Abortamento Provocado 14-04
Abortamento Provocado 14-04
Abortamento Provocado 14-04
Solange Maria dos Anjos Gesteira1, Normélia Maria Freire Diniz2, Eleonora
Menicucci de Oliveira3
RESUMO
Objetivo: Analisar o discurso de profissionais de enfermagem com relação à assistência prestada às mulheres em processo de abortamento
provocado. Métodos: Estudo de caso, com abordagem qualitativa; realizado em uma maternidadepública de Salvador - BA; os dados foram
obtidos por meio da técnica do Grupo Focal utilizando a técnica da análise de conteúdo. Resultados: As profissionais da equipe de
enfermagem percebem o abortamento como crime, pecado, e a assistência, como discriminatória. À mulher é negado o direito à fala, de onde
o silêncio observado ao longo do processo do aborto. Conclusão: A ausência de diálogo nos serviços de atendimento torna mais distante a
possibilidade de assistência humanizada, fazendo da implantação da política de humanização da assistência às mulheres em processo de aborto
provocado, um desafio.
Descritores: Aborto; Aborto criminoso; Cuidados de enfermagem; Saúde da mulher
ABSTRACT
Objective: To analyze the statements of nursing professionals regarding healthcare provided to women in process of induced abortion.
Methods: Case study with qualitative approach, performed at a public maternity hospital in Salvador – BA; data were obtained with the
focus group technique, using content analysis. Results: The nursing team professionals perceive abortion as a crime, a sin, and healthcare as
discriminatory. The woman’s right to speech is denied, with silence being observed along the abortion process. Conclusion: The absence of
dialogue at the healthcare services makes the possibility of humanized care delivery more distant, turning the implantation of healthcare
humanization policies for women in the process of induced abortion a challenge.
Keywords: Abortion; Abortion, criminal; Nurses care; Women’s health
RESUMEN
Objetivo: Analizar el discurso de profesionales de enfermería con relación a la asistencia prestada a las mujeres en proceso de aborto
provocado. Métodos: Estudio de caso, con abordaje cualitativo; realizado en una maternidad pública de Salvador - BA; los datos fueron
obtenidos por medio de la técnica del Grupo Focal utilizando la técnica del análisis de contenido. Resultados: Las profesionales del equipo
de enfermería perciben el aborto como crimen, pecado, y la asistencia, como discriminante. A la mujer le es negado el derecho a hablar, por
lo que el silencio es observado a lo largo del proceso de aborto. Conclusión: La ausencia de diálogo en los servicios de atención vuelve más
distante la posibilidad de asistencia humanizada, haciendo que la implantación de la política de humanización de la asistencia a las mujeres en
proceso de aborto provocado sea un reto.
Descriptores: Aborto; Aborto criminal; Atención de enfermería; Salud de la mujer
*
Este artigo é parte da Tese de Doutorado intitulada “Assistência prestada à mulher em processo de aborto provocado: o discurso das mulheres e das profissionais
de enfermagem” apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP – São
Paulo (SP), Brasil.
1
Doutora, Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Violência, Saúde e Qualidade de Vida; Pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Saúde da Mulher da Escola
de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia –EEUFBA – Salvador (BA), BRasil.
2
Doutora, Professora Adjunto; Líder do Grupo de Pesquisa Violência, Saúde e Qualidade de Vida; Pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Saúde da
Mulher da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia –EEUFBA – Salvador (BA), Brasil.
3
Professora Titular do Departamento de Medicina Preventiva, Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP – São Paulo (SP), Brasil.
Autor Correspondente: Solange Maria dos Anjos Gesteira Artigo recebido em 11/10/2007 e aprovado em 18/12/2008
R. Tenente Valmir Alcântara, s/n. - Chopm-I - Bl. 742A - Apto 302 - Cabula - Salvador - BA
CEP. 41150-520 E-mail: [email protected]
Acta Paul Enferm 2008;21(3):449-53.
