Descolonizar o Nosso Corpo - Ginecologia Natural
Descolonizar o Nosso Corpo - Ginecologia Natural
Descolonizar o Nosso Corpo - Ginecologia Natural
R E V I S TA L AT I N OA M E R I C A N A
ISSN 1984 - 64 87 / n. 37 / 2021 - e21211 / Dieguez, R . et al. / w w w.sexualidadsaludysociedad.org
ART I GO
1
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
2
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
opyright © 2021 Sexualidad, Salud y Sociedad – Revista Latinoamericana. This is an Open Access article distributed
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Introdução
1
O pensamento libertário característico da chamada Nova Era, de acordo com Salem (1991),
se posiciona contra os constrangimentos sociais e se opõe às pretensões universalizantes das
normas. O poder é visto como mal em si mesmo e, como alternativa, propõe-se um modelo
em que os aspectos afetivos e emocionais da vida social suplantam as leis oficiais.
maior autonomia das mulheres sobre seus corpos, o que está intimamente ligado
a uma reapropriação e ressignificação de instrumentos e simbolismos utilizados
pela medicina, associando-os a representações de poder. Para compreender essas
abordagens é fundamental contextualizá-las historicamente, relacionando-as a ex-
periências similares, ligadas a movimentos feministas de décadas anteriores.
Organizamos este artigo da seguinte forma: primeiro, apresentaremos as con-
dições de produção do contexto empírico de análise a partir de uma etapa explo-
ratória da pesquisa. Em seguida, faremos uma breve contextualização histórica
de coletivos e organizações feministas que influenciaram os movimentos atuais de
Ginecologia Natural no Brasil. Por fim, nos deteremos em dois temas centrais que
permeiam o pensamento dos grupos em foco no que se refere aos corpos femini-
nos: “Medicalização e resistência” e “autonomia e poder”.
Metodologia
rentes países, como Chile, Estados Unidos, Suíça e Brasil. Algumas publicações
são informais, digitalizadas pelas organizadoras dos grupos, carecendo de infor-
mações como ano ou local.
Além de textos, alguns materiais são compostos também por imagens, que
foram consideradas em nossa análise como documentos e incorporadas às nossas
reflexões. Assim, os registros escritos e imagens selecionados configuraram um
acervo (livros, manuais, artigos, fanzines, cartilhas) que traduz concepções e va-
lores alinhados à perspectiva da Ginecologia Natural. Nesse sentido, a opção pela
seleção de materiais de referência, previamente divulgados pelas participantes de
dois grupos brasileiros – em redes sociais e nos encontros presenciais -, fundamen-
ta também sua relevância como fonte primária de análise dos sentidos que confi-
guram o ideário do referido movimento.
Para melhor visualização, os materiais analisados neste artigo constam na
Tabela 1.
Publicação/
Título Local Autor Ano Sinopse
Editora
Autoexame Manual para realização de
Bruxaria Bruxaria
1 ginecológico: - - autoexame ginecológico
Distro Distro
como fazer? com espéculo
Coletivo
Apostila com o intuito de
Fique amiga Feminista Simone G.
2 São Paulo 2005 promover a saúde sexual e
dela Sexualidade e Diniz
reprodutiva das mulheres
Saúde
Livro que associa o ciclo
3 Lua Vermelha Pensamento São Paulo Miranda Gray 2017
menstrual ao ciclo lunar
Manual de Manual que busca
ginecologia Icaria promover autonomia e
4 Barcelona Rina Nissim 1988
natural para Editorial alternativas à medicina
mujeres convencional
Manual de
introdução à Bauti Rio de Pabla Pérez Versão recente do Manual
5 2018
Ginecologia Produções Janeiro San Martín em formato de livro
Natural
Manual Manual abordando a
introductorio a La picadora Pabla Pérez ginecologia natural a
6 Chile -
la Ginecología de papel San Martín partir de uma crítica à
Natural medicina
Seu sangue
é ouro: Livro que se propõe a
Editora Rosa Rio de
7 resgatando Lara Owen 1994 resgatar valores positivos
dos Tempos Janeiro
o poder da associados à menstruação
menstruação
fleto publicada em 1970. Três anos depois, essa coletânea se tornaria a obra mais
importante produzida pelo coletivo, o “Our Bodies, Ourselves”, abordando temas
relacionados à saúde feminina que não se encontravam disponíveis em outras fon-
tes de informação, como “[...] orgasmo, o clitóris, a pílula, aborto” (Bobel, 2008:
741). Apesar de seu alcance mais local, Bobel (2008) argumenta que a relevância
desses movimentos é transnacional, pois sua história tem o potencial de influenciar
ativismos contemporâneos, de interesses similares, independentemente do local.
