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Horizontes Antropológicos

61 | 2021
Governança reprodutiva

Governança reprodutiva: um assunto de suma


relevância política
Reproductive governance: a matter of utmost political relevance

Claudia Fonseca, Diana Marre e Fernanda Rifiotis

Edição electrónica
URL: https://journals.openedition.org/horizontes/5650
ISSN: 1806-9983

Editora
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Edição impressa
Data de publição: 30 novembro 2021
Paginação: 7-46
ISSN: 0104-7183

Refêrencia eletrónica
Claudia Fonseca, Diana Marre e Fernanda Rifiotis, «Governança reprodutiva: um assunto de suma
relevância política», Horizontes Antropológicos [Online], 61 | 2021, posto online no dia 06 dezembro
2021, consultado o 13 dezembro 2021. URL: http://journals.openedition.org/horizontes/5650

© PPGAS
Apresentação Introduction

http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832021000300001

Governança reprodutiva: um assunto


de suma relevância política
Reproductive governance: a matter of utmost
political relevance

Claudia FonsecaI
https://orcid.org/0000-0002-7761-6095
[email protected]

Diana MarreII
https://orcid.org/0000-0003-2852-3762
[email protected]

Fernanda Rifiotis I
https://orcid.org/0000-0002-7307-2254
[email protected]

I
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Porto Alegre, RS, Brasil
II
Universitat Autònoma de Barcelona – Barcelona, Catalunha, Espanha

Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 27, n. 61, p. 7-46, set./dez. 2021
8 Claudia Fonseca; Diana Marre; Fernanda Rifiotis

No fim de julho, 2021, uma notícia publicada em um jornal de Florianópolis


narra o caso de uma bebê que, antes mesmo de completar seu primeiro mês de
vida, foi retirada da sua mãe e encaminhada para um abrigo e, posteriormente,
teria sido hospitalizada por ter apresentado problemas com a alimentação
feita com fórmula em substituição ao leite materno. À medida que se avança
na leitura do texto,1 uma trama complexa de eventos vai sendo revelada e nos
interpela de muitas formas. A mãe, Andrielli – uma jovem negra de 21 anos –,
estava proibida de ter contato e amamentar a filha, que lhe foi retirada pelo
conselho tutelar apenas três horas após o parto. Na véspera da internação, o
desembargador havia negado o recurso impetrado pelo defensor público para
que a mãe pudesse ter contato com a filha e a amamentasse. A justificativa
para essa separação entre mãe e filha estaria no fato de a jovem enfrentar um
processo de destituição do poder familiar, cujo desfecho decidirá a quem cabe
a guarda da criança. No processo estariam supostas violações de direitos da
criança e a “negligência” por parte da mãe durante a gravidez. No histórico da
mãe, mencionado pelo conselho tutelar, constariam também outros dois pro-
cessos de destituição do poder familiar e a vida em situação de rua durante a
gestação. Ao final do texto, em um último ato, a jovem torna-se vítima de uma
possível violência obstétrica cometida pelo hospital. A defensoria pública esta-
ria apurando a realização de uma laqueadura sem consentimento e também
aponta para irregularidade após o parto com a proibição da amamentação,
direito da mãe, previsto em lei.
Ao trazermos o caso de Andrielli pretendemos mostrar o quanto ele nos
fala sobre práticas e pautas que já nos são conhecidas e nos interpelam dia-
riamente. A história dessa mãe jovem nos fala sobre maternidade, família (e
destituição do poder familiar), tutela (guarda e institucionalização), cuidado
(quem pode cuidar e quem merece ser cuidado), parto e violência obstétrica,
esterilização feminina (laqueadura sem consentimento), direitos reproduti-
vos (direito de amamentar, direito de escolha), violação de direitos (da mãe e
do bebê), reprodução estratificada (famílias que são reconhecidas e legítimas
e aquelas que são objeto de uma constante vigilância punitiva) e pobreza e
desigualdade social. Ao mesmo tempo, é importante notar que não faltaram

1 Reportagem publicada no site jornalístico Catarinas em 30 de julho de 2021 (Guimarães, 2021). E,


posteriormente, em 21 de agosto de 2021, a notícia foi veiculada no jornal ND+ (Bottamedi, 2021).

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reações em diferentes escalas contra o tipo de abuso que ocorreu com Andrielli
desde as denúncias mediáticas, protestos de movimentos sociais (em particu-
lar, do movimento negro – já que tantos casos envolvem mães não brancas),
audiências públicas, pesquisas acadêmicas coordenadas e até uma nota da pró-
pria Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Essas reações assinalam não
só brechas nos desenhos modernistas de controle, mas também o potencial de
protestos coletivos e a própria agência das pessoas envolvidas.
Ao iniciar nossa discussão com esse caso, nossa intenção é de sublinhar
como, muito além de ser um fenômeno biológico bem delimitado, a reprodução
humana está inevitavelmente entrelaçada com interesses de coletividades e
forças políticas que perpassam o tecido social. Representa um problema tanto
material quanto político perpassado por questões não só de gênero e sexua-
lidade, mas também de Estado, raça e mercado que, via corpos e afetos, inter-
conectam o micrológico com processos transnacionais (Murphy, 2012). Assim,
a história de Andrielli reúne uma série de eventos passiveis de problematiza-
ção à luz da temática do presente número: a Governança Reprodutiva, termo
consagrado, em 2012, pela dupla de antropólogas feministas Lynn Morgan e
Elizabeth Roberts:

Os mecanismos pelos quais diferentes configurações históricas de atores, como


instituições estatais, religiosas e internacionais financeiras, ONGs e movi-
mentos sociais, usam controles legislativos, incentivos econômicos, injunções
morais, coerção direta e incitamentos éticos para produzir, monitorar e contro-
lar comportamentos reprodutivos e práticas populacionais. (Morgan; Roberts,
2012, p. 243, tradução nossa).

Assumimos que, ao focar a governança reprodutiva, estamos cobrindo apenas


uma modesta parte do vasto campo da antropologia da reprodução (Grossi;
Oltramari; Ferreira, 2021; Han; Tomori, 2021). Porém, a partir dos textos selecio-
nados para compor este número, buscamos revigorar alguns debates que vêm
se delineando em anos recentes sobre reprodução estratificada, regimes morais,
cuidado/trabalho reprodutivo e agência/ação transformativa. Reunimos sob
uma mesma pauta estudos que têm sido pensados de forma etnográfica sobre
processos reprodutivos – da saúde da mulher e gravidez até as diferentes formas
do exercício materno – em diversos países e com diferentes ênfases. Partimos

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da hipótese de que toda reprodução é política (Ginsburg; Rapp, 1995) e, seguindo


a trajetória de debates dos últimos anos, esperamos chegar à demonstração de
que, tal como sugere Briggs (2017), todas as políticas são políticas reprodutivas.
Para a organização deste número de Horizontes Antropológicos, contamos
com a colaboração de três pesquisadoras – uma norte-americana radicada há
décadas no Brasil, uma argentina morando há 30 anos na Espanha e uma brasi-
leira com vivência na França, além de pareceristas de vários países da América
do Sul e também da Europa.2 Dessa maneira, pudemos aprofundar uma refle-
xão sobre os múltiplos fenômenos ligados ao campo da reprodução a partir da
comparação tácita entre regiões (Norte e Sul; Europa-Estados Unidos e Amé-
rica Latina) e entre países (com maior ênfase no Cone Sul e na Espanha), com
ampla consideração dos fluxos globais. Não pretendemos dar conta da vasta
produção que existe nesse campo (ver Han; Tomori, 2021), mas nos parágrafos
a seguir, depois de acenar para a linha de análise que inspirou nosso foco na
governança reprodutiva, esboçamos algumas ideias que emergiram através do
diálogo com as autoras e os autores e pareceristas deste volume.

Emaranhados entre feminismo e direitos reprodutivos

A linha analítica que nos interessa aqui começa recentemente, nos emaranha-
dos entre feminismo e direitos reprodutivos. Embora suscitada já no final dos
anos 1960 pela Comissão de Direitos Humanos da ONU, foi a Conferência do
Cairo que consagrou a ideia de direitos reprodutivos em 1994 para se referir ao
bem-estar completo, físico e mental, em todos os processos e funções relacio-
nadas ao sistema reprodutivo. No mesmo ano, o Black Women’s Caucus, em
Chicago, acrescentou uma nova dimensão fundamental às discussões, se refe-
rindo à justiça reprodutiva. Segundo essa noção, tão importante quanto o direito
a não ter filhos era o direito a ter e criar filhos em condições dignas. A noção de
governança reprodutiva tem suas raízes nessa conjuntura histórica, forjada pela

2 Claudia Fonseca conta com o apoio financeiro do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvi-
mento Científico e Tecnológico) na forma de uma bolsa de produtividade em pesquisa; Diana
Marre participou como IP do projeto PID2020-112692RB-C21/AEI/10.13039/501100011033
financiado pelo Ministerio de Ciencia, Innovación y Universidades de España e graças ao prê-
mio ICREA Acadèmia que recebeu para o período 2020-2024.