450 Gesteira SMA, Diniz NMF, Oliveira EM.
culpa é dela.” (AE). internacionais e nacionais através das políticas públicas. Estuda-
“Têm algumas que, até depois, quando vêem o feto ficam com sentimento se a não punição para a mulher que provoca o aborto e,
de culpa, choram muito e naquele momento pedem perdão.” (AE). nesse sentido, o governo brasileiro criou a Comissão
Tripartite. A criação desta Comissão constitui a quebra de
Um outro aspecto a ressaltar é que as profissionais de um silêncio que perdurou por muito tempo. Cessado o
enfermagem têm a percepção de que discriminam as silenciar, o governo admite a existência, a complexidade dos
mulheres que provocam aborto quando lhes prestam problemas do aborto provocado na vida das mulheres, bem
assistência, ou seja, declaram priorizar a assistência às como seu caráter de saúde pública(25).
parturientes, puérperas e gestantes de alto risco em No que concerne à assistência à mulher, a despeito de
detrimento da assistência às mulheres que abortam. as profissionais terem consciência da discriminação, os
discursos mostram que elas priorizam a assistência às
“A gente começa com a discriminação desde a hora do atendimento. mulheres em processo de parto, não se considerando os
Tem um aborto e tem um parto, você corre para atender o parto, a aspectos humanitários e de risco que envolve a saúde das
não ser que aquele aborto esteja super grave”. (E) mulheres que provocaram aborto. Não percebem que o
“Eu não gosto de trabalhar com mulheres em processo de aborto, eu processo de aborto provocado poderá desencadear o
prefiro trabalhar com parturientes, puérperas e gestante de risco”. (E) estresse pós-traumático (26) , episódio freqüente,
principalmente nos casos de abortos provocados e, além
DISCUSSÃO disso, tampouco se dão conta de que estão infringindo
os preceitos éticos que regem a profissão.
As profissionais da equipe de enfermagem, ao A percepção e atitude de profissionais da equipe de
assistirem mulheres em processo de abortamento enfermagem sobre o aborto provocado influenciam
provocado, trazem consigo a idéia de que essas mulheres sobremaneira o modo de assistir e de se relacionar com as
cometeram um crime perante a lei e são pecadoras mulheres que provocam aborto. A violência institucional(14)
também diante da lei de Deus. Nesse sentido, as no atendimento é conseqüência dessa realidade.
profissionais pensam e agem de acordo com suas crenças Expor o atendimento às mulheres em processo de
e valores, deixando clara sua visão de mundo, no que diz abortamento provocado na instituição, torna público o
respeito ao modo como percebem a mulher que aborta. abortamento provocado, enquanto elemento reprimido,
Esta percepção está associada à tendência que tem a que até então se confinava ao espaço doméstico. Desse
sociedade brasileira de se ligar aos padrões morais modo, a assistência à mulher em processo de abortamento
advindos da religião que professam, pois considerando provocado tem sido negada, excluída e postergada pelas
o aborto pecado, a mulher, ao provocá-lo, contraria os profissionais de enfermagem, devido a ilegalidade e, por
dogmas religiosos(23). conseguinte, a condenação social.
Eis que vem à tona o aspecto religioso professado Com isso, a história das mulheres e o abortamento
por cada indivíduo, o que pode gerar conflitos no instante provocado continuam a ser considerados elementos
em que esta mulher é atendida neste processo. Na reprimidos, que impedem o rompimento do diálogo
realidade, isso tudo revela uma visão estereotipada sobre proibido(27) nos serviços de atendimento, tornando mais
o assunto, indo de encontro à postura do Estado distante vislumbrar a possibilidade de assistência
Brasileiro que, segundo a Constituição Federal, se humanizada, sem discriminação de qualquer natureza.
configura como um Estado Laico(23).
