde aquilo parecia
ainda pior!
— Calma. Respira fundo. — Escutei uma voz suave ao meu lado,
mas não adiantou muito.
Eu evitava ao máximo viajar de avião porque sempre ficava nervosa
naqueles minutos que se seguiam à decolagem, e também na aterrissagem.
Nunca consegui me acalmar, mesmo depois de adulta, e não seriam algumas
palavras suaves que me fariam mudar agora.
— Você por acaso sabe a probabilidade de se sobreviver a uma
queda de avião?! — Minha voz saiu agoniada e sussurrada. O frio na barriga
me consumindo.
— Mais de cinquenta por cento — ele respondeu sem pestanejar.
O que?!
— Se você considerar todos os acidentes aéreos registrados, e que
são coisa rara, as chances de sobreviver passam de cinquenta por cento —
Eduardo despejava com tranquilidade, ajeitando os óculos no nariz, e aquilo
me deixou chocada. — Lembrando que quando um avião cai e todas as
pessoas morrem, o número de vítimas é imenso. Se desconsiderar essas
quedas fatais, contando somente pequenos acidentes, o número sobe para
mais de setenta por cento.
Ele levou a sério minha pergunta?!
Ele realmente levou a sério minha pergunta idiota?
Meu queixo caiu, em choque, e só consegui murmurar:
— Você está de graça com minha cara?
— Não! — Ele arregalou os olhos, um pouco surpreso. — Estou
falando números reais.
— Eu... eu... o que eu falei nem era uma pergunta! — Ele continuava
me observando calado, e parecia bem sério, realmente considerando a minha
pergunta como intencional.
— Estou tentando te acalmar mostrando que você está no meio de
transporte mais seguro do mundo.
— Seus pais morreram em um acidente de avião e você quer me
dizer isso?!
Opa!
Acho que falei demais.
E um pouco alto também, pois notei que algumas pessoas se
voltaram para nós.
Merda de ausência de filtro!
Mas então o inesperado aconteceu, e Eduardo abriu um sorriso de
lado, antes de responder calmamente:
— Exatamente por isso posso falar com propriedade: é seguro. O
acidente que matou meus pais é o evento um em um milhão das
probabilidades. Já viajei outras dezenas, senão centenas de vezes, e nunca
passei por uma situação de risco. — Eu continuava com as mãos cravadas no
descanso dos braços e ele desceu os olhos um momento para o local, antes de
prosseguir. — A cada um milhão de voos, menos de dois vão apresentar
algum tipo de problema. Desses, menos da metade vai ter acidentes com
vítimas fatais.
— Se você já viajou centenas de vezes, está cada dia mais próximo
da sua vez!
— As mesmas probabilidades que eu tenho são as que você tem
nesse momento.
— E você tem um histórico familiar trágico! — Finalmente consegui
soltar o assento e levei as mãos para cima, apontando para ele. — Isso
também deve contar!
Falei demais de novo...
— Desculpa... — emendei logo em seguida. — Não deveria ter
tocado nesse assunto.
— Tudo bem. — Eduardo riu. Ele riu! — Acho que muitas pessoas
devem pensar isso internamente, mas você em todo o planeta é a única que
teria coragem de falar, e sem parecer que está querendo ofender.
Ai, Minha Nossa Senhora da boca desregulada! Vou ser demitida
antes mesmo de chegar nesse Congresso...
Adeus sentir o frio curitibano com minhas botas de cano alto e
minha echarpe rosa neon.
— E não quis mesmo ofender!
Num ato de rompante, peguei uma das mãos dele que descansava no
banco e grudei com as minhas. Eduardo deu um pulo no assento e arregalou
os olhos, encarando vidrado minhas mãos encobrindo as dele.
— Tu-tudo bem, Ana. — Ele parecia um pouco constrangido, e me
perguntei se não havia ido longe demais mais uma vez.
É lógico que foi, sua destrambelhada!
Falou duas vezes da morte dos pais dele e agora fica lá, agarrando a
mão do coitado que, a propósito, é extremamente quente e sedosa, mas você
não está pensando muito nisso pois está mais preocupada com a decolagem
e...
Peraí...
O avião decolou!
Ainda com as mãos grudadas nas de Eduardo criei coragem e olhei
ao redor. Nossa janelinha seguia fechada, contrariando as ordens da
aeromoça, mas algumas ao lado estavam abertas e por elas vi que já
estávamos alto, bem acima das nuvens, e aquela sensação de zumbido nos
ouvidos que sempre sentia durante a decolagem havia desaparecido por
completo.
Relaxei um pouco minhas mãos e respirei fundo. Aquela foi a
primeira vez na vida que passei por uma decolagem sem usar medicamentos
e sequer perceber que ela acontecia.
Como isso foi possível?
— Viu? — Eduardo sorria de lado para mim. — Já passou. E você
nem percebeu os sacolejos do avião.
— Ele sacolejou?!
Mais rugas apareceram quando seu sorriso se expandiu.
— Vou deixar você sem saber essa.
— Eu não sei o que você fez, Eduardo, mas de alguma forma você
me distraiu como ninguém nunca havia conseguido.
Suas faces se coloriram de leve e ele permaneceu mudo.
— Quantas horas de voo até chegarmos? — questionei.
— Uma hora e quarenta minutos, em média, até São Paulo. Lá,
pegamos outro voo que leva mais uma hora para chegar a Curitiba...
— E eu vou passar por isso mais uma vez antes de chegar... —
reclamei.
— Não havia voos diretos para Curitiba.
— Pois eu não vou desgrudar da sua mão até lá! — exclamei um
pouco mais alto. Ele tornou a arregalar os olhos e, de forma instintiva,
apertou mais meus dedos.
Aquilo me confortou?
É... confortou.
Que esquisito...
Como Eduardo nada disse, nem tentou se afastar, travei seus dedos
nos meus, até que os nós ficassem brancos. Olhei para nossas mãos unidas e
percebi mais uma vez como a pele dele estava quente. Quase febril.
— Você vai ter que parar de suar um pouco, Eduardo. — Eu e minha
boca solta. — Não pretendo soltar sua mão até chegarmos em Curitiba, e
você parece mais ansioso do que eu... — Como ele seguia em silêncio, ergui
meu rosto para fitá-lo, e dei de cara com ele bem próximo, me observando
atentamente. A pergunta saiu antes que eu pudesse raciocinar. — Tudo bem
para você se ficarmos assim?
— Por mim, tu-tudo ótimo. — Sua voz saiu bem baixa, e eu tive um
pouco de dúvida se entendi direito o que ele disse.
Dei de ombros e me recostei no banco.
Curiosamente, me sentia calma. As palavras objetivas de Eduardo,
suas probabilidades matemáticas e a tranquilidade com que ele lidava com o
voo, mesmo sendo vítima de uma tragédia familiar que repercutiu em toda a
imprensa nacional, me deixaram mais calma.
Pela primeira vez em toda a minha vida, consegui relaxar em um
voo. Até fechei os olhos um pouco, ouvindo aquele murmurinho constante
dos outros passageiros e das turbinas ao fundo.
Quando os abri, fitei Eduardo de relance. Ele olhava sem parar para
nossas mãos unidas e, quando percebeu que era observado, levou os olhos até
meu rosto. Parou um momento para me observar e então sorriu pequeno,
meio de lado.
Nossa...
Eu gostava mesmo daquele sorriso...
Capítulo 3

Ana emanava calor por todas as partes, o que fazia o suor escorrer
por minhas têmporas. Ela seguia recostada em meu corpo, ressonando de
leve, e mesmo com uma dormência em toda a lateral do braço, nada no
mundo me moveria dali.
Mais meia hora, no máximo, chegaríamos em Curitiba, e eu
aproveitava aqueles preciosos minutos para observá-la de perto.
A franja encobria os olhos de forma irregular. Seu cabelo estava
solto, grudado no tecido da minha camisa, e sua echarpe de cores chamativas
descansava inútil em seu colo. Ana era quente, e com nossas mãos ainda
grudadas tive a impressão de que nenhuma frente fria de Curitiba seria páreo
para aquela sensação que me invadia agora.
Seu vestido preto tinha um formato bem largo, descontraído, e havia
subido vários centímetros em suas pernas, dada a forma como ela se retorcia
sem parar enquanto dormia. Volta e meia meus olhos se voltavam para baixo,
onde sua pele branca estava exposta, e eu me forçava a desviá-los.
Isso é vergonhoso, Eduardo! Não pode ficar olhando para as pernas
de uma mulher enquanto ela dorme, ainda que essa mulher seja sua amiga!
Amiga!
Amiga!
Repita isso quantas vezes forem necessárias:
Ana é uma amiga!
Me atrevi a apreciá-la de novo e notei suas botas. As mesmas que ela
usava na fábrica nas parcas semanas de inverno goiano, com suas meias de
planeta.
Dessa vez, por baixo da bota, usava uma meia de fios brilhosos, de
um tom cinza, similar à jaqueta que estava esquecida no canto.
Ela realmente estava preparada para o tal frio “absurdo” de treze
graus...
Sorri de novo, lembrando de tudo que conversamos no primeiro voo.
Ela relaxou rapidamente e começou a tagarelar sobre o frio, a vontade de
conhecer a neve e outras coisas sem nexo algum com o assunto, mas que
pareciam acalmá-la. Pareceu esquecer-se por completo do voo, só voltando a
ficar tensa quando aterrissamos, cravando as unhas nos meus dedos e me
fazendo suar.
Nosso tempo de conexão era ínfimo, e logo estávamos no segundo
voo. Dessa vez, a decolagem foi bem mais tranquila e quase não vi a
ansiedade tomando os olhos dela. Algo tinha mudado desde a primeira
decolagem e Ana mal sentiu os últimos sacolejares da subida, recostando-se
naturalmente ao meu lado e adormecendo em questão de segundos.
Ela tinha um cheiro quente, assim como todo seu corpo.
Pode parecer estranho um cheiro que é “quente”, mas eles existem. É
como o cheiro abafado do óleo passando pelas máquinas da fábrica e
fazendo-as funcionar. O cheiro do óleo quando aquecido era bem distinto do
cheiro do óleo frio. Ele entrava nas narinas e dali não mais saía, se
impregnava no tecido das roupas e nos fios de cabelo.
O cheiro de Ana era assim, só que muito mais agradável que o de
óleo queimado. Era cheiro de chá de hibiscos e rosas. Bem quente. Quase
fervendo. Segundos antes de você desligar a chaleira e servir a caneca. Só
que era um cheiro tão sutil e singular que só o notei naquele momento, dentro
daquela aeronave, com nossa proximidade.
Também lembro de sentir esse cheiro na noite em que nossos lábios
se colaram por milésimos de segundos.
Uma garrafa vazia em cima de uma mesa, duas alternativas, e eu
tinha como desafio beijar Ana. Todos os nossos amigos riram da cena, já que
eu era o cabeção tímido do grupo, enquanto Ana era a falante, expansiva e
nada tímida.
Nosso “selinho” durou segundos, mas lembro de cada detalhe.
Da forma como os cabelos dela caíam nos ombros totalmente
despenteados. Ana estava completamente despenteada aquela noite, depois de
tanto conversar e beber com as amigas, e quando ela ficava assim, seus
cabelos enrolavam um pouco nas pontas.
Lembro dos olhos brilhando divertidos enquanto ela esperava que eu
me aproximasse, e lembro com clareza como ela corou segundos antes de
fechar os olhos e me esperar.
Ana fechou os olhos...
Eu não.
Marquei algumas sardas que ela tinha no rosto, e também o cheiro
quente que agora se impregnava em minha camisa. Marquei a maciez da sua
boca e da sua pele.
Durou segundos, mas foi o suficiente para que eu marcasse tudo,
como eu costumava decorar o apito de cada uma das máquinas da fábrica.
Depois daquele beijo rápido, Benício, Gustavo e Ricardo não
pararam mais de me infernizar. Eles sempre desconfiaram que eu tivesse
uma... queda por nossa amiga mais maluquinha, mas sempre consegui
esconder aquela atração muito bem.
Ou tentei, pois tão logo perceberam a forma como Ana me afetava,
começaram a me infernizar. Em festas que íamos juntos, jantares, na fábrica...
Até chegar àquela viagem estrategicamente planejada pelos três para me
aproximar dela.
Mas se Ana só me via como um amigo, eu jamais me aproximaria
dela, correndo o risco de estragar tudo e perdendo assim nossa única e tão
bonita conexão.
Meu braço estava dormente, e senti um coçar irritante no nariz, na
altura das hastes dos óculos, mas não me movi. Fiquei quieto, agora
observando a boca entreaberta de Ana, fortemente pintada de batom
vermelho.
Pare de olhar para a boca dela, Eduardo!
Desviei os olhos de uma vez, e com o movimento acabei mexendo
um pouco os ombros. Ana remexeu-se no assento e abriu os olhos, focando-
os exatamente na altura do meu rosto.
Ela levou três ou quatro segundos para me analisar, como se
estivesse confusa, sem saber muito bem o que fazia ali.
— Desculpa se te acordei — murmurei sem graça com a intensidade
dos seus olhos.
— Eu dormi no seu peito?! — Só que Ana tinha esse dom de crescer
tudo com aquela voz mais alta e o jeito sem freio. — Ai, minha Nossa
Senhora! Eu babei em você? — Ela soltou minhas mãos e começou a esfregar
minha camisa, procurando por alguma mancha de baba.
Foi frustrante ver nossas mãos se desunirem, mas a sensação dos
dedos dela friccionando meu peito compensou.
Respire fundo, Eduardo!
Se o Gustavo te visse agora, cairia na gargalhada.
Ana finalmente terminou a tarefa de limpar a tal baba imaginária da
minha camisa e voltou sua atenção para a janelinha do avião, que seguia
fechada, como ela mesma quis assim que entrou.
Um pouco indecisa, ela abriu a pequena janela ovalada e olhou por
um tempo para a imensidão azul ao longe.
— Por que eles pedem para as janelas ficarem abertas na decolagem
e no pouso? É para que possamos ver a morte chegar? — perguntou de
repente, com a voz baixa.
— Ajuda na visualização em caso de socorro — expliquei. — É um
procedimento de segurança e, quanto mais as pessoas que estão dentro do
avião conseguem ver o que acontece do lado de fora, mais podem se prevenir.
— Ela virou o corpo para me encarar, e tinha uma ruga de estranhamento na
testa. — Por exemplo, em um pouso forçado no mar, a tripulação consegue
ver a altura da água na aeronave e até mesmo se um lado do avião está
afundando mais que o outro.
A ruga que se formou em seu rosto acentuou-se um pouco antes que
ela dissesse:
— Você sempre vai responder as minhas perguntas?
— Se eu souber as respostas...
Ela olhou de relance para minha cabeça e então voltou a questionar:
— Como sabe tanta coisa?
Tive de rir.
— Sobre aviões, sei pois precisei me ater a esses dados técnicos
depois do acidente dos meus pais. Meus avós nunca deixaram de viajar de
avião, e me fizeram compreender cedo que aquilo tudo havia sido uma
fatalidade. — Fiz uma pausa. Não porque me incomodasse em falar do
acidente. Aquele acidente realmente era algo que conseguia narrar com
naturalidade. Era a lembranças dos meus avós que me incomodava.
Ela concordou com a cabeça e voltou a olhar para o horizonte azul.
Ficou alguns segundos distraída e logo se viu atraída ao comunicado da
tripulação de que todos deveriam colocar os cintos, pois a aterrissagem seria
em minutos.
Vi o momento que Ana olhou insegura para as próprias mãos, como
se não soubesse o que fazer com elas.
Estendi minhas próprias mãos na direção dela, em silêncio. Ela me
olhou de lado e então sorriu, pegando com força minha mão.
Assim pousamos.
E dessa vez ela não parecia ansiosa ou com medo. Só sorria e fazia
perguntas aleatórias sobre a fuselagem de um avião, testando meus
conhecimentos.
— Já parou para pensar em como uma coisa tão pesada consegue
voar?
— Leis da Física. Basicamente com impulso, o que se consegue com
velocidade e aerodinâmica. Por isso, o formato das asas.
— Com mais velocidade seria possível fazer uma imensa bola de
ferro e sem asas voar? Ela não teria a aerodinâmica.
— Muito provavelmente ela não conseguiria se manter pairando no
ar. A velocidade do impulso inicial, que fez a bola sair do chão, nunca
poderia diminuir, ou ela começaria a cair.
— Já testaram isso?
— Provavelmente sim. — Sorri. — Mas talvez perceberam que o
gasto em combustível para manter uma bola no ar seria imenso e não
compensaria.
— Balões são grandes bolas no ar.
— Balões são movidos por uma técnica diferente. Eles usam ar
quente, e não velocidade.
— Hum... — Ela mordeu de leve os lábios vermelhos e voltou a me
fitar. — Você realmente é um cabeção.
Eu só consegui sorrir, sentindo os dedos dela se apertarem nos meus.
Quando finalmente conseguimos descer e pegar nossas malas, já era
quase hora do almoço. Pegamos um carro até o hotel que ficava no centro da
cidade. De lá até o imenso salão de eventos reservado para o congresso, eram
pouco mais de cinco minutos de caminhada. Por mais que o hotel fosse
requintado e, nesse momento, abrigasse grande parte dos participantes do
evento, não havia espaço compatível com a magnitude do congresso.
O local reservado para os encontros era bem localizado e estava
cercado dos principais hotéis da cidade.
Fizemos nossas credenciais e pegamos toda a programação para os
próximos dias.
Na volta, enquanto caminhávamos, reparei que Ana observava com
atenção os detalhes do centro.
— Está com muita fome? — tomei coragem para perguntar. —
Conheço um restaurante aqui perto onde podemos comer.
— Estou faminta! — ela exclamou sorrindo, acertando os passos
para me alcançar. Ajeitou a inseparável echarpe rosa no colo e soprou a franja
uma vez, antes de perguntar: — Se lembra de muitos lugares daqui?
— Nasci aqui e passei toda a infância e adolescência. Só me mudei
para Brasília na faculdade, quando conheci Benício e Ricardo.
— Vai ser meu guia oficial! — Ana sentenciou de forma pomposa.
— Quero conhecer ao menos o Jardim Botânico e sair na noite com minhas
roupas de frio.
Era incrível o dom que ela tinha de me fazer sorrir.
— Temos um congresso para participar, Ana... — lembrei, mas ela
pareceu não se abalar, pois fez um muxoxo com a boca e me olhou com cara
de decepção.
— A apresentação da linha eco é amanhã, mas depois somos só
plateia na maioria dos painéis. Não é possível que não podemos escapar por
uma única tarde! — Deu uma corridinha rápida, postando-se na minha frente.
A vi erguer o queixo ao máximo para me olhar nos olhos. — Uma fugidinha
só, por favor! Duas horinhas, no máximo...
Parei no meio da calçada, fitando-a por um momento.
— Eu juro que não conto para o Gustavo e os outros sócios... — ela
suplicava.
— Como se o Gustavo fosse se importar com isso...
Ela deu de ombros e ficou aguardando por minha resposta.
— Está bem! — Suspirei resignado, sentindo-me um idiota fodido
por ser incapaz de dizer não a Ana. — Vamos ver na programação um dia
mais...
— Tedioso.
— Ou menos importante. E então te levo ao Jardim Botânico.
Ela deu um gritinho alto e então impulsionou o corpo na minha
direção, claramente querendo me abraçar. Era involuntário, e tudo que
consegui fazer foi abrir meus braços e acolher seu corpo, sentindo o cheiro
quente que ela emanava.
Ana abraçava forte. Daquelas pessoas que se firma em seus braços
por segundos sem fim. E mesmo que eu fosse vários centímetros mais alto
que ela, era como se ela me envolvesse ali.
Senti um calor me tomar e xinguei Gustavo pela milésima vez no dia
por me forçar a viver aquilo.
Totalmente alheia à forma como me afetava, Ana soltou meus braços
e levou uma mão até meu rosto, ajeitando ela mesma meus óculos, que agora
estavam um pouco caídos no nariz.
— Pode ficar tranquilo que não vou comentar com ninguém. —
Tentou me convencer do impossível.
Estreitei os olhos e a encarei, cético.
— Realmente não vai contar para ninguém que foi ao Jardim
Botânico em Curitiba? Nem para as meninas?
— Só para as meninas... — Ela passava despretensiosamente as
mãos na minha camisa.
— Que é o mesmo que contar para todos — concluí, recomeçando a
andar, numa tentativa de fazê-la parar com aquela proximidade
desesperadora.
— Verdade... — Ela riu atrás de mim e decidiu me seguir.
Almoçamos sem grandes percalços e, como não havia nada na
programação para aquela tarde, voltamos para o hotel.
Gustavo foi tão “malditamente” sorrateiro, que nossos quartos eram
realmente colados um do outro. Uma pequena parede nos dividia, e me deitei
na cama incomodado com toda aquela proximidade.
Aquela facilidade...
Disposto a não pensar muito naquilo, foquei em alguns papéis que
havia levado para a apresentação. Na verdade, quem falaria quase tudo seria
Ana, mas Gustavo havia sugerido que eu também apresentasse alguns
números da fábrica, afinal, segundo o debochado idiota, eu era o nome que
havia criado aquela linha.
Ainda no fim daquele dia, seria oferecido um imenso coquetel no
salão de eventos do prédio onde acontecia o congresso. Minha ideia era
descansar um pouco do voo, revisar os últimos detalhes da apresentação, e
me arrumar para o coquetel.
Estava entretido com alguns slides que falavam sobre os ganhos da
empresa com os projetos de recolhimento de embalagens plásticas quando
meu telefone vibrou na mesa.
Quando vi quem era, minha vontade foi ignorar, mas sei que não
adiantaria.
— Oi — atendi, seco.
— Atendeu rápido demais. Achei que pudesse estar atrapalhando,
mas pelo visto... não.
Trouxa.
— O que você quer, Gustavo?
— Ué, saber como foi o voo. Só isso! Nenhum de vocês deu sinal de
vida... Sou um amigo preocupado.
— E debochado.
— Eu não disse nada. Tenho um conhecido que viajou no mesmo
voo que vocês e me disse que o viu atracado a uma mulher de franja...
— Ele viu?! — gritei exasperado. — Ela só estava dormindo no meu
ombro!
— Ah, ela dormiu agarradinha em você, então?
Desgraçado...
— Não tinha conhecido nenhum, não é? — rosnei para o aparelho.
— Não — ele assumiu sem o menor traço de culpa. — Mas se
tivesse, ele teria visto bastante coisa nesse voo. Estou errado?
Respirei fundo e resolvi ignorá-lo.
— Não teria visto nada. O voo foi tranquilo — comecei a relatar
com voz monótona. — Já pegamos nossas credenciais e a programação. Sete
da noite vão servir um coquetel e, até lá, quero revisar alguns detalhes da
apresentação de amanhã.
— Ok. Plínio Barros me ligou hoje. Disse que vai assistir ao painel
da LBK amanhã. Depois que tudo terminar, apresente ele à Ana. Ela vai
mostrar nosso plano de marketing da linha para ele. Já está sabendo de tudo.
Plínio Barros era um publicitário ricaço que patrocinava prêmios de
mídia de alcance internacional, e estava interessado em inscrever algumas
peças da campanha da nossa linha eco para o prêmio daquele ano.
Satisfeito por ver o rumo da nossa conversa seguir para o cunho
profissional, conversei com Gustavo por um bom tempo sobre o congresso, a
apresentação do dia seguinte e possíveis contatos que pudéssemos fazer
naquela semana.
E como Gustavo não voltou a falar ou fazer brincadeiras sobre Ana,
relaxei e me esqueci do assunto.
Talvez ele tivesse razão.
Eu era o único que ficava ansioso com aquele assunto e, por
perceber isso, Gustavo era o primeiro na fila a me importunar.
Mas a verdade é que tudo não passava de fruto da minha cabeça, e
não me restava nada a não ser tentar esquecer um pouco a insanidade que era
minha atração por Ana.
Era só o jeito maluquinho dela que me fascinava. Sua franja bonita
batendo na testa, e seu sorriso marcante, proporcional à sua presença. Era só
a admiração de um amigo meio tímido que via a amiga extrovertida da turma
com carinho e respeito.
Nada além disso.
O coquetel foi tranquilo, com Ana conversando com vários
representantes de outras empresas e mostrando-se, assim, uma ótima opção
para representar o marketing.
Gustavo tinha razão mais uma vez...
Acabamos nos afastando durante a noite, já que eu me vi rodeado de
representantes de empresas parceiras e concorrentes que queriam falar sobre
as estratégias da linha eco e sobre o painel, enquanto Ana fazia contatos com
publicitários e veículos de imprensa.
Foi ela quem respondeu a todas as perguntas de um pequeno jornal
que estava cobrindo o evento, e também detalhou para os organizadores do
Congresso sobre os próximos passos da LBK, a linha hipoalergênica, o
projeto de reativação de toda a fábrica, e outras coisas que eu sequer fazia
ideia de que ela estava ciente.
Como estava tarde, voltamos de carro para o hotel e nos despedimos
um pouco constrangidos no corredor.
Esperei que ela entrasse em seu quarto para então entrar no meu.
Tomei um banho demorado, vesti uma calça e sentei-me em uma das
cadeiras da pequena sacada do quarto, sentindo o frio da noite e imaginando
Ana enrolada em cobertas e mais cobertas, festejando sua primeira noite em
uma cidade em que as temperaturas beiravam os cinco graus.
Ainda repassava na cabeça alguns detalhes para a apresentação do
dia seguinte quando escutei uma batida suave na porta.
Imaginei que pudesse ser alguém batendo no quarto errado e fui
atender descalço e sem camiseta.
Mas quando abri, tudo que vi não foi um desconhecido e sim Ana,
enrolada no roupão do hotel, mal encobrindo uma camisola fina demais, com
os cabelos soltos e o rosto sem nenhum traço da maquiagem que ela usava
poucas horas atrás. Um sorriso travesso e um calhamaço de papéis nas mãos.
Linda, como somente Ana conseguia ser.
Merda!
Capítulo 4

Ok...
Talvez não tenha sido uma boa ideia aparecer no quarto do Eduardo
às dez horas da noite, de camisola e toda descabelada, já que, de todos os
cenários imagináveis, eu jamais adivinharia que ele pudesse abrir aquela
porta só com uma calça de moleton e...
Puta que pariu!
O Eduardo é gostoso e só eu sei disso!
Porque uma coisa era vê-lo sem camisa de longe, durante o futebol
dos funcionários da empresa, mas outra bem diferente era dar de cara,
literalmente, com seu corpo inteirinho exposto, nu, recém-lavado e cheirando
a sabonete.
É bem gostoso de perto, posso garantir, já que meu nariz quase bateu
no peitoral largo e alto quando me convidei para seu quarto, sem qualquer
aviso.
— Errr... — Escutei ele arranhar a garganta e me vi forçada e desviar
os olhos do seu peito e subir até seu rosto. — Algum problema, Ana?
Sim! O problema é que você sempre me pareceu bem bonito, só que
subiu várias posições nesse momento, e minha vontade é gritar para meio
mundo de gente que você é gostoso para caramba e esconde o jogo com
esses óculos de intelectual que, a propósito, só te deixam ainda mais
interessante...
Vi o rosto de Eduardo corar violentamente e então me perguntei se
não tinha dito tudo aquilo em voz alta.
— Eu não disse isso em voz alta, disse? — perguntei, sem querer
acreditar que minha boca grande tivesse ido tão longe.
— Sim. — Ele parecia mais constrangido que eu ao concordar. —
Você disse...
Droga!
Bom, desculpas eu não vou dizer porque é verdade, então...
— Mentira não foi, mas... vamos fingir que isso nunca saiu da minha
cabeça?
Quase a contragosto ele riu.
— Certo... Agora... — Eduardo apontou para os papéis que eu
levava nas mãos, fazendo eu me lembrar do motivo da minha visita noturna.
— Ah! Quase esqueci. — Sem esperar por um convite, entrei no
quarto. — É que essa porcaria de apresentação de amanhã está me
enlouquecendo. O Gustavo me avisou muito em cima da hora, e estou com
medo de falar merda. — Com alguns passos, cruzei o imenso quarto e sentei-
me na imensa cama de casal. — Você viu o tamanho daquele auditório? Vou
falar para todas aquelas pessoas?
— Bom... — Percebi que Eduardo manteve certa distância da cama,
escorando-se na pequena mesinha que havia ao centro do cômodo. — Acho
que você se saiu muito bem hoje, no coquetel. E nem tinha uma apresentação
de slides para te apoiar.
— É... — Pesei suas palavras por um momento. — Ainda assim,
estou um pouco ansiosa. É muita responsabilidade representar uma empresa
como a LBK para todas aquelas pessoas... Eu participei das campanhas da
linha eco, mas quem sempre teve tudo na cabeça é o Gustavo.
— Hum... Ultimamente aquele lá só tem besteira na cabeça... —
Eduardo fez uma careta retorcendo a boca, decidindo-se e sentando-se em
uma das cadeiras da mesa. Nunca havia notado o quanto ele se movia ereto e
com boa postura. Por mais que fosse tímido, seus ombros eram grandes e
retos e seus olhos castanhos pareciam sempre observar os mais sutis
movimentos de seu interlocutor. — Mas do que, realmente, você tem receio?
— De falar merda, como eu fiz agorinha quando te chamei de
gostoso e estou fazendo agora de novo. — Tentei sorrir, já que não me
restava nada além disso.
Eduardo abriu aquele sorriso de lado que eu gostava de ver e, mesmo
que suas faces tenham ficado levemente rosadas novamente, não desviou os
olhos dos meus.
— Você não fala merda, Ana. Só diz exatamente aquilo que pensa
sem...
— Pensar.
— É. Ou pesar. E isso durante uma apresentação pode ser bom.
Você pensa rápido. Quase tão rápido quanto fala. Tenho certeza que vai dar
tudo certo amanhã.
— Quer parar de me elogiar? — Entrei naquele quarto incomodada
com a expectativa daquela apresentação, mas agora o que me afetava era o
homem de óculos e sem camisa que me olhava com um brilho que nunca
notei em seus olhos.
Má ideia ter batido àquela porta.
— Só tentei te acalmar... — Ele desceu um pouco os olhos e parou
em algum ponto do meu corpo abaixo do pescoço. Instintivamente olhei na
direção que ele fitava e quase infartei quando vi que, com o movimento de
me sentar na imensa cama, o roupão tinha caído de um dos ombros,
revelando tudo que havia abaixo dele.
Minha Nossa Senhora das camisolas transparentes!
Nesse momento eu tinha dois faróis acesos e apontando na direção
de Eduardo, mal encobertos pelo tecido fino e molenga da camisola,
enquanto ele parecia bem atento à sinalização, como se esperasse o momento
em que enfim pudesse avançar com seu carrão.
Deus queira que eu não tenha dito isso em voz alta...
— É o frio... — Melhor falar uma besteira pequena do que outra
gigantesca.
Eduardo desviou os olhos para o chão por um momento e esperou
enquanto eu me recompunha. Passada a situação constrangedora, levantei da
cama com rapidez, disposta a voltar para meu quarto.
Eu só queria sugerir algumas mudanças na apresentação e quase
fiquei nua para ele!
— Quer repassar os detalhes da apresentação? — ele chamou de
repente, levantando-se de uma vez.
— Se você não se importar... — Essa era minha intenção desde o
início, mas tudo estava tomando rumos estranhos e inesperados.
Ele apontou com a cabeça para a pequena sacada do quarto, onde
algumas cadeiras descansavam no frio.
Só naquele momento notei que aquela porta estava aberta. Desde que
voltamos para o hotel, tranquei-me no quarto e sequer abri a porta da minha
sacada. A noite em Curitiba estava muito fria para meus padrões, e me
aconcheguei aos cobertores, lendo todos aqueles rascunhos. Foi quando
decidi bater à porta de Eduardo e repassar com ele alguns dados da
apresentação. Minha ideia era mudar um pouco a ordem das nossas falas, e
precisava alinhar isso com ele.
Sem parecer se importar com o vento congelante, ele sentou-se em
uma das cadeiras da área externa. Mal coloquei os pés do lado de fora e senti
um arrepio na espinha com o clima gelado.
Eu estou só de camisola e roupão! Meus pés vão congelar em
minutos aqui!
— Vou pegar uma coberta para você — anunciou de repente, e me
dei conta que, mais uma vez, pensei alto demais.
Eduardo voltou com um imenso edredom e o jogou nos meus
ombros, apontando uma cadeira para mim.
Sentei-me e ajeitei o quente e fofo edredom nas pernas, tirando do
colo os papéis que levava e colocando na mesinha pequena que havia logo à
frente.
— Eu não tenho receio de apresentar os dados — comecei a falar, e
percebi que ele prestava atenção. — Fiz parte da equipe que trabalhou com o
marketing de criação da linha, que divulgou as campanhas, tudo. Só sinto que
é uma responsabilidade muito grande. Era para ser o Gustavo no meu lugar,
entende? E ele é o diretor e dono da empresa!
— Se ele te escolheu para substituí-lo, é porque sabe que você é a
pessoa ideal. — Ele olhava para mim com os olhos brilhantes. — E nesse
ponto tenho que concordar com Gustavo.
Dei de ombros e questionei:
— Você também está ansioso?
— Muito mais do que você. Tenho pânico de falar em público.
— Por que diz pânico?
Eduardo pensou por um momento antes de responder:
— Sempre fui calado, tímido e, por anos, me vi forçado a aparecer
nos jornais e programas de TV.
— Seus pais te forçavam?
— Não. Eles sempre respeitaram meu lado mais reservado. Meu avô
é quem sempre quis que eu seguisse a carreira política da família e, por isso,
sempre me levou para o palanque. — O vi suspirar por um momento e
recostar o corpo na cadeira. Aquele homem não sentia frio? E cadê a timidez?
Estava me sentindo uma tarada olhando sem parar para ele sem camisa e ele
nem aí? — Ele achou que fosse despertar meu gosto para o palco, mas tudo
que conseguiu foi gerar minha aversão.
Dos quatro sócios da LBK, Eduardo era o que tinha o passado mais
conhecido da maioria dos funcionários. Filho único de um estadista
importantíssimo da década de 1990, sua família era conhecida pela tradição
política no estado do Paraná. Seu pai era governador quando candidatou-se à
presidência do país, mas a queda do pequeno jato que levava ele, a esposa, o
candidato a vice e alguns assessores mudou os rumos das eleições daquele
ano, transformando o rosto de Eduardo, ainda pré-adolescente, ao lado do
caixão dos pais, em uma cena emblemática da era.
Para uma pessoa que fugia dos holofotes como ele, deve ter sido
difícil passar por toda a adolescência vivendo aquela pressão de seguir os
passos do pai que morreu de forma trágica.
— Seu pai achava que você seria político como ele?
— Não. — Eduardo era incrivelmente alto, e precisou afastar um
pouco sua cadeira do vidro da sacada para conseguir esticar as imensas
pernas. — Aquela era a carreira dele, e não a minha. E ele sempre entendeu
isso. Mas quando meus pais morreram e eu virei o único Venturini da
família...
— Seu avô quis continuar em você a tradição política do nome.
— Isso. — Ele ficou em silêncio um pouco, como se tivesse
encerrado o assunto, mas percebeu que eu o olhava com atenção, e decidiu
continuar. — A adolescência foi um saco, com ele me levando a eventos do
partido e me forçando a falar em entrevistas e comícios. Quando veio a
universidade, consegui me afastar daquele mundo. — O sorriso de lado
brotou do seu rosto. — Foi fácil convencê-lo a estudar em Brasília. Ele achou
que finalmente eu estava seguindo os passos da família, morando no centro
político do país...
— Mas você só estava fugindo para o mais longe possível daquela
pressão e seguindo seu sonho de estudar um curso de Engenharia.
— Isso. Na faculdade conheci Benício e Ricardo, e o resto você já
sabe.
— Acho chique uma pessoa que perdeu os pais em um acidente de
jatinho e teve que fugir do destino na política para seguir seus sonhos...
Eu acabei de dizer que acho chique ele ter perdido os pais?
Escutei Eduardo gargalhar baixinho e me tranquilizei.
— Ah, Ana... Só você para dizer uma coisa dessas...
— Tive um tio que morreu porque bateu o fusca em uma vaca. Isso
não é nada chique de se contar... — Olhei para ele e notei que Eduardo
escondia a risada. — Está vendo? É impossível contar sobre esse acidente
sem rir um pouco. Até minha tia faz piada com a morte do marido. Lá na
minha família ninguém usa a expressão “pensando na morte da bezerra”.
Todo mundo fala: “Estava pensando na morte do tio Zé”.
Eduardo ainda escondia o rosto com uma das mãos quando disparou
a gargalhar, como se perdesse o controle.
— Pode rir — autorizei. — Eu também riria.
— Sua família parece ser bem animada.
— São muitos, barulhentos e vivem se metendo uns na vida dos
outros. — Estiquei meu corpo na cadeira e ajeitei melhor o edredom, para me
proteger do frio. — Se você tem medo de enfrentar um palco lotado, deveria
temer uma reunião de Natal da minha família.
Ele voltou a rir, antes de brincar:
— Então pense que a apresentação de amanhã vai ser fichinha se
comparada às suas reuniões familiares...
— Vai sim. — Sorri de volta, ajeitando minha franja que coçava em
meus olhos com o vento frio da noite. — Só estava sem sono e querendo
conversar com alguém. — Eduardo sem camisa estava começando a me
incomodar. Eu sentia sua presença cada vez mais forte, e a grande verdade é
que nesse momento me enroscava no cobertor não para me proteger do frio,
mas dos seus olhos, que me sondavam o tempo inteiro. Talvez fosse melhor
eu voltar para meu quarto. — Nossa conversa já ajudou...
— Ainda podemos repassar a apresentação de amanhã... — ele me
interrompeu, levantando-se de uma vez e, se tinha um lugar pior do que seu
tórax para eu fixar meus olhos, foi exatamente naquele lugar que eles se
fixaram no momento.
Melhor nem pensar em nada, senão acabo dizendo em voz alta...
Cravei os olhos no rosto dele e recorri à minha melhor tática quando
não sabia o que dizer: fazer perguntas idiotas.
— Como é possível que eu esteja embrulhada no meio das cobertas,
me escondendo do frio, enquanto você nem parece sentir o vento e ainda está
sem camisa?
— Metabolismo. — Ele deu de ombros. — Geralmente homens têm
uma taxa metabólica mais alta que mulheres.
Sério, eu vou esganar esse homem se ele continuar respondendo às
minhas perguntas assim.
— O que foi? — Pela primeira vez eu fiquei muda, e era Eduardo
quem questionava.
— É uma pergunta aleatória! — Me aproximei do beiral da sacada e
levei as mãos para cima. — Faço perguntas aleatórias como essa o tempo
inteiro e ninguém se importa!
— Eu me importo.
Uau! Aquilo foi tão...
Fato: Eduardo sem camisa, respondendo minhas perguntas aleatórias
com real interesse e com o volume das calças um pouco saliente estava me
afetando.
E muito!
— Quais são as chances de se sobreviver a uma queda dessa altura?
— Apontei para a imensidão escura da sacada. Estávamos no décimo
primeiro andar e eu precisava mudar o foco.
— Isso é uma pergunta aleatória?
— Sim.
— Quase nulas. Não sei de probabilidades, mas mesmo se a queda
fosse na água, as chances de morrer seriam imensas.
Ponderei suas palavras, em silêncio.
— Você não vai pular, vai? — Ele me olhava com desconfiança.
— É uma pergunta aleatória?
O vi sorrir de lado e acabei sorrindo também.
Eduardo me olhava nos olhos, e parecia que havia algo diferente em
seu olhar. Aquilo me capturou alguns segundos, e, sem saber muito o que
dizer, deixei que o vento frio da noite soprasse em silêncio, enquanto nos
encarávamos naquela sacada minúscula.
O diretor de Produção da LBK sempre me pareceu só isso mesmo:
um diretor jovem, que usava óculos e era bem calado. As primeiras vezes em
que vi Eduardo, antes mesmo de nos tornarmos amigos, o achei um pouco
esquisito e quieto demais. Foi bem aos pouquinhos que ele se revelou uma
pessoa reservada, mas com bom humor e educação invejáveis.
Gostava da forma como ele transparecia o que sentia, corando
violentamente ao menor sinal de pudor, ou escondendo um pouco o rosto
quando parecia sem jeito. Tudo o que Eduardo sentia no momento ficava
sempre evidente em suas feições, e agora seu rosto transparecia algo que, por
mais que eu quisesse, não conseguia nomear.
Ou não queria enxergar.
— Segundo o cronograma do Gustavo — recomecei a falar com
rapidez —, você faria a apresentação inicial da empresa, nossas linhas e
novos projetos, e então eu falaria das nossas peças de campanha. Depois,
quando abrissem as perguntas para a plateia, você responderia.
— Isso.
— E se invertermos tudo? Eu falo primeiro, porque quando estou
nervosa disparo a falar. Falo o que sei da empresa rapidamente e apresento
nossas ações de marketing. Depois, mais calmo, você fala das projeções e
ações futuras, e então nós dois responderíamos às perguntas.
— Você prefere assim? — Ele aproximou-se um passo e eu quase
recuei três.
— Sim. Eu despejo logo toda a minha ansiedade enquanto você
perde um pouco o pânico. Responder perguntas para mim é tranquilo e, pelo
visto, para você também é.
Eduardo deu mais um passo em minha direção e sorriu.
Eu vou ter que mandar esse homem por essa camiseta? Meus
hormônios estão gritando já.
E é o Eduardo que está na minha frente, droga!
— Acho que pode dar certo. Na verdade, acho que será melhor do
que o planejamento do Gustavo.
— Ótimo! — disparei. Deus do céu! Levei meia hora para dizer
isso. — Vou ter que refazer alguns slides, mas é coisa rápida. Então é melhor
eu ir, que amanhã o dia é longo...
— Ok... — Vi o sorriso sumir um pouco do seu rosto.
Entrei no quarto novamente e me encaminhei para a porta. Um
Eduardo acanhado — e sem camisa — levou as mãos até a maçaneta da porta
e pareceu titubear, como se não quisesse abri-la.
— Err... — ele arranhou a garganta, sem jeito, finalmente abrindo a
porta. — Boa noite então, Ana.
— Boa noite, Du.
Me aproximei dele e enlacei seus ombros, como eu sempre fazia
quando me despedia de um primo ou mesmo de amigos.
Como várias vezes me despedi do próprio Eduardo.
Mas dessa vez eu estava de camisola e ele sem camisa.
Dessa vez, ele me olhava com um brilho estranho e eu não parava de
pensar na coisa enorme que vi mal contida entre suas pernas.
Dessa vez, eu sentia um calor inexplicável no corpo enquanto os
pelos dele se arrepiavam quando o abracei.
E ao invés de me afastar, dessa vez levantei o rosto até o dele e dei
um beijo estralado em sua bochecha. Seria um beijo normal, entre amigos, se
dessa vez eu não tivesse sentido suas mãos se apossarem da minha cintura
quase instantaneamente, cravando um pouco em minha pele.
Quando me afastei, percebi que os olhos dele focaram em meus
lábios, para rapidamente desviarem-se, olhando com desatenção para o
corredor vazio.
Dois passos e eu estava de fora.
Eduardo estava quase fechando a porta quando me lembrei que
levava seu cobertor.
E foi só quando o entreguei e ele fechou a porta que tive certeza:
O que me aqueceu naquele quarto não foi aquela peça de cama.
— Seu tempo de fantasiar beijar um dos sócios gatos do Quarteto
Fantástico já passou, Ana. Bota um pouco de gelo nessa periquita e esqueça
aquela calça de moletom frouxa com um volume que seria barrado na Receita
Federal. Você está aqui a trabalho!
Olhei para o fundo do corredor e vi uma câmera de monitoramento
imensa me observando.
Será que alguém me ouviu?
Capítulo 5

