ASSOMBRAÇÕES - Edward Bulwer-Lytton

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ASSOMBRAES

Edward Bulwer-Lytton

Um amigo meu, homem de letras e filsofo, disse-me um dia, meio zombeteiro, meio srio: Adivinhe! Desde que nos vimos pela ltima vez, descobri uma casa assombrada no meio de Londres. Assombrada de verdade? E pelo qu? Fantasmas? Bem, no sei; tudo que sei o seguinte: seis semanas atrs, minha mulher e eu estvamos procura de um apartamento mobiliado. Ao passar por uma rua tranqila, vimos na janela de uma das casas: Apartamentos mobiliados. O lugar nos convinha; entramos na casa, gostamos dos aposentos, mudamos para eles na semana seguinte... e os abandonamos no terceiro dia. Nada no mundo poderia ter convencido minha mulher a permanecer mais tempo; e no me surpreende. E o que vocs viram? Perdo; no quero ser ridicularizado como um visionrio supersticioso, nem, por outro lado, poderia pedir-lhe aceitar, sob minha palavra, aquilo que voc considerasse inacreditvel a menos que seus sentidos o comprovassem. A nica coisa que posso lhe dizer que no foi tanto o que vimos ou ouvimos (pois voc poderia muito bem imaginar que framos ludibriados por nossa prpria imaginao vivida ou vtimas da impostura de outrem) que nos expulsou quanto um terror indefinvel que nos tomava sempre que passvamos pela porta de um determinado quarto vazio, no qual nada vamos nem ouvamos. E o mais espantoso de tudo foi que, pela primeira vez em minha vida, concordei com minha mulher, por tola que ela ~ 10 ~

seja, e admiti, aps a terceira noite, ser impossvel ficar mais um dia naquela casa. Assim, na quarta manh, chamei a mulher que cuidava da casa e nos assistia e disse-lhe que os aposentos no nos serviam e que provavelmente no ficaramos ali no restante da semana. Ela disse secamente: Sei por qu: vocs ficaram mais tempo do que os outros inquilinos. Poucos ficam alm da segunda noite; ningum antes de vocs ficou at uma terceira. Mas suponho que eles foram muito gentis com vocs. Eles quem?, perguntei, tentando sorrir. Ora, os que assombram a casa, sejam quem forem. Eles no me incomodam; lembro-me deles h muitos anos, quando morei nesta casa, no como criada; mas sei que me mataro algum dia. No me importo. Sou velha e morrerei logo, mesmo; e ento estarei com eles e ainda nesta casa. A mulher falava com sombria tranqilidade, mas uma espcie de temor me impeliu a interromper a conversao. Paguei a semana de aluguel, e minha mulher e eu nos sentimos afortunados por pagarmos s pela estadia. Voc despertou minha curiosidade, disse eu. Nada me agradaria mais do que dormir em uma casa assombrada. Por favor, d-me o endereo daquela que voc abandonou to vergonhosamente. Meu amigo deu o endereo e, quando nos despedimos, fui imediatamente para a casa indicada. Ela est situada na parte norte da Oxford Street (em uma travessa sem movimento, porm respeitvel). Encontrei a casa fechada, sem nenhum cartaz na janela, e ningum respondeu s minhas batidas na porta. Quando estava me afastando, um desses meninos que recolhem garrafas nas vizinhanas disse-me: O senhor quer falar com algum daquela casa? Sim, soube que ela estava para alugar. Alugar! Ora, a mulher que cuidava dela est morta. Morreu h trs semanas e no h ningum l, embora o sr. J. a tenha oferecido a tanta gente. Ele ofereceu-a minha me, que lhe traz carvo, na semana passada, apenas em troca de abrir e fechar as janelas, mas ela no quis. No quis! E por qu? ~ 11 ~

A casa mal-assombrada; e a velha que cuidava dela foi encontrada morta na cama, com os olhos arregalados. Dizem que o diabo a estrangulou. Bobagem! Voc falou sobre o sr. J. Ele o dono da casa? . Onde ele mora? Quem ele? O que faz? Nada em particular, senhor; solteiro. Dei ao menino uma gorjeta em paga de suas informaes generosas e dirigi-me ao sr. J, na rua G, que ficava perto da rua da famosa casa malassombrada. Tive a sorte de encontrar o sr. J. em casa, um homem de idade, com uma fisionomia inteligente e maneiras agradveis. Imediatamente disse-lhe meu nome e minha profisso. Contei que ouvira dizer que a casa era assombrada, que queria muito examinar uma casa com uma reputao to estranha, que ficaria imensamente agradecido se me permitisse alug-la, embora somente por uma noite. Estava disposto a pagar o que ele pedisse por essa concesso. Senhor, disse o sr. J., com grande cortesia, a casa est a sua disposio, pelo tempo, curto ou longo, que o senhor desejar. Alug-la est fora de questo. O favor o senhor quem me prestar, se puder descobrir a causa dos estranhos fenmenos que at agora a privou de todo o seu valor. No posso alug-la, por que no consigo sequer um criado para mant-la em ordem ou atender porta. Infelizmente a casa assombrada, se me permite usar essa expresso, no apenas noite, mas tambm de dia, embora noite as perturbaes sejam mais desagradveis e por vezes mais amedrontadoras. A pobre velha que nela morreu h trs semanas era pobre e eu a tinha tirado de um asilo, pois, em sua infncia, fora conhecida por algum de minha famlia e, em dias melhores, alugara aquela casa de meu tio. Era bem educada e equilibrada a nica pessoa que pude jamais convencer a ficar na casa. De fato, desde sua morte, que foi sbita, e a autpsia, que chamou a ateno nas vizinhanas, perdi de tal modo as esperanas de encontrar uma pessoa para tomar conta da casa, e muito menos um inquilino, que de bom grado a cederia por um ano, sem pagamento de aluguel, a qualquer um que pagasse seus impostos e taxas. ~ 12 ~

H quanto tempo a casa adquiriu essa caracterstica sinistra? Sei muito pouco sobre isso, mas h muitos anos. A velha senhora de quem lhe falei disse que ela era assombrada quando alugou-a trinta ou quarenta anos atrs. Acontece que passei minha vida nas ndias Orientais, como funcionrio pblico da Companhia. Retornei Inglaterra no ano passado, ao herdar a fortuna de um tio, na qual se inclui a casa em questo. Encontrei-a lacrada e desabitada. Disseram-me que era mal-assombrada, que ningum queria morar nela. No levei a srio uma histria to tola. Gastei algum dinheiro em sua recuperao, acrescentei sua moblia antiquada algumas peas modernas, anunciei-a e consegui alug-la por um ano. Era um coronel aposentado a meio-soldo. Ele entrou com sua famlia, um filho e uma filha e quatro ou cinco criados; todos eles deixaram a casa no dia seguinte, e embora cada um deles declarasse ter visto algo diferente do que assustara os outros, havia algo de igualmente terrvel para todos. No pude em s conscincia processar, nem mesmo censurar o coronel por sua quebra de contrato. Coloquei ento a velha senhora de quem lhe falei e dei-lhe licena para alugar aposentos da casa. Nunca tive um inquilino que ficasse mais de trs dias. No lhe conto suas histrias no houve dois inquilinos que tenham presenciado exatamente o mesmo fenmeno. melhor o senhor julgar por si mesmo do que entrar na casa com a imaginao influenciada por narrativas anteriores; esteja somente preparado para ver e ouvir alguma coisa e tome as precaues que desejar. O senhor nunca teve a curiosidade de passar uma noite naquela casa? Tive. Passei no uma noite, mas trs horas em plena luz do dia naquela casa. Minha curiosidade no est satisfeita, mas reprimida. No tenho nenhum desejo de repetir a experincia. O senhor no pode, compreenda, queixar-se de que no sou suficientemente franco; e a menos que seu interesse seja extremo e seus nervos excepcionalmente fortes, com toda sinceridade aconselho-o a no passar uma noite naquela casa. Meu interesse muito grande, disse-lhe eu, e embora somente um covarde possa vangloriar-se de seus nervos em situaes inteiramente des~ 13 ~

conhecidas para si, os meus tm sido temperados em tantos tipos diferentes de perigo que tenho o direito de confiar neles at mesmo em uma casa mal-assombrada. O sr. J. no disse muito mais; pegou de sua escrivaninha as chaves da casa, deu-as para mim e eu, agradecendo-lhe vivamente sua franqueza e corts assentimento a meu desejo, fui embora com meu trofu. Impaciente por iniciar a experincia, assim que cheguei a minha casa chamei meu criado de confiana um jovem de esprito alegre, destemido e to isento de supersties quanto se possa conceber. F., disse eu, voc est lembrado de como ficamos desapontados por no encontrar um fantasma naquele velho castelo na Alemanha, que diziam ser assombrado por um fantasma sem cabea? Bem, eu soube de uma casa em Londres que, segundo espero, assombrada de verdade. Pretendo dormir l hoje noite. Pelo que ouvi, no h dvida de que algo se far ver ou ouvir algo, talvez, terrivelmente aterrorizante. Voc no acha que, se eu levar voc comigo, poderei contar com sua presena de esprito, acontea o que for? Sem dvida, senhor! Conte comigo, respondeu F., dando um sorrisinho de prazer. Muito bem; ento aqui esto as chaves da casa, e este o endereo. V agora; escolha para mim o quarto que achar melhor; e, uma vez que a casa h semanas permanece desabitada, acenda um bom fogo na lareira, areje a cama, verifique, claro, se h velas e tambm combustvel. Leve consigo meu revlver e minha adaga so armas suficientes para mim; providencie tambm armas para si. E, se no formos preo para uma dzia de fantasmas, seremos apenas uma dupla de ingleses patticos. Passei o resto do dia to ocupado em negcios to urgentes que no houve tempo para pensar muito na aventura noturna na qual empenhara minha honra. Jantei sozinho e muito tarde e, enquanto jantava, li, como de hbito. Selecionei um dos volumes dos Ensaios de Macaulay. Pensei com meus botes que poderia levar o livro comigo; seu estilo to direto e os ~ 14 ~

assuntos to relacionados com o cotidiano que poderia servir como um antdoto contra a influncia de fantasias supersticiosas. E assim, s nove e trinta da noite, mais ou menos, pus o livro no bolso e caminhei despreocupadamente at a casa assombrada. Levei comigo meu co favorito um bull-terrier muito inteligente, corajoso e alerta, um co que gosta muito de farejar cantos e corredores estranhos e obscuros noite, em busca de ratos, enfim, o melhor dos ces para um fantasma. Era uma noite de vero, mas muito fria, o cu algo sombrio e toldado. Havia lua, esmaecida e doentia, ainda assim uma lua. E, se as nuvens permitissem, aps a meia-noite, ela estaria mais brilhante. Cheguei a casa, bati e meu criado abriu-a com um sorriso animado. Est tudo arranjado, senhor, e muito confortvel. Ah!, disse eu, um tanto desapontado; voc no viu ou ouviu nada fora do comum? Bem, senhor, devo reconhecer que ouvi algo estranho. O qu? O qu? O som de passos atrs de mim; e uma ou duas vezes rudos curtos como sussurros junto ao meu ouvido, nada mais. Voc no est assustado? Eu? Nem um pouco, senhor, e seu olhar corajoso tranqilizou-me quanto a um ponto, isto , que, acontecesse o que acontecesse, ele no me abandonaria. Estvamos no saguo, a porta de entrada fechou-se e observei ento meu co. Inicialmente ele entrara correndo, mas recuara sorrateiramente para a porta e estava arranhando e gemendo para sair. Aps eu acariciar sua cabea e dirigir-lhe palavras de estmulo, o co pareceu resignar-se e acompanhou-nos pela casa, mas mantendo-se junto a meus calcanhares em vez de correr curioso frente, como era seu hbito usual e normal em todos os lugares estranhos. Percorremos primeiramente os aposentos subterrneos, a cozinha e outras dependncias, especialmente a adega, na qual havia duas ou trs garrafas de vinho em uma caixa, cobertas de teias de aranha e evidentemente intocadas h muitos anos. Os fantasmas decididamente no gosta~ 15 ~

vam de vinho. Quanto ao resto, nada descobrimos de notvel. Havia um quintalzinho sombrio com muros muito altos. As pedras desse quintal eram muito midas, e em virtude quer da umidade, quer da poeira e da fuligem no pavimento, nossos passos deixaram pegadas leves por onde passamos. E ento apareceu o primeiro fenmeno estranho testemunhado por mim naquela estranha habitao. Vi, bem minha frente, a impresso de um p como que subitamente formar-se. Parei, segurei meu criado e apontei para ela. Diante daquela pegada, to subitamente quanto antes, fez-se uma outra. Ns dois a vimos. Avancei rapidamente para o lugar; a pegada continuava a me anteceder, uma pegada pequena o p de uma criana; a impresso era leve demais para que se pudesse distinguir sua forma, mas a ambos pareceu-nos que era a impresso de um p descalo. Esse fenmeno cessou quando chegamos ao muro oposto, mas no se repetiu ao retornarmos. Voltamos escada e entramos nos aposentos no andar trreo, uma sala de jantar, uma saleta pequena e um terceiro cmodo ainda menor, que fora provavelmente ocupado por um lacaio todos em um silncio mortal. Ento percorremos as salas de estar, que pareciam ter sido recentemente reformadas. Na sala da frente, sentei-me em uma poltrona. F. colocou sobre a mesa o candelabro que acendera para ns. Mandei-o fechar a porta. Quando ele se virou para faz-lo, uma cadeira minha frente moveu-se da parede rpida e ruidosamente e postou-se a cerca de uma jarda de minha prpria cadeira, de frente para ela. Ora, isto melhor do que mesas que viram, disse eu, meio sorrindo; e quando ri meu co ergueu a cabea e uivou. F, voltando, no notara o movimento da cadeira. Ele tratava agora de acalmar o co. Continuei a fitar a cadeira e imaginei nela ver, em uma nvoa azulada, o contorno de uma figura humana, mas to vaga que no permitia certeza. O co agora estava quieto. Ponha essa cadeira minha frente, disse eu a F., de volta junto parede. F. obedeceu. Foi o senhor?, disse ele, voltando-se abruptamente. Eu o qu? ~ 16 ~

Ora, algo me golpeou. Senti-o nitidamente no ombro, exatamente aqui. No, disse eu. Mas h ilusionistas aqui, e embora no consigamos descobrir seus truques, ns os pegaremos antes que nos assustem. No permanecemos muito tempo nas salas de estar na verdade, elas eram to midas e geladas que foi um alvio chegar ao aquecido andar superior. Trancamos as portas das salas de estar uma precauo que, devo dizer, tnhamos tomado com todos os aposentos que vasculhramos no andar abaixo. O quarto de dormir que meu criado escolhera para mim era o melhor, naquele andar um quarto grande, com duas janelas que davam para a rua. A cama de dossel, que ocupava um espao considervel, estava em frente ao fogo, que queimava alto e reluzente; uma porta na parede esquerda, entre a cama e a janela, comunicava-se com o quarto que ele escolhera para si. Este era pequeno, com um sof-cama e no tinha nenhuma comunicao com o corredor nenhuma porta seno a que levava ao quarto que eu ocuparia. De cada lado da lareira havia um armrio, sem fechaduras, encostado parede e coberto com o mesmo papel de parede marrom apagado. Examinamos esses armrios apenas ganchos para pendurar vestidos femininos e nada mais; auscultamos as paredes decididamente slidas externas da casa. Terminado o exame desses aposentos, aquecime por uns instantes e acendi um charuto; depois, ainda acompanhado por F., dei continuidade vistoria. No corredor, havia uma outra porta; estava emperrada. Senhor, disse meu criado, surpreso, destranquei esta porta juntamente com todas as outras quando vim pela primeira vez; ela no pode ter-se trancado por dentro, pois... Antes que ele terminasse a frase, a porta, que nenhum de ns estava ento tocando, abriu-se silenciosamente sozinha. Trocamos um olhar por um instante. O mesmo pensamento nos tomou: alguma mo humana podia ser detectada aqui. Precipitei-me porta adentro, seguido de meu criado. Um pequeno quarto sombrio e vazio: poucas caixas e cestos em um canto, uma pequena janela com as venezianas fechadas, nem mesmo uma lareira, nenhuma outra porta seno aquela pela qual entrramos; nenhum tapete, e o ~ 17 ~

soalho parecia muito velho, irregular e rodo, remendado aqui e ali, como se podia ver pelos remendos mais claros na madeira; mas nenhum ser vivo e nenhum lugar visvel no qual um ser vivo pudesse ter-se escondido. Enquanto olhvamos em volta, a porta pela qual entrramos fechou-se to silenciosamente quanto se abrira antes: estvamos presos. Pela primeira vez senti um arrepio de indefinvel terror. Mas no meu criado. Ora, eles no pretendem nos armar uma cilada, senhor; eu conseguiria quebrar a porta ordinria com um pontap. Tente primeiro abri-la com a mo, disse eu, afastando a vaga apreenso que me tomara, enquanto abro as venezianas para ver o que h l fora. Destranquei as venezianas a janela dava para o quintalzinho descrito anteriormente; fora no havia nenhuma salincia nada que interrompesse o plano vertical da parede. Ningum que sasse por aquela janela encontraria onde pr os ps: ele cairia nas pedras abaixo. F., nesse nterim, tentava em vo abrir a porta. Virou-se ento para mim e pediu-me permisso para usar da fora. E eu devo aqui fazer justia ao criado, que, longe de dar mostras de qualquer terror supersticioso, com sua coragem, equilbrio e at mesmo jovialidade em meio a circunstncias to extraordinrias, conquistaram minha admirao e me fizeram congratular-me pela segurana de uma companhia to altura da ocasio. Dei-lhe de bom grado a permisso solicitada. Porm, no obstante ele fosse extraordinariamente forte, sua fora foi to intil quanto seus esforos menos violentos; a porta sequer mexeu com seu pontap mais vigoroso. Sem flego e ofegante, ele desistiu. Eu ento tambm forcei a porta, igualmente em vo. Quando desisti, fui novamente tomado daquele arrepio de terror; mas desta vez mais frio e persistente. Senti como se algo terrvel emanasse das frestas daquele soalho corrodo e enchesse a atmosfera de uma influncia nefasta e hostil vida humana. A porta ento, muito lenta e silenciosamente, abriu-se como que por sua prpria vontade. Precipitamo-nos no corredor. Vimos uma luz fraca e volumosa do tamanho de um corpo humano, mas informe e transparente mover-se nossa frente e subir a escada que levava ao sto. Segui a luz, meu criado acompanhou-me. Ela entrou, direita do ~ 18 ~

corredor, em um pequeno sto, cuja porta estava aberta. Entrei no mesmo instante. A luz ento se transformou em um pequeno globo, extremamente brilhante e ntido; pousou por um momento sobre uma cama no canto, tremeu e desapareceu. Aproximamo-nos da cama e a examinamos uma cama estreita, como as que comumente se encontram em stos reservados aos criados. Sobre a cmoda prxima a ela vimos um xale velho de seda desbotada, com a agulha ainda no remendo inacabado de um rasgo. O xale estava coberto de p; provavelmente pertencera velha senhora que morrera naquela casa, e este devia ter sido seu quarto de dormir. Tive a curiosidade de abrir as gavetas: havia alguns poucos artigos de roupas femininas e duas cartas amarradas com uma fita estreita de um amarelo desbotado. Tomei a liberdade de pegar as cartas. Nada mais encontramos na sala digno de nota, nem houve outra apario da luz; mas ouvimos distintamente, quando nos viramos para sair, um som de passos apressados no soalho, exatamente nossa frente. Percorremos os outros stos (eram quatro), com os passos ainda a nos precederem. Nada se via, nada havia exceto os passos. As cartas estavam em minha mo; justamente quando eu estava descendo a escada, senti claramente que pegavam meu pulso e um fraco e suave esforo para tiradas de mim. O nico gesto que fiz foi apert-las ainda mais, e o esforo cessou. Retornamos ao quarto de dormir que me fora destinado, e ento observei que meu co no nos seguira quando dali havamos sado. Ele se postara junto ao fogo, tremendo. Eu estava impaciente para examinar as cartas e enquanto as lia meu criado abriu uma pequena caixa na qual depositara as armas que eu lhe ordenara trazer; tirou-as, colocou-as sobre a mesa junto cabeceira de minha cama e ento ps-se a acalmar o co, que, contudo, pareceu quase no not-lo. As cartas eram curtas e estavam datadas de exatamente trinta e cinco anos atrs. Eram visivelmente de um amante a sua amada, ou de um marido a uma jovem esposa. No somente os termos, mas uma clara referncia a uma viagem anterior indicavam que o escritor fora um homem do mar. A ortografia e a letra eram as de um homem de pouca instruo, mas mesmo ~ 19 ~

assim a linguagem era eloqente. Nas expresses carinhosas havia uma espcie de amor rstico, porm ardente; mas aqui e ali se liam aluses sombrias e vagas de algum segredo no amoroso algum segredo aparentemente com relao a um crime. Devemos amar um ao outro, era uma das frases de que me lembro, porque todos nos censurariam se soubessem de tudo. E tambm: No deixe ningum ficar no mesmo quarto que voc noite voc fala durante o sono. Ou: O que est feito est feito; e eu lhe asseguro que no existe nada contra ns, a menos que o morto voltasse vida. Aqui havia um comentrio em uma caligrafia melhor (feminina): Eles sabem! No fim da carta da data mais recente de todas, a mesma caligrafia feminina escrevera estas palavras: Desaparecido no mar em 4 de junho, no mesmo dia em que... Depus as cartas e comecei a refletir sobre seu teor. Temendo, contudo que o curso de meus pensamentos pudesse abalar meus nervos, resolvi firmemente manter meu esprito em um estado mais apropriado para lidar com os fenmenos extraordinrios que a noite ainda poderia trazer. Levantei-me, coloquei as cartas sobre a mesa, aticei o fogo, que ainda estava alto e reconfortante, e abri meu Macaulay. Li bastante tranqilo at s onze e trinta. Ento me atirei vestido na cama e disse a meu criado que ele podia ir para seu quarto, mas permanecer acordado. Pedi-lhe que deixasse aberta a porta entre os dois aposentos. Sozinho no quarto mantive duas velas acesas sobre a mesa ao lado de minha cabeceira. Coloquei meu relgio junto s armas e calmamente retomei meu Macaulay. A minha frente, o lume estava alto e, no tapete da lareira, provavelmente adormecido, jazia o co. Cerca de vinte minutos depois, senti um ar extremamente frio passar pelo rosto, como uma brisa sbita. Imaginei que a porta minha direita, que dava para o corredor, se abrira; mas no, ela estava fechada. Voltei ento os olhos minha esquerda e vi as chamas das velas balanarem com fora, como que sob a ao de uma golfada de vento. No mesmo instante, o relgio ao lado do revlver deslizou suavemente da mesa muito lentamente, sem que qualquer mo o tocasse e desapareceu. Pulei da cama, agarrando o revlver com uma mo e o punhal com a outra: ~ 20 ~

eu no estava disposto a deixar que minhas armas tivessem o mesmo destino do relgio. Assim armado, olhei o cho em torno: nenhum sinal do relgio. Trs batidas lentas e ntidas ouviram-se cabeceira da cama; meu criado disse em voz alta: O senhor chamou? No; fique atento. O co ento levantou e sentou-se, movendo rapidamente as orelhas para trs e para frente. Ele mantinha os olhos fixos em mim com um olhar to estranho que no pude afastar dele os meus. Levantou-se devagar, os plos eriados, e ficou totalmente imvel e com o mesmo olhar fixo e feroz. No tive tempo, contudo, de observar atentamente o co, pois meu criado surgiu porta; se vi alguma vez o terror estampado em um rosto humano, foi essa. Eu no o teria reconhecido, caso nos encontrssemos na rua, to alteradas estavam suas feies. Ele passou por mim rapidamente, dizendo em um sussurro que mal me chegou aos ouvidos: Corra, corra! Ele est atrs de mim! Ele ganhou a porta para o corredor, abriu-a e precipitou-se por ela. Segui-o at o corredor sem pensar, pedindo-lhe que parasse; mas, sem me dar ateno, dirigiu-se escada, agarrando-se ao balastre e pulando vrios degraus de cada vez. Ouvi, de onde estava, a porta da rua abrir-se e tambm se fechar. Eu estava s na casa assombrada. Apenas por um instante fiquei indeciso quanto a seguir ou no meu criado; orgulho e curiosidade, ao mesmo tempo, impediram-me de fugir covardemente. Retornei ao meu quarto, fechando atrs de mim a porta, e examinei cautelosamente o aposento. Nada encontrei que justificasse o terror de meu criado. Examinei-o novamente com todo cuidado, para ver se havia alguma porta oculta. No encontrei nenhum indcio disso nem mesmo uma costura no papel de parede marrom desbotado com o qual o cmodo estava revestido. Como, ento, a COISA, ou seja l o que fosse, que tanto o assustara, conseguira entrar, exceto pelo meu prprio aposento? Retornei ao meu quarto, fechei e tranquei a porta que abria para o interior da casa e postei-me prximo lareira, expectante e alerta. Percebi ento que o co se atirara a um ngulo da parede e colara-se a ela, como se estivesse se esforando por abrir caminho atravs dela. Aproximei-me dele e ~ 21 ~

dirigi-lhe algumas palavras; o pobre animal estava visivelmente fora de si pelo terror. Ele mostrava todos os seus dentes, a mandbula gotejava saliva e certamente teria me mordido se eu o tocasse. Ele no pareceu me reconhecer. Quem quer que tenha visto no jardim zoolgico um coelho fascinado por uma serpente, agachado em um canto, pode fazer uma idia da angstia que o co mostrava. Procurando por todos os meios e em vo acalmar o animal e temendo que sua mordida pudesse ser venenosa naquele estado, tanto quanto na raiva hidrofbica, afastei-me dele, coloquei minhas armas sobre a mesa ao lado do fogo, sentei-me e retomei meu Macaulay. Talvez, para no parecer em busca de crdito por coragem, ou antes frieza, que o leitor possa julgar exagerada, eu possa ser perdoado se fizer uma pausa para, em meu favor, fazer uma ou duas observaes de cunho pessoal. Como julgo que a presena de esprito, ou aquilo que chamam de coragem, seja exatamente proporcional familiaridade com as circunstncias que levaram a ela, tambm devo dizer que h muito tempo conhecia todos os experimentos que dizem respeito ao Excepcional. Eu testemunhara muitos fenmenos extraordinrios em diversas partes do mundo fenmenos a que no se daria absolutamente nenhum crdito se eu os contasse, ou seriam atribudos a entes sobrenaturais. Ora, minha teoria que o sobrenatural impossvel, e que aquilo que chamam de sobrenatural somente algo nas leis da natureza que at ento ignorvamos. Portanto, se um fantasma surge minha frente, no tenho o direito de dizer: Ento, o sobrenatural pode existir, mas antes, Ento, a apario de um fantasma, ao contrrio da opinio corrente, est conforme as leis da natureza isto , no sobrenatural. Ora, em tudo que at ento eu havia testemunhado, e na verdade em todos os prodgios que os diletantes do mistrio em nossa poca registram como fatos, sempre se faz necessria a interveno material pela qual, em virtude de algumas caractersticas constitutivas, certos fenmenos estranhos so percebidos pelos sentidos naturais. ~ 22 ~

Alm disso, at mesmo o fato de se admitirem como verdadeiras as narrativas de manifestao espiritual na Amrica sob a forma de msica ou outros sons, registros em papel, produzidos por nenhuma mo visvel, peas de moblia que se movem sem uma interveno humana visvel, ou a viso ou toque de mos concretos, aos quais no parecem pertencer quaisquer corpos exige que se encontre o MEIO ou ser vivo, com caractersticas constitutivas capazes de produzir tais sinais. Enfim, em todos esses casos extraordinrios, at mesmo na suposio de que no se trata de impostura, deve haver um ser humano como ns pelos quais, ou por meio dos quais, os efeitos apresentados a seres humanos so produzidos. assim com o agora familiar fenmeno mesmerismo1, ou eletrobiologia: a mente da pessoa atingida influenciada por um agente vivo material. Nem, supondo verdade que um paciente mesmerizado possa responder vontade ou passe de um mesmerizador uma centena de quilmetros distante, a resposta menos ocasionada por um fluido material chame-o Eltrico, chame-o dico2, ou o que seja que tem o poder de atravessar o espao e obstculos, que o efeito material comunicado de um para o outro. Conseqentemente, eu acreditava que tudo quanto at aquele instante testemunhara, ou esperava testemunhar naquela estranha casa, era criado mediante alguma interveno ou meio to mortal quanto eu prprio. E essa idia necessariamente me livrara de ser tomado pelo assombro em razo das aventuras daquela noite extraordinria ao qual esto sujeitos aqueles que consideram sobrenaturais coisas que no se conformam s foras da natureza.
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Mesmerismo, Magnetismo, Magnetismo Animal, Eletrobiologia: termos que foram cunhados por Franz Anton Mesmer (1734-1815), mdico, criador da teoria do Mesmerismo ou Magnetismo Animal. De todos os corpos da Natureza, o prprio homem que com maior eficcia atua sobre o homem, afirma. Apesar de muito combatido em sua poca, registrou desde 1773 inmeras curas e experincias com a movimentao de objetos inanimados. O magnetismo aceita a existncia de um fluido especial, que projetado pelo magnetizador influenciando a pessoa que o recebe. De certa forma, precursor do moderno Hipnotismo e de grande influncia na vulgarizao do Kardecismo. (N.E.) 2 dic force: denominao dada em meados do sculo XIX para uma hipottica energia-vital ou fora da vida pelo Baro Carl von Reichenbach (1788-1869), famoso qumico. (N.E.)

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Como, ento, minha conjectura era de que tudo que se mostrara, ou seria mostrado aos meus sentidos, devia ter origem em algum ser humano, dotado por constituio do poder para faz-lo e tendo algum motivo para tal, senti um interesse em minha teoria que, ao seu modo, era antes filosfica do que supersticiosa. E posso sinceramente dizer que meu nimo estava to calmo e propcio observao quanto o de qualquer verdadeiro experimenta-lista, a aguardar o resultado de alguma combinao qumica rara, embora talvez perigosa. claro que, quanto mais impassvel e distante da fantasia eu mantinha minha mente, quanto mais apropriado observao ficaria meu estado de esprito; portanto fixei olhos e pensamentos no forte teor cotidiano das pginas do meu Macaulay. Ento percebi que algo se interpunha entre a pgina e a luz uma sombra toldava a pgina. Levantei os olhos e vi o que encontro muita dificuldade e talvez me seja impossvel faz-lo descrever. Eram as prprias Trevas a tomar forma no ar, em um contorno bastante vago. No posso dizer que era humana, contudo parecia ter forma humana, ou antes uma sombra de um ser humano, do que qualquer outra coisa. Assim parada, completamente separada e distinta do ar e da luz a sua volta, suas dimenses pareciam gigantescas e seu topo chegava ao teto. Enquanto eu a fitava, uma sensao de frio intenso invadiu-me. Um iceberg diante de mim no poderia ter-me enregelado mais; nem poderia o frio de um iceberg ter sido mais material. Estou convicto de que no era o frio causado pelo medo. Enquanto ainda estava a fit-la, julguei mas no posso afirm-lo com preciso distinguir dois olhos olhando-me do alto. Por um momento, imaginei distingui-los claramente; no seguinte, pareceram desfazer-se; mas mesmo ento dois raios de luz azul clara luziram em meio s trevas, como que da altura em que eu meio acreditara, meio duvidara ter visto os olhos. Tentei falar, minha voz emudecera completamente; eu conseguia apenas pensar com meus botes: Isso medo? Isso no medo! Tentei levantar-me, em vo; senti como se uma fora irresistvel me empurrasse para baixo. Na verdade, minha impresso era a de um imenso e supremo Poder a ~ 24 ~

se opor a qualquer ato voluntrio aquela sensao de total impotncia para lidar com uma fora superior de qualquer homem, que se pode sentir fisicamente em uma tempestade no mar, em uma conflagrao ou at mesmo quando nos deparamos com algum animal feroz, ou antes, talvez, com um tubaro no oceano era esse o sentimento moral que me tornara. Oposta minha vontade havia uma outra, to superior minha quanto so materialmente superiores fora humana uma tempestade, um incndio ou um tubaro. E ento, enquanto essa impresso crescia em mim veio, por fim, o terror um terror tal que nenhuma palavra pode descrever. Ainda assim mantive meu orgulho, se no coragem; e em minha prpria mente dizia: Isso terror, mas no medo; se eu no sentir medo, ele no poder me fazer mal; minha razo rejeita essa coisa, trata-se de uma iluso no sinto medo. Com um esforo violento consegui por fim estender a mo para a arma sobre a mesa; quando o fiz, recebi no brao e no ombro um estranho golpe, e meu brao caiu ao lado, inerte. E ento, para aumentar meu terror, a luz comeou a diminuir lentamente nas velas; elas no foram, por assim dizer, apagadas, mas sua chama parecia recuar gradualmente; o mesmo ocorreu com o fogo a luz era extrada das labaredas; em poucos minutos, o quarto estava em completa escurido. O pavor que se abateu sobre mim, pavor de estar assim na escurido com aquela Coisa escura, cujo poder era sentido de modo to intenso, provocou uma reao de coragem. Na verdade, o terror alcanara aquele clmax no qual todas as minhas faculdades me abandonariam ou eu romperia o encantamento. Eu o rompi. Consegui finalmente emitir um som, no obstante este fosse um grito. Lembro-me de ter jorrado de minha boca algo como: No tenho medo, minha alma no teme; e ao mesmo tempo encontrei foras para levantar-me. Ainda naquelas densas trevas, corri para uma das janelas, com um repelo abri a cortina e empurrei as venezianas; meu primeiro pensamento foi: LUZ. E quando vi a luz no alto, clara e calma, senti uma alegria que quase contrabalanou o terror anterior. Havia lua, havia tambm a luz dos lampies de gs na rua deserta e silenciosa. Voltei-me pa~ 25 ~

ra olhar o quarto; o luar penetrava sua sombra de modo muito fraco e parcial mas ainda assim havia luz. A Coisa escura, fosse o que fosse, dissipou-se salvo pelo fato de que eu ainda conseguia ver uma sombra vaga, que parecia uma sombra daquela nuvem escura, junto parede oposta. Meus olhos ento pousaram na mesa, e debaixo dela (que no estava coberta por toalha ou cobertura uma velha mesa redonda de mogno) levantou-se uma mo, visvel somente at o punho. Era, aparentemente, de carne e osso como a minha, mas a mo de uma pessoa velha magra, enrugada e pequena, tambm; a mo de uma mulher. Aquela mo muito suavemente fechou-se em volta das duas cartas que jaziam sobre a mesa; mo e cartas desaparecem. Soaram ento as mesmas trs batidas fortes que eu ouvira na cabeceira, antes do incio daquela extraordinria cena. Quando aqueles sons lentamente cessaram, senti que o quarto todo vibrava; e na extremidade do quarto levantaram-se, como que do cho, centelhas e glbulos como bolhas multicores de luz verdes, amarelas, rubras, azuis. Para cima e para baixo, para c e para l, aqui e ali, aparentando fogos-ftuos, as centelhas moviam-se aleatoriamente, ora lentas, ora rpidas. Uma cadeira (repetindo o ocorrido com a da sala de estar no andar debaixo) moveu-se de junto parede, sem qualquer interveno material visvel e colocou-se no lado oposto da mesa. Subitamente, da cadeira brotou uma forma uma forma feminina. Era to ntida quanto um ser vivente espectral como uma forma morta. O rosto era de uma jovem, com uma estranha beleza enlutada; o pescoo e os ombros estavam nus, o resto vestia um manto largo de um branco nebuloso. Ela comeou a alisar seus longos cabelos dourados, que lhe caam aos ombros; seus olhos no estavam voltados para mim, mas para a porta; pareciam tentar ouvir, observar, esperar. A sombra da nvoa escura no fundo tornou-se mais intensa; e novamente julguei ver os olhos brilhando do alto da sombra olhos que miravam fixamente aquela forma. Como que da porta, embora ela no estivesse aberta, brotou uma outra apario, igualmente ntida, igualmente espectral a forma de um homem, um homem jovem. Estava vestido moda do sculo passado, ou antes de um modo semelhante (pois tanto a forma masculina quanto a feminina, em~ 26 ~

bora ntidas, eram obviamente imateriais, impalpveis, simulacros, fantasmas); e havia algo de incongruente, grotesco, at mesmo amedrontador no contraste entre o requinte elaborado, a preciso gentil daquela vestimenta fora de moda, com seus franzidos, suas rendas e fivelas, e o aspecto cadavrico e a imobilidade espectral de seu portador flutuante. Exatamente quando a forma masculina aproximava-se da feminina, a sombra escura avanou de junto parede, todas trs, por um momento, envoltas em escurido. Quando a luz plida retornou, os dois fantasmas que estavam ocultos na sombra surgiram lado a lado; e, no peito da viso feminina, via-se uma mancha de sangue; o fantasma masculino apoiou-se em sua espada espectral, o sangue a gotejar rapidamente dos franzidos, da renda; e o negrume da Forma intermediria engoliu a ambos e desapareceram. E novamente as bolhas de luz moveram-se rapidamente, adejaram e flutuaram, tornando-se cada vez mais densas e, seus movimentos, mais desordenados. A porta do mvel direita da lareira abriu-se ento e da fresta surgiu a figura de uma mulher idosa. Ela portava cartas na mo as mesmas cartas sobre as quais eu vira a Mo se fechar; e atrs dela ouvi passos. Ela virou-se como se a ouvir e ento abriu as cartas e pareceu l-las; e sobre seu ombro vi um rosto lvido, o rosto semelhante a um homem h muito tempo afogado inchado, esbranquiado, com algas entrelaadas em seus cabelos ensopados; e a seus ps jazia uma forma semelhante a um cadver, e atrs do cadver escondia-se uma criana, uma criana terrivelmente esqulida, de rosto encovado e olhos amedrontados. E enquanto eu olhava para o rosto da mulher idosa, as rugas e as linhas desapareceram e ele transformou-se em um rosto jovem de olhos duros, opacos, mas ainda assim jovens; e a Sombra precipitou-se e envolveu em escurido aqueles fantasmas, como havia feito com os anteriores. Ento, nada restou seno a Sombra, e sobre ela meus olhos fixaram-se at que novamente os olhos brotaram da Sombra olhos maus, olhos de serpente. E as bolhas de luz novamente surgiram e caram, e em seus movimentos desordenados, irregulares, turbulentos, fundiram-se com o plido luar. E ento, desses mesmos glbulos, como que da casca de um ovo, jor~ 27 ~

raram coisas monstruosas; o ar encheu-se delas; larvas to exangues e to horrendas que no consigo absolutamente descrev-las, exceto para lembrar o leitor da vida fervilhante que o microscpio solar pe diante de seus olhos em uma gota dgua coisas transparentes, flexveis, geis, caando-se mutuamente, devorando-se mutuamente formas nunca antes contempladas a olho nu. Assim como as formas eram assimtricas, tambm seus movimentos eram desordenados. Em suas errncias nada havia de jovial; contornavam-se incessantemente, cada vez mais densas e velozes, pululando sobre minha cabea, rastejavam sobre meu brao direito, distendido em uma ordem involuntria contra todos os seres vis. Por vezes eu sentia um toque, no da Sombra, mas de mos invisveis. Senti uma vez o aperto como de dedos frios e macios em meu pescoo. Eu ainda estava igualmente consciente de que, se cedesse ao medo, correria perigo fsico e concentrei todas as minhas faculdades unicamente na vontade obstinada de resistncia. E desviei meus olhos da Sombra sobretudo daqueles estranhos olhos de serpente olhos que agora haviam se tornado totalmente visveis. Pois ali, e em nada mais do que me rodeava, eu sabia existir uma VONTADE, e uma vontade do mal em ao, intenso, original, que poderia esmagar a minha. A atmosfera opaca do quarto comeou ento a avermelhar-se, como que aproximao de uma conflagrao. As larvas tornaram-se vividas como as coisas que vivem no fogo. O quarto novamente vibrava; novamente ouviram-se as trs batidas espaadas; e novamente todas as coisas foram engolidas pelas trevas da Sombra escura, como se daquela escurido tudo surgira e a ela tudo retornasse. Quando a penumbra diminuiu, a Sombra desapareceu completamente. To lentamente quanto seu recuo, as chamas levantaram-se de novo nas velas sobre a mesa e tambm na lareira. O quarto todo se tornou, uma vez mais, calmo e sadiamente visvel. As duas portas ainda estavam fechadas, e a porta que se comunicava com o quarto do criado, ainda trancada. No canto da parede ao qual ele to convulsivamente se colara, jazia o co. Chamei-o; ele no se moveu. Aproximei-me. O animal estava morto, os olhos proeminentes, a lngua de fora, ~ 28 ~

as mandbulas espumantes. Peguei-o nos braos, levei-o para junto da lareira. Eu estava desolado pela perda de meu predileto e censurei-me severamente; sentia-me culpado por sua morte. Supus que ele morrera de pavor. Mas qual foi minha surpresa ao descobrir que, na verdade, seu pescoo estava quebrado. Isso fora feito no escuro? No teria isso sido feito por uma mo to humana quanto a minha? No haveria necessariamente uma interveno humana durante todo o tempo naquele quarto? Havia bons motivos para achar que sim. No tinha certeza. Posso apenas registrar fielmente o fato; o leitor tirar suas prprias concluses. Uma outra circunstncia surpreendente: meu relgio de pulso fora devolvido mesa da qual fora retirado to misteriosamente; mas parar no mesmo instante em que desaparecera e, a despeito dos esforos do fabricante, desde ento no voltou a funcionar normalmente. Isto , funciona de modo errtico por algumas horas e depois pra. Ficou inutilizado. Nada mais aconteceu no resto da noite. Na verdade, logo amanheceu. Deixei a casa somente quando j ia adiantado o dia. Antes disso, inspecionei a pequena sala vazia na qual meu criado e eu havamos sido aprisionados por algum tempo. Eu tinha uma forte impresso no sei explicar por qu de que nela se originara o mecanismo dos fenmenos por assim dizer que vivenciara em meu quarto. E embora eu entrasse nele agora, em plena luz do dia, com o sol a penetrar pela janela embaada, ainda sentia subir pelos ps o terror que sentira pela primeira vez na noite anterior e que fora to exacerbado pelo que se passara em meu prprio quarto. No consegui, com efeito, permanecer mais do que meio minuto dentro daquelas paredes. Desci a escada e novamente ouvi um passo minha frente; e quando abri a porta da rua julguei ouvir distintamente uma risada bem baixa. Fui at minha casa, contando em encontrar l meu criado fujo. Mas ele no aparecera e por trs dias no deu notcias, quando ento recebi uma carta sua, datada de Liverpool e que dizia: Prezado Senhor, humildemente peo desculpas, embora poucas esperanas tenha de que o senhor me julgar merecedor delas, a menos Deus no permita que o senhor tenha visto o mesmo que eu. Sinto que anos se ~ 29 ~

passaro antes que eu me recupere, e acho que no conseguirei trabalhar nunca mais. Portanto, vou ficar com meu cunhado em Melbourne. O navio parte amanh. Talvez a longa viagem me cure. Fico assustado e tremo o tempo todo, pensando que AQUILO est me perseguindo. Humildemente lhe peo, prezado senhor, que envie minhas roupas e o salrio a que fao jus casa de minha me, em Walworth. O John sabe meu endereo. A carta terminava com outros tantos pedidos de desculpas, um tanto incoerentes, e detalhes quanto aos objetos de uso sob a custdia do missivista. Essa fuga talvez d margem a suspeita de que ele queria ir para a Austrlia e de que matreiramente usara o pretexto dos acontecimentos da noite para isso. No tenho como refutar essa conjectura; ao contrrio, considero que essa seja uma soluo que pareceria a muitas pessoas a mais provvel para acontecimentos improvveis. A crena em minha prpria teoria permanece inabalada. Retornei a casa na noite seguinte para trazer em uma carruagem de aluguel as coisas que l deixara e o corpo de meu pobre co. No fui perturbado, nem qualquer incidente digno de nota me ocorreu, exceto que ainda, ao subir e ao descer a escada, ouvi o mesmo som de passos frente. Ao deixar o local, dirigi-me casa do sr. J. Ele estava l. Devolvi-lhe as chaves, disse-lhe que minha curiosidade fora plenamente satisfeita e, quando estava para relatar rapidamente o que se passara, ele me interrompeu e disse, embora com muita delicadeza, que no tinha mais nenhum interesse por um mistrio que ningum jamais solucionara. Eu estava decidido a inform-lo pelo menos das duas cartas que lera, assim como do modo extraordinrio pelo qual haviam desaparecido, e ento indaguei se ele julgava que elas haviam sido endereadas mulher que morrera na casa e se havia algo em seu passado que pudesse confirmar as suspeitas sombrias que elas haviam levantado. O sr. J. pareceu assustado e, aps ponderar por alguns momentos, respondeu: No sei muito a respeito do passado da mulher, salvo, como lhe disse anteriormente, que sua famlia era conhecida da minha. Mas o senhor reaviva algumas vagas reminiscncias desfavorveis a ela. Farei algumas investigaes e o informarei do resultado. ~ 30 ~

Mesmo assim, ainda que pudssemos aceitar a superstio popular de que uma pessoa que fora ou o criminoso ou a vtima de crimes terrveis em vida conseguisse revisitar, como um esprito inquieto, o palco no qual esses crimes haviam sido cometidos, preciso observar que a casa estava infestada de estranhas aparies e sons antes da morte da velha senhora... O senhor sorri! O que o senhor diz? Eu diria o seguinte: que estou convencido de que, se consegussemos chegar ao fundo desses mistrios, encontraramos uma interveno humana. O qu! O senhor cr que seja tudo uma fraude? Com que finalidade? No uma fraude no sentido comum da palavra. Se eu subitamente casse em um sono profundo, do qual o senhor no pudesse me acordar, mas nesse sono pudesse responder a perguntas com uma exatido que no poderia fingir quando acordado, dizer-lhe quanto em dinheiro o senhor tem no bolso; mais ainda, descrever seus prprios pensamentos; isso no necessariamente uma fraude, tanto quanto no necessariamente algo sobrenatural. Eu estaria, inconscientemente, sob a mesma influncia hipnotizante, que me foi comunicada distncia por um ser humano que havia adquirido poder sobre mim mediante uma ligao anterior. Mas se um hipnotizador pudesse causar um efeito assim sobre um outro ser vivo, o senhor pode imaginar que um hipnotizador conseguiria afetar tambm objetos inanimados, mover cadeiras, abrir e fechar portas? Ou provocar em nossos sentidos a crena em tais efeitos, embora nunca tivssemos tido uma ligao com a pessoa que age sobre ns? No. O que comumente chamado hipnotismo no conseguiria faz-lo; mas pode haver um poder afim ao hipnotismo e mais forte do que ele: o poder que em pocas passadas era chamado de Mgico. Se esse poder pode se estender a todos os objetos materiais inanimados, no sei dizer; mas se assim fosse no seria contrrio natureza. Seria apenas um poder raro na natureza que pode-ria ser dado a constituies com certas peculiaridades e desenvolvido a um grau extraordinrio mediante a prtica. Que esse poder possa ser estendido sobre os mortos isto , sobre certos pensamentos e memrias que o ~ 31 ~

morto ainda possa conservar e obrigar, no aquilo que deveria mais propriamente ser chamado ALMA e que est muito alm do alcance humano, mas antes um fantasma do que foi mais terreno neste mundo, a se tornar visvel aos nossos sentidos, uma teoria muito antiga, embora obsoleta, sobre a qual eu no me arriscaria a emitir opinio. Mas no creio que o poder seja sobrenatural. Permita-me exemplificar o que quero dizer com um experimento que Paracelso descreve como mais ou menos fcil e que o autor das Curiosidades da Literatura cita como crvel. Uma flor perece; incinerada. Sejam quais forem os elementos daquela flor quando viva, eles desaparecem, dispersam-se, no se sabe para onde; no se consegue nunca encontr-los ou reuni-los. Mas pode-se, por meios qumicos, das cinzas dessa flor criar um espectro dela, com a aparncia que ela possua quando viva. O mesmo pode ocorrer com o ser humano. A alma saiu dele tanto quanto a essncia ou os elementos da flor. Ainda assim possvel obter um espectro dela. E esse fantasma, embora na superstio popular seja considerado a alma daquele que partiu, no deve ser confundido com a verdadeira alma; trata-se apenas de um eidolon da forma morta. Por conseguinte, como as histrias mais bem confirmadas de fantasmas ou espritos, o que mais nos impressiona a ausncia do que consideramos alma; isto , da inteligncia superior e liberta de preconceitos. Essas aparies surgem com pouco ou nenhum objetivo; elas raramente falam quando surgem; se falassem, no comunicariam idias acima das de uma pessoa comum na terra. Os videntes norte-americanos publicaram muitos livros sobre comunicaes em prosa e em verso, que afirmam ter sido dados sob os nomes dos mortos mais ilustres Shakespeare, Bacon e sabe-se l mais quem. Essas comunicaes, mesmo as melhores, de forma alguma so superiores s que se obtm dos vivos de grande talento e educao; so imensamente inferiores ao que Bacon, Shakespeare e Plato disseram ou escreveram quando na Terra. Tampouco o que mais notvel elas jamais contm uma idia que no houvesse na Terra antes. Por espantosos, portanto, que tais fenmenos possam ser (a crer que sejam verdadeiros), admito que muito possa ser questionado pela filosofia, mas nada que cabe filosofia negar, isto , nada que seja ~ 32 ~

sobrenatural. Trata-se apenas de idias manifestadas de um modo ou de outro (ainda no descobrimos como) de um crebro mortal para outro. Se, ao faz-lo, mesas movem-se sozinhas, ou formas malignas aparecem em um crculo mgico, ou mos sem corpos levantam e escondem objetos materiais, ou uma Filha das Trevas, como a que me apareceu, gela nosso sangue ainda assim estou convencido de que so apenas intervenes comunicadas, como que por fios eltricos, ao meu prprio crebro pelo crebro de um outro. Em algumas constituies h uma qumica natural, e essas constituies podem produzir prodgios qumicos; em outras, um fluido natural ou eletricidade , e estes podem produzir prodgios eltricos. Mas os prodgios diferem da Cincia Normal nisto: so igualmente sem objetivo, sem finalidade, pueris, incoerentes. No conduzem a resultados grandiosos; e portanto o mundo no os nota, e os verdadeiros sbios no refletiram sobre eles. Mas estou certo, de tudo que vi ou ouvi, que um homem, to humano quanto eu, foi sua origem primeira; e acredito que sem conscincia dos efeitos pontuais produzidos, pelo seguinte motivo: o senhor disse que duas pessoas jamais vivenciaram a mesma coisa. Ora, veja bem; nunca houve duas pessoas que vivenciassem exatamente o mesmo sonho. Em uma fraude comum, o mecanismo funcionaria com vistas a efeitos quase semelhantes; em uma interveno sobrenatural concedida por Deus Todo-Poderoso, eles certamente teriam um motivo definido. Esses fenmenos no pertencem a nenhuma dessas categorias; na minha opinio, eles provm de algum crebro agora distante; que esse crebro no produziu voluntariamente nada do que ocorreu; que o que realmente ocorre reflete apenas seus pensamentos errantes, heterogneos, mutveis, incompletos; em suma, que se trata de sonhos que esse crebro ps em ao e dotou de uma semisubstncia. Que esse crebro possui um poder imenso, que pode mover objetos materiais, que maligno e destrutivo nisso eu acredito. Alguma fora material deve ter matado meu co; a mesma fora poderia, pelo que sei, ser suficiente para me matar, tivesse eu sido subjugado pelo terror como o co, no tivesse meu intelecto ou meu esprito apresentado uma resistncia compensadora em minha vontade. ~ 33 ~

Ele matou seu co! Que coisa terrvel! De fato, estranho que no se possa obrigar animal algum a ficar naquela casa; nem mesmo um gato. No se acham nem ratos nem camundongos l. Os instintos das criaturas irracionais detectam ameaas letais a sua existncia. A razo humana tem uma percepo menos sutil, porque possui um poder de resistncia muito superior. Mas basta. O senhor compreende minha teoria? Sim, embora no inteiramente e aceito qualquer extravagncia (com perdo da palavra), embora esquisita, de preferncia a aceitar de pronto a idia de fantasmas e duendes que absorvemos em nossos beros. Ainda assim o mal feito a minha casa continua. Que diabos posso fazer com a casa? Direi o que eu faria. Estou intimamente convencido de que o pequeno quarto vazio contguo porta do quarto que ocupei forma um ponto de partida ou receptculo para as influncias que assombram a casa; e aconselho-o a que derrube as paredes e remova o soalho. Mais do que isso: derrube o quarto todo. Observei que ele est separado do corpo da casa e est construdo sobre o pequeno quintal e poderia ser removido sem prejuzo do resto do edifcio. E o senhor julga que, se eu o fizesse... O senhor cortaria os fios do telgrafo. Tente. Estou convencido de que estou certo, que quase valer as despesas, se o senhor permitir que comande os trabalhos. No importa, posso arcar com os custos; quanto ao resto, permita-me que o comunique por escrito. Cerca de dez dias depois, recebi uma carta do sr. J., dizendo que havia visitado a casa desde minha visita a ele; que encontrara as duas cartas que eu dissera ter recolocado na gaveta de onde as tirara; que ele as lera com pressentimentos semelhantes aos meus; que procedera a uma investigao cuidadosa sobre a mulher a quem eu acertadamente imaginara terem elas sido escritas. Ao que parece, trinta e seis anos atrs (um ano antes da data das cartas) ela se casara, contra a vontade de seus parentes, com um americano de carter suspeito na verdade, acredi~ 34 ~

tava-se que ele era um pirata. Ela, por sua vez, era filha de comerciantes muito respeitveis e servira como bab antes de casar-se. Tinha um irmo vivo, que era tido por rico, com um filho de cerca de seis anos. Um ms antes do casamento, o corpo desse irmo foi encontrado no Tmisa, perto da Ponte de Londres; havia, ao que parece, algumas marcas de violncia em sua garganta, mas elas no foram julgadas suficientes para se instaurar um inqurito e o caso foi encerrado com uma declarao de encontrado afogado. O americano e sua mulher ficaram responsveis pelo garoto, em virtude de ter o falecido deixado sua irm a guarda de seu nico filho e se a criana morresse a irm seria a herdeira. A criana morreu cerca de seis meses depois; houve suspeitas de negligncia e maus-tratos. Os vizinhos testemunharam hav-la ouvido gritar a noite toda. O mdico legal que fez o exame post-mortem disse que a criana estava emaciada, como se estivesse malnutrida, e o corpo estava coberto de contuses lvidas. Parece que, em uma noite de inverno, a criana tentou fugir arrastou-se at o quintal, tentou escalar o muro, caiu exausta e foi encontrada sobre as pedras pela manh, agonizante. Porm, no obstante houvesse algumas provas de crueldade, no se pde alegar assassinato; e a tia e seu marido procuraram dissimular a crueldade pela alegao de extrema teimosia e mau gnio da criana, que se declarou ser retardada. Seja como for, com a morte do rfo, a tia herdou a fortuna do irmo. Antes de um ano de casados, o americano deixou subitamente a Inglaterra e nunca mais retornou. Ele adquiriu uns navios cruzeiros, que se perderam no Atlntico dois anos depois. A viva ficou rica; mas reveses de diversos tipos lhe sobrevieram; um banco faliu, um investimento deu prejuzo, ela envolveu-se em um negcio de pouca monta e ficou insolvente. Ento, buscou empregos, afundando-se cada vez mais, de governanta a faxineira, nunca permanecendo muito tempo no mesmo lugar, embora nada se tenha jamais alegado contra seu carter. Apesar de considerada equilibrada, honesta e particularmente tranqila em suas atividades, nada dava certo para ela. Assim foi que acabou no asilo, do qual o sr. J. a tirara, para ~ 35 ~

ser encarregada da mesma casa da qual fora senhora nos primeiros anos de sua vida de casada. O sr. J. acrescentou que passara uma hora sozinho no quarto vazio que eu lhe aconselhara destruir, e que seus sentimentos de pavor enquanto l permanecera foram to grandes, no obstante no ouvisse nem visse nada, que apressou-se em derrubar as paredes e remover o assoalho como eu lhe sugerira. Ele contratara pessoas para o trabalho e comearia qualquer dia que me aprouvesse marcar. Marcou-se, assim, o dia. Retornei casa assombrada, entrei no lgubre quarto vazio, tirei os lambris e depois o assoalho. Sob as vigas, coberto com entulho, encontrou-se um alapo, grande o suficiente para um homem. Ele estava bem pregado, com parafusos e rebites de ferro. Depois de removlos, descemos a um quarto abaixo, de cuja existncia nunca se havia suspeitado. Nesse quarto, houvera uma janela e um fumeiro, mas eles haviam sido cobertos de tijolos, aparentemente muitos anos atrs. Com o auxlio de velas, examinamos esse lugar; ele ainda conservava alguns mveis deteriorados trs cadeiras, um banco de carvalho, uma mesa todos no estilo de cerca de oitenta anos antes. Havia uma cmoda contra a parede, na qual encontramos, meio rodas, peas de vestimenta masculina antigas, do tipo que se usava oitenta ou cem anos antes por um cavalheiro de posses fivelas caras e botes de ao, como os que ainda se usam em vestes de corte, uma bela espada. Em um colete que no passado fora adornado de renda dourada, mas que agora estava enegrecida e suja de umidade, encontramos cinco guinus, umas poucas moedas de prata e um ingresso de marfim, provavelmente para um lugar de entretenimento h muito desaparecido. Mas nossa principal descoberta foi em uma espcie de cofre de ferro fixado parede, cuja fechadura muito nos custou arrombar. Nesse cofre havia trs prateleiras e duas gavetas pequenas. Alinhadas nas prateleiras havia vrias garrafas de cristal hermeticamente fechadas. Elas continham essncias volteis incolores, de cuja natureza direi somente que no era venenosa havia fsforo ou amnia na composio de algumas delas. Havia tambm alguns tubos de vidro muito estranhos e uma haste ~ 36 ~

pequena e pontuda de ferro, com uma protuberncia de cristal de rocha e uma outra de mbar tambm uma magnetita de grande poder. Em uma das gavetas, encontramos um retrato miniatura com moldura de ouro, cujas cores se conservavam admiravelmente vividas, apesar do grande espao de tempo que provavelmente permanecera l. O retrato era de um homem j na meia-idade, talvez quarenta e sete ou quarenta e oito. Era um rosto notvel, impressionante. Se pudssemos imaginar uma serpente poderosa transformada em homem e que conservasse nos traos humanos as caractersticas anteriores do rptil, teramos uma idia melhor daquela fisionomia do que podem dar longas descries: a largura e achatamento da testa, o elegante afilamento do contorno, que disfarava a fora da mandbula letal, os olhos longos, grandes e terrveis a brilhar, verdes como esmeraldas, e contudo uma certa calma implacvel, como que nascida da conscincia de um imenso poder. Mecanicamente virei a miniatura para examinar seu verso e nele estava gravado um pentagrama; no meio deste, uma escada, cujo terceiro degrau era formado pela data 1765. Examinando-o mais detalhadamente, descobri uma mola que, ao ser pressionada, abriu o verso da miniatura, como uma tampa. Dentro dela estava gravado: Marianna, para ti. S fiel na vida e na morte a... Aqui seguia um nome que no mencionarei, mas que no me era desconhecido. Ouvira-o da boca de pessoas idosas, em minha infncia, como o nome de um charlato fascinante que fizera sensao em Londres durante mais ou menos um ano e que fugira do pas sob a acusao de duplo homicdio dentro de sua prpria casa: a de sua amante e de seu rival. Eu nada disse sobre isso ao sr. J., a quem relutantemente entreguei a miniatura. No tivemos dificuldade em abrir a primeira gaveta dentro do cofre de ferro; encontramos grande dificuldade em abrir a segunda: ela no estava trancada, mas resistiu a todos os esforos, at que inserimos nas frestas a lmina de um formo. Quando assim a havamos puxado, encontramos um instrumento muito singular, de grande refinamento. Sobre um livro pequeno e fino, ou antes um bloco, estava colocado um pires de cristal; esse pires estava cheio de um lquido claro, e nele flutuava uma espcie de bssola, ~ 37 ~

com uma agulha que girava rapidamente; mas em vez dos pontos usuais de uma bssola havia sete caracteres estranhos, no muito diferentes dos usados por astrlogos para indicar planetas. Um odor singular, mas no forte nem desagradvel, veio dessa gaveta, que estava forrada de uma madeira que depois descobrimos ser aveleira. Esse odor, qualquer que fosse sua origem, produziu um grande efeito sobre os nervos. Todos ns o sentimos, at mesmo os dois operrios que estavam no quarto uma sensao de formigamento e de arrepio que subia das pontas dos dedos da mo at as razes do cabelo. Impaciente por examinar o bloco, removi o pires. Quando o fiz, a agulha da bssola girou com extrema rapidez, e eu senti um choque que percorreu todo meu corpo e me fez deixar cair ao cho o pires. O lquido derramou-se, o pires quebrou, a bssola rolou pelo quarto e naquele instante as paredes oscilaram para frente e para trs, como se um gigante as balanasse e agitasse. Os dois operrios ficaram to apavorados que subiram a escada pela qual havamos descido do alapo; mas, vendo que nada mais acontecia, foram facilmente convencidos a retornar. Entrementes, eu abrira o bloco: ele estava encadernado de pele vermelha lisa, com um fecho de prata; continha apenas uma folha de velino espesso, e nessa folha estavam escritas dentro de um pentagrama duplo palavras em antigo latim monacal, que poderiam ser traduzidas literalmente como se segue: Sobre todos aqueles que adentrarem estas paredes sensveis ou inanimados, vivos ou mortos e moverem a agulha, ser exercida a minha vontade! Maldita seja a casa e desinquietos sejam os seus habitantes. Nada mais encontramos. O sr. J. queimou o bloco e seu antema. Ele demoliu a parte do edifcio que continha o quarto secreto e o compartimento sobre ele. Teve ento a coragem de habitar ele prprio a casa durante um ms, e casa mais tranqila e mais saudvel no havia em toda Londres. Pouco tempo depois, ele a alugou bem, e seu inquilino no fez quaisquer queixas.

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