Capítulo I - Objeto, Função e Conceito de Direito Internacional Privado
Capítulo I - Objeto, Função e Conceito de Direito Internacional Privado
Capítulo I - Objeto, Função e Conceito de Direito Internacional Privado
Introdução
Capítulo I – Objeto, função e conceito de Direito Internacional Privado
1. O comércio jurídico transfronteiriço
De um modo genérico, o Direito Internacional Privado é:
“o ramo da ciência jurídica onde se definem os princípio, se formulam os critérios, se estabelecem as normas a
que deve obedecer a pesquisa de soluções adequadas para os problemas emergentes das relações privadas de caráter
internacional”.
Por “relações privadas internacionais” deverá entender-se todas as relações ou situações jurídicas que entram em
contacto, através dos seus elementos, com diferentes sistemas de direito. São, portanto, relações plurilocalizadas, que
não pertencem a um só domínio legislativo. Importa distinguir, neste domínio, as seguintes situações:
Situações jurídicas puramente internas: relações jurídicas que apenas entram em contacto com um único
ordenamento jurídico e cuja resolução é suscitada no correspondente foro;
Situações jurídicas relativamente internacionais: relações jurídicas que apenas entram em contacto com um
único ordenamento jurídico mas cuja resolução é suscitada num foro distinto daquele que corresponde ao
ordenamento jurídico implicado;
Situações jurídicas absolutamente internacionais: relações jurídicas que entram em contacto com vários
ordenamentos jurídicos.
As sociedades civis organizadas em Estados não constituem compartimentos estanques, antes sendo estreitamente
solidárias e interdependentes. Consequentemente, entre os seus membros estabelecem-se as mais diversificadas
modalidades de intercâmbio, quer no campo económico, quer no campo cultura, quer no domínio familiar. Todas
estas relações constituem o designado comércio jurídico internacional.
Daqui nascem os problemas do DIP. Em face de relações privadas que contactam com vários ordenamentos jurídicos
(quer pela nacionalidade ou domicílio dos sujeitos, quer pelo lugar onde devem ser executadas as obrigações, quer
pela situação das coisas) impõe-se questionar em qual desses ordenamentos será procurada a solução jurídica para a
questão decidenda. Dada a conexão existente entre a situação jurídica e as várias ordens jurídicas, haverá que escolher
dessas ordens jurídicas a que seja mais próxima daquela situação, ou seja, aquela que com ela tenha contacto mais
forte ou mais estreito. Determinar qual a ordem jurídica é a que apresenta tal conexão mais forte é, exatamente, o
problema a que o DIP se propõe a dar resposta.
É evidente não ser, de todo em todo, razoável sujeitar uma situação plurilocalizada à autoridade do direito local – se
tais situações jurídicas apresentam conexões com diversos ordenamentos jurídicos, não fará sentido impor-lhes, em
todo o caso, a lei nacional. Noutro sentido, poderá também questionar-se se seria legítimo aos tribunais nacionais,
quando chamados a conhecer uma situação plurilocalizada, aplicar, independentemente das circunstâncias do caso,
as leis desse país. Tal sistema – de aplicação incondicionada da lei do foro às situações plurilocalizadas – corresponde
ao arcaico sistema da territorialidade das leis. A favor de uma tal visão das relações internacionais poderiam convocar-
se alguns argumentos; porém, demonstraremos que tais argumentos serão superados por outros que apontam para
solução diversa:
Vantagens sistema da territorialidade das leis Inconvenientes do sistema da territorialidade das leis
As leis nacionais presumem-se boas e justas, sendo-o A norma jurídica, como norma reguladora de
tanto para os nacionais como para os estrangeiros; comportamentos (que os pretende incentivar ou
As decisões serão mais “acertadas”/justas se o coibir), não é aplicável a condutas que se situem
julgador aplicar o próprio direito, que conhece mais fora da sua esfera de eficácia;
profundamente; A ofensa àquele princípio de aplicação das normas
As probabilidades de erro judiciário aumentariam legais representaria o perigo de ofensa de direitos
com a aplicação, por parte do julgador, de direito adquiridos ou de expetativas;
estrangeiro, o qual não lhe é familiar. A aplicação do direito local levaria a situações
claramente insatisfatórias (as situações jurídicas
devem ser disciplinadas pelo ordenamento com o
qual têm conexão mais forte porquanto é aí que elas
terão de ser, em primeira linha, reconhecidas).
As considerações expostas tendem a mostrar que a colocação do problema da lei aplicável para todas e quaisquer
situações com elementos internacionais é algo de postulado pela própria natureza das coisas. De facto, a apreciação
de toda a relação da vida social com base numa lei tida por competente é de elementar justiça e necessidade. Além
de que o reconhecimento e respeito que os Estados se devem mutuamente tributar abrangem as respetivas
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instituições, pelo que a recusa da aplicação de uma lei estrangeira quando a situação jurídica decidenda tem maior
conexão com o correspondente Estado estrangeiro significaria a negação desse respeito e reconhecimento mútuos.
2. O princípio do reconhecimento e aplicação de leis estrangeiras
É hoje um princípio de direito comum às nações civilizadas o reconhecimento e aplicação das leis estrangeiras. Não há
Estado membro da comunidade internacional que não consinta em excluir, do âmbito de aplicação das suas normas
de direito privado, os factos que se situem fora dos limites da vida jurídica local (ou que se liguem mais estreitamente
à vida de um agregado social estranho).
Isto sem prejuízo de a lei nacional não se limitar a regular situações completamente absorvidas na vida jurídica local.
O que tal princípio significa é que os Estados reconhecem consensualmente que nem sempre a sua lei é a mais bem
colocada para ser aplicada a determinada situação jurídica, aplicando, em tais casos, lei estrangeira.
A este respeito, Batista Machado convoca um princípio mais genérico: o princípio da transconexão, segundo o qual a
lei não deve ultrapassar o âmbito de eficácia que lhe é reconhecido.
Princípio da não transconexão
Princípio da não transatividade das leis Princípio da irretroatividade
= a quaisquer factos aplicam-se – e só se aplicam – as = a quaisquer factos aplicam-se as leis que se
leis que se encontrem em contacto com esses factos encontrem em vigência no momento da sua prática
Espaço Tempo
3. Conceito de DIP
Completando e precisando a definição apresentada supra, podemos definir o Direito Internacional Privado como:
“o ramo do direito que procura formular os princípios e regras conducentes à determinação da lei ou leis
aplicáveis às questões emergentes de relações privadas internacionais, e bem assim assegurar o reconhecimento no
Estado do foro das situações internas, mas situadas na órbita de um único sistema de direito estrangeiro”.
4. As regras de conflitos
As questões relacionadas com a lei aplicável a determinada relação jurídico-privada internacional são resolvidas em
cada Estado, de acordo com as respetivas normas. Cada Estado tem o seu próprio DIP, através de cujas normas
identifica a lei aplicável àquele tipo de relações.
Verdadeiramente, a vocação universal do DIP só se cumpriria se os Estados, concertadamente, definissem regras
relativas ao domínio de aplicação dos respetivos sistemas jurídicas comuns a todos eles. Todavia, tal consenso não
existe, e não há previsão de algum dia vir a existir (dificilmente se concebe uma ordem internacional em que todos os
Estados, sem exceção, acordassem numa regulamentação deste tipo). Por isso mesmo, cada Estado formula, para a
resolução dos conflitos de leis, as normas que tenha por mais convenientes e mais justas. Tais normas são as
designadas “regras de conflitos”.
= normas jurídicas que propõem resolver os problemas de concurso entre preceitos jurídico-materiais
procedentes de diversos sistema de direito.
! No fundo, as regras de conflitos pretendem fazer face aos conflitos de leis que surgem em virtude da natureza
plurilocalizada de certas relações jurídicas privadas.
Neste contexto, impõe-se saber como desempenham as regras de conflitos essa sua função. A técnica usada consiste
em a regra de conflitos atribuir determinada questão ou função ao ordenamento jurídico que for designado por certo
elemento da situação de facto. O referido elemento consiste no designado “elemento de conexão” – a sua
concretização no caso decidendo (esse elemento verifica-se em relação a que ordenamento jurídico?) leva ao
conhecimento da lei competente para resolver a questão de direito proposta. O elemento de conexão tanto pode
referir-se à pessoa dos sujeitos (nacionalidade, domicílio, residência), como ao facto jurídico em si mesmo (lugar da
celebração ou da execução do contrato, lugar da prática do facto), como ainda à situação da coisa objeto do negócio
jurídico. Daqui se compreende que as normas de DIP não se propõem fixar um regime material de disciplina das
relações da vida social; elas assumem natureza meramente instrumental: indicam a lei substantiva que fornecerá o
regime aplicável.
5. Âmbito do DIP
Até este momento, referimos o DIP unicamente ao problema do conflito de leis, mas residirá em tal questão todo o
objeto desta disciplina? A este respeito identificam-se várias orientações, a saber:
a) Doutrina alemã e italiana: o âmbito do DIP está restrito ao problema do conflito de leis;
b) Doutrina anglo-saxónica: o âmbito do DIP inclui três questões:
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1. Jurisdição competente: quais os tribunais competentes para decidir uma controvérsia jurídico-privada
de natureza internacional (plurilocalizada)?
2. Lei competente: qual a lei substantiva aplicável a uma concreta relação jurídico-privada de caráter
internacional (plurilocalizada)?
3. Reconhecimento de sentenças estrangeiras: serão as sentenças proferidas por Estados estrangeiros
executáveis a nível interno?
c) Doutrina francesa: o âmbito do DIP inclui quatro matérias:
1. Nacionalidade;
2. Condição dos estrangeiros;
3. Conflitos de leis;
4. Conflitos de jurisdição.
A orientação da doutrina francesa foi adotada entre nós por Machado Villela. Importa, então, averiguar se tal
orientação deve ou não ser perfilhada. Ora, diante do problema da delimitação do DIP, dois caminhos se oferecem:
1. O objeto do DIP deve consistir numa matéria fortemente homogénea (questões da mesma natureza a resolver
por métodos idênticos) » só assim o DIP poderia considerar-se uma disciplina científica autónoma.
O objeto do DIP teria que ser reduzido ao conflito de leis e ao conflito de jurisdições.
2. O objeto do DIP será heterogéneo, abrangendo todos os problemas interconexionados que surgem na órbita
das relações jurídico-privadas internacionais » o DIP seria ainda assim uma disciplina autónoma na medida em
que resolve apenas e exclusivamente os problemas específicos das relações privadas internacionais (ainda que
problemas de índole diversa).
O objeto do DIP abrangeria, além do conflito de leis e do conflito de jurisdições, os domínios da
nacionalidade e da condição dos estrangeiros.
Segundo aquela primeira perspetiva, o DIP abarcaria princípios e normas exclusivamente instrumentais. O DIP nada
diz sobre o sentido da composição dos conflitos de interesses, nem sobre os direitos e deveres dos indivíduos. As
regras de conflito limitam-se a identificar a lei aplicável em cada caso, nada dispondo acerca da resolução substantiva
da controvérsia. Daí que os problemas da nacionalidade e da condição dos estrangeiros não integrem o âmbito do
DIP assim delimitado: tanto um como outro domínio jurídico têm natureza fundamentalmente natural. As normas
respeitantes à nacionalidade constituem os critérios segundo os quais se atribuem às pessoas um dentre dois estatutos
– nacional ou estrangeiro. As normas referentes à condição dos estrangeiros definem quais os direitos atribuídos no
Estado local aos cidadãos estrangeiros, em confronto com os nacionais. Como se compreende, em ambos os casos
estamos em face de normas materiais, que disciplinam concretamente as relações jurídicas substantivas de que são
titulares as pessoas.
Já nos termos da segunda perspetiva apresentada todas as questões incluídas no âmbito do DIP têm uma origem
comum – nascem de relações do comércio jurídico internacional – e, por isso, devem integrar o mesmo ramo do
direito. Ademais, os problemas colocados pelos conflitos de leis e pelos conflitos de jurisdição implicariam, como
questões prévias, os problemas da nacionalidade e da condição dos estrangeiros. Em primeiro lugar, o problema da
nacionalidade impor-se-ia na medida em que frequentemente essa caraterística é fulcral para a determinação da lei
aplicável. Em segundo lugar, o problema da condição dos estrangeiros surge também a priori uma vez que só se coloca
a questão de saber qual a lei e a jurisdição aplicáveis se se concluir previamente que o sujeito (estrangeiro) tinha
capacidade para praticar o facto jurídico controverso no Estado em causa. A favor desta visão do âmbito do DIP é
comum referir-se ainda a circunstância de todas estas questões terem na sua raiz considerações de política legislativa
fundamentalmente idênticas.
A conceção acolhida entre nós não segue a conceção tradicionalmente acolhida entre nós (a da doutrina francesa,
correspondente a esta segunda visão), ainda que também não vá identificar-se completamente com a perspetiva
redutora inicialmente apontada. Entende-se que o DIP é predominantemente um direito de conflitos. Mas isso não
quer dizer que dele sejam excluídas as demais matérias enunciadas. Tais matérias são encaradas como domínios afins
do DIP – embora não lhe pertençam intrinsecamente, estão a ele intimamente ligadas. No âmbito do DIP incluem-se,
segundo a perspetiva adotada, três domínios:
Conflitos de leis » núcleo duro e indiscutível do DIP
Conflitos de jurisdições
À semelhança do que sucede no domínio dos conflitos de lei, também este domínio é composto por
regras de conflitos, portanto, normas instrumentais
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Reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras
À semelhança do domínio dos conflitos de leis, também este domínio prossegue o objetivo de garantir
a estabilidade e continuidade das situações da vida jurídica dos indivíduos
De um modo geral, pode expor-se esta questão segundo o seguinte esquema:
Direito Internacional Privado
Regras de conflitos
Conflitos de leis Conflitos de jurisdições
Competência Reconhecimento e
internacional dos tribunais execução de sentenças
Neste modo de ver as coisas, o direito da nacionalidade e o direito dos estrangeiros são “domínios afins do DIP” – não
o integram mas também não lhe são completamente estranhos.
O direito da nacionalidade pode definir-se, de forma sintética, como:
“o conjunto de regras que, em cada Estado, determina os fatores de aquisição e perda da nacionalidade”.
A sua regulamentação fundamental consta da designada “Lei da Nacionalidade” – Lei nº 9/2013. Este ramo jurídico
não pode ser visto como parte integrante do DIP porquanto, como já referido, não é composto por normas de conflito,
mas antes por normas materiais/substantivas. Não obstante, está intimamente ligado ao DIP na medida em que auxilia
a interpretação e aplicação das suas normas, designadamente porque o fator “nacionalidade” é muitas vezes
convocado como elemento de conexão.
O direito dos estrangeiros, por sua vez, define-se como:
“o conjunto de regras que define para os estrangeiros um tratamento diferente daquele que o direito nacional
reserva para os seus nacionais”.
O princípio geral da equiparação, constante do art. 14º CC, determina que, em regra, os estrangeiros terão os mesmos
direitos e deveres que os nacionais, quando em território nacional. As exceções a este princípio são exatamente as
criadas pelo direito dos estrangeiros – pois este ramo traduz-se num conjunto de regras que implica um tratamento
diferenciado para os estrangeiros.
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Independentemente do tribunal ao qual é solicitada a resolução do problema, a lei aplicável terá de ser a mesma. Só
assim o DIP pode responder à sua intenção primeira: assegurar a continuidade e uniformidade de valoração das
situações plurilocalizadas. Caso contrário as partes em conflito tenderiam a tentar aceder, o mais rápido possível, aos
tribunais do Estado em que a lei aplicável lhes fosse mais favorável. Assistir-se-ia, neste caso, a uma autêntica “corrida
aos tribunais" ou “forum shopping”, o que decerto não é razoável do ponto de vista da segurança jurídica e até do
ponto de vista da igualdade. Aqui se compreende, mais uma vez, o porquê de o reforço da segurança jurídica dever
prevalecer em face da justiça material: só assim se assegura a continuidade e estabilidade das relações privadas
internacionais. Isto porque se assim não for, firmar relações internacionais torna-se uma atividade de risco, com perigo
de regulamentações díspares. Em resultado do que foi dito, o legislador interno, no momento de elaborar as normas
de DIP, deve estar atento às soluções geralmente admitidas, esforçando-se por adotar critérios que, pela sua
razoabilidade, seja suscetíveis de se tornar universais.
Um outro princípio basilar do DIP é o “princípio da paridade de tratamento das ordens jurídicas”:
“são reconhecidos de igual forma todos os ordenamentos jurídicos, devendo a exigência na escolha da lei
aplicável ser igual para todos ele, de tal forma que uma legislação estrangeira seja considerada competente sempre
que, se ela fosse a lex fori e as mesmas circunstâncias se verificassem, a lex fori se apresentasse como aplicável”.
Nestes termos, o que este princípio pretende veicular é a imperatividade do igual tratamento das diversas leis
aplicáveis in casu – uma vez que o DIP tem índole conflitual/formal, a exigência das regras de conflito não pode ser
determinada pelo conteúdo das várias leis em conflito; ao invés, as regras de conflito devem ser igualmente exigentes
para todos os ordenamentos jurídicos. Poderá, eventualmente, argumentar-se que este princípio entra em tensão
com a boa administração da justiça: certamente não pode pretender-se que o julgador tenha igual capacidade e
conhecimento para aplicar todas as leis, correspondentes aos diversos ordenamentos jurídicos. Sucede, todavia, que,
mais uma vez, que a segurança jurídica que se pretende alcançar, em virtude da índole conflitual do DIP, deverá
prevalecer sobre os inconvenientes que podem ser apontados a este sistema. Repare-se, aliás, que o princípio da
paridade é, inclusivamente, uma condição necessária para a efetivação da harmonia jurídica internacional: para que
todas as ordens jurídicas reconheçam como aplicável uma e só uma lei (independentemente do foro onde a questão
será decidida) será crucial que todas as leis gozem de igual tratamento, pois tratamentos desiguais num Estado
implicariam que a lei aplicável nesse Estado fosse diferente daquela que é considerada aplicável em outro.
Outro princípio de relevo em matéria de DIP é o “princípio da eficácia das decisões judiciais”:
“a lei aplicável em cada caso deverá ser a do Estado que melhor conseguirá fazer executar a sentença”.
Pode, efetivamente, tornar-se difícil fazer executar sentenças estrangeiras em alguns Estados. Consequentemente, as
regras de conflito devem atender a esta especificidade da matéria, procurando fixar elementos de conexão que
espelhem uma maior capacidade do Estado da lei aplicável para a execução da decisão que venha a ser proferida.
Ainda em sede de princípios de DIP, importa atentar no “princípio da harmonia material”:
“para uma mesma relação jurídico-privada internacional controversa devem ser convocadas, para solucionar
problemas diversos, leis não contraditórias entre si”.
Chamemos à colação um exemplo: um contrato. Ora, é por demais evidente que não haveria qualquer harmonia
material se o problema de saber qual a forma exigida para o contrato fosse solucionado com recurso à lei de um Estado
e a questão dos efeitos reais desse mesmo contrato fosse resolvida com a mobilização da lei de um outro Estado,
sendo uma e outra incompatíveis entre si. Todas as questões que se levantarem relativamente ao referido contrato
devem ser solucionadas com base em leis compatíveis entre si, ainda que as regras de conflito ditem, relativamente a
cada uma dessas questões, a convocação de leis diferentes. Este princípio manifesta uma intenção anuladora de
antinomias normativas intoleráveis. Assim, ele não é um princípio ligado à natureza específica do DIP, mas antes um
princípio geral, relacionado com as exigências gerais do sistema jurídica. A harmonia material sobre que agora
versamos tem vindo a ser colocada em perigo em virtude de um recente processo de “especialização das regras de
conflitos”. Com efeito, recentemente tem-se assistido a uma tendência de especialização das regras de conflitos – tais
normas dirigem-se a conceitos-quadro cada vez mais específicos. De outra forma ainda: assiste-se à tendência para
criar regras de conflitos respeitantes a elementos específicos das relações ou figuras jurídicas, em vez de respeitantes
à relação ou à figura considerada globalmente. Como se compreende, essa especialização dificulta a salvaguarda da
harmonia material, porquanto se torna mais difícil compatibilizar as várias leis aplicáveis a uma só situações jurídica.
2.2 Conflitos de princípios
Um dos grandes conflitos de princípios que emerge no DIP diz respeito à comummente designada “questão prévia”. A
“questão prévia” traduz-se, de modo simplista, na hipótese de surgirem duas situações jurídicas ligadas entre si por
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um nexo de prejudicialidade, sendo que uma delas, a principal, está sujeita a um direito estrangeiro, ficando a questão
de saber como “conectar” a questão prejudicial – se de harmonia com o sistema de conflitos do foro ou se de acordo
com o sistema de conflitos da lex causae.
[Este problema torna-se mais explícito com a apresentação de um exemplo: imagine-se que A e B, alemães, casam em Inglaterra,
onde passam também a residir. Anos mais tarde adquirem a nacionalidade britânica. B morre, deixando bens móveis na Alemanha.
Com a morte do marido coloca-se a questão de saber qual a lei aplicável à sucessão. O direito aplicável é, tanto na Alemanha (país
do foro) como na Inglaterra, o direito inglês. Sucede, porém, que o direito inglês faz depender os direitos sucessórios da viúva da
validade do matrimónio. Esta questão – da validade do matrimónio – será solucionada com base em que lei? O DIP inglês manda
aplicar a lei alemã; e o DIP alemão manda aplicar a lei inglesa. Quid iuris?
Notas a considerar a este respeito:
Questão principal » sucessão mortis causa;
Foro onde está a ser decidida a questão principal » Alemanha;
Lei aplicável à questão principal » Inglesa;
Sistema de conflitos utilizado para decidir a lei aplicável à questão principal » DIP do foro (alemão).
Questão prejudicial » validade do casamento;
Problema: sistema de conflitos aplicável à questão prejudicial » alemão ou inglês?
Portanto, o problema não é qual a lei aplicável mas sim qual o sistema de conflitos a utilizar.]
Ora, o problema da questão prévia em DIP é suscetível de duas soluções:
1. Doutrina da conexão autónoma: a questão deve ser decidida de acordo com a lei que for aplicável segundo o
sistema de conflitos do foro – tudo se passa como se a questão prejudicial não surgisse a título incidental mas
antes a título principal;
[A questão principal está a ser decidida no Estado X com aplicação da lei do Estado Y (lei A). A questão prejudicial deverá
ser julgada de acordo com a lei considerada aplicável pelo DIP do Estado do foro, o Estado X (lei B)]
2. Doutrina da conexão subordinada: a questão deve ser decidida de acordo com a lei que for aplicável segundo
o sistema de conflitos do Estado cuja lei é aplicável à questão principal.
[A questão principal está a ser decidida no Estado X com aplicação da lei do Estado Y (lei A). A questão prejudicial deverá
ser julgada de acordo com a lei considerada aplicável no Estado Y (lei A)]
Esta última solução pode ser sustentada no “princípio da harmonia jurídica internacional”. Este princípio pede que a
mesma questão de direito seja decidida da mesma forma em todos os países com competência jurisdicional para dela
conhecer. Ora, só a convocação, quanto à questão prejudicial, do sistema de conflitos do Estado cuja lei está a ser
aplicável à questão principal assegura que a questão seja resolvida nos mesmos termos em que seria nesse Estado [no
primeiro exemplo exposto, é indubitável que o Estado Y aplicaria lei diversa à questão prejudicial daquela que o Estado
X optou por aplicar]. Se o Estado do foro aplicar o seu próprio sistema de conflitos à questão prejudicial mesmo
estando a aplicar lei de outro Estado à questão principal, então estará a decidir de forma diversa daquela decidiria um
juiz do Estado cuja lei está a ser aplicada à questão principal.