Ana estava certa sobre a previsão do tempo.


A manhã de terça-feira em Curitiba estava gélida, até mesmo para
mim.
Tomamos o café no hotel em relativo e surpreendente silêncio, dada
a minha companhia.
Era curioso me deparar com aquela Ana durante a viagem. Uma
pessoa que tinha medos, como o pavor inesperado de aviões, e inseguranças,
como a de representar a empresa. Ana escondia muito bem todas aquelas
fraquezas com seu sorriso luminoso, o falar exagerado e a franja irregular.
Comia bastante também, enrolada em sua echarpe rosa neon e com
um sobretudo bege.
— Pamonha. Eles deveriam servir pamonha para combinar com esse
clima — opinava sobre o cardápio do hotel.
Mantive-me quieto, observando-a.
Gustavo e os outros eram mesmo um bando de malditos, e não me
cansaria de xingá-los por aquilo.
Não que estar sozinho naquela viagem com Ana fosse ruim. Muito
pelo contrário. Era o céu...
E o inferno também.
Era o inferno vê-la tão perto, sempre sorrindo e soprando aquela
franja que lhe cobria os olhos.
Era o inferno sentir seu calor e ouvir sua voz alegre e melodiosa
preenchendo cada segundo do meu dia.
Era o inferno vê-la de camisola sentada numa cama, o tecido fino
perversamente destacando o bico dos seios, e me condenando a passar o resto
da noite duro e tentando esquecê-la.
Era o inferno ver seus olhos me sondando sem nenhum pudor, logo
depois de ouvi-la dizer que “eu era gostoso”. Ana não tinha freios na língua,
mas na noite passada também descobri que ela não sabia frear os olhos. Era
incapaz de esconder o menor sinal de desejo e...
Inferno!
Eu vi desejo em seus olhos ontem.
Malditos sejam meus sócios.
Depois do café, fomos até o grande centro de convenções. Reuniões
de negócios entre as empresas participantes eram feitas nos salões dos
pequenos hotéis da região, e eu tinha um encontro marcado para depois do
almoço no café do nosso hotel.
Ao chegarmos no local da mesa redonda, fomos encaminhados pela
equipe do evento até os fundos da plateia — lotada, se cabe aqui frisar. Ana
ajudou na preparação do nosso material com os organizadores e, poucos
segundos antes de anunciarem nossa entrada, postou-se ao meu lado,
retorcendo de leve o tecido da echarpe.
Eu ouvia o cerimonialista apresentar os integrantes da mesa quando
a escutei sussurrar ao meu lado:
— Pergunta aleatória.
— Diga. — Um sorriso involuntário tomou meu rosto.
— Se pudesse escolher um superpoder, qual seria?
— Nesse momento? Ser invisível.
Ela sorriu de volta e murmurou:
— Boa escolha.
— E você?
— Voar. — A resposta veio rápida.
— Voar?! — Não escondi o espanto. — Não era você quem estava
morrendo de medo ontem no avião?
— Eu tenho medo daquela carcaça metálica gigante começar a pegar
fogo no ar e todos morrermos. — Se voltou para mim com os olhos
brilhando. — Não teria medo de voar se dependesse somente das minhas asas
e minha habilidade para isso.
Olhei para ela em silêncio, até que escutamos nossos nomes serem
anunciados. Ana pegou minha mão e notei como as suas estavam geladas.
— Não precisa ter medo do palco. — Ela me olhava nos olhos. —
Tudo só depende de você e suas asas. — E se virou, entrando no imenso
palco amadeirado e sorrindo de forma segura para as centenas de pessoas que
estavam ali para ouvi-la.
Foi ali que tive certeza que as perguntas de Ana eram tudo, menos
aleatórias.
A pequena mudança na ordem das nossas apresentações se mostrou
a melhor opção. Eu consegui me acalmar com aquele pequeno incentivo de
Ana enquanto ela, bem ao seu jeito, disparou a falar sobre todo o histórico da
LBK.
Ana conhecia a empresa mais do que eu imaginava e aquilo não
deveria ser uma surpresa. Quando compramos a massa falida da LBK,
recontratamos dezenas de pessoas que trabalharam por anos para a gigante
dos cosméticos. Entendíamos que elas tinham, além do conhecimento, a
vontade e garra essenciais para dar aquele impulso inicial.
Entre as contratações dos veteranos, estavam três familiares de Ana.
Ela era o típico caso de profissional da nova geração que cresceu ouvindo
sobre a fábrica em casa e, assim que se formou, não pensou duas vezes antes
de mandar seu currículo para o RH. E nós, é claro, não pensamos duas vezes
antes de contratá-la.
Quando chegou minha vez de apresentar, Ana me entregou uma
plateia atenta e participativa.
Eu não tinha o mesmo trato que ela com a oratória, mas lembrei-me
o tempo inteiro de suas palavras.
Tudo só dependia de mim...
Falar em público era um trauma dos tempos que vivi o luto da morte
dos meus pais em meio aos holofotes. Falar em público sobre a empresa que
eu ajudei a reerguer era diferente, mas ainda me causava desconforto.
Minhas asas na LBK eram as máquinas. Os insumos, que entravam
empacotados ou em barris e se transformavam em produtos bem embalados e
que estampavam comerciais no país inteiro.
Eu tinha as asas, e ouvi o conselho de Ana. Deixei que me guiassem.
Apresentei nossa linha eco como apresentava aos funcionários, explicando
sobre as etapas de produção e todo o empenho gasto em meio aos corredores
barulhentos dos setores um ao quatro. A plateia, formada basicamente por
pessoas da área de cosméticos e produção industrial, não teve dificuldade
alguma de compreender tudo que eu dizia e, pela primeira vez, vi que
prestavam total atenção às minhas palavras.
Me deixei voar e nem vi o tempo passar. Nossa apresentação já
estava na reta final e foi aberta a etapa de perguntas. Foi a vez de Ana tomar a
frente novamente, e logo percebi que ela sempre me incitava a responder,
jogando parte dos questionamentos para mim.
Ao final do painel, fomos cercados por meia dúzia de participantes
cheios de perguntas e elogios a fazer.
A segunda etapa da nossa participação consistia em fazer aquele
trabalho de networking, entregando cartões, fazendo contatos e incitando
novas parcerias.
Eventos como aquele, além de todo o objetivo educacional por trás
dos painéis e mesas redondas, existiam por um único motivo: fechar negócios
nos bastidores. Nossa apresentação foi estrategicamente encaixada no
primeiro dia, por influência de Ricardo, para que pudéssemos aproveitar os
outros dias para estreitar negócios já existentes e fechar novos.
Conversávamos com um trio de investidores interessados na abertura
de capital da LBK — coisa que ainda estava longe dos nossos planos —
quando um homem de terno, moreno e bem apessoado aproximou-se do
grupo.
— Eduardo! — O homem sorria de forma imensa, atraindo todos os
olhares para si. — Lembra de mim? Da convenção de mídias sustentáveis do
ano passado!
— Bom dia, Plínio. Gustavo disse que estaria aqui.
— Conversei com ele no final de semana. O seu sócio me passou a
perna, pois até sexta-feira eu jurava que iria encontrá-lo aqui.
— Gustavo teve um imprevisto e não pôde viajar, mas enviou Ana
em seu lugar.
Apontei para ela, que fitava Plínio com os olhos vidrados. O
publicitário a cumprimentou de forma jovial, inclinando-se e beijando de leve
o rosto de Ana.
— Muito prazer, Ana. — Se voltou para mim e seu sorriso estava
ainda maior, o que fez meus olhos se estreitarem. — Já não está mais aqui
quem reclamou da ausência de Gustavo. — Se voltou para Ana e piscou para
ela. — Não sei se ele chegou a adiantá-la, mas tenho interesse em inscrever
algumas peças que vocês usaram na campanha da linha eco e também da
hipoalergênica para o próximo “Melhores da Mídia”.
— Ele disse sim. — Ana retorceu de leve sua echarpe e reconheci ali
um sinal de insegurança. — Na verdade, Gustavo me passou tudo sobre as
campanhas. Eu inclusive participei da elaboração de quase todas.
— Ana está conosco há um bom tempo — incentivei.
— Maravilha! — Plínio bateu palmas algumas vezes, sem jamais
tirar os olhos de Ana. — Eu tinha marcado com ele hoje depois do almoço,
que os painéis serão mais técnicos. Tudo bem para você?
Ana moveu a cabeça em concordância e sorriu.
Trocamos mais algumas palavras com Plínio e, de repente, a
presença daquele ricaço de sorriso fácil me incomodou.
Assim que ele saiu e me vi sozinho com Ana entendi o motivo.
— Deus do Céu! — Ana murmurou ao meu lado. — Eu tinha sonhos
eróticos com o Plínio Barros na faculdade, quando assistia suas palestras... E
agora vou apresentar peças que ajudei a compor para ele!
Por que você tem que ser tão sem filtro às vezes, Ana?
Me mantive calado, evitando assim incitar ainda mais Ana a falar
sobre seus desejos eróticos com outros homens. Percebi que ela passou o
restante da manhã me observando, parecendo desconfiada, e manteve certo
silêncio até a hora do almoço.
Comemos em um dos restaurantes da região, também na companhia
de outros participantes do Congresso, e então voltamos para o hotel.
Agora, eu teria uma reunião com um possível novo parceiro de
negócios enquanto Ana teria um “encontro” com o sorridente ricaço e fruto
dos seus desejos eróticos da juventude.
Se dependesse de mim, Gustavo era um homem sem uma das bolas
agora.
E conhecendo-o como conheço, era capaz de apostar que o filho da
mãe sabia exatamente o que estava fazendo ao marcar aquele encontro entre
Ana e Plínio.
Afinal, qual o sentido de reunir-se somente para assistir a umas
peças publicitárias quaisquer e decidir se iria ou não inscrevê-las em seu
prêmio idiota?
Mal consegui prestar atenção à reunião, imaginando Ana em um
Café perto do hotel, com um moreno de sorriso sedutor, ouvindo-a falando
sem parar com aquela voz melodiosa e envolvente e com sua echarpe rosa
neon.
Aquele era um dia injusto.
Quando a reunião finalmente acabou já passava das quatro da tarde,
e eu não sabia o que fazer.
Não sabia se iria atrás de Ana ou se ia para meu quarto. Ela já
poderia ter terminado também, e talvez estivesse no seu, dormindo e nem um
pouco preocupada comigo.
Bem diferente de mim, que saí da pequena sala de reuniões e fiquei
feito um robô vagando em círculos, meio sem rumo, pelo saguão do hotel.
Meu celular vibrou e pensei que pudesse ser ela, mas era só o
destinatário de todos os meus xingamentos dos últimos dias.
— Como foi a reunião? — Gustavo questionou com tranquilidade,
sem sequer dizer oi. O filho da mãe parecia acompanhar tudo que estava
acontecendo a milhares de quilômetros de distância.
— Foi ótima. Acho que vamos fechar vários negócios nessa semana.
— Ricardo disse que alguns empresários já entraram em contato
com ele depois da apresentação de vocês hoje cedo. Os dois arrasaram.
— Mérito da Ana, que reestruturou toda a apresentação e ficou
excelente.
— E por falar nisso, onde ela está?
— Na tal reunião com Plínio Barros. — Minha voz saiu azeda.
— Hum... — Fez-se silêncio por alguns segundos na linha antes que
Gustavo prosseguisse. — Parece que estamos irritados hoje.
— O que você acha? — despejei minha frustração da tarde nele. —
Pensa que engoli suas desculpas esfarrapadas para não vir a esse congresso?
Na verdade, você sequer me explicou quais “imprevistos” eram esses. Agora,
estou começando a desconfiar que esse maldito encontro de Ana com Plínio
Barros foi muito bem calculado por você...
— Depois, Du! — Gustavo me interrompeu. — Sem tempo para
suas reclamações. E a Ana está me chamando em outra linha. Prefiro falar
com ela do que com um chato feito você.
E desligou.
Ainda olhava para o aparelho quando escutei uma voz familiar ecoar
por todo o saguão.
Ana atravessava as portas de vidro com o celular apoiado nos
ombros, falando alto e gesticulando.
Um maldito sorriso imenso estampado no rosto.
— ... Foi sensacional, Gustavo! — ela dizia sem se importar que
todos ouvissem. Ao me ver, acenou e seguiu em minha direção, enquanto
prosseguia falando: — Sim, ele ficou super interessado nas campanhas e
disse que podemos concorrer em no mínimo duas categorias.
Permaneci mudo, observando-a, enquanto ela narrava para Gustavo
os detalhes do tal encontro e ressaltava o quanto Plínio foi gentil, e solícito
e...
Merda!
— Parece que o encontro com Plínio Barros foi positivo — mantive
a voz neutra, questionando assim que ela desligou o aparelho.
— Você não faz ideia! — Ana deu uns saltinhos no saguão do hotel
e eu acharia sua empolgação linda. Se não fosse causada por outro homem.
— Plínio Barros é tipo um guru da publicidade. Era uma lenda da faculdade!
Para uma pessoa como ele se interessar pelas campanhas de duas linhas
nossas. — Ana levantou os dedos, enfatizando o número dois. — Estamos
com muita sorte!
— Na verdade, é competência.
— Sim, sim, sim! Só de sermos indicados é um reconhecimento
imenso. Se ganharmos então...
— Seria a coroação.
— Sim. — Ana parou um pouco para me observar pela primeira vez.
— E como foi a reunião?
— Excelente, também. Acho que, no final das contas, foi um ótimo
dia para a LBK.
Ela concordou com a cabeça e continuou me observando. Seus olhos
vagaram pela minha camisa, percorrendo a extensão dos ombros, e então
subiram lentamente até meu rosto, onde capturaram os meus. A vi morder os
lábios de leve e suspirar profundamente, como se de repente não soubesse o
que dizer.
— Bom... — Ana disse depois de uma eternidade. — Estou um
pouco cansada e vou subir para meu quarto.
— Quer ir amanhã de manhã ao Jardim Botânico? — atropelei-me
com as palavras, sem dar tempo à insegurança de me barrar.
— Amanhã? — Ana pareceu surpresa com o convite.
— Sim. Acho que será um dos dias mais tediosos para você.
— É um painel sobre escala de Produção e Controle de fluxos. Achei
que fosse um dos temas que mais te interessasse.
Era, até eu ver Ana chegando sorridente depois de um encontro com
Plínio Barros.
— Meu mestrado foi sobre escala de Produção. — Dei de ombros.
— Não há nada que eles vão falar amanhã que eu já não saiba.
— Tem certeza?
— O melhor horário para visitar o Botânico é por volta das dez.
Quarta-feira é um ótimo dia. — Fiz uma pausa dramática antes de finalizar:
— A previsão é de oito graus.
O rosto de Ana quebrou-se em um sorriso iluminado, bem mais até
do que estava minutos atrás, e ela se jogou em minha direção antes que eu
pudesse prever.
— Prometo não contar ao Gustavo! — Ela fez um sinal cruzando os
dedos e levou até a ponta dos lábios. Ainda com os braços pendurados em
meu pescoço, aproximou um pouco nossos rostos e, sem qualquer aviso,
ajeitou meus óculos.
Eu poderia beijá-la agora.
Quantos centímetros? Trinta? Talvez menos.
Estávamos a uma distância ínfima um do outro, e eu gostaria muito
que os próximos segundos fossem previsíveis como as máquinas da fábrica
eram. Que eu pudesse prever com exatidão o tempo que faltava para que os
meus lábios percorressem aquela pequena distância e se encontrassem com os
dela.
Mas a vida não é como uma linha de produção, e os pequenos
acontecimentos que fazem nosso caminho não são exatos, e muito menos
previsíveis.
Eu sentia a pele macia de Ana contra a minha e tinha seus lábios sob
a mira dos meus olhos quando ela se afastou, um pouco rápido demais.
Olhei para ela sem entender e era como se estivesse de frente para
um espelho, pois ela também me fitava com confusão.
— Você vai subir agora? — Ana perguntou de repente.
— Sim.
Pense em algo melhor para responder, Eduardo!
Ela concordou com a cabeça e simplesmente seguimos em direção
aos elevadores, meio no automático, enquanto minha cabeça gritava ordens
que não eram cumpridas.
Diga algo para ela, Eduardo!
Chame-a para jantar!
Faça a merda de alguma coisa!
Chegamos aos nossos apartamentos e continuei em silêncio,
observando Ana seguir vagarosamente para sua porta.
Ainda com as mãos grudadas na maçaneta, ela me olhou por alguns
segundos e então entrou no próprio quarto.
— Quer jantar comigo hoje? — chamei por uma porta de madeira.
Tssssssiiiiii....
Era o apito da máquina soando em minha cabeça, mas no tempo
errado. Quando era para prever todas as ações e reações das gigantescas
máquinas da fábrica eu nunca errava.
Com Ana, era como se um caos se instalasse em minha cabeça e os
apitos só soassem no tempo errado, ou todos de uma vez.
Será que em algum momento eu aprenderia a agir na hora certa?
Capítulo 6

Algo de errado não está certo.


Essa era a expressão que resumia aquele dia.
Tudo deu certo e, ao mesmo tempo, era como se algo estivesse
muito errado. Nossa apresentação foi aplaudida de pé, a reunião com Plínio
Barros foi como a realização de um sonho...
Meu Deus, eu conheci Plínio Barros e apresentei campanhas que
levavam meu nome para ele!
Ele era engraçado e extremamente inteligente, conversamos muito,
mas, volta e meia, meus pensamentos se voltavam para o hotel, Eduardo, e o
estranho silêncio que nos assolou durante o almoço. Era como se uma aura
diferente nos rodeasse. Uma aura de excitação que eu nunca tinha sentido
antes, por mais que tentasse me lembrar.
Eduardo sempre foi só um... amigo, não é verdade?
Sendo sincera, ele só ganhou esse título há pouco mais de um ano,
depois que Laila começou a namorar Benício e começamos a sair todos
juntos.
Antes, ele e os demais sócios da LBK eram somente o “Quarteto
Fantástico”. Quatro sócios educados, ricos, gostosos e inalcançáveis, que eu e
minhas amigas tínhamos por hábito secar pelos corredores da empresa.
Quando começamos a sair juntos, eles pularam automaticamente
para o status de amigos e, apesar das brincadeiras, nunca olhei para nenhum
deles com real intenção. Benício era o amor de Laila; Ricardo era
comprometido até pouquíssimo tempo atrás, e Gustavo sempre foi o mais
próximo de mim, sendo meu chefe direto. Sempre nos demos muito bem, e
sempre soube que jamais passaria daquilo, até porque éramos parecidos
demais para qualquer tipo de relação.
Eduardo sempre foi, para mim, o ponto de interrogação do grupo.
E agora, eu começava a ver coisas demais, percebendo seus olhares
lascivos e silenciosos, seu sorriso de lado e sua postura interessada.
Passei o restante do dia trancada no quarto, comendo um sanduíche
pedido por delivery e remoendo todas aquelas novas sensações que ele me
despertava.
Quando acordei no dia seguinte e olhei a previsão do tempo, me
preparei para o frio. Botas, meias, calça e blusa. Tudo coberto por um
sobretudo e a echarpe.
Eduardo já me esperava no imenso refeitório do hotel. O movimento
pela manhã era intenso, com dezenas de hóspedes que participavam do
congresso e outros tantos que visitavam a cidade para aproveitar o frio.
Depois do café, pedimos um carro e seguimos para nosso passeio.
O trajeto até o imenso parque foi tranquilo, com Eduardo me
explicando sobre curiosidades da cidade e seus pontos turísticos.
Quando o motorista nos deixou na entrada do Jardim Botânico,
livrei-me de todo resquício de culpa que eu pudesse sentir por estarmos
fugindo de nossos compromissos no congresso.
O lugar era maravilhoso!
O clima estava frio, mas o Sol brilhava límpido, refletido nos
imensos gramados bem aparados. Era o dia perfeito para um passeio ao ar
livre, e seria um pecado desperdiçá-lo dentro de um auditório apinhado de
gente e gélido pelo ar condicionado.
Seguimos caminhando com lentidão, apreciando as flores, pequenas
pontes e o som dos pássaros até que, de longe, avistei a imensa cúpula
envidraçada da estufa. Eduardo viu a direção dos meus olhos e abriu um
sorriso, me puxando pela mão.
— Vem por aqui. Temos tempo até chegar lá. E quero te mostrar
todos os pontos do jardim. Você vai ver que a estufa é ainda mais bonita
quando vista do ângulo certo.
O parque estava tranquilo. Havia turistas por todo lado que seguiam
seus passeios com vagareza, de modo que não geravam aglomerações.
Passamos por uma pequena ponte de madeira ladeada por palmeiras
imensas, um diminuto bosque com árvores frondosas, e inúmeros jardins. Em
vários pontos, pequenas placas informavam aos turistas sobre a localização
de todos os pontos e curiosidades do parque.
Eduardo não precisava dessas placas. Ele parecia conhecer o lugar
muito bem, contando sobre sua história, manutenção e curiosidades.
— Aqui dentro tem um lugar chamado Jardim das Sensações. — Sua
animação era imensa em dividir tanto conhecimento. — É uma espécie de
passeio sensorial. O visitante passa por um caminho cheio de plantas e com
os olhos vendados. A intenção é apurar os sentidos como tato, olfato e
audição. Também é um projeto de inclusão, com placas informativas em
braile e guias por todo o percurso. Podemos ir lá se quiser.
Eu só concordava com a cabeça, fascinada.
— A estufa principal foi inspirada no Palácio de Cristal de Londres,
que hoje não existe mais... — ele seguia narrando.
Chegamos a um imenso conjunto de arcos, todos em ferro, com
pequenas e resistentes plantas trepadeiras esverdeando seu redor. Para além
da imensa estrutura, que mais se parecia a entrada de um imenso palácio, a
vista era de tirar o fôlego.
— Agora pode olhar, Ana — Eduardo anunciou com pompa,
apontando para o imenso jardim com canteiros de flores coloridos e
geométricos, meticulosamente bem aparados, e que faziam uma bela
composição com a imensa estufa, que se erguia ao centro.
Não sei a magia que Eduardo usou, mas aquele parecia o melhor
lugar para se ver a estufa naquele horário. Era pouco menos de dez da manhã
e o Sol batia diretamente nas imensas cúpulas de vidro. Não havia nuvens ou
qualquer outro empecilho que impedisse o local de reluzir, soberano,
ofuscando nossa visão.
— Minha nossa... — Minha voz falhou de fascínio. — É lindo...
— Quer tirar uma foto aqui, embaixo dos arcos?
— Claro! — Dei um pulo empolgada e comecei a fazer poses.
Acho que tirei umas cem fotos.
Corrigindo: Eduardo, pacientemente, tirou umas cem fotos minhas.
Nos arcos, nos canteiros floridos, nas pequenas fontes que levavam até a
estufa...
— É incrível o cuidado que eles têm com esse lugar — murmurei
admirada. — A grama muito bem aparada, o jardim milimetricamente
pensado...
— É inspirado nos jardins franceses, que também têm essa estética
geométrica e regular.
— Com essas roupas, nesse clima, me sinto quase na França mesmo!
Eduardo sorriu e ficou me observando.
— Vamos entrar na estufa? — questionei.
— Claro. — E começou a seguir em direção ao ponto alto do
passeio, onde inúmeras pessoas se misturavam.
— Espera! — chamei. — Vamos tirar só mais uma foto? — Vi um
banco de madeira bem à nossa frente e subi nele, sem pudor. — Uma aqui.
Vê se consegue pegar essas flores aqui de trás.
Ele simplesmente anuiu e abriu um sorriso. Levou o celular à frente
do rosto, mas algo o impediu de tirar a foto.
Com lentidão, ele abaixou o aparelho e ficou me olhando. Se
aproximou alguns passos e então desviou os olhos de mim, fitando com
emoção toda a movimentação ao redor.
— O que foi? — perguntei, ainda de pé no banco.
— De repente eu me lembrei... Sabia que meu pai pediu a minha
mãe em casamento aqui?
— Sério? Nossa... isso parece romântico.
— É... — Ele deu de ombros. — Bom, eu não existia ainda para
saber como foi, mas lembro que os dois costumavam me trazer aqui quando
eu era pequeno e contavam essa história, mas só me lembrei disso agora.
— Sente muita falta deles?
— Sinto. — Eduardo me fitou por alguns segundos e havia
serenidade em seus olhos. De cima do banco, ficava alguns centímetros mais
alta que ele. — Eram bons pais. Muito apaixonados um pelo outro. Às vezes
me pergunto se existe amor feito o deles.
— Se existiu o deles, por que não haveria outros?
— Tem razão... — Um pequeno sorriso brotou do seu rosto, fazendo
seus óculos caírem um pouco no nariz. Involuntariamente, levei minha mão e
ajeitei sua armação, resvalando de leve os dedos na pele.
Imediatamente, Eduardo cravou os olhos em meu rosto e focou em
meus lábios. Parecia hipnotizado.
E a dúvida que me corroía nos últimos dias saltou da minha cabeça
antes que eu pudesse pensar:
— Uma pergunta aleatória: você, por acaso, já quis me beijar?
Ele não respondeu. Suspirou fundo, fazendo um movimento com os
ombros.
— Você já beijou alguma Mônica?
Que merda eu acabei de dizer?
— O que? — Ele me olhou confuso.
— Você me beijaria se eu me chamasse Mônica?
— Como assim, Ana?
— Da música. Eduardo e Mônica... — E comecei a cantarolar. —
“Eram nada parecidos. Era ela de leão e ele tinha dezesseis...”
Alguém entope a minha boca com essa echarpe, por favor?
— Eu não tenho dezesseis. — Eduardo deu mais um passo em minha
direção, de repente relaxando um pouco as feições. Meu descontrole parecia
fazer bem a ele.
— E eu não sou leonina. Não fiz Medicina, e nem falo alemão, mas
não somos nada parecidos.
Ele fez um sinal de desimportância, movendo os ombros, e
aproximou-se mais um pouco. Agora, estávamos bem perto, e o rosto de
Eduardo estava bem na altura do meu colo.
— Você não respondeu — insisti.
— Beijaria. — Ele não parava de olhar para meus lábios, e senti
minha garganta secar. Talvez nem precisasse de resposta. — Não porque
você se chamaria Mônica. Na verdade, eu te beijaria qualquer que fosse seu
nome. Ainda que você se chamasse...
— Filustrina? Belarmina? Gertrudes?
Cala a boca, Ana!
Mas Eduardo simplesmente gargalhou, concordando com a cabeça.
— Qualquer que fosse o nome — sussurrou tão baixo, que tive que
me inclinar para ouvi-lo.
Um vento frio soprou nos meus cabelos, jogando-os no meu rosto, e
Eduardo pacientemente os retirou, fio por fio, sem nunca tirar os olhos de
mim. Sua outra mão apossou-se de um de meus braços e ele aproximou-se
mais, grudando nossos corpos.
— Já percebeu como sempre nos beijamos em desnível? — De onde
eu tirei essa loucura? — Naquela brincadeira de verdade ou desafio eu
estava de joelhos, bem abaixo de você. Hoje, é o contrário...
Alguém cala a minha boca!
E Eduardo calou, colando seus lábios nos meus.
Ele era alto, e mesmo de pé em cima do banco nossa diferença de
tamanho era pequena. Ainda assim, seus dedos grandes percorreram meu
pescoço e me puxaram de leve pela nuca, enquanto a outra mão agarrava-se
em minha cintura.
Meu coração bateu forte, violento, ruidoso e, pela primeira vez,
minha mente não pensou em nada para dizer.
Se apagou.
Silenciou-se.
E tudo que meu interior ecoava era a batida descompassada do peito,
como o som frenético de uma máquina.
Os lábios de Eduardo eram doces, quase cautelosos, mas suas mãos
não tinham o mesmo pudor. Me seguravam com força, puxando meu rosto e
cravando-se em minha pele.
Sem pensar muito em onde estávamos ou quem éramos, levei
minhas mãos até seus cabelos, puxando-os de leve para trás e forçando-o a
intensificar o beijo. Ele entreabriu ainda mais os lábios, passando a língua
com rapidez por cada extensão da minha boca. Foi uma mudança sutil, mas
que me fez gemer.
E então, Eduardo transformou-se.
Era como se ele esperasse por um sinal, uma anuência, uma
aprovação para que pudesse avançar.
Ao ouvir meu gemido, ele apertou minha cintura e me puxou para o
chão. Levou as mãos ao meu rosto e voltou a me beijar, mas dessa vez com
gula. Sem pudor ou cautela.
Era urgência.
Sua língua me sugava e umedecia o rosto, seus dedos marcavam
minha pele, assim como todo o restante do corpo.
E tudo o que eu conseguia ouvir, dentro e fora de mim, eram as
batidas dos nossos peitos, ritmadas. Em uma disparada contínua e combinada.
Na sintonia perfeita.
Ainda sob o ritmo do peito, minhas mãos se cruzaram nas suas
costas. Senti seu calor em meus braços e quis, com todas as minhas forças,
que o resto do mundo se apagasse, restando somente nós dois.
Foi tão intenso e... inesperado que, quando enfim ele soltou meus
lábios, eu não sabia o que dizer. Percebi que havia fechado os olhos e assim
permaneci, sentindo seus polegares percorrendo meu rosto, retirando mais
alguns fios de cabelo que dançavam com o vento.
— Gosto da sua franja. — Sua voz era um sussurro rouco.
E eu o beijei de novo.
E beijaria de novo, de novo e de novo, porque eu estava beijando um
dos integrantes do Quarteto Fantástico, porra!
E a realidade era muito melhor do que qualquer fantasia que eu
tivesse criado.
Nos beijamos ali, ao lado daquele pequeno banco de madeira, com
desconhecidos passando e desviando os olhos, fugidos de um congresso do
nosso trabalho.
— Você ainda não viu a estufa... — Eduardo informou quando nos
soltamos, talvez depois do quinto beijo. Já tinha até perdido as contas.
— E quero ver. — Me debrucei sobre ele, fazendo-o me erguer no
ar. Ele riu e me carregou alguns metros, antes de girar meu corpo e me
colocar no chão. Aninhei-me debaixo dos seus ombros e me deixei levar.
Aquele banco foi um portal para outra dimensão. Ou todo o parque
tenha sido esse portal.
Terminamos o passeio como um casal de... namorados?
Era impossível me desgrudar de Eduardo. A boca dele era deliciosa
e queria ela cada vez mais. Seu corpo era quente e protetor, e me questionei
várias vezes porque aquilo demorou tanto para acontecer.
Foi natural a forma como parecemos nos encaixar. Como, depois do
beijo, não conseguimos mais nos afastar.
Subimos a pequena escadaria da estufa abraçados, e lá de cima ele
pediu para me fotografar. Quando me posicionei e entreguei meu celular ele
recusou, retirando pela primeira vez o dele do bolso e me fitando.
— Essa foto é minha — sussurrou antes de fotografar. Um sorriso
pequeno surgindo.
Entramos na estufa, apreciando cada detalhe sem pressa. Ele me
mostrou as variedades de plantas e explicou sobre todos os microambientes lá
dentro criados.
Apreciei as palmeiras e bromélias, passamos pelos caminhos
serpenteados de arbustos e orquídeas. Diversos tons de verde misturados ao
branco das estruturas de ferro.
Não sei se por fruto do nosso beijo, mas eu via na estufa luzes
difusas do Sol criando pequenos arco-íris no ar. O lugar parecia mágico, e eu
queria prolongar ao máximo aquela visita. Os minutos ao seu lado.
Talvez adivinhando meus pensamentos, ele fez o convite:
— Dentro do parque tem um café onde podemos comer.
Concordei com a cabeça e seguimos para a área externa. O café
ficava bem ao lado da estufa, em uma construção circular que a rodeava em
um semicírculo.
— É uma área nova... — ele murmurou quando entramos,
apreciando as imensas janelas envidraçadas, de onde se podia ver os jardins e
a estufa. — Ainda não conhecia.
— É tudo lindo.
Nos sentamos e continuamos conversando sobre o Botânico. Sobre
as plantas, a construção e sua história. Éramos diferentes, mas nisso nos
completávamos. Eu gostava de perguntar e ele adorava responder.
Eduardo levantou-se e fez o pedido direto no balcão, voltando a se
sentar na pequena mesa.
— Aquilo que aconteceu lá fora... — ele começou a dizer, mas eu o
atropelei.
— Foi incrível.
— Eu nunca quis te pressionar, Ana, mas o que aconteceu naquele
banco, para mim, foi mais que incrível. Foi...
O que ele ia dizer? O que ele ia dizer? Eu precisava ouvir o que ele
ia dizer!
— Fico sem jeito quando você fica calada assim... — Ele me olhou,
encolhendo um pouco os ombros quando viu que era analisado.
Uma atendente nos interrompeu, trazendo duas xícaras de café e um
pequeno bolo com cheiro delicioso e envolto em folhas de milho.
O cheiro daquilo me era tão familiar...
— Dois cafés e o nosso tradicional bolo de pamonha — a mulher
anunciou sorrindo e afastou-se, perdendo assim a cara que fiz.
— Não brinca! — exclamei um pouco alto demais, atraindo a
atenção de outros clientes.
Eduardo abriu um sorriso imenso, e tive certeza que aquilo não era
coincidência.
— Não é a pamonha que você esperava. É um bolo doce. Mas
imaginei que fosse gostar.
Olhei para ele e, pela primeira vez, a ficha caiu.
Esse homem encantador realmente me beijou?
Porque eu amo pamonha. Ele sabe. E teve a delicadeza de pedir algo
que remetesse a isso.
Senti meu peito aquecer-se com seus olhos atentos, observando
minhas reações, e mais uma vez não soube o que dizer.
Conversamos sobre a comida, o lugar e logo a manhã foi-se embora.
Era para ser só uma escapada rápida do congresso, mas estendemos o passeio
por mais alguns pontos de Curitiba e um restaurante. Almoçamos e voltamos
para o hotel. A ideia era que cada um fosse para seu quarto, descansássemos
e depois voltaríamos aos compromissos da tarde.
A ideia era essa.
Já no corredor, portas coladas uma na outra, eu mais uma vez tomei
a iniciativa. Puxei o rosto de Eduardo para mais um beijo, que se transformou
em um amasso contra a parede que dividia nossas suítes.
— Você quer entrar? — ele chamou, ainda segurando minha cintura.
— Quero.
Eduardo abriu a porta do seu quarto e eu entrei. Retirei a echarpe e o
sobretudo, sentindo todo o calor que ele emanava.
Feito um voyeur, ele observou meus movimentos, pegou o pedaço de
tecido rosa jogado no canto e o cheirou. Aproximando-se, repetiu o ato ao
cheirar meu pescoço, dessa vez de forma mais profunda, me fazendo gemer.
Totalmente afetada pela proximidade dele, desabotoei alguns botões
da minha blusa, revelando mais da minha pele. Ele entendeu o recado e
desceu mais um pouco o rosto, afundando-o em meu colo. Senti seus lábios
me buscando e suas mãos me desbravando.
Eduardo desceu os dedos até o cós da minha calça, puxando o tecido
da camisa.
— Posso? — A pergunta, feita com uma educação ímpar, me encheu
de excitação.
— Deve.
Ele sorriu de lado, levantando o tecido da blusa e retirando-a
devagar.
Seus olhos se paralisaram alguns segundos no meu corpo, como se o
apreciasse. E então tomei coragem e levei a mão até o fecho do sutiã,
fazendo-o soltar-se do meu corpo com um salto único.
Vi os olhos de Eduardo, sempre de um castanho claro, escurecerem
para um tom quase negro. Ele me fitou mais uma vez, fazendo o pedido
silencioso. Simplesmente concordei com a cabeça, retirando seus óculos e
inclinando meu tronco em sua direção.
Ele sugou um mamilo bem devagar, e depois o outro, como se me
provasse. Sem pressa alguma.
E se Eduardo beijava bem, posso dizer que também sabia sugar e
chupar.
Joguei meu corpo para trás, me deixando levar por seus lábios.
Ele me puxou para a cama, sempre me beijando. Me sugando.
Provocando.
Fechei os olhos e me permiti sentir seus toques. Eduardo era
carinhoso, lento. Parecia me apreciar com cuidado, como se temesse que um
movimento mais bruto fizesse aquele momento evaporar-se. E toda aquela
cautela me desarmou. Amoleceu minhas pernas e aqueceu meu coração.
Deixei que ele tirasse minha calça, as botas... me despisse inteira.
Me beijasse, me lambesse... Sempre devagar, reverenciando cada gesto.
Traçando uma linha de beijos em meu quadril, ele desceu
suavemente, e a cada toque em minha pele, murmurava palavras em voz
baixa:
— Linda... Você é linda, Ana... Quente... Doce... Tão gentil... Eu...
Eu... Quero te chupar...
Falante para os padrões de Eduardo, não é verdade?
Retirou minha calcinha, brincou com meu corpo, e então me olhou
uma última vez, com profundidade.
Era o último pedido silencioso. A última barreira que ele parecia ter
medo de romper.
— Por favor. — Mais uma vez eu me adiantei e pedi. — Me faz
gozar na sua boca, Eduardo.
Ah, se eu soubesse o que viria depois... Acho que não teria sido tão
direta.
Eduardo tinha um dom, e definitivamente esse dom estava em sua
boca. Talvez fosse algo relacionado ao fato de falar pouco. Ele guardava
energia muscular para o que realmente importava...
Sua boca começou por explorar meu corpo, descendo vagarosamente
pelo ventre e me causando arrepios por onde passava. O calor que emanava
de Eduardo era bom, aconchegante, e seu início lento deixou tudo mais
natural.
Foi natural a forma como eu levei as mãos até seus cabelos
castanhos, guiando-o até o meio das minhas pernas.
Foi natural o jeito com que ele me olhou, parecendo querer gravar
aquele momento, segundos antes de beijar a pele entre minhas coxas e então
avançar com sua língua, parecendo ter esperado a vida por aquilo.
E foi natural a maneira como tudo intensificou-se de repente, assim
como aquele beijo trocado no Jardim Botânico.
Grudei meu corpo no colchão, sentindo-o me sugar cada vez mais
intenso e voraz. Sua língua invadia meu desejo e roubava de mim, aos
poucos, toda a sanidade. Pensar ou dizer qualquer coisa era difícil.
Raríssimos foram os homens que me fizeram gozar com sexo oral.
Eles eram sempre um extremo decepcionante. Ou eram contidos demais,
como se estivessem com tédio ou nojo de colocar a boca ali, ou eram afoitos
ao extremo, o que causava mais incômodo do que prazer.
Por vezes, achei que o problema estava em mim, mas Eduardo me
mostrou que não.
Sua língua não era áspera, mas era como se pudesse me cortar. Me
estilhaçar. Dilacerar. E desejei morrer naquela cama, porque morrer ali seria
glorioso. O início cauteloso me fez relaxar, e a intensidade do fim me tomou
de assalto.
Gozei, como não acontecia há mais de dois anos, e as estrelas que vi
me cegaram, como a estufa reluzente do Jardim Botânico.
Minha respiração era forte, ruidosa, e me sentia paralisada, sentindo
os lábios de Eduardo, agora úmidos de prazer, subindo por minha pele.
Quando chegou em meu pescoço, ele me cheirou a pele e, com as forças que
me restavam, comecei a despi-lo.
Primeiro a camisa, revelando aquele peito imenso e largo e que me
fez ficar hipnotizada em nossa primeira noite naquele hotel. Depois, suas
calças. Seus sapatos... Sua cueca...
WOOWW! Você ganhou na dupla sena, Ana!
Primeiro, o melhor sexo oral da sua vida. Agora, o maior pacote que
a sua alfândega já teve o prazer de analisar.
O MAIOR.
— Escondendo o jogo, Eduardo? — Me atrevi a pegar o seu pau
duro, apertando-o e provocando-o. Era assustadoramente imenso.
Ele corou um pouco, parecendo constrangido.
Eu não vou suportar esse homem com vergonha na minha frente!
Pulei nele, agarrando seu membro e beijando sua boca, que agora
tinha meu sabor.
— Ana, eu... — ele começou a dizer sem jeito.
— Você acabou de me chupar! Estava com o rosto enfiado no meio
das minhas pernas. Estamos os dois pelados e eu com essa... essa maravilha
da natureza nas mãos. Passamos da fase da vergonha, não acha?
— Não é isso. É que não tenho camisinhas aqui.
Olhei para ele por alguns segundos, até que tomei a decisão.
— Tudo bem. Também não trouxe nenhuma na mala. — Voltei a
apertar seu membro e sussurrei em seus ouvidos. — Mas agora é a minha
vez.
Capítulo 7

