Descolonizar o Nosso Corpo - Ginecologia Natural

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Sexualidad, Salud y Sociedad

R E V I S TA L AT I N OA M E R I C A N A
ISSN 1984 - 64 87 / n. 37 / 2021 - e21211 / Dieguez, R . et al. / w w w.sexualidadsaludysociedad.org

ART I GO

“Descolonizar o nosso corpo”: ginecologia natural e


a produção de conhecimento sobre corpo, sexualidade
e processos reprodutivos femininos no Brasil

Roberta Siqueira Mocaiber Dieguez1


> [email protected]
ORCID: 0000-0001-9544-2095

Fernanda de Carvalho Vecchi Alzuguir1


> [email protected]
ORCID: 0000-0002-3162-5324

Marina Fisher Nucci2


> [email protected]
ORCID: 0000-0003-3465-9201

1
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
2
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

 opyright © 2021 Sexualidad, Salud y Sociedad – Revista Latinoamericana. This is an Open Access article distributed
C
under the terms of the Creative Commons Attribution License (http creativecommons.org/licenses/by/4.0/), which
permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original work is properly cited.

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Resumo: Recentemente, popularizaram-se grupos de mulheres na internet e em encontros


presenciais com o objetivo de compartilhar informações sobre sexualidade, reprodução,
corpo feminino e seus processos de tratamento e cura. Esse ideário, em geral intitulado de
“Ginecologia Natural”, parte da crítica à medicalização – que teria retirado das mulheres a
autonomia sobre si, mantendo-as suscetíveis ao controle sobre seus corpos. Assim, os grupos
valorizam aspectos associados ao feminino, mantendo inquestionado, contudo, o primado
da diferença entre os gêneros e a noção de uma “natureza feminina” ancorada em um corpo
biológico. A partir de uma pesquisa documental de manuais e materiais de referência sobre
Ginecologia Natural coletados em dois grupos, este artigo reflete acerca da relação entre os
movimentos de mulheres e o ideário da Ginecologia Natural, analisando as concepções sobre
corpo, processos reprodutivos, e sexualidade femininos do ideário.
Palavras-chave: ginecologia natural; corpo; natureza; medicalização; gênero.

“Decolonizing our body”: natural gynecology and the production of knowledge


about female body, sexuality and reproductive processes in Brazil
Abstract: Recently, women’s groups have become popularized on the internet and in face-to-
face meetings in order to share information about sexuality, reproduction, the female body,
and their treatment and healing processes. This ideology, generally called “Natural Gynecol-
ogy”, is based on the criticism of medicalization – which would have removed from women
their autonomy over themselves, keeping them susceptible to control over their bodies. Thus,
the groups seek to attribute positive values associated with the feminine, keeping unques-
tioned, however, the primacy of the difference between genders and the notion of a “feminine
nature” anchored in a biological body. Based on a documentary analysis of manuals and
reference materials collected in two groups of Natural Gynecology, this article examines the
relationship between the women’s movements and the Natural Gynecology ideology, analyz-
ing thoughts on the female body, reproductive processes, and sexuality.
Keywords: natural gynecology; body; nature; medicalization; gender.

“Descolonizar nuestro cuerpo”: ginecología natural y la producción de


conocimiento acerca de cuerpo, sexualidad y procesos reproductivos en Brasil
Resumen: Recientemente, se han vuelto populares grupos de mujeres en internet y en reunio-
nes presenciales para compartir información sobre sexualidad, reproducción, cuerpo femeni-
no y sus procesos de tratamiento y curación. Este ideario, generalmente intitulado “Gineco-
logía natural”, parte de la crítica a la medicalización, que habría quitado la autonomía de las
mujeres sobre sí mismas, manteniéndolas susceptibles al control sobre sus cuerpos. Así, los
grupos valoran aspectos asociados al femenino, manteniendo incuestionable, sin embargo, la
primacía de la diferencia entre géneros y la noción de una “naturaleza femenina” anclada en
un cuerpo biológico. A partir de una investigación documental de manuales y materiales de
referencia sobre Ginecología Natural recopilados en dos grupos, este artículo reflexiona sobre
la relación entre los movimientos de mujeres y el ideario de la Ginecología Natural, analizan-
do sus concepciones sobre cuerpo, procesos reproductivos y sexualidad femenina.
Palabras clave: ginecología natural; cuerpo; naturaleza; medicalización; género.

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“Descolonizar o nosso corpo”: ginecologia natural e a produção


de conhecimento sobre corpo, sexualidade e processos
reprodutivos femininos no Brasil

Introdução

É possível observar em anos recentes, sobretudo na última década, o cresci-


mento de redes de discussão, principalmente em ambiente digital, que buscam com-
partilhar práticas terapêuticas com o intuito de resgatar a saúde da mulher, superar
possíveis problemas que acometem o corpo feminino e promover novas formas de
vivenciá-lo. Esse “resgate” se propõe a valorizar a autonomia das mulheres sobre
seus corpos, processos reprodutivos, sexualidade e saúde, a partir do estímulo ao
conhecimento da anatomia e fisiologia femininas. Essas redes buscam também pro-
duzir um conhecimento do qual as mulheres teriam sido historicamente destituídas
e privadas ao longo do tempo. Tais espaços de discussão frequentemente referem-se
a uma “Ginecologia Natural”, embora seja possível identificar outros termos liga-
dos ao mesmo fenômeno, como “Ginecosofia” ou “Ginecologia Feminista”.
São frequentes, nesse meio, críticas à medicina convencional, considerada um
saber “masculino”, bem como a uma dita “colonização” do corpo feminino, que
teria sido promovida pela ciência médica ao longo de seu desenvolvimento. Esse
ideário preconiza, assim, a necessidade de que as mulheres se reapropriem dos seus
corpos em uma espécie de autogestão da saúde.
Ainda são escassos os trabalhos publicados sobre a Ginecologia Natural. En-
tre as estudiosas do tema, Calafell Sala (2019) situa a emergência da Ginecologia
Natural como um movimento sociocultural e político, aproximadamente no ano de
2008, na América Latina. Para essa autora, trata-se de um estudo do “presente” em
constante crescimento no meio social e acadêmico. No entanto, cabe considerar que
os grupos de Ginecologia Natural estão ligados também a ideários mais amplos,
que vêm ganhando força nas últimas décadas, a exemplo do ideário da humaniza-
ção do parto e do nascimento ditos “naturais” – que, por sua vez, provém, como
observa Tornquist (2002), de um universo neo-espiritualista, com raízes na contra-
cultura e no pensamento libertário/individualista das décadas de 1960 e 1970.
Outro aspecto importante diz respeito à popularização mais recente dos dis-
cursos públicos em redes sociais a respeito da Ginecologia Natural entre mulhe-
res brasileiras, sobretudo jovens de classes médias em contextos urbanos. Dessa
forma, a Ginecologia Natural parece ir ao encontro do chamado “ciberativismo