Esse conflito pode estar presente entre as profissionais CONCLUSÃO
da equipe de enfermagem, embora não seja exclusividade
delas. A despeito disso, o Código de Ética de Na percepção das profissionais da equipe de
Enfermagem prescreve que, durante o processo de enfermagem, o aborto provocado é crime perante a lei
assistência à mulher, as questões filosóficas e religiosas dos homens. Diante da lei de Deus, constitui pecado. A
das profissionais não devem interferir no atendimento. assistência de enfermagem prestada às mulheres é
Veja-se, a esse respeito, o artigo 23, que preconiza “prestar discriminatória. É possível obser var a violência
assistência de enfermagem à clientela sem discriminação institucional no instante do atendimento.
de qualquer natureza”(24). À mulher, não é facultado o direito de verbalizar, sendo
As profissionais da equipe de enfermagem, ao que vivencia o processo do aborto de forma solitária,
verbalizarem que as mulheres, ao praticarem aborto, são oprimida e temerosa da morte. No momento da
pecadoras e criminosas, trazem à tona, em seus discursos, a assistência, é preterida, o que aumenta o risco de
negação do exercício dos direitos reprodutivos dessas agravamento do quadro, podendo levá-la ao estresse pós-
mulheres, que vêm sendo defendidos na sociedade através traumático, situação freqüente nos casos de abortamento.
do movimento feminista e discutidos pelos organismos Isso mostra que a visão das profissionais da equipe de
enfermagem com relação à repressão ao aborto enfatizando a relação dialógica entre profissional e cliente.
provocado impede o rompimento do diálogo proibido Essa relação é um dos elementos que torna um desafio a
nos serviços de atendimento, tornando mais distante o implantação da política de humanização da assistência às
sonho da assistência humanizada, sem discriminação de mulheres em processo de aborto provocado. Para tanto,
qualquer natureza, bem como os avanços quanto à tornam-se necessárias mudanças de comportamento por
descriminalização do aborto. parte dos profissionais que atendem à mulher, com a
Esse estudo aponta para a dimensão do problema do internalização da proposta de humanização,
aborto provocado, levando à necessidade da implantação principalmente nos aspectos relacionais entre profissional
das políticas públicas com relação à assistência à mulher, e cliente.
REFERÊNCIAS
1. Alan Guttmatcher Institute. Aborto clandestino: uma 14. Nogueira MI. Assistência pré-natal: práticas de saúde a serviço
realidade latino-americana. New York: S.N.;1994. 32p. da vida. São Paulo: Hucitec; 1994.157 p.
2. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Política de Saúde. Área 15. Rocha MIB, Andalaft NJA. A questão do aborto: aspectos
Técnica de Saúde da Mulher. Manual dos Comitês de Mortalidade clínicos, legislativos e políticos. In: Berquó E. Sexo & vida:
Materna. 2a ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2002. 75p. panorama da saúde reprodutiva no Brasil. Campinas: Editora
3. Laurenti R. Mortalidade materna no Brasil. Perspectivas em da UNICAMP; 2003. p.257-318
Saúde e Direitos Reprodutivos. 2002; 9(5): 14-8. 16. Van Velsen JA. A análise situacional e o método de estudo
4. Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos. de caso detalhado. In: Feldman-Bianco B, organizadora.
(Redesaúde) Editorial. Informativo eletrônico da Rede Antropologia das sociedades contemporâneas: métodos.
Feminista de Saúde. Especial 28 de set. 2005 [Internet]. Belo São Paulo: Global; 1987. p.345-74
Horizonte; 2005 [citado 2005 Set 16]: [cerca de 12p.]. 17. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa
Disponível em: <http://www.redesaude.org.br>. qualitativa em saúde. 7a ed. São Paulo: HUCITEC /
5. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Política de Saúde. ABRASCO; 2000. 269p.
Área Técnica de Saúde da Mulher. Parto, aborto e puerpério: 18. Lüdke M, André MEDA. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas.
assistência humanizada à mulher. Brasília: Ministério da São Paulo. Editora Pedagógica e Universitária; c1986. 99p.
Saúde; 2001. p.145-57. 19. Richardson RJ, Peres JAS, Wanderley JCV, Correia LM. Peres
6. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. MHM. Pesquisa social: métodos e técnicas. 3a ed. rev e ampl.
Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Área São Paulo: Atlas; 1999. 333p.