Ana era muito mais do que sempre sonhei. Mais do que desejei e
mais do que imaginei.
Ana era real, com seu jeito puro e falante, seu cheiro quente e seu
sabor maravilhoso.
Ana, com sua boca extremamente deliciosa, seus gemidos baixos,
suas curvas perfeitas e sua pele aveludada.
Ela brincava com os dedos, espalhando a secreção que saía da ponta
do meu pau. Apertei os dentes, contendo o gemido, quando ela se inclinou na
cama, ficando de quatro, começando a me sugar.
Perfeita...
Sua língua passava por toda a minha extensão lubrificando tudo com
destreza, me chupando e apertando a base com as mãos. Me ajeitei na cama,
deixando-a mais à vontade, e ela me olhou de viés, os olhos brilhando
provocantes. Cheios de tesão.
Ela usava uma das mãos para me apertar, enquanto com a outra
acariciava minhas pernas, talvez sem sequer perceber.
Só que eu estava atento a cada movimento dela.
À forma como a sua franja caía no rosto, tampando os olhos feito
cortina.
Em seus lábios de um vermelho vivo e natural, que me fascinaram
no Jardim Botânico, finalmente tomando coragem para beijá-la, e agora me
engoliam por inteiro. Famintos, habilidosos. Sedentos.
Ela passou a língua, me arranhou com a ponta dos dentes, e eu
guardaria aquela cena para o resto da vida.
— Você está me excitando só de me olhar assim... — ela brincou
depois de um tempo, sem nunca deixar de me acariciar nas pernas.
— Você é linda, Ana. E está mais linda ainda agora.
Ela sorriu meio sem jeito e voltou a me chupar. Movi meus quadris,
estabelecendo um ritmo para seus movimentos. Sentindo sua garganta se
apertar em mim.
Levei uma mão até seus seios e os acariciei. Eram volumosos, e
enchiam minhas mãos como se fossem o meu número. Percorri sua pele com
os dedos e voltei a acariciar seu clitóris, úmido. Ela arfou contra meu
membro e se retorceu um pouco.
— Quero fazer você gozar primeiro — ela pediu, arqueando o corpo
e tentando fugir do meu contato.
— Só vou dentro de você.
Ela ergueu de leve uma das sobrancelhas e me olhou.
— Isso é um desafio.
— É um fato.
Ana estreitou os olhos e, como se desafiada, aumentou ainda mais o
ritmo da boca, estralando a língua e me engolindo inteiro, quase se
engasgando de tanta gula.
Desafio aceito, minha mão que acariciava seu clitóris aumentou o
ritmo, até vê-la perder o controle de novo, dessa vez de quatro, retorcendo-se
feito bicho, e fazendo seus lábios tremerem enquanto me lambia.
— Agora vem cá. — Puxei-a para meu colo, acariciando seus
cabelos.
Eu não tinha pressa em me entregar ao prazer. Queria conhecer mais
de Ana. Ver seu corpo nu se retorcer. Sua língua me provocar.
Aquilo era só o início.
Ela suspirou longamente e então sorriu, antes de sussurrar:
— Ainda não desisti.
— Eu sei.
— Posso pedir uma camisinha no delivery da farmácia.
— Calma, Ana. Temos muito tempo. — Girei meu corpo e fiquei de
frente para ela. — Preciso saber o que você sentiu.
— O que eu senti? — Ana me fitou confusa. — Nunca me
perguntaram o que eu senti.
— É uma pergunta aleatória. — Dei de ombros. — Também tenho
as minhas.
— Você está brincando?! — Ela ergueu um pouco a voz. — Acabei
de quase transar com um dos integrantes do Quarteto Fantástico!
— Integrantes do que? — O que ela estava dizendo?
— Nada! — Ana tampou minha boca com um dos dedos. — Só
posso dizer que foi a melhor de todos os tempos. E, minha nossa senhora,
você nem colocou essa coisa enorme em mim!
Era impossível não rir com Ana ao lado.
— Penetração não é tudo, Ana.
— Acabei de ver que não é mesmo... Há mais de dois anos não... não
me sentia assim.
— Dois anos?
— Sim. Os homens não costumam gostar de mulheres que falam
demais. Então, não fui a pessoa mais namoradeira. Conheci poucos homens, e
a grande maioria nunca me fez chegar até lá só com... — Ana passou os
dedos por meus lábios e então me beijou.
Como sua boca era boa. Com o meu sabor, misturado ao seu sabor.
Nos beijamos com calma, nos acariciando, e a verdade é que durante todo
aquele tempo eu seguia duro por aquela mulher.
Ana, percebendo isso, começou a rir e chamou:
— Vamos para o chuveiro. Não aguento ver essa indecência que
humilha todos os meus antigos parceiros olhando para mim com essa cara
pidona.
Gargalhei e deixei que ela me levasse.
Uma vez lá dentro, com a água escorrendo em nossos corpos, ela
ajoelhou-se e recomeçou a me chupar. Ana lambia com vontade, puxando
meu corpo em sua direção. Quando julguei não mais conseguir suportar suas
carícias, puxei-a para cima.
Levantei seu corpo até quase a altura do meu tórax para que pudesse
chupá-la e ela se apoiou na parede do banheiro, em busca de estabilidade.
Suas mãos encontraram a chave do registro de água e Ana apoiou-se na peça,
forçando-a para baixo.
Foi o suficiente para a peça se abrir em um estralo alto, rodando nas
mãos de Ana e jorrando água no encaixe com o azulejo.
— Ahhh... O que foi que eu fiz?! — ela gritou assustada enquanto
era colocada no chão.
— Calma. Você só abriu um pouco o registro. — Fechei a peça ao
máximo, mas ela parecia frouxa no encaixe.
— Continua vazando — ela apontou para o pequeno risco de água
que continuava a escorrer pelos azulejos.
— Tem nada não. — Dei mais uma volta na peça e me virei para ela.
— Daqui a pouco deve parar. Provavelmente não mexem aqui há séculos.
— É. — Ana deu uma risadinha sem graça. — Acho que esse foi o
sinal divino de que devemos parar. Logo começam os painéis da tarde e,
querendo ou não, estou aqui representando o Gustavo.
Concordei com a cabeça e dei um beijo em sua testa. Ana sorriu e se
inclinou, oferecendo os lábios. Peguei um sabonete e esfreguei em seus
ombros, ajudando-a a tomar banho.
Não sei o que seria de nós depois daquele quarto. Eu sempre me vi
atraído por Ana, mas julgava ser uma paixonite boba. Algo platônico.
Só que a grande verdade é que nós dois nos encaixávamos. No
palco, diante de uma plateia imensa, e também na solidão da cama.
Incerto do que viria depois daquele quarto, daquele congresso ou
daquela viagem, eu só tinha uma certeza no momento: o que tive de Ana era
especial.
Ela despertou em mim algo que parecia dormente há anos.
Guardado, sem que eu mesmo soubesse o motivo, e que ela facilmente
acessava, sem explicação alguma.
Porque ela era o fogo que queimava todo o gelo.
Voltamos para o quarto e ela se vestiu. No celular, vi algumas
mensagens não lidas de Ricardo e Gustavo, e percebi que já passava da hora
do início dos painéis da tarde.
Descemos o elevador e nos afastamos um pouco daquele clima
idílico da manhã. Fomos tragados por conversas na entrada do salão do
congresso, elogios à apresentação do dia anterior e convites para reuniões no
dia seguinte.
Acabamos nos separando e percebi que Ana entreteu-se com um dos
painéis da tarde, sobre marketing em redes sociais.
Já era noite quando enfim voltamos ao hotel. Sem que ela
percebesse, saí em um dos intervalos e comprei camisinhas em uma farmácia
ali perto.
Ela pegou minhas mãos enquanto subíamos ao apartamento,
enlaçando nossos dedos, e me beijou no queixo enquanto eu abria a porta de
madeira, como se o fizesse todos os dias.
Fui eu quem dei o primeiro passo para o interior do quarto, sentindo
imediatamente meus sapatos se encharcarem sob um ruidoso splash...
— Meu Deus, Du! — Ana levou as mãos à boca, entrando no quarto
na ponta dos pés. — O que aconteceu aqui? Por acaso choveu só dentro do
seu quarto?
E então eu me lembrei do registro do chuveiro.
Merda...
Corri para o banheiro e a pequena válvula, que tenho absoluta
certeza de que deixei fechada, havia sumido da parede. Em seu lugar, a água
esguichava do cano feito uma cachoeira sem controle.
Fui encontrar a válvula caída do outro lado do banheiro, arrancada
da parede com a violenta pressão.
Tentei recolocar a peça, mas a força da água me impedia. Quando
voltei para o quarto, minhas roupas estavam ensopadas. Deparei-me com Ana
colocando todas as malas e pertences em cima da cama. A maioria delas
estava pingando de tão molhadas.
— Vou chamar o gerente — anunciei, pegando no aparelho
telefônico.
Ficamos por quase duas horas esperando que o impasse do meu
quarto se resolvesse. Minhas coisas todas acumuladas em um canto do
saguão de entrada, formando uma poça de água ao redor.
Sugeri a Ana que fosse para seu quarto, mas ela recusou-se,
permanecendo ao meu lado e tentando me distrair com suas perguntas
aleatórias.
“Qual sua banda favorita?”
“O que gosta de comer quando está triste?”
“Suas notas eram sempre altas na escola?”
“Se precisasse escolher uma única cor para usar pelo resto da vida,
que cor seria?”
“Já conheceu a neve?”
— Você tem a fala apressada — pontuei em um momento que ela
disparou a falar sobre um casal que entrou com cara de poucos amigos, como
se tivessem brigado. — Fico me perguntando quantas palavras você consegue
dizer em um minuto.
Ela riu e me fitou.
— Essa é uma pergunta aleatória. Sou eu quem devo fazer. Quantas
palavras uma pessoa pode dizer em um minuto?
Sorri de volta.
— Bom. — Comecei a raciocinar. — Quanto menor a palavra, mais
vezes ela pode ser repetida em um minuto. Uma palavra de duas a três
sílabas, como o seu nome, pode ser repetida umas... confesso que não sei.
Mas com certeza é bem mais de cem, se pensarmos que podem ser ditas em
menos de um segundo.
— Ana, Ana, Ana... — começou a repetir, e me segurei para não
gargalhar no saguão. — Quantas Anas cabem em um minuto? — questionou-
se.
Quantas Anas?
Pouco depois, o gerente aproximou-se de nós. Pela sua cara de
poucos amigos, as notícias não eram nada boas.
— Não sabemos o que aconteceu, senhor, mas o registro quebrou de
repente, e agora não conseguimos consertar. — Olhei de viés para Ana e
percebi que ela sorria safada, embora houvesse um pequeno rubor em suas
faces. — O encanador disse que vai ser preciso quebrar a parede.
Infelizmente vamos ter que interditar o quarto.
— Tudo bem. — Levantei-me disposto a dar um fim logo naquilo.
— Não me importo de mudar de quarto.
— O problema, senhor... Eduardo, não é? — Concordei e ele
continuou: — O problema é que não temos quartos disponíveis. O hotel está
cheio por conta do congresso e também da onda de frio.
— Podemos dividir o quarto — Ana sussurrou em meus ouvidos.
— O quarto da senhora é o do lado, não é? — O gerente se voltou
para Ana e, pelo olhar que lançou a ela, previ que estávamos em maus
lençóis. — O encanador pediu que olhasse seu quarto também. A encanação
dos dois banheiros é conjunta, e acreditamos que também seja preciso
interditar seu quarto para finalizar o reparo.
— Então estamos os dois sem quarto? — Me voltei para o gerente.
— Sinto muito, senhor. Já entrei em contato com hotéis da região,
buscando uma vaga para os dois, mas está tudo cheio... — Ele me olhava
com certo pânico. — O hotel faz questão de ressarci-los pelos prejuízos, e
prometo que nas próximas horas encontraremos uma hospedagem, sem custo
algum.
Ana me olhava com os olhos arregalados, sem nada dizer.
Nós nem podíamos reclamar do hotel. A culpa daquela situação era
essencialmente nossa e, de repente, me vi com pena do pobre gerente, que
falava apressado com seus funcionários, enquanto fazia ligações para todos
os hotéis da cidade, sem sucesso.
Suspirei profundamente e me levantei do pequeno sofá do saguão,
indo em direção ao balcão.
Às vezes não dá para fugir do destino, e parece que aquele era o
meu.
— Não precisa se preocupar com nós dois — anunciei com voz
resignada. — Tenho familiares em Curitiba e vou para a casa deles. Ela vai
comigo.
O homem suspirou e sorriu com imenso alívio.
— Vou chamar um carro para levá-los. É por nossa conta. E se
precisarem de um carro para o congresso amanhã cedo, eu envio.
— Agradeço.
Ana subiu para apanhar suas coisas no quarto e eu fiquei no saguão
do hotel avisando sobre a pequena mudança. Avisei aos meus sócios e depois
à minha avó, que conseguiu esconder a surpresa de saber que o neto estava
em sua cidade natal e não havia comunicado a ninguém. Ela simplesmente
concordou em silêncio, educada como sempre. Escondendo suas palavras e
omitindo suas verdades.
No carro, a caminho da mansão dos Venturini, mantive-me calado,
rememorando a última vez em que fiz aquele trajeto. Coisa de três anos ou
mais, depois de pedidos incessantes de dona Rose, minha avó, de que eu
visitasse meu avô, recém-operado de uma catarata.
Passei o final de semana inteiro ouvindo reclamações sobre minhas
escolhas profissionais e como eu afundava o nome dos Venturini no
esquecimento e anonimato.
Suspirei fundo quando entramos na imensa rua que levava ao
casarão de esquina branco.
Ladeado por sinuosos pinheiros e um imenso pé de araucária
ostensivamente vigilante em uma esquina, o terreno era cercado por pilastras
em estilo grego, uma das extravagâncias do velho José Carlos Venturini.
No suntuoso portão de entrada, onde um segurança já nos aguardava,
uma imensa letra V deixava claro a quem pertencia aquele terreno. Uma
espécie de brasão para o sobrenome que comandou a política por anos no
Paraná.
E agora vivia seu ostracismo com o neto único desgarrado.
Descemos do carro em silêncio até que Ana o rompesse, em uma
exclamação baixa, percorrendo todo o terreno com os olhos:
— Uau!!! É impressão minha ou essa casa ocupa todo o quarteirão?
— Sim. — Cumprimentei o segurança e ele nos indicou a imensa
entrada, com sua escadaria em estilo romano. Mais ostensivo, impossível.
— E tem até a marca do seu sobrenome... — Ela olhava a tudo
encantada. — Por que se hospedou no hotel, se poderia vir para cá?
Eu teria preferido um motel na saída da cidade àquele lugar...
Entramos no imenso salão que levava à sala íntima. Não havia
ninguém para nos receber, então tomei, por conta própria, o rumo até a sala
de estar, bem mais pequena, e que ficava contígua à cozinha. Ali era o
refúgio de minha avó e, se alguém estivesse em casa, estaria lá.
Encontrei-a sentada no velho sofá vermelho de fios dourados,
assistindo ao jornal da noite e descansando as pernas em um pequeno banco
almofadado.
— Oi, vó.
Ela sorriu de maneira aberta para mim.
— Oi, Du! — Me chamou com uma das mãos. — Não fui te receber
na porta porque minhas pernas estão cansadas. Vem cá cumprimentar sua
avó.
Aproximei-me e dei um beijo em seu rosto. Ela me olhou alguns
segundos e então se virou para Ana.
— Essa aqui é Ana. Trabalhamos juntos na fábrica e ela também está
participando do congresso.
— Muito prazer, dona Rose. — Ana tinha perguntado o nome dos
meus avós no caminho.
Minha avó aceitou o cumprimento, mas percebi a forma como
analisou as botas marrons de Ana, suas meias de fios brilhosos, a blusa
folgada e a calça jeans por baixo do sobretudo absolutamente desnecessário,
coloridos por sua echarpe exageradamente rosa.
Rose Venturini era uma mulher singela, de tons pastéis e que
costumava dizer que as mulheres não podem se sobressair aos homens nas
fotos.
Ana era como um escrito em neon que atraía todas as atenções para
si, enquanto minha avó preferia cumprir o papel de holofote, sempre
iluminando os demais.
— Pedi que a empregada servisse o jantar quando vocês chegassem.
Seu avô está no quarto.
— Estamos morrendo de fome! — Ana retorceu sua echarpe,
cumprimentando também a empregada, que eu não conhecia, e sentando-se
em um dos sofás da sala. — Por sorte Eduardo tem parentes aqui, ou agora
estaríamos desabrigados, com fome, e ele com todas as roupas molhadas —
finalizou, apontando para mim.
— Quando chegaram na cidade? — minha avó interrompeu o
falatório de Ana com uma pergunta.
— Segunda-feira. — Ana não se abalou nenhum pouco.
— E nem ia visitar os seus avós? — Ela se voltou para mim. Aquela
voz suave e doce que nunca dizia o que pensava, mas que deixava tudo
transparente em seus olhos.
— É uma viagem a trabalho. — Sentei-me em uma das poltronas,
esperando o momento em que o soberano José Carlos Venturini entraria na
pequena sala, finalmente autorizando todos a sentarem-se na mesa.
— Já mandei arrumar o seu antigo quarto, e também o quarto de
hóspedes para a sua amiga.
Ana sorriu em agradecimento, esperando a ação de algum de nós.
Passaram-se vários minutos até que a empregada entrasse novamente na sala
e informasse que “o patrão” já estava sentado.
Em silêncio, atravessamos o pequeno corredor que levava à sala de
jantar íntima. Havia uma outra, imensa, para convidados e cafés com a
imprensa, enquanto aquela era para a “família”, com uma mesa de mármore
curta e um aparador cheio de cristais e pratas nunca usados.
— Boa noite, vô.
— Só assim para você visitar seus avós, Eduardo. — A voz alta e
sonora do homem acostumado aos discursos invadiu o ambiente. — Não se
fazem mais hotéis como antigamente. Um vazamento no banheiro? No meu
tempo, uma coisa dessas jamais teria acontecido, e muito menos os hóspedes
seriam obrigados e encontrar uma casa para se abrigar.
Olhei de viés para Ana e percebi que ela sorria. Me permiti sorrir
também pela primeira vez desde que havíamos chegado.
— Os hotéis da região estavam todos lotados por conta do congresso
e, somado a isso, muitas pessoas vieram aproveitar o frio na cidade.
— Mesmo assim, as coisas hoje em dia estão muito erradas. Foi-se a
época em que respeitavam um cliente — meu avô bradou, servindo-se de
uma salada e sem fazer qualquer gesto de educação para os demais.
Os galanteios, gestos finos e falar suave ele guardava para a
imprensa, seus colegas partidários e quem mais tivesse para agradar.
Em silêncio, começamos o jantar.
Até que Ana, talvez no limite do suportável para ela, rompeu com o
clima visivelmente tenso.
— Já conhecem Goiânia?
Minha avó negou com a cabeça algumas vezes e meu avô respondeu,
ainda fitando o prato:
— Estive lá algumas vezes em viagens partidárias e de campanha.
Também de passagem para Brasília.
— Devem estar acostumados com o clima mais ameno daqui. Lá é
muito quente em setembro, outubro... Oito graus como fez hoje cedo é coisa
que não estamos acostumados. Só durante o inverno, mas dura pouquíssimos
dias.
— Percebe-se. — Meu avô a analisou, mas Ana parecia blindada.
— Estou amando a cidade. — Sua voz ergueu-se um pouco e aquilo
me fez sorrir de novo. — É bonita, bem cuidada e com um clima ótimo. —
Meu avô mastigava a comida sem pressa e limitou-se a concordar. — A casa
de vocês também é linda. Ali na sala de entrada era uma escultura de
“Ceschiatti”?
Aquilo finalmente atraiu a atenção do velho político.
— É sim. Conhece?
— Sim. — Ana voltou-se para mim com os olhos brilhando. — Tive
que fazer um trabalho na faculdade sobre escultores da arte moderna. Aquele
monumento em frente ao STF da mulher sentada com olhos vendados, A
Justiça, sabe? É do Ceschiatti.
— Não sabia. — Se não fosse por Ana jamais saberia que aquela
mulher seminua e deitada que ocupava grande parte de uma das paredes
laterais do salão de entrada da casa dos meus avós era de alguém tão famoso.
— Estudamos as obras dele e me lembro de ver uma escultura muito
parecida com aquela. Ele tem traços femininos muito marcantes. Impossível
não reconhecer. — Ana prosseguia em seu falatório, numa tentativa clara de
quebrar o clima.
Sempre aquele “chicletinho sem freio”, disposta a unir, agregar,
alegrar e que eu adorava.
— Fez que curso, Ana? — Meu avô agora dava atenção a ela.
— Publicidade.
— E trabalha na fábrica do Eduardo?
— Isso. — Ela estufou o peito com orgulho evidente.
— Hum... Qual seu sobrenome mesmo?
Droga! Estava demorando...
Ana retorceu de leve o rosto e me fitou antes de responder:
— Meu nome é Ana Catarina Diniz. Mas eu detesto o Catarina. Daí
todos me chamam só de Ana.
— Catarina é um nome muito bonito. Nome de uma imperatriz russa
— minha avó opinou.
— Não me lembro de um político Diniz em seu estado. — Meu avô
ignorava a interrupção. Deus do céu, dai-me paciência. — Seus pais são
empresários?
— Meu pai é marceneiro e minha mãe, dona de casa. — Ana tinha
os olhos brilhando por ser o centro das atenções.
Vi o momento em que minha avó levantou a sobrancelha de leve e
meu avô comprimiu os lábios.
— E o que estão fazendo nesse congresso?
— É o Congresso Latino-Americano de Indústrias de Cosméticos.
Participamos de um painel no primeiro dia e seremos homenageados em uma
mesa redonda no encerramento, como uma das empresas destaque pelas
iniciativas sustentáveis. Eduardo é o responsável pela linha eco, com uso de
materiais recicláveis, insumos de pequenos produtores e sistema de
recolhimento das embalagens. Temos pontos de coleta espalhados em todo o
país e nos tornamos pioneiros no sistema de logística reversa do setor.
— Ao menos dessa vez vai receber os louros por isso? — meu avô a
interrompeu, virando-se para mim.
— Não é como o senhor diz...
— Não?! — Abriu um sorrisinho de escárnio. — Quantas vezes seu
rosto aparece nos jornais ligado a essa... fábrica?
— Sabe que não gosto de aparecer...
— É o único com nome tradicional. Influência política... e prefere
deixar os outros levarem toda a fama, enquanto brinca de peão de fábrica
sujando as mãos de graxa.
Ali estava o motivo que me fazia evitar aquela casa.
— Vô...
— A menina vai concordar comigo. — Voltou-se para Ana. —
Você, que trabalha na área de publicidade, não concorda que Eduardo deveria
aparecer mais? LBK é uma sigla falida, de uma empresa internacional e que
sequer atua mais no país. Um nome de tradição como Venturini seria muito
mais atrativo.
— Acho que Venturini é um nome bonito sim, mas seria mais
interessante para uma empresa familiar. A LBK é uma sociedade entre
amigos. — Ana não se intimidou.
— Mais ou menos, Ana — meu avô argumentava. — Quando
Eduardo entrou nesse negócio, avisei que ele seria o que mais sairia
perdendo. Você deve ter reparado nesta casa. Reconheceu a Ceschiatti que
temos na entrada. Não sei se você sabe, mas na época em que Eduardo e os
outros que se dizem seus amigos compraram a fábrica, ele foi o que mais
gastou dinheiro.
— Isso não é verdade — o interrompi, já impaciente por ter que
tocar naquele assunto novamente. — Eu tinha mais dinheiro disponível
quando compramos a massa falida, mas todos eles injetaram dinheiro e
investimentos depois. Nenhum de nós tirou vantagem em momento algum.
— Injetou dinheiro em uma massa falida. — Ele voltou a me olhar,
parecendo enojado com minhas falas.
— Que voltou a crescer e se tornou uma das maiores empresas do
país.
— E quanto você ganha por mês paga todo o dinheiro que
desperdiçou da herança dos seus pais? — Suspirei, cansado daquela
conversa, e ele prosseguiu. — Primeiro, fugiu da sua carreira política para
estudar um curso operário e, depois, enfiou todo o dinheiro que tinha em
meia dúzia de máquinas velhas dando ouvidos a pessoas que se dizem seus
amigos...
— Eduardo teve uma carreira política? — Ana perguntou em voz
alta, de um jeito que somente Ana conseguia. Intempestiva. Inocente. E
extremamente ciente de cada palavra que dizia.
— Filho de Elias Venturini, um dos políticos mais importantes da
sua era, e que só não chegou à presidência desse país por um acidente de
avião, com certeza Eduardo já teve uma carreira política. Ainda que nunca
tenha assumido cargo algum.
— Pelo que sei, ele nunca quis seguir a carreira política.
— Algumas decisões estão acima de nossas vontades. — Meu avô
deu de ombros. — Vocês são jovens demais para entender isso.
— A decisão do que fazer para o resto da vida é algo que sempre
estará nas nossas mãos. Eduardo é o diretor de Produção da fábrica. Não
aparece nos jornais, mas é seu nome que está em todas as embalagens como
responsável técnico. O senhor já procurou ler?
Aquilo me fez sorrir de novo. E foi ali que eu entendi.
Havia me apaixonado por Ana. Antes de nos beijarmos no Jardim
Botânico. Antes de ficarmos nus e nos tocarmos naquele quarto de hotel. Me
apaixonei por Ana porque ela era, de longe, a pessoa mais verdadeira,
espontânea e sincera que teria o prazer de encontrar.
Naquela mesa de jantar, era como se Ana fosse um cristal. Uma peça
rara e reluzente, totalmente diferente da opacidade dos preconceitos velados
da minha avó, sempre calada e julgando a todos de cima, e da rigidez fria do
meu avô, que aos olhos do povo era simpático e sorridente, mas torcia o nariz
para qualquer um que não tivesse uma “linhagem” procedente.
Ana talvez fosse a segunda mulher em décadas capaz de falar alto
naquela mesa e debater de frente com o velho José Carlos Venturini sem
abaixar a cabeça ou exibir pudor.
A primeira foi minha mãe.
— Não consumo os produtos da marca. — Meu avô sorriu irônico.
— Como não? — Ana arregalou os olhos. A cozinheira apareceu
com uma jarra imensa de suco e Ana voltou-se para ela. — Qual é a marca do
detergente que vocês usam aqui?
A mulher olhou para Ana com expressão de espanto, como se não
estivesse habituada a lhe dirigirem a palavra, ainda mais para um assunto
irrelevante como aquele.
— É... é o Limpex.
Um sorriso involuntário surgiu no meu rosto.
Acertou em cheio, Ana.
Ela se voltou para mim, também sorrindo, como se pudesse ouvir
meus pensamentos, e informou:
— LBK. O produto já existia na linha antiga da marca, mas Eduardo
reformulou a composição e hoje é simplesmente o mais vendido do país.
— Eu só uso esse. — Ana conseguiu inserir a empregada na
conversa, e agora ela parecia empolgada. — O outros não rendem nadinha.
— E toda aquela prataria ali? — Ana apontou para a cristaleira.
— Eu sempre oriento as minhas funcionárias a usar um produto
importado — minha avó finalmente se pronunciou, com afetação.
Mas ela de fato não conhecia Ana.
— O Pratex, não é? Sabia que ele é importado pela LBK? Tenho um
tio que trabalha no setor de envasamento dele.
— Detergente e lustrador de prata? — Meu avô olhava para mim.
— Itens de higiene, cosméticos e perfumaria — corrigi.
— No Natal do ano passado, fizemos uma série de ações em uma
comunidade carente de uma cidade do interior do estado. Além de cestas
básicas, montamos kits de higiene para as famílias e visitas guiadas à fábrica
e alguns pontos da capital. Sabia que a maioria das pessoas nunca sequer
tinha saído da cidade em que moravam? — Ana seguia tenaz. — Não
mudamos muito a realidade delas, ainda falta muito o que fazer, que na
minha opinião caberia aos políticos da região com iniciativas a longo prazo,
mas o que fizemos foi transformador no fim de ano daquelas pessoas. Muitas
delas nunca tinham comprado uma escova de dentes na vida. Acho que isso
também é fazer política, e seu neto o faz muito bem.
Meu avô olhou para Ana em silêncio. Pela primeira vez, vi o orador
inabalável encontrar um oponente disposto a debater a noite inteira sem se
intimidar com sua voz sonora ou seu sobrenome importante. E esse oponente
era uma mulher de echarpe rosa, botas marrons e uma franja descabelada na
testa.
Como bom político que era, resolveu dar atenção à Ana, ao passo
que me perdi observando-a falar, completamente à vontade em uma mesa de
jantar com duas pessoas que, minutos atrás, tentaram intimidá-la.
Eu já disse que me apaixonei por Ana?
Pois é... E isso só aumentava a cada segundo.
Capítulo 8