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menstrual” (Ramírez Morales, 2019), na medida em que estes utilizam a internet


para promover uma articulação política que visa garantir a autonomia dos corpos
ditos femininos e menstruantes, e também dialoga com as “pedagogias menstru-
ais” (Felitti; Rohatsch, 2018), que buscam o compartilhamento de informações
sobre o ciclo menstrual alinhadas a uma espiritualidade característica da cultura
Nova Era1 . Essa visão se assemelha àquela citada por Tornquist (2002) a respeito
do movimento pela humanização do parto.
É no seio do movimento feminista que podemos resgatar as influências do ideário
da Ginecologia Natural. Trata-se, no entanto, de uma corrente que difere do feminis-
mo liberal da década de 1970, que buscava desvincular o conceito de sexo biológico
do gênero. O feminismo liberal, conforme analisa Schiebinger (2001), postula que as
mulheres são, em princípio, iguais aos homens, devendo se preparar para vencer em
um mundo essencialmente masculino. Dessa forma, acredita-se que a igualdade de-
veria ser alcançada a partir da adaptação das mulheres às características usualmente
associadas ao masculino, tanto em um nível biológico quanto cultural. Ainda segun-
do a autora, o avanço do feminismo liberal encontrou alguns “becos sem saída”, pois
visava estender os direitos dos homens às mulheres, eventualmente sem considerar a
existência de diferenças de gênero ou a necessidade de mudanças estruturais.
Algumas feministas, por outro lado, acreditam não ser possível ignorar a in-
fluência dos fatores biológicos na constituição do gênero, e argumentam que pro-
cessos fisiológicos relacionados ao corpo biológico feminino, como a menstruação,
o aborto, a gravidez, a amamentação, dentre outras, impactam de modo significa-
tivo e particular a vida das mulheres (Lupton, 2003).
A noção de um corpo feminino universal, que difere fundamentalmente do
masculino, permeia o chamado “feminismo da diferença” (Sorj, 1992; Rohden,
1996), que, assim como o ecofeminismo, sobre o qual falaremos adiante, promove
a valorização da mulher como salvadora ecológica, atribuindo maior proximidade
do feminino com a “natureza”. Trata-se de um movimento que busca o enfren-
tamento das desigualdades entre homens e mulheres a partir da manutenção da
diferença entre os sexos e de uma inversão hierárquica que visa positivar valores
associados ao feminino.
A Ginecologia Natural se apresenta inserida na lógica do feminismo da dife-
rença, visto que a anatomia encontra papel importante na definição do “ser mu-
lher”. A ênfase no biológico, na diferença sexual, e o valor atribuído a uma dita

1
O pensamento libertário característico da chamada Nova Era, de acordo com Salem (1991),
se posiciona contra os constrangimentos sociais e se opõe às pretensões universalizantes das
normas. O poder é visto como mal em si mesmo e, como alternativa, propõe-se um modelo
em que os aspectos afetivos e emocionais da vida social suplantam as leis oficiais.

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“natureza” parecem ser os pilares desse pensamento. O enfoque no “retorno à


natureza”, que se materializa em comparações com fêmeas mamíferas do reino
animal e referências a um suposto instinto feminino, contrasta com a crítica mais
contundente ao determinismo biológico realizada por estudos de gênero e movi-
mentos feministas de meados do século XX até os dias atuais no sentido da justifi-
cação das desigualdades de gênero (Alzuguir; Nucci, 2015).
Além disso, o discurso da Ginecologia Natural se apresenta a partir de um
aspecto místico, que se inspira em crenças oriundas de culturas pré-cristãs e se pro-
põe a exaltar características consideradas essencialmente femininas, visando a li-
bertação dos ideais cristãos. Esse teor discursivo se associa à corrente denominada
de “neopaganismo” e integra um movimento neo-espiritualista de “orientalização
do Ocidente”, que consiste na integração no Ocidente de valores característicos do
Oriente, conforme a análise de Campbell (1997). Outro aspecto marcante da Gi-
necologia Natural, a crítica à medicalização também encontra alguns paradoxos,
uma vez que certos materiais da pesquisa sugerem uma reapropriação de instru-
mentos que surgiram da própria medicina, como o espéculo ginecológico. Cabe,
portanto, questionar se de fato trata-se de um processo de desmedicalização ou de
remedicalização sob nova ótica (Russo et al., 2019).
Por conseguinte, é importante problematizar as abordagens da Ginecologia
Natural em relação ao uso de conceitos que são geralmente apresentados como
dados, naturalizados e inquestionados como “gênero”, “natureza”, “corpo”, “fe-
minino”, “saúde”, dentre outros. Essas concepções devem ser situadas histórica e
culturalmente. Cabe ressaltar que não se trata de desmerecer a relevância política
do movimento em sua crítica à medicalização do corpo feminino, mas de identifi-
car possíveis armadilhas que possam advir desses discursos e seus impactos sobre
a sociedade, a partir das contribuições dos estudos socioantropológicos contempo-
râneos sobre gênero, corpo e sexualidade.
Foi a partir da observação desses grupos na internet, principalmente na rede
social Facebook, e entre pares, que surgiu o interesse no desenvolvimento de pes-
quisa de mestrado em Saúde Coletiva na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Este artigo é um recorte desta pesquisa, que objetivou analisar concepções de cor-
po feminino em dois grupos brasileiros de Ginecologia Natural, a partir da análise
de livros, cartilhas e manuais indicados pelas organizadoras dos grupos.
O intuito deste artigo é refletir sobre a produção de um conhecimento empírico
acerca do corpo feminino, sexualidade e processos reprodutivos pela Ginecologia
Natural na atualidade, sobretudo no contexto brasileiro. Esse ideário pretende um
conhecimento visto por suas adeptas como contra-hegemônico, pois se basearia
em uma posição de resistência frente às abordagens médicas convencionais à saúde
da mulher. Com isso, as adeptas da Ginecologia Natural procuram promover uma