Outro coletivo de mulheres que influenciou o movimento da Ginecologia Na-
tural foi o Dispensaire des Femmes, fundado em 1978, em Genebra, na Suíça
(Uzodinma, 1988). Trata-se de uma organização inspirada no movimento de mu-
lheres norte-americano, também dedicada à saúde feminina. Antes de fundar o
coletivo, a enfermeira suíça Rina Nissim passou anos trabalhando pela saúde da
mulher em outros países, como Estados Unidos, Costa Rica e países da Europa
(Uzodinma, 1988). O Dispensaire des Femmes, que encerrou suas atividades em
1987 (Queré, 2017), buscava a institucionalização da chamada autoajuda e se ali-
nhava ao Movimento de Libertação das Mulheres de Genebra, e aos grupos femi-
nistas norte-americanos.
Esse coletivo visava a desmedicalização dos cuidados com a saúde, limitando
o poder médico sobre o corpo feminino (Queré, 2017). A noção de autoajuda de-
fendida por Nissim, importada dos Estados Unidos, partia do conhecimento do
corpo e dos tratamentos ditos “naturais”, que priorizavam o uso de ervas e consi-
deravam aspectos psicológicos e emocionais, tanto de quem prescrevia, quanto de
quem utilizava as preparações (Uzodinma, 1988). Nissim faz referência direta à
expressão “Ginecologia Natural” em sua principal obra, publicada pela primeira
vez em francês com o título: “Mamamelis: manuel de gynécologie naturopathique
à l’usage des femmes”, atualmente em sua 5ª edição (Editions Mamamelis, 2020),
e que influenciou importantes políticas públicas de saúde no Brasil, como a Políti-
ca Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Brasil, 2004), que incluiu o
manual em suas referências bibliográficas.
Uma importante referência do movimento pela saúde das mulheres no Brasil
é o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, fundado em São Paulo, em funciona-
mento até hoje. Segundo Diniz (1999), o Coletivo concentrou esforços na constru-
ção de políticas públicas para as mulheres, principalmente a partir do diálogo com
órgãos governamentais, como Secretarias e Ministério da Saúde, e na participação
de suas integrantes em Comitês de Mortalidade Materna. Ainda segundo Diniz,
desde 1985 o Coletivo realiza: “[...] um trabalho de atenção primária à saúde da
mulher com essa perspectiva feminista e humanizada, tendo atendido, desde então,
mais de quatro mil mulheres, inspirado pela experiência europeia, sobretudo do
Dispensaire des Femmes, de Genebra” (Diniz, 1999: 378).
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O “dela” no título da apostila faz referência à vagina e à necessidade de que a mulher rees-
tabeleça uma aproximação com esse órgão, a qual, segundo essa ótica, vem sendo sistema-
ticamente negada às mulheres. Cabe observar que, nesse processo de valorização do corpo
feminino, os órgãos mais diretamente vinculados aos processos reprodutivos e sexualidade
são ressignificados.