Sucede que, no pólo oposto, aquela primeira solução é mais consentânea com o “princípio da harmonia interna”. Pelo
princípio da harmonia interna exprime-se a ideia da inadmissibilidade de contradições normativas no interior do
sistema. Ora, se o sistema conectar as questões prejudiciais segundo o direito de conflitos do Estado cuja lei é aplicada
à questão principal, está-se a propiciar uma situação de contradição, porquanto à questão principal poderiam ser
negados efeitos apenas porque a questão prejudicial seria decidida segundo uma lei selecionada por um sistema de
conflitos diferente do sistema de conflitos que determinou a lei aplicável à questão principal [convocando agora
aquele segundo exemplo, a lei aplicável à questão principal é selecionada pelo sistema de conflitos do Estado X
enquanto que a lei aplicável à questão prejudicial é selecionada pelo sistema de conflitos do Estado Y].
Em suma, os princípios da harmonia jurídica internacional e da harmonia interna entram aqui em conflito, apoiando
cada um deles uma posição diversa quanto a esta “questão prévia” do DIP:
Princípio da harmonia jurídica internacional VS Princípio da harmonia interna (ou material)
Sustenta a doutrina da conexão autónoma Sustenta a doutrina da conexão subordinada
Só com a utilização do sistema de conflitos do Só com a utilização do sistema de conflitos do
Estado cuja lei é aplicável à questão principal se Estado do foro se consegue que seja aplicável a
consegue uma decisão idêntica àquela que seria mesma lei tanto à questão principal como à
adotada nesse Estado questão prejudicial
3. Principais valores atendíveis
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No que diz respeito à eleição dos elementos de conexão a consagrar legalmente, há alguns valores que devem ser
considerados pelas instâncias legitimadas para tal. Com efeito, o DIP, como sistema autónomo, assenta em valores
próprios, os quais devem servir de sustentáculo à criação da sua principal materialização – as regras de conflito. As
regras de conflito têm uma estrutura composta por três elementos (conceito-quadro, elemento de conexão e
consequência jurídica), sendo que dois deles são puramente "jurídicos”, na medida em que correspondem à
determinação da matéria visada pela regra de conflito (conceito-quadro) e à conclusão que se pode retirar da aplicação
da regra (consequência jurídica). É, portanto, no terceiro elemento ainda não referido – o elemento de conexão – que
se repercutirão os mencionados valores.
Os valores fundamentais a atender integram duas grandes categorias:
Valores atendíveis pelo DIP
De natureza pessoal De natureza geral
= valores conexionados com as pessoas interessadas = valores relacionados com exigências genéricas do
(nomeadamente, os sujeitos das relações controversas) comércio jurídico
Conexões subjetivas Conexões objetivas
(exs.: nacionalidade, residência ...) (ex.: lugar da prática do facto, situação geográfica do bem ...)
4. A exceção de ordem pública internacional
Como ficou já apontado, o DIP tem uma índole conflitual ou formal, desconsiderando as questões materiais. Mas será
esta uma caraterística absoluta? Efetivamente, não é. Reconhece-se a possibilidade de efetuação de correções
substantivas em ultima ratio. É a este respeito que é convocada a “exceção de ordem pública internacional”: sempre
que a aplicação da norma estrangeira possa envolver ofensa dos interesses superiores do Estado, terá lugar uma
correção da solução formalmente alcançada. Noutros termos, as soluções materiais a que se chega através do sistema
de conflitos poderão sofrer uma correção/modificação sempre que tais soluções se mostrem atentatórias dos mais
lídimos valores que fundam a nossa ordem jurídica, sempre que o resultado obtido seja absolutamente intolerável
para o sentimento ético-jurídico dominante. [Ex.: não se reconhecerá, em Portugal, um casamento poligâmico.]
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Todo o Estado deve aplicar o direito vigente em certo país a factos que por inteiro pertençam à vida jurídica
interna desse país.
Um outro aspeto que importa referir a este respeito é o de que, embora não haja normas de conflitos decorrentes de
preceitos de direito internacional público geral, existem diversos tratados e convenções interestaduais versando
matéria de DIP. Não obstante, é ainda relativamente reduzida a área coberta por tais instrumentos diplomáticos e
diminuto o número de países ligados por esses diferentes convénio. Dentre estes, os mais importantes são as
Convenções de Haia. A Conferência de Haia de Direito Internacional Privado é hoje uma verdadeira instituição
internacional permanente, e não já uma mera instituição constituída ad hoc.
Ao lado das Convenções de Haia há ainda que mencionar as de Genebra, de 1930 e 1931, destinadas a regular certos
conflitos de leis em matéria de letras e livranças (1930) e de cheques (1931). Além destas, outras convenções
internacionais poderiam aqui ser mencionadas.
Apesar desta diversidade de regras de DIP convencionais e do seu crescimento incessante, a verdade é que o DIP
mantém-se, nos termos já expostos, como um direito de fonte estadual. Porquê? Desde logo, porque, efetivamente,
os tribunais internos (bem como quaisquer outros órgãos estaduais) só aplicam o direito internacional privado vigente
na ordem jurídica interna. Certamente são aplicáveis as convenções e os tratados internacionais, mas apenas quando
acolhidas(os) internamente. Como é sabido, há um processo mais ou menos extenso [entre outros passos, exige-se a
aprovação pelo Governo ou pela Assembleia da República, a ratificação pelo Presidente da República e a publicação oficial – arts.
197º, 200º, 161º, 138º e 8º CRP] que tem de ser seguido para que uma convenção internacional vincule o Estado
português e, consequentemente, seja eficaz internamente. Só após concluído esse processo poderá dizer-se que tal
convenção internacional vigora internamente, nos termos do art. 8º da Constituição da República Portuguesa. Em
suma, as normas de DIP criadas por convenções internacionais, enquanto não convertidas ou transformadas em
direito interno/nacional, só obrigam os próprios Estados. Tais normas só irão vincular os particulares desses Estados
após essa conversão ou transformação; e, portanto, só aqui tais normas terão operatividade como regras de DIP (cujo
escopo é, como vimos, influir sobre relações entre particulares). Daqui resulta que os preceitos que vinculam os
particulares não têm verdadeiramente como fonte o direito internacional (as convenções só vinculam os Estados),
mas antes o direito estadual (que incorpora as normas internacionais e lhes dá eficácia interna).
De modo esquemático, há aqui pressuposta uma distinção fundamental:
Direito Internacional Público Direito Internacional Privado
Fonte: convenções internacionais VS Fonte: direito estadual
Sujeitos vinculados: Estados Sujeitos vinculados: particulares
As convenções podem ter como objeto a regulação de As relações privadas internacionais podem ser objeto
situações privadas internacionais de convenções internacionais
Tais regras apenas vincularão os Estados Tais convenções não vinculam/obrigam os particulares
Os Estados ficam obrigados a acolher na sua ordem As regras assim criadas só vincularão os particulares
jurídica interna o conteúdo dessas convenções depois de acolhidas pelo direito estadual/interno
2. Natureza do DIP
Como ficou já desvelado, o DIP tem natureza privada: tem como escopo a identificação da lei aplicável às relações
privadas internacionais. É certo que não deriva da aplicação de normas de DIP a resolução de concretas controvérsias
entre particulares. Não obstante, a verdade é que sem o DIP essa resolução não é possível (porquanto concorrem
várias normas jurídico-privadas aplicáveis). A norma de conflitos não resolver por si mesma a questão de fundo, mas
concorre indubitavelmente para essa resolução. Aliás, é fundamentalmente ao serviço de interesses privados que o
DIP se encontra. Ainda noutro prisma, é o DIP que demarca o âmbito de aplicação das normas jurídico-materiais
privadas, pelo que também àquele deverá ser reconhecida igual natureza (privada).
3. O DIP e domínios afins
3.1 DIP e direito intertemporal/transitório
O direito transitório é, tal como o DIP, um sistema conflitual. Todavia, o direito transitório propõe-se a resolver
conflitos temporais de leis, fixando as regras segundo as quais será realizada a aplicação temporal de normas
concorrentes.
Estes dois ramos do direito apresentam vários pontos em comum:
Pertencem à categoria “direito de segundo grau” (são compostos por “normas sobre normas”);
Regulam hipóteses de concurso de normas legais aplicáveis – têm em comum o problema dos limites de
aplicabilidade das normas;
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Pressupõem-se mutuamente para a correta determinação da lei aplicável in casu (a aplicação de uma lei antiga
a determinados factos não deixa de pressupor que entre tais factos e a lei aplicável há uma conexão espacial;
a aplicação de uma lei, em resultado da aplicação de normas de DIP, implica que a situação estivesse ligada a
essa mesma lei num período de tempo em que ela é aplicável);
Assumem como escopo a garantia da estabilidade e continuidade das situações jurídicas interindividuais,
tutelando a confiança e expetativas dos interessados.
Não obstante, os dois ramos caraterizam-se também aspetos que os distinguem:
Direito Internacional Privado Direito Intertemporal
Conflitos de leis no espaço; Conflitos de leis no tempo;
Problema da vigência simultânea de leis distintas Problema da sucessão de leis, no seio da
em territórios e ordens jurídicas diversos; mesma ordem jurídica;
Problema de dinâmica de relações jurídicas Problema de dinâmica de leis (normas que
(relações jurídicas que entram em contacto com vêm tomar o lugar de outras normas,
várias ordens jurídicas, permitindo a aplicação interferindo com situações preexistentes, às
simultânea das várias leis dessas ordens jurídicas). quais passam a ser aplicáveis duas leis).
3.2 DIP e direito privado uniforme
O direito privado uniforme é um ramo jurídico que intenta a supressão de conflitos de leis, por intermédio de leis
idênticas. Um exemplo de instrumentos de direito privado uniforme são as Convenções de Genebra, as quais
estabeleceram uma lei uniforme em matéria de letras e livranças (além do estabelecimento de regras de conflitos,
tipicamente incluídas no DIP). Tais normas são aplicáveis em todos os Estados aderentes, o que significa que em tais
matérias não surgirão conflitos de leis.
Com base no que foi dito, compreende-se a diferença entre os dois ramos do direito sobre que versamos:
Direito Internacional Privado Direito Privado Uniforme
Tem como razão de ser a existência de leis Tem como objetivo a eliminação das
materiais divergentes; divergências materiais entre leis;
Procura resolver conflitos de leis. Procura suprimir os conflitos de leis.
Ora, se algum dia o direito privado uniforme se estendesse a todos os sistemas jurídicos (formando-se um “direito
privado mundial” uniforme), então o DIP desapareceria, porquanto deixaria de ter razão de ser um direito que
pretende resolver conflitos entre leis quando a lei aplicável é a mesma em todo o mundo (não haveriam conflitos de
leis). Todavia, tal visão é puramente utópica. Mesmo sendo criados instrumentos de direito privado uniforme, basta
que um Estado não adira para que o DIP mantenha a sua importância. Daí, aliás, que muitas vezes o direito privado
uniforme e o DIP sejam criados paralelamente. Ora note-se: as referidas Convenções de Genebra estipulam, em
relação aos domínios em que operam, normas materiais uniformes para todos os Estados aderentes – entre estes
Estados não se colocarão, nessas matérias, conflitos de leis; mas, paralelamente, estabelecem regras de conflitos, a
pôr em prática sempre que se verifique um conflito de leis entre a lei uniforme e a lei de um Estado não aderente ou
sempre que o conflito diga respeito a aspetos não regulados.
3.3 DIP e direito interlocal e interpessoal
Nem sempre os protagonistas do conflitos no espaço são ordens jurídicas estaduais. O problema nasce algumas vezes
da coexistência de vários sistemas de direito no interior do mesmo Estado. É o exemplo paradigmático do que pode
suceder nos EUA, em que cada um dos Estados Federados possui legislação civil própria. Estes conflitos interlocais têm
comum com os conflitos interestaduais a circunstância de cada sistema jurídico em conflito ter um território próprio
(que não coincide com o território do Estado). Isto implica que muitos dos critérios utilizados pelo direito interlocal
para resolver tais conflitos sejam idênticos aos critérios utilizados pelo DIP.
Uma outra variedade de conflitos internos são os conflitos interpessoais. Agora, as várias leis em presença não regem
territórios distintos, mas distintas categorias de pessoas. É o caso paradigmático dos Estados com sistemas jurídicos
confessionais: ao lado do direito da confissão do Estado (ex.: direito muçulmano), existem sistemas jurídicos próprios
das outras comunidades religiosas, aplicáveis aos membros destas comunidades na esfera do seu estatuto pessoal.
Em Portugal estes problemas não se põem, uma vez que é um Estado de legislação unitária (a mesma lei é aplicável a
todas as pessoas).
3.4 DIP e direito constitucional
A relação entre o DIP e o direito constitucional pode suscitar diversas questões, entre elas:
1. São as regras de conflitos suscetíveis de entrar em colisão com os preceitos constitucionais (sendo
consideradas inconstitucionais), e especialmente os relativos à matéria dos direitos fundamentais?
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Maria Paixão Direito Internacional Privado – 2017/2018
2. Até que ponto devem os nosso tribunais recusar a aplicação de um preceito estrangeiro, indiscutivelmente
aplicável segundo as regras do DIP, que pelo seu conteúdo colida com algum dos direitos fundamentais
consagrados na Constituição?
3. Podem os tribunais portugueses recusar-se a aplicar o direito estrangeiro competente com fundamento na
sua inconstitucionalidade perante a Constituição portuguesa?
Aquela primeira questão surgiu na Alemanha, tendo-se formado acerca dela duas correntes de opinião:
a) O DIP move-se num espaço exterior à Constituição.
Para chegar ao maior número possível de soluções idênticas, as regras de conflitos dos vários países hão de
dar preferência à lei que melhor se recomende segundo a natureza das coisas, independentemente de essa
solução colidir com preceitos constitucionais. As regras de conflitos são regras técnicas neutrais, que não
têm o sentido de servir a justiça.
b) O DIP não pode operar num campo axiologicamente neutro. [Posição adotada]
A justiça conflitual (que é, de facto, predominantemente formal) surge sempre como parte de um específico
sistema jurídico, norteado por determinados princípios. Portanto, as normas de conflitos não são regras
técnicas axiologicamente neutrais; também elas prosseguem um ideal de justiça. E a justiça pressupõe
sempre, em maior ou menor medida, o respeito pela axiológica do ordenamento jurídico.
Consequentemente, as normas de conflitos são suscetíveis de colidir com os princípios constitucionais e de
serem, assim, objeto de um juízo de inconstitucionalidade.
No que diz respeito ao segundo dos problemas colocados, podemos afirmar, desde já, que os preceitos da lei
estrangeira designada pela norma de conflitos que não se coadunem com os direitos fundamentais consagrados na
legislação portuguesa são seguramente inaplicáveis, porque contrários à ordem pública internacional do Estado
português (entre aqui a exceção da ordem pública internacional acima referida [vide supra: Cap. II, 4.]). Só que para
tanto será indispensável que no caso se encontrem realizados os pressupostos da relevância da ordem pública
internacional, sendo eles:
1. Estarem envolvidos valores de máxima importância do ordenamento jurídico do foro;
2. Verificar-se uma conexão significativa entre o caso a julgar e o ordenamento do foro (embora a conexão mais
forte seja com outro ordenamento, já que é outra a lei aplicável segundo as regras de DIP).
O preenchimento destes requisitos é essencial uma vez que a exceção da ordem pública internacional é, como
referido, um expediente de ultima ratio.
Por fim, no que diz respeito ao último dos problemas apontados, importa convocar o art. 23º CC, nos termos do qual,
na aplicação da lei estrangeira, o julgador deve mover-se no quadro dessa lei e orientar-se pelos princípios nela fixados.
Assim sendo, não cabe ao julgador do foro sindicar a compatibilidade constitucional de preceitos da lei estrangeira,
pelo que deverá aplicar essa lei tal como ela seria aplicada pelo juiz do respetivo sistema jurídico. Poderá a norma ser
desaplicada se no respetivo Estado ela é já considerada inconstitucional.
3.5 DIP e Direito da União Europeia
O DIP e o Direito da UE estão hoje cada vez mais ligados entre si, em virtude da crescente integração comunitária que
se tem verificado entre os Estados-membros da UE. De facto, com o aprofundamento da integração europeia, a pautar
uma coesão também jurídica no espaço comunitário, também o DIP acaba envolvido neste processo. Por um lado,
esta tendência determina uma propensão para a uniformização do DIP no espaço comunitário, reduzindo-se os
conflitos internos. Por outro, o direito da UE surge agora como “bloco” normativo aplicável, em oposição a um direito
exterior, deixando de surgir cada Estado-membro por si só nas relações com Estados externos.
Podem identificar-se os seguintes pontos de contacto entre o DIP e o Direito da UE:
Disciplina de relações internacionais » tanto o DIP como o DUE têm como escopo a disciplina de relações
jurídicas que ultrapassam os limites da estadualidade;
As relações internacionais disciplinadas pelo DIP são modificadas pelo DUE » o DUE tem vindo a instituir um
novo tipo de relações jurídicas internacionais (UE vs Estado estrangeiro, em oposição à tradicional relação
Estado X vs Estado Y), o que implica uma adaptação do DIP a essa nova realidade.
Apesar dos pontos em contacto entre as duas disciplinas, e da influência mútua, há diferenças iniludíveis entre elas:
Direito Internacional Privado Direito da União Europeia
Fonte estadual – direito interno do Estado; Fonte interestadual – direito das instituições da UE;
Disciplina de relações jurídicas privadas. Disciplina de (1)relações estaduais, de (2)relações
institucionais e de (3)relações privadas.
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Maria Paixão Direito Internacional Privado – 2017/2018
Dentro deste quadro de desenvolvimento e interconexão entre DIP e DUE, tem-se vindo a falar, no nosso tempo, no
surgimento de um DIP da União Europeia. Este processo deu-se em três momentos, de diferente intensidade:
1. Elaboração da Convenção de Bruxelas de 1968:
Na redação original do TUE estava consagrada a possibilidade de os Estados-membros celebrarem convenções
intergovernamentais sobre interesses protegidos pela UE. Com base nessa hipótese, foi elaborada, em 1968,
a “Convenção de Bruxelas”, cuja disciplina dizia respeito a:
Competência internacional dos tribunais dos Estados-membros; Matérias que pertencem ao âmbito
Reconhecimentos de sentenças estrangeiras. do DIP [vide supra: Cap. I, 5.]
Esta Convenção deu origem aos designados “Regulamento de Bruxelas I” e “Regulamento de Bruxelas I-A/bis”.
2. Criação de Diretivas com inclusão de regras de DIP, nos anos 80:
O atual art. 114º TFUE prevê a criação, pelas instituições europeias, de normas jurídicas com o objetivo de
aproximar as legislações nacionais. Nos anos 80 esta tentativa de aproximação das legislações nacionais
através de regulação europeia deu-se mediante a elaboração de diversas Diretivas, as quais incidiam
diretamente sobre a disciplina material de determinados domínios. Em muitas dessas Diretivas, além da
disciplina material, identificam-se ainda regras avulsas de DIP. Portanto, não se verifica aqui, ainda, uma
intenção primária de criação de um DIP da UE, mas já há criação de disposições comunitárias avulsas de DIP.
Neste período é marcante o caráter fragmentário do DIP criado no seio da UE.
3. Tratado de Amesterdão de 1997:
Com a celebração do Tratado de Amesterdão, em 1997 (entrando em vigor em 1999), foi atribuída
competência específica em matéria de DIP à comunidade europeia. Deste modo, o atual art. 81º TFUE dispõe
que “o Parlamento Europeu e o Conselho (...) adotam (...) medidas destinadas a assegurar (...) / c) a
compatibilidade das normas aplicáveis nos Estados-Membros em matéria de conflitos de leis e de jurisdição”.
É, portanto, neste terceiro momento que se dá uma verdadeira “europeização do DIP”, até porque a UE, numa
interpretação extensiva daquele preceito, assume competência genérica em matéria de DIP.
Em decorrência da competência genérica em matéria de DIP assumida, a UE arroga-se a competência
exclusiva para a celebração de convenções internacionais no domínio do DIP. Significa isto que, nas
convenções internacionais sobre questões de DIP, os Estados-membros não intervêm autonomamente,
antes sendo representados pela UE, como bloco. Internamente, a UE tem regulado a matéria mediante
utilização de Regulamentos (e não de Diretivas, que necessitam de transposição), justificando esta
preferência por estes instrumentos, que gozam de efeito direto nas ordens jurídicas internas, com base
numa interpretação conjugada do art. 81º/c) e do art. 67º/4 TFUE.
Um possível balanço das atuais relações entre o DIP e o Direito da UE aponta para duas formas distintas de integração:
Integração positiva: verifica-se a crescente elaboração de Regulamentos europeus sobre matérias de DIP. Esta
elaboração tem vindo a potenciar a fragmentação do DIP, e isto por duas vias:
Paralisação das codificações nacionais » muitos preceitos de direito interno vêm atualmente a sua
aplicabilidade reduzida, na medida em que passam a ser objeto de uma interpretação restritiva, com
o intuito de os compatibilizar com a regulamentação europeia.
Caráter avulso ou disperso dos Regulamentos » não há, até à data, uma “codificação” de normas de
DIP da UE, o que implica que os diplomas que vão sendo elaborados dizem respeito a matérias avulsas,
não se identificando uma unidade regulamentar.
Integração negativa: assiste-se à fixação de restrições à aplicação dos sistemas de DIP nacionais, na medida
em que as regras de conflitos estaduais têm de ser interpretadas e aplicadas em conformidade com o Direito
da UE. Exemplos paradigmáticos do que foi dito são os conceitos de “ordem pública internacional” e de
“normas de aplicação necessária e imediata”, que foram já convocados pelo TJUE em referência à ordem
jurídica comunitária, e já não em relação às ordens jurídicas nacionais. Um outro exemplo do que foi dito é a
matéria da “fraude à lei”, à qual tem sido assaca uma nova compreensão, já que a integração europeia que
assenta nas liberdades comunitárias implica um novo entendimento do que se pode ter por “fraude à lei”.
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Maria Paixão Direito Internacional Privado – 2017/2018
1.1 A perspetiva clássica europeia
Sabemos que o DIP se ocupa de relações jurídico-privadas plurilocalizadas. Tais relações, em virtude do seu caráter
internacional, estão sujeitas a particular instabilidade e incerteza. Consequentemente, a função do DIP é, justamente,
reduzir essa instabilidade a um mínimo razoável – noutras palavras, o escopo do DIP é assegurar a estabilidade e
continuidade das relações jurídicas internacionais. O problema do método do DIP é, precisamente, o de saber qual o
modo de agir com vista a alcançar esse objetivo.
A orientação tradicional considera que o problema que se levanta é o de designar a lei cujo regime material deve ser
aplicado ao caso. O regime aplicável será, portanto, aquele que os tribunais do respetivo Estado aplicariam se a
questão fosse puramente interna. Tendo em conta as conexões existentes com os diversos sistemas jurídicos,
procurar-se-á determinar qual o sistema jurídico aplicável in casu. Esta conceção remonta a Savigny, cuja obra
revolucionou o método do DIP:
"Teoria dos Estatutos" "Método Clássico Conflitual"
Obra de Saviny
= por interpretação dos estatutos (= normas jurídicas = determina-se para cada relação jurídica a sua “sede”,
criadas por uma autoridade, em regra os senhores feudais) isto é, a ordem jurídica com a qual aquela relação tem
procurava-se determinar o seu âmbito de aplicação no mais estreita conexão, sendo a lei dessa ordem jurídica
espaço, de modo a aferir a sua aplicação no caso a aplicável ao caso
Centro de análise: norma jurídica Centro de análise: relação jurídica
Em suma, Savigny (o caput shcolae da Escola Histórica) veio propor um novo modelo, segundo o qual o enfoque do
DIP passaria da normas materiais hipoteticamente aplicáveis para a relação jurídica decidenda. Haveria que procurar
a sede da relação jurídica (a qual corresponderia ao Estado com o qual fosse mais forte a relação estabelecida), sendo
que o direito material aplicável seria o direito dessa sede. Tem, então, origem em Savigny o método, ainda largamente
predominante na atualidade, a que pode chamar-se “método da conexão”, “método conflitual”, e que consiste em
procurar, para cada situação jurídica típica, o laço que mais estreitamente a prenda a um sistema jurídico determinado.
