Vida de Cristo Fulton J Sheen

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Título original: Life of Christ

Copyright © Espólio de Fulton J. Sheen/e Society for the Propagation of the


Faith/www.missio.org

Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela PETRA


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Imagem de capa: NAYPONG/THINKSTOCK

CIP-Brasil. Catalogação na publicação


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

S545v Sheen, Fulton J., 1895-1979


2. ed. Vida de cristo [recurso eletrônico], volumes 1 e 2 / tradução Márcia Xavier de Brito ,
William Campos da Cruz. - 2. ed. - Rio de Janeiro: Petra, 2018.
recurso digital

Tradução de: Life of Christ


Formato: ebook
Requisitos do sistema: Adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 9788582781500 (recurso eletrônico)

1. Jesus Cristo - Biografia. 2. Livros eletrônicos. I. Brito, Márcia Xavier de. II. Cruz,
William Campos da. III. Título.

18-52082 CDD: 232.9


CDU: 27-312
SUMÁRIO

Volume I

Prefácio à nova edição


Introdução à nova edição
Dedicatória
Prefácio

1. A única pessoa já preanunciada


2. O início da vida de Cristo
3. Três caminhos alternativos à Cruz
4. O Cordeiro de Deus
5. O início da “hora”
6. O templo do Seu corpo
7. Nicodemos, a serpente e a cruz
8. Salvador do mundo
9. O primeiro anúncio público de Sua morte
10. A escolha dos 12
11. As bem-aventuranças
12. O intruso que era uma mulher
13. O homem que perdeu a cabeça
14. O pão da vida
15. A recusa a ser um rei de pão
16. Pureza e propriedade
17. O testemunho do Senhor acerca de Si mesmo
18. Transfiguração
19. As três discussões
20. A tentativa de prisão durante a Festa dos Tabernáculos
21. Somente o inocente pode condenar
22. O bom pastor
23. O Filho do Homem
24. César ou Deus
25. Ainda não é chegada a hora
26. A flecha mais poderosa na aljava divina
27. Mais que um Mestre
28. Os pagãos e a Cruz

Volume II

29. A crescente oposição


30. A raposa e as galinhas
31. A ressurreição que prepara Sua morte
32. A mulher que pressentiu a morte do Senhor
33. A entrada em Jerusalém
34. A visita dos gregos
35. O filho do rei marcado para a morte
36. A Última Ceia
37. O servo dos servos
38. Judas
39. A despedida do amante divino
40. A oração do Senhor ao Pai
41. A agonia no jardim
42. O beijo peçonhento
43. O julgamento religioso
44. As negações de Pedro
45. O julgamento perante Pilatos
46. No rodapé da lista
47. O segundo julgamento perante Pilatos
48. A crucifixão
49. As sete palavras do alto da Cruz
50. Sete palavras à Cruz
51. O véu do templo se rasgou
52. A perfuração de Seu lado
53. Os amigos noturnos de Jesus
54. A ferida mais grave da terra — O túmulo vazio
55. As portas estão fechadas
56. Dedos, mãos e pregos
57. O amor como condição de autoridade
58. O mandato divino
59. A última aparição em Jerusalém
60. Penitência
61. A Ascensão
62. Cristo assume um novo corpo
PREFÁCIO À NOVA EDIÇÃO

A reedição da obra clássica Vida de Cristo, do Arcebispo Sheen, traz de volta


lembranças de sessenta anos atrás, quando as ruas de qualquer cidade ou vila
católica ficavam absolutamente vazias aos domingos às duas da tarde. Quando
criança, eu costumava olhar para fora a fim de ver se encontrava alguém,
porque um silêncio sinistro caía sobre toda a comunidade. Todos estavam
ouvindo o Arcebispo Sheen no rádio. Mais tarde, quando passou também para
a televisão, tornou-se com certeza o pregador católico mais popular na história
da Igreja americana. Ele também atacava implacavelmente o comunismo
bolchevique e a psicanálise freudiana. Muitas pessoas na comunidade
intelectual consideravam isso algo divertido, mas ambos os movimentos,
poderosos desde então, foram para a lata de lixo da história.
As lindas meditações do Arcebispo Sheen a respeito da vida de Cristo, no
entanto, estão recebendo uma nova edição. Por quê? Porque, embora não
ignorasse a erudição bíblica contemporânea e, de fato, contasse com a
orientação do conhecido acadêmico biblicista Monsenhor Myles Bourke, ainda
assim não fez crítica bíblica. Ele deu vida à narrativa do Evangelho para o leitor
individual. Eis a teologia bíblica popular em sua melhor forma.
Em seu livro recente, Jesus de Nazaré, o Papa Bento XVI proclamou um
retorno à teologia bíblica e deu um exemplo poderoso disso em seus próprios
escritos. A reedição de Vida de Cristo do Arcebispo Sheen é, portanto,
extremamente oportuna. Parece-me precisamente este o tipo de escrito que o
papa espera, a fim de restaurar a devoção a Cristo. O Santo Padre tem dito que,
como resultado do uso exclusivo de certas formas de crítica bíblica, a figura de
Jesus tem se tornado para muitas pessoas cada vez mais remota. Isso é uma
tragédia. Ele identifica a “amizade íntima com Jesus” como o fundamento “do
qual tudo depende” no cristianismo.
Pouquíssimas pessoas nos tempos modernos deram maior contribuição à
vida católica ou incentivaram e lideraram o caminho rumo à amizade íntima
com Jesus Cristo do que o Arcebispo Sheen.
Vida de Cristo, do Arcebispo Sheen, podia ser um volume para
acompanhar Jesus de Nazaré, do Papa Bento XVI.

Padre Benedict J. Groeschel, C.F.R.


INTRODUÇÃO À NOVA EDIÇÃO

Sem dúvida, Jesus Cristo é a pessoa mais impressionante da história humana.


Tão impressionante que o mundo ocidental tradicionalmente divide os séculos
em dois períodos, tomando como base o ano de Seu nascimento: a.C. (antes de
Cristo) e A.D. (Anno Domini, do latim “ano do Senhor”).
Por séculos, muitos escreveram biografias maravilhosas de Jesus, mas
apenas algumas podem ser comparadas à do Arcebispo Fulton J. Sheen. Muitos
abordam os escritos acerca de Jesus de maneira intelectual, tentando captar o
conteúdo teológico e o significado de sua vida, e isso é bom. Outros a têm
abordado com o desejo adicional de propagar esses ensinamentos, e isso é ainda
melhor. Por fim, alguns têm abordado a vida de Cristo a fim de viver
plenamente sua mensagem de salvação, e isso, sim, é o que há de melhor. Sem
dúvida, o Arcebispo Sheen pertencia a este último grupo. Talvez não se possa
dar melhor recomendação para defender o valor de um livro religioso do que
mencionar aqueles que o leriam. O Missionário das Irmãs da Caridade me
contou que Madre Teresa de Calcutá sempre tinha consigo uma cópia de Vida
de Cristo!
Como o Arcebispo Sheen veio a escrever um livro tão maravilhoso que
inspirou e enriqueceu a vida de tantos? Ele sem dúvida era um indivíduo muito
talentoso. Sua capacidade intelectual era extraordinária, embora jamais tenha
feito nenhuma tentativa de parecer erudito. Além disso, tendo doutorado em
Teologia, foi o primeiro americano a obter o prestigioso grau de agrégé da
Universidade de Louvain, na Bélgica. Saiu-se tão bem nos exaustivos exames
que ofereceram um jantar em sua homenagem — nessa ocasião, algo digno de
nota aconteceu. Se alguém tão somente passasse no exame de agrégé, servia-se
água na refeição; se fosse um pouco melhor, servia-se cerveja; se a pessoa fosse
muito bem, bebia-se vinho. A bebida escolhida na ceia de celebração do jovem
Padre Sheen foi champanhe! Ele continuou a receber muitos outros prêmios
notáveis e títulos honoríficos ao longo de toda a vida, incluindo o importante
prêmio Cardinal Mercier Prize for International Philosophy.
O arcebispo também tinha o dom para se comunicar com as pessoas.
Outro grande evangelista americano, Billy Graham, chamou-o certa vez de “o
grande comunicador”. Ele não só manteve por aproximadamente vinte anos
uma atenta audiência de cerca de quatro milhões de pessoas com seu programa
de rádio semanal, e Catholic Hour [A hora católica], mas alcançou um
sucesso notável com sua série televisiva Life is Worth Living [A vida vale a
pena]. Seu programa ao vivo durava meia hora e era intencionalmente
colocado no mesmo horário do programa daquele que era chamado “Mr.
Television”, Milton Berle. Aqueles que haviam convidado o Arcebispo Sheen
para apresentar seu programa de televisão não podiam imaginar que ele se
sairia tão bem contra Milton Berle. Todavia, em seis meses, naquela primeira
meia hora, mais pessoas estavam assistindo ao programa do arcebispo do que
ao de Milton Berle. O arcebispo enfim atingiu um público estimado de cerca
de trinta milhões de espectadores. Ele chegou até mesmo a ganhar um Emmy,
em 1952, como “a personalidade mais marcante da televisão”. Na cerimônia de
premiação, muitos antes dele agradeciam a seus produtores, diretores e
roteiristas. Quando recebeu o Emmy, o arcebispo observou espirituosamente:
“Gostaria de agradecer aos meus roteiristas: Mateus, Marcos, Lucas e João!”.
Talvez a qualidade que torna Vida de Cristo do Arcebispo Sheen tão
excepcional seja o fato de que ele era um homem com reputação de grande
santidade. Uma coisa é compreender a vida e a mensagem de uma pessoa,
outra é ser capaz de transmiti-la aos demais; porém, é extremamente
significativo alguém conseguir viver essa mensagem, sobretudo com tanta
notoriedade. Este é precisamente o motivo por que se tem promovido a ideia
de uma possível santificação da vida do Arcebispo Sheen na Igreja Católica
Romana. Os santos são homens e mulheres que imitaram Jesus Cristo e
viveram a mensagem de Seu Evangelho em grau heroico. Os santos
conseguiram conhecer o Evangelho desde dentro, por assim dizer, e não
meramente como observadores externos.
Pessoas que leram Vida de Cristo ao longo dos anos com frequência
comentam que há algo poderoso em suas palavras! Como uma semente
enterrada no solo, as palavras acerca da vida e da mensagem de Jesus lançaram
raízes em muitas mentes e corações, além de darem muitos frutos. Certa vez, o
arcebispo disse às pessoas que o proclamavam um orador e escritor muito
talentoso que o verdadeiro poder de suas palavras e de sua atratividade vinha
das horas de oração, especialmente diante de Jesus no Santíssimo Sacramento.
Não há dúvida de que muitas pessoas ainda se inspiram quando leem e
meditam os grandes insights que o arcebispo teve a respeito de quem é a pessoa
de Jesus e de como Ele afeta nossas vidas.
Para concluir, gostaria de compartilhar um incidente que aconteceu já no
fim da vida do Arcebispo Sheen. Em 3 de outubro de 1979, o Papa João Paulo
II estava fazendo sua primeira visita aos Estados Unidos. Ele chegou a Nova
York e foi recebido pelo Cardeal Terence Cooke, arcebispo de Nova York, que
acompanhou o papa até a Catedral de St. Patrick. Quando o Santo Padre
chegou ao santuário, parou e olhou ao redor. Então, voltou-se para o Cardeal
Cooke e perguntou: “Onde está o Arcebispo Sheen?”. O cardeal teve de enviar
seu secretário para encontrar o arcebispo, que estava voltando da Mary Chapel,
nos fundos da catedral. O Santo Padre esperava imóvel. As pessoas se
perguntavam o que estava acontecendo para causar o aparente atraso. Por fim,
o Arcebispo Sheen surgiu. Quando as pessoas perceberam que o papa estivera
esperando o arcebispo, levantaram-se e ovacionaram o Arcebispo Sheen por
sete minutos. Afinal de contas, aqui estava o homem que tinha sido a voz da
Igreja Católica nos Estados Unidos por cerca de trinta anos. O Papa João Paulo
II se aproximou e abraçou o arcebispo, já bem debilitado pela idade e pela
doença. O Santo Padre disse-lhe: “Você escreveu e falou bem do Senhor Jesus!
Você tem sido um filho leal da Igreja”. Essas palavras poderosas certamente se
aplicam ao livro Vida de Cristo, do Arcebispo Sheen.
Regozijo-me em ver que este verdadeiro clássico cristão, escrito por
alguém que pode um dia vir a ser proclamado santo da Igreja Católica, seja
reimpresso. Tenho certeza de que este livro trará recompensas a cada um que o
ler. Como diria o arcebispo, DEUS AMA VOCÊ.

Padre Andrew Apostoli, C.F.R.


Vice-postulador, Causa da Canonização do Arcebispo Fulton J. Sheen.
Dedicado
em afeição filial
a Maria,
três vezes autora.

Primeiro como a mãe que deu ao Filho do Deus Vivo um corpo


com o qual Ele tomou a culpa humana e retribuiu a morte com a
vida.

Depois, como autora dessas palavras acerca do Verbo, pois somente


nas horas sombrias, quando o sofrimento se misturou à tinta, ela
fez o escritor ver o Cristo e o crucifixo.

E, por fim, como autora com o Espírito de Cristo no coração de


cada leitor, atuando em cada página como a doce incendiária
daquele amor que nos é insuficiente em Todo o Amor.
PREFÁCIO

Satanás pode se apresentar sob muitos disfarces, até semelhante a Cristo, e no


fim do mundo aparecerá como benfeitor e filantropo — mas Satanás nunca
apareceu nem nunca aparecerá com cicatrizes. Somente o amor celestial pode
mostrar as marcas da maior dádiva de amor numa noite para sempre no
passado. Na verdade, há apenas duas filosofias de vida: uma é primeiro o
banquete, depois a dor de cabeça; a outra é primeiro o jejum, depois o
banquete. Prazeres adiados embalados pelo sacrifício sempre são mais doces e
duradouros. Os antigos ensinavam que qualquer prosperidade ou sucesso
desfrutado sem sofrimento desagrada aos deuses. Lucrécio fala de um rei
egípcio que abdicou da relação com o amigo Polícrates, o tirano de Samos,
porque sua prosperidade não tinha defeito algum, “algo de amargo que brota
em meio a uma fonte de doçura”.
O cristianismo, diferentemente de todas as demais religiões do mundo,
começa com catástrofe e derrota. Religiões alegres e inspirações psicológicas
entram em colapso e definham na adversidade. A vida do fundador do
cristianismo, no entanto, tendo começado com a cruz, termina com o sepulcro
vazio e a vitória.
A vida de Cristo difere de todas as outras vidas em muitos aspectos, três
dos quais podem ser mencionados:

1. A cruz estava no fim de sua vida no tempo, mas no início, na intenção


e no propósito de sua vinda. Assim, Seus biógrafos, que foram
martirizados no testemunho da verdade que escreveram, dedicaram um
terço dos três primeiros Evangelhos e um quarto do quarto Evangelho aos
eventos de Sua Paixão e Ressurreição.
2. Assim como o homem não provém inteiramente da natureza, pois o
homem com sua mente tem um quê misterioso que não está contido em
seus antecedentes químicos e biológicos, assim também Cristo não
provém inteiramente da humanidade.
3. Seu legado não foi uma ética ou uma coleção de preceitos morais, nem
tampouco um despertar para o pecado social porque os homens não
ouviriam sobre o pecado pessoal; foi o confronto da culpa humana com o
amor perdoador de Deus. E, para Deus, custou algo.

Odiar o pecado, amar pecadores; condenar o comunismo, amar os


comunistas; rejeitar a heresia e amar os heréticos; receber os errados de volta no
tesouro de Seu coração, mas jamais o erro no tesouro de Sua sabedoria; perdoar
pecadores a quem a sociedade já condenou, mas ser intolerante com aqueles
que pecaram e não foram descobertos; Ele reservou suas explosões mais acerbas
para aqueles que eram pecadores e negavam o pecado, que eram culpados e
diziam ter apenas um complexo. Então, aquele que chora em silêncio na
presença do pranto humano e de um sepulcro aberto deu passagem a explosões
irrestritas de luto, conforme Ele contemplava a morte e a derrocada daqueles
que têm um câncer moral e se recusam a usar o remédio que Ele comprou com
um preço mais alto do que o sangue de touros e bodes.
O mundo moderno nega a culpa pessoal e admite apenas crimes sociais,
não há lugar para o arrependimento pessoal, mas apenas para reformas
públicas, Cristo foi separado de Sua cruz; o noivo e a noiva foram apartados. O
que Deus uniu, os homens separaram. Como resultado, à esquerda está a cruz;
à direita, o Cristo. Cada um tem esperado novos parceiros que os tomará num
tipo de segunda união adúltera. Surge o comunismo e toma a cruz sem
significado; a civilização ocidental pós-cristã escolhe o Cristo incólume.
O comunismo escolheu a cruz no sentido de que trouxe de volta a um
mundo egoísta um senso de disciplina, abnegação, rendição, trabalho duro,
estudo e dedicação a objetivos supraindividuais. Mas a cruz sem Cristo é
sacrifício sem amor. Consequentemente, o comunismo produziu uma
sociedade autoritária, cruel, opressora da liberdade humana, repleta de campos
de concentração, pelotões de extermínio e lavagens cerebrais.
A civilização ocidental pós-cristã tomou o Cristo sem a cruz. Mas um
Cristo sem um sacrifício que reconcilia o mundo com Deus é um pregador
itinerante barato, feminizado, sem cor, que merece ser popular por Seu grande
Sermão da Montanha, mas também merece a impopularidade pelo que disse
sobre sua divindade, de um lado, e sobre divórcio, juízo e inferno do outro.
Este Cristo sentimental é um mosaico de milhares de lugares-comuns,
sustentados às vezes por etimologistas acadêmicos incapazes de ver a Palavra
pelas letras, ou distorcido além do reconhecimento pessoal por um princípio
dogmático de que algo que é Divino deve necessariamente ser um mito. Sem
cruz, Ele não se torna nada senão um precursor provocante da democracia ou
um humanista que ensinava a fraternidade sem lágrimas.
O problema agora é: será que a cruz, que o comunismo tomou em suas
mãos, encontrará o Cristo antes que o Cristo sentimental do mundo ocidental
encontre a cruz? É nossa convicção que a Rússia encontrará o Cristo antes que
o mundo ocidental reúna Cristo com sua cruz redentora.
Para aqueles que procuram uma vida de Cristo estritamente cronológica
num cenário geográfico, recomendamos a de Giuseppe Ricciotti, e Life of
Christ (Milwaukee: e Bruce Publishing Company, 1954), como a melhor.
Em nossa obra não há preocupação com a crítica bíblica, em parte porque esta
já foi tratada adequadamente por Ricciotti, Grandmaison, Lagrange e outros, e
porque nenhuma teoria crítica perdura muito mais que uma geração. Um
Bauer dá passagem a um Strauss; um Strauss a um Wellhausen; um Wellhausen
a um Harnack e a um Renan; ambos a um Schweitzer e um Loisy. Quando
estas últimas teorias perderam o apoio popular, vieram Schimdt, Bultmann,
Albertz, Betram e outros. Os leitores que acompanharam as refutações críticas
e científicas de Bultmann feitas por Leopoly Malevez, René Marlé e outros,
sabem que elas já estão perdendo apoio popular entre os eruditos bíblicos. No
entanto, embora o autor de uma Vida de Cristo não mencione nenhum dos
escritores ou teorias acima, conhecê-los é um pré-requisito da escrita.
Nenhuma forma de crítica, mesmo a de um Strauss, deixa de aprofundar o
conhecimento daqueles que devem primeiro conhecer os Evangelhos técnica e
criticamente antes que possam dar um tratamento adequado à Vida de Cristo.
Das muitas traduções das escrituras, escolhemos a tradução Knox como a
melhor, usando a versão Rheims Douay em bem poucos trechos. Burns &
Washbourne, Ltd., e Sheed e Ward, Inc., prontamente permitiram o uso da
tradução Knox.
Os erros do autor multiplicar-se-iam sem a assistência editorial tão
fraternalmente oferecida pelo Reverendíssimo Monsenhor Edward T. O’Meara,
D.D., e pelo Reverendo Joseph Havey.
O acadêmico e erudito bíblico Reverendo Myles Bourke fez a leitura final
do manuscrito, salvando o autor do constrangimento de alguns erros, e o leitor
do problema de corrigi-los.
Agradecemos também ao Reverendo Herman D’Souza por sua ajuda na
correção das provas.
Vida de Cristo levou muitos anos para ser escrito. Mas a compreensão
profunda da unidade de Cristo e sua cruz veio quando Cristo manteve o autor
bem perto de sua cruz, nas horas escuras e dolorosas. O conhecimento vem dos
livros; da penetração de um mistério, do sofrimento. Espera-se que a doce
intimidade com o Cristo crucificado, que trouxe o juízo, irrompa dessas
páginas, dando ao leitor aquela paz que só Deus pode trazer às almas e as
ilumine para ver que todo pranto é, na verdade, a “sombra de Sua mão
carinhosamente estendida”.
1

A ÚNICA PESSOA JÁ PREANUNCIADA

A história está repleta de homens que alegaram ter vindo de Deus, ou que
eram deuses ou que portavam mensagens divinas — Buda, Maomé, Confúcio,
Cristo, Lao-Tsé e milhares de outros até a pessoa que, hoje mesmo, fundou
uma nova religião. Cada um deles tem o direito de ser ouvido e levado em
consideração. No entanto, como é necessário um parâmetro externo e fora
daquilo que está sendo mensurado, alguns testes permanentes devem estar
disponíveis para todos os homens, de todas as civilizações e em todas as épocas,
pelos quais se possa decidir se algum desses requerentes, ou todos eles, tem
fundamento no que alegam. Esses testes são de dois tipos: razão e história.
Razão porque todos a têm, mesmo os que não têm fé; história, porque todos
nela vivem e devem saber algo a seu respeito.
A razão prescreve que, se algum desses homens verdadeiramente veio de
Deus, o mínimo que Deus poderia fazer para amparar essa alegação seria
preanunciar sua vinda. Os fabricantes de automóvel anunciam aos
consumidores quando chegará um novo modelo. Se Deus enviou alguém de
sua parte, ou se Ele Próprio veio com uma mensagem de importância vital para
todos os homens, pareceria razoável que, primeiro, Ele deixasse os homens
saber quando o seu mensageiro viria, onde nasceria e onde viveria, que
doutrina ensinaria, que inimigos faria, que programa adotaria para o futuro e
de que maneira morreria. À medida que o mensageiro se conformasse a esses
anúncios, poderíamos julgar a validade de sua alegação.
A razão também nos assegura que, se Deus não fez isso, então, nada
impediria que qualquer impostor aparecesse na história e dissesse: “Venho de
Deus” ou “Um anjo apareceu para mim no deserto e deixou-me esta
mensagem”. Em casos como esse, não existiria um modo objetivo, histórico, de
testar o mensageiro. Para isso, haveria apenas a sua palavra e, é claro, ele
poderia estar errado.
Se um visitante de um país estrangeiro chegasse a Washington e dissesse
ser diplomata, o governo pedir-lhe-ia o passaporte e outros documentos que
atestassem que ele representava determinado governo. Os documentos
precisariam ter data anterior à sua chegada. Se tais provas de identificação são
pedidas a representantes de outros países, a razão certamente deverá exigi-las de
mensageiros que alegam ter vindo de Deus. Para cada motivo do requerente, a
razão pergunta: “Que registro havia antes de seu nascimento de que você
viria?”.
Com esse teste podemos avaliar os requerentes. (E, nesse estágio
preliminar, Cristo não é maior que os outros.) Sócrates não teve ninguém para
predizer-lhe o nascimento. Ninguém preanunciou Buda e sua mensagem ou
disse o dia em que se sentaria debaixo da árvore. Confúcio não teve registrado
o nome da mãe e o local de nascimento, nem isso fora dado aos homens
séculos antes que ele aparecesse, de modo que, quando surgisse, os homens
soubessem que era um mensageiro de Deus. Entretanto, com Cristo foi
diferente. Por conta das profecias do Antigo Testamento, Sua vinda era
esperada. Não existiam profecias a respeito de Buda, Confúcio, Lao-Tsé,
Maomé ou qualquer outro; mas existiam profecias a respeito de Cristo. Os
outros simplesmente vieram e disseram: “Eis-me aqui, acreditem em mim”.
Eram, portanto, apenas homens entre homens, e não o divino no humano. Só
Cristo cruzou essa linha, ao dizer: “Buscai os escritos do povo judeu e a história
narrada pelos babilônios, persas, gregos e romanos”. (Por ora, os escritos pagãos
e até o Antigo Testamento podem ser considerados apenas como documentos
históricos, não como obras inspiradas.)
É verdade que as profecias do Antigo Testamento podem ser mais bem
compreendidas à luz de seu cumprimento. A linguagem da profecia não tem a
exatidão da matemática. Ainda assim, se examinarmos cuidadosamente as
várias correntes messiânicas no Antigo Testamento e compararmos o quadro
resultante com a vida e a obra de Cristo, podemos duvidar de que as antigas
profecias apontam para Jesus e para o Reino que ele instituiu? A promessa de
Deus aos patriarcas de que por intermédio deles as nações da terra seriam
abençoadas; a profecia de que a tribo de Judá seria a maior entre as outras
tribos hebraicas até a vinda daquele a quem todas as nações obedeceriam; o
fato estranho, mas inegável, de que na Bíblia dos judeus de Alexandria, a
Septuaginta, encontramos profetizado de maneira clara o nascimento virginal
do Messias; a profecia de Isaías 53 a respeito do sofredor paciente, o Servo do
Senhor, que entregaria sua vida como oferta expiatória pelas ofensas do povo;
as perspectivas do Reino glorioso, eterno, da casa de Davi — em quem, senão
em Cristo, essas profecias são cumpridas? Do ponto de vista estritamente
histórico, há uma singularidade que põe o Cristo à parte dos fundadores de
todas as outras religiões. E, uma vez que o cumprimento dessas profecias
ocorreu historicamente na pessoa do Cristo, não só cessaram todas as profecias
em Israel, mas houve a suspensão dos sacrifícios quando o verdadeiro Cordeiro
Pascal foi imolado.
Voltemos ao testemunho pagão. Tácito, ao falar para os antigos romanos,
disse: “As pessoas, em geral, são convencidas pela fé nas antigas profecias de
que o Oriente deve triunfar e que da Judeia há de vir o Mestre e o Senhor do
mundo”. Suetônio, no relato sobre a vida de Vespasiano, descreve, da seguinte
maneira, a tradição romana: “Era crença antiga e invariável em todo o Oriente
que, por profecias indubitavelmente acertadas, os judeus fossem alcançar o
poder supremo”.
A China tinha a mesma expectativa, mas, por estar do outro lado do
mundo, acreditava que o grande Homem Sábio nasceria no Ocidente. Os Anais
do Império Celestial apresentam a seguinte afirmação:

No vigésimo quarto ano de Zhou-Wang, da dinastia de Zhou,


no oitavo dia da quarta lua, apareceu no Sudoeste uma luz que
iluminou o palácio do rei. O monarca, atingido por seu
esplendor, interrogou os sábios. Apresentaram-lhe livros em
que esse prodígio significava o aparecimento de um grande
Santo do Ocidente, cuja religião seria introduzida em seu país.

Os gregos O esperavam, pois Ésquilo, em seu Prometeu, seis séculos antes


da Sua vinda, escreveu: “Não tentes de modo algum dissuadir-te desta
maldição até que Deus surja, para aceitar sobre a própria cabeça o suplício de
teus pecados”.
Como os magos do Oriente sabiam a respeito de sua vinda?
Provavelmente, por conta das muitas profecias que circulavam pelo mundo dos
judeus, bem como pela profecia feita para os gentios por Daniel, séculos antes
de Seu nascimento.
Cícero, depois de relatar os dizeres dos oráculos antigos e das sibilas sobre
um “rei a quem devemos reconhecer para sermos salvos”, perguntou, com
esperança: “A que homem e a qual período temporal essas profecias se
referem?”. A quarta écloga de Virgílio relatou a mesma tradição ancestral e
falava de uma mulher casta, sorrindo para seu menino infante, que poria fim à
era do ferro.1
Suetônio citou um autor contemporâneo a fim de demonstrar que os
romanos tinham grande temor do rei que governaria o mundo, de modo que
ordenaram que todas as crianças nascidas naquele ano fossem mortas — uma
ordem que não foi cumprida, exceto por Herodes.
Não só os judeus esperavam o nascimento de um Grande Rei, um
Homem Sábio e um Salvador, mas Platão e Sócrates também falavam de um
Logos e de um Sábio Universal “ainda por vir”. Confúcio mencionava “o
Santo”; as sibilas, “um Rei Universal”; o dramaturgo grego, um salvador e
redentor para libertar o homem da “maldição primordial”. Todos esses estavam
no lado gentílico da expectativa. O que põe o Cristo à parte de todos os
homens é que, em primeiro lugar, Ele era esperado; mesmo os gentios
ansiavam por um libertador ou um redentor. Só este fato O distingue de todos
os outros líderes religiosos.
Uma segunda distinção é que, uma vez surgido, Ele afetou a história com
tamanho impacto que a dividiu em dois períodos: um antes e outro depois de
Sua vinda. Buda não fez isso, nem tampouco nenhum outro grande filósofo
indiano. Mesmo aqueles que negam Deus devem datar seus ataques a Ele com
A. D. ou algo assim muitos anos após sua vinda.
Um terceiro fato que O aparta de todos os outros é este: qualquer outra
pessoa que já veio a este mundo veio para viver. Ele veio para morrer. A morte foi
a pedra de tropeço de Sócrates — interrompeu seu magistério. Entretanto, para
Cristo, a morte era a meta e o cumprimento de sua vida, o ouro que buscava.
Poucas de suas palavras ou ações são inteligíveis sem referência à cruz.
Apresentou-Se como salvador e não simplesmente como Mestre. Não
significava nada ensinar os homens a serem bons, a menos que também lhes
desse o poder de serem bons, após resgatá-los da desilusão da culpa.
A história de toda vida humana começa com o nascimento e termina com
a morte. Na Pessoa de Cristo, contudo, a morte veio primeiro e a vida, por
último. A Escritura descreve-o como “o cordeiro imolado desde a fundação do
mundo” (Apocalipse 13,8). Foi imolado intencionalmente pelo primeiro
pecado e revolta contra Deus. Não tanto que Seu nascimento tenha lançado
sombra em Sua vida e, deste modo, o levado à morte; ao contrário, em
primeiro lugar estava a cruz e, esta, de trás, lançou sombra até o nascimento.
Foi a única vida no mundo vivida de trás para a frente. Como a flor na parede
fendida fala do poeta da natureza, e como o átomo é a miniatura do sistema
solar, da mesma maneira, Seu nascimento fala do mistério do patíbulo. Foi do
sabido ao conhecido, da razão de sua vinda manifestada no nome de “Jesus” ou
“Salvador” até o cumprimento de sua vinda, a saber, até a morte na cruz.
João nos dá Sua pré-história eterna; Mateus, Sua pré-história temporal
por intermédio da genealogia. É muito significativo que tantos de Seus
ancestrais temporais estivessem relacionados a pecadores e estrangeiros! Essas
máculas no brasão de sua linhagem humana sugerem o compadecimento da
Aliança para com os pecadores e para aqueles alheios a ela. Ambos esses
aspectos de Sua compaixão seriam, posteriormente, lançados contra Ele como
acusações: “amigo de pecadores”, “é um samaritano”. A sombra de um passado
maculado, todavia, prediz o futuro amor pelos que trazem a mácula. Nascido
de uma mulher, era um homem e podia ser um com toda a humanidade;
nascido de uma virgem, que foi coberta pelo Espírito Santo e “cheia de graça”,
também estava fora daquela corrente de pecado que infectou todos os homens.
Nota

1 | Na tradução para o português do texto latino: “Casta Lucina, assiste ao recém-nado,/ sob
quem no mundo a férrea gente acaba”. VIRGÍLIO, Bucólicas, Polion, IV Écloga. Trad.
Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Ateliê Editorial/Editora Unicamp, 2008, v. 9-10, p.
87. (N. T.)
2

O INÍCIO DA VIDA DE CRISTO

Um quarto fato distintivo é que Ele não se adequa, como outros mestres
mundiais, à categoria estabelecida de homem bom. Homens bons não mentem.
Mas, se Cristo não era de maneira alguma quem disse que era, isto é, o Filho
do Deus vivo, o Verbo de Deus encarnado, então não podia ser “só um homem
bom”; era um patife, um mentiroso, um charlatão e o maior enganador que já
viveu. Se não era quem disse que era, o Cristo, o Filho de Deus, então era o
anticristo! Se era apenas um homem, então não era um homem “bom”.
No entanto, ele não era só um homem. Ele nos teria feito adorá-Lo ou
desprezá-Lo — desprezá-Lo como um homem comum ou adorá-Lo como
verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Esta é a alternativa que Ele apresenta.
Pode acontecer de os comunistas, que são tão anticristãos, estarem mais
próximos Dele do que aqueles que O veem como um sentimentalista e um
vago reformador moral. Os comunistas ao menos concluíram que, se Ele
ganha, eles perdem; os outros têm medo de considerá-Lo vencedor ou
perdedor, porque não estão prontos para cumprir as exigências morais que esta
vitória imporia a suas almas.
Se é o que alegava ser, um salvador, um redentor, temos então um Cristo
viril e um líder digno de seguir nestes tempos terríveis; Aquele que entrará na
brecha da morte, do pecado devastador, da tristeza e do desespero; um líder
por quem podemos nos sacrificar por inteiro sem perder, mas ganhando a
liberdade, a quem podemos amar até a morte. Precisamos de um Cristo hoje
que crie laços e expulse compradores e vendedores de nossos novos templos;
que amaldiçoe a figueira infrutífera; que fale de cruzes e sacrifícios e cuja voz
seja como a de um mar tempestuoso. Ele não nos permitirá escolher entre Suas
palavras, descartando as mais difíceis e aceitando as que agradam nossa
imaginação. Precisamos de um Cristo que restaure a indignação moral, que nos
faça odiar o mal com intensidade apaixonada e amar o bem a ponto de sorver a
morte como água.

A ANUNCIAÇÃO

Todas as civilizações têm a tradição de uma era de ouro no passado. Um


registro judaico mais preciso fala da saída de um estado de inocência e
felicidade por meio de uma mulher que tentou um homem. Se uma mulher
desempenhou este papel na queda da humanidade, ela não deveria também
desempenhar um papel importante em sua restauração? E, se havia um Paraíso
perdido em que as primeiras núpcias do homem e da mulher foram celebradas,
não poderia haver um novo Paraíso em que as núpcias de Deus e do homem
seriam celebradas?
Na plenitude do tempo, um anjo de luz desceu do grande trono de luz a
uma virgem prostrada em oração para perguntar-lhe se estava disposta a dar a
Deus uma natureza humana. A resposta dela foi que “não conhecia homem
algum” e que, portanto, não podia ser a mãe do “Esperado das Nações”.
Jamais pode haver nascimento sem amor. Neste ponto, a virgem estava
certa. A geração de uma nova vida requer o fogo do amor. Mas, além da paixão
humana que gera vida, há a “paixão impassível e a tranquilidade frenética”2 do
Espírito Santo; e foi isso que cobriu a mulher e gerou nela o Emanuel ou
“Deus conosco”. No momento em que Maria pronuncia o Fiat, ou “faça-se”,
aconteceu algo maior que o Fiat lux (haja luz) da criação; pois a luz que agora
se fazia não era o sol, mas o Filho de Deus em carne. Ao pronunciar o Fiat,
Maria aceitou a plenitude da feminilidade, isto é, ser a portadora do dom de
Deus para a humanidade. Há uma receptividade passiva em que a mulher diz
Fiat ao cosmos, enquanto compartilha seu ritmo; Fiat ao amor de um homem,
enquanto o recebe; e o Fiat a Deus, enquanto recebe o Espírito.
Nem sempre as crianças vêm ao mundo como resultado de um
inconfundível ato de amor entre um homem e uma mulher. Embora o amor
entre os dois seja desejado, o fruto do amor — a criança — não é desejado da
mesma maneira que o amor de um pelo outro. Há um elemento
indeterminado no amor humano. Os pais não sabem se o filho será menino ou
menina, nem o momento exato de seu nascimento, pois a concepção se perde
em alguma noite de amor desconhecida. Os filhos mais tarde são aceitos e
amados pelos pais, mas nunca diretamente gerados pela vontade deles. Na
Anunciação, contudo, o Filho não foi aceito de nenhum modo imprevisto; o
Filho foi desejado. Houve colaboração entre uma mulher e o Espírito do Amor
Divino. O consentimento foi voluntário sob o Fiat; a cooperação física foi
livremente oferecida pela mesma palavra. Outras mães se tornaram conscientes
da maternidade por meio das mudanças físicas por que passaram; Maria se
tornou consciente por meio de uma mudança espiritual realizada pelo Espírito
Santo. Ela provavelmente recebeu um êxtase espiritual muito maior do que o
que foi dado a qualquer homem ou mulher em seu ato de amor unificante.
Assim como a queda foi um ato livre, também a Redenção havia de ser
livre. O que se chama de Anunciação era, na verdade, Deus pedindo o livre
consentimento de uma criatura para ajudá-lo a se incorporar na humanidade.
Suponha que um músico de uma orquestra toque deliberadamente uma
nota errada. O maestro é competente, a música tem a partitura correta e é fácil
de tocar, mas o músico ainda exerce sua liberdade ao introduzir uma
dissonância que de imediato se propaga no espaço. O regente tem duas opções:
ordenar que a seleção seja tocada outra vez ou ignorar a dissonância. Em
essência, não importa o que faça, pois aquela nota falsa está se propagando no
espaço a uma frequência de mais de mil hertz; e, quanto mais durar, mais
haverá dissonância no universo.
Há um modo de restaurar a harmonia no mundo? Só se pode fazer isso
vindo da eternidade e parando a nota em seu voo frenético. Mas ainda será
uma nota falsa? A desarmonia só pode ser destruída com uma condição. Se
aquela nota tornar-se a primeira nota de uma nova melodia, então ela se
tornará harmoniosa.
Foi exatamente o que aconteceu quando Cristo nasceu. Uma nota falsa de
dissonância moral introduzida pelo primeiro homem infectou toda a
humanidade. Deus podia tê-la ignorado, mas, para ele, fazer isso teria sido uma
violação da justiça, o que, evidentemente, é impensável. O que ele fez,
portanto, foi pedir que a mulher, representante da humanidade, livremente lhe
desse uma natureza humana com a qual Ele começaria uma nova humanidade.
Assim como houve uma velha humanidade em Adão, também haveria uma
nova humanidade em Cristo, que era Deus feito homem por meio da livre ação
de uma mãe humana. Quando o anjo apareceu a Maria, Deus estava
anunciando seu amor por toda a nova humanidade. Era o início de uma nova
terra, e Maria tornou-se um “Paraíso cercado de carne a ser cultivado pelo novo
Adão”. Assim como no primeiro jardim Eva trouxe a destruição, também no
jardim de seu ventre Maria traria a redenção.
Nos nove meses que Ele esteve na barriga dela, todo o alimento, o trigo,
as uvas que ela comia serviam como um tipo de Eucaristia natural, passando
para aquele que, mais tarde, viria a declarar ser o Pão e o Vinho da vida. Ao fim
dos nove meses, o lugar adequado para que nascesse era Belém, que quer dizer
“Casa do Pão”. Mais tarde, Ele diria:

Porque o pão de Deus é o pão que desce do céu


e dá vida ao mundo.
(São João 6,33)

Eu sou o pão da vida:


aquele que vem a mim não terá fome.
(São João 6,35)

Quando o Menino Deus foi concebido, a humanidade de Maria deu-lhe


mãos e pés, olhos e orelhas, e um corpo com o qual viria a sofrer. Assim como
as pétalas de uma rosa se fecham depois do orvalho como para absorver-lhe as
energias, também Maria, como rosa mística, fechou-se sobre aquele que o
Antigo Testamento descrevera como o orvalho que desce sobre a terra. Quando
enfim ela deu-o à luz, era como se um grande cibório tivesse sido aberto, e ela
segurava nos braços o convidado que também era o anfitrião do mundo, como
que a dizer: “Vejam, este é o cordeiro de Deus; vejam, este é aquele que tira o
pecado do mundo”.

A VISITAÇÃO

Maria recebeu um sinal de que conceberia por obra do Espírito Santo. Sua
prima Isabel já havia concebido um filho na velhice e estava então no sexto mês
da gravidez. Maria, guardando em si o Segredo Divino, viajou vários dias de
Nazaré até a cidade de Hebrom, que, segundo a tradição, repousava sobre as
cinzas dos fundadores do povo de Deus — Abraão, Isaac e Jacó. Isabel, de
algum modo misterioso, soube que Maria trazia consigo o Messias. Perguntou
ela:

Donde me vem esta honra de vir a mim


a mãe de meu Senhor?
(São Lucas 1,43)

Esta saudação veio da mãe do arauto à mãe do Rei cujo caminho o


emissário estava destinado a preparar. João Batista, ainda no ventre materno,
com base no testemunho de sua mãe Isabel, saltou de alegria com a mãe que
levara Cristo à sua casa.
A resposta de Maria a esta saudação é o chamado Magnificat, um cântico
de alegria que celebra o que Deus havia feito em seu favor. Ela rememorou
toda a história, voltando até a Abraão; viu a ação de Deus preparada para este
momento de geração em geração, e também olhou para um futuro indefinido
quando todos os povos e todas as gerações a chamariam “Bem-aventurada”. O
Messias de Israel estava a caminho, e Deus estava prestes a se manifestar na
terra e em carne. Ela até profetizou as qualidades do filho que estava por nascer
como cheio de justiça e graça. Seu poema termina ao aclamar a revolução que
ele inauguraria com a humilhação dos poderosos e a exaltação dos humildes.

A PRÉ-HISTÓRIA DE CRISTO

O Senhor que nasceria de Maria é a única pessoa no mundo que já teve uma
pré-história; uma pré-história a ser estudada não no barro primordial e nas
selvas, mas no seio do Pai Eterno. Embora tenha aparecido como o Homem da
Caverna em Belém, pois nascera num estábulo escavado na rocha, Seu
princípio no tempo como homem não teve princípio na atemporalidade da
eternidade como Deus. Só aos poucos Ele revelou sua divindade; e isso não se
deu porque Ele cresceu na consciência da divindade; devia-se, antes, à Sua
intenção de revelar lentamente o propósito de Sua vinda.
São João, no início de seu Evangelho, narra a pré-história do Filho de
Deus:
No princípio era o Verbo,
e o Verbo estava junto de Deus
e o Verbo era Deus.
Ele estava no princípio junto de Deus.
Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito.
(São João 1,1-3)

“No princípio era o Verbo.” O que quer que haja no mundo, é feito
segundo o pensamento de Deus, pois todas as coisas pressupõem pensamento.
Cada pássaro, cada flor, cada árvore foi feita conforme uma ideia existente na
mente divina. Os filósofos gregos defendiam que esse pensamento era abstrato.
Ora, o Pensamento ou Palavra de Deus revelou-se como Pessoal. Sabedoria
revestida de personalidade. Antes de sua existência terrena, Jesus Cristo é
eternamente Deus, a Sabedoria, o Pensamento do Pai. Em sua existência
terrena, é aquele Pensamento ou Palavra de Deus que fala aos homens. As
palavras dos homens se extinguem depois de concebidas e pronunciadas, mas a
Palavra de Deus é eternamente pronunciada e jamais pode cessar de ser
pronunciada. Por Sua Palavra, o Pai Eterno imprime tudo que entende, tudo
que sabe. À medida que a mente mantém diálogo consigo mesma por meio do
pensamento, vê e conhece o mundo por intermédio deste pensamento, então o
Pai vê a si mesmo, como em espelho, na Pessoa de Sua Palavra. A inteligência
finita precisa de muitas palavras para expressar ideias; mas Deus fala de uma
vez por todas em si mesmo — uma única Palavra que atinge o abismo de todas
as coisas que são conhecidas e que se podem conhecer. Nessa Palavra de Deus
estão escondidos todos os tesouros da sabedoria, todos os segredos da ciência,
todos os projetos dos artistas, todo o conhecimento da humanidade. E este
conhecimento, comparado à Palavra, é apenas um balbucio impotente.
Na atemporalidade da eternidade, a Palavra estava com Deus. Mas houve
um momento no tempo em que Ele não apareceu da divindade, visto que
houve um momento em que um pensamento na mente do homem ainda não
havia sido pronunciado. Assim como o sol nunca fica sem brilho, também o
Pai nunca fica sem o Filho; e assim como o pensador nunca fica sem
pensamento, também, em grau infinito, a Mente Divina nunca fica sem sua
Palavra. Deus não passou eras infinitas em sublime atividade solitária. Ele tinha
uma Palavra consigo igual a si mesmo.
Tudo foi feito por ele,
e sem ele nada foi feito.
Nele havia a vida, e a vida era a luz dos homens.
A luz resplandece nas trevas,
e as trevas não a compreenderam.
(São João 1,3-5)

Tudo no espaço e no tempo existe por causa do Poder criativo de Deus. A


matéria não é eterna; o universo tem por trás de si uma Personalidade
inteligente, um Arquiteto, um Construtor, um Sustentador. A criação é obra de
Deus. O escultor trabalha sobre o mármore, o pintor sobre a tela, o mecânico
sobre a matéria, mas nenhum deles pode criar esses materiais. Eles criam novas
combinações com coisas existentes — nada além disso. A criação pertence tão
somente a Deus.
Deus escreve Seu nome na alma de cada homem. A razão e a consciência
são Deus em nós na ordem natural. Os Pais da Igreja estavam acostumados a
falar da sabedoria de Platão e Aristóteles como o Cristo inconsciente em nós.
Os homens são como muitos livros publicados pela imprensa Divina, e se nada
mais for escrito neles, ao menos o nome do Autor estará permanentemente
gravado na capa. Deus é como a marca-d’água no papel, sobre a qual se pode
escrever sem que ela seja apagada.

BELÉM

César Augusto, o guarda-livros do mundo, encontrava-se em seu palácio ao


lado de Tibério. Diante dele estava disposto um mapa intitulado Orbis
Terrarum, Imperium Romanum. Ele estava prestes a emitir uma ordem de
recenseamento a todo o mundo, pois todas as nações do mundo civilizado
estavam sujeitas a Roma. Havia uma só capital neste mundo: Roma; havia uma
só língua oficial: o latim; um só senhor: César. Partiu a ordem a cada posto
avançado, a cada sátrapa e governador: todo cidadão romano deve estar
arrolado em sua própria cidade. Nas margens do império, na pequena vila de
Nazaré, soldados fixaram nas paredes a ordem para que todos os cidadãos se
registrassem na cidade de origem de sua família.
José, o carpinteiro, um obscuro descendente do grande rei Davi, foi por
isso obrigado a se registrar em Belém, a cidade de Davi. De acordo com o
édito, Maria e José partiram da vila de Nazaré para a vila de Belém, que ficava a
mais ou menos oito quilômetros do outro lado de Jerusalém. Quinhentos anos
antes o profeta Miqueias profetizara acerca dessa pequena vila:

E tu, Belém, terra de Judá,


não és de modo algum a menor entre as cidades de Judá,
porque de ti sairá o chefe
que governará Israel, meu povo.
(São Mateus 2,6)

José estava cheio de expectativa quando entrou na cidade de sua família e


estava plenamente convencido de que não teria dificuldade para encontrar
hospedagem para Maria, sobretudo por causa da situação em que se
encontrava. José foi de casa em casa e encontrou-as todas lotadas. Procurou em
vão um lugar em que Ele, Aquele a quem pertencem a terra e o céu, pudesse
nascer. Será que o criador não encontraria lugar na criação? José subiu um
monte íngreme até uma luz tênue que balançava numa corda à porta. Era a
hospedaria da vila. Ali, mais que em todos os outros lugares, certamente
encontraria abrigo. Havia lugar na hospedaria para soldados de Roma que
tinham brutalmente subjugado o povo judeu; havia lugar para as filhas de ricos
mercadores do Oriente; havia lugar para aqueles vestidos com trajes finos que
viviam nas casas do rei; na verdade, havia lugar para qualquer um que tivesse
dinheiro para dar ao estalajadeiro; mas não havia lugar para Aquele que veio ser
a Hospedaria de todo coração sem teto no mundo. Quando finalmente os
anais da história estiverem preenchidos até as últimas palavras no tempo, a
linha mais triste de todas será: “Não havia lugar na hospedaria”.
Lá fora, na encosta da montanha, havia uma estrebaria numa gruta, aonde
os pastores às vezes levavam seu rebanho em tempos de tempestade, José e
Maria enfim encontraram abrigo. Ali, num lugar tranquilo, no desamparo
solitário de uma gruta fria e castigada pelo vento; ali, num rincão do mundo,
Aquele que nasceu sem mãe no céu nasce sem pai na terra.
De cada criança que nasce no mundo, os amigos dizem que se parece com
a mãe. Esta foi a primeira vez na história em que alguém podia dizer que a mãe
se parecia com o Filho. Este é o lindo paradoxo do Menino que fez Sua mãe; a
mãe também era só uma criança. Também era a primeira vez na história deste
mundo que alguém podia pensar no céu como um lugar que não fosse “ainda
mais acima”; quando o Filho estava nos braços dela, Maria baixou os olhos ao
céu.
No lugar mais imundo do mundo, um estábulo, nasceu a Pureza. Ele, que
mais tarde seria abatido por homens agindo como animais, nasceu entre
animais. Ele, que chamaria a Si mesmo de “o pão vivo que desceu do céu”, foi
posto numa manjedoura, literalmente, um lugar de comer. Séculos antes, os
judeus tinham adorado ao bezerro de ouro; os gregos, ao asno. Os homens
prostravam-se diante deles como diante de Deus. O bezerro e o asno agora
estavam presentes para fazer sua reparação inocente, prostrando-se diante de
seu Deus.
Não havia lugar na hospedaria, mas havia lugar no estábulo. A hospedaria
é o lugar da assembleia da opinião pública, o ponto central dos humores do
mundo, a reunião do mundanismo, o lugar de ajuntamento dos populares e
famosos. Mas o estábulo é um lugar para os proscritos, para os ignorados, para
os esquecidos. O mundo pode ter esperado que o Filho de Deus nascesse — se
é que tinha de nascer — numa hospedaria. Um estábulo seria o último lugar
no mundo onde alguém procuraria por ele. A divindade sempre está onde menos
se espera.
Nenhuma mente mundana jamais teria desconfiado de que Aquele que
podia fazer o sol aquecer a terra um dia precisaria de um boi e um asno para
aquecê-lo com seu hálito; que Aquele que, na linguagem das Escrituras, podia
atar os laços das Plêiades, teria seu lugar de nascimento ditado por um
recenseamento imperial; que Aquele de cujas mãos vieram planetas e mundos
um dia teria bracinhos minúsculos incapazes de tocar na cabeça dos animais ao
seu redor; que os pés que pisaram os montes eternos um dia seriam frágeis
demais para andar; que a Palavra Eterna seria muda; que a Onipotência estaria
envolta em faixas; que a Salvação repousaria numa manjedoura; que o pássaro
que construiu o ninho seria chocado nele — ninguém jamais teria sequer
suspeitado que a vinda de Deus a esta terra seria assim tão desamparada. E que
é justamente por isso que tantos O deixam passar. A divindade sempre está onde
menos se espera.
Se o artista está à vontade em seu estúdio porque as pinturas são a criação
de sua própria mente; se o escultor está à vontade entre suas estátuas porque
elas são a obra de suas mãos; se o lavrador está à vontade entre suas vinhas
porque ele as plantou; e se o pai está à vontade entre os filhos porque são seus,
então, certamente, argumenta o mundo, Aquele que fez o mundo também
estaria à vontade nele. Ele haveria de vir ao mundo como o artista vai ao seu
estúdio, e o pai à sua casa; mas, para o Criador vir às suas criaturas e ser
ignorado por elas, para Deus vir entre os seus e não ser recebido por eles; para
Deus ser um desabrigado mesmo em casa — isso só podia significar uma coisa
à mente mundana: que o bebê não era Deus de maneira alguma. E é
exatamente por isso que o deixam passar. A divindade sempre está onde menos se
espera.
O Filho de Deus feito homem foi convidado a entrar em seu próprio
mundo pela porta dos fundos. Exilado desta terra, nasceu sob a terra, em certo
sentido, o primeiro homem das cavernas na história registrada. Lá, ele sacudiu
a terra até aos seus fundamentos. Porque nasceu numa gruta, todos que
desejassem vê-lo haveriam de inclinar-se. Inclinar-se é a marca da humildade.
O orgulho se recusa a dobrar-se e, portanto, deixaram passar a Divindade.
Aqueles, entretanto, que dobraram o ego e entraram descobriram que não estão
de modo algum numa caverna, mas num universo novo onde está um bebê no
colo da mãe, equilibrando o mundo em Seus dedos.
A manjedoura e a Cruz, portanto, são as duas extremidades da vida do
Salvador! Ele aceitou a manjedoura porque não havia lugar na hospedaria;
aceitou a Cruz porque os homens disseram: “Não teremos este Homem como
nosso rei”. Repudiado na entrada, rejeitado na saída, foi posto num estábulo de
estranhos no princípio, e num túmulo de estranhos ao final. Um boi e um asno
rodeavam seu berço em Belém; dois ladrões ladeavam sua Cruz no Calvário.
Ele foi envolto por faixas no sepulcro — faixas que simbolizavam as limitações
impostas à Sua Divindade quando assumiu a forma humana.
Os pastores que cuidavam do rebanho nas redondezas ouviram dos anjos:

Isto vos servirá de sinal:


achareis um recém-nascido envolto em faixas
e posto numa manjedoura.
(São Lucas 2,12)
Ele já estava carregando a Cruz — a única que um bebê podia carregar, a
cruz da pobreza, do exílio e da limitação. Seu intento sacrificial já brilhava na
mensagem que os anjos cantavam nos montes de Belém:

Hoje vos nasceu na Cidade de Davi


um Salvador,
que é o Cristo Senhor.
(São Lucas 2,11)

A avareza já estava sendo desafiada pela pobreza, enquanto o orgulho era


confrontado com a humilhação de um estábulo. As ataduras do poder divino,
que não precisa aceitar limites, geralmente são um tributo grande demais para
mentes que pensam apenas em poder. Não podem entender a ideia de
condescendência divina, ou do “homem rico que se torna pobre para que, por
sua pobreza, sejamos ricos”. Os homens não terão maior sinal da Divindade do
que a ausência do poder como o esperam — o espetáculo do bebê que disse
que viria sobre as nuvens do céu, agora envolto em faixas na terra.
Ele, a Quem os anjos chamam “o Filho do Altíssimo”, desceu sobre o pó
da terra da qual todos nasceram, para ser um com o homem fraco e caído em
todas as coisas, exceto o pecado. E são as faixas que constituem seu “sinal”. Se
Aquele que é a Onipotência tivesse vindo com trovões, não teria havido
nenhum sinal. Não há sinal a menos que aconteça algo contrário à natureza. O
brilho do sol não é um sinal, mas um eclipse o é. Ele disse que, no último dia,
sua vinda seria proclamada por “sinais do sol”, talvez a extinção da luz. Em
Belém, o Menino Deus entrou num eclipse, de modo que só a humildade de
espírito podia reconhecê-lo.
Só dois tipos de pessoas encontraram o bebê: os pastores e os sábios; os
simples e os instruídos; aqueles que sabiam que nada sabiam e aqueles que
sabiam que não sabiam tudo. Ele nunca é visto pelo homem de um livro só;
tampouco pelo homem que pensa que sabe. Nem mesmo Deus pode dizer algo
ao orgulhoso! Só o humilde pode encontrar Deus!
Como diz Caryll Houselander: “Belém é a representação do Calvário
assim como o floco de neve é a representação do universo”. Essa mesma ideia é
expressa pelo poeta que disse que, se conhecesse em todos os detalhes a flor
numa parede rachada, ele saberia “o que é Deus e o que é o homem”. Os
cientistas dizem-nos que o átomo contém em si o mistério do sistema solar.
Não era o nascimento que projetava sombra sobre sua Vida e assim o
levava à morte; era, antes, a Cruz que estava lá desde o início, e esta lançava sua
sombra retroativamente ao nascimento. Mortais comuns vão do conhecido ao
desconhecido submetendo-se a forças além do controle; desse modo, podemos
falar de suas “tragédias”. Ele, no entanto, saiu do conhecido para o conhecido,
da razão de sua vinda, a saber, ser “Jesus” ou “Salvador”, para o cumprimento
de sua vinda, a saber, a morte na Cruz. Portanto, não houve tragédia em sua
vida; pois tragédia supõe o imprevisível, o imponderável, o fatalístico. A vida
moderna é trágica quando há trevas espirituais e culpa irredimível. Contudo,
para o Menino Cristo não havia forças incontroláveis; nenhuma submissão a
correntes fatalísticas das quais não houvesse escape; mas havia um “inscape” —
a manjedoura microcósmica que resumia, como um átomo, a Cruz
macrocósmica do Gólgota.
No primeiro advento, tomou o nome de Jesus, ou “Salvador”; somente no
segundo advento tomará o nome de “Juiz”. Jesus não era um nome que Ele
tinha antes de assumir a natureza humana; refere-se, propriamente, àquele que
estava unido à Sua Divindade, não àquele que existia desde toda a eternidade.
Alguns dizem “Jesus ensinou” como diriam “Platão ensinou”, sem pensar nem
uma única vez que Seu nome quer dizer “Salvador do pecado”. Uma vez que
recebeu este nome, o Calvário se tornou inteiramente parte dele. A sombra da
cruz que recaiu sobre o berço foi coberta pelo nome. Esta era “a obra de meu
Pai”; tudo o mais lhe seria secundário.

A PRÉ-HISTÓRIA AGORA É HISTÓRIA

“O Verbo se fez carne.” A Natureza Divina, que era pura e santa, entrou como
princípio renovador na linha corrompida da raça de Adão, sem ser afetada pela
corrupção. Pelo nascimento virginal, Jesus Cristo se tornou atuante na história
humana sem se sujeitar ao mal que nela há.

E o Verbo se fez carne


e habitou entre nós,
e vimos sua glória,
a glória que o Filho único
recebe do seu Pai,
cheio de graça e de verdade.
(São João 1,14)

Belém se tornou uma ponte entre o céu e a terra; Deus e o homem


encontram-se aqui e olham um ao outro face a face. Para tomar a carne
humana, o Pai preparou-a, o Espírito formou-a, e o Filho assumiu-a. Aquele
que tinha a geração eterna no seio do Pai agora tinha uma geração no tempo.
Aquele que teve o nascimento em Belém veio a nascer no coração dos homens.
Pois que proveito teria se nascesse mil vezes em Belém a menos que nascesse
novamente no homem?

Mas a todos aqueles que o receberam,


aos que creem no seu nome,
deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus.
(São João 1,12)

Agora o homem não precisa esconder-se de Deus como o fez Adão; pois
Ele pode ser visto por intermédio da natureza humana de Cristo. Cristo não
obtém perfeição alguma ao tornar-se homem, nem tampouco perde algo do
que tinha como Deus. Havia a onipotência de Deus no mover de seu braço, o
amor infinito de Deus nas batidas de seu coração humano, e a compaixão
imensurável de Deus pelos pecadores em seus olhos. Deus está agora manifesto
em carne; é a isso que chamamos Encarnação. Toda a gama de atributos
divinos de poder, bondade, justiça, amor e beleza estavam nele. E, quando
Nosso Divino Senhor agia e falava, Deus em sua perfeita natureza se fazia
manifesto àqueles que O viam, ouviam e tocavam. Como mais tarde disse a
Filipe:

Aquele que me viu, viu também o Pai.


(São João 14,9)
Nenhum homem pode amar algo a menos que o possa abraçar, e o
cosmos é grande e volumoso demais. Entretanto, uma vez que Deus se fez bebê
e foi envolto em faixas e deitado numa manjedoura, os homens podem dizer:
“Este é Emanuel, este é Deus conosco”. Quando desceu à fragilidade da
natureza humana e ergueu-a à prerrogativa incomparável da união consigo
mesmo, a natureza humana foi dignificada. Essa união era tão real que todos os
Seus atos e palavras, todas as Suas agonias e lágrimas, todos os Seus
pensamentos e raciocínios, decisões e emoções, embora propriamente
humanas, eram ao mesmo tempo atos e palavras, agonias e lágrimas,
pensamentos e raciocínios, decisões e emoções do Eterno Filho de Deus.
O que os homens chamam de Encarnação é a união de duas naturezas, a
Divina e a humana, em uma única Pessoa que governa a ambas. Isso não é
difícil de entender, pois o que é o homem senão uma amostra, em nível
imensuravelmente baixo, de uma união de duas substâncias totalmente
diferentes, uma material e outra imaterial; uma o corpo, a outra, a alma, sob a
regência de uma única personalidade humana? O que mais dista entre si do
que os poderes e capacidades da carne e do espírito? Antes desta união, como
seria difícil até mesmo conceber um momento em que corpo e alma estariam
unidos numa única personalidade. Que estejam tão unidos é uma experiência
evidente a qualquer mortal, e ainda assim é uma experiência da qual o homem
não se admira por causa de sua familiaridade.
Deus, que une corpo e alma numa personalidade humana, não obstante a
diferença de natureza, decerto podia viabilizar a união de um corpo humano e
uma alma humana com Sua Divindade sob o controle de Sua Pessoa Eterna. É
isso que se quer dizer com:

E o Verbo se fez carne


e habitou entre nós.
(São João 1,14)

A Pessoa que assumiu a natureza humana não foi criada, como é o caso de
todas as demais pessoas. Sua Pessoa era a Palavra preexistente, ou Lógos. Sua
natureza humana, por outro lado, derivava da conceição miraculosa por Maria,
em que a sombra divina do Espírito e o Fiat humano, ou o consentimento da
mulher, misturaram-se tão lindamente. Este é o início da nova humanidade a
partir do material da raça decaída. Quando o Verbo se fez carne, isso não
queria dizer que ocorreu alguma mudança na Palavra Divina. O que aconteceu
não foi tanto a conversão da divindade em carne, mas a incorporação da
humanidade em Deus.
Havia continuidade com a raça decaída do homem por meio da
humanidade tomada a partir de Maria; havia descontinuidade porque a Pessoa
de Cristo é o Lógos preexistente. Cristo, desse modo, literalmente se torna o
segundo Adão, o Homem por quem a raça humana começa de novo. Seu
ensino centrava-se na incorporação da natureza humana em Si, segundo o
modo como a natureza humana que Ele tomou de Maria estava unida à Palavra
Eterna.
É difícil para um ser humano compreender a humildade que estava
envolvida no ato de o Verbo fazer-se carne. Imaginemos que fosse possível uma
pessoa despir-se do próprio corpo, e então enviar sua alma ao corpo de uma
serpente. Seguir-se-ia uma dupla humilhação: primeiro, aceitar as limitações de
um organismo serpentino, sabendo o tempo todo que sua mente era superior, e
que as presas não podiam articular de maneira adequada pensamentos que
nenhuma serpente jamais teve. A segunda humilhação seria, como resultado
desse “esvaziamento de si”, ser forçada a viver na companhia de serpentes.
Tudo isso, no entanto, é nada em comparação ao esvaziamento de Deus, pelo
qual Ele assumiu a forma de homem e aceitou as limitações da humanidade,
como fome e perseguição; tampouco foi trivial para a Sabedoria de Deus
condenar-se à associação com pobres pescadores que sabiam tão pouco. Mas
esta humilhação que começou em Belém quando Ele foi concebido pela
Virgem Maria era só a primeira de muitas, para contrabalançar o orgulho do
homem, até a humilhação final da morte na Cruz. Não houvesse Cruz, não
haveria manjedoura; não houvesse cravos, não haveria feno. Ele, todavia, não
podia ensinar a lição da Cruz como salário do pecado; Ele tinha de tomá-la.
Deus Pai não poupou Seu Filho — pois Ele amava a humanidade. Era este o
segredo envolto em faixas.

O NOME “JESUS”
O nome “Jesus” era bem comum entre os Judeus. No original hebraico, era
“Josué”. O anjo contou a José a respeito de Maria:

Ela dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus,


porque ele salvará o seu povo de seus pecados.
(São Mateus 1,21)

A primeira indicação da natureza de sua missão na terra não menciona


seu magistério; pois o ensino seria ineficaz, a menos que primeiro houvesse
salvação.
Ao mesmo tempo, foi-Lhe dado outro nome, a saber, “Emanuel”.

Eis que a Virgem conceberá


e dará à luz um filho,
que se chamará Emanuel,
que significa: Deus conosco.
(São Mateus 1,23)

Esse nome foi tirado da profecia de Isaías e afirmava algo além da


presença divina; junto com o nome “Jesus”, significava a presença divina que
liberta e salva. O anjo também disse a Maria:

Eis que conceberás e darás à luz um filho,


e lhe porás o nome de Jesus.
Ele será grande e chamar-se-á Filho do Altíssimo,
e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi;
e reinará eternamente na casa de Jacó,
o seu reino não terá fim.
(São Lucas 1,31-33)

O título “Filho do Altíssimo” era exatamente o mesmo que fora dado ao


Redentor pelo espírito maligno que possuía o jovem gadareno. Deste modo, o
anjo caído confessava que Ele era aquilo que o anjo não caído dissera dele:

Que queres de mim, Jesus,


Filho do Deus Altíssimo?
(São Marcos 5,7)

A salvação prometida pelo nome “Jesus” não é salvação social, mas


espiritual. Ele não salvaria as pessoas necessariamente da pobreza, mas as
salvaria dos pecados. Destruir o pecado é extirpar as primeiras causas da
pobreza. O nome “Jesus” trouxe de volta a memória de seu grande líder, que
conduzira Israel a descansar na terra prometida. O fato de ter sido prefigurado
por Josué indica que ele tinha as qualidades marciais necessárias à vitória final
contra o mal, que viria da aceitação alegre do sofrimento, da coragem resoluta,
da determinação da vontade e da devoção inabalável à ordem do Pai.
O povo escravizado sob jugo romano estava buscando libertação; assim,
sentiram que qualquer cumprimento profético do antigo Josué teria algo que
ver com política. Mais tarde, o povo lhe perguntaria quando viria a libertá-los
do poder de César. Mas aqui, bem no início de sua vida, o Soldado Divino
afirmava por intermédio de um anjo que tinha vindo para vencer um inimigo
maior que César. Ainda tinham de dar a César o que era de César; sua missão
era libertá-los de uma servidão ainda maior, isto é, a servidão do pecado. Em
toda a Sua vida, as pessoas continuavam a materializar a concepção de salvação,
pensando que libertação deveria ser interpretada em termos políticos. O nome
“Jesus”, ou Salvador, não lhe foi dado após ter realizado a salvação, mas no
momento mesmo em que foi concebido no ventre da mãe. O fundamento da
salvação estava na eternidade, não no tempo.

“PRIMOGÊNITO”

E deu à luz seu filho primogênito.


(São Lucas 2,7)
O termo “primogênito” não significava que Nossa Senhora havia de ter
outros filhos segundo a carne. Sempre houve uma posição de honra atribuída
na lei ao primogênito, mesmo se não houvesse outros filhos. Aqui, Lucas pode
muito bem ter empregado o termo tendo em vista o relato que faria mais tarde
da Mãe Bendita, apresentando o Filho no templo como “filho primogênito”.
Os outros irmãos de Nosso Senhor mencionados por Lucas não eram filhos de
Maria; eram ou meios-irmãos, filhos de José de um possível casamento
anterior, ou ainda primos dele. Maria não teve outros filhos. “Primogênito”, no
entanto, podia significar a relação de Nossa Senhora com os demais filhos que
ela teria segundo o Espírito. Nesse sentido, o Filho Divino chamou João de
“filho” dela aos pés da Cruz (São João 19,26). Espiritualmente, João era “o
segundo filho”. São Paulo mais tarde usou o termo “primogênito” para fazer
um paralelo entre a Geração Eterna de Nosso Senhor como o Único
Primogênito do Pai. Foi só a Seu Filho Divino que Deus disse:

Tu és meu Filho;
eu hoje te gerei.
[E também]: Eu serei seu Pai
e ele será meu Filho.
E novamente, ao introduzir o seu Primogênito na terra, diz:
Todos os anjos de Deus o adorem.
(Hebreus 1,5-6)

A GENEALOGIA DE CRISTO

Embora sua natureza divina fosse desde a eternidade, Sua natureza humana
tinha um pano de fundo judaico. O sangue que corria em Suas veias era da
casa real de Davi por meio de Sua mãe, que, embora pobre, pertencia à
linhagem do grande rei. Seus contemporâneos chamavam-no “filho de Davi”.
O povo jamais teria consentido em considerar como Messias nenhum
pretendente que não cumprisse esta condição indispensável. Tampouco Nosso
Bendito Senhor jamais negou Sua origem davídica. Ele só afirmou que sua
afiliação davídica não explicava as relações que tinha com o Pai em Sua
Personalidade Divina.
As palavras que abrem o Evangelho de Mateus sugerem a gênese de Nosso
Senhor. O Antigo Testamento começa com a gênese do céu e da terra, quando
Deus criou todas as coisas. A genealogia que é apresentada sugere que Cristo
era “um Segundo Homem”, e não meramente um dos muitos descendentes de
Adão. Lucas, que dirigia seu Evangelho aos gentios, remontou a genealogia de
Nosso Senhor até o primeiro homem, mas Mateus, que dirigia seu Evangelho
aos judeus, o apresenta como “Filho de Davi e Filho de Abraão”. A diferença
na genealogia de Lucas e de Mateus se deve ao fato de que Lucas, escrevendo
aos gentios, teve o cuidado de mostrar uma descendência natural; enquanto
Mateus, que escrevia aos judeus, toca o natural depois do tempo de Davi, a fim
de deixar claro aos judeus que Nosso Senhor era herdeiro do Reino de Davi.
Lucas está preocupado com o Filho do Homem; Mateus, com o Rei de
Israel. Assim, Mateus abre seu Evangelho:

Genealogia de Jesus Cristo,


filho de Davi, filho de Abraão.
(São Mateus 1,1)

Mateus retrata a genealogia de Abraão até Nosso Senhor passando por três
ciclos de 14 gerações. Isso, contudo, não representa uma genealogia completa.
São mencionados 14 de Abraão a Davi, 14 de Davi ao cativeiro babilônico, e
14 do cativeiro babilônico até Nosso Bendito Senhor. A genealogia vai além do
pano de fundo hebraico para incluir alguns não judeus. Pode ter havido uma
boa razão para isso, bem como para a inclusão de outros que não tinham as
melhores reputações do mundo. Uma destas foi Raabe, que era estrangeira e
pecadora; outra foi Rute, uma estrangeira acolhida na nação; uma terceira era a
pecadora Betsabé, cujo pecado com Davi cobriu de vergonha a linhagem real.
Por que haveria manchas no brasão real, tais como Betsabé, cuja pureza
feminina estava maculada; e Rute, que, embora moralmente boa, representava
a introdução de sangue estrangeiro no grupo? Possivelmente, a fim de indicar o
relacionamento de Cristo com o maculado e com o pecaminoso, com
prostitutas e pecadores, e até mesmo com gentios que foram incluídos em sua
mensagem e redenção.
Em algumas traduções das Escrituras, a palavra usada para descrever a
genealogia é “geração”: por exemplo, “Abraão gerou Isaac, Isaac gerou Jacó”; em
outras traduções, há a expressão “foi o pai de”, como, por exemplo, “Jeconias
foi o pai de Salatiel”. A tradução não é sem importância; o que ela mostra é
que essa expressão monótona é usada ao longo de 41 gerações. Mas é omitida
quando se atinge a 42ª geração. Por quê? Por causa do nascimento virginal de
Jesus.

Jacó gerou José, esposo de Maria,


da qual nasceu Jesus,
que é chamado Cristo.
(São Mateus 1,16)

Mateus, ao desenhar a genealogia, sabia que Nosso Senhor não era Filho
de José. Assim, já nas primeiras páginas do Evangelho, Nosso Senhor é
apresentado como ligado ao povo que, no entanto, não o gerou totalmente.
Que ingressou no povo era óbvio; contudo, dele se distinguia.
Se havia uma sugestão do nascimento virginal na genealogia de Mateus,
então dele havia uma sugestão na genealogia de Lucas. Em Mateus, José não é
descrito como tendo gerado Nosso Senhor, e, em Lucas, diz-se de Nosso
Senhor:

Era tido por filho de José.


(São Lucas 3,23)

Ele queria dizer que Nosso Senhor era popularmente reconhecido como
Filho de José. Combinando as duas genealogias: em Mateus, Nosso Senhor é o
Filho de Davi e Abraão; em Lucas, Ele é o Filho de Adão e a semente da
mulher que Deus prometera que esmagaria a cabeça da serpente. Homens
imorais, por Providência Divina, tornam-se instrumentos de Sua ação; Davi,
que assassinou Urias, é, no entanto, o canal pelo qual o sangue de Abraão flui
até o sangue de Maria. Havia pecadores na árvore genealógica, e Ele pareceria o
maior pecador de todos quando fosse levado à árvore genealógica da Cruz,
fazendo dos homens filhos adotivos do Pai Celestial.

CIRCUNCISÃO

Completados que foram os oito dias


para ser circuncidado o menino,
foi-lhe posto o nome de Jesus,
como lhe tinha chamado o anjo,
antes de ser concebido no seio materno.
(São Lucas 2,21)

A circuncisão, que se deu no oitavo dia, era o símbolo da aliança entre


Deus, Abraão e sua semente. A circuncisão pressupunha que a pessoa
circuncidada era um pecador. O bebê estava agora assumindo o lugar do
pecador — algo que teria de fazer por toda a sua vida. A circuncisão era um
sinal e uma marca do pertencimento ao povo de Israel. O mero nascimento
humano não introduzia a criança no corpo do povo escolhido de Deus. Outro
rito era requerido, conforme registrado no livro de Gênesis:

Deus disse ainda a Abraão:


“Tu, porém, guardarás a minha aliança,
tu e tua posteridade nas gerações futuras.
Eis o pacto que faço entre mim e vós,
e teus descendentes,
e que tereis de guardar:
Todo homem, entre vós, será circuncidado.
(Gênesis 17,9-11)

A circuncisão no Antigo Testamento era uma prefiguração do batismo no


Novo Testamento. Ambos simbolizam uma renúncia da carne e seus pecados.
A primeira era feita por uma ferida no corpo; o segundo, por uma limpeza da
alma. A primeira incorporava a criança ao povo de Israel; o segundo
incorporava a criança ao povo da nova Israel ou a Igreja. O termo “circuncisão”
foi usado posteriormente nas Escrituras para revelar o significado espiritual de
aplicar a Cruz à carne por meio da autodisciplina. Moisés, no livro de
Deuteronômio, claramente falou da circuncisão do coração. Jeremias também
empregou a mesma expressão. Santo Estevão, em seu último discurso antes de
ser morto, disse aos ouvintes que eram incircuncisos de coração e ouvidos. Ao
submeter-se a esse rito, pelo qual não precisava ter passado, pois não tinha
pecado, o Filho de Deus cumpriu as exigências de sua nação, assim como
estava guardando todas as outras regras hebraicas. Ele guardava a Páscoa;
guardava o sábado; ia às celebrações; obedeceu à lei, até que chegou o
momento em que a cumpriria ao realizar e espiritualizar suas prefigurações
obscuras da dispensação de Deus.
Na circuncisão do Menino Deus havia uma sugestão obscura e uma
alusão ao Calvário, no derramamento precoce do sangue. A sombra da Cruz já
estava pairando sobre um menino de oito dias de idade. Ele teria sete
derramamentos de sangue dos quais este foi o primeiro; os seguintes foram: a
agonia no jardim, a flagelação, a coroa de espinhos, o caminho da Cruz, a
crucifixão e a perfuração da lateral de Seu corpo. Mas, onde quer que houvesse
uma indicação do Calvário, haveria também algum sinal da glória; e foi no
momento em que participava do Calvário ao derramar Seu sangue que Lhe foi
concedido o nome de Jesus.
Um menino de apenas oito dias já estava começando o derramamento de
sangue que cumpriria Sua perfeita humanidade. O berço estava tingido de
carmesim, uma marca do Calvário. O Precioso Sangue estava começando sua
longa peregrinação. Na oitava de Seu nascimento, Cristo obedeceu à lei de que
Ele Mesmo era o autor, uma lei que havia de encontrar sua aplicação última
Nele. Houve pecado no sangue humano, e agora o sangue já estava sendo
derramado para eliminar o pecado. Assim como o Oriente contempla no pôr
do sol as cores do Ocidente, também a circuncisão reflete o Calvário.
Ele havia de começar a redimir tudo de uma vez? A Cruz não podia
esperar? Haverá muito tempo para ela. Vindo diretamente dos braços do Pai
para os de Sua mãe terrena, ele é carregado nos braços dela até seu primeiro
calvário. Muitos anos depois, ele será tomado dos braços dela mais uma vez,
depois das lesões da carne na Cruz, quando a obra do Pai é consumada.
APRESENTAÇÃO NO TEMPLO

Em Belém, Ele foi um exílio; na circuncisão, um salvador antecipado; agora, na


apresentação, tornou-se um sinal a ser contraditado. Assim como Jesus foi
circuncidado, Maria foi purificada, embora Ele não precisasse de circuncisão
porque era Deus, e ela não precisasse de purificação porque concebeu sem
pecado.

Concluídos os dias da sua purificação


segundo a Lei de Moisés,
levaram-no a Jerusalém
para o apresentar ao Senhor.
(São Lucas 2,22)

O fato do pecado na natureza humana é ressaltado não apenas pela


necessidade de dor permanente para expiá-lo na circuncisão, mas também na
necessidade de purificação. Desde que Israel fora liberto da servidão no Egito,
depois que os primogênitos dos egípcios foram mortos, os primogênitos dos
judeus sempre foram considerados como dedicados a Deus. Quarenta dias
depois de Seu nascimento, que era o momento indicado para um menino,
segundo a lei, Jesus foi levado ao templo. O êxodo decretou que o primogênito
pertencia a Deus. No livro de Números, a tribo de Levi foi reservada para a
função sacerdotal, e esta dedicação sacerdotal era compreendida como um
substituto do sacrifício do primogênito, um rito que jamais foi praticado.
Entretanto, quando o Menino Deus foi levado ao templo por Maria, a lei da
consagração do primogênito foi observada em sua plenitude, pois a dedicação
da criança ao Pai foi absoluta, e O levaria à Cruz.
Há aqui outro exemplo de como Deus em forma humana partilhava a
pobreza da humanidade. As tradicionais ofertas de purificação eram um
cordeiro e uma rola se os pais fossem ricos; e um par de rolas ou dois
pombinhos, se fossem pobres. A mãe que trouxe o Cordeiro de Deus ao
mundo não tinha um cordeiro para oferecer — exceto o próprio Cordeiro de
Deus. Deus foi apresentado no templo com quarenta dias de idade. Cerca de
trinta anos mais tarde, Ele reivindicaria o templo e o usaria como símbolo de
Seu corpo em que habitava a plenitude da divindade. Aqui não era só o
primogênito de Maria que era apresentado, mas o do Pai Eterno. Como o
único gerado do Pai, era agora apresentado como o primogênito de uma
humanidade restaurada. Uma nova raça começou nele.
O caráter do homem no templo, cujo nome era Simeão e que recebeu o
menino, é descrito simplesmente assim:

Ora, havia em Jerusalém um homem chamado Simeão.


Este homem, justo e piedoso,
esperava a consolação de Israel.
(São Lucas 2,25)

Foi-lhe revelado pelo Espírito Santo:

Que não morreria sem


primeiro ver o Cristo do Senhor.
(São Lucas 2,26)

Suas palavras parecem sugerir que, tão logo visse o Cristo, o aguilhão da
morte o tocaria. O ancião, tomando o Menino nos braços, exclamou com
alegria:

Agora, Senhor, deixai o vosso servo ir em paz,


segundo a vossa palavra. Porque os meus olhos
viram a vossa salvação que preparastes
diante de todos os povos,
como luz para iluminar as nações,
e para a glória de vosso povo de Israel.
(São Lucas 2,29-32)

Simeão era como uma sentinela a quem Deus tinha enviado para vigiar a
Luz. Quando a Luz finalmente apareceu, ele já estava pronto para cantar seu
Nunc Dimittis. Em um menino pobre levado por um povo pobre a fazer uma
oferta pobre, Simeão descobriu as riquezas do mundo. Enquanto segurava o
menino nos braços, esse ancião não era como o idoso de que Horácio fala. Ele
não olha para trás, mas para a frente, e não só para o futuro de seu próprio
povo, mas para o futuro de todos os gentios de todas as tribos e nações da terra.
Um ancião no crepúsculo da vida falava da aurora do mundo; no entardecer da
vida, falava da promessa de um novo dia. Ele tinha visto o messias antes, pela
fé; agora seus olhos podiam fechar-se, pois não havia nada mais lindo que
contemplar com reverência. Algumas flores só se abrem à noite. O que ele
tinha visto agora era “Salvação” — não salvação da pobreza, mas salvação do
pecado.
O hino de Simeão foi um ato de adoração. Há três atos de adoração
descritos no início da vida do Menino Deus. Os pastores O adoraram; Simeão
e Ana, a profetisa, O adoraram; e os magos pagãos também O adoraram. O
cântico de Simeão foi como o ocaso em que uma sombra anuncia uma
substância. Foi o primeiro hino dos homens na vida de Cristo. Simeão,
enquanto se dirigia a Maria e José, não se dirigiu ao Menino. Não teria sido
adequado dar sua bênção ao Filho do Altíssimo. O Menino os abençoou; mas
ele não abençoou o menino.
Depois do hino de louvor, dirigiu-se apenas à mãe; Simeão sabia que ela,
e não José, era parente do bebê em seus braços. Viu, além disso, que tristezas
estavam reservadas a ela, e não a José. Simeão disse:

Eis que este menino está destinado a ser uma causa de queda
e de soerguimento para muitos homens em Israel,
e a ser um sinal que provocará contradições.
(São Lucas 2,34)

Foi como se toda a história do Menino Deus tivesse passando diante dos
olhos do ancião. Cada detalhe da profecia tinha de cumprir-se na vida do bebê.
Aqui estava um fato da Cruz, afirmado mesmo antes que os bracinhos do bebê
pudessem esticar-se o bastante para formar uma cruz. A Menino criaria um
conflito terrível entre bem e mal, tirando as máscaras de um e outro,
provocando assim um terrível ódio. Ele seria uma pedra de tropeço, uma
espada que separaria o mal do bem, e uma pedra angular que revelaria as
motivações e as intenções dos corações humanos. Os homens já não seriam os
mesmos, uma vez que tivessem ouvido Seu nome e aprendido de Sua vida.
Seriam impelidos ou a aceitá-Lo ou a rejeitá-Lo. Quanto a Ele, não haveria
algo como meio-termo: só aceitação ou rejeição, ressurreição ou morte. Ele
faria, por Sua própria natureza, os homens revelarem suas atitudes secretas
diante de Deus. Sua missão não seria levar as almas ao juízo, mas redimi-las; e,
ainda assim, porque suas almas eram pecaminosas, alguns homens detestariam
sua vinda.
Daí em diante Seu destino seria encontrar oposição fanática da
humanidade, mesmo até a própria morte, e isso envolveria Maria em
sofrimentos terríveis. O anjo lhe tinha dito: “Bendita sois vós entre as
mulheres”, e Simeão estava agora lhe dizendo que em sua bem-aventurança ela
seria a Mater Dolorosa. Uma das penas do pecado original era que a mulher
com dores daria à luz; Simeão agora estava dizendo que ela continuaria a viver
em dores por causa do Menino. Se Ele havia de ser o Homem das Dores, ela
seria a Mãe das Dores. Uma madona sem sofrimento de um Cristo sofredor
seria uma madona sem amor. Uma vez que Cristo amou a humanidade de tal
maneira que quis morrer para expiar-lhe a culpa, então Ele também quis que
Sua mãe estivesse envolta com as faixas da própria aflição.
A partir do momento em que ouviu as palavras de Simeão, ela jamais
voltou a erguer as mãos do menino sem ver nelas a sombra dos cravos; cada pôr
do sol seria uma imagem vermelho-sangue de Sua Paixão. Simeão estava
jogando fora a bainha que escondia o futuro dos olhos humanos, e deixando a
lâmina do sofrimento do mundo reluzir diante dos olhos de Maria. Cada
pulsação que ela sentia nos punhos da criança seria como um eco das
marteladas que estavam por vir. Se Ele estava dedicado à salvação pelo
sofrimento, ela também estava. Mal esta jovem vida lançou-se ao mar, Simeão,
como um velho marinheiro, falou de naufrágio. O cálice de amargor do Pai
ainda não tinha chegado aos lábios do bebê, e, no entanto, a espada foi
mostrada à sua mãe.
Quanto mais Cristo se aproxima de um coração, mais este se torna
consciente de sua culpa; então pedirá misericórdia e encontrará paz, ou se
voltará contra Cristo porque ainda não está pronto a renunciar ao pecado.
Assim, ele separará o bom do mau, o joio do trigo. A reação do homem à
presença divina será o teste: ou desafiará toda a oposição da natureza egoísta ou
a estimulará numa regeneração e ressurreição.
Simeão estava praticamente chamando-O de “Perturbador Divino”, que
incitaria os corações humanos ao bem ou ao mal. Uma vez confrontado com
Ele, subscreveriam ou à luz ou às trevas. Diante de todos os outros, podiam ser
“tolerantes”; mas Sua Presença revela que seu coração há de ser ou solo fértil ou
terreno rochoso. Ele não pode chegar aos corações sem esclarecê-los e dividi-
los; uma vez em Sua Presença, um coração descobre tanto os pensamentos
sobre a bondade quanto sobre Deus.
Isso jamais seria assim se Ele fosse só um mestre humanitário. Simeão
sabia disso muito bem, e disse à mãe de Nosso Senhor que o Filho haveria de
sofrer porque Sua vida seria muito oposta às máximas complacentes pelas quais
a maioria dos homens leva a vida. Ele agiria em uma alma de uma forma, e
noutra de forma diversa, como o sol brilha sobre a cera e a amolece, e brilha
sobre o barro e o endurece. Como a Luz do Mundo, Ele seria uma alegria para
os bons e amantes da luz, mas seria como um holofote penetrante para aqueles
que eram maus e preferiam viver nas trevas. A semente é a mesma, mas o solo é
diferente, e cada solo será julgado pelo modo como reage à semente. A vontade
de salvar de Cristo está limitada pela reação livre de cada alma a aceitar ou
rejeitar. Era isso que Simeão queria dizer com as seguintes palavras:

A fim de serem revelados
os pensamentos de muitos corações.
(São Lucas 2,35)

Uma fábula oriental fala de um espelho mágico que continuava claro


quando o bom olhava para ele, e ficava embaçado quando o impuro o olhava.
Assim, o proprietário sempre podia contar o caráter daqueles que o usavam.
Simeão estava contando à mãe do Menino que o Filho seria como esse espelho:
os homens o amariam ou o odiariam, conforme o próprio reflexo. Uma luz que
cai numa chapa fotográfica sensível registra uma mudança química que não
pode ser obliterada. Simeão estava falando que a Luz desse bebê incidindo
sobre judeu e gentio estamparia em cada um o vestígio indelével de Sua
Presença.
Simeão também disse que o bebê revelaria as verdadeiras intenções dos
homens. Ele colocaria à prova os pensamentos de todos que havia de encontrar.
Pilatos contemporizaria e então esmoreceria; Herodes dissimularia; Judas
estaria inclinado a um tipo de segurança social avara; Nicodemos esgueirar-se-
ia na escuridão para encontrar a luz; cobradores de impostos tornar-se-iam
honestos; prostitutas, puras; jovens ricos rejeitariam Sua pobreza; pródigos
voltariam para casa; Pedro arrepender-se-ia; um apóstolo enforcar-se-ia. Desde
aquele dia, Ele continua a ser um sinal a ser contraditado. Era natural,
portanto, que morresse num pedaço de madeira em que uma viga contradizia a
outra. A haste vertical da vontade de Deus é negada pela trave horizontal da
vontade humana que se opõe. Assim como a circuncisão apontava para o
derramamento de sangue, a purificação prenunciava a crucifixão.
Depois de dizer que Ele era um sinal a ser contraditado, Simeão voltou-se
à mãe, acrescentando:

E uma espada transpassará a tua alma.


(São Lucas 2,35)

Foi-lhe dito que Jesus seria rejeitado pelo mundo e que, com a crucifixão
do Filho, se daria a própria transfixação. Como o Menino queria para Si a cruz,
também queria para ela a espada de dor. Se Ele escolheu ser o Homem das
Dores, também escolheu que ela fosse uma Mãe das Dores! Nem sempre Deus
poupa os bons da aflição. O Pai não poupou o Filho, e o Filho não poupou a
mãe. Com sua Paixão, deve haver a compaixão dela. Um Cristo sem
sofrimento que não pagasse livremente a dívida da culpa humana seria
reduzido ao nível de um guia ético; e uma mãe que não compartilhasse dos
sofrimentos do Filho seria indigna de seu grande papel.
Simeão não só desembainhou a espada; também contou a ela aonde a
Providência haveria de conduzi-la. Mais tarde, o Menino diria: “Vim trazer a
espada”. Simeão disse que ela a sentiria no coração quando o Filho fosse
erguido no sinal de contradição e ela ficaria aos pés da Cruz transfixada pela
dor. A lança que perfuraria fisicamente a lateral do corpo do Filho
misticamente lhe perfuraria o coração. O bebê veio para morrer, não para viver,
pois seu nome era “Salvador”.
OS MAGOS E A MATANÇA DOS INOCENTES

Simeão tinha previsto que o Menino Deus seria uma Luz para os gentios. Eles
já estavam em marcha. Em Seu nascimento, estariam os magos, ou os cientistas
do Oriente; em Sua morte, estariam os gregos, ou os filósofos do Ocidente. O
salmista tinha predito que os reis do Oriente viriam adorar Emanuel. Seguindo
uma estrela, vieram a Jerusalém e perguntaram a Herodes onde nascera o Rei.

Eis que magos vieram do oriente a Jerusalém.


Perguntaram eles:
Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer?
Vimos a sua estrela no oriente e viemos adorá-lo.
(São Mateus 2,1-2)

Foi uma estrela que os conduziu. Deus falou aos gentios por meio da
natureza e dos filósofos; aos judeus, por meio das profecias. Era chegado o
momento oportuno para a vinda do Messias, e todo o mundo sabia disso.
Embora fossem astrólogos, o pequeno traço de verdade em seu conhecimento
das estrelas conduziu-os até a Estrela de Jacó, assim como o “Deus
desconhecido” dos atenienses mais tarde seria o pretexto para que Paulo
pregasse a eles o Deus que não conheciam, mas vagamente desejavam. Embora
vindos de uma terra que adorava as estrelas, abandonaram aquela religião
quando se prostraram e adoraram Aquele que fez as estrelas. Os gentios, no
cumprimento das profecias de Isaías e Jeremias, “vieram a Ele dos confins da
terra”. A Estrela, que desaparecera durante o interrogatório de Herodes,
reapareceu e finalmente permaneceu onde o Menino nasceu.

A aparição daquela estrela


os encheu de profunda alegria.
Entrando na casa,
acharam o menino com Maria, sua mãe.
Prostrando-se diante dele, o adoraram.
Depois, abrindo seus tesouros,
ofereceram-lhe como presentes: ouro, incenso e mirra.
(São Mateus 2,10-11)

Isaías tinha profetizado:

Serás invadida por uma multidão de camelos,


pelos dromedários de Madiã e de Efá;
virão todos de Sabá, trazendo ouro e incenso,
e publicando os louvores do Senhor.
(Isaías 60,6)

Trouxeram três presentes: ouro, para honrar-Lhe a realeza; incenso, para


honrar-Lhe a divindade; e mirra, para honrar-Lhe a humanidade que estava
destinada à morte. A mirra foi usada em Seu sepultamento. A manjedoura e a
cruz estão relacionadas novamente, pois há mirra em ambas.
Quando os magos vieram do Oriente trazendo os presentes para o bebê,
Herodes, o Grande, soube que tinha chegado o tempo do nascimento do Rei
anunciado claramente aos judeus e vagamente percebido nas aspirações dos
gentios. Contudo, como todo homem de mente carnal, ele carecia de senso
espiritual, e, portanto, entendeu que decerto o Rei seria um político. Ele
perguntou onde o Cristo havia de nascer. Os principais sacerdotes e sábios
disseram-lhe: “Em Belém da Judeia, pois assim foi escrito pelo profeta”.
Herodes disse que queria adorar o bebê. Suas ações, no entanto, provaram o
que realmente pretendia: “Se este é o Messias, tenho de matá-Lo”.

Vendo, então, Herodes que tinha sido enganado pelos magos,


ficou muito irado e mandou massacrar em Belém e nos seus
arredores
todos os meninos de dois anos para baixo,
conforme o tempo exato que havia indagado dos magos.
(São Mateus 2,16)

Herodes será eternamente o modelo daqueles que fazem perguntas acerca


da religião, mas que nunca agem corretamente com base no conhecimento
adquirido. Como o locutor dos trens, conhecem todas as estações, mas nunca
viajam. O conhecimento meramente intelectual é sem valor, a menos que seja
acompanhado pela submissão da vontade e pela ação correta.
Totalitários gostam de dizer que o cristianismo é o inimigo do Estado —
uma forma eufemística de dizer: um inimigo deles mesmos. Herodes foi o
primeiro totalitário nesse sentido; achava que Cristo seria seu inimigo antes
que tivesse completado dois anos. Podia um bebê nascido sob a terra numa
gruta abalar potentados e reis? Podia Ele, que ainda não tinha demos ou pessoas
seguindo-O, ser um inimigo perigoso dos demos-cratos ou da democracia, o
governo do povo? Nenhum bebê meramente humano podia provocar tal
violência do Estado. O czar não temia Stálin, o filho de um sapateiro, quando
este tinha dois anos; não mandou o filho do sapateiro e sua mãe para o exílio
por temer que um dia viesse a ser uma ameaça para o mundo. Da mesma
maneira, nenhuma espada foi erguida sobre a cabeça do menino Hitler, nem o
governo se moveu contra Mao Tsé-Tung enquanto este ainda estava nas fraldas
por temer que ele um dia levaria a China à foice assassina. Por que, então, os
soldados foram chamados contra o bebê? Certamente há de ter sido porque
aqueles que têm o espírito do mundo escondem ódio instintivo e inveja do
Deus que reina sobre corações humanos. O ódio que o segundo Herodes
mostraria por Cristo em Sua morte teve prólogo no ódio de seu pai, Herodes, o
Grande, pelo Cristo ainda bebê.
Herodes temia que Aquele que veio trazer uma coroa celestial iria roubar-
lhe a coroa fajuta. Fingiu que queria levar presentes, mas o único presente que
queria levar era a morte. Homens maus, às vezes, escondem os maus desígnios
sob a aparência de religião: “Sou religioso, mas…”. Homens podem fazer
perguntas acerca de Jesus por duas razões — para adorar ou para causar dano.
Alguns até mesmo fazem uso da religião para os maus desígnios, como Herodes
fez uso dos Sábios. Perguntas sobre religião não produzem os mesmos
resultados em todos os corações. O que os homens perguntam sobre a
divindade nunca é tão importante quanto por que perguntam.
Antes que Cristo tivesse dois anos, houve um derramamento de sangue
por Sua causa. Foi o primeiro atentado à Sua vida. Uma espada para o bebê;
pedras para o homem; a cruz no final. Foi assim que os dele O receberam.
Belém era a aurora do Calvário. A lei do sacrifício que sopraria em torno Dele
e dos apóstolos e em torno de tantos de seus seguidores nos séculos por vir
começou a obra ao arrebatar jovens vidas que são efusivamente comemoradas
na Festividade dos Santos Inocentes. Uma cruz invertida para Pedro, um
empurrão de um campanário para Tiago, uma punhalada para Bartolomeu,
um caldeirão de óleo seguido de uma longa espera para João, uma espada para
Paulo, e muitas espadas para os bebês inocentes de Belém. “O mundo vos
odiará”, prometeu Cristo a todos que receberam o Seu selo. Esses inocentes
morreram pelo Rei que nunca conheceram. Como cordeirinhos, morreram por
causa do Cordeiro, os protótipos de uma longa procissão de mártires — essas
crianças que nunca lutaram, mas foram coroadas. Na circuncisão, Ele
derramou o próprio sangue; agora, Sua vinda anunciava o derramamento de
sangue de outros por causa Dele. Assim como a circuncisão foi a marca da
Antiga Lei, também a perseguição seria a marca da Nova Lei. “Por minha causa
sereis odiados”, disse Ele aos apóstolos. Tudo em torno Dele falava de sua
morte, pois este era o propósito de Sua vinda. A própria entrada do estábulo
onde nasceu estava marcada com sangue, como nos umbrais dos judeus no
Egito. Cordeiros inocentes na Páscoa sangraram por Ele durante séculos; agora
crianças inocentes sem mácula, cordeirinhos humanos, por Ele sangram.
Mas Deus advertiu os sábios a não voltar a Herodes e eles

voltaram para sua terra por outro caminho.


(São Mateus 2,12)

Ninguém que encontra Cristo de boa vontade volta pelo mesmo caminho
que veio. Confundido no propósito de matar o Divino, o tirano enfurecido
ordenou a matança indiscriminada de todos os meninos com menos de dois
anos. Há mais de uma forma de praticar o controle de natalidade.
Maria já estava preparada para a Cruz na vida do bebê, mas José,
movendo-se num nível mais baixo de consciência, precisou da revelação de um
anjo, que lhe disse para levar o menino e a mãe para o Egito.

Levanta-te, toma o menino e sua mãe


e foge para o Egito;
fica lá até que eu te avise,
porque Herodes vai procurar o menino para o matar.
José levantou-se durante a noite,
tomou o menino e sua mãe e partiu para o Egito.
Ali permaneceu até a morte de Herodes.
(São Mateus 2,13-15)

O exílio tinha de ser a sina do Salvador, de outro modo milhões de exílios


de terras perseguidas estariam sem um Deus que compreendesse a agonia da
falta de abrigo e da fuga desesperada. Por Sua presença no Egito, o Bebê
Salvador consagrou uma terra que tinha sido o inimigo tradicional de seu
próprio povo, e assim deu esperança a outras terras que mais tarde o
rejeitariam. O êxodo foi revertido, visto que o Menino Deus fez do Egito
morada temporária. Maria agora cantava como Miriã o fizera (Êxodo 15,20),
enquanto um segundo José guardava o Pão Vivo para os corações humanos
famintos. O assassinato dos inocentes promovido por Herodes relembra a
matança das crianças judias levada a cabo pelo Faraó; e o que aconteceu
quando Herodes morreu relembrou o Êxodo original. Quando Herodes, o
Grande, morreu, um anjo mapeou o caminho de José, fazendo-o voltar à
Galileia. Ele foi e se estabeleceu ali em cumprimento do que havia sido dito
pelos profetas: “Ele será chamado Nazareno”.

Após terem observado tudo


segundo a lei do Senhor,
voltaram para a Galileia,
à sua cidade de Nazaré.
(São Lucas 2,39)

O termo “Nazareno” tinha significado pejorativo. O vilarejo estava à


margem das principais estradas ao pé das montanhas; abrigada entre colinas,
estava fora do alcance dos mercadores da Grécia, das legiões de Roma e das
viagens dos sofisticados. Não é mencionado na geografia antiga. Merecia seu
nome, pois era só um “netzer”, um ramo que cresce no tronco da árvore.
Séculos antes, Isaías tinha predito que um “ramo”, ou um “broto”, ou um
“netzer”, cresceria das raízes do país; pareceria de pequeno valor e muitos o
desprezariam, mas enfim teria domínio sobre toda a terra. O fato de Cristo ter
fixado residência num vilarejo menosprezado prefigurava a obscuridade e
ignomínia que cairiam sobre ele e seus seguidores. O nome “Nazaré” seria
cravado em Sua cabeça como “sinal de contradição”, como um repúdio
sarcástico de Suas pretensões. Antes disso, quando Filipe disse a Natanael:

Achamos aquele de quem Moisés escreveu na lei


e que os profetas anunciaram:
é Jesus de Nazaré, filho de José.
(São João 1,45)

Natanael retorquiria:

Pode, porventura, vir coisa boa de Nazaré?


(São João 1,46)

Às vezes, pensam que as grandes cidades contêm toda a sabedoria,


enquanto as cidades pequenas são vistas como retrógradas e atrasadas. Cristo
escolheu a insignificante Belém para a glória de Seu nascimento; a ridícula
Nazaré para Sua juventude; mas a gloriosa e cosmopolita Jerusalém para a
ignomínia de Sua morte. “Pode, porventura, vir coisa boa de Nazaré?” não é
senão o prelúdio de: “Pode algo remível vir de um homem que morre numa
cruz?”.
Nazaré seria para Ele um lugar de humilhação, um campo de treinamento
para o Gólgota. Nazaré estava na Galileia, e toda a Galileia era uma região
menosprezada aos olhos do povo mais refinado de Judá. O sotaque galileu era
considerado rude e grosseiro, tanto que, quando Pedro negou Nosso Senhor, a
criada lembrou-o de que seu sotaque o traíra; tinha estado com o Galileu.
Ninguém procuraria, portanto, um mestre na Galileia; e, todavia, a Luz do
Mundo era o Galileu. Deus escolheu as coisas tolas do mundo para confundir
as sábias e orgulhosas. Natanael simplesmente deu vazão a um preconceito
mau, provavelmente tão velho quanto a própria humanidade; as pessoas e a
capacidade de ensinar são julgadas pelos lugares de onde vêm. A sabedoria
mundana vem de onde esperamos, dos best-sellers, das “marcas-padrão” e das
universidades. A sabedoria divina vem das regiões mais insuspeitas, das quais o
mundo escarnece. A ignomínia de Nazaré recairia sobre Ele mais tarde. Seus
ouvintes o ridicularizariam:

Este homem não fez estudos.


Donde lhe vem, pois,
este conhecimento das Escrituras?
(São João 7,15)

Embora esse fosse um reconhecimento relutante de Sua instrução, era


também um desdém por sua origem “matuta”… Como Ele sabia? Nem
suspeitavam da resposta verdadeira; a saber, que além do conhecimento de Seu
intelecto humano, tinha a sabedoria que não se aprende na escola, nem se
estuda por si mesma, e nem mesmo Deus ensina, no sentido de que os profetas
eram instruídos por Deus. Ele foi educado pela mãe e aprendeu na sinagoga do
vilarejo; mas os segredos de Seu conhecimento devem ser encontrados na união
com o Pai Celestial.

OBEDIÊNCIA E O MENINO NO TEMPLO

Na primeira Páscoa após Jesus ter completado 12 anos, Seus pais o levaram
para Jerusalém com outros homens de Nazaré. A lei exigia o comparecimento
de todos os homens judeus em três grandes festas: Páscoa, Pentecostes e
Tabernáculos. Quando o Menino Deus subiu ao templo, provavelmente,
seguiu, como de costume, todas as prescrições da lei judaica. Aos três anos, foi-
lhe dada uma veste de borlas;3 aos cinco, aprendeu, sob a direção da mãe,
partes da lei que eram escritas em rolos de pergaminho; aos 12, começou a usar
os filactérios4 que os judeus sempre colocam para recitar as preces diárias.
Levou vários dias para viajar nas estradas estreitas entre Nazaré e a Cidade
Sagrada. Como todos os peregrinos, a sagrada família provavelmente cantou os
salmos processionais durante a jornada, cantando o Salmo 122 (121) quando
avistaram as muralhas do templo pela primeira vez.
José deve ter ido ao templo para matar o cordeiro pascal. Já que o menino
estava na idade legal para as cerimônias do templo, deve ter assistido o sangue
do cordeiro se esvair da ferida e ser aspergido aos pés do altar nas quatro
direções da terra. A cruz estava, mais uma vez, diante de Seus olhos. O menino
também viu a carcaça do cordeiro ser preparada para a ceia. Isso foi feito,
segundo a lei, transpassando dois espetos de madeira pelo corpo, um através do
peito e outro através das patas dianteiras, de modo que o cordeiro parecia estar
em uma cruz.
Após cumprir os rituais, os homens e as mulheres partiam em caravanas
separadas, para se encontrarem novamente à noite. Entretanto, o Menino
Jesus, sem que os pais soubessem, ficou para trás, em Jerusalém. Eles,
acreditando que o Menino estava entre os companheiros de viagem,
percorreram um dia inteiro de jornada antes de dar falta dele. Foi assim que
Jesus foi “perdido” por três dias. Ao longo de toda a Sua infância houve uma
conversa de “contradição”, “espadas”, “de não ter lugar”, “exílio”, “matança” e
nesse momento houve a “perda”. Naqueles três dias, Maria veio a conhecer um
dos efeitos do pecado, a saber, a perda de Deus. Embora fosse sem pecado,
mesmo assim ela conheceu os temores e a solidão, as trevas e o isolamento que
todo pecador experimenta quando perde Deus. Foi uma espécie de esconde-
esconde glorificado. Ele era dela; por isso ela O procurou. Estava nos afazeres
da redenção, por isso Ele a deixou e foi para o templo. Ela tivera sua noite
escura do corpo no Egito; teria agora a noite escura da alma em Jerusalém. As
mães devem ser treinadas para suportar cruzes. Não só o seu corpo, mas a sua
alma, tiveram de pagar muito caro pelo privilégio de ser Sua mãe. Mais tarde,
ela sofreria uma perda de outros três dias — da Sexta-Feira Santa ao Domingo
de Páscoa. Essa primeira perda foi parte de sua preparação.
Cristo sempre é encontrado em lugares inesperados; em uma manjedoura
pelos magos; em uma cidadezinha, desprezado até mesmo pelos apóstolos. Seus
pais agora O encontraram inesperadamente no templo. Tinham se passado três
dias até que O encontrassem, exatamente como seriam três dias até Maria O
encontrar de novo após o Calvário. O templo exercia grande fascínio sobre Ele,
já que era uma pequena ilustração ou modelo do paraíso; a casa do Pai era Seu
lar e Ele se sentia em casa.
Havia uma escola no templo, em que ensinavam a uma série de rabinos; o
gentil Hillel talvez ainda estivesse vivo e deve ter estado presente no templo
para ingressar na conversa com o Menino Deus. O filho de Hillel, o rabino
Simeão e mesmo seu bisneto, Gamaliel, futuro mestre de São Paulo, devem ter
estado nesse grupo — apesar de Gamaliel, na época, ter quase a mesma idade
do Menino Deus. Anás acabara de ser indicado como sumo sacerdote e, por
certo, deveria ter ouvido algo a respeito do Menino Deus, se é que não estava
presente.
Foi nessa escola de rabinos que Maria e José O encontraram.

Três dias depois o acharam no templo,


sentado no meio dos doutores,
ouvindo-os e interrogando-os.
Todos os que o ouviam
estavam maravilhados da sabedoria
de suas respostas.
(São Lucas 2,46-47)

O fato de Ele estar sentado em meio aos doutores indicava que O


receberam não só como aprendiz, mas como professor. Há uma restrição
manifestada no Evangelho a respeito dessa cena que contrasta fortemente com
certos escritos apócrifos. O Evangelho de São Tomé, que é do século II e não é
um evangelho aceito, descreve Nosso Senhor, nessa ocasião, como professor.
Um evangelho árabe de um período posterior, na verdade, faz as instruções
tocarem em Metafísica e Astronomia. Os Evangelhos revelados, contudo,
sempre demonstram forte restrição a ponto de atenuar o relato da vida de
Nosso Senhor.

Quando eles o viram, ficaram admirados.


(São Lucas 2,48)

Provavelmente ficaram espantados por conta do ensinamento que


apresentava. O salmista sugerira que Ele possuía mais compreensão que os Seus
mestres porque os testemunhos de Deus eram o Seu estudo. O espanto
também pode ter vindo do fato de que, às vezes, é difícil para uma mãe
perceber que o filho rapidamente se tornou homem e assevera seu propósito
individual na vida.
Em uma terra onde a autoridade do pai era suprema, não foi José, o pai
adotivo, mas Maria quem falou:
Meu filho, que nos fizeste?!
Eis que teu pai e eu andávamos à tua procura,
cheios de aflição.
(São Lucas 2,48)

O nascimento virginal estava sugerido no seu questionamento. A


pergunta indicava que a ênfase estava mais no fato de Ele ser o filho dela do
que no fato de Ele também ser o Filho de Deus. Essa distinção é mais
enfatizada por ela acrescentar uma nota sobre a paternidade, ao dizer “teu pai e
eu”.
O Menino Deus respondeu fazendo uma distinção entre aquele a quem
honrava como pai na terra e o Pai Eterno. Essa resposta afirmou uma separação
de vias; mas isso não diminuiu o dever filial devido a Maria e a José, pois Ele se
lhes sujeitou de novo imediatamente, mas de maneira decisiva colocou-os em
segundo lugar.
Essas são as primeiras palavras de Jesus registradas nos Evangelhos e
aparecem em forma de pergunta:

Por que me procuráveis?


Não sabíeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai?
(São Lucas 2,49)

Essa é uma referência evidente às palavras de Maria: “teu pai e eu”.


Quando disse que Sua mãe deveria saber que Ele se ocupava das coisas do Pai,
estava, evidentemente, se referindo àquilo que ela aprendera na Anunciação
quando o anjo lhe disse:

O Espírito Santo descerá sobre ti,


e a força do Altíssimo te envolverá com a sua sombra.
Por isso o ente santo que nascer de ti será chamado Filho de
Deus.
(São Lucas 1,35)
O relacionamento com a própria mãe seria evidenciado na festa de
casamento em Caná; aqui estabeleceu a natureza de Seu relacionamento com o
pai adotivo. Ele rejeitou a paternidade física ao reivindicar a paternidade divina
do Pai Celestial. Em Caná, diria à mãe:

Mulher, isso compete a nós? Minha hora ainda não chegou.


(São João 2,4)

Na ocasião, insinuava outra maternidade que não a da carne, assim como


agora sugeria outra paternidade que não aquela exercida por José. Nunca mais
José aparece nos Evangelhos.
No templo, Nosso Senhor se apartou do direito de Seu pai adotivo, assim
como, mais tarde, em Caná, se apartaria dos direitos de Sua mãe. A missão
suprema era ser um salvador; mas, naquele momento, isso incluía obedecer aos
guardiões terrenos. O menino sugeria que havia algo na história que deveria ser
conhecido pelo pai adotivo e pela mãe, algo que justificasse estar onde estava e
tolher-lhes a aflição. Foi por isso que perguntou: “Por que me procuráveis?”, e
acrescentou: “Não sabíeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai?”. Estava
a dizer que deveria estar no templo do próprio Pai. Esse foi o primeiro dos
muitos “deveres” que Nosso Senhor pronunciou durante a vida para indicar
que estava sob um mandado, sujeito a ser um resgate. O próprio fato de Ele ter
associado a expressão “devo” ao Pai Celestial significa que Sua filiação encerrava
obediência. Aos 12 anos de idade se enredava em algo que seria aborrecido para
Sua natureza humana, mas toda a Sua natureza estava inclinada a realizar um
“dever” divino.
Se existe alguma coisa que descarta a falsa suposição de que sua
consciência de uma união com o Pai se desenvolveu aos poucos, é nesse texto
em que Ele, como um menino de 12 anos, alude à sua origem misteriosa e à
personagem adotiva de Seu pai, bem como à unidade perfeitamente consciente
com a divindade; as limitações divinas que lhe influenciaram a vida já eram
percebidas por ele de modo profundo. Com frequência, usa a palavra “dever”.

Devo pregar o Reino de Deus.


Devo habitar na tua casa.
Devo fazer as obras daquele que me enviou.
O Filho do Homem deve sofrer muitas coisas.
O Filho do Homem deve ser erguido.
O Filho do Homem deve sofrer para ingressar na sua glória.
O Filho do Homem deve ressuscitar.

Ele sempre falou como alguém que estava sob ordens. Livre das coações
da hereditariedade, das circunstâncias e da família, esse menino de 12 anos
disse estar vinculado a uma missão celestial. Por esse motivo, perguntou por
que o procuravam. Surpreendeu-se que qualquer outra explicação diferente de
estar obedecendo à vontade do Pai lhes tenha ocorrido. O imperativo do Amor
Divino estava manifestado nesse “dever”. Não existe diferença fundamental
entre o Menino no templo e o Homem que disse que “deveria ser erguido” na
cruz. Teria de morrer porque queria salvar. Sua obediência filial ao Pai
coincidiu com Sua piedade para com os homens. Não seria uma tragédia, visto
que “o Filho do Homem deveria ressuscitar depois de três dias”. Seu plano era
revelado aos poucos às mentes dos homens; mas não havia revelação gradual
em Sua mente, nenhuma nova compreensão de por que deveria vir.
As coisas do Pai ao fim dos três dias no templo não eram diferentes das
coisas do Pai ao fim de três dias na sepultura. Como todos os outros incidentes
na infância, esse testemunhou a missão na Cruz. Todos os homens nascem para
viver; Ele nasceu para fazer as coisas do Pai, que era morrer e, assim, salvar.
Essas primeiras palavras registradas pareciam os brotos de uma flor de
maracujá. No domingo de Páscoa, Maria O encontraria novamente no templo
— o templo de Seu corpo glorioso.
A espada já viera a Maria antes da Cruz ter chegado ao Filho, pois ela já
sentira a separação cortante. Na Cruz, iria, em Sua natureza humana, proferir o
brado da Sua maior agonia, “Meu Deus, Meu Deus, por que me
abandonaste?”. Entretanto, Maria o proferira enquanto Ele ainda era menino,
perdido no templo. As dores da alma mais penetrantes são as que Deus impõe,
como Jesus impôs essa à mãe. As criaturas podem ferir umas às outras somente
no exterior, mas a chama purificadora de Deus pode penetrar na alma como
uma espada de dois gumes. Ambas as naturezas Dele a ensinavam a se preparar
para a vida de sofrimentos: a natureza humana, ao esconder a beleza de Sua
face durante aqueles três dias, melhor dizendo, três noites; a natureza divina, ao
proclamar que o Pai o enviara à terra para fazer as coisas do céu, que era abrir
os céus à humanidade ao pagar a dívida pelos pecados dos homens.

NAZARÉ

Esse é o único incidente de Sua infância contado nas Escrituras. Pelos


próximos 18 anos Ele permaneceu em Nazaré.

Em seguida, desceu com eles a Nazaré


e lhes era submisso.
Sua mãe guardava todas estas coisas no seu coração.
E Jesus crescia em estatura, em sabedoria e graça,
diante de Deus e dos homens.
(São Lucas 2,51-52)

Se já existiu um filho de quem se poderia esperar que alegasse


independência pessoal (especialmente depois da potente afirmação no templo),
esse era Ele. E, ainda assim, para santificar e exemplificar a obediência humana
e para compensar a desobediência dos homens, viveu sob um teto humilde,
obediente aos pais. Nos 18 anos sem intercorrências, consertou os telhados
planos das casas de Nazaré e as carroças dos agricultores. Todas as tarefas
desprezíveis e insignificantes eram parte das coisas do Pai. A evolução humana
do Deus-Homem se deu no vilarejo de maneira tão natural que nem mesmo os
habitantes da cidade estavam conscientes da grandeza Daquele que habitava no
meio deles. Era, de fato, um “rebaixamento”, no sentido de que, para Ele, era
espírito de sacrifício e abnegação submeter-se às próprias criaturas.
Evidentemente, Ele seguiu o ofício de carpinteiro, pois, 18 anos depois, as
pessoas da cidade perguntariam:

Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria […]?


(São Marcos 6,3)
Justino Mártir, com base na tradição, diz que, durante esse período,
Nosso Senhor fez arados e jugos e ensinou a justiça aos homens pelos frutos de
Seu trabalho pacífico.
O crescer em sabedoria que é dito do Menino Deus não foi, como vimos,
um crescer na consciência de divindade. Visto que era homem, estava sujeito a
todas as leis que regulam o crescimento humano; por ter inteligência e vontade
humanas, era natural que essas faculdades se manifestassem de maneira
humana. No desenvolver do conhecimento experimental, a influência do
ambiente há de ser especialmente notada. Muitas das comparações que
utilizava nas parábolas foram tomadas do mundo em que vivera. Foi por
intermédio da influência dos pais que aprendeu a língua comum, o aramaico,
e, sem dúvida, aprendeu também a língua litúrgica, o hebraico. É bastante
provável que tenha aprendido grego, já que era falado, até certo ponto, na
Galileia e, aparentemente, também era a língua de dois de seus parentes, Tiago
Menor e Judas, que depois escreveram epístolas em grego.
Ele também aprendeu o ofício da carpintaria, que resultou em um
desenvolvimento maior do intelecto humano. Mais tarde, recebeu o título de
rabi por causa do profundo conhecimento das Escrituras e da lei. Com
frequência iniciava discussões com as palavras “não lestes”, demonstrando,
assim, Seu conhecimento das Escrituras. Sua família, a sinagoga, os arredores e
a própria natureza — tudo contribuía um pouco com sua inteligência e
vontade humanas. Possuía tanto um intelecto humano como uma vontade
humana. Sem o primeiro, não poderia ter crescido no conhecimento
experimental humano; sem a segunda, não poderia ter sido obediente a uma
vontade superior. Ademais, ambos eram essenciais a Ele como homem.
Desenvolvera o conhecimento como homem; como Deus, foi além do
conhecimento humano. Isso é o que João descreve como o “Verbo”, que
significa a sabedoria, o pensamento ou a inteligência de Deus.

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus


e o Verbo era Deus.
Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito.
E o Verbo se fez carne e habitou entre nós.
(São João 1,1.3.14)
As relações profundas que tinha com o Pai do Céu não eram apenas
provenientes da oração e da meditação; essas, qualquer ser humano pode
estabelecer. Elas provinham, antes, da identidade de natureza com a divindade.
Visto que o pecado mais comum da humanidade é o orgulho ou a
exaltação do ego, era conveniente que, em expiação por esse orgulho, Cristo
praticasse a obediência. Não era como quem é obediente por conta de uma
recompensa ou para fortalecer o caráter futuro; ao contrário, sendo o Filho, já
desfrutava da plenitude do amor do Pai. Foi dessa mesma plenitude que fluiu
uma rendição infantil à vontade do Pai. Apresentou isso como causa da
rendição à cruz. Mais ou menos uma hora antes de ingressar na agonia do
Jardim das Oliveiras, diria:

O mundo, porém, deve saber que amo o Pai


e procedo como o Pai me ordenou.
(São João 14,31)

Os únicos atos registrados da infância de Cristo são os de obediência —


obediência ao Pai Celestial e aos pais terrenos. O fundamento da obediência
para o homem, ensinou, é a obediência a Deus. Os anciãos que não servem a
Deus descobrem que os jovens não lhes servem. Toda a vida de Cristo foi
submissão. Submeteu-Se ao batismo de João, embora não necessitasse;
submeteu-Se ao imposto do templo, embora, como Filho do Pai, fosse isento; e
pediu aos próprios seguidores que se submetessem a César. O Calvário
projetou Sua sombra sobre Belém, de modo que agora obscureceu os anos de
obediência em Nazaré. Ao sujeitar-se às criaturas, conquanto fosse Deus,
preparou-se para a obediência final — obediência à humilhação na cruz.
Pelos 18 anos seguintes, depois da perda de três dias, Ele, que fez o
universo, exerceu o papel de carpinteiro em um vilarejo, um operário da
madeira. Os pregos e as vigas transversais, tão familiares na oficina, tornaram-
se, mais tarde, os instrumentos de sua tortura; e Ele mesmo seria pregado a um
pedaço de madeira. Poderíamos pensar por que essa longa preparação para um
ministério tão breve de três anos. O motivo pode muito bem ser que Ele
esperara até que a natureza humana que assumira tivesse crescido em anos para
atingir a perfeição plena, de modo que oferecesse o sacrifício perfeito ao Pai
Celestial. O agricultor espera até que o trigo esteja maduro antes de ceifá-lo e
submetê-lo ao moinho. Da mesma maneira, Jesus esperaria até que Sua
natureza humana tivesse alcançado as mais perfeitas proporções e o auge da
beleza antes de entregá-la ao martelo dos crucificadores e à foice daqueles que
ceifariam o pão vivo dos céus. Um cordeiro recém-nascido nunca foi dado em
sacrifício, nem o primeiro rubor da rosa colhido para homenagear um amigo.
Cada coisa tem a sua hora de perfeição. Já que ele era o cordeiro que podia
estabelecer a hora do próprio sacrifício, já que era a rosa que podia escolher o
momento do corte, esperou pacientemente, com humildade e obediência,
enquanto crescia em anos, graça e sabedoria diante de Deus e dos homens.
Então, diria: “Eis a tua hora”. Desse modo, o melhor trigo e o vinho mais tinto
se tornariam os elementos mais dignos de sacrifício.

JOÃO BATISTA

O silêncio terrível de trinta anos foi interrompido somente pela breve cena no
templo. Chegava o momento de sair da vida privada para a pública. Porque o
acontecimento estremeceria o mundo, Lucas relaciona o aparecimento do
precursor de Nosso Senhor, João Batista, com o reinado do tirano Tibério, o
governante de Roma. Plínio, que posteriormente escreveria como historiador
romano a respeito de Cristo, era, nesse momento, uma criança de quatro anos
de idade; Vespasiano, que mais tarde conquistaria Jerusalém com seu filho
Tito, tinha 19 anos. Um dos casamentos mais importantes em Roma na época
foi o da filha de Germânico, que nove anos depois daria à luz o grande
perseguidor dos seguidores de Cristo, Nero. Em meio a essa paz romana
relativa

veio a palavra do Senhor no deserto a João,


filho de Zacarias.
(São Lucas 3,2)

João vivia em solidão no deserto, vestido de pelo de camelo com um


cinturão de couro na cintura. Sua alimentação consistia em gafanhotos e mel
silvestre. Sua veste, provavelmente, buscava assemelhar-se com a de Elias, em
cujo espírito João deveria ir diante de Cristo. Já que pregava a mortificação,
também a praticava. Se tinha de preparar as veredas para Cristo, também
deveria evocar uma consciência penitente do pecado. João era um asceta severo,
movido por uma convicção profunda do pecado no mundo. O âmago de sua
mensagem para soldados, funcionários públicos, fazendeiros e qualquer um
que o ouvisse era “arrependei-vos”. A primeira nota de advertência no Novo
Testamento diz a todos os homens que mudem. Os saduceus deveriam
abandonar as coisas mundanas; os fariseus, a hipocrisia e a dissimulação; todos
que vão ao Cristo devem arrepender-se.
Com o país sob o tacão romano, um caminho mais certo para a
popularidade de João seria prometer que aquele que estava por vir, aquele que
anunciava, seria um libertador político. Esse teria sido o caminho humano;
mas, em vez de uma convocação, João acenou para uma reparação dos pecados.
E os que alegavam descender de Abraão não deveriam se gloriar disso, porque,
se Deus desejasse, poderia fazer surgir filhos de Abraão das próprias pedras.

Raça de víboras! Quem vos ensinou a fugir da ira iminente?


Fazei, pois, uma conversão realmente frutuosa
e não comeceis a dizer: Temos Abraão por pai.
Pois vos digo: Deus tem poder para
destas pedras suscitar filhos a Abraão.
(São Lucas 3,7-8)

Muitos séculos antes, Isaías previu que o Messias seria precedido por um
mensageiro.

Eis que envio o meu anjo diante de ti:


ele preparará o teu caminho.
Uma voz clama no deserto:
Traçai o caminho do Senhor,
aplanai as suas veredas.
(São Marcos 1,2-3)
Cerca de trezentos anos depois de Isaías, o profeta Malaquias profetizou
que o arauto que Isaías prometera viria no espírito de Elias.

Vou mandar-vos o profeta Elias.


(Malaquias 3,23)

Agora, séculos depois, apareceu no deserto esse grande homem, levando o


mesmo tipo de vida de Elias.
Em todos os países, quando o chefe de governo deseja visitar outro
governo, envia mensageiros “antes dele”. Do mesmo modo, João Batista foi
enviado para preparar o caminho do Cristo, para anunciar as condições de seu
reino e governo. João, apesar das profecias que fizeram a seu respeito, recusou-
se a dizer que era o Messias, e disse ser apenas:

Eu sou a voz que clama no deserto.


(São João 1,23)

Mesmo antes de se encontrar com o Messias, que era seu primo, anunciou
a superioridade de Cristo:

Depois de mim vem outro mais poderoso do que eu,


ante o qual não sou digno de me prostrar
para desatar-lhe a correia do calçado.
(São Marcos 1,7)

João se considerava indigno de desatar as correias das sandálias de Nosso


Senhor, mas Jesus o superaria em humildade ao lavar os pés dos apóstolos. A
grandiosidade de João consistia no fato de que, a ele, foi dado o privilégio de
correr na frente da carruagem do rei e bradar: “Cristo veio”.
João utilizou símbolos e palavras. O principal símbolo da remissão dos
pecados era a purificação pela água. João fora batizado no rio Jordão, como
sinal de arrependimento, mas sabia que seu batismo não regenerava nem
despertava a alma morta. Foi por isso que contrastou o seu batismo com o que
Cristo, mais tarde, conferiria, ao falar deste, e disse:

Ele vos batizará no Espírito Santo e em fogo.


(São Mateus 3,11)

No dia em que João e Jesus se encontraram no rio Jordão, algo dentro de


João despertou uma humildade profunda e muitíssimo reverente. João sentiu a
necessidade de um redentor, mas, quando Nosso Senhor pediu-lhe que O
batizasse, João ficou relutante em fazê-lo. Imediatamente reconheceu a
incongruência de submeter Nosso Senhor a um rito que professava o
arrependimento e prometia expurgo:

Eu devo ser batizado por ti e tu vens a mim!


(São Mateus 3,14)

Como poderia batizar Aquele que não tem pecado? A recusa de batizar
Jesus era o reconhecimento da ausência de pecado.

Mas Jesus lhe respondeu: Deixa por agora,


pois convém cumpramos a justiça completa.
(São Mateus 3,15)

O objetivo do batismo de Jesus foi o mesmo do nascimento, a saber,


identificar-se com a humanidade pecadora. Isaías não previra que Ele se
deixaria “colocar entre os criminosos” (Isaías 53,12)? Com efeito, Nosso
Senhor estava a dizer: “Sofro isso para que se cumpra; não vos parece
apropriado, mas, em verdade, está em completa harmonia com o propósito de
minha vinda”. Cristo não estava como pessoa privada, mas como representante
da humanidade pecadora, embora Ele mesmo não tivesse pecado.
Todo israelita que chegava a João fazia uma confissão dos pecados. É
evidente que Nosso Senhor não fez confissão alguma, e o próprio João admitiu
que não tinha necessidade de fazê-la. Não tinha pecados de que se arrepender e
nenhum pecado a ser expiado. Entretanto, ao mesmo tempo, identificava-se
com os pecadores. Quando foi até o rio Jordão para ser batizado, fez-se um
com os pecadores. O inocente pode partilhar os fardos dos pecadores. Se um
marido é culpado de um crime, é inútil dizer à mulher que não se preocupe
com isso ou que isso não lhe diz respeito. É igualmente absurdo dizer que
Nosso Senhor não deveria ser batizado porque não tinha culpa pessoal. Se
tinha de se identificar com a humanidade, tanto assim que se denominou
“Filho do Homem”, então tinha de partilhar a culpa da humanidade. E esse foi
o significado do batismo feito por João.
Muitos anos antes, Ele dissera que deveria estar prestes a realizar as coisas
do Pai; agora começava a revelar quais seriam os assuntos do Pai: a salvação da
humanidade. Expressava o relacionamento com seu povo, em cujo nome fora
enviado. No templo, aos 12 anos, a ênfase estivera em Sua origem; agora, no
Jordão, era a natureza de Sua missão. No templo, falara do mandato divino.
Sob as mãos purificadoras de João, tornou clara Sua unidade com os homens.
Mais tarde, diria Nosso Senhor Santíssimo:

A lei e os profetas duraram até João.


(São Lucas 16,16)

Indicava que os longos séculos foram testemunha fiel da vinda do


Messias, mas, naquele momento, fora virada uma nova página, fora escrito um
novo capítulo. De agora em diante, Ele se amalgamaria com o povo pecador.
Empenhar-se-ia, dali em diante, a viver e exercer o ministério entre as vítimas
do pecado; a ser traído nas mãos dos pecadores e a ser acusado de pecado,
embora soubesse não ter pecado. Assim como foi circuncidado na infância,
como se Sua natureza fosse pecadora, do mesmo modo, agora, seria batizado,
ainda que não precisasse de purificação.
Havia três ritos no Antigo Testamento que eram uma espécie de batismo.
O primeiro era um “batismo” de água. Moisés levou Aarão e seu filho às portas
do tabernáculo e os banhou com água. Isso foi seguido por um “batismo” de
óleo quando Moisés derramou óleo sobre a cabeça de Aarão para santificá-lo.
O “batismo” final foi de sangue. Moisés tomou o sangue do cordeiro da
consagração e o derramou sobre o ouvido direito de Aarão, sobre o polegar da
mão direita e sobre o dedão de seu pé direito. Esse ritual sugeria uma
consagração gradual. Esses batismos teriam a contrapartida no Jordão, na
Transfiguração e no Calvário.
O batismo do Jordão foi o prelúdio do batismo que mencionaria depois,
o batismo da Paixão. Posteriormente, por duas vezes, viria a referir-se ao Seu
batismo. A primeira vez foi quando Tiago e João perguntaram-Lhe se
poderiam sentar ao lado Dele no Reino. Em resposta, perguntou-lhes se
estavam prontos para ser batizados com o batismo que Ele receberia. Assim, o
batismo pela água antecipava o de sangue. O rio Jordão fluiu para os rios
escarlates do Calvário. A segunda vez que se referiu ao batismo foi ao dizer aos
apóstolos:

Mas devo ser batizado num batismo;


e quanto anseio até que ele se cumpra!
(São Lucas 12,50)

Nas águas do Jordão, identificou-se com os pecadores; no batismo de Sua


morte, suportaria todo o peso dos pecados. No Antigo Testamento, o salmista
fala de “entrar em águas profundas” como um símbolo do sofrimento que é,
obviamente, a mesma imagem. Há conveniência em descrever a agonia e a
morte como uma espécie de batismo.
A cruz deveria estar vindo ao pensamento, agora, com vivacidade cada vez
maior. Não havia uma reflexão posterior em seu pensar. Esteve
temporariamente imerso nas águas do Jordão apenas para emergir de novo. Da
mesma maneira, seria imerso pela morte na cruz e o enterro no sepulcro apenas
para emergir triunfante na ressurreição. Proclamara a missão dada pelo Pai aos
12 anos; agora, preparava-se para a oblação.

Depois que Jesus foi batizado, saiu logo da água.


Eis que os céus se abriram e viu descer sobre ele,
em forma de pomba, o Espírito de Deus.
E do céu baixou uma voz:
Eis meu Filho muito amado em quem ponho minha afeição.
(São Mateus 3,16)

A humanidade sagrada de Cristo era o elo entre o céu e a terra. A voz dos
céus que O declarou Filho muito amado do Pai Eterno não anunciava um fato
novo ou uma nova filiação de Nosso Senhor. Simplesmente, fazia uma
declaração solene daquela filiação, existente desde a eternidade, mas que agora
começava a se manifestar em público como mediador entre Deus e o homem.
O apreço do Pai, no original em grego, é registrado no tempo verbal aoristo,5
para denotar o ato eterno de contemplação amorosa com que o Pai olha para o
Filho.
O Cristo que saiu das águas, como a terra saiu da água na criação e depois
do dilúvio, como Moisés e seu povo saíram das águas do Mar Vermelho, foi
agora glorificado pelo Espírito Santo aparecendo na forma de uma pomba. O
Espírito de Deus nunca aparece na forma de uma pomba em nenhum outro
lugar a não ser aqui. O Livro do Levítico menciona oferendas que eram feitas
segundo a posição econômica e social do doador. Um homem que pudesse
dispor traria um boi e um homem pobre ofereceria um cordeiro; porém, o mais
pobre de todos tinha o privilégio de levar pombinhas. Quando a mãe de Nosso
Senhor o levou ao templo, sua oferta foi uma pomba. A pomba era o símbolo
da gentileza e da paz, mas, sobretudo, era o tipo de sacrifício possível para as
pessoas mais pobres. Sempre que um hebreu pensava em um cordeiro ou uma
pomba, imediatamente pensava em um sacrifício pelo pecado. Assim, o
Espírito descendo sobre Nosso Senhor foi para eles um símbolo de submissão
ao sacrifício. Cristo já tinha se unido, simbolicamente, ao homem no batismo,
em antecipação à submersão nas águas do sofrimento, mas, agora, também foi
coroado, dedicado e consagrado àquele sacrifício pela vinda do Espírito. As
águas do Jordão se uniram aos homens, o Espírito o coroou e o consagrou ao
sacrifício, a voz atestou que o Seu sacrifício seria agradável ao Pai Eterno.
As sementes da doutrina da Santíssima Trindade que foram plantadas no
Antigo Testamento começaram, nesse momento, a se desenvolver. Elas se
tornariam mais claras com o passar do tempo: o Pai, o Criador; o Filho, o
Redentor; e o Espírito Santo, o Santificador. Aqui, as próprias palavras ditas
pelo Pai —, “Eis meu Filho” — foram endereçadas profeticamente ao Messias,
milhares de anos antes, no Salmo 2.
Tu és meu filho, eu hoje te gerei.
(Salmos 2,7)

Nosso Senhor diria a Nicodemos, mais tarde:

Em verdade, em verdade te digo:


quem não renascer da água e do Espírito
não poderá entrar no Reino de Deus.
(São Marcos 3,5)

O batismo do Jordão encerra a vida privada de Nosso Senhor e dá início


ao Seu ministério público. Imergira nas águas conhecido pela maioria dos
homens somente como o filho de Maria; saiu pronto para revelar-se como era
desde toda a eternidade, o Filho de Deus. Era o Filho de Deus, semelhante a
todos os homens, exceto no pecado. O Espírito O ungira não só para ensinar,
mas para redimir.
Notas

2 | Alusão aos versos do poeta e místico inglês Francis ompson (1859-1907). (N. T.)
3 | Indumentária conhecida no judaísmo como talit catan e ornada de borlas ou franjas
(tsitsit), segundo o prescrito no Livro dos Números 15,37-40 que tinha por objetivo fazer
com que o cidadão israelita viesse a se lembrar da Lei de Moisés e guardar os seus
mandamentos. (N. T.)
4 | Pequenas caixas de couro quadrangulares, contendo cédulas de pergaminho com
passagens bíblicas, que os judeus trazem atadas, uma na testa e uma no braço esquerdo,
durante a oração da manhã dos dias úteis. (N. T.)
5 | Aoristos em grego quer dizer “sem limite”. É um tempo verbal que indica um passado
indefinido, indeterminado. Nas línguas comuns modernas não existe esse tempo verbal.
(N. T.)
3

TRÊS CAMINHOS ALTERNATIVOS À CRUZ

Imediatamente após o batismo, Nosso Senhor saiu em retiro. O deserto seria


Sua escola, assim como o fora a escola de Moisés e de Elias. O retiro é uma
preparação para a ação. Mais tarde, teria o mesmo propósito para Paulo. Toda
consolação humana foi deixada para trás “em companhia dos animais
selvagens”. E, por quarenta dias, nada comeu.
Já que o propósito de Sua vinda era lutar contra as forças do mal, Seu
primeiro encontro não foi uma contenda com um mestre humano, mas uma
disputa com o próprio príncipe do mal.

Em seguida, Jesus foi conduzido pelo Espírito


ao deserto para ser tentado pelo demônio.
(São Mateus 4,1)

A tentação era uma preparação negativa para o Seu ministério, assim


como o batismo fora uma preparação positiva. No batismo, recebera o Espírito
e a confirmação de Sua missão; nas tentações, recebeu o fortalecimento que
advém diretamente da provação e do teste. Há uma lei inscrita em todo o
universo segundo a qual ninguém será coroado a menos que, primeiro, tenha
lutado. Nenhum resplendor de mérito se detém sobre os que não lutam.
Icebergs que flutuam nas correntes frias do Norte não exigem nossa atenção
respeitosa somente por serem icebergs; mas, se flutuassem nas cálidas correntes
do Golfo sem se dissolver, nos causariam admiração e espanto. Poderia ser dito,
se o fizessem de propósito, que tinham energia moral.
A única maneira que alguém tem de provar amor é por um ato de escolha;
meras palavras não são o bastante. Por isso, a provação original dada ao homem
foi, novamente, dada a todos os homens; até mesmo os anjos passaram por
uma provação. O gelo não merece crédito por ser frio; nem o fogo, por ser
quente. Só os que têm a possibilidade de escolha podem ser louvados por seus
atos. É pela tentação e pelo esforço que são reveladas as profundezas do caráter.
Diz a Escritura:

Feliz o homem que suporta a tentação.


Porque, depois de sofrer a provação,
Receberá a coroa da vida que
Deus prometeu aos que O amam.
(São Tiago 1,12)

As defesas da alma se veem na versão mais forte quando o mal resistido


também é forte. A presença da tentação não necessariamente sugere
imperfeição moral da parte daquele que é tentado. Nesse caso, Nosso Senhor
não poderia ter sido tentado de modo algum. Uma tendência íntima para o
mal, como o homem tem, não é, necessariamente, uma condição para uma
investida da tentação. A tentação de Nosso Senhor veio de fora, e não do
íntimo, como a nossa muitas vezes provém. O que estava em jogo na provação
de Nosso Senhor não era a perversão de apetites naturais para os quais é
tentado o restante dos homens; era um apelo para Nosso Senhor desconsiderar
Sua missão divina e Sua obra messiânica. A tentação que vem do exterior não
necessariamente enfraquece o caráter; de fato, quando vencida, oferece
oportunidade de aumentar a santidade. Se deveria ser o homem-modelo, Ele
teria de nos ensinar como conquistar a santidade superando a tentação.

