Vida de Cristo Fulton J Sheen
Vida de Cristo Fulton J Sheen
Vida de Cristo Fulton J Sheen
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1. Jesus Cristo - Biografia. 2. Livros eletrônicos. I. Brito, Márcia Xavier de. II. Cruz,
William Campos da. III. Título.
Volume I
Volume II
A história está repleta de homens que alegaram ter vindo de Deus, ou que
eram deuses ou que portavam mensagens divinas — Buda, Maomé, Confúcio,
Cristo, Lao-Tsé e milhares de outros até a pessoa que, hoje mesmo, fundou
uma nova religião. Cada um deles tem o direito de ser ouvido e levado em
consideração. No entanto, como é necessário um parâmetro externo e fora
daquilo que está sendo mensurado, alguns testes permanentes devem estar
disponíveis para todos os homens, de todas as civilizações e em todas as épocas,
pelos quais se possa decidir se algum desses requerentes, ou todos eles, tem
fundamento no que alegam. Esses testes são de dois tipos: razão e história.
Razão porque todos a têm, mesmo os que não têm fé; história, porque todos
nela vivem e devem saber algo a seu respeito.
A razão prescreve que, se algum desses homens verdadeiramente veio de
Deus, o mínimo que Deus poderia fazer para amparar essa alegação seria
preanunciar sua vinda. Os fabricantes de automóvel anunciam aos
consumidores quando chegará um novo modelo. Se Deus enviou alguém de
sua parte, ou se Ele Próprio veio com uma mensagem de importância vital para
todos os homens, pareceria razoável que, primeiro, Ele deixasse os homens
saber quando o seu mensageiro viria, onde nasceria e onde viveria, que
doutrina ensinaria, que inimigos faria, que programa adotaria para o futuro e
de que maneira morreria. À medida que o mensageiro se conformasse a esses
anúncios, poderíamos julgar a validade de sua alegação.
A razão também nos assegura que, se Deus não fez isso, então, nada
impediria que qualquer impostor aparecesse na história e dissesse: “Venho de
Deus” ou “Um anjo apareceu para mim no deserto e deixou-me esta
mensagem”. Em casos como esse, não existiria um modo objetivo, histórico, de
testar o mensageiro. Para isso, haveria apenas a sua palavra e, é claro, ele
poderia estar errado.
Se um visitante de um país estrangeiro chegasse a Washington e dissesse
ser diplomata, o governo pedir-lhe-ia o passaporte e outros documentos que
atestassem que ele representava determinado governo. Os documentos
precisariam ter data anterior à sua chegada. Se tais provas de identificação são
pedidas a representantes de outros países, a razão certamente deverá exigi-las de
mensageiros que alegam ter vindo de Deus. Para cada motivo do requerente, a
razão pergunta: “Que registro havia antes de seu nascimento de que você
viria?”.
Com esse teste podemos avaliar os requerentes. (E, nesse estágio
preliminar, Cristo não é maior que os outros.) Sócrates não teve ninguém para
predizer-lhe o nascimento. Ninguém preanunciou Buda e sua mensagem ou
disse o dia em que se sentaria debaixo da árvore. Confúcio não teve registrado
o nome da mãe e o local de nascimento, nem isso fora dado aos homens
séculos antes que ele aparecesse, de modo que, quando surgisse, os homens
soubessem que era um mensageiro de Deus. Entretanto, com Cristo foi
diferente. Por conta das profecias do Antigo Testamento, Sua vinda era
esperada. Não existiam profecias a respeito de Buda, Confúcio, Lao-Tsé,
Maomé ou qualquer outro; mas existiam profecias a respeito de Cristo. Os
outros simplesmente vieram e disseram: “Eis-me aqui, acreditem em mim”.
Eram, portanto, apenas homens entre homens, e não o divino no humano. Só
Cristo cruzou essa linha, ao dizer: “Buscai os escritos do povo judeu e a história
narrada pelos babilônios, persas, gregos e romanos”. (Por ora, os escritos pagãos
e até o Antigo Testamento podem ser considerados apenas como documentos
históricos, não como obras inspiradas.)
É verdade que as profecias do Antigo Testamento podem ser mais bem
compreendidas à luz de seu cumprimento. A linguagem da profecia não tem a
exatidão da matemática. Ainda assim, se examinarmos cuidadosamente as
várias correntes messiânicas no Antigo Testamento e compararmos o quadro
resultante com a vida e a obra de Cristo, podemos duvidar de que as antigas
profecias apontam para Jesus e para o Reino que ele instituiu? A promessa de
Deus aos patriarcas de que por intermédio deles as nações da terra seriam
abençoadas; a profecia de que a tribo de Judá seria a maior entre as outras
tribos hebraicas até a vinda daquele a quem todas as nações obedeceriam; o
fato estranho, mas inegável, de que na Bíblia dos judeus de Alexandria, a
Septuaginta, encontramos profetizado de maneira clara o nascimento virginal
do Messias; a profecia de Isaías 53 a respeito do sofredor paciente, o Servo do
Senhor, que entregaria sua vida como oferta expiatória pelas ofensas do povo;
as perspectivas do Reino glorioso, eterno, da casa de Davi — em quem, senão
em Cristo, essas profecias são cumpridas? Do ponto de vista estritamente
histórico, há uma singularidade que põe o Cristo à parte dos fundadores de
todas as outras religiões. E, uma vez que o cumprimento dessas profecias
ocorreu historicamente na pessoa do Cristo, não só cessaram todas as profecias
em Israel, mas houve a suspensão dos sacrifícios quando o verdadeiro Cordeiro
Pascal foi imolado.
Voltemos ao testemunho pagão. Tácito, ao falar para os antigos romanos,
disse: “As pessoas, em geral, são convencidas pela fé nas antigas profecias de
que o Oriente deve triunfar e que da Judeia há de vir o Mestre e o Senhor do
mundo”. Suetônio, no relato sobre a vida de Vespasiano, descreve, da seguinte
maneira, a tradição romana: “Era crença antiga e invariável em todo o Oriente
que, por profecias indubitavelmente acertadas, os judeus fossem alcançar o
poder supremo”.
A China tinha a mesma expectativa, mas, por estar do outro lado do
mundo, acreditava que o grande Homem Sábio nasceria no Ocidente. Os Anais
do Império Celestial apresentam a seguinte afirmação:
1 | Na tradução para o português do texto latino: “Casta Lucina, assiste ao recém-nado,/ sob
quem no mundo a férrea gente acaba”. VIRGÍLIO, Bucólicas, Polion, IV Écloga. Trad.
Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Ateliê Editorial/Editora Unicamp, 2008, v. 9-10, p.
87. (N. T.)
2
Um quarto fato distintivo é que Ele não se adequa, como outros mestres
mundiais, à categoria estabelecida de homem bom. Homens bons não mentem.
Mas, se Cristo não era de maneira alguma quem disse que era, isto é, o Filho
do Deus vivo, o Verbo de Deus encarnado, então não podia ser “só um homem
bom”; era um patife, um mentiroso, um charlatão e o maior enganador que já
viveu. Se não era quem disse que era, o Cristo, o Filho de Deus, então era o
anticristo! Se era apenas um homem, então não era um homem “bom”.
No entanto, ele não era só um homem. Ele nos teria feito adorá-Lo ou
desprezá-Lo — desprezá-Lo como um homem comum ou adorá-Lo como
verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Esta é a alternativa que Ele apresenta.
Pode acontecer de os comunistas, que são tão anticristãos, estarem mais
próximos Dele do que aqueles que O veem como um sentimentalista e um
vago reformador moral. Os comunistas ao menos concluíram que, se Ele
ganha, eles perdem; os outros têm medo de considerá-Lo vencedor ou
perdedor, porque não estão prontos para cumprir as exigências morais que esta
vitória imporia a suas almas.
Se é o que alegava ser, um salvador, um redentor, temos então um Cristo
viril e um líder digno de seguir nestes tempos terríveis; Aquele que entrará na
brecha da morte, do pecado devastador, da tristeza e do desespero; um líder
por quem podemos nos sacrificar por inteiro sem perder, mas ganhando a
liberdade, a quem podemos amar até a morte. Precisamos de um Cristo hoje
que crie laços e expulse compradores e vendedores de nossos novos templos;
que amaldiçoe a figueira infrutífera; que fale de cruzes e sacrifícios e cuja voz
seja como a de um mar tempestuoso. Ele não nos permitirá escolher entre Suas
palavras, descartando as mais difíceis e aceitando as que agradam nossa
imaginação. Precisamos de um Cristo que restaure a indignação moral, que nos
faça odiar o mal com intensidade apaixonada e amar o bem a ponto de sorver a
morte como água.
A ANUNCIAÇÃO
A VISITAÇÃO
Maria recebeu um sinal de que conceberia por obra do Espírito Santo. Sua
prima Isabel já havia concebido um filho na velhice e estava então no sexto mês
da gravidez. Maria, guardando em si o Segredo Divino, viajou vários dias de
Nazaré até a cidade de Hebrom, que, segundo a tradição, repousava sobre as
cinzas dos fundadores do povo de Deus — Abraão, Isaac e Jacó. Isabel, de
algum modo misterioso, soube que Maria trazia consigo o Messias. Perguntou
ela:
A PRÉ-HISTÓRIA DE CRISTO
O Senhor que nasceria de Maria é a única pessoa no mundo que já teve uma
pré-história; uma pré-história a ser estudada não no barro primordial e nas
selvas, mas no seio do Pai Eterno. Embora tenha aparecido como o Homem da
Caverna em Belém, pois nascera num estábulo escavado na rocha, Seu
princípio no tempo como homem não teve princípio na atemporalidade da
eternidade como Deus. Só aos poucos Ele revelou sua divindade; e isso não se
deu porque Ele cresceu na consciência da divindade; devia-se, antes, à Sua
intenção de revelar lentamente o propósito de Sua vinda.
São João, no início de seu Evangelho, narra a pré-história do Filho de
Deus:
No princípio era o Verbo,
e o Verbo estava junto de Deus
e o Verbo era Deus.
Ele estava no princípio junto de Deus.
Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito.
(São João 1,1-3)
“No princípio era o Verbo.” O que quer que haja no mundo, é feito
segundo o pensamento de Deus, pois todas as coisas pressupõem pensamento.
Cada pássaro, cada flor, cada árvore foi feita conforme uma ideia existente na
mente divina. Os filósofos gregos defendiam que esse pensamento era abstrato.
Ora, o Pensamento ou Palavra de Deus revelou-se como Pessoal. Sabedoria
revestida de personalidade. Antes de sua existência terrena, Jesus Cristo é
eternamente Deus, a Sabedoria, o Pensamento do Pai. Em sua existência
terrena, é aquele Pensamento ou Palavra de Deus que fala aos homens. As
palavras dos homens se extinguem depois de concebidas e pronunciadas, mas a
Palavra de Deus é eternamente pronunciada e jamais pode cessar de ser
pronunciada. Por Sua Palavra, o Pai Eterno imprime tudo que entende, tudo
que sabe. À medida que a mente mantém diálogo consigo mesma por meio do
pensamento, vê e conhece o mundo por intermédio deste pensamento, então o
Pai vê a si mesmo, como em espelho, na Pessoa de Sua Palavra. A inteligência
finita precisa de muitas palavras para expressar ideias; mas Deus fala de uma
vez por todas em si mesmo — uma única Palavra que atinge o abismo de todas
as coisas que são conhecidas e que se podem conhecer. Nessa Palavra de Deus
estão escondidos todos os tesouros da sabedoria, todos os segredos da ciência,
todos os projetos dos artistas, todo o conhecimento da humanidade. E este
conhecimento, comparado à Palavra, é apenas um balbucio impotente.
Na atemporalidade da eternidade, a Palavra estava com Deus. Mas houve
um momento no tempo em que Ele não apareceu da divindade, visto que
houve um momento em que um pensamento na mente do homem ainda não
havia sido pronunciado. Assim como o sol nunca fica sem brilho, também o
Pai nunca fica sem o Filho; e assim como o pensador nunca fica sem
pensamento, também, em grau infinito, a Mente Divina nunca fica sem sua
Palavra. Deus não passou eras infinitas em sublime atividade solitária. Ele tinha
uma Palavra consigo igual a si mesmo.
Tudo foi feito por ele,
e sem ele nada foi feito.
Nele havia a vida, e a vida era a luz dos homens.
A luz resplandece nas trevas,
e as trevas não a compreenderam.
(São João 1,3-5)
BELÉM
“O Verbo se fez carne.” A Natureza Divina, que era pura e santa, entrou como
princípio renovador na linha corrompida da raça de Adão, sem ser afetada pela
corrupção. Pelo nascimento virginal, Jesus Cristo se tornou atuante na história
humana sem se sujeitar ao mal que nela há.
Agora o homem não precisa esconder-se de Deus como o fez Adão; pois
Ele pode ser visto por intermédio da natureza humana de Cristo. Cristo não
obtém perfeição alguma ao tornar-se homem, nem tampouco perde algo do
que tinha como Deus. Havia a onipotência de Deus no mover de seu braço, o
amor infinito de Deus nas batidas de seu coração humano, e a compaixão
imensurável de Deus pelos pecadores em seus olhos. Deus está agora manifesto
em carne; é a isso que chamamos Encarnação. Toda a gama de atributos
divinos de poder, bondade, justiça, amor e beleza estavam nele. E, quando
Nosso Divino Senhor agia e falava, Deus em sua perfeita natureza se fazia
manifesto àqueles que O viam, ouviam e tocavam. Como mais tarde disse a
Filipe:
A Pessoa que assumiu a natureza humana não foi criada, como é o caso de
todas as demais pessoas. Sua Pessoa era a Palavra preexistente, ou Lógos. Sua
natureza humana, por outro lado, derivava da conceição miraculosa por Maria,
em que a sombra divina do Espírito e o Fiat humano, ou o consentimento da
mulher, misturaram-se tão lindamente. Este é o início da nova humanidade a
partir do material da raça decaída. Quando o Verbo se fez carne, isso não
queria dizer que ocorreu alguma mudança na Palavra Divina. O que aconteceu
não foi tanto a conversão da divindade em carne, mas a incorporação da
humanidade em Deus.
Havia continuidade com a raça decaída do homem por meio da
humanidade tomada a partir de Maria; havia descontinuidade porque a Pessoa
de Cristo é o Lógos preexistente. Cristo, desse modo, literalmente se torna o
segundo Adão, o Homem por quem a raça humana começa de novo. Seu
ensino centrava-se na incorporação da natureza humana em Si, segundo o
modo como a natureza humana que Ele tomou de Maria estava unida à Palavra
Eterna.
É difícil para um ser humano compreender a humildade que estava
envolvida no ato de o Verbo fazer-se carne. Imaginemos que fosse possível uma
pessoa despir-se do próprio corpo, e então enviar sua alma ao corpo de uma
serpente. Seguir-se-ia uma dupla humilhação: primeiro, aceitar as limitações de
um organismo serpentino, sabendo o tempo todo que sua mente era superior, e
que as presas não podiam articular de maneira adequada pensamentos que
nenhuma serpente jamais teve. A segunda humilhação seria, como resultado
desse “esvaziamento de si”, ser forçada a viver na companhia de serpentes.
Tudo isso, no entanto, é nada em comparação ao esvaziamento de Deus, pelo
qual Ele assumiu a forma de homem e aceitou as limitações da humanidade,
como fome e perseguição; tampouco foi trivial para a Sabedoria de Deus
condenar-se à associação com pobres pescadores que sabiam tão pouco. Mas
esta humilhação que começou em Belém quando Ele foi concebido pela
Virgem Maria era só a primeira de muitas, para contrabalançar o orgulho do
homem, até a humilhação final da morte na Cruz. Não houvesse Cruz, não
haveria manjedoura; não houvesse cravos, não haveria feno. Ele, todavia, não
podia ensinar a lição da Cruz como salário do pecado; Ele tinha de tomá-la.
Deus Pai não poupou Seu Filho — pois Ele amava a humanidade. Era este o
segredo envolto em faixas.
O NOME “JESUS”
O nome “Jesus” era bem comum entre os Judeus. No original hebraico, era
“Josué”. O anjo contou a José a respeito de Maria:
“PRIMOGÊNITO”
Tu és meu Filho;
eu hoje te gerei.
[E também]: Eu serei seu Pai
e ele será meu Filho.
E novamente, ao introduzir o seu Primogênito na terra, diz:
Todos os anjos de Deus o adorem.
(Hebreus 1,5-6)
A GENEALOGIA DE CRISTO
Embora sua natureza divina fosse desde a eternidade, Sua natureza humana
tinha um pano de fundo judaico. O sangue que corria em Suas veias era da
casa real de Davi por meio de Sua mãe, que, embora pobre, pertencia à
linhagem do grande rei. Seus contemporâneos chamavam-no “filho de Davi”.
O povo jamais teria consentido em considerar como Messias nenhum
pretendente que não cumprisse esta condição indispensável. Tampouco Nosso
Bendito Senhor jamais negou Sua origem davídica. Ele só afirmou que sua
afiliação davídica não explicava as relações que tinha com o Pai em Sua
Personalidade Divina.
As palavras que abrem o Evangelho de Mateus sugerem a gênese de Nosso
Senhor. O Antigo Testamento começa com a gênese do céu e da terra, quando
Deus criou todas as coisas. A genealogia que é apresentada sugere que Cristo
era “um Segundo Homem”, e não meramente um dos muitos descendentes de
Adão. Lucas, que dirigia seu Evangelho aos gentios, remontou a genealogia de
Nosso Senhor até o primeiro homem, mas Mateus, que dirigia seu Evangelho
aos judeus, o apresenta como “Filho de Davi e Filho de Abraão”. A diferença
na genealogia de Lucas e de Mateus se deve ao fato de que Lucas, escrevendo
aos gentios, teve o cuidado de mostrar uma descendência natural; enquanto
Mateus, que escrevia aos judeus, toca o natural depois do tempo de Davi, a fim
de deixar claro aos judeus que Nosso Senhor era herdeiro do Reino de Davi.
Lucas está preocupado com o Filho do Homem; Mateus, com o Rei de
Israel. Assim, Mateus abre seu Evangelho:
Mateus retrata a genealogia de Abraão até Nosso Senhor passando por três
ciclos de 14 gerações. Isso, contudo, não representa uma genealogia completa.
São mencionados 14 de Abraão a Davi, 14 de Davi ao cativeiro babilônico, e
14 do cativeiro babilônico até Nosso Bendito Senhor. A genealogia vai além do
pano de fundo hebraico para incluir alguns não judeus. Pode ter havido uma
boa razão para isso, bem como para a inclusão de outros que não tinham as
melhores reputações do mundo. Uma destas foi Raabe, que era estrangeira e
pecadora; outra foi Rute, uma estrangeira acolhida na nação; uma terceira era a
pecadora Betsabé, cujo pecado com Davi cobriu de vergonha a linhagem real.
Por que haveria manchas no brasão real, tais como Betsabé, cuja pureza
feminina estava maculada; e Rute, que, embora moralmente boa, representava
a introdução de sangue estrangeiro no grupo? Possivelmente, a fim de indicar o
relacionamento de Cristo com o maculado e com o pecaminoso, com
prostitutas e pecadores, e até mesmo com gentios que foram incluídos em sua
mensagem e redenção.
Em algumas traduções das Escrituras, a palavra usada para descrever a
genealogia é “geração”: por exemplo, “Abraão gerou Isaac, Isaac gerou Jacó”; em
outras traduções, há a expressão “foi o pai de”, como, por exemplo, “Jeconias
foi o pai de Salatiel”. A tradução não é sem importância; o que ela mostra é
que essa expressão monótona é usada ao longo de 41 gerações. Mas é omitida
quando se atinge a 42ª geração. Por quê? Por causa do nascimento virginal de
Jesus.
Mateus, ao desenhar a genealogia, sabia que Nosso Senhor não era Filho
de José. Assim, já nas primeiras páginas do Evangelho, Nosso Senhor é
apresentado como ligado ao povo que, no entanto, não o gerou totalmente.
Que ingressou no povo era óbvio; contudo, dele se distinguia.
Se havia uma sugestão do nascimento virginal na genealogia de Mateus,
então dele havia uma sugestão na genealogia de Lucas. Em Mateus, José não é
descrito como tendo gerado Nosso Senhor, e, em Lucas, diz-se de Nosso
Senhor:
Ele queria dizer que Nosso Senhor era popularmente reconhecido como
Filho de José. Combinando as duas genealogias: em Mateus, Nosso Senhor é o
Filho de Davi e Abraão; em Lucas, Ele é o Filho de Adão e a semente da
mulher que Deus prometera que esmagaria a cabeça da serpente. Homens
imorais, por Providência Divina, tornam-se instrumentos de Sua ação; Davi,
que assassinou Urias, é, no entanto, o canal pelo qual o sangue de Abraão flui
até o sangue de Maria. Havia pecadores na árvore genealógica, e Ele pareceria o
maior pecador de todos quando fosse levado à árvore genealógica da Cruz,
fazendo dos homens filhos adotivos do Pai Celestial.
CIRCUNCISÃO
Suas palavras parecem sugerir que, tão logo visse o Cristo, o aguilhão da
morte o tocaria. O ancião, tomando o Menino nos braços, exclamou com
alegria:
Simeão era como uma sentinela a quem Deus tinha enviado para vigiar a
Luz. Quando a Luz finalmente apareceu, ele já estava pronto para cantar seu
Nunc Dimittis. Em um menino pobre levado por um povo pobre a fazer uma
oferta pobre, Simeão descobriu as riquezas do mundo. Enquanto segurava o
menino nos braços, esse ancião não era como o idoso de que Horácio fala. Ele
não olha para trás, mas para a frente, e não só para o futuro de seu próprio
povo, mas para o futuro de todos os gentios de todas as tribos e nações da terra.
Um ancião no crepúsculo da vida falava da aurora do mundo; no entardecer da
vida, falava da promessa de um novo dia. Ele tinha visto o messias antes, pela
fé; agora seus olhos podiam fechar-se, pois não havia nada mais lindo que
contemplar com reverência. Algumas flores só se abrem à noite. O que ele
tinha visto agora era “Salvação” — não salvação da pobreza, mas salvação do
pecado.
O hino de Simeão foi um ato de adoração. Há três atos de adoração
descritos no início da vida do Menino Deus. Os pastores O adoraram; Simeão
e Ana, a profetisa, O adoraram; e os magos pagãos também O adoraram. O
cântico de Simeão foi como o ocaso em que uma sombra anuncia uma
substância. Foi o primeiro hino dos homens na vida de Cristo. Simeão,
enquanto se dirigia a Maria e José, não se dirigiu ao Menino. Não teria sido
adequado dar sua bênção ao Filho do Altíssimo. O Menino os abençoou; mas
ele não abençoou o menino.
Depois do hino de louvor, dirigiu-se apenas à mãe; Simeão sabia que ela,
e não José, era parente do bebê em seus braços. Viu, além disso, que tristezas
estavam reservadas a ela, e não a José. Simeão disse:
Eis que este menino está destinado a ser uma causa de queda
e de soerguimento para muitos homens em Israel,
e a ser um sinal que provocará contradições.
(São Lucas 2,34)
Foi como se toda a história do Menino Deus tivesse passando diante dos
olhos do ancião. Cada detalhe da profecia tinha de cumprir-se na vida do bebê.
Aqui estava um fato da Cruz, afirmado mesmo antes que os bracinhos do bebê
pudessem esticar-se o bastante para formar uma cruz. A Menino criaria um
conflito terrível entre bem e mal, tirando as máscaras de um e outro,
provocando assim um terrível ódio. Ele seria uma pedra de tropeço, uma
espada que separaria o mal do bem, e uma pedra angular que revelaria as
motivações e as intenções dos corações humanos. Os homens já não seriam os
mesmos, uma vez que tivessem ouvido Seu nome e aprendido de Sua vida.
Seriam impelidos ou a aceitá-Lo ou a rejeitá-Lo. Quanto a Ele, não haveria
algo como meio-termo: só aceitação ou rejeição, ressurreição ou morte. Ele
faria, por Sua própria natureza, os homens revelarem suas atitudes secretas
diante de Deus. Sua missão não seria levar as almas ao juízo, mas redimi-las; e,
ainda assim, porque suas almas eram pecaminosas, alguns homens detestariam
sua vinda.
Daí em diante Seu destino seria encontrar oposição fanática da
humanidade, mesmo até a própria morte, e isso envolveria Maria em
sofrimentos terríveis. O anjo lhe tinha dito: “Bendita sois vós entre as
mulheres”, e Simeão estava agora lhe dizendo que em sua bem-aventurança ela
seria a Mater Dolorosa. Uma das penas do pecado original era que a mulher
com dores daria à luz; Simeão agora estava dizendo que ela continuaria a viver
em dores por causa do Menino. Se Ele havia de ser o Homem das Dores, ela
seria a Mãe das Dores. Uma madona sem sofrimento de um Cristo sofredor
seria uma madona sem amor. Uma vez que Cristo amou a humanidade de tal
maneira que quis morrer para expiar-lhe a culpa, então Ele também quis que
Sua mãe estivesse envolta com as faixas da própria aflição.
A partir do momento em que ouviu as palavras de Simeão, ela jamais
voltou a erguer as mãos do menino sem ver nelas a sombra dos cravos; cada pôr
do sol seria uma imagem vermelho-sangue de Sua Paixão. Simeão estava
jogando fora a bainha que escondia o futuro dos olhos humanos, e deixando a
lâmina do sofrimento do mundo reluzir diante dos olhos de Maria. Cada
pulsação que ela sentia nos punhos da criança seria como um eco das
marteladas que estavam por vir. Se Ele estava dedicado à salvação pelo
sofrimento, ela também estava. Mal esta jovem vida lançou-se ao mar, Simeão,
como um velho marinheiro, falou de naufrágio. O cálice de amargor do Pai
ainda não tinha chegado aos lábios do bebê, e, no entanto, a espada foi
mostrada à sua mãe.
Quanto mais Cristo se aproxima de um coração, mais este se torna
consciente de sua culpa; então pedirá misericórdia e encontrará paz, ou se
voltará contra Cristo porque ainda não está pronto a renunciar ao pecado.
Assim, ele separará o bom do mau, o joio do trigo. A reação do homem à
presença divina será o teste: ou desafiará toda a oposição da natureza egoísta ou
a estimulará numa regeneração e ressurreição.
Simeão estava praticamente chamando-O de “Perturbador Divino”, que
incitaria os corações humanos ao bem ou ao mal. Uma vez confrontado com
Ele, subscreveriam ou à luz ou às trevas. Diante de todos os outros, podiam ser
“tolerantes”; mas Sua Presença revela que seu coração há de ser ou solo fértil ou
terreno rochoso. Ele não pode chegar aos corações sem esclarecê-los e dividi-
los; uma vez em Sua Presença, um coração descobre tanto os pensamentos
sobre a bondade quanto sobre Deus.
Isso jamais seria assim se Ele fosse só um mestre humanitário. Simeão
sabia disso muito bem, e disse à mãe de Nosso Senhor que o Filho haveria de
sofrer porque Sua vida seria muito oposta às máximas complacentes pelas quais
a maioria dos homens leva a vida. Ele agiria em uma alma de uma forma, e
noutra de forma diversa, como o sol brilha sobre a cera e a amolece, e brilha
sobre o barro e o endurece. Como a Luz do Mundo, Ele seria uma alegria para
os bons e amantes da luz, mas seria como um holofote penetrante para aqueles
que eram maus e preferiam viver nas trevas. A semente é a mesma, mas o solo é
diferente, e cada solo será julgado pelo modo como reage à semente. A vontade
de salvar de Cristo está limitada pela reação livre de cada alma a aceitar ou
rejeitar. Era isso que Simeão queria dizer com as seguintes palavras:
A fim de serem revelados
os pensamentos de muitos corações.
(São Lucas 2,35)
Foi-lhe dito que Jesus seria rejeitado pelo mundo e que, com a crucifixão
do Filho, se daria a própria transfixação. Como o Menino queria para Si a cruz,
também queria para ela a espada de dor. Se Ele escolheu ser o Homem das
Dores, também escolheu que ela fosse uma Mãe das Dores! Nem sempre Deus
poupa os bons da aflição. O Pai não poupou o Filho, e o Filho não poupou a
mãe. Com sua Paixão, deve haver a compaixão dela. Um Cristo sem
sofrimento que não pagasse livremente a dívida da culpa humana seria
reduzido ao nível de um guia ético; e uma mãe que não compartilhasse dos
sofrimentos do Filho seria indigna de seu grande papel.
Simeão não só desembainhou a espada; também contou a ela aonde a
Providência haveria de conduzi-la. Mais tarde, o Menino diria: “Vim trazer a
espada”. Simeão disse que ela a sentiria no coração quando o Filho fosse
erguido no sinal de contradição e ela ficaria aos pés da Cruz transfixada pela
dor. A lança que perfuraria fisicamente a lateral do corpo do Filho
misticamente lhe perfuraria o coração. O bebê veio para morrer, não para viver,
pois seu nome era “Salvador”.
OS MAGOS E A MATANÇA DOS INOCENTES
Simeão tinha previsto que o Menino Deus seria uma Luz para os gentios. Eles
já estavam em marcha. Em Seu nascimento, estariam os magos, ou os cientistas
do Oriente; em Sua morte, estariam os gregos, ou os filósofos do Ocidente. O
salmista tinha predito que os reis do Oriente viriam adorar Emanuel. Seguindo
uma estrela, vieram a Jerusalém e perguntaram a Herodes onde nascera o Rei.
Foi uma estrela que os conduziu. Deus falou aos gentios por meio da
natureza e dos filósofos; aos judeus, por meio das profecias. Era chegado o
momento oportuno para a vinda do Messias, e todo o mundo sabia disso.
Embora fossem astrólogos, o pequeno traço de verdade em seu conhecimento
das estrelas conduziu-os até a Estrela de Jacó, assim como o “Deus
desconhecido” dos atenienses mais tarde seria o pretexto para que Paulo
pregasse a eles o Deus que não conheciam, mas vagamente desejavam. Embora
vindos de uma terra que adorava as estrelas, abandonaram aquela religião
quando se prostraram e adoraram Aquele que fez as estrelas. Os gentios, no
cumprimento das profecias de Isaías e Jeremias, “vieram a Ele dos confins da
terra”. A Estrela, que desaparecera durante o interrogatório de Herodes,
reapareceu e finalmente permaneceu onde o Menino nasceu.
Ninguém que encontra Cristo de boa vontade volta pelo mesmo caminho
que veio. Confundido no propósito de matar o Divino, o tirano enfurecido
ordenou a matança indiscriminada de todos os meninos com menos de dois
anos. Há mais de uma forma de praticar o controle de natalidade.
Maria já estava preparada para a Cruz na vida do bebê, mas José,
movendo-se num nível mais baixo de consciência, precisou da revelação de um
anjo, que lhe disse para levar o menino e a mãe para o Egito.
Natanael retorquiria:
Na primeira Páscoa após Jesus ter completado 12 anos, Seus pais o levaram
para Jerusalém com outros homens de Nazaré. A lei exigia o comparecimento
de todos os homens judeus em três grandes festas: Páscoa, Pentecostes e
Tabernáculos. Quando o Menino Deus subiu ao templo, provavelmente,
seguiu, como de costume, todas as prescrições da lei judaica. Aos três anos, foi-
lhe dada uma veste de borlas;3 aos cinco, aprendeu, sob a direção da mãe,
partes da lei que eram escritas em rolos de pergaminho; aos 12, começou a usar
os filactérios4 que os judeus sempre colocam para recitar as preces diárias.
Levou vários dias para viajar nas estradas estreitas entre Nazaré e a Cidade
Sagrada. Como todos os peregrinos, a sagrada família provavelmente cantou os
salmos processionais durante a jornada, cantando o Salmo 122 (121) quando
avistaram as muralhas do templo pela primeira vez.
José deve ter ido ao templo para matar o cordeiro pascal. Já que o menino
estava na idade legal para as cerimônias do templo, deve ter assistido o sangue
do cordeiro se esvair da ferida e ser aspergido aos pés do altar nas quatro
direções da terra. A cruz estava, mais uma vez, diante de Seus olhos. O menino
também viu a carcaça do cordeiro ser preparada para a ceia. Isso foi feito,
segundo a lei, transpassando dois espetos de madeira pelo corpo, um através do
peito e outro através das patas dianteiras, de modo que o cordeiro parecia estar
em uma cruz.
Após cumprir os rituais, os homens e as mulheres partiam em caravanas
separadas, para se encontrarem novamente à noite. Entretanto, o Menino
Jesus, sem que os pais soubessem, ficou para trás, em Jerusalém. Eles,
acreditando que o Menino estava entre os companheiros de viagem,
percorreram um dia inteiro de jornada antes de dar falta dele. Foi assim que
Jesus foi “perdido” por três dias. Ao longo de toda a Sua infância houve uma
conversa de “contradição”, “espadas”, “de não ter lugar”, “exílio”, “matança” e
nesse momento houve a “perda”. Naqueles três dias, Maria veio a conhecer um
dos efeitos do pecado, a saber, a perda de Deus. Embora fosse sem pecado,
mesmo assim ela conheceu os temores e a solidão, as trevas e o isolamento que
todo pecador experimenta quando perde Deus. Foi uma espécie de esconde-
esconde glorificado. Ele era dela; por isso ela O procurou. Estava nos afazeres
da redenção, por isso Ele a deixou e foi para o templo. Ela tivera sua noite
escura do corpo no Egito; teria agora a noite escura da alma em Jerusalém. As
mães devem ser treinadas para suportar cruzes. Não só o seu corpo, mas a sua
alma, tiveram de pagar muito caro pelo privilégio de ser Sua mãe. Mais tarde,
ela sofreria uma perda de outros três dias — da Sexta-Feira Santa ao Domingo
de Páscoa. Essa primeira perda foi parte de sua preparação.
Cristo sempre é encontrado em lugares inesperados; em uma manjedoura
pelos magos; em uma cidadezinha, desprezado até mesmo pelos apóstolos. Seus
pais agora O encontraram inesperadamente no templo. Tinham se passado três
dias até que O encontrassem, exatamente como seriam três dias até Maria O
encontrar de novo após o Calvário. O templo exercia grande fascínio sobre Ele,
já que era uma pequena ilustração ou modelo do paraíso; a casa do Pai era Seu
lar e Ele se sentia em casa.
Havia uma escola no templo, em que ensinavam a uma série de rabinos; o
gentil Hillel talvez ainda estivesse vivo e deve ter estado presente no templo
para ingressar na conversa com o Menino Deus. O filho de Hillel, o rabino
Simeão e mesmo seu bisneto, Gamaliel, futuro mestre de São Paulo, devem ter
estado nesse grupo — apesar de Gamaliel, na época, ter quase a mesma idade
do Menino Deus. Anás acabara de ser indicado como sumo sacerdote e, por
certo, deveria ter ouvido algo a respeito do Menino Deus, se é que não estava
presente.
Foi nessa escola de rabinos que Maria e José O encontraram.
Ele sempre falou como alguém que estava sob ordens. Livre das coações
da hereditariedade, das circunstâncias e da família, esse menino de 12 anos
disse estar vinculado a uma missão celestial. Por esse motivo, perguntou por
que o procuravam. Surpreendeu-se que qualquer outra explicação diferente de
estar obedecendo à vontade do Pai lhes tenha ocorrido. O imperativo do Amor
Divino estava manifestado nesse “dever”. Não existe diferença fundamental
entre o Menino no templo e o Homem que disse que “deveria ser erguido” na
cruz. Teria de morrer porque queria salvar. Sua obediência filial ao Pai
coincidiu com Sua piedade para com os homens. Não seria uma tragédia, visto
que “o Filho do Homem deveria ressuscitar depois de três dias”. Seu plano era
revelado aos poucos às mentes dos homens; mas não havia revelação gradual
em Sua mente, nenhuma nova compreensão de por que deveria vir.
As coisas do Pai ao fim dos três dias no templo não eram diferentes das
coisas do Pai ao fim de três dias na sepultura. Como todos os outros incidentes
na infância, esse testemunhou a missão na Cruz. Todos os homens nascem para
viver; Ele nasceu para fazer as coisas do Pai, que era morrer e, assim, salvar.
Essas primeiras palavras registradas pareciam os brotos de uma flor de
maracujá. No domingo de Páscoa, Maria O encontraria novamente no templo
— o templo de Seu corpo glorioso.
A espada já viera a Maria antes da Cruz ter chegado ao Filho, pois ela já
sentira a separação cortante. Na Cruz, iria, em Sua natureza humana, proferir o
brado da Sua maior agonia, “Meu Deus, Meu Deus, por que me
abandonaste?”. Entretanto, Maria o proferira enquanto Ele ainda era menino,
perdido no templo. As dores da alma mais penetrantes são as que Deus impõe,
como Jesus impôs essa à mãe. As criaturas podem ferir umas às outras somente
no exterior, mas a chama purificadora de Deus pode penetrar na alma como
uma espada de dois gumes. Ambas as naturezas Dele a ensinavam a se preparar
para a vida de sofrimentos: a natureza humana, ao esconder a beleza de Sua
face durante aqueles três dias, melhor dizendo, três noites; a natureza divina, ao
proclamar que o Pai o enviara à terra para fazer as coisas do céu, que era abrir
os céus à humanidade ao pagar a dívida pelos pecados dos homens.
NAZARÉ
JOÃO BATISTA
O silêncio terrível de trinta anos foi interrompido somente pela breve cena no
templo. Chegava o momento de sair da vida privada para a pública. Porque o
acontecimento estremeceria o mundo, Lucas relaciona o aparecimento do
precursor de Nosso Senhor, João Batista, com o reinado do tirano Tibério, o
governante de Roma. Plínio, que posteriormente escreveria como historiador
romano a respeito de Cristo, era, nesse momento, uma criança de quatro anos
de idade; Vespasiano, que mais tarde conquistaria Jerusalém com seu filho
Tito, tinha 19 anos. Um dos casamentos mais importantes em Roma na época
foi o da filha de Germânico, que nove anos depois daria à luz o grande
perseguidor dos seguidores de Cristo, Nero. Em meio a essa paz romana
relativa
Muitos séculos antes, Isaías previu que o Messias seria precedido por um
mensageiro.
Mesmo antes de se encontrar com o Messias, que era seu primo, anunciou
a superioridade de Cristo:
Como poderia batizar Aquele que não tem pecado? A recusa de batizar
Jesus era o reconhecimento da ausência de pecado.
A humanidade sagrada de Cristo era o elo entre o céu e a terra. A voz dos
céus que O declarou Filho muito amado do Pai Eterno não anunciava um fato
novo ou uma nova filiação de Nosso Senhor. Simplesmente, fazia uma
declaração solene daquela filiação, existente desde a eternidade, mas que agora
começava a se manifestar em público como mediador entre Deus e o homem.
O apreço do Pai, no original em grego, é registrado no tempo verbal aoristo,5
para denotar o ato eterno de contemplação amorosa com que o Pai olha para o
Filho.
O Cristo que saiu das águas, como a terra saiu da água na criação e depois
do dilúvio, como Moisés e seu povo saíram das águas do Mar Vermelho, foi
agora glorificado pelo Espírito Santo aparecendo na forma de uma pomba. O
Espírito de Deus nunca aparece na forma de uma pomba em nenhum outro
lugar a não ser aqui. O Livro do Levítico menciona oferendas que eram feitas
segundo a posição econômica e social do doador. Um homem que pudesse
dispor traria um boi e um homem pobre ofereceria um cordeiro; porém, o mais
pobre de todos tinha o privilégio de levar pombinhas. Quando a mãe de Nosso
Senhor o levou ao templo, sua oferta foi uma pomba. A pomba era o símbolo
da gentileza e da paz, mas, sobretudo, era o tipo de sacrifício possível para as
pessoas mais pobres. Sempre que um hebreu pensava em um cordeiro ou uma
pomba, imediatamente pensava em um sacrifício pelo pecado. Assim, o
Espírito descendo sobre Nosso Senhor foi para eles um símbolo de submissão
ao sacrifício. Cristo já tinha se unido, simbolicamente, ao homem no batismo,
em antecipação à submersão nas águas do sofrimento, mas, agora, também foi
coroado, dedicado e consagrado àquele sacrifício pela vinda do Espírito. As
águas do Jordão se uniram aos homens, o Espírito o coroou e o consagrou ao
sacrifício, a voz atestou que o Seu sacrifício seria agradável ao Pai Eterno.
As sementes da doutrina da Santíssima Trindade que foram plantadas no
Antigo Testamento começaram, nesse momento, a se desenvolver. Elas se
tornariam mais claras com o passar do tempo: o Pai, o Criador; o Filho, o
Redentor; e o Espírito Santo, o Santificador. Aqui, as próprias palavras ditas
pelo Pai —, “Eis meu Filho” — foram endereçadas profeticamente ao Messias,
milhares de anos antes, no Salmo 2.
Tu és meu filho, eu hoje te gerei.
(Salmos 2,7)
2 | Alusão aos versos do poeta e místico inglês Francis ompson (1859-1907). (N. T.)
3 | Indumentária conhecida no judaísmo como talit catan e ornada de borlas ou franjas
(tsitsit), segundo o prescrito no Livro dos Números 15,37-40 que tinha por objetivo fazer
com que o cidadão israelita viesse a se lembrar da Lei de Moisés e guardar os seus
mandamentos. (N. T.)
4 | Pequenas caixas de couro quadrangulares, contendo cédulas de pergaminho com
passagens bíblicas, que os judeus trazem atadas, uma na testa e uma no braço esquerdo,
durante a oração da manhã dos dias úteis. (N. T.)
5 | Aoristos em grego quer dizer “sem limite”. É um tempo verbal que indica um passado
indefinido, indeterminado. Nas línguas comuns modernas não existe esse tempo verbal.
(N. T.)
3
O tentador era pecaminoso, mas Aquele que foi tentado era inocente.
Toda a história do mundo gira em torno de duas pessoas, Adão e Cristo. A
Adão foi dado um posto para preservar, mas ele fracassou. Portanto, sua perda
foi a perda da humanidade, pois ele era o cabeça. Quando um governante
declara guerra, os cidadãos também declaram guerra, embora eles mesmos não
façam uma declaração explícita. Quando Adão declarou guerra a Deus, o
homem também declarou guerra.
Ora, com Cristo, tudo estava novamente em jogo. Repetiu-se a tentação
de Adão. Se Deus não tivesse tomado sobre si a natureza humana, não teria
sido tentado. Ainda que Suas naturezas divina e humana estivessem unidas em
uma pessoa, a natureza divina não foi diminuída por Sua humanidade, nem a
humanidade desproporcionalmente engolida pela união com a divindade.
Porque tinha uma natureza humana, Ele podia ser tentado. Se tinha de ser
semelhante a nós em todas as coisas, teria de passar pela experiência humana de
resistir à tentação. É por isso que, na Epístola aos Hebreus, somos lembrados
de como Ele estava intimamente ligado à humanidade em Suas provações:
A PRIMEIRA TENTAÇÃO
Ao saber que Nosso Senhor estava com fome, Satanás apontou para algumas
pedrinhas negras que pareciam broas de pão e disse:
Se és Filho de Deus,
ordena que estas pedras se tornem pães.
(São Mateus 4,3)
Se és o Filho de Deus,
desce da cruz!
(São Mateus 27,40)
Satanás estava, neste momento, a dizer: “Por que tomar o caminho mais
longo e tedioso para conquistar a humanidade ao derramar Seu sangue, ao ser
elevado em uma cruz, ao ser rejeitado e desprezado, quando podes tomar um
atalho, realizando um prodígio? Já afirmastes Tua confiança em Deus. Muito
bem! Se realmente crês em Deus, desafio-Te a fazer algo heroico! Prova Tua fé,
não a lutar no Calvário em obediência à vontade de Deus, mas ao lançar-Te
daqui abaixo. Nunca conquistarás o povo para Ti ao pregar verdades sublimes
do alto dos campanários, dos pináculos e dos crucifixos. As massas não Te
seguirão; são muito inferiores. Em vez disso, reveste-Te de prodígios. Lança-Te
do pináculo e, então, para momentos antes de alcançar o chão; isso é algo que
elas conseguem apreciar. O povo quer o espetacular, não o divino. As pessoas
estão sempre entediadas! Alivia a monotonia de suas vidas e estimula os
espíritos cansados, mas deixa suas consciências culpadas em paz!”.
A segunda tentação era esquecer a Cruz e substituí-la por uma
demonstração fácil de poder, que faria com que todos acreditassem Nele de
imediato. Ao ouvir Nosso Senhor citar as Escrituras, Satanás também a cita
nesse momento. O Salvador dissera, em resposta à primeira tentação, que Deus
poderia Lhe dar o pão, caso pedisse, mas Ele não pediria se isso significasse
uma renúncia à Sua missão divina. Satanás retrucou que, se Nosso Senhor
realmente acreditasse tanto assim no Pai, deveria dar provas com um feito
ousado e dar ao Pai a oportunidade de protegê-lo. No deserto não havia
ninguém para vê-Lo realizar o milagre de transformar pedras em pão; mas em
uma grande cidade havia muitos espectadores. Se fosse um Messias, o povo
deveria ser conquistado, e o que poderia conquistá-los mais depressa que uma
demonstração de feitos maravilhosos?
A verdade que responderia essa tentação era que a fé em Deus nunca deve
contradizer a razão. O risco irrazoável nunca foi certeza da proteção divina.
Satanás queria que Deus Pai fizesse algo por Nosso Senhor que o próprio
Cristo se recusasse a fazer por Si mesmo; ou seja, torná-lo um objeto de
cuidados especiais isento da obediência às leis naturais, que já eram as leis de
Deus. No entanto, Nosso Senhor, que veio para nos apresentar o Pai, sabia que
o Pai não era apenas uma providência mecânica, impessoal, que protegeria
qualquer um, mesmo alguém que se entregara à missão divinamente prescrita
para conquistar a multidão. A resposta de Nosso Senhor à segunda tentação
foi:
E, diante de Pilatos, Jesus disse que instituiria outro reino, mas que não
seria um dos reinos oferecidos por Satanás. Quando Pilatos lhe perguntou “És
tu o rei dos judeus?”,
O reino que Satanás ofereceu era deste mundo, e não o do Espírito. Ainda
seria um reino de maldades, e os corações dos súditos não seriam regenerados.
Realmente, Satanás estava a dizer: “Vieste, Ó Cristo, para conquistar o mundo,
mas o mundo já é meu; eu To darei caso Tu transijas e me adores. Esquece Tua
cruz, Teu reino dos céus. Se queres este mundo, ele está a Teus pés. Serás
aclamado com as hosanas mais sonoras que Jerusalém jamais cantou para seus
reis; e serás poupado das dores e dos pesares da cruz da contradição”.
Nosso Senhor, sabendo que esses reinos só poderiam ser conquistados por
Seu sofrimento e morte, disse a Satanás:
Podemos conjeturar como essas palavras puras, firmes, devem ter soado a
Satanás: “Satanás, queres adoração, mas adorar-te é servir-te e servir-te é
escravidão. Não quero o teu mundo, visto que traz o fardo terrível da culpa.
Em todos os reinos que reivindicas como teus, os corações dos cidadãos ainda
anseiam por algo que tu não lhes podes dar, a saber, paz na alma e um amor
desinteressado. Não quero teu mundo, que tu mesmo não possuis.
“Também sou um revolucionário, como cantou Minha mãe no
Magnificat. Revolto-me contra ti, o príncipe do mundo. No entanto, Minha
revolução não é pela espada empunhada para conquistar pela força, mas pela
espada apontada para dentro, contra o pecado e contra todas as coisas que
geram guerras entre os homens. Primeiro vencerei o mal nos corações dos
homens e, depois, conquistarei o mundo. Conquistarei teu mundo ao penetrar
nos corações de teus fiscais de impostos desonestos, teus juízes falsos, teus
comissários e lhes redimirei da culpa e do pecado. Eu os enviarei purificados de
volta às suas profissões. Eu lhes direi que de nada adianta ganhar todo o
mundo se perderem suas almas imortais. Por hora, podes manter teus reinos.
Melhor perder todos os teus reinos, até mesmo todo o mundo, que perder uma
única alma! Os reinos do mundo devem ser elevados ao Reino de Deus; o
Reino de Deus não será arrastado ao nível dos reinos deste mundo. Tudo o que
desejo desta terra é um local grande o bastante para erigir uma cruz; ali deixarei
que me desfraldes diante das encruzilhadas de teu mundo! Deixarei que me
crave com pregos em nome das cidades de Jerusalém, Atenas e Roma, mas
ressuscitarei dos mortos, e tu descobrirás que o que parecia ter conquistado foi
esmagado, enquanto Eu marchar vitorioso nas asas da alvorada! Satanás, o que
pedes de mim é que me torne o Anticristo. Diante desse pedido blasfemo, a
paciência deve dar lugar à justa ira. ‘Vade retro, Satanás!’”.
Nosso Senhor desceu daquela montanha tão pobre quanto subira. Ao
findar a vida terrena e ressuscitar dos mortos, falaria aos apóstolos em outro
monte:
O CORDEIRO DE DEUS
Agora que dominara a tentação suprema de se tornar o rei dos homens por
encher suas barrigas, por arrebatá-los com maravilhas científicas e por fazer um
acordo político com o príncipe das trevas, Nosso Senhor estava pronto para
pôr-Se diante do mundo como a vítima sacrificial pelo pecado. Após o longo
jejum e a provação, vieram anjos e O auxiliaram. Depois disso, retornou ao rio
Jordão e misturou-Se, sem ser notado por um tempo, à multidão que cercava
João Batista. No dia anterior, João falara de Nosso Senhor para uma delegação
de sacerdotes e levitas do templo de Jerusalém que vieram perguntar-lhe:
“Quem és?”. Sabiam que chegara o tempo oportuno para a vinda do Cristo ou
do Messias, daí a pergunta objetiva. João disse-lhes, todavia, que “não era o
Cristo”. Era simplesmente uma voz a pregar a Palavra. Assim como Cristo
recusou títulos exteriores de poder, João também recusou os títulos que os
fariseus estavam dispostos a conferir-lhe, mesmo o maior de todos, de que era o
enviado de Deus.
No dia seguinte, Nosso Senhor estava no meio da multidão e João O viu
ao longe. Imediatamente, João retomou a herança simbólica e profética dos
judeus, conhecida por todos os ouvintes.
Isso significa que o Cordeiro foi morto, por assim dizer, por decreto
divino desde toda a eternidade, ainda que a realização temporal tivesse de
aguardar o Calvário. Sua morte estava de acordo com o plano eterno e a
intenção determinada de Deus. O princípio do amor que se autossacrifica,
contudo, era eterno. A redenção estava na mente de Deus antes de ser
instituída a fundação do mundo. Aquele que estava fora do tempo viu, da
eternidade, a queda dos homens no pecado e os viu ser redimidos. A própria
terra seria palco de um grande acontecimento. O cordeiro era o tipo primordial
eterno de todo sacrifício. Quando chegou a hora da Cruz e o centurião
traspassou a lança na lateral do corpo de Nosso Senhor, então se cumpriu a
profecia do Antigo Testamento.
O INÍCIO DA “HORA”
Não foi um pedido pessoal; ela já era a mediadora para todos os que
buscavam a plenitude da felicidade. Nunca foi apenas uma espectadora, mas
uma partícipe plena, disposta a envolver-se nas necessidades dos outros. A mãe
usou o poder especial que tinha como mãe sobre o filho, um poder gerado pelo
amor mútuo. Ele respondeu-lhe com aparente hesitação:
Procuraram prendê-lo,
mas ninguém Lhe deitou as mãos,
porque ainda não era chegada a Sua hora.
(São João 7,30)
Respondeu-lhes Jesus:
É chegada a hora para o Filho do Homem ser glorificado.
(São João 12,23)
6 | Neste trecho não utilizamos a versão da Bíblia Ave Maria, visto ser uma tradução
simplificada, o que impediria traduzir o comentário do Cardeal Sheen a seguir. (N. T.)
7 | No início de 1936, o Padre Ronald Knox (1888-1957) retraduziu sozinho para o inglês
a Vulgata Latina. Conhecida como Knox Bible, sua versão foi muito divulgada nos países
de língua inglesa. No original de Knox para o inglês: “Why dost thou trouble me with
that?”. (N. T.)
8 | Richard Crashaw (1613-1649) foi um poeta inglês convertido do anglicanismo ao
catolicismo e um dos principais nomes da poesia metafísica inglesa do século XVII. (N.
T.)
6
Recordaram Suas palavras, mais uma vez, enquanto Ele pendia na Cruz:
Foi assim que Ele respondeu ao pedido de um sinal. O sinal havia de ser
Sua morte e Ressurreição. Mais tarde, prometeria aos fariseus o mesmo sinal,
sob o símbolo de Jonas. Sua autoridade não seria provada somente pela morte,
seria provada pela morte e Ressurreição. A morte seria provocada pelo coração
maligno do homem e pela própria disposição de Jesus; a Ressurreição, apenas
pelo poder onipotente de Deus.
Nesse momento, Ele chamava o templo de casa do Pai. Quando foi
deixado lá, três anos depois, não o chamava mais de casa do Pai, porque as
pessoas O haviam rejeitado; ao contrário, disse:
Não era mais a casa de seu Pai, era a casa deles. O templo terreno deixou
de ser o lugar onde Deus habita ao se tornar o centro de interesses mercenários.
Sem Jesus, não era, de modo algum, um templo.
Aqui como alhures, Nosso Senhor provava ser, Ele mesmo, o único que
veio ao mundo para morrer. A Cruz não era algo que vinha ao fim de Sua vida;
era algo que pendia sobre Ele desde o início. Disse-lhes: “Destruí”; e eles Lhe
disseram: “Crucifica-o”. Nenhum templo jamais foi destruído de modo tão
sistemático quanto Seu corpo. A abóbada do Templo, Sua fronte, foi coroada
de espinhos; as fundações, seus sagrados pés, foram perfuradas por pregos; os
transeptos, suas mãos, foram estendidos em forma de cruz; o coração do Santo
dos Santos foi transpassado por uma lança.
Satanás o tentou com um sacrifício aparente ao pedir-Lhe que se lançasse
do pináculo do templo. Nosso Senhor rejeitou essa forma de sacrifício
espetacular. Entretanto, quando aqueles que poluíram a casa de Seu Pai
pediram um sinal, Ele lhes ofereceu um sinal de tipo diferente, o de Seu
sacrifício na Cruz. Satanás pediu a Jesus que se humilhasse; agora, Nosso
Senhor Santíssimo dizia que, de fato, seria humilhado pela infâmia da morte.
Seu sacrifício, contudo, não seria uma peça de exibicionismo sem sentido, mas
um ato de auto-humilhação redentora. Satanás propôs que Ele expusesse Seu
Templo à possível ruína por exibicionismo, por ostentação, mas Nosso Senhor
expôs o templo de Seu corpo a certa ruína pela salvação e expiação. Em Caná,
disse que ia ao encontro de Sua “hora”; no templo, disse que a hora da Cruz
levaria à sua Ressurreição. Sua vida pública cumpriria o padrão dessas profecias.
Nota
9 | Em valores atualizados, $2.50 dólares no ano em que foi escrito o livro (1958)
equivalem hoje (2017) a $8.50. (N. T.)
7
Jesus não deu muito destaque ao fato de não ser bem recebido no templo que
era a casa de Seu Pai. O templo terreno desapareceria, e Ele, o verdadeiro
templo em que Deus habitava, surgiria, novamente, em glória. Naquele
momento, limitou-Se a provar que era o Messias pregando e operando
milagres. Durante esses poucos dias, fez muito mais milagres do que foi
registrado; e o Evangelho afirma que muitos, ao ver os milagres que Ele fazia,
creram Nele. Um dos membros do Sinédrio admitiu não só que os milagres
eram autênticos, mas também que Deus estava com Ele e operava tais sinais.
Acompanhou-o Nicodemos
(aquele que anteriormente fora de noite ter com Jesus),
levando umas cem libras de uma mistura de mirra e aloés.
(São João 19,39)
Essa não foi a única vez que Nosso Senhor falou de Sua nova Ascensão
aos céus ou referiu-Se ao fato de que tinha vindo dos céus. Para um dos
apóstolos, disse:
Nessa noite, quando um ancião veio ter com o mestre divino que
assombrou o mundo com milagres, Nosso Senhor contou a história de Sua
vida. Foi uma vida que não começou em Belém, mas que existiu desde sempre
na divindade. Ele era o Filho de Deus que se tornou Filho do Homem, porque
o Pai O enviou na missão de redimir o homem por amor.
Se há algo que um bom mestre deseja, é uma vida longa para tornar
conhecido seu ensinamento e adquirir sabedoria e experiência. A morte é
sempre uma tragédia para um grande mestre. Quando foi dado a Sócrates o
suco de cicuta, sua mensagem foi, de uma vez por todas, rompida. A morte foi
uma pedra de tropeço para Buda e seu ensinamento das oito vias. O último
suspiro de Lao-Tsé cerrou a cortina de sua doutrina no que se referia ao Tao ou
ao “nada fazer” contra a autodeterminação agressiva. Sócrates ensinara que o
pecado era devido à ignorância e que, portanto, o conhecimento tornaria o
mundo bom e perfeito. Os mestres orientais se preocupavam com o homem
ficar enredado em alguma grande roda do destino. Daí a recomendação de
Buda de que o homem fosse ensinado a esmagar os desejos e, assim, encontrar
a paz. Quando Buda morreu, aos oitenta anos, não apontou para si, mas para a
lei que tinha deixado. A morte de Confúcio estancou seus ensinamentos
morais sobre como aperfeiçoar o Estado por intermédio de relações gentis
recíprocas entre o príncipe e o súdito, o pai e o filho, entre irmãos, marido e
mulher, e entre amigos.
Na conversa com Nicodemos, Nosso Senhor proclamou a Si mesmo
como a Luz do Mundo. No entanto, a parte mais surpreendente de Seu
ensinamento era dizer que ninguém O compreenderia enquanto estivesse vivo,
e que Sua morte e Ressurreição seriam essenciais para essa compreensão.
Nenhum outro mestre no mundo jamais disse que sofreria uma morte violenta
para esclarecer seu ensinamento. Eis um mestre que tornou Seu ensino
secundário a ponto de afirmar que o único caminho possível para atrair os
homens a si não era sua doutrina, nem aquilo que disse, mas sua crucifixão.
SALVADOR DO MUNDO
Era incomum que uma mulher no Oriente viesse no calor do dia retirar
água. A razão para esse comportamento incomum será descoberta um pouco
mais tarde. Nada em sentido terreno era mais fortuito do que uma mulher
levando um jarro de água a um poço; ainda assim, foi uma dessas providências
cotidianas de Deus, que ajudam a desvendar o enigma de uma alma. Ela não
sabia do grande favor que estava à sua espreita. Ele estava lá primeiro. Como
escreveu Isaías:
Mantive-me à disposição das pessoas que não me consultavam.
(Isaías 65,1)
Foi Nosso Senhor quem encontrou Zaqueu, não Zaqueu a Ele; Paulo
também foi encontrado quando não estava procurando seu Senhor. O poder de
atração do Mestre Divino foi enfatizado mais tarde:
Conforme enchia o jarro, ela já devia ter tentado evitar Nosso Bendito
Senhor, pois reconhecera Nele a fisionomia de um judeu, com quem os
samaritanos nada tinham em comum. Mas, para sua surpresa, o estrangeiro ao
lado do poço dirigiu-se a ela com um pedido:
Dá-me de beber.
(São João 4,7)
Sempre que queria fazer um favor, Nosso Senhor começava pedindo um.
Ele não começou com uma reprovação, mas com um pedido. Sua primeira
palavra foi “Dá-me!”. Sempre deve haver um esvaziamento do humano antes
que possa haver um preenchimento com o divino, assim como o divino
esvaziou-se a Si mesmo para preencher-se do humano. A água, um assunto
proeminente nos pensamentos dela, tornou-se o denominador comum entre o
sem pecado e a pecadora.
Aqui estava Sua filosofia de vida. Toda satisfação humana dos desejos do
corpo e da alma têm um defeito; não se satisfazem para sempre. Servem apenas
para aplacar a necessidade presente; mas nunca a extinguem. O desejo sempre
brota novamente. As águas que o mundo dá voltam à terra outra vez; mas a
água da vida que Ele dá é um impulso sobrenatural e impele em direção ao
próprio céu.
Nosso Bendito Senhor não tentou desapropriar as cisternas rotas do
mundo sem oferecer algo melhor. Ele não condenou os rios terrenos nem os
proibiu; só disse que, se ela se limitasse aos poços da felicidade humana, jamais
seria plenamente satisfeita.
Ela não conseguia entender a graça ou o poder celestial sob a analogia da
água para o corpo; pois havia muito ela saciara a sede nas águas turvas da
gratificação sensual. Ela prossegue:
Ela já não o chama “judeu” nem “homem”, mas “Senhor”. Ainda havia
confusão na mente da mulher, pois imaginava que a promessa Dele a isentaria
do enfado de ir até o poço. Nosso Senhor falou do alto do entendimento
espiritual; a mulher, das profundezas do conhecimento sensível. As janelas de
sua alma tinham se tornado sujas com o pecado, de modo que ela não podia
ver o significado espiritual no universo material.
Nosso Bendito Senhor, vendo que ela não compreendia a lição espiritual,
agora pôs em evidência o motivo por que ela não entendia o que Ele queria
dizer: a vida dela era imoral. Penetrou na consciência dela com uma mudança
brusca de assunto:
Esta foi uma confissão honesta e verdadeira até então; mas não foi longe o
bastante. Ela pedira água viva, mas não sabia ainda que o poço deve primeiro
ser cavado. Na profundeza do espírito da mulher havia a potência para o dom
Dele; mas as águas da graça não podiam fluir por causa das rochas duras do
pecado, das muitas camadas de transgressão, os hábitos terríveis como solo
argiloso, e os diversos depósitos de pensamentos carnais. Tudo isso tinha de ser
escavado antes que se pudesse ter água viva. O pecado tinha de ser confessado
antes que se pudesse obter a salvação. A consciência precisa vir à tona. Com a
habilidade de mestre, Nosso Senhor estava expondo a ela toda a conduta
devassa e, como o clarão de um relâmpago, despertando nela o senso de culpa
na consciência.
Nosso Senhor respondeu:
O homem com quem ela estava morando não era seu marido; ela havia
caído tão fundo na degradação que não passou pela sanção jurídica do
casamento pela qual, em outros tempos, teria passado.
A mulher sentiu que Nosso Senhor estava “intrometendo-se”. Ele estava
sondando-lhe a moral e o comportamento e concluindo que não podia receber
o dom que Ele tinha a dar por causa de seu modo de vida. Ela então fez o que
milhões de pessoas fazem quando a religião exige uma reforma de conduta:
mudou de assunto. Ela estava disposta a fazer da religião objeto de discussão,
mas não queria fazer dela uma questão de decisão. Nosso Bendito Senhor tinha
trazido à tona o assunto sobre a ordem moral, isto é, o modo como ela se
conduzia pessoalmente diante de Deus e de sua consciência. Para evitar o
problema moral, ela primeiro tentou a lisonja, depois incluiu um problema
especulativo:
Ela ainda não lhe dera o título de “Messias”, mas faria o reconhecimento
em um instante. Os samaritanos conheciam o Antigo Testamento o suficiente
para saber que Deus enviaria seu Ungido; mas, em sua religião pervertida, Ele
era meramente um profeta, assim como para os judeus, em seu entendimento
pervertido, era um rei político. A declaração dela equivalia a dizer que ela
esperava o Prometido de Deus. Em resposta à fé frágil, Nosso Senhor
respondeu:
Aqui estava o novo título dado a Nosso Senhor. Agora Ele era o “Cristo”.
Ela começou com um convite urgente. A mulher não dizia que Ele lhe tinha
dito tudo que se relacionava à adoração a Deus; mas todas as coisas que ela
tinha feito, até mesmo as próprias faltas que preferiria esconder. O sol não
brilha antes de nascer; o fogo não arde antes de acender-se; assim também a
graça age quando a alma coopera. Ela se tornou uma das primeiras missionárias
domésticas na história do cristianismo.
Essa mulher contou o que esperariam que escondesse. Ela foi buscar água
e, quando encontrou o Verdadeiro Poço, deixou para trás o jarro com água
assim como os apóstolos abandonaram as redes.
Nosso Senhor, também, nessa ocasião, esqueceu Sua fome, e quando os
apóstolos O instaram a comer, disse-lhes que tinham uma comida que eles não
conheciam (São João 4,34).
Vale notar que a mulher samaritana contou aos homens de seu encontro
com Cristo. Pode muito bem ter acontecido que as mulheres na cidade não
quisessem associar-se a ela. É por isso que foi ao poço ao meio-dia; as outras
iam no frescor da manhã ou à noite. Aparentemente porque as mulheres
tinham-na marginalizado, ela transmitiu a mensagem primeiro aos homens. E
evidentemente fez um trabalho bem feito na vila, pois o Evangelho nos diz:
Essa foi a primeira vez que a frase “Salvador do mundo” foi usada para
descrever Nosso Senhor. O crescimento espiritual da mulher agora estava
completo. No início, Cristo era para ela um “judeu”; depois, um “homem”; em
seguida, “senhor”; então, um “profeta”; depois, “o Messias” e, enfim, “o
Salvador do mundo” e “redentor do pecado”. A conversão pode ser rápida para
alguns, mas não estava completa nessa mulher até que ela viu que Nosso
Senhor não veio para salvar justos, mas pecadores. Nenhum milagre físico foi
realizado; nenhuma cura, nenhum cego voltou a enxergar. A maravilha deu-se
em uma alma pecaminosa. Da libertação do pecado veio o título mais glorioso.
A Cruz não foi mencionada, mas Aquele que seria levado ao madeiro estava
claramente mencionado: “Salvador do mundo”. A Cruz estava com Ele por
toda parte bem antes de ser pregado nela.
Em contraste com essa mulher estavam os fariseus. Eles negavam o
pecado, mas tinham todos os efeitos do pecado: terror, angústia, medo,
infelicidade e vazio; ao negar a causa, tornavam a cura impossível. Se os
famintos negam a fome, quem será o portador do pão? Se os pecadores negam
o pecado e a culpa, quem lhes será o Salvador? Desses fariseus presunçosos e
orgulhos, disse Nosso Senhor:
Apesar de ter vindo para morrer, não veio por causa da morte. Por isso,
sempre que há um sofrimento, uma morte ou mesmo quando é mencionada
uma humilhação, há sempre o contraponto da glória, da vitória ou da
exaltação. A divindade reluz sempre que a sua natureza humana é humilhada.
A relação intrínseca perpassa toda a sua vida. Se nasceu de uma donzela
humilde em um estábulo, havia anjos dos céus para anunciar Sua glória; se Ele
Se rebaixou à companhia de um boi e um asno em uma manjedoura, havia
uma estrela brilhante para guiar os gentios até Ele como um rei; se teve fome e
foi tentado no deserto, havia anjos para O assistir; se se verteu Seu sangue no
Getsêmani, foi porque o Pai Celeste estendeu-Lhe o cálice; se foi preso porque
chegara a Sua hora, havia 12 legiões de anjos para liberá-Lo caso não desejasse
oferecer a vida pelos homens; se Se humilhou como pecador para receber o
batismo de João, havia a voz do céu para proclamar a glória do Filho Eterno
que não precisava de purificação; se havia citadinos para rejeitá-Lo e lançá-Lo
de um penhasco, havia o poder divino para andar entre eles ileso; se foi
pregado a uma cruz, havia o sol para esconder a face envergonhado e a terra
para estremecer em revolta ao que as criaturas fizeram com seu criador; se foi
posto no sepulcro, havia anjos para proclamar Sua Ressurreição.
O que torna a vida de Cristo única é Ele ter condicionado a instituição de
Seu Reino na terra e no céu ao sofrimento e à morte. Sua vitória sobre o mal,
ao absorver o pior que o mal poderia fazer, tinha, para ele, um caráter
representativo e secundário. Citando Isaías, disse que viria a ser “contado entre
os malfeitores” (Isaías 53,12). Entretanto, sua vitória sobre a morte, por
intermédio da Cruz, passaria para os homens que reproduziriam a experiência
de carregar a cruz em suas vidas.
A Cruz estava em todos os lugares da vida de Cristo. Não podia falar
abertamente a esse respeito, pois, quando o fez, mesmo os amigos mais
próximos, os apóstolos, não captaram o significado. O primeiro anúncio
público de que veio para morrer foi instigado pelos fariseus ao discutirem com
ele a questão do jejum. Os fariseus haviam reclamado com os discípulos que
Nosso Senhor comia e bebia com companhias muito questionáveis. Ao se
afiliarem, no momento, às práticas de jejum de João Batista, reclamaram que
Nosso Senhor e os discípulos estavam comendo, ao passo que os discípulos de
João jejuavam. Uma pessoa devota em Israel jejuava duas vezes na semana, a
saber, às segundas e sextas-feiras, que criam ser os dias em que Moisés subiu ao
Monte Sinai. Aparentemente, Nosso Senhor não estava jejuando com os
discípulos da mesma maneira que João Batista jejuava. Isso foi o bastante para
que, mais tarde, os fariseus o chamassem de glutão e beberrão. A resposta que
Nosso Bendito Senhor deu à pergunta de por que os discípulos não jejuavam
foi muito mais profunda do que aparenta à primeira vista.
Os ouvintes sabiam o que estava a dizer, que Ele era Deus; ele era o
senhor a quem Israel desposara. Tomou o lugar do Deus do Antigo
Testamento, reivindicando os mesmos direitos e privilégios. Nosso Senhor fez
outras referências a Si mesmo como esposo na parábola do banquete para o
filho do rei (São Mateus 22,1-14) e na parábola das dez virgens em que o
esposo que vinha era Ele mesmo (São Mateus 25,1-13). João Batista, antes,
quando viu Nosso Senhor, também reconheceu o Cristo sob a personagem do
esposo do Antigo Testamento:
11 | No original: “I think this is the authentic sign and seal/ Of godship; that it ever waxes
glad/ And more glad, until gladness blossoms, bursts/ Into a rage to suffer for mankind.”
(N. T.)
10
A ESCOLHA DOS 12
É
É evidente que, desde o início, Nosso Bendito Senhor pretendia estender
Seu magistério, Seu reino e Sua própria vida “até a consumação do mundo”;
mas, para fazer isso, teve de chamar um conjunto de homens a quem
transmitiria certos poderes que trouxera consigo para a terra. Esse grupo não
seria uma organização social, como um clube, unido apenas por prazer e
conveniência; tampouco seria uma organização política, reunida por interesses
materiais em comum; seria uma organização verdadeiramente espiritual, o
cimento daquilo que seria caridade, amor e posse de Seu Espírito. Se a
sociedade ou Corpo Místico que Nosso Senhor queria fundar havia de ter
continuidade, precisaria de um cabeça e de membros. Se era uma videira, como
Ele declarou em uma das parábolas, precisaria de trabalhadores; se era uma
rede, precisaria de pescadores; se era um campo, precisaria de ceifeiros; se era
um rebanho ou um bando, precisaria de pastores.
Ele escolheu passar a noite anterior em oração no monte, para que aqueles
que estivessem no coração do Pai estivessem também no Dele. Quando raiou o
dia, desceu para onde os discípulos estavam reunidos e, um por um, chamou
aqueles a quem tinha escolhido. Pedro é o mais conhecido. Pedro é
mencionado 195 vezes; os demais apóstolos, 130 vezes. O segundo apóstolo
mais mencionado, depois de Pedro, é João, a quem há 29 referências. O nome
original de Pedro era Simão, mas foi mudado por Nosso Bendito Senhor para
Cefas. Quando foi levado a Nosso Senhor:
[...] Jesus, fixando nele o olhar, disse:
Tu és Simão, filho de João;
serás chamado Cefas (que quer dizer pedra).
(São João 1,42)
Simão, dormes?
(São Marcos 14,37)
Que procurais?
(São João 1,38)
André tinha sido amigo de João Batista. Quando encontrou Nosso
Senhor, de quem João Batista falava, imediatamente foi e contou a Pedro que
encontrara o Messias. Sempre se fala de André como o irmão de Simão Pedro.
Ele era um “apresentador”, porque apresentou o irmão Pedro a Nosso Senhor;
apresentou o rapaz com os pães e peixes a Nosso Senhor; e, por fim, com
Filipe, chegou a apresentar os gregos a Nosso Senhor. Quando se trata de
dispensar alguns benefícios do Senhor ou trazer outros ao Senhor, Filipe e
André são mencionados juntos. André era mais calado, sendo ofuscado pelo
irmão Pedro, mas aparentemente jamais teve ciúmes. Houve lugar para a inveja
quando Pedro, Tiago e João foram escolhidos nas três ocasiões de intimidade
com o Mestre Divino, mas aceitou a posição humilde; bastava-lhe ter
encontrado a Cristo.
Assim como Pedro e André, Tiago e João eram irmãos e pescadores.
Trabalhavam juntos para o pai, Zebedeu. A Salomé, sua mãe, aparentemente
não faltava ambição; pois foi ela que, um dia, pensando que o Reino que
Nosso Bendito Senhor viera estabelecer seria sem Cruz, pediu que os dois
filhos se sentassem um à direita e o outro à esquerda de Nosso Senhor em Seu
Reino (São Mateus 20,20-21). Num gesto louvável, entretanto, deve-se
acrescentar que a encontramos novamente no Calvário, aos pés da Cruz. Nosso
Bendito Senhor deu aos filhos dela um apelido — Boanerges, ou “filhos do
trovão”. Isso aconteceu quando os samaritanos recusaram-se a receber Nosso
Bendito Senhor porque Ele Se encaminhava para Jerusalém e para a morte. Os
dois apóstolos, descobrindo isso, manifestaram a Nosso Senhor sua
intolerância:
Filipe fez uma última pesquisa na noite da Última Ceia, quando pediu a
Nosso Senhor que lhe mostrasse o Pai.
Filipe levou Bartolomeu, ou Natanael, como também era chamado, até
Nosso Bendito Senhor. Tão logo o viu, Nosso Divino Salvador leu-lhe a alma e
descreveu-o do seguinte modo:
Aquele que tinha sido rico agora não teria nada além de pobreza e
perseguição; e, ainda assim, aceitou esta condição já no primeiro chamado.
“Vem”, diz o Salvador a um homem desprezado, e este O segue imediatamente.
Sua resposta era ainda mais notável porque estivera imerso num negócio que
atraía sobretudo pessoas inescrupulosas e antiéticas. Já era muito ruim o tributo
de reverência de Israel ser coletado por um romano, mas ser coletado por um
judeu era fazer deste o mais desprezível dos homens. E, ainda assim, este
Quisling que perdera o direito a todo o amor do país, e que sufocara a virtude
do patriotismo em sua avidez por dinheiro, acabou por tornar-se um dos mais
patriotas de seu povo. O Evangelho que escreveu pode ser descrito como o
evangelho do patriotismo. Centenas de vezes em seu Evangelho, volta à história
do passado, citando Isaías, Jeremias, Miqueias, Davi, Daniel e todos os
profetas; depois de acumular citações uma sobre a outra num grande
argumento cumulativo, diz a seu povo: “Esta é a glória de Israel, esta é nossa
esperança, geramos o Filho do Deus Vivo; demos ao mundo o Messias”. Seu
país, que outrora nada significava para ele, tornou-se, em seu Evangelho, algo
da mais alta importância. Ele estava se declarando um filho de Israel, pronto
para despejar abundantemente sobre sua terra todo o seu louvor. Assim como
os homens amam a Deus, também amarão seu país.
Tomé era o pessimista dos apóstolos, e provavelmente o pessimismo tinha
algo a ver com seu ceticismo. Quando Nosso Senhor tentou consolar os
apóstolos, na noite da Última Ceia, garantindo-lhes que lhes prepararia o
caminho para o céu, Tomé respondeu dizendo que queria acreditar, mas não
conseguia. Mais tarde, quando chegou a Nosso Senhor a notícia de que Lázaro
estava morto:
Tiago, que como todos os demais apóstolos não entendeu a Cruz quando
Nosso Senhor a previu, mais tarde, também como os outros, veio a fazer da
cruz uma condição de glória:
AS BEM-AVENTURANÇAS
Eu, porém, vos digo: todo aquele que rejeita sua mulher,
a faz tornar-se adúltera, a não ser que se trate de matrimônio
falso;
e todo aquele que desposa uma mulher rejeitada comete um
adultério.
(São Mateus 5, 32)
O que importa se o corpo for perdido? A alma ainda está ali e isso vale
mais do que a sensação que o corpo pode proporcionar, ainda mais que o
próprio universo. Ele manteria puros, homem e mulher, não do contágio, mas
do desejo de outro; imaginar uma traição já é, em si, traição. Então, declarou:
Por que dar a outra face? Porque o ódio se multiplica como uma semente.
Se alguém pregar o ódio e a violência para uma fileira de dez homens e dizer ao
primeiro para bater no segundo e, ao segundo, para golpear o terceiro, o ódio
envolverá todos os dez. A única maneira de parar esse ódio é se um homem
(digamos, o quinto da fila) der a outra face. Então o ódio cessa e não é
transmitido. Absorver a violência por amor ao Salvador, que absorverá o
pecado e morrerá por isso. A lei cristã é que o inocente deve sofrer pelo
culpado.
Assim, ele quer que acabemos com os adversários porque, quando não é
oferecida resistência, o adversário é vencido por um poder moral superior; tal
amor evita a infecção na ferida do ódio. Suportar por um ano o persistente que
o aflige durante uma semana; escrever uma carta gentil para um homem que se
refere a você com palavras obscenas; oferecer presentes a quem o rouba; nunca
revidar com ódio ao que mente e diz que você é desleal com seu país ou conta
uma mentira pior, que você é contra a liberdade — essas são coisas difíceis que
o Cristo veio ensinar e são tão apropriadas à época Dele quanto à nossa. São
apropriadas somente para os heróis, para os grandes homens, os santos, os
homens e mulheres santos que serão o sal da terra, o fermento na massa, a elite
em meio à turba, a espécie que transformará o mundo. Se determinadas
pessoas não são dignas de ser amadas e alguém lhes dá amor, elas se tornarão
dignas de amor. Por que alguém é digno de ser amado — se não é por Deus
infundir Seu amor em cada um de nós?
O Sermão da Montanha se desvia muito daquilo tudo que nosso mundo
valoriza, e o mundo crucificará quem quer que tente viver segundo esses
valores. Por tê-los pregado, Cristo tinha de morrer. O Calvário foi o preço pago
pelo Sermão da Montanha. Somente a mediocridade sobrevive. Os que
chamam preto de preto e branco de branco são sentenciados por intolerância.
Só sobrevive o cinza.
Deixemos Aquele que diz “bem-aventurados os pobres de espírito” vir ao
mundo que acredita no primado do econômico; deixemos que fique no
mercado, onde alguns homens vivem para o lucro coletivo ou onde outros
homens vivem para o lucro individual e vejamos o que acontece. Será tão
pobre durante a vida que não terá onde repousar a cabeça; virá o dia em que
morrerá sem nada de valor econômico. Na sua última hora, estará tão
empobrecido que o despirão das próprias vestes e dar-lhe-ão a tumba de um
estranho para Seu sepultamento, assim como nascera no estábulo de um
desconhecido.
Deixemos que venha ao mundo que proclama o evangelho do forte.
Deixemos que defenda o ódio aos inimigos e condene as virtudes cristãs como
virtudes “brandas”, e diga ao mundo “bem-aventurados os pacientes” e, um
dia, sentirá os flagelos dos bárbaros vigorosos açoitarem Suas costas; será
golpeado na face por um punho zombeteiro durante um de Seus julgamentos;
verá os homens tomarem a foice e cortar a grama de uma encosta do Calvário
e, então, usar o martelo para pregá-Lo em uma cruz de modo a testar a
paciência Daquele que suporta o pior que o mal tem a oferecer e que, tendo-se
exaurido, poderia, por fim, voltar a amar.
Deixemos que venha ao mundo que ridiculariza a ideia do pecado como
morbidez, considera a reparação das culpas passadas como um complexo de
culpa, e pregue ao mundo “bem-aventurados os que choram” por seus pecados;
e Ele será vendado e escarnecido como um tolo. Tomarão Seu corpo e o
flagelarão até os ossos serem contados; coroarão Sua cabeça com espinhos até
que comece a chorar não lágrimas salgadas, mas gotas de sangue carmesim,
enquanto riem da fraqueza Daquele que não descerá da cruz.
Deixemos que venha ao mundo que nega a verdade absoluta, que diz que
o certo e o errado são somente questões de ponto de vista, que devemos ter a
mente aberta a respeito da virtude e do vício e deixemos que lhes diga: “bem-
aventurados os que têm fome e sede de santidade”, ou seja, a busca do
absoluto, a busca da verdade que “eu sou”; e eles, com suas mentes abertas,
darão à multidão a escolha entre Ele e Barrabás; eles O crucificarão com os
bandidos e tentarão fazer o mundo acreditar que Deus não é diferente de um
punhado de ladrões, Seus companheiros na morte.
Deixemos que venha ao mundo que diz “o inferno são os outros”,15 que
tudo o que se opõe a mim é nada, que só o ego importa, que minha vontade é
a lei suprema, que o que decido é bom e devo esquecer-me dos outros e pensar
somente em mim e diga-lhes: “bem-aventurados os misericordiosos”. Ele
descobrirá que não receberá misericórdia; abrirão cinco veios de sangue em Seu
corpo; porão vinagre e fel em Sua boca sedenta e, mesmo depois da morte,
serão demasiado impiedosos, a ponto de introduzir uma lança em Seu Sagrado
Coração.
Deixemos que venha a um mundo que tenta interpretar o homem à luz
do sexo; que vê a pureza como frigidez; a castidade como sexo frustrado, o
domínio próprio como anormalidade e a união entre homem e mulher até que
a morte os separe como tediosa; que diz que o casamento perdura somente
enquanto as glândulas funcionarem, que a pessoa pode desunir o que Deus
uniu e tirar o selo daquilo que Deus selou. Que lhes diga: “bem-aventurados os
puros”, e Ele se verá pendido, nu, em uma cruz; será tornado espetáculo aos
homens e aos anjos na última afirmação insana e solitária de que a pureza é
anormal, que as virgens são neuróticas e que a carnalidade é o correto.
Deixemos que venha a um mundo que acredita que devemos recorrer a
todo o tipo de imposturas e duplicidades para conquistá-lo, portando pombas
da paz com os ventres cheios de bombas e lhes diga:16 “bem-aventurados os
pacificadores” ou “bem-aventurados os que erradicam o pecado para que haja a
paz” e ver-se-á cercado de homens ocupados da mais tola das guerras — a
guerra contra o Filho de Deus; praticando a violência com ferros e porretes,
manietes e escoriações e, então, montando guarda diante de Sua tumba de
modo que Ele, que perdera a batalha, não pudesse ter sucesso.
Deixemos que venha a um mundo que acredita que toda a vida deva ser
engendrada em torno de lisonjas e da capacidade de influenciar pessoas por
conta da utilidade e da popularidade e Ele lhes diga: “bem-aventurados sereis
quando vos odiarem, vos perseguirem e vos injuriarem” e Ele descobrirá não ter
amigo algum no mundo, um pária na colina, com multidões bradando por Sua
morte e a carne pendendo de Seu corpo como farrapos purpúreos.
As bem-aventuranças não podem ser consideradas de maneira isolada: não
são ideais, são fatos concretos e realidades inseparáveis da Cruz do Calvário. O
que Ele ensinou foi a autocrucifixão: amar os que nos odeiam; arrancar os
olhos e cortar os braços para evitar o pecado; estar limpos por dentro quando
as paixões clamam por satisfação externa; perdoar os que nos condenam à
morte; derrotar o mal com o bem; abençoar os que nos amaldiçoam; parar de
falar de liberdade até que tenhamos a justiça, a verdade e o amor de Deus em
nossos corações como condições de liberdade; viver no mundo e ainda manter-
nos impolutos; negar-nos prazeres legítimos para melhor crucificar nosso
egoísmo — tudo isso sentencia nosso velho homem, que está dentro de nós, à
morte.
Aqueles que O ouviram pregar as beatitudes foram convidados a se
colocar em uma cruz, a encontrar felicidade em um nível superior pela morte
em uma ordem inferior, a desprezar tudo o que o mundo considera sagrado e a
venerar como sagrado tudo o que o mundo considera como ideal. O paraíso é
felicidade; mas é demais para o homem possuir dois paraísos, um substituto em
baixo e um verdadeiro em cima. Por isso os quatro “pesares” que
imediatamente acrescentou às bem-aventuranças.
Mas ai de vós, ricos, porque tendes a vossa consolação!
Ai de vós, que estais fartos, porque vireis a ter fome!
Ai de vós, que agora rides, porque gemereis e chorareis!
Ai de vós, quando vos louvarem os homens,
porque assim faziam os pais deles aos falsos profetas!
(São Lucas 6,24-26)
A crucifixão não pode estar longe quando o mestre diz “ai de vós” os ricos,
os fartos, os felizes e os populares. A verdade não está só no Sermão da
Montanha; está naquele que viveu o Sermão da Montanha no Gólgota. Os
quatro pesares seriam condenações éticas, caso Ele não tivesse morrido cheio
daquilo a que se opunham os quatro pesares: pobre, abandonado, triste e
desprezado. No monte das bem-aventuranças ordenou que os homens se
lançassem na cruz da autonegação; no monte do Calvário abraçou essa mesma
cruz. Apesar da sombra da Cruz não se projetar sobre o local da caveira até três
anos depois, ela já estava em seu coração no dia em que pregou a respeito de
“como ser feliz”.
Notas
15 | Alusão à frase de Jean Paul Sartre publicada na peça Entre quatro paredes. (N. T.)
16 | Possível alusão ao fato de Josef Stálin ter encomendado a Pablo Picasso um quadro
intitulado “A pomba da paz”. (N. T.)
12
Como Simão sabia que ela era uma mulher da rua? Ao julgar o outro,
julgava-se a si mesmo. Aos olhos de Simão, ela era uma pecadora e sempre seria
considerada uma pecadora. Para ele, havia abominação em seu toque, pecado
em suas lágrimas e mentira em seu unguento. O fariseu não fazia perguntas,
não se dava a esperanças. Para ele, pouco importava se foi um desejo
depravado, a fome ou a lascívia dos homens que levaram a mulher à ruína.
Pouco importava se ela acordava à noite por causa de sua consciência pesada e
se se condenava mil vezes por fazer aquilo que sabia que não lhe traria paz. E,
quanto ao Cristo, se tivesse alguma intuição acerca do caráter humano, saberia
que ela era uma prostituta.
Nosso Senhor leu os pensamentos de Simão, assim como também leria
um dia a alma dos vivos e dos mortos. Disse-lhe:
Disse Simão:
Diga, Mestre.
O que Nosso Senhor quis dizer quando disse a Simão: “Vês esta mulher?”.
Queria dizer que Simão não podia ver a mulher como realmente era, mas
apenas como ela costumava ser, ou a mulher que pensava que ela era. Simão
tinha dito dentro de si que, se fosse profeta, Nosso Senhor saberia que ela era
uma pecadora. Agora, Nosso Bendito Senhor invertia a sentença e perguntava a
Simão: “Você está vendo esta mulher, Simão? O problema com sua tribo de
pessoas metidas a santas é que vocês se julgam virtuosos, porque acham alguém
que é vicioso. Vocês nunca veem. Pensam que veem, mas não veem. A culpa
sempre está no próximo, nunca em vocês mesmos”.
Nosso Senhor, então, passou a descrever as cortesias comuns que Lhe
tinham sido negligenciadas, mas que esta mulher demonstrou. “Ela lavou meus
pés com as lágrimas”. Sem esfregar e enxaguar, a roupa que está muito suja não
pode ser limpa. Quando há muita sujeira do pecado, não deve haver apenas
uma lavagem; é necessário ficar de molho e ser banhada nas lágrimas da
contrição. Então, ela enxugou os pés do Senhor com seu cabelo. No verdadeiro
arrependimento, aquelas coisas que foram usadas a serviço do pecado
convertem-se para o serviço a Deus. O melhor ornamento do corpo, no juízo
do penitente, não era bom o bastante para ser empregado no mais
insignificante serviço para com Nosso Bendito Senhor.
As cortesias que Simão negligenciou na ordem natural, o Divino Senhor
agora contrasta com as cortesias mais elevadas da ordem da graça. As marcas de
honra são então rastreadas até sua fonte, o desejo de perdão. Em toda a polidez
convencional da vida, há alguma raiz de afeição e amor. Simão pensava que
estava mostrando honra suficiente ao Filho do carpinteiro ao convidá-lo para
comer; mas o Senhor rastreou o amor da mulher até o profundo senso de
pecado perdoado que ela tinha:
Seria um erro grosseiro deduzir que estaria tudo bem em ter pecado
muito, ou ter acumulado uma dívida maior, a fim de que o pecador pudesse ser
mais perdoado. Antes, a lição é que pecadores notórios têm probabilidade
muito maior de descobrir que são pecadores do que aqueles que pensam que
são bons. Como num hospital, um paciente que está cheio de machucados e
feridas requer mais compaixão do que outro menos machucado; assim
também, entendemos que a culpa não é um obstáculo, mas um argumento em
favor da graça divina. O amor desta mulher cresceu na mesma medida que sua
gratidão pelo perdão. Não foi a quantidade de pecado, mas a consciência dele e
da graça oferecida em seu perdão, que manifestou o grande amor desta
penitente. Muito lhe foi perdoado; portanto, muito amou.
Nada põe uma pessoa em contato com outra quanto a confissão de
pecado. Quando nos fala do próprio sucesso, um amigo fica a certa distância
de nosso coração; quando fala de sua culpa com lágrimas, está muito perto. Na
verdade, quando tem consciência do próprio pecado, a pessoa não distingue
muito se seus pecados pertencem à categoria dos quinhentos ou dos cinquenta
denários. São Paulo considerava-se o principal dos pecadores, mas ele não era
um grande pecador senão em seu fanatismo e perseguição. Quem faz pouco
caso do pecado fará pouco caso do perdão. Quem faz pouco caso de feridas
realmente sérias nunca apreciará o poder do médico.
Simão tinha algo que aprender e, então, convidou um mestre; a mulher
tinha algo a ser perdoado, então derramou lágrimas de contrição sobre o
Divino Credor que mostrou ser-lhe o Salvador. Simão não negara a existência
da culpa, mas sentia-se relativamente inocente em comparação à mulher
pecadora. A culpa não é só a violação do amor; é a ferida de alguém que é
amado. A seriedade do pecado aumenta conforme Cristo se aproxima. Estar
perto da Cruz e sentir as agonias Daquele cuja morte era necessária para a
expiação do pecado podia fazer Paulo, o fariseu dos fariseus, chamar-se a si
mesmo de “o maior dos pecadores”.
A lição estava terminada e a mulher foi dispensada com as seguintes
palavras:
Do outro, separação:
O propósito redentor de Deus vir à terra foi revelado por muitos símbolos e
figuras. Um dos mais surpreendentes foi pressagiado no que aconteceria a João
Batista. Embora não buscasse honras terrenas, João as recebeu; foi procurado
pelo rei Herodes Antipas, filho do sanguinário Herodes, que tentara tirar a vida
de Nosso Senhor quando Este ainda não tinha completado dois anos de idade.
“Herodes temia João”, por saber que ele era um “homem justo e santo”. O
perverso teme o bom porque o bem é uma censura constante à suas
consciências. O ímpio gosta da religião da mesma maneira que gosta de leões,
mortos ou enjaulados; temem a religião quando ela liberta e começa a desafiar
suas consciências.
Herodes era o mundano típico que convocava os chamados “sábios de
túnica” (como Félix convocou Paulo); amavam o brilhantismo, os volteios das
expressões e a sabedoria abstrata, mas tão logo esses homens começassem a
tornar os ensinamentos de Cristo concretos e pessoais, eram imediatamente
mandados embora com as palavras “intensos demais”, “intolerantes” ou “sabia
que, na verdade, ele tentou me converter?”. Herodes, que sempre buscava
novos estímulos e agitações, convidou a corte para ouvir esse pregador vibrante
que era moda na época. Que texto João Batista escolheria? Falaria sobre o amor
fraterno (sem a paternidade de Deus), sobre a necessidade de reduzir os
exércitos ou sobre a grande necessidade de uma reforma econômica na Galileia?
João sabia que tudo isso era importante, mas sabia que algo era ainda mais
importante; portanto, decidiu se dedicar às consciências.
Herodes, provavelmente, fitou-o com um meio-sorriso de satisfação;
Herodíades, sua mulher, deve tê-lo olhado de canto de olho; os outros estavam
curiosos, mas não verdadeiramente interessados. Tanto Herodes quanto
Herodíades já haviam sido casados antes. Ela, com o irmão de Herodes. Essa
era uma daquelas confusões desagradáveis que se tornaram lugar-comum em
uma nação que começava a apodrecer. Herodes fora casado antes com Fasélia,
filha de Aretas, que o abandonou quando ele começou a envolver-se com
Herodíades, esposa de seu irmão Herodes Filipe. Herodíades tinha uma filha,
Salomé, do casamento com Herodes Filipe.
Se havia um assunto que, do ponto de vista mundano, João teria feito
muito bem em evitar na corte, era essa situação. Entretanto, João estava
inclinado a agradar a Deus, não aos homens, e resolveu falar contra a vida de
luxúria. Era demasiado gentil para desculpar o pecado de Herodes, demasiado
interessado na saúde moral para deixar a ferida sem exame, demasiado amoroso
para ter alguma ideia senão salvar a alma de Herodes.
João seguiu o ensinamento de Nosso Senhor de que o casamento era
sagrado e indissolúvel: “O que Deus uniu, nenhum homem separe”. Foi direto
ao ponto com palavras claras, resolutas e bruscas. Apontou o dedo para
Herodes e sua mulher, sentados em tronos de ouro, e disse:
Herodíades estremeceu. Sabia que João estava recordando o fato de ela ter
seduzido Herodes, que já estava em seu poder. Antes que João pudesse
terminar a frase seguinte, foram colocadas correntes de ferro em volta de seus
punhos e os guardas começaram a arrastá-lo da corte para lançá-lo em um
calabouço escuro. O pregador foi aprisionado, mas suas palavras não o foram
— ecoaram na consciência muito depois da voz ter sido silenciada.
Por meses João foi mantido no tenebroso calabouço de Maquero. Essa
inatividade forçada o fez duvidar do Messias e do cordeiro de Deus de quem
falava? Sua fé vacilou um pouco na escuridão do calabouço? Talvez ansiasse
com impaciência que Deus punisse aqueles que haviam se recusado a receber
sua mensagem. De qualquer modo:
O modo como João formulou a pergunta indicava que ele tinha fé tanto
na grande promessa messiânica como Naquele a quem perguntava.
Quando a pergunta chegou a Nosso Senhor, Ele não a respondeu com a
promessa de que João seria libertado da prisão, ou que Ele mesmo destruiria os
inimigos. Respondeu apenas indicando a própria obra de cura, consolo e
instrução.
Por três vezes Nosso Senhor perguntou “que fostes ver?”. Esse foi o erro
deles; ao professar um desejo de conhecer a vontade de Deus, estiveram
realmente inclinados a visões e espetáculos ao desfrutar das maravilhas e da
popularidade do mensageiro. Saíram para ver alguém, não para ouvir alguém;
para satisfazer a concupiscência dos olhos, mas não para imitar a temperança e
a abnegação do Batista. Nosso Senhor estava dizendo à multidão que São João
não fizera essa pergunta da prisão simplesmente porque era um junco sacudido
pelo vento da opinião pública ou porque era alguém que se importava com o
bem-estar físico, como os cortesãos da casa de Herodes. João não era um
caniço frívolo sacudido por cada rajada de aclamação popular. Fazia suas
reprimendas sem temor; não era somente severo com os outros, era ainda mais
severo consigo mesmo. Poderia ter morado na casa de reis e, mesmo assim, fez
do deserto seu lar. Em relação a Deus, ele era um profeta e mais que um
profeta — o precursor e mensageiro do Messias e do Filho de Deus.
A grandeza pode ser dividida em dois tipos: a terrena e a celestial. Se a
grandeza de João tivesse sido terrena, teria vivido em palácios, as vestes teriam
sido espalhafatosas e as opiniões, provavelmente, teriam sido variáveis como
um junco, soprado, um dia, para uma filosofia popular e, no outro dia, para
outra. No entanto, sua grandeza foi de uma ordem divina e a superioridade
não foi somente em sua pessoa, mas na obra imutável e na missão de anunciar
o Cordeiro de Deus.
Alguns meses depois, chegou a época de celebrar o aniversário de Herodes
com uma grande festa. Para esse banquete baltasariano foram convidados todos
os nobres da corte de Herodes, todos os militares e vários comensais da
Galileia. Era noite, e o palácio estava suavemente iluminado. Os rostos estavam
maquiados para se mostrarem melhor à encantadora e tênue luz de velas. O
barulho da música, o toque das trombetas e os gritos da folia ressoavam pelo
castelo de pedra de Maquero, chegando até embaixo, ao estreito e escuro
calabouço onde, por dez meses, João Batista definhava. Não obstante, os
convidados, provavelmente, estavam entediados com as distrações, pois nada é
mais enjoativo que a alegria organizada dos saciados.
A voz de Herodes soou nesse primeiro clube noturno da era cristã,
ordenando que se iniciasse uma dança sensual para estimular os espíritos
enfadados. A dançarina seria Salomé, a bela jovem, filha da mulher do rei com
o primeiro marido. Essa donzela, que também era descendente dos nobres
Macabeus, mas que fora totalmente degradada e corrompida pela conivência da
mãe degenerada, dançou até chegar ao chão. Os foliões ficaram encantados e
Herodes, seguindo cada movimento gracioso, logo ficou excitado tanto pela
dança quanto pelo vinho. Quando, num último lance, Salomé atirou-se em seu
colo, ele abruptamente disse, irrompendo de paixão:
Salomé não sabia o que pedir, então, voltou-se para a mãe. Herodes já
havia esquecido do desafortunado sermão de João Batista, mas uma mulher
não esquece assim tão fácil. Nos dez meses em que esteve no calabouço
embaixo do palácio, João esteve também na alma de Herodíades,
importunando-a, perturbando seu sono, torturando sua consciência e
assombrando seus sonhos. Ela resolvera, naquele momento, livrar-se dele,
crendo que, se pudesse abolir esse representante moral de Deus, poderia pecar
impune pelo resto de sua vida. Com uma palavra a Salomé, poderia silenciar a
própria consciência e a do marido. Sussurrou a resposta no ouvido da filha.
Salomé aproximou-se de Herodes. A música estridente parou; o silêncio recaiu
sobre a assembleia; a comida se tornou insípida e até mesmo seus corações
ficaram nauseados quando a jovem pediu a Herodes:
Herodes nunca vira a face de Jesus até a última hora; nunca ouvira antes a
Sua voz. Quando chegou o momento, Nosso Senhor recusou-se a falar com
ele.
Depois da transfiguração, os apóstolos, que viram Moisés e Elias falando
com Nosso Senhor, começaram a fazer perguntas a respeito de Elias. Nosso
Senhor disse-lhes que Elias já havia estado entre eles em espírito; eles o viram
no habitante dos lugares desolados, o homem vestido em pele de camelo que
viveu com escassez de comida. Então, arrastou a cruz diante de seus olhos
novamente. Mostrou-lhes que a morte de João Batista foi a prefiguração de sua
própria morte. Como as pessoas que tinham visto João não acreditaram nele,
da mesma maneira não acreditariam em Nosso Senhor:
O PÃO DA VIDA
Senhor, salva-me!
No mesmo instante,
Jesus estendeu-lhe a mão, segurou-o e lhe disse:
Homem de pouca fé, por que duvidaste?
(São Mateus 14,30-31)
O Senhor estava colocando diante deles dois tipos de pão: o que perece e
o que dura até a vida eterna. Advertiu-os contra a ideia de segui-Lo como um
jumento segue o senhor que segura uma cenoura. Para elevar as mentes carnais
até o Alimento Eterno, sugeriu que buscassem o Pão Celestial em que o Pai
imprimiu o seu sinal. O pão oriental geralmente era assinalado com a marca
oficial ou o nome do padeiro. De fato, a palavra talmúdica para “padeiro” está
relacionada à palavra “selo”. Assim como as hóstias usadas na Missa têm uma
marca (por exemplo, um cordeiro ou uma cruz), também Nosso Senhor estava
insinuando que o pão que deviam buscar era o pão confirmado pelo Pai,
portanto, Ele mesmo.
Queriam uma prova de que o Pai O tinha autorizado; deu pão, sim, mas
isso não era grandioso o bastante. Afinal, Moisés não tinha dado o alimento do
céu? O argumento deles era: que prova tinham de que Jesus era maior que
Moisés? Assim, minimizaram o milagre do dia anterior, comparando-o a
Moisés, e o pão que Jesus deu ao maná do deserto. Nosso Senhor tinha
alimentado a multidão apenas uma vez, e Moisés os alimentara por quarenta
anos. No deserto as pessoas sempre chamaram o pão “maná”, que quer dizer
“O que é isso?”. Entretanto, numa ocasião, quando menosprezaram o maná,
chamaram-no “alimento miserável” (Números 21,5). Assim também agora
desdenhavam dessa dádiva. Nosso Senhor aceitou o desafio; disse que o maná
recebido de Moisés não era o Pão Celestial, nem tinha vindo do céu; ademais,
nutria apenas uma nação e por tempo limitado. Mais importante ainda, não
era Moisés quem dava o maná; era o Pai; por fim, o Pão que Ele daria duraria
para a vida eterna. Quando lhes disse que o verdadeiro Pão desceu do céu, os
homens pediram:
E o Mestre respondeu:
Essa foi a terceira vez que Nosso Bendito Senhor usou um exemplo do
Antigo Testamento para simbolizar a Si mesmo. A primeira foi quando Se
comparou com a escada que Jacó viu, revelando-Se assim como um mediador
entre o céu e a terra (São João 1,51). No discurso a Nicodemos, comparou-Se à
serpente de bronze, que curaria os feridos pelo pecado e o mundo envenenado
(São João 3,14). Agora, referia-Se ao maná do deserto, e declarava que Ele era o
verdadeiro Pão de que o maná tinha sido apenas uma prefiguração. E diria
ainda:
Eu sou a porta.
(São João 10,7-9)
O pão da vida.
(São João 6,35-41.48-51)
Mais uma vez, Ele faz a sombra da Cruz aparecer. O pão deve ser partido;
e Aquele que vinha de Deus havia de ser uma vítima sacrificial para que os
homens pudessem verdadeiramente alimentar-se Dele. Assim, seria um Pão que
resultaria da oferta voluntária da própria carne para resgatar o mundo da
servidão do pecado para a novidade da vida.
Jesus não só Se denominou como aquele que descera do céu, mas como
aquele que tinha descido para dar-Se, ou morrer. Somente quando Cristo fosse
morto chegariam a compreender a glória do Pão que alimenta para a
eternidade. Aqui, Ele estava referindo-se a Sua morte; pois a palavra “dar”
expressava o ato sacrificial. A carne e o sangue do Filho de Deus Encarnado,
que seria servida na morte, tornar-se-ia a fonte da vida eterna. Quando disse
“minha carne”, queria dizer que o Verbo de Deus, ou o Filho, havia assumido
uma natureza humana. Contudo, somente porque essa natureza humana
estaria ligada à Personalidade Divina por toda a eternidade é que Ele podia dar
vida eterna àqueles que a receberam. E quando disse que daria Sua carne pela
vida do mundo, a palavra grega usada queria dizer “toda a humanidade”.
Suas palavras tornaram-se mais pungentes porque esta era a época da
Páscoa. Embora vissem o sangue de um modo terrível, os judeus estavam
naquela época levando seus cordeiros a Jerusalém, onde o sangue seria
derramado às quatro direções da terra. A estranheza da declaração acerca de dar
Seu corpo e sangue diminui em contraste com o pano de fundo da Páscoa;
Jesus queria dizer que a sombra do cordeiro animal estava passando e que seu
lugar seria assumido pelo verdadeiro Cordeiro de Deus. Assim como tinham
comunhão com a carne e o sangue do cordeiro pascal, também teriam agora
comunhão com a carne e o sangue do verdadeiro Cordeiro de Deus. Aquele
que nasceu em Belém, a “casa do pão”, e foi posto em uma manjedoura, um
lugar para alimentar animais, seria agora, para os homens, tão inferiores a Ele,
o Pão da Vida. Tudo na natureza tem de ter comunhão para viver; por meio
dela, o que é inferior se transforma no que é superior: os elementos químicos
em plantas, as plantas em animais, os animais no homem. E o homem? Ele não
deve elevar-se pela comunhão com Aquele que “desceu” do céu para tornar o
homem um participante da natureza divina? Como mediador entre Deus e o
homem, Jesus disse que, assim como Ele vivia pelo Pai, assim também deviam
viver por Ele:
Quão carnal era comer do maná, e quão espiritual era comer da carne de
Cristo! Era muito mais íntima a vida que vinha por meio Dele do que a do
bebê alimentado pela mãe. Toda mãe de criança de colo pode dizer “Coma,
este é meu corpo; este é meu sangue”. Entretanto, na verdade, a comparação
termina aí; pois, na relação mãe-filho, ambos estão no mesmo nível. Na relação
Cristo-humanidade, a diferença é aquela de Deus e homem, céu e terra. Além
disso, nenhuma mãe jamais teve de morrer e assumir uma existência gloriosa
em sua natureza humana antes que pudesse alimentar seu rebento. Nosso
Senhor, contudo, disse que teria de “dar” a vida antes que fosse o Pão da Vida
dos crentes. As plantas que alimentam os animais não vivem em outro planeta;
os animais que alimentam os homens, não vivem em outro mundo. Se Cristo,
então, tinha de ser a “vida do mundo”, tinha de fazer morada entre os homens
como Emanuel ou “Deus conosco”, suprindo a vida da alma assim como o pão
terreno é a vida do corpo.
No entanto, a mente dos ouvintes não se elevou mais alto que o físico,
pois perguntaram: Como este homem pode dar-nos Sua carne para comer?
Era loucura para qualquer homem oferecer sua carne para ser comida.
Contudo, não foram deixados no escuro por muito tempo, pois Nosso Senhor
os corrigiu, dizendo que não seria um mero homem, mas “o Filho do Homem”
quem a daria. Como de costume, esse título referia-se ao sacrifício expiatório
que Ele haveria de oferecer. Não era o Cristo morto quem alimentaria os
discípulos, mas o Cristo glorificado nos céus, que morreu, ressurgiu dos mortos
e ascendeu aos céus. O mero alimento da carne e do sangue de um homem de
nada serviria; mas a Carne e o Sangue glorificados do Filho do Homem
renderiam a vida eterna. Assim como o homem morreu espiritualmente ao
É
comer fisicamente no Jardim do Éden, também voltaria a viver espiritualmente
ao comer do fruto da Árvore da Vida.
As palavras de Cristo eram demasiadamente literais, e Ele esclareceu
muitíssimas interpretações falsas, pois alguns dos ouvintes declararam que a
Eucaristia (ou o corpo e o sangue que daria) era um mero tipo ou símbolo, ou
que seus efeitos dependiam das disposições subjetivas do recebedor. Sempre
que alguém entendia errado o que disse, era o método de Nosso Senhor corrigir
aquela incompreensão, como quando Nicodemos pensou que “nascer de novo”
significava voltar ao ventre materno. No entanto, sempre que alguém entendia
corretamente o que disse, mas parecia encontrar Nele algum defeito, então
repetia o que dissera. Nesse discurso, Nosso Senhor repetiu cinco vezes o que
dissera acerca de Seu corpo e sangue. O significado pleno dessas palavras não
fica evidente até a noite anterior a Sua morte. No último desejo e testamento,
deixou aquilo que, ao morrer, nenhum outro homem fora capaz de deixar, a
saber, Seu corpo, sangue, alma e divindade, pela vida do mundo.
15
O anúncio da eucaristia gerou uma das maiores crises de sua vida. A promessa
de dar Seu corpo, sangue, alma e divindade para as almas dos homens O fez
perder muito do que ganhara. Até o momento, teve quase todos atrás de Si:
primeiro, as multidões ou as pessoas comuns; depois, a elite, os intelectuais e os
líderes espirituais; e, por fim, os próprios apóstolos. No entanto, essa doutrina
espiritual grandiosa era demais para eles. O anúncio da eucaristia dividiu seus
seguidores. Não é de espantar que haja tal divisão de seitas no cristianismo
quando cada homem decide por si mesmo se aceita um segmento do círculo da
verdade do Cristo ou todo o círculo. O próprio Senhor foi responsável por isso.
Pediu uma grande demonstração de fé à maioria dos homens. Sua doutrina era
por demais sublime. Se tivesse tido uma mentalidade um pouco mais
mundana, se só tivesse permitido que Suas palavras fossem tomadas como
figuras de linguagem, se fosse menos imperativo, poderia ter sido mais popular.
No entanto, ele inquietou todos os seguidores. O Calvário seria o conflito
armado; esse foi o início da guerra fria. O Calvário seria a crucifixão física; essa
era a crucifixão social.
Perdeu as multidões. Criou um cisma entre os discípulos; enfraqueceu até
mesmo o grupo dos apóstolos.
Perdeu as multidões: as massas, em geral, só se interessam por maravilhas
e segurança. Quando multiplicou os pães e peixes, ele os deixou assustados.
Quando encheu-lhes a barriga, satisfez-lhes o senso de justiça social. Esse era o
tipo de rei que desejavam, um rei de pão: “Afinal, o que mais a religião tem a
oferecer ao homem a não ser dar-lhe segurança social?”, pareciam perguntar. As
multidões tentaram forçá-Lo a se tornar rei. Era isso que Satanás queria
também! Encher as bocas, transformar pedras em pães e prometer prosperidade
— essa é a finalidade da vida da maioria dos mortais.
Entretanto, Nosso Senhor não teria um reinado com base na economia da
prosperidade. Torná-Lo rei era o ofício do Pai, não deles: Seu reinado seria de
corações e almas, não para saciar o trato digestivo. Assim, o Evangelho nos diz
que Ele rumou para as montanhas sozinho, para escapar da falsa coroa e da
espada de lata.
Como as multidões estavam próximas da salvação! Queriam vida; Ele
queria dar a vida. A diferença estava na interpretação de vida. É ofício do
Cristo conquistar seguidores por programas sociais elaborados? Essa é uma
forma de vida. Ou é ofício de Cristo estar disposto a perder todos os guiados
pelo estômago à custa de alcançar poucos com fé, aos quais será dado o Pão da
Vida e o Vinho que fecunda as virgens? Daquele dia em diante, Cristo não
conquistou mais as multidões; dentro de vinte meses, elas gritariam:
“Crucifica-o”, enquanto Pilatos diria “Eis o rei dos judeus”. Cristo não pode
manter todos unidos: é Sua culpa, Ele é demasiado divino, demasiado
interessado nas almas, demasiado espiritual para a maioria dos homens.
Naquele dia também perdeu outro grupo: a elite, os líderes intelectuais e
religiosos. Eles o aceitariam como um reformador pacífico e gentil que “não
extinguirá a mecha que fumega” (Isaías 42,3), mas quando veio a dizer que
daria a própria vida, de modo mais profundo do que uma mãe dá a vida a uma
criança de peito, isso foi demais. Portanto, nos diz o Evangelho:
É claro que isso lhes desafiou a fé. Os homens não têm raciocínio? O que
ele esperava que acreditassem? Que Ele era Deus? Que toda palavra que dizia
era verdade absoluta? Que ele seria capaz de dar às almas famintas a mesma
vida divina que viam diante de Seus olhos naquele momento? Por que não
esquecer esse Pão da Vida e torná-lo uma figura de linguagem? Assim, Nosso
Senhor os viu partir, e eles nunca mais voltaram. Um dia seriam encontrados
instigando as massas contra Jesus, pois ainda que não O tivessem deixado pelo
mesmo motivo, concordavam que deveriam retirá-Lo do meio deles.
Cristo perdeu tanto o joio como o trigo quando falou de Si como o Pão
da Vida. Agora, todavia, veio a ruptura que Lhe causou o maior dos pesares —
um pesar tão grande que, mil anos antes, fora profetizado como uma das
dilacerações humanas que torturariam Sua alma — a perda de Judas. Muitos
ficam a imaginar por que Judas rompeu com Nosso Senhor. Imaginam que foi
somente no fim da vida de Nosso Senhor e que foi somente por amor ao
dinheiro que foi forçado a romper. Era, de fato, avareza, mas o Evangelho nos
conta a história surpreendente de que Judas afastou-se de Nosso Senhor no dia
em que este anunciou que daria a própria carne pela vida do mundo. No meio
dessa longa história do Corpo e Sangue de Cristo, o Evangelho nos conta que
Nosso Senhor sabia quem O trairia. Ao demonstrar a Judas que sabia, disse:
PUREZA E PROPRIEDADE
No início de Sua vida pública, o objetivo de Nosso Senhor era, por meio dos
milagres, dos ensinamentos e do cumprimento das profecias, vincular os
apóstolos a Si mesmo a ponto de que pudessem evitar a pressão externa e a
rebelião natural da carne contra Ele como Servo Sofredor. No entanto, mesmo
quando se tornaram devotados a Ele e aceitaram-No como Messias e Filho de
Deus, recusavam a ideia da crucifixão, mesmo quando o Senhor disse que esta
seria seguida pela Ressurreição. Eram como indiozinhos, todos querendo ser o
cacique. A escuridão em que sua morte os lançou era outra prova do quanto
estavam pouco preparados para o escândalo da Cruz. Não é de surpreender que
Nosso Senhor não tenha falado com mais frequência sobre a Cruz, pois o
pouco que ouviram não quiseram ouvir ou entenderam mal.
PUREZA
O assunto veio à tona quando os fariseus vieram perguntar ao Senhor se era
lícito ao marido repudiar a mulher por qualquer motivo. A razão por que os
fariseus fizeram essa pergunta era por conta de uma discussão entre duas escolas
rivais de teologia judaica, a escola de Hilel e a de Shamai. Uma escola defendia
que o divórcio podia ser dado por motivos triviais; a outra exigia prova de
pecado grave antes que aprovasse o divórcio. A questão era ainda mais
complicada pelo fato de o divórcio naquela época estar se tornando muito
comum; os romanos, que eram os senhores do país, praticavam-no aberta e
flagrantemente. Além disso, Herodes, o governador do país sob o domínio de
Roma, estava vivendo com a esposa do irmão e assassinara João Batista.
O Divino Salvador, em resposta à pergunta, reafirmou o que já tinha dito
no Monte e que também era defendido desde o princípio quanto à relação
entre marido e mulher.
PROPRIEDADE
Assim como o sexo é um instinto dado por Deus para a perpetuação da raça
humana, também o desejo de propriedade como um prolongamento do ego de
alguém é um direito natural sancionado pela lei natural. Uma pessoa é livre
interiormente porque pode chamar sua alma de sua; é livre exteriormente
porque pode chamar a sua propriedade de sua. Liberdade interior baseia-se no
fato de que “eu sou”; liberdade exterior baseia-se no fato de que “eu tenho”.
Mas, assim como o excesso de carne produz luxúria, pois a luxúria é o sexo no
lugar errado, como a sujeira é a matéria no lugar errado, também pode haver
uma desordem do desejo de propriedade até tornar-se ganância, avareza e
agressão capitalista.
A fim de expiar, reparar e compensar os excessos da avareza e do egoísmo,
Nosso Bendito Senhor dava agora aos apóstolos uma segunda lição de
autossacrifício. A ocasião da primeira lição sobre a pureza foi uma pergunta dos
fariseus acerca do casamento; a ocasião da segunda foi o encontro com um
jovem questionador. Nosso Senhor teve a chance de conquistá-lo como
discípulo; todavia, quando falou da Cruz, perdeu-o. O jovem que veio a Ele era
rico e também funcionário da sinagoga. O desejo de associar-se ao Nosso
Senhor manifestou-se pelo fato de ter chegado ao Mestre correndo e de ter se
prostrado a Seus pés. Não havia dúvidas quanto à retidão do jovem; sua
pergunta a Nosso Senhor foi:
Nosso Senhor não estava fazendo objeções a ser chamado bom, mas a ser
tomado meramente como um bom mestre. O jovem tinha se dirigido a Ele
como um grande mestre, mas ainda homem; reconhecera a bondade, mas
ainda no nível da bondade humana. Se Jesus fosse meramente um homem, o
título de bondade essencial não pertenceria a Ele. Havia escondida na resposta
uma afirmação de Sua divindade. Só Deus é bom. Ele estava, portanto,
convidando o jovem a clamar em alta voz: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus
Vivo”.
O jovem admitiu que guardava os mandamentos desde a mocidade. Com
isso, Nosso Senhor fixou os olhos nele e compadeceu-Se.
Quando o jovem perguntou
Não houve nenhuma condenação da riqueza aqui, assim como não houve
condenação do casamento na pergunta anterior; houve, no entanto, uma
perfeição mais elevada que a humana. Como um homem pode deixar a esposa,
também um homem pode deixar a propriedade. A Cruz exigiria que as almas
renunciassem ao que mais amavam e se contentassem com o tesouro que vem
das mãos de Deus. Alguém pode perguntar por que o Senhor pede tal
sacrifício. O Salvador permitiu que Zaqueu, um coletor de impostos,
preservasse metade de seus bens; José de Arimateia, depois da Crucifixão, foi
descrito como rico; a propriedade de Ananias era dele mesmo; Nosso Senhor
comeu na casa de amigos ricos em Betânia. Mas aqui estava uma questão de
um jovem que perguntou o que ainda lhe faltava no caminho da perfeição.
Quando o Senhor lhe propôs o caminho ordinário da salvação, a saber, guardar
os mandamentos, o jovem não se deu por satisfeito. Buscava algo mais perfeito;
no entanto, quando o perfeito lhe foi proposto, isto é, a renúncia,
Porque um camelo não pode passar pelo furo de uma agulha, seria muito
exagerado dizer que a mesma impossibilidade se põe no caminho da salvação
do homem; pois sempre há a possibilidade divina.
Pedro, mais uma vez agindo como porta-voz dos apóstolos, pediu mais
explicações desse problema econômico de renunciar à propriedade. Ele ouvira
Nosso Senhor falar da grandeza da recompensa reservada àqueles que O
seguissem. Sabendo que tinham deixado seus negócios no mar a fim de segui-
Lo, perguntou Pedro:
Quanto mais uma pessoa se aproxima de Deus, menos digno se sente. Uma
pintura à luz de velas mostra menos defeitos que sob o brilho do sol; assim
também as almas que estão a alguma distância de Deus sentem-se mais
persuadidas da própria integridade moral que as muito próximas Dele. Aqueles
que deixaram os holofotes e os encantamentos do mundo e, por anos, são
irradiados pelo semblante do Cristo são os primeiros a reconhecerem-se
sobrecarregados pelo grande fardo do pecado. São Paulo, que é tão edificante
para os homens, denomina-se “o primeiro dos pecadores” (1 Timóteo 1,15).
Na presença da mais santa das criaturas, a alma acusa-se e fica de coração
partido com o peso das próprias faltas. Assim como os homens maus sentem
mais a própria culpa diante de um bebê inocente do que em companhia
daqueles que são maus como Ele, do mesmo modo, quem ama a Deus é mais
profundamente afligido pela sensação da própria indignidade.
No entanto, Cristo, Nosso Senhor Bendito, que afirmou ser um com
Deus, vez alguma confessou um pecado ou uma imperfeição. Vagamente, isso
pode ser atribuído à aridez moral, já que sua análise do pecado nos outros era
tão penetrante. Que homem há no mundo que possa postar-se corajosamente
diante da multidão e dizer:
Notemos, não é seu ensinamento que é a luz do mundo, mas sim Ele.
Assim como só existe um sol para iluminar fisicamente o mundo, também
afirmava que Ele era a única luz para o mundo espiritual; sem Ele, toda alma
estaria envolvida em trevas. Assim como a poeira em um cômodo não pode ser
vista até que a luz entre, igualmente, nenhum homem pode conhecer a si até
que essa luz lhe mostre sua verdadeira condição. Ele, se fosse apenas um
homem bom, nunca poderia alegar ser a luz do mundo; pois a Ele se aferrariam
algumas armadilhas e falhas, até da melhor natureza humana. Buda escreveu
um código que disse ser útil para guiar os homens nas trevas, mas nunca alegou
ser a luz do mundo. O budismo nasceu de um desgosto com o mundo, quando
o filho de um príncipe deixou mulher e filho, voltando-se dos prazeres da
existência para os problemas da existência. Abrasado pelas chamas do mundo e
delas já enfastiado, Buda voltou-se para a ética.
Entretanto, Nosso Senhor nunca teve esse sentimento de
descontentamento. Se Ele era a luz, não era por ter se ferido tropeçando nas
trevas. Maomé admitiu, ao morrer, que não era a luz do mundo, mas disse:
“Temente, suplicante, buscando abrigo, fraco e necessitado de misericórdia,
confesso meu pecado diante de Ti, apresentando minha súplica como o pobre
implora ao rico”. Confúcio estava tão coberto pelas trevas do pecado que
nunca fez tal alegação. Ele admitiu:
Isso equivale a dizer que sem o caminho não há como ir; sem a verdade
não há conhecimento; sem a vida não há viver. O caminho se torna adorável,
não quando está em códigos abstratos e mandamentos, mas quando é pessoal.
Assim como Platão certa vez disse: “É difícil descobrir o pai do mundo, e
quando descoberto, não pode ser comunicado”. A resposta de Nosso Senhor a
Platão teria sido que descobrir o pai do mundo é difícil, a menos que ele seja
revelado pela pessoa de seu filho.
Não há tal coisa como buscar primeiro a verdade e depois achar Cristo,
como tampouco há motivo para acender velas a fim de encontrar o sol. Assim
como as verdades científicas nos colocam em uma relação inteligente com o
cosmo e como a verdade histórica nos coloca em uma relação temporal com a
ascensão e queda das civilizações, do mesmo modo Cristo nos insere em uma
relação inteligente com Deus Pai, pois Ele é a única Palavra possível pela qual
pode dirigir-se a um mundo de pecadores.
Quando Ele vier julgar, não será apenas a área circunscrita da terra em
que trabalhou e revelou-Se; ao contrário, serão todas as nações e impérios do
mundo. O momento da segunda vinda ele conhece, não como homem, mas
somente como Deus. Não dirá senão, como advertência, que será súbito, como
um relâmpago. Veio como o “homem de dores”; então virá em glória. Os
atributos de sua humanidade sofredora serão necessários para sua identificação.
Por isso, após a Ressurreição, manteve as cicatrizes. Com Ele estarão os anjos e
todas as nações serão divididas em duas classes: ovelhas e bodes. Assim como
dividiu os homens na terra em duas classes, a saber, os que O odiavam e os que
O amavam, assim também os dividirá então. “Eu sou o bom pastor”, disse a
respeito de Si mesmo. O título Ele o reivindicaria no último dia pela separação
de seu rebanho de ovelhas do rebanho de bodes.
As ovelhas ouvirão elogios pelo serviço amoroso prestado a Ele, mesmo
quando tiver sido um serviço inconsciente. Há muito mais pessoas amando-o e
servindo-o do que se suspeita. Parece que os mais surpresos de todos serão os
assistentes sociais, que perguntarão: “Quando foi que te vimos com fome? Foi
o caso nº 643?”. Os malvados, por outro lado, descobrir-se-ão recusando-O
quando negarem fazer coisa alguma por seus semelhantes em nome Dele.
17 | G. K. Chesterton, O Homem Eterno. Trad. Almiro Pisetta. São Paulo: Mundo Cristão,
2010, p. 210. (N. T.)
18
TRANSFIGURAÇÃO
No caso de Nosso Senhor, foi como São Paulo disse: “Em vez de gozo que
se Lhe oferecera, Ele suportou a cruz” (Hebreus 12,2).19
O que os apóstolos observaram como particularmente belo e glorificado
era Seu rosto e Suas vestes — o rosto que mais tarde estaria salpicado com o
sangue que escorreria de uma coroa de espinhos; e as vestes, que logo seriam
trocadas por uma túnica desprezível com que Herodes O vestiria como
escárnio. O tecido de luz que agora O vestia seria trocado pela nudez quando
Ele fosse maltratado em outra montanha.
Enquanto os apóstolos permaneciam no que parecia ser um vestíbulo do
céu, formou-se uma nuvem que os cobriu:
18 | William Shakespeare, Teatro completo: Tragédias. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de
Janeiro: Agir, p. 622. (N. T.)
19 | A autoria do livro de Hebreus é tradicionalmente atribuída a São Paulo. (N. T.)
19
AS TRÊS DISCUSSÕES
Quando Nosso Senhor Santíssimo chegou a essa que era a cidade mais ao norte
da Terra Santa, uma cidade com população dividida entre judeus e pagãos,
falou da igreja que instituiria. Entretanto, antes que o fizesse, tinha de deixar
clara a forma de governo que a regeria. Essas poderiam ser três: democrática,
aristocrática e teocrática. A democrática é aquela em que a autoridade e a
verdade são decididas por voto ou por uma maioria aritmética; a aristocrática é
aquela em que a autoridade deriva de uns poucos escolhidos; a teocrática, a que
o próprio Deus oferece e guia a revelação e a verdade.
Ao apelar primeiro à democrática, perguntou aos apóstolos qual era, em
geral, a opinião popular a respeito Dele. Se houvesse uma eleição ou votação
com base no juízo falho dos homens, qual seria a resposta deles a essa questão?
Pedro confessou que Cristo era o verdadeiro Messias, enviado por Deus
para revelar Sua vontade aos homens e cumprir todas as profecias e a lei. Era o
Filho de Deus, gerado desde toda a eternidade, mas também o Filho do
Homem gerado no tempo — verdadeiro Deus e verdadeiro homem.
Nosso Senhor revelou a Pedro que ele não sabia disso por si mesmo:
nenhum estudo ou discernimento natural jamais poderia revelar essa grande
verdade.
Feliz és, Simão, filho de Jonas,
porque não foi a carne nem o sangue
que te revelou isto,
mas meu Pai que está nos céus.
(São Mateus 16,17)
Nosso Senhor chamou-o, primeiro, pelo nome que tinha antes de ser
convocado para ser apóstolo. Então, chamou-o pelo novo nome que Ele lhe
deu, ou seja, Pedro, indicando que era sobre ele, a rocha, que edificaria Sua
Igreja. Nosso Senhor se dirigiu a Pedro na segunda pessoa do singular para
indicar que não era a confissão da divindade feita por Pedro, mas o próprio
Pedro que deveria deter o primado na Igreja.
E eu te declaro: tu és Pedro,
e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja;
as portas do inferno não prevalecerão contra ela.
Eu te darei as chaves do Reino dos céus:
tudo o que ligares na terra será ligado nos céus,
e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus.
(São Mateus 16,18-19)
Afasta-te, Satanás!
Tu és para mim um escândalo;
teus pensamentos não são de Deus,
mas dos homens!
(São Mateus 16,23)
A Cruz foi o motivo de Sua vinda; agora, Ele a tornou o destino de seus
seguidores. Não tornou o cristianismo fácil, pois sugeriu não só que deve existir
uma renúncia voluntária de tudo o que dificulta assemelharem-se a Ele, mas
também deve haver sofrimento, vergonha e morte na cruz. Não têm de alardear
uma trilha de sacrifícios, mas apenas de seguir com zelo a trilha do Homem das
Dores. Nenhum discípulo é chamado para uma tarefa não experimentada. Ele
tomou a cruz primeiro. Somente os dispostos a ser crucificados com Ele podem
ser salvos pelos méritos de Sua morte e somente os que suportam a cruz podem
realmente compreendê-Lo.
Não se questionou se os homens teriam ou não o sacrifício em suas vidas;
foi apenas uma questão de que vida deveriam sacrificar, a vida superior ou a
inferior!
Como deve ter sido superficial a impressão que Nosso Senhor lhes causou
ao falar sobre Sua morte, pois ainda se questionavam sobre a prioridade
naquilo que imaginavam ser uma configuração política e econômica chamada
Reino de Deus! Dos lábios do Divino Mestre ouviram alguma coisa sobre seus
padecimentos, mas agora disputavam sobre classificação. Possivelmente, a
posição mais alta dada a Pedro em Cesareia de Filipe intensificou a disputa;
talvez, também, o fato de Pedro, Tiago e João terem sido escolhidos como
testemunhas da transfiguração tenha despertado ressentimentos. De qualquer
maneira, discutiam, como sempre, todas as vezes que Ele desvelava a Cruz.
Ao saber que a crise estaria próxima quando instituísse o Reino, estavam
agitados pela ambição. Entretanto, Nosso Senhor sabia o que se passava no
coração deles e, ao chegar na casa de Cafarnaum onde, como de costume,
desfrutavam da hospitalidade, provavelmente, de Pedro:
E, tomando um menino,
colocou-o no meio deles; abraçou-o.
(São Marcos 9,36)
O maior de todos os discípulos seria aquele que fosse como uma criança;
pois a criança figura como um representante de Deus e de Seu Divino Filho na
terra. Havia nobreza em seu Reino, mas era oposta à categorização do mundo.
Em seu Reino, a pessoa ascendia por afundar, aumentava por diminuir. Disse
que não veio para ser servido, mas para servir. Ele próprio era a humilhação
exemplificada como a que remontava às profundezas da derrota na cruz. Já que
não compreendiam a cruz, ordenou-lhes que aprendessem da criança a quem
abraçava de todo o coração. Os maiores são os menores e os menores são os
maiores. Honra e prestígio não estão nos que se assentam à cabeceira da mesa,
mas está no que se cinge com uma toalha e lava os pés dos que são seus servos.
Ele, que era Deus, tornou-Se homem; Ele, que era o senhor dos céus e da terra,
humilhou-Se na Cruz. Esse era um ato de humildade incomparável que deviam
aprender. Se, por um momento, não pudessem aprender Dele, tinham de
aprender de uma criança.
A TERCEIRA DISCUSSÃO: A CAMINHO DE JERUSALÉM
Como Ele, que tinha poder sobre a morte, os ventos e os mares e cuja
mente podia silenciar as bocas dos fariseus, os deixaria sem conforto e os
lançaria novamente no mundo por não poder resistir aos inimigos? Essa era a
preocupação deles.
Assim como nas outras duas ocasiões, agora que Jesus falara novamente de
sua morte, irrompeu uma nova discussão entre os apóstolos. Tiago e João, que
já se tinham destacado ao ressentirem-se da rudeza dos samaritanos e ao pedir a
Nosso Senhor que os destruísse, fizeram, nesse momento, um pedido. Os dois
irmãos, que outrora pediram que descesse um fogo dos céus sobre os inimigos,
agora pediam que lhes fosse dada uma grande vantagem. Com presunção
irreverente, pediram a Nosso Senhor, imediatamente depois de este falar de sua
morte, para tornar-se instrumento da própria vaidade deles.
Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por
seus amigos.
(São João 15,13)
A centralidade da Cruz na vida de Jesus agora fica mais clara. Ele fez
referências implícitas a ela, sob a figura de um templo e de uma serpente; e
mais explicitamente quando prometeu, em Sua glória depois da Ressurreição,
permitir que os homens vivessem por Seu Corpo e Sangue.
Aqui, na festa mais popular do ano, a Festa dos Tabernáculos,
aconteceram duas coisas: primeiro, dirigiu a atenção à plenitude da Presença
Divina, verdade e refrigério de alma que habitavam Nele. Fora Dele não havia
moral, nem crença, nem saciamento da sede. Esmagou toda ilusão dos ouvintes
de que estivesse pregando uma moralidade à parte Dele mesmo, uma doutrina
distinta de Sua pessoa ou que uma ética superior pudesse reconciliar-se com
um senso reduzido do Deus vivo. Ele os deixou saber que não era um “extra”
piedoso, um apêndice ou um luxo espiritual para aqueles que citariam Suas
palavras. Buda podia ser separado do budismo; mas Jesus não podia ser
separado do que ensinou ou realizou mais do que um raio de sol pode existir
sem o sol. Às multidões presentes na cerimônia de oito dias, explicou o
significado dela: o tabernáculo, a água, as luzes. Centralizava cada uma dessas
coisas em Sua pessoa, visto que afirmou ser um com Deus, um com toda a
iluminação da mente, e um com toda a paz das almas sedentas. A identificação
foi total: não havia Deus senão o Deus que Ele revelou, nenhuma verdade
senão a Sua pessoa, nenhuma satisfação senão Nele.
O segundo efeito das palavras Dele foram violência, ressentimento e a
decisão de entregá-Lo à morte. Se tivesse palavras faladas, mas não tivesse
alegado ser a Palavra; se tivesse apresentado verdades apartáveis de Sua pessoa e
um consolo de alma distinto de Sua presença divina, talvez fosse menos
empurrado para a Cruz. O ódio contra Ele, por parte das autoridades do
templo, os fez tentar prendê-Lo duas vezes: a primeira foi na Festa dos
Tabernáculos; a segunda foi no Jardim do Getsêmani. Em nenhum dos casos
os oficiais puderam detê-Lo; não na Festa, porque Nosso Senhor “prendeu-os”
com Sua presença. Tampouco no Jardim puderam detê-Lo até que se tivessem
tornado impotentes. Nessa Festa, como disse, “Sua hora ainda não tinha
chegado”; no Jardim, diria: “Eis a vossa hora”. Aqui, disse que era a Luz do
mundo; então lhes diria que era a “hora das trevas”. Em ambos os exemplos, o
Senhor não poderia ser levado até que voluntariamente Se rendesse; em ambos
os exemplos, a intenção dos homens diante da bondade divina era crucificar,
pois as obras das trevas não suportam a luz. A segunda prisão levou
diretamente à Cruz, de modo que a primeira prisão foi um ensaio. A sombra
da Cruz caía por toda parte — sobre as tendas, as fontes, os candelabros e
mesmo sobre as pessoas na Festa dos Tabernáculos.
Essa era a maior de todas as Festas, uma comemoração da fuga do Egito,
quando Deus conduziu o povo de Israel pelo deserto por meio de uma nuvem
durante o dia e uma coluna de fogo à noite. Como peregrinos durante aqueles
quarenta anos de perambulação, os judeus viveram em tendas ou barracas que
podiam facilmente ser armadas e silenciosamente desmontadas. No meio das
tendas, estava o tabernáculo, que simbolizava a presença de Deus.
Essa festa, mencionada tanto em Levítico quanto em Êxodo, era celebrada
na época da colheita. Embora houvesse ação de graças pela colheita, a festa
estava voltada para o futuro, e por esse motivo às vezes era chamada de “hora
da efusão”, simbolizando o Espírito de Deus que seria derramado sobre o povo.
Quando essa festa de oito dias começou, Nosso Senhor estava na Galileia,
para onde se retirara por seis meses por causa da oposição dos líderes do templo
depois da purificação do templo e do milagre em Betesda:
Sua hora, ou a hora de Sua completa revelação, ainda não tinha chegado.
Intensificando o contraste entre Si mesmo e o mundo, Jesus disse-lhes com
certa ironia que as palavras, atitudes e juízos deles não estavam em suficiente
desarmonia com o mundo para suscitar o ódio do mundo. Com Ele, no
entanto, era diferente: Suas palavras e Sua vida já tinham provocado o ódio do
mundo. Se tivesse de ir a Jerusalém, seria como o Messias e Filho de Deus e,
portanto, provocaria hostilidade; contudo, se subissem como peregrinos
piedosos, seria apenas para participar de uma celebração nacional. Quando
falava do mundo, Nosso Senhor o entendia como feito de homens não
regenerados que não aceitariam Sua graça. Aqueles irmãos de Jesus que teriam
amado a ribalta e a notoriedade eram parte de um mundo sem cruz, que não
violava nenhum dos preceitos ou do espírito mundano.
Jesus estava consciente de Sua Cruz, ao passo que os demais não estavam
cientes dela. Ele não subiria à cidade até que houvesse uma ordem do Pai
Celestial. Satanás, anteriormente, Lhe oferecera todos os reinos do mundo e
Ele os recusara. Jerusalém não seria suficiente para seduzi-Lo a exibir milagres
àqueles que não acreditariam em Sua pessoa. Aqueles que sugeriam o esplendor
da popularidade podiam ir além e encontrariam grande número de incrédulos
como eles mesmos; eram levados pela corrente, como cepos mortos. Observe
que Nosso Bendito Senhor não disse que não iria para a Festa dos
Tabernáculos. O que disse foi que não iria naquele momento. A mente
mundana, portanto, abandonou-O para ir à festa.
Mais tarde, decidiu ir, não como pessoa pública, mas em segredo ou
incógnito. Que grande contraste entre Sua primeira visita, quando apareceu de
repente no templo e expulsou os cambistas, e agora em Sua ida como peregrino
anônimo! Mas todos estavam curiosos com Ele. Imediatamente tornou-Se
fonte de dissensão. Aqueles que foram atraídos permaneceram quietos por
temer as autoridades do templo, que já tinham tramado Sua morte.
Nosso Senhor disse que tinha vindo não para destruir a Lei e os profetas,
mas para cumpri-los, falava agora para afirmar que Ele mesmo era a substância
de que esses ritos não eram senão sombras obscuras. Sua voz soou sobre o
derramar das águas enquanto dizia:
Se alguém tiver sede, venha a mim e beba.
Quem crê em mim, como diz a Escritura:
Do seu interior manarão rios de água viva.
(São João 7,37-38)
Aqui fez uma alegação universal, tal como fora profetizado por Isaías, de
que Ele era a Luz de todos os povos e nações. Nem todos seguiriam a Luz;
alguns prefeririam andar em trevas e, portanto, odiariam a luz. Aquele que se
encontrava no templo em que as luzes pouco a pouco se extinguiam proclamou
a Si mesmo a Luz do Mundo. Anteriormente, chamara-Se a Si mesmo de
Templo; agora, afirmava ser a Glória e a Luz desse Templo. Estava declarando-
Se mais necessário à vida das almas do que a luz do sol para a vida do corpo.
Não era a doutrina, nem a lei, nem os mandamentos, nem o ensino, que
constituía essa luz; era Sua pessoa.
No meio da afirmação do Nosso Senhor de que Ele era o Messias,
começaram algumas das medidas civis e judiciais que mais tarde culminariam
na Crucifixão. Os fariseus enviaram oficiais para prender Nosso Senhor. Antes
que chegassem, Nosso Senhor fez outra referência a Sua morte:
Ainda por um pouco de tempo estou convosco
e então vou para aquele que me enviou.
Buscar-me-eis sem me achar,
nem podereis ir para onde estou.
(São João 7,33-34)
Previu tudo que aconteceria. Ainda faltavam seis meses até a Páscoa; havia
pouco tempo antes que cumprisse o propósito de Sua vinda. Já estavam
planejando a morte Dele, mas estes planos não teriam sucesso até que Ele se
entregasse voluntariamente nas mãos dos homens. Então, a porta seria fechada
e o tempo da visitação estaria terminado. A separação entre eles e o Senhor não
seria a distância, mas a diferença em mente e coração, que é a maior de todas as
distâncias.
Os guardas que receberam as ordens de prendê-Lo voltaram ao principal
dos sacerdotes e fariseus de mãos vazias. Os oficiais perguntaram-lhes:
Em toda a Jerusalém, talvez Ele fosse o único homem sem casa e sem lar.
Enquanto os homens partiram para suas casas a fim de tomar conselhos com os
companheiros, Ele foi ao monte das Oliveiras para aconselhar-se não com a
carne e o sangue, mas com Seu Pai. Sabia que em pouco tempo esse jardim
seria um retiro sagrado onde suaria gotas de sangue no conflito terrível com as
forças do mal. Durante a noite dormiu, no estilo oriental, em um relvado verde
debaixo das oliveiras ancestrais, tão retorcidas e nodosas no ardor por crescer
como se prenunciassem a tortuosa Paixão que seria a Dele.
Era época da festa dos Tabernáculos, o que acarretava não só a confluência
de pessoas de todos os cantos do mundo, mas também produzia um
entusiasmo generalizado, muitas preces e algum lazer. Era natural que isso
degenerasse em um caso ocasional, aqui e ali, de desacato e imoralidade. É
evidente que isso aconteceu. Na manhã seguinte bem cedo, assim que Nosso
Senhor apareceu no templo e começou a ensinar, os escribas e os fariseus
levaram a Ele uma mulher que fora descoberta cometendo adultério. Assim,
estavam tão envolvidos em uma controvérsia estéril com o Messias que não
tiveram escrúpulos de usar a vergonha da mulher para marcar um ponto.
Aparentemente, não havia dúvidas quanto a sua culpa. A maneira indelicada,
quase indecente, com que os homens contaram a história, revela que os fatos
não podiam ser contestados. Disseram:
Eles O recordaram da lei! Ele, por sua vez, recordou-lhes que Ele escrevera
a lei! O mesmo dedo, no sentido simbólico, que agora escrevia no piso de
pedra do assoalho do templo, também escreveu nas tábuas de pedra no Monte
Sinai! Tinham olhos para ver o doador da lei de Moisés diante deles? Estavam
tão inclinados a enredá-Lo no discurso que ignoraram a escrita e continuaram
lançando perguntas, certos de que O tinham pego.
Como eles insistissem, ergueu-se e disse-lhes:
Quem de vós estiver sem pecado,
seja o primeiro a lhe atirar uma pedra.
Inclinando-se novamente, escrevia na terra.
(São João 8,7-8)
Talvez, quanto mais idosos fossem, mais pecado tivessem. O Senhor não
os condenou; antes, fez com que condenassem a si mesmos. Talvez Jesus tenha
olhado para um dos anciãos e à consciência do homem tenha vindo a palavra
“ladrão” — e o homem tenha deixado cair a pedra e partido. Um, ainda mais
jovem, viu sua consciência acusá-lo de assassino, e partiu; partiram, um por
um, até restar somente um jovem. Assim que Nosso Senhor olhou fixamente
para esse último, poderia ter a consciência acusando-o de “adúltero”; deixou
cair a pedra e partiu. Não restou ninguém!
No entanto, por que ele se inclinou e escreveu novamente? Já que
recorreram à lei mosaica, ele, igualmente, poderia recorrer mais uma vez.
Moisés quebrou as primeiras tábuas que o dedo de Deus gravara ao ver o povo
adorando o bezerro de ouro. Então, Deus escreveu uma segunda tábua de
pedra e ela foi levada para a arca da aliança, onde foi colocada sob o
propiciatório e aspergida com sangue inocente. Esse seria o modo como a lei de
Moisés levaria à perfeição pela aspersão do sangue — o sangue do cordeiro.
Ao defender a mulher, Cristo provou-Se amigo dos pecadores, mas
somente dos que admitiam ser pecadores. Tinha de aproximar-se dos proscritos
da sociedade para encontrar grandeza de coração e generosidade desmedida
que, segundo Ele, constituíam a própria essência do amor. Embora fossem
pecadores, o amor que tinham alçava-os acima da própria sensatez e da
autossuficiência, que nunca se ajoelham em prece pedindo perdão. Ele veio
para colocar uma prostituta acima de um fariseu, um ladrão penitente acima de
um sumo sacerdote e um filho pródigo acima de um irmão exemplar. A todos
os impostores e falsários que dizem que não poderiam unir-se à Igreja porque
sua Igreja não era santa o bastante, Ele perguntaria: “Quão santa deve ser a
Igreja antes que nela ingresses ?”. Se a Igreja fosse tão santa quanto queriam
que fosse, nunca lhes seria permitido ingressarem nela! Em qualquer outra
religião sob o sol, em todas as religiões orientais, do budismo ao
confucionismo, sempre deve existir uma purificação antes de a pessoa
comungar com Deus. Entretanto, Nosso Senhor trouxe uma religião em que a
admissão do pecado é a condição de se achegar a Ele. “Não são os homens de
boa saúde que necessitam de médico, mas sim os enfermos” (São Lucas 5,31).
Olhou para a mulher, que estava de pé, só, e perguntou-lhe:
Mulher, onde estão os que te acusavam?
Ninguém te condenou?
(São João 8,10)
Ninguém te condenou?
Ela respondeu:
Ninguém, Senhor.
(São João 8,11)
Se não havia ninguém para lançar uma pedra, Ele tampouco a lançaria.
Ela, que chegou a Ele como juiz, encontrou Nele um salvador. Os acusadores
chamavam-No de “Mestre”; ela O chamava não de “seu”, mas de “Senhor”,
como se reconhecesse que estava na presença de alguém infinitamente superior
a ela mesma. E a fé Nele foi justificada, pois, Ele voltou-se para ela e disse:
Entretanto, por que Ele não a condenou? Porque Ele seria condenado por
ela. A inocência não condena, porque a inocência sofreria por sua culpa. A
justiça seria salva, pois Ele pagaria a dívida pelos pecados dela; a misericórdia
seria salva, pelos méritos de sua morte aplicados à sua alma. Justiça primeiro,
misericórdia depois; primeiro a satisfação, depois o perdão. Nosso Senhor
realmente era o único naquela multidão que tinha o direito de lançar uma
pedra e realizar o julgamento porque era sem pecado. Por outro lado, não
tornou o pecado leve, pois assumiu o seu peso. O perdão custa alguma coisa e
o preço total seria pago no monte das três cruzes, onde a justiça seria satisfeita e
a misericórdia, ampliada. Foi essa libertação da escravidão do pecado que Ele
chamou pelo belo nome de liberdade.
O BOM PASTOR
Mais tarde, depois de ser ainda mais questionado, disse, como o fizera a
mulher do poço:
É um profeta.
(São João 9,17)
Por fim, ele declarou que o Senhor devia ter vindo de Deus. Esse é
geralmente o percurso daqueles que enfim chegam à verdade acerca de Cristo.
Quando o homem curado confessou que Cristo era o Filho do Deus, os
fariseus excomungaram-no da sinagoga. Isso foi grave; pois privava o pedinte
dos privilégios externos da comunidade do povo e o tornava objeto de escárnio.
Tendo tomado conhecimento da excomunhão, Nosso Senhor, incansável até
que encontrasse a ovelha perdida, procurou o homem condenado.
Encontrando-o, perguntou-lhe:
E o pedinte respondeu:
Eu sou a porta.
Se alguém entrar por mim será salvo;
tanto entrará como sairá
e encontrará pastagem.
(São João 10,9)
Jesus não disse que havia muitas portas, nem que pouco importava por
que outra porta alguém buscasse uma vida superior; Ele não disse que era uma
porta, mas A Porta. Havia uma única porta na arca em que Noé e sua família
entraram para ser salvos do dilúvio; havia uma única porta no Tabernáculo ou
no Santo dos Santos. Reclamou para Si o direito exclusivo de admissão ou
rejeição no rebanho de Deus. Não disse que Seu ensino ou Seu exemplo eram a
porta, mas que Ele, pessoalmente, era o único acesso à plenitude da vida
divina. Ele é único e não divide a honra com “colegas”, nem mesmo com
Moisés, e tampouco com Zoroastro, Confúcio, Maomé ou quem quer que seja:
Depois de dizer aos fariseus que não eram de fato mestres, mas líderes
cegos, desconhecedores e mercenários, colocou-Se a Si mesmo em contraste
com eles não apenas como o Único Mestre, mas como algo infinitamente
maior. E não estava meramente dando ideias ou leis, estava dando vida.
O Pai me ama,
porque dou a minha vida para a retomar.
Ninguém a tira de mim,
mas eu a dou de mim mesmo
e tenho o poder de a dar,
como tenho o poder de a reassumir.
(São João 10,17-18)
Sua morte não é nem acidental nem imprevista; tampouco Ele fala de Sua
morte à parte de Sua glória; nem de entregar a vida sem tomá-la de volta.
Nenhum homem comum poderia ter dito isso. A ajuda invisível do céu estava
em Sua vocação. Aqui Nosso Senhor determinou que o amor do Pai tinha-O
enviado à missão que Ele haveria de cumprir sobre a terra. Isso não significava
o início do amor do Pai, como podia ser o início do amor de um pai por
alguém que resgatasse o filho de um afogamento. Ele já era o Objeto Eterno de
um Amor Eterno. Mas agora, em Sua natureza humana, dá um motivo
adicional para esse amor: a prova de Seu amor ao morrer. Visto que não
possuía pecado, a morte não tinha poder sobre Ele. Retomar Sua vida era parte
do plano divino tanto quanto o era entregá-la. Os cordeiros sacrificiais
oferecidos por séculos eram portadores do pecado por imputação, mas também
eram pacientes inocentes levados em ignorância ao altar. O sacerdote da Antiga
Lei impunha a mão sobre o cordeiro a fim de indicar que estava imputando
pecados sobre aquele que seria sacrificado. Jesus, contudo, assumiu
voluntariamente o pecado por causa da nova vida que concederia depois da
Ressurreição. Quando disse que dá a vida pelas ovelhas, o Senhor não queria
dizer apenas por causa delas, mas também no lugar delas. Depois da
Ressurreição, quando deu a Pedro o triplo mandato de apascentar Seus
cordeiros e ovelhas, Ele profetizou que Pedro teria de morrer pelo rebanho do
Senhor, como de fato veio a fazer.
O Pai O amava, disse o Senhor, não apenas porque entregou a vida, pois
os homens podem tornar-se vítimas de forças superiores. Se morresse sem
retomar a vida, Sua função teria cessado depois do sacrifício; teria sido apenas
uma linda memória. Mas o amor do Pai contemplava mais do que isso. Ele
também havia de retomar a vida e continuar a exercer os direitos reais. Ao
retomar a vida, ele seria capaz de continuar soberano em termos diferentes.
Essa ação dupla foi a ordem do Pai.
20 | Algumas versões trazem nesta passagem “filho do homem”, incluindo a tradução que
adotamos como padrão das citações bíblicas. (N. T.)
23
O FILHO DO HOMEM
Não há título que Nosso Senhor tenha usado com mais frequência para
descrever a Si mesmo que o de “Filho do Homem”. Ninguém jamais o chamou
por esse título, mas Ele o utilizou para Si ao menos umas oitenta vezes. Não se
chamava de “um filho do homem”, mas de “o Filho do Homem”. Sua
existência, tanto a eterna quanto a temporal, está nisso. Na conversa com
Nicodemos sugeriu que era Deus em forma de homem.
Uma vez que a verdade que veio trazer ao mundo estava reservada aos que
aceitaram Sua divindade e não era algo atrativo aos ouvintes, Ele nunca usou “o
Filho do Homem” como a fonte dessa verdade. A verdade que trouxe era a
verdade divina, derradeira e absoluta. Por isso, evitou usar o termo “Filho do
Homem” em relação a Sua natureza divina, que era una com o Pai.
Suspirava porque era o Sumo Sacerdote tocado por todas as “mil pelejas
naturais — herança do homem”.21 Lágrimas! Chorou três vezes porque a
humanidade chora. Quando viu outros chorarem, tal como Maria na dor pela
morte do irmão, sentiu o pesar como seu.
21 | William Shakespeare, Hamlet. Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo:
Editora Abril, 1976, Ato III, cena I. (N. T.)
24
CÉSAR OU DEUS
“Esse imposto que nós, fariseus, tanto detestamos, mas cuja legalidade os
herodianos defendem, deve ou não deve ser pago? Quem de nós está certo —
nós, os fariseus que o repudiamos, ou os herodianos que o justificam?”
Esperavam que Nosso Bendito Senhor respondesse ou “os herodianos” ou
“os fariseus”. Se respondesse “Não, não é legítimo pagar tributo a César”, então
os herodianos O teriam entregado às autoridades romanas, que por sua vez O
condenariam à morte por conspirar uma revolução. Se dissesse “Sim, é
legítimo”, então desagradaria aos fariseus, que iriam diante do povo e diriam
que Ele não era o messias, pois nenhum messias, ou libertador, ou salvador,
consentiria que o povo entregasse o pescoço ao jugo do invasor. Se se recusasse
a pagar o tributo, seria um rebelde; se concordasse em pagá-lo, seria inimigo do
povo. Dizer “Não” faria dele um traidor de César; dizer “Sim” faria dele
inimigo da nação, um inimigo da pátria. Em qualquer dos casos, pareceria que
caiu numa armadilha. Os companheiros de viagem condená-Lo-iam por ser
inimigo do grande líder, César; os semirreligiosos o danariam por ser um
inimigo do país. A ardileza na pergunta foi intensificada pela fusão dos
elementos religiosos e políticos na história antiga de Israel; mas agora os dois
estavam separados. Como podia aplicar-se um padrão absoluto tanto a Deus
quanto a César?
A essa pergunta apresentada com tanta malícia, Nosso Divino Senhor
respondeu:
Responderam:
De César.
(São Mateus 22,21)
Nosso senhor não tomou partido, porque a questão básica não era Deus
ou César, mas Deus e César. Aquela moeda usada nas transações comerciais
cotidianas mostrava que eles já não eram independentes do ponto de vista
político. Naquela esfera da vida mais baixa, a dívida para com o governo
deveria ser quitada. Ele não fomentou aspirações de independência; não
prometeu ajuda e libertação. Aliás, era o dever deles reconhecer o domínio
presente de César, imperante Tiberio. A palavra grega usada no Evangelho para
“devolver” ou “dar” implicava um dever moral tal como São Paulo disse mais
tarde aos romanos, imperante Nerone:
Mais uma vez, Jesus estava dizendo que Seu reino não era deste mundo;
que a submissão a Ele não era incoerente com a submissão aos poderes
seculares; que a liberdade política não é a única liberdade. Aos fariseus que
odiavam César chegou a ordem: “Dai a César”; aos herodianos que tinham
esquecido de Deus em seu amor a César chegou o princípio básico: “Dai a
Deus”. Tendo o povo cumprido seu dever perante Deus, estariam agora na
presente condição de ter de servir também a César. Ele viera sobretudo para
restaurar os direitos de Deus. Como Jesus já lhes tinha dito antes, se buscassem
em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça, todas as demais coisas,
incluindo a liberdade política, lhes seriam acrescentadas.
Aquela moeda trazia a imagem de César, mas que imagem traziam os
questionadores? Era a imagem do próprio Deus? Era esta a imagem que Jesus
pretendia restaurar. Por ora, a política podia permanecer como estava, pois ele
não ergueu um dedo para mudar sua cunhagem. Mas daria a vida para fazê-los
dar a Deus o que é de Deus.
A VERDADEIRA LIBERDADE
Assim como na ordem mecânica um homem é mais livre para operar uma
máquina quando sabe a verdade sobre ela, também, espiritualmente, é mais
livre um homem cuja mente é iluminada por aquele que disse “Eu sou a
verdade”.
Os ouvintes ressentiram-se do que lhes parecia uma sugestão de que eram
escravos.
Ele, o Filho, veio entre aqueles que eram escravos do pecado para libertá-
los, não politicamente, mas espiritualmente. Essa libertação restituiria os
escravos do pecado à casa do Pai. Nenhum escravo precisa suportar para
sempre a tirania do pecado, porque há Aquele que os redimirá do mal. Haverá
libertação de uma casa para a outra. Para que soubessem que Ele era Aquele
que levaria a efeito essa redenção, Jesus disse:
O Filho não é outro senão aquele que fala, o próprio Cristo, e pode
libertar os homens do pecado, precisamente porque vem do Pai. O próprio
libertador deve ser livre; se Ele estivesse de algum modo escravizado pelo
pecado, não poderia libertar. As portas da prisão do mal só podiam ser
destrancadas do lado de fora e por aquele que não fosse um prisioneiro.
Não havia nada novo nesta proclamação de que Ele veio para emancipar
do pecado e dar a seus seguidores a “gloriosa liberdade dos filhos de Deus”. Seu
primeiro discurso público em sua cidade natal foi a mensagem da salvação.
Ele sabia que Pedro deu uma resposta afirmativa ao coletor de impostos.
A pergunta implicava que Pedro perdera a visão, por um momento, da
dignidade de seu Mestre, que era o Filho em sua própria casa, o Templo, e não
um servo na casa de outrem. Foi mais ou menos a mesma ideia que Nosso
Bendito Senhor enfatizou quando falou com os fariseus. Disse-lhes que eram
escravos, não apenas de um poder político, mas do pecado, e ele estava
interessado apenas em livrá-los dessa servidão do pecado. Ao que Pedro
respondeu:
Dos estrangeiros.
Jesus replicou:
Os filhos, então, estão isentos.
(São Mateus 17,25)
22 | Na tradução desta passagem na Bíblia de Jerusalém, lê-se: “Mas, para que não os
escandalizemos, vai ao mar e joga o anzol” (São Lucas 17,27). A associação para a qual o
autor chama atenção é esta marcada pelo verbo no plural, abarcando Pedro e o próprio
Jesus. (N. T.)
25
Quando Nosso Senhor declarou ser Ele mesmo o Filho de Deus e uno com o
Pai dos Céus, os inimigos atentaram contra Sua vida. Quando disse aos
apóstolos que deveria ser crucificado e ser o Filho do Homem sofredor, eles
discutiram tanto com Ele como entre si pelo primeiro lugar no seu Reino.
Divindade e um salvador que sofre eram, ambos, abomináveis para os
homens não regenerados; a divindade porque o homem, em segredo, quer ser
seu próprio Deus; o sofrimento, porque o ego não compreende por que uma
semente deve morrer antes de brotar em vida nova. O Filho de Deus se tornou
pedra de tropeço quando Se humilhou ao nível humano, tomando sobre Si a
forma e o hábito do homem. É difícil para a inteligentzia acreditar que a
grandeza pode ser tão diminuta. Por outro lado, o Filho do Homem Se tornou
um escândalo quando tomou para Si a fraqueza e, até mesmo, a culpa do
homem e não usou o poder divino para escapar da Cruz.
Foram feitos vários ataques à Sua vida, a maioria durante uma das grandes
festas, mas sempre após ter proclamado Sua divindade. O primeiro ataque foi
em Nazaré. Todo homem tem a própria terra, o próprio lar e os próprios
parentes. É entre esses que deveria ser amado e relembrado. No entanto,
conforme Nosso Senhor adiantava-Se para a Cruz, a velocidade foi acelerada
pela rejeição por Sua própria cidade natal.
NAZARÉ
Essa passagem era familiar aos judeus. Era uma profecia do Antigo
Testamento a respeito da libertação dos judeus do cativeiro da Babilônia.
Entretanto, Ele fez uma coisa nada usual: tomou esse texto elaborado no exílio,
enrolou-o ao redor de Si. Trocou o significado do “pobre”, do “escravizado” e
do “cego”. Os “pobres” eram os que não possuíam a graça e careciam de união
com Deus; os “cegos” eram aqueles que ainda não tinham visto a Luz e os
“escravizados” os que não tinham adquirido a verdadeira libertação do pecado.
Ele, então, proclamou que todos esses concentravam-se Nele.
Sobretudo, declarou o jubileu. O código mosaico determinava que para
cada cinquenta anos, um fosse de graça especial e restauração. Todos os débitos
eram remidos; as heranças de família que tinham, pela pressão do tempo, sido
vendidas retornassem aos antigos donos; aqueles que hipotecaram a autonomia
fosse-lhes restaurada a liberdade. Era uma salvaguarda divina contra os
monopólios e isso mantinha a vida familiar intacta. O ano jubilar foi para Ele
um símbolo da própria aparição messiânica que proclamou porque fora ungido
com o Espírito para fazê-lo. Haveria novas riquezas espirituais, uma nova luz
espiritual, uma nova liberdade espiritual, todas centradas nele — o evangelista,
o médico, o emancipador. Todos os que estavam na sinagoga fixaram os olhos
Nele. Então, vieram as palavras alarmantes, explosivas:
Para dar abrigo às suas almas, pois a autoestima deles estava ferida, e se os
seus não o receberam, ele buscaria a salvação em outro lugar. Colocou-se na
categoria dos profetas do Antigo Testamento, que não receberam, eles mesmos,
melhor tratamento. Citou dois exemplos do Antigo Testamento. Ambos eram
um prenúncio da direção que Seu evangelho estava por tomar, a saber, abraçar
os gentios. Disse-lhes que havia muitas viúvas entre o povo de Israel nos dias de
Elias, quando uma grande fome caiu sobre a terra e, quando os céus se
fecharam por mais de três anos. No entanto, Elias não foi mandado para
nenhum desses; foi enviado para uma viúva de Sarepta, na terra dos gentios.
Ao tomar outro exemplo, contou que havia muitos leprosos na época de Elias,
mas nenhum deles, exceto Naamã, o sírio, foi curado. A menção de Naamã foi,
em particular, humilhante porque ele, primeiro, fora um infiel, mas depois
acreditou. Já que ambos eram gentios, Jesus sugeriu que os benefícios e bênçãos
do reino divino viriam em resposta à fé, e não em resposta à raça.
Deus, disse-lhes, não deve nada a homem algum. Suas misericórdias
passam para outros povos se os seus lhe rejeitam. Os concidadãos foram
recordados de que foram suas expectativas terrenas de um reino político que os
impediu de verificar a grande verdade de que o céus os visitara na pessoa de
Jesus. A própria cidade natal se tornou o palco em que foi alardeada a salvação,
não de um sangue, de uma nação, mas de todo o mundo. As pessoas estavam
cheias de indignação, antes de mais nada porque Ele afirmara trazer a
libertação do pecado como o santo ungido de Deus; em segundo lugar, por
causa da advertência de que a salvação, que primordialmente era dos judeus,
por rejeição, passaria a ser uma missão aos gentios. Os santos nem sempre são
reconhecidos por aqueles que com eles convivem. Eles o expulsariam, pois lhes
havia rejeitado e tornado, Ele mesmo, o Cristo. A violência do povo era a
preparação para a Cruz.
Nazaré fica em meio aos montes. À curta distância dali, ao sudoeste, havia
uma parede de pedra com cerca de 25 metros de altura em um declive de uns
noventa metros até a planície de Esdrelon. É aí que a tradição diz ser o cenário
onde tentaram expulsá-lo.
BETESDA
Com a ordem, veio a outorga do poder. Sempre que o homem tenta fazer
o que sabe ser a vontade do mestre, um poder equivalente ao seu dever lhe é
dado. Santo Agostinho disse: “concede-nos o que tu pedes e manda o que for
do teu agrado”. Logo que o homem foi curado, foi ao templo. Mais tarde, no
mesmo dia, Nosso Senhor o encontrou lá, enquanto o homem curado contava
a todos que fora Jesus quem o recuperara. O problema começou a formar-se
porque aquele era o dia do Shabat. Quando os líderes do povo descobriram o
homem que foi curado, disseram-lhe:
Então começou a surgir uma má vontade para com Jesus “porque fazia
esses milagres no dia de sábado” (São João 5,16). Nosso Senhor curou homens
em todos os dias, mas os sábados eram os grandes dias de graças em que seis
milagres foram registrados: expulsou um espírito imundo (São Marcos 1,21-
28); restaurou a mão seca de um homem (São Marcos 3,1-6); endireitou a
mulher que andava curvada (São Lucas 13, 10-17); curou um homem
hidrópico (São Lucas 14, 1-6) e abriu os olhos de um cego de nascença (São
João 9,1-16).
Muitas respostas foram dadas aos líderes do povo acerca da cura aos
sábados. Recordou os ensinamentos dos profetas de que as coisas sagradas eram
de importância secundária comparadas aos benefícios do povo de Deus; depois,
alegou a lei, para demonstrar que o sábado era secundário à obra do santuário.
A sugestão era haver entre eles alguém maior que o santuário. Mais uma vez,
disse que o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado. Em
outra ocasião, perguntou:
Hipócritas!, disse-lhes o Senhor.
Não desamarra cada um de vós no sábado
o seu boi ou o seu jumento da manjedoura,
para os levar a beber?
(São Lucas 13,15)
É verdade que Deus descansou a vida inteira de sua obra criativa, embora
o sétimo dia não tenha sido necessário para sua recuperação. Entretanto, foi
necessário para o homem repousar e santificar o sétimo dia, porque o trabalho
cansa; e na presente dispensação o trabalho também é uma penalidade. O
Salvador, contudo, disse que embora Deus tivesse repousado de sua obra
criadora, não descansou de Seu trabalho providencial para suprir a necessidade
de suas criaturas. Como disse São Crisóstomo:
JERUSALÉM
Outro ataque à sua vida ocorreu em Jerusalém durante a festa dos
Tabernáculos. Fora questionado a respeito de como sabia tantas coisas.
Deu a entender que Abraão esperava com alegria ver o que Nosso Senhor
chamava de “dia de minha vinda”. Notem que Ele não disse “de meu
nascimento”. Quando eles o desafiaram de que ainda não tinha cinquenta
anos, era para indicar não tanto sua idade, mas a impossibilidade física de ele
nunca ter visto Abraão. A presunção era a de Jesus ser apenas um homem.
Nosso Senhor agora usava a mesma palavra que fora usada por Deus no monte
Sinai “Eu sou aquele que sou” (Êxodo 3,14). Ele não disse “antes que Abraão
fosse, eu sou”, mas “antes que Abraão viesse a existir, eu sou”. Está atribuindo a
si mesmo não uma simples prioridade acima de Abraão, mas uma existência
desde toda a eternidade. Um momento antes, dissera que sua vida encarnada
teve a mais entusiástica atenção de Abraão, ao olhar por sobre as orlas das eras
para vislumbrar o cumprimento das promessas. Muito antes da época de
Abraão, tinha prioridade de Ser, não ser criado, mas ser incriado, eterno e
autoexistente, que não se move à maior perfeição porque já a possui. Houve
uma época em que Abraão não existia, mas nunca houve época em que o Filho
de Deus não existisse. Cristo não estava a reivindicar que viera à existência
antes de Abraão, mas que absolutamente nunca viera à existência. Ele é o “eu
sou” do antigo Israel, o “eu sou” sem passado ou futuro; o “eu sou” sem
princípio nem fim, o grande e eterno “agora”.
Porque compreenderam que Ele estava a dizer que era Deus:
A essas palavras, pegaram então em pedras
para lhas atirar. Jesus, porém,
se ocultou e saiu do templo.
(São João 8,59)
NOVAMENTE JERUSALÉM
Em grego, a palavra “um” é neutra, o que significa não uma pessoa, mas
uma substância, uma natureza. Seu Pai; ele, o Filho e o Espírito Santo eram
um na natureza de Deus. Os líderes do povo estiveram a buscar por um
Messias enviado para instituir seu reino, mas nos últimos séculos, com a
diminuição da profecia, as esperanças degeneraram na busca por um libertador
político. Não buscavam uma vivência íntima verdadeira de uma pessoa divina
entre eles. Era-lhes claro que o Cristo, ou o Messias, era o Filho de Deus que
partilhava da natureza do Pai, embora em Sua natureza humana, ou como o
Filho do Homem, o Pai fosse maior do que ele. Agora reafirmava o que dissera
sobre ser antes de Sua natureza humana ser formada; saíra do Pai para assumir
a natureza humana; revestir-se dela. Ele, como pessoa divina, estava ciente de
não existir mudança em Sua natureza divina. O que tivera um princípio fora
Sua natureza humana surgida como “o servo sofredor”. Quando, nesse
momento, afirmou sua divindade, os judeus:
A resposta de Jesus foi: ainda que um simples homem não pudesse ser
Deus, Deus podia se tornar homem, ainda permanecendo Deus.
23 | São João Crisóstomo, Homilia 38 sobre São João 5,17. (N. T.)
26
Nosso Bendito Senhor nunca operou milagres por Si mesmo, mas como
credenciais de sua pessoa. Eram sinais manifestos de que tinha uma missão
especial para realizar a obra de Deus entre os homens. Até mesmo no antigo
testamento houve milagres exigidos como sinal para confirmar a palavra de um
profeta. Era uma marca de incredulidade em Acaz que ele não pedisse a Deus
um sinal de confirmação da palavra do profeta. Mas o profeta, não obstante,
deu-Lhe um sinal do messias, a saber, o nascimento virginal (Isaías 7,17).
Os milagres de Nosso Bendito Senhor moviam-se na esfera da redenção.
Não eram meras manifestações de poder, mas um indício da libertação do
homem de algo, isto é, do pecado. Por isso, na ordem moral, houve milagres de
redenção da tirania dos demônios; na ordem física, a redenção de outras
manifestações do pecado, tais como a febre, a paralisia, a lepra, a cegueira e a
morte; a redenção da natureza no domínio dos mares e na subjugação dos
ventos.
Sem incluir resumos dos milagres, que são numerosos, há vinte milagres
mencionados em Mateus, vinte em Lucas, 18 em Marcos e sete em João.
Ninguém pode dizer quantos milagres o Senhor operou, pois muitos deles são
mencionados coletivamente, tais como “Curou doentes, cegos e aleijados”. As
últimas palavras do Evangelho de João são:
Os milagres não são a cura para a incredulidade. Alguns não creriam nem
mesmo se diariamente alguém fosse ressuscitado dos mortos. Não se podia
realizar nenhum sinal que trouxesse plena convicção, pois a vontade pode
recusar-se a reconhecer aquilo que o intelecto sabe ser verdade. Os fariseus
admitiram:
Ú
Não haveria nada de arbitrário no juízo que Ele presidiria no Último Dia;
as palavras gloriosas de graça seriam investidas de autoridade judicial. Essa
profecia de como todos os homens seriam julgados por Sua atitude diante Dele
devia-se ao fato de Ele ser enviado de Deus. Sua humanidade começou no
tempo, e era de uma ordem e grau mais baixos que sua divindade, que Ele
compartilhava com o Pai; daí, a rejeição Dele em sua natureza humana ser a
rejeição do Pai que o enviou. Por ora, no entanto, Ele não veio para julgar, mas
para salvar o mundo.
Embora não acreditassem Nele, como profetizara Isaías, Nosso Senhor
tinha em Sua aljava uma flecha que convenceria os homens de que era de fato o
Salvador.
A Cruz teria tal apelo que atrairia todos os homens, não apenas aqueles a
quem Jesus falava, pois seu reino havia de ser o próprio mundo. Sua morte
cumpriria o que sua vida não foi capaz de cumprir, pois nela havia mais que
heroísmo e devoção. O que atrairia não seria a rendição à morte, mas a
revelação do coração do amor divino. O amor de Deus fez-se visível no
sacrifício. No Calvário, ele se mostraria homem, ao morrer como qualquer
outro; mas se mostraria divino ao morrer como nenhum outro homem. Vinte
anos mais tarde, São Paulo repetiria: “Pregamos a Cristo, e este crucificado” (1
Coríntios 1,23). Só o divino pode conquistar o homem, e a manifestação mais
sublime do amor divino é morrer por nossa culpa para que possamos viver.
“Deus amou o mundo de tal maneira...” (São João 3,16). Essa atração a si dar-
se-ia por meio dos encantos do amor.
A Cruz, que era o ponto focal de sua vinda, tornava-se agora um juízo do
mal do mundo.
Embora os homens não cressem nos milagres de Jesus, ele ainda tinha a
flecha mais poderosa em sua aljava. Ela estava sendo levantada da terra. O
levantamento era o Calvário, mas a atração de todos os homens a si confiava na
Ressurreição e na Ascensão, pois decerto um Salvador morto não poderia atrair
ninguém. A Cruz que o levantou sobre a terra, e a Ascensão que o ergueu aos
céus, livrá-Lo-iam de todas as ataduras terrenas, carnais, nacionais, e capacitá-
Lo-iam a exercer a soberania universal sobre o homem. Uma vez crucificado,
Ele prometeu tornar-se um ímã de atração, trazendo todas as nações, e povos, e
línguas para Si. Nunca disse que seus preceitos morais trariam os homens até
Ele. Antes, isso aconteceria quando fosse violentamente erguido da terra, como
se a terra que Ele criou e aqueles que estavam sobre ela não tivessem parte com
Ele.
Visto que a mesma palavra, “levantado”, é usada para sua Ascensão, Ele
implicou que, uma vez exaltado aos céus, não seriam apenas os judeus, mas
gentios, ou “todos os homens” que Ele atrairia para si.
A atração da Cruz não seria sua ignomínia, que, sozinha, é vista na Sexta-
Feira da Paixão, mas também seu amor e vitória, que são vistos na Páscoa e na
Ascensão. Algumas religiões atraem pela força das armas; ele atrairia pela força
do amor. A atração não seriam suas palavras, mas Ele mesmo. Era em torno de
Sua pessoa que o ensino estava centrado; e não o Seu ensino em torno do qual
Ele seria lembrado. “Ninguém tem maior amor que este” — este era o segredo
de seu magnetismo. Como diz Blake:
Wouldst thou love One Who did not die for thee?
And wouldst thou die for One Who did not die for thee?
Se ele tivesse vindo para algum outro propósito que não a Redenção do
pecado, não seria o crucifixo, mas um retrato de Cristo no Monte como mestre
que seria usado em honra dele. Se a Cruz não fosse enfim glória e triunfo, os
homens teriam posto um véu sobre aquela hora ignominiosa para a qual Ele
apontava. Se tivesse morrido numa cama, Ele poderia ser honrado, mas nunca
como Salvador. Só a Cruz podia mostrar que Deus é plenamente santo e,
portanto, odeia o pecado; a Cruz também mostrava que Deus é plenamente
amoroso e, portanto, morreu pelos pecadores, como se fosse culpado.
Neste momento, a multidão fez-lhe uma pergunta esquisita:
Nós temos ouvido da lei que o Cristo permanece para sempre.
Como dizes tu: Importa que o Filho do Homem seja
levantado?
Quem é esse Filho do Homem?
(São João 12,34)
O motivo pelo qual Nosso Senhor não passou mais tempo corrigindo-lhes
o escândalo em seu sacrifício foi que eles já se tinham escandalizado com as
profecias do Antigo Testamento, com os milagres e com a obediência a Sua
Palavra. Por ora, Ele tirou os olhos do Calvário e repousou-os sobre a
consciência deles. Com piedade e ternura, convidou-os a examinarem-se a Si
mesmo sob sua luz, enquanto caminhava entre eles. Este foi seu
pronunciamento público final e de despedida, a saber, uma advertência quanto
às trevas vindouras e um convite a aceitar não uma verdade, mas a Verdade.
Mas ele não apareceu. O sol estava prestes a eclipsar-se; era como fosse
noite. A Hora estava às portas.
27
Grandes mestres dão instrução a seus discípulos, mas algum mestre já fez de
sua morte modelo para os discípulos? Isso é impossível porque nenhum mestre
terreno pode antever a maneira como morrerá, nem a morte jamais foi o
motivo por que veio ensinar. Sócrates, em toda sua sabedoria, nunca disse aos
jovens filósofos de Atenas que bebessem cicuta porque morreria assim.
Entretanto, Nosso Senhor fez de Sua Cruz a base da primeira instrução aos
apóstolos. Foi por esse fato muitas vezes escapar, e por, no momento, escapar
aos próprios apóstolos, que a verdadeira visão de Cristo é anuviada. Mesmo ao
agir como mestre, fez a Cruz lançar sua sombra sobre os apóstolos. Os
sofrimentos que teriam de suportar seriam idênticos aos que Ele suportaria.
Fora chamado de Cordeiro de Deus, aquele que seria sacrificado pelos pecados
do mundo, e já que eles se identificavam com Jesus, Ele os advertiu sobre a
sina:
Eles O aceitariam como um milagreiro pelo que viam, mas não como a
luz de suas almas. O Senhor não se daria a credulidade alguma tendo por base,
apenas, o espetacular. Por saber que a popularidade dele tornar-se-ia
popularidade contrária em um período de cinco dias, disse aos apóstolos:
Como não tinha ilusão alguma a respeito do que lhe faria o mundo, da
mesma maneira não guardava ilusão acerca daqueles que seriam intimamente
relacionados consigo, como ramos de uma parreira. Nenhum sábio ou místico,
nenhum Buda ou Confúcio jamais acreditou que seus ensinamentos
despertariam tamanho antagonismo dos homens a ponto de ocasionar-lhe a
morte violenta. Mais importante ainda, nenhum mestre humano jamais
acreditou que seus discípulos sofreriam desígnio similar, somente por serem
discípulos. A mediocridade nunca suscita tamanho ódio. Os animais, em geral,
não destroem a própria espécie; nem o homem, nas relações cotidianas.
Entretanto, o homem, por ser o meio áureo entre matéria e espírito, tem a
capacidade, contudo, de destruir ambos; arranca as plantas pelas raízes e abate
os animais que lhes são inferiores. Todavia, também pode odiar e até mesmo
matar o que quer que esteja acima de si em dignidade. Se, por orgulho,
considerar Deus como uma provocação, negar-Lo-á; e se Deus se tornar
homem e, portanto, se fizer vulnerável, crucificá-Lo-á. No entanto, Nosso
Senhor não hesitou em pintar a crucifixão microcósmica para seus seguidores,
visto que pintou uma crucifixão macrocósmica para Si mesmo.
Ao que é do mundo o mundo nunca se opõe. Ao que é de Deus, o
espírito do mundo opõe-se, maldiz, persegue e crucifica. O preço do resgate
que pagaria pela humanidade o levaria a dois tribunais de justiça distintos. No
intervalo entre os julgamentos, seria flagelado. Igualmente, os apóstolos e todos
os sucessores ao longo dos séculos não devem esperar nada melhor:
Havia uma justificativa para o mal que lhes fora feito; e todas as coisas
ocultas seriam reveladas. A misericórdia de Deus que vela pelos pardais e conta
os cabelos da cabeça tinha-lhes sob um olhar atento e providente. Advertiu-lhes
que não fossem “discípulos secretos”, que deixassem de se expor ao perigo, nem
que fossem exageradamente “progressistas” ao confessar sua divindade. Ao
tornar-se mais audacioso enquanto ostentava a Cruz diante deles, voltou à
analogia da espada. Não seria um pacifista externo; tampouco eles o seriam.
Quando O proclamassem, evocariam a oposição e, assim, fariam com que
todos os inimigos do bem desembainhassem suas espadas:
Portanto, quem der testemunho de mim diante dos homens,
também eu darei testemunho dele
diante de meu Pai que está nos céus.
Aquele, porém, que me negar diante dos homens,
também eu o negarei diante de meu Pai que está nos céus.
Não julgueis que vim trazer a paz à terra.
Vim trazer não a paz, mas a espada.
(São Mateus 10,32-34)
A cruz não foi um acidente em Sua vida, e não o seria na vida de seus
seguidores.
28
OS PAGÃOS E A CRUZ
Cristo, o Filho de Deus, veio ao mundo para salvar todos os homens, todas as
nações e todos os povos. Conquanto fosse este seu objetivo supremo, seu plano
era, num primeiro momento, limitar o Evangelho aos judeus. Mais tarde sua
missão tornou-se universal, a fim de abarcar também todo o mundo pagão.
Rogavam-lhe encarecidamente.
(São Lucas 7,4)
O primeiro pagão que recebeu tal louvor de Nosso Senhor Divino por sua
fé era um “daqueles filhos de Deus” esparsos no mundo, que haviam de ser
trazidos à unidade por meio da Redenção.
O segundo milagre realizado por Nosso Senhor a um pagão foi a cura da
filha da mulher siro-fenícia. A relutância em operar um milagre para o
centurião estivera apenas implicada, mas aqui Ele se recusa explicitamente,
talvez para extrair a fé da mulher. O milagre aconteceu na vizinhança de Tiro e
Sidônia. São Crisóstomo e outros comentadores pensaram de fato que Nosso
Senhor tinha ultrapassado as fronteiras do que mais tarde haveria de ser
conhecido como território de missões estrangeiras. A mulher é descrita como
vindo de Canaã e de descendência siro-fenícia. Ela estava, portanto,
completamente separada dos judeus. Quando pediu uma bênção para a filha, a
quem ela descreveu como “cruelmente atormentada por um demônio”, Nosso
Senhor
Ó
Ó mulher, grande é tua fé!
Seja-te feito como desejas.
(São Mateus 15,28)
Como José do Egito, que mostrou severidade a seus irmãos por breve
tempo, o Salvador não prolongou seu aparente desdém; concedeu a cura da
filha da mulher, mais uma vez à distância.
O terceiro contato com os pagãos ocorreu quando Nosso Senhor entrou
na região dos gerasenos. Um homem possuído por um espírito imundo saiu do
cemitério para encontrar-se com Ele. O presente cenário era a Decápolis, uma
região predominantemente gentílica. Josefo sugeria enfaticamente que Gerasa
era uma cidade grega. O próprio fato de que o povo ali fosse criador de porcos
parecia indicar que não eram judeus. Não se pode admitir que fossem judeus
que afrontavam a lei de Moisés.
Um simbolismo considerável pode ser vinculado ao fato de que, nesta
terra pagã, Nosso Bendito Senhor enfrentou forças de oposição muito piores
que aquelas que perturbavam as ondas, os ventos e os corpos dos homens.
Havia aqui algo mais selvagem, mais temível que os elementos naturais, algo
que podia trazer confusão, anarquia e arruinar o homem interior. Havia uma fé
autêntica no centurião e na mulher siro-fenícia. Mas não havia nada neste
jovem senão o domínio do diabo. Os outros dois pagãos falaram de seu coração
em honra de Nosso Salvador. Aqui, entretanto, estava um espírito estranho,
um espírito caído, que fez o jovem afirmar a divindade:
Até mesmo Sodoma, que fora sinônimo de tudo que era mau, teria um
juízo mais misericordioso que Israel, a quem a revelação estava incialmente
restrita.
Por fim, havia universalidade em poder, pois não havia pecado que a
redenção não pudesse apagar:
A CRESCENTE OPOSIÇÃO
A oposição e o ódio dos fariseus, dos escribas e dos líderes do templo a Nosso
Senhor cresceu de dentro para fora, como na maioria dos corações humanos.
Primeiro, odiaram-No em seus próprios corações; depois, expressaram esse
ódio aos discípulos; então, manifestaram seu ódio abertamente ao povo; e, por
fim, o ódio concentrou-se no próprio Cristo.
A má disposição dos próprios corações manifestou-se quando um homem
paralítico foi levado a Nosso Senhor em Cafarnaum. Em vez de realizar
imediatamente o milagre, Nosso Senhor perdoou-lhe os pecados. Uma vez que
a doença, a morte e o mal eram efeitos diretos do pecado, embora não
necessariamente do pecado pessoal de qualquer indivíduo, foi primeiro à raiz
da doença, a saber, o pecado, e perdoou-o:
Mais uma vez disse que “viera” ao mundo, não que nascera. Sempre há a
afirmação de que Ele não começou a existir no tempo, mas somente de que,
como Deus, tornara-se algo que não era, a saber, um homem. E a razão de Sua
vinda não foi escrever um novo código moral; veio fazer algo pelos pecadores.
Aqueles que, como os fariseus, se recusavam a admitir que estavam doentes
com o pecado não precisavam de Jesus como médico de almas. O cego que se
recusava a admitir a existência da luz nunca poderia ser curado. Nosso Senhor
não viera por simples adesão literal à lei cerimonial, entendida como
“sacrifício”, mas para erguer os caídos. Como médico, Ele não podia fazer o
bem àqueles que eram curiosos, ou que negavam a culpa ou a chamavam de
Complexo de Édipo; veio apenas para carregar os pecados, e, por isso, somente
os pecadores, e não os justos, tirariam proveito de Sua vinda.
O amor aos pecadores era uma coisa nova na terra. Se viesse para ser
apenas um mestre, teria escrito Sua lei como fizera Lao-Tsé, e teria dito aos
homens “aprendam e pratiquem”. Entretanto, uma vez que veio para ser um
salvador e dar a própria vida “como resgate”, convocou os homens a expiar o
mal.
A oposição tornou-se mais aberta depois que Nosso Senhor curou o surdo
endemoninhado. Ela deixou os círculos estreitos dos corações tenebrosos e
dirigiu-se ao povo para agitá-los contra Jesus. As multidões que viram os
milagres estavam cheias de admiração e diziam que nada parecido jamais fora
visto em Israel. Isso levou os fariseus a iniciar a blasfêmia:
Ora, eu vos declaro que aqui está quem é maior que o templo.
(São Mateus 12,6)
Essas palavras profundas eram blasfêmia para os fariseus, mas havia outra
afirmação do que dissera quando purificou o templo pela primeira vez em
Jerusalém, ao declarar que Seu corpo era o templo porque ali residia a
divindade. Nele a divindade abrigava-se corporalmente, e, em nenhum outro
lugar na terra, Deus poderia ser encontrado exceto escondido em Sua
humanidade. Portanto, se os apóstolos infringiram os regulamentos
cerimoniais, não tinham culpa, porque, sim, estavam a serviço do templo; mais
ainda, a serviço do próprio Deus.
Ao todo, por sete vezes acusaram-no de descumprir o Shabat. Ele os
desconcertou, certa vez, na sinagoga de Cafarnaum, após curar o homem com
a mão ressequida, ao dizer:
Não há nada mais débil que um caniço partido que, às vezes, é usado
pelos pastores para entoar melodias; nem há nada mais frágil que a chama
tremulante de uma vela; ainda assim, Ele não destruiria nenhuma dessas coisas,
tão manso era Seu caráter. Não reprimiria a menor aspiração a ele dirigida,
nem consideraria alma alguma sem finalidade. Uma chama fumegante não
pode mais iluminar um cômodo, mas nenhuma alma jamais seria considerada
um objeto ofensivo. O caniço rachado não pode produzir uma música doce,
mas nenhuma alma há de ser descartada como inútil e sem esperança de
responder às harmonias celestiais. O caniço rachado pode ser remendado, e a
chama fumegante pode ser reavivada por um poder e uma graça que lhes são
exteriores.
O Evangelho não poderia ter escolhido, em meio a tal conflito, ódio e
mordacidade, melhor momento para retratar a paciência, a gentileza e a
mansidão de Jesus do que durante as investidas dos escribas e fariseus. Eram de
partidos distintos, mas, porque encontraram um inimigo maior, uniram-se e
vieram até Ele dessa vez, com modos pouco educados, e perguntaram:
A RAPOSA E AS GALINHAS
A Cruz foi levantada mais uma vez pelos fariseus quando Nosso Bendito
Senhor estava na Galileia, no território de Herodes. Os fariseus, que haviam
tramado Sua morte, tentavam inquietar e perturbar o Mestre, dizendo:
Ele associa a honra e a glória a si mesmo, não como Messias, mas como
Filho de Deus, aquele que está unido com o Pai. Quando Nosso Senhor disse
que a doença de Lázaro não causaria morte, não queria dizer que Lázaro não
morreria, mas, antes, que o fim e o propósito da morte eram Sua própria
glorificação como Filho de Deus.
É muito provável que as irmãs tenham acreditado que, tão logo Nosso
Senhor recebesse a mensagem, correria para ficar ao lado de Lázaro. Entretanto,
ele ficou mais dois dias onde estava após receber a notícia. Se o último capítulo
da morte de Lázaro não tivesse sido escrito, pareceria que faltara compaixão a
Nosso Senhor Santíssimo. Acontece que esse foi um dos raros exemplos de
morte, doença e infortúnio em que o último capítulo estava escrito e que os
propósitos de Deus são vistos mesmo na Sua demora.
A distância que separava Nosso Senhor da casa de Lázaro era de cerca de
um dia de viagem. Se, portanto, permaneceu ainda dois dias a mais em Pereia e
se acrescentarmos mais um dia de jornada, ao todo teriam se passado quatro
dias desde o recebimento da notícia. As delongas de Deus são misteriosas. O
pesar, às vezes, é prolongado pelo mesmo motivo pelo qual é enviado. Deus
pode abster-se, por um momento, de curar; não porque o Amor não ame, mas
porque o Amor nunca deixa de amar e um bem maior virá da aflição. O relógio
dos céus é diferente do nosso. O amor humano, impaciente com atrasos, nos
insta à velocidade. A mesma morosidade ocorreu quando Ele estava a caminho
da casa de Jairo, cuja filha trouxe de volta à vida. Ali, Nosso Senhor Bendito,
em vez de apressar-se pelo caminho, usou um desses momentos preciosos para
curar uma mulher de um problema de sangramento, assim que ela tocou Suas
vestes na multidão. As obras do mal, às vezes, são feitas apressadamente. Nosso
Senhor disse a Judas para fazer “rápido” seu trabalho sujo.
Depois de dois dias, Nosso Senhor falou novamente sobre a família que
amava. Ele não disse “Vamos ver Lázaro” ou “Vamos a Betânia”, mas, em vez
disso, falou “Voltemos a Judeia”, cuja capital era Jerusalém, onde estava
concentrada a oposição a Ele. Quando os discípulos ouviram isso, imaginaram,
de imediato, as ameaças a Sua vida e os apedrejamentos em Jerusalém e
disseram a respeito dos fariseus e líderes do povo:
Nosso Senhor estava a testá-los. Poucas semanas antes, João dissera sobre
os inimigos:
Como era seu costume, afirmava uma verdade simples com duplo
sentido; um literal e outro, espiritual. O sentido literal era: existe a luz natural
do dia. Por cerca de 12 horas o homem trabalha ou empreende uma jornada, e,
durante essas horas do dia, o sol brilha em seu caminho. Se, porém, o homem
viaja ou trabalha à noite, tropeça ou atrapalha-se no trabalho. O sentido
espiritual estava no denominar-se Luz do Mundo. Assim como ninguém pode
impedir o sol de brilhar durante as determinadas horas do dia, da mesma
maneira, ninguém jamais pode reprimi-Lo ou pará-Lo em Sua missão. Muito
embora fosse para a Judeia, nenhum mal recairia sobre Ele até que o permitisse.
Enquanto a luz brilhasse sobre os apóstolos, nada teriam a temer, mesmo na
cidade dos perseguidores. Passara essa mesma ideia ao responder a Herodes
quando o chamou de raposa. Haveria um tempo em que ele permitiria que a
luz do mundo fosse apagada, e isso ocorreria quando dissesse a Judas e a seus
inimigos no Jardim das Oliveiras: “Esta é a vossa hora e do poder das trevas”
(São Lucas 22,53). No entanto, até que permitisse, os inimigos nada poderiam
fazer. O dia existe até a Paixão; a Paixão é a noite.
Quando Nosso Senhor disse que seu irmão levantaria novamente, Marta
admitiu que ele o faria, na ressurreição geral dos mortos, no último dia. Era
estranho que Marta não ouvisse ou recordasse o que Nosso Senhor havia falado
antes no templo:
Se Cristo tivesse dito “Eu sou a ressurreição”, sem prometer dar vida
espiritual e eterna, haveria somente a promessa de reencarnação em sucessivos
níveis de sofrimento. Se dissesse “Eu sou a vida”, sem dizer “Eu sou a
ressurreição”, haveria apenas a promessa de nossos desgostos contínuos.
Entretanto, ao combinar os dois, afirmou que Nele estava a vida que, ao
morrer, eleva-se à perfeição. Portanto, a morte não era o fim, mas o prelúdio da
ressurreição em novidade e plenitude de vida. Essa era a nova maneira de
combinar a Cruz e a glória, que perpassou como antífona o salmo de Sua vida.
No momento em que disse isso, andou em direção dos inimigos na Judeia.
Nosso Senhor Santíssimo estava relutante em utilizar a palavra “morte”, que
provava que toda a Sua vida estava contra isso. Empregou a mesma palavra a
respeito da filha de Jairo, como fez com Lázaro, a saber, estavam
“adormecidos”. Seria a mesma palavra que os seguidores de Cristo usariam a
respeito de Estêvão, ao afirmarem que ele “dormiu”.
Quando Nosso Senhor perguntou a Marta se ela acreditava que quem
quer que cresse Nele nunca morreria, ela respondeu:
É evidente que havia uma crença vaga de que Ele era o Messias, por conta
das outras maravilhas que operara. Na cruz também podiam admitir todos os
milagres, salvo, aparentemente, não poder descer dela. Agora estavam dispostos
a admitir todos os milagres, mas, certamente, se fosse o Messias, o Filho de
Deus, teria evitado a morte de Lázaro. Já que não o fez, logo, não era o Cristo.
Ignorou as provocações quando chegou à tumba em que estava Lázaro. Sugeriu
que a pedra fosse removida. Marta confirmou a morte certa de Lázaro ao dizer-
lhe:
Ela advertiu Nosso Senhor de que a condição do morto era tal que
abandonasse toda a esperança de ressurreição até o último dia. Quando,
porém, a pedra foi removida em obediência à ordem de Nosso Senhor, Este
voltou-se ao Pai Celestial em oração. A função da oração era que, por esse
milagre, todos que o vissem pudessem acreditar que o Pai e Ele eram um e que
o Pai O enviara ao mundo. Então:
Não havia dúvida sobre o fato da ressurreição; o problema era como evitar
que Ele se tornasse popular em virtude de tal poder. Tinha demonstrado
claramente por seus milagres que era o Cristo. No entanto, os milagres não são
a cura para a incredulidade. Alguns não acreditariam nem mesmo se todo dia
alguém se levantasse dos mortos. O raciocínio deles era curioso:
“Que Roma decida por Sua morte, não nós” foi seu argumento. “Não
teremos culpa por matar alguém tão amado pelo povo, e os romanos serão os
responsáveis”. Nosso Senhor se tornaria, assim, um grande bode expiatório
para aplacar a autoridade romana. A crucifixão desse homem apaziguaria César
e retiraria as suspeitas de que os judeus estavam revoltados com Roma.
Caifás quase não percebeu o significado de suas palavras, de que era
conveniente que um homem morresse pela nação em vez de deixar que ela
perecesse. Séculos antes, a motivação dos irmãos de José era má quando o
lançaram no poço e o venderam como escravo, mas, não obstante, cumpriram
os propósitos de Deus, pois José, posteriormente, disse aos irmãos:
Com base no que sabiam de Nosso Senhor, pensavam que Ele teria
preferido dar aos pobres, em vez de mostrar glória a Seu Corpo, que havia de
ser partido para Redenção deles. A filantropia, ao menos no caso de Judas, era
mero pretexto para a avareza. Considerou-se desperdício aquilo que foi gasto
para honrar a Deus.
Nosso Divino Senhor imediatamente veio em defesa da mulher:
Deixa-a.
(São João 12,7)
Maria estava fazendo uma oferta ao Senhor como vítima pelos pecados do
mundo. A efusão do bálsamo era uma antecipação do embalsamento de Seu
Corpo. Pode ter sido inconsciente para Maria, como o fora inconsciente para
os Reis Magos, que também anteciparam a morte do Senhor, mas Este tornou
o inconsciente consciente. Seis dias antes de Sua morte, ela O ungiu para o
sepultamento. Os apóstolos não eram capazes de enxergar a morte do Senhor,
tantas vezes predita; mas essa mulher viu, enfim, a razão de Sua vinda — veio
não para viver, mas para morrer e tornar a viver. E ela há de ter visto além de
Sua morte — afinal não estava sentada com Lázaro, que fora trazido de volta à
vida por meio Daquele que chamava a Si mesmo de “a Ressurreição e a Vida”?
Então, respondendo à objeção acerca dos pobres, disse Nosso Senhor:
A ENTRADA EM JERUSALÉM
Era o mês de Nissan. O livro de Êxodo ordenava que nesse mês o cordeiro
pascal fosse escolhido e quatro dias depois levado para o local do sacrifício. No
Domingo de Ramos, o cordeiro era escolhido por aclamação popular em
Jerusalém; e na Sexta-Feira Santa era sacrificado.
Nosso Senhor passou o último Shabat em Betânia com Lázaro e suas
irmãs. Circulava, nesse momento, a notícia de que Ele chegaria a Jerusalém.
Em preparação para Sua entrada, enviou dois discípulos para o vilarejo, onde
fora dito que encontrariam um jumentinho amarrado, que nenhum homem
montara. Deveriam desamarrá-lo e levá-lo ao Senhor.
Talvez jamais tenha sido escrito paradoxo maior que este — de um lado, a
soberania do Senhor e, de outro, sua “necessidade”. Essa combinação de
divindade e dependência, de posse e pobreza, foi a consequência de o Verbo
fazer-se carne. Na verdade, Ele, que era rico, fez-se pobre por nossa causa, para
que pudéssemos ser ricos. Pegou emprestado de um pescador o barco do qual
pregou; tomou emprestado pães de centeio e peixes de um menino para
alimentar a multidão; pegou emprestado a tumba de onde ressurgiria; e, agora,
pegou emprestado um burrico, no qual entraria em Jerusalém. Às vezes, Deus
adquire antecipadamente e requisita as coisas do homem, como se lhe
recordasse que tudo é um dom Dele. Basta aos que O conhecem ouvir: “O
Senhor necessita disso”.
Ao aproximar-se da cidade, “grande multidão” veio ao seu encontro;
dentre eles estavam não só cidadãos, mas também os que tinham ido para as
festividades e, é claro, os fariseus. As autoridades romanas também estavam em
alerta durante as grandes festas para que não houvesse uma insurreição. Em
todas as ocasiões anteriores, Nosso Senhor rejeitou o falso entusiasmo do povo,
saiu dos holofotes da publicidade e evitou tudo o que mostrasse sinais de
exibição. Em uma das vezes:
O rei de Israel!
(São João 12,13)
Viu com precisão histórica a queda das forças de Tito e, ainda assim, os
olhos que viram o futuro tão claramente ficaram quase cegos pelas lágrimas.
Falou de Si mesmo como disposto e capaz de ter evitado aquela sina ao ajuntar
os culpados sob suas asas, como a galinha faz com os pintinhos, mas eles não o
fariam. Como o maior patriota de todos os tempos, olhou além do próprio
sofrimento e fixou o olhar sobre a cidade que rejeitou o Amor. Ver o mal e ser
incapaz de remediá-lo por conta da perversidade humana é a maior das
angústias. Ver a maldade e ser confundido pela rebelião do malfeitor é o
bastante para partir o coração. Um pai fica consternado pela angústia quando
vê o erro do filho. O que ocasionou as lágrimas nos olhos de Cristo foram os
olhos que não viram e os ouvidos que não ouviram.
Na vida de cada indivíduo e na vida de cada nação existem três
momentos: um tempo de visitação ou privilégio na forma de bênção de Deus;
um tempo de rejeição em que o divino é esquecido; e um tempo de ruína ou
desastre. O juízo (ou desastre) é consequência das decisões humanas e prova
que o mundo é guiado pela presença de Deus. Suas lágrimas pela cidade
mostraram-No como Senhor da História, dando graça aos homens e, ainda
assim, sem nunca destruir a liberdade deles de rejeitá-Lo. Entretanto, ao
desobedecê-Lo, os homens se destroem; ao apunhalá-Lo, é o próprio coração
que apunhalam; ao negá-Lo, é a própria cidade e nação que levam à ruína. Essa
foi a mensagem das lágrimas enquanto o Rei caminhava para a Cruz.
34
Não somente aos judeus, mas também aos gentios Nosso Senhor revelou o
propósito de Sua vinda, a saber, dar a vida por Suas ovelhas. Aos primeiros,
revelou-se como o cumprimento das profecias acerca de Sua vinda. Os gentios,
contudo, não tinham uma revelação como essa contida no Antigo Testamento;
portanto, para eles o Senhor traçou uma analogia com a natureza que podiam
de pronto compreender.
Isso se deu a menos de uma semana de Sua crucifixão. Ele já se mostrara
como Ressurreição ao levantar Lázaro dos mortos; cumprira para Seu próprio
povo uma profecia antiga a respeito de Sua entrada, humilde mas triunfal, em
Jerusalém. Agora era hora de ensinar os gentios acerca da razão de Sua vinda.
Os gentios aqui estavam representados pelos gregos, como mais tarde seriam
representados pelo eunuco etíope que aderira à religião do Antigo Testamento
e estava chegando a Jerusalém para os festejos. Como os gentios não se
submetiam à circuncisão, o acesso ao santuário lhes estava vedado, mas era-lhes
permitido que circulassem por um espaçoso pátio.
Os fariseus já haviam reclamado que “o mundo inteiro corria atrás Dele”.
Como prova disso, os gregos, ou as outras ovelhas que não eram do aprisco,
apresentaram-se ao Bom Pastor. Enquanto os inimigos planejavam matá-Lo, os
gregos queriam vê-Lo. Em Seu nascimento, os Sábios do Oriente foram à
manjedoura; agora, os gregos, que eram os Sábios do Ocidente, iam à Cruz.
Tanto os magos do Oriente quanto os magos do Ocidente haviam de ver uma
humilhação; no primeiro caso, Deus em forma de menino em Belém; no
segundo caso, Deus em forma de criminoso na Cruz. Como sinal notório da
compreensão de Sua divindade, apresentou aos magos a estrela; aos gregos, um
grão de trigo. Ainda há mais algumas semelhanças nas perguntas. Os gregos
disseram a Filipe:
Em Caná, Nosso Senhor dissera à mãe que Sua “hora” ainda não tinha
chegado; durante Seu ministério público nenhum homem pôde tocá-Lo,
porque Sua “hora ainda não tinha chegado”; mas aqui Ele anunciou, a poucos
dias da morte, que chegara o momento de ser glorificado. A glorificação
referia-se às mais baixas profundezas de Sua humilhação na Cruz, mas também
se referia a Seu triunfo. Não disse que estava próxima a hora de Sua morte, mas
a hora de ser glorificado. Ele uniu o Calvário e Seu triunfo, como o faria depois
da Ressurreição, quando falou aos discípulos no caminho de Emaús:
Nenhum bem real é feito sem algum custo e sofrimento a quem o realiza.
Assim como as impurezas legais mencionadas no Antigo Testamento, a
purgação e a purificação são feitas com sangue. O ato de dar vazão aos próprios
sentimentos ou de seguir cegamente os próprios instintos recebeu o golpe de
misericórdia nesse diálogo com os gregos. O que a Cruz põe em prática é a
autodisciplina e a mortificação do orgulho, da luxúria e da avareza; só assim,
disse Ele, corações duros serão quebrantados e pessoas aflitas alcançarão a paz.
Os gregos tinham vindo ao Senhor dizendo: “Quiséramos ver Jesus”,
provavelmente por causa da majestade e da beleza que tanto reverenciavam
como seguidores de Apolo. O Senhor, contudo, apontou Seu aspecto
maltrapilho que ofereceria uma vez na Cruz e acrescentou que somente haveria
beleza de alma na vida nova por intermédio da Cruz na vida deles.
Então parou por um momento quando Sua alma se perturbou com a
iminência da Paixão, de ser “feito pecado”, de ser traído, crucificado e
abandonado. Da profundeza do Sagrado Coração jorraram as seguintes
palavras:
São quase as mesmas palavras que Ele usou mais tarde no Jardim do
Getsêmani — palavras inexplicáveis, exceto pelo fato de que Ele estava
carregando o peso dos pecados do mundo. Era natural que Nosso Senhor
passasse por uma luta, visto que era um homem perfeito. Mas não eram só os
sofrimentos físicos que O perturbavam; Ele, assim como os estoicos, filósofos,
homens e mulheres de todas as idades, podia ter estado calmo diante de
grandes provações físicas. Todavia, Sua perturbação era menos dirigida à dor, e
mais à consciência dos pecados do mundo que exigiam tais sofrimentos.
Quanto mais amava aqueles de quem Ele era propiciação, tanto mais
aumentava sua angústia, do mesmo modo que são as faltas do amigos, mais
que as dos inimigos, que mais perturbam o coração!
Decerto Ele não estava pedindo para ser salvo da Cruz, uma vez que
repreendeu os apóstolos por tentarem dissuadi-Lo. Dois polos opostos estavam
unidos Nele, separados apenas no discurso: o desejo de libertação e a submissão
à vontade do Pai. Ao desnudar a própria alma, disse aos gregos que o sacrifício
de Si mesmo não era fácil. Não tinham de ser fanáticos quanto a desejar
morrer, pois a natureza não quer crucificar a si mesma; por outro lado,
tampouco deveriam afastar os olhos da Cruz, tomados de pavor. Em seu
próprio caso, agora como sempre, os momentos mais penosos convertiam-se
nos mais jubilosos; nunca há cruz sem ressurreição; a “hora” em que o mal
exerce seu domínio transforma-se rapidamente no “dia” em que Deus é
vencedor.
Suas palavras eram um tipo de solilóquio. A quem Ele se voltaria nesta
hora? Não aos homens, pois são eles que precisam da salvação! “Só o Pai que
me enviou nesta missão de resgate pode me sustentar e me libertar! Não pedirei
que me liberte. Esta é a hora para a qual o tempo foi feito; para a qual Abel,
Abraão e Moisés apontaram. É chegada a hora da provação à qual devo
submeter-me”.
No exato momento em que falava da chegada desta hora a que devia
submeter-se para a redenção dos homens
A voz do Pai viera ao Senhor em duas outras ocasiões em que Sua missão
perante a Cruz era o principal: no batismo, quando apareceu como o Cordeiro
de Deus a ser sacrificado pelo pecado; e na transfiguração, quando falou de sua
morte a Moisés e Elias, enquanto banhado em glória radiante. Agora a Voz
veio, não à margem do rio, nem no topo da montanha, mas acima do templo,
a plenos ouvidos também dos representantes dos gentios. “Já o glorifiquei”
podia referir-se à glorificação do Pai até o momento da morte de Jesus; “e
tornarei a glorificá-lo” podia referir-se aos frutos após a Ressurreição e
Ascenção. Possivelmente também, visto que Ele estava falando aos gentios no
pátio do templo dos judeus, a primeira parte podia ter-se referido à revelação
feita aos judeus; a segunda, aos gentios depois do Pentecostes.
Em cada uma dessas três manifestações, Nosso Senhor estava em oração
ao Pai, e Seus sofrimentos estavam predominantemente diante Dele. Nesta
ocasião, eram os efeitos de sua morte redentora que eram proclamados.
Essa era uma citação do Salmo 117 que lhes era muito familiar:
A ÚLTIMA CEIA
Algumas coisas na vida são lindas demais para se esquecer, mas também na
morte pode haver algo lindo demais para ser esquecido. Daí o Memorial Day,
nos Estados Unidos, um dia para lembrar os sacrifícios dos soldados pela
preservação da liberdade de seu país. Liberdade não é uma herança, mas uma
vida. Uma vez recebida, não segue existindo sem esforço, como uma pintura
antiga. Assim como a vida deve ser nutrida, defendida e preservada, também a
liberdade deve ser readquirida a cada geração. Soldados, todavia, não nascem
para morrer; a morte no campo de batalha é uma interrupção de seu chamado
à vida. No entanto, diferentemente dos demais, Nosso Bendito Senhor veio a
este mundo para morrer. Até mesmo no nascimento, Sua mãe foi lembrada de
que Ele veio para morrer. Nunca nenhuma mãe no mundo viu a morte
estender com tanta avidez os braços a um recém-nascido.
Quando Jesus ainda era apenas um bebê, o velho Simeão, fitando o rosto
Daquele que retrocedeu a eternidade e fez-se jovem, disse que Ele estava
destinado a ser “um sinal de contradição”, ou um sinal que despertaria a
oposição daqueles que são deliberadamente imperfeitos. A mãe, ao ouvir a
palavra “contradição”, quase podia ver os braços de Simeão desvanecerem-se e
em seu lugar aparecerem os braços descarnados da cruz a envolvê-Lo na morte.
Antes que Jesus completasse dois anos de vida, o rei Herodes enviou cavaleiros
marchando como trovões, com espadas reluzentes como relâmpagos, numa
tentativa de decapitar o bebê, enquanto ainda não era forte o bastante para
suportar o peso de uma coroa!
Uma vez que Nosso Divino Senhor veio para morrer, era natural que
houvesse um Memorial de Sua morte! Uma vez que era Deus, e também
homem, e uma vez que nunca falou de Sua morte sem falar da Ressurreição,
não deveria Ele mesmo instituir o Memorial de Sua morte em vez de deixá-lo à
memória casual dos homens? E foi exatamente isso que Ele fez na noite da
Última Ceia. O Memorial Day não foi instituído por soldados que previram a
própria morte, mas o Memorial do Senhor foi instituído, e isso é importante,
não porque Ele morreria como um soldado e seria sepultado, mas porque
voltaria a viver depois da Ressurreição. O Memorial seria o cumprimento da
Lei e dos profetas; seria um memorial em que haveria um Cordeiro sacrificado,
não para comemorar a liberdade política, mas a liberdade espiritual; acima de
tudo, seria o Memorial de uma Nova Aliança.
Uma Aliança ou Testamento é um contrato, um acordo ou um pacto, e a
Escritura refere-se a um pacto entre Deus e o homem. Na Última Ceia, Nosso
Senhor falaria do Novo Testamento, ou Nova Aliança, que é mais bem
compreendida em relação à Antiga. A Aliança de Deus com Israel como nação
foi feita por intermédio de Moisés. Foi selada com sangue, pois este era
considerado um sinal da vida; compreendia-se que aqueles que misturam o
sangue ou imergem as mãos no mesmo sangue tinham comunhão de espírito.
Nas Alianças entre Deus e Israel, Deus prometia bênçãos se Israel permanecesse
fiel. Entre as principais fases da Antiga Aliança estavam a de Abraão com o
direito de primogenitura, a de Davi e a promessa do reinado, e a de Moisés, em
que Deus mostrou poder e amor a Israel ao libertá-lo do Egito e prometer que
Israel seria para Ele um reino de sacerdotes. Quando os hebreus estavam
cativos no Egito, Moisés recebeu instruções para um novo rito.
Depois das pragas, Deus castigou os egípcios ainda mais, a fim de incitá-
los a libertar Seu povo, ferindo os primogênitos de cada casa egípcia. Os
israelitas haviam de salvar-se a si mesmos oferecendo um cordeiro e, depois de
mergulhar hissopo no sangue, aspergindo com ele os umbrais das portas. O
anjo de Deus, vendo o sangue, passaria de largo. O Cordeiro, portanto, era a
Páscoa, ou a passagem do anjo destruidor: ou seja, uma “passagem” que
garantia a segurança. Deus então ordenou sua continuação ano após ano.
Essa instituição do sacrifício do Cordeiro Pascal mencionada no Êxodo
foi seguida pela realização da Aliança com Moisés em que Deus fez de Israel
uma nação; era o nascimento dos israelitas como povo escolhido por Ele. A
Aliança era concluída com diversos sacrifícios. Moisés ergueu um altar com 12
colunas. Tomando o sangue do sacrifício, derramou metade dele sobre o altar e
a outra metade sobre as 12 tribos e sobre o povo com as seguintes palavras:
Eis, disse ele, o sangue da aliança que o Senhor fez convosco
[...]
(Êxodo 24,8)
Não disse “Isso representa ou simboliza Meu Corpo”, mas “Isto é o meu
corpo” — um corpo que seria partido na Paixão.
Então tomou o vinho nas mãos e disse:
Sua morte iminente, na tarde seguinte, foi posta diante deles de forma
simbólica ou não sangrenta. Na Cruz, Ele morreria pela separação de Seu
sangue e corpo. Daí não ter consagrado o pão e o vinho juntos, mas separados,
para anunciar Sua morte pela separação do corpo e do sangue. Nesse ato,
Nosso Senhor era o que seria na Cruz no dia seguinte: ao mesmo tempo,
sacerdote e vítima. No Antigo Testamento e entre os pagãos, a vítima, por
exemplo um bode ou uma ovelha, era separada pelo sacerdote que o oferecia.
Nesta ação eucarística e na Cruz, Ele, o sacerdote, oferecia a Si mesmo;
portanto, era também a Vítima. Desste modo, cumprir-se-iam as palavras do
profeta Malaquias:
Por essa comunhão foram feitos um com Cristo, para serem oferecidos
com Ele, Nele e por Ele. Todo amor almeja unidade. Assim como o ápice do
amor na ordem humana é a unidade de marido e mulher na carne, também a
unidade na ordem divina é a unidade da alma e Cristo na comunhão. Quando
os apóstolos, e posteriormente a Igreja, obedecem às palavras de Nosso Senhor
para renovar o Memorial e comer e beber Dele, o Corpo e o Sangue não seriam
aqueles do Cristo físico então diante deles, mas aquele do Cristo glorificado no
céu que continuamente intercede pelos pecadores. A salvação da Cruz, eterna e
soberana, é assim aplicada e atualizada ao longo do tempo pelo Cristo celestial.
Quando Nosso Senhor, depois de ter transformado pão e vinho em seu
Corpo e Sangue, disse aos apóstolos que comessem e bebessem, Ele estava
fazendo à alma do homem o que a comida e a bebida fazem ao corpo. A menos
que sejam sacrificados ao serem arrancados das raízes, os vegetais não podem
alimentar ou comungar com o homem. O sacrifício do que é mais ínfimo deve
preceder a comunhão com o que é mais elevado. Primeiro Sua morte foi
misticamente representada; depois, seguiu-se a comunhão. O mais baixo se
transforma no mais alto; os elementos químicos em vegetais; os vegetais em
animais; elementos químicos, vegetais e animais em homem; e o homem em
Cristo pela comunhão. Os seguidores de Buda não extraem força de sua vida,
mas apenas de seus escritos. Os escritos do cristianismo não são tão
importantes quanto a vida de Cristo, que, vivendo em glória, derrama sobre
seus seguidores os benefícios de Seu sacrifício.
A única nota que insiste em soar ao longo de Sua vida foi a morte e a
glória. Foi sobretudo por isso que Ele veio. Assim, na noite anterior à Sua
morte, Ele deu aos apóstolos algo que, ao morrer, ninguém mais poderia dar:
deu a Si mesmo. Só a sabedoria divina poderia ter concebido tal memorial!
Humanos, entregues à própria sorte, poderiam ter estragado o drama de Sua
Redenção. Com a morte do Senhor, poderiam ter feito duas coisas aquém do
Caminho da Divindade. Poderiam ter considerado Sua morte redentora um
drama apresentado uma vez na história, como o assassinato de Lincoln. Nesse
caso, teria sido apenas um incidente, e não uma Redenção — o fim trágico de
um homem, não a salvação da humanidade. Lamentavelmente, esse é o único
modo como muitos olham para a Cruz de Cristo, esquecendo-se da
Ressurreição e da efusão dos méritos da Cruz no Ato Memorial que Ele
instituiu e ordenou. Nesse caso, Sua morte seria apenas uma espécie de
Memorial Day e nada mais.
Ou poderiam tê-la considerado um drama representado uma vez, mas que
deve ser relembrado apenas por meio da meditação em seus detalhes. Nesse
caso, voltariam e leriam os relatos dos críticos do drama que vivenciavam à
época, a saber, Mateus, Marcos, Lucas e João. Essa seria apenas uma lembrança
literária de Sua morte, assim como Platão registra a morte de Sócrates, e teria
feito a morte de Nosso Senhor igual à morte de qualquer outro homem.
Nosso Senhor jamais disse a ninguém que escrevesse acerca de Sua
Redenção; todavia, com efeito, disse aos apóstolos que a renovassem,
aplicassem, celebrassem e estendessem pela obediência a Seus mandamentos
dados na Última Ceia. Ele queria que o drama do Calvário fosse encenado não
apenas uma vez, mas por todas as eras à sua própria escolha. Não queria que os
homens fossem leitores da história da Redenção, mas atores dela, oferecendo
seu corpo e sangue junto com o Dele na reencenação do Calvário, dizendo
com Ele: “Este é meu corpo e este é meu sangue”; morrendo para a natureza
inferior a fim de viver para a graça; dizendo que não se importam com a
aparência nem com as espécies de suas vidas como, por exemplo,
relacionamentos familiares, trabalho, afazeres, aparência física ou talentos, mas
que seu intelecto, sua vontade e sua substância — tudo que verdadeiramente
eram — transformar-se-iam em Cristo; que o Pai celestial, ao baixar os olhos
sobre eles, os veria no Filho, veria o sacrifício deles amalgamado com o
sacrifício de Cristo, as mortificações deles incorporadas à morte de Cristo, de
modo que, enfim, pudessem participar de Sua glória.
37
Dentro do breve intervalo de cinco dias aconteceram duas das mais famosas
abluções da história. No sábado anterior à Sexta-Feira Santa, uma Maria
penitente ungiu os pés de Nosso Divino Salvador; na quinta-feira da semana
seguinte, Ele lavou os pés dos discípulos. Sem mancha por ser o Salvador, seus
pés foram ungidos com nardo fragrante, mas havia ainda tanta poeira
mundana grudada nos pés dos discípulos que tiveram de ser lavados.
Sua mente voltou ao momento em que o Pai pôs todas as coisas em suas
mãos e o Filho saiu Dele. A hora de retornar, contudo, havia chegado. A
primeira parte de Seu ministério foi entre “os que não O receberam”; os
momentos finais seriam com aqueles “que O receberam”, aos quais asseguraria
que os amou “até o fim”.
A hora da partida é sempre uma hora de afeição ativa. Quando o marido
deixa a mulher para sair em uma longa viagem, há mais atos ternos de devoção
do que na presença contínua em casa. Muitas vezes Nosso Senhor Santíssimo
se dirigira aos apóstolos com as palavras: “meus irmãos”, “minhas ovelhas”,
“meus amigos”, “meus”, mas nessa hora Ele os chamou de “meus queridos”,
como se sugerisse uma espécie de relacionamento mais afetuoso. Estava prestes
a deixar o mundo, mas os apóstolos deveriam ficar, pregar Seu Evangelho e
instituir Sua Igreja. A afeição por eles era tamanha que nem todas as glórias do
céu ao abrir-se para recebê-Lo poderiam, por um momento, perturbar o amor
cálido e compassivo que sentia por eles.
Quanto mais próximo Ele ficava da Cruz, mais os apóstolos discutiam
entre si.
Nosso Senhor admitiu que, em certo sentido, Seus apóstolos eram reis;
também não lhes negou o instinto pela aristocracia, mas o instinto deles
deveria ser a nobreza da humildade; o maior tornando-se o menor. Levar essa
lição para casa. Recordou-os da posição que Ele mesmo ocupava como Mestre
e Senhor da mesa — e, contudo, alguém em que se tinham apagado todos os
traços de superioridade. Disse-lhes, muitas vezes, que não veio para ser servido,
mas para servir. Carregar o fardo de outros e, especialmente, a culpa foi o
motivo de se tornar “o servo sofredor” predito por Isaías. As palavras anteriores
sobre fazerem-se servos, nesse momento, foram reforçadas por Ele pelo
exemplo:
Não só os pés estavam sujos, mas até mesmo os atos de suas mãos e os
pensamentos de sua cabeça precisavam ser purificados. Em vez de persuadir-se
de que o pecado não tinha importância e que um senso de culpa era anormal,
Pedro, diante da Inocência, praticamente, bradou: “Impuro! Impuro!”
Quando Nosso Senhor terminou de lavar os pés dos apóstolos, pôs suas
vestes, sentou-se e ensinou-lhes a lição de que, se Ele, que era o Senhor e
Mestre, renunciara a Si mesmo e até à própria vida, então, eles, que eram seus
discípulos, deveriam fazer o mesmo.
JUDAS
Uma coisa era ser escolhido como apóstolo; outra era ser eleito para a
Salvação por meio da conformidade a suas obrigações. Entretanto, para que os
apóstolos soubessem que esta heresia, cisma ou queda em suas fileiras não era
inesperada, o Senhor citou o Salmo 40, a fim de mostrar que se tratava do
cumprimento da profecia:
O “um de vós” era alguém cujos pés o Senhor lavara, alguém a quem Ele
chamou para o ofício apostólico de espalhar Sua Igreja por todo o mundo após
a vinda de Seu Espírito, alguém cuja presença Ele suportou com tanta
paciência que nenhum dos demais apóstolos sabia de quem se tratava.
Judas deve ter sido bem esperto para ocultar sua torpeza e ganância do
conhecimento dos 11. Nosso Senhor, por outro lado, deve ter tratado Judas
com a mesma bondade amorosa dedicada aos demais, para manter oculto o
pecado dele. Nada podia ter perturbado sua paz de alma mais do que saber que
um deles desapontou o Príncipe da Paz.
Respondeu ele:
Aquele que pôs comigo a mão no prato, esse me trairá.
O Filho do Homem vai, como dele está escrito.
Mas ai daquele homem por quem o Filho do Homem é traído!
Seria melhor para esse homem que jamais tivesse nascido!
(São Mateus 26,23-24)
Judas estava livre para fazer o mal, como o comprova o remorso que
mostrou posteriormente. Assim também Cristo estava livre para fazer dessa
traição a condição de Sua Cruz. Os homens maus parecem ir contra a
economia de Deus e ser um fio errante na tapeçaria da vida, mas todas se
encaixam de alguma maneira no Plano Divino. O vento impetuoso sopra de
céus escuros, e em algum lugar há um veleiro para domá-lo e usá-lo a serviço
do homem.
Quando Nosso Senhor disse
Sua morte não seria um martírio, uma desgraça nem uma consequência
inevitável da traição. Quando o Pai falou de Seu Filho Divino no batismo no
Jordão, Nosso Senhor não disse que Ele mesmo era glorificado; nem no Monte
da Transfiguração, quando os céus se abriram mais uma vez, Ele falou disso,
mas nessa Hora — quando Sua Alma enfrentou o pranto, Seu Corpo, o
flagelo, Seu espírito, uma caricatura de justiça, Sua vontade, uma perversão da
bondade — Ele agradeceu ao Pai. O Pai seria glorificado por Sua morte
redentora, e Ele seria glorificado pelo Pai na Ressurreição e na Ascenção.
39
Amor é a relação normal dos ramos entre si, pois todos estão enraizados
na videira. Não haveria limites ao Seu amor. Certa vez, Pedro pôs um limite ao
amor ao perguntar quantas vezes deveria perdoar. Seriam sete? Nosso Senhor
disse-lhe setenta vezes sete, o que sugeria uma infinidade, e negou qualquer
cálculo matemático. Não devem existir limites ao amor mútuo, pois todos
devem perguntar-se: qual foi o limite do amor do Cristo? Não tinha limites,
pois Ele veio para entregar a própria vida.
Aqui, mais uma vez, falou do propósito de Sua vinda, a saber, a redenção.
A cruz é o principal. O caráter voluntário dela é enfatizado quando Ele disse
que entregou a vida; ninguém Lhe tiraria isso. Seu amor seria como o calor do
sol: os que estivessem mais próximos seriam aquecidos e felizes; os mais
distantes ainda reconheceriam sua luz.
Somente ao morrer por outrem poderia demonstrar seu amor. Sua morte
não seria como a morte de um homem por amor de outro, ou como a do
soldado por seu país, pois o homem que salva o outro deve, por fim, morrer de
algum modo. Ainda que grande o sacrifício, esse seria um pagamento
prematuro de uma dívida que havia de ser paga. Entretanto, no caso de Nosso
Senhor, Ele não precisava, de modo algum, morrer. Ninguém poderia tirar-Lhe
a vida. Embora chamasse aqueles pelos quais morreu de “amigos”, a amizade
era toda de Sua parte, e não da nossa, pois, como pecadores, somos inimigos.
Paulo, mais tarde, expressou bem isso ao dizer que Ele morreu por nós
enquanto éramos ainda pecadores (Romanos 5,8).
Os pecadores podem demonstrar amor uns pelos outros ao tomar para si
uma punição merecida por alguém. Nosso Senhor, todavia, não só tomava para
Si a punição, como também a culpa como se fosse Sua. Ademais, a morte que
estava prestes a sofrer seria bem diferente da morte dos mártires por sua causa,
já que esses tinham o exemplo da morte do Cristo e a expectativa da glória
prometida. Entretanto, morrer em uma cruz sem um olhar de piedade, estar
cercado de uma multidão que lhe fazia troça, e morrer sem ser obrigado a
morrer — esse foi o auge do amor. Os apóstolos não podiam compreender tal
profundidade de afeição, mas, posteriormente, compreenderiam. Pedro, que na
ocasião nada entendia a respeito do amor sacrificial, mais tarde, ao ver suas
ovelhas caminharem para a morte sob a perseguição dos romanos, lhes diria:
João também faria uma paráfrase do que ouviu naquela noite, ao inclinar-
se sobre o coração de Cristo:
Sete vezes durante esse discurso sobre o mundo, Ele empregou a palavra
“ódio” — um testemunho solene da obstinação e hostilidade do mundo. O
mundo ama o mundano; mas, para preservar seus códigos, práticas e modismos
mentais, deve odiar o que não é deste mundo ou o divino. Fossem os apóstolos
ou algum de Seus seguidores ingressarem em algum culto ao Sol ou seita
oriental, será que seriam odiados? Não, porque o mundo conhece os seus.
Fossem um com o Cristo, a seguir rigorosamente Seus mandamentos, seriam
odiados? Sim, porque “do mundo vos escolhi”. Naquele momento, os
apóstolos não podiam compreender esse ódio; mesmo depois da ressurreição
não foram molestados e puderam voltar às suas redes e barcos. Entretanto, uma
vez que Ele subiu aos céus e enviou Seu Espírito, experimentariam toda a
malignidade do ódio do mundo. Tiago, que ouviu essas palavras na Última
Ceia, mais tarde as repetiria com conhecimento e experiência:
O ódio pelo Cristo revelou o ódio pelo Pai. O mal não tem capital
próprio, é um parasita que repousa no bem. O ódio puro tira suas forças do
contato com o bem; faz o inferno começar na terra, mas não o faz terminar
aqui. Seu Evangelho, disse, iria, de certo modo, agravar o pecado dos homens
por fazer-lhes rejeitá-Lo voluntariamente. Se houve pecado e mal ao longo da
história; se houve Cains que mataram Abéis; gentios que perseguiram judeus;
Sauis que buscaram matar Davis, tudo isso era insignificante comparado ao
que Nosso Senhor falava sobre o mal monstruoso que estava prestes a Lhe
acontecer. Ensinara que havia graus de punição dispensados aos que estavam
perdidos; agora, acrescentou que a gradação seria determinada pelo grau de luz
contra o qual pecaram. Sua vinda trouxera ao mundo um novo padrão de
medida. Haveria mais tolerância com Sodoma e Gomorra no dia do Juízo do
que com Cafarnaum, pois esta se voltara contra o Rei dos reis e Senhor dos
senhores.
Esse espírito de inimizade contra Ele não permaneceria somente enquanto
vivesse ou enquanto os apóstolos vivessem, mas enquanto durasse o tempo.
Quando Alexandre morreu, ninguém ergueu punhos cerrados diante de seu
túmulo; o ódio ao tirano perece com o tirano. Ninguém odeia Buda; ele está
morto. O ódio ao Cristo, contudo, permaneceria vivo, porque Ele vive — “o
mesmo, ontem, hoje e para sempre”. Ser advertido era ser precavido.
O ESPÍRITO
Principiou por dizer-lhes que Sua morte aconteceria no dia seguinte; não
O veriam mais com os olhos da carne. Ainda transcorreria mais um tempo, a
saber, o intervalo entre a morte e a ressurreição quando O veriam, com os
olhos do corpo, glorificado. Sua perda, assegurou-lhes, seria compensada por
uma bênção maior que a sua presença na carne. Os apóstolos não conseguiam
entender o que ele dizia a respeito do breve intervalo entre sua morte e
Ressurreição, durante o qual seus olhos seriam turvados.
Ainda um pouco de tempo, e já me não vereis;
e depois mais um pouco de tempo, e me tornareis a ver,
porque vou para junto do Pai.
(São João 16,16)
Jesus sabia que estavam ansiosos para questioná-lo mais a respeito desse
ponto. O pesar e o assombro não eram apenas porque Ele dissera que estava
prestes a deixá-los, mas também por conta da frustração de suas esperanças,
pois vislumbravam a instituição de algum tipo de reino messiânico terreno. Ele
lhes assegurara que, embora estivessem cabisbaixos pelo pesar, a hora seria
breve, longa o bastante para Ele provar Seu poder sobre a morte e ir ao Pai.
Quando passasse pela hora, eles ficariam tristes, ao passo que os inimigos ou o
mundo se rejubilariam. O mundo acreditaria que Ele se fora para sempre. A
dor dos escolhidos, entretanto, seria transitória, pois a cruz deve vir antes da
coroa.
O retorno de Sua natureza humana em glória aos céus era uma preliminar
necessária à missão do Espírito. Sua ida não seria uma perda, mas um ganho.
Assim como a queda do primeiro homem foi a queda de sua descendência, da
mesma maneira, a Ascensão do Filho do Homem seria a ascensão de todos os
que estivessem ligados a Ele. Sua morte expiatória era a condição para receber o
Espírito de Deus. Se não partisse, ou seja, caso não morresse, nada seria feito;
os judeus permaneceriam como estavam, os pagãos persistiriam na cegueira e
todos estariam sob o pecado e a morte. A presença corpórea tinha de ser
removida para que a presença espiritual pudesse acontecer. Sua presença
contínua sobre a terra significaria uma presença local; a descida do Espírito
indicaria que Ele poderia estar no meio de todos os homens que se
incorporassem a Ele.
A presença permanente do Espírito significaria mais do que a presença
física entre eles. Desde que Nosso Senhor esteve com eles na terra, Sua
influência não foi, nem de longe, interior; mas, quando enviasse o Espírito, a
influência irradiaria de fora; aqueles que a possuíssem teriam o Espírito de
Jesus Cristo na terra.
Haveria uma dupla glorificação de si mesmo: uma por intermédio do Pai,
e outra por intermédio do Espírito. Uma ocorreria nos céus; a outra, na terra.
Por uma seria glorificado no próprio Deus e, por outra, é glorificado em todos
os que Nele creem:
Assim como uma luz brilhou no Antigo Testamento pela vinda de Cristo,
da mesma maneira uma luz brilhará na vida de Cristo pelo Espírito. A função
fortalecedora do Espírito, portanto, entrou em conexão imediata com a função
iluminadora de Cristo como Mestre. Os que voltam à forma pura do
Evangelho se esquecem de que o Mestre do Evangelho, o próprio Cristo, falou
de progressão, de evolução, de desvendar sua verdade por intermédio dos
apóstolos. Assim como o Filho deu a conhecer o Pai, da mesma maneira o
Espírito daria a conhecer o Filho; assim como o Filho glorificou o Pai, o
Espírito, igualmente, glorificaria a Cristo. Foi, de fato, somente após a
Ressurreição e a descida do Espírito Santo que os apóstolos recordaram as
palavras que Ele lhes dissera e, também, compreenderam plenamente o
significado da Cruz e da Ressurreição.
Havia duas árvores no jardim do Paraíso: a árvore da vida divina e a
árvore do conhecimento do bem e do mal. Estava no plano de Deus que o
homem permanecesse com Ele em comunhão com a árvore da vida que
poderia comer e, portanto, viver para sempre. Satanás assegurou ao homem
que o caminho da paz era por meio da árvore do conhecimento do bem e do
mal. Entretanto, o homem esqueceu que o mal está nele, começa a tomar posse
dele. Pelo caminho falso do conhecimento do bem e do mal, o homem foi
levado à destruição. Agora, a árvore da vida é erigida no Calvário e novamente
dada ao homem. A árvore da vida, assim, tornou-se não a árvore do
conhecimento do bem e do mal, mas a árvore da própria verdade por
intermédio do Espírito.
Disse que o Espírito da Verdade que vem do Pai e Dele mesmo faria a
verdade entrar na alma de maneira tal que iria torná-la uma realidade. A
verdade natural está na superfície da alma, mas a verdade divina se encontra
nas profundezas. Para conhecer o Pai, devemos conhecer o Filho; para conhecer
o Filho, devemos ter o Espírito, pois o Espírito revelará o Filho que disse:
Eu sou [...] a verdade.
(São João 14,6)
À primeira vista, parece artificial ver como o Cristo poderia dizer que Sua
Ascensão ao Pai não teria relação alguma com a retidão do coração. Entretanto,
aqui, acrescentou algo ao que dissera sobre o pecado. Como o mundo, por
vezes, vê o pecado somente como atos de transgressão e não de descrença,
então, em muitas ocasiões vê justiça em atos de filantropia, mas não na
justificação que o homem tem à direita do Pai por Cristo. Uma vez que Nosso
Senhor ascenda aos céus, o Espírito demonstra como o mundo estava errado ao
vê-lo como um criminoso e malfeitor. A Ascensão transforma todos os padrões
de certo e errado do mundo. O fato de o Pai exaltá-lo à sua direita comprovaria
que todas as acusações feitas a Ele eram falsas. O mundo foi injusto ao rejeitá-
lo.
Uma vez que o homem esteja convencido da própria pecaminosidade, não
pode estar convencido da própria justiça; uma vez convencido de que Cristo o
salvou do pecado, então está convencido de que Cristo é a sua justiça.
Entretanto, podemos falar de justiça para quem não é pecador. O fariseu diante
do templo estava convencido da própria justiça; os líderes do templo que O
condenaram à morte estavam convencidos da própria justiça. A Sexta-Feira
Santa parece imputar o pecado ao Cristo e a justiça aos Seus juízes, mas o
Pentecostes e a vinda do Espírito atribuiriam a justiça ao crucificado e o pecado
aos juízes. Para aqueles que O rejeitaram, a justiça surgiria, um dia, como uma
justiça terrível; para os pecadores que O aceitaram e aliaram-se à vida Dele, a
justiça se mostraria misericórdia.
Ú
Durante a Última Ceia, Nosso Bendito Senhor usou a palavra “Pai” 45
vezes. Até então, o mundo conhecera o Ser Supremo apenas como Deus.
Agora, Ele enfatizava que Deus é Pai, por causa de Sua atitude paternal e de
intimidade para com os homens; também anunciou que agora Ele, o Filho
Divino, concluíra Sua missão temporal na terra, e Sua humanidade estava
pronta para receber a glória celestial. Quando o Verbo se fez carne, houve um
rebaixamento, um esvaziamento e uma submissão. O que pedia não era a glória
de Sua natureza divina, pois esta nunca se perdeu, mas, sim, a glorificação de
algo que Ele não tinha antes de vir a este mundo, a saber, a glorificação da
natureza humana recebida de Maria. Sua natureza humana tinha o direito à
glória por causa da união com Ele mesmo. Em seguida, disse aos discípulos no
caminho de Emaús:
O Senhor definiu a vida eterna como conhecer o Pai e Seu Filho Divino,
Jesus Cristo. Não bastava saber da existência de Deus conforme provada pela
razão; essa, de fato, é a base da religião natural, mas a vida eterna vem tão
somente do conhecimento de Jesus Cristo. O mais notável nessa afirmação de
que Ele é a vida eterna é que ela foi pronunciada a 18 horas de Sua morte. O
Pai, disse o Senhor, foi glorificado indiretamente em Seu sofrimento mortal.
Isso aconteceu pelo cumprimento da missão do Pai de redimir a humanidade.
Por toda a história, a mente do homem voltou-se para Deus, mas havia apenas
conjeturas de qual era a vontade de Deus. Jesus disse aqui que tinha um plano
antes de vir, e falou dele como concluído antes de ser crucificado, tal era Seu
desejo de obedecer ao Pai. Nenhum jovem de 33 anos que já viveu podia dizer:
“Recebi uma ordem de Deus e a cumpri”. Mas aqui estava a afirmação de que
o último fio tinha sido traçado na tapeçaria da providência. Ele era o “Cordeiro
de Deus imolado desde a fundação do mundo” pela vontade divina. Havia
chegado, então, a “hora” ou o momento da execução daquela vontade. Com
ela, Ele pediu ao Pai que tomasse Sua natureza humana na glória da majestade
preexistente da divindade.
Quando o Verbo se fez carne, a natureza humana que estava unida a Ele
foi santificada e consagrada a Deus. Agora, Ele pedia que aqueles que agiriam
em seu nome fossem tão dedicados a Ele segundo suas respectivas naturezas
assim como Ele se dedicara a Deus conforme a própria natureza. No dia
seguinte, por causa deles, Ele se ofereceria na Cruz para comprar-lhes a
dedicação à santidade. Mais eficaz do que as vítimas da Lei antiga com todas as
suas sombras e figuras, o holocausto de Cristo providenciou-lhes uma
santificação autêntica:
Ele não reteve nada; tudo que era em Corpo, Sangue, Alma e Divindade
sacrificou por eles em total rendição. Onde Seu Sangue, aquele do Cordeiro de
Deus, fosse aspergido, ali estaria Seu Espírito e santificação. Ninguém O
conduziria ao matadouro. Oferecer-se-ia “por causa deles”, a fim de ser-lhes a
fonte da vida. Então, tanto aquele que santificava quanto os que foram
santificados seriam um. Os pecados do mundo foram transferidos para Ele, e a
Cruz foi o resultado; Sua santidade e santificação foram transferidas aos
apóstolos e àqueles que, por meio deles, creriam no Senhor. São Paulo
parafrasearia essa ideia em sua epístola aos coríntios.
Aquele que agora disse que completara Sua obra terrena designou seus
seguidores como uma comunidade, ou uma fraternidade. No início da oração,
Ele tinha simplesmente invocado o Pai dizendo: “É por estes que oro”. Agora,
torna-se mais categórico e expressa Sua vontade: “Este é meu desejo, Pai”.
Reconheceu que essa unidade seria completa e perfeitamente alcançada apenas
na glória e na eternidade. Todos os membros de Seu Corpo Místico um dia
veriam essa glória quando estivessem com Ele; então seria revelada a glória que
Ele tinha antes que “o verbo se fizesse carne e habitasse entre nós”, a glória que
era Dele “antes da fundação do mundo”.
No Pai Nosso, que Ele ensinou aos homens, havia sete petições. No “Meu
Pai”, também havia sete petições, e faziam referência aos apóstolos que eram o
fundamento de Seu Reino na terra. Primeiro, sua união contínua com Ele;
segundo, a alegria deles como resultado dessa união; terceiro, a proteção do
mal; quarto, a santificação na verdade que é Ele mesmo; quinto, a unidade de
uns com os outros; sexto, que enfim fossem um com Ele; e, sétimo, que
percebessem Sua glória.
41
A AGONIA NO JARDIM
Para ser um Salvador, Cristo deveria ser um sacrifício. Era isso o que os
escandalizaria. Na verdade, uma hora depois, todos os apóstolos O
abandonaram e partiram. No entanto, já que nunca falou de Sua Paixão sem
predizer a Ressurreição, imediatamente acrescentou palavras que eles não
compreendiam:
Judas já tinha dado andamento a seu negócio escuso de traição. Oito dos
apóstolos foram deixados perto da entrada do Getsêmani; os outros três, Pedro,
Tiago e João, que foram os companheiros de Jesus quando Ele ressuscitou a
filha de Jairo e quando Sua face resplandeceu como o sol no Monte da
Transfiguração, foram com o Senhor para o jardim. É como se, naquela última
luta no vale das sombras, Sua alma humana ansiasse pela presença daqueles que
mais O amavam. Por parte dos apóstolos, estavam fortalecidos pelo escândalo
de Sua morte, já que tinham visto a prefiguração de Sua glória na
Transfiguração. Ao entrar no jardim, Ele lhes disse:
Levantai-vos, vamos!
Aquele que me trai está perto daqui.
(São Mateus 26,46)
42
O BEIJO PEÇONHENTO
A PRISÃO NO JARDIM
Aquele que havia libertado Lázaro das ataduras da morte submetia-se agora à
morte. Judas conduziu um grupo de guardas dos chefes dos sacerdotes e
fariseus, que empunhavam lanternas, archotes e armas. Judeus e gentios
uniram-se na prisão de Cristo. Embora fosse lua cheia, Judas teve de dar aos
soldados romanos um sinal para que conhecessem Nosso Senhor; o sinal foi
um beijo. Antes, contudo, que os archotes procurassem a Luz do Mundo, o
Bom Pastor foi ao encontro deles.
Judas estivera muitas vezes com Nosso Senhor naquele jardim, aonde o
Mestre levava os discípulos para orar; portanto, ele sabia onde encontrá-Lo. Os
maiores traidores são os criados na santa fraternidade de Cristo e de Sua Igreja.
Só eles sabem onde encontrar Cristo depois do cair da noite.
São João, que estava no jardim naquela noite e presenciou toda a cena,
disse que nada do que aconteceu pegou Nosso Senhor de surpresa:
A quem buscais?
Responderam: A Jesus de Nazaré.
(São João 18,4-5)
Não disseram “A ti” ou “Tu és aquele que buscamos”. Era evidente que
não O reconheceram nem mesmo sob a lua cheia. Foi por isso, também, que
tinham combinado previamente com Judas um sinal pelo qual O conheceriam
— o beijo. É curioso que aqueles que estão empenhados no mal não
conseguem reconhecer a Divindade nem mesmo quando ela se põe bem diante
deles. A Luz pode brilhar nas trevas, mas as trevas não a compreendem. É
necessário mais que lanternas e lua cheia para perceber a Luz do Mundo.
Como explicou São Paulo:
Esta era Sua hora, mas não a hora dos apóstolos. Mais tarde, eles
sofreriam e morreriam em nome do Senhor, mas por ora não conseguiriam
compreender a Redenção até que o Espírito os tivesse iluminado. Ele passaria
pela prensa de vinho sozinho. Os apóstolos ainda não estavam em condições
espirituais de morrer com Ele; dentro em pouco, todos o abandonariam.
Ademais, não podiam sofrer por Cristo até que este primeiro sofresse por
aqueles. Todo o propósito de Sua morte redentora, em certo sentido, era dizer
a todos os homens “deixai ir estes”.
Ao adentrar o jardim, o Salvador pedira a Pedro, Tiago e João que
“orassem e vigiassem”. Pedro agora decidira trocar a oração pela ação. Tomando
uma das duas espadas que trazia consigo, feriu Malco, o servo do sumo
sacerdote. Como espadachim, Pedro era um ótimo pescador, pois o melhor que
conseguiu fazer, em seu intento desgovernado, foi cortar a orelha de Malco.
Conquanto o zelo de Pedro fosse sincero, bem-intencionado e impulsivo, ainda
assim estava equivocado na escolha dos meios. Nosso Bendito Senhor primeiro
tocou a orelha do homem ferido e o curou; depois, voltando-se a Pedro, disse:
Essa era a única lição humana comprovada pela história. Pedro ainda
tinha de aprender que Aquele que parecia fraco era verdadeiramente Deus; que,
se desejasse, podia invocar em Seu auxílio um exército maior que qualquer um
que já se viu nesta terra:
Ele usou o termo romano “legião”. Fora preso pelo que se chamava uma
coorte, ou a décima parte de uma legião (que continha cerca de seis mil
homens). Se quisesse, podia ter chamado em sua ajuda 12 vezes seis mil para
livrá-Lo de Seus inimigos. Se houvesse um apelo à força, a espadinha de Pedro
seria reduzida à insignificância em comparação às hostes celestiais sob as ordens
do grande Comandante. Mas a recusa a invocar os anjos não foi uma rendição
involuntária ao destino, nem a submissão à dor a fim de ser purificado. Antes,
foi uma abdicação tranquila de alguns de Seus direitos; uma abstinência
voluntária do uso de uma força superior por causa dos outros, uma liberdade
permanente com pleno poder de ir embora, e ainda assim uma submissão por
amor à humanidade — eis um sacrifício fora do comum.
Voltando-se para a multidão sedenta de sangue, disse:
Mas o que haviam profetizado os profetas? Para citar apenas um, Isaías
previu como Ele seria contado entre os transgressores por Seus inimigos.
O JULGAMENTO RELIGIOSO
Então, eles o levaram embora; Ele não foi conduzido ou arrastado por
conta de Sua submissão voluntária. Como profetizou Isaías, Ele seria levado
como um cordeiro ao abate. Como o novo Jeremias, o Homem de Dores foi
acorrentado por Seu testemunho da verdade.
O trajeto escolhido foi ao longo do riacho de Cedron, depois
atravessaram o “Portão das Ovelhas”, que ficava próximo ao templo e por onde
passavam os animais para o sacrifício. Foi conduzido primeiro a Anás, que era
sogro de Caifás, o sumo sacerdote daquele ano. Visto que os romanos estavam
exercendo autoridade no país, é provável que um sumo sacerdote fosse eleito
todo ano; Anás, contudo, era realmente uma personalidade eminente na época,
muito embora Caifás estivesse presidindo o Sinédrio naquele momento.
Uma vez que ambos eram os representantes do poder religioso, o primeiro
julgamento foi baseado na religião. Anás tinha cinco filhos, e aprendemos de
outra fonte que estes tinham tendas no templo e estavam entre os compradores
e vendedores expulsos por Nosso Senhor quando Ele expurgou o templo. De
Anás, Cristo foi levado a Caifás. A lei antiga ordenava que todo animal
sacrificado pelos pecados do povo fosse conduzido diante do sacerdote. Assim,
Cristo, o representante do sacerdócio do Espírito, é conduzido diante de
Caifás, o representante do sacerdócio da carne. Foi esse mesmo Caifás quem
disse:
Visto que Caifás já havia determinado que Nosso Senhor deveria morrer,
não tinha a intenção de aprender nada; ao contrário, buscava encontrar alguma
desculpa para a injustiça planejada. As primeiras perguntas foram sobre a
organização de Cristo e dos seguidores, a qual o Sinédrio temia como ameaça à
própria posição, pois antes os fariseus tinham relatado:
Foi a mão de Malco, aquele cuja orelha foi curada pelo Salvador havia
uma hora ou menos? De qualquer modo, foi o primeiro golpe desferido ao
corpo do Salvador — um golpe sem reprimenda dos juízes. Assim, Caifás e a
corte realmente puseram o Cristo fora da esfera da lei. Para escapar ao
conteúdo da mensagem, o soldado criticou a forma — uma reação comum à
religião. Aqueles que não têm capacidade de criticar o Cristo recorrem à
violência. Tornaram-No um fora da lei. Com total brandura, Nosso Senhor lhe
respondeu:
Essas palavras eram uma perversão daquilo que Nosso Senhor dissera no
início do ministério público ao referir-se àquilo que agora começava a
acontecer. Depois de expulsar os vendilhões do templo, os fariseus Lhe
pediram um sinal de Sua autoridade. Nosso Senhor, ao referir-Se ao templo de
Seu corpo, disse:
Agora as falsas testemunhas afirmavam que Jesus dissera que Ele destruiria
o templo; mas o que realmente disse foi que eles O destruiriam e o templo
seria o Seu corpo, que acabara de receber um golpe violento. O templo terreno
receberia o golpe pelas mãos dos romanos, no governo de Tito. Ele não disse
“Destruirei”, mas, antes, “Destruí vós”. Nem mesmo disse “Construirei outro”,
mas “eu o reerguerei”, referindo-Se à Ressurreição. A distorção do que dissera,
não obstante, era um testemunho do propósito de Sua vinda e a instituição,
nas mentes deles, de Sua Cruz e glória. Assim como o côncavo e o convexo em
um círculo são feitos por uma mesma linha, da mesma maneira a maldade
voluntária e o sofrimento voluntário estão unidos. Os propósitos divinos agora
serão realizados como o foram em José, Sua prefiguração, que disse aos irmãos
que o venderam que eram mal-intencionados, mas que daquilo Deus faria
brotar o bem. Em Sua entrega nas mãos do mal, Judas entregou Nosso Senhor
aos judeus, os judeus O entregaram aos gentios e os gentios O crucificaram.
No entanto, no outro lado desse quadro, Nosso Senhor disse que o Pai
entregara o Filho em resgate de muitos. Desse modo, as ações malignas, mas
livres, dos homens são revogadas por Deus, que pode tornar a queda em uma
felix culpa, uma “culpa feliz”.
O Verbo Encarnado estava sem palavras durante o falso testemunho.
Caifás, irritado porque frustrado pelas contradições, exclamou:
Eu o sou.
(São Marcos 14,62)
AS NEGAÇÕES DE PEDRO
Quando Nosso Senhor foi preso, Pedro seguiu-O à distância; João estava com
ele. Ambos foram à casa de Anás e Caifás, onde Nosso Senhor foi julgado. A
casa do sumo sacerdote, onde se deu o julgamento, era, como muitas casas
orientais, construída em torno de um pátio quadrangular, ao qual se adentrava
por uma passagem da parte da frente da casa. Essa passagem ou arcada era um
pórtico fechado para a rua por um portão pesado. O portão, na ocasião, era
guardado por uma criada do sumo sacerdote. O interior do pátio ao qual a
passagem levava era pavimentado com lajotas e a céu aberto. A noite estava
fria, pois era início de abril. Pedro já tinha decepcionado o Senhor no jardim,
quando dormiu; agora, tinha uma chance de reparar sua falta. Mas o perigo
espreitava Pedro, em primeiro lugar por causa da autoconfiança exagerada na
própria lealdade. Conquanto um profeta antigo tivesse dito que as ovelhas
seriam dispersas, Pedro sentia que, porque lhe foram dadas as chaves do Reino
do Céu, podia estar isento de tal colapso. Um segundo perigo era sua falha
anterior, quando foi exortado a “vigiar e orar”. Não vigiou, pois caiu no sono;
não orou, pois substituiu a espiritualidade pelo ativismo ao brandir a espada.
Um terceiro perigo era que a distância física que ele guardava de Cristo fosse
um símbolo da distância espiritual que os separava. Qualquer distância do sol
da justiça é escuridão.
Quando entrou no pátio, Pedro começou a aquecer-se perto do fogo. À
luz das chamas, a criada que lhe permitira entrar pôde ver melhor o seu rosto.
Se o desafio à lealdade de Pedro viesse de uma espada ou de um homem,
possivelmente ele teria sido mais forte; mas, impedido pelo orgulho, uma moça
mostrou-se mais forte que o presunçoso Pedro. O plano de Cristo era vencer
pelo sofrimento; o plano de Pedro era vencer pela resistência. Mas neste caso
havia uma oposição pouco óbvia. Pego desprevenido pela criada, fez a primeira
negação. A criada disse-lhe:
Sim, tu és daqueles;
teu modo de falar te dá a conhecer.
(São Mateus 26,73)
Assim, a responsabilidade por Sua morte não podia ser posta sobre
qualquer povo, mas sobre toda a humanidade:
Nada foi dito a respeito da blasfêmia. Sabiam que a acusação seria inútil
diante de um gentio, um conquistador, aquele que desprezavam; assim,
utilizaram o termo geral “malfeitor”. E aqui estavam mais certos do que
imaginavam, pois Cristo era, de fato, um malfeitor, ou aquele que “portava os
pecados de muitos”.
Pilatos, sabendo que a posição deles diante de Roma não era a de proteger
sua autoridade e sem querer lidar com o caso, disse-lhes que O julgassem
segundo a própria lei. Entretanto, responderam que não tinham poder de
enviar homem algum à morte — o que, de fato, era verdade, já que esse poder
pertencia a Roma. Além disso, não ousavam mandar à morte quem quer que
fosse no dia festivo em que sacrificavam o cordeiro pascal.
Nesse momento fizeram três acusações a Nosso Senhor para forçar Pilatos
a ouvir o caso:
A acusação não era apenas de ser rei. Pilatos sabia que se Cristo estivesse
se designando como um rei antagonista aos romanos, os gentios estariam ali
para testemunhar contra Ele. Então, perguntou se Ele era o rei dos judeus.
Nosso Senhor, em resposta à pergunta, penetrou na consciência de Pilatos;
perguntou-lhe se estava dizendo aquilo porque suas suspeitas surgiram pela
falsa acusação dos inimigos. Pilatos esperava uma resposta direta. Nosso
Senhor, nesse momento, tornou clara a distinção que tinha de ser feita entre a
realeza política e a religiosa; a realeza política, que era o único interesse que
Pilatos tinha naquele caso, o Mestre rejeitou; a realeza religiosa, que significava
Ele ser o Messias, Nosso Senhor admitiu. Para o cético Pilatos, Nosso Senhor
Santíssimo tinha de tornar claro que Seu Reino não era um reino terreno
obtido pelo poder militar; mas, em vez disso, um reino espiritual a ser
instituído na verdade. Só teria súditos morais, não políticos. Reinaria nos
corações, não nos exércitos.
É
És, portanto, rei?
(São João 18,37)
Durante toda a vida de Nosso Senhor, Ele falou de Si mesmo como o que
veio a este mundo; essa foi a única vez em que falou de ter nascido. Nascer de
uma mulher é um fato, vir ao mundo é outro. Entretanto, Ele imediatamente
fez seguir essa referência de Seu nascimento humano com a reafirmação de que
tinha vindo a este mundo. Quando disse que nasceu, reconhecia Sua origem
temporal como Filho do Homem; quando disse que veio a este mundo,
afirmou Sua divindade. Ademais, Ele, que veio dos céus, veio dar testemunho,
o que significa morrer pela verdade. Ele estabeleceu a condição moral da
descoberta da verdade e afirmou que não era apenas uma jornada intelectual; o
que descobriu, em parte, aprofundou o comportamento moral. Nesse sentido,
certa vez Nosso Senhor disse que Suas ovelhas conheciam Sua voz. É evidente
que Pilatos captou a ideia de que a conduta moral tinha alguma relação com a
descoberta da verdade; portanto, recorreu ao pragmatismo e ao utilitarismo, ao
perguntar com escárnio:
Que é a verdade?...
(São João 18,38)
Então, voltou as costas à verdade — melhor, não a ela, mas a Ele, que era
a verdade. Ainda restou ver que a tolerância à verdade e ao erro em um golpe
de inteligência leva à intolerância e à perseguição: “O que é a verdade?”,
quando escarnecida, é seguida de uma segunda ironia, “O que é a justiça?”.
Uma mente indulgente, quando isso significa indiferença ao certo e ao errado,
termina, por fim, em ódio ao correto. Ele, tão tolerante ao erro a ponto de
negar a Verdade Absoluta, era aquele que crucificaria a Verdade. Foi o juiz
religioso quem o desafiou: “conjuro-te”; mas o juiz secular perguntou “O que é
a verdade?”. Aquele que estava nas vestes do sumo sacerdote recorreu a Deus
para repudiar as coisas que são de Deus; o que trajava a toga romana professava
apenas ceticismo e dúvida.
Quando Nosso Senhor disse que todos os que eram da verdade ouviriam
Sua voz, anunciou a lei segundo a qual a verdade assimila tudo o que lhe é
próprio. Admitira a mesma ideia a Nicodemos:
Se, portanto, o impulso para a verdade estava em Pilatos, ele saberia que a
própria verdade estava diante dele; se esse impulso não estivesse nele,
sentenciaria Cristo à morte.
Pilatos era um daqueles que acreditava que a verdade não era objetiva,
mas subjetiva; que cada homem determinava para si o que era verdadeiro. É
erro frequente dos homens práticos, tais como ele, ver a busca pela verdade
objetiva como uma teorização inútil. O ceticismo não é uma posição
intelectual; é uma posição moral, no sentido de ser determinado nem tanto
pela razão, mas pelo modo como a pessoa age e se comporta. O desejo de
Pilatos de salvar Jesus se devia a uma espécie de liberalismo que combinava
descrença na Verdade Absoluta a uma falta de vontade um tanto benevolente
de perturbar tais sonhadores e suas superstições. Pilatos perguntou “O que é a
verdade?” para a única pessoa em todo o mundo que lhe poderia responder
plenamente.
Nesse momento, Pilatos dava início à primeira das várias tentativas de
resgatar Cristo, tais como a declaração de Sua inocência, a escolha entre
prisioneiros, a flagelação, o apelo à compaixão, a mudança de juízes. Pilatos
não compreendeu como alguém poderia morrer pela verdade e, naturalmente,
não podia compreender como a própria Verdade poderia morrer pelos que
erraram. Após voltar as costas para o Lógos Encarnado, apresentou às pessoas do
lado de fora sua convicção de que o prisioneiro diante dele era inocente.
Esse Herodes era Herodes Antipas, filho de Herodes, o Grande, que assassinara
todas as crianças do sexo masculino com menos de dois anos em Belém. A
família de Herodes era indumeia, ou seja, descendentes de Esaú, o pai de
Edom. Foi a descendência de Esaú que pareceu levar adiante a inimizade com
descendência de Jacó. Herodes Antipas era tio de Herodes Agripa, que, mais
tarde, assassinou o apóstolo Tiago e assassinaria Pedro, se este não tivesse sido
libertado milagrosamente da prisão. Herodes era um homem sensual,
mundano; matara João Batista porque este o havia censurado por divorciar-se
da mulher e viver com a esposa do próprio irmão. Herodes tinha uma
consciência inquieta, não porque assassinara o precursor do Cristo, mas porque
sua superstição o fizera acreditar que João Batista ressuscitara e estava
assombrando sua alma.
Quando Nosso Senhor foi levado diante de Herodes:
A religião não deve ser dada a todos, mas somente àqueles que são “da
verdade”. Muito embora Herodes estivesse feliz ao ver Nosso Senhor, sua
alegria não surgiu por motivos nobres de arrependimento. Por isso, o Cristo,
que falou ao ladrão penitente, a Madalena e a Judas, não falaria ao rei galileu,
pois a consciência de Herodes estava morta. Ele estava muito familiarizado
com a religião. Queria milagres, não como motivos para crer, mas para deleitar
a curiosidade. Sua alma estava tão cega por atrativos, incluindo até mesmo o de
João Batista, que mais um atrativo só teria aprofundado sua culpa. Não foi a
alma pedindo salvação que Herodes ofereceu ao Senhor, mas somente o ânimo
dado a interesses. Dessa maneira, o Senhor da palavra não deu uma só palavra
ao mundano. O Livro de Provérbios expressa muito bem a atitude divina
perante Herodes:
A voz que ordenara que a cabeça de João Batista fosse dada à filha de
Herodíades agora ordenava que as vestes alvas da humilhação envolvessem os
ombros do prisioneiro. A túnica que Lhe foi dada provavelmente era uma
túnica branca, em escárnio, por alegar ser rei. Todos os candidatos a cargos
públicos em Roma usavam a toga candida ou a túnica branca, de onde provém
a palavra “candidato”. Assim, Herodes insinuou que o pretenso rei era
merecedor de desprezo, embora a túnica fosse branca, sem querer, uma
declaração de inocência.
Esse é o modo de agir do mundo para os que têm pequenos ódios a
esconder por conta de um ódio maior. O nazismo e o comunismo se uniram
por conta de um ódio comum a Deus; assim fizeram Pilatos e Herodes:
NO RODAPÉ DA LISTA
Nesse ínterim, o que aconteceu a Judas? Só Judas sabia onde encontrar Nosso
Senhor depois do ocaso. Os soldados não sabiam e, portanto, tinham de
receber um sinal. Cristo foi entregue a mãos inimigas por um dos seus. Nem
sempre o maior dano é causado pelos inimigos, mas por aqueles que foram
criados em Sua associação sagrada. São as falhas dos de dentro que dão
oportunidade aos inimigos que ainda estão fora. Os inimigos farão o trabalho
sanguinário da Crucifixão, mas aqueles que tiveram fé e a perderam e estão
aflitos para salvar a própria consciência destruindo a raiz da moralidade
cometem o maior mal.
O ódio de Judas contra Nosso Bendito Senhor se devia ao contraste entre
seu pecado e a virtude do Divino Mestre. Em Otelo, Iago diz sobre Cássio: “Ele
tem na vida uma beleza cotidiana que me deixa horroroso”. O desgosto de
Judas consigo mesmo foi descarregado Naquele que o fazia sentir-se
incomodado por Sua Bondade. O ódio à Divindade nem sempre resulta da
incredulidade, mas com muita frequência é o efeito da anticredulidade. A
consciência, Cristo e o dom da fé deixam os homens maus incomodados com o
pecado. Sentem que, se pudessem expulsar Cristo da terra, seriam livres de
“inibições morais”. Esquecem-se de que são a própria natureza e a consciência
que os fazem sentir-se assim. Incapazes de expulsar Deus dos céus, gostariam
de expulsar Seus embaixadores da terra. Numa esfera menor, é por isso que
muitos homens escarnecem da virtude — porque ela torna o vício
desconfortável. Um semblante inocente é um julgamento. Judas era mais zeloso
na causa dos inimigos do que o foi na causa de Nosso Senhor. Quando deixam
a Cristo, os homens procuram redimir a própria reputação indo aos extremos.
A traição se deu com um beijo. Quando a perversidade quer destruir a
virtude e quando o homem quer crucificar o Filho de Deus, sente-se a
necessidade de prefaciar a obra do mal com alguma marca de afeição. Judas
louvaria e negaria a Divindade com os mesmos lábios. Somente uma palavra
voltou em resposta daquele beijo: “amigo”. Foi a última vez que Nosso Senhor
falou a Judas. Até esse momento, ele não era um traidor, mas um amigo. Tivera
direito ao novilho cevado,2 mas rejeitou-o.
Judas, o traidor,
vendo-o então condenado, tomado de remorsos,
foi devolver aos príncipes dos sacerdotes
e aos anciãos as trinta moedas de prata,
dizendo-lhes: Pequei, entregando o sangue de um justo.
(São Mateus 27,3)
A tragédia da vida de Judas é que ele podia ter sido São Judas.
Nota
2 | Alusão à parábola do Filho Pródigo, em que o pai recebe de volta o filho perdido e
ordena que matem o “novilho cevado”, para celebrar a reconciliação. Ver São Lucas 15,23.
(N. T.)
47
Barrabás.
(São Mateus 27,22)
Pilatos quase não podia acreditar no que ouvia; Barrabás também não
acreditava! Estava para ser libertado? Pela primeira vez, tomava consciência de
que agora podia prosseguir com sua revolta. Voltou seu rosto emproado,
abrasado, para o Nazareno. Pretendia medir o rival da cabeça aos pés, mas não
ousou mais erguer o olhar. Havia algo em Seus olhos que perscrutavam a alma,
como se o Nazareno estivesse realmente penalizado por que ele fora libertado.
Pela terceira vez, Pilatos ainda interveio: Mas que mal fez ele,
então?
Não achei nele nada que mereça a morte; irei, portanto,
castigá-lo e,
depois, o soltarei.
Mas eles instavam, reclamando em altas vozes que fosse
crucificado,
e os seus clamores recrudesciam.
Pilatos pronunciou então a sentença que lhes satisfazia o
desejo.
Soltou-lhes aquele que eles reclamavam
e que havia sido lançado ao cárcere por causa do homicídio e
da revolta,
e entregou Jesus à vontade deles.
(São Lucas 23,22-25)
A FLAGELAÇÃO
Crucifica-o! Crucifica-o!
Pilatos disse:
O povo respondeu:
Nós temos uma lei, e segundo essa lei ele deve morrer,
porque se declarou Filho de Deus.
(São João 19,6-7)
Pilatos disse que Ele era um “homem”; eles disseram “o Filho de Deus”.
Pilatos declarara que Ele era inocente perante a lei romana. Eles responderam
que Ele era culpado perante a lei judaica. Quando Pilatos os ouviu chamando-
O de “Filho de Deus”
De onde és tu?
(São João 19,9)
Pilatos não perguntou “Quem és?” ou “És o Filho de Deus?”, mas “De
onde és tu?”. A origem galileia do Senhor não lhe interessava, pois já tinha
enviado Cristo como galileu para Herodes. Percebeu que Ele era algo mais que
um homem. Se fosse realmente dos céus não poderia crucificá-Lo, portanto,
perguntou de maneira privada por Sua verdadeira origem. Pilatos já havia feito
seis perguntas. Haveria ainda uma só por perguntar.
No entanto, Jesus recusou-se a responder à pergunta. Pilatos já havia dado
as costas à verdade. Cinco vezes durante o julgamento Nosso Senhor manteve-
Se em silêncio misterioso: diante do sumo sacerdote, do Sinédrio, de Herodes e
duas vezes diante de Pilatos. O silêncio poderia significar que carregava os
pecados do mundo e nada tinha a dizer em defesa própria. Quando falou, era
como um pastor; ao calar-Se, era como uma “ovelha”, como profetizado por
Isaías:
Foi maltratado e resignou-se; não abriu a boca,
como um cordeiro que se conduz ao matadouro,
e uma ovelha muda nas mãos do tosquiador.
(Ele não abriu a boca.)
(Isaías 53,7)
CLÁUDIA
Pode ter sido nesse momento que Cláudia, a mulher de Pilatos, enviou uma
mensagem ao marido.
Cláudia era a filha mais nova de Júlia, filha de César Augusto. Júlia fora
casada três vezes, a última com Tibério. Por conta da vida dissoluta, Júlia foi
exilada quando concebeu Cláudia de um nobre romano. Quando Cláudia
tinha 13 anos, Júlia a enviou para ser criada por Tibério. Aos 16, Pôncio
Pilatos, ele mesmo de origem baixa, conheceu Cláudia e pediu a Tibério para
casar-se com ela. Assim, Pilatos casou-se com a família do imperador, o que lhe
assegurou o futuro político. Por força do casamento, Pilatos foi feito
procurador da Judeia.
Os governadores romanos eram proibidos de levar as mulheres para as
províncias. A maioria dos políticos estava feliz com isso, mas não Pilatos. O
amor rompeu com a austera lei romana. Após Pilatos estar em Jerusalém por
seis anos, mandou buscar Cláudia, que estava muito impaciente para encarar
uma vida longe da capital do mundo, entre povos desconhecidos e estrangeiros.
É razoável concluir que Cláudia deve ter ouvido falar de Jesus, talvez por
meio da serva judia que preparava o banho ou dos mordomos que traziam
notícias a respeito Dele. Podia, na verdade, tê-Lo visto, pois a Fortaleza de
Antônia, onde vivia, era perto do Templo de Jerusalém, e Jesus estava sempre
lá.
Pode ter ouvido Sua mensagem e, já que “Nenhum homem falou como
este homem”, sua alma estava abalada. O próprio contraste entre Ele e Suas
ideias e o mundo que ela conhecia e os pensamentos que ela tinha aprofundava
Seus encantos. Como as mulheres de Jerusalém que viam Cláudia a observar
através do postigo, que tentavam captar o brilho das pedras preciosas em suas
mãos ou a marca de orgulho nas feições patrícias, podiam imaginar como eram
profundos seus pensamentos, como era intenso seu pesar e profunda sua ânsia?
Havia uma submissão quase prussiana à lei entre os romanos. A nenhuma
mulher era permitido interferir nos processos jurídicos, nem mesmo para dar
uma sugestão a respeito de tais procedimentos. O que fez a entrada em cena de
Cláudia mais memorável foi ela ter enviado uma mensagem ao marido, Pôncio
Pilatos, no mesmo dia em que ele decidiria o caso mais importante de sua
carreira e o único pelo qual seria lembrado — o julgamento de Nosso Senhor.
Enviar uma mensagem a um juiz enquanto estivesse no tribunal era uma
ofensa sujeita a punição, e somente o horror do que ela viu que seria feito a
moveu a fazê-lo.
Tu não me respondes?
Não sabes que tenho poder para te soltar e para te crucificar?
(São João 19,10)
A CONDENAÇÃO
Pilatos perguntou:
E o rei levou em conta a palavra deles! Assim como outrora, nos dias de
Samuel, rejeitaram o governo de Deus para ter um rei que Deus lhes deu com
ira, assim também agora, ao rejeitar a realeza de Cristo, seriam atrelados à terra
sob a realeza de César. Quando um criminoso era condenado à morte, era
costume romano pegar uma vara longa, quebrá-la em duas partes e lançá-la aos
pés do prisioneiro. Pilatos seguiu esse costume, e nos pedaços partidos do
assoalho de mármore formou-se a figura de uma cruz.
Ibis ad crucem (Padecerás na cruz) era o édito romano, seguido pela
ordem: I, Lector, expedi crucem (Vai, Leitor, prepara a cruz).
Pilatos, então:
Pilatos, por certo, não tinha consciência do rito misterioso ordenado por
Moisés. As pessoas que viram Pilatos declarar-se inocente devem ter pensado
nisso. Moisés ordenara:
Aquele sangue poderia recair sobre eles para destruí-los, mas ainda era o
sangue da Redenção. Ainda que tenham atrelado uma maldição a si mesmos,
Aquele a quem crucificaram não ratificara a sentença deles. No final se
arrependerão. Antes do fim, há sempre os remanescentes que serão salvos.
Mesmo nessa ocasião, não havia uma só mulher mencionada entre eles a
desejar Sua morte. Então, também entre eles nessa hora havia almas nobres
como José de Arimateia, Nicodemos, o mordomo da casa de Herodes e, em
poucos anos, Paulo. Naquele momento, contudo, quando foi entregue pela
terra, depois de ter sido entregue pelo céu para ser crucificado, seguiu-se outro
escárnio:
Agora desejavam que Ele morresse, mas o que Ele era e o que eles
odiavam nunca morreria.
A CRUCIFIXÃO
Isaías previra que “o governo está sobre seus ombros” (Isaías 9,6); agora
ficava claro que a Cruz era Seu governo ou lei da vida. Ele dissera que quem
quisesse ser Seu discípulo deveria tomar a cruz e segui-Lo.
Temendo que a flagelação prolongada, a perda de sangue e a coroa de
espinhos O levassem à morte antes da Crucifixão, Seus inimigos obrigaram um
estrangeiro, Simão de Cirene, a ajudá-Lo a carregar a cruz. Cirene era uma
cidade na costa norte da África. A nacionalidade de Simão, todavia, é incerta.
Pode ter sido judeu, a julgar pelo nome, ou um gentio; pode ser até que fosse
um negro africano, a julgar pelo lugar de nascimento e pelo fato de que foi
“forçado” a ajudar Nosso Senhor a carregar a cruz. Foi a primeira vez que o
Salvador lançou Sua Cruz sobre alguém; a Simão pertence o privilégio de ser o
primeiro a compartilhar a Cruz de Cristo.
É possível que Simão nunca tenha ouvido essas palavras; mas palavras
eram desnecessárias enquanto ele seguia a Palavra.
Ao longo do caminho por que a procissão passava, encontravam-se
também muitas mulheres. Havia muitos exemplos de homens que
decepcionaram na Crucifixão, como os apóstolos que dormiram no jardim,
Judas que O traiu, as cortes judaica e gentia que O condenaram, mas não há
registro de uma só mulher que tenha pedido Sua morte. Uma mulher pagã
intercedera por Sua vida diante de Pilatos. Aos pés da Cruz, haveria quatro
mulheres, mas só um apóstolo. Durante a última semana do Senhor, as
crianças gritaram “Hosana”, os homens bradaram “Crucifica!”, mas as
mulheres “choraram”. Às mulheres que choravam, disse o Senhor:
Quando Lhe levaram aos lábios, Nosso Senhor, sabendo que era um
sedativo, recusou-se a sorver. Embora Seu corpo, já exausto, bradasse por água,
Ele não beberia aquilo que embotaria seu papel de mediador. No nascimento,
Sua mãe recebeu mirra de presente e aceitou-a como um sinal de sua morte
redentora. Em sua morte, Ele recusaria a mirra, que entorpeceria a razão de Sua
vinda. Ele disse a Pedro na noite anterior que beberia do cálice que o Pai Lhe
dera. Mas, para beber aquele cálice de Redenção, não deveria beber o cálice que
lhe separaria Corpo e Espírito.
Nosso Senhor ocupou muitos púlpitos durante a vida pública, tais como
o barco de Pedro lançado ao mar, o topo da montanha, as ruas de Tiro e
Sidom, o templo, a estrada junto ao cemitério e um salão de banquetes. Mas
todos perdem importância em comparação ao púlpito em que Ele estava agora
— o púlpito da Cruz. Esta foi lentamente erguida do chão, balançou nos ares
por um momento, rasgando e dilacerando Sua Carne Santa; então, de repente,
com um golpe seco que pareceu abalar até mesmo aos infernos, foi fincada no
buraco preparado para ela. Nosso Senhor subiu em Seu púlpito pela última
vez.
Como todo orador, observava do alto Sua audiência. Ao longe, em
Jerusalém, Ele podia ver a abóboda dourada do templo, refletindo os raios do
sol, prestes a esconder sua face, envergonhado. Aqui e ali, nas paredes do
templo, Ele podia captar um vislumbre daqueles que estavam forçando os
olhos para ver Aquele a quem as trevas não conheciam. Ao lado da multidão
estavam seguidores tímidos, prontos para fugir em caso de perigo; ali também
estavam os executores preparando-se para lançar sortes por Sua túnica (São
João 19,24). Perto da Cruz estava o único apóstolo presente, João, cujo rosto
tinha um aspecto como que moldado pelo amor; Madalena também estava lá,
como uma flor pisoteada, uma criatura ferida. Mas, acima de todos — Deus
tenha piedade dela! —, estava Sua própria mãe. Maria, Madalena, João;
inocência, penitência e sacerdócio; os três tipos de almas que para todo o
sempre seriam encontradas aos pés da Cruz de Cristo.
49
Nosso Senhor falou sete vezes do alto da Cruz. Essas são chamadas de as sete
últimas palavras. Nas Escrituras só há registro das palavras derradeiras de três
outros: Israel, Moisés e Estêvão. O motivo, talvez, é que nenhum outro é
considerado tão significativo e representativo como esses três. Israel foi o
primeiro dos israelitas; Moisés, o primeiro da dispensação legal; Estêvão, o
primeiro mártir cristão. As palavras derradeiras de cada um deles dão início a
algo sublime na história das relações de Deus com os homens. Nem mesmo as
últimas palavras de Pedro, de Paulo ou de João foram um legado humano, pois
nenhum espírito jamais guiou a pena para revelar os segredos de seus lábios
moribundos. E, ainda assim, o coração humano sempre anseia por ouvir a
disposição de espírito de alguém naquele momento muito comum e ainda mais
misterioso chamado morte.
Por bondade, Nosso Senhor Bendito deixou Suas reflexões sobre a morte,
pois Ele — mais que Israel, que Moisés e que Estêvão — representava toda a
humanidade. Nessa hora sublime Ele chamou todos os filhos ao púlpito da
cruz e cada palavra que lhes disse foi dita com a intenção de publicação eterna
e consolação imortal. Nunca houve um pregador como o Cristo moribundo;
nunca houve congregação como a que se reuniu ao redor do púlpito da cruz;
nunca houve sermão como as últimas sete PALAVRAS.
A PRIMEIRA PALAVRA
A SEGUNDA PALAVRA
A TERCEIRA PALAVRA
A QUARTA PALAVRA
A QUINTA PALAVRA
Tenho sede.
(São João 19,28)
Quando foi crucificado, recusou-Se a tomar uma mistura que Lhe foi
oferecida; agora pedia avidamente por algo para beber. Existe, todavia, uma
diferença considerável entre as duas bebidas: a primeira era mirra e se tratava de
uma bebida entorpecente para repelir a dor, e por isso Ele a recusou para que
os sentidos não fossem embotados. A bebida que naquele momento foi-Lhe
dada era vinagre ou o vinho avinagrado dos soldados.
Desde toda a eternidade, Deus desejou tornar o homem à imagem de seu Filho
Divino. Ao aperfeiçoar e alcançar tal semelhança em Adão, colocou-o no
Jardim do Éden, belo como só Deus sabe tornar belo um jardim. De certo
modo misterioso, a revolta de Lúcifer ecoou na terra, e a imagem de Deus no
homem turvou-se. O Pai Celestial desejava agora, em sua Misericórdia Divina,
restaurar o homem à glória primitiva, para que o homem decaído pudesse
conhecer a bela imagem a que estava destinado a se conformar. Deus enviou
seu Filho Divino à terra não só para perdoar o pecado, mas para satisfazer a
justiça por meio do sofrimento.
Na bela economia divina da Redenção, as mesmas três coisas que
cooperaram na expulsão do homem do Paraíso foram partilhadas na Redenção.
Para o desobediente Adão, havia um novo Adão obediente; para a orgulhosa
Eva, havia a nova Eva humilde, a Virgem Maria; para a árvore do Jardim, havia
agora o madeiro da Cruz. Retomando o plano divino e tendo provado o
vinagre que cumpriu a profecia, pronunciou nesse momento o que, no
original, possui uma só palavra:
Não foi uma elocução de ação de graças de que Seu sofrimento se findara,
embora a humilhação do Filho do Homem houvesse, nesse momento,
terminado. Em vez disso, foi a afirmação de que Sua vida, do momento do
nascimento ao momento da morte, tinha cumprido fielmente o que o Pai
Celestial Lhe havia ordenado.
Por três vezes Deus usou a mesma palavra na história: primeiro no
Gênesis, para descrever o encerramento ou término da Criação; a segunda no
Apocalipse, quando toda a criação seria extinta e surgiria um novo céu e uma
nova terra. Entre esses dois extremos de início e de fim perfeitos, existiu o elo
do sexto pronunciamento do alto da Cruz. Nosso Divino Senhor, no estado de
maior humilhação, vendo completadas todas as profecias, todos os prenúncios
realizados e feitas todas as coisas necessárias à Redenção do homem, exprimiu
um grito de contentamento: “Tudo está consumado”.
A vida do Espírito agora poderia começar a obra de santificação, pois a
obra de Redenção estava completada. Na criação, no sétimo dia, depois de
rematados os céus e a terra, Deus descansou de todo o trabalho que fizera;
nessa altura, o Salvador na Cruz, ao ter ensinado como Mestre, governado
como Rei e santificado como Sacerdote, podia entrar em repouso. Não haveria
um segundo Salvador; nenhuma nova via de salvação; nenhum outro nome sob
os céus pelo qual o homem havia de ser salvo. Levantou-se um novo Davi para
destruir o Golias do mal, não com cinco pedras, mas com cinco chagas —
cicatrizes horrendas nas mãos, pés e na lateral do corpo; e a batalha foi travada
não com a armadura a reluzir sob o sol do meio-dia, mas com a carne
dilacerada de modo que os ossos pudessem ser enumerados. O Artista dera o
último retoque na obra de arte e, com a alegria dos fortes, enunciou a canção
de triunfo de que Sua obra estava completa.
Não existiu um único modelo, da pomba ao templo, que não fosse
cumprido por Ele. Cristo, uno com o Pai Eterno na obra da criação,
aperfeiçoara a Redenção. Não há profecia histórica — de Abraão, que ofereceu
o filho, a Jonas, que esteve na barriga da baleia por três dias — que Nele não
tenha sido cumprida. A profecia de Zacarias de que deveria entrar humilde
montado num burrico em Jerusalém; a profecia de Davi de que deveria ser
traído por um dos próprios familiares; a profecia de Zacarias de que deveria ser
vendido por trinta moedas de prata e que esse preço, depois, seria usado para
comprar um campo de sangue; a profecia de Isaías de que seria tratado de
maneira bárbara, flagelado e enviado à morte; a profecia de Isaías de que seria
crucificado entre dois malfeitores e que oraria pelos inimigos; as profecias de
Davi de que Lhe dariam vinagre para beber e repartiriam Suas vestes entre eles,
de que seria um profeta como Moisés, um sacerdote como Melquisedec, um
Cordeiro a ser abatido, um bode expiatório enviado para fora da cidade, que
seria mais sábio que Salomão, mais majestoso que Davi e que deveria ser
Aquele a quem Abraão e Moisés contemplavam na profecia — todos esses
maravilhosos hieróglifos teriam sido deixados sem explicação, não fosse o Filho
de Deus encarnado em Sua Cruz voltar o olhar para todas as ovelhas, cabritos e
bois que foram oferecidos em sacrifício e dizer: “Tudo está consumado”.
Não foi depois de pregar o belo sermão na montanha que Ele disse que
Sua obra estava consumada. Não foi para ensinar que Ele veio; foi, como disse,
para dar a Sua vida em resgate de muitos. No caminho para Jerusalém, dissera
aos apóstolos que seria entregue aos gentios, seria escarnecido e cuspido, seria
flagelado e enviado à morte; no jardim, quando Pedro ergueu a espada, Cristo
perguntou se Ele não deveria beber do cálice que o Pai do céu Lhe dera. Aos 12
anos, quando falou pela primeira vez na Escritura, disse que deveria tratar dos
assuntos do Pai. Agora, a obra que o Pai Lhe dera para realizar estava
terminada. O Pai enviara o Filho na aparência da carne pecadora e, por
intermédio do Espírito Eterno, Ele foi concebido no ventre de Maria. Tudo
isso veio a acontecer para que Ele pudesse sofrer na Cruz. Desse modo, a
reparação englobou toda a Trindade. O que foi efetuado foi a Redenção, como
o próprio Pedro diria após receber o Espírito e compreender o significado da
Cruz.
Porque vós sabeis que não é por bens perecíveis, como a prata e
o ouro,
que tendes sido resgatados da vossa vã maneira de viver,
recebida por tradição de vossos pais, mas pelo precioso sangue
de Cristo,
o Cordeiro imaculado e sem defeito algum.
(1 São Pedro 1,18-19)
A SÉTIMA PALAVRA
3 | Hissopo é uma palavra de origem hebraica para uma herbácea nativa da Europa
Meridional e do Oriente Médio, provavelmente a manjerona. De hastes delgadas e finas,
possui nas extremidades grandes espigas de pequenas flores. (N. T.)
50
Da Cruz, Nosso Senhor pronunciou sete palavras; mas houve também sete
palavras dirigidas a Nosso Senhor na Cruz.
No mundo só há lugar para o ordinário; nunca para o muito bom nem para o
muito mau. Os bons são uma repreensão aos medíocres; os maus, uma
perturbação. Por isso, no Calvário, a Bondade é crucificada entre dois ladrões.
Esta é a Sua posição verdadeira: entre os desvalidos e rejeitados. Ele é o homem
certo no lugar certo. Aquele que disse que viria como um ladrão de noite está
entre ladrões; o Médico está entre leprosos; o Redentor está em meio aos não
redimidos.
O bom ladrão, tocado por Cristo, dizia agora ao Salvador na cruz:
Se és o Cristo,
salva-te a ti mesmo e salva-nos a nós!
(São Lucas 23,39)
O típico homem egoísta que nunca está consciente de ter praticado o mal
pergunta: “Por que Deus fez isso comigo?”. Julga o poder salvador de Deus
com base na liberação de julgamentos. O ladrão à esquerda foi o primeiro
comunista. Muito antes de Marx, ele dizia: “Religião é o ópio do povo. Se não
pode aliviar o sofrimento, para que ela serve?”. Uma religião que pensa nas
almas quando os homens estão morrendo, que os faz olhar para Deus no
momento em que as cortes estão infligindo injustiça, que fala de Paraíso ou
“torta no céu” quando as barrigas estão vazias e os corpos, tomados de dor, que
discursa sobre perdão quando excluídos da sociedade, dois ladrões e um
carpinteiro da região, estão morrendo num patíbulo — tal religião é “o ópio do
povo”.
A única salvação que o ladrão à esquerda podia compreender não era
espiritual ou moral, mas física: “Salva-te a ti mesmo e a nós!”. “Salvar o quê?
Nossas almas? Não! O homem não tem alma! Salva nossos corpos! De que
serve a religião se não para parar a dor? Desce da cruz! Resgata uma classe
social! Ou o cristianismo é um evangelho social ou é uma droga”. Tal era seu
clamor.
Os homens podem estar em circunstâncias idênticas e reagir de modos
totalmente diferentes. Ambos os ladrões eram semelhantes na depravação do
coração, mas cada um reagiu de maneira diferente ao homem que estava entre
eles. Nenhum instrumento externo, nenhum bom exemplo, em si e por si,
basta para converter alguém se não houver transformação do coração. Esse
ladrão certamente era judeu, pois baseou a aceitação do Messias ou Cristo tão
somente em Seu poder de tirá-lo da cruz. Imagine, no entanto, que Cristo de
fato lhes tivesse retirado os cravos, secado as fontes nas mãos e pés,
restaurando-lhes o vigor da vida. Será que o restante da vida dele teria sido
uma demonstração de fé em Cristo — ou uma continuação de sua vida como
ladrão? Se Nosso Senhor fosse só um homem com uma reputação a zelar, Ele
teria de mostrar Seu poder a todo momento e em todo lugar; mas, sendo Deus,
que conhece os segredos de todo coração, Ele se manteve em silêncio. Deus
nunca responde à oração do homem meramente para mostrar Seu poder.
Quando houve trevas sobre a terra, Nosso Senhor fez ressoar um brado que
desencadeou a quinta palavra à Cruz:
Que o espírito de Elias repousava sobre João era evidente, pois o primeiro
sermão que o Batista pregou foi “Arrependei-vos”. Foi assim que Malaquias
profetizara que o precursor do Senhor O anunciaria. Ademais, as vestes e o
estilo de vida de João indicavam sua estreita semelhança com o grande tesbita.
O Senhor estava na Cruz; Elias viera em espírito. Os escarnecedores sem
dúvida se lembravam da referência de Nosso Senhor a Elias durante sua vida
pública. Ele estava contando aos mensageiros de João que a recepção de
qualquer verdade que Ele ensinava dependia da vontade de cada um. Daí o fato
de aceitar João com Elias significar aceitar o arrependimento que João havia de
despertar em suas almas:
E, se quereis compreender,
é ele o Elias que devia voltar.
(São Mateus 11,14)
Esses homens não eram judeus, nem cidadãos da Israel ocupada; eram
orgulhosos legionários de Roma. Por que, então, referiam-se ao Senhor,
zombando, como o Rei dos Judeus? Porque, segundo o espírito do paganismo,
pensavam que todos os deuses eram deuses nacionais. A Babilônia tinha seus
deuses; os medos e os persas também tinham os seus; os gregos, da mesma
forma; e assim também os romanos tinham seus próprios deuses. A conclusão
era que, de todos os deuses nacionais, nenhum parecia mais pobre e fraco que o
Deus de Israel, que não podia salvar a Si mesmo do madeiro. É provável,
também, que a zombaria dos soldados fosse inspirada pela inscrição na Cruz
nas três línguas, em que se lia:
Quando Cristo foi crucificado, o sol escondeu sua luz; quando Ele morreu, a
terra foi abalada em luto. Naquele terremoto, as rochas se partiram, túmulos se
abriram, e muitos corpos dos santos que dormiam se levantaram e saíram das
tumbas e apareceram a muitos na Cidade Santa. Se a terra deu sinais de
reconhecimento quando Deus estava libertando Seu povo da escravidão no
Egito ao separar as águas do mar, com tanto mais razão agora ela manifestava
reconhecer como o Senhor libertou o homem da servidão do pecado. Ainda
que o coração do povo não pudesse se partir, as pedras podiam.
O centurião, encarregado dos soldados, percebendo o terremoto e
relembrando o modo como o homem na cruz central tinha morrido, começou
a refletir. Então esse sargento do Exército romano deu um testemunho, não no
reino dos sonhos, como o fizera Cláudia, a outra pagã, mas com a expressão de
um homem honesto e sensato:
O próprio fato de se rasgar de alto a baixo era para indicar que não foi
feito pela mão do homem, mas pela mão milagrosa do próprio Deus, que
ordenara que, enquanto perdurasse a antiga lei, o véu deveria pender diante do
Santo dos Santos. Agora, Ele decretou que deveria ser rasgado em Sua morte.
Aquilo que havia muito era sagrado nesse momento permanecia aberto e
manifesto diante dos olhos, descoberto como qualquer coisa comum e
ordinária, ao passo que, diante deles, no Calvário, quando o soldado
transpassou-Lhe o coração, foi revelado um novo Santo dos Santos que
continha a arca do Novo Testamento e os tesouros de Deus. A morte de Cristo
foi a desconsagração do templo terreno, pois Ele ergueria um novo templo em
três dias. Somente um homem, uma vez por ano, podia entrar no Santo dos
Santos; agora que o véu estava rasgado, aquele que separava o sagrado do povo
e que separava os judeus dos gentios, ambos poderiam acessar o novo templo,
Cristo, o Senhor.
Há uma relação intrínseca entre o soldado perfurando o Coração de
Cristo na Cruz, que expeliu sangue e água, e a dilaceração do véu do templo.
Dois véus foram rasgados: o véu púrpura do templo, que pôs fim à antiga lei, e
o outro, o véu de Sua carne, que abriu o Santo dos Santos do amor divino
tabernaculizado entre nós. Nos dois casos, o que era sagrado tornou-se
manifesto; um deles, o Santo dos Santos, que era apenas uma representação; e
o outro, o verdadeiro Santo dos Santos, Seu Sagrado Coração, que abriu aos
pecadores o acesso a Deus. O véu do antigo templo indicava que o céu estava
fechado a todos até que o Sumo Sacerdote, enviado pelo Pai, rasgasse o véu e
abrisse as portas a todos. São Paulo contou como os antigos sumos sacerdotes,
somente uma vez por ano, e não sem uma oferta de sangue pelas próprias faltas
e pelas faltas de seu povo, tinham autorização para entrar no Santo dos Santos.
A Epístola aos Hebreus explica esse mistério:
Quando Nosso Salvador deu o último suspiro, os ossos dos ladrões foram
triturados para certificar-se da morte deles. A lei ordenava que o corpo de
alguém crucificado, e portanto amaldiçoado por Deus, não permanecesse na
cruz durante a noite. Além disso, com a proximidade do Sábado da semana da
Páscoa, era urgente aos seguidores da Lei matar os ladrões e sepultar todos os
que fossem crucificados. Havia de cumprir-se, no entanto, uma profecia acerca
do Messias. O cumprimento deu-se quando:
O pedido deles por uma guarda até o “terceiro dia” referia-se mais às
palavras de Cristo sobre Sua Ressurreição do que ao medo de que os apóstolos
roubassem o corpo e o erguessem, como se vivo, para simular a ressurreição.
No entanto, Pilatos não estava disposto a ver esse grupo, pois eles foram o
motivo de ter condenado o sangue inocente. Fizera a própria investigação de
que Cristo estava morto; não se submeteria ao absurdo de usar os exércitos de
César para vigiar um judeu morto. Pilatos lhes disse:
A guarda era para evitar a violência; o selo era para evitar a fraude. Devia
haver um selo, e os inimigos o lacrariam. Devia haver uma guarda, e os
inimigos a manteriam. Os certificados de morte e ressurreição deviam ser
assinados pelos próprios inimigos. Os gentios foram convencidos pela natureza
de que Cristo estava morto; os judeus foram convencidos pela lei de que Ele
estava morto.
MADALENA NO SEPULCRO
Esse foi o grito dos corações de pouca fé. Homens fortes fecharam a
entrada do sepulcro ao colocar uma pedra enorme diante dela; a preocupação
das mulheres era como remover a barreira para que pudessem realizar a
incumbência de misericórdia. Os homens não deveriam chegar à tumba até
que fossem convocados — tampouco acreditavam. Entretanto, as mulheres, só
por conta do pesar que buscavam consolar, foram embalsamar o morto. Nada é
mais anti-histórico que dizer que as mulheres pias estavam esperando que o
Cristo ressuscitasse dos mortos. A Ressurreição era algo que nunca esperaram.
A mentalidade deles não permitia que tais expectativas florescessem.
No entanto, ao se aproximarem, encontraram a pedra removida. Antes da
chegada, houve um grande tremor de terra e um anjo do Senhor, que descera
dos céus, rolara a pedra e sentara-se nela:
Para um anjo, a Ressurreição não seria um mistério, mas Sua morte seria.
Para o homem, Sua morte não era um mistério, mas Sua Ressurreição o seria.
O que era natural para o anjo, portanto, foi, nesse momento, o assunto do
anúncio. O anjo era um guardador maior do que aqueles que os inimigos
tinham colocado diante do túmulo do Salvador, um soldado maior do que os
que Pilatos nomeara.
As palavras do anjo foram o primeiro Evangelho proclamado após a
Ressurreição e retomou a Sua paixão, pois a ele o anjo referiu-se como “Jesus
de Nazaré, que foi crucificado”. Essas palavras traziam o nome de Sua
humanidade, a humildade do lugar que habitara e a ignomínia de Sua morte;
em todos os três, humildade, ignomínia e vergonha são comparados à Sua
Ressurreição dos mortos. Belém, Nazaré e Jerusalém tornam-se marcos
identificadores da Ressurreição.
As palavras do anjo, “Eis o lugar onde O depositaram”, confirmaram a
realidade de Sua morte e o cumprimento das antigas profecias. Os túmulos
trazem a inscrição: Hic jacet, ou “Aqui jaz”. Em seguida, o nome do morto e,
talvez, algum elogio ao finado. Todavia, em contraste, o anjo não escreveu, mas
expressou um epitáfio diferente: “Já não está aqui”. Pediu às mulheres que
contemplassem onde tinham posto o corpo de Nosso Senhor, como se o
túmulo vazio fosse prova o bastante do fato da Ressurreição. A uma virgem foi
anunciado o nascimento do Filho de Deus; a uma mulher imoral foi anunciada
Sua Ressurreição.
Os que viram o túmulo vazio foram instados a ir até Pedro, que tentara
Nosso Senhor uma vez a fugir da Cruz e três vezes O negara. O pecado e a
negação não abafam o Amor Divino. Embora seja paradoxal, quanto maior o
pecado, menor a fé; e, ainda assim, quanto maior o arrependimento pelo
pecado, maior a fé. Foi para a ovelha perdida e ofegante no deserto que Ele
veio; foi para os publicanos e as prostitutas; era aos Pedros que O negavam e
aos Paulos que O perseguiam que as súplicas de amor mais persuasivas eram
enviadas. Ao homem que fora chamado de Pedra e que tentara o Cristo a não
tomar a cruz, o anjo, agora, enviava pelas mulheres a mensagem “Ide, dizei a
Pedro”.
A mesma proeminência individualizadora dada a Pedro na vida pública
continuou na Ressurreição. Entretanto, embora Pedro fosse mencionado aqui
com os apóstolos dos quais era o cabeça, o Senhor apareceu para ele sozinho,
antes de revelar-se a Si mesmo para os discípulos de Emaús. Isso ficou evidente
pelo fato de, mais tarde, os discípulos dizerem que Ele apareceu a Pedro. A
boa-nova da redenção foi dada, assim, a uma mulher decadente e a um
apóstolo que O negara, mas ambos tinham se arrependido.
Maria Madalena, que, no escuro, andou à frente das companheiras, notou
que a pedra já fora rolada para o lado, de modo que a entrada do túmulo estava
aberta. Um olhar rápido revelou que a tumba estava vazia. O primeiro
pensamento dela foi o dos apóstolos Pedro e João, para os quais correu,
agitada. Segundo a lei mosaica o testemunho de uma mulher era inaceitável.
Maria, contudo, não lhes deu notícias de ressurreição; não esperava por isso.
Pressupôs que Ele ainda estivesse sob o poder da morte, como disse a Pedro e
João:
Chorava por aquilo que estava perdido, mas Sua pergunta espantou o
infortúnio das lágrimas ao fazê-la parar de chorar. Ela disse:
Não houve pavor ao ver os anjos, pois o mundo em chamas não a teria
comovido, tamanho o pesar que dominava sua alma. Quando ela disse isso,
voltou-se e viu Jesus de pé; não sabia que era Ele. Pensou ser o jardineiro — o
jardineiro de José de Arimateia. Ao acreditar que esse homem pudesse saber
onde Aquele que estava perdido poderia ser encontrado, Maria Madalena caiu
de joelhos e perguntou:
Maria!
(São João 20,16)
A voz foi mais alarmante que o estrondo de um trovão. Certa vez ouvira
Jesus dizer que chamava Suas ovelhas pelo nome. E agora para Aquele que
individualizara todo o pecado, o pesar e as lágrimas do mundo e marcara cada
alma com um amor pessoal, particular e discriminado, ela se voltou, e ao ver as
lívidas marcas rubras nos Seus pés e mãos, pronunciou apenas uma palavra:
Rabôni!
(São João 20,16)
Essa foi a primeira vez que chamou os apóstolos de “meus irmãos”. Antes
que o homem pudesse ser filho adotivo de Deus, tinha de ser redimido da
inimizade com Deus.
OS GUARDAS E O SUBORNO
Que foi?
(São Lucas 24,19)
Tomar o pão, parti-lo e dar a eles não era um ato de cortesia, pois isso
assemelhava-se muito à Última Ceia, na qual ordenara aos apóstolos a
repetição do ato como memorial de Sua morte, ao partir o pão que era Seu
corpo e distribuí-lo. Imediatamente, ao receber o Pão Sacramental que foi
partido, os olhos da alma foram abertos. Assim como os olhos de Adão e Eva
foram abertos para ver a vergonha depois de ter comido do fruto proibido do
conhecimento do bem e do mal, da mesma maneira, nesse momento, os olhos
dos discípulos foram abertos para discernir o Corpo de Cristo. A cena encontra
paralelo com a Última Ceia: em ambas houve uma ação de graças; em ambas
houve o partir do pão e, em ambas, a partilha do pão com os discípulos. Com
a doação do pão veio um conhecimento que conferiu maior claridade do que
todas as outras instruções. O partir do pão os introduzira na experiência do
Cristo glorificado. Então, Ele sumiu de vista. Ao se voltarem, um ao outro,
refletiram:
Apalpai e vede:
um espírito não tem carne nem ossos,
como vedes que tenho.
(São Lucas 24,39)
Ú
noite da Última Ceia, estava particularmente interessado na lateral do corpo ou
no coração. Nunca esqueceu aquela cena tocante, pois, mais tarde, escreveu:
Prosseguindo com a ideia, Ele disse estar rezando não só por aqueles que
seriam seus representantes na terra, mas por todos, por toda a história, que
viessem a crer Nele.
Assim como o sacerdote judaico declarava quem estava e quem não estava
purificado entre os leprosos, Cristo, do mesmo modo, conferiu o poder de
perdoar e de reter o perdão dos pecadores. Somente Deus pode perdoar os
pecados; mas Deus, em forma de homem, perdoou os pecados de Madalena,
do ladrão penitente, do cobrador de impostos desonesto e de outros. A mesma
lei da Encarnação agora seria mantida; Deus continuaria a perdoar os pecados
por intermédio do homem. Os ministros designados seriam os instrumentos de
Seu perdão, assim como a própria natureza humana era o instrumento de Sua
divindade ao adquirir o perdão. Essas palavras solenes do Salvador Ressuscitado
indicavam que os pecados seriam perdoados pelo poder judicial autorizado a
examinar o estado de uma alma e conferir ou recusar o perdão, conforme o
caso. Daquele dia em diante, o remédio para o pecado humano e para a culpa
era fazer humilde confissão a alguém com autoridade para perdoar. Ser
humilde, de joelhos, confessar àquele a quem Cristo deu o poder de perdoar
(em vez de prostrar-se num divã para ouvir a culpa explicada), foi uma das
maiores alegrias dadas à alma humana oprimida.
56
Logo depois de falar de paz, Nosso Divino Salvador passou a falar sobre
em que se fundamentava a paz, a saber, Sua morte e Ressurreição. Não havia o
menor sinal de crítica em Nosso Senhor, como não haveria o menor sinal de
crítica com Pedro numa aparição posterior às margens do Mar da Galileia.
Tomé pedira uma prova com base nos sentidos ou faculdades que pertencem
ao reino animal, e uma prova dos sentidos lhe seria dada. Nosso Senhor disse a
Tomé:
Introduz aqui o teu dedo,
e vê as minhas mãos.
Põe a tua mão no meu lado.
Não sejas incrédulo, mas homem de fé.
(São João 20,27)
O Mestre dissera certa vez que uma geração perversa e adúltera pede um
sinal, e nenhum sinal lhe seria dado senão o do profeta Jonas. Esse era
precisamente o sinal dado a Tomé. O Senhor sabia das palavras de ceticismo
que Tomé havia dito anteriormente aos demais apóstolos — outra prova de
Sua Onisciência. A ferida em Seu lado deve ter sido muito grande, visto que
Ele pediu a Tomé que pusesse a mão nela; e também as feridas em Sua mão
devem ter sido grandes, pois Tomé foi convidado a colocar o dedo no lugar do
cravo. As dúvidas de Tomé não duraram mais que as dos outros, e seu
ceticismo extraordinário é uma prova a mais da realidade da Ressurreição.
Havia todas as razões para supor que Tomé fez o que fora convidado a
fazer, assim como havia toda razão para supor que os dez apóstolos tinham
feito exatamente a mesma coisa na primeira noite da Páscoa. As palavras de
repreensão de Nosso Senhor a Tomé — a não mais duvidar — também
continham uma exortação a crer e a livrar-se de sua tristeza, que era o pecado
que o assediava.
Paulo não foi desobediente à visão celestial; tampouco o foi Tomé. O
cético foi tão convencido por uma prova positiva que se tornou adorador.
Prostrando-se de joelhos, disse ao Salvador Ressurreto:
Há quem não creia ainda que veja, como o Faraó; há quem só creia
quando vê. Acima de ambos os tipos, o Senhor Deus colocou aqueles que não
viram e creram. Noé fora advertido por Deus de coisas que ainda não tinham
sucedido; ele creu e preparou a arca. Abraão saiu de sua terra sem saber aonde
ia, mas ainda confiando no Deus que prometera — que ele seria o pai de uma
descendência mais numerosa que os grãos de areia da praia. Se Tomé tivesse
crido pelo testemunho de seus colegas discípulos, sua fé em Cristo teria sido
maior; pois ouvira muitas vezes seu Senhor dizer que seria crucificado e se
ergueria novamente. Ele também sabia pelas Escrituras que a Crucifixão era o
cumprimento de uma profecia, mas queria o testemunho adicional dos
sentidos.
Tomé pensou estar fazendo a coisa certa ao exigir toda evidência de uma
prova sensível; mas o que seria das gerações futuras se a mesma evidência fosse
exigida por eles? Os futuros crentes, sugeria o Senhor, hão de aceitar o fato da
Ressurreição pelo testemunho daqueles que estiveram com Ele. Nosso Senhor
retratou assim a fé dos crentes depois da era apostólica, quando não haveria
ninguém que o viu, mas a fé deles teria fundamento, porque os próprios
apóstolos tinham visto o Cristo Ressurreto. Viram que o fiel pode ser capaz de
agir assim sem ver, crendo no testemunho deles. Os apóstolos foram homens
privilegiados, não só porque viram Nosso Senhor e creram; foram ainda mais
privilegiados quando compreenderam plenamente o mistério da Redenção e
nele assim viveram — e até chegaram a ser decapitados por causa da realidade
da Ressurreição. Alguma gratidão sempre deve ser creditada a Tomé, que tocou
a Cristo como homem, mas creu Nele como Deus.
57
É o Senhor!
(São João 21,7)
O MANDATO DIVINO
Disse-lhes o Senhor:
Se essa comissão fosse dada apenas para o tempo dos apóstolos, é evidente
que seria impossível que fossem a todas as nações. O dinamismo ou corrente
que foi passada aos apóstolos sob a liderança de Pedro havia de continuar até a
Segunda Vinda de Cristo. Não havia nenhuma dúvida quanto à autoridade e à
obra da Igreja quando o Mestre deixasse a terra. Chegou o dia da Propagação
da Fé. Os apóstolos e seus sucessores já não haviam de se considerar mestres
apenas em Israel; de agora em diante, o mundo inteiro era deles. Tampouco
haviam de simplesmente ensinar; pois Aquele que lhes deu a comissão não era
só um mestre. Tinham de fazer discípulos de todas as nações; e o discipulado
pressupunha a rendição do coração e da vontade ao Mestre Divino. O poder da
Cruz redentora seria vão a menos que Seus servos o usassem para incorporar
outras naturezas humanas Nele mesmo. Assim como Maria deu-Lhe uma
natureza humana que foi glorificada em Sua Pessoa, também os homens
haviam de render sua natureza humana a Ele, morrendo como Ele morreu, a
fim de que pudessem entrar na glória.
Essa incorporação a Si Mesmo havia de ser iniciada pelo batismo, como
Ele disse a Nicodemos. A menos que nasça da água e do Espírito Santo, o
homem não pode entrar no Reino de Deus. Assim como nascer da carne gera a
carne do homem, nascer do Espírito o faria participante de Sua natureza
divina. O batismo tinha de ser administrado não “nos nomes” das três pessoas
da Santíssima Trindade, visto que implicaria três deuses, mas, antes, tinha de
dar-se em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, porque as Três Pessoas são
um, tendo a natureza de Deus. Uma analogia mais perfeita é que nossa vida,
nosso conhecimento e nosso amor estão arraigados a nossa natureza humana;
assim também o Poder do Pai, a Sabedoria do Filho e o Amor do Espírito
Santo são um na natureza de Deus. Assim como três ângulos de um triângulo
não formam três triângulos, mas um só; como gelo, água e vapor são
manifestações diferentes de uma natureza, H2O, assim infinitamente além de
qualquer comparação finita, o Poder, a Sabedoria e o Amor não são senão um
só Deus.
Essa autoridade que Ele lhes deu e que havia de se estender por toda a
terra ainda pode ter deixado na mente dos apóstolos uma dúvida quanto a Sua
Presença com eles. Essa dúvida é imediatamente desfeita quando Ele asseverou
a Sua Igreja:
Uma nova luz fez todas as coisas parecerem diferentes daquilo que havia
antes; à luz da ressurreição, pareciam diferentes do que eram na escuridão
anterior. É preciso mais que a luz do sol para ler Moisés, os profetas e os
salmos: também é necessária certa iluminação interior, que é inseparável da boa
vontade e do amor. Várias vezes Nosso Senhor contou a própria autobiografia
e, em cada momento, sem exceção, referiu-se à reparação que faria entre Deus e
o homem. Agora, resumiu Sua vida pela última vez, repetindo que o Antigo
Testamento se referiu a Ele como o Servo Sofredor, mas Vencedor.
Assim é que está escrito,
e assim era necessário que Cristo padecesse,
mas que ressurgisse dos mortos ao terceiro dia.
(São Lucas 24,46)
Não era pelo sermão do Monte que Ele seria lembrado, mas por Sua
Cruz. Não haveria Evangelho se não houvesse Cruz; e a morte na Cruz teria
sido inútil para retirar a culpa do homem se Ele não tivesse ressuscitado dos
mortos. O Senhor disse que se obrigou a sofrer porque tinha de mostrar o mal
do pecado, e o mal se torna manifesto em plenitude na crucifixão do bem.
Nunca tombou sobre a terra uma escuridão mais densa do que aquela que
recaiu sobre Ele no Calvário. Em todas as outras batalhas, em geral, existe um
acinzentado ou uma mistura de bem e mal em ambos os lados; na crucifixão,
no entanto, havia o preto de um lado e o branco do outro. O mal nunca seria
mais forte do que foi naquele dia em especial; pois a pior coisa que o mal pode
fazer não é bombardear as cidades, matar crianças e promover guerras. A pior
coisa que o mal pode fazer é matar o bem. Derrotado nisso, nunca poderia ser
novamente vitorioso.
A bondade diante do mal deve sofrer, pois, quando o amor encontra o
pecado, será crucificado. Um Deus que expõe Seu Sagrado Coração como
demonstração pública de Seu amor, como o fez Nosso Senhor quando se
tornou homem, deveria estar preparado para tê-lo bicado por gralhas.4
Entretanto, ao mesmo tempo, a bondade utilizou aquele mesmo sofrimento
como condição de vencer o mal. O bem arrebatou toda a raiva, ira e ódio e
implorou “perdão”; tomou a vida e ofereceu-a por outro. Consequentemente,
para Ele, era oportuno sofrer para ingressar na glória. O mal, vencido de
armadura completa e no instante do ápice monumental, poderia, no futuro,
vencer algumas batalhas, mas nunca ganharia a guerra.
Não haveria qualquer esperança para um mundo ferido se esta fosse
oferecida por um Confúcio, um Buda, ou mesmo por um Cristo que tivesse
ensinado a bondade e depois se decompusesse numa tumba. Asas quebradas
não podem ser curadas pelo humanismo, que é a irmandade sem lágrimas; ou
por um Cristo gentil que não tem outra fonte de conhecimento diversa de
qualquer outro mestre e que, no fim, como eles, não pode romper os grilhões
da morte, nem provar que a verdade esmagada na terra pode ressurgir
novamente.
Esse resumo que Nosso Senhor ofereceu de Sua vida lançou o desafio aos
homens e O colocou fora da história. Que certeza existiria de que o mal não
triunfaria sobre o bem? Suponhamos que Ele fosse apenas um homem bom ou
o maior moralista que o mundo já viu. Então que certeza existiria para a vitória
da virtude? Qual inspiração para o sacrifício? Se Ele, que veio à terra para
ensinar a dignidade da alma humana, que podia desafiar um mundo pecador a
condená-Lo pelo pecado, que no momento da morte podia perdoar os
inimigos, não tinha outro desenlace e destino senão restar pendurado em um
mandeiro ordinário com criminosos e ladrões comuns para promover um
espetáculo público de barbárie e sadismo, aí, então, todos os homens
desesperadamente perguntariam: “Se é isso o que acontece com um homem
bom, por que alguém deveria levar uma vida honesta?”. Nesse caso, a maior de
todas as injustiças ficaria sem reparação e a mais nobre de todas as vidas se
esvairia sem justificativa. Quaisquer que sejam os elogios que possamos fazer
aos Seus ensinamentos, à Sua paciência sob os golpes, à Sua humildade diante
das multidões — eles não O tornam o Senhor da morte e da vida; ao contrário,
tornam vãs tais virtudes, pois não têm recompensa.
Ao dizer que Ele tinha de sofrer, Cristo glorificou Seu Pai. Admiremos o
quanto quisermos a santidade, mas o que pensar de um Deus que olha para o
espetáculo da Inocência caminhando para o patíbulo e não remove os cravos,
dando, no lugar, um cetro? Ou o que pensar de um Deus que não envia um
anjo para arrebatar a coroa de espinhos e pôr no lugar uma guirlanda? Será
Deus um partícipe ao dizer que a vida mais nobre que já andou por esta terra é
impotente perante os atos malignos dos homens? O que a humanidade deve
pensar sobre a natureza humana, se a flor alva de uma vida sem mácula é
esmagada sob as botinas rústicas dos executores romanos e, então, destinada a
definhar como as flores maceradas? Não exalaria maior odor pestilento por
conta da doçura primeva e nos faria odiar não só o Deus que não se importou
com a verdade e o amor, mas até mesmo nossos semelhantes, por serem
partícipes de Sua morte? Se esse é o fim da bondade, então, por que, afinal, ser
bom? Se isso é o que acontece à justiça, deixemos que reine a anarquia!
No entanto, Nosso Senhor tomou o pior que o mundo tinha a oferecer e,
assim, pelo poder de Deus, elevou-se acima disso; se Ele, o desarmado, podia
fazer a guerra sem arma alguma senão a bondade e o perdão, de modo que a
morte era ganho e aqueles que O mataram, perdedores, então, quem não
deveria ter esperança? Quem se desesperaria diante de qualquer vitória
momentânea do mal? Quem deveria deixar de confiar ao ver andar nas trevas o
Senhor Ressucitado com as cicatrizes gloriosas nas mãos, nos pés e no lado? A
lei que Ele deu era clara: a vida é uma luta, a não ser que exista uma Cruz em
nossas vidas, nunca haverá um sepulcro vazio; a não ser que exista uma coroa
de espinhos em nossas vidas, nunca haverá o halo de luz; a não ser que exista
uma Sexta-Feira Santa, nunca haverá um Domingo de Páscoa. Quando Ele
disse “Venci o mundo”, não queria dizer que Seus discípulos ficariam imunes
dos lamentos, das dores, do pesar e da crucifixão. Ele não deu uma paz que
prometia banir a contenda, pois Deus detesta a paz daqueles que estão
destinados à guerra. Se o Pai Celestial não poupou o próprio filho, Ele, o Filho
Celestial, não pouparia Seus discípulos. O que a ressurreição oferecia não era a
imunidade ao mal no mundo físico, mas a imunidade do pecado na alma.
O Divino Salvador nunca disse aos apóstolos “Seja bom e não sofrerá”,
mas afirmou: “Neste mundo tereis tribulações” (São João 16,33). Ele também
lhes disse que não temessem aqueles que matam o corpo, mas, antes, que
temessem quem pode matar a alma (São Mateus 10,28). Agora disse aos
apóstolos que Sua vida era um modelo para todos os seus seguidores; que eram
encorajados a assumir o pior que a vida tinha a oferecer com coragem e
serenidade. Afirmou que todos os sofrimentos eram como a sombra de “Sua
mão estendida, acariciando-os”. Não era como um talismã para prometer
defesa das provações; ao contrário, como um capitão, ingressou na batalha para
inspirar os homens a transfigurar algumas das maiores dores da vida em maior
proveito da vida espiritual. Foi a Cruz de Cristo que elevou as questões da vida;
foi a Ressurreição que as respondeu. Não o Cristo feminizado, mas o viril, é o
que desfralda no próprio corpo o testemunho da vitória diante de um mundo
mau — a flâmula estriada das chagas da Salvação. Como descreveu o poeta
Edward Shillito: “Nenhum falso deus, isento de dor e pesar, pode consolar-nos
nesses dias”.
4 | O autor faz referência à fala de Iago na peça Otelo, de William Shakespeare (Ato I, cena
I), em que se utiliza a expressão inglesa “to wear my heart upon my sleeve”, oriunda do
antigo costume medieval do cavaleiro amarrar a fita com as cores da amada no braço ao
lutar como maneira de demonstrar afeição. (N. T.)
5 | No original: If we have never sought, we seek ee now;/ ine eyes burn through the dark,
our only stars;/ We must have sight of thorn-pricks on y brow,/ We must have ee, O Jesus
of the Scars.
e heavens frighten us; they are too calm;/ In all the universe we have no place./ Our wounds
are hurting us; where is the balm?/ Lord Jesus, by y Scars, we claim y grace.
If, when the doors are shut, ou drawest near,/ Only reveal those hands, that side of ine;/
We know to-day what wounds are, have no fear,/ Show us y Scars, we know the countersign.
e other gods were strong; but ou wast weak;/ ey rode, but ou didst stumble to a
throne;/ But to our wounds only God’s wounds can speak,/ And not a god has wounds, but
ou alone.
James Dalton Morrison (ed.), Masterpiece of Religious Verse. Harper & Brothers: Nova
York. (N. T.)
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PENITÊNCIA
A ASCENSÃO
Naqueles quarenta dias após Sua Ressurreição, Nosso Senhor Divino estava
preparando os apóstolos para suportar a perda de Sua presença por meio do
Consolador que estava por vir.
Embora nos céus, não seria somente um advogado dos homens junto ao
Pai, mas também enviaria o Espírito Santo como advogado do homem junto
Dele. O Cristo à direita do Pai representaria a humanidade diante do trono do
Pai; o Espírito Santo, ao permanecer com os fiéis, representaria neles o Cristo
que foi estar junto ao Pai. Na Ascensão, Cristo levou nossas necessidades ao
Pai; graças ao Espírito, Cristo, o Redentor, seria levado aos corações de todos os
que Nele viessem a crer.
A Ascensão daria a Cristo o direito de interceder com grande poder pelos
mortais:
3. Seu novo Corpo seria como todas as coisas vivas, pequeno no início —
até mesmo, conforme Ele disse, “como um grão de mostarda” —, mas cresceria
da simplicidade para a complexidade até a consumação dos séculos. Nas
palavras Dele:
4. Uma casa se expande de fora para dentro, pela adição de tijolo por
tijolo; organizações humanas crescem pela adição de homem a homem, isto é,
da circunferência para o centro. Seu Corpo, disse Ele, seria formado de dentro
para fora, como um embrião vivo se forma no corpo humano. Assim como Ele
recebeu vida do Pai, os fiéis receberiam vida Dele. Como Ele mesmo disse:
E a Voz respondeu:
Como era possível que Saulo estivesse perseguindo Nosso Senhor que
estava glorificado no céu? Por que a Voz do Céu havia de dizer “Saulo, Saulo,
por que Me persegues?”?
Se alguém pisa no pé, a cabeça não se queixaria porque é parte do corpo?
Nosso Senhor estava agora dizendo que, ao atacar Seu Corpo, Paulo estava O
atacando. Quando o Corpo de Cristo era perseguido, era Cristo, a Cabeça
Invisível que se erguia para falar e protestar. O Corpo Místico de Cristo,
portanto, não permanece entre Ele e um indivíduo mais do que Seu corpo
físico permaneceu entre Madalena e Seu perdão, ou Sua mão permaneceu entre
os pequeninos e Sua bênção. Foi por meio de Seu Corpo humano que Ele veio
aos homens em Sua vida individual; é por meio de Seu Corpo Místico ou Sua
Igreja que Ele vem aos homens em sua vida mística corporativa.
Cristo está vivo agora! Está ensinando agora, governando agora,
santificando agora — como o fez na Judeia e na Galileia. Seu Corpo Místico,
ou a Igreja, já existia durante o Império Romano antes de qualquer um dos
Evangelhos ter sido escrito. Foi o Novo Testamento que veio da Igreja, não a
Igreja que veio do Novo Testamento. Esse corpo tinha quatro marcas
distintivas de vida: tinha unidade, porque vivificada por uma Alma, um
Espírito, o dom de Pentecostes. Assim como unidade na doutrina e autoridade
são a força centrípeta que mantém a vida da Igreja una, a catolicidade é a força
centrífuga que a capacita a expandir e absorver a humanidade redimida sem
distinção de raça ou cor. A terceira nota da igreja é a santidade, o que quer dizer
que ela permanece na condição que a mantém saudável, pura e livre da doença
da heresia e do cisma. A santidade não está em cada membro, mas no todo da
Igreja. E porque o Espírito Santo é a alma da Igreja, esta pode ser o
instrumento Divino para a santificação das almas. A luz do sol não é poluída
porque seus raios passam por uma janela suja; nem os sacramentos perdem seu
poder de santificar porque os instrumentos humanos desses sacramentos
podem estar manchados. Por fim, há a obra da apostolicidade. Na biologia,
Omne vivum ex vivo, ou “Toda vida vem da vida”. Assim também o Corpo
Místico de Cristo é apostólico, porque historicamente tem suas raízes em
Cristo e não num homem separado Dele por séculos. É por isso que a Igreja
nascente teve de encontrar um sucessor de Judas que fosse testemunha da
Ressurreição e companheiro dos Apóstolos.
Daniele Cajueiro
EDITOR RESPONSÁVEL
Hugo Langone
PRODUÇÃO EDITORIAL
Adriana Torres
REVISÃO DE TRADUÇÃO
Juliana Pitanga
Laís Curvão
REVISÃO
Laís Curvão
Raquel Rimas
DIAGRAMAÇÃO
Elza Ramos
CAPA
Victor Burton
PRODUÇÃO DO EBOOK
Ranna Studio
São José
, Editora Petra
9788582780626
80 páginas
Sabemos que Jesus dividiu a história entre a.C. e b.C., que anunciou a
salvação a judeus e gentios, que inspirou seus discípulos a se espalharem
pelo mundo, que comoveu corações endurecidos por meio de uma mensagem
repleta de amor e misericórdia. Por isso, falar dele como um filósofo pode
parecer estranho. Em Jesus, o maior filósofo que já existiu, Peter Kreeft nos
faz perceber que a figura mais importante da humanidade não somente
contribuiu para a filosofia, mas também realizou a maior revolução já vista na
história do pensamento, dando-nos respostas seguras às questões mais
importantes de nossas vidas.
Um dos livros mais lidos do País - lista da revista Veja (edição 201422)Este é
o novo livro do padre Reginaldo Manzotti. Milagres apresenta uma seleção
cuidadosa feita diretamente pelo padre a partir das Sagradas Escrituras: são
sete milagres de Jesus que podem mudar nossas vidas.Como? Conhecendo,
compreendendo e agindo.Na correria do dia a dia, estamos desatentos aos
sinais enviados pelo Criador. Eles existem, com certeza, embora nem sempre
sejam tão palpáveis quanto os milagres realizados por Jesus. Porém, são
sinais igualmente transformadores. O primeiro passo para adotarmos uma
nova atitude é doutrinar o olhar para aprender a enxergar as manifestações
divinas. Eis a missão desta que é a primeira obra da trilogia Sinais do
Sagrado.Mais do que folhear as páginas para obter informações, o que o
autor propõe a você é uma consulta atenta e sem pressa. Não no tempo dos
ponteiros do relógio, mas no da alma sedenta por sabedoria. Faça deste livro
um momento de encontro com Deus e com a sua própria essência renovada
por meio da Palavra divina.Se preferir, você pode ler um trecho a cada dia.
Sozinho ou em grupo. Trata-se de uma proposta de leitura que alimenta a fé e
fortalece a união com Deus.