A conexão relevante consiste num elemento da factualidade concreta, nomeadamente o ato jurídico fonte da
obrigação, os factos por que deve traduzir-se o seu cumprimento, a coisa objeto da relação, os sujeitos da relação (e
respetiva nacionalidade ou residência). Atualmente, deve ainda dizer-se, é por classes ou grupos de questões de direito
que se opera a escolha do elemento de conexão, e não por categorias de relações jurídicas.
Este método carateriza-se pela mobilização das denominadas “regras de conflitos”, cuja função é a de indicar o
elemento da factualidade concreta por intermédio do qual se há-de determinar a lei aplicável às várias situações da
vida. Na sua feição clássica as regras de conflitos são normas de conteúdo rígido – “hard-and-fast rules”: normas que
vinculam o juiz a utilizar um elemento de conexão pré-determinado sempre que se lhe apresente uma questão jurídica
do tipo correspondente à previsão. Contudo, como veremos infra, tem vindo a ser introduzidas algumas “open-ended
rules”, como meio de flexibilização do sistema. Estas normas fixam, as mais das vezes, uma pluralidade de elementos
de conexão, cabendo ao juiz determinar o elemento decisivo in casu. Este tipo de normas é hoje predominante no
ordenamento estadunidense. Outras normas ainda determinam a conexão em princípio relevante mas permitem a
aplicação de outra lei, quando se mostre que a situação concreta sub judice se encontra mais fortemente ligada com
ela. Trata-se aqui das denominadas “cláusulas de exceção”, as quais assumem também um intuito flexibilizador do
sistema, como veremos.
1.2 A critica norte-americana
As ideias expostas prevaleceram por largos decénios na dogmática do DIP, mas têm enfrentado severas críticas nos
últimos tempos. A onda de contestação procede, sobretudo, dos EUA. Tal contestação assenta, fundamentalmente,
nas seguintes críticas:
Dificuldade, ou impossibilidade, de apurar a conexão mais estreita para cada matéria (ex.: ao nível do estatuto
pessoal, deve prevalecer a nacionalidade ou a residência?);
Impropriedade das normas de direito interno para regular as situações internacionais
Dificuldades suscitadas no processo de aplicação de regras de conflitos, o que determina a imprevisibilidade
das decisões judiciais, com prejuízo para a certeza visada pelo DIP;
Desconsideração da justiça material.
Vistas as críticas geralmente apontadas ao DIP, importa agora atentar nas soluções alternativas propostas.
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Maria Paixão Direito Internacional Privado – 2017/2018
As soluções que apresentaremos são elaboração de autores estadunidenses, porquanto foi nos EUA, como referido,
que a controvérsia tomou contornos mais agudos. Podemos, de facto, identificar como momento de eclosão de uma
verdadeira revolução no domínio do DIP o caso “Babcock vs Jackson”, de 1963. Sumariamente, o caso surgiu em
virtude de um acidente de viação ocorrido no Canadá, durante uma viagem turística em que participavam o casal
Jackson e a Sra. Babcock, oriundos dos EUA e residentes em Nova Iorque. Esta última veio processar o Sr. Jackson, que
dirigia o automóvel, por negligência na condução, pretendendo ser ressarcida dos danos sofridos. Ora, o processo deu
entrada em Nova Iorque, onde foi julgado. Colocou-se então a questão prévia de saber qual a lei aplicável. Segundo a
regra de conflito mobilizada, a lei aplicável seria a lei do local da verificação do facto – lei do Canadá (pois o acidente
ocorreu já no Ontário, Canadá). Sucede, porém, que segundo esta lei Jackson não poderia ser responsabilizado, já que
é excluída a responsabilidade civil do condutor por acidentes de viação em circunstâncias como as expostas. Em
virtude deste panorama, o tribunal aplica a lei de Nova Iorque, em contradição com a regra de conflitos oriunda do
“1º Restatement” de 1934, que veio determinar as regras de conflitos adotadas nos vários estados federais. A favor
desta decisão, o tribunal alegou:
A conexão mais estreita da relação jurídica envolvida com a lei de Nova Iorque » à exceção do local da
verificação do facto, todos os demais elementos da relação jurídica decidenda estavam ligados ao estado de
Nova Iorque;
O interesse estadual na aplicação da lei própria.
A partir deste caso, que marcou a história do DIP universalmente, vários autores apresentaram propostas alternativas
ao clássico método conflitual. Vejam-se algumas das propostas apresentadas:
a) David Cavers (prof. em Harvard):
A doutrina de Cavers é denominada de “better law approach” e não repudia (por completo) o método clássico, antes
propondo uma sua adaptação. O autor crítica o método conflitual sobretudo pela desconsideração da justiça material
que ele implica. Considera ser esse método “cego e mecânico” – “cego” porquanto não se detém no conteúdo da lei
aplicável e “mecânico” na medida em que traduz uma aplicação automática de uma lei, bastando a verificação do
elemento de conexão.
Numa primeira fase do seu percurso, Cavers insiste na materialização do sistema de conflitos, invocando dois critérios
de escolha da lei aplicável:
1. Justiça devida às partes;
2. Justiça referida aos objetivos da política legislativa.
Deste modo, não haveria regras que especificamente indicassem ao julgador a lei a aplicar; pura e simplesmente, o
julgador deveria escolher aplicar a lei que melhor realizasse a justiça, naquelas suas duas vertentes, no caso.
Numa segunda fase, Cavers reformula a sua teoria e cria verdadeiros “princípios de preferência”, segundo os quais
deveria selecionar-se a lei aplicável in casu. Sucede, porém, que esses princípios acabam por ser, no fundo, regras de
conflitos, que se diferenciam das regras de conflitos clássicas por incorporarem juízos de justiça material.
b) Brainerd Currie (prof. em Duke):
A perspetiva de Currie é designada de “governmental interest analysis”, caraterizando-se fundamentalmente pela
circunstância de colocar o problema do conflito de leis na perspetiva dos interesses estaduais, e já não na perspetiva
dos interesses dos particulares e do comércio jurídico internacional. Há aqui uma radical rutura com o método clássico
da conexão, a qual se repercute, inclusivamente, na negação de um sistema de regras de conflitos.
A solução do conflito de leis obter-se-ia agora a partir de uma análise das “políticas” em que se inspiram e a que
respondem as leis em concurso. De modo simplista: a cada lei corresponde um espaço ou domínio de aplicação, o qual
é determinado em função do interesse (estadual) que a determinado; delimitando-se esse domínio de aplicação,
bastaria averiguar se o caso concreto cai dentro ou fora dela, aplicando-se ou não a lei ao caso, respetivamente.
Neste contexto, a lei aplicável em primeira linha seria a lei do foro – presumia-se que se o caso decidendo está a ser
julgado no tribunal de determinado Estado, então os interesses subjacentes à lei desse Estado abrangerão o caso (caso
contrário, o mais certo seria que o caso estivesse a ser julgado noutro lugar). A partir daqui, admitir-se-ia a aplicação
de uma lei estrangeira (portanto, que não a lei do foro), se reunidos dois requisitos:
a) Interesse legítimo do Estado estrangeiro na aplicação da sua lei (embora ele esteja a ser julgado noutro
Estado);
b) Falta de interesse do Estado do foro na aplicação da lei interna (apesar de o caso estar a ser julgado num
tribunal interno).
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Maria Paixão Direito Internacional Privado – 2017/2018
Esta conceção é permeável a diversas críticas, as quais implicam a sua desrazoabilidade e consequente
impraticabilidade:
A teoria parte de um pressuposto falso: o pressuposto de que é sempre possível deduzir do fundamento do
preceito jurídico os limites do seu âmbito de aplicação espacial. Na verdade, na maioria dos casos nenhuma
conclusão positiva poderá extrair-se, a tal respeito, da análise dos fins da norma, da sua ratio (ex.: da ratio do
art. 220º CC, que prescreve a nulidade dos negócios que não observem a forma legal exigida, não se poderá
retirar o seu âmbito de aplicação » será o preceito aplicável a um negócio celebrado noutro Estado, onde a
falta de forma legal não leva à nulidade?).
A teoria olvida a intenção primordial do DIP: Currie, ao fazer do interesse do Estado o elemento predominante
e da sua análise o único critério para a procura da solução para o conflito de leis, esquece o objetivo último
do DIP – assegurar a estabilidade e continuidade das relações jurídicas privadas internacionais – o implica a
primazia dos interesses dos indivíduos, e não dos interesses do Estado.
A teoria não leva à elaboração de regras que, por seu conteúdo e fundamento, sejam verdadeiramente
suscetíveis de se tornar universais: o DIP tem uma intenção de universalidade, pelo que se impõe uma intenção
de elaboração de critérios selecionadores com pretensão de vigência internacional.
A teoria não permitirá alcançar uma resposta nos casos em que há três ou mais Estados envolvidos, sendo que
dois deles têm interesse legítimo na aplicação da lei interna, e nenhum destes é o Estado do foro: justificar-
se-á, aqui, dar prevalência à lei do foro? E não se conferindo tal preferência, como optar entre a lei dos outros
dois Estados?
Portanto, esta é uma doutrina que suscita acesa controvérsia, em virtude da sua radicalidade.
c) Albert Ehrenzweig (prof. em Berkeley):
A teoria elaborada por Ehrenzweig pode ser caraterizada como “lex forista” porquanto coloca em primeiro lugar a
aplicação da lei do foro. Em princípio, a lei aplicável será a lei do foro. Consequentemente, não há paridade de
tratamento de ordens jurídicas. De facto, para que a lei do foro seja aplicada preferencialmente, haverá que
desconsiderar o princípio da paridade de tratamento das ordens jurídicas: os requisitos para a aplicação de lei
estrangeira são mais exigentes do que os pressupostos de aplicação da lei do foro.
Neste contexto, Ehrenzweig alega ainda que os conflitos de leis são muitas vezes ilusórios, e apenas determinados
pela própria existência de regras de conflito. Por outras palavras: o autor entende que o sistema de regra de conflitos
acaba por potenciar a emergência de conflitos de leis quando, na verdade, eles não existem, pelo que seria mais
favorável à estabilidade das relações jurídicas internacionais a eliminação das referidas regras de conflitos. As
hipóteses de conflitos de leis ilusório reconduzem-se aos casos de aplicação da lei do foro sem convocação de regras
de conflitos – fala-se aqui em “forum law by non-choice”. Ao versar sobre uma questão decidenda que tenha
subjacente uma relação jurídica internacional o julgador deverá partir deste ponto: será de aplicar a lei do foro. Não
há, num primeiro momento, outra “escolha”. Subsequentemente haverá que averiguar se, efetivamente, há um
conflito de leis, uma vez que o caso convoca manifestamente lei estrangeira. Só aqui se cai fora do domínio da “forum
law by non-choice” e haverá verdadeiramente um conflito.
Nestas hipóteses, a lei estrangeira aplicável será objeto de uma “interpretação bifocal”, através de qual se concluirá
pela possibilidade de sua aplicação no foro. Será convocada a lei do foro homóloga à lei estrangeira hipoteticamente
aplicável, e considerar-se-á a sua ratio; depois, verificar-se-á se a lei estrangeira é conforme a essa ratio, se não
subverte o sentido da homóloga norma interna. Apenas concluindo-se pela conformidade da lei estrangeira com a lei
interna homóloga é que se procederá à sua aplicação in casu.
Como é evidente, esta conceção põe em causa um importante valor do direito: a relatividade dos conceitos. Não se
pode pretender que os conceitos tenham o mesmo significado intrínseco em todas as ordens jurídicas, já que isso seria
anular a sua individualidade.
Na sequência de todas as conceções apresentadas, entre muitas outras, e em face das decisões jurisprudenciais que
foram sendo tomadas ao longo dos tempos, é adotado, nos EUA, o “2º Restatement”, em 1969. O modelo aí
consagrado e que ainda hoje se mantém é um “modelo de open-ended rules”, em que, apesar de se manter a existência
de regras de conflitos, estas regras revestem uma muito maior flexibilidade e incidência material.
1.3 A aproximação entre a doutrina europeia e a perspectiva estadunidense
A aproximação entre o modelo clássico conflitual e modelo de “open-ended rules” vigente nos EUA verifica-se em três
pontos primordiais:
Apuramento da justiça conflitual: o DIP veicula uma justiça que, como referido [vide supra: Cap. II, 1.], é
predominantemente formal – a preocupação primordial do DIP é identificar a lei cuja conexão com o caso é
mais estreita, e não procurar a lei materialmente ou substancialmente mais justa. Esta ideia era, nos
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Maria Paixão Direito Internacional Privado – 2017/2018
primórdios do modelo clássico, rígida e absolutamente imperativa. Atualmente, todavia, tem-se assistido a
uma atenuação dessa rigidez, a qual se manifesta nos seguintes tópicos:
Especialização das regras de conflitos » atualmente as regras de conflitos consagram elementos de
conexão que incidem sobre classes ou grupos de questões ou sobre zonas de regulamentação
normativa, e não sobre categorias de relações jurídicas. Com efeito, para uma mesma categoria de
relações jurídicas o DIP consagra diversos elementos de conexão, referidos a diferentes aspetos dessa
relação – constituição e efeitos, forma e substância, etc. Esta opção do legislador de DIP evidencia a
preocupação em consagrar os critérios mais justos para cada elemento, em oposição à consagração
de um critério aplicável a toda a relação jurídica que se poderia mostrar justo para alguns dos seus
elementos mas injusto para outros. Daqui decorre a atual tendência de fragmentarização do DIP.
Mecanismo das cláusulas de exceção » as cláusulas de exceção são preceitos legais que vêm admitir o
afastamento, in casu, da lei considerada aplicável pela regra de conflitos, com um objetivo corretor.
As cláusulas de exceção podem assumir duas modalidades:
Cláusulas de exceção abertas VS Cláusulas de exceção fechadas
= a opção de afastar a lei selecionada segundo a = a opção de afastar a lei selecionada segundo a
regra de conflitos é conferida ao julgador, cabendo- regra de conflitos é da responsabilidade do
lhe ajuizar, em concreto, pela necessidade (ou não) legislador, devendo esse afastamento verificar-se
desse afastamento sempre que verificados os requisitos legais
Exemplos destas cláusulas são os arts. 52º/2 in fine e 55º CC, bem como os preceitos da Convenção
de Roma de 1980 respeitantes aos contratos. Em tais normas consagra-se um elemento de conexão a
considerar e que determinará a lei aplicável, mas admite-se expressamente a possibilidade de
aplicação de uma outra lei, quando essa lei se mostre mais “estreitamente conexa” com o caso. Entre
nós não há consagração expressa de uma “cláusula geral de exceção”, como sucede, por exemplo, na
lei federal suíça. A nossa lei consagra tão-só cláusulas de exceção especiais, relativas a certas matérias
específicas. Não obstante, há quem fale numa “cláusula geral de exceção implícita”. Esta não nos
parece uma perspetiva correta.
Concretização judicial do princípio da proximidade: o princípio da proximidade determinada que as
regras de conflitos devam consagrar elementos de conexão que convoquem a aplicação da lei com
maior proximidade com a relação jurídica. No fundo, o legislador, ao criar regras de conflitos, deve
procurar fixar critérios pautados pela maior proximidade ou mais estreita conexão da lei com a
situação jurídica decidenda. Um meio de flexibilização do DIP é, exatamente, permitir-se ao julgador
operar correções em concreto, quando os critérios legais, fixados em abstrato, não cumpram este
princípio no caso. Pode suceder, de facto, que, abstratamente, a lei com maior proximidade à relação
jurídica seja selecionada segundo um determinado elemento de conexão mas que esse elemento não
se mostre prestável em concreto, porque não permite selecionar a lei que efetivamente estabelece
com o caso uma conexão mais estreita. Nestes casos, pode o julgador, por vezes, corrigir o resultado
alcançado, aplicando lei diversa da indicada pela regra de conflitos. Um dos mecanismos através do
qual se consegue esta concretização judicial do princípio da proximidade são, exatamente, as cláusulas
de exceção, atrás referidas.
Surgimento de regras de conflitos com conexão substancial/material: em vários direitos positivos foram
incluídas regras de conflitos de caráter substancial. Assim podem distinguir-se as regras de conflitos em função
do elemento de conexão acolhidos:
Regras de conflitos de caráter material Regras de conflitos de caráter localizador
= a escolha da lei opera em função do resultado = a escolha da lei depende do local
Pretende favorecer-se determinado resultado, Pretende aplicar-se a lei do Estado com maior
aplicando-se a lei que o proporcionará conexão com a relação jurídica
Evidentemente, as regras de conflitos localizadoras são as tradicionais; as regras de conflitos de caráter
substancial ou material vieram a ser consagradas como meio de atenuar a formalidade da justiça conflitual do
DIP. Um exemplo paradigmático de tais normas é a regra de conflitos que manda aplicar a lei que, estando
conexionada ao negócio jurídico, favoreça a sua validade – aqui não se pretende averiguar qual a lei com maior
conexão com o negócio jurídico, mas antes selecionar aquela que permitirá alcançar o resultado pretendido
(a validade do negócio). No direito português, os arts. 36º e 65º CC são claras manifestações deste caráter
substancial.
Relevo do fim das normas materiais na determinação do respetivo campo de aplicação espacial: a teleologia
das normas materiais pode ser convocada para a determinação do seu âmbito de aplicação. Essa convocação
verifica-se, designadamente, nos seguintes domínios:
15
Maria Paixão Direito Internacional Privado – 2017/2018
Operação de qualificação: nos termos do art. 15º CC “a competência atribuída a uma lei abrange
somente as normas que, pelo seu conteúdo e pela função que têm nessa lei, integram o regime do
instituto visado na regra de conflitos”. Nestes termos, a qualificação de uma concreta norma jurídica,
integrante da lei competente, como aplicável dependerá da consideração do fim que ela prossegue –
a finalidade daquela norma específica (que integra a lei (aqui considerada em termos amplos)
aplicável) permite integrá-la no instituto visado pela regra de conflitos?
Operação de adaptação: a aplicação de uma norma considerada aplicável pela regra de conflitos pode
ser dificultada pela natureza internacional da relação jurídica a disciplinar (pois o legislador, quando
cria normas materiais, supõe a sua aplicação a relações jurídicas internas), o que poderá implicar a
sua adaptação. Esta adaptação da norma deverá partir da análise da teleologia que lhe subjaz.
Normas materialmente auto-limitadas: estão aqui em causa normas materiais que se servem de uma
conexão espacial para delimitar o respetivo âmbito de aplicação.
Duas modalidades:
Normas materialmente auto-limitadas de caráter restritivo: normas que auto-restringem o
seu âmbito de aplicação espacial, aplicando-se em menos situações do que as em que
seriam aplicáveis, abstratamente, segundo as regras de conflitos. Estão, portanto, em causa,
normas materiais que exigem, para sua aplicação, uma conexão mais forte do que a exigida
pela correspetiva regra de conflitos.
[Ex.: art. 481º CSC » “o presente título aplica-se apenas a sociedades com sede em Portugal (...)” –
portanto, ainda que a regra de conflitos determine como aplicável um preceito da lei portuguesa
inserido nesse título, ele não será aplicável a sociedades não sediadas em Portugal. ]
Normas materialmente auto-limitadas de caráter ampliador ou normas de aplicação
imediata e necessária: normas que, em virtude da sua ratio, se aplicarão sempre a
determinada situação jurídica, independentemente de a regra de conflitos mandar aplicar
uma outra lei (estrangeira). Estamos aqui em face de normas de aplicação obrigatória para
os tribunais do respetivo Estado, ainda que a regra de conflitos do sistema de DIP nacional
aponte em sentido diverso. Esta categoria normativa é constituída por preceitos de direito
material cujo objetivo reside na tutela de interesses de grande relevância para a
comunidade local. Serão tais normas aplicadas sempre que entre o caso e o ordenamento
jurídico em causa (que será o do foro) se verifique a conexão prevista expressamente na
norma ou que decorre da sua finalidade ou teleologia. (*)
[Ex.: art. 1682º-A/2 » “a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais
de gozo sobre a casa de morada da família carece sempre do consentimento de ambos os cônjuges.” –
em qualquer caso, deverá ser exigido o consentimento de ambos os cônjuges, mesmo que a lei
aplicável, segundo a regra de conflitos, não o exija, porquanto este preceito tem como finalidade a
proteção da família, valor que se sobreleva a quaisquer outros. ]
Jurisdicionalização do DIP: a tendência de jurisdicionalização do DIP traduz-se no maior enfoque conferido à
matéria do conflito de jurisdições, em alternativa a uma centralidade excessiva da temática do conflito de leis.
Portanto, a aproximação entre o modelo clássico/conflitual e o modelo norte-americano opera agora pela
relativização do enfâse conferido ao problema do conflito de leis, em contrapartida da emergência da
relevância do problema do conflito de jurisdições que, como referido [vide supra: Cap. I, 5.], integra também o
âmbito do DIP. Esta jurisdicionalização traduz-se num fenómeno designado de “correlação forum-ius”, o qual
poderá assumir duas manifestações:
Aplicação da lex fori: segundo a perspetiva de autores como Ehrenzweig [vide supra: Parte II, Cap.I, 1.2,
c)] a determinação da lei aplicável haveria sempre que partir da consideração do tribunal competente.
Portanto, dar-se-ia primazia à aplicação da lei do foro.
Crítica: nos termos já referidos, acolher esta conceção significaria postergar o princípio da paridade
de tratamento das ordens jurídicas, já que se dá um tratamento prioritário à ordem jurídica do foro.
Competência do forum legis: a regra de conflitos deve ser formulada em termos de conduzir à
aplicação da lei do Estado cujos tribunais têm competência. Ao invés do que a clássica regra de
conflitos se dispõem a fazer, pretende-se aqui partir da determinação da jurisdição competente para
depois se afirmar a aplicabilidade da lei desse Estado. Também aqui a lei aplicável é a lei do foro, mas
a sua identificação surge a posteriori, depois de se haver determinado o tribunal competente. O
tribunal no qual o processo fosse intentado deveria averiguar a sua competência; caso fosse
16
Maria Paixão Direito Internacional Privado – 2017/2018
competente, aplicaria a lex fori, caso concluísse pela sua própria incompetência, remeteria o processo
para o tribunal estrangeiro competente. Significa isto que um tribunal nunca aplicaria lei estrangeira.
Perspetivas próximas destas foram consagradas no Regulamento 1346/2000, respeitante à insolvência, e no
Regulamento 650/2012, sobre matéria de sucessões. De facto, em determinados domínios esta
jurisdicionalização do DIP é justificada: domínios em que há uma profunda interligação entre os aspetos
processuais e materiais do processo, o que implica a especial dificuldade de aplicação simultânea da lei
estrangeira (identificada pela regra de conflitos e aplicável às questões materiais) e da lei do foro (que sempre
será aplicável quanto aos aspetos processuais). Apesar desta vantagem, podem ser apontadas alguns
inconvenientes aos modelos referidos:
A lei do foro nem sempre será a lei que estabelece com a relação jurídica controversa a conexão mais
estreita e a lei aplicável deve ser a que apresente conexão mais estreita com a questão decidenda;
A aplicação da lei do foro conduz à insegurança e instabilidade das relações jurídicas, potenciando o
designado “forum shopping”;
Podem verificar-se competências concorrentes em matéria de jurisdição internacional.
(*) A respeito das normas de aplicação imediata e necessária pergunta-se qual a solução a conferir aos casos em que
a norma de aplicação necessária e imediata não pertence à lex fori, pertencendo a uma lei estrangeira que tem alguma
conexão com o caso. Podem identificar-se várias posições acerca desta matéria:
1. Teoria do estatuto internacional: aplicam-se internamente as normas de aplicação necessária e imediata do
(1)
foro e as (2)estrangeiras que sejam indicadas pela lex causae, não se aplicando normas de um Estado terceiro.
Crítica: esta teoria não tem em consideração normas de aplicação necessária e imediata estrangeiras.