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maior autonomia das mulheres sobre seus corpos, o que está intimamente ligado
a uma reapropriação e ressignificação de instrumentos e simbolismos utilizados
pela medicina, associando-os a representações de poder. Para compreender essas
abordagens é fundamental contextualizá-las historicamente, relacionando-as a ex-
periências similares, ligadas a movimentos feministas de décadas anteriores.
Organizamos este artigo da seguinte forma: primeiro, apresentaremos as con-
dições de produção do contexto empírico de análise a partir de uma etapa explo-
ratória da pesquisa. Em seguida, faremos uma breve contextualização histórica
de coletivos e organizações feministas que influenciaram os movimentos atuais de
Ginecologia Natural no Brasil. Por fim, nos deteremos em dois temas centrais que
permeiam o pensamento dos grupos em foco no que se refere aos corpos femini-
nos: “Medicalização e resistência” e “autonomia e poder”.

Metodologia

A metodologia deste trabalho consistiu em pesquisa documental de textos, ma-


nuais e materiais considerados, pelas integrantes dos grupos que serão abaixo es-
pecificados, como sendo de referência para a prática da Ginecologia Natural. Para
discussão aqui proposta selecionamos sete materiais. Os documentos foram coletados
em dois grupos de Ginecologia Natural a partir de uma etapa exploratória inicial rea-
lizada através da pesquisa de informações disponibilizadas nos grupos na rede social
Facebook e na observação participante de três eventos divulgados na mesma rede. 
A aproximação ao primeiro grupo, que recebeu o nome fictício de Grupo Ca-
lêndula, ocorreu a partir de uma roda de conversa sobre práticas em Ginecologia
Natural, realizada em uma cidade do interior do Rio de Janeiro. Após a realização do
evento, a organizadora enviou por e-mail às participantes arquivos e links que consi-
derava referência para seus estudos. O segundo grupo, chamado de Grupo Artemísia,
ocorreu em dois momentos. No primeiro, foi realizada uma roda de conversa em um
hotel de luxo na zona sul carioca, onde foram expostas publicações de referência so-
bre Ginecologia Natural. O segundo momento foi em um retiro com duração de dois
dias em uma cidade próxima ao Rio de Janeiro. Os documentos incluídos na análise
foram aqueles que abordavam o corpo feminino na ótica da Ginecologia Natural.
Também foram selecionados arquivos que favorecessem a contextualização histórica
desses grupos. Foram excluídos textos com foco em outros assuntos mais específicos,
como alimentação, pompoarismo, assim como documentos repetidos.
Trata-se de um material heterogêneo e que oferece diferentes perspectivas. Isso
ocorre uma vez que alguns dos documentos foram produzidos por profissionais de
saúde, outros por escritoras e ativistas feministas, além de terem origem em dife-

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rentes países, como Chile, Estados Unidos, Suíça e Brasil. Algumas publicações
são informais, digitalizadas pelas organizadoras dos grupos, carecendo de infor-
mações como ano ou local.
Além de textos, alguns materiais são compostos também por imagens, que
foram consideradas em nossa análise como documentos e incorporadas às nossas
reflexões. Assim, os registros escritos e imagens selecionados configuraram um
acervo (livros, manuais, artigos, fanzines, cartilhas) que traduz concepções e va-
lores alinhados à perspectiva da Ginecologia Natural. Nesse sentido, a opção pela
seleção de materiais de referência, previamente divulgados pelas participantes de
dois grupos brasileiros – em redes sociais e nos encontros presenciais -, fundamen-
ta também sua relevância como fonte primária de análise dos sentidos que confi-
guram o ideário do referido movimento.
Para melhor visualização, os materiais analisados neste artigo constam na
Tabela 1.

Publicação/
Título Local Autor Ano Sinopse
Editora
Autoexame Manual para realização de
Bruxaria Bruxaria
1 ginecológico: - - autoexame ginecológico
Distro Distro
como fazer? com espéculo
Coletivo
Apostila com o intuito de
Fique amiga Feminista Simone G.
2 São Paulo 2005 promover a saúde sexual e
dela Sexualidade e Diniz
reprodutiva das mulheres
Saúde
Livro que associa o ciclo
3 Lua Vermelha Pensamento São Paulo Miranda Gray 2017
menstrual ao ciclo lunar
Manual de Manual que busca
ginecologia Icaria promover autonomia e
4 Barcelona Rina Nissim 1988
natural para Editorial alternativas à medicina
mujeres convencional
Manual de
introdução à Bauti Rio de Pabla Pérez Versão recente do Manual
5 2018
Ginecologia Produções Janeiro San Martín em formato de livro
Natural
Manual Manual abordando a
introductorio a La picadora Pabla Pérez ginecologia natural a
6 Chile -
la Ginecología de papel San Martín partir de uma crítica à
Natural medicina
Seu sangue
é ouro: Livro que se propõe a
Editora Rosa Rio de
7 resgatando Lara Owen 1994 resgatar valores positivos
dos Tempos Janeiro
o poder da associados à menstruação
menstruação

Tabela 1 – elaborada pelas autoras

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Embora a principal metodologia deste estudo tenha sido a análise documental,


para fins de contextualização do material coletado, algumas informações oriundas
da observação participante realizada na etapa exploratória foram cotejadas de
forma complementar.
O trabalho foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do
Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Antes da realização da pesquisa, fizemos contato com as organizado-
ras dos dois grupos da rede social Facebook, informando o interesse em partici-
par dos encontros presenciais pra realizar uma pesquisa. Também foi solicitada
a autorização escrita da organizadora do grupo Artemísia para a utilização de
informações compartilhadas no retiro prático. No caso das rodas de conversa, as
informações coletadas são consideradas de acesso público, conforme a resolução
510/2016 (Conselho Nacional de Saúde, 2016), não sendo necessária a autorização
por escrito. No entanto, as organizadoras de ambos os grupos foram informadas
sobre a pesquisa e concordaram com a participação.