dos grupos de Ginecologia Natural em desconstruir essa visão. Isso ocorre, por
exemplo, quando um trecho do “Manual de Introdução à Ginecologia Natural”
desaconselha o uso de desodorantes vaginais. A autora afirma que além de pro-
mover um desequilíbrio no pH vaginal, esses produtos sustentam uma ideologia
“falocrática” que considera que a vagina cheira mal. A mesma observação sobre
o mito do mau cheiro da vagina foi feita pela organizadora do grupo Calêndula,
que criticou o uso de sabonetes íntimos e desodorantes vaginais. Nesse encon-
tro, uma participante revelou utilizar sabonete íntimo por recomendação médi-
ca e foi prontamente respondida pela organizadora da seguinte forma: “quem é
o médico na fila do pão?”. Dessa forma, a organizadora questiona a hegemonia
do saber médico em relação ao corpo feminino, comumente aceito como verda-
de. A partir da positivação do corpo feminino, os grupos, assim como os textos
indicados por eles, propõem o compartilhamento de um conhecimento empírico
baseado em experiências práticas, visando resgatar a autonomia das mulheres
sobre seus corpos.
Para além da promoção da autonomia a partir da prática, destacam-se as re-
ferências a um processo de “descolonização” do corpo, presentes, sobretudo nos
escritos da chilena Pabla Pérez San Martín. De acordo com Calafell Sala (2019),
os movimentos de Ginecologia Natural na América Latina apresentam algumas
idiossincrasias, que incorporam saberes e epistemologias de mulheres originárias
desses territórios latino-americanos, vistos como expropriados pela biomedicina,
a partir de uma releitura contemporânea.
O sangue menstrual apresenta considerável importância nesse movimento,
na medida em que, segundo Calafell Sala (2020), reflete três níveis do exercício
colonial. São eles: (i) poder, ao negar-se o valor político e público da menstrua-
ção, dificultando a construção de políticas públicas a ela direcionadas; (ii) saber,
pela imposição do saber biomédico como único possível, negando outros sabe-
res de origem popular e espiritual; (iii) gênero, ao definir o “tornar-se mulher” a
partir da menarca, ao mesmo tempo em que estimula uma vivência a-menstrual
para que as mulheres se integrem ao mundo construído pelo patriarcado. Dessa
forma, a Ginecologia Natural, exemplificada pela visão de Pérez San Martín
(2018), propõe o uso do corpo e do sangue menstrual como forma de resistên-
cia à colonialidade a partir de um movimento que, ao mesmo tempo em que
é transnacional e tem raízes no norte global, incorpora saberes originários de
cada região em que é difundido, gerando uma combinação entre tradição e
modernidade. Além disso, a autora também reconhece a Ginecologia Natural
como uma “oposição deslocada” (Calafell Sala, 2020: 4) ao pensamento único
colonizador e ao neoliberalismo, os quais seriam responsáveis pela subjugação
dos corpos ditos femininos.
Os grupos analisados neste artigo, que contam com a maioria das partici-
pantes do Brasil, não à toa, parecem sofrer grande influência dos movimentos de
outros países latino-americanos destacados por Calafell Sala (2019), o que é cor-
roborado pelo uso de materiais provenientes de autoras latino-americanas como
referência para o estudo e pelo uso de músicas em espanhol nos encontros em que
participamos. Esse fato indica o caráter recente desta discussão no Brasil, embora
a incorporação de saberes dos povos originários ao feminismo esteja mais desen-
volvida em outros países da América do Sul.
3
Em “O exame ginecológico visto do outro lado da mesa”, a médica Joni Magee se posiciona
enquanto paciente e narra o “ritual” do exame de Papanicolau com bastante detalhes, fazen-
do com que a cena ora pareça cômica, ora assustadora: “Fui conduzida à sala de exame, po-
sicionada e vestida segundo o ritual: os pés nos estribos, os joelhos recobertos por um tecido
leve, o períneo livre e sem defesa” (Magee, 1988: 1124).
nos livros didáticos para estudo da anatomia feminina, e a forma com que esses
assuntos são abordados. Sobre esse ponto, a análise de Martin (2006) de textos
médicos de obstetrícia e ginecologia nos dá algumas pistas, ao abordar as metáfo-
ras culturais que processos como menstruação e menopausa expressam ao serem
representados nos referidos textos como falhas no processo de produção, uma vez
que o corpo feminino é compreendido como uma fábrica cujo produto final são be-
bês saudáveis. Vale lembrar que essa não é a única interpretação possível, embora
a obra de Martin traga imensas contribuições sobre as representações e a própria
construção do corpo feminino pela medicina.
sendo problematizadas pela crítica feminista a partir de diversas autoras (ver, por
exemplo, Sorj, 1992; Nicholson, 2000, entre outras).