De fato, por ter ele mesmo


suportado tribulações,
está em condição de vir em auxílio
dos que são atribulados.
(Hebreus 2,18)
Isso é ilustrado pela personagem de Ângelo na peça Medida por medida:

Mas uma coisa, Escalo, é ser tentado,


Outra é cair.
(Shakespeare, Medida por medida, Ato II, cena I)

O tentador era pecaminoso, mas Aquele que foi tentado era inocente.
Toda a história do mundo gira em torno de duas pessoas, Adão e Cristo. A
Adão foi dado um posto para preservar, mas ele fracassou. Portanto, sua perda
foi a perda da humanidade, pois ele era o cabeça. Quando um governante
declara guerra, os cidadãos também declaram guerra, embora eles mesmos não
façam uma declaração explícita. Quando Adão declarou guerra a Deus, o
homem também declarou guerra.
Ora, com Cristo, tudo estava novamente em jogo. Repetiu-se a tentação
de Adão. Se Deus não tivesse tomado sobre si a natureza humana, não teria
sido tentado. Ainda que Suas naturezas divina e humana estivessem unidas em
uma pessoa, a natureza divina não foi diminuída por Sua humanidade, nem a
humanidade desproporcionalmente engolida pela união com a divindade.
Porque tinha uma natureza humana, Ele podia ser tentado. Se tinha de ser
semelhante a nós em todas as coisas, teria de passar pela experiência humana de
resistir à tentação. É por isso que, na Epístola aos Hebreus, somos lembrados
de como Ele estava intimamente ligado à humanidade em Suas provações:

Porque não temos nele um pontífice incapaz


de compadecer-se das nossas fraquezas.
Ao contrário, passou pelas mesmas provações que nós,
com exceção do pecado.
(Hebreus 4,15)

É parte da disciplina de Deus fazer com que os amados se aperfeiçoem


pela provação e pelo sofrimento. Somente ao carregar a cruz, a pessoa pode
chegar à ressurreição. Foi exatamente essa parte da missão de Nosso Senhor que
o demônio atacou. As tentações se destinavam a desviar Nosso Senhor de Sua
obra de salvação pelo sacrifício. Em vez da cruz como meio de ganhar as almas
dos homens, Satanás sugeriu três caminhos alternativos de popularização: um
deles econômico, outro baseado em maravilhas e, um terceiro, político. Poucas
pessoas, nos dias de hoje, acreditam no demônio, o que muito lhe convém. Ele
sempre ajuda a divulgar as notícias da própria morte. A essência de Deus é ser,
e Ele se define como: “Sou aquele que é”. A essência do demônio é a mentira, e
ele se define como: “Sou quem não sou”. Satanás tem poucos problemas com
os que não acreditam nele: já estão do seu lado.
As tentações do homem são bem fáceis de analisar porque sempre recaem
em uma das três categorias: pertencem à carne (luxúria e gula), à mente
(orgulho e inveja), ou ao amor idolátrico às coisas (cobiça). Embora o homem
seja golpeado toda a vida por esses três tipos de tentação, elas variam em
intensidade de época para época. É durante a juventude que o homem é mais
tentado contra a pureza e inclinado aos pecados da carne; na meia idade, a
carne é menos imperativa e as tentações da mente começam a predominar, por
exemplo, o orgulho e o desejo de poder; no outono da vida, as tentações da
avareza estão suscetíveis de afirmação. Ao ver que o fim da vida se aproxima, o
homem se esforça para banir as dúvidas a respeito da segurança eterna ou
salvação, ao acumular os bens da terra e redobrar a segurança econômica. É
uma experiência psicológica comum que aqueles que experimentaram a luxúria
na juventude sejam, muitas vezes, os que pecam por avareza na velhice.
Homens bons não são tentados da mesma maneira que homens maus, e o
Filho de Deus, que se tornou homem, não foi tentado da mesma maneira que
um homem bom. As tentações de um alcoólatra “que volta a seu vômito”,
como dizem as Escrituras, não são as mesmas que as tentações de um santo ao
orgulho, embora não sejam menos reais.
Para compreender as tentações de Cristo, devemos recordar que no
batismo de João, quando Ele, que não tinha pecados, identificou-se com os
pecadores, os céus se abriram e o Pai Celeste declarou Cristo Seu Filho Bem-
amado. Então, Nosso Senhor subiu para uma montanha e jejuou por quarenta
dias, após os quais, diz o Evangelho, “Jesus teve fome” — uma afirmação
representativa. Satanás o tentou fingindo ajudá-lo a encontrar uma resposta à
questão: Como cumprir da melhor maneira Seu grande destino entre os
homens? O problema era conquistar os homens. Mas como? Satanás tinha uma
sugestão satânica, a saber, evitar o problema moral da culpa e a necessidade de
expiação e concentrar-se puramente em fatores mundanos. Todas as três
tentações buscavam dissuadir Nosso Senhor da cruz e, portanto, da redenção.
Pedro, mais tarde, tentaria Nosso Senhor da mesma maneira e, por essa razão,
foi chamado de “Satanás”.
O corpo humano, que Jesus tomou para Si, não foi para a inércia, mas
para a batalha. Satanás viu em Jesus um ser humano extraordinário e suspeitava
que fosse o Messias, o Filho de Deus. Por isso iniciou cada uma das tentações
com a condicional “se”. Caso tivesse certeza de que falava com Deus, na
verdade, não teria experimentado tentá-lo. No entanto, se Nosso Senhor fosse
simplesmente um homem que Deus escolhera para a obra de salvação, então
faria tudo o que estivesse em seu poder para levá-Lo a vias que o fizessem lidar
com os pecados da humanidade diversos dos caminhos que o próprio Deus
escolheria.

A PRIMEIRA TENTAÇÃO

Ao saber que Nosso Senhor estava com fome, Satanás apontou para algumas
pedrinhas negras que pareciam broas de pão e disse:

Se és Filho de Deus,
ordena que estas pedras se tornem pães.
(São Mateus 4,3)

A primeira tentação de Nosso Senhor era a de se transformar em uma


espécie de reformador social e, no deserto, dar pão às multidões que nada
podiam encontrar senão pedras. A visão de melhoria social sem a regeneração
espiritual constituiu uma tentação a que muitos homens importantes na
história sucumbiram por completo. Mas, para Jesus, esse não seria um serviço
adequado ao Pai; há necessidades mais profundas no homem do que de trigo
sovado; e há alegrias maiores que um estômago cheio.
O espírito maligno estava a dizer: “Principia com o econômico! Esquece o
pecado!”. Ainda diz isso hoje com palavras diferentes: “Meu comissário vai às
salas de aula e pede às crianças que rezem a Deus pelo pão. E, quando as preces
não são atendidas, meu comissário as alimenta. O ditador dá o pão; Deus não,
porque Deus não existe, não existe alma; existe somente o corpo, o prazer, o
sexo, o animal e, quando morremos, este é o fim”.
Satanás estava tentando fazer Nosso Senhor sentir o terrível contraste
entre a grandeza divina que Ele afirmava e a verdadeira destituição. O Maligno
O tentava a rejeitar as ignomínias da natureza humana, as provações e a fome e
a usar o poder divino, se realmente o possuísse, para salvar a própria natureza
humana e também conquistar as multidões. Assim, suplicava a Nosso Senhor
que parasse de agir como homem e, em nome do homem, usasse Seus poderes
sobrenaturais para dar alívio e conforto à Sua natureza humana e desobrigar-se
da provação. O que poderia ser mais insensato para Deus que sentir fome, uma
vez que já colocara uma mesa miraculosa para Moisés e seu povo no deserto?
João dissera que Ele poderia fazer os filhos de Abraão brotar das próprias
pedras; por que, então, Ele não as poderia transformar em pão para si mesmo?
A necessidade era real; o poder, se era Deus, também era real; por que, então,
estava submetendo Sua natureza humana a todos os males e sofrimentos dos
quais a humanidade é herdeira? Por que Deus estava aceitando tamanha
humilhação somente para redimir as próprias criaturas? “Se és o Filho de Deus,
como alegas ser, e estás aqui para desfazer a destruição forjada pelo pecado,
então, salva-te a ti mesmo.” Esse era exatamente o mesmo tipo de tentação que
os homens lhe lançariam na hora da crucifixão.

Se és o Filho de Deus,
desce da cruz!
(São Mateus 27,40)

A resposta de Nosso Senhor foi que, mesmo ao aceitar a natureza humana


com todas as falhas, provações e espírito de sacrifício, não obstante, não estava
sem o auxílio divino.

Está escrito: Não só de pão vive o homem,


mas de toda palavra que sai da boca de Deus.
(São Mateus 4,4)
As palavras que citou foram tiradas do relato do Antigo Testamento da
refeição miraculosa dada aos judeus no deserto, quando o maná lhes caiu do
céu. Jesus recusou-se a satisfazer a ardente curiosidade de Satanás de saber se
era ou não o Filho de Deus; mas afirmou que Deus pode alimentar os homens
com algo maior do que o pão. Nosso Senhor não usou poderes milagrosos para
conseguir alimento para Si, como não usaria, mais tarde, poderes miraculosos
para descer da cruz. Os homens de todas as épocas teriam fome, e Ele não se
dissociaria do rebanho faminto. Tornara-se homem e estava disposto a se
submeter a todos os males do homem até que, por fim, o momento de glória
chegasse.
Nosso Senhor não negou que os homens devessem ser alimentados ou que
a justiça social devesse ser pregada; mas afirmou que essas coisas não vêm em
primeiro lugar. Estava, com efeito, dizendo a Satanás: “Tentaste-Me com uma
religião que aliviaria a carência, queres que Eu seja um padeiro e não um
salvador; que Eu seja um reformador social, e não um redentor. Estás tentando
para afastar-Me da Cruz, sugerindo que Eu seja um reles líder do povo,
enchendo-lhes os estômagos e não as almas. Deverias ter-Me feito começar
com um esteio e não com ele findar; tu me farias levar abundância exterior e
não santidade interior. Tu e teus seguidores materialistas dizem: ‘Só de pão vive
o homem’, Eu, porém, te digo, ‘Nem só de pão’. Deve haver pão, mas lembra-
te: até o poder de alimentar do pão provém de mim. O pão, sem mim, pode
fazer mal ao homem; e não há verdadeira segurança longe da Palavra de Deus.
Se der somente pão, então o homem nada mais é que um animal, e os cães
também poderiam chegar primeiro ao Meu banquete. Aqueles que creem em
Mim devem permanecer firmes nessa fé, mesmo quando famintos e fracos;
mesmo quando aprisionados e flagelados.
“Conheço a fome humana! Eu mesmo fiquei sem alimento por quarenta
dias. No entanto, recuso-me a me tornar um mero reformador social que só
serve ao estômago. Não podes dizer que não me preocupo com a justiça social,
pois sinto, neste momento, a fome do mundo. Sou um com cada pobre, com
cada membro faminto da raça humana. Eis porque jejuei: para que nunca
possam dizer que Deus não conhece a fome. Vai-te embora, Satanás! Não sou
somente um assistente social que nunca passou fome, mas Aquele que diz:
‘Rejeito qualquer plano que prometa tornar os homens mais ricos sem torná-
los mais santos’. Lembra-te! Eu, que digo ‘Nem só de pão’, não experimentei o
pão por quarenta dias!”.
A SEGUNDA TENTAÇÃO

Satanás, ao falhar em desviar Nosso Senhor da Cruz e da redenção para


transformá-lo em um “comissário comunista” que nada promete a não ser pão,
agora volta o ataque diretamente à alma. Vendo que Nosso Senhor se recusou a
subscrever a crença de que o homem é um animal ou um simples estômago,
Satanás, agora, O tentou com o orgulho e o egoísmo. Satanás exibiu seu
próprio tipo de vaidade ao levá-Lo a um pináculo do templo muito alto e
impressionante, dizendo:

Se és Filho de Deus, lança-te abaixo.

Então, continuou a citar as Escrituras:

Pois está escrito: Ele deu a seus anjos


ordens a teu respeito;
proteger-te-ão com as mãos, com cuidado,
para não machucares o teu pé em alguma pedra.
(São Mateus 4,6)

Satanás estava, neste momento, a dizer: “Por que tomar o caminho mais
longo e tedioso para conquistar a humanidade ao derramar Seu sangue, ao ser
elevado em uma cruz, ao ser rejeitado e desprezado, quando podes tomar um
atalho, realizando um prodígio? Já afirmastes Tua confiança em Deus. Muito
bem! Se realmente crês em Deus, desafio-Te a fazer algo heroico! Prova Tua fé,
não a lutar no Calvário em obediência à vontade de Deus, mas ao lançar-Te
daqui abaixo. Nunca conquistarás o povo para Ti ao pregar verdades sublimes
do alto dos campanários, dos pináculos e dos crucifixos. As massas não Te
seguirão; são muito inferiores. Em vez disso, reveste-Te de prodígios. Lança-Te
do pináculo e, então, para momentos antes de alcançar o chão; isso é algo que
elas conseguem apreciar. O povo quer o espetacular, não o divino. As pessoas
estão sempre entediadas! Alivia a monotonia de suas vidas e estimula os
espíritos cansados, mas deixa suas consciências culpadas em paz!”.
A segunda tentação era esquecer a Cruz e substituí-la por uma
demonstração fácil de poder, que faria com que todos acreditassem Nele de
imediato. Ao ouvir Nosso Senhor citar as Escrituras, Satanás também a cita
nesse momento. O Salvador dissera, em resposta à primeira tentação, que Deus
poderia Lhe dar o pão, caso pedisse, mas Ele não pediria se isso significasse
uma renúncia à Sua missão divina. Satanás retrucou que, se Nosso Senhor
realmente acreditasse tanto assim no Pai, deveria dar provas com um feito
ousado e dar ao Pai a oportunidade de protegê-lo. No deserto não havia
ninguém para vê-Lo realizar o milagre de transformar pedras em pão; mas em
uma grande cidade havia muitos espectadores. Se fosse um Messias, o povo
deveria ser conquistado, e o que poderia conquistá-los mais depressa que uma
demonstração de feitos maravilhosos?
A verdade que responderia essa tentação era que a fé em Deus nunca deve
contradizer a razão. O risco irrazoável nunca foi certeza da proteção divina.
Satanás queria que Deus Pai fizesse algo por Nosso Senhor que o próprio
Cristo se recusasse a fazer por Si mesmo; ou seja, torná-lo um objeto de
cuidados especiais isento da obediência às leis naturais, que já eram as leis de
Deus. No entanto, Nosso Senhor, que veio para nos apresentar o Pai, sabia que
o Pai não era apenas uma providência mecânica, impessoal, que protegeria
qualquer um, mesmo alguém que se entregara à missão divinamente prescrita
para conquistar a multidão. A resposta de Nosso Senhor à segunda tentação
foi:

Também está escrito:


Não tentarás o Senhor teu Deus.
(São Mateus 4,7)

Nosso Senhor Abençoado sofreria a mesma tentação posteriormente, na


vida pública, quando a multidão o cercou exigindo um milagre, qualquer
milagre, somente para provar Seus poderes e facilitar a crença.

Afluía o povo e ele continuou:


Esta geração é uma geração perversa;
pede um sinal.
(São Lucas 11,29)

Se Jesus tivesse demonstrado tais sinais, certamente teria todos os homens


atrás de Si; contudo, de que adiantaria se o pecado ainda estivesse em suas
almas?
Em resposta às demandas modernas por sinais e prodígios, Nosso Senhor
diria: “Repetis a tentação de Satanás sempre que admirais as maravilhas da
ciência e vos esqueceis de que sou o autor do universo e de sua ciência. Vós,
cientistas, sois os revisores, mas não os autores do Livro da Natureza; podeis ver
e examinar a obra de minhas mãos, mas vós mesmos não podeis criar um
átomo. Tentareis fazer-Me provar a Minha onipotência por testes sem sentido;
já me sacastes relógios e dissestes: ‘desafio-Te a matar-me em cinco minutos’.
Não sabeis que tenho piedade dos tolos? Vós me tentais após terdes destruído
voluntariamente vossas cidades com bombas e ao bradar: ‘Por que Deus não
põe fim nesta guerra?’ Vós me tentais ao dizer que não tenho poder, a menos
que o demonstre estar à vossa disposição. Isso, caso lembrásseis, foi exatamente
como Satanás Me tentou no deserto.
“Sei que nunca tive muitos seguidores nas grandiosas eminências da
verdade divina; quase não tive a intelligentsia. Recuso-me a realizar façanhas
para conquistá-los, posto que não seriam realmente conquistados dessa
maneira. Só atraio realmente os homens para mim quando sou visto na Cruz; é
pelo sacrifício, e não pelos prodígios que devo fazer-me atrair. Devo conquistar
seguidores, não com tubos de testes, mas com meu sangue; não com o poder
material, mas com amor; não com pirotecnias celestiais, mas com o direito de
usar a razão e o livre arbítrio. Nenhum sinal será dado a esta geração a não ser
o sinal de Jonas, ou seja, o sinal de alguém que se ergue das profundezas, não
de alguém que se lança de pináculos.
“Quero que os homens creiam em Mim, mesmo quando não os protejo;
não abrirei as portas da prisão onde está encarcerado Meu rebanho; não
obstarei a foice vermelha ou os leões imperiais de Roma; não impedirei o
martelo rubro que golpeia as portas de Meu tabernáculo; quero Meus
missionários e mártires amando-Me na prisão e na morte, assim como os amei
em meu próprio sofrimento. Nunca operei milagres para salvar a mim mesmo!
Farei poucos milagres até mesmo para os meus santos. Retira-te, Satanás! Não
tentai o Senhor, teu Deus”.
A TERCEIRA TENTAÇÃO

A última investida aconteceu no alto da montanha. Foi a terceira tentativa de


desviá-Lo da Cruz, desta vez, ao alegar a coexistência do bem e do mal. Ele
viera para instituir um reino sobre a terra ao agir como o cordeiro a ser
sacrificado. Por que não poderia escolher um modo mais rápido de instituir
Seu reino, ao criar um tratado que Lhe daria tudo o que desejasse, isto é, o
mundo, mas sem a Cruz?

O demônio levou-o em seguida a um alto monte


e mostrou-lhe num só momento todos os reinos da Terra,
e disse-lhe: Dar-te-ei todo este poder e a glória desses reinos,
porque me foram dados, e dou-os a quem quero.
Portanto, se te prostrares diante de mim, tudo será teu.
(São Lucas 4,5-7)

As palavras de Satanás parecem, de fato, muito atrevidas. Os reinos do


mundo realmente lhe foram entregues? Nosso Senhor chamou Satanás de
“príncipe do mundo”, mas não foi Deus quem lhe deu nenhum dos reinos do
mundo; a humanidade o fizera, pelo pecado. Entretanto, ainda que Satanás
governasse, por assim dizer, os reinos da terra por consenso popular, não estava
em seu poder dá-los a quem quer que lhe aprouvesse. Satanás estava mentindo
para, mais uma vez, tentar Nosso Senhor a evitar a Cruz por um caminho
alternativo. Oferecia a Nosso Senhor o mundo sob uma condição: que ele
adorasse Satanás. A adoração, é claro, sugere serviço. O serviço seria o seguinte:
já que o reino do mundo estava sob o poder do pecado, o novo reino que
Nosso Senhor instituísse deveria ser somente uma continuação do antigo reino.
Em suma, poderia possuir a terra, desde que prometesse não a transformar.
Poderia ter a humanidade, desde que prometesse não a redimir. Era a espécie
de tentação que Nosso Senhor enfrentaria mais tarde, quando o povo tentou
torná-Lo rei na terra.

Jesus, percebendo que queriam arrebatá-Lo


e fazê-Lo rei,
tornou a retirar-se sozinho para o monte.
(São João 6,15)

E, diante de Pilatos, Jesus disse que instituiria outro reino, mas que não
seria um dos reinos oferecidos por Satanás. Quando Pilatos lhe perguntou “És
tu o rei dos judeus?”,

respondeu Jesus: O meu Reino não é deste mundo.


Seo meu Reino fosse deste mundo,
os meus suditos certamente teriam pelejado
para que eu não fosse entregue aos judeus.
Maso meu Reino não é deste mundo.
(São Joao 18,36)

O reino que Satanás ofereceu era deste mundo, e não o do Espírito. Ainda
seria um reino de maldades, e os corações dos súditos não seriam regenerados.
Realmente, Satanás estava a dizer: “Vieste, Ó Cristo, para conquistar o mundo,
mas o mundo já é meu; eu To darei caso Tu transijas e me adores. Esquece Tua
cruz, Teu reino dos céus. Se queres este mundo, ele está a Teus pés. Serás
aclamado com as hosanas mais sonoras que Jerusalém jamais cantou para seus
reis; e serás poupado das dores e dos pesares da cruz da contradição”.
Nosso Senhor, sabendo que esses reinos só poderiam ser conquistados por
Seu sofrimento e morte, disse a Satanás:

Para trás, Satanás, pois está escrito:


Adorarás o Senhor teu Deus,
e só a ele servirás.
(São Mateus 4,10)

Podemos conjeturar como essas palavras puras, firmes, devem ter soado a
Satanás: “Satanás, queres adoração, mas adorar-te é servir-te e servir-te é
escravidão. Não quero o teu mundo, visto que traz o fardo terrível da culpa.
Em todos os reinos que reivindicas como teus, os corações dos cidadãos ainda
anseiam por algo que tu não lhes podes dar, a saber, paz na alma e um amor
desinteressado. Não quero teu mundo, que tu mesmo não possuis.
“Também sou um revolucionário, como cantou Minha mãe no
Magnificat. Revolto-me contra ti, o príncipe do mundo. No entanto, Minha
revolução não é pela espada empunhada para conquistar pela força, mas pela
espada apontada para dentro, contra o pecado e contra todas as coisas que
geram guerras entre os homens. Primeiro vencerei o mal nos corações dos
homens e, depois, conquistarei o mundo. Conquistarei teu mundo ao penetrar
nos corações de teus fiscais de impostos desonestos, teus juízes falsos, teus
comissários e lhes redimirei da culpa e do pecado. Eu os enviarei purificados de
volta às suas profissões. Eu lhes direi que de nada adianta ganhar todo o
mundo se perderem suas almas imortais. Por hora, podes manter teus reinos.
Melhor perder todos os teus reinos, até mesmo todo o mundo, que perder uma
única alma! Os reinos do mundo devem ser elevados ao Reino de Deus; o
Reino de Deus não será arrastado ao nível dos reinos deste mundo. Tudo o que
desejo desta terra é um local grande o bastante para erigir uma cruz; ali deixarei
que me desfraldes diante das encruzilhadas de teu mundo! Deixarei que me
crave com pregos em nome das cidades de Jerusalém, Atenas e Roma, mas
ressuscitarei dos mortos, e tu descobrirás que o que parecia ter conquistado foi
esmagado, enquanto Eu marchar vitorioso nas asas da alvorada! Satanás, o que
pedes de mim é que me torne o Anticristo. Diante desse pedido blasfemo, a
paciência deve dar lugar à justa ira. ‘Vade retro, Satanás!’”.
Nosso Senhor desceu daquela montanha tão pobre quanto subira. Ao
findar a vida terrena e ressuscitar dos mortos, falaria aos apóstolos em outro
monte:

Os 11 discípulos foram para a Galileia,


para a montanha que Jesus lhes tinha designado.
Quando o viram, adoraram-no;
entretanto, alguns hesitavam ainda.
Mas Jesus, aproximando-se, lhes disse:
Toda autoridade me foi dada no Céu e na Terra.
Ide, pois, e ensinai a todas as nações;
batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Ensinai-as a observar tudo o que vos prescrevi.
Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo.
(São Mateus 28,16-20)
4

O CORDEIRO DE DEUS

Agora que dominara a tentação suprema de se tornar o rei dos homens por
encher suas barrigas, por arrebatá-los com maravilhas científicas e por fazer um
acordo político com o príncipe das trevas, Nosso Senhor estava pronto para
pôr-Se diante do mundo como a vítima sacrificial pelo pecado. Após o longo
jejum e a provação, vieram anjos e O auxiliaram. Depois disso, retornou ao rio
Jordão e misturou-Se, sem ser notado por um tempo, à multidão que cercava
João Batista. No dia anterior, João falara de Nosso Senhor para uma delegação
de sacerdotes e levitas do templo de Jerusalém que vieram perguntar-lhe:
“Quem és?”. Sabiam que chegara o tempo oportuno para a vinda do Cristo ou
do Messias, daí a pergunta objetiva. João disse-lhes, todavia, que “não era o
Cristo”. Era simplesmente uma voz a pregar a Palavra. Assim como Cristo
recusou títulos exteriores de poder, João também recusou os títulos que os
fariseus estavam dispostos a conferir-lhe, mesmo o maior de todos, de que era o
enviado de Deus.
No dia seguinte, Nosso Senhor estava no meio da multidão e João O viu
ao longe. Imediatamente, João retomou a herança simbólica e profética dos
judeus, conhecida por todos os ouvintes.

Eis o Cordeiro de Deus,


que tira o pecado do mundo.
(São João 1,29)

João afirmava que não devemos buscar primeiro um mestre, um doador


de preceitos morais ou um operador de milagres. Devemos, em primeiro lugar,
olhar para Aquele que foi nomeado como sacrifício pelos pecados do mundo.
A Páscoa se aproximava e as estradas estavam repletas de pessoas conduzindo
ou levando ao templo cordeiros de um ano de idade para o sacrifício. À plena
visão daqueles cordeiros, João indicou o Cordeiro que, quando sacrificado,
poria fim a todos os sacrifícios no templo porque tiraria os pecados do mundo.
João era a voz de despedida do Antigo Testamento, em que o cordeiro
exercia um papel importante. No Gênesis encontramos Abel oferecendo um
cordeiro, o primogênito do rebanho, em sacrifício de sangue para a expiação do
pecado. Posteriormente, Deus pediu a Abraão que sacrificasse seu filho Isaac —
um símbolo profético do Pai do Céu a sacrificar o próprio Filho. Quando Isaac
perguntou “onde está a ovelha para o holocausto?”, Abraão respondeu:

Deus providenciará ele mesmo


uma ovelha para o holocausto, meu filho.
(Gênesis 22,8)

A resposta à pergunta “Onde está a ovelha para o holocausto?” feita no


início do Gênesis era, agora, respondida por João, o Batista, ao apontar para o
Cristo e dizer: “Eis o Cordeiro de Deus”. Deus, por fim, providenciara um
cordeiro. A cruz que fora defendida no deserto durante as tentações agora se
apresentava no Jordão.
Todas as famílias procuravam ter o próprio cordeiro pascal e, aqueles que
no momento levavam seus cordeiros para Jerusalém, onde o Cordeiro de Deus
disse que seria sacrificado, sabiam que o cordeiro era um símbolo da libertação
de Israel da escravidão política do Egito. João dizia que o cordeiro também era
um símbolo de libertação da escravidão espiritual do pecado.
O cordeiro viria na forma de um homem, pois o profeta Isaías anunciara:

Foi maltratado e resignou-se;


não abriu a boca, como um cordeiro
que se conduz ao matadouro,
e uma ovelha muda nas mãos do tosquiador.
(Ele não abriu a boca.)
(Isaías 53,7)
Com frequência, o cordeiro era usado como sacrifício devido à sua
inocência e brandura; portanto, foi o emblema mais apropriado ao caráter do
Messias. O fato de João Batista chamá-Lo de Cordeiro de Deus é bastante
significativo. Ele não era nem o cordeiro do povo, nem o cordeiro dos judeus,
nem o cordeiro de algum dono humano, mas o Cordeiro de Deus. Quando,
por fim, o Cordeiro foi sacrificado, não foi por ser a vítima daqueles que eram
mais fortes do que Ele, mas, antes, porque cumpria voluntariamente Seu dever
de amar os pecadores. Não foi o homem que ofereceu esse sacrifício, embora
tenha sido o homem quem matou a vítima; foi Deus que deu a Si mesmo.
Pedro, que era discípulo de João e que provavelmente estava lá nesse dia,
mais tarde, esclareceria o sentido de “Cordeiro”, ao escrever:

Porque vós sabeis que não é por bens perecíveis,


como a prata e o ouro,
que tendes sido resgatados da vossa vã maneira de viver,
recebida por tradição de vossos pais,
mas pelo precioso sangue de Cristo,
o Cordeiro imaculado e sem defeito algum,
aquele que foi predestinado antes da criação do mundo.
(1 São Pedro 1,18-19)

Depois da Ressurreição e da Ascensão, o apóstolo Filipe encontrou um


mensageiro da rainha da Etiópia. O mensageiro estivera lendo uma passagem
do profeta Isaías que anunciava o Cordeiro:

Como ovelha, foi levado ao matadouro;


e como cordeiro mudo diante do que o tosquia,
ele não abriu a sua boca.
(Atos dos Apóstolos 8,32)

Filipe explicou-lhe que esse Cordeiro acabara de ser sacrificado,


ressuscitara dos mortos e ascendera aos céus. São João, o Evangelista, que
também estava no rio Jordão naquele dia (pois era um dos discípulos de João
Batista), mais tarde esteve aos pés da Cruz quando o Cordeiro foi sacrificado.
Anos depois, escreveu que o Cordeiro morto no Calvário foi, por intenção,
morto desde o princípio do mundo. A Cruz não foi acrescida mais tarde.

Desde a origem do mundo


no livro da vida do Cordeiro imolado.
(Apocalipse 13,8)

Isso significa que o Cordeiro foi morto, por assim dizer, por decreto
divino desde toda a eternidade, ainda que a realização temporal tivesse de
aguardar o Calvário. Sua morte estava de acordo com o plano eterno e a
intenção determinada de Deus. O princípio do amor que se autossacrifica,
contudo, era eterno. A redenção estava na mente de Deus antes de ser
instituída a fundação do mundo. Aquele que estava fora do tempo viu, da
eternidade, a queda dos homens no pecado e os viu ser redimidos. A própria
terra seria palco de um grande acontecimento. O cordeiro era o tipo primordial
eterno de todo sacrifício. Quando chegou a hora da Cruz e o centurião
traspassou a lança na lateral do corpo de Nosso Senhor, então se cumpriu a
profecia do Antigo Testamento.

Farão lamentações sobre aquele que traspassaram.


(Zacarias 12,10)

A expressão que João Batista utilizou para descrever como o Cordeiro de


Deus “tiraria” os pecados do mundo encontra paralelo em hebraico e em grego;
o Levítico narra que

o bode levará, pois, sobre si,


todas as iniquidades deles para uma terra selvagem.
Quando o bode tiver sido mandado para o deserto.
(Levítico 16,22)
Assim como o bode expiatório em que foram depositados os pecados foi
conduzido para fora da cidade, do mesmo modo, o Cordeiro de Deus que
realmente tirou os pecados do mundo seria conduzido para fora de Jerusalém.
Dessa maneira, o cordeiro que Deus prometera dar a Abraão para o
sacrifício e todos os cordeiros e bodes subsequentes oferecidos por judeus e
pagãos ao longo de toda a história extraem seu valor do Cordeiro de Deus que
se postou diante de João. Aqui, não foi Nosso Senhor que estava profetizando a
Cruz; antes, era o Antigo Testamento, por intermédio de João, que O declarava
o sacrifício divinamente escolhido pelos pecados e o único a redimir a culpa
humana.
Os israelitas há muito haviam percebido que o perdão dos pecados estava,
de algum modo, relacionado a oferendas sacrificiais; portanto, vieram a supor
que havia alguma virtude intrínseca na vítima. O pecado estava no sangue; por
isso o sangue tinha de ser derramado. Não é de admirar, então, que quando a
Vítima foi oferecida no Calvário e ressuscitou dos mortos, reafirmou quanto
Lhe era necessário sofrer. Aplicar os méritos desse sangue redentor a nós
mesmos tornou-se o tema do Novo Testamento. No Antigo Testamento,
quando os cordeiros eram sacrificados, parte do sangue era aspergido sobre as
pessoas. Quando o Cordeiro de Deus veio a ser sacrificado, alguns
perguntaram novamente pela aspersão do sangue, de maneira horrivelmente
irônica!

Caia sobre nós o seu sangue e sobre nossos filhos!


(São Mateus 27,25)

No entanto, milhões de outros também encontrariam a glória por causa


da aspersão do sangue do Cordeiro. João Evangelista, posteriormente, O
descreveu em termos de glória eterna.

Na minha visão ouvi também, ao redor do trono,


dos animais e dos anciãos, a voz de muitos anjos,
em número de miríades de miríades e de milhares de milhares,
bradando em alta voz:
Digno é o Cordeiro imolado de receber o poder,
a riqueza, a sabedoria, a força, a glória, a honra e o louvor.
E todas as criaturas que estão no céu, na terra, debaixo da terra
e no mar,
e tudo que contêm, eu as ouvi clamar: Àquele que se assenta no
trono e ao Cordeiro,
louvor, honra, glória e poder pelos séculos dos séculos.
E os quatro animais diziam:
Amém! Os anciãos prostravam-se e adoravam.
(Apocalipse 5,11-14)
5

O INÍCIO DA “HORA”

Ao longo de todo o Evangelho sempre há um aviso, como um trovão, da


Cruz, acompanhado de um lampejo da glória da Ressurreição. Sempre que se
aproxima a sombra do sofrimento redentor, há também a luz da liberdade
espiritual que virá depois. O contraponto de alegria e sofrimento na vida de
Cristo é encontrado novamente no primeiro milagre que ocorreu no vilarejo de
Caná. Faz parte do padrão: Ele, que veio para pregar a crucifixão da carne
licenciosa, deveria começar a vida pública comparecendo a uma festa de
casamento.
No Antigo Testamento, a relação entre Deus e Israel foi comparada à
relação entre o noivo e a noiva. Nosso Senhor sugeriu que a mesma relação
existiria, dali em diante, entre Ele e a nova Israel espiritual, que estava para
fundar. Ele seria o noivo, Sua Igreja seria a noiva. E desde que veio instituir
esse tipo de união entre Si e a humanidade redimida, era conveniente que
começasse Seu magistério público participando de um casamento. São Paulo
não introduzia uma ideia nova ao escrever, mais tarde, aos Efésios, que a união
entre um homem e uma mulher era o símbolo da união de Cristo e com a
Igreja.

Maridos, amai as vossas mulheres,


como Cristo amou a Igreja
e se entregou por ela.
(Efésios 5,25)
Uma festa de casamento é uma ocasião de muita alegria; o vinho é servido
como símbolo dessa alegria. Na festa de Caná, que tinha tal importância
simbólica, a Cruz não lançou sua sombra sobre a alegria; ao contrário, o júbilo
veio em primeiro lugar e, então, a Cruz. No entanto, uma vez acabado o
contentamento, a sombra da Cruz lançou-se sobre a celebração.
Nosso Senhor já havia sido confirmado como o Cordeiro de Deus no rio
Jordão. Ele também escolhera cinco discípulos entre os seguidores de João
Batista: João, o Evangelista, André, Pedro, Filipe e Natanael. Estes, levou
consigo para a festa de casamento, que já estava acontecendo e que ao todo,
durou vários dias. Naquela época, os pais da noiva tinham encargos muito
maiores que os de hoje. As comemorações e as despesas podiam perdurar por
oito dias. Um dos motivos prováveis para escassear o vinho foi Nosso Senhor
ter levado muitos convivas que não haviam sido convidados. Desde a grande
agitação no rio Jordão, em que o céu se abriu para afirmar que Ele era o filho
de Deus, Sua presença atraía centenas de seguidores dispersos, que também
compareceram à festa. Foi ao casamento não só como o carpinteiro do vilarejo,
mas como o Cristo ou o Messias. Antes de as comemorações chegarem ao fim,
seria revelado que Ele tinha um encontro com a Cruz.
Maria, Sua mãe santíssima, estava presente na celebração. Essa foi a única
ocasião na vida de Nosso Senhor em que Maria é mencionada antes de seu
filho. Maria deveria ser o instrumento do primeiro milagre, ou sinal, de que
Ele era quem dizia ser, o Filho de Deus. Ela já havia sido um instrumento para
a santificação de João Batista no ventre de sua mãe: agora, por meio da
intercessão dela, soou a trombeta para a longa sucessão de milagres — uma
intercessão tão potente que inspirou espíritos em todas as épocas a invocar seu
nome para outros milagres de natureza e graça.
João, o evangelista, que já fora escolhido para ser discípulo, estava
presente na festa e foi testemunha ocular e auditiva daquilo que Maria fez em
Caná. Também estava com ela aos pés da Cruz e registrou ambos os
acontecimentos fidedignamente em seu Evangelho. No templo e no rio Jordão,
Nosso Senhor recebeu a bênção de Seu Pai e a sanção para iniciar a obra de
redenção. Em Caná, recebeu o assentimento da progenitora humana. Mais
tarde, no terrível isolamento do Calvário, viria um momento tenebroso em que
o Pai parecia tê-Lo abandonado e Ele citaria o salmo que começa da seguinte
maneira:
Meu Deus, meu Deus,
por que me abandonastes?
(Salmo 21,2)

Viria outro momento em que parecia afastar-se da mãe:

Mulher, eis aí teu filho.


(São João 19,26)

Quando o vinho acabou em Caná, é interessante notar que Maria estava


mais preocupada com os convidados do que com o servente, pois foi ela, e não
ele, quem reparou a necessidade de vinho. Maria voltou-se para seu Divino
Filho em perfeito espírito de oração. Confiando plenamente Nele e
acreditando em Sua misericórdia, ela disse:

Eles já não têm vinho.


(São João 2,3)

Não foi um pedido pessoal; ela já era a mediadora para todos os que
buscavam a plenitude da felicidade. Nunca foi apenas uma espectadora, mas
uma partícipe plena, disposta a envolver-se nas necessidades dos outros. A mãe
usou o poder especial que tinha como mãe sobre o filho, um poder gerado pelo
amor mútuo. Ele respondeu-lhe com aparente hesitação:

Mulher, que tenho eu e tu com isso?


Ainda não chegou a minha hora.
(São João 2,4)6

Primeiro, consideremos as palavras: “que tenho eu e tu com isso”. Essa é


uma expressão hebraica de difícil tradução. São João a traduziu de maneira
bem literal em grego e a Vulgata preservou essa literalidade em Quid mihi et
tibi, que significa, “que a mim e a ti?”. As palavras “com isso” não constam da
expressão original, foram acrescidas à tradução para tornar a ideia mais
compreensível. Ronald Knox fez uma tradução livre: “Por que me incomodas
com isso?”.7
Para compreender de maneira mais integral o que Ele queria dizer,
consideremos as palavras “Ainda não chegou a minha hora”. A “hora”,
obviamente, se refere à Cruz. Sempre que a palavra “hora” é empregada no
Novo Testamento, é utilizada em relação à Sua Paixão, morte e glória.
Referências a essa “hora” ocorrem sete vezes somente no Evangelho de São
João, algumas das quais destacamos aqui:

Procuraram prendê-lo,
mas ninguém Lhe deitou as mãos,
porque ainda não era chegada a Sua hora.
(São João 7,30)

Estas palavras proferiu Jesus ensinando no templo,


junto aos cofres de esmola.
Mas ninguém O prendeu,
porque ainda não era chegada a sua hora.
(São João 8,20)

Respondeu-lhes Jesus:
É chegada a hora para o Filho do Homem ser glorificado.
(São João 12,23)

Presentemente, a minha alma está perturbada.


Mas que direi?…
Pai, salva-me desta hora…
Mas é exatamente para isso que vim a esta hora.
(São João 12,27)

Eis que vem a hora, e ela já veio,


em que sereis espalhados, cada um para o seu lado,
e me deixareis sozinho.
Mas não estou só,
porque o Pai está comigo.
(São João 16,32)

Jesus afirmou essas coisas e depois,


levantando os olhos ao céu, disse:
Pai, é chegada a hora.
Glorifica teu Filho, para que teu Filho glorifique a ti.
(São João 17,1)

A “hora”, portanto, referia-se à glorificação por meio da crucifixão,


Ressurreição e Ascensão. Em Caná, Nosso Senhor se referia ao Calvário e dizia
que o tempo determinado para o início de Sua obra ainda não estava próximo.
Sua mãe Lhe pedia um milagre; e Ele indicava que um milagre que funcionasse
como sinal da própria divindade seria o início de Sua morte. No momento em
que se apresentasse diante dos homens como Filho de Deus, atrairia para Si o
ódio, pois o mal pode tolerar a mediocridade, mas não a suprema bondade. O
milagre que ela solicitava seria inconfundivelmente relacionado à Sua redenção.
Houve, na vida de Cristo, duas ocasiões em que Sua natureza humana
pareceu demonstrar uma indisposição para assumir o destino de sofrimento.
No Jardim das Oliveiras, pediu ao Pai que, se possível, afastasse o cálice de
aflição. Entretanto, após, de imediato, ter aquiescido à vontade do Pai, disse:
“Não se faça, todavia, a minha vontade, mas sim a tua” (São Lucas 22,42). A
mesma relutância aparente também foi manifestada diante da vontade de Sua
mãe. Caná foi um ensaio para o Gólgota. Não questionava a sensatez de iniciar
a vida pública e de morrer naquele determinado tempo; ao contrário, era uma
questão de submeter a natureza humana relutante à obediência à Cruz. Existe
um paralelismo impressionante entre o apelo do Pai para a morte pública e o
apelo da mãe para a vida pública. A obediência triunfou em ambos os casos.
Em Caná, a água foi transformada em vinho; no Calvário, o vinho foi
transformado em sangue.
Dizia à mãe que o que ela pedia, praticamente, era pronunciar Sua
sentença de morte. Poucas são as mães que mandam os filhos para os campos
de batalha, mas eis aqui uma que estava, na verdade, apressando o momento
do conflito mortal do filho com as forças do mal. Caso concordasse com o
pedido, daria início à hora de Sua morte e glorificação. Iria para a cruz com
uma dupla incumbência: uma do Pai dos Céus e outra, de Sua mãe na terra.
Tão logo consentiu em dar início à Sua “hora”, começou a dizer, de
imediato, que dali em diante as relações com a mãe mudariam. Até então,
durante a vida oculta, ela fora conhecida como a mãe de Jesus. No entanto, no
momento em que Ele dava início à obra de redenção, ela não seria mais tão
somente Sua mãe, mas também a mãe de toda a irmandade dos homens que
Ele redimiria. Para indicar esse novo relacionamento, dirigia-Se a ela, agora,
não como “mãe”, mas como a “mãe universal” ou “mulher”. Que tom teriam
essas palavras para as pessoas que viviam à luz do Antigo Testamento? Quando
Adão pecou, Deus falou a Satanás e predisse que poria inimizade entre sua
semente e “a mulher”, pois o bem teria uma descendência assim como o mal.
O mundo não teria apenas a Cidade do Homem que Satanás reivindicava ser
sua, mas teria também a Cidade de Deus. A “mulher” trazia uma semente e era
o seu princípio que estava presente naquele momento no casamento de Caná, a
semente que cairia no solo e morreria, e então faria brotar uma vida nova.
No momento em que a “hora” começou, ela tornou-se “a mulher”;
também teria outros filhos, não segundo a carne, mas segundo o Espírito. Ele
deveria ser o novo Adão, o fundador de uma humanidade redimida, ela seria a
nova Eva e a mãe da nova humanidade. Como Nosso Senhor era um homem,
ela era Sua mãe; e como era um salvador, ela também era a mãe de todos
aqueles que Ele salvaria. João, que estava presente no casamento, também
esteve presente no clímax da “hora” no Calvário. Ouviu Nosso Senhor, do alto
da Cruz, chamá-la de “mulher” e depois dizer-lhe: “Eis aí teu filho” (São João
19,26). Era como se ele, João, fosse agora o símbolo da nova família de Maria.
Quando trouxe dos mortos o filho da viúva de Naim (São Lucas 7,11-17),
Nosso Senhor disse: “entregue-o à sua mãe”. Na Cruz, consolou a própria mãe
ao dar-lhe outro filho, João, e com ele, toda a humanidade redimida.
Na Ressurreição, entregou-se a Si próprio novamente para ela, a fim de
demonstrar que, embora tivesse ganhado novos filhos, ela não O perdera. Em
Caná, a profecia que Simeão fizera a Maria no templo foi confirmada:
doravante, o que quer que envolvesse seu Filho, também a envolveria; o que
quer que acontecesse a Ele, aconteceria a ela. Se Ele estava destinado a ir para a
cruz, ela também iria; e se, naquele momento, Ele começaria a vida pública,
então ela começaria uma nova vida também, não mais somente como mãe de
Jesus, mas como mãe de todos aqueles que Jesus, o Salvador, redimiria. Ele
chamava a Si mesmo de “o Filho do Homem”, um título que abarcava toda a
humanidade; ela, dali em diante, seria a “Mãe dos Homens”. Assim como ela
estava ao lado do Filho ao dar início à Sua “hora”, igualmente estaria ao lado
dele no fim. Ao retirá-Lo do templo, quando era um menino de 12 anos, o fez
porque percebia que Sua “hora” ainda não havia chegado; Ele a obedeceu na
ocasião e retornou com ela para Nazaré. Agora, disse-lhe que ainda não era
chegada a Sua “hora”, mas ela suplicou-Lhe que a começasse, e Ele obedeceu.
Em Caná, ela O deu aos pecadores como Salvador; na Cruz, Ele a entregou
como refúgio para os pecadores.
Quando Jesus sugeriu que Seu primeiro milagre o levaria, infalivelmente,
à Cruz e à morte e que ela se tornaria, dali em diante a mãe das dores, Maria
voltou-se no mesmo instante aos serventes e disse:

Fazei o que ele vos disser.


(São João 2,5)

Que discurso maravilhoso! Maria nunca volta a falar novamente nas


Escrituras. Ela falou por sete vezes, mas agora Cristo se apresentara, como o
Sol, no auge do esplendor de Sua divindade. Nossa Senhora foi,
voluntariamente, eclipsada como a Lua, assim como, mais tarde, João a
descreveu.
As seis talhas de pedra foram cheias, perfazendo um total aproximado de
455 litros, e, no belo linguajar de Richard Crashaw,8 “as águas inconscientes
viram seu Deus e coraram”. O primeiro milagre foi algo como a própria
criação; realizado pelo poder da “Palavra”. O vinho que Jesus criou era tão bom
que o noivo foi repreendido pelo chefe dos serventes com as seguintes palavras:

É costume servir primeiro o vinho bom e,


depois, quando os convidados já estão quase embriagados,
servir o menos bom.
Mas tu guardaste o vinho melhor até agora.
(São João 2,10)
É
É verdade que o melhor vinho estava guardado. Até o momento da
revelação, o pior vinho foram os profetas, os juízes e os reis, Abraão, Isaac, Jacó,
Moisés, Josué — todos eram como a água aguardando o milagre do Esperado
das Nações. O mundo, em geral, oferece primeiro os prazeres; depois, chegam
as escórias e as amarguras. Cristo, contudo, reverteu a ordem e nos deu o
banquete após o jejum. A Ressurreição após a crucifixão, a alegria do Domingo
de Páscoa após o pesar da Sexta-Feira Santa.

Este foi o primeiro milagre de Jesus;


realizou-o em Caná da Galileia.
Manifestou a sua glória,
e os seus discípulos creram nele.
(São João 2,11)

A cruz está em todo lugar. Quando um homem abre seus braços em


descanso, inconscientemente, forma a imagem da razão da vinda do Filho do
Homem. Da mesma maneira, também em Caná, a sombra da Cruz foi lançada
através de uma “mulher” e o primeiro soar da “hora” pareceu um sino de
execução. Em todos os outros incidentes de Sua vida, a Cruz veio em primeiro
lugar, depois a alegria. Em Caná, contudo, foi a alegria das núpcias que veio
em primeiro lugar — as núpcias do noivo e da noiva da humanidade redimida;
só depois disso somos recordados de que a Cruz é a condição de tal enlevo.
Assim, aquilo que Jesus fez na festa de casamento não o fez no deserto.
Realizou, com o olhar plenamente fixado no homem, o que recusara realizar
diante de Satanás. Satanás pediu-Lhe que transformasse pedras em pão, para
que se tornasse um Messias econômico; sua mãe pediu-Lhe que transformasse
água em vinho para que se tornasse um Salvador. Satanás O tentou para que se
livrasse da morte; Maria O “tentou” para a morte e ressurreição. Satanás tentou
desviá-Lo da Cruz; Maria enviou-Lhe na direção dela. Mais tarde, Ele tomaria o
pão que Satanás disse ser necessário ao homem e o vinho que Sua mãe disse ser
necessário aos convivas do casamento e os transformaria no memorial de Sua
Paixão e morte. Então, pediria que os homens renovassem esse memorial até “a
consumação do mundo”. A antífona de Sua vinda continua a soar: Todos os
outros vieram ao mundo para viver, Ele veio ao mundo para morrer.
Notas

6 | Neste trecho não utilizamos a versão da Bíblia Ave Maria, visto ser uma tradução
simplificada, o que impediria traduzir o comentário do Cardeal Sheen a seguir. (N. T.)
7 | No início de 1936, o Padre Ronald Knox (1888-1957) retraduziu sozinho para o inglês
a Vulgata Latina. Conhecida como Knox Bible, sua versão foi muito divulgada nos países
de língua inglesa. No original de Knox para o inglês: “Why dost thou trouble me with
that?”. (N. T.)
8 | Richard Crashaw (1613-1649) foi um poeta inglês convertido do anglicanismo ao
catolicismo e um dos principais nomes da poesia metafísica inglesa do século XVII. (N.
T.)
6

O TEMPLO DO SEU CORPO

O templo é um local em que Deus habita. Onde, então, estava o verdadeiro


templo de Deus? Era o grande templo de Jerusalém, com toda a grandiosidade
material, o verdadeiro templo? A resposta a essa pergunta deveria parecer óbvia
aos judeus; mas Nosso Senhor estava prestes a sugerir que havia outro templo.
Os peregrinos encaminhavam-se a Jerusalém para a festa da Páscoa e, entre eles,
estava Nosso Senhor e os primeiros discípulos, após uma breve estada em
Cafarnaum. O templo era realmente um lugar magnífico, em especial desde
que Herodes quase completara sua reconstrução e o adornara. Um ano depois,
os próprios apóstolos, no Monte das Oliveiras, ficariam tão chocados com a
aparência reluzente do templo, ao brilhar no sol da manhã, que pediram a
Nosso Senhor que olhasse para ele e admirasse sua beleza.
Naturalmente, era um problema de todos que chegavam para oferecer
sacrifício conseguir os materiais e depois, também, as vítimas sacrificiais, que
tinham de ser testadas e julgadas segundo os padrões levíticos.
Consequentemente, havia um mercado próspero de animais sacrificiais de
todos os níveis. Aos poucos, os vendedores de ovelhas e pombas foram se
aproximando cada vez mais do templo, sufocando as alamedas que levavam até
ali, até que alguns deles, em particular os filhos de Anás, na verdade, acabaram
ganhando acesso para a entrada do pórtico de Salomão, onde vendiam pombas,
gado e faziam câmbio de dinheiro. Cada visitante das celebrações era obrigado
a dar meio shekel para ajudar a pagar os gastos do templo; já que nenhuma
moeda estrangeira era aceita, os filhos de Anás, como nos diz Flávio Josefo,
negociavam o câmbio das moedas, provavelmente a taxas mais altas. Um par de
rolas era vendido, à época, por uma moeda de ouro, que em moeda americana
estaria valendo cerca de $2.50.9 Esse abuso, no entanto, foi corrigido pelo neto
do grande Hillel, que reduziu o preço em um quinto do descrito acima. Todos
os tipos de moedas de Tiro, da Síria, do Egito, da Grécia e de Roma circulavam
no templo, o que levava a fomentar um mercado negro entre os cambistas. A
situação era ruim o bastante para Cristo chamar o templo de “covil de ladrões”
(São Mateus 21,13): de fato, o próprio Talmud recriminava firmemente os que
corrompiam esse local sagrado.
Houve um interesse considerável entre os peregrinos quando Nosso
Senhor ingressou pela primeira vez no recinto sagrado. Essa foi tanto Sua
primeira aparição pública diante da nação como Sua primeira visita ao templo
como Messias. Já operara o primeiro milagre em Caná; agora vinha à casa do
Pai reivindicar um direito filial. Nosso Senhor Santíssimo, ao encontrar-se
nesse cenário incongruente, onde as preces se misturavam às ofertas blasfemas
dos mercadores e onde o tilintar das moedas harmonizava com o zurrar do
gado, encheu-se de zelo pela casa do Pai. Com alguns pedaços de corda que lá
estavam, provavelmente usadas como coleiras para o gado, fez um pequeno
açoite. Com isso começou a remover o gado e os aproveitadores. A
impopularidade dos exploradores e o medo do escândalo público, talvez, os
tenha feito evitar qualquer resistência ao Salvador. Seguiu-se uma cena bárbara:
o gado correndo para cima e para baixo, e os cambistas agarrando quantas
moedas podiam, enquanto o Salvador virava as mesas. Ele abriu as gaiolas dos
pombos e os libertou.

Tirai isto daqui e não façais da casa de meu Pai


uma casa de negociantes.
(São João 2,16)

Mesmo os mais próximos devem ter se espantado ao vê-Lo com azorrague


em riste e olhos faiscantes, lançando-Se ao encontro dos homens e dos animais,
enquanto dizia:

A minha casa chamar-se-á


casa de oração para todas as nações?
Mas vós fizestes dela
um covil de ladrões.
(São Marcos 11,17)

Lembraram-se então os seus discípulos


do que está escrito:
O zelo da tua casa me consome.
(São João 2,17)

A parte do templo da qual Nosso Senhor retirou os comerciantes era


conhecida como Pórtico de Salomão, a lateral leste do Pátio dos Gentios. Essa
parte deve ter servido como símbolo para demonstrar que todas as nações do
mundo eram bem-vindas; mas os mercadores a estavam corrompendo. Agora,
Nosso Senhor deixava claro que o templo era para todas as nações, não só para
Jerusalém; era uma casa de oração para os homens sábios, assim como para os
pastores, para as missões estrangeiras, bem como para as missões domésticas.
Chamou o templo de “a casa de meu Pai”, afirmando neste mesmo
momento Seu relacionamento filial com o Pai Celestial. Aqueles que foram
removidos do templo não puseram as mãos Nele, nem O reprovaram como se
tivesse feito algo errado. Simplesmente pediram um sinal ou uma garantia que
justificasse a atitude. Ao permanecer de pé, em dignidade solitária, entre as
moedas espalhadas e o gado a correr, com pombos voando para lá e para cá,
eles Lhe perguntaram:

Que sinal nos apresentas tu,


para procederes deste modo?
(São João 2,18)

Estavam aturdidos por Sua capacidade de justa indignação (que era o


outro lado do caráter de portador da alegria manifestada em Caná) e pediram
um sinal. Já lhes tinha dado um sinal de que era Deus, pois lhes disse que
tinham profanado a casa de Seu Pai. Pedir outro sinal era como pedir luz para
ver a luz. Entretanto, Ele lhes deu um segundo sinal:

Destruí vós este templo,


e eu o reerguerei em três dias.
(São João 2,19)

As pessoas que ouviram essas palavras nunca mais as esqueceram. Três


anos depois, no julgamento, eles as trariam de volta, de maneira um tanto
distorcida, acusando-O de dizer:

Eu destruirei este templo, feito por mãos de homens,


e em três dias edificarei outro,
que não será feito por mãos de homens.
(São Marcos 14,58)

Recordaram Suas palavras, mais uma vez, enquanto Ele pendia na Cruz:

Tu que destróis o templo


e o reedificas em três dias,
salva-Te a Ti mesmo!
Desce da cruz!
(São Marcos 15,29-30)

Ainda estavam assombrados por Suas palavras quando pediram a Pilatos


para precaver-se na guarda da tumba. Entenderam, na ocasião, que Ele Se
referira não só ao templo de pedra, mas ao Seu corpo.

Senhor, nós nos lembramos de que aquele impostor disse,


enquanto vivia:
Depois de três dias ressuscitarei.
Ordena, pois, que seu sepulcro seja guardado até o terceiro dia.
Os seus discípulos poderiam vir roubar o corpo.
(São Mateus 27,63-64)
O tema do templo ecoou mais uma vez no julgamento e no martírio de
Estêvão, quando os perseguidores o acusaram:

Esse homem não cessa de proferir palavras


contra o lugar santo e contra a lei.
(Atos dos Apóstolos 6,13)

Jesus, na verdade, estava vencendo um desafio quando lhes disse:


“destruirei!”. Ele não disse: “Se vós destruirdes…”. Estava desafiando-os de
maneira direta a testar Seu poder real e sacerdotal por uma crucifixão, e Ele
lhes responderia com a Ressurreição.
É importante notar que, no original grego do Evangelho, Nosso Senhor
não emprega a palavra hieron, que era o substantivo grego comum para templo,
mas, antes, emprega naos, que significa o Santo dos Santos do templo. Com
efeito, estava a dizer: “O templo é o lugar onde Deus habita. Vós profanastes o
antigo templo; mas agora existe outro templo. Destruí esse novo templo, ao me
crucificar, e, em três dias, ressuscitarei novamente. Ainda que destruais Meu
corpo, que é a casa de Meu pai, pela Minha Ressurreição darei a posse do novo
templo a todas as nações”. É muito provável que Nosso Senhor Santíssimo
tivesse apontado para o próprio corpo quando falou dessa maneira. Templos
podem ser construídos de carne e osso, assim como de pedra e madeira. O
corpo de Cristo era um templo porque a plenitude de Deus Nele morava.
Aqueles que O desafiaram, de imediato, responderam, perguntando:

Em 46 anos foi edificado este templo,


e tu hás de levantá-lo em três dias?!
(São João 2,20)

Deveriam estar se referindo ao templo de Zorobabel, que levara 46 anos


para ser construído. Foi no início no primeiro ano de reinado de Ciro, em 559
a.C. e completado em 513 a.C., no nono ano do reinado de Dario. Também é
possível que estivessem se referindo às alterações de Herodes, que talvez
ocorressem há 46 anos naquele momento. As alterações tiveram início por
volta de 20 a.C. e não foram completadas até 63 A.D. No entanto, como
escreveu João:

Mas ele falava do templo do seu corpo.


Depois que ressurgiu dos mortos,
os seus discípulos lembraram-se destas palavras
e creram na Escritura e na palavra de Jesus.
(São João 2,21-22)

O primeiro templo de Jerusalém estava associado aos grandes reis, como


Davi, que o projetou, e Salomão, que o construiu. O segundo templo
recordava os grandes líderes do retorno do cativeiro; esse templo restaurado
com sua magnificência dispendiosa estava relacionado à casa real de Herodes.
Todas essas sombras de templos deveriam ser superadas pelo verdadeiro
Templo, que destruiriam na Sexta-Feira Santa. No momento em que este foi
destruído, o véu que pendia diante do Santo dos Santos seria rasgado de cima a
baixo; e o véu de sua carne também seria rasgado, revelando o verdadeiro Santo
dos Santos, o Sagrado Coração de seu Filho.
Ele usaria a mesma figura do templo em outra ocasião, ao falar aos
fariseus:

Ora, eu vos declaro que aqui está


quem é maior que o templo.
(São Mateus 12,6)

Foi assim que Ele respondeu ao pedido de um sinal. O sinal havia de ser
Sua morte e Ressurreição. Mais tarde, prometeria aos fariseus o mesmo sinal,
sob o símbolo de Jonas. Sua autoridade não seria provada somente pela morte,
seria provada pela morte e Ressurreição. A morte seria provocada pelo coração
maligno do homem e pela própria disposição de Jesus; a Ressurreição, apenas
pelo poder onipotente de Deus.
Nesse momento, Ele chamava o templo de casa do Pai. Quando foi
deixado lá, três anos depois, não o chamava mais de casa do Pai, porque as
pessoas O haviam rejeitado; ao contrário, disse:

Pois bem, a vossa casa vos é deixada deserta.


(São Mateus 23,38)

Não era mais a casa de seu Pai, era a casa deles. O templo terreno deixou
de ser o lugar onde Deus habita ao se tornar o centro de interesses mercenários.
Sem Jesus, não era, de modo algum, um templo.
Aqui como alhures, Nosso Senhor provava ser, Ele mesmo, o único que
veio ao mundo para morrer. A Cruz não era algo que vinha ao fim de Sua vida;
era algo que pendia sobre Ele desde o início. Disse-lhes: “Destruí”; e eles Lhe
disseram: “Crucifica-o”. Nenhum templo jamais foi destruído de modo tão
sistemático quanto Seu corpo. A abóbada do Templo, Sua fronte, foi coroada
de espinhos; as fundações, seus sagrados pés, foram perfuradas por pregos; os
transeptos, suas mãos, foram estendidos em forma de cruz; o coração do Santo
dos Santos foi transpassado por uma lança.
Satanás o tentou com um sacrifício aparente ao pedir-Lhe que se lançasse
do pináculo do templo. Nosso Senhor rejeitou essa forma de sacrifício
espetacular. Entretanto, quando aqueles que poluíram a casa de Seu Pai
pediram um sinal, Ele lhes ofereceu um sinal de tipo diferente, o de Seu
sacrifício na Cruz. Satanás pediu a Jesus que se humilhasse; agora, Nosso
Senhor Santíssimo dizia que, de fato, seria humilhado pela infâmia da morte.
Seu sacrifício, contudo, não seria uma peça de exibicionismo sem sentido, mas
um ato de auto-humilhação redentora. Satanás propôs que Ele expusesse Seu
Templo à possível ruína por exibicionismo, por ostentação, mas Nosso Senhor
expôs o templo de Seu corpo a certa ruína pela salvação e expiação. Em Caná,
disse que ia ao encontro de Sua “hora”; no templo, disse que a hora da Cruz
levaria à sua Ressurreição. Sua vida pública cumpriria o padrão dessas profecias.
Nota

9 | Em valores atualizados, $2.50 dólares no ano em que foi escrito o livro (1958)
equivalem hoje (2017) a $8.50. (N. T.)
7

NICODEMOS, A SERPENTE E A CRUZ

Jesus não deu muito destaque ao fato de não ser bem recebido no templo que
era a casa de Seu Pai. O templo terreno desapareceria, e Ele, o verdadeiro
templo em que Deus habitava, surgiria, novamente, em glória. Naquele
momento, limitou-Se a provar que era o Messias pregando e operando
milagres. Durante esses poucos dias, fez muito mais milagres do que foi
registrado; e o Evangelho afirma que muitos, ao ver os milagres que Ele fazia,
creram Nele. Um dos membros do Sinédrio admitiu não só que os milagres
eram autênticos, mas também que Deus estava com Ele e operava tais sinais.

Havia um homem entre os fariseus,


chamado Nicodemos, príncipe dos judeus.
(São João 3,1)

Segundo todos os padrões do mundo, Nicodemos pode ser descrito como


um homem sábio. Era versado nas Escrituras, um homem religioso, visto que
pertencia a uma das facções religiosas, os fariseus, que insistiam nas minúcias
dos rituais exteriores. No entanto, Nicodemos não era, ao menos no início, um
homem destemido, pois escolheu falar com Nosso Senhor Santíssimo no
momento em que o manto das trevas o escondia dos olhos dos homens.
Nicodemos é a “personagem noturna” do Evangelho, pois sempre que o
encontramos, está escuro. Essa primeira visita é, sem dúvida, descrita como
noturna. Mais tarde, à noite, como membro do Sinédrio, foi ele quem falou
em defesa de Nosso Senhor, ao dizer que nenhum homem deveria ser julgado
antes de uma audiência. Na Sexta-Feira Santa, na noite após a crucifixão, José
de Arimateia veio e

Acompanhou-o Nicodemos
(aquele que anteriormente fora de noite ter com Jesus),
levando umas cem libras de uma mistura de mirra e aloés.
(São João 19,39)

Apesar de existirem impedimentos sociais que desencorajavam a


demonstração de qualquer interesse em Nosso Senhor, ele, mesmo assim, foi
vê-Lo quando Jesus estava em Jerusalém para a Páscoa. Veio fazer reverência a
Cristo e aprendeu, rapidamente, que esse tipo de reverência não bastava.
Nicodemos disse-Lhe:

Rabi, sabemos que és um Mestre vindo de Deus.


Ninguém pode fazer esses milagres que fazes,
se Deus não estiver com ele.
(São João 3,2)

Entretanto, embora tenha visto milagres, Nicodemos não estava pronto


para confessar a divindade Daquele que os operara. Ainda estava um pouco
reticente, pois disfarçou sua personalidade sob o uso de um “nós” oficial. Esse é
um truque que, às vezes, os intelectuais usam para fugir da responsabilidade
pessoal; quer sugerir que, se uma mudança é necessária, deve ser para a
sociedade em geral, em vez de ser para os próprios corações. Mais tarde,
durante essa conversa noturna, Nosso Senhor repreendeu Nicodemos como
“mestre” por ainda ignorar muitas profecias. Nisso, Nosso Senhor também
mostrava ser mestre. No entanto, antes do amanhecer, no curso da longa
discussão, Nosso Senhor proclamou que, embora fosse um mestre, não era
apenas isso; era, primeiro e antes de mais nada, um Redentor. Afirmou que,
não só a verdade humana na razão, mas um renascimento da alma, adquirido
por Sua morte, era essencial para alguém se tornar um com Ele. Nicodemos
começou chamando-O de mestre; ao final desse encontro, Nosso Senhor Se
proclamara um Salvador.
A Cruz refletia-se por sobre todos os incidentes de Sua vida; ela nunca
brilhou com tamanho fulgor para quem conhecia o Antigo Testamento como
naquela noite. Esse fariseu pensava que Jesus era apenas um mestre, um Rabi,
mas descobriu, no final, que havia cura naquilo que sempre foi tido, até então,
como maldição; a saber, a crucifixão.
Nosso Senhor, em resposta, pediu-lhe que deixasse a ordem mundana.

Em verdade, em verdade te digo:


quem não nascer de novo
não poderá ver o Reino de Deus.
(São João 3,3)

A ideia que prevalecia no início da discussão entre Nicodemos e Nosso


Senhor era a da vida espiritual ser diferente da vida física ou intelectual. A
diferença entre a vida espiritual e a física, Jesus lhe dizia, era maior que a
existente entre um cristal e uma célula viva. A vida espiritual não é um impulso
vindo de baixo; é um dom vindo do alto. Um homem não se torna realmente
menos egoísta e adquire uma mentalidade mais livre até que se torne um
seguidor de Cristo. Deve haver um novo nascimento gerado do alto. Toda
pessoa no mundo tem um primeiro nascimento na carne, mas Jesus disse que
um segundo nascimento do alto seria necessário para a vida espiritual. É tão
necessário que um homem “não pode”, sem isso, entrar no Reino de Deus. Ele
não disse “não irá”, pois, a impossibilidade é real. Assim como uma pessoa não
pode levar uma vida física a menos que nasça, da mesma maneira ninguém
pode levar uma vida divina a menos que nasça de Deus. O primeiro
nascimento nos faz filhos de nossos pais, o segundo nos faz filhos de Deus. A
ênfase não é no autodesenvolvimento, mas na regeneração; não na melhoria de
nosso estado atual, mas na mudança completa de nosso estado.
Vencido pela grandeza da ideia que lhe foi sugerida, Nicodemos pediu
mais esclarecimentos. Podia compreender um homem ser o que é, mas não
podia compreender um homem se tornar aquilo que não é. Nicodemos
compreendia redecorar o homem velho, mas não criar um homem
completamente novo. Daí a pergunta:

Como pode um homem renascer, sendo velho?


Porventura pode tornar a entrar no seio de sua mãe
e nascer pela segunda vez?
(São João 3,4)

Nicodemos não negava a doutrina do renascimento. Era um literalista;


duvidava da precisão do termo “nascer”. Nosso Senhor respondeu a essa
dificuldade:

Em verdade, em verdade te digo:


quem não renascer da água e do Espírito
não poderá entrar no Reino de Deus.
O que nasceu da carne é carne,
e o que nasceu do Espírito é espírito.
Não te maravilhes de que eu te tenha dito:
Necessário vos é nascer de novo.
(São João 3,5-7)

A percepção de Nicodemos era inadequada. Só se aplicava à esfera carnal.


Nicodemos não podia entrar no ventre de sua mãe uma segunda vez para
nascer. Entretanto, o que era impossível à carne, era possível ao espírito.
Nicodemos esperava instrução e ensinamento, mas, em vez disso, foram-lhe
oferecidos regeneração e renascimento. O Reino de Deus foi apresentado como
uma nova criação. Quando sai do ventre da mãe, o homem é apenas uma
criatura de Deus, como uma mesa é a criação, em grau menor, do carpinteiro.
Nenhum homem na ordem natural pode chamar Deus de “Pai”: para fazer
isso, o homem teria de se tornar algo que não é. Deve, por dom divino,
partilhar da natureza de Deus, como atualmente partilha da natureza de seus
pais. O homem faz o que lhe é diferente; mas gera o que é semelhante. Um
artista pinta um retrato, mas esse retrato é diferente dele em natureza; uma mãe
gera uma criança, e a criança é-lhe semelhante em natureza. Nosso Senhor
sugere aqui que, acima da ordem dos feitos e da criação, está a ordem da
geração, regeneração e renascimento pela qual Deus se torna nosso Pai.
É evidente que Nicodemos estava alarmado com essa abordagem
puramente intelectual da religião, visto que Nosso Senhor lhe disse: “Não te
maravilhes de que eu te tenha dito” (São João 3,7). Nicodemos conjecturava
como poderia ser produzido esse efeito de regeneração. Nosso Senhor explicou
que Nicodemos não compreendia esse segundo nascimento porque ignorava a
obra do Espírito Santo. Poucos instantes depois, Jesus sugeriu que Sua morte
reconciliaria a humanidade com o Pai, de modo que a humanidade seria
regenerada pela ação do Espírito Santo. O novo nascimento que Nosso Senhor
sugeriu escaparia aos sentidos e é conhecido somente pelos efeitos na alma.
Nosso Senhor empregou uma ilustração desse mistério: “Não podes
compreender o sopro do vento, mas tu obedeces sua lei e, assim, aproveita sua
força; assim também acontece com o Espírito. Obedece a lei do vento e ele
encherá tuas velas e te levará para a frente. Obedece a lei do Espírito e
conhecerás um novo nascimento. Não proteles o relacionamento com essa lei
apenas porque não podes penetrar intelectualmente nesse mistério”.

O vento sopra onde quer;


ouves-lhe o ruído, mas não sabes de onde vem,
nem para onde vai.
Assim acontece com aquele que nasceu do Espírito.
(São João 3,8)

O Espírito de Deus é livre e sempre age livremente. Seus movimentos não


podem ser antecipados por nenhum cálculo humano. Não podemos dizer
quando a graça está por vir ou como agirá na alma; se virá como resultado da
aversão ao pecado ou do anseio por um bem maior. A voz do Espírito está
dentro da alma; a paz que ela traz, a luz que derrama e a força que dá estão
inegavelmente ali. A regeneração do homem não é diretamente discernível ao
olho humano.
Embora fosse um erudito sofisticado, Nicodemos estava, mesmo assim,
perplexo pela sublimidade da doutrina que ouvia Daquele que era chamado de
Mestre. Seu interesse como fariseu não estava na santidade pessoal, mas na
glória de um reino terreno. Nesse momento, faz a pergunta:

Como se pode fazer isso?


(São João 3,9)

Nicodemos percebeu que a vida divina no homem não é apenas uma


questão de ser; também encerra o problema do tornar-se, por intermédio de um
poder que não está no homem, mas somente no próprio Deus.
Nosso Senhor explicou que Seu ensinamento era algo que nenhum mero
ser humano jamais poderia ter pensado. Era, portanto, uma desculpa para a
ignorância do fariseu. Afinal, nenhum homem jamais subiu aos céus para
aprender os segredos celestiais e, então, retornou à terra para dar-lhes a
conhecer. O único que poderia conhecê-los era Aquele que descera dos céus,
Aquele que, como Deus, se fizera homem e agora falava a Nicodemos. Nosso
Senhor, pela primeira vez, referiu-Se a Si mesmo como o Filho do Homem. Ao
mesmo tempo, sugeria que era alguma coisa mais que isso, que também era o
único divino Filho unigênito do Pai Celestial. Estava, na verdade, afirmando as
naturezas divina e humana.

Ninguém subiu ao céu senão aquele que desceu do céu,


o Filho do Homem que está no céu.
(São João 3,13)

Essa não foi a única vez que Nosso Senhor falou de Sua nova Ascensão
aos céus ou referiu-Se ao fato de que tinha vindo dos céus. Para um dos
apóstolos, disse:

Em verdade, em verdade vos digo:


vereis o céu aberto e os anjos de Deus
subindo e descendo sobre o Filho do Homem.
(São João 1,51)
Pois desci do céu não para fazer a minha vontade,
mas a vontade daquele que me enviou.
(São João 6,38)

Aquele que vem de cima é superior a todos.


Aquele que vem da terra é terreno
e fala de coisas terrenas.
Aquele que vem do céu é superior a todos.
(São João 3,31)

Porventura não é ele Jesus,


o filho de José, cujo pai e mãe conhecemos?
Como, pois, diz ele: Desci do céu?
(São João 6,42)

Que será, quando virdes subir o Filho do Homem


para onde ele estava antes?
(São João 6,62)

Nosso Senhor nunca falou de Sua divindade ou de Sua glória ressuscitada


sem trazer à baila a ignomínia da Cruz. Às vezes, falava primeiro da glória,
como fazia naquele momento com Nicodemos, mas a crucifixão tinha de ser a
condição. Nosso Senhor viveu tanto a vida celestial quanto a vida terrena; uma
vida celestial como Filho de Deus, uma vida terrena como Filho do Homem.
Ainda que continuasse a ser um com o Pai do céu, deu-Se aos homens na terra.
A Nicodemos, afirmou que a condição da qual dependia a salvação dos homens
seria a própria Paixão e morte. Deixou isso claro ao se referir à prefiguração da
Cruz mais famosa do Antigo Testamento.

Como Moisés levantou a serpente no deserto,


assim deve ser levantado o Filho do Homem,
para que todo homem que nele crer
tenha a vida eterna.
(São João 3,14-15)

O Livro dos Números relata que, quando o povo murmurou, rebelde,


contra Deus, foi punido com a praga de serpentes ferozes, de maneira que
muitos perderam a vida. Quando se arrependeram, Moisés ouviu de Deus que
fizesse uma serpente de bronze e a erguesse como sinal, e todos os picados pela
serpente que olhassem para aquele sinal seriam curados. Nosso Senhor
Santíssimo agora declarava que Ele seria erguido, como a serpente o fora. Do
mesmo modo como a serpente de bronze tinha a aparência de uma serpente e,
ainda assim, faltava-lhe o veneno, Ele também, quando fosse erguido no lenho
da Cruz, teria a aparência de um pecador e, ainda assim, não teria pecado.
Assim como todos os que olharam para a serpente de bronze foram curados das
picadas, também todos os que olhassem para Ele com amor e fé seriam curados
da picada da serpente do mal.
Não bastava que o Filho do Homem descesse dos céus e aparecesse como
Filho do Homem, pois assim teria sido apenas um grande mestre e um grande
exemplo, mas não um Redentor. Para Ele era mais importante cumprir o
propósito de Sua vinda, redimir o homem do pecado enquanto mantivesse a
semelhança com a carne humana. Os Mestres mudam os homens com suas
vidas; Nosso Senhor Santíssimo mudaria os homens com Sua morte. O veneno
do ódio, da sensualidade e da inveja que está no coração dos homens não pode
ser curado apenas por sábias exortações e reformas sociais. O preço do pecado é
a morte e, portanto, a expiação do pecado teria de ser pela morte. Assim como
nos sacrifícios antigos o fogo queimava de maneira simbólica o pecado
imputado juntamente com a vítima, do mesmo modo, na Cruz, os pecados do
mundo seriam descartados pelo sofrimento de Cristo, pois Ele seria erguido
como sacerdote e prostrado como vítima.
Os dois maiores estandartes já desfraldados foram a serpente e o Salvador.
E, ainda assim, há uma diferença infinita entre eles. O teatro de um foi o
deserto, e a audiência, poucos milhares de israelitas; o teatro do outro foi o
universo, e a audiência, toda a humanidade. De um adveio a cura do corpo, a
ser desfeita em breve, mais uma vez, pela morte; do outro jorrou a cura da
alma, até a vida eterna. E, mesmo assim, um é a prefiguração do outro.
Entretanto, embora Ele tenha vindo para morrer, insistiu no fato de que a
morte seria voluntária, não por ser demasiado fraco para se defender dos
inimigos. A única causa de Sua morte seria o amor; como disse a Nicodemos:

Com efeito, de tal modo Deus amou o mundo,


que lhe deu seu Filho único,
para que todo o que nele crer não pereça,
mas tenha a vida eterna
(São João 3,16)

Nessa noite, quando um ancião veio ter com o mestre divino que
assombrou o mundo com milagres, Nosso Senhor contou a história de Sua
vida. Foi uma vida que não começou em Belém, mas que existiu desde sempre
na divindade. Ele era o Filho de Deus que se tornou Filho do Homem, porque
o Pai O enviou na missão de redimir o homem por amor.
Se há algo que um bom mestre deseja, é uma vida longa para tornar
conhecido seu ensinamento e adquirir sabedoria e experiência. A morte é
sempre uma tragédia para um grande mestre. Quando foi dado a Sócrates o
suco de cicuta, sua mensagem foi, de uma vez por todas, rompida. A morte foi
uma pedra de tropeço para Buda e seu ensinamento das oito vias. O último
suspiro de Lao-Tsé cerrou a cortina de sua doutrina no que se referia ao Tao ou
ao “nada fazer” contra a autodeterminação agressiva. Sócrates ensinara que o
pecado era devido à ignorância e que, portanto, o conhecimento tornaria o
mundo bom e perfeito. Os mestres orientais se preocupavam com o homem
ficar enredado em alguma grande roda do destino. Daí a recomendação de
Buda de que o homem fosse ensinado a esmagar os desejos e, assim, encontrar
a paz. Quando Buda morreu, aos oitenta anos, não apontou para si, mas para a
lei que tinha deixado. A morte de Confúcio estancou seus ensinamentos
morais sobre como aperfeiçoar o Estado por intermédio de relações gentis
recíprocas entre o príncipe e o súdito, o pai e o filho, entre irmãos, marido e
mulher, e entre amigos.
Na conversa com Nicodemos, Nosso Senhor proclamou a Si mesmo
como a Luz do Mundo. No entanto, a parte mais surpreendente de Seu
ensinamento era dizer que ninguém O compreenderia enquanto estivesse vivo,
e que Sua morte e Ressurreição seriam essenciais para essa compreensão.
Nenhum outro mestre no mundo jamais disse que sofreria uma morte violenta
para esclarecer seu ensinamento. Eis um mestre que tornou Seu ensino
secundário a ponto de afirmar que o único caminho possível para atrair os
homens a si não era sua doutrina, nem aquilo que disse, mas sua crucifixão.

Quando tiverdes levantado o Filho do Homem,


então conhecereis quem sou.
(São João 8,28)

Não disse que o que compreenderiam seria o ensinamento; antes,


alcançariam Sua personalidade. Somente então entenderiam, após enviá-Lo à
morte, que Ele falava a verdade. Sua morte, portanto, em vez de ser o final de
uma série de derrotas, seria um sucesso glorioso, o auge de Sua missão na terra.
Por isso, a grande diferença das estátuas e pinturas de Buda e de Cristo.
Buda está sempre sentado, de olhos fechados, mãos entrelaçando o corpo
roliço. Cristo nunca está sentado; está sempre erguido e entronizado. Sua
pessoa e morte estão no centro e na alma de Sua lição. A Cruz, e tudo o que ela
encerra, é, mais uma vez, central em Sua vida.
8

SALVADOR DO MUNDO

Depois de purificar o templo, operar milagres em Jerusalém e dizer a


Nicodemos que viera para morrer por aqueles que foram picados pela serpente
do pecado, Nosso Senhor saiu de Jerusalém, que O rejeitara, e foi à “Galileia
dos gentios”. O caminho mais comum entre a Judeia, no sul, e a Galileia, ao
norte, era por Pereia. Os judeus tomavam esse caminho para evitar passar pela
terra dos samaritanos. Nosso Senhor, entretanto, não o tomou. Declarou que o
templo era para todas as nações e foi chamado a ministrar a todos os povos e
raças.

Ora, devia passar por Samaria.


(São João 4,4)

O Evangelho fala de Sua morte e redenção como um “dever”. O que


acontecera em Samaria estava relacionado àquela ordem — de que devia
oferecer Sua vida vicariamente pela humanidade.
Separando as duas províncias, Judeia e Galileia, havia uma faixa de terra
habitada por uma raça mestiça meio estrangeira, os samaritanos. Entre eles e os
judeus, havia uma hostilidade já antiga. Os samaritanos eram uma raça híbrida,
formada séculos antes, quando os israelitas foram levados cativos. Os assírios
enviaram alguns de seu próprio povo para misturar-se com eles, criando assim
uma nova raça. Os primeiros colonizadores de Samaria trouxeram consigo a
idolatria, mas, posteriormente, houve a introdução de um judaísmo espúrio.
Os samaritanos aceitaram os cinco livros de Moisés e alguns dos profetas; mas
todos os outros livros históricos foram rejeitados porque recontavam a história
dos judeus, a quem eles desprezavam. A adoração deles era feita num templo
no Monte Gerizim.
Nenhum judeu jamais pronunciava a palavra “samaritano”, de tão
abominável que era. Assim, quando perguntaram ao doutor da lei quem era o
próximo, ele usou um circunlóquio.10 Por outro lado, o termo mais ofensivo
que os judeus podiam aplicar a alguém era chamá-lo “samaritano”, como certa
vez chamaram Nosso Senhor, que ignorou a provocação (João 8,48). Mais
tarde, no entanto, na história do Bom Samaritano, o próprio Jesus representou
a Si mesmo como um “certo samaritano”, indicando a humilhação e o escárnio
lançados sobre Ele em Sua vinda à terra.
Nosso Bendito Senhor não evitou essas pessoas. O Criador de todos os
mundos precisava passar pela casa da humanidade “estrangeira” em Seu
caminho ao trono celestial. Um Amor Soberano pôs esta necessidade sobre Ele.
Era meio-dia, e Nosso Bendito Senhor estava “cansado de Sua jornada”; então,
sentou-se próximo à fonte de Jacó. No entanto, junto com esta fraqueza,
apareceu ali Sua onisciência, quando Ele leu o coração de uma mulher. Cristo
estava cansado com o trabalho, não do trabalho. As duas maiores conversões
que Nosso Bendito Senhor já fez, a mulher siro-fenícia e esta mulher, ambas se
deram quando Ele estava cansado. Quando parecia mais inadequado para
realizar os negócios do Pai, fazia-o mais efetivamente. São Paulo foi levado do
trabalho para a prisão; mas converteu alguns dos carcereiros e escreveu suas
epístolas. A disposição do coração sempre cria as próprias oportunidades.

Veio uma mulher da Samaria tirar água.


(São João 4,7)

Era incomum que uma mulher no Oriente viesse no calor do dia retirar
água. A razão para esse comportamento incomum será descoberta um pouco
mais tarde. Nada em sentido terreno era mais fortuito do que uma mulher
levando um jarro de água a um poço; ainda assim, foi uma dessas providências
cotidianas de Deus, que ajudam a desvendar o enigma de uma alma. Ela não
sabia do grande favor que estava à sua espreita. Ele estava lá primeiro. Como
escreveu Isaías:
Mantive-me à disposição das pessoas que não me consultavam.
(Isaías 65,1)

Foi Nosso Senhor quem encontrou Zaqueu, não Zaqueu a Ele; Paulo
também foi encontrado quando não estava procurando seu Senhor. O poder de
atração do Mestre Divino foi enfatizado mais tarde:

Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o atrair.


(São João 6,44)

Conforme enchia o jarro, ela já devia ter tentado evitar Nosso Bendito
Senhor, pois reconhecera Nele a fisionomia de um judeu, com quem os
samaritanos nada tinham em comum. Mas, para sua surpresa, o estrangeiro ao
lado do poço dirigiu-se a ela com um pedido:

Dá-me de beber.
(São João 4,7)

Sempre que queria fazer um favor, Nosso Senhor começava pedindo um.
Ele não começou com uma reprovação, mas com um pedido. Sua primeira
palavra foi “Dá-me!”. Sempre deve haver um esvaziamento do humano antes
que possa haver um preenchimento com o divino, assim como o divino
esvaziou-se a Si mesmo para preencher-se do humano. A água, um assunto
proeminente nos pensamentos dela, tornou-se o denominador comum entre o
sem pecado e a pecadora.

Sendo tu judeu, como pedes de beber a mim, que sou


samaritana!
(São João 4,9)

Nesta longa conversa entre os dois, havia uma progressão do


desenvolvimento espiritual que enfim culminou com ela vindo ao
conhecimento de Cristo, o Salvador. Com a compreensão imperfeita do
princípio, olhou para Ele com desdém como membro de certa raça ou povo. À
primeira vista, Ele era só “um judeu”. A resposta de Nosso Senhor sugeria que
realmente não era o recebedor, mas o doador. Ela errara ao pensar que Ele
estava precisando de ajuda, quando, na verdade, era ela que precisava Dele.

Se conhecesses o dom de Deus,


e quem é que te diz:
Dá-me de beber,
certamente lhe pedirias tu mesma
e ele te daria uma água viva.
(São João 4,10)

Ele apresentou a Si mesmo sob a imagem da água, como um pouco mais


tarde, quando os homens pediriam pão para comer, Ele se apresentaria sob a
aparência de pão. Embora falasse de Si como o dom de Deus, a mulher via
Nele apenas um homem de outra raça cansado da viagem. Seus olhos não
podiam ver além da aparência externa até a natureza divina santificada no
interior. Ela via o judeu, mas não o Filho de Deus; o homem fatigado, mas não
o descanso das almas fatigadas; o peregrino sedento, mas não Aquele que podia
saciar a sede do mundo. A pena daqueles que vivem demasiado próximos da
carne é jamais compreenderem o espiritual. O respeito dela por ele, todavia, só
aumenta quando ela diz:

Senhor, não tens com que tirá-la, e o poço é fundo...


donde tens, pois, essa água viva?
És, porventura, [um homem] maior do que o nosso pai Jacó,
que nos deu este poço, do qual ele mesmo bebeu
e também os seus filhos e os seus rebanhos?
(São João 4,11-12)

Ele agora já não foi chamado “judeu”, mas “homem”. A mulher


desconfiava, embora não compreendesse bem as palavras Dele, que Ele, sendo
judeu, estava desdenhando as tradições do povo dela. Ele respondeu que era
maior que Jacó:

Todo aquele que beber desta água


tornará a ter sede,
mas o que beber da água que eu lhe der
jamais terá sede.
Mas a água que eu lhe der
virá a ser nele fonte de água,
que jorrará até a vida eterna.
(São João 4,13-14)

Aqui estava Sua filosofia de vida. Toda satisfação humana dos desejos do
corpo e da alma têm um defeito; não se satisfazem para sempre. Servem apenas
para aplacar a necessidade presente; mas nunca a extinguem. O desejo sempre
brota novamente. As águas que o mundo dá voltam à terra outra vez; mas a
água da vida que Ele dá é um impulso sobrenatural e impele em direção ao
próprio céu.
Nosso Bendito Senhor não tentou desapropriar as cisternas rotas do
mundo sem oferecer algo melhor. Ele não condenou os rios terrenos nem os
proibiu; só disse que, se ela se limitasse aos poços da felicidade humana, jamais
seria plenamente satisfeita.
Ela não conseguia entender a graça ou o poder celestial sob a analogia da
água para o corpo; pois havia muito ela saciara a sede nas águas turvas da
gratificação sensual. Ela prossegue:

Senhor, dá-me desta água,


para eu já não ter sede
nem vir aqui tirá-la!
(São João 4,15)

Ela já não o chama “judeu” nem “homem”, mas “Senhor”. Ainda havia
confusão na mente da mulher, pois imaginava que a promessa Dele a isentaria
do enfado de ir até o poço. Nosso Senhor falou do alto do entendimento
espiritual; a mulher, das profundezas do conhecimento sensível. As janelas de
sua alma tinham se tornado sujas com o pecado, de modo que ela não podia
ver o significado espiritual no universo material.
Nosso Bendito Senhor, vendo que ela não compreendia a lição espiritual,
agora pôs em evidência o motivo por que ela não entendia o que Ele queria
dizer: a vida dela era imoral. Penetrou na consciência dela com uma mudança
brusca de assunto:

Vai, chama teu marido e volta cá.


(São João 4,16)

Ele pretendia suscitar nela o sentimento de vergonha e pecado. “Vai...,


vem... Vai e encara a verdade da vida que vives; vem e recebe as águas da vida”.
A mulher respondeu:

Não tenho marido.


(São João 4,17)

Esta foi uma confissão honesta e verdadeira até então; mas não foi longe o
bastante. Ela pedira água viva, mas não sabia ainda que o poço deve primeiro
ser cavado. Na profundeza do espírito da mulher havia a potência para o dom
Dele; mas as águas da graça não podiam fluir por causa das rochas duras do
pecado, das muitas camadas de transgressão, os hábitos terríveis como solo
argiloso, e os diversos depósitos de pensamentos carnais. Tudo isso tinha de ser
escavado antes que se pudesse ter água viva. O pecado tinha de ser confessado
antes que se pudesse obter a salvação. A consciência precisa vir à tona. Com a
habilidade de mestre, Nosso Senhor estava expondo a ela toda a conduta
devassa e, como o clarão de um relâmpago, despertando nela o senso de culpa
na consciência.
Nosso Senhor respondeu:

Tens razão em dizer que não tens marido.


(São João 4,17)

Ele louvou a confissão honesta da mulher. Um médico de almas pouco


habilidoso provavelmente teria repreendido a mulher com severidade por ter
ocultado a verdade. Nosso Senhor, ao contrário, disse “Tens razão”. Mas então
prosseguiu:

Tiveste cinco maridos,


e o que agora tens não é teu.
Nisto disseste a verdade.
(São João 4,18)

O homem com quem ela estava morando não era seu marido; ela havia
caído tão fundo na degradação que não passou pela sanção jurídica do
casamento pela qual, em outros tempos, teria passado.
A mulher sentiu que Nosso Senhor estava “intrometendo-se”. Ele estava
sondando-lhe a moral e o comportamento e concluindo que não podia receber
o dom que Ele tinha a dar por causa de seu modo de vida. Ela então fez o que
milhões de pessoas fazem quando a religião exige uma reforma de conduta:
mudou de assunto. Ela estava disposta a fazer da religião objeto de discussão,
mas não queria fazer dela uma questão de decisão. Nosso Bendito Senhor tinha
trazido à tona o assunto sobre a ordem moral, isto é, o modo como ela se
conduzia pessoalmente diante de Deus e de sua consciência. Para evitar o
problema moral, ela primeiro tentou a lisonja, depois incluiu um problema
especulativo:

Senhor, disse-lhe a mulher, vejo que és profeta!


(São João 4,19)

Ela, que a princípio o tinha chamado “judeu”, depois “homem” e, em


seguida, “senhor”, agora o chamava “profeta”. Ela levou a discussão sobre
religião para um plano puramente intelectual, a fim de que pudesse não ser
afetada moralmente. E acrescentou:
Nossos pais adoraram neste monte,
mas vós dizeis que é em Jerusalém
que se deve adorar.
(São João 4,20)

A mulher fez uma tentativa estranha de sair daquela situação embaraçosa.


Tentou colocar uma pista falsa na estrada ao trazer à pauta a velha disputa
religiosa. Os judeus adoravam em Jerusalém; os samaritanos no Monte
Gerizim. Ela tentou esquivar-se da flecha dirigida a sua consciência ao
introduzir um assunto especulativo. Isso distrairia a alma dela de seu mal.
Mas Ele respondeu:

Mulher, acredita-me, vem a hora


em que não adorareis o Pai,
nem neste monte nem em Jerusalém.
Vós adorais o que não conheceis,
nós adoramos o que conhecemos,
porque a salvação vem dos judeus.
Mas vem a hora, e já chegou,
em que os verdadeiros adoradores
hão de adorar o Pai em espírito e verdade,
e são esses adoradores que o Pai deseja.
Deus é espírito, e os seus adoradores
devem adorá-lo em espírito e verdade.
(São João 4,21-24)

Ele estava contando que as discussõezinhas locais extinguir-se-iam em


breve. A controvérsia entre Jerusalém e Samaria seria superada; pois, como
predissera Simeão, Ele seria a Luz dos Gentios. Nosso Senhor, entretanto,
reconheceu os judeus ao dizer:

Porque a salvação vem dos judeus.


(São João 4,22)
De fato, o Messias, o Filho de Deus e Salvador, surgiria de entre eles e não
dos samaritanos. “Salvação” equivale ao Salvador, pois Simeão, enquanto
segurava o bebê, declarara que seus olhos tinham visto “Salvação”. Israel era o
canal pelo qual a salvação de Deus seria transmitida ao mundo. Era a árvore
que tinha sigo regada por séculos, e que agora tinha dado uma flor perfeita: o
Messias e Salvador.
As palavras de Nosso Senhor levaram a pobre pecadora a águas mais
profundas do que ela podia vencer, e transportaram-na a um reino de verdades
grandes demais para seu entendimento. No entanto, uma coisa que Ele disse,
sobre uma hora por vir em que haveria verdadeira adoração ao Pai, ela
entendeu vagamente, pois os próprios samaritanos tinham alguma crença no
Messias. Ela respondeu:

Sei que deve vir o Messias (que se chama Cristo);


quando, pois, vier,
ele nos fará conhecer todas as coisas.
(São João 4,25)

Ela ainda não lhe dera o título de “Messias”, mas faria o reconhecimento
em um instante. Os samaritanos conheciam o Antigo Testamento o suficiente
para saber que Deus enviaria seu Ungido; mas, em sua religião pervertida, Ele
era meramente um profeta, assim como para os judeus, em seu entendimento
pervertido, era um rei político. A declaração dela equivalia a dizer que ela
esperava o Prometido de Deus. Em resposta à fé frágil, Nosso Senhor
respondeu:

Sou eu, quem fala contigo.


(São João 4,26)

Estava resolvido agora; a adoração já não deveria centrar-se em Jerusalém


nem no Monte Gerizim, mas no próprio Cristo.
Neste momento, os discípulos voltaram da cidade, depois que a mulher
deixara o poço. Mas, em sua empolgação, ela esqueceu o jarro de água. A água
podia ser pega em qualquer momento. Agindo impulsivamente, ela correu à
cidade para contar aos homens:

Vinde e vede um homem


que me contou tudo o que tenho feito.
Não seria ele, porventura, o Cristo?
(São João 4,29)

Aqui estava o novo título dado a Nosso Senhor. Agora Ele era o “Cristo”.
Ela começou com um convite urgente. A mulher não dizia que Ele lhe tinha
dito tudo que se relacionava à adoração a Deus; mas todas as coisas que ela
tinha feito, até mesmo as próprias faltas que preferiria esconder. O sol não
brilha antes de nascer; o fogo não arde antes de acender-se; assim também a
graça age quando a alma coopera. Ela se tornou uma das primeiras missionárias
domésticas na história do cristianismo.
Essa mulher contou o que esperariam que escondesse. Ela foi buscar água
e, quando encontrou o Verdadeiro Poço, deixou para trás o jarro com água
assim como os apóstolos abandonaram as redes.
Nosso Senhor, também, nessa ocasião, esqueceu Sua fome, e quando os
apóstolos O instaram a comer, disse-lhes que tinham uma comida que eles não
conheciam (São João 4,34).
Vale notar que a mulher samaritana contou aos homens de seu encontro
com Cristo. Pode muito bem ter acontecido que as mulheres na cidade não
quisessem associar-se a ela. É por isso que foi ao poço ao meio-dia; as outras
iam no frescor da manhã ou à noite. Aparentemente porque as mulheres
tinham-na marginalizado, ela transmitiu a mensagem primeiro aos homens. E
evidentemente fez um trabalho bem feito na vila, pois o Evangelho nos diz:

Muitos foram os samaritanos daquela cidade


que creram nele por causa da palavra da mulher,
que lhes declarara: Ele me disse tudo quanto tenho feito.
(São João 4,39)
A mulher não disse “Acreditai no que digo”; antes, disse-lhes: “Vinde e
vede”. Façam uma investigação; deixem de preconceito. Seu modo sincero
convenceu os homens. Poucas horas mais tarde, ela correu ao poço novamente,
com os homens atrás dela; mas dessa vez com um propósito diferente — ela
buscava a salvação.

Assim, quando os samaritanos foram ter com ele,


pediram que ficasse com eles.
Ele permaneceu ali dois dias.
Ainda muitos outros creram nele
por causa das suas palavras.
(São João 4,40-41)

Depois de ver Nosso Senhor, disseram à mulher:

Já não é por causa da tua declaração que cremos,


mas nós mesmos ouvimos e sabemos
ser este verdadeiramente o Salvador do mundo.
(São João 4,42)

Essa foi a primeira vez que a frase “Salvador do mundo” foi usada para
descrever Nosso Senhor. O crescimento espiritual da mulher agora estava
completo. No início, Cristo era para ela um “judeu”; depois, um “homem”; em
seguida, “senhor”; então, um “profeta”; depois, “o Messias” e, enfim, “o
Salvador do mundo” e “redentor do pecado”. A conversão pode ser rápida para
alguns, mas não estava completa nessa mulher até que ela viu que Nosso
Senhor não veio para salvar justos, mas pecadores. Nenhum milagre físico foi
realizado; nenhuma cura, nenhum cego voltou a enxergar. A maravilha deu-se
em uma alma pecaminosa. Da libertação do pecado veio o título mais glorioso.
A Cruz não foi mencionada, mas Aquele que seria levado ao madeiro estava
claramente mencionado: “Salvador do mundo”. A Cruz estava com Ele por
toda parte bem antes de ser pregado nela.
Em contraste com essa mulher estavam os fariseus. Eles negavam o
pecado, mas tinham todos os efeitos do pecado: terror, angústia, medo,
infelicidade e vazio; ao negar a causa, tornavam a cura impossível. Se os
famintos negam a fome, quem será o portador do pão? Se os pecadores negam
o pecado e a culpa, quem lhes será o Salvador? Desses fariseus presunçosos e
orgulhos, disse Nosso Senhor:

Não são os homens de boa saúde que necessitam de médico.


(São Lucas 5,31)

O mundo é constituído por duas classes de pessoas: aqueles que


encontraram a Deus, e aqueles que O estão procurando — sedentos, famintos,
ávidos! E os grandes pecadores chegam mais perto Dele do que os intelectuais
orgulhosos! O orgulho intumesce e infla o ego; pecadores contumazes são
deprimidos, diminuídos, vazios. Portanto, têm lugar para Deus. Deus prefere
pecadores amorosos a “santos” sem amor. O amor pode ser treinado; o orgulho,
não. O homem que pensa que sabe raramente encontrará a verdade; o homem
que sabe que é um pecador miserável e infeliz, como a mulher do poço, está
mais perto da paz, da alegria e da salvação do que imagina.
Milhões de pessoas neste mundo têm graça branca nas almas; sentem a
presença divina. Milhões de outras têm a graça negra; não sentem a presença de
Deus, mas Sua ausência. A mulher samaritana, que primeiro sentiu sua
ausência, veio a sentir Sua presença. Mas se ela jamais tivesse pecado, jamais
teria chamado Cristo de “Salvador”. Ele não veio com um livro na mão apenas
para ler àqueles que quisessem ser ensinados; Ele fez mais: veio com sangue em
Seu corpo para derramá-lo como pagamento completo de uma dívida que o
homem jamais poderia pagar.
Nota

10 | No final parábola do “bom samaritano” (Lucas 10,29-37), a resposta à pergunta


“Qual destes três parece ter sido o próximo daquele que caiu nas mãos dos ladrões?” não
foi um simples “o samaritano”, mas, justamente, o circunlóquio a que o autor faz
referência: Aquele que usou de misericórdia para com ele”. (N. T.)
9

O PRIMEIRO ANÚNCIO PÚBLICO DE SUA MORTE

A história de todo homem é contada por dois breves momentos: a data de


nascimento e data de falecimento. Na vida de apenas uma pessoa que viveu
nesta terra, a morte veio em primeiro lugar, no sentido de que morrer era a
razão de sua vinda. Como diz Robert Browning:

Creio que este é o sinal autêntico e o selo


Da divindade; que sempre se enche de contente
E mais contente, até o contentamento florescer, irromper
Em furor para sofrer pela humanidade.11

Apesar de ter vindo para morrer, não veio por causa da morte. Por isso,
sempre que há um sofrimento, uma morte ou mesmo quando é mencionada
uma humilhação, há sempre o contraponto da glória, da vitória ou da
exaltação. A divindade reluz sempre que a sua natureza humana é humilhada.
A relação intrínseca perpassa toda a sua vida. Se nasceu de uma donzela
humilde em um estábulo, havia anjos dos céus para anunciar Sua glória; se Ele
Se rebaixou à companhia de um boi e um asno em uma manjedoura, havia
uma estrela brilhante para guiar os gentios até Ele como um rei; se teve fome e
foi tentado no deserto, havia anjos para O assistir; se se verteu Seu sangue no
Getsêmani, foi porque o Pai Celeste estendeu-Lhe o cálice; se foi preso porque
chegara a Sua hora, havia 12 legiões de anjos para liberá-Lo caso não desejasse
oferecer a vida pelos homens; se Se humilhou como pecador para receber o
batismo de João, havia a voz do céu para proclamar a glória do Filho Eterno
que não precisava de purificação; se havia citadinos para rejeitá-Lo e lançá-Lo
de um penhasco, havia o poder divino para andar entre eles ileso; se foi
pregado a uma cruz, havia o sol para esconder a face envergonhado e a terra
para estremecer em revolta ao que as criaturas fizeram com seu criador; se foi
posto no sepulcro, havia anjos para proclamar Sua Ressurreição.
O que torna a vida de Cristo única é Ele ter condicionado a instituição de
Seu Reino na terra e no céu ao sofrimento e à morte. Sua vitória sobre o mal,
ao absorver o pior que o mal poderia fazer, tinha, para ele, um caráter
representativo e secundário. Citando Isaías, disse que viria a ser “contado entre
os malfeitores” (Isaías 53,12). Entretanto, sua vitória sobre a morte, por
intermédio da Cruz, passaria para os homens que reproduziriam a experiência
de carregar a cruz em suas vidas.
A Cruz estava em todos os lugares da vida de Cristo. Não podia falar
abertamente a esse respeito, pois, quando o fez, mesmo os amigos mais
próximos, os apóstolos, não captaram o significado. O primeiro anúncio
público de que veio para morrer foi instigado pelos fariseus ao discutirem com
ele a questão do jejum. Os fariseus haviam reclamado com os discípulos que
Nosso Senhor comia e bebia com companhias muito questionáveis. Ao se
afiliarem, no momento, às práticas de jejum de João Batista, reclamaram que
Nosso Senhor e os discípulos estavam comendo, ao passo que os discípulos de
João jejuavam. Uma pessoa devota em Israel jejuava duas vezes na semana, a
saber, às segundas e sextas-feiras, que criam ser os dias em que Moisés subiu ao
Monte Sinai. Aparentemente, Nosso Senhor não estava jejuando com os
discípulos da mesma maneira que João Batista jejuava. Isso foi o bastante para
que, mais tarde, os fariseus o chamassem de glutão e beberrão. A resposta que
Nosso Bendito Senhor deu à pergunta de por que os discípulos não jejuavam
foi muito mais profunda do que aparenta à primeira vista.

Podem porventura jejuar os convidados das núpcias,


enquanto está com eles o esposo?
Enquanto têm consigo o esposo,
não lhes é possível jejuar.
(São Marcos 2,19)
Ele denominava-se “o esposo”. Os fariseus, que conheciam bem o Antigo
Testamento, estavam familiarizados com essa ideia. A relação entre Deus e
Israel sempre foi a do esposo e a da esposa. Sete séculos antes, o profeta Oseias
ouviu Deus falar a Israel:

Desposar-te-ei para sempre,


desposar-te-ei conforme a justiça e o direito,
com benevolência e ternura.
Desposar-te-ei com fidelidade,
e conhecerás o Senhor.
(Oseias 2,21-22)

A profecia de Isaías, entre outros, também falava da relação entre Deus e


Israel em termos de esposo e esposa:

Pois teu esposo é o teu Criador:


chama-se o Senhor dos exércitos;
teu Redentor é o Santo de Israel:
chama-se o Deus de toda a terra.
(Isaías 54,5)

Os ouvintes sabiam o que estava a dizer, que Ele era Deus; ele era o
senhor a quem Israel desposara. Tomou o lugar do Deus do Antigo
Testamento, reivindicando os mesmos direitos e privilégios. Nosso Senhor fez
outras referências a Si mesmo como esposo na parábola do banquete para o
filho do rei (São Mateus 22,1-14) e na parábola das dez virgens em que o
esposo que vinha era Ele mesmo (São Mateus 25,1-13). João Batista, antes,
quando viu Nosso Senhor, também reconheceu o Cristo sob a personagem do
esposo do Antigo Testamento:

Eu não sou o Cristo, mas fui enviado diante dele.


Aquele que tem a esposa é o esposo.
O amigo do esposo, porém,
que está presente e o ouve,
regozija-se sobremodo com a voz do esposo.
Nisso consiste a minha alegria, que agora se completa.
(São João 3,28-29)

João era o único amigo do esposo, o “padrinho” das núpcias ou o


precursor do Messias. No entanto, o próprio Cristo era o noivo porque, ao
tomar a natureza humana em Belém sem nunca ter sido uma pessoa,
potencialmente desposou toda a humanidade. Até a hora em que o pecado
seria derrotado e o esposo tomaria como noiva a humanidade regenerada, ou a
Igreja, João prepararia as núpcias. Mais tarde, Paulo, ao descrever-se como
quem desempenhava um papel como o de João Batista, salvo que o papel seria
em relação à Igreja de Corinto, disse:

Eu vos consagro um carinho e amor santo,


porque vos desposei com um esposo único
e vos apresentei a Cristo como virgem pura.
(2 Coríntios 11,2)

A antiga Israel que era a noiva tornar-se-ia a nova Israel, ou a Igreja, e, no


fim dos tempos, as núpcias gloriosas entre o esposo e a esposa seriam celebradas
nos céus:

Alegremo-nos, exultemos e demos-lhe glória,


porque se aproximam as núpcias do Cordeiro.
Sua Esposa está preparada.
Foi-lhe dado revestir-se de linho puríssimo e resplandecente.
(Pois o linho são as boas obras dos santos).
(Apocalipse 19,7-8)

A resposta à pergunta dos fariseus era que os discípulos de Nosso Senhor


não jejuavam porque não estavam tristes: de fato, estavam felizes, porque Deus
andava sobre a terra com eles. Enquanto estava com eles, só poderia haver
alegria. Entretanto, nem sempre seria assim sobre a terra. Ele veio para morrer.
Mais uma vez, há uma conexão inseparável entre a Cruz e a glória. Então,
começou a falar de sua morte.

Dias virão, porém, em que o esposo lhes será tirado,


e então jejuarão.
(São Marcos 2,20)

O esposo será crucificado; ele travará guerra contra as forças do mal e


então reclamará por sua noiva. Da alegria da festa passariam à tristeza
melancólica do jejum, quando o esposo seria ferido.
Esse foi o primeiro anúncio público de Sua morte. Seu propósito
primário ao responder aos fariseus não era enfatizar a prática do jejum, mas
anunciar a aniquilação do noivo. Sugeriu, além disso, que Sua morte não seria
um golpe do destino, mas uma parte essencial de sua missão. No momento em
que Nosso Senhor Bendito falava da alegria de uma festa de casamento, olhou
para baixo, para o abismo de sua Cruz, e viu-se pendido ali. A sombra da Cruz
nunca o deixou, nem mesmo quando se rejubilava como esposo. A Sexta-Feira
Santa e a Páscoa uniam-se novamente, mas de modo reverso. Era a partir da
alegria que Ele olhava para a Cruz no primeiro anúncio de Si mesmo como o
esposo.
Nota

11 | No original: “I think this is the authentic sign and seal/ Of godship; that it ever waxes
glad/ And more glad, until gladness blossoms, bursts/ Into a rage to suffer for mankind.”
(N. T.)
10

A ESCOLHA DOS 12

O grande mandamento de Nosso Senhor era: “Segue-me!”. Ao chamar os


outros para Si, introduziu a ideia de que o homem deve ter responsabilidade
sobre o outro. Era um prolongamento do princípio de Sua encarnação: aquele
que é Deus ensinaria, redimiria e santificaria por meio da natureza humana que
recebera de Maria. Entretanto, Ele trabalharia também por meio de outras
naturezas humanas, a começar por aqueles 12 primeiros a quem chamou para
ser Seus seguidores. Não era aos anjos que cabia a administração dos homens: o
governo do Pai seria posto nas mãos de seres humanos. Esse é o significado do
chamado apostólico dos 12.
Há quem se impressione com o objetivo gigantesco que Ele propôs a Seus
seguidores: a conquista moral do mundo inteiro; estes haveriam de ser “a luz
do mundo”, o “sal da terra” e a “cidade que não pode ser ocultada”. Ele
chamou homens simples para assumir uma visão quase cósmica da missão, pois
sobre eles Cristo edificaria Seu Reino. Essas luzes escolhidas teriam de lançar os
raios sobre o resto da humanidade, em todas as nações.
No ensaio Os doze homens, a respeito do sistema jurídico britânico, G. K.
Chesterton escreveu:

Sempre que quer catalogar uma biblioteca, ou descobrir um


sistema solar, ou qualquer outra trivialidade dessas, nossa
civilização usa seus especialistas. Mas, quando deseja que algo
realmente sério seja feito, ela reúne 12 homens comuns. A
mesma coisa foi feita, se bem me lembro, pelo fundador do
cristianismo.12

É
É evidente que, desde o início, Nosso Bendito Senhor pretendia estender
Seu magistério, Seu reino e Sua própria vida “até a consumação do mundo”;
mas, para fazer isso, teve de chamar um conjunto de homens a quem
transmitiria certos poderes que trouxera consigo para a terra. Esse grupo não
seria uma organização social, como um clube, unido apenas por prazer e
conveniência; tampouco seria uma organização política, reunida por interesses
materiais em comum; seria uma organização verdadeiramente espiritual, o
cimento daquilo que seria caridade, amor e posse de Seu Espírito. Se a
sociedade ou Corpo Místico que Nosso Senhor queria fundar havia de ter
continuidade, precisaria de um cabeça e de membros. Se era uma videira, como
Ele declarou em uma das parábolas, precisaria de trabalhadores; se era uma
rede, precisaria de pescadores; se era um campo, precisaria de ceifeiros; se era
um rebanho ou um bando, precisaria de pastores.

Naqueles dias, Jesus retirou-se a uma montanha para rezar,


e passou aí toda a noite orando a Deus.
Ao amanhecer, chamou os seus discípulos
e escolheu 12 dentre eles que chamou de apóstolos:
Simão, a quem deu o sobrenome de Pedro; André, seu irmão;
Tiago, João, Filipe, Bartolomeu, Mateus, Tomé,
Tiago, filho de Alfeu; Simão, chamado Zelador;
Judas, irmão de Tiago; e Judas Iscariotes, aquele que foi o
traidor.
(São Lucas 6,12)

Ele escolheu passar a noite anterior em oração no monte, para que aqueles
que estivessem no coração do Pai estivessem também no Dele. Quando raiou o
dia, desceu para onde os discípulos estavam reunidos e, um por um, chamou
aqueles a quem tinha escolhido. Pedro é o mais conhecido. Pedro é
mencionado 195 vezes; os demais apóstolos, 130 vezes. O segundo apóstolo
mais mencionado, depois de Pedro, é João, a quem há 29 referências. O nome
original de Pedro era Simão, mas foi mudado por Nosso Bendito Senhor para
Cefas. Quando foi levado a Nosso Senhor:
[...] Jesus, fixando nele o olhar, disse:
Tu és Simão, filho de João;
serás chamado Cefas (que quer dizer pedra).
(São João 1,42)

A palavra Cefas quer dizer “rocha”; não compreendemos bem o espírito


dessa mudança [na versão] em inglês porque Pedro, o nome próprio, não é a
mesma palavra que “rocha”.13 As palavras eram idênticas no aramaico falado
por Nosso Senhor, assim como em francês, em que o nome próprio Pierre é o
mesmo que pierre, ou pedra. Na Escritura, sempre que Deus mudou o nome
de um homem, foi para elevá-lo a uma dignidade mais alta e a um papel na
comunidade a que pertencia. Nosso Senhor estava dizendo a Pedro: “És
impulsivo, volúvel e indigno de confiança, mas um dia tudo isso vai mudar;
serás chamado por um nome que ninguém ousaria dar-te — Homem Pedra”.
Sempre que o chamam Simão nos Evangelhos, é um lembrete da humanidade
não inspirada e não regenerada do apóstolo; por exemplo, quando ele estava
dormindo no jardim, Nosso Senhor dirigiu-Se a ele:

Simão, dormes?
(São Marcos 14,37)

Pedro tinha, por natureza, grandes qualidades de liderança. Por exemplo,


depois da Ressurreição, quando disse “Vou pescar”, os outros apóstolos o
seguiram (São João 21,3). Sua coragem moral se manifestou quando deixou os
negócios e a própria casa para seguir o Mestre; essa mesma coragem, expressa
impetuosamente, o fez decepar a orelha de Malco, quando os líderes foram
prender Nosso Senhor. Ele também era prepotente, pois jurou que, embora os
outros pudessem vir a trair o Mestre, ele jamais o faria. Tinha um profundo
senso de pecado e rogou ao Senhor que se afastasse dele porque era indigno
(São Lucas 5,8). Suas faltas faziam dele mais querido. Ele estava
profundamente ligado a seu Mestre Divino. Quando os outros discípulos
saíram, sustentou que não havia mais ninguém a que podiam recorrer (São
João 6,66-68). Era corajoso, pois deixou a esposa e os negócios para seguir
Nosso Senhor. A favor de todas as sogras, deve-se dizer que Pedro não mostrou
nenhum pesar quando Nosso Senhor curou a dele de uma doença grave. Pedro
era impulsivo ao extremo, mais guiado pelo sentimento que pela razão. Queria
andar sobre as águas e, uma vez que recebeu a capacidade, ficou apavorado e
gritou de medo — ele, um homem do mar. Era um homem empático,
brandindo espadas, praguejando, protestando contra o Salvador lavar-lhe os
pés; embora nomeado cabeça da Igreja, não tinha nada da ambição de Tiago
ou João. Mas, pelo poder de seu Mestre Divino, esse homem impetuoso, fluido
como a água, tornou-se a rocha sobre a qual Cristo edificou Sua Igreja. O
Divino Salvador constantemente Se unia mediante as palavras com o Pai
Celestial; mas o único ser humano a quem Ele já Se associou e falou de Si e
dele como um “nós”, foi Pedro. A partir daquele dia, Pedro e seus sucessores
sempre usaram “nós” para indicar a unidade entre o cabeça invisível da Igreja e
sua cabeça visível. Esse mesmo Pedro, no entanto, que sempre está tentando
Nosso Senhor a afastar-Se da Cruz, prova ser uma rocha de fidelidade, pois,
mais tarde em sua vida, o tema constante de suas cartas foi a Cruz de Cristo.

Pelo contrário, alegrai-vos


em ser participantes dos sofrimentos de Cristo,
para que vos possais alegrar e exultar
no dia em que for manifestada sua glória.
(1 São Pedro 4,13)

André, o irmão de Pedro, é mencionado oito vezes no Novo Testamento.


Depois de ser chamado de suas redes e barcos para ser “pescador de homens”
com o irmão Pedro, André é visto na multiplicação dos pães que alimentaram
cinco mil pessoas, dizendo a Nosso Senhor que havia um garoto presente com
cinco pães e dois peixes. Já no fim do magistério público, André é visto
novamente quando alguns gentios, provavelmente gregos, vieram a Filipe e
pediram para ver Nosso Senhor. Filipe, então, consultou André e ambos foram
ao Senhor. No primeiro encontro de André e Nosso Bendito Senhor, Jesus
perguntou-lhe:

Que procurais?
(São João 1,38)
André tinha sido amigo de João Batista. Quando encontrou Nosso
Senhor, de quem João Batista falava, imediatamente foi e contou a Pedro que
encontrara o Messias. Sempre se fala de André como o irmão de Simão Pedro.
Ele era um “apresentador”, porque apresentou o irmão Pedro a Nosso Senhor;
apresentou o rapaz com os pães e peixes a Nosso Senhor; e, por fim, com
Filipe, chegou a apresentar os gregos a Nosso Senhor. Quando se trata de
dispensar alguns benefícios do Senhor ou trazer outros ao Senhor, Filipe e
André são mencionados juntos. André era mais calado, sendo ofuscado pelo
irmão Pedro, mas aparentemente jamais teve ciúmes. Houve lugar para a inveja
quando Pedro, Tiago e João foram escolhidos nas três ocasiões de intimidade
com o Mestre Divino, mas aceitou a posição humilde; bastava-lhe ter
encontrado a Cristo.
Assim como Pedro e André, Tiago e João eram irmãos e pescadores.
Trabalhavam juntos para o pai, Zebedeu. A Salomé, sua mãe, aparentemente
não faltava ambição; pois foi ela que, um dia, pensando que o Reino que
Nosso Bendito Senhor viera estabelecer seria sem Cruz, pediu que os dois
filhos se sentassem um à direita e o outro à esquerda de Nosso Senhor em Seu
Reino (São Mateus 20,20-21). Num gesto louvável, entretanto, deve-se
acrescentar que a encontramos novamente no Calvário, aos pés da Cruz. Nosso
Bendito Senhor deu aos filhos dela um apelido — Boanerges, ou “filhos do
trovão”. Isso aconteceu quando os samaritanos recusaram-se a receber Nosso
Bendito Senhor porque Ele Se encaminhava para Jerusalém e para a morte. Os
dois apóstolos, descobrindo isso, manifestaram a Nosso Senhor sua
intolerância:

Senhor, queres que mandemos que desça fogo do céu


e os consuma? Jesus voltou-se e repreendeu-os severamente.
[Não sabeis de que espírito sois animados.
O Filho do Homem não veio para perder as vidas dos homens,
mas para salvá-las.]
(São Lucas 9,54-56)

Os dois “filhos do trovão” não deixaram de beber profundamente do


cálice do sofrimento. João mais tarde foi mergulhado em óleo fervente, ao qual
sobreviveu apenas por milagre. Tiago foi o primeiro dos apóstolos a sofrer
martírio por Cristo. João descreveu-se a si mesmo como “o discípulo a quem
Jesus amava”, e a ele foi atribuído o cuidado da mãe de Nosso Senhor depois da
crucifixão. João era conhecido do sumo sacerdote provavelmente por causa de
seu refinamento cultural que justificava o nome, que, no hebraico original,
significa “preferido de Deus”. Seu Evangelho revelou-o verdadeiramente como
uma águia que planava nos céus a fim de compreender os mistérios da Palavra.
Ninguém entendeu melhor o coração de Cristo; ninguém penetrou mais
profundamente no significado de Suas palavras. Ele também era o único dos
apóstolos a ser encontrado aos pés de Cristo; é aquele que diz que “Jesus
chorou” (São João 11,35) e define, no Novo Testamento, Deus como “Amor”.
Tiago, seu irmão, que é chamado “maior”, pertencia, junto com Pedro e João,
ao “comitê especial” que testemunhou a transfiguração (São Mateus 17), a
ressurreição da filha de Jairo (São Mateus 9,18-26; São Lucas 8,40-56; e São
Marcos 5,21-43) e a agonia do Getsêmani (São Marcos 14).
O apóstolo Filipe veio de Betsaida e era conterrâneo de André e Pedro.
Filipe era um pesquisador curioso; e sua pesquisa foi coroada pela alegria da
descoberta quando encontrou o Cristo.

Filipe encontra Natanael e diz-lhe:


Achamos aquele de quem Moisés escreveu na lei
e que os profetas anunciaram:
é Jesus de Nazaré, filho de José.
Respondeu-lhe Natanael: Pode, porventura,
vir coisa boa de Nazaré?
Filipe retrucou: Vem e vê.
(São João 1,45-46)

Filipe recusou toda controvérsia com um homem que era tão


preconceituoso que não podia acreditar que um profeta pudesse sair de um
vilarejo desprezado. Filipe não é visto novamente até a multiplicação de pães e
peixes, e de novo estava pesquisando:
Duzentos denários de pão não lhes bastam, para que cada um
receba um pedaço.
(São João 6,7)

Filipe fez uma última pesquisa na noite da Última Ceia, quando pediu a
Nosso Senhor que lhe mostrasse o Pai.
Filipe levou Bartolomeu, ou Natanael, como também era chamado, até
Nosso Bendito Senhor. Tão logo o viu, Nosso Divino Salvador leu-lhe a alma e
descreveu-o do seguinte modo:

Eis um verdadeiro israelita,


no qual não há falsidade.
Natanael pergunta-lhe:
Donde me conheces?
Respondeu Jesus:
Antes que Filipe te chamasse,
eu te vi quando estavas debaixo da figueira.
(São João 1,47-48)

Então Natanael respondeu:

Mestre, tu és o Filho de Deus, tu és o rei de Israel.


Jesus replicou-lhe: Porque eu te disse
que te vi debaixo da figueira, crês!
Verás coisas maiores do que esta.
E ajuntou: Em verdade, em verdade vos digo:
vereis o céu aberto e os anjos de Deus
subindo e descendo sobre o Filho do Homem.
(São João 1,49-51)

Quando Nosso Senhor disse-lhe que o vira debaixo da figueira,


Bartolomeu estava disposto a afirmar imediatamente que Cristo era o Filho de
Deus. Seu primeiro contato com Nosso Senhor já tinha acendido nele a chama
da fé, mas Nosso Senhor rapidamente assegurou-lhe que haveria experiências
maiores à espera; em particular, a grande visão que tivera Jacó cumprir-se-ia
Nele.
Nosso Senhor disse que Natanael pertencia ao verdadeiro Israel. Israel era
o nome dado a Jacó. Este, no entanto, era muito astuto e cheio de malícia.
Natanael é caracterizado como verdadeiro israelita, ou sem malícia. Aconteceu
uma mudança repentina do plural para o singular quando Nosso Senhor diz:
“vereis os Céus abertos”; Jacó tinha visto os céus abertos e anjos subindo e
descendo na escada, levando as coisas dos homens para Deus e as coisas de
Deus para os homens (Gênesis 28,10-17). Jesus estava dizendo agora a
Natanael que ele veria coisas ainda maiores. A sugestão era que o próprio Jesus
seria dali por diante o Mediador entre o céu e a terra, entre Deus e o homem.
Nele, todo o trânsito entre tempo e eternidade encontrar-se-ia como numa
encruzilhada.
Essa profecia de Nosso Senhor a Bartolomeu mostra que a Encarnação do
Filho de Deus seria a base da comunhão entre o homem e Deus. Natanael
chamou-O “o Filho de Deus”; Nosso Senhor chamou a Si mesmo de “Filho do
Homem”: “Filho de Deus” porque é eternamente divino; “Filho do Homem”
porque está relacionado humildemente a toda a humanidade. Esse título, usado
em estreita relação com outro título que fora dado a Nosso Senhor, isto é, “Rei
de Israel”, ainda levava consigo um significado messiânico; mas agora tirado do
contexto limitado de um povo e uma raça e levado à esfera da humanidade
universal.
De Mateus ou Levi, o Publicano, há um registro de seu chamado e de
como respondeu a ele. A grande e imperecível glória de Mateus é seu
Evangelho. Mateus era um publicano sob o governo de Herodes, um vassalo de
Roma. Um publicano era alguém que vendia o próprio povo e coletava
impostos para o invasor, retendo para si uma grande porcentagem. Muito
compreensivelmente, porque um publicano era um tipo de Quisling,14 ele era
desprezado pelos colegas; ainda assim, sabia, ao mesmo tempo, que tinha, por
trás, o poder e a autoridade jurídica do governo romano. O lugar específico em
que encontramos Mateus pela primeira vez é à beira do lago, próximo de
Cafarnaum, onde estava coletando impostos. Seu chamado exigiu que fosse
cuidadoso no registro dos relatos. A submissão ao Salvador foi imediata. Diz o
Evangelho:
Partindo dali, Jesus viu um homem chamado Mateus,
que estava sentado no posto do pagamento das taxas.
Disse-lhe: Segue-me. O homem levantou-se e o seguiu.
(São Mateus 9,9)

Aquele que tinha sido rico agora não teria nada além de pobreza e
perseguição; e, ainda assim, aceitou esta condição já no primeiro chamado.
“Vem”, diz o Salvador a um homem desprezado, e este O segue imediatamente.
Sua resposta era ainda mais notável porque estivera imerso num negócio que
atraía sobretudo pessoas inescrupulosas e antiéticas. Já era muito ruim o tributo
de reverência de Israel ser coletado por um romano, mas ser coletado por um
judeu era fazer deste o mais desprezível dos homens. E, ainda assim, este
Quisling que perdera o direito a todo o amor do país, e que sufocara a virtude
do patriotismo em sua avidez por dinheiro, acabou por tornar-se um dos mais
patriotas de seu povo. O Evangelho que escreveu pode ser descrito como o
evangelho do patriotismo. Centenas de vezes em seu Evangelho, volta à história
do passado, citando Isaías, Jeremias, Miqueias, Davi, Daniel e todos os
profetas; depois de acumular citações uma sobre a outra num grande
argumento cumulativo, diz a seu povo: “Esta é a glória de Israel, esta é nossa
esperança, geramos o Filho do Deus Vivo; demos ao mundo o Messias”. Seu
país, que outrora nada significava para ele, tornou-se, em seu Evangelho, algo
da mais alta importância. Ele estava se declarando um filho de Israel, pronto
para despejar abundantemente sobre sua terra todo o seu louvor. Assim como
os homens amam a Deus, também amarão seu país.
Tomé era o pessimista dos apóstolos, e provavelmente o pessimismo tinha
algo a ver com seu ceticismo. Quando Nosso Senhor tentou consolar os
apóstolos, na noite da Última Ceia, garantindo-lhes que lhes prepararia o
caminho para o céu, Tomé respondeu dizendo que queria acreditar, mas não
conseguia. Mais tarde, quando chegou a Nosso Senhor a notícia de que Lázaro
estava morto:

A isso Tomé, chamado Dídimo,


disse aos seus condiscípulos:
Vamos também nós, para morrermos com ele.
(São João 11,16)

Tomé era chamado Dídimo, que é simplesmente a tradução grega de um


nome hebraico que significa “gêmeo”; Tomé era gêmeo em outro sentido, pois
nele viviam lado a lado os gêmeos da incredulidade e da fé, cada um lutando
por predominar. Havia fé, porque cria que era melhor morrer com o Senhor do
que abandoná-Lo; havia incredulidade, pois não podia deixar de acreditar que
a morte seria o fim de qualquer obra que o Senhor pretendesse realizar.
Crisóstomo diz que Tomé mal se aventurava a ir com Jesus além da cidade
vizinha de Betânia, no entanto, após o Pentecostes, ele viajaria sem Nosso
Senhor à longínqua Índia para difundir a Fé; até hoje, os fiéis na Índia ainda
chamam-se a si mesmos “Cristãos de São Tomé”.
Dois dos apóstolos eram parentes de Nosso Senhor, a saber, Tiago e Judas.
São chamados de “irmãos” do Senhor, mas em aramaico e em hebraico esta
palavra amiúde quer dizer primos ou parentes distantes. Sabemos que Maria
não teve outros filhos além de Jesus. A frase “queridos irmãos”, como tão
frequentemente usada no púlpito, não indica que todos os membros da
congregação tenham a mesma mãe. A Escritura usa com frequência “irmãos”
em sentido amplo. Por exemplo, Ló é chamado “irmão” de Abraão, quando na
verdade era sobrinho (cf. Gênesis 14,14-16; 12,5); Labão é chamado “irmão”
de Jacó, mas era tio (cf. Gênesis 28:5; 29:5). Os filhos de Oziel e Aarão, os
filhos de Cis e as filhas de Elieser são chamados irmãos, mas eram primos. E
assim também era o que acontecia com os “irmãos” de Nosso Senhor. Esses
dois apóstolos, Tiago Menor e Judas, eram provavelmente os filhos de Cleofas,
que era casado com a irmã de Nossa Senhora.
Judas teve três nomes. Tendo o mesmo nome que Judas, o traidor, sempre
é descrito negativamente, como “não o Iscariotes”. Na noite da Última Ceia,
ele questionou Nosso Senhor acerca do Espírito Santo, ou como Ele estaria
invisível e mesmo assim se manifestaria depois da Ressurreição. Sempre houve
à espreita na mente de muitos dos apóstolos um desejo de ver algum grande
resplendor da glória messiânica que abriria olhos aos cegos e capturaria cada
inteligência.

Pergunta-lhe Judas, não o Iscariotes:


Senhor, por que razão hás de
manifestar-te a nós e não ao mundo?
(São João 14,22)

A resposta de Nosso Senhor a Judas foi que, quando nosso amor


responsivo se funde em obediência, então Deus faz morada em nós. Mais tarde,
Judas, às vezes chamado Tadeu, escreveu uma Epístola que começa com
palavras que refletem a resposta que recebeu na noite da Quinta-Feira Santa:

Judas, servo de Jesus Cristo e irmão de Tiago,


aos eleitos bem-amados em Deus Pai
e reservados para Jesus Cristo.
Que a misericórdia, a paz e o amor
se realizem em vós copiosamente.
(São Judas 1,1-3)

Outro apóstolo era Tiago, o Justo, também chamado Tiago, o Menor,


para distinguir-se do filho de Zebedeu. Sabemos que ele tinha uma boa mãe,
pois era uma das mulheres que estavam ao pé da Cruz. Como seu irmão Judas,
escreveu uma Epístola dirigida às 12 tribos da dispersão, ou seja, aos judeus
cristãos que estavam espalhados por todo o mundo romano. Começava assim:

Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo,


às 12 tribos da dispersão, saúde!
(São Tiago 1,1)

Tiago, que como todos os demais apóstolos não entendeu a Cruz quando
Nosso Senhor a previu, mais tarde, também como os outros, veio a fazer da
cruz uma condição de glória:

Considerai que é suma alegria, meus irmãos,


quando passais por diversas provações, [...]
Feliz o homem que suporta a tentação.
Porque, depois de sofrer a provação,
receberá a coroa da vida
que Deus prometeu aos que o amam.
(São Tiago 1,2,12)

Simão, o Zelador, é um dos 12 apóstolos a respeito do qual menos temos


informações. Seu nome aramaico, que quer dizer “zelador”, sugere que era
partidário de uma seita que usaria violência para vencer a opressão estrangeira.
Este nome lhe tinha sido dado antes de sua conversão. Ele pertencia a um
bando de patriotas que eram tão zelosos para vencer a lei romana que se
rebelaram contra César. Talvez o Senhor o tenha escolhido por causa de seu
entusiasmo de corpo e alma por uma causa; mas um Niágara de purificação
seria necessário antes que pudesse compreender o Reino levando em
consideração a Cruz em lugar da espada. Imaginem Simão, o Zelador, um
apóstolo com Mateus, o Publicano! Um era nacionalista ao extremo, o outro
era por profissão um real traidor do próprio povo. E ainda assim ambos foram
feitos apóstolos por Cristo, e mais tarde ambos seriam mártires pelo Reino. O
décimo segundo apóstolo era Judas, “o filho da perdição”, que seria o traidor.
O número 12 é simbólico. O livro do Apocalipse fala dos 12
fundamentos da Igreja. Havia 12 patriarcas no Antigo Testamento, e 12 tribos
em Israel; houve 12 espiões que exploraram a terra prometida; havia 12 pedras
no peitoral do sumo sacerdote; quando Judas desertou, um décimo segundo
apóstolo teve de ser nomeado. Na maior parte das vezes, os apóstolos são
mencionados nos Evangelhos como “os Doze”, título atribuído a eles 32 vezes.
Ao escolher estes 12, era evidente que Nosso Senhor estava preparando-os para
uma obra depois de Sua Ascenção; que o Reino que Ele veio fundar não era só
invisível, mas também visível; não só divino, mas também humano. Mas
tinham muito a aprender antes que pudessem ser os 12 portões do Reino de
Deus. A primeira lição seriam as bem-aventuranças.
Notas

12 | Este ensaio foi publicado em português na seguinte edição: G. K. Chesterton,


Tremendas trivialidades. Trad. Mateus Leme. Campinas: Ecclesiae, 2014. (N. T.)
13 | No original, “Peter” e “rock”. Em português, o efeito se manifesta de modo mais claro
no jogo de palavras Pedro/pedra. (N. T.)
14 | Vidkun Quisling (1887-1945) foi um oficial militar e político norueguês que chefiou
nominalmente o governo da Noruega como Ministro-Presidente depois de o país ter sido
ocupado pela Alemanha Nazista durante a Segunda Guerra Mundial. (N. T.)
11

AS BEM-AVENTURANÇAS

Dois montes estão relacionados ao primeiro e ao segundo ato num drama em


dois atos: o monte das bem-aventuranças e o monte do Calvário. Ele, que
subiu o primeiro para pregar as bem-aventuranças devia, necessariamente, subir
o segundo para pôr em prática o que pregou. Os precipitados sempre dizem
que o Sermão da Montanha constitui a “essência do cristianismo”. No entanto,
deixemos qualquer homem pôr em prática essas beatitudes na própria vida e
ele, também, atrairá para si a ira do mundo. O Sermão da Montanha não pode
ser apartado de Sua crucificação, como o dia não pode ser separado da noite.
No dia em que Nosso Senhor ensinou as bem-aventuranças, assinou a própria
sentença de morte. O som dos pregos e dos martelos transpassando a carne
humana eram ecos provenientes do lado da montanha de onde disse aos
homens como serem felizes ou abençoados. Todos querem ser felizes; mas os
caminhos dele eram opostos aos caminhos do mundo.
Uma via para fazer inimigos é desafiar o espírito do mundo. O mundo
tem um espírito, como cada época tem um espírito. Há certos pressupostos
não analisados que regem a conduta do mundo. Qualquer um que desafie essas
máximas mundanas, tais como, “você só vive uma vez”, “obtenha da vida o
máximo proveito possível”, “quem saberá disso?”, “o que é o sexo senão o
prazer?” é obrigado a se tornar impopular.
Nas beatitudes, Nosso Divino Senhor toma os oito inconsistentes termos
do mundo — “segurança”, “vingança”, “riso”, “popularidade”, “ficar quites”,
“sexo”, “poder armado” e “conforto” — e os vira de ponta-cabeça. Para aqueles
que dizem “Você não pode ser feliz até que seja rico”, ele diz “Bem-aventurados
os pobres de espírito”. Para os que dizem “Não deixe que ele saia ileso disso”,
ele diz “Bem-aventurados os pacientes”. Para os que dizem “Ria e o mundo rirá
contigo”, ele diz “Bem-aventurados os que choram”. Para os que dizem “Se a
natureza lhe deu instintos sexuais, você deve dar-lhes livre expressão, de outro
modo, ficará frustrado”, ele diz “Bem-aventurados os puros de coração”. Para
os que dizem “Busque ser popular e bem conhecido”, ele diz “Bem-
aventurados sereis quando vos caluniarem, quando vos perseguirem e disserem
falsamente todo o mal contra vós por causa de Mim”. Para os que dizem “Em
tempos de paz, prepare-se para a guerra”, ele diz “Bem-aventurados os mansos”.
Os clichés baratos em torno dos quais são escritos filmes e romances, ele
menospreza. Propõe incinerar o que os idolatram; dominar os instintos sexuais
errantes em vez de permitir que nos tornem homens-escravos; domar as
conquistas econômicas em vez de fazer a felicidade consistir em uma
abundância de coisas externas à alma. Todas as falsas bem-aventuranças que
tornam a felicidade dependente da autoexpressão, da licenciosidade, de ter um
momento feliz ou “coma, beba e seja feliz pois amanhã você morrerá”, ele
despreza, porque trazem desordens mentais, infelicidade, falsas esperanças,
temores e angústias.
Os que fogem do impacto das beatitudes dizem que Nosso Senhor foi
uma criatura de Seu tempo, mas não do nosso, e, por isso, Suas palavras não se
aplicam a nós. Ele não era uma criatura de Seu tempo nem de tempo algum,
mas nós somos! Maomé pertenceu a seu tempo, por isso disse que um homem
podia ter concubinas além de quatro esposas ao mesmo tempo. Maomé
pertenceu até mesmo ao nosso tempo, pois os modernos dizem que um
homem pode ter muitas mulheres, se as têm uma atrás da outra. Entretanto,
Nosso Senhor não pertence a Sua época, nem mesmo à nossa. Unir-se a uma
época é ser viúvo na próxima. Por que não servia a época alguma, foi o modelo
para todas as épocas. Nunca empregou uma expressão que datasse a ordem
social em que viveu; Seu Evangelho não era mais fácil então do que o é agora.
Como expôs:

Pois em verdade vos digo:


passará o céu e a terra,
antes que desapareça um jota,
um traço da lei.
(São Mateus 5,18)
A chave para o Sermão da Montanha é o modo como o Senhor usa duas
expressões: uma delas é “Ouvistes o que foi dito”, e a outra era a palavra breve e
enfática “porém”. Retomava o que os humanos ouviram por séculos e ainda
ouvem dos reformadores éticos — todas as regras, códigos e preceitos que são
meias medidas entre instinto e razão, entre costumes locais e os ideais mais
elevados. Quando ele disse: “Ouvistes o que foi dito”, incluía a lei mosaica,
Buda e as oito vias, Confúcio e as regras para se tornar um cavalheiro,
Aristóteles e a felicidade natural, a amplitude dos hindus e todos os grupos
humanitários de nossos dias que traduzem alguns dos códigos antigos para a
própria língua e chamam de novo caminho de vida. De todos esses acordos, ele
disse: “Ouvistes o que foi dito”.
“Ouvistes que foi dito aos antigos: Não cometerás adultério” (São Mateus
5,27). Moisés dissera isso, as tribos pagãs sugeriram isso, os povos primitivos
respeitavam isso. Então, veio a terrível e impressionante adversativa: “Eu,
porém, vos digo...” “todo aquele que lançar um olhar de cobiça para uma
mulher, já adulterou com ela em seu coração” (São Mateus 5,28). Nosso
Senhor foi na alma, captou o pensamento e estigmatizou até mesmo o desejo de
pecado como pecado. Se era errado fazer determinada coisa, era errado pensar a
respeito dessa coisa. Ele diria: “Afastai-vos da higiene que tenta manter limpas
as mãos após o roubo e os corpos livres de doença após terem-se violentado”.
Ingressou nas profundezas do coração e rotulou até mesmo a intenção de
pecado como pecado. Ele não esperou que a árvore do mal produzisse frutos.
Evitaria a própria semeadura da semente do mal. Não esperaria até que nossos
pecados ocultos se revelassem como psicoses, neuroses e compulsões. Livrava-se
deles nas próprias fontes. Arrependei-vos! Purificai-vos! O mal que pode se
tornar estatística e ser colocado em prisões é demasiado tarde para remediar.
Cristo afirmou que, quando um homem desposa uma mulher, casa-se
com o corpo e com a alma; casa-se com a pessoa por inteiro. Se ele se cansar do
corpo, não pode lançar fora o corpo e trocá-lo por outro, visto que ainda é
responsável pela alma da mulher. Assim, falou: “Ouvistes o que foi dito”. Nessa
expressão resumiu o jargão de toda civilização decadente. “Ouvistes o que foi
dito: ‘dê-lhe carta de divórcio, Deus não espera que você viva infeliz’”; então
veio a adversativa:

Eu, porém, vos digo: todo aquele que rejeita sua mulher,
a faz tornar-se adúltera, a não ser que se trate de matrimônio
falso;
e todo aquele que desposa uma mulher rejeitada comete um
adultério.
(São Mateus 5, 32)

O que importa se o corpo for perdido? A alma ainda está ali e isso vale
mais do que a sensação que o corpo pode proporcionar, ainda mais que o
próprio universo. Ele manteria puros, homem e mulher, não do contágio, mas
do desejo de outro; imaginar uma traição já é, em si, traição. Então, declarou:

Não separe, pois, o homem o que Deus uniu.