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convergência de diversos movimentos sociais (feminista, negro, LGBTT, desco-


lonialista) e seus tremendos esforços para levar adiante certa agenda política.
As bases conceituais para uma antropologia da reprodução foram arti-
culadas nos trabalhos pioneiros de Rayna Rapp e Faye Ginsburg durante
os anos 1990, indo do primeiro enunciado em “The politics of reproduction”
(Ginsburg; Rapp, 1991) até uma consolidação da proposta na introdução da cole-
tânea, Conceiving the New World Order: the global politics of reproduction (Ginsburg;
Rapp, 1995) [Concebendo a Nova Ordem Mundial: políticas globais de reprodução].
Com o objetivo assumido de romper com preconcepções que tinham relegado
a reprodução a uma esfera restrita – exclusivamente doméstica, biológica e
basicamente feminina –, as autoras apresentavam a reprodução como assunto
sumamente político. As controvérsias sobre práticas reprodutivas diziam res-
peito a lutas sobre o futuro de comunidades, nações e povos. Reafirmando o
espírito que tinha permeado as diversas conferências mundiais (Cairo, Beijing,
etc.), as colaboradoras daquele volume mostravam o fluxo transnacional de tec-
nologias, ideologias e normas que interagiam, num terreno altamente desigual,
com “culturas” e práticas locais. E denunciavam os instrumentos de violência
eufemizada – lacunas, silêncios e discursos filantrópicos, que contribuíam
para invisibilizar o enorme valor econômico, político e emocional do trabalho
reprodutivo.
Reforçando a ideia de desigualdades no campo da reprodução, a noção de
“reprodução estratificada” foi cunhada para sublinhar a distribuição despropor-
cional de trabalho reprodutivo nas dinâmicas que interconectam diferentes
grupos, fazendo com que algumas pessoas acabem desfrutando de um grande
leque de possibilidades à custa de outras. Shellee Colen (1995), autora do con-
ceito, ilustrou a estratificação simbiótica de modelos de família com o caso de
babás caribenhas em Nova Iorque que, enquanto se esmeravam em cuidar dos
filhos da elite norte-americana, observavam à distância seus próprios filhos
crescerem em circunstâncias longe de ideais. Mas a noção de reprodução estra-
tificada seria logo aplicada a um grande leque de práticas reprodutivas – de
adoções transnacionais a maternidades sub-rogadas – para ressaltar como as
desigualdades de dinheiro e poder condicionam as relações complementares e
hierárquicas nas dinâmicas reprodutivas contemporâneas.
Ao introduzir o tema da governança reprodutiva, Morgan e Roberts (2012)
procuraram consolidar as novas tendências analíticas reforçando alguns

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caminhos indicados por Ginsburg e Rapp (1991). Assim, propuseram estender o


olhar analítico para além do Estado (para forças políticas tais como movimen-
tos sociais, ONGs internacionais, igrejas, corporações médicas e o próprio mer-
cado), diversificando as pautas (indo além da gravidez e controle populacional
para a pletora de elementos que condicionam a vida doméstica e familiar) e
chegando cada vez mais perto das práticas e subjetividades corporificadas tão
bem desenhadas por estudos etnográficos. Lembremos que a antropologia da
reprodução já tinha estabelecido o eixo político do tema e já tinha ressaltado
as inescapáveis desigualdades produzidas na interação das múltiplas agências
nos processos reprodutivos. Agora, no seu artigo dirigido especificamente para
estudos na América Latina, Morgan e Roberts acrescentam a insistência nos
“regimes morais” que, por lógicas globais perpassando as estratégias nacionais
de intervenção, exercem uma influência normalizadora sobre as práticas de
reprodução, os comportamentos sexuais e as relações de gênero.
O pensamento de Foucault, com destaque aos regimes de verdade que sub-
jazem às diferentes formas de biopoder, é um elemento central nessa guinada.
Contudo, ao insistirem na importância central dos significados e valores que
afloram no curso da vida, Morgan e Roberts apelam às perspectivas de Fassin
(2009) sobre as “políticas da vida”. Nessa proposta, sublinha-se o fato de que
valores diferentes acompanham vidas diferentes, e, portanto, os modos de
subjetivização talvez não sejam os mesmos em cima e em baixo da hierarquia
social. Trata-se de uma análise que, sem perder de vista as influências mais
abrangentes, reflete as preocupações do olhar etnográfico com particularida-
des “locais”, subjetividades individuais e compreensões coladas às práticas das
rotinas cotidianas (por exemplo, de cuidado). Emerge assim a importância de
o pesquisador atentar para as formas situadas de raciocínio moral, operando
através de uma série de configurações heterogêneas, evocadas e retrabalha-
das em situações problemáticas por pessoas em busca de um norte para seus
modos de agir.
O destaque analítico dado aos “sentidos e valores” que orienta a análise da
governança reprodutiva se consolida numa conjuntura política global alta-
mente conturbada em que certas conquistas parecem estar sendo desfeitas.
Nos Estados Unidos, por exemplo, o avanço de um eleitorado com forte viés
religioso e conservador já levou diversos estados a passar legislação que pra-
ticamente anula o direito ao aborto consagrado pela Corte Suprema décadas

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atrás. No atual cenário polarizado, o direito da mulher a terminar sua gravi-


dez é cancelado pelo direito do feto a nascer; a ênfase discursiva é deslocada
da liberdade reprodutiva de uma pessoa viva para o futuro imaginado de um
humano em potencial (Krause; De Zordo, 2012). Na América Latina, onde houve
só recentemente, e em poucos países, a descriminalização do aborto, vemos
como a legislação progressista não é em si garantia de novos direitos. Mesmo
em países como o Uruguai, onde à força de duras lutas foi possível derrubar as
proibições legais, médicos ainda aproveitam brechas na legislação para, à base
da convicção íntima, exercer seu direito a recusar realizar uma interrupção
de gravidez (Rostagnol, 2015, 2016). No mundo inteiro, assaltos orquestrados
contra uma suposta “ideologia de gênero”, apoiados por setores evangélicos e
alas conservadoras da Igreja Católica, renovam campanhas morais de grande
potência, enaltecendo a família heterossexual tradicional e condenando qual-
quer sexualidade não atrelada à reprodução (Cornejo-Valle; Pichardo, 2017).
No cenário contemporâneo, a própria linguagem de direitos se mostra vul-
nerável a ressignificações que podem implicar um redirecionamento radical de
sentidos. Tanto Sanabria (2010) como Krause e De Zordo (2012), ao considerar
programas de planejamento familiar no Brasil dirigidos especificamente para
mulheres de baixa renda, apontam para esse tipo de paradoxo. Por um lado,
as diferentes formas de contracepção são sistematicamente pautadas como
“direito” de cidadã, permitindo maior autonomia feminina. Por outro lado, são
apresentadas como dever moral, com o entendimento que a não adesão só pode
ser fruto de ignorância ou falta moral da mulher que, assim, coloca em perigo
não só o bem-estar da família, mas o desenvolvimento da nação. Dessa maneira,
a noção de “autonomia” feminina reforça sutilmente políticas neoeugênicas
objetivando coibir a fertilidade de pessoas de certa classe e cor (Brandão e
Cabral, neste número). Outra situação paradoxal vem à tona nos casos de ges-
tação por substituição, quando os direitos da criança são evocados para passar
por cima de proteções básicas das mulheres, “barrigas de aluguel”, contratadas
para gestá-las (Van Wichelen, neste número). Ou, como vimos no episódio que
abre este texto, o princípio do “melhor interesse da criança” é acionado para
retirar crianças de suas famílias em situação de vulnerabilidade social. Reco-
nhecendo que a compreensão desses aparentes paradoxos requer um olhar que
vai além das leis, das políticas explícitas e das instituições estatais, pesquisa-
dores voltam suas lentes analíticas para a gênese e mecanismos de fomento

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dos valores e sentidos que subjazem às diferentes tomadas de decisão sobre as


práticas reprodutivas nas suas diversas escalas.
Nessa conjuntura, o convite feito por Laura Briggs (2017) para pensarmos
todas as políticas enquanto políticas reprodutivas vem a calhar. Inspira-nos
a reconsiderar o papel de um conjunto de práticas/ações que por um longo
período foram tomadas como fundamentalmente pertencentes à esfera pri-
vada, relegadas à invisibilidade, e trazê-las à luz de questões mais amplas.
Assim, adentramos não só nas temáticas mais comumente associadas a essa,
tais como reprodução assistida, aborto, gravidez, contraceptivos, mas também
os componentes críticos do trabalho reprodutivo em pautas como bem-estar
social, imigração, cuidados infantis, dinâmicas familiares, casamento gay, direi-
tos civis, assistência social e pensões, etc. Trata-se, como insiste a autora, de um
trabalho real/concreto produto e produtor da política. Nos últimos tempos, o
trabalho reprodutivo tem se tornado mais importante do que nunca, sobretudo
em função da privatização das tarefas de cuidado, e por isso a exclusão dessa
pauta dos debates políticos e econômicos gerais tem se tornado cada vez mais
intolerável. Os artigos reunidos no presente número ilustram bem a proposta
de Briggs. Não obstante uma grande diversidade de temas – práticas gineco-
lógicas, violência obstétrica, parto e amamentação cruzada, experiências de
maternidade e maternagem, adoção e acolhimento familiar, reprodução assis-
tida, gestação por substituição e políticas de reprodução – todos os trabalhos,
de maneira mais ou menos direta, são atravessados pelo diálogo entre trabalho
reprodutivo e política.

Especificidades do Norte global

Na sua introdução ao volume em que o artigo de Morgan e Roberts foi publi-


cado, Krause e De Zordo (2012) recorrem à ideia de biopolítica para descrever
as racionalidades de reprodução através da divisa Norte-Sul. Boa parte da refle-
xão destas autoras é dedicada a situar problemas de governo numa conjuntura
de grandes mudanças demográficas, incluindo, em algumas partes do mundo,
uma baixa dramática de natalidade. As autoras dos diferentes artigos – sobre
Polônia, Itália, Paquistão, e Brasil – elaboram densas descrições de seus respec-
tivos contextos, ressaltando especificidades de comportamentos reprodutivos.

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Porém, o saldo teórico da justaposição de casos é dirigido ao que estes têm em


comum. Em alguns lugares, as flutuações nos padrões de fertilidade podem
ter ressignificado programas de planejamento familiar, usando inclusive uma
linguagem dos direitos sexuais e da saúde da mulher, mas a globalização neoli-
beral tem provocado dilemas que “se espelham”. Do Norte global ao Sul, vigilân-
cia e disciplina, assim como perspectivas neomalthusianas, ainda fazem parte
das políticas de fertilidade (Krause; De Zordo, 2012). Apesar de apreciar esses
argumentos, ao organizar o presente número, nos colocamos constantemente
a pergunta: como que o posicionamento (nacional e geográfico) do observador
cria relações diferentes com um termo tal como “governança reprodutiva”?
No hemisfério norte, vindo se somar aos assuntos clássicos da antropolo-
gia da reprodução, testemunhamos desde o inicio dos anos 2000 uma grande
proliferação de estudos sobre, além da adoção transnacional, as interven-
ções médicas de reprodução assistida (ver, por exemplo, Birenbaum-Carmeli;
Inhorn, 2009; Sargent; Browner, 2011). Nós imaginávamos neste número de
Horizontes Antropológicos uma proporção algo semelhante entre as submissões
que receberíamos, mas essa expectativa não se realizou. Em compensação,
vieram muitas pesquisas empíricas sobre os aparatos e moralidades que per-
passam a relação entre pais, mães e filhos. Esse desvio do roteiro imaginado
nos levou a refletir sobre possíveis fatores contextuais na explicação da ênfase
diversa de preocupações.
Pensando especificidades do Norte global, olhemos em primeiro lugar para
a grande atenção atribuída às mudanças demográficas das últimas décadas
que parecem ter transformado a paisagem da vida familiar. É compreensível
que, diante da queda dramática de fertilidade ocorrendo nos Estados Unidos
e especialmente na Europa ocidental, tenha prosperado uma nova linha de
pesquisa sobre as dificuldades dos cidadãos comuns (em geral, das camadas
médias) em conceber um filho. Assim, a preocupação de analistas passou a
ser menos com as insuficiências dos programas de planejamento familiar (já
amplamente difundidos), e mais com a crescente demanda de pessoas frustra-
das por não conseguirem formar uma família.
Embora a ausência involuntária de filhos tenha se enunciado como problema
em muitos países euro-americanos já nos anos 1990, a experiência espanhola
se destaca pela maneira rápida e intensa como esse problema surgiu (Alvarez;
Marre, 2021). Em 1978, a taxa de fecundidade era de 2,77 filhos por mulher, a mais

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alta da Europa. Até 1993, tinha caído para 1,3 – uma das mais baixas do mundo e
bem abaixo da reposição demográfica. Se, logo depois da Segunda Guerra Mun-
dial, calculava-se que apenas 10% das espanholas nunca teriam filhos, passados
30 anos, essa proporção já era quatro vezes maior. Parte desse aumento é atribu-
ída à tendência de mulheres a entrar no mercado de trabalho em número cada
vez maior. Muitas delas acabam se dedicando a suas carreiras, adiando a mater-
nidade para um momento quando as chances de engravidar são menores. Mas
existem, como nos lembra Briggs (2017), outras influências das políticas neoli-
berais que passam a restringir as aspirações à vida familiar. A redução do valor
real de salários fez com que ambos os membros do casal tivessem que se engajar
na força de trabalho, inclusive com uma carga horária maior do que em gerações
anteriores. Simultaneamente, com as restrições orçamentárias para serviços
públicos de apoio, a responsabilidade pelos cuidados de pessoas dependentes
passou a recair cada vez mais sobre as famílias nucleares (principalmente sobre
as mulheres). Restrito ao setor comercial, o custo de um eventual auxílio por
ajudantes pagos ficou proibitivo para boa parte dos jovens casais. Assim, até
ter a estabilidade financeira para equilibrar as diversas demandas (domésticas,
maternas, profissionais) às quais deviam atender, muitas mulheres já teriam
atingido uma idade que tornaria a procriação “natural” difícil.
O alto custo dos diferentes processos “assistidos” de ter filhos – quer seja
através da adoção ou da intervenção médica– introduz uma segunda particula-
ridade que distingue o hemisfério norte do sul. Enquanto as políticas neolibe-
rais de austeridade faziam estragos no mundo inteiro, boa parte dos cidadãos da
Europa ocidental e a América do Norte – seja pelo emprego, seja pelas subven-
ções estatais – ainda gozavam de condições que lhes permitiam participar dos
variados mercados de consumo. É nesse contexto que pesquisadores chamam
atenção para a maneira como as relações íntimas, e também os demais elemen-
tos do trabalho reprodutivo tradicionalmente associados à esfera doméstica, se
tornaram objeto de comodificação (Constable, 2009). Práticas tais como adoção
infantil e maternidade assistida tomam seu lugar, ao lado de outros serviços
reprodutivos, para se transformar em produtos mercadológicos, envolvendo
pesados investimentos e lucros financeiros de uma classe média vultosa.
Lembremos que, num primeiro momento, mulheres tendo dificuldade para
engravidar procuravam resolver seu problema, tal como em gerações anterio-
res, pela adoção de um bebê. Entretanto, por diversas razões, a oferta “local” de

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crianças disponíveis para adoção minguou, não suprimindo mais a demanda.


A partir dos anos 1970, diminuiu o número de gravidezes imprevistas. Além do
desenvolvimento de contraceptivos de uso acessível e a baixo custo, a inter-
rupção voluntária da gravidez passou a ser uma opção nos Estados Unidos e
em um número crescente de países da Europa. E, graças a uma moralidade
sexual mais liberal e à ampliação de subvenções públicas, mesmo os nasci-
mentos não programados passaram a ser aceitos com maior facilidade. Diante
da carência de recém-nascidos disponíveis, pais pretendentes – por exemplo,
nos Estados Unidos – podiam voltar suas esperanças para os serviços públicos
de acolhimento. Passavam assim a aceitar uma criança (não mais um recém-
-nascido) retirada de sua família inevitavelmente pobre e pertencendo a uma
minoria étnica discriminada, com ou sem o consentimento dos pais. Contudo,
em pouco tempo, surgiram reações organizadas pelos movimentos negro, indí-
gena e outras minorias protestando contra essas adoções “transraciais” (Modell,
1998; Roberts, 2002). É diante desse impasse, deparando-se com uma escassez
de crianças adotáveis no seu próprio país, que pessoas sofrendo da “ausência
involuntária de prole” passaram a buscar a criança desejada (de preferência,
bebê, de pele clara e em boa saúde), a grande custo financeiro, nas regiões mais
pobres da América Latina, da Ásia e eventualmente da África (Ballard et al.,
2015; Marre; Briggs, 2009). As desigualdades que separavam as populações em
fornecedoras e recebedoras de crianças adotadas se estenderam assim para
incluir regiões do outro lado do globo.
No início da onda de adoções transnacionais, existiam poucas regulações
sobre o processo. E mesmo quando surgiu, em 1993, a Convenção de Haia sobre a
adoção transnacional, a legislação internacional parecia servir antes para azeitar
do que para estancar os fluxos (Van Wichelen, 2019). Porém, aos poucos, os países
mais visados (Brasil, Guatemala, China) passaram a impor restrições à adoção
internacional, obrigando os pretendentes estrangeiros a procurar novos territó-
rios. As rotas da adoção transnacional já tinham mudado várias vezes de curso
antes de 2004, quando – com as portas fechadas pela grande maioria dos países
do Sul – o número de transações entrou em declínio definitivo (Selman, 2012).
Esse declínio se deve pelo menos em parte a uma outra característica que cabe
destacar sobre o cenário reprodutivo dos países do Norte global: a grande popu-
laridade das novas tecnologias reprodutivas que surgiram simultaneamente à
expansão da adoção transnacional. Essa popularidade veio acompanhada da

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expansão de oportunidades de viagem. Conforme a grande variabilidade de con-


dições de acesso, custos, regulamentação legal e qualidade de serviços, os “consu-
midores” dessas tecnologias passaram a se deslocar entre países e mesmo entre
os continentes, forjando rotas sempre renovadas de “reproturismo” (Birenbaum-
-Carmeli, Inhorn, 2009). Na Espanha, por exemplo, junto com a diminuição da
adoção transnacional (no início dos anos 2010), o número de ciclos de reprodu-
ção medicamente assistida passa por um aumento astronômico. Com acesso
praticamente aberto a gametas femininos de terceiras, os tratamentos dão resul-
tados positivos, inspirando um grande influxo de viajantes de países limítrofes
e mesmo mais distantes. Desde 2016, o país consta como campeão europeu em
número de procedimentos de reprodução assistida (Marre; San Román; Guerra,
2018). Em contrapartida, por causa de restrições nacionais, algumas pessoas –
principalmente casais de homens – são obrigadas a viajar para o exterior (para os
Estados Unidos, Ucrânia, Geórgia e México) em busca de mulheres que aceitarão
colaborar num procedimento de gestação por substituição.
As observações de Duchesne (neste número) sobre mulheres africanas nas
clínicas parisienses de fertilidade nos trazem uma ilustração viva dos desloca-
mentos transnacionais para fins reprodutivos. A etnógrafa trava contatos tanto
com imigrantes já residindo na França que conseguem aproveitar os serviços
de saúde pública quanto com as viajantes recém-chegadas no país com o pro-
pósito de pagar um tratamento em alguma clínica privada. Por sua descrição, se
torna evidente como – naquele contexto – a conjunção de tecnologias (de tele-
fones celulares, rotas aéreas e técnicas de fecundação in vitro) fomentam com-
portamentos reprodutivos que evocam novas autoridades (médicas e legais) ao
mesmo tempo que preservam muitos dos controles “tradicionais”, regidos por
estereótipos de gênero e da família estendida.
Os deslocamentos transnacionais colocam em destaque, como nunca antes,
a influência de normas legais na configuração de comportamentos familia-
res. Definições legais sobre as práticas de pessoas gays e lésbicas – em relação
ao matrimônio, à adoção e às novas tecnologias reprodutivas – determinam
formas familiares diversas. Na França, por exemplo, diante de leis que restrin-
gem a possibilidade de certas intervenções médicas, arranjos de parentalidade
compartilhada entre casais gays e lésbicos são bastante comuns. Trata-se de
homens e mulheres que, diante da dificuldade legal em conseguir certos tra-
tamentos biomédicos, entram em acordos informais de reciprocidade entre

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Governança reprodutiva 19

doadores de gametas e útero (Tarnovski, 2013). O reconhecimento legal dos


filhos engendrados através desses acordos envolve ainda novos desafios, espe-
cialmente numa conjuntura de frequente migração transnacional. Por exemplo,
certa belga conseguiu no seu próprio país ser reconhecida mãe legal da criança
nascida de sua parceira. Contudo, quando o casal se mudou para a Itália, onde
não se reconhece nem o matrimônio, nem o direito à adoção de pessoas gays e
lésbicas, o status legal desta mãe virou pó (Sarcinelli, 2018).
Os problemas que podem surgir em decorrência da incompatibilidade de
leis entre um país e outro ficam bem exemplificados no artigo de Van Wichelen
(neste número). Examinando casos julgados pela Justiça na Austrália de casais
gays que contrataram mulheres na Índia para gestar seus filhos, a autora
explora as “biolegalidades” produzidas pelas novas tecnologias em interação
com corpos, desejos familiares, e atitudes morais. Ficam aparentes, na sua
análise, os dilemas enfrentados por juízes à procura de critérios para avaliar
casos que, por envolverem acordos comerciais (proibidos na Austrália, permi-
tidos na Índia), são associados ao “tráfico” de bebês e partes do corpo humano.
Para enfrentar as inúmeras incertezas morais que imperam em casos de ges-
tação por substituição, juízes apelam ora a conhecimentos ligados à adoção
(sem nenhuma intervenção médica), ora a conhecimentos biogenéticos (que
averiguam conexões genéticas). Paradoxalmente, chegam a evocar princípios
dos direitos humanos (sobre os direitos da criança) para estabelecer o vínculo
legal entre pai e filho, apesar de a criança ter sido engendrada por um acordo
comercial criminalizado pela lei nacional. Chamando atenção às inúmeras
ambiguidades criadas no desencontro das diferentes camadas de lei – estadual,
nacional e internacional, – a análise de Van Wichelen sublinha a necessidade
de uma reflexão coordenada a nível internacional para encarar esses processos
transnacionais de reprodução estratificada.
Dadas as novidades desse contexto, é compreensível que, na Europa e na
América do Norte, pesquisadoras engajadas no campo da antropologia da
reprodução tenham concentrado suas energias na análise dos custos, fluxos
geográficos e desigualdades implicados nas adoções transnacionais e nas práti-
cas medicamente assistidas de reprodução (Courduriès; Herbrand, 2014; Desy;
Marre, 2021; Marre; Briggs, 2009; Marre; San Román; Guerra, 2018). A questão
é por que não encontramos uma semelhante concentração nesses temas entre
pesquisadores na América Latina?

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20 Claudia Fonseca; Diana Marre; Fernanda Rifiotis

América Latina: preocupações particulares de governança


reprodutiva

Testemunhamos, na América Latina, uma longa e vigorosa linha de pesquisa


feminista, a partir de perspectivas críticas e foucaultianas, sobre “racionali-
dades populacionais” voltadas para o planejamento familiar e o aborto. Não
por acaso, o único artigo sobre a América Latina no volume de Ginsburg e
Rapp (1995)3 focou as controvérsias girando em torno de um certo contracep-
tivo subcutâneo (Norplant), sendo testado no Brasil dos anos 1980 (Barroso;
Correa, 1995). Por um lado, havia as organizações internacionais aderindo à tese
“populacionista”, conforme a qual a sobrepopulação é a causa principal do sub-
desenvolvimento. Por outro lado, havia setores do governo brasileiro que abra-
çavam perspectivas nacionalistas, alegando que, para enfrentar as forças do
imperialismo, era preciso uma população grande. Perpassando debates sobre
as vantagens e desvantagens do crescimento populacional, surgiam conside-
rações sobre o direito das mulheres a exercer controle sobre seus corpos e sua
fertilidade. Em certos casos, existiam efeitos colaterais (menstruação excessiva,
libido diminuída) que as próprias usuárias podiam considerar mais graves do
que uma gravidez não planejada. Mas o fato de a tecnologia exigir interven-
ção médica tanto para retirar quanto para colocar o contraceptivo levantava
dúvidas quanto ao poder da mulher de desistir do tratamento. Afinal, nesse
emaranhado de engajamentos, incluindo os interesses financeiros da indús-
tria farmacêutica, as autoras apontaram para o forte viés dos gestores públicos
a favor do progresso científico – o que complicava a garantia de um procedi-
mento ético nos ensaios clínicos.
Trazendo essa profícua linha de investigação para o cenário atual, Brandão
e Cabral (neste número) analisam uma política no sistema público da cidade de
São Paulo visando desestimular a fertilidade reprodutora de mulheres jovens
e pobres, marcadas por indicadores de raça, etnia e classe. Trabalhando a par-
tir de um programa de long-acting reversible contraceptives (LARC), mostram o

3 O seminário apoiado pela Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research realizado em


Teresópolis (nas montanhas perto de Rio de Janeiro) que deu origem a esse volume contou com
a participação de uma demógrafa cubana, mas, entre os 20 capítulos do livro, o de Barroso e
Correa é o único de autores da América Latina.

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Governança reprodutiva 21

quanto, não obstante 30 anos de críticas ao populacionismo e debates em torno


do empoderamento das mulheres, a lógica de “coerção contraceptiva” reapa-
rece com seus velhos tropos neoeugenistas. Ao oferecer essa “nova“ tecnologia
contraceptiva curiosamente aparentada ao Norplant dos anos 1980, os gestores
públicos apelam para uma linguagem de proteção à saúde, direitos reprodutivos
e autonomia reprodutiva. Entretanto, na prática, ao promover o acesso à tecno-
logia principalmente (se não exclusivamente) a mulheres socialmente excluídas,
sublinhando as vantagens econômicas para os cofres públicos, repetem políti-
cas estratificadas e racializadas, reificando estereótipos que supõem a necessi-
dade de tutelar as práticas reprodutivas dos setores vulneráveis da população.
Tal como seus colegas no Norte global, antropólogas feministas latino-ame-
ricanas olhando para a reprodução diversificaram os temas de estudo para além
da planificação familiar. Mas particulares fatores contextuais, sem dúvida, tive-
ram um papel na criação de ramificações um tanto distintas. Consideremos,
primeiro, a questão demográfica. Na América Latina, apesar de ter acontecido
uma queda igualmente dramática nas taxas de natalidade, essa situação não
chegou ao ponto de ameaçar a reposição demográfica. Não se constituiu em
problema a ser discutido, por exemplo, em debates públicos. Embora o aborto
tenha sido descriminalizado recentemente em um pequeno número de paí-
ses (Viera Cherro, neste número), o procedimento continua de difícil acesso
à grande maioria de mulheres. Assim, entre o nascimento de filhos não pro-
gramados e as condições miseráveis nas quais vive boa parte da população, o
imaginário público continua a associar as dificuldades que assolam a socie-
dade (pobreza, criminalidade, etc.) a “famílias desestruturadas”. Essas “fábricas
de elementos desajustados” (nas palavras do atual vice-presidente do Brasil)
seriam a consequência se não do excesso de filhos, pelo menos da socialização
problemática deles (ver Efrem Filho e Mello, neste número). Destarte, na visão
de boa parte dos dirigentes políticos, o problema não seria o número (de mais
ou de menos) de crianças nascendo, mas a distribuição inadequada delas.
Quanto à adoção, a ausência involuntária de filhos na América Latina
vinha sido tradicionalmente vista como um problema privado de um número
reduzido de pessoas que podiam resolver a situação pela adoção informal,
sem a interferência do poder público (Leinaweaver; Seligmann, 2009; Rinaldi,
Coitinho Filho, Souza e Souza). A adoção passou a ser uma pauta impor-
tante da agenda pública só no final do século passado, justamente por causa

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dos estrangeiros que vinham buscar filhos adotivos nessa região do mundo.
A América Latina tinha se conectado aos circuitos de adoção transnacional
como fornecedora de crianças para famílias na Europa e América do Norte
(Cardarello, 2012). Contudo, à medida que as estruturas de governo foram
sendo aprimoradas na era da reabertura democrática, os governos nacionais
tendiam a concentrar a administração da adoção no Judiciário para garantir o
prevalecimento do “interesse superior da criança”. O importante era prevenir
abusos que tinham ocorrido no passado, tal como a apropriação criminosa de
crianças durante a ditadura argentina (Villalta, 2012) e o tráfico internacional
de bebês para a adoção. Assim, no Brasil, por exemplo, vedava-se a autorização
de agências privadas ou quaisquer outros intermediários que não fossem do
poder público. Os controles crescentes praticamente deram fim a adoções por
estrangeiros (que caíram de mais de 2.000 em 1990 para 67 em 2018), e coloca-
ram limites aos trâmites da adoção doméstica.
Invertendo visões anteriores, emergiu a narrativa de que faltavam crianças
disponíveis à adoção no país – pelo menos crianças na primeira infância e em
boa saúde, tal como a maioria de pretendentes desejava. Desde 2008, quando
as estatísticas oficiais passaram a ser divulgadas na mídia, os números anun-
ciam inevitavelmente cinco a seis pretendentes para cada jovem disponível.
Apesar de existir um aparato institucional (profissionais, cadastros, etc.) para
regular o encontro entre adotantes e adotados, em certas regiões, os magistra-
dos encarregados da adoção continuam ligados a redes filantrópicas e grupos
associativos de pais adotivos, muitos sob forte inspiração religiosa. Longe de
terem recursos para buscar um filho adotivo no exterior, pretendentes à pater-
nidade adotiva acabam se enredando nessas redes locais. E é nessa conjuntura
de discursos sobre direitos da criança, misturados a moralidades filantrópicas
e humanitárias, que a maioria de pesquisadores da adoção tem concentrado
suas energias (Finamori, Silva, 2019; Rinaldi, 2019; Uziel, 2007).
As novas tecnologias reprodutivas, por sua vez, já chamavam interesse
na América Latina desde os anos 1980, quando nasceram os primeiros bebês
por esse meio, mas só chegaram a criar maior impacto em torno da virada do
milênio. Surgiu, então, uma pletora de estudos nos laboratórios e nas clínicas
médicas sobre as consequências dessa nova fase da biomedicalização da repro-
dução (Grossi; Porto; Tamanini, 2003; Luna, 2007; Ramirez-Galvez, 2009; Straw
et al., 2016; Tamanini, 2015). A produção dava destaque em particular à maneira

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Governança reprodutiva 23

como o uso de gametas doados por terceiras abria possibilidades não só para
solteiras, mas para casais gays e lésbicos. Na ausência de leis sobre essa prá-
tica médica, sugiram orientações emitidas por corporações médicas (tal como
o Conselho Federal de Medicina no Brasil) estabelecendo as normas aceitáveis
de atuação profissional. Com o avanço dos direitos sexuais das comunidades
LGBTT – o reconhecimento do matrimônio entre parceiros do mesmo sexo e
seu direito de adotar crianças –, diminuem na maioria de países da região as
restrições que dificultavam a reprodução por casais homossexuais (Straw et al.,
2016). Contudo, por causa das relações nem sempre claras entre o governo, a
ciência médica e o os lucros proporcionados pelas tecnologias de procriação
medicamente assistidas, permanecem preocupações sobre os possíveis riscos
das inovações tecnológicas para a saúde dos vários atores envolvidos.
Viera Cherro (neste número), na sua discussão sobre as novas tecnologias
reprodutivas no Uruguai, retoma a complexa relação entre elementos encar-
nados (biológicos) dos processos reprodutivos, gênero e a bioeconomia global,
acrescentando a questão fundamental da religião. Expõe, por um lado, o dogma
altamente conservador do Vaticano veiculado por especialistas católicos da
bioética e de lideranças nacionais do clero. Foi sob a influência dessa doutrina
que a primeira lei uruguaia sobre a reprodução medicamente assistida (2003)
ditou parâmetros estreitos de ação, restringindo intervenções a casais heteros-
sexuais, sem possibilidade de doação de óvulos por terceiras. Por outro lado, ao
destacar como foi um católico praticante que dez anos depois patrocinou uma
lei muito mais progressista, a autora embaralha qualquer associação mecânica
entre dogma, crença e prática. Ao aprender que, já desde o início do século, três
quartos das intervenções envolvendo doação de esperma eram realizadas por
casais lésbicos, o leitor acaba por se convencer de que a nova lei simplesmente
legalizou práticas que já vinham ocorrendo de forma rotineira. Numa evi-
dente cumplicidade solidária entre profissionais e pacientes, as mulheres com
dinheiro suficiente conseguiam pagar um procedimento, independentemente
da orientação sexual (ou religião).
A introdução do aspecto financeiro do tratamento, com a possibilidade
de comercialização de serviços e acúmulo de lucros, abre a discussão para
uma tensão frequentemente silenciada nos debates éticos. Procedimentos
tais como doação de óvulos e criopreservação de embriões não só colocam
em destaque o biovalor dos materiais, como também implicam um “trabalho

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clínico” (Cooper; Waldby, 2014) de vulto da parte de doadoras cujos corpos


são submetidos a tratamentos químicos violentos. Críticas feministas, entre
outras, chamam atenção para o fato de que enquanto as clínicas cobram altas
taxas para o trabalho especializado dos profissionais, as mulheres que doam
material biológico não recebem mais do que compensações simbólicas. Ou
são mulheres que doam os óvulos “excedentes” para custear seu próprio tra-
tamento, ou são mulheres de origem relativamente modesta que fazem uma
doação solidária mediante um “lucro cessante”. Mais preocupante ainda, na
ausência de qualquer regulamentação sobre o número de vezes que uma
mulher pode doar seus óvulos ou de protocolos para controlar a dosagem
de estimulantes usados no tratamento, não existem limites à exploração do
“trabalho clínico” dessas doadoras. Viera Cherro conclui comentando como, ape-
sar de ambos apontarem possíveis objeções aos novos procedimentos biotécni-
cos de procriação, o dogma católico e a crítica feminista divergem radicalmente
quanto aos motivos. Enquanto teólogos, preocupados com a desumanização,
querem preservar uma humanidade abstrata, as feministas, fitando as gran-
des desigualdades implicadas na reprodução estratificada, querem prevenir a
exploração do trabalho corporal de mulheres concretas vivendo em circunstân-
cias de vulnerabilidade.
Viera Cherro levanta questões sumamente relevantes a partir de sua pes-
quisa em clínicas no Uruguai. Contudo, resta a questão: na América Latina,
até que ponto as novas formas medicamente assistidas de procriação estão
afetando a vida da grande proporção da população vivendo na ou à beira da
pobreza, aquelas pessoas que mal têm recursos para acessar os elementos
necessários da saúde básica? No Brasil, lembremos que 95% da demanda por
esses tratamentos são atendidos pela medicina privada. Existem alguns hos-
pitais públicos trabalhando nessa área, mas as listas de espera são longas e as
necessárias medicações (pagas em geral pelos pacientes), caras. Mais impor-
tante: nenhum desses serviços oferece tratamentos de alta complexidade – o
que resulta em taxas muito modestas de êxito. Podemos supor que a conclusão
de uma observadora sobre o caso brasileiro serve para boa parte da América
Latina: “Até o momento, a principal exclusão do acesso à FIV é de base econô-
mica: o custo dos bebês de proveta os torna inacessíveis a uma enorme parcela
da população interessada” (Corrêa; Loyola, 2015, p. 763; ver também Nasci-
mento, 2020). Nos últimos dez anos, houve esforços da parte de militantes por

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direitos reprodutivos de democratizar o acesso às tecnologias reprodutivas –


ver por exemplo a recente legislação na Argentina e no Uruguai (Straw et al.,
2016; Viera Cherro, neste número). Resta a ver se, num quadro de redução de
gastos públicos, será possível alcançar resultados práticos em qualquer escala
significativa.
Quanto ao “reproturismo”, existem estudos interessantes sobre mulheres
abastadas que procuram gametas doados de clínicas no exterior, de preferência
nos países nórdicos (Vitule; Fachin; Couto, 2016); também despontam alguns
casos de pessoas tentando legalizar a filiação de uma criança nascida no exte-
rior por uma gestação sub-rogada (tecnologia quase impossível de ser realizada
localmente). Entretanto, em geral, fora a elite cosmopolita, até as chamadas
“camadas médias” têm dificuldade de juntar dinheiro suficiente para uma via-
gem ao exterior, que dirá pagar um tratamento de maternidade assistida. Nesse
quadro, compreende-se que muitos pesquisadores virem suas atenções – antes
do que para os procedimentos em si – para as promessas infladas das interven-
ções médicas e os vieses questionáveis das suas infraestruturas comerciais e
científicas (Allebrandt, 2021; Freitas, 2021; Nascimento, 2020; Ramirez-Galvez,
2009; Viera Cherro, 2019).
Ao todo, esse quadro ajuda a entender por que, entre os analistas voltados
para os problemas de governança reprodutiva na América Latina, a desigual-
dade que inquieta diz respeito não às relações entre os países e, sim, às rela-
ções de classe, raça e etnia dentro de suas fronteiras nacionais. Os processos de
reprodução estratificada operam a partir do lugar inferior e discriminado que
ocupam mulheres perto de casa – aquelas cujos filhos serão transformados con-
tra a vontade delas em “disponíveis para a adoção” e aquelas que “doarão” seus
gametas para facilitar a formação de uma família por mulheres mais abastadas.
Será por acaso que a noção de governança reprodutiva, com sua ênfase nos
regimes morais, tenha sido originalmente elaborada em relação a uma região
fora do eixo Europa-Estados Unidos? Cabe notar que, naquele volume de 2012
em que se anuncia a ideia de governança reprodutiva, o único trabalho que não
fala de racionalidades demográficas (planejamento familiar ou problemas de
fertilidade) é o de Cardarello sobre o Brasil. A atenção desta autora é dirigida
às moralidades que julgam certas mulheres indignas de serem mães. Seguindo
o protesto de famílias cujos filhos foram dados em adoção (alguns adotados
no exterior) sem seu consentimento, mostra como as justificações invocadas

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por membros do Judiciário para anular os direitos destas famílias refletem


estereótipos arraigados de classe e raça. Sugerimos que a incorporação desse
episódio no debate sobre governança reprodutiva – um episódio que se remete
a desigualdades dentro da nação e que diz respeito não à concepção e ao parto,
mas ao disciplinamento dos comportamentos parentais – sublinha as preocu-
pações de pesquisadores do Sul global, além de prenunciar uma guinada na
arena de debate acadêmico.

Moralidades de maternidade e gênero

Até o fim do século passado, já era evidente para a maioria dos cientistas sociais
que os mecanismos de governo diziam respeito a muito mais do que os ins-
trumentos mais visíveis do poder (legislação, tribunais, polícia). Para propiciar
de forma efetiva determinadas condutas, era preciso incluir a colaboração de
uma variedade de aparatos profissionais e administrativos. Esse conjunto de
aparatos normalizadores requeria a validação por saberes científicos. Assim,
apelando para a natureza técnica antes do que política das normas que pro-
moviam, um novo exército de “pequenos juízes”, ajudaria a moldar subjetivi-
dades e dirigir comportamentos para determinados fins (Rose; Valverde, 1998).
Por exemplo, os profissionais da pediatria e outros especialistas da mulher e
da criança não só definiam os modos adequados do desenvolvimento e educa-
ção infantis, como também adquiriam a suposta capacidade de prever a saúde
futura da população. São essas definições e essas atribuições – com seu poder
de estabilizar e disseminar padrões de normalidade no tocante a assuntos
como corpo, gênero, sexualidade e família – que inspiraram uma grande escola
de analistas a investigar as implicações morais da própria ciência médica.
É compreensível que, ao se debruçarem sobre assuntos da biomedicina, um
importante contingente de antropólogas da reprodução chama atenção para
problemas ligados ao acesso desigual ou práticas discriminatórias – quando, por
exemplo, constata-se que mulheres negras, indígenas ou simplesmente pobres
são sujeitas a formas particulares de violência obstétrica na rede pública de
atendimento (Castro, Savage, 2019; Sesia 2020). Surgem também preocupações
mais do que relevantes quanto às insuficiências dos serviços básicos – quando,
por exemplo, a política da “saúde integral da mulher” anunciada por gestores

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públicos não vem acompanhada de uma distribuição de tempo e recursos sufi-


cientes para que os médicos realizem os objetivos do programa (Mines Cuenya,
neste número) ou quando as campanhas para a promoção de implantes contra-
ceptivos não contemplam o acesso facilitado a serviços de atendimento para o
controle dos efeitos colaterais (Brandão e Cabral, neste número).
Entretanto, para além dessas instâncias mais visíveis de discriminação,
analistas têm dirigido seu olhar para problemáticas menos evidentes, obser-
vando de que maneira as moralidades de gênero são sutilmente construídas,
transmitidas e eventualmente renegociadas nos gabinetes médicos. Não há
dúvida que, via manuais, tratados e cursos de capacitação dos especialistas, as
ideias veiculadas pelas ciências atravessam o globo com cada vez mais abran-
gência, difundindo perspectivas normativas sobre as relações mais íntimas da
vida doméstica. Encontramos reflexos dessa linha de análise no trabalho de
Mines Cuenya (neste número) que descreve amiúde como, na Argentina con-
temporânea, especialistas da “tocoginecologia”, seguindo orientações que cir-
culam globalmente entre a OMS e os ministérios de Saúde nacionais, reforçam
determinadas visões de corpo e saúde da mulher, revolvendo sempre ao redor
da função reprodutiva (cis)gênero. Trazendo aportes da antropologia da saúde
assim como dos estudos feministas da ciência e tecnologia, o trabalho desta
autora evoca uma já longa trajetória entre pesquisadores da América Latina,
agregados pelo Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos
(CLAM). Nas várias revistas editadas nesse eixo (Physis; Sexualidad, Salud y Socie-
dad), se encontram reflexões de historiadores, psicólogos e cientistas sociais de
toda a América Latina visando restituir uma história crítica do conhecimento
médico enquanto força moralizadora do sexo e gênero (ver Rohden; Monteiro,
2019). Aprendemos nesses estudos que, mesmo se as imagens novecentistas de
mulheres histéricas não circulam com a mesma força de antes, encontramos
implícitas na medicina atual muitas das mesmas premissas. Seja nas discus-
sões sobre hormônios “femininos” e “masculinos” (Rohden, 2019), ou nos deba-
tes sobre os efeitos cognitivos e neuronais da gestação e maternidade (Russo;
Nucci, 2021), persiste a noção dos imperativos da natureza ditando conexões
atemporais entre instinto, maternidade, corpo e comportamento femininos.
A dimensão moral dos julgamentos inscritos nas normas protocolares
profissionais fica mais clara à medida que estes alcançam as fases pós-parto
do processo reprodutivo. Analistas chamam atenção para certa ciência da

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primeira infância predicada na necessidade da presença materna em tempo


integral, sob risco de o recém-nascido sofrer graves danos cerebrais (Fonseca,
2019; Gillies, Edwards, Horsley, 2017). Disseminados no mundo inteiro, pro-
gramas de educação “alternativa” do Banco Mundial (além de organizações do
setor privado) se baseiam nessa ciência para ensinar mães, inevitavelmente
situadas em bairros e regiões pobres, os gestos e atividades da boa maternagem
(Faircloth, 2013; Fonseca, 2012). No clima de racionalidade econômica neo-
liberal, esses programas de intervenção a domicílio fazem eminente sentido.
Por um processo que custa aos cofres públicos bem menos do que uma cre-
che pública ou pré-escola, a mulher deve se tornar gerente autodisciplinada
do lar, para então produzir uma nova geração de pessoas autossuficientes, bem
adaptadas às necessidades projetadas da futura economia de mercado. As fra-
gilidades dessa racionalidade política se revelam nas múltiplas observações
empíricas (Macvarish, 2016).
Kunin (neste número) descreve o desenrolar de um desses programas para a
educação parental numa área interiorana da Argentina. Dirigindo-se a grávidas
e mães de crianças recém-nascidas, coordenadoras (incluindo uma doula adepta
do parto humanizado), além de fornecer um espaço para as mulheres expressa-
rem seus anseios, ensinam exercícios meditativos de relaxamento. Tais práticas
seriam importantes não só para permitir à mulher encontrar sua “vida interior”,
mas também para evitar que o estresse afete negativamente seu feto ou recém-
-nascido. Através da sensibilização das mulheres-mães, acionam-se noções
específicas de corpo, pessoa e maternidade. Curiosamente, a autonomia e empo-
deramento da mulher parecem coincidir, nesse caso, com normas essencialis-
tas sobre mãe-maternidade no seio de uma igualmente naturalizada família
nuclear. Ensina-se que, para garantir sua autonomia e ter “opinião própria”, a
jovem mãe deve se informar, tomando distância dos “mitos” circulando entre as
comadres da comunidade. É subentendido que, assim informada, essa “opinião
própria” coincidirá com as noções divulgadas pelo próprio programa. Desembo-
cará em práticas de maternidade intensiva, caracterizada pela relação estreita
(“fusão” ou “simbiose”) entre mãe e filho e eventualmente marido, com longo
período de amamentação, e praticamente à exclusão dos demais membros da
vizinhança e família extensa. De forma significativa, enquanto o curso é fre-
quentado por mulheres vindas de fora da comunidade, as esposas dos trabalha-
dores agrícolas que moram no bairro parecem pouco preocupadas com o que

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Governança reprodutiva 29

elas veem como as experiências “naturais” de parto e maternidade, se conten-


tando com a ajuda de sua rede tradicional de apoio feminino.
Dos saberes “técnicos” da ciência, chegamos às visões naturalizadas da
moralidade familiar. Estaríamos no que Fassin (2009) denomina uma “eco-
nomia moral” de normas, valores, sensibilidades e emoções em circulação ao
redor de um tema: a família e reprodução. Os analistas, na sua maioria, concor-
dam quanto à centralidade que a mulher ocupa nessa configuração no cenário
contemporâneo neoliberal. Com o desinvestimento financeiro nos serviços
públicos de apoio à vida doméstica, surge em substituição um pacote denso
de orientações educativas e conselhos morais exortando as famílias (e, em par-
ticular, as mulheres-mães) a acudir (cada vez mais sozinhas) às necessidades
das pessoas que dependem delas. Por um lado, essa conjuntura favorece um
recrudescimento da idealização da figura sacrificada da mãe. Vide a homena-
gem feita pelo cineasta espanhol Pedro Almodóvar, em outubro de 2021, às
mulheres que perderam seus filhos durante a guerra civil (1936-1939) e a dita-
dura de Franco (1939-1975): “Eu creio que os homens, por mais que nos esforce-
mos, jamais vamos entender a magnitude do que significa a maternidade, creio
que não está em nossa genética entendê-lo” (tradução nossa).4
Por outro lado, o calcanhar de Aquiles dessa louvação aparece nos inúmeros
programas sociais “maternalistas” que, contando sempre com a administração
pela mulher-mãe, acrescentam mais um grau institucionalizado à sobrecarga
de seu trabalho (Llobet; Milanich, 2014). Aparece, como extensão lógica dessa
sobrecarga, uma acusação cada vez mais fácil contra a mulher que não está
à altura das expectativas, isto é, que “falha” na sua responsabilidade de pro-
duzir filhos que serão cidadãos cumpridores da lei (Efrem Filho e Mello, neste
número; Llobet e Villalta, neste número).
É a partir dessa economia que podemos melhor entender o episódio de
Andrielli com o qual abrimos este texto. A mãe, já na maternidade hospitalar,
é julgada inadequada não pelo seu comportamento atual (o bebê pode até ter
aparência de ser muito bem cuidado), mas pela sua trajetória anterior (Gomes,
2017; Sarmento, 2020). O “risco” que a criança corre em algum momento futuro

4 Retomando o tema da maternidade, recorrente em sua filmografia, o cineasta proferiu esse dis-
curso na apresentação de Madres paralelas, um filme que revela o drama das famílias cujos filhos
foram fuzilados e enterrados em milhares de valas comuns, sem nunca serem identificados.

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é calculado a partir de uma hierarquia definida claramente por atributos


morais de classe, justificando seu deslocamento para um lar mais abastado
– primeiro, numa família acolhedora (como etapa transitória); depois, pos-
sivelmente, numa família adotiva (de forma definitiva e irreversível). Ficam
escancarados os julgamentos morais que acompanham do início até o fim
essa forma de reprodução estratificada, que, além de subestimarem o papel
das desigualdades estruturais, viram um olho cego para dinâmicas locais de
cuidado– tema que nos leva para considerações sobre a articulação profícua e
potente entre trabalho reprodutivo e cuidado.

Cuidado na governança

Os textos reunidos neste número, assim como a história de Andrielli, em Flo-


rianópolis, revelam formas sofisticadas da administração contemporânea dos
sujeitos/viventes, realizada, cada vez mais, através da reprodução (Memmi,
2003) ou mais especificamente do trabalho reprodutivo que envolve inevi-
tavelmente elementos de cuidado. Recorremos à noção de cuidado5 para nos
referir não apenas a uma atitude atenciosa ou uma atividade curativa alta-
mente especializada, mas, antes de mais nada, a um conjunto de atividades
materiais, técnicas e relacionais que objetiva oferecer uma resposta concreta
às necessidades dos outros (Hirata; Molinier, 2012). “O cuidado não é somente
um sentimento ou uma disposição, ele não é simplesmente um conjunto de
ações. Trata-se de um conjunto complexo de práticas que se estendem desde
os sentimentos mais íntimos como o ‘pensamento maternal’ até as ações
extremamente largas, como a concepção dos sistemas públicos de educação”
(Tronto, 2012, p. 265, tradução nossa). A noção se caracteriza por seu caráter
multidimensional/transversal e polissêmico (Hirata; Debert, 2016; Hirata;
Guimarães, 2012; Hirata, Molinier, 2012; Paperman; Laugier, 2011), bem como

5 Em que pese a dificuldade em traduzir a palavra care, em função da sua polissemia e dos riscos
de redução de sentidos, optamos por manter o termo em português “cuidado”, que nos parece
guardar o sentido de care. Dessa forma, ao acionarmos a palavra “cuidado”, desejamos destacar
sua dimensão conceitual (Casanova; Brites, 2019) e também sinalizar que estamos mobilizando
elementos/questões de uma trama teórico-conceitual diversa, que varia segundo os países, as
correntes e as disciplinas.

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Governança reprodutiva 31

pela versatilidade das suas formas de exercício capaz de “[…] capturar múltiplas
expressões, termos e sentidos acionados em diferentes contextos para articular
um amplo leque de valores, afetos, compromissos, obrigações, práticas e apara-
tos administrativos […]” (Lowenkron, 2016, p. 81).
Aproveitamos essa versatilidade para propor uma discussão, pouco elabo-
rada nos trabalhos de governança reprodutiva, sobre o cuidado. Justamente pela
maneira que abrange um amplo campo de ações e práticas, consideramos que o
cuidado se relaciona intimamente, ora como figura, ora como fundo, com as tec-
nologias de governo. Nosso olhar se volta para além de uma relação diádica entre
quem cuida e quem é cuidado, para o leque de agentes implicados nas múltiplas
relações de cuidado e, portanto, para a dimensão política do cuidado (Bessin,
2012). Sugerimos que – por sua associação com formas de resistência e de agen-
ciamentos múltiplos – o cuidado tem uma forte eficácia política que anda de par
com seu potencial transformativo, suas lógicas de temporalização e as ambigui-
dades “agonísticas” que carrega. Tal como construímos esse diálogo, as autoras
e os autores aqui reunidos nos apresentam experiências de cuidado cujos sen-
tidos estão em permanente disputa, podendo a todo momento se alterar depen-
dendo da perspectiva assumida por cada sujeito nas relações que estabelece.
Seguindo tal perspectiva, as experiências analisadas, no presente número,
revelam as ambiguidades do “cuidado” (pelas fronteiras embaçadas e móveis
entre proteção e controle, mercado e não mercado, entre âmbito profissional
e doméstico, entre dominação e reciprocidade, técnicas e afetos, entre apego e
repulsão e amor e ódio), sem, no entanto, cair na armadilha da dicotomização
que essas oposições a princípio parecem sugerir (Paperman, 2011). Chamamos
atenção em particular para o par proteção e controle/tutela que a noção de cui-
dado suscita. Entre estes se estabelece uma “relação agonística” que permite
reforçar a ideia de que o cuidado opera tanto no registro da proteção (veiller sur)
quanto no do controle/vigilância (surveiller); há, portanto, entre esses termos
uma incitação permanente e produtiva (Bessin, 2011; Cruz Rifiotis; Rifiotis, 2019).
As ambiguidades do cuidado, e a “relação agonística” que se estabelece
entre proteção e controle, aparecem fortemente no artigo de Llobet e Villalta
(neste número), nas formas como se conjugam práticas estatais e dinâmicas
familiares. Nos programas de acolhimento familiar, na Argentina, o cuidado
das crianças se desenvolve segundo esquemas baseados em uma distribui-
ção de gênero tradicional, a saber, são as mulheres que são encarregadas da

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maior parte das tarefas. Chama atenção o fato de estar expressamente proibido
que essas mulheres recebam remuneração por tais tarefas. É justamente esse
“caráter solidário” e “não remunerado” das tarefas de cuidado que é altamente
valorizado no desenho do projeto e pelos próprios agentes. “Donde empiezan a
darle dinero por cada niño, esto termina mal porque empieza a ser um trabajo”,
revela uma das profissionais do programa não governamental de acolhimento
familiar observado pelas pesquisadoras. Do ponto de vista institucional e dos
próprios agentes, cuidado e dinheiro não combinam. Para que o programa
tenha um caráter de fato solidário o trabalho de cuidar precisa ser altruísta,
precisa ser uma doação, há que se “fazer milagres” com poucos recursos e pas-
sar longe, portanto, de uma profissionalização.
Na base do programa está um certo “modelo familiar”. Para funcionar, como
o próprio nome diz, como se fossem uma família, as famílias acolhedoras devem
ser orientadas por uma visão romântica em que assuntos de família não se mis-
turam com assuntos de dinheiro ou finanças, pois estes seriam desprovidos de
considerações, de sentimento e moralidades (Luna, 2007). Para imitar “la inti-
midad familiar sin alterar las relaciones de parentesco”, seguindo orientações
oficiais, as acolhedoras devem operar a dissociação entre as tarefas de cuidado
e o “trabalho”. Reatualizando a dualidade que tem sido longamente problema-
tizada nos estudos sobre cuidado, “amor, afeto e emoções” seriam exclusivos
do domínio familiar e, portanto, do âmbito privado, ao passo que o cuidado
enquanto fazer/técnica estaria associado ao trabalho remunerado, próprio da
esfera pública (Engel, 2020; Fietz, 2020; Hirata; Guimarães, 2012). É interessante
notar como em relação às famílias de origem – vistas como tendo falhado em ter-
mos de suas obrigações morais e de afeto – essa “economia de afeto” serve como
justificação potente na avaliação/controle e intervenção estatal. Por outro lado,
transladado ao programa de famílias acolhedoras, o respeito pela “esfera privada”
como âmbito de afeto supostamente fora do alcance do Estado opera como uma
espécie de “blindagem”, mantendo essas avaliações e esses controles à distância.
Interessante também pensar como são equacionadas as relações entre afe-
tos, cuidados e lucro no contraponto entre as famílias acolhedoras e as famílias
de origem. Conforme a visão moral dos “mundos hostis” (dinheiro e cuidado
precisam ser mantidos separados, sobretudo no âmbito das famílias), o bom
cuidado é baseado no amor desinteressado (Zelizer, 2012). Mas essa visão se tra-
duz de forma variável conforme o lugar que ocupa a família na hierarquia moral.

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Governança reprodutiva 33

Os pedidos de ajuda financeira por parte das famílias acolhedoras, quando apa-
recem, são legitimados, pois no limite não visam o “lucro” e sim o “bom cuidado”
da criança. Por outro lado, qualquer solicitação de ajuda financeira por parte
das famílias de origem lhes coloca sob suspeição: o deles poderia ser um amor
“interesseiro”, visando benefício próprio.
O cuidado infantil e as controvérsias em torno do “bom” e o “mal cuidado”
são temas que reaparecem nas reflexões de Nucci e Fazzioni (neste número)
sobre as experiências de amamentação cruzada – isto é, de mulheres que
amamentam os filhos de outras mulheres, ou porque estas não puderam ama-
mentar (por problemas fisiológicos) ou para que possam seguir com suas vidas
(trabalhar, estudar, etc.). Ao evocarem os debates que surgem em torno de uma
policial em Belo Horizonte que amamenta um bebê enquanto a mãe deste é
atendida na delegacia, as autoras revelam um cenário atravessado por fortes
tensões envolvendo diferentes atores e mecanismos de regulação (morais,
médicos, legislativos, econômicos, políticos e sociais).
A dualidade/paradoxo que envolve a amamentação cruzada é sintetizada
pelas autoras na pergunta: ato de amor ou prática de risco? Parece simples, mas
a equação se torna complexa à medida que nos questionamos sobre os senti-
dos que pode assumir o cuidado para os diferentes sujeitos, a partir da posição
que ocupam na relação e, portanto, sempre de forma contingencial e localizada.
O cuidado é contextual (não essencialista) e relacional, por isso mesmo que sua
caracterização demanda muita atenção aos detalhes precisos de cada situação
(Mol, 2008; Tronto, 2012). Do ponto de vista biomédico, como por exemplo do
manual de boas práticas da OMS, a amamentação cruzada seria um “mau cui-
dado” que coloca a vida do bebê em risco, viola seus direitos. Do ponto de vista
das mulheres, trata-se de um ato de amor, de garantir o melhor cuidado possí-
vel para as crianças que dependem delas. Seria possível pensar também que
nessa equação de cuidado (bom ou mau), vê-se tanto “formas ostensivamente
familiares” de cuidado (que são frequentemente objeto de julgamentos morais
justamente porque escapam às tentativas de controle próprias das tecnologias
de governo) quanto práticas mediadas por políticas institucionais e serviços
públicos (como os bancos de leite) cujos modos de funcionamento são passíveis
de controle e padronização institucional (Fonseca; Fietz, 2018).
A amamentação cruzada mobiliza redes de cuidados que são múltiplas (em
termos das suas ramificações e agentes envolvidos) e desordenadas (do ponto

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de vista normativo e das políticas públicas) nos modos em que são tecidas.
Envolvem relações simétricas, como bem pontuam as autoras, e de recipro-
cidade (cuja obrigação de retribuir pode inclusive ser adiada, aparecendo só
muito tempo depois) (Bessin, 2016). Na outra ponta, temos a impessoalidade,
as assimetrias, outras temporalidades e mediações nas formas de produzir vín-
culos e de retribuir cuidado.
São também essas ambiguidades entre o risco e o amor, entre o bom e o
mau cuidado que atravessam a história da Andrielli com a qual começamos
esta apresentação. A mãe que não pode amamentar a filha, ou seja, que não
pode escolher a melhor forma de cuidar mesmo diante da recusa da bebê à
fórmula que lhe administraram em lugar do leite materno, nos faz pensar:
O que é feito/produzido em nome do cuidado dos sujeitos? Como os diferentes
agentes agem em função das diversas concepções de cuidado? A mãe, por ser
impedida de amamentar (por não poder ofertar à filha o que entende por “bom
cuidado”), tem seus direitos violados, ao passo que a filha não tem direito ao
leite materno, por entenderem que a mãe, em sua história pregressa, teria sido
negligente (não oferecendo esse “bom cuidado”), violando os direitos de seus
outros filhos.
Se são passíveis de serem borrados os limites entre o bom e o mau cuidado, o
“binômio cuidado/não cuidado”, cujos termos são “frequentemente tidos como
dicotômicos, aparecem muitas vezes embaralhados”, sobretudo quando se trata
de experiências no âmbito da proteção da infância e adolescência (Lowenkron,
2016, p. 82). Esse é o caso da relação entre Marcela e seu filho Ricardo, que ins-
pira o artigo de Efrem Filho e Mello (neste número) sobre as experiências de
maternidade à luz dos constrangimentos de Estado. Não é por acaso que a “mãe”
tem se tornado um operador ideal das políticas públicas, como bem destacam
os autores. A esse lugar/posição de parentesco converge uma série de expecta-
tivas morais relacionadas em geral com afetos, emoções e, sobretudo, cuidado.
Mas o que acontece “quando uma mãe renuncia a ser “mãe”?, se questionam os
autores. Na esteira dessa renúncia, seguem-se muitas ameaças, mas uma em
particular preocupa Marcela: poderia ela ser presa por não querer mais cuidar
do filho mais velho, mesmo tendo esse filho lhe espancado? A “renúncia da mãe”
remete a uma quebra de expectativa em relação à qualidade “natural” e “perma-
nente” dessa entidade “mãe” e também em relação ao cuidado como qualidade
“inata” das mulheres, em particular, das mães.

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Governança reprodutiva 35

Os estudos sobre cuidado têm insistido na problematização da associação


entre trabalho de cuidado e gênero. Ainda que o trabalho do cuidado, remu-
nerado ou não, diga respeito a toda sociedade, este tem sido tradicionalmente
assumido pelas mulheres. E essa “naturalização das competências ditas femi-
ninas” também tem se apoiado, como lembra Bessin (2012), sobre uma relação
com o tempo que atribui às mulheres uma disponibilidade temporal perma-
nente às atividades de cuidado. A atitude de Marcela, ao romper com todas
essas “premissas”, não só representa a possibilidade de exercer certa agência
diante dos controles postos pelas tecnologias de governo, como também desa-
fia os entendimentos convencionais de gênero e cuidado.
Os modos pelos quais operam as tecnologias de governo, em um contexto
de humanização do parto, são também tensionados pelas práticas de cuidado
de doulas e educadoras perinatais, como observam Tempesta e França (neste
número). Em meio a um conjunto conformado por instituições públicas e pri-
vadas, organizações profissionais (médicas/os, enfermeiras/os, etc.), saberes
e técnicas biomédicas, normativas sobre parto e pós-parto, é que são tecidas
essas teias complexas de cuidado que visam justiça reprodutiva. É em relação
a tais tecnologias que muitas doulas se percebem e são percebidas pelos profis-
sionais de saúde como os atores mais propensos a testemunhar essas experiên-
cias de violência. E esse cuidado, que é praticado através da escuta e de saberes
alternativos acerca do parto e pós-parto, permite acionar o potencial de agência
das mulheres atendidas. Ao narrarem o que vivenciam, através de um processo
de legitimação do sofrimento pela escuta de outras mulheres, as parturientes
encontram a possibilidade de se construírem enquanto sujeitos e agentes da
sua própria experiência de parto (Fassin, 2004).
A prática da doulagem nos lembra que as experiências de cuidado são trans-
formadoras não só para quem cuida e quem é cuidado, mas também incitam a
transformação de um contexto e das formas pelas quais operam as tecnologias
de governo em saúde reprodutiva. De modo que, no caso das experiências ana-
lisadas no artigo, essa transformação aponta para a emergência de uma peda-
gogia reprodutiva contra-hegemônica.
Seria possível pensar, a partir de um paralelo com as experiências no campo
do serviço social francês analisadas por Bessin (2012), que há na doulagem
um apelo para que se reconheça as temporalidades próprias do cuidado (ver
também Fietz, 2020). Nessa linha de análise, podemos ver as experiências de

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violência obstétrica como reveladoras da tendência contemporânea do achata-


mento dos horizontes temporais do cuidado, à medida que reduzem ao tempo
presente práticas que se inscrevem em temporalidades mais longas. Por outro
lado, o trabalho das doulas permite colocar em prática uma lógica da tempo-
ralização própria ao cuidado de duas maneiras. Primeiro, lança mão de práti-
cas baseadas em saberes tradicionais e/ou alternativos que priorizam o tempo
próprio de cada mulher, o tempo do parto fisiológico e humanizado que não se
conjuga com urgência e intervenções pontuais e medicalizadas. E, segundo, ao
estimular esse exercício de narrar o sofrimento, a doulagem permite não só ali-
viar uma situação presente, mas também integra tal experiência num processo
de reparação que se prolonga/estende no tempo. Ou seja, poderíamos pensar
na doulagem como um trabalho de cuidado cujas ações/práticas são capazes de
se inscrever na duração e se baseiam em grande medida sobre o passado dessas
mulheres e nas situações por elas vivenciadas.
Terminamos nossa discussão (e também o próprio número temático) com
o artigo de Rinaldi, Coitinho Filho, Souza e Souza que demonstra claramente
como, para conseguirem realizar práticas de “bom cuidado”, as pessoas não se
submetem passivamente às orientações institucionais. Podem ignorar, podem
negociar, ou podem se beneficiar das normas oficiais, mas sempre junto com
estratégias criativas que lhes permitam realizar os cuidados que consideram
apropriados para suas situações de família. Essa criatividade emerge com
contornos nítidos na história de Geni, uma brasileira transexual de origem
modesta que, junto com seu companheiro, assume desde cedo o papel de mãe
para diferentes “meninos vulneráveis” que acolhe na sua casa. Percorrendo
toda sua narrativa está o desejo não só de formar uma família, mas também
de cuidar de crianças e jovens (alguns deles já na adolescência) necessitados.
Ao relatar suas experiências de maternidade ao longo de 30 anos, descre-
vendo a adoção ora informal, ora legal, de cinco filhos diferentes, deixa claro
o quanto os mecanismos de governo influenciaram, sem determinar comple-
tamente, seus procedimentos. Quando, nos anos 1990, lhe foi negado qualquer
reconhecimento oficial de sua identidade materna, ela simplesmente seguiu
no cuidado de seus dois filhos, sem procurar mais o aval das autoridades. Já
20 e poucos anos depois, após uma série de mudanças – tanto no clima moral
como nas orientações legislativas e políticas sociais –, a situação se inverteu.
Agora, são os representantes do Estado que tomam a iniciativa de buscar Geni

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e seu companheiro para lhes sugerir a adoção de crianças de difícil colocação


– isto é, de crianças mais velhas, negras ou com problemas de saúde que não
são aceitas pela maioria de candidatas a pais adotivos. Para Geni, que passou
a vida driblando as várias restrições impostas no seu comportamento fami-
liar, o fato de a filiação legal de seus filhos ser atrelada à aceitação em lei da
homoparentalidade (uma categoria com a qual ela não se identifica) parece de
importância secundária.
Essa história nos remete, afinal, a uma noção que, desde seus primei-
ros anos, caminha junto com antropologia feminista da reprodução: a aten-
ção especial à “ação transformativa” que pode ocorrer em lugares muito
diferentes – de casas familiares a movimentos sociais e organizações instituídas
(Ginsburg; Rapp, 1995). É nas histórias sobre cuidado que melhor vislumbra-
mos os vários contradiscursos, as práticas alternativas e de resistência que
estão constantemente se reatualizando com a possibilidade “não só de efetivar
mudanças dramáticas, mas também de sustentar a vida cotidiana diante de
condições difíceis causadas por guerra, doença, pobreza e desastres ecológicos”
(Ginsburg; Rapp, 1995, p. 11, tradução nossa).
Devemos reconhecer, contudo, que não há nada intrinsecamente progres-
sista nem linear nessas transformações. Os artigos deste número de Horizontes
Antropológicos mostram claramente como, ao mesmo tempo que certos seto-
res da população (incluindo, por exemplo, Geni) ganharam espaço nos últimos
anos, outros (incluindo mulheres como Andrielli) têm sido acuados por meca-
nismos cada vez mais impositivos de intervenção nas suas vidas reprodutivas.
Se desenvolvimentos tecnológicos (em particular, da biomedicina) parecem ter
ampliado o leque de opções reprodutivas, por outro lado, muitas dessas tec-
nologias (de telefones celulares a orientações ginecológicas mundializadas)
possibilitaram técnicas mais sutis, mas igualmente invasivas, de controle. E, se
existem pessoas que, pelo seu poder aquisitivo ou mesmo através de alianças
estratégicas, parecem se “libertar” dos controles institucionais, sempre surge a
tendência das “resistências” se transformarem no novo normal com seus res-
pectivos regimes morais também imperativos. Em paralelo à tensão entre os
polos antagônicos de cuidado descrita acima (entre proteger e controlar), per-
manecem ambiguidades quanto à demarcação entre comportamentos “liber-
tadores” e liberais, isto é, guiados por novos mercados de consumo e/ou ideais
da economia neoliberal.

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Arguimos que essas tensões e essas ambiguidades se manifestam no mundo


inteiro, mas aparecem com particular intensidade em regiões, como a América
Latina, regidas pela desigualdade socioeconômica escancarada. É olhando para
a complexidade de tais contextos que se torna evidente o quanto a reprodução
hoje, longe de ser um processo meramente biológico, é uma questão política.
Colocada dessa maneira, a noção de governança reprodutiva nos permite traçar
as conexões, tal como recomendam Morgan e Roberts (2012), entre dinâmicas
íntimas, políticas nacionais e lógicas econômicas globais, colocando em pers-
pectiva e, quem sabe, ajudando a redesenhar os regimes morais que conectam
corpos, biologias e subjetividades para que andem de forma consequente em
direção à justiça reprodutiva.
A capa deste número de Horizontes Antropológicos é ilustrada com a ima-
gem de um prato feito provavelmente na Itália no século XVI, cujo centro des-
taca a cena de um parto/nascimento, para a qual todas e todos voltam seus
olhares e vigilância. No centro, é possível observar mulheres que cuidam de
outras mulheres e também crianças; alguém que espia na porta (portanto fora
do acontecimento, mas desejando nele penetrar) e uma mulher que apela aos
deuses. No entorno dessa imagem central, vemos um universo mitológico e um
apelo ao transcendental. Chama atenção como, já nesse momento, há elemen-
tos para reconsiderar, como sugerimos no texto em diálogo com Briggs (2017),
a importância do papel de um conjunto de práticas/ações que por um longo
período foi tomado como fundamentalmente pertencente à esfera privada,
relegado à invisibilidade. O foco nesse acontecimento nos ajuda a refletir sobre
o borramento das fronteiras entre os domínios privado e público que histori-
camente marcam a temática da reprodução. Dessa forma, ao elegermos essa
imagem como capa do número sobre Governança Reprodutiva, partimos da
hipótese de que toda reprodução é política (Ginsburg; Rapp, 1995) e, seguindo
a trajetória de debates dos últimos anos, esperamos demonstrar que, tal como
sugere Briggs (2017), “todas as políticas são políticas reprodutivas”.
O Espaço Aberto deste número de Horizontes Antropológicos é dedicado ao
centenário do livro Argonautas do Pacífico Ocidental de Bronislaw Malinowski,
que será celebrado em 2022. Dando início às comemorações do próximo ano,
Mariza Peirano e José Guilherme Cantor Magnani, em seus artigos, nos lem-
bram dessa obra que se tornou não só um “divisor de águas na história da antro-
pologia” como também uma “referência importante” para outras disciplinas

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Governança reprodutiva 39

das humanidades (linguística, sociologia e economia). No artigo “Argonautas,


cem anos depois”, Mariza Peirano nos inspira a pensar nos motivos pelos quais
Argonautas é ainda hoje uma referência central para as ciências sociais. De forma
interessante e renovada, ela nos conduz pelo percurso da obra, escrita em quatro
meses, e pela trajetória de seu criador, que era “professor carismático”, “confe-
rencista magnético” e dono de uma “personalidade poderosa”. Em seu livro mais
conhecido, Malinowski nos faz pensar que “a teoria é par indissociável da etno-
grafia” e desafia as futuras gerações a elaborarem “teorias etnográficas”. Ainda que,
em períodos alternados, tenha sido aplaudido e objeto de muitas críticas, Argonau-
tas se tornou um clássico sobretudo por se constituir enquanto precursor da pes-
quisa de campo intensiva e por “alimentar ideias e utopias”. Assim como Peirano,
Magnani no artigo “Argonautas, cem anos: uma releitura em pesquisas do Núcleo
de Antropologia Urbana da USP” nos convida a empreender um cuidadoso res-
gate da contribuição de Argonautas para a prática etnográfica. Na ocasião do seu
centenário, Magnani nos guia pela releitura dos achados de Malinowski nas Ilhas
Trobriand, tendo em vista a realidade atual, quando os temas de pesquisa têm
também como recorte a dinâmica das grandes cidades contemporâneas. Tendo
como base as pesquisas e experimentos dos pesquisadores e das pesquisadoras
do Laboratório do Núcleo de Antropologia Urbana da USP (LabNAU), Magnani
se dedica a pensar nas novas abordagens que a obra suscita. Como forma de fugir
dos “lugares comuns” frequentemente acionados quando se trata do legado de
Malinowski, Magnani encontra ali elementos que permitem reafirmar a centrali-
dade da pesquisa de campo, com base em dados já existentes de estudos anterio-
res, e a própria reinvenção da etnografia em tempos pandêmicos.
O Espaço Aberto deste número de Horizontes Antropológicos também
celebra os 25 anos da fotoetnografia com uma entrevista com Luiz Eduardo
Robinson Achutti, professor do Instituto de Artes da UFRGS, que obteve o grau
de mestre no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS
no qual lecionou até 2014. Em 2021, ano que celebramos a emergência desse
campo na antropologia visual, Achutti nos fala da sua trajetória profissional
e acadêmica e nos fornece um panorama dos aspectos teóricos e metodoló-
gicos da fotoetnografia. A entrevista, realizada por Fabio Lopes Alves, Claudia
Barcelos de Moura Abreu, Tânia Maria Rechia Schroeder e Adrian Alvarez
Estrada, nos revela ainda, nesse diálogo com Achutti, quais são os desafios e
perspectivas desse “conceito” para os próximos 25 anos.

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40 Claudia Fonseca; Diana Marre; Fernanda Rifiotis

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