A ideia de poder médico tal qual expressa pela literatura analisada evoca uma
concepção de “imperialismo médico” ao qual se atribui um valor pejorativo de
um poder autoritário, de cima para baixo, que “extrai”, “desapropria” e “usur-
pa” a autonomia dos sujeitos, (no caso, mulheres), acarretando, em uma perda do
autocontrole e da capacidade de autogestão sobre seus corpos (Zorzanelli e Cruz,
2018). Essa visão da medicina vem sendo problematizada pela produção contem-
porânea do campo das ciências sociais e saúde, nacional e internacional, a partir
do que Foucault denomina de “medicalização indefinida” (Foucault, 2011), ou
seja, do reconhecimento da impossibilidade de se pensar, no contexto das socieda-
de ocidentais liberais urbanas, em espaços políticos ou em indivíduos totalmente
isentos de alguma forma de presença de saber médico (Zorzanelli e Cruz, 2018),
tamanho o espraiamento da medicalização na vida social. Para Lupton (1997 apud
Zorzanelli e Cruz, 2018) um dos problemas do imperialismo médico é o de negli-
genciar o papel da agência dos sujeitos no processo de medicalização, a exemplo de
grupos de pacientes que se unem em torno de determinada categoria diagnóstica
para reivindicar direitos.
Vale também ressaltar que a participação nos grupos evidenciou a predomi-
nância de mulheres jovens escolarizadas de camadas médias4 nos encontros presen-
ciais. Levando em conta a perspectiva interseccional, precisamos, portanto, situar
criticamente a produção desse conhecimento sobre o “corpo feminino”, chamando
assim a atenção para essa denominação no singular, quando, em realidade, trata-se
de um conhecimento produzido por um grupo de mulheres que compartilha um
conjunto de experiências inevitavelmente afetadas por marcadores sociais como
geração e classe social.
Por fim, outro aspecto importante visto na pesquisa: a reivindicação de um
corpo descolonizado, que consiste em um ideal a ser alcançado pela Ginecologia
Natural, um corpo cujo conhecimento foi ao longo de séculos expropriado das pró-
prias mulheres pelo poder médico, as quais clamam por sua reapropriação e o seu
autogoverno, através de uma autogestão, seja da saúde, dos processos reprodutivos
ou do próprio corpo. A ideia de descolonização também está ligada à construção
de novas epistemologias, desvinculadas da perspectiva colonial característica do
hemisfério norte do globo. Não à toa, muitos referenciais utilizados pelos grupos
4
Considerando que a declaração racial no Brasil é autodeterminada, entendemos não ser possí-
vel determinar esse aspecto em relação às participantes. No entanto, a observação nos grupos
presenciais nos permite supor que se trata de maioria de mulheres brancas, sobretudo no
grupo Artemísia, cujos encontros foram pagos.
têm sua origem na América Latina. Um dos maiores exemplos é a escritora chilena
Pabla Pérez San Martín, amplamente citada nos dois grupos. Embora influências
do movimento norte-americano e suíço sejam evidentes, as discussões atuais da
Ginecologia Natural no Brasil parecem ser impulsionadas por referenciais latino-
-americanos, cujas particularidades residem em um sincretismo, que mescla tradi-
ções indígenas e religiosas à discussão feminista. A discussão sobre descolonização
é ampla e extrapola os limites deste artigo. No entanto, consideramos que seu
aprofundamento é uma trilha fecunda a ser percorrida em futuras pesquisas calca-
das em uma perspectiva crítica sobre gênero, corpo, saúde e medicalização.
Referências Bibliográficas