(São Marcos 10,9)

Nenhum homem! Nenhum juiz! Nenhuma nação!


Depois, Cristo alcançou todas as teorias sociais que dizem que o pecado se
deve ao meio: ao leite tipo B, ao número insuficiente de pistas de dança, ao
gasto insuficiente de dinheiro. De tudo isso, disse: “Ouvistes que foi dito”.
Então, vem a adversativa “Eu, porém, vos digo...”. Afirmou que o pecado, o
egoísmo, a ganância, o adultério, o crime, o roubo, o suborno, a corrupção
política — tudo isso advém do próprio homem. As ofensas resultam de nossa
própria vontade e não de nossas glândulas; não podemos desculpar nossa
lascívia porque nosso avô tinha complexo de Édipo ou porque herdamos o
complexo de Electra de nossa avó. O pecado, disse, é transmitido à alma pelo
corpo, e o corpo é movido pela vontade. Na guerra contra todas as falsas
autoexpressões, ele vociferou essas recomendações de ação: “arranca-o”, “corta-
a”.

Se teu olho direito é para ti causa de queda,


arranca-o e lança-o longe de ti,
porque te é preferível perder-se um só dos teus membros,
a que o teu corpo todo seja lançado na geena.
E se tua mão direita é para ti causa de queda,
corta-a e lança-a longe de ti,
porque te é preferível perder-se um só dos teus membros,
a que o teu corpo inteiro seja atirado na geena.
(São Mateus 5,29-30)

Os homens cortam as pernas e os braços para poupar o corpo da gangrena


ou do veneno. No entanto, aqui, Nosso Senhor transferiu a circuncisão da
carne para a circuncisão do coração e advogou deixar jorrar a seiva da luxúria e,
em farrapos, as paixões devastadas, em vez de ser apartado do amor de Deus
que estava nele, Cristo Jesus.
Depois, falou de vingança, ódio, violência, expressos no que todos dizem
“fique quite”, “processe-o”, “Não seja bobo”. Conhecia todas elas, e disse:

Tendes ouvido o que foi dito:


Olho por olho, dente por dente.
(São Mateus 5,38)

Então vem o terrível PORÉM:

Eu, porém, vos digo: não resistais ao mau.


Se alguém te ferir a face direita,
oferece-lhe também a outra.
Se alguém te citar em justiça para tirar-te a túnica,
cede-lhe também a capa.
Se alguém vem obrigar-te a andar mil passos com ele,
anda dois mil.
(São Mateus 5,39-41)

Por que dar a outra face? Porque o ódio se multiplica como uma semente.
Se alguém pregar o ódio e a violência para uma fileira de dez homens e dizer ao
primeiro para bater no segundo e, ao segundo, para golpear o terceiro, o ódio
envolverá todos os dez. A única maneira de parar esse ódio é se um homem
(digamos, o quinto da fila) der a outra face. Então o ódio cessa e não é
transmitido. Absorver a violência por amor ao Salvador, que absorverá o
pecado e morrerá por isso. A lei cristã é que o inocente deve sofrer pelo
culpado.
Assim, ele quer que acabemos com os adversários porque, quando não é
oferecida resistência, o adversário é vencido por um poder moral superior; tal
amor evita a infecção na ferida do ódio. Suportar por um ano o persistente que
o aflige durante uma semana; escrever uma carta gentil para um homem que se
refere a você com palavras obscenas; oferecer presentes a quem o rouba; nunca
revidar com ódio ao que mente e diz que você é desleal com seu país ou conta
uma mentira pior, que você é contra a liberdade — essas são coisas difíceis que
o Cristo veio ensinar e são tão apropriadas à época Dele quanto à nossa. São
apropriadas somente para os heróis, para os grandes homens, os santos, os
homens e mulheres santos que serão o sal da terra, o fermento na massa, a elite
em meio à turba, a espécie que transformará o mundo. Se determinadas
pessoas não são dignas de ser amadas e alguém lhes dá amor, elas se tornarão
dignas de amor. Por que alguém é digno de ser amado — se não é por Deus
infundir Seu amor em cada um de nós?
O Sermão da Montanha se desvia muito daquilo tudo que nosso mundo
valoriza, e o mundo crucificará quem quer que tente viver segundo esses
valores. Por tê-los pregado, Cristo tinha de morrer. O Calvário foi o preço pago
pelo Sermão da Montanha. Somente a mediocridade sobrevive. Os que
chamam preto de preto e branco de branco são sentenciados por intolerância.
Só sobrevive o cinza.
Deixemos Aquele que diz “bem-aventurados os pobres de espírito” vir ao
mundo que acredita no primado do econômico; deixemos que fique no
mercado, onde alguns homens vivem para o lucro coletivo ou onde outros
homens vivem para o lucro individual e vejamos o que acontece. Será tão
pobre durante a vida que não terá onde repousar a cabeça; virá o dia em que
morrerá sem nada de valor econômico. Na sua última hora, estará tão
empobrecido que o despirão das próprias vestes e dar-lhe-ão a tumba de um
estranho para Seu sepultamento, assim como nascera no estábulo de um
desconhecido.
Deixemos que venha ao mundo que proclama o evangelho do forte.
Deixemos que defenda o ódio aos inimigos e condene as virtudes cristãs como
virtudes “brandas”, e diga ao mundo “bem-aventurados os pacientes” e, um
dia, sentirá os flagelos dos bárbaros vigorosos açoitarem Suas costas; será
golpeado na face por um punho zombeteiro durante um de Seus julgamentos;
verá os homens tomarem a foice e cortar a grama de uma encosta do Calvário
e, então, usar o martelo para pregá-Lo em uma cruz de modo a testar a
paciência Daquele que suporta o pior que o mal tem a oferecer e que, tendo-se
exaurido, poderia, por fim, voltar a amar.
Deixemos que venha ao mundo que ridiculariza a ideia do pecado como
morbidez, considera a reparação das culpas passadas como um complexo de
culpa, e pregue ao mundo “bem-aventurados os que choram” por seus pecados;
e Ele será vendado e escarnecido como um tolo. Tomarão Seu corpo e o
flagelarão até os ossos serem contados; coroarão Sua cabeça com espinhos até
que comece a chorar não lágrimas salgadas, mas gotas de sangue carmesim,
enquanto riem da fraqueza Daquele que não descerá da cruz.
Deixemos que venha ao mundo que nega a verdade absoluta, que diz que
o certo e o errado são somente questões de ponto de vista, que devemos ter a
mente aberta a respeito da virtude e do vício e deixemos que lhes diga: “bem-
aventurados os que têm fome e sede de santidade”, ou seja, a busca do
absoluto, a busca da verdade que “eu sou”; e eles, com suas mentes abertas,
darão à multidão a escolha entre Ele e Barrabás; eles O crucificarão com os
bandidos e tentarão fazer o mundo acreditar que Deus não é diferente de um
punhado de ladrões, Seus companheiros na morte.
Deixemos que venha ao mundo que diz “o inferno são os outros”,15 que
tudo o que se opõe a mim é nada, que só o ego importa, que minha vontade é
a lei suprema, que o que decido é bom e devo esquecer-me dos outros e pensar
somente em mim e diga-lhes: “bem-aventurados os misericordiosos”. Ele
descobrirá que não receberá misericórdia; abrirão cinco veios de sangue em Seu
corpo; porão vinagre e fel em Sua boca sedenta e, mesmo depois da morte,
serão demasiado impiedosos, a ponto de introduzir uma lança em Seu Sagrado
Coração.
Deixemos que venha a um mundo que tenta interpretar o homem à luz
do sexo; que vê a pureza como frigidez; a castidade como sexo frustrado, o
domínio próprio como anormalidade e a união entre homem e mulher até que
a morte os separe como tediosa; que diz que o casamento perdura somente
enquanto as glândulas funcionarem, que a pessoa pode desunir o que Deus
uniu e tirar o selo daquilo que Deus selou. Que lhes diga: “bem-aventurados os
puros”, e Ele se verá pendido, nu, em uma cruz; será tornado espetáculo aos
homens e aos anjos na última afirmação insana e solitária de que a pureza é
anormal, que as virgens são neuróticas e que a carnalidade é o correto.
Deixemos que venha a um mundo que acredita que devemos recorrer a
todo o tipo de imposturas e duplicidades para conquistá-lo, portando pombas
da paz com os ventres cheios de bombas e lhes diga:16 “bem-aventurados os
pacificadores” ou “bem-aventurados os que erradicam o pecado para que haja a
paz” e ver-se-á cercado de homens ocupados da mais tola das guerras — a
guerra contra o Filho de Deus; praticando a violência com ferros e porretes,
manietes e escoriações e, então, montando guarda diante de Sua tumba de
modo que Ele, que perdera a batalha, não pudesse ter sucesso.
Deixemos que venha a um mundo que acredita que toda a vida deva ser
engendrada em torno de lisonjas e da capacidade de influenciar pessoas por
conta da utilidade e da popularidade e Ele lhes diga: “bem-aventurados sereis
quando vos odiarem, vos perseguirem e vos injuriarem” e Ele descobrirá não ter
amigo algum no mundo, um pária na colina, com multidões bradando por Sua
morte e a carne pendendo de Seu corpo como farrapos purpúreos.
As bem-aventuranças não podem ser consideradas de maneira isolada: não
são ideais, são fatos concretos e realidades inseparáveis da Cruz do Calvário. O
que Ele ensinou foi a autocrucifixão: amar os que nos odeiam; arrancar os
olhos e cortar os braços para evitar o pecado; estar limpos por dentro quando
as paixões clamam por satisfação externa; perdoar os que nos condenam à
morte; derrotar o mal com o bem; abençoar os que nos amaldiçoam; parar de
falar de liberdade até que tenhamos a justiça, a verdade e o amor de Deus em
nossos corações como condições de liberdade; viver no mundo e ainda manter-
nos impolutos; negar-nos prazeres legítimos para melhor crucificar nosso
egoísmo — tudo isso sentencia nosso velho homem, que está dentro de nós, à
morte.
Aqueles que O ouviram pregar as beatitudes foram convidados a se
colocar em uma cruz, a encontrar felicidade em um nível superior pela morte
em uma ordem inferior, a desprezar tudo o que o mundo considera sagrado e a
venerar como sagrado tudo o que o mundo considera como ideal. O paraíso é
felicidade; mas é demais para o homem possuir dois paraísos, um substituto em
baixo e um verdadeiro em cima. Por isso os quatro “pesares” que
imediatamente acrescentou às bem-aventuranças.
Mas ai de vós, ricos, porque tendes a vossa consolação!
Ai de vós, que estais fartos, porque vireis a ter fome!
Ai de vós, que agora rides, porque gemereis e chorareis!
Ai de vós, quando vos louvarem os homens,
porque assim faziam os pais deles aos falsos profetas!
(São Lucas 6,24-26)

A crucifixão não pode estar longe quando o mestre diz “ai de vós” os ricos,
os fartos, os felizes e os populares. A verdade não está só no Sermão da
Montanha; está naquele que viveu o Sermão da Montanha no Gólgota. Os
quatro pesares seriam condenações éticas, caso Ele não tivesse morrido cheio
daquilo a que se opunham os quatro pesares: pobre, abandonado, triste e
desprezado. No monte das bem-aventuranças ordenou que os homens se
lançassem na cruz da autonegação; no monte do Calvário abraçou essa mesma
cruz. Apesar da sombra da Cruz não se projetar sobre o local da caveira até três
anos depois, ela já estava em seu coração no dia em que pregou a respeito de
“como ser feliz”.
Notas

15 | Alusão à frase de Jean Paul Sartre publicada na peça Entre quatro paredes. (N. T.)
16 | Possível alusão ao fato de Josef Stálin ter encomendado a Pablo Picasso um quadro
intitulado “A pomba da paz”. (N. T.)
12

O INTRUSO QUE ERA UMA MULHER

Enquanto Jesus visitava as cidades da Galileia no início de Sua vida pública e


antes do irromper da hostilidade escancarada, um fararico chamado Simão
convidou Nosso Senhor para jantar em sua casa. Ele ouvira a aclamação dada a
Nosso Senhor pelas pessoas e estava ansioso para decidir por si mesmo se este
era mesmo profeta ou mestre. Curiosamente, havia na vizinhança outra pessoa
ansiosa para encontrar-se com Nosso Senhor, mas os interesses dela eram mais
elevados. Tinha um peso na consciência, e queria vê-lo como salvador de sua
culpa. Por maior que fosse sua vergonha, ela não permitiu que esta a impedisse,
mesmo diante daqueles que a poderiam condenar. Assim, Nosso Senhor
encontrava-se entre aquele que estava curioso acerca Dele como Mestre e uma
penitente que O via como Salvador.
Quando Nosso Senhor chegou, houve pouco entusiasmo na acolhida de
Simão, que negligenciou friamente os cumprimentos e cortesias dados a um
convidado. Naquela época, entrar numa casa sem descalçar-se era mais ou
menos o mesmo que entrar numa casa hoje sem tirar o chapéu. Sapatos e
sandálias eram tirados à porta. O visitante sempre era saudado com um beijo
no rosto pelo anfitrião com as palavras: “O Senhor seja contigo”. Então
mostravam ao convidado um divã para onde um criado levava água para lavar-
lhe os pés e garantir a limpeza cerimonial. Em seguida, o anfitrião, ou ao
menos um dos criados, ungia a cabeça e a barba do visitante com um óleo
perfumado. No caso de Nosso Bendito Senhor, não houve água para os pés
cansados, nem beijo de boas-vindas no rosto, nem, tampouco, perfume para o
cabelo — nada senão um gesto nada cerimonioso apontando um lugar vago à
mesa. Talvez Simão soubesse que estava sendo observado por outros fariseus e,
assim, negligenciou essas cortesias. Os convidados naqueles dias não se
sentavam à mesa, mas ficavam apoiados em assentos, com os pés descalços e as
pernas esticadas.
O acesso à sala de jantar era muito fácil, provavelmente por causa da
prevalência universal da lei da hospitalidade, tão comum entre os povos do
Oriente. Enquanto a refeição estava sendo servida, aconteceu um
inconveniente. Simão olhou e o que viu o enrubesceu. Ele não teria se
importado se fosse com qualquer outra pessoa, mas Este homem! O que Ele
pensaria dele? O intruso era uma mulher chamada Maria, uma pecadora; a
profissão dela, mulher da rua. Devagar, ela atravessou o cômodo, sem arrumar
os cabelos que lhe cobriam o rosto, pois funcionava como uma proteção contra
o olhar do fariseu. Pôs-se aos pés de Nosso Bendito Senhor e deixou cair sobre
aqueles pés que anunciavam a paz, como as primeiras gotas de chuva num
verão bem quente, algumas lágrimas. Então, envergonhada do que fizera,
prostrou-se, como que para esconder sua vergonha, mas a fonte de lágrimas
não se acalmaria. Encorajada por não ter sido repreendida, ajoelhou-se e
começou a enxugar as lágrimas dos pés do Senhor com seus cabelos longos e
desgrenhados. Ungir a cabeça era o costume, mas ela não arriscaria tal honra;
contudo, em sua humildade, ousaria ungir apenas os pés Dele. Tirando do véu
um frasco de um perfume precioso, não o aplicou gota a gota, devagar, para
indicar, pela lentidão da dádiva, a generosidade do doador. Ao contrário, ela
quebrou o frasco e deu tudo, pois o amor não conhece limites. A mulher não
estava pagando tributo a um sábio; estava descarregando o coração de seus
pecados. Decerto, ela O tinha visto e ouvido antes e estava convencida de que,
de algum modo, Ele podia dar-lhe nova esperança. Havia amor em seu
atrevimento, arrependimento em suas lágrimas, sacrifício e rendição em seu
unguento.
O fariseu, no entanto, estava horrorizado com o fato de que o Mestre
tivesse permitido que uma mulher desonrosa das ruas se aproximasse Dele e,
contrariamente a todas as tradições dos fariseus, derramasse lágrimas em Seus
pés. Simão não diria as palavras em voz alta, mas simplesmente pensava
consigo:

Se este homem fosse profeta,


bem saberia quem e qual é a mulher que o toca,
pois é pecadora.
(São Lucas 7,39)

Como Simão sabia que ela era uma mulher da rua? Ao julgar o outro,
julgava-se a si mesmo. Aos olhos de Simão, ela era uma pecadora e sempre seria
considerada uma pecadora. Para ele, havia abominação em seu toque, pecado
em suas lágrimas e mentira em seu unguento. O fariseu não fazia perguntas,
não se dava a esperanças. Para ele, pouco importava se foi um desejo
depravado, a fome ou a lascívia dos homens que levaram a mulher à ruína.
Pouco importava se ela acordava à noite por causa de sua consciência pesada e
se se condenava mil vezes por fazer aquilo que sabia que não lhe traria paz. E,
quanto ao Cristo, se tivesse alguma intuição acerca do caráter humano, saberia
que ela era uma prostituta.
Nosso Senhor leu os pensamentos de Simão, assim como também leria
um dia a alma dos vivos e dos mortos. Disse-lhe:

Simão, tenho uma coisa a dizer-te.

Disse Simão:

Diga, Mestre.

Continuou Nosso Senhor:

Um credor tinha dois devedores:


um lhe devia quinhentos denários
e o outro, cinquenta.
Não tendo eles com que pagar,
perdoou a ambos a sua dívida.
Qual deles o amará mais?
(São Lucas 7,41-42)
A história sugeria que Deus é um credor que nos confia Seus bens até que
o dia determinado para o pagamento da dívida e para prestação de contas de
nossa administração. Alguns têm dívidas maiores que outros; alguns, porque
pecaram mais; outros, porque tiveram mais bens; alguns recebem dez talentos;
outros, cinco; e outros ainda, um. Pode ser que os pecados da mulher fossem
como uma dívida de quinhentos denários, enquanto a de Simão era de apenas
cinquenta. Mas, no final, ambos eram devedores, e nenhum deles podia pagar a
dívida. O significado da parábola é claro. Deus é o credor que confia ao
homem dons de riqueza, inteligência, influência. Um dia, enfim, é
determinado para o pagamento. Embora nenhum homem em justiça estrita
possa pagar o que deve a Deus por causa do pecado, Deus, no entanto, está
disposto a perdoar todos os devedores, grandes ou pequenos. O que custa este
perdão em justiça estrita, Nosso Senhor não discute aqui. No entanto,
preparou Simão para compreender que Ele tinha de vir para trazer a remissão
dos pecados.
Nosso Senhor agora pergunta:

Qual deles o amará mais?


Simão respondeu: A meu ver, aquele a quem ele mais perdoou.
Jesus replicou-lhe: Julgaste bem.
E voltando-se para a mulher, disse a Simão:
Vês esta mulher? Entrei em tua casa
e não me deste água para lavar os pés;
mas esta, com as suas lágrimas, regou-me os pés
e enxugou-os com os seus cabelos.
Não me deste o ósculo;
mas esta, desde que entrou,
não cessou de beijar-me os pés.
Não me ungiste a cabeça com óleo;
mas esta, com perfume, ungiu-me os pés.
(São Lucas 7,43-46)

O que Nosso Senhor quis dizer quando disse a Simão: “Vês esta mulher?”.
Queria dizer que Simão não podia ver a mulher como realmente era, mas
apenas como ela costumava ser, ou a mulher que pensava que ela era. Simão
tinha dito dentro de si que, se fosse profeta, Nosso Senhor saberia que ela era
uma pecadora. Agora, Nosso Bendito Senhor invertia a sentença e perguntava a
Simão: “Você está vendo esta mulher, Simão? O problema com sua tribo de
pessoas metidas a santas é que vocês se julgam virtuosos, porque acham alguém
que é vicioso. Vocês nunca veem. Pensam que veem, mas não veem. A culpa
sempre está no próximo, nunca em vocês mesmos”.
Nosso Senhor, então, passou a descrever as cortesias comuns que Lhe
tinham sido negligenciadas, mas que esta mulher demonstrou. “Ela lavou meus
pés com as lágrimas”. Sem esfregar e enxaguar, a roupa que está muito suja não
pode ser limpa. Quando há muita sujeira do pecado, não deve haver apenas
uma lavagem; é necessário ficar de molho e ser banhada nas lágrimas da
contrição. Então, ela enxugou os pés do Senhor com seu cabelo. No verdadeiro
arrependimento, aquelas coisas que foram usadas a serviço do pecado
convertem-se para o serviço a Deus. O melhor ornamento do corpo, no juízo
do penitente, não era bom o bastante para ser empregado no mais
insignificante serviço para com Nosso Bendito Senhor.
As cortesias que Simão negligenciou na ordem natural, o Divino Senhor
agora contrasta com as cortesias mais elevadas da ordem da graça. As marcas de
honra são então rastreadas até sua fonte, o desejo de perdão. Em toda a polidez
convencional da vida, há alguma raiz de afeição e amor. Simão pensava que
estava mostrando honra suficiente ao Filho do carpinteiro ao convidá-lo para
comer; mas o Senhor rastreou o amor da mulher até o profundo senso de
pecado perdoado que ela tinha:

Por isso te digo:


seus numerosos pecados lhe foram perdoados,
porque ela tem demonstrado muito amor.
Mas ao que pouco se perdoa, pouco ama.
(São Lucas 7,47)

Seria um erro grosseiro deduzir que estaria tudo bem em ter pecado
muito, ou ter acumulado uma dívida maior, a fim de que o pecador pudesse ser
mais perdoado. Antes, a lição é que pecadores notórios têm probabilidade
muito maior de descobrir que são pecadores do que aqueles que pensam que
são bons. Como num hospital, um paciente que está cheio de machucados e
feridas requer mais compaixão do que outro menos machucado; assim
também, entendemos que a culpa não é um obstáculo, mas um argumento em
favor da graça divina. O amor desta mulher cresceu na mesma medida que sua
gratidão pelo perdão. Não foi a quantidade de pecado, mas a consciência dele e
da graça oferecida em seu perdão, que manifestou o grande amor desta
penitente. Muito lhe foi perdoado; portanto, muito amou.
Nada põe uma pessoa em contato com outra quanto a confissão de
pecado. Quando nos fala do próprio sucesso, um amigo fica a certa distância
de nosso coração; quando fala de sua culpa com lágrimas, está muito perto. Na
verdade, quando tem consciência do próprio pecado, a pessoa não distingue
muito se seus pecados pertencem à categoria dos quinhentos ou dos cinquenta
denários. São Paulo considerava-se o principal dos pecadores, mas ele não era
um grande pecador senão em seu fanatismo e perseguição. Quem faz pouco
caso do pecado fará pouco caso do perdão. Quem faz pouco caso de feridas
realmente sérias nunca apreciará o poder do médico.
Simão tinha algo que aprender e, então, convidou um mestre; a mulher
tinha algo a ser perdoado, então derramou lágrimas de contrição sobre o
Divino Credor que mostrou ser-lhe o Salvador. Simão não negara a existência
da culpa, mas sentia-se relativamente inocente em comparação à mulher
pecadora. A culpa não é só a violação do amor; é a ferida de alguém que é
amado. A seriedade do pecado aumenta conforme Cristo se aproxima. Estar
perto da Cruz e sentir as agonias Daquele cuja morte era necessária para a
expiação do pecado podia fazer Paulo, o fariseu dos fariseus, chamar-se a si
mesmo de “o maior dos pecadores”.
A lição estava terminada e a mulher foi dispensada com as seguintes
palavras:

Perdoados te são os pecados.


(São Lucas 7,48)

O homem que Simão pensava ser um mestre não estava formalizando um


código; estava perdoando pecados. Mas quem pode perdoar pecados senão
Deus? Este era o pensamento corrente entre todos à mesa:

Os que estavam com ele à mesa começaram a dizer, então:


Quem é este homem que até perdoa pecados?
(São Lucas 7,49)

Esse era o questionamento de todos quando se levantaram dos assentos.


Divãs voltariam como um símbolo de um mundo sem culpa 19 séculos mais
tarde. Os homens se levantariam deles depois de dar suas explicações. Mas tais
almas não teriam a alegria interior da mulher, que ouviu Aquele que é maior
que um profeta dizer-lhe:

Tua fé te salvou; vai em paz.


(São Lucas 7,50)

A fé dela contara-lhe que Deus ama a pureza, a bondade e a santidade. E,


diante dela, estava o único que podia restaurar-lhe a santidade. Mas o preço
que Ele pagaria por essa paz só viria depois de uma guerra — a guerra contra o
mal. O perdão que a mulher recebeu não era meramente o de ser “absolvida”;
era aquele em que a própria justiça estava satisfeita. Pedro, que estava ali no
jantar, mais tarde registrou o preço que foi pago:

Carregou os nossos pecados em seu corpo


sobre o madeiro [...]
Por suas chagas fomos curados.
(1 São Pedro 2,24)

Os convidados à mesa perguntavam-se como Ele podia perdoar pecados.


Estavam certos — quem podia perdoar pecados senão Deus? O propósito de
Sua vinda a esta terra como Filho do Homem, mais uma vez, estava revelado:
seria identificado com os pecadores ao tomar-lhes a culpa; mas estaria apartado
dos pecadores ao oferecer-se a Si mesmo para a salvação deles e, portanto,
podia perdoar pecados. De um lado, identificação:

E foi contado entre os malfeitores.


(São Lucas 22,37)

Do outro, separação:

Santo, inocente, imaculado, separado dos pecadores.


(Hebreus 7,26)

Essas são verdades complementares. A primeira refere-se ao preço que Ele


tinha de pagar para perdoar pecados, tais como os daquela mulher; a segunda,
à Sua vida divina que deu aos sofrimentos um valor infinito. A mulher diante
dele tinha sua dívida de pecado encoberta, mas não tinha ideia de quanto Lhe
custou. Todos aqueles gestos de ternura que a mulher pecadora mostrou para
com Ele, receberia novamente de outra maneira. Um beijo viria de Judas; a
lavagem dos pés inverter-se-ia quando Ele mesmo tomaria uma toalha e lavaria
os pés dos discípulos; e, em lugar do óleo na cabeça, haveria a coroa de
espinhos quando derramasse o perfume do próprio sangue.
13

O HOMEM QUE PERDEU A CABEÇA

O propósito redentor de Deus vir à terra foi revelado por muitos símbolos e
figuras. Um dos mais surpreendentes foi pressagiado no que aconteceria a João
Batista. Embora não buscasse honras terrenas, João as recebeu; foi procurado
pelo rei Herodes Antipas, filho do sanguinário Herodes, que tentara tirar a vida
de Nosso Senhor quando Este ainda não tinha completado dois anos de idade.
“Herodes temia João”, por saber que ele era um “homem justo e santo”. O
perverso teme o bom porque o bem é uma censura constante à suas
consciências. O ímpio gosta da religião da mesma maneira que gosta de leões,
mortos ou enjaulados; temem a religião quando ela liberta e começa a desafiar
suas consciências.
Herodes era o mundano típico que convocava os chamados “sábios de
túnica” (como Félix convocou Paulo); amavam o brilhantismo, os volteios das
expressões e a sabedoria abstrata, mas tão logo esses homens começassem a
tornar os ensinamentos de Cristo concretos e pessoais, eram imediatamente
mandados embora com as palavras “intensos demais”, “intolerantes” ou “sabia
que, na verdade, ele tentou me converter?”. Herodes, que sempre buscava
novos estímulos e agitações, convidou a corte para ouvir esse pregador vibrante
que era moda na época. Que texto João Batista escolheria? Falaria sobre o amor
fraterno (sem a paternidade de Deus), sobre a necessidade de reduzir os
exércitos ou sobre a grande necessidade de uma reforma econômica na Galileia?
João sabia que tudo isso era importante, mas sabia que algo era ainda mais
importante; portanto, decidiu se dedicar às consciências.
Herodes, provavelmente, fitou-o com um meio-sorriso de satisfação;
Herodíades, sua mulher, deve tê-lo olhado de canto de olho; os outros estavam
curiosos, mas não verdadeiramente interessados. Tanto Herodes quanto
Herodíades já haviam sido casados antes. Ela, com o irmão de Herodes. Essa
era uma daquelas confusões desagradáveis que se tornaram lugar-comum em
uma nação que começava a apodrecer. Herodes fora casado antes com Fasélia,
filha de Aretas, que o abandonou quando ele começou a envolver-se com
Herodíades, esposa de seu irmão Herodes Filipe. Herodíades tinha uma filha,
Salomé, do casamento com Herodes Filipe.
Se havia um assunto que, do ponto de vista mundano, João teria feito
muito bem em evitar na corte, era essa situação. Entretanto, João estava
inclinado a agradar a Deus, não aos homens, e resolveu falar contra a vida de
luxúria. Era demasiado gentil para desculpar o pecado de Herodes, demasiado
interessado na saúde moral para deixar a ferida sem exame, demasiado amoroso
para ter alguma ideia senão salvar a alma de Herodes.
João seguiu o ensinamento de Nosso Senhor de que o casamento era
sagrado e indissolúvel: “O que Deus uniu, nenhum homem separe”. Foi direto
ao ponto com palavras claras, resolutas e bruscas. Apontou o dedo para
Herodes e sua mulher, sentados em tronos de ouro, e disse:

Não te é permitido ter a mulher de teu irmão.


(São Marcos 6,18)

Herodíades estremeceu. Sabia que João estava recordando o fato de ela ter
seduzido Herodes, que já estava em seu poder. Antes que João pudesse
terminar a frase seguinte, foram colocadas correntes de ferro em volta de seus
punhos e os guardas começaram a arrastá-lo da corte para lançá-lo em um
calabouço escuro. O pregador foi aprisionado, mas suas palavras não o foram
— ecoaram na consciência muito depois da voz ter sido silenciada.
Por meses João foi mantido no tenebroso calabouço de Maquero. Essa
inatividade forçada o fez duvidar do Messias e do cordeiro de Deus de quem
falava? Sua fé vacilou um pouco na escuridão do calabouço? Talvez ansiasse
com impaciência que Deus punisse aqueles que haviam se recusado a receber
sua mensagem. De qualquer modo:

E João chamou dois dos seus discípulos


e enviou-os a Jesus, perguntando:
É
És tu o que há de vir ou devemos esperar por outro?
(São Lucas 7,19)

O modo como João formulou a pergunta indicava que ele tinha fé tanto
na grande promessa messiânica como Naquele a quem perguntava.
Quando a pergunta chegou a Nosso Senhor, Ele não a respondeu com a
promessa de que João seria libertado da prisão, ou que Ele mesmo destruiria os
inimigos. Respondeu apenas indicando a própria obra de cura, consolo e
instrução.

Ide anunciar a João o que tendes visto e ouvido:


os cegos veem, os coxos andam,
os leprosos ficam limpos,
os surdos ouvem,
os mortos ressuscitam,
aos pobres é anunciado o Evangelho;
e bem-aventurado é aquele para quem eu não for ocasião de
queda!
(São Lucas 7,22-23)

A divindade e seus caminhos sempre serão motivo para escândalo entre os


homens. A pobreza e a insignificância mundana de Nosso Senhor foram a
primeira objeção a seu Evangelho. Esse preconceito surgiu da própria
concepção falsa do poder e da majestade de Deus, como se a realização de seus
propósitos realmente dependesse dos meios que o mundo associa ao sucesso.
Com efeito, Cristo dava uma resposta abrangente aos discípulos de João,
apontando tanto para Suas obras e palavras como para Seus milagres e
ensinamentos. Os milagres não eram somente coisas para nos maravilhar; ao
contrário, eram sinais do Reino Divino de justiça e misericórdia; e o poder
pelo qual Ele os efetuou seria um poder além da natureza, que podia controlar
a natureza. O ensinamento, em particular, seria outra prova de Sua divindade:
o pobre teria o evangelho que lhe fora proclamado.
Isso é especialmente significativo porque pobreza é outra palavra para a
imperfeição e fraqueza humanas. Os fortes de corpo, os que possuem um
intelecto sagaz e os que têm os favores da terra são aqueles que recebem a
recompensa neste mundo; mas o pobre e o fraco muitas vezes têm fome e
sofrem. Cristo dizia que no seu reino dos céus haveria um evangelho para o
pobre. Deus tem outro mundo em que repara as desigualdades deste.
Enquanto ao homem rico é dito que, se desejar ir para o céu, deve dividir suas
riquezas por causa do Cristo, ao pobre é dito que seu cansaço e sofrimento, sua
labuta e dissabores, unidos à cruz, trariam paz interior e recompensa.
Quando os mensageiros partiram, Nosso Senhor começou a elogiar João.
João o testemunhara, e Ele agora daria testemunho de João. Respondeu aos que
poderiam estar julgando João pela mensagem enviada em um momento de
provação. Contrastou a multidão que prestava atenção nas palavras dos
mensageiros com o próprio João — a inconstância da multidão com a
estabilidade do profeta. Não era João o fraco, eram os próprios corações deles.
Não foi a dúvida que fez João questionar, nem o medo das consequências
corporais. Utilizando três figuras de linguagem, Nosso Senhor foi em defesa de
João. A primeira figura foi o junco que costumava balançar com a brisa ao
longo da forte corrente do rio Jordão, onde ouviram João pregar; a segunda
figura eram as vestes finas daqueles que viviam na casa de Herodes; e a terceira
figura era um sinal dos céus e uma referência a todos os homens que cruzaram
os portais da carne no nascimento humano.

Depois que se retiraram os mensageiros de João,


ele começou a falar de João ao povo:
Que fostes ver no deserto?
Um caniço agitado pelo vento? Mas que fostes ver?
Um homem vestido de roupas finas?
Mas os que vestem roupas preciosas
e vivem no luxo estão nos palácios dos reis.
Mas, enfim, que fostes ver? Um profeta?
Sim, digo-vos, e mais do que profeta.
Este é aquele de quem está escrito:
Eis que envio o meu mensageiro ante a tua face;
ele preparará o teu caminho diante de ti.
Pois vos digo: entre os nascidos de mulher
não há maior que João.
Entretanto, o menor no Reino de Deus é maior do que ele.
(São Lucas 7,24-28)

Por três vezes Nosso Senhor perguntou “que fostes ver?”. Esse foi o erro
deles; ao professar um desejo de conhecer a vontade de Deus, estiveram
realmente inclinados a visões e espetáculos ao desfrutar das maravilhas e da
popularidade do mensageiro. Saíram para ver alguém, não para ouvir alguém;
para satisfazer a concupiscência dos olhos, mas não para imitar a temperança e
a abnegação do Batista. Nosso Senhor estava dizendo à multidão que São João
não fizera essa pergunta da prisão simplesmente porque era um junco sacudido
pelo vento da opinião pública ou porque era alguém que se importava com o
bem-estar físico, como os cortesãos da casa de Herodes. João não era um
caniço frívolo sacudido por cada rajada de aclamação popular. Fazia suas
reprimendas sem temor; não era somente severo com os outros, era ainda mais
severo consigo mesmo. Poderia ter morado na casa de reis e, mesmo assim, fez
do deserto seu lar. Em relação a Deus, ele era um profeta e mais que um
profeta — o precursor e mensageiro do Messias e do Filho de Deus.
A grandeza pode ser dividida em dois tipos: a terrena e a celestial. Se a
grandeza de João tivesse sido terrena, teria vivido em palácios, as vestes teriam
sido espalhafatosas e as opiniões, provavelmente, teriam sido variáveis como
um junco, soprado, um dia, para uma filosofia popular e, no outro dia, para
outra. No entanto, sua grandeza foi de uma ordem divina e a superioridade
não foi somente em sua pessoa, mas na obra imutável e na missão de anunciar
o Cordeiro de Deus.
Alguns meses depois, chegou a época de celebrar o aniversário de Herodes
com uma grande festa. Para esse banquete baltasariano foram convidados todos
os nobres da corte de Herodes, todos os militares e vários comensais da
Galileia. Era noite, e o palácio estava suavemente iluminado. Os rostos estavam
maquiados para se mostrarem melhor à encantadora e tênue luz de velas. O
barulho da música, o toque das trombetas e os gritos da folia ressoavam pelo
castelo de pedra de Maquero, chegando até embaixo, ao estreito e escuro
calabouço onde, por dez meses, João Batista definhava. Não obstante, os
convidados, provavelmente, estavam entediados com as distrações, pois nada é
mais enjoativo que a alegria organizada dos saciados.
A voz de Herodes soou nesse primeiro clube noturno da era cristã,
ordenando que se iniciasse uma dança sensual para estimular os espíritos
enfadados. A dançarina seria Salomé, a bela jovem, filha da mulher do rei com
o primeiro marido. Essa donzela, que também era descendente dos nobres
Macabeus, mas que fora totalmente degradada e corrompida pela conivência da
mãe degenerada, dançou até chegar ao chão. Os foliões ficaram encantados e
Herodes, seguindo cada movimento gracioso, logo ficou excitado tanto pela
dança quanto pelo vinho. Quando, num último lance, Salomé atirou-se em seu
colo, ele abruptamente disse, irrompendo de paixão:

Pede-me o que quiseres, e eu to darei.


E jurou-lhe: Tudo o que me pedires te darei,
ainda que seja a metade do meu reino.
(São Marcos 6,22-23)

Salomé não sabia o que pedir, então, voltou-se para a mãe. Herodes já
havia esquecido do desafortunado sermão de João Batista, mas uma mulher
não esquece assim tão fácil. Nos dez meses em que esteve no calabouço
embaixo do palácio, João esteve também na alma de Herodíades,
importunando-a, perturbando seu sono, torturando sua consciência e
assombrando seus sonhos. Ela resolvera, naquele momento, livrar-se dele,
crendo que, se pudesse abolir esse representante moral de Deus, poderia pecar
impune pelo resto de sua vida. Com uma palavra a Salomé, poderia silenciar a
própria consciência e a do marido. Sussurrou a resposta no ouvido da filha.
Salomé aproximou-se de Herodes. A música estridente parou; o silêncio recaiu
sobre a assembleia; a comida se tornou insípida e até mesmo seus corações
ficaram nauseados quando a jovem pediu a Herodes:

Dá-me aqui, neste prato,


a cabeça de João Batista.
(São Mateus 14,8)
Herodes ficou confuso por conta de sua jura. Pensou em todo o respeito
do passado pelo profeta, mas, ao mesmo tempo, temia as provocações e as
brincadeiras segredadas pelos convivas, caso o vissem recuar em sua promessa.
Infiel a Deus, à consciência, a si mesmo e não tendo vergonha de nenhum
crime, mas envergonhado pelas opiniões do público, decidiu ser fiel à sua
promessa de bêbado. Acima de tudo, temia a ira de sua segunda esposa.
Herodes chamou uns poucos escravos. Acenderam as tochas. Ninguém
falou ao ouvir os escravos descerem as escadas, cada vez mais fundo, enquanto
o som sumia. Ouviram, então, o barulho das chaves nas portas do calabouço, o
ranger das dobradiças. Houve silêncio por alguns segundos, rompido por um
baque chocante; depois, a lenta marcha escadas acima, cada vez mais sonora,
ritmada com o pulsar de seus corações. Os escravos se acercaram de Herodíades
com o presente ensanguentado. Ela foi até Salomé, e a filha carregou o
presente, cruzando a pista de dança e o deu a Herodes em uma bandeja
dourada, a cabeça barbada do profeta de fogo.
Naquela noite tenebrosa, a pedido da filha de uma adúltera, Herodes
assassinara o precursor de Cristo.
Depois disso, Herodes foi assombrado por temores, como Nero foi
assombrado pelo fantasma de sua mãe, a quem assassinara. O Imperador
Calígula não podia dormir porque era assombrado pelos rostos de suas vítimas;
o historiador Suetônio diz que ele “se sentava na cama” ou, ainda, perambulava
pelos longos pórticos do palácio, esperando pela chegada do dia.
Herodes, ao ouvir Nosso Diviníssimo Senhor algum tempo depois,
pensou que ele fosse João Batista ressurgido dos mortos. Herodes não
acreditava em vida futura, nenhum homem sensual acredita. A crença na
imortalidade se esvai facilmente naqueles que vivem de maneira tal que não
podem enfrentar a perspectiva de um julgamento. Uma vida futura é negada
nem tanto pelo modo como a pessoa pensa, mas pelo modo como a pessoa
vive. Herodes convencera-se de que a porta se fechava com a morte, mas agora,
uma vez que ouvira Nosso Senhor pregar, começou a pensar que João
ressuscitara dos mortos. O ceticismo nunca tem certeza, por ser mais uma pose
para justificar o mau comportamento que uma posição intelectual firme.
Como um saduceu, Herodes rejeitou a vida futura, mas temia, afinal de contas,
sua consciência. E, ao ouvir a respeito das maravilhas e dos milagres de Nosso
Senhor, “procurava ocasião de vê-lo” (São Lucas 9,9). E o viu. Menos de dois
anos depois Pilatos enviaria Nosso Senhor para ele.
Herodes alegrou-se muito em ver Jesus,
pois de longo tempo desejava vê-lo,
por ter ouvido falar dele muitas coisas,
e esperava presenciar algum milagre operado por ele.
(São Lucas 23,8)

Herodes nunca vira a face de Jesus até a última hora; nunca ouvira antes a
Sua voz. Quando chegou o momento, Nosso Senhor recusou-se a falar com
ele.
Depois da transfiguração, os apóstolos, que viram Moisés e Elias falando
com Nosso Senhor, começaram a fazer perguntas a respeito de Elias. Nosso
Senhor disse-lhes que Elias já havia estado entre eles em espírito; eles o viram
no habitante dos lugares desolados, o homem vestido em pele de camelo que
viveu com escassez de comida. Então, arrastou a cruz diante de seus olhos
novamente. Mostrou-lhes que a morte de João Batista foi a prefiguração de sua
própria morte. Como as pessoas que tinham visto João não acreditaram nele,
da mesma maneira não acreditariam em Nosso Senhor:

Mas eu vos digo que Elias já veio,


mas não o conheceram;
antes, fizeram com ele quanto quiseram.
Do mesmo modo farão sofrer o Filho do Homem.
(São Mateus 17,12)

Por seu comentário a respeito do destino do Batista, Jesus pressagiou o


próprio sofrimento e morte. Esforçava-se para familiarizar os apóstolos com a
ideia de um messias que morre, mas ao mesmo tempo conquista. Como as
pessoas andaram cegas deixando de dar as boas-vindas ao Batista quando veio
no espírito de um Elias penitente, da mesma maneira, o Messias lhes escaparia
ao vir no meio deles como aquele que carregava as culpas e as resgatava no
madeiro da cruz. Contou aos apóstolos que tal destino foi pressagiado para o
Filho do Homem:
Deve padecer muito e ser desprezado.
(São Marcos 9,12)

Os salmos e os profetas aludiram ao seu sofrimento como Filho do


Homem. Assim como Nosso Senhor não salvou João Batista da crueldade de
Herodes, Ele não salvaria nem a si mesmo do mesmo Herodes. O arauto sofreu
a sina daquele que anunciara; o mensageiro recebeu a violência porque pregara
a mensagem. E, mais uma vez, o monte do Calvário olhou, dessa vez por entre
os vales, para o sopé do monte da transfiguração. Tudo em Sua vida fazia
referência à Cruz, até mesmo a morte violenta de João Batista.
14

O PÃO DA VIDA

Dois banquetes foram oferecidos na Galileia ao longo de um ano: um na corte


de Herodes, em que João Batista pregou; o outro, ao ar livre servido por Nosso
Senhor. Ele tinha atravessado o Mar da Galileia, provavelmente para evitar a
fúria de Herodes, que acabara de assassinar o Batista e

Seguia-o uma grande multidão,


porque via os milagres que fazia em benefício dos enfermos.
(São João 6,2)

Os motivos para que as multidões O seguissem eram meio confusos;


havia, no entanto, uma ideia crescente de que Ele era o Cristo. Todos ficaram
terrivelmente decepcionados quando Jesus se retirou para a montanha com os
discípulos. A carruagem do Evangelho parou um momento para um pequeno
descanso dos que a conduziam. Como a Páscoa estava chegando e muitos iam a
caminho de Jerusalém, a multidão avolumou-se a ponto de chegar a cinco mil
homens adultos (fora as mulheres e crianças).

Porque eram muitos os que iam e vinham


e nem tinham tempo para comer.
(São Marcos 6,31)

A cidadezinha para onde se dirigiam ficava a quase dez quilômetros, por


mar, de Cafarnaum. Quando Nosso Bendito Senhor saiu do barco, na praia, as
multidões estavam ali para encontrar-se com Ele. Traziam consigo os enfermos
e estavam famintos em mais de um sentido. Não Lhe davam nenhum descanso,
não porque cressem que era o Filho de Deus, mas porque O consideravam um
mágico que podia fazer maravilhas, ou um médico que podia curar os doentes.

Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e


compadeceu-se dela,
porque era como ovelhas que não têm pastor.
(São Marcos 6,34)

Organizou a multidão em filas de cem e de cinquenta, encosta acima. No


centro delas estava Nosso Senhor. Para testar Filipe, o Senhor perguntou:

Onde compraremos pão


para que todos estes tenham o que comer?
(São João 6,5)

Filipe fez um cálculo rápido e concluiu que seriam necessários duzentos


denários para alimentar a multidão. Jesus não perguntou “Quanto dinheiro
precisamos?”, mas “Onde compraremos o pão?”. Filipe devia ter respondido
que Aquele que tinha ressuscitado mortos e curado enfermos podia prover o
pão. Neste momento, André apontou um menino que tinha cinco pãezinhos e
dois peixes. André também fez uma conta e perguntou:

[...] que é isto para tanta gente?


(São João 6,9)

No Antigo Testamento, aprazia a Deus usar coisas comuns e


insignificantes para cumprir seus propósitos, como a marca no cesto do bebê
que conquistou o coração da Filha de Faraó (Êxodo 2,1-10), ou a vara de
Moisés que operou milagres no Egito (Êxodo 4,3; 7,10; 14,16), ou a funda de
Davi, que derrotou os filisteus (1 Samuel 17,49). Como o pão agora estava
envolvido, havia mais um tipo de paralelo com os gestos que mais tarde seriam
empregados na Última Ceia.

Então tomou os cinco pães e os dois peixes e,


erguendo os olhos ao céu, abençoou-os,
partiu-os e os deu a seus discípulos
[para que lhos distribuíssem,
e repartiu entre todos os dois peixes.]
(São Marcos 6,41)

Assim como um grão de trigo pouco a pouco se multiplica no solo,


também os pães e os peixes, por um processo divinamente acelerado, foram
multiplicados até que todos estivessem saciados. A natureza foi até onde pôde,
e então Deus supriu o restante. O Senhor ordenou que os pedaços fossem
recolhidos, e estes encheram 12 cestos. No cálculo dos homens, sempre há
escassez; na aritmética de Deus, sempre há abundância.
O efeito do milagre na multidão foi estupendo. Ninguém negava o fato
de que Cristo tinha poder divino; Ele o mostrou ao multiplicar o pão.
Lembrou-lhes imediatamente de Moisés, que dera a seus antepassados o maná
no deserto. E Moisés não tinha dito que era um prenúncio do Cristo ou
Messias?

O Senhor, teu Deus, te suscitará dentre os teus irmãos


um profeta como eu: é a ele que devereis ouvir.
(Deuteronômio 18,15)

Se Moisés tinha autenticado ou ratificado a si mesmo por meio do pão no


deserto, não seria este aquele a quem Moisés apontara, visto que ele também
distribuiu o pão miraculosamente? Quem, então, podia ser-lhes um rei melhor
para tirá-los do jugo romano e dar-lhes liberdade? Aqui estava um libertador,
maior que Josué, e aqui estavam cinco mil homens prontos para pegar em
armas; aqui estava um rei maior que Davi ou Salomão, que podia rebelar-se
contra os tiranos e libertar o povo. Eles já O tinham reconhecido como profeta
e mestre; agora, proclamavam-No Rei. Mas aquele que sonda os corações sabia
quanto eram mundanas as ambições que tinham para Ele:

Jesus, percebendo que queriam arrebatá-lo e fazê-lo rei,


tornou a retirar-se sozinho para o monte.
(São João 6,15)

Os homens não podiam fazê-Lo rei; já nasceu rei. Os Sábios do Oriente


sabiam disso quando perguntaram:

Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer?


Vimos a sua estrela no oriente e viemos adorá-lo.
(São Mateus 2,2)

Sua majestade viria por intermédio do “dever” divino da Cruz, e não da


força popular. Essa foi a segunda vez que o Senhor declinou da coroa; a
primeira foi quando Satanás ofereceu-Lhe o reino do mundo, se se prostrasse e
O adorasse. “Meu Reino não é deste mundo”, viria a dizer mais tarde a Pilatos
(São João 18,36). A multidão queria empurrá-Lo a um trono; no entanto, Ele
não disse que seria empurrado a um trono, mas que seria “elevado”, e o trono
seria a Cruz; Seu reino seria estabelecido nos corações.
Pode ter sido essa fuga do reino político o que pôs dúvidas na mente de
Judas; pois foi em conexão com este milagre e com o discurso de Nosso Senhor
que pela primeira vez Judas foi descrito como traidor. Visto que não aceitaria
uma soberania temporal como Satanás Lhe oferecera, Nosso Senhor teve de
preparar-se para ouvir mais tarde “Não outro temos rei senão César” (São João
19,15).
Nosso Senhor, sabendo o que se passava no coração da multidão, retirou-
se para o monte. Nenhuma mão suja Lhe poria uma coroa na cabeça — exceto
uma coroa de espinhos. Entretanto, a fim de ensinar os apóstolos que eles
tampouco “gozariam” de popularidade barata, compeliu-os a tomar um barco e
a ir ao outro lado do lago, uma distância de oito a dez quilômetros. E não os
acompanhou.
Entre as três e seis da manhã, enquanto estavam tremendo, molhados e
fatigados no barco, começou uma tempestade. Era a segunda tempestade que
os pegava no lago depois de terem sido chamados a ser apóstolos; a primeira foi
na ocasião de uma visita anterior de Nosso Senhor. Ambas as tempestades
vieram à noite e ambas foram violentas. Deve ter sido uma tempestade
particularmente forte para ter afetado esses homens cujas vidas tinham sido
passadas justo naquele mar. Talvez não fosse só a tempestade no mar que os
preocupasse, mas também o fato de que o Mestre tinha se recusado a ser Rei. É
bem provável que também duvidassem do poder daquele que multiplicara os
pães e depois os enviara para a outra margem do lago numa noite de
tempestade. Se podia multiplicar o pão, por que não podia impedir
tempestades?
Para eles, era tão impossível que Nosso Senhor os deixasse partir para logo
depois vir ao encontro deles no meio do mar quanto se morresse para depois
ressuscitar. Mas, de repente, enquanto remavam, viram o Senhor vindo até eles
por sobre as águas. Ficaram com medo e agitados. Disse-lhes Jesus:

Sou eu, não temais.


Quiseram recebê-lo na barca,
mas pouco depois a barca chegou ao seu destino.
(São João 6,20-21)

A tripulação solitária não estava tão solitária quanto imaginava. O mesmo


ritmo de alegria e tristeza que permeava a vida de Jesus estava presente aqui;
pois foi em meio a escuridão, tempestade e perigo que Cristo veio,
caminhando por sobre a crista das ondas de um mar em fúria. Agora que tinha
demonstrado seu poder:

[...] aqueles que estavam na barca


prostraram-se diante dele e disseram:
Tu és verdadeiramente o Filho de Deus.
(São Mateus 14,33)
Reconheceram que Ele não era só o Messias esperado, mas também o
Filho de Deus. Alguns dos homens naquele barco haviam sido discípulos de
João Batista e tinham ouvido o Pai dizer durante o batismo do Senhor que este
era o Filho de Deus. É também muito provável que alguns deles tenham estado
presentes quando o demônio declarou que Ele era o Filho de Deus. Natanael já
Lhe tinha dado este título.
Foi nessa ocasião que Pedro, quando viu Nosso Senhor e antes que este
entrasse no barco, perguntou se podia andar sobre as águas e ir até Ele. O
Senhor ordenou que Pedro fosse; mas, depois de alguns metros, Pedro
começou a afundar. Por quê? Porque levou em conta os ventos; porque se
concentrou nas dificuldades naturais; porque não confiou no poder do Mestre
e não manteve os olhos Nele.

Mas, redobrando a violência do vento,


teve medo e [começou] a afundar.
(São Mateus 14,30)

Por fim, clamou ao Senhor por ajuda:

Senhor, salva-me!
No mesmo instante,
Jesus estendeu-lhe a mão, segurou-o e lhe disse:
Homem de pouca fé, por que duvidaste?
(São Mateus 14,30-31)

Primeiro veio a libertação, depois a repreensão — e provavelmente com


um sorriso no rosto e amor na voz. Esta não foi a única vez que o pobre Pedro
duvidaria do Mestre a quem tanto amava. Aquele que pediu para caminhar
sobre as águas a fim de aproximar-se logo do Senhor foi o mesmo que mais
tarde juraria estar pronto para ir à prisão ou até mesmo para ser morto pelo
mestre. Corajoso no bote, mas tímido nas águas, mais tarde seria valente na
Última Ceia, mas covarde na noite do julgamento. A cena no lago era um
ensaio da outra queda de Pedro.
O povo ainda estava propenso a proclamar Nosso Senhor rei quando O
encontraram no dia seguinte em Cafarnaum. À pergunta deles sobre como
chegara lá, a resposta foi uma reprimenda aos que pensavam que a religião
tinha relação sobretudo com o pão e com a distribuição de sopa aos pobres.

Em verdade, em verdade vos digo: buscais-me,


não porque vistes os milagres,
mas porque comestes dos pães e ficastes fartos.
(São João 6,26)

Não tinham compreendido o milagre como sinal de Sua divindade;


procuravam-No, mas não O viam. Jó O viu em sua perda assim como em seu
ganho; eles O viam apenas como um meio de saciar a fome de pão, não a fome
de alma. Empolgação não é religião; se fosse, um “aleluia” no domingo poderia
tornar-se um “crucifica” na sexta-feira.
Disse-lhes então Nosso Senhor:

Trabalhai, não pela comida que perece,


mas pela que dura até a vida eterna,
que o Filho do Homem vos dará.
Pois nele Deus Pai imprimiu o seu sinal.
(São João 6,27)

O Senhor estava colocando diante deles dois tipos de pão: o que perece e
o que dura até a vida eterna. Advertiu-os contra a ideia de segui-Lo como um
jumento segue o senhor que segura uma cenoura. Para elevar as mentes carnais
até o Alimento Eterno, sugeriu que buscassem o Pão Celestial em que o Pai
imprimiu o seu sinal. O pão oriental geralmente era assinalado com a marca
oficial ou o nome do padeiro. De fato, a palavra talmúdica para “padeiro” está
relacionada à palavra “selo”. Assim como as hóstias usadas na Missa têm uma
marca (por exemplo, um cordeiro ou uma cruz), também Nosso Senhor estava
insinuando que o pão que deviam buscar era o pão confirmado pelo Pai,
portanto, Ele mesmo.
Queriam uma prova de que o Pai O tinha autorizado; deu pão, sim, mas
isso não era grandioso o bastante. Afinal, Moisés não tinha dado o alimento do
céu? O argumento deles era: que prova tinham de que Jesus era maior que
Moisés? Assim, minimizaram o milagre do dia anterior, comparando-o a
Moisés, e o pão que Jesus deu ao maná do deserto. Nosso Senhor tinha
alimentado a multidão apenas uma vez, e Moisés os alimentara por quarenta
anos. No deserto as pessoas sempre chamaram o pão “maná”, que quer dizer
“O que é isso?”. Entretanto, numa ocasião, quando menosprezaram o maná,
chamaram-no “alimento miserável” (Números 21,5). Assim também agora
desdenhavam dessa dádiva. Nosso Senhor aceitou o desafio; disse que o maná
recebido de Moisés não era o Pão Celestial, nem tinha vindo do céu; ademais,
nutria apenas uma nação e por tempo limitado. Mais importante ainda, não
era Moisés quem dava o maná; era o Pai; por fim, o Pão que Ele daria duraria
para a vida eterna. Quando lhes disse que o verdadeiro Pão desceu do céu, os
homens pediram:

Senhor, dá-nos sempre deste pão!

E o Mestre respondeu:

Eu sou o pão da vida.


(São João 6,35)

Essa foi a terceira vez que Nosso Bendito Senhor usou um exemplo do
Antigo Testamento para simbolizar a Si mesmo. A primeira foi quando Se
comparou com a escada que Jacó viu, revelando-Se assim como um mediador
entre o céu e a terra (São João 1,51). No discurso a Nicodemos, comparou-Se à
serpente de bronze, que curaria os feridos pelo pecado e o mundo envenenado
(São João 3,14). Agora, referia-Se ao maná do deserto, e declarava que Ele era o
verdadeiro Pão de que o maná tinha sido apenas uma prefiguração. E diria
ainda:

Eu sou a luz do mundo.


(São João 8,12)

Eu sou a porta.
(São João 10,7-9)

Eu sou o bom pastor.


(São João 10,11-14)

Eu sou a Ressurreição e a Vida.


(São João 11,25)

Eu sou o caminho, a verdade e a vida.


(São João 14,6)

Eu sou a videira verdadeira.


(São João 11,25)

E se declara três vezes:

O pão da vida.
(São João 6,35-41.48-51)

Mais uma vez, Ele faz a sombra da Cruz aparecer. O pão deve ser partido;
e Aquele que vinha de Deus havia de ser uma vítima sacrificial para que os
homens pudessem verdadeiramente alimentar-se Dele. Assim, seria um Pão que
resultaria da oferta voluntária da própria carne para resgatar o mundo da
servidão do pecado para a novidade da vida.

E o pão, que eu hei de dar, é a minha carne para a salvação do


mundo.
A essas palavras, os judeus começaram a discutir, dizendo:
Como pode este homem dar-nos de comer a sua carne?
Então Jesus lhes disse: Em verdade, em verdade vos digo:
se não comerdes a carne do Filho do Homem,
e não beberdes o seu sangue,
não tereis a vida em vós mesmos.
(São João 6,51-53)

Jesus não só Se denominou como aquele que descera do céu, mas como
aquele que tinha descido para dar-Se, ou morrer. Somente quando Cristo fosse
morto chegariam a compreender a glória do Pão que alimenta para a
eternidade. Aqui, Ele estava referindo-se a Sua morte; pois a palavra “dar”
expressava o ato sacrificial. A carne e o sangue do Filho de Deus Encarnado,
que seria servida na morte, tornar-se-ia a fonte da vida eterna. Quando disse
“minha carne”, queria dizer que o Verbo de Deus, ou o Filho, havia assumido
uma natureza humana. Contudo, somente porque essa natureza humana
estaria ligada à Personalidade Divina por toda a eternidade é que Ele podia dar
vida eterna àqueles que a receberam. E quando disse que daria Sua carne pela
vida do mundo, a palavra grega usada queria dizer “toda a humanidade”.
Suas palavras tornaram-se mais pungentes porque esta era a época da
Páscoa. Embora vissem o sangue de um modo terrível, os judeus estavam
naquela época levando seus cordeiros a Jerusalém, onde o sangue seria
derramado às quatro direções da terra. A estranheza da declaração acerca de dar
Seu corpo e sangue diminui em contraste com o pano de fundo da Páscoa;
Jesus queria dizer que a sombra do cordeiro animal estava passando e que seu
lugar seria assumido pelo verdadeiro Cordeiro de Deus. Assim como tinham
comunhão com a carne e o sangue do cordeiro pascal, também teriam agora
comunhão com a carne e o sangue do verdadeiro Cordeiro de Deus. Aquele
que nasceu em Belém, a “casa do pão”, e foi posto em uma manjedoura, um
lugar para alimentar animais, seria agora, para os homens, tão inferiores a Ele,
o Pão da Vida. Tudo na natureza tem de ter comunhão para viver; por meio
dela, o que é inferior se transforma no que é superior: os elementos químicos
em plantas, as plantas em animais, os animais no homem. E o homem? Ele não
deve elevar-se pela comunhão com Aquele que “desceu” do céu para tornar o
homem um participante da natureza divina? Como mediador entre Deus e o
homem, Jesus disse que, assim como Ele vivia pelo Pai, assim também deviam
viver por Ele:

Assim como o Pai que me enviou vive,


e eu vivo pelo Pai,
assim também aquele que comer
a minha carne viverá por mim.
(São João 6,57)

Quão carnal era comer do maná, e quão espiritual era comer da carne de
Cristo! Era muito mais íntima a vida que vinha por meio Dele do que a do
bebê alimentado pela mãe. Toda mãe de criança de colo pode dizer “Coma,
este é meu corpo; este é meu sangue”. Entretanto, na verdade, a comparação
termina aí; pois, na relação mãe-filho, ambos estão no mesmo nível. Na relação
Cristo-humanidade, a diferença é aquela de Deus e homem, céu e terra. Além
disso, nenhuma mãe jamais teve de morrer e assumir uma existência gloriosa
em sua natureza humana antes que pudesse alimentar seu rebento. Nosso
Senhor, contudo, disse que teria de “dar” a vida antes que fosse o Pão da Vida
dos crentes. As plantas que alimentam os animais não vivem em outro planeta;
os animais que alimentam os homens, não vivem em outro mundo. Se Cristo,
então, tinha de ser a “vida do mundo”, tinha de fazer morada entre os homens
como Emanuel ou “Deus conosco”, suprindo a vida da alma assim como o pão
terreno é a vida do corpo.
No entanto, a mente dos ouvintes não se elevou mais alto que o físico,
pois perguntaram: Como este homem pode dar-nos Sua carne para comer?
Era loucura para qualquer homem oferecer sua carne para ser comida.
Contudo, não foram deixados no escuro por muito tempo, pois Nosso Senhor
os corrigiu, dizendo que não seria um mero homem, mas “o Filho do Homem”
quem a daria. Como de costume, esse título referia-se ao sacrifício expiatório
que Ele haveria de oferecer. Não era o Cristo morto quem alimentaria os
discípulos, mas o Cristo glorificado nos céus, que morreu, ressurgiu dos mortos
e ascendeu aos céus. O mero alimento da carne e do sangue de um homem de
nada serviria; mas a Carne e o Sangue glorificados do Filho do Homem
renderiam a vida eterna. Assim como o homem morreu espiritualmente ao

É
comer fisicamente no Jardim do Éden, também voltaria a viver espiritualmente
ao comer do fruto da Árvore da Vida.
As palavras de Cristo eram demasiadamente literais, e Ele esclareceu
muitíssimas interpretações falsas, pois alguns dos ouvintes declararam que a
Eucaristia (ou o corpo e o sangue que daria) era um mero tipo ou símbolo, ou
que seus efeitos dependiam das disposições subjetivas do recebedor. Sempre
que alguém entendia errado o que disse, era o método de Nosso Senhor corrigir
aquela incompreensão, como quando Nicodemos pensou que “nascer de novo”
significava voltar ao ventre materno. No entanto, sempre que alguém entendia
corretamente o que disse, mas parecia encontrar Nele algum defeito, então
repetia o que dissera. Nesse discurso, Nosso Senhor repetiu cinco vezes o que
dissera acerca de Seu corpo e sangue. O significado pleno dessas palavras não
fica evidente até a noite anterior a Sua morte. No último desejo e testamento,
deixou aquilo que, ao morrer, nenhum outro homem fora capaz de deixar, a
saber, Seu corpo, sangue, alma e divindade, pela vida do mundo.
15

A RECUSA A SER UM REI DE PÃO

O anúncio da eucaristia gerou uma das maiores crises de sua vida. A promessa
de dar Seu corpo, sangue, alma e divindade para as almas dos homens O fez
perder muito do que ganhara. Até o momento, teve quase todos atrás de Si:
primeiro, as multidões ou as pessoas comuns; depois, a elite, os intelectuais e os
líderes espirituais; e, por fim, os próprios apóstolos. No entanto, essa doutrina
espiritual grandiosa era demais para eles. O anúncio da eucaristia dividiu seus
seguidores. Não é de espantar que haja tal divisão de seitas no cristianismo
quando cada homem decide por si mesmo se aceita um segmento do círculo da
verdade do Cristo ou todo o círculo. O próprio Senhor foi responsável por isso.
Pediu uma grande demonstração de fé à maioria dos homens. Sua doutrina era
por demais sublime. Se tivesse tido uma mentalidade um pouco mais
mundana, se só tivesse permitido que Suas palavras fossem tomadas como
figuras de linguagem, se fosse menos imperativo, poderia ter sido mais popular.
No entanto, ele inquietou todos os seguidores. O Calvário seria o conflito
armado; esse foi o início da guerra fria. O Calvário seria a crucifixão física; essa
era a crucifixão social.
Perdeu as multidões. Criou um cisma entre os discípulos; enfraqueceu até
mesmo o grupo dos apóstolos.
Perdeu as multidões: as massas, em geral, só se interessam por maravilhas
e segurança. Quando multiplicou os pães e peixes, ele os deixou assustados.
Quando encheu-lhes a barriga, satisfez-lhes o senso de justiça social. Esse era o
tipo de rei que desejavam, um rei de pão: “Afinal, o que mais a religião tem a
oferecer ao homem a não ser dar-lhe segurança social?”, pareciam perguntar. As
multidões tentaram forçá-Lo a se tornar rei. Era isso que Satanás queria
também! Encher as bocas, transformar pedras em pães e prometer prosperidade
— essa é a finalidade da vida da maioria dos mortais.
Entretanto, Nosso Senhor não teria um reinado com base na economia da
prosperidade. Torná-Lo rei era o ofício do Pai, não deles: Seu reinado seria de
corações e almas, não para saciar o trato digestivo. Assim, o Evangelho nos diz
que Ele rumou para as montanhas sozinho, para escapar da falsa coroa e da
espada de lata.
Como as multidões estavam próximas da salvação! Queriam vida; Ele
queria dar a vida. A diferença estava na interpretação de vida. É ofício do
Cristo conquistar seguidores por programas sociais elaborados? Essa é uma
forma de vida. Ou é ofício de Cristo estar disposto a perder todos os guiados
pelo estômago à custa de alcançar poucos com fé, aos quais será dado o Pão da
Vida e o Vinho que fecunda as virgens? Daquele dia em diante, Cristo não
conquistou mais as multidões; dentro de vinte meses, elas gritariam:
“Crucifica-o”, enquanto Pilatos diria “Eis o rei dos judeus”. Cristo não pode
manter todos unidos: é Sua culpa, Ele é demasiado divino, demasiado
interessado nas almas, demasiado espiritual para a maioria dos homens.
Naquele dia também perdeu outro grupo: a elite, os líderes intelectuais e
religiosos. Eles o aceitariam como um reformador pacífico e gentil que “não
extinguirá a mecha que fumega” (Isaías 42,3), mas quando veio a dizer que
daria a própria vida, de modo mais profundo do que uma mãe dá a vida a uma
criança de peito, isso foi demais. Portanto, nos diz o Evangelho:

Muitos dos seus discípulos, ouvindo-o,


disseram: Isto é muito duro!
Quem o pode admitir?
(São João 6,60)

Desde então, muitos dos seus discípulos


se retiraram e já não andavam com ele.
(São João 6,66)

Nosso Senhor Santíssimo, por certo, nunca teria permitido que o


deixassem caso não tivessem compreendido o que dissera, ou seja, que Ele nos
daria sua própria vida para que pudéssemos viver. Só podia ser que,
compreendendo corretamente, não conseguiram engolir isso. E ele permitiu
que partissem. Ao saírem, disse-lhes:

Isso vos escandaliza?


Que será, quando virdes subir o Filho do Homem
para onde ele estava antes?...
(São João 6,61-62)

É claro que isso lhes desafiou a fé. Os homens não têm raciocínio? O que
ele esperava que acreditassem? Que Ele era Deus? Que toda palavra que dizia
era verdade absoluta? Que ele seria capaz de dar às almas famintas a mesma
vida divina que viam diante de Seus olhos naquele momento? Por que não
esquecer esse Pão da Vida e torná-lo uma figura de linguagem? Assim, Nosso
Senhor os viu partir, e eles nunca mais voltaram. Um dia seriam encontrados
instigando as massas contra Jesus, pois ainda que não O tivessem deixado pelo
mesmo motivo, concordavam que deveriam retirá-Lo do meio deles.
Cristo perdeu tanto o joio como o trigo quando falou de Si como o Pão
da Vida. Agora, todavia, veio a ruptura que Lhe causou o maior dos pesares —
um pesar tão grande que, mil anos antes, fora profetizado como uma das
dilacerações humanas que torturariam Sua alma — a perda de Judas. Muitos
ficam a imaginar por que Judas rompeu com Nosso Senhor. Imaginam que foi
somente no fim da vida de Nosso Senhor e que foi somente por amor ao
dinheiro que foi forçado a romper. Era, de fato, avareza, mas o Evangelho nos
conta a história surpreendente de que Judas afastou-se de Nosso Senhor no dia
em que este anunciou que daria a própria carne pela vida do mundo. No meio
dessa longa história do Corpo e Sangue de Cristo, o Evangelho nos conta que
Nosso Senhor sabia quem O trairia. Ao demonstrar a Judas que sabia, disse:

Não vos escolhi eu todos os 12?


Contudo, um de vós é um demônio!...
(São João 6,70)
Diante da promessa do Pão dos Céus, Judas despedaçou-se; e ao dar a
Eucaristia na noite da Última Ceia, Judas rompeu abertamente e O traiu.
Nosso Senhor, agora, marchava praticamente sozinho. Havia apenas 120
pessoas esperando por seu Espírito no Pentecostes. Perdera todos os três tipos:
viu as multidões O abandonarem, a elite partir e Judas preparar-se para traí-Lo.
Dessa maneira, voltou-se àquele a quem Ele associara tão intimamente consigo,
o homem cujo nome Ele mudara de Simão para Pedro, ou Rocha, e disse-lhe:

Quereis vós também retirar-vos?


Respondeu-lhe Simão Pedro:
Senhor, a quem iríamos nós?
Tu tens as palavras da vida eterna.
E nós cremos e sabemos que
tu és o Santo de Deus!
(São João 6,67-69)

O coração de Cristo, contudo, já trazia em si a Cruz. Um de seus 12 era


um traidor. A elite, que estava dividida entre si, agora se uniria contra Ele. E os
cinco mil que estiveram em contato com Sua mão recusaram-se a estar em
contato com o Seu coração. As forças estavam convergindo para “a hora”.
16

PUREZA E PROPRIEDADE

No início de Sua vida pública, o objetivo de Nosso Senhor era, por meio dos
milagres, dos ensinamentos e do cumprimento das profecias, vincular os
apóstolos a Si mesmo a ponto de que pudessem evitar a pressão externa e a
rebelião natural da carne contra Ele como Servo Sofredor. No entanto, mesmo
quando se tornaram devotados a Ele e aceitaram-No como Messias e Filho de
Deus, recusavam a ideia da crucifixão, mesmo quando o Senhor disse que esta
seria seguida pela Ressurreição. Eram como indiozinhos, todos querendo ser o
cacique. A escuridão em que sua morte os lançou era outra prova do quanto
estavam pouco preparados para o escândalo da Cruz. Não é de surpreender que
Nosso Senhor não tenha falado com mais frequência sobre a Cruz, pois o
pouco que ouviram não quiseram ouvir ou entenderam mal.

Muitas coisas ainda tenho a dizer-vos,


mas não as podeis suportar agora.
(São João 16,12)

Para preparar-lhes a alma para a obra de Sua vida e indicar as condições


sob as quais entrariam em Seu Reino, o Salvador, entre outros assuntos,
estendeu-se particularmente sobre a pureza e a pobreza. Sexo desregrado podia
tornar-se luxúria; desejo desregulado por propriedade podia tornar-se avareza.

PUREZA
O assunto veio à tona quando os fariseus vieram perguntar ao Senhor se era
lícito ao marido repudiar a mulher por qualquer motivo. A razão por que os
fariseus fizeram essa pergunta era por conta de uma discussão entre duas escolas
rivais de teologia judaica, a escola de Hilel e a de Shamai. Uma escola defendia
que o divórcio podia ser dado por motivos triviais; a outra exigia prova de
pecado grave antes que aprovasse o divórcio. A questão era ainda mais
complicada pelo fato de o divórcio naquela época estar se tornando muito
comum; os romanos, que eram os senhores do país, praticavam-no aberta e
flagrantemente. Além disso, Herodes, o governador do país sob o domínio de
Roma, estava vivendo com a esposa do irmão e assassinara João Batista.
O Divino Salvador, em resposta à pergunta, reafirmou o que já tinha dito
no Monte e que também era defendido desde o princípio quanto à relação
entre marido e mulher.

Assim, já não são dois, mas uma só carne.


Portanto, não separe o homem o que Deus uniu.
(São Mateus 19,6)

Quando os discípulos ouviram os comentários de Nosso Bendito Senhor


sobre esse assunto — embora alguns talvez fossem casados, incluindo Pedro,
com certeza — foram ao extremo oposto e concluíram:

É melhor não se casar!


(São Mateus 19,11)

Aqui o Salvador respondeu que, porque há infidelidade em alguns


casamentos, deve haver outros que equilibrem os excessos pela abnegação. Se
há excessos da carne, deve haver aqueles que renunciarão até mesmo a prazeres
da carne legítimos; se há desordem na busca da propriedade, deve haver
alguém que voluntariamente praticará a pobreza; se há os que são orgulhosos,
deve haver outros que nem sequer insistirão nos próprios direitos, mas farão
reparação dos atos de orgulho por humildade.
Nosso Senhor disse aos apóstolos que, no entanto, não deviam pensar que
era melhor não se casar. Ao contrário, disse Ele:

Nem todos são capazes de compreender o sentido desta


palavra, mas somente aqueles a quem foi dado.
Porque há eunucos que o são desde o ventre de suas mães,
há eunucos tornados tais pelas mãos dos homens e
há eunucos que a si mesmos se fizeram
eunucos por amor do Reino dos céus.
Quem puder compreender, compreenda.
(São Mateus 19,11-12)

O celibato é recomendado como um meio mais sábio, mas não é exigido


da maioria. Mais tarde, Pedro deixou a esposa para pregar o Evangelho.
Quando Nosso Bendito Senhor recomendou o celibato, era bem provável que
os discípulos não estivessem pensando nessa condição como algo aplicado a
eles mesmos, mas, ao contrário, estavam objetando à severidade do ensino do
Mestre, alegando que dissuadiria os homens de se casar. A resposta dele mostra
que tinham compreendido o que o Mestre queria dizer. O erro deles estava em
não perceber a que alturas sacrificiais Ele chamaria os homens por causa de Seu
Reino. Aquele que fundou a sociedade e que conhecia as compulsões do
instinto sexual, ainda assim abriu espaço para alguns que seriam celibatários.
Alguns nascem eunucos; outros, como Orígenes, tornam-se equivocadamente
eunucos; mas há uma terceira classe, aqueles que, não por um ato físico, mas
por um ato de renúncia e abnegação voluntária, abrem mão do prazer da carne
pelas alegrias do espírito; é a estes que chamou eunucos pelo Reino dos Céus.
Mais tarde, São Paulo, ouvindo sobre essa doutrina, escreveu:

Quisera ver-vos livres de toda preocupação.


O solteiro cuida das coisas que são do Senhor,
de como agradar ao Senhor.
O casado preocupa-se com as coisas do mundo,
procurando agradar à sua esposa,
[e assim fica dividido.]
(1 Coríntios 7,32-34)

O casamento é honroso; em momento algum Nosso Senhor disse que


macula o senso espiritual ou as relações do homem com Deus; mas no celibato
ou na virgindade a alma o escolhe como amante exclusivo.

PROPRIEDADE

Assim como o sexo é um instinto dado por Deus para a perpetuação da raça
humana, também o desejo de propriedade como um prolongamento do ego de
alguém é um direito natural sancionado pela lei natural. Uma pessoa é livre
interiormente porque pode chamar sua alma de sua; é livre exteriormente
porque pode chamar a sua propriedade de sua. Liberdade interior baseia-se no
fato de que “eu sou”; liberdade exterior baseia-se no fato de que “eu tenho”.
Mas, assim como o excesso de carne produz luxúria, pois a luxúria é o sexo no
lugar errado, como a sujeira é a matéria no lugar errado, também pode haver
uma desordem do desejo de propriedade até tornar-se ganância, avareza e
agressão capitalista.
A fim de expiar, reparar e compensar os excessos da avareza e do egoísmo,
Nosso Bendito Senhor dava agora aos apóstolos uma segunda lição de
autossacrifício. A ocasião da primeira lição sobre a pureza foi uma pergunta dos
fariseus acerca do casamento; a ocasião da segunda foi o encontro com um
jovem questionador. Nosso Senhor teve a chance de conquistá-lo como
discípulo; todavia, quando falou da Cruz, perdeu-o. O jovem que veio a Ele era
rico e também funcionário da sinagoga. O desejo de associar-se ao Nosso
Senhor manifestou-se pelo fato de ter chegado ao Mestre correndo e de ter se
prostrado a Seus pés. Não havia dúvidas quanto à retidão do jovem; sua
pergunta a Nosso Senhor foi:

Mestre, que devo fazer de bom


para ter a vida eterna?
(São Mateus 19,16)
Diferentemente de Nicodemos, o jovem não procurou Jesus à noite, mas
reconheceu abertamente a bondade do Mestre. Acreditava não estar muito
longe da grande conquista da vida eterna; tudo de que precisava era apenas
alguma instrução e esclarecimento. O Salvador apontou o fato de que os
homens sabem o suficiente, mas nem sempre praticam o suficiente. E, a fim de
que o jovem não repousasse em alguma ideia imperfeita de bondade, o Senhor
perguntou:

Por que me chamas bom?


Só Deus é bom.
(São Marcos 10,18)

Nosso Senhor não estava fazendo objeções a ser chamado bom, mas a ser
tomado meramente como um bom mestre. O jovem tinha se dirigido a Ele
como um grande mestre, mas ainda homem; reconhecera a bondade, mas
ainda no nível da bondade humana. Se Jesus fosse meramente um homem, o
título de bondade essencial não pertenceria a Ele. Havia escondida na resposta
uma afirmação de Sua divindade. Só Deus é bom. Ele estava, portanto,
convidando o jovem a clamar em alta voz: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus
Vivo”.
O jovem admitiu que guardava os mandamentos desde a mocidade. Com
isso, Nosso Senhor fixou os olhos nele e compadeceu-Se.
Quando o jovem perguntou

Que me falta ainda?,


(São Mateus 19,20)

Nosso Senhor respondeu:

Se queres ser perfeito,


vai, vende teus bens,
dá-os aos pobres
e terás um tesouro no céu.
Depois, vem e segue-me!
(São Mateus 19,21)

Não houve nenhuma condenação da riqueza aqui, assim como não houve
condenação do casamento na pergunta anterior; houve, no entanto, uma
perfeição mais elevada que a humana. Como um homem pode deixar a esposa,
também um homem pode deixar a propriedade. A Cruz exigiria que as almas
renunciassem ao que mais amavam e se contentassem com o tesouro que vem
das mãos de Deus. Alguém pode perguntar por que o Senhor pede tal
sacrifício. O Salvador permitiu que Zaqueu, um coletor de impostos,
preservasse metade de seus bens; José de Arimateia, depois da Crucifixão, foi
descrito como rico; a propriedade de Ananias era dele mesmo; Nosso Senhor
comeu na casa de amigos ricos em Betânia. Mas aqui estava uma questão de
um jovem que perguntou o que ainda lhe faltava no caminho da perfeição.
Quando o Senhor lhe propôs o caminho ordinário da salvação, a saber, guardar
os mandamentos, o jovem não se deu por satisfeito. Buscava algo mais perfeito;
no entanto, quando o perfeito lhe foi proposto, isto é, a renúncia,

O jovem foi embora muito triste,


porque possuía muitos bens.
(São Mateus 19,22)

Há dois meios de demonstrar amor por Deus, um comum e outro


heroico. O comum era guardar os mandamentos; o heroico era renunciar,
tomar a cruz da pobreza voluntária. A honestidade do jovem desvaneceu;
manteve suas posses e perdeu Aquele que lhe daria a Cruz. Embora tenha
ficado com os bens, o jovem foi descrito como indo embora “muito triste”.
Quando o jovem saiu, Nosso Senhor disse aos apóstolos:

Quão dificilmente entrarão no Reino de Deus os ricos! [...]


É mais fácil passar o camelo pelo fundo de uma agulha
do que entrar o rico no Reino de Deus.
(São Marcos 10,23-25)
Nosso Senhor, então, voltou-se aos discípulos, a quem chamara ao
caminho perfeito, e usou esse incidente para falar-lhes sobre as virtudes da
pobreza. Assim como os discípulos antes tinham se perguntado se alguém
deveria casar-se, agora se perguntavam como é que alguém poderia ser salvo.
Os discípulos estavam “espantados” e perguntaram:

Quem pode então salvar-se?


(São Marcos 10,26)

Poderíamos nos perguntar o que passava na cabeça de um dos discípulos


que estava, mesmo naquele momento, surrupiando da bolsa destinada aos
pobres. Os discípulos eram aqueles que tinham ao menos implicitamente
associado as riquezas com as bênçãos dos céus, assim como na história
moderna não faltou quem considerasse que o favor divino sempre era
conhecido pela prosperidade econômica. O rico chegou ao topo porque Deus
o abençoou, dizem, e os pobres vão para a base porque Deus não os favoreceu.
Ora, dizer que a riqueza era um obstáculo para o Reino de Deus era, de outro
modo, o “escândalo da Cruz”. Os apóstolos sabiam que tinham renunciado aos
barcos e às redes de pesca, por menores que fossem; mas ainda não se sentiam
suficientemente livres da avareza para ser salvos. Foi esse aguilhão divino de sua
consciência que os fez se perguntar acerca da salvação, como na noite da
Última Ceia todos perguntariam: “Sou eu?”. Visto que os olhos divinos
estavam fixos neles, os discípulos perguntavam-se sobre o estado de suas almas.
O Mestre Divino não lhes contou que estavam sendo rigorosos no julgamento
de si mesmos. Jesus respondeu à pergunta deles acerca da salvação:

Jesus olhou para eles e disse:


Aos homens isto é impossível,
mas a Deus tudo é possível.
(São Mateus 19,26)

Porque um camelo não pode passar pelo furo de uma agulha, seria muito
exagerado dizer que a mesma impossibilidade se põe no caminho da salvação
do homem; pois sempre há a possibilidade divina.
Pedro, mais uma vez agindo como porta-voz dos apóstolos, pediu mais
explicações desse problema econômico de renunciar à propriedade. Ele ouvira
Nosso Senhor falar da grandeza da recompensa reservada àqueles que O
seguissem. Sabendo que tinham deixado seus negócios no mar a fim de segui-
Lo, perguntou Pedro:

Eis que deixamos tudo para te seguir.


Que haverá então para nós?
(São Mateus 19,27)

Os apóstolos, evidentemente, não tinham deixado tantos bens materiais


quanto o jovem rico teria de abandonar; mas não é a quantidade a que alguém
renuncia que importa, mas o fato de que terá aberto mão de tudo. A caridade
deve ser medida não pelo que foi distribuído, mas pelo que foi renunciado.
Aqueles que optam por Cristo devem escolhê-Lo por amor a Ele, não por causa
da recompensa. Foi só depois de terem se comprometido integralmente a
segui-Lo que o Senhor falou de recompensa. Ele tinha recomendado a cruz;
agora, falaria da glória que seria a consequência inevitável:

Em verdade vos declaro:


no dia da renovação do mundo,
quando o Filho do Homem estiver sentado no trono da glória,
vós, que me haveis seguido,
estareis sentados em 12 tronos
para julgar as 12 tribos de Israel.
(São Mateus 19,28)

O Senhor os convidou a olhar para a grande regeneração, para uma nova


ordem divina das coisas. O Filho do Homem que teria a Cruz na terra teria a
glória no céu.
Quanto a eles, haveriam de ser as pedras fundamentais dessa nova ordem.
Israel tinha sido fundada a partir dos 12 filhos de Jacó; assim também a nova
ordem haveria de fundar-se nesses 12 apóstolos, que deixaram tudo por Ele.
No novo Reino, uma glória peculiar lhes seria dada como patriarcas da nova
ordem. João, que estava entre eles no momento, mais tarde escreveria:

A muralha da cidade tinha 12 fundamentos


com os nomes dos 12 apóstolos do Cordeiro.
(Apocalipse 21,14)

Desenvolvendo a ideia de recompensa para aqueles que renunciam a seus


bens, Jesus disse:

Em verdade vos digo:


ninguém há que tenha deixado casa ou irmãos,
ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou filhos, ou terras
por causa de mim e por causa do Evangelho
que não receba, já neste século, cem vezes mais casas,
irmãos, irmãs, mães, filhos e terras,
com perseguições e no século vindouro a vida eterna.
(São Marcos 10,29-30)

A “perseguição” foi incluída entre as recompensas, não como perda, mas


como ganho. A recompensa centuplicada viria nem tanto apesar da
perseguição, mas por causa dela. Se fossem fiéis até a morte, receberiam a coroa
da vida; pois as aflições deste mundo não hão de se comparar às alegrias por vir.
Assim, o Mestre deixou a marca do Calvário na carne e nas posses deles,
dizendo aos apóstolos que renunciassem àquilo que outros desejariam manter.
Pedro, que perguntara o que ganharia por ter deixado os barcos, já tinha sido
informado de que seria o timoneiro da barca de Pedro, ou seja, a Igreja. Pedro
nunca se esqueceu daquele dia, quando Nosso Senhor falou das bênçãos e
incluiu a “perseguição” como algo bom. Mais tarde, em meio a alegrias e
perseguições, escreveu:

Alegrai-vos em ser participantes dos sofrimentos de Cristo,


para que vos possais alegrar e exultar
no dia em que for manifestada sua glória.
Se fordes ultrajados pelo nome de Cristo,
bem-aventurados sois vós, porque o Espírito de glória,
o Espírito de Deus repousa sobre vós.
(1 São Pedro 4,13-14)
17

O TESTEMUNHO DO SENHOR ACERCA DE SI


MESMO

Quanto mais uma pessoa se aproxima de Deus, menos digno se sente. Uma
pintura à luz de velas mostra menos defeitos que sob o brilho do sol; assim
também as almas que estão a alguma distância de Deus sentem-se mais
persuadidas da própria integridade moral que as muito próximas Dele. Aqueles
que deixaram os holofotes e os encantamentos do mundo e, por anos, são
irradiados pelo semblante do Cristo são os primeiros a reconhecerem-se
sobrecarregados pelo grande fardo do pecado. São Paulo, que é tão edificante
para os homens, denomina-se “o primeiro dos pecadores” (1 Timóteo 1,15).
Na presença da mais santa das criaturas, a alma acusa-se e fica de coração
partido com o peso das próprias faltas. Assim como os homens maus sentem
mais a própria culpa diante de um bebê inocente do que em companhia
daqueles que são maus como Ele, do mesmo modo, quem ama a Deus é mais
profundamente afligido pela sensação da própria indignidade.
No entanto, Cristo, Nosso Senhor Bendito, que afirmou ser um com
Deus, vez alguma confessou um pecado ou uma imperfeição. Vagamente, isso
pode ser atribuído à aridez moral, já que sua análise do pecado nos outros era
tão penetrante. Que homem há no mundo que possa postar-se corajosamente
diante da multidão e dizer:

Quem de vós me acusará de pecado?


(São João 8,46)
Ainda que Nosso Senhor Santíssimo tenha se envolvido com pecadores,
nunca existiu uma ínfima suspeita contra sua inocência sem mácula. Disse aos
discípulos para rezar “perdoai nossas ofensas”, mas nem mesmo na última
agonia teve de pronunciar tal prece. Perdoou os pecados de outrem, em Seu
nome: “Teus pecados te são perdoados” (São Lucas 5,20) e nunca pediu
perdão. Enfrentou o desafio: “Se não podeis detectar uma falha moral em meu
escudo, então me creditai com a verdade”. Porque era sem pecado, afirmou sua
posição de tal maneira que fazia afirmações sobre toda a humanidade, como,
por exemplo, denominar-se “a Luz” de um mundo em trevas:

Eu sou a luz do mundo;


aquele que me segue
não andará em trevas,
mas terá a luz da vida.
(São João 8,12)

Notemos, não é seu ensinamento que é a luz do mundo, mas sim Ele.
Assim como só existe um sol para iluminar fisicamente o mundo, também
afirmava que Ele era a única luz para o mundo espiritual; sem Ele, toda alma
estaria envolvida em trevas. Assim como a poeira em um cômodo não pode ser
vista até que a luz entre, igualmente, nenhum homem pode conhecer a si até
que essa luz lhe mostre sua verdadeira condição. Ele, se fosse apenas um
homem bom, nunca poderia alegar ser a luz do mundo; pois a Ele se aferrariam
algumas armadilhas e falhas, até da melhor natureza humana. Buda escreveu
um código que disse ser útil para guiar os homens nas trevas, mas nunca alegou
ser a luz do mundo. O budismo nasceu de um desgosto com o mundo, quando
o filho de um príncipe deixou mulher e filho, voltando-se dos prazeres da
existência para os problemas da existência. Abrasado pelas chamas do mundo e
delas já enfastiado, Buda voltou-se para a ética.
Entretanto, Nosso Senhor nunca teve esse sentimento de
descontentamento. Se Ele era a luz, não era por ter se ferido tropeçando nas
trevas. Maomé admitiu, ao morrer, que não era a luz do mundo, mas disse:
“Temente, suplicante, buscando abrigo, fraco e necessitado de misericórdia,
confesso meu pecado diante de Ti, apresentando minha súplica como o pobre
implora ao rico”. Confúcio estava tão coberto pelas trevas do pecado que
nunca fez tal alegação. Ele admitiu:

Não fui capaz de praticar a virtude corretamente, não fui capaz


de proclamar ou buscar corretamente o que aprendi, fui
incapaz de mudar o que estava errado — esses são os meus
pesares [...]. Em conhecimento, talvez, iguale-me a outros
homens, mas não fui capaz de transformar a essência do que é
nobre em atos.

Antes da morte, Buda disse a Ananda, o discípulo preferido: “As doutrinas


e as leis, ó Ananda, que ensinei e proclamei para ti, elas devem ser tuas mestras
quando eu te deixar”.
Nosso Senhor deixou o mundo sem nenhuma mensagem escrita. Sua
doutrina era Ele mesmo. O ideal e a história identificavam-se Nele. A verdade
que todos os outros mestres da ética proclamaram e a luz que trouxeram ao
mundo não estavam neles, mas fora deles. Nosso Senhor Santíssimo, no
entanto, identificava a sabedoria divina consigo mesmo. Foi a primeira vez na
história que isso foi feito, e, desde então, jamais o foi.
Ele ampliou essa identificação de Sua personalidade com a sabedoria
quando disse:

Eu sou o caminho, a verdade e a vida;


ninguém vem ao Pai senão por mim.
Se me conhecêsseis,
também certamente conheceríeis meu Pai [...].
(São João 14,6-7)

Isso equivale a dizer que sem o caminho não há como ir; sem a verdade
não há conhecimento; sem a vida não há viver. O caminho se torna adorável,
não quando está em códigos abstratos e mandamentos, mas quando é pessoal.
Assim como Platão certa vez disse: “É difícil descobrir o pai do mundo, e
quando descoberto, não pode ser comunicado”. A resposta de Nosso Senhor a
Platão teria sido que descobrir o pai do mundo é difícil, a menos que ele seja
revelado pela pessoa de seu filho.
Não há tal coisa como buscar primeiro a verdade e depois achar Cristo,
como tampouco há motivo para acender velas a fim de encontrar o sol. Assim
como as verdades científicas nos colocam em uma relação inteligente com o
cosmo e como a verdade histórica nos coloca em uma relação temporal com a
ascensão e queda das civilizações, do mesmo modo Cristo nos insere em uma
relação inteligente com Deus Pai, pois Ele é a única Palavra possível pela qual
pode dirigir-se a um mundo de pecadores.

Todas as coisas me foram dadas por meu Pai;


ninguém conhece o Filho, senão o Pai,
e ninguém conhece o Pai, senão o Filho
e aquele a quem o Filho quiser revelá-lo.
(São Mateus 11,27)

A vida reside Nele em virtude de uma comunicação eterna com o Pai.


Todos os que vieram antes Dele, que virão depois Dele e que podem oferecer
qualquer outra via diferente Dele mesmo Jesus compara a ladrões e salteadores
da humanidade.

Em verdade, em verdade vos digo: eu sou a porta das ovelhas.


Todos quantos vieram antes de mim foram ladrões e
salteadores,
mas as ovelhas não os ouviram.
Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim será salvo;
tanto entrará como sairá e encontrará pastagem.
(São João 10,7-10)

Jamais alguém fez da própria personalidade condição para assegurar a paz


ou a vida eterna. Nosso Senhor, no entanto, identificou a personalidade com
uma porta; é o símbolo da separação por que de um lado está o mundo e, do
outro, o lar; mas também é um sinal de proteção, hospitalidade e
relacionamento. Como a antiga cidade de Troia nada tinha senão um portão,
da mesma maneira Nosso Senhor disse que Ele é a única porta para a salvação.
Estando unida a Ele, chamou-a de lugar de encontro, onde Ele e as almas
encontram-se no êxtase do amor. “Vá e venha à vontade”, parece indicar uma
união tanto da vida contemplativa quanto da vida real, pois a combinação de
uma união interior com Cristo está combinada, aqui, com a obediência prática
em um mundo de ação.
Não só Nosso Senhor identificou toda a verdade e vida consigo mesmo,
como deixou claro sua pretensão de julgar o mundo — algo que nenhum
homem comum jamais faria. Disse que, como juiz de tudo, voltaria mais uma
vez, sentado em um trono de glória e assistido por anjos, para julgar todos os
homens segundo as suas obras. A imaginação recua ao pensar que algum ser
humano fosse capaz de penetrar nas profundezas de todas as consciências,
descobrir todos os motivos ocultos e julgá-los por toda a eternidade.
Entretanto, esse julgamento final estava muito longe e escondido dos olhos dos
homens. Haveria um símbolo ou um ensaio do juízo final que seria a
destruição de Jerusalém, realizada antes do fim da geração da época de Cristo.
Isso também seria um prelúdio da destruição final no fim do mundo, quando o
Reino de Deus seria instituído em sua fase eterna e gloriosa. Ao falar no fim do
mundo, Ele disse:

Então aparecerá no céu o sinal do Filho do Homem.


Todas as tribos da terra baterão no peito
e verão o Filho do Homem vir sobre as nuvens do céu
cercado de glória e de majestade.
Ele enviará seus anjos com estridentes trombetas,
e juntarão seus escolhidos dos quatro ventos,
duma extremidade do céu à outra.
(São Mateus 24,30-31)

Quando Ele vier julgar, não será apenas a área circunscrita da terra em
que trabalhou e revelou-Se; ao contrário, serão todas as nações e impérios do
mundo. O momento da segunda vinda ele conhece, não como homem, mas
somente como Deus. Não dirá senão, como advertência, que será súbito, como
um relâmpago. Veio como o “homem de dores”; então virá em glória. Os
atributos de sua humanidade sofredora serão necessários para sua identificação.
Por isso, após a Ressurreição, manteve as cicatrizes. Com Ele estarão os anjos e
todas as nações serão divididas em duas classes: ovelhas e bodes. Assim como
dividiu os homens na terra em duas classes, a saber, os que O odiavam e os que
O amavam, assim também os dividirá então. “Eu sou o bom pastor”, disse a
respeito de Si mesmo. O título Ele o reivindicaria no último dia pela separação
de seu rebanho de ovelhas do rebanho de bodes.
As ovelhas ouvirão elogios pelo serviço amoroso prestado a Ele, mesmo
quando tiver sido um serviço inconsciente. Há muito mais pessoas amando-o e
servindo-o do que se suspeita. Parece que os mais surpresos de todos serão os
assistentes sociais, que perguntarão: “Quando foi que te vimos com fome? Foi
o caso nº 643?”. Os malvados, por outro lado, descobrir-se-ão recusando-O
quando negarem fazer coisa alguma por seus semelhantes em nome Dele.

Quando o Filho do Homem voltar na sua glória


e todos os anjos com ele, sentar-se-á no seu trono glorioso.
Todas as nações se reunirão diante dele
e ele separará uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas
dos cabritos.
Colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda.
Então o Rei dirá aos que estão à direita: — Vinde, benditos de
meu Pai, tomai posse do Reino que vos está preparado desde a
criação do mundo,
porque tive fome e me destes de comer;
tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes;
nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e
viestes a mim.
Perguntar-lhe-ão os justos: — Senhor, quando foi que te vimos
com fome e te demos de comer, com sede e te demos de beber?
Quando foi que te vimos peregrino e te acolhemos, nu e te
vestimos?
Quando foi que te vimos enfermo ou na prisão e te fomos
visitar?
Responderá o Rei: — Em verdade eu vos declaro: todas as
vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais
pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes.
Voltar-se-á em seguida para os da sua esquerda e lhes dirá: —
Retirai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno destinado
ao demônio e aos seus anjos.
Porque tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me
destes de beber;
era peregrino e não me acolhestes;
nu e não me vestistes; enfermo e na prisão e não me visitastes.
Também estes lhe perguntarão: — Senhor, quando foi que te
vimos com fome, com sede, peregrino, nu, enfermo, ou na
prisão e não te socorremos?
E ele responderá: — Em verdade eu vos declaro: todas as vezes
que deixastes de fazer isso a um destes pequeninos, foi a mim
que o deixastes de fazer.
E estes irão para o castigo eterno, e os justos, para a vida eterna.
(São Mateus 25,31-46)

As palavras de Cristo sugerem que a filantropia tem profundezas maiores


do que, em geral, pensamos. As grandes emoções de compaixão e piedade
levam a Ele; existem mais ações humanas do que estão cientes aqueles que as
praticam. O Senhor identificou cada ato de bondade como expressão de
compaixão para com Ele mesmo. Todo o bem é feito, explícita ou
implicitamente, em Seu nome, ou é recusado, explícita ou implicitamente, em
seu nome. Maomé disse que tinham de ser dadas esmolas, mas não em seu
nome. Nosso Senhor estabeleceu essa condição, mas como simples homem, isso
teria sido uma bobagem. Além disso, só uma vontade onisciente poderia julgar
os motivos por trás de qualquer filantropia para decidir quando foi caridade ou
quando foi autoelogio. Afirmou que o faria e com finalidade tal que as
repercussões seriam eternas. Ele, que era o redentor, disse que também seria o
juiz. É um belo arranjo da Providência que o juiz e o redentor se encontrem na
mesma pessoa.
Quando levamos em conta Suas reiteradas afirmações acerca de Sua
divindade — tais como pedir-nos para amá-Lo mais que aos pais, acreditar
Nele mesmo diante da perseguição, estar prontos para o sacrifício de nossos
corpos para salvar nossas almas em união com Ele —, chamá-Lo apenas de
homem bom é ignorar os fatos. Nenhum homem bom é bom a menos que seja
humilde; e a humildade é o reconhecimento da verdade a respeito de si mesmo.
Um homem que pensa ser maior do que é na realidade não é humilde, mas um
tolo fútil e presunçoso. Como alguém pode alegar prerrogativas de consciência,
a respeito da história, da sociedade e do mundo e ainda afirmar que é “manso e
humilde de coração”? Entretanto, ele é Deus e homem, sua linguagem é
apropriada e tudo o que diz é inteligível. Se, contudo, Ele não é aquilo que diz
ser, então alguns de seus ditos mais preciosos nada são exceto repentes
bombásticos de autoadulação que exalam mais o espírito de Lúcifer que o
espírito de um homem bom. Qual o proveito de proclamar a lei e a
autorrenúncia, se Ele mesmo renuncia a verdade para dizer-se Deus? Até
mesmo Seu sacrifício na Cruz se torna suspeito e coisa datada quando postos
lado a lado com as ilusões de grandeza e arrogância infernal. Não poderia ser
chamado nem mesmo de mestre sincero, pois nenhum mestre sincero
permitiria que alguém interpretasse suas alegações de modo a compartilhar da
categoria e do nome do grande Deus dos céus.
A escolha que se apresenta diante dos homens é a hipótese da
insinceridade culpável ou, de fato, Ele dizia a verdade literal e, portanto, sua
palavra deve ser considerada. É mais fácil acreditar que Deus realizou obras de
prodígio e misericórdia na terra em Seu filho divinal do que fechar os olhos da
moral para o ponto mais brilhante que encontramos na história humana e,
assim, cair em desespero. Não, nenhum ser humano pode ser bom! Ele teria
sido arrogante e blasfemo ao fazer tais afirmações a respeito de Si mesmo. Em
vez de estar acima de Seus seguidores morais que se denominam cristãos,
estaria infinitamente abaixo do nível do pior deles. É mais fácil acreditar
naquilo que Ele disse a respeito de Si, a saber, que Ele é Deus, do que explicar
como o mundo poderia ter aceito como modelo um mentiroso rematado, um
bufão soberbo. É só porque Jesus é Deus que o caráter humano de Jesus é uma
manifestação do divino.
Devemos lamentar sua loucura ou adorar sua pessoa, mas não podemos
nos basear no pressuposto de que era um mestre de cultura ética. Ou alguém
pode dizer com Chesterton:
Esperar que a relva secasse e os pássaros caíssem mortos da
altura de seus voos, quando um aprendiz de carpinteiro em sua
lenta caminhada dissesse calmamente, quase por acaso, como
quem está atento a alguma outra coisa: “Antes que Abraão
existisse, eu sou”.17

O sargento romano, que tinha os próprios deuses e fora endurecido pela


guerra e pela morte, veio a responder durante a crucificação, quando ambas,
razão e consciência, afirmaram a verdade:

Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus!


(São Mateus 27,54)
Nota

17 | G. K. Chesterton, O Homem Eterno. Trad. Almiro Pisetta. São Paulo: Mundo Cristão,
2010, p. 210. (N. T.)
18

TRANSFIGURAÇÃO

Três cenas importantes da vida de Nosso Senhor aconteceram nas montanhas.


Em uma delas, pregou as bem-aventuranças, cuja prática seria crucificada pelo
mundo; na segunda, mostrou a glória que estava além da Cruz; e, na terceira,
ofereceu-Se a Si mesmo na morte como prelúdio de Sua glória e de todos os
que cressem em Seu nome.
O segundo incidente ocorreu a algumas semanas, no máximo, do
Calvário, quando levou consigo para a montanha Pedro, Tiago e João —
Pedro, a Rocha; Tiago, destinado a ser o primeiro apóstolo mártir; e João, o
visionário da glória futura do Apocalipse. Esses três estavam presentes quando
Ele ressuscitou a filha de Jairo. Os três precisavam aprender a lição da Cruz e
corrigir as falsas concepções do Messias. Pedro protestara veementemente
contra a Cruz, enquanto Tiago e João estavam em busca do trono. Os três,
mais tarde, cairiam no sono no Jardim do Getsêmani durante a agonia do
Senhor. Para crer no Calvário, tinham de ver a glória que brilhava para além do
martírio da Cruz.
No topo da montanha, depois de orar, Jesus transfigurou-Se diante deles,
quando a glória de Sua divindade reluziu através dos fios das vestes terrenas.
Não era tanto uma luz que estava brilhando desde fora, mas a beleza da
divindade que brilhava desde dentro. Não era a plena manifestação da
divindade que nenhum homem da terra podia ver; nem era Seu corpo
glorificado, pois ainda não tinha ressurgido dos mortos, mas havia ali uma
manifestação da glória. Seu berço, o ofício de carpinteiro, o opróbrio
suportado dos inimigos era uma humilhação; convenientemente, tinha de
haver também epifanias da glória, como o cântico dos anjos em Seu
nascimento e a voz do Pai durante o batismo.
Agora, enquanto se aproximava do Calvário, uma nova glória o circunda.
Mais uma vez a voz o investe com os trajes do sacerdócio, para oferecer
sacrifício. A glória que brilhava em torno Dele como no Templo de Deus não
era algo com que Ele foi investido exteriormente, mas a expressão natural da
graça inerente “daquele que desceu do Céu”. O milagre não era o brilho
momentâneo em torno Dele; ao contrário, era que em todo o restante do
tempo fosse reprimido. Assim como Moisés, depois de comungar com Deus,
pôs um véu sobre o rosto para ocultá-lo do povo de Israel (Êxodo 34,29-35),
também Cristo velou Sua glória na humanidade. Entretanto, por esse breve
momento, retirou o véu, de modo que os homens podiam vê-la; a emanação
desses raios era a proclamação transitória a cada olho humano do Sol da
Justiça. À medida que a Cruz se aproxima, Sua glória aumenta. Assim, pode ser
que a chegada do Anticristo ou a crucifixão final do bem seja precedida por
uma glória extraordinária de Cristo em seus membros.
No homem, o corpo é um tipo de prisão da alma. Em Cristo, o Corpo era
o Templo da Divindade. No Jardim do Éden, sabemos que o homem e a
mulher estavam nus, mas não se envergonhavam. E isso porque a glória da
alma antes do pecado brilhava pelo corpo e se tornava uma espécie de traje.
Aqui também, na Transfiguração, a divindade brilhava através da humanidade.
Isso provavelmente era muito mais natural para Cristo do que ser visto de
qualquer outra forma, ou seja, sem essa glória. O resplendor teve de ser contido
para ocultar a divindade que estava Nele.

Enquanto orava, transformou-se o seu rosto


e as suas vestes tornaram-se resplandecentes de brancura.
E eis que falavam com ele dois personagens:
eram Moisés e Elias, que apareceram envoltos em glória,
e falavam da morte dele, que se havia de cumprir em
Jerusalém.
(São Lucas 9,29-31)

O Antigo Testamento vinha encontrar-se com o Novo. Moisés, o “editor”


da Lei, Elias, o chefe dos profetas — ambos foram vistos brilhando à Luz do
Próprio Cristo que, como Filho de Deus, deu a Lei e enviou os profetas. O
assunto da conversa de Moisés, Elias e Cristo não foi o que tinha ensinado,
mas Sua morte sacrificial; foi Seu dever como Mediador que cumpriu a Lei, os
Profetas e os Decretos Eternos. Cumprida a missão deles, apontaram para Jesus
a fim de verem a Redenção consumada.
Assim, Jesus manteve diante de Si o alvo de ser “contado entre os
transgressores”, como profetizara Isaías. Até nesse momento de glória a Cruz é
o tema do discurso com os visitantes celestiais. No entanto, era a morte
vencida, o pecado expiado e o sepulcro vazio. A luz da glória que envolveu a
cena era uma alegria como o “já posso morrer”, que Jacó disse ao ver José
(Gênesis 46,30), ou como o Nunc Dimittis, que Simeão pronunciou ao ver o
Menino Deus. Ésquilo, em seu Agamenon, descreve um soldado que volta à
terra natal depois da Guerra de Troia e em sua alegria diz que estava pronto
para morrer. Shakespeare põe essas mesmas palavras alegres na boca de Otelo
depois dos perigos da viagem:

A morte, agora, para mim seria


Uma felicidade, pois tão grande
É a ventura que da alma se me apossa,
Que não pode, receio-o, reservar-me
Outra igual o futuro nebuloso.18

No caso de Nosso Senhor, foi como São Paulo disse: “Em vez de gozo que
se Lhe oferecera, Ele suportou a cruz” (Hebreus 12,2).19
O que os apóstolos observaram como particularmente belo e glorificado
era Seu rosto e Suas vestes — o rosto que mais tarde estaria salpicado com o
sangue que escorreria de uma coroa de espinhos; e as vestes, que logo seriam
trocadas por uma túnica desprezível com que Herodes O vestiria como
escárnio. O tecido de luz que agora O vestia seria trocado pela nudez quando
Ele fosse maltratado em outra montanha.
Enquanto os apóstolos permaneciam no que parecia ser um vestíbulo do
céu, formou-se uma nuvem que os cobriu:

Falava ele ainda, quando veio


uma nuvem luminosa e os envolveu.
E daquela nuvem fez-se ouvir
uma voz que dizia:
Eis o meu Filho muito amado,
em quem pus toda minha afeição; ouvi-o.
(São Mateus 17,5)

Quando Deus faz aparecer uma nuvem, é um claro sinal de que há


grilhões que o homem não ousa romper. Em Seu batismo, os céus se abriram;
agora, na Transfiguração, abriram-se novamente para empossá-Lo no posto de
Mediador, e para distingui-Lo de Moisés e dos profetas. Era o próprio céu que
O estava enviando em missão, não a vontade pervertida dos homens. No
batismo, a voz dos céus dirigia-se ao próprio Jesus; no monte da
Transfiguração, dirigia-se aos discípulos. Os gritos de “Crucifica” seriam demais
para os ouvidos deles se não soubessem que o Filho havia de padecer. Não era a
Moisés nem a Elias que tinham de ouvir, mas àquele que aparentemente
morreria como qualquer outro mestre — e, no entanto, era mais que um
profeta. A voz dava testemunho da união inviolada e indivisa do Pai e do Filho;
também lembrava as palavras de Moisés segundo as quais, no devido tempo,
Deus suscitaria de Israel alguém como Ele, a quem haveriam de ouvir.
Os apóstolos, despertando com o esplendor do que tinham visto,
encontraram seu porta-voz, como quase sempre, em Pedro.

Quando estes se apartaram de Jesus, Pedro disse:


Mestre, é bom estarmos aqui.
Podemos levantar três tendas:
uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias!...
Ele não sabia o que dizia.
(São Lucas 9,33-34)

Uma semana antes, Pedro estava tentando achar um caminho para a


glória, sem Cruz. Agora pensou que a Transfiguração seria um bom atalho para
a salvação por ter um Monte das Bem-Aventuranças ou um Monte da
Transfiguração, sem o Monte do Calvário. Foi a segunda tentativa de Pedro de
dissuadir Nosso Senhor de ir a Jerusalém para ser crucificado. Antes do
Calvário, era o porta-voz de todos aqueles que entrariam na glória sem
comprá-la com renúncia e sacrifício. Pedro, em sua impetuosidade, sentiu
então que a glória que Deus trouxe dos céus e que os anjos cantaram em Belém
podia ser abrigada entre os homens sem uma guerra contra o pecado. Pedro
esqueceu que, assim como a pomba só descansou os pés depois do dilúvio,
também a verdadeira paz só viria depois da Crucifixão.
Como uma criança, Pedro tentou capitalizar e fazer permanente essa
glória passageira. Para o Salvador, era uma antecipação do que estava refletido
do outro lado da Cruz; para Pedro, era uma manifestação de uma glória
messiânica terrena que havia de ser abrigada. O Senhor, que chamou Pedro de
“Satanás” porque insistia em uma coroa sem Cruz, agora ignorava seu
humanismo sem cruz, pois sabia que “Pedro não sabia o que dizia”. Depois da
Ressurreição, entretanto, Pedro saberia. Então se lembraria da cena, dizendo:

Na realidade, não é baseando-nos em hábeis fábulas


imaginadas
que nós vos temos feito conhecer o poder e a vinda de nosso
Senhor Jesus Cristo,
mas por termos visto a sua majestade com nossos próprios
olhos.
Porque ele recebeu de Deus Pai honra e glória,
quando do seio da glória magnífica lhe foi dirigida esta voz:
Este é o meu Filho muito amado, em quem tenho posto todo o
meu afeto.
Esta mesma voz que vinha do céu nós a ouvimos,
quando estávamos com ele no monte santo.
Assim demos ainda maior crédito à palavra dos profetas,
à qual fazeis bem em atender,
como a uma lâmpada que brilha em um lugar tenebroso
até que desponte o dia e a estrela da manhã se levante em
vossos corações.
(2 São Pedro 1,16-19)
Notas

18 | William Shakespeare, Teatro completo: Tragédias. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de
Janeiro: Agir, p. 622. (N. T.)
19 | A autoria do livro de Hebreus é tradicionalmente atribuída a São Paulo. (N. T.)
19

AS TRÊS DISCUSSÕES

Um Deus-homem que sofre é um escândalo. Os homens não gostam de ouvir


a respeito de seus pecados e da necessidade de expiá-los. Por isso, sempre que
Jesus arrastava Sua Cruz e exibia Sua necessidade diante dos apóstolos, eles
começavam a brigar com Ele ou entre si. Ainda estavam obcecados com a ideia
de que o Reino seria político, e não espiritual. Se Ele iria para o Calvário, então
seria melhor que “cobrassem” o mais depressa possível recompensas, postos ou
privilégios que estivessem imediatamente disponíveis. Quanto mais explícita a
predição de sua Cruz, mais as ambições, as invejas e animosidades
aumentavam.
Nada é mais belo no caráter de Nosso Senhor do que a maneira como
preparou os apóstolos para essa lição intragável de derrota aparente como
condição de vitória. Como eles eram lentos para compreender a história de por
que ele deveria sofrer! Não é de admirar que Nosso Senhor falasse abertamente,
mas com raridade, de sua Cruz e Ressurreição. Pois era algo que poucos
podiam entender até depois que viesse a acontecer e o Espírito de Cristo viesse
aos seguidores. Muitas foram as vezes em que falou de Sua morte de maneira
velada, mas houve vezes em que foi explícito sobre o propósito de Sua vinda:

1. Depois da afirmação de Pedro de sua divindade e de conferir o poder


das chaves;
2. Depois de sua transfiguração a caminho de Cafarnaum;
3. Na última viagem a Jerusalém.
Mas que reações estranhas da parte dos apóstolos! Era como se pudessem,
eles mesmos, resgatar dos destroços do Reino algum vestígio de poder e
autoridade. Que a Cruz era a condição pela qual o Reino seria inaugurado
estava muito distante de seus pensamentos.

A PRIMEIRA DISCUSSÃO: CESAREIA DE FILIPE

Quando Nosso Senhor Santíssimo chegou a essa que era a cidade mais ao norte
da Terra Santa, uma cidade com população dividida entre judeus e pagãos,
falou da igreja que instituiria. Entretanto, antes que o fizesse, tinha de deixar
clara a forma de governo que a regeria. Essas poderiam ser três: democrática,
aristocrática e teocrática. A democrática é aquela em que a autoridade e a
verdade são decididas por voto ou por uma maioria aritmética; a aristocrática é
aquela em que a autoridade deriva de uns poucos escolhidos; a teocrática, a que
o próprio Deus oferece e guia a revelação e a verdade.
Ao apelar primeiro à democrática, perguntou aos apóstolos qual era, em
geral, a opinião popular a respeito Dele. Se houvesse uma eleição ou votação
com base no juízo falho dos homens, qual seria a resposta deles a essa questão?

No dizer do povo, quem é o Filho do Homem?


(São Mateus 16,13)

A inabilidade dos homens para concordar a respeito de Sua divindade foi


revelada na resposta:

Uns dizem que é João Batista;


outros, Elias;
outros, Jeremias
ou um dos profetas.
(São Mateus 16,14)

A opinião humana pode dar apenas opiniões conflitantes, contrárias e


contraditórias. As quatro opiniões populares demonstram que Nosso Senhor
desfrutava de uma reputação ilibada entre os compatriotas, mas nenhuma delas
o havia reconhecido por aquilo que Ele era. Herodes Antipas imaginava que
Nosso Senhor era alguém animado pelo espírito de João Batista; outros
pensavam que Ele era Elias porque subira aos céus; e outros, Jeremias, porque
alguns acreditavam que Jeremias viria como o precursor do Messias.
Visto que nenhuma Igreja poderia ser instituída nesse tipo de confusão,
Nosso Senhor, então, voltou-Se para a forma aristocrática de governo ao
perguntar a seus eleitos, seu pequeno parlamento, o grupo dos apóstolos, o
ponto de vista deles.

E vós quem dizeis que eu sou?


(São Mateus 16,15)

A pergunta era para todos os que ouviram seus ensinamentos, viram os


milagres e foram agraciados até mesmo com o poder de operar milagres em
outrem. Essa Câmara Alta não tinha resposta — em parte porque não
concordavam entre si; em cinco minutos estariam discutindo. Judas duvidava
da sagacidade financeira de Jesus; Filipe duvidava de suas relações com o Pai
dos Céus; e todos, mais ou menos, esperavam por algum libertador secular que
poria fim às águias ruidosas de Roma no território deles.
Então, sem pedir ou sem o consentimento dos outros, Pedro adiantou-se
e deu a resposta correta e final:

Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo!


(São Mateus 16,16)

Pedro confessou que Cristo era o verdadeiro Messias, enviado por Deus
para revelar Sua vontade aos homens e cumprir todas as profecias e a lei. Era o
Filho de Deus, gerado desde toda a eternidade, mas também o Filho do
Homem gerado no tempo — verdadeiro Deus e verdadeiro homem.
Nosso Senhor revelou a Pedro que ele não sabia disso por si mesmo:
nenhum estudo ou discernimento natural jamais poderia revelar essa grande
verdade.
Feliz és, Simão, filho de Jonas,
porque não foi a carne nem o sangue
que te revelou isto,
mas meu Pai que está nos céus.
(São Mateus 16,17)

Nosso Senhor chamou-o, primeiro, pelo nome que tinha antes de ser
convocado para ser apóstolo. Então, chamou-o pelo novo nome que Ele lhe
deu, ou seja, Pedro, indicando que era sobre ele, a rocha, que edificaria Sua
Igreja. Nosso Senhor se dirigiu a Pedro na segunda pessoa do singular para
indicar que não era a confissão da divindade feita por Pedro, mas o próprio
Pedro que deveria deter o primado na Igreja.

E eu te declaro: tu és Pedro,
e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja;
as portas do inferno não prevalecerão contra ela.
Eu te darei as chaves do Reino dos céus:
tudo o que ligares na terra será ligado nos céus,
e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus.
(São Mateus 16,18-19)

Depois de prometer que as portas do Inferno, o erro, o mal, nunca


dominariam Sua Igreja, Nosso Senhor fez a primeira de Suas confissões mais
explícitas a respeito de Sua morte iminente. Já tinha dado muitas pistas veladas
a respeito disso, mas os apóstolos foram lentos em reconhecer que o Messias
sofreria como previra Isaías. Deixaram escapar por completo a consequência
daquilo que Ele sugerira ao purificar o templo: que Ele era o templo de Deus e
que o templo seria destruído. Esqueceram-se de seu ensinamento sobre a
serpente erguida como uma profecia de como o Filho do Homem seria erguido
na cruz. Entretanto, agora que o homem a quem escolhera como chefe de Seu
corpo apostólico confessara Sua divindade, mostrou-lhes abertamente que o
caminho da glória, tanto para Si como para eles, levava-os ao sofrimento e à
morte.
Desde então, Jesus começou a manifestar a seus discípulos
que precisava ir a Jerusalém e sofrer muito da parte dos
anciãos,
dos príncipes dos sacerdotes e dos escribas;
seria morto e ressuscitaria ao terceiro dia.
(São Mateus 16,21)

Nosso Senhor não Se manifestou abertamente a respeito de Sua morte


enquanto os apóstolos acreditavam que Ele era somente um homem, mas, uma
vez que fora reconhecido como Deus, falou de maneira franca sobre a morte.
Isso aconteceu para que Sua morte pudesse ser vista à luz apropriada, como um
sacrifício em favor dos pecadores.
Mais uma vez, surgiu o misterioso “dever” que regeu Sua vida. Era a
amarra forte que o unia e era feita de uma urdidura e de uma trama; por um
lado, a obediência ao Pai e, por outro, o amor aos homens. Porque podia salvar,
deveria morrer. O “dever” não era simplesmente uma morte, posto que
imediatamente mencionou a Ressurreição no terceiro dia.
Houve uma conexão intrínseca entre a afirmação da divindade de Cristo e
Sua morte e Ressurreição. No exato momento em que Cristo recebeu o mais
sublime de todos os títulos e foi feita a confissão de sua mais excelsa dignidade,
Ele profetizou sua maior humilhação. Ambas as naturezas de Cristo, a humana
e a divina, estavam envoltas nessa predição, a saber, a do Filho do Homem que
aparecera diante deles e a do Filho do Deus Vivo que acabara de ser
reconhecido.
Pedro estava cheio de orgulho da autoridade que acabara de lhe ser dada,
chamou Nosso Senhor à parte e começou a censurá-Lo, dizendo:

Que Deus não permita isto, Senhor!


Isto não te acontecerá!
(São Mateus 16,22)

Pedro podia aceitar a divindade de Cristo; o sofrimento, não. A pedra


tornara-se pedra de tropeço; Pedro teria, por ora, um meio Cristo, o Cristo
divino, mas não o Cristo redentor. Entretanto, meio Cristo não era Cristo
algum. Teria o Cristo cuja glória foi anunciada em Belém, mas não o Cristo em
pleno orbe, que seria um sacrifício pelos pecados na Cruz.
Pedro pensou: se ele era o Filho de Deus, por que deveria sofrer? Satanás
no monte da tentação tentou-O a fugir da Cruz prometendo popularidade por
intermédio da oferta do pão, da realização de maravilhas científicas ou de
tornar-se um ditador. Satanás não confessou a divindade de Cristo, já que
prefaciou cada tentação com um “se” — “Se és o Filho de Deus”. Crédito seja
dado a Pedro, pois confessou a divindade. Entretanto, juntamente com essa
diferença, havia uma semelhança: ambos, Pedro e Satanás, tentaram Cristo a
fugir de Sua Cruz e, portanto, da redenção. Não redimir estava no pensamento
de Satanás; ter a coroa sem a Cruz era o espírito de Satã. Também era,
contudo, o espírito de Pedro. Assim, Nosso Senhor chamou-o de Satanás:

Afasta-te, Satanás!
Tu és para mim um escândalo;
teus pensamentos não são de Deus,
mas dos homens!
(São Mateus 16,23)

Em um momento desprotegido, Pedro deixou Satanás entrar em seu


coração, tornando-se uma pedra de tropeço no caminho do Calvário. Pedro
acreditava ser indigno que Cristo sofresse, mas, para Nosso Senhor, tais
pensamentos eram humanos, carnais e até mesmo satânicos. Somente pela
iluminação divina, Pedro ou qualquer outro O reconheceriam como Filho de
Deus; mas seria necessária outra iluminação divina para Pedro ou outro
qualquer reconhecê-Lo como redentor. Pedro o teria tomado como mestre de
ética humanitária — mas Satanás, igualmente.
Pedro nunca esqueceu essa reprimenda. Anos depois, ainda tendo em
mente a ideia da pedra de tropeço, escreveu sobre os que se recusam a aceitar o
sofrimento de Cristo como ele o fizera em Cesareia de Filipe:

Mas, para os incrédulos,


a pedra que os edificadores rejeitaram
tornou-se a pedra angular, uma pedra de tropeço,
uma pedra de escândalo.
(1 São Pedro 2,7)

Está evidente que os apóstolos tiveram um porta-voz eloquente em Pedro


e que estavam igualmente estarrecidos com o sofrimento do mestre, visto que,
depois de repreender Pedro, falou a todos os discípulos e ordenou, até à
multidão, que guardassem suas palavras. Aos que, algum dia, professassem ser
seus seguidores, enumerou três condições:

Se alguém me quer seguir,


renuncie-se a si mesmo,
tome a sua cruz e siga-me.
(São Marcos 8,34)

A Cruz foi o motivo de Sua vinda; agora, Ele a tornou o destino de seus
seguidores. Não tornou o cristianismo fácil, pois sugeriu não só que deve existir
uma renúncia voluntária de tudo o que dificulta assemelharem-se a Ele, mas
também deve haver sofrimento, vergonha e morte na cruz. Não têm de alardear
uma trilha de sacrifícios, mas apenas de seguir com zelo a trilha do Homem das
Dores. Nenhum discípulo é chamado para uma tarefa não experimentada. Ele
tomou a cruz primeiro. Somente os dispostos a ser crucificados com Ele podem
ser salvos pelos méritos de Sua morte e somente os que suportam a cruz podem
realmente compreendê-Lo.
Não se questionou se os homens teriam ou não o sacrifício em suas vidas;
foi apenas uma questão de que vida deveriam sacrificar, a vida superior ou a
inferior!

Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á;


mas quem sacrificar a sua vida
por amor de mim, salvá-la-á.
(São Lucas 9,24)
Se a vida física, natural, biológica fosse salva pelo prazer, então a vida
superior do espírito estaria perdida; mas, se a vida superior do espírito fosse a
escolhida para a salvação, então a vida inferior ou física tinha de ser submetida
à cruz e à autodisciplina. Deve haver algumas virtudes naturais sem a cruz,
mas, sem ela, nunca haverá crescimento em virtude.
Carregar a cruz, explicou então, tinha por base a permuta. Permutar
indica algo que a pessoa pode passar bem sem ter. Um homem pode passar
bem sem dez centavos, mas não pode passar bem sem o pão que os dez
centavos podem comprar; então troca um pelo outro. Sacrifício não significa
“desistir” de alguma coisa como se fosse uma perda; antes, é uma permuta:
uma troca de valores inferiores por alegrias superiores. Nada, todavia, em todo
o mundo vale uma alma.

Pois que aproveitará ao homem ganhar o mundo inteiro,


se vier a perder a sua vida?
Ou que dará o homem em troca da sua vida?
(São Marcos 8,36-37)

Nesse exato momento, os apóstolos envergonharam-se Dele porque falava


de Sua derrota e morte. Advertiu a respeito de qualquer um que tivesse
vergonha Dele, de suas palavras ou que O negasse em tempos de perseguição.
Se fosse só um mestre, teria sido absurdo da parte Dele reivindicar que todos os
homens deveriam, aberta e desavergonhadamente, confessá-Lo como Senhor e
Salvador. Teria sido suficiente se declamassem um ou outro de Seus
ensinamentos. Entretanto, aqui, faz disso a condição para ser salvo; que os
homens, com coragem, confessem que Ele, o Filho de Deus, foi crucificado.

Porque, se nesta geração adúltera e pecadora


alguém se envergonhar de mim e das minhas palavras,
também o Filho do homem se envergonhará dele,
quando vier na glória de seu Pai com os seus santos anjos.
(São Marcos 8,38)
A SEGUNDA DISCUSSÃO: CAFARNAUM

O segundo anúncio público de sua Paixão foi depois da transfiguração e da


expulsão do demônio do menino. O mestre e seus apóstolos tinham se
encaminhado em direção a Cafarnaum. Os muitos milagres que Nosso Senhor
realizara entre Cesareia de Filipe e Cafarnaum deixaram os apóstolos muito
agitados.

Todos ficaram pasmados ante a grandeza de Deus.


(São Lucas 9,43)

Os apóstolos começaram a traduzir esse poder em esperança de uma


realeza terrena e uma soberania humana, apesar das lições severas que foram
dadas a respeito da cruz. Esse tipo de entusiasmo religioso, que deixaria a
humanidade sem redenção, Nosso Senhor desaprovou:

Como todos se admirassem de tudo o que Jesus fazia,


disse ele a seus discípulos:
Gravai nos vossos corações estas palavras:
O Filho do Homem há de ser entregue às mãos dos homens!
(São Lucas 9,43-44)

O Filho do homem será entregue nas mãos dos homens,


e matá-lo-ão; e ressuscitará três dias depois de sua morte.
(São Lucas 9,31)

Nosso Senhor repetiu claramente a profecia do Calvário a fim de que,


quando ela acontecesse, seus discípulos não fraquejassem na fé ou o
abandonassem. As repetidas declarações também lhes asseguravam que Ele não
iria para a Cruz por coação, mas como um sacrifício voluntário. A perspectiva
que Nosso Senhor lhes apresentou acerca de Sua morte foi vista com aversão.
Não só se recusaram a prestar atenção como até dispensaram Nosso Senhor de
quaisquer perguntas a esse respeito.
Eles, porém, não entendiam esta palavra e era-lhes obscura,
de modo que não alcançaram o seu sentido;
e tinham medo de lhe perguntar a este respeito.
(São Lucas 9,45)

O segundo anúncio de sua morte e glória provocou uma segunda


discussão. Ao voltar de Cafarnaum, disputavam entre si, mas não ao alcance
dos ouvidos de Nosso Senhor.

Veio-lhes então o pensamento de qual deles seria o maior.


(São Lucas 9,46)

Como deve ter sido superficial a impressão que Nosso Senhor lhes causou
ao falar sobre Sua morte, pois ainda se questionavam sobre a prioridade
naquilo que imaginavam ser uma configuração política e econômica chamada
Reino de Deus! Dos lábios do Divino Mestre ouviram alguma coisa sobre seus
padecimentos, mas agora disputavam sobre classificação. Possivelmente, a
posição mais alta dada a Pedro em Cesareia de Filipe intensificou a disputa;
talvez, também, o fato de Pedro, Tiago e João terem sido escolhidos como
testemunhas da transfiguração tenha despertado ressentimentos. De qualquer
maneira, discutiam, como sempre, todas as vezes que Ele desvelava a Cruz.
Ao saber que a crise estaria próxima quando instituísse o Reino, estavam
agitados pela ambição. Entretanto, Nosso Senhor sabia o que se passava no
coração deles e, ao chegar na casa de Cafarnaum onde, como de costume,
desfrutavam da hospitalidade, provavelmente, de Pedro:

Quando já estava em casa, Jesus perguntou-lhes:


De que faláveis pelo caminho?
Mas eles calaram-se, porque pelo caminho
haviam discutido entre si qual deles seria o maior.
(São Marcos 9,33-34)
As vozes, que eram altas na estrada ao discutir, estavam agora quietas
quando o mestre leu os pensamentos e as próprias consciências os acusavam. A
pouca atenção que deram às Suas palavras a respeito da Cruz pode ser o motivo
para não compreenderem por que Aquele, cheio do poder que viram nos
milagres e na ressurreição de mortos, deveria ser aparentemente tão impotente.
Por que Ele se submeteria à morte se, a qualquer momento, poderia livrar-se
dela? Era um mistério que não podia ser compreendido até que se completasse
e, mesmo depois de seu cumprimento, ainda permanecia um escândalo entre
os judeus e os gregos que não acreditavam. Como escreveu São Paulo aos
coríntios:

Os judeus pedem milagres,


os gregos reclamam a sabedoria;
mas nós pregamos Cristo crucificado,
escândalo para os judeus e loucura para os pagãos;
mas, para os eleitos — quer judeus quer gregos —,
força de Deus e sabedoria de Deus.
(1 Coríntios 1,22-24)

É evidente que o homem natural ou carnal foi orientado para recebê-Lo


como Aquele que veio para trazer um código moral do tipo que pode ser
exposto em exibição nos gramados das igrejas; mas tomá-Lo como Aquele que
veio ao mundo como “resgate” para a humanidade requeria uma sabedoria
superior, como sugeriu São Paulo:

Mas o homem natural


não aceita as coisas do Espírito de Deus,
pois para ele são loucuras.
Nem as pode compreender,
porque é pelo Espírito que se devem ponderar
(1 Coríntios 2,14)
Dessa vez, para corrigir as ideias falsas de superioridade, com grande
solenidade, chamou para Si uma criança:

E, tomando um menino,
colocou-o no meio deles; abraçou-o.
(São Marcos 9,36)

Já que os apóstolos haviam discutido quem era o maior no Reino, Nosso


Senhor, naquele momento, deu a resposta às suas mentes ambiciosas:

Em verdade vos declaro:


se não vos transformardes e
vos tornardes como criancinhas,
não entrareis no Reino dos céus.
Aquele que se fizer humilde como esta criança
será maior no Reino dos céus.
(São Mateus 18,3-4)

O maior de todos os discípulos seria aquele que fosse como uma criança;
pois a criança figura como um representante de Deus e de Seu Divino Filho na
terra. Havia nobreza em seu Reino, mas era oposta à categorização do mundo.
Em seu Reino, a pessoa ascendia por afundar, aumentava por diminuir. Disse
que não veio para ser servido, mas para servir. Ele próprio era a humilhação
exemplificada como a que remontava às profundezas da derrota na cruz. Já que
não compreendiam a cruz, ordenou-lhes que aprendessem da criança a quem
abraçava de todo o coração. Os maiores são os menores e os menores são os
maiores. Honra e prestígio não estão nos que se assentam à cabeceira da mesa,
mas está no que se cinge com uma toalha e lava os pés dos que são seus servos.
Ele, que era Deus, tornou-Se homem; Ele, que era o senhor dos céus e da terra,
humilhou-Se na Cruz. Esse era um ato de humildade incomparável que deviam
aprender. Se, por um momento, não pudessem aprender Dele, tinham de
aprender de uma criança.
A TERCEIRA DISCUSSÃO: A CAMINHO DE JERUSALÉM

A terceira profecia clara de Nosso Senhor a respeito da Cruz que resultou em


uma discussão entre os apóstolos aconteceu pouco mais de uma semana antes
de ser crucificado. Estava com os apóstolos a caminho de Jerusalém pela última
vez. Havia pressa em seus passos; resolução e propósito firme estavam tão
estampados em Seu rosto que os apóstolos não deixaram de perceber.

Estavam a caminho de Jerusalém


e Jesus ia adiante deles.
Estavam perturbados e o seguiam com medo.
(São Marcos 10,32)

O Mestre andava bem à frente de seus apóstolos no caminho íngreme da


montanha. Ficaram para trás, mergulhados em um terror incompreensível.
Enquanto Ele se apressava para a cruz, havia um pensamento que predominava
na mente de Cristo: a submissão voluntária ao sacrifício. De acordo com o
plano do Pai, a Cruz era-Lhe necessária como um meio de dar vida aos outros.
Os apóstolos, por outro lado, até o último momento, buscavam por alguma
manifestação de poder que libertaria a nação da servidão política e os alçaria,
pessoalmente, a certa glória e autoridade. Estavam espantados com a prontidão
de Jesus para ingressar em Jerusalém, o que significava sofrimento. Sonhavam
com tronos, e Ele pensava em uma cruz. Conhecendo os pensamentos, Jesus
chamou os apóstolos à parte:

Eis que subimos a Jerusalém


e o Filho do homem será entregue
aos príncipes dos sacerdotes e aos escribas;
condená-lo-ão à morte e entregá-lo-ão aos gentios.
Escarnecerão dele, cuspirão nele,
açoitá-lo-ão, e hão de matá-lo;
mas ao terceiro dia ele ressurgirá.
(São Marcos 10,33-34)
Mais uma vez, cobriu o fel de sua Paixão no mel da Ressurreição. O
calvário não era algo diante de si que não poderia evitar e, portanto, tinha de
aceitar como o papel do mártir. Havia um retroceder humano diante do
sofrimento em que o mal o examinaria, mas esse retrocesso nunca se tornou
um propósito. Assim como um navio pode ser jogado nas ondas enquanto
mantém o equilíbrio, da mesma maneira sua natureza física podia ser lançada
de um lado para o outro, enquanto subjazia fixo e inalterável o propósito do
Pai. Entretanto, os apóstolos não podiam compreender uma morte tão sofrida,
porque era ofertada para os outros e, ao mesmo tempo, um sacrifício expiatório
pelo pecado.

Mas eles nada disto compreendiam,


e estas palavras eram-lhes um enigma
cujo sentido não podiam entender.
(São Lucas 18,34)

Como Ele, que tinha poder sobre a morte, os ventos e os mares e cuja
mente podia silenciar as bocas dos fariseus, os deixaria sem conforto e os
lançaria novamente no mundo por não poder resistir aos inimigos? Essa era a
preocupação deles.
Assim como nas outras duas ocasiões, agora que Jesus falara novamente de
sua morte, irrompeu uma nova discussão entre os apóstolos. Tiago e João, que
já se tinham destacado ao ressentirem-se da rudeza dos samaritanos e ao pedir a
Nosso Senhor que os destruísse, fizeram, nesse momento, um pedido. Os dois
irmãos, que outrora pediram que descesse um fogo dos céus sobre os inimigos,
agora pediam que lhes fosse dada uma grande vantagem. Com presunção
irreverente, pediram a Nosso Senhor, imediatamente depois de este falar de sua
morte, para tornar-se instrumento da própria vaidade deles.

Concede-nos que nos sentemos na tua glória,


um à tua direita e outro à tua esquerda.
(São Marcos 10,37)
Existe certo reconhecimento da autoridade de Cristo, pois sugeriam que
Ele era o rei que concedia benesses, mas a concepção de Seu Reino era
mundana. A influência da família e a preferência pessoal concedia altos postos
em um reino secular. Tiago e João, pressupondo que o reino de Deus era
mundano, pensavam que a promoção poderia ser nessas bases. No entanto,
Nosso Senhor respondeu-lhes:

Não sabeis o que pedis, retorquiu Jesus.


Podeis vós beber o cálice que eu vou beber,
ou ser batizados no batismo em que eu vou ser batizado?
(São Marcos 10,38)

A outorga de honras em seu Reino não era uma questão de favoritismo,


mas a incorporação da cruz. Se Ele tivesse de morrer para ascender à glória, eles
também teriam de morrer para descobrir a glória. Se Ele tivesse de beber o
cálice amargo para vencer o mal, eles deveriam beber desse cálice. O “cálice” foi
usado aqui como um símbolo da derrota que, para Ele, seria derramado por
homens infiéis. No batismo de sangue, seria totalmente imerso, mas as imagens
também sugeriam purificação e ressurreição.
Em resposta à questão a respeito de beber do cálice, Tiago e João
responderam, “Podemos”. Embora não compreendessem exatamente o que
estavam aceitando, Nosso Senhor profetizou o cumprimento da fé deles. Tiago
foi o primeiro a partilhar do batismo de sangue de Cristo, ao ser assassinado
por Herodes. João, na verdade, sofreu; viveu uma vida longa de perseguições e
banimentos. Após ser colocado em um caldeirão de óleo fervente, foi
milagrosamente poupado e morreu em idade provecta em Patmos. Tiago
tornou-se o patrono de todos os mártires vermelhos, que derramaram o sangue
porque beberam do cálice do Cristo. João se tornou o símbolo do que poderia
ser chamado de mártires brancos, os que suportam o sofrimento físico e,
mesmo assim, morrem de morte natural.
Nessas circunstâncias, começa a discussão.