Técnica de Saúde da Mulher. Atenção humanizada ao 20. Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde.
abortamento: norma técnica. Brasília: Ministério da Saúde; Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Normas para
2005. 36p. (Série A. Normas e Manuais Técnicos; Série Direitos pesquisa envolvendo seres humanos (Res. CNS 196/96 e
Sexuais e Direitos Reprodutivos. Caderno nº 4) outras). Brasília: CONEP; 2000. (Séries Cadernos Técnicos).
7. Massachs GC. Mortalidade materna: Salvador, 1993 21. Chiesa AM, Ciampone MHT. Princípios gerais para a
[dissertação]. Salvador: Instituto de Saúde Coletiva da abordagem de variáveis qualitativas e o emprego de
Universidade Federal da Bahia; 1995. 144 p. metodologia de grupos focais. In: Chianca TCM, Antunes
8. Menezes GMS, Aquino EML. (2001), Mortalidade Materna MJM, organizadores. Classificação internacional das práticas
na Bahia, Relatório de Pesquisa, Salvador, 1998. de enfermagem em saúde coletiva: CIPESC. Brasília:
9. Sorrentino SR. Aborto inseguro. In: Saúde da mulher e Associação Brasileira de Enfermagem; 1999. p. 306-24. (Série
direitos reprodutivos – Dossiês. Rede Nacional Feminista Didática: Enfermagem no SUS)
de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos [Internet] 22. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70. 1977. 226p.
São Paulo 2001 [citado 2002 Nov 25] Disponível em: http:/ 23. Pirotta WRB, Piovesan F. Direitos reprodutivos e o poder
/www.redesaude.org.br/Homepage/Dossi%EAs/ judiciário no Brasil. In: Oliveira MCFA; Rocha MIB. Saúde
Dossi%EA%20Aborto%20Inseguro.pdf reprodutiva na esfera pública e política na América Latina.
10. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Campinas: Editora da UNICAMP: NEPO; 2001. p.155-86.
Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Política 24. Conselho Federal de Enfermagem - COFEN. Resolução
Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher: princípios COFEN-240/2000, de 30 de agosto de 2000 [Internet]. Rio
e diretrizes. Brasília: Ministério da Saúde; 2004. 82 p. (Série: de Janeiro; 2000 [citado 2005 Mar 4]. Disponível em: http:/
C. Projetos, Programas e Relatórios). / w w w. p o r t a l c o f e n . g o v. b r / 2 0 0 7 /
11. Brasil. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Plano materias.asp?ArticleID=7069§ionID=34
nacional de políticas para as Mulheres. Brasília: Secretaria 25. ROCHA, MIB, NETO JA. A questão do aborto: aspectos
Especial de Políticas para as Mulheres; 2004. 104p. clínicos, legislativos e políticos. In: Berquó, E. Sexo & Vida:
12. Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos. panorama da saúde reprodutiva no Brasil / Elza Berquó,
(Rede saúde) Boletim Eletrônico Saúde Reprodutiva na Organizadora - Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003.
Imprensa de 16 a 31 de julho de 2005 de 2005 [Internet]. p.257-318.
Belo Horizonte; 2005 [citado 2005 Ago 9]:[cerca de 12p]. 26. Born L, Phillips SD, Steiner M, Soares CN. Trauma e o ciclo
Disponível em: <http://www.redesaude.org.br > reprodutivo feminino. Rev Bras Psiquiatr. 2005; 27(Supl
13. Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos. 2):S65-72.
(Redesaúde) Boletim Eletrônico Saúde Reprodutiva na 27. Habermas J. Conhecimento e interesse. In: Benjamin W,
Imprensa 01 a 15 de agosto de 2005 [Internet]. Belo Horkheimer M, Adorno TW, Habermas J. Textos escolhidos.
Horizonte; 2005. [citado 2005 Ago 25]: [cerca de 10p]. 2a ed. São Paulo: Abril Cultural; 1983. p. 301-12 (Série: Os
Disponível em <http://www.redesaude.org.br pensadores; v. 48).