— Eu beijei o Eduardo...
Despejei logo a informação de uma vez, olhando para a tela do
celular que era dividida em pequenos quadros por Bia, Lis e Luciana, que me
olhavam sem entender o motivo da chamava em grupo àquela hora da noite.
— Sério? — Luciana deixou cair o queixo, ao passo que Lis deu um
grito e começou a gargalhar.
— Ahhh! Já não era sem tempo! — Bia exclamou do seu
quadradinho.
— Como assim, “já não era sem tempo”? — Não entendi o tom de
voz dela.
— Só uma pessoa muito cega, ou você, para não perceber a forma
como o Eduardo te olhava!
Hein?
A tela começou a piscar e era Laila querendo participar da chamada.
Ela foi a única que não atendeu na hora.
— Quem morreu? — Laila perguntou assim que seu rosto surgiu.
— As bolas roxas do Eduardo, que finalmente beijou a Ana — Bia
contou por mim.
— Então deu certo? — O rosto de Benício surgiu ao lado de Laila.
Eles estavam nus?
— Não! — gritei alto. — Essa ligação é para surtar com minhas
amigas, e não para contar sobre quem eu beijo com um dos meus chefes que,
por coincidência, é amigo do assunto.
— Sai daqui, Benício. — Laila remexeu-se com o celular nas mãos e
deu para ver vários lençóis se movimentando.
— Beleza! Tenho que ligar para o Gustavo. — Ainda escutei a voz
de Benício ao fundo.
— Pronto — ela disse alguns segundos depois. — Ele já saiu. Agora
conta tudo. Sem esconder nenhum detalhe.
— Eu... Foi muito louco! — comecei a narrar, deitada na imensa
cama do quarto de hóspedes. — Hoje cedo fomos ao Jardim Botânico. Lá é
lindo e fazia um frio gostoso. A gente conversou várias coisas e... rolou.
— Fugindo do congresso, não é? Seus safadinhos! — Laila brincou.
— Ai, que cena mais romântica... — Lis suspirou alto. — Conta
como foi o beijo.
— O Eduardo não só beija bem. Ele humilha os outros homens.
Vocês não têm noção! Eu não sabia nem o que dizer! Fiquei sem palavras.
— Ahahahah! — Bia não parava de gargalhar. — Você está caidinha
já...
— Eu estou impactada, isso sim! Aquela boca lá me levou para o
céu!
— Como assim? — Laila questionou. — Rolou mais que um beijo?
Despeja logo tudo.
— Tem certeza de que o Benício não está ouvindo?
Laila virou a tela do celular, revelando o quarto na penumbra e
completamente vazio.
— Agora conta.
— Nos beijamos no Botânico, conversamos, comemos... Ficamos o
tempo inteiro de mãos dadas, daí voltamos para o hotel. E então ele me
chamou para o quarto dele e... botou aquela boca deliciosa para trabalhar de
novo.
— Vocês transaram? — Acho que duas delas perguntaram ao
mesmo tempo.
— Não. Quer dizer, só faltou os “finalmentes” mesmo, porque de
resto... Foi boca naquilo, aquilo na boca... E eu gozei duas vezes!
— Uau! — Luciana se abanava de forma exagerada.
— Vocês não têm ideia! — Será que eu estava falando alto demais?
— Eu acho que nunca cheguei lá com uma chupada de homem. Eles sempre
parecem estar só bebendo leite no pires, o que é bem decepcionante. Mas o
Eduardo... — Suspirei alto. — O Eduardo parecia que estava sem beber há
semanas e eu era uma nascente de água bem gelada. Era como se a vida dele
dependesse daquilo.
— Chocada — Lis brincou.
— E para completar o pacote, ainda tem aquela imensa... coisa que
ele esconde nas pernas. O homem é um tripé!
— O bom da Ana é que a gente nem precisa pedir os detalhes. — Lis
chorava de rir.
— Eu nunca fui tão detalhista assim com o Benício. Depois a
ninfomaníaca sou eu. — Laila também sorria de orelha a orelha.
— Só me explica porque não rolou o pacote completo — Bia
questionou.
— A gente não tinha camisinha na hora. Daí fomos para o chuveiro,
começamos a fazer umas safadezas lá e eu arrebentei o registro da parede,
encharcando o quarto dele.
— Por isso vocês precisaram sair do hotel! — Laila começou a
gargalhar.
— Sim... Viemos para a casa dos avós dele e... — Minha
empolgação diminuiu um pouco. — E ele mudou completamente.
— Como assim? — Lu perguntava.
— Lembram do Eduardo de anos atrás, que não sorria e era
introspectivo? Pois ele está exatamente assim desde que chegamos na casa
dos seus avós.
— Benício já me contou que ele tem problemas com os avós,
principalmente o avô — Laila dizia. — Ele nunca aceitou a escolha de
Eduardo em fazer uma faculdade de Engenharia, largando assim a tal carreira
política que ele tanto sonhou para o neto. E os dois praticamente romperam
quando Eduardo decidiu investir grande parte da herança comprando a LBK
em sociedade com eles.
— O velho é tão bom na oratória que em vinte minutos de jantar já
tinha conseguido tocar em todos esses assuntos na mesa — narrei para elas.
— Me lembra muito aqueles políticos que em época de campanha vão lá na
periferia beijar as crianças e conversar com as donas de casa, mas não sabem
nem o nome da cozinheira que faz sua comida. Ele e a mulher acham que me
enganam. Bem vi a cara torcida que fizeram quando eu disse que meu pai é
marceneiro e minha mãe, dona de casa, mas fiz questão de mostrar que não
sou uma analfabeta idiota.
— Eles te trataram mal? — Lis questionou.
— Não. Pelo contrário. O velho conversou comigo a noite inteira,
mas pensa que me engana. Fica fazendo discursos políticos, sempre dando
um jeito de fazer o assunto girar em torno dele e suas opiniões, enquanto a
avó do Eduardo passa o tempo inteiro calada, mas avalia até a cor do seu
esmalte com aqueles olhos de quem se sente superior. Na verdade, não estou
nem aí para eles ou o que pensam de mim. Muito provavelmente nunca mais
vou vê-los de novo depois dessa viagem...
— A não ser que role algo mais sério entre você e o Eduardo... —
Bia sugeriu, e aquela leve insinuação fez meu peito acelerar.
— Vocês acham?
— Diz o que você sentiu quando o beijou.
Aquela pergunta simples me fez lembrar da forma como Eduardo,
carinhosamente, quis saber como eu me sentia depois do que fizemos.
— Eu gostei. — Meu peito batia acelerado só em lembrar aquele
beijo no Botânico. — Corrigindo: eu amei! Com ele me senti diferente. Me
senti ouvida. Me senti desejada. Me senti mulher... E não foi só no nosso
beijo. Foi em todos os momentos da viagem. Quando estávamos no avião,
depois, quando conversamos no quarto dele... Durante o congresso... Ele
realmente me tocou.
Profundamente...
— Ana, você está até vermelha... — Luciana brincou.
— Estou nada!
— Está sim! — todas concordaram e começaram a rir.
— Eu estou adorando tudo isso... — Laila voltou a falar. — Mas me
diz uma coisa. Por que é que você está conversando com a gente e não se
atracando com ele?
— Porque agora estou dentro de um quarto de hóspedes imenso e ele
no seu antigo quarto de adolescência, que fica do outro lado da mansão
faraônica. — Fiz uma pausa, olhando para a porta. — E não sei o que vai
acontecer agora que viemos para cá.
— Está com vergonha de transar com ele na casa dos avós? — Bia
perguntou.
— Não. Essa casa é gigante, e meu quarto fica em outro andar.
Duvido que qualquer pessoa escute. — Essa, realmente, não era uma
preocupação. — Eu quero muito continuar o que começamos no hotel, mas
não sei o que fazer depois que ele pareceu se fechar.
— Deixa rolar, amiga — era Laila quem aconselhava. — Pelo que
Benício já me contou, ele realmente tem muitos problemas com os avós.
Talvez só precise de um tempo para digerir essa situação e logo ele voltará ao
normal.
— É... Só sei que preciso beijar aquela boca outras vezes, além de
que estou alucinada com a ideia de sentir aquele tripé dentro de mim.
— Pelo amor de Deus, Ana... — Luciana recomeçou a rir.
— Gente! Ele é um dos integrantes dos Quarteto Fantástico! —
bradei. — Vocês têm noção? É como um... um...
— Um fetiche se realizando... — as quatro disseram juntas, como se
tivessem combinado.
Começamos a rir no momento em que escutei uma batida baixa na
porta.
Espero que ele tenha trazido as camisinhas...
— Estão batendo na porta... — Era para eu sussurrar, mas minha voz
saiu quase gritada. — Espero que esteja com as camisinhas agora.
As meninas começaram a gargalhar e, antes que eu pudesse
dispensá-las, elas mesmas começaram a desligar, me deixando só.
Abri a porta para Eduardo e ele parecia indeciso, sem saber se
deveria entrar ou não.
— Eu queria saber como você está... — ele murmurou, ainda
recostado ao batente da porta, como se criando coragem para entrar.
— Acho que sou eu quem deveria fazer essa pergunta. — Levei
minha mão até seu rosto, ajeitando rapidamente a armação de seus óculos. —
Como você está, depois de rever os seus avós?
— Me desculpe se eles te deixaram constrangida ou ofendida de
alguma forma.
— Não tem que se desculpar pelo comportamento dos outros. —
Tomei coragem e me ergui na ponta dos pés, dando um selinho rápido nos
seus lábios. — Não me importo com o que eles pensam de mim.
— Mas eu me importo... — Quando fiz menção de me afastar,
Eduardo circundou minha cintura com seus braços e me apertou contra si.
Estava de volta o homem de olhar intenso e desejo evidente que me tomou no
quarto de hotel. — Se eles te ofenderem de alguma forma, quero que me
diga. — E desceu os lábios até os meus, em um beijo carinhoso e cheio de
promessas.
— Esqueça seus avós. Quero saber das camisinhas... — Puxei sua
camiseta para cima, sem me importar muito de ainda estarmos com a porta do
quarto aberta.
Eduardo deu uma risada alta e levou uma mão ao bolso da calça de
moletom. A maldita calça de moletom que nada escondia. Tirou de lá um
bolo de camisinhas e as jogou na cama, virando-se rapidamente e fechando a
porta do quarto.
— Tudo bem para você se nós fizermos isso aqui? Na casa dos meus
avós? — Ele se aproximou e tocou meu rosto.
— Só se for um problema para você. — Me voltei para a cama e
apontei as camisinhas. — Mas pelo visto não é...
— Você ainda não entendeu, Ana? — Ele passava o polegar com
lentidão pelo meu rosto. — Eu sempre vou ouvir você. Sempre.
E me beijou de novo. Dessa vez, furioso. Incontido. Incontrolável.
Seus lábios dançavam em minha boca. Me exploravam com ânsia.
Aquela, definitivamente, era a boca mais habilidosa que já tive o
prazer de encontrar.
Sem pressa, ele me empurrou até a beirada da cama. Ainda de lábios
colados, me despiu. Primeiro, a camiseta. Depois, a calça de pijama que eu
usava e, quando fiquei só de calcinha, ele passeou com os dedos por meu
corpo. Provocando. Explorando. Tateando. Levou sua mão quente até o
tecido da calcinha e a afastou de lado, testando minha umidade.
— Ana... — Seus olhos estavam escurecidos, cravados em meu
rosto. — Pensei em você o dia inteiro.
— Eu também...
— Pensei em seu corpo... — Ele passou uma das mãos por meus
seios, apertando-os de leve. — Pensei em seu gosto... — Me provocou com a
outra mão, que continuava em minha virilha, me fazendo gemer de leve. —
Em sua boca. — E voltou a me beijar, dessa vez mordendo meus lábios.
— Você é bem falante entre quatro paredes.
— É você quem desperta isso.
Ele me empurrou para o colchão e eu caí sem oferecer resistência,
abrindo as pernas e oferecendo meu corpo. Eduardo me olhou uma última
vez, antes de tirar os óculos e jogá-los na mesinha.
Ainda que ele nada dissesse, a verdade é que sequer precisava. Ali,
naquela cama, somente entre nós, era como se eu conseguisse ver sua alma
através da íris. Ele até poderia não ser de falar muito, mas a verdade é que eu
conseguia ouvir cada palavra não dita dentro dos seus olhos.
Sem tirar uma única peça de roupa, ele se debruçou sobre mim.
Voltou a me beijar antes de descer, lentamente, traçando uma linha de
arrepios até o ponto do meu corpo que implorava por ele. Eu latejava por sua
presença. Ardia por antecipação.
E quase explodi quando sua boca novamente me encontrou.
Preciso. Sedento. Perfeito.
Fechei os olhos e deixei que todos os meus sentidos se
concentrassem naquele momento. Ele me sugava com calma, me abrindo
com a ponta dos dedos e me invadindo com sua língua voraz.
Eduardo queria que eu gozasse em sua boca, e eu jamais o
decepcionaria. O fiz com uma facilidade absurda, contendo um gemido alto
que teimou em se libertar.
Quando ergueu o rosto, ele tinha os lábios brilhantes, e prosseguiu
com aquele prazer lento de me beijar e sugar em vários pontos do corpo. No
abdômen, nos seios, braços e pescoço.
Puxei seus cabelos em minha direção, fazendo-o me olhar nos olhos.
— Me deixa fazer o mesmo agora.
Ele me olhou e corou de leve, o que achei bem sexy. Então,
ajoelhou-se na cama e começou a desamarrar o cordão da sua calça,
baixando-a em movimentos rápidos.
— Você usa camisinha normal ou tem um tamanho específico?
Tipo... extragrande?
— Isso é uma pergunta aleatória?
— Meu amor! — Levei minhas mãos em seu membro e apertei com
gosto. — Meu interesse nessa questão não tem nada de aleatório.
— Ana, você é única! — Eduardo abriu aquele sorriso meio de lado
que eu amava, e entendi porque gostava tanto daquele sorriso.
Porque ele sempre sorria assim só para mim.
Apertei-o em minhas mãos e o vi fechar os olhos momentaneamente,
rendido. Abaixei meu tronco e o coloquei inteiro na boca, saboreando a
pequena lubrificação que saía de sua extremidade. Suguei, me lambuzei, e o
provoquei.
Ele estava de joelhos. Os punhos, fechados, travados ao lado do
corpo.
Mas seus olhos...
Estes seguiam abertos. Me analisando, devorando e contemplando.
Senti seus dedos percorrerem meu corpo e massagearem meus seios.
Ele fechou as mãos em meus cabelos e puxou meu rosto, interrompendo
minhas carícias. Me fez ficar de joelhos também, de frente para ele, e me
beijou de um jeito que eu só poderia descrever como “sexo oral do andar de
cima”.
Eduardo nos deitou na cama, pegando uma das camisinhas. Colocou-
a lentamente, me olhando com olhos de quem pergunta: “Tem certeza?”
Minha vontade era gritar: “Nunca tive tanta certeza de nada em
minha vida!”.
— Me come, Eduardo.
Ele arregalou os olhos e sorriu um pouco. Com extremo carinho,
abriu minhas pernas e se encaixou, descendo lentamente. Milimetricamente.
— Preferia que eu fosse uma mulher mais calada nessa hora? Que
não fosse tão direta ou desbocada? — perguntei, enquanto ainda nos
encaixávamos.
— Essa é você, Ana. E a grande verdade é que sempre vou preferir
você. — Eu já soltava os primeiros gemidos ao senti-lo me preencher, mas
quando terminou essa frase, Eduardo escorregou inteiro para dentro, e aquilo
me fez querer gritar.
Cravei as unhas no colchão, sentindo toda sua extensão me invadir.
A sensação de ser preenchida por completo era única, mas foi quando ele
começou a movimentar as pernas que o ar faltou.
Ele se movia com facilidade, dançava em cima de mim. Seus cabelos
meio lisos caindo no rosto e seus olhos castanhos me sondando a todo o
tempo.
Eu pensei que já havia sido agraciada demais com toda aquela
habilidade oral, mas a verdade é que Eduardo realmente escondia tudo que
era capaz de fazer.
Ele ia em um vai-e-vem ritmado e constante, feito uma máquina
funcionando em velocidade máxima. E, droga, eu já estava quase gozando de
novo.
Impulsionei meu corpo em sua direção, tentando controlar meu
próprio prazer, e ele capturou um dos meus seios com as mãos, apertando-o
com força. Puxando o mamilo, ele levou-o até sua boca, sugando-o com
maestria, e me fazendo arrepiar-me inteira.
— Eu vou gozar, Eduardo.
— Então goza. — E abocanhou meus seios, aumentando ainda mais
o ritmo dos seus movimentos.
Eu fui, chamando por seu nome, e me esquecendo por completo de
que estávamos na casa dos seus avós!
Vi seu rosto iluminar-se em um sorriso no momento em que soltou
meus seios. Ele beijou meus olhos e passou os dedos em minha testa,
afastando minha franja. Depositou ali mais um beijo e então pegou minhas
pernas, ainda trêmulas, e encaixou-as em seus ombros.
A intenção era me empalar?
— Você é deliciosa, Ana. Nada do que idealizei para nós dois chega
perto do que é sentir você.
E recomeçou a estocar.
Naquela posição, eu não via estrelas. Eu via planetas. Extraterrestes.
O big-bang inteiro.
Estava louca, querendo gritar tudo o que aquele vai-e-vem
incansável me provocava, mas palavras não seriam suficientes.
Sentia a cama bater com força no piso caro de mármore, e a cada
movimento ele me afundava mais no colchão.
Agarrei seus braços quando a inesperada terceira onda me varreu.
Gritei por ele, dizendo em alto e bom som o nome do homem que eu descobri
naquela viagem e que, se dependesse de mim, nunca mais iria embora.
Eu precisava de Eduardo.
Daquele Eduardo, que parecia me oferecer algo que nunca havia
dado a mais ninguém.
Eu queria Eduardo.
Aquele Eduardo, que me ouvia o tempo inteiro e, ao mesmo tempo,
me fez perder a voz na cama.
Ainda pulsando de prazer, senti o momento em que ele também se
entregou. Suspirando alto, rugindo forte, Eduardo fechou os olhos e deixou
seu rosto cair em meu pescoço. Ficou ali, pulsando, movendo-se cada vez
mais lento, até parar completamente e aspirar com força meus cabelos.
— Você tem cheiro de chá — sussurrou em meus ouvidos. — Chá
de rosas e hibiscos.
— Isso é um cheiro bom?
— É o melhor. — E passou a ponta do nariz nas minhas bochechas,
subindo até meus cabelos. Voltou a cheirá-los e então girou o corpo,
deitando-se na cama ao meu lado.
Me deixei envolver por seus braços longos. Seu peito imenso me
apoiando enquanto dávamos as mãos, brincando de entrelaçar nossos dedos.
— Pergunta aleatória — sussurrei.
Eduardo sorriu e voltou a beijar meu pescoço, esperando que eu
continuasse.
— Dorme aqui comigo hoje?
Seu sorriso alargou-se, e senti seus lábios se colarem em meu colo,
mordendo de leve.
— Tem certeza de que quer só dormir?
— Tenho certeza de que quero você do meu lado a noite inteira.
Ele parou com os beijos para me olhar nos olhos. Havia ali uma
dúvida que não consegui entender.
Será que me precipitei demais?
— Você não se precipitou, Ana. — Mais uma vez, eu falando mais
rápido do que consigo pensar. — Quero você. Muito. Sempre quis, na
verdade. E... de repente é real e isso me assusta.
— Por que te assusta?
Ele não respondeu de imediato. Passou os dedos por minha cintura,
em uma carícia leve, como se buscasse ali as palavras.
— Você é tão perfeita... — Ele passava os dedos com lentidão, e
minha pele se arrepiava com aquele contato. — Alegre. Segura. Linda... O
que vou fazer com o que sinto por você, Ana? Com o que você desperta?
Não sei a que sentimentos Eduardo se referia, mas era realmente
assustador pensar que em tão pouco tempo eu também era capaz de sentir
algo por ele de uma forma que me pesava o peito e preenchia a alma.
Se ele sentisse toda a confusão e intensidade que eu agora sentia,
entendia seu medo.
— Hoje foi um dos melhores dias da minha vida — confessei,
deixando para lá conversas sobre sentimentos. — Mesmo depois de quase
alagar o hotel inteiro com minha desatenção e te obrigar a rever seus avós.
Ele encolheu os ombros de leve.
— Nada disso é culpa sua. E quanto aos meus avós, mais uma vez
peço desculpas por eles.
— Acabamos de transar na casa dos seus avós. Acho melhor
ficarmos quietinhos, isso sim.
Ele riu baixinho, voltando a afundar o rosto em meu pescoço. Passei
meus dedos em seus cabelos, penteando-os levemente, e Eduardo beijou
meus lábios. Continuamos nos acariciando por um tempo até que o cansaço
me abateu.
Dormi nos braços mais quentes e firmes que já tive o prazer de me
deixar envolver.
Cansada.
Feliz.
Em silêncio e escutando nada além da batida ritmada e constante do
seu peito largo.
Capítulo 9

Os primeiros raios de sol entravam pelas frestas da janela e tudo o


que eu conseguia fazer era admirar Ana dormindo ao meu lado.
É tudo real!
A noite que tivemos, tudo o que fizemos...
Eu tinha Ana nos braços e aquilo era a realidade, e não uma fantasia
idiota alimentada por brincadeiras dos meus amigos.
E a realidade conseguia ser absurdamente mais bela e marcante que
qualquer sonho.
Ainda nua, Ana tinha a franja emoldurando seu rosto de forma
displicente. Dormia em uma posição engraçada. De costas, com os braços
jogados para cima. Os seios fartos expostos e empinados, e as pernas
flexionadas no colchão.
Pronta para um belo bom dia...
Me debrucei sobre seu corpo e comecei a beijá-la. Suas coxas,
panturrilhas, e até mesmo os pés.
Mas Ana dormia feito uma pedra e sequer se mexeu.
Então eu resolvi acordá-la de vez...
Lentamente me coloquei entre seus joelhos, abrindo mais o acesso
entre suas pernas. Só de vê-la daquela forma, dormindo, eu já estava duro,
mas primeiro queria que ela despertasse. Queria ter certeza de que ela estava
desperta e consentia com cada toque meu.
Passei a língua pelo interior das suas coxas, segurando seus quadris.
Foi quando Ana soltou o primeiro gemido.
— Continua... — Sua voz saiu fraca, mas era o consentimento que
eu precisava.
Chupei a dobra de sua perna, descendo até a lateral da sua bunda.
Voltei espalhando beijos em sua pele, que se arrepiava facilmente com meus
toques. Seu cheiro ao acordar pela manhã era viciante. Quente.
Aconchegante.
Era como voltar ao lar.
Cheirei-a com vontade, antes de dar um beijo bem na altura do
clitóris. Ana suspirou alto e levou as mãos aos meus cabelos.
Se ela julgava que naquele momento eu estivesse oferecendo prazer
a ela, estava redondamente enganada. O prazer era inteiramente meu em
saborear seu gosto, sugar sua pele, e ouvir suas súplicas altas.
Ana gemia alto, sem pudor algum, e dizia meu nome com tanta ânsia
e desejo que era impossível não pertencer a ela. Porque era a mim que ela
chamava e era a mim que ela teria.
Por toda a vida, se assim eu pudesse oferecer.
Suguei-a com calma, beijando seus grandes lábios, provocando-a
com minha demora. Ela retorcia-se na cama, agora inteiramente desperta, e
suplicava com aquele sorriso que me quebrava as pernas.
— Me acordando desse jeito... vou ficar mal-acostumada.
“Pois que fique”, pensei, invadindo-a com a língua.
Desejar Ana à distância era uma coisa. Agora, beijar seu corpo
inteiro, vê-la me chupar com gula e depois gozar dentro dela...
Faria aquilo pelo resto da minha vida e “passar a noite juntos”, como
ela havia pedido no dia anterior, era pouco comparado ao que eu queria dela.
Ela tremia sob meus lábios, e sua voz falhava acima de nós.
— Você parece com fome... — ela brincou quando a encobri inteira
com minha boca. Espalhei sua umidade e mordi suas dobras.
— Faminto — concordei, empurrando suas coxas e abrindo mais
suas pernas.
Totalmente aberta, a provoquei. Incitei e me fartei.
Ana era um vício que fazia eu me esquecer da timidez, das
inseguranças e de todo o resto.
Com ela, era como se eu olhasse para dentro e escutasse a voz do
verdadeiro Eduardo. O que perdeu os pais cedo e foi forçado a passar uma
adolescência entre os holofotes e palavras vazias. Em silêncio.
O que se redescobriu em meios às máquinas, mas continuou
acanhado, encolhido, por não saber muito bem o que dizer.
Com ela, mesmo quando eu nada dizia, me sentia ouvido, pois Ana
parecia enxergar minha alma, enquanto eu também via a dela.
E com ela, eu era aquele homem faminto de desejo que a devoraria,
centímetro por centímetro, até ter plena certeza de que éramos um só.
— Eu posso gritar? — ela pediu com um resfolegar.
— Talvez seja melhor evitar o barulho a essa hora.
— Está bem. — E pegou um dos travesseiros da cama, tampando
seu rosto com ele e cravando suas mãos na peça.
E mesmo com o travesseiro, foi possível ouvir seu grito forte, dessa
vez me chamando pelo apelido, Du.
Foi quando comecei a gostar dele.
Louco de desejo por ela, coloquei uma das camisinhas e pairei sobre
seu corpo, me encaixando lentamente em suas pernas trêmulas. Quando a
penetrei, ela estava molhada, lânguida, e impulsionou os quadris em minha
direção, incitando-me.
Comecei a me mover, sentindo nossos corpos unidos e aquecidos
pelos lençóis.
Encaixados. Perfeitos um para o outro.
O que tive na noite anterior com Ana nunca tive com outra mulher.
Na verdade, conheci poucas mulheres na vida, mas havia em mim a certeza
de que com Ana as coisas seriam únicas. Era algo que vinha de dentro, lá do
fundo da alma, e parecia gritar em cada célula do meu corpo. Que me
libertava.
Comecei a me mover. Lento e ritmado.
Dançávamos sobre os lençóis e eu me sentia arder. Quase derreter.
Estava apaixonado por Ana. Já o estava antes, mas aquilo só crescia a cada
vez que a penetrava. Que nos fazíamos um só.
Senti as mãos dela me rodearem a cintura, cravando-se em mim.
Fechei os olhos e me deixei levar pelas estocadas, cada músculo se movendo
com a autonomia do desejo.
— Eduardo... — ela gemeu, mordendo meu peito com fúria. — Isso
é injusto.
— O que?
— Você está quase tocando meu útero e eu não posso gritar.
— Vou dar um jeito nisso...
Tampei sua boca com a minha, beijando-a com vontade. Ana gemeu
mais uma vez sob meus lábios e os mordeu com força, antes de soltar um
grito que abafei com um novo beijo. Ela agarrou meus cabelos e os puxou,
aumentando ainda mais meu desejo.
Movimentei-me sem pressa, apreciando o latejar da sua carne. Me
perdendo em suas mordidas e súplicas. Quando gozei, tive mais uma vez a
certeza de que nem mesmo eu, naquele momento, era capaz de entender tudo
o que entregava a ela.
— Bom dia — cumprimentei, quase sem ar, beijando sua testa e
afastando sua franja molhada.
— Excelente dia. — Ela riu abertamente e me beijou de volta, de
forma mais demorada. Quando afastou nossos lábios, parou por alguns
segundos para me olhar. Fitou meu rosto em silêncio e brincou de passar os
dedos nos meus lábios. — Isso aqui deveria ser tombado como patrimônio
nacional.
Comecei a rir e beijei seus cabelos, deitando-me ao seu lado.
— Ainda está bem cedo, mas acho bom não faltarmos ao congresso
hoje.
— Congresso? Que congresso? — Ela deu uma risadinha travessa.
Sorri de volta e brinquei de traçar círculos em seu quadril.
— Se a rotina dessa casa continuar a mesma de alguns anos atrás —
comecei a dizer —, meus avós só vão se levantar depois das nove. Nem
vamos vê-los no café.
— Podemos tomar café na rua, para não incomodar a empregada que
já deve estar acostumada.
— Como você quiser. — Beijei sua bochecha. — Vamos tomar um
banho e descemos para ver se já tem alguém acordado.
— Depois de todo o barulho que eu fiz, não me surpreenderia
encontrar seus avós parados ali do lado de fora, no corredor.
— A mim também não...
Tomamos um banho rápido — dessa vez, sem registros quebrados
— e descemos para o café. Para nossa surpresa, a funcionária já estava
acordava, e movia-se com pressa pela cozinha.
— A dona Rose pediu para que eu preparasse o café para vocês, já
que eles levantam mais tarde.
— Não precisava se preocupar, Lurdes. — Ana já parecia íntima da
senhora.
— Eu acordo cedo de todo jeito. Meu esposo me deixa aqui antes de
entrar no serviço e adianto todo o meu trabalho. É até bom ter companhia.
Dona Rose não é muito de conversa.
— Sei bem como ela é... — murmurei, comendo um pedaço de pão.
— Isso é bem visível. — Ana parecia faminta, devorando um pedaço
de bolo ao mesmo tempo em que passava manteiga no pão. — Tentei de
todas as formas puxar assunto com ela, mas não teve jeito. Já o seu avô, fala
até demais, tentando a noite inteira me convencer de que Benício, Ricardo e
Gustavo vivem te sabotando e eu deveria me aliar a ele.
Aquilo ardeu minhas faces.
— Ana, me desculpe mais uma vez te obrigar a passar por tudo isso.
Vou passar no hotel e ver se encontraram algum quarto disponível nessa
cidade. Estamos em uma capital. Em algum lugar há de ter. — Suspirei
frustrado. — Você não tem que ficar ouvindo as sandices do meu avô sobre
eu seguir a carreira política e mudar o nome da fábrica para Venturini.
— Não se preocupe, Du. — Ela levou uma das mãos até meu rosto e
ajeitou meus óculos. Estava se tornando um hábito. — Conheço você.
Conheço os meninos. Sei muito bem quem tem razão. — Colocou um pedaço
imenso de bolo na boca e prosseguiu. — E, vamos combinar, numa coisa seu
avô está certo...
— No que? — A fitei surpreso.
— Sobre o nome. — Quando a encarei sem entender, Ana riu e
levou uma mão até meu braço. — Claro que não vou dizer para vocês
mudarem o nome da fábrica para Venturini, mas concordo quando ele diz que
LBK é um nome ultrapassado. É uma sigla ligada a uma multinacional
inglesa que deixou de atuar há anos no país. Não tem nada a ver com o que
somos hoje.
Nisso, eu concordava com ela. Eu e os outros sócios. A mudança do
nome da fábrica era um assunto a cada dia mais recorrente em nossas
reuniões. Gustavo já havia contratado consultorias para auxiliar na escolha de
um novo nome, com reposicionamento de marca, mas a verdade é que
nenhuma das sugestões foi aceita por todos.
Era impossível agradar quatro pessoas com mentes tão diferentes e,
por isso, nunca saíamos do lugar.
— A ideia era manter LBK só nos primeiros anos, aproveitando o
apelo tradicional da marca. As pessoas confiariam muito mais em fazer
negócios com um nome que elas já conheciam do que com quatro jovens
desconhecidos. — Ana concordou com a cabeça e prossegui. — Já há alguns
meses temos conversado sobre mudar o nome da empresa. Gustavo até
contratou uma equipe para fazer uma análise de perfil, mas nenhum nome foi
aceito por nós quatro.
— Eu lembro dessa empresa. — Ana devorava o café com prazer. —
Acho que o problema é que eles queriam manter o perfil de multinacional na
nova marca, e isso não combina com vocês. — Apontou uma pequena colher
em minha direção. — Vocês precisam encontrar um nome que fale sobre os
quatro e, ao mesmo tempo, represente o que a empresa é hoje.
— Essa missão está nas mãos do Gustavo há quase um ano.
— Tem que ser um nome que fale sobre vocês quatro, mas sem
esquecer que está falando de pessoas diferentes — Ana disparou a falar,
elevando um pouco sua voz. — Vocês não se parecem, mas se
complementam. Benício não é só o diretor Financeiro. É como o cérebro da
LBK. Ele é racional, matemático, mas sabe exatamente quanto cada parte da
empresa precisa, como um cérebro que envia comandos para todo o resto.
Ela fez uma pequena pausa e me mantive calado, esperando-a
continuar:
— Ricardo é puramente a voz da LBK. Não é atoa que é o diretor
administrativo. Nunca vi uma pessoa tão disposta a sempre conversar e ouvir
todos como ele. Sem exceção. É a pessoa articulada que sabe negociar e
convencer com aquela risada alta. Ele sim seria um bom político se não fosse
administrador. Já no Gustavo, vemos o rosto. A imagem jovem que a
empresa tem hoje é mérito dele e da forma como gere o marketing da marca.
E você, Eduardo... é o coração.
Ela abriu um pequeno sorriso, me fitando alguns segundos. Senti
meu peito se aquecer.
— É o coração que pulsa lá dentro. Que, diferente dos outros,
realmente ninguém vê, mas é o centro de tudo. É você o responsável por
bombear sangue, energia para cada membro daquela imensa fábrica. Sem
você, o cérebro não comanda, a voz silencia e o rosto se apaga.
Quis dizer que ela também era coração. Entre as amigas, era a pessoa
que unia, agregava e fazia aquele grande grupo pulsar.
Para mim, era a responsável por fazer meu peito pulsar.
— O nome da empresa precisa refletir isso — Ana prosseguia, alheia
aos meus pensamentos. — Mostrar que, mesmo com as diferenças, vocês se
complementam para gerir a LBK. E também um nome que mostre a
preocupação em atingir públicos diversos. Desde a empregada dos seus avós,
que faz questão de consumir o detergente da marca, a pessoas como Laila,
que tem alergia a cheiros fortes e agora pode usar os produtos da linha
hipoalergênica que você tem aperfeiçoado. Um único nome que mostre as
pessoas diversas que gerem a empresa e, também, as que a consomem.
Concordei com a cabeça em silêncio, enquanto ela parecia pensar.
— É isso... — Ana murmurou de repente.
— O que?
— Diversa. — Enruguei a testa de leve e ela estralou os dedos no ar.
— A fábrica poderia se chamar Diversa.
— Diversa?
— Não gostou?
Pensei um pouco antes de me voltar para ela, já sorrindo.
Era genial.
— Eu gostei, Ana.
— Sério?
— É perfeito. Diversa Indústria de Cosméticos e Perfumaria... —
Recostei-me na cadeira, digerindo com calma aquelas palavras. Era um nome
pequeno, simples, fácil de ser memorizado, e que refletia exatamente tudo
aquilo que Ana tinha acabado de dizer. — É perfeito — repeti.
— Pode me promover a diretora de Marketing. — Ela estufou um
pouco o peito, sorrindo de forma orgulhosa.
— Colocar você no lugar do Gustavo? Eu sequer pensaria duas
vezes... Você levou cinco segundos para conseguir algo que ele vem tentando
há quase um ano.
— Que bom que gostou. — Ela deu de ombros. — Agora só precisa
convencer os outros.
Coisa que, pelo que conheço dos demais, não seria trabalho algum.
Pela primeira vez surgiu um novo nome para a LBK que, de cara, parecia ter
sido feito para todos os quatro.
Analisei em voz alta:
— Pensa comigo. Temos o Benício que tem o sobrenome De Lucca,
que seria a primeira sílaba. O meu é Venturini, que seria o “Ve”. Depois, tem
o Gustavo que assina Rocha. O “R”. Por último, Ricardo, com o Sampaio.
“Sa”. — Fiz uma breve pausa antes de concluir. — Diversa. Você encontrou
o nome perfeito, Ana.
— Eu nem pensei nisso quando disse o nome.
— Vou conversar com os sócios assim que voltarmos dessa viagem.
Ana concordou e continuou seu café, minimizando sua sugestão e
esquecendo-se rapidamente do assunto.
Como imaginado, saímos da casa dos meus avós antes que estes
acordassem, com uma Ana maravilhada com toda a suntuosidade dos jardins
da frente, e que não teve tempo de reparar quando chegamos, na noite
anterior.
Nossa agenda no penúltimo dia de congresso era agitada. Painéis de
manhã e as últimas palestras pela tarde. No dia seguinte, pela manhã,
receberíamos uma menção honrosa sobre as inovações da LBK e o sucesso
da linha eco. Esse era o momento que esperávamos desde o início e confesso
que estava ansioso.
Se Gustavo tivesse ido àquela viagem, seria ele a representar a
empresa, falar sobre a marca e ganhar aquela imensa plateia com seu sorriso
safado e sedutor.
Mas ele tinha mandado Ana, e agora essa responsabilidade era
minha. Apesar disso, passar a noite com Ana valeria encarar qualquer
plateia...
Droga...
Preciso me lembrar de agradecer àquele idiota por sua “pequena”
interferência em minha vida.
O desgraçado tinha razão.
Eu devia uma a ele.
Aos poucos descobria, durante aquela viagem, que Ana tinha
camadas complexas e bem guardadas.
Fomos até o local do congresso em um carro oferecido pelo hotel e,
durante todo o percurso, vi que ela pegava minha mão de forma carinhosa,
cúmplice, e fazia perguntas sobre a cidade, o trânsito e mesmo minha família.
Ela parecia ter receio de demonstrar qualquer afeto mais íntimo na
frente de outras pessoas. Parecia tímida e receosa, e surpreendeu-se quando
descemos do carro e rodeei sua cintura com meus braços. Ela nos olhou por
alguns segundos e então sorriu, sem nada dizer.
Passar o dia com Ana era isso. Ver as horas serem preenchidas com
perguntas aleatórias, conversas divertidas, e alguns olhares tímidos. Era uma
dualidade maravilhosa perceber que mesmo a Ana falante e desbocada, que já
colocou grande parte dos integrantes do nosso grupo de amigos em situações
constrangedoras, também tinha seus receios e vergonhas.
Ainda tinha suas costelas grudadas ao meu corpo quando
atravessamos o lotado saguão do espaço de eventos e nos dirigimos a um dos
auditórios, onde acontecia um painel sobre logística reversa e como ela
poderia gerar economia financeira. Se eu perdesse mais aquele painel,
Benício me mataria quando eu voltasse para Goiânia.
Sentamo-nos em duas das cadeiras da frente e assim permanecemos
por um longo tempo, até que comecei a sentir meu celular vibrar no bolso.
Estava demorando...
— É o Gustavo? — Ana sussurrou.
— Milagrosamente, não. Ricardo.
Fiz um sinal para ela esperar e levantei-me, saindo de fininho do
auditório para atender a ligação.
Por que eles simplesmente não poderiam mandar mensagens?
— Bom dia, Du! — Empolgado demais.
— Bom dia, Ricardo — respondi normalmente, observando o fluxo
de passantes.
— Ué? — Sua voz perdeu um pouco da empolgação. — Achei que
você estaria radiante hoje.
— Por que achou isso? — Enruguei a testa.
— Por nada... — ele ficou mudo por alguns segundos antes de
prosseguir. — Uma rede de TV daí de Curitiba entrou em contato comigo
agora cedo, buscando informações sobre a LBK. Querem cobrir a
homenagem amanhã e fazer uma entrevista com você.
Como é?
— Isso não estava previsto — comecei a dizer e fui interrompido.
— Sim. Não estava. Mas alguém comentou com eles sobre a
honraria que vamos receber e querem falar com você. Achei que você ou a
Ana tivessem conversado com alguém aí.
— Não. E o Gustavo?
— Ele também não sabia. Está aqui do meu lado... Nenhum de nós
marcaria uma entrevista na TV da sua cidade natal sabendo que você não
gostaria.
Senhor José Carlos Venturini...
Só poderia ser coisa do meu avô.
Droga!
Provavelmente fez seus contatos na cidade pouco depois de
conversar a noite inteira com Ana e descobrir que seríamos homenageados.
Com certeza seus contatos da mídia dariam um jeito de citar meu passado
trágico e família com influência política, como um disco arranhado que nunca
se cansavam de repetir.
Mais uma vez ele ignorando completamente minha aversão à
imprensa.
— Tem como cancelar? — questionei com voz sofrível. O dia tinha
começado tão bem, dividindo a cama com Ana...
— Gustavo não acha uma boa ideia e concordo com ele. É uma
ótima oportunidade para a empresa, mas não precisa falar se não quiser.
Gustavo pode conversar com Ana e ela dá a entrevista, como analista de
marketing.
— Vocês sabem que eles vão insistir...
— Inventamos uma desculpa qualquer na hora para você não falar.
Ana é boa nisso.
— Ela é... — Meu sorriso se abriu, lembrando de como Ana me
acalmou naquele painel que apresentamos juntos. Não haveria melhor
companhia para aquele momento.
— Hum... — Escutei uma risadinha abafada do outro lado da linha e
então Ricardo finalizou. — Bom... se você não tem nada para contar, então
era só isso. Ninguém aqui quer atrapalhar vocês dois, então, se precisar de
alguma coisa, nos liguem.
Atrapalhar nós dois?
Esses caras beberam?
E então, um estralo me fez gelar a espinha.
— Ana contou para as meninas, não é?
Escutei uma gargalhada alta ao fundo, e que eu conhecia bem.
— Vocês estão no viva-voz? — bufei.
— Escuta aqui, Eduardo — Gustavo disse com voz mais longe. —
Ninguém aqui quer que você estrague tudo e volte para seu casulo por conta
da timidez. Então, finja que ninguém está sabendo de nada e simplesmente
aproveite. — Ele fez uma pausa e deu uma risadinha. — Aproveitem. Os dois.
— Já fala das passagens — Uma terceira voz ordenou.
Benício?
Olhei para a tela, chocado.
Eram três velhas alcoviteiras, discutindo a minha vida por telefone?
— Ah... — Ricardo assumiu a conversa novamente. — Se vocês
dois quiserem, podemos transferir as passagens de volta para segunda-feira
que vem. Assim podem curtir o fim de semana com calma.
Definitivamente: Velhas alcoviteiras.
— Vou ver com a Ana e falo com vocês. — Comecei a me
encaminhar para o saguão novamente, disposto a acabar com aquela
conversa. — Agora me deixem um pouco em paz.
— Com prazer — Gustavo bradou alto e ouvi os três gargalharem
segundos antes de desligar.
Imbecis.
Aproveitar o fim de semana com Ana...
Parecia uma excelente ideia.
Queria passar todas as horas do dia ao lado dela. E, sabendo que
quando voltasse, seríamos tragados por perguntas e possíveis piadinhas de
todos os lados, talvez fosse melhor ajeitar as coisas ainda durante a viagem.
Eu queria pedi-la em namoro, ou qualquer outra definição. Queria
Ana ao meu lado, e aquilo era irremediável.
Me apaixonei por Ana em silêncio, mas agora era chegado o
momento de falar. Me expressar. Dar vazão àquele sentimento que esteve
guardado por tanto tempo.
Tinha vontade de dizer a ela tudo que eu sentia quando a via soprar a
franja nervosa, ou retorcer aquela vibrante echarpe de cor neon.
Dizer o quanto meu peito batia forte quando estávamos juntos, e o
quanto minhas mãos suavam só em ver seu sorriso.
Dizer que me deitar com ela, pertencer a ela por uma noite inteira,
havia sido uma libertação. Como uma alma aprisionada por anos que enfim
cria asas e, como ela mesma sugeriu que eu o fizesse, voa.
Quando voltei ao imenso auditório, ainda tinha um sorriso idiota no
rosto, pensando em todos os planos do que faríamos o fim de semana inteiro
em Curitiba. Poderíamos alugar duas diárias em algum hotel-fazenda da
região, passear pelos pontos turísticos da cidade, ir novamente ao Botânico...
Mas todas as coisas que eu queria dizer ou fazer com Ana sumiram
de minha mente quando me deparei com meu lugar na plateia ocupado por
um homem bem vestido e de riso fácil.
Plínio Barros.
Capítulo 10