Os outros dez começaram a indignar-se contra Tiago e João.


(São Marcos 10,41)
Estavam indignados porque todos partilhavam do mesmo desejo. Nosso
Senhor chamou os outros dez. Tiago e João receberam a lição, agora chegara o
momento de os outros dez receberem a deles. A primeira lição foi a repetição
daquilo que sugerira em Cafarnaum ao colocar uma criança no meio deles, a
lição da humildade. O que devia ser-lhes ensinado nesse momento não era o
que os tornaria eminentes em seu Reino, mas, antes, o sentido de eminência.
Expôs o contraste entre o despotismo dos potentados terrenos e a soberania do
amor no próprio Reino. Nos reinos terrenos, os que governavam, tais como
reis, nobres, príncipes e presidentes, são servidos; em seu Reino, a marca da
nobreza seria privilégio do serviço ou do servir.

Sabeis que os que são considerados chefes das nações


dominam sobre elas e os seus intendentes exercem poder sobre
elas.
Entre vós, porém, não será assim:
todo o que quiser tornar-se grande entre vós, seja o vosso servo;
e todo o que entre vós quiser ser o primeiro, seja escravo de
todos.
(São Marcos 10,42-44)

Em Seu Reino, os mais modestos e os mais humildes serão os maiores e


mais exaltados. Embora considerasse os apóstolos como reis, deveriam, apesar
disso, consagrar seus direitos ao serem os menores dentre os homens.
O Salvador, contudo, não lhes deu apenas uma prescrição moral sem
apontar para a própria vida como exemplo da humildade que desejava que eles
tivessem. Toda a verdade era que ele veio não para ser servido, mas para servir.
Na realidade, estava a dizer que era o rei e teria um Reino, mas esse Reino seria
obtido de um modo diferente daqueles pelos quais os príncipes seculares
consolidavam os seus. Introduziu uma relação direta entre a entrega de sua vida
e a soberania espiritual que a morte adquiriria.

Porque o Filho do homem não veio para ser servido,


mas para servir e dar a sua vida em redenção por muitos.
(São Marcos 10,45)
Aqui, como em outros lugares, falou de Si como “vindo” ao mundo para
indicar que o nascimento humano não era o começo de sua existência pessoal.
Iniciou o serviço muito antes de os homens virem-no servir com compaixão e
misericórdia. Seu serviço começou quando se despiu da glória celestial e
cingiu-Se da carne tecida no tear de Maria.
O propósito de Sua vinda a este mundo era oferecer resgate e redenção. Se
fosse simplesmente o filho de um carpinteiro, teria sido tolo de sua parte dizer
que veio para servir. Uma posição servil teria sido rotina e algo comum, mas
um rei tornar-se servo, Deus tornar-se homem, não era presunção, mas
humildade. Havia um preço a ser pago e esse era a morte, pois o “preço do
pecado é a morte”. O resgate não teria sentido se a natureza humana não
estivesse em dívida. Suponhamos que um homem estivesse sentado junto a um
cais, em um dia claro de verão, pescando, satisfeito. Subitamente, outro
homem salta do cais e cai no rio diante Dele. Afundando pela terceira vez ao se
afogar, grita para o homem no cais:

Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por
seus amigos.
(São João 15,13)

Toda a ação teria sido bastante incompreensível, pois o homem no cais


não estava em perigo e, portanto, não precisava ser resgatado. Se, no entanto,
tivesse caído na água e estivesse se afogando, então, o indivíduo que deu sua
vida para salvá-lo teria significado em sua morte. Se a natureza humana não
tivesse recaído em pecado, a morte de Cristo seria insignificante; se não
houvesse escravidão, não haveríamos de falar em resgate.
Muitos indivíduos negam responsabilidade por seus erros e pelos erros da
coletividade. Por exemplo, quando existe corrupção no governo, muitas vezes
os indivíduos negam estar envolvidos. Quanto menos pecados as pessoas têm,
mais negam qualquer relacionamento com aqueles que são pecadores. Quase
pressupõem que a responsabilidade varia em proporção direta à ausência de
pecado. O argumento que apresentam é o de que já que não são responsáveis
pelos erros da sociedade, não se envolvem.
Na verdade, o contrário é verdadeiro nos que são mais sem pecado.
Quanto maior a falta de pecado, maior o senso de responsabilidade e de
consciência da culpa corporativa. O homem verdadeiramente bom sente que o
mundo está do jeito que está porque, de algum modo, ele não foi uma pessoa
melhor. Quanto mais sensibilidade moral, maior a compaixão por aqueles que
perecem sob um fardo. Isso pode se tornar tão profundo que a agonia da outra
pessoa é sentida diretamente como a própria agonia. A única pessoa no mundo
com olhos para ver, desejaria ser um esteio para os cegos; a única pessoa no
mundo com saúde desejaria servir aos doentes.
O que é verdadeiro para o sofrimento físico, também é verdadeiro para o
mal moral. Por isso, o Cristo sem pecado tomaria sobre si os males do mundo.
Assim como os mais saudáveis estão mais aptos a servir aos doentes, também os
mais inocentes podem expiar melhor as culpas dos outros. Um apaixonado
poderia, se possível, tomar sobre si os sofrimentos da amada. A divindade toma
sobre si os males morais do mundo como se fossem próprios. Sendo homem,
os partilharia; sendo Deus, os redimiria.
O calvário, dizia aos apóstolos brigões, não era a interrupção das
atividades de Sua vida, não era a destruição trágica e prematura de Seu plano,
não era um fim imposto por forças hostis. A dádiva de Sua vida O poria fora
dos padrões dos mártires pela justiça e dos patriarcas por causas gloriosas. O
propósito de Sua vida, disse, era pagar um preço pela libertação dos escravos do
pecado. Esse era o “dever” divino que lhe fora dado quando veio ao mundo.
Sua morte seria oferecida em pagamento pelos pecados do mundo. Se os
homens só estivessem no erro, poderia ter sido um mestre cercado por todos os
confortos da vida e, depois de ter ensinado a teoria da dor, morreria em uma
cama macia. No entanto, não teria deixado nenhuma outra mensagem, a não
ser um código a ser obedecido. Todavia, se os homens estavam em pecado, sua
mensagem seria “sigam-me”, para partilhar o fruto dessa redenção.
20

A TENTATIVA DE PRISÃO DURANTE A FESTA DOS


TABERNÁCULOS

A centralidade da Cruz na vida de Jesus agora fica mais clara. Ele fez
referências implícitas a ela, sob a figura de um templo e de uma serpente; e
mais explicitamente quando prometeu, em Sua glória depois da Ressurreição,
permitir que os homens vivessem por Seu Corpo e Sangue.
Aqui, na festa mais popular do ano, a Festa dos Tabernáculos,
aconteceram duas coisas: primeiro, dirigiu a atenção à plenitude da Presença
Divina, verdade e refrigério de alma que habitavam Nele. Fora Dele não havia
moral, nem crença, nem saciamento da sede. Esmagou toda ilusão dos ouvintes
de que estivesse pregando uma moralidade à parte Dele mesmo, uma doutrina
distinta de Sua pessoa ou que uma ética superior pudesse reconciliar-se com
um senso reduzido do Deus vivo. Ele os deixou saber que não era um “extra”
piedoso, um apêndice ou um luxo espiritual para aqueles que citariam Suas
palavras. Buda podia ser separado do budismo; mas Jesus não podia ser
separado do que ensinou ou realizou mais do que um raio de sol pode existir
sem o sol. Às multidões presentes na cerimônia de oito dias, explicou o
significado dela: o tabernáculo, a água, as luzes. Centralizava cada uma dessas
coisas em Sua pessoa, visto que afirmou ser um com Deus, um com toda a
iluminação da mente, e um com toda a paz das almas sedentas. A identificação
foi total: não havia Deus senão o Deus que Ele revelou, nenhuma verdade
senão a Sua pessoa, nenhuma satisfação senão Nele.
O segundo efeito das palavras Dele foram violência, ressentimento e a
decisão de entregá-Lo à morte. Se tivesse palavras faladas, mas não tivesse
alegado ser a Palavra; se tivesse apresentado verdades apartáveis de Sua pessoa e
um consolo de alma distinto de Sua presença divina, talvez fosse menos
empurrado para a Cruz. O ódio contra Ele, por parte das autoridades do
templo, os fez tentar prendê-Lo duas vezes: a primeira foi na Festa dos
Tabernáculos; a segunda foi no Jardim do Getsêmani. Em nenhum dos casos
os oficiais puderam detê-Lo; não na Festa, porque Nosso Senhor “prendeu-os”
com Sua presença. Tampouco no Jardim puderam detê-Lo até que se tivessem
tornado impotentes. Nessa Festa, como disse, “Sua hora ainda não tinha
chegado”; no Jardim, diria: “Eis a vossa hora”. Aqui, disse que era a Luz do
mundo; então lhes diria que era a “hora das trevas”. Em ambos os exemplos, o
Senhor não poderia ser levado até que voluntariamente Se rendesse; em ambos
os exemplos, a intenção dos homens diante da bondade divina era crucificar,
pois as obras das trevas não suportam a luz. A segunda prisão levou
diretamente à Cruz, de modo que a primeira prisão foi um ensaio. A sombra
da Cruz caía por toda parte — sobre as tendas, as fontes, os candelabros e
mesmo sobre as pessoas na Festa dos Tabernáculos.
Essa era a maior de todas as Festas, uma comemoração da fuga do Egito,
quando Deus conduziu o povo de Israel pelo deserto por meio de uma nuvem
durante o dia e uma coluna de fogo à noite. Como peregrinos durante aqueles
quarenta anos de perambulação, os judeus viveram em tendas ou barracas que
podiam facilmente ser armadas e silenciosamente desmontadas. No meio das
tendas, estava o tabernáculo, que simbolizava a presença de Deus.
Essa festa, mencionada tanto em Levítico quanto em Êxodo, era celebrada
na época da colheita. Embora houvesse ação de graças pela colheita, a festa
estava voltada para o futuro, e por esse motivo às vezes era chamada de “hora
da efusão”, simbolizando o Espírito de Deus que seria derramado sobre o povo.
Quando essa festa de oito dias começou, Nosso Senhor estava na Galileia,
para onde se retirara por seis meses por causa da oposição dos líderes do templo
depois da purificação do templo e do milagre em Betesda:

Por esta razão os judeus, com maior ardor,


procuravam tirar-lhe a vida,
porque não somente violava o repouso do sábado,
mas afirmava ainda que Deus era seu Pai
e se fazia igual a Deus.
(São João 5,18)
À
À medida que a época da festa se aproximava, Ele começou a ser
importunado por parentes e colaboradores para que pensasse em divulgar mais
Seu nome. Por que operar milagres na Galileia com seus vilarejos de pescadores
e camponeses ignorantes, quando a cidade grande, Jerusalém, Lhe daria muito
mais renome? Além disso, grandes multidões se reuniriam na festa, e Ele
poderia ser conhecido de todos, se tão somente fizesse algo espetacular. O
isolamento é comprometedor.

Pois quem deseja ser conhecido em público


não faz coisa alguma ocultamente.
Já que fazes essas obras,
revela-te ao mundo.
(São João 7,4)

Nosso Senhor lhes respondeu:

O meu tempo ainda não chegou,


mas para vós a hora é sempre favorável.
O mundo não vos pode odiar, mas odeia-me,
porque eu testemunho contra ele que as suas obras são más.
(São João 7,6-7)

Sua hora, ou a hora de Sua completa revelação, ainda não tinha chegado.
Intensificando o contraste entre Si mesmo e o mundo, Jesus disse-lhes com
certa ironia que as palavras, atitudes e juízos deles não estavam em suficiente
desarmonia com o mundo para suscitar o ódio do mundo. Com Ele, no
entanto, era diferente: Suas palavras e Sua vida já tinham provocado o ódio do
mundo. Se tivesse de ir a Jerusalém, seria como o Messias e Filho de Deus e,
portanto, provocaria hostilidade; contudo, se subissem como peregrinos
piedosos, seria apenas para participar de uma celebração nacional. Quando
falava do mundo, Nosso Senhor o entendia como feito de homens não
regenerados que não aceitariam Sua graça. Aqueles irmãos de Jesus que teriam
amado a ribalta e a notoriedade eram parte de um mundo sem cruz, que não
violava nenhum dos preceitos ou do espírito mundano.
Jesus estava consciente de Sua Cruz, ao passo que os demais não estavam
cientes dela. Ele não subiria à cidade até que houvesse uma ordem do Pai
Celestial. Satanás, anteriormente, Lhe oferecera todos os reinos do mundo e
Ele os recusara. Jerusalém não seria suficiente para seduzi-Lo a exibir milagres
àqueles que não acreditariam em Sua pessoa. Aqueles que sugeriam o esplendor
da popularidade podiam ir além e encontrariam grande número de incrédulos
como eles mesmos; eram levados pela corrente, como cepos mortos. Observe
que Nosso Bendito Senhor não disse que não iria para a Festa dos
Tabernáculos. O que disse foi que não iria naquele momento. A mente
mundana, portanto, abandonou-O para ir à festa.
Mais tarde, decidiu ir, não como pessoa pública, mas em segredo ou
incógnito. Que grande contraste entre Sua primeira visita, quando apareceu de
repente no templo e expulsou os cambistas, e agora em Sua ida como peregrino
anônimo! Mas todos estavam curiosos com Ele. Imediatamente tornou-Se
fonte de dissensão. Aqueles que foram atraídos permaneceram quietos por
temer as autoridades do templo, que já tinham tramado Sua morte.

Buscavam-no os judeus durante a festa


e perguntavam: Onde está ele?
E na multidão só se discutia a respeito dele.
Uns diziam: É homem de bem.
Outros, porém, diziam: Não é; ele seduz o povo.
Ninguém, contudo, ousava falar dele livremente
com medo dos judeus.
(São João 7,11-13)

A Festa dos Tabernáculos, como se dizia, comemorava o lugar em que a


Presença Divina habitou entre os judeus durante a longa peregrinação do
Egito. E agora aqui, em meio às multidões, estava a Presença Divina em Pessoa.

E o Verbo se fez carne e habitou entre nós.


(São João 1,14)
A palavra grega “habitar” no Evangelho podia igualmente ser traduzida
por “tabernaculizar-se” e, assim, alude ao Tabernáculo colocado no centro das
tendas dos israelitas. Cristo era o Tabernáculo de Deus entre os homens.
Os Targums judaicos muitas vezes substituíram pela expressão “glória do
Senhor” a palavra Shekhinah ou “habitação”, indicando assim a permanência
íntima de Deus com seu povo. Os que estavam presentes na festa lembravam
que Nosso Senhor tinha chamado a Si mesmo de “Templo de Deus” e
profetizado que seria destruído, mas ao terceiro dia ressurgiria novamente. Que
pretendiam destruir esse Templo do Deus “tabernaculizado” entre eles era
evidente, tanto que algumas das pessoas da cidade perguntaram:

Não é este aquele a quem procuram tirar a vida?


(São João 7,25)

A procissão que celebrava a festa começava no templo. Quando chegou ao


tanque de Siloé, o sacerdote encheu seu jarro com a água do tanque e voltou ao
templo, onde os recipientes transbordaram com o toque das trombetas em
meio aos “aleluias” do povo. Estava tão associada à alegria que um dito comum
dizia que “Aquele que não viu o gozo de derramar a água do tanque de Siloé
nunca viu alegria em sua vida”. A cerimônia não era só um reconhecimento da
graça de Deus a irrigar os campos, mas também uma comemoração da provisão
milagrosa de água no deserto, que veio da rocha. No momento em que a água
foi oferecida pelo sacerdote no templo, foram citadas as palavras de Isaías:

Vós tirareis com alegria


água das fontes da salvação.
(Isaías 12,3)

Nosso Senhor disse que tinha vindo não para destruir a Lei e os profetas,
mas para cumpri-los, falava agora para afirmar que Ele mesmo era a substância
de que esses ritos não eram senão sombras obscuras. Sua voz soou sobre o
derramar das águas enquanto dizia:
Se alguém tiver sede, venha a mim e beba.
Quem crê em mim, como diz a Escritura:
Do seu interior manarão rios de água viva.
(São João 7,37-38)

Ele os estava convidando a lembrar-se das Escrituras. No Êxodo, Deus


ordenou que Moisés batesse na rocha, prometendo que dali haveria de brotar
água para o povo beber. Ao longo de todo o Antigo Testamento, a água foi o
símbolo da bênção espiritual, particularmente em Ezequiel, em que uma fonte
poderosa é descrita como a jorrar do tabernáculo do templo, curando todas as
nações. A Fonte da Vida para almas sedentas, declarou agora, era Sua própria
pessoa. Ele não disse: “Vinde às águas”, mas “Vinde a mim”. O Talmude
perguntava sobre essa cerimônia: “Por que se chama a extração de água?”. Por
causa do derramamento do Espírito Santo, conforme o que se diz: “Com
alegria retirareis água das fontes da salvação”. São João explicou do mesmo
modo as palavras de Nosso Senhor:

Dizia isso, referindo-se ao Espírito


que haviam de receber os que cressem nele,
pois ainda não fora dado o Espírito,
visto que Jesus ainda não tinha sido glorificado.
(São João 7,39)

A satisfação em saciar a sede do coração humano estava ligada à obra do


Espírito. Nosso Senhor ansiava por conceder uma bênção contínua por algo
que ainda não acontecera, isto é, Seu triunfo sobre a morte e Sua Ascensão ao
céu. Este dom do Espírito viria aos homens não como uma efusão mágica, mas
como algo intrínseco ao Seu ato redentor e à fé Nele depositada. A presença
física de Cristo sobre a terra no mandato ainda não cumprido do Pai de ser a
redenção pelo pecado excluía a realização de Sua presença nas almas até depois
de Sua glória e do envio de Seu Espírito.
Outro ritual vinculado à Festa dos Tabernáculos referia-se à coluna de
fogo que conduzia os israelitas à noite. Para celebrar a luz que Deus era para
eles, dois imensos candelabros eram acesos no átrio das mulheres; e, conforme
alguns testemunhos rabínicos, esses candelabros iluminavam toda Jerusalém. O
povo também ansiara pelos tempos messiânicos quando Deus lhes acenderia
uma grande luz entre as nações. A luz também significava a glória de Deus
presente no templo.
Quando Nosso Bendito Senhor era um bebê no colo de Simeão, o ancião
pronunciara as seguintes palavras:

[Essa é a] luz para iluminar as nações,


e para a glória de vosso povo de Israel.
(São Lucas 2,32)

Agora, como um homem crescido e pleno do esplendor dessa luz,


proclamou:

Eu sou a luz do mundo;


aquele que me segue não andará em trevas,
mas terá a luz da vida.
(São João 8,12)

Aqui fez uma alegação universal, tal como fora profetizado por Isaías, de
que Ele era a Luz de todos os povos e nações. Nem todos seguiriam a Luz;
alguns prefeririam andar em trevas e, portanto, odiariam a luz. Aquele que se
encontrava no templo em que as luzes pouco a pouco se extinguiam proclamou
a Si mesmo a Luz do Mundo. Anteriormente, chamara-Se a Si mesmo de
Templo; agora, afirmava ser a Glória e a Luz desse Templo. Estava declarando-
Se mais necessário à vida das almas do que a luz do sol para a vida do corpo.
Não era a doutrina, nem a lei, nem os mandamentos, nem o ensino, que
constituía essa luz; era Sua pessoa.
No meio da afirmação do Nosso Senhor de que Ele era o Messias,
começaram algumas das medidas civis e judiciais que mais tarde culminariam
na Crucifixão. Os fariseus enviaram oficiais para prender Nosso Senhor. Antes
que chegassem, Nosso Senhor fez outra referência a Sua morte:
Ainda por um pouco de tempo estou convosco
e então vou para aquele que me enviou.
Buscar-me-eis sem me achar,
nem podereis ir para onde estou.
(São João 7,33-34)

Previu tudo que aconteceria. Ainda faltavam seis meses até a Páscoa; havia
pouco tempo antes que cumprisse o propósito de Sua vinda. Já estavam
planejando a morte Dele, mas estes planos não teriam sucesso até que Ele se
entregasse voluntariamente nas mãos dos homens. Então, a porta seria fechada
e o tempo da visitação estaria terminado. A separação entre eles e o Senhor não
seria a distância, mas a diferença em mente e coração, que é a maior de todas as
distâncias.
Os guardas que receberam as ordens de prendê-Lo voltaram ao principal
dos sacerdotes e fariseus de mãos vazias. Os oficiais perguntaram-lhes:

Por que não o trouxestes?


Os guardas responderam:
Jamais homem algum falou como este homem!...
Replicaram os fariseus:
Porventura também vós fostes seduzidos?
Há, acaso, alguém dentre as autoridades ou fariseus que
acreditou nele?
Este poviléu que não conhece a lei é amaldiçoado!...
(São João 7,45-49)

Os oficiais do templo desprezavam o povo; o pressuposto era de que


nenhuma pessoa vulgar pode ser piedosa. O próprio fato de os oficiais terem
sentido sobre si uma impressão irresistível e se rendido às fontes de bênção do
Senhor indicava o poder que tinha sobre os homens de boa vontade. A vocação
de um guarda foi santificada naquele dia quando esses oficiais recusaram-se a
prender o Salvador.
Plutarco, falando da extraordinária eloquência de Marco Antônio, diz que
quando foram enviados soldados para matar o famoso orador, este apelou por
sua vida com tamanha eloquência que os desarmou e os levou às lágrimas.
Estes guardas, no entanto, não foram vencidos pela força dos argumentos de
um homem apelando por sua vida, mas ao ouvir um de seus discursos comuns
que de maneira alguma se dirigia a eles. Os guardas estavam bem armados; o
pregador não tinha armas e, mesmo assim, não O puderam prender.
Autoridades civis nem sempre empregam os homens mais intelectuais ou
espirituais para levar a cabo tais tarefas, e até mesmo esses homens enviados
foram afetados pela eloquência de Jesus e provaram ser inteligentes. Os
fariseus, em sua fúria, disseram aos guardas que os intelectuais não acreditavam
Nele. Visto que nenhum dos fariseus cria no Senhor, nem se impressionaram
com a mensagem Dele, os guardas não tinham, portanto, nenhuma razão para
serem tão afetados.
Haveria outro momento, no Jardim do Getsêmani, em que os oficiais
ficariam tão impressionados com Nosso Bendito Senhor que se prostrariam por
terra, quando Ele dissesse que era Jesus de Nazaré. Naquela noite, agiriam
livremente, porque a hora teria chegado. Mas, naquele momento, estavam
impotentes.
A história da Festa dos Tabernáculos termina com as palavras “Ainda não
chegara sua hora”. Havia uma hora particular para tudo que Ele havia de fazer;
até mesmo Seu nascimento é descrito como a “plenitude do tempo”. Assim
também a Cruz tinha Sua hora estabelecida. Cada orbe que gira na imensidão
do espaço é convidado a atingir certo ponto na própria hora. Os decretos e
propósitos do homem geralmente falham, mas isso não se dá com os desígnios
do Todo-Poderoso. A unidade de Sua vida não estava nas obras esparsas,
parábolas e discursos, mas em Sua consumação. Belém era o fundamento do
Calvário e Sua glória. Os degraus principiam desde o estábulo porque nem
sequer “havia lugar” para Ele; a “contradição” profetizada por Simeão era um
novo degrau; a Festa dos Tabernáculos, mais um. Conhecia cada passo do
caminho, pois não era simplesmente um homem fazendo quanto podia diante
de Deus, mas Deus fazendo o melhor que podia pelo homem, por meio do
amor revelado no sacrifício de Si mesmo.
21

SOMENTE O INOCENTE PODE CONDENAR

No dia seguinte à tentativa de prisão, ocorreu uma cena em que a Inocência


recusou-se a condenar um pecador. Enredava-se o dilema da justiça e da
misericórdia — um dilema que repousa no cerne da encarnação. Se Deus é
misericordioso, não perdoará os pecadores? Se Deus é justo, não punirá ou
obrigará a reparar os crimes? Por ser todo santo, deve odiar o pecado, caso
contrário, não seria Bondade. No entanto, por ser todo misericordioso, não
deveria, como uma espécie de avô, ser indiferente aos netos violarem os
mandamentos? De um modo ou de outro, Sua morte na Cruz e Ressurreição
estavam unidas na resposta a esse dilema.
Na noite anterior a essa cena, a Sagrada Escritura revela um dos contrastes
mais vívidos de toda a literatura; e isso se dá em duas frases. Nosso Senhor
estivera pregando durante todo o dia no templo. Ao cair da noite, o Evangelho
fala primeiro dos inimigos de Nosso Senhor que o estiveram tentando e
discutindo com ele:

E voltaram, cada um para sua casa.


(São João 7,53)

Entretanto, de Nosso Senhor simplesmente se diz:

Dirigiu-se Jesus para o monte das Oliveiras.


(São João 8,1)
Entre todos os que estavam no templo — amigos ou inimigos —, não
havia um que não tivesse uma casa, a não ser Nosso Senhor. Na verdade, disse a
respeito de si mesmo:

As raposas têm covas


e as aves do céu, ninhos,
mas o Filho do Homem
não tem onde reclinar a cabeça.
(São Lucas 9,58)

Em toda a Jerusalém, talvez Ele fosse o único homem sem casa e sem lar.
Enquanto os homens partiram para suas casas a fim de tomar conselhos com os
companheiros, Ele foi ao monte das Oliveiras para aconselhar-se não com a
carne e o sangue, mas com Seu Pai. Sabia que em pouco tempo esse jardim
seria um retiro sagrado onde suaria gotas de sangue no conflito terrível com as
forças do mal. Durante a noite dormiu, no estilo oriental, em um relvado verde
debaixo das oliveiras ancestrais, tão retorcidas e nodosas no ardor por crescer
como se prenunciassem a tortuosa Paixão que seria a Dele.
Era época da festa dos Tabernáculos, o que acarretava não só a confluência
de pessoas de todos os cantos do mundo, mas também produzia um
entusiasmo generalizado, muitas preces e algum lazer. Era natural que isso
degenerasse em um caso ocasional, aqui e ali, de desacato e imoralidade. É
evidente que isso aconteceu. Na manhã seguinte bem cedo, assim que Nosso
Senhor apareceu no templo e começou a ensinar, os escribas e os fariseus
levaram a Ele uma mulher que fora descoberta cometendo adultério. Assim,
estavam tão envolvidos em uma controvérsia estéril com o Messias que não
tiveram escrúpulos de usar a vergonha da mulher para marcar um ponto.
Aparentemente, não havia dúvidas quanto a sua culpa. A maneira indelicada,
quase indecente, com que os homens contaram a história, revela que os fatos
não podiam ser contestados. Disseram:

Mestre, agora mesmo esta mulher


foi apanhada em adultério.
(São João 8,4)
Pega em ação! Quanta dissimulação, quanto ardil e quanta podridão se
escondem por trás dessas palavras! Os acusadores levaram-na ao meio da
multidão enquanto Nosso Senhor ensinava. Os homens “santanários” que a
tinham pego em ação estavam muito ansiosos para que ela fosse exibida
publicamente, a ponto mesmo de interromper o discurso de Nosso Senhor
Bendito. A natureza humana é vil quando alardeia e ostenta os crimes dos
outros diante dos homens. É o sujo a falar do mal lavado. Alguns rostos jamais
aparentam felicidade maior do que quando se regalam com um escândalo que
o coração generoso encobriria e pelo qual o coração devoto faria orações.
Quanto mais ignóbil e corrupto for o homem, mais pronto está a acusar os
crimes dos outros. Os que querem ser tidos como homens de bom caráter,
estupidamente creem que a melhor maneira de demonstrá-lo é denunciar os
outros. Pessoas depravadas gostam do monopólio da depravação e, ao descobrir
outros com os mesmos vícios, os condenam com uma intensidade que o bem
nunca experimentou. Tudo o que se tem de fazer para informar-se dos erros
dos homens é ouvir suas acusações favoritas contra os outros. Naquela época,
não havia colunas de fofoca, mas havia difamadores. Arrastá-la para ser vista
por toda a multidão era a maneira deles de expô-la em público. A multidão,
vaiando, empurrava-a adiante; a mulher escondia o rosto nas mãos e puxava o
véu sobre a cabeça para esconder a vergonha. Ao arrastar a prisioneira trêmula,
expuseram-na diante dos olhos curiosos dos homens para a mais amarga
degradação que qualquer mulher oriental poderia sofrer, e disseram a Nosso
Senhor com falsa humildade:

Mestre, agora mesmo esta mulher foi apanhada em adultério.


Moisés mandou-nos na lei que apedrejássemos tais mulheres.
Que dizes tu a isso?
(São João 8,4-5)

Estavam certos em dizer que a lei de Moisés ordenava o apedrejamento


por adultério. Nosso Senhor instintivamente discerniu o respeito fingido em
chamá-lo de “mestre”. Sabia ser apenas um disfarce para os próprios desígnios
funestos. Por um lado, sua alma contraía-se diante do espetáculo apresentado,
pois ensinara a santidade do casamento e essa mulher a violara. Por outro lado,
sabia que os escribas e os fariseus nada viam no incidente senão a oportunidade
de fazê-lo vacilar em Seu discurso. Sabia que estavam prontos para usá-la como
instrumento passivo do ódio que nutriam contra Ele — não porque estivessem
moralmente indignados com o pecado ou guardassem os direitos de Deus, mas
somente para instigar o povo contra Ele.
Ocultava-se um artifício duplo ao apresentarem a mulher a Nosso Senhor.
Primeiro, por conta do conflito entre judeus e romanos. Os romanos, que eram
os conquistadores do país, reservavam-se o direito de condenar quem quer que
fosse à morte. Entretanto, havia outro lado, a lei de Moisés dizia que a mulher
pega em adultério devia ser apedrejada. Aqui estava o dilema em que o
colocaram: se Nosso Senhor deixasse a mulher partir sem a pena de morte,
estaria desobedecendo a lei de Moisés; mas, se respeitasse a lei de Moisés e
dissesse que deveria ser apedrejada por conta do adultério, então estaria
encorajando a desobediência à lei romana. Em ambos os casos, seria pego. O
povo lhe faria oposição, pois violaria a lei mosaica, ao passo que os tribunais
romanos o acusariam de violar suas leis. Era um herético com relação a Moisés
ou um traidor com relação aos romanos.
Havia ainda um outro artifício na questão. Se Ele a condenaria ou a
absolveria. Se a condenasse, diriam que Ele não era misericordioso; mas Ele se
denominava misericordioso. Fizera refeições com publicanos e pecadores,
permitira que uma mulher comum lavasse Seus pés durante a ceia; caso a
condenasse, não poderia mais dizer ser “amigo dos pecadores”. Não disse Ele
que:

O Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava


perdido.
(São Lucas 19,10)

Por outro lado, se a libertasse, então estaria agindo em contradição com a


lei sagrada de Moisés, que tinha vindo cumprir. Não dissera que:

Não julgueis que vim abolir a lei ou os profetas.


Não vim para os abolir,
mas sim para levá-los à perfeição.
(São Mateus 5,17)

Já que dissera ser Deus, a lei de Moisés deveria derivar Dele. Se


desobedecesse a lei, negaria a própria divindade. Por isso as perguntas: “Moisés
mandou-nos na lei que apedrejássemos tais mulheres. Que dizes tu a isso?”.
Seria uma pergunta difícil para um simples humano resolver, mas Ele era
Deus e homem. Ele, que já reconciliara justiça e misericórdia em sua
encarnação, nesse momento, punha-as em prática ao abaixar-se e escrever
alguma coisa no chão — foi a única vez na vida de Nosso Senhor em que Ele
escreveu. O que escreveu ninguém sabe. O Evangelho apenas diz:

Jesus, porém, se inclinou para a frente e escrevia com o dedo na


terra.
(São João 8,6)

Eles invocaram a lei de Moisés. E Ele também! De onde veio a lei de


Moisés? Quem a escreveu? Com o dedo de quem? O livro do Êxodo responde:

Moisés desceu da montanha segurando nas mãos


as duas tábuas da lei, que estavam escritas dos dois lados,
sobre uma e outra face.
Eram obra de Deus, e a escritura nelas gravada era a escritura
de Deus.
(Êxodo 32, 15-16)

Eles O recordaram da lei! Ele, por sua vez, recordou-lhes que Ele escrevera
a lei! O mesmo dedo, no sentido simbólico, que agora escrevia no piso de
pedra do assoalho do templo, também escreveu nas tábuas de pedra no Monte
Sinai! Tinham olhos para ver o doador da lei de Moisés diante deles? Estavam
tão inclinados a enredá-Lo no discurso que ignoraram a escrita e continuaram
lançando perguntas, certos de que O tinham pego.
Como eles insistissem, ergueu-se e disse-lhes:
Quem de vós estiver sem pecado,
seja o primeiro a lhe atirar uma pedra.
Inclinando-se novamente, escrevia na terra.
(São João 8,7-8)

Moisés escrevera na pedra sua lei de morte contra a falta de castidade.


Nosso Senhor não destruiu a lei mosaica, mas a aperfeiçoou ao anunciar uma
lei maior: ninguém, a não ser os puros, pode julgar! Estava convocando um
novo júri somente o inocente pode condenar! Ponderou da lei à consciência, do
julgamento dos homens ao julgamento de Deus. Os que têm culpa na alma
devem se negar a julgar.
Um escudo velho e enferrujado, certa vez, clamou: “Ó sol, iluminai-me”;
e o sol respondeu: “Primeiro, vá se polir!”. Essa mulher, portanto, deveria ser
julgada por homens que eram culpados? Foi a primeira afirmação solene de que
somente aquele que é sem pecado tem o direito de julgar. Se existe sobre a terra
alguém realmente inocente, ver-se-á que sua misericórdia é mais poderosa que
sua justiça. É verdade que um juiz na banca muitas vezes pode condenar um
criminoso por um crime de que ele é culpado; mas em sua competência oficial
age em nome de Deus, não em nome próprio. Esses acusadores
autoproclamados não eram sujeitos aptos a defender ou executar a lei mosaica.
Nosso Senhor pôs em uma frase o que já dissera no Sermão da Montanha.

Não julgueis, e não sereis julgados.


Porque do mesmo modo que julgardes,
sereis também vós julgados e,
com a medida com que tiverdes medido,
também vós sereis medidos.
Por que olhas a palha que está no olho do teu irmão
e não vês a trave que está no teu?
Como ousas dizer a teu irmão:
Deixa-me tirar a palha do teu olho,
quando tens uma trave no teu?
Hipócrita! Tira primeiro a trave de teu olho
e assim verás para tirar a palha do olho do teu irmão.
(São Mateus 7,1-5)

Enquanto escrevia no chão, os escribas e os fariseus tinham pedras nas


mãos prontas para executar o julgamento. A pessoa podia tomar a mão do que
estava a seu lado, tirar-lhe a pedra, pesar a sua pedra e a outra na mão e ver
qual era a mais pesada e devolver a mais leve, de modo que pudesse lançar a
mais pesada na mulher. Alguns desses homens não compartilhavam do vício da
mulher, mas tinham outros. Alguns eram isentos de certos vícios simplesmente
por causa da existência de outros vícios. Assim como uma doença é curada por
outra doença, do mesmo modo, um vício exclui o outro. O alcóolatra pode
não ser um ladrão, embora muitas vezes seja um mentiroso; e o ladrão, como
Judas Iscariotes, pode não necessariamente ser um adúltero, embora os filmes
sempre retratem Judas dessa maneira. Há muitas pessoas que pecam por
orgulho, por avareza, pela ânsia de poder e creem ser virtuosos só porque na
sociedade moderna possuem uma nota de respeitabilidade. Os pecados
respeitáveis são os mais odiosos, pois Nosso Senhor disse que tornam os
homens “semelhantes aos sepulcros caiados: por fora parecem formosos, mas
por dentro estão cheios de ossos, de cadáveres e de toda espécie de podridão”
(São Mateus 23,27). Os pecados mais vis do pobre geram ônus públicos, tais
como serviço social e prisões, e são vistos com desagrado; mas os pecados
respeitáveis, tais como a corrupção nos altos cargos públicos, a deslealdade ao
país, o ensino do mal nas universidades, são escusados, ignorados ou mesmo
elogiados como virtudes.
Nosso Senhor sugeriu, aqui, que Ele mesmo considera os pecados tidos
como respeitáveis mais odiosos do que os que a sociedade reprova. Nunca
condenou aqueles aos quais a sociedade condenou, pois já tinham sido
condenados. Entretanto, condenou aqueles que pecaram e que negaram ser
pecadores.
Nesse momento, olhou para um de cada vez, a começar pelos mais idosos.
Foi um daqueles olhares penetrantes que antecipam o juízo final.

Eles se foram retirando um por um, até o último,


a começar pelos mais idosos [...]
(São João 8,9)

Talvez, quanto mais idosos fossem, mais pecado tivessem. O Senhor não
os condenou; antes, fez com que condenassem a si mesmos. Talvez Jesus tenha
olhado para um dos anciãos e à consciência do homem tenha vindo a palavra
“ladrão” — e o homem tenha deixado cair a pedra e partido. Um, ainda mais
jovem, viu sua consciência acusá-lo de assassino, e partiu; partiram, um por
um, até restar somente um jovem. Assim que Nosso Senhor olhou fixamente
para esse último, poderia ter a consciência acusando-o de “adúltero”; deixou
cair a pedra e partiu. Não restou ninguém!
No entanto, por que ele se inclinou e escreveu novamente? Já que
recorreram à lei mosaica, ele, igualmente, poderia recorrer mais uma vez.
Moisés quebrou as primeiras tábuas que o dedo de Deus gravara ao ver o povo
adorando o bezerro de ouro. Então, Deus escreveu uma segunda tábua de
pedra e ela foi levada para a arca da aliança, onde foi colocada sob o
propiciatório e aspergida com sangue inocente. Esse seria o modo como a lei de
Moisés levaria à perfeição pela aspersão do sangue — o sangue do cordeiro.
Ao defender a mulher, Cristo provou-Se amigo dos pecadores, mas
somente dos que admitiam ser pecadores. Tinha de aproximar-se dos proscritos
da sociedade para encontrar grandeza de coração e generosidade desmedida
que, segundo Ele, constituíam a própria essência do amor. Embora fossem
pecadores, o amor que tinham alçava-os acima da própria sensatez e da
autossuficiência, que nunca se ajoelham em prece pedindo perdão. Ele veio
para colocar uma prostituta acima de um fariseu, um ladrão penitente acima de
um sumo sacerdote e um filho pródigo acima de um irmão exemplar. A todos
os impostores e falsários que dizem que não poderiam unir-se à Igreja porque
sua Igreja não era santa o bastante, Ele perguntaria: “Quão santa deve ser a
Igreja antes que nela ingresses ?”. Se a Igreja fosse tão santa quanto queriam
que fosse, nunca lhes seria permitido ingressarem nela! Em qualquer outra
religião sob o sol, em todas as religiões orientais, do budismo ao
confucionismo, sempre deve existir uma purificação antes de a pessoa
comungar com Deus. Entretanto, Nosso Senhor trouxe uma religião em que a
admissão do pecado é a condição de se achegar a Ele. “Não são os homens de
boa saúde que necessitam de médico, mas sim os enfermos” (São Lucas 5,31).
Olhou para a mulher, que estava de pé, só, e perguntou-lhe:
Mulher, onde estão os que te acusavam?
Ninguém te condenou?
(São João 8,10)

A lei mosaica requeria duas testemunhas de um crime antes de cumprir a


sentença; tinham até de assistir à execução. Os ditos defensores da lei mosaica,
todavia, já não estavam presentes para testemunhar. Notem, Nosso Senhor a
chamou de “mulher”. Havia muitos outros nomes pelos quais Ele poderia tê-la
chamado, mas Ele a fez representar todas as mulheres do mundo que tinham
aspirações de purificação e de santidade em união com Ele. Havia um toque de
ironia brincalhona na primeira pergunta: “Mulher, onde estão os que te
acusavam?”. Estava a chamar atenção para o fato de que ela estava sozinha! Ele
excluíra os acusadores. Nessa solidão, perguntou:

Ninguém te condenou?

Ela respondeu:

Ninguém, Senhor.
(São João 8,11)

Se não havia ninguém para lançar uma pedra, Ele tampouco a lançaria.
Ela, que chegou a Ele como juiz, encontrou Nele um salvador. Os acusadores
chamavam-No de “Mestre”; ela O chamava não de “seu”, mas de “Senhor”,
como se reconhecesse que estava na presença de alguém infinitamente superior
a ela mesma. E a fé Nele foi justificada, pois, Ele voltou-se para ela e disse:

Nem eu te condeno. Vai e não tornes a pecar.


(São João 8,11)

Entretanto, por que Ele não a condenou? Porque Ele seria condenado por
ela. A inocência não condena, porque a inocência sofreria por sua culpa. A
justiça seria salva, pois Ele pagaria a dívida pelos pecados dela; a misericórdia
seria salva, pelos méritos de sua morte aplicados à sua alma. Justiça primeiro,
misericórdia depois; primeiro a satisfação, depois o perdão. Nosso Senhor
realmente era o único naquela multidão que tinha o direito de lançar uma
pedra e realizar o julgamento porque era sem pecado. Por outro lado, não
tornou o pecado leve, pois assumiu o seu peso. O perdão custa alguma coisa e
o preço total seria pago no monte das três cruzes, onde a justiça seria satisfeita e
a misericórdia, ampliada. Foi essa libertação da escravidão do pecado que Ele
chamou pelo belo nome de liberdade.

Se, portanto, o Filho vos libertar, sereis verdadeiramente livres.


(São João 8,36)
22

O BOM PASTOR

Filósofos, cientistas e sábios com frequência reivindicam a superioridade de


seus respectivos sistemas. Não é de surpreender, portanto — visto que assim
Nosso Senhor como os fariseus eram mestres —, que houvesse uma disputa
entre eles quanto às doutrinas. Mas Jesus, como sempre, recusou-se a se colocar
no mesmo nível que os mestres humanos; reclamou singularidade como Mestre
Divino. No entanto, foi além. Veio para sacrificar a Si mesmo em favor de Suas
ovelhas, não para ser Mestre de Seus pupilos. Os fariseus e Jesus discutiram
acerca de Suas doutrinas. De um lado, chamou a Si mesmo de Porta que dava
acesso exclusivo ao Pai; o porteiro ou o cuidador do aprisco; chamou a Si
mesmo também de Pastor ou guardador das ovelhas, e por fim Ele era o
Cordeiro que viria a tornar-se vítima. Do outro lado, comparou os fariseus
àqueles que não entram pela porta e que, portanto, buscavam roubar o
rebanho; e a mercenários que correriam quando viessem os lobos; e, por fim, a
lobos que devorariam as ovelhas.
A disputa surgiu depois que Nosso Bendito Senhor restaurou a visão a um
cego de nascença. Os fariseus começaram a fazer uma investigação do milagre.
Não havia dúvida de que o cego agora podia ver; os fariseus, no entanto,
estavam tão convencidos de que isso não devia ser considerado milagre que
procuraram os pais do garoto, que confirmaram que ele nascera cego. Já
tinham o próprio juízo, de modo que nenhum fragmento de evidência podia
mudar-lhes a opinião,

pois os judeus tinham ameaçado


expulsar da sinagoga todo aquele
que reconhecesse Jesus como o Cristo.
(São João 9,22)

O cego de nascença, portanto, foi o primeiro de uma longa lista de


confessores que Nosso Senhor disse que seriam expulsos das sinagogas. Os
fariseus, ao encontrarem aquele cego, disseram que Cristo não podia ter feito
isso porque “Ele é um pecador”. Quando aquele que era cego ficou impaciente
com as perguntas dos fariseus e com a recusa de aceitar a evidências dos
sentidos, argumentou contra eles:

Se esse homem não fosse de Deus,


não poderia fazer nada.
(São João 9,33)

O pedinte era muito mais sábio em seu entendimento do milagre do que


os fariseus, assim como José foi muito mais sábio do que os supostos sábios do
Egito na interpretação do sonho de Faraó. O progresso no pensamento e na fé
do homem cego foi semelhante àquele da mulher do poço. Primeiro, o cego
disse a respeito Dele:

Aquele homem que se chama Jesus.


(São João 9,11)

Mais tarde, depois de ser ainda mais questionado, disse, como o fizera a
mulher do poço:

É um profeta.
(São João 9,17)

Por fim, ele declarou que o Senhor devia ter vindo de Deus. Esse é
geralmente o percurso daqueles que enfim chegam à verdade acerca de Cristo.
Quando o homem curado confessou que Cristo era o Filho do Deus, os
fariseus excomungaram-no da sinagoga. Isso foi grave; pois privava o pedinte
dos privilégios externos da comunidade do povo e o tornava objeto de escárnio.
Tendo tomado conhecimento da excomunhão, Nosso Senhor, incansável até
que encontrasse a ovelha perdida, procurou o homem condenado.
Encontrando-o, perguntou-lhe:

Crês no Filho [de Deus]?20


(São João 9,35)

E o pedinte respondeu:

Quem é ele, Senhor,


para que eu creia nele?
(São João 9,36)

Nosso Senhor respondeu da mesma maneira que o fez à mulher do poço:

Tu o vês, é o mesmo que fala contigo!


(São João 9,37)

Então o homem que fora cego prostrou-se diante do Senhor em adoração.


Sua fé não era aquela que se confessa com os lábios, mas a que adora à Verdade
Encarnada. Seu raciocínio foi simples e, ainda assim, sublime. Aquele que
podia operar tal milagre devia ser de Deus. Então, se Ele era de Deus, Seu
testemunho havia de ser verdadeiro.
Os fariseus tinham feito uma investigação completa do milagre; não havia
dúvida entre as testemunhas; os pais e o homem mesmo reconheceram que um
grande milagre havia sido feito: um milagre aos olhos, ao restaurar-lhes a visão,
e um milagre à alma, ao dar-lhe a fé em Cristo. Como os fariseus rejeitavam a
evidência, Nosso Senhor disse-lhes que eram líderes cegos e que, porque o
tinham rejeitado, o juízo cairia sobre eles. Disse-lhes que tiveram uma chance
de ser iluminados por Ele mesmo, a Luz do Mundo. Sem essa iluminação, a
cegueira podia ser uma calamidade; agora, no entanto, era um crime.
Tinham fechado a porta da sinagoga ao cego de nascença. Os fariseus
imaginaram que assim o tinham afastado de toda comunicação com o Divino.
Nosso Senhor, todavia, disse à multidão que, embora a porta da sinagoga
estivesse fechada, outra porta se abria:

Eu sou a porta.
Se alguém entrar por mim será salvo;
tanto entrará como sairá
e encontrará pastagem.
(São João 10,9)

Jesus não disse que havia muitas portas, nem que pouco importava por
que outra porta alguém buscasse uma vida superior; Ele não disse que era uma
porta, mas A Porta. Havia uma única porta na arca em que Noé e sua família
entraram para ser salvos do dilúvio; havia uma única porta no Tabernáculo ou
no Santo dos Santos. Reclamou para Si o direito exclusivo de admissão ou
rejeição no rebanho de Deus. Não disse que Seu ensino ou Seu exemplo eram a
porta, mas que Ele, pessoalmente, era o único acesso à plenitude da vida
divina. Ele é único e não divide a honra com “colegas”, nem mesmo com
Moisés, e tampouco com Zoroastro, Confúcio, Maomé ou quem quer que seja:

Ninguém vem ao Pai senão por mim.


(São João 14,6)

Depois de dizer aos fariseus que não eram de fato mestres, mas líderes
cegos, desconhecedores e mercenários, colocou-Se a Si mesmo em contraste
com eles não apenas como o Único Mestre, mas como algo infinitamente
maior. E não estava meramente dando ideias ou leis, estava dando vida.

Eu vim para que as ovelhas tenham vida


e para que a tenham em abundância.
(São João 10,10)

Os homens têm existência; o Senhor, no entanto, lhes daria vida; não a


vida biológica ou física, mas divina. A natureza sugere, mas não pode dar essa
vida mais abundante. Animais têm vida mais abundante que as plantas; o
homem tem vida mais abundante que os animais. Disse ter vindo para dar uma
vida que transcende o humano. Assim como o oxigênio não pode dar uma vida
mais abundante à planta a menos que esta se renda a ele, assim também o
homem não pode partilhar da Vida Divina a menos que Nosso Senhor se renda
para dá-la.
Em seguida, o Senhor passou a demonstrar que deu essa vida não por Seu
ensinamento, mas por Sua morte. Não era unicamente um Mestre, mas
sobretudo um Salvador. Para ilustrar mais uma vez o propósito de Sua vinda,
voltou ao Antigo Testamento. Nenhuma figura é empregada com mais
frequência no Êxodo para descrever o Deus que conduz seu povo da servidão
para a liberdade do que a de um pastor. Os profetas também falavam dos
pastores que guardavam um rebanho em bons pastos como distintos dos falsos
pastores. Deus é retratado por Isaías como Aquele que leva sua ovelha nos
braços (Isaías 40,11), e por Ezequiel como um pastor que procura a ovelha
perdida (Ezequiel 34,12). Zacarias deu o retrato mais triste de todos ao
profetizar que o Messias-pastor seria ferido e as ovelhas dispersas (Zacarias
13,7). O mais conhecido é o Salmo 23, em que o Senhor é retratado
conduzindo sua ovelha a pastos verdejantes.
O Senhor revelou a que custo esses pastos verdejantes são comprados. Ele
não era o Bom Pastor porque provia fartura econômica, mas porque entregaria
a própria vida em favor das ovelhas. Mais uma vez, a Cruz aparece sob o
símbolo do pastor. O patriarca-pastor Jacó e o rei-pastor Davi tornam-se agora
o salvador-pastor, do mesmo modo que o bastão torna-se um cajado; o cajado,
um cetro; e o cetro, uma Cruz.

O Pai me ama,
porque dou a minha vida para a retomar.
Ninguém a tira de mim,
mas eu a dou de mim mesmo
e tenho o poder de a dar,
como tenho o poder de a reassumir.
(São João 10,17-18)

Sua morte não é nem acidental nem imprevista; tampouco Ele fala de Sua
morte à parte de Sua glória; nem de entregar a vida sem tomá-la de volta.
Nenhum homem comum poderia ter dito isso. A ajuda invisível do céu estava
em Sua vocação. Aqui Nosso Senhor determinou que o amor do Pai tinha-O
enviado à missão que Ele haveria de cumprir sobre a terra. Isso não significava
o início do amor do Pai, como podia ser o início do amor de um pai por
alguém que resgatasse o filho de um afogamento. Ele já era o Objeto Eterno de
um Amor Eterno. Mas agora, em Sua natureza humana, dá um motivo
adicional para esse amor: a prova de Seu amor ao morrer. Visto que não
possuía pecado, a morte não tinha poder sobre Ele. Retomar Sua vida era parte
do plano divino tanto quanto o era entregá-la. Os cordeiros sacrificiais
oferecidos por séculos eram portadores do pecado por imputação, mas também
eram pacientes inocentes levados em ignorância ao altar. O sacerdote da Antiga
Lei impunha a mão sobre o cordeiro a fim de indicar que estava imputando
pecados sobre aquele que seria sacrificado. Jesus, contudo, assumiu
voluntariamente o pecado por causa da nova vida que concederia depois da
Ressurreição. Quando disse que dá a vida pelas ovelhas, o Senhor não queria
dizer apenas por causa delas, mas também no lugar delas. Depois da
Ressurreição, quando deu a Pedro o triplo mandato de apascentar Seus
cordeiros e ovelhas, Ele profetizou que Pedro teria de morrer pelo rebanho do
Senhor, como de fato veio a fazer.
O Pai O amava, disse o Senhor, não apenas porque entregou a vida, pois
os homens podem tornar-se vítimas de forças superiores. Se morresse sem
retomar a vida, Sua função teria cessado depois do sacrifício; teria sido apenas
uma linda memória. Mas o amor do Pai contemplava mais do que isso. Ele
também havia de retomar a vida e continuar a exercer os direitos reais. Ao
retomar a vida, ele seria capaz de continuar soberano em termos diferentes.
Essa ação dupla foi a ordem do Pai.

Tal é a ordem que recebi de meu Pai.


(São João 10,18)

Desse modo, enquanto a entrega e a retomada de Sua vida foi espontânea,


foi também uma consequência de um compromisso e uma ordem recebida do
Pai Celestial quando se fez homem. O Pai não queria que o Filho perecesse,
mas, ao contrário, que triunfasse no maior ato de amor possível. Mais tarde,
durante a agonia no Jardim, confirmaria essa mistura de liberdade com ordem
divina. Antes, ouviram-No dizer:

Pois desci do céu não para fazer a minha vontade,


mas a vontade daquele que me enviou.
(São João 6,38)

Assim, a discussão que começou com o tema da liderança de ensino


terminou no tema do acréscimo de vida por meio da Redenção. O milagre de
dar vista ao cego de nascença foi como todos os outros milagres Dele —
apontavam para Sua obra de dar a vida em resgate da humanidade. Cada
momento de Sua vida tinha em si a Cruz; Seu ensino só tinha valor por causa
da Cruz. Sua exposição ativa à Cruz por amor era bem diferente de uma
aceitação estoica quando ela de fato acontecesse. Entrou voluntariamente pelo
portão do Calvário por causa da justiça. Paulo mais tarde contaria aos romanos
as maravilhas desse amor do pastor por sua ovelha negra.

Com efeito, quando éramos ainda fracos,


Cristo a seu tempo morreu pelos ímpios.
Em rigor, a gente aceitaria morrer por um justo,
por um homem de bem,
quiçá se consentiria em morrer.
(Romanos 5,6-7)
Nota

20 | Algumas versões trazem nesta passagem “filho do homem”, incluindo a tradução que
adotamos como padrão das citações bíblicas. (N. T.)
23

O FILHO DO HOMEM

Não há título que Nosso Senhor tenha usado com mais frequência para
descrever a Si mesmo que o de “Filho do Homem”. Ninguém jamais o chamou
por esse título, mas Ele o utilizou para Si ao menos umas oitenta vezes. Não se
chamava de “um filho do homem”, mas de “o Filho do Homem”. Sua
existência, tanto a eterna quanto a temporal, está nisso. Na conversa com
Nicodemos sugeriu que era Deus em forma de homem.

Ninguém subiu ao céu senão aquele que desceu do céu,


o Filho do Homem que está no céu.
(São João 3,13)

Com efeito, de tal modo Deus amou o mundo,


que lhe deu seu Filho único.
(São João 3,16)

Que o “Filho do Homem” se referia à natureza humana em união pessoal


com a natureza divina está evidenciado no fato de que a primeira vez que
Nosso Senhor fez referência a Si mesmo como “o Filho do Homem” foi ao ser
reconhecido pelos discípulos como o Filho de Deus.
Cristo ingressou na existência humana em uma forma que não Lhe era
natural como o Filho de Deus. Essa admissão da natureza humana era uma
humilhação, um esvaziamento, um despojamento e uma kenosis de sua glória.
A renúncia fundamental da glória divina criou uma condição física de vida que
O fez aparecer como um homem. O sofrimento e a morte eram as
consequências lógicas dessa humilhação. Como Deus não poderia sofrer; como
homem, poderia.
Ele sempre fez essa distinção entre Filho do Homem e Filho de Deus. Em
uma ocasião, quando os inimigos buscavam matá-Lo, disse:

Vós sois cá de baixo, eu sou lá de cima.


Vós sois deste mundo, eu não sou deste mundo.
(São João 8,23)

Às vezes, o título de “Filho do Homem” é usado com referência à sua


vinda no último dia para julgar todos os homens; outras vezes, refere-se à
missão messiânica para instituir o Reino de Deus na terra e trazer o perdão dos
pecados, mas, com mais frequência, refere-se à sua Paixão, morte e
Ressurreição. Encoberta pelo título estava a missão como Salvador e a
humilhação como Deus na fraqueza da carne humana. Assim como um rei
podia tomar outro nome enquanto viajava incógnito, o filho de Deus,
igualmente, tomou outro nome, “o Filho do Homem”, não para negar Sua
divindade, mas, melhor, para afirmar a nova condição que assumira. Já que
estava humilhando-Se e fazendo-Se obediente, até a morte na Cruz, o título de
“Filho do Homem” representou a vergonha, o aviltamento e o pesar que é o
destino humano. Era descritivo daquilo que Ele se tornou, em vez daquilo que
ele é desde a eternidade. “O Filho do Homem” ou o “Homem das Dores” era,
disse, também o objeto da profecia:

Como então está escrito acerca do Filho do homem


que deve padecer muito e ser desprezado?
(São Marcos 9,12)

Porque o nome indica não só humilhação, mas identificação com a


humanidade pecadora, Ele nunca usou o termo após ter redimido a humanidade e
ressuscitado dos mortos. Os lábios glorificados da “ressurreição e da vida” nunca
mais pronunciaram “o Filho do Homem”. Deixara para trás a unidade com a
humanidade não redimida.
A humildade da presente condição que queria enfatizar torna-se evidente
na Sua unidade com os infortúnios e misérias do homem. Se os homens não
tinham lar, Ele não teria lar:

As raposas têm suas tocas e as aves do céu,


seus ninhos, mas o Filho do Homem
não tem onde repousar a cabeça.
(São Mateus 8,20)

Uma vez que a verdade que veio trazer ao mundo estava reservada aos que
aceitaram Sua divindade e não era algo atrativo aos ouvintes, Ele nunca usou “o
Filho do Homem” como a fonte dessa verdade. A verdade que trouxe era a
verdade divina, derradeira e absoluta. Por isso, evitou usar o termo “Filho do
Homem” em relação a Sua natureza divina, que era una com o Pai.

Mas conheço-o e guardo a sua palavra.


(São João 8,55)

Eu sou [...] a verdade.


(São João 14,6)

Em verdade, em verdade vos digo.


(São João 6,32)

Entretanto, quando se tratar de julgar o mundo, no fim dos tempos, de


separar as ovelhas e os cabritos, de trazer a balança da virtude e do vício para
cada alma, esse privilégio e autoridade foi Dele porque sofreu e redimiu a
humanidade como “O Filho do Homem”. Porque foi obediente até a morte,
seu Pai o exaltou como o juiz. Conhecendo o que havia no homem, como
“Filho do Homem”, poderia julgar melhor a raça humana.
o Pai [...] lhe conferiu o poder de julgar,
porque é o Filho do Homem.
(São João 5,26-27)

Ainda que “o Filho do Homem” expressasse Sua relação com a


humanidade, era muito diligente em destacar que era como o homem em todas
as coisas, exceto no pecado. Desafiou os ouvintes a condená-Lo por pecado. No
entanto, as consequências do pecado estavam todas Nele como “o Filho do
Homem”. Daí a prece para afastar o cálice, o sofrimento da fome e da sede; a
agonia e o suor de sangue; talvez, parecer mais velho do que realmente era; a
condescendência em lavar os pés dos discípulos, a falta de ressentimento assim
que os donos dos porcos rogaram-Lhe que partisse de seus arredores; o
sofrimento diante das acusações falsas de beberrão, glutão; a gentileza expressa
ao esconder-Se quando os inimigos o teriam apedrejado e, sobretudo, a
persistência da preocupação, da agonia, do medo, da dor, da angústia mental,
da febre, da fome e da sede durante as horas de sua Paixão — todas essas coisas
se deram para inspirar os homens a imitar o “Filho do Homem”. Nada
humano era-Lhe estranho.
A família humana tem suas provações, então, Ele as santificou ao viver em
uma família. O trabalho árduo realizado com o suor do rosto era a sina da
humanidade; Ele, portanto, “o Filho do Homem” se tornou um carpinteiro.
Não há uma única aflição humana resultante do pecado que recaia sobre o
homem que tenha escapado dessa unidade com Ele.

Tomou as nossas enfermidades


e sobrecarregou-se dos nossos males.
(São Mateus 8,17)

Isaías profetizara essa incorporação com a fragilidade humana. Embora


não existam provas no Evangelho de que Nosso Senhor alguma vez esteve
doente, há muitos momentos em que Ele sentiu a doença como se fosse Dele,
assim como sentiu o pecado como Seu. Por isso, ao realizar uma cura, ele, às
vezes, “suspirava” ou “gemia” após levantar os olhos ao céu, a fonte de Seu
poder. A enfermidade humana o tocava de modo muito profundo, pois a
surdez, a mudez, a lepra e a insanidade eram efeitos do pecado, não da pessoa
afligida, mas da humanidade. Porque sua morte retiraria o pecado, que era a
causa (ainda que a remoção final da doença e do erro não viessem até a
ressurreição do justo), disse que era demasiado fácil para ele curar um como o
outro.

Que é mais fácil dizer:


Teus pecados te são perdoados,
ou: Levanta-te e anda?
(São Mateus 9,5)

Suspirava porque era o Sumo Sacerdote tocado por todas as “mil pelejas
naturais — herança do homem”.21 Lágrimas! Chorou três vezes porque a
humanidade chora. Quando viu outros chorarem, tal como Maria na dor pela
morte do irmão, sentiu o pesar como seu.

Ao vê-la chorar assim,


como também todos os judeus que a acompanhavam,
Jesus ficou intensamente comovido em espírito.
(São João 11,33)

Na morte e enterro de Lázaro, viu a longa procissão de pessoas de luto, do


primeiro ao último, e o motivo daquilo tudo: como a morte veio ao mundo
com pecado de Adão. Dentro de poucos dias sabia que Ele, como um segundo
Adão ou o “Filho do Homem”, tomaria para Si “os pecados do mundo” e,
portanto, daria à morte seu fim. Restaurar a saúde física para a humanidade
custou-Lhe algo, assim como restaurar a saúde espiritual custou-Lhe a vida.
Nesse primeiro momento, como Filho do Homem, sentia como se perdesse
uma energia para a humanidade. Quando a mulher tocou a barra de sua veste,
o Evangelho recorda que:

Jesus percebeu imediatamente que saíra dele uma força.


(São Marcos 5,30)
Assim, portanto, nenhum pecado ou doença o atingia por contágio. Ele as
suportava como a mãe amorosa suporta a agonia do filho e a tomaria, se
possível, sobre Si. Entretanto, uma mãe não tem o caráter representativo em
sua família que o Cristo tinha na humanidade. Foi o novo Adão e poderia
trazer o perdão e a vida para todos os homens, assim como o primeiro Adão
deu a todos os homens o pecado e a morte.
Por fim, o título “o Filho do Homem” significava que Ele era
representante não apenas dos judeus, não só dos samaritanos, mas de toda a
humanidade. Sua relação com os seres humanos era semelhante à de Adão. A
raça humana tinha duas cabeças: Adão e o novo Adão, o Cristo. O “Filho do
Homem” não era um homem em particular, um homem pessoal, mas, antes,
um padrão de homem, um homem universal. Foi na família humana que Deus
escolheu ingressar, a expressão perfeita para descrever isto é Homo factus est. Foi
feito homem e limitou-Se a compartilhar a natureza humana. Entrou na
realidade da humanidade comum. Assumiu a natureza humana em Sua sagrada
pessoa. Aristóteles disse que se os deuses se interessassem pelos assuntos
humanos, esperaria que vissem com mais satisfação aquilo que é mais parecido
com a própria natureza. Isso sugere certo grau de desdém pelo humano;
consequentemente, os gregos diziam que as manifestações da divindade “eram
demasiado belas para venerar e demasiado divinas para amar”. Entretanto, em
Cristo o inverso é verdadeiro: “Ele veio para o que era seu” (São João 1,11). O
santificador deve ser um com aqueles que santifica. A própria separação em
atributos entre as duas partes torna necessário que de algum modo sejam um.
Deve haver um ponto de contato, de um com o outro. Aquele que é como os
irmãos terá mais poder sobre eles do que o que não lhes assemelha. Por isso,
para ser um santificador, Nosso Senhor Santíssimo tinha de ser um homem
como seus irmãos ímpios. Ele os santificaria ao reproduzir em sua vida o ideal
perdido do atributo humano e ao trazer esse ideal para permanecer em suas
mentes e corações.
O ideal tinha de ser um homem ideal, “ossos dos nossos ossos, carne da
nossa carne” — “o Filho do Homem”. Tinha de ser, em humanidade, despido
de todas as vantagens sociais até o nível da massa comum e apresentando aí o
ideal de excelência em ambiente familiar. Assim, poderia ser um sumo
sacerdote compassivo que poderia sentir pelos homens e ser o verdadeiro
representante diante de Deus. Quanto mais próximo de seus eleitores, mais
apto estava para o ofício. Ao ter compaixão do ignorante e do pecador,
adquiriu, pela própria experiência e consciência da enfermidade, a semelhança
aos homens que sofrem.
Não poderia ser um Sumo Sacerdote para o homem, interceder pelo
homem e pagar a dívida ao Pai a menos que fosse tirado do meio dos homens.
O título “Filho do Homem” proclamou sua irmandade, mas os homens não
podem ser irmãos a não ser que tenham um pai comum, e Deus não é pai a
menos que tenha um filho. Acreditar na irmandade do homem sem a
paternidade de Deus é fazer dos homens uma raça de bastardos.
Só a empatia, contudo, não explica completamente esse título de “Filho
do Homem”. Não estava só desejoso, mas ávido — mesmo sob necessidade —
de vir à condição deles. O amor empático trouxe-o dos céus à terra, e a
associação no sofrimento se deu como questão de percurso. O amor é um
princípio vicário. Uma mãe sofre pelo filho doente e com ele, assim como o
patriota sofre por seu país. Não é de admirar que o Filho do Homem tenha
visitado essa terra tenebrosa, pecadora e infeliz ao tornar-Se homem — a
unidade de Cristo com os pecadores deveu-se ao amor! O amor sobrecarrega-se
dos desejos, dos infortúnios, das perdas e até dos erros dos outros.
Sofreu porque amou. Entretanto, algo mais deve ser acrescentado. Não
era o bastante para o homem amar o outro; se esse sofrimento tinha de ter
algum valor, deveria ter algo a oferecer a Deus por nós e essa oferta deveria
possuir certa qualidade necessária para ser eficaz. Deveria ser perfeita e
eternamente válida. Ele, portanto, tinha de ser Deus e homem, de outro modo
a reparação e a redenção do pecador não teria tido valor à vista de Deus. A
empatia por si não seria o bastante para formar uma unidade entre Deus e o
ímpio. Devia haver uma nomeação divina para o cargo. Em virtude do “dever”
divino, Ele não era apenas um sacerdote, mas uma vítima. Removeu o pecado
pelo sacrifício de si mesmo. Como sacerdote, era um representante da
humanidade; como vítima, era o substituto da humanidade. Ofereceu-se como
um sacrifício aceitável a Deus. É o exemplo perfeito de autoentrega e de
lealdade à vontade divina, e Deus aceitou o sacrifício não de um homem, mas
do “Filho do Homem” ou da raça humana representada por esse homem
arquetípico ou modelar. Ao agir como portador do pecado não alterou de
modo algum seu relacionamento com o Pai Celestial. Ainda que Cristo tenha
sido, na verdade, o portador do pecado enquanto ainda estava na terra, era o
portador do pecado por destino antes de vir ao mundo. Por isso as Escrituras o
chamam de o “cordeiro imolado” que veio antes da origem do mundo
(Apocalipse 13,8).
Ninguém — nem os demônios, nem os inimigos, nem mesmo os
apóstolos — jamais o chamou de “Filho do Homem”. Assim como “Filho de
Deus” aplicado a Si tinha um significado único, a saber, o filho unigênito
gerado do Pai Eterno, igualmente esse título, cunhado por Ele mesmo e
aplicado somente a Si. Ninguém mais se apresentou como representante da
raça humana. O “Filho de Deus” é um estranho à raça humana porque é o seu
criador, mas “o Filho do Homem” foi um com a raça humana, exceto no
pecado. Como homem, podia morrer. Morrer é uma humilhação; mas morrer
por outrem é glorificação. Seu Pai, portanto, manifestou um amor singular por
seu divino Filho ao permitir que como Filho do Homem experimentasse a
morte pelos outros. A árvore genealógica de Seus ancestrais terrenos não era
realmente importante; o que era importante era a árvore genealógica dos filhos
de Deus que Ele plantou no Calvário.
Nota

21 | William Shakespeare, Hamlet. Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo:
Editora Abril, 1976, Ato III, cena I. (N. T.)
24

CÉSAR OU DEUS

Os homens falam mais sobre a riqueza quando estão pobres. Do mesmo


modo, também falam mais de liberdade quando correm o risco de perdê-la ou
quando estão escravizados. Por vezes, a liberdade identificou-se com a
licenciosidade num extremo ou com a tirania no outro. Visto que Nosso
Senhor nasceu numa terra subjugada e escravizada, era de esperar que alguns
não desejassem outro tipo de liberdade que não a política, ou uma libertação
que não do jugo do conquistador. Se o Senhor fosse um reformador ético, seria
exatamente esta a liberdade que teria dado; mas, se fosse um Salvador, como de
fato o era, então a liberdade espiritual era mais importante que a liberdade
política.
No topo da montanha, Satanás ofereceu a Ele uma carreira política, mas
fracassou. Era o político que havia de servir ao Divino, não o Divino ao
político. Mais tarde, quando as massas tentaram proclamá-Lo rei, o Senhor
fugiu para as montanhas. A ideia de libertação política, no entanto, era
frequente no imaginário popular. Toda Israel estivera nas mãos dos romanos
desde que Pompeu entrou na Cidade Santa, defendida por Aristóbulo, e levou
cativo a ele e a milhares de outros. O país, então, tornou-se tributário de
Roma. Quando se usava a palavra “liberdade”, quase sempre esta era
compreendida em sentido político, como o fim da servidão a César.
Nosso Senhor, portanto, constantemente tinha de lidar com esse
problema — seja porque esperavam que ele fosse um libertador político, seja
porque sempre que falava de liberdade era mal interpretado como se falasse da
libertação do jugo romano. Em três incidentes separados, ele esclareceu sua
posição quanto ao assunto, sem deixar dúvidas a respeito do que considerava a
verdadeira liberdade:
1. A libertação política de César não era primordial.
2. A verdadeira liberdade era espiritual e significava
libertação do pecado.
3. Para conquistar essa liberdade para todos, judeus e
gentios, haveria de entregar-se voluntariamente como
expiação do pecado.

Os herodianos e os fariseus sustentavam visões opostas em relação a César.


Os herodianos não eram uma seita ou uma escola religiosa, mas um partido
político. Aparentemente, eram amigos de César e da autoridade romana;
embora não fossem romanos, defendiam a Casa de Herodes como ocupante do
trono judaico; isso fez deles amigos da Roma pagã e de César, com o próprio
Herodes como vassalo de César. Desejando ver a Judeia enfim conduzida pelo
cetro de um príncipe de linha herodiana, nesse ínterim, como companheiros de
viagem, submetiam-se à autoridade romana pagã.
Outro partido era o dos fariseus, que estavam agora no auge de seu poder.
Sendo puritanos quanto à lei e às tradições judaicas, recusavam-se a reconhecer
qualquer autoridade de Roma; chegaram até mesmo, segundo [Flávio] Josefo, a
tentar matar Herodes. Como nacionalistas, recusavam-se a reconhecer o
domínio romano e esperavam que um dia os judeus, sob o Rei-Messias,
regessem o mundo.
Ambos os grupos eram inimigos, não apenas porque os herodianos
estavam ao lado de César e dispostos a pagar tributo ao conquistador, enquanto
os fariseus desprezavam César e pagavam o tributo sob protesto, mas também
porque os herodianos não estavam particularmente interessados em religião, ao
passo que os fariseus professavam ser os modelos mais exemplares de devoção
religiosa.
Um dia depois que Nosso Senhor curou um homem num sábado, os
fariseus começaram a planejar, junto com membros do partido de Herodes,
como livrar-se de Jesus. O simples fato de os fariseus terem tolerado até mesmo
uma aliança temporária com os herodianos mostra a virulência do ódio
dirigido a Nosso Bendito Senhor. O Evangelho sugere que essa nova
conspiração pretendia entregar o Senhor à autoridade do governador romano
ou também ao povo.
Puseram-se então a observá-lo e mandaram espiões
que se disfarçassem em homens de bem,
para armar-lhe ciladas e surpreendê-lo no que dizia,
a fim de o entregarem à autoridade e ao poder do governador.
(São Lucas 20,20)

Os herodianos não podiam postar-se diante de Nosso Senhor sem


levantar suspeitas quanto a Suas motivações; tampouco os fariseus, sempre
muito astutos, foram até Ele. Enviaram alguns de seus jovens eruditos, como se
em sua simplicidade ingênua estivessem apenas buscando informação. Os
fariseus deram a Nosso Bendito Senhor a impressão de que surgira uma
discussão entre eles e os herodianos, como de fato teria sido muito natural.
Desejavam resolver a questão recorrendo a Jesus como grande mestre.
Começaram elogiando-o, pensando tolamente que Ele podia ser vencido por
alguma adulação.

Mestre, sabemos que és verdadeiro


e ensinas o caminho de Deus em toda a verdade,
sem te preocupares com ninguém,
porque não olhas para a aparência dos homens.
(São Mateus 22,16)

E então vem a pergunta, uma verdadeira pergunta capciosa:

É permitido ou não pagar o imposto a César?


(São Mateus 22,17)

“Esse imposto que nós, fariseus, tanto detestamos, mas cuja legalidade os
herodianos defendem, deve ou não deve ser pago? Quem de nós está certo —
nós, os fariseus que o repudiamos, ou os herodianos que o justificam?”
Esperavam que Nosso Bendito Senhor respondesse ou “os herodianos” ou
“os fariseus”. Se respondesse “Não, não é legítimo pagar tributo a César”, então
os herodianos O teriam entregado às autoridades romanas, que por sua vez O
condenariam à morte por conspirar uma revolução. Se dissesse “Sim, é
legítimo”, então desagradaria aos fariseus, que iriam diante do povo e diriam
que Ele não era o messias, pois nenhum messias, ou libertador, ou salvador,
consentiria que o povo entregasse o pescoço ao jugo do invasor. Se se recusasse
a pagar o tributo, seria um rebelde; se concordasse em pagá-lo, seria inimigo do
povo. Dizer “Não” faria dele um traidor de César; dizer “Sim” faria dele
inimigo da nação, um inimigo da pátria. Em qualquer dos casos, pareceria que
caiu numa armadilha. Os companheiros de viagem condená-Lo-iam por ser
inimigo do grande líder, César; os semirreligiosos o danariam por ser um
inimigo do país. A ardileza na pergunta foi intensificada pela fusão dos
elementos religiosos e políticos na história antiga de Israel; mas agora os dois
estavam separados. Como podia aplicar-se um padrão absoluto tanto a Deus
quanto a César?
A essa pergunta apresentada com tanta malícia, Nosso Divino Senhor
respondeu:

Por que me tentais, hipócritas?


(São Mateus 22,18)

Apesar do fato de eles terem começado com cortesia, Nosso Bendito


Senhor podia ouvir o sibilo da serpente. Embora alardeassem que Jesus era
destemido e imparcial, este os ofuscou as vistas com o clarão da palavra
indignada “hipócritas”. E disse-lhes:

Mostrai-me a moeda com que se paga o imposto!


(São Mateus 22,19)

Nosso Senhor não tinha nenhuma. Providenciaram uma moeda e


colocaram-na em Sua mão. De um lado, estava estampado o rosto do
imperador, Tibério César; do outro lado da moeda estava estampado seu título
— Pontifex Maximus. Grande silêncio deve ter sobrevindo à multidão no
momento em que viram a moeda ali, nas mãos de Nosso Senhor. Não muitos
dias depois, aquele que era o rei dos reis teria aquelas mesmas mãos perfuradas
pelos cravos sob as ordens dos representantes daquele homem para cuja efígie
ele olhava. Nosso Senhor perguntou-lhes:

De quem é esta imagem


e esta inscrição?
(São Mateus 22,20)

Responderam:

De César.
(São Mateus 22,21)

Veio então a resposta de Jesus:

Dai, pois, a César o que é de César [...]


(São Mateus 22,21)

Nosso senhor não tomou partido, porque a questão básica não era Deus
ou César, mas Deus e César. Aquela moeda usada nas transações comerciais
cotidianas mostrava que eles já não eram independentes do ponto de vista
político. Naquela esfera da vida mais baixa, a dívida para com o governo
deveria ser quitada. Ele não fomentou aspirações de independência; não
prometeu ajuda e libertação. Aliás, era o dever deles reconhecer o domínio
presente de César, imperante Tiberio. A palavra grega usada no Evangelho para
“devolver” ou “dar” implicava um dever moral tal como São Paulo disse mais
tarde aos romanos, imperante Nerone:

Cada qual seja submisso às autoridades constituídas,


porque não há autoridade que não venha de Deus;
as que existem foram instituídas por Deus.
(Romanos 13,1)
Mas, a fim de remover a objeção de que o serviço ao governo isentava do
serviço a Deus, Jesus acrescentou:

E a Deus o que é de Deus.


(São Mateus 22,21)

Mais uma vez, Jesus estava dizendo que Seu reino não era deste mundo;
que a submissão a Ele não era incoerente com a submissão aos poderes
seculares; que a liberdade política não é a única liberdade. Aos fariseus que
odiavam César chegou a ordem: “Dai a César”; aos herodianos que tinham
esquecido de Deus em seu amor a César chegou o princípio básico: “Dai a
Deus”. Tendo o povo cumprido seu dever perante Deus, estariam agora na
presente condição de ter de servir também a César. Ele viera sobretudo para
restaurar os direitos de Deus. Como Jesus já lhes tinha dito antes, se buscassem
em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça, todas as demais coisas,
incluindo a liberdade política, lhes seriam acrescentadas.
Aquela moeda trazia a imagem de César, mas que imagem traziam os
questionadores? Era a imagem do próprio Deus? Era esta a imagem que Jesus
pretendia restaurar. Por ora, a política podia permanecer como estava, pois ele
não ergueu um dedo para mudar sua cunhagem. Mas daria a vida para fazê-los
dar a Deus o que é de Deus.

A VERDADEIRA LIBERDADE

Essa questão da liberdade surgiu durante a segunda visita de Nosso Senhor a


Jerusalém. Ele tinha acabado de discursar sobre a verdade como condição da
liberdade, dizendo:

Conhecereis a verdade e a verdade vos livrará.


(São João 8,32)

Assim como na ordem mecânica um homem é mais livre para operar uma
máquina quando sabe a verdade sobre ela, também, espiritualmente, é mais
livre um homem cuja mente é iluminada por aquele que disse “Eu sou a
verdade”.
Os ouvintes ressentiram-se do que lhes parecia uma sugestão de que eram
escravos.

Somos descendentes de Abraão


e jamais fomos escravos de alguém.
Como dizes tu: Sereis livres?
(São João 8,33)

Esta jactância orgulhosa era completamente infundada. Naquele exato


momento, os romanos estavam coletando os impostos deles, como um povo
conquistado. Sete vezes, conforme o livro dos Juízes, foram escravizados pelos
canaanitas. Além disso, tinham esquecido os setenta anos na Babilônia?
Estiveram sob o jugo dos filisteus, dos assírios e dos caldeus; e agora, dentro
desta visão paupérrima, estava a guarnição romana, em seus bolsos estava o
dinheiro romano e, em Jerusalém, estava Pilatos, o romano.
Nosso Senhor, no entanto, ignorava o pano de fundo político; tal sujeição
podia ser suportada. A servidão da qual Ele falava, todavia, era a servidão do
pecado. O desejo humano não pode ser atacado desde fora; só pode ser
abandonado desde dentro, por uma decisão livre que, multiplicada, forja a
cadeia do hábito:

Em verdade, em verdade vos digo:


todo homem que se entrega ao pecado é seu escravo.
Ora, o escravo não fica na casa para sempre.
(São João 8,34-35)

A própria liberdade que o pecador supostamente exercita em sua


autoindulgência é só outra prova de que é regido por um tirano. Nosso Senhor
contrastava agora um escravo e um filho, depois de acusar seus ouvintes de
serem escravos do pecado. O escravo não vive na casa para sempre. O ano do
jubileu era uma provisão contra essa perpetuidade; viria um tempo em que os
escravos haveriam de partir. Mas não é assim com um filho; ele está ligado à
casa com laços que o tempo não pode destruir. Nosso Senhor comparou o
escravo, que não pertence perpetuamente ao senhor, ao pecador-escravo, que
de modo semelhante não pertence à casa do Pai Celestial. Nenhum pecador
está em sua verdadeira casa enquanto está ligado a Satanás. No entanto, aquele
que se postava no meio deles era o Filho desse Pai Celestial.

[...] mas o filho sim, fica para sempre.


(São João 8,35)

Ele, o Filho, veio entre aqueles que eram escravos do pecado para libertá-
los, não politicamente, mas espiritualmente. Essa libertação restituiria os
escravos do pecado à casa do Pai. Nenhum escravo precisa suportar para
sempre a tirania do pecado, porque há Aquele que os redimirá do mal. Haverá
libertação de uma casa para a outra. Para que soubessem que Ele era Aquele
que levaria a efeito essa redenção, Jesus disse:

Se, portanto, o Filho vos libertar,


sereis verdadeiramente livres.
(São João 8,36)

O Filho não é outro senão aquele que fala, o próprio Cristo, e pode
libertar os homens do pecado, precisamente porque vem do Pai. O próprio
libertador deve ser livre; se Ele estivesse de algum modo escravizado pelo
pecado, não poderia libertar. As portas da prisão do mal só podiam ser
destrancadas do lado de fora e por aquele que não fosse um prisioneiro.
Não havia nada novo nesta proclamação de que Ele veio para emancipar
do pecado e dar a seus seguidores a “gloriosa liberdade dos filhos de Deus”. Seu
primeiro discurso público em sua cidade natal foi a mensagem da salvação.

O Espírito do Senhor está sobre mim,


porque me ungiu; e enviou-me para [...]
anunciar aos cativos a redenção,
[...] para pôr em liberdade os cativos.
(São Lucas 4,18)

Quando Jesus disse isso, tentaram matá-Lo empurrando-O de um


despenhadeiro (São Lucas 4, 29); seus ouvintes não foram mais receptivos do
que os ouvintes de Nazaré. O contraste que Ele fez entre os escravos do pecado
e o Filho de Deus era demais para eles. Sabiam muito bem que as palavras de
Jesus sobre a liberdade não poderiam aplicar-se a sua emancipação do poder
romano. Não havia equívoco de que, para Ele, a única liberdade verdadeira era
a libertação do pecado. Mas ainda assim não O aceitariam, e o Senhor disse-
lhes a razão.

Mas eu, porque vos digo a verdade, não me credes.


Quem de vós me acusará de pecado?
Se vos falo a verdade, por que me não credes?
Quem é de Deus ouve as palavras de Deus,
e se vós não as ouvis é porque não sois de Deus.
(São João 8,45-47)

Geralmente, acredita-se num homem quando este fala a verdade; agora é


a verdade que causa a descrença. A verdade pode ser odiada quando revela a
falsidade interior. Embora o rejeitassem, Ele os desafiava a apontar uma
mancha em seu caráter impecável. Até mesmo Judas, depois da traição, o
chamaria de “inocente”. Ele ensinou os discípulos a orar “perdoai-nos as nossas
ofensas”, mas nunca orou assim; antes, Ele perdoou as ofensas que sofreu dos
outros. Se o pecado for escravidão, então a inocência é a perfeita liberdade. A
liberdade não é, em essência, libertação de um jugo estrangeiro; é, na verdade,
libertação do cativeiro do pecado. Jesus não era um mestre a discursar sobre a
liberdade; era um libertador — e de uma servidão maior que a romana. “O
Filho vos libertará”. Essa libertação, no entanto, custará algo, como explicado
na discussão a seguir.

O PREÇO DA VERDADEIRA LIBERDADE


O tempo da visitação à Galileia estava perto do fim; Nosso Bendito Senhor
evitava a atenção pública tanto quanto possível, e negou-se a Si mesmo para
imprimir nos discípulos a lição da Cruz, que eles não compreenderam até o
Pentecostes. Assim que chegaram a Cafarnaum, os cobradores de impostos do
templo aproximaram-se de Pedro, fosse pela curiosidade hostil quanto aos
impostos, fosse para poder ter uma acusação contra o mestre de Pedro,
dizendo-lhe:

Teu mestre não paga a didracma?


(São Mateus 17,23)

O imposto do templo originalmente era arrecadado de cada pessoa como


um resgate por sua alma, no sentido de um reconhecimento de que sua vida
fora penhorada pelo pecado. O êxodo o arrecadava de todos os homens de
vinte anos de idade a fim de custear o serviço do templo. O tributo era de meio
siclo e equivalia a cerca de trinta centavos de dólar americano.
A pergunta acerca do pagamento do imposto do templo por Nosso
Senhor não era simples. Ele declarara ser o Templo de Deus e exercera seus
direitos divinos sobre o templo material ao purificá-lo dos cambistas e
vendedores. Será que aquele que disse ser o Templo de Deus porque a
divindade habitava em sua natureza humana pagaria agora o tributo do
templo? Pagar o imposto do templo depois da clara afirmação na Festa dos
Tabernáculos de que Ele era o Filho de Deus teria dado origem a alguns
equívocos sérios. O ponto em questão não era a pobreza do Mestre; era se
Aquele que era o Templo vivo de Deus subordinar-Se-ia ou não ao símbolo e
sinal de Si mesmo.
Em resposta à pergunta do coletor de impostos, Pedro respondeu que
Nosso Senhor pagou a taxa. Pedro não tinha se reunido com Nosso Senhor
para saber se Ele tinha ou não pago a taxa. Depois de responder, entrou na
casa. Antes que Pedro tivesse a chance de falar, Nosso Senhor dirigiu-se a ele,
mostrando que estava bem informado acerca da conversa que ocorrera do lado
de fora. Tudo estava nu e aberto a seus olhos; o segredo era impossível.

Que te parece, Simão?


Os reis da terra, de quem recebem os tributos ou os impostos?
De seus filhos ou dos estrangeiros?
(São Mateus 17,24)

Ele sabia que Pedro deu uma resposta afirmativa ao coletor de impostos.
A pergunta implicava que Pedro perdera a visão, por um momento, da
dignidade de seu Mestre, que era o Filho em sua própria casa, o Templo, e não
um servo na casa de outrem. Foi mais ou menos a mesma ideia que Nosso
Bendito Senhor enfatizou quando falou com os fariseus. Disse-lhes que eram
escravos, não apenas de um poder político, mas do pecado, e ele estava
interessado apenas em livrá-los dessa servidão do pecado. Ao que Pedro
respondeu:

Dos estrangeiros.
Jesus replicou:
Os filhos, então, estão isentos.
(São Mateus 17,25)

Um rei não impõe um tributo sobre a própria família para manter o


palácio em que vive. Então, visto que ele é Deus, havia de pagar o tributo de
resgate Aquele que dá a vida como resgate? Visto que Ele é o Templo de Deus,
deveria pagar um tributo pelo sacrifício, sendo Ele mesmo tanto o Templo
quanto o Sacrifício? Ele, assim, põe-se fora do círculo dos homens pecadores. A
liberdade que Ele dá é espiritual, não política.
Depois de ter afirmado que, como Rei dos Céus, estava isento dos
tributos terrenos, voltou-Se para Pedro e disse:

Mas não convém escandalizá-los.


Vai ao mar, lança o anzol,
e ao primeiro peixe que pegares
abrirás a boca e encontrarás um estatere.
Toma-o e dá-o por mim e por ti.
(São Mateus 17,26)
O filho do rei está livre. Mas Aquele que é o Filho de Deus tornou-Se o
Filho do Homem, compartilhando a pobreza, as provações, o trabalho e o
desamparo dos homens. Mais tarde, submeter-se-ia à prisão, à coroa de
espinhos e à Cruz. Por ora, como o Filho do Homem, não se assentará sobre
sua dignidade como o Filho de Deus, nem alegará isenção de obrigações servis,
mas voluntariamente consentirá em pagar um imposto para evitar escândalo.
Não é sinal de grandeza sempre afirmar o direito de alguém, mas amiúde sofrer
uma indignidade. Poderia haver escândalo se Ele mostrasse desrespeito pelo
templo. Assim como submeteu-Se ao batismo de João para cumprir toda a
justiça; assim como Sua mãe ofereceu os pombinhos, embora não necessitasse
de purificação do nascimento de Jesus; assim também Ele submeter-se-ia ao
imposto a fim de santificar os laços que o uniam à humanidade.
Na resposta, Ele se associou estreitamente a Pedro. Nem uma vez ao falar
do Pai Celestial Ele falou da humanidade e de Si mesmo “Nosso Pai”. Pode
parecer, à primeira vista, que Ele assim o fez na oração do “Pai nosso”,
implicando assim que o homem e Ele eram o mesmo tipo de filho do Pai
Celestial. Mas, na verdade, os apóstolos perguntaram-lhe como orar, e Ele
disse-lhes que orassem “Pai Nosso”. Nosso Senhor sempre fez a distinção entre
“Nosso Pai” e “Meu Pai”. Ele é Filho natural de Deus; os homens são filhos
adotivos de Deus. De semelhante modo, Ele nunca associou nenhum ser
humano consigo mesmo, com exceção de Pedro, como Ele faz aqui quando diz
“Não convém escandalizá-los”.22 Aquele que fora chamado a pedra, aquele que
seria chamado o pastor, e aquele que recebeu as chaves do reino do céu aqui
estava associado mais intimamente com Cristo que qualquer outro ser
humano.
Embora fosse isento do imposto, Jesus preparou-Se para pagá-lo; embora
fosse livre de pecado, sofreu suas penas; embora fosse livre da necessidade da
morte, aceitou-a; embora fosse livre da Cruz, abraçou-a. Assim como os
coletores de impostos não Lhe tiraram à força o dinheiro, tampouco os
soldados romanos ou o Sinédrio fixaram-no na Cruz sem seu consentimento.
Já não haveria flagelo, pois ele pagaria o preço do resgate.
Pedro pagou o tributo, mas Nosso Senhor pagou com ele. Ambos
participaram na submissão. Por essa razão, disse Nosso Senhor: “dá-o por mim
e por ti”. Ele não diz “por nós”, porque havia a diferença infinita entre a Pessoa
de Deus e a pessoa de Pedro. Nosso Senhor pagaria a dívida de resgate pelo
pecado, embora fosse isento. Pedro a pagaria, porque era devedor. Nosso
Senhor o pagaria por humildade; Pedro o pagaria por dever.
O modo como o tributo foi pago pode ter sido uma lição para Pedro de
que, mesmo submetendo-se às autoridades do templo, Jesus estava, ainda
assim, mostrando-se o Senhor de toda a criação. Os apóstolos haviam ficado
perplexos ao ver que ventos e mares obedeciam-no; agora, o que estava no mar
obedecia também. Assim como a morte e glória sempre estiveram relacionadas
em cada declaração de Jesus, agora a humilhação de pagar o tributo estava
associada com sua supremacia real sobre a natureza e os peixes do mar. O
dinheiro do tributo foi provido pelo milagre da onisciência e do senhorio sobre
a criação, em que o peixe que Pedro pegou trazia no ventre um estatere, ou a
exata quantia necessária para pagar o tributo do Senhor e de Pedro. As duas
linhas da humilhação e da majestade estão, portanto, entrelaçadas, visto que
estão em cada palavra de Jesus a respeito da Cruz e de sua glória. Nunca
separadamente um do outro. Logo no início, o desamparo de um bebê num
estábulo foi compensado pelo cântico dos anjos e pelo movimento de uma
estrela que guiou os Magos a seus pés. Assim, também agora, quando o Filho
de Deus era isento da lei eclesiástica, ainda assim pagou o tributo; mais tarde,
isento da lei política, diria a Pilatos que sua autoridade como juiz vinha dele,
não obstante aceitasse um falso julgamento.
Por séculos, desde aqueles primeiros quarenta anos no deserto, todo filho
de Abraão teve de pagar o resgate de sua alma carente de redenção. Nenhum
dinheiro de resgate será necessário, pois aquele que não tem pecado tomará
sobre si o pecado. Disse ele a seus ouvintes: “Dai a César o que é de César”.
Agora, portanto, Ele dá ao templo terreno as coisas que pertencem ao templo
terreno. Isenção desses deveres não necessariamente tornam os homens livres. A
primeira liberdade, que é a imunidade ao mal, será comprada por aquele que
fez de Si mesmo um escravo. Como diz São Paulo:

Sendo ele de condição divina,


não se prevaleceu de sua igualdade com Deus,
mas aniquilou-se a si mesmo,
assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos
homens.
E, sendo exteriormente reconhecido como homem,
humilhou-se ainda mais,
tornando-se obediente até a morte,
e morte de cruz.
Por isso Deus o exaltou soberanamente
e lhe outorgou o nome que está acima de todos os nomes,
para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho
no céu, na terra e nos infernos.
E toda língua confesse,
para a glória de Deus Pai,
que Jesus Cristo é Senhor.
(Filipenses 2,6-11)
Nota

22 | Na tradução desta passagem na Bíblia de Jerusalém, lê-se: “Mas, para que não os
escandalizemos, vai ao mar e joga o anzol” (São Lucas 17,27). A associação para a qual o
autor chama atenção é esta marcada pelo verbo no plural, abarcando Pedro e o próprio
Jesus. (N. T.)
25

AINDA NÃO É CHEGADA A HORA

Quando Nosso Senhor declarou ser Ele mesmo o Filho de Deus e uno com o
Pai dos Céus, os inimigos atentaram contra Sua vida. Quando disse aos
apóstolos que deveria ser crucificado e ser o Filho do Homem sofredor, eles
discutiram tanto com Ele como entre si pelo primeiro lugar no seu Reino.
Divindade e um salvador que sofre eram, ambos, abomináveis para os
homens não regenerados; a divindade porque o homem, em segredo, quer ser
seu próprio Deus; o sofrimento, porque o ego não compreende por que uma
semente deve morrer antes de brotar em vida nova. O Filho de Deus se tornou
pedra de tropeço quando Se humilhou ao nível humano, tomando sobre Si a
forma e o hábito do homem. É difícil para a inteligentzia acreditar que a
grandeza pode ser tão diminuta. Por outro lado, o Filho do Homem Se tornou
um escândalo quando tomou para Si a fraqueza e, até mesmo, a culpa do
homem e não usou o poder divino para escapar da Cruz.
Foram feitos vários ataques à Sua vida, a maioria durante uma das grandes
festas, mas sempre após ter proclamado Sua divindade. O primeiro ataque foi
em Nazaré. Todo homem tem a própria terra, o próprio lar e os próprios
parentes. É entre esses que deveria ser amado e relembrado. No entanto,
conforme Nosso Senhor adiantava-Se para a Cruz, a velocidade foi acelerada
pela rejeição por Sua própria cidade natal.

NAZARÉ

Assim que as extensas sombras do sol de sexta-feira se aproximavam do


pequeno vilarejo aninhado em meio aos montes, o soar da trombeta do mestre
da sinagoga proclamou o início do Shabat. Na manhã seguinte, Nosso Senhor
Bendito foi à sinagoga, onde muitas vezes estivera quando criança e rapaz.
Muito provavelmente, ao entrar na sinagoga dessa vez, as notícias dos milagres
de Caná e do rio Jordão, em que os céus proclamaram Sua divindade, já
tinham criado nas pessoas uma grande expectativa.

Jesus então, cheio da força do Espírito,


voltou para a Galileia.
E a sua fama divulgou-se por toda a região.
(São Lucas 4,14)

Na sinagoga, deram-Lhe o livro de Isaías. A profecia específica que leu


falava do servo de Deus sofredor.

Espírito do Senhor está sobre mim,


porque me ungiu;
e enviou-me para anunciar a boa-nova aos pobres,
para sarar os contritos de coração,
para anunciar aos cativos a redenção,
aos cegos a restauração da vista,
para pôr em liberdade os cativos,
para publicar o ano da graça do Senhor
(São Lucas 4,18-19)

Essa passagem era familiar aos judeus. Era uma profecia do Antigo
Testamento a respeito da libertação dos judeus do cativeiro da Babilônia.
Entretanto, Ele fez uma coisa nada usual: tomou esse texto elaborado no exílio,
enrolou-o ao redor de Si. Trocou o significado do “pobre”, do “escravizado” e
do “cego”. Os “pobres” eram os que não possuíam a graça e careciam de união
com Deus; os “cegos” eram aqueles que ainda não tinham visto a Luz e os
“escravizados” os que não tinham adquirido a verdadeira libertação do pecado.
Ele, então, proclamou que todos esses concentravam-se Nele.
Sobretudo, declarou o jubileu. O código mosaico determinava que para
cada cinquenta anos, um fosse de graça especial e restauração. Todos os débitos
eram remidos; as heranças de família que tinham, pela pressão do tempo, sido
vendidas retornassem aos antigos donos; aqueles que hipotecaram a autonomia
fosse-lhes restaurada a liberdade. Era uma salvaguarda divina contra os
monopólios e isso mantinha a vida familiar intacta. O ano jubilar foi para Ele
um símbolo da própria aparição messiânica que proclamou porque fora ungido
com o Espírito para fazê-lo. Haveria novas riquezas espirituais, uma nova luz
espiritual, uma nova liberdade espiritual, todas centradas nele — o evangelista,
o médico, o emancipador. Todos os que estavam na sinagoga fixaram os olhos
Nele. Então, vieram as palavras alarmantes, explosivas:

Hoje se cumpriu este oráculo


que vós acabais de ouvir.
(São Lucas 4,21)

Sabia que esperavam por um rei político que expulsaria o domínio


romano. Entretanto, proclamou a redenção do pecado, não da ditadura militar.
Somente nesse sentido deveriam esperar se cumprir a profecia de Isaías.
Era compreensível que o povo de Nazaré, que vira Jesus crescer no meio
deles, se surpreendesse ao ouvi-lo proclamar a Si mesmo como o ungido de
Deus, de quem falou Isaías. Agora uma dupla alternativa apresentava-se diante
deles: poderiam aceitá-Lo como o cumprimento da profecia ou poderiam
rebelar-se. O privilégio de ser a cidade natal do tão esperado messias e daquele
a quem o Pai celestial, no Jordão, proclamara como seu Divino Filho era
demais para eles por conta da familiaridade. Eles perguntaram:

Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria [...]?


(São Marcos 6,3)

Acreditavam em Deus de determinada maneira, mas não em um Deus


que se avizinhasse, entrasse em relações próximas com eles e usasse martelos
nos mesmos estabelecimentos comerciais. O mesmo tipo de esnobismo que era
visto na afirmação de Natanael: “Pode, porventura, vir coisa boa de Nazaré?”
(São João 1,46) agora se tornara um preconceito contra Ele na própria cidade e
entre o próprio povo. Era, de fato, filho de um carpinteiro, mas também do
carpinteiro que fez a terra e os céus. Porque Deus tomou sobre Si a natureza
humana, e fora visto na pequenez de um vilarejo de artesãos, deixou de ganhar
o respeito dos homens.
Nosso Senhor Santíssimo “admirava-se da desconfiança deles” (São
Marcos 6,6). Duas vezes no Evangelho é dito que Ele ficou “maravilhado” e
“admirado”: uma vez por conta da fé dos gentios; uma segunda vez por conta
da falta de fé dos seus concidadãos. Do próprio povo, poderia ter contado com
algum toque de empatia; alguma predisposição em dar as boas-vidas. Sua
admiração foi a medida de sua dor, bem como do pecado deles, como ele lhes
disse:

Um profeta só é desprezado na sua pátria,


entre os seus parentes e na sua própria casa.
(São Marcos 6,4)

Para dar abrigo às suas almas, pois a autoestima deles estava ferida, e se os
seus não o receberam, ele buscaria a salvação em outro lugar. Colocou-se na
categoria dos profetas do Antigo Testamento, que não receberam, eles mesmos,
melhor tratamento. Citou dois exemplos do Antigo Testamento. Ambos eram
um prenúncio da direção que Seu evangelho estava por tomar, a saber, abraçar
os gentios. Disse-lhes que havia muitas viúvas entre o povo de Israel nos dias de
Elias, quando uma grande fome caiu sobre a terra e, quando os céus se
fecharam por mais de três anos. No entanto, Elias não foi mandado para
nenhum desses; foi enviado para uma viúva de Sarepta, na terra dos gentios.
Ao tomar outro exemplo, contou que havia muitos leprosos na época de Elias,
mas nenhum deles, exceto Naamã, o sírio, foi curado. A menção de Naamã foi,
em particular, humilhante porque ele, primeiro, fora um infiel, mas depois
acreditou. Já que ambos eram gentios, Jesus sugeriu que os benefícios e bênçãos
do reino divino viriam em resposta à fé, e não em resposta à raça.
Deus, disse-lhes, não deve nada a homem algum. Suas misericórdias
passam para outros povos se os seus lhe rejeitam. Os concidadãos foram
recordados de que foram suas expectativas terrenas de um reino político que os
impediu de verificar a grande verdade de que o céus os visitara na pessoa de
Jesus. A própria cidade natal se tornou o palco em que foi alardeada a salvação,
não de um sangue, de uma nação, mas de todo o mundo. As pessoas estavam
cheias de indignação, antes de mais nada porque Ele afirmara trazer a
libertação do pecado como o santo ungido de Deus; em segundo lugar, por
causa da advertência de que a salvação, que primordialmente era dos judeus,
por rejeição, passaria a ser uma missão aos gentios. Os santos nem sempre são
reconhecidos por aqueles que com eles convivem. Eles o expulsariam, pois lhes
havia rejeitado e tornado, Ele mesmo, o Cristo. A violência do povo era a
preparação para a Cruz.
Nazaré fica em meio aos montes. À curta distância dali, ao sudoeste, havia
uma parede de pedra com cerca de 25 metros de altura em um declive de uns
noventa metros até a planície de Esdrelon. É aí que a tradição diz ser o cenário
onde tentaram expulsá-lo.

Ele, porém, passou por entre eles e retirou-se.


(São Lucas 4,30)

A hora de sua crucifixão ainda não chegara, mas os minutos estavam se


passando em uma sucessão de violência sempre que Ele proclamava ser enviado
por Deus e que era Deus.

BETESDA

Outro atentado à sua vida aconteceu após a cura do paralítico em Betesda.


Nesse tanque em Jerusalém inúmeros doentes, tristonhos, macilentos e
desamparados reuniam-se na esperança de cura. Um dos pobres era coxo havia
38 anos. Quando Nosso Senhor o viu, perguntou:

Queres ficar curado?


(São João 5,6)
Quando o homem, sem forças, expressou confiança em Seu poder, Nosso
Senhor lhe disse:

Levanta-te, toma o teu leito e anda.


(São João 5,8)

Com a ordem, veio a outorga do poder. Sempre que o homem tenta fazer
o que sabe ser a vontade do mestre, um poder equivalente ao seu dever lhe é
dado. Santo Agostinho disse: “concede-nos o que tu pedes e manda o que for
do teu agrado”. Logo que o homem foi curado, foi ao templo. Mais tarde, no
mesmo dia, Nosso Senhor o encontrou lá, enquanto o homem curado contava
a todos que fora Jesus quem o recuperara. O problema começou a formar-se
porque aquele era o dia do Shabat. Quando os líderes do povo descobriram o
homem que foi curado, disseram-lhe:

E sábado, não te é permitido carregar o teu leito.


(São João 5,10)

Então começou a surgir uma má vontade para com Jesus “porque fazia
esses milagres no dia de sábado” (São João 5,16). Nosso Senhor curou homens
em todos os dias, mas os sábados eram os grandes dias de graças em que seis
milagres foram registrados: expulsou um espírito imundo (São Marcos 1,21-
28); restaurou a mão seca de um homem (São Marcos 3,1-6); endireitou a
mulher que andava curvada (São Lucas 13, 10-17); curou um homem
hidrópico (São Lucas 14, 1-6) e abriu os olhos de um cego de nascença (São
João 9,1-16).
Muitas respostas foram dadas aos líderes do povo acerca da cura aos
sábados. Recordou os ensinamentos dos profetas de que as coisas sagradas eram
de importância secundária comparadas aos benefícios do povo de Deus; depois,
alegou a lei, para demonstrar que o sábado era secundário à obra do santuário.
A sugestão era haver entre eles alguém maior que o santuário. Mais uma vez,
disse que o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado. Em
outra ocasião, perguntou:
Hipócritas!, disse-lhes o Senhor.
Não desamarra cada um de vós no sábado
o seu boi ou o seu jumento da manjedoura,
para os levar a beber?
(São Lucas 13,15)

No entanto, em vez de dar graças a Deus porque um homem doente fora


curado ou rejubilado como a profetisa Ana porque olhara para a redenção de
Israel, protestaram porque o homem estava carregando seu leito no sábado.
Quando buscaram matá-Lo porque fizera isso no sábado. Ele lhes respondeu:

Meu Pai continua agindo até agora, e eu ajo também.


(São João 5,17)

É verdade que Deus descansou a vida inteira de sua obra criativa, embora
o sétimo dia não tenha sido necessário para sua recuperação. Entretanto, foi
necessário para o homem repousar e santificar o sétimo dia, porque o trabalho
cansa; e na presente dispensação o trabalho também é uma penalidade. O
Salvador, contudo, disse que embora Deus tivesse repousado de sua obra
criadora, não descansou de Seu trabalho providencial para suprir a necessidade
de suas criaturas. Como disse São Crisóstomo:

Se alguém disser: “E como é a ‘obra’ do Pai, que descansou no


sétimo dia de todas as Suas tarefas? Deixe-o aprender a maneira
como ele trabalha. Qual é, então, a maneira de ele trabalhar?
Cuida, mantém tudo o que foi criado. Portanto, quando vires o
sol se erguendo e a lua percorrendo o seu curso, os lagos, as
fontes, os rios e as chuvas, o curso da natureza nas sementes e
em nossos próprios corpos e naqueles dos seres irracionais e
tudo mais pelo qual este universo é formado, então, aprenda o
incessante trabalho do Pai.23
Pensar em Deus como não operante no universo é insinuar que Ele não se
interessa pelo universo. A evolução e o desdobramento natural das coisas não
são autoexplicativos ou auto-operativos. Não estão à parte de Deus, nem a ele
se opõem. Após a primeira criação, Deus não entrou em inação. Já que havia
mal no mundo, o Espírito que pôs em movimento a matéria informe deveria
agora começar a mover-se entre os homens.
O Mestre, todavia, estava a dizer mais do que isso, e aqueles que o
ouviram, sabiam quem ele era. Estava a afirmar a filiação única e unidade com
o Pai. Se o Pai, no momento, estava agindo no plano espiritual; Ele,
igualmente. Se todas as coisas foram criadas “pelo poder do Verbo”, agora, “O
Verbo se fez carne” (São João 1,14). Se o Pai serviu às necessidades de suas
criaturas em um Shabat, então, também seria direito do Filho se ocupar de
obras de misericórdia no Shabat. Assim, inequivocamente, afirmou a igualdade
absoluta com o Pai. A obra do Pai e a Sua eram a mesma. O sentido profundo
de Sua filiação divina vibrou por Sua natureza humana. Os líderes do povo
aceitaram suas palavras como a afirmação da própria filiação divina e o
evangelho diz que os líderes:

Com maior ardor, procuravam tirar-lhe a vida,


porque não somente violava o repouso do sábado,
mas afirmava ainda que Deus era seu Pai
e se fazia igual a Deus.
(São João 5,18)

A hostilidade aumentou em proporção direta à afirmação de Sua


autoridade divina. Passaram por cima do milagre e, decididamente, fizeram
complôs contra Sua vida. Ele estava à caminho da Cruz, não porque tinha
faltas, mas por causa de Sua divindade e do propósito superior de sua vinda.
Sua Cruz seria um testemunho contra a insensatez dos homens, como a
Ressurreição seria um testemunho de sua divindade. Cronologicamente a cruz
estava presente no fim de Sua vida; mas estava no princípio de Sua vida, do
ponto de vista de sua intenção de oferecer-se como resgate pelos homens.

JERUSALÉM
Outro ataque à sua vida ocorreu em Jerusalém durante a festa dos
Tabernáculos. Fora questionado a respeito de como sabia tantas coisas.

Este homem não fez estudos.


Donde lhe vem, pois,
este conhecimento das Escrituras?
(São João 7,15)

Não havia avaliação humana para seu conhecimento. A fonte secreta


estava na relação única com a mente de Deus, que explicou da seguinte
maneira:

A minha doutrina não é minha,


mas daquele que me enviou.
(São João 7,16)

Não havia como confundir o significado. Alegava ser Deus em forma de


homem. A reação deles era física — outro atentado contra a vida de Jesus, e
Ele, pacificamente, respondeu:

Por que procurais tirar-me a vida?


(São João 7,20)

Mais tarde, houve outra tentativa. A causa imediata do ressentimento


foram as observações a respeito de Abraão. Os fariseus, porque Nosso Senhor
falara de seu Pai, disseram-lhe que Abraão era o pai deles, assim se distinguiam
dos pagãos, ao afirmar a linhagem com o fundador do povo judeu. Eram, de
fato, filhos de Abraão e o elo, testemunhado na carne, pela circuncisão. Nosso
Senhor não negava a afiliação com Abraão, mas afirmou outra afiliação na
esfera espiritual: não pode existir verdadeiro relacionamento paternal onde há
oposição na conduta.
Da parte do salvador, não havia desejo de minimizar Abraão. A memória
de Abraão era tida em alta honra entre os judeus, devendo ser considerada por
seus filhos aqui embaixo como a garantia para irem ao seio de Abraão. Não era
apenas o pai da raça, era a fonte e o canal pelo qual a promessa do messias
afluía para seu povo. A grande promessa também era feita a Abraão de que seria
o instrumento de bênçãos para todo o mundo. Pareceu impossível de se
cumprir quando ele era um ancião; entretanto, ele foi retirado de sua tenda e,
sob o céu estrelado, ouviu que assim como havia inúmeras estrelas, igualmente,
seria a sua descendência.
Foi ele quem, mais tarde, recebeu ordens de tirar a vida do filho Isaac, seu
filho único, a quem estava ligada a promessa e a oferecê-lo em sacrifício no
monte Moriá. A ordem era clara: estava prestes a finalizar o sacrifício quando
seu filho foi poupado por Deus, e providenciado um cordeiro. Pode ter sido
nesse dia que Abraão teve o primeiro vislumbre de um outro Filho, a vítima
solícita, que seria oferecida ao Pai dos Céus pelos pecados do mundo e para a
salvação. Como disse São João Crisóstomo “Viu a Cruz de Cristo quando, no
madeiro, colocou seu filho e de boa vontade ofereceu Isaac”.
Quando os líderes alegaram que a linhagem espiritual deles tinha de vir
de Deus, já que a descendência de Abraão era legítima, o Senhor respondeu
que se a linhagem espiritual deles fosse de Deus, eles não estariam rejeitando
sua mensagem e buscando assassiná-Lo, mas o reconheceriam e O amariam.

Se Deus fosse vosso pai, vós me amaríeis,


porque eu saí de Deus.
É dele que eu provenho,
porque não vim de mim mesmo,
mas foi ele quem me enviou.
(São João 8,42)

E eles lhe perguntaram:

És acaso maior do que nosso pai Abraão?


(São João 8,53)
Não tens ainda cinquenta anos e viste Abraão!...
(São João 8,57)

Nosso Senhor respondeu:

Abraão, vosso pai, exultou


com o pensamento de ver o meu dia.
Viu-o e ficou cheio de alegria.[...]
Em verdade, em verdade vos digo:
antes que Abraão [viesse a existir], eu sou.
(São João 8,56.58)

Deu a entender que Abraão esperava com alegria ver o que Nosso Senhor
chamava de “dia de minha vinda”. Notem que Ele não disse “de meu
nascimento”. Quando eles o desafiaram de que ainda não tinha cinquenta
anos, era para indicar não tanto sua idade, mas a impossibilidade física de ele
nunca ter visto Abraão. A presunção era a de Jesus ser apenas um homem.
Nosso Senhor agora usava a mesma palavra que fora usada por Deus no monte
Sinai “Eu sou aquele que sou” (Êxodo 3,14). Ele não disse “antes que Abraão
fosse, eu sou”, mas “antes que Abraão viesse a existir, eu sou”. Está atribuindo a
si mesmo não uma simples prioridade acima de Abraão, mas uma existência
desde toda a eternidade. Um momento antes, dissera que sua vida encarnada
teve a mais entusiástica atenção de Abraão, ao olhar por sobre as orlas das eras
para vislumbrar o cumprimento das promessas. Muito antes da época de
Abraão, tinha prioridade de Ser, não ser criado, mas ser incriado, eterno e
autoexistente, que não se move à maior perfeição porque já a possui. Houve
uma época em que Abraão não existia, mas nunca houve época em que o Filho
de Deus não existisse. Cristo não estava a reivindicar que viera à existência
antes de Abraão, mas que absolutamente nunca viera à existência. Ele é o “eu
sou” do antigo Israel, o “eu sou” sem passado ou futuro; o “eu sou” sem
princípio nem fim, o grande e eterno “agora”.
Porque compreenderam que Ele estava a dizer que era Deus:
A essas palavras, pegaram então em pedras
para lhas atirar. Jesus, porém,
se ocultou e saiu do templo.
(São João 8,59)

As alternativas eram adorar ou lançar pedras, e escolheram a última. As


pedras eram, provavelmente, aquelas que estavam espalhadas sobre o pátio,
pois o templo ainda não estava terminado. Buscaram matá-lo antes, quando
identificara-se com o Pai; agora buscavam apedrejá-lo porque disse que
precedeu Abraão, e Abraão, em profecia, ansiava por ele, o que possuía a eterna
existência de Deus.
Não é provável que o esconderijo a que São João se refere estivesse se
interpondo entre Cristo e eles. O esconder-se era, antes, daqueles que não
ouviriam a sua verdade, simplesmente para tornar-se invisível aos que o
buscavam. Certa vez, antes, fizera a mesma coisa ao mesmo povo. Ainda não
era chegada a “hora”. Já que ninguém poderia tirar-Lhe a vida até que Ele
mesmo a entregasse, retirou-se do caminho de seus inimigos. Foi no templo
que tentaram apedrejá-Lo. Em relação ao apedrejamento do templo divino,
viria o dia em que não restaria pedra sobre pedra no templo feito por mãos
humanas.

NOVAMENTE JERUSALÉM

Mais tarde, visitou o último remanescente do templo antigo, que era


conhecido como Pórtico de Salomão. Era a festa da Dedicação, a última grande
festa antes da Páscoa. Foi instituída por Judas Macabeu para celebrar a
purificação do templo depois de ter sido profanado pelos sírios. A festa durava
oito dias. João, em seu evangelho, observou que era inverno, que poderia
indicar não só a mudança de clima, mas também uma disposição de alma. Seus
inimigos, como sempre, uniram-se ao seu redor, perguntando:

Até quando nos deixarás na incerteza?


Se tu és o Cristo, dize-nos claramente.
(São João 10,24)
Nosso Senhor proclamou abertamente sua “messianidade” e a confirmou
com obras e milagres. A ideia que tinham de messias, contudo, não
correspondia à ideia de Deus de um Messias. Buscavam por alguém que
rompesse o jugo romano, libertasse o povo e lhes desse prosperidade material.
Portanto, estavam ansiosos por saber se Ele iria purificar a cidade de Jerusalém
e acabar com as cortes de soldados romanos, a autoridade romana, as moedas
romanas e os juízes romanos tais como Pilatos. Judas Macabeu, cuja festa agora
celebravam, não fizera isso? Se o templo fora purgado das profanações sírias,
por que a cidade não seria purgada das profanações romanas? Se, por isso, Ele
era um Messias político, que se proclamasse abertamente.
Ele prosseguiu afirmando que havia condições morais necessárias à
compreensão de sua vinda messiânica. Operara milagres, mas os milagres não
coagiam a vontade, não destruíam a liberdade de adesão. Agora, todavia, ele
lhes deixaria saber de modo explícito e claro quem era o Messias:

Eu e o Pai somos um.


(São João 10,30)

porque eu disse: Sou o Filho de Deus.


(São João 10,36)

Em grego, a palavra “um” é neutra, o que significa não uma pessoa, mas
uma substância, uma natureza. Seu Pai; ele, o Filho e o Espírito Santo eram
um na natureza de Deus. Os líderes do povo estiveram a buscar por um
Messias enviado para instituir seu reino, mas nos últimos séculos, com a
diminuição da profecia, as esperanças degeneraram na busca por um libertador
político. Não buscavam uma vivência íntima verdadeira de uma pessoa divina
entre eles. Era-lhes claro que o Cristo, ou o Messias, era o Filho de Deus que
partilhava da natureza do Pai, embora em Sua natureza humana, ou como o
Filho do Homem, o Pai fosse maior do que ele. Agora reafirmava o que dissera
sobre ser antes de Sua natureza humana ser formada; saíra do Pai para assumir
a natureza humana; revestir-se dela. Ele, como pessoa divina, estava ciente de
não existir mudança em Sua natureza divina. O que tivera um princípio fora
Sua natureza humana surgida como “o servo sofredor”. Quando, nesse
momento, afirmou sua divindade, os judeus:

Pegaram pela segunda vez em pedras para o apedrejar.


(São João 10,31)

Ele lhes disse:

Tenho-vos mostrado muitas obras boas


da parte de meu Pai.
Por qual dessas obras me apedrejais?
(São João 10,32)

A resposta dos judeus foi não conceberem a humilhação de Deus na


forma de homem. O mundo podia compreender um homem divinizando-se,
mas não entendia um Deus tornando-se homem, consequentemente, disseram
que o motivo para O apedrejar era:

Por uma blasfêmia, porque,


sendo homem, te fazes Deus.
(São João 10,33)

A resposta de Jesus foi: ainda que um simples homem não pudesse ser
Deus, Deus podia se tornar homem, ainda permanecendo Deus.

Procuraram então prendê-lo,


mas ele se esquivou das suas mãos.
(São João 10,39)

A blasfêmia era punida por apedrejamento. No entanto, o pequeno


cordão de homens ao seu redor, com pedras nas mãos, não poderia detê-Lo,
pois “ainda não é chegada a Hora”. Parecia fácil apanhá-Lo, e, mesmo assim,
era difícil. Quando chegasse o momento, Ele se entregaria aos homens e todos
eles cairiam para trás.
Nota

23 | São João Crisóstomo, Homilia 38 sobre São João 5,17. (N. T.)
26

A FLECHA MAIS PODEROSA NA ALJAVA DIVINA

Nosso Bendito Senhor nunca operou milagres por Si mesmo, mas como
credenciais de sua pessoa. Eram sinais manifestos de que tinha uma missão
especial para realizar a obra de Deus entre os homens. Até mesmo no antigo
testamento houve milagres exigidos como sinal para confirmar a palavra de um
profeta. Era uma marca de incredulidade em Acaz que ele não pedisse a Deus
um sinal de confirmação da palavra do profeta. Mas o profeta, não obstante,
deu-Lhe um sinal do messias, a saber, o nascimento virginal (Isaías 7,17).
Os milagres de Nosso Bendito Senhor moviam-se na esfera da redenção.
Não eram meras manifestações de poder, mas um indício da libertação do
homem de algo, isto é, do pecado. Por isso, na ordem moral, houve milagres de
redenção da tirania dos demônios; na ordem física, a redenção de outras
manifestações do pecado, tais como a febre, a paralisia, a lepra, a cegueira e a
morte; a redenção da natureza no domínio dos mares e na subjugação dos
ventos.
Sem incluir resumos dos milagres, que são numerosos, há vinte milagres
mencionados em Mateus, vinte em Lucas, 18 em Marcos e sete em João.
Ninguém pode dizer quantos milagres o Senhor operou, pois muitos deles são
mencionados coletivamente, tais como “Curou doentes, cegos e aleijados”. As
últimas palavras do Evangelho de João são:

Jesus fez ainda muitas outras coisas.


Se fossem escritas uma por uma,
penso que nem o mundo inteiro poderia conter
os livros que se deveriam escrever.
(São João 21,25)

Ele operou milagres para despertar a fé em Sua declaração de ser o Messias


e o Filho de Deus.

[...] porque as obras que meu Pai me deu para executar


— essas mesmas obras que faço —
testemunham a meu respeito que o Pai me enviou.
(São João 5,36)

A recusa dos homens a aceitar a evidência indiscutível dos sentidos tornou


sua incredulidade indesculpável.

Se eu não viesse e não lhes tivesse falado,


não teriam pecado;
mas agora não há desculpa para o seu pecado.
Aquele que me odeia, odeia também a meu Pai.
(São João 15,22-23)

Os milagres não são a cura para a incredulidade. Alguns não creriam nem
mesmo se diariamente alguém fosse ressuscitado dos mortos. Não se podia
realizar nenhum sinal que trouxesse plena convicção, pois a vontade pode
recusar-se a reconhecer aquilo que o intelecto sabe ser verdade. Os fariseus
admitiram:

Esse homem multiplica os milagres.


(São João 11,47)

Contudo, embora os milagres fossem admitidos, a Pessoa que os realizava


era negada. Perto do fim da vida pública de Jesus, o levantamento estava
completo.
Embora tivesse feito tantos milagres na presença deles,
não acreditavam nele.
(São João 12,37)

A incredulidade foi prevista séculos antes por Isaías. A profecia é


apresentada na narrativa do Evangelho neste ponto, como outra prova de que
Jesus era o Cristo. O texto de Isaías é mencionado seis vezes em todo o Novo
Testamento e sempre em conexão com a falta de fé. Não é que o povo não
acreditava para que a profecia se cumprisse, mas, antes, sua incredulidade é que
era o cumprimento da profecia. A citação que João tomou de Isaías foi:

Assim se cumpria o oráculo do profeta Isaías:


Senhor, quem creu em nossa pregação?
E a quem foi revelado o braço do Senhor?
(São João 12,38)

Esse é o primeiro versículo do capítulo 53 de Isaías, que contém as


profecias relacionadas ao sofrimento de Nosso Senhor. A presciência divina do
que acontecerá não isenta de forma alguma os pecadores de sua
responsabilidade; ademais, quando surge a culpa e a incredulidade se
manifesta, podem-se analisar as causas. Aqueles que se recusam a ver perdem a
capacidade de ver. Deus estava ratificando uma atitude que os homens
assumiram por escolha própria. Profetizando o julgamento dos incrédulos, o
Senhor advertiu:

Quem me despreza e não recebe as minhas palavras,


tem quem o julgue; a palavra que anunciei julgá-lo-á no último
dia.
Em verdade, não falei por mim mesmo,
mas o Pai, que me enviou, ele mesmo me prescreveu
o que devo dizer e o que devo ensinar.
(São João 12,48-49)

Ú
Não haveria nada de arbitrário no juízo que Ele presidiria no Último Dia;
as palavras gloriosas de graça seriam investidas de autoridade judicial. Essa
profecia de como todos os homens seriam julgados por Sua atitude diante Dele
devia-se ao fato de Ele ser enviado de Deus. Sua humanidade começou no
tempo, e era de uma ordem e grau mais baixos que sua divindade, que Ele
compartilhava com o Pai; daí, a rejeição Dele em sua natureza humana ser a
rejeição do Pai que o enviou. Por ora, no entanto, Ele não veio para julgar, mas
para salvar o mundo.
Embora não acreditassem Nele, como profetizara Isaías, Nosso Senhor
tinha em Sua aljava uma flecha que convenceria os homens de que era de fato o
Salvador.

E quando eu for levantado da terra,


atrairei todos os homens a mim.
(São João 12,32)

A Cruz teria tal apelo que atrairia todos os homens, não apenas aqueles a
quem Jesus falava, pois seu reino havia de ser o próprio mundo. Sua morte
cumpriria o que sua vida não foi capaz de cumprir, pois nela havia mais que
heroísmo e devoção. O que atrairia não seria a rendição à morte, mas a
revelação do coração do amor divino. O amor de Deus fez-se visível no
sacrifício. No Calvário, ele se mostraria homem, ao morrer como qualquer
outro; mas se mostraria divino ao morrer como nenhum outro homem. Vinte
anos mais tarde, São Paulo repetiria: “Pregamos a Cristo, e este crucificado” (1
Coríntios 1,23). Só o divino pode conquistar o homem, e a manifestação mais
sublime do amor divino é morrer por nossa culpa para que possamos viver.
“Deus amou o mundo de tal maneira...” (São João 3,16). Essa atração a si dar-
se-ia por meio dos encantos do amor.
A Cruz, que era o ponto focal de sua vinda, tornava-se agora um juízo do
mal do mundo.

Agora é o juízo deste mundo;


agora será lançado fora o príncipe deste mundo.
(São João 12,31)
Um juiz sentencia um criminoso; a Cruz de Jesus sentencia o mundo.
Contemplando em sua mente muito mais longe que os estreitos limites de um
país que se estendia de Dã até Bersabeia, ele declarou mais uma vez que todos
os homens serão julgados por sua atitude perante a Cruz — não apenas pelos
pecados nela cravados, mas por causa do amor que o fez abraçá-la. O juízo final
seria simplesmente a ratificação do julgamento a que todo homem há de
submeter-se na Sexta-Feira Santa.
A Cruz dava fim à tolerância estendida ao “príncipe deste mundo”, ou
Satanás, que exerceu domínio sobre o homem. A Cruz finalmente convenceria
o homem do pecado, como a lei ou a ética jamais o fariam. Ela mostraria o que
o pecado realmente é: a Crucifixão da Bondade Divina na carne; mas também
mostraria aquele que perdoa o pecado, isto é, aquele que perdoa pecados,
aquele que foi levantado aos céus para interceder pelos homens. O trono
erigido pelos homens para Nosso Senhor mostraria a hostilidade e o reino do
mal em seus corações; mas também mostraria que Ele não era da terra. Seu
reinado seria de uma esfera celeste superior, onde atrairia seus súditos para si e
tornar-se-ia “Senhor de tudo”. O que Nosso Senhor disse naquele dia — que o
mal enfim seria vencido nele, por intermédio da Cruz — foi reiterado por São
Paulo:

É ele que nos perdoou todos os pecados,


cancelando o documento escrito contra nós,
cujas prescrições nos condenavam.
Aboliu-o definitivamente, ao encravá-lo na cruz.
Espoliou os principados e potestades,
e os expôs ao ridículo, triunfando deles pela cruz.
(Colossenses 2,13-15)

Embora os homens não cressem nos milagres de Jesus, ele ainda tinha a
flecha mais poderosa em sua aljava. Ela estava sendo levantada da terra. O
levantamento era o Calvário, mas a atração de todos os homens a si confiava na
Ressurreição e na Ascensão, pois decerto um Salvador morto não poderia atrair
ninguém. A Cruz que o levantou sobre a terra, e a Ascensão que o ergueu aos
céus, livrá-Lo-iam de todas as ataduras terrenas, carnais, nacionais, e capacitá-
Lo-iam a exercer a soberania universal sobre o homem. Uma vez crucificado,
Ele prometeu tornar-se um ímã de atração, trazendo todas as nações, e povos, e
línguas para Si. Nunca disse que seus preceitos morais trariam os homens até
Ele. Antes, isso aconteceria quando fosse violentamente erguido da terra, como
se a terra que Ele criou e aqueles que estavam sobre ela não tivessem parte com
Ele.
Visto que a mesma palavra, “levantado”, é usada para sua Ascensão, Ele
implicou que, uma vez exaltado aos céus, não seriam apenas os judeus, mas
gentios, ou “todos os homens” que Ele atrairia para si.
A atração da Cruz não seria sua ignomínia, que, sozinha, é vista na Sexta-
Feira da Paixão, mas também seu amor e vitória, que são vistos na Páscoa e na
Ascensão. Algumas religiões atraem pela força das armas; ele atrairia pela força
do amor. A atração não seriam suas palavras, mas Ele mesmo. Era em torno de
Sua pessoa que o ensino estava centrado; e não o Seu ensino em torno do qual
Ele seria lembrado. “Ninguém tem maior amor que este” — este era o segredo
de seu magnetismo. Como diz Blake:

Wouldst thou love One Who did not die for thee?
And wouldst thou die for One Who did not die for thee?

[Acaso amarias alguém que não morreu por ti?


E morrerias por alguém que não morreu por ti?]

Se ele tivesse vindo para algum outro propósito que não a Redenção do
pecado, não seria o crucifixo, mas um retrato de Cristo no Monte como mestre
que seria usado em honra dele. Se a Cruz não fosse enfim glória e triunfo, os
homens teriam posto um véu sobre aquela hora ignominiosa para a qual Ele
apontava. Se tivesse morrido numa cama, Ele poderia ser honrado, mas nunca
como Salvador. Só a Cruz podia mostrar que Deus é plenamente santo e,
portanto, odeia o pecado; a Cruz também mostrava que Deus é plenamente
amoroso e, portanto, morreu pelos pecadores, como se fosse culpado.
Neste momento, a multidão fez-lhe uma pergunta esquisita:
Nós temos ouvido da lei que o Cristo permanece para sempre.
Como dizes tu: Importa que o Filho do Homem seja
levantado?
Quem é esse Filho do Homem?
(São João 12,34)

Era estranho que aqueles que estavam familiarizados com o Antigo


Testamento tivessem se escandalizado pelo fato de que o Messias haveria de
morrer, pois decerto tinham lido isso em Isaías; eles também leram em Daniel
que o Filho do Homem haveria de morrer violentamente. A objeção deles era
que o Cristo, quando viesse, seria Aquele que haveria de permanecer para
sempre; sendo assim, como ele podia morrer? Estava bem claro para eles que
ser levantado significava morrer na Cruz; também estava claro que ele alegava
ser o Cristo ou o Messias. Mas o que os escandalizava era Sua morte. Eles não
conseguiam reconciliar um Messias glorioso com um sofredor, assim como
Pedro não podia reconciliar um Cristo Divino com um Cristo crucificado.
Estavam certos ao dizer que o Messias seria eterno, pois Gabriel anunciou à
Virgem Bendita que Jesus reinaria “para sempre” sobre a casa de Jacó. Mas, por
outro lado, em todo o Antigo Testamento corria a ideia de que Ele haveria de
ser um sacrifício pelo pecado e um cordeiro levado ao matadouro.
Nosso Senhor respondeu-os rasgando o véu de Sua divindade e
lembrando-os de aproveitar do fruto de sua redenção. Alguns mestres podem
acender luzes na alma; outros podem ser apenas velas vacilantes; mas todos
foram iluminados por Ele, pois chamou a Si mesmo uma vez mais de Luz do
mundo. Essa luz já não permaneceria entre eles por muito tempo. Há apenas
um sol para iluminar o mundo; se lançassem fora a única Luz do Mundo,
então as trevas os encobririam. Cegueira espiritual é pior que cegueira física.
Assim como a luz da razão é a perfeição da luz dos sentidos, também Ele
chamou a Si mesmo de Luz, pela qual a própria razão é iluminada e
aperfeiçoada. Aqueles que caminhariam em fé com Ele chamou de filhos da
luz.

Ainda por pouco tempo a luz estará em vosso meio.


Andai enquanto tendes a luz,
para que as trevas não vos surpreendam;
e quem caminha nas trevas não sabe para onde vai.
Enquanto tendes a luz, crede na luz,
e assim vos tornareis filhos da luz.
(São João 12,35-36)

O motivo pelo qual Nosso Senhor não passou mais tempo corrigindo-lhes
o escândalo em seu sacrifício foi que eles já se tinham escandalizado com as
profecias do Antigo Testamento, com os milagres e com a obediência a Sua
Palavra. Por ora, Ele tirou os olhos do Calvário e repousou-os sobre a
consciência deles. Com piedade e ternura, convidou-os a examinarem-se a Si
mesmo sob sua luz, enquanto caminhava entre eles. Este foi seu
pronunciamento público final e de despedida, a saber, uma advertência quanto
às trevas vindouras e um convite a aceitar não uma verdade, mas a Verdade.

Jesus disse essas coisas, retirou-se


e ocultou-se longe deles.
(São João 12,36)

Naquela noite de terça-feira da Semana Santa, ele deixou o templo. No


dia seguinte:

[...] todo o povo ia de manhã cedo ter com ele, no templo,


para ouvi-lo.
(São Lucas 21,38)

Mas ele não apareceu. O sol estava prestes a eclipsar-se; era como fosse
noite. A Hora estava às portas.
27

MAIS QUE UM MESTRE

Grandes mestres dão instrução a seus discípulos, mas algum mestre já fez de
sua morte modelo para os discípulos? Isso é impossível porque nenhum mestre
terreno pode antever a maneira como morrerá, nem a morte jamais foi o
motivo por que veio ensinar. Sócrates, em toda sua sabedoria, nunca disse aos
jovens filósofos de Atenas que bebessem cicuta porque morreria assim.
Entretanto, Nosso Senhor fez de Sua Cruz a base da primeira instrução aos
apóstolos. Foi por esse fato muitas vezes escapar, e por, no momento, escapar
aos próprios apóstolos, que a verdadeira visão de Cristo é anuviada. Mesmo ao
agir como mestre, fez a Cruz lançar sua sombra sobre os apóstolos. Os
sofrimentos que teriam de suportar seriam idênticos aos que Ele suportaria.
Fora chamado de Cordeiro de Deus, aquele que seria sacrificado pelos pecados
do mundo, e já que eles se identificavam com Jesus, Ele os advertiu sobre a
sina:

Eu vos envio como ovelhas no meio de lobos.


(São Mateus 10,16)

Tinham de estar atentos às inconstâncias dos homens. Quando Jesus


multiplicou os pães, as multidões imediatamente buscaram transformá-Lo em
um rei econômico, em vez de tomar o milagre como um sinal de sua
divindade. No início da vida pública, quando operou milagres, a pertença dos
apóstolos era igualmente superficial. E João escreveu:
Mas Jesus mesmo não se fiava neles,
porque os conhecia a todos.
Ele não necessitava que alguém
desse testemunho de nenhum homem,
pois ele bem sabia o que havia no homem.
(São João 2,24-25)

Eles O aceitariam como um milagreiro pelo que viam, mas não como a
luz de suas almas. O Senhor não se daria a credulidade alguma tendo por base,
apenas, o espetacular. Por saber que a popularidade dele tornar-se-ia
popularidade contrária em um período de cinco dias, disse aos apóstolos:

Cuidai-vos dos homens.


(São Mateus 10,17)

Como não tinha ilusão alguma a respeito do que lhe faria o mundo, da
mesma maneira não guardava ilusão acerca daqueles que seriam intimamente
relacionados consigo, como ramos de uma parreira. Nenhum sábio ou místico,
nenhum Buda ou Confúcio jamais acreditou que seus ensinamentos
despertariam tamanho antagonismo dos homens a ponto de ocasionar-lhe a
morte violenta. Mais importante ainda, nenhum mestre humano jamais
acreditou que seus discípulos sofreriam desígnio similar, somente por serem
discípulos. A mediocridade nunca suscita tamanho ódio. Os animais, em geral,
não destroem a própria espécie; nem o homem, nas relações cotidianas.
Entretanto, o homem, por ser o meio áureo entre matéria e espírito, tem a
capacidade, contudo, de destruir ambos; arranca as plantas pelas raízes e abate
os animais que lhes são inferiores. Todavia, também pode odiar e até mesmo
matar o que quer que esteja acima de si em dignidade. Se, por orgulho,
considerar Deus como uma provocação, negar-Lo-á; e se Deus se tornar
homem e, portanto, se fizer vulnerável, crucificá-Lo-á. No entanto, Nosso
Senhor não hesitou em pintar a crucifixão microcósmica para seus seguidores,
visto que pintou uma crucifixão macrocósmica para Si mesmo.
Ao que é do mundo o mundo nunca se opõe. Ao que é de Deus, o
espírito do mundo opõe-se, maldiz, persegue e crucifica. O preço do resgate
que pagaria pela humanidade o levaria a dois tribunais de justiça distintos. No
intervalo entre os julgamentos, seria flagelado. Igualmente, os apóstolos e todos
os sucessores ao longo dos séculos não devem esperar nada melhor:

Eles vos levarão aos seus tribunais


e açoitar-vos-ão com varas nas suas sinagogas.
Sereis por minha causa levados diante dos governadores
e dos reis: servireis assim de testemunho para eles e para os
pagãos.
(São Mateus 10,17-18)

Os apóstolos ainda não tinham sido perseguidos, nem foram muito


molestados antes da crucifixão e do Pentecostes. Contou-lhes, entretanto, o
tipo de tratamento que, posteriormente, deveriam esperar dos homens. Mal os
preparou para o que aconteceria a Ele, como poderiam de alguma maneira
imaginar o que lhes aconteceria? Esse ódio do mundo, advertiu, seria
disfarçado; seriam acusados em termos jurídicos, ou seja, arrastados diante de
tribunais em julgamentos burlescos, acusados de “imperialismo” ou de
“perverter a nação”. O instinto de justiça no coração humano é tão profundo
que, mesmo em grandes atos de injustiça, os vilões usam um manto de justiça.
Não tanto que intolerantes isolados os venham a perseguir; antes, os homens se
organizariam juridicamente contra eles, seus discípulos, assim como fizeram
com Cristo. Pelo subterfúgio e dissimulação dos tribunais se faria a justiça, a
verdadeira motivação do ódio seria o mal em seus corações.