Feminismos e a emergência da Ginecologia Natural

  Para contextualizar os grupos analisados é importante considerar a influ-


ência de movimentos feministas de décadas anteriores, especialmente dos Estados
Unidos, Suíça e Brasil. Em geral utilizamos a divisão em “ondas” para abordar os
movimentos feministas. Considera-se como primeira onda, as manifestações que
ocorreram entre fins do século XIX e a Primeira Guerra Mundial (Gomes; Sorj,
2014). A luta, nesse momento era pela garantia de direitos às mulheres, como o
voto (Pinto, 2010).
A chamada “segunda onda” do feminismo se caracterizou pelas reivindicações
por uma nova forma de relacionamento entre os sexos e por liberdade e autonomia
das mulheres sobre seus corpos (Pinto, 2010; Gomes; Sorj, 2014). Alguns autores
teorizam sobre uma “terceira onda”, que teria se originado da anterior, apresen-
tando algumas das ideias já conhecidas como a crítica à indústria da beleza, abuso
sexual e o questionamento das estruturas de poder. O termo foi utilizado pela
primeira vez em 1992 por Rebecca Walker, filha da ativista e escritora feminista
Alice Walker (Bobel, 2010). Essa nova etapa teria como característica a ampliação
das discussões da chamada segunda onda, incluindo uma proposta de “descolo-
nização” a partir dos estudos pautados pela chamada perspectiva pós-colonial ou
decolonial. De acordo com Bobel:

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A referência à descolonização não se refere somente às mulheres reivindi-


carem sua agência, mas também sobre o próprio feminismo superar o ra-
cismo, o classismo e o heterossexismo, que muitos adeptos da terceira onda
atribuem à segunda onda (2010: 15).

Assim, colocam-se em questão outras oposições binárias além daquela que já


permeava os movimentos anteriores, entre homens e mulheres. Passa-se a discutir
as diferenças entre mulheres negras e brancas ou do hemisfério sul e norte (Gomes;
Sorj, 2014). Embora a análise de Bobel (2010) considere a incorporação de uma
discussão pautada na ideia de descolonização e nos determinantes de raça, classe
e gênero na análise feminista, muitas feministas negras consideram não ter sido
contempladas nas chamadas “ondas” do movimento. Conforme observado por
Figueiredo (2020), um grupo de mulheres de Salvador – BA se autodefine como
“maré feminista negra”, com o intuito de romper com a noção de “ondas”. A auto-
ra argumenta que os feminismos negros contemporâneos buscam produzir novas
epistemologias, que superam a hegemonia eurocêntrica. Esse conhecimento é pro-
duzido com base em ideias decoloniais e visa subverter a pretensa “neutralidade
científica”, incluindo as experiências dos sujeitos subalternizados em suas análises.
No interior do feminismo da segunda onda, localiza-se uma vertente que
mescla a luta das mulheres à defesa do meio ambiente, cunhada por Françoise
D’eaubonne de “ecofeminismo” (Flores; Trevizan, 2015), e que encontra forte
aproximação com o ideário da Ginecologia Natural. De acordo com o ecofeminis-
mo, a organização do sistema patriarcal seria responsável, tanto pela dominação
e destruição dos recursos naturais, quanto pela opressão sofrida pelas mulheres.
A solução para essas questões seria a libertação de todas as formas de dominação,
o que se aproxima da lógica libertária descrita por Salem (1991). Sorj (1992) des-
taca que o ideal ecofeminista também faz críticas à ciência, sobretudo no tocante
às questões de saúde reprodutiva, acusando-a de desenvolver métodos de controle
sobre o corpo feminino sem considerar males à saúde e ao ambiente.
Outra especificidade dos movimentos feministas que também nos interessa de
perto diz respeito aos grupos que lutavam pela saúde das mulheres. Esse é o caso
do Boston Women’s Health Book Collective (BWHBC), atuante nos Estados Uni-
dos desde a década de 1970 até o início da década de 1990. Para Bobel (2008), esse
movimento partia do pressuposto de que as mulheres não tinham controle sobre
seus corpos e sua saúde, devido à existência de um sistema médico dominante. O
coletivo começou com reuniões entre mulheres para compartilhar suas experiên-
cias com médicos e o conhecimento sobre o funcionamento do corpo feminino.
Ao constatar a falta de informação e a predominância das experiências ne-
gativas com a medicina, o BWHBC se engajou na produção de uma coletânea,
intitulada “Women and Their Bodies”, com sua versão inicial em forma de pan-

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fleto publicada em 1970. Três anos depois, essa coletânea se tornaria a obra mais
importante produzida pelo coletivo, o “Our Bodies, Ourselves”, abordando temas
relacionados à saúde feminina que não se encontravam disponíveis em outras fon-
tes de informação, como “[...] orgasmo, o clitóris, a pílula, aborto” (Bobel, 2008:
741). Apesar de seu alcance mais local, Bobel (2008) argumenta que a relevância
desses movimentos é transnacional, pois sua história tem o potencial de influenciar
ativismos contemporâneos, de interesses similares, independentemente do local.
Outro coletivo de mulheres que influenciou o movimento da Ginecologia Na-
tural foi o Dispensaire des Femmes, fundado em 1978, em Genebra, na Suíça
(Uzodinma, 1988). Trata-se de uma organização inspirada no movimento de mu-
lheres norte-americano, também dedicada à saúde feminina. Antes de fundar o
coletivo, a enfermeira suíça Rina Nissim passou anos trabalhando pela saúde da
mulher em outros países, como Estados Unidos, Costa Rica e países da Europa
(Uzodinma, 1988). O Dispensaire des Femmes, que encerrou suas atividades em
1987 (Queré, 2017), buscava a institucionalização da chamada autoajuda e se ali-
nhava ao Movimento de Libertação das Mulheres de Genebra, e aos grupos femi-
nistas norte-americanos.
Esse coletivo visava a desmedicalização dos cuidados com a saúde, limitando
o poder médico sobre o corpo feminino (Queré, 2017). A noção de autoajuda de-
fendida por Nissim, importada dos Estados Unidos, partia do conhecimento do
corpo e dos tratamentos ditos “naturais”, que priorizavam o uso de ervas e consi-
deravam aspectos psicológicos e emocionais, tanto de quem prescrevia, quanto de
quem utilizava as preparações (Uzodinma, 1988). Nissim faz referência direta à
expressão “Ginecologia Natural” em sua principal obra, publicada pela primeira
vez em francês com o título: “Mamamelis: manuel de gynécologie naturopathique
à l’usage des femmes”, atualmente em sua 5ª edição (Editions Mamamelis, 2020),
e que influenciou importantes políticas públicas de saúde no Brasil, como a Políti-
ca Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Brasil, 2004), que incluiu o
manual em suas referências bibliográficas.
Uma importante referência do movimento pela saúde das mulheres no Brasil
é o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, fundado em São Paulo, em funciona-
mento até hoje. Segundo Diniz (1999), o Coletivo concentrou esforços na constru-
ção de políticas públicas para as mulheres, principalmente a partir do diálogo com
órgãos governamentais, como Secretarias e Ministério da Saúde, e na participação
de suas integrantes em Comitês de Mortalidade Materna. Ainda segundo Diniz,
desde 1985 o Coletivo realiza: “[...] um trabalho de atenção primária à saúde da
mulher com essa perspectiva feminista e humanizada, tendo atendido, desde então,
mais de quatro mil mulheres, inspirado pela experiência europeia, sobretudo do
Dispensaire des Femmes, de Genebra” (Diniz, 1999: 378).

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Conforme o site do Coletivo, a experiência de uma de suas fundadoras, Ma-


ria José de Oliveira Araújo, em Genebra, fez com que ela propusesse a criação de
um ambulatório que buscava, de forma semelhante à proposta do Dispensaire des
Femmes, a criação de “novos paradigmas de atendimento às mulheres” (Coletivo
Feminista Sexualidade e Saúde, s/d). Para tanto, o Coletivo oferece, além da clínica,
algumas publicações que divulgam de modo didático informações sobre o funcio-
namento do corpo feminino, como a apostila “Fique Amiga Dela2” (Diniz, 2003),
bastante utilizada pela Ginecologia Natural, e da qual falaremos mais adiante.
Também é importante citar movimentos contemporâneos, que em muito se
assemelham com o ideário da Ginecologia Natural. É o caso do “ciberativismo
menstrual”, por exemplo, que, segundo Ramírez Morales (2019), utilizam as redes
sociais para promover a despatologização e valorização da menstruação. Esses
grupos buscam narrativas vistas como contra-hegemônicas, por se distanciarem
da visão biomédica dominante, ao mesmo tempo em que valorizam o autoconheci-
mento, questionando os tabus menstruais. Trata-se de uma forma de organização
política a partir da sociedade civil, que tem na internet um meio de atingir seus
objetivos. Da mesma forma, é possível relacionar a Ginecologia Natural às chama-
das “pedagogias menstruais”, descritas por Felitti e Rohatsch (2018) a partir do
exemplo argentino. Segundo elas, empresas de produtos direcionados às mulheres,
entidades governamentais e a sociedade civil vêm se empenhando, nos últimos
anos, em produzir conteúdo educativo sobre menstruação.

“Descolonizar o nosso corpo”: medicalização e resistência

O “Manual Introductorio a la Ginecología Natural”, de autoria da escritora


e parteira tradicional chilena Pabla Pérez San Martín (s/d) corresponde à primeira
edição em formato de fanzine de um manual, posteriormente publicado em livro,
traduzido para o português, com novas observações da autora. Suas obras são im-
portantes referências para a Ginecologia Natural, recomendadas pelos dois grupos
analisados por nós.
Já nas primeiras páginas do fanzine, há a representação gráfica (Figura 1) de
duas serpentes entrelaçadas, formando uma imagem semelhante ao “Caduceu de

2
O “dela” no título da apostila faz referência à vagina e à necessidade de que a mulher rees-
tabeleça uma aproximação com esse órgão, a qual, segundo essa ótica, vem sendo sistema-
ticamente negada às mulheres. Cabe observar que, nesse processo de valorização do corpo
feminino, os órgãos mais diretamente vinculados aos processos reprodutivos e sexualidade
são ressignificados.

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Hermes”, frequentemente confundido com o símbolo da medicina, quando, de


acordo com Prates (2002) simboliza o comércio. O verdadeiro símbolo da ciência
médica seria, então, o “Bastão de Esculápio”, representado por um bastão com
uma serpente enrolada. A confusão entre os símbolos ocorre, ainda de acordo com
Prates (2002), devido, dentre outros fatores, à associação da serpente com a cura e
do caduceu à alquimia na Idade Média.

Figura 1: Manual Introductoria a la Ginecología Natura.


Fonte: Pabla Pérez San Martín.

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Na imagem, encontram-se ainda dois corpos femininos. Inicialmente, as-


sociamos a imagem ao símbolo da medicina, interpretando que os corpos das
mulheres estavam sendo penetrados pelas serpentes. Outro detalhe que levou a
essa interpretação inicial foi a presença de um poema junto à imagem, que indi-
ca uma das principais ideias da publicação, e que está presente na maior parte
das discussões da Ginecologia Natural: a crítica à intervenção médica sobre o
corpo e a sexualidade das mulheres. Outro fato que chama atenção em alguns
materiais é a menção à serpente como mito da criação da vida e do “eterno
retorno”, que representa uma espécie de natureza cíclica das coisas, ligada aos
aspectos ditos “femininos” do universo (Pérez San Martín, s/d). No livro “Lua
Vermelha” (Gray, 2017: 96), a serpente aparece como expressão das “Deusas
padroeiras do aprendizado, do oráculo, da cura, da sabedoria e da inspiração”.
Já o livro “Seu sangue é ouro” (Owen, 1994) considera esse animal como sím-
bolo de poder, morte, renascimento e sexualidade. O mito da serpente, que pa-
rece ter grande importância no ideário tratado aqui, exprime o retorno a uma
espécie de conhecimento/poder, que seria essencialmente feminino. Esse poder
teria sido retirado à força das mulheres, ao mesmo tempo em que a serpente era
demonizada a partir do mito bíblico, no qual o animal surge como a tentação
de Eva, a primeira mulher (Pérez San Martín, s/d).
A serpente representa, portanto, tudo aquilo que teria sido retirado das
mulheres a partir do domínio masculino. Essas reflexões nos levaram a uma
reinterpretação da imagem em que as serpentes não mais penetram os corpos
femininos, mas se projetam a partir deles, especificamente da vagina. Segundo
essa interpretação, a sexualidade, o conhecimento e o poder, que teriam sido
“roubados” das mulheres, não estariam completamente perdidos e deveriam ser
resgatados. É interessante notar que essa visão se opõe à conhecida interpreta-
ção bíblica que associa a serpente, ao mesmo tempo, ao feminino e à fonte de
todo o pecado do mundo.
O que o texto e a imagem também parecem evidenciar é a insatisfação das mu-
lheres adeptas do ideário da Ginecologia Natural com o excesso de intervenções e
controle médicos sobre o corpo feminino. Pode-se dizer que a medicalização atua
em uma dimensão biopolítica, visto que a dominação é exercida sobre o corpo
biológico a partir do discurso da autoridade. Embora não citem explicitamente
autores como Foucault (2014) e Conrad (1992; 2007), o material reconhece os
mecanismos de poder analisados por eles, e, a partir disso, busca promover a po-
sitivação dos valores associados ao corpo feminino.
A valorização do corpo feminino se justifica a partir da ideia de que ele teria
sido historicamente encarado como indigno ou sujo, visão legitimada por valo-
res religiosos, que associavam a mulher ao pecado. Há, portanto, um esforço