— Tenho certeza de que vão gostar. Grande parte dos participantes


do congresso vai estar lá. — Plínio Barros apontou para a plateia lotada atrás
de nós, tentando me convencer a ir em uma festa particular que teria à noite,
dada por um dos patrocinadores do evento e velho conhecido seu.
— Vou falar com Eduardo e, se ele quiser, vamos sim.
— Ok. — Deu um sorriso largo. — Mas se ele não quiser ir, pode
me ligar que será um prazer acompanhá-la.
Sorri de volta, mas sequer tive tempo de responder, pois uma sombra
extremamente alta postou-se atrás de mim, atraindo nossa atenção.
— Bom dia, Plínio. — Eduardo tinha a voz um pouco azeda e, sendo
bem sincera, aquilo me fez querer rir.
Como eu nunca percebi que aquele homão da porra tinha ciúmes de
mim?
— Bom dia, Eduardo. — Plínio não pareceu perceber nada. —
Sentei aqui rapidinho, mas já estou de saída. — Piscou para mim antes de
dizer: — Chame ele e depois me fale.
E levantou-se, cumprimentando algumas pessoas na plateia e
andando apressado em direção ao pequeno corredor entre as fileiras.
— O que ele queria? — Eduardo perguntou antes mesmo de sentar-
se.
— Me convidar para uma festa — provoquei, e recebi de volta um
faiscar de olhos que me fez borbulhar o estômago.
Não. Não sinto prazer em alimentar ciúmes, mas ver que Eduardo
sentia-se mexido por mim ao ponto de posse era sim recompensador. Não
serei hipócrita de negar.
— Convidou você também, ciumento... — completei quando ele
prosseguiu mudo, talvez guardando alguns impropérios para si.
Ele estreitou um pouco os olhos antes de questionar, aos sussurros,
para não atrapalhar a apresentação:
— Que festa?
— De um dos patrocinadores do congresso. Parece que muitas
pessoas que estão aqui também vão. Eu nem entendi o motivo da festa, mas
acho que é porque o tal patrocinador gosta de ser o centro das atenções
mesmo.
— Você disse que iria?
— Disse que veria com você. Se você não quiser, tudo bem.
— E você quer ir?
Dei de ombros, porque de fato pouco me importava com aquela
festa.
Eu queria era a boca de Eduardo em mim.
Em todas as partes do meu corpo.
— Você disse isso em voz alta, Ana — um Eduardo roxo de
vergonha sussurrou.
— Ai, minha nossa! A parte de que para mim pouco importa a festa
ou a parte que eu queria sua...
— Por favor... — suplicou, levando o indicador aos meus lábios. —
Não repita. — Aproximou o rosto do meu. — As pessoas estão ouvindo.
Tampei minha boca, sentindo meu rosto arder. Eduardo continuou
me fitando. O sorriso de lado no rosto, fazendo suas bochechas se contraírem
de leve e deixarem os óculos escorregarem. Ajeitei-os com cuidado e ele
alargou o sorriso.
— Eu também quero — sussurrou. — E acho que pode ser legal ir a
essa festa.
— Você acha? — Começaram a bater palmas para o encerramento
de alguma fala na apresentação e pude falar mais alto. — Sinceramente, se
for para sair com você, eu vou gostar.
Ele sorriu e me fitou profundamente antes de dizer:
— A maior vantagem desse seu jeito falante é a certeza de que terei
sempre a verdade.
— Não sei mentir. Meus pais me ensinaram a sempre falar o que
penso e, o que você chama de “jeito” é a maneira natural com que nos
tratamos em minha família.
Ele concordou com a cabeça e se inclinou rapidamente na direção do
meu rosto. Achei que fosse me beijar, mas só aspirou um pouco meu cheiro,
como se necessitasse daquilo.
— Espero um dia aprender com você — sussurrou em meus
ouvidos, provocando um arrepio bom.
— A dizer as coisas sem pensar? — Quem quer isso para a vida?
— Não. A dizer exatamente aquilo que pensa sem se importar muito
em como vão ouvir.
E então, fez o inesperado.
Em uma sala lotada, me beijou. Um selinho rápido, mas que me
deixou muda.
Senti um arrepio quente na forma como os polegares dele passaram
rapidamente no meu rosto, ajeitando minha franja.
Me dei conta ali que era exatamente aquilo que eu queria. Despertar
o Eduardo que só eu parecia enxergar. Dar-lhe segurança para dizer o que
pensa, expressar-se, e ser ele mesmo.
Eduardo ainda não sabia, mas sua libertação não estava em perder a
timidez e ser capaz de dizer as coisas sem pudor. Sua libertação era aceitar
quem ele era. Tímido. Inteligente. Educado. Prestativo.
Eduardo.
Quando ele percebesse que tudo o que buscava estava guardado
dentro de si, entenderia que não era ele quem precisava mudar, mas a forma
como se aceitava.
Eu já amava aquele Eduardo. Como amigo, como homem... Sem
mudar um pedaço sequer.
Agora... a faceta de homem devasso e que me devorava na cama,
que me chupava com gula e tinha um apetite voraz...
Essa poderia continuar muito bem escondida, revelando-se só para
mim.
Durante o almoço, ele me informou sobre uma entrevista que
daríamos para uma rede de TV no dia seguinte, questionando se eu poderia
falar em seu lugar.
Ainda que dar entrevistas não fosse algo que eu gostasse, acabei
aceitando, por ele. Sei que para Eduardo aparecer na frente de um microfone,
ainda mais em sua cidade natal, onde por anos foi forçado a viver aquela
situação, poderia ser doloroso.
Ele também perguntou seu eu gostaria de aumentar nossa estadia em
Curitiba. Procurar um hotel no final de semana e aproveitar a cidade com
calma.
E eu diria não para um convite daqueles?
À tarde, nos ocupamos com palestras e mais alguns contatos com
outras empresas. Quando voltamos à imensa mansão de seus avós, parecia
que tudo estava exatamente igual a quando saímos. Vazio e sem o calor
humano que estive acostumada a vida inteira na casa de meus avós.
Fui para meu quarto e comecei a me arrumar para a festa. Por sorte,
havia levado um vestido de festa, por precaução. Era uma peça de corte
simples, como um camisolão, mas de tecido fino e paetês dourados, meio
anos 1980. Coloquei um cinto para modelar o corpo e, de sapatos, não me
restou outra opção a não ser minhas já cativas botas marrons.
Passava um batom nos lábios quando escutei uma batida baixa na
porta. Abri e Eduardo me esperava com as mãos nos bolsos, parecendo
ansioso. Me fitou longamente, percorrendo com os olhos todo o meu corpo e
parando por um tempo demasiadamente longo em meus lábios.
— Até parece que nunca me viu arrumada — brinquei. — Já saímos
juntos inúmeras vezes.
— É que agora é... é diferente. — Ele deu um passo para dentro do
quarto, meio que hipnotizado.
— Me imagina nua por baixo desse vestido? — Passei as mãos pelo
meu corpo e desci até minhas coxas, levantando de leve o tecido.
— Ana... — ele gemeu, revirando os olhos.
Dei dois passos em sua direção e segurei a barra da sua calça,
puxando seus quadris para mais perto.
— Agora que sei o que você guarda aqui dentro, conheço bem como
ele se comporta. — Me esfreguei rapidamente nele. — Para mim não precisa
mais fingir, Eduardo. Eu sei o quanto está duro.
Ele não negou, apanhando minha boca para um beijo violento, como
se não pudesse mais se conter. Se esfregou em minha boca e o batom, que
ainda não estava totalmente seco, borrou seus lábios, provocando uma
excitação que me aqueceu por dentro e me molhou inteira.
Foram precisos alguns minutos até que nos soltássemos e eu pudesse
limpar meu rosto e retocar a maquiagem. Um carro já nos esperava de fora e,
em poucos minutos, estávamos na tal festa.
Era um salão de eventos numa área nobre da cidade, bem próxima à
casa dos avós de Eduardo, e o local estava cheio de rostos conhecidos do
congresso. Andamos por algum tempo pelo imenso ambiente decorado.
Em um canto à esquerda, um DJ tocava músicas em sua mesa para
uma plateia animada e dançante. Ali, as luzes de pequenos holofotes
projetavam-se nas pessoas e passavam um clima de boate. Ao centro, duas
imensas mesas lotadas com petiscos dos mais variados sabores, todas muito
bem decoradas em um estilo tropical — apesar do frio que fazia lá fora.
Tinha mesa de frios, saladas e carnes ensopadas. Havia ainda um pequeno
nicho ao canto, que parecia dar acesso à cozinha, em que pessoas se serviam
em imensos caldeirões fumegantes. Logo descobri que eram caldos e sopas
com um cheiro delicioso.
Havia várias mesas com três a quatro cadeiras, mas a maioria das
pessoas movia-se pelo salão, indo da pista de dança até o imenso bar
montado no outro extremo, à direita do recinto. Ficamos por um tempo
observando toda aquela movimentação e notei que Eduardo parecia um
pouco travado. Comemos, conversamos, e me atentei que, em momento
algum, ele me beijou ou me tocou.
Ficamos assim por cerca de meia hora até que não aguentei mais.
Puxei-o com força pelo braço e praticamente o arrastei até a pista de dança.
— Ana... Você sabe que eu não gosto de dançar... — Ele tinha os
olhos arregalados, mas não ousou me parar.
— E você sabe que eu gosto. — Não dei muita atenção às suas
reservas e segui meu trajeto. Se eu estava ali era para me divertir, e não ficar
sentada em uma mesa, quieta, sem conhecer ninguém.
Quando chegamos no centro da improvisada pista de dança, o DJ
começou a tocar uma música que eu adorava dançar com minhas amigas. Dei
um grito empolgada e vi Eduardo abrir um sorriso. Já saímos várias vezes em
nossa turma de amigos e Eduardo era sempre assim. Precisava de um
empurrão para começar a se divertir.
Não me importaria em ser eu a pessoa que sempre o puxaria para a
pista de dança. Contanto que ele quisesse.
Comecei a me mover ao som da batida, deixando meu corpo se
soltar, aquecido pelas poucas doses de bebida que havia ingerido. Como daria
uma entrevista para a TV no dia seguinte, meus planos eram me manter
bastante cautelosa aquela noite, mas ainda assim me divertir.
Girei meu corpo e comecei a rebolar os quadris ao ritmo da música,
sendo acompanhada de várias pessoas que faziam passos bem semelhantes à
nossa volta. Não demorou muito e os movimentos começaram a aquecer meu
corpo. Senti minha nuca suar e levantei os cabelos com uma das mãos,
segurando-os em um coque improvisado, enquanto seguia dançando.
Quando rodei novamente, rebolando, me deparei com Eduardo
exatamente onde eu o tinha deixado. Imóvel.
E me comendo com os olhos.
Resolvi provocá-lo, seguindo minha dança meio frenética, só que
agora olhando diretamente para ele. Ainda com uma mão segurando os
cabelos, desci a outra até a altura do colo, passando-a com lentidão entre
meus seios e descendo até os quadris. Agachei-me ao som da música,
rebolando, e subi levando as mãos à boca, sugando de leve o indicador e sem
jamais deixar de fitá-lo.
Ele engoliu em seco e remexeu um pouco as pernas, como se algo o
incomodasse.
Aquilo me fez rir e aproximar-se dele.
Foi só me colar em seus quadris para perceber o quanto o coitado
sofria para se manter escondido ali dentro.
— Você nunca ficou assim me vendo dançar. — Me inclinei em sua
direção para poder sussurrar em seus ouvidos. Aproveitei a proximidade para
resvalar meu corpo em sua virilha.
Ele deu uma risadinha baixa antes de dizer:
— Isso porque nunca deixei você se aproximar antes para perceber
como eu ficava.
Finalmente se soltando da timidez, Eduardo me rodeou com seus
braços, me puxando com delicadeza para mais perto.
Nós dois tínhamos bebido muito pouco, mas senti uma leve tontura e
um calor nas faces com a forma como ele me olhava. Era algo relacionado a
toda aquela dança e nosso pequeno mundinho particular, criado em pouco
mais de três dias.
Passei minhas mãos por sua cintura, sentindo aquela coisa estranha e
pesadamente forte que me atingia o peito sempre que estava com ele, até que
uma voz me chamou, tocando meu ombro.
— Oi para vocês dois! — Plínio cumprimentou sorridente. — Que
bom que vieram!
Imediatamente senti as mãos de Eduardo se apertarem em minha
cintura.
Como se eu fosse pensar em outro homem, tendo o melhor de todos
me agarrando os quadris...
— Boa noite, Plínio! — o cumprimentei com um aperto de mão, já
que Eduardo não parecia disposto a me soltar. — Queria agradecer por ter
nos convidado para a festa. Ainda não identifiquei o patrocinador, mas o
lugar está bem animado.
— É o dono de uma cooperativa financeira daqui. — Ele apertou a
mão de Eduardo, estendida em sua direção de maneira rígida. — Fazem essas
festas para conseguir negócios financeiros com as empresas participantes dos
congressos. Acho que existem formas melhores de se fechar negócios, mas
cada um sabe o que faz com seu dinheiro. — E voltou a sorrir, encarando
Eduardo.
Percebi o momento em que Plínio notou os braços de Eduardo me
rodeando e abriu um sorriso ladino.
— Bom... Passei somente para dizer que volto amanhã cedo para
São Paulo e já combinei com Gustavo sobre as campanhas da premiação —
ele falava comigo, e nesse momento se voltou para Eduardo, piscando de
leve. — Inclusive, foi ideia dele avisá-los sobre essa festa.
Eduardo soltou uma bufada baixa e puxou assunto com Plínio,
perguntando sobre as campanhas e outros assuntos de São Paulo.
Pelo pouco que sabia, Eduardo, Benício e Ricardo conheceram-se
primeiro, ainda na faculdade, em Brasília. Anos depois, quando se mudaram
para a região do ABC e se enveredaram no mercado de startups, conheceram
Gustavo. Foi ele quem apresentou Plínio e vários outros nomes de peso que
os ajudariam a crescer nos negócios em São Paulo e conseguir o capital e
conhecimento de mercado necessários para alguns anos depois, juntos,
comprarem a LBK.
Quando os assuntos de São Paulo acabaram, Plínio despediu-se,
elogiando nossa participação no congresso e desejando sorte no seu prêmio
de publicidade. Por mais que ele fosse o ricaço idealizador, não se envolvia
um dedo sequer nas votações, deixando tudo a cargo do júri. E ainda que
fosse um ótimo indício sermos indicados por ele, eram os especialistas
anônimos quem decidiam a parada.
Me despedi de Plínio ainda sentindo os braços imensos de Eduardo
me mantendo cativa.
— Tinha que ser o Gustavo...
— Acho engraçado como vocês dois são diferentes e, mesmo assim,
amigos.
— Quando conhecemos Gustavo em São Paulo pensei que eu seria o
que menos daria certo com ele. Ele é muito unido a Benício, mas tem uma
insistência louca em me empurrar. Incentivar... — Eduardo sorriu de leve e
estreitou os braços em mim, talvez inconscientemente. — É um bom amigo.
Todos são.
— Considera-os como sua família?
— Sim. — Ele abaixou o tom de voz, mas estávamos tão próximos
que conseguia ouvi-lo. — Uma família não muito tradicional, diferente da
que cresci, e que aumentou substancialmente desde que Laila, você e as
meninas chegaram.
— Somos parte da família? — Passei as mãos por seus ombros,
apoiando-me em seu pescoço.
— Até o novo namorado da Bia eu considero mais minha família do
que meus avós. Ele parece o pai do Benício e lembra um pouco meu pai
também. Tem umas piadas horríveis, mas um coração enorme e muita
segurança em tudo o que diz e faz.
— Como era seu pai?
Ainda estávamos na pista de dança. A música era um funk
barulhento, mas de alguma forma toda aquela agitação ao redor acalmava
Eduardo e o fazia falar.
— Era um bom político. Em todos os sentidos. No de querer o bem
de verdade e também no de saber fazer o jogo de poder. Ele conversava com
todos, e não fazia cara feia para você se dissesse que não era de uma família
tradicional. Conhecia o porteiro do prédio em que morávamos e era amigo
íntimo do presidente quando aconteceu o acidente. Por isso o país inteiro se
abateu com a morte dele. Era uma boa pessoa. O seu defeito era a vaidade.
Amava um holofote. Uma rede de TV. Uma entrevista...
— Tão diferente de você...
— Sim... Mas nunca me forçou a nada. Desde pequeno fui tímido. É
o que sou, entende? — Fiz que sim com a cabeça e ele também concordou,
parecendo satisfeito. — Ele e minha mãe entendiam isso. Me respeitavam.
Nunca fui forçado a aparecer nas campanhas. Passei toda a minha infância
blindado de toda aquela loucura da política e do dinheiro, só com meus pais
normais.
— De perto, nenhum pai é normal.
Ele deu uma risadinha baixa e continuou me fitando. Os olhos
castanhos serenos, completamente focados em mim, totalmente dispersos de
qualquer coisa que acontecia ao nosso redor.
Eu também me sentia hipnotizada. Fascinada. Apaixonada.
Eduardo era tímido, mas tinha uma vontade imensa de amar
estampada nos olhos. E a pessoa escolhida para ser o destino de todo aquele
carinho e amor que ele guardava dentro de si seria a mais sortuda de todos os
tempos.
Desejei que fosse eu...
O que tínhamos compartilhado naqueles dias de viagem poderia ser
indício de que ele sentia algo por mim, como eu já começava a me dar conta
de que sentia por ele?
Senti meu peito acelerar ao perceber que, puta merda, estava me
apaixonando por Eduardo.
Aquele mesmo Eduardo que fazia parte do meu grupo de amigos e
que sorria tímido com todas as besteiras que eu falava.
Nossa viagem era como o passaporte para um mundo inexplorado,
em que conheci um homem cheio de tesão por mim e que às vezes até me
deixava sem graça ao me agarrar a cintura na frente dos outros, como se
fôssemos um casal.
Nós éramos um casal?
Ou tudo não passava de uma loucura entre amigos durante uma
viagem para um congresso?
Eu não poderia perguntá-lo e correr o risco de vê-lo se esconder em
sua carapaça. Já tinha medo de isso acontecer naturalmente, quando
voltássemos para Goiânia.
E o que eu faria se isso acontecesse?
— Está calada demais... — A voz dele me invadiu os pensamentos.
— Só pensando...
— Estranho não ouvi-la dizer em voz alta aquilo que pensa.
Porque alguns pensamentos não devem ser expressados, e até
mesmo a mais rápida das bocas é capaz de entender essa regra básica de
sobrevivência de corações humanos.
— Também sei fechar minha boca às vezes...
— Gosto de ouvir aquilo que pensa. — Ele aproximou seu rosto do
meu, e só então notei que as caixas de som tocavam agora uma música lenta,
um pouco romântica.
Fechei meus olhos, porque sempre que minha mente começava a
pensar demais, aquela era a forma de silenciá-la.
Eu tinha minhas inseguranças, mas não deixaria que nenhuma delas
apagasse aquele momento. Levantei meus braços, levando minhas mãos até
os cabelos de Eduardo. Enrolei meus dedos nos seus fios e inspirei fundo,
ainda sentindo seu corpo alto e esguio me encobrindo inteira.
Como eu quis que aquela viagem durasse para sempre. Que aquele
calor aconchegante que eu sentia em seus braços não fosse somente uma
transa inconsequente de uma semana atípica entre dois amigos.
Como eu quis que se tornasse constante. Se fizesse presente todos os
dias de minha vida.
Como eu o quis...
E como se lesse meus pensamentos, senti Eduardo puxando meu
corpo para a proteção do seu, repousando o rosto naturalmente na dobra do
meu pescoço. Ainda de olhos fechados, rodeados de estranhos e em uma pista
de dança, deixei que aquela música desconhecida nos embalasse.
Eu queria ser a pessoa responsável por queimar o gelo que os avós
transformaram sua vida. Como Gustavo, que era o amigo impertinente, eu
queria ser a mulher responsável por sempre puxá-lo para a pista de dança, até
que ele se soltasse e começasse a curtir a noite, como o fazia agora, com o
corpo colado no meu.
Eu queria ser sempre a mulher responsável por fazer aquela barraca
imensa se armar com um simples toque...
Como ela estava armada agora, cutucando e quase me atirando
para o outro lado do salão...
— Assim é bem melhor... — ele sussurrou nos meus ouvidos, e
percebi que, ao menos o último pensamento, havia escapado da minha boca
mais uma vez.
Dei uma risadinha baixa e me apertei nele, que respondeu com o
melhor convite de todos:
— Antes que eu realmente te atire do outro lado do salão, o que acha
de irmos embora? Não conhecemos ninguém nessa festa.
— Não pensaria em ideia melhor.
Em silêncio ele me beijou. Eram momentos de coragem
momentânea em que o Eduardo que se revelava no quarto para mim se fazia
presente também na frente dos outros.
Nossas bocas se cruzaram com lentidão, e senti sua língua habilidosa
invadir a minha, provocando e me provando em um movimento só.
Nos soltamos depois de um tempo, passando em meio aos presentes
e seguindo rumo à saída. Eduardo pediu um carro e esperamos abraçados na
noite gélida de Curitiba. Eu não levava meu sobretudo a tiracolo, e ficou a
cargo dele o papel de me aquecer enquanto aguardávamos.
Ele tinha a pele quente, e aquilo era bom demais.
Quando chegamos na imensa mansão de seus avós, o silêncio
reinava. Ele parecia acostumado com isso, como se aquele fosse um lar de
fachada, criado para ostentar, e não se viver. Cruzamos os corredores em
silêncio e percebi, com um pouco de pânico, o momento em que ele me levou
na direção oposta ao quarto de hóspedes.
— Onde estamos indo?
— Passei a adolescência inteira trancado no meu quarto dentro dessa
mansão — ele explicava com voz sussurrada. — Era meu refúgio nesse lugar.
— Ele parou de frente para uma imensa porta de madeira, ao final de um
pequeno corredor. — Quero ter você aqui, uma única vez.
Meu coração disparou vendo-o abrir a porta que era trancada a
chave.
— Tudo bem para você? — questionou, sempre disposto a ouvir o
que eu queria.
— E seus avós?
— Já reparou no tamanho dessa casa?
— Onde é o quarto deles?
Ele apontou para o outro extremo do corredor, além de uma imensa
escadaria de ferro que levava ao andar debaixo.
— Nos primeiros meses pedi que meu quarto fosse mais perto do
deles, como era na casa dos meus pais, mas o velho José Carlos Venturini
sempre achou que machos de verdade não tinham medo de escuro. Hoje
agradeço a ele por me manter afastado.
Me rodeou pela cintura e me olhou profundamente nos olhos. E
havia um pedido ali. Silencioso. Simples.
— Sim — concordei, com o que quer que ele estivesse pedindo.
Naquele momento, qualquer que fosse o pedido, eu lhe diria sim.
Ele me puxou com delicadeza para dentro do quarto, trancando a
porta atrás de si. O local era simples, sem qualquer traço de personalidade,
assim como todo o resto daquela mansão sem graça.
No entanto, notei uma pequena mesinha onde, em anos remotos,
muito provavelmente um computador esteve ali. A mesinha agora era
ocupada pelas malas de Eduardo, e acima dela um imenso mural com
inúmeras fotos dava o único toque de personalidade àquele cômodo imenso.
Fotos de um Eduardo pequeno, ao lado de uma mulher incrivelmente
parecida com ele e um homem alto e corpulento, assim como seu avô. A
expressiva altura era herança do pai, mas o corpo esguio ele havia herdado da
mãe.
Já tinha visto fotos e até mesmo vídeos de discursos do pai de
Eduardo. Todos conheciam o rosto de Elias Venturini.
Mas ali naquele imenso mural ele parecia outro homem. Tinha um
sorriso terno para a mulher que posava ao seu lado, e uma mão imensa e
alongada bagunçando os cabelos lisos de um meninote de pouco mais de seis
anos.
Estavam no Jardim Botânico...
Havia outras fotos em viagens: na neve, na Disney, nos letreiros da
Times Square, de frente ao Coliseu... A infância de Eduardo parece ter sido
agitada e, mesmo com tantas experiências vividas, a verdade é que em quase
todas as imagens Eduardo estava sempre tímido e com os ombros meio
encolhidos. Um sorriso pequeno e de lado transparecendo a felicidade.
Aquele era o Eduardo real. Um garoto tímido, de coração imenso e
um sorriso ladeado que pouquíssimas pessoas conseguiam arrancar.
Me virei para ele, que me observava mudo, e me dei conta de que
jamais o mudaria. O crime dos seus avós foi tentar mudá-lo, e não faria isso.
Eu já amava Eduardo como ele era.
E ele?
Seria capaz de se apaixonar pela amiga maluquinha?
Capítulo 11

Ana observava com cuidado o mural que ainda conservava algumas


fotos minhas com meus pais. Aquela foi a única lembrança que mantive
naquele lugar. O resto em nada parecia com o que um dia foi meu quarto.
Não me importava muito com isso, já que aquele não era mais meu
lar. Eu tinha um apartamento em Goiânia onde outras lembranças moravam, e
pretendia levar Ana lá também.
Acontece que, levá-la até aquele quarto era como reencontrar o
Eduardo da juventude, sozinho e inseguro, e dizer a ele que, com o tempo, ele
seria feliz de novo. Encontraria uma turma de amigos que o abraçaria como
ele era e uma mulher que seria capaz de fazer seu peito explodir de tanta
vontade de...
Dizer.
Eu gostaria de ser capaz de dizer a Ana tudo o que sentia por ela. O
amor, o desejo, o carinho e a admiração.
Ainda observando-a, dei alguns passos em sua direção. Toquei seu
braço, gelado do frio da noite. Vi quando sua pele arrepiou-se e ela desceu o
olhar até meus dedos, acompanhando o toque. Quando voltou a me fitar, Ana
tinha a franja caída em um dos olhos e a soprou de leve, sorrindo para mim.
Afastei o cabelo dos seus olhos e beijei sua testa. Ela suspirou
profundamente, fechando os olhos. E como se fosse capaz de ler meus
pensamentos, pediu, sussurrando:
— Diz, Eduardo. Diz o que você quer de mim.
E eu disse:
— Quero beijar sua boca... — Fechei os olhos também, deixando
toda a coragem vir de rompante. De uma forma que somente Ana era capaz
de provocar. — Quero te beijar até você... perder o fôlego. E depois, vou tirar
sua roupa com calma. — Deixei escapar um suspiro. — Provando cada
pedaço seu.
— Isso é bom. Continua — incitou.
— Quando você estiver nua, vou morder seus seios, que são os mais
lindos que já vi na vida. — Ainda de olhos fechados, levei minhas mãos até
um de seus seios, apertando-o. — Vou te lamber e provocar até você implorar
para ter minha boca entre suas pernas. — Ela gemeu baixinho e desci minhas
mãos até sua cintura, puxando-a para ver como eu a desejava. — E então eu
vou te chupar, até você gozar. — Me inclinei e mordi seu pescoço. — E
depois, quero sua boca... me engolindo. Quero te colocar de quatro e...
— Diz. — Sua voz era um sussurro afogado.
— Te foder. Te comer. Te devorar.
— Então comece.
Ana abriu os olhos ao mesmo tempo em que abri os meus. Tombou
um pouco o rosto e ofereceu os lábios para mim. Segurei seu queixo e passei
lentamente meus lábios nos seus, provocando-a. Mordi sua pele avermelhada
do batom e agarrei sua boca na minha, iniciando ali todo aquele roteiro já
imaginado em nossas cabeças.
A invadi com a língua, oferecendo a Ana tudo que eu tinha de
melhor. Guardado, esperando por ela.
Ela gemia e suspirava alto, puxando seu vestido com pressa.
— Sou eu quem vou tirar, lembra? — falei, afastando meu corpo do
dela só o suficiente para retirar a peça.
Lentamente a despi. O vestido, o sutiã, a calcinha e até mesmo as
botas que ela usava. A cada peça, traçava beijos em sua pele. Desbravava
cada pedaço daquele corpo que eu venerava por abrigar a alma que eu
descobria amar.
Puxei-a com delicadeza para a cama, fazendo-a sentar-se na beirada,
mantendo suas pernas levemente abertas e ajoelhando-me na sua frente.
Beijei seus joelhos, chupei a pele macia das suas coxas e aspirei seu
cheiro de chá. Ana revirou os olhos e tentou deitar-se na cama, mas a puxei
de volta.
Subi sem pressa até seu colo, provando seus mamilos, um de cada
vez.
— Du... — ela gemeu, cravando as mãos em meus ombros.
— Tira minha roupa — pedi, quando notei que ela parecia agoniada,
esfregando as unhas na minha camisa.
Ana sorriu travessa e retirou minha camisa e também as calças.
Quando puxou a cueca e pegou em meu membro, apertou-o com gula e olhou
para mim, lambendo os lábios.
— Não é esse o roteiro.
Retirei suas mãos de mim e voltei a beijá-la. Entre os seios, com
calma, fazendo-a arrepiar-se e impulsionar o corpo em minha direção.
Suguei-os com vontade, provocando um ruído alto, que só não ganhava dos
gemidos de Ana, cada vez mais desesperados.
Fiz tudo o que disse, não porque queria cumprir a promessa
expressada, mas porque eu queria que Ana entendesse, ao menos com meus
gestos, que tudo aquilo que eu não era capaz de dizer, recitaria para ela toda
noite, e o faria por todo o tempo que ela desejasse.
Mordi seus seios. Provoquei sua pele até o momento em que ela
enfim suplicou:
— Eduardo... P-Por fa-favor. Só me faz gozar.
— Com todo prazer.
Deitei meu corpo e encontrei-a úmida, escorregadia e inchada de
desejo. Suguei seu desejo até vê-la gritar. Ana não tinha pudor algum na
cama, e a forma como gemia alto, sem controle, era como uma canção que
rompia as compotas do meu pudor. Me fazia querer devorá-la inteira, até que
ela não tivesse mais voz para suplicar.
Me fartei dela, de uma forma que nunca me saciei antes. Pois era em
Ana que estava todo o combustível que me alimentava ali. Quanto mais
provava dela, mais fome sentia.
A vi cravar as unhas nos lençóis e deixar seu corpo cair no colchão,
entregue.
Ela arfava, e seu corpo tremia, impulsionado pelo clímax.
Levantei-me e a abracei, beijando seus lábios e afastando os fios
grudados de suor de sua testa. Ela tinha os olhos semicerrados e me puxou
com um toque leve, quase sem forças, para perto de si. Escorregou os dedos
delicados por meu corpo até me encontrar duro por ela, como sempre
acontecia toda vez que me tocava.
Ana encheu as mãos e me apertou, agora com força.
— Repete essa parte. Acho que esqueci o que acontece agora — ela
pediu, travessa.
— Eu inteiro na sua boca.
Ela sorriu, levantando o corpo, mas a impedi. Empurrei-a de volta
para o colchão e fiquei de joelhos na cama, ao seu lado. Ainda deitada, deixei
que me excitasse de novo. Sua boca vermelha engolindo meu pau. Chupando
e o beijando. Massacrando toda a minha sanidade com a calma com que me
sugava, ao mesmo em que seu corpo retorcia-se nos lençóis.
Ana era perfeita. Ela sim era uma obra de arte. E ali, deitada na
cama, me devorando com vontade e me encarando suplicante, mais parecia
uma divindade da luxúria.
Segurei na cabeceira da cama, tentando me controlar, e ela sugou
ainda mais forte, passando a língua ágil por toda a extensão e indo até a base.
O batom vermelho não borrava seu rosto, e quando a vi se tocar, excitada,
não consegui mais me conter.
Eu queria cumprir tudo aquilo que prometi a ela quando entramos no
quarto, então soltei um gemido abafado e me afastei. Ela me olhou de viés e
simplesmente sorriu, ainda tocando-se e mordendo os lábios. Seus dedos
invadindo sua entrada macia, e me fazendo salivar.
Puxei seus quadris de forma animalesca, levantando suas costas da
cama e girando seu corpo, colocando-a de joelhos.
— Você cada dia me surpreende mais — ela murmurou encurvando
a lombar e inclinando a bunda perfeita em minha direção. — Parece outro
homem na cama.
— Serei sempre esse para você. — Aproximei-me de seus quadris,
esfregando meu pau em suas coxas úmidas.
— Gosto dessa versão. — Ela tombou a cabeça no colchão,
expondo-se ainda mais para mim. — Espero que nunca mais a esconda.
— Não com você ao meu lado.
Me encaixei em Ana e impulsionei meus quadris. Ela apertou o
colchão com força, contendo um grito. Segurei sua cintura e me ajeitei com
calma, até que ela se acostumasse com aquela posição antes de começar a
estocar. E então eu fui. Fundo, rápido e forte, como as máquinas da fábrica
moviam-se incessantemente todos os dias. Ritmadas. Constantes e fiéis ao
seu trabalho.
Ouvi o ranger alto da cama e aumentei as investidas, sentindo-a se
contrair e me apertar. Ana gemeu meu nome e puxou um dos travesseiros
para o rosto, abafando um grito mais alto que soltou, minutos depois.
Aquilo foi como uma lufada de oxigênio que alimenta o fogo. A
chama cresceu em mim e curvei-me acima dela, movendo meus quadris com
toda a força que tinha.
— Du... — Sua voz estava abafada pelos travesseiros.
— Diz, Ana.
— Eu vou morrer aqui, e você vai ter dificuldade para enviar meu
corpo para Goiânia sem ter que explicar o que estava fazendo.
Aquilo me fez rir e investir ainda mais forte nela, até vê-la
estremecer mais uma vez, suas costas arqueando-se feito os galhos de uma
árvore em uma tempestade de vento. E então eu gozei. Senti sua pele me
apertar, e seu gozo me molhar, tornando os movimentos esguios. Só ali
percebi que esquecemos da camisinha e... foda-se!
Quero essa única mulher para o resto da vida mesmo...
Continuei movimentando-me lentamente, sentindo nossos corpos
transpirando, eriçados. Ana deixou seu corpo cair no colchão e acompanhei
seu movimento, encaixando-me em suas costas e abraçando sua cintura.
Ficamos assim, unidos, abraçados um ao outro até que respirar não
fosse mais tão difícil.
— Ana — a chamei com suavidade, beijando o topo da sua cabeça.
— Esquecemos a camisinha. Foi um lapso. Me desculpe.
Ela ponderou um momento, como se só então percebesse nossa
falha.
— Eu... — ela sussurrou com voz fraca. — Eu tomo remédios
regularmente e... e tenho certeza de que não estou em período fértil. Também
fui sincera quando disse sobre outros namorados. A maioria dos carinhas com
quem eu ficava não passava do primeiro encontro. Ir para a cama logo depois
do beijo? Jamais!
— Então quer dizer que sou uma exceção.
— Mais do que uma exceção. — Ela beijou meu peito. — Você é
uma caixinha de surpresas.
— Também não tive muitas namoradas... — comecei a contar.
— Eu sei. — ela disse. — E tem algo de muito estranho em toda
essa história. Era para ter uma fila de mulheres atrás de você no setor de
Produção. Se elas soubessem que por trás do rostinho de neném tem uma
máquina mortífera...
Gargalhei meio sem graça, voltando a beijar seus cabelos.
— Eu sequer tenho forças para atravessar os duzentos quilômetros
que separam o seu quarto do que estou dormindo — ela brincou, pegando
uma de minhas mãos e beijando sua palma.
— Durma aqui — pedi, afundando minhas narinas no vão do seu
pescoço e sentindo seu cheiro acolhedor de hibiscos e rosas.
— Tem certeza? — A Ana insegura, que raríssimas vezes dava as
caras, apareceu por um átimo.
— Claro, Ana. — Beijei sua pele e também seus lábios, quando ela
ofereceu o rosto. — Por favor, durma comigo.
Ela concordou, sorrindo e balançando a cabeça. O movimento fez a
franja se espalhar em seu rosto e fiquei apreciando-a. A mulher mais linda de
todo o universo, por dentro e por fora, ali, na minha cama.
Seria melhor ainda quando voltássemos para Goiânia.
Planejava pedi-la em namoro, levá-la para o meu verdadeiro lar e lá
fazê-la minha. Ana já fazia parte da minha vida, ainda que como amiga. O
que eu pretendia, assim que voltássemos, era destinar a ela o seu papel de
direito desde o primeiro momento em que a vi, de botas e meias de planetas,
um vestido de personagem animado, e uma vontade de viver que me fazia
querer o mesmo.
— O que está pensando? — ela questionou, passando o polegar por
meu rosto.
— Em o quanto você é linda... — disse depois de um tempo.
Ela sorriu e passou as unhas de forma sorrateira por minhas costas.
Aquilo fez meu corpo arrepiar-se, e acabei deitando-me de bruços na cama,
convidando-a a continuar as carícias. Ana levantou seu tronco e passou os
dedos com suavidade por minha pele, em uma massagem gostosa, e parando
lentamente na região das omoplatas.
— “A tempestade que chega é da cor dos teus olhos” — ela recitou
baixinho, passando os dedos com suavidade na frase que eu tinha tatuada nas
costas.
— Minha mãe — expliquei, também em voz baixa. Ana era a
primeira pessoa, depois de meus três amigos, a saber o sentido daquela frase.
— Ela adorava essa música. Quando completou quinze anos da morte deles,
depois de passar o dia vendo os jornais relembrar mais uma vez o acidente,
aceitei um convite de Benício e Gustavo para bebermos todas em um bar.
Ricardo estava viajando com a noiva. Bêbado, tive um rompante de loucura e
acabei tatuando essa frase. Acho que era a única coisa mais racional que eu
conseguia pensar.
— É uma frase linda. Se arrepende?
— Não. Nem por um segundo. — E era verdade. — Gustavo,
esperto que só, manteve-se sóbrio e não tatuou nada enquanto Benício, por
muito pouco, não escreveu o nome da mãe, alegando que jamais tatuaria o
nome de uma mulher que não fosse ela.
— A não ser que Laila peça.
— A não ser que Laila peça — concordei, rindo.
Senti seus dedos percorrerem minhas costas, provocando um arrepio
por onde passavam. Seu silêncio me incitou a contar mais:
— Tatuagens não têm que ter um sentido, é o que dizem. Só que
sempre que escuto essa música, me lembro dela.
— O que mais te faz lembrar deles?
— Os jogos de futebol da fábrica.
— Sério? — Ela inclinou o rosto para me olhar nos olhos.
— Sim. — Sorri para ela, fechando os olhos e curtindo a massagem
que ela agora fazia em minhas costas. — Eu era muito tímido e meu pai certa
vez perguntou o que eu queria fazer. Eu disse futebol, meio sem pensar. Ele
me inscreveu numa escolinha e eu passei a adorar o esporte. Fazia porque me
sentia enturmado sem precisar conversar muito. Eles sempre iam me ver
jogar nos campeonatos infantis. — Soltei um gemido quando senti seus
punhos apertarem minha coluna, relaxando os nervos. — Do campo, eu
olhava para meu pai sentado na arquibancada e via um pai normal, diferente
do político da TV. — Fiz uma pequena pausa, sentindo as mãos de Ana me
explorarem. — Acho que por isso os outros fazem tanta questão de jogarmos
todos os sábados. Eles sabem o que significa para mim.
— Nunca imaginei que fosse isso. — Ela resvalou os lábios em
minhas costas, num beijo breve. — Eu e as meninas sempre achamos tudo
um imenso ritual de machões que queriam uma chance de expor seus corpos
seminus e suados.
Eu ri da fala dela e deixei que me acariciasse nas costas. Ela
inclinou-se novamente para me beijar e senti seus mamilos roçarem em mim.
Eu já queria aquela mulher de novo, e passaria a noite inteira dentro dela, se
fosse possível.
— Sempre te achei bem bonito — Ana sussurrou, beijando meus
cabelos. Aquelas carícias estavam boas demais.
— Não precisa exagerar — brinquei com ela.
— Juro. — Ela voltou a massagear minhas costas. — O mais alto.
Educado, contido, com esses ombros imensos e os cabelos meio lisos. Os
óculos são o charme a mais. Eu sempre disse isso para as meninas.
Continuei em silêncio, deixando-a falar.
— Por que isso demorou tanto para acontecer? — Ela claramente
falava de nós.
Talvez porque eu fosse ridiculamente tímido demais para me abrir...
— Porque as coisas acontecem no tempo certo.
Ana concordou com a cabeça, deitando-se ao meu lado. Virei meu
corpo e a abracei, puxando-a para perto.
— “Então me abraça forte. E diz mais uma vez que já estamos
distantes de tudo” — Ana entoou baixinho.
— “Temos nosso próprio tempo...” — completei, sentindo seu corpo
se aquecer ao meu. Aquilo já estava me deixando duro de novo.
Não demorou muito para Ana romper com o silêncio.
— Pergunta aleatória.
Só sorri de volta, esperando por seu questionamento.
— Quantas vezes acha que consegue me fazer gozar em uma única
noite?
Aquilo me fez gargalhar.
— Podemos fazer um experimento.
— Excelente ideia. — E se voltou para mim, beijando meu rosto.
Quando acordamos no dia seguinte, estávamos cansados, porém
revigorados. Ana voltou sorrateiramente para seu quarto, onde se arrumou
para o último dia de congresso.
Nos encontramos no café e, confesso, surpreendi-me um pouco ao
notar que, mais uma vez, seríamos só nós dois naquela mesa. Eu já tinha
olhado alguns hotéis na região, mas cheguei a pensar que seria injusto com
meus avós me afastar assim, sem motivo.
Acontece que eles também não pareciam muito dispostos a se fazer
presentes naquela estadia.
Chegamos ao salão de eventos e, de cara, percebemos que aquele
seria um dia diferente. O local fervilhava, e havia um número considerável de
equipes de TV e jornalistas posicionados na entrada, procurando
aleatoriamente entre os rostos por suas próximas vítimas.
Não demorou muito até reconhecerem o filho de Elias Venturini e
dono de uma das empresas que seria homenageada aquele dia.
— Eduardo Venturini! — um deles gritou.
Era incrível como nunca me chamavam só de Eduardo naquela
cidade.
— Bom dia... — Tentei permanecer simpático, pensando na LBK.
— Hoje vocês serão um dos homenageados do congresso. Poderia
falar com a gente por um minuto?
Tática número um quando precisava me afastar da imprensa: Ser
esquivo e evasivo.
— Estamos um pouco atrasados para a cerimônia agora, mas no final
do evento podemos tentar.
O repórter sorriu um pouco decepcionado e eu me senti culpado,
pois sabia que era só o trabalho dele. Acontece que nunca me sentia bem com
a imprensa, principalmente daquela cidade.
— Posso falar com eles em nome da LBK, depois que tudo acabar
— Ana sussurrou ao meu lado, pegando minha mão com força.
— Por favor. — Sorri de volta para ela.
Entramos no imenso salão e logo fomos abordados por um dos
cerimonialistas. Ele nos encaminhou até as cadeiras da primeira fileira, onde
esperaríamos ser chamados.
O último dia de evento seria bem curto. Haveria uma cerimônia
breve de encerramento, onde os organizadores apresentariam as empresas que
foram destaque no ano em práticas sustentáveis de produção. Além da LBK,
outras quatro empresas seriam citadas. Muito provavelmente nos chamariam
ao palco, entregariam um prêmio e certificado simbólico e liberariam o
microfone para que eu dissesse algumas palavras.
Aquele era o momento que eu mais temia.
Sentia minhas mãos suarem de ansiedade e a sensação só aumentou
quando o presidente da mesa começou a falar. Agradeceu a todos os
presentes e começou a narrar sobre as empresas destaques do ano. Suas
palavras logo deixaram claro que a LBK seria a primeira anunciada.
O vento frio do ar condicionado aumentava a sensação gelada e
esfreguei as mãos com vigor, afastando a ansiedade de falar para toda aquela
plateia e imprensa.
Foi quando senti uma mão quente encobrir a minha.
Ana apertou meus dedos entre os seus e então sorriu para mim,
quando nossos olhos se encontraram. Em silêncio, ela retirou a echarpe rosa,
que já era sua marca registrada naquela viagem, e me entregou, esfregando o
tecido fino em minhas mãos.
— Fica retorcendo ela. Me ajuda a aliviar a tensão.
Olhei para o pedaço de tecido de cor neon e tive vontade de aspirar
seu perfume, mas contive-me, fazendo somente o que Ana disse. O tecido
tinha um toque meio acetinado, e seu fricçar realmente emitia um pequeno
ruído que trazia conforto. Apertei a echarpe entre os dedos e suspirei fundo.
— Pode subir com ela, se quiser — Ana ofereceu.
— Obrigado — murmurei de volta, beijando o topo de sua testa.
Minutos depois, meu nome foi anunciado.
Como haviam outras empresas a serem citadas na manhã, um
discurso pequeno e sucinto agradaria a todos. Imaginei o que Gustavo ou
Ricardo diriam e agradeci ao reconhecimento por aquela menção. A LBK era
uma empresa de nome antigo, mas que orgulhava-se da sua história recente.
Nos preocupávamos não só com o que a empresa produzia, mas com o que
ela deixaria de herança para seus funcionários, clientes e até mesmo o
planeta.
Fui surpreendido com uma salva de palmas no momento em que o
apresentador da cerimônia agradeceu minhas falas e me entregou uma
pequena placa de honraria e um certificado simbólico. Agradeci e desci
novamente as escadas, percebendo só naquele momento que havia entoado
todo o discurso com a echarpe de Ana enrolada entre as mãos.
— Você foi ótimo! — Ela vibrou assim que cheguei.
— Nem lembro o que foi que eu disse.
— Disse tudo que deveria dizer. — Ela me enlaçou a cintura por um
segundo, como se comemorasse. — Não se preocupe.
Suspirei aliviado.
A cerimônia transcorreu rapidamente e logo todos foram liberados
para um café de encerramento. A pior parte do dia já havia passado e agora só
restava lidar com a maldita entrevista.
Entramos na imensa recepção do espaço de eventos e, não demorou
muito, já haviam nos encontrado.
— Eduardo Venturini, muito prazer! — Uma repórter simpática
surgiu na nossa frente, levando um cinegrafista a tiracolo. — Somos do
Curitiba Primeira Edição, da TV Paranaense. — Justamente a rede de TV
com mais audiência do estado? — Viemos aqui acompanhar a entrega da
honraria à sua empresa e entrevistá-lo.
— Foram vocês que conversaram com meus sócios?
— Sim. — A jornalista teve o profissionalismo de conversar
primeiro, antes de já sair filmando. — Peguei com eles alguns dados sobre a
fábrica e as últimas linhas que vocês têm desenvolvido. Vamos veicular a
entrevista no jornal da noite e no sábado, onde temos um programa que fala
sobre personalidades de Curitiba que se destacam no país.
— Bom, eu não gostaria que o foco da entrevista fosse eu, e sim a
empresa. Até mesmo porque quem vai falar é nossa representante do
marketing. — Apontei para Ana e ela sequer pestanejou antes de avançar
alguns passos e cumprimentar a mulher.
— Ana Catarina, muito prazer. — Vi como ela esquecia-se que
detestava o Catarina quando preciso, e aquilo me fez sorrir. — Eduardo é
nosso diretor de Produção, mas vim representando Gustavo, o diretor de
Marketing.
— Ah... — A outra mulher pareceu um pouco decepcionada. — Mas
gostaríamos de ouvir um dos sócios da empresa. Eu vi o discurso de Eduardo
durante a premiação e acho que...
— Ele precisa falar com os organizadores do evento antes do
encerramento — Ana disparou a falar, enquanto me empurrava para longe e
voltava-se para a mulher de forma controladora. — Tivemos um problema
em nossa hospedagem do hotel, e acabamos perdendo um dia inteiro de
congresso. Algumas reuniões que estavam marcadas precisaram ser
canceladas e ele vai tentar fazê-las ainda hoje, antes de voltarmos para
Goiânia.
— Mas é rapidinho...
— Você precisava ver como ficou o quarto do hotel. — Ana ligou a
velocidade máxima e seguia sem freio, o que me fez querer gargalhar,
enquanto eu me afastava sorrateiramente. — O registro do banheiro
arrebentou e ficamos sem ter para onde ir. E nesse frio! Por falar nisso, vocês
fizeram muitas matérias essa semana sobre o frio? Eu achei que fosse
congelar na quarta-feira...
Infiltrei-me entre os demais presentes e consegui, com isso, fugir de
todos os jornais. Passei cerca de meia hora andando ao léu entre mesas de
sucos e patês até que vi as mãos sedosas de Ana erguerem-se na multidão e
me chamarem, sutil como ela só.
Saímos de fininho e só no refúgio do carro, sozinhos, resolvi
perguntar sobre a entrevista.
— Foi tranquila. — Ana bocejou. — Ela fez perguntas sobre a
premiação e insistiu umas duas ou três vezes em falar com você. Eu disse que
pegaria umas falas suas e enviaria por telefone. Ela pareceu satisfeita.
— Nem sei como te agradecer por isso... Não era seu papel dar essa
entrevista, e mesmo assim você fez.
Ela tocou em meu rosto, ajeitando meus óculos antes de responder:
— Ninguém deve ser forçado a fazer algo que não quer. — Me
beijou na ponta do nariz. — Se te incomoda tanto falar com eles pois sabe
que vão citar o acidente dos seus pais, então não fale.
Concordei, acenando com a cabeça, e me aproximando dela. Ana
voltou a bocejar e aninhou-se em meus ombros, como naquele dia no avião.
— Você parece cansada.
— Alguém não me deixou dormir à noite...
— Você tinha uma pergunta aleatória que precisava ser respondida.
— Acariciei sua nuca, vendo-a fechar os olhos. Ela riu e beijou meu pescoço.
— Ricardo me mandou uma mensagem avisando que, como as passagens
estão no nosso nome, nós mesmos teremos que remarcar, mas já foi aprovado
pelo Financeiro.
— Vamos ficar até domingo? — Ela tinha os olhos pesados.
— Se você quiser, sim. Já até remarquei a minha enquanto você
dava a entrevista. — Apertei-a contra minha cintura. — Podemos ficar na
casa dos meus avós, mas andei olhando alguns hotéis com quartos
disponíveis. Alguns até fora da cidade. Podemos almoçar, você descansa e
então saímos.
— Comi tanto naquela recepção que nem quero almoçar. — Ela
fechou os olhos por um segundo e sorriu. — E fui comida tanto ontem à noite
que estou quase dormindo de pé.
Olhei de relance para o motorista, temendo o que ele tivesse
escutado e contive uma risada. Ana também riu e seguimos em silêncio.
Ao chegar na mansão dos Venturini, levei-a até seu quarto e deixei
que descansasse. Procuraria meus avós para uma última conversa antes de
sairmos de lá.
Eu não queria mais me manter afastado. Talvez aquele pequeno
imprevisto na viagem tenha servido para mostrar que, apesar de todas as
divergências, não fazia sentido vivermos como estranhos, sem nunca
compartilhar um os aspectos da vida do outro.
Sei que jamais mudaria meus avós. Eles também estavam longe de
qualquer tipo de poder sobre minha vida ou decisões. Só queria mostrar a eles
que a porta da minha casa estaria sempre aberta. Ainda que, durante a minha
pequena passagem ali, nenhum dos dois tenha se dignado a querer me ouvir
ou saber como eu tinha passado os últimos três anos.
Procurei por minha avó na saleta de TV, contígua à cozinha, mas
estava vazia. A cozinheira informou que eles me esperavam no jardim, ao
lado da piscina. Achei aquilo no mínimo estranho, mas fui até lá.
E quando cheguei e percebi o barulho de vozes altas e risadas
exageradas meu sangue gelou. Meu corpo enrijeceu-se, prevendo um
reencontro que somente José Carlos Venturini, com sua frieza política e
ausência de tato, seria capaz de proporcionar.
Ao lado da piscina, rodeado de cabos de energia, holofotes e
câmeras, estava Anderson Arruda.
O jornalista por trás da cena apoteótica do jovem e espinhento
Eduardo Venturini chorando ao lado do caixão dos pais, e que foi repetida à
exaustão por toda a mídia nacional.
O homem que perguntou para um garoto de dez anos que tinha
acabado de perder os pais se ele “sentia-se pronto para honrar o nome de
Elias Venturini, assumindo sua carreira”.
Ali, sorrindo e sendo o centro das atenções dos meus avós, estava o
responsável por todos os meus traumas com imprensa, televisão e entrevistas.
Capítulo 12

A pequena soneca na hora do almoço foi recompensadora. Acabei


dormindo mais do que o previsto, e por mim ainda ficaria algumas horas na
cama, mas precisava me levantar e ver com Eduardo qual seria o voo da
nossa volta.
Passar o final de semana inteiro com ele...
Aquilo me parecia quase um sonho.
Há cinco dias eu estava apavorada no salão de embarque, com medo
de morrer em uma queda de avião e querendo matar Gustavo por me colocar
naquela situação sem aviso.
Agora, qualquer mínima coisa que me fizesse passar mais tempo ao
lado de Eduardo era excitante e bem-vinda.
Um voo com turbulência e chuva de meteoros?
Encaro! Se for para ter Eduardo ao meu lado, segurando firme
minhas mãos e rindo das minhas perguntas idiotas.
O homem mal me deixou dormir na noite anterior, me provocando e
fazendo gozar de todas as formas possíveis, mas a verdade é que eu ainda
tinha medo do nosso retorno. De que ele voltasse a ser o amigo tímido que
me trata com certa reserva e de quem eu jamais imaginaria todo aquele fogo
na cama.
E como eu ainda não sabia o que esperar depois daquela viagem,
queria aproveitar os mínimos momentos.
Desci as escadas do imenso casarão em busca dele. Com um
pequeno esforço de memória, consegui encontrar a pequena sala colada à
cozinha, mas esta parecia deserta. Na cozinha, deparei-me com Lurdes, que
parecia a única alma viva do lugar.
— Boa tarde, Lurdes. Você sabe onde posso encontrar o Eduardo?
— Boa tarde, Ana. — A mulher sorriu para mim. — Estão todos na
piscina.
Bela ajuda... E cadê o mapa para eu encontrar a piscina?
— Pode me mostrar onde é?
Ela me levou por uma pequena porta de vidro e mostrou um
caminho serpenteado por bromélias e outras plantas. Andei até uma outra
porta de vidro que me levou a uma imensa varanda muito bem decorada,
onde julguei que eles estivessem.
O local era requintado, com imensas espreguiçadeiras de corda e
uma banheira de hidromassagem em seu interior, coberta por uma lona.
Incrível como um local com tantos ambientes, tanto dinheiro gasto,
não tivesse sido capaz de cativar um adolescente cheio de vida como
Eduardo.
Olhei em volta até encontrar a imensa piscina do lado de fora, além
das imensas portas venezianas.
O local estava movimentado. Um grupo de cinco ou seis homens
levavam cabos para lá e para cá, com câmeras, microfones tipo boom e
equipamentos de iluminação presos em suportes imensos.
Ao centro da imensa confusão de fios e computadores estavam
Eduardo, seu avô e um senhor com nariz de águia.
Essa não!
Tentei abrir uma das portas venezianas que levavam à piscina, mas
elas estavam trancadas por fora.
Encostei meu rosto no vidro para tentar ouvir o que eles diziam, mas
era impossível. Ao centro, Eduardo parecia em pânico. Paralisado, como uma
presa rodeada de leões.
Eu precisava ajudá-lo a sair daquela situação antes que ele sofresse
um ataque!
Bati os punhos contra o vidro da porta, o que chamou a atenção de
um dos homens que ajeitava os fios das câmeras. Ele me olhou por meio
segundo e fez um sinal de silêncio, encobrindo os lábios e apontando para um
pequeno flash que piscava acima da sua cabeça e que eu ainda não havia
notado.
Eles estavam ao vivo!
Droga!
Precisava tirar Eduardo daquela situação, e urgente!
Corri os olhos por toda a área externa, procurando por outra porta de
acesso. Logo encontrei uma no canto esquerdo, bem distante deles.
Reconheci aquela como uma das imensas salas da entrada.
Voltei pelo caminho que havia passado e cruzei a cozinha feito um
raio. Com um pouco de sorte, consegui localizar uma das salas que levava à
piscina. Dessa vez, a porta não havia sido trancada.
Tentando não chamar atenção, aproximei-me do pequeno grupo que
devorava Eduardo. Ele tinha os olhos vidrados no homem que parecia ser um
apresentador. Era um senhor mais velho, com um nariz afinado e os cabelos
falsamente pintados de preto. Usava um terno elegante e tinha um sorriso de
hiena que de imediato me incomodou.
O homem falava sem parar, sempre entre risos, olhando para a
câmera como se ela fosse o quarto integrante daquela conversa.
— Eduardo Venturini era uma criança quando o conheci, e hoje é
homem feito, dono de uma das maiores fábricas de cosméticos do país! — o
apresentador desconhecido narrava. — Nem lembra mais o menino chorão e
com olhos medrosos com quem conversei quando seus pais morreram.
Aquele acidente havia ocorrido há uns vinte anos atrás e o filho da
mãe do tal repórter fazia questão de tocar no assunto, carregando na emoção e
fazendo uma cara de pesar que faria muitas velhinhas correrem para pegar
seus lencinhos em casa.
Era de um sensacionalismo barato e que justificava todas as reservas
de Eduardo.
Comecei a me aproximar em silêncio, evitando causar uma situação
ainda mais constrangedora para ele, e aguardando o momento certo para
intervir.
— Mesmo com toda minha insistência, a verdade é que Eduardo tem
um dom — o seu avô entoava de forma pomposa. — Ele foi fazer o seu nome
em outras terras e, se quer saber a verdade, meu amigo, hoje vejo que nada do
que eu dissesse o impediria de seguir seu caminho. É um empresário de
sucesso e comanda uma das maiores fábricas do país. Sabia que o nome dele
estampa todas as embalagens da marca? — E sorriu luminoso.
Vontade de jogar um daqueles tripés com holofotes na cara do velho
idiota!
— Impressionante, José Carlos — O apresentador, que eu ainda não
sabia o nome, sequer dava chance a Eduardo respirar. — Pena que o país
perdeu um político...
— Mas ele segue fazendo política em seu estado, com ações sociais
com sua empresa. Campanhas de Natal, dia das Crianças...
Pelo amor de Deus, eu vou bater o microfone na boca do velho!
Posso acabar com qualquer possibilidade de entrar para essa família, mas
eu vou!
— Não fazemos nada de mais — Eduardo falou com a voz um
pouco travada, assim como sua postura. Percebi que ele estralava os dedos
nervoso. — Eu e meus sócios. — Ele deu bastante ênfase a essa informação
— Nos preocupamos com o impacto social da fábrica na região. Só isso.
— E como resultado dessa preocupação, soube que recebeu um
prêmio hoje, no congresso... — O apresentador voltou-se para um dos seus
assistentes. — Qual é o nome do congresso mesmo?
— Congresso Latino-Americano de Indústrias de Cosméticos —
Eduardo informou. — E foi somente uma menção honrosa por ações
sustentáveis na nossa produção. Uso de logística re...
— A preocupação com a sustentabilidade deveria ser obrigação de
todas as empresas nos dias de hoje. — O apresentador, com seus comentários
idiotas, deixava claro que não sabia nada sobre a LBK. Nem o nome da
empresa havia sido citado por ele, que seguia interrompendo Eduardo sem
parar.
Olhei para o emaranhado de fios e me aproximei mais alguns passos,
postando-me logo atrás de uma das telas que reproduzia a entrevista. Minha
intenção era ser vista por Eduardo e, quem sabe, passar um pouco de
segurança para ele.
— Como disse — o avô de Eduardo retomou a palavra —, Eduardo
segue fazendo política, mas uma política empresarial. — Ele deu uma
risadinha baixa e Eduardo se voltou para ele. — Afinal de contas, um fruto
nunca cai longe do pé...
— Não mesmo. — O apresentador voltou-se para a câmera. —
Estamos aqui, com exclusividade, conversando com Eduardo Venturini. Filho
do saudoso Elias Venturini, morto de maneira trágica em um acidente que
poderia ter sido evitado, e que agora está revolucionando a indústria de
cosméticos. — Pela pequena tela do televisor vi quando ele piscou para a
câmera, antes de prosseguir: — E isso vocês só vão ter aqui, no “A Tarde
Curitibana”. Entrevista exclusiva, minhas amigas. A concorrência deve estar
se mordendo a essa hora, pois o máximo que conseguiram foram algumas
falas de uma representante da empresa.
Representante?
Enruguei a testa e empertiguei meu corpo, prestando atenção em
como Eduardo reagiria.
— É nossa analista de Marketing — Eduardo corrigiu, e eu suspirei
aliviada por não ter que afundar o boom naquela peruca pintada de preto.
— Hum... — O homem fez uma cara feia, retorcendo o beiço para a
câmera, e recomeçou a dizer suas asneiras: — Dizem que as mulheres
goianas têm uma beleza só delas...
Meu sangue ferveu, mas eu seguia paralisada, analisando as reações
de Eduardo. O vi cravar os olhos no nada. Suas pupilas perderam o brilho
rapidamente e ele pareceu em transe quando respondeu, sem olhar
diretamente para ninguém:
— Falávamos sobre a fábrica... Eu e meus sócios...
— Vocês se dão bem? Por que eles não estão presentes nessa
viagem? — O apresentador era rápido.
— A fábrica exige muita atenção. Não podemos nos ausentar todos
ao mesmo tempo... — Ele continuava olhando para o nada, com os ombros
caídos, e aquilo apertou meu peito. Era como se o Eduardo que conheço
tivesse desaparecido e só restasse uma carapaça dura que tentava se defender.
— Não me parece muito empolgado em falar dos seus sócios...
Quem é que comanda tudo no final das contas?
— Ninguém comanda aquilo ali. São todos um bando de idiotas,
cada um com sua função.
Não, Eduardo! Esse não é o caminho! Encerre essa entrevista! Você
tem poder para isso!
O apresentador riu, passando a mão de leve naquele cabelo preto
horroroso e voltando-se para a câmera:
— As máscaras começam a cair... Por que não assume tudo, então?
— Já disse — ele foi seco. — São todos uns idiotas. Nem vale a
pena.
Ele queria encerrar aquilo, mas estava só piorando as coisas.
O apresentador suspirou, notando a irritação de Eduardo, porém não
fez menção de acabar com aquilo. Simplesmente mudou de assunto e
prosseguiu:
— E voltando a falar nas goianas, o nosso empresário herdou o
sucesso com as mulheres dos homens da família?
O avô de Eduardo soltou uma gargalhada alta e vi o momento em
que Eduardo olhou para as próprias mãos. Meu sangue gelou no corpo e colei
meus olhos na tela do pequeno televisor, como se não quisesse ver aquele
desastre ao vivo.
Aquilo parecia nunca ter fim, e eu já não sabia o que fazer!
— Sou um homem focado na empresa — ele demorou a responder e,
quando o fez, sua postura mudou. Tinha os olhos voltados para a câmera,
como se quisesse garantir que estavam prestando atenção ao que dizia. —
Não tenho tempo para compromissos.
Eduardo ainda não tinha notado minha presença, mas a forma como
ele dizia aquelas palavras diretamente para a tela, era como se falasse
comigo. E me atingiu.
— Então sem namoradas? — O apresentador insistiu.
— Sim.
— Nem uma amiga?
Por favor, Eduardo, não minta... Você não precisa mentir sobre
isso...
— Nada — ele falou com voz firme. — Como disse, meu foco é a
empresa. Mulheres são só um... passatempo. Não tenho interesse algum em
me envolver de forma séria com elas. Sejam goianas ou de qualquer outro
lugar.
Merda!
Dei dois passos para trás, tentando digerir o que ele tinha acabado de
dizer. Acabei tropeçando no emaranhado de fios e chamando a atenção de
parte da equipe de gravação.
E foi só naquele momento que Eduardo me viu.
Vi quando arregalou os olhos e endireitou o corpo, ameaçando
levantar-se. Um dos assistentes do programa surgiu na minha frente e fez um
sinal de silêncio com olhar raivoso. A única coisa que consegui enxergar por
trás dele foi o momento em que o avô de Eduardo me viu e, abrindo um
sorriso de escárnio, colocou uma das mãos no braço dele, antes de dizer:
— Eduardo é muito profissional. Ainda vai encontrar alguém à
altura dos Venturini.
Dei um passo para a lateral, de modo que o rosto do homem a quem
me entreguei nos últimos dias voltasse ao meu foco. Ele me olhava lívido,
tinha os olhos grudados em mim e parecia branco feito papel. Dei dois passos
na direção da porta de saída e, como se liberado de um transe, Eduardo
finalmente levantou-se.
— Aconteceu alguma coisa? — Escutei a voz do apresentador,
segundos antes de me virar para sair da área externa.
— A entrevista acabou. — Ainda tive tempo de ouvir Eduardo falar,
antes de passar pelas portas de vidro e ir em direção ao salão requintado.
Mulheres são só um passatempo...
É isso que ele pensava ao não se envolver com mulher alguma?
Por isso vivia sempre tão reservado?
Por isso não tinha namoradas ou paqueras?
Então ele não sentiu nada por mim durante esses dias?
Não...
O que vi nos olhos de Eduardo foi desejo. Intenso.
Mas por que escondê-lo?
Que motivos ele teria para mentir?
Isso era ainda mais difícil de compreender.
Senti suas mãos imensas segurarem meu braço com força.
— Ana, me escuta... — Ele tinha os olhos arregalados e me fitava
sério.
— Eu já escutei, Eduardo. — Cravei meus olhos nos dele. — Eu e as
milhares de pessoas que acompanhavam toda aquela palhaçada ao vivo.
— Eu não sabia o que dizer e... e...
— E o que? — Notei uma movimentação no canto do olho. Imaginei
que fossem os avós dele e a equipe de TV, mas para mim pouco importava
que tivéssemos plateia. Talvez para Eduardo, sim. — Conheço você como
chefe há anos. De dois anos para cá, como amigo, e nunca... nunca vi você
mentir. Então quero que repita olhando nos meus olhos o que acabou de dizer
para milhares de pessoas.
— Não é verdade, Ana... Por favor...
— Repita: Você não tem tempo para compromissos, e mulheres são
só passatempo.
— É mentira — ele sussurrava com desespero na voz.
— Não tem ninguém na sua vida... — Engoli um soluço.
— Eu menti, Ana. Precisa me ouvir.
— Por que?
Por que mentir, Eduardo?
Por que esconder o que tivemos, se não simplesmente porque foi
algo insignificante para você? Um passatempo entre amigos vivido durante
uma viagem fugaz?
— Porque não foi um passatempo entre amigos! Muito menos fugaz!
— Ele explodiu, pegando meu outro braço e tentando me puxar para perto de
si.
Eu e a merda da minha boca aberta, que sempre tenho que falar
tudo o que penso!
Será que nem a insegurança eu era capaz de guardar?
— Du... — sua avó chamou. — Compostura, por favor.
Aquilo foi demais para mim. Em um segundo de distração dele,
afastei-me dos seus braços com um puxão, voltando a dar as costas e
seguindo em direção aonde quer que aqueles imensos corredores me
levassem.
— Ana, espera! — Ele voltou a me seguir.
— Não quero mais ser espetáculo para todas essas pessoas... — falei
nervosa. — É isso o que pessoas como esse repórter e seus avós fazem.
Transformam a vida dos outros em um verdadeiro circo, que tem como
enredo principal distraí-los, diverti-los e humilhar os pobres palhaços
escolhidos para encenar o espetáculo.
— Vamos conversar no meu quarto. — Ele deu dois passos largos e
já tinha me passado no corredor, me forçando a parar e fitá-lo. — Me
desculpa, Ana. Eu não vi que você estava lá.
— E isso faz diferença? — Dei um passo em sua direção, e ele não
recuou. Tentou me enlaçar pela cintura, mas impedi. Não conseguiria
continuar com seu corpo me tentando. — Você disse aquilo não para mim,
mas para milhares de pessoas. Ao vivo!
— Fiquei com medo que especulassem quem era você. Que se
metessem na sua vida. Aquele jornalista é um babaca, Ana. Você não o
conhece. Só queria que você ficasse de fora de toda essa sujeirada.
— A verdade, Eduardo. Eu sempre vou preferir a verdade. — Ele
conseguiu me enlaçar e me puxou para si. Senti seu corpo enrijecido de
tensão e esforcei-me para me manter firme e não ceder. — E você ainda não
me disse qual é a verdade. O que foi que aconteceu entre nós. Se foi só um
lance de uma semana ou se foi algo a mais... — Eduardo afundou o rosto em
meu pescoço, como se pudesse me quebrar. — Porque para mim não foi só
um... passatempo.
— Para mim também não! — Ele quase gritou, puxando de leve os
cabelos da minha franja ao me encarar. — Nunca foi! Você precisa saber,
Ana. Eu estava apavorado! Não sabia o que dizer e...
— Eu sei — murmurei resignada. — Você não sabia o que dizer e
falou aquelas coisas sem pensar. — Suspirei fundo. — Mas só gostaria de te
lembrar uma coisa, Du. Quem diz as coisas sem pensar aqui sou eu.
Recomecei a andar até reconhecer uma das escadas que levaria ao
“meu quarto”. Comecei a subir, indo em direção ao aposento, e ele voltou a
me interromper:
— Onde está indo?
— Você tinha razão em não vir para cá, Eduardo. Seus avós são
mesquinhos. Frios. Soberbos. Manipuladores. Me desculpe ser sincera e dizer
isso assim para você, na lata, mas é o que eles são.
— Vamos sair daqui agora — ele suplicava atrás de mim e tinha a
voz ofegante. — Eu ainda não reservei um hotel, mas isso pouco importa.
Saímos agora se você quiser.
— Eu vou sair. Você pode ficar.
— O que?
— Ainda não remarquei meu voo. Vou voltar para Goiânia. É só o
tempo de fechar minhas malas e vou para o aeroporto.
— Não, Ana! — O vi ficar branco como papel.
— Não quero mais ficar aqui, Eduardo. — Suspirei alto. Ao ver a
porta do quarto de hóspedes, caminhei até ele, seguida por Eduardo de perto.
Quando ele tentou me impedir de entrar, virei-me para fitá-lo. — Vamos sair
na rua e as pessoas vão te reconhecer. E eu serei seu passatempo...
— Pelo amor de Deus, Ana! Não é isso! — Ele passou as mãos nos
cabelos.
— Você ainda não entendeu, Eduardo? — Encostei meu corpo na
porta quando a raiva começou a me tomar. — Você disse aquilo para uma
rede de TV. Para me proteger, para se proteger... Não importa o motivo. Você
disse! E, não importa quem sejam seus avós, como tenha sido sua infância,
quem seja o repórter... O que você diz é responsabilidade exclusivamente
sua. — Fiz uma pausa, respirando fundo. — Assim como tudo o que você
não me disse também é escolha sua.
E abri a porta em um solavanco.
Eduardo era imenso, alto e de coxas firmes exercitadas com o
futebol. Quando fiz menção de entrar, bastava que ele forçasse um pouco a
porta para entrar também.
Mas ele não o fez.
Ficou parado no corredor, os olhos meio pedintes, sem nada dizer.
E então eu fechei a porta.
Merda!
Corri até o canto do quarto onde minha mala permanecia jogada e
comecei a colocar todos os meus pertences lá com raiva.
Eu me ofendi com as palavras dele. Verdades, mentiras... tanto faz.
Foram palavras ditas para uma rede de TV e que me atingiram como uma
lança em chamas.
Eu descobri, talvez tarde demais, que havia me apaixonado por
Eduardo. Que, ainda que nunca tenha escutado dele uma única palavra de
seus sentimentos, esperava que ele gostasse de mim.
Talvez ele até gostasse.
Talvez o que vi em seus olhos no Jardim Botânico, e depois no
quarto do hotel e também na cama que dividimos fosse algo além de desejo
por sexo.
Talvez ele também gostasse de mim com uma vontade interna de
compartilhar todos os segundos juntos, que é o que eu sentia por ele, mesmo
em tão pouco tempo.
Mas só talvez...
E eu, tão acostumada a sempre dizer tudo o que penso, tudo o que
sinto, não sei lidar muito bem com o talvez. Porque o talvez mora nas
palavras não ditas, nas incertezas do silêncio e nas mentiras.
Principalmente nas mentiras...
Se tudo aquilo foi uma armadilha dos seus avós, para mim não
importava. Só não queria mais estar naquela casa, pois acostumei-me com a
sinceridade, com vozes altas e que nunca tinham medo de dizer o que
pensavam.
Repassei os olhos por todo o quarto, procurando por qualquer
pertence meu que pudesse estar esquecendo. Fechei a mala com rapidez e
tornei a abrir a porta, na intenção de sair o quanto antes daquela casa.
Não sei quanto tempo havia se passado, mas Eduardo continuava do
lado de fora, sentado no chão do corredor, à minha espera.
— Você tem razão. — Ele levantou-se de um solavanco, travando o
corredor e me impedindo de passar. — Não posso culpar os outros por coisas
que eu disse, mas gostaria que soubesse que foi tudo uma grande besteira. Eu
não gosto de imprensa, jornais... você sabe. Esse cara, então... Eu entrei em
pânico, Ana... Não pensei em nada direito e fiz merda.
Aproximei-me dele com calma. A raiva inicial e sem sentido estava
passando, mas a decepção continuava ali, e foi amparada a ela que me
esforcei para dizer as palavras:
— Acredito que você possa ter agido sem pensar sim, Eduardo. Por
pânico, no calor do momento... Você nem disse uma ofensa tão grande
assim...
— Mas?... — Ele deu um passo em minha direção.
— Mas lembra quando te disse que você nunca deveria ser forçado a
fazer algo que não quer? — Ele concordou. Toda sua atenção voltada para
mim. — Você não era obrigado a nada daquilo. A entrevista, responder
aquelas perguntas... Bastava se levantar e ir embora, como você mesmo fez
ao final.
— Me desculpa, Ana.
— Há anos, Eduardo, você é adulto e independente de suas ações.
Você enfrentou sozinho as vontades dos seus avós e foi estudar aquilo que
queria. Sozinho, tomou a decisão de investir um dinheiro deixado por seus
pais em uma massa falida. Dos quatro sócios, você me parece ser o único que
não precisava daquela fábrica para ser rico. Poderia seguir sua vida como um
Venturini idiota que usa o dinheiro da família para pisar nos outros e esbanjar
seu “Ceschiatti” juntando poeira no salão de entrada. E, olha só que ironia,
você é, de todos, o que mais representa aquela fábrica. O que a faz pulsar,
alimentando as máquinas e garantindo que tudo funcione. Porque esse é você,
Eduardo, e não aquele homem que vi sentado ao lado da piscina e que diz
mentiras para se livrar de pessoas impertinentes. — Ele fez menção de dizer
algo, mas acabou não me interrompendo. — Então eu vou te pedir, não por
mim, mas por você: Nunca duvide de quem você é, Eduardo. Continue sendo
tímido. Reservado. Isso pouco importa. Só não seja ou diga aquilo que você
não é.
Recomecei a andar, passando por ele.
— Você tem razão, Ana — ele disse com voz baixa. — Droga! Você
tem toda a razão, mas... por favor... não vá. Não sem ouvir o que tenho para
te dizer.
— Não posso perder o voo...
— Vamos para um hotel, o Jardim Botânico... onde você quiser.
Saímos daqui, os dois juntos.
— Quero ir para casa. — Meu peito batia forte e fechei os olhos um
segundo, procurando coragem. — Foi especial, Eduardo. Esses dias para mim
foram especiais. E não quero estragá-los com toda a merda que vai vir depois
dessa maldita entrevista.
— Eu vou com você...
— Você já adiou seu voo... — O celular dele começou a vibrar no
bolso e apontei para ele. — E provavelmente vai ter que administrar as coisas
que disse.
Ele olhou por um segundo para o bolso antes de voltar-se para mim,
passando a mão no rosto de forma agoniada.
— Seu voo será só de noite — argumentou, tentando me fazer ficar.
— Prefiro esperar lá — concluí, finalmente passando por ele e
descendo as escadas. Sentia suas passadas angustiadas atrás de mim,
enquanto atravessava os imensos salões vazios e sem vida. Me surpreenderia
mais se encontrasse um dos avós dele pelo caminho.
Eram “superiores” demais para enfrentar aquele tipo de situação e
correr o risco de escutarem umas boas verdades.
Olhei para a tela do celular procurando pelo carro que, segundo o
aplicativo, já aproximava-se dos muros da mansão.
— Posso ficar com você no aeroporto. — Ele tinha a voz suplicante
e me olhava com intensidade.
— Eu realmente prefiro que você fique para lidar com tudo isso. —
Vi o carro virando a esquina e me voltei para Eduardo. — Me desculpe não
ficar com você para te apoiar, mas acho que não é algo que me faria bem.
— Não tem que se desculpar, Ana. — Em uma ação rápida, ele
voltou a me puxar pelo braço e me abraçou junto de si. — Só preciso que
você diga que vai me ouvir. Que vai escutar tudo que quero dizer.
— Se for a verdade...
— Sempre. — Ele me apertou em seu peito. E seu abraço foi tão
forte e intenso que tive que me segurar para não derramar as primeiras
lágrimas ali, na sua frente. — Nunca mais vou mentir, para você ou qualquer
pessoa.
Fechei os olhos por um segundo, me aquecendo do calor acolhedor
que vinha do corpo tenso de Eduardo.
Embarquei naquela viagem a trabalho, sem pretensão alguma. No
meio dela, me descobri em um turbilhão maluco de sentimentos por uma
pessoa com quem convivi por quase dois anos como amigo.
Agora, voltava ferida, pois acostumei-me a ser sempre sincera com
meus sentimentos, e o não dizer, ou mesmo o “dizer inverdades pensando no
bem do outro” eram opções com as quais não estava acostumada.
Eu só queria um tempo, em silêncio.
Só eu e meus pensamentos atropelados.
E foi exatamente isso que tive assim que entrei dentro daquele carro.
Um silêncio ensurdecedor e o tempo, que começou a escoar
infinitamente.
Capítulo 13

Parado ao lado da esteira que começava a ser abastecida pelos


carregadores do aeroporto, notei o momento em que uma mala
ostensivamente rosa começou a percorrer seu trajeto.
A mala era exatamente da mesma cor da echarpe de Ana, que agora
eu levava nas mãos como uma atadura que me mantinha vivo e são.
Desde que Ana voltou para Goiânia aquele pedaço de tecido foi o
que me fez ficar de pé, sentindo seu cheiro o tempo inteiro e repetindo a mim
mesmo que, apesar de toda a merda, eu voltaria a vê-la e resolveríamos tudo.
Tentei ligar para ela algumas vezes, mas Ana não atendeu. E quando
Luciana e depois Lis me ligaram, reforçando que Ana estava bem e só queria
um tempo, parei de insistir.
Tudo o que queria dizer a ela seria dito pessoalmente, para que ela
nunca mais duvidasse que, desde o primeiro momento, eu a quis por inteira.
Corpo, alma e coração. Antes de nos beijarmos eu já a queria.
Ana não era um passatempo, e sim a motivação.
Ela me encorajou por duas vezes em uma única semana a enfrentar
um palco lotado. Despertou em mim o amor guardado. Antes de Ana, não
sabia o que fazer, ou como me mostrar. Depois dela, com apenas cinco dias,
aprendi que não precisava mudar. Só precisava ser eu mesmo.
E dizer.
Dizer que já a amava em tão pouco tempo. Dizer que era ela a
tempestade que previ chegar em minha calmaria, ao tatuar aquela frase em
minha pele. Era a chuva que molharia minhas incertezas e, com suas
perguntas aleatórias, semearia as respostas.
Ainda na tarde de sexta-feira, tão logo o carro que a levava embora
para o aeroporto dobrou a esquina, girei nos calcanhares e voltei com fúria
para dentro da mansão. Quando cheguei à área externa a equipe de Anderson
Arruda já tinha recolhido todo o material e ido embora. Só restavam meus
avós, que aproveitavam o Sol ameno da tarde sentados nas espreguiçadeiras.
— A menina foi embora? — Minha avó tentou demonstrar um
interesse que não condizia com os dias em que eu e Ana fomos ignorados
naquela casa.
Concordei com a cabeça, e quando a vi acenar satisfeita, completei:
— Também vou fazer minhas malas e sair. Meu voo é no domingo,
mas vou tentar adiantar.
— Por que não fica aqui? — Meu avô sorria de orelha a orelha, e
aquilo me enfureceu.
— Quer mesmo que eu responda?
Ele fez uma cara de tédio ao revidar:
— Apesar da sua saída... amadora, consegui contornar a situação
com Anderson.
— Contornou como? Pediu a ele que cancelasse aquela merda de
entrevista?
— Você estava travado no início, mas se saiu bem no final. Precisa
aprender a lidar com o público se quiser ser um empresário respeitado.
“Você nunca deveria ser forçado a fazer algo que não quer”, a voz
de Ana ressoou em minha mente.
— Preciso aprender a lidar com pessoas como vocês, que insistem
em querer algo de mim que jamais terão. Isso que eu deveria ter aprendido, e
que percebi tarde demais.
— Não vamos começar com o drama. — Meu avô revirou os olhos.
— Já não basta a cena que aquela menina deu na frente da equipe do
Anderson.
— Vocês dois sabiam que nunca gostei da imprensa, principalmente
desse maldito Arruda, e mesmo assim os colocaram aqui dentro dessa casa
para me intimidar. Eu sei que, como empresário, preciso enfrentar os
jornalistas às vezes. Mas uma coisa é incentivar, como meus sócios e amigos
fazem, e outra bem diferente é intimidar, como vocês adoram fazer.
— Ninguém te obrigou a dizer nada, Eduardo — minha avó resumiu
tudo aquilo que consumia meu peito.
Quando cheguei na mansão e vi todo aquele circo montado, com
Anderson Arruda ao centro do picadeiro, foi como se eu voltasse no tempo.
Eu ainda era criança quando o vi pela primeira vez. O jornalista e
apresentador era como um personagem folclórico de Curitiba. Sempre
frequentando as casas da alta sociedade do estado, tinha um programa de
sucesso que dominava a audiência da tarde.
Amigo íntimo de meu avô, lembro com clareza de um almoço em
que Anderson fez perguntas machistas e impertinentes a minha mãe,
questionando suas origens, se ela se incomodava com as viagens de meu pai,
e em como ela era uma “mulher de sorte” por ter se casado com o melhor
partido do estado e lhe dado um filho “varão” para prosseguir com a
linhagem na política. Meu pai contornou tudo com facilidade, chamando
Anderson para uma conversa a sós e, depois daquele dia, nunca mais vi o
jornalista dirigir uma única palavra a minha mãe.
Nunca soube o que meu pai disse, mas hoje, com a carga que tenho,
suspeito que Anderson tenha escutado umas boas verdades... Porque era isso
que Elias Venturini sempre dizia. Ele sabia se portar na frente das câmeras,
mas sempre com a verdade. Por isso era tão querido.
E eu, em meu despreparo, fiz exatamente o contrário, repetindo os
hábitos de outro Venturini, que agora me encarava com olhar triunfante.
Um fruto não cai longe do pé...
Não consegui dizer não diante do chamado para a entrevista, e só me
dei conta que estava tudo ao vivo depois que já havia começado. Travei,
mantendo-me calado enquanto meu avô e seu amigo dominavam a conversa.
Falaram sobre o acidente — mais uma vez —, entoando aquele rosário sem
fim da empresa mercenária que tirou a vida de um casal jovem e de um
político com futuro promissor.
Quando viram que não me arrancariam mais nenhuma lágrima —
diferente do que aconteceu por tantas vezes nas entrevistas forçadas com
Anderson —, resolveram focar no meu “desvio de percurso” ao seguir
carreira empresarial e me afastar da política. Foi ali que tudo começou a
desandar.
Me lembro de duas ou três ocasiões em que recusei dar entrevistas a
Anderson na adolescência. A primeira delas foi logo depois de enterrar meus
pais, ainda sentindo o cheiro das rosas brancas que foram jogadas nos
túmulos, cobrindo os caixões.
Em todas elas, Anderson se fazia de amigo simpático, conversava de
maneira macia e sorridente e eu, jovem e inocente, não percebia o momento
em que ele recomeçava a gravar. Só descobria que estava sendo filmado no
dia seguinte, quando minha foto estampava todos os jornais, e falas ditas em
tom confessional, na privacidade do meu quarto, abriam as manchetes de
forma permanente.
Foi dele que surgiu minha aversão a falar em público. Sei que nem
todos os jornalistas são assim. Aprendi aos poucos, e por força do meu
trabalho na fábrica, que a imprensa não só era necessária como poderia
também ser justa e benéfica. Mas um único deslize ou palavra mal
interpretada e... tudo poderia ruir.
E aquele era meu medo agora. Depois de desvalorizar meus sócios e
dizer que mulheres eram passatempo, eu sentia como se meu corpo fosse
tomado por uma onda gigante a qualquer momento. E de todos os destroços
que poderiam me atingir naquele tsunami, o olhar de decepção e incerteza de
Ana era o que mais me massacrava.
Doeu deixá-la partir, e doeria mais ainda as palavras que teria que
dizer aos meus avós.
— Assumo que ninguém me obrigou a dizer qualquer coisa. — Me
virei para minha avó. — Mas vocês dois sabem que nunca gostei daquele
jornalista. Que sempre detestei entrevistas ao vivo e, principalmente, que
sempre abominei falar sobre a morte dos meus pais. Se fosse uma entrevista
simples sobre a honraria que a LBK recebeu no congresso não me
incomodaria. O problema é a forma como sempre conduzem esses momentos
para transformar tudo em um circo de lamentações e choro. E estou cansado
disso.
— Temos que dar ao povo aquilo que eles querem — Meu avô
entoou, como diversas outras vezes já o vi dizer.
— Temos que dar a verdade ao público! — bradei irritado. — E a
verdade é que meus pais morreram há mais de vinte anos por um acidente! A
Justiça já comprovou que o piloto, que também morreu, não teve culpa
alguma na falha mecânica, e a única coisa que eu queria era que vocês dois
deixassem a memória dos meus pais em paz!
— Seu pai também era meu filho. — Minha avó me olhava com
tristeza. Eu sei que, no fundo, ela também gostaria de esquecer aquela
história, como eu consegui fazer. O único que continuava a remoer aquele
acidente por anos a fio era meu avô.
— Então respeitem a memória do filho de vocês. Ele só precisa de
descanso.
— A memória de Elias Venturini precisa ser lembrada! — Meu avô
em seu surto de eloquência e pompa política. — Ele seria presidente desse
país, e nunca vou perdoar o fato de você ser incapaz de dar seguimento a tudo
que ele construiu. Você tem um nome, Eduardo! Deveria preocupar-se com
ele, e não com um bando de amigos aproveitadores.
Ana tinha razão.
Eu era um homem feito. Sozinho mudei-me para Brasília,
enfrentando meus avós, e segui minha vida. Sinto sim saudade dos meus pais,
mas é só isso. Saudade. Aquela coisa boa que sentimos quando guardamos as
recordações que aquecem.
Não foram Benício e Ricardo que me forçaram a iniciar nossa
parceria, anos atrás, assim como não foi Gustavo quem me forçou a tatuar
aquela frase nas costas naquele dia de bebedeira. Foram decisões tomadas
pelo Eduardo, e estava passando da hora de reivindicar a este homem, adulto
e independente, o futuro que ele havia escolhido.
— Sabe qual a maior lembrança que tenho dos meus pais? —
recomecei a dizer com a voz mais baixa. Calmo. — Um Dia das Crianças em
que fomos ao zoológico e meu pai colocou uma peruca para não ser
reconhecido, pois era época de eleição. Aquele dia, fomos só nós três, sem
que ninguém nos parasse. Sem seguranças, agentes. Nada. Meu pai tentou
alimentar os patos com pão e um deles correu atrás da minha mãe. — A mera
lembrança me fez sorrir. — Depois, sentamos em uma área gramada e
fizemos um piquenique que durou dez minutos, pois logo começou a chover e
tivemos que sair correndo em busca de um abrigo. No meio da correria, a
peruca que meu pai usava caiu duas vezes e minha mãe quase precisou ser
carregada, pois chorava de rir.
Vi minha avó abrir um sorriso pequeno, enquanto meu avô retorcia a
boca.
— Aquele dia poderia ter sido um desastre! — reclamou. — Seu pai
às vezes era um inconsequente, e se um jornalista tivesse os fotografado, as
eleições poderiam ter sido arruinadas.
Me voltei para meu avô com um sorriso no rosto.
— O que o senhor não sabe é que naquela tarde muita gente o
reconheceu. Mesmo com a peruca, meu pai foi reconhecido e abordado. E
quando começou a chover e a peruca começou a cair feito um guaxinim
molhado, muitos riram da gente, dizendo o quanto o futuro governador do
estado era “gente como a gente”, levando o filho para passar o Dia das
Crianças no zoológico e fantasiando-se ridiculamente só para evitar ser
reconhecido e dar atenção à família. Ali entendi porque meu pai era tão
querido. Porque ele era real, diferente de seus concorrentes.
— E onde quer chegar com essa conversa?
— Eu não tenho que mudar. Nunca precisei. Todas as minhas
maiores e melhores conquistas vieram quando simplesmente fui eu mesmo e
fiz as coisas que queria. E é isso que pretendo fazer.
— Já tivemos essa conversa várias vezes... — ele começou a dizer.
— E entra ano, sai ano, vocês continuam insistindo em me fazer
mudar de ideia, mesmo eu recusando e me afastando de vocês... — suspirei
antes de prosseguir. — Cheguei hoje nessa mansão com uma ideia na cabeça.
Iria dizer a vocês que são bem-vindos em minha casa em Goiânia, e então
tudo aconteceu. Só que não vou mudar o que iria dizer depois dessa
entrevista. Ainda são bem-vindos em minha vida, desde que nunca mais
tentem interferir ou mudar minhas escolhas.
— Exigente... — ele ironizou.
— Não admito que olhem torto para Ana, meus amigos, ou qualquer
outra pessoa que seja importante para mim. Muito menos que os minimizem.
— A filha de uma dona de casa... — minha avó lembrou, como se
fosse algo muito relevante.
— E que espero de coração que ainda queira me ouvir quando eu
voltar para Goiânia. Porque eu gosto dela, e se vocês não são capazes de
tratá-la com educação e respeito, então é melhor que nem apareçam em
minha casa.
— Pode se arrepender do que está fazendo.
— Não vou. — Olhei à minha volta por um momento. Todo o
requinte e ostentação que sempre me intimidaram eram a prova viva do que
diria a seguir: — Nem a velhice é capaz de mudar um caráter, e não há nada
que eu possa fazer sobre quem vocês são. Mas sobre mim...
Virei as costas e saí da área externa, voltando para dentro da mansão
sem pensar em mais nada. Meu telefone seguia tocando no bolso e atendi
assim que fechei a porta do quarto.
— Me diz que o que a Bia acabou de me mostrar é uma montagem.
— A voz de Ricardo invadiu o cômodo quando coloquei no viva-voz e
comecei a arrumar minhas malas.
— Não.
— Por que falou aquelas coisas, Eduardo? — Agradeci por ser
Ricardo e seu tom apaziguador a me ligar.
— Porque eu entrei em pânico e travei na hora. E quando eles
começaram a falar de Ana e das mulheres goianas, comecei a pensar rápido
em uma forma de encerrar com aquela entrevista. — Suspirei alto, jogando as
roupas emboladas na mala. — Acabei falando besteira, achando que
agradaria o jornalista idiota e o faria encerrar com aquilo logo.
— A Ana viu o que você falou? — ele questionou com cautela.
— Viu. — Fechei os olhos frustrado, sentando-me na cama. — Eu
não vi que ela estava lá. Ela viu tudo e quis ir embora. A essa hora está dentro
de um carro a caminho do aeroporto.
— Que merda, Eduardo!
— Sim. — Joguei o casaco que havia usado de manhã na mala e só
então percebi que a echarpe dela continuava comigo. Aquilo me apertou o
peito. — Me desculpe por dizer todas aquelas coisas sobre vocês. Sabem que
não penso nada daquilo.
— Por que você deu essa entrevista, se não sentia-se à vontade? —
Ele ignorou meu pedido de desculpas, e percebi isso.
— Entre na fila para encontrar a resposta a essa pergunta.
— Ok. — O ouvi suspirar do outro lado da linha. — Não se
preocupe muito com o que disse, mas com o que será feito a partir de agora.
Sabemos que não pensa nada daquilo, mas o que interessa é o que vai para os
jornais.
Merda!
— Bia já está monitorando os sites — Ricardo anunciou. Como
chefe do departamento de Comunicação, ficava a cargo de Bia monitorar as
citações da empresa na mídia. — A entrevista foi ao vivo e soltaram uma
matéria no site do programa desse tal Anderson. Quer saber a manchete?
— Não sei se quero...
— Pois eu quero que saiba. “Filho do saudoso Elias Venturini torna-
se empresário de sucesso e afirma dividir a empresa com amigos ‘idiotas’”.
— Ricardo... — apertei meus olhos, sem conseguir acreditar que
aquilo estava acontecendo.
— Agora já era. Vou pedir para a Bia ligar para a Ana e saber como
ela está.
— Por favor, façam isso. Eu queria ter ido com ela, mas você já deve
imaginar que ela não quis.
— E talvez seja melhor você ficar em Curitiba até domingo. Só por
precaução, caso algum outro jornal queira falar com você. — Ele fez uma
pausa breve antes de perguntar, agora com suavidade. — Acha que consegue
fazer isso, se for preciso?
— Eu fico. Se essa merda crescer muito, é tudo culpa minha.
— Não se martirize tanto. Não será a primeira nem a última vez que
uma pessoa se atrapalha durante uma entrada ao vivo. Só queremos que fique
aí para o caso de um jornal sério querer falar com você. Do contrário, pode
mandar todos às favas, em especial esse maldito do Anderson.
— Onde estão Gustavo e Benício?
— Estão fora da fábrica. Benício tinha uma reunião agora à tarde e
Gustavo estava resolvendo umas questões para o evento de reativação do
setor cinco. Eles ainda não sabem de nada.
— Talvez um deles queira me matar quando souber...
— Relaxe, Eduardo. — Ricardo assumiu um tom amigo. —
Conhecemos você, sabemos dos seus limites. Qualquer um que vê essa
entrevista percebe que você estava acuado. Não se preocupe conosco.
— Obrigado. — Senti como se parte do peso fosse retirado dos meus
ombros, mas ainda restava o mais opressor de todos. — Quando tiverem
notícias de Ana, podem me dizer?
— Claro.
Comuniquei que iria para um hotel e encerramos a conversa. Quando
voltei a descer as escadas, tornei a encontrar a frieza dos salões vazios e sem
vida. Meus avós tinham essa mania. Achavam um verdadeiro crime pessoas
que se prestavam a discutir na frente dos empregados, preferindo o silêncio
dos quartos à vulnerabilidade de mostrar suas fraquezas familiares.
O único hotel que encontrei vaga ficava no outro extremo da cidade,
e aproveitei o trajeto para pensar em toda a loucura daquele dia e o que eu
faria a seguir.
Aspirei fundo o aroma de hibiscos e rosas que exalava do pedaço de
pano rosa, coisa que faria por inúmeras vezes naquele fim de semana.
Passei anos vendo meus amigos se envolvendo com várias mulheres.
Ricardo com sua noiva, Benício e suas namoradas, e Gustavo e a lista sem
fim de conquistas que ele acumulava. Sempre fui, dos quatro, o mais
reservado. Namorei, tive alguns encontros por incentivo deles, mas nunca
havia sentido meu peito bater tão forte por uma única pessoa.
Pouco importava se achavam cinco dias pouco tempo. Para mim era
o suficiente. Já nos conhecíamos antes, e só precisávamos daqueles poucos
dias.
A vontade que eu tinha de explodir dentro do peito, o desejo insano
de gritar para todos o que Ana me despertou... eram coisas que nunca senti, e
que não queria mais apagar de meu peito.
Evitei ao máximo ligar a pequena TV do quarto do hotel nos dois
dias que se seguiram, numa tentativa ilusória de ignorar todas as repercussões
daquela entrevista. Alimentava-me de notícias repassadas por meus amigos,
fossem elas de Ana ou dos jornais. Por sorte, não entraram em contato para
novas entrevistas, mas não sei até que ponto isso era bom ou ruim. E só
quando pousei em solo goiano que me permiti a coragem para enfrentar tudo
que viria.
Demoraram-se de dez a quinze minutos até que minha mala
finalmente surgisse na imensa esteira. A noite já tinha caído quando
atravessei as portas de vidro do desembarque e senti um misto de vergonha e
aconchego ao ver meus três sócios — e amigos — me aguardando em meio à
multidão.
— E volta o cão arrependido... — Gustavo debochou, abrindo um
sorriso, e aquela foi a melhor recepção que eu poderia ter.
— Não imaginei que viessem...
— Acha que a gente é o que? — Ricardo questionou. — Como foi a
viagem?
— Uma bosta. Assim como os dois últimos dias.
No voo, lembrei-me de Ana e seu medo de voar. Imaginei como foi
sua volta, sozinha e apavorada, e em como eu passaria todas aquelas horas
em silêncio, sem ter suas perguntas para responder e seu rosto emoldurado
pela franja para admirar.
— E como você está? — Benício questionou. — Voltou a falar com
seus avós?
— Não. Como eu esperava, nem ao menos uma ligação fizeram. —
Em silêncio, Gustavo se aproximou e espalmou a mão nas minhas costas. —
Mas não me importo com isso agora. Como estão as coisas na LBK?
— Bem mais tranquilas do que esse seu cabeção está imaginando. —
Gustavo começou a me empurrar na direção de uma das saídas, saindo do
fluxo de passageiros que desembarcavam de um voo recente.
— Ao que parece, o programa do tal Anderson Arruda não tem a
mesma credibilidade de anos atrás — Ricardo explicava. — Bia descobriu
que ele agora tem fama de fofoqueiro e sensacionalista, e está longe de ter a
audiência que tinha na sua adolescência. Nem mesmo o site dele é bem
quisto, já que vive sendo alvo de processos por calúnia e difamação e sendo
retirado do ar. — Paramos ao lado de um quiosque com pelúcias e ele abriu
um sorriso largo. — E nossa grande sorte foi a entrevista de Ana que foi
veiculada na íntegra naquele mesmo dia, durante a noite, na concorrência. A
matéria foi muito bem feita e positiva para a imagem da fábrica, sem ficar
falando do seu passado ou sobre os nossos defeitos...
— E como era sexta-feira, a pauta logo foi esquecida, já que não
havia muitos jornais para requentá-la na emissora do amigo sensacionalista
do seu avô. — Gustavo tentava me animar. — As coisas que você falou
ficaram restritas ao mundinho do tal Anderson Arruda e sequer viraram
notinha aqui em Goiânia.
— Para a imprensa curitibana, na pior das hipóteses, você fez o
papel de riquinho excêntrico que se acha melhor que os seus sócios só porque
é filho de políticos. — Benício tinha um sorriso seco.
— Acho que eu mereço isso, afinal. — Encolhi os ombros.
— Bom para ficar esperto da próxima vez. — Ele ergueu de leve a
sobrancelha, com aquela sua voz autoritária. — De nós quatro você é o que
menos merecia passar por isso, essa é a verdade. Mas talvez precisasse para
aprender a dizer não.
— E a Ana? — A ansiedade transparecia em minha voz.
Eles se entreolharam alguns segundos antes de Gustavo começar a
dizer:
— Em primeiro lugar: precisamos ressaltar que você conseguiu. Em
menos de uma semana, você conseguiu.
— O que? — Não estava muito a fim das piadinhas enigmáticas
dele.
— Você conseguiu! — ele repetiu em tom enfático. — A Ana, com
aquele filtro inexistente na boca, já falou para os quatro ventos que está a fim
de você. — Aquilo fez meu peito acelerar. — Em cinco dias você foi capaz
de conquistar a Ana. — Sorriu com deboche e continuou: — Tá que você
também conseguiu quase foder com tudo na mesma velocidade, mas ainda
assim foi um feito de se tirar o chapéu.
— Acham que é uma má ideia ir agora no apartamento dela?
Eles voltaram a se entreolhar e foi a vez de Benício questionar:
— Laila e as outras mandaram perguntar se você realmente vai
querer algo sério com a Ana.
— Pelo amor de Deus, Benício! — Sério que ele estava me fazendo
aquela pergunta?
— Bom... Nós quatro sabemos muito bem a resposta, mas as
meninas estão um pouco desconfiadas depois das coisas que você disse.
Suspirei exasperado, mas Gustavo voltou a colocar as mãos nas
minhas costas.
— Quer deixar bem claro para a Ana que tudo aquilo foi uma grande
idiotice, e que você só estava nervoso?
— Mas é claro! Por isso preciso falar com ela.
— Todos nós concordamos que ela vai te ouvir e tudo vai se ajeitar
no final. Se você quiser, te deixamos lá agora. — Um sorriso travesso surgiu
lentamente no rosto de Gustavo antes de ele prosseguir: — Mas se quiser
conquistar de vez a Ana e tirar qualquer tipo de dúvida que ela esteja
remoendo na cabeça, acho que tenho uma ideia.
Estreitei os olhos para ele.
— Não sei se quero saber das suas ideias...
— Tem certeza? — Ele cruzou os braços no peito e me encarou com
ironia. — Acha que foi uma má ideia Ana ter ido em meu lugar nessa
viagem?
Jamais!
Mesmo com tudo que aconteceu ao final, aquela viagem foi o
melhor presente que Gustavo poderia ter me dado.
E como se pudesse ouvir meus pensamentos, ele sorriu ainda mais e
prosseguiu:
— Quando achar que deve, eu aceito os agradecimentos por esse seu
sorriso idiota no rosto. — Eu abri a boca para agradecer e ele levantou um
dedo, me interrompendo. — Mas antes disso, temos que fazer você
conquistar a Ana de vez. E para isso, precisamos que confie na gente.
Cruzei os braços e olhei para Benício e Ricardo, tentando retirar
deles alguma informação.
— Lembre-se que você não está em posição de pedir qualquer
coisa... — Benício me apontou o dedo. — Mas... como somos seus amigos e
tudo o que disse sobre nós, lá no fundo, não passa de uma certa verdade...
— Certo. — Me dei por vencido. — O que os três têm em mente?...
Eles se entreolharam mais uma vez e Ricardo gargalhou, me fazendo
sentir um arrepio na espinha.
Capítulo 14

Era tarde de sexta-feira e a fábrica fervilhava de gente. Das janelas


de vidro do andar do setor de Marketing, eu observava o imenso fluxo de
funcionários, jornalistas e convidados que moviam-se rumo ao imenso palco
improvisado no meio do pátio.
A LBK inteira havia parado aquele dia para a tão esperada
reinauguração das máquinas do setor cinco. Era um evento simbólico, que
marcaria o início do processo de reativação total daquela fábrica, coisa que
não acontecia há mais de quinze anos, quando a antiga multinacional que
administrava a indústria começou a ter quedas nos lucros e precisou desativar
parte da produção.
Desde meu retorno de Curitiba, há exatamente uma semana, sequer
tive tempo para pensar na vida. Na segunda de manhã, assim que pus os pés
em minha sala, Gustavo me chamou para uma conversa. Achei que ele fosse
perguntar sobre mim e Eduardo, mas tudo o que ele fez foi me encher de
trabalho para essa tal reativação. Passei a semana inteira praticamente fora da
fábrica, atendendo a demandas externas e sempre urgentes.
Cheguei a perguntar se ele tinha tomado chá de Benício para estar
tão mandão aqueles dias, mas ele riu da minha cara e disse que a reativação
de cem por centro da LBK era uma prioridade, simplesmente.
Achei estranho que em nenhum momento ele tenha perguntado sobre
o congresso e tudo o que aconteceu com Eduardo, e quando eu mesma tentei
tocar no assunto, ele disse que Eduardo falaria comigo, mas foi evasivo
quanto ao restante.
O mesmo acontecia com as meninas e com o próprio Eduardo. Meu
orgulho me impedia de ligar para ele, mas depois dos primeiros dias, em que
ele tentou por várias vezes falar comigo e eu não atendi, a verdade é que ele
sumiu.
E se eu tivesse exagerado ao sair daquele jeito de Curitiba?
Voltar aquele dia não foi fácil. Embarquei naquele avião sentindo o
estômago revirar como nunca. A ansiedade do voo misturada à insegurança
depois de tudo o que havia acontecido. Suei frio durante a decolagem e o
pouso e, quando pisei em solo goiano, quis beijar o chão por finalmente estar
em casa, onde sentia-me segura.
E quando saí no saguão de desembarque quase quis chorar ao dar de
cara com Laila, Lis, Bia e Lu.
— São quase onze da noite e vocês vieram... — Abracei todas elas.
— É. — Bia me apertou com força. — Como diz a Laila, você é
nosso chicletinho sem freio e jamais te deixaríamos ir para casa a essa hora
sozinha.
— Só não sei se vou caber no carro. — Dei uma risada quando Lis
pegou minha mala.
— As meninas vão com a Lu e você vem comigo — Laila informou.
— Benício está no carro esperando e vamos te deixar em casa.
— E como foi a volta? — Lis questionou.
— O que vocês acham? — Fiz uma careta.
— Um cocô, pela sua cara — Luciana falou. — Estamos doidas para
entender o que aconteceu, mas se você não quiser falar, tudo bem.
— É claro que quero falar!
— Como se a gente precisasse incitar a Ana a contar alguma coisa...
— Laila sorriu para mim.
— Foram cinco dias, gente. — Paramos em um canto do saguão. Eu
preferia conversar com elas ali do que na presença de Benício. — Se eu for
contar desde o momento em que nos beijamos, dá só dois dias! E eu me
apaixonei...
— Ahhh.... — Um coro afetado se formou ao meu redor.
— Por favor, não riam de mim. Foi rápido, mas foi intenso. Eu já
conhecia o Eduardo como amigo. Sempre achei ele um homem lindo, vocês
sabem. Educado, inteligente... E de repente eu descubro que poderíamos ser
mais do que amigos... — Suspirei fundo. — Vocês já tinham notado alguma
coisa da parte dele?
Elas se entreolharam e Bia começou a rir antes de dizer:
— Da minha parte, posso dizer que sim.
— Aquele dia do jogo de verdade ou consequência eu perguntei para
o Benício se tinha alguma coisa, mas ele desconversou na hora. — Laila fez
um muxoxo. — Depois acabei arrancando tudo na cama, mas ele me fez jurar
que não te contaria. O Eduardo sempre gostou de você. Sempre.
— Eu juro que não sabia de nada quando fiz vocês dois se beijarem
aquele dia. — Luciana levou as mãos ao peito.
— Eduardo é tão... — Comecei a dizer, mas era como se não
encontrasse as palavras certas. — Ele me escuta como ninguém jamais fez. É
atento, ri das minhas perguntas idiotas... E na cama... Vocês não têm noção!
— Nem sei se queremos ter... — Lis revirou os olhos, mas tinha um
sorriso imenso ao dizer.
— É como se a gente se completasse. Diferentes em algumas coisas,
porém complementares em tudo. No dia que nos apresentamos juntos, foi
como se um equilibrasse o outro, e quando estamos na cama é como se...
como se nenhum de nós precisasse dizer qualquer coisa, pois nos entendemos
com o olhar.
— Nunca vi você falar assim de homem algum, Ana — Luciana
incitou.
— Vocês me conhecem... Sempre gostei de brincar sobre os homens,
sexo, mas tenho meus receios. Os homens acham que falo demais, alto
demais, besteiras demais... Mas Eduardo me olha como se tudo o que eu
dissesse fosse extremamente importante, simplesmente porque sou eu que
estou dizendo.
— Ele sempre foi uma excelente pessoa. — Bia sorriu brevemente.
— Não esperaríamos menos do que isso dele.
— Mas ele disse aquelas coisas na TV... — Meu sorriso murchou ao
lembrar daquela entrevista desastrosa.
— Ricardo e os outros falaram com ele — Laila informou. — Ele
está péssimo com tudo que aconteceu. Diz o tempo inteiro que falou besteira
e quer conversar com você.
— É lógico que foi besteira! — bradei mais alto. — Eu sei que ele
não pensa daquela forma. Eu conheci outro Eduardo nessa viagem. Vi partes
dele que nenhuma de nós jamais viu, e sei que aquele homem que me fez
balançar o coração não diria aquelas coisas por acreditar que fossem verdade.
— E que mesmo assim te magoaram... — Lis concluiu.
— Sim. — Encolhi os ombros. — Foi ao vivo. Milhares de pessoas
viram, e para piorar tudo, ainda tem a minha entrevista, que deve ter passado
no outro canal. Foi como se eu fizesse papel de palhaça, dizendo coisas
completamente diferentes em outra emissora.
— Não fez. Fique tranquila. — Bia me tranquilizou. — As coisas
não foram tão ruins quanto vocês dois devem estar imaginando. Espere só
alguns dias e ninguém se lembrará de nada. Nem mesmo o tal Anderson
Arruda.
— Acham que fiz mal em ter voltado antes?
— Acho que agora temos que primeiro entender o que vocês dois
querem — Luciana argumentou. — Se foi só sexo ou se vai virar algo mais
sério.
— Para mim não só sexo. Foi o sexo! — Elas riram da cara que eu
fiz. — Eu só tenho que me certificar que para ele também pode ser algo a
mais, como eu já quero.
— Tá, mas vamos pensar nisso depois! — Bia me empurrou. — Está
com fome? Se não estiver muito cansada, vamos todas para um pit dog agora
e você nos conta tudo, com todos os detalhes que sempre adorou nos
arrancar. Agora é sua vez!
— Minha vida por um x-tudo — brinquei, aceitando o convite.
Foi bom tê-las me recepcionando. Me animaram e distraíram durante
todo o fim de semana, quando eu ainda me remoía de dúvidas sobre o que
aconteceria quando Eduardo voltasse.
Eu tinha medo de que ele se fechasse, trancafiando aquele homem
seguro e liberto que consegui acessar nos poucos dias que ficamos sozinhos.
Pior ainda, tinha medo que as palavras ditas sem pensar em uma rede de
televisão tivessem um fundo de verdade e ele, lá dentro do peito, não sentisse
nada por mim além de atração sexual.
Passei anos brincando com as meninas sobre a “porra de mel” do
Gustavo, que parecia atrair as mulheres feito enxame no departamento de
Marketing, para no final das contas ser nocauteada por um tripé silencioso e
de boca habilidosa.
Isso em cinco dias!
Senti saudade dos seus beijos, do seu sorriso de lado e até do jeito
que ele me olhava. Pensei nele várias vezes antes de dormir, e me descobri
desesperada por ter seu corpo sobre o meu mais uma vez.
Eu só queria que ele estivesse ao meu lado no voo, segurando minha
mão com aquela pele quente e que parecia não sentir frio.
Eu só queria seu rosto entre minhas pernas, com sua língua me
levando ao céu na velocidade da luz.
Eu só queria nós dois unidos, nus, e depois disso, queria passar as
unhas por suas costas, apreciar sua tatuagem e vê-lo contar sobre sua infância
feliz com os olhos brilhando.
Eu só queria Eduardo e tudo o que aqueles olhos castanhos,
encobertos pelos óculos finos, quisessem me oferecer.
Suspirei mais uma vez, olhando a multidão que se amontoava ao
lado do palco, apesar do calor.
— Não vai descer? — Escutei a voz de Bia atrás de mim. — A festa
já vai começar. Em outros tempos você seria a mais animada.
— Como o Gustavo conseguiu organizar tudo em tão pouco tempo?
— Luciana falava atrás dela.
— Me escravizando por uma semana... — brinquei, dando as costas
para a janela e seguindo-as em direção ao elevador. — As outras já
desceram?
— Sim. Está todo mundo lá embaixo.
Levamos cerca de dez minutos para encontrar Laila e Lis que
estavam junto de outras pessoas do departamento delas, o Financeiro.
Ficamos em um canto, e logo Bia e Lu foram chamadas para resolver
algumas demandas com a imprensa.
Os jornalistas amontoavam-se na parte frontal do público e Gustavo
e Ricardo conversavam com eles com naturalidade. Eu também deveria estar
lá, como analista de Marketing, mas por algum motivo desconhecido,
ninguém me chamou. Procurei por Eduardo, mas ele obviamente não estava
lá. Depois de tudo que aconteceu em Curitiba, provavelmente fugiria de
eventos com a presença da imprensa como o diabo foge da cruz.
Fiquei conversando com Lis e Laila até que iniciassem a cerimônia.
Era tudo meio simbólico. As máquinas seriam ligadas pela primeira vez em
anos naquele setor, e aquele aumento na produção possibilitaria a abertura de
mais trinta novas vagas. Tínhamos todos os motivos para comemorar aquele
feito, e me senti satisfeita ao ver que a imprensa valorizava nossa conquista.
O palco havia sido montado ao lado da entrada do setor. Como os
galpões de produção eram locais com segurança rígida, preferiram transferir
o evento para o lado de fora, e uma pequena manivela foi colocada no centro
do palco, ilustrando o religamento das máquinas. Na verdade, um funcionário
lá dentro do galpão acionaria a máquina a vapor no momento exato em que
Ricardo girasse a alavanca.
— Isso tudo está tão pomposo... — observei, ao notar dona Ieda
passando por nós com um imenso bolo e o servindo para a imprensa. — Você
por acaso dopou o Benício para ele não estar surtando hoje? — Me virei para
Laila.
— Eu quase o expulsei de casa e o fiz ir dormir com o Gustavo, isso
sim! — Ela bufou, um pouco irritada. — Ele estava insuportável, surtando a
cada vez que se encontrava com o Gustavo para tratarem dessa festa.
Ninguém além de mim era capaz de chegar na sala dele lá no Financeiro.
— Eu que o diga... — Lis reforçou, sorrindo de leve. — O homem
parecia aquele senhor De Lucca dos velhos tempos.
— Como se ele algum dia tivesse mudado... — Laila deu de ombros
e ergueu a sobrancelha de forma desafiadora, encarando o palco. Olhei na
mesma direção que ela e vi que fitava o noivo, o qual tinha os olhos cravados
nela, mesmo com toda aquela multidão.
— Idiota... — a vi murmurar entre dentes para ele.
— Cretina. — Era fácil perceber o que ele estava dizendo, já que
aquele parecia ser o roteiro mais comum. — Te amo. — Consegui vê-lo dizer
depois de um sorriso.
— Você quer que eu saia da sua frente, para não ficar no meio do
sexo telepático de vocês? — brinquei com ela e Laila riu ainda mais,
piscando para Benício.
— Nem começa, ou vou ter que falar sobre o seu tripé, que acabou
de subir no palco...
Me virei na hora para o palco, procurando por Eduardo. Escutei
Laila e Lis gargalharem com minha reação, mas nem liguei.
Eduardo estava lindo, trajado de terno e calça social azul escura.
Depois de uma semana sem vê-lo, era como se estivesse ainda mais bonito e
alto ali, no centro do palanque. Sua postura era a mesma de sempre. Reta,
alta, porém um pouco acanhada.
Mas não foi seu terno azul que me fez acelerar o peito, nem sua
postura alta, destacando-se naquele palco, ou mesmo seus olhos ansiosos por
trás dos óculos finos.
O que acelerou meu peito ao ponto de doer foi o pequeno pedaço de
tecido rosa que ele levava firmemente enrolado em uma das mãos.
O mesmo tecido que só dei por falta quando desfazia minhas malas,
já na solidão de casa.
E no mesmo instante em que sentia meu peito arder ao vê-lo, o
coração quase saltando pela boca, ele percorreu lentamente a imensa plateia
com os olhos e então me viu, abrindo pela primeira vez um sorriso de lado.
Que saudade daquele sorriso...
Nossa troca de olhares foi silenciosa, mas senti um sorriso bobo se
formar em meus lábios, ao mesmo tempo em que outro, provavelmente muito
parecido com o meu, se formava no rosto de Eduardo, deixando cair um
pouco sua armação.
E quando minhas mãos formigaram de desejo de tocar sua pele e
ajeitar seus óculos, entendi que não conseguiria mais ficar longe dele, e que
toda a avalanche de coisas que passei a sentir por Eduardo em pouco menos
de uma semana nunca teria fim.
Era amizade.
Era paixão.
E viraria amor.
Se já não o fosse...
— Ah, mas eu vou me divertir muito enchendo seu saco depois de
tudo que escutei quando comecei a namorar o Benício... — Laila sorriu
daquele jeito sedutor dela. — Você também agarrou um dos sócios, amiga. E
ele está quase alagando o terreno inteiro enquanto baba por você.
— Não é só porque é um dos sócios... — murmurei, ainda fitando
Eduardo.
— Eu sei. — O sorriso de Laila adquiriu um tom mais suave. — É o
homem que abalou suas estruturas com um único toque. — Ela tocou meu
braço e sorriu cúmplice. — Sei bem o que é isso.
— É isso...
— Ah não! — Lis nos interrompeu de repente. — Não quero mais
ouvir vocês duas falando dos segredos dos homens da LBK. Já vão começar a
cerimônia.
Nos voltamos para o palco no momento em que Ricardo subia os
pequenos andares de madeira. Ele posicionou-se mais à frente, levando um
microfone. Talvez nem precisasse, pois tinha aquela voz carismática e sonora
que reverberava no ambiente com facilidade.
Pacientemente, Ricardo esperou que todas as atenções se voltassem
para ele e se fizesse silêncio. Então, começou a falar com um sorriso no rosto:
— Bom dia a todos. Funcionários, colaboradores, parceiros,
imprensa... hoje é, com certeza, um dia aguardado ansiosamente por todos
nós desde que reativamos a primeira máquina, sete anos atrás. Um dia que
marca a história de quatro jovens que sonharam em reerguer esse complexo,
sempre contando com a ajuda de cada um de vocês. Dos antigos funcionários
tivemos a experiência para fazer tudo funcionar com perfeição. E dos novos,
que chegam a cada dia para integrar essa imensa família, nós temos o gás e a
vontade de crescer...
— Incrível como ele fala bem... — Lis murmurou ao nosso lado, ao
passo que concordamos com a cabeça.
— Hoje é um dia comemorado por todos, mas em especial por um
setor por vezes ignorado de todo o resto. — Ele fez uma pausa e apontou para
o belo prédio espelhado da Administração, onde trabalhávamos. — Um setor
que passa o dia longe do conforto das nossas salas com ar condicionado. São
as mãos que movimentam a fábrica, que cuidam das máquinas como quem
cuida de um filho, e que chegam aqui, muitas vezes, antes sequer do Sol
nascer. Estou falando da linha de Produção. — Um grito soou da parte mais
ao fundo da plateia e todos riram. — E como hoje os holofotes estão todos
em vocês, vou chamar o representante dessa parte essencial de tudo que
acontece aqui. — Ele levou as mãos no ar, na direção dos outros sócios. —
Vem cá, Eduardo.
— Eu não acredito que o Eduardo vai falar para toda essa gente! —
murmurei chocada.
Ao meu lado, elas nada disseram.
Observei, sem conseguir muito acreditar, o momento em que ele
tomou a frente do pequeno palco. As pessoas aplaudiram e ele olhou sem
jeito para o microfone que Ricardo lhe entregou. Bateu algumas vezes na
peça e um ruído alto se espalhou pelo imenso pátio. Notei como ele retorcia
nervoso a minha echarpe nas mãos, exatamente como havia feito aquele dia
no congresso, e desejei estar ao seu lado, encorajando-o. Enfrentar toda
aquela imprensa depois do que aconteceu em Curitiba não seria fácil, mas sei
que ele era mais do que capaz.
Confie nas suas asas, Eduardo...
Murmurei baixinho, sem que ninguém percebesse.
Mas ele viu. De algum modo eu sei que ele viu, pois seus olhos se
cravaram nos meus e o vi sorrir, sereno.
Voa...
— Bom dia... — ele começou a dizer, um pouco engessado. —
Queria agradecer a presença de todos e... — Ele puxou um pouco o ar, e
quando assoprou, fez um som alto de microfonia. Algumas pessoas riram e o
vi se remexer inquieto, antes de prosseguir: — Desculpem. Acho que a
maioria de vocês sabe a minha... dificuldade de falar em público e, por isso,
na maioria das vezes quem fala é o Ricardo, o Gustavo ou mesmo o
Benício... — Ele apontou para os três, que pareceram encorajá-lo com acenos
de cabeça. — Mas acho que Ricardo tem razão. Hoje é um dia feito para o
setor de Produção. Um lugar que amo fazer parte e que merece todas as
homenagens possíveis.
As pessoas aplaudiram, mas eu não o fiz. Tinha todas as minhas
atenções no palco. Na forma como ele remexia a echarpe e olhava em todas
as direções, um pouco ansioso. Em como Eduardo alternava o peso do corpo
entre as pernas e em como ele estava lindo, apesar de toda a ansiedade.
— Há cerca de uma semana fomos homenageados em Curitiba por
nossas ações de logística reversa e preocupação ambiental nas linhas mais
recentes — ele voltou a falar. — A ideia é implementar isso de forma
gradativa, até que todos os nossos produtos tenham essa preocupação, com
destinação certa para as embalagens. Para isso, vamos investir em ações de
educação ambiental e apoio de entidades sociais do setor de reciclagem. A
reativação do setor cinco, que acontece hoje, é só um reforço de tudo que já
fizemos nos últimos sete anos. Essa fábrica é a família para muitos e percebi,
durante essa viagem, que é minha família também. É aquele lugar em que
conhecemos todos pelo primeiro nome, sabemos dos seus problemas
pessoais, o dia do aniversário dos filhos, a doença da mãe... É onde podemos
ser nós mesmos. — Nesse ponto ele me olhou, e senti meu corpo queimar. —
Aqui é o lugar em que as diferenças se completam e somos valorizados pelo
que fazemos. E isso vai muito além de quem somos ou onde nascemos.
O vi engolir em seco antes de prosseguir, agora olhando fixamente
para as câmeras que se aglomeravam na frente do palco.
— Eu... eu quase me esqueci disso há alguns dias. Para quem não
sabe, perdi meus pais em um acidente aéreo há muitos anos e, talvez por isso,
tenha tanto receio de falar em público. Cresci rodeado de jornalistas e a
verdade é que às vezes me embanano com as palavras e faço merda. E foi por
medo, ansiedade, que me esqueci por alguns segundos de quem realmente
sou. — Ele se voltou para os sócios e então voltou a correr os olhos na
plateia. Eu só conseguia focar em seus dedos rodeando o tecido rosa sem
parar. — Esqueci que sou sim o garoto tímido que perdeu os pais em um
acidente aéreo. Nunca vou deixar de ser, e tudo bem. Esqueci também que
sou um dos sócios dessa fábrica. Não por sorte ou por dinheiro, mas porque
esse é meu lugar. Me orgulho de participar da reativação desse setor. De dizer
que mudamos a história desse lugar, anos atrás fadado a virar um monte de
pilhas de sucata. Tenho orgulho de dizer que fazemos política aqui, mudando
a realidade de pessoas que trabalharam nessas máquinas quando eu sequer era
nascido, e criando uma geração de futuros profissionais que vão crescer
dentro desses galpões.
As pessoas aplaudiram mais um pouco e ele esperou. Estava
impressionada com o potencial de Eduardo em dizer tanta coisa para um
público tão grande.
— Mas tudo isso que estou dizendo eu aprendi com uma pessoa. —
Ele desceu os olhos até minha echarpe, admirando-a alguns segundos. —
Uma pessoa que, com seu jeito falante, foi capaz de me ouvir. — Ele
levantou os olhos e, como se atraído por um imã, os cravou em mim. —
Ana...
Eu gelei.
Ele não está falando de mim!
Eu devo ter falado isso em voz alta, pois o vi sorrir e apontar na
minha direção.
— Ana Catarina Diniz — repetiu com voz mais baixa, e percebi
algumas centenas de cabeça se voltando para mim. — Sei que você não gosta
do seu nome completo, mas é que tem muitas Anas aqui e quero que todos
tenham certeza de quem estou me referindo.
Ai meu Deus...
AI
MEU
DEUS!!!
— Eu vou desmaiar... — sussussei quase sem voz, quando uma
horda de gritos e assobios cruzou o pátio.
— Ah, não vai não! — Lis respondeu ao meu lado. — Nem que a
gente tenha que te amarrar numa estaca, mas você vai ficar de pé e muito bem
acordada. Até o final.
Olhei um segundo para ela, e notei que ela ria, assim como Laila.
— Ana... — a voz de Eduardo soou acima de nós. — Você tinha
razão. Essa fábrica aqui representa toda a diversidade que somos e queremos.
E é por isso que, em breve, vamos novamente convocar a imprensa, mas
dessa vez para anunciar uma mudança sobre nossa marca, e que aquela garota
ali do fundo teve papel fundamental. — Apontou para mim e eu me encolhi,
escondendo-me atrás de Laila. Como se isso resolvesse de algo, com o
tamanho diminuto dela... — Ana certa vez me disse que eu sou o coração
dessa fábrica, mas gostaria aqui de ressaltar que pessoas como ela é que
fazem esse lugar pulsar. São sobrinhos, filhos de funcionários que viam os
pais falando da antiga LBK e ajudaram, com suas mãos e mentes, a reerguer a
nova empresa. Que acreditam na empresa... em nós... e têm um orgulho
imenso de cada produto que é feito aqui. Eu não sou o coração da fábrica,
Ana. Você que é.
Ele se remexeu mais um pouco e então desviou os olhos de mim,
voltando a fitar as câmeras da imprensa.
— Peço licença para fugir um pouco do tema da reativação, mas eu
preciso... falar. — Ele suspirou fundo. — E falar sobre isso é muito mais
difícil do que sobre a LBK. Então... Ana... Será que você pode subir aqui
rapidinho? Antes que eu tenha um infarto?
Eu paralisei, sem ação.
— Não vai deixar ele esperando... — Escutei a voz de Laila me
incitando.
— Eu... não sei se confio nas minhas pernas...
— Então vai seguindo o coração.
Havia um silêncio em todo o pátio. Eu sentia todos os olhares sobre
mim e tive, pela primeira vez na vida, medo. Medo do que iria ouvir e,
principalmente, medo do que eu poderia dizer. Pois em minha mente as
palavras não se formavam e era tudo um emaranhado disperso de dúvidas,
questionamentos e palavras soltas.
Era assim que ele se sentia sempre que precisava falar com a
imprensa?
— Pelo amor de Deus, Ana! — Senti Laila e Lis me empurrarem
com força. — Vai logo.
E com um único empurrão, me lançaram no meio daquela multidão.
Evitei olhar ao meu redor, pois sei que todos esperavam por uma ação minha,
e então comecei a andar.
Enquanto eu passava, as pessoas abriam caminho, sorrindo e batendo
palmas. Em transe, cheguei até a beirada do palanque, onde um Eduardo de
olhos arregalados e inquietos me fitava com ansiedade. Quando subi os
pequenos degraus de madeira que nos separavam, lembrei daquele banco do
Jardim Botânico, onde nos beijamos. Da brisa que corria fria, diferente do ar
meio morno daquela manhã de reativação do setor cinco.
Dois passos e toquei sua mão, que se estendia trêmula à minha
frente.
O vi entregar o microfone para Ricardo e então voltar a me fitar,
abrindo aquele singelo e bonito sorriso de lado.
— Sua mão está gelada — sussurrei quando ele apertou meus ossos
de leve.
— A sua também... — Ele desenrolou a echarpe da outra mão e
encobriu as minhas com suavidade. — Tudo bem? — e sussurrou, inclinando
de leve o rosto para mim.
E eu, que já me coçava de ansiedade para tocar seu rosto, levantei
minha mão para ajeitar seus óculos.
Não sei se gritaram ou se aplaudiram. Eu só senti o palco vibrar sob
nossos pés.
E para mim pouco importava, pois eu estava diante de Eduardo, e
era o mesmo Eduardo com olhar intenso que eu descobri em Curitiba e tive
medo de nunca mais encontrar.
— Me desculpa por tudo o que eu disse naquela entrevista... — ele
começou a dizer, mas o interrompi, pois tudo que eu menos queria era tocar
em um assunto que acabasse com aquela festa.
— Esquece aquela entrevista.
— Não esqueço, Ana, pois foi por conta dela que entendi que
precisava me posicionar em alguns momentos. E me posicionar não é só dizer
o que penso, mas saber calar quando for preciso.
— Você agiu sem pensar...
— E você me ensinou a nunca fazer aquilo que não queremos. Ou,
nunca dizer algo que podemos nos arrepender, mesmo que dominados pelo
medo.
— Por favor, Eduardo... — Apertei sua mão na minha e senti minha
pele se aquecer.
— Eu só preciso que você me escute, Ana.
— Então diga.
— Acostumei-me tanto a sempre ouvir o que você pensava que me
esqueci que talvez você também quisesse saber aquilo que se passava em
minha mente. O que eu sentia. Não disse, acostumado a sempre ser silenciado
na adolescência, mas não percebi que, com isso, deixava de dizer tudo o que
você tanto merecia ouvir. Pensei que bastava te ouvir, Ana, e não me dei
conta que você também queria me escutar. Que você também precisava ouvir
de mim que eu me apaixonei por você, muito antes de nos beijarmos. Sempre
fui apaixonado por você, e sou a cada dia mais.
E tudo o que eu ouvia era a batida forte do meu peito.
— Eu tenho uma pergunta, Ana. Uma pergunta aleatória para fazer a
você.
Eduardo deu um passo curto em minha direção, aproximando seu
corpo alto do meu.
— Namora comigo, Ana — ele pediu baixinho. Longe do microfone.
Só para mim.
Tímido, como o Eduardo de sempre.
Ardente, como o Eduardo que somente eu conseguia enxergar.
— Precisava armar esse circo todo só para me fazer essa pergunta?
— consegui enfim dizer.
— Para você ter certeza do que sinto, já que não sou muito bom com
palavras. — Ele soltou um suspiro agoniado e então apontou para o lado. —
Mas se essa pergunta continuar sem resposta, vou ser obrigado a pegar o
microfone e repeti-la para todos ouvirem. Ideia do Gustavo. Por favor... nos
livre dessa.
— Lembra quando eu te perguntei quantas palavras uma pessoa
pode dizer em um minuto? — Ele concordou com a cabeça, sorrindo de leve.
— Quantos “sins” cabem em um minuto?
— Eu só preciso de um.
— Sim, Eduardo.
— Como é bom ouvir isso. — E me rodeou a cintura antes que eu
percebesse.
O sócio tímido da LBK beijou a garota de franjas, bota e vestido
florido na frente de todos, provocando uma horda de assobios e aplausos, e
sob o som ruidoso da exaustora do setor cinco, que era enfim ligada.
Aquela poderia ser a manchete do dia, não fosse longa demais para
caber nas primeiras páginas dos jornais.
Ou então poderia ser algo mais ou menos assim...
O sócio tímido e a amiga extrovertida...
O filho de políticos e a filha de marceneiro...
Ana e Eduardo...
Tão diferentes e tão iguais. Capazes de ouvir o que ninguém mais
poderia escutar naquele momento.
O pulsar das máquinas no mesmo ritmo dos seus corações.
E não importava se tudo tivesse acontecido em dois dias ou menos
de uma semana.
Seriam sempre capazes de escutar um ao outro.
Mesmo quando o mundo ao redor gritava de forma ensurdecedora e
as luzes dos flashes pipocavam sem parar, sempre ouviriam seus corações
batendo.
Um...
Dois...
Três...
Epílogo

— Duuuuu.... — Ana gemeu alto. O som abafado pelo travesseiro


que tinha tampando o rosto.
— Estou começando a adorar esse apelido... — murmurei, antes de
voltar a passar a língua em sua pele, sentindo seu cheiro bom de gozo e
prazer. Suas pernas tremeram e segurei-as com força, antes de voltar a excitá-
la, passando a língua com rudeza em sua parte mais sensível.
— Isso é injusto... — ela falava com um leve desespero na voz. —
Isso é muito injusto...
— Que saudade, Ana... Uma semana e estava morrendo de saudade
de sentir você... — Comecei a beijar seu corpo nu, subindo vagarosamente.
— De beijar você... — Suguei seus seios e ela arfou, gemendo alto. — De me
esbaldar em você.
— Também senti sua falta. — Ela me fitou com intensidade quando
nossos olhos se cruzaram. — Do seu sorriso de lado, do seu corpo quente, da
forma como sempre responde todas as minhas perguntas... Senti falta do
Eduardo que conheci naquela viagem, e tive medo de que ele não fosse real.
Que nunca mais o encontrasse.
Passei as mãos por seus cabelos, afastando um pouco sua franja da
testa. Ana fechou os olhos um segundo e beijei-a.
Depois do meu surto de coragem de pedir Ana em namoro na frente
de todos, conseguimos escapulir da fábrica sem que percebessem. Agora, ela
estava na minha cama e tinha o corpo suado de tudo o que já havíamos feito.
Achei que aquele era o momento ideal para repetir tudo o que disse
naquele palco, mas só para ela.
Minha Ana...
— O Eduardo que você conheceu naquela viagem é o mesmo
Eduardo que está aqui na sua frente. Sou eu, Ana. Sempre fui. — Encaixei
minhas pernas entre as dela e comecei a avançar, devagarinho.
— Ah... não mesmo! — Ela riu e jogou um pouco a cabeça para trás,
soprando um fio da sua franja. — O homem que está em cima de mim está
longe de ser o sócio tímido que eu e as meninas conhecemos.
— Ainda sou o mesmo, Ana. Para todo o resto. Você quem me
ensinou isso. A ser eu mesmo e não ter medo de fazê-lo. — Desci um pouco
mais meu corpo e penetrei lentamente nela. Ana gemeu baixinho, mas estava
tão molhada que avancei com facilidade. — Agora... esse homem aqui, só
você terá.
E comecei a me mover.
Ela voltou a gemer e se deixou cair na cama, entregue. A vi fechar
os olhos e também fechei os meus, como no dia em que nos beijamos no
Botânico.
Me entreguei às sensações de ter meu corpo sobre o dela,
encobrindo-a, invadindo-a, conquistando-a.
— Eu sou... apaixonado... por você... Ana... — me declarei
novamente, ao mesmo ritmo em que me movia, batendo duramente em seus
quadris.
Feito uma máquina, que nunca pararia de funcionar por ela.
— Eu também... — Finalmente ouvi a declaração de volta. — Estou
me aaa... — Ela gemeu alto e gritou, quando suas palavras me fizeram
avançar mais, incontrolável. — Me deixa falar!
Não deixei. Silenciei sua boca com um beijo, pois sei que ali as
palavras eram dispensáveis.
Continuei a me mover ritmado, até vê-la se perder de novo, gritando
mais uma vez por “Du” e agarrando meus ombros como se buscasse amparo.
Também me entreguei para Ana, tendo a certeza plena de que só a
ela era capaz de dar tudo aquilo que se manteve guardado por tantos anos.
Para ela.
Sem fôlego e extenuado, me deixei cair na cama. Ela me rodeou a
cintura com seus braços suados e com cheiro de chá e deitou-se em meu
peito. Ficamos assim por um tempo até que ela começou a rir.
— Ainda não acredito que estou namorando um dos integrantes do
Quarteto Fantástico! — Seus olhos brilhavam.
— E eu ainda não acredito que vocês nos chamavam assim durante
todo esse tempo...
— Por favor. — Ela pegou uma de minhas mãos e levou aos lábios.
— Tem que me prometer que não vai contar isso para os outros. De boca
aberta basta um nessa relação.
— Prometo. — Sorri, beijando sua face. — Agora, tenho que te
mostrar uma coisa.
Me levantei rapidamente e procurei pelo papel que estava guardado
em um dos bolsos da calça jogada no chão. Lhe entreguei o papel e fiquei
analisando seu rosto, enquanto ela desdobrava a pequena folha.
Era um esboço, ainda primitivo, do que poderia vir a ser o novo
símbolo da LBK.
LBK não...
Diversa.
Era um desenho simples, com o nome “diversa” escrito na parte de
baixo de maneira singela e harmônica com os traçados de cima. Curvas
sinuosas que se pareciam com as três pétalas centrais de uma flor, em um tom
verde vivo.
Transmitia tudo o que éramos. A busca pelo respeito ambiental, a
forma como nos complementávamos para formar algo único... a diversidade
dos produtos da marca.
— Ficou lindo... — Ana murmurou, passando os dedos de leve no
desenho, como se procurasse ali algum relevo.
— Todos adoraram a ideia do nome. — Apontei para o desenho. —
E essa arte aí... Às vezes o Gustavo até que dá uma dentro.
— Ele quem fez?
— Ficou animado com o nome e teve essa ideia do nada. — Peguei
o papel que ela me devolvia. — Quando ele está inspirado...
— Vou ganhar uma parte da fábrica por finalmente encontrar o
nome ideal para a LB... Diversa?
— Acho justo. Por isso está vendo o logotipo com exclusividade.
Você vai receber todos os créditos do nome. Já conversamos entre os quatro
sobre isso.
Ela parecia ter faísca nos olhos quando se inclinou para me beijar.
— Você poderia ser só um pouquinho menos irresistível... É sério,
Eduardo! É meio injusto você ser tão perfeito. Meu tripé de boca gostosa... —
falou manhosa em meus ouvidos, pressionando seu corpo no meu.
— Ah, Ana... é impossível não me apaixonar por você. — gargalhei
quando ela me empurrou no colchão, passando os dedos por meus cabelos e
voltando a se deitar em meu colo.
Ficamos assim, colados um no outro por um longo tempo. As pernas
se enroscando e as mãos se entrelaçando, até que a vi adormecer nos meus
braços. O corpo totalmente relaxado e quente, como só Ana era capaz de ser.
E enquanto ela dormia, a admirei. Seus lábios avermelhados, seus
cabelos espalhados nos lençóis e a forma como ela se esparramava no
colchão, querendo ocupar cada centímetro dali.
Assim como já ocupava meu coração.
Lembrei-me do dia em que fez dez anos da morte dos meus pais.
Quando conheci Benício e Ricardo.
Aquele dia eu não tinha um destino certo. Não sabia o que seria da
minha vida, nem se algum dia voltaria a considerar outras pessoas como
minha família.
E foi naquele dia que, sem saber, comecei a trilhar o caminho que
me levaria até ela.
Ana...
Ali, deitada ao meu lado, com os lábios entreabertos e a franja
bagunçando seu rosto sorridente, estava meu destino.
Tão perto.
Tão real.
Tão minha.
Ana...
Quantas Anas caberiam em um minuto?
Isso não importava, pois agora a eternidade nos pertencia.
Agradecimentos

Agradecer nunca é demais. Me sinto sempre grata por cada projeto


concluído. Cada pilar construído em minha carreira como escritora e cada
leitor conquistado.
Quem me acompanha sabe que a história de Ana e Eduardo demorou
um pouquinho mais para ser lançada ante os outros livros da série, pois tive
uma pausa entre 2021 e 2022 por conta da gravidez e do nascimento dos
gêmeos.
A ansiedade de quem queria conhecer o terceiro casal também era
compartilhada por mim. Estava doida para apresentar a vocês esses dois
piticos, que eu tenho certeza de que nasceram um para o outro.
Ana e Eduardo foram escritos em um momento muito especial da
minha vida, mas os meses de julho e agosto foram muito cansativos, em
vários sentidos. E é por isso que quero agradecer minhas parceiras. Os surtos
que vocês mandaram no grupo, cada uma com seu jeito de ser, deram a mim,
Mariana Vaz, a resposta que eu precisava. Ratificaram minhas escolhas.
Muito obrigada. De todo coração.
Antes de finalizar, peço que avaliem meu livro na Amazon.
E o que vem depois?
O depois... Só acompanhando para saber.

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