Ora, este é o julgamento: a luz veio ao mundo,


mas os homens amaram mais as trevas do que a luz,
pois as suas obras eram más.
Porquanto todo aquele que faz o mal odeia a luz
e não vem para a luz, para que as suas obras
não sejam reprovadas.
Mas aquele que pratica a verdade, vem para a luz.
Torna-se assim claro que as suas obras são feitas em Deus.
(São João 3,19-21)
Os homens do mundo não principiam com um ódio consciente à Luz,
porque a verdade é tão inerente à mente quanto a luz à visão. Entretanto,
quando a luz brilhou em suas almas e revelou-lhes os pecados, eles a odiaram
assim como o ladrão de bancos odeia quando o holofote da polícia se volta
para ele. A verdade que trazia, os homens reconheciam como pretensão de
fidelidade, porque foram feitos para isso, mas uma vez que perverteram as
próprias naturezas pelo mau comportamento, a verdade do Cristo confundiu a
consciência deles e desprezaram-na. Todos os hábitos de vida, as desonestidades
e as paixões mais vis foram inflamadas em violenta oposição à luz. Muitos
homens doentes não vão à consulta médica por medo do médico dizer-lhes
alguma coisa que não vão gostar. Jesus lhes disse, portanto, que não era um
mestre a pedir a um discípulo que repita seus ensinamentos; era um salvador
que, primeiro perturbava a consciência para, depois, purificá-la. No entanto,
muitos nunca ultrapassaram o ódio ao perturbador. A luz não é uma dádiva,
exceto para aqueles que são homens de boa vontade; suas vidas podem ser más,
mas ao menos querem ser bons. Sua presença, disse Jesus, era uma ameaça à
sensualidade, à avareza e à luxúria. Quando um homem vive em uma caverna
escura por muitos anos, os olhos não suportam a luz do sol; da mesma maneira
o homem que recusa a se arrepender, volta-se contra a misericórdia. Ninguém
pode impedir o sol de brilhar, mas todos os homens podem cerrar as persianas
e ocultá-lo.
Logo em seguida, Nosso Senhor lhes disse que, na perseguição contínua
contra Ele, não ficassem preocupados em como responder aos perseguidores.
Nada de declarações por escrito, nada de manuscritos preparados seriam
necessários. Prometeu falar-lhes por intermédio de seu Espírito.

Quando fordes presos, não vos preocupeis


nem pela maneira com que haveis de falar,
nem pelo que haveis de dizer:
naquele momento ser-vos-á inspirado o que haveis de dizer.
Porque não sereis vós que falareis,
mas é o Espírito de vosso Pai que falará em vós.
(São Mateus 10,19-20)
Pressagiando, sem dizer como, que seria traído por um daqueles que lhes
era próximo, deu-lhes uma visão aprimorada da cruz ao afirmar que os
traidores estarão na própria casa, que irmãos trairão irmãos.

Sereis odiados de todos por causa de meu nome.


(São Mateus 10,22)

Os novilhos trazidos da arca para a terra dos filisteus foram oferecidos a


Deus em sacrifício. Tal pareceria a recompensa por ser identificados com
Cristo. Como disse São Paulo:

Porque a vós vos é dado não somente


crer em Cristo, mas ainda por ele sofrer.
(Filipenses 1,29)

Na vida de Cristo, contudo, nunca houve a “hora” do Calvário sem o


“dia” da vitória, nem a derrota seria permanente:

Aquele que perseverar até o fim será salvo.


(São Mateus 10,22)

É pela vossa constância que alcançareis a vossa salvação.


(São Lucas 21,19)

O domínio de uma alma significa o senhorio impassível de si, que é o


segredo da paz interior, diverso dos milhares de agitações que a torna temerosa,
infeliz e desapontada. Somente quando a alma é dominada podemos desfrutar
de alguma coisa. Nosso Senhor indicava, aqui, paciência na adversidade,
provação e perseguição. Ao fim de três horas na Cruz, dominaria tanto a Sua
alma que a devolveria ao Pai dos Céus.
Nesse ponto do discurso aos apóstolos, deixou claro que já que veio para
morrer e não para viver, então, eles deveriam estar preparados para morrer, e
não para viver. Se o mundo deu-lhe uma cruz, então, deveriam também esperar
uma cruz; se o mundo disse que era endemoninhado, deveriam esperar ser
chamados de “demônios”.

O discípulo não é mais que o mestre,


o servidor não é mais que o patrão.
Basta ao discípulo ser tratado como seu mestre,
e ao servidor como seu patrão.
Se chamaram de Beelzebul ao pai de família,
quanto mais o farão às pessoas de sua casa!
(São Mateus 10,24-25)

No entanto, a capacidade de fazer mal nunca atingiria as almas dos


apóstolos. Como Sua própria Ressurreição seria a prova disso, agora, deu-lhes a
certeza antecipada. O corpo pode ser ferido sem o consentimento da alma, mas
a alma não pode ser ferida sem o próprio consentimento. A única coisa a ser
temida é perder, não a vida humana, mas a vida divina que é Deus.

Não temais aqueles que matam o corpo,


mas não podem matar a alma;
temei antes aquele que pode precipitar
a alma e o corpo na geena.
(São Mateus 10,28)

Havia uma justificativa para o mal que lhes fora feito; e todas as coisas
ocultas seriam reveladas. A misericórdia de Deus que vela pelos pardais e conta
os cabelos da cabeça tinha-lhes sob um olhar atento e providente. Advertiu-lhes
que não fossem “discípulos secretos”, que deixassem de se expor ao perigo, nem
que fossem exageradamente “progressistas” ao confessar sua divindade. Ao
tornar-se mais audacioso enquanto ostentava a Cruz diante deles, voltou à
analogia da espada. Não seria um pacifista externo; tampouco eles o seriam.
Quando O proclamassem, evocariam a oposição e, assim, fariam com que
todos os inimigos do bem desembainhassem suas espadas:
Portanto, quem der testemunho de mim diante dos homens,
também eu darei testemunho dele
diante de meu Pai que está nos céus.
Aquele, porém, que me negar diante dos homens,
também eu o negarei diante de meu Pai que está nos céus.
Não julgueis que vim trazer a paz à terra.
Vim trazer não a paz, mas a espada.
(São Mateus 10,32-34)

Existem dois tipos de espadas: as espadas que perfuram externamente e


destroem e as espadas que perfuram por dentro e mortificam. Indicava que a
própria vinda provocaria as espadas por parte dos inimigos. Tiago ouviu essas
mesmas palavras acerca de uma espada e, mais tarde, as confirmaria, quando
Herodes o assassinou com a espada, tornando-se o primeiro apóstolo a ser
martirizado. Simone Weil parafraseou as palavras de Nosso Senhor de que
aquele que toma a espada, perecerá pela espada ao dizer que “Ele, que tomou a
cruz, perecerá pela espada” porque a cruz criará oposição.
A seguir, os apóstolos foram advertidos de que aqueles que o aceitassem
seriam odiados pelos membros das próprias famílias. O evangelho fomentaria o
conflito entre os que o aceitariam e os que o rejeitariam. A mãe não convertida
detestaria a filha convertida, e o pai não convertido detestaria o filho
convertido, de modo que os inimigos mais ferrenhos seriam os da própria casa.
Entretanto, não deveriam pensar que tudo isso seria uma perda. Existe uma
vida dupla: a física e a espiritual. Tertuliano observou que quando os romanos
condenaram à morte os primeiros cristãos, a súplica pagã sempre era: “Salvai
vossas vidas, não as desperdiçais”. Assim como Ele daria Sua vida para
reconquistá-la mais tarde, da mesma maneira, eles as perderiam
biologicamente, mas as salvariam espiritualmente. O que lhe foi sacrificado
nunca foi perdido. Eles não compreendiam o que Jesus estava a dizer, mas
resumiu-lhes de novo sua cruz e ressurreição:

Aquele que tentar salvar a sua vida, perdê-la-á.


Aquele que a perder, por minha causa, reencontrá-la-á.
(São Mateus 10,39)
Os apóstolos, com frequência, viam os romanos, que dominavam sua
terra, crucificarem muitos de seu povo. As palavras de Nosso Senhor referiam-
se ao costume dos criminosos carregarem sua cruz antes de serem crucificados.
Que a Cruz era o incidente máximo em Sua vida, a razão primeira de Sua
vinda está, mais uma vez, evidente ao convidar-lhes para crucifixão. É
inimaginável que Ele os induziria a uma morte expiatória a menos que Ele
mesmo a desejasse para Si como o cordeiro imolado desde o princípio do
mundo. Mais tarde, Pedro e André compreenderiam o que Ele quisera dizer
naquele dia, quando eles também foram crucificados.
Imediatamente após o Pentecostes, quando Cristo enviou Seu Espírito
sobre os apóstolos, o significado pleno da crucifixão começou a despontar para
Pedro e ele resumiu o que ouviu nas instruções antes do Calvário de Nosso
Senhor:

Vós o matastes, crucificando-o por mãos de ímpios.


Mas Deus o ressuscitou, rompendo os grilhões da morte,
porque não era possível que ela o retivesse em seu poder.
(Atos dos Apóstolos 2,23-24)

A cruz não foi um acidente em Sua vida, e não o seria na vida de seus
seguidores.
28

OS PAGÃOS E A CRUZ

Cristo, o Filho de Deus, veio ao mundo para salvar todos os homens, todas as
nações e todos os povos. Conquanto fosse este seu objetivo supremo, seu plano
era, num primeiro momento, limitar o Evangelho aos judeus. Mais tarde sua
missão tornou-se universal, a fim de abarcar também todo o mundo pagão.

Estes são os Doze que Jesus enviou em missão,


após lhes ter dado as seguintes instruções:
Não ireis ao meio dos gentios nem entrareis em Samaria;
ide antes às ovelhas que se perderam da casa de Israel.
(São Mateus 10,5-6)

A primeira orientação explícita aos apóstolos era evitar os pagãos. Hoje, os


pagãos seriam conhecidos como as “missões estrangeiras”. Até mesmo os
samaritanos estavam por ora excluídos, pois eram um povo híbrido de origem
judaica e assíria. Essa instrução explícita ao povo de confinar-se a princípio à
Casa de Israel foi sublinhada pelo fato de que Ele escolheu 12 deles, que,
grosso modo, correspondiam às 12 tribos de Israel. A recordação persistente
desta ordem fez com que Pedro hesitasse quando chegou a hora de batizar
Cornélio, o centurião romano. Para esse ato, ele exigiu uma declaração
explícita da parte do próprio Deus.
Apesar deste primeiro mandamento aos apóstolos, Nosso Senhor Bendito
teve muitos contatos com pagãos; até operou milagres em favor deles. Ainda
que não deem uma resposta completa à pergunta de quando Nosso Senhor
começou a tornar universal a sua missão, esses milagres dão uma pista.
O primeiro dos três contatos que Nosso Senhor teve com pagãos, e,
portanto, com as missões estrangeiras, foi com o centurião romano; o segundo,
com a filha da mulher siro-fenícia; e o terceiro, com o jovem possuído por
demônios nas terras de Gerasa. Havia muitos elementos comuns aos três
milagres.
Os dois primeiros milagres foram realizados à distância. Provavelmente, o
centurião era membro da guarnição romana fixada em Cafarnaum. Por
nascimento, portanto, há de ter sido um pagão. É bem provável que, assim
como o centurião Cornélio, a quem Pedro batizou, e como o eunuco na corte
da rainha da Etiópia, ao menos sentimentalmente estivesse ligado à adoração a
Iavé. Este oficial romano estivera no país tempo suficiente para saber que havia
um grande muro de separação entre judeus e gentios. Isso explica o fato de
que, quando seu servo ficou enfermo, à beira da morte, ele não abordou
diretamente Nosso Senhor, mas

enviou-lhe alguns anciãos dos judeus,


rogando-lhe que o viesse curar.
(São Lucas 7,3)

Nosso Bendito Senhor deve ter mostrado alguma relutância em operar


este milagre, pois Lucas diz que aqueles que intercediam

Rogavam-lhe encarecidamente.
(São Lucas 7,4)

Enquanto Nosso Senhor rumava em direção ao servo, o centurião enviou-lhe


uma palavra por meio de mensageiros que não se incomodasse:

Não sou digno de que entres em minha casa.


(São Lucas 7,6)
Santo Agostinho diria mais tarde: “Considerando-se indigno de que
Cristo entrasse em Sua casa, [o centurião] foi considerado digno de que Cristo
entrasse-lhe no coração”.
O centurião pagão comparou o poder de Nosso Senhor Bendito à sua
própria autoridade sobre os soldados. Ele mesmo era um sargento com uma
centena de homens sob seu comando, que lhe cumpriam as ordens; e o Senhor
era o verdadeiro César, ou rei, o comandante supremo da mais alta hierarquia,
com anjos que lhe obedeciam às ordens. Com certeza, Ele não entraria na casa
para realizar o milagre; o pagão sugeriu que ele desse uma ordem dali mesmo
de onde estava. O milagre foi realizado, conforme o pedido do centurião, à
distância. Refletindo sobre a fé deste pagão e antecipando a fé que viria de
missões estrangeiras, o que contrastava com a presente missão doméstica, disse
Nosso Senhor:

Em verdade vos digo: nem mesmo em Israel encontrei tamanha


fé.
(São Lucas 7,9)

O primeiro pagão que recebeu tal louvor de Nosso Senhor Divino por sua
fé era um “daqueles filhos de Deus” esparsos no mundo, que haviam de ser
trazidos à unidade por meio da Redenção.
O segundo milagre realizado por Nosso Senhor a um pagão foi a cura da
filha da mulher siro-fenícia. A relutância em operar um milagre para o
centurião estivera apenas implicada, mas aqui Ele se recusa explicitamente,
talvez para extrair a fé da mulher. O milagre aconteceu na vizinhança de Tiro e
Sidônia. São Crisóstomo e outros comentadores pensaram de fato que Nosso
Senhor tinha ultrapassado as fronteiras do que mais tarde haveria de ser
conhecido como território de missões estrangeiras. A mulher é descrita como
vindo de Canaã e de descendência siro-fenícia. Ela estava, portanto,
completamente separada dos judeus. Quando pediu uma bênção para a filha, a
quem ela descreveu como “cruelmente atormentada por um demônio”, Nosso
Senhor

[...] não lhe respondeu palavra alguma.


Seus discípulos vieram a ele e lhe disseram com insistência:
Despede-a, ela nos persegue com seus gritos.
(São Mateus 15,23)

Os apóstolos não estavam pedindo que um milagre fosse operado em


favor da mulher; eles só queriam ser deixados em paz, sem ser incomodados,
numa tranquilidade egoísta. Como ela prosseguiu com seu apelo e adoração,
Nosso Bendito Senhor resolveu pôr a fé da mulher à prova, de uma forma
aparentemente dura:

Não convém jogar aos cachorrinhos o pão dos filhos.


(São Mateus 15,26)

Os filhos a quem Ele se referia eram, claro, os judeus. O termo


“cachorrinhos” significava desprezo, e não era incomum que os judeus o
aplicassem aos gentios.
Assim como o centurião romano suportou um aparente atraso, também
essa mulher sofreu uma rejeição assombrosa:

Certamente, Senhor, replicou-lhe ela;


mas os cachorrinhos ao menos comem as migalhas
que caem da mesa de seus donos...
(São Mateus 15,27)

A mulher estava dizendo a Nosso Senhor: “Aceito esse título e a dignidade


que vem com ele: pois até mesmo os carros são alimentados pelo Mestre;
podem até não receber todo o banquete dado aos filhos de Israel, mas os
cachorrinhos terão sua porção; e esta ainda virá da mesa do mestre”. Ela alegou
que pertencia à casa do mestre, ainda que seu lugar fosse inferior. Segundo o
próprio título que o Senhor lhe deu, ela não era um estrangeiro. E, ao aceitar
este título, ela pôde reivindicar tudo que este trazia consigo.
Ela vencera pela fé, e o Mestre disse-lhe:

Ó
Ó mulher, grande é tua fé!
Seja-te feito como desejas.
(São Mateus 15,28)

Como José do Egito, que mostrou severidade a seus irmãos por breve
tempo, o Salvador não prolongou seu aparente desdém; concedeu a cura da
filha da mulher, mais uma vez à distância.
O terceiro contato com os pagãos ocorreu quando Nosso Senhor entrou
na região dos gerasenos. Um homem possuído por um espírito imundo saiu do
cemitério para encontrar-se com Ele. O presente cenário era a Decápolis, uma
região predominantemente gentílica. Josefo sugeria enfaticamente que Gerasa
era uma cidade grega. O próprio fato de que o povo ali fosse criador de porcos
parecia indicar que não eram judeus. Não se pode admitir que fossem judeus
que afrontavam a lei de Moisés.
Um simbolismo considerável pode ser vinculado ao fato de que, nesta
terra pagã, Nosso Bendito Senhor enfrentou forças de oposição muito piores
que aquelas que perturbavam as ondas, os ventos e os corpos dos homens.
Havia aqui algo mais selvagem, mais temível que os elementos naturais, algo
que podia trazer confusão, anarquia e arruinar o homem interior. Havia uma fé
autêntica no centurião e na mulher siro-fenícia. Mas não havia nada neste
jovem senão o domínio do diabo. Os outros dois pagãos falaram de seu coração
em honra de Nosso Salvador. Aqui, entretanto, estava um espírito estranho,
um espírito caído, que fez o jovem afirmar a divindade:

Por que te ocupas de mim, Jesus,


Filho do Deus Altíssimo?
Rogo-te, não me atormentes!
(São Lucas 8,28)

Quando o Salvador libertou o jovem dos espíritos malignos e permitiu


que estes entrassem numa manada de porcos, o povo da cidade ordenou que
Nosso Senhor saísse daquela região. O espírito do capitalismo, em sua forma
mais perversa, fê-los sentir que a restauração de uma alma à amizade com Deus
não era nada em comparação à perda de alguns porcos. Embora gesarenos
respeitados lhe mostrassem oposição, os samaritanos, que eram pecadores,
queriam que o Senhor permanecesse com eles.
Esses três incidentes envolvendo missões estrangeiras foram exceções ao
plano divino de que a salvação devia chegar primeiro aos judeus, e que ele
devia limitar seu ensino, por ora, apenas às ovelhas perdidas de Israel.
Esses contatos esporádicos com pagãos não bastaram para estabelecer um
princípio de evangelização mundial. De outro lado, não se pode supor que
Nosso Bendito Senhor voltou-se aos gentios simplesmente porque seu próprio
povo O rejeitou, como se o resto da humanidade fosse apenas um apêndice em
Sua vida. Ele sempre soube que chegaria um momento em que Ele perderia
tanto os líderes quanto as massas de Seu próprio povo. De fato, isso veio a
acontecer após o milagre da multiplicação dos pães. Depois disso, Nosso
Bendito Senhor não podia contar nem com um séquito de aristocratas nem
com o de populares entre os judeus. Ainda assim, Ele continuou por algum
tempo a concentrar Seu ensino em Seu próprio povo, excluindo as missões
estrangeiras.
Nosso Senhor não usou nenhum de seus três contatos com os pagãos para
dizer aos apóstolos que levassem o Evangelho além dos limites de Israel. No
entanto, havia uma ligação clara e intrínseca entre os gentios e a razão de Sua
vinda. É digno de nota o fato de que, naqueles momentos em que havia um
forte indício e sugestão de Sua morte e redenção, havia também algum
envolvimento com os gentios. Bem longe desses três contatos miraculosos,
houve três outros momentos em que os pagãos estiveram estreitamente
associados a Ele. Cada um desses momentos fazia alguma referência à Sua
Paixão, morte e glorificação.
O primeiro desses momentos foi em Seu nascimento. Os pastores
representavam a missão doméstica; os magos, as missões estrangeiras. Judeus e
gentios estavam próximos da manjedoura; mas a vinda dos gentios coincidiu
com o primeiro atentado contra Sua vida. A Nau Divina mal tinha sido
lançada, e o rei Herodes quis afundá-la, ordenando o massacre de todos os
meninos menores de dois anos. E foi aos gentios a quem Herodes questionou a
respeito da profecia acerca da estrela de Belém. Desde já, a sombra da morte
pairava sobre o menino Jesus.
O segundo momento da associação estreita com os gentios em sua vida
foi quando, com a intercessão de Filipe e André, os gregos vieram vê-Lo. Nesta
ocasião, Nosso Bendito Senhor não mencionou uma profecia das escrituras
judaicas (pois isso teria sido inútil ao gentio); Ele, ao contrário, apelou a uma
lei da ordem natural, a lei da semeadura.

se o grão de trigo, caído na terra,


não morrer, fica só;
se morrer, produz muito fruto.
(São João 12,24)

Como os Reis Magos dos gentios descobriram a sabedoria na manjedoura,


assim também os sábios das fileiras dos gentios aprendiam agora a lei do
sacrifício: pela morte, uma nova vida brotaria. Quanto mais perto da Cruz
Nosso Senhor chegava (e aqui Ele estava a apenas uma semana dela), mais
perto Dele estavam os pagãos. Começavam agora a aparecer pela primeira vez
em seu cortejo. Na ocasião desta visita dos herdeiros de Sócrates, Platão e
Aristóteles, Nosso Bendito Senhor começou a falar de Sua glória:

É chegada a hora para


o Filho do Homem ser glorificado.
(São João 12,23)

O terceiro momento em que os gentios estiveram intimamente associados


a Ele foi durante a crucifixão. Ele foi julgado na corte romana, e a mulher do
governador romano intercedeu por Ele, pois ficara perturbada com um sonho.
Simão de Cirene, que estava interessado em assistir a este homem caminhar
para a morte, foi forçado a ajudá-Lo a carregar a cruz. Sabe-se que ao menos
uma centena de soldados romanos estava presente na cena da crucifixão, pois
um centurião comandava ao menos este número de soldados. Nunca houve
tantos gentios e pagãos em torno do Senhor, como no momento de sua morte.
Aguardando esse momento, depois que os milagres não bastaram para
convencer os homens de sua divindade, ele dera a Cruz como argumento final.
Agora que o Filho do Homem estava sendo levantado, ele começou a atrair
para Si todos os homens. O Senhor deixou claro que eram “todos os homens”
que Ele atrairia, não apenas o povo de Judá e da Galileia. No exato momento
em que falava sobre dar a vida, acrescentou:

Tenho ainda outras ovelhas que não são deste aprisco.


Preciso conduzi-las também, e ouvirão a minha voz [...]
(São João 10,16)

A morte de Cristo foi a realização do Reino de Deus para o mundo


inteiro. Até o Calvário, os homens foram instruídos pela pregação. Depois do
Calvário, seriam ensinados pela Ressurreição e Ascensão. O princípio da
universalidade tornou-se definitivo. Foi a morte de Cristo que derrubou o
muro de separação entre judeus e gentios a fim de revelar a missão universal do
Messias, que fora obscuramente sugerida no Antigo Testamento. Faltava o
Gólgota para universalizar a missão de Cristo. As missões estrangeiras foram
fruto da Paixão e morte de Nosso Senhor Bendito. Não há maior prova disso
do que o fato de que o mandato missionário não foi dado antes de Sua
Ressurreição e Ascensão:

Ide, pois, e ensinai a todas as nações.


(São Mateus 28,19)

Agora os pagãos cairiam em si, não só os que tinham vivido antes da


vinda do Senhor, mas aqueles que viveriam até sua glória final. E virá o dia em
que:

Os ninivitas se levantarão com esta raça e a condenarão.


(São Mateus 12,41)

Os gentios que viveram nos dias de Salomão, e em particular da rainha de


Sabá, apontariam um dedo acusador a Israel por não ter sido tão responsivo
quanto os gentios à morte de Cristo.
A costa de Tiro e Sidônia, que produzira aquela mulher de fé, receberia
um julgamento mais brando que Cafarnaum, que outrora embalara o Corpo
do Pescador Divino:

No dia do juízo, haverá menor rigor para Tiro e para Sidônia


que para vós!
E tu, Cafarnaum, serás elevada até o céu?
Não! Serás atirada até o inferno!
(São Mateus 11,22)

Até mesmo Sodoma, que fora sinônimo de tudo que era mau, teria um
juízo mais misericordioso que Israel, a quem a revelação estava incialmente
restrita.

Porque, se Sodoma tivesse visto os milagres


que foram feitos dentro dos teus muros,
subsistiria até este dia.
Por isso te digo: no dia do juízo,
haverá menor rigor para Sodoma do que para ti!
(São Mateus 11,23-24)

No futuro, todos os gentios seriam beneficiados por Sua morte e


Ressurreição:

Quando o Filho do Homem voltar na sua glória


e todos os anjos com ele, sentar-se-á no seu trono glorioso.
Todas as nações se reunirão diante dele.
(São Mateus 25,31-32)

Se Nosso Senhor fosse apenas um pregador ou um mestre, jamais teria


havido nenhuma missão estrangeira. A fé jamais teria sido propagada em todo
o mundo. O Evangelho que os missionários levam não é um épico pertencente
a um povo particular, mas uma redenção tão ampla quanto a própria
humanidade. Desde o Calvário, o missionário pertenceu a Cristo, não ao
príncipe deste mundo. Outro rei assumia o domínio jurídico dos gentios. A
principal distinção entre o Antigo e o Novo Testamento tinha que ver com sua
abrangência. O primeiro estivera restrito quase exclusivamente a uma única
nação, mas o sangue da Nova Aliança derramado no Calvário derrubou esse
muro de separação entre os judeus e as outras nações.
O sacrifício de Cristo foi universal em três sentidos: tempo, espaço e
poder. Quanto ao tempo, sua eficácia não se limitou a uma geração ou
dispensação:

O Cordeiro imaculado e sem defeito algum,


aquele que foi predestinado antes da criação do mundo
e que nos últimos tempos foi manifestado por amor de vós.
(1 São Pedro 1,19-20)

Havia universalidade também no espaço, pois o efeito da morte de Cristo


não ficou confinado a uma única nação:

Foste imolado e resgataste para Deus,


ao preço de teu sangue, homens de toda tribo, língua, povo e
raça.
(Apocalipse 5,9)

Por fim, havia universalidade em poder, pois não havia pecado que a
redenção não pudesse apagar:

E o sangue de Jesus Cristo, seu Filho,


nos purifica de todo pecado.
(1 São João 1,7)
Foi na Cruz que Cristo tornou Sua missão mundial. Quanto mais
próximos da cruz viverem os missionários, mais rápido cumprirão a missão em
todas as nações.
29

A CRESCENTE OPOSIÇÃO

A oposição e o ódio dos fariseus, dos escribas e dos líderes do templo a Nosso
Senhor cresceu de dentro para fora, como na maioria dos corações humanos.
Primeiro, odiaram-No em seus próprios corações; depois, expressaram esse
ódio aos discípulos; então, manifestaram seu ódio abertamente ao povo; e, por
fim, o ódio concentrou-se no próprio Cristo.
A má disposição dos próprios corações manifestou-se quando um homem
paralítico foi levado a Nosso Senhor em Cafarnaum. Em vez de realizar
imediatamente o milagre, Nosso Senhor perdoou-lhe os pecados. Uma vez que
a doença, a morte e o mal eram efeitos diretos do pecado, embora não
necessariamente do pecado pessoal de qualquer indivíduo, foi primeiro à raiz
da doença, a saber, o pecado, e perdoou-o:

Filho, perdoados te são os pecados.


(São Marcos 2,5)

Em vez de considerar o milagre como prova daquele que o operou, seus


inimigos perguntaram:

Como pode este homem falar assim?


Ele blasfema.
Quem pode perdoar pecados senão Deus?
(São Marcos 2,7)
Não se enganaram ao concluir que Cristo agia como Deus. O Antigo
Testamento dizia que tal poder pertencia a Deus. Verdade, somente Deus pode
perdoar os pecados, mas Deus podia fazê-lo e estava fazendo naquele momento
por intermédio de Sua natureza humana. Mais tarde, daria esse poder aos
apóstolos e sucessores:

Àqueles a quem perdoardes os pecados,


ser-lhes-ão perdoados.
(São João 20,23)

Entretanto, os homens que exerciam essa autoridade ainda seriam apenas


instrumentos humanos de Sua Divindade, assim como, de maneira maior, Sua
natureza humana era instrumento de Sua Divindade. Ainda que os
pensamentos dos fariseus permanecessem em suas cabeças, nenhum
pensamento do homem é desconhecido por Deus.

Mas Jesus, penetrando logo com seu espírito


seus íntimos pensamentos, disse-lhes:
“Por que pensais isto nos vossos corações?
Que é mais fácil dizer ao paralítico:
Os pecados te são perdoados, ou dizer:
Levanta-te, toma o teu leito e anda?
Ora, para que conheçais o poder concedido ao Filho do
homem sobre a terra
(disse ao paralítico), eu te ordeno:
levanta-te, toma o teu leito e vai para casa.”
No mesmo instante, ele se levantou e,
tomando o leito, foi-se embora à vista de todos.
(São Marcos 2,8-12)

Na cabeça deles, Jesus era culpado por blasfêmia porque reivindicou o


poder de Deus. A respeito de Sua autoridade para perdoar os pecados, deu-lhes
prova sensível de que Sua alegação não era fictícia. Embora não pudessem
negar o que viram, não reconheceram Seu poder. A fé em Cristo aumentava
entre o povo, mas diminuía entre fariseus, escribas e doutores da lei de todos os
vilarejos da Galileia, da Judeia e em Jerusalém. Os milagres não são
necessariamente uma cura para a descrença. Se a disposição é perversa,
nenhuma prova do mundo convence, nem mesmo a ressurreição dos mortos.
Até aquele momento, os escribas e os outros apenas pensavam mal. O
ódio então encontrara expressão em seus lábios contra os discípulos do Senhor.
A ocasião se deu quando Jesus nomeou Mateus, o Publicano, como apóstolo.
Um publicano era um judeu que traiu o próprio povo ao se tornar coletor de
impostos para os romanos que ocupavam o país. O publicano deveria coletar
na comunidade determinada soma em impostos, mas tudo que recebia acima
desse montante guardava para si. Naturalmente, isso dava ensejo a muitos atos
desonestos; como resultado, o publicano era um dos cidadãos mais desprezados
da comunidade.
Quando Nosso Senhor viu o publicano à mesa recebendo os impostos,
não prometeu nada a Mateus, simplesmente disse: “Segue-me”. Mateus o fez
de imediato. Ele, que era tão pouco patriota, mais tarde escreveu o primeiro
evangelho e se tornou o mais patriota dos cidadãos, voltando a contar, uma
centena de vezes, as profecias da glória de Israel em ter gerado o salvador.
Nosso Senhor aceitou um convite para comer na casa de Mateus. Isso foi
um grande escândalo para os fariseus e sua justiça rigorosa. Mas, quando viram
que

numerosos publicanos e pecadores vieram


e sentaram-se com ele e seus discípulos.
(São Mateus 9,10)

perguntaram aos discípulos:

Por que come vosso mestre


com os publicanos e com os pecadores?
(São Mateus 9,11)
Jesus estava sendo reconhecido como Mestre e Mentor, mas agora
arriscava sua reputação ao associar-se com os párias da sociedade. Se os leprosos
se ajuntavam, a camaradagem com pecadores não era prova de que Ele também
era um pecador?
Antes, lera os pensamentos; dessa vez, os discípulos decerto contaram-lhe
a acusação dos fariseus, à qual respondeu que exatamente por ser diferente dos
pecadores é que foi estar em seu meio. O formalismo rígido, expresso em
sacrifícios externos, ignorava o verdadeiro sacrifício do eu que poderia salvar os
pecadores. Vangloriavam-se de conhecer as Escrituras, então o Senhor deu aos
fariseus uma referência de Oseias segundo a qual a misericórdia agrada mais a
Deus que o formalismo:

Não são os que estão bem que precisam de médico,


mas sim os doentes.
Eu quero a misericórdia e não o sacrifício (Oseias 6,6).
Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores.
(São Mateus 9,12-13)

Mais uma vez disse que “viera” ao mundo, não que nascera. Sempre há a
afirmação de que Ele não começou a existir no tempo, mas somente de que,
como Deus, tornara-se algo que não era, a saber, um homem. E a razão de Sua
vinda não foi escrever um novo código moral; veio fazer algo pelos pecadores.
Aqueles que, como os fariseus, se recusavam a admitir que estavam doentes
com o pecado não precisavam de Jesus como médico de almas. O cego que se
recusava a admitir a existência da luz nunca poderia ser curado. Nosso Senhor
não viera por simples adesão literal à lei cerimonial, entendida como
“sacrifício”, mas para erguer os caídos. Como médico, Ele não podia fazer o
bem àqueles que eram curiosos, ou que negavam a culpa ou a chamavam de
Complexo de Édipo; veio apenas para carregar os pecados, e, por isso, somente
os pecadores, e não os justos, tirariam proveito de Sua vinda.
O amor aos pecadores era uma coisa nova na terra. Se viesse para ser
apenas um mestre, teria escrito Sua lei como fizera Lao-Tsé, e teria dito aos
homens “aprendam e pratiquem”. Entretanto, uma vez que veio para ser um
salvador e dar a própria vida “como resgate”, convocou os homens a expiar o
mal.

Não vim chamar à conversão os justos, mas sim os pecadores.


(São Lucas 5,32)

A oposição tornou-se mais aberta depois que Nosso Senhor curou o surdo
endemoninhado. Ela deixou os círculos estreitos dos corações tenebrosos e
dirigiu-se ao povo para agitá-los contra Jesus. As multidões que viram os
milagres estavam cheias de admiração e diziam que nada parecido jamais fora
visto em Israel. Isso levou os fariseus a iniciar a blasfêmia:

É pelo príncipe dos demônios que Ele expulsa os demônios.


(São Mateus 9,34)

Nosso Senhor respondeu à acusação ao demonstrar que expulsou Satanás


pelo poder de Sua Divindade, empregando a analogia de uma casa cercada,
ocupada por um homem forte. No entanto, alguém mais forte do que o
homem entra e toma todas as armas, defesas e bens da casa. Nosso Senhor disse
que, se ingressou no domínio do mal e tomou posse da casa, tal como o corpo
de um possesso, estava manifestado, então, um grande poder contra Satanás,
que nada mais era que o próprio Deus. Todavia, porque disseram que Jesus
tinha um espírito imundo, eram culpados de um pecado imperdoável;
punham-se além do perdão. Se envenenaram a fonte de água viva que por si só
podia saciar a sede, então deviam morrer do veneno. Se blasfemam contra
aquele de quem o perdão flui, há esperança de perdão? O surdo que nega ser
surdo nunca ouvirá; os pecadores que negam a existência do pecado e, desse
modo, o remédio contra o pecado, se põem, para sempre, à parte daquele que
veio para redimir.
O estágio final do ataque foi direcionado a Nosso Senhor.

Atravessava Jesus os campos de trigo num dia de sábado.


Seus discípulos, tendo fome, começaram a arrancar as espigas
para comê-las.
Vendo isto, os fariseus disseram-Lhe:
Eis que teus discípulos fazem o que é proibido no dia de
sábado.
(São Mateus 12,1-2)

O Antigo Testamento não proibia arrancar espigas de milho do campo,


mas fazer isso em um sábado, segundo os fariseus, representava um pecado
duplo. Como dispõe o Talmude:

Caso a mulher role o trigo para remover as cascas, é


considerado como peneiração; se esfregar as espigas de trigo, é
considerado como debulha; se limpar as aderências laterais,
peneira o fruto; se esmagar a espiga, tritura; se os lançar das
mãos, joeira. [Jer. Shabat 10a]

O que escandalizou os fariseus não foi a violação da lei bíblica, mas a


violação da lei rabínica. Ao ver o que acreditavam ser uma profanação do
Shabat, atacaram abertamente Nosso Senhor por algo que os discípulos
fizeram.
A resposta de Nosso Senhor foi tríplice: primeiro, apelou aos profetas, à
Lei e então àquele que era maior que ambos, a saber, depois Ele mesmo. Nos
casos que citou, as sutilezas cerimoniais foram preferidas a uma lei suprema.
Nosso Senhor recorreu ao grande herói nacional, Davi, que comeu os pães da
proposição proibidos a todos, salvo aos sacerdotes (1 Samuel 21,6). Se
permitiram que Davi rompesse a proibição divina de uma mera questão
cerimonial em favor de uma necessidade do corpo, por que não permitiam isso
a Ele e a seus discípulos? Quando Davi fugia de Saul e estava faminto, Nosso
Senhor disse que Davi:

entrou na casa de Deus e comeu os pães da proposição?


Ora, nem a ele nem àqueles que o acompanhavam
era permitido comer esses pães reservados só aos sacerdotes.
(São Mateus 12,4)

Os fariseus, por certo, admitiriam que o risco de vida suplanta a lei


cerimonial, mas, além disso, Davi teve permissão de comer o pão não só
porque estava faminto, mas porque alegou estar a serviço de alguém superior, e
servir a alguém maior era mais importante do que Davi servir a um mestre
terreno.
Nosso Senhor, então, respondeu de maneira mais direta à acusação de
violar a lei do sábado. Aqueles que o acusaram de trabalhar no templo no
Shabat prepararam sacrifícios, acenderam as lamparinas e, contudo, porque
faziam parte do serviço do templo, não foram considerados violadores da lei do
Shabat. Entretanto, ali, naquele sábado, em meio a um campo de milho, sem
nenhuma pompa de glória, estava aquele que era maior que o templo.

Ora, eu vos declaro que aqui está quem é maior que o templo.
(São Mateus 12,6)

Essas palavras profundas eram blasfêmia para os fariseus, mas havia outra
afirmação do que dissera quando purificou o templo pela primeira vez em
Jerusalém, ao declarar que Seu corpo era o templo porque ali residia a
divindade. Nele a divindade abrigava-se corporalmente, e, em nenhum outro
lugar na terra, Deus poderia ser encontrado exceto escondido em Sua
humanidade. Portanto, se os apóstolos infringiram os regulamentos
cerimoniais, não tinham culpa, porque, sim, estavam a serviço do templo; mais
ainda, a serviço do próprio Deus.
Ao todo, por sete vezes acusaram-no de descumprir o Shabat. Ele os
desconcertou, certa vez, na sinagoga de Cafarnaum, após curar o homem com
a mão ressequida, ao dizer:

Há alguém entre vós que, tendo uma única ovelha


e se esta cair num poço no dia de sábado,
não a irá procurar e retirar?
Não vale o homem muito mais que uma ovelha?
É permitido, pois, fazer o bem no dia de sábado.
(São Mateus 12,11-12)

Nesse momento a oposição se acirrou. De corações odiosos, passou às


palavras de contenda com os discípulos e, então, às acusações blasfemas aos
ouvidos do povo e, por fim, ao próprio Senhor. Não sendo capazes de
respondê-Lo, após o milagre de Cafarnaum:

Os fariseus saíram dali e deliberaram sobre os meios de o


matar.
(São Mateus 12,14)

Nosso Senhor afastou-se da agitação. Ainda não era a hora de julgá-los.


Mateus, nesse momento, cita uma passagem de Isaías em que estava previsto o
caráter manso de Cristo:

Não quebrará o caniço rachado,


nem apagará a mecha que ainda fumega,
até que faça triunfar a justiça.
Em seu nome as nações pagãs porão sua esperança (Isaías 42,1-
4).
(São Mateus 12,20-21)

Não há nada mais débil que um caniço partido que, às vezes, é usado
pelos pastores para entoar melodias; nem há nada mais frágil que a chama
tremulante de uma vela; ainda assim, Ele não destruiria nenhuma dessas coisas,
tão manso era Seu caráter. Não reprimiria a menor aspiração a ele dirigida,
nem consideraria alma alguma sem finalidade. Uma chama fumegante não
pode mais iluminar um cômodo, mas nenhuma alma jamais seria considerada
um objeto ofensivo. O caniço rachado não pode produzir uma música doce,
mas nenhuma alma há de ser descartada como inútil e sem esperança de
responder às harmonias celestiais. O caniço rachado pode ser remendado, e a
chama fumegante pode ser reavivada por um poder e uma graça que lhes são
exteriores.
O Evangelho não poderia ter escolhido, em meio a tal conflito, ódio e
mordacidade, melhor momento para retratar a paciência, a gentileza e a
mansidão de Jesus do que durante as investidas dos escribas e fariseus. Eram de
partidos distintos, mas, porque encontraram um inimigo maior, uniram-se e
vieram até Ele dessa vez, com modos pouco educados, e perguntaram:

Mestre, quiséramos ver-te fazer um milagre.


(São Mateus 12,38)

Os milagres de cura e outros semelhantes não bastavam, disseram.


Desejavam algum sinal extraordinário dos céus. Ele respondeu:

Esta geração [infiel] e perversa pede um sinal.


(São Mateus 12,39)

Algumas versões se referem a uma geração “adúltera”, porque o pecado do


adultério era usado no sentido metafórico de infidelidade espiritual a Deus.
Mais uma vez, afirmou a importância da conduta moral como essencial para
ver a verdade. Contrastou a conduta prática e a fé no arrependimento de
Nínive na prece de Jonas, e a fé e o zelo da rainha de Sabá ao ouvir a sabedoria
de Salomão com a falta de arrependimento dos escribas e fariseus e a frieza de
seus corações. Ainda que a visitante de Salomão fosse uma rainha, ela percorreu
uma grande distância por nenhuma outra razão que não a busca de sabedoria.
Portanto, ela podia vir em juízo contra os escribas e fariseus que
desdenhosamente repeliam a verdade.

No dia do juízo, a rainha do Sul se levantará


com esta raça e a condenará,
porque veio das extremidades da terra
para ouvir a sabedoria de Salomão.
Ora, aqui está quem é mais do que Salomão.
(São Mateus 12,42)

Nosso Senhor aqui alegou superioridade a um grande profeta dos judeus,


ouvido pelas nações dos gentios e que buscou informações dos confins da terra.
Os fiéis gentios julgarão aqueles mesmos fariseus que O viram e mesmo assim
rejeitaram o Evangelho. Entretanto, não somente os verdadeiros intelectuais do
mundo se levantarão em juízo contra os que se recusam a aceitar Aquele que
era maior que Salomão, mas também:

No dia do juízo, os ninivitas se levantarão


com esta raça e a condenarão,
porque fizeram penitência à voz de Jonas.
Ora, aqui está quem é mais do que Jonas.
(São Mateus 12,41)

Se os homens de Nínive, que eram pagãos, fizeram penitência com a


pregação de Jonas, não deveriam os escribas e fariseus fazer penitência com a
pregação daquele que era maior que Jonas? O povo de Nínive não teve o
mesmo privilégio desses escribas e fariseus de falar com Deus em forma de
homem; a rejeição Dele, portanto, era um presságio da vinda do juízo. Ao
pedir-Lhe um sinal, demonstraram perversidade moral, pois não acreditariam
nem se Ele fizesse o tipo de milagre que pediam. Queriam sinais não por
convicção, mas para condená-lo.
Isso O levou ao único sinal que lhes daria; o sinal do profeta Jonas.

Jonas esteve três dias e três noites no ventre do peixe,


assim o Filho do Homem ficará três dias
e três noites no seio da terra.
(São Mateus 12,40)

Mais uma vez a sombra da Cruz recaiu sobre os escribas e os fariseus. Em


linguagem velada, Ele lhes disse que, no terceiro dia, ressurgiria. Seria tratado
como Jonas o foi pelos marinheiros, com a diferença de que Jonas foi lançado
ao mar, e Ele seria lançado numa cova. Entretanto, assim como Jonas escapou
das profundezas do mar, no terceiro dia, para cumprir sua missão de pregar a
penitência, assim também Ele ressurgiria para cumprir a missão de enviar Seu
Espírito para a cura do pecado e a proclamação do arrependimento. O milagre
de Jonas foi um sinal de que ele era um profeta divinamente comissionado, e
isso autenticou sua exortação dos ninivitas ao arrependimento; do mesmo
modo, a ressurreição autenticaria a obra do Mestre. Aqueles que não aceitassem
o sinal de humilhação e morte, e depois o de ressurreição e glória, não
aceitariam nenhum outro sinal.

Ora, aqui está quem é mais do que Jonas.


(São Mateus 12,41)

Se os ninivitas se arrependeram com a pregação de Jonas, por que os


escribas e os fariseus não se arrependeram diante Dele, a quem Jonas apontava?
Pediram um sinal para condená-Lo; deu-lhes um sinal que os condenava.
Queriam um sinal dos céus; deu-lhes um sinal das profundezas da terra.
Queriam um sinal que provocasse maravilhas; deu-lhes um sinal para provocar
arrependimento. Queriam um sinal somente para si; deu-lhes um sinal da terra
dos gentios para a qual Seu Evangelho seria transmitido após a Ressurreição.
Em Nazaré, quando seus concidadãos tentaram matá-Lo, deu-lhes dois
exemplos do Antigo Testamento retirados dos gentios para demonstrar que Seu
Evangelho lhes seria transmitido. Nessa controvérsia, Ele usou mais três
exemplos dos gentios. No entanto, uma vez que “a salvação vem dos judeus”,
como Ele lhes disse, deveriam rejeitá-Lo antes que os gentios recebessem Sua
verdade e vida. Mais uma vez, a Cruz e a glória da Ressurreição foram postas
diante deles como o motivo de Sua vinda dos céus à terra.
30

A RAPOSA E AS GALINHAS

A Cruz foi levantada mais uma vez pelos fariseus quando Nosso Bendito
Senhor estava na Galileia, no território de Herodes. Os fariseus, que haviam
tramado Sua morte, tentavam inquietar e perturbar o Mestre, dizendo:

Sai e vai-te daqui,


porque Herodes te quer matar.
(São Lucas 13,31)

Decerto os fariseus não estavam interessados na segurança de Nosso


Senhor, e sim ansiosos para atraí-lo a Judeia, onde cairia de modo mais direto
sob o poder deles e do Sinédrio. Com certeza a história não era simples
invenção, pois, no começo da vida pública de Jesus, fariseus e herodianos
tinham conspirado contra Ele. Ademais, a consciência de Herodes já estava
pesada por causa do assassinato de João Batista. A presença do Mestre Divino,
bem como Sua popularidade, perturbava muitíssimo Herodes. Os fariseus
estavam dispostos a envolver-se na trama de Herodes para livrar seus domínios
de Jesus; ao mesmo tempo, ganhava terreno o desejo de levá-lo a Jerusalém
para precipitar-Lhe a morte.
Nosso Bendito Senhor não se deixou enganar pelo plano ardiloso nem
pela cordialidade fingida dos fariseus. Dispensou-os logo com a seguinte
resposta:

Ide dizer a essa raposa:


eis que expulso demônios
e faço curas hoje e amanhã;
e ao terceiro dia [sou consumado].
(São Lucas 13,32)

Israel, no Antigo Testamento, foi descrito como a vinha do Senhor; quem


mais merecia o nome de espoliador da vinha senão a raposa que assassinou o
precursor do Messias? Herodes, acrescentou o Senhor, não tinha de temer que
Sua popularidade levasse à intriga ou à revolução. O trabalho de expulsar
espíritos malignos de homens possuídos e fazer andar os paralíticos
continuaria. Esses milagres inofensivos não seriam interrompidos até o
momento de Sua morte e glorificação. “Hoje e amanhã” indicavam períodos
curtos, como na passagem do profeta Oseias. Então viria a Crucifixão e, ao fim
da Crucifixão, Ele diria que o propósito de Sua vinda estava consumado.
Somente no fim do terceiro dia, e não antes disso, terminaria a trajetória. Ele
sabia a hora de Sua morte, e sabia que a hora ainda não havia chegado.
Fariseus, herodianos e saduceus, unidos em aliança iníqua, não teriam uma
Vítima até que Jesus se entregasse a eles.
O Senhor reafirmou que tinha pleno controle da própria vida ao dizer que
não morreria na Galileia, onde estava na ocasião, mas em Jerusalém:

Porque não é admissível que um profeta


morra fora de Jerusalém.
(São Lucas 13,33)

Não importava quanto Herodes tentasse matá-lo, Jesus não modificaria a


“Hora” estabelecida pelo Pai. Pertencia a Jerusalém o monopólio do assassinato
de profetas, e lá a Cruz seria erigida. Quanto à ameaça a Sua vida, Nosso
Senhor tão somente a ignorou. Era na Cidade Santa, sob Pôncio Pilatos, que
haveria de ser assassinado, e não nas províncias sob o poder de Herodes. O
“hoje, amanhã e o terceiro dia” era o período exato de que Nosso Senhor
precisava para viajar de Pereia, onde estava, até Jerusalém. Tampouco disse que
“morreria”, mas, antes, que “seria consumado”. Uma vez na Cruz, em
Jerusalém, Ele diria “está consumado”, unindo assim a Missão Divina do Pai
com o próprio desejo de pregar, expulsar demônios e então oferecer-se como
sacrifício pelos pecados dos homens. A mesma expressão usada por Nosso
Senhor acerca da consumação de Sua vida aparece duas vezes na Epístola aos
Hebreus — uma vez aplicada aos sofrimentos do Senhor por levar os homens à
salvação, e a outra:

E, sendo ele consumado,


veio a ser a causa da eterna salvação
para todos os que lhe obedecem.1
(Hebreus 5,9)

A menção a Jerusalém lembrou-O não só da morte, mas também de Seu


amor patriótico pela cidade.

Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas


e apedrejas os enviados de Deus,
quantas vezes quis ajuntar os teus filhos,
como a galinha abriga a sua ninhada debaixo das asas,
mas não o quiseste!
Eis que vos ficará deserta a vossa casa.
Digo-vos, porém, que não me vereis
até que venha o dia em que digais:
Bendito o que vem em nome do Senhor!
(São Lucas 13,34-35)

Nunca uma apóstrofe foi pronunciada por um patriarca a uma terra ou


cidade com o mesmo amor que o Mestre mostrou pela cidade apontada como
o lugar do Eterno, onde a glória de Deus havia de habitar e que viria a ser o
veículo de revelação a todas as nações. A imaginação do Mestre voltou-se da
raposa para as galinhas como exemplo de amor cívico. A figura das asas abertas
para abrigar e aquecer era comum nos livros do Antigo Testamento e nos
profetas, mas a tragédia estava na rejeição dos homens. Disse Deus: “Quisera”,
e os homens responderam: “Não queremos”. A profecia acerca de Jerusalém
estaria cumprida literalmente dentro de uma geração. Quando Sócrates foi
condenado à morte pelos juízes atenienses, o carrasco que lhe deu cicuta para
beber chorou enquanto lhe entregava o copo. Nosso Senhor, sendo Deus, sabia
de antemão que os governadores e juízes de Jerusalém o condenariam à morte,
e chorou por eles. No caso de Sócrates, o carrasco chorou pelo executado; aqui,
no entanto, é Aquele que há de ser executado que chora pelos carrascos. Eis a
diferença entre um filósofo e Deus.
É tremendo o poder da liberdade: o homem sempre a tem dentro de si
para aceitar ou rejeitar as asas da proteção e do abrigo divinos. Assim também
o homem-Deus tinha-a em Si para oferecer espontaneamente a própria vida
por Jerusalém e pelo mundo. Se fosse obrigado a sofrer, seria o peso da
injustiça, e o Pai não aceitaria um sacrifício oferecido com relutância. Antes,
Nosso Senhor chamara aqueles que estavam dispostos a ser pastoreados por Ele
de Suas ovelhas; agora, chama-os de Sua ninhada. Aqui como alhures, a Cruz
estava diante dele, mas seria um aperfeiçoamento, uma consumação, uma
glória. Mais uma vez, o Senhor associou Cruz e Ressurreição; os dois nunca se
separaram. Iria para a Cruz não como mártir, mas como Vencedor. Decerto os
homens lhe poriam uma coroa de espinhos e o cravariam numa Cruz, mas
tudo isso apenas no nível humano. Nada aconteceria antes da hora determinada
por Deus. São Pedro, que estava com Nosso Senhor na ocasião, falaria mais
tarde do ponto de vista divino da Crucifixão no sermão de Pentecostes:

depois de ter sido entregue,


segundo determinado desígnio e presciência de Deus,
vós o matastes,
crucificando-o por mãos de ímpios.
(Atos dos Apóstolos 2,23)

Jerusalém o rejeitaria na Sexta-Feira Santa depois de tê-Lo recebido no


domingo anterior. Talvez a entrada triunfal fosse um símbolo de como
Jerusalém O receberia posteriormente, no fim do mundo. O apóstolo que se
descreve como aquele a quem Jesus amava deu esta interpretação da Segunda
Vinda:
Ei-lo que vem com as nuvens.
Todos os olhos o verão,
mesmo aqueles que o traspassaram.
(Apocalipse 1,7)

A raposa e a galinha se encontraram. A raposa podia agora conspirar com


os fariseus, como mais tarde conspiraria com Pilatos, para entregá-lo à morte.
Mas o Senhor da História julga a todos conforme tenham devorado como a
raposa ou reunido como a galinha. Aqueles que não se aninhassem sob as asas
da galinha, advertiu Ele, seriam pegos pelas garras da águia devoradora romana.
Nota

1 | Citado aqui conforme a tradução Almeida Revista e Corrigida, por empregar


exatamente o termo enfatizado pelo autor. (N. T.)
31

A RESSURREIÇÃO QUE PREPARA SUA MORTE

Muitos foram os atentados à vida de Cristo, em particular quando declarou


ser o Filho de Deus. No entanto, sua morte foi formalmente decidida quando
demostrou poder sobre a morte ao ressuscitar Lázaro.

E desde aquele momento resolveram tirar-lhe a vida.


(São João 11,53)

Antes, muitas vezes falou primeiro de Sua morte e, depois, de Sua


Ressurreição. Dessa vez, falou da ressurreição primeiro, enquanto os inimigos
decidiam Sua morte. A tumba vazia de Lázaro instigou a decisão de dar-Lhe a
cruz, mas Ele, em troca, desistiria da cruz por um túmulo vazio.
Essa não foi a primeira vez que falara da ressurreição. No início da vida
pública, quando alimentou as multidões e apresentou-se como o Pão da Vida,
disse que daria a outros a ressurreição:

Ora, esta é a vontade daquele que me enviou:


que eu não deixe perecer nenhum daqueles que me deu,
mas que os ressuscite no último dia.
Esta é a vontade de meu Pai:
que todo aquele que vê o Filho e nele crê,
tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia.
(São João 6,39-40)
Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou,
não o atrair; e eu hei de ressuscitá-lo no último dia.
(São João 6,44)

Quem come a minha carne e bebe o meu sangue


tem a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia.
(São João 6, 54)

Essas palavras foram além das profecias da própria Ressurreição. Eram


uma afirmação de que todos que acreditassem Nele e vivessem por Sua vida
ressuscitada desfrutariam, por Seu poder, da ressurreição.
Anteriormente, trouxera dos mortos pelo menos duas outras pessoas.
Uma foi a filha de Jairo; a outra, o filho da viúva de Naim. A primeira tinha
acabado de morrer; o segundo já estava no caixão. Ainda assim, o caso mais
surpreendente de todos foi o de Lázaro.
Nosso Senhor, naquele momento particular, estava pregando a leste do rio
Jordão, em Pereia. A certa distância estava a cidade de Betânia, que ficava cerca
de três quilômetros fora de Jerusalém. Nessa cidade viviam duas irmãs, Marta e
Maria, e Lázaro, irmão delas, de cuja hospitalidade Nosso Senhor sempre
desfrutava. Quando Lázaro sentiu-se mal, Marta e Maria mandaram uma
mensagem a Jesus, dizendo:

Senhor, aquele que tu amas está enfermo.


(São João 11,3)

As irmãs chamavam-No de “Senhor”, para indicar o reconhecimento de


Sua divindade e autoridade. Também não punham a fonte do amor em Lázaro;
ao contrário, a fonte estava no próprio Jesus. As irmãs apelaram para o Seu
amor e deixaram a decisão de fazer o melhor para Cristo (Sua mãe, igualmente,
o fizera na festa de casamento em Caná, onde apenas observou: “Eles não têm
vinho”). Quando Nosso Senhor recebeu a mensagem, disse:

Esta enfermidade não causará a morte,


mas tem por finalidade a glória de Deus.
Por ela será glorificado o Filho de Deus.
(São João 11,4)

Deveria estar em sua mente, de uma só vez, tanto a morte de Lázaro


como a Sua própria Ressurreição, pois mais tarde, quando foi a Betânia e
ressuscitou Lázaro dos mortos, disse a Marta:

Não te disse eu: Se creres, verás a glória de Deus?


(São João 11,40)

Ele associa a honra e a glória a si mesmo, não como Messias, mas como
Filho de Deus, aquele que está unido com o Pai. Quando Nosso Senhor disse
que a doença de Lázaro não causaria morte, não queria dizer que Lázaro não
morreria, mas, antes, que o fim e o propósito da morte eram Sua própria
glorificação como Filho de Deus.
É muito provável que as irmãs tenham acreditado que, tão logo Nosso
Senhor recebesse a mensagem, correria para ficar ao lado de Lázaro. Entretanto,
ele ficou mais dois dias onde estava após receber a notícia. Se o último capítulo
da morte de Lázaro não tivesse sido escrito, pareceria que faltara compaixão a
Nosso Senhor Santíssimo. Acontece que esse foi um dos raros exemplos de
morte, doença e infortúnio em que o último capítulo estava escrito e que os
propósitos de Deus são vistos mesmo na Sua demora.
A distância que separava Nosso Senhor da casa de Lázaro era de cerca de
um dia de viagem. Se, portanto, permaneceu ainda dois dias a mais em Pereia e
se acrescentarmos mais um dia de jornada, ao todo teriam se passado quatro
dias desde o recebimento da notícia. As delongas de Deus são misteriosas. O
pesar, às vezes, é prolongado pelo mesmo motivo pelo qual é enviado. Deus
pode abster-se, por um momento, de curar; não porque o Amor não ame, mas
porque o Amor nunca deixa de amar e um bem maior virá da aflição. O relógio
dos céus é diferente do nosso. O amor humano, impaciente com atrasos, nos
insta à velocidade. A mesma morosidade ocorreu quando Ele estava a caminho
da casa de Jairo, cuja filha trouxe de volta à vida. Ali, Nosso Senhor Bendito,
em vez de apressar-se pelo caminho, usou um desses momentos preciosos para
curar uma mulher de um problema de sangramento, assim que ela tocou Suas
vestes na multidão. As obras do mal, às vezes, são feitas apressadamente. Nosso
Senhor disse a Judas para fazer “rápido” seu trabalho sujo.
Depois de dois dias, Nosso Senhor falou novamente sobre a família que
amava. Ele não disse “Vamos ver Lázaro” ou “Vamos a Betânia”, mas, em vez
disso, falou “Voltemos a Judeia”, cuja capital era Jerusalém, onde estava
concentrada a oposição a Ele. Quando os discípulos ouviram isso, imaginaram,
de imediato, as ameaças a Sua vida e os apedrejamentos em Jerusalém e
disseram a respeito dos fariseus e líderes do povo:

Mestre, há pouco os judeus te queriam apedrejar, e voltas para


lá?
(São João 11,8)

Nosso Senhor estava a testá-los. Poucas semanas antes, João dissera sobre
os inimigos:

Procuraram então prendê-lo, mas ele se esquivou das suas


mãos.
(São João 10,39)

Agora ele estava sugerindo aos apóstolos que voltassem ao centro da


oposição. Sua hora se aproximava. Mas os apóstolos não conseguiam ver a
prudência ou o senso comum em tal passo. Temiam pela própria segurança,
bem como pela segurança do Mestre, embora não mencionassem estar com
medo; ao contrário, falavam somente dos inimigos que ameaçavam apedrejá-
Lo. A resposta que o Senhor lhes deu foi outra indicação da disposição divina
de Sua vida e que nenhum homem poderia tirar Dele.

Não são 12 as horas do dia?


Quem caminha de dia não tropeça, porque vê a luz deste
mundo.
Mas quem anda de noite tropeça, porque lhe falta a luz.
(São João 11,9-10)

Como era seu costume, afirmava uma verdade simples com duplo
sentido; um literal e outro, espiritual. O sentido literal era: existe a luz natural
do dia. Por cerca de 12 horas o homem trabalha ou empreende uma jornada, e,
durante essas horas do dia, o sol brilha em seu caminho. Se, porém, o homem
viaja ou trabalha à noite, tropeça ou atrapalha-se no trabalho. O sentido
espiritual estava no denominar-se Luz do Mundo. Assim como ninguém pode
impedir o sol de brilhar durante as determinadas horas do dia, da mesma
maneira, ninguém jamais pode reprimi-Lo ou pará-Lo em Sua missão. Muito
embora fosse para a Judeia, nenhum mal recairia sobre Ele até que o permitisse.
Enquanto a luz brilhasse sobre os apóstolos, nada teriam a temer, mesmo na
cidade dos perseguidores. Passara essa mesma ideia ao responder a Herodes
quando o chamou de raposa. Haveria um tempo em que ele permitiria que a
luz do mundo fosse apagada, e isso ocorreria quando dissesse a Judas e a seus
inimigos no Jardim das Oliveiras: “Esta é a vossa hora e do poder das trevas”
(São Lucas 22,53). No entanto, até que permitisse, os inimigos nada poderiam
fazer. O dia existe até a Paixão; a Paixão é a noite.

Enquanto for dia, cumpre-me terminar as obras daquele que


me enviou.
Virá a noite, na qual já ninguém pode trabalhar.
Por isso, enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo.
(São João 9,4-5)

Ninguém poderia subtrair-lhe um único segundo das 12 horas de luz


estabelecidas nas quais deveria pregar, assim como ninguém poderia apressar
um segundo da hora das trevas quando fosse de encontro à morte. Quando
finalmente anunciou que deveriam começar a jornada, Tomé, melancólico e
pessimista, disse aos condiscípulos:

Vamos também nós, para morrermos com ele.


(São João 11,16)
Conhecendo a tremenda oposição que havia em Jerusalém, Tomé,
naquele momento, sugeriu que todos poderiam morrer juntos na Cidade
Santa. O que quer que se possa dizer de Tomé, devemos admitir que, antes de
todos, reconheceu que a morte estava reservada a Nosso Senhor, embora tenha
sido o último a reconhecer Sua Ressurreição. Se Nosso Senhor desejasse ser
morto, Tomé estava disposto a ser morto com ele. Sempre que aparece no
Evangelho, Tomé fica do lado negro. Ainda assim, se a única maneira de
prosseguir com o Mestre era morrer com Ele, Tomé estava disposto a fazê-lo.
Quando Nosso Senhor chegou a Betânia, Lázaro já havia sido enterrado
quatro dias antes. Betânia, por estar a menos de duas horas de Jerusalém e no
raio de visão do templo, era o cenário de um grande afluxo de pessoas e, em
especial, de inimigos, quando Sua vinda foi anunciada. Muitos consoladores
também foram levar alento às pobres irmãs. Quando souberam da chegada de
Jesus, Marta, a mais ativa, levantou-se e saiu para encontrá-lo, ao passo que
Maria permaneceu na casa. Marta tinha alguma confiança no poder do Cristo,
mas ainda era uma confiança muito limitada, pois disse-Lhe:

Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido!


(São João 11,21)

Quando Nosso Senhor disse que seu irmão levantaria novamente, Marta
admitiu que ele o faria, na ressurreição geral dos mortos, no último dia. Era
estranho que Marta não ouvisse ou recordasse o que Nosso Senhor havia falado
antes no templo:

Porque vem a hora em que todos os que se acham


nos sepulcros sairão deles ao som de sua voz.
(São João 5,28)

A fé que Marta expressou na ressurreição era a da maioria dos judeus,


com exceção da dos saduceus. Assim como a mulher no poço sabia que o
Messias viria e, no entanto, não sabia que Ele já falava com ela, Marta,
igualmente, apesar de acreditar na ressurreição, não sabia que a ressurreição
estava diante dela. Assim como dissera à mulher do poço que era o Messias,
agora Nosso Senhor disse a Marta:

Eu sou a ressurreição e a vida.


(São João 11,25)

Se Cristo tivesse dito “Eu sou a ressurreição”, sem prometer dar vida
espiritual e eterna, haveria somente a promessa de reencarnação em sucessivos
níveis de sofrimento. Se dissesse “Eu sou a vida”, sem dizer “Eu sou a
ressurreição”, haveria apenas a promessa de nossos desgostos contínuos.
Entretanto, ao combinar os dois, afirmou que Nele estava a vida que, ao
morrer, eleva-se à perfeição. Portanto, a morte não era o fim, mas o prelúdio da
ressurreição em novidade e plenitude de vida. Essa era a nova maneira de
combinar a Cruz e a glória, que perpassou como antífona o salmo de Sua vida.
No momento em que disse isso, andou em direção dos inimigos na Judeia.
Nosso Senhor Santíssimo estava relutante em utilizar a palavra “morte”, que
provava que toda a Sua vida estava contra isso. Empregou a mesma palavra a
respeito da filha de Jairo, como fez com Lázaro, a saber, estavam
“adormecidos”. Seria a mesma palavra que os seguidores de Cristo usariam a
respeito de Estêvão, ao afirmarem que ele “dormiu”.
Quando Nosso Senhor perguntou a Marta se ela acreditava que quem
quer que cresse Nele nunca morreria, ela respondeu:

Sim, Senhor. Eu creio que tu és o Cristo,


o Filho de Deus, aquele que devia vir ao mundo.
(São João 11,27)

A fé plena na encarnação preparou o milagre a seguir. Maria chega


chorando à cena. Quando Nosso Senhor viu suas lágrimas e a dos seus amigos:

Jesus ficou intensamente comovido em espírito.


(São João 11,33)
Antes ativo que passivo, teve compaixão com a morte e o pesar, dois dos
maiores efeitos do pecado. Teve fome porque a desejou; estava pesaroso porque
o quis; morreria porque desejou. A longa procissão de enlutados através dos
séculos, o efeito pavoroso da morte que estava prestes a tomar sobre Si,
instigou-O a sorver o cálice da cruz. Não poderia ser um Sumo Sacerdote
digno sem ter compaixão por nossas dores. Como era fraco em nossa fraqueza,
pobre em nossa pobreza, da mesma maneira, era triste em nossa tristeza. Essa
partilha, deliberadamente desejada, dos pesares daqueles que redimiria, o fez
chorar. A palavra grega empregada indica lágrimas derramadas de maneira
calma. Nosso Senhor é descrito a chorar nas Escrituras por três vezes. Uma vez
por uma nação, quando chorou por Jerusalém; uma vez no Jardim de
Getsêmani, quando chorou pelos pecados do mundo; e, nessa ocasião, por
Lázaro, quando chorou pelo efeito do pecado que é a morte. Nenhuma das
lágrimas foi por si mesmo, mas pela natureza humana que assumira. Em cada
ocasião, seu coração humano pôde distinguir o fruto da raiz, os males que
afetam o mundo de sua causa, que é o pecado. Era verdadeiramente “o Verbo
feito Carne”.
Muitos ao redor do túmulo de Lázaro disseram:

Vede como ele o amava!


(São João 11,36)

Outros, todavia, que também choravam, pesarosos, mostraram suas garras


ao perguntar:

Não podia ele, que abriu os olhos do cego de nascença,


fazer com que este não morresse?
(São João 11,37)

É evidente que havia uma crença vaga de que Ele era o Messias, por conta
das outras maravilhas que operara. Na cruz também podiam admitir todos os
milagres, salvo, aparentemente, não poder descer dela. Agora estavam dispostos
a admitir todos os milagres, mas, certamente, se fosse o Messias, o Filho de
Deus, teria evitado a morte de Lázaro. Já que não o fez, logo, não era o Cristo.
Ignorou as provocações quando chegou à tumba em que estava Lázaro. Sugeriu
que a pedra fosse removida. Marta confirmou a morte certa de Lázaro ao dizer-
lhe:

Senhor, já cheira mal,


pois há quatro dias que ele está aí...
(São João 11,39)

Ela advertiu Nosso Senhor de que a condição do morto era tal que
abandonasse toda a esperança de ressurreição até o último dia. Quando,
porém, a pedra foi removida em obediência à ordem de Nosso Senhor, Este
voltou-se ao Pai Celestial em oração. A função da oração era que, por esse
milagre, todos que o vissem pudessem acreditar que o Pai e Ele eram um e que
o Pai O enviara ao mundo. Então:

exclamou em alta voz: Lázaro, vem para fora!


(São João 11,43)

Lázaro saiu da tumba com a mortalha enrolada no corpo. As mãos


amáveis das irmãs removeram o pano que cobria sua face, e ele, que estivera
aprisionado pela morte, foi trazido à vida. Ali, ao sol brilhante do meio-dia, na
presença de testemunhas hostis, um homem que estivera morto por quatro dias
foi trazido à vida em um instante.
Assim como o sol incide sobre a lama e a endurece, e incide sobre a cera e
a amolece, esse milagre de Nosso Senhor Santíssimo endureceu alguns para a
incredulidade e amoleceu outros para a fé. Alguns creram: o efeito geral, no
entanto, foi a decisão de executar Nosso Senhor. Muitos foram até os fariseus e
relataram tudo o que Cristo fizera.

Os pontífices e os fariseus convocaram o conselho e disseram:


Que faremos? Esse homem multiplica os milagres.
Se o deixarmos proceder assim, todos crerão nele.
(São João 11,47-48)

Não havia dúvida sobre o fato da ressurreição; o problema era como evitar
que Ele se tornasse popular em virtude de tal poder. Tinha demonstrado
claramente por seus milagres que era o Cristo. No entanto, os milagres não são
a cura para a incredulidade. Alguns não acreditariam nem mesmo se todo dia
alguém se levantasse dos mortos. O raciocínio deles era curioso:

os romanos virão e arruinarão a nossa cidade e toda a nação.


(São João 11,48)

Alegavam que, se Ele continuasse a operar tais milagres e manifestar tal


poder, as pessoas O aceitariam como rei. Isso, todavia, pensavam, despertaria o
ódio dos romanos que ocupavam o país. O propósito deles era sacrificar Jesus
para não serem sacrificados pelos romanos. Entretanto, o que temiam iria
acontecer, como Nosso Senhor disse que aconteceria. Os romanos, sob o
governo de Tito, destruíram a cidade, queimaram o templo e colocaram a
nação em vergonhoso cativeiro.
Caifás, o sumo sacerdote, estava presente nesse conselho. Uma vez que
outros se professavam perdidos a respeito do que fazer, o astuto Caifás
repreendeu-lhes e ofereceu uma solução mais verdadeira do que suspeitava.

Vós não entendeis nada!


Nem considerais que vos convém que
morra um só homem pelo povo,
e que não pereça toda a nação.
(São João 11,49-50)

“Que Roma decida por Sua morte, não nós” foi seu argumento. “Não
teremos culpa por matar alguém tão amado pelo povo, e os romanos serão os
responsáveis”. Nosso Senhor se tornaria, assim, um grande bode expiatório
para aplacar a autoridade romana. A crucifixão desse homem apaziguaria César
e retiraria as suspeitas de que os judeus estavam revoltados com Roma.
Caifás quase não percebeu o significado de suas palavras, de que era
conveniente que um homem morresse pela nação em vez de deixar que ela
perecesse. Séculos antes, a motivação dos irmãos de José era má quando o
lançaram no poço e o venderam como escravo, mas, não obstante, cumpriram
os propósitos de Deus, pois José, posteriormente, disse aos irmãos:

Vossa intenção era de fazer-me mal,


mas Deus tirou daí um bem; era para fazer,
como acontece hoje, com que se conservasse
a vida a um grande povo.
(Gênesis 50,20)

Aqui também, do ponto de vista humano, havia o assassinato para fins


políticos; do ponto de vista divino, Caifás, inconscientemente, afirmou que
Cristo era uma oferta pelo povo judeu, por todos os povos. Sua morte seria
vicária; sua vida seria um sacrifício por outrem. Acreditava-se que o sumo
sacerdote, nos tempos antigos, tinha o dom da profecia; e o Evangelho
menciona a asserção desse tratante como uma verdadeira profecia.

E ele não disse isso por si mesmo, mas,


como era o sumo sacerdote daquele ano,
profetizava que Jesus havia de morrer pela nação,
e não somente pela nação, mas também para que
fossem reconduzidos à unidade os filhos de Deus dispersos.
(São João 11,51-52)

Perto do crepúsculo de Sua vida, um saduceu indelicado que não


acreditava na ressurreição afirmou que um anjo lhe anunciara o nascimento
Dele, cujo nome era Jesus, isto é:

ele salvará o seu povo de seus pecados.


(São Mateus 1,21)
Caifás proclamou uma nova unidade, uma nova aliança que seria efetuada
por Aquele que se daria em substituição por outros e, assim, os haveria de
salvar. Nosso Senhor dissera que veio dar a vida em resgate da humanidade
pecadora; Caifás também o dissera, sem perceber suas palavras. O bom pastor
morreria para que houvesse “um só rebanho e um só pastor” (São João 10,16).
A ressurreição selou sua morte. Porque uma pedra fora retirada da tumba
e um morto, chamado de volta à vida, as autoridades agora decretaram que
uma pedra deveria ser colocada diante de Seu sepulcro.

E desde aquele momento resolveram tirar-lhe a vida.


(São João 11,53)
32

A MULHER QUE PRESSENTIU A MORTE DO


SENHOR

A intuição de uma mulher pressentiu mais do que os apóstolos puderam


compreender, embora a eles lhes fosse predito de maneira explícita a Paixão e
morte do Senhor. A mulher era Maria Madalena, que havia sido pecadora. O
momento, seis dias antes da Sexta-Feira Santa; o lugar, a casa de Simão —
Simão, que fora leproso.
Reclinado à mesa, o Mestre conversava com os apóstolos e com os demais
convivas: João e Tiago, que recentemente tinham buscado os primeiros lugares;
Pedro, a rocha que compreenderia um Cristo divino, mas não um Cristo
sofredor; Natanael, o novo Jacó, sem dolo, a quem se havia prometido que
veria o Cristo como o mediador entre o céu e a terra; Judas, o tesoureiro dos
fundos apostólicos; os outros apóstolos, que agiriam em unidade em poucos
minutos; Lázaro, tão recentemente levantado dos mortos pelo poder Daquele
que chamava a Si mesmo de “A Ressurreição”; Marta, ainda serva e dedicada; e
Maria, a pecadora arrependida.
Quando a ceia se aproximava do fim, Maria passou por trás do assento do
Salvador, levando consigo um vaso de bálsamo de nardo puro. Esse bálsamo era
caro; Judas, que punha preço em tudo, avaliou-o em cerca de trezentos
denários. O bálsamo era caro para Maria; contudo, não caro demais para o
Filho de Deus. O vaso em que se carregava este extrato de mirra provavelmente
era de alabastro, com um gargalo longo e fino. Maria quebrou o vaso para
possibilitar um fluxo sem medida sobre a cabeça e os pés do Senhor. Em
poucos dias, na Última Ceia, Ele partiria o pão como sinal de Seu Corpo, que
seria partido na Cruz. Do “espírito quebrantado e contrito” de Maria, que
Deus nunca rejeita, veio esta outra coisa partida, numa prefiguração de Sua
morte. Em Seu nascimento, os Sábios do Oriente trouxeram mirra para Sua
morte e sepultamento; agora, no fim de Sua vida terrena, Maria trouxe mais
uma vez mirra para Sua morte. Após ungir primeiro a cabeça e depois os pés do
Senhor, ela secou estes últimos com os próprios cabelos.
Outrora Jacó vertera unguento sobre uma pedra, consagrando-a como
altar de sacrifício a Deus. Agora, essa mulher vertia no novo Israel um bálsamo
que O preparava para o sacrifício. Esse foi precisamente o modo como Nosso
Senhor interpretou a ação dela; até mesmo o nome “Cristo” significava “o
Ungido de Deus”, ou o Messias.
Então falou Judas Iscariotes, e todos os apóstolos estavam de acordo com
seu julgamento:

Por que não se vendeu este bálsamo


por trezentos denários
e não se deu aos pobres?
(São João 12,5)

Essas são as primeiras palavras de Judas registradas nas Escrituras. Ele


desviaria todos os pensamentos de Cristo para os pobres. Maria esvaziara o vaso
de bálsamo, mas Judas teria enchido a bolsa com dinheiro. Os outros
discípulos tinham pensamentos similares acerca da prioridade do econômico.
Um “rei do pão” era mais importante que um “Rei Salvador”. Em sua
indignação, perguntavam:

Para que este desperdício?


(São Mateus 26,8)

Com base no que sabiam de Nosso Senhor, pensavam que Ele teria
preferido dar aos pobres, em vez de mostrar glória a Seu Corpo, que havia de
ser partido para Redenção deles. A filantropia, ao menos no caso de Judas, era
mero pretexto para a avareza. Considerou-se desperdício aquilo que foi gasto
para honrar a Deus.
Nosso Divino Senhor imediatamente veio em defesa da mulher:

Deixa-a.
(São João 12,7)

Na verdade, era a Ele que os apóstolos estavam insultando; mas, em Sua


humildade, censurou-os apenas pela atitude para com a mulher. Então, o que
estava meio confuso na mente dela, a saber, a morte iminente do Senhor, Ele
agora proclamava à luz do dia:

embalsamou-me antecipadamente o corpo para a sepultura.


(São Marcos 14,8)

Maria estava fazendo uma oferta ao Senhor como vítima pelos pecados do
mundo. A efusão do bálsamo era uma antecipação do embalsamento de Seu
Corpo. Pode ter sido inconsciente para Maria, como o fora inconsciente para
os Reis Magos, que também anteciparam a morte do Senhor, mas Este tornou
o inconsciente consciente. Seis dias antes de Sua morte, ela O ungiu para o
sepultamento. Os apóstolos não eram capazes de enxergar a morte do Senhor,
tantas vezes predita; mas essa mulher viu, enfim, a razão de Sua vinda — veio
não para viver, mas para morrer e tornar a viver. E ela há de ter visto além de
Sua morte — afinal não estava sentada com Lázaro, que fora trazido de volta à
vida por meio Daquele que chamava a Si mesmo de “a Ressurreição e a Vida”?
Então, respondendo à objeção acerca dos pobres, disse Nosso Senhor:

Pois sempre tereis convosco os pobres, mas a mim nem sempre


me tereis.
(São João 12,8)

As palavras “Deixa-a” estavam no singular e, portanto, dirigiam-se apenas


a Judas; as demais palavras estavam no plural e, desse modo, advertiam todos
os apóstolos. Para o Filho de Deus, em Seu papel de Filho do Homem
sofredor, restavam apenas mais seis dias. Os economicamente pobres sempre
existiriam sobre a terra, e a oportunidade de servi-los sempre estaria presente.
O que lhes fosse feito em nome do Senhor, Jesus contaria como feito a Si
mesmo. Mas, dentro de uma semana, Deus em forma e hábito humanos
terminaria uma breve estada antes de passar para a glória eterna à direita do
Pai. Extinguir-se-iam, então, todas as chances de consolá-Lo, ouvi-Lo, tocá-Lo
e vê-Lo. Tolerai, portanto, que essa mulher se una à Minha morte, pois não
tornarei a morrer. Ser um com “a largura, altura e profundidade” de Minha
Paixão excede em valor todo ato de caridade. Além disso, os que doam por
amor da morte de Cristo e de Sua glória são aqueles que sempre dão aos
pobres. No entanto, os que ignoram o Cristo Salvador, como o fez Judas, são
aqueles que depois se mostram avaros de defender os pobres e que vendem o
Mestre por trinta moedas de prata.
Ao feito da mulher foi dada honra perpétua pelo Senhor, que previu que
o ato de Maria seria venerado para todo o sempre. Embora ela o tivesse feito
para o sepultamento do Senhor, Ele usou o incidente para informar aos
apóstolos que o Evangelho seria pregado no mundo inteiro, e a memória de
Maria seria divulgada em toda parte.

Em verdade eu vos digo:


em toda parte onde for pregado este Evangelho
pelo mundo inteiro,
será contado em sua memória o que ela fez.
(São Mateus 26,13)

Como escreveu Crisóstomo:

Embora inúmeros reis, generais e as nobres façanhas daqueles


cujos memoriais permanecem afundados no silêncio; embora
aqueles que derrubaram cidades e cercaram-nas com muros,
conquistaram troféus e escravizaram muitas nações não sejam
conhecidos senão por ouvir dizer, e não pelo nome, apesar de
terem proclamado estatutos e estabelecido leis; essa mulher,
que havia sido prostituta e vertera seu bálsamo na casa de um
leproso na presença de uma dúzia de homens — essa mulher
todos os homens celebram mundo afora.
33

A ENTRADA EM JERUSALÉM

Era o mês de Nissan. O livro de Êxodo ordenava que nesse mês o cordeiro
pascal fosse escolhido e quatro dias depois levado para o local do sacrifício. No
Domingo de Ramos, o cordeiro era escolhido por aclamação popular em
Jerusalém; e na Sexta-Feira Santa era sacrificado.
Nosso Senhor passou o último Shabat em Betânia com Lázaro e suas
irmãs. Circulava, nesse momento, a notícia de que Ele chegaria a Jerusalém.
Em preparação para Sua entrada, enviou dois discípulos para o vilarejo, onde
fora dito que encontrariam um jumentinho amarrado, que nenhum homem
montara. Deveriam desamarrá-lo e levá-lo ao Senhor.

Se alguém vos perguntar por que o soltais,


responder-lhe-eis assim: O Senhor precisa dele.
(São Lucas 19,31)

Talvez jamais tenha sido escrito paradoxo maior que este — de um lado, a
soberania do Senhor e, de outro, sua “necessidade”. Essa combinação de
divindade e dependência, de posse e pobreza, foi a consequência de o Verbo
fazer-se carne. Na verdade, Ele, que era rico, fez-se pobre por nossa causa, para
que pudéssemos ser ricos. Pegou emprestado de um pescador o barco do qual
pregou; tomou emprestado pães de centeio e peixes de um menino para
alimentar a multidão; pegou emprestado a tumba de onde ressurgiria; e, agora,
pegou emprestado um burrico, no qual entraria em Jerusalém. Às vezes, Deus
adquire antecipadamente e requisita as coisas do homem, como se lhe
recordasse que tudo é um dom Dele. Basta aos que O conhecem ouvir: “O
Senhor necessita disso”.
Ao aproximar-se da cidade, “grande multidão” veio ao seu encontro;
dentre eles estavam não só cidadãos, mas também os que tinham ido para as
festividades e, é claro, os fariseus. As autoridades romanas também estavam em
alerta durante as grandes festas para que não houvesse uma insurreição. Em
todas as ocasiões anteriores, Nosso Senhor rejeitou o falso entusiasmo do povo,
saiu dos holofotes da publicidade e evitou tudo o que mostrasse sinais de
exibição. Em uma das vezes:

[...] ordenou aos seus discípulos que


não dissessem a ninguém que ele era o Cristo.
(São Mateus 16,20)

Então, trouxe dos mortos a filha de Jairo:

Ordenou-lhes severamente que ninguém o soubesse.


(São Marcos 5,43)

Depois de revelar a glória de Sua divindade na Transfiguração:

proibiu-lhes Jesus que contassem a quem quer


que fosse o que tinham visto, até que o
Filho do homem houvesse ressurgido dos mortos.
(São Marcos 9,8)

Quando as multidões, depois do milagre dos pães, procuravam torná-Lo


rei:

tornou a retirar-se sozinho para o monte.


(São João 6,15)
Quando Seus parentes Lhe pediram para ir a Jerusalém e Ele
publicamente aturdiu o festival com milagres, disse:

O meu tempo ainda não chegou.


(São João 7,6)

No entanto, a entrada de Jerusalém era tão pública que mesmo os fariseus


disseram:

Vede! Nada adiantamos! Reparai que todo mundo corre após


ele!
(São João 12, 19)

Tudo isso se opunha ao Seu costume habitual. Antes, frustrava todos os


entusiasmos; agora, Ele os estimulava. Por quê?
Porque sua “hora” tinha chegado. Agora era o momento de fazer a última
afirmação pública do que reivindicava. Sabia que isso O levaria ao calvário, à
ascensão e à instituição de Seu reino. Uma vez que reconhecesse o louvor deles,
então havia somente duas opções à cidade: confessá-Lo, como fez Pedro, ou, do
contrário, crucificá-Lo. Ou era Ele rei, ou não teriam outro rei senão César. A
melhor ocasião para fazer sua última aparição pública não era a costa da
Galileia, nem o alto das montanhas, mas a cidade real na Páscoa.
Chamou atenção para Seu reino de duas maneiras. Primeiro, pelo
cumprimento de uma profecia familiar ao povo e, segundo, pelos tributos de
divindade que aceitou.
Mateus afirma explicitamente que a procissão solene era o cumprimento
da profecia feita por Zacarias anos antes:

Dizei à filha de Sião: Eis que teu rei vem a ti,


cheio de doçura, montado numa jumenta,
num jumentinho, filho da que leva o jugo (Zacarias 9,9)
(São Mateus 21,5)
A profecia veio de Deus por um profeta e, agora, o próprio Deus a
cumpria. A profecia de Zacarias pretendia contrastar a majestade e a humildade
do Salvador. Ao olharmos as antigas gravações das tabuletas da Assíria e da
Babilônia, os murais do Egito, as tumbas dos persas e os arabescos das colunas
romanas, ficamos tomados de espanto pela majestade de reis que cavalgam
triunfantes em cavalos ou carruagens e, às vezes, sobre os corpos prostrados dos
inimigos. Em contraste, eis aqui Aquele que vem triunfante sobre um jumento.
Como Pilatos, se estivesse olhando do alto de sua fortaleza naquele domingo,
deve ter se divertido com o espetáculo ridículo de um homem ser proclamado
rei e, ainda assim, estar sentado em um animal que era o símbolo dos
proscritos — um veículo apropriado para quem rumava às garras da morte! Se
Ele tivesse entrado na cidade com pompa real ao modo dos conquistadores,
teria fomentado a crença de que era um messias político. No entanto, a
circunstância que escolheu validava Sua afirmação de que Seu reino não era
deste mundo. Não há insinuação de que esse rei pobre fosse um rival de César.
A aclamação do povo foi outro reconhecimento de Sua divindade. Muitos
tiraram as vestes e as esticaram diante Dele; outros cortaram ramos das oliveiras
e palmas e pavimentaram a passagem. O Apocalipse fala de uma grande
multidão diante do trono do cordeiro batendo palmas com entusiasmo. Aqui,
as palmas, muitas vezes usadas ao longo de toda a história para indicar vitória,
como quando Simão Macabeu entrou em Jerusalém, testemunharam a vitória
do Cristo — ainda que antes de ser momentaneamente derrotado.
Então, utilizando os versos do grande Hillel que se referiam ao Messias, as
multidões o seguiram, a bradar:

Bendito o rei que vem em nome do Senhor!


Paz no céu e glória no mais alto dos céus!
(São Lucas 19,38)

Ao admitir, naquele momento, que Ele era o enviado por Deus,


praticamente repetiram a canção dos anjos de Belém, pois a paz que trazia era a
reconciliação da terra e dos céus. Também repetiram a saudação dos Reis
Magos na manjedoura — “o rei de Israel”.
Um novo canto foi incorporado enquanto bradavam:
Hosana ao filho de Davi!
Bendito seja aquele que vem em nome do Senhor!
Hosana no mais alto dos céus!
(São Mateus 21,9)

O rei de Israel!
(São João 12,13)

Era o príncipe prometido da linhagem de Davi, aquele que veio com a


missão divina. Hosana era, originalmente, uma prece e agora uma saudação de
boas-vindas a um rei salvador. Sem compreender totalmente por que Ele fora
enviado nem o tipo de paz que traria, eles, não obstante, confessaram que era
divino. Os únicos que não partilharam dessa aclamação foram os fariseus:

Neste momento, alguns fariseus


interpelaram a Jesus no meio da multidão:
Mestre, repreende os teus discípulos.
(São Lucas 19,39)

Era incomum que interpelassem a Nosso Senhor, já que estavam


incomodados por Ele aceitar a homenagem das multidões. Com
impressionante majestade, Nosso Senhor retorquiu:

Digo-vos: se estes se calarem, clamarão as pedras!


(São Lucas 19,40)

Se os homens se calassem, a própria natureza bradaria e proclamaria Sua


divindade. As pedras são duras, mas, se gritassem, bem mais endurecidos não
haveriam de estar os corações dos homens que não reconhecessem a
misericórdia de Deus diante deles. Se os discípulos se calassem, os inimigos
nada teriam a ganhar, pois as montanhas e os mares verbalizariam.
A entrada fora chamada de triunfal, mas Ele sabia bem que os “Hosanas”
se transformariam em “Crucifica-o” e as palmas se tornariam lanças. Entre os
gritos da multidão, ouviria os sussurros de Judas e as vozes iradas diante do
palácio de Pilatos. O trono para o qual estava sendo aclamado era uma cruz, e
Sua coroação real seria uma crucifixão. Muitas vestes sob Seus pés hoje, mas na
sexta-feira lhe seriam negadas até mesmo as próprias vestes. Desde o início
sabia o que havia no coração do homem, e nem por uma vez sugeriu que a
redenção das almas dos homens seria efetuada por demonstrações vocais
exageradas. Embora fosse rei, e ainda que nesse momento eles O admitissem
como rei e senhor, sabia que a acolhida real que O esperava era o calvário.
Trazia lágrimas nos olhos, não por conta da cruz que o esperava, mas por
causa dos infortúnios que pairavam sobre aqueles a quem Ele veio salvar e nada
teriam Dele. Ao olhar por sobre a cidade:

Jesus contemplou Jerusalém e chorou sobre ela, dizendo:


Oh! Se também tu, ao menos neste dia que te é dado,
conhecesses o que te pode trazer a paz!...
Mas não, isso está oculto aos teus olhos
(São Lucas 19,41-42)

Viu com precisão histórica a queda das forças de Tito e, ainda assim, os
olhos que viram o futuro tão claramente ficaram quase cegos pelas lágrimas.
Falou de Si mesmo como disposto e capaz de ter evitado aquela sina ao ajuntar
os culpados sob suas asas, como a galinha faz com os pintinhos, mas eles não o
fariam. Como o maior patriota de todos os tempos, olhou além do próprio
sofrimento e fixou o olhar sobre a cidade que rejeitou o Amor. Ver o mal e ser
incapaz de remediá-lo por conta da perversidade humana é a maior das
angústias. Ver a maldade e ser confundido pela rebelião do malfeitor é o
bastante para partir o coração. Um pai fica consternado pela angústia quando
vê o erro do filho. O que ocasionou as lágrimas nos olhos de Cristo foram os
olhos que não viram e os ouvidos que não ouviram.
Na vida de cada indivíduo e na vida de cada nação existem três
momentos: um tempo de visitação ou privilégio na forma de bênção de Deus;
um tempo de rejeição em que o divino é esquecido; e um tempo de ruína ou
desastre. O juízo (ou desastre) é consequência das decisões humanas e prova
que o mundo é guiado pela presença de Deus. Suas lágrimas pela cidade
mostraram-No como Senhor da História, dando graça aos homens e, ainda
assim, sem nunca destruir a liberdade deles de rejeitá-Lo. Entretanto, ao
desobedecê-Lo, os homens se destroem; ao apunhalá-Lo, é o próprio coração
que apunhalam; ao negá-Lo, é a própria cidade e nação que levam à ruína. Essa
foi a mensagem das lágrimas enquanto o Rei caminhava para a Cruz.
34

A VISITA DOS GREGOS

Não somente aos judeus, mas também aos gentios Nosso Senhor revelou o
propósito de Sua vinda, a saber, dar a vida por Suas ovelhas. Aos primeiros,
revelou-se como o cumprimento das profecias acerca de Sua vinda. Os gentios,
contudo, não tinham uma revelação como essa contida no Antigo Testamento;
portanto, para eles o Senhor traçou uma analogia com a natureza que podiam
de pronto compreender.
Isso se deu a menos de uma semana de Sua crucifixão. Ele já se mostrara
como Ressurreição ao levantar Lázaro dos mortos; cumprira para Seu próprio
povo uma profecia antiga a respeito de Sua entrada, humilde mas triunfal, em
Jerusalém. Agora era hora de ensinar os gentios acerca da razão de Sua vinda.
Os gentios aqui estavam representados pelos gregos, como mais tarde seriam
representados pelo eunuco etíope que aderira à religião do Antigo Testamento
e estava chegando a Jerusalém para os festejos. Como os gentios não se
submetiam à circuncisão, o acesso ao santuário lhes estava vedado, mas era-lhes
permitido que circulassem por um espaçoso pátio.
Os fariseus já haviam reclamado que “o mundo inteiro corria atrás Dele”.
Como prova disso, os gregos, ou as outras ovelhas que não eram do aprisco,
apresentaram-se ao Bom Pastor. Enquanto os inimigos planejavam matá-Lo, os
gregos queriam vê-Lo. Em Seu nascimento, os Sábios do Oriente foram à
manjedoura; agora, os gregos, que eram os Sábios do Ocidente, iam à Cruz.
Tanto os magos do Oriente quanto os magos do Ocidente haviam de ver uma
humilhação; no primeiro caso, Deus em forma de menino em Belém; no
segundo caso, Deus em forma de criminoso na Cruz. Como sinal notório da
compreensão de Sua divindade, apresentou aos magos a estrela; aos gregos, um
grão de trigo. Ainda há mais algumas semelhanças nas perguntas. Os gregos
disseram a Filipe:

Senhor, quiséramos ver Jesus.


(São João 12,21)

Os Sábios do Oriente tinham perguntado:

Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer?


(São Mateus 2,2)

Esses gregos viram a entrada triunfal em Jerusalém e devem ter sido


edificados pelo porte nobre de Nosso Senhor. Talvez o que mais os atraiu tenha
sido o fato de que Nosso Bendito Senhor purificara o templo e dissera que o
Pai fizera dele “uma casa para todas as nações”. Esse conceito revolucionário
deve ter inflamado profundamente o espírito de universalismo que era uma
característica dos gregos. Quando André e Filipe levaram ao Senhor a notícia
de que os gregos queriam vê-Lo, Jesus respondeu:

É chegada a hora para o Filho do Homem ser glorificado.


(São João 12,23)

Em Caná, Nosso Senhor dissera à mãe que Sua “hora” ainda não tinha
chegado; durante Seu ministério público nenhum homem pôde tocá-Lo,
porque Sua “hora ainda não tinha chegado”; mas aqui Ele anunciou, a poucos
dias da morte, que chegara o momento de ser glorificado. A glorificação
referia-se às mais baixas profundezas de Sua humilhação na Cruz, mas também
se referia a Seu triunfo. Não disse que estava próxima a hora de Sua morte, mas
a hora de ser glorificado. Ele uniu o Calvário e Seu triunfo, como o faria depois
da Ressurreição, quando falou aos discípulos no caminho de Emaús:

Porventura não era necessário


que Cristo sofresse essas coisas
e assim entrasse na sua glória?
(São Lucas 24,26)

A Seus seguidores, a Cruz agora parecia a humilhação mais profunda;


para Ele, era o peso de glória. Suas palavras aos gregos, contudo, também
queriam dizer que os gentios haveriam de ser uma marca de Sua glorificação. O
muro que separava judeus e gentios seria derrubado. Desde o início, o Senhor
via os frutos da Cruz crescendo em terras pagãs.
A resposta que deu aos gregos era muito apropriada. O ideal deles não era
a abnegação, mas a beleza, a força e a sabedoria. Desprezavam os extremos.
Apolo era o exato oposto de Nosso Senhor, em quem Isaías profetizara que não
haveria “beleza” enquanto pendia da Cruz.
Para tornar a lição da Redenção familiar aos gregos, o Senhor usou um
exemplo da natureza:

Em verdade, em verdade vos digo:


se o grão de trigo, caído na terra,
não morrer, fica só;
se morrer, produz muito fruto.
(São João 12,24)

Amiúde ele usara parábolas sobre sementes e plantios, e chamara-se a Si


mesmo de semente: “A Palavra é a semente”. Numa parábola, o Senhor
comparou Sua missão a uma semente que caiu em variados tipos de solo,
explicando as diferentes reações das almas à Graça. Agora revelava que Sua vida
teria o ápice de sua influência por meio da morte. A natureza, disse Ele, foi
marcada pela Cruz; a morte é a condição da vida nova. Os discípulos O teriam
guardado como uma semente no celeiro de suas vidas estreitas. Todavia, se não
morresse para gerar vida nova, Ele seria uma cabeça sem corpo, um pastor sem
rebanho, um rei sem reino.
Há quem pergunte se os gregos, sabendo que Sua vida estava em perigo,
não sugeriram que Ele fosse a Atenas a fim de ficar imune ao destino cruel que
O aguardava. Jerusalém, devem ter advertido, pretendia matá-lo; Atenas havia
matado apenas um de seus grandes mestres, Sócrates, e desde então lamentava-
se por isso. Em todo caso, Jesus lembrou-os de que não era simplesmente um
Mestre; se fosse para estar entre eles, não seria para desempenhar o papel de
Sócrates ou de Sólon. Sendo assim, Ele podia de fato salvar a própria vida; o
propósito de Sua vinda, no entanto, era entregá-la.
A natureza humana, dizia Ele aos gregos, não alcança a grandeza por meio
da poesia e da arte, mas sim passando pela morte. É provável que tenha falado
do “grão de trigo” para sugerir que era Ele o Pão da Vida. A natureza é um
livro de Deus, como o é o Antigo Testamento, embora não sobrenatural, como
o é este último. O dedo de Deus, contudo, traçou a mesma lição em ambos. A
semente se decompõe para virar planta. Aplicando a lei natural, Ele disse aos
gregos que, se continuasse a viver, Sua vida teria sido impotente. Não veio para
ser um moralista, mas um Salvador. Não veio para somar preceitos aos de
Sócrates, mas para dar vida nova; como poderia a semente dar vida nova sem
Calvário? Como disse Santo Agostinho: “Ele mesmo era o grão a ser morto e
multiplicado; a ser morto pela incredulidade dos judeus; a ser multiplicado
pela fé de todas as nações”.
A segunda lição seguiu-se imediatamente: deviam aplicar a si mesmos o
exemplo da morte do Senhor.

Quem ama a sua vida, perdê-la-á;


mas quem odeia a sua vida neste mundo,
conservá-la-á para a vida eterna.
(São João 12,25)

Nenhum bem real é feito sem algum custo e sofrimento a quem o realiza.
Assim como as impurezas legais mencionadas no Antigo Testamento, a
purgação e a purificação são feitas com sangue. O ato de dar vazão aos próprios
sentimentos ou de seguir cegamente os próprios instintos recebeu o golpe de
misericórdia nesse diálogo com os gregos. O que a Cruz põe em prática é a
autodisciplina e a mortificação do orgulho, da luxúria e da avareza; só assim,
disse Ele, corações duros serão quebrantados e pessoas aflitas alcançarão a paz.
Os gregos tinham vindo ao Senhor dizendo: “Quiséramos ver Jesus”,
provavelmente por causa da majestade e da beleza que tanto reverenciavam
como seguidores de Apolo. O Senhor, contudo, apontou Seu aspecto
maltrapilho que ofereceria uma vez na Cruz e acrescentou que somente haveria
beleza de alma na vida nova por intermédio da Cruz na vida deles.
Então parou por um momento quando Sua alma se perturbou com a
iminência da Paixão, de ser “feito pecado”, de ser traído, crucificado e
abandonado. Da profundeza do Sagrado Coração jorraram as seguintes
palavras:

Presentemente, a minha alma está perturbada.


Mas que direi?...
Pai, salva-me desta hora...
Mas é exatamente para isso que vim a esta hora.
(São João 12,27)

São quase as mesmas palavras que Ele usou mais tarde no Jardim do
Getsêmani — palavras inexplicáveis, exceto pelo fato de que Ele estava
carregando o peso dos pecados do mundo. Era natural que Nosso Senhor
passasse por uma luta, visto que era um homem perfeito. Mas não eram só os
sofrimentos físicos que O perturbavam; Ele, assim como os estoicos, filósofos,
homens e mulheres de todas as idades, podia ter estado calmo diante de
grandes provações físicas. Todavia, Sua perturbação era menos dirigida à dor, e
mais à consciência dos pecados do mundo que exigiam tais sofrimentos.
Quanto mais amava aqueles de quem Ele era propiciação, tanto mais
aumentava sua angústia, do mesmo modo que são as faltas do amigos, mais
que as dos inimigos, que mais perturbam o coração!
Decerto Ele não estava pedindo para ser salvo da Cruz, uma vez que
repreendeu os apóstolos por tentarem dissuadi-Lo. Dois polos opostos estavam
unidos Nele, separados apenas no discurso: o desejo de libertação e a submissão
à vontade do Pai. Ao desnudar a própria alma, disse aos gregos que o sacrifício
de Si mesmo não era fácil. Não tinham de ser fanáticos quanto a desejar
morrer, pois a natureza não quer crucificar a si mesma; por outro lado,
tampouco deveriam afastar os olhos da Cruz, tomados de pavor. Em seu
próprio caso, agora como sempre, os momentos mais penosos convertiam-se
nos mais jubilosos; nunca há cruz sem ressurreição; a “hora” em que o mal
exerce seu domínio transforma-se rapidamente no “dia” em que Deus é
vencedor.
Suas palavras eram um tipo de solilóquio. A quem Ele se voltaria nesta
hora? Não aos homens, pois são eles que precisam da salvação! “Só o Pai que
me enviou nesta missão de resgate pode me sustentar e me libertar! Não pedirei
que me liberte. Esta é a hora para a qual o tempo foi feito; para a qual Abel,
Abraão e Moisés apontaram. É chegada a hora da provação à qual devo
submeter-me”.
No exato momento em que falava da chegada desta hora a que devia
submeter-se para a redenção dos homens

[...] veio do céu uma voz:


Já o glorifiquei
e tornarei a glorificá-lo.
(São João 12,28)

A voz do Pai viera ao Senhor em duas outras ocasiões em que Sua missão
perante a Cruz era o principal: no batismo, quando apareceu como o Cordeiro
de Deus a ser sacrificado pelo pecado; e na transfiguração, quando falou de sua
morte a Moisés e Elias, enquanto banhado em glória radiante. Agora a Voz
veio, não à margem do rio, nem no topo da montanha, mas acima do templo,
a plenos ouvidos também dos representantes dos gentios. “Já o glorifiquei”
podia referir-se à glorificação do Pai até o momento da morte de Jesus; “e
tornarei a glorificá-lo” podia referir-se aos frutos após a Ressurreição e
Ascenção. Possivelmente também, visto que Ele estava falando aos gentios no
pátio do templo dos judeus, a primeira parte podia ter-se referido à revelação
feita aos judeus; a segunda, aos gentios depois do Pentecostes.
Em cada uma dessas três manifestações, Nosso Senhor estava em oração
ao Pai, e Seus sofrimentos estavam predominantemente diante Dele. Nesta
ocasião, eram os efeitos de sua morte redentora que eram proclamados.

Essa voz não veio por mim,


mas sim por vossa causa.
Agora é o juízo deste mundo;
agora será lançado fora o príncipe deste mundo.
(São João 12,30-31)

O Pai falou para convencer os ouvintes de Jesus do propósito da missão


Deste — não só para dar ao mundo outro código, mas para dar uma vida nova
por intermédio da morte. Falou como se a Redenção do Senhor já estivesse
consumada. A sentença ou o julgamento transmitido ao mundo era a Cruz.
Todos os homens, disse Ele, hão de ser por ela julgados. Ou estarão nela, como
convidava os gregos a subi-la, ou sob ela, como estavam aqueles que O
crucificaram. A Cruz revelaria o estado moral do mundo. De um lado,
mostraria a profundidade do mal pela Crucifixão do Filho de Deus; de outro,
deixaria evidente a graça de Deus ao oferecer perdão a todos os que “tomem
sua cruz dia após dia” e O sigam. Não Ele, mas o mundo, estava sendo julgado.
Não Ele, mas Satanás, estava sendo lançado fora. Somente a Cruz importava;
ensinos, milagres, cumprimento de profecias — todas essas coisas estavam
subordinadas à Sua missão na terra: ser como o grão de trigo que passa pelo
inverno de um Calvário e então se torna o Pão da Vida. São Paulo, mais tarde,
tomaria o tema da semente que morreu para viver e o descreveria aos coríntios:

Sim, ele morreu por todos,


a fim de que os que vivem já não vivam para si,
mas para aquele que por eles morreu e ressurgiu.
Por isso, nós daqui em diante
a ninguém conhecemos de um modo humano.
Muito embora tenhamos considerado Cristo dessa maneira,
agora já não o julgamos assim.
(2 Coríntios 5,15-16)
35

O FILHO DO REI MARCADO PARA A MORTE

Na terça-feira da semana em que morreu, Nosso Senhor contou uma das


últimas parábolas relacionadas às profecias do Antigo Testamento, indicando o
que lhe aconteceria dentro de 72 horas. Os dirigentes do templo acabavam de
questionar Nosso Senhor a respeito de Sua autoridade. A posição que tomavam
era a de representantes e guardiões do povo; portanto, deveriam evitar que
pessoas fossem enganadas. Nosso Senhor respondeu-lhes em parábola,
demonstrando-lhes o tipo de guardiões e guias que eram.

Um homem plantou uma vinha, cercou-a com uma sebe,


cavou nela um lagar, edificou uma torre,
(São Marcos 12,1)

Aquele que plantou a vinha foi o próprio Deus, como os ouvintes já


sabiam pela leitura dos primeiros versos do capítulo 5 de Isaías. A cerca que
ergueu ao redor era a que os separava das nações idólatras dos gentios e
permitia que Deus cuidasse de Sua vinha frutífera — Israel — com cuidado
especial. O lagar, escavado na rocha, guardava certa referência aos serviços e
sacrifícios do templo. A torre, cujo propósito era vigiar e guardar a vinha,
simbolizava a vigilância especial de Deus sobre seu povo.

[...] arrendou-a a vinhateiros e ausentou-se daquela terra.


(São Marcos 12,1)
Isso significava o compromisso de responsabilidade para com o próprio
povo, tão resguardado do contágio pagão. Esse compromisso começou com
Abraão, quando foi retirado da terra de Ur, e com Moisés, que deu a seu povo
os mandamentos e as leis para adorar o Deus verdadeiro. Como disse Deus
pelo profeta Jeremias:

Sem descanso, enviei-vos desde o princípio


os profetas, meus servos [...]
(Jeremias 35,15)

Daquele momento em diante, a vinha de Israel deveria ter dado a Deus


frutos de fidelidade e amor proporcionais às bênçãos que receberam.
Entretanto, quando o dono da vinha enviou sucessivamente três servos para
ajuntar os frutos, eles foram maltratados pelos vinhateiros. O que esses
mensageiros divinos, ou profetas, sofreram está descrito no capítulo 11 de
Hebreus. Santo Estêvão, o primeiro mártir, descreveria depois a infidelidade do
povo aos profetas.

A qual dos profetas não perseguiram os vossos pais?


Mataram os que prediziam a vinda do Justo,
do qual vós agora tendes sido traidores e homicidas.
(Atos dos Apóstolos 7,52)

No entanto, o amor de Deus não se cansou da crueldade dos vinhateiros.


Houve novos chamados ao arrependimento após cada novo ato de violência.

Enviou outros servos em maior número que os primeiros,


e fizeram-lhes o mesmo.
(São Mateus 21,36)

Segundo Marcos, alguns foram golpeados na cabeça e tratados de maneira


atroz; outros, mortos, o que indicou o auge da iniquidade. Essas são afirmações
gerais, mas, não obstante, poderiam se referir ao espancamento de Jeremias e à
morte de Isaías.

Disse então o senhor da vinha: Que farei?


Mandarei meu filho amado; talvez o respeitem.
(São Lucas 20,13)

Deus é representado em solilóquio, como que para lançar seu amor em


uma luz mais clara. O que mais ele poderia fazer por sua vinha além do que já
fizera? O “talvez” não foi só uma dúvida de que seu Divino Filho seria aceito,
mas também uma expectativa de que não seria. A história da relação de Deus
com um povo foi contada em minutos.
Aqueles que ouviram Nosso Senhor compreenderam totalmente as muitas
referências ao percurso dos profetas que foram enviados ao povo e tiveram a
mensagem repudiada. Já O tinham ouvido afirmar ser o Filho de Deus. Sob o
véu tênue da parábola, Ele respondia à pergunta, isto é, com que autoridade fez
determinadas coisas. Nosso Senhor aqui não só reafirmou Sua relação pessoal
com o Pai Celestial, mas também a superioridade infinita sobre os profetas e
servos.
Então, ao revelar aos ouvintes o tipo de morte que haveria de sofrer por
suas mãos, Ele prosseguiu:

Os lavradores, porém, vendo o filho, disseram uns aos outros:


Eis o herdeiro! Matemo-lo e teremos a sua herança!
Lançaram-lhe as mãos, conduziram-no para fora da vinha
e o assassinaram.
(São Mateus 21,38-39)

Os vinhateiros aqui são representados como conhecedores do Filho e


herdeiros da vinha. Com clareza inconfundível, o Senhor revelou o destino
tenebroso que sofreria nas mãos deles, de que seria “conduzido para fora da
vinha”, ao Monte Calvário, fora de Jerusalém, e Ele era o último apelo do Pai
ao mundo pecador. Não havia ilusão alguma a respeito da veneração que
receberia da humanidade. Recusa, injúrias e insultos seriam a saudação
oferecida ao Filho do Pai Celestial.
Três dias depois de contar a história, ela se tornou verdade. Os
mantenedores credenciados da vinha, como Anás e Caifás, lançaram-no para
fora da cidade, numa colina que era um depósito de lixo, e O mataram. Como
disse Santo Agostinho: “Mataram-No para que pudessem possuir e, porque O
mataram, perderam”.
Posteriormente, Nosso Senhor disse que aqueles que mataram o Filho
perderiam a herança. Ele, então, fez com que a mente dos ouvintes se voltasse
às sagradas escrituras.

Mas Jesus, fixando o olhar neles, disse-lhes:


Que quer dizer então o que está escrito:
A pedra que os edificadores rejeitaram
tornou-se a pedra angular?
(São Lucas 20,17)

Essa era uma citação do Salmo 117 que lhes era muito familiar:

A pedra rejeitada pelos arquitetos tornou-se a pedra angular.


Isto foi obra do Senhor, é um prodígio aos nossos olhos.
(Salmo 117,22-23)

O Antigo Testamento continha muitas profecias a respeito de Nosso


Senhor como uma pedra. Por cinco vezes Nosso Senhor fez proveito da
parábola da vinha. Agora, depois de utilizar a imagem para indicar a crueldade
para com o filho unigênito de Deus, enviado dos céus para garantir os direitos
do Pai, Ele deixou Sua imagem completamente de lado e tomou a imagem da
pedra angular. O Filho de Deus seria a pedra desprezada e rejeitada. Predisse,
todavia, que seria a pedra que uniria e amalgamaria todas as coisas.
Nunca houve menção da tragédia sem a glória, de modo que aqui
também os maus-tratos recebidos pelo Filho são compensados por Sua vitória
suprema, por meio da qual, como pedra angular, une judeus e gentios em uma
casa santa. Assim, os artífices de Sua morte foram postos de lado pelo grande
arquiteto. Mesmo a própria rejeição inconsciente Dele tornou-os inconscientes,
instrumentos voluntários de Seu propósito. Aquele a quem recusaram Deus
ergueria como rei. Sob a imagem da vinha, predisse a própria morte; sob a
imagem da pedra angular, a Ressurreição. Falou da própria sina e destino como
se já estivessem realizados e assinalou a futilidade de qualquer oposição a Ele,
ainda que O matassem. Eram palavras excepcionais, vindas de um homem que
disse que em três dias seria crucificado. E, ainda assim, revelam, em palavras
claras, aquilo que vagamente sabiam em seus corações. Com uma rapidez
dramática, que os pegou desprevenidos, antecipou o juízo que disse que viria a
exercer sobre todos os homens e nações no último dia. No momento, deixou
de ser o cordeiro de Deus e começou a ser o leão de Judá. Seus últimos dias
findavam-se naquele momento; os dirigentes deveriam decidir agora se O
receberiam ou O rejeitariam. Ele os advertiu de que, por tirarem-lhe a vida,
Seu reino passaria aos gentios:

Por isso vos digo: ser-vos-á tirado o Reino de Deus,


e será dado a um povo que produzirá os frutos dele.
(São Mateus 21,41)

Prosseguindo com a analogia, tirada de Daniel, da pedra que foi esmagada


para pulverizar os reinos da terra, vociferou:

Aquele que tropeçar nesta pedra, far-se-á em pedaços;


e aquele sobre quem ela cair será esmagado.
(São Mateus 21,44)

Há duas imagens: uma é a do homem tropeçando na pedra que está,


passivamente, no chão. Nosso Senhor aqui aludia à rejeição que viria a sofrer
durante o período de humilhação. A outra imagem é a da pedra ativamente
considerada, como, por exemplo, ao cair de um penhasco. Com essa imagem,
referia-se a Si mesmo como glorificado e esmagando toda oposição terrena. A
primeira se referia a Israel no momento presente em que O rejeitou e o motivo
pelo qual Jerusalém, disse Ele, ficaria desolada. A outra se referia aos que O
rejeitaram depois da Ressurreição gloriosa, da Ascensão e do avanço de Seu
reino sobre a terra.
Todos os homens, afirmou, tinham algum contato com Ele. São livres
para rejeitar Sua influência, mas a rejeição é a pedra que os esmaga. Ninguém
pode permanecer indiferente, uma vez que O tenha encontrado. Ele permanece
como o elemento perpétuo no caráter de todo ouvinte. Nenhum mestre no
mundo jamais alegou que rejeitá-lo seria endurecer o coração e tornar o
homem algo pior. Entretanto, eis Aquele que, três dias antes de partir para a
morte, disse que Sua própria rejeição arruinaria o coração. Acreditando-se Nele
ou não, ninguém é o mesmo depois disso. Cristo disse ser a rocha sobre a qual
o homem erigiria as bases de sua vida ou a rocha que os esmagaria. Nunca os
homens simplesmente passaram por Ele. É a presença permanente. Há quem
pense que podem deixar Cristo passar sem ser recebido, mas Ele chamou isso
de negligência fatal. Um esmagamento inevitável se seguiria não só à
negligência ou à indiferença, mas também à oposição formal. Nenhum mestre
que já viveu disse aos que o ouviam que rejeitar suas palavras significaria
condenação. Mesmo aqueles que acreditam que Cristo era apenas um mestre
hesitariam diante desse juízo acerca da recepção de Sua mensagem. Entretanto,
por ser primeiro um salvador, a alternativa era compreensível. Rejeitar o
salvador era rejeitar a salvação, como Nosso Senhor disse a respeito de Si na
casa de Zaqueu. Os que Lhe questionavam a autoridade não tinham dúvidas
quanto ao significado espiritual da parábola e da referência a eles mesmos. As
motivações foram descobertas, o que somente exasperou ainda mais aqueles
cujos desígnios eram maus. Quando o mal é trazido à luz, nem sempre há
arrependimento; às vezes, torna-se ainda mais maléfico.

Naquela mesma hora os príncipes dos sacerdotes


e os escribas procuraram prendê-lo,
mas temeram o povo.
Tinham compreendido que se referia a eles
ao propor essa parábola.
(São Lucas 20,19)
Os bons se arrependem ao tomar conhecimento de seus pecados; os maus
ficam irados quando descobertos. A ignorância não é a causa do mal, como
sustentava Platão; tampouco a educação é a resposta para a remoção do mal.
Esses homens tinham tanto intelecto quanto vontade; tanto conhecimento
quanto intenção. A Verdade pode ser conhecida e odiada; a Bondade pode ser
conhecida e crucificada. Aproximava-se a Hora e, por aquele momento, o
temor do povo deteve os fariseus. Não se podia desencadear a violência contra
Ele até que dissesse: “É chegada a hora”.
36

A ÚLTIMA CEIA

Algumas coisas na vida são lindas demais para se esquecer, mas também na
morte pode haver algo lindo demais para ser esquecido. Daí o Memorial Day,
nos Estados Unidos, um dia para lembrar os sacrifícios dos soldados pela
preservação da liberdade de seu país. Liberdade não é uma herança, mas uma
vida. Uma vez recebida, não segue existindo sem esforço, como uma pintura
antiga. Assim como a vida deve ser nutrida, defendida e preservada, também a
liberdade deve ser readquirida a cada geração. Soldados, todavia, não nascem
para morrer; a morte no campo de batalha é uma interrupção de seu chamado
à vida. No entanto, diferentemente dos demais, Nosso Bendito Senhor veio a
este mundo para morrer. Até mesmo no nascimento, Sua mãe foi lembrada de
que Ele veio para morrer. Nunca nenhuma mãe no mundo viu a morte
estender com tanta avidez os braços a um recém-nascido.
Quando Jesus ainda era apenas um bebê, o velho Simeão, fitando o rosto
Daquele que retrocedeu a eternidade e fez-se jovem, disse que Ele estava
destinado a ser “um sinal de contradição”, ou um sinal que despertaria a
oposição daqueles que são deliberadamente imperfeitos. A mãe, ao ouvir a
palavra “contradição”, quase podia ver os braços de Simeão desvanecerem-se e
em seu lugar aparecerem os braços descarnados da cruz a envolvê-Lo na morte.
Antes que Jesus completasse dois anos de vida, o rei Herodes enviou cavaleiros
marchando como trovões, com espadas reluzentes como relâmpagos, numa
tentativa de decapitar o bebê, enquanto ainda não era forte o bastante para
suportar o peso de uma coroa!
Uma vez que Nosso Divino Senhor veio para morrer, era natural que
houvesse um Memorial de Sua morte! Uma vez que era Deus, e também
homem, e uma vez que nunca falou de Sua morte sem falar da Ressurreição,
não deveria Ele mesmo instituir o Memorial de Sua morte em vez de deixá-lo à
memória casual dos homens? E foi exatamente isso que Ele fez na noite da
Última Ceia. O Memorial Day não foi instituído por soldados que previram a
própria morte, mas o Memorial do Senhor foi instituído, e isso é importante,
não porque Ele morreria como um soldado e seria sepultado, mas porque
voltaria a viver depois da Ressurreição. O Memorial seria o cumprimento da
Lei e dos profetas; seria um memorial em que haveria um Cordeiro sacrificado,
não para comemorar a liberdade política, mas a liberdade espiritual; acima de
tudo, seria o Memorial de uma Nova Aliança.
Uma Aliança ou Testamento é um contrato, um acordo ou um pacto, e a
Escritura refere-se a um pacto entre Deus e o homem. Na Última Ceia, Nosso
Senhor falaria do Novo Testamento, ou Nova Aliança, que é mais bem
compreendida em relação à Antiga. A Aliança de Deus com Israel como nação
foi feita por intermédio de Moisés. Foi selada com sangue, pois este era
considerado um sinal da vida; compreendia-se que aqueles que misturam o
sangue ou imergem as mãos no mesmo sangue tinham comunhão de espírito.
Nas Alianças entre Deus e Israel, Deus prometia bênçãos se Israel permanecesse
fiel. Entre as principais fases da Antiga Aliança estavam a de Abraão com o
direito de primogenitura, a de Davi e a promessa do reinado, e a de Moisés, em
que Deus mostrou poder e amor a Israel ao libertá-lo do Egito e prometer que
Israel seria para Ele um reino de sacerdotes. Quando os hebreus estavam
cativos no Egito, Moisés recebeu instruções para um novo rito.
Depois das pragas, Deus castigou os egípcios ainda mais, a fim de incitá-
los a libertar Seu povo, ferindo os primogênitos de cada casa egípcia. Os
israelitas haviam de salvar-se a si mesmos oferecendo um cordeiro e, depois de
mergulhar hissopo no sangue, aspergindo com ele os umbrais das portas. O
anjo de Deus, vendo o sangue, passaria de largo. O Cordeiro, portanto, era a
Páscoa, ou a passagem do anjo destruidor: ou seja, uma “passagem” que
garantia a segurança. Deus então ordenou sua continuação ano após ano.
Essa instituição do sacrifício do Cordeiro Pascal mencionada no Êxodo
foi seguida pela realização da Aliança com Moisés em que Deus fez de Israel
uma nação; era o nascimento dos israelitas como povo escolhido por Ele. A
Aliança era concluída com diversos sacrifícios. Moisés ergueu um altar com 12
colunas. Tomando o sangue do sacrifício, derramou metade dele sobre o altar e
a outra metade sobre as 12 tribos e sobre o povo com as seguintes palavras:
Eis, disse ele, o sangue da aliança que o Senhor fez convosco
[...]
(Êxodo 24,8)

Ao derramar o sangue no altar, que simbolizava Deus ou uma das partes


da Aliança, e ao aspergir sangue sobre as 12 tribos e sobre o povo, que
representavam a outra parte, ambos eram partícipes do mesmo sangue e
entravam num tipo de união sacramental.
Essa Aliança ou Testamento com Israel tinha o propósito de ser
aperfeiçoada por uma revelação mais completa da parte de Deus. Os profetas
disseram mais tarde que o exílio dos israelitas era uma punição por terem
quebrado a Aliança; no entanto, visto que foram restaurados à Antiga Aliança,
assim haveria uma Nova Aliança ou Testamento que incluiria todas as nações.
Por intermédio do profeta Jeremias, o Senhor falou ao povo:

Eis a aliança que, então,


farei com a casa de Israel — oráculo do Senhor:
Incutir-lhe-ei a minha lei;
gravá-la-ei em seu coração. [...]
(Jeremias 31,33)

A Última Ceia e a Crucifixão deram-se durante a Páscoa, quando o Filho


Eterno do Pai mediou um Novo Testamento ou Aliança, assim como o Antigo
Testamento ou Aliança fora mediado por Moisés. Da mesma forma que Moisés
ratificou o Antigo Testamento com o sangue de animais, também Cristo agora
ratificava o Novo Testamento com o próprio sangue, Ele, que é o verdadeiro
Cordeiro Pascal.

Porque isto é meu sangue, o sangue da Nova Aliança [...]


(São Mateus 26,28)

Tendo chegado a hora de Sua exaltação, pois em menos de 24 horas Ele se


renderia, Jesus reuniu os 12 apóstolos a seu redor. Em um ato sublime,
interpretou o significado de Sua morte e declarou que estava marcando o início
do Novo Testamento ou Aliança ratificada por Sua morte sacrificial. Todo o
sistema mosaico e pré-messiânico do sacrifício estava, assim, cumprido e
concluído. Nenhum fogo criado desceu para devorar a vida que era oferecida
ao Pai, como no Antigo Testamento, pois o fogo seria a glória de Sua
Ressurreição e as chamas do Pentecostes.
Uma vez que a morte era a razão de Sua vinda, Ele instituía então para os
discípulos e para a posteridade um ato memorial de Sua redenção, que
prometera quando disse que era o Pão da Vida.

Tomou em seguida o pão e depois de ter dado graças,


partiu-o e deu-lho, dizendo:
Isto é o meu corpo, que é dado por vós; [...]
(São Lucas 22,19)

Não disse “Isso representa ou simboliza Meu Corpo”, mas “Isto é o meu
corpo” — um corpo que seria partido na Paixão.
Então tomou o vinho nas mãos e disse:

Bebei dele todos, porque isto é meu sangue,


o sangue da Nova Aliança,
derramado por muitos homens
em remissão dos pecados.
(São Mateus 26,27-28)

Sua morte iminente, na tarde seguinte, foi posta diante deles de forma
simbólica ou não sangrenta. Na Cruz, Ele morreria pela separação de Seu
sangue e corpo. Daí não ter consagrado o pão e o vinho juntos, mas separados,
para anunciar Sua morte pela separação do corpo e do sangue. Nesse ato,
Nosso Senhor era o que seria na Cruz no dia seguinte: ao mesmo tempo,
sacerdote e vítima. No Antigo Testamento e entre os pagãos, a vítima, por
exemplo um bode ou uma ovelha, era separada pelo sacerdote que o oferecia.
Nesta ação eucarística e na Cruz, Ele, o sacerdote, oferecia a Si mesmo;
portanto, era também a Vítima. Desste modo, cumprir-se-iam as palavras do
profeta Malaquias:

Porque, do nascente ao poente,


meu nome é grande entre as nações
e em todo lugar se oferecem ao meu nome
o incenso, sacrifícios e oblações puras.
Sim, grande é o meu nome entre as nações
— diz o Senhor dos exércitos.
(Malaquias 1,11)

Em seguida veio o mandamento divino de prolongar o Memorial de Sua


morte:

Fazei isto em memória de mim.


(São Lucas 22,19)

Repeti! Renovai! Estendei pelos séculos o sacrifício oferecido pelos


pecados do mundo!
Por que Nosso Bendito Senhor usou pão e vinho como elementos desse
memorial? Antes de tudo, porque não há outras duas substâncias na natureza
que simbolizem melhor a união do que pão e vinho. Assim como o pão é feito
de uma multiplicidade de grãos de trigo, e o vinho é feito de uma
multiplicidade de uvas, os muitos que creem são um em Cristo. Em segundo
lugar, não há outras duas substâncias na natureza que tenham de sofrer mais
para tornar-se o que são senão o pão e o vinho. O trigo tem de passar pelos
rigores do inverno, submeter-se ao calvário da moenda e então sujeitar-se à
depuração do fogo antes de se tornar pão. As uvas, por sua vez, têm de
submeter-se ao Getsêmani de uma prensa e têm sua vida esmagada por elas a
fim de se tornarem vinho. Assim, de fato simbolizam a Paixão e os sofrimentos
de Cristo, e a condição da Salvação, pois Nosso Senhor disse que, se não
morrermos, não poderemos viver Nele. Uma terceira razão é que não há duas
outras substâncias na natureza que tenham tanta tradição em alimentar o
homem quanto o pão e o vinho. Ao levarem esses elementos ao altar, os
homens levam a si mesmos. Quando pão e vinho são tomados, transformam-se
no corpo e no sangue do homem. Mas, quando o Senhor tomou o pão e o
vinho, Ele os transformou Nele mesmo.
Todavia, pelo fato de o Memorial de Nosso Senhor não ter sido instituído
pelos discípulos, mas por Ele mesmo, e porque Ele não podia ser vencido pela
morte — ao contrário, tornaria a levantar-se dos mortos em novidade de vida
—, Cristo desejava que, assim como Ele aguardava ansiosamente Sua morte
redentora na Cruz, também os cristãos de todas as eras, até a consumação dos
séculos, rememorassem a Cruz. A fim de que não reencenassem o Memorial sem
zelo nem capricho, deu-lhes a ordem de relembrar e anunciar Sua morte
redentora até que voltasse! O que pediu aos apóstolos foi que anunciassem no
futuro o Memorial de Sua Paixão, morte e Ressurreição. Ele olhava para a
frente, em direção à Cruz; os apóstolos olhavam, e continuam a olhar desde
então na Missa, para trás, para Sua morte redentora. Assim, como disse São
Paulo, “havia de proclamar a morte do Senhor até que Ele venha” julgar o
mundo. O Senhor partiu o pão para anunciar que Seu próprio corpo humano
seria partido e também para mostrar que era uma Vítima voluntária. Foi
partido pela rendição voluntária antes que os executores o partissem pela
crueldade voluntária.
Quando os apóstolos e a Igreja, mais tarde, repetissem o Memorial, o
Cristo, que nasceu da Virgem Maria e padeceu sob Pôncio Pilatos, estaria
glorificado nos céus. Naquela Quinta-Feira Santa, Nosso Senhor não lhes dera
outro sacrifício que não Seu único Ato Redentor na Cruz; mas deu uma nova
forma de presença. Não seria um novo sacrifício, pois há apenas um; deu uma
nova presença de Seu sacrifício único. Na Última Ceia, Nosso Senhor agiu de
maneira independente dos apóstolos ao apresentar o sacrifício sob as espécies
do pão e do vinho. Depois da Ressurreição e Ascensão, e em obediência ao
mandamento divino, Cristo ofereceria Seu sacrifício ao Pai Celestial por meio
deles ou dependendo deles. Sempre que o sacrifício de Cristo é celebrado na
Igreja, há uma aplicação a um novo momento no tempo e uma nova presença
no espaço do único sacrifício do Cristo que está agora na glória. Em obediência
a seu mandamento, os discípulos estariam representando de maneira não
sangrenta aquilo que Ele apresentou ao Pai no sacrifício de sangue do Calvário.
Depois de transformar o pão em Seu Corpo e o vinho em Seu sangue:
partiu-o e deu-lho [...]
(São Marcos 14,22)

Por essa comunhão foram feitos um com Cristo, para serem oferecidos
com Ele, Nele e por Ele. Todo amor almeja unidade. Assim como o ápice do
amor na ordem humana é a unidade de marido e mulher na carne, também a
unidade na ordem divina é a unidade da alma e Cristo na comunhão. Quando
os apóstolos, e posteriormente a Igreja, obedecem às palavras de Nosso Senhor
para renovar o Memorial e comer e beber Dele, o Corpo e o Sangue não seriam
aqueles do Cristo físico então diante deles, mas aquele do Cristo glorificado no
céu que continuamente intercede pelos pecadores. A salvação da Cruz, eterna e
soberana, é assim aplicada e atualizada ao longo do tempo pelo Cristo celestial.
Quando Nosso Senhor, depois de ter transformado pão e vinho em seu
Corpo e Sangue, disse aos apóstolos que comessem e bebessem, Ele estava
fazendo à alma do homem o que a comida e a bebida fazem ao corpo. A menos
que sejam sacrificados ao serem arrancados das raízes, os vegetais não podem
alimentar ou comungar com o homem. O sacrifício do que é mais ínfimo deve
preceder a comunhão com o que é mais elevado. Primeiro Sua morte foi
misticamente representada; depois, seguiu-se a comunhão. O mais baixo se
transforma no mais alto; os elementos químicos em vegetais; os vegetais em
animais; elementos químicos, vegetais e animais em homem; e o homem em
Cristo pela comunhão. Os seguidores de Buda não extraem força de sua vida,
mas apenas de seus escritos. Os escritos do cristianismo não são tão
importantes quanto a vida de Cristo, que, vivendo em glória, derrama sobre
seus seguidores os benefícios de Seu sacrifício.
A única nota que insiste em soar ao longo de Sua vida foi a morte e a
glória. Foi sobretudo por isso que Ele veio. Assim, na noite anterior à Sua
morte, Ele deu aos apóstolos algo que, ao morrer, ninguém mais poderia dar:
deu a Si mesmo. Só a sabedoria divina poderia ter concebido tal memorial!
Humanos, entregues à própria sorte, poderiam ter estragado o drama de Sua
Redenção. Com a morte do Senhor, poderiam ter feito duas coisas aquém do
Caminho da Divindade. Poderiam ter considerado Sua morte redentora um
drama apresentado uma vez na história, como o assassinato de Lincoln. Nesse
caso, teria sido apenas um incidente, e não uma Redenção — o fim trágico de
um homem, não a salvação da humanidade. Lamentavelmente, esse é o único
modo como muitos olham para a Cruz de Cristo, esquecendo-se da
Ressurreição e da efusão dos méritos da Cruz no Ato Memorial que Ele
instituiu e ordenou. Nesse caso, Sua morte seria apenas uma espécie de
Memorial Day e nada mais.
Ou poderiam tê-la considerado um drama representado uma vez, mas que
deve ser relembrado apenas por meio da meditação em seus detalhes. Nesse
caso, voltariam e leriam os relatos dos críticos do drama que vivenciavam à
época, a saber, Mateus, Marcos, Lucas e João. Essa seria apenas uma lembrança
literária de Sua morte, assim como Platão registra a morte de Sócrates, e teria
feito a morte de Nosso Senhor igual à morte de qualquer outro homem.
Nosso Senhor jamais disse a ninguém que escrevesse acerca de Sua
Redenção; todavia, com efeito, disse aos apóstolos que a renovassem,
aplicassem, celebrassem e estendessem pela obediência a Seus mandamentos
dados na Última Ceia. Ele queria que o drama do Calvário fosse encenado não
apenas uma vez, mas por todas as eras à sua própria escolha. Não queria que os
homens fossem leitores da história da Redenção, mas atores dela, oferecendo
seu corpo e sangue junto com o Dele na reencenação do Calvário, dizendo
com Ele: “Este é meu corpo e este é meu sangue”; morrendo para a natureza
inferior a fim de viver para a graça; dizendo que não se importam com a
aparência nem com as espécies de suas vidas como, por exemplo,
relacionamentos familiares, trabalho, afazeres, aparência física ou talentos, mas
que seu intelecto, sua vontade e sua substância — tudo que verdadeiramente
eram — transformar-se-iam em Cristo; que o Pai celestial, ao baixar os olhos
sobre eles, os veria no Filho, veria o sacrifício deles amalgamado com o
sacrifício de Cristo, as mortificações deles incorporadas à morte de Cristo, de
modo que, enfim, pudessem participar de Sua glória.
37

O SERVO DOS SERVOS

Dentro do breve intervalo de cinco dias aconteceram duas das mais famosas
abluções da história. No sábado anterior à Sexta-Feira Santa, uma Maria
penitente ungiu os pés de Nosso Divino Salvador; na quinta-feira da semana
seguinte, Ele lavou os pés dos discípulos. Sem mancha por ser o Salvador, seus
pés foram ungidos com nardo fragrante, mas havia ainda tanta poeira
mundana grudada nos pés dos discípulos que tiveram de ser lavados.

Antes da festa da Páscoa,


sabendo Jesus que chegara a sua hora
de passar deste mundo ao Pai [...].
(São João 13,1)

Sua mente voltou ao momento em que o Pai pôs todas as coisas em suas
mãos e o Filho saiu Dele. A hora de retornar, contudo, havia chegado. A
primeira parte de Seu ministério foi entre “os que não O receberam”; os
momentos finais seriam com aqueles “que O receberam”, aos quais asseguraria
que os amou “até o fim”.
A hora da partida é sempre uma hora de afeição ativa. Quando o marido
deixa a mulher para sair em uma longa viagem, há mais atos ternos de devoção
do que na presença contínua em casa. Muitas vezes Nosso Senhor Santíssimo
se dirigira aos apóstolos com as palavras: “meus irmãos”, “minhas ovelhas”,
“meus amigos”, “meus”, mas nessa hora Ele os chamou de “meus queridos”,
como se sugerisse uma espécie de relacionamento mais afetuoso. Estava prestes
a deixar o mundo, mas os apóstolos deveriam ficar, pregar Seu Evangelho e
instituir Sua Igreja. A afeição por eles era tamanha que nem todas as glórias do
céu ao abrir-se para recebê-Lo poderiam, por um momento, perturbar o amor
cálido e compassivo que sentia por eles.
Quanto mais próximo Ele ficava da Cruz, mais os apóstolos discutiam
entre si.

Surgiu também entre eles uma discussão: qual deles seria o


maior.
(São Lucas 22,24)

Na mesma hora em que lhes deixaria o memorial de seu amor, quando


Seu coração afetuoso seria trespassado pela traição de Judas, os apóstolos
demonstraram desdém pelo Seu sacrifício em uma disputa vã a respeito da
precedência. Cristo olhou para a Cruz; eles debatiam como se isso não
significasse renúncia. A ambição cegou-os a todas as Suas lições a respeito de
domínio, pois pensavam que o homem era grande por exercer autoridade. Essa
era a ideia de grandeza entre os gentios, a qual deveriam substituir pelo serviço
ilimitado ao próximo.

E Jesus disse-lhes: Os reis dos pagãos dominam como senhores,


e os que exercem sobre eles autoridade chamam-se benfeitores.
Que não seja assim entre vós; mas o que entre vós é o maior,
torne-se como o último; e o que governa seja como o servo.
Pois qual é o maior: o que está sentado à mesa ou o que serve?
Não é aquele que está sentado à mesa?
Todavia, eu estou no meio de vós, como aquele que serve.
(São Lucas 22,25-27)

Nosso Senhor admitiu que, em certo sentido, Seus apóstolos eram reis;
também não lhes negou o instinto pela aristocracia, mas o instinto deles
deveria ser a nobreza da humildade; o maior tornando-se o menor. Levar essa
lição para casa. Recordou-os da posição que Ele mesmo ocupava como Mestre
e Senhor da mesa — e, contudo, alguém em que se tinham apagado todos os
traços de superioridade. Disse-lhes, muitas vezes, que não veio para ser servido,
mas para servir. Carregar o fardo de outros e, especialmente, a culpa foi o
motivo de se tornar “o servo sofredor” predito por Isaías. As palavras anteriores
sobre fazerem-se servos, nesse momento, foram reforçadas por Ele pelo
exemplo:

levantou-se da mesa, depôs as suas vestes e,


pegando duma toalha, cingiu-se com ela.
Em seguida, deitou água numa bacia e
começou a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los
com a toalha com que estava cingido.
(São João 13,4-5)

A minúcia do relato de cada ação de Nosso Senhor é impressionante, visto


que são mencionadas nada menos que sete ações distintas: levantar, depor as
vestes, pegar a toalha, cingir-se com ela, deitar água na bacia, lavar os pés e
enxugá-los com a toalha. Alguém poderia imaginar um rei terreno, antes de
retornar de uma província distante, executando um serviço humilde a um de
seus súditos, mas nunca se poderia dizer que ele estaria fazendo isso porque
estava prestes a voltar para a capital. Entretanto, Nosso Bendito Senhor é
descrito aqui a lavar os pés dos discípulos porque haveria de voltar para o Pai.
Ensinou a humildade por preceito, “todo aquele que se exaltar será humilhado,
e todo aquele que se humilhar será exaltado” (São Lucas 14,11); por parábolas,
como na história do fariseu e do publicano; pelo exemplo, como ao tomar a
criança em seus braços; e agora por condescendência.
A cena era um resumo da Encarnação. Levantando-se do banquete
celestial em união íntima de natureza com o Pai, depôs as vestes de glória,
cingiu sua divindade da toalha da natureza humana que recebeu de Maria;
derramou a tina da regeneração que é seu sangue derramado na Cruz para
redimir os homens e começou a lavar as almas de seus discípulos e seguidores
pelos méritos de sua morte, Ressurreição e Ascensão. São Paulo exprimiu isso
de maneira belíssima:

Sendo ele de condição divina,


não se prevaleceu de sua igualdade com Deus,
mas aniquilou-se a si mesmo,
assumindo a condição de escravo
e assemelhando-se aos homens.
E, sendo exteriormente reconhecido como homem,
humilhou-se ainda mais,
tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz.
(Filipenses 2,6-8)

Os discípulos ficam sem ação, perdidos em perplexidade muda. Quando a


humildade vem do Deus-homem como na ocasião, é óbvio que será pela
humildade que os homens retornarão a Deus. Cada um teria tirado os pés da
bacia não fosse o amor que invadia seus corações. Essa obra de
condescendência procedeu em silêncio, até que o Senhor chegasse a Pedro, que
sentiu intensamente a inversão de valores.

Mas Pedro lhe disse: Senhor, queres lavar-me os pés!...


(São João 13,6)

Pedro tinha dificuldade com a humilhação que a cruz demandava.


Quando Nosso Senhor, em Cesareia de Filipe, disse que iria a Jerusalém para
ser crucificado, Pedro protestou diante da repugnância de tal humilhação. O
mesmo estado de espírito aparece novamente. Pedro combinava, por um lado,
o reconhecimento verdadeiro do magistério de Nosso Senhor Santíssimo e, por
outro, a resolução de que a glória deveria ser alcançada sem sofrimento. A lição
mais difícil que esse homem confiante tinha de aprender era ainda ter algo a
aprender. Há momentos em que o homem pode deixar correr sobre o rosto
lágrimas penitentes, e as lágrimas de Pedro jorrariam em poucas horas. No
entanto, tais lágrimas só são derramadas quando o homem deixa Nosso Senhor
lavá-lo e purificá-lo do pecado. Então, Jesus disse a Pedro:

O que faço não compreendes agora, mas compreendê-lo-ás em


breve.
(São João 13,6)

Pedro não pôde compreender tal amor e condescendência até a plena


humilhação na Cruz ser coroada por Sua Ressurreição e pelo dom de Seu
Espírito. Antes, ele exprobou a cruz; nesse momento, censurou o exemplo de
humilhação que levou Nosso Senhor à cruz. O esclarecimento de muitos
mistérios pertence ao futuro; agora, conhecemos somente em parte. Um
homem pode fazer e dizer muitas coisas confusas para a mente de uma criança,
quanto mais o homem é confundido pelas ações do Deus Infinito! O homem
humilde esperará, pois é o último ato que coroa a peça.
O divino Mestre não partilhou o conhecimento com Pedro e depois
pediu que se submetesse. Pediu que se submetesse, com a promessa de que
tudo seria esclarecido mais tarde. A luz se tornou mais clara assim que ele a
seguiu. Se tivesse dado as costas a ela, as trevas teriam aumentado. O Mestre
lavou os pés do discípulo, embora Pedro ainda protestasse, como a mãe lava o
rosto do filho ainda que a criança reclame. A mãe não espera o filho entender o
que ela faz, mas completa a tarefa por amor. A árvore não compreende a poda,
nem a terra compreende o arado, nem Pedro compreendia o mistério dessa
grande humilhação, uma vez que disse com veemência:

Jamais me lavarás os pés!...


Respondeu-lhe Jesus: Se eu não tos lavar,
não terás parte comigo.
(São João 13,8)

Nosso Senhor recordou a Pedro que a verdadeira humildade não deve


objetar à Sua humilhação, mas, ao contrário, deve reconhecer a premência de
libertar a humanidade do pecado. Por que se opor ao Filho de Deus lavar a
sujeira externa dos pés quando Ele, que é Deus, já se humilhara para lavar a
imundície das almas? Pedro ignorava a própria necessidade interna de redenção
e tinha como pretexto reclamar a humilhação que era trivial, se comparada à
encarnação. Era humilhação maior para o Verbo feito Carne cingir-se de uma
toalha do que o fora ser envolto em faixas e posto em uma manjedoura?
Nosso Senhor prosseguiu a dizer para Pedro que a condição de
comunhão, amizade e companheirismo com ele era ser lavado de maneira mais
efetiva do que a lavagem dos pés. A recusa em aceitar a purificação divina é a
exclusão da intimidade com Cristo. Não compreender que o amor divino
significa sacrifício era apartar-se do Mestre. A ideia de não ter parte com Nosso
Senhor o humilhou de maneira indescritível, por isso empenhou não só os pés,
mas todo o seu ser ao Mestre:

Senhor, não somente os pés, mas também as mãos e a cabeça.


(São João 13,9)

Não só os pés estavam sujos, mas até mesmo os atos de suas mãos e os
pensamentos de sua cabeça precisavam ser purificados. Em vez de persuadir-se
de que o pecado não tinha importância e que um senso de culpa era anormal,
Pedro, diante da Inocência, praticamente, bradou: “Impuro! Impuro!”
Quando Nosso Senhor terminou de lavar os pés dos apóstolos, pôs suas
vestes, sentou-se e ensinou-lhes a lição de que, se Ele, que era o Senhor e
Mestre, renunciara a Si mesmo e até à própria vida, então, eles, que eram seus
discípulos, deveriam fazer o mesmo.

Sabeis o que vos fiz?


Vós me chamais Mestre e Senhor,
e dizeis bem, porque eu o sou.
Logo, se eu, vosso Senhor e Mestre,
vos lavei os pés,
também vós deveis lavar-vos os pés uns aos outros.
Dei-vos o exemplo para que,
como eu vos fiz, assim façais também vós.
Em verdade, em verdade vos digo:
o servo não é maior do que o seu Senhor,
nem o enviado é maior do que aquele que o enviou.
(São João 13,12-16)
Lavara os pés até mesmo de Judas! No entanto, embora cumprisse a tarefa
de um escravo servil, ainda era “Mestre e Senhor”. Vez alguma, enquanto
esteve na terra, os apóstolos referiram-se a ele como Jesus, embora fosse o nome
dado pelo anjo significando “salvador”. Quando pediu por mais vocações para
Sua missão, Ele lhes disse para orar ao “Senhor da messe” (São Mateus 9,38);
quando pediu o burrico no domingo de Ramos, justificou o pedido ao dizer
“O Senhor precisa dele” (São Lucas 19,31); quando planejou utilizar o cômodo
superior, foi o “Senhor” que expressou essa necessidade (São Lucas 22,11-12).
Os apóstolos também o chamavam de “Senhor”, como Pedro o fez ao afogar-
se, como Tiago e João o fizeram quando buscaram destruir os samaritanos,
assim como o fariam poucos minutos depois ao perguntar “Sou eu, Senhor?”
(São Mateus 26,22). Na Páscoa diriam “O Senhor ressuscitou”. Tomé
posteriormente o chamaria de “Senhor”; da mesma maneira o faria João ao
reconhecer Nosso Senhor na praia.
Por outro lado, sempre que os evangelhos descrevem Nosso Senhor,
referem-se a Ele como “Jesus”; por exemplo, “Jesus foi tentado pelo demônio” e
“Jesus ensinou”. Os evangelhos, escritos por inspiração do Espírito Santo,
utilizaram o nome que se tornou demasiado glorioso quando forjou a salvação
e ascendeu aos céus. Daí em diante, Seu nome, com frequência, é referido
como “o Santo Nome de Jesus”.

Por isso Deus o exaltou soberanamente


e lhe outorgou o nome
que está acima de todos os nomes,
para que ao nome de Jesus se dobre
todo joelho no céu, na terra e nos infernos.
E toda língua confesse,
para a glória de Deus Pai,
que Jesus Cristo é Senhor.
(Filipenses 2,9-11)
38

JUDAS

Um dia nasceu um bebê em Queriote. Os pais, ansiando pela promessa de um


grande homem, chamaram-no de “Louvor”. Amigos e parentes trouxeram
presentes em tributo à nova vida que nasceu no mundo. Não muito longe dali,
outro bebê nasceu na vila de Belém. Pastores e Sábios levaram presentes a esta
Criança cujo nome era “Salvador”. Muitos anos depois, o bebê de Belém
encontrou o bebê de Queriote; Nosso Divino Senhor chamou Judas para ser
apóstolo.
Era o único de Judá no grupo apostólico, enquanto todos os demais eram
da Galileia. É bem provável que, por causa do talento para a administração
comum entre os de sua região, Judas fosse naturalmente mais inclinado a ser o
tesoureiro do grupo apostólico do que qualquer galileu. Usar um homem
naquilo que ele faz de melhor é protegê-lo, se é que isso é possível, da apostasia
e da insatisfação. Ao mesmo tempo, as tentações da vida muitas vezes vêm
daquilo para o que se tem maior aptidão. Deve haver uma falha interna antes
que haja uma externa. A única falha observada em Judas, ao menos no que diz
respeito aos registros, era o pecado da avareza. Nele, esta era um tipo de pecado
arraigado, pois, por causa dela, como de uma fonte suja, jorrava o pecado, de
tão grande que era:

Seria melhor para esse homem que jamais tivesse nascido!


(São Mateus 26,24)

Uma leitura superficial da vida de Judas baseia o início da traição na noite


da Última Ceia. Não é bem assim, pois o primeiro registro da traição encontra-
se quando Nosso Bendito Senhor anunciou-se a Si mesmo como o Pão da
Vida. O início e o fim do ato de traição de Judas estavam associados ao Cristo
como o Pão da Vida. O primeiro conhecimento da traição não está quando
Nosso Senhor instituiu o Memorial de Sua morte na Última Ceia, mas quando
a prometeu no início de Sua vida pública. Nesse incidente da vida divina que
se tornava alimento dos homens, estava inserido o primeiro registro da traição
de Judas.

Pois desde o princípio Jesus sabia


quais eram os que não criam
e quem o havia de trair.
(São João 6,64)

O ponteiro do relógio já apontava a hora de Sua morte; a partir daquele


momento, Nosso Bendito Senhor suportou a presença daquele que o haveria
de trair. O anúncio do Pão da Vida era o início do desencanto de Judas; era de
outro tipo de Reino que Nosso Senhor estava falando, diferente daquele que
Judas esperava. Essa insatisfação de Judas deve ter aumentado enormemente no
dia seguinte, quando descobriu que Nosso Bendito Senhor recusou-se a tornar-
se rei e fugiu sozinho para as montanhas.
No sexto dia antes da Crucifixão, foi oferecida uma grande ceia em
Betânia em que Marta foi servida e Lázaro esteve à mesa com Ele. Maria,
percebendo o futuro melhor do que qualquer outro convidado e o quanto Ele
estava próximo da morte, ungiu-O em preparação para o sepultamento.
Quando viu o bálsamo sendo derramado, Judas imediatamente pôs um preço
nele. Era a semana de estabelecer preços, pois em poucos dias ele avaliaria a
vida de Nosso Senhor em trinta moedas de prata. Agora, avaliou o bálsamo em
mais ou menos o salário de trezentos dias de trabalho, pois naquela época a
média por um dia de trabalho era de um denário. Escreve São João:

Mas Judas Iscariotes, um dos seus discípulos,


aquele que o havia de trair, disse:
Por que não se vendeu este bálsamo por trezentos denários
e não se deu aos pobres?
(São João 12,4-5)

Visto que a inveja é descrita como o tributo que a mediocridade paga ao


gênio, muitos críticos podem ser descritos como homens fracassados. Judas era
materialista demais para se preocupar com a beleza do ato. Não viu que
algumas ofertas são tão sagradas que não se pode estimar-lhes o valor. De fato,
era estreita a relação entre a cobiça e a traição contra Cristo. A última
geralmente é a consequência da primeira. Judas sabia apenas que a traição ao
Mestre estava próxima; Maria sabia que a morte do Mestre estava próxima.
Vestindo a máscara da caridade, Judas fingiu irritar-se com o desperdício de um
perfume tão precioso, mas João contou o motivo dessa declaração:

Dizia isso não porque ele se interessasse pelos pobres,


mas porque era ladrão e, tendo a bolsa,
furtava o que nela lançavam.
(São João 12,6)

Enquanto Maria, em sua devoção, oferecia de maneira inconsciente honra


ao morto, Judas, em seu egoísmo, provocava-lhe de maneira consciente a morte
propriamente dita. Grande contraste entre a bolsa com dinheiro de Judas e o
frasco de alabastro de Maria; entre as trinta moedas de prata e os trezentos
denários; entre a verdadeira liberalidade e o interesse hipócrita pelos pobres.
Judas tornou-se porta-voz de todos aqueles que pelos séculos protestariam
contra a ornamentação do culto cristão e sentiriam que, quando o melhor do
ouro ou das joias fossem dadas ao Deus que as criou, havia alguma ofensa aos
pobres — não porque estivessem interessados nos pobres, mas porque tinham
inveja daquela riqueza. É bem possível que, se tivesse os trezentos denários,
Judas não os daria aos pobres.
Nosso Senhor rumava para o túmulo. Não haveria chance de ungir Seu
corpo físico novamente, mas haveria uma chance de servir aos pobres. Quando
Nosso Bendito Senhor mais uma vez falou abertamente de Sua morte, dizendo
que Maria O estava ungindo para o sacrifício, Judas sabia que, se tinha de tirar
proveito de sua associação com Jesus, teria de fazê-lo logo. Num cataclismo,
algo há de ser salvo.
Então um dos Doze, chamado Judas Iscariotes,
foi ter com os príncipes dos sacerdotes e perguntou-lhes:
Que quereis dar-me e eu vo-lo entregarei.
Ajustaram com ele trinta moedas de prata.
E desde aquele instante, procurava
uma ocasião favorável para entregar Jesus.
(São Mateus 26,14-16)

Oitocentos anos antes, Zacarias profetizara:

Dai-me o meu salário, se o julgais bem,


ou então retende-o!
Eles pagaram-me apenas trinta moedas
de prata pelo meu salário.
(Zacarias 11,12)

Era simbólico que Nosso Senhor fosse vendido em troca do dinheiro do


templo destinado à compra das vítimas dos sacrifícios; mais simbólico ainda
era que Aquele que assumiu a forma de Servo fosse vendido ao preço de um
escravo.
Enfim, na celebração da Páscoa, depois de repreender as ambições dos
discípulos e ensinar humildade lavando-lhes os pés, Nosso Bendito Senhor
anunciou a traição. Assim como a primeira cena do drama — quando o Pão da
Vida foi prometido — marcou o início da traição, assim também agora o
Cenáculo e o partir do pão marcavam seu final.

Durante a ceia, disse:


Em verdade vos digo:
um de vós me há de trair.
Com profunda aflição,
cada um começou a perguntar:
Sou eu, Senhor?
(São Mateus 26,21-22)
Depois de lavar os pés dos apóstolos, sabendo que o traidor já estava entre
eles, disse o Senhor:

Ora, vós estais puros,


mas nem todos!...
(São João 13,10)

Uma coisa era ser escolhido como apóstolo; outra era ser eleito para a
Salvação por meio da conformidade a suas obrigações. Entretanto, para que os
apóstolos soubessem que esta heresia, cisma ou queda em suas fileiras não era
inesperada, o Senhor citou o Salmo 40, a fim de mostrar que se tratava do
cumprimento da profecia:

Aquele que come o pão comigo


levantou contra mim o seu calcanhar (Salmo 40,10).
Desde já vo-lo digo, antes que aconteça,
para que, quando acontecer,
creiais e reconheçais quem sou eu.
(São João 13,18-19)

A referência era ao que Davi sofreu nas mãos de Aquitofel, cuja


deslealdade é agora revelada como figura daquilo que o Filho Real de Davi
sofreria. A parte mais desprezível do corpo, o calcanhar, em ambos os exemplos
foi descrito como infligindo a ferida. No livro de Gênesis, profetizou-se que o
calcanhar da Semente da Mulher esmagaria a cabeça da serpente, ou o diabo.
Parecia agora que o diabo teria por ora sua vingança, usando o calcanhar para
infligir a ferida na semente da mulher — o Senhor. Em outra ocasião, disse
Nosso Senhor:

e os inimigos do homem serão


as pessoas de sua própria casa.
(São Mateus 10,36)
Somente alguém que sofreu tal traição dentro da própria casa pode ao
menos entender a tristeza na alma do Salvador naquela noite. Todo bom
exemplo, conselho, companheirismo e inspiração são inúteis para aqueles que
desejam fazer o mal ou “vender-se” e tendem à destruição. Uma das expressões
mais poderosas usadas nos lamentos de Nosso Senhor foi usada para descrever
seu amor por Judas e a danação livremente escolhida por este:

Dito isso, Jesus ficou perturbado em seu espírito


e declarou abertamente:
Em verdade, em verdade vos digo:
um de vós me há de trair!...
(São João 13,21)

O “um de vós” era alguém cujos pés o Senhor lavara, alguém a quem Ele
chamou para o ofício apostólico de espalhar Sua Igreja por todo o mundo após
a vinda de Seu Espírito, alguém cuja presença Ele suportou com tanta
paciência que nenhum dos demais apóstolos sabia de quem se tratava.

Os discípulos olhavam uns para os outros,


sem saber de quem falava.
(São João 13,22)

Judas deve ter sido bem esperto para ocultar sua torpeza e ganância do
conhecimento dos 11. Nosso Senhor, por outro lado, deve ter tratado Judas
com a mesma bondade amorosa dedicada aos demais, para manter oculto o
pecado dele. Nada podia ter perturbado sua paz de alma mais do que saber que
um deles desapontou o Príncipe da Paz.

Com profunda aflição,


cada um começou a perguntar:
Sou eu, Senhor?
(São Mateus 26,22)
Provavelmente, o único apóstolo que não perguntou “Sou eu?” foi João,
pois naquele momento ele reclinava a cabeça sobre o peito de Nosso Divino
Senhor. João sempre se orgulhou desse fato e descrevia a si mesmo como
“aquele a quem Jesus amava”. Pedro também, entretanto, possivelmente
partilhava de alguma dúvida quanto a ser ele o traidor, pois pediu a João que
perguntasse a Nosso Senhor “Quem é?”. Quando perguntado, Nosso Senhor
respondeu:

É aquele a quem eu der o pão embebido.


Em seguida, molhou o pão
e deu-o a Judas, filho de Simão Iscariotes.
(São João 13,26)

Em toda a primeira parte da ceia de Páscoa, tanto Nosso Senhor quanto


Judas estiveram mergulhando as mãos na mesma travessa de vinho e frutos. O
próprio fato de que Nosso Senhor escolheu o pão como símbolo da traição
pode ter lembrado Judas do Pão prometido em Cafarnaum. Humanamente
falando, era esperado que Nosso Senhor esbravejasse ao denunciar Judas, mas,
ao contrário, numa última tentativa de salvá-lo, Jesus usou o pão da
comunhão.

Respondeu ele:
Aquele que pôs comigo a mão no prato, esse me trairá.
O Filho do Homem vai, como dele está escrito.
Mas ai daquele homem por quem o Filho do Homem é traído!
Seria melhor para esse homem que jamais tivesse nascido!
(São Mateus 26,23-24)

Na presença da Divindade, ninguém pode ter certeza da própria


inocência, e todos perguntam: “Sou eu?”. Todo homem é um mistério para si
mesmo, pois sabe que dentro de seu coração encontram-se, contidas e
dormentes, serpentes que a qualquer momento podem picar o próximo com
seu veneno, ou até mesmo a Deus. Um deles estava certo de ser o traidor, e, no
entanto, ninguém estava certo de não o ser. No caso de Judas, embora Nosso
Senhor revelasse o conhecimento da traição, ainda havia a determinação de
fazer o mal. Não obstante a revelação do conhecimento do crime e do fato de
que seu mal foi revelado, ele não se envergonhava de consumá-lo em toda a sua
feiura. Alguns homens viram as costas ao horror de seus pecados, quando estes
são postos às claras diante deles. Podem até recuar de “suas loucuras
desmedidas” quando tal conduta é descrita como luxúria e imoralidade. Mas
neste caso Judas via sua deslealdade descrita em toda a sua deformidade e
praticamente disse na linguagem de Nietzsche: “Mal, sê o meu bem”. Nosso
Senhor deu um sinal a Judas. Em resposta à pergunta dos apóstolos — “Sou
eu?” —, respondeu Jesus:

É aquele a quem eu der o pão embebido.


Em seguida, molhou o pão
e deu-o a Judas,
filho de Simão Iscariotes.
(São João 13,26)

Judas estava livre para fazer o mal, como o comprova o remorso que
mostrou posteriormente. Assim também Cristo estava livre para fazer dessa
traição a condição de Sua Cruz. Os homens maus parecem ir contra a
economia de Deus e ser um fio errante na tapeçaria da vida, mas todas se
encaixam de alguma maneira no Plano Divino. O vento impetuoso sopra de
céus escuros, e em algum lugar há um veleiro para domá-lo e usá-lo a serviço
do homem.
Quando Nosso Senhor disse

É aquele a quem eu der o pão embebido


Aquele que pôs comigo a mão no prato,

Ele estava, na verdade, fazendo um gesto de amizade. Oferecer um


bocado parece ter sido um antigo costume grego e oriental. Sócrates disse que,
em todos os casos, dar um bocado ao próximo à mesa era uma marca de favor.
Nosso Senhor manteve aberta a Judas a oportunidade de arrepender-se, como
mais tarde o faria no Jardim do Getsêmani. Todavia, embora Nosso Senhor
mantivesse a porta aberta, Judas não entraria. Ao contrário, entraria Satanás.

Logo que ele o engoliu,


Satanás entrou nele.
Jesus disse-lhe, então:
O que queres fazer, faze-o depressa.
(São João 13,27)

Satanás só pode possuir vítimas voluntárias. A marca da graça e da


amizade estendida pela Vítima deveria ter levado Judas ao arrependimento. O
pão deve ter queimado seus lábios, como as trinta moedas de prata mais tarde
queimariam suas mãos. Poucos minutos antes, as mãos do Filho de Deus
tinham lavado os pés de Judas; agora, as mesmas mãos divinas tocam os lábios
dele com um pedaço de pão; em poucas horas, os lábios de Judas beijarão os
lábios de Nosso Senhor no ato final de traição. O Mediador Divino, sabendo
tudo que lhe sobreviria, deu a ordem a Judas para que abrisse a cortina da
tragédia do Calvário. O que Judas estivesse para fazer, que o fizesse logo. O
Cordeiro de Deus estava pronto para o sacrifício.
A graça divina não identificou o traidor, pois Nosso Senhor escondeu dos
apóstolos o fato de que o traidor era Judas. O mundo que ama divulgar
escândalos — mesmo aqueles que não são verdadeiros — é aqui virado de
cabeça para baixo, no fato de que até o que era verdadeiro foi ocultado.
Quando os outros viram Judas sair, supuseram que era por causa de uma
missão de caridade.

Mas ninguém dos que estavam à mesa


soube por que motivo lho dissera.
Pois, como Judas tinha a bolsa,
pensavam alguns que Jesus lhe falava:
Compra aquilo de que temos necessidade para a festa.
Ou: Dá alguma coisa aos pobres.
(São João 13,28-29)
Judas, no entanto, em vez de sair para comprar, saíra para vender; não
seria aos pobres que ele serviria, mas aos ricos responsáveis pelo tesouro do
templo. Conquanto soubesse da má intenção de Judas, ainda assim Nosso
Bendito Senhor agiu amavelmente, porque suportaria a ignomínia sozinho. Em
muitos casos, Ele agiu como se os efeitos das ações dos outros Lhe fossem
desconhecidos. Sabia que ressuscitaria Lázaro dos mortos, mesmo quando
chorou. Sabia quem não cria Nele e quem o trairia, e isso não lhe endureceu o
Sagrado Coração. Judas rejeitou o último apelo, e a partir desse momento só
houve desespero em seu coração.
Judas saiu, “e era noite” — uma descrição muito adequada para uma obra
das trevas. Talvez fosse um alívio estar longe da Luz do Mundo. A natureza às
vezes está em simpatia e às vezes em discordância com nossas alegrias e pesares.
O céu é sombrio e nublado quando há melancolia. A natureza combinava-se às
más obras de Judas, pois quando este saiu não encontrou o sol sorridente de
Deus, mas sim a escuridão da noite de Estige. Também se faria noite tenebrosa
ao meio-dia, no momento da Crucifixão de Nosso Senhor.

Logo que Judas saiu, Jesus disse:


Agora é glorificado o Filho do Homem,
e Deus é glorificado nele.
(São João 13,31)

Sua morte não seria um martírio, uma desgraça nem uma consequência
inevitável da traição. Quando o Pai falou de Seu Filho Divino no batismo no
Jordão, Nosso Senhor não disse que Ele mesmo era glorificado; nem no Monte
da Transfiguração, quando os céus se abriram mais uma vez, Ele falou disso,
mas nessa Hora — quando Sua Alma enfrentou o pranto, Seu Corpo, o
flagelo, Seu espírito, uma caricatura de justiça, Sua vontade, uma perversão da
bondade — Ele agradeceu ao Pai. O Pai seria glorificado por Sua morte
redentora, e Ele seria glorificado pelo Pai na Ressurreição e na Ascenção.
39

A DESPEDIDA DO AMANTE DIVINO

As palavras do Mestre fluíram com mais liberdade, uma vez que o


constrangimento do traidor fora removido. Ademais, a partida de Judas para
sua missão de traição pôs a Cruz a uma distância mensurável de Nosso Senhor.
Ele agora falava aos apóstolos como se sentisse as traves dela. Se Sua morte seria
gloriosa, havia de ser porque por meio dela aconteceria algo que não fora feito
por Suas palavras, pelos milagres e pela cura dos enfermos. Durante toda a vida
tentara comunicar Seu amor à humanidade, mas até que Seu corpo se partisse,
como um vaso de alabastro, o perfume de Seu amor não impregnara o
universo. Ele também dissera que, na cruz, Deus, o Pai, era glorificado. Isso se
deu porque o Pai não poupou o próprio Filho, mas ofereceu-O para salvar o
homem. Deu um novo significado a Sua morte, a saber, de sua Cruz irradiaria
a compaixão e o perdão de Deus.
Nesse momento, dirigia-se aos apóstolos de dois modos diferentes: como
um pai moribundo aos filhos e como um Senhor moribundo aos servos.

Filhinhos meus, por um pouco apenas ainda estou convosco.


(São João 13,33)

Aqui, falava em termos de profunda intimidade com aqueles que se


reuniam ao seu redor, respondendo a perguntas infantis, uma após a outra,
porque eram como crianças na compreensão de seu sacrifício. Empregou a
analogia simples de uma estrada que eles não podiam trilhar no momento:
para onde eu vou, vós não podeis ir.
(São João 13,33)

Quando vissem as nuvens de glória envolvendo-O na Ascensão aos céus,


saberiam por que não poderiam ir logo com Ele. Depois O seguiriam, mas
primeiro precisavam da aprendizagem do Calvário e do Pentecostes. O pouco
que os apóstolos compreendiam a respeito de Sua vida foi revelado pela
pergunta de Pedro:

Senhor, para onde vais?


(São João 13,36)

Mesmo na curiosidade, revelou-se a bela personalidade de Pedro, pois não


podia suportar a separação de seu Mestre. Nosso Senhor lhe respondeu:

Para onde vou, não podes seguir-me agora,


mas seguir-me-ás mais tarde.
(São João 13,36)

Pedro ainda não estava preparado para a compreensão profunda da


ressurreição. A hora do Salvador chegara, mas a de Pedro ainda não. Assim
como no monte da Transfiguração Pedro teria a glória sem a morte, também
agora teria a companhia do Mestre divino nos céus sem a cruz. Mais tarde,
Pedro considerou a resposta de Nosso Senhor sobre segui-lo como uma reflexão
acerca de sua coragem e fidelidade. Então, fez outro pedido, e declarou sua
bravura:

Senhor, por que te não posso seguir agora?


Darei a minha vida por ti!
(São João 13,37)
O sentimento de Pedro, naquele segundo, era o de seguir seu Mestre,
mas, quando a oportunidade se apresentasse, ele não estaria no Calvário. Ao
perscrutar o coração de Pedro, Nosso Senhor previu o que aconteceria quando
houvesse uma chance de segui-Lo.

Darás a tua vida por mim!...


Em verdade, em verdade te digo:
não cantará o galo até que me negues três vezes.
(São João 13,38)

A mente onipotente de Nosso Senhor retratou a queda daquele a quem


chamara de “pedra”. No entanto, após a vinda de Seu Espírito, Pedro O
seguiria. O significado disso está preservado em uma bela lenda, que retrata
Pedro fugindo da perseguição de Nero em Roma. Pedro encontrou o Senhor
na Via Appia e disse-Lhe: “Senhor, para onde vais?”. Nosso Senhor Bendito
respondeu: “Vou a Roma ser crucificado novamente”. Pedro voltou a Roma e
foi crucificado no local onde hoje está a Basílica de São Pedro. O Sagrado
Coração, agora, olhava para além das horas tenebrosas, quando ele, apóstolos e
sucessores seriam um com Ele em espírito. Se houve algum momento calculado
para tirar o pensamento do futuro, foi esse terrível momento presente.
Entretanto, já que havia falado da unidade entre os apóstolos consigo pela
eucaristia, retomaria o tema com a imagem da videira e dos ramos. A unidade
de que Ele falava não era do tipo que existia naquele momento, pois em uma
hora todos O abandonariam e fugiriam. Antes, era a unidade que seria
consumada por intermédio de Sua glorificação. A imagem da videira que
empregou era muito familiar no Antigo Testamento. Israel era chamado de
videira, a videira que fora tirada do Egito; Isaías falou de Deus como aquele
que plantou a vinha escolhida; Jeremias e Oseias lamentaram e queixaram-se de
que ela não produzia mais frutos. Assim como Nosso Senhor, em contraste
com o maná que fora dado por Moisés, chamou a Si mesmo de “verdadeiro
pão”; em contraste com as luzes brilhantes da festa dos Tabernáculos,
denominou-Se “verdadeira luz”; em contraste com o templo construído por
mãos humanas, denominou-Se “templo de Deus”; agora, em contraste com a
videira de Israel, disse:
Eu sou a videira verdadeira,
e meu Pai é o agricultor.
(São João 15,1)

Essa unidade entre Ele e os seguidores do novo Israel seria como a


unidade da vinha e dos ramos; a mesma seiva de graça que jorrava através dele
jorraria neles:

Eu sou a videira; vós, os ramos.


Quem permanecer em mim e eu nele,
esse dá muito fruto;
porque sem mim nada podeis fazer.
(São João 15,5)

Separado Dele, nenhum homem é melhor que um ramo separado da


videira, ressequido e morto. O ramo pode ter cachos, mas não os produz; só
Cristo os produz. Ao encaminhar-se para a morte, disse que viveram e que
viveriam Nele. Viu além da cruz e afirmou que a vitalidade e a energia viriam
Dele, e o relacionamento entre eles seria orgânico, não mecânico. Viu aqueles
que professavam ser unidos externamente a Ele, mas que, não obstante,
internamente, seriam apartados; viu os que precisariam de mais purificação do
Pai por meio da cruz, falando em termos de uma faca que poda e corta.

Todo ramo que não der fruto em mim, ele o cortará;


e podará todo o que der fruto, para que produza mais fruto.
(São João 15,1-2)

O ideal da nova comunidade é a santidade, Aquele que possui a faca é o


Pai Celeste. O objeto da poda não é o castigo, mas a correção e a perfeição —
salvo nos casos inúteis: esses são excomungados da vinha. Quando Nosso
Senhor chamou os apóstolos pela primeira vez, recordou-lhes de que todos
deveriam sofrer por Sua causa. Ao encaminhar-Se para a cruz, deu-lhes uma
nova compreensão da mensagem anterior de que deveriam tomar a cruz
diariamente e segui-Lo. A unidade com Ele não viria apenas por conhecer seus
ensinamentos, mas, principalmente, pelo cultivo do divino, por podar em si
mesmos tudo o que não fosse divino:

Se alguém não permanecer em mim


será lançado fora, como o ramo.
Ele secará e hão de ajuntá-lo
e lançá-lo ao fogo, e queimar-se-á.
(São João 15,6)

Um dos efeitos da autodisciplina para intensificar essa união entre eles e o


próprio Cristo seria a alegria. A abnegação não traz tristeza, mas felicidade.

Disse-vos essas coisas


para que a minha alegria esteja em vós,
e a vossa alegria seja completa.
(São João 15,11)

Falou de alegria a poucas horas do beijo de Judas; mas a alegria que


expressava não era na expectativa do sofrimento, mas, antes, a alegria da
absoluta e completa submissão ao Pai em amor pela humanidade. Assim como
há um tipo de alegria em dar um presente precioso a um amigo, da mesma
maneira, há alegria em dar a vida pela humanidade. Aquela alegria do
autossacrifício seria deles, se guardassem os mandamentos como mandamentos
do Pai. Os infelizes apóstolos, que viam o sonho de um reino puramente
terreno esvanecer-se, não podiam compreender suas palavras de alegria; só
entenderiam mais tarde, quando o Espírito viesse sobre eles. Imediatamente
após o Pentecostes, ao se postarem diante do mesmo conselho que condenou
Cristo, seus corações estariam muito felizes porque, como ramos, foram
podados para se tornarem um com a videira.

Eles saíram da sala do Grande Conselho,


cheios de alegria, por terem sido achados dignos
de sofrer afrontas pelo nome de Jesus.
(Atos dos Apóstolos 5,41)

Além da alegria, um segundo efeito da união com Ele seria o amor.

Este é o meu mandamento:


amai-vos uns aos outros, como eu vos amo.
Ninguém tem maior amor do que aquele
que dá a sua vida por seus amigos.
(São João 15,12-13)

Amor é a relação normal dos ramos entre si, pois todos estão enraizados
na videira. Não haveria limites ao Seu amor. Certa vez, Pedro pôs um limite ao
amor ao perguntar quantas vezes deveria perdoar. Seriam sete? Nosso Senhor
disse-lhe setenta vezes sete, o que sugeria uma infinidade, e negou qualquer
cálculo matemático. Não devem existir limites ao amor mútuo, pois todos
devem perguntar-se: qual foi o limite do amor do Cristo? Não tinha limites,
pois Ele veio para entregar a própria vida.
Aqui, mais uma vez, falou do propósito de Sua vinda, a saber, a redenção.
A cruz é o principal. O caráter voluntário dela é enfatizado quando Ele disse
que entregou a vida; ninguém Lhe tiraria isso. Seu amor seria como o calor do
sol: os que estivessem mais próximos seriam aquecidos e felizes; os mais
distantes ainda reconheceriam sua luz.
Somente ao morrer por outrem poderia demonstrar seu amor. Sua morte
não seria como a morte de um homem por amor de outro, ou como a do
soldado por seu país, pois o homem que salva o outro deve, por fim, morrer de
algum modo. Ainda que grande o sacrifício, esse seria um pagamento
prematuro de uma dívida que havia de ser paga. Entretanto, no caso de Nosso
Senhor, Ele não precisava, de modo algum, morrer. Ninguém poderia tirar-Lhe
a vida. Embora chamasse aqueles pelos quais morreu de “amigos”, a amizade
era toda de Sua parte, e não da nossa, pois, como pecadores, somos inimigos.
Paulo, mais tarde, expressou bem isso ao dizer que Ele morreu por nós
enquanto éramos ainda pecadores (Romanos 5,8).
Os pecadores podem demonstrar amor uns pelos outros ao tomar para si
uma punição merecida por alguém. Nosso Senhor, todavia, não só tomava para
Si a punição, como também a culpa como se fosse Sua. Ademais, a morte que
estava prestes a sofrer seria bem diferente da morte dos mártires por sua causa,
já que esses tinham o exemplo da morte do Cristo e a expectativa da glória
prometida. Entretanto, morrer em uma cruz sem um olhar de piedade, estar
cercado de uma multidão que lhe fazia troça, e morrer sem ser obrigado a
morrer — esse foi o auge do amor. Os apóstolos não podiam compreender tal
profundidade de afeição, mas, posteriormente, compreenderiam. Pedro, que na
ocasião nada entendia a respeito do amor sacrificial, mais tarde, ao ver suas
ovelhas caminharem para a morte sob a perseguição dos romanos, lhes diria:

Com efeito, é coisa agradável a Deus sofrer contrariedades


e padecer injustamente, por motivo de consciência para com
Deus.
Que mérito teria alguém se suportasse pacientemente os açoites
por ter praticado o mal?
Ao contrário, se é por ter feito o bem que sois maltratados,
e se o suportardes pacientemente, isto é coisa agradável aos
olhos de Deus.
Ora, é para isto que fostes chamados.
Também Cristo padeceu por vós,
deixando-vos exemplo para que sigais os seus passos.
(1 São Pedro 2,19-21)

João também faria uma paráfrase do que ouviu naquela noite, ao inclinar-
se sobre o coração de Cristo:

Nisto temos conhecido o amor:


(Jesus) deu sua vida por nós.
Também nós outros devemos dar a nossa vida
pelos nossos irmãos.
(1 São João 3,16)
O ÓDIO DO MUNDO

Depois de terminar o discurso sobre a unidade existente entre Ele e os


apóstolos, Nosso Senhor passou ao próximo assunto que logicamente se seguia,
a saber, a separação daqueles que não partilhavam de Seu Espírito e de Sua
vida. Referia-se não só à condição de oposição que existiria entre seus
seguidores e o mundo imediatamente após Sua partida dele, mas, antes, a uma
condição permanente e inevitável. O contraste era entre a grande massa de
renegados e descrentes que se recusariam a aceitá-Lo e os que seriam unidos a
Ele como ramos à videira. Não falou de um universo físico ou do cosmo, mas
de um espírito, um zeitgeist, uma unidade das forças do mal contra as forças do
bem. As bem-aventuranças puseram-No em oposição imediata ao mundo e,
assim, prepararam-No para a Cruz. Agora Ele os advertia de que também
teriam uma cruz, se realmente fossem Seus discípulos. Não ter cruz torna a
pessoa suspeita de não possuir a marca indelével de ser um dos Seus:

Se o mundo vos odeia,


sabei que me odiou a mim antes que a vós.
Se fôsseis do mundo,
o mundo vos amaria como sendo seus.
Como, porém, não sois do mundo,
mas do mundo vos escolhi,
por isso o mundo vos odeia.
(São João 15,18-19)

Sete vezes durante esse discurso sobre o mundo, Ele empregou a palavra
“ódio” — um testemunho solene da obstinação e hostilidade do mundo. O
mundo ama o mundano; mas, para preservar seus códigos, práticas e modismos
mentais, deve odiar o que não é deste mundo ou o divino. Fossem os apóstolos
ou algum de Seus seguidores ingressarem em algum culto ao Sol ou seita
oriental, será que seriam odiados? Não, porque o mundo conhece os seus.
Fossem um com o Cristo, a seguir rigorosamente Seus mandamentos, seriam
odiados? Sim, porque “do mundo vos escolhi”. Naquele momento, os
apóstolos não podiam compreender esse ódio; mesmo depois da ressurreição
não foram molestados e puderam voltar às suas redes e barcos. Entretanto, uma
vez que Ele subiu aos céus e enviou Seu Espírito, experimentariam toda a
malignidade do ódio do mundo. Tiago, que ouviu essas palavras na Última
Ceia, mais tarde as repetiria com conhecimento e experiência:

Adúlteros, não sabeis que o amor do mundo é abominado por


Deus?
Todo aquele que quer ser amigo do mundo constitui-se
inimigo de Deus.
(São Tiago 4,4)

João também recordaria seu povo de que o mundo era antagônico a


Cristo.

Não ameis o mundo nem as coisas do mundo.


Se alguém ama o mundo, não está nele o amor do Pai.
(1 São João 2, 15)

Nosso Senhor, então, explicou-lhes que o mundo não os odiaria como O


odiou, mas os odiaria por causa Dele. Nenhum servo pode ser maior que seu
senhor. Seriam perseguidos por causa de Seu nome:

Mas vos farão tudo isso por causa do meu nome,


porque não conhecem aquele que me enviou.
(São João 15,21)

Nosso Senhor não deu esperanças de converter a todos no mundo; as


multidões seriam mais conquistadas pelo espírito do mundo do que por Ele.
Partilhar de Sua vida era partilhar de Seu destino. O mundo odiaria Seus
seguidores, não por conta do mal em suas vidas, mas, precisamente, pela
ausência do mal, ou melhor, por sua bondade. A bondade não gera ódio, mas
dá oportunidade para a manifestação do ódio. Quanto mais santa e pura a
vida, mais atrairá a malignidade e o ódio. Só a mediocridade sobrevive. A
inocência perfeita deve ser crucificada no mundo onde ainda existe o mal.
Assim como o olho doente teme a luz, da mesma maneira, a consciência má
teme a bondade que a reprova. O ódio do mundo não é inocente nem sem
culpa:

Se eu não viesse e não lhes tivesse falado,


não teriam pecado;
mas agora não há desculpa para o seu pecado.
Aquele que me odeia, odeia também a meu Pai.
Se eu não tivesse feito entre eles obras,
como nenhum outro fez, não teriam pecado;
mas agora as viram e odiaram a mim e a meu Pai.
Mas foi para que se cumpra a palavra
que está escrita na sua lei:
Odiaram-me sem motivo (Salmo 34,19; 68,5).
(São João 15,22-25)

O ódio pelo Cristo revelou o ódio pelo Pai. O mal não tem capital
próprio, é um parasita que repousa no bem. O ódio puro tira suas forças do
contato com o bem; faz o inferno começar na terra, mas não o faz terminar
aqui. Seu Evangelho, disse, iria, de certo modo, agravar o pecado dos homens
por fazer-lhes rejeitá-Lo voluntariamente. Se houve pecado e mal ao longo da
história; se houve Cains que mataram Abéis; gentios que perseguiram judeus;
Sauis que buscaram matar Davis, tudo isso era insignificante comparado ao
que Nosso Senhor falava sobre o mal monstruoso que estava prestes a Lhe
acontecer. Ensinara que havia graus de punição dispensados aos que estavam
perdidos; agora, acrescentou que a gradação seria determinada pelo grau de luz
contra o qual pecaram. Sua vinda trouxera ao mundo um novo padrão de
medida. Haveria mais tolerância com Sodoma e Gomorra no dia do Juízo do
que com Cafarnaum, pois esta se voltara contra o Rei dos reis e Senhor dos
senhores.
Esse espírito de inimizade contra Ele não permaneceria somente enquanto
vivesse ou enquanto os apóstolos vivessem, mas enquanto durasse o tempo.
Quando Alexandre morreu, ninguém ergueu punhos cerrados diante de seu
túmulo; o ódio ao tirano perece com o tirano. Ninguém odeia Buda; ele está
morto. O ódio ao Cristo, contudo, permaneceria vivo, porque Ele vive — “o
mesmo, ontem, hoje e para sempre”. Ser advertido era ser precavido.

Virá a hora em que todo aquele que


vos tirar a vida julgará prestar culto a Deus.
(São João 16,2)

De censuras maldizentes os homens passariam até mesmo a tirar a vida de


Seus seguidores. E assim o fariam convencidos de que agiam religiosamente,
como faziam os escribas e os fariseus, e também como Paulo o fez antes da
conversão. O que previu para Seus seguidores veio a acontecer: Mateus sofreu o
martírio pela espada na Etiópia; Marcos foi arrastado pelas ruas de Alexandria
até a morte; Lucas foi enforcado em uma oliveira na Grécia; Pedro, crucificado
em Roma de cabeça para baixo; Tiago foi decapitado em Jerusalém; Tiago
Menor foi lançado do pináculo do templo e, ao chão, espancado até a morte;
Filipe foi enforcado em um pilar na Frígia; Bartolomeu foi esfolado vivo;
André foi atado a uma cruz e pregou aos perseguidores até a morte; Tomé teve
o corpo perfurado; Judas Tadeu foi morto por flechas; Matias primeiro foi
apedrejado e depois decapitado. É muito provável que no momento desses
acontecimentos tenham recordado as palavras de Nosso Senhor na Última
Ceia:

Disse-vos, porém, essas palavras para que,


quando chegar a hora, vos lembreis de que vo-lo anunciei.
(São João 16,4)

O conselho que dava aos apóstolos sobre a expectativa da cruz e das


próprias vidas era uma prova de que a cruz era primordial para Si mesmo. Para
os seguidores não prometeu nenhuma imunidade ao mal neste mundo, mas a
vitória sobre o mal:
Referi-vos essas coisas para que tenhais a paz em mim.
No mundo haveis de ter aflições.
Coragem! Eu venci o mundo.
(São João 16,33)

Desfrutar a paz não era inconsistente com a duração da tribulação. A paz


está na alma e vem da união com Cristo, ainda que o corpo possa sentir dor.
Provações, tribulação, angústia e ansiedade são permitidos por aquele que dá a
paz.

O ESPÍRITO

O próximo assunto que ocupou a atenção do Salvador na noite de sua agonia


foi o Espírito Santo. O profeta Ezequiel há muito previra que um espírito novo
seria dado ao mundo:

Dar-vos-ei um coração novo e


em vós porei um espírito novo;
tirar-vos-ei do peito o coração de pedra e
dar-vos-ei um coração de carne.
Dentro de vós meterei meu espírito,
fazendo com que obedeçais às minhas leis e
sigais e observeis os meus preceitos.
(Ezequiel 36,26-27)

O corpo de Adão foi feito quando Deus soprou-lhe o espírito de vida. O


tabernáculo de Israel e o templo tiveram de ser construídos antes que a
Shekinah e a glória de Deus viessem tomar posse deles; portanto, tinha de
haver uma renovação dentro do homem como condição para o próprio
Espírito de Deus nele habitar. Com a vinda de Cristo, começou a cumprir-se a
profecia de Ezequiel. O Espírito exercera um papel muito importante na vida
do Cristo. João Batista predissera duas coisas sobre Ele: primeiro, que era o
cordeiro de Deus que tiraria os pecados do mundo e, a outra, que batizaria os
discípulos com o Espírito Santo e com fogo. O derramamento de sangue era
para o pecador; o dom do Espírito era para os seguidores obedientes e
amorosos. Quando Nosso Senhor foi batizado no rio Jordão, o Espírito Santo
veio sobre Ele. Foi batizado no Espírito; mas deveria sofrer antes de dar o
Espírito aos outros. Por isso que, na noite em que começou Sua paixão, falou
mais profundamente do Espírito. Na conversa com a mulher no poço disse que
chegaria o tempo em que os verdadeiros adoradores adorariam:

o Pai em espírito e verdade.


(São João 4,23)

Suas palavras “em Espírito” não significavam um contraste entre uma


religião interna ou sentimental em comparação às observâncias exteriores, mas,
sim, um contraste entre uma adoração inspirada pelo Espírito de Deus oposta a
um espírito puramente natural. “Em verdade” não significa “sincera e
honestamente”, mas, antes, em Cristo, que é o Verbo ou a Verdade de Deus.
Mais tarde, quando Nosso Senhor Bendito prometeu dar Seu corpo e sangue
sob a aparência de pão e vinho, sugeriu que deveria primeiro ascender aos céus
antes de ser dado o Espírito.

Que será, quando virdes subir o Filho do Homem


para onde ele estava antes?...
O espírito é que vivifica, a carne de nada serve.
As palavras que vos tenho dito são espírito e vida.
(São João 6, 62-63)

Principiou por dizer-lhes que Sua morte aconteceria no dia seguinte; não
O veriam mais com os olhos da carne. Ainda transcorreria mais um tempo, a
saber, o intervalo entre a morte e a ressurreição quando O veriam, com os
olhos do corpo, glorificado. Sua perda, assegurou-lhes, seria compensada por
uma bênção maior que a sua presença na carne. Os apóstolos não conseguiam
entender o que ele dizia a respeito do breve intervalo entre sua morte e
Ressurreição, durante o qual seus olhos seriam turvados.
Ainda um pouco de tempo, e já me não vereis;
e depois mais um pouco de tempo, e me tornareis a ver,
porque vou para junto do Pai.
(São João 16,16)

Rebaixou-se à mentalidade dos apóstolos, pois a principal preocupação


deles era o que Lhe aconteceria. No entanto, dentro de duas horas teriam uma
compreensão melhor dessas palavras, pois nesse intervalo os apóstolos,
momentaneamente, perderiam o Mestre de vista, depois de Sua prisão. Porque
Nosso Senhor disse que iria para o Pai, os apóstolos estavam em extrema
confusão, pois isso significava afastar-se deles. Disseram:

Não sabemos o que ele quer dizer.


(São João 16,18)

Jesus sabia que estavam ansiosos para questioná-lo mais a respeito desse
ponto. O pesar e o assombro não eram apenas porque Ele dissera que estava
prestes a deixá-los, mas também por conta da frustração de suas esperanças,
pois vislumbravam a instituição de algum tipo de reino messiânico terreno. Ele
lhes assegurara que, embora estivessem cabisbaixos pelo pesar, a hora seria
breve, longa o bastante para Ele provar Seu poder sobre a morte e ir ao Pai.
Quando passasse pela hora, eles ficariam tristes, ao passo que os inimigos ou o
mundo se rejubilariam. O mundo acreditaria que Ele se fora para sempre. A
dor dos escolhidos, entretanto, seria transitória, pois a cruz deve vir antes da
coroa.

Em verdade, em verdade vos digo:


haveis de lamentar e chorar,
mas o mundo se há de alegrar.
E haveis de estar tristes,
mas a vossa tristeza se há de transformar em alegria.
(São João 16,20)
A passagem do pranto à alegria é simbolizada pela analogia das dores e
alegrias da maternidade:

Quando a mulher está para dar à luz,


sofre porque veio a sua hora.
Mas, depois que deu à luz a criança,
já não se lembra da aflição,
por causa da alegria que sente
de haver nascido um homem no mundo.
Assim também vós:
sem dúvida, agora estais tristes,
mas hei de ver-vos outra vez,
e o vosso coração se alegrará
e ninguém vos tirará a vossa alegria.
(São João 16,21-22)

A Providência, de maneira sábia, ordenara que as dores da mãe fossem


compensadas pela alegria do filho. Do mesmo modo, as aflições da cruz são
precursoras das alegrias da ressurreição. Deve haver comunhão nos sofrimentos
do Cristo antes que haja comunhão na Sua glória. No momento, tinham
tristeza porque não mais O veriam na carne, mas a alegria deles viria por um
despertar espiritual, e essa alegria teria um caráter permanente que o mundo
não poderia tirar.
A natureza dessa alegria suprema que seria a deles foi explicada pelo
Salvador em termos de um Consolador ou Paráclito que enviaria.

E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Paráclito,


para que fique eternamente convosco.
É o Espírito da Verdade, que o mundo não pode receber,
porque não o vê nem o conhece, mas vós o conhecereis,
porque permanecerá convosco e estará em vós.
Não vos deixarei órfãos. Voltarei a vós.
Ainda um pouco de tempo e o mundo já não me verá.
Vós, porém, me tornareis a ver, porque eu vivo e vós vivereis.
Naquele dia conhecereis que estou em meu Pai,
e vós em mim e eu em vós.
(São João 14,16-20)

Haveria outro Consolador, ou outro “que fique eternamente convosco”.


“Outro” não é uma diferença em qualidade, mas, sim, uma distinção de
pessoas. Ele lhes fora o Consolador; estava ao lado deles; fora um com eles e na
Sua presença ganharam força e coragem, mas o problema é que agora Ele iria
embora e lhes prometera outro Consolador ou Advogado. Assim como Ele
seria o advogado com Deus nos céus, da mesma maneira o Espírito que
habitaria neles advogaria a causa de Deus na terra e deles seria o defensor. O
segredo Divino que lhes confiou é que a perda lhes traria a bênção maior da
vinda do Espírito. O Pai fizera uma revelação dupla de si mesmo: o Filho era
sua imagem que caminhava entre os homens, recordando-lhes o original divino
e modelo ao qual seriam restaurados. No Espírito, o Pai e o Filho enviariam
um poder divino que neles residiria e faria de seus corpos templos.
Era melhor que Ele partisse, pois seu retorno ao Pai era a condição da
vinda do Espírito. Se permanecesse entre eles, teria sido apenas um exemplo a ser
imitado; se os deixasse e enviasse o Espírito, seria uma vida autêntica a ser vivida.

Entretanto, digo-vos a verdade:


convém a vós que eu vá!
Porque, se eu não for,
o Paráclito não virá a vós;
mas se eu for, vo-lo enviarei.
(São João 16,7)

O retorno de Sua natureza humana em glória aos céus era uma preliminar
necessária à missão do Espírito. Sua ida não seria uma perda, mas um ganho.
Assim como a queda do primeiro homem foi a queda de sua descendência, da
mesma maneira, a Ascensão do Filho do Homem seria a ascensão de todos os
que estivessem ligados a Ele. Sua morte expiatória era a condição para receber o
Espírito de Deus. Se não partisse, ou seja, caso não morresse, nada seria feito;
os judeus permaneceriam como estavam, os pagãos persistiriam na cegueira e
todos estariam sob o pecado e a morte. A presença corpórea tinha de ser
removida para que a presença espiritual pudesse acontecer. Sua presença
contínua sobre a terra significaria uma presença local; a descida do Espírito
indicaria que Ele poderia estar no meio de todos os homens que se
incorporassem a Ele.
A presença permanente do Espírito significaria mais do que a presença
física entre eles. Desde que Nosso Senhor esteve com eles na terra, Sua
influência não foi, nem de longe, interior; mas, quando enviasse o Espírito, a
influência irradiaria de fora; aqueles que a possuíssem teriam o Espírito de
Jesus Cristo na terra.
Haveria uma dupla glorificação de si mesmo: uma por intermédio do Pai,
e outra por intermédio do Espírito. Uma ocorreria nos céus; a outra, na terra.
Por uma seria glorificado no próprio Deus e, por outra, é glorificado em todos
os que Nele creem:

Ele me glorificará, porque receberá do que é meu,


e vo-lo anunciará.
Tudo o que o Pai possui é meu.
Por isso, disse: Há de receber do que é meu,
e vo-lo anunciará.
(São João 16,14-15)

Seria glorificado quando Sua natureza humana estivesse sentada à direita


do Pai. Entretanto, Sua glória espiritual celeste não poderia ser
verdadeiramente apreendida a menos que enviasse o Espírito revelador da
glória de Cristo ao habitar e agir dentro deles. Embora conhecessem Cristo na
carne, agora estavam seguros de que não mais O conheceriam.
A obediência foi descrita como condição necessária para a recepção do
Espírito:

Se me amais, guardareis os meus mandamentos.


E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Paráclito,
para que fique eternamente convosco.
(São João 14,15-16)
O Espírito veio a Cristo no rio Jordão após trinta anos de obediência ao
Pai Celestial, a José, o pai adotivo, e à mãe. Seu segundo ato de obediência foi
aceitar o mandamento do Pai de suportar a Cruz em resposta ao “dever”
divino. Só depois da obediência o Espírito seria dado aos apóstolos. Assim
como enviou o Espírito por conta da obediência ao Pai, Deus habitou o
templo de Jerusalém porque obedeceram suas instruções ao construí-lo. Nos
dois últimos capítulos do livro do Êxodo, por 18 vezes foi empregada a
expressão de que tudo foi feito conforme o Senhor ordenara. Assim, portanto,
Nosso Senhor Bendito preparou-se para tornar os corpos humanos templos do
Seu Santo Espírito e também estabeleceu as mesmas condições de que
obedecessem Seus mandamentos.
O próprio Pedro falaria disso imediatamente após o Pentecostes:

Exaltado pela direita de Deus,


havendo recebido do Pai o Espírito Santo prometido,
derramou-o como vós vedes e ouvis.
(Atos dos Apóstolos 2,33)

Em seguida, explicou que o Espírito lhes ensinaria novas verdades ao


recordar-lhes as antigas, recordaria as antigas verdades ao ensinar as novas.
Cristo comunicara uma forma de verdade seminal, mas não a plenitude.
Quando enviou seu Espírito, a memória seria refrescada de modo
extraordinário e a convicção da verdade suplantaria até mesmo o conhecimento
preparatório.

Mas o Paráclito, o Espírito Santo,


que o Pai enviará em meu nome,
ensinar-vos-á todas as coisas
e vos recordará tudo o que vos tenho dito.
(São João 14,26)

Assim como uma luz brilhou no Antigo Testamento pela vinda de Cristo,
da mesma maneira uma luz brilhará na vida de Cristo pelo Espírito. A função
fortalecedora do Espírito, portanto, entrou em conexão imediata com a função
iluminadora de Cristo como Mestre. Os que voltam à forma pura do
Evangelho se esquecem de que o Mestre do Evangelho, o próprio Cristo, falou
de progressão, de evolução, de desvendar sua verdade por intermédio dos
apóstolos. Assim como o Filho deu a conhecer o Pai, da mesma maneira o
Espírito daria a conhecer o Filho; assim como o Filho glorificou o Pai, o
Espírito, igualmente, glorificaria a Cristo. Foi, de fato, somente após a
Ressurreição e a descida do Espírito Santo que os apóstolos recordaram as
palavras que Ele lhes dissera e, também, compreenderam plenamente o
significado da Cruz e da Ressurreição.
Havia duas árvores no jardim do Paraíso: a árvore da vida divina e a
árvore do conhecimento do bem e do mal. Estava no plano de Deus que o
homem permanecesse com Ele em comunhão com a árvore da vida que
poderia comer e, portanto, viver para sempre. Satanás assegurou ao homem
que o caminho da paz era por meio da árvore do conhecimento do bem e do
mal. Entretanto, o homem esqueceu que o mal está nele, começa a tomar posse
dele. Pelo caminho falso do conhecimento do bem e do mal, o homem foi
levado à destruição. Agora, a árvore da vida é erigida no Calvário e novamente
dada ao homem. A árvore da vida, assim, tornou-se não a árvore do
conhecimento do bem e do mal, mas a árvore da própria verdade por
intermédio do Espírito.

Quando vier o Paráclito, o Espírito da Verdade,


ensinar-vos-á toda a verdade,
porque não falará por si mesmo,
mas dirá o que ouvir,
e anunciar-vos-á as coisas que virão.
(São João 16,13)

Disse que o Espírito da Verdade que vem do Pai e Dele mesmo faria a
verdade entrar na alma de maneira tal que iria torná-la uma realidade. A
verdade natural está na superfície da alma, mas a verdade divina se encontra
nas profundezas. Para conhecer o Pai, devemos conhecer o Filho; para conhecer
o Filho, devemos ter o Espírito, pois o Espírito revelará o Filho que disse:
Eu sou [...] a verdade.
(São João 14,6)

Se toda a humanidade precisasse de um mestre, o homem há muito teria


sido santo, pois teve mestres desde os sábios hindus até este exato momento.
No entanto, é necessário mais que o espírito humano para tornar o homem
santo, ou para conhecer a verdade; requer o Espírito da Verdade. As verdades
humanas somente podem ser conhecidas ao serem vividas, e as verdades divinas
podem ser vividas ao vivermos no Espírito.
Em sua promessa do Espírito, Nosso Senhor afirmou quatro verdades a
respeito de si mesmo. Primeiro, disse que tinha “saído do Pai”: em outras
palavras, foi gerado desde toda a eternidade como o Verbo ou o Filho de Deus.
Em seguida, disse: “vim ao mundo”, referindo-se à encarnação e revelação de
sua divindade aos homens. Em terceiro lugar, “deixo o mundo”, que significa a
rejeição que sofreu pelo mundo, os sofrimentos, a Paixão e a morte. Agora,
disse aos apóstolos, “vou para o Pai”, referindo-se à Sua Ressurreição dos
mortos, Sua Ascensão ao Pai e à glória, e a Descida de Seu Espírito. O efeito
dessas verdades básicas sobre o mundo agora ele começaria a elaborar.

A TRIPLA MISSÃO DO ESPÍRITO

E, quando ele [o Paráclito] vier,


convencerá o mundo a respeito
do pecado, da justiça e do juízo.
(São João 16,8)

Essa é a descrição da tripla vitória que o Espírito Santo terá sobre o


mundo por intermédio dos apóstolos — uma vitória que não é física, mas
moral. De um lado, haveria a verdade divina, de outro, o falso espírito do
mundo. A missão do Espírito seria a de convencer e provar ao mundo o erro
em três áreas: a visão do mundo de pecado, a visão do mundo de justiça e a
visão do mundo de juízo.
Convencerá o mundo a respeito do pecado,
que consiste em não crer em mim.
(São João 16,9)

A primeira convicção do Espírito, ou demonstração, seria a verdade de


que o homem é pecador. O pecado nunca é totalmente compreendido em
termos de uma violação da lei; o mal é revelado quando é visto o que faz a
quem é amado. A incredulidade que gerou a crucifixão, portanto, tem o
pecado em sua essência. O pecado, em plenitude, é a rejeição de Cristo. A via
comum de ganhar os homens para a verdade é por algum apelo popular.
Entretanto, o Espírito ganhará os homens para a verdade por convencê-los de
sua pecaminosidade; ao fazê-lo, terá revelado o fato de Cristo ter sido,
primeiro, um redentor ou salvador do pecado.
O ministério do Espírito condenaria o mundo de pecado a partir de outro
ponto de vista, porque este se recusou a crer no Cristo. Pela incredulidade ou
pela recusa em aceitar a libertação do pecado que Cristo trouxe, afirma-se o
antagonismo ao divino. A própria incredulidade que os homens demonstram
para com Ele revela onde está escondido o pecado. Nada, senão o Espírito,
pode convencer o homem do pecado: a consciência não pode fazê-lo, pois, às
vezes, pode ser abafada; a opinião pública não pode fazê-lo, pois, às vezes,
justifica o pecado; mas o pecado mais grave de todos que o Espírito revelaria
não seria a intemperança, a avareza ou a luxúria, mas a descrença em Cristo. É
esse mesmo Espírito de Deus que torna o pecador não só consciente de seu
estado, mas também o faz contrito e penitente quando aceita a redenção.
Rejeitar o redentor é preferir o mal ao bem. O crucifixo é uma
autobiografia em que o homem pode ler a própria história, seja a própria
salvação ou a própria condenação. Desde que o pecado passou a ser visto
somente do ponto de vista psicológico, a Cruz de Cristo parece um exagero. A
areia do deserto, o sangue de um animal ou a água podem muito bem purificar
o homem. No entanto, uma vez que o pecado é visto à luz da Santidade
Infinita, então somente a Cruz de Cristo pode igualar e satisfazer esse trágico
horror.
A segunda acusação do Espírito relaciona-se com a justiça.
Ele o convencerá a respeito da justiça,
porque eu me vou para junto do meu Pai
e vós já não me vereis.
(São João 16,10)

À primeira vista, parece artificial ver como o Cristo poderia dizer que Sua
Ascensão ao Pai não teria relação alguma com a retidão do coração. Entretanto,
aqui, acrescentou algo ao que dissera sobre o pecado. Como o mundo, por
vezes, vê o pecado somente como atos de transgressão e não de descrença,
então, em muitas ocasiões vê justiça em atos de filantropia, mas não na
justificação que o homem tem à direita do Pai por Cristo. Uma vez que Nosso
Senhor ascenda aos céus, o Espírito demonstra como o mundo estava errado ao
vê-lo como um criminoso e malfeitor. A Ascensão transforma todos os padrões
de certo e errado do mundo. O fato de o Pai exaltá-lo à sua direita comprovaria
que todas as acusações feitas a Ele eram falsas. O mundo foi injusto ao rejeitá-
lo.
Uma vez que o homem esteja convencido da própria pecaminosidade, não
pode estar convencido da própria justiça; uma vez convencido de que Cristo o
salvou do pecado, então está convencido de que Cristo é a sua justiça.
Entretanto, podemos falar de justiça para quem não é pecador. O fariseu diante
do templo estava convencido da própria justiça; os líderes do templo que O
condenaram à morte estavam convencidos da própria justiça. A Sexta-Feira
Santa parece imputar o pecado ao Cristo e a justiça aos Seus juízes, mas o
Pentecostes e a vinda do Espírito atribuiriam a justiça ao crucificado e o pecado
aos juízes. Para aqueles que O rejeitaram, a justiça surgiria, um dia, como uma
justiça terrível; para os pecadores que O aceitaram e aliaram-se à vida Dele, a
justiça se mostraria misericórdia.

Ele o convencerá a respeito do juízo,


que consiste em que o príncipe deste mundo
já está julgado e condenado.
(São João 16,11)
A última das três convicções relaciona-se com o juízo. Quando o pecado e
a justiça colidem, haverá o juízo em que o pecado será destruído. Quem está
sendo julgado aqui é “o príncipe deste mundo” ou Satanás, o que governa este
mundo. O julgamento do príncipe deste mundo foi realizado pela Cruz e
Ressurreição, pois o mal nunca pode fazer nada mais poderoso do que matar a
carne do Filho de Deus. Derrotado, nunca poderia ser novamente vitorioso.
Adão e Eva, após o pecado, confrontaram-se com a justiça de Deus, e o
julgamento foi a expulsão do Paraíso. No dilúvio, os pecados da humanidade
foram confrontados com a santidade de Deus, e a inundação veio como juízo.
Quando Israel saiu do Egito, o êxodo foi efetuado por um julgamento divino;
portanto, quando é chegado o Espírito da Verdade, trará de volta para os
corações e as mentes dos homens o juízo inerente à vida e à morte de Nosso
Senhor e a vitória suprema sobre o mal. Pelos próprios olhos, o mundo não
pode ser condenado, mas pode ser condenado aos olhos daqueles cuja visão foi
purificada pela Cruz. O Espírito Santo revelaria aos homens a verdadeira
natureza do grande drama que foi consumado na Cruz.
40

A ORAÇÃO DO SeNHOR AO PAI

Um aviador, o comandante de um submarino ou um oficial no campo


costumam enviar a seus superiores a mensagem lacônica: “missão cumprida”.
Nosso Bendito Senhor tinha dito Sua última palavra ao mundo; operou
milagres como sinal de Sua divindade; levou a cabo os negócios que o Pai lhe
tinha dado para fazer. Era chegada a hora de dirigir ao Pai Celestial a oração
sacerdotal de “missão cumprida”. Em literatura alguma se encontra a
simplicidade e a profundidade, a grandeza e o fervor desta última oração. Ele
ensinou aos homens como orar o “Pai Nosso”; agora, diria “Meu Pai”.
A oração estava baseada em sua consciência de mediador entre o Pai e a
humanidade. Pela sétima vez, falou de Sua “Hora”, que invariavelmente aludia
a Sua morte e glorificação.

Pai, é chegada a hora.


Glorifica teu Filho, para que teu Filho glorifique a ti;
e para que, pelo poder que lhe conferiste sobre toda criatura,
ele dê a vida eterna a todos aqueles que lhe entregaste.
Ora, a vida eterna consiste em que conheçam a ti,
um só Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo que enviaste.
Eu te glorifiquei na terra.
Terminei a obra que me deste para fazer.
Agora, pois, Pai, glorifica-me junto de ti,
concedendo-me a glória que tive junto de ti,
antes que o mundo fosse criado.
(São João 17,1-5)

Ú
Durante a Última Ceia, Nosso Bendito Senhor usou a palavra “Pai” 45
vezes. Até então, o mundo conhecera o Ser Supremo apenas como Deus.
Agora, Ele enfatizava que Deus é Pai, por causa de Sua atitude paternal e de
intimidade para com os homens; também anunciou que agora Ele, o Filho
Divino, concluíra Sua missão temporal na terra, e Sua humanidade estava
pronta para receber a glória celestial. Quando o Verbo se fez carne, houve um
rebaixamento, um esvaziamento e uma submissão. O que pedia não era a glória
de Sua natureza divina, pois esta nunca se perdeu, mas, sim, a glorificação de
algo que Ele não tinha antes de vir a este mundo, a saber, a glorificação da
natureza humana recebida de Maria. Sua natureza humana tinha o direito à
glória por causa da união com Ele mesmo. Em seguida, disse aos discípulos no
caminho de Emaús:

Porventura não era necessário


que Cristo sofresse essas coisas
e assim entrasse na sua glória?
(São Lucas 24,26)

O Senhor definiu a vida eterna como conhecer o Pai e Seu Filho Divino,
Jesus Cristo. Não bastava saber da existência de Deus conforme provada pela
razão; essa, de fato, é a base da religião natural, mas a vida eterna vem tão
somente do conhecimento de Jesus Cristo. O mais notável nessa afirmação de
que Ele é a vida eterna é que ela foi pronunciada a 18 horas de Sua morte. O
Pai, disse o Senhor, foi glorificado indiretamente em Seu sofrimento mortal.
Isso aconteceu pelo cumprimento da missão do Pai de redimir a humanidade.
Por toda a história, a mente do homem voltou-se para Deus, mas havia apenas
conjeturas de qual era a vontade de Deus. Jesus disse aqui que tinha um plano
antes de vir, e falou dele como concluído antes de ser crucificado, tal era Seu
desejo de obedecer ao Pai. Nenhum jovem de 33 anos que já viveu podia dizer:
“Recebi uma ordem de Deus e a cumpri”. Mas aqui estava a afirmação de que
o último fio tinha sido traçado na tapeçaria da providência. Ele era o “Cordeiro
de Deus imolado desde a fundação do mundo” pela vontade divina. Havia
chegado, então, a “hora” ou o momento da execução daquela vontade. Com
ela, Ele pediu ao Pai que tomasse Sua natureza humana na glória da majestade
preexistente da divindade.

A AUTORIDADE DOS APÓSTOLOS

A parte seguinte da oração falava da relação entre o Pai, o Filho e os apóstolos;


tinha a ver com a autoridade destes.

Manifestei o teu nome aos homens que do mundo me deste.


Eram teus e deste-mos e guardaram a tua palavra.
Agora eles reconheceram que todas as coisas que me deste
procedem de ti.
Porque eu lhes transmiti as palavras que tu me confiaste
e eles as receberam e reconheceram verdadeiramente que saí de
ti,
e creram que tu me enviaste.
Por eles é que eu rogo.
Não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque
são teus.
(São João 17,6-9)

Deus não é só poder ou um vago Motor imóvel, como Aristóteles o


concebia; é um Pai amorosíssimo que não é inteiramente conhecido e
compreendido senão por Seu Filho. A seguir, Jesus descreveu os apóstolos em
quem Sua Presença foi sentida: foram separados do mundo que estava tomado
de incredulidade, mas eram propriedade do Pai. Todos aqueles que se tornaram
Seus Seguidores, disse, são dádivas do Pai. Ele os manteve como o Pastor as
ovelhas, ensinou-os como um mestre aos discípulos, curou-os como um
médico os pacientes. O Pai mergulhou a mão todo-poderosa nessa massa
pecaminosa da humanidade e separou dela homens do mundo; colocou-os
então nos braços de Seu Divino Filho, que, por sua vez, deu-lhes poder de levar
adiante Sua obra, falar em Seu Nome e aplicar os méritos de Sua Redenção.
Nosso Divino Senhor observa aqui a continuidade da missão — do Pai
até Ele e Dele aos apóstolos. Qualquer outro corpo de homens que possa, em
cinquenta, cem ou quinhentos anos, ler algo que um dos evangelistas escreveu
depois de Sua morte careceria daquele contato direto essencial para a
comunicação do poder divino. Crendo que o Pai enviara o Filho e que eles se
sentaram com o Filho feito carne, podiam agora atestar o fato de que Ele os
enviara. A Cruz haveria de estar sobre seus ombros como estava nos ombros do
Senhor; Ele foi caluniado, e eles também seriam vilipendiados. Se partilhassem
do espírito do mundo, e não do Espírito que o Senhor lhes daria, seriam
amados pelo mundo.
Depois de pedir que os apóstolos permanecessem em amor, Nosso Senhor
pediu ao Pai que fossem livrados do mal. Disse que estava deixando o mundo,
mas que eles permaneceriam nele, embora o mundo os odiasse do mesmo
modo como O crucificariam. Eles, e todos os que se uniriam a Ele por
intermédio do corpo apostólico, haveriam de estar no mundo, mas não seriam
do mundo. Nosso Senhor não pediu ao Pai que fossem poupados de doença, de
escárnio ou de acusações falsas; pediu apenas que fossem preservados do
pecado. Os ataques materiais exteriores deveriam ser enfrentados pela
resistência espiritual interior. Uma vez que haviam de ser ridicularizados pelo
mundo, o Senhor estava pedindo que resistissem por amor ao Seu nome. Não
havia escapismo. O mundo diria: “Se aceitais a Cristo, então sois escapistas”.
Mas Cristo disse que, se fugimos Dele, é que somos escapistas. Ele mesmo deu
o golpe de misericórdia na acusação de que Sua religião era um escape. No
monte das beatitudes, disse a seus seguidores que se considerassem felizes se
fossem perseguidos; agora, dizia-lhes que tinham de ser coparticipantes do ódio
que Ele mesmo sofria. A Cruz não é nenhum “escape”; é um fardo — “um
jugo suave e um fardo leve” (São Mateus 11,30).
Viver em meio à contaminação do mundo e ao mesmo tempo imune a ela
é algo impossível sem a graça. Agora, o pedido ao Pai era que os santificasse.

Não peço que os tires do mundo,


mas sim que os preserves do mal.
Eles não são do mundo,
como também eu não sou do mundo.
Santifica-os pela verdade.
A tua palavra é a verdade.
(São João 17,15-17)
No Antigo Testamento, aqueles que serviam a Deus tinham de ser santos.

Farás uma lâmina de ouro puro na qual gravarás,


como num sinete, Santidade a Javé.
Prendê-la-ás com uma fita de púrpura violeta na frente do
turbante.
Estará na fronte de Aarão, que levará assim a carga das faltas
cometidas pelos israelitas,
na ocasião de algumas santas ofertas que possam apresentar:
estará continuamente na sua fronte,
para que os israelitas sejam aceitos pelo Senhor.
(Êxodo 28,36-38)

A santidade, outrora evidenciada pela insígnia na fronte sacerdotal, agora


estaria no coração por meio do Espírito que Santifica. Não bastava que fossem
santos; tinham de ser “santificados pela verdade”. Assim como a luz do sol
purifica o corpo de doenças, assim também Sua verdade, disse Ele, santificava a
alma e a preservava do mal.
A santidade há de ter um fundamento filosófico e teológico, a saber, a
verdade divina; de outra sorte, é sentimentalismo e emocionalismo. Muitos
diriam mais tarde: “Queremos religião, mas sem credos”. É como dizer que
queremos cura, mas sem medicina; música, mas sem as suas regras; história,
mas sem documentos. Religião é de fato uma vida, mas provém da verdade, e
não pode dela se apartar. Diz-se que pouco importa em que você crê; tudo
depende de como você age. Isso é uma tolice psicológica, pois o homem age
com base em suas crenças. Nosso Senhor pôs a verdade ou a fé Nele em
primeiro lugar; em seguida vêm a santificação e as boas obras. Aqui, no
entanto, a verdade não era um ideal vago, mas uma pessoa. A verdade agora era
amável, porque só uma pessoa é amável. A santidade se torna a resposta do
coração à verdade divina e a sua graça ilimitada à humanidade. Então Nosso
Senhor acrescentou que, como Ele fora enviado para cumprir os negócios do
Pai, assim eles, santificados pelo Espírito de santidade, seriam enviados por
toda a terra como Seus embaixadores.
Como tu me enviaste ao mundo,
também eu os enviei ao mundo.
(São João 17,18)

Quando o Verbo se fez carne, a natureza humana que estava unida a Ele
foi santificada e consagrada a Deus. Agora, Ele pedia que aqueles que agiriam
em seu nome fossem tão dedicados a Ele segundo suas respectivas naturezas
assim como Ele se dedicara a Deus conforme a própria natureza. No dia
seguinte, por causa deles, Ele se ofereceria na Cruz para comprar-lhes a
dedicação à santidade. Mais eficaz do que as vítimas da Lei antiga com todas as
suas sombras e figuras, o holocausto de Cristo providenciou-lhes uma
santificação autêntica:

Santifico-me por eles para que também


eles sejam santificados pela verdade.
(São João 17,19)

Ele não reteve nada; tudo que era em Corpo, Sangue, Alma e Divindade
sacrificou por eles em total rendição. Onde Seu Sangue, aquele do Cordeiro de
Deus, fosse aspergido, ali estaria Seu Espírito e santificação. Ninguém O
conduziria ao matadouro. Oferecer-se-ia “por causa deles”, a fim de ser-lhes a
fonte da vida. Então, tanto aquele que santificava quanto os que foram
santificados seriam um. Os pecados do mundo foram transferidos para Ele, e a
Cruz foi o resultado; Sua santidade e santificação foram transferidas aos
apóstolos e àqueles que, por meio deles, creriam no Senhor. São Paulo
parafrasearia essa ideia em sua epístola aos coríntios.

Aquele que não conheceu o pecado,


Deus o fez pecado por nós,
para que nele nós nos tornássemos justiça de Deus.
(2 Coríntios 5,21)

A ORAÇÃO PELOS FIÉIS


A terceira parte de Sua oração foi por aqueles que através dos séculos creriam
nele por causa dos apóstolos:

Não rogo somente por eles,


mas também por aqueles que por sua palavra hão de crer em
mim.
Para que todos sejam um, assim como tu, Pai,
estás em mim e eu em ti, para que também eles estejam em nós
e o mundo creia que tu me enviaste.
Dei-lhes a glória que me deste,
para que sejam um, como nós somos um:
eu neles e tu em mim, para que sejam perfeitos na unidade
e o mundo reconheça que me enviaste
e os amaste, como amaste a mim.
(São João 17,20-23)

As preocupações mais profundas de Seu Sagrado Coração abarcavam as


dimensões do universo, assim o tempo como o espaço. Ele não teria unido
apenas os apóstolos em amor Consigo, mas também faria de todas as almas
crentes, por meio do ministério apostólico, um com Ele. A unidade com o
Senhor não seria global e confusa, mas íntima e pessoal, pois Ele disse:
“Chamo minhas ovelhas pelo nome”. Embora estivesse agora se dirigindo
apenas a 11 homens, tinha em mente todos os milhões que mais tarde viriam a
crer Nele por meio destes homens e de seus sucessores. O vínculo de unidade
deve existir entre os crentes e o Senhor, com base naquela unidade mais elevada
que há entre o Senhor e o Pai. Visto que o Pai e Ele são um no Espírito, em
poucos minutos Ele lhes contaria que este Espírito haveria de vir sobre eles
para fazer deles verdadeiramente um. Chamou a esse Espírito de “Espírito da
verdade”, isto é, Seu Espírito. Assim como o corpo é um porque tem alma,
assim também a humanidade deve ser uma quando tem o mesmo Espírito que
faz do Pai e do Filho um no céu. A unidade que os crentes tinham de ter com
Ele havia de ser intermediada pelos apóstolos. Então, concluiu essa parte da
oração por santidade e unidade de Seu Corpo Místico com as seguintes
palavras:
Pai, quero que, onde eu estou,
estejam comigo aqueles que me deste,
para que vejam a minha glória que me concedeste,
porque me amaste antes da criação do mundo.
Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu te conheci,
e estes sabem que tu me enviaste.
Manifestei-lhes o teu nome, e ainda hei de lho manifestar,
para que o amor com que me amaste esteja neles, e eu neles.
(São João 17,24-26)

Aquele que agora disse que completara Sua obra terrena designou seus
seguidores como uma comunidade, ou uma fraternidade. No início da oração,
Ele tinha simplesmente invocado o Pai dizendo: “É por estes que oro”. Agora,
torna-se mais categórico e expressa Sua vontade: “Este é meu desejo, Pai”.
Reconheceu que essa unidade seria completa e perfeitamente alcançada apenas
na glória e na eternidade. Todos os membros de Seu Corpo Místico um dia
veriam essa glória quando estivessem com Ele; então seria revelada a glória que
Ele tinha antes que “o verbo se fizesse carne e habitasse entre nós”, a glória que
era Dele “antes da fundação do mundo”.
No Pai Nosso, que Ele ensinou aos homens, havia sete petições. No “Meu
Pai”, também havia sete petições, e faziam referência aos apóstolos que eram o
fundamento de Seu Reino na terra. Primeiro, sua união contínua com Ele;
segundo, a alegria deles como resultado dessa união; terceiro, a proteção do
mal; quarto, a santificação na verdade que é Ele mesmo; quinto, a unidade de
uns com os outros; sexto, que enfim fossem um com Ele; e, sétimo, que
percebessem Sua glória.
41

A AGONIA NO JARDIM

Registrada na história de Nosso Senhor há somente uma vez em que Ele


cantou, e isso foi depois da Última Ceia quando partiu para a morte no Jardim
do Getsêmani:

Terminado o canto dos Salmos,


saíram para o monte das Oliveiras.
(São Marcos 14,26)

Os cativos na Babilônia penduravam as harpas nos salgueiros, pois não


podiam levar uma canção que provinha de seus corações para uma terra
estrangeira. Um cordeiro dócil não abre a boca ao ser levado ao abate, mas o
verdadeiro cordeiro de Deus cantou de alegria diante da perspectiva da
redenção do mundo. Então, veio a grande advertência de que todos poderiam
ter, Nele, a confiança abalada.
A “Hora”, sobre a qual muitas vezes falara, aproximava-se depressa;
quando chegasse, ficariam escandalizados: se Ele era Deus, por que haveria de
sofrer?

Esta noite serei para todos vós


uma ocasião de queda.
(São Mateus 26,31)
Aquele que seria a pedra angular da fé dos apóstolos nos dias seguintes
nesse momento os advertia de que também seria a pedra de tropeço.
Denominou-Se “o bom pastor” e, agora, era a hora de dar a vida por Suas
ovelhas. Remontando a séculos de profecias, lhes citava, nesse momento, o que
predissera Zacarias:

Fere o pastor, que as ovelhas sejam dispersas


(Zacarias 13,7)

Para ser um Salvador, Cristo deveria ser um sacrifício. Era isso o que os
escandalizaria. Na verdade, uma hora depois, todos os apóstolos O
abandonaram e partiram. No entanto, já que nunca falou de Sua Paixão sem
predizer a Ressurreição, imediatamente acrescentou palavras que eles não
compreendiam:

Mas, depois da minha Ressurreição,


eu vos precederei na Galileia.
(São Mateus 26,32)

Tal promessa nunca fora feita antes: um morto marcando um encontro


com os amigos depois de três dias na sepultura. Embora a ovelha pudesse
abandonar o pastor, o pastor encontraria a ovelha. Como Adão perdeu a
herança da união com Deus em um jardim, da mesma maneira Nosso Senhor
Bendito inaugurava a restauração em um jardim. O Éden e o Getsêmani foram
os dois jardins em torno dos quais girou o destino da humanidade. No Éden,
Adão pecou; no Getsêmani, Cristo tomou sobre Si os pecados da humanidade.
No Éden, Adão escondeu-se de Deus; no Getsêmani, Cristo intercedeu junto
ao Pai; no Éden, Deus procurou por Adão em seu pecado de rebelião; no
Getsêmani, o novo Adão procurou o Pai, submeteu-Se e resignou-Se. No Éden,
uma espada foi empunhada para evitar a entrada no jardim e, assim, a
imortalização do mal; no Getsêmani, a espada seria posta na bainha.
O jardim chamava-se Getsêmani por conta da presença de uma prensa de
azeitonas. Não foi a primeira vez que Nosso Senhor esteve nesse jardim.
Jesus ia frequentemente para lá com os seus discípulos.
(São João 18,2)

Além disso, muitas vezes passava as noites lá:

Durante o dia Jesus ensinava no templo e,


à tarde, saía para passar a noite
no monte chamado das Oliveiras.
(São Lucas 21,37)

Judas já tinha dado andamento a seu negócio escuso de traição. Oito dos
apóstolos foram deixados perto da entrada do Getsêmani; os outros três, Pedro,
Tiago e João, que foram os companheiros de Jesus quando Ele ressuscitou a
filha de Jairo e quando Sua face resplandeceu como o sol no Monte da
Transfiguração, foram com o Senhor para o jardim. É como se, naquela última
luta no vale das sombras, Sua alma humana ansiasse pela presença daqueles que
mais O amavam. Por parte dos apóstolos, estavam fortalecidos pelo escândalo
de Sua morte, já que tinham visto a prefiguração de Sua glória na
Transfiguração. Ao entrar no jardim, Ele lhes disse:

Assentai-vos aqui, enquanto eu vou ali orar.


(São Mateus 26,36)

Começando a ficar “consternado e angustiado”, disse aos três apóstolos:

Minha alma está triste até a morte.


Ficai aqui e vigiai comigo.
(São Mateus 26,38)

Isaías profetizara que recairia sobre Ele a iniquidade de todos. No


cumprimento dessa profecia, experimentou a morte por todos os homens,
suportando a culpa como se fosse própria. Dois elementos estavam
inseparavelmente unidos — carregar a culpa e obedecer sem pecado. Prostrado
com a face por terra, nesse momento rezava ao Pai Celestial:

Meu Pai, se é possível, afasta de mim este cálice!


Todavia não se faça o que eu quero,
mas sim o que tu queres.
(São Mateus 26,39)

Suas duas naturezas, a divina e a humana, estavam ambas encerradas nessa


prece. Ele e o Pai eram um; não era o “Nosso Pai”, mas o “Meu Pai”.
Inquebrantável era a consciência do amor do Pai, mas, por outro lado, Sua
natureza humana recuou da morte como uma penalidade pelo pecado. A
contração natural da alma humana diante da punição merecida pelo pecado era
dominada pela submissão divina à vontade do Pai. O “não” ao cálice da Paixão
era humano; o “sim” à vontade divina era a superação da relutância humana ao
sofrimento por conta da redenção. Tomar o cálice amargo do sofrimento
humano que expia o pecado e adoçá-lo com gotículas de “Deus assim o quer” é
o sinal Daquele que sofreu em nome do homem e, ainda assim, Aquele cujo
sofrimento tinha valor infinito, porque era Deus bem como homem.
Essa cena é envolta por um halo de mistério que nenhuma mente humana
pode adequadamente penetrar. Podemos tentar adivinhar, de modo vago, o
horror psicológico dos progressivos estágios de medo, ansiedade e pesar que O
prostraram antes que um único golpe tivesse sido dado. Dizem que os soldados
temem muito mais a morte antes da hora zero de um ataque do que no calor
da batalha. A luta ativa tira o medo da morte que se faz presente quando a
contemplamos sem agir. Entretanto, há algo mais profundo na antecipação
tranquila da contenda vindoura que acresceu sofrimento mental a Nosso
Senhor. É bem provável que a agonia no jardim tenha Lhe custado muito mais
sofrimento que a dor física da crucifixão, e, talvez, tenha levado Sua alma a
regiões muito mais sombrias que em qualquer outro momento da Paixão, com
a possível exceção do momento na cruz em que bradou:

Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?


(São Mateus 27,46)
Seus sofrimentos mentais eram muito diferentes dos sofrimentos de um
simples homem, porque além de possuir inteligência humana, Ele também era
dotado de inteligência divina. Ademais, tinha um organismo físico que era tão
perfeito quanto pode ser um organismo humano; portanto, era muito mais
sensível à dor que nossa natureza humana, que foi calejada por emoções brutas
e por experiências malignas.
Essa agonia pode ser retratada de maneira débil ao percebermos que há
diferentes graus de dor em vários níveis das criações. Os humanos muitas vezes
exageram a dor dos animais ao pensar que estes sofrem como os humanos. O
motivo por que não sofrem de maneira tão intensa quanto os humanos é que
não têm intelecto. Cada pulsação de dor animal é separada e distinta e não está
relacionada a nenhuma outra pulsação. No entanto, quando o homem sofre
uma dor, volta ao passado de sua memória intelectual, acresce todas as dores
anteriores e as faz recair sobre si, dizendo: “Esta é a terceira semana de agonia”
ou “este é o sétimo ano em que sofro”. Ao resumir todos os golpes anteriores
do martelo da dor, faz da centésima pancada algo misto em si, com a
intensidade multiplicada pelos 99 golpes anteriores. Isso o animal não pode
fazer. Por essa razão o homem sofre mais que as feras.
Além disso, a mente humana não só pode fazer o passado enfrentar o
presente, como pode olhar adiante e fazer o futuro enfrentar o presente. O
homem não somente pode dizer “sofri essa agonia por sete anos”, como
também “as perspectivas são de que sofrerei por mais sete anos”. A mente
humana alcança o futuro indefinido e traz para si toda essa agonia imaginada
que, para isso, ainda está armazenada e a adiciona ao momento presente de
dor. Por essa habilidade mental, não só de se lançar em um amontoado de
sofrimentos contínuos do passado, como também de se postar sob a pilha de
torturas futuras imaginadas, o homem pode sofrer muito mais que qualquer
animal. O homem se impregna do que aconteceu e do que acontecerá. É por
isso que, quando prestamos assistência ao doente, em geral, tentamos distraí-lo,
interrompendo a continuidade de sua dor e fazendo-o relaxar a mente, o que
torna menos provável que aumente a agonia.
Entretanto, no caso de Nosso Senhor, há duas diferenças que devem ser
mencionadas. Primeiro, o que predominava em sua mente não era a dor física,
mas a dor moral ou o pecado. Havia, de fato, o medo natural da morte que
deveria ter por Sua natureza humana; mas não era esse medo vulgar que
dominava Sua agonia. Era algo muito mais mortal que a morte. Era o fardo do
mistério do pecado do mundo que repousava em Seu coração. Segundo, em
acréscimo ao Seu intelecto humano que se desenvolvera pela experiência, tinha
o intelecto infinito de Deus que conhecia todas as coisas e via o passado e o
futuro como presente.
Pobres humanos, tão acostumados ao pecado que não percebem seu
horror. O inocente compreende o horror do pecado muito melhor que o
pecador. A única coisa com a qual o homem nunca aprende nada por
experiência é o pecado. Um pecador se torna infectado pelo pecado. Torna-se
parte dele, de modo que pode até acreditar ser virtuoso, assim como os febris
podem crer estar bem. Somente o virtuoso, que está fora da corrente do
pecado, pode olhar para o mal como um médico olha para a doença, pode
compreender o total horror do pecado.
O que Nosso Senhor contemplou em Sua agonia não foi somente o
esbofetear dos soldados e o amarrar das mãos e dos pés a uma haste de
contradição, mas, sim, o fardo terrível do pecado do mundo e o fato de o
mundo estar prestes a desprezar Seu Pai ao rejeitá-Lo, o Filho Divino. O que é
o mal senão a exaltação da vontade própria diante da vontade amorosa de
Deus; o desejo de ser um deus para si mesmo; acusar Sua sabedoria de
bobagem e Seu amor de desejo de ternura? Ele não retrocedeu do rijo leito da
Cruz, mas do quinhão do mundo de construí-lo. Queria que o mundo deixasse
de cometer o ato mais perverso de pecado perpetrado pelos filhos dos homens
— matar a Bondade Suprema, a Verdade e o Amor.
Grandes personagens e grandes almas são como montanhas — atraem as
tempestades. Sobre suas cabeças irrompem trovões; em volta dos topos
expostos lampejam os raios e a aparente ira de Deus. Aqui, no momento,
estava a alma mais solitária, mais triste que já viveu neste mundo, o próprio
Senhor. Maior que todos os homens, ao redor de sua fronte pareciam castigar
as próprias tormentas de iniquidade. Ali estava toda a história do mundo
resumida em um átimo, o conflito da vontade de Deus e da vontade do
homem.
Está além da capacidade humana perceber como Deus sentiu a oposição
das vontades humanas. Talvez o mais próximo disso seja quando os pais sentem
a estranheza do poder da vontade obstinada de seus filhos ao rechaçar e
desprezar a advertência, o amor, a esperança ou o medo da punição. Uma
capacidade demasiado forte que reside em um corpo tão diminuto e em uma
mente tão infantil; ainda assim, esse é um quadro débil dos homens quando
pecam voluntariamente. O que é o pecado para a alma senão um princípio de
sabedoria e uma fonte de felicidade apartados a realizar fins próprios como se
não houvesse Deus? O anticristo nada mais é do que o pleno crescimento sem
obstáculos da vontade própria.
Esse foi o momento em que Nosso Senhor Bendito, em obediência à
vontade do Pai, tomou sobre si as iniquidades de todo o mundo e se tornou o
portador do pecado. Sentiu toda a agonia e a tortura daqueles que negam a
culpa ou o pecado com impunidade e não fazem penitência. Foi o prelúdio da
terrível deserção que teve de suportar e que faria justiça ao Pai ao pagar o
débito que nos era devido: ser tratado como um pecador. Foi castigado como
pecador muito embora não houvesse pecado Nele — isso que Lhe causara
agonia, a maior que o mundo já viu.
Assim como os sofredores olham para o passado e para o futuro, da
mesma forma olhou o Redentor para o passado e para todos os pecados já
cometidos; também olhou para o futuro, para todos os pecados que seriam
cometidos até o Juízo Final. Não foram as pancadas de dor passadas que trouxe
ao presente, mas, sim, cada ato mau deliberado e cada pensamento degradante
oculto. Ali estava o pecado de Adão, quando, como o cabeça da humanidade,
perdeu para todos os homens a herança da graça de Deus; ali estava Caim,
escarlate, na mortalha do sangue de seu irmão; ali estavam as abominações de
Sodoma e Gomorra; ali estava o esquecimento de seu próprio povo, que se
prostrou diante de falsos deuses; ali estava a ignorância dos pagãos, que se
rebelaram até contra a lei natural; todos os pecados ali estavam: os pecados
cometidos no país que fizeram toda a natureza enrubescer; os pecados
cometidos na cidade, na fétida atmosfera citadina pecaminosa; os pecados dos
anciãos, que deveriam ter passado da idade de pecar; os pecados cometidos nas
sombras, onde pensavam não penetrar os olhos de Deus; os pecados cometidos
à luz, que faziam tremer até os perversos; pecados deveras horríveis para
mencionar, pecados demasiado terríveis para nomear: Pecado! Pecado! Pecado!
Uma vez que Sua mente pura e sem pecado trouxe toda a iniquidade do
passado para a alma como se Sua fosse, agora alcançava o futuro. Viu que Sua
vinda ao mundo com o intento de salvar os homens intensificaria o ódio de
alguns a Deus; viu as traições dos futuros Judas; os pecados de heresia que
lacerariam o corpo místico de Cristo; os pecados dos comunistas, que não
podiam forçar Deus a sair do céu, mas que expulsariam seus embaixadores da
terra; viu o rompimento dos votos matrimoniais, as mentiras, as calúnias, os
adultérios, os assassinatos, as apostasias — todos esses crimes foram lançados
em Suas mãos, como se os tivesse cometido. Desejos malignos foram postos em
seu coração como se Ele mesmo os tivesse gerado. Mentiras e cismas jaziam em
sua mente, como se Ele mesmo os tivesse concebido. As blasfêmias pareciam
estar em Seus lábios, como se as tivesse proferido. De Norte a Sul, Leste a
Oeste, o miasma nauseabundo dos pecados do mundo avançava em Sua
direção como uma enxurrada; como um Sansão, recebeu e atraiu todo o
pecado do mundo sobre Si como se fosse culpado, pagando a dívida em nosso
nome, a fim de que pudéssemos, mais uma vez, ter acesso ao Pai. Estava, por
assim dizer, preparando-Se mentalmente para o grande sacrifício, a lançar sobre
Sua alma sem pecado os pecados de um mundo criminoso. Para a maioria dos
homens, o fardo do pecado é tão natural quanto as roupas que vestem, mas,
para Ele, o toque daquilo que os homens tomam tão facilmente para si era a
mais certeira agonia.
Entre os pecados do passado que arrastou para Sua alma como se Dele
fossem e os pecados futuros que O fizeram ponderar a utilidade da morte —
Quae utilitas in sanguine meo —, estava o horror do presente.
Encontrou os apóstolos adormecidos por três vezes. Homens preocupados
com a luta contra os poderes das trevas não podiam dormir — mas esses
homens adormeceram. Não é de espantar, então, com a culpa acumulada de
todas as eras pendendo sobre Si como uma peste, que Sua natureza corpórea
padecesse. Assim como um pai em agonia pagará a dívida de um filho rebelde,
nesse momento sentia a culpa em tal grau que o sangue esvaiu de Seu corpo,
sangue que verteu como contas carmesins por sobre as raízes das oliveiras do
Getsêmani, gerando o primeiro rosário da redenção. Não foi a dor física que
Lhe causou a agonia da alma; mas o completo pesar da rebelião contra Deus
que gerava a dor corpórea. Há muito se observou que a resina que exsuda da
árvore sem corte é sempre a melhor. Aqui, as melhores porções jorraram
quando não havia açoite, cravos nem feridas. Sem lancetar, mas por mera
voluntariedade do sofrimento de Cristo, o sangue jorrou livremente.
O pecado está no sangue. Todo médico sabe disso; mesmo os transeuntes
podem atestar. A embriaguez está nos olhos, no rosto inchado. A avareza está
escrita nas mãos e nos lábios. A luxúria está escrita no olhar. Não há libertino,
criminoso, fanático ou pervertido que não tenha esse ódio ou inveja inscritos
em cada milímetro do corpo, em cada passagem e viela do sangue e em cada
célula do cérebro.
Já que o pecado está no sangue, este deve ser derramado. Como Nosso
Senhor desejou que o derramamento do sangue de bodes e animais devesse
prefigurar a própria expiação, da mesma maneira desejou mais ainda que os
pecadores nunca mais derramassem sangue algum em guerras ou por ódio, mas
tão somente invocassem Seu Precioso Sangue agora derramado em redenção. Já
que todos os pecados precisam de expiação, o homem moderno, em vez de
pedir o perdão no Sangue de Cristo, derrama o sangue dos próprios irmãos em
guerras obscenas. Toda a vermelhidão da terra não cessará até que o homem em
plena consciência de seus pecados comece a invocar para si, em paz e em
perdão, o sangue redentor de Cristo, o Filho do Deus Vivo.
Toda alma pode, ao menos vagamente, compreender a natureza da
batalha que ocorreu à luz do luar no Jardim do Getsêmani. Todo coração sabe
algo a esse respeito. Ninguém jamais chegou aos vinte anos — para não dizer
aos quarenta, aos cinquenta, ou aos setenta anos de vida — sem refletir, com
algum grau de seriedade, sobre si mesmo e sobre o mundo que o cerca e sem
experimentar a tensão terrível causada pela alma em pecado. Erros e tolices não
se apagam da memória; pílulas para dormir não os silenciam; psicanalistas não
podem explicá-los. O brilho da juventude pode fazê-los desvanecer em
contornos tênues, mas há tempos de silêncio — ao ficar doente, acamado, em
noites insones, no mar aberto, em momentos de quietude, na inocência no
rosto de uma criança —, quando esses pecados, como espectros ou fantasmas,
ardem com inexorável fulgor em nossas consciências. Sua força pode não ser
percebida em um momento de paixão, mas a consciência aguarda o momento
e, em alguma hora, em algum lugar, terá de suportar sua força intransigente e
ver nascer um temor na alma que a deve fazer voltar novamente a Deus. Ainda
que possam ser terríveis as agonias e torturas de uma única alma, elas são
apenas uma gota no oceano da culpa da humanidade que o Salvador sentiu
como Sua no jardim.
Ao encontrar os apóstolos dormindo pela terceira vez, o salvador não
perguntou de novo se podiam velar por uma hora com ele; mais terrível que
qualquer reprimenda foi a autorização, digna de nota, para dormir:

Dormi agora e repousai!


Chegou a hora: o Filho do Homem
vai ser entregue nas mãos dos pecadores...
(São Mateus 26,45)

Os seguidores cansados foram autorizados a dormir até o último


momento. Sua compaixão não era mais necessária; enquanto os amigos
dormiam, os inimigos conspiravam. É possível que tenha havido um intervalo
entre Ele os descobrir adormecidos e a chegada de Judas e os soldados. Nesse
momento, podiam continuar a dormir. A “Hora” a que tinha ansiosamente
aspirado era, agora, iminente. À distância, estava o ruído dos passos pesados
dos soldados romanos, os passos irregulares e apressados da multidão e das
autoridades do templo com um traidor à frente.

Levantai-vos, vamos!
Aquele que me trai está perto daqui.
(São Mateus 26,46)
42

O BEIJO PEÇONHENTO

A PRISÃO NO JARDIM

Aquele que havia libertado Lázaro das ataduras da morte submetia-se agora à
morte. Judas conduziu um grupo de guardas dos chefes dos sacerdotes e
fariseus, que empunhavam lanternas, archotes e armas. Judeus e gentios
uniram-se na prisão de Cristo. Embora fosse lua cheia, Judas teve de dar aos
soldados romanos um sinal para que conhecessem Nosso Senhor; o sinal foi
um beijo. Antes, contudo, que os archotes procurassem a Luz do Mundo, o
Bom Pastor foi ao encontro deles.
Judas estivera muitas vezes com Nosso Senhor naquele jardim, aonde o
Mestre levava os discípulos para orar; portanto, ele sabia onde encontrá-Lo. Os
maiores traidores são os criados na santa fraternidade de Cristo e de Sua Igreja.
Só eles sabem onde encontrar Cristo depois do cair da noite.
São João, que estava no jardim naquela noite e presenciou toda a cena,
disse que nada do que aconteceu pegou Nosso Senhor de surpresa:

Como Jesus soubesse tudo o que havia de lhe acontecer,


adiantou-se [...]
(São João 18,4)

Adão escondeu-se de Deus no Jardim do Éden; Deus agora procurava os


filhos de Adão no Jardim do Getsêmani. Com plena consciência de todas as
profecias do Antigo Testamento a Seu respeito como Cordeiro de Deus e como
oferta voluntária pelo pecado, Ele adiantou-se em rendição. Dirigindo-se com
majestade imponente à multidão que se juntou com espadas e pedras nas mãos,
desafiou-os a nomear Aquele a quem buscavam:

A quem buscais?
Responderam: A Jesus de Nazaré.
(São João 18,4-5)

Não disseram “A ti” ou “Tu és aquele que buscamos”. Era evidente que
não O reconheceram nem mesmo sob a lua cheia. Foi por isso, também, que
tinham combinado previamente com Judas um sinal pelo qual O conheceriam
— o beijo. É curioso que aqueles que estão empenhados no mal não
conseguem reconhecer a Divindade nem mesmo quando ela se põe bem diante
deles. A Luz pode brilhar nas trevas, mas as trevas não a compreendem. É
necessário mais que lanternas e lua cheia para perceber a Luz do Mundo.
Como explicou São Paulo:

Se o nosso Evangelho ainda estiver encoberto,


está encoberto para aqueles que se perdem,
para os incrédulos, cujas inteligências o deus deste mundo
obcecou
a tal ponto que não percebem a luz do Evangelho,
onde resplandece a glória de Cristo, que é a imagem de Deus.
(2 Coríntios 4,3-4)

E então lhes disse: “Eu sou Jesus de Nazaré”. Sobreveio-lhes um terror


paralisante, recuaram e caíram por terra. A humanidade dele nunca se separou
da Divindade, assim como a Cruz nunca se separou da Ressurreição. Um
momento antes, passara por grande agonia; agora, resplandecia a majestade de
Sua Divindade. Noutra ocasião, os oficiais que foram prendê-lo acabaram
presos pelas palavras Dele; os que seriam captores retrocederam, pois nenhum
deles, como disse Jesus, tiraria Sua vida; Ele a entregaria por Si mesmo. Mil
anos antes, o salmista previra esse incidente, que aconteceu figurativamente a
Davi:
Quando os malvados me atacam
para me devorar vivo,
são eles, meus adversários e inimigos,
que resvalam e caem.
(Salmo 26,2)

Quando teve um vislumbre de Deus, Isaías disse que estava “perdido”; e


Moisés não conseguiu olhar a face de Deus. E agora a Divindade, habitando
um corpo humano prestes a ser entregue à morte, reluziu para lançar os
soldados e a turba numa massa disforme. Nunca há humilhação sem sinal de
glória. Quando se humilhou para pedir a uma mulher da rua um pouco de
água, Ele prometeu dar água da vida; quando dormiu, exausto, num barco,
despertou para ordenar ventos e mares. Agora, enquanto se entregava nas mãos
dos homens, ali reluziu Sua glória. Ele podia ter fugido, com os soldados e Seus
inimigos caídos por terra, mas esta era a “Hora” em que o Amor se fez cativo a
fim de tornar o homem livre.
O autossacrifício não busca vingança. Judas e os outros não tinham poder
para capturá-lo a menos que Ele livremente se entregasse em suas mãos. Ao dar
poder aos inimigos para que se levantassem, Ele, como o Bom Pastor, tinha
uma única preocupação — Suas ovelhas:

Se é, pois, a mim que buscais,


deixai ir estes.
(São João 18,8)

Ele havia de seguir sozinho rumo ao sacrifício. O Antigo Testamento


ordenava que o sumo sacerdote estivesse sozinho quando da oferta do
sacrifício:

Ninguém esteja na tenda de reunião


quando Aarão entrar para fazer a expiação
no santuário até que saia.
Fará assim a expiação por si mesmo,
pela sua família e por toda a assembleia de Israel.
(Levítico 16,17)

Esta era Sua hora, mas não a hora dos apóstolos. Mais tarde, eles
sofreriam e morreriam em nome do Senhor, mas por ora não conseguiriam
compreender a Redenção até que o Espírito os tivesse iluminado. Ele passaria
pela prensa de vinho sozinho. Os apóstolos ainda não estavam em condições
espirituais de morrer com Ele; dentro em pouco, todos o abandonariam.
Ademais, não podiam sofrer por Cristo até que este primeiro sofresse por
aqueles. Todo o propósito de Sua morte redentora, em certo sentido, era dizer
a todos os homens “deixai ir estes”.
Ao adentrar o jardim, o Salvador pedira a Pedro, Tiago e João que
“orassem e vigiassem”. Pedro agora decidira trocar a oração pela ação. Tomando
uma das duas espadas que trazia consigo, feriu Malco, o servo do sumo
sacerdote. Como espadachim, Pedro era um ótimo pescador, pois o melhor que
conseguiu fazer, em seu intento desgovernado, foi cortar a orelha de Malco.
Conquanto o zelo de Pedro fosse sincero, bem-intencionado e impulsivo, ainda
assim estava equivocado na escolha dos meios. Nosso Bendito Senhor primeiro
tocou a orelha do homem ferido e o curou; depois, voltando-se a Pedro, disse:

Enfia a tua espada na bainha!


Não hei de beber eu o cálice
que o Pai me deu?
(São João 18,11)

Aqui contrastamos a espada e o cálice; a espada vence pela violência, o


cálice, pela submissão. Não a impaciência do violento, mas a paciência dos
santos haveria de ser Seu modo de ganhar almas. Amiúde, referiu-Se a Sua
Paixão e morte com a analogia de um “cálice”, como quando perguntou a
Tiago e João se podiam beber do cálice de Sua Paixão. Agora, o Senhor fala do
cálice não como vindo de Judas, nem do Sinédrio, nem dos judeus, nem de
Pilatos ou de Herodes, mas do Pai Celestial. O cálice continha a vontade do
Pai, segundo a qual, por amor aos homens, Jesus havia de oferecer a própria
vida a fim de restaurar-lhes uma vez mais a filiação divina. Tampouco dizia que
pesava sobre Ele a sentença de ter de sofrer Sua Paixão, mas, antes, que Ele
Mesmo, por amor, não podia agir de outro modo. “Não beberei deste cálice?”
Ademais, aqueles que arbitrária e presunçosamente recorreram à violência,
disse Nosso Senhor a Pedro, sofreriam dessa mesma violência. A vingança traz
sua própria punição. Corpos podem ser conquistados com espadas
desembainhadas, mas as mesmas espadas em geral se voltam contra aqueles que
as empunham:

porque todos aqueles que usarem da espada,


pela espada morrerão.
(São Mateus 26,52)

Essa era a única lição humana comprovada pela história. Pedro ainda
tinha de aprender que Aquele que parecia fraco era verdadeiramente Deus; que,
se desejasse, podia invocar em Seu auxílio um exército maior que qualquer um
que já se viu nesta terra:

Crês tu que não posso invocar meu Pai


e ele não me enviaria imediatamente
mais de 12 legiões de anjos?
(São Mateus 26,53)

Ele usou o termo romano “legião”. Fora preso pelo que se chamava uma
coorte, ou a décima parte de uma legião (que continha cerca de seis mil
homens). Se quisesse, podia ter chamado em sua ajuda 12 vezes seis mil para
livrá-Lo de Seus inimigos. Se houvesse um apelo à força, a espadinha de Pedro
seria reduzida à insignificância em comparação às hostes celestiais sob as ordens
do grande Comandante. Mas a recusa a invocar os anjos não foi uma rendição
involuntária ao destino, nem a submissão à dor a fim de ser purificado. Antes,
foi uma abdicação tranquila de alguns de Seus direitos; uma abstinência
voluntária do uso de uma força superior por causa dos outros, uma liberdade
permanente com pleno poder de ir embora, e ainda assim uma submissão por
amor à humanidade — eis um sacrifício fora do comum.
Voltando-se para a multidão sedenta de sangue, disse:

Saístes armados de espadas e porretes para prender-me,


como se eu fosse um malfeitor.
Entretanto, todos os dias estava eu sentado entre vós
ensinando no templo e não me prendestes.
Mas tudo isto aconteceu porque era necessário
que se cumprissem os oráculos dos profetas.
(São Mateus 26,55-56)

Mas o que haviam profetizado os profetas? Para citar apenas um, Isaías
previu como Ele seria contado entre os transgressores por Seus inimigos.

porque ele próprio deu sua vida,


e deixou-se colocar entre os criminosos,
tomando sobre si os pecados de muitos homens,
e intercedendo pelos culpados.
(Isaías 53,12)

Foi maltratado e resignou-se;


não abriu a boca, como um cordeiro
que se conduz ao matadouro,
e uma ovelha muda nas mãos do tosquiador.
(Ele não abriu a boca.)
(Isaías 53,7)

Olhando além de todas as causas secundárias, tais como Pilatos e Anás,


romanos e judeus, Nosso Senhor não via inimigos a serem combatidos pela
espada, mas um cálice oferecido pelo Pai. O Amor era o motivo e a origem do
sacrifício. Como Ele disse:

Com efeito, de tal modo Deus amou o mundo,


que lhe deu seu Filho único,
para que todo o que nele crer não pereça,
mas tenha a vida eterna.
(São João 3,16)

O pecado exigia expiação ou reparação. Sendo homem, Ele podia agir em


nome do homem; sendo Deus, Sua Redenção pelo pecado teria valor infinito.
Sua natureza humana tornou-o suscetível à dor e à morte e, portanto, capaz de
oferecer-se a si mesmo como sacrifício; no entanto, tinha de ser sem pecado, se
não Ele mesmo careceria de Redenção. O Cordeiro usado no sacrifício tinha de
ser “sem defeito”. O amor do Cordeiro tinha de ser voluntário; obrigar o
Cordeiro de Deus a sofrer seria o ápice da injustiça. Daí a afirmação de poder
no momento em que se entregou nas mãos deles. O que Deus permitia era
tanto Sua vontade quanto Sua ordem. Nosso Senhor recusou-se a ver a mão de
Seus inimigos em Sua morte, passando imediatamente à ideia do cálice que o
Pai Lhe deu. Ele descansava nesse amor, embora o cálice fosse amargo, pois
Dele haveria de vir o bem.
Ao entregar-Se nas mãos deles, cumpriu-se o que Nosso Senhor previu
acerca dos apóstolos:

Então os discípulos o abandonaram e fugiram.


(São Mateus 26,56)

Pedro, que desembainhara a espada na defesa contra o cálice, fugiu. Mais


tarde, acompanhava a cena a uma distância segura. João também seguia às
escondidas por trás da turba, para aparecer depois na casa do sumo sacerdote.
Judas, porém, permaneceu para ouvir a palavra “Hora”, que o Mestre havia
pronunciado pela primeira vez em Caná:

mas esta é a vossa hora e do poder das trevas.


(São Lucas 22,53)
Muitas vezes, o Senhor disse a Seus inimigos e a Herodes que não podiam
fazer nada com Ele até que Sua “Hora” tivesse chegado. Agora, anunciou-a; era
a hora em que o mal podia apagar a Luz do Mundo. O mal tem sua hora; Deus
tem Seu dia. Aquele que foi envolto em panos e posto numa manjedoura
quando assumiu a natureza humana em Belém estava agora prestes a ser atado
com cordas e posto numa Cruz. Noutra ocasião, quando Seus inimigos
tentaram prendê-Lo, Ele os prendeu com a força de Suas palavras; agora Ele se
sujeitava à prisão porque havia chegado a Hora. Os apóstolos, ouvindo o
retinir das correntes e vendo o brilho das espadas, esqueceram-se de toda a
glória do Messias, abandonaram-no e fugiram. O Sumo Sacerdote havia de
oferecer o sacrifício sozinho.
43

O JULGAMENTO RELIGIOSO

Nosso Senhor Santíssimo tinha duas naturezas: divina e humana. Ambas


estavam sendo julgadas, e por acusações totalmente diferentes. Assim se
cumpria a profecia de Simeão de que Ele era um “alvo de contradições” (São
Lucas 2,34). Os juízes não conseguiam concordar quanto a por que Ele deveria
morrer; só concordavam que deveria morrer. Os juízes religiosos, Anás e Caifás,
criam-No culpado por ser demasiado divino; os juízes políticos, Pilatos e
Herodes, criam-No culpado por ser demasiado humano. Diante de um era
muito espiritual; diante do outro, muito mundano; diante de um era muito
celestial; diante do outro, muito terreno. Daquele dia em diante Sua Igreja
também seria condenada com acusações contraditórias, da parte de alguns por
ser divina demais, da parte de outros por ser humana demais. Condenado por
acusações contraditórias, foi sentenciado ao símbolo de contradição que é a
cruz.
Se Nosso Senhor tivesse sido apanhado no templo ou apedrejado nas
muitas ocasiões em que os inimigos se prepararam para fazê-lo, as várias
profecias a respeito do sacrifício indicado como Cordeiro de Deus não se
teriam cumprido. Quando, antes, os fariseus disseram-Lhe que Herodes
planejava matá-Lo, Nosso Senhor disse que não Se entregaria à morte na
Galileia, mas em Jerusalém. Ademais, Ele lhes disse que nenhum homem podia
tirar-Lhe a vida; Ele mesmo a daria.
Entretanto, no jardim, quando

os discípulos o abandonaram e fugiram


(São Mateus 26,56)
Ele disse aos sumos sacerdotes:

esta é a vossa hora e do poder das trevas.


(São Lucas 22,53)

Quis dizer que, quando ensinava publicamente, viajando pela Judeia e


pela Galileia, ninguém nunca pôs as mãos Nele nem foram bem-sucedidos a
lançar-Lhe do precipício em Nazaré. No entanto, o mal tinha sua hora, a hora
de que tantas vezes falara. Nessa hora, Deus deu ao mal o poder de alcançar
um triunfo momentâneo que, ao cego espiritual, pareceria ter chegado à
vitória. As mãos dos perversos estão atadas até que Deus permita que operem e
não podem controlar o golpe um momento após Deus ordená-los parar. Os
poderes das trevas não podem tocar a propriedade de Jó nem sua pessoa até que
Deus permita; nem podem evitar o retorno da prosperidade de Jó quando
Deus a desejou. Assim também, nessa hora, as trevas teriam um poder que seria
impotente na Ressurreição.
Os soldados O ataram e O levaram. Talvez um dos motivos de assim
procederem tenha sido porque Judas dera ordens de que o amarrassem com
força. Além disso, o tipo dos sofrimentos de Cristo foi predito em Isaac,
quando Abraão, ao preparar-se para oferecer o filho a Deus como sacrifício,
indicou tal contenção forçada:

e amarrou Isaac, seu filho [...]


(Gênesis 22,9)

Então, eles o levaram embora; Ele não foi conduzido ou arrastado por
conta de Sua submissão voluntária. Como profetizou Isaías, Ele seria levado
como um cordeiro ao abate. Como o novo Jeremias, o Homem de Dores foi
acorrentado por Seu testemunho da verdade.
O trajeto escolhido foi ao longo do riacho de Cedron, depois
atravessaram o “Portão das Ovelhas”, que ficava próximo ao templo e por onde
passavam os animais para o sacrifício. Foi conduzido primeiro a Anás, que era
sogro de Caifás, o sumo sacerdote daquele ano. Visto que os romanos estavam
exercendo autoridade no país, é provável que um sumo sacerdote fosse eleito
todo ano; Anás, contudo, era realmente uma personalidade eminente na época,
muito embora Caifás estivesse presidindo o Sinédrio naquele momento.
Uma vez que ambos eram os representantes do poder religioso, o primeiro
julgamento foi baseado na religião. Anás tinha cinco filhos, e aprendemos de
outra fonte que estes tinham tendas no templo e estavam entre os compradores
e vendedores expulsos por Nosso Senhor quando Ele expurgou o templo. De
Anás, Cristo foi levado a Caifás. A lei antiga ordenava que todo animal
sacrificado pelos pecados do povo fosse conduzido diante do sacerdote. Assim,
Cristo, o representante do sacerdócio do Espírito, é conduzido diante de
Caifás, o representante do sacerdócio da carne. Foi esse mesmo Caifás quem
disse:

Convém que um só homem morra em lugar do povo.


(São João 18,14)

Estava evidente, portanto, que ele e o Sinédrio tinham decidido a respeito


da morte de Cristo antes de acontecer o julgamento. Julgamentos noturnos do
Sinédrio eram ilegais, mas, no desejo insano de se livrar de Cristo, mesmo
assim ele ocorreu. Ainda que não tivessem direito de realizar a execução capital,
manteve, contudo, o poder de instituir os julgamentos. Ao começar:

O sumo sacerdote indagou de Jesus


acerca dos seus discípulos e da sua doutrina.
(São João 18,19)

Visto que Caifás já havia determinado que Nosso Senhor deveria morrer,
não tinha a intenção de aprender nada; ao contrário, buscava encontrar alguma
desculpa para a injustiça planejada. As primeiras perguntas foram sobre a
organização de Cristo e dos seguidores, a qual o Sinédrio temia como ameaça à
própria posição, pois antes os fariseus tinham relatado:

Vede! Nada adiantamos!


Reparai que todo mundo corre após ele!
(São João 12,19)

O juiz não estava muito preocupado com os nomes dos seguidores de


Cristo, bem como com o número; o propósito desse interrogatório era arrancar
Dele uma resposta apropriada para a condenação. O questionamento a respeito
de Sua doutrina tinha como objetivo descobrir se Ele era o cabeça de uma
sociedade secreta ou se pregava alguma novidade ou heresia.
Nosso Senhor percebeu a astúcia por trás das perguntas e, com absoluto
destemor nascido da inocência, respondeu que sua doutrina era conhecida do
povo e aqueles que O ouviram poderiam dar testemunho. Não tinha nada
oculto, nenhuma quinta coluna, nenhuma doutrina que fosse para poucos.
Não havia segredo a respeito de Sua doutrina; todos a ouviram, pois Ele
pregava em público.

Falei publicamente ao mundo.


Ensinei na sinagoga e no templo,
onde se reúnem os judeus,
e nada falei às ocultas.
Por que me perguntas?
Pergunta àqueles que ouviram o que lhes disse.
Estes sabem o que ensinei.
(São João 18,20-21)

Cristo falou ao mundo, bem como aos judeus. Não testemunharia em


causa própria; todos sabiam o que Ele ensinou. Caifás apenas fingia ignorar
aquilo que era de conhecimento geral. O Sinédrio já não havia excomungado
qualquer um que acreditasse no Cristo? Em Sua humildade, Ele não pediu que
os mudos, os coxos, os cegos e os leprosos fossem chamados, mas, antes,
aqueles que o ouviram. As autoridades do templo há muito já haviam voltado
as costas para o povo; agora Ele ordenou que convocassem aqueles a quem
haviam desprezado. Contra esse isolamento aristocrático entre a função e o
povo, Cristo pôs Sua doutrina e Seus seguidores. Foi o primeiro beneplácito
cristão lançado acerca da opinião do homem das ruas. Assim, em resposta ao
duplo questionamento, Ele respondeu o primeiro ao apelar para o homem
comum e, ao segundo, ao afirmar que o livro de Seu ensinamento nunca fora
fechado, estava aberto a todos.
Quando Nosso Senhor respondeu dessa maneira, um dos guardas que
estava próximo a Ele golpeou-O com a palma da mão e disse:

É assim que respondes ao sumo sacerdote?


(São João 18,22)

Foi a mão de Malco, aquele cuja orelha foi curada pelo Salvador havia
uma hora ou menos? De qualquer modo, foi o primeiro golpe desferido ao
corpo do Salvador — um golpe sem reprimenda dos juízes. Assim, Caifás e a
corte realmente puseram o Cristo fora da esfera da lei. Para escapar ao
conteúdo da mensagem, o soldado criticou a forma — uma reação comum à
religião. Aqueles que não têm capacidade de criticar o Cristo recorrem à
violência. Tornaram-No um fora da lei. Com total brandura, Nosso Senhor lhe
respondeu:

Se falei mal, prova-o,


mas se falei bem, por que me bates?
(São João 18,23)

Com um sopro, Nosso Senhor poderia ter lançado o agressor na


eternidade, mas já que tinha de ser ferido pelas transgressões dos homens e
ofendido por suas iniquidades, aceitaria aquele primeiro golpe com paciência.
Entretanto, ao mesmo tempo, ordenou o testemunho do homem contra Ele, se
possível de modo que pudesse ter uma razão para a violência. Nosso Senhor
certa vez disse que, quando golpeados, deveríamos dar a outra face. Ele o fez?
Sim! Deu todo o corpo para ser crucificado.
Não conseguindo convencê-Lo a confessar Sua doutrina ou de Seus
discípulos, agora esperavam conseguir pelo falso testemunho:

Enquanto isso, os príncipes dos sacerdotes


e todo o conselho procuravam um falso testemunho contra
Jesus,
a fim de o levarem à morte.
Mas não o conseguiram,
embora se apresentassem muitas falsas testemunhas.
(São Mateus 26,59-60)

Nesse momento, ansiosos por condená-Lo à morte em vez de julgá-Lo


com justiça, convocaram falsas testemunhas, que se contradiziam. Por fim,
apresentaram-se duas testemunhas com declarações conflitantes. Uma delas O
citava, dizendo:

Ouvimo-lo dizer: Eu destruirei este templo,


feito por mãos de homens,
e em três dias edificarei outro,
que não será feito por mãos de homens.
(São Marcos 14,58)

Essas palavras eram uma perversão daquilo que Nosso Senhor dissera no
início do ministério público ao referir-se àquilo que agora começava a
acontecer. Depois de expulsar os vendilhões do templo, os fariseus Lhe
pediram um sinal de Sua autoridade. Nosso Senhor, ao referir-Se ao templo de
Seu corpo, disse:

Destruí vós este templo, e eu o reerguerei em três dias.


(São João 2,19)

Agora as falsas testemunhas afirmavam que Jesus dissera que Ele destruiria
o templo; mas o que realmente disse foi que eles O destruiriam e o templo
seria o Seu corpo, que acabara de receber um golpe violento. O templo terreno
receberia o golpe pelas mãos dos romanos, no governo de Tito. Ele não disse
“Destruirei”, mas, antes, “Destruí vós”. Nem mesmo disse “Construirei outro”,
mas “eu o reerguerei”, referindo-Se à Ressurreição. A distorção do que dissera,
não obstante, era um testemunho do propósito de Sua vinda e a instituição,
nas mentes deles, de Sua Cruz e glória. Assim como o côncavo e o convexo em
um círculo são feitos por uma mesma linha, da mesma maneira a maldade
voluntária e o sofrimento voluntário estão unidos. Os propósitos divinos agora
serão realizados como o foram em José, Sua prefiguração, que disse aos irmãos
que o venderam que eram mal-intencionados, mas que daquilo Deus faria
brotar o bem. Em Sua entrega nas mãos do mal, Judas entregou Nosso Senhor
aos judeus, os judeus O entregaram aos gentios e os gentios O crucificaram.
No entanto, no outro lado desse quadro, Nosso Senhor disse que o Pai
entregara o Filho em resgate de muitos. Desse modo, as ações malignas, mas
livres, dos homens são revogadas por Deus, que pode tornar a queda em uma
felix culpa, uma “culpa feliz”.
O Verbo Encarnado estava sem palavras durante o falso testemunho.
Caifás, irritado porque frustrado pelas contradições, exclamou:

Por Deus vivo, conjuro-te que nos digas se és o Cristo, o Filho


de Deus.
(São Mateus 26,63)

Caifás dirigiu-se a Nosso Senhor em sua função de sumo sacerdote ou


ministro de Deus e colocou Cristo sob juramento para responder. Caifás não
perguntou sobre a destruição do templo nem sobre seus discípulos. A pergunta
foi: seria Ele o Cristo ou o Messias; seria Ele o Filho de Deus, revestido do
poder divino, seria Ele o Verbo feito Carne? Seria Ele o verdadeiro Deus, que
em tempos variados e de maneiras diversas falou-nos pelos profetas, nesses
últimos dias falara por intermédio de Seu Filho (Hebreus 1,1-2)? És o Filho de
Deus? Jesus abriu a boca e proferiu três palavras:

Eu o sou.
(São Marcos 14,62)

Com consciência sublime e dignidade majestática, Ele respondeu ser o


Messias e o Filho do Deus Vivo. Havia uma alusão oculta ao nome pelo qual
Deus revelara-se a Moisés. Então, passando da natureza divina à natureza
humana, acrescentou:

Além disso, eu vos declaro que


vereis doravante o Filho do Homem
sentar-se à direita do Todo-poderoso,
e voltar sobre as nuvens do céu.
(São Mateus 26,64)

Primeiro, afirmou Sua divindade, depois Sua humanidade; mas ambas


com o pronome pessoal “Eu”. Na hora em que as maiores indignidades
recaíram sobre Ele, deu testemunho de estar à direita do Pai, de onde viria no
último dia. Entretanto, Se sentaria à direita do Pai e ascenderia aos céus; se
tinha de haver uma segunda vinda, seria para colocar na balança a recepção das
almas à Sua primeira vinda, “Sua existência humilde na terra”. Nosso Senhor
também se referia ao Salmo 109, que previa a exaltação do Filho de Deus após
a humilhação, quando poria os inimigos sob escabelo de Seus pés. Apesar da
certa condenação que se apresentava, permitiu Sua glória refulgir entre a
injustiça civil ao proclamar o Seu triunfo, Seu Reino e o fato de que julgaria o
mundo. O salmista já tinha profetizado o que Ele disse, e Daniel, com maior
clareza, havia predito:

Olhando sempre a visão noturna,


vi um ser, semelhante ao filho do homem,
vir sobre as nuvens do céu:
dirigiu-se para o lado do ancião,
diante de quem foi conduzido.
A ele foram dados império, glória e realeza,
e todos os povos, todas as nações
e os povos de todas as línguas serviram-no.
Seu domínio será eterno;
nunca cessará e o seu reino jamais será destruído.
(Daniel 7,13-14)
Anos depois desse julgamento, quando Estêvão foi martirizado e abatido
sob o peso das pedras, viu o que Cristo nesse momento disse a Caifás:

Eis que vejo, disse ele, os céus abertos e


o Filho do Homem, de pé, à direita de Deus.
(Atos dos Apóstolos 7,56)

Irrompeu uma tempestade sobre Sua cabeça enquanto o Sinédrio O ouviu


admitir a própria divindade. O relógio estava para bater às 12 horas; o primeiro
julgamento terminou assim que o sumo sacerdote proferiu a decisão de que Ele
era culpado por blasfêmia:

A estas palavras, o sumo sacerdote


rasgou suas vestes, exclamando:
Que necessidade temos ainda de testemunhas?
Acabastes de ouvir a blasfêmia!
(São Mateus 26,65)

Era costume que os hebreus rasgassem as vestes como manifestação de


grande pesar e dor, assim como Jacó rasgou a veste ao receber notícias da morte
de seu filho José, e como Davi rasgou as roupas ao ouvir sobre a morte de Saul.
Ao rasgar as vestes, Caifás, na verdade, despia-se do sacerdócio, punha fim ao
sacerdócio de Aarão, abrindo caminho para o sacerdócio de Melquisedec. As
vestimentas do sacerdote foram laceradas e destruídas pelas mãos do próprio
sumo sacerdote, mas o véu do templo seria rasgado pelas mãos de Deus. Caifás
rasgou as vestes de baixo a cima, como de costume; Deus rasgou o véu de cima
a baixo, pois nenhum homem tinha parte nisso. Caifás agora pergunta ao
Sinédrio:

Que necessidade temos ainda de testemunhas?


Acabastes de ouvir a blasfêmia!
Qual o vosso parecer?
Eles responderam: Merece a morte!
(São Mateus 26,65-66)

A conclusão foi rapidamente alcançada; o prisioneiro havia blasfemado


contra Deus. A própria vida deveria experimentar a morte. Sua morte,
contudo, fora determinada exatamente porque proclamara Sua divindade
eterna. Caifás, antes, dissera que seria útil um homem morrer antes que os
romanos, mais do que nunca, tomassem a nação. Nesse momento, ele e o
Sinédrio assumiram posição diversa; saindo do utilitário para o jurídico,
argumentaram que Sua morte era necessária para preservar a unidade espiritual
entre Deus e Seu povo. O Sinédrio livrou-se da responsabilidade pela acusação
ao invocar Deus contra Deus.
Condenado como blasfemo, todas as coisas eram permitidas, pois Ele não
tinha direitos.

Cuspiram-lhe então na face,


bateram-lhe com os punhos e deram-lhe tapas,
dizendo: Adivinha, ó Cristo: quem te bateu?
(São Mateus 26,67-68)

Cobriram-Lhe a face e, então, cerraram a luz do céu; ainda assim, ao


cobrir Seus olhos, cegaram a si mesmos. O véu estava, na verdade, nos próprios
corações, não nos olhos do Cristo. Aqueles que tinham tanto orgulho do
templo terreno, agora, esbofeteavam o templo celeste, pois Nele habitava a
plenitude da divindade (Colossenses 2,9). Utilizaram o título “Cristo” de
maneira sarcástica; mas estavam mais certos do que imaginavam, visto que Ele
era o Messias, o ungido de Deus.
Caifás obtivera o que queria, a saber, prender o Cristo por Suas palavras
blasfemas, pois alegara ser, por natureza, o Filho de Deus. Questionava-se se
Ele era ou não o Messias e o Filho de Deus, prenunciado pelos profetas. Era
Cristo, o Profeta, portanto, Quem estava sendo julgado diante de Caifás; seria
Cristo, o Rei, Quem seria julgado diante de Pilatos; e seria Cristo, o Sacerdote,
quem seria renegado na Cruz ao oferecer a vida em sacrifício. Em cada
momento, Seu ofício seria escarnecido. Aqui, o escárnio foi dirigido a Cristo, o
Profeta, em cumprimento à profecia de Isaías:
Aos que me feriam, apresentei as espáduas,
e as faces àqueles que me arrancavam a barba;
não desviei o rosto dos ultrajes e dos escarros.
(Isaías 50,6)

O julgamento religioso havia terminado. O Filho de Deus foi culpado de


blasfêmia; a Ressurreição e a Vida foram sentenciadas ao túmulo; o Sumo
Sacerdote eterno foi condenado “pelo sumo sacerdote daquele ano”. Nesse
momento, o Sinédrio escarnecia Dele; a seguir seria o Império Romano e,
depois, na Cruz, a junção dos dois. Nesse momento em que o Sinédrio O
condenara culpado, seguiu os procedimentos para entregá-Lo a Pilatos, crendo
que ele, que por si só tinha autoridade para levar Cristo à morte, o faria sem
hesitar. A profecia de que Ele seria entregue aos gentios agora se cumprira. No
entanto, assim como Judas trouxe para si a morte que preparara para o Cristo,
Caifás, igualmente, ao decidir enviar o Cristo à morte por temor dos romanos,
apenas preparou a destruição final da cidade de Jerusalém e do templo. Assim
como o povo entregou Cristo aos romanos, eles foram, mais tarde, entregues ao
poder de Roma.
44

AS NEGAÇÕES DE PEDRO

Quando Nosso Senhor foi preso, Pedro seguiu-O à distância; João estava com
ele. Ambos foram à casa de Anás e Caifás, onde Nosso Senhor foi julgado. A
casa do sumo sacerdote, onde se deu o julgamento, era, como muitas casas
orientais, construída em torno de um pátio quadrangular, ao qual se adentrava
por uma passagem da parte da frente da casa. Essa passagem ou arcada era um
pórtico fechado para a rua por um portão pesado. O portão, na ocasião, era
guardado por uma criada do sumo sacerdote. O interior do pátio ao qual a
passagem levava era pavimentado com lajotas e a céu aberto. A noite estava
fria, pois era início de abril. Pedro já tinha decepcionado o Senhor no jardim,
quando dormiu; agora, tinha uma chance de reparar sua falta. Mas o perigo
espreitava Pedro, em primeiro lugar por causa da autoconfiança exagerada na
própria lealdade. Conquanto um profeta antigo tivesse dito que as ovelhas
seriam dispersas, Pedro sentia que, porque lhe foram dadas as chaves do Reino
do Céu, podia estar isento de tal colapso. Um segundo perigo era sua falha
anterior, quando foi exortado a “vigiar e orar”. Não vigiou, pois caiu no sono;
não orou, pois substituiu a espiritualidade pelo ativismo ao brandir a espada.
Um terceiro perigo era que a distância física que ele guardava de Cristo fosse
um símbolo da distância espiritual que os separava. Qualquer distância do sol
da justiça é escuridão.
Quando entrou no pátio, Pedro começou a aquecer-se perto do fogo. À
luz das chamas, a criada que lhe permitira entrar pôde ver melhor o seu rosto.
Se o desafio à lealdade de Pedro viesse de uma espada ou de um homem,
possivelmente ele teria sido mais forte; mas, impedido pelo orgulho, uma moça
mostrou-se mais forte que o presunçoso Pedro. O plano de Cristo era vencer
pelo sofrimento; o plano de Pedro era vencer pela resistência. Mas neste caso
havia uma oposição pouco óbvia. Pego desprevenido pela criada, fez a primeira
negação. A criada disse-lhe:

Também tu estavas com Jesus, o Galileu.


(São Mateus 26,69)

A todos em volta do fogo, Pedro respondeu:

Não sei o que dizes.


(São Mateus 26,70)

Pedro começou a sentir-se incomodado com o que lhe parecia um


holofote de chamas que lhe examinava a alma assim como o rosto; desse modo,
afastou-se um pouco em direção ao pórtico. Ansioso para escapar de olhares
inquiridores e línguas mexeriqueiras, sentiu-se mais seguro ao abrigo da
escuridão do pórtico. A mesma criada, ou talvez outra, foi até ali, afirmando
que ele estivera com Jesus de Nazaré; Pedro negou mais uma vez, agora fazendo
um juramento:

Eu nem conheço tal homem.


(São Mateus 26,72)

Aquele que desembainhara a espada em defesa do Mestre poucas horas


antes agora negava Aquele a quem tentara defender. Aquele que chamara seu
Mestre de “Filho do Deus vivo” agora o chama de “homem”.
Passou mais algum tempo, e seu Salvador foi acusado de blasfêmia e
entregue à brutalidade dos carrascos; Pedro, no entanto, ainda estava cercado.
Embora fosse meia-noite, ou mais, a multidão provavelmente aumentava com
as notícias do julgamento de Nosso Bendito Senhor. Entre aqueles que estavam
por ali havia um parente de Malco, que se lembrou claramente de que Pedro
cortara a orelha de seu familiar no jardim e que o Senhor a curou. Pedro, o
tempo todo desejando esconder o nervosismo e fingir mais do que nunca que
não conhecia o homem, ficou evidentemente loquaz; e isso o entregou. Seu
sotaque provinciano mostrou que era um galileu; era de conhecimento público
que a maioria dos seguidores de Nosso Senhor provinham dessa região,
desprovida do dialeto polido da Judeia e de Jerusalém. Havia certos sons
guturais que os galileus não conseguiam pronunciar, e imediatamente um dos
circunstantes disse:

Sim, tu és daqueles;
teu modo de falar te dá a conhecer.
(São Mateus 26,73)

Pedro fizera um juramento; e dessa vez:

Pedro então começou a fazer imprecações,


jurando que nem sequer conhecia tal homem.
(São Mateus 26,74)

Neste momento, Pedro estava enfurecido, então invocou o Deus


Onipotente como testemunha de sua reiterada mentira. Há quem se pergunte
se não houve um tipo de reversão a seus dias de pescador; talvez quando sua
rede se embaraçava no Mar da Galileia, ele perdesse as estribeiras e começasse a
blasfemar. Em todo caso, agora ele jurava a fim de convencer os incrédulos.
Memórias do passado o atropelaram. O Senhor o chamara de “bem-
aventurado” quando lhe dera as chaves do Reino do Céu e permitira que visse
Sua glória na Transfiguração. Agora, na madrugada fria como a consciência da
culpa instalada em sua alma, ouviu um som inesperado:

[...] cantou o galo.


(São Mateus 26,74)

Até a natureza protestou contra a negação de Cristo. Então, como o


clarão de um raio, lembrou-se das palavras ditas por Jesus:
Antes que o galo cante,
negar-me-ás três vezes.
(São Mateus 26,75)

Neste momento, Nosso Bendito Senhor foi retirado da flagelação, com o


rosto coberto de cusparadas:

Voltando-se o Senhor, olhou para Pedro.


(São Lucas 22,61)

Ainda que estivesse vergonhosamente preso, os olhos do Mestre buscaram


os olhos de Pedro com compaixão ilimitada. Não disse nada; só olhou. O olhar
provavelmente refrescou a memória de Pedro e despertou-lhe o amor. Pedro
podia negar o “homem”, mas Deus continuaria a amar o homem Pedro. O
próprio fato de que o Senhor teve de se virar para olhar significava que Pedro
voltara as costas ao Senhor. O cervo ferido estava buscando a mata fechada
para sangrar sozinho, mas o Senhor veio arrancar a flecha do coração ferido de
Pedro.

[Pedro] saiu dali e chorou amargamente.


(São Lucas 22,62)

Pedro agora estava tomado de arrependimento, assim como Judas, em


poucas horas, estaria tomado de remorso. O pesar de Pedro foi causado pelo
pensamento do pecado propriamente dito ou de ter ferido a Pessoa de Deus. O
arrependimento não diz respeito às consequências; o remorso, no entanto, é
inspirado sobretudo pelo temor das consequências. A mesma graça estendida
àquele que O negou seria estendida àquele que O pregaria na Cruz e ao ladrão
penitente que pediria perdão. Pedro de fato não negou que Cristo era o Filho
de Deus; negou conhecer “o homem”, ou que fosse um de Seus discípulos. Mas
decepcionou o Mestre. E, ainda assim, sabendo de tudo, o Filho de Deus fez de
Pedro, que conheceu o pecado, e não João, a Rocha sobre a qual edificou Sua
Igreja, a fim de que os pecadores e os fracos jamais caíssem em desespero.
45

O JULGAMENTO PERANTE PILATOS

O julgamento de Cristo, o Profeta, havia terminado; agora tinha início o


julgamento de Cristo, o Rei. Os juízes religiosos acharam Nosso Senhor
demasiado divino porque chamara a Si mesmo Deus; nesse momento, os juízes
civis condená-Lo-iam por ser demasiado humano. Quando um tribunal
superior ouve um caso apresentado por um tribunal inferior há continuidade
nas acusações. Os juízes religiosos não tinham poder de vida e morte, visto que
os romanos conquistaram o território. Era de se esperar, portanto, que, quando
Nosso Senhor Bendito fosse levado diante do tribunal superior de Pilatos, a
mesmíssima acusação Lhe seria feita, a saber, blasfêmia. A aprovação e a
sentença de morte requeriam, contudo, o selo de Pilatos. Havia duas maneiras
pelas quais o Sinédrio poderia obter isso: Pilatos aceitar o julgamento da corte
religiosa ou iniciar um novo julgamento na corte civil dos conquistadores. O
segundo foi o método escolhido, e isso foi bem sensato. O Sinédrio sabia
muito bem que Pilatos riria deles, caso dissessem que Cristo era culpado de
blasfêmia. Os judeus tinham o seu Deus, Pilatos tinha os seus deuses. Além
disso, essa era uma acusação puramente religiosa, e Pilatos devolveria o caso ao
tribunal judaico sem sentenciar Cristo à morte.
Para compreender a relação entre o conquistado e o conquistador,
devemos dizer uma palavra a respeito de Pilatos e do ódio que os judeus
tinham por ele. Sexto procurador romano da Judeia desde a conquista, Pilatos
manteve seu posto por uns dez anos durante o reinado do Imperador Tibério.
Sua conduta arbitrária e, por vezes, cruel acarretara repetidos levantes de
judeus, reprimidos com medidas violentas. O povo de Jerusalém o desprezava
não só porque era representante do imperador romano e não era da raça deles,
mas também porque fez pintar retratos do imperador e os levou, à noite, para
serem expostos no templo. Pilatos ameaçava matar os judeus com espadas caso
protestassem contra esse ato, mas os judeus ofereceram seus pescoços a Pilatos e
reclamaram com Tibério. O resultado foi a remoção de tais representações. Foi
Herodes Antipas quem levou a petição dos judeus a Tibério. Essa pode ser a
razão do atrito que existia entre Pilatos e Herodes.
Outro motivo pelo qual Pilatos era odiado foi o confisco de alguns fundos
do tesouro, que usou para construir um aqueduto. Alguns judeus da Galileia
foram assassinados em um distúrbio durante a construção, e pode ter sido
durante algum desses tumultos que Barrabás tenha sido preso como líder dos
agitadores, além de ladrão. Pilatos tinha de ser muito cauteloso com seu posto
em Roma, já que Roma, numa ocasião, deixara de apoiá-lo na ação contra os
judeus.
Pela manhã, bem cedo, todos os membros do Sinédrio — dentre eles os
sacerdotes, anciãos e escribas — decidiram levar Cristo a Pilatos e pedir Sua
sentença de morte. Os sacerdotes estavam indignados com o que Ele dissera de
si mesmo como o Cordeiro de Deus; os anciãos estavam ofendidos porque, em
oposição ao tradicionalismo rígido, Ele afirmou que era o Verbo de Deus; os
escribas O odiavam porque Ele se opôs à letra da Palavra e prometeu que o
Espírito a iluminaria. Após terminar os planos para levá-Lo à morte:

Ligaram-no e o levaram ao governador Pilatos.


(São Mateus 27,2)

Diversas vezes Nosso Senhor foi atado, quando O capturaram pela


primeira vez e quando O levaram ao tribunal de Anás e Caifás. Colocá-Lo em
correntes para Pilatos ver daria a impressão de que Ele cometera um crime
terrível. Levá-Lo a Pilatos foi um dos pontos de inflexão da Paixão, pois
cumpriu a profecia que Nosso Senhor mencionara:

Ele será entregue aos pagãos.


Hão de escarnecer dele, ultrajá-lo, desprezá-lo;
bater-lhe-ão com varas e o farão morrer;
e ao terceiro dia ressurgirá.
(São Lucas 18,32-33)
O Sinédrio O levou porque rejeitaram a promessa de salvação que veio do
Messias; agora cabia aos gentios decidir o que deveriam fazer; se rejeitariam o
Rei como o Sinédrio rejeitara o Profeta. A grande muralha entre judeus e
gentios, por fim, foi derrubada, já que ambos O condenaram à morte. Como
escreveu São Paulo:

ele que de dois povos fez um só,


destruindo o muro de inimizade que os separava,
abolindo na própria carne a lei,
os preceitos e as prescrições [...].
(Efésios 2,14)

Assim, a responsabilidade por Sua morte não podia ser posta sobre
qualquer povo, mas sobre toda a humanidade:

o mundo inteiro seja reconhecido culpado diante de Deus.


(Romanos 3,19)

O Sinédrio — que tinha escrúpulos de utilizar o dinheiro de Judas que


comprara sangue — também tinha escrúpulos de entrar na casa de um gentio,
nesse caso, de Pilatos. Ao levar o prisioneiro divino a Pilatos, havia uma coisa
que as consciências sensíveis dos membros do Sinédrio temiam — a impureza.
Pilatos era um gentio; entrar em seu pretório os macularia de tal modo que não
poderiam celebrar a Páscoa. Tinham de se manter puros para derramar o
sangue inocente do cordeiro pascal. Por isso preferiram derramar o sangue
inocente do Cordeiro de Deus em vez de cruzar a soleira do gentio. Certa vez,
Nosso Senhor chamara os fariseus de “sepulcros caiados”, porque, como as
tumbas pintadas de branco, estavam limpos por fora, mas, no interior, cheios
de ossadas de homens mortos. O julgamento agora se cumprira em
contaminação pavorosa com a carne incircuncisa enquanto viviam com os
corações não circuncidados. Havia outros escrúpulos também; se entrassem em
uma casa em que todo o fermento não tivesse sido removido, não poderiam
participar da Páscoa.
Quando os funcionários do Sinédrio chegaram ao pretório (ou a casa do
governador), Pilatos saiu para encontrá-los, pois sabia que se considerariam
impuros se forçados a entrar. Seguindo a tradição romana de respeito à lei,
declarou que não daria a sentença a menos que as provas demonstrassem que o
acusado era culpado. Então, perguntou ao Sinédrio:

Que acusação trazeis contra este homem?


(São João 18,29)

Para conquistar a boa vontade de Pilatos, convidaram-no a confiar no


juízo que já haviam pronunciado. Ademais, asseguraram-lhe que, por certo,
não fariam nada contra um inocente:

Se este não fosse malfeitor, não o teríamos entregue a ti.


(São João 18,30)

Nada foi dito a respeito da blasfêmia. Sabiam que a acusação seria inútil
diante de um gentio, um conquistador, aquele que desprezavam; assim,
utilizaram o termo geral “malfeitor”. E aqui estavam mais certos do que
imaginavam, pois Cristo era, de fato, um malfeitor, ou aquele que “portava os
pecados de muitos”.
Pilatos, sabendo que a posição deles diante de Roma não era a de proteger
sua autoridade e sem querer lidar com o caso, disse-lhes que O julgassem
segundo a própria lei. Entretanto, responderam que não tinham poder de
enviar homem algum à morte — o que, de fato, era verdade, já que esse poder
pertencia a Roma. Além disso, não ousavam mandar à morte quem quer que
fosse no dia festivo em que sacrificavam o cordeiro pascal.
Nesse momento fizeram três acusações a Nosso Senhor para forçar Pilatos
a ouvir o caso:

Temos encontrado este homem


excitando o povo à revolta,
proibindo pagar imposto ao imperador
e dizendo-se Messias e rei.
(São Lucas 23,2)

Ainda sem mencionar a blasfêmia, a acusação agora era sedição; Cristo


não era patriota, Ele era demasiado mundano; era demasiado político. Ele era
anti-César, anti-Roma. Em suma, era um enganador que induzia o povo a
seguir outra direção que a ditada por Roma. Em segundo lugar, impelia as
pessoas a não pagar os tributos ao rei ou a César. Em terceiro lugar, punha-se
como um rei rival a Pilatos — o que era um abuso de majestade. Os romanos,
diziam, deveriam estar vigilantes a esse arrivista político. Falaram até de
“lealdade de nosso povo” a Roma, ao passo que seus corações realmente
menosprezavam Pilatos e Roma.
Cada palavra era uma mentira. Se Cristo fosse um líder da insubordinação
ou se tivesse qualquer sinal de insurreição relacionado com Seu nome, Pilatos
teria ouvido algo a esse respeito. Igualmente o teria ouvido e desconfiado
Herodes, mas nunca ouvira a menor reclamação Dele antes. Quanto à acusação
de ter deixado de pagar tributo a César, há pouco tempo, quando tentaram
apanhá-Lo nessa armadilha no templo, Ele dissera ao povo “dai a César o que é
de César”. A terceira acusação — de que era rei — não foi a de que Se fizera rei
dos judeus, mas, antes, de que Ele era um rei que desafiava César. Isso também
era uma mentira, porque, quando as pessoas buscaram torná-Lo essa espécie de
rei, Ele partiu sozinho para as montanhas.
Pilatos desconfiou da sinceridade deles, porque sabia quanto os judeus
odiavam a ele e a César. Entretanto, uma acusação o preocupava um pouco.
Seria o prisioneiro que estava diante dele um rei? Pilatos convocou Nosso
Senhor a entrar na casa. Uma vez no salão dos julgamentos, Pilatos perguntou:

És tu o rei dos judeus?


(São João 18,33)

A acusação não era apenas de ser rei. Pilatos sabia que se Cristo estivesse
se designando como um rei antagonista aos romanos, os gentios estariam ali
para testemunhar contra Ele. Então, perguntou se Ele era o rei dos judeus.
Nosso Senhor, em resposta à pergunta, penetrou na consciência de Pilatos;
perguntou-lhe se estava dizendo aquilo porque suas suspeitas surgiram pela
falsa acusação dos inimigos. Pilatos esperava uma resposta direta. Nosso
Senhor, nesse momento, tornou clara a distinção que tinha de ser feita entre a
realeza política e a religiosa; a realeza política, que era o único interesse que
Pilatos tinha naquele caso, o Mestre rejeitou; a realeza religiosa, que significava
Ele ser o Messias, Nosso Senhor admitiu. Para o cético Pilatos, Nosso Senhor
Santíssimo tinha de tornar claro que Seu Reino não era um reino terreno
obtido pelo poder militar; mas, em vez disso, um reino espiritual a ser
instituído na verdade. Só teria súditos morais, não políticos. Reinaria nos
corações, não nos exércitos.

O meu Reino não é deste mundo.


Se o meu Reino fosse deste mundo,
os meus súditos certamente teriam pelejado
para que eu não fosse entregue aos judeus.
Mas o meu Reino não é deste mundo.
(São João 18,36)

A preocupação de Pilatos a respeito de uma provocação ao poderio


romano estava, no momento, atenuada. O Reino de Cristo não era deste
mundo, portanto, Ele não era como Judas, o Galileu, filho de Ezequias, que
liderara uma rebelião contra Roma, poucas décadas antes, ao incitar o povo a
não pagar impostos. Pilatos deve ter ouvido na noite anterior, quando Pedro
argumentara com a espada, que Nosso Senhor repreendera o portador da arma
e curara o homem ferido. Se o Reino Dele fosse deste mundo, Nosso Senhor
argumentara, precisaria do auxílio de exércitos de homens, mas um reino
celeste bastava-se, pois Seu poder provinha do alto. Seu reino estava no mundo,
mas não era do mundo.
A atitude quieta e digna Daquele que estava diante de Pilatos, tão
impotente, amarrado com cordas — a face marcada pelo espancamento depois
do primeiro julgamento, a afirmação de que Seu Reino não era deste mundo,
de que Ele tinha servos que não usam espada, de que instituiria um reino sem
batalhas —, tudo isso intrigou Pilatos, que modificou a pergunta. Da primeira
vez, Pilatos perguntou “És tu o rei dos judeus?”; agora, perguntou:

É
És, portanto, rei?
(São João 18,37)

O julgamento religioso centrou-se no Cristo Profeta, o Messias, o Filho


de Deus. O julgamento civil revolveu em torno da realeza. É de estranhar
como os gentios estavam associados ao Cristo sob o título real! Os Magos na
natividade perguntaram onde o rei havia nascido; foi o édito imperial de César
que cumpriu a profecia de Miqueias de que Ele nasceria em Belém.
Pilatos, satisfeito por Cristo não ser um antagonista político, pasmo,
espicaçou um pouco mais fundo o mistério de sua pretensão real. Nosso
Senhor, já tendo confessado Seu estado real, reconheceu a inferência que
Pilatos esboçou com um pouco de desdém e respondeu:

Sim, eu sou rei.


É para dar testemunho da verdade
que nasci e vim ao mundo.
Todo o que é da verdade ouve a minha voz.
(São João 18,37)

Durante toda a vida de Nosso Senhor, Ele falou de Si mesmo como o que
veio a este mundo; essa foi a única vez em que falou de ter nascido. Nascer de
uma mulher é um fato, vir ao mundo é outro. Entretanto, Ele imediatamente
fez seguir essa referência de Seu nascimento humano com a reafirmação de que
tinha vindo a este mundo. Quando disse que nasceu, reconhecia Sua origem
temporal como Filho do Homem; quando disse que veio a este mundo,
afirmou Sua divindade. Ademais, Ele, que veio dos céus, veio dar testemunho,
o que significa morrer pela verdade. Ele estabeleceu a condição moral da
descoberta da verdade e afirmou que não era apenas uma jornada intelectual; o
que descobriu, em parte, aprofundou o comportamento moral. Nesse sentido,
certa vez Nosso Senhor disse que Suas ovelhas conheciam Sua voz. É evidente
que Pilatos captou a ideia de que a conduta moral tinha alguma relação com a
descoberta da verdade; portanto, recorreu ao pragmatismo e ao utilitarismo, ao
perguntar com escárnio:
Que é a verdade?...
(São João 18,38)

Então, voltou as costas à verdade — melhor, não a ela, mas a Ele, que era
a verdade. Ainda restou ver que a tolerância à verdade e ao erro em um golpe
de inteligência leva à intolerância e à perseguição: “O que é a verdade?”,
quando escarnecida, é seguida de uma segunda ironia, “O que é a justiça?”.
Uma mente indulgente, quando isso significa indiferença ao certo e ao errado,
termina, por fim, em ódio ao correto. Ele, tão tolerante ao erro a ponto de
negar a Verdade Absoluta, era aquele que crucificaria a Verdade. Foi o juiz
religioso quem o desafiou: “conjuro-te”; mas o juiz secular perguntou “O que é
a verdade?”. Aquele que estava nas vestes do sumo sacerdote recorreu a Deus
para repudiar as coisas que são de Deus; o que trajava a toga romana professava
apenas ceticismo e dúvida.
Quando Nosso Senhor disse que todos os que eram da verdade ouviriam
Sua voz, anunciou a lei segundo a qual a verdade assimila tudo o que lhe é
próprio. Admitira a mesma ideia a Nicodemos:

Porquanto todo aquele que faz o mal odeia a luz


e não vem para a luz,
para que as suas obras não sejam reprovadas.
Mas aquele que pratica a verdade, vem para a luz.
Torna-se assim claro que as suas obras são feitas em Deus.
(São João 3,20-21)

Se, portanto, o impulso para a verdade estava em Pilatos, ele saberia que a
própria verdade estava diante dele; se esse impulso não estivesse nele,
sentenciaria Cristo à morte.
Pilatos era um daqueles que acreditava que a verdade não era objetiva,
mas subjetiva; que cada homem determinava para si o que era verdadeiro. É
erro frequente dos homens práticos, tais como ele, ver a busca pela verdade
objetiva como uma teorização inútil. O ceticismo não é uma posição
intelectual; é uma posição moral, no sentido de ser determinado nem tanto
pela razão, mas pelo modo como a pessoa age e se comporta. O desejo de
Pilatos de salvar Jesus se devia a uma espécie de liberalismo que combinava
descrença na Verdade Absoluta a uma falta de vontade um tanto benevolente
de perturbar tais sonhadores e suas superstições. Pilatos perguntou “O que é a
verdade?” para a única pessoa em todo o mundo que lhe poderia responder
plenamente.
Nesse momento, Pilatos dava início à primeira das várias tentativas de
resgatar Cristo, tais como a declaração de Sua inocência, a escolha entre
prisioneiros, a flagelação, o apelo à compaixão, a mudança de juízes. Pilatos
não compreendeu como alguém poderia morrer pela verdade e, naturalmente,
não podia compreender como a própria Verdade poderia morrer pelos que
erraram. Após voltar as costas para o Lógos Encarnado, apresentou às pessoas do
lado de fora sua convicção de que o prisioneiro diante dele era inocente.

Não acho nele crime algum.


(São João 18,38)

Se não havia Nele falta, Pilatos deveria libertá-Lo. Ao ouvir a declaração


do governador de Roma de que o prisioneiro era inocente, os membros do
Sinédrio ficaram mais violentos ao acusá-Lo de rebelde e revolucionário:

Ele revoluciona o povo ensinando por toda a Judeia,


a começar da Galileia até aqui.
(São Lucas 23,5)

O interesse supremo de Pilatos era a paz no Estado; por isso o interesse


supremo do Sinédrio era provar que Cristo era um perturbador da paz. Logo
que Pilatos ouviu a palavra “galileu”, viu um modo de fugir do julgamento de
Cristo... Como o Sinédrio mudara a acusação de blasfêmia para sedição, então
Pilatos transferiria a jurisdição do julgamento para aquele que detinha o poder
na Galileia.
Herodes, por razão da Páscoa, estava no momento em Jerusalém. Ainda
que ele e Herodes fossem inimigos, Pilatos, mesmo assim, estava ansioso para
passar a ele a responsabilidade de absolver ou condenar Cristo.
O JULGAMENTO PERANTE HERODES

Esse Herodes era Herodes Antipas, filho de Herodes, o Grande, que assassinara
todas as crianças do sexo masculino com menos de dois anos em Belém. A
família de Herodes era indumeia, ou seja, descendentes de Esaú, o pai de
Edom. Foi a descendência de Esaú que pareceu levar adiante a inimizade com
descendência de Jacó. Herodes Antipas era tio de Herodes Agripa, que, mais
tarde, assassinou o apóstolo Tiago e assassinaria Pedro, se este não tivesse sido
libertado milagrosamente da prisão. Herodes era um homem sensual,
mundano; matara João Batista porque este o havia censurado por divorciar-se
da mulher e viver com a esposa do próprio irmão. Herodes tinha uma
consciência inquieta, não porque assassinara o precursor do Cristo, mas porque
sua superstição o fizera acreditar que João Batista ressuscitara e estava
assombrando sua alma.
Quando Nosso Senhor foi levado diante de Herodes:

Herodes alegrou-se muito em ver Jesus,


pois de longo tempo desejava vê-lo,
por ter ouvido falar dele muitas coisas,
e esperava presenciar algum milagre operado por ele.
(São Lucas 23,8)

O Salvador que nunca havia operado um milagre em proveito próprio


certamente não o faria para libertar-Se. No entanto, o tetrarca frívolo, que via o
prisioneiro como uma audiência veria um malabarista, ansiava por um breve
momento de mágica. Como saduceu, ele não acreditava em vida futura e,
como um homem dedicado à licenciosidade, identificava religião com mágica.
Herodes era o tipo de homem que tinha curiosidade acerca da religião,
estudava, lia e, às vezes, a conhecia bem, mas mantinha todos os vícios. É por
isso que fez muitas perguntas a Nosso Senhor. Embora os escribas e os sumos
sacerdotes tenham se juntado a Herodes ao incitar Nosso Senhor, Ele recusou-
Se a falar com Herodes. Só teria aumentado a culpa do leviano moral. A
tentação de aceitar todos os reinos do mundo ao fazer concessões à cruz
apresentava-se, mais uma vez, ao Salvador. Pilatos poderia ter ganhado — e
Herodes também, com uma palavra —, mas Ele recusou-se a falar. Advertira a
respeito da pregação para os insinceros no Sermão da Montanha:

Não lanceis aos cães as coisas santas,


não atireis aos porcos as vossas pérolas,
para que não as calquem com os seus pés,
e, voltando-se contra vós, vos despedacem.
(São Mateus 7,6)

A religião não deve ser dada a todos, mas somente àqueles que são “da
verdade”. Muito embora Herodes estivesse feliz ao ver Nosso Senhor, sua
alegria não surgiu por motivos nobres de arrependimento. Por isso, o Cristo,
que falou ao ladrão penitente, a Madalena e a Judas, não falaria ao rei galileu,
pois a consciência de Herodes estava morta. Ele estava muito familiarizado
com a religião. Queria milagres, não como motivos para crer, mas para deleitar
a curiosidade. Sua alma estava tão cega por atrativos, incluindo até mesmo o de
João Batista, que mais um atrativo só teria aprofundado sua culpa. Não foi a
alma pedindo salvação que Herodes ofereceu ao Senhor, mas somente o ânimo
dado a interesses. Dessa maneira, o Senhor da palavra não deu uma só palavra
ao mundano. O Livro de Provérbios expressa muito bem a atitude divina
perante Herodes:

Então me chamarão, mas não responderei;


procurar-me-ão, mas não atenderei.
Porque detestam a ciência
sem lhe antepor o temor do Senhor.
(Provérbios 1,28-29)

O silêncio de Nosso Senhor irritou tanto Herodes que seu orgulho


insultado transformou-se em escárnio e zombaria:

Herodes, com a sua guarda, tratou-o com desprezo,


escarneceu dele, mandou revesti-lo
de uma túnica branca e reenviou-o a Pilatos.
(São Lucas 23,11)

A voz que ordenara que a cabeça de João Batista fosse dada à filha de
Herodíades agora ordenava que as vestes alvas da humilhação envolvessem os
ombros do prisioneiro. A túnica que Lhe foi dada provavelmente era uma
túnica branca, em escárnio, por alegar ser rei. Todos os candidatos a cargos
públicos em Roma usavam a toga candida ou a túnica branca, de onde provém
a palavra “candidato”. Assim, Herodes insinuou que o pretenso rei era
merecedor de desprezo, embora a túnica fosse branca, sem querer, uma
declaração de inocência.
Esse é o modo de agir do mundo para os que têm pequenos ódios a
esconder por conta de um ódio maior. O nazismo e o comunismo se uniram
por conta de um ódio comum a Deus; assim fizeram Pilatos e Herodes:

Naquele mesmo dia, Pilatos e Herodes fizeram as pazes,


pois antes eram inimigos um do outro.
(São Lucas 23,12)

Farisaísmo e saduceísmo, que eram inimigos, uniram-se na crucifixão. A


Cruz de Cristo uniu os amigos — isso é óbvio; mas a Cruz também uniu os
inimigos. Os mundanos sempre descartam os ódios menores diante do ódio ao
divino. É uma boa piada, esse prisioneiro coberto do próprio sangue, odiado
por Seu próprio povo, afirmando ser rei. Herodes podia contar que Pilatos
veria o humor disso. Quando Pilatos e ele, juntos, rissem a esse respeito, não
seriam mais inimigos — mesmo quando o alvo do humor fosse Deus. A única
vez em que o riso é maléfico é ao voltar-se contra Aquele que o criou. Podemos
pensar se, assim como Herodes enviou o Prisioneiro Divino de volta a Pilatos
para ser condenado, ele recordou que o Senhor dissera que morreria em
Jerusalém, e não na Galileia. Depois da Ascensão e da vinda do Espírito Santo,
quando Pedro e João seriam levados diante dos juízes por pregar Cristo e Cristo
crucificado, aqueles que lhes acompanhavam enviaram a primeira prece da
Igreja cristã. Nessa prece, esses dois juízes seriam mencionados em conjunto, de
modo que judeus e gentios por todo o mundo que partilharam de Sua
condenação partilharam ou partilhariam Sua redenção.

Pois na verdade se uniram nesta cidade


contra o vosso santo servo Jesus, que ungistes,
Herodes e Pôncio Pilatos com as nações e com o povo de Israel,
para executarem o que a vossa mão
e o vosso conselho predeterminaram que se fizesse.
Agora, pois, Senhor, olhai para as suas ameaças
e concedei aos vossos servos que
com todo o desassombro anunciem a vossa palavra.
(Atos dos Apóstolos 4,27-29)
46

NO RODAPÉ DA LISTA

Nesse ínterim, o que aconteceu a Judas? Só Judas sabia onde encontrar Nosso
Senhor depois do ocaso. Os soldados não sabiam e, portanto, tinham de
receber um sinal. Cristo foi entregue a mãos inimigas por um dos seus. Nem
sempre o maior dano é causado pelos inimigos, mas por aqueles que foram
criados em Sua associação sagrada. São as falhas dos de dentro que dão
oportunidade aos inimigos que ainda estão fora. Os inimigos farão o trabalho
sanguinário da Crucifixão, mas aqueles que tiveram fé e a perderam e estão
aflitos para salvar a própria consciência destruindo a raiz da moralidade
cometem o maior mal.
O ódio de Judas contra Nosso Bendito Senhor se devia ao contraste entre
seu pecado e a virtude do Divino Mestre. Em Otelo, Iago diz sobre Cássio: “Ele
tem na vida uma beleza cotidiana que me deixa horroroso”. O desgosto de
Judas consigo mesmo foi descarregado Naquele que o fazia sentir-se
incomodado por Sua Bondade. O ódio à Divindade nem sempre resulta da
incredulidade, mas com muita frequência é o efeito da anticredulidade. A
consciência, Cristo e o dom da fé deixam os homens maus incomodados com o
pecado. Sentem que, se pudessem expulsar Cristo da terra, seriam livres de
“inibições morais”. Esquecem-se de que são a própria natureza e a consciência
que os fazem sentir-se assim. Incapazes de expulsar Deus dos céus, gostariam
de expulsar Seus embaixadores da terra. Numa esfera menor, é por isso que
muitos homens escarnecem da virtude — porque ela torna o vício
desconfortável. Um semblante inocente é um julgamento. Judas era mais zeloso
na causa dos inimigos do que o foi na causa de Nosso Senhor. Quando deixam
a Cristo, os homens procuram redimir a própria reputação indo aos extremos.
A traição se deu com um beijo. Quando a perversidade quer destruir a
virtude e quando o homem quer crucificar o Filho de Deus, sente-se a
necessidade de prefaciar a obra do mal com alguma marca de afeição. Judas
louvaria e negaria a Divindade com os mesmos lábios. Somente uma palavra
voltou em resposta daquele beijo: “amigo”. Foi a última vez que Nosso Senhor
falou a Judas. Até esse momento, ele não era um traidor, mas um amigo. Tivera
direito ao novilho cevado,2 mas rejeitou-o.

Judas, o traidor,
vendo-o então condenado, tomado de remorsos,
foi devolver aos príncipes dos sacerdotes
e aos anciãos as trinta moedas de prata,
dizendo-lhes: Pequei, entregando o sangue de um justo.
(São Mateus 27,3)

Embora em inglês tenhamos tanto Pedro quanto Judas “arrependidos”, as


palavras gregas usadas no original são diferentes para Judas e Pedro. A palavra
usada em relação a Judas significa apenas uma mudança de sentimento, um
lamento pelas consequências, um desejo de desfazer o que foi feito. Esse tipo
de “arrependimento” não pede perdão, pois até os demônios no inferno se
arrependem das consequências de seu pecado de orgulho. A razão para essa
traição a Cristo agora parecia claramente má e desprezível; o Messias político a
quem ele esperava agora parecia inconcebível. Antes de um pecado ser
cometido, o diabo trata-o como algo irrelevante; depois de cometido, o diabo
torna-se um acusador, levando o culpado ao desespero e incitando-o a cometer
crimes ainda piores. Evidentemente, o diabo “deixou-o por algum tempo”, o
que deu a Judas tempo de lamentar sua ação e devolver o dinheiro. Todavia,
mais tarde, o diabo voltou a lançá-lo em desespero.
A condenação de Nosso Senhor causou um efeito duplo: um sobre Judas,
outro sobre o chefe dos sacerdotes do Sinédrio. Em Judas, produziu o cativeiro
de culpa pela agonia da consciência. As trinta moedas de prata na bolsa
tornaram-se pesadas demais para ele; correu ao templo, sacou o dinheiro da
bolsa e jogou-o no chão do Lugar Santo. Desfazer-se da própria recompensa da
traição era um sinal de que não estava nem um pouco mais rico com o que
ganhou e infinitamente mais pobre por causa do modo como o tinha ganhado.
Ninguém jamais negou a Cristo ou vendeu-O em troca de um prazer
passageiro ou de uma recompensa momentânea sem perceber que se desfazia
Dele a um preço infinitamente irrisório em comparação a Seu verdadeiro valor.
Judas parecia estar tirando grande vantagem quando fez a barganha. Depois,
levou o dinheiro de volta ao templo e jogou as moedas de prata no chão, que
caíram tilintando e rolando, porque já não queria mais aquilo por que
barganhara. Tinha enganado a si mesmo. Os frutos do pecado nunca
compensam a perda da graça. O dinheiro não servia para nada senão para
comprar um campo de sangue.
Aqueles que a ele estavam associados no crime agora tentavam eximir-se
da responsabilidade do ato conjunto. Uma das punições da cumplicidade no
pecado é a recriminação mútua; sempre que se juntam para praticar o mal
contra um homem bom, as pessoas acabam brigando entre si. Entretanto, no
caso de Judas, encontramos o oposto da conduta usual do mau-caráter. Quanto
maior o erro, maior é a relutância a admitir que foi algo injustificado. Homens
maus, para parecerem inocentes, cumulam acusações de culpa sobre aqueles
contra quem agiram. Se houvesse algo que teria justificado o pecado de Judas,
ele decerto teria se apegado a isso e exagerado, a fim de encobrir sua perfídia e
vergonha. Mas o próprio Judas declarou Nosso Senhor inocente. Aquele que
outrora reclamara do desperdício do precioso bálsamo de Maria agora
desperdiçava suas trinta moedas de prata, desfazendo-se delas. O dinheiro não
podia ser dado aos pobres? Judas já não pensava neles. O dinheiro fica no
templo, onde Judas o jogou. O chefe dos sacerdotes repudiava tanto a esse
dinheiro quanto a Judas, seu instrumento miserável. Ele tentou jogar a
responsabilidade sobre o Sinédrio; eles a jogaram de volta na sua cara. Sem
confessar de modo algum a Divindade do Mestre, ele, no entanto, condenou-se
a si mesmo. Assim como Caim perguntou “Sou eu guardador do meu irmão?”,
eles desdenhavam do próprio cúmplice.
O dinheiro, contudo, não podia permanecer no chão do templo, e assim
o chefe dos sacerdotes juntou-o, dizendo:

Não é permitido lançá-lo no tesouro sagrado,


porque se trata de preço de sangue.
Depois de haverem deliberado,
compraram com aquela soma o campo do Oleiro,
para que ali se fizesse um cemitério de estrangeiros.
Esta é a razão por que aquele terreno é chamado,
ainda hoje, Campo de Sangue.
(São Mateus 27,6-8)

Os parceiros de conspiração de Judas estavam dispostos a discutir sobre o


dinheiro, mas não acerca do homem inocente. Devem ter se regozijado com a
confissão de Judas, mas descartaram-no como uma ferramenta inútil. Ele já
não era mais desejado; tampouco o era o dinheiro, de modo que foi usado para
comprar um campo de sangue.
Judas estava arrependido diante de si mesmo, mas não diante do Senhor.
Estava desgostoso dos efeitos do pecado, mas não com o pecado. Tudo pode ser
perdoado, exceto a recusa do perdão, assim como a vida pode perdoar tudo,
menos a aceitação da morte. Seu remorso era apenas autodepreciação; e
autodepreciação é suicídio. Odiar a si mesmo é o início do crime. Só é saudável
quando associado ao amor a Deus. Arrepender-se diante de si mesmo não
basta. A consciência fala mais baixo quando tem de falar mais alto. É uma
lâmpada que às vezes se apaga nas trevas.
Quando um homem odeia a si mesmo pelo que fez e não se arrepende
diante de Deus, às vezes ele pode bater no peito como que para apagar o
pecado. Há um mundo de diferença entre bater no peito de repúdio de si e
bater nele com o mea culpa com que alguém pede perdão. Às vezes, a
autodepreciação pode tornar-se intensa a ponto de afetar a vida de um homem,
e assim levá-lo ao suicídio. Embora a morte seja uma das penas do pecado
original e algo universalmente pavoroso, ainda assim há quem corra a seus
braços. Judas teve um alerta de consciência antes de pecar, mas a consciência
torturada seguiu-se a ele e foi tão grande que não conseguiu suportar. Desceu
pelo vale do Cédron — aquele vale com todas as suas associações sinistras. Em
meio a rochas irregulares e entre árvores retorcidas e mirradas, estava tão
desgostoso consigo que se esvaziaria de si. Tudo a seu redor parecia dizer-lhe
que este era seu destino e seu fim. Nada parecia mais medonho a seus olhos do
que a cúpula dourada do templo, que o lembrava do Templo de Deus que ele
vendera; cada árvore parecia o madeiro ao qual ele sentenciara o sangue
inocente; cada galho era um dedo acusador; o próprio monte em que estava
tinha vista para o Calvário, onde Aquele a quem ele sentenciara à morte uniria
céu e terra; mas ele agora os separaria tanto quanto estava a seu alcance.
Lançando uma corda sobre o galho de uma árvore, enforcou-se, e explodiram-
lhe as entranhas. Deus pode ser vendido, mas não pode ser comprado. Judas
vendeu-O, mas seus colaboradores iníquos não O puderam comprar, pois Ele
estava presente de novo em glória ressurreta na Páscoa.
Pode-se traçar um paralelo interessante entre Pedro e Judas. Há algumas
semelhanças e também diferenças enormes. Primeiro, Nosso Senhor chamou-
os ambos de “diabo”. Chamou Pedro de “Satanás” quando este O repreendeu
por dizer que seria crucificado; chamou Judas de diabo quando prometeu o
Pão da Vida. Segundo, advertiu a ambos de que cairiam. Pedro disse que,
mesmo que os outros negassem o Mestre, ele não o faria. Em seguida, foi
avisado de que, naquela mesma noite, antes que o galo cantasse, O negaria três
vezes. Judas, por sua vez, foi advertido quando Jesus ofereceu-lhe o pão
embebido; e também lhe foi dito, em resposta a sua pergunta, que ele era o
traidor. Terceiro, ambos negaram Nosso Senhor: Pedro às criadas durante a
noite do julgamento; Judas, no jardim, quando entregou Nosso Senhor aos
soldados. Quarto, Nosso Senhor tentou salvar a ambos: a Pedro, com um
olhar; a Judas, ao dirigir-se a ele como “amigo”. Quinto, ambos se
arrependeram: Pedro saiu e chorou amargamente; Judas arrependeu-se,
devolvendo as moedas de prata e afirmando a inocência de Nosso Senhor.
Por que, então, um está no topo da lista, e o outro no rodapé? Porque
Pedro arrependeu-se diante do Senhor, e Judas, perante a si mesmo. A
diferença era tão vasta quanto a teorreferência e a autorreferência: tão vasta
quanto a diferença entre uma Cruz e um divã psicanalítico. Judas disse que
“traíra sangue inocente”, mas nunca desejou ser banhado por este sangue.
Pedro sabia que tinha pecado e buscou redenção; Judas sabia que tinha
cometido um equívoco e buscou um escape — o primeiro de uma longa fileira
de escapistas da Cruz. O perdão divino pressupõe a liberdade humana, mas
nunca a destrói. Há quem se pergunte se Judas, quando estava sob a árvore que
lhe traria a morte, olhou em volta, para a árvore que podia lhe trazer vida. A
respeito dessa diferença entre arrepender-se diante do Senhor e arrepender-se
diante de si mesmo, como Pedro e Judas, respectivamente, São Paulo
comentaria mais tarde com as seguintes palavras:
De fato, a tristeza segundo Deus produz
um arrependimento salutar de que ninguém se arrepende,
enquanto a tristeza do mundo produz a morte.
(2 Coríntios 7,10)

A tragédia da vida de Judas é que ele podia ter sido São Judas.
Nota

2 | Alusão à parábola do Filho Pródigo, em que o pai recebe de volta o filho perdido e
ordena que matem o “novilho cevado”, para celebrar a reconciliação. Ver São Lucas 15,23.
(N. T.)
47

O SEGUNDO JULGAMENTO PERANTE PILATOS

Pilatos viu a multidão, e Nosso Senhor no meio dela, retornando do


julgamento de Herodes e aproximando-se do palácio. É muito difícil lavar as
mãos por Cristo. Obrigado a resumir o caso diante do povo, Pilatos voltou à
primeira acusação de que Ele havia pervertido o povo e proclamou:

Apresentastes-me este homem como agitador do povo,


mas, interrogando-o eu diante de vós,
não o achei culpado de nenhum dos crimes de que o acusais.
Nem tampouco Herodes, pois no-lo devolveu.
Portanto, ele nada fez que mereça a morte.
(São Lucas 23,14-15)

Parecia que ambos os juízes estavam convencidos de que,


independentemente do relato circulado, o prisioneiro não tinha culpa. Por uma
segunda vez, Ele foi declarado inocente. Pilatos, sabendo que os judeus O
tinham entregado por inveja, buscou outro meio para deixar de condená-Lo. O
Sinédrio, na verdade, ofereceu uma desculpa ao recordá-lo de que na Páscoa
havia o costume de libertar um prisioneiro. Naquele momento, há tempos na
cadeia, estava um prisioneiro “notável”, Barrabás. Esse homem era um líder
clandestino judaico contra os romanos. Foi posto na cadeia por insubordinação
e assassinato ao liderar uma revolução contra Roma.
Pilatos era muito inteligente; buscou confundir a questão ao escolher um
prisioneiro que era culpado da mesmíssima acusação que apresentaram contra
o Cristo, a saber, insubordinação contra César. Em poucos minutos, duas
figuras se postaram diante da multidão no piso de mármore alvo do pretório.
Pilatos estava sentado em uma plataforma suspensa rodeado pela guarda
imperial. Barrabás, de um lado, pestanejava ao ver a luz do sol, que não tinha
havia meses. Do outro lado estava Cristo. Dois homens acusados de revolução.
Barrabás apelou às queixas nacionais, Cristo apelou à consciência. Soaram as
trombetas. A ordem foi restaurada. Pilatos deu um passo adiante e dirigiu-se à
multidão:

Qual quereis que eu vos solte:


Barrabás ou Jesus, que se chama Cristo?
(São Mateus 27,17)

A pergunta de Pilatos tinha todo o ar de democracia e de livre eleição,


mas era uma réplica barata. Ponderemos sua pergunta. Consideremos primeiro
as pessoas a quem ele se dirigiu e, em seguida, a questão em si. As próprias
pessoas não estavam inclinadas a mandar Nosso Senhor à morte. Por esse
motivo, alguns demagogos:

persuadiram o povo que pedisse a libertação de Barrabás e


fizesse morrer Jesus.
(São Mateus 27,20)

Há sempre uma ralé, um grupo de nanicos, negligentes e insensatos,


dispostos a ficar à mercê desse tipo de retórica, chamada de “rameira das artes”.
As pessoas podem ser enganadas por falsos líderes; os mesmos que gritam
“hosana” no domingo podem gritar “crucifica-O” na sexta-feira.
O que aconteceu na manhã da Sexta-Feira Santa foi que, mediante a ação
de propagandistas, o povo se tornou massa. A democracia com consciência se
torna “massocracia” com poder. Quando uma democracia perde o senso moral,
imediatamente pode, pelo voto, afastar-se da democracia. Quando Pilatos
perguntou

Qual quereis que eu vos solte?


(São Mateus 27,17)

estava realizando uma eleição democrática justa. Pressupunha que um


voto significasse o direito de escolha entre a inocência e a culpa, a bondade e a
maldade, entre o certo e o errado.
Em resposta à pergunta de Pilatos, a massa bradou:

Barrabás.
(São Mateus 27,22)

Pilatos quase não podia acreditar no que ouvia; Barrabás também não
acreditava! Estava para ser libertado? Pela primeira vez, tomava consciência de
que agora podia prosseguir com sua revolta. Voltou seu rosto emproado,
abrasado, para o Nazareno. Pretendia medir o rival da cabeça aos pés, mas não
ousou mais erguer o olhar. Havia algo em Seus olhos que perscrutavam a alma,
como se o Nazareno estivesse realmente penalizado por que ele fora libertado.

Todo o povo gritou a uma voz:


À morte com este, e solta-nos Barrabás.
(São Lucas 23,18)

Pilatos falou-lhes outra vez:


E que quereis que eu faça daquele a quem chamais o rei dos
judeus?
(São Marcos 15,12)

Pilatos, porém, querendo soltar Jesus, falou-lhes de novo,


mas eles vociferavam: Crucifica-o! Crucifica-o!
(São Lucas 23,20-21)

Pela terceira vez, Pilatos ainda interveio: Mas que mal fez ele,
então?
Não achei nele nada que mereça a morte; irei, portanto,
castigá-lo e,
depois, o soltarei.
Mas eles instavam, reclamando em altas vozes que fosse
crucificado,
e os seus clamores recrudesciam.
Pilatos pronunciou então a sentença que lhes satisfazia o
desejo.
Soltou-lhes aquele que eles reclamavam
e que havia sido lançado ao cárcere por causa do homicídio e
da revolta,
e entregou Jesus à vontade deles.
(São Lucas 23,22-25)

A maioria nem sempre está certa. A maioria está certa no campo do


relativo, mas não no do absoluto. A maioria é um teste legítimo desde que o
voto se baseie na consciência, e não na propaganda. A verdade não é vitoriosa
quando somente os números se tornam decisivos. Os números por si podem
eleger uma rainha da beleza, mas não a justiça. A beleza é uma questão de
estética, mas a justiça não tem estética. O certo é certo ainda que ninguém
esteja certo, e o errado ainda é errado mesmo que todos estejam errados. A
primeira eleição da história do cristianismo estava errada!
Barrabás foi libertado por causa do Cristo, embora fosse uma liberdade
política. Entretanto, isso foi um símbolo de que por Sua morte os homens
seriam libertados. Ocorreu no período da Páscoa, quando o cordeiro foi
substituído pelo povo e posto à morte em expiação dos pecados. O Salvador
deveria sofrer e o pecador, ser libertado. O Livro do Êxodo proclamara que o
pecador estava para ser redimido por um cordeiro, mas o Cordeiro não poderia
ser redimido. O Salvador não poderia ser libertado, mas o pecador poderia.
Pilatos, ainda aflito para não condenar o Cristo, numa estranha mudança
de opinião, disse:

Por isso, soltá-lo-ei depois de o castigar.


(São Lucas 23,16)
A flagelação era sempre infligida pelos romanos antes da crucifixão, mas
esse castigo não era tal forma de punir. Como Lísias, mais tarde, não hesitou
em flagelar Paulo sem ter uma ofensa comprovada, Pilatos, igualmente, infligiu
uma punição na esperança de comover o povo. Naturalmente, isso não era
surpresa para Nosso Senhor, que previra ser flagelado e crucificado. Até então
Pilatos fizera três tentativas de libertar Nosso Senhor; uma ao declará-Lo
inocente, outra, ao libertar um prisioneiro na Páscoa e a última ao flagelá-Lo.

A FLAGELAÇÃO

Pilatos tentou encontrar um equilíbrio entre satisfazer o Sinédrio e a própria


consciência. No entanto, Pilatos estava errado ao pensar que o derramamento
de sangue acalmaria seus ânimos e os enterneceria. Tais transigências diante da
justiça raramente alcançam os fins. Se culpado, Pilatos deveria tê-Lo
condenado à morte; se inocente, deveria tê-Lo libertado.
Nosso Senhor olhava adiante para dar Sua vida como resgate pelo pecado;
descrevera-Se como possuidor de um batismo por meio do qual Ele seria
batizado. João deu-Lhe um batismo de água, mas os soldados romanos agora
Lhe davam Seu batismo de sangue. Depois de abrir a carne sacra com fendas
violentas, vestiram-No com uma túnica púrpura que aderiu ao corpo
ensaguentado. Em seguida, entrelaçaram uma coroa de espinhos, que
colocaram em Sua cabeça. Como os soldados amaldiçoaram quando um dos
espinhos espetou seus dedos, mas como zombaram quando a coroa de espinhos
foi posta em Sua fronte! Então, escarneceram Dele e puseram um caniço em
Suas mãos após espancar Sua cabeça. Ajoelharam-se diante dele em adoração
fingida. Como profetizara Isaías:

Em verdade, ele tomou sobre si nossas enfermidades


e carregou os nossos sofrimentos:
e nós o reputávamos como um castigado,
ferido por Deus e humilhado.
Mas ele foi castigado por nossos crimes,
e esmagado por nossas iniquidades;
o castigo que nos salva pesou sobre ele;
fomos curados graças às suas chagas.
(Isaías 53,4-5)

Depois da flagelação, Pilatos conduziu o Cristo ensanguentado diante da


multidão e disse:

Eis que vo-lo trago fora, para que saibais que


não acho nele nenhum motivo de acusação [...]
Eis o homem!
(São João 19,4-5)

“Vede a espécie de homem que estais a acusar. Contemplai-o, não está


ornado de arminho, não traz nenhuma coroa senão espinhos, nenhuma outra
marca de realeza senão o sangue rubro e nenhum outro sinal de autoridade
senão uma vara. Estai certos de que nunca mais assumirá o título de rei que
Lhe custou tão caro. Esperei encontrar um lampejo de humanidade em vós, e
foi por isso que me rendi a vossos desejos.”
No entanto, os líderes do povo O viram e bradaram:

Crucifica-o! Crucifica-o!

Pilatos disse:

Tomai-o vós e crucificai-o, pois eu não acho nele culpa alguma.

O povo respondeu:

Nós temos uma lei, e segundo essa lei ele deve morrer,
porque se declarou Filho de Deus.
(São João 19,6-7)
Pilatos disse que Ele era um “homem”; eles disseram “o Filho de Deus”.
Pilatos declarara que Ele era inocente perante a lei romana. Eles responderam
que Ele era culpado perante a lei judaica. Quando Pilatos os ouviu chamando-
O de “Filho de Deus”

Estas palavras impressionaram Pilatos.


(São João 19,8)

A superstição anda lado a lado com o ceticismo. Herodes não acreditava


na ressurreição, não obstante, ao ouvir que Nosso Senhor pregava em seu
território, pensou que Cristo fosse João Batista que ressuscitara dos mortos.
Pilatos não acreditava que Ele fosse o Filho de Deus; não obstante, questionou-
se a respeito desse Ser estranho diante de si que não dizia uma só palavra em
defesa própria. Profundamente abalado e temeroso de que provavelmente
Cristo fosse algum mensageiro dos deuses, Pilatos O chamou para dentro do
pretório e Lhe disse:

De onde és tu?
(São João 19,9)

Pilatos não perguntou “Quem és?” ou “És o Filho de Deus?”, mas “De
onde és tu?”. A origem galileia do Senhor não lhe interessava, pois já tinha
enviado Cristo como galileu para Herodes. Percebeu que Ele era algo mais que
um homem. Se fosse realmente dos céus não poderia crucificá-Lo, portanto,
perguntou de maneira privada por Sua verdadeira origem. Pilatos já havia feito
seis perguntas. Haveria ainda uma só por perguntar.
No entanto, Jesus recusou-se a responder à pergunta. Pilatos já havia dado
as costas à verdade. Cinco vezes durante o julgamento Nosso Senhor manteve-
Se em silêncio misterioso: diante do sumo sacerdote, do Sinédrio, de Herodes e
duas vezes diante de Pilatos. O silêncio poderia significar que carregava os
pecados do mundo e nada tinha a dizer em defesa própria. Quando falou, era
como um pastor; ao calar-Se, era como uma “ovelha”, como profetizado por
Isaías:
Foi maltratado e resignou-se; não abriu a boca,
como um cordeiro que se conduz ao matadouro,
e uma ovelha muda nas mãos do tosquiador.
(Ele não abriu a boca.)
(Isaías 53,7)

Pilatos tratara Cristo como objeto de especulação, pois não aproveitou a


verdade diante de si. Para tais homens, não existe resposta dos céus. Nas
profundezas de sua mente, Pilatos chegara à convicção de inocência, mas não
agiu segundo ela. Portanto, Pilatos não merecia resposta e não recebeu resposta
alguma. Perdeu o direito de qualquer outra revelação do Prisioneiro. Toda alma
tem o dia da visitação, e Pilatos teve o seu.

CLÁUDIA

Pode ter sido nesse momento que Cláudia, a mulher de Pilatos, enviou uma
mensagem ao marido.
Cláudia era a filha mais nova de Júlia, filha de César Augusto. Júlia fora
casada três vezes, a última com Tibério. Por conta da vida dissoluta, Júlia foi
exilada quando concebeu Cláudia de um nobre romano. Quando Cláudia
tinha 13 anos, Júlia a enviou para ser criada por Tibério. Aos 16, Pôncio
Pilatos, ele mesmo de origem baixa, conheceu Cláudia e pediu a Tibério para
casar-se com ela. Assim, Pilatos casou-se com a família do imperador, o que lhe
assegurou o futuro político. Por força do casamento, Pilatos foi feito
procurador da Judeia.
Os governadores romanos eram proibidos de levar as mulheres para as
províncias. A maioria dos políticos estava feliz com isso, mas não Pilatos. O
amor rompeu com a austera lei romana. Após Pilatos estar em Jerusalém por
seis anos, mandou buscar Cláudia, que estava muito impaciente para encarar
uma vida longe da capital do mundo, entre povos desconhecidos e estrangeiros.
É razoável concluir que Cláudia deve ter ouvido falar de Jesus, talvez por
meio da serva judia que preparava o banho ou dos mordomos que traziam
notícias a respeito Dele. Podia, na verdade, tê-Lo visto, pois a Fortaleza de
Antônia, onde vivia, era perto do Templo de Jerusalém, e Jesus estava sempre
lá.
Pode ter ouvido Sua mensagem e, já que “Nenhum homem falou como
este homem”, sua alma estava abalada. O próprio contraste entre Ele e Suas
ideias e o mundo que ela conhecia e os pensamentos que ela tinha aprofundava
Seus encantos. Como as mulheres de Jerusalém que viam Cláudia a observar
através do postigo, que tentavam captar o brilho das pedras preciosas em suas
mãos ou a marca de orgulho nas feições patrícias, podiam imaginar como eram
profundos seus pensamentos, como era intenso seu pesar e profunda sua ânsia?
Havia uma submissão quase prussiana à lei entre os romanos. A nenhuma
mulher era permitido interferir nos processos jurídicos, nem mesmo para dar
uma sugestão a respeito de tais procedimentos. O que fez a entrada em cena de
Cláudia mais memorável foi ela ter enviado uma mensagem ao marido, Pôncio
Pilatos, no mesmo dia em que ele decidiria o caso mais importante de sua
carreira e o único pelo qual seria lembrado — o julgamento de Nosso Senhor.
Enviar uma mensagem a um juiz enquanto estivesse no tribunal era uma
ofensa sujeita a punição, e somente o horror do que ela viu que seria feito a
moveu a fazê-lo.

Enquanto estava sentado no tribunal,


sua mulher lhe mandou dizer:
Nada faças a esse justo.
Fui hoje atormentada por um sonho que lhe diz respeito.
(São Mateus 27,19)

Enquanto as mulheres de Israel estavam silentes, essa mulher pagã


testemunhou a inocência de Jesus e pediu ao marido que lidasse com Ele de
modo correto.
A mensagem de Cláudia é um resumo de tudo o que o cristianismo faria
para a feminilidade pagã. Ela é a única mulher romana nos Evangelhos e é uma
mulher de alta estirpe. Seu sonho resumiu os sonhos e anseios do mundo
pagão, a esperança antiga por um homem justo — um Salvador.
O que era o sonho, não o sabemos, mas uma autora moderna, Gertrud
von Le Fort, conjecturou a esse respeito. Na manhã da Sexta-Feira Santa, ao
acordar, Cláudia pareceu ouvir vozes nas catacumbas dizendo: “padeceu sob
Pôncio Pilatos”; então, depois, os templos romanos se transformaram em
igrejas: “padeceu sob Pôncio Pilatos”; depois, uníssonas como o bramido do
mar, as vozes se multiplicaram e entoaram nas igrejas que se erguiam como
pináculos no céu: “padeceu sob Pôncio Pilatos”. Entretanto, qualquer que
tenha sido o sonho, a mulher intuitiva estava correta, o homem prático estava
errado. Pilatos, ao ver que o Prisioneiro ainda estava silente, ficou cheio de
raiva, pois se acostumara a ver o acusado rastejar de temor diante dele.

Tu não me respondes?
Não sabes que tenho poder para te soltar e para te crucificar?
(São João 19,10)

Pilatos mencionou seu poder de libertar ou condenar. No entanto, se o


Prisioneiro diante dele fosse inocente, Pilatos não tinha poder de crucificá-Lo;
se fosse culpado, não tinha poder de libertá-Lo. O juiz é julgado, Nosso Senhor
imediatamente falou, recordando Pilatos de que qualquer autoridade jurídica
que tinha não provinha de César, mas de Deus. Pilatos se gabara da
arbitrariedade de seu poder, mas Cristo referiu-Se a um poder que é delegado
ao homem.

Não terias poder algum sobre mim, se de cima não te fora


dado.
(São João 19,11)

O poder do qual Pilatos se vangloriava era “dado”. Saiba ou não um


governador, um rei ou um regente, todo poder terreno deriva do alto. “Por
mim reinam os reis” (Provérbios 8,15), diz o Livro dos Provérbios. Entretanto,
Nosso Senhor logo atribuiu maior pecado tanto a Judas quanto ao sumo
sacerdote.

Por isso, quem me entregou a ti tem pecado maior.


(São João 19,11)
Pilatos, o Gentio, não sabia que seu poder vinha de Deus, mas Caifás
sabia; da mesma maneira Judas o sabia. Esse conhecimento superior os tornou
mais culpados que o romano. Pilatos pecou por ignorância; Caifás pecou
contra o conhecimento, assim como Judas.

A CONDENAÇÃO

Essa repreensão ousada a Pilatos, recordando-o da dependência de Deus e


acusando-o de um pecado menor, ainda que não menos real, perturbou os
esforços de “libertá-Lo”. Pilatos saiu para encontrar-se com a multidão e
reafirmar a inocência do Prisioneiro. A turba, contudo, já tinha pronta uma
resposta inteligente:

Se o soltares, não és amigo do imperador,


porque todo o que se faz rei
se declara contra o imperador.
(São João 19,12)

Pilatos estava apavorado! Caso libertasse o Prisioneiro, seria feita uma


queixa para o imperador, já suspeitoso, de que ele era culpado de conspiração e
traição. Se assim o fosse, perderia tanto a governança quanto a cabeça. Era
muito estranho que a multidão que menosprezava César pelos massacres, por
todo o mal que lhes fizera e por prostituir o templo, agora proclamasse que não
tinham outro rei senão César. Ao proclamar César como rei, renunciavam à
ideia de um Messias e faziam-se vassalos do império, preparando-se, assim, para
que os exércitos romanos engolissem Jerusalém em uma geração. Os terrores de
Tibério pareciam mais reais a Pilatos que a negação da justiça ao Cristo. No
final, contudo, aqueles que temem mais aos homens que a Deus perdem aquilo
que esperavam que os homens preservassem. Pilatos, mais tarde, foi deposto
pelo imperador romano por uma queixa dos judeus — outro exemplo dos
homens punidos pelos mesmos instrumentos em que confiaram. Quando
Pilatos ouviu a ameaça de informar César acerca de sua parcialidade para com
um homem a quem acusaram de ser inimigo de César, Pilatos sentou no trono
da justiça. Apontando para o Prisioneiro coberto de sangue ressequido,
coroado de espinhos e de capa escarlate, disse ao povo:

Eis o vosso rei!


Mas eles clamavam:
Fora com ele! Fora com ele! Crucifica-o!
(São João 19, 14-15)

Pilatos perguntou:

Hei de crucificar o vosso rei?

E os sumos sacerdotes responderam:

Não temos outro rei senão César!


(São João 19,15)

E o rei levou em conta a palavra deles! Assim como outrora, nos dias de
Samuel, rejeitaram o governo de Deus para ter um rei que Deus lhes deu com
ira, assim também agora, ao rejeitar a realeza de Cristo, seriam atrelados à terra
sob a realeza de César. Quando um criminoso era condenado à morte, era
costume romano pegar uma vara longa, quebrá-la em duas partes e lançá-la aos
pés do prisioneiro. Pilatos seguiu esse costume, e nos pedaços partidos do
assoalho de mármore formou-se a figura de uma cruz.
Ibis ad crucem (Padecerás na cruz) era o édito romano, seguido pela
ordem: I, Lector, expedi crucem (Vai, Leitor, prepara a cruz).

Entregou-o então a eles para que fosse crucificado.


(São João 19,16)
Na entrega do Prisioneiro para a crucifixão, Pilatos nunca poderia ter
alegado ser impotente; um momento antes tinha se vangloriado de seu poder
de condenar e libertar. Tampouco poderia desculpar-se com base na falta de
coragem de opor-se aos que desejavam a morte de Cristo, pois pouco tempo
depois, quando pediram que o sobrescrito na cruz fosse mudado, provou como
podia ser obstinado. Pilatos fazia um papel duplo. Não desejava ofender
aqueles a quem governava para que não fosse denunciado a César, mas também
não desejava condenar sangue inocente.
A culpa pela crucifixão não deve ser atribuída a nenhuma nação, raça,
povo ou indivíduo. O pecado foi a causa da crucifixão, e toda a humanidade
herdou a infecção do pecado. Judeus e gentios partilharam a culpa, porém o
mais importante é o Pai Celestial também tê-Lo libertado da morte, e ambos,
judeus e gentios, partilham os frutos da redenção:

Aquele que não poupou seu próprio Filho,


mas que por todos nós o entregou.
(Romanos 8,32)

Pilatos, então:

Fez com que lhe trouxessem água,


lavou as mãos diante do povo e disse:
Sou inocente do sangue deste homem.
Isto é lá convosco!
(São Mateus 27,24)

Pilatos, por certo, não tinha consciência do rito misterioso ordenado por
Moisés. As pessoas que viram Pilatos declarar-se inocente devem ter pensado
nisso. Moisés ordenara:

Então todos os anciãos da cidade encontrada mais próxima do


cadáver
lavarão suas mãos sobre a novilha cuja nuca quebraram no vale,
e dirão estas palavras:
Nossas mãos não derramaram este sangue, nem o viram os
nossos olhos.
Ó Senhor, perdoai o vosso povo de Israel que resgatasses.
Não lhe imputeis o sangue inocente.
Assim será o homicídio expiado por eles.
E desse modo tirarás do meio de ti o sangue inocente,
e farás o que é reto aos olhos do Senhor.
(Deuteronômio 21,6-9)

Nesse momento, o papel foi revertido. Foi Pilatos que se declarou


inocente; foram os seguidores de Moisés que fizeram o oposto. A cerimônia
prefigurava ser feito inocente pelo sangue, que era a maneira de o Cristo
morrer. Pilatos, no entanto, buscou a inocência na água assim como Maomé a
buscou na areia. Edmund Spenser, na sua obra Fairy Queene, descreveu Pilatos
como aquele que passou o restante da vida a lavar continuamente as mãos.
Lady Macbeth fez isso, mas, como a água não podia lavar o coração de Pilatos,
assim lamentou-se lady Macbeth:

Todo o oceano do potente Netuno


poderia de tanto sangue a mão deixar-me limpa? Não...
(Macbeth, Ato 2, Cena II)

Embora o governador covarde tenha simbolicamente purgado a


responsabilidade de sua perversão de justiça, na história soou o lamento:
“Padeceu sob Pôncio Pilatos”.
Judas confessou que traíra “sangue inocente”; Pilatos repetidamente “não
encontrou Nele culpa”, nem Herodes; Cláudia Procula O considerava um
“homem justo”; o ladrão na cruz, mais tarde, diria que Ele não fizera mal
algum; e o centurião, por fim, proclamaria:

Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus!


(São Mateus 27,54)
Entretanto, no momento em que Pilatos declarou-se inocente de Seu
sangue, o povo bradou:

Caia sobre nós o seu sangue e sobre nossos filhos!


(São Mateus 27,25)

Aquele sangue poderia recair sobre eles para destruí-los, mas ainda era o
sangue da Redenção. Ainda que tenham atrelado uma maldição a si mesmos,
Aquele a quem crucificaram não ratificara a sentença deles. No final se
arrependerão. Antes do fim, há sempre os remanescentes que serão salvos.
Mesmo nessa ocasião, não havia uma só mulher mencionada entre eles a
desejar Sua morte. Então, também entre eles nessa hora havia almas nobres
como José de Arimateia, Nicodemos, o mordomo da casa de Herodes e, em
poucos anos, Paulo. Naquele momento, contudo, quando foi entregue pela
terra, depois de ter sido entregue pelo céu para ser crucificado, seguiu-se outro
escárnio:

tiraram-lhe a púrpura, deram-lhe de novo as vestes


e conduziram-no fora para o crucificar.
(São Marcos 15,20)

Nada foi dito sobre tirar-Lhe a coroa de espinhos, embora tenham-No


despido das vestes em que fora escarnecido e ridicularizado como um falso rei.
Puseram-Lhe os próprios trajes, o que provavelmente incluía as roupas externas
e internas, bem como a túnica sem costura pela qual os soldados, mais tarde,
lançariam a sorte. Seguiria com as próprias vestes e seria identificado como
Aquele que pregara para Seu povo e andara entre eles como o Messias.

Conduziram-no fora para o crucificar.


(São Marcos 15,20)
Foi conduzido para fora da cidade, que era o costume em todas as
execuções. O Levítico ordenara que os blasfemos fossem conduzidos à morte
fora da cidade. Estêvão, ao ser apedrejado como o primeiro mártir, antes foi
conduzido para fora da cidade. A lei também ordenava que o bode expiatório,
sobre o qual as mãos do sacerdote eram impostas como se imputasse os pecados
do povo, devia ser levado para fora da cidade para indicar que os pecados do
povo eram retirados. A Epístola aos Hebreus descreveu esse simbolismo:

Porque, quando o sumo sacerdote levava ao santuário o sangue


dos animais
imolados para a expiação do pecado,
os corpos desses animais eram inteiramente consumidos fora da
entrada.
Por esta razão, Jesus, querendo purificar o povo pelo seu
próprio sangue,
padeceu fora das portas.
(Hebreus 13,11-12)

Agora desejavam que Ele morresse, mas o que Ele era e o que eles
odiavam nunca morreria.

Levaram então consigo Jesus.


Ele próprio carregava a sua cruz para fora da cidade,
em direção ao lugar chamado Calvário,
em hebraico Gólgota.
(São João 19,17)
48

A CRUCIFIXÃO

A procissão da Cruz normalmente era precedida por uma trombeta a abrir o


caminho; então, seguia-se um arauto que anunciava o nome do criminoso
levado à execução. Às vezes, o nome do criminoso e o motivo da condenação
eram escritos numa placa e pendurados em seu pescoço. Duas testemunhas do
concílio que sentenciou o condenado à morte também tinham de acompanhar
o cortejo. Um centurião montado num cavalo, junto com um considerável
destacamento de soldados, fazia parte da procissão. Havia também os dois
ladrões que seriam crucificados com Nosso Senhor. Ele carregava todo o peso
da Cruz em Seus ombros, que já tinham sofrido a flagelação.
No domingo anterior, Ele havia sido proclamado “Rei”; naquela manhã,
as pessoas gritavam: “Nenhum rei, senão César.” A Jerusalém que O saudou era
agora a Jerusalém que O repudiava. Desde que os sacerdotes do templo O
julgaram maldito, exilaram-No de Jerusalém. Essa era a lei do Levítico,
segundo a qual a oferta pelo pecado devia ser levada para fora dos portões da
cidade ou do campo.

“Serão levados para fora do acampamento


o touro e o bode oferecidos em sacrifício pelo pecado,
cujo sangue terá sido levado ao santuário
para aí fazer-se a expiação;
queimar-se-ão no fogo o seu couro,
a sua carne e os seus excrementos.
(Levítico 16,27)
Cristo, a oferta definitiva pelo pecado, é levado como bode expiatório
para fora da cidade. São Paulo sugere que a partir daquele momento a cidade
perdeu sua pretensão de grandeza e foi substituída pela Jerusalém celestial.

Por esta razão, Jesus, querendo purificar


o povo pelo seu próprio sangue,
padeceu fora das portas.
Saiamos, pois, a ele fora da entrada,
levando a sua ignomínia.
Aliás, não temos aqui cidade permanente,
mas vamos em busca da futura.
(Hebreus 13,12-14)

Isaías previra que “o governo está sobre seus ombros” (Isaías 9,6); agora
ficava claro que a Cruz era Seu governo ou lei da vida. Ele dissera que quem
quisesse ser Seu discípulo deveria tomar a cruz e segui-Lo.
Temendo que a flagelação prolongada, a perda de sangue e a coroa de
espinhos O levassem à morte antes da Crucifixão, Seus inimigos obrigaram um
estrangeiro, Simão de Cirene, a ajudá-Lo a carregar a cruz. Cirene era uma
cidade na costa norte da África. A nacionalidade de Simão, todavia, é incerta.
Pode ter sido judeu, a julgar pelo nome, ou um gentio; pode ser até que fosse
um negro africano, a julgar pelo lugar de nascimento e pelo fato de que foi
“forçado” a ajudar Nosso Senhor a carregar a cruz. Foi a primeira vez que o
Salvador lançou Sua Cruz sobre alguém; a Simão pertence o privilégio de ser o
primeiro a compartilhar a Cruz de Cristo.

Passava por ali certo homem de Cirene,


chamado Simão, que vinha do campo,
pai de Alexandre e de Rufo,
e obrigaram-no a que lhe levasse a cruz.
(São Marcos 15,21)
Simão não se encarregou dessa tarefa voluntariamente, pois a palavra
grega usada no Evangelho foi adotada do persa e significa o emprego
compulsório de animais para a entrega de correspondência no Império Persa.
Simão provavelmente era um dos milhares de curiosos interessados em ver um
homem caminhar para a morte e estava à beira da estrada até que o braço
longo da lei Romana o forçou a participar da ignomínia da Cruz. À primeira
vista, relutante por causa da coerção, ele, no entanto, deve ter encontrado,
como Nosso Senhor dissera que seus discípulos encontrariam, “o jugo suave e o
fardo leve”. De outro modo, seus dois filhos não teriam sido mencionados por
Paulo como pilares da Igreja.
Nosso Senhor, durante a vida pública, ensinou a bondade como resposta à
injúria:

Se alguém vem obrigar-te


a andar mil passos com ele,
anda dois mil.
(São Mateus 5,41)

É possível que Simão nunca tenha ouvido essas palavras; mas palavras
eram desnecessárias enquanto ele seguia a Palavra.
Ao longo do caminho por que a procissão passava, encontravam-se
também muitas mulheres. Havia muitos exemplos de homens que
decepcionaram na Crucifixão, como os apóstolos que dormiram no jardim,
Judas que O traiu, as cortes judaica e gentia que O condenaram, mas não há
registro de uma só mulher que tenha pedido Sua morte. Uma mulher pagã
intercedera por Sua vida diante de Pilatos. Aos pés da Cruz, haveria quatro
mulheres, mas só um apóstolo. Durante a última semana do Senhor, as
crianças gritaram “Hosana”, os homens bradaram “Crucifica!”, mas as
mulheres “choraram”. Às mulheres que choravam, disse o Senhor:

Filhas de Jerusalém, não choreis sobre mim,


mas chorai sobre vós mesmas e sobre vossos filhos.
Porque virão dias em que se dirá:
Felizes as estéreis, os ventres que não geraram
e os peitos que não amamentaram!
Então dirão aos montes: Caí sobre nós!
E aos outeiros: Cobri-nos!
Porque, se eles fazem isto ao lenho verde,
que acontecerá ao seco?
(São Lucas 23,28-31)

Nosso Senhor aludia às palavras que já tinha dito acerca da destruição


iminente de Jerusalém:

Virão sobre ti dias em que os teus inimigos


te cercarão de trincheiras,
te sitiarão e te apertarão de todos os lados;
destruir-te-ão a ti e a teus filhos
que estiverem dentro de ti,
e não deixarão em ti pedra sobre pedra,
porque não conheceste o tempo em que foste visitada.
(São Lucas 19,43-44)

Assim como no jardim o Senhor dissera aos soldados que o levassem e


deixassem os apóstolos em paz, também disse às mulheres que não chorassem
por Ele, pois era inocente, mas que chorassem pela destruição de Jerusalém,
que era um símbolo da destruição do mundo no fim dos tempos. Na verdade,
quando veio a destruição de Jerusalém, Josefo registrou que o povo de
Jerusalém se escondia em cavernas e rochas das montanhas.
Essa foi a primeira vez desde o interrogatório diante de Pilatos que Nosso
Senhor quebrou o silêncio. Era o sermão da Paixão do Salvador ou, antes, a
primeira parte dele; a segunda parte consistia das Sete Últimas Palavras da
Cruz.
Se houve algum momento em que Nosso Senhor pode ter se preocupado
com as próprias dores e tomado as lágrimas dos outros como consolo para o
próprio luto, esse foi o momento a caminho do Calvário, e ainda assim pediu
às mulheres que não derramassem lágrimas por Ele. Aquele que chorou em
Betânia e Cujo sangue agora gotejava na estrada de Jerusalém pediu-lhes que
não chorassem por Ele, pois Sua morte era uma necessidade desejada —
livremente desejada por Ele, mas uma necessidade para os homens. Ademais,
uma vez que prometera enxugar toda lágrima, lágrimas por Ele eram
desnecessárias.
A árvore verde era Ele mesmo; a árvore seca era o mundo. Ele era a
verdejante árvore da vida transferida do Éden; a árvore seca era primeiro
Jerusalém, e depois o mundo não convertido. Sua advertência significava que,
se os romanos tratavam dessa forma Aquele que era inocente, como tratariam
Jerusalém, que O condenara à morte? Se Ele foi ferido por causa das
transgressões dos outros, como, no juízo final, seria punida a culpa por suas
próprias iniquidades? Quando há fogo na floresta, a árvore verde com seiva e
umidade se escurece; já as árvores velhas e secas, inteiramente podres, vão
queimar! Se Aquele que não tinha pecado sofreu, quanto mais sofrerão aqueles
que estão podres com o pecado!
Pedro, que não foi mencionado nessa cena, mas que viveu intimamente
com o Salvador, mais tarde tomou o mesmo tema e escreveu:

E, se o justo se salva com dificuldade,


que será do ímpio e do pecador?
Assim também aqueles que sofrem segundo a vontade de Deus
encomendem as suas almas ao Criador fiel,
praticando o bem.
(1 São Pedro 4,18-19)

Nenhuma lágrima de Dalila afastaria esse Sansão de sua obra hoje;


nenhum lamento superficial das mulheres de Jerusalém O enfraqueceria no
propósito determinado do sacrifício; o dote de lágrimas não podia fazer delas as
noivas de Seu coração. Se Ele fosse apenas um homem bom indo em direção à
morte, então deixaria que abrissem a fonte de lágrimas; mas, como Ele era um
sacerdote indo ao sacrifício, então só as deixaria chorar se não se aproveitassem
dos frutos desse mesmo sacrifício. Assim como purgaria a morte ao levantar-Se
do sepulcro, também agora purgou as lágrimas de lamento, ao mostrar que só o
pecado merecia lágrimas. As mulheres choravam por Ele como um homem
bom, mas Ele não teria essas lágrimas no leito de morte. Ao rejeitar esse luto, o
Senhor mostrou que não era um homem bom enviado à morte, mas um Deus-
homem salvando pecadores.
Oculto em Suas palavras estava o apelo por fidelidade para impedir a
destruição de Jerusalém; seu destino estava nas mãos das mulheres, se tão
somente se arrependessem. Nesta, como em muitas outras ocasiões, o Senhor
levou Seus ouvintes a olhar para o estado de suas almas. Ele desviou a atenção
de Si mesmo, que não tinha pecado, para aqueles que necessitavam da
Redenção. Quando o jovem disse a Nosso Senhor que queria ser Seu discípulo,
Nosso Senhor disse-lhe que não tinha onde repousar a cabeça. A condição da
alma daquele jovem era adequada a tal pobreza? Quando Pedro disse que
morreria pelo Senhor, este contou ao apóstolo o quanto sua alma era débil;
agora dizia às mulheres que não desperdiçassem o pranto; que olhassem para a
própria alma, para seus filhos, para a cidade. Ele não precisava de lágrimas; elas,
sim, precisavam.
O lugar designado para a Crucifixão era o Gólgota, ou o “Lugar da
Caveira”. Diz a lenda que foi ali que se deu o sepultamento de Adão.
Representações da Crucifixão muitas vezes mostram um crânio aos pés da
Cruz, para indicar que o novo Adão estava morrendo pelo velho Adão. Mas,
decerto, era um lugar onde ossos de mortos eram jogados depois da execução.
Uma vez no monte, os executores despiram-No de Suas vestes, abrindo novas
feridas em Seu Corpo Santo. Ao todo, houve sete diferentes derramamentos de
sangue: a circuncisão, a agonia no jardim, a flagelação, a coroa de espinhos, o
caminho da Cruz, e agora os dois que se seguem — a Crucifixão e a perfuração
do Sagrado Coração. A Cruz estava preparada, e sobre ela puseram uma
inscrição feita por Pilatos em hebraico, latim e grego, que dizia:

Jesus de Nazaré, rei dos judeus.


(São João 19,19)

Sua morte, e também Sua Realeza, foram proclamados em nome dessas


três cidades do mundo: Jerusalém, Roma e Atenas; no idioma do Bom, do
Verdadeiro e do Belo; nas línguas de Sião, do Fórum e da Acrópole. Pediriam a
Pilatos que mudasse o que tinha escrito, mas ele se recusaria: “O que escrevi,
escrevi”. Sua Realeza permaneceu proclamada, embora, no momento, a Cruz
fosse Seu trono; Seu sangue, a púrpura real; os cravos, o Seu cetro; a coroa de
espinho, Sua diadema. A verdade manifestou-se mesmo quando os homens a
ridicularizavam.
Ser despido de Suas vestes queria dizer que já não era possível identificá-
Lo pela roupa. Em Sua nudez, tornou-se o Homem Universal. Exilado da
cidade, abandonou agora tanto a nação quanto a vida. O Sagrado Coração já
não estava confinado entre fronteiras. O cravo rude transpassou aquela mão da
qual fluía a graça do mundo, e a primeira pancada do martelo foi ouvida em
silêncio. Martelada após martelada, o som logo ecoou pelos muros da cidade.
Maria e João taparam os ouvidos; o eco soava com outra pancada. Os pés
foram fixados, os mesmos que buscavam a ovelha perdida entre os espinhos.
Cada detalhe da profecia estava sendo cumprido. Mil anos antes, Davi viu o
papel que o martelo e os cravos representariam com respeito ao Messias,
quando os carpinteiros entregaram à morte Aquele que fora o carpinteiro do
universo.

Cercam-me touros numerosos, rodeiam-me touros de Basã;


contra mim eles abrem suas fauces, como o leão que ruge e
arrebata. Derramo-me como água, todos os meus ossos se
desconjuntam; meu coração tornou-se como cera, e derrete-se
nas minhas entranhas. Minha garganta está seca qual barro
cozido, pega-se no paladar a minha língua: vós me reduzistes
ao pó da morte. Sim, rodeia-me uma malta de cães, cerca-me
um bando de malfeitores. Traspassaram minhas mãos e meus
pés: poderia contar todos os meus ossos. Eles me olham e me
observam com alegria [...]
(Salmo 21,13-18)

Isaías previra que, em Sua morte, o Messias estaria relacionado a


criminosos e malfeitores. Sendo vítima vicária pelos pecados, Ele não era tido
com mais estima do que a escória da terra. Como profetizou Isaías:

Foi maltratado e resignou-se;


não abriu a boca,
como um cordeiro que se conduz ao matadouro,
e uma ovelha muda nas mãos do tosquiador.
[...] O Justo, meu Servo, justificará muitos homens,
e tomará sobre si suas iniquidades.
[...] ele próprio deu sua vida,
e deixou-se colocar entre os criminosos,
tomando sobre si os pecados de muitos homens,
e intercedendo pelos culpados.
(Isaías 53,7-12)

Porque a crucifixão era o mais excruciante dos tormentos, era costume


oferecer ao condenado uma medida para diminuir a sensibilidade à dor.
Provavelmente, as mulheres de Jerusalém levavam consigo tal poção. Em todo
caso, os soldados

deram-lhe de beber vinho misturado com mirra,


mas ele não o aceitou.
(São Marcos 15,23)

Quando Lhe levaram aos lábios, Nosso Senhor, sabendo que era um
sedativo, recusou-se a sorver. Embora Seu corpo, já exausto, bradasse por água,
Ele não beberia aquilo que embotaria seu papel de mediador. No nascimento,
Sua mãe recebeu mirra de presente e aceitou-a como um sinal de sua morte
redentora. Em sua morte, Ele recusaria a mirra, que entorpeceria a razão de Sua
vinda. Ele disse a Pedro na noite anterior que beberia do cálice que o Pai Lhe
dera. Mas, para beber aquele cálice de Redenção, não deveria beber o cálice que
lhe separaria Corpo e Espírito.
Nosso Senhor ocupou muitos púlpitos durante a vida pública, tais como
o barco de Pedro lançado ao mar, o topo da montanha, as ruas de Tiro e
Sidom, o templo, a estrada junto ao cemitério e um salão de banquetes. Mas
todos perdem importância em comparação ao púlpito em que Ele estava agora
— o púlpito da Cruz. Esta foi lentamente erguida do chão, balançou nos ares
por um momento, rasgando e dilacerando Sua Carne Santa; então, de repente,
com um golpe seco que pareceu abalar até mesmo aos infernos, foi fincada no
buraco preparado para ela. Nosso Senhor subiu em Seu púlpito pela última
vez.
Como todo orador, observava do alto Sua audiência. Ao longe, em
Jerusalém, Ele podia ver a abóboda dourada do templo, refletindo os raios do
sol, prestes a esconder sua face, envergonhado. Aqui e ali, nas paredes do
templo, Ele podia captar um vislumbre daqueles que estavam forçando os
olhos para ver Aquele a quem as trevas não conheciam. Ao lado da multidão
estavam seguidores tímidos, prontos para fugir em caso de perigo; ali também
estavam os executores preparando-se para lançar sortes por Sua túnica (São
João 19,24). Perto da Cruz estava o único apóstolo presente, João, cujo rosto
tinha um aspecto como que moldado pelo amor; Madalena também estava lá,
como uma flor pisoteada, uma criatura ferida. Mas, acima de todos — Deus
tenha piedade dela! —, estava Sua própria mãe. Maria, Madalena, João;
inocência, penitência e sacerdócio; os três tipos de almas que para todo o
sempre seriam encontradas aos pés da Cruz de Cristo.
49

AS SETE PALAVRAS DO ALTO DA CRUZ

Nosso Senhor falou sete vezes do alto da Cruz. Essas são chamadas de as sete
últimas palavras. Nas Escrituras só há registro das palavras derradeiras de três
outros: Israel, Moisés e Estêvão. O motivo, talvez, é que nenhum outro é
considerado tão significativo e representativo como esses três. Israel foi o
primeiro dos israelitas; Moisés, o primeiro da dispensação legal; Estêvão, o
primeiro mártir cristão. As palavras derradeiras de cada um deles dão início a
algo sublime na história das relações de Deus com os homens. Nem mesmo as
últimas palavras de Pedro, de Paulo ou de João foram um legado humano, pois
nenhum espírito jamais guiou a pena para revelar os segredos de seus lábios
moribundos. E, ainda assim, o coração humano sempre anseia por ouvir a
disposição de espírito de alguém naquele momento muito comum e ainda mais
misterioso chamado morte.
Por bondade, Nosso Senhor Bendito deixou Suas reflexões sobre a morte,
pois Ele — mais que Israel, que Moisés e que Estêvão — representava toda a
humanidade. Nessa hora sublime Ele chamou todos os filhos ao púlpito da
cruz e cada palavra que lhes disse foi dita com a intenção de publicação eterna
e consolação imortal. Nunca houve um pregador como o Cristo moribundo;
nunca houve congregação como a que se reuniu ao redor do púlpito da cruz;
nunca houve sermão como as últimas sete PALAVRAS.

A PRIMEIRA PALAVRA

Os executores esperavam que Ele gritasse, pois todos os pregados ao lenho da


cruz o fizeram anteriormente. Sêneca escreveu que aqueles que eram
crucificados amaldiçoavam o dia em que nasceram, os executores, as mães e até
mesmo cuspiam nos que para eles olhavam. Cícero recordou que, às vezes, era
necessário cortar a língua dos que eram crucificados para que cessassem suas
terríveis blasfêmias. Por isso os carrascos esperavam uma palavra, mas não o
tipo de palavra que ouviram. Os escribas e os fariseus esperavam por Sua reação
e estavam bem certos de que Ele, que pregara o “amor pelos inimigos” e “fazer
o bem aos que nos odeiam”, naquele momento esqueceria o Evangelho diante
dos que perfuravam Seus pés e mãos. Pressentiam que as dores excruciantes e
agonizantes dissipariam os ventos de quaisquer resoluções que Ele pudesse ter
tomado para manter as aparências. Todos esperavam um grito, mas ninguém,
exceto os três aos pés da cruz, esperava a proclamação que ouviram. Como
algumas árvores fragrantes que banham de perfume o próprio machado que as
corta, o imenso Coração na Árvore do Amor derramou de Seu interior mais
uma oração do que um grito — uma prece simples, doce e humilde de graça e
perdão:

Pai, perdoa-lhes; porque não sabem o que fazem.


(São Lucas 23,34)

Perdoar quem? Perdoar os inimigos? O soldado da corte de Caifás que o


golpeou com um punho couraçado? Pilatos, o político, que condenou Deus
para manter a amizade com César? Herodes, que vestiu a Sabedoria com os
trajes de um tolo? Os soldados, que penduraram o Rei dos reis em um madeiro
entre o céu e a terra? Perdoá-los? Perdoá-los por quê? Porque sabem o que
fazem? Não, porque não sabem o que fazem. Se soubessem e ainda assim
continuassem a fazê-lo; se soubessem que crime terrível estavam cometendo ao
sentenciar a Vida à morte; se soubessem que perversão da justiça era preferir
Barrabás a Cristo; se soubessem a crueldade que era tomar os pés que cruzaram
os montes eternos e pregá-los ao lenho de uma árvore; se soubessem o que
estavam a fazer e ainda assim continuassem a fazê-lo, negligenciando o fato de
que o próprio sangue que derramavam era capaz de redimi-los, nunca seriam
salvos! Ao contrário, seriam condenados! Foi apenas a ignorância do enorme
pecado que os pôs no âmbito de ouvir aquele som que vinha da cruz. Não é a
ciência que salva: é a ignorância!
Homens moribundos proclamam a própria inocência ou condenam os
juízes que os sentenciaram à morte, ou, ainda, pedem o perdão dos pecados.
No entanto, a Perfeita Inocência não pediu perdão; como mediador entre Deus
e o homem, Ele ampliou o perdão. Como Sumo Sacerdote que ofereceu a Si
mesmo em sacrifício, pugnou pelos pecadores. Em certo sentido, as palavras de
perdão foram duas vezes proferidas: uma no Éden, quando Deus prometeu a
redenção por intermédio da “descendência de uma mulher” que esmagaria a
serpente do mal; e agora, quando Deus, como Servo Sofredor, cumpria a
promessa. Tão imenso foi o Amor Divino manifestado nessa primeira palavra
do alto da Cruz que seus ecos foram ouvidos por toda a história, tais como em
Estêvão, ao pedir que o Senhor não culpasse pelo pecado aqueles que o
apedrejaram, e em Paulo, que escreveu:

não houve quem me assistisse;


todos me desampararam!
(Que isto não seja imputado.)
(2 Timóteo 4,16)

As preces de Estêvão e Paulo, todavia, não eram como a Dele, em que o


perdão era identificado com Seu sacrifício. Ao ser, Ele mesmo, Sacerdote e
Vítima, era elevado como sacerdote e prostrado como vítima. Desse modo, Ele
intercedeu e ofereceu-Se pelo culpado. O sangue de Abel clamou pela ira de
Deus para vingar o assassinato de Caim; o novo sangue de Abel derramado por
irmãos invejosos da raça de Caim foi alçado para suspender a ira e implorar por
perdão.

A SEGUNDA PALAVRA

O Juízo Final foi prefigurado no Calvário: o Juiz estava no centro, e as duas


divisões da humanidade, uma de cada lado: os salvos e os condenados, as
ovelhas e os cabritos. Quando viesse em glória para julgar todos os homens, a
cruz, então, também estaria com Ele, mas como uma medalha de honra, e não
como opróbrio.
Os dois ladrões crucificados ao Seu lado, de início, blasfemaram e
amaldiçoaram. O sofrimento não necessariamente torna os homens melhores;
pode torná-los insensíveis e ferir a alma, a menos que os homens sejam
purificados ao ver seu valor redentor. O sofrimento sem espiritualidade pode
causar degeneração ao homem. O ladrão à esquerda, por certo, não ficou
melhor por causa da dor; pediu para ser descido da cruz. No entanto, o ladrão
da direita, evidentemente movido pela prece sacerdotal de intercessão, pediu
para ser arrebatado. Ao reprimir o confrade ladrão por sua blasfêmia, disse:

Nem sequer temes a Deus, tu que sofres no mesmo suplício?


Para nós isto é justo: recebemos o que mereceram os nossos
crimes,
mas este não fez mal algum.
(São Lucas 23,40-41)

Em seguida, lançando-se na misericórdia divina, pediu por perdão.

Jesus, lembra-te de mim, quando tiveres entrado no teu Reino!


(São Lucas 23,42)

Um moribundo pediu a um agonizante por vida eterna; um homem sem


posses suplicou a um pobre por um Reino; um ladrão às portas da morte pediu
para morrer como um ladrão e roubar o Paraíso. Poderíamos ter pensado em
um santo a ser a primeira alma comprada no Calvário pelas moedas rubras da
redenção, mas, no plano divino, um ladrão foi o séquito do Rei dos reis no
Paraíso. Se Nosso Senhor tivesse vindo como mero mestre, o ladrão nunca teria
pedido por perdão. Entretanto, já que seu pedido tocou a razão de Sua vinda à
terra, a saber, salvar as almas, o ladrão ouviu a resposta imediata:

Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso.


(São Lucas 23,43)
Foi a última prece do ladrão, talvez até a primeira. Ele bateu uma vez,
buscou uma vez, pediu uma vez, arriscou tudo e conseguiu tudo. Quando até
os discípulos estavam duvidosos e somente um deles estava presente na Cruz, o
ladrão O tinha e O reconhecia como Salvador. Se Barrabás tivesse ido à
execução, como haveria de desejar não ter sido libertado e poder ouvir as
palavras do sumo sacerdote compassivo. Praticamente todo o Corpo de Cristo
foi preso por pregos ou torturado por chicotes e espinhos, exceto Seu coração e
Sua língua — e esses declararam o perdão naquele mesmo dia. No entanto,
quem pode perdoar os pecados senão Deus? E quem pode prometer o Paraíso a
não ser Ele que, por natureza, é eterno no Paraíso?

A TERCEIRA PALAVRA

A terceira mensagem de Nosso Senhor do alto da Cruz continha exatamente a


mesma palavra que empregou ao dirigir-se à Sua mãe na festa das bodas de
Caná. Quando ela, pelo bem do anfitrião constrangido, fez a súplica singela de
que não havia mais vinho, Ele respondeu: “Mulher, que tenho eu e tu com
isso? Ainda não chegou a minha hora” (São João 2,4). Nosso Senhor sempre
usou a palavra “hora” em relação a Sua Paixão e Morte.
Em nosso modo de dizer, Nosso Senhor falava à Sua mãe bendita em
Caná: “Mãezinha querida, percebes que estás a pedir que Eu proclame Minha
divindade — que apareça diante do mundo como o Filho de Deus e prove
Minha divindade por obras e milagres? No momento em que fizer isso, darei
início ao caminho real para a Cruz. Quando não for mais conhecido como o
filho do carpinteiro, mas como Filho de Deus, esse será Meu primeiro passo
em direção ao Calvário. Minha hora ainda não chegou, mas gostarias que a
antecipasse? É da tua vontade que Eu vá para a Cruz? Caso seja, teu
relacionamento Comigo mudará. És agora Minha mãe. És conhecida em todos
os cantos de nosso vilarejo como a mãe de Jesus. Se, contudo, Eu surgir agora
como Salvador dos homens e começar a obra da redenção, teu papel também
mudará. Uma vez que Me ocupe da salvação da humanidade, não serás apenas
Minha mãe, mas serás também a mãe de todos os que Eu redimir. Sou o
Cabeça da humanidade; tão logo salve o corpo da humanidade, tu, que és a
mãe do Cabeça, tornar-te-ás também a mãe de Meu Corpo Místico ou a Igreja.
Serás, então, a mãe universal, a nova Eva, assim como sou Eu o novo Adão.
“Para indicar-te o papel que terás na Redenção, conceder-te-ei o título de
maternidade universal. Chamo-te Mulher. Foi a ti que Me referi ao dizer a
Satanás que poria inimizade entre ele e a mulher, entre seu bando do mal e tua
descendência, que sou Eu. Neste momento, concedo-te o grandioso título de
mulher. E te dignificarei novamente com ele quando chegar a minha hora e for
desfraldado sobre a cruz como uma águia ferida. Estamos juntos nessa obra de
Redenção. O que é teu é Meu. Deste momento em diante não seremos apenas
Maria e Jesus, somos agora o novo Adão e a nova Eva, a principiar uma nova
humanidade, a transformar a água do pecado em vinho da vida. Ao tomar
ciência de tudo isso, mãezinha querida, é da tua vontade que antecipe a Cruz e
vá ao Calvário?”.
Nosso Senhor apresentava a Maria não só a opção de pedir ou não por
um milagre, mas sim perguntava se ela O enviaria à Sua morte. Deixara bem
claro que o mundo não toleraria Sua divindade, e caso transformasse água em
vinho, algum dia o vinho se transformaria em sangue.
Passaram-se três anos. Nosso Senhor Santíssimo olhava, agora, do alto da
Cruz para as duas criaturas mais amadas que tivera na terra — João e Sua bem-
aventurada mãe. Tomou o refrão de Caná e endereçou-Se à Nossa Mãe Bendita
com o mesmo título que lhe concedeu naquela festa de casamento. Chamou-a
de “mulher”. Foi a segunda anunciação. Com um mover dos olhos pulverosos e
da fronte coroada por espinhos, fitou-a ardentemente, a ela que condescendeu
a enviá-Lo à Cruz e que agora se postava aos Seus pés como uma colaboradora
em Sua Redenção, e disse: “Mulher, eis aí teu filho” (São João 19,26). Ele não o
chamou de João; fazer isso significaria endereçar-se a ele como o filho de
Zebedeu e de mais ninguém. Entretanto, anônimo, João representava toda a
humanidade. Ao discípulo muito amado, disse: “Eis aí tua mãe” (São João
19,27).
Eis aqui a resposta, depois de todos aqueles anos, às palavras misteriosas
do Evangelho da Encarnação que relatava que Nossa Mãe Bendita teria seu
“primogênito” em uma manjedoura. Queria indicar que Nossa Mãe Santíssima
teria outros filhos? Por certo que sim, mas não segundo a carne. Nosso Divino
Senhor e Salvador Jesus Cristo era o Filho Único de Nossa Senhora pela carne.
Entretanto, Nossa Senhora teve outros filhos, não segundo a carne, mas
segundo o espírito!
Há dois grandes períodos na relação de Jesus e Maria; o primeiro vai do
berço a Caná e o segundo, de Caná até a Cruz. No primeiro, ela era a mãe de
Jesus; no segundo, passou a ser a mãe de todos a quem Jesus redimiu — em
outras palavras, passou a ser a mãe dos homens. De Belém a Caná, Maria teve
Jesus como uma mãe tem um filho; até mesmo o chamava familiarmente de
“filho”, aos 12 anos, como se fosse seu modo habitual de dirigir-se a Ele. Nosso
Senhor esteve com ela durante aqueles trinta anos, fugindo em seus braços para
o Egito, vivendo em Nazaré e estando sujeito a ela. Ele era dela e ela era Dele, e
até aquele exato momento em que se encaminhavam para as bodas, seu nome
foi mencionado primeiro: “e achava-se ali a mãe de Jesus” (São João 2,1).
No entanto, de Caná em diante, há um afastamento crescente, que Maria
ajudou a ocasionar. Um ano após aquele episódio, como mãe dedicada, ela O
seguiu nas pregações. Nosso Senhor foi noticiado de que Sua mãe O procurava.
Nosso Senhor, aparentemente despreocupado, voltou-se à multidão e
perguntou:

Quem é minha mãe [...]?


(São Mateus 12,48)

Dessa maneira revelou o grande mistério cristão de que o relacionamento


não depende da carne e do sangue, mas da união com a natureza divina por
intermédio da graça:

Todo aquele que faz a vontade


de meu Pai que está nos céus,
esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe.
(São Mateus 12,50)

O mistério chegou ao fim no Calvário. Aí ela tornou-se nossa mãe, no


momento em que perdeu seu Filho Divino. O que parecia um alheamento da
afeição era, em verdade, um aprofundamento da afeição. Nenhum amor jamais
alcança um nível superior sem a morte de um nível inferior. Maria morreu para
o amor de Jesus em Caná e recuperou Jesus no Calvário com o Corpo Místico
que Ele redimiu. Foi, por um momento, uma troca inferior, abrir mão do Filho
Divino para ganhar os seres humanos, mas, na realidade, não ganhou a
humanidade sem Ele. No dia em que foi a Ele ao pregar, começou a fundir a
maternidade divina em uma nova maternidade de todos os homens; no
Calvário, Ele a fez amar os homens como Ele os amava.
Era um novo amor, ou, talvez, o mesmo amor ampliado a uma área mais
extensa da humanidade. Não era, contudo, sem pesar. Custou algo a Maria ter
os homens como filhos. Ela pôde dar Jesus à luz, jubilosa, em um estábulo, mas
somente pôde dar à luz os cristãos no Calvário, em dores de parto grandes o
bastante para torná-la a rainha dos mártires. O Fiat que pronunciou ao tornar-
se a mãe de Deus agora se tornou outro Fiat, como a Criação na imensidão
daquilo que ela gerou. Foi também um Fiat que ampliou tanto as afeições
como as dores. A amargura da maldição de Eva — de que a mulher geraria
filhos com dores — nesse momento se cumpria, e não pelo abrir de um útero,
mas por um coração transpassado, como predissera Simeão. Foi a maior de
todas as honras ser a mãe de Cristo; mas também foi uma grande honra ser a
mãe de todos os cristãos. Não havia lugar na estalagem naquele primeiro
nascimento, mas, no segundo, Maria teve todo o mundo. Recordemos que,
quando Nosso Senhor falou a João, não se referiu a ele como João, visto que
teria sido apenas o filho de Zebedeu. Em João toda a humanidade foi
recomendada a Maria, que se tornou a mãe dos homens, não por uma
metáfora ou figura de linguagem, mas pelas dores do parto. Não foi mera
solicitude sentimental que fez Nosso Senhor dar João à Sua mãe, pois a mãe de
João estava presente na Cruz. Ele não precisava de outra mãe do ponto de vista
humano. A importância das palavras era espiritual e se cumpriu no dia de
Pentecostes, quando o Corpo Místico de Cristo se tornou visível e operante.
Maria, como a mãe da humanidade redimida e regenerada, estava no meio dos
apóstolos.

A QUARTA PALAVRA

De meio-dia às três da tarde, uma escuridão sobrenatural recaiu sobre a terra,


pois a natureza, em compreensão amiga com o Criador, recusou-se a lançar luz
sobre o crime de deicídio. A humanidade, ao condenar a Luz do Mundo,
perdera agora o símbolo cósmico dessa luz, o sol. Em Belém, quando Ele
nasceu, à meia-noite, o céu subitamente encheu-se de luz; no Calvário, quando
ingressou na ignomínia de Sua crucifixão ao meio-dia, o firmamento
abandonou a luz. Séculos antes, dissera o profeta Amós:

Acontecerá naquele dia [...]


que farei o sol se pôr ao meio-dia,
e encherei a terra de trevas em pleno dia.
(Amós 8,9)

Nosso Senhor Bendito entrou na segunda fase de Seu sofrimento. A


catástrofe de ser pregado na Cruz foi seguida pela paixão de ser crucificado.
Onde não podia fluir livremente, o sangue coagulou; a febre consumiu Seu
corpo; os espinhos que eram a maldição da terra estavam naquele momento
cobertos de sangue derramado como uma calamidade do pecado. Uma
quietude sobrenatural, que é um tanto normal nas trevas, agora se tornava
atemorizante na escuridão anormal do meio do dia. Quando Judas veio com o
bando para prendê-Lo no Jardim das Oliveiras, Nosso Senhor lhe disse que era
a Sua hora e do “poder das trevas”. Essas trevas, no entanto, não significavam
que os homens estavam extinguindo a Luz que iluminou cada homem que veio
a este mundo, mas também que Ele estava negando a Si mesmo, no momento,
a luz e a consolação de Sua divindade. O sofrimento passara do corpo para a
mente e a alma, enquanto clamava em alta voz:

Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?


(São Mateus 27,46)

Durante essa parte da crucifixão, Nosso Senhor Santíssimo repetia o


Salmo de Davi que profeticamente referia-se a Ele, embora escrito mil anos
antes.

Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?


[...] Eu, porém, sou um verme, não sou homem,
o opróbrio de todos e a abjeção da plebe.
Todos os que me veem zombam de mim; dizem, meneando a
cabeça:
Esperou no Senhor, pois que ele o livre, que o salve, se o ama.
[...]
Cercam-me touros numerosos, rodeiam-me touros de Basã;
contra mim eles abrem suas fauces, como o leão que ruge e
arrebata.
Derramo-me como água, todos os meus ossos se
desconjuntam;
meu coração tornou-se como cera, e derrete-se nas minhas
entranhas.
Minha garganta está seca qual barro cozido, pega-se no paladar
a minha língua:
vós me reduzistes ao pó da morte.
Sim, rodeia-me uma malta de cães, cerca-me um bando de
malfeitores.
Traspassaram minhas mãos e meus pés: poderia contar todos os
meus ossos.
Eles me olham e me observam com alegria [...].
(Salmo 21,2; 7-9; 13-19)

O traço indicativo dos sofrimentos de Nosso Senhor que é revelado nesse


salmo foi sua desolação e solidão. O Filho Divino chamou o Pai de “Meu
Deus” — em contraste com a prece que ensinou aos homens a dizer “Pai Nosso
que estais nos céus”. Não foi Sua natureza humana que foi apartada de Sua
natureza divina; isso era impossível. Em vez disso, assim como a luz do sol e o
calor podem ficar escondidos no pé da montanha por nuvens intervenientes,
ainda que o pico esteja banhado pela luz do sol, da mesma maneira, ao tomar
sobre Si os pecados do mundo, Ele desejou uma espécie de afastamento da face
do Pai e de toda a consolação divina. O pecado tem efeitos físicos e Ele os
sentiu ao ter as mãos e os pés perfurados; o pecado tem efeitos mentais que Ele
externou no Jardim do Getsêmani; o pecado também tem efeitos espirituais,
tais como um senso de abandono, de separação de Deus, de solidão. Esse
momento em especial, em que o principal efeito do pecado é a solidão, Ele
desejou tomar sobre Si.
O homem rejeitou Deus; agora, portanto, Ele desejou sentir essa rejeição.
O homem virou as costas para Deus; agora Ele, que era Deus em união pessoal
com a natureza humana, desejou sentir naquela natureza humana a tristeza
abominável como se Ele fosse culpado. A terra já O abandonara ao erguer
sobre si uma Cruz; o céu O abandonara ao velar-se em escuridão e, ainda
assim, pendendo entre ambos, uniu-Se aos dois. Naquele clamor estavam todos
os sentimentos dos corações humanos que expressam uma nostalgia divina: a
solidão do ateu, do cético, do pessimista, dos pecadores que odeiam a si
mesmos por detestar a virtude e de todos os que não amam nada além da
carne, pois viver sem amor é o inferno. Foi, portanto, sustentado pelos cravos
que Se pôs no limiar do inferno em nome de todos os pecadores. Ao ingressar
na penalidade extrema do pecado, que é a separação de Deus, era apropriado
que Seus olhos se enchessem de trevas e Sua alma, de solidão.
Em cada uma das outras palavras, Ele agiu como mediador divino: na
primeira palavra, rogou pelo perdão dos pecadores em geral; na segunda
palavra, anteviu Seu papel último no fim do mundo quando separará o bom do
mau; na terceira palavra, Ele foi o mediador a designar uma maternidade
espiritual para a humanidade redimida. Agora, na quarta palavra, agiu como
mediador para a humanidade pecadora. Deus e Ele, por um momento, ficaram
um diante do outro. O Antigo Testamento profetizara que Aquele que
pendesse do madeiro seria maldito; as trevas deram expressão a essa maldição
abrasadora que Ele removeria ao suportá-la e ao triunfar na Ressurreição. Um
dos primeiros grandes dons de Deus foi o dom da luz, que Ele mesmo afirmara
fazer brilhar sobre os justos e os perversos. Como mediador e advogado do
vácuo e das trevas dos corações pecadores, contudo, negaria a Si mesmo esse
dom primitivo da luz.
A história do relacionamento de Deus com o homem começa no Antigo
Testamento, quando foi feita a luz, e a história terá fim no juízo final, quando
o sol e a lua serão obscurecidos, as estrelas perderão o brilho e todo o
firmamento se cobrirá de trevas. Nesse meio-dia em particular, Ele esteve entre
a luz que foi criada e a escuridão suprema, onde o mal será condenado. Sentiu
em Si as tensões da história: a luz veio às trevas, mas as trevas não
compreenderam a luz. Assim como um agonizante vê toda a vida em resumo,
da mesma maneira, nesse momento Ele via a história recapitulada em Si
mesmo, quando as trevas do pecado tiveram seu momento de triunfo. O bode
expiatório, sobre o qual os sacerdotes da Lei Antiga impunham as mãos e
enviavam para o deserto, comprovou-se Naquele que desceu aos portões do
inferno. O mal rompe qualquer laço que una o homem a Deus, impondo
barreiras a todas as veredas que se abrem para Ele e cerrando todos os
aquedutos que possam fortalecer o homem a ir ao encontro de Deus. Sentia
agora como se Ele mesmo tivesse cerrado o cordão que unia a vida humana à
divina. A agonia física da crucifixão não era quase nada em comparação a essa
agonia mental que tomou para Si. Os filhos podem fazer cruzes, mas somente
o pecado pode criar trevas d’alma.
O brado de Cristo foi o do desamparo que sentiu ao se colocar no lugar
do pecador, mas não foi de desespero. A alma desesperada nunca clama a Deus.
Assim como as fortes pontadas de fome não são sentidas pelo moribundo
completamente exaurido, mas pelo homem que luta pela vida com as últimas
forças, assim também o abandono foi sentido não só pelo ímpio e pelo
profano, mas pelo mais santo dos homens, o Senhor na Cruz. A maior agonia
mental do mundo e a causa de muitas desordens psíquicas está na mente, alma
e coração dos que não têm Deus. Tal vazio nunca teria consolação, caso Ele
não sentisse tudo isso como Seu. Desse ponto em diante, nenhum ateu jamais
poderá dizer na sua solidão que Ele não sabia como seria viver sem Deus! Esse
vácuo de humanidade obtido pelo pecado, embora Ele tenha sentido como
Seu, não obstante proferido em alto brado, o foi não para indicar desespero,
mas, sim, esperança de que o sol volte a surgir mais uma vez e disperse a
escuridão.

A QUINTA PALAVRA

Nesse instante se chegou a um ponto do discurso das sete últimas palavras do


alto da Cruz que pareciam indicar que Nosso Senhor Bendito falava de Si
mesmo, ao passo que nalgumas das palavras anteriores tenha falado para
outros. Os fatos, entretanto, não são tão simples. Na verdade, é certo que a
perda de sangue pelo sofrimento, a posição nada natural do Corpo, com
extrema tensão nas mãos e pés, os músculos estirados, as feridas expostas ao ar
livre, a dor de cabeça por conta da coroa de espinhos, a dilatação dos vasos
sanguíneos, a inflamação crescente — tudo poderia ter produzido a sede física.
Não é de surpreender que tenha sentido sede; o que causa espanto é Ele ter
dito isso. Ele, que lançou as estrelas nas órbitas e os planetas no espaço; Ele,
que circunscreveu o acesso do mar; Ele, que fez jorrar água da pedra que
Moisés bateu; Ele, que fez todos os mares, rios e fontes; Ele, que disse à mulher
da Samaria “quem beber dessa água que eu lhe der não terá mais sede” (São
João 4,14), deixa escapar dos lábios o mais breve dos sete clamores da Cruz:

Tenho sede.
(São João 19,28)

Quando foi crucificado, recusou-Se a tomar uma mistura que Lhe foi
oferecida; agora pedia avidamente por algo para beber. Existe, todavia, uma
diferença considerável entre as duas bebidas: a primeira era mirra e se tratava de
uma bebida entorpecente para repelir a dor, e por isso Ele a recusou para que
os sentidos não fossem embotados. A bebida que naquele momento foi-Lhe
dada era vinagre ou o vinho avinagrado dos soldados.

Havia ali um vaso cheio de vinagre.


Os soldados encheram de vinagre uma esponja e,
fixando-a numa vara de hissopo, chegaram-lhe à boca.
(São João 19,29)

Ele, que transformara água em vinho em Caná, poderia ter empregado os


mesmos recursos infinitos para satisfazer a própria sede, a não ser pelo fato de
que nunca realizava um milagre em proveito próprio. No entanto, por que
pediu uma bebida? Não foi só por necessidade, embora tenha sido grande. A
verdadeira razão para o pedido era o cumprimento das profecias:

Em seguida, sabendo Jesus que tudo estava consumado,


para se cumprir plenamente a Escritura, disse: Tenho sede.
(São João 19,28)

Tudo o que o Antigo Testamento profetizara a respeito Dele tinha de ser


cumprido até a última vírgula. Nas Escrituras, Davi predissera Sua sede
durante a Paixão:

Minha garganta está seca qual barro cozido,


pega-se no paladar a minha língua: [...]
(Salmo 21,16)

Esperei em vão quem tivesse compaixão de mim,


quem me consolasse, e não encontrei.
Puseram fel no meu alimento,
na minha sede deram-me vinagre para beber.
(Salmo 68,21-22)

Assim, os soldados, embora tivessem dado vinagre para Dele zombar, o


que é explicitamente afirmado, mesmo assim cumpriram as Escrituras. O
vinagre foi-Lhe dado em um ramo de hissopo, uma planta que crescia a uma
altura de uns 45 centímetros.3 O hissopo também foi mergulhado no sangue
do Cordeiro Pascal; foi usado para aspergir as vergas e os mourões das portas
dos judeus no Egito para que escapassem do anjo vingador; foi mergulhado no
sangue do pássaro ao purificar o leproso; o próprio Davi, depois de pecar, foi
quem disse que seria purificado com hissopo e limpo.
Aquilo que, por último, toma conta da vida dos homens era posto em
primeiro lugar na Sua vida, pois Ele veio para sofrer e morrer. No entanto, não
desistiria da vida até que cumprisse os detalhes da Escritura para que os
homens pudessem saber que Ele, o Cristo, o Filho de Deus, era quem morria
na Cruz. Estava a retirar das Escrituras a ideia de que o Messias da promessa
não deveria aceitar a morte como um desígnio, mas levá-la a cabo como um
feito. A exaustão não era para matá-Lo, o esgotamento não era por sede. Como
Sumo Sacerdote e Mediador, foram as profecias a Seu respeito que incitaram o
clamor de sede. Na verdade, os rabinos judeus já haviam aplicado essa profecia
a Ele; afirma a Midrash: “Vem e mergulha tua porção no vinagre — isso é dito
do Messias — de Sua Paixão e tormentos, como está escrito no profeta Isaías:
‘Foi castigado por nossos crimes, e esmagado por nossas iniquidades’”.
Já que os soldados debochadamente deram vinagre a Nosso Senhor na
ponta da vara de hissopo, é provável que pretendessem ridicularizar um dos
ritos sagrados judaicos. Quando o sangue do cordeiro foi aspergido com o
hissopo, a purificação por intermédio de um símbolo agora era cumprida,
assim que o hissopo tocou o sangue do Cristo. São Paulo, ao abordar essa ideia,
escreve:

sem levar consigo o sangue de carneiros ou novilhos,


mas com seu próprio sangue, entrou de uma vez por todas no
santuário,
adquirindo-nos uma redenção eterna.
Pois se o sangue de carneiros e de touros e a cinza de uma vaca,
com que se aspergem os impuros,
santificam e purificam pelo menos os corpos,
quanto mais o sangue de Cristo,
que pelo Espírito eterno se ofereceu como vítima sem mácula a
Deus,
purificará a nossa consciência das obras mortas
para o serviço do Deus vivo?
(Hebreus 9,12-14)

As pessoas presentes aos pés da Cruz que conheciam muito bem as


profecias do Antigo Testamento receberam outra prova de que Ele era o
Messias sofredor. Sua quarta palavra, que expressava o sofrimento da alma, e a
quinta palavra, que expressava os sofrimentos do corpo, ambos foram preditos.
A sede era o símbolo do caráter insatisfatório do pecado; os prazeres da carne
comprados ao preço do júbilo do espírito, assim como beber água salobra. O
homem rico, na parábola, ficou sedento e implorou ao pai Abraão que pedisse
a Lázaro para molhar sua língua com uma gota d’água. Completar a expiação
do pecado requereria do Redentor que agora sentisse a sede até dos perdidos
antes que o estivessem. Entretanto, para os salvos, também, havia sede — uma
ânsia por almas. Alguns homens têm paixão por dinheiro; outros, por fama. A
paixão Dele era por almas! “Dê-Me de beber” queria dizer “Dê-me teu
coração”. A tragédia do amor divino pela humanidade é que em Sua sede os
homens Lhe deram vinagre e fel.
A SEXTA PALAVRA

Desde toda a eternidade, Deus desejou tornar o homem à imagem de seu Filho
Divino. Ao aperfeiçoar e alcançar tal semelhança em Adão, colocou-o no
Jardim do Éden, belo como só Deus sabe tornar belo um jardim. De certo
modo misterioso, a revolta de Lúcifer ecoou na terra, e a imagem de Deus no
homem turvou-se. O Pai Celestial desejava agora, em sua Misericórdia Divina,
restaurar o homem à glória primitiva, para que o homem decaído pudesse
conhecer a bela imagem a que estava destinado a se conformar. Deus enviou
seu Filho Divino à terra não só para perdoar o pecado, mas para satisfazer a
justiça por meio do sofrimento.
Na bela economia divina da Redenção, as mesmas três coisas que
cooperaram na expulsão do homem do Paraíso foram partilhadas na Redenção.
Para o desobediente Adão, havia um novo Adão obediente; para a orgulhosa
Eva, havia a nova Eva humilde, a Virgem Maria; para a árvore do Jardim, havia
agora o madeiro da Cruz. Retomando o plano divino e tendo provado o
vinagre que cumpriu a profecia, pronunciou nesse momento o que, no
original, possui uma só palavra:

Tudo está consumado.


(São João 19,30)

Não foi uma elocução de ação de graças de que Seu sofrimento se findara,
embora a humilhação do Filho do Homem houvesse, nesse momento,
terminado. Em vez disso, foi a afirmação de que Sua vida, do momento do
nascimento ao momento da morte, tinha cumprido fielmente o que o Pai
Celestial Lhe havia ordenado.
Por três vezes Deus usou a mesma palavra na história: primeiro no
Gênesis, para descrever o encerramento ou término da Criação; a segunda no
Apocalipse, quando toda a criação seria extinta e surgiria um novo céu e uma
nova terra. Entre esses dois extremos de início e de fim perfeitos, existiu o elo
do sexto pronunciamento do alto da Cruz. Nosso Divino Senhor, no estado de
maior humilhação, vendo completadas todas as profecias, todos os prenúncios
realizados e feitas todas as coisas necessárias à Redenção do homem, exprimiu
um grito de contentamento: “Tudo está consumado”.
A vida do Espírito agora poderia começar a obra de santificação, pois a
obra de Redenção estava completada. Na criação, no sétimo dia, depois de
rematados os céus e a terra, Deus descansou de todo o trabalho que fizera;
nessa altura, o Salvador na Cruz, ao ter ensinado como Mestre, governado
como Rei e santificado como Sacerdote, podia entrar em repouso. Não haveria
um segundo Salvador; nenhuma nova via de salvação; nenhum outro nome sob
os céus pelo qual o homem havia de ser salvo. Levantou-se um novo Davi para
destruir o Golias do mal, não com cinco pedras, mas com cinco chagas —
cicatrizes horrendas nas mãos, pés e na lateral do corpo; e a batalha foi travada
não com a armadura a reluzir sob o sol do meio-dia, mas com a carne
dilacerada de modo que os ossos pudessem ser enumerados. O Artista dera o
último retoque na obra de arte e, com a alegria dos fortes, enunciou a canção
de triunfo de que Sua obra estava completa.
Não existiu um único modelo, da pomba ao templo, que não fosse
cumprido por Ele. Cristo, uno com o Pai Eterno na obra da criação,
aperfeiçoara a Redenção. Não há profecia histórica — de Abraão, que ofereceu
o filho, a Jonas, que esteve na barriga da baleia por três dias — que Nele não
tenha sido cumprida. A profecia de Zacarias de que deveria entrar humilde
montado num burrico em Jerusalém; a profecia de Davi de que deveria ser
traído por um dos próprios familiares; a profecia de Zacarias de que deveria ser
vendido por trinta moedas de prata e que esse preço, depois, seria usado para
comprar um campo de sangue; a profecia de Isaías de que seria tratado de
maneira bárbara, flagelado e enviado à morte; a profecia de Isaías de que seria
crucificado entre dois malfeitores e que oraria pelos inimigos; as profecias de
Davi de que Lhe dariam vinagre para beber e repartiriam Suas vestes entre eles,
de que seria um profeta como Moisés, um sacerdote como Melquisedec, um
Cordeiro a ser abatido, um bode expiatório enviado para fora da cidade, que
seria mais sábio que Salomão, mais majestoso que Davi e que deveria ser
Aquele a quem Abraão e Moisés contemplavam na profecia — todos esses
maravilhosos hieróglifos teriam sido deixados sem explicação, não fosse o Filho
de Deus encarnado em Sua Cruz voltar o olhar para todas as ovelhas, cabritos e
bois que foram oferecidos em sacrifício e dizer: “Tudo está consumado”.
Não foi depois de pregar o belo sermão na montanha que Ele disse que
Sua obra estava consumada. Não foi para ensinar que Ele veio; foi, como disse,
para dar a Sua vida em resgate de muitos. No caminho para Jerusalém, dissera
aos apóstolos que seria entregue aos gentios, seria escarnecido e cuspido, seria
flagelado e enviado à morte; no jardim, quando Pedro ergueu a espada, Cristo
perguntou se Ele não deveria beber do cálice que o Pai do céu Lhe dera. Aos 12
anos, quando falou pela primeira vez na Escritura, disse que deveria tratar dos
assuntos do Pai. Agora, a obra que o Pai Lhe dera para realizar estava
terminada. O Pai enviara o Filho na aparência da carne pecadora e, por
intermédio do Espírito Eterno, Ele foi concebido no ventre de Maria. Tudo
isso veio a acontecer para que Ele pudesse sofrer na Cruz. Desse modo, a
reparação englobou toda a Trindade. O que foi efetuado foi a Redenção, como
o próprio Pedro diria após receber o Espírito e compreender o significado da
Cruz.

Porque vós sabeis que não é por bens perecíveis, como a prata e
o ouro,
que tendes sido resgatados da vossa vã maneira de viver,
recebida por tradição de vossos pais, mas pelo precioso sangue
de Cristo,
o Cordeiro imaculado e sem defeito algum.
(1 São Pedro 1,18-19)

A SÉTIMA PALAVRA

Uma das penalidades impostas ao homem como resultado do pecado original


foi morrer corporalmente. Após o exílio do Jardim do Éden, Adão tropeçou na
forma flácida de seu filho Abel. Falou com ele, mas Abel não respondeu. A
cabeça estava erguida, mas caía para trás, mole; os olhos estavam frios,
vidrados. Então, Adão recordou que a morte foi o preço do pecado. Foi a
primeira morte do mundo. Agora, o novo Abel, o Cristo, assassinado pela raça
de Caim, preparou-Se para regressar ao lar. A sexta palavra dirigia-se à terra; a
sétima, a Deus. A sexta foi um adeus ao tempo; a sétima, o início de Sua glória.
O filho pródigo retornava ao lar; deixara a casa do Pai 33 anos antes e partira
para um país estrangeiro neste mundo. Ali começou a despender Sua
substância, os tesouros divinos de poder e sabedoria; na hora última, Sua
substância de Carne e Sangue fora consumida entre os pecadores. Nada mais
havia para que se alimentassem, exceto a carcaça, os escárnios e o acre da
ingratidão humana. Como agora voltara a Si e preparara-Se para tomar o
caminho de volta à casa do Pai, como O fez, deixou escapar de seus lábios
numa prece perfeita:

Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.


(São Lucas 23,46)

Essas palavras não foram pronunciadas em um murmúrio exaurido como


fazem os homens quando dão o último suspiro. Já havia dito que ninguém
tiraria Sua vida, mas que Ele mesmo a entregaria. A morte não pôs a mão no
Seu ombro e O chamou para partir; Ele partiu para ir de encontro à morte.
Para demonstrar que não morreria de exaustão, mas por um ato de vontade, foi
dito de Suas últimas palavras:

lançou um grande brado.


(São Mateus 27,50)

É o único exemplo na história de um Moribundo que continua Vivo.


Suas palavras de despedida eram uma citação dos Salmos de Davi:

Em vossas mãos entrego meu espírito;


livrai-me, ó Senhor, Deus fiel.
Detestais os que adoram ídolos vãos.
Eu, porém, confio no Senhor.
Exultarei e me alegrarei pela vossa compaixão,
porque olhastes para minha miséria e
ajudastes minha alma angustiada.
(Salmo 30,6-8)
Não cantava um cântico de morte para Si; antes, proclamava a marcha
progressiva para a vida Divina. Não se refugiava em Deus porque devia morrer;
antes, Sua morte era um serviço ao homem e o cumprimento da vontade do
Pai. É difícil para o homem que pensa na morte como a crise mais terrível de
sua vida compreender a alegria que inspirou essas palavras do Cristo
agonizante. O homem pensa que a morte decide seu estado futuro; ao
contrário, é a vida que o faz. Algumas das escolhas que fez, as oportunidades
que estiveram em suas mãos, as graças que aceitou ou desperdiçou são o que
decide seu futuro. O perigo de viver é maior que o perigo de morrer. Assim,
agora, foi o modo como Ele viveu, a saber, para resgatar os homens, que
determinou a alegria de Sua morte e de Sua união com o Pai Celestial. Assim
como alguns planetas somente após um longo período completam as órbitas,
como se quisessem saudar Aquele que os colocou nessa rota, igualmente, o
Verbo Encarnado, ao completar Sua missão terrena, retornava novamente ao
Pai Celestial que O enviara para a obra da Redenção.
Ao pronunciar essas palavras, veio, das colinas opostas de Jerusalém, o
som de milhares de cordeiros que estavam a ser sacrificados do lado de fora do
pátio do templo para que o sangue fosse oferecido diante do Senhor Deus no
altar e a carne pudesse ser comida pelo povo. Se existe alguma verdade no
ensinamento dos rabinos de que foi naquele mesmo dia que Caim matou Abel,
de que Deus fez a aliança com Abraão, de que Isaac foi levado à montanha para
o sacrifício, de que Melquisedec ofereceu pão e vinho a Abraão, de que Esaú
vendeu sua primogenitura a Jacó, não sabemos. Entretanto, nesse dia o
Cordeiro de Deus foi morto e todas as profecias, cumpridas. A obra da
Redenção se findara. Houve a ruptura de um coração em um rapto de amor; o
Filho do Homem vergou a cabeça e decidiu morrer.
Nota

3 | Hissopo é uma palavra de origem hebraica para uma herbácea nativa da Europa
Meridional e do Oriente Médio, provavelmente a manjerona. De hastes delgadas e finas,
possui nas extremidades grandes espigas de pequenas flores. (N. T.)
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SETE PALAVRAS À CRUZ

Da Cruz, Nosso Senhor pronunciou sete palavras; mas houve também sete
palavras dirigidas a Nosso Senhor na Cruz.

A PRIMEIRA PALAVRA À CRUZ

Há pessoas que nunca permanecem perto da cruz tempo suficiente para


absorver a graça que flui do Crucificado. São conhecidos como transeuntes, “os
que passavam”.

Os que passavam o injuriavam,


sacudiam a cabeça e diziam:
Tu, que destróis o templo e o reconstróis em três dias,
salva-te a ti mesmo!
Se és o Filho de Deus, desce da cruz!
(São Mateus 27,39-40)

Mal o Senhor foi posto na Cruz, pediram-lhe que descesse. “Desce da


Cruz” é o pedido mais característico de um mundo não regenerado diante da
negação de si, da abnegação: uma religião sem Cruz. Como o Filho de Deus
estava orando pelos executores, “Pai, perdoa-os”, escarneceram Dele: “Se és o
Filho de Deus”. Se Jesus tivesse obedecido à provocação “Desce”, em quem
creriam? Como o Amor pode ser Amor se não custa nada ao Amante? Se Cristo
tivesse descido, teria havido a cruz, mas não o crucifixo. A Cruz é contradição;
a Crucifixão é a solução da contradição de vida e morte ao mostrar a morte
como condição de uma vida superior.
Os transeuntes, sem vergonha alguma, reviveram no julgamento a velha
acusação de que Ele destruiria o templo de Jerusalém e então ergueria outro em
três dias, conquanto soubessem que o Senhor falava do Templo de Seu Corpo.
Essa afirmação os incomodava tanto que a repetiriam até quando Estevão, o
primeiro mártir, foi apedrejado. Contudo, o escárnio é um ingrediente do
cálice do sofrimento; como os discípulos obteriam força em julgamentos
similares se o Mestre não tivesse suportado tudo com paciência? A crueldade
dos lábios que zombam é parte da herança do pecado tanto quanto a crueldade
das mãos que fixam os cravos. No alto do monte da tentação, Satanás usou a
mesma técnica quando pediu ao Senhor que transformasse as pedras em pães.
Era indecente que o Filho de Deus tivesse fome! Agora, era indecente que o
Filho de Deus sofresse.
Por que os transeuntes não tiveram paciência de esperar os “três dias” que
estavam indicados em suas provocações? Céticos sempre querem milagres como
a descida da Cruz, mas nunca o milagre maior do perdão.

A SEGUNDA PALAVRA À CRUZ

No mundo só há lugar para o ordinário; nunca para o muito bom nem para o
muito mau. Os bons são uma repreensão aos medíocres; os maus, uma
perturbação. Por isso, no Calvário, a Bondade é crucificada entre dois ladrões.
Esta é a Sua posição verdadeira: entre os desvalidos e rejeitados. Ele é o homem
certo no lugar certo. Aquele que disse que viria como um ladrão de noite está
entre ladrões; o Médico está entre leprosos; o Redentor está em meio aos não
redimidos.
O bom ladrão, tocado por Cristo, dizia agora ao Salvador na cruz:

Jesus, lembra-te de mim,


quando tiveres entrado no teu Reino!
(São Lucas 23,42)
Essa foi a única palavra dita à Cruz que não era uma reprimenda.
Enquanto os transeuntes estavam julgando a Divindade de Nosso Senhor com
base na libertação da dor, o bom ladrão estava pedindo libertação do pecado. O
crente não pede provas; nem havia uma condição: “Se és o Filho de Deus”.
Suas palavras indicavam que decerto Aquele que podia conduzi-lo ao Reino
podia aplacar sua dor e afrouxar os cravos, se assim quisesse.
O comportamento de todos em torno da Cruz era a negação da própria fé
que o bom ladrão manifestou; ele acreditou quando os demais mostraram
incredulidade. O ladrão penitente chamou-O “Senhor” ou Aquele que tem o
direito de governar; atribuiu-Lhe um Reino que certamente não era deste
mundo, pois Ele não tinha sinal externo de realeza. Vítima e Senhor eram para
o bom ladrão termos compatíveis. Um ladrão moribundo entendeu isso antes
dos apóstolos. Essa é a única conversão no leito de morte mencionada nos
Evangelhos, mas foi precedida pela Cruz do sofrimento. O bom ladrão pediu
para ser lembrado. Mas, por que ser lembrado, senão porque o perdão que
Cristo ofereceu a Seus executores podia ser oferecido também a ele? Tampouco
houve uma palavra de censura ou repreensão ao ladrão, pois seu coração já
estava dilacerado e partido. Essa foi a única palavra dita à Cruz que recebeu
uma resposta, e foi a promessa do Paraíso ao ladrão naquele mesmo dia.

A TERCEIRA PALAVRA À CRUZ

A terceira palavra à cruz veio do ladrão à esquerda:

Se és o Cristo,
salva-te a ti mesmo e salva-nos a nós!
(São Lucas 23,39)

O típico homem egoísta que nunca está consciente de ter praticado o mal
pergunta: “Por que Deus fez isso comigo?”. Julga o poder salvador de Deus
com base na liberação de julgamentos. O ladrão à esquerda foi o primeiro
comunista. Muito antes de Marx, ele dizia: “Religião é o ópio do povo. Se não
pode aliviar o sofrimento, para que ela serve?”. Uma religião que pensa nas
almas quando os homens estão morrendo, que os faz olhar para Deus no
momento em que as cortes estão infligindo injustiça, que fala de Paraíso ou
“torta no céu” quando as barrigas estão vazias e os corpos, tomados de dor, que
discursa sobre perdão quando excluídos da sociedade, dois ladrões e um
carpinteiro da região, estão morrendo num patíbulo — tal religião é “o ópio do
povo”.
A única salvação que o ladrão à esquerda podia compreender não era
espiritual ou moral, mas física: “Salva-te a ti mesmo e a nós!”. “Salvar o quê?
Nossas almas? Não! O homem não tem alma! Salva nossos corpos! De que
serve a religião se não para parar a dor? Desce da cruz! Resgata uma classe
social! Ou o cristianismo é um evangelho social ou é uma droga”. Tal era seu
clamor.
Os homens podem estar em circunstâncias idênticas e reagir de modos
totalmente diferentes. Ambos os ladrões eram semelhantes na depravação do
coração, mas cada um reagiu de maneira diferente ao homem que estava entre
eles. Nenhum instrumento externo, nenhum bom exemplo, em si e por si,
basta para converter alguém se não houver transformação do coração. Esse
ladrão certamente era judeu, pois baseou a aceitação do Messias ou Cristo tão
somente em Seu poder de tirá-lo da cruz. Imagine, no entanto, que Cristo de
fato lhes tivesse retirado os cravos, secado as fontes nas mãos e pés,
restaurando-lhes o vigor da vida. Será que o restante da vida dele teria sido
uma demonstração de fé em Cristo — ou uma continuação de sua vida como
ladrão? Se Nosso Senhor fosse só um homem com uma reputação a zelar, Ele
teria de mostrar Seu poder a todo momento e em todo lugar; mas, sendo Deus,
que conhece os segredos de todo coração, Ele se manteve em silêncio. Deus
nunca responde à oração do homem meramente para mostrar Seu poder.

A QUARTA PALAVRA À CRUZ

Essa palavra veio da intelligentsia da época, o chefe dos sacerdotes, escribas e


fariseus.

Ele salvou a outros e não pode salvar-se a si mesmo!


Se é rei de Israel,
desça agora da cruz e nós creremos nele!
Confiou em Deus, Deus o livre agora,
se o ama, porque ele disse:
Eu sou o Filho de Deus!
(São Mateus 27,42-43)

A intelligentsia sempre conhece uma religião o bastante para distorcê-la,


consequentemente toma cada um dos três títulos que Cristo reivindicara para
si — “Salvador”, “Rei de Israel” e “Filho de Deus” — e faz troça deles.
“Salvador”: Assim Ele foi chamado pelos samaritanos. Agora, eles
admitiriam que salvara aos outros, provavelmente a filha de Jairo, o filho da
viúva de Naim e Lázaro. Podiam permitir-se admitir agora, pois o próprio
Salvador estava em necessidade de salvação. “Salvou outros e não pode salvar-se
a Si mesmo”. O milagre conclusivo para eles ainda estava faltando.
Claro, Ele não podia salvar a Si mesmo! A chuva não pode se salvar, se
tem de fazer o verde florescer. O sol não pode se salvar, se tem de iluminar o
mundo; o soldado não pode se salvar, se tem de salvar seu país. E Cristo não
pode salvar-se, se tem de salvar Suas criaturas.
“Rei de Israel”: Ele recebeu esse título da multidão depois de tê-la
alimentado e fugido para as montanhas sozinho. Repetiram novamente no
Domingo de Ramos, quando estenderam ramos sob Seus pés. Agora, o título
era empregado em tom zombeteiro: “Se é rei de Israel, desça da cruz”.
Todos os reis da terra têm de sentar-se em tronos de ouro? Imagine que o
Rei de Israel decida governar de uma Cruz, não ser Rei de seus corpos pelo
poder, mas de seus corações pelo amor. A própria literatura judaica sugeria a
ideia de um Rei que alcançaria a glória por meio da humilhação. Que tolice,
então, zombar de um Rei porque recusou descer do trono. E se Ele tivesse
descido, seriam os primeiros a dizer, como o fizeram antes, que Ele agiu pelo
poder de Belzebu.
Forças irreligiosas têm seus feriados em momentos de grande catástrofe.
Em tempos de Guerra, perguntam: “Onde está teu Deus agora?”. Por que, em
tempos difíceis, é sempre Deus que é posto à prova, e não o homem? Por que
na guerra o juiz e o réu têm de trocar de lugar quando o homem pergunta:
“Por que Deus não para a guerra?”?
Foi esse tipo de zombaria que o Cristo teve de ouvir! Eles não sabiam que
já estavam perdidos. Pensavam que Ele estava. Por isso, eles, os verdadeiros
condenados, zombavam Daquele que criam estar condenado. O inferno estava
triunfando no humano! De fato, essa era a hora do poder dos demônios do
inferno.
Disseram que creriam se Ele descesse. Mas não creram quando O viram
levantar Lázaro dos mortos. Tampouco creriam quando Ele se levantasse dos
mortos. Proibiriam, então, que os apóstolos pregassem a Ressurreição que
sabiam ser um fato. Ninguém que descesse da cruz teria conquistado os
homens. Descer é humano; pender é divino!

A QUINTA PALAVRA À CRUZ

Quando houve trevas sobre a terra, Nosso Senhor fez ressoar um brado que
desencadeou a quinta palavra à Cruz:

Elói, Elói, lammá sabactáni?


(São Marcos 15,35)

que quer dizer:

Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?

Ao ouvir isso, alguns dos que estavam ali disseram:

Ele chama por Elias! [...]


Deixai, vejamos se Elias vem tirá-lo.
(São Marcos 15,35-36)

Não é certo se havia ou não uma distorção intencional do clamor do


Senhor para que tomassem Elói por Elias. Mas decerto havia escárnio, pois era
uma crença dos judeus, profetizada por Malaquias, que Elias havia de vir antes
que o Senhor viesse. Suas palavras significavam que Ele certamente não podia
ser o Senhor, pois Elias ainda não tinha vindo. Assim, fizeram o
autoproclamado Messias parecer como se invocasse um homem que tinha de
preceder Sua vinda. Na verdade, Elias viera em espírito na pessoa de João
Batista. Antes que João nascesse, o anjo apareceu a Zacarias, seu pai, dizendo
que o filho que lhe havia de nascer:

[...] converterá muitos dos filhos de Israel ao Senhor, seu Deus,


e irá adiante de Deus com o espírito e poder de Elias [...]
(São Lucas 1,16-17)

Que o espírito de Elias repousava sobre João era evidente, pois o primeiro
sermão que o Batista pregou foi “Arrependei-vos”. Foi assim que Malaquias
profetizara que o precursor do Senhor O anunciaria. Ademais, as vestes e o
estilo de vida de João indicavam sua estreita semelhança com o grande tesbita.
O Senhor estava na Cruz; Elias viera em espírito. Os escarnecedores sem
dúvida se lembravam da referência de Nosso Senhor a Elias durante sua vida
pública. Ele estava contando aos mensageiros de João que a recepção de
qualquer verdade que Ele ensinava dependia da vontade de cada um. Daí o fato
de aceitar João com Elias significar aceitar o arrependimento que João havia de
despertar em suas almas:

E, se quereis compreender,
é ele o Elias que devia voltar.
(São Mateus 11,14)

Se a consciência deles estivesse correta, disse-lhes, teriam aceitado João no


espírito de Elias. Passaram-se dois anos, e suas consciências foram reveladas
quando Cristo pendia na Cruz. Haviam rejeitado João por seu ascetismo e
abnegação; agora rejeitavam Jesus por pender na Cruz. Assim como o povo
esperava um Elias diferente como Seu precursor, também esperavam um Cristo
diferente. O grito para a cruz, da parte daqueles que não entendiam uma
palavra, era típico de muitos que pensam que a religião sempre significa algo
diferente daquilo que realmente é. Durante toda a Crucifixão, o único motivo
unificador era: “Desce da cruz”. Satanás não queria que Ele fosse fixado ali,
Pedro ficou escandalizado no exato momento em que ela foi mencionada. Nem
mesmo aqueles que criam que Cristo era uma pessoa humana queriam Sua
Cruz. O mundo sempre está à espera de Elias para tirá-lo de lá. O Cristo não
crucificado é o desejo do mundo. A recusa a descer sempre será a reprovação
daqueles que querem um Cristo fraco com mãos brancas e sem chagas.

A SEXTA PALAVRA À CRUZ

A sexta palavra à Cruz veio dos soldados:

Do mesmo modo zombavam dele os soldados.


Aproximavam-se dele, ofereciam-lhe vinagre e diziam:
Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo.
(São Lucas 23,36-37)

Esses homens não eram judeus, nem cidadãos da Israel ocupada; eram
orgulhosos legionários de Roma. Por que, então, referiam-se ao Senhor,
zombando, como o Rei dos Judeus? Porque, segundo o espírito do paganismo,
pensavam que todos os deuses eram deuses nacionais. A Babilônia tinha seus
deuses; os medos e os persas também tinham os seus; os gregos, da mesma
forma; e assim também os romanos tinham seus próprios deuses. A conclusão
era que, de todos os deuses nacionais, nenhum parecia mais pobre e fraco que o
Deus de Israel, que não podia salvar a Si mesmo do madeiro. É provável,
também, que a zombaria dos soldados fosse inspirada pela inscrição na Cruz
nas três línguas, em que se lia:

Jesus de Nazaré, rei dos judeus.


(São João 19,19)

Outros Lhe tinham pedido que descesse da Cruz ou salvasse a Si mesmo,


mas os soldados, assim como o ladrão à esquerda, desafiaram-No a “salvar-Se a
si mesmo”. Eles também estavam interessados na salvação, mas apenas física,
não espiritual. Havia latente certo orgulho com quão bem tinham feito seu
trabalho de execução, pois Ele não podia desprender-se da Cruz.
Os soldados já tinham lançado sortes por sua túnica sem costura. Caifás
havia rasgado as vestes sacerdotais, mas a túnica do Sumo Sacerdote na cruz
não foi rasgada. Deixou para os profanadores militares Sua túnica sem costura
e a crença de que Ele não podia salvar-Se a Si mesmo. Estariam a postos no
sepulcro na manhã da Páscoa para ver quanto estavam errados e por que Ele
não salvaria a Si mesmo.
Esses soldados pertenciam a um império em que um general que
sacrificava milhares de soldados em troca de glória temporal era tido em alta
conta; mas zombavam do capitão da salvação que pessoalmente morreu para
que outros pudessem viver. Essa é uma das poucas passagens do Novo
Testamento em que se fala de soldados de maneira desfavorável. Poucos deles
viram que Sua recusa a Se salvar não era fraqueza, mas obediência à lei do
sacrifício. A vida deles levava-os ao compromisso com o dever de morrer, se
necessário, para salvar a pátria. Mas não conseguiram compreender o mesmo
sacrifício erguido acima do plano militar. Só podiam ver os acontecimentos em
sucessão; mas Ele ordenara tudo desde o princípio. Ele veio para “dar a vida em
resgate de muitos”. Se em obediência à ordem deles o Senhor tivesse salvado a
Si mesmo, os homens teriam sido deixados sem salvação.

A SÉTIMA PALAVRA À CRUZ

Quando Cristo foi crucificado, o sol escondeu sua luz; quando Ele morreu, a
terra foi abalada em luto. Naquele terremoto, as rochas se partiram, túmulos se
abriram, e muitos corpos dos santos que dormiam se levantaram e saíram das
tumbas e apareceram a muitos na Cidade Santa. Se a terra deu sinais de
reconhecimento quando Deus estava libertando Seu povo da escravidão no
Egito ao separar as águas do mar, com tanto mais razão agora ela manifestava
reconhecer como o Senhor libertou o homem da servidão do pecado. Ainda
que o coração do povo não pudesse se partir, as pedras podiam.
O centurião, encarregado dos soldados, percebendo o terremoto e
relembrando o modo como o homem na cruz central tinha morrido, começou
a refletir. Então esse sargento do Exército romano deu um testemunho, não no
reino dos sonhos, como o fizera Cláudia, a outra pagã, mas com a expressão de
um homem honesto e sensato:

Este homem era realmente o Filho de Deus.


(São Marcos 15,39)

O Cristo que fora completamente abandonado pelos discípulos, exceto


um, aos pés da Cruz; que não ouviu nem sequer uma voz em Sua defesa, exceto
a de uma mulher; e que não teve ninguém que se apresentasse corajosamente
para reconhecê-Lo — Ele é enfim reconhecido em Sua morte por um soldado
com as marcas de batalha que havia comandado e presidido a execução. Sem
dúvida o centurião já tinha crucificado muitos antes, mas sentiu que havia algo
misterioso neste Sofredor, que orava por Seus inimigos e era tão forte no
último suspiro, como prova de que Ele era Mestre da vida que estava
entregando. Vendo toda a natureza tornar-se animada e expressiva, sua mente
viu a refutação das calúnias tolas e a inocência do homem justo; sim, e mais,
proclamou Sua divindade.
A Cruz estava começando a frutificar: um ladrão judeu havia pedido e
recebido a salvação; agora um soldado de César prostrava-se em adoração ao
Divino Sofredor. Aquela estranha combinação que estava por toda parte na
vida pública de Nosso Senhor está agora manifesta na Cruz: humilhação e
poder. Enquanto outros O condenaram por blasfêmia, o centurião O adorou
como o Filho de Deus.
51

O VÉU DO TEMPLO SE RASGOU

Nosso Senhor Santíssimo chamara Seu Corpo de Templo por causa da


plenitude da divindade que Nele habitava. O templo terreno de Jerusalém era
apenas um símbolo Dele mesmo. Nesse templo de pedra havia três grandes
divisões. Além do pátio de entrada, havia um lugar chamado “Santo” e, além
dele, um lugar ainda mais secreto, chamado de “Santo dos Santos”. O pátio era
separado do local sagrado por um véu, e um grande véu também dividia o local
sagrado do Santo dos Santos.
No exato momento em que Nosso Senhor desejou Sua morte:

E eis que o véu do templo se rasgou em duas partes de alto a


baixo.
(São Mateus 27,51)

O próprio fato de se rasgar de alto a baixo era para indicar que não foi
feito pela mão do homem, mas pela mão milagrosa do próprio Deus, que
ordenara que, enquanto perdurasse a antiga lei, o véu deveria pender diante do
Santo dos Santos. Agora, Ele decretou que deveria ser rasgado em Sua morte.
Aquilo que havia muito era sagrado nesse momento permanecia aberto e
manifesto diante dos olhos, descoberto como qualquer coisa comum e
ordinária, ao passo que, diante deles, no Calvário, quando o soldado
transpassou-Lhe o coração, foi revelado um novo Santo dos Santos que
continha a arca do Novo Testamento e os tesouros de Deus. A morte de Cristo
foi a desconsagração do templo terreno, pois Ele ergueria um novo templo em
três dias. Somente um homem, uma vez por ano, podia entrar no Santo dos
Santos; agora que o véu estava rasgado, aquele que separava o sagrado do povo
e que separava os judeus dos gentios, ambos poderiam acessar o novo templo,
Cristo, o Senhor.
Há uma relação intrínseca entre o soldado perfurando o Coração de
Cristo na Cruz, que expeliu sangue e água, e a dilaceração do véu do templo.
Dois véus foram rasgados: o véu púrpura do templo, que pôs fim à antiga lei, e
o outro, o véu de Sua carne, que abriu o Santo dos Santos do amor divino
tabernaculizado entre nós. Nos dois casos, o que era sagrado tornou-se
manifesto; um deles, o Santo dos Santos, que era apenas uma representação; e
o outro, o verdadeiro Santo dos Santos, Seu Sagrado Coração, que abriu aos
pecadores o acesso a Deus. O véu do antigo templo indicava que o céu estava
fechado a todos até que o Sumo Sacerdote, enviado pelo Pai, rasgasse o véu e
abrisse as portas a todos. São Paulo contou como os antigos sumos sacerdotes,
somente uma vez por ano, e não sem uma oferta de sangue pelas próprias faltas
e pelas faltas de seu povo, tinham autorização para entrar no Santo dos Santos.
A Epístola aos Hebreus explica esse mistério:

Com o que significava o Espírito Santo que o caminho do


Santo dos Santos
ainda não estava livre, enquanto subsistisse o primeiro
tabernáculo[...].
Porém, já veio Cristo, Sumo Sacerdote dos bens vindouros.
E através de um tabernáculo mais excelente e mais perfeito,
não construído por mãos humanas (isto é, não deste mundo),
sem levar consigo o sangue de carneiros ou novilhos,
mas com seu próprio sangue,
entrou de uma vez por todas no santuário,
adquirindo-nos uma redenção eterna.
(Hebreus 9,8; 11-12)

Então, ao comparar o véu da carne e o véu do templo, a Epístola


acrescenta:

Por esse motivo, irmãos, temos ampla confiança


de poder entrar no santuário eterno,
em virtude do sangue de Jesus,
pelo caminho novo e vivo que nos abriu através do véu,
isto é, o caminho de seu próprio corpo.
(Hebreus 10,19-20)

Mil anos antes, Davi, ansioso pelo Messias, escreveu:

Não vos comprazeis em nenhum sacrifício,


em nenhuma oferenda, mas me abristes os ouvidos:
não desejais holocausto nem vítima de expiação.
Então eu disse: Eis que eu venho.
No rolo do livro está escrito de mim:
fazer vossa vontade, meu Deus, é o que me agrada,
porque vossa lei está no íntimo de meu coração.
Anunciei a justiça na grande assembleia,
não cerrei os meus lábios, Senhor, bem o sabeis.
Não escondi vossa justiça no coração.
(Salmo 39,7-10)

Enquanto o salmista olhava para os sacrifícios dos animais mortos, as


ofertas incineradas para alcançar o favor divino e as oferendas do pecado para
reparar o erro, sua mente conservava-se nelas apenas para deixá-las de lado,
pois sabia muito bem que esses touros, bodes e ovelhas sacrificados não
poderiam realmente afetar o relacionamento do homem com Deus.
Vislumbrava um dia futuro em que Deus teria Sua divindade entesourada em
um corpo humano, como num templo, e viria com um único propósito, isto é,
entregar a própria vida segundo a vontade divina. Davi proclamou que a
Encarnação Divina seria a perfeição dos sacrifícios e do sacerdócio da lei
judaica. A imagem se cumprira como um Cordeiro sem mácula que Se
ofereceu ao Pai dos céus. A antiga promessa feita a Israel no Egito ainda era
verdadeira e poderia ser reivindicada, em sentido mais elevado, por todos que
invocassem o Sangue derramado do alto da Cruz:
vendo o sangue, passarei adiante,
e não sereis atingidos pelo flagelo destruidor,
quando eu ferir o Egito.
(Êxodo 12,13)

O sacerdócio da casa de Levi agora estava destituído. A ordem de


Melquisedec se tornou a lei na casa de Levi. E o sinal de “entrada proibida”
colocado diante do Santo dos Santos no templo terreno foi removido. Quando
Cristo veio ao mundo para dar cumprimento à ordem de Melquisedec, a casa
de Levi negou-Lhe as boas-vindas. Na verdade, Levi exigira dízimos Dele
poucas semanas antes de Sua morte, ao exigir os tributos do templo. No
entanto, quando o véu do templo se rasgou, o sacerdócio de Melquisedec foi
revelado e, com ele, o verdadeiro Santo dos Santos, a verdadeira Arca da Nova
Aliança e o verdadeiro Pão da Vida — o Cristo, o Filho do Deus Vivo.
52

A PERFURAÇÃO DE SEU LADO

Quando Nosso Salvador deu o último suspiro, os ossos dos ladrões foram
triturados para certificar-se da morte deles. A lei ordenava que o corpo de
alguém crucificado, e portanto amaldiçoado por Deus, não permanecesse na
cruz durante a noite. Além disso, com a proximidade do Sábado da semana da
Páscoa, era urgente aos seguidores da Lei matar os ladrões e sepultar todos os
que fossem crucificados. Havia de cumprir-se, no entanto, uma profecia acerca
do Messias. O cumprimento deu-se quando:

um dos soldados abriu-lhe o lado com uma lança e,


imediatamente, saiu sangue e água.
(São João 19,34)

O avarento divino economizara algumas preciosas gotas de Seu Sangue


para derramá-las depois de ter entregado o espírito, a fim de mostrar que Seu
amor era mais forte que a morte. Sangue e água jorraram; Sangue, o preço da
Redenção e o símbolo da Eucaristia; água, o símbolo da regeneração e do
batismo. São João, que testemunhou a cena do soldado a perfurar o Coração de
Cristo, escreveu mais tarde:

Ei-lo, Jesus Cristo,


aquele que veio pela água e pelo sangue;
não só pela água, mas pela água e pelo sangue.
(1 Epístola de São João 5,6)
Havia algo mais que um fenômeno natural aqui, visto que João deu-lhe
um significado misterioso e sacramental. A água estava no início do ministério
de Nosso Senhor, quando foi batizado; o sangue estava no fim deste ministério,
quando Ele ofereceu-Se como oblação imaculada. Ambos tornaram-se o
fundamento da fé, pois no batismo o Pai declarou-O Seu Filho, e a
Ressurreição testificou ainda uma vez Sua Divindade.
O mensageiro do Pai foi perfurado com a mensagem de amor escrita em
Seu Próprio Coração. O golpe da lança foi a última profanação sofrida pelo
Bom Pastor de Deus. Embora tenha sido poupado da brutalidade de ter as
pernas quebradas, ainda assim houve algum propósito divino misterioso na
abertura do Sagrado Coração de Deus. João, que recostara a cabeça em Seu
peito na noite da Última Ceia, convenientemente registrou a abertura do
coração. No dilúvio, Noé fez uma porta na lateral da arca, pela qual os animais
entraram, a fim de que pudessem escapar da enchente; agora, uma nova porta
se abria no coração de Deus, no qual os homens poderiam encontrar refúgio da
enchente de pecado. Quando Adão dormiu, Eva foi tirada de seu lado e
chamada de mãe dos viventes. Agora, quando o segundo Adão reclinava a
cabeça e dormia na Cruz sob a figura do sangue e da água, saiu de seu lado sua
noiva, a Igreja. O coração aberto cumpriu Suas palavras:

Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim será salvo;


tanto entrará como sairá e encontrará pastagem.
(São João 10,9)

Santo Agostinho e outros escritores cristãos primitivos escreveram que


Longino, o soldado que abriu os tesouros do Sagrado Coração do Senhor, foi
curado de cegueira; mais tarde, Longino morreu como bispo e mártir da Igreja,
sendo celebrada sua memória no dia cinco de março. Quando João viu o ato,
sua mente voltou-se para a profecia de Zacarias, seis séculos antes:

Olharão para aquele que transpassaram.


(São João 19,37)
Não é que o pranto venha primeiro e então olhamos para a Cruz; antes, o
pesar pelos pecados surge da visão da Cruz. Todas as desculpas são postas de
lado quando a vilania do pecado é mais dolorosamente revelada. Mas a seta do
pecado que fere e crucifica traz o bálsamo do perdão que cura. Pedro viu o
Mestre e então chorou com amargura. Assim como aqueles que olharam para a
serpente de bronze foram curados da picada venenosa, agora a figura torna-se
realidade, e os que olham para Aquele que Se fez semelhante aos pecadores mas
não era um deles são curados do pecado.
Todos devem olhar, quer gostem, quer não. O Cristo perfurado continua
exaltado na encruzilhada do mundo. Alguns olham e são levados ao
arrependimento; outros olham e vão embora, com remorso, mas não
arrependidos, como aquela multidão no Calvário, que “voltou para casa
batendo no peito” (São Lucas 23,48). Bater no peito, neste caso, era um sinal
de impenitência; era a recusa de olhar para Aquele a Quem tinham traspassado.
O mea culpa é o bater no peito que salva.
Embora os executores perfurassem a lateral de Seu corpo, não quebraram
nenhum dos ossos do Senhor, como estava profetizado. O Êxodo dissera que o
Cordeiro Pascal não teria nenhum de seus ossos quebrado. Este cordeiro era
apenas um tipo do cumprimento literal do Cordeiro de Deus:

Assim se cumpriu a Escritura: Nenhum dos seus ossos será


quebrado.
(São João 19,36)

Cumpriu-se essa profecia apesar de Seus inimigos, que procuravam o


contrário. Assim como o corpo físico de Cristo tinha, exteriormente, feridas,
pisaduras e cicatrizes, mesmo interiormente a estrutura permanecendo intacta,
assim também parece haver um prenúncio de que, embora Seu Corpo Místico,
a Igreja, tenha suas feridas morais e cicatrizes de escândalos e deslealdades,
contudo, nenhum osso de Seu corpo jamais será quebrado.
53

OS AMIGOS NOTURNOS DE JESUS

O Corpo do Salvador pendia frouxo da Cruz — não era propriedade de


ninguém, mas pertencia especialmente à mãe. Ninguém no mundo, salvo
Maria, poderia pronunciar Suas palavras na Última Ceia, embora ela não fosse
sacerdotisa. Já que ninguém, a não ser a Mãe Santíssima, Lhe dera corpo e
sangue, sendo coberta pelo Espírito Santo, só ela poderia dizer: “Este é o meu
corpo; este é o meu sangue”. Só ela Lhe deu aquilo mediante o que fez-se a
obra da redenção; só ela O tornou possível; só ela O fez o Novo Adão. Não
houve contrapartida humana; somente o Espírito de Amor.
Maria O reclamava como pertencente a ela por meio do serviço de dois
homens ricos. Um deles era Nicodemos, o discípulo secreto que fazia aparições
noturnas. Nicodemos era um doutor da lei e era visto como um mestre em
Israel. Desde o princípio, sabia que Nosso Salvador era um mestre vindo dos
céus, contudo, para preservar sua autoridade e não se expor ao ódio dos
compatriotas, sempre apareceu na escuridão. O outro, José de Arimateia, deu-
Lhe um sepulcro novo. Este fora a Pilatos pedir o Corpo de Nosso Senhor, e
Pilatos o entregou a ele. A riqueza, a casta e a posição desses homens eram
notórias; um ouviu o Crucificado falar sobre ser “elevado”; o outro veio da
terra da lamentação, o local da tumba de Raquel. Isaías séculos antes predissera
que Nosso Senhor seria “rico na morte”; agora era entregue ao homem rico,
José de Arimateia.
Esses dois homens, com uns poucos seguidores devotos, prepararam-se
para descer Nosso Senhor, para remover os cravos e a coroa de espinhos.
Somente os olhos da fé podiam ver as marcas da realeza ao baixar a figura cujo
Sangue havia coagulado. No entanto, com um amor que rompia todas as
amarras do cálculo, esses dois discípulos recém-chegados e secretos tentaram
É
demonstrar lealdade. É provável que, quando removido da Cruz, o Cristo
morto tenha sido colocado nos braços de Sua Mãe Santíssima. Para uma mãe,
o filho nunca cresce. Deve ter parecido, por um momento, que Belém
retornara, pois era um bebê em seu abraço. No entanto, tudo mudara. Não
estava mais alvo como viera do Pai; estava escarlate ao vir das mãos dos
homens.
Nicodemos e José ungiram o Corpo com quilos de mirra e ervas
aromáticas e enfaixaram-No em linho puro. O embalsamamento elaborado
sugere que esses discípulos secretos, eles mesmos apóstolos, não estavam
esperando a Ressurreição. Fisicamente, estavam atentos a Ele; espiritualmente,
ainda não sabiam quem Ele era. A preocupação com o enterro era um sinal do
amor que Lhe dedicavam, não da fé Nele como a Ressurreição e a Vida.

No lugar em que ele foi crucificado havia um jardim.


(São João 19,41)

A palavra “jardim” aludia ao Éden e à queda do Homem, como também


sugeria, pelas flores na primavera, a Ressurreição dos mortos. Naquele jardim
havia um sepulcro onde “ninguém ainda havia sido depositado”. Nascido de
um ventre virgem, Ele foi enterrado em uma tumba virgem, como disse
Crashaw: “E um José, a ambos, se lhes comprometeu”. Nada parecia mais
repulsivo que ter uma crucifixão em um jardim, e ainda assim haveria uma
compensação, pois no jardim seria a Ressurreição. Nascido na gruta de um
estranho, enterrado na sepultura de um estranho, tanto a morte quanto o
nascimento humanos eram estranhos à Sua divindade. O sepulcro de um
estranho também, porque já que o pecado Lhe era estranho, igualmente o era a
morte. Ao morrer por outrem, foi posto na cova de um outro. Seu túmulo foi
emprestado, pois Ele o devolveria na Páscoa, assim como devolveu o jumento
que montou no Domingo de Ramos e o cenáculo da parte de cima da casa que
usou na Última Ceia. Enterrar é plantar. Paulo, posteriormente, extrairia do
fato de Ele ter sido enterrado em um jardim a lei segundo a qual, se somos
plantados à semelhança de Sua morte, devemos ressuscitar com Ele na glória de
Sua Ressurreição.
54

A FERIDA MAIS GRAVE DA TERRA — O TÚMULO


VAZIO

Na história do mundo, somente um túmulo já teve uma pedra rolada diante


de si e um soldado a postos para guardá-lo a fim de evitar que um homem
morto ressurgisse: esse era o túmulo do Cristo na noite da Sexta-Feira chamada
Santa. Que espetáculo poderia ser mais ridículo que soldados armados de olho
em um cadáver? Entretanto, lá estavam as sentinelas para que o morto não
andasse, o silêncio não falasse e o coração transpassado não palpitasse de vida.
Disseram que Ele estava morto, eles sabiam que estava morto; diziam que Ele
não ressuscitaria novamente e, ainda assim, O vigiavam! Abertamente
chamaram-No de enganador, no entanto, a quem Ele ainda enganaria? Será
que Ele, que os “enganou” fazendo crer que ganharam a batalha, Ele mesmo
ganhou a guerra para a vida, a verdade e o amor? Recordaram que Ele chamou
Seu corpo de Templo e que em três dias depois que o destruíssem, Ele o
reconstruiria. Lembraram que Ele Se comparara a Jonas e disse que, assim
como Jonas esteve no ventre da baleia por três dias, Ele igualmente estaria no
ventre da terra por três dias e então ressurgiria. Depois de três dias Abraão
recebeu de volta o filho Isaac, que fora oferecido em sacrifício; por três dias o
Egito esteve em uma escuridão que não era natural; no terceiro dia Deus
desceu no Monte Sinai. Nesse momento, mais uma vez, havia preocupação a
respeito do terceiro dia. Na alvorada de sábado, portanto, os sumos sacerdotes
e os fariseus romperam o Sabath e apresentaram-se a Pilatos, dizendo:

Senhor, nós nos lembramos de que aquele impostor disse,


enquanto vivia: Depois de três dias ressuscitarei.
Ordena, pois, que seu sepulcro seja guardado até o terceiro dia.
Os seus discípulos poderiam vir roubar o corpo e dizer ao
povo:
Ressuscitou dos mortos.
E esta última impostura seria pior que a primeira.
(São Mateus 27,63-64)

O pedido deles por uma guarda até o “terceiro dia” referia-se mais às
palavras de Cristo sobre Sua Ressurreição do que ao medo de que os apóstolos
roubassem o corpo e o erguessem, como se vivo, para simular a ressurreição.
No entanto, Pilatos não estava disposto a ver esse grupo, pois eles foram o
motivo de ter condenado o sangue inocente. Fizera a própria investigação de
que Cristo estava morto; não se submeteria ao absurdo de usar os exércitos de
César para vigiar um judeu morto. Pilatos lhes disse:

Tendes uma guarda.


Ide e guardai-o como o entendeis.
(São Mateus 27,65)

A guarda era para evitar a violência; o selo era para evitar a fraude. Devia
haver um selo, e os inimigos o lacrariam. Devia haver uma guarda, e os
inimigos a manteriam. Os certificados de morte e ressurreição deviam ser
assinados pelos próprios inimigos. Os gentios foram convencidos pela natureza
de que Cristo estava morto; os judeus foram convencidos pela lei de que Ele
estava morto.

Foram, pois, e asseguraram o sepulcro,


selando a pedra e colocando guardas.
(São Mateus 27,66)

O Rei repousava no local com Sua guarda. O fato mais surpreendente


acerca desse espetáculo de vigilância de um morto era que os inimigos de
Cristo esperavam a ressurreição, mas Seus amigos, não. Os crentes eram
céticos; os descrentes, crédulos. Seus seguidores precisavam e exigiam provas
antes de ficarem convencidos. Nos três grandes atos do drama da Ressurreição,
havia uma nota de tristeza e incredulidade. O primeiro ato foi o de Madalena,
chorosa, que foi cedo ao túmulo com ervas aromáticas, não para saudar o
Salvador Ressuscitado, mas para ungir o corpo morto.

MADALENA NO SEPULCRO

Na escuridão da aurora de Domingo, foram vistas várias mulheres se


aproximando do túmulo. O próprio fato de as mulheres levarem as ervas
aromáticas provava que elas não esperavam a Ressurreição. Parecia estranho que
fosse esse o caso após muitas referências de Nosso Senhor à Sua morte e
Ressurreição. É evidente, no entanto, que os discípulos, bem como as
mulheres, sempre que Ele profetizava Sua paixão, pareciam recordar mais da
morte que da Ressurreição. Nunca lhes ocorreu que fosse uma coisa possível;
era estranho ao pensamento deles. Quando a pedra foi rolada na entrada do
sepulcro, não só o Cristo foi enterrado, mas também todas as esperanças deles.
O único pensamento que as mulheres tinham era ungir o corpo do Cristo
morto — um ato nascido do desespero e, até então, de um amor descrente.
Duas delas, ao menos, haviam testemunhado o enterro, por isso sua grande
preocupação era o ato prático:

Quem nos há de remover a pedra da entrada do sepulcro?


(São Marcos 16,3)

Esse foi o grito dos corações de pouca fé. Homens fortes fecharam a
entrada do sepulcro ao colocar uma pedra enorme diante dela; a preocupação
das mulheres era como remover a barreira para que pudessem realizar a
incumbência de misericórdia. Os homens não deveriam chegar à tumba até
que fossem convocados — tampouco acreditavam. Entretanto, as mulheres, só
por conta do pesar que buscavam consolar, foram embalsamar o morto. Nada é
mais anti-histórico que dizer que as mulheres pias estavam esperando que o
Cristo ressuscitasse dos mortos. A Ressurreição era algo que nunca esperaram.
A mentalidade deles não permitia que tais expectativas florescessem.
No entanto, ao se aproximarem, encontraram a pedra removida. Antes da
chegada, houve um grande tremor de terra e um anjo do Senhor, que descera
dos céus, rolara a pedra e sentara-se nela:

Resplandecia como relâmpago e


suas vestes eram brancas como a neve.
Vendo isto, os guardas pensaram
que morreriam de pavor.
(São Mateus 28,3-4)

Quando as mulheres se aproximaram viram que a pedra, imensa como


era, já fora rolada. Entretanto, não chegaram imediatamente à conclusão de
que Seu Corpo havia ressuscitado. Concluíram que alguém havia removido o
corpo. Em vez do corpo morto do Mestre, viram um anjo, cuja face brilhava
como um relâmpago e as vestes eram brancas como a neve, e este lhes disse:

Não tenhais medo.


Buscais Jesus de Nazaré, que foi crucificado.
Ele ressuscitou, já não está aqui.
Eis o lugar onde o depositaram.
Mas ide, dizei a seus discípulos
e a Pedro que ele vos precede na Galileia.
Lá o vereis como vos disse.
(São Marcos 16,6-7)

Para um anjo, a Ressurreição não seria um mistério, mas Sua morte seria.
Para o homem, Sua morte não era um mistério, mas Sua Ressurreição o seria.
O que era natural para o anjo, portanto, foi, nesse momento, o assunto do
anúncio. O anjo era um guardador maior do que aqueles que os inimigos
tinham colocado diante do túmulo do Salvador, um soldado maior do que os
que Pilatos nomeara.
As palavras do anjo foram o primeiro Evangelho proclamado após a
Ressurreição e retomou a Sua paixão, pois a ele o anjo referiu-se como “Jesus
de Nazaré, que foi crucificado”. Essas palavras traziam o nome de Sua
humanidade, a humildade do lugar que habitara e a ignomínia de Sua morte;
em todos os três, humildade, ignomínia e vergonha são comparados à Sua
Ressurreição dos mortos. Belém, Nazaré e Jerusalém tornam-se marcos
identificadores da Ressurreição.
As palavras do anjo, “Eis o lugar onde O depositaram”, confirmaram a
realidade de Sua morte e o cumprimento das antigas profecias. Os túmulos
trazem a inscrição: Hic jacet, ou “Aqui jaz”. Em seguida, o nome do morto e,
talvez, algum elogio ao finado. Todavia, em contraste, o anjo não escreveu, mas
expressou um epitáfio diferente: “Já não está aqui”. Pediu às mulheres que
contemplassem onde tinham posto o corpo de Nosso Senhor, como se o
túmulo vazio fosse prova o bastante do fato da Ressurreição. A uma virgem foi
anunciado o nascimento do Filho de Deus; a uma mulher imoral foi anunciada
Sua Ressurreição.
Os que viram o túmulo vazio foram instados a ir até Pedro, que tentara
Nosso Senhor uma vez a fugir da Cruz e três vezes O negara. O pecado e a
negação não abafam o Amor Divino. Embora seja paradoxal, quanto maior o
pecado, menor a fé; e, ainda assim, quanto maior o arrependimento pelo
pecado, maior a fé. Foi para a ovelha perdida e ofegante no deserto que Ele
veio; foi para os publicanos e as prostitutas; era aos Pedros que O negavam e
aos Paulos que O perseguiam que as súplicas de amor mais persuasivas eram
enviadas. Ao homem que fora chamado de Pedra e que tentara o Cristo a não
tomar a cruz, o anjo, agora, enviava pelas mulheres a mensagem “Ide, dizei a
Pedro”.
A mesma proeminência individualizadora dada a Pedro na vida pública
continuou na Ressurreição. Entretanto, embora Pedro fosse mencionado aqui
com os apóstolos dos quais era o cabeça, o Senhor apareceu para ele sozinho,
antes de revelar-se a Si mesmo para os discípulos de Emaús. Isso ficou evidente
pelo fato de, mais tarde, os discípulos dizerem que Ele apareceu a Pedro. A
boa-nova da redenção foi dada, assim, a uma mulher decadente e a um
apóstolo que O negara, mas ambos tinham se arrependido.
Maria Madalena, que, no escuro, andou à frente das companheiras, notou
que a pedra já fora rolada para o lado, de modo que a entrada do túmulo estava
aberta. Um olhar rápido revelou que a tumba estava vazia. O primeiro
pensamento dela foi o dos apóstolos Pedro e João, para os quais correu,
agitada. Segundo a lei mosaica o testemunho de uma mulher era inaceitável.
Maria, contudo, não lhes deu notícias de ressurreição; não esperava por isso.
Pressupôs que Ele ainda estivesse sob o poder da morte, como disse a Pedro e
João:

Tiraram o Senhor do sepulcro, e não sabemos onde o puseram!


(São João 20,2)

De todos os discípulos e seguidores, havia apenas cinco que o


“guardavam”: três mulheres e dois homens, assim como os cinco da parábola
que aguardavam a vinda do noivo. Nenhum deles suspeitava da Ressurreição.
Agitados, Pedro e João correram para o sepulcro, deixando Maria para
trás. João era, dos dois, o melhor corredor e chegou primeiro. Quando Pedro o
alcançou, ambos entraram no sepulcro, onde viram os panos de linho ao redor,
bem como o véu que tinham colocado sobre a cabeça de Jesus, mas este não
estava com os panos de linho, estava dobrado. O que ocorrera ali fora feito de
maneira decente e ordenada, não por um ladrão nem mesmo um amigo. O
corpo desaparecera do túmulo; os panos que o envolviam foram encontrados
convolutos. Se os discípulos tivessem roubado o corpo, não teriam na pressa o
desembrulhado e deixado os panos de linho. Cristo ressuscitara pelo Seu poder
divino. Pedro e João

ainda não haviam entendido a Escritura,


segundo a qual Jesus devia ressuscitar dentre os mortos.
(São João 20,9)

Tinham os fatos e as provas da Ressurreição, mas ainda não tinham


compreendido o pleno significado. O Senhor agora começou a primeira das 11
aparições registradas entre a Ressurreição e Ascensão: às vezes para Seus
apóstolos, outras vezes para quinhentos irmãos, em algumas outras vezes para
as mulheres. A primeira aparição foi para Maria Madalena, que voltou ao
sepulcro depois de Tiago e João partirem. A ideia da Ressurreição também não
parecia entrar em sua mente, embora ela mesma tenha se erguido de uma
tumba selada pelos sete demônios do pecado. Ao encontrar o túmulo vazio, ela
irrompeu novamente em uma fonte de lágrimas. Com os olhos baixos,
enquanto o brilho do nascer do sol nas primeiras horas da manhã espalhava-se
pela relva coberta de orvalho, percebeu vagamente alguém perto dela que
perguntou:

Mulher, por que choras?


(São João 20,13)

Chorava por aquilo que estava perdido, mas Sua pergunta espantou o
infortúnio das lágrimas ao fazê-la parar de chorar. Ela disse:

Porque levaram o meu Senhor, e não sei onde o puseram.


(São João 20,13)

Não houve pavor ao ver os anjos, pois o mundo em chamas não a teria
comovido, tamanho o pesar que dominava sua alma. Quando ela disse isso,
voltou-se e viu Jesus de pé; não sabia que era Ele. Pensou ser o jardineiro — o
jardineiro de José de Arimateia. Ao acreditar que esse homem pudesse saber
onde Aquele que estava perdido poderia ser encontrado, Maria Madalena caiu
de joelhos e perguntou:

Senhor, se tu o tiraste, dize-me onde o puseste e eu o irei


buscar.
(São João 20,15)

Pobre Madalena! Desgastada pela Sexta-Feira Santa, esgotada no Sábado


Santo, com a vida resumida a uma sombra e com as forças por um fio, ela O
“iria buscar”. Por três vezes ela falou Dele sem dizer o nome. A força do amor
era tal que supunha ninguém compreender.

Maria!
(São João 20,16)
A voz foi mais alarmante que o estrondo de um trovão. Certa vez ouvira
Jesus dizer que chamava Suas ovelhas pelo nome. E agora para Aquele que
individualizara todo o pecado, o pesar e as lágrimas do mundo e marcara cada
alma com um amor pessoal, particular e discriminado, ela se voltou, e ao ver as
lívidas marcas rubras nos Seus pés e mãos, pronunciou apenas uma palavra:

Rabôni!
(São João 20,16)

(Que em hebraico significa “mestre”). Cristo pronunciara “Maria!” e todo


o céu estava contido ali. Foi a única palavra que pronunciou, e toda a terra nela
estava. Após a meia-noite mental, houve esse deslumbre; após horas
desesperançadas, essa esperança; após a busca, a descoberta; após a perda, esse
achado. Madalena estava preparada apenas para derramar lágrimas reverenciais
sobre o túmulo; não estava preparada para vê-Lo a caminhar no raiar da
aurora.
Somente a pureza e a ausência de pecado poderiam dar as boas-vindas a
este mundo ao Santíssimo Filho de Deus; por isso, Maria Imaculada O
encontrou na porta da entrada da cidade de Belém. Somente um pecador
arrependido, no entanto, que tivesse ressurgido do túmulo do pecado para a
novidade da vida em Deus poderia compreender de maneira apropriada o
triunfo sobre o pecado. Em honra da feminilidade para sempre se deve dizer:
uma mulher esteve mais perto da Cruz na Sexta-Feira Santa e foi a primeira no
túmulo na manhã de Páscoa.
Maria estava sempre a Seus pés. Lá estava quando O ungiu para o
sepultamento; estava aos pés da Cruz; agora, feliz ao ver o Mestre, lançou-se a
Seus pés para abraçá-los. Ele, contudo, disse-lhe com um gesto impeditivo:

Não me retenhas, porque ainda não subi a meu Pai.


(São João 20,17)

Os ternos gestos de afeto foram dirigidos a Ele mais como Filho do


Homem que como Filho de Deus. Por isso Ele ordenou que ela não O tocasse.
São Paulo daria aos coríntios e aos colossenses a mesma lição:

Nós daqui em diante a ninguém conhecemos de um modo


humano.
Muito embora tenhamos considerado Cristo dessa maneira,
agora já não o julgamos assim.
(2 Coríntios 5,16)

Afeiçoai-vos às coisas lá de cima,


e não às da terra.
Porque estais mortos e a vossa vida
está escondida com Cristo em Deus.
(Colossenses 3,2)

As lágrimas delas, insinuou, seriam enxugadas não porque ela O tinha


visto novamente, mas porque Ele era o Senhor do Céu. Quando ascendesse à
direita do Pai, que significava o poder do Pai, quando enviasse o Espírito da
Verdade, que seria o novo confortador e Sua presença interior no meio deles,
então, de fato, ela verdadeiramente O teria, Aquele por quem ansiava — o
Cristo glorificado e ressuscitado. Essa foi a primeira pista, após Sua
Ressurreição, do novo relacionamento que teria com os homens, sobre o qual
falou de modo tão fluente na noite da Última Ceia. Teria de dar a mesma lição
a seus discípulos, que estavam demasiado preocupados com Sua forma
humana, ao dizer-lhes que era oportuno que partisse. Madalena desejou estar
com Ele como estivera antes da crucifixão, esquecendo que esta foi suportada
para a glória e para que Ele enviasse o Seu Espírito.
Embora Madalena estivesse submissa à proibição de Nosso Salvador, não
obstante estava destinada a sentir a extrema felicidade de portar as notícias de
Sua Ressurreição. Os homens compreenderam o significado do túmulo vazio,
mas não a relação com a Redenção e a vitória sobre o pecado e o mal. Ela
estava prestes a quebrar a caixa de alabastro de Sua Ressurreição, de modo que
o perfume pudesse inundar o mundo. Disse o Senhor a ela:
Não me retenhas, porque ainda não subi a meu Pai,
mas vai a meus irmãos e dize-lhes:
Subo para meu Pai e vosso Pai,
meu Deus e vosso Deus.
(São João 20,17)

Essa foi a primeira vez que chamou os apóstolos de “meus irmãos”. Antes
que o homem pudesse ser filho adotivo de Deus, tinha de ser redimido da
inimizade com Deus.

Em verdade, em verdade vos digo:


se o grão de trigo, caído na terra, não morrer,
fica só; se morrer, produz muito fruto.
(São João 12,24)

Tomou a crucifixão para multiplicar a filiação para outros filhos de Deus.


No entanto, havia uma ampla diferença entre Ele mesmo como Filho natural e
os seres humanos, que por intermédio de Seu Espírito tornaram-se filhos
adotivos. Por isso, como sempre, Ele fez uma distinção rígida entre “Meu Pai”
e “Vosso Pai”. Nunca em Sua vida disse “Nosso Pai” como se o relacionamento
fosse o mesmo entre Ele e os homens; Sua relação com o Pai era única e
incomunicável. A Filiação era Sua natureza, somente pela graça e adoção os
homens eram filhos de Deus:

Aquele para quem e por quem todas as coisas existem,


desejando conduzir à glória numerosos filhos,
deliberou elevar à perfeição, pelo sofrimento,
o autor da salvação deles, para que santificador
e santificados formem um só todo.
Por isso, (Jesus) não hesita em chamá-los seus irmãos.
(Hebreus 2,10-11)
Nem mesmo Ele disse a Maria para informar aos apóstolos que Ele havia
ressussitado e que ascenderia aos céus. A Ressurreição estava sugerida na
Ascensão, que ainda ocorreria quarenta dias adiante. Seu objetivo não era
apenas enfatizar que Ele, que morrera, agora vivia, mas que esse era o início de
um Reino espiritual que se tornaria visível e unificado quando Ele enviasse o
Seu Espírito.
De maneira obediente, Maria Madalena correu aos discípulos que
estavam “pesarosos e chorosos”. Ela lhes disse que vira o Senhor e as palavras
que Ele lhe dissera. Qual a recepção que essas notícias tiveram? Novamente,
ceticismo, dúvida e descrença. Os apóstolos O ouviram falar em imagens,
símbolos, parábolas e o discurso direto de Sua Ressurreição que ocorreria após
a morte, mas:

Quando souberam que Jesus vivia e


que ela o tinha visto, não quiseram acreditar.
(São Marcos 16,11)

Eva acreditou na serpente, mas os discípulos não acreditaram no Filho de


Deus. Quanto a Maria Madalena e às outras mulheres que podiam relatar a
respeito de Sua Ressurreição:

Mas essas notícias pareciam-lhes como um delírio,


e não lhes deram crédito.
(São Lucas 24,11)

Era um prenúncio de como o mundo receberia as notícias da Redenção.


Maria Madalena e as outras mulheres, primeiro, não acreditaram na
Ressurreição; tiveram de ser convencidas. Nem mesmo os apóstolos
acreditaram. A resposta deles foi “Conheceis as mulheres! Sempre imaginando
coisas”. Muito antes do advento da psicologia científica, as pessoas temiam os
truques que a mente lhes pregava. A incredulidade moderna diante do
extraordinário não é nada comparado ao ceticismo que imediatamente saudou
as primeiras notícias da Ressurreição. O que o ceticismo moderno diz acerca da
história da Ressurreição os próprios discípulos foram os primeiros a dizer, a
saber, uma história inútil. Como os agnósticos originais do cristianismo, os
apóstolos concordaram em rechaçar toda a história como um delírio. Algo
muito extraordinário deveria acontecer e alguma prova muito concreta deveria
ser apresentada para todos os duvidosos, antes de vencerem a relutância em
acreditar.
O ceticismo deles foi ainda mais difícil de superar que o ceticismo
moderno, porque o deles partiu de uma esperança que aparentemente fora
frustrada no Calvário; isso era muito mais difícil de curar que o ceticismo
moderno, que é sem esperança. Nada poderia estar mais distante da verdade
que dizer que os seguidores de Nosso Senhor Bendito estavam à espera da
Ressurreição e, portanto, prontos a acreditar nela ou a consolarem-se por uma
perda que parecia irreparável. Nenhum agnóstico escreveu coisa alguma a
respeito da Ressurreição que Pedro e os outros apóstolos já não tivessem em
mente. Quando Maomé morreu, Omar partiu pressuroso de sua tenda, espada
em punho, e afirmou que mataria qualquer um que dissesse que o profeta
morrera. No caso do Cristo, havia uma presteza em acreditar em Sua morte,
senão uma relutância de acreditar que Ele vivia. Mas talvez porque lhes fosse
permitido duvidar, de modo que os fiéis nos séculos adiante nunca pudessem
fazê-lo.

OS GUARDAS E O SUBORNO

Depois que as mulheres foram notificar os apóstolos, os guardas que estiveram


a postos na tumba e que foram testemunhas da Ressurreição foram à cidade de
Jerusalém e disseram aos sumos sacerdotes tudo o que ocorrera. Os sumos
sacerdores imediatamente convocaram uma reunião do Sinédrio com o
propósito expresso de subornar os guardas.

Reuniram-se estes em conselho com os anciãos.


Deram aos soldados uma importante soma de dinheiro,
ordenando-lhes:
Vós direis que seus discípulos vieram retirá-lo à noite,
enquanto dormíeis.
Se o governador vier a sabê-lo,
nós o acalmaremos e vos tiraremos de dificuldades. Os soldados
receberam o dinheiro e seguiram suas instruções.
E esta versão é ainda hoje espalhada entre os judeus.
(São Mateus 28,12-15)

A “importante soma em dinheiro” contrastava muitíssimo com as escassas


trinta moedas de prata que Judas recebera. O Sinédrio não negava a
ressurreição; de fato, tinham o próprio testemunho imparcial de sua verdade.
E, ao mesmo tempo, o testemunho que adquiriram dos gentios por intermédio
de Pilatos. Até deram o dinheiro do templo aos soldados romanos que
desprezavam, pois encontraram um ódio maior. O dinheiro que Judas
devolvera, não tocariam nele porque era “dinheiro de sangue”. Entretanto,
agora teriam de comprar uma mentira para escapar do sangue purificador do
Cordeiro.
O suborno aos guardas era realmente uma maneira estúpida de fugir do
fato da Ressurreição. Em primeiro lugar, havia o problema do que seria feito
com o Seu corpo depois que os discípulos o tivessem. Tudo que os inimigos de
Nosso Senhor tinham de fazer para desmentir a Ressurreição seria mostrar o
Corpo. Sem levar em conta o fato de ser improvável que uma guarda inteira de
soldados romanos tivesse dormido em serviço, era absurdo dizer que tudo
ocorrera enquanto dormiam. Os soldados foram aconselhados a declarar que
estavam adormecidos; e ainda assim estavam despertos a ponto de ver os
ladrões e saber que eram os discípulos. Se todos os soldados estivesssem
adormecidos, nunca poderiam ter descoberto os ladrões; se uns tantos deles
estivessem acordados, teriam evitado o roubo. É igualmente improvável que
poucos discípulos tímidos tivessem tentado roubar o corpo do Mestre de uma
tumba lacrada por uma pedra, selada oficialmente e guardada por soldados sem
despertar os guardas adormecidos. O arranjo ordenado da mortalha e dos
panos funerários davam mais uma prova de que o corpo não fora removido por
Seus discípulos.
A remoção secreta do corpo, no que dizia respeito aos discípulos, era
despropositada, e nenhum deles jamais pensou nisso. Naquele momento, a
vida do Mestre era um malogro e uma derrota. O crime dos que subornavam
certamente era maior do que o crime dos que recebiam o suborno, pois o
conselho era educado e religioso; os soldados eram incultos e simples. A
Ressurreição de Cristo foi proclamada oficialmente às autoridades civis; o
Sinédrio acreditou na Ressurreição antes dos apóstolos. Comprara o beijo de
Judas; agora, esperavam comprar o silêncio dos guardas.

CORAÇÕES PARTIDOS E O PARTIR DO PÃO

Naquele mesmo Domingo de Páscoa, Nosso Senhor Santíssimo fez outra


aparição para dois discípulos que estavam a caminho de um vilarejo chamado
Emaús, que ficava próximo de Jerusalém. Não havia muito, as esperanças deles
estiveram ardentes, mas as trevas da Sexta-Feira Santa e o sepultamento na
tumba lhes fizeram perder a alegria. Nenhum assunto estava mais na mente dos
homens naquele dia em especial senão a pessoa de Cristo. Enquanto
conversavam com tristeza e com os corações inquietos sobre os incidentes
terríveis dos últimos dois dias, um estranho se aproximou. Os olhos dos
apóstolos, no entanto, estavam tão cegos que não reconheceram que era o
Salvador Ressuscitado; pensaram que fosse um viajante comum. No desenrolar
da história ficou claro que o que os cegava era a incredulidade; caso esperassem
vê-Lo, poderiam tê-Lo reconhecido. Porque estavam interessados Nele, Cristo
concedeu Sua Presença; porque duvidaram de Sua Ressurreição, Cristo ocultou
a alegria e o conhecimento de Sua Presença. Agora que Seu Corpo estava
glorificado, o que os homens viam Dele dependia da boa vontade do Cristo
para revelar-se e também da disposição dos próprios corações dos homens.
Embora não reconhecessem Nosso Senhor, mesmo assim os discípulos estavam
prontos para iniciar uma conversa com o estranho a respeito Dele. Após
escutar a longa conversa, o estranho perguntou:

De que estais falando pelo caminho,


e por que estais tristes?
(São Lucas 24,17)

Obviamente, o motivo da tristeza dos discípulos era a perda. Tinham


estado com Jesus, tinham-No visto ser preso, insultado, crucificado, morto e
sepultado. O pesar aflige o coração da mulher quando ela perde o amado, mas
os homens, em geral, ficam mentalmente perplexos diante de uma situação
semelhante. O pesar deles era o pesar de uma carreira destruída.
O Salvador, com infinita sabedoria, não começou falando “sei que estais
tristes”. Sua técnica, em vez disso, era fazê-los expressar a tristeza; um coração
pesaroso tem melhor consolação ao se expressar. Se o pesar deles tivesse boca e
falasse, Ele teria um ouvido e revelar-se-ia. Se não quisessem nada mais que
demonstrar suas feridas, Ele lhes derramaria o bálsamo de Sua cura.
Um dos dois, cujo nome era Cleófas, foi o primeiro a falar. Expressou
espanto diante da ignorância do estranho que, aparentemente, não estava
familiarizado com os acontecimentos dos últimos dias.

És tu acaso o único forasteiro em Jerusalém


que não sabe o que nela aconteceu estes dias?
(São Lucas 24,18)

O Senhor Ressuscitado perguntou:

Que foi?
(São Lucas 24,19)

O estranho chamou a atenção deles para os fatos. Aparentemente não


tinham se aprofundado o bastante nos fatos para chegar a conclusões
apropriadas. A cura para o pesar que sentiam estava nas próprias coisas que os
perturbavam, vê-las na relação correta. Assim como perguntou a mulher no
poço, fez uma pergunta não para obter uma informação, mas para aprofundar
o conhecimento Dele mesmo. Então, não só Cleófas, mas também seu
companheiro, contaram-Lhe o que havia ocorrido. Disseram:

A respeito de Jesus de Nazaré...


Era um profeta poderoso em obras e palavras,
diante de Deus e de todo o povo.
Os nossos sumos sacerdotes e os nossos magistrados
o entregaram para ser condenado à morte e o crucificaram.
Nós esperávamos que fosse ele quem havia de restaurar Israel e
agora,
além de tudo isto, é hoje o terceiro dia que essas coisas
sucederam.
É verdade que algumas mulheres dentre nós nos alarmaram.
Elas foram ao sepulcro, antes do nascer do sol;
e não tendo achado o seu corpo, voltaram,
dizendo que tiveram uma visão de anjos,
os quais asseguravam que está vivo.
Alguns dos nossos foram ao sepulcro
e acharam assim como as mulheres tinham dito,
mas a ele mesmo não viram.
(São Lucas 24,19-24)

Esses homens esperavam grandes coisas, mas Deus, disseram, os


desapontara. O homem faz um mapa e traça as esperanças de que Deus de
algum modo as ratifique; o desapontamento muitas vezes se deve à trivialidade
das esperanças humanas. Os esboços iniciais agora tinham de ser rasgados —
não porque eram demasiado grandiosos, mas porque, aos olhos de Deus, eram
demasiado pequenos. A mão que quebrou a taça dos desejos mesquinhos
ofereceu um cálice mais rico. Pensavam que tinham encontrado o Redentor
antes de Ele ser crucificado, mas, na verdade, descobriram um Redentor
crucificado. Esperavam por um salvador de Israel, mas não esperavam por um
que fosse igualmente Salvador dos gentios. Deviam tê-Lo ouvido falar, em
muitas ocasiões, que Ele seria crucificado e resurgiria novamente, mas não
podiam encaixar a catástrofe na ideia de um Mestre. Podiam acreditar Nele
como Mestre, como um messias político, como um reformador ético, como
um salvador do país, um libertador dos romanos, mas não podiam acreditar na
tolice da cruz; nem tinham a fé do ladrão que pendeu da cruz. Por isso,
recusaram-se a considerar o indício que as mulheres relataram. Não estavam
certos de que as mulheres tinham avistado anjos. Possivelmente era apenas uma
aparição. Ademais, era o terceiro dia que findava, e Ele não fora visto.
Entretanto, o tempo todo caminhavam e conversavam com Ele.
Parece haver um duplo propósito na aparição de Nosso Senhor após a
Ressurreição: primeiro, seria mostrar que Aquele que morreu ressuscitara;
segundo, embora tivesse o mesmo corpo, este agora estava glorificado e não era
sujeito a restrições físicas. Mais tarde, faria refeição com os discípulos para
provar o primeiro ponto; nesse momento, assim como proibiu que Maria
Madalena O tocasse, enfatizou Seu estado ressuscitado.
Com esses discípulos, assim como com todos os apóstolos, não existia
predisposição a aceitar a Ressurreição. A prova dela tinha de abrir passagem
diante da dúvida e das recusas mais obstinadas da natureza humana. Estavam
entre as últimas pessoas no mundo a dar crédito a tal história. Poderíamos até
dizer que estavam decididos a se sentir miseráveis, recusando-se a investigar a
possibilidade verídica da história. Ao resistir tanto aos indícios dados pelas
mulheres e à confirmação daqueles que foram verificar a história, a palavra final
é que não tinham visto o Senhor.
Então, o Salvador Ressuscitado lhes disse:

Ó gente sem inteligência! Como sois tardos de coração


para crerdes em tudo o que anunciaram os profetas!
Porventura não era necessário que Cristo sofresse
essas coisas e assim entrasse na sua glória?
(São Lucas 24,25-26)

Foram acusados de tolice e de ter o coração indolente, pois, se tivessem


parado e analisado o que os profetas disseram a respeito do Messias — que
seria levado como um cordeiro para o abate —, teriam tido a crença
confirmada. A credulidade para com os homens e a incredulidade para com
Deus é a marca dos corações embrutecidos; a prontidão em acreditar no
especulativo e a vagareza em acreditar na prática é o sinal dos corações
morosos. A essa altura, surgiram as palavras-chave da jornada. Anteriormente,
Nosso Senhor Bendito dissera que era o bom pastor, que disporia de Sua vida
para a redenção de muitos; agora, em Sua glória, proclamou uma lei moral
que, como consequência de Seus sofrimentos, os homens seriam elevados do
estado de pecado para a companhia de Deus.
A Cruz era a condição da glória. O Salvador Ressuscitado falou da
necessidade moral fundada na verdade de que tudo o que Lhe acontecera fora
predito. O que lhes parecia ofensa, escândalo, derrota e renúncia ao inevitável
era, na verdade, um momento tenebroso antevisto, planejado e preanunciado.
Ainda que a Cruz lhes parecesse incompatível com Sua glória, para Ele era o
caminho indicado até ela. E, caso conhecessem o que as Escrituras disseram
acerca do Messias, teriam acreditado na Cruz.

E começando por Moisés, percorrendo todos os profetas,


explicava-lhes o que dele se achava dito em todas as Escrituras.
(São Lucas 24, 27)

Demonstrou-lhes todos os tipos, todos os rituais e todos os cerimoniais


que se cumpriram Nele. Citando Isaías, mostrou o modo de Sua morte e
crucifixão e as últimas palavras ditas da Cruz; citando Daniel, como Ele se
tornaria a montanha que preencheria a terra; citando o Gênesis, como a
progênie de uma mulher esmagaria a serpente do mal nos corações humanos;
citando Moisés, como seria a serpente de bronze erguida para curar os homens
maus e como o Seu lado seria a rocha de onde bateriam e brotariam as águas da
regeneração; citando Isaías, como Ele seria Emanuel ou “Deus conosco”;
citando Miqueias, como Ele nasceria em Belém; e citando muitos outros
escritos deu-lhes a chave para o mistério da vida de Deus entre os homens e o
propósito de Sua vinda.
Por fim, chegaram a Emaús. Ele fez parecer como se estivesse prestes a
continuar sua jornada pela mesma estrada, assim como certa vez, antes, quando
uma tormenta estava a alcançar o lago, Ele fez parecer que passaria pelo barco
dos apóstolos. Os dois discípulos Lhe imploraram, entretanto, que ficasse com
eles. Aqueles que têm bons pensamentos a respeito de Deus durante o dia não
se renderão com presteza ao cair da noite. Aprenderam muito, mas sabiam que
não tinham aprendido tudo. Ainda não O tinham reconhecido, mas havia uma
luz Naquele que prometia levá-los à plena revelação e dissipar a tristeza. Ele
aceitou o convite para ser um hóspede, mas imediatamente agiu como
anfitrião, pois

estando sentado conjuntamente à mesa,


ele tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e serviu-lho.
Então se lhes abriram os olhos e o reconheceram...
mas ele desapareceu.
(São Lucas 24, 30-31)

Tomar o pão, parti-lo e dar a eles não era um ato de cortesia, pois isso
assemelhava-se muito à Última Ceia, na qual ordenara aos apóstolos a
repetição do ato como memorial de Sua morte, ao partir o pão que era Seu
corpo e distribuí-lo. Imediatamente, ao receber o Pão Sacramental que foi
partido, os olhos da alma foram abertos. Assim como os olhos de Adão e Eva
foram abertos para ver a vergonha depois de ter comido do fruto proibido do
conhecimento do bem e do mal, da mesma maneira, nesse momento, os olhos
dos discípulos foram abertos para discernir o Corpo de Cristo. A cena encontra
paralelo com a Última Ceia: em ambas houve uma ação de graças; em ambas
houve o partir do pão e, em ambas, a partilha do pão com os discípulos. Com
a doação do pão veio um conhecimento que conferiu maior claridade do que
todas as outras instruções. O partir do pão os introduzira na experiência do
Cristo glorificado. Então, Ele sumiu de vista. Ao se voltarem, um ao outro,
refletiram:

Não se nos abrasava o coração, quando


ele nos falava pelo caminho
e nos explicava as Escrituras?
(São Lucas 24,32)

Sua influência sobre os discípulos foi afetiva e intelectual: afetiva, no


sentido de fazer seus corações arderem de amor, e intelectual, visto que lhes
conferiu um entendimento das centenas de presságios de Sua vinda. A
humanidade está naturalmente disposta a acreditar que qualquer coisa seja
impressionante e bastante poderosa para dominar a imaginação. Ainda assim,
esse incidente no caminho para Emaús revelou que as verdades mais potentes
muitas vezes surgem nos lugares comuns e nos acidentes triviais da vida, tais
como em um encontro com um companheiro de viagem em uma estrada.
Cristo ocultou sua presença na estrada mais comum da vida. O conhecimento
Dele veio ao caminharem com Ele; e o conhecimento era da glória que veio
por intermédio da derrota. Em Sua vida glorificada, assim como em Sua vida
pública, a cruz e a glória caminharam juntas. Não só os ensinamentos foram
lembrados; também os Seus sofrimentos e como foram oportunos para Sua
exaltação.
Os discípulos retornaram de imediato e voltaram a Jerusalém. Assim
como a mulher no poço, em seu entusiasmo, deixou a jarra d’água no poço, os
discípulos igualmente esqueceram o propósito de sua viagem a Emaús e
voltaram para a Cidade Santa. Ali encontraram os 11 apóstolos reunidos e,
com eles, outros seguidores e discípulos. Contaram tudo que acontecera no
caminho e como O reconheceram no partir do pão.
55

AS PORTAS ESTÃO FECHADAS

Os dois discípulos, ao voltar a Jerusalém, encontraram os apóstolos em graus


variados de incredulidade. É provável que Tomé estivesse com os apóstolos no
início da noite, mas saiu mais cedo. Os discípulos de Emaús viram a
Ressurreição primeiro com os olhos da mente e depois com os olhos do corpo.
Os apóstolos a veriam primeiro com os olhos do corpo e, depois, com os olhos
da mente.
O local em que os discípulos estavam reunidos naquela noite do
Domingo de Páscoa era o salão no andar de cima onde Nosso Senhor deu aos
12 a Eucaristia, havia apenas 72 horas. Acrescido às dúvidas dos discípulos
estava o medo que os impeliu a fechar as portas e aferrolhá-las, para que os
representantes do Sinédrio não entrassem para prendê-los sob a acusação falsa
de terem roubado o corpo. Havia também o pavor de que o povo pudesse
irromper, como sempre fazia, na casa daqueles que não eram populares. Ainda
que as portas estivessem cerradas, de repente, no meio deles aparece o Senhor
Ressuscitado, saudando-os com as palavras:

A paz esteja convosco!


(São Lucas 24,36)

Pediu às mulheres no sepulcro, imersas em sofrimento, que se


rejubilassem; mas agora, ao ter trazido a paz pelo Sangue da Cruz, veio em
Pessoa concedê-la. A paz é o fruto da justiça. Somente quando a injustiça do
pecado contra Deus se paga é que pode haver a afirmação da verdadeira paz. A
paz é a tranquilidade da ordem, não só a tranquilidade; para os ladrões pode
existir tranquilidade em possuir os frutos do roubo. A paz também encerra a
ordem, a subordinação do corpo à alma, dos sentidos à razão e da criatura ao
Criador. Isaías disse que não haveria paz para os maus porque eles estão em
inimizade consigo mesmos, uns com os outros e com Deus.
Agora o Cristo Ressuscitado se punha no meio deles como o novo
Melquisedec, o Príncipe da Paz. Três vezes depois de Sua Ressurreição, Ele deu
a benção solene da paz. A primeira foi enquanto os apóstolos estavam
aterrorizados e amedrontados; a segunda, depois que Ele deu a prova de Sua
Ressurreição; e a terceira, uma semana depois, quando Tomé estava entre eles.
Os apóstolos acreditavam, num primeiro momento, que tinham visto um
Espírito; apesar das palavras das mulheres, do testemunho dos discípulos de
Emaús, do sepulcro vazio, da visão angélica e da narrativa de Pedro de sua
entrevista com o Ressuscitado. Sua presença, admitiam para si mesmos, não
poderia ser explicada de nenhuma maneira natural, já que as portas estavam
trancadas. Ao reprová-los pela incredulidade, como fez com os discípulos de
Emaús, Ele lhes disse:

Por que estais perturbados,


e por que essas dúvidas nos vossos corações?
(São Lucas 24,38)

Mostrou-lhes as mãos e os pés que foram transpassados pelos cravos na


Cruz; depois, mostrou-lhes a lateral do corpo, que fora aberta com a lança, e
disse-lhes:

Apalpai e vede:
um espírito não tem carne nem ossos,
como vedes que tenho.
(São Lucas 24,39)

É provável que os apóstolos incrédulos tenham de verdade tocado o


Corpo de Cristo; isso pode explicar por que Tomé, posteriormente, exigiu tal
sinal; não seria inferior aos outros. João, que se debruçara sobre Seu peito na

Ú
noite da Última Ceia, estava particularmente interessado na lateral do corpo ou
no coração. Nunca esqueceu aquela cena tocante, pois, mais tarde, escreveu:

O que era desde o princípio, o que temos ouvido,


o que temos visto com os nossos olhos,
o que temos contemplado e as nossas mãos têm apalpado
no tocante ao Verbo da vida.
(1 São João 1,1)

João também se recordaria disso ao escrever seu Apocalipse, em que


descreveu a humanidade sagrada do Senhor entronizada e adorada no céu:

Um Cordeiro de pé, como que imolado.


(Apocalipse 5,6)

Portanto, Ele seria reconhecido como o Crucificado, ainda que agora em


glória, Príncipe e Senhor. Não que as feridas cruéis ali estivessem para ser uma
lembrança da crueldade dos homens, mas, antes, de que a Redenção fora
forjada em dor e pesar. Se as cicatrizes tivessem sido removidas, os homens
poderiam esquecer que houve um sacrifício e que Ele era tanto Sacerdote
quanto Vítima. Seu argumento era que o Corpo que lhes apresentava era o
mesmo que nascera da Virgem Maria, fora pregado na Cruz e posto em um
sepulcro por José de Arimateia. No entanto, tinha propriedades que não
possuía antes.
Pedro, Tiago e João viram-No transfigurado quando Suas vestes estavam
mais alvas que a neve, mas o restante dos discípulos só O vira como o Homem
de Dores. Esse foi o primeiro olhar que deram ao Senhor ressuscitado e
glorioso. As marcas dos cravos, o lado lancetado, eram cicatrizes inconfundíveis
de uma batalha contra o pecado e o mal. Assim como muitos soldados olham
para as feridas que adquiriram em batalhas não como uma desfiguração, mas
como um troféu de honra, Ele, igualmente, portava as feridas para provar que
o amor era mais forte que a morte. Depois da Ascensão, essas cicatrizes seriam
como bocas oratoriais de intercessão diante do Pai Celestial; cicatrizes que
portaria no último dia para julgar os vivos e os mortos. Em uma antiga lenda
dizem que Satanás apareceu a um santo e disse: “Eu sou o Cristo”. O santo o
confundiu ao perguntá-lo: “Onde estão as marcas dos cravos?”.
Se os homens fossem deixados ao bel-prazer para formar a própria
concepção do Cristo Ressucitado, nunca o teriam representado com os sinais
remanescentes de Seu opróbrio e Sua agonia na terra. Caso tivesse ressuscitado
sem nenhum memorial da Sua Paixão, os homens poderiam ter duvidado Dele
com o passar do tempo. Não podia haver dúvida quanto ao propósito sacrificial
de Sua vinda, Ele lhes deu não só o Memorial de Sua morte na noite da Última
Ceia, pedindo que fosse perpetuado enquanto perdurasse o tempo, mas
também comportava em Sua Pessoa, como Jesus Cristo, o “mesmo ontem, hoje
e para sempre”, o Memorial de Sua Redenção. Entretanto, os apóstolos estavam
convencidos?

Mas, vacilando eles ainda


e estando transportados de alegria, perguntou:
Tendes aqui alguma coisa para comer?
(São Lucas 24,41)

Assim, colocaram diante Dele um pedaço de carne e um favo de mel.


Tomou-os e comeu na presença deles, e mandou que partilhassem de Sua
refeição. Não era um fantasma o que viam. Até certo ponto, acreditaram na
Ressurreição, e essa crença lhes deu alegria; mas a alegria era tão grande que
quase não podiam acreditar. De início estavam muito assustados para crer;
depois estavam muito alegres para crer. No entanto, Nosso Senhor não
descansaria até que lhes tivesse saciado completamente os sentidos. Comer com
eles era a prova mais forte de Sua Ressurreição. Depois de ressuscitar a filha de
Jairo, pediu que lhe fosse dado o que comer; depois da ressurreição de Lázaro,
este comeu com Ele; agora, depois da própria Ressurreição, Ele comeu com os
apóstolos. Dessa maneira os convenceria de que era o mesmo Corpo vivo que
viram, tocaram e sentiram, mas era, ao mesmo tempo, um Corpo que estava
glorificado. Não tinha as feridas como sinal de fraqueza, mas como cicatrizes
gloriosas de vitória. Esse Corpo glorificado comia, não como as plantas
extraem nutrientes da terra por necessidade, mas assim como o sol as impregna
de energia. Ele dera algumas indicações de como seria a Sua natureza
glorificada na Transfiguração, quando Moisés e Elias Lhe falaram sobre Sua
morte. Aquela era uma promessa e um penhor que a corrupção imporia à
incorrupção, que o mortal imporia à imortalidade e a morte seria tragada em
vida.
Após ter provado aos discípulos que ressuscitara ao mostrar-lhes as mãos,
os pés e o lado e ao comer diante deles, ofereceu-lhes uma segunda saudação de
paz ao dizer:

A paz esteja convosco! Como o Pai me enviou,


assim também eu vos envio a vós.
Depois dessas palavras, soprou sobre eles dizendo-lhes:
Recebei o Espírito Santo.
(São João 20,21-22)

A primeira saudação de paz foi quando estavam atemorizados; agora que


estavam cheios da alegria de acreditar, a segunda saudação de paz referia-se ao
mundo. Sua preocupação não era com o mundo de Sua vida pública, mas com
todo o mundo que redimira. Poucas horas antes de ir para a morte suplicara ao
Pai:

Como tu me enviaste ao mundo,


também eu os enviei ao mundo.
(São João 17,18)

Prosseguindo com a ideia, Ele disse estar rezando não só por aqueles que
seriam seus representantes na terra, mas por todos, por toda a história, que
viessem a crer Nele.

Não rogo somente por eles,


mas também por aqueles que por sua palavra
hão de crer em mim.
(São João 17,20)
Ú
Assim, na noite da Última Ceia, antes de ir de encontro à morte,
preocupava-se com Sua missão no mundo após a crucifixão — uma missão em
um mundo que o rejeitara. Nesse momento, após a Ressurreição, reiterou aos
Seus apóstolos a mesma ideia das 12 pedras da fundação dessa cidade de Deus.
No Antigo Testamento o sumo sacerdote punha pedras nas vestes que usava
por cima do peito; agora, o Sumo Sacerdote encravou pedras vivas em Seu
coração. Sua missão e a deles era uma só. Como Cristo foi enviado e por meio
do sofrimento ingressou na glória, igualmente agora Ele lhes transmitiu Sua
parte da Cruz e, depois disso, Sua glória.
Nosso Senhor não disse “Como Meu Pai Me enviou, também vos
enviarei”, porque há duas palavras gregas totalmente diferentes utilizadas no
original para “enviar”. A primeira palavra foi usada para descrever tanto a
missão de Nosso Senhor vindo do Pai quanto a missão do Espírito Santo; a
segunda palavra, em vez disso, significava uma delegação; referia-se à
autoridade de Cristo como um embaixador. Cristo veio do seio eterno do Pai
em Sua encarnação; dessa maneira, os apóstolos, agora, teriam de partir dele.
Assim como Nosso Senhor insistiu na diferença entre “Meu Pai” e “Vosso Pai”,
nesse momento enfatizava a diferença entre as respectivas missões. Cristo foi
enviado para tornar manifesto o Pai porque era um em natureza com o Pai; os
apóstolos, que eram as pedras fundamentais do Reino, deveriam manifestar o
filho. Enquanto o Senhor falava essas palavras, os apóstolos podiam ver as
gloriosas cicatrizes em Seu corpo ressuscitado. Ao imprimi-las nas mentes dos
apóstolos, eles compreenderam que assim como o Pai O enviara para sofrer a
fim de salvar a humanidade, também o Filho os enviava para sofrer
perseguição. Assim como o amor do Pai estava Nele, igualmente o amor do Pai
e Dele estaria nos apóstolos. A autoridade subjacente à missão apostólica era
irresistível, pois suas raízes estavam em analogia com o Pai ao enviar seu Filho e
o Filho os enviando. Não é de admirar que Ele lhes dissesse que quem quer que
rejeitasse um de Seus apóstolos O rejeitaria. Embora Tomé não estivesse lá,
mesmo assim, ele partilharia dos dons, e até mesmo São Paulo os partilhou.
Então, Nosso Senhor soprou sobre eles ao conferir algum poder do
Espírito Santo. Quando o amor é profundo, sempre cala a fala ou as palavras; o
amor de Deus é tão profundo que pode ser humanamente expresso por um
suspiro ou um sopro. Nessa hora, em que os apóstolos aprenderam a balbuciar
o alfabeto da Redenção, o Senhor soprou sobre eles como símbolo e penhor do
que haveria de vir. Nada era senão a nuvem que precede a chuva abundante;
melhor ainda, foi um sopro da influência do Espírito e um presságio do vento
pressuroso do Pentecostes. Assim como soprara sobre Adão o fôlego de uma
vida natural, nesse momento Ele soprou sobre os apóstolos o fundamento de
Sua Igreja, o fôlego da vida espiritual. Assim como o homem se torna a
imagem de Deus em virtude da alma que nele foi soprada, da mesma maneira,
agora, eles se tornavam a imagem do Cristo, no instante em que se encheram
do poder do Espírito neles insuflado. A palavra grega utilizada para expressar
Seu sopro sobre os apóstolos não é empregada em nenhum outro lugar do
Novo Testamento, mas é a mesma palavra que os tradutores gregos do hebraico
utilizaram para descrever o sopro de Deus na alma vivente em Adão. Desse
modo, há uma nova criação como o primeiro fruto da Redenção.
Ao soprar sobre eles, Ele lhes deu o Espírito Santo, que não mais os
tornava servos, mas filhos. Por três vezes o Espírito Santo é mencionado com
algum sinal externo; como uma pomba no batismo de Cristo, pressagiando Sua
inocência e a Filiação Divina; como línguas de fogo no dia de Pentecostes,
como sinal do poder do Espírito de converter o mundo; e como o sopro do
Cristo Ressuscitado com todo o poder regenerativo. Assim como o Senhor fez
lama para ungir os olhos do cego, demonstrando que Ele era o Criador do
homem, da mesma maneira, ao soprar o Espírito sobre os apóstolos, Ele
demonstrou que era o regenerador da vida do barro que decaiu.
Quando Nosso Senhor estava na Festa dos Tabernáculos, observando a
água que brotava da piscina, disse que se qualquer homem acreditasse Nele,
faria brotar fontes de água viva que emanariam de Seu interior. As Escrituras
acrescentam:

Dizia isso, referindo-se ao Espírito que


haviam de receber os que cressem nele,
pois ainda não fora dado o Espírito,
visto que Jesus ainda não tinha sido glorificado.
(São João 7,39)

Naquela festividade comemorativa, afirmou que primeiro Ele teria de


morrer e passar à glória, antes que o Espírito Santo pudesse vir. Suas palavras,
nesse momento, sugeriam que Ele já estava em estado de glória, pois estava
concedendo o Espírito. Nessa ocasião, associava os apóstolos à vida de Sua
Ressurreição; no Pentecostes, os associaria à Sua Ascensão.
Posteriormente, conferir-lhes-ia o poder de perdoar pecados. Havia
mesmo de se fazer uma distinção entre os pecados que os apóstolos perdoariam
e os que não poderiam perdoar. É evidente que a maneira como distinguiriam
os dois dependeria de ouvi-los. Disse Jesus:

Àqueles a quem perdoardes os pecados,


ser-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes,
ser-lhes-ão retidos.
(São João 20,23)

Assim como o sacerdote judaico declarava quem estava e quem não estava
purificado entre os leprosos, Cristo, do mesmo modo, conferiu o poder de
perdoar e de reter o perdão dos pecadores. Somente Deus pode perdoar os
pecados; mas Deus, em forma de homem, perdoou os pecados de Madalena,
do ladrão penitente, do cobrador de impostos desonesto e de outros. A mesma
lei da Encarnação agora seria mantida; Deus continuaria a perdoar os pecados
por intermédio do homem. Os ministros designados seriam os instrumentos de
Seu perdão, assim como a própria natureza humana era o instrumento de Sua
divindade ao adquirir o perdão. Essas palavras solenes do Salvador Ressuscitado
indicavam que os pecados seriam perdoados pelo poder judicial autorizado a
examinar o estado de uma alma e conferir ou recusar o perdão, conforme o
caso. Daquele dia em diante, o remédio para o pecado humano e para a culpa
era fazer humilde confissão a alguém com autoridade para perdoar. Ser
humilde, de joelhos, confessar àquele a quem Cristo deu o poder de perdoar
(em vez de prostrar-se num divã para ouvir a culpa explicada), foi uma das
maiores alegrias dadas à alma humana oprimida.
56

DEDOS, MÃOS E PREGOS

A primeira aparição de Nosso Senhor no Cenáculo foi apenas a dez dos


apóstolos; Tomé não estava presente. Ele não estava com os apóstolos, mas o
Evangelho pressupõe que ele deveria ter estado com eles antes. A razão dessa
ausência é desconhecida, mas provavelmente foi por causa de sua
incredulidade. Em três passagens diferentes do Evangelho, Tomé sempre é
retratado como o que vê o lado escuro das coisas, tanto com relação ao presente
quanto com ao futuro. Quando chegaram a Nosso Senhor as notícias acerca da
morte de Lázaro, Tomé queria ir e morrer com ele. Depois, quando Nosso
Senhor Bendito disse que voltaria ao Pai e prepararia lugar para os apóstolos, a
resposta sombria de Tomé era que ele não sabia aonde o Senhor estava indo,
tampouco ele mesmo sabia o caminho.
Imediatamente depois que os demais apóstolos se convenceram da
Ressurreição e da glória de Nosso Divino Salvador, levaram a Tomé tais
novidades. Tomé não disse que se recusava a crer, mas que era incapaz de crer
até que tivesse uma prova empírica da Ressurreição, a despeito do testemunho
deles, segundo o qual o Senhor tinha Ressuscitado. Ele enumerou as condições
dessa fé:

Se não vir nas suas mãos o sinal dos pregos,


e não puser o meu dedo no lugar dos pregos,
e não introduzir a minha mão no seu lado,
não acreditarei!
(São João 20,25)
A disparidade entre aqueles que creem e aqueles que não estão preparados
para a crença podia ser vista na recepção que os dez tiveram quando falaram a
Tomé sobre a Ressurreição. Sua recusa a confiar no testemunho de dez
companheiros confiáveis, que tinham visto o Cristo Ressurreto com os próprios
olhos, provou o quanto é cético o sombrio. No entanto, seu ceticismo não é o
ceticismo frívolo da indiferença ou da hostilidade à verdade; ele queria o
conhecimento para então ter a fé. Era diferente do sábio aos próprios olhos,
que quer o conhecimento contra a fé. Em certo sentido, sua atitude era a do
teólogo científico que promove o conhecimento e a inteligência depois de ter
acabado com toda dúvida.
Esta é a única passagem das Escrituras Sagradas em que a palavra “pregos”
é usada num contexto relacionado a Nosso Salvador, e que remete às palavras
do Salmista: “Perfuraram minhas mãos e meus pés” (Salmo 22,16).
As dúvidas de Tomé surgiam, em sua maioria, de seu desânimo e da
influência depressiva da tristeza e do isolamento, pois era um homem à parte
de seus companheiros. Às vezes um homem que perde um encontro perde
muito. Se os minutos do primeiro encontro fossem escritos, eles teriam contido
as trágicas palavras do Evangelho: “Tomé não estava lá” (São João 20,24). O
domingo estava começando a se tornar o Dia do Senhor; pois, após oito dias,
os apóstolos estavam mais uma vez reunidos no cenáculo, e Tomé estava com
eles.
As portas ainda estavam sendo fechadas, o Salvador Ressurreto postou-Se
entre eles e, pela terceira vez, saudou:

A paz esteja convosco!


(São João 20,19)

Logo depois de falar de paz, Nosso Divino Salvador passou a falar sobre
em que se fundamentava a paz, a saber, Sua morte e Ressurreição. Não havia o
menor sinal de crítica em Nosso Senhor, como não haveria o menor sinal de
crítica com Pedro numa aparição posterior às margens do Mar da Galileia.
Tomé pedira uma prova com base nos sentidos ou faculdades que pertencem
ao reino animal, e uma prova dos sentidos lhe seria dada. Nosso Senhor disse a
Tomé:
Introduz aqui o teu dedo,
e vê as minhas mãos.
Põe a tua mão no meu lado.
Não sejas incrédulo, mas homem de fé.
(São João 20,27)

O Mestre dissera certa vez que uma geração perversa e adúltera pede um
sinal, e nenhum sinal lhe seria dado senão o do profeta Jonas. Esse era
precisamente o sinal dado a Tomé. O Senhor sabia das palavras de ceticismo
que Tomé havia dito anteriormente aos demais apóstolos — outra prova de
Sua Onisciência. A ferida em Seu lado deve ter sido muito grande, visto que
Ele pediu a Tomé que pusesse a mão nela; e também as feridas em Sua mão
devem ter sido grandes, pois Tomé foi convidado a colocar o dedo no lugar do
cravo. As dúvidas de Tomé não duraram mais que as dos outros, e seu
ceticismo extraordinário é uma prova a mais da realidade da Ressurreição.
Havia todas as razões para supor que Tomé fez o que fora convidado a
fazer, assim como havia toda razão para supor que os dez apóstolos tinham
feito exatamente a mesma coisa na primeira noite da Páscoa. As palavras de
repreensão de Nosso Senhor a Tomé — a não mais duvidar — também
continham uma exortação a crer e a livrar-se de sua tristeza, que era o pecado
que o assediava.
Paulo não foi desobediente à visão celestial; tampouco o foi Tomé. O
cético foi tão convencido por uma prova positiva que se tornou adorador.
Prostrando-se de joelhos, disse ao Salvador Ressurreto:

Meu Senhor e meu Deus!


(São João 20,28)

Numa declaração ardente, Tomé reuniu todas as dúvidas de uma


humanidade deprimida para curá-las pelas implicações da exclamação: “Meu
Senhor e meu Deus”. Era um reconhecimento de que o Emanuel de Isaías
estava diante dele. Ele, que foi o último a crer, foi o primeiro a fazer plena
confissão da Divindade do Salvador Ressurreto. Contudo, desde que ela veio
de uma evidência de carne e sangue, não foi seguida pela bênção conferida a
Pedro quando este reconheceu que Ele era o Filho do Deus Vivo. O Salvador
Ressurreto disse a Tomé:

Creste, porque me viste.


Felizes aqueles que creem sem ter visto!
(São João 20,29)

Há quem não creia ainda que veja, como o Faraó; há quem só creia
quando vê. Acima de ambos os tipos, o Senhor Deus colocou aqueles que não
viram e creram. Noé fora advertido por Deus de coisas que ainda não tinham
sucedido; ele creu e preparou a arca. Abraão saiu de sua terra sem saber aonde
ia, mas ainda confiando no Deus que prometera — que ele seria o pai de uma
descendência mais numerosa que os grãos de areia da praia. Se Tomé tivesse
crido pelo testemunho de seus colegas discípulos, sua fé em Cristo teria sido
maior; pois ouvira muitas vezes seu Senhor dizer que seria crucificado e se
ergueria novamente. Ele também sabia pelas Escrituras que a Crucifixão era o
cumprimento de uma profecia, mas queria o testemunho adicional dos
sentidos.
Tomé pensou estar fazendo a coisa certa ao exigir toda evidência de uma
prova sensível; mas o que seria das gerações futuras se a mesma evidência fosse
exigida por eles? Os futuros crentes, sugeria o Senhor, hão de aceitar o fato da
Ressurreição pelo testemunho daqueles que estiveram com Ele. Nosso Senhor
retratou assim a fé dos crentes depois da era apostólica, quando não haveria
ninguém que o viu, mas a fé deles teria fundamento, porque os próprios
apóstolos tinham visto o Cristo Ressurreto. Viram que o fiel pode ser capaz de
agir assim sem ver, crendo no testemunho deles. Os apóstolos foram homens
privilegiados, não só porque viram Nosso Senhor e creram; foram ainda mais
privilegiados quando compreenderam plenamente o mistério da Redenção e
nele assim viveram — e até chegaram a ser decapitados por causa da realidade
da Ressurreição. Alguma gratidão sempre deve ser creditada a Tomé, que tocou
a Cristo como homem, mas creu Nele como Deus.
57

O AMOR COMO CONDIÇÃO DE AUTORIDADE

Depois dos acontecimentos da semana da Páscoa em Jerusalém, os apóstolos,


mais uma vez, retornaram aos antigos lugares favoritos e para seus lares, em
especial, para o Mar da Galileia, com muitas ternas lembranças. Foi durante
uma pesca que o Senhor os chamara de “pescadores de homens”. A Galileia
seria agora o cenário do último milagre de Nosso Senhor, assim como foi o
cenário do primeiro, quando transformou água em vinho. Na primeira ocasião
“não havia vinho”; nessa última, “não havia peixe”. Em ambas, o Senhor
pronunciou uma ordem: em Caná, encher as talhas; na Galileia, lançar as redes
ao mar. Ambos resultaram em um farto suprimento. Caná teve seis talhas de
vinho, com o melhor vinho servido por último; a Galileia teve as redes cheias
de peixe.
Os apóstolos no mar nessa ocasião eram Simão Pedro, que, como sempre,
era mencionado em primeiro lugar; depois dele, entretanto, é mencionado
Tomé, que, então, depois de confessar que Cristo era Senhor e Deus,
permaneceu próximo àquele que fora chamado a ser o chefe dos apóstolos.
Natanael de Caná na Galileia também estava lá; da mesma maneira estava
Tiago, João e dois outros discípulos. Vale notar que João, que outrora tivera
um barco próprio, agora estava no barco de Pedro, que assumindo a liderança e
inspirando os outros, disse:

Vou pescar. Responderam-lhe eles:


Também nós vamos contigo.
(São João 21,3)
Embora tivessem trabalhado toda a noite, nada conseguiram. Quando
chegou a alvorada, viram Nosso Senhor na margem, mas não sabiam que era
Ele. Essa foi a terceira vez que Se aproximou deles como um desconhecido para
desacanhar as afeições. Apesar de estarem bem perto da margem para se
referirem a Ele, assim como os discípulos de Emaús, não discerniram Sua
pessoa nem reconheceram Sua voz, tão encoberto estava o Corpo Ressuscitado
em glória. Estava na margem e os apóstolos, no mar. Nosso Senhor falou-lhes:

Amigos, não tendes acaso alguma coisa para comer?


Não, responderam-lhe.
Disse-lhes ele:
Lançai a rede ao lado direito da barca e achareis.
(São João 21,5-6)

Os apóstolos devem ter se lembrado de uma ordem como essa quando


Nosso Senhor lhes disse para baixar as redes para um carregamento, não
especificando se do lado direito ou do esquerdo. Na ocasião, Nosso Senhor
estava no barco; agora estava na margem. Os lançamentos da vida tinham
terminado. Imediatamente, em obediência à ordem divina, foram tão bem-
sucedidos na pescaria que se viram incapazes de puxar as redes por conta da
infinidade de peixes. No primeiro milagre da pescaria durante a vida pública, as
redes se romperam; Pedro, atemorizado pelo milagre, pediu a Nosso Senhor
para apartar-se Dele, porque era um pecador. A própria abundância da
misericórdia do Senhor fê-lo sentir sua insignificância. No entanto, nessa pesca
miraculosa foram fortalecidos, pois, imediatamente, João disse a Pedro:

É o Senhor!
(São João 21,7)

Tanto Pedro como João permaneceram fiéis a suas personalidades. Assim


como João foi o primeiro a chegar ao sepulcro vazio na manhã de Páscoa, do
mesmo modo Pedro foi o primeiro a entrar. Assim como João foi o primeiro a
acreditar que Cristo ressuscitou, do mesmo modo Pedro foi o primeiro a
cumprimentar o Cristo ressuscitado. Assim como João foi o primeiro a ver, do
barco, o Senhor, do mesmo modo Pedro foi o primeiro a correr em direção ao
Senhor, mergulhando no mar para ser o primeiro a Seus pés. Nu, como estava
no barco, lançou um manto sobre Si, esqueceu o conforto pessoal, abandonou
a companhia humana e ansiosamente nadou centenas de metros até o Mestre.
João tinha maior discernimento espiritual, Pedro era mais rápido na ação. Foi
João quem se debruçou sobre o peito do Mestre na noite da Última Ceia;
também foi ele quem estava mais perto da Cruz e a quem o Salvador
recomendou Sua mãe; agora, portanto, ele foi o primeiro a reconhecer o
Salvador Ressuscitado na margem. Uma vez, quando Nosso Salvador andava
sobre as ondas em direção ao barco, Pedro não podia esperar o Mestre vir até
ele, ao pedir-Lhe que andasse sobre as águas. Agora, nadara até a margem, após
envolver-se de reverência para com Seu Salvador.
Os outros seis permaneceram no barco. Quando chegaram à margem,
viram o fogo, os peixes nas brasas e pão, que o Salvador compassivo preparara
para eles. O Filho de Deus estava a preparar uma refeição para Seus pobres
pescadores; isso deve ter lhes recordado os pães e os peixes que Ele multiplicara
quando anunciou a Si mesmo como o Pão da Vida. Após terem arrastado as
redes até a margem e contarem os 153 peixes que tinham capturado, estavam
todos bem convencidos de que Aquele era o Senhor. Os apóstolos
compreenderam que, como Ele os chamara de pescadores de homens, essa
grande pesca, igualmente, simbolizava os fiéis que, por fim, seriam levados à
barca de Pedro.
No começo de Sua vida pública, às margens do rio Jordão, Cristo lhes
fora apontado como o “Cordeiro de Deus”; agora que estava prestes a deixá-los,
o Senhor aplicou esse título àqueles que viriam a cer Nele. Aquele que chamou
a si mesmo de o Bom Pastor dava, nesse momento, a outros, a capacidade de
ser pastores. A cena seguinte ocorreu após o jantar. Como deu a Eucaristia
depois da ceia e o poder de perdoar os pecados após comer com eles, agora,
igualmente, depois de partir o pão e o peixe, voltou-se para aquele que O
negou três vezes e pediu uma afirmação tripla de amor. A confissão do amor
deve preceder a outorga da autoridade; autoridade sem amor é tirania.

Simão, filho de João,


amas-me mais do que estes?
(São João 21,15)

A pergunta era “Tu Me amas com aquele amor verdadeiramente


sobrenatural, a marca de um pastor-chefe?”. Pedro, certa vez, pressupôs a
grandeza de Seu amor, dizendo ao Mestre na noite da Última Ceia que muito
embora todos os outros ficassem ofendidos e se escandalizassem com Ele, ainda
assim não O negaria. Pedro era, nesse momento, chamado de Simão, filho de
Jonas — Simão era seu nome original. Nosso Senhor, assim, recordou Pedro de
seu passado como homem natural, mas, principalmente, de sua queda ou
negação. Vivera pela natureza em vez de viver pela graça. O título também
tinha outro significado — deveria lembrar a Pedro sua gloriosa confissão
quando Nosso Senhor lhe disse: “Feliz és, Simão, filho de Jonas” (São Mateus
16,17) e o tornou a Rocha sobre a qual Ele construiria Sua Igreja. Em resposta
à questão sobre o amor, Pedro disse:

Sim, Senhor, tu sabes que te amo.


Disse-lhe Jesus: Apascenta os meus cordeiros.
(São João 21,15)

Pedro não reivindicava mais superioridade afetiva alguma diante dos


outros seguidores de Nosso Senhor, pois os outros seis apóstolos o rodeavam.
No grego original, a palavra que Nosso Senhor Bendito empregou para amor
não era a mesma que Pedro utilizou na resposta. A palavra que Pedro empregou
sugeria uma emoção um tanto natural. Faltava a ele o significado pleno das
palavras de Nosso Senhor acerca da maior espécie de amor. Pedro, em
autodesconfiança, nada mais afirmou senão um amor natural. Ao tornar o
amor a condição do serviço a Ele, o Salvador Ressuscitado nesse momento
disse a Pedro: “Apascenta os meus cordeiros”. O homem que mais
profundamente caiu e aprendeu de maneira mais plena as próprias fraquezas
era, por certo, o mais bem qualificado para fortalecer o fraco e alimentar os
cordeiros.
Repetir três vezes foi a nomeação de Pedro como o vigário de Cristo na
terra. A negação de Pedro não mudara o decreto divino que o tornava a rocha
da Igreja, pois Nosso Senhor Santíssimo continuou a fazer a segunda e a
terceira perguntas:

Perguntou-lhe outra vez:


Simão, filho de João, amas-me?
Respondeu-lhe:
Sim, Senhor, tu sabes que te amo.
Disse-lhe Jesus:
Apascenta os meus cordeiros.
Perguntou-lhe pela terceira vez:
Simão, filho de João, amas-me?
Pedro entristeceu-se porque lhe perguntou pela terceira vez:
Amas-me?, e respondeu-lhe:
Senhor, sabes tudo, tu sabes que te amo.
Disse-lhe Jesus: Apascenta as minhas ovelhas.
(São João 21,16-17)

A palavra original grega empregada por Nosso Senhor na segunda


pergunta sugeria um amor sobrenatural, mas Pedro utilizou a mesma palavra
anterior que significava um amor natural. Na terceira pergunta Nosso Senhor
usou a mesma palavra empregada por Pedro para amor pela primeira vez, a
saber, a palavra que significava somente uma afeição natural. Foi como se o
Mestre Divino estivesse corrigindo as próprias palavras para encontrar a mais
conveniente a Pedro e sua personalidade. Talvez tenha sido a adoção da própria
palavra de Pedro na terceira pergunta que o feriu e o fez sofrer mais.
Em resposta à terceira pergunta, Pedro ignorou a afirmação do amor, mas
admitiu onisciência ao Senhor. No grego original, a palavra que Pedro
empregou quando disse que Nosso Senhor sabia de todas as coisas sugeria um
conhecimento por visão divina. Quando Pedro disse que o Senhor sabia que
ele O amava, a palavra grega utilizada denotava apenas o conhecimento por
observação direta. Como Pedro foi passo a passo ladeira abaixo na humilhação,
passo a passo Nosso Senhor o seguiu com a certeza da obra para a qual ele
estava destinado.
Nosso Senhor disse de Si mesmo: “Eu sou a Porta”. A Pedro Ele tinha
dado as chaves e a função de porteiro. A função do Salvador como o pastor
visível do rebanho visível estava chegando ao fim. Transferiu-a antes do
afastamento de Sua presença visível para o trono dos céus, onde seria o cabeça
invisível e o pastor.
O pescador da Galileia foi promovido à liderança e ao primado da Igreja.
Ele era o primeiro entre todos os apóstolos em todas as listas apostólicas. Não
só era sempre nomeado em primeiro lugar, mas também havia precedência na
ação; foi o primeiro a testemunhar a divindade de Nosso Senhor e o primeiro
dos apóstolos a testemunhar a Ressurreição de Cristo dos mortos. Assim como
Paulo mesmo disse, o Senhor foi visto primeiro por Pedro; Pedro foi o primeiro
após a Missão do Espírito no Pentecostes a pregar o Evangelho aos homens. Foi
o primeiro na Igreja infante a desafiar a ira dos perseguidores, o primeiro entre
os 12 a dar as boas-vindas aos gentios que acreditaram na Igreja e o primeiro a
respeito do qual foi predito sofrer martírio por causa do Cristo.
Durante a vida pública, quando disse que Pedro era a pedra sobre a qual
construiria Sua Igreja, Nosso Senhor Bendito profetizou que seria crucificado e
ressurgiria novamente. Na ocasião, Pedro O tentou a afastar-se da cruz. Em
reparação por essa tentação que Nosso Senhor chamou de satânica, Ele, agora,
ao conferir plenos poderes a Pedro para governar Seus cordeiros e ovelhas,
profetizou que o próprio Pedro morreria na cruz. Quase disse a Pedro: “Terás
uma cruz como aquela em que Me pregaram, e da qual ter-me-ias impedido de
adentrar em Minha glória. Agora deves aprender o que realmente significa
amar. Meu amor é um vestíbulo da morte. Por que te amei, eles Me mataram;
por teu amor por mim, matar-te-ão. Certa vez disse que o Bom Pastor daria a
vida por Suas ovelhas; agora és Meu pastor em Meu lugar; portanto, receberás
por tuas obras a mesma recompensa que recebi — traves de cruz, quatro cravos
e, depois, a vida eterna”.

Em verdade, em verdade te digo:


quando eras mais moço, cingias-te e andavas aonde querias.
Mas, quando fores velho, estenderás as tuas mãos,
e outro te cingirá e te levará para onde não queres.
(São João 21,18)
Embora fosse impulsivo e obstinado na juventude, ainda assim, na idade
provecta, Pedro glorificaria seu Mestre por uma morte na cruz. Do Pentecostes
em diante, Pedro foi levado para onde não queria. Foi obrigado a deixar a
Cidade Santa, onde o cárcere e a espada o aguardavam. Depois, foi conduzido
por Seu Mestre divino para Samaria e para a casa do gentio, Cornélio, e então
foi levado a Roma, a nova Babilônia, onde foi fortificado pelos estrangeiros da
diáspora que Paulo incorporara; foi levado à cruz e morreu com uma morte de
martírio na colina do Vaticano. Foi crucificado por solicitação própria de
cabeça para baixo, por considerar-se indigno de morrer como o Mestre. Visto
que era a rocha, era conveniente que ele mesmo fosse posto em terra como um
fundamento inabalável da Igreja.
Assim, o homem que sempre tentava o Senhor a afastar-se da cruz foi o
primeiro dos apóstolos a tomá-la. A cruz que abraçou contribuiu para a glória
de Seu Salvador mais que todo o zelo e toda a impetuosidade da juventude.
Quando não compreendeu que a cruz significava redenção do pecado, Pedro
pôs a própria morte diante da morte do Mestre, ao dizer que, embora todos os
outros tivessem falhado em defendê-lo, ele não o faria. Nesse momento, Pedro
viu que era somente à luz da Cruz do Calvário que a cruz que abraçaria tinha
propósito e significado. Perto do fim da vida, Pedro veria a cruz diante de si e
escreveria:

Porque sei que em breve terei que deixá-lo,


assim como nosso Senhor Jesus Cristo me fez conhecer.
Mas cuidarei para que, ainda depois do meu falecimento,
possais conservar sempre a lembrança dessas coisas.
Na realidade, não é baseando-nos em hábeis fábulas
imaginadas
que nós vos temos feito conhecer
o poder e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo,
mas por termos visto a sua majestade com nossos próprios
olhos.
(2 São Pedro 1,14-16)
58

O MANDATO DIVINO

Muitas das aparições do Salvador Ressurreto foram repentinas e


assombrosamente inesperadas; mas houve uma previamente marcada antes que
Ele entrasse em agonia. Disse o Senhor aos apóstolos que iria à Galileia adiante
deles (São Mateus 26,32). Depois da Ressurreição, o primeiro anjo e então o
próprio Senhor fez o mesmo compromisso, que assumiu importância
extraordinária. O lugar exato da Galileia não foi registrado, e pouco importa
saber se foi no Monte das Bem-Aventuranças ou no Monte Tabor. Tampouco
se sabe quantas pessoas estavam presentes além dos apóstolos, mas afirma-se
claramente que os 11 estavam lá, indicando a perda de um dos membros do
colégio apostólico que ficaria com um posto vago até o Pentecostes. No Antigo
Testamento, Deus marcava encontros nas montanhas. O Monte Moriá foi o
lugar do encontro com Abraão; o Monte Horebe, o lugar do encontro com
Moisés. Os apóstolos compareceram a este encontro na montanha a que o
Salvador Ressurreto os tinha chamado:

Quando o viram, adoraram-no.


(São Mateus 28,17)

Disse-lhes o Senhor:

Toda autoridade me foi dada no céu e na terra.


(São Mateus 28,18)
Quando disse que todo o poder Lhe foi dado nos céus e na terra, Ele não
o disse como Filho de Deus, pois este já Lhe pertencia por natureza. Antes, era
um poder que Ele merecera por Sua Paixão e Morte e que fora profetizado por
Daniel, que teve uma visão profética do Filho do Homem como portador de
glória e domínio eternos (Daniel 7,14). O poder que Lhe foi dado fora previsto
em Gênesis, a saber, que Aquele que era a semente da mulher esmagaria a
cabeça da serpente. Os reinos da terra que Satanás Lhe prometeu se fosse um
salvador político agora eram declarados propriedade do Senhor. Sua autoridade
estendia-se por toda a terra, e todas as almas foram compradas por Seu Sangue.
Esta autoridade como o Filho do Homem não se estendia apenas sobre a terra,
mas também sobre o céu. Suas Palavras combinavam a Ressurreição e a
Ascensão; assim como a Ressurreição deu-Lhe poder sobre a terra, ao vencer o
pecado e a morte, assim também a Ascensão lhe dá poder no céu para agir
como mediador entre Deus e o homem.
A declaração seguinte de Cristo era um corolário da primeira. Se toda
autoridade Lhe foi dada no céu e na terra, então Ele tinha o direito de delegar
essa autoridade a quem Lhe aprouvesse. Era importante que a autoridade que
Ele delegou fosse dada àqueles que eram seus contemporâneos, a fim de que
pudesse transmiti-la. Um cabo elétrico que está a oitocentos ou a mais de três
mil quilômetros de distância de um gerador não pode transmitir corrente.
Qualquer autoridade, para agir em nome de Cristo, há de ser dada pelo
próprio Cristo e então transmitida através dos séculos por aqueles que a
receberam sem mediação.
Enquanto esteve sobre a terra, o Senhor exerceu o triplo ofício de
Sacerdote, Profeta ou Mestre, e Rei. Enquanto se preparava para deixá-los para
voltar ao céu de onde veio, Ele comissionou esse triplo ofício aos apóstolos: o
ofício sacerdotal, ao convidá-los a renovar o Memorial de Sua morte e ao
conferir-lhes o poder de perdoar pecados; o ofício profético ou didático, ao
prometer enviar-lhes o Espírito da Verdade, que os faria lembrar de todas as
coisas que Ele ensinou e os faria perseverar unidos na fé; e o ofício régio, ao
dar-lhes um Reino (assim como o Pai Lhe dera um Reino), sobre o qual
exerceriam o poder de ligar e desligar. Sem deixar dúvidas de que o propósito
de Sua vinda era prolongar Seu Sacerdócio, Sua Verdade e Seu Reinado, Ele
enviou os apóstolos ao mundo:
Ide, pois, e ensinai a todas as nações;
batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Ensinai-as a observar tudo o que vos prescrevi.
(São Mateus 28,19-20)

Se essa comissão fosse dada apenas para o tempo dos apóstolos, é evidente
que seria impossível que fossem a todas as nações. O dinamismo ou corrente
que foi passada aos apóstolos sob a liderança de Pedro havia de continuar até a
Segunda Vinda de Cristo. Não havia nenhuma dúvida quanto à autoridade e à
obra da Igreja quando o Mestre deixasse a terra. Chegou o dia da Propagação
da Fé. Os apóstolos e seus sucessores já não haviam de se considerar mestres
apenas em Israel; de agora em diante, o mundo inteiro era deles. Tampouco
haviam de simplesmente ensinar; pois Aquele que lhes deu a comissão não era
só um mestre. Tinham de fazer discípulos de todas as nações; e o discipulado
pressupunha a rendição do coração e da vontade ao Mestre Divino. O poder da
Cruz redentora seria vão a menos que Seus servos o usassem para incorporar
outras naturezas humanas Nele mesmo. Assim como Maria deu-Lhe uma
natureza humana que foi glorificada em Sua Pessoa, também os homens
haviam de render sua natureza humana a Ele, morrendo como Ele morreu, a
fim de que pudessem entrar na glória.
Essa incorporação a Si Mesmo havia de ser iniciada pelo batismo, como
Ele disse a Nicodemos. A menos que nasça da água e do Espírito Santo, o
homem não pode entrar no Reino de Deus. Assim como nascer da carne gera a
carne do homem, nascer do Espírito o faria participante de Sua natureza
divina. O batismo tinha de ser administrado não “nos nomes” das três pessoas
da Santíssima Trindade, visto que implicaria três deuses, mas, antes, tinha de
dar-se em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, porque as Três Pessoas são
um, tendo a natureza de Deus. Uma analogia mais perfeita é que nossa vida,
nosso conhecimento e nosso amor estão arraigados a nossa natureza humana;
assim também o Poder do Pai, a Sabedoria do Filho e o Amor do Espírito
Santo são um na natureza de Deus. Assim como três ângulos de um triângulo
não formam três triângulos, mas um só; como gelo, água e vapor são
manifestações diferentes de uma natureza, H2O, assim infinitamente além de
qualquer comparação finita, o Poder, a Sabedoria e o Amor não são senão um
só Deus.
Essa autoridade que Ele lhes deu e que havia de se estender por toda a
terra ainda pode ter deixado na mente dos apóstolos uma dúvida quanto a Sua
Presença com eles. Essa dúvida é imediatamente desfeita quando Ele asseverou
a Sua Igreja:

Eis que estou convosco todos os dias,


até o fim do mundo.
(São Mateus 28,20)

A promessa não tinha limite; duraria até o fim do mundo. Deus tinha


dito a Abraão que estaria com ele; a Moisés e Arão foi dito que Ele estaria em
sua boca; a Josué e Moisés foi prometido que Deus estaria com eles; e a
Salomão garantiu-se que Deus estaria com ele na construção de Sua casa. A
Jeremias, quando alegou ignorância, foi assegurado que Deus poria palavras em
sua boca. Mas, nesses casos, a Presença Divina durou apenas a vida terrena das
pessoas a quem foi prometida. Nenhuma limitação da Presença e da Proteção
divinas desse tipo foi mencionada no caso dos apóstolos. “As portas do inferno
não prevalecerão contra Minha Igreja”, disse o Senhor a Pedro. A confirmação
dessa promessa veio mais uma vez nas seguintes palavras: “Eis que estou
convosco todos os dias, até a consumação dos séculos”.
59

A ÚLTIMA APARIÇÃO EM JERUSALÉM

Antes de expirar os quarenta dias, os apóstolos voltaram mais uma vez a


Jerusalém, onde o Cristo Ressuscitado lhes aparecera anteriormente. Ali, Ele
deixou claro que Sua companhia no meio deles era passado; Sua influência
agora seria no céu. No entanto, antes de partir, reiterou a importância da
profecia e da história. Ninguém antes foi preanunciado, mas Ele o fora, e
quanto mais buscassem no Antigo Testamento, mais compreenderiam.
Daquele momento em diante, a Igreja deveria sacar do tesouro da Lei, dos
profetas e de todos os Salmos que se referiam a Ele.

Era necessário que se cumprisse tudo


o que de mim está escrito na Lei de Moisés,
nos profetas e nos Salmos.
Abriu-lhes então o espírito,
para que compreendessem as Escrituras.
(São Lucas 24,44-45)

Uma nova luz fez todas as coisas parecerem diferentes daquilo que havia
antes; à luz da ressurreição, pareciam diferentes do que eram na escuridão
anterior. É preciso mais que a luz do sol para ler Moisés, os profetas e os
salmos: também é necessária certa iluminação interior, que é inseparável da boa
vontade e do amor. Várias vezes Nosso Senhor contou a própria autobiografia
e, em cada momento, sem exceção, referiu-se à reparação que faria entre Deus e
o homem. Agora, resumiu Sua vida pela última vez, repetindo que o Antigo
Testamento se referiu a Ele como o Servo Sofredor, mas Vencedor.
Assim é que está escrito,
e assim era necessário que Cristo padecesse,
mas que ressurgisse dos mortos ao terceiro dia.
(São Lucas 24,46)

Não era pelo sermão do Monte que Ele seria lembrado, mas por Sua
Cruz. Não haveria Evangelho se não houvesse Cruz; e a morte na Cruz teria
sido inútil para retirar a culpa do homem se Ele não tivesse ressuscitado dos
mortos. O Senhor disse que se obrigou a sofrer porque tinha de mostrar o mal
do pecado, e o mal se torna manifesto em plenitude na crucifixão do bem.
Nunca tombou sobre a terra uma escuridão mais densa do que aquela que
recaiu sobre Ele no Calvário. Em todas as outras batalhas, em geral, existe um
acinzentado ou uma mistura de bem e mal em ambos os lados; na crucifixão,
no entanto, havia o preto de um lado e o branco do outro. O mal nunca seria
mais forte do que foi naquele dia em especial; pois a pior coisa que o mal pode
fazer não é bombardear as cidades, matar crianças e promover guerras. A pior
coisa que o mal pode fazer é matar o bem. Derrotado nisso, nunca poderia ser
novamente vitorioso.
A bondade diante do mal deve sofrer, pois, quando o amor encontra o
pecado, será crucificado. Um Deus que expõe Seu Sagrado Coração como
demonstração pública de Seu amor, como o fez Nosso Senhor quando se
tornou homem, deveria estar preparado para tê-lo bicado por gralhas.4
Entretanto, ao mesmo tempo, a bondade utilizou aquele mesmo sofrimento
como condição de vencer o mal. O bem arrebatou toda a raiva, ira e ódio e
implorou “perdão”; tomou a vida e ofereceu-a por outro. Consequentemente,
para Ele, era oportuno sofrer para ingressar na glória. O mal, vencido de
armadura completa e no instante do ápice monumental, poderia, no futuro,
vencer algumas batalhas, mas nunca ganharia a guerra.
Não haveria qualquer esperança para um mundo ferido se esta fosse
oferecida por um Confúcio, um Buda, ou mesmo por um Cristo que tivesse
ensinado a bondade e depois se decompusesse numa tumba. Asas quebradas
não podem ser curadas pelo humanismo, que é a irmandade sem lágrimas; ou
por um Cristo gentil que não tem outra fonte de conhecimento diversa de
qualquer outro mestre e que, no fim, como eles, não pode romper os grilhões
da morte, nem provar que a verdade esmagada na terra pode ressurgir
novamente.
Esse resumo que Nosso Senhor ofereceu de Sua vida lançou o desafio aos
homens e O colocou fora da história. Que certeza existiria de que o mal não
triunfaria sobre o bem? Suponhamos que Ele fosse apenas um homem bom ou
o maior moralista que o mundo já viu. Então que certeza existiria para a vitória
da virtude? Qual inspiração para o sacrifício? Se Ele, que veio à terra para
ensinar a dignidade da alma humana, que podia desafiar um mundo pecador a
condená-Lo pelo pecado, que no momento da morte podia perdoar os
inimigos, não tinha outro desenlace e destino senão restar pendurado em um
mandeiro ordinário com criminosos e ladrões comuns para promover um
espetáculo público de barbárie e sadismo, aí, então, todos os homens
desesperadamente perguntariam: “Se é isso o que acontece com um homem
bom, por que alguém deveria levar uma vida honesta?”. Nesse caso, a maior de
todas as injustiças ficaria sem reparação e a mais nobre de todas as vidas se
esvairia sem justificativa. Quaisquer que sejam os elogios que possamos fazer
aos Seus ensinamentos, à Sua paciência sob os golpes, à Sua humildade diante
das multidões — eles não O tornam o Senhor da morte e da vida; ao contrário,
tornam vãs tais virtudes, pois não têm recompensa.
Ao dizer que Ele tinha de sofrer, Cristo glorificou Seu Pai. Admiremos o
quanto quisermos a santidade, mas o que pensar de um Deus que olha para o
espetáculo da Inocência caminhando para o patíbulo e não remove os cravos,
dando, no lugar, um cetro? Ou o que pensar de um Deus que não envia um
anjo para arrebatar a coroa de espinhos e pôr no lugar uma guirlanda? Será
Deus um partícipe ao dizer que a vida mais nobre que já andou por esta terra é
impotente perante os atos malignos dos homens? O que a humanidade deve
pensar sobre a natureza humana, se a flor alva de uma vida sem mácula é
esmagada sob as botinas rústicas dos executores romanos e, então, destinada a
definhar como as flores maceradas? Não exalaria maior odor pestilento por
conta da doçura primeva e nos faria odiar não só o Deus que não se importou
com a verdade e o amor, mas até mesmo nossos semelhantes, por serem
partícipes de Sua morte? Se esse é o fim da bondade, então, por que, afinal, ser
bom? Se isso é o que acontece à justiça, deixemos que reine a anarquia!
No entanto, Nosso Senhor tomou o pior que o mundo tinha a oferecer e,
assim, pelo poder de Deus, elevou-se acima disso; se Ele, o desarmado, podia
fazer a guerra sem arma alguma senão a bondade e o perdão, de modo que a
morte era ganho e aqueles que O mataram, perdedores, então, quem não
deveria ter esperança? Quem se desesperaria diante de qualquer vitória
momentânea do mal? Quem deveria deixar de confiar ao ver andar nas trevas o
Senhor Ressucitado com as cicatrizes gloriosas nas mãos, nos pés e no lado? A
lei que Ele deu era clara: a vida é uma luta, a não ser que exista uma Cruz em
nossas vidas, nunca haverá um sepulcro vazio; a não ser que exista uma coroa
de espinhos em nossas vidas, nunca haverá o halo de luz; a não ser que exista
uma Sexta-Feira Santa, nunca haverá um Domingo de Páscoa. Quando Ele
disse “Venci o mundo”, não queria dizer que Seus discípulos ficariam imunes
dos lamentos, das dores, do pesar e da crucifixão. Ele não deu uma paz que
prometia banir a contenda, pois Deus detesta a paz daqueles que estão
destinados à guerra. Se o Pai Celestial não poupou o próprio filho, Ele, o Filho
Celestial, não pouparia Seus discípulos. O que a ressurreição oferecia não era a
imunidade ao mal no mundo físico, mas a imunidade do pecado na alma.
O Divino Salvador nunca disse aos apóstolos “Seja bom e não sofrerá”,
mas afirmou: “Neste mundo tereis tribulações” (São João 16,33). Ele também
lhes disse que não temessem aqueles que matam o corpo, mas, antes, que
temessem quem pode matar a alma (São Mateus 10,28). Agora disse aos
apóstolos que Sua vida era um modelo para todos os seus seguidores; que eram
encorajados a assumir o pior que a vida tinha a oferecer com coragem e
serenidade. Afirmou que todos os sofrimentos eram como a sombra de “Sua
mão estendida, acariciando-os”. Não era como um talismã para prometer
defesa das provações; ao contrário, como um capitão, ingressou na batalha para
inspirar os homens a transfigurar algumas das maiores dores da vida em maior
proveito da vida espiritual. Foi a Cruz de Cristo que elevou as questões da vida;
foi a Ressurreição que as respondeu. Não o Cristo feminizado, mas o viril, é o
que desfralda no próprio corpo o testemunho da vitória diante de um mundo
mau — a flâmula estriada das chagas da Salvação. Como descreveu o poeta
Edward Shillito: “Nenhum falso deus, isento de dor e pesar, pode consolar-nos
nesses dias”.

JESUS DAS CHAGAS

Se nunca buscamos, buscamos-Te neste instante


Teus olhos, incandescentes, rasgam as trevas, nossos únicos
astros
Devemos ver os espinhos de Tua fronte
Devemos tê-Lo, ó Jesus das Chagas

Os Céus nos amedrontam; demasiado calmos


Em todo o universo não temos assento
Nossas feridas nos afligem; onde está o bálsamo?
Senhor Jesus, por Tuas Chagas, clamamos Tua graça.

Se, quando em portas cerradas, Tu Te aproximas


Revela apenas aquelas mãos, aquele Teu lado
Hoje sabemos o que são feridas, não as tememos
Mostra-nos Tuas Chagas, conhecemos o contrassinal.

Os outros deuses eram fortes; mas Tu ficaste fraco;


Tiranizaram, mas Tu encontraste, por acaso, um trono;
Todavia, às nossas feridas, somente as Chagas de Deus podem
falar,
E nenhum deus tem feridas, mas apenas Tu.5
Edward Shillito (1872-1948)
Notas

4 | O autor faz referência à fala de Iago na peça Otelo, de William Shakespeare (Ato I, cena
I), em que se utiliza a expressão inglesa “to wear my heart upon my sleeve”, oriunda do
antigo costume medieval do cavaleiro amarrar a fita com as cores da amada no braço ao
lutar como maneira de demonstrar afeição. (N. T.)
5 | No original: If we have never sought, we seek ee now;/ ine eyes burn through the dark,
our only stars;/ We must have sight of thorn-pricks on y brow,/ We must have ee, O Jesus
of the Scars.
e heavens frighten us; they are too calm;/ In all the universe we have no place./ Our wounds
are hurting us; where is the balm?/ Lord Jesus, by y Scars, we claim y grace.
If, when the doors are shut, ou drawest near,/ Only reveal those hands, that side of ine;/
We know to-day what wounds are, have no fear,/ Show us y Scars, we know the countersign.
e other gods were strong; but ou wast weak;/ ey rode, but ou didst stumble to a
throne;/ But to our wounds only God’s wounds can speak,/ And not a god has wounds, but
ou alone.
James Dalton Morrison (ed.), Masterpiece of Religious Verse. Harper & Brothers: Nova
York. (N. T.)
60

PENITÊNCIA

Depois de ter narrado a própria autobiografia, Cristo escreveu a biografia de


todos aqueles a quem redimiu; os frutos da Cruz agora devem aplicar-se a
todos os povos e nações:

E que em seu nome se pregasse a penitência


e a remissão dos pecados a todas as nações,
começando por Jerusalém.
Vós sois as testemunhas de tudo isso.
(São Lucas 24,47-48)

O primeiro sermão que Cristo pregou foi sobre o tema do


arrependimento:

Desde então, Jesus começou a pregar:


Fazei penitência, pois o Reino dos céus está próximo.
(São Mateus 4,17)

O primeiro sermão de Pedro foi sobre o arrependimento; o primeiro


sermão de Paulo foi sobre o arrependimento; o último sermão que Cristo
pregou antes de ascender ao céu tinha o mesmo tema do primeiro. O
arrependimento tinha de ser o fardo da doutrina do Novo Testamento. O
arrependimento, assim, está ligado ao cumprimento de profecias antigas, mas,
acima de tudo, à aplicação da vitória da Redenção sobre o Calvário. Pedro, que
ouviu essa mensagem, em breve também a estaria pregando:

Dele todos os profetas dão testemunho,


anunciando que todos os que nele creem recebem
o perdão dos pecados por meio de seu nome.
(Atos dos Apóstolos 10,43)

Arrependimento implica afastar-se do pecado e voltar-se para Deus. As


quatro primeiras Beatitudes que Ele pregou foram uma descrição dessa
mudança de coração interna e radical, a saber, a pobreza ou humildade de
espírito, o choro pelo pecado, a mansidão, a fome e sede por amor a Deus. Na
parábola do Filho Pródigo, Nosso Senhor traçara um quadro da alma penitente
que “entrou em si”, como se o pecado o tivesse externalizado, e então voltou
humildemente à casa do pai. Os anjos do céu, disse Ele, regozijam-se mais por
um pecador que se arrepende que por 99 justos que não precisam de
arrependimento; disse o Senhor que o publicano, nos fundos do templo,
lamentando os próprios pecados, voltou para casa justificado. Agora, no
discurso de despedida antes da Ascensão, chamou o mundo ao
arrependimento.
Essa pregação do arrependimento tinha de começar em Jerusalém, pois a
Salvação dirigia-se primeiro aos judeus. Naquela cidade, o grande Sacrifício foi
oferecido pelos pecados do mundo; foi ali que o sacerdócio foi vagamente
prefigurado com suas prerrogativas e oráculos. Foi ali que a profecia anunciou
o Príncipe de Israel; e foi ali que Isaías disse:

Porque de Sião deve sair a lei,


e de Jerusalém, a palavra do Senhor.
(Isaías 2,3)

A ordem divina de começar a pregar a Redenção em Jerusalém foi uma


marca de Sua grande compaixão; pois Ele estava direcionando os Apóstolos a
irem àqueles que falsamente O tinham acusado e disse-lhes que era Advogado
deles; que intercederia por eles desde o alto; e, enfim, lhes garantia que, embora
o tivessem flagelado, por suas Chagas, eles seriam sarados.
Tendo concluído sua autobiografia, Nosso Senhor lembrou-os mais uma
vez do Espírito que prometera na noite da Última Ceia e cumprira, em parte,
quando soprou sobre eles e deu-lhes o poder de perdoar pecados.

Eu vos mandarei o Prometido de meu Pai;


entretanto, permanecei na cidade,
até que sejais revestidos da força do alto.
(São Lucas 24,49)

Assim, Ele prometeu um aumento do Espírito além do que fora soprado


sobre eles; de fato, seria um “poder do alto”. Contudo, para recebê-lo,
deveriam esperar dez dias após a Ascensão. Esse poder seria maior do que o que
foi dado a Moisés para conduzir Israel; maior do que o que foi dado a Josué
para vencer os inimigos; maior que o que foi dado aos reis e profetas; e os
capacitaria para proclamar a Redenção. Os apóstolos não compreenderam a
natureza do poder; pois, para eles, significava um tipo de restauração de Israel:

Senhor, é porventura agora


que ides instaurar o reino de Israel?
(Atos dos Apóstolos 1,6)

Eles ainda estavam pensando nos velhos termos de um messias político e


em fazer de Jerusalém o que César fizera de Roma. Mas Ele advertiu que não
lhes competia saber tempos ou épocas; a fé num futuro brilhante não havia de
instigar uma curiosidade presunçosa. Em todas as coisas eles haviam de esperar
em Deus. O presente é o objeto exclusivo do dever apostólico; quanto ao
futuro, alguns colherão onde não semearam.
Teriam poder, mas não o poder de restaurar Israel; seria um poder sobre
almas vivas para canalizar o perdão e a graça armazenadas no reservatório do
Calvário.
Mas descerá sobre vós o Espírito Santo e vos dará força;
e sereis minhas testemunhas em Jerusalém,
em toda a Judeia e Samaria e até os confins do mundo.
(Atos dos Apóstolos 1,8)

Queriam um reino terreno; o Senhor falou de um reino espiritual.


Queriam um retorno dos velhos tempos; o Senhor falou-lhes que seriam
“testemunhas” de algo novo. E testemunhar significa ser mártir. O poder de
Seu Espírito era compatível com a fraqueza humana. Eles podiam ser
humanamente fracos como Paulo era em sua pregação, mas cheio de poder, por
causa do Espírito. Estavam unidos pela ideia de uma nação: Israel; o Senhor
incluiu o mundo inteiro em Sua visão.
O novo poder seria uma dádiva; não seria gerado desde dentro pela
autoconfiança, por uma crença subjetiva de que alguém tinha influência sobre
os outros ou por um truque psicológico de acreditar em si mesmo.
Avivamentos organizados com base em propaganda atrairiam multidões, mas
esses truques não poderiam produzir mais efeitos espirituais do que podiam
produzir trovões e relâmpagos. Nesse momento solene em que Cristo está
prestes a transferir o próprio mundo aos Seus 11, Ele voltou ao assunto da
Última Ceia: o Espírito Santo. Assim como começou Sua vida pública com a
descida do Espírito Santo, também eles haveriam de começar sua missão no
mundo. O Espírito veio a Ele depois de Sua obediência à mãe e ao pai adotivo
em Nazaré; assim o Espírito viria a eles depois da obediência a permanecerem
em Jerusalém reunidos em oração. Quando esse poder viesse, eles seriam
testemunhas não só de Seus milagres, de Suas profecias ou de Seus
mandamentos morais, mas de sua Pessoa. Como no Monte das Bem-
Aventuranças, Ele reafirmou que não há doutrina à parte de Sua Pessoa. Já não
se pode escolher acreditar em Suas palavras acerca dos lírios e desacreditar de
Suas palavras sobre o inferno, nem acreditar em Seu Corpo e não em Seu
Sangue. Com a afirmação de que o cristianismo é o próprio Cristo, Ele
preparou-se para ascender ao Pai.
61

A ASCENSÃO

Naqueles quarenta dias após Sua Ressurreição, Nosso Senhor Divino estava
preparando os apóstolos para suportar a perda de Sua presença por meio do
Consolador que estava por vir.

E a eles se manifestou vivo depois de sua Paixão,


com muitas provas, aparecendo-lhes durante quarenta dias
e falando das coisas do Reino de Deus.
(Atos dos Apóstolos 1,3)

Não foi um período em que dispensou dons, mas, antes, um período em


que deu as leis e preparou a estrutura de Seu Corpo Místico, a Igreja. Moisés
jejuara por dias antes de dar as Leis; Elias jejuara quarenta dias antes da
restauração da Lei; e, agora, por quarenta dias o Salvador Ressuscitado fixou os
pilares de Sua Igreja e a nova Lei do Evangelho. No entanto, os quarenta dias
estavam por acabar, e os apóstolos foram convidados a esperar até o
quinquagésimo dia — o dia do jubileu.
Cristo os conduziu até Betânia, que deveria ser o cenário do último adeus;
não na Galileia, mas em Jerusalém, onde sofrera, seria o local de Seu retorno
para a casa do Pai Celestial. Completado o Seu sacrifício, prestes a ascender ao
trono dos céus, ergueu as mãos com as marcas dos cravos para o alto. Esse gesto
seria uma das últimas lembranças que os apóstolos teriam, exceto uma. As
mãos foram, primeiro, erguidas aos céus e depois abaixadas para o chão como
se baixassem as bênçãos sobre os homens. As mãos perfuradas concedem
melhor as bênçãos. No Livro do Levítico, após a leitura da promessa profética
do Messias, vem a bênção do Sumo Sacerdote; igualmente, também, após
demonstrar que todas as profecias se cumpriram Nele, preparou-se para
ingressar no Santuário sagrado. As mãos que seguraram o cetro da autoridade
no céu e na terra agora davam a benção final:

Enquanto os abençoava, separou-se deles e foi arrebatado ao


céu.
(São Lucas 24,51)

Depois que o Senhor Jesus lhes falou,


foi levado ao céu e está sentado à direita de Deus.
(São Marcos 16,19)

Depois de o terem adorado,


voltaram para Jerusalém com grande júbilo.
E permaneciam no templo,
louvando e bendizendo a Deus.
(São Lucas 24,52-53)

Se Cristo tivesse permanecido na terra, a visão teria substituído a fé. Nos


céus, não haveria fé, porque Seus seguidores teriam a visão; não haveria
esperança, porque teriam o gozo, mas haveria o amor pelo amor que duraria
para sempre! Sua despedida da terra combinou a Cruz e a Coroa que regeu até
o mais ínfimo detalhe de Sua vida. A ascensão ocorreu no Monte das Oliveiras,
em cujo sopé está Betânia. Levou os apóstolos através da Betânia, o que
significava passar pelo Getsêmani e no exato local em que chorou sobre
Jerusalém! Não foi de um trono, mas de uma montanha elevada acima do
jardim com as oliveiras tingidas por Seu sangue rubro que ofereceu a
manifestação final de Seu poder divino! Seu coração não foi amargurado pela
Cruz, pois a Ascensão era o fruto de Sua crucifixão. Como disse, era
conveniente que sofresse para entrar em Sua glória.
Na Ascensão, o Salvador não pôs de lado as vestes da carne com as quais
fora revestido; pois Sua natureza humana seria o padrão da glória futura de
outras naturezas humanas que se incorporariam a Ele ao partilhar Sua vida.
Intrínseca e profunda era a relação entre Sua Encarnação e Ascensão. A
Encarnação ou a admissão da natureza humana tornou possível para Ele sofrer
e redimir. A Ascensão exaltou à glória aquela mesma natureza humana que foi
humilhada à morte.
A coroação na terra, em vez da Ascensão aos céus, teria confinado à terra
as ideias humanas a respeito Dele. No entanto, a Ascensão faria com que
mentes e corações humanos ascendessem acima da terra. Em relação a Si
mesmo, era conveniente que a natureza humana que assumiu como
instrumento para ensinar, governar e santificar devesse partilhar a glória assim
como partilhou o opróbrio. Era muito difícil acreditar que Ele, Homem de
Dores e íntimo do pesar, era o Filho amado em quem o Pai se aprazia. Era
difícil acreditar que Ele, que não desceu da Cruz, poderia ascender aos céus ou
que a glória momentânea que brilhou sobre Ele no monte da Transfiguração
era um bem permanente. A Ascensão afastou as dúvidas ao introduzir Sua
natureza humana em comunhão íntima e eterna com Deus.
A natureza humana que Ele assumiu foi ridicularizada como profeta
quando O vendaram e pediram que dissesse quem O golpeara; foi
ridicularizado como rei quando puseram Nele vestes falsas de realeza e Lhe
deram um caniço como cetro; por fim, foi ridicularizado como sacerdote
quando O desafiaram, a Ele, que se oferecia como vítima, a descer da Cruz. Por
intermédio da Ascensão, Seu triplo ofício de Mestre, Rei e Sacerdote foi
justificado. No entanto, a justificação seria completada quando Ele viesse em
justiça como Juiz dos homens na natureza humana que tomou dos homens.
Nenhum réu de juízo pode reclamar que Deus não conhece as provações a que
os homens estão sujeitos. Sua própria aparência como o Filho do Homem
comprovaria que Ele lutara as mesmas batalhas como homem e suportara as
mesmas tentações como qualquer um que enfrente o tribunal de justiça. Seu
julgamento imediatamente encontraria eco nos corações.
Outro motivo para a Ascensão foi que Ele podia advogar junto ao Pai
com a natureza humana comum ao restante dos homens. Podia agora, por
assim dizer, mostrar as cicatrizes de Sua glória não só como troféus da vitória,
mas também como símbolos de intercessão. Na noite em que foi para o jardim,
rezou como se já estivesse à direita do Pai em Sua morada celestial; pronunciou
uma prece que não era de quem estava para morrer, mas de um redentor
inflamado:
Manifestei-lhes o teu nome,
e ainda hei de lho manifestar,
para que o amor com que me amaste
esteja neles, e eu neles.
(São João 17,26)

Embora nos céus, não seria somente um advogado dos homens junto ao
Pai, mas também enviaria o Espírito Santo como advogado do homem junto
Dele. O Cristo à direita do Pai representaria a humanidade diante do trono do
Pai; o Espírito Santo, ao permanecer com os fiéis, representaria neles o Cristo
que foi estar junto ao Pai. Na Ascensão, Cristo levou nossas necessidades ao
Pai; graças ao Espírito, Cristo, o Redentor, seria levado aos corações de todos os
que Nele viessem a crer.
A Ascensão daria a Cristo o direito de interceder com grande poder pelos
mortais:

Temos, portanto, um grande Sumo Sacerdote


que penetrou nos céus, Jesus, Filho de Deus.
Conservemos firme a nossa fé.
(Hebreus 4,14)
62

CRISTO ASSUME UM NOVO CORPO

Dez dias após a Ascensão, os apóstolos estavam reunidos, esperando o Espírito


que lhes ensinaria e revelaria tudo que Nosso Bendito Senhor lhes havia
ensinado. Durante a vida pública, o Senhor lhes disse que assumiria um novo
corpo. Não seria físico, como aquele que recebeu de Maria. Esse Corpo está
agora glorificado à destra do Pai. Tampouco seria um corpo moral, como um
clube social que deriva sua unidade da vontade dos homens. Antes, Seu novo
Corpo social estaria ligado a Ele mediante o Espírito Celestial que havia de ser
enviado sobre a terra. Ele falou de Seu novo Corpo algumas vezes como um
Reino, embora São Paulo falasse dele como um Corpo que os gentios podiam
compreender prontamente. Contou aos apóstolos a natureza desse novo
Corpo. Teria sete características principais.
1. Disse-lhes que, para ser membro de Seu novo Corpo, os homens teriam
de nascer nele. Mas não seria mediante um nascimento humano, pois este cria
filhos de Adão; para ser membro de Seu novo Corpo é necessário nascer de
novo pelo Espírito nas águas do batismo, que gera filhos adotivos de Deus.
2. A unidade entre o novo Corpo e Ele não se daria mediante a cantoria
de hinos a Ele, nem de chás sociais em Seu nome, nem na audição de
transmissões de rádio, mas pelo compartilhar de Sua vida:

Assim também vós:


não podeis tampouco dar fruto,
se não permanecerdes em mim.
Eu sou a videira;
vós, os ramos.
(São João 15,4-5)

3. Seu novo Corpo seria como todas as coisas vivas, pequeno no início —
até mesmo, conforme Ele disse, “como um grão de mostarda” —, mas cresceria
da simplicidade para a complexidade até a consumação dos séculos. Nas
palavras Dele:

Pois a terra por si mesma produz,


primeiro a planta, depois a espiga e,
por último, o grão abundante na espiga.
(São Marcos 4,28)

4. Uma casa se expande de fora para dentro, pela adição de tijolo por
tijolo; organizações humanas crescem pela adição de homem a homem, isto é,
da circunferência para o centro. Seu Corpo, disse Ele, seria formado de dentro
para fora, como um embrião vivo se forma no corpo humano. Assim como Ele
recebeu vida do Pai, os fiéis receberiam vida Dele. Como Ele mesmo disse:

Para que todos sejam um,


assim como tu, Pai,
estás em mim e eu em ti,
(São João 17,21)

5. Nosso Senhor disse que teria um só Corpo. Seria uma monstruosidade


espiritual que tivesse muitos corpos ou uma dúzia de cabeças. Para mantê-lo
uno, teria um pastor, a quem Ele ordenou que alimentasse Seus cordeiros e
ovelhas.

Haverá um só rebanho e um só pastor.


(São João 10,16)
6. Disse que Seu novo Corpo não se manifestaria diante dos homens até o
dia de Pentecostes, quando enviaria o Espírito da Verdade.

Porque, se eu não for, o Paráclito não virá a vós.


(São João 16,7)

O que quer que começasse, portanto, até mesmo 24 horas depois do


Pentecostes ou 24 horas antes seria uma organização; podia ter o espírito
humano, mas não teria o Espírito Divino.
7. A observação mais interessante que Ele fez acerca de Seu Corpo foi que
este seria odiado pelo mundo, assim como Ele o foi. O mundo ama qualquer
coisa mundana. O que é divino, no entanto, o mundo odeia.

Como, porém, não sois do mundo,


mas do mundo vos escolhi,
por isso o mundo vos odeia.
(São João 15,19)

O núcleo desse novo Corpo Místico eram os apóstolos. Eles seriam a


matéria bruta sobre a qual Ele enviaria Seu Espírito para animá-los em Seu Ser
Prolongado. Eles o representariam quando partisse. O privilégio de evangelizar
o mundo lhes estava reservado. Esse novo Corpo, do qual eram o embrião,
seria Seu Ser póstumo, e Sua Personalidade prolongada pelos séculos.
Até que Nosso Senhor enviasse o Espírito sobre eles cinquenta dias após a
Ressurreição, os apóstolos estavam como elementos num laboratório de
química. A ciência conhece até 100% dos elementos químicos que entram na
constituição de um corpo humano, mas ela não pode gerar um corpo humano
por sua incapacidade de prover o princípio unificador, a alma. Os apóstolos
não podiam dar vida à Igreja Divina mais dos que os elementos químicos
podem gerar uma vida humana. Eles precisavam do Espírito Divino do Deus
invisível para unificar sua natureza humana visível.
Consequentemente, dez dias após a Ascensão, o Salvador Glorificado no
Céu enviou sobre eles Seu Espírito, não em forma de um livro, mas como
língua de fogo vivo. Como células num corpo formam uma nova vida humana
quando Deus sopra uma alma no embrião, assim também os apóstolos
apareceram como o Corpo visível de Cristo quando o Espírito Santo veio para
torná-los um. Esse Corpo Místico ou a Igreja é chamado na tradição e na
Escritura de “Cristo total” ou “a plenitude de Cristo”.
O novo Corpo de Cristo apareceu publicamente diante dos homens.
Como o Filho de Deus assumiu em si a natureza humana do ventre de Maria,
envolto pelo Espírito Santo, também no Pentecostes Ele tomou um Corpo
Místico do ventre da humanidade, envolta pelo Espírito Santo. Exatamente
como Ele outrora ensinou, governou e santificou mediante Sua natureza
humana, agora continuaria a ensinar, governar e santificar mediante outras
naturezas humanas unidas a Seu Corpo ou Igreja.
Como esse corpo não é físico como um homem, nem moral como um
clube de bridge, mas celestial e espiritual porque o Espírito o fez um, é
chamado de Corpo Místico. Da mesma forma que o corpo humano é formado
por milhões e milhões de células e ainda assim é um porque vivificado por uma
alma, presidida por uma cabeça visível e governada por uma mente invisível,
também esse Corpo de Cristo, embora formado por milhões e milhões de
pessoas que são incorporadas a Ele pelo batismo, é um porque vivificado pelo
Espírito Santo de Deus e presidido por uma cabeça visível e governada por
uma Mente invisível ou Cabeça Que é o Cristo Ressurreto.
O Corpo Místico é um prolongamento do Ser de Cristo. São Paulo
chegou a compreender essa verdade. Talvez jamais tenha vivido alguém que
odiou a Cristo mais que Saulo. Os primeiros membros do Corpo Místico de
Cristo oraram para que Deus enviasse alguém para refutar Saulo. Deus ouviu a
oração deles — e enviou Paulo para responder a Saulo. Um dia, o perseguidor,
respirando ódio, seguia em direção a Damasco para prender os membros do
Corpo Místico de Cristo ali e trazê-los de volta a Jerusalém. A ocasião se deu
apenas alguns anos após a Ascensão de Nosso Salvador Divino, e Nosso Senhor
estava agora glorificado no céu. De repente, brilhou uma grande luz sobre
Saulo, e este caiu por terra. Despertado por uma Voz semelhante à rebentação
do mar, ele ouviu:

Saulo, Saulo, por que me persegues?


(Atos dos Apóstolos 9,4)
A insignificância ousou perguntar o nome da Onipotência:

Quem és, Senhor?

E a Voz respondeu:

Eu sou Jesus, a quem tu persegues.


(Atos dos Apóstolos 9,5)

Como era possível que Saulo estivesse perseguindo Nosso Senhor que
estava glorificado no céu? Por que a Voz do Céu havia de dizer “Saulo, Saulo,
por que Me persegues?”?
Se alguém pisa no pé, a cabeça não se queixaria porque é parte do corpo?
Nosso Senhor estava agora dizendo que, ao atacar Seu Corpo, Paulo estava O
atacando. Quando o Corpo de Cristo era perseguido, era Cristo, a Cabeça
Invisível que se erguia para falar e protestar. O Corpo Místico de Cristo,
portanto, não permanece entre Ele e um indivíduo mais do que Seu corpo
físico permaneceu entre Madalena e Seu perdão, ou Sua mão permaneceu entre
os pequeninos e Sua bênção. Foi por meio de Seu Corpo humano que Ele veio
aos homens em Sua vida individual; é por meio de Seu Corpo Místico ou Sua
Igreja que Ele vem aos homens em sua vida mística corporativa.
Cristo está vivo agora! Está ensinando agora, governando agora,
santificando agora — como o fez na Judeia e na Galileia. Seu Corpo Místico,
ou a Igreja, já existia durante o Império Romano antes de qualquer um dos
Evangelhos ter sido escrito. Foi o Novo Testamento que veio da Igreja, não a
Igreja que veio do Novo Testamento. Esse corpo tinha quatro marcas
distintivas de vida: tinha unidade, porque vivificada por uma Alma, um
Espírito, o dom de Pentecostes. Assim como unidade na doutrina e autoridade
são a força centrípeta que mantém a vida da Igreja una, a catolicidade é a força
centrífuga que a capacita a expandir e absorver a humanidade redimida sem
distinção de raça ou cor. A terceira nota da igreja é a santidade, o que quer dizer
que ela permanece na condição que a mantém saudável, pura e livre da doença
da heresia e do cisma. A santidade não está em cada membro, mas no todo da
Igreja. E porque o Espírito Santo é a alma da Igreja, esta pode ser o
instrumento Divino para a santificação das almas. A luz do sol não é poluída
porque seus raios passam por uma janela suja; nem os sacramentos perdem seu
poder de santificar porque os instrumentos humanos desses sacramentos
podem estar manchados. Por fim, há a obra da apostolicidade. Na biologia,
Omne vivum ex vivo, ou “Toda vida vem da vida”. Assim também o Corpo
Místico de Cristo é apostólico, porque historicamente tem suas raízes em
Cristo e não num homem separado Dele por séculos. É por isso que a Igreja
nascente teve de encontrar um sucessor de Judas que fosse testemunha da
Ressurreição e companheiro dos Apóstolos.

Convém que destes homens


que têm estado em nossa companhia
todo o tempo em que o Senhor Jesus viveu entre nós,
a começar do batismo de João
até o dia em que do nosso meio foi arrebatado,
um deles se torne conosco testemunha de sua Ressurreição.
(Atos dos Apóstolos 1,21-22)

Assim, o Cristo que se esvaziou a Si mesmo na Encarnação agora tinha


Sua “plenitude” no Pentecostes. A kenosis ou humilhação é uma faceta de Seu
Ser; o pleroma ou a continuação de Sua vida em Sua Noiva, Esposa, Corpo
Místico ou Igreja é a outra. Assim como o esvaziamento da luz e do calor do
sol clama pelo preenchimento da terra com sua energia radiante, também o
curso descendente de Seu amor encontra a perfeição naquilo que São Paulo
chama de Sua “plenitude” — a Igreja.
Muitos pensam que teriam crido Nele se tivessem vivido em Seus dias.
Mas, na verdade, não teria havido nenhuma grande vantagem. Aqueles que não
O veem como o Divino vivendo em Seu Corpo Místico hoje também não O
teriam visto como o Divino vivendo em seu corpo físico. Se há escândalos em
algumas células de Seu Corpo Místico, também havia escândalos em Seu corpo
físico; ambos apresentam uma aparência humana que, em momentos de
fraqueza ou crucifixão, exigem força moral para ver a Divindade. Nos dias da
Galileia, era necessária a fé apoiada por motivos de credibilidade para acreditar
no Reino que Ele veio estabelecer, ou Seu Corpo Místico mediante o qual Ele
santificaria os homens por Seu Espírito, depois da Crucifixão. Nesses dias, é
necessária uma fé apoiada pelos mesmos motivos de credibilidade para
acreditar na Cabeça, ou o Cristo invisível, governando, ensinando e
santificando mediante Sua cabeça visível e Seu Corpo, a Igreja. Em todo caso, é
necessária uma elevação. Para redimir os homens, Nosso Senhor disse a
Nicodemos que Ele tinha de ser “levantado” no madeiro; para santificar os
homens no Espírito, Ele tinha de ser “levantado” aos céus na Ascensão.
Cristo, portanto, ainda caminha sobre a terra, agora em Seu Corpo
Místico, como outrora com Seu corpo físico. O Evangelho era a pré-história da
Igreja, assim como a Igreja é a pós-história do Evangelho. Ele ainda é rejeitado
na hospedaria, como o foi em Belém; novos Herodes com nomes soviéticos e
chineses O perseguem com a espada; outros Satanases aparecem para tentá-Lo
a pegar os atalhos da popularidade que o afastam da Cruz e da mortificação;
Domingos de Ramos de grande triunfo chegaram a Ele, mas são prelúdios da
Sexta-feira da Paixão; novas acusações (e geralmente de pessoas religiosas, como
outrora) são levantadas contra Ele — que Ele é inimigo de César, é antipatriota
e perverteria uma nação; pelo lado de fora, é apedrejado; pelo lado de dentro, é
atacado por falsos irmãos; não faltam nem os Judas, chamados a ser apóstolos e
prontos a traí-Lo e entregá-Lo ao inimigo; alguns dos discípulos que se
vangloriavam de Seu nome já não caminham com Ele, porque — como os
predecessores — consideram Seu ensino, particularmente sobre o Pão da Vida,
muito “duro”.
No entanto, uma vez que nunca há morte sem Ressurreição, Seu Corpo
Místico terá, no correr da história, milhares de mortes e milhares de
ressurreições. Os sinos sempre dobrarão por Sua execução, mas a execução será
eternamente adiada. Num dia final, em Seu Corpo Místico, virá a perseguição
universal, quando Ele seguirá para a morte como antes, “padecendo sob Pôncio
Pilatos”, sofrendo sob o poder onipotente do Estado. Mas, no fim, tudo que foi
previsto de Abraão e Jerusalém virá a suceder em sua perfeição espiritual,
quando Ele será glorificado em Seu Corpo Místico assim como foi glorificado
em Seu corpo físico. Conforme o descreve São João apóstolo:

Vem, e mostrar-te-ei a noiva, a esposa do Cordeiro.


Levou-me em espírito a um grande e alto monte
e mostrou-me a Cidade Santa, Jerusalém,
que descia do céu, de junto de Deus, revestida da glória de
Deus.
Assemelhava-se seu esplendor a uma pedra muito preciosa,
tal como o jaspe cristalino.
Tinha grande e alta muralha com 12 portas,
guardadas por 12 anjos.
Nas portas estavam gravados os nomes das 12 tribos dos filhos
de Israel.
Ao oriente havia três portas, ao setentrião três portas,
ao sul três portas e ao ocidente três portas.
A muralha da cidade tinha 12 fundamentos
com os nomes dos 12 apóstolos do Cordeiro.
Não vi nela, porém, templo algum,
porque o Senhor Deus Dominador é o seu templo,
assim como o Cordeiro.
A cidade não necessita de sol nem de lua para iluminar,
porque a glória de Deus a ilumina,
e a sua luz é o Cordeiro.
As nações andarão à sua luz,
e os reis da terra levar-lhe-ão a sua opulência.
As suas portas não se fecharão diariamente,
pois não haverá noite.
Levar-lhe-ão a opulência e a honra das nações.
Aquele que atesta estas coisas diz: Sim!
Eu venho depressa! Amém.
Vem, Senhor Jesus!
A graça do Senhor Jesus esteja com todos.
(Apocalipse 21,19-14.22-26; 22,20-21)
DIREÇÃO EDITORIAL

Daniele Cajueiro

EDITOR RESPONSÁVEL

Hugo Langone

PRODUÇÃO EDITORIAL

Adriana Torres

Luana Luz de Freitas

REVISÃO DE TRADUÇÃO

Juliana Pitanga

Laís Curvão

REVISÃO

Laís Curvão

Raquel Rimas

DIAGRAMAÇÃO

Elza Ramos

CAPA

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o novo livro do padre Reginaldo Manzotti. Milagres apresenta uma seleção
cuidadosa feita diretamente pelo padre a partir das Sagradas Escrituras: são
sete milagres de Jesus que podem mudar nossas vidas.Como? Conhecendo,
compreendendo e agindo.Na correria do dia a dia, estamos desatentos aos
sinais enviados pelo Criador. Eles existem, com certeza, embora nem sempre
sejam tão palpáveis quanto os milagres realizados por Jesus. Porém, são
sinais igualmente transformadores. O primeiro passo para adotarmos uma
nova atitude é doutrinar o olhar para aprender a enxergar as manifestações
divinas. Eis a missão desta que é a primeira obra da trilogia Sinais do
Sagrado.Mais do que folhear as páginas para obter informações, o que o
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ponteiros do relógio, mas no da alma sedenta por sabedoria. Faça deste livro
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Sozinho ou em grupo. Trata-se de uma proposta de leitura que alimenta a fé e
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