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dos grupos de Ginecologia Natural em desconstruir essa visão. Isso ocorre, por
exemplo, quando um trecho do “Manual de Introdução à Ginecologia Natural”
desaconselha o uso de desodorantes vaginais. A autora afirma que além de pro-
mover um desequilíbrio no pH vaginal, esses produtos sustentam uma ideologia
“falocrática” que considera que a vagina cheira mal. A mesma observação sobre
o mito do mau cheiro da vagina foi feita pela organizadora do grupo Calêndula,
que criticou o uso de sabonetes íntimos e desodorantes vaginais. Nesse encon-
tro, uma participante revelou utilizar sabonete íntimo por recomendação médi-
ca e foi prontamente respondida pela organizadora da seguinte forma: “quem é
o médico na fila do pão?”. Dessa forma, a organizadora questiona a hegemonia
do saber médico em relação ao corpo feminino, comumente aceito como verda-
de. A partir da positivação do corpo feminino, os grupos, assim como os textos
indicados por eles, propõem o compartilhamento de um conhecimento empírico
baseado em experiências práticas, visando resgatar a autonomia das mulheres
sobre seus corpos.
Para além da promoção da autonomia a partir da prática, destacam-se as re-
ferências a um processo de “descolonização” do corpo, presentes, sobretudo nos
escritos da chilena Pabla Pérez San Martín. De acordo com Calafell Sala (2019),
os movimentos de Ginecologia Natural na América Latina apresentam algumas
idiossincrasias, que incorporam saberes e epistemologias de mulheres originárias
desses territórios latino-americanos, vistos como expropriados pela biomedicina,
a partir de uma releitura contemporânea.
O sangue menstrual apresenta considerável importância nesse movimento,
na medida em que, segundo Calafell Sala (2020), reflete três níveis do exercício
colonial. São eles: (i) poder, ao negar-se o valor político e público da menstrua-
ção, dificultando a construção de políticas públicas a ela direcionadas; (ii) saber,
pela imposição do saber biomédico como único possível, negando outros sabe-
res de origem popular e espiritual; (iii) gênero, ao definir o “tornar-se mulher” a
partir da menarca, ao mesmo tempo em que estimula uma vivência a-menstrual
para que as mulheres se integrem ao mundo construído pelo patriarcado. Dessa
forma, a Ginecologia Natural, exemplificada pela visão de Pérez San Martín
(2018), propõe o uso do corpo e do sangue menstrual como forma de resistên-
cia à colonialidade a partir de um movimento que, ao mesmo tempo em que
é transnacional e tem raízes no norte global, incorpora saberes originários de
cada região em que é difundido, gerando uma combinação entre tradição e
modernidade. Além disso, a autora também reconhece a Ginecologia Natural
como uma “oposição deslocada” (Calafell Sala, 2020: 4) ao pensamento único
colonizador e ao neoliberalismo, os quais seriam responsáveis pela subjugação
dos corpos ditos femininos.

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Os grupos analisados neste artigo, que contam com a maioria das partici-
pantes do Brasil, não à toa, parecem sofrer grande influência dos movimentos de
outros países latino-americanos destacados por Calafell Sala (2019), o que é cor-
roborado pelo uso de materiais provenientes de autoras latino-americanas como
referência para o estudo e pelo uso de músicas em espanhol nos encontros em que
participamos. Esse fato indica o caráter recente desta discussão no Brasil, embora
a incorporação de saberes dos povos originários ao feminismo esteja mais desen-
volvida em outros países da América do Sul.

‘Autogestão da saúde’: autonomia e poder

Como vimos, a valorização da autonomia e do conhecimento sobre o próprio


corpo é um dos principais objetivos da Ginecologia Natural. Isso aparece em vá-
rios momentos dos encontros, nos quais as participantes aprendem, por exemplo,
a produzir medicamentos caseiros para prevenir e tratar problemas ginecológicos.
Além disso, estimula-se o conhecimento da anatomia e fisiologia de forma prática
e experimental, através do uso de espelhos, exposição de imagens e esquemas re-
presentando o sistema reprodutivo feminino, e da realização do autoexame gine-
cológico com espéculo (semelhante ao Papanicolau, mas feito pela própria mulher,
sem coleta de material para exame laboratorial). O objetivo do autoexame, de
acordo com um fanzine dedicado a ele (Bruxaria Distro, s/d), é conhecer e redesco-
brir a vagina, superando tabus, proibições e culpas a ela associados. A partir desse
entendimento, o espéculo passa a ser ressignificado como instrumento de poder e
luta, conforme ilustrado na Figura 2.

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Figura 2: Autoexame ginecológico: como fazer.


Fonte: Bruxaria Distro.

A imagem reproduzida no fanzine foi publicada pela primeira vez em 1973 no


“Sister, the Newspaper of the Los Angeles Women’s Center”. No desenho, a per-
sonagem da Mulher Maravilha toma o instrumento dos médicos e anuncia: “com
meu espéculo eu sou forte, eu posso lutar”, simbolizando a transferência do poder
do médico para a mulher, que agora pode conhecer e lidar com as necessidades de
seu corpo (Haraway, 2018).
Segundo Haraway (2018), o uso do espéculo como símbolo feminista foi po-
pular nos anos 1970 nos Estados Unidos. Esse instrumento, que permite ao médico
examinar o corpo da mulher, aqui adquire outro significado. As feministas, então,
passam a utilizar de forma ritualizada, um espéculo, um espelho e uma lanterna
com a finalidade de “abrir” seu corpo à sua própria visão. Sendo assim, o espéculo
representa um símbolo de poder, permitindo a auto-observação daquilo que antes

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se encontrava sob o domínio do médico: o colo do útero. Já o espelho utilizado no


processo, representaria a visão narcísica do próprio corpo (Haraway, 2018).
É importante resgatar essa herança do feminismo norte americano dos anos
70, considerando suas influências sobre o movimento aqui analisado. As semelhan-
ças entre ambos se revelam não somente com a reprodução da mesma imagem da
época, mas no valor atribuído ao espéculo e ao autoexame no sentido da conquista
da autonomia na gestão sobre o próprio corpo.
No retiro do grupo Artemísia, foi realizada uma oficina de autoexame com
espéculo. A princípio, pensamos que a facilitadora apenas ensinaria o método sem
que as participantes de fato fizessem o autoexame juntas. No entanto, o objetivo
dessa etapa, que não à toa ocorreu no último momento das práticas, era que as
mulheres se dividissem em duplas ou trios, para ajudar-se na realização do exame,
enquanto a facilitadora corrigia possíveis erros. Nosso estranhamento inicial está
ligado ao desconforto e falta de naturalidade em compartilhar a visualização do
colo do útero com pessoas estranhas.
Quando o exame é feito no consultório médico, há um “ritual” que visa criar
um distanciamento entre médico e paciente, como uma roupa especial e um pano
que cobre as pernas para evitar contato visual durante o exame3 . Já no retiro em
questão, há outro tipo de “ritual”, em que não se busca um distanciamento. Pelo
contrário, nesse momento, o grupo parecia unido, marcando oposição à frieza e
hierarquia do exame médico. Durante os dias de prática e convivência, foram cria-
dos vínculos que permitiram uma aproximação entre as participantes. Além disso,
os temas abordados durante as práticas, como os tabus do corpo feminino (medo/
culpa/vergonha) permitiram que o autoexame em grupo se tornasse confortável
para todas. A curiosidade e vontade de acessar essa parte do corpo, até então res-
trita à visualização médica, era superior aos tabus existentes.
Assim, embora a organizadora do grupo fizesse questão de dizer que as práti-
cas compartilhadas por ela não substituem cuidados médicos, há um enfoque no
“faça-você-mesmo”. Essa característica também esteve presente nos movimentos
norte-americanos de mulheres na década de 1970, como os movimentos de self-
-help e Women’s Health Movement, os quais se fundamentavam na percepção de
que a dominação da medicina fazia com que as mulheres tivessem pouco controle
sobre seus corpos e, consequentemente, sua saúde.

3
Em “O exame ginecológico visto do outro lado da mesa”, a médica Joni Magee se posiciona
enquanto paciente e narra o “ritual” do exame de Papanicolau com bastante detalhes, fazen-
do com que a cena ora pareça cômica, ora assustadora: “Fui conduzida à sala de exame, po-
sicionada e vestida segundo o ritual: os pés nos estribos, os joelhos recobertos por um tecido
leve, o períneo livre e sem defesa” (Magee, 1988: 1124).

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Também vale destacar outra publicação que utilizou a imagem da Mulher


Maravilha com o espéculo, feita pelas acadêmicas Barbara Ehrenreich e Dierdre
English em formato de panfleto, ainda em 1973. Conforme descrito por Hara-
way (2018), as autoras argumentaram que a autoajuda não seria o caminho mais
adequado para confrontar o sistema médico vigente. Para elas, a saúde perpassa
questões de raça e classe. Por esse motivo, é preciso compreender que nem todas
mulheres têm as mesmas necessidades de saúde e são tratadas da mesma forma
pelo sistema. Para essas autoras, portanto, o movimento de mulheres deveria con-
siderar a diversidade e não apenas priorizar a similaridade biológica.
Desse modo, os grupos de Ginecologia Natural, assim como os movimentos
de mulheres de 70 nos Estados Unidos, enfatizam a busca da autonomia e conhe-
cimento sobre o corpo. Esse tema também está presente na cartilha “Fique amiga
dela”, material produzido pelo coletivo “Sexualidade e Saúde”, já citado anterior-
mente, cuja leitura foi indicada pelas organizadoras dos dois grupos analisados. O
diferencial do coletivo, de acordo com a própria cartilha é a proposta de uma es-
pécie de “medicina suave”, utilizando tratamentos “naturais e menos agressivos”.
Além disso, segundo a cartilha (Diniz, 2003: 28): “A mulher/usuária é percebida
como um indivíduo, o sujeito da ação de saúde, capaz de entender, decidir e cuidar
do próprio corpo e da própria vida”. Dessa forma, os profissionais oferecem uma
espécie de exame ginecológico conjunto, fornecendo para as mulheres as informa-
ções e práticas necessárias ao autoexame.
A cartilha também apresenta esquemas detalhados da anatomia feminina,
destacando cada órgão e suas funções. É interessante notar que o primeiro órgão
abordado é o clitóris, identificado como o principal responsável pelo prazer femini-
no. A página em que consta a representação gráfica e informações sobre o clitóris
foi utilizada durante o encontro presencial do grupo Calêndula para discutir a
importância do conhecimento da anatomia e fisiologia femininas. Nesse momento,
inúmeras dúvidas surgiram entre as participantes. Embora elas aparentassem ter
escolaridade alta e frequentassem médicos, desconheciam muitas das informações
compartilhadas pela facilitadora e por outras participantes, como detalhes sobre
o funcionamento do clitóris e os diferentes fluidos vaginais expelidos ao longo do
ciclo. Esse fato nos dá pistas sobre que tipo de informação sobre o corpo é passada
para as mulheres ao longo da vida, seja nas famílias, nas escolas ou pelos médicos,
e de quais conhecimentos ficam de fora.
O clitóris também é mencionado no já citado “Manual de introdução à Gi-
necologia Natural” como órgão cuja única função é dar prazer à mulher. Por não
participar diretamente do processo reprodutivo, o clitóris seria negligenciado na
maioria dos espaços onde é discutida a anatomia feminina. A partir disso, cabe
questionarmos quais fatores contribuem para definir o que é incluído ou excluído

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nos livros didáticos para estudo da anatomia feminina, e a forma com que esses
assuntos são abordados. Sobre esse ponto, a análise de Martin (2006) de textos
médicos de obstetrícia e ginecologia nos dá algumas pistas, ao abordar as metáfo-
ras culturais que processos como menstruação e menopausa expressam ao serem
representados nos referidos textos como falhas no processo de produção, uma vez
que o corpo feminino é compreendido como uma fábrica cujo produto final são be-
bês saudáveis. Vale lembrar que essa não é a única interpretação possível, embora
a obra de Martin traga imensas contribuições sobre as representações e a própria
construção do corpo feminino pela medicina.

Considerações finais: Uma ginecologia feminista a partir da prática

As reflexões compartilhadas neste trabalho se deram a partir da análise de


um acervo coletado em uma etapa exploratória realizada de forma presencial em
dois grupos de Ginecologia Natural. Esta etapa exploratória permitiu o contato
com informações, usualmente compartilhadas em grupos de mulheres via inter-
net, no momento em que se colocavam em prática. Para além da observação, a
participação no processo também contribuiu para melhor compreensão do ideário
dos grupos de Ginecologia Natural e, consequentemente, da análise do material
consultado em relação aos significados e práticas sobre natureza e corpo feminino
que configuram a cosmovisão dos grupos.
A valorização de um modo de produção do conhecimento ancorado na prática
constitui um dos pilares desse ideário, que, como vimos, se conecta com os mo-
vimentos feministas de gerações passadas, como o Boston Women’s Health Book
Collective. A ideia de um corpo individual, cujo ciclo e funcionamento se manifes-
tam de forma diferente em cada mulher, perpassa tanto os movimentos de saúde
da mulher norte-americanos quanto os grupos atuais de Ginecologia Natural. Por
esse motivo, a auto-observação se torna fundamental. Os grupos analisados pa-
recem rejeitar a concepção biomédica, que frequentemente estabelece padrões de
normalidade e categorizações para fenômenos fisiológicos. 
A crítica ao conhecimento biomédico e aos processos de medicalização do cor-
po feminino também integra parte fundamental deste ideário. Essa crítica ocorre
simultaneamente a uma proposta de “reapropriação” do corpo, que teria sido des-
tituído do domínio das mulheres devido à dominação masculina. Ao mesmo tem-
po, é feito um paralelo entre a opressão das mulheres e a destruição dos recursos
naturais pelo homem. As concepções e práticas sobre o corpo no âmbito da Gine-
cologia Natural estão ancoradas na naturalização do dimorfismo sexual (Laqueur,
2001) e na substancialização de uma ideia de natureza feminina cujas bases vêm

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sendo problematizadas pela crítica feminista a partir de diversas autoras (ver, por
exemplo, Sorj, 1992; Nicholson, 2000, entre outras).
A ideia de poder médico tal qual expressa pela literatura analisada evoca uma
concepção de “imperialismo médico” ao qual se atribui um valor pejorativo de
um poder autoritário, de cima para baixo, que “extrai”, “desapropria” e “usur-
pa” a autonomia dos sujeitos, (no caso, mulheres), acarretando, em uma perda do
autocontrole e da capacidade de autogestão sobre seus corpos (Zorzanelli e Cruz,
2018). Essa visão da medicina vem sendo problematizada pela produção contem-
porânea do campo das ciências sociais e saúde, nacional e internacional, a partir
do que Foucault denomina de “medicalização indefinida” (Foucault, 2011), ou
seja, do reconhecimento da impossibilidade de se pensar, no contexto das socieda-
de ocidentais liberais urbanas, em espaços políticos ou em indivíduos totalmente
isentos de alguma forma de presença de saber médico (Zorzanelli e Cruz, 2018),
tamanho o espraiamento da medicalização na vida social. Para Lupton (1997 apud
Zorzanelli e Cruz, 2018) um dos problemas do imperialismo médico é o de negli-
genciar o papel da agência dos sujeitos no processo de medicalização, a exemplo de
grupos de pacientes que se unem em torno de determinada categoria diagnóstica
para reivindicar direitos.
Vale também ressaltar que a participação nos grupos evidenciou a predomi-
nância de mulheres jovens escolarizadas de camadas médias4 nos encontros presen-
ciais. Levando em conta a perspectiva interseccional, precisamos, portanto, situar
criticamente a produção desse conhecimento sobre o “corpo feminino”, chamando
assim a atenção para essa denominação no singular, quando, em realidade, trata-se
de um conhecimento produzido por um grupo de mulheres que compartilha um
conjunto de experiências inevitavelmente afetadas por marcadores sociais como
geração e classe social.
Por fim, outro aspecto importante visto na pesquisa: a reivindicação de um
corpo descolonizado, que consiste em um ideal a ser alcançado pela Ginecologia
Natural, um corpo cujo conhecimento foi ao longo de séculos expropriado das pró-
prias mulheres pelo poder médico, as quais clamam por sua reapropriação e o seu
autogoverno, através de uma autogestão, seja da saúde, dos processos reprodutivos
ou do próprio corpo. A ideia de descolonização também está ligada à construção
de novas epistemologias, desvinculadas da perspectiva colonial característica do
hemisfério norte do globo. Não à toa, muitos referenciais utilizados pelos grupos

4
Considerando que a declaração racial no Brasil é autodeterminada, entendemos não ser possí-
vel determinar esse aspecto em relação às participantes. No entanto, a observação nos grupos
presenciais nos permite supor que se trata de maioria de mulheres brancas, sobretudo no
grupo Artemísia, cujos encontros foram pagos.

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têm sua origem na América Latina. Um dos maiores exemplos é a escritora chilena
Pabla Pérez San Martín, amplamente citada nos dois grupos. Embora influências
do movimento norte-americano e suíço sejam evidentes, as discussões atuais da
Ginecologia Natural no Brasil parecem ser impulsionadas por referenciais latino-
-americanos, cujas particularidades residem em um sincretismo, que mescla tradi-
ções indígenas e religiosas à discussão feminista. A discussão sobre descolonização
é ampla e extrapola os limites deste artigo. No entanto, consideramos que seu
aprofundamento é uma trilha fecunda a ser percorrida em futuras pesquisas calca-
das em uma perspectiva crítica sobre gênero, corpo, saúde e medicalização.

Recebido: 21 de abril de 2021


Aceito: 13 de setembro de 2021

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