De facto, as únicas normas de aplicação necessária e imediata estrangeiras passíveis de aplicação são as
pertencentes à lex causae. Sucede, porém, que tais normas sempre seriam aplicáveis na medida em que o
ordenamento em causa é o ordenamento aplicável. Assim, no fundo, esta conceção apenas vem introduzir a
“inovação” de permitir a aplicação de normas de aplicação necessária e imediata do foro.
2. Teoria da conexão especial (Moura Ramos): aplicam-se internamente as normas de aplicação necessária e
imediata do (1)foro e as (2)estrangeiras pertencentes ou indicadas pela lex cause ou as que tenham uma
(3)
conexão ou ligação especial com o caso No fundo, haverá que determinar se, in casu, a norma de aplicação
imediata e necessária tem “vontade de aplicação”.
Variantes desta teoria:
a) Tese da tomada em consideração: o julgador não pode aplicar normas de aplicação necessária
e imediata que não integrem a (1)lex fori ou a (2)lex causae. Porém, poderá ter em consideração
uma norma de aplicação necessária e imediata estrangeira com conexão especial com o caso
na interpretação e aplicação da lex causae.
b) Teoria da autorização expressa do DIP: o julgador só pode, em princípio, aplicar normas de
aplicação necessária e imediata que integrem a (1)lex fori ou a (2)lex cause; poderá, porventura,
aplicar normas de aplicação necessária e imediata estrangeiras, quando a lei do foro assim o
permitir (ex.: art. 9º Regulamento Roma I).
Atualmente verifica-se uma tendência no sentido da teoria da conexão especial: o reconhecimento de normas de
aplicação necessária e imediata pertencentes a ordens jurídicas estrangeiras depende da sua “vontade de aplicação”,
ou seja, da verificação de uma conexão estreita o suficiente entre a norma e a situação jurídica a solucionar.
Efetivamente, face à possibilidade de aplicação de uma norma de aplicação necessária e imediata estrangeira, o juiz
pode decidir no sentido da sua aplicação em dois casos:
O legislador nacional definiu, em disposições instrumentais, o valor a dar a normas necessárias e imediatas
estrangeiras » fala-se aqui em “regras de reconhecimento”;
O julgador entende estarem preenchidos os dois pressupostos para a aplicação da norma:
a) A norma de aplicação necessária e imediata tem “vontade de aplicação”, porque a relação jurídica
controversa estabelece com ela uma conexão mais ou menos estreita;
b) A norma de aplicação necessária e imediata apresenta uma convergência valorativa mínima com a
ordem jurídica interna, de modo que seja aceitável internamente afastar o sistema de conflitos
nacional em prol da sua aplicação.
Exemplos legislativos dessa orientação encontram-se no art. 7º/2 da Convenção de Roma e no art. 19º da lei suíça.
1.4 Conclusão
O DIP atual assume como caraterística predominante a de procurar atingir os seus objetivos utilizando diferentes
meios. O seu método é pluralista ou multidimensional. Certo que, no fundamental, a posição definida pela doutrina
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clássica se mantém inalterada – o DIP é essencialmente direito de conflitos e, por isso, as suas soluções devem, as
mais das vezes, indicar como aplicável a lei com mais estreita conexão à relação jurídica decidenda; essa mais estreita
conexão deverá ser indicada por uma regra de conflitos, seja ela uma regra de conflitos rígida ou uma regra de conflitos
“open-ended”. Isto não implica, porém, a exclusão absoluta de instrumentos e mecanismos que atenuem a rigidez do
modelo tradicional, desde que sempre em vista dos fins gerais do DIP.
Podemos esquematizar tudo o quanto tem vindo a ser dito, para melhor enquadramento, da seguinte forma:
Modos de aproximação do modelo clássico à conceção norte-americana:
(1) Apuramento do sistema (a) Especialização das regras de conflitos
(b) Cláusulas de exceção
(c) Concretização judicial princ. da proximidade
(2) Regras de conflitos materiais (materialização do DIP)
(3) Relevo dos fins das normas (a) Operação de qualificação
(b) Operação de adaptação
(c) Normas espacialmente auto-limitadas (i) De caráter restritivo
(ii) De caráter ampliador
(4) Jurisdicionalização do DIP (a) Aplicação da lex fori
(b) Competência forum ius
2. O direito internacional privado material
2.1 Noção e justificação
Um determinado setor da doutrina advoga a criação de normas de direito material especial para as relações jurídicas
internacionais. Entende-se que a internacionalização das relações jurídicas implica uma sua natureza especial, a qual
convoca uma disciplina material também especial. As normas materiais internas dos Estados são criadas tendo em
vista a sua aplicação a relações jurídicas estritamente internas, pelo que não acautelam aquela natureza material das
relações internacionais. Estas haveriam de ser reguladas, não pelas normas materiais internas de um Estado que
fossem indicadas como aplicáveis pelas regras de conflitos, mas sim por normas materiais específicas, de cariz
internacional. O antecedente histórico desta normas é o ius gentium romano, que disciplinava as relações entre
peregrinos e romanos e entre peregrinos entre si. Esta conceção assenta, fundamentalmente, em dois argumentos
que opõe ao método clássico ou conflitual:
O método clássico conflitual desatende às exigências de justiça material, pelo que nem sempre leva às
soluções mais adequadas do ponto de vista substancial;
O método clássico conflitual gera incerteza e insegurança, porquanto os sistemas de conflitos, em virtude da
sua complexidade, não são, em regra, conhecidos dos particulares.
2.2 Modalidades
As normas de direito privado internacional material pode provir de fontes diversas:
Direito privado internacional material consuetudinário: estamos aqui no domínio do ius mercatorum, isto é, o
direito espontâneo pelo qual tendem a reger-se as transações internacionais. Este direito (se assim o podemos
denominar) inclui os usos do comércio internacional, os contratos-tipo, as regras internacionais para a
interpretação dos termos comerciais, as regras e usos uniformes relativos ao crédito documentário, a
jurisprudência dos tribunais arbitrais, etc.
[Nota: os limites e os termos de aceitação deste “direito” pelos tribunais dos Estados suscita ainda sérias dúvidas ]
Direito privado internacional material jurisprudencial: as normas de DIP material pode ter origem
jurisprudencial. Esta é uma fonte pouco expressiva entre nós. Todavia, noutros Estados, nomeadamente a
França, é possível identificar-se jurisprudência firmada que constitui normas materiais de DIP.
Direito privado internacional material legislativo: existem ainda, esparsas nas legislações nacionais, normas
legais internas expressamente criadas para regular aspetos ou pontos concretos de determinadas situações
de caráter internacional (entre nós vejam-se os arts. 51º/2 e 2223º CC).
Direito privado internacional material convencional: as convenções internacionais que estabelecem normas
materiais podem ser de dois tipos:
Convenções de direito material uniforme: o direito material criado através de tais convenções visa
substituir o direito vigente nos Estados contratantes tanto no que respeita à disciplina de relações
internacionais, como à disciplina das relações puramente internas (ex.: Convenções de Genebra sobre
letras e livranças e sobre cheques).
Convenções de unificação: o direito material uniforme criado para determina área de relações jurídicas
é aplicado exclusivamente quando as relações reguladas assumam caráter internacional (ex.:
Convenção de Varsóvia).
2.3 Crítica
Esta conceção substancial do DIP não é defensável porque:
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Vinculação espacial da lei: esta conceção parte do pressuposto errado de que é possível eliminar o problema
da conexão e da escolha da lei aplicável. Em virtude do princípio da não transatividade, uma lei só poderá
disciplinar uma dada relação jurídica se com ela estabelecer uma conexão ou ligação. Consequentemente, as
normas de DIP material também só poderiam ser aplicadas se essa conexão se verificasse, o que implica a
existência de regras de conflitos para determinar a escolha das normas materiais de DIP aplicáveis in casu.
Insegurança jurídica: embora o modelo conflitual possa, de facto, desconsiderar em certa medida a justiça
material, a verdade é que no domínio do DIP haverá que prevalecer, sobre essa justiça material, a segurança
jurídica, a qual fica comprometida na medida em que as normas de DIP material poderiam ser aplicadas a uma
relação jurídica que com elas não tem relação. O DIP carateriza-se, especificamente, por procurar determinar
como aplicável a lei com mais estreita conexão à relação jurídica, de modo a que o regime jurídico aplicável
seja previsível para as partes. Este escopo sairia gorado com um DIP material, em que as normas substantivas
não seriam aplicadas segundo um critério formal de maior proximidade.
Ausência de especificidade das situações internacionais: as relações jurídico-privadas não apresentam
verdadeiramente diferenças estruturais em virtude da sua internacionalização. A internacionalidade poderá
assumir-se como fator de relevo apenas nos casos em que uma situação jurídica internacional convoca a
aplicação de leis contraditórias entre si. Porém, o DIP prevê mecanismos próprios para fazer face a esta
eventualidade, solucionando as incompatibilidades legislativas que possam surgir.
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Ambas estas questões ficarão respondidas infra pelo que nos limitares agora a considerações genéricas.
Impõe-se dizer, desde já, que em função dos interesses que se fazem valer nos vários setores do direito internacional
privado, optar-se-á, nos diversos casos, ou por um sistema de conexão única ou por um sistema de conexão plúrima:
Sistema de conexão única: a regra de conflitos fixa um único elemento de conexão, ou seja, um único facto ou
circunstância que permite estabelecer conexão entre uma matéria incluída no domínio do conceito-quadro e
um determinado ordenamento jurídico (a lei identificada na consequência jurídica em termos abstratos).
NOTA: este sistema não implica necessariamente a determinação de uma só lei – há fatores de conexão que
podem eventualmente levar-nos por duas ou mais vias (nas palavras de Wengler: “two or more ways allocating
factors”). Em tais casos, deverá afastar-se a tese de que aplicação simultânea dessas leis corresponde ao
sentido da regra de conflitos. O que haverá de fazer-se é selecionar uma das conexões, segundo igual critério
ao que levou à escolha do elemento de conexão utilizado pela norma de conflitos.
[Ex.: sendo o elemento de conexão a nacionalidade da pessoa – ex.: art. 49º CC – poderá suceder que a pessoa tenha
dupla nacionalidade. Em tais casos haverá que escolher a nacionalidade “mais efetiva”, que será aquela que traduza, in
concreto, a vinculação mais viva e real entre o indivíduo e o Estado – é este o critério que leva também à identificação da
nacionalidade como elemento de conexão (procura-se aplicar a lei do Estado com o qual o indivíduo estabelece um laço
mais forte e duradouro).]
Sistema de conexão plúrima: a regra de conflitos estabelece dois ou mais elementos de conexão atendíveis
num único domínio (conceito-quadro). Das leis possivelmente aplicáveis em virtude da convocação dos vários
elementos de conexão, haverá que aplicar aquela que conduza a uma espécie de resultado tido a priori como
mais justo. Portanto, da articulação do conceito-quadro com o elemento de conexão da regra de conflitos
resulta a possibilidade de identificação, em abstrato, de várias consequências jurídicas, na medida em que a
lei admite a consideração de diversos elementos de conexão – seria o caso de regra de conflitos associar ao
conceito-quadro x (ex.: casamento) os elementos de facto y e z (ex.: nacionalidade ou residência habitual),
podendo aplicar-se ao caso ou a lei do Estado relativamente ao qual se verifica a conexão y ou relativamente
ao qual se verifica a conexão z (ex.: lei do Estado da nacionalidade ou lei do Estado da residência habitual).
Nesta hipótese, o juiz optaria por ou outro elemento de conexão através da ponderação da justeza do
resultado obtido em um e outro caso, tendo em vista o fim da regra de conflitos.
NOTA: não pertencem a esta categoria as regras de conflitos que, oferecendo embora um leque de soluções,
querem que o juiz determine em cada caso a conexão mais estreita ou significativa. O que sucede aqui é que
o processo de escolha da conexão relevante não ficou “perfeito” na fase de criação legislativa da norma de
conflitos, devendo ser completado na fase subsequente de aplicação. Aqui não são identificadas várias
conexões, todas elas igualmente válidas do ponto de vista da proximidade com a relação jurídica a regular, de
entre as quais o juiz escolherá a que traduz um resultado “mais justo”; o que sucede é, verdadeiramente, que
o legislador identificou algumas possíveis conexões, remetendo para o julgador selecionar aquela que em
concreto traduz “maior proximidade” com a relação a regular (a questão já não é a justeza do resultado, mas
antes a realização mas efetiva do princípio da proximidade). Aqui não estamos em face de normas de conexão
plúrima, mas antes de normas de conexão única ainda não especificada na regra de conflitos.
Dentro desta última categoria – sistema de conexão plúrima – podem identificar-se vários modelos:
Sistema de competência cumulativa: a regra de conflitos subordina a produção de um certo evento jurídico ao
acordo de duas leis, ou seja, à satisfação dos requisitos estabelecidos em cada uma delas. Pretende-se, com
este sistema, evitar a criação de situações que não possam aspirar ao reconhecimento num dos Estados com
elas mais estreitamente conexos. Aqui o elemento de conexão da regra de conflitos indica dois ou mais factos,
que convocam leis diversas, mas não impõe a escolha de um deles, antes impondo a conformidade com as
várias leis assim selecionadas. A consequência jurídica traduzir-se-á na aplicação de várias leis, as quais são
implicadas pelos vários elementos de conexão enunciados para o conceito-quadro em causa, devendo ser
aplicadas essas várias leis de forma cumulativa ou simultânea. Este sistema não é, certamente, recomendável
como critério geral e dele só encontramos raras aplicações nas legislações mais recentes. Aliás, este modelos
é criticável pois, como observa Batiffol, ele “promete” aplicar cumulativamente as várias leis convocadas, mas
efetivamente aplica apenas uma delas – a mais rigorosa e restritiva, que, por o ser, acaba por “absorver” a
outra (se estão preenchidos os requisitos da lei mais rigorosa, então estão também preenchidos os requisitos
da lei menos rigorosa). Porque assim é, este sistema levaria graves obstáculos à atividade jurídica das pessoas
e travaria o desenvolvimento das relações internacionais. Além de que nada garante que a lei mais restritiva
é aquela com maior proximidade à relação jurídica controversa.
[Ex.: uma regra de conflitos, por ex. relativa à matéria da adoção (conceito-quadro), poderia fixar como elementos de
conexão a nacionalidade do adotante e a nacionalidade originária do adotado. Assim, a consequência jurídica
determinaria como aplicáveis a lei do Estado da nacionalidade do adotante e a lei do Estado da nacionalidade originária
do adotado, segundo a qual se regulam as relações deste com a sua família biológica. ]
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NOTA:
Aplicação cumulativa de leis Aplicação distributiva de leis
= aplicação simultânea de várias leis, exigindo-se o = aplicação de várias leis a uma só relação jurídica, mas
preenchimento dos requisitos enunciados em cada uma em termos de a matéria a disciplinar ser repartida por
delas cumulativamente e em relação à globalidade da essas leis (uma lei regula alguns aspetos, e outra regula
relação jurídica decidenda outros) – ex.: aplicação, a cada nubente, dos
impedimentos da lei da sua nacionalidade
Sistema de conexão subsidiária: a regra de conflitos consagra, além do elemento de conexão primário (que
deve ser atendido em primeira linha), um elemento de conexão sucedâneo daquela, a atender apenas quando
aquele primeiro faltar ou se quando se tornar impossível averiguar o conteúdo do direito estrangeiro
designado através daquela primeira conexão. Este sistema destina-se fundamentalmente a obviar a situações
de impasse, identificando um elemento subsidiário a atender em tais casos.
[Ex.: a regra de conflitos pode determinar como elemento de conexão a nacionalidade do sujeito. Porém, no caso de o
sujeito ser apátrida, a regra de conflitos não permitiria a identificação da lei aplicável e o julgador encontrar-se-ia perante
um “beco sem saída”. Assim não será se a regra de conflitos previr um elemento de conexão subsidiário (por ex.: a
residência habitual), que será convocado nestes casos. ]
Podemos identificar um tipo de regras de conflitos que, de certa forma, também consagram uma conexão subsidiária:
são as normas que fazem depender a relevância do elemento de conexão de determinada condição. É o que se passa,
desde logo, em matéria de “reenvio”: há uma regra de conflitos interna que determina como aplicável a lei x, em
virtude de ser em relação ao Estado dessa lei que se verifica o elemento de conexão em concreto; porém, tal lei só
será aplicável se essa lei de declarar, ela própria, como competente (é esta a condição exigida). Caso a lei x não se
auto-declare como competente, em consonância com o disposto na regra de conflitos interna (que manda aplicar
aquela lei), aplicar-se-á, subsidariamente, a lei que for indicada como competente pelo sistema de conflitos do Estado
da lei x (portanto, não se aplica o elemento de conexão referido pela regra de conflitos interna, mas antes aquele
identificado pela lei (x) que seria competente se o sistema de conflitos aplicável fosse o interno).
Noutros casos ainda, a não verificação da condição terá por consequência a aplicação de um sistema jurídico designado
também pela lei do foro, mas agora segundo um elemento de conexão subsidiário interno. É o caso de a regra de
conflitos estipular que como elemento de conexão para a matéria sucessória (conceito-quadro) a nacionalidade do de
cujus, mas salvaguardando a convocação da situação dos bens como elemento de conexão subsidiário, quando a
respetiva lei (a lei do Estado da situação dos bens) se considerar exclusivamente competente. Portanto, aqui haverá
que verificar se a lei identificada pela regra de conflitos interna como supletivamente aplicável se considera
competente. Caso ela se declare como competente, é essa a lei aplicável (a qual foi identificada através de um
elemento de conexão subsidiário); caso essa lei não se declare como competente, então o elemento de conexão
atendível será o elemento primário ou principal (nacionalidade do de cujus).
Por último, há ainda regras de conflitos em que a condição de que depende a mobilização do elemento de conexão
primário está ligada ao conteúdo jurídico-material da lei que assim seria aplicável. A regra de conflitos identifica o
elemento de conexão x, para o conceito-quadro y, mas condiciona a aplicação da lei respeitante àquele elemento de
conexão (consequência jurídica) ao conteúdo material dessa lei. O que se pergunta é se a solução resultante da
aplicação do elemento de conexão primário da regra de conflitos é adequada do ponto de vista do legislador nacional.
Caso se conclua pela inadequação, haverá que mobilizar o elemento de conexão subsidiário (z), o qual convocará uma
lei diversa.
Em suma, podem identificar-se 3 casos de conexão subsidiária condicionada:
A condição é a declaração de competência da própria lei definida como aplicável
Na não verificação da condição, recorre-se ao sistema de conflitos da lei aplicável segundo sistema interno
A condição é a não declaração de competência por parte de outra lei (que não a lei indica pela conexão)
Na não verificação da condição, aplicar-se-á essa outra lei que se declara competente
A condição é a adequação material do resultado obtido com a aplicação da lei designada pela regra de conflitos
Na não verificação da condição, mobiliza-se um outro elemento de conexão, que convocará outra lei
De um modo esquemático, esta matéria resulta no seguinte:
Sistemas de consagração do elemento de conexão
Conexão única Conexão plúrima
Subsidiária Cumulativa
Stricto sensu;
Condicionada.
2. Relevância do fator tempo na atuação da regra de conflitos
2.1 Sucessão de regras de conflitos do foro
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A questão suscitada manifesta a interligação entre o DIP e o direito transitório. Pergunta-se: se num caso concreto
forem colocadas questões respeitantes a uma sucessão temporal de normas de DIP e a uma sucessão temporal de
normas materiais, como solucionar o problema?
Sobre esta questão foram apresentadas propostas diversas:
1. Zitelmann: em 1º lugar haverá que resolver a questão de DIP, encontrando-se a regra de conflitos aplicável e
a lei que, através dela, é considerada aplicável; em 2º lugar, resolver-se-á a questão de direito transitório,
designadamente a questão de saber se tal regra de conflitos pode ser convocada atenta a sucessão no tempo.
Entende o autor que uma nova norma de DIP não pode ser aplicada retroativamente, porquanto essa aplicação
retroativa implicaria, por um lado, a violação de direitos adquiridos e, por outro lado, a admissibilidade da
aplicação retroativa de direito material (pois a nova norma de conflitos manda aplicar a uma relação jurídica
verificada no passado um direito material que pode ser também novo). Em suma, aplicar-se-ia a norma de DIP
vigente no momento da constituição da relação jurídica.
2. Kan: as normas de conflitos poderão ser aplicadas retroativamente pois que aqui, ao invés do que sucede nas
normas materiais, o problema da sucessão convoca fatores espaciais, além dos típicos aspetos temporais. Nos
casos em que os direitos estrangeiros são os únicos aplicáveis (a mobilização das regras de conflitos novas ou
antigas apenas determina a aplicação do direito estrangeiro A ou do direito estrangeiro B, nunca sendo
chamada a lei do foro a regular a situação – nem pela lei antiga, nem pela lei nova) não faz sentido perguntar
se a relação a disciplinar se constitui antes ou depois da alteração das regras de conflitos. Se a relação jurídica
não tem qualquer ligação com o ordenamento jurídico do foro, é aplicável a nova regra de conflitos, porque a
lei material por ela designada será sempre uma lei estrangeira (e não a lei material do foro, que também sofreu
alteração). Em tais casos, qualquer uma das leis estrangeiras estará, de um forma ou de outra, conexionada
com a relação jurídica, pelo que não importa se é aplicável uma ou outra, em função da convocação da regra
de conflitos antiga ou nova. Nas palavras do autor: “com a alteração da regra de conflitos não temos uma
alteração no círculo das leis «eficazes», mas apenas uma alteração do critério de escolha de uma dessas leis”.
E um dos princípios fundamentais de DIP é o de que a quaisquer factos podem ser aplicadas quaisquer leis
estrangeiras que com ele estejam em contacto. A alteração do critério de conexão não é relevante, pois em
todo o caso haverá ligação à relação jurídica.
Esta conceção só não operará quando a nova regra de conflitos é, em si mesma, regra de direito material (por
ex. porque procura garantir a validade de certas situações jurídicas) e a situação a disciplinar não tem qualquer
conexão com o ordenamento do foro (pois aqui não faz sentido aplicar uma regra de conflitos que imporá um
regime material quando a relação jurídica não se relaciona com o ordenamento jurídico em que esse regime
material se insere, o ordenamento do foro).
O que se entende, entre nós, é que o princípio da não retroatividade é convocado especificamente pela natureza
material das normas jurídicas. Assim sendo, no seu âmbito de abrangência caem apenas as normas jurídico-materiais,
normas que pela sua natureza específica são limitadas tanto no espaço como no tempo. Ora, as regras de conflitos
não são regras materiais, assumindo, ao invés, um caráter formal. Deste modo, são entram, em princípio, no cômputo
daquele princípio, o que significa que a elas não se impõe uma limitação temporal de aplicação. Nestes termos, as
regras de conflitos podem ser aplicadas retroativamente, podendo disciplinar questões já constituídas antes da sua
entrada em vigor. O princípio que norteia as normas de conflitos nesta matéria é o princípio da conexão mínima,
segundo o qual, como exposto, a aplicação de uma lei a determinada situação jurídica depende de um mínimo de
conexão entre essa situação e a lei a aplicar. O critério decisivo para saber se uma regra de conflitos é ou não aplicável
in casu não é o momento da constituição da relação jurídica decidenda, mas antes a conexão estabelecida, nessa regra,
entre a relação jurídica e a lei aplicável. Em suma: sempre que a sucessão de leis ocorra no ordenamento jurídico do
foro e a lei aplicável, segundo a regra de conflitos, seja uma lei que não a do foro, as regras de conflitos aplicar-se-ão
retroativamente, pois não têm natureza material (não se colocam problemas de legítimas expetativas). Só assim não
será se: por um lado, a regra de conflitos assume, ela própria, natureza material (porque estabelece um regime
material, além de um critério de escolha da lei aplicável, ou porque foi determinante para a atuação dos particulares);
ou, por outro, se a lei aplicável é a lei do foro (há também um problema de sucessão no direito material aplicável).
