MARGUERAT, D. (Org.) - Novo Testamento (LV)
MARGUERAT, D. (Org.) - Novo Testamento (LV)
MARGUERAT, D. (Org.) - Novo Testamento (LV)
TRADUÇÃO
Margarida Oliva
Edições Loyola
Título original:
Introduction au Nouveau Testament - Son
histoire, son écriture, sa théologie
© 2000, 20012, 20043by Editions Labor et Fides
ISBN 978-2-8309-1149-7
Edições Loyola
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escrita da Editora.
ISBN 978-85-15-03627-1
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2009
Sumário
P re fá c io .............................................................................
D an iel M arguerat
parte 1
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
capí t ulo I
O problem a sin ó tico ......................................................
D an iel M arguerat
c apí t ul o 2
O evangelho segundo M a rc o s ....................................
C orin a Com bet-G alland
capí t ulo 3
O evangelho segundo M a te u s ....................................
Elian C u v illie r
capí t ul o 4
O evangelho segundo Lucas .......................................
D aniel M arguerat
capí t ulo 5
O s A tos dos a p ó sto lo s..................................................
D aniel M arguerat
A literatura paulina
capítulo 6
Cronologia p aulin a.............................................................................171
François Vouga
capítulo 7
O c o rp u s paulino ..............................................................................181
François Vouga
parte 2.1
As epístolas de Paulo
cap í t u l o 8
A epístola aos R om an os.................................................................207
François Vouga
c apí t ul o 9
A primeira epístola aos C orín tios............................................... 233
François Vouga
cap í t u l o 10
A segunda epístola aos C o rín tio s.................................................259
François Vouga
cap í t u l o 11
A epístola aos G á la ta s......................................................................277
François Vouga
cap í t u l o 12
A epístola aos F ilip en ses................................................................. 297
François Vouga
c apí t ul ol 3
A primeira epístola aos T essa lo n ic en se s.................................. 315
François Vouga
c apí t ul o 14
A epístola a F ilêm on.......................................................................... 329
François Vouga
As epístolas deuteropaulinas
c apí t ul o 15
A epístola aos C o lo ssen ses......................................................... 339
Andreas D ettw iler
c apí t ul o 16
A epístola aos E fésios................................................................... 357
Andreas D ettw iler
c apí t ul o I 7
A segunda epístola aos T essalo n icen ses..................................377
Andreas D ettw iler
parle 2.3
As epístolas pastorais
c apí t ul o 18
As epístolas pastorais (1 e 2 T im óteo; T ito ) ......................... 393
Yann Redal/é
parle 2.4
Hebreus
capí t ul o 19
A epístola aos H e b re u s ................................................................ 419
François Vouga
parle 3
A tradição joanina
capí t ul o 20
O evangelho segundo J o ã o ......................................................... 437
Jean Zum stein
capí t ul o 2 I
As epístolas jo a n in a s .................................................................... 471
Jean Zumstein
capí t ul o 22
O apocalipse de J o ã o .................................................................... 493
E lian C u v illie r
As epístolas católicas
cap í t u l o 23
A epístola de T ia g o .......................................................................... 517
François Vouga
c a p í t u l o 24
A primeira epístola de P ed ro........................................................ 533
Jacques Schlosser
c apí t ul o 25
A segunda epístola de P ed ro ..........................................................549
Jacques Schlosser
cap í t u l o 26
A epístola de J u d a s ............................................................................559
Jacques Schlosser
parte 5
A história do cânon
cap í t u l o 27
H istória do cânon do N o v o T estam en to .................................. 571
Jea n -D a n iel Kaestli
parle 6
A crítica textual
c apí t ul o 28
O te x to do N o v o T estam en to e sua h istó r ia ......................... 607
Roselyne D upont-Roc
G lossário................................................................................................ 635
9
NOYO TESTAMENTO - historia, escritora e teologia
10
Prefácio
11
NOVO TESTAMENTO - historia, escritura e teologia
sem, por isso, deixar de usar todas as fontes à sua disposição para
esboçar (pelo menos) um perfil do autor.
Os co-autores deste manual ensinam nas faculdades de teologia
protestante de Lausanne (Jean-Daniel Kaestli, Daniel Marguerat),
Neuchâtel (Andreas Dettwiler), Zurique (Jean Zumstein), Bethel-
Bielefeld (François Vouga), Paris (Corina Combet-Galland), Mon-
tpellier (Elian Cuvillier), Roma (Yann Redalié) e na faculdade de
teologia católica de Strasbourg (Jacques Schlosser). A preparação
do manuscrito se beneficiou dos cuidados atentos de Emmanuelle
Steffek.
Nosso desejo? Que este manual desempenhe plenamente seu
papel: introduzir, isto é, levar para dentro do Novo Testamento e
abri-lo para a leitura.
Lausanne, verão de 2000
P a r a a t e r c e ir a e d iç ã o
Esta obra já encontrou seu lugar de manual para o estudo do
Novo Testamento. Nas faculdades de teologia e nos locais de for-
mação bíblica, ela oferece os elementos indispensáveis para situar os
escritos fundadores do cristianismo em seu meio histórico de produ-
ção. Um 28° capítulo, acrescentado por ocasião da segunda edição,
apresenta “O texto do Novo Testamento e sua história”, devido à
competência de Roselyne Dupont-Roc (Instituto Católico de Paris).
Novidade desta terceira edição: a atualização das bibliografias e de
alguns textos, e a eliminação de algumas falhas tipográficas. Mais
uma vez, Emmanuelle Steffek prestou o enorme serviço de coorde-
nar a edição; ela tem direito à gratidão dos autores.
Lausanne, verão de 2004
12
parte 1
A tradição sinótica e os
Atos dos apóstolos
0 problema sinótico
Daniel Marguerat
16
O problema sinótico
17
A tradição sinótica e os A tos dos apóstolos
Estrutura e conteúdo
Semelhanças Divergências
• Mesma estrutura fundamental do • Narrativas da infância (Mt 1-2; Lc
evangelho: João Batista/batismo 1-2) não concordantes, ausentes em
marcando o inicio da atividade públi- Marcos.
ca de Jesus/milagres e pregação na
Galiléia/viagem a Jerusalém/Paixão e
ressurreição.
• Duração do ministério de Jesus: cerca • Genealogia de Jesus discordantes (Mt
de um ano (João: três anos) 1: 3 séries de 14 nomes de Abraão a
Jesus; Lc 3: 77 nomes de Adão a José).
• Alternância de unidades literárias • O Sermão da Montanha (Mt 5-7) tem
diversas, ligeiramente localizadas. um breve paralelo em Lucas 6,20-49,
mas quase nenhum material comum
com Marcos.
• Inúmeras parábolas só se encontram
em Lucas (o samaritano, o filho perdi-
do, 0 fariseu e o coletor de impostos, o
rico e Lázaro etc.).
• As aparições do Ressuscitado estão
ausentes em Marcos 16,1-8; ocorrem
na Galiléia, segundo Mateus (28,16-
20), em Jerusalém segundo Lucas
(24,13-53).
Sucessão de perícopes
Semelhanças Divergências
Exemplos de seqüências idênticas de Exemplos de divergências no encadea-
várias perícopes: mento das perícopes:
• Marcos 2 ,1 -2 2 //M a teu s 9 ,1 -1 7 // • Marcos 6,1-6 (// Mt 13,53-58) conta
Lucas 5,17-39: cura de um paralítico, a pregação e a rejeição de Jesus em
vocação de um coletor de impostos, Nazaré; Lucas situa essa pregação no
refeição com os pecadores, controvér- início de seu evangelho (Lc 4,16-30).
sia sobre o jejum. • Marcos 1,16-20// (Mt 4,18-22) relata a
• Marcos 12,13-37a / / Mateus 22,15-46 vocação dos primeiros discípulos; Lucas
/ / Lucas 20,20-44: quatro relatos de situa a vocação de Pedro depois da
controvérsia. pesca abundante (Lc 5,1-11).
• Mateus 7,15-27 / / Lucas 6,43-49: logia • Marcos evoca primeiro o sucesso po-
sobre a árvore e seus frutos, parábola pular de Jesus e se.us milagres, depois
das duas casas. a instituição dos Doze (Mc 3,7-12.13-
• Marcos 8,2 7 -9 ,8 / / Mateus 16,13-17,8 19). Lucas procede de modo inverso (Lc
/ / Lucas 9,18-36: confissão de Pedro, 6,12-16.17-19).
anúncio da Paixão, Transfiguração.
18
O problema sinótico
Formulação
Numerosos casos de identidade verbal Divergências notáveis, mesmo no caso
nos três evangelhos. Exemplos: de tradições paralelas.
• Marcos 2,9 / / Mateus 9,5 / / Exemplos:
Lucas 5,23. • Mateus 22,1-14 (festa nas bodas do
• Marcos 15,43 / / Mateus 27,58 / / Lucas filho do rei) e Lucas 14,15-24 (um
23,52. banquete).
• Marcos 8,35 / / Mateus 16,25 / / Lucas • N o encontro com o moço rico, compa-
9,24. rar Marcos 10,18 e Mateus 19,17.
A identidade caracteriza, também, as • Na narrativa da Paixão, as versões das
citações do Antigo Testamento diver- últimas palavras de Jesus não concor-
gentes da versão grega da Septuaginta: dam entre si: comparar Marcos 15,34
• Marcos 1 ,3 // Mateus 3,2 / / (// Mt 27,46) e Lucas 23,34.43.46
Lucas 3,4. (três outras palavras).
Mesmo alguns termos insólitos ou
raros, em grego, se encontram nos três
sinóticos:
• pedaço de pano (έ π ίβ λ η μ κ : Mc 2,21
e //)
• espiga (σπόριμος: Mc 2,23 e //)
• migalha (ψ ίχίΟ Ρ : Mc 7,28 e //)
• peixinho (ίχθ1)δ10 ν: Mc 8,7 e //)
19
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
20
O problem a sinótico
21
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
22
O problema siçótico
Conclusão
Os três modelos inventariados conseguem explicar os acordos
entre os sinóticos, ou suas divergências, mas não resolvem os dois
problemas ao mesmo tempo: o das aproximações e o das diferenças.
Para elucidar esse duplo fenômeno, um outro parâmetro deve inter-
vir no sistema explicativo: as mediações literárias de um Evangelho
para outro. A reconstrução da filiação passa, então, de uma deriva-
ção imediata para um modelo genealógico.
23
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
24
O problem a sinótico
M ateus Lucas
25
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
26
O problema sinótico
27
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
A combinação do texto de Marcos com o da fonte dos logia (Q) pode ser
mostrada com o exemplo da perícope do Batista (Mt 3,1 -12; Lc 3,1 -18). Mateus
(3,1-6) e Lucas (3,1-6) começam por seguir o texto marcano; Lucas o modifica
ampliando simplesmente a citação de lsaías 40. Quando citam a pregação de
João Batista, Mateus (3,710 ) ־e Lucas (3,7-10) se afastam de Marcos apresen-
tando um texto quase idêntico; este texto provém da fonte Q. Mateus 3,11 e
Lucas 3,16 prosseguem citando o Batista segundo um texto apresentado tam-
bém em Marcos 1,7 s. O fim de sua pregação (Mt 3,12 / / Lc 3,17) diverge, de
novo, de Marcos, que não apresenta nenhum equivalente, enquanto Mateus e
Lucas oferecem uma formulação análoga proveniente de Q. O entrelaçamen-
to das duas fontes documentárias é confirmado pelo fato de que Lucas, em
vez de proceder por colagem, como Mateus, acrescentou à segunda sequência
uma introdução (3,15 s.) e uma conclusão (3,18).
A fonte dos logia deve ter chegado aos dois evangelistas sob for-
ma escrita e em versão grega. As identidades verbais atestadas de
uma parte e de outra não teriam outra explicação. Observa-se em
Mateus uma tendência a conservar sua formulação, ao passo que
Lucas heleniza a língua. A hipótese de uma forma escrita se apóia no
fato de que as tradições tomadas da fonte aparecem nos dois evan-
gelhos seguindo claramente a mesma ordem, como o demonstra o
quadro a seguir.
28
O problema sinótico
29
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
30
O problema sinótico
31
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
32
O problem a sinótico
Saldo
O que concluir dos dois modelos genealógicos propostos para a
solução do problema sinótico? Uma hipótese literária, para ser efi-
caz, deve obedecer a um princípio de economia (a complexidade é
desencaminhadora), ao mesmo tempo em que explica o máximo de
fenômenos observados; submetidos a esses dois critérios, o modelo
das duas fontes ganha do modelo de utilização.
Se sua plausibilidade parece ser mais forte, ele tropeça, no entan-
to, em um problema residual: os “acordos menores” (minor agree-
merits) Mateus/Lucas. Trata-se de pequenas modificações do texto
marcano (anexação, supressão, substituição de termos) adotadas
uniformemente por Mateus e Lucas; de importância menor quanto
à significação, seu número chega a 700. Ora, a teoria das duas fontes
postula a ausência de todo contato entre os dois evangelistas em sua
recepção de Marcos. Como explicar essa profusão de mínimas iden-
tidades verbais? O modelo da utilização a explica pela releitura lu-
cana de Mateus, mas, como já vimos, essa hipótese levanta, por sua
vez, novas dificuldades (como explicar as grandes divergências de
língua e de conteúdo entre Lucas e Mateus?). Foram propostas so-
luções combinatórias, articulando com a hipótese de um evangelho
primitivo a existência de um proto-Mateus e de um proto-Lucas e
juntando a eles a contribuição de uma fonte comum Mateus/Lucas
(R Benoit-M. E. Boismard; Ph. Rolland)7; o risco, aqui, é sobrecar-
33
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
g
Segundo Frans NE1RYNCK, The Minor Agreements in a Horizontal-line
Synopsis, Leuven, University Press/Peeters, 1991.
34
O problema sinótico
Tradições
próprias de Lucas
35
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
36
O problem a sinótico
Ver p. 580-589.
11 Martin HENGEL, Die Evangelienüberschriften, Heidelberg, Winter, 1984.
37
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
A s aretologias
A literatura greco-romana oferece várias analogias possíveis.
Pensou-se nas aretologias, essas biografias que descrevem os mi-
!agres realizados pelos “homens divinos” (Géiot άνδρ6ς). H. Kõster
imaginou que Marcos e João teriam, cada um deles à sua moda, inte-
grado coleções de milagres em um contexto biográfico mais amplo13.
Mas é duvidoso que na literatura antiga se possa falar da aretologia
como de um gênero maior de escrito; a aretologia não designa uma
38
O problem a sinótico
As opções da narrativa
O romance grego foi evocado por causa da excelência de sua cons-
trução narrativa (ver o romance de Alexandre ou Leucipo e Clitofon
de AchilleTàtius). M. A. Tolbert propôs esse modelo para Marcos14.
Disposição dos episódios, efeitos dramáticos, desenvolvimento de
um enredo caracterizam também o trabalho dos evangelistas, cujo
escrito constitui uma cristologia em forma de narração. A leitura do
evangelho, como a de um romance, deslancha um processo cogniti-
vo durante o qual o leitor é levado a pôr à prova suas concepções e
seu sistema de valores; no caso presente, cada evangelho se aplica
a corrigir outras cristologias. A comparação com o romance aponta
para a escolha evangélica da narração: contar Jesus (de preferência
a retranscrever seus discursos, como fez a fonte dos logia) é ins-
crever o destino do Filho de Deus numa história de homens e mu-
lheres. A Palavra tornou-se carne; ela se fez humanidade que pode
ser contada. A narratividade é o indício da encarnação. Não se há
de confundir, entretanto, a escolha teológica da narratividade com a
adoção dos cânones do romance grego; este último dá à ficção e ao
maravilhoso uma parte bem mais considerável.
39
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
40
O problem a sinótico
Um programa ímpar
Em conclusão, parece que o evangelho se avizinha de vários gê-
neros literários da Antiguidade: biografia ideal do enviado de Deus,
escrito de intenção aretológica, romance, biografia greco-romana.
Conforme sua educação, os ouvintes/leitores do primeiro século
o aproximaram, alternadamente, deste ou daquele tipo de escrito.
Como veremos nos próximos capítulos, a aproximação pode tam-
bém variar conforme o evangelho se apresente segundo Marcos, se-
gundo Mateus, segundo Lucas ou segundo João.
Mas a afiliação literária não deve dissimular a originalidade do
evangelho, que depende de um fenômeno historicamente identified-
vel: o desenvolvimento da fé em Jesus. Porque o evangelho nasce de
um programa teológico sem igual: manifestar a identidade do Cru-
cificado e do Ressuscitado, a identidade do homem de Nazaré e do
Senhor vivo. A escolha da narração se liga, aqui, à intenção querig-
mática: a vida desse Galileu cercado de um punhado de discípulos é
contada como o momento decisivo da história do mundo. Presente
e futuro estão, doravante, suspensos desse fragmento de história em
que se dá a conhecer, definitivamente, o rosto de Deus. Esse progra-
ma teológico totalmente novo se moldou em um tipo de escrito sem
precedentes imediatos. O mais próximo é o da biografia.
5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
Crítica do modelo das duas fontes. O consenso em torno do mo-
delo das duas fontes como solução do problema sinótico é posto em
causa a partir de seu ponto frágil: os “acordos menores” Mateus/
Lucas. A tese de uma utilização de Mateus por Lucas é explorada
com base nos acordos menores entre esses dois evangelhos, seja no
intuito de matizar o modelo das duas fontes, seja no de contestá-lo
para retornar à hipótese de Griesbach (modelo da utilização)17.
17 Eduard SIMON, Hat der dritte Evangelist den kanonischen Matthaus be-
nutz?, Bonn, 1880; Allan J. McNICOL, David L. DUNGAN, David B.
PEABODY (eds.), Beyond the Q Impasse. Luke’s Use of Matthew, Valley
Forge, Trinity Press, 1996.
41
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
6 . B ib l io g r a f ia
Leitura prioritária
BULTMANN, Rudolph. Linvestigation dês évangiles synoptiques. In:
--------- . Foi et compréhension. Paris, Seuil, 1969 [1. ed 1961], II, p.
247-29).
42
O problema sinótico
Problème synoptique
BULTMANN, Rudolf Lhistoire de la tradition synoptique. Paris, Seuil,
1973.
DUNGAN, David L. (ed.). The Interrelations o f the Gospels. Leuven, Leu-
ven University Press/Peeters, 1990 (BEThL 95).
KLOPPENBORG, John S. The Formation o f Q. Philadelphia, Fortress
Press, 1987.
NEIRYNCK, Frans. Q-Synopsis. The Double Tradition Passages in Greek.
Leuven, Leuven University Press, 1988 (SNTA 13).
SATO, Migaku. Q undProphetie. Tübingen, Mohr, 1988 (W UN T 2.29).
STRECKER, Georg (ed.). Minor Agreements. Gottingen, Vandenhoeck
und Ruprecht, 1993 (GTA 50).
TUCKETT, Christopher M. Q and the History o f Early Christianity.
Edinburgh, Clark, 1996.
Evangelhos
AUNE, David E. The N ew Testament in its Literary Environment. Philadel-
phia, Westminster Press, 1987, p. 17-76.
KOSTER, Helmut, BOVON, François. Genèse de I’Ecriture chrétienne.
Turnhout, Brepols, 1991 (Mémoires premières).
DORMEYER, Detlev. Evangelium als literarische und theologische Gattung.
Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1989 (EdF 263).
KOSTER, Helmut. Ancient Christian Gospels. Philadelphia, Trinity Press
International, 1990.
MARGUERAT, Daniel. Le Dieu des premiers chrétiens. Genève, Labor et
Fides, 1997, p. 147-163 (Essais bibliques 16).
STUHLMACHER, Peter (Hrsg.). Das Evangelium und die Evangelien. Tü-
bingen, Mohr, 1983.
TALBERT, Charles H. W hat is a Gospel? London, SPCK, 1978.
43
CAPITULO
2
O evangelho segundo Marcos
Corina Combet-Galland
1. A p r e s e n t a ç ã o
/. /. Gênero literário
Se o Evangelho é o conteúdo da proclamação cristã, a boa-nova
da libertação dos homens por Deus em Jesus, o evangelho segundo
Marcos é a primeira narração à nossa disposição que recorda a his-
tória. O relato se abre com a própria palavra 6ύαγγέλιον, qualificada
em seu duplo sentido por um valor de início; começa o anúncio feliz,
como uma voz viva, e começa também o ato de escritura que a re-
cebe e a verte na forma de um relato de vida. A primeira frase escla-
rece ainda que o Evangelho é o “de Jesus Cristo” e, segundo certo
bons manuscritos, “Filho de Deus”. Aqui, de novo, prepara-se uma
dupla compreensão possível: o Evangelho é a mensagem que Jesus,
como sujeito, proclama: a proximidade de Deus e seu Reino, no tem-
po acabado (1,14-15); é também o relato do qual Jesus proclamador
é o objeto, que recompõe o itinerário de Cristo pelos caminhos dos
homens, entre o Jordão, onde é batizado, na fronteira da Galiléia,
e o novo encontro na Galiléia, marcado com os seus, antes de sua
prisão em Jerusalém (14,28), mas que será lembrado no túmulo do
qual seu corpo está ausente (16,1-8).
A palavra Evangelho volta de modo significativo na narração e na
própria boca de Jesus. No fim do prólogo, Jesus proclama “o Evan-
45
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
46
O evangelho segundo M arcos
1.2. Estrutura
A organização de conjunto não é fácil de ser apreendida; para re-
cortar a matéria e evidenciar as articulações significativas do relato,
vários critérios foram retidos:
a) A observação do contexto espacial permitiría distinguir, de-
pois do prelúdio às margens do Jordão (1,1-13), três mo-
mentos: o ministério na Galiléia, com suas incursões em
território pagão (1,14-9,50); a subida a Jerusalém (10,1-
52); o ministério e a Paixão em Jerusalém, com a abertura
pascal para o encontro marcado na Galiléia (11,1-16,8)'.
Mas se as figuras espaciais estruturam a narrativa é sem
dúvida menos sob a forma de um percurso geográfico pre-
ciso, que remetería a um referente histórico, do que atra-
vés de uma topografia carregada de simbolismo que elas
projetam no mundo da narrativa e que é teológico.
47
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
48
O evangelho segundo Marcos
49
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
50
O evangelho segundo Marcos
Posfácio (16,1-8)
16,1-8 O relato do silêncio: as mulheres no túmulo e o
encontro marcado na Galiléia
(16,9-20 Uma sequência acrescentada: o relato da procla-
mação)
51
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
52
O evangelho segundo Marcos
53
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
54
O evangelho segundo Marcos
55
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
56
O evangelho segundo Marcos
2 . M e io e c ir c u n s t â n c ia s h is t ó r ic a s d e p r o d u ç ã o
2 .1. O autor
O evangelho segundo Marcos é uma obra que quis ficar anônima.
Quando o autor recebeu uma pregação de Jesus e sobre Jesus, que
traduziu em um relato de vida, sua personalidade se apagou diante
da autoridade da mensagem a ser comunicada, o Evangelho. Seu
relato não ostenta nenhum “eu” que fala, diferentemente da dedica-
ção lucana (Lc 1,1-4); ele é apenas pressuposto pela apóstrofe ao lei-
tor introduzida no discurso apocalíptico (“que o leitor compreenda”,
13,14). O autor também não explicita nenhuma intenção, diferente-
mente da conclusão joanina (Jo 20,30-31): ela deve ser deduzida da
perspectiva da própria obra.
A importância dada a essa reserva põe a questão da identidade
de Marcos em seu justo lugar. A subscrição “segundo Marcos” (κατά
Μάρκον), um nome de origem romana muito difundido, é secunda-
ria; atestada desde Ireneu (fim do século II), ela reflete novas condi-
ções de recepção. Para situar esse relato, toda a tradição patrística
58
O evangelho segundo Marcos
59
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
2.2. O lugar
A tradição, e já Clemente de Alexandria, localizou o evangelho
em Roma. Nada no texto permite, realmente, confirmá-lo ou infir-
60
O evangelho segundo Marcos
2.3. A data
Para a datação, é o capítulo 13 — o grande discurso que anuncia
o fim dos tempos a partir da destruição do Templo de Jerusalém —
que é tomado como ponto de referência. Ele lembra um discurso
de adeus, que dá ao presente precário das comunidades às quais o
evangelho se dirige a condição de um anúncio profético do Senhor.
Esse texto reflete um período conturbado, conforme as informações
que nele podemos respigar — clima tenso, profanação do lugar san-
to (“Quando virdes o Abominável Devastador instalado onde não
deve”, v. 14), urgência de proclamar o Evangelho às nações (v. 10),
diante dos tribunais (v. 11), pretensões messiânicas (vv. 5-7; 22).
Mas tudo isso pode tanto falar da primeira Guerra Judaica (66-70),
que terminou com a tomada de Jerusalém por Tito e o incêndio do
Templo, como visar à escatologia e depender de temas apocalípticos
segundo os clichês bíblicos.
61
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
2.4. Os destinatários
Quanto à origem religiosa dos destinatários, é a ausência de refle-
xão profunda sobre alorá, ao contrário do evangelho de Mateus, que
leva a pensar em pagãos-cristãos. A importância dos deslocamentos
de Jesus nos territórios limítrofes de Tiro e de Sídon, de Cesaréia de
Filipe e, mais ainda, francamente do outro lado do lago da Galiléia, na
Decápolis, apóia esta hipótese. Ela é confirmada pontualmente pela
tradução necessária de usos e costumes judaicos desconhecidos dos
leitores (7,1-4, sobre os rituais de purificação). Mas a imprecisão his-
tórica nessas mesmas explicações não chega, em geral, a induzir que
o próprio autor seja pagão-cristão; como judeu de origem, pode-se
imaginá-lo a certa distância das autoridades religiosas e das institui-
ções de seu tempo, o que lhe dá uma certa flexibilidade de visão. A
atenuação dos costumes pode, aliás, se explicar também pelo ângulo
polêmico dos debates encenados pela narração. A figura do autor se
delineia, assim, como um judeu-cristão da segunda geração, falando o
grego, aberto à missão universal, que escreve para pagãos-cristãos de
uma comunidade, se não romana, pelo menos do mundo ocidental.
Não sendo possível, para esse primeiro evangelho, um olhar si-
nótico com algum texto anterior, uma imagem teológica da comuni-
62
O evangelho segundo Marcos
3 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia e h is t ó r ic a
3 .1. Os gêneros literários
Se o estilo do evangelho, no conjunto de sua composição, encer-
ra alguma coisa de incomparável, os gêneros literários de seus epi-
sódios parecem mais evidentes. Eles foram recenseados pela crítica
63
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
64
O evangelho segundo Marcos
3.2. As fontes
O autor do evangelho herdou tradições que situamos sob a sua
remodelagem; mas é difícil dizer com precisão sua extensão e seu
teor, bem como restabelecer os contornos de um eventual proto-
Marcos. Sem dúvida ele se beneficiou, ao mesmo tempo, de fontes
escritas e de material oral, de primeiros esboços do judeu-cristianis-
mo da Palestina e de outros mais marcados pela cultura helênica.
Um relato da Paixão, com o qual as comunidades comemoravam,
em sua liturgia, a morte e ressurreição de seu Senhor, talvez tenha
formado o núcleo de sua narração; tecido de citações das Escrituras
que evocam as figuras do justo perseguido, ele deu ao evangelho sua
tensão dramática. Quanto às parábolas, às controvérsias, aos mila-
gres, parece que a tradição já tinha feito um trabalho de reagrupa-
mento. Marcos retomou também sentenças isoladas, que manteve
aqui e ali, mesmo quando as circunstâncias as tinham desmentido
(como a certeza de que o Reino viria antes da morte de alguns dos
ouvintes de Jesus, 9,1), ou que já tinham sido desenvolvidas em pe-
quenas coleções (como o apelo a todo homem a segui-lo ao preço de
sua própria vida, 8,34-38).
A obra final acentuou esses reagrupamentos, mas organizando o
material em um roteiro, com um contexto espaciotemporal e mediante
um manejo de atores; o relato foi também submetido a outros efeitos
de ecos internos, que transgridem as fronteiras dos gêneros literários.
A mola essencial da composição de Marcos, que assegura uma
coerência teológica das tradições recolhidas, foi designada pela ex-
65
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
66
O evangelho segundo Marcos
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A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
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O evangelho segundo Marcos
69
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
70
O evangelho segundo Marcos
4 . V is ã o t e o l ó g ic a
4. /. O Filho de Deus
O evangelho de Marcos não faz mistério nem guarda o segredo,
e suas primeiras palavras o declaram: Jesus, cuja boa-nova se vai ler,
leva o título de Cristo, ao qual se acrescenta, segundo os manuscri-
tos, o de Filho de Deus. Apesar disso, a narração está semeada de
questões sobre sua identidade. Não se desenrola como a aquisição
progressiva^de um saber, que viria preencher uma falta, mas toma
a forma de um questionamento desse saber, desse crer já dados.
Como se com o apoio dessa confissão primeira fosse preciso que
o homem se interrogue, sempre de novo, sobre as modalidades de
acesso ao conhecimento, e como se fosse no próprio caminho desse
questionamento que ele se descobre verdadeiramente capaz de um
reconhecimento. O percurso da vida de Jesus segue, aliás, o mesmo
plano: nele, os sinais da alteridade de Deus, como no batismo ou
na transfiguração, são o viático que permite ao Filho, no caminho
assumido da obediência, atravessar a morte. A iniciativa da mulher
que perde seu sangue pode oferecer uma representação da busca,
por patamar, que o evangelho parece, assim, promover (5,25-34):
de uma necessidade para seu corpo, a saúde como um objeto que ela
ousa roubar pelas costas, ela passa à relação intersubjetiva, face a
face, quando Jesus procura quem o tocou, e depois finalmente ace-
de, a seus pés, a uma palavra verdadeira. O “verdadeiramente este
homem era Filho de Deus” (15,39) do centurião aos pés da cruz, que
faz eco ao “verdadeiramente tu és um dos seus”, que Pedro nega,
quando seu mestre é preso (14,70-72), indica a posição do olhar teo-
lógico a que o evangelho visa. Ele é enunciado no presente da ver-
dade, mas no espaço mesmo da morte, da ausência; integra, assim,
a distância do depois, antecipa a posição da leitura.
Rompimento e filiação
Sem relato do nascimento, nem da infância (Lucas e Mateus che-
garão a esses inícios humildes e milagrosos), sem evocação da pree-
xistência (João celebrará, em seu prólogo, essa origem primeira), o
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
72
O evangelho segundo Marcos
74
O evangelho segundo Marcos
O corpo e as emoções
A condição humana é confirmada na carne e na história. Os inú-
meros relatos de milagres ilustram a restauração do corpo, curado e
alimentado, levantado, libertado das forças redutoras do demônio.
Eles significam, assim, a possibilidade e a exigência de uma vida de ho-
mem devolvido à sua identidade singular e, a partir daí, a uma palavra
pessoal. Pela complementaridade de seus relatos, o evangelho projeta
um corpo íntegro, mobilizado, de membros reunidos. Os afetos tam-
bém impressionam por sua importância, sejam os do próprio Jesus,
sua cólera ou sua piedade (1,4; 3,5; 5,19; 6,34; 8,2; 9,24; 10,47.48), os
dos ouvintes de sua palavra ou os das testemunhas de um milagre, de
uma revelação: o temor e seu tremor (5,33 e 16,8), a admiração (5,20;
6,6; 15,5.44), a estupefação (5,42; 16,8), o pavor (6,50), a comoção
e a profunda angústia (9,15; 14,33; 16,5). Se suscitam uma interven-
ção de Jesus, deixam em suspenso uma reação dos homens; o relato,
num final de episódio, abandona freqüentemente os personagens com
esse choque que exigiría um salto no caminho do crer, e volta a seguir,
com outros protagonistas, pelos caminhos do mundo. O relato mostra
como o corpo fala em suas emoções quando as evidências se esgar-
çam, quando o homem é desalojado de seus pontos de referência,
quando a compreensão dos outros e de si mesmo escapa ao inteligível
porque novas possibilidades de sentido começam a despontar.
O olhar
Mas é sobretudo no olhar que o relato de Marcos insiste. Por sua
significação ao mesmo tempo concreta e simbólica, ele permite a co-
nexão entre o corpo e a compreensão, entre o corpo em seus sentidos
e a percepção de um sentido novo a ser decifrado para o mundo. O
evangelho o aborda de maneira extrema, por um duplo expediente,
tanto a cegueira dos olhos diante dos milagres (os discípulos, como
cegos, se afligem ao atravessar o mar depois das duas multiplicações
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
dos pães, 6,45-52 e 8,14-21) como o milagre dos olhos abertos (8,22-
26 e 10,46-52). Com essas duas curas de cego, o relato mostra que
não há nada mais difícil do que abrir os olhos de um cego; é preciso
que Jesus tente duas vezes para curar o primeiro. A cura do segundo,
Bartimeu, na beira do caminho, perto de Jerusalém, parece conden-
sar os desafios de todo o evangelho: o apelo do cego faz eco às pri-
meiras vocações à beira do mar; o desejo, posto à prova, de um gesto
de Jesus representa a renúncia ao direito de ser dependente, doente e
mendigo; a vista recuperada por milagre significa o acesso ao sentido,
tão difícil, do caminho em direção à capital; a rejeição do lençol quan-
do o homem salta para seguir Jesus sugere uma figura exemplar de
discípulo, um crente sem qualidades nem riquezas, um homem nu.
A nudez
Em suas duas partes sucessivas, mas complementares, é real-
mente mediante duas representações significativas da nudez que
o evangelho deixa perceber seus valores. A do homem reduzido à
animalidade bruta, à regressão a um aquém da condição de criatura,
o relato a recusa. O possesso de Gerasa (5,1-20) é a sua imagem:
para o louco incontrolável da outra margem, que grita sem parar e se
automutila, é uma verdadeira saída do túmulo que Jesus promove; a
palavra que separa o homem do demônio lhe devolve não somente
seu bom senso, mas lhe confia um sentido a ser levado para os ou-
tros, a mensagem de sua libertação. Assim o enviado torna presen-
te, por seu relato em terra pagã, a intervenção de Jesus a seu favor;
assim o evangelho fala por si mesmo ao inscrever, em seu enunciado,
a situação mesma de sua proclamação: a boa-nova de libertação de
um Senhor, no entanto, rejeitado e ausente. A outra representação
da nudez, aquela que o evangelho sugere discretamente, aparece na
figura fugitiva de um jovem que segue Jesus quando seus discípulos
o abandonaram (14,52). Vestido apenas com um lençol de linho — a
palavra é a mesma da mortalha que envolverá o corpo de Jesus para
o sepultamento (15,46) — , ele larga seu lençol quando querem pren-
dê-lo junto com Jesus e foge nu. Aqui o evangelho leva mais longe,
76
O evangelho segundo Marcos
5 . P e r s p e c t iv a s n o v a s
Se foi com o evangelho de Marcos que as leituras de tipo narrati-
vo começaram a ser praticadas e depois amplamente desenvolvidas,
77
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
GNILKA, Joachim. Das Evangelium nach Markus. Zürich/Neukirchen,
Benziger/Neukirchener Verlag, 1978-1979 (EKK 11/1-2).
LEGASSE, Simon. Lévangile de Marc. Paris, Cerf 1997 (LeDiv. Commen-
taires 5/1-2).
LÜHRMANN, Dieter. Das Markusevangelium. Tübingen, Mohr, 1987
(H N T 3).
PESCH, Rudolf Das Markusevangelium. Freiburg, Herder, vol. 1, 1980
[1. ed. 1976], vol. 2, 1977 (HTh K 11/1-2).
78
O evangelho segundo Marcos
Leitura prioritária
AUNEAU, Joseph. Évangile de Marc. In: AUNEAU, J. etal. Évangiles sy-
noptiques et Actes des apôtres. Paris, Desclée,1981, p. 53-129 (Petite
Bibliothèque des Sciences Bibliques, N T 4).
DELORME, Jean. Lecture de I’evangile selon saint Marc. Cahiers Evan-
gile, Paris, Cerf 1/2 (1972).
SENET, Christophe. Lévangile selon Marc. Genève, Labor et Fi-
des, 1991 (Essais bibliques 19).
STANDAERT, Benoit. Lévangile selon Marc. Commentaire. Pa-
ris, Cerfj 1983 (Lire La Bible 61).
História da pesquisa
HARRINGTON, Daniel J. Neuere Wege in der Synoptiker-Exegese am
Beispiel des Markusevangeliums. In: HORN, Friedrich W. (Hrsg.).
Bilanz: und Perspecktiven gegenwartiger Auslegung des Neuen Testa-
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N ew York, de Gruyter, 1995, p. 60-90.
POKORNY, Petr. Das Markusevangelium. Literarische und theologische
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Bibliografia exaustiva
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NE1RYNCK, Frans et al. The Gospel o f Mark: A Cumulative Bibliography
1950-1990. Leuven, Leuven University Press, 1992 (BEThL 102).
79
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
Estudos particulares
FOWLER, Robert M. Let the Reader understand: Reader-Response Criti-
cism and the Gospel o f Mark. Minneapolis, Fortress Press, 1991.
MALBON, Elizabeth S. Narrative Space and Mythic Meaning in Mark.
Sheffield, JSOT Press, 1991 [1. ed. 1986] (Biblical Seminar 13).
MARSHALL, Christopher D. Faith as a Theme in Mark's Narrative. Cam-
bridge, Cambridge University Press, 1989 (SNTS.MS 64).
RHOADS, David M., MICHIE, Donald. Mark as Story: An Introduction to
the Narrative o f a Gospel. Philadephia, Fortress Press, 61987.
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TOLBERT, Mary Ann. Sowing the Gospel: Mark’s World in Literary-His-
torical Perspective. Minneapolis, Fortress Press, 1989.
TROCMÉ, Etienne. La formation de Lévangiie de Marc. Paris, PUF 1963
(EHPR57).
80
CAPÍTULO
3
O evangelho segundo Mateus
Elian Cuvillier
1. A p r e s e n t a ç ã o
/./. Estrutura
Enquanto alguns se detêm na organização geográfica semelhante
à de Marcos, a maior parte dos exegetas constata a complexidade da
matéria mateana. Alguns privilegiam a organização temática em tor-
81
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
Fé e incredulidade (11,2-16,12)
11,2-30 João Batista e Jesus
Pergunta de João Batista (11,2-6); declaração
de Jesus sobre João Batista (11,7-19); invectivas
contra as cidades da Galiléia (11,20-24); hino de
júbilo (11,25-30)
82
O evangelho segundo Mateus
12,1-50 Controvérsias
Sobre o sábado (12,1-14); citação da palavra cum-
prida (12,15-21); Jesus e Beelzebul (12,22-32);
o homem julgado por suas palavras (12,33-37); o
sinal de Jonas (12,38-42); retorno do espírito im-
puro (12,43-45); a família de Jesus (12,46-50)
13.1- 52 Discurso em parábolas
13,53-58 Jesus na sua pátria
14.1- 12 Morte de João Batista
14,13-16,12 Milagres e controvérsias
Primeira multiplicação dos pães (14,13-21); ca-
minhando sobre as águas (14,22-33); sumário
(14,34-36); o puro e o impuro (15,1-20); a mulher
cananéia (15,21-28); sumário (15,29-31); segunda
multiplicação dos pães (15,32-39); pedido de um
sinal (16,1-4); o fermento dos fariseus e dos sadu-
ceus (16,5-12)
83
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
1.2. Conteúdo
Na primeira seção (Mt 1,1-4,11), Jesus é apresentado como Mes-
sias de Israel. Desde Mateus 1,1 Jesus é designado como filho de Davi
e filho de Abraão, duas figuras fundamentais da tradição judaica. A ge-
nealogia (1,1-17) sublinha o enraizamento profundo de Jesus na história
da fé de Israel (Abraão pai dos crentes) e na história de sua esperança
messiânica (a figura de Davi). Das dez citações de cumprimento2 que
semeiam a narração (“para que se cumprisse o que tinha dito o Senhor
pelos profetas...”), quatro se encontram no relato mateano da infan-
cia. Elas sublinham com força que esse Jesus de Nazaré era bem aque-
le que fora prometido e anunciado pelos profetas: 1,22, o nascimento e
o nome de Jesus; 2,15, a “saída do Egito” de Jesus, lembrança explícita
do destino do povo no deserto; 2,17, a aflição de Raquel; 2,23, Jesus
como nazoreu. A essa lista pode-se acrescentar Mateus 2,5: o lugar de
onde sairá o pastor de Israel. O capítulo 2 (visita dos magos do Orien-
te; fuga para o Egito; massacre das crianças de Belém; retorno à terra
de Israel) sublinha a abertura universalista e a incredulidade de Jeru-
salém. Além disso, mostra que Jesus se desloca de um lugar para ou-
tro (Belém, Egito, Nazaré). O capítulo 3 apresenta João Batista como
o anunciador da missão de Jesus que “cumpre toda a justiça” (3,15).
Esse Jesus, tentado no deserto (4,1-11), é vencedor de Satã.
Em seguida, é apresentada a missão de Jesus e de seus discípulos
junto ao povo (4,12-11,1). Ela é colocada sob o signo do ensino (5-7)
2 O acordo é unânime para as dez citações seguintes: 1,23; 2,15; 2,18; 2,23;
4,15-16; 8,17; 12,18-21; 13,35; 21,5; 27,9-10. Muito discutido é o status de
2,5-6; 3,3; 13,14-15 e 26,56.
84
O evangelho segundo Mateus
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A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
86
O evangelho segundo Mateus
2 . M e io h is t ó r ic o d e p r o d u ç ã o
2.1. Autor
A tradição que faz do apóstolo Mateus (Mt 10,3, c f 9,9) o autor
do primeiro evangelho baseia-se no testemunho de Papias reporta-
do por Eusébio (História eclesiástica 111, 39,16): Ματθαίος μέν ουν
'Εβραίδι διαλέκτω τα συν<5τάξατόήρμήν6υσ6ν δ’αύτά ώς ήν δυνατός
'έκαστος (que se pode traduzir "Mateus reuniu, então, em língua he-
braica os logia [de Jesus] e cada um os interpretou conforme era
capaz”). O comentário de Papias não se baseia, entretanto, em
nenhuma informação histórica sólida; não existe, particularmente,
traço nenhum de uma versão aramaica antiga do evangelho de Ma-
teus. Além disso, seria muito surpreendente que uma testemunha
ocular (no caso, o discípulo Mateus) utilizasse uma fonte secundária
(o evangelho de Marcos) para redigir seu próprio relato. A transfor-
mação do nome de Levi em Mateus (Mc 2,14 / / Mt 9,9) reflete, aliás,
um processo secundário que não é obra de uma testemunha ocular
(um outro exemplo se encontra em Mt 27,56, em que Salomé — Mc
87
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
88
O evangelho segundo Mateus
89
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
rael. Por isso, é para Israel que esses discípulos de Jesus se sentem,
antes de tudo, enviados, encarregados por Deus de convidá-lo a re-
conhecer seu Messias. O traumatismo causado pelo fracasso dessa
missão foi agravado pela perseguição, da parte da Sinagoga, e pela
migração do grupo para a Síria, depois da destruição de Jerusalém e
do Templo em 70. Na Síria, em contato com os pagão-cristãos, essa
comunidade de origem judeu-cristã é levada a alargar suas perspecti-
vas teológicas: o Evangelho se dirige a todas as nações sem distinção
e independentemente de uma pertença ao povo de Israel.
Essa mudança de perspectiva se operou lentamente, e não sem
dificuldades. Da parte da comunidade mateana, há especialmente
necessidade de um duplo esforço reflexivo de que o autor do pri-
meiro evangelho se dá conta mediante seu trabalho de escritor. De
um lado, era preciso explicar a recusa de Israel e a reivindicação da
comunidade mateana de invocar as mais essenciais tradições judai-
cas (especialmente a Torá). Por outro lado, tratava-se de defender a
pertinência da compreensão judeu-cristã do Evangelho. Em sua nar-
ração, por meio da história de Jesus e seus discípulos, o evangelista
encena essa mudança de perspectiva.
3 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia
3.1. A s fontes
O evangelho de Mateus compreènde 1.048 versículos. No con-
texto da teoria das duas fontes, Mateus utiliza o evangelho de Mar-
cos, a fonte dos logia (Q) e tradições que lhe são próprias (SMt).
Dos 661 versículos de Marcos, ele toma 523, ou seja, 80% (o que
constitui quase a metade do evangelho de Mateus). Mas pode-se
considerar que 90% da matéria marcana se encontra em Mateus.
Ele reproduz Marcos bastante fielmente, mas modifica sua ordem
(até o capítulo 14).
90
O evangelho segundo Mateus
91
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
5 C f p. 84, nota 2.
6 Ulrich LUZ, Fiktivitát im Mattháusvangelium im Lichte griechischer Lite-
ratur, Z N W 84 (1993) 153-177.
92
O evangelho segundo Mateus
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A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
94
O evangelho segundo Mateus
4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
4.1. Particularismo e universalismo9
Discerne-se, no primeiro evangelho, um duplo movimento. An-
tes de tudo, um particularismo muito forte. Mateus conhece perfei-
tamente o judaísmo de seu tempo. Ele considera que escribas e fari-
seus estão “sentados na cátedra de Moisés”, e por isso ele respeita
seu ensinamento (23,2). O Jesus que ele nos apresenta não vem
abolir nem um iota da Lei (5,17 s.). Poderiamos, aliás, multiplicar os
exemplos que manifestam um profundo enraizamento na tradição
judaica (o Jesus de Mateus paga o imposto do Templo; cf 17,24-27;
Mateus, ao contrário de Marcos, não explica os costumes judai-
cos de que fala; cf Mt 15,1-9, a comparar com Mc 7,1-13). Enfim,
não envia Jesus seus discípulos somente às “ovelhas perdidas da
casa de Israel” (Mt 10,4-5; cf também 15,24)? Entretanto, ao lado
desse forte particularismo, coabita um decidido universalismo de
95
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
4.2. Cristologia 10
Mateus se interessa muito mais do que Marcos pelo ministério
e pelo conteúdo do ensinamento do Jesus terreno (cristologia da
didascália). Pelo fato de ser, para sua fé, a história da intervenção
decisiva e escatológica de Deus no mundo, o destino do Jesus ter-
reno convida o evangelista a uma releitura de sua própria história
e da de sua comunidade pelo prisma da história de Jesus e à luz de
seu ensinamento. A narração da vida de Jesus não é, portanto, uni-
camente, nem prioritariamente, o relato de acontecimentos pas-
sados, mas testemunho da identidade total entre o Jesus terreno
e o Ressuscitado presente ao lado dos seus. Essa identidade fun-
damenta a autoridade e a atualidade de seu ensinamento recolhido
no evangelho, particularmente em seus cinco grandes discursos.
Assim, a narração mateana da vida e do ensinamento de Jesus de
Nazaré explica ao mesmo tempo a história da comunidade matea-
na tal qual a interpreta o evangelista. Ela é também a permanen-
te lembrança da interpelação radical que o Ressuscitado dirige aos
discípulos das gerações seguintes. A narração funciona como atua-
lização e apropriação da história de Jesus e de seu ensinamento na
vida da comunidade.
96
O evangelho segundo Mateus
4.3. Eclesiologia11
O Jesus mateano constitui para si uma comunidade nova. A figu-
ra dos Doze, dos quais Pedro é o porta-voz (cf Mt 14,22-33; 16,13-
97
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
98
O evangelho segundo Mateus
4 . 4. Mateus e a Lei{2
O lugar do Sermão da Montanha (SM) como abertura do minis-
tério de Jesus na Galiléia e, no seio do SM, o caráter programático
de Mateus 5,17-20, imediatamente seguido de antíteses, sublinham
o lugar central em Mateus da reflexão sobre a lei. Na pesquisa ma-
teana da última metade do século XX, o tema é recorrente: qual
é a interpretação mateana da Torá e que papel desempenha ela na
compreensão do Evangelho?
Em 5,17-20, Mateus mantém em tensão duas lógicas, duas or-
dens de coisas. De um lado, a ordem ou a lógica da lei como man-
damento (vv. 18-19). Esta permanecerá válida enquanto perdura-
rem a ordem e a lógica deste mundo. A vinda de Jesus, portanto,
não anula a lei, que pertence, nesse contexto, às coisas “penúlti-
mas”: delas não depende a entrada no Reino, mas a classificação
dentro dele (cf entretanto Mt 11,11 e 20,16). De outro lado, em
face dessa lógica da lei, Mateus aponta para a lógica do “cumpri-
mento”, por Cristo, da “lei e dos profetas” (v. 17), isto é, para a
evidência da vontade primeira de Deus (poder-se-ia dizer: a “lei e
os profetas” como promessa). E então a noção de “justiça” que é
convocada (v. 20). Esta suplanta a lei que os escribas e os fariseus
praticam. É da justiça nova, inaugurada por Jesus, que depende a
entrada no Reino.
As antíteses do SM (5,21-48) são a ilustração direta do quadro
hermenêutico apresentado em 5,17-20. O fio condutor de cada12
99
A tradição sinótica e os A tos dos apóstolos
uma das antíteses está na lógica do “não só, mas mesmo”: não só
o assassinato, mas mesmo o ódio, não só o adultério, mas mesmo
o olhar impuro...: tudo isso é contrário à vontade de Deus. E uma
renovação do modo de compreender a existência que a palavra do
Jesus mateano quer provocar, convidando a passar de uma ordem
de coisas para outra, de uma realidade para outra, do reino deste
mundo para o Reino dos céus. Não se trata, aqui, de máximas mo-
rais ou, em outros termos, de um “mandamento” (5,18-19), mas da
“justiça superior” (5,20). A lógica que prevalece nesta passagem é a
do excesso. Ora, se se trata de excesso, do incalculável, o outro não
é simplesmente uma pessoa, objeto de um respeito quantificável
em vista do mandamento, mas se torna “sujeito” que encontramos
como próximo para além da regra. A utilização da hipérbole indi-
ca que a palavra do Jesus mateano não visa à descrição precisa de
uma prática, que arriscaria a se tornar razoável e a reduzir a “justiça
superior” da ordem do Reino de Deus à letra do “mandamento” da
ordem deste mundo.
Em Mateus 6,1, o Jesus mateano afirma: “Guardai-vos de prati-
car vossa justiça (την δικαιοσύνην ύμών) diante dos homens”. Se-
gue-se (vv. 2-18) uma reinterpretação dos três pilares da piedade
judaica: a esmola, o jejum e a oração. O que, em substância, essa
reinterpretação manifesta pode ser resumido na forma de uma al-
ternativa: ou uma “ética do parecer”, pela qual o crente tem sua
vida assegurada pelo olhar dos outros, ou uma “ética do segredo”,
segundo a qual a identidade não depende do que faz o homem sob
o olhar dos outros, mas da relação filial com o Pai que vê no segre-
do. Não se trata tanto de contestar a validade das obras de piedade
quanto de sublinhar que a entrada no Reino (em outras palavras:
a “recompensa”, μισθόν, vv. 1.2.5.16) é concedida de acordo com
critérios que não são os do mundo e de sua lógica, à qual pertence
a ordem religiosa. Na lógica do Reino dos céus, que é a do segre-
do e do íntimo, o ato ético ou o gesto de piedade é justamente
o inverso do que se pode constatar a olho nu: a justiça do Reino
não tem nada a ver com a justiça dos homens. De sua responsa-
bilidade ética, os ouvintes de Mateus não devem prestar contas
100
O evangelho segundo Mateus
101
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
4.5. O julgamento13
Constata-se freqüentemente o lugar importante dado ao tema
do julgamento no primeiro evangelho (ver entre muitos outros tex-
tos Mt 11,21-14; 13,36-43; 18,23-35; 21,33-45; 22,1-14; 25,14-30.31-
46). Além da estrutura apocalíptica formal que pode assumir, os
motivos do julgamento, em Mateus, são diretamente tomados da
linguagem dos profetas de Israel. O Jesus mateano se situa, assim,
na grande tradição profética veterotestamentária, na qual a função
da linguagem do julgamento é de apelo ao arrependimento. Mas em
Mateus a exposição dos motivos do julgamento tem também uma
outra função. E uma linguagem de revelação que faz os homens apa-
recerem tais quais são: indivíduos prisioneiros da hipocrisia e do mal
(cf as invectivas de Mt 23). Por isso, é de se notar que a ameaça do
julgamento divino não concerne apenas a Israel ou aos incrédulos.
Concerne às figuras da narrativa por trás das quais os membros da
comunidade mateana podem se reconhecer. A linguagem mateana
do julgamento instaura, nesse caso, o homem em geral e o discípulo
em particular em regime de responsabilidade. Entretanto, em Ma-
teus a cruz opera uma ruptura: o Jesus ressuscitado não profere
mais nenhuma palavra de julgamento. Ele não é o juiz escatológico,
mas Aquele que envia seus discípulos a anunciar a Boa-Nova a todas
as nações (28,16-20).
5 . P e r s p e c t iv a s n o v a s
Desde o início dos anos 1980, assistimos, do outro lado do Atlân-
tico especialmente, a um deslocamento metodológico. As leituras
sociológicas, de um lado, e as narrativas, de outro, deixam entrever
a possibilidade de repor um certo número de questões clássicas no
estudo do primeiro evangelho.
Particularismo e universalismo, relações com o judaísmo. A co-
munidade mateana é uma comunidade pluricultural, decididamen-15
102
O evangelho segundo Mateus
6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
BONNARD, Pierre. LÉvangile selon Saint Matthieu. Genève, Labor et Fi-
des, 31981 (C N T 2/1).
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GNILKA, Joachim. Das Mattháusevangelium. Freiburg, Herder, 21988, v.
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HAGNER, Donald A. Matthew. Dallas, Word Books, 1993, 1995, v. I-ll
(W BC33).
103
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
Leitura prioritária
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chemins. In: MARGUERAT Daniel, ZUMSTE1N, Jean (éds.). La
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de la Bible 23).
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ge, Cambridge University Press, 1995 [New Testament Theology]).
ZUMSTEIN, Jean. Matthieu le théologien. Cahiers Evangile, Paris, Cerf
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História da pesquisa
CUVILLIER, Élian. Chroniques matthéennes I. ETR 68 (1993) 573-584;
II. ETR 71 (1996) 101-113; III. ETR 72 (1997) 81-94; IV ETR 73 (1998)
239-256; V ETR 74 (1999) 251-265.
STANTON, Graham N. The Origin and Purpose o f Matthew s Gospel:
Matthean Scholarship from 1945-1980. A N R W II, Berlin, de Gruy-
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Bibliografia exaustiva
NEIRYNCK, Frans, VERHEYDEN, Jozef Matthew and Q. Bibliography
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Günter WAGNER (ed.). Matthew and Mark. Macon, Mercer University
Press, 1983 (An exegetical Bibliography o f the NewTestam ent 1).
104
O evangelho segundo Mateus
Estudos particulares
BORNKAMM, Gunther, BARTH, Gerhard, HELD, Heinz Joachim.
Uberlieferung und Auslegung im Matthàus-Evangelium. Neukirchen,
Neukirchener Verlag, 1961 (WMANT 1).
DUMA1S, Marcel. Le Sermon sur la Montagne. Etat de la recherche. Inter-
pretation. Bibliographie. Paris, Letouzay et Ané, 1995.
HUMMEL, Reinhart. Die Auseinandersetzung zwischen Kirche und Juden-
tun im Matthausevangelium. Munich, Kaiser, 1966 (BEvTh 33).
KINGSBURY, Jack Dean. Matthew as Story. Philadelphia, Fortress Press,
21988.
MARGUERAT, Daniel. Le jugement dans Γ Evangile de Matthieu. Genève,
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ORTON, David E. The Understanding Scribe Matthew and the Apocalyptic
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SCHWEIZER, Eduard. Matthaus und seine Cemeinde. Stuttgart, Katholis-
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STANTON, Graham N. A Gospel for a New People. Studies in Matthew.
Edinburgh, Clark, 1992.
STRECKER, Georg. Der Weg der Gerechtigkeit: Untersuchung zurTheo-
logie des Matthaus. Gottingen, Vandenhoeck und Ruprecht, 21966
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TRILLING,Wolfgang. Das Wahre Israel: Studien zurTheologie des Matt-
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ZUMSTE1N, Jean. La condition du croyant dans I’Evangile de Matthieu.
Fribourg/Gõttingen, Editions universitaires/Vandenhoeck und Rup-
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Coletâneas de artigos
BALCH, David (ed.). Social History o f the Matthean Community. Cross-
Disciplinary Approaches. Minneapolis, Fortress Press, 1991.
105
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
BAUER, David R., POWELL, Mark Allan (eds.). Treasures New and Old.
Contributions to Matthean Studies. Atlanta, Scholars Press, 1996
(Symposium Series 1).
DIDIER, Marcel (éd.). TEvangile selon Matthieu. Rédaction et théologie.
Gembloux, Duculot, 1972 (BEThL29).
LANGE, Joachim (Hrsg.). Das Matthaus-Evangelium. Darmstadt, Wis-
senschaftliche Buchgesellschaft, 1980 (WdF 525).
STANTON, Graham N. (ed.). The Interpretation o f Matthew. London,
SPCK, 21995 (1RT 3).
106
CAPÍTULO
4
O evangelho segundo Lucas
Daniel Marguerat
1. L u c a s - A t o s , u m a o b r a e m d o is v o l u m e s
A repetição do prólogo de Lucas 1,1-4 em Atos 1,1 (“Eu consagrei
meu primeiro livro, ó Teófilo, a tudo o que Jesus fez e ensinou, des-
de o com eço...”) é um indício seguro de que os Atos constituem a
sequência do evangelho. Pode-se pensar que por razões práticas de
107
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
Um díptico
Lucas-Atos constituem um conjunto literário de dois painéis,
cuja homogeneidade literária é reconhecida.
108
O evangelho segundo Lucas
109
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
2 . A presen ta çã o e pla n o
O evangelho de Lucas é o mais longo dos quatro evangelhos. E
também o mais cuidado do ponto de vista lingüístico e literário: seu
vocabulário é mais rico que o de Marcos e o de Mateus, seu estilo é
esmerado, sua composição bem cuidada. Seu autor é o mais grego
do Novo Testamento. Seu prefácio, com a dedicação a Teófilo (Lc
1,1-4), proclama já sua vontade de inserir seu escrito na literatura
helênica de qualidade. Enquanto Marcos refere seu texto ao “Evan-
gelho de Jesus Cristo” (Mc 1,1), Lucas anuncia a Teófilo sua intenção
de escrever uma “narração” (διήγησις, 1,1) de tudo o que se passou;
esse termo enuncia o projeto literário de apresentar uma narração
conforme às regras da historiografia antiga. De fato, Lucas se revela
um excelente contador; seu talento narrativo não exclui, veremos,
uma intenção teológica.
Gênero literário
O corte operado entre os dois volumes da obra de Lucas denota
uma vontade clara de distinguir a história de Jesus da dos apóstolos.
Em relação a Marcos, de cujo gênero literário ele se apropria, a di-
mensão biográfica do evangelho é acentuada pelos relatos da infância
(Lc 1,5-2,39) e da juventude (2,40-52), pelas referências cronológi-
cas da história do império romano (2,1 s.; 3,1; 23,12), pela Ascensão
que marca o fim das aparições pascais (24,50 s.). O autor se esforçou
por dotar sua narração de um enquadramento que vai do nascimento
do herói à separação dos seus: é assim que se apresentam na Anti-
guidade as Vidas de filósofos. A inspiração no modelo das biografias
antigas traduz a insistência de Lucas na mediação escolhida por Deus
para manifestar o acontecimento decisivo da salvação: um homem,
110
O evangelho segundo Lucas
Conteúdo
Para quem guarda de memória a organização geográfica do evan-
gelho de Marcos (Galiléia — o caminho — Jerusalém), a macroes-
trutura do evangelho de Lucas aflora no texto; ela de fato serviu
de base para o evangelista estruturar sua narração. A atividade de
Jesus na Galiléia cobre de 4,14 a 9,50. A breve seção marcana do
caminho (Mc 8,27-10,52) foi consideravelmente ampliada, a ponto
de constituir um longo relato de viagem para Jerusalém, iniciado em
9,51 (“Ora, como chegasse o tempo em que ele ia ser arrebatado do
mundo, Jesus tomou resolutamente a estrada de Jerusalém”) e con-
cluído em 19,28 (“Terminando essas palavras, Jesus seguiu adiante
para subir a Jerusalém”). A entrada em Jerusalém (19,29-40) intro-
duz, como em Marcos, um discurso escatológico (21,5-38), antes da
sequência da Paixão (22-23) e da ressurreição (24). Lucas ampliou
esse esquema tripartite, a montante, pelo evangelho da infância de
Jesus (1,5-2,52) e por uma transição que prepara o ministério públi-
co (3,1-4,13).
Se a macroestrutura se esboça sem dificuldade, em compensa-
ção as grandes seqüências, assim recortadas, se furtam a uma es-
truturação interna clara. Atribui-se a dificuldade à técnica narrativa
lucana, que, ao contrário das grandes composições discursivas de
Mateus ou de João, busca dar sentido encadeando pequenas unida-
des literárias.
Após o prefácio que dedica a obra aTeófilo (1,1-4), o evangelho da
infância de Jesus (1,5-2,52) se singulariza como uma entidade cons-
truída sobre a simetria Batista-Jesus: duplo anúncio, dupla nativida-
de, dupla celebração do nascimento por um hino (1,68-79; 2,29-35).
Esse prólogo ao mesmo tempo estabelece a pertença de Jesus ao
judaísmo, selada pela circuncisão, e anuncia a superação da antiga
economia; essa superação é claramente significada no episódio de
Jesus aos doze anos (2,44-52).
111
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
112
O evangelho segundo Lucas
113
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
114
O evangelho segundo Lucas
3 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia
O prefácio da obra lucana admite a existência de predecessores
e, portanto, de uma documentação já reunida à qual Lucas pôde re-
correr: “Visto que muitos empreenderam compor uma narração dos
acontecimentos realizados entre n ó s...” (Lc 1,1). Quem são esses
“muitos”? A comparação com Marcos e Mateus revela amplas coin-
cidências atribuíveis, de um lado, à utilização de Marcos, de outro
à utilização da fonte dos logia (Q), comum a Mateus e Lucas2. Por
outro lado, uma parte importante do evangelho não tem paralelo em
nenhum dos outros sinóticos, nem em João.
115
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
116
O evangelho segundo Lucas
117
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
118
O evangelho segundo Lucas
O popel programático
O autor confere a certas perícopes um papel programático para
a sequência da narração. Um exemplo é o episódio da pregação de
Jesus em Nazaré (4,16-30), bastante ampliado a partir do relato
de Marcos 6,1-6. Todo o programa cristológico de Lucas está con-
densado nesses versículos: a proclamação messiânica está apoiada
nas Escrituras (vv. 17-21); a evangelização dos pobres e a liberta-
ção dos cativos anunciam a dimensão ética do Evangelho lucano
(vv. 18 s.); o exemplo da viúva de Sarepta e de Naamã antecipa a
eleição dos pagãos (vv. 25-27); a rejeição de Jesus (“nenhum pro-
feta é acolhido em sua pátria”) prefigura a Paixão (vv. 28 s.); sua
maneira de escapar da multidão ilustra sua soberania em face da
hostilidade (v. 30). Um outro enunciado de cristologia se encon-
tra, em miniatura, no relato da transfiguração (9,28-36), da qual
o evangelista faz uma revelação oculta da glória do Filho antes de
ele subir para Jerusalém (9,31; c f 9,51). Da mesma forma, o rela-
to dos peregrinos de Emaús (24,13-35) expõe, narrativamente, a
conformidade da morte do Messias com a Sagrada Escritura e as
condições de reconhecimento do Ressuscitado. O narrador marca,
assim, sua narração com pontos de referência que balizam a leitura
e orientam o leitor.
A simetria
O gosto pelas construções simétricas se concretiza pela disposição
dos dípticos. O evangelho da infância (Lc 1-2) é construído segundo
esse princípio que põe em dualidade João Batista e Jesus: duas anun-
ciações (1,5-25 e 1,26-56), dois nascimentos (1,57-58 e 2,1-20), duas
circuncisões e duas nominações (1,59-66 e 2,21), duas ações de graça
119
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
A contextualização
O motivo da viagem serve de contexto para a seção do meio do
evangelho (9,51-19,28). Esse contexto é leve. Custa ao leitor identi-
ficar os deslocamentos, a não ser no início da seqüência (9,51-56) e
em algumas notícias esparsas (9,57; 10,38; 13,22; 14,25; 17,11; 19,1).
Manifestamente, esse tema não tem valor documentário, mas inter-
pretativo; é um expediente literário usado pelo narrador para situar
suas tradições sob o emblema de um Jesus que sobe a Jerusalém. O
anúncio que o encima (9,51: “como chegasse o tempo em que ele
ia ser arrebatado [άνάλημψι,ς]”) engloba tanto a subida a Jerusalém
como a elevação na ascensão. Esse modelo cristológico reagrupa
dois traços marcantes: 1) Jesus, a exemplo dos filósofos antigos, dis-
pensa seu ensinamento como mestre itinerante; 2) Jesus é o Mes-
sias destinado a sofrer, mas seu caminho terminará na exaltação do
Ressuscitado.
O fio temático
Lucas tem o hábito de extrair efeitos de sentido ligando, discre-
tamente, várias perícopes por um fio temático. Entre o relato do
batismo e a tentação, ele insere a genealogia de Jesus (2,23-38),
que termina com “filho de Adão, filho de Deus”; nenhuma notícia
redacional explicita a razão disso, mas o leitor é convidado a reatar
a filiação divina proclamada por ocasião do batismo (3,22) à que é
atestada pela genealogia (3,38) e que o diabo põe à prova (4,3.9): na
história de Jesus batizado e tentado se inscreve, deste modo, uma
120
O evangelho segundo Lucas
121
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
122
O evangelho segundo Lucas
A posição tradicional
Mas e a tradição, o que diz? O nome Λουκάς, diminutivo grego de
um nome latino (Lucius?), não é conhecido nem de Marcião (c. 140),
nem de Justino; a opinião de Papias (primeira metade do século 11)
não foi conservada para nós. A primeira atestação data do manus-
123
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
124
O evangelho segundo Lucas
Datação
A datação do evangelho de Lucas é posterior à de Marcos, visto
que Lucas o utiliza. Não deve ser colocada antes de 70, pois Lucas
21,20 faz alusão clara à destruição de Jerusalém, reinterpretando
Marcos 13,14; mesma nota em 19,43 s. e 21,24. A distância toma-
125
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
5 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
O prefácio do evangelho (Lc 1,1-4) anuncia o programa de Lu-
cas: não só ele pretende trabalhar como historiador, como é o único
evangelista a pensar teologicamente o tempo e a fazer da história
um objeto de reflexão teológica.
Lucas historiador
O que interessa a Lucas não é a história profana, mas a história
na qual Deus intervém. Daí seu interesse na ancoragem dos aconte-
cimentos evangélicos, que se concretiza nos famosos sincronismos
de 2,1 s., 3,1 s. e 13,31; designa-se, assim, oesforço de assegurar aos
acontecimentos da história da salvação um marco cronológico em-
prestado da história do império romano. Aos seus olhos, a história de
Deus e a história dos homens não estão divorciadas. Esse cuidado de
historicização se manifesta também em 21,5-11, em que a reescri-
tura do texto de Marcos traduz o cuidado de desligar a queda de
Jerusalém do enredo apocalíptico; conhecendo a catástrofe de 70,
ele cuida de fazer dela um acontecimento da história, sem que seja
confundido com o calendário do fim dos tempos. O fim virá, mas
antes dele a história se desenrola sem que se tenha como prever seu
término (17,20 s.; 19,11; 21,12-33; At 1,6-8). Se Lucas, visivelmente,
leva em consideração a demora da parusia (ver sua correção de Mc
9,1 em 9,27), nem por isso descarta o prazo do retorno de Cristo e
do juízo final. Vigilância e fidelidade ética são exigidas em razão do
juízo (12,35-48.57-59; 13,6-9; 16,19-31 etc.).
Com o evangelho de Lucas surge um interesse novo, alheio tan-
to a Marcos como à fonte dos logia: a preocupação com a história.
126
O evangelho segundo Lucas
Não por desinteresse pelo querigma, nem para substituir uma ver-
dade de fé por uma verdade histórica (R. Bultmann), mas por con-
vicção de que a salvação não se dá fora da história. Lucas partilha
essa convicção com a historiografia veterotestamentária e judaica:
se a história não prova a existência de Deus, serve para reconhecer
suas intervenções. A história se torna, em sua narração, história
da salvação, “com a condição de não se colocar sob essa expres-
são uma instalação do divino na história nem, no outro extremo,
limitar a intervenção de Deus a uma proclamação sem efeito so-
bre os acontecimentos do mundo. Há história de salvação porque
homens, sob a ação da palavra de Deus, provocam uma história e
a vivem” (F Bovon)11. O relato de Lucas convida a uma leitura teo-
lógica da história.
127
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
A cristologia
Os retoques dados por Lucas no retrato marcano de Jesus trazem
algo de hierático: os afetos negativos são suprimidos, todo traço de
13
Gerhard SCHNEIDER, Lukas, Theologe der Heilsgeschchte, Kõnigstein,
Hanstein, 1985, 35-60.
O evangelho segundo Lucas
129
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
A eclesiologia
Mais do que Marcos e do que Mateus, Lucas faz questão de
pôr em evidência que Jesus atrai as multidões e que um núme-
ro importante de homens e mulheres se apega a ele. Em 6,7-19,
uma “grande multidão de seus discípulos” e “uma grande massa de
povo” se reúnem à sua volta. Em 8,1-3, os Doze o acompanham e
também um grande número de mulheres que tinham sido curadas
de espíritos maus e de doenças. A palavra e, sobretudo, a com-
paixão de Jesus mobilizam constantemente uma comunidade em
torno dele.
Desse afluxo lucano distinguem-se os Doze como aqueles que Je-
sus chama e aos quais confere o nome de apóstolos (6,13). As cenas
de vocação, sumárias em Marcos (1,16-20; 2,3-17), são ampliadas
pelo milagre da pesca abundante (5,1-11) e pela indicação do fim para
o qual concorre a vocação: a conversão (5,32). A obra missionária
para a qual são convidados os apóstolos é, assim, claramente deli-
neada; eles a exercerão efetivamente no livro dos Atos (At 1-15).
Instalados, no relato, em um círculo próximo do mestre, destinados
a perpetuar sua ação depois de seu desaparecimento, os Doze se be-
neficiam de um retrato retocado em relação a Marcos: sua lentidão
em compreender (Mc 8,22-26) é omitida; Lucas suprime a alterca-
ção entre Pedro e Jesus em seguida ao primeiro anúncio da Paixão
(9,18-22 / / Mc 8,27-33) e suaviza a incompreensão dos discípulos
(9,43-50 / / Mc 9,30-37); o anúncio de sua dispersão por ocasião da
paixão é substituída pela promessa de sua associação com Cristo
no Reino (22,28-30); sua fuga por ocasião da prisão é omitida. Es-
ses múltiplos retoques correspondem à historicização da figura dos
Doze, erigidos em testemunhas de um tempo único e passado, o
tempo de Jesus.
A pregação de Jesus, que reúne a multidão, é o anúncio do Reina-
do de Deus (4,43; 8,1; 9,11), cuja presença está ligada à sua pessoa.
130
O evangelho segundo Lucas
131
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
6 . P e r s p e c t iv a s n o v a s
Uma intenção eclesiológica. Ph. Vielhauer e H. Conzelmann ti-
nham compreendido o desenvolvimento da história da salvação, em
Lucas, como uma resposta ao problema levantado pela demora da
parusia. A tendência hoje é pepsar que Lucas estava menos preo-
cupado com a demora do fim dos tempos do que com o cuidado de
ligar o tempo da Igreja ao tempo de Jesus (J. Fitzmyer)15. A inten-
ção eclesiológica do evangelista emerge mais fortemente. De vez, a
relação entre o tempo da Igreja e o tempo de Jesus revela-se menos
marcado pela separação do que pela continuidade.
Os ecos do Antigo Testamento. Uma leitura tipológica do evange-
lho, atenta aos ecos do Antigo Testamento no texto lucano, iden-
tifica a presença de traços proféticos, ou do êxodo, na cristologia.
Especialmente o relato da viagem parece configurar Cristo como
o último profeta, um profeta como Moisés (Ex 18,15.18), rejeitado
pelo povo segundo a tradição deuteronomista (D. P Moessner)16.
O status da Lei. A validade da Lei em regime cristão precisa ser
esclarecida: aos olhos de Lucas ela é revogada? Ou reduzida à lei
moral? Ou Lucas considera a aplicação da Lei ritual aos judeu-cris-
132
O evangelho segundo Lucas
7 . B ib l io g r a f ia
Comentários
BOVON, François. LEvangile selon saint Luc. Genève, Labor et Fides,
1991, v. 1: 1,1-9,50; 1996, v. 2: 9,51-14,35; 2000, v. 3: 15,1-19,27
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GREEN, Joel B. The Gospel o f Luke. Grand Rapids, Eerdmans, 1997 (Nl-
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SCHNEIDER, Gerhard. Das Evangelium nach Lukas. Gütersloh/Wurzburg,
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133
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
Leitura prioritária
BOVON, François. Luc: portrait et projet. In: Loeuvre de Luc. Paris, Cerf,
1987, p. 15-27 (LeDiv 130).
ALETTI, Jean-Noèl. Lart de raconter Jésus Christ. Paris, Seuil, 1989 (Pa-
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História da pesquisa
BOVON, François. Luc le théologien. Vingt-cinq ans de recherche (1950-
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Bibliografia exaustiva
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BOVON, François. Loeuvre de Luc. Paris, CerF 1987 (LeDiv 130).
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HORN, Friedrich-Wilhem. Claube undHandeln in der Theologie des Lukas.
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134
O evangelho segundo Lucas
135
CAPÍTULO
5
Os Atos dos apóstolos
Daniel Marguerat
1. U m a c o n t i n u a ç ã o d o e v a n g e l h o d e L u c a s
O livro dos Atos se apresenta como uma continuação do evange-
lho de Lucas. Já ressaltamos que a homogeneidade literária e teológi-
ca pleiteia a unidade do autor1. Além do fato de a narração de Atos se
iniciar onde terminou o evangelho, isto é, na ascensão (Lc 24; At 1),
um indício literário vem confirmar a continuidade: Atos 1,1 retoma,
1 Ver p. 107-110.
137
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
138
Os A tos dos apóstolos
Um relato de origem
Identificar o gênero literário a que se afilia Lucas-Atos é uma
empresa difícil, para a qual a pesquisa não oferece solução definiti-
va. Foi proposto que se visse em Lucas e Atos uma biografia mo-
delada segundo as Vidas de filósofos, seguida da história dos suces-
sores (Ch. Talbert)2, mas a Antiguidade não conhece, realmente,
qualquer relato da atividade dos sucessores de um mestre (se é que
os apóstolos possam ser qualificados como tais). Os Atos têm sido
assimilados à historiografia apologética ilustrada, na época helenísti-
ca, pelas obras de Manethon, Berossos e, sobretudo, Flávio Josefo,
cujo intuito é expor a história de um povo ou de uma cultura para
preservar sua memória (G. Sterling)3. Lucas é, em todo caso, o pri-
meiro, na Antiguidade, a apresentar um movimento religioso por
meio de um relato histórico. Sublinhou-se também a semelhança
que os Atos de Lucas e os Atos apócrifos de apóstolos alimentam
com o romance grego; mas a vontade do autor de fazer obra histo-
riográfica é incontestável.
Vê-se claramente que o evangelho e os Atos não derivam do mes-
mo gênero literário. Ao soldar a história dos apóstolos à de Jesus,
Lucas produziu um escrito ligado, ao mesmo tempo, à biografia — o
evangelho — e ao livro histórico — Atos. A literatura judaica ou hele-
nística não apresenta nada equivalente a esse gênero misto, mas é ver-
dade que, na época, a fronteira entre biografia e história era fluida.
Forçoso, portanto, é reconhecer que a intenção de Lucas estoura
os gêneros literários disponíveis. Seus “Atos dos apóstolos” contam
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2 . A p r e s e n t a ç ã o d o l iv r o
Como o evangelho, o relato dos Atos apresenta uma série de ce-
nas (cura, discurso, conflito, deslocamentos etc.). Mas, à diferença
do evangelho, que justapõe pequenas unidades literárias, os episó-
dios são longos, os discursos amplos, as transições bem cuidadas. O
esforço de composição literária é manifesto.
Estrutura
O estilo episódico dos Atos assemelha o relato a uma sucessão de
quadros: mas como é que se articulam os quadros? O papel de pivô
desempenhado pela assembléia de Jerusalém, no capítulo 15, leva a
dividir os Atos em uma primeira parte dedicada à missão junto aos
judeus (1,1-15,35) e uma segunda parte consagrada à evangelização
dos pagãos (15,36-28,31). Prestando atenção nos personagens prin-
cipais do relato, distingue-se um ciclo de Pedro (At 1-12) de um ciclo
de Paulo (At 13-28). Mas a narração se furta a uma organização tão
sistemática.
Acontece que o relato detém, ele mesmo, a chave de sua organi-
zação. Em 1,8, Cristo ressuscitado faz uma promessa a seus discípu-
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O s Atos dos apóstolos
ios: “recebereis uma força, a força do Espírito Santo que virá sobre
vós; e sereis então minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a
Judéia e Samaria, até as extremidades da terra”. Essa declaração
encerra, de maneira condensada, o programa dos Atos: o relato
conta como, sob o impulso do Espírito Santo, a palavra do Evange-
Iho se difunde no império romano pela missão cristã; essa difusão é
progressiva, partindo de Jerusalém para atingir a Judéia, a Samaria,
depois, enfim, Roma, aonde chega Paulo acorrentado (At 28). Ora,
esse movimento geográfico tem, ao mesmo tempo, valor teológico:
a Palavra parte de Jerusalém, lugar dos acontecimentos da salvação,
para ganhar a capital do mundo pagão, abrindo aos não-judeus o
acesso ao Deus de Israel. A narração se organiza, assim, seguindo
um plano geográfico, do qual se podem discernir seis etapas.
Primeira etapa: a expectativa do Espírito (1,1-26). Depois do pre-
fácio (1,1-3), o relato da Ascensão fixa a atenção dos discípulos no
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6 Ver p. 124-126.
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O s Atos dos apóstolos
4 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia
Examinaremos aqui o enigma do texto dos Atos, a questão das
fontes de que se serviu o autor e os meios narrativos que empregou.
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Fontes escritas?
A hipótese clássica foi formulada por A. von Harnack (1906-
1908), que reconstruiu três fontes: uma fonte A, conservada em
Jerusalém e Cesaréia (3,1-5,16; 8,5-40; 9,31-11,18; 12,1-23), uma
fonte B de menor valor histórico (2,1-47; 5,17-42) e uma fonte
antioquena (6,1-8,4; 11,19-30; 12,25-15,35)12. Outros propuse-
ram distinguir uma fonte palestina (1,6-2,40; 3,1-4,31; 4,36-5,11,^.
5,17-42; 8,5-40; 9,32-11,18; 12,1-23), uma fonte antioquena de
origem helenística (6,1-8,4; 11,19-30; 15,3-33) e uma fonte paulina
(9,1-30; 13,3-14,28; 15,35-28,31). A dificuldade vem dos critérios
aplicados para reconstruir essas fontes: a afiliação geográfica não
é suficiente para indicar uma fonte; deve-se lhe acrescentar um
critério estilístico. Poder-se-ia invocar o estilo fortemente semítico
dos doze primeiros capítulos dos Atos, mas o argumento não con-
vence: o autor distingue-se por variar os estilos, adotando uma lín-
gua arcaica quando os apóstolos pregam em Jerusalém, ou clara-
mente mais grega quando Paulo se dirige a auditórios cultos. Para
constatá-lo, basta comparar os discursos de Pedro em Pentecostes
(2,14-36), saturados de septuagintismos, com o grego refinado de
Paulo diante dos filósofos de Atenas (17,22-31). Além disso, to-
das as seções de Atos levam as marcas do estilo e do vocabulário
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Os Atos dos apóstolos
Tradições preexistentes
Embora a identificação segura de documentos anteriores ao tex-
to de Lucas nos escape, alguns fragmentos deixam entrever tradi-
ções preexistentes:
a) listas de nomes (1,13; 6,5; 13,1; 20,4);
b) episódios isolados, como a morte de Judas (1,16-20), a cura
do aleijado na Bela Porta (3,1-10), Ananias e Safira (5,1-11),
a eleição dos Sete (6,1-6) etc.;
c) um ciclo narrativo de Pedro (9,32-11,18; 12,1-7);
d) um itinerário da missão paulina comportando notícias de via-
gem e indicações de etapas, discerníveis por trás dos capítulos
16 a 21; pensou-se em um caderno de viagem ou “diário”;
e) um esquema querigmático presente tanto nos discur-
sos de Pedro (2,22-24.32-36; 3,13-15; 4,10 s.; 5,29-32;
10,37-43) como nos de Paulo (13,23-33): Jesus, que vo-
cês entregaram à morte — Deus o ressuscitou — , é o
Deus de Israel que o exaltou — disso nós todos somos
testemunhas.
13 Jacques DUPONT, Les sources du livre dês Actes. Etat de la question, Bru-
ges, Desclée de Brouwer, 1960.
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Paulo (mas por que tamanha falta de jeito nas transições?); c) Lucas recorre
a um artifício literário conhecido dos escritores greco-romanos (Homero, Vir-
gílio, Varrão, Josefo, Luciano) para dar mais vivacidade ao seu relato (mas por
que o reservar para as travessias de Paulo?).
Note-se que essas rupturas de estilo, na obra de um narrador tão cuidadoso
como Lucas, não são devidas à negligência (mesmo que fosse ditada por uma
fonte); importa, portanto, distinguir a questão da origem (a cópia de um diário
de viagem é inteiramente plausível) do efeito que se quer causar no leitor. A
esse respeito, o “nós” das viagens não deve ser confundido com o “eu” do pre-
fácio do autor (Lc 1,1-4; At 1,1). O uso do "nós” é um procedimento narrativo
para dar credibilidade ao relato, com o intuito de sinalizar sua origem em um
grupo do qual faz parte o narrador. Em quatro momentos cruciais do itinerário
de Paulo, o narrador fez questão de notificar sua dependência de uma tradição
teológica que remonta ao círculo próximo do grande apóstolo.
A s sequências
Diferentemente do evangelho (como já foi dito), Lucas não ali-
nha pequenas unidades narrativas, mas constrói sequências, reagru-
pando diversas cenas. Exemplo: a passagem consagrada a Estêvão
(6,8-8, la) relata o conflito nascente em torno de Estêvão, um longo
discurso de sua parte, depois a lapidação. Mas Lucas se preocupa
com fazer aparecer o encadeamento no qual ocorre a “seqüência
Estêvão”. Por isso relata, antes, a instituição dos Sete (6,1-6), faz
um sumário do crescimento da comunidade (6,7) e, em 8,lb-4, in-
troduz a personagem de Paulo e sua perseguição da Igreja, que des-
lanchará a evangelização da Samaria (8,5 ss.). Ao longo dos Atos,
sumários e passagens de transição ligam as sequências com o fito de
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5 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
Lucas faz obra de historiador. No começo do livro, antes da As-
censão, Jesus desmantela a expectativa apocalíptica para fixar a
atenção dos discípulos na tarefa a ser cumprida no presente: “Não
vos compete conhecer os tempos e os momentos que o Pai fixou
por sua própria autoridade; mas recebereis uma força, ... e sereis,
então, minhas testemunhas “ (1,7 s.). Se o prazo do fim dos tempos
escapa ao conhecimento dos crentes, a expectativa da parusia não
é suspensa; a volta de Cristo permanece no horizonte da história
(1,11; 10,42; 17,31). Mas a fé dos discípulos é mobilizada em torno
do testemunho a ser manifestado na história. Entre ascensão e pa-
rusia se instala um tempo no qual a fidelidade não consiste apenas
em aguardar o Reino, mas em trabalhar na difusão da Palavra. Lucas
é o representante de um cristianismo no qual a preocupação com a
demora da parusia se esvaeceu em proveito de uma valorização do
tempo presente, o tempo da Igreja. “Um empreendimento desses
só seria possível, e teria sentido para um escritor, em uma época em
que a escatologia apocalíptica não mais dominava o conjunto da vida
no cristianismo primitivo. Não se escreve a história da Igreja quando
se aguarda o fim do mundo” (E. Kásemann)17.
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a quem quer que creia (13,39 s.). O povo de Deus que se constitui
em torno do Nome de Jesus Cristo compõe-se, assim, de judeus e
não-judeus.
Lucas conta com insistência que, a despeito dos esforços mis-
sionários, a maioria do judaísmo se fechou a essa proclamação. No
entanto, Deus dá sinais evidentes de seu consentimento a essa ex-
tensão da santidade de Israel ao mundo inteiro. A irrupção do Espíri-
to santo é a assinatura divina aposta à missão dos apóstolos quando
ela se abre para a universalidade. Significativamente, não é nunca
a Igreja que toma a iniciativa: o Espírito precede os apóstolos e age
para espanto dos crentes. O milagre de Pentecostes prefigura o
anúncio da Palavra a todos os povos (2,5-11); o Espírito provoca o
batismo do eunuco etíope em Samaria (8,26-40); a barreira milenar
do puro e do impuro cai por terra no encontro entre Pedro e Corné-
lio, quando o Espírito se apossa dos assistentes e corta a palavra do
apóstolo: “Podería alguém impedir de batizar com água estas pes-
soas que, tanto quanto nós, receberam o Espírito Santo?” (10,47).
O Espírito é o instrumento pelo qual Deus precede os seus e toma a
iniciativa na história.
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Divergências teológicas
Em resumo, o retrato lucano de Paulo revela, inegavelmente, di-
vergências em relação ao pensamento teológico do apóstolo. Essas
divergências se devem à intenção historiográfica de Lucas, que va-
loriza a mediação que a dupla pertença (judaica e cristã) de Paulo
constitui para a cristandade de seu tempo. Essa leitura da história
levou-o a deslocar da lorá para a ressurreição a frente polêmica de
Paulo, mantendo, porém, algumas formulações soteriológicas to-
talmente paulinas. Exemplo: “é graças a ele [Jesus] que vos vem o
anúncio do perdão dos pecados; e esta justificação, que não pudes-
tes obter na lei de Moisés, nele é que ela é plenamente concedida a
todo homem que crê” (13,38 s.; cf 10,34 s.).
Lucas participa desse esforço da terceira geração cristã que ad-
ministra e atualiza a memória de Paulo. A produção das epístolas aos
Efésios, aos Colossenses e das pastorais inscreve-se em uma linha
institucional e doutrinai em que se aplica o pensamento de Paulo às
necessidades eclesiásticas da época. Os Atos, como mais tarde os
Atos de Paulo apócrifos, se inscrevem em uma linha historiográfica
que preserva mais a lembrança da fabulosa epopéia missionária do
apóstolo do que uma conformidade doutrinai. De um lado, guardou-
se a lembrança do Paulo teólogo, de outro do Paulo fundador de
Igrejas. A fixação lucana na figura do missionário exemplar pode ex-
plicar a surpreendente ausência de qualquer menção nos Atos da
atividade epistolar de Paulo: sendo conhecida por outras vias, ela
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6. N o v a s p e r s p e c t iv a s
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Os A tos dos apóstolos
7 . B ib l io g r a f ia
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167
À literatura paulina
CAPITULO
6
Cronologia paulina
François Vouga
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A literatura paulina
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Cronologia paulina
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A literatura paulina
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Cronologia paulina
3. R ec o n str u ç õ es
As cartas paulinas permitem estabelecer uma cronologia rela-
tiva dos quinze primeiros anos da missão paulina, ao passo que
os Atos oferecem uma outra cronologia relativa que vai da esta-
dia do apóstolo em Efeso até sua chegada a Roma. O trabalho
do historiador consiste, primeiramente, em combinar essas duas
cronologias relativas para reconstruir a história das viagens e da
produção literária do apóstolo; visa, secundariamente, a fixar essa
cronologia relativa no calendário da história geral para obter uma
cronologia absoluta.
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A literatura paulina
1 Bem WITHERINGON III, The Paul Quest. The Renewed Search for the
Jew of Tarsus, Downers Grove, Intervarsity, 1998. A consequência da
identificação de Gálatas 2,1-10 com Atos 11,27-30 é a alta datação possível
da epístola aos Gálatas (por volta de 49), que se torna, assim, a carta mais
antiga do apóstolo.
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Cronologia paulina
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A literatura paulina
3 Carta de São Clemente Romano aos Coríntios, trad, do original grego por
Dom Paulo Evaristo Arns, o.fm., Petrópolis, Vozes, 31970. (N. daT)
178
Cronologia paulina
179
A literatura paulina
4 . B ib l io g r a f ia
BAUR, Ferdinand Christian. Paulus, der Apostei Jesu Christi. Sein Leben
und sein Wirken, seine Briefe und sein Lehre. Stuttgart, Becher und
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180
CAPÍTULO
7
O corpus paulino
François Vouga
1 Ferdinand Christian BAUR, Paulus, der Apostei Jesu Christi. Sein Leben
und Wirken, seine Briefe und seine Lehre, Stuttgart, Becher und Müller,
1845.
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A literatura paulina
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O corpus paulino
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O co rp u s paulino
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O co rp u s paulino
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A literatura paulina
de saint Paul aux Galates, Neuchâtel, Delachaux et Niestlé, 21972 [1. ed.
1953],
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Genève, Labor et Fides, 1957, 207-295; ou Oeuvres /, Paris, Gallimard,
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6 Ed Parish SANDER, Paul and Palestinian Judaism. A Comparison of Pat-
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7 Blaise PASCAL, Pensées, Br 323 = MSL 688, série 25.
188
O co rp u s paulino
189
A literatura paulina
Articular a leitura de Paulo e nossa relação com o judaísmo é uma tarefa que
não podemos realizar se perdemos de vista a realidade histórica que é a nossa.
Esta é caracterizada particularmente pela ruptura, sobrevinda no correr do
tempo, entre o cristianismo e o judaísmo, e pelo fato de que a fé cristã e a per-
tença ao judaísmo constituem duas entidades religiosas distintas.
A acusação de antijudaísmo feita, às vezes, a Paulo resulta de uma confu-
são típica entre a realidade que era a do apóstolo e a realidade a que pertencem
seus intérpretes. O antijudaísmo é próprio das interpretações de Paulo que
abusam do debate que o apóstolo dos gentios introduziu no judaísmo, para
desqualificá-lo do exterior. Atribuir a Paulo atitude ou propósitos hostis ao
judaísmo é um procedimento singular, que consiste em acusar um judeu do
primeiro século da responsabilidade pelas ações cometidas contra o judaísmo
por não-judeus e pagãos. Um outro resultado da mesma confusão consiste
na busca de uma atitude “politicamente correta” que minimiza os desacordos
entre Paulo e o farisaísmo de seu tempo a fim de reduzir as diferenças entre
cristianismo e judaísmo.
No primeiro caso, tenta-se mostrar que a crítica paulina da Lei não diz
respeito a toda a Lei, mas somente ao domínio do culto e das regras de pureza
ritual8. No outro, tenta-se mostrar que as formulações paulinas já têm seu
equivalente no próprio judaísmo9. Ora, se a distinção entre lei ritual e lei moral
está presente tanto no Novo Testamento (Mc 7,1-23) como na tradição cris-
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O co rp u s paulíno
4. B ib l io g r a f ia
Leitura prioritária
BULTMANN, Rudolf Theologie des Neuen Testaments. Tübingen, Mohr,
1948-1953 (NTG); reed.:Tübingen, Mohr, 1980 (UTB 630).
SENFT, Christophe. Jésus de Nazareth et Paul de Tarse. Genève, Labor et
Fides, 1985, p. 61-114 (Essais bibliques 11).
201
A literatura paulina
202
O co rp u s paulino
VON HARNACK, Adolf Die Brief sammlung des Aposteis Paulus und die
anderen vorkonstantinischen christlichen Briefsammlungen: Sechs
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Sobre a pseudepigrafia
BROX, Norbert. Falsche Verfasserangaben. Zur Erklárung der frühchristli-
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KAESTLI, Jean-Daniel. Mémoire et pseudépigraphie dans le christianisme
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MEADE, David G. Pseudonymity and Canon. An Investigation into the Re-
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REDALI E, Yann. Paul après Paul. Le temps, le salut, la morale selon les
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(Monde de la Bible 31).
203
As epístolas de Paulo
CAPÍTULO
8
A epístola aos Romanos
François Vouga
1. A p r e s e n t a ç ã o
A importância atribuída a Romanos na recepção do Novo Tes-
tamento e na história da teologia cristã não é devida apenas à am-
207
As epístolas de Paulo
Estrutura e conteúdo
Após a saudação epistolar, semelhante às outras cartas, porém
mais desenvolvida (Rm 1,1-7), após a oração de ação de graças (1,8-
10) que se encontra no início de cada epístola, Paulo anuncia o as-
sunto imediato de sua carta: sua intenção de visitar a comunidade
de Roma (1,10-15). Anuncia também o tema de sua pregação, que
será o assunto do corpo da carta (1,18-15,13): o Evangelho da justiça
de Deus (1,16-17).
O corpo epistolar de Romanos (1,18-15,13) introduz o tema do
Evangelho da justiça de Deus começando por apresentar a condição
do homem sob a Lei (1,18-3,20). A tese defendida nesta primeira
parte é a seguinte: ninguém, nem grego, nem judeu, é justo diante
de Deus, os gregos (= os não-judeus) porque fazem mau uso do co-
nhecimento natural de Deus e da lei divina inscrita em seu coração'
(1,18-31), os judeus porque têm a Lei mas não a praticam (1,32-3,8).
A conseqüência dessa constatação é que ninguém pode ser justifi-
cado pelas obras da Lei; a Lei só pode manifestar a escravidão da
existência humana sob o pecado (3,9-20).
Esse desenvolvimento prepara a retomada, na segunda parte, do
tema próprio da carta: o Evangelho da justiça de Deus (3,21-4,25).
“Agora” com efeito, isto é, em Jesus Cristo, Deus revelou sua jus
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A epístola aos Romanos
tiça, que consiste nisto: Deus é justo porque justifica o pecador in-
condicionalmente; é o que foi revelado no acontecimento da morte
e da ressurreição de Jesus (3,21-31). O fato de Deus justificar pela
fé, isto é, pela simples confiança em sua justiça, e não pelas obras da
Lei, está atestado na própria Escritura pelo exemplo de Abraão, que
se torna o pai e protótipo de todo crente (4,1-25).
Sem transição, a terceira parte leva o leitor do tema da revela-
ção da justiça de Deus para o da existência crente como existên-
cia justificada (5,1-8,39). Justificados pela fé, os crentes estão em
paz porque estão reconciliados com Deus (5,111) ־. Assim como, por
Adão, estavam sob a dominação do pecado, assim também eles vi-
vem, agora, em Cristo, sob o poder da justiça (5,12-21). Paulo reto-
ma aqui uma idéia conhecida na exegese de Gênesis 1-2, atuante no
judaísmo helenístico, em Fílon de Alexandria por exemplo: Adão,
cuja modelagem é contada em Gênesis 2, é apenas a cópia terrena
de um primeiro Adão, criado e conservado no estado ideal (Gn 1).
Para Paulo, o primeiro Adão não permaneceu no estado de modelo
ideal; identificado com a pessoa de Cristo, ele se tornou o segundo
Adão, em quem a existência justificada recebe graça e vida. A argu-
mentação prossegue mediante dois desenvolvimentos paralelos: a
existência justificada não está mais sob o pecado, mas sob a justiça,
pois pelo batismo morremos com Cristo para viver uma vida nova
(6,1-23). Por outro lado, a existência justificada é vivida sob o poder
do Espírito e não mais sob a Lei, que o pecado desviou de sua função,
desde Adão, para fazer dela um instrumento de morte (7,1-8,39).
A quarta parte é consagrada ao problema teológico fundamental
posto pelo caso particular de Israel (9,1-11,36): se Deus justifica
pela fé e não pelas obras da Lei; se, por outro lado, Israel — na sua
grande maioria — permanece fiel à Lei e recusa o Evangelho, isso
significa que Deus se tornou infiel às promessas feitas a seu povo?
Paulo volta à questão várias vezes para chegar a uma solução coe-
rente com seu Evangelho e, por isso, convincente. Essa solução se
apresenta como uma recapitulação de seu Evangelho de justiça, tal
como o tinha apresentado nas duas primeiras partes de sua exposi-
ção: Deus encerrou todos os homens na desobediência (Rm 11,32a
209
As epístolas de Paulo
210
A epístola aos Romanos
211
As epístolas de Paulo
2 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia
2 .1. Unidade e integridade literária da epístola
Abstração feita dos problemas de crítica textual e de crítica lite-
rária levantados por Romanos 16, a integridade da epístola é objeto
apenas de discussões marginais ou sem importância.
212
A epístola aos Romanos
0 problema do capítulo 16
Os problemas suscitados pelo conjunto de Romanos 16 concer-
nem tanto à forma como ao conteúdo.
No que diz respeito à forma, a lista de recomendações e sau-
dações (Rm 16,1-23) não está integrada à carta, como as recomenda-
ções e saudações pessoais de 1 Coríntios 16,1420 ־estão no contexto
das recomendações finais de 1 Coríntios 16,1-20; ela constitui uma
anexação após a conclusão epistolar. Quanto ao conteúdo, há fraca
plausibilidade de que Paulo conheça, na comunidade de Roma, que
ainda não tinha visitado, tantas pessoas saudadas explicitamente em
Romanos 16; acrescente-se a isso que certos nomes, como os de
Priscila e Aquila, aparecem nas duas listas de Romanos 16 e 1 Corín-
tios 16, de sorte que é de pensar que eles se encontravam em Efeso
no momento da redação de 1 Coríntios 16; finalmente, Epêneto é
saudado, em Romanos 16,5, como primícias das Igrejas da Ásia.
Seria de imaginar, portanto, que Romanos 16 constitui uma men-
sagem que não tem nada a ver com a comunidade de Roma, mas
endereçada, sim, a Efeso. De fato, Paulo conhecia bem a comunida-
de de Efeso, pois acabara de passar quase três anos lá. Com muita
imaginação, pode-se pensar em um bilhete independente. Este, con-
tudo, por seu conteúdo e por sua forma, não se assemelharia a nada
213
As epístolas de Paulo
214
A epístola aos Romanos
Romanos 3,25: “Foi a ele que Deus destinou para servir de expia-
ção, (pela fé), por seu sangue, para mostrar a sua justiça, perdoan-
do os pecados cometidos outrora, no tempo da sua paciência”.
215
As epístolas de Paulo
O paralelismo formal dos dois membros, que joga com dois senti-
dos diferentes de δία + acusativo (por = “por causa de”, e para = “em
vista de”), dá a impressão de citar uma fórmula pronta, a primeira
parte da qual lembra Isaías 535. A isso se juntam duas particular!-
dades lingüísticas. Por um lado, são geralmente as tradições, citadas
por Paulo em suas cartas, que falam da morte de Jesus “por nossos
pecados”; Paulo escreve “por nós” e emprega o termo “pecado”, que
ele personaliza como poder, no singular. Por outro lado, o elo estabe-
lecido entre a justiça e a ressurreição de Jesus não é habitual nele.
Para concluir sua demonstração, a argumentação se apóia, de novo,
em uma fórmula existente que proclama a significação salvífica da
morte e da ressurreição de Jesus por meio do termo “justiça”.
216
A epístola aos Romanos
3 . M e io e c ir c u n s t â n c ia s h is t ó r ic a s d e p r o d u ç ã o
3.1. Ocasião da carta
A razão explícita que Paulo dá, em Romanos 15,13-29, de entrar
em contato epistolar com a comunidade de Roma, que ele não co-
nhece e pela qual não é conhecido (1,8-17; 15,22-24.28-29), é clara
e simples: Paulo, que desde o início organiza seu empreendimento
missionário a partir de centros que lhe dão suporte, busca uma base
para seu novo projeto de missão na Espanha; assim como as comu-
nidades de Antioquia e Efeso lhe permitiram estabelecer uma rede
de novas Igrejas na Ásia, na Macedonia e na Grécia, ele espera ser
enviado por Roma como missionário na Espanha. O objeto de seu
pedido em 15,24 é preciso e recorre à linguagem técnica dos missio-
nários itinerantes: “ser enviado” (προπέμττΐσθοα) não implica apenas
assumir a responsabilidade espiritual, mas também se encarregar do
equipamento do missionário, da participação em suas despesas e do
envio de cartas de recomendação para facilitar sua viagem e sua es-
tadia. E, portanto, provável que as intenções anunciadas em 1,10-15
— seu desejo, na qualidade de apóstolo dos gentios, devedor tanto
aos gregos como aos bárbaros, de ir a Roma para partilhar com seus
217
As epístolas de Paulo
7 Ferdinand Christian BAUR, Paulus, der Apostei Jesub Christi. Sein Le-
ben und Wirken, seine Briefe und seine Lehre. Ein Beitrag zu einer kri-
tischen Geschichte des Urchristentums, Stuttgart, Becher und Müller,
1845, 332-416.
A epístola aos Romanos
219
As epístolas de Paulo
3.2. Os destinatários
Caso excepcional, Romanos é a única epístola dirigida por Paulo
a uma Igreja que ele não fundou e, ainda mais, que não conhece.
O contexto de comunicação não é a de um apóstolo dirigindo-se à
sua comunidade. E a de um missionário itinerante que, precedido
de uma reputação mais ou menos favorável, solicita a acolhida e o
sustento de uma comunidade estabelecida, dotada de suas próprias
tradições e que possui, atrás dela, uma história movimentada.
220
A epístola aos
4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
4.1. Revelação e conhecimento natural de Deus x
A tese que fecha a primeira seção de Romanos é que ninguém
pode ser justificado diante de Deus pelas obras da Lei (3,20). Da
maneira como é formulada, essa tese se afirma como dotada de al-
cance universal (3,9-20), incluindo tanto os judeus (1,32-3,8) como
os pagãos (1,18-31). A razão pela qual os judeus não podem ser jus-
tificados pela Lei é claramente formulada: eles têm a Lei mas não a
praticam. A argumentação que busca demonstrar a injustiça dos pa
222
A epístola aos
gãos parece mais complexa: embora não tendo a Lei, eles são ines-
cusáveis. As razões desse aparente paradoxo são dadas em 1,19-23
e em 2,12-15: por um lado, Deus revelou o que se pode conhecer
dele em sua criação; de outro lado, a lei, que os pagãos não recebe-
ram de Moisés, está inscrita em seu coração.
Duas idéias são necessárias para compreender essa argumenta-
ção.
A primeira idéia vem da filosofia helenística, particularmente da
física estóica. E a seguinte: o mundo e todos os seres que o habitam
são regidos por uma ordem cósmica; com base na observação des-
sa ordem e da regularidade de seus movimentos, a filosofia pode,
mediante a reflexão, chegar a conhecer seu criador e suas leis. A se-
gunda idéia vem da apologética do judaísmo helenístico e se encon-
tra explicitamente desenvolvida em Fílon de Alexandria. Ela explica
que, na medida em que contêm intuições verdadeiras, a sabedoria
dos pagãos e, particularmente, a filosofia grega são forçosamente
aproximações da revelação feita por Deus a Moisés; os filósofos gre-
gos foram, com efeito, os alunos de Moisés.
Pode-se notar que as concepções filosófico-político-teológicas
de Romanos 13,1-7 provêm do mesmo conjunto de representações.
As recomendações práticas de 13,7 mostram que a argumentação
não visa a legitimar os sistemas existentes, mas defende, antes, uma
posição de filosofia política para a qual a existência de uma ordem
política encarregada de gerir a vida social é um dom da Providência
divina. A idéia se encontra tanto em Platão, Aristóteles e Epicuro
como em Gálatas 3,19: a Lei foi dada por causa das transgressões,
isto é, para proteger e tornar possível a vida da cidade. O ponto de
vista oposto não seria a posição revolucionária, mas a posição anar-
quista segundo a qual toda ordem social é, por princípio, má e deve
ser rejeitada.
É nessas duas idéias que se baseia a crítica paulina do conhecí-
mento de Deus em Romanos 1-3. Mas a retomada paulina a faz
sofrer duas transformações essenciais. Primeiro: se Deus pode
ser conhecido através de sua criação, como pensam os estóicos
e a apologética judeu-helenística, é por sua própria iniciativa; é o
As epístolas de Paulo
224
A epístola aos Romanos
nho mais uma justiça em razão da Lei, mas a justiça pela fé de Cristo
ou em Cristo, uma justiça que vem de Deus para a fé.
O Evangelho paulino da justiça de Deus (Romanos) ou da justi-
ficação pela fé (Gálatas) é o resultado de uma revelação divina de
que Paulo foi o destinatário e que constituiu sua vocação de após-
tolo dos gentios. Seu Evangelho não vem nem da tradição, nem de
ensinamentos humanos (Gl 1,1), mas de uma revelação de Jesus
Cristo (Gl 1,10-12): Deus lhe revelou seu Filho (Gl 1,16). A formu-
lação é elíptica e deve-se, provavelmente, entender, com o auxílio
de Gálatas 2,19 e 3,13, que Deus o fez reconhecer Jesus de Naza-
ré, o Crucificado, como seu Filho. O acontecimento apocalíptico da
revelação de Deus em Jesus Cristo obriga Paulo a se converter ao
Deus que era o seu. Essa revelação significa, com efeito, uma trans-
formação radical da imagem de Deus (“um messias crucificado não
é um messias judeu”, F C. Baur); e acarreta também uma transfor-
mação radical da compreensão da bênção de Abraão, da promessa
e da justiça de Deus.
A compreensão paulina da justiça de Deus e da justificação de-
corre da descoberta de que o Deus de Abraão se revelou na pessoa
do Crucificado. Malgrado as descontinuidades radicais que implica,
ela parte de dois pressupostos que, apesar de implícitos, não são me-
nos decisivos para a compreensão da argumentação. Primeiro, o ter-
mo “justiça” (δικαιοσύνη) aparece 33 vezes em Romanos, uma vez
em 1 Coríntios, sete vezes em 2 Coríntios, quatro vezes em Gálatas
e quatro vezes em Fl; o adjetivo “justo” (δίκαιος) aparece sete vezes
em Romanos, uma vez em Gálatas e duas vezes em Filipenses; e o
verbo justificar (δικαιόω) aparece quinze vezes em Romanos, duas
vezes em 1 Coríntios e oito vezes em Gálatas — não são concei-
tos abstratos, mas termos relacionais. A questão não é a da filosofia
grega, que tenta definir o que são o belo, a verdade ou a justiça em
si, mas a do caráter adequado ou não de uma relação interpessoal.
Segundo: é claro, para Paulo, que é Deus quem justifica; é por isso
que a formulação paradoxal de Filipenses 3,9 deve ser entendida em
toda a sua força provocadora. Para ele, a questão não é saber se o
homem pode se justificar diante de Deus ou se não pode ser justi
225
As epístolas de Paulo
ficado senão por Deus. A questão é bem outra: sob que condições
Deus justifica e sob que condições o homem é justificado por Deus?
O sentido do Evangelho paulino da justiça de Deus ou da justi-
ficação pela fé é que a relação adequada que se pode estabelecer
entre Deus e a existência humana é uma relação em que o ser hu-
mano vive na confiança de ser amado e reconhecido, como pessoa,
por seu Criador.
Os pressupostos dessa definição são os seguintes:
1. O valor gramatical do genitivo του Θ60ϋ (“de Deus”) que
se prende a essa justiça pode variar. Um genitivo absoluto
pode fazer da justiça uma característica de Deus que é a
de ser justo (3,26). Mas essa justiça de Deus se manifesta
imediatamente no fato de que Deus torna justo, e o geni-
tivo é mais geralmente um genitivo de autor: Deus é justo
porque faz reinar sua justiça e justifica. A interpretação
recente da teologia paulina da justiça de Deus foi domina-
da pelo debate entre duas posições: de um lado, a inter-
pretação existencial de Rudolf Bultmann, inscrita na tradi-
ção de Agostinho, Lutero e Kierkegaard, segundo a qual a
justiça de Deus é o fato de que Deus justifica a existência e
de que o crente compreende sua existência como existên-
cia justificada11; de outro lado, a interpretação apocalípti-
ca e cósmica que Ernst Kàsemann, J. Christian Beker e J.
Louis Martyn retomaram de uma tradição de leitura teo-
cêntrica e reformada: a justiça de Deus, de que Paulo teve
a revelação, é o estabelecimento por Deus da nova criação
que libera o mundo dos poderes que o sujeitavam12. Essas
interpretações evidenciam os dois momentos essenciais
226
A epístola aos Romanos
227
As epístolas de Paulo
228
A epístola aos Romanos
cia sob o seu domínio. O éon novo é marcado por uma mudança de
poder que se deu pela revelação da justiça de Deus. Essa compreen-
são do tempo implica uma concepção da antropologia segundo a
qual a existência humana jamais é autônoma, mas se acha sempre
determinada por um poder que a rege: ou a existência é sujeita ao
pecado e à morte, ou ela está sob o poder da justiça e do Espírito.
Pertencendo a Lei, como poder, ao tempo antigo, a passagem para
o tempo novo não significa apenas libertação do pecado e da morte,
mas também libertação da Lei.
Mas se a existência justificada está libertada da Lei é a fim de
poder cumprir as exigências da Lei (8,3-4). Os crentes, que se
compreendem como pessoas reconhecidas e amadas por Deus, são
chamados a amar a si mesmos e a amar o seu próximo (como pes-
soas e independentemente de suas qualidades) de maneira que se
cumpra toda a Lei (13,8-10, com uma citação de Lv 19,18). A afir-
mação segundo a qual Cristo é o fim ou o objetivo da Lei (τέλος,
10,4) é, portanto, ambivalente: de um lado, a revelação, em Cristo,
da justiça de Deus significa a libertação da Lei; de outro, essa li-
bertação da Lei é a condição necessária para que o ser novo possa
cumprir a Lei.
A dialética estabelecida entre a boa-nova da libertação da Lei e
a exortação para cumprir as exigências da Lei, tais como são resu-
midas no duplo mandamento de amor a si mesmo e ao próximo,
pressupõe uma ambivalência da Lei. A análise paulina da condição
da existência sob a Lei obriga a distinguir duas grandezas diferentes.
Primeiro: a Lei, em si mesma, é santa e boa (7,12); segundo, a Lei,
no próprio homem, leva à morte (7,7-25). A problemática antropo-
lógica descrita por Paulo consiste no seguinte mecanismo: o homem
que quer cumprir a Lei, e que faz da Lei a referência para sua exis-
tência, se vê necessariamente preso no círculo vicioso do desespero:
de um lado, quer cumprir a Lei que ele sabe ser vontade de Deus;
de outro lado, não pode fazer o que quer, e faz o que quer evitar. A
razão dessa infeliz situação reside no fato de que, contrariamente
ao que ele espera, a Lei não traça nenhum limite ao pecado, mas, ao
contrário, o pecado se serve da Lei. Ou o homem fracassa porque
229
As epístolas de Paulo
5 . P e r s p e c t iv a s n o v a s
A aparente novidade dos trabalhos atuais é devida, em grande
parte, à amnésia da pesquisa16. Essa amnésia leva freqüentemente
a uma supervalorização imerecida das discussões recentes, seja do
passado imediato ou do presente. A isso se acrescenta um fenôme-
no particular à recepção da epístola aos Romanos: a interpretação
da carta foi profundamente marcada pelos três comentários de Karl
Barth17 e pelos trabalhos de Rudolf Bultmann18; eles deixaram na
sombra as aquisições dos três séculos precedentes, particularmen-
te o questionamento histórico devido a Ferdinand Christian Baur e
seus alunos da escola de Tübingen19, sobre cuja importância Ernst
Kàsemann tinha insistido.
Em conseqüência, tanto nas questões históricas (as ligações da
teologia da epístola aos Romanos com o judeu-cristianismo e o pro-
blema das relações entre o cristianismo e Israel) como nas questões
teológicas fundamentais (a interpretação da justiça de Deus, as re-
lações da antropologia com a história, a ligação entre o Evangelho
e a ética), as perspectivas novas se abrem, paradoxalmente, para
o interior de um perímetro balizado pelos paradigmas representa-
dos por Santo Agostinho, Martinho Lutero e João Calvino e, mais
recentemente, por Ferdinand Christian Baur, Adolf Deissmann20 e
230
A epístola aos Romanos
6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
CRANFIELD, Charles Ernest Burland. The Epistle to the Romans. Edinbur-
gh, Clark, 1975, 1979 (IC C ).2v.
KÀSEMANN, Ernst. An die Ròmer. Tübingen, Mohr, 41980 [1. ed. 1973]
(H N T 8a).
LEENHARDT Franz J. LÉpítre de saint Paul aux Romains. Neuchàtel,
Delachaux et Niestlé, 2I969 [I. ed. 1957] (CN T 6).
SCHLIER, Heinrich. Der Rómerbrief Freiburg, Herder, 1977 (HThK VI).
ZELLER, Dieter. Der Brief an die Ròmer (RNT), Regensburg, Pustet, 1985.
Leitura prioritária
BECKER, Jurgen. Paul, "L apôtre des nations”. Paris/Montreal, Cerf/Mé-
diaspaul, 1995, p. 385-430.
CONZELMANN, Hans. Crundrisse der Theologie des Neuen Testaments.
Tübingen, Mohr, 61997 (UTB 1446); ed. fr.: Théologie du Nouveau
Testament, Paris/Genève, Centurion/Labor et Fides, 1968, p. 167-
297 (Nouvelle série théologique 21).
MAINV1LLE, Odette. Un plaidoyer en faveurde Tunité. La lettre aux Ro-
mains. Montréal, Médiaspaul, 1999 (Sciences bibliques 6).
Estudos particulares
ALETT1, Jean-Noél. Israel et la Loi dans la lettre aux Romains, Paris, Cerf
1998 (LeDiv 173).
BEKER, J. Christian. Paul the Apostle. The Triumph o f God in Life and
Thought. Edinburgh, Clark, 1980.
BOERS, Hendrikus. The Justification to the Gentiles. Paul’s Lettres to the
Galatians and Romans. Peabody, Hendrikson, 1994.
231
As epístolas de Paulo
232
CAPÍTULO
9
A prim eira epístola aos Coríntios
François Vouga
1. A p r e s e n t a ç ã o
1.1. Estrutura
Quanto ao seu conteúdo, a primeira carta aos Coríntios é cia-
ramente estruturada. A primeira parte lembra qual o fundamento
do cristianismo e quais as condições de sua comunicação aposto-
lica (1,1-4,21); a segunda parte trata de uma série de questões éti-
233
As epístolas de Paulo
1.2. Conteúdo
As quatro sequências da carta são clara e formalmente delimita-
das. Após o endereço, a saudação (ICor 1,1-3) e a oração de ação de
graças que contém o anúncio dos vários temas que serão retomados
no corpo da epístola (1,4-9), o apóstolo começa com uma reflexão
fundamental sobre a essência do cristianismo e as condições da pre-
gação apostólica do Evangelho (1,10-4,13). Motivado por informa-
ções recebidas pelo apóstolo, segundo as quais a Igreja de Corinto
seria lugar de divisão, com diferentes partidos invocando o teste-
munho de diferentes apóstolos, esse desenvolvimento constitui uma
das apresentações mais claras, mais densas e mais bem delineadas
do Evangelho paulino; a esse respeito, pode-se compará-la com as
partes centrais de Romanos e Gálatas. A exposição, que não é con-
cebida para judeu-cristãos, mas para ouvidos gregos e helenizados
de comunidades pagão-cristãs recém-criadas, não se serve das ca-
tegorias teológicas judaicas de justiça, Lei e fé, como é o caso em
Romanos 1,16-11,36, ou em Gálatas 2,11-5,12; argumenta com os
conceitos de sabedoria, loucura, poder e fraqueza. O Evangelho é
pregação da cruz. E loucura para os que se perdem e poder de Deus
para os que crêem. A idéia subjacente à teologia de Paulo é a seguin-
te: como o mundo não quis reconhecer Deus pela sabedoria e na
sabedoria, Deus decidiu se fazer de louco e se revelar no paradoxo
da comunicação da cruz (1,18-25). Essa loucura de Deus determina,
a constituição da comunidade de Corinto (1,26-31); ela é o mistério
do qual o apóstolo é portador (2,1-5), e ela é a verdadeira sabedoria
(2,6-3,4). As duas consequências dessa inversão da imagem de Deus
são, primeiramente, que os apóstolos não são mediadores, porque os
crentes são de Deus e sua relação com Deus passa pelo Espírito que
está neles (3,5-18); segunda conseqüência, o apóstolo só pode com-
preender sua obra como ministério do Crucificado (4,1-13). As exor
234
A prim eira epístola ao s C oríntios
235
As epístolas de Paulo
236
A prim eira epístola a o s C oríntios
O culto (11,2-14,40)
11,2-16 O comportamento das mulheres no culto
11,17-34 A ceia do Senhor
12,1-14,40 Os dons espirituais
237
As epístolas de Paulo
2 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia
2 .1. Unidade e integridade da epístola
Os problemas colocados pelo texto da epístola
A epístola, tal como está constituída, conserva, em seu estado
original, uma carta de Paulo a Corinto ou deve-se ver aí a edição,
por Paulo ou por um redator ulterior, de um manual da vida cristã
composto a partir de várias cartas diferentes?
As razões que levam a considerar 1 Coríntios uma combinação de
várias cartas são as seguintes;
1) 1 Coríntios 1,1-4,21 constitui um conjunto facilmente iso-
lável. 1 Coríntios 4,14-21 dá impressão de constituir o fim
de uma carta, à qual só falta a saudação final, e não prepa-
ra, de maneira alguma, o início de 1 Coríntios 5,1-13, que
começa abruptamente.
2) O final de 1Coríntios 4,14-21 entra em concorrência com a
conclusão canônica da carta (16,5-12). N o primeiro, Paulo
está prestes a ir para Corinto, ao passo que na segunda ele
anuncia sua visita para mais tarde.
3) Na maior parte de 1 Coríntios, Paulo responde às questões
dos coríntios, discute o comportamento deles e os instrui
como uma autoridade reconhecida, a ponto de lhes dizer,
sem receio, em 1 Coríntios 15,9, que não é digno de ser
chamado apóstolo. Ao contrário, em 1 Coríntios 1,1-4,21 e
238
A prim eira epístola a o s C oríntios
239
As epístolas de Paulo
240
A prim eira epístola a o s C oríntios
241
As epístolas de Paulo
I Coríntios I4,33b-36
A ordem dada às mulheres de se calarem na assembléia (ICor
14,33b-36) é provavelmente uma glosa tardia, acrescentada por
ocasião da edição do corpus paulino para preparar 1Timóteo 2,8-15.
Ela interrompe o contexto consagrado aos profetas; é fabricada com
elementos discordantes emprestados dos versículos vizinhos; con-
tradiz 1 Coríntios 11,5 e emprega argumentos não-paulinos (“como
o diz a Lei”, 14,34).
242
A prim eira epístola ao s C oríntios
1 Coríntios 11,23-26
1 Coríntios 11,23a introduz uma citação de estilo indireto na qual
Paulo apoia, em seguida, suas recomendações aos coríntios (ώστ€,
“é por isso”, ICor 11,27). Essa citação contém, em todo caso, uma
dupla palavra do Senhor, depois provavelmente um comentário pós-
pascal, se a redação de 1 Coríntios 11,26 não for de Paulo:
/ Coríntios 15,3-5(-7?)
A construção é a mesma em 1 Coríntios 15,3a e em 11,23a. O
texto introduzido pela fórmula de citação compreende uma inter-
pretação da morte de Jesus (15,3b-4a), uma interpretação de sua
ressurreição (15,4bc-5a) e em seguida a enumeração de uma dupla
cadeia de testemunhas das aparições: Cefas, os Doze e os 500 ir-
mãos (15,5-6), depois Tiago e os apóstolos (15,7), aos quais Paulo se
junta (15,8). Em sua versão primitiva, a confissão de fé só continha,
provavelmente, os dois primeiros elementos:
“Cristo morreu — por nossos pecados — segundo as escrituras
— e foi sepultado,
ele ressuscitou — no terceiro dia — segundo as escrituras
— e apareceu... ”.
243
As epístolas de Paulo
1 Coríntios 10-16
Não há aqui nenhum elemento de citação, lan to o paralelismo da
construção como a terminologia (“a taça da bênção”) soam como o
eco de uma fórmula litúrgica:
3 . M e io e c ir c u n s t â n c ia s h is t ó r ic a s d e p r o d u ç ã o
3.1. A ocasião da carta
O conteúdo de 1 Coríntios é determinado, quase na totalidade,
pelas perguntas diretas dos coríntios ou pelas notícias que o apóstolo
recebeu de Corinto. Paulo indica, às vezes, a fonte de suas informa-
ções, como em 1 Coríntios 1,11. Em outros casos, ele cita somente
os comentários que ouviu (11,18; 15,12).
A carta de Corinto
Paulo só menciona, explicitamente, a carta dos coríntios a pro-
pósito do casamento e do celibato: “a propósito do que me escre-
vestes” (ICor 7,1). lodavia é provável que os outros π6ρΙ ôè (“a
244
A prim eira epístola a o s C oríntios
245
As epístolas de Paulo
10 Hans von SODEN, Sakrament und Ethik bei Paulus. Zur Frage der litera-
rischen und theologischen Einheittlichkeit von I Kor 8-10, in Urchristentum
und Geschichte I,Tübingen, Mohr, 1951,239-275; Günther BORNKAMM,
Herrenmahl um Kirchen bei Paulus, ZThK 53 (1956) 312 ss., reed, in Stu-
diem zu Antike Urchristentum, Gesammelte Aufsátze II, München, Kaiser,
1949, 138-176.
246
A prim eira epístola a o s C oríntios
3.2. Os destinatários
Corinto
A cidade de Corinto, na qual Paulo, acompanhado de Timóteo e
Silvano, introduziu o cristianismo, é uma cidade nova e rica. Destruí-
da em 146 a.C., foi reconstruída por Júlio César em 44 a.C. como
colônia para seus veteranos. Em 29 a.C., passou a ser a capital da
Acaia. Economicamente, a cidade é rica, graças, particularmente,
à sua situação geográfica. Do ponto de vista religioso, a população,
muito misturada, convive com pluralismo e sincretismo. A cidade
tem má reputação: já Aristófanes fala de “corintianizar” com o sen-
tido de levar uma vida dissoluta (κορι,νθίαζομαι, Fragm. 354).
247
As epístolas de Paulo
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A prim eira epístola ao s C oríntios
249
As epístolas de Paulo
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A prim eira epístola a o s C oríntios
4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
4.1. A “teologia da cruz ”
Nas cartas paulinas, a cruz é um term o técnico que interpreta
não só a morte, mas o duplo acontecimento da morte e da ressur-
reição de Jesus (ICor 1,17.18; Cl 5,11; 6,12.14; F1 2,8; 3,18). A cruz
designa o acontecimento da salvação em Jesus Cristo em seu con-
junto, de sorte que Cristo pode ser designado como o Crucificado
(ICor 1,23; 2,2a; 3,1) e a palavra da cruz é sinônima de Evangelho
(ICor 1,18).
A palavra da cruz se apresenta como um paradoxo que provo-
ca a fé ou o escândalo, porque é recebida ou como poder de Deus
ou como loucura (ICor 1,23; G1 5,11). Com efeito, é a maneira pela
qual se a recebe que lhe dá sentido: para a fé, ela é poder de Deus,
para o incrédulo, ela não passa de loucura. A idéia não é a de uma
predestinação que a uns daria a compreensão e a outros a recusaria.
Ao contrário: se alguns se perdem, é porque percebem a cruz como
loucura, ao passo que os outros são precisamente salvos porque a
recebem como poder de Deus.
O fato de a palavra da cruz ser paradoxal, de ser loucura para
uns e poder de Deus para outros, resulta de uma decisão de Deus
de tornar louca a sabedoria do mundo pelo paradoxo da cruz (ICor
1,21). Essa decisão de Deus se segue à história das infelizes relações
da sabedoria de Deus com a sabedoria do mundo. O objetivo da es-
tratégia divina é elevar a incompreensão da sabedoria humana à sa-
bedoria de Deus e salvar os que por causa da pregação — louca, aos
olhos do mundo — põem sua confiança em Deus.
O ponto de partida dessa virada apocalíptica encontra-se no fra-
casso da sabedoria do mundo em conhecer Deus em sua sabedoria.
O que Paulo pressupõe é que a sabedoria do mundo teria podido re-
conhecer Deus. Mas, assim como a existência que busca sua justiça
“pelas obras da Lei” investe na Lei aquilo que esta não pode dar e
cai no desespero (G1 3,11-12 e 3,21), assim o mundo abusou da sa-
bedoria para encontrar nela seu sentido e sua origem, de sorte que
a Lei e a sabedoria se tornaram obstáculos para o reconhecimento e
251
A s epístolas de Paulo
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A prim eira epístola a o s C oríntios
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A s epístolas de Paulo
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A prim eira epístola a o s C oríntios
5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
A interpretação recente desse “manual da vida cristã” (Christo-
phe Senft) foi marcada pela retomada, nos Estados Unidos em parti-
cular, de três questões às quais a pesquisa teológica e social alemã já
estava atrelada desde o último século até o início deste século.
255
As epístolas de Paulo
6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
BARBAGLIO, Giuseppe. La Prima lettera ai Corinzi. Bologna, Dehoniane,
1995 (Scritti delle origin! cristiane 16).
CONZELMANN, Hans. Dererste Brief an die Korinther. Gottingen, Van-
denhoeck und Ruprecht, 1969 (KEK 5); ed. ingl.: / Corinthians. A
Commentary on the First Epistle to the Corinthians. Philadelphia,
Fortress Press, 1985.
FEE, Gordon D. The First Epistle to the Corinthians. Grand Rapids, Eerd-
mans, 1987 (NLCNT).
HAYS, Richard B. First Corinthians. Louisville, Westminster/John Knox,
1997 (Interpretation).
SEN FT, Christophe. La premiere épitre de saint Paul aux Corinthiens. Neu-
chatel/Paris, Delachaux et Niestlé, 1992 (CNT 7).
SOARDS, Marion L. I Corinthians. Peabody, Hendrickson, 1999 (NIBC 7).
256
A prim eira epístola aos C oríntios
Leitura prioritária
BECKER, Jürgen. Paul, “Lapôtre des nations". Paris/Montréal, Cerf/Mé-
diaspaul, 1995, p. 221-300.
DUMORTIER, François. Croyants en terres paiennes. Première épitre aux
Corinthiens. Paris, Les Editions ouvrières, 1982.
Estudos particulares
ACFEB. Le corps et te corps du Christ dans la première épitre aux Corin-
thiens. Paris, Cerf, 1983 (LeDiv 114).
MURPHY-O’CO NNO R, Jerome. Corinthe au temps de saint Paul d ’après
les textes et Γ archéologie. Paris, Cerf, 1986.
PITTA, Antonio. II paradosso della croce. Saggi di teologia paolina. Spa,
Piemme, 1998.
RAKOTOHA-RINTS1FA, Andrianjatovo. Conflits a Corinthe. Église et
societé selon I Corinthiens. Analyse socio-historique. Genève, La-
bor et Fides, 1997 (Monde de la Bible 36).
SELL1N, Gerhard. Der Streit urn die Auferstehung der Toten. Gottingen,
Vandenhoeck und Ruprecht, 1986 (FRLANT 138).
VOLLENWEIDER, Samuel. Freiheit ais neue Schõpfung. Eine Untersu-
chung zur Eleutheria bei Paulus und seiner Umwelt. Gottingen,
Vandenhoeck und Ruprecht, 1989 (FRLANT 147).
W1LCKENS, Ulrich. Weisheit undTorheit. Eineexegetisch-religionsgeschicht-
liche Studie zu 1 Kor 1 und 2. Tübingen, Mohr, 1959 (BHTh 26).
257
CAPÍTULO
10
 segunda epístola aos Coríntios
François Vouga
1. A p r e s e n t a ç ã o
A segunda epístola de Paulo aos Coríntios atesta dificuldades en-
contradas pelo apóstolo em Corinto. Paulo anunciou e adiou, diver-
sas vezes, uma nova visita a Corinto (ICor 16,5-6; 2Cor 1,15-2,4),
o que causou alguma decepção. A isso se soma o fato de que outros
apóstolos passaram por lá depois de Paulo. Por um lado, parece que
eles impressionaram os coríntios (2Cor 11,1-15); por outro lado, pa-
rece que censuraram a coleta (2Cor 11,7-8; 12,16-18): Paulo, ao con-
trário deles, nunca quis pagamento ou sustento financeiro dos co-
ríntios, mas, dizem eles, era por esperteza; Paulo não quis ser pago
para que eles, depois, contribuíssem na coleta.
Segundo Gálatas 2,10, a coleta feita nas Igrejas paulinas teria
sido uma decisão tomada por Tiago, João, Pedro e Paulo, no final
do encontro em Jerusalém (Cl 2,1-10): as “colunas” da Igreja de
Jerusalém reconheceram a missão de Paulo junto aos pagãos, mas
pediam às novas Igrejas que manifestassem, com uma coleta, sua
solidariedade com as Igrejas-mãe da Judéia. A correspondência de
259
As epístolas de Paulo
Paulo com Corinto (ICor 16,1-4; 2Cor 7,5-9,15) e com Roma (Rm
15,25-27.30.32) mostra os esforços empregados pelo apóstolo para
assegurar o sucesso de seu empreendimento. A questão teológica e
eclesiológica da coleta é clara: trata-se, para Paulo, de manifestar,
simbolicamente, o reconhecimento mútuo das primeiras comuni-
dades, de modo particular o reconhecimento das comunidades ju-
deu-cristãs da Judeia, ainda muito ligadas ao judaísmo, e das novas
Igrejas pagão-cristãs e urbanas nascidas da missão e da pregação do
Evangelho paulino.
A defesa da coleta passa, portanto, necessariamente, pela defesa
do apostolado paulino. Assim, 2 Coríntios continua a argumenta-
ção esboçada na primeira apologia de 1 Coríntios 1,18-4,13; Paulo
foi chamado de apóstolo do Crucificado, e sua existência é determi-
nada pelo tesouro de que é portador, o Evangelho da cruz. A ques-
tão fundamental da epístola passa, então, a ser: qual é a condição
existencial de um apóstolo do Crucificado? Ou, para reformular a
mesma questão do ponto de vista da ética da comunicação: quais
são as condições necessárias e suficientes para a transmissão do
Evangelho?
1.1. Estrutura
A armação da epístola é feita pelos relatos de viagem do apóstolo
e pelos anúncios de sua próxima viagem a Corinto:
• Relato de viagem I: 1,8. Paulo fala dos perigos que correu na
Ásia.
* Relato de viagem 11: 1,15-17. O que foi projetado: Paulo que-
ria ir a Corinto, antes de ir para a Macedonia, e retornar a
Corinto.
• Relato de viagem UI: 2,12-13. Paulo chegou a Troas, ficou
preocupado por não encontrar Tito e prosseguiu para a Ma-
cedônia.
* Relato de viagem IV: 7,5-7. Paulo chegou à Macedonia, onde
encontrou todo tipo de dificuldades; mas a chegada de Tito
e as boas-novas que trouxe de Corinto tranqüilizaram-no.
260
A segunda epístola a o s C oríntios
261
As epístolas de Paulo
1.2. C onteúdo
Nesse quadro, o apóstolo explica as razões que o levaram a adiar,
várias vezes, sua visita (2Cor 1,8-2,11). Defende seu apostolado
(2,12-6,13). Exorta seus destinatários a permanecer fiéis à graça re-
cebida (6,1-7,3 ; 6,1-13 e 7,2-3 combinam os dois momentos da apoio-
gia apostólica e da advertência). Lembra a reconciliação feita (7,4-16)
para, mais uma vez, convidar e encorajar os coríntios a participar da
coleta (os capítulos 8 e 9 retomam as recomendações de ICor 16,1-4
e são preparados, retoricamente, pelo “em tudo”, 2Cor 7,16).
O fim da epístola (2Cor 10,1-13,13) procede a uma divisão dos ou-
vintes: como já em 1Coríntios 15,12,0 apóstolo distingue do resto de
seus leitores e do conjunto da Igreja de Corinto um grupo de pessoas
(τι.ν6׳ς) cujos comentários ele cita na terceira pessoa do plural (2Cor
10,2.7.10). Faz, de novo, apologia de seu apostolado; ele é o após-
tolo do Senhor cujo poder se manifesta na fraqueza (11,16-12,10);
defende-se diante da ascendência que os missionários concorrentes
ganharam sobre os coríntios e contra suas maledicências a propósito
da coleta (11,7.12.20; 12,16-18); empenha-se para preparar sua che-
gada e sua acolhida em Corinto (10,1-11 e 13,1-10).
2 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia : u n id a d e e in t e g r id a d e da e p ís t o l a
Os problemas que se colocam quanto à unidade da epístola são
os seguintes:
a) 2 Coríntios 2,4 menciona uma carta escrita por Paulo aos co-
ríntios “em meio às lágrimas”. O problema é o mesmo que o
colocado em 1Coríntios 5,9: trata-se de uma carta perdida ou
deve-se procurá-la no interior da correspondência existente?
Nesse caso, pensa-se, deve-se procurá-la não em 2 Corín-
tios, mas em 1 Coríntios, por exemplo 2 Coríntios 10-13.
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A seg u n d a epístola a o s C oríntios
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As epístolas de Paulo
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A segunda epístola a o s C oríntios
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As epístolas de Paulo
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A segunda epístola a o s C oríntios
3 . M e io e c ir c u n s t â n c ia s h is t ó r ic a s d e p r o d u ç ã o
3 .1. A ocasião da carta
A coleta
Quer se considere a epístola uma unidade ou uma coleção de
cartas, a retomada da coleta que Paulo tinha organizado, com ins-
truções precisas, em 1 Coríntios 16,1-4, e para a qual delegou seu
colaborador Ti to (2Cor2,13; 7,6.13.14; 8,6.16.23; 12,18), constitui
um dos assuntos centrais do texto. Uma primeira alusão se encon-
tra, sem dúvida, em 2,12-13, na preocupação do apóstolo com a
demora de Tito, depois uma segunda, explícita, em 7,16. Após ter
sido diretamente o objeto da solicitação em 8,1-9,15, a coleta faz
parte das críticas de que se defende o apóstolo em 10-13. Vozes se
levantaram contra Paulo, em Corinto, para acusá-lo de ter agido por
esperteza; se ele não aceitava ser pago, diziam, era em previsão da
coleta (11,7-9 e 12,16-18)!
267
As epístolas de Paulo
Os apótolos concorrentes
As informações que 2 Coríntios contém sobre os apóstolos con-
correntes (os “superapóstolos” (2 Cor 11,5) são as seguintes:
• São judeu-cristãos helenizados (11,23-33), como Paulo.
• São missionários itinerantes (10,12-18), como Paulo.
• São apóstolos respeitados em razão de suas palavras e de
seus atos milagrosos (11,5; 12,11), como Paulo (12,12).
• Eles se recomendam a si mesmos (3,1; 10,12.18).
• Eles se fazem pagar pelos coríntios (11,7).
• Eles criticaram a coleta: Paulo, astuciosamente, não se fez
pagar na hora (11,7-9), para depois obter dos coríntios a co-
leta (11,12.20; 12,16-18).
268
A segunda epístola a o s C oríntios
269
As epístolas de Paulo
4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
4.1. A compreensão paulina do apostolado
A compreensão que o apóstolo tem de seu apostolado decorre
imediatamente de sua compreensão do Evangelho como revela-
270
A segunda epístola a o s C oríntios
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As epístolas de Paulo
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A seg u n d a epístola a o s C oríntios
5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
Entre todas as cartas paulinas, é nesta epístola que a teologia do
apóstolo se exprime com o maior radicalismo. Não é, portanto, de
surpreender que se assista a uma certa estagnação da pesquisa. As
últimas grandes interpretações continuam a ser as de Rudolf Bult-
mann e seu aluno Ernst Kãsemann16.
Duas aberturas originais devem ser assinaladas. Elas permitem
relativizar a impressão de que a situação da pesquisa, dominada
pelas discussões históricas e literárias sobre a unidade da epístola,
sobre a cronologia paulina e sobre a identidade religiosa dos “supe-
rapóstolos”, não evoluiu muito em um século.
A primeira é a de Hans Dieter Betz17, que, interpretando o con-
flito entre Paulo e os “superapóstolos” na perspectiva da história
da recepção da controvérsia entre Sócrates e os sofistas, reintro-
duziu, com força, as pesquisas sobre a retórica antiga nos estudos
neotestamentários.
A outra, de dimensões mais modestas, vem da Suíça francesa.
Marc-André Freudiger18 se inspira, por um lado, nos trabalhos de
Rudolf Bultmann e Hans Dieer Betz e, de outro, nas análises da
pragmática da comunicação empreendidas por Paul Watzlawick para
explicar a reflexão do apóstolo sobre as condições do apostolado e
da pregação cristã.
273
A s epístolas de Paulo
6. B ib l io g r a f ia
Comentários
BARRETT, Charles K. The Second Epistle to the Corinthians. London [s.n.],
1976 (Black’s NTC).
BETZ, Hans Dieter. 2 Corinthians 8 and 9. Philadelphia, Fortress Press,
1985 (Hermeneia).
CARREZ, Maurice. La deuxième épitre de saint Paul aux Corinthiens.Ce-
néve, Labor et Fides, 1986 (CNT 8).
FURNISH, Victor P II Corinthians. N ew York, Doubleday, 1986 (AB
32 A).
TALBERT, Charles H. Reading Corinthians. A Literary and Theological
Commentary on 1 and 2 Corinthians. N ew York, Crossroad, 1987.
WIND1SCH, Hans. Der zweite Korintherbrief. Gottingen, Vandenhoeck
und Ruprecht, 1924 (ΚΕΚ VI).
Leitura prioritária
BECKER, Jürgen. Paul, “Lapotre des nations". Paris/Montréal, Cerf/Mé-
diaspaul, 1995, p. 221-281.
Situação da pesquisa
SUMNEY, Jerry L. Identifying Pauls Opponents: The Question 91 Method
in 2 Corinthians. Sheffield, JSOT Press, 1990 (JSNTSS 40).
Bibliografia exaustiva
BIERINGER, Reimund. Bibliography. In: BIER1NGER, Reimund, LAM-
BRECHT, Jan. Studies on 2 Corinthians. Leuven, Leuven University
Press/Peeters, 1994, p. 3-66 (BEThL 112).
Estudos particulares
BETZ, Hans Dieter. Der Apostei Paulus und die sokratische Tradition. Eine
exegetische Untersuchung zu seiner Apologie 2 Korinther 10-13.
Tübingen, Mohr, 1972 (BHTh 45).
274
j
A segunda epístola a o s C oríntios
275
CAPITULO
11
A epístola aos Gaiatas
François Vouga
277
As epístolas de Paulo
1. A p r e s e n t a ç ã o
O itinerário teológico proposto por Gálatas é claro: uma revelação,
pela qual Deus apresentou ao apóstolo o Crucificado como seu Filho
(G1 1,12.16), determina uma ruptura apocalíptica da história que põe
fim ao reino da Lei (3,19) e abre o tempo do Espírito (3,1-5; 4,1-7).
Essa ruptura apocalíptica significa, primeiramente, uma mudança na
compreensão de Deus e na compreensão da existência: Deus não
justifica pelas obras da Lei, isto é, em virtude dos privilégios da cir-
cuncisão e da pertença ao povo da Aliança, mas pela fé, isto é, pela
confiança em Deus que já estava em Jesus Cristo (1,10-2,21). Mas
a revelação apocalíptica de Deus em Jesus Cristo obriga também a
uma reinterpretação da Escritura como história da promessa (3,6-
5,1). Baseado nessa revelação de Deus e da ruptura que ela implica,
o apóstolo exorta seus destinatários a viver no tempo da nova cria-
ção, a produzir frutos do Espírito e não retornar aos tempos antigos
e passados da circuncisão, da carne e da Lei, ao contrário do que
lhes sugerem os novos missionários (5,16-6,18). A unidade da men-
sagem da epístola reside, por conseqüência, na pergunta feita aos
Gálatas: “qual é a hora?”1.
Estrutura e conteúdo
A estrutura de Gálatas, classicamente proposta, distingue três
partes: uma primeira autobiográfica e histórica (1,1-2,21), uma se-1
278
A epístola a o s G álatas
279
As epístolas de Paulo
280
A epístola a o s G aiatas
2. C o m p o s iç ã o l it e r á r ia
2.1. Unidade e integridade da epístola
Gálatas se apresenta como uma carta circular do apóstolo, único
signatário dela, às Igrejas da Galácia. Nenhuma informação conti-
da na epístola, nenhum paralelo literário ou histórico permitem re-
constituir a distribuição às diversas comunidades destinatárias. Foi
enviado um mensageiro com a carta, para levá-la de uma comuni
281
As epístolas de Paulo
Gálatas 3,28
A fórmula “não há mais nem judeu nem grego, nem escravo nem
homem livre, já não há mais o homem e a mulher” encontra-se, com
variações, em 1 Coríntios 12,13, em Colossenses 3,10-11 e no Trata-
do tripartite (N H C 1,4 132,16-28). Trata-se de um programa paulino
3 . M e io e c ir c u n s t â n c ia s h is t ó r ic a s d e p r o d u ç ã o
3. /. A ocasião da carta
As Igrejas da Galácia foram fundadas pela pregação paulina (G1
4,12b-14.19; cf 1,9; 3,lb-2; 4,11). Evidentemente, Gálatas 4,13 não
significa que o apóstolo teve de fazer um desvio imprevisto pela Ga-
lácia por motivo de uma doença qualquer, mas sim que o poder do
Evangelho se manifestou, na Galácia como em Corinto (ICor 2,1-5;
2Cor 12,1-10), na fraqueza do apóstolo. Os membros dessas Igrejas
eram pagãos que só conheceram o Deus judeu e cristão depois de
sua conversão (G1 4,8-9; cf 4,3).
E impossível saber se antes da carta Paulo lhes fizera uma segun-
da visita: xò ׳FTpóxepov (4,13) pode significar tanto “a primeira vez”
como “outrora”. O que é certo é que ele está bem informado sobre
a evolução da comunidade: missionários apareceram na Galácia e
perturbaram os gálatas. Tentaram persuadi-los a se fazer circuncidar
(5,7.12; 6,12) e já tinham convencido alguns (5,2-4), que agora pres-
sionam os outros (6,13). A carta enviada por Paulo tem por intuito,
primeiramente, clarear o espírito dos gálatas: o evangelho dos novos
missionários não tem nada a ver com o Evangelho de Deus; é objeti-
va, em seguida, afastar os gálatas dos novos missionários reforçando
suas convicções.
3.2. Os destinatários
A dificuldade da identificação exata dos destinatários da epísto-
Ia decorre do fato que “Galácia” designa, no tempo de Paulo, duas
áreas geográficas diferentes. A Galácia é, antes de tudo, uma re
gião, cujo nome vem da origem celta de seus habitantes. Mas essa
região, cujo centro é Ancira (hoje Ankara), e que se estende dos pia-
naltos da Anatólia até o mar Negro, deu seu nome a uma província
romana que inclui várias províncias ao sul da Galácia propriamente
dita. Fala-se, por esse motivo, de hipótese “galática do norte”, caso
se entenda que Gaiatas foi enviada aos gálatas da região da Galácia,
ou de hipótese “galática do sul”, caso se pense que os destinatá-
rios da epístola eram os habitantes da província romana da Galácia,
situada mais ao sul.
A Galácia e os gálatas
A Galácia é a região em volta da bacia do Halis, entre a Capadócia
e o Ponto; compreendia, entre outras, a cidade de Ancira, Tavium
e Pessinonte. Foi ocupada em 277 a.C. por três tribos gaulesas, os
tolistoboges, os trocmes e os tectosages (Pausânias 10,23; Estrabão
12,5,1-3; Tito Lívio 38,16). Vencidos, em 189 a.C., pelo cônsul Man-
lius (Políbio 21,37-41; Tito Lívio 38,17-27; Estrabão 13, 1-27), eles
se helenizaram progressivamente e conservaram sua liberdade sob o
protetorado romano até serem integrados no império sob Augusto,
em 25 a.C.
Os Atos dos Apóstolos mencionam duas viagens de Paulo pela
região gálata: Atos 16,6 e 18,23. Desde a Antiguidade patrística até
o século XVII, identificar a Galácia de Gálatas 1,2 e os gálatas de
Gálatas 3,1 com a região gálata e seus habitantes não despertava
dúvida alguma.
284
A epístola aos G aiatas
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A s epístolas de Paulo
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A epístola a o s G aiatas
carne”, em Gálatas, não significa nada mais que viver “sob a Lei” ou
“procurar ser justificado pelas obras da Lei”.
Os adversários gnósticos
A necessidade de uma dupla frente cai se se pressupõe que os
missionários não sejam judeu-cristãos conservadores, mas judeu-
cristãos de tendência gnóstica que tentam reintroduzir tanto a
circuncisão como os calendários de tipo astrológico (G1 4,8-11)10.
Mas o conceito dos “elementos do mundo” (4,3.9) designa simples-
mente o fogo, o ar, a terra e a água como elementos constitutivos
da natureza criada; em consequência, 4,8-11 afirma o caráter equi-
valente e profano das observâncias judaicas, que os gálatas estão
prestes a adotar, e das observâncias pagãs, que ao se converter
abandonaram.
287
A s epístolas de Paulo
288
A epístola a o s G álatas
A hipótese tradicional
Tanto segundo a tradição manuscrita (subscriptio dos manuscritos
B1K L 0278 1739 1881, do texto majoritário e das traduções siríacas
e coptas) como segundo a tradição patrística (Teodoreto, Jerônimo,
Eusébio de Emeso), Gálatas é uma epístola tardia: ela é considerada
a primeira ou a última das cartas do cativeiro escritas de Roma por
Paulo. Um argumento citado em favor dessa hipótese tradicional é
que ela torna compreensível a impossibilidade, em que Paulo declara
estar, de ir à Galácia (G1 4,20). Pode-se a isso acrescentar que Gála-
tas oferece um resumo, ao mesmo tempo claro e bem delineado, das
grandes cartas paulinas14.
A hipótese clássica
Os inúmeros paralelos lingüísticos e teológicos constatáveis en-
tre Gálatas e 2 Coríntios, de um lado, e entre Gálatas e Romanos,
289
As epístolas de Paulo
4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
4 .1. A vocação do apóstolo e a verdade do Evangelho
Uma dupla convicção fundamental caracteriza a essência do
Evangelho proclamado pelo apóstolo. De um lado, a existência do
apóstolo foi partida em duas, por um acontecimento que ele inter-
preta como sendo uma revelação de Deus (G1 1,1516) ־, e que o faz
portador de uma verdade à qual vai permanecer fiel, independente-
mente de qualquer sistema de verdade existente, seja o do judaísmo
fariseu, de onde ele vem, seja o de outras tradições cristãs (1,1.10-
12). Por outro lado, esse acontecimento, doravante fundador, é a
revelação, por Deus, do Crucificado como seu filho (1,12.16)16. O
fato de o transgressor da Lei, que come com os coletores de impos-
tos e com os pecadores, ser reconhecido como Filho de Deus é a
revelação ao mesmo tempo teológica e antropológica de que o Deus
da promessa a Abraão não é um Deus que reconhece o homem em
virtude das obras da Lei, quer dizer, de suas qualidades.
Essa dupla convicção fundamental tem duas conseqüências.
A primeira consiste no universalismo do Evangelho paulino: a ver-
dade que constitui o apóstolo em sua nova identidade (“não sou mais
eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim”, 2,19-20) não será ver-
dade se não for verdade para cada indivíduo. E por isso que o Evan-
gelho é incompatível com qualquer definição da pessoa segundo o
critério de categorias abstratas (judeu, grego, escravo, pessoa livre,
homem, mulher) ou em virtude de sua qualificação por uma eleição
particular, como faz o “outro evangelho” dos missionários (1,6-9).
290
A epístola a o s G aiatas
291
As epístolas de Paulo
292
A epístola a o s G álatas
5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
De um ponto de vista histórico, abre-se de novo o debate, que foi
muito intenso até o início do século XX18, sobre o lugar da epístola
na vida e na evolução teológica do apóstolo. Resulta daí que se é
mais prudente hoje sobre o assunto, e menos afirmativo, do que por
ocasião do aparente consenso instalado desde 1950.
De um ponto de vista teológico, a interpretação da epístola foi, du-
rante muito tempo, dominada pelos debates confessionais entre ca-
tólicos e protestantes sobre a justificação pela fé. Os últimos grandes
testemunhos dessa leitura fraternalmente conflituosa são os comen-
tários de Pierre Bonnard19e de Franz Mussner20. A atenção se voltou,
depois, para o problema da unidade da epístola: qual é a ligação teoló-
gica entre as exortações de Gálatas 5,13-6,10 e o início autobiográfico
e “dogmático” de Gálatas 1,6-5,12? Trabalha-se com a dialética entre
a antropologia e a concepção da história: como se articula a concep-
ção da cruz, como fim da Lei, com a oposição entre justificação pela
293
A s epístolas de Paulo
6. B ib l io g r a f ia
Comentários
BONNARD, Pierre. Lépitre de saint Paul aux Calates. Neuchâtel/Paris,
Delachaux et Niestlé 21972 [1. ed. 1952] (CNT 9).
BETZ, Hans Dieter. Galatians, Philadelphia, Fortress Press, 1979 (Her-
meneia).
LÜHRMANN, Dieter. Der Brief an die Galater. Zurich, Theologischer
Verlag, 1978 (ZBKNT 7); ed. ingl.: Galatians, A Continental Com-
mentary. Minneapolis, Fortress Press, 1992.
MATERA, Frank J. Galatians. Collegeville, Liturgical Press, 1992 (Sacra
Pagina 9).
MARTYN, J. Louis. Galatians. N ew York, Doubleday, 1997 (AB 33A).
VOUGA, François. A n die Galater. Tübingen, Mohr, 1998 (H N T 10).
Leitura prioritária
COTHENET, Edouard. Lépitre aux Galates. Cahiers Evangile, Paris,
Cerfi 34 (1980).
RUEGG, Ulrich, RORDORfi Bernard. Lépitre de Paul aux Galates. Bulle-
tin du CPE, Genève, 35 (1983) 7-8.
Estudos particulares
BADIOU, Alain. Saint Paul, la fondation de I’universalisme. Paris, Presses
Universitaires de France, 1997 (Les Essais du Collège international
de Philosophie).
ECKERT, Jost. Die urchristliche Verkündigung im Streitzwischen Paulus undsei-
nen Gegnern nach dem Galaterbrief. Regensburg, Pustet, 1971 (BU 6 ).
LATEGAN, Bernard. Is Paul Defending his Apostleship in Gal? N T S 34
(1988)411-430.
294
A epístola a o s G aiatas
295
CAPÍTULO
12
A epístola aos Filipenses
François Vouga
1 Peter WICK, Der Philipperbrief. Der formulae des Briefs ais Sclüssel zum
Verstandnis seines Inhalts, Stuttgart, Kohlhammer, 1994.
1 Ferdinand Christian BAUR, Paulus, der Apostei Jesu Christi. Sein Leben und
Wirken, seine Briefe und seine Lehre. Ein Beitrag zu einer kritischen Ger-
schichte des Unchristentums, Stuttgart, Becherund Müller, 1845, 458-475.
297
As epístolas de Paulo
1. A p r e s e n t a ç ã o
1. /. Estrutura
Depois do prefácio epistolar (1,12 )־e da oração de ação de gra-
ças, a epístola se compõe de três partes. A primeira (1,12-2,18) e a
terceira (4,10-20) exprimem a alegria que significa, para o apósto-
lo, a participação dos filipenses em sua obra apostólica, enquanto
a segunda parte (3,1-4,1) é um convite aos filipenses para imitar e
participar de sua alegria. As duas primeiras partes são construídas
de maneira paralela: um resumo da compreensão do apóstolo de seu
apostolado (1,12-26 / / 3,2-15) introduz um apelo a viver, como o
apóstolo, sob o senhorio de Jesus Cristo (1,27-2,5 / / 3,17-20; cf
TOÀLTeúeaOt, 1,27 // πολιτ6υμα, 3,20); dois hinos cristológicos afir-
mam que tudo foi submetido a Cristo e que tudo vai ser a ele sub-
metido (2,6-11 // 3,21). Cada uma das partes termina com um apelo
aos filipenses para que se alegrem (2,12-18 // 4,1).
1.2. Conteúdo
A mensagem essencial da primeira parte (1,12-2,18) é introduzí-
da pela oração de ação de graças, cuja função é interpretar teolo-
gicamente a participação dos filipenses no ministério apostólico: a
obra que Deus começou, ele a cumprirá até o dia de Cristo (1,3-11).
O corpo da carta, que começa em 1,12 (“Quero que saibais”), conti-
nua com as notícias que Paulo dá de seu apostolado: ele se encontra
na prisão, mas seu cativeiro encoraja a comunidade e Cristo é anun-
ciado, o que é, para ele, uma primeira fonte de alegria (l,12-19a); a
segunda razão de se alegrar é a convicção do apóstolo de que isso
resultará em sua salvação, pois, de qualquer maneira, por sua morte
ou por sua vida, Cristo será manifestado nele; na realidade, ele tem
a convicção de que permanecerá vivo, o que lhe permitirá trabalhar
para a edificação e para a alegria dos filipenses (l,19b-26). Esse rela-
to fundamenta dois pedidos: primeiro, que os filipenses permaneçam
298
A epístola aos Filipenses
299
As epístolas de Paulo
2 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia
2.1. Unidade e integridade da epístola
A leitura da epístola levanta três problemas:
a) a dupla advertência de Filipenses 3,2 e 3,18 contra os
maus missionários, e contra uma multidão de pessoas que
se conduzem como os inimigos da cruz de Cristo, contras-
ta com o tom confiante e alegre do conjunto;
b) tanto as duas fórmulas de bênção de Filipenses 4,7 e 4,9
como o apelo à alegria de 4,4-6 e as recomendações de
300
A epístola aos Filipenses
301
As epístolas de Paulo
302
A epístola aos Filipenses
303
As epístolas de Paulo
(8>ele se rebaixou,
tornando-se obediente até a morte,
(a morte da cruz)
(9) Foi por isso que Deus o exaltou soberanamente
e lhe conferiu o Nome que está acima de todo nome
(W>a fim de que ao nome de Jesus todo joelho se dobre
nos céus, na terra e debaixo da terra,
<n>e toda língua confesse
que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória do Pai.
304
A epístola aos Filipenses
3 . M e io e c ir c u n s t â n c ia s h is t ó r ic a s d e p r o d u ç ã o
3. L A ocasião da carta
Agradecimentos, notícias pessoais e recomendações
do apóstolo
Do ponto de vista formal, Filipenses apresenta-se como uma car-
ta convencional que aborda diversos assuntos concernentes, de per-
to ou de longe, a um ou outro dos parceiros.
Os temas que se referem à pessoa e às preocupações do apóstolo
são:
• agradecimento pela participação dos filipenses na obra apos-
tólica de Paulo e, particularmente, por seu apoio financeiro
(1,2-H; 4,10-20);
• o anúncio do envio de Timóteo (2,19-24);
• o anúncio do retorno de Epafrodito (2,25-30);
• as notícias pessoais da prisão de Paulo (1,12-26).
A edificação da comunidade
O tema constante da epístola concernente aos destinatários é
a continuidade da obra de Deus na comunidade até o dia de Cris-
to (1,6). Esta se efetua na lembrança da obra realizada por Deus
em seu favor (1,2-11), nas recomendações que faz o apóstolo de se
305
As epístolas de Paulo
3.2. Os destinatários
Em 358/357 a.C., Filipe da Macedonia se apossa da região dos
Crenidos, habitada originalmente pelos trácios, para aí fundar uma
cidade grega sob o nome de Filipos. Após a derrota de seu último
rei, em 168 a.C., a Macedonia se torna, em 146 a.C., província ro-
mana. Em 42 a.C., Antônio, que acabara de vencer os dois assassi-
nos de César, Cássio e Brutus, fez de Filipe uma colônia para seus
veteranos. Augusto, depois da batalha de Actium (31 a.C.), aumen-
tou a população com novos soldados. Desde 27 a.C. a cidade leva
o nome de Colonia Julia Augusta Philippensis. A maior parte das
inscrições aí descobertas é em latim: embora trácios e gregos ain-
da nela habitem, trata-se de uma cidade essencialmente romana,
regida pelo ius italicum. Sua importância não decorre de seu papel
administrativo (Filipos não era nem capital de província, nem cidade
principal), mas de sua situação geográfica na via Egnatia, que liga a
Ásia Menor a Roma9.
306
A epístola a o s Filipenses
307
As epístolas de Paulo
308
A epístola a o s Filipenses
309
As epístolas de Paulo
310
A epístola a o s Filipenses
4. A INTENÇÃO TEOLÓGICA
4.1. O apóstolo e sua comunidade
Desde a ação de graças, a argumentação da epístola estabelece
entre o apóstolo e sua comunidade uma relação sistematicamente
mediatizada pela obra de Deus. Se os filipenses são fiéis, se parti-
cipam ativamente da obra apostólica, Paulo se alegra e dá graças a
Deus, que continua, neles, o que ele começou. Do mesmo modo,
o apóstolo não agradece os filipenses por seu apoio financeiro (F1
4,10-20), mas se alegra (4,10) pelo fruto que cresce a crédito deles
(4,17); é, com efeito, de Jesus Cristo que vem o fruto de justiça
(1,11) e é Deus que é o destinatário real da generosidade deles e que
os cumula de bens (4,18-19). O objetivo tanto da primeira (1,3-2,18)
como da terceira parte da carta (4,10-23) é incluir o apóstolo e sua
comunidade na história de uma relação triangular da qual Deus é, ao
mesmo tempo, o autor e a origem, e da qual Jesus é o fim.
O que vale para os filipenses vale, de fato, também para o após-
tolo. Paulo convida seus destinatários a imitá-lo (F1 4,17). Ora, a
argumentação põe imediatamente em evidência que o apóstolo
não se apresenta nem como modelo, nem como ideal de perfeição.
Com efeito, aquilo em que o apóstolo é exemplar e no que deve ser
imitado pelos filipenses é a obra que Cristo realizou nele (3,7-11).
Portanto, é entender Paulo de modo totalmente errado pensar que
ele se apresenta como o ser perfeito, por sua fé e por seu compor-
tamento. Se a existência do crente e do apóstolo consiste em ser
achado em Cristo (3,9a), com uma justiça que só pode vir de Deus
e da confiança posta nele (3,9b), então o conhecimento do poder
da ressurreição, a comunhão nos sofrimentos de Cristo e em sua
311
As epístolas de Paulo
312
A epístola a o s Filipenses
5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
Do ponto de vista histórico, a discussão — viva até o início do
século XX'8 — sobre o lugar da epístola na vida e na evolução teo-
lógica do apóstolo foi aberta de novo. Em conseqüência, o aparente
consenso, instalado desde 1950, foi abalado. A epístola é contem-
porânea da que Paulo escreveu de Efeso, ao mesmo tempo, aos co-
ríntios e, talvez, aos gaiatas? Ou ela é um testemunho dos últimos
desenvolvimentos da teologia paulina, por ocasião de sua estada
em Roma?
Hino de Filipenses 2,6-11. Desde os estudos da história das formas,
a pesquisa se concentrara sobre as origens literárias e religiosas do
hino. Hoje, a atenção tende a se deter na homogeneidade de Filipen-
ses 2,1-18, nos laços que ligam organicamente o hino à parênese (F1
2,1-4 e 2,12-18) e na função desse episódio narrativo no conjunto da
argumentação paulina. Daí a questão levantada por Ralph Brucker1819:
Paulo cita realmente um hino? Poder-se-ia de preferência pensar que
ele mesmo compôs uma meditação cristológica que serve de estru-
tura para as exortações de Filipenses 1,12-2,30.
6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
BONNARD, Pierre, llépitre de saint Paul aux Philippiens (CNT 10), Neu-
châtel, Delachaux et Niestlé, 1950.
COLLANGE, Jean-François. llépitre de saint Paul aux Philippiens (CNT
10a), Neuchâtel, Delachaux et Niestlé, 1973.
313
As epístolas de Paulo
Leitura prioritária
BECKER, Jurgen. Paul, «Lapôtre des nations», Paris/Montreal, Cerf/Me-
diaspaul, 1995, p. 355-384.
LEGASSE, Simon. LépTtre aux Philippiens. LépTtre à Philémon, Cahiers
Evangile 33, Paris, Cerf, 1980, p. 5-50.
Estudos particulares
BLOOMQU1ST, L. Gregory. The Function o f Suffering in Philippians
(JSNTSS 78), Sheffield, JSOT Press, 1993.
CUVILLIER, Élian. Lintégrité de 1’építre aux Philippiens, em: J. SCHLOS-
SER, ed., Paul de Tarse (LeDiv 165), Paris, Cerf, 1996, p. 65-77.
SCHLOSSER, Jacques. La figure de Dieu selon 1’Építre aux Philippiens,
N T S 41, 1995, p. 378-399.
WICK, Peter. Der Philipperbrief Der formale Aufbau des Briefs ais Schlüssel
zum Verstándnis seines Inhalts (BWANT 135), Stuttgart, Kohlham-
mer, 1994.
314
CAPÍTULO
13
À prim eira epístola aos
T essalonicenses
François Vouga
1 C f cap. 7, seç. 3.
2 Abraham J. MALHERBE, Paul and the Thessalonians. The Philosophic
Tradition of Pastoral Care, Philadelphia, Fortress Press, 1987.
3I5
A s epístolas de Paulo
1. A p r e s e n t a ç ã o
O início de 1 Tessalonicenses se dá por uma ação de graças par-
ticularmente desenvolvida (1,2-10). Em torno da tríade fé, amor e
esperança, ela anuncia o conjunto dos temas da epístola: os des-
tinatários foram escolhidos por Deus, de modo que o Evangelho
mostrou seu poder neles; ao imitar os apóstolos, os tessalonicenses
tornaram-se, por sua vez, modelo para todos, pois renunciaram aos
ídolos para adorar o Deus vivo cujo Filho nos livra da cólera vin-
doura. A carta continua com uma apresentação da atividade dos
apóstolos, que tem uma função mais parenética do que apologética:
oferece um modelo para a compreensão que a comunidade tem dela
mesma e para seu comportamento missionário (2,1-12). Em l Tes-
salonicenses 2,13-16 há uma segunda ação de graças pela fidelidade
dos tessalonicenses na perseguição. O pesar do apóstolo por não ter
podido ir em pessoa a Tessalônica (2,17-20) prepara o relato do en-
vio de Timóteo em seu nome (3,1-5) e da notícia reconfortante que
este trouxe de volta da Macedonia (3,6-10). Essa primeira parte da
epístola termina com uma longa bênção final em forma de interces-
são (3,11-13).
O corpo da epístola é enquadrado por dois pedidos dos apóstolos.
O primeiro pedido (a expressão de lTs 4,1, “nós vos pedimos e vos
exortamos” combina dois termos técnicos de cartas de pedido) é que
os tessalonicenses vivam na santidade (4,1-3a). O que os apóstolos
entendem por isso concretiza-se em uma série de exortações morais
convencionais (4,3b-8). Quanto ao segundo pedido (“pedimo-vos”,
5,12), é um apelo à gratidão e à edificação mútua na comunidade
(5,12-22). Entre esses dois pedidos, os apóstolos respondem a uma
série de questões “sobre o amor fraterno” (4,9-12), “a respeito dos
mortos” (4,13-18) e “quanto aos tempos e momentos” (5,1). Essas
3 16
A prim eira epístola a o s T essalonicenses
Parênese (4,1-5,22)
4,1-12 Recomendações morais: santidade e concórdia
4,13-18 A esperança: a ressurreição dos mortos e o arre-
batamento dos vivos e dos mortos
31 7
As epístolas de Paulo
2 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia
2.1. Unidade e integridade da epístola
A epístola levanta três problemas para a crítica literária.
O primeiro concerne a 1Tessalonicenses 2,14-16: a dificuldade de
harmonizar as afirmações antijudaicas de 1 Tessalonicenses 2,15-16
com as considerações de Romanos 9,1-11,36 sobre Israel; o acúmulo
de expressões não-paulinas e o emprego surpreendente de temas
antijudaicos conhecidos, mas dos quais Paulo jamais se serve, são
outros tantos indícios em favor da hipótese de uma interpolação de
2,14-16 no texto da epístola.
O segundo problema concerne à arquitetura do conjunto da car-
ta: em sua forma canônica, o corpus epistolar constituído por 1Tes-
salonicenses 4,1-5,11 parece precedido de uma ação de graças de
uma extensão desproporcionada (1,2-3,13).
O terceiro concerne às evidentes duplicatas de dois inícios de
carta, em 1,2-10 e 2,13-16, e de dois fins de carta, em 3,11-13 e
5,23-28.
318
A prim eira epístola a o s T essalonicenses
4 Odil Hannes STECK, Israel und das gewaltsame Geschick der Propheten.
Untersuchungen zur Überlieferung des deuteronomistíschen Geschichts-
bildes im Alten Testament, Spátjudentum un Christentum, Neukirchen-
Vluyn, Neukirchener Verlag, 1967.
s K.-G. ECKART, Der zweite echte Brief na die Thessalonicher, ZThK 58
(1961) 30-40.
6 Hans-Martin SCHENKE, Karl Martin FISCHER, Eileitung in die Schriften
des Neuen Testaments I: Die Briefe des Paulus und Schriften des Paulinis-
mus, Berlin/Gütersloh, Mohn, 1978.
319
As epístolas de Paulo
320
A p rim eira epístola a o s "Tessalonicenses
1 lessalonicenses 4,16-17
Os autores da carta anunciam, em 1Tessalonicenses 4,15a, uma
palavra do Senhor. A questão levantada pelo texto que se segue é
saber onde se encontra essa citação e onde se acha seu comentário.
Teoricamente, 4,15b podería ser a palavra do Senhor comentada e
desenvolvida em 4,16-17. O inverso é, entretanto, mais provável:
4 ,15b comenta e resume o sentido de uma palavra adaptada ao con-
texto e citada em 4,1617 ־:
“Porque o Senhor em pessoa, ao sinal dado, à voz do arcanjo e
ao toque da trombeta de Deus, descerá do céu: então os mortos
ressuscitarão primeiro em Cristo9; em seguida nós, os vivos que
tivermos ficado, seremos arrebatados com eles sobre as nuvens,
8 1
Argumentação detalhada: Earl J. RICHARD, First and Second Thessalo-
nians, Collegeville, Liturgical Press, 1995.
9 Por razões dogmáticas, certas traduções ligam o complemento “em Cris-
to” ao substantivo “os mortos”, o que é uma incorreção gramatical, em
lugar de construí-lo muito simplesmente com o verbo “ressuscitarão”.
321
A s epístolas de Paulo
3 . M e io e c ir c u n s t â n c ia s h is t ó r ic a s d e p r o d u ç ã o
3.1. A ocasião da carta
A razão pela qual a carta foi escrita aparece em suas duas partes
complementares. De um lado, ela reside na insegurança criada pela
ausência prolongada do apóstolo (lTs 2,17-20), em sua preocupação
paternal com a nova comunidade (2,1-12) e na vontade de confirmar
seus destinatários em sua fidelidade ao Evangelho (3,1-10). Por ou-
tro lado, a carta quer reforçar suas convicções. Os apelos à santida-
de (4,1-8) e à edificação mútua na vida comunitária (5,12-22), que
visam a confirmar a Igreja em sua identidade própria, enquadram a
resposta a três questões que podem ter sido, talvez, propostas pelos
tessalonicenses (4,9-12; 4,13-18; 5,1-11). Duas delas dizem direta-
mente respeito à parusia:
a) 1Tessalonicenses 4,13: qual vai ser a sorte dos mortos? A
resposta à questão permite compreender seu sentido: os
autores entendem que serão surpreendidos, ainda vivos,
pelo som da trombeta e transportados, nas nuvens, ao en-
contro do Senhor (4,17). A incerteza a que dá lugar essa
convicção concerne ao futuro reservado aos irmãos e às
irmãs da comunidade, mas também aos parentes, mortos
antes do arrebatamento final: morreram eles cedo demais
para ser salvos com os vivos?
b) 1 Tessalonicenses 5,1 coloca a questão complementar: se
irmãos e irmãs, ou parentes, dentro ou fora da comunida-
de, morrerem antes que intervenha a parusia, esta acon-
tecerá efetivamente?
As duas questões põem em dúvida a credibilidade da mensagem
dos apóstolos, de modo que o conjunto da carta podería ter sido es
322
A prim eira epístola a o s T essalonicenses
3.2. Os destinatários
Tèssalônica
A cidade foi fundada em 315 a.C. por um general de Alexandre;
em 42, obteve de Marco Antônio o estatuto de cidade livre. Ela era
a capital da província da Macedonia. Porto importante, situado na
via Egnatia, Tèssalônica, chamada hoje Salônica, era uma grande ci-
dade cosmopolita habitada por uma diversidade de povos.
323
A s epístolas de Paulo
4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
Em seu conjunto, a carta parece ser uma repetição dos temas da
pregação apostólica:
1) A confissão do Deus vivo (1,9-10).
2) A ética. Suas linhas diretrizes se exprimem, por um lado,
na interpretação metafórica e moral das categorias de
santidade e pureza e, por outro lado, no apelo à concórdia
(philadelphie) como a uma forma helenística do manda-
mento do amor (4,1-12).
3) A certeza da salvação diante da morte (4,13-18).
4) A determinação escatológica do presente (5,1-11).
324
A prim eira epístola aos T essalonicenses
325
As epístolas de Paulo
5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
Do ponto de vista literário, as relações entre a primeira e a segun-
da epístola aos "Tessalonicenses, que pareciam resolvidas na medida
em que se considerava 1 Tessalonicenses a mais antiga das cartas
protopaulinas e 2 Tessalonicenses um documento deuteropaulino
destinado a corrigi-la ou substituí-la, são objeto de novas discussões:
326
A prim eira epístola a o s T essalonicenses
6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
HOLTZ, Traugott. Der erste Brief die Thessalonicher. Zurich/Neukirchen,
Benziger/Neukirchener Verlag, 21990 (EKK 13).
LEGASSE, Simon. Les építresde PaulauxThessaloniciens. Paris, Cerf, 1999
(LeDiv. Commentaires 7).
MASSON, Charles. Les deux épitres de saint Paul aux Thessaloniciens. Neu-
châtel/Paris, Delachaux et Niestlé, 1957 (CNT 11a).
RICHARD, Earl J. First and Second Thessalonians, Collegeville, Liturgical
Press, 1995 (Sacra Pagina 11).
R1GAUX, Béda. Saint Paul, Les épires aux Thessaloniciens. Paris/Gem-
bloux, Gabalda/Duculot, 1956 (Etudes Bibliques).
WANAMAKER, Charles A. The Epistles to the Thessalonians. Grand Ra-
pids/Exeter, Eerdmans/Paternoster, 1990 (N1GTC).
327
As epístolas de Paulo
Leitura prioritária
BECKER, Jürgen. Paul, “Lapôtre des nations". Paris/Montréal, Cerf/Mé-
diaspaul, 1995, p. 157-168.
TR1MAILLE, Michel. La premiere lettre aux Thessaloniciens. Cahiers
Évangile, Paris, Cerf, 39 (1982).
Situação da pesquisa
RICHARD, Earl J. Contemporary Research on 1 (&- 2) Thessalonians.
BTB 20(1990) 107-115.
WE1MA, Jeffrey A. D., PORTER, Stanley E. A n Annoted Bibliography o f
I and 2 Thessalonians. Leiden, Brill, 1998.
Estudos particulares
BOSCH, Jorge Sanchez. La chronologie de la première aux Thessaloni-
ciens et les relations de Paul avec d’autres églises. N T S 37 (1991)
336-347.
COLLINS, Raymond E Studies on the First Letter to the Thessalonians. Leu-
ven, Leuven University Press/Peeters, 1984 (BEThL 66).
--------- (ed.). The Thessalonian Correspondence. Leuven, Leuven Univer-
sity Press/Peeters, 1990 (BEThL 87).
JEW ETT Robert. The Thessalonian Correspondence. Pauline Rhetoric and
Millenarian Piety. Philadelphia, Fortress Press, 1986 (Foundations
and Facets).
JO H A N SO N , Bruce C. To A ll the Brethren. A Text-linguistic and Rheto-
rical Approach to 1Thessalonians. Stockholm, Almqvist et Wiksell,
1987 (CB NTS 16).
MALHERBE, Abraham J. Paul and the Thessalonians. The Philosophic
Tradition o f Pastoral Care. Philadelphia, Fortress Press, 1987.
MARGUERAT, Daniel. Lapôtre, mère et père de la communauté (ITh
2,1-12), ETR 75(2000) 373-389.
(SCHLUETER, Carol J. Flying up the Measure. Polemical Hyperbole in
1 Thessalonians 2,14-16. Sheffield, Sheffield Academic Press, 1994
(JSNTSS 98).
328
CAPÍTULO
14
À epístola a Fllêmon
François Vouga
1. A p r e s e n t a ç ã o
Se o corpo da carta é o clássico de uma carta de recomendação, o
formulário epistolar que o envolve e o contexto de comunicação que
estabelece são os das grandes epístolas apostólicas. Os signatários
da carta são Paulo e Timóteo (Fm I, c f 2 Cor 1,1; Fl 1,1). Seria de
esperar que ela fosse dirigida a Filêmon; entretanto, o círculo de seus
destinatários compreende Apia, Arquipo e toda a Igreja que se reú-
ne em casa de Filêmon (Fm 1-2). As saudações, no início e no fim da
carta, são substituídas pelas bênçãos típicas das cartas do apóstolo
(vv. 3 e 25); todo um grupo de colaboradores se associa à sua ini-
329
As epístolas de Paulo
Estrutura e conteúdo
A carta começa por uma impressionante ação de graças, cuja
função argumentativa aparece claramente a partir do pedido de Fi-
lêmon 8-10: tanto a lembrança do amor e da fé de Filêmon, de que
o apóstolo não cessa de ouvir falar e pelos quais dá graças a Deus (v.
5), como a exortação apostólica a dar a conhecer todo o bem que
os crentes podem realizar em Jesus Cristo (v. 6) constituem a base
sobre a qual Paulo apresenta, a seguir, seus pedidos.
São três os pedidos do apóstolo. Em primeiro lugar, Filêmon é
solicitado a receber Onésimo como um irmão bem-amado. Isso sig-
nifica que a relação mestre-escravo deve ser transformada em uma
relação simétrica e fraterna (v. 16a-17). Em segundo lugar, Paulo lhe
roga que o receba como um irmão bem-amado “segundo a carne e
segundo o Senhor”. A fraternidade no Senhor determina a qualida-
de da relação fraterna; a fraternidade na carne não pode, provável-
mente, significar outra coisa que a ordem social: Filêmon libertará
seu escravo. Em terceiro lugar, Filêmon fará, sem dúvida, ainda mais
(v. 21b) e pensará em enviar de volta seu irmão Onésimo para junto
do apóstolo (v. 13-14).
330
A epístola a Filêm on
2 . M e io e c ir c u n s t â n c ia s h is t ó r ic a s d e p r o d u ç ã o
2.1. A ocasião da carta
E difícil reconstituir a seqüência dos acontecimentos que prece-
deram e ocasionaram a carta sem sobrecarregar de sentido as alu-
sões que ela contém.
Os personagens em cena
Os fatos evidentes são os seguintes: Filêmon, que recebeu de Pau-
lo o Evangelho e se converteu ao cristianismo (Fm 19), acolhe desde
então uma Igreja em sua casa (v. 2). De seu lado, o apóstolo se encon-
tra momentaneamente na prisão (w. 1, 10 e 13) e aí recebeu a visita
de Onésimo, o escravo de Filêmon (w. 11 e 15). Ora, Onésimo, por
sua vez, durante sua estada junto de Paulo, converteu-se ao Evange-
Iho (v. 10). Paulo, que desejava conservar Onésimo junto de si (v. 13),
decidiu, entretanto, nada fazer sem o consentimento de Filêmon (v.
14). Vai, então, enviar Onésimo de volta a Filêmon, munido da epís-
tola a Filêmon como carta de recomendação.
As razões pelas quais Onésimo se encontra junto de Paulo não
são claras. Tem-se frequentemente interpretado Filêmon 18 como
indício de que Onésimo teria cometido um furto em casa de Filê-
mon, ou que fugiu, ou que, combinando os dois, fugiu com o di-
nheiro. Ao propor a Filêmon que debite em sua conta as faltas ou
as dívidas de Onésimo, o apóstolo se comprometería a reparar os
prejuízos causados ao senhor pelo escravo fugido. Mas pode-se mui-
to bem pensar, ainda, em uma situação muito mais banal. Era, com
efeito, corrente e legal, no primeiro século de nossa era, que um
escravo, temendo a cólera de seu amo, buscasse proteção em casa
de um amigo deste. Nesse caso, o escravo não era considerado fugi-
tivo. Pode-se imaginar, portanto, que Onésimo muito simplesmente
331
A s epístolas de Paulo
O argum ento
A estratégia argumentativa da epístola consiste em opor, umas
às outras, três hierarquias que presidem as relações entre Filêmon,
Paulo e Onésimo.
Segundo a ordem jurídica, Onésimo não só é escravo de Filê-
mon, mas também seu devedor pelo tempo passado junto de Paulo.
Quanto a Paulo, ele é, em princípio, o igual de Filêmon, mas é co-
responsável pela ausência de Onésimo (Fm 18).
Segundo a ordem eclesiástica, Paulo gerou Onésimo na prisão
(Fm 10); mas Filêmon lhe deve, também, a fé (v. 9b), de sorte que
0 apóstolo tem autoridade sobre o senhor (v. 8) assim como sobre o
escravo, que são seus filhos (v. 9).
Segundo a ordem cristológica, enfim, Paulo e Filêmon (Fm 17 e
20) são irmãos, tanto quanto Paulo e Onésimo, bem como Filêmon
e Onésimo (v. 16).
A argumentação da epístola funciona em diversos níveis. Por um
lado, dá a compreender a Filêmon que Paulo está pronto, se necessá-
rio, a pagar-lhe o que ele e Onésimo lhe devem (Fm 18-19a). Por outro
lado, empreende uma dupla reestruturação de valores. De um lado,
Paulo sugere a Filêmon que, em razão de sua autoridade de apóstolo,
podería lhe ordenar que deixasse Onésimo a seu serviço (vv. 8 e 13-
14); assim ele opõe a hierarquia eclesiástica à ordem jurídica, e em
nome da primeira suspende a segunda. De outro lado, Paulo se apre-
senta como irmão de Filêmon e, como tal, renuncia à sua autoridade
apostólica (vv. 8-9) para lhe pedir que receba Onésimo, convertido
nesse entremeio, como irmão e não mais como escravo (vv. 16-17);
assim ele opõe à hierarquia eclesiástica uma outra hierarquia, que a
332
A epístola a Filêm on
2.2. Os destinatários
Curiosamente, os nomes de Filêmon e Onésimo constituem,
como os de Evódia e Síntique, em Filipenses 4,2, e eventualmente o
de Sízigo (se é que é um nome próprio) em Filipenses 4,3, um pro-
grama em si mesmos: Filêmon significa “amável” e Onésimo, “útil”.
De Filêmon, não se sabe nada além das informações fornecidas
pela epístola. Em compensação, tanto os nomes de Onésimo (Cl
4,9) e Arquipo (Fm 2 // Cl 4,17) como os de Epafras (Fm 23 // Cl
1,7; 4,12), Lucas e Demas (Fm 24 / / Cl 4,15) se encontram de novo
na epístola aos Colossenses. Segundo as informações dadas por Co-
lossenses 4,17, Arquipo faz, novamente, parte dos destinatários de
Colossenses, ao passo que, conforme Colossenses 4,9, Onésimo é
também de Colossos e se reuniu ao apóstolo e seus colaboradores
no lugar de seu cativeiro; estes são, em grande parte, os mesmos
que o cercavam por ocasião da redação de Filêmon.
Conforme o enredo proposto por Colossenses, Filêmon acolhe
em sua casa a Igreja ou uma comunidade da Igreja de Colossos. Ten-
do recebido bem a carta do apóstolo trazida por Onésimo, enviou
este de volta a Paulo, como lhe fora sugerido.
333
As epístolas de Paulo
3 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
3. 1. Casa cristã e escravatura
O pedido da carta, que se refere ao reconhecimento fraterno de
Onésimo por Filêmon e à libertação do escravo, é coerente com o
princípio paulino de Gálatas 3,28, segundo o qual não há mais, em
Cristo, nem judeu nem grego, nem escravo nem homem livre, nem
homem nem mulher. A comunidade que vive sob o senhorio do Cru-
cificado distingue-se do mundo que o cerca pelo fato de que, nela, as
diferenças são constatadas e nomeadas, mas cada um é reconhecido
e amado como uma pessoa, independentemente de sua condição ou
de suas qualidades. O reconhecimento e o amor mútuos não são,
entretanto, compatíveis com as relações senhor-escravo; o batismo
de Onésimo acarreta, portanto, sua libertação por Filêmon.
A argumentação que conduz à alforria de Onésimo é a idêntica à
que convida os escravos cristãos a viver a liberdade cristã em sua con-
dição de escravos (ICor 7,17-24). E necessário, com efeito, distinguir
dois problemas éticos fundamentalmente diferentes: não se trata, em
1 Coríntios 7,17-24, de relações entre batizados no interior da comu-
nidade e de uma casa cristã, como é o caso em Gálatas 3,26-29 e Fi-
lêmon; 1 Coríntios 7 trata, antes, do comportamento que os escravos
cristãos hão de adotar no mundo pagão. Confessando Jesus Cristo
como Senhor, são todos escravos de Cristo; é a pertença a Cristo que,
no interior da comunidade, estabelece, entre os membros, relações de
irmãos e irmãs, e que no exterior da comunidade permite viver, na
liberdade, as obrigações da vida cotidiana. A fé leva os cristãos a inven-
tar novos comportamentos em sua existência e no espaço de liberdade
constituído pela Igreja; ela não lhes permite transformar a sociedade.
334
A epístola a Filêm on
4 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
As novas perspectivas são de tendências opostas umas às outras;
põem em questão consensos que pareciam adquiridos.
Uma primeira tendência se interessa pela realidade material dos
acontecimentos que servem de ocasião para a epístola. Esforça-se
por precisar as condições históricas e jurídicas da argumentação de
Paulo, e as implicações sociais, simbólicas e teológicas de seu pedido
a Filêmon.
Uma segunda tendência se concentra na carta considerada em
sua dimensão puramente literária. A epístola a Filêmon é encarada,
335
As epístolas de Paulo
5 . B ib l io g r a f ia
Comentários
Jean-François COLLANGE. 11 ép?tre de saint Paul à Philemon. Genève,
Labor et Fides, 1987 (CNT 10c).
Peter LAMPE, Der Brief an Philemon. In: WALTER, Nikolaus, REIN-
MUTH, Eckart, LAMPE, Peter. Die Brief an die Philipper, Thessa-
lonicher und an Philemon. Gottingen, Vandenhoeck und Ruprecht,
1998, p. 205-232 (NTD 8/2).
LEHMANN, Richard. Epitre à Philémon. Le christianisme primitif et Γ es-
clavage. Genève, Labor et Fides, 1978 (Commentaires bibliques).
STUHLMACHER, Peter. Der Brief an Philemon. Zurich/Neukirchen,
Benziger/Neukirchener Verlag, 21981 (EKK 18).
Leitura prioritária
LEGASSE, Simon. Lépítre aux Philippiens. Lépítre à Philémon. Cahiers
Évangile, Paris, Cerf 33 (1980) 51-62.
PRE1SS, Théo. Vie en Christ et éthique sociale dans Tépítre à Philémon.
In:Aux sources de la tradition chrétienne (MélangesM. Goguel). Neu-
châtel, Delachaux et Niestlé, 1950, p. 171-179; ou La vie en Christ.
Neuchâtel, Delachaux et Niestlé, 1951, p. 65-73 (Bibliothéque théo-
logique).
Estudos particulares
BARCLAY, John M. G. Paul, Philemon and the Dilemma o f Christian Sla-
ve-Ownership. NTS 37 (1991) 161-186.
PETERSEN, Norman R. Rediscovering Paul. Philemon and the Sociology
o f Paul’s Narrative World. Philadelphia, Fortress Press, 1985.
336
As epístolas deuteropauiinas
CAPÍTULO
15
A epístola aos C olossenses
Andreas Dettwiler
339
A s epístolas deuteropaulinas
1. A p r e s e n t a ç ã o
Após o endereço e a saudação (1,1-2), o prefácio epistolar é segui-
do de quatro elementos. Primeiro, a ação de graças (1,3-8), de cará-
ter fortemente anamnésico: partindo da estrutura fundamental da
existência cristã (retomada da tríade paulina “fé-amor-esperança”),
são lembrados, à comunidade, seus inícios cristãos e sua participação
no agir universal do Evangelho transmitido por Epafras. A ação de
graças se acrescenta uma intercessão (1,9-14), ampliada em seguida
pelo texto teológico fundamental de Colossenses: o hino a Cristo
(1,15-20). O quarto elemento (1,21-23) aplica as afirmações do hino
à comunidade destinatária e assim conclui a parte introdutória.
A unidade textual seguinte (1,24-2,5) ocupa a função de articula-
ção entre a introdução e o corpo da carta: ela constitui a auto-reco-
mendação do autor. De maneira programática, descreve a função de
Paulo no processo da revelação: ser o servidor da Igreja e do Evan-
gelho. É possível, no máximo, ver o início do corpo de Colossenses
na auto-recomendação; nesse caso, ele se estendería de 1,24 a 4,1.
O corpo da carta (2,6-4,1) se abre com a indicação do tema
(2,6-8). Pode-se ver aí uma espécie de composição em quiasmo:
2,6-7 (“Prossegui pois o vosso caminho em Cristo, Jesus o Senhor,
tal como o recebestes...”) se referiría à parte ética (capítulo 3), en-
quanto 2,8 indicaria, de preferência, a parte dogmática ou polêmi-
ca (capítulo 2). Assim, com 2,8 o tom muda. A comunidade des-
tinatária é advertida contra um movimento que o autor chama de
“filosofia”, imediatamente por ele desqualificado (“Vigiai para que
ninguém vos apanhe no laço da filosofia, esse vão embuste fundado
na tradição dos homens, nos elementos do mundo, e não mais em
Cristo”). Surpreendentemente, em seguida se explica primeiro, de
novo, o fundamento da identidade cristã (2,9-15), antes de passar à
polêmica (2,16-23). Nessa parte, o autor refuta as pretensões con-
trárias, insistindo na liberdade cristã (2,20: “Já que estais mortos
com Cristo, e, assim, subtraídos aos elementos do mundo, por que
340
A epístola a o s C olossenses
a obra de Paulo
1,1-2 Endereço e saudação
1,323 ־Parte introdutória
1,3-8 ação de graças
1,9-14 intercessão
1,15-20 o hino a Cristo, a imagem de Deus e pri-
mogênito dentre os mortos
1,21-23 aplicação do hino aos destinatários e
conclusão de 1,3-23
1,24-2,5 Auto-recomendação doautor: Paulo,servidor da
Igreja e do Evangelho
341
As epístolas deuteropaulinas
2. M e io h is t ó r ic o d e p r o d u ç ã o
2 .1. A questão do autor
A questão do autor histórico de Colossenses é assunto de debate
desde a metade do século XIX. Hoje, a maioria dos exegetas pensa
que Colossenses não foi escrita pelo próprio Paulo; os argumentos
são de ordem literária e teológica.
Os argumentos literários
Colossenses contém 34 hapaxlegomena (palavras que só se en-
contram uma vez no Novo Testamento) e 28 palavras desconhecí-
das das outras epístolas cuja atribuição a Paulo não cria problemas
(Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, 1 Tessalonicenses e
Filêmon); contam-se dez termos que, no contexto do Novo Testa-
mento, aparecem somente em Colossenses e Efésios; quinze outras
palavras só se encontram, no contexto do corpus paulino, em Colos-
senses e Efésios. Convém constatar, também, que em vão se busca
um bom número de expressões típicas do vocabulário paulino3. E
342
A epístola a o s C o lossenses
Os argumentos teológicos
Observamos algumas diferenças entre Colossenses e as epístolas
cujo caráter protopaulino não é posto em dúvida. Deve-se, é claro,
tomar cuidado para não acentuar demais cada traço teológico es-
pecífico de Colossenses; as cartas paulinas apresentam uma con-
siderável flexibilidade quando se trata de anunciar o querigma em
contextos históricos diferentes. Entretanto, é interessante consta-
tar que as diferenças entre Colossenses e as cartas protopaulinas
se encontram em todos os domínios do pensamento teológico de
Colossenses e formam um conjunto coerente. Eis as diferenças mais
eloqüentes:
• A figura deuteropaulina do apóstolo Paulo. Paulo é designado
como ministro da Igreja universal (1,24-2,5). A modificação
em relação ao Paulo histórico é significativa: segundo Co-
lossenses, o conceito-chave não é mais o Evangelho, mas o
“mistério”, a saber, “Cristo no meio de vós/em vós” (1,27).
O termo mistério não resume somente o conteúdo do
Evangelho paulino (a cruz e a ressurreição de Cristo como
acontecimento decisivo da salvação); compreende também
a proclamação universal do Evangelho operada por Paulo.
Doravante, o próprio Paulo pertence ao conteúdo da pre-
gação e se torna um elemento constitutivo do “mistério”; a
343
As epístolas deuteropaulinas
344
A epístola a o s C olossenses
345
As epístolas deuteropaulinas
346
A epístola ao s C olossenses
ICor 13,13 — Cl 1,4 s.), a afirmação de Gaiatas 3,28 (ver Cl 3,11) etc. Essa
constatação é confirmada por outras ligações íntimas, tais como as afirmações
sobre o batismo (Rm 6,4 — Cl 2,12) ou as passagens parenéticas (G1 5; Rm
12-13 etc. — Cl 3,5-17).
8 Para uma rápida visão geral das posições defendidas, ver ibid., 155-163; e
John M. G. BARCLAY, Colossians and Philemon, Sheffield, Sheffield Aca-
demic Press, 1997, 39-48.
347
As epístolas deuteropaulinas
2.3. Os destinatários
Os destinatários são, em primeiro lugar, os membros da Igreja de
Colossos. “Paulo” se dirige a uma comunidade que não foi fundada
por ele, mas por Epafras (1,7; 4,12). A cidade de Colossos estava
situada na Ásia Menor, mais precisamente no vale do Lico, na Frígia,
cerca de 170 quilômetros a leste de Efeso. Outrora cidade grande e
próspera, tinha perdido importância sob o império romano; Laodi-
céia, a cidade vizinha (a cerca de quinze quilômetros de Colossos; cf
Cl 2,1; 4,13-16), havia assumido o papel preponderante na região. A
existência de comunidades judaicas nas cidades da região da Frígia
é atestada (Flávio Josefo, Antiguidades judaicas 12,147-153; Cícero,
Pro Flacco 28). Mas Colossenses se dirige prioritariamente a pagão-
cristãos (cf p. ex. 1,21.27; 2,13). Tácito conta que no ano 60/61
d.C. a cidade de Laodicéia foi destruída por um terremoto (Anais
14,27,1). A proximidade geográfica de Laodicéia e Colossos torna
possível que esta última tenha também sofrido estragos. A cidade
não é mais mencionada na literatura antiga depois disso. Entretanto,
ela continuou a existir, como provam as inscrições e moedas encon-
tradas em Colossos. O terremoto de 60/61 não permite, portanto,
tirar conclusões definitivas sobre a autenticidade da carta aos Co-
lossenses ou sobre o caráter fictício da indicação dos destinatários
348
A epístola a o s C o lossenses
3 . F o n t e s e p r in c ip a is t r a d iç õ e s
3.1. A s relações intertextuais entre Colossenses e as epístolas
protopaulinas
O autor de Colossenses conhecia, sem dúvida, as cartas paulinas.
Prova-o a repetição, por Colossenses, do formulário epistolar das
cartas paulinas (prefácio; ação de graças; parte final). Mas que cartas
o autor de Colossenses retomou? Certamente Filêmon, pois as duas
cartas manifestam ligações muito íntimas, sobretudo no início e no
fim (Cl 1,3 s. // Fm 4 s.; Cl 4,10-14 // Fm 23 s.). As ligações entre Co-
lossenses e as outras epístolas, essencialmente Filipenses e Romanos,
são muito mais pontuais e difíceis de interpretar (ver p. ex. Cl 1,9-11
// F! 1,9-11; Cl 1,24 / / F1 2,30; Cl 2,12 s. / / Rm 6,4; Cl 3,24; 4,2 //
349
As epístolas deuteropaulinas
4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
4 .1. A cristologia — o hino a Cristo (Cl 1,15-20)
Já demonstramos que Colossenses, comparada com as epístolas
de Paulo, acentua a dimensão cósmica da figura de Cristo. O tex
350
A epístola aos
4.2. A Igreja
A metáfora eclesiológica central de Colossenses é a do "corpo”
com Cristo como “cabeça” (1,18; 2,19; c f 1,24; 3,15). É evidente
que a concepção colossense da Igreja decorre diretamente da ecle-
siologia cosmológica de Colossenses (ver o hino a Cristo, 1,15-20).
Qual é a relação entre a Igreja e o mundo? Cristo é Senhor de todo o
cosmo (1,15-20; 2,10), mas é só a Igreja que, propriamente falando,
constitui seu corpo. Pois a Igreja é esse espaço, no mundo, que re-
conhece a primazia de Cristo sobre todos os elementos do universo.
Entretanto, Igreja e mundo não são esferas completamente isoladas
uma da outra: o Evangelho deve ser proclamado “a toda criatura
debaixo do céu” (1,23); ele deve crescer e produzir fruto, como indi-
cam as metáforas sobre o crescimento (1,6.10; 2,19).
As epístolas deuteropaulinas
4.4. A ética
Segundo Colossenses, a ética tem um valor eminentemente teo-
lógico (3,5-17). Ela é o espaço no qual a realidade da ressurreição,
que é principalmente uma realidade escondida (cf 3,1-3), torna-se,
de modo fragmentário, uma realidade que se exprime na vida coti-
diana da comunidade. Nesse sentido, o autor de Colossenses revela-
se um fiel discípulo de Paulo, fato que se verifica pelo enraizamento
da ética na cristologia e na primazia do amor.
Para descrever os deveres mútuos dos membros da casa cristã,
o autor de Colossenses utiliza uma tradição que aparece aqui pela
primeira vez no corpus paulino: os códigos domésticos (3,18-4,1; ver
em seguida Ef 5,21-6,9). Os códigos são marcados por uma tradição
helenística da época, a gestão da casa10. Essa tradição defende um
modo de vida social que, considerada em seu contexto, se carac
352
A epístola a o s C olossenses
5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
A retórica antiga. O interesse pela retórica também influenciou
a exegese de Colossenses. Contribuições recentes têm utilizado as
categorias da retórica antiga para determinar as funções argumen-
tativas de uma parte importante da carta (J.-N. Aletti; M. Wol-
ter). Entretanto, os resultados dessas pesquisas não convergem. A
aplicação das categorias retóricas se mostra frutuosa para esclare-
cer, antes de tudo, a parte polêmica da carta (2,6-23), mas parece
prudente não querer submeter, de maneira rígida, o conjunto desta
ao sistema retórico greco-romano. Uma outra questão intimamen-
te ligada à investigação retórica é saber que peso argumentative se
deve atribuir à parte polêmica de Colossenses 2 e, portanto, à ques-
tão da “filosofia” colossense: a compreensão dessa parte determina
a do conjunto da carta ou é apenas uma parte, embora importante,
entre outras?
A “filosofia " de Colossos. A reconstrução da “filosofia” de Colos-
sos não cessa de despertar um vivo interesse. Mas até o presente
nenhuma proposta parece se impor. Em vez de, apressadamente
demais, pôr tal passagem de Colossenses em relação com tal siste-
ma religioso da época, conviría analisar cuidadosamente a estratégia
argumentativa da carta; paralelamente, convém indagar, de maneira
metodológica, sobre a possibilidade de circundar com mais precisão
o fenômeno religioso da “filosofia” colossense.
A escola paulina. Embora a questão do autor goze de um consenso
relativamente grande em favor do caráter deuteropaulino de Colos-
senses, persiste a tarefa de determinar a relação entre Colossenses
e as sete cartas protopaulinas, sobretudo no nível argumentative e
teológico (H. Merklein; R Muller). Colossenses constitui o primeiro
exemplo da recepção da teologia paulina; ela se situa provavelmente
353
A s epístolas deuteropaulinas
6. B ib l io g r a f ia
Comentários
ALETT1, Jean-Noel. Saint Paul, Epitre aux Colossiens: Introduction, traduc-
tion et commentaire. Paris, Gabalda, 1993 (EtB, nouvelle série 20).
DUNN, James D. G. The Epistles to the Colossians and to Philemon. Grand
Rapids/Carlisle, Eerdmans/Paternoster, 1996 (N1GTC).
LOHSE, Eduard. Die Briefe an die Kolosser und an Philemon. Gottingen,
Vandenhoeck und Ruprecht, 21977 [1. ed. 1968] (KEK 9/2); ed. ingl.:
Colossians and Philemon. Philadelphia, Fortress Press, 1971 (Herme-
neia).
SCHWE1ZER, Eduard Der Brief an die Kolosser. Zürich/Neukirchen-
Vluyn, Benziger/Neukirchener Verlag, 21980 [I. ed. 1976] (EKK 12);
ed. ingl.: The Letter to the Colossians: A Commentary. Minneapolis,
Augsburg, 1982.
WOLTER, Michael. Der Brief an die Kolosser. Der Brief an Philemon. Gü-
tersloh/Wurzburg, Güttersloher/Echter, 1993 (OTBK 12).
Leitura prioritária
BARCLAY, John M. G. Colossians and Philemon. Sheffield, Sheffield Aca-
demic Press, 1997, p. 18-96 (NewTestam ent Guides).
História da pesquisa
SCHENK, Wolfgang. Der Kolosserbrief in der neueren Forschung (1945־
1985). A N R W Berlin/New York, de Gruyter, 11.25.4 (1987) 3.327-
3.364.
Bibliografia exaustiva
Ver os comentários recentes.
354
A epístola a o s C o lossenses
Estudos particulares
ARNOLD, Clinton B. The Colossian Syncretism. The Interface between
Christianity and Folk Belief at Colossae. Tubingen, Mohr, 1995
(W U N T 2.77).
BUJARD, Walter. Stilanalytische Untersuchungen zum Kolosserbrief als
Beitrag zur Methodik von Sprachvergleichen. Gottingen, Vanden-
hoeckund Ruprecht, 1973 (StUNT 11).
DEMARIS, Richard E. The Colossian Controversy: Wisdom in Dispute at
Colossae. Sheffield, Sheffield Academic Press, 1994 (JSNTS 96).
MERKLEIN, Helmut. Paulinische Theologie in der Rezeption des Kolos-
ser- und Epheserbriefes. In: KERTELGE, Karl (ed.). Paulus in den
neutestamentlichen Spátschriften. Zur Paulusrezeption im Neuen
Testament. Freiburg, Herder, 1981, p. 25-69 (QD 89).
MULLER, Peter. Anfdnge derPaulusschule: Dargestellt am zweitenThessalo-
nicherbrief und am Kolosserbrief Zürich, TVZ, 1988 (AThANT 74).
WILSON, Walter T The Hope o f Glory: Education and Exhortation in the
Epistle to the Colossians. Leiden, Brill, 1997 (N TS 88 ).
355
CAPÍTULO
16
A epístola aos Efésios
Andreas Dettwiler
1. A p r e s e n t a ç ã o
A introdução, que abre o primeiro capítulo, compreende três ele-
mentos principais. A carta se abre com o endereço e a saudação, que
357
As epístolas deuteropaulinas
358
A epístola a o s Efésios
359
As epístolas deuteropaulinas
360
A epístola a o s Efésios
2 . M e io h is t ó r ic o d e p r o d u ç ã o
2 .1. A questão do autor
A questão do autor de Efésios se coloca desde o fim do século
XVIII. Deve-se notar que Erasmo de Rotterdam (1469-1536) já ti-
nha observado a originalidade estilística desta epístola em relação
às outras cartas paulinas. Hoje, seu caráter deuteropaulino é quase
unanimemente aceito1, independentemente da identidade confes-
sional dos pesquisadores. Os argumentos em favor do caráter deu-
teropaulino de Efésios são de dois tipos diferentes.
Os argumentos literários
Trata-se, de um lado, de observações sobre o vocabulário e o
estilo; de outro, de considerações sobre a relação específica entre
Colossenses e Efésios.
• Vocabulário. Efésios contém 35 hapaxlegomena (palavras
que se encontram uma vez só no NT), 41 termos que não
se encontram no corpus paulino e 25 outros atestados uni-
camente por Colossenses e Efésios. Um bom número de
expressões que não se encontram nas cartas protopaulinas
têm papel preponderante na teologia da carta (Ef 1,4: “a
fundação do mundo”; 1,9: “o mistério da sua vontade” etc.).
Essas observações lexicográficas não são, todavia, decisivas
se se lembra que Filipenses, 1 Coríntios e Romanos pos-
suem, respectivamente, quarenta, 84 e 115 hapaxlegomena.
• Estilo. Muito mais reveladoras são as observações sobre
o estilo. Efésios prefere frases muito longas (ler, p. ex., Ef
1,3-14; 1,15-23; 2,1-7!). A linguagem apresenta inúmeras
redundâncias, um acúmulo de sinônimos, de verbos com
múltiplos complementos, de genitivos sucessivos etc. Esse
estilo “litúrgico” é ainda mais desenvolvido do que em Co-
361
A s epístolas deuteropaullnas
Os argumentos teológicos
A teologia da epístola revela, por um lado, diferenças significa-
tivas em relação às cartas protopaulinas e, por outro, semelhanças
com a de Colossenses.
362
A epístola a o s Efésios
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As epístolas deuteropaulinas
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A epístola a o s Efésios
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As epístolas deuteropaulinas
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As epístolas deuteropaulinas
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A epístola a o s Efésios
369
As epístolas deuteropaulinas
5 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
5 . 1. A cristologia cósmica
Efésios é marcada por uma visão espacial do mando. Deus, o criador
de toda realidade visível e invisível, e Jesus Cristo reinam sobre todas
as coisas desde a esfera celeste. Os éons, os anjos e os poderes demo-
níacos dominam uma esfera intermediária, ao passo que o mundo dos
seres humanos e dos mortos constitui a região inferior. No contexto
dessa concepção do cosmo, Efésios desenvolve uma cristologia do se-
nhorio. Ressuscitado, Cristo está sentado à direita de Deus (1,20; cf
4,8.10); Deus "pôs tudo sob seus pés” (1,22) e encheu o cosmo com
sua plenitude de vida (1,23). Entretanto, essa cristologia de senhorio
é um tanto contrabalançada ou, antes, aprofundada pela referência à
cruz. Conforme 2,13.16, a cruz de Cristo é compreendida como um
ato de reconciliação de judeus e pagãos com Deus em um só corpo, a
Igreja. Note-se que a concepção cristológica de Efésios é claramente
influenciada por Colossenses (ver, p. ex., Cl 1,15-20 / / Ef 1,20-23).
5.2. A Igreja
O tema teológico central de Efésios é a Igreja. Quando o autor
fala da Igreja, trata-se sempre da Igreja universal e não da Igreja lo
370
A epístola a o s Efésios
5 Ver Ulrich LUZ, Der Brief an die Epheser, in ID., Jurgen BECKER, Die
Briefe an die Calater, Epheser und Kolosser, Gottingen, Vandenhoeck und
Ruprecht, 1998, 137. Síntese equilibrada da problemática em Ernest BEST
Ephesians, Edinburgh, Clark, 1998, 267-269.
371
As epístolas deuteropaulinas
5.3. A escatologia
A concepção escatológica de Efésios está intimamente ligada à
visão de mundo do autor e à sua cristologia eclesial. O escrito põe
toda a ênfase no presente: “Cristo nos ressuscitou e nos fez sentar
nos céus” (2,5-6; cf Cl 2,12-13; a diferença é clara em relação a Rm
6,5.8). Não há mais reserva escatológica no sentido paulino (tensão
dialética temporal entre o “já” e o “ainda não”). O futuro não tra-
rá nada de novo, mas apenas revelará o que já é realidade. Efésios
compartilha, portanto, o conceito escatológico da epístola aos Co-
lossenses. O que resta a fazer no presente é que a Igreja histórica
venha a ser o que ela já é, teologicamente, em Cristo. As expressões
“cumprir”, “crescer”, “construir” (cf 4,12 s. etc.) sublinham esse as-
pecto dinâmico.
5.4. A ética
A longa parte parenética da epístola se caracteriza pela ênfase
na idéia da unidade da Igreja e pelo necessário distanciamento em
relação ao mundo ambiente pagão. O comportamento ético, conse-
qüência da nova identidade religiosa dos cristãos, é considerado uma
batalha contra os poderes sobrenaturais “deste mundo de trevas”
(6,10-17); a impressão de uma imagem triunfalista ou exaltada da
Igreja é, assim, atenuada.
O autor retomou e recompôs integralmente os códigos da vida
doméstica (Ef 5,21-6,9) de Colossenses 3,18-4,l6. A nova ênfase
do texto de Efésios reside na importância e na interpretação nitida-
mente teológica do casamento (Ef 5,22-33). Por que tal insistência
6 A · ·
Sobre esse gênero literário, que aparece pela primeira vez na tradição deu-
teropaulina, ver acima p. 354.
372
A epístola a o s Efésios
6 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
Contexto histórico. Continua sempre a tentativa de elucidar e
definir a situação histórica na qual Efésios se exprimiu. A pesquisa
atual tende a não mais ver na relação “judeus/pagãos” ou “judeu-
cristãos/pagão-cristãos” o elemento essencial para compreender o
conjunto da carta. Entretanto, a passagem de Efésios 2,11 s. conti-
nua a despertar interesse; E. Faust8, por exemplo, tentou esclarecer
os problemas sociológicos e teológicos de Efésios 2 à luz da ideologia
romana do culto imperial da época.
Um processo de recepção. A pesquisa recente focalizou a aten-
ção em Efésios como testemunho de um processo de recepção (H.
Merklein, M. Gese). Por um lado, visto que a carta retoma e reela-
bora Colossenses e é, ela mesma, uma primeira recepção da teolo-
gia paulina, Efésios deve ser considerada uma recepção em segundo
grau, isto é, uma recepção da recepção de Paulo. Por outro lado,
independentemente de Colossenses, Efésios se serviu dos topoi das
cartas protopaulinas (Ef 2,8-10: a justificação pela fé; 2,12: o status
373
As epístolas deuteropaulinas
7 . B ib l io g r a f ia
Comentários
BEST Ernest. Ephesians. Edinburgh, Clark, 1998 (ICC).
BOUTTIER, Michel. L Epitre de saint Paul aux Ephésiens. Genève, Labor
et Fides, 1991 (CNT 9b).
LUZ, Ulrich. Der Brief an die Epheser. In: ID., BECKER, Jürgen. Die Briefe
an die Calater, Epheser und Kolosser. Gottingen, Vandenhoeck und
Ruprecht, 1998, p. 105-180 (NTD 8/1).
MUSSNER, Franz. Der Brief an die Epheser. Gütersloh/Würzburg, Güter-
sloher/Echter, 1982 (OTBK 10).
SCHL1ER, Heinrich. Der Brief an die Epheser. Düsseldorf Patmos, 1971
[L ed. 1957],
SCHNACKENBURG, Rudolf Der Brief an die Ephese. Zürich, Benziger/
Neukirchener, 1982 (EKK 10); ed. ingl.: The Epistle to the Ephesians.
Edinburgh, Clark, 1991.
Leitura prioritária
FURN1SCH, Victor Paul. Ephesians. ABD 2 (1992) 535-542.
MUSSNER, Franz. Epheserbrief TRE 9 (!982) 743-753.
374
A epístola aos Efésios
Estudos particulares
FISCHER, Karl Martin. Tendenz undAbsicht des Epheserbriefes. Gottingen,
Vandenhoeck und Ruprecht, 1973 (FRLANT 111).
GESE, Michael. Das Vermãchtnis des Aposteis. Die Rezeption der pauli-
nischen Theologie im Epheserbrief Tubingen, Mohr, 1997 (W UN T
2.99).
LINCOLN, Andrew T The Theology o f Ephesians. In: ID., WEDDER-
BURN, Alexander J. M. The Theology o f the Later Pauline Letters.
Cambridge, Cambridge University Press, 1993, p. 73-166 (NewTes-
tament Theology).
MERKLE1N, Helmut. Paulinische Theologie in der Rezeption des Kolos-
ser- und Epheserbriefes. In: KERTELGE, Karl (ed.). Paulus in den
neutestamentlichen Spàtschriften. Zur Paulusrezeption im Neuen
"Testament. Freiburg, Herder, 1981, p. 25-69 (QD 89).
REYN1ER, Chantal. Evangile et Mystère. Les enjeux théologiques de Ι’έρΐ-
treaux Éphésiens. Paris, Cerf 1992 (LeDiv !49).
375
CAPÍTULO
17
A segunda epístola aos
T essalonicenses
Andreas Dettwiler
1. A p r e s e n t a ç ã o
/. 1. Conteúdo e gênero literário
No nível do conteúdo propriamente dito, é a questão da vinda
(parusia) de Cristo no fim dos tempos que domina o escrito. Em con-
cordância com outros textos neotestamentários, a passagem de 2
Tessalonicenses 2,1-12, que utiliza quase inteiramente conceitos e
imagens do movimento apocalíptico da época, exerceu uma fortíssi-
ma influência na elaboração de uma escatologia cristã. Pense-se, por
exemplo, no conceito de “o Homem da impiedade” (logo identifica-
do com a figura do Anticristo), ou no misterioso “poder retardador”.
Vista nessa perspectiva, mas somente nessa perspectiva, 2 Tessalo-
As epístolas deuteropaulinas
1.2. Estrutura
O plano e o conteúdo de 2 Tessalonicenses são fáceis de perce-
ber. Após o endereço (1,1-2), que menciona, como autor, Paulo com
seus colaboradores Silvano e Timóteo, vem uma ação de graças de
pronunciado teor escatológico (1,3-12; c f w . 5-10: dupla retribuição
por ocasião do julgamento escatológico de Deus).
O corpo da carta cobre o essencial dos capítulos 2 e 3 (2,1-3,13).
Está dividido em três partes. A primeira parte (2,1-12) constitui o
centro temático e permite descobrir as circunstâncias históricas que
levaram à redação da carta. A abertura dessa parte (2, ls.) menciona,
primeiramente, o tema central a ser tratado — a vinda (παρουσία)
de Cristo e “nossa reunião junto dele” — , para em seguida advertir a
comunidade destinatária do efeito desestabilizador de informações
de origem duvidosa. A posição adversa se caracteriza por uma esca-
tologia já presente (2,2: “o dia do Senhor chegou”). Essa pretensão
é combatida pela descrição de uma série de acontecimentos escato-
lógicos que devem acontecer antes da vinda de Cristo (2,3-12). Os
destinatários, recorrendo à sua própria experiência de vida, podem
facilmente se convencer de que esses acontecimentos ainda não
se deram; a posição adversa é, assim, refutada. A segunda parte do
corpo da carta dá impressão de heterogeneidade. Compreende uma1
378
A seg u n d a epístola a o s T essalonicenses
Introdução (1,1-12)
1.1-2 Endereço e saudação
1,3-12 Ação de graças (1,5-10): instrução sobre o julga-
mento escatológico
Conclusão (3,14-18)
3,14-16 A recepção da carta
3,17-18 Saudação autografa e bênção
379
As epístolas deuteropaulinas
2 . M e io h is t ó r ic o d e p r o d u ç ã o
2.1. A questão do autor
A questão do autor histórico de 2 Tessalonicenses é discutida des-
de o início do século XIX. O estudo de William Wrede (1903), que
pela primeira vez analisou de maneira conseqüente a relação entre 1
Tessalonicenses e 2 Tessalonicenses, e, depois, os trabalhos de Wolf-
gang Trilling deram à tese do deuteropaulinismo da carta uma feição
decididamente científica. A idéia segundo a qual 2 Tessalonicenses
não teria sido redigida nem por Paulo, nem por um secretário duran-
te a vida de Paulo, mas sim por uma pessoa desconhecida, no período
pós-paulino, é hoje quase unanimemente aceita na exegese alemã.
A exegese anglófona continua mais prudente, embora importantes
contribuições recentes defendam igualmente o caráter deuteropau-
lino de 2 Tessalonicenses. As contribuições da exegese francófona
são mais variadas. Como situar o debate? Três registros de argumen-
tação sustentam, a nosso ver, a hipótese deuteropaulina.
1Tessalonicenses 2 Tessalonicenses
Endereço:
1,1: Paulo, Silvano e Timóteo à Igreja 1,1-2: Paulo, Silvano e Timóteo à igreja
dos Tessalonicenses que está em Deus dos Tessalonicenses que está em Deus
Pai e no Senhor Jesus Cristo. A vós, nosso Pai e no Senhor Jesus Cristo. A
graça e paz. vós graça e paz da parte de Deus o Pai
e do Senhor Jesus Cristo.
380
A segunda epístola a o s T essalonicenses
1”Tessalonicenses 2 Tessalonicenses
Primeira ação de graças:
1,2-3: Damos continuamente graças 1,3-4: Devemos dar continuamente
a Deus por vós todos...; sem cessar, graças a Deus por vós, irmãos, e é bem
(3) conservamos a lembrança de vos- justo, pois vossa fé faz grandes pro-
sa fé, de vosso amor sacrificado e de gressos e o amor que tendes uns para
vossa perseverante esperança (και τής com os outros cresce em cada um de
υπομονής τής Ιλπίδος) ... todos vós, (4) a ponto de serdes nosso
orgulho entre as Igrejas de Deus, por
causa da vossa perseverança (ímep τής
1,6: ... acolhendo a palavra em meio a υπομονής υμών) e da vossa fé em todas
muitastribulações (èv Θλίψ6ι πολλή) ... as perseguições e provações (4v πάσιν
... θλίψίοιν) que suportais...
[1,2: ... continuamente por todos vós 1,11: Eis por que oramos continuamen-
quando fazemos menção a vós em te por vós, a fim de que nosso Deus
nossas orações... vos encontre dignos da vocação (τή
1,3: ... de a obra da fé (του 6ργου τής ςκλήσςως) a que vos chamou; que pelo
1τιστ€ως) seu poder vos conceda realizar todo
1,4: ... vossa eleição (την Ικλογή o bem desejado e a obra da fé (epyov
νομών)...] πίστ6ως), em poder.
Segunda ação de graças:
2,13: Eis por que, da nossa parte, da- 2,13: Quanto a nós, devemos dar con-
mos graças a Deus sem cessar... tinuamente graças a Deus...
Transição para a parênese:
3,11.13: Que o mesmo Deus, nosso Pai, 2,16.17: Que 0 próprio Senhor Jesus
e nosso Senhor Jesus dirijam nosso ca- Cristo e Deus, nosso Pai... (17) conso-
minho para vós lem vossos corações e os confirmem...
... Que ele fortaleça assim vossos co-
rações...
381
As epístolas deuteropaulinas
1Tessaionicenses 2 Tessaionicenses
Oração, exortação (os “desordenados ”):
4.1: De resto, irmãos, eis nossos pedi- 3, l : De resto, irmãos, orai por nós, a
dos e nossas exortações no Senhor fim de que...
Jesus: vós aprendestes de nós como 3,6: ... nós vos ordenamos, irmãos,
proceder... que guardeis distância de todo irmão
5,14: A isso vos exortamos, irmãos: que leva uma vida desordenada e con-
corrigí aqueles que vivem de maneira traria à tradição que recebestes de
desordenada (1ταρακαλο0 μ6 ν ôt υμάς, nós (παραγγύλλομίν ôè ύμΐν, αδελφοί,
άδ^λφίΑ, νουθοτβΐτε τους άτακτους...) ... στέλλίσθαι ύμας από παντός άδΤ
φοΟ άτάκτως ττ6ριπατοΰντος . .. ) — cf
também w . 7 ell
Conclusão:
5,23: Que 0 Deus da paz, ele mesmo... 3,16: Que o Senhor da paz, ele mesmo...
(αυτός ôè ό Θ6ός τής «ίρήνης ...) (αυτός ôè ό κύριος τής 6ίρήνης ...)
5,28: Que a graça de nosso Senhor Je- 3,18: Que a graça de nosso Senhor Je-
sus Cristo esteja convosco. sus Cristo esteja com todos vós.
382
A segunda e pístola a o s T essalonicenses
b) Os desvios teológicos
As concepções teológicas em 1 Tessalonicenses (4,13-18; 5,1-11)
e 2 Tessalonicenses (2,1-12) divergem nitidamente: I Tessalonicen-
ses caracteriza-se pela espera iminente da vinda de Cristo, ao passo
que 2 Tessalonicenses se opõe à opinião segundo a qual “o dia do Se-
nhor já chegou” (2,2); 2 Tessalonicenses reflete o problema do atra-
so da parusia, servindo-se, entre outras, da figura de um antagonista
de Cristo (2,3 ss.: “o Homem da impiedade”) — ora, essa figura é
desconhecida de Paulo; além disso, 2 Tessalonicenses 1,5-10 e 2,3-
12 acentuam fortemente a dimensão da dupla retribuição no âmago
do julgamento escatológico; 1Tessalonicenses 4,13-18, ao contrário,
não evoca absolutamente essa dimensão crítica, e focaliza exclusi-
vamente a sorte dos membros — vivos ou já mortos — da comuni-
dade cristã. A diferença essencial entre os conceitos escatológicos
de 1 e 2 Tessalonicenses pode ser resumida assim: a escatologia pau-
lina se caracteriza pela tensão dialética entre o “já” e o “ainda não”,
ao passo que a estrutura da argumentação de 2 Tessalonicenses é
“ainda não”/ “mas no futuro”2.
383
A s epístolas deuteropaulinas
384
A seg u n d a epístola a o s T essalonicenses
385
A s epístolas deuteropaulinas
386
A seg u n d a e pístola ao s T essalonicenses
3. A s FONTES
O autor de 2 Tessalonicenses conheceu 1 Tessalonicenses ver-
batim. Em compensação, é muito difícil saber se ele utilizou outras
cartas paulinas. Parece que utilizou 1 Coríntios (cf ICor 16,21 / / 2Ts
3,17; ICor 9,4 // 2Ts 3,9). 2 Tessalonicenses 3,17 pressupõe o co-
nhecimento de diversas cartas de Paulo, talvez já de uma primeira
coleção. Se ele conhecia outras cartas, é de surpreender que não te-
nha se servido delas para sustentar sua argumentação escatológica.
4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
A intenção de 2 Tessalonicenses concentra-se inteiramente na
vontade de reavaliar o tempo presente. A ênfase principal recai na
questão escatológica.
387
A s epístolas deuteropaulinas
5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
Abordagens retóricas. Algumas contribuições recentes utilizaram
os instrumentos da retórica para chegar a uma estruturação mais
convincente da carta (R. Jewett, G. S. Holland, F W. Hughes). As
análises convergem em alguns pontos. De modo geral, elas confir-
mam e refinam as proposições clássicas. As abordagens retóricas são
interessantes na medida em que põem mais claramente em relevo
a coerência e a estratégia argumentativa do conjunto de 2 Têssalo-
nicenses.
Intenção da carta. A questão das circunstâncias exatas que
resultaram na redação de 2 Tessalonicenses, e a questão de sua
intenção central não foram ainda completamente resolvidas. A
pergunta que se faz é a seguinte: 2 Tessalonicenses queria somen-
te opor-se a uma falsa interpretação da instrução escatológica
de 1 Tessalonicenses 4,3-18 (W. Trilling)? Ou 2 Tessalonicenses
tem a intenção de refutar diretamente 1Tessalonicenses? Não se
trataria, então, para o autor, não somente de aprofundar o en-
sinamento escatológico de 1 Tessalonicenses mas de corrigir, de
maneira substancial, o Paulo histórico pelo Paulo fictício de 2 Tes-
salonicenses? N este caso, 2 Tessalonicenses seria uma forma de
388
A segunda epístola a o s T essalonicenses
6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
LEGASSE, Simon. Les Epítres de Paul aux Thessaloniciens. Paris, Cerf
1999 (LeDiv. commentaires 7).
MARXSEN, Willi. Der zweite Thessalonicherbrief Zürich, TVZ, 1982
(ZBK.NT 11/2).
TRILLING, Wolfgang. Der zweite Brief an die Thessalonicher. Neukirchen-
Vluyn, Neukirchener, 1980 (ΕΚΚ 14).
WANAMAKER, Charles A. The Epistles to the Thessalonians. Grand Ra-
pids, Eerdmans, 1990 (NIGTC).
389
As epístolas deuteropaulinas
Leitura prioritária
TRILLING, Wolfgang. Der zweite Briefan die Thessalonicher. Neukirchen-
Vluyn, Neukirchener, 1980, p. 21-32 (EKK 14).
História da pesquisa
TRILLING, Wolfgang. Die beiden Briefe des Aposteis Paulus an dieThes-
salonicher. Eine Forschungsübersicht. ANRW, Berlin, de Gruyter,
11.25.4(1987) 3.365-3.403.
Bibliografia exaustiva
WEIMA, Jeffrey A. D., PORTER, Stanley E. An Annotated Bibliography
o f l & 2 Thessalonians. Leiden, Brill, 1998 (NTTS 26).
Estudos particulares
COLLINS, Raymond E (ed.). The Thessalonian Correspondence. Leuven,
Leuven University Press, 1990, p. 373-515 (BEThL 87).
HOLLAND, Glenn S. The Tradition that You Receivedfrom Us: 2 Thessalo-
nians in the Pauline Tradition. Tubingen, Mohr, 1988 (HUTh 24).
HUGHES, Frank W. Early Christian Rhetoric and 2 Thessalonians. Shef-
field, Sheffield Academic Press, 1989 (JSNT.SS 30).
JEWETT, Robert. The Thessalonian Correspondence: Pauline Rhetoric and
Millenarian Piety. Philadelphia, Fortress Press, 1986 (Foundations
and Facets).
MULLER, Peter. Anfange der Paulusschule: Dargestellt am zweiten Thes-
salonicherbrief und am Kolosserbrief Zurich, TVZ, 1988 (AThANT
74).
TRILLING, Wolfgang, Untersuchungen zum zweiten Thessalonicherbrief.
Leipzig, St. Benno/Verlag, 1972 (EThSt27).
390
Às epístolas pastorais
CAPÍTULO
18
Às epístolas pastorais
(1 e l Timóteo; Tito)
Yann Redalié
393
A s epístolas pastorais
escritas não por Paulo, mas por um de seus discípulos, entre o fim do
século I e o início do século II de nossa era. Antes de retomar essa
questão mais detalhadamente (ver abaixo 2), apresentaremos pri-
meiro cada uma das três epístolas tal como são propostas ao leitor.
1.2. 1 Timóteo
Partindo para a Macedonia, Paulo saiu de Efeso, onde deixou Ti-
móteo com o encargo de dirigir a Igreja e lutar contra os que ensinam
uma outra doutrina (1,3). As instruções contidas na carta deveríam
permitir a Timóteo enfrentar a tarefa, mesmo no caso de Paulo pro-
longar sua ausência (3,15:4,13).
1,1-2 Saudação
394
A s epístolas p asto rais (1 e 2 T im ó teo ; T ito)
1.3. 2 Timóteo
Segundo 2 Timóteo, Paulo está na prisão em Roma (1,8.16 s.) e
seu fim está próximo (4,6-8). A exceção de Lucas (4,11) e de One-
síforo (1,16 s.), todos os seus companheiros o abandonaram (1,15).
Foi sozinho que ele já apresentou sua primeira defesa (4,16). Paulo,
então, convida Timóteo, que se supõe encontrar-se ainda em Éfeso,
a vir ter com ele (4,9.21) junto com Marcos (4,11).
395
As epístolas pastorais
1,1-2 Saudação
396
A s epístolas pastorais (1 e 2 T im ó te o ; T ito)
1.4. Tito
Plano da epístola a T ito
1,1-4 Saudação
1,5-9 A tarefa de Tito: organizar a Igreja de Creta, es-
colher os anciãos
Exortações (1,10-2,15)
Contra os que ensinam falsas doutrinas (1,10-16);
exigências para os grupos da comunidade (ho-
mens e mulheres segundo sua idade, escravos)
(2,1-10); motivação soteriológica (2,11-14); a ta -
refadeTito (2,15).
Exortações (3,1-11)
Em relação às autoridades civis (3,1-2); motiva-
ção soteriológica (3,3-7); a tarefa de Tito (3,8);
contra o “herético” (3,9-11)
3,12-15 Recomendações e saudações finais
397
As epístolas pastorais
/. 6. Gêneros literários
l Timóteo e Tito
As particularidades epistolares de 1Timóteo e Tito orientaram
a pesquisa para o uso da forma epistolar na literatura de exorta-
ção. Este gênero de texto visa transmitir uma experiência ou uma
arte de viver a jovens de importante situação social, a funcionários
recentemente nomeados, a novos membros de uma associação;
serve-se não somente de códigos de virtudes e deveres ou de ca-
tálogos de vícios, mas também de anotações autobiográficas, re-
comendações pessoais, exemplos existenciais, citações litúrgicas
tradicionais.
Por outro lado, a ênfase na legitimação dos destinatários e de seu
mandato, o conteúdo das instruções a Timóteo e a Tito, bem como
o caráter indireto da comunicação levaram ao estudo de cartas ad-
ministrativas enviadas por um alto funcionário, um rei ou imperador
a seus representantes na província, durante o seu tempo no cargo.
398
A s epístolas pasto rais (I e 2 T im ó teo ; T ito)
2 Timóteo
N o amplo contexto da literatura de exortação, 2 Timóteo, em-
bora em forma epistolar, é mais comparável com os testamentos
ou discursos de despedida. Nos “testamentos”, o que vai morrer
procura transmitir a "seus filhos” uma herança de experiências e
exemplos. O gênero, que se difundiu no judaísmo por ocasião de sua
helenização, veicula a preocupação com a tradição. Liga estreita-
mente a ameaça da perda da salvação com o esquecimento da dou-
trina transmitida. Como elementos testamentários em 2 Timóteo
ressaltam-se: o depósito e a doutrina a ser guardada (1,13 s.; 3,14),
a transmissão da mensagem para outros (2,2.9 s.; 4,7 s.), as pre-
dições sobre os falsos doutores (3,1-9.13; 4,3 s.), o testador como
modelo a ser imitado (1,8.12; 4,5), os maus exemplos a ser evitados
(2,16.23; 3,5).
2 . M e io h is t ó r ic o d e p r o d u ç ã o
2.1. A questão do autor
A discussão crítica que no decorrer dos últimos duzentos anos
contestou a atribuição a Paulo da redação das epístolas a Timóteo e
a Tito desenvolveu-se principalmente em cinco direções.
a) As pesquisas sobre a língua e o estilo das pastorais eviden-
ciaram a unidade do corpus das três epístolas do ponto de
vista linguístico e seu desvio em relação às outras epístolas
de Paulo: presença de palavras compostas; expressões sole-
nes; uso diferente das preposições e de certas construções
sintáticas; emprego de termos-chave ausentes nas outras
epístolas mas conhecidos da filosofia da época, da lingua-
gem religiosa do império e dos autores cristãos do século II.
b) A certas contradições internas às situações supostas pelas
pastorais se acrescenta a dificuldade de enquadrar os da-
dos biográficos de nossas epístolas com o que se sabe, por
399
A s epístolas pastorais
400
A s epístolas p asto rais (1 e 2 T im ó teo ; T ito)
401
As epístolas pastorais
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A s epístolas p asto rais (1 e 2 T im ó teo ; T ito)
403
A s epístolas pastorais
Os falsos doutores1
404
A s epístolas p asto rais (1 e 2 T im ó te o ; T ito)
3 . F o n t e s e t r a d iç õ e s
3.1. Tradição paulina
A continuidade da tradição paulina se exprime, primeiramente, no
plano literário, na forma das epístolas, que segue o modelo das car-
405
A s epístolas pastorais
406
A s epístolas pasto rais (1 e 2 T im ó teo ; T ito)
4 . U m a l in h a t e o l ó g ic a ?
As pastorais têm pouco espaço nas teologias do Novo Testamen-
to. Por um lado, porque são consideradas sobretudo exortações, é o
caráter prático de suas instruções que tem sido ressaltado, a ética, os
ministérios; por outro lado, duvida-se de que as diferentes fórmulas
soteriológicas constituam uma teologia. Os estudos recentes sobre
a teologia das pastorais retomaram esses dois aspectos (cf abaixo
407
As epístolas pastorais
4 1Timóteo 1,15 s.; 2,3-7; 3,16; 6,14 s.; 2 Timóteo 1,9 ss.; 2,8-13; 4,6-8; Tito
1,1-4; 2,11-14; 3,3-7.
s Lorenz OBERLINNER, Die Epiphaneia des Heilswillens Gottes in Chri-
stus Jesus. Zur Grundstruktur der Christologie der Pastoralbriefe, Z N W
71 (1980) 192-213; Dieter LÜHRMANN, Epiphaneia. Zur Bedeutungs-
geschichte eines griechischen Wortes, in Joachim JEREMIAS et al., Tra-
dition und Claube. Festgabe K. G. Kuhn, Gottingen, Vandenhoeck und
Ruprecht, 1971, 185-199; Viktor HASLER, Epiphanie und Christologie in
den Pastoralvriefen, ThZ 33 (1977) 193-209; Philip H. TOWNER, The
Presente Age in the Eschatology of the Pastoral Epistles, N T S 32 (1986)
427-448; Andrew Y. LAUB, Manifest in Flesh. The Epiphany Christology
o f the Pastoral Epistles, Tübingen, Mohr, 1996.
408
A s epístolas p asto rais (1 e 2 T im ó teo ; T ito)
409
A s epístolas pastorais
410
A s epístolas p asto rais (1 e 2 T im ó te o ; T ito)
Ministros e ministérios
Diversas tensões levam a colocar a questão das relações entre a figura do
bispo e a dos anciãos6: as funções de ensino e de direção atribuídas tanto aos
bispos como aos anciãos, o emprego pelas Pastorais do termo bispo no singular
411
As epístolas pastorais
5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
Tradições paulinas. Inúmeros são os estudos sobre a transmissão, a
recepção e o tratamento das tradições paulinas que alargaram o cam-
po da pesquisa para além das estritas questões de contatos ou de
dependências literárias, dando lugar, de um lado, às tradições orais,
412
A s epístolas pastorais (1 e 2 T im ó teo ; T ito )
413
A s epístolas pastorais
414
A s epístolas p asto rais (1 e 2 T im ó te o ; T ito)
6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
BROX, Norbert. Die Pastoralbriefe. Regensburg, Pustet, 1969 (RNT 7/2).
DIBEL1US, Martin, CONZELMANN, Hans. Die Pastoralbriefe. Tübin-
gen, Mohr,31955 (H N T 13).
JO H N SO N , LukeT Letters to Paul’s Delegates: I Timothy, 2 Timothy, Titus.
Valley Forge, Trinity Press International, 1996.
KARRIS, Robert J. The Pastoral Epistles. Wilmington, Michael Glazier,
1979 (NTM e 17).
MERKEL, Helmut. Die Pastoralbriefe. Gottingen, Vandenhoeck und Ru-
precht, 1991 (NTD 9/1).
OBERLINNER, Lorenz, Die Pastoralbriefe. Kommentar zum ersten Ti-
motheusbrief Freiburg, Herder, 1994 (HKNT 11,2,1).
--------- . Die Pastoralbriefe. Kommentar zum zweiten Timotheusbrief Frei-
burg, Herder, 1995 (HKNT 11,2,2).
13 John W. KLEINIG, Scripture and the Exclusion of Women from the Pas-
torate, LTJ 29 (1995) 74-81; 123-129 (a propósito de lTm 2,11-15); Mary
LOW, Can a Woman teach? A Consideration of Arguments from I Tim
2,1-15, Trinity Theological Journal 3 (1994) 99-123; Linda M. MALÔNEY,
The Pastoral Epistles: Searching the Scripture. New York, 1994, 361-380;
v. 2: A Feminist Commentary. Sobre a questão das viúvas, ver: Otto BAN-
GERTER, Les veuves des építres pastorales, modèle d’un ministère fémi-
nin dans I’eglise ancienne, Foi et Vie 83/1 (1984) 27-45; Jouétte M. BAS-
SLER, The Widows’ Tale; a Fresh Look at 1 Tm 5,3-16, JBL 103 (1984)
23-41; Bonnie Bowman THURSTON, The Widows. A Women’s Ministry
in the Early Church, Minneapolis, Fortress Press, 1989, 36-55; Dennis R.
McDONALD, The Legend and the Apostle..., 73-77; Margaret Y. McDO-
NALD, The Pauline Churches..., 187 ss.
415
As epístolas pastorais
Leitura prioritária
REDALIE, Yann. Paul après Paul. Le temps, le salut, la morale selon les
épitres àTim othée et àTite. Genève, Labor et Fides, 1994 (Monde
de la Bible 31).
COTHENET, Etienne. Les épitres pastorales. Cahiers Evangile Paris,
Cerf, 72 (1990).
416
Hebreus
CAPÍTULO
19
A epístola aos Hebreus
François Vouga
1. A p r e s e n t a ç ã o
Pode-se distinguir, na exposição, uma segunda parte, parenética
(10,19-13,21), que, ocasionalmente, faz referência à situação dos
destinatários (ver 10,32-34 e, de modo mais convencional, 12,4);
uma primeira parte doutrinai, soteriológica e cristológica, apre-
senta sistematicamente o acontecimento da salvação (1,5-10,18).
Uma exposição geral apresenta Jesus, logo de início, como o Filho
de Deus que traz a seus irmãos, os homens, o repouso escatológi-
co e como o sumo sacerdote fiel e misericordioso (1,5-5,10). Uma
transição anuncia a seqüência da exposição, que passa então dos
“temas elementares” e “dados fundamentais” da fé cristã à dou-
trina para os “perfeitos” (5,11-6,20; c f 6,1). A segunda seção da
exposição doutrinai é consagrada à significação da morte e da ele
419
H ebreus
420
H ebreus
2 . M e io h is t ó r ic o d e p r o d u ç ã o
Tanto o meio de origem e a data como o autor e os destinatários
da epístola aos Hebreus continuam a ser um enigma para a pesquisa
histórica e literária. Em razão de seus temas e do gênero da argu-
mentação desenvolvida, a qual se assemelha às leituras alegóricas de
exegetas judeus helenizados como Fílon, a hipótese mais plausível
vê nesse sermão o produto de uma teologia alexandrina do terceiro
terço do século I d.C.
422
A epístola a o s H e b reu s
423
H ebreus
2.3. Autor
A questão do autor constitui um enigma desde os inícios da re-
cepção da epístola no cristianismo antigo. A impossibilidade de en-
contrar seu traço na historiografia cristã provocou a multiplicação
de hipóteses plausíveis mas pouco convincentes.
Paulo
A segunda bênção final (13,22-25) e a tradição manuscrita (P46
etc.) colocam a epístola sob a responsabilidade literária do apóstolo
Paulo. O mesmo se dá na tradição patrística mais antiga, embora
ela o faça com precaução: Clemente de Alexandria (c. 150-215) e
Orígenes (185-253) sugerem que o apóstolo seja o responsável pelo
conteúdo, enquanto a redação teria sido assegurada por um tradu-
tor que Clemente identifica com Lucas; Orígenes hesita entre Lu-
cas e Clemente de Roma (Eusébio de Cesaréia, História eclesiástica
VI, 14,13; 25,12; 25,14). Os dois reconhecem a qualidade do escri-
to, mas ambos constatam que nem a forma literária nem o estilo
são os das outras epístolas paulinas. Pode-se constatar, com efeito,
a ausência de todos os principais temas paulinos (teologia da cruz,
problema da justiça, questão da Lei, discussão sobre a liberdade),
bem como a presença de categorias cultuais totalmente ausentes
das cartas paulinas (Melquisedec, Jesus como sumo sacedote, a
424
A epístola a o s H e b reu s
Barnabé e Apoio
Uma primeira alternativa à atribuição tradicional foi proposta por
Tertuliano (c. 155-220, De Pudicita 20): Barnabé. Em favor dessa
hipótese pleiteia a origem helenista do primeiro companheiro de
Paulo; contra ela, a oposição entre a fidelidade de Barnabé à Lei
judaica (G1 2,11-14) e o distanciamento dela em Hebreus 7,11-19,
9,9 s. e 13,9. Uma outra proposta emana de Martinho Lutero (WA
44,709; 45,389): Apoio. As raras informações sobre ele dadas por
Paulo (ICor 1,12; 3,4.5.6.22; 4,6; 16,12) e o retrato que dele faz Lu-
cas (At 18,24; 19,1) correspondem bem à imagem que se pode fazer
do autor da Epístola: Apoio vinha da Alexandria, como Fílon, era
versado na interpretação das Escrituras e atraía a adesão por sua
inteligência e sua arte oratória. Eles não bastam, entretanto, para
estabelecer uma identidade entre os dois.
Aos nomes de Barnabé e Apoio tentou-se acrescentar outros, na
maioria procedentes do círculo direta ou indiretamente ligado à mis-
são paulina: Silvano, Priscila, (Adolf von Harnack, 1900), Aristion (o
Ancião mencionado por Papias: Eusébio, História eclesiástica 111,39),
Timóteo, o diácono Filipe, Maria, mãe de Jesus, etc.
Um autor anônimo
Para evitar as aproximações e identificações sempre possíveis,
mas arbitrárias, nossos conhecimentos se resumem aos seguintes
elementos: o autor se apresenta como homem (e não mulher, como
demonstra o particípio διηγύμ6ν׳ον em 11,32), pagão-cristão ou ju
425
H ebreus
2.4. Destinatários
A localização tradicional da epístola situa seus destinatários na
Palestina ou em Jerusalém mesmo (João Crisóstomo, A d Chenas,
PG 63,9-14; Teodoro de Mopsuéstia, A d Butefas, PG 66,952; Je-
rônimo, A d Timotheum V,23 PL 23,617; Teodoreto, A d Julienas, PG
82,676). Uma proposta alternativa sugere uma comunidade particu-
lar no interior da Igreja de Roma. Aqui também a ausência de dados
no próprio texto provoca a multiplicação de conjecturas: pensou-se
em Samaria, Antioquia, Chipre, Efeso, Colossos, Bitínia e Ponto, ou
ainda em Corinto.
A epístola é conhecida em Alexandria desde a metade do século
II como epístola “aos Hebreus”, antes mesmo de esse título ter sido
atestado pela tradição manuscrita (Clemente de Alexandria, cita-
do por Eusébio, História eclesiástica VI,14,4). Isso quer dizer que os
destinatários deviam, pelo menos, ser judeu-cristãos? E possível. A
finalidade da exortação teria sido, por exemplo, impedi-los de aban-
donar o cristianismo para retornar ao judaísmo. Mas também pode-
se imaginar um roteiro inverso: a carta seria um esforço de revigorar
um sistema de convicção pagão-cristão da perspectiva das tradições
intelectuais do judaísmo helenístico. As repetidas advertências so-
bre a impossibilidade de uma segunda conversão (6,4-6; 10,26) e a
perspectiva de um possível afastamento do Deus vivo (3,12) tendem
a confirmar a hipótese de destinatários pagão-cristãos.
426
A epístola a o s H e b re u s
3 , C o m p o s iç ã o l it e r á r ia
O ponto de partida do autor e de seu sermão não é o culto judai-
co nem a realidade dos sacrifícios no Templo de Jerusalém, mas o
texto grego do Antigo Testamento. Sua argumentação não deixa em
nenhum momento transparecer a impressão de uma relação pessoal
com a religião judaica e com sua prática. A argumentação da epís-
tola não opõe dois cultos, o culto da primeira aliança (Hb 9,15) e o
da nova (8,8; 9,15, c f 12,24), mas busca o verdadeiro sentido das
prescrições veterotestamentárias. Em resumo: o autor é, antes de
tudo, um exegeta e um pregador. Ele trabalha com a ajuda de certos
métodos de leitura aplicados a textos e temas que escolheu pregar,
comentar e atualizar.
427
H ebreus
3.2. Melquisedec
Hebreus não é o primeiro escrito judaico ou cristão a explorar
a figura de Melquisedec (cf Fílon, De Specialibus legibus III, 79-83;
Flávio Josefo, Guerra dos judeus 6,438; Antiguidades judaicas 1,177-
182; / Henoc [eslavo] 71 s.; 1IQI3 = II QMetquisedec; N H C IX, I Mel-
quisedec). Melquisedec aparece duas vezes, de modo enigmático, no
Antigo Testamento. Na primeira vez, ele traz pão, vinho e bênção
para Abraão (Gn 14,18-20). Enviado misterioso, ele é ao mesmo
tempo rei de Jerusalém e sacerdote de Deus Altíssimo. Na segunda
vez, seu nome é pronunciado nas promessas messiânicas do Salmo
110: o Messias anunciado será sacerdote para toda a eternidade, à
maneira de Melquisedec (SI 110,4).
Nesses dois textos do Antigo Testamento, Hebreus encontra os
elementos necessários para a caracterização de Jesus como sumo
sacerdote. E o Salmo 110 que, citado no anúncio do tema, em He-
breus 5,6, introduz o personagem de Melquisedec. Melquisedec é
uma figura messiânica, seu sacerdócio é eterno e o sumo sacerdote
de sua ordem é eterno, santo e sem pecado. O texto de Gênesis
14,18-20 é introduzido como ponto de partida para o comentário de
Hebreus 7,1-28: Melquisedec é a figura do enviado celeste do Altís-
simo. A combinação desses dois textos faz de Melquisedec o protó
428
A epístola a o s H e b reu s
429
H ebreus
430
A epístola aos H e b reu s
4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
4.1. O sermão, palavra de exortação
O ponto de partida do sermão é o texto bíblico. O texto vetero-
testamentário é o da Septuaginta, isto é, da Bíblia cristã, que o autor
apresenta como a palavra de Deus (Hb 1,1; 4,12 s.). Essa palavra é o
ponto de partida daquilo que o autor, ou seu editor, chama em 13,22
de uma “palavra de exortação" (λόγος τής παρακλήσ^ως). A fun-
ção dessa pregação é definida explicitamente pelo autor: trata-se de
restituir a razão de crer e de esperar a cristãos que os elementos da
teologia que receberam não alimentam mais (5,11-6,12). Como se
esgotou uma teologia, a fé deve ser reanimada por uma nova idéia.
431
H ebreus
432
A epístola ao s H e b reu s
5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
Os trabalhos de Albert Vanhoye2 sobre a estrutura literária e for-
mal da epístola deram decisivo impulso à pesquisa recente.
A outra fonte de renovação da interpretação histórica, religiosa e
teológica da epístola vem da descoberta dos textos de Qumran so-
bre o Templo e sobre Melquisedec e, em medida ainda muito maior,
dos códices de Nag Hammadi. As profundas relações de parentesco
com a exegese judaica helenística, representada por Fílon de Ale-
xandria, devem ser estendidas até as primeiras interpretações gnós-
ticas do cristianismo.
6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
ATTRIDGE, Harold W. The Epistle to the Hebrews. Philadelphia, Fortress
Press, 1989 (Hermeneia).
M A cLACH LAN W ILSO N, Robert. Hebrews. Grand Rapids, Eerdmans,
1987 (N e w Century Bible Commentary). 1
433
H ebreus
Leitura prioritária
MACRAE, George W. Heavenly Temple and Eschatology in the Letter to
the Hebrew s. Semeia 12 (1978). 179-199.
VANHO YE, Albert. Le message de Γépitre aux Hébreux. Cahiers Evan-
gile, Paris, Cerf) 19 (1977).
Situação da pesquisa
M ICHAUD, Jean-Paul. Lépitre aux H ébreux aujourd’hui. In: ACEBAC,
“De bien des manières”. La recherche hiblique aux abords du XXI
siècle. Montréal/Paris, Fides/Cerfj 1995, p. 391-431 (LeDiv 163).
Estudos particulares
BACKHAUS, Knut. Der Neue Bund und das Werden der Kirche. Die Dia-
theke-Deutung des Hebráerhriefes im Rahmen der friihchristlichen
Theologiegeschichte. Münster, AschendorfF, 1996 (NTA 29).
BO VO N, François. Le Christ, la foi e t la Sagesse dans 1’épitre aux H é-
breux. In: Révélations et Ecritures. G enève, Labor e t Fides, 1993, p.
77-93 (Monde de la Bible 26).
KASEM ANN, Ernst. Das wandernde Cottesvolk. Eine Untersuchung zum
Hehraerbrief Gottingen, Vandenhoeck und Ruprecht, 4196I [1. ed.
1939] (FRLANT 55).
VANHOYE, Albert. La structure littéraire de Lépitre aux Hébreux. Paris,
D esclée de Brouwer, 2I976 [I. ed. 1963].
--------- . Situation du Christ. Hébreux 1-2. Paris, Cerf, 1969 (LeDiv 58).
434
A tradição joanina
CAPITULO
20
0 evangelho segundo João
Jean Zum stein
1. A presen ta çã o
/. /. João e os sinóticos
Uma rápida comparação do evangelho segundo João com os sinó-
ticos permite ressaltar sua originalidade. Com efeito, constatam-se
alguns pontos em comum, mas sobretudo diferenças substanciais.
Quatro pontos comuns merecem ser assinalados:
a) O mesmo gênero literário. Como os sinóticos, João recorre
ao gênero literário do evangelho. Para transmitir a fé, ele
conta a história de Jesus terrestre partindo do testemu-
nho de João Batista e terminando seu relato pela história
da paixão e da Páscoa.
437
A tradição joanina
438
O evangelho segundo Jo ã o
439
A tradição joanina
440
O evangelho segundo Jo ã o
Prólogo (1,1-18)
A revelação do Filho diante do mundo ou o livro dos
sinais (1,19-12,50)
1,19-2,22 Os inícios
O Batista e os primeiros discípulos (1,19-51); os
dois atos programáticos: Caná (2,1-12) e a purifi-
cação do Templo (2,13-22)
2,23-3,36 Nicodemos
O diálogo com Nicodemos (2,23-3,21); o debate
sobre a purificação (3,22-30); Aquele que vem
do alto (3,31-36)
4.1- 42 A samaritana
4,43-54 A cura do filho do funcionário régio
5.1- 47 A cura de um paralítico
A cura em dia de sábado (5,1-18); o poder do Fi-
Iho de Deus (5,19-30); a legitimidade do Revela-
dor (5,31-47)
6 O pão da vida
O milagre dos pães (6,1-15); o andar sobre as
águas (6,16-21); o discurso sobre o pão da vida
(6,22-50); o discurso de Jesus sobre sua carne e
seu sangue (6,51-59); escândalo e confissão de fé
de Pedro (6,60-71)
7-8 A rejeição de Jesus na festa das Tendas
Antes da festa (os irmãos de Jesus 7,1-13); o meio
da festa (7,14-36); o último dia da festa (7,37-
52); a mulher adúltera (7,53-8,11); Jesus luz do
mundo (8,12-20); a partida de Jesus (8,21-30); a
verdadeira posteridade de Abraão (8,31-59)
9-10 Confronto em Jerusalém antes e durante a festa
da Dedicação. A cura do cego de nascença (9,1-
41); o bom pastor (10,1-21); controvérsia com os
judeus (10,22-42)
11,1-54 A ressurreição de Lázaro
O sinal da ressurreição de Lázaro (11,1-44); o Si-
nédrio decide a morte de Jesus (11,45-54)
11,55-12,50 A última aparição pública de Jesus antes da
Páscoa
A unção em Betânia (11,55-12,11); a entrada em
Jerusalém (12,12-19); o discurso aos gregos — a
glória e a cruz (12,20-36); epílogo da primeira
parte do evangelho (12,37-50)
441
A tradição joanina
Epílogo (21)
442
O evangelho segundo Jo ã o
2 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia e t e o l ó g ic a
2.1. A questão da integridade literária
Tanto a crítica textual como a crítica literária mostram que
o evangelho em sua forma canônica não é um texto contínuo, mas o
resultado de um longo e complexo processo de composição.
A crítica textual revela que 5,3b-4 e 7 ,5 3 -8 ,11 (o episódio da mu-
lher adúltera) constituem seqüências que vieram a ser enxertadas
posteriormente no texto de João. Essas duas seqüências, portanto,
não fazem parte da obra em sua forma primitiva, mas dependem da
história de sua recepção.
Uma leitura atenta da obra mostra que, pelo menos em um caso
— trata-se da sequência dos capítulos 5 a 7 — , a ordem da narração
parece ter sido subvertida. A indicação topográfica de 6,1 (“Jesus
passou para a outra margem do mar da Galiléia”) cabe mal no con-
texto, porque o conjunto do capítulo 5 se desenrola em Jerusalém.
Pelo contrário, invertendo-se a ordem dos capítulos 5 e 6 recupera-
se a coerência do quadro geográfico. Além disso, o discurso proferi-
do pelo Cristo joanino por ocasião da festa das Tendas, em 7,15-24,
evoca a intenção dos “judeus” de suprimir Jesus, acusado de trans-
gredir o sábado. Por isso, essa passagem parece fazer eco à cena de
5,1-18 e constituir a continuação lógica de 5,19-47. Combinando-se
essas duas observações, chega-se a reconstruir a ordem inicial des-
ses capítulos da seguinte maneira: 4.6.5.7,15-24.1-14.25 ss.
O evangelho não parece ter sido composto de uma só vez, mas
ter sido objeto de várias redações. Quatro observações vêem em
apoio dessa hipótese.
• As duas conclusões do evangelho. O evangelho não tem uma
conclusão, mas duas. A primeira, em 20,30-31, é a conclusão
inicial da obra, enquanto a segunda, em 21,25, constitui a úl-
tima palavra do epílogo (capítulo 21). Ora, a voz que se expri-
me em 21,24 se distingue explicitamente do autor do evange-
443
A tradição joanina
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O evangelho segundo Jo ã o
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O evangelho segundo Jo ã o
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A tradição joanina
6 Adalbert DENAUX (ed.), John and the Synoptics, Leuven, Leuven Uni-
versity Press, 1992; Udo SCHNELLE, Johannes und die Synoptiker, in
Franz VAN SEGBROECK et al. (eds.), The Four Gospels. Festschrift F
Neirynck, Leuven, Leuven University Press, 1992, 1.799-1.814.
7 Hans WINDISCH, Johannes und die Synoptiker, Leipzig [s.n.], 1926.
8 Inventário, c f Udo SCHNELLE, Einfiihrung in das Neue Testament, Got-
tingen, Vandenhoeck und Ruprecht, *1996, 563-566.
9 Percival GARDNER-SMITH, St. John and the Synoptic Gospels, Cambrid-
ge, Cambridge University Press, 1938.
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A tradição joanina
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A tradição joanina
"18... E ele dispôs neles dois Espíritos para que andasse neles até o momento de sua
Visita: são os [dois] Espíritos de verdade e de perversão. 19 Em uma fonte de luz está
a origem da Verdade, e de uma nascente de trevas está a origem da perversão. 20 Na
mão do Príncipe das Luzes está o império sobre todos os filhos de justiça; pelos cami-
nhos da luz eles andam; e na mão do Anjo 21 das trevas está todo o império sobre os
filhos da perversão: e nos caminhos das trevas eles andam" (/ Q S III, 18-20).
454
O evangelho segundo Jo ã o
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A tradição joanina
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O evangelho segundo Jo ã o
3 . O MEIO DE PRODUÇÃO
A comparação de João com os evangelhos sinóticos revela sua
especificidade. Malgrado algumas semelhanças (gênero literário, re-
lato da paixão, alguns relatos e logia em comum), João se impõe por
sua originalidade (plano, temas principais, relatos desconhecidos dos
sinóticos, discursos cristológicos). Essa originalidade significa que
João não é um fenômeno secundário na literatura neotestamentá-
ria, mas que ele constitui uma linha de desenvolvimento específico
na história do cristianismo primitivo. Nesse caso, como se pode des-
crever o meio de produção que está na origem do evangelho?
457
A tradição joanina
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O evangelho segundo Jo ã o
3.4. O autor
O evangelho não é obra de uma testemunha ocular. A crer no
capítulo 21, é o discípulo bem-amado que seria o autor (21,24). Essa
identificação, que só intervém no epílogo do evangelho, reclama duas
observações. Em primeiro lugar, levando-se em conta que em João
existe uma certa rivalidade entre Pedro e o discípulo amado e, ainda
mais, que a morte do discípulo bem-amado parece ter constituído
459
A tradição joanina
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O evangelho segundo Jo ã o
eclesiástica IV, 14, 3-6). Entretanto, por um lado, Ireneu, em sua evocação
da relação entre Policarpo e João, não menciona nenhum dado concreto so-
bre a redação de João; por outro lado, os escritos de Policarpo calam sobre
seu pretenso conhecimento do Zebedeu. A conclusão é clara: o testemu-
nho de Ireneu repousa, certamente, sobre uma tradição, mas é impossível
reconstruí-la e autenticá-la.
Contra a tradição da Igreja primitiva, dois argumentos são constantemente
invocados para se opor a que João, o Zebedeu — e, mais geralmente, uma
testemunha ocular — , seja o autor do quarto evangelho. De um lado, a crer
em Marcos 10,35-40 (vaticinium ex eventul), João, o Zebedeu, seria morto
mártir precoce, e não um venerável ancião sob o reinado de Trajano, em Efeso
(conforme Ireneu, Contra as heresias II, 22,5). Se a tese de um martírio co-
mum com seu irmão Tiago (At 12,2) sob o reinado de Herodes Antipas não é
demonstrável, é forçoso constatar que se perde o rasto de João, o Zebedeu,
depois da assembléia de Jerusalém (Ga 2,9). Entre João, o Zebedeu, com-
panheiro da primeira geração, e o redator do evangelho, no fim do século 1,
subsiste uma lacuna temporal impossível de ser preenchida. Por outro lado, a
comparação com os evangelhos sinóticos (cf 1) mostra que tanto a linguagem
como a teologia do quarto evangelho não têm mais uma ligação de proximi-
dade com o mundo de Jesus histórico e de seus primeiros discípulos. Uma
longa história da tradição separa a vida e o ensino de Jesus de sua retomada
no quarto evangelho.
Não podendo atribuir o quarto evangelho ao Zebedeu, alguns (p. ex. M.
Hengel18) viram no presbítero João, mencionado por Eusébio (História eclesiás-
tica III, 39,4: ό πρ^σβύτ6ρος ’Ιωάννης), o autor do evangelho e das três
epístolas (2 João e 3 João se apresentam explicitamente como cartas escritas
por “o Ancião” [ττρησβυτ6ρ0ς]). Essa hipótese engenhosa, que combina da-
dos esparsos, não é sustentada nem pelo quarto evangelho, nem por nenhum
testemunho explícito da tradição da Igreja primitiva. Deve ser abandonada.
461
A tradição joanina
4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
O quarto evangelho deixa claro, nos discursos de despedida (14-
16), o lugar teológico a partir do qual a história de Cristo é contada.
Esse ato de anamnese é empreendido na perspectiva da fé pascal
(2,17.22; 12,16; 13,7; 20,9) e o agente desse trabalho de memória é
o Paráclito (= o Espírito Santo). Somente o Paráclito (14,15-17.26;
15,26:16,7-11.13.15), com efeito, é a testemunha fiel e o hermeneuta
qualificado da vida e da obra do Cristo joanino. Somente a retrós-
pectiva pascal, operada pelo Espírito, permite descobrir o sentido
completo da encarnação, do ministério terrestre, da Paixão e da
elevação do Filho. Portanto, o evangelho é, por excelência, um tes-
temunho do Cristo encarnado, na força do Espírito que, ao mesmo
tempo, conserva a lembrança do Cristo terrestre e manifesta sua
atualidade para o hoje da fé.
Essa descrição da atividade do Paráclito deixa logo prever que
o relato joanino é fundamentalmente um relato cristológico: a pes-
soa de Cristo, sua história e sua significação são o objeto central do
evangelho. Qual é, então, a concepção cristológica defendida por
João? O Cristo joanino é fundamentalmente apresentado como o
Revelador de Deus no mundo. Essa função reveladora é desenvolvia
de dois modos.
462
O evangelho segundo Jo ã o
do homem Jesus — suas palavras, seus atos, sua vida, sua morte —
deve ser lida da perspectiva dessa afirmação primeira.
463
A tradição joanina
464
O evangelho segundo Jo ã o
5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
A escola joanina. A famosa “questão joanina”, isto é, a questão
da identidade do autor do evangelho, durante muito tempo domi-
nou a pesquisa joanina. Sem estar hoje totalmente abandonada (cf
M. Hengel), ela se apaga diante de uma nova problemática. Não se
trata mais, em primeiro lugar, de saber se foi João, o Zebedeu, ou o
presbítero João quem compôs o quarto evangelho; o interesse agora
se volta para o círculo que está na origem da literatura joanina (João,
1João, 2 João, 3 João), a saber, a escola joanina (R. A. Culpepper)19.
A maneira pela qual esse grupo sociologicamente estruturado e teo-
logicamente consistente transmitiu, interpretou e fixou por escri-
to, em obras sucessivas, a tradição joanina mobiliza a atenção (J.
Zumstein)20.
465
A tradição joanina
466
O evangelho segundo Jo ã o
uma hipótese crítica mais do que uma realidade textual (C. Colpe)23.
Segundo, o contexto histórico determinante na hora da redação do
evangelho é o de conflito entre as Igrejas joaninas e a Sinagoga fa-
risaica (J. L. Martyn)24. Terceiro, os problemas que levaram à re-
cepção e à interpretação gnóstica do evangelho, no século II (p. ex.
Heracleon), decorrem, em primeiro lugar, de um conflito de inter-
pretação do próprio seio das comunidades joaninas.
Como se deve então colocar a questão do contexto histórico-reli-
gioso de João? A pesquisa recente, em sua maioria, concorda sobre
dois pontos. Por um lado, a linguagem e as representações religiosas
típicas do evangelho de João dão testemunho de um grande paren-
tesco com o judaísmo heterodoxo (Qumran, judaísmo samaritano,
círculos batistas), que no fim do primeiro século iria se tornar o ter-
reno fértil da gnose (O. Cullmann)25. Por outro lado, é preciso re-
nunciar a uma explicação unívoca e admitir que o universo histórico-
religioso de João está situado na confluência de diversas correntes
(judaísmo sapiência! e heterodoxo, sincretismo helenístico, grupos
de tendências gnósticas).
A gênese do evangelho. Se a questão do meio ambiente histórico-
religioso continua debatida, o mesmo se dá com a da gênese do
evangelho. A ausência de consenso (cf acima 2.2) — devida em
grande parte à natureza da documentação — não pode fazer esque-
cer dois aspectos promissores da pesquisa atual: a) se é possível que
a questão das fontes permaneça um enigma insuperável da pesquisa
joanina, o mesmo não acontece com o fenômeno da redação múl-
tipla do evangelho. O título do evangelho, as glosas, as adições nas
junturas da narrativa, o epílogo são testemunhos de um fenômeno
de releitura (J. Zumstein, A. Dettwiller)26 característica da escola
467
A tradição joanina
6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
BARRETT, Charles K. The Gospel according to St. John. Philadelphia,
Westminster Press, 21978.
468
O evangelho segundo Jo ã o
Leitura prioritária
BROWN, Raymond E. La communauté du disciple bien-aimé. Paris, Cerf,
1983 (LeDiv 115).
BULTMANN, Rudolf Johannesevangeliurn. RGG3 111, col. 840-850.
BOISMARD, Marie-Émile, COTHENET, Etienne. La tradition johanni-
que. In: GEORGE, André, GRELOT, Pierre (éds.). Introduction à la
Bible — Edition nouvelle. Paris, Desclée, 1977, t. III.
THYEN, Hartwig. art. Johannesevangeliurn. TRE, Berlin, de Gruyter,
XVII (1987) 200-225.
História da pesquisa
Jürgen BECKER. Aus der Literatur zum Johannesevangeliurn. ThR 47
(1982) 279-301, 305-347; 51 (1986) 1-78.
Robert KYSAR, The Fourth Evangelist and His Gospel. Minneapolis, Augs-
burg Publishing House, 1975.
469
A tradição joanina
Bibliografia exaustiva
MALATESTA, Edward. St. John’s Gospel: 1920-1965. Rome, Pontifical Bi-
blical Institute, 1967 (An Bib 32).
VAN BELLE, Gilbert. Johannine Bibliography. Leuven, Leuven University
Press, 1988 (BEThL 82).
Estudos particulares
CULPEPPER, R. Alan. Anatomy o f the Fourth Gospel. A Study in Lite-
rary Design., Philadelphia, Fortress Press, 1983 (Foundations and
Facets).
DODD, Charles Harold. Linterprétation du quatrième évangile. Paris, Cerfi
1975 (LeDiv 82).
KAESTL1, Jean-Daniel, POFFET, Jean Michel, ZUMSTE1N, Jean (éds.).
La communauté johannique et son histoire. Genève, Labor et Fides,
1990 (Monde de la Bible 20).
W ENG ST Klaus. Bedràngte Gemeinde und verherrlichter Christus. Mün-
chen, Kaiser, 41992 (KaiserTaschenbücher 114).
ZUMSTE1N, Jean. Miettes exégétiques. Genève, Labor et Fides, 1991, p.
209-216 (Monde de la Bible 25).
--------- . Kreative Erinnerung. Relecture und Auslegung im Johannesevan-
gelium. Zurich, Pano-Verlag, 1999.
470
CAPÍTlíLO
21
As epístolas joaninas
Jean Zumstein
A . A P r im e ir a E p ís t o l a d e J o ã o (1 J o ã o )
1 João é conhecido e lido, na Igreja primitiva, desde a metade do
século 11. Seu texto é bem conservado e sua admissão no cânon se
efetuou muito rapidamente.
1. A presen ta çã o
/. /. O plano do escrito
E difícil discernir uma estrutura clara em 1 João. A hipótese
mais freqüentemente sustentada na crítica recente (H.-J. Klau-
ck, G. Schunack1 e K. Vengst) repousa em duas observações. De
um lado, convém distinguir o corpo central da carta (1,5-5,12) de
seu prólogo (1,14 )־e de sua conclusão-epílogo (5,13-21). De outro
471
A tradição joanina
Epílogo (5,14-21)
A oração e seu atendimento, o pecado mortal, a
certeza da fé
472
A s epístolas joaninas
473
A tradição joanina
474
A s epístolas joaninas
2 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia e t e o l ó g ic a
Será que o autor de 1 João utilizou fontes identificáveis por oca-
sião da redação de sua carta? Essa questão, muito discutida na pri-
meira metade do século XX, tem sido objeto de inúmeras e impor-
tantes pesquisas (cf E. von Dobschütz, R. Bultmann e H. Braun)2.
O ponto de partida desses trabalhos de crítica literária é clássico:
apóia-se nas freqüentes rupturas de estilo, nas mudanças de ritmo e
nas incessantes reformulações que ocorrem ao longo dos capítulos.
Esses fenômenos literários — incontestáveis — devem ser levados
a sério; são o indício não tanto da recepção seletiva de uma fonte
escrita (gnóstica pré-cristã segundo R. Bultmann; cristã primitiva
segundo H. Braun), mas de fragmentos tradicionais, frutos do tra-
balho da escola joanina. infelizmente, não é mais possível delimitar
com precisão a amplidão e o contorno exato das tradições utilizadas.
Com toda probabilidade, o autor tomou e recompôs, à luz da situa-
ção concreta com que se defrontava, elementos que faziam parte
do tesouro tradicional da corrente teológica a que se filiava. Nessa
hipótese, 1 João constituiría uma reformulação da tradição joanina
na aurora do século 11.
A segunda questão a respeito da composição literária concerne
à redação da epístola: 1 João é um texto ininterrupto? Ou se deve,
como no caso do evangelho, contar com uma dupla redação?
475
A tradição joanina
476
A s epístolas joaninas
3 . M e io h is t ó r ic o d e p r o d u ç ã o
3 .1. A relação entre 1 João e o quarto evangelho
Um inegável parentesco — seja no nível da terminologia/estilís-
tica, seja no nível teológico — une 1João a João3. Essa proximidade
não tem nada de surpreendente, já que tanto João como 1 João
emanam de uma mesma escola teológica e partilham, portanto, a
mesma linguagem — uma linguagem muito original, aliás, no am-
biente do cristianismo nascente. Essa grande afinidade entre os dois
escritos suscita a questão do autor: terá sido a mesma pessoa que
escreveu as duas obras? Ou estamos diante de duas personalidades
distintas?
O fato de surgirem diferenças substanciais tanto no vocabulário
utilizado como nas representações teológicas não constitui um ar-
gumento que exclua, de uma vez, a hipótese de um só autor para os
dois escritos. De fato, temos o direito de supor que tais mudanças
possam resultar de situações, de gêneros literários e de estratégias
argumentativas diferentes.
Uma observação, no entanto, permite decidir com alguma proba-
bilidade essa difícil questão. Acontece que as mesmas noções podem
ter um sentido diferente segundo o escrito no qual aparecem. Al-
guns exemplos: a) no prólogo de 1 João, os conceitos 'no princípio”
e a “palavra (de vida)” não têm mais o mesmo sentido de que se
revestiam no prólogo do evangelho (Jo 1,1-18): em 1 João, trata-se
do início da revelação cristológica, e não mais do início desde antes
da fundação do mundo; por outro lado, o Logos não é mais uma pes-
soa, mas uma mensagem; b) 1 João atribui a Deus propriedades que
no evangelho pertencem a Jesus: assim, Deus — e não mais Cristo
— é luz (Uo 1,5 e Jo 8,12; 9,5); assim ainda, em 1 João é Deus que
dá o mandamento do amor e não Cristo (Uo 4,21; Jo 13,34; 15,12
s.); c) enquanto no evangelho o Paráclito tem um papel decisivo nos
discursos de despedida, designando nele o Espírito Santo, ele jamais
tem essa significação em 1João, onde a única ocorrência se refere a
Em seu comentário (The Epistles o f John, New York, Doubleday, 1982, 757-759),
R. E. Brown redigiu uma lista exaustiva das semelhanças entre João e 1João.
477
A tradição joanina
478
A s epístolas joaninas
Os dados da carta
Quais são os dados da carta que sustentam a hipótese de uma
crise?
Declara 1 João 2,18 s.: “Meus filhinhos, é chegada a última hora.
Ouvistes anunciar que vem um anticristo; pois agora muitos anticris-
tos estão aí; nisto reconhecemos que é a última hora. Do nosso meio é
que saíram, mas não eram nossos”. Essa passagem fala de dois grupos
em conflito no cristianismo joanino: de um lado, o círculo do qual 1
João se faz porta-voz; de outro lado, um círculo acusado de ter aban-
donado a fé autêntica e rompido a unidade eclesial. Não é mais possí-
vel saber quem tomou a iniciativa da ruptura, nem que relação de for-
ças prevalece entre os dois grupos. O que é claro, em compensação, é
que a pertença a um ou outro grupo se decide com base no conteúdo
da confissão de fé à qual se adere (cf 4,2 s.). A retidão da confissão de
fé se torna o critério da autenticidade da fé. Nesse sentido, 1 João é
um dos primeiros testemunhos do nascimento da noção de ortodoxia.
Em 1 João, o que distingue a confissão de fé “ordoxa” da dos
opositores? O litígio é de natureza cristológica. Como demonstram
479
A tradição joanina
480
A s epístolas joaninas
“Um certo Cerinto, na Ásia, ensinou a seguinte doutrina. Não foi o primei-
ro Deus que fez o mundo, mas uma Potência separada por uma distância con-
siderável da Potência Suprema, que está acima de todas as coisas, e ignorante
do Deus que está acima de tudo. Jesus não nasceu de uma virgem — pois isso
lhe parecia impossível — , mas era o filho de José e de Maria por uma geração
semelhante à de todos os outros homens, e ele sobressaiu a todos pela justiça,
prudência e sabedoria. Após o batismo, o Cristo, vindo de junto da Potência
Suprema, que está acima de todas as coisas, desceu sobre Jesus em forma de
pomba; e foi então que o Cristo anunciou o Pai desconhecido e realizou mi-
lagres; depois, no fim, saiu de Jesus: Jesus sofreu e ressuscitou, mas o Cristo
permaneceu impassível pelo fato de ser pneumático” (Ireneu de Lião, Contra
as heresias I, 26,1).
481
A tradição joanina
482
A s epístolas joaninas
4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
A concepção teológica desenvolvida em 1 João se inscreve num
processo histórico. Ela pressupõe a existência já longa da tradição
joanina e, particularmente, a de sua expressão literária mais impor-
tante, o quarto evangelho. A finalidade de 1 João não é introduzir
um novo projeto teológico, mas explicitar e esclarecer certos aspec-
tos da tradição joanina, resolver um conflito de interpretação gerado
pela pluralidade de leituras induzidas pelo próprio evangelho. Nesse
sentido, 1 João opera o reenquadramento “ortodoxo” da teologia
joanina.
Essa vontade de definir o sentido normativo da tradição joanina
se manifesta de diferentes maneiras. Antes de tudo, pela invoca-
ção da origem fundadora: trata-se de relembrar o sentido que tinha
483
A tradição joanina
484
A s epístolas joaninas
5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
Na pesquisa recente sobre 1João, notam-se quatro deslocamen-
tos significativos.
Ligação com o evangelho. 1 João não deve ser lido como um do-
cumento literário isolado, mas tem de ser considerado um elemento
importante na história do cristianismo joanino. 1João é posterior ao
evangelho, pressupõe sua existência e sua leitura; toda a força e toda
a pertinência da argumentação nele desenvolvida vêm de sua ligação
com o evangelho.
Gênero literário. Um certo consenso parece estar surgindo na
questão do gênero literário: embora lhe falte o formulário epistolar
clássico, 1 João é uma carta no sentido pleno da palavra. Sua forma
original (prólogo, conclusão, epílogo) se deve à ligação absolutamen-
te familiar que ela quer tecer com o evangelho.
Autor. O debate sobre o autor de 1 João, especialmente sua pos-
sível atribuição a João, o Zebedeu, ao presbítero João, e mesmo ao
Ancião, deixou de ser importante. Prefere-se atribuir esse escrito
anônimo não mais a uma pessoa, mas à escola joanina como tal.
A questão dos opositores. Essa questão evoluiu de duas manei-
ras. De um ponto de vista metodológico, sem negar ou minimizar a
existência do conflito intraeclesial indicado por 1 João, hesita-se em
fazer sistematizações e em combinar, sem qualquer precaução, to-
das as afirmações polêmicas que afloram na carta. De outro lado, é
com a maior prudência que se usam categorias tais como docetismo,
gnosticismo, valentinismo para identificar os opositores. Prefere-se
imputar às próprias comunidades joaninas, à ambivalência do evan-
gelho e à pressão do mundo religioso circundante (judaísmo hetero-
doxo, sincretismo antigo) a emergência de uma leitura que culmina-
rá, no século II, na recepção gnóstica do evangelho.
485
A tradição joanina
6. B ib l io g r a f ia
Com entários
BONNARD, Pierre. Les építres johanniques. Genève, Labor et Fides, 1983
(CNT 13c).
BROWN, Raymond E. The Epistles o f John, N ew York, Doubleday, 1982
(AB 30).
BULTMANN, Rudolf Die drei Johannesbriefe, Gottingen, Vandenhoeck
und Ruprecht, 1967 (KEK 14).
KLAUCK, Hans-Josef Der erste Johannesbrief. Zürich/Neukirchen-Vluyn,
Benziger/Neukirchener Verlag, 1991 (EKK23/1).
SCHNACKENBURG, Rudolf Die Johannesbriefe. Freiburg, Herder,71984
(HThK 13/3).
STRECKER, Georg. Die Johannesbriefe. Gottingen, Vandenhoeck und
Ruprecht, 1989 (KEK 14).
VOUGA, François. Die Johannesbriefe. Tübingen, Mohr, 1990 (H NT
15/3).
W ENG ST Klaus. Der erste, derzweite undderdritte Johannesbrief. Güters-
loh/Würzburg, Gütersloher Verlagshaus Mohn/Echter Verlag, 1978
(ÒKT 16).
Leitura prioritária
BROWN, Raymond E. La communauté du disciple bien-aimé. Paris, Cerf
1983 (LeDiv 115).
BULTMANN, Rudolf Johannesbriefe. RCC3 III, col. 836-839.
BOISMARD, Marie-Émile, COTHENET, Etienne. La tradition Johanni-
que. In: GEORGE, André, GRELOT, Pierre. Introduction à la Bible
— Edition nouvelle. Paris, Desclée, 1977, t. 111.
THYEN, Hartwig. Johannesbriefe. TRE, Berlin, de Gruyter, XVII (1988)
186-200.
H istória da pesquisa
BEUTLER, Johannes. Die Johannesbriefe in der neuesten Literatur.
A N R W , Berlin, de Gruyter, 11.25.5 (1988) 3.773-3.790.
486
A s epístolas joaninas
Bibliografia exaustiva
Klauck, Hans-Josef Der erste Johannesbrief. Zürich/Neukirchen-Vluyn,
Benziger/Neukirchener Verlag, 1991 (EKK23/1).
Estudos particulares
BONNARD, Pierre. La première Epitre de Jean est-elle johannique?. In:
De JONGE, Marinus (ed.). LEvangile de Jean. Sources, redaction,
théologie, Leuven/Gembloux, Leuven University Press, 1977, p.
301-305 (BEThL 44); ou Anamnesis: recherches sur le Nouveau Tes-
tament. Genève/Lausanne [s.n.], 1980.
CONZELMANN, Hans. Was von Anfang war. In: Theologie als Schnf-
tauslegung. Aufsàtze zum Neuen Testament. München, Kaiser,
1974, p. 207-214 (BevTh 65).
LIEU, Judith M. The Theology o f the Johannine Epistles. Cambridge, Cam-
bridge University Press, 1991 (New Testament Theology).
KLEIN, Günther. “Das wahre Lieht scheint schon”. Beobachtungen zur
Zeit- und Geschichtserfahrung einer urchristlichen Schule. ZThK 68
(1971)261-326.
VOUGA, François. La reception de la théologie johannique dans les
épTtres. In: KAESTLI, Jean-Daniel, POFFET, Jean-Michel,
ZUMSTEIN, Jean (éds.). La com munauté johannique et son his-
toire, G enève, Labor el Fides, 1990, p. 283-302 (Monde de la
Bible 20).
B. A S e g u n d a e a T e r c e ir a E p ís t o l a s d e J o ã o
A existência e a leitura de 2 João e 3 João só tardiamente são
atestadas na Igreja antiga. Sua admissão no cânon gerou contro-
vérsia.
487
A tradição joanina
1-3 Endereço
4 Introdução
I Endereço
2-4 Introdução (votos de saúde e expressão de alegria)
488
A s epístolas joaninas
2 . M e io h is t ó r ic o d e p r o d u ç ã o
Nos dois casos, o autor se nomeia “o Ancião” (ò πρ€σβύτφ0ς).
Como no evangelho, o autor não é designado por seu nome, mas por
um título. O título ”Ancião” não é, entretanto, utilizado pelo evan-
gelho, nem por 1 João. Enquanto o evangelho atribui sua existência
à figura do discípulo bem-amado e 1 João permanece totalmente si-
lencioso sobre a questão de seu autor, a pessoa do “Ancião” deve ser
considerada uma terceira figura eminente da escola joanina. Essa fi-
gura delineada e reconhecida goza de grande autoridade, pois ela se
considera legitimada para se dirigir às Igrejas joaninas e doutriná-las. 2
João e 3 João são de sua lavra e constituem um bom exemplo de sua
atividade pastoral. Não se deve, no entanto, ver no título “Ancião” a
designação de uma função ministerial dotada de poderes institucionais
determinados, mas sim a marca do respeito de que goza essa figura
nas comunidades joaninas. A identificação, freqüentemente propos-
ta, do Ancião com o presbítero João permanece pura conjectura.
2 João e 3 João são, provavelmente, o último estágio da produção
da escola joanina de nosso conhecimento. Essas cartas são também
oriundas da Ásia Menor, talvez de Efeso, e foram redigidas por volta
de 110. 2 João e 3 João se inscrevem no contexto da crise descrita
em 1 João. 2 João se situa, entretanto, depois de 1 João (2Jo,5-7
retoma Uo 2,7 s.18 s.; 4,1 s.). Não é mais possível saber se 3 João foi
escrita antes ou depois de 2 João.
3 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia e t e o l ó g ic a
3.1. A relação de 2 e 3 João com 1 João
Que ligação há entre 2 e 3 João, de um lado e, de outro, 1João? E
preciso, antes de tudo, levar em conta um incontestável parentesco.
Os dois temas principais de 1 João, a saber, a explosão de uma crise
no seio das Igrejas joaninas e a exortação a amar o irmão, reapare-
cem em 2 e 3 João. Mas não se podem ignorar diferenças substan-
ciais. O gênero literário é um primeiro exemplo. Enquanto 1 João é
uma carta destinada a defender a autêntica interpretação da tradi-
ção joanina, 2 e 3 João tratam de questões de política eclesial. Em
489
A tradição joanina
490
A s epístolas joaninas
4 . B ib l io g r a f ia
Ver acima a bibliografia de 1 João, à qual se deve acrescentar:
Estudos particulares
BONSACK, Bernhard. Der Presbyter des dritten Briefes und der geliebte
Jünger des Evangeliums nach Johannes. ZN W 79 (1988) 45-62.
BORNKAMM, Günther. ττρέσβυς, κτ Th W N T Stuttgart, Kohlhammer,
VI (1959) 650-683.
LIEU, Judith M. The Second and Third Epistles o f John. Edinburgh, Clark,
1986.
KASEMANN, Ernst. Ketzer und Zeuge. In: Exegetische Versuche und Be-
sinnungen /. Gòttingen, Vandenhoeck und Ruprecht, 61970, p. 168-
187.
491
A tradição joanina
492
CAPÍTULO
22
O apocalipse de João
Elian Cuvillier
1. A p r e s e n t a ç ã o
1. I. Gênero literário
As primeiras palavras do livro, “Revelação de Jesus Cristo
(’Αποκάλυψις Τησοϋ Χρίστου), e, de modo mais geral, seu conte-
údo o designam como pertencente à literatura apocalíptica. Trata-
se de uma literatura dotada de uma organização narrativa na qual
é transmitida uma revelação divina, mais freqüentemente por um
anjo, a um homem previamente escolhido. A revelação concerne a
uma realidade transcendente, ao mesmo tempo temporal, na medi-
da em que considera uma salvação escatológica, e espacial, na me-
dida em que anuncia a vinda de um mundo novo1.
1.2. Estrutura
E difícil desvelar um plano coerente para o conjunto das visões do
Apocalipse de João. As vezes as visões se repetem sem progresso
visível na narração, ou se seguem sem uma ligação lógica eviden-
te, a menos que apareçam certas contradições entre elas. Estrutura
493
A tradição joanina
Prefácio (1,1-3)
494
O apocalipse de Jo ã o
Epílogo (22,6-21)
1.3. Conteúdo
A introdução geral do livro (1,1-3) indica a origem das visões (Deus
e Jesus Cristo), a mediação pela qual vieram (o anjo), os destinatá-
rios (o “servo João” e “aqueles que lêem e escutam”) e seu objeto
(“o que deve acontecer em breve”).
O endereço da obra (1,4-8) explicita os destinatários aos quais
se dirige historicamente João (cf v. 4; “às sete Igrejas que estão
na Ásia”). A partir de 1,9 começa a visão inaugural do escrito (1,9-
20). O “Filho do homem” (1,13) aparece aí revestido de atributos
que manifestam seu poder divino. Sua morte e sua ressurreição lhe
conferem uma autoridade que ele exerce, em primeiro lugar, sobre
a Igreja (1,8): o acontecimento pascal está no coração da escritura
apocalíptica de João. Os capítulos 2-3 constituem a parte episto-
lar. O conjunto das cartas é indistintamente dirigido às comunidades
asiáticas. Ao lado dos perigos externos que ameaçam as Igrejas (2,9;
2,13; 3,9), o autor insiste essencialmente no risco que correm, se-
gundo ele, as comunidades destinatárias: consentir com a realidade
do mundo presente (2,4; 2,14; 2,20; 3,1; 3,17).
A primeira seção de visões (4,1-11,19) começa com uma celebra-
ção cultuai cósmica (4-5) na qual, de cada vez, são adorados Deus e
o Cordeiro. Em seguida, articulada em torno do setenário dos selos
(6,1-17; 8,1-5) e das trombetas (8,6-9,21; 11,15-19), vem a apresen-
tação do julgamento do mundo como sinal da cólera de Deus. So-
495
A tradição joanina
496
O apocalipse de Jo ã o
2 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia
2 .1. Integridade literária
As cartas às Igrejas (Ap 2-3) não pertencem ao gênero literário
apocalíptico. Além disso, o Apocalipse contém inúmeras duplicatas
(comparar, por exemplo, 13,1.3.8 com 17,3.8; 14,8 com 18,2; 12,9.12
com 20,2 s.). Esses indícios poderíam atestar que o Apocalipse é o
resultado de uma compilação de várias obras outrora distintas, ou
que se trata de uma obra sujeita a sucessivas reedições. A hipótese
segundo a qual um autor cristão teria retomado e “cristianizado” um
documento judaico é hoje geralmente abandonada. De toda manei-
ra, é impossível determinar com precisão as tradições utilizadas ou o
teor exato de uma hipotética versão anterior da obra.
2.2. Fontes
A principal fonte de inspiração do Apocalipse é o Antigo Testa-
mento, ao qual se faz alusão, direta ou indiretamente, mais de qui-
nhentas vezes (sobre tudo Ezequiel, Isaías, Jeremias, Daniel e os
Salmos). O autor utiliza igualmente as tradições litúrgicas das co-
munidades cristãs primitivas. Entre elas as doxologias (1,6; 4,9; 5,13;
7,12), as aclamações (4,11; 5,9b-10; 5,12), as orações de ação de
graças (11,17 s.), as lamentações de mártires (6,10) e os hinos de lou-
vor (12,10; 15,3 s.; 16,5; 18,20; 19,1-8). Saber se o autor trabalhou a
partir de fontes escritas ou com tradições orais é uma questão que
continua em aberto.
497
A tradição joanina
Um a litera tu ra abundante
2.4. Simbolismo
Uma das características do Apocalipse de João é o emprego da
linguagem simbólica. Isso se pode explicar de várias maneiras com-
plementares. Falar do advento do mundo novo supõe um discurso
sobre o indizível, sobre a própria ação de Deus. A linguagem simbóli
498
O apocalipse d e Jo ã o
499
A tradição joanina
500
O apocalipse de Jo ã o
3 . M e io h is t ó r ic o d e p r o d u ç ã o
3.1. A u to r
O autor do Apocalipse se nomeia João (1,1). Foi Justino (Diálogo
81,4) o primeiro a identificar João com o filho de Zebedeu. Em se-
guida, Ireneu liga o Apocalipse, assim como o evangelho e as cartas
joaninas, a João, discípulo de Jesus. Essa paternidade joanina prova-
velmente desempenhou papel importante na aceitação, aliás difícil,
da obra no cânon2. Entretanto, o testemunho do Apocalipse leva a
se opor à opinião da tradição. Nada permite identificar João de Pat-
mos ao apóstolo. Não só ele jamais reivindica esse título, dizendo-
se, simplesmente, “servidor”, como o grupo dos apóstolos pertence
para ele ao passado (cf Ap 18,20 e 21,14). E também pouco pro-
vável que João de Patmos possa ser identificado com “o Ancião”
(πρ^σβύτ6ρος) de que fala Papias, visto que esse título jamais é uti-
lizado pelo autor. Deve-se lembrar, finalmente, que o Apocalipse é
o único escrito do Novo Testamento a ter um autor denominado
João! Deve tratar-se de um personagem importante das comunida-
des asiáticas do fim do século I, talvez um membro influente de um
círculo de profetas cristãos itinerantes (cf Ap 22,6); os destinatários
pertencem ao conjunto da Ásia Menor.
501
A tradição joanina
502
O apocalipse de João
503
A tradição joanina
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O apocalipse de João
505
A tradição joanina
4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
4.1. O fundamento apocalíptico
Teologicamente, a literatura apocalíptica e o movimento que lhe
é ligado são caracterizados pela convicção de que o mundo antigo
chegou ao seu fim e o mundo novo está prestes a advir. A linha divi-
sória entre os dois é a intervenção escatológica de Deus, que julgará
os ímpios e recompensará seus eleitos, que passaram pela tribula-
ção dos últimos tempos. No contexto específico do Apocalipse de
João, a apocalíptica é posta a serviço de uma convicção: o fim do
mundo antigo (aquele no seio do qual vivem João de Patmos e seus
ouvintes) e a vinda de um mundo novo são inaugurados no aconte-
cimento pascal. Essa convicção constituiu João e os crentes como
testemunhas. A dimensão cristológica é, portanto, uma chave de
entrada privilegiada para compreender o Apocalipse de João.
506
O apocalipse de João
507
A tradição joanina
repete ao longo do livro (no culto celeste, nos capítulos 7, 11, 12, 19
e 20). A condição da Igreja: ela reina com o Cordeiro e, no entanto,
deve lutar neste mundo (1,9; 7; 14; 20). O julgamento do mundo: ele
é iminente, já se realizou e é futuro (comparar 6 e 7; 8-9; 18).
João faz uma verdadeira confusão com a sucessão cronológica
passado/presente/futuro. Não se sabe mais, realmente, a que perío-
do da história pertence aquilo de que fala o autor apocalíptico. O
fenômeno é particularmente sensível no capítulo 18, em que a utili-
zação dos tempos para anunciar a queda de Babilônia desafia qual-
quer lógica: versículo 2: atualidade; versículo 4: futuro; versículo 8:
futuro; versículo 10, passado; versículo 11: atualidade; versículo
16: futuro; versículo 17: passado; versículo 21: futuro (fenômeno
similar em Ap 21,1-22,5). Objetivamente, Roma ainda é triunfan-
te (situação à qual as comunidades destinatárias parecem se con-
formar). Entretanto, se João quer ser fiel ao acontecimento que o
constitui como testemunha (a saber, a vitória de Cristo), ele deve
proclamar, desde já, o fim do poder orgulhoso de Roma, símbolo do
império: Satanás triunfa, mas é um perdedor virtual. A “confusão”
cronológica expressa, no plano narrativo, a convicção segundo a
qual o mundo novo acontece no coração mesmo do antigo.
4.4. A eclesiologia
O Apocalipse de João é escrito “às Igrejas” (1,11). Ele se apresen-
ta não só como um texto de encorajamento, mas, em primeiríssimo
lugar, como uma interpelação radical às comunidades cristãs. No fi-
nal do século I, João de Patmos constata que nas comunidades asiá-
ticas a proclamação do advento do tempo novo dá lugar a uma pre-
ocupação de compromisso. João, então, não cessa de afirmar que o
que constitui o sujeito cristão é o testemunho dado ao acontecimen-
to pascal como contestação do mundo. Essa proclamação institui o
crente em ruptura com a sociedade. Como então viver essa situação
especial? Como manifestar no mundo antigo o advento do mundo
novo? A dimensão cultuai do Apocalipse dá a chave: é a comunidade
cultuai que atualiza e torna presente ao mundo a vitória do Cordeiro
sobre os poderes (cf Ap 4-5).
508
O apocalipse de João
509
A tradição joanina
5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
Constata-se um questionamento da reconstituição tradicional do
Sitz im Leben do Apocalipse como mensagem dirigida a comunida-
des perseguidas8. O novo olhar sobre o contexto histórico tem con-
seqüências para um certo número de campos de pesquisas, clássicos
ou mais recentes, ligados ao Apocalipse de João.
Apocalipse e situação de crise. Estudos recentes se interessam pela
função da escritura apocalíptica. Passa-se da noção de “literatura de
crise” (no sentido de que respondería a uma situação de perseguição)
à idéia segundo a qual é a escritura apocalíptica de João de Patmos
que faz surgir a crise (no sentido de que lança um olhar crítico sobre
a sociedade num período de consenso)9.
A heresia nas “cartas às Igrejas". Considera-se, às vezes, que as
cartas às Igrejas apontam para um risco de heresia representado,
no interior mesmo das comunidades asiáticas, por um grupo de-
nunciado como particularmente perigoso (cf 2,2: "os que se dizem
510
O apocalipse de João
apóstolos e não o são”; 2,6: “os nicolaítas”; 2,14: “os que se ape-
gam à doutrina de Balaão”; 2,20: "a profetisa Jezabel”; e 2,24: “os
que conheceram as profundezas de Satanás”). Mas pode-se indagar
também se não se trata de uma encenação da realidade tal como a
interpreta João de Patmos. Essas expressões seriam, sob sua pena,
figuras retóricas que designam o compromisso com a sociedade ro-
mana e suas práticas.
Leituras narrativas. Numa área próxima, convém reabrir, hoje, o
dossiê do Apocalipse de João com o olhar nas perspectivas recentes
suscitadas pelas leituras narrativas101. Uma leitura narrativa do Apo-
calipse podería confirmar que João de Patmos constrói uma repre-
sentação simbólica da realidade, com a finalidade de desconstruir o
mundo de seus leitores.
Perspectivas da Wirkungsgeschichte. Não se deve esquecer, en-
fim, o lugar particular que o Apocalipse assume na história da Igreja
e, mais amplamente, na história dos movimentos dissidentes. Cer-
tas passagens do Apocalipse têm sido objeto de uma recepção toda
particular. Mencionamos Apocalipse 12 e suas três figuras simbóli-
cas (a mulher, a criança e o dragão) ou, ainda, Apocalipse 20 e sua
apresentação do milênio. Deve-se assinalar, igualmente, a impor-
tância do Apocalipse na história da arte. Tudo isso leva a fazer da
história da recepção do texto (Wirkungsgeschichte) do Apocalipse
um capítulo especial da pesquisa, que vai muito além do quadro es-
trito da exegese".
6. B ib l io g r a f ia
Comentários
AUNE, David E. Revelation. Waco, Word Books, 1997-1998 (WBC 52). 3 v.
BEALE, Gregory K. The Book o f Revelation. Grand Rapids, Eerdmans,
1998.
511
A tradição joanina
Leitura prioritária
BAUCKHAM, Richard J. The Theology o f the Book o f Revelation. Cam-
bridge, Cambridge University Press, 1993 (N ew Testament Theo-
logy).
CUV1LL1ER,Elian. Les apocalypses du Nouveau Testament. Cahiers
Évangile 110 (1999).
PREVOST, Jean-Pierre. Pour lire Γ Apocalypse. Paris/Ottawa, Cerf/No-
valis, 1991.
História da pesquisa
FEUILLET André. LApocalypse. Etat de la question. Paris-Bruges, Des-
clée de Brouwer, 1963 (Studia Neotestamentica. Subsidia 3).
512
O apocalipse de João
Estudos particulares
BAUCKHAM, Richard J. The Climax o f the Prophecy: Studies on the Book
of Revelation. Edinburgh, Clark, 1993.
Bovon, François. Le Christ de 1’Apocalypse. In:-------- . Revelations et écri-
tures. Nouveau Testament et littérature apocryphe chretienne. Ge-
nève, Labor et Fides, 1993, p. 113-129 (Monde de la Bible 26).
-------- . Possession ou enchantement. Les institutions romaines selon
!’Apocalypse de Jean. In: —!---- . Révélations et écritures. Nouveau
Testament et littérature apocryphe chretienne. Genève, Labor et
Fides, 1993, 131-146 (Monde de la Bible 26).
HEMER, Colin J. The Letters to the Seven Churches o f Asia in Their Local
Setting. Sheffield, JSOT Press, 1986 (JSNTSS 11).
KARRER, Martin. Die Johannesoffenbarungals Brief Studien zu ihrem lite-
rarischen, historischen und theologischen Ort. Gottingen, Vanden-
hoeck und Ruprecht, 1986 (FRLANT 140).
KRAYBILL, J. Nelson. Imperial Cult and Commerce in John’s Apocalypse.
Sheffield, Sheffield Academic Press, 1996 (JSNTSS 132).
PRIGENT Pierre. Apocalypse et Liturgie. Neuchâtel, Delachaux etNiestlé,
1972 (Cahiers théologiques 52).
-------- . Au temps de !’Apocalypse. 1. Domitien. RHPR 54 (1974) 455-483.
-------- . Au temps de 1’Apocalypse. II. Le culte imperial. RHPR 55 (1975)
215-235.
-------- . Au temps de l’Apocalypse. III. Pourquoi les persécutions? RHPR
55 (1975) 341-363.
513
A tradição joanina
Coleção de artigos
LAMBRECHT, Jan (éd.). LApocalypse johannique et I’Apocalyptique dans
le Nouveau Testament. Gembloux, Duculot, 1980 (BEThL 53).
514
Λ
As epístolas católicas
CAPITULO
23
A epístola de Tiago
François Vouga
517
A s epístolas católicas
1. A p r e s e n t a ç ã o
A epístola de Tiago lança um olhar abrangente sobre a vida eco-
nômica e social que envolve o cristianismo primitivo; ela oferece às
comunidades cristãs uma lição de ética social de grande acuidade.
Sua linguagem não é especulativa; parte de uma observação precisa
da vida cotidiana dos cristãos, mas também do homem do início do
império. A cultura única e a unidade de língua herdadas do helenis-
mo, a paz assegurada por Roma em toda a bacia mediterrânea fazem
do mundo ocidental um grande espaço de prosperidade econômica
e de trocas intensivas de mercadorias, idéias e pessoas. Engajadas,
material e espiritualmente, na mobilidade de uma sociedade que pro-
mete tanto as ascensões vertiginosas como a miséria, as pessoas cuja
existência Tiago evoca perdem sua identidade e deixam esboroar-se
o que constitui o essencial de sua vida (Tg 4,13-5,6). Enraizado numa
espiritualidade veterotestamentária e numa tradição de palavras de
Jesus, frequentemente semelhantes às do Sermão da Montanha (Mt
5-7), Tiago opõe à ideologia dominante uma ética da pobreza; a quem
a ela aderir ele promete não somente a salvação escatológica (1,21;
2,14; 4,12.15; 5,20), mas o lucro da vida e da felicidade presente.
/. 1. Gênero literário
Do ponto de vista literário, a epístola de Tiago se apresenta, antes
de tudo, como uma enciclica, isto é, como uma carta circular destina-
da à Igreja universal, enviada por Tiago, servidor de Deus e do Senhor
Jesus Cristo, às doze tribos da diáspora. Essa denominação dos desti
1.2. Estrutura
Saber se a apresentação dos argumentos segue ou não uma ordem
sistemática permanece uma questão em aberto. Se há uma unidade
na demonstração, ela é de ordem temática e permanece implícita. Di-
ferentemente das epístolas de Paulo, de Pedro ou de João, Tiago se
contenta em justapor os elementos que constituem sua parênese.
519
A s epístolas católicas
2 . C o m p o s iç ã o
Por estranho que pareça no interior do cânon neotestamentário,
o gênero argumentative que dá à epístola de Tiago sua estrutura
fragmentada e seu estilo figurado, realista e concreto é bem o estilo
tanto da pregação moral dos filósofos helenísticos como da tradição
sapiencial do Sirácida ou do livro da Sabedoria. Pode-se encontrá-lo
no relato que os Fragmentos de Teles fazem do ensino cínico de Bion
sobre a pobreza, também nos propósitos de Diógenes e Antístenes,
citados por Diógenes Laércio, além de na pregação de Jesus, pelo
menos na forma que lhe conferem o Evangelho segundo Tomé, a Fon-
te Q ou o Sermão da Montanha (H. Kòster4). O pensamento não se
constrói por uma série de silogismos e de demonstrações lógicas; ele
associa cenas curtas de diálogo fictício a seqüências de paradoxos,
que por sua ironia e sua exatidão às vezes beiram a pilhéria. Vê-se
que o autor da epístola é uma pessoa culta e instruída na escola he-
lenística da retórica.
Em todo o Novo Testamento, o vocabulário de Tiago é o mais
rico (encontram-se nele 63 hapax neotestamentários); é também
o mais culto. Tiago não hesita em forjar termos novos (13 termos
gregos parecem aparecer nele pela primeira vez). Ele se serve de
um grande repertório de conhecimentos literários e filosóficos
para aclarar o mundo que o cerca e interpretar a realidade que
520
A epístola de Tiago
3 . M e io e c ir c u n s t â n c ia s h is t ó r ic a s d e p r o d u ç ã o
Tanto o meio de origem e data como o autor e os destinatários da
epístola de Tiago constituem um enigma para a pesquisa histórica
e literária. As hesitações dos pesquisadores estão ligadas à estra-
nheza do escrito em relação ao desenvolvimento do corpus paulino
(malgrado Tg 2,14-26), à história da missão apresentada pela obra
lucana e à história do judaísmo, da Guerra Judaica e da destruição
do Templo (que nos servem de marcos para estabelecer a cronolo-*45
3 .1. Autor
A própria epístola se apresenta como a obra de “Tiago, servo de
Deus e do Senhor Jesus Cristo” (1,1); mas essa assinatura mais cau-
sa do que resolve os problemas.
522
A epístola de Tiago
523
A s epístolas católicas
524
A epístola de Tiago
3 .2 . Data da composição
O terminus a quo da datação da epístola é sugerido pela argumen-
tação de 2,14-26; essa passagem retoma tão maciçamente a termi-
nologia das grandes cartas paulinas que é difícil não supor no autor
um conhecimento da epístola aos Romanos e, talvez, da epístola aos
Gaiatas. Quatro razões:
a) a epístola de Tiago emprega aqui (2,21.24.25) o verbo jus-
tificar, central (24 ocorrências) na teologia das cartas pau-
linas;
b) o substantivo da justiça, que aparece umas cinquenta ve-
zes em Paulo, só aqui é utilizado no sentido da justificação
(2,23), ao passo que 1,20 e 3,18 lhe conferem uma signifi-
cação diferente;
c) o conceito de fé, que se repete cinco vezes no resto da
epístola (1,3.6; 2,1.5; 5,15), só aqui é oposto a obras
(2,14.17.18.18.18.20.22.24.26);
d) o exemplo de Abraão (2,20-24) retoma, invertendo-a, a
argumentação exegética de Paulo em Romanos 4,1-12 e
Gálatas 3,6-9.
Segue-se daí que a epístola de Tiago muito provavelmente foi
redigida, no mínimo, no fim dos anos 50 ou no início dos anos 60.
Franz Mussner (1964)7, Peter H. Davids (1982) e Luke Timothy Jo-
hnson (1995) defendem uma datação alta.
Um terminus ad quem é sugerido pela imagem das Igrejas dada
pela epístola. Nela não transparece nada do desenvolvimento dos
ministérios observável nas epístolas deuteropaulinas e nas pastorais.
525
A s epístolas católicas
526
A epístola de Tiago
3.4. Destinatários
O endereço designa os destinatários como as “doze tribos que
vivem na dispersão”. E claro que esse endereço não deve ser enten-
dido ao pé da letra: os leitores aos quais se dirige a argumentação
não são judeus, mas cristãos. A ausência na epístola de qualquer
alusão às problemáticas próprias do judeu-cristianismo (observân-
cia da circuncisão, do sábado e das regras de pureza alimentar; cf
Cl 2,1-21, Rm 14,1-15,13 etc.) permite pensar que ela é escrita para
pagão-cristãos ou para comunidades nas quais a origem judaica ou
pagã não cria mais conflitos de identidade.
A noção de dispersão na diáspora implica o universalismo da car-
ta. O endereço não constrói um círculo de destinatários reunidos
geograficamente, como o fazem todas as epístolas paulinas ou a pri-
meira epístola de Pedro, mas implica, ao contrário, sua difusão no
mundo pagão.
Se a epístola não conhece fronteiras geográficas, ela estabelece,
em compensação, fronteiras sociais. A linguagem da epístola cons-
trói, com efeito, uma relação contraditória entre a riqueza e a as-
sociação aos “irmãos”; aos “ricos” se opõem os irmãos pobres (1,9-
11), e os ricos não são jamais chamados de irmãos. A razão disso é
teológica: foi aos pobres que Deus escolheu para torná-los ricos na
fé (2,1-13; 5,1-11). Assim também a epístola é dirigida aos pobres.
A ausência de qualquer alusão às relações senhor-escravo e as di-
ficuldades sociais evocadas correspondem a pessoas que vivem em
situações precárias, mas são livres. São pobres (2,6), mas devem
prover à sua subsistência (2,15-17). São tentadas pelo conforto dos
ricos (2,1-13; 5,1-6), mas se encontram, ao mesmo tempo, desarma-
das diante do poder deles (2,1-13). São, sem dúvida, pessoas simples,
os pequenos9, que se recrutam entre os pequenos camponeses ou,
527
A s epístolas católicas
4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
4.1. A fé e as obras: Tiago e Paulo
O conjunto da argumentação de Tiago 2,14-26, que se apresen-
ta como uma espécie de digressão entre 2,1-13 e 3,1-13, tende visi-
velmente a se opor a uma compreensão da fé cristã que pretende
distinguir fé e obras. Para Tiago, a fé sem as obras é inútil, vazia,
morta (2,18.20.26); ela não pode salvar (2,14) e, segundo a fórmula
provocativa e paradoxal de 2,26, ela é como o corpo sem a alma.
Para entender o sentido da argumentação, é importante observar
quais são suas premissas. De um lado, o termo fé, que em todo o
resto da epístola designa a confiança ativa dos crentes (1,3.6; 2,1.5;
5,15), torna-se em 2,14-26 a demonstração verbal de uma confis-
são puramente formal, à qual os próprios demônios podem se as-
sociar (2,19). Segue-se daí que a fé ativa nas obras, e que as obras
concretizam (2,22), é a fé que se deve pedir na oração (1,6); é isso
que Paulo entende por “a fé que age pelo amor” em Gálatas 5,6. A
segunda premissa da argumentação é a existência de uma oposição
que podería ser estabelecida pelos irmãos entre fé e obras. Ora, é
importante notar que também essa oposição é estranha ao pensa-
mento paulino. Com efeito, nas epístolas aos Romanos e aos Gála-
528
A epístola de Tiago
529
A s epístolas católicas
ses para entrar na liberdade convivial do Reino. A partir daí, ele em-
preende uma crítica teológica e antropológica da pobreza; enquanto
os ricos apodrecem no desespero e na miséria a que os condenam
suas riquezas (4,13-5,6), Deus escolheu os pobres para torná-los
ricos na fé (2,1-13). Ele reformula também o Evangelho como uma
obediência paciente ao apelo que Deus dirigiu a seus destinatários.
A razão pela qual a epístola insiste na vocação dos cristãos à po-
breza não é, prioritariamente, uma preocupação de ética social. A
injustiça econômica é, de fato, para Tiago, uma conseqüência da des-
graça existencial a que a riqueza condena (5,1-6). A análise de Tiago é
mais de ordem antropológica. A busca da riqueza é uma procura de
instabilidade (1,5-8), porque a posse da riqueza é um bem perecível
(1,9-11), que leva as pessoas a passar ao largo da vida (4,13-17); ao
mesmo tempo em que lhes dá a ilusão da segurança e do conforto,
ela os consome e os embota por dentro (5,1-6).
Seria, contudo, um equívoco entender a ética de dissidência social
da pobreza, preconizada pela epístola de Tiago, como um apelo à
ascese. O convite à pobreza é, ao contrário, a oferta evangélica de
viver na liberdade que resulta da confiança na providência de Deus;
é ela que dá o fruto precoce e o fruto temporão (5,7-11). Essa certe-
za é a força que permite manter sua identidade em face do confor-
mismo social, da ambição e do arrivismo; ela torna capaz de resistir
à fascinação dos poderes do mundo (4,1-10); ela permite enfrentar
fielmente, e na perseverança, a precariedade do real (1,2-4; 5,7-11).
5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
O paradigma do comentário de Martin Dibelius10e a discussão do
conjunto de suas teses permanecem no centro da pesquisa recente.
Segundo Martin Dibelius, a epístola de Tiago se apresenta como
um discurso moral de alcance geral, que não pressupõe nem con-
texto de comunicação, nem mensagem particular. A parênese é
constituída, à semelhança do A d Demonicum do Pseudo-lsócrates,
530
A epístola de Tiago
6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
BURCHARD, Christoph. Der Jakobusbrief. Tübingen, Mohr, 2000 (H NT
15,1).
CANT1NAT, Jacques. Les Epítres de Saint Jacques et de Saint Jude. Paris,
Gabalda, 1973 (Sources bibliques).
D1BEL1US, Martin. Der Brief des Jakobus. Gottingen, Vandenhoeck und
Ruprecht, "1964 [1921]; ed. ingl.: DIBELIUS, Martin, GREEVEN,
Heinrich. James, A Commentary on the Epistle o f James. Philadel-
phia, Fortress Press, 1976 (Hermeneia).
JO H N SO N , LukeT The Letter o f James. N ew York, Doubleday, 1995 (AB
37 A).
LAWS, Sophie. A Commentary on the Epistle o f James. London, Black,
1980 (Harper’s NTC).
ROPES, James H. A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle o f
St. James. Edinburgh, Clark, 1916 (ICC).
SCHN1DER, Franz. Der Jakobusbrief. Regensburg, Pustet, 1987 (RNT).
SIMON, Louis. Une éthique de la sagesse. Commentaire de Γépítre de Jac-
ques. Genève, Labor et Fides, 1961.
VOUGA, François. L épitre de saint Jacques. Geneve, Labor et Fides, 1984
(CNT 13a).
531
A s epístolas católicas
Leitura prioritária
BOUTTIER, Michel, AMPHOUX, Christian-Bernard. La predication de
Jacques le Juste. £77? 54 (1979) 5-16.
TROCME, Etienne. Les Eglises pauliniennes vues du dehors: Jacques
2,1-3,13. StEv 18 (1964) 660-669.
Estudos particulares
CO TH ENET Edouard. La Sagesse dans Ia lettre de Jacques. In: TRU-
BLET, Jacques (éd.). La Sagesse biblique. De Γ Ancien au Nouveau
Testament. Paris, Cerf, 1995, p. 413-419 (LeDiv 160).
KONRADT, Matthias. Christliche Existenz nach dem Jakobusbrief. Gõttin-
gen, Vandenhoeck und Ruprecht, 1988 (SUNT 22).
POPKES, Wiard. Adressaten, Situation und Form des Jakobusbr. “A Ia re-
cherche du temps de Jacques”. In: MARGUERAT, Daniel, ZUMS-
TEIN, Jean (éds.). La mémoire et le temps. Mélanges P Bonnard.
Genève, Labor et Fides, 1991, p. 235-257 (Monde del la Bible 23).
532
CAPITULO
24
A primeira epístola de Pedro
Jacques Schlosser
1. A p r e s e n t a ç ã o
/. 1. Gênero literário
Sob a influência das hipóteses que associaram muito intimamente
I Pedro ao batismo, até mesmo à celebração do batismo, classifica-
se, às vezes, I Pedro de "homília”. Para o texto de que dispomos
é preciso renunciar a essa qualificação. Com efeito, em I Pedro se
identificam facilmente características formais análogas às das cartas
paulinas, tanto no início (remetente, destinatários, saudação) como
no fim do escrito (saudações, indicações biográficas, votos de paz).
533
A s epístolas católicas
Conforme 5,12, Pedro escreveu sua carta circular para exortar e para
testemunhar. Esses dois verbos correspondem bem ao conteúdo e à
maneira da carta: ela mistura a exortação ética e a recordação dos
grandes eixos do querigma cristão.
1.2. Plano
O plano da carta é claramente descoberto se se observa a repeti-
ção de certos elementos formais: “caríssimos” (2,11 e 4,12), “porque”
(1,16.24; 2,6) ou “por isso” (1,13), "portanto” (2,1; 4,1.7; 5,1.6) e o ver-
bo “submeter-se” (2,13.18; 3,1.5). O esquema de composição, muito
freqüente na epístola, consiste em opor a um enunciado negativo uma
afirmação positiva (“não... m as...”); ele é útil para a detecção das
unidades menores. Deve-se prestar atenção, também, à repartição
desigual dos inúmeros imperativos. As indicações mais úteis, porém,
são fornecidas pela coerência temática da maior parte das unidades.
U -2 Prefácio epistolar
534
A primeira epístola de Pedro
/. 3. Unidade da carta
Boa no conjunto, a organização da carta, todavia, surpreende
eventualmente. A promessa do socorro divino (4,10) é seguida de
uma doxologia (4,11), com a qual a carta podería terminar. A com-
paração de 3,13-17 com 4,12-19 revela um tema geral comum, vocá-
bulos temáticos idênticos ou aparentados, particularmente o verbo
ττάοχω (“sofrer”) e a expressão “a vontade de Deus” (3,17; 4,19).
Mas o tema comum parece se acompanhar de variações: no segun-
do texto (4,12-19), a situação dos cristãos parece mais angustiante.
De modo mais geral, julga-se poder constatar que 1 Pedro 1,1—4,11 é
rico em alusões batismais, ao passo que não é esse o caso a partir de
4,12. Baseados nas observações assim resumidas, diversos autores
julgaram, seguindo R. Perdelwitz (1911), que 1 Pedro era compositor
uma homília batismal (1,3-4,11) teria sido juntada a uma carta (1,1-2
+ 4,12-5,14), redigida em reação a uma situação crítica. Essa hipó-
tese, que conheceu em suas diversas variantes um grande sucesso
na pesquisa antiga, não é mais sustentada hoje, porque os indícios
invocados não parecem suficientemente probantes. Primeiramente,
uma doxologia pode se encontrar em lugar diferente do fim de um
escrito (ver, por exemplo, Rm 9,5; Ef 3,21). Em seguida, as ligações
entre 1,3-4,11 e o resto são inúmeras; as diferenças entre 3,13-17 e
4,12-19 parecem devidas menos à objetividade dos fatos do que à
estratégia de um autor que adota pontos de vista sucessivos, mas
complementares, e além disso se compraz em dramatizar.
2 . M e io h is t ó r id o d e p r o d u ç ã o
2.1. Lugar
O autor parece conhecer bem a situação concreta das comunida-
des da Ásia Menor às quais se dirige, o que ficaria explicado caso se
admitisse que ele é de lá. A história da recepção de 1 Pedro aponta
no mesmo sentido: os primeiros traços nítidos aparecem nos autores
da Ásia Menor (Policarpo de Esmirna, Aos filipenses 1,3; 8,2,1 etc.),
assim como a primeira atribuição explícita da carta a Pedro (Ireneu,
Contra as heresias IV, 9,2; 16,5; V,7,2). Há, portanto, bonsargumen-
535
As epístolas católicas
2.2. Destinatários
As precisões geográficas fornecidas por 1 Pedro 1,1 situam os
destinatários nas províncias romanas (de preferência a regiões não-
administrativas) que abrangem uma grande parte da Ásia Menor;
duas delas (Ásia, Galácia) são terras da missão paulina.
A imagem do perfil sócio-religioso1 dos destinatários dada pela
epístola parece um pouco confusa. Os traços mais nítidos estabe-
lecem claramente sua proveniência pagã, marcada — segundo uma
terminologia tradicional — por ignorância, imoralidade e idolatria
(1,14.18; 2,25; 4,3 s.; ver 2,10). Mas o importante recurso ao Antigo
Testamento, que vai da alusão discreta à citação formal, servindo
de base para a argumentação, leva certos críticos a admitir que as
comunidades a que se dirigia eram mistas (pagão-cristãs e judeu-
cristãs); isso não seria de estranhar na Ásia Menor. Mas outras ex-
plicações continuam possíveis: 1) antes de sua adesão ao Evangelho,
esses pagãos estavam já às margens do judaísmo, admirando seu
monoteísmo e sua moral elevada; 2) a iniciação nas raízes judaicas1
1 Para um apanhado mais amplo dos aspectos sociais, ver John ELLIOT,
Social-Scientific Criticism o f the New Testament. An Introduction, London,
SOCK, 1995, 70-86.
536
A primeira epístola de Pedro
537
As epístolas católicas
538
A primeira epístola de Pedro
das na carta, eram de fato possíveis sob não importa qual rei, por
iniciativa das autoridades locais, que podiam reivindicar aquilo que o
direito romano lhes reconhecia: a coercitio, de modo geral um poder
de polícia destinado a manter a ordem, como mostra muito bem o
exemplo de Plínio, o Jovem2.
Outras indicações devem ser levadas em consideração. 1) O em-
prego do pseudônimo “Babilônia” para designar Roma é difícil de
se imaginar antes de 70. 2) A presença de presbíteros (lPd 5,1-5)
nas comunidades da Ásia Menor supõe um estágio bem posterior
a Paulo, mas a coabitação entre esses ministros e os portadores de
carismas (I Pd 4,10 s.) dá a entender que ainda não estamos no nível
das pastorais. 3) A difusão do Evangelho no norte da Ásia Menor vai
muito além das províncias já alcançadas no tempo de Paulo, o que
supõe tempo, tanto mais que, diferentemente das primeiras provín-
cias evangelizadas, as do Norte eram mais rurais que urbanas.
Parece preferível, no fim das contas, colocar nossa carta entre
70 e 90.
2.4. Autor
"Pedro, apóstolo de Jesus Cristo” (1,1), deve manifestamente
designar Simão Pedro. Pode-se confiar nessa informação ou deve-
se contar com um procedimento de pseudonímia? A questão seria
resolvida se pudéssemos considerar absolutamente certas tanto a
data que acaba de ser proposta como a tradição que fixa a morte de
Pedro por ocasião da perseguição de Nero; mas mesmo sobre esse
segundo ponto a certeza não é total.
Na própria carta, nada confirma diretamente que o apóstolo
Pedro seja o autor. As referências às palavras de Jesus (p. ex. IPd
2,12 / / Mt 5,16; IPd 3,14 + 4,14 / / Mt 5,10-12) não supõem nada
mais do que um contato com a tradição evangélica. Quanto à forte
pretensão do autor de ser “testemunha do sofrimento de Cristo”
(IPd 5,1), ela é expressa mediante uma longa aposição ao sujeito,
539
A s epístolas católicas
540
A primeira epístola de Pedro
541
A s epístolas católicas
3 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia
Convencido de que os profetas de antanho estavam a serviço da
geração escatológica e expressavam antecipadamente o Evangelho
(ver lPd 1,10-12), Pedro podia facilmente recorrer ao Antigo Testa-
mento; ele o faz abundante e explicitamente (1,16; 2,6; ver também
1,24). Esta é, de fato, a única herança expressamente reivindicada.
Mas, desde que muitos elementos veterotestamentários são integra-
dos, sem mais, no texto produzido por nosso autor, por que não se
daria o mesmo com elementos de outras fontes? No passado, havia
542
A primeira epístola de Pedro
muito interesse por essa questão, sobretudo no que diz respeito aos
contatos com as cartas de Paulo. Admitia-se, geralmente, a depen-
dência literária entre 1 Pedro e Efésios, e mais ainda entre 1 Pedro
e Romanos. As recentes revisões da questão levaram a conclusões
menos seguras e põem mais freqüentemente em dúvida a realida-
de dos contatos literários. Mas a questão do “paulinismo” de Pedro
continua em pé. Com efeito, 1 Pedro utiliza4 termos ou expressões
teologicamente significativos que parecem provir do mundo de Pau-
lo; por exemplo, “em Cristo” (IPd 3,16; 5,10.14), ou palavras como
“graça (χάρις)”, "apocalipse (άποκάλυψις)”, “chamar (καλέω)”,
“obediência (ύπακοή)”. Podem-se também sublinhar traços mais ge-
rais, especialmente a reflexão sobre o sofrimento dos cristãos como
participação no sofrimento de Cristo (ver abaixo 4) ou a dialética
entre o indicativo da salvação e o imperativo convidando à ação (por
exemplo, IPd 1,17 s.; 1,22 s.). As diferenças, contudo, são conside-
ráveis. Por exemplo: a metáfora eclesial do “corpo”, tão importante
em Paulo, está ausente em 1 Pedro; a questão da Lei e da relação
com Israel não aparece em 1 Pedro, lalvez se tenha razão de situar
1 Pedro sob a influência paulina5, mas que se evite de fazer dela um
escrito quase paulino. O parentesco deve ser procurado, talvez, do
lado das raízes comuns.
A pesquisa detectou nas cartas paulinas alguns enunciados de fé
e elementos de hinos provenientes, sem dúvida, da primeira geração
cristã, antes dos escritos6. Em 1 Pedro também as características
estilísticas (emprego de relativos e de particípios, paralelismo etc.)
chamam a atenção para fragmentos que sem dúvida têm a mesma
procedência: 1,18-21; 2,21-25; 3,18-22. Houve um tempo em que se
pensava poder restituir, quase detalhadamente, esses empréstimos
543
A s epístolas católicas
4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
Dirigindo-se a destinatários que sofrem a opressão do meio am-
biente em sua vida cotidiana, o autor os "encoraja” (5,12) ao subli-
nhar, principalmente, dois pontos: o sentido do sofrimento e o valor
e a dignidade da existência cristã aos olhos de Deus.
Entre os diversos termos que evocam o que os cristãos têm de
sofrer em sua existência, o verbo πάσχω (“sofrer”) e o substantivo
correspondente πάθημα (“sofrimento”) se destacam nitidamen-
te. O verbo é empregado oito vezes (2,19.20; 3,14.17; 4,lb.I5.19;
5,10) a que se junta o emprego do substantivo (5,9). As mesmas
palavras designam a paixão e morte de Cristo, três vezes o subs-
tantivo (1,11; 4,13; 5,1) e quatro vezes o verbo (2,2lb.23; 3,18; 4,1).
A justaposição, já por si mesma, sugere uma ligação entre Cristo e
os crentes. Mas nosso autor não se priva de explicar essa relação.
No âmbito de uma grande unidade, ele o faz ao articular o sofri-
mento inocentemente suportado pelos empregados domésticos
544
A primeira epístola de Pedro
e o que Jesus assumiu, quando não havia nele nem pecado, nem
falsidade (2,18-21a + 21b-25). A conexão é valorizada também,
e de diversas maneiras, nas unidades menores: o sofrimento não
merecido deve ser aceito porque essa foi a atitude de Cristo (3,17
s.); o que importa é ter a mesma convicção que tinha Cristo para
aceitar a necessidade da passagem pelo sofrimento; sobretudo, e é
aqui que Pedro mais se aproxima de Paulo (Fl 3,10), as provações
suportadas são uma “participação” (κοινωίω) nos sofrimentos de
Cristo, e essa via desemboca também na glória (4,13), como no
caso de Cristo (4,13; 5,1). Essa perspectiva escatológica é, aliás,
um reconforto que Pedro não hesita em propor a seus destinatários
desde a entrada no assunto (1,3-5.7.9.13) e em relembrar no fim de
sua carta (5,6.10).
Na penosa situação em que se encontram, os cristãos da Asia
Menor devem encontrar reconforto na consciência de pertencer
a um vasto conjunto, mais exatamente, a uma fraternidade, que é
das dimensões do mundo (5,9). Mais profundamente, o sofrimen-
to representado pelo fato de ser “sem verdadeira morada” (2,11:
πάροικος; 1,17: παροικία) é neutralizado pela consciência de terem
se tornado, pela união com Cristo, uma morada (οίκος) espiritual,
templo e família ao mesmo tempo (2,5). Já chamamos a atenção
para a importância de 2,5.9-10. A rejeição contrapõe-se uma se-
paração benéfica, à marginalização sofrida no plano social corres-
ponde antiteticamente a eleição divina, à desonra acarretada pelas
suspeitas, calúnias e injúrias se opõe a participação na glória de
Cristo. Seu nome é, sem dúvida, para eles uma fonte de dificulda-
des, mas eles o carregam com alegria e orgulho (4,14), porque ele
abriga sua esperança.
5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
A interpretação, outrora dominante10, do vocabulário do es-
trangeiro apoiava-se em diversos paralelos (Fl 3,20; Hb 3,14) para
Ver por exemplo Karl Hermann SHELKLE, Die Petrusbrief. Der Judas-
brief Freiburg, Herder,31970, 19: "Heimatlosigkeit in Zeit und Welt”.
545
As epístolas católicas
6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
ACHTEMEIER, Paul J. / Peter, A Commentary on First Peter. Minneapolis,
Fortress Press, 1996 (Hermeneia).
BROX, Norbert. Der erste Petrusbrief. Zürich/Einsiedeln/Koln, Neukir-
chen-Vluyn/Benzigerf/Neukirchener Verlag, 21986 [I. ed. 1979]
(EKK XXI).
11 Ver sobretudo Reinhard FELDMEIER, Die Christen als Fremde. Die Meta-
pher dr Fremde in der antiken Welt, im Urchristentum und im I.Petrusbrief!
Tübingen, Mohr, 1992, 187-192.
12 Ver ACHTEMEIER, / Peter..., sobretudo 56, 7I, 82, nota 42, I25, I74.
546
A primeira epístola de Pedro
Leitura prioritária
CHE VALUER, Max-Alain. Condition et vocation des chrétiens en dias-
pora. Remarques exégétiques sur la 1* EpTtre de Pierre. RevSR 48
(1974) 387-398.
História da pesquisa
COTHENET, Edouard. La Premiere de Pierre: bilan de 35 ans de recher-
ches. A N R W , Berlin, de Gruyter, 11,25.5 (1988) 3.685-3712.
Bibliografia exaustiva
CASURELLA, Anthony. Bibliography o f Literature on First Peter. Leiden,
Brill, 1996 (NTTS 23).
Estudos particulares
BOVON, François. Foi chrétienne et religion populaire dans Ia première
Építre de Pierre. ETR 53 (1978) 25-41.
ELLIOTT, John H. A Home for the Homeless: A Sociological Exegesis o f 1
Peter, its Situation and Strategy. Philadelphia, Fortress Press, 21990
[L ed. 1981].
FELDMEIER, Reinhard. Die Christen als Fremde. Die Metapher der Frem-
de in der antiken Welt, im Urchristentum und im 1. Petrusbrief Tii-
bingen, Mohr, 1992 (W UNT 1,64).
LAMAU, Marie-Louise. Des chrétiens dans le monde. Communautés pétri-
niennesau lersiècle. Paris, Cerf, 1988 (LeDiv 134).
PERROT, Charles (éd.). Etudes sur la première lettre de Pierre. Congrès de
Γ ACFEB, Paris 1979. Paris, Cerf, 1980 (LeDiv 102).
547
A s epístolas católicas
548
CAPITULO
25
A segunda epístola de Pedro
Jacques Schlosser
1. A p r e s e n t a ç ã o
/. /. Gênero literário
Ao contrário de 1 Pedro ou das cartas paulinas, 2 Pedro não tem
saudações finais; mas, como esses escritos, abre-se com um prefácio
(1,12 )־que permite classificá-la entre as cartas do Novo Testamen-
to, de acordo com a indicação expressa de 3,1 (επιστολή, “carta”).
No entanto, a alusão à sua morte próxima (1,14), a insistência na
memória e a preocupação manifestada com o tempo da ausência
pressentida (1,12-15; 3,1 s.) dão nitidamente a esta carta o colorido
549
A s epístolas católicas
1.2. Plano
O plano, em linhas gerais, sobre o qual os especialistas não diver-
gem muito, baseia-se nas indicações de conteúdo, mas sobretudo
nas observações formais (características epistolares, pronomes pes-
soais, conjunções, vocativos em referência aos destinatários, recor-
rências dos mesmos vocábulos...).
2. C o m p o s iç ã o l it e r á r ia
Em 2 Pedro 3,10 autor se refere, muito provavelmente, à primeira
epístola de Pedro e não a qualquer carta perdida de sua própria lavra.
550
A segunda epístola de Pedro
Judas 2 Pedro
4: apresentação dos adversários... 2,1-3: apresentação dos adversários.
“negam nosso único (δεσπότην) So- “negando o Senhor (δεσπότην) que os
berano e Senhor Jesus Cristo” resgatou”
5: quero "recordar-vos” embora 1,12: tenho intenção de “recordar-
“saibais” vos” embora já o "saibais”
6: os anjos decaídos, Deus “os man- 2,4: os anjos culpados "nos antros
tém” nas "trevas para o julgamento tenebrososs” são “guardados para o
do grande dia” julgamento”
7: “exemplo” de Sodoma e Gomorra 2,6 o mesmo “exemplo”
8: os adversários caracterizados pela 2,10: os adversários têm as mesmas ca-
carne, imundície, blasfêmia racterísticas; recorrência de palavras
raras como “soberania” ou "glórias”
9: o arcanjo Miguel “não se atreveu a 2,11: os anjos “não proferem... juízos
lançar um juizo ofensivo” ofensivos”
10: assimilação dos adversários a 2,12: mesmo tema, vários elementos
"animais irracionais” léxicos comuns
11b: exemplo do extravio de Balaão 2,15: exemplo de Balaão associado
ao tema do extravio
12a-c: as festanças dos adversários 2,13: mesmo tema geral com coinci-
dência de algumas palavras raras
I2d-I3: comparação dos adversários 2,17: comparações análogas; a ex-
com fenômenos naturais, especial- pressão “para quem é destinada a
mente com astros “votados para a escuridão das trevas” é utilizada para
eternidade à profundidade das trevas". os heréticos.
16: retrato dos adversários 2,18: retrato dos adversários,
17: lembrança das “palavras ditas de coincidência do termo raro υπέρογκα
antemão pelos apóstolos de nosso (enormidades)
Senhor Jesus Cristo” 3,2: lembrança das "palavras ditas
18: anúncio da vinda, “no fim dos de antemão pelos santos profetas";
tempos”, de "zombadores guiados menção dos “apóstolos”
por suas próprias paixões ímpias” 3,3: vinda “nos últimos dias” de
25: doxologia (dirigida a Deus) "zombadores levados por suas pai-
xões pessoais”
3,18: doxologia (dirigida a Cristo)
551
A s epístolas católicas
3 Christian GRAPPE, Images de Pierre aux deux premiers siècles, Paris, PUF;
1995,146.
553
As epístolas católicas
3.3. Lugar
O lugar de composição só pode ser determinado por via indireta.
As opiniões favoráveis são mais frequentes para Roma ou Alexandria.
Em favor do Egito, pode-se invocar, com legitimidade, a atestação do
escrito de Orígenes e o P72, e também do Apocalipse de Pedro, caso
esse escrito provenha efetivamente do Egito4; negativamente, subli-
nha-se a ausência de atestação em Roma mesmo, por exemplo, no
cânon de Muratori. Levando-se mais em conta os dados internos, a
preferência será por Roma: a escolha de “Pedro” como pseudônimo,
o testamento de Pedro e a alusão transparente à sua morte em 1,14,
a justaposição pacífica de Pedro e Paulo como fiadores da tradição, a
referência clara a 1 Pedro são os traços principais que convidam a ver
em 2 Pedro um escrito oriundo da comunidade cristã de Roma; a
afinidade difusa com / Clemente apóia essa hipótese.
3.4. Destinatários
Os destinatários da carta são “aqueles que receberam, pela jus-
tiça de nosso Deus e Salvador Jesus Cristo, uma fé do mesmo valor
que a nossa” (1,1), o que quer dizer: o conjunto dos cristãos, numa
perspectiva decididamente “católica”. Mas o conhecimento das car-
tas de Paulo, atribuído indiretamente aos destinatários, e a referên
554
A segunda epístola de Pedro
4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
Em 3,4, o autor reproduz, em estilo direto, o questionamento
da parusia que ele atribui aos “enganadores” (3,3); para tratar das
intenções teológicas do escrito, convém, portanto, evocar conjun-
tamente a questão dos opositores. Estes são qualificados de “fal-
sos doutores” (2,1). Por falta de indicações mais concretas e porque
nosso autor não argumenta, realmente, com eles, suas teses perma-
necem inapreensíveis; seu perfil espiritual e seus pressupostos não
podem ser definidos com precisão. Por um lado, eles parecem ser
animados por concepções de tendência gnóstica: insistência na rea-
lização já plena da salvação e reivindicação de uma liberdade (2,19)
que leva à indiferença no que diz respeito às exigências éticas da fé.
Mas isso não explica tudo. Devem-se levar em conta também os
efeitos de uma filosofia popular, marcada sobretudo pelo epicurismo,
que prescindia da transcendência e não se interessava por especu-
lações sobre o além; a segunda dessas características valia também
para as correntes judaicas próximas dos saduceus, como ilustram,
por exemplo, os termos que o Targum de Gênesis 4,8 põe na boca de
Caim: "Não há nem julgamento nem um outro mundo! Nada de re-
compensa para os justos, nem de castigo para os maus”. Em vez de
imaginar um grupo definido de opositores, vindos do exterior para
criar confusão nas comunidades cristãs, devemos contar com obje-
ções nascidas no interior delas5.
Os “falsos doutores” negadores da parusia são opostos aos após-
tolos cuja mensagem dizia respeito, precisamente, a “o poder e a
parusia [entenda-se: a manifestação no poder] de nosso Senhor Je-
sus Cristo” (1,16); a transfiguração do Senhor é lida aqui como uma
555
A s epístolas católicas
5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
Na exegese protestante alemã dos anos 1950-1970, a teologia de
2 Pedro — e a de Judas — parecia muito suspeita por causa de seu
“protocatolicismo”6; entende-se por essa expressão uma coisifica-
ção da fé em corpo de doutrinas, um valor determinante atribuído
à tradição eclesial, uma sacralização das especulações apocalípticas à
custa da cristologia e a substituição dos carismas pelos ministérios
institucionalizados. Esse julgamento está atualmente em processo
de revisão, por uma consideração mais matizada da situação con-
ereta e dos objetivos pastorais perseguidos por “Simão Pedro”7.
Ressaltar-se-á, de modo particular, a riqueza da substância cristoló-
556
A segunda epístola de Pedro
6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
BAUCKHAM, Richard J. Jude, 2 Peter. Waco, Word Books, 1983 (WBC
50).
FRANKEMOLLE, Hubert /. Petrusbrief, 2. Petrusbrief Judasbrief.
Wurzburg, Echter Verlag, 21990 (NEB.NT 18/20).
FUCHS, Eric, REYMOND, Pierre. La deuxième Építre de saint Pierre —
Lépttre de saint Jude. Neuchâtel, Delachaux et Niestlé, 1980 (CNT
13b).
VÒGTLE, Anton. Der Judasbrief, der 2. Petrusbrief. Solothurn/Neukir-
chen-Vluyn, Benziger/Neukirchener Verlag, 1994 (EKKXXII).
Leitura prioritária
COTHENET, Edouard. La tradition selon Jude et 2 Pierre. N TS 35 (1989)
407-420.
História da pesquisa
BAUCKHAM, Richard J. 2 Peter: An Account o f Research. ANRW , Ber-
lin, de Gruyter, 11,25.5 (1988) 3.713-3.752.
Estudos particulares
DSCHULNIGG, Peter. Der theologische Ort des zweiten Petrusbriefes.
BZ 33 (1989) 161-177.
557
As epístolas católicas
558
CAPÍTULO
26
A epístola de Judas
Jacques Schlosser
1. A p r e s e n t a ç ã o
1. 1. Gênero literário
Por causa da abundância de elementos bíblicos em Judas, há
alguma razão de aproximar o escrito do comentário bíblico (ho-
milia, midrash, pesher). A insistência do versículo 3 na expressão
“vos escrever” confirma, no entanto, a indicação fornecida pelos
versículos 1-2:0 gênero literário é o da carta. Os versículos 3-4 dão
a entender que o autor, por assim dizer, mudou de assunto no meio
do caminho: ele queria escrever a seus correspondentes a propó-
sito de “nossa salvação comum”, mas a urgência leva-o a reagir à
situação criada nas comunidades por agitadores. Vê-se, às vezes,
nesse traço um eco da história e, às vezes, o que parece mais pro-
559
As epístolas católicas
1.2. Plano
Presentes em grande número, os marcadores formais são revelado-
res da organização do conjunto. Podem-se notar as palavras-gancho, a
alternância de passado e presente nos tempos dos verbos, a relevância
do pronome “vós” (particularmente em 17 e 20), a recorrência de cer-
tos termos e, especialmente, da fórmula “e/ou esses” (8.10.12.16.19), a
designação “bem-amados”, a repetição do tema importante recordar/
lembrar-se (5.17). Considerando-se, além disso, o conteúdo, observa-
se o procedimento que consiste em propor um “texto” procedente de
uma autoridade seguido de um comentário que o atualiza (5-7 + 8; 9 +
10; 11 + 1 2 1 9 + 17-18 ;16 + 14-15 ;13) ־. O plano proposto le
esses indícios, aliás às vezes em tensão entre eles.
560
A epístola de Judas
2 . C o m p o s iç ã o
Judas se aproveita de uma rica herança. Para Judas 5-7, a fon-
te é o Antigo Testamento: o pecado dos anjos (Gn 6) e o crime de
Sodoma e Gomorra (Gn 18) são facilmente reconhecíveis; o castigo
do povo infiel, depois da saída do Egito (Jd 5), evoca, sem dúvida,
os acontecimentos de Números 14. Mas nosso autor lê o Antigo
Testamento à luz da tradição judaica, como mostram as seguintes
observações: a) a tradição judaica manifestava um vivo interesse pe-
los julgamentos exemplares, entre os quais figuravam, em primeiro
lugar, precisamente Sodoma e o dilúvio12; b) em vários pontos, a lei-
tura de I Henoc 6-19 é indispensável para a compreensão do texto de
Judas; c) a tradição judaica também oferece um esclarecimento pre-
cioso para o retrato dos indivíduos evocados em Judas 11, particular-
mente para Balaão, que se tornou o tipo do profeta venal; d) nosso
autor, caso único no Novo Testamento, chega até a propor (Jd 14)
uma citação formal de / Henoc 1,9. A esse empréstimo apocalíptico
absolutamente claro talvez se deva juntar a referência à negociação
empreendida pelo arcanjo Miguel, figura eminente na apocalíptica,
a respeito dos despojos de Moisés (Jd 9); mas a questão é complexa
demais e não pode ser resolvida de forma absoluta3. Deve-se, pelo
menos, reter que Judas se inspira em especulações apocalípticas do
judaísmo antigo.
Segundo sua própria indicação, o autor cita explicitamente uma
profecia tirada das “palavras que vos foram ditas de antemão pelos
apóstolos de nosso Senhor Jesus Cristo” (v. 14 s.). Procura-se em
vão essa profecia nos escritos cristãos que subsistem, mas ela tem
561
A s epístolas católicas
3 . M e io h is t ó r ic o d e p r o d u ç ã o
3.1. Autor
Não faltam no Novo Testamento personagens denominados
’Ιούδας, de modo que se deve prestar atenção ao qualificativo suple-
mentar “irmão de Tiago”. A associação dos dois nomes se apresenta
de forma elíptica, ’Ιούδας’ Ιακώβου, nas duas versões lucanas da lista
dos apóstolos (Lc 6,16; At 1,13); um genitivo de pertença pode desig-
nar a relação de fraternidade. Um Judas irmão de Tiago podería, en-
tão, ter feito parte do grupo dos Doze (ver Jo 14,22). Mas o genitivo
mencionado exprime mais habitualmente a relação de filiação: “Judas,
filho de Tiago”. Buscaremos, então, de preferência, uma outra série
de textos em que Judas aparece em companhia de Tiago, e em que
a relação de fraternidade é indiscutível: Marcos 6,3; Mateus 13,55.
Hegesipo, por seu lado, confirma que Judas era chamado “irmão do
Senhor segundo a carne” (Eusébio, História eclesiástica 111,20,1).
O autor de nossa epístola se apresenta, portanto, implicitamente
como irmão de Jesus. Boas razões para confiar nele são seu conhe-
cimento global da tradição bíblica e judaica, sua familiaridade com a
Bíblia hebraica e até com a versão aramaica de 1 Henoc; ele mani-
festa, ademais, desembaraço nas técnicas exegéticas, especialmente
na do comentário atualizador, análogo ao pesher de Qumran. Mas
apresentam-se duas objeções sérias. Por um lado, se a carta deve ser
datada do período subapostólico (ver 2.1), sua atribuição a Judas se
torna mais difícil — embora não impossível, sobretudo se Judas era
um irmão mais novo de Jesus, como sugere seu lugar (último ou pe-
núltimo) nas duas listas evangélicas (Mt 13,55 e Mc 6,3). Mais grave,
562
A epístola de Judas
563
A s epístolas católicas
4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
Qual é, então, a fé na qual e pela qual os destinatários devem se
engajar firmemente? Os dissidentes parecem ter posto em dúvida a
importância do futuro na soteriologia; teriam negado, particularmen-
564
A epístola de Judas
5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
Na exegese de Judas, como de resto para o conjunto constituído
pelas sete epístolas pastorais, parece que, aos poucos, começa a ga-
nhar terreno uma abordagem nova, a saber, a leitura canônica. Ela
consiste em ler e explicar cada epístola não mais somente em si mes-
ma, mas à luz do corpus das sete epístolas não-paulinas e em ligação
565
A s epístolas católicas
6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
BAUCKHAM, Richard J. Jude, 2 Peter. Waco, Word Books, 1983 (WBC 50).
FUCHS, Eric, REYMOND, Pierre. La deuxième épttredesaint Pierre— Lépltre
de saint Jude. Neuchátel, Delachaux et Niestlé, 1980 (CNT I 3b).
PAULSEN, Henning. DerZweite Petrusbrief undder Judasbrief. Gottingen,
Vandenhoeck und Ruprecht, 1992 (KEK 12,2).
VOGTLE, Anton. Der Judasbrief der 2. Petrusbrief. Solothurn/Neukir-
chen-Vluyn, Benziger/Neukirchener Verlag, 1994 (EKK22).
Leitura prioritária
COTHENET, Édouard. La tradition selon Jude et 2 Pierre. N T S 35 (1989)
407-420.
História da pesquisa
BAUCKHAM, Richard J. The Letter o f Jude: An Account o f Research.
A N R W , Berlin, de Gruyter, 11,25.5 (1988) 3.791-3.826; atualizado:
--------- . Jude and the Relatives o f Jesus in the Early Church. Edinbur-
gh, Clark, 1990, p. 134-178.
MÜLLER, Peter. Der Judasbrief ThR 63 (1998) 267-289.
Estudos particulares
BAUCKHAM, Richard J. Jude and the Relatives o f Jesus in the Early
Church. Edinburgh, Clark, 1990.
566
A epístola de Judas
567
A história do canon
CAPÍTULO
11
História do cânon do
Novo Testam ento
Jean-Daniel Kaestli
571
A história do cânon
D u a s m a n e ir a s d e c o n c e b e r a h is t ó r ia d o c â n o n
Qual foi o período decisivo desse processo? A partir de quando se
pode dizer que existe o cânon do Novo Testamento? A esse respeito,
podem-se adotar dois pontos de vista divergentes, correspondentes
a duas maneiras diferentes de compreender a noção de cânon.
O primeiro ponto de vista foi, por muito tempo, objeto de grande
consenso, representado especialmente pelos trabalhos de Harnack
e de Von Campenhausen. O período decisivo para a formação do
cânon do Novo Testamento situa-se na segunda metade do século
II. Por volta de 200, a idéia de cânon emergiu e o essencial de seu
conteúdo foi fixado. A autoridade dos componentes fundamentais
do Novo Testamento — quatro Evangelhos, treze cartas de Paulo,
Atos, I João e I Pedro — é reconhecida de modo geral. Essa situa-
ção de fato é atestada, com dificuldades menores, por testemunhos
do fim do século II e começo do século III, representando as princi
572
H istória do cânon do N o vo Testamento
י Albert C. SUNDBERG, The Old Testament o f the Early Church, Cambridge,
Mass., Harvard University Press, 1964.
2 ID., Towards a Revised History of the New Testament Canon, Studia
Evangélica, Berlin, Akademic Verlag, IV, Part I (1968) 452-461 (TU 102).
573
A história do cânon
Um d o c u m e n t o pa r a se o r ie n t a r : o F r a g m e n t o de M uratori
O Fragmento de Muratori, também chamado “Cânon de Mura-
tori”, é um texto latino de 85 linhas, conservado num manuscrito
de Milão do século VIII e publicado em 1740 pelo erudito italiano
L. A. Muratori. O texto, de uma qualidade deplorável, necessita de
numerosas correções e não deixou de suscitar conjecturas. Um fei-
xe de indícios permite concluir que ele foi composto por volta de
fins do século II e começo do século III (ver sobretudo 1. 73-77: aos
olhos do autor, Pio, bispo de Roma entre 140 e 155, viveu “muito re-
centemente no nosso tempo”) e provém de uma igreja do Ocidente
574
H istória do cânon do N o vo Testamento
575
A história do cânon
1. E v a n g e l h o s e c a r t a s p a u l in a s : a e m e r g ê n c ia d e d u a s
COLEÇÕES CANÔNICAS
/. 1. Os evangelhos: da tradição oral ã canonização do
quádruplo evangelho
O começo do Fragmento de Muratori está perdido, mas pode-se
ter certeza de que continha uma notícia sobre Mateus e uma notí-
cia sobre Marcos, da qual só as últimas palavras estão conservadas.
Nosso texto atesta claramente que o cânon dos quatro evangelhos
estava estabelecido no fim do século II. O fato de serem enumera-
dos (ver o adjetivo numeral das notícias sobre Lucas e sobre João)
é o indício mais evidente dessa fixação definitiva. Na mesma época,
ela é confirmada por várias outras fontes (Ireneu, Tertuliano, Cie-
mente de Alexandria).
Ireneu de Lião, em Contra as heresias, composta por volta de 180,
afirma vigorosamente a autoridade do evangelho quadriforme ou
“tetramorfo”. Numa passagem célebre (111,11,8), ele procura justi-
ficar o número quatro com a ajuda de analogias emprestadas da na-
tureza e da Escritura:
“Não pode haver um número maior, nem menor, de evangelhos. Com efei-
to, visto que há quatro regiões do mundo em que estamos e quatro ventos
576
H istória do cânon do N o vo Testamento
principais, e visto que, por outro lado, a Igreja está espalhada por toda a ter-
ra, e que ela tem por coluna e por sustentáculo o Evangelho e o Espírito de
vida, é natural que ela tenha quatro colunas que sopram, de todas as partes,
a imortalidade e concedem a vida aos homens. Donde decorre que o Verbo,
Artesão do universo, que está acima dos Querubins e mantém todas as coisas,
quando se manifestou aos homens nos deu o Evangelho em forma quádrupla
(τίτράμορφον το ίύαγγίλιον), embora sustentado por um único Espírito”.
577
A história do cânon
578
História do cânon do N o vo Testamento
"Se de qualquer parte vinha alguém que tinha estado em companhia dos
presbíteros, eu me informava das palavras dos presbíteros: o que tinham dito
André ou Pedro, ou Filipe, ou lom é, ou Tiago, ou João ou Mateus, ou qualquer
outro discípulo do Senhor; e o que dizem Aristion e o presbítero João, disci-
pulos do Senhor. Pois não achava que as coisas que vêm de livros fossem tão
úteis quanto as que vêm de uma palavra viva e duradoura” (Eusébio, História
eclesiástica III,39,4).
579
A história do cânon
580
H istória do cânon do N o vo Testamento
Justino conheceu ou não uma coleção que reunia os quatro evangelhos que
se tornarão canônicos? Em caso afirmativo, atribuiu-lhes uma autoridade ex-
clusiva? Justino cita frequentemente Mateus e Lucas, e uma vez Marcos (Mc
3,17 em Diálogo 106,3). E João? Cita ele João 3,3.5 em I Apologia 61,4 ou João
1,19 s. em Diálogo 88,7? As opiniões estão divididas. Dependem da resposta
a uma questão mais ampla: Justino dispõe de outras fontes, além dos evange-
Ihos canônicos, quando cita as tradições sobre Jesus? Com efeito, trata-se de
explicar a presença nele de alguns agrapha (Diálogo 35,3; 47,5), de detalhes
não-canônicos sobre a paixão (Diálogo 101,3; !Apologia 38,8) e, sobretudo,
do fato de que as palavras que ele cita divergem freqüentemente das formas
atestadas em Mateus e Lucas. Vários tipos de explicações têm sido propostas:
citações feitas de memória (mas as divergências são muito mais freqüentes
581
A história do cânon
O Diatessaron de Taciano
Taciano, nascido na Síria de pais pagãos e convertido ao cristia-
nismo, em Roma, sob a influência de Justino, é o autor de um Dis-
curso aos gregos, requisitório apaixonado contra o helenismo pagão.
582
H istória do cânon do N ovo Testamento
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A história do canon
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H istória do cânon do N o vo Testamento
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A história do cânon
586
H istória do cânon do N o vo Testamento
Uma das edições — sem dúvida a mais antiga — era baseada na simbólica do
número sete (Paulo, escrevendo a sete Igrejas, dirige-se à Igreja universal; ver o
Fragmento de Muratori) e contava as cartas duplas como uma única unidade.
A ordem era a seguinte; 1-2 Coríntios, Romanos, Efésios, 1-2 Tessalonicenses,
Gálatas, Filipenses, Colossenses (Filêmon podia estar junto com Colossenses;
a inclusão das pastorais é muito duvidosa). Noutra edição, as cartas dirigidas à
mesma comunidade eram contadas separadamente, e a ordem era praticamen-
te a que se tornou canônica (única diferença: Gálatas agora precede Efésios):
Romanos, 1 Coríntios, 2 Coríntios, Efésios, Gálatas, Filipenses, Colossenses, 1
Tessalonicenses, 2 Tessalonicenses, com as cartas pessoais em seguida, como
na ordem canônica.
A originalidade da edição de Marcião — com a ordem Gálatas, 1-2 Corín-
tios, Romanos no início — reencontra-se, no século IV, em duas testemunhas
siríacas — o comentário das epístolas de Paulo de Efrém e uma lista canônica
encontrada no Sinai10 — que refletem a ordem de uma antiga versão siríaca do
9 Ver Herman Josef FREDE, Die Ordnung der Paulusbriefe und der Platz des
Kolosserbriefs 1m Corpus Paulinum, in Vetus latina. Die Reste der altlateinischen
Bibel, Freiburg, Herder, 1969, 24/2, 290-303; Nils Alstrup DAHL, The Origin
of the Earliest Prologues to the Pauline Letters, Semeia 12 (1978) 233-277.
ז° Ver Alexandre SOUTER, The Text and Canon o f the New Testament, Lon-
don, Duckworth, 1912, 184.
587
A história do canon
588
História do cânon do N o vo Testamento
Orígenes
O grande teólogo alexandrino (185-254), graças à amplidão de
suas leituras e a suas numerosas viagens, conhecia os usos das di-
ferentes Igrejas e a diversidade de textos que elas recebiam. Em
História eclesiástica VI,25,3-12, Eusébio reuniu várias passagens
em que Orígenes fala dos livros do Novo Testamento. E claro que
Eusébio não encontrou em Orígenes uma verdadeira lista dos es-
critos do Novo Testamento, que teria sido o equivalente do catálo-
go dos livros do Antigo Testamento que ele reproduziu logo antes
{História eclesiástica VI,25,1-2). Não há, portanto, propriamente
falando, um "cânon de Orígenes”. Mas encontram-se em sua obra
os elementos de uma classificação tripartida, que Eusébio vai reto-
mar por sua conta: I) os livros recebidos por toda parte ou incontes-
tados (ομολογούμεva ou αναντίρρητα); 2) os livros controvertidos
(αμφιβαλλόμενα); 3) os livros falsos (ψευδή). A primeira categoria
reagrupa os quatro evangelhos, treze cartas de Paulo, I Pedro, I
João, Atos e Apocalipse. Os livros da segunda categoria são aqueles
a propósito dos quais Orígenes se fez eco de uma dúvida: 2 Pedro e
3 João, Hebreus (segundo Eusébio, VI,25,8-12.), bem como Tiago
{Comentário sobre João XX, 10) e Judas {Comentário sobre Mateus
589
A história do canon
Eusébio de Cesaréia
A História eclesiástica de Eusébio, que teve várias redações entre
304 e 325, é um documento capital para a história do cânon. Ela é
o resultado de uma pesquisa sistemática do bispo de Cesaréia, que
recolheu particularmente tudo o que concernia ao uso dos textos
cristãos antigos nos escritores do passado e na Igreja de seu tempo.
Em sua História eclesiástica 111,25, Eusébio nos dá um testemunho
de suma importância sobre a situação que prevalecia no mundo gre-
go no início do século IV (texto reproduzido no boxe a seguir).
O texto de Eusébio, que foi interpretado de maneiras diversas, pa-
rece, na verdade, distinguir, depois de Orígenes, três grandes catego-
rias de escritos: 1) os livros reconhecidos por todos (ομολογούμε va);
2) os livros contestados (αντιλεγόμενα); 3) os livros dos heréticos.
Há uma nítida fronteira entre a terceira categoria, ligada à heresia,
e as duas primeiras, que têm em comum o fato de se inscreverem
na tradição eclesiástica ortodoxa. A dificuldade que se encontra no
texto é a distinção que Eusébio parece introduzir no interior da ca-
tegoria dos livros contestados. Ele apresenta, sucessivamente, duas
listas: 2a) os livros contestados “mas recebidos, no entanto, pela
maioria” (γνώριμα δ’ ούν όμως τοις πολλοις); 2b) os livros contes-
tados e inautênticos "de pai desconhecido” (νόθοι). Na realidade, os
dois subgrupos se distinguem apenas .por um grau maior ou menor
de aceitação; eles se opõem aos livros reconhecidos por todos. E
isso que explica a dupla menção do Apocalipse de João nos textos
de Eusébio: alguns o colocam entre os livros incontestados e outros
o rejeitam classificando-o entre os livros “bastardos”.
A comparação entre a notícia de Eusébio e o Fragmento de Mu-
ratori revela pontos comuns, que indicam que a situação não mu-
dara muito entre o fim do século II e o início do século IV. O “nú-
cleo resistente” dos escritos incontestados é quase o mesmo: quatro
590
H istó ria d o cân o n d o N ovo T esta m en to
Eusébio de C esaréia*
591
A história do cânon
592
H istó ria d o cân o n d o N ovo T esta m en to
593
A história do cânon
594
H istória do canon do N o vo Testamento
batismais IV,36 (350); canon 85 das Constituições apostólicas VI11.47 (c. 380).
Gregário de Nazianzo, Poemas 12,30-39 (c. 383-390). A lista em verso de An-
filóquio de Icônio (t 396), em seus lambos a Selêuco, menciona-o, explicando
que “alguns o aceitam, mas a maioria diz que ele é inautêntico (νόθος)”12*.Os
representantes da escola de Antioquia, João Crisóstomo (c. 347-407), Tèo-
doro de Mopsuéstia (t 428) ouTeodoro de Cyr (393-466) parecem realmente
ficar com um Novo Testamento de 22 livros, sem as quatro pequenas cartas
católicas e sem o Apocalipse, como a Peshitta (ver adiante).
A incerteza não foi dissipada pelo concilio In Trullo (692)1Jou concilio “Qui-
nisextum". Reconheceu-se, nessa ocasião, como normativa para a Igreja uma
série de documentos mais antigos que, de fato, estão em desacordo com o
cânon. A falta de clareza dessa decisão conciliar explica por que o estatuto in-
certo do Apocalipse deixou traços, por muito tempo ainda, na Igreja bizantina.
Sobre este ponto, o testemunho dos manuscritos é mais eloquente do que o dos
textos patrísticos ou conciliares. A contagem da representação das diferentes
partes do Novo Testamento no conjunto de manuscritos gregos enumerados
põe realmente em evidência a importância secundária do Apocalipse14;
595
A história do cânon
596
H istória d o c ân o n do N o v o T esta m en to
597
A história do canon
Os apócrifos
Em face dos escritos que gravitaram, por algum tempo, em torno
do Novo Testamento (alguns Padres apostólicos e escritos apócri-
fos), a Igreja latina teve, geralmente, uma atitude mais restritiva do
que a Igreja grega. O Ocidente era menos pronto a reconhecer um
valor espiritual nos escritos situados à margem do cânon, e não era
muito sensível às nuanças que caracterizam a classificação dos livros
em Orígenes ou em Eusébio. Mas a literatura apócrifa nem por isso
foi eliminada do Novo Testamento dos latinos. Até o fim da Idade
Média, a epístola aos Laodicenses continuou a ser copiada com as
cartas de Paulo em um grande número de manuscritos da Vulgata.
598
H istó ria do c ân o n do N o v o T esta m en to
599
A história do canon
Marcos
...1(as coisas) entretanto às quais ele assistiu, ele as expôs assim.
* (Tradução de J.-D. Kaestli, baseada no texto estabelecido por H. LIETZ-
MANN, Das Muratorische Fragment, Bonn, 21908, 5-11 [Kleine Texte fúr
theologische und philologische Vorlesungen und Ubungen, I]. Os números
correspondem às linhas do manuscrito. Nas linhas 69-70, o tradutor cor-
rige ut Sapinetia por et Sapientia. A Sabedoria de Salomão não está incluí-
da na lista dos livros do Novo Testamento, mas é mencionada a título de
comparação com o estatuto contestado de 2-3 João e Judas: embora não
tenha sido escrita pelo próprio Salomão, ela é tida em estima na Igreja.)
600
H istória do canon do N ovo Testamento
Lucas
2O terceiro livro do Evangelho, segundo Lucas. 3 Lucas, o médico, depois da
ascensão de Cristo, 45־como Paulo o havia levado consigo, à maneira de alguém
que estuda o direito, 6escreveu, sob o seu próprio nome, segundo o que julgou
bom. Também ele, entretanto, 7não viu o Senhor na carne, e é por isso que,
em função do que pôde obter [como informação], 8começou também ele seu
relato a partir do nascimento de João.
João
9O quarto dos evangelhos, o de João, um dos discípulos. 10Como o exortavam
seus condiscípulos e seus bispos, "ele diz: “Jejuai comigo desde hoje durante
três dias, e o que 12terá sido revelado a cada um, '3nós nos contaremos uns aos
outros”. Na mesma noite, foi revelado '4a André, um dos apóstolos, 1516־que
João devia pôr tudo por escrito, sob o seu próprio nome, com o aval de todos. E
é por isso que, embora '7começos diferentes sejam ensinados em cada um dos
evangelhos, 18isso não faz diferença alguma para a fé dos crentes, '9pois é por um
único e soberano Espírito que 20tudo é expresso em todos [os evangelhos]: o que
concerne 21à natividade, à paixão, à ressurreição, 22a conversa com os seus disci-
pulos, 23sua dupla vinda, 24a primeira [quando ele foi] desprezado, na humilhação,
que [já] teve lugar; 25a segunda [quando ele será] glorioso, cheio de poder régio,
26que está [ainda] por vir. Que há, portanto, 2728־de estranho que João exponha
cada coisa tão firmemente em suas epístolas também, 29quando diz a propósito
de si mesmo: “o que vimos com nossos olhos, 30e ouvimos com nossos ouvidos,
e nossas mãos 31tocaram, eis o que escrevemos” [cf 1Jo 1,1.3-4]. 32Com isso, de
fato, ele se proclama não somente testemunha ocular e ouvinte, 33mas também
escrivão [que consignou], na ordem, todas as maravilhas do Senhor.
Cartas de Paulo
Quanto às cartas 40de Paulo, quais são, de que lugar e por qual motivo fo-
ram enviadas, 41elas mesmas o deixam saber aos que quiserem realmente
compreender. 42 Primeiro, aos Coríntios, para proibir as heresias do cisma, 43em
seguida aos Gálatas [para proibir] a circuncisão, 4445־depois aos Romanos, para
ensinar que Cristo é a regra das Escrituras e também seu princípio, 46ele escre-
veu com mais prolixidade.
De cada uma delas, é necessário 47que tratemos, visto que o bem-aventurado
48apóstolo Paulo, ele próprio, seguindo a regra de seu predecessor 49João só
escreveu, designando-as pelo seu nome, a sete 50Igrejas, nesta ordem: aos Co-
ríntios, 51a primeira; aos Efésios, a segunda; aos Filipenses, a terceira; 52aos
Colossenses, a quarta; aos Gálatas, a quinta; 53aos Tessalonicenses, a sexta;
601
A história do cânon
aos Romanos, 5455־a sétima. É verdade que ele escreveu mais uma vez aos Co-
ríntios e aos Tessalonicenses para os repreender; 5657 ־entretanto, reconhece-se
que há uma só Igreja espalhada por toda a terra. Com efeito, João também, no
58Apocalipse, embora escreva a sete Igrejas, 59dirige-se, a todas.
E verdade [que ele escreveu] uma carta a Filêmon, 60uma aTito e duas aTimó-
teo, por afeição e 6 'amor; [escritas] no entanto para o bem da santa Igreja cató-
lica, 6263־para a boa ordem da disciplina eclesiástica, elas se tornaram sagradas.
Apocalipse
71Dos apocalipses, também, recebemos somente o de João e o de Pedro,
7273־que alguns dos nossos não querem que se leiam na Igreja. Quanto ao Pastor,
7475־Hermas o escreveu recentemente, no nosso tempo, na cidade de Roma,
quando ocupava o trono 76da Igreja da cidade de Roma o bispo Pio, seu irmão.
77E é por isso que se deve, certamente, lê-lo, 78mas não se pode apresentá-lo
publicamente na Igreja, nem entre os profetas, cujo nome está completo, nem
entre 80 os apóstolos [que estão] no fim dos tempos.
Escritos heréticos
81Mas de Arsinoé ou de Valentino, ou de Miltiade, 82não recebemos absoluta-
mente nada, [eles] que também escreveram um novo 83livro de salmos para Mar-
cião, 8485־ao mesmo tempo que Basilide, o Asiático, fundador dos Catafrigianos.
B ib l io g r a f ia
Leitura prioritária
SCHNEEMELCHER, Wilhelm. Die Entstehung des neuen Testaments
und der christlichen Bibel. TRE 6 (1980) 22-48.
VON CAMPENHAUSEN, Hans. Die Entstehungder christlichen Bibel. Tü-
bingen, Mohr, 1968 (BHTh 39); ed. fr.: La formation de la Bible chré-
tienne. Neuchâtel, Delachaux et Niestlé, 1971 (Monde de la Bible I).
602
H istó ria d o cân o n do N o v o T esta m en to
Estudos gerais
FARMER, William R., FARKASFALVY, Denis M. The Formation o f the
New Testament Canon : An Ecumenical Approach. N ew York, Pau-
list Press, 1983.
GAMBLE, Harry Y. The New Testament Canon: Its Making and Meaning.
Philadephia, Fortress Press, 1985.
---------. Books and Readers in the Early Church. N ew Haven, Yale, 1995.
HAHNEM AN, Geoffrey M. The Muratorian Fragment and the Develop-
m entofthe Canon. Oxford, Clarendon Press, 1992 (OxfordTheolo-
gical Monographs).
HARNACK, Adolf von. Das Neue Testament um das Jahr 200. Freiburg
[s.n.], 1899.
KAESTLI, Jean-Daniel, WERMELINGER, O tto (éds.). Le Canon de
I'Ancien Testament. Sa formation et son histoire. Genève, Labor et
Fides, 1984 (Monde de la Bible 10).
LAGRANGE, Marie-Joseph. Introduction à 1'étude du Nouveau Testament.
Paris, Gabalda, 1933, Ia parte: Histoire ancienne du Canon du Nou-
veau Testament.
METZGER, Bruce M. The Canon o f the New Testament: Its Origin, Deve-
lopment, and Significance. Oxford, Clarendon Press, 1987.
MORESCH1NI, Claudio, NORELL1, Enrico. De Paul à l'âge de Constan-
tin. In: Histoire de la litttérature chrétienne antique grecque et latine.
Genève, Labor et Fides, 2000, v. I.
SUNDBERO, Albert C. Towards a Revised History o f the N ew Testa-
ment Canon. Studio Evangélica, Berlin, Akademie Verlag, IV, Part I
(1968) 452-461 (TU 102).
ZAHN, Theodor. Ceschichte des Neutestamentlichen Kanons. Erlangen/
Leipzig [s.n.], 1888-92. 1892 v.
603
CAPÍTULO
28
O texto do Novo Testam ento
e sua história
Roselyne Dupont-Roc
607
A crítica textual
608
O te x to do N ovo T e sta m e n to e su a história
609
A crítica textual
610
O te x to do N ovo T e sta m e n to e sua história
611
A crítica textual
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O te x to d o N o v o T e s ta m e n to e su a história
Os manuscritos gregos5
1. Na primeira metade do século XX, e sobretudo depois de 1930, a des-
coberta e a publicação de numerosos papiros, vindos essencialmente do Egito,
fizeram progredir de maneira notável nosso conhecimento do texto; o mais
antigo fragmento de papiro, o p 52, contendo algumas linhas do evangelho de
João, remonta mais ou menos aos anos 130, ou seja, menos de cinquenta anos
depois de a obra ser escrita6. Contam-se, até hoje, 115 fragmentos de papiro;
alguns são tão pequenos que compreendem apenas alguns versículos, outros
atestam obras inteiras. Desde o século III, os quatro grandes corpus do Novo
Testamento — evangelhos, atos e epístolas católicas, cartas paulinas, apoca-
lipse — estão representados.
Os papiros pertencem, muitas vezes, a coleções particulares das quais
guardam o nome; mas entram todos, daqui para diante, numa única classifica-
ção, e são designados pela letra p com um expoente. Observemos, particular-
mente, exemplares da coleção Chester Beatty, em Dublin:
° p45, do século III, compreende 30 folhas (de 110) dos quatro evangelhos e
dos Atos.
° p46, de cerca de 200, conserva 8 6 folhas (de 104) das cartas de Paulo.
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A crítica textual
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O te x to do N ovo T e s ta m e n to e sua história
A s versões
I. Em latim, distinguem-se:
— As traduções latinas anteriores à Vulgata (do século li ao final do século
IV), chamadas Antigas Latinas. São globalmente marcadas it, mas cerca de
noventa manuscritos foram repertoriados, remontando, os mais antigos, ao
século IV: são tradicionalmente designados por letras minúsculas do alfabeto
latino, doravante acompanhadas de um número de ordem em algarismo árabe.
8 V e r a c im a p. 5 7 .
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A crítica textual
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O te x to d o N ovo T e s ta m e n to e su a história
nas margens, variantes textuais que fazem dela um dos textos mais próximos
do texto do códice de Beza; é marcada syhm*.
— Finalmente, foram encontrados vários testemunhos fragmentários de
uma versão em aramaico, marcada syp,\ cujo texto segue o tipo do códice de
Beza.
Os textualistas, hoje em dia, estão cada vez mais interessados em outras
versões, especialmente nos diferentes dialetos coptas, mas também em armê-
nio, georgiano, árabe, etíope...
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11 Isso é evidente para o evangelho de João, que comporta dois finais; ver
acima p. 447.
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A crítica textual
— um texto dito alexandrino (TA) dá uma versão mais curta; é a mais cor-
rente, refletida ao mesmo tempo pela tradição egípcia e pela tradição bizanti-
na; é impressa, hoje, no texto-padrão;
— um texto chamado texto ocidental (TO) nos é conhecido em alguns pa-
piros (p38, p 48), e sobretudo no códice de Beza, ao mesmo tempo no texto gre-
go (designado D05) e em sua tradução latina (designada d). Ele aparece tam-
bém nos antigos Padres latinos: Ireneu latino, Tertuliano, Cipriano, e enfim em
certas tradições siríacas antigas: os fragmentos palestinos e as notas marginais
da versão de Thomas de Harkel. Os manuscritos que refletem o tipo ociden-
tal apresentam, além disso, numerosas diferenças entre eles: contam-se 607
variantes, no códice de Beza, entre o texto grego e o latino ao seu lado! Mas,
sobretudo, esse texto se afasta de maneira impressionante do texto alexandri-
no: dos 1.007 versículos do TA o texto ocidental guarda apenas 325 versículos
idênticos; além disso, ele lhe acrescenta 525 e suprime 162.
A questão que agita os especialistas há mais de um século é a da relação en-
tre os dois textos: um dos dois apresenta a redação original de Lucas e o outro
fornece uma segunda edição condensada ou, ao contrário, ampliada? Os tra-
bathos independentes de M.-É. Boismard13 e E. Delebecque estão de acordo
para demonstrar o estilo muito lucano dos dois textos. O trabalho, hoje, incide
sobretudo nos caracteres próprios de cada um dos dois textos, e especialmen-
te do texto ocidental.
C.-M. Martini estudou os traços mais marcantes. O texto ocidental for-
nece precisões históricas que podem ser muito antigas: diz, por exemplo, em
Atos 19,9, que Paulo ensinava na escola de Tirano “da 5a à 10a hora” (isto é,
das II horas às 16 horas), a hora do calor, quando a escola de retórica não
funcionava. Por outro lado, parece ser secundário, do ponto de vista literário;
acentua a hostilidade dos chefes do judaísmo em relação a Jesus e às primeiras
comunidades; insiste nas conversões ao cristianismo em meio pagão, sobre-
tudo entre os notáveis; reforça a autoridade de Pedro e de Paulo; finalmente,
sublinha também o papel do Espírito Santo.
Uma variante notável concerne, em Atos 15,19, ao teor dos decretos edita-
dos pelos responsáveis de Jerusalém acerca dos pagão-cristãos: "abster-se da
impureza dos ídolos, da devassidão, do que é asfixiado e do sangue”. No texto
ocidental, a expressão ritual “o que é asfixiado” (πνιχτοί )׳está suprimida, e de-
pois de “do sangue” (αίματος) encontra-se uma expressão da regra de ouro: "e
não fazer para os outros tudo o que não querem que lhes aconteça”. Parece, na
verdade, que um ponto de vista mais ritual fora substituído, aí, por uma obriga-
ção moral.
No fim do século II os dois textos coexistiam e eram recebidos nas diferen-
tes comunidades; eles são, portanto, um testemunho do caráter extraordina-
riamente vivo do texto do Novo !estamento.
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5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s da c r ít ic a t e x t u a l
A uniformização do texto-padrão não deve iludir: o texto do
Novo Testamento testemunha a vida das comunidades cristãs ao
longo dos séculos.
O que a crítica textual sublinha, antes de qualquer coisa, é o es-
tatuto absolutamente original das Escrituras cristãs; o texto nunca
foi verdadeiramente fixado, e a diversidade de nossas traduções mo-
dernas atesta, provavelmente, hoje que a mesma liberdade continua
a agir na transmissão das Escrituras.
A crítica textual continua seu lento trabalho de atualizar as inu-
meráveis variantes que afetaram o texto do Novo Testamento: as
últimas edições do G N T (4a) e da Nestle-Aland (27a) oferecem apa-
ratos sempre mais ricos e mais precisos. Sob a égide de K. Aland, a
série ANTF (Arbeit zur neutestamenttlichenTextforschung) editou
colações de vários papiros e, deste então, as colações de todos os
manuscritos, obra por obra.
Mas outras formas de pesquisa se multiplicam, especialmente em
torno do texto ocidental em sua diversidade: citaremos especial-
mente os trabalhos de E.-M. Boismard e A. Lamouille sobre o texto
ocidental dos Atos dos apóstolos; além disso, depois da tradução,
por E. Delebecque, do códice de Beza para os Atos dos apóstolos,
D. C. Parker editou o códice de Beza, do qual C.-B. Amphoux tra-
duziu e publicou o texto de Mateus. O imenso esforço empreendí-
631
A crítica textual
6 . B ib l io g r a f ia
Leitura prioritária
DUPONT-ROC, Roselyne, MERCIER, Philippe. Les manuscrits de la Bi-
ble et la critique textuelle. Cahiers Evangile, Paris, Cerfi 102 (1998).
Edições críticas
The Creek N ew Testament. Ed. Kurt ALAND, Bruce M. METZGER et al.
London/New York, United Bible Societies, 41983 [1. ed. 1966; ed.
rev. 1993],
NESTLE-ALAND. Novum Testamenturn graece. Stuttgart, Deutsche Bi-
belgesellschaft, 271991 [1. ed. 1898; ed. rev. 1993],
Manuais
VAGANAY, Léon, AMPHOUX, Christian-Bernard. Introduction ala criti-
que textuelle du Nouveau Testament. Paris, Cerf, 1986 (retomado por
C.-B. Amphoux do manual de L. Vaganay de 1933).
FINEGAN, Jack. Encountering N ew Testament Manuscripts׳. A Working In-
troduction to Textual Criticism. London, SPCK, 1975.
METZGER, Bruce M. The Text o f the New Testament. Its Transmission,
Corruption and Restoration. Oxford, Clarendon Press, 21968.
632
O texto do N o vo Testamento e sua história
Estado da pesquisa
Boletim crítico firmado por Jean DUPLACY em RSR 1962-1967, em Bi-
blica 1968-1972; com a colaboração de Carlo-Maria MARTINI,
1973-1977.
Arbeiten zur Neutestamentlichen Textforschung. Berlin, de Gruyter. Dir. Kurt
ALAND, I969-.
DUPLACY, Jean. Etudes de critique textuelle du Nouveau Testament. Leu-
ven, Leuven University Press/Peeters, 1987 (BEThL 78).
KILPATRICK, George Dunbar. N ew Testament Textual Criticism. Leuven,
Leuven University Press/Peeters, 1990 (BEThL 96).
PARKER, David C. Codex Bezae. Cambridge, Cambridge University Press,
1992.
EHRMAN, Bart D., HOLMES, Michael W. (eds.). The Text o f the New
Testament in Contemporary Research. Grand Rapids, Eerdmans, 1995
(Studies and Documents 46).
PARKER, David C., AMPHOUX, Christian-Bernard (eds.). Codex Bezae.
Studies from the Lunel Colloquium June 1994. Leiden, Brill, 1996
(NTTS 22).
633
Glossário
635
NOVO TESTAMENTO - histúbia, escritora e teologia
636
Glossário
C ódigo dom éstico: Gênero literário de intenção ética que tem por
intuito fixar os deveres mútuos a ser observados pelos mem-
bros da família cristã (casal, filhos, escravos).
Corpus: nome dado a um conjunto de escritos oriundos de uma
mesma instância autoral (autor único ou escola teológica).
Exemplo: corpus paulino ou corpus joanino.
C osm ologia: Representação teológica que explica a organização do
universo e as relações mantidas por cada uma de suas partes.
C r ític a d as fontes: Essa atividade do método histórico-crítico
busca detectar os elementos de diversas proveniências que
compõem um texto. A crítica das fontes reconstitui os docu-
mentos escritos sobre os quais se baseou o autor para redigir
seu texto. Sinônimo: Literarkritik.
C rític a te x tu a l: Essa atividade do método histórico-crítico objeti-
va reconstituir o texto original de um escrito pela comparação
e pelo exame de diferentes variantes manuscritas pelas quais o
texto chegou até nós.
D e u te ro p a u lin a s (epístolas): Cartas que a maioria da crítica consi-
dera não terem sido redigidas por Paulo, mas por um autor de
influência paulina (secretário ou escola teológica), depois de
sua morte. Trata-se de Colossenses, Efésios, 2 Tessalonicen-
ses e as pastorais.
D eu tero p au lín ism o : Corrente de pensamento teológico próxima
da teologia do apóstolo Paulo, mas desenvolvida por seus dis-
cípulos e seus sucessores.
D iáspora: Nome dado ao conjunto de comunidades judaicas es-
tabelecidas fora da Palestina, geralmente caracterizadas por
uma atitude mais liberal do que o judaísmo palestino.
Diatessaron: —* T acíano.
Doxologia: Fórmula litúrgica ou epistolar de louvor a Deus ou a Cris-
to, tradicionalmente introduzida pela expressão “Glória a...”.
D uas fo n tes: —* M odelo d as d u as fo n tes.
Eon: Período da história do mundo considerada do ponto de vista
da salvação. O novo éon, para os rabinos, é o tempo escatoló-
gico; para os cristãos, o tempo inaugurado por Cristo.
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NOVO TESTAMENTO - historia, escritora e teologia
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Glossário
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NOVO TESTAMENTO - historia, escritora e teologia
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G lossário
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NOVO TESTAMENTO - historia, escritura e teologia
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G lossário
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NOVO TESTAMENTO - história, escritora e teologia
644
G lossário
645
NOVO TESTAMENTO ־ ־HISTORIA, ESCRITORA E TEOLOGIA
Terminus a q u o : Data a partir da qual se pode calcular a redação de
um escrito.
Terminus ad q u em : Data além da qual não se pode remontar a re-
dação de um escrito.
Testim onia: Antologia de citações extraídas de diversos textos bí-
blicos com a intenção de dar testemunho. Postula-se que os
primeiros cristãos dispunham de testimonia proféticas com o
fim de abonar, no AT, o messianismo de Jesus.
T exto a lex an d rin o : Uma das variantes, muito antiga, do texto gre-
go do NT, datado do século IV E especialmente representado
pelos unciais B e s .
T exto m a jo ritá rio : Nome dado pela crítica textual à forma majori-
tária do texto grego do NT entre os manuscritos minúsculos.
T exto o c id en tal: Vetus do texto grego do NT, representado espe-
cialmente pelo uncial D. Apresenta, em particular, um texto
dos Atos bastante diferente do texto alexandrino.
Torá: Nome dado à Lei contida no AT e, às vezes, por extensão, ao
conjunto do AT
U ncial: Códice do texto bíblico redigido em letras maiusculas gre-
gas. Esse tipo de escrita em maiuscula foi utilizado até mais ou
menos o século IX, antes de ser suplantado pela letra minus-
cuia. Sinônimo: manuscrito maiusculo.
V aticanus: Importante códice da Bíblia (AT e NT) datado do sécu-
Ιο IV. Sigla na crítica textual: B (03).
Vetus latina: Nome dado a uma forma de tradução da Bíblia em
latim, datada do século II. Sigla na crítica textual: it.
646
Indite de nomes e temas
647
NOYO TESTAMENTO — HISTÓRIA, ESCRITURA E TEOLOGIA
Batismo 18, 40, 49, 50, 52, 71, 72, 277, 278, 280, 281, 291-293,
82, 112, 120, 128, 132, 141, 142, 351, 405, 421, 457, 462, 494,
154, 158, 209, 246, 272, 293, 495,580, 639
334, 345, 347, 352, 359, 405, Cristologia 10, 26, 32, 39, 73, 96,
427, 450, 455, 480-482, 533, 97, 103, 116, 119, 121, 128, 129,
596,630 132, 217, 242, 344, 345, 350,
Bispo 638, 643 352, 363, 369, 370, 372, 407,
429, 454, 462, 463, 465, 468,
481,484, 502,517,531,541,556,
621,629,630
Crítica das fontes 637
Canon 37, 108, 124, 138, 146, 182, Crítica textual 147, 164, 212, 443,
185,191, 193,195,302,357,365,
605,607-609,616,619,625,626,
393, 398, 425, 442, 471, 474,
630,631,635-637,645,646
487, 501, 520, 523, 554, 569,
571-577, 580, 582, 583, 588- Culto 16, 36, 146, 190, 210, 236,
600, 616, 628, 636, 640-642 237, 373, 421, 427, 429, 430,
Ceia 46, 51, 84, 113, 236, 237, 243, 432, 494, 496, 503-505, 508,
246, 440, 442, 581 520, 525, 538, 575, 582
Circuncisão 111, 158, 227, 278, 285- Culto imperial 36, 373, 503, 504,
288, 307, 309, 402, 405, 524, 505,538
527,601,644, 645 Cumprimento 56, 84, 85, 88, 92,
Claromontanus 193, 398, 443, 615, 97, 99, 161, 227, 292, 464, 505,
636 641
Códice de Bèze 637
Código doméstico 637
Coleta 158, 176, 211, 219, 220, 222,
237, 238, 245, 259-268, 272, D
273,288,307,402 Dêutero-paulinas 184
Confissão de fé 51,63, 73, 242-244, Dêutero-paulinismo 184
441,472, 479, 484,529 Diácono 412,425
Controvérsia 18, 51, 63, 73, 83, 93, Diatessaron 582, 583, 599, 600,
190, 242-244, 253, 273, 441, 616, 623, 628, 637, 645
472,479,484, 487, 529
Doceta 481, 623, 626, 629
Corinto 144, 172-174, 176-179, 182,
Doutor 409
187, 194-196, 214, 220, 222, 233-
240, 244-250, 256, 259-265, Doxologia 211, 212, 215, 358, 360,
267-270, 272, 282, 283, 289, 364, 535. 551, 557, 560, 565,
290, 306-309,311,324,345,383, 628, 637
401,405,426,505,526, 542 Doze 18, 50, 39, 53, 97, III, 112,
Cosmologia 351,456, 482, 637 130, 138, 141, 143, 150, 157, 159,
Criação 53, 63, 68, 69, 95, 223, 172, 243, 499, 518, 522, 527,
226, 236, 247, 249, 253-255, 562,598
648
índice d e n o m es e tem a s
Dualismo 452, 454, 455, 464, 639 Eusébio de Cesaréia 638, 644
Duplicata 70, 192, 214 evangelho 15, 18, 20, 30, 32-42, 45-
50, 52, 54, 56-63, 65-67, 69-77,
81, 82, 87-91, 93, 95-98, 102,
107-112, 114, 115, 117-120, 122-
E 127, 129, 131, 132, 137-141, 145,
Éfeso 125, 142, 144, 162, 172, 174- 146, 149, 153, 252, 253, 279,
176, 178, 179, 182, 195, 213, 214, 283, 287, 290, 396, 404, 437-
217, 222, 239, 240, 250, 261, 463, 465-468, 471-479, 481-485,
265, 270, 282, 289, 290, 309- 489, 501, 502, 522, 524, 576-
311, 313, 333, 348, 349, 365, 578, 580-584, 588, 591, 592,
367, 394, 395, 400, 402, 426, 594, 598, 599, 609,613-616, 619,
460, 461, 483, 489, 490, 505, 622, 628,629,638,640-642
598, 600, 627, 641 Evangelho 15, 16, 20, 21, 23, 25,
Epíscopo 412 36,45,46,52,55,58,60,61,72,
Epistolografia 196,201,265,473 73,90, 98,99, 110, 119, 123, 124,
Escatologia 61, 103, 126, 155, 249, 128, 137, 141, 144, 145, 156-158,
253, 287, 327, 345, 351, 352, 163,164,174,182,186-190, 207-
364, 372, 377, 378, 382, 383, 211,214,218,219,222,225-227,
385, 405, 464, 476, 478, 484, 230, 234, 237, 238, 247, 249,
502,507 251, 253, 256, 260, 268-272,
Escravo 235, 253, 272, 282, 290, 277, 279-281, 283-286, 290,
329-332, 334, 336, 498,527 291, 297, 299, 316, 322, 326,
Escriba 55, 93-95, 148, 310, 628 331, 340, 341, 343, 351, 395,
Escritura 11, 22, 37, 45, 47, 70, 78, 406, 410, 422, 442, 466, 505,
86, 119, 208, 209, 211, 218, 220, 520, 523, 529, 530, 536, 539,
278, 280, 292, 402, 410, 423, 542, 546, 577-580, 582, 583,
426, 431, 495, 509, 510, 523, 601, 617, 629, 638, 643
524, 534, 537, 540, 541, 571,
573, 576, 582, 610, 622, 640,
642,643
Espírito 24, 29, 52, 72, 83, 108, F
128, 131, 141, 143, 144, 148, 154,
Fílon de Alexandria 209, 223, 369,
158, 184,209,211,217,228,229,
234-236, 242, 245, 246, 266, 433, 455, 524, 638
272, 277, 278, 280, 281, 283, Flávio Josefo 36, 121, 139, 164, 348,
285, 291-293, 325, 326, 339, 428,523, 639
359, 385, 406, 428, 462, 476, Fontes 10, 12, 15, 23, 25, 28, 32, 33,
477, 480, 481, 485, 491, 499, 35,41,46,61,63, 65, 66,90-92,
500, 564, 565, 577, 584, 601, 94, 118, 121, 122, 147, 149-151,
624, 630 164, 171, 174, 349, 367, 387,
Essênios 157, 638, 644 405, 446, 448, 449, 467, 475,
649
NOVO TESTAMENTO - história, escritora e teologia
497, 542, 576, 577, 581, 583, Integridade literária 212, 443, 497,
585,591,593, 637,642 640
Formgeschichte 16, 22, 37, 42, 64, Interpolação 57, 58, 318, 320, 323
203,265,407,451,639 Intertextualidade 57, 58, 318, 320,
323
Ireneu de Lião 437, 442, 460, 481,
573,576
G Israel 30-32, 36, 38, 84-90, 95-97,
Galião 142, 177, 179, 324 102, 103, 105, 109,120,127-129,
Gênero literário 10, 32, 35, 37, 42, 141, 144, 151, 157, 158, 160, 161,
45, 110, 139, 191, 196, 199, 241, 164,209-211,219, 230,232,248,
279, 302, 329, 335, 345, 364, 318, 319, 371, 372, 374, 439,
366, 372, 377, 378, 437, 448, 498-500, 543,546,641,643
449, 457, 473, 475, 485, 489,
493, 497, 518, 533, 549, 559,
635-638
Glosa 639 J
Gnose 368, 369, 405, 442, 455, 456, Jerusalém 18, 22, 29, 32, 38, 45,
457, 459, 466, 467, 482, 483, 639 47-49,51,52,54,55, 59,61,62,
Guerra Judaica 61, 366, 424, 521, 64, 70, 76, 83, 84, 86, 88, 90,
639 96, 109, 111-115, 119-121, 125,
126, 140-144, 150, 152, 156, 158,
162, 171-177, 179, 180, 191, 211,
H 212, 219-222, 238, 259, 269,
273, 279, 280, 284, 286, 288,
Hapaxlegomenort 640
289, 400, 402, 423, 424, 426-
Helenistas 640
430, 438, 441, 443, 461, 500,
Hino 82, 111, 302-304, 313, 321,
340, 341, 344, 350, 351, 358, 509, 523, 536, 541, 594, 624,
360, 362, 368, 394, 395, 453, 639,640
456,462 Jesus histórico 20, 42, 66, 461
João Batista 18, 28, 29, 40, 48, 69,
82-84,87, 109, 112,113, 119, 128,
437,448,449,454,455,459
João, filho de Zebedeu 598
Igreja, eclesiologia 638, 644 Judaísmo helenístico 198, 209, 223,
Imperador 36, 62, 142, 144, 192, 256, 364, 369, 370, 426, 427,
220,310, 398,505,538,611,641 430,455,518,531,573
Inácio da Antioquia 82, 111, 302- Julgamento 30-32, 85-87, 102, 103,
304, 313, 321, 340, 341, 344, 114, 131,253,270,378,379,383,
350, 351, 358, 360, 362, 368, 427, 454, 456, 495, 496, 507,
394,395,453, 456, 462 508,551,555,556,565,575
650
Indice de n o m es e tem as
Justiça de Deus 182, 188, 208, 209, Marcião 123, 193, 194, 398, 577,
211,216, 224-230,271,277,297, 579, 580, 584, 586-588, 602,
312, 326,529 611,617, 626-629, 641
Justificação pela fé 188, 216, 225, Messias 51, 55, 56, 66, 84-87, 89,
226, 228, 252, 277, 281, 293, 90, 97, 101, 119, 120, 129, 371,
363,373 428, 495, 496
Midrach 51, 55, 56, 66, 84-87, 89,
90, 97, 101, 119, 120, 129, 371,
428, 495, 496
Milagre 16, 27, 64, 67, 75, 76, 92,
Koiné 123, 641 112, 130, 158,438,440,441
Ministério 18, 46, 47, 49, 64, 93,
96, 99, 111-113, 132, 154, 220,
234, 261, 298, 401, 406, 409,
L 412,414,415,438,462
Lei 22, 85, 88, 94, 95, 97, 99, 101, Missão 32, 48, 50, 53, 57, 59, 62,
103, 120, 123,127, 132,133,144, 69, 84, 85, 88, 90, 103, 140-142,
159, 160, 163, 188-191, 207-212, 151, 154, 156, 158, 161, 163, 171,
216,218,222-225, 227-230,234,
173, 175, 176, 217, 259, 260,
235,242,251,252,271,277,278,
280, 287, 307, 319, 321, 323,
280,281,286, 287, 290-294, 312,
400, 402, 425, 464, 484, 521,
315,342,358,363,394,405,406,
536, 586, 609, 622, 640
424, 425, 429, 453, 454, 524,
Modelo das duas fontes 23, 25, 32,
525, 528, 529, 543, 598, 646
33,35,41,637, 642
Liberdade 23, 53, 63, 67, 92, 148,
Mulher 46, 50, 53-55, 70, 71, 77,
186, 187,210,211,235-237, 239,
82, 83, 86, 91, 93, 96, 112, 117,
242, 249, 252, 253, 280, 281,
123, 129, 235, 272, 282, 290,
284, 315, 317, 326, 334, 339- 334, 404, 415, 425, 441, 443,
342, 400, 424, 452, 464, 524, 494, 496, 511, 615, 619, 621,
525, 530, 555, 583, 617, 622, 630
631,632 Muratori 37, 108, 124, 193, 393,
Logion, logia 237 398, 425, 442, 523, 554, 573-
Logos 369, 429, 453, 455, 462, 576, 582, 584, 585, 587-591,
477,481,638,641 594, 596, 600, 628, 642
N
M Nag Hammadi 433, 466, 523, 593,
Manuscrito 57, 108, 123, 138, 264, 642, 643
398, 574, 600, 607, 609, 614, Nero 62, 222, 427, 496, 499, 502,
616, 623, 629, 636, 642,646 503, 505,537-539
651
NOVO TESTAMENTO - história, escritura e teologia
652
índice de n o m es e tem as
482,484,493,517,518, 534,543,
550, 555-557, 559, 565, 593,
Reinado de Deus 127, 130, 131 637-639
Ressurreição 18, 20, 36, 40, 53, 54, Segredo messiânico 66
63-67, 73, 74, 83, 84, 86, III, Seita 103, 546, 638
113, 114, 117, 118, 129, 137, 142,
Semitismo 645
159-63, 208, 209, 216, 217, 224,
234, 236, 238, 243, 244, 246, Septuaginta 19, 37, 122, 123, 138,
247, 249, 251, 253-255, 299, 140, 146, 152,321,431,521,524,
300,309,311,312,317, 323,325, 540,546, 573,641,645
343, 345, 352, 358, 401, 405, Sinagoga 16, 50, 52, 67, 69, 88, 90,
407, 409, 427, 439, 440, 441, 91, 113, 122, 123, 142, 144-146,
448, 495, 517, 524, 601, 644 154,161, 163, 174, 189,190, 199,
Retórica 11, 49, 82, 121, 122, 250, 221, 222, 271, 285, 286, 323,
273, 277, 279, 353, 388, 473, 453,458,459, 467, 526,610
520,521,531,563,624 Sináiticus 19, 37, 122, 123, 138, 140,
Roma 12, 24, 59-62, 124, 125, 141- 146, 152,321,431,521,524,540,
144,146,152,156,162, 172-175,
178, 180, 182, 193-195, 201, 202, 546,573,641,645
208, 210-214, 217-222,260, 272, Sinótico 15, 23, 33, 41, 62, 449,
282, 289, 295, 306, 310, 313, 466, 498, 645
333, 345, 349, 395, 396, 400, SitzimLeben 16,503,504,510
422-424, 426, 427, 496, 500, Sondergut 33, 645
503, 504, 506-509, 518, 524, Sumário 83,92,141,153,321,645
526, 527, 536, 539, 541, 548,
554, 574, 579, 581-583, 586, _
598,602,611,614,617,639-642 1
Taciano 577, 582-584, 599, 616,
628,637,645
Temente a Deus 645
Sabedoria 94, 101, 223, 224, 234, Templo 32, 38, 51, 55, 61, 64, 65,
237, 250-252, 256, 271, 304,
70, 72, 83, 90, 94, 95, 109, 112-
366,429, 455, 481,483, 519-521,
525, 588, 593, 600,602,641 114, 122, 123, 141, 142, 144, 145,
Sacrifício 421,429-431, 644 369, 424, 427-431, 433, 438,
Salmos 207, 497, 602 441,453, 521,536,640,644
Salvação 10, 32, 36, 57, 109, 110, !14, Testimonies 646
126-129, 132, 141, 144, 154, 156, Texto alexandrino 148,646
157, 160, 162, 164, 176, 200, 201, lexto majoritário 215, 646
211,251,252,254,293, 298, 299,
319, 324, 341-343, 345, 358, 360, Texto ocidental 148,646
363, 364, 371, 399, 405, 408-410, Tiago, irmão do Senhor 524, 526
415,419,420,424,430-433,455, Tipologia 398,405
653
Torá 31, 62, 89, 90, 99, 101, 123, Vetus latina 57, 587, 646
159, 160, 439, 453, 454, 636, Viagem 115, 120, 132, 142-145, 151-
640, 646 153, 172-174, 176-179, 180, 217,
Tradição 398, 405 219, 220, 245, 260, 267, 270,
284, 289, 310, 317, 438, 488,
500
u Viagem missionária 142, 143, 176-
178
Universalismo 95, 102, 164, 218, Vidas de filósofos 46, 110, 139
219, 228,252,272,290, 527
V
Variante 93, 148, 149, 224, 264,
286, 301, 319, 608, 609, 612,
624,626-630, 646
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