2.2 Sucessão de leis no ordenamento jurídico aplicável
Identificada a lei aplicável, através da mobilização da regra de conflitos, poderá o julgador deparar-se com uma
situação de sucessão de normas no âmbito desse direito aplicável: o regime material aplicável ao caso sofreu uma
alteração, de tal modo que o regime vigente no momento da constituição da relação já não é aquele que vigora quando
o problema se coloca em sede jurisdicional. Estamos aqui no domínio do conflito transitório do direito estrangeiro
aplicável. Ora, perante uma hipótese de sucessão de normas aplicáveis, deve dar-se à lex causae a tarefa de indicar os
princípios com base nos quais se optará pelo regime anterior ou pelo regime novo. Só deste modo se consegue a
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aplicação do direito estrangeiro nos mesmos termos em que ele seria aplicado por um julgador desse Estado, o que
contribuirá certamente para a harmonia jurídica internacional.
A esta conceção devem, porém, admitir-se duas ressalvas:
1. Casos em que o direito transitório da lex causae acolhe uma solução contraditória com o sentido da atribuição
da competência ao direito estrangeiro;
2. Casos em que a aplicação do direito intertemporal estrangeiro conduz a resultados incompatíveis com a ordem
pública internacional do Estado do foro.
2.3 Conflito móvel
O “conflito móvel” traduz-se na mudança na concretização do fator de conexão, implicando a determinação da
influência que as mutações verificadas nas circunstâncias de facto ou de direito em que se funda a fixação da lei
aplicável poderão ter em situações jurídicas pré-existentes a essas mutações. Note-se que o que muda, neste contexto,
não é nenhum elemento da regra de conflitos, mas sim os concretos factos do caso. Como exemplo poderá apontar-
se a hipótese de a regra de conflitos indicar como elemento de conexão a nacionalidade e o sujeito envolvido ter a
nacionalidade x no momento da constituição da relação jurídica mas, renunciando àquela primeira entretanto,
apresentar a nacionalidade y no momento em que a controvérsia é suscitada. A regra de conflitos mantém-se; o que
sofre uma mutação é a concretização do elemento de conexão no caso concreto.
Este problema pode, desde logo, ser solucionado pelo legislador, caso em que se atenderá à disposição normativa que
dispõe sobre a matéria (ex.: art. 29º CC). Nos casos em que não houver disposição normativa mobilizável o problema
do conflito móvel deve resolver-se face a cada norma de conflitos singular, tendo em conta as razões que estão na
base da escolha do elemento de conexão que ela indica. Não é possível obter uma solução satisfatória através do
recurso a uma fórmula geral, sendo necessária uma ponderação concreta.
Esta é a conceção acolhida entre nós, mas não é a única. Diferentes são as posições dos autores que entendem ser
possível fixar um critério abstrato para a resolução do problema:
a) Pillet: a fórmula geral a mobilizar nos casos de conflitos móveis é a do respeito pelos direitos adquiridos –
permanece a configuração da relação jurídica tal como ela era no momento da constituição da relação,
adquirindo o sujeito os direitos que lhe seriam reconhecidos se a relação se mantivesse inalterada.
b) Rigaux: a fórmula geral a mobilizar nos casos de conflitos móveis é a da consideração da concretização do
fator de conexão que se tenha verificado em último lugar (mais perto do momento da decisão).
A posição defendida surge, então, como relativizadora, ao invés de absoluta como as duas acabadas de expor: haverá
que interpretar, caso a caso, a regra de conflitos para saber quais os motivos que sustentam a escolha do elemento
de conexão, para com base nesses motivos se determinar qual a situação fáctica a atender.
Os mais importantes fatores de conexão variáveis são a nacionalidade, o domicílio ou a residência de uma pessoa, e a
localização de uma coisa móvel. Atente-se então nas soluções defensáveis para dois domínios importantes:
Estatuto pessoal em matéria de matrimónio: a lei pessoal a atender será a correspondente à nacionalidade
dos sujeitos no momento atual » há uma adesão voluntária a uma nova comunidade nacional, pelo que há
como que uma vontade de sujeição ao regime do estatuto pessoal aplicável a essa comunidade.
Porém, em matéria de validade de negócios jurídicos (ex.: casamento ou divórcio) o ordenamento jurídico a
considerar é o correspondente à conexão existente no momento da celebração do negócio, pois só assim se
garante o reconhecimento de situações jurídicas constituídas no estrangeiro.
Estatuto real sobre coisas corpóreas: a lei aplicável será a lei do Estado em que se encontra o bem no momento
atual (a lei da situação atual da coisa) » há interesses gerais do comércio jurídico que levam a preferir o situs
rei como conexão preponderante.
Isto sem prejudicar, note-se, os direitos anteriormente constituídos ao abrigo da lei do Estado em que a coisa
se encontrava inicialmente situado.
3. Função da regra de conflitos
3.1 Sistemas de regras de conflitos
Sistemas de normas de conflitos
Bilaterais Unilaterais
= as normas de conflitos indicam a lei especificamente = as normas de conflitos limitam-se a delimitar o
competente para dirimir a questão jurídica decidenda domínio de aplicação das leis materiais do
subsumível ao conceito-quadro, tanto nos casos em ordenamento jurídico em que vigoram, ou seja, indicam
que a lei aplicável é a do foro como naqueles em que tão-só os casos em que vigora a lex fori (não
essa lei é estrangeira identificando a lei estrangeira aplicável)
Esquema das regras de conflitos: «a matéria x (conceito- Esquema das regras de conflitos: «a matéria x é solucionada
quadro) é regulada pela lei do Estado com o qual se verifica a pela lei interna sempre que se verifique entre a situação
conexão y (elemento de conexão”)» concreta e o ordenamento interno a conexão y»
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! Sublinhe-se, então, que os sistemas unilaterais não prescrevem a aplicação da lex fori para todos os casos.
Efetivamente, o que as regras de conflito unilaterais fazem é enunciar as hipóteses em que a lex fori é aplicável; fora
desses casos, será aplicada uma lei estrangeira – lei essa que não é identificada pela regra de conflitos (ao invés do
que sucede com as regras de conflitos bilaterais, que identificam também qual a lei estrangeira aplicável).
Note-se ainda que, entre as normas unilaterais e as normas bilaterais, podem identificar-se as designadas “normas de
conflitos imperfeitamente bilaterais”: normas que determinam tanto a aplicação do direito local como a de leis
estrangeiras, mas que, no entanto, apenas se ocupam de certos casos caraterizados pela existência de determinados
elementos que os relacionam com a vida jurídica do Estado do foro – ex.: art. 51º/1 e 2 CC, quanto à forma do ato »
só é atendido o casamento celebrado entre portugueses ou entre português e estrangeiro, para o qual se prescreve a
aplicação da lei pessoal de um dos nubentes (a regra de conflitos indica os casos de aplicação da lei portuguesa e os
casos de aplicação da lei estrangeira, quando um dos nubentes seja português), nada sendo referido quanto à lei
aplicável no caso do casamento ser celebrado entre dois estrangeiros.
3.2 Sistemas de regras de conflitos unilaterais
No contexto das vertentes unilateralistas podemos identificar várias propostas:
1. Unilateralismo extroverso: a regra de conflitos tem como função chamar um determinado ordenamento
jurídico estrangeiro e inserir o direito estrangeiro no ordenamento interno. O princípio geral em matéria de
conflitos de leis é, segundo esta perspetiva, o princípio da aplicação da lei do foro – no silêncio do sistema de
conflitos, a lei aplicável é sempre a lei do foro. As regras de conflitos limitam-se, então, a determinar os casos
excecionais em que é aplicada lei estrangeira. Desta forma, as regras de conflitos delimitam indiretamente o
âmbito de aplicação da lei do foro: caem nesse âmbito todas as questões não remetidas por regras de conflitos
para o âmbito de ordenamentos jurídicos estrangeiros. Uma vez que se pretende que o juiz não tenha que
aplicar lei estrangeira, nos casos em que as regras de conflitos mandam aplicar lei estrangeira (os casos
excecionais que não se reconduzem ao princípio geral) serão aplicadas normas internas que foram criadas de
forma a incorporar regras materiais idênticas às que vigoram no ordenamento jurídico competente à luz da
regra de conflitos.
Crítica: esta conceção assenta numa negação da autonomia do DIP em face do direito material: por
um lado, elabora um conceito de regras de conflitos que assume natureza material (ao pretender incorporar
internamente soluções jurídicas materiais consagradas em outros ordenamentos); por outro lado, posterga
para segundo plano as finalidades do DIP, já que apenas indiretamente as regras de conflitos cumprem a sua
função de identificar a lei aplicável (neste caso, quando a lei do foro é aplicável).
2. Unilateralismo introverso: as regras de conflitos visam, fundamentalmente, indicar os casos em que é aplicável
a lei material interna. Fora destes casos, será aplicável lei estrangeira, não selecionada pelo sistema conflitual
interno. Isto porque a aplicação de uma norma material depende da sua “vontade de aplicação”, o que
significa que haverá que procurar nas ordens jurídicas estrangeiras com conexão com a situação jurídica
decidenda qual a lei que tem pretensão de se aplicar ao caso. A aplicação de lei estrangeira depende, então,
do preenchimento de dois requisitos:
a) Não inclusão da situação concreta no âmbito de aplicação da lex fori – as regras de conflitos não
prescrevem para essa situação a aplicação da lei interna;
b) Existência da conexão considerada relevante pela lei estrangeira para a determinação da lei aplicável
– o ordenamento jurídico estrangeiro tem vontade de aplicação, já que se verifica na situação concreta
a conexão acolhida no sistema de conflitos desse ordenamento jurídico como conexão a atender no
domínio em causa.
A razão para que, preenchido este condicionalismo, se aceite a competência da lei estrangeira é o designado
“princípio da adaptação da ordem do Estado às ordens estrangeiras” ou “princípio de coordenação com as
ordens estrangeiras”. Através deste princípio salvaguarda-se a harmonia internacional das decisões e a
continuidade das relações internacionais.
O autor que encabeça esta conceção é Rolando Quadri
A conceção de Quadri é extremamente atrativa, pelo modo como resolve alguns dos problemas apontados aos
sistemas bilaterais:
Soberania estadual » poderá criticar-se a atitude do Estado que pretende determinar o âmbito de aplicação
de leis pertencentes a ordenamentos jurídicos estrangeiros, pelo que ao Estado deve caber unicamente a
determinação do âmbito de aplicação da sua própria lei material.
Críticas:
O conflito de leis não deve ser visto como conflito de soberanias, já que o DIP não deve ser
considerado como sistema de normas tendentes a coordenar as soberanias estaduais.
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A determinação do âmbito de aplicação de leis estrangeiras não colide com a soberania dos
Estado pois, se a aplicação de lei estrangeira estivesse relacionada com a soberania
estrangeira, então também os Estados nunca poderiam aplicar lei estrangeira, e isso não
corresponde à realidade.
Harmonia jurídica internacional » a lei aplicável será a mesma do ponto de vista de todos os Estados na medida
em que cada um deles se limita a fixar os casos em que a sua própria lei é aplicando, procurando a lei aplicável
para as demais situações no seio dos ordenamentos jurídicos estrangeiros. Obsta-se, desta forma, a que sejam
diferentes os resultados alcançados nos vários Estados, em virtude de todos eles se arrogarem a competência
para fixar critérios de aplicação de lei estrangeira e de cada um deles consagrar diferentes elementos de
conexão como critérios.
Reconhecimento de direitos adquiridos » as situações jurídicas constituídas no estrangeiro só serão
reconhecidas internamente se válidas à luz da lei competente e lei competente será aquela que o sistema de
conflitos interno indicar como tal. Assim, se cada Estado indicar como competente uma determinada lei
estrangeira (em vez de se limitar a indicar os casos em que pretende aplicar a sua própria lei), muitas vezes
não serão reconhecidas situações constituídas no estrangeiro, porque no local da constituição a lei
competente é diversa da lei competente para o ordenamento jurídico interno. Tal problema deixa de se
colocar se cada Estado se limitar a designar os casos em que a lei interna é aplicável, buscando a lei estrangeira
aplicável nos demais casos aos ordenamentos jurídicos respetivos – a lei competente será, portanto, igual para
todos os Estados, o que significa que as relações jurídicas constituída no estrangeiro sempre serão
reconhecidas a nível interno.
Contudo, há problemas inerentes a esta construção que a desfavorecem consideravelmente:
Problema do cúmulo jurídico: o modelo apresentado não dá resposta aos casos em que duas leis estrangeiras
se declaram simultaneamente como aplicáveis à mesma situação.
O próprio Quadri responde a esta questão apresentando a solução de se buscar a lei à qual a situação concreta
esteja ligada por um vínculo mais forte. Isto porque, por um lado, não seria razoável recorrer a um critério
substancialista (que atendesse aos resultados materiais que resultariam da aplicação das diversas normas
aplicáveis) e porque, por outro, não parece razoável deixar ao arbítrio do juiz a decisão de escolher a lei a
aplicar. Daqui decorre que, afinal, teria de ter lugar a “escolha” de uma das leis estrangeiras abstratamente
aplicáveis, o que significa, no fundo, a adoção de um modelo bilateralista. De facto, embora o autor renuncie
à elaboração de verdadeiras regras de conflitos que permitissem identificar a lei aplicável de entre as várias
lei estrangeiras com vontade de aplicação, ele reconhece que tem que ser feita uma escolha e que essa escolha
deverá respeitar o critério da conexão espacial mais estreita. Oferecendo esta solução, o próprio Quadri acaba
por reconhecer o “falhanço” do seu sistema, na medida em que aquela “escolha” é, ao fim e ao cabo, a que
carateriza os modelos bilaterais.
Problema do vácuo jurídico: o modelo expostos não apresenta solução para os casos em que nenhuma lei
estrangeira em contacto com a relação jurídica apresenta vontade de aplicação.
Quadri não apresenta um critério para solucionar este problema, defendendo que ele seria uma pura hipótese
teórica, não verificável na prática. Já um outro autor, De Nova, na linha do pensamento do primeiro, defende
a criação de uma regra especial segundo a qual será selecionada a lei que melhor salvaguarde as expetativas
das partes. Também aqui essa seleção/escolha da lei estrangeira aplicável acaba por demonstrar a
insuficiência do método unilateral, pois corresponde à convocação de regras de conflitos bilaterais. Aliás, mais
do que no caso de cúmulo jurídico, este falhanço do método unilateral é aqui evidente: além de se “escolher”
a lei estrangeira aplicável, estar-se-ia a aplicar uma lei estrangeira que não tinha sequer vontade de aplicação.
A estas críticas que podem ser apontadas ao sistema unilateral acresce ainda um outro aspeto de relevo: os sistemas
bilaterais consagram hoje expedientes capazes de fazer face aos problemas da desarmonia jurídica internacional e do
não reconhecimento dos direitos adquiridos. Como referido, um dos alicerces dos sistemas unilaterais é a crítica
apontada aos sistemas bilaterais quanto a esses dois pontos. Todavia, hoje eles já não podem ser considerados como
falhas dos sistemas bilaterais, porquanto estes consagram instrumentos de correção e de ajustamento que visam
obviar a esses inconvenientes.
3.3 A doutrina da autolimitação espacial da regra de conflitos
Num plano intermédio, entre os sistemas bilaterais e unilaterais, cumpre analisar as correntes “anfíbias”, das quais é
expoente máximo a doutrina da autolimitação espacial da regra de conflitos de Francescakis. Segundo este autor,
perante um problema de conflitos de regras de conflitos (quando os diversos ordenamentos jurídicos envolvidos não
estão de acordo quanto à lei aplicável), o ponto de partida é o reconhecimento de o âmbito de aplicação das regras
de conflitos de um sistema jurídico não é ilimitado – as regras de conflitos são espacialmente auto-limitadas. Daqui
resulta ser necessário distinguir entre duas modalidades de relações internacionais:
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Relações jurídicas internacionais que, embora não estejam conexionadas com o ordenamento jurídico interno
(do foro) segundo o facto considerado por esse ordenamento como elemento de conexão, estabelecem com
ele outros contactos.
Aplicam-se aqui as regras de conflitos do foro, que serão regras bilaterais
Relações jurídicas internacionais constituídas em país estrangeiro e totalmente desconexionadas com o
ordenamento jurídico interno (do foro).
Não se aplicam as regras de conflitos do foro, pois a relação jurídica já não entra no seu âmbito de aplicação
A lei aplicável seria a lei que tiver sido efetivamente aplicada (em regra, a lei que presidiu à constituição
da relação jurídica), sem que deva submeter-se a sua competência a um controlo prévio.
A esta perspetiva anfíbia podem apontar-se as seguintes críticas:
O autor responsável por esta conceção justifica-a com base no interesse da ordem jurídica interna em vigiar
as situações que consigo têm conexão, ainda que tal conexão não seja necessariamente a prevista como
elemento de conexão na regra de conflitos. Esta justificação não justifica, só de per si, a perspetiva exposta,
na medida em que um sistema bilateralista (não mitigado) também cumpre este desiderato, nomeadamente,
através da exceção de ordem pública internacional.
As regras de conflitos são sobretudo regulae decidendi (= normas que resolvem conflitos de leis, ou normas
sobre normas) e não regulae agendi (= normas de conduta, influenciadoras do comportamento individual dos
sujeitos). Dai que não se desvele qualquer fundamento para que as regras de conflitos sejam espacialmente
auto-limitadas (esta limitação só faz sentido para regras materiais, as quais devem estar ao alcance do
conhecimento dos sujeitos a elas sujeitos).
O modo de resolução das questões envolvendo relações totalmente desligadas do ordenamento do foro no
momento da sua constituição pressupõe, erradamente, que o Estado do foro não terá em caso algum interesse
em ver aplicadas as suas próprias normas materiais.
O modo de resolução das questões envolvendo relações totalmente desligadas do ordenamento do foro no
momento da sua constituição aceita que o Estado deva renunciar a todo e qualquer controlo prévio da
competência do sistema jurídico estrangeiro aplicado, com base na constatação de que foi esse o sistema
efetivamente aplicado. Ora, se deve evitar-se o lex forismo, não é menos verdade que também não deverá
cair-se na solução radical oposta de admitir a produção de efeitos baseada na aplicação de uma lei estrangeira
sem qualquer controlo por parte do sistema conflitual do foro.
3.4 A solução adotada no direito português
Atualmente, não há notícia de qualquer codificação recente de DIP que se tenha inspirado no modelo unilateralista.
Além de disposições avulsas inseridas no seio de sistemas bilaterais que se podem classificar como regras unilaterais,
não há, efetivamente, sistemas de conflitos unilaterais identificáveis no plano internacional.
Assim sendo, também o nosso sistema conflitual é tipicamente bilateralista – as regras de conflitos internas
identificam, não só os casos em que a lei portuguesa é aplicável, mas também a lei estrangeira concretamente aplicável
nos demais casos.
Batista Machado introduz uma nuance ao entendimento do modelo bilateralismo: a regra de conflitos pode designar
como aplicáveis tanto a lei do foro como a lei estrangeira, mas quanto àquela primeira função (determinar como
aplicável o ordenamento do foro), a regra de conflitos só intervém nas hipóteses dotadas de elementos de
estraneidade, e não já nos casos de relações “puramente internas”, em que a lei do foro sempre seria aplicável
directamente, ou só de per si. Deste modo o autor pretende demonstrar que a norma de conflitos cumpre uma função
puramente subordinada (é verdadeiramente uma “norma sobre normas”), não se assumindo como disciplinadora de
relações não internacionais. O autor pretende assim imunizar a sua posição bilateralista às críticas dos unilateralistas,
nomeadamente a de que, na tese bilateralista, o legislador estadual estaria a usurpar uma autoridade supraestadual,
ao assumir o intuito de repartir as competências pelos diversos Estados. Esta função é cumprida pelo princípio da não
transatividade (= a qualquer relação jurídica aplica-se, e só se aplica, a lei que com ela tenha algum contacto), o qual
implica que a relações puramente internas só possam ser aplicadas normas internas – daí a irrelevância da intervenção
de normas de conflitos neste domínio. Ficaria assim demonstrado que as regras de conflitos visam tão-só solucionar
conflitos de leis, não se arrogando a qualquer outra função (daí que, no caso das relações puramente internas, se não
há conflito de leis, então também não há intervenção de uma regra de conflitos).
Importa referir ainda que os sistemas bilateral e unilateral não são totalmente antitéticos, sendo frequente encontrar
em sistemas bilaterais algumas regras unilaterais introversas avulsas (ex.: art. 28º/1 e 2 CC – todavia, o legislador
procede à sua bilateralização no nº 3).
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Como exposto, a regra de conflitos compreende três elementos: (1) conceito-quadro, (2) elemento de conexão e (3)
consequência jurídica. O conceito-quadro cumpre a função de delimitar o campo de aplicação da norma; o elemento
de conexão identifica o facto ou aspeto cuja verificação liga a relação a uma dada ordem jurídica; e a consequência
jurídica traduz a associação de uma lei ao tipo de problemas jurídicos em causa.
Ora, a delimitação que compete ao conceito-quadro é efetuada por meio de conceitos técnico-jurídicos. Estes
conceitos têm a caraterística peculiar de incorporar uma multiplicidade de conteúdos jurídicos, não se limitando a
referir um único problema. De resto, a sua extensão é muito variável: se alguns designam uma das grandes divisões
clássicas do sistema de direito privado (ex.: direitos reais, obrigações, sucessões, etc.), outros referem-se aos negócios
jurídicos em geral ou a certa categoria de negócios jurídicos (ex.: contratos), ou mesmo a um aspeto isolado da sua
regulamentação (ex.: forma, capacidade das partes, etc.), ou ainda a determinado instituto (ex.: filiação, divórcio, etc.).
A natureza destes conceitos – conceitos técnico-jurídicos, e não conceitos puramente descritivos – faz emergir
delicados problemas, atinentes, quer à 1interpretação, quer à 2aplicação. São eles que no seu conjunto constituem o
problema da qualificação em direito internacional privado.
2. O problema da interpretação
O primeiro dos problemas referidos é o problema da interpretação dos conceito-jurídicos. Pergunta-se: qual o critério
geral a utilizar nessa tarefa interpretativa? Será a interpretação realizada segundo as disposições materiais do foro?
Ou será efetuada com base no regime material da lex causae?
Como é óbvio, esta questão não se poria se de meros conceitos descritivos se tratasse. Nesta hipótese, tudo se
resumiria à descrição das situações factuais contidas na previsão normativa e depois, face ao caso concreto, na
subsunção da situação concretamente verificada à regra de conflitos que descrevesse essa categoria de situações.
Aqui a interpretação das regras de conflitos (especificamente, do conceito-quadro) não ofereceria qualquer nota
distintiva essencial relativamente à interpretação das normas materiais.
Para ilustrar o problema com que nos deparamos, utiliza-se o instituto do divórcio. O que é o “divórcio” para a norma
de DIP que utiliza o conceito? Sendo o tribunal do foro português, o âmbito de aplicação de uma norma de conflitos
que tenha como conceito-quadro a matéria do divórcio resumir-se-á aos casos de extinção do casamento por decisão
de uma autoridade judiciária? Ou poderemos integrar nesse âmbito de aplicação o divórcio “privado” do direito
rabínico ou o talak do direito muçulmano?
Este problema tem sido resolvido de formas distintas:
1. Teoria da qualificação da lex fori materialis: segundo a perspetiva tradicional, a determinação do conteúdo
dos conceitos-quadro obtém-se recorrendo ao direito material da ordem jurídica interna. Os conteúdos
subsumíveis ao conceito-quadro de dada norma de conflitos seriam os que correspondem a esse mesmo
conceito enquanto conceito próprio do sistema de regras materiais da lei do foro. Na realização da tarefa
interpretativa deveria proceder-se em termos de uma referência automática aos conceitos homólogos do
sistema de preceitos materiais da lex fori.
2. Teoria da qualificação da lex causae: a determinação do conteúdo dos conceitos-quadro resultaria da
convocação do direito material da ordem jurídica considerada competente pela regra de conflitos. A
qualificação operaria, também aqui, pela convocação de um único direito material, mas agora, em vez de se
mobilizar o direito local/interno (lex fori), haveria que atentar no regime material da lei considerada
competente pela regra de conflitos para regular a matéria (lex causae).
3. Teoria da qualificação segundo o direito comparado: segundo a conceção sustentada sobretudo por Rabel, a
norma de conflitos seria interpretada em função dos sistemas jurídicos cuja aplicação ela é suscetível de
desencadear. Entende-se que não é com instrumentos puramente nacionais que pode a regra de conflitos
levar a cabo uma tarefa propriamente internacional. Na interpretação das regras de conflitos o conceito-
quadro é considerado, não só nos termos em que é entendido a nível interno, mas também segundo a
compreensão que dele é feita nos diversos sistemas jurídicos que poderiam ser convocados in casu (porque
estão conectados com a regra de conflitos). Portanto, na interpretação das regras de conflitos o recurso ao
direito comparado é fulcral – só pela comparação jurídica se torna possível apurar o conteúdo dos conceitos
utilizados pelas normas de DIP, conceitos esses que assumirão uma “veste” completamente nova, distinta da
que assumem internamente (há criação de um novo conceito, comparatístico).
Podem hoje dizer-se afastadas as teorias redutivistas, ou seja, aquelas que convocam uma única lei para a
interpretação do conceito-quadro, seja ela a lei do foro ou a lei competente para solucionar o caso. De facto, as teorias
enunciadas em 1. e 2. podem ser, desde logo, apontadas críticas matriciais:
A teoria da qualificação da lex fori não se coaduna com a função internacional do DIP, na medida em que
impede a abertura do processo interpretativo a conteúdos jurídicos estrangeiros, o que poderá implicar até
que algumas relações controversas fiquem sem qualificação;
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A teoria da qualificação da lex causae, se acolhida, significaria passar um “cheque em branco” à lei
competente, porquanto já não seria verdadeiramente a regra de conflitos a definir o conceito-quadro, mas
sim aquela a lei material aplicável.
Isto não significa, porém, a adoção da teoria da qualificação segundo o direito comparado qua tale. A importância que
reveste o direito comparado no âmbito do direito de conflitos é inegável: o DIP é por natureza um direito aberto a
todas as instituições e conteúdos jurídicos conhecidos no mundo e a sua perspetiva forçosamente transcende os
horizontes do sistema jurídico interno e a linha de contornos dos respetivos conceitos. Na categoria normativa própria
de cada regra de conflitos hão-de poder incluir-se os múltiplos preceitos e os numerosos institutos estrangeiros que,
no ordenamento a que pertencem, se proponham realizar a mesma função social (ou uma função idêntica) que o
legislador do foro teve em vista ao aludir a tal categoria. Os conceitos-quadro não devem ser vistos como moldes
vazios, mas sim como formas elásticas. E só o método comparativo permite captar nas instituições dos diversos
Estados os vários entendimentos que se fazer de um instituto ou figura jurídicos. Sucede, porém, que se é indiscutível
a adoção de uma perspetiva comparatista no que toca ao momento da aplicação concreta das regras de conflitos, já
não nos parece tão evidente a necessidade de adotar igual conceção no momento de definição em abstrato dos
conceitos-quadro. O modelo comparatístico apresentado por Rabel consistia num processo de definição dos
conceitos-quadro caraterizado pela sua abstração e por partir dos vários sistemas jurídico-materiais aplicáveis. Este
modelo falha, fundamentalmente, nos seguintes aspetos:
O intérprete não conhece todas as leis existentes e suscetíveis de convocação nos termos da regra de conflitos;
Método excessivamente complexo
O intérprete não pode prever as mudanças futuras do conteúdo das leis consideradas para a interpretação.
Método impraticável
O que se entende é que, reitere-se, os conceitos-quadro hão-de ter a elasticidade necessária para que neles se possam
incluir todas as normas e instituições que, seja qual for o seu nome, a sua forma, e até o seu conteúdo, desempenhem
no ordenamento estadual a que pertencem uma função sócio-jurídica equivalente àquela que o legislador tinha em
mente na elaboração da regra de conflitos. Haverá, então, que procurar identificar o fundamento da norma de
conflitos (o juízo de valor em que ela se baseia), pois é esse fundamento que ilumina o âmbito do respetivo conceito-
quadro. O fundamento na norma de conflitos, que traduz os interesses atendidos na sua criação, é fulcral porque foi
com base na sua consideração que o legislador escolheu a conexão considerada mais adequada. Aliás, a tendência de
fragmentação do DIP está intimamente ligada a esta matéria: o legislador tem vindo a especificar as regras de conflitos
porquanto entende deverem prevalecer interesses diversos nos vários setores, e estes setores são, cada vez mais,
restritos (ex.: em vez de se atender aos interesses genericamente prevalecentes no domínio dos negócios jurídicos,
passa a atender-se a valores especificamente respeitantes à forma dos negócios, à capacidade negocial, etc., sendo
criadas regras de conflitos sobre cada um desses aspetos).
A interpretação de toda a norma de conflitos deverá ser uma interpretação teleológica. E é esta ideia que deverá guiar
especificamente a definição dos limites do conceito-quadro. Ora, se o DIP tem a sua intencionalidade e a sua “justiça”
própria, então também a interpretação dos seus preceitos, e designadamente dos respetivos conceitos-quadro, tem
que ser conduzida com certa autonomia. É evidente que, pertencendo a norma de conflitos à lex fori, também a sua
interpretação deverá integrar-se neste domínio. No entanto, não entendemos a lex fori, para estes efeitos, como lex
materialis, mas antes como lex formalis. Significa isto, que a lei do foro a ser atendida é o direito internacional privado,
e não o direito material. Neste ponto esta conceção se diferencia da “teoria da aplicação da lex fori” – não é defensável
uma interpretação que se limite a uma simples referência aos preceitos homólogos do respetivo sistema de preceitos
materiais do foro. Igual conclusão leva também ao afastamento em relação à “teoria da aplicação da lex causae” –
também não é razoável que a interpretação se limite a referenciar os preceitos homólogos do sistema de preceitos
materiais do ordenamento jurídico convocado pela regra de conflitos. De um modo genérico, a mera referência a
conceitos materiais homólogos aos consagrados na regra de conflitos, pertençam eles à ordem jurídica do foro ou à
ordem jurídica competente, não pode ser sufragada, por desconsiderar os princípios fundamentais do DIP. Isto não
significa, porém, uma adesão à “teoria da qualificação segundo o direito comparado”, já que, como referido, a análise
comparatística deve ser efetuada em concreto, e não em abstrato, no momento de determinação dos limites e âmbito
do conceito-quadro. O que foi dito não significa, note-se, a irrelevância da lex fori materialis e da lex causae. A posição
aqui defendida é a de que a interpretação do conceito-quadro deve partir, efetivamente, da lei do foro (material). O
conceito assim obtido será, todavia, “adensado”. Esta adensação efetuar-se-á segundo a lex fori formalis, isto é, de
acordo com os interesses subjacentes à associação de determinado elemento de conexão àquele conceito-quadro. A
consideração de tais interesses ou valores implicará a inclusão, no conceito-quadro interpretando, de figuras
estrangeiras, de direito comparado, que apresentem, em relação ao conceito interno, uma “similitude funcional”.
Os passos deste modelo propugnado são, portanto, os seguintes:
1. Determinação do conteúdo do conceito-quadro à luz da lei (material) do foro;
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2. Complementação do conceito obtido através da inclusão de figuras de direito comparado (material) que
prossigam os mesmos interesses e /ou valores no respetivo ordenamento jurídico;
3. Obtenção de um conceito composto ou heterogéneo: Conceito-Quadro
Conceito homólogo da lex fori
Conceitos afins de direito comparado
Esta interpretação reveste, nestes termos, duas caraterísticas fundamentais:
Interpretação teleológica: assenta na convocação do juízo de valor subjacente à categoria normativa da lex
fori formalis (é esse juízo, inerente à regra de conflitos, que permitirá determinar as figuras do direito
comparado que serão incluídas no conceito-quadro);
Interpretação autónoma: carateriza-se pelo desapego em relação ao direito material do foro, constituindo
este pura e simplesmente o ponto de partida.
Por último, importa visualizar a distinção deste modelo em relação aos demais:
Qualificação segundo a lex Qualificação segundo a Qualificação segundo o Qualificação segundo a lex
fori material lex causae direito comparado formalis fori
» o conceito-quadro tem » o conceito-quadro tem » o conceito-quadro tem » o conceito-quadro tem como
como âmbito o conceito como âmbito o conceito como âmbito um conceito âmbito um conceito
material homólogo do direito material homólogo da lei “novo”, criado segundo o heterogéneo, onde se incluem
interno ou local competente (indicada pela direito comparado (inclui conteúdos jurídicos quer de
1
a conexão fixada na regra todas as figuras direito nacional quer de
2
de conflitos) reconhecidas pelas leis direito estrangeiro, aos quais
suscetíveis de aplicação) seja adequado, segundo a ratio
legis, o tipo de conexão
adotado na regra de conflitos
3. O problema da aplicação (ou da qualificação propriamente dita)
O problema da qualificação assume especial preponderância no momento da aplicação na regra de conflitos: este
momento implica que o aplicador averigue se dado instituto ou preceito do ordenamento designado por uma regra
de conflitos da lex fori pode subsumir-se à categoria normativa visada por essa regra. Agora já não se trata de delimitar,
previamente, o âmbito do conceito-quadro, mas sim de verificar se uma dada figura jurídica, pertencente ao
ordenamento jurídico identificado como competente pela regra de conflitos, pode incluir-se nesse conceito-quadro –
com este processo de subsunção pretende selecionar-se o concreto regime jurídico a aplicar (sabe-se já qual o direito
aplicável (a lex causae), pela interpretação do conceito-quadro nos termos expostos, mas ainda não está encontrado
o regime pertencente a esse direito que deve ser aplicado). Em suma: num prévio momento de interpretação do(s)
conceito(s)-quadro(s) é determinado o seu âmbito de aplicação; tendo em conta a complexidade dos casos jurídicos
da vida, podemos ter um caso integrável num único conceito-quadro ou, mais frequentemente, diferentes aspetos do
caso decidendo assimilados por diversos conceitos-quadros. Após esta selecção do(s) ordenamento(s) estrangeiro(s)
hipoteticamente aplicável/eis, haverá que procurar dentro deles as normas que irão regular o caso – como se
compreende, o processo de qualificação não se basta com a seleção de um ordenamento jurídico como competente,
havendo que buscar nele a(s) norma(s) especificamente aplicável/eis (problema este que se adensa quando o caso é
assimilado por várias regras de conflitos).
[Exemplificando: A tem uma letra de câmbio que lhe reconhece a titularidade de um crédito sobre B, devedor. A intenta contra B
uma ação de letra, num tribunal português. Por aplicação da regra de conflitos sobre esta matéria (art. 4º Convenção de Genebra,
que vigora internamente entre nós), conclui-se que a lei competente é a de um país da Common Law (ex.: Reino Unido). B vem
alegar, em sede jurisdicional, que a dívida se encontra prescrita e convoca as disposições do sistema jurídico competente que
dizem respeito ao instituto da “limitation of action”. Num primeiro momento, por interpretação do conceito-quadro, determinou-
se a lei competente, mas ainda não está determinado o regime jurídico pertencente a esse direito que terá aplicação em concreto.
Assim, pergunta-se: o instituto da “limitation of action” é equivalente do nosso instituto da “prescrição extintiva”? É que, segundo
o direito anglo-saxónico, aquele instituto é um instituto de direito processual, e não de direito material. O que nos leva a perguntar
se ele poderá ser inserido no cômputo do conceito-quadro da regra de conflitos.]
O DIP ordena os preceitos materiais dos diferentes sistemas jurídicos distribuindo-os pelas diversas categorias que
autonomamente estabelece nos conceitos-quadros das respetivas regras de conflitos. A inclusão de um desses
preceitos materiais na categoria (conceito-quadro) x fixada pela regra de conflitos y (que será uma regra de conflitos
da lex fori) depende de nele se verificarem as caraterísticas fundamentais que definem o conceito-quadro. Só sendo
possível esta inclusão se poderá dizer que aquela lei é concretamente competente, pois consagra um preceito material
ou instituto jurídico que cumpre finalidades idênticas às prosseguidas pela regra de conflitos ao estabelecer a conexão.
Mais do que identificar um ordenamento jurídico como aplicável, pretende identificar-se o regime jurídico-material
aplicável.
Este problema deve ser analisado por partes:
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a) Qual o objeto da operação de qualificação? [que quid se pretende assimilar ou subsumir ao conceito-quadro?]
b) Qual o método utilizado na qualificação [o que permite concluir pela assimilação do quid ao conceito-quadro?]
a) Objeto da qualificação
Batista Machado define a “qualificação” como:
“subsunção de um quid a uma norma jurídica, ou conjunto de normas”.
Ora, se o problema da qualificação (especificamente o problema da qualificação na aplicação, também designada de
qualificação propriamente dita – distinguindo-se, portanto, do problema da qualificação na interpretação que vimos
supra) é um problema de subsunção, importa saber qual o objeto (o quid) que se pretende subsumir à norma jurídica
que, para o que nos interessa, é a regra de conflitos. No fundo, o que nos propomos a descortinar em primeiro lugar
é o objeto da subsunção (realizada em relação ao conceito-quadro da regra de conflitos).
Acerca desta questão foram várias as conceções apresentadas:
O objeto da qualificação são relações jurídicas (Savigny) » o processo de subsunção traduzir-se-ia na
assimilação da relação jurídica decidenda pela regra de conflitos.
Crítica:
Esta é uma posição paradoxal: só é possível definir a relação jurídica depois da aplicação das normas
materiais, e esta aplicação tem como prius o problema da qualificação.
O objeto da qualificação são factos » o processo de subsunção traduzir-se-ia na assimilação dos factos
respeitantes ao caso concreto pela regra de conflitos.
Crítica:
As normas de DIP são normas jurídicas de 2º grau (“normas sobre normas”), pelo que não incidem
diretamente sobre a factualidade (a subsunção dos factos deve, isso sim, ser feita em relação às
normas materiais aplicáveis).
O objeto da qualificação são normas materiais » o processo de subsunção traduzir-se-ia na assimilação das
normas jurídico-materiais do ordenamento jurídico competente pela regra de conflitos.
Posição acolhida
Como ficou já evidenciado, entendemos que a operação de qualificação tem como objeto as normas materiais
integrantes do ordenamento jurídico considerado competente pela regra de conflitos. O que se pretende é, portanto,
determinar se essas normas (regime material de um instituto ou figura jurídico/a) podem ser subsumidas à categoria
definida pelo conceito-quadro da regra de conflitos. No momento prévio de interpretação do conceito-quadro da regra
de conflitos, determinou-se que nele são integráveis, além do conceito material homólogo da ordem jurídica do foro,
os demais conceitos, institutos e preceitos jurídicos de direito comparado para os quais a conexão estabelecida na
regra de conflitos é também adequada (pois esses conceitos, institutos e preceitos envolvem interesses idênticos aos
que estão subjacente à ratio legis da regra de conflitos). Agora, no momento da aplicação efetiva da regra de conflitos,
averigua-se se um específico regime jurídico material, que integra o ordenamento jurídico considerado competente
pela regra de conflitos ao abrigo daquele primeiro juízo genérico, é subsumível ao conceito-quadro.
b) Método da qualificação
Com a qualificação pretende concluir-se, ou pela inclusão, ou pela exclusão, das normas materiais pertencentes ao
ordenamento jurídico competente no âmbito delimitado pelo conceito-quadro.
Ora, é o DIP que ordena os preceitos materiais dos diferentes sistemas jurídicos, distribuindo-os pelas diversas
categorias jurídicas que autonomamente estabelece (correspondem aos conceitos-quadro das regras de conflitos).
Assim sendo, (1) a qualificação terá que partir necessariamente da lex fori, pois é aqui que residem as razões para a
ordenação, as quais são, concomitantemente, as razões que fundam as conexões estabelecidas (elemento de
conexão). Todavia, haverá que (2) convocar a lex causae para que seja possível caraterizar a figura, instituto ou
preceito material a qualificar. Com efeito, este material normativo enquadra-se num determinado ordenamento
jurídico e, por isso, só pode ser compreendido no seu contexto – só assim poderá o aplicador conhecer o conteúdo
normativo que o compõe, as conexões sistemáticas que lhe estão associadas e a função sócio-jurídica que lhe é
acometida. É nesta ideia que se inspira o art. 15º do nosso Código Civil, o qual dispõe:
“A competência atribuída a uma lei abrange somente as normas que, pelo seu conteúdo e pela função que têm
nessa lei, integram o regime do instituto visado na regra de conflitos.”
Duas conclusões podem retirar-se:
Competência da lex fori: Competência da lex causae:
Determinar se os preceitos materiais considerados Caraterizar os preceitos materiais considerados,
correspondem ao tipo visado na regra de conflitos fornecendo as suas notas caraterizadoras primordiais
[Retomando o exemplo acima descrito:
O instituto da “limitation of action” tem um denominador comum com a nossa “prescrição extintiva”: ambos se inspiram em
razões práticas e se acham ao serviço de fins sociais ou valores (a certeza e a segurança jurídicas, sobretudo) fundamentalmente
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idênticos. Assim sendo, este instituto corresponde ao tipo visado na regra de conflitos – a regra de conflitos visa quaisquer figuras
jurídicas que cumpram os mesmos interesses e valores que a prescrição extintiva (é isto que se conclui no momento da
interpretação do conceito-quadro, segundo a, entre nós adotada, teoria da qualificação da lex formalis fori). Deste modo, seria
efetivamente aplicável a lei britânica e especificamente o regime jurídico da limitation of action.]
Vendo o problema que ora nos ocupa de outra perspetiva, acabamos por concluir que o problema da qualificação é,
no fundo, o problema do objeto da regra de conflitos. A regra de conflitos destina-se a coordenar os diversos sistemas
jurídicos conexos com a situação concreta a regular, em ordem a evitar que leis diferentes, inspiradas em princípios
distintos, sejam eventualmente chamadas a decidir a mesma questão de direito. Noutros termos, a regra de conflitos
de DIP tem como objetivo prevenir ou eliminar conflitos entre preceitos materiais oriundos de ordenamentos
distintos. Para tal, a regra de conflitos recorta uma questão ou um núcleo de questões de direito (conceito-quadro) e
liga essa questão ou núcleo de questões a uma determinada lei (consequência jurídica), que será a lei designada pelo
fator de conexão consagrado (elemento de conexão). Da lei designada pela norma de conflitos só podem considerar-
se aplicáveis os preceitos correspondentes à categoria definida e delimitada pelo respetivo conceito-quadro, pois só
em relação a esses preceitos se verifica a conexão segundo a qual essa lei é designada. De forma simplista: uma lei
nunca é convocada na totalidade das suas regras materiais – a regra de conflitos do foro recorta nessa lei ou
ordenamento um setor determinado, sendo esse setor o responsável pela competência atribuída àquela lei.
Ordenamento jurídico competente (lex causae)
Ordenamento jurídico do foro (lex fori):
Regra de conflitos x
[Conceito-quadro (tipo de questões de direito) y +
Elemento de conexão z + Consequência jurídica] Questão de direito y
A regra de conflitos incumbe a determinado ordenamento jurídico a resolução de questões de direito de certo tipo,
pelo que é necessário que a intervenção desse ordenamento se efetive através de preceitos que se destinem ao
cumprimento dessa função (à resolução de questões daquele tipo). Seria, aliás, ilógico tomar do mesmo ordenamento
preceitos com função e finalidade diferentes. E é exatamente este o sentido do supramencionado art. 15º CC. Daqui
resulta que o problema central da qualificação consiste em averiguar quais sejam, de entre os preceitos materiais do
ordenamento designado pela regra de conflitos, aqueles que correspondem à categoria definida pelo conceito-quadro
dessa regra. Para tanto há que apurar se certos preceitos materiais do ordenamento competente reproduzem as
caraterísticas que definem a categoria delimitada no conceito-quadro. E, como exposto, se à lex fori decidir se
determinados preceitos materiais correspondem efetivamente, atentas as suas caraterísticas principais, ao tipo visado
na norma de conflitos, já será à lex causae que caberá caraterizar esses preceitos normativos. Deste modo se supera
a tradicional antinomia entre qualificação lege fori e qualificação lege causae.
Neste ponto, estamos já em condições de reelaborar o conceito de Batista Machado:
“a qualificação é a subsunção de determinados preceitos materiais integrantes do ordenamento jurídico
competente (lex causae) ao conceito-quadro estabelecido na regra de conflitos da lei do foro”.
3.1 Doutrina seguida em Portugal
O acolhimento da teoria segundo a qual a qualificação propriamente dita convoca tanto a lei do foro como a lei
competente assenta, sobretudo, em dois argumentos:
O objeto da qualificação em DIP são preceitos jurídico-materiais » como ficou já exposto, as regras de conflitos
são “normas sobre normas”, pelo que o objeto da operação de qualificação só poderia incidir sobre normas,
especificamente sobre normas materiais.
Entre as normas jurídicas estabelecidas por um legislador, num determinado ordenamento jurídico, existe um
nexo teleológico, nexo esse que deverá ser respeitado em matéria de qualificação » a teleologia que envolve
os preceitos normativos só pode ser conhecida no seio do ordenamento jurídico a que eles pertencem.
Tem, pois, a qualificação por objeto preceitos jurídico-materiais. O problema que ela convoca consiste, exatamente,
em averiguar se os preceitos materiais sob análise, pertencentes a uma hipotética lex causae, entram na categoria de
questões de direito definida na regra de conflitos que determinou a aplicabilidade da mencionada lex causae. Esta
averiguação é realizada com base numa comparação entre os interesses ou valores subjacentes à conexão firmada na
regra de conflitos (porque é que o legislador fixou o elemento de conexão x para as questões jurídicas de tipo y?) e os
valores ou interesses que os preceitos materiais sob análise prosseguem no seu ordenamento jurídico (qual a função
destes preceitos no seio do ordenamento jurídico a que pertencem?). Haverá aplicação de tais preceitos se se concluir
que eles prosseguem finalidades próximas àquelas que o legislador entendeu ligar as questões jurídicas integradas na
categoria delimitada no conceito quadro. Pretende-se, então, uma similitude de finalidades. É esta a ideia expressa na
formulação do art. 15º CC.
Uma questão que pode ser suscitada a partir da leitura do art. 15º CC é a de saber o método pelo qual se determina a
lei competente. De facto, o preceito refere-se à “competência atribuída a uma lei”, mas não especifica o modo como
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foi determinada essa lei. O que nos poderá levar a perguntar se não será necessário, antes de identificar os concretos
preceitos jurídicos materiais que dentro de um ordenamento jurídico serão considerados aplicáveis, escolher esse
ordenamento jurídico. Na verdade, este método, nos termos em que tem vindo a ser explanado, é um método que
funcionada por hipóteses: o aplicador irá convocar o ordenamento jurídico x (um dos ordenamentos jurídicos
suscetíveis de serem convocados pela regra de conflitos, porque têm uma conexão com a relação jurídica a regular),
dentro do qual é selecionado (em regra, por uma das partes para sustentar a sua posição) o preceito jurídico-material
y, considerando aquele ordenamento como hipoteticamente aplicável para efeitos de averiguação da possibilidade de
subsunção deste preceito y ao conceito-quadro; caso conclua pela não qualificação do preceito material em causa, o
aplicador terá que recorrer a um outro ordenamento jurídico, de entre os suscetíveis de convocação, e efetuar todo o
raciocínio precedente de novo. Isto até que seja identificado o preceito material que deve ser aplicado, ou seja, o
preceito material subsumível ao conceito-quadro. A regra de conflitos a considerar, que inclui o conceito-quadro de
referência, será a regra de conflitos com base na qual se consideram hipoteticamente aplicáveis os ordenamentos
jurídicos envolvidos – esta escolha da regra de conflitos, decorrerá da interpretação abstrata que é conferida ao
conceito-quadro (nos termos expostos supra).
Daqui decorre evidentemente que o legislador português se afastou, de forma decidida, das teorias que preconizam
o recurso ao direito material da lex fori para resolver o problema da qualificação. Fica assim repudiado o processo
clássico segundo o qual haveria que se submeter a situação jurídica concreta às disposições do direito interno do foro
a que caberia solucionar a questão sub judice se a lex fori fosse a lei aplicável. Vejam-se então os motivos desta recusa:
Desnecessidade do modelo clássico: toda a situação da vida internacional contém em si mesma os seus pontos
de contacto, as suas conexões, com várias ordens jurídicas (caso contrário, não seria uma relação jurídica
internacional), traçando por si mesma o círculo de leis “interessadas” na sua regulamentação. Assim sendo,
deverá o julgador considerar, ab initio, todas essas leis interessadas como hipoteticamente aplicáveis. Sendo
assim, tudo o que importa saber é qual dessas leis decide a controvérsia por meio de preceitos jurídico-
materiais subsumíveis à categoria normativa da regra de conflitos do foro convocada no caso. Não há
necessidade de se ir buscar soluções à lei do foro quando ela nada tem que ver com a relação jurídica.
Desconformidade do modelo clássico com o princípio da igualdade: o princípio da igualdade postula que as
condições que decidem da aplicabilidade in casu da lei estrangeira devam ser as mesmas que determinaram
a aplicação da lei do foro. Ora, a aplicação da lei do foro não depende senão da existência de uma relação de
correspondência entre as normas materiais que regulam a questão litigiosa e o tipo normativo fixado na regra
de conflitos. Assim sendo, também a aplicação de lei estrangeira não pode depender de qualquer outra
condição, designadamente dos termos em que uma outra lei (a lei do foro) resolveria a questão se fosse ela a
lei aplicável. Para que haja igualdade na aplicação dos ordenamentos jurídicos, todos eles deverão ter a sua
aplicabilidade condicionada pelos mesmos aspetos – a condição será unicamente a verificação de uma relação
de correspondência entre preceitos materiais da lei e o âmbito do conceito-quadro. Como é evidente, esta é
a única via que permite alcançar a harmoniza jurídica entre duas legislações. Se, ao invés, se pretende resolver
o problema utilizando o ponto de vista do direito material interno, é certo que jamais se chegará a uma solução
uniforme. Ademais, também apenas assim se garantirá a paridade no tratamento das ordens jurídicas.
3.2 Conceção tradicional da qualificação
O método de qualificação sumariamente descrito é aquele que é adotado no Código Civil português. E, como
mencionado, esta adoção implicou a recusa da teoria clássica da qualificação, seja qual for a modalidade que se
considere. Não descrevemos ainda esta teoria clássica, descrição essa essencial para uma compreensão sólida da
teoria acolhida entre nós. Atentem-se, então, em duas modalidades da teoria clássica:
a) Conceção de Robertson
Para o autor, há que distinguir, no processo de qualificação, duas operações:
1. “Primary characterization”: coloca-se aqui o problema da subsunção da situação de facto que dá origem à
controvérsia jurídica a uma categoria material pertencente à lex fori. Tendo em conta a categoria material a
que foram “submetidos” os factos, identifica-se a regra de conflitos que diz respeito a essa questão de direito.
A solução a este problema depende da lei do foro
2. “Secondary characterization”: trata-se agora de averiguar que norma particular (ou um conjunto de normas)
do sistema designado como competente pertence à ordem das questões que a regra de conflitos do foro
deferiu a esse sistema – entende-se que o chamamento deste sistema é circunscrito a certas normas.
A solução a este problema é fixada pela lei competente
Esta teoria não difere, na verdade, grandemente daquela que propugnamos, no que tange à “qualificação secundária”.
O verdadeiro ponto de divergência é, pois, a “qualificação primária”. Para Robertson o conhecimento de qual seja a
regra de conflitos aplicável ao caso supõe que se tenha previamente “qualificado” a situação factual que se apresenta
ao juiz. Previamente à questão da qualificação das normas materiais, haveria de ter lugar a qualificação da situação
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de facto: subsunção dos factos a uma das categorias materiais do direito do foro e subsequente identificação da regra
de conflitos que diz respeito a essa categoria material. Qualificados os factos, segundo esta “qualificação primária”,
está definida a regra de conflitos aplicável e fixada em definitivo a competência da lei. Portanto, esta qualificação seria
um passo decisivo, e obrigatório, para a determinação da regra de conflitos apropriada ao caso e do ordenamento
jurídico competente. Sucede que, nos termos já enunciados, esta qualificação nos parece desnecessária e contrária ao
princípio da igualdade. Ora veja-se:
Este raciocínio implicaria, evidentemente, que muitas situações ficassem “inqualificadas”, porque não se
subsumem a nenhuma categoria material do foro e este primeiro passo, de qualificação dos factos ao abrigo
da lei material do foro, é decisivo para a identificação do ordenamento jurídico aplicável;
O próprio caso, pela sua conexão com várias ordens jurídicas (daí a sua natureza internacional), já seleciona
os ordenamentos jurídicos hipoteticamente aplicáveis, pelo que escolher um único ordenamento jurídico com
base na assimilação dos factos pelas normas materiais do ordenamento do foro é um processo desnecessário
e até inconveniente;
A ordem jurídico do foro goza de tratamento diferenciado, na medida em que o caso é analisado segundo a
perspetiva da lex fori.
b) Conceção de Ago
Também para Ago há que desdobrar a questão da qualificação (propriamente dita) em dois momentos:
1. Qualificação primária: subsumir os factos específicos do caso decidendo às normas substanciais do
ordenamento do foro, para, tendo em consideração tais normas, identificar a regra de conflitos aplicável (será
aquela que diz respeito às categorias abstratas disciplinadas por essas normas materiais) [este primeiro
momento identifica-se com a “primary characterization” de Robertson].
2. Qualificação secundária: é ao ordenamento jurídico previamente determinado como aplicável (naquele 1º
momento) que cabe resolver a questão de saber qual será a norma material especificamente aplicável. No
fundo, Ago entende que a regra de conflitos chama à aplicação todo o ordenamento jurídico competente.
Esta teoria distingue-se, então, da precedente (conceção de Robertson) na medida em que a segunda operação
(interpretação secundária) não tem por função selecionar o conjunto de normas materiais do ordenamento jurídico
competente que terão aplicabilidade ao caso (há um chamamento circunscrito da lex causae), mas antes a remissão
indiscriminada para todo o ordenamento estrangeiro aplicável. No fundo, enquanto Robertson, apesar de ver como
objeto da qualificação os factos (e não normas), entende que apenas algumas normas do sistema jurídico considerado
competente serão aplicáveis (serão as normas que se subsumem ao conceito-quadro da regra de conflitos), Ago
entende que, a priori, todas as normas materiais do sistema jurídico competente são aplicáveis, podendo a questão
vir a ser solucionada com base em normas materiais que não se subsumem ao conceito-quadro da regra de conflitos.
Atentem-se agora nas críticas que apontamos a este modelo:
As regras de conflitos como que delimitam setores normativos (divisão das questões de direito em categorias),
definindo as condições de aplicabilidade dos ordenamentos jurídicos tendo em conta estas categorias (os
elementos de conexão diferem para cada categoria), pelo que não é razoável que no final do processo de
qualificação se considere como competente todo um ordenamento jurídico, e não apenas algumas categorias
de normas desse ordenamento;
A qualificação primária, ao se traduzir na assimilação dos factos por categorias materiais da ordem do foro,
implica a desconsideração do princípio da paridade e das finalidades do DIP – antes de se atentar em qualquer
norma material (do foro ou não), haverá que considerar a regra de conflitos em si mesma; ir primeiro às
normas materiais (do foro) e só depois à regra de conflitos é uma inversão das coisas (ilogicismo desta
conceção), inversão essa que confere à lex fori um tratamento privilegiado iniludível;
Coloca-se, deste modo, em perigo a harmonia jurídica internacional, na medida em que as soluções obtidas
nos diversos Estados seriam sempre diferentes, pois a situação de facto que conforma o caso seria valorada
de formas distintas (consoante as normas materiais de cada Estado). Isto implica a desarmonia internacional,
com prejuízo para o reconhecimento de sentenças e com estímulo para o forum shopping.
3.3 Conclusões quanto ao método perfilhado
Como exposto, recusamos a teoria tradicional, em qualquer das suas vertentes, sobretudo por considerar que ela não
toma na devida conta o princípio basilar da paridade de tratamento [vide supra: Cap. II, 2.1] e posterga a própria
conceção de DIP que julgamos ser a mais correta. Importa então apresentar de forma esquemática o modo como
entendemos que deverá ser realizada a qualificação:
1. Interpretação do conceito-quadro » interpretação teleológica e autónoma: o critério da interpretação é o
critério da lex formalis fori – o conteúdo dos conceitos-quadro é composto pelas figuras do direito material
interno e por outras figuras homólogas de ordenamentos estrangeiros que cumpram a mesma função nesses
ordenamentos, obtendo-se um conceito heterogéneo.
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2. Identificação dos ordenamentos jurídicos passíveis de aplicação em abstrato » tendo em conta os conceitos-
quadro heterogéneos encontrados (que serão sempre bastante amplos), haverá que verificar que regras de
conflitos assimilam o caso decidendo e assim selecionar os ordenamentos jurídicos aplicáveis a priori. Aqui
considerar-se-ão apenas os ordenamentos jurídicos com conexão com o caso (e só eles decerto serão
chamados por uma qualquer regra de conflitos), em obediência ao princípio da não transatividade.
3. Identificação das normas materiais aplicáveis em abstrato » tendo em conta os ordenamentos jurídicos
suscetíveis de aplicação, haverá que selecionar neles todas as normas materiais que são “chamadas” pelas
regras de conflitos – serão essas normas aquelas que, pelo seu conteúdo e função, cumpram, no seio daquele
ordenamento jurídico, a mesma função que o conceito homólogo interno.
[NOTA: neste momento o raciocínio é abrangente e abstrato – considerando-se os ordenamentos jurídicos
hipoteticamente aplicáveis e os conceitos-quadro das várias regras de conflitos, reúnem-se todas as normas
materiais que poderão ser convocadas pelo caso. No fundo, “recortam-se” os ordenamentos jurídicos
aplicáveis, de modo a ficar só com os setores que podem relevar, atento o seu conteúdo e função.]
4. Qualificação propriamente dita » subsumir cada uma das normas materiais selecionadas a uma específica
regra de conflitos e concluir se essa regra de conflitos manda aplicar o ordenamento jurídico em que aquelas
normas se integram. Dentro do cômputo de todas as normas materiais selecionadas (dos vários ordenamentos
jurídicos), haverá que inserir cada uma delas “dentro” de um conceito-quadro de uma regra de conflitos e,
subsequentemente, averiguar se essa regra de conflitos considera como aplicável o ordenamento jurídico
onde foi buscada a norma material aí inserida.
Daqui resultam duas conclusões essenciais acerca do método propugnado:
A referência da norma de DIP a uma lei (quer se trate da lei do foro, quer se trate de qualquer outra) não abrange
a totalidade das suas disposições, mas vai apenas dirigida às disposições materiais que possam subsumir-se na
categoria normativa da regra de conflitos (pelo seu conteúdo e função).
Chamamento circunscrito
Os fatores que determinam a aplicação das leis estrangeiras são os mesmos que decidem da aplicação das nossas
leis, só se versando sobre o direito material da lex fori após a consideração inicial da regra de conflitos (aqui os
conceitos colhidos são conceitos heterogéneos).
Paridade de tratamento das ordens jurídicas
4. Os conflitos (positivos ou negativos) de qualificações
O processo de qualificação descrito poderá conduzir, por vezes, a situações de conflitos de qualificações. De facto,
uma vez que, por um lado, o conceito-quadro é interpretado segundo a lex formalis fori (resultando um conceito-
quadro amplo e heterogéneo), e que, por outro lado, a qualificação ter por objeto normas e não factos, poderá suceder
que várias normas de vários ordenamentos jurídicos sejam chamadas (por regras de conflitos distintas) a regular uma
mesma situação jurídica, sendo a sua aplicação conjunta impossível por elas serem incompatíveis entre si. Noutro
prisma, poderá também suceder (em menos casos, decerto) que nenhuma norma material seja passível de aplicação,
designadamente porque o ordenamento jurídico convocado pela regra de conflitos não tem nenhuma norma que,
pelo seu conteúdo e função, seja subsumível ao conceito-quadro. Podemos, então, falar aqui de dois conflitos:
Conflitos de Qualificações
Conflitos Positivos Conflitos Negativos
» concorrência de preceitos materiais de ordenamentos » ausência de preceitos materiais nos ordenamentos
jurídicos diferentes, convocados por regras de conflitos jurídicos que pelo seu conteúdo e função seja
diferentes, para regular o mesmo caso assimiláveis pelos conceitos-quadro mobilizados
Impõe-se, então, perguntar: como resolver estes conflitos de qualificações? Ora, o nosso ordenamento jurídico não
prevê qualquer solução pré-determinada, nem estipula sequer diretrizes para a resolução do problema. Este é um
tema complexo e em torno do qual não se verifica ainda um consenso doutrinal suficiente que viabilize a tomada de
posição do legislador.
Segundo a perspetiva que propugnamos, entende-se que solução a conferir a estes problemas deve buscar-se no
próprio DIP. Para tal, tentar-se-á definir uma relação de hierarquia entre as qualificações conflituantes, ou seja, entre
os institutos e as categorias de normas qualificadas. Por tal via se chegará ao sacrífico de uma das regras de conflitos
e à não aplicação do sistema jurídico por ela indicado. Neste contexto, pergunta-se: que critério servirá para efetuar
esta opção? De um modo geral, o critério será fundamentalmente o dos fins a que as várias normas de conflitos vão
apontadas. No fundo, a ponderação partirá do peso relativo dos interesses que se pretendem servir com as várias
regras de conflitos. Sem prejuízo de ser este o critério geral na matéria, cremos que a questão só poderá ser, por vezes,
corretamente resolvida se nos colocarmos numa perspetiva jurídico-material. Nestas hipóteses, haverá que ter em
conta as soluções oferecidas pelas próprias leis em presença, quer para entre elas optar, quer para as harmonizar
entre si.
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4.1 Conflitos positivos de qualificações
Tendo em conta o critério dos interesses atrás apontado, podem estipular-se a priori algumas soluções:
a) Qualificação formal vs. Qualificação substancial
Como decorre quase que imediatamente do senso jurídico, a prevalência haverá de ser reconhecida à qualificação
substancial. Portanto, subsistirá a regra de conflitos que tem como elemento de conexão fatores respeitantes aos
requisitos de fundo do ato jurídico, em detrimento da regra de conflitos que estabelece como elemento de conexão
fatores respeitantes à forma do ato.
Esta preferência justifica-se com base nos interesses inerentes à criação de conexões especiais relativas à forma do
negócio. Com efeito, o “normal” seria que o negócio jurídico, enquanto ato unitário, estivesse submetido a uma única
lei, isto é, que todos os seus aspetos fossem regulados pela mesma lei. Para tal, haveria que existir uma única regra
de conflitos nesta matéria, que determinasse pura e simplesmente o ordenamento jurídico aplicável aos negócios
jurídicos. Sucede, porém, que os sistemas conflituais frequentemente compreendem várias regras de conflitos
respeitantes a esta questão – regras de conflitos relativas à substância do negócio, regras de conflitos relativas à forma
do negócio e regras de conflitos relativas aos efeitos do negócio –, fixando diferentes conexões para os diferentes
aspetos do negócio. Esta diferenciação teve em vista acautelar situações consideradas desrazoáveis do ponto de vista
dos particulares: muitas vezes, quando o negócio é celebrado num Estado que não é o Estado cuja lei regulará aquele
negócio, torna-se difícil saber quais as formalidades que devem ser observadas, sendo que estas podem até ser aí
impraticáveis. Daqui resulta que, apesar de a lei que disciplina a substância do negócio poder ser uma lei diferente da
lei do Estado onde é celebrado o negócio, a lei aplicável à sua forma é frequentemente a lei do Estado onde ocorre
essa celebração. Só é exigível aos particulares o cumprimento das formalidades impostas no Estado em que celebram
o negócio (embora a substância do negócio possa ter que obedecer a normas jurídicas de outro Estado). De tudo o
que foi dito resulta uma conclusão clara: o lugar da celebração do negócio surge, neste contexto, como elemento de
conexão “secundário”, que apenas veio a ser consagrado a respeito de um aspeto do negócio – a sua forma – e para
atender a situações específicas. É como se o aspeto “forma do negócio” se tivesse destacado do todo unitário que é o
negócio jurídico, exigindo uma conexão especial para si. E isto implica, para o que nos interessa, que a conexão relativa
à substância do negócio continua a ser a “principal”, aquela que o legislador considerou mais adequada para a
determinação da lei aplicável aos negócios jurídicos (em geral). Por isso, se para a disciplina do mesmo negócio jurídico
são convocadas dois ordenamentos jurídicos, indicados por duas regras de conflitos distintas (uma relativa à
substância e outra relativa à forma do negócio), e o negócio é válido ao abrigo de um desses ordenamentos e inválido
ao abrigo do outro, prevalecerá a solução (validade ou invalidade) ditada pelo ordenamento jurídico chamado pela
regra de conflitos que tem como âmbito de aplicação os requisitos de substância do negócio.
Esta orientação encontra-se expressamente consagrada, no nosso sistema conflitual, nos arts. 36º/1 e 65º/2 CC, os
quais dizem respeito, respetivamente, aos negócios jurídicos em geral e às disposições por morte. Nestes preceitos é
evidente a subordinação do estatuto da forma ao estatuto da substância. Embora estas disposições nada tenham a
ver com o conflito de qualificações (até porque, como referido, este problema não é solucionado pelo legislador), elas
veiculam o entendimento que acima expusemos e que sustenta a posição sustentada.
b) Qualificação real vs. Qualificação pessoal
Ao invés do que referimos atrás, a solução que entendemos ser a conferida a conflitos entre qualificações reais e
pessoais já não é aquela que decorre imediatamente do senso jurídico (prevalência da qualificação pessoal). Ao invés,
entende-se dever conferir-se prevalência à qualificação real.
A justificação para este entendimento das coisas é simples: a ligação da coisa ao Estado (sobre estando em causa
coisas imóveis) é, de facto, mais forte do que a ligação entre o indivíduo e o Estado da sua nacionalidade. E esta ligação
mais forte decorre do se substrato: a ligação coisa–Estado é uma ligação territorial (a coisa está localizada no território
do Estado), enquanto que a ligação pessoa–Estado é uma ligação meramente ideal (a pessoa é nacional daquele Estado
porque esse estatuto lhe é reconhecido naquele momento). Como se compreende, o exercício da soberania estadual
sempre será muito mais afincado em relação ao seu território, do que em relação seus nacionais, que podem estar ou
não nesse território e que podem alterar a sua nacionalidade. Daqui resultam duas importantes notas:
Nenhum Estado estrangeiro pode pretender exercer poder efetivo dentro do território de outro Estado.
As sentenças jurisdicionais relativas a coisas localizadas num Estado só podem ser executadas por esse Estado,
já que só ele tem poder executivo no seu território.
Ao invés, os Estados estrangeiros podem exercer a sua soberania sobre pessoas nacionais de outro Estado (por
exemplo, se essas pessoas ali residirem), bem como podem executar sentenças a elas respeitantes (por exemplo,
quando o exercício do poder executório for requerido pelo Estado da condenação). Em suma: embora a nacionalidade
seja um vínculo forte que liga o indivíduo a um Estado, a verdade é que o vínculo que liga uma coisa ao Estado em cujo
território ela se encontra é ainda mais forte. É, aliás, com base nesta consideração que em muitos ordenamentos
jurídicos se estabelece a regra da lex rei sitae (lei do lugar da coisa) em matéria de direitos reais. Deste entendimento
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Maria Paixão Direito Internacional Privado – 2017/2018
retiramos, então, a maior força da qualificação real e, por isso, a sua prevalência perante a qualificação pessoal em
caso de conflito. Esta conclusão é, ademais, corroborada pelo “princípio da maior proximidade”, que veremos infra.
c) Qualificação matrimonial vs. Qualificação sucessória
Neste tipo de casos não haverá propriamente contrariedade ou mútua exclusão entre dois preceitos materiais e as
dificuldades que possam suscitar-se resolver-se-ão considerando que os dois estatutos são de aplicação sucessiva.
Pode, todavia, suceder que as pretensões que o cônjuge sobrevivo pretende fazer valer não sejam cumuláveis, porque
a efetivação de uma implica o afastamento da outra, e vice-versa, sob pena de contradição do espírito do sistema.
[Ex.: A e B, suecos, celebram matrimónio na Suécia. Mais tarde passam a residir a Londres, vindo, posteriormente, a adquirir
nacionalidade britânica. B falece intestado. Segundo o direito sueco (no qual não existe o instituto do “regime de bens do
casamento”), após a morte de um dos cônjuges os bens do casal constituem-se em património comum, do qual metade pertence
ao cônjuge sobrevivo. A outra metade é dividida pelos herdeiros do de cujus, não sendo o cônjuge sobrevivo considerado como
herdeiro (pois já lhe foi arbitrada a sua parte da massa de bens). Já ao abrigo do direito inglês os bens dos cônjuges mantêm-se
separados após a morte, reconhecendo-se, porém, ao cônjuge sobrevivo a qualidade de herdeiro em relação aos bens do de cujus
(pois ainda não lhe foi atribuída nenhuma parcela dos bens). Como se compreende, não seria razoável que A (cônjuge sobrevivo)
quisesse fazer valer cumulativamente as duas disposições, ficando com metade da massa comum de bens e ainda com uma parcela
da herança, que consiste na outra metade dessa massa. Admitir esta situação seria contradizer o espírito dos dois sistemas.]
Ora, nestes termos, entende-se que a qualificação prevalecente dependerá da natureza da comunhão de bens
verificada. Com efeito, a comunhão dos bens do cônjuge sobrevivo e do cônjuge falecido pode ser:
Comunhão inter vivos (= a comunhão já existia em vida) » prevalece a qualificação matrimonial;
Comunhão mortis causa (= a comunhão só se efetiva com a morte) » prevalece a qualificação sucessória.
Esta distinção, proposta por Kegel, conduz-nos, então, à solução a conferir aos casos de conflito que nos ocupam:
1. A lei reguladora do regime de bens dos cônjuges (regime matrimonial) institui uma comunhão mortis causa:
se a lei chamada pela qualificação matrimonial apenas institui a comunhão dos bens após a morte (até lá os
bens estão separados), então pode concluir-se que esta providência se aproxima mais do direito sucessório
do que do direito matrimonial (caso contrário, a comunhão instituir-se-ia na “vigência” da relação
matrimonial). E se ela se aproxima do direito sucessório, haverá que privilegiar a qualificação sucessória,
mesmo que isso implique o afastamento dessa mesma lei. Como se compreende, se ambas as leis, uma
chamada pela qualificação matrimonial e outra chamada pela qualificação sucessória, têm uma função
substancialmente sucessória (porque aquela lei chamada ao abrigo da qualificação matrimonial apenas institui
uma comunhão mortis causa), haverá que prevalecer aquela que foi convocada pela regra de conflitos relativa
à matéria da sucessão.
2. A lei reguladora do regime de bens dos cônjuges (regime matrimonial) institui uma comunhão inter vivos: se a
lei chamada pela qualificação matrimonial institui a comunhão desde o momento do casamento (e não apenas
após a morte), então nada obsta a que se faça prevalecer a qualificação matrimonial (pois a lei por esta
qualificação chamada não cumpre uma função sucessória). Mas prevalecendo essa qualificação, não poderá
o cônjuge sobrevivo obter ainda a aplicação da lei convocada pela qualificação sucessória, que em abstrato é
também aplicável. Neste contexto, porque a lei designada pela qualificação matrimonial cumpre uma de
regulação do matrimónio (pois institui uma comunhão inter vivos) e a lei designada pela qualificação
sucessória regula efetivamente a sucessão, o cônjuge sobrevivo poderá optar por uma ou por outra, desde
que não pretende a aplicação cumulativa. No fundo, a prevalência da qualificação matrimonial para estes
efeitos implica tão-só que o regime matrimonial possa aplicar-se em detrimento do regime sucessório, mesmo
estando em causa um problema de sucessão; mas essa aplicação não é compulsória.
A título final, quanto aos conflitos positivos de qualificações, importa esquematizar o que foi dito até aqui:
Qualificação substancial Qualificação real Qualificação sucessória
VS. VS. VS.
Qualificação formal Qualificação pessoal Qualificação matrimonial
Prevalece a qualificação substancial Prevalece a qualificação real Prevalece a qualificação sucessória
se a lei matrimonial instituir
Fundamento: natureza secundária da Fundamento: (1)maior densidade do comunhão mortis causa
qualificação formal vínculo real e (2)princípio da eficácia das Fundamento: função sucessória da lei
decisões judiciais indicada pela qualificação matrimonial
Cabe ao cônjuge optar se a lei
matrimonial instituir comunhão
inter vivos
4.2 Conflitos negativos
A primeira nota a frisar a este respeito é a de que só se verifica um verdadeiro problema quando exista autêntica
lacuna de regulamentação segundo o ponto de vista da lex fori. Aliás, muitas vezes o conflito é tão-só aparente, porque
aos preceitos em causa de uma das leis interessadas pode vir a caber a qualificação correspondente àquela que põe
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em movimento a norma de DIP que designa essa lei como aplicável. Neste ponto, a questão passa pela interpretação
dos preceitos materiais das leis com pretensão de aplicação conforme a situação em causa. De facto, haverá sempre
que averiguar em que categoria se integra uma norma, não pela sua “designação”, mas antes pelo seu conteúdo e
função. Só se mesmo após este raciocínio a questão continuar inconclusa é que se falará em lacuna.
Veja-se um exemplo ilustrativo e paradigmático do que se pretende dizer:
A, cidadão britânico com domicílio no Reino Unido, morre em Portugal. Da herança fazem parte bens existentes em
Portugal. O de cujus faleceu intestado e não deixou cônjuge ou qualquer parente sucessível. O Estado Britânico,
enquanto Estado da nacionalidade, pretende a aplicação da lei nacional que atribui ao Estado o direito de ocupar os
bens não reclamados; o Estado português, enquanto Estado do lugar dos bens, pretende assumir-se como herdeiro,
nos termos dos arts. 2152º e 2153º CC. Ora, aquela lei britânica diz respeito a matéria real (“ocupação de bens”), e
neste domínio a lei aplicável é a lei do Estado em cujo território as coisas se encontrem situadas (art. 46º/1 CC); e a lei
portuguesa refere-se a matéria sucessória (“herdeiro”), sendo que neste domínio a lei aplicável é a lei da nacionalidade
do falecido (art. 62º CC). Concluir-se-ia, nestes termos, que nenhum dos preceitos referidos seria aplicável. Só que isto
implicaria que os bens ficassem sem destino. Estamos perante verdadeira lacuna, a qual haverá que ser integrada pela
lei da situação dos bens (lei portuguesa).
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conflitual interno (considerando como competente o ordenamento jurídico identificado pelas regras de conflitos
internas)? ou deverão considerar os sistemas conflituais estrangeiros quando, nomeadamente, o ordenamento
jurídico considerado competente identifica (através do seu sistema conflitual próprio) um outro ordenamento jurídico
como competente?
2. Diferentes abordagens do problema
2.1 A teoria do direito internacional privado à segunda potência
A primeira abordagem do problema surge nos fins do séc. XIX e começos do séc. XX, pelas mãos de Neumann e Gabba.
Ambos estes autores preconizaram a adoção por cada Estado de duas categorias ou escalões de regras de conflitos:
1. Normas de escalão superior: normas do Estado do foro que designariam o Estado competente para as diversas
matérias jurídicas;
2. Normas de escalão inferior: normas do Estado competente (designado segundo as normas de escalão superior
do Estado do foro) que determinam a lei aplicável.
Portanto, o Estado do foro (A) determina, segundo as normas de escalão superior do seu ordenamento jurídico, o
Estado competente (B), o qual identificará, nos termos das normas de escalão inferior do seu ordenamento jurídico, a
lei aplicável (que pode ser a de um Estado terceiro (C), a do Estado do foro (A) ou a do próprio Estado competente
para decidir acerca da questão (B)).
Esta conceção depende de um pressuposto fulcral: todos os Estados deveriam adotar iguais normas de escalão de
superior, as quais integrariam o designado “super-direito" internacional privado). Falhando este pressuposto, os
Estados ver-se-iam obrigados a elaborar preceitos que permitissem dirimir os conflitos advientes da diferença entre
as normas de escalão superior adotadas por cada Estado (pois isso significaria que podia suceder que o Estado do foro
indicasse um Estado competente para decidir diferente do que seria indicado por um outro Estado, incentivando-se o
forum shopping). Estes preceitos como que integrariam um terceiro escalão de normas, de tal como que se construiria
um “sofisma do recursum ad infinitum”.
Malogradas as tentativas de Neumann e Gabba, esta conceção veio a reacender-se, no período entre as duas grandes
guerras, pelas mãos de outros juristas, entre eles Ernst Frankenstein. Propõe-nos este autor um sistema em que avulta
a ideia de um tríptico de conexões:
1. Conexões primárias: conexões postuladas pela própria ideia de direito, válidas a priori (a sua validade é
independente de qualquer consagração legislativa) » só existiram duas:
a) Conexão pessoal» as pessoas estão sujeitas ao direito em vigor na sua comunidade nacional;
b) Conexão real » as coisas estão sujeitas ao direito em vigor no Estado da sua situação.
2. Conexões secundárias: conexões estabelecidas pelo Estado primariamente competente (Estado da
nacionalidade ou da situação da coisa), tendo o mesmo valor que as conexões primárias.
3. Conexão falsa: conexões estabelecidas por um Estado terceiro, que não é o Estado da nacionalidade ou da
situação da coisa, só sendo eficazes no território onde o respetivo Estado exercer a sua soberania.
As conexões primárias, neste contexto, equivalem às supramencionadas normas de super-direito internacional
privado – aceitando-se tais premissas, consideradas pelo autor como decorrentes de “verdades científicas” todos os
Estados limitar-se-iam a estabelecer normas de conflitos para as relações jurídicas dos seus nacionais e para os direitos
sobre as coisas situadas no seu território, de tal modo que não se suscitariam conflitos a este nível.
Esta conceção nunca foi, todavia, reconhecida. Apontam-se-lhe as seguintes falhas:
O conceito de direito de que arranca (e no qual se alicerçam as conexões primárias) é bastante duvidoso: a
ideia de que o direito procede da convicção jurídica da comunidade não se coaduna com um sistema jurídica
predominantemente legislativo e jurisprudencial (no qual tem escasso relevo o direito consuetudinário);
A ideia da personalidade do direito é claramente anacrónica: o direito de um Estado não tem hoje como
destinatários exclusivos os respetivos cidadãos, nem tão-pouco constitui um ato de violência a regulação
jurídica de relações que não digam respeito aos seus cidadãos ou às coisas situadas no seu território;
O sistema proposto ignora as razões sociais, económicas e políticas que nos países com forte corrente
imigratório determinam a prevalência do princípio do domicílio em matérias do foro pessoal: uma das regras
basilares da construção exposta carece, então, de aptidão para se tornar universal.
2.2 Doutrina da autolimitação espacial das regras de conflitos da lex fori
Para autores como Francescakis, entre outros, o ponto de partida deve ser o conflito de regras de conflitos. Assim
como internamente existem conflitos de leis, internacionalmente verificar-se-iam conflitos de regras de conflitos.
Neste contexto, haveria que admitir a existência de duas categorias de relações multinacionais:
a) Relações que não tendo com o sistema do foro o contacto por este elevado ao papel de elemento de conexão,
apresentam com ele outros contactos » a lex fori poderia submeter a relação à lei designada pela sua norma
de conflitos;
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b) Relações totalmente desligadas da ordem jurídica do foro » as regras de conflitos do foro não lhes seriam
aplicáveis.
Portanto: o sistema de conflitos do foro teria um âmbito de aplicação limitado – só se aplicaria a situações concretas
que com ele tivessem uma conexão; fora destes casos, haveria que admitir a validade das situações constituídas no
estrangeiro ao abrigo de qualquer lei que se considerasse competente.
Também esta conceção é suscetível de crítica:
O justificação conferida para a aplicabilidade do sistema de conflitos do foro – o contacto estabelecido pela
situação jurídica a regular com o ordenamento jurídico do Estado do foro – aproxima-se da visão das teorias
unilateralistas, e deveria, portanto, acarretar regras de conflitos bilaterais;
As normas de conflitos não são normas de conduta (regulae agendi) que, em virtude dessa natureza, devam
ter aplicação espacial limitada, como considera o autor ao entender que é necessário, para a aplicação do DIP
do foro, uma conexão da situação decidenda com o ordenamento jurídico respetivo;
Constitui proposição errónea a de que o sistema jurídico nacional não tem interesse em ver aplicadas as suas
normas de DIP a situações que não tenham com ele qualquer conexão, pois esse entendimento só pode fazer
sentido (e mesmo assim, só de forma rebuscada) no contexto de sistemas unilateralistas integrais;
Não deve reconhecer-se qualquer situação criada no estrangeiro ao abrigo de uma lei que se reputa
competente, pois isso significa renunciar-se a qualquer tipo de controlo prévio sobre estas situações.
3. Conflitos negativos de sistemas
3.1 Definição do problema
O problema dos conflitos negativos de sistemas, como referido, reconduz-se a situações em que a legislação
estrangeira designada pelo DIP do foro como competente não se considera aplicável, remetendo para uma outra
ordem jurídica. Podemos falar, a este respeito, em dois “tipos” de situações:
Retorno ou devolução stricto sensu: a lei do foro (L1) considera competente uma lei (L2) que considera como
competente a lei do foro (L1):
L1 L2
Transmissão de competência: a lei do foro (L1) considera competente uma lei (L2) que considera como
competente uma terceira lei (L3):
L1 L2 L3
Em ambos os casos, a ordem jurídica considerada competente pelo DIP do foro (a lex causae) não se considera
competente: no primeiro caso, essa ordem devolve a competência à lei do foro; no segundo caso, essa ordem jurídica
transmite a competência a uma terceira.
Tendo em conta este enquadramento, o que se pergunta é se a atitude da lei competente, de devolver ou transmitir
a competência, deve ou não ser considerada pelo ordenamento jurídico do foro. Este é um problema suscitado no
âmbito do DIP do foro, enquanto problema de interpretação do direito interno. Pois, verdadeiramente, o problema
colocado acaba por se reconduzir à questão de saber se o Estado do foro deve, em casos de devolução ou transmissão
de competência, atender, não só ao seu próprio DIP, como também ao DIP estrangeiro. Nos termos enunciados, a
questão do conflito de sistemas é uma questão de conflito de direito conflitual/formal.
3.2 As origens do problema
O problema enunciado originou-se na jurisprudência dos tribunais. Foi o célebre caso “Forgo” (1882) que veio colocar
a questão sob a luz da ribalta. Vejam-se, então, os contornos principais do caso:
[Forgo era um cidadão da Baviera (Estado alemão) que vivera em França durante grande parte da sua vida, onde veio a falecer
intestado. Apareceram a habilitar-se-lhe à sucessão, constituída por valores mobiliários existentes em França, certos parentes
colaterais afastados. Segundo a lei da Baviera, tais parentes herdariam os referidos bens; já segundo a lei francesa, seria o Estado
que haveria de ficar com tais bens. A lei francesa mandava, em matéria de sucessão, aplicar a lei do domicílio do de cujus, que se
mantinha, neste caso a Baviera, já que Forgo não havia adquirido domicílio legal em França. A lei bávara, por sua vez, atribuía a
competência à lei do domicílio de facto ou residência habitual. Num primeiro momento, os tribunais franceses aplicaram a lei
bávara, tal como imposto pelo DIP francês. Todavia, num segundo momento, colocou-se a questão de saber se a remissão da lei
francesa para a lei bávara não deveria ser entendida como remissão total, abrangendo, portanto, também o direito conflitual
deste último ordenamento jurídico. Se assim fosse, haveria que aplicar a lei francesa, pois é isso que dispõe o DIP da Baviera.]
A solução apresentada (no caso, acolhida pela Cour de Cassation) consiste no expediente atualmente concebido como
“reenvio”. Ora, a seu respeito, três são as atitudes possíveis:
1. Atitude favorável ao reenvio como princípio geral;
Teoria da Referência Global
Posições dogmáticas
2. Atitude absolutamente condenatória do reenvio;
Teoria da Referência Material
3. Atitude condenatória do reenvio enquanto princípio mas favorável ao reenvio com alcance limitado.
Posição pragmática
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3.3 Teoria da referência material
Antes de mais, para compreendermos esta problemática importa perspetivar os ordenamentos jurídicos, em
específico os respetivos sistemas de normas legais, em dois planos: (1) plano das normas de conflitos – direito formal
e (2) plano das normas substantivas, ordenadoras da vida social – direito material.
Ora, a teoria da referência material propugna que a referência do DIP do foro a uma determinada lei (ordenamento
jurídico) diz respeito unicamente ao direito material dessa lei (e já não ao seu direito formal). A referência operada
pelas regras de conflitos é, portanto, uma referência limitada ao plano das normas substantivas. De forma simplista:
a regra de conflitos do foro ao indicar determinada lei como competente pretende que os tribunais locais resolvam a
questão tal como ela seria resolvida pelos tribunais do Estado cuja lei é competente se a questão fosse puramente
interna (portanto, de acordo com a respetiva lei substantiva). O juiz do foro deve, portanto, assumir as vestes do juiz
do Estado competente, aplicando a respetiva lei substantiva nos termos em que ela é aí aplicada normalmente.
A favor desta conceção podem mobilizar-se os seguintes argumentos:
Função harmonizadora das regras de conflitos: as regras de conflitos, e o próprio DIP, têm como função
primacial indicar a lei competente para regular situações jurídicas plurilocalizadas, isto é, com contacto com
várias ordens jurídicas, de modo a que essa situação seja regulada pela mesma lei nos vários Estados. Em
virtude desta aspiração de universalidade, seria uma contradição admitir que as regras de conflitos se
referissem a outras regras de conflitos de sentido divergente.
Caráter internacional das regras de conflitos: as regras de conflitos, embora tenham fonte estadual, têm
vocação internacional. Consequentemente, o legislador nacional formula as regras de conflitos como se fosse
legislador internacional, pelo que não fará sentido entender que tais regras remetem para outro sistema
conflitual (o legislador interno já intenta fixar a lei material aplicável a cada caso).
Índole valorativa das regras de conflitos: as regras de conflitos traduzem uma ideia acerca de qual é a forma
mais acertada de resolver conflitos de leis em cada matéria. O legislador fixa diferentes elementos de conexão
para cada matéria exatamente porque entende que cada domínio específico deve ser disciplinado por uma
certa lei com a qual tem uma conexão mais forte (aos olhos do legislador). Por exemplo, se o legislador fixou
para os conflitos em matéria de capacidade jurídica a aplicabilidade da lei da nacionalidade, é porque entende
que a lei material da nacionalidade será a mais bem colocada para solucionar aquela questão.
3.4 Teoria da referência global
A teoria da referência global, num plano diametralmente oposto à teoria precedente, perilha uma remissão global do
DIP do foro para o ordenamento jurídico competente. Isto é, a regra de conflitos, quando determina a lei competente,
toma a universalidade dessa lei, remetendo quer para o seu direito material, quer para o seu direito conflitual.
Portanto, o juiz do foro, ao mobilizar o ordenamento jurídico competente, haverá que atentar não só nas suas normas
substantivas, mas também nas respetivas normas formais. Mais ainda: o primeiro passo na resolução de uma questão
plurilocalizada sempre será atentar no DIP do ordenamento jurídico competente (indicado pela regra de conflitos
interna) e averiguar se essa lei remete, ou não, para outra legislação. Em caso de resposta afirmativa, haverá que
aplicar essa outra legislação; em caso de resposta negativa, aplica-se essa mesma lei (a lex causae).
Esta é a aceção mais corrente da teoria da referência global, mas não a única. Noutra aceção, as normas de DIP da lei
estrangeira cumpririam uma função de delimitação do sistema jurídico a que pertencem: se tais normas remetem a
resolução da questão para um outro ordenamento jurídico, então conclui-se que a respetiva lei não será aplicável.
Todavia, a determinação da lei (alternativa) a aplicar sempre caberá ao DIP do foro.
Vejam-se, então, as diversas facetas que a teoria da referência global assumiu:
a) Teoria da devolução simples (clássica)
A teoria da devolução simples encara os tipos de situações que podem suscitar conflitos negativos de sistemas de
forma linear, admitindo abertamente as soluções que eles em si encerram:
Situação de retorno – a lei do foro (L1) indica como competente a L2 que, por sua vez, devolve a competência
para a própria lei do foro (L1) » aplica-se a lei material do foro (L1);
Situação de transmissão de competência – a lei do foro (L1) indica como competente a L2 que, por sua vez,
considera competente uma terceira lei (L3) » aplica-se a lei indicada pelo DIP da lex causae, isto é, a L3.
Portanto, neste contexto a teoria da referência global surge na sua veste mais “pura”: uma vez que se entende que as
regras de conflitos do foro remetem para a globalidade da ordem jurídica competente (isto é, tanto para as suas
normas materiais, como para as suas regras conflituais), haverá que averiguar se essa ordem jurídica se considera
competente ou se ela devolve ou transmite a competência para outra lei (para tal atentando no respetivo DIP); é de
acordo com a solução fixada pelo sistema conflitual da lei considerada pelas regras de conflito do foro como
competente que se solucionará a questão.
Exemplificando:
Coloca-se um problema de capacidade negocial, de um indivíduo residente em Portugal, a respeito de um negócio jurídico
celebrado em Espanha, nos tribunais portuguese. O (1)primeiro passo a efetuar pelo juiz é averiguar a lei considerada competente
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pelo nosso sistema de DIP (L1): a lei competente é a lei da nacionalidade da pessoa (art. 25º CC). Suponha-se que o indivíduo tem
nacionalidade francesa. O (2)segundo passo será, então, considerar a ordem jurídica francesa, na sua globalidade (pois a referência
da nossa regra de conflitos é uma “referência global”). (3)Seguir-se-á, em específico, a consideração do sistema conflitual francês,
pois a regra de conflitos não remete apenas para as respetivas normas materiais, e, portanto, a sua aplicação dependerá da
consideração prévia das normas formais ou conflituais desse ordenamento. Desta consideração poderão resultar as seguintes
hipóteses:
a) A lei francesa (L2) também considera competente a lei da nacionalidade » aplicar-se-ão as normas materiais do sistema
jurídico francês (porque não há devolução nem transmissão de competência);
b) A lei francesa (L2) considera competente a lei do domicílio » aplicar-se-á a lei portuguesa (L1) que é a lei do domicílio do
indivíduo (há devolução ou retorno de competência);
c) A lei francesa (L2) considera competente a lei de celebração do negócio que coloca o problema da incapacidade negocial
» aplicar-se-á a lei espanhola (L3), que é a lei do local da celebração do negócio jurídico (há transmissão de competência).
(4)
Só após este raciocínio será de atentar especificamente na lei material aplicável, que poderá ou não ser a lei considerada
competente pelo DIP do foro, consoante a solução consagrada no DIP dessa lei.
Vistos os termos em que esta doutrina se coloca, importa agora enunciar os fundamentos que lhe subjazem:
Unidade e incindibilidade da ordem jurídica: as ordens jurídicas são um todo unitário, devendo sempre
considerar-se na sua unidade e não em compartimentos estanques, mediante separação entre o direito
material e o direito formal ou conflitual. O ordenamento jurídico é um todo incindível, de tal modo que aplicar
as suas normas materiais a situações para as quais esse ordenamento não se considera competente (porque
as suas regras de conflitos indicam outra ordem jurídica como competente) é um contrasenso.
Respeito pela soberania dos Estados: impor uma competência a quem não a quer (aplicando-se as normas
materiais de um Estado que não se considera competente para disciplinar a situação) é desrespeitar a
soberania desse Estado, assumindo em relação a ele uma posição de superioridade (impõe-se-lhe uma
competência que ele não quer).
Uniformidade dos julgados e harmonia jurídica internacional: só admitindo a devolução de competência ou a
transmissão de competência operada pelo ordenamento jurídico considerado competente pelo DIP do foro é
que o tribunal do foro decidirá da mesma fora que decidiria o tribunal do Estado cuja lei competente à luz da
lex fori. Consequentemente, só desta forma as decisões judiciais dos vários Estados seriam conformes umas
com as outras, obtendo-se a almejada harmonia jurídica internacional.
Interesse da boa administração da justiça: há sempre interesse em que os juízes apliquem o seu próprio
direito, pelo que, havendo devolução de competência (da lei considerada competente pelo DIP do foro – L2 –
para a lei do foro – L1), tal devolução deve ser acatada e seguida, aplicando-se a própria lex fori materialis.
A estes fundamentos ou argumentos podem ser, todavia, apostas críticas ou contra-argumentos:
O argumento da unidade da ordem jurídica é falacioso, na medida em que ele só teria valor se se conseguisse
provar a unidade substancial das duas espécies de normas jurídicas (materiais e de conflitos), isto é, se se
provasse que as normas materiais só podem exercer a sua função sócio-jurídica ou cumprir os seus fins no
enquadramento definido pelas normas de conflitos. Entende-se, porém, que esta interconexão não existe.
Não se pode propugnar que determinado direito material (de uma qualquer ordem jurídica) é como é em
função do sistema conflitual que lhe vai conexo (que pertence a essa mesma ordem jurídica). Se o sistema
conflitual tivesse um outro conteúdo, nada implicaria necessariamente que o conteúdo do direito material
fosse também diferente. As valorações e os conteúdos jurídico-materiais de uma ordem jurídica não estão
condicionados aos esquema de valorações e conteúdos do respetivo sistema conflitual. Tanto é que, as mais
das vezes, as alterações legislativas num desses planos não implicam, de forma alguma, alterações no outro.
Os conflitos de leis não são conflitos de soberanias (conflitos interestaduais), de forma a que possa dizer-se
que só aplicando a lei indicada pelo Estado considerado competente pela lex fori se está a respeitar a sua
soberania. Ao invés, os conflitos de leis têm como cerne a questão de saber qual a lei mais bem colocada para
solucionar uma determinada questão com contacto com várias ordens jurídicas. E as considerações que se
façam acerca deste ponto (qual a lei melhor colocada) em nada atentam contra as soberanias dos Estados.
A teoria da referência global acaba por conduzir a um autêntico ciclo vicioso: se ela válida para a lei do foro,
haveria de sê-lo também para a lei para o ordenamento jurídico considerado competente pelo DIP do foro, o
que significaria que, por exemplo, quando a L2 devolve a competência para a lei do foro (L1) teria também ser
considerada, antes de mais, o sistema conflitual da L1, o qual havia já remetido para a L2. Portanto, se, de um
modo circular, a L1 considera competente a L2, e a L2 considerada competente a L1, e haverá sempre que
considerar em primeiro lugar as regras de conflitos da lei competente, não se chegaria a qualquer solução. E
o mesmo se aplica aos casos, não de retorno, mas de transmissão de competência: porque a situação jurídica
decidenda apenas tem contacto com um número restrito de ordens jurídicas, elas acabariam todas por
remeter umas para as outras. Daqui resulta uma conclusão incontestável: ou realmente se perfilha a referência
global e se a aplica a todas as remissões de uma lei para a outro (culminando no exposto ciclo vicioso), ou,
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Maria Paixão Direito Internacional Privado – 2017/2018
para fazer face à circularidade apontada, se admite interpretar de forma diferente pelo menos uma das
remissões de uma lei para outra (fechando-se o circuito), deixando, todavia, de se perfilhar um verdadeiro
princípio da referência global.
A doutrina exposta, verdadeiramente, só em casos contados realizará a harmoniza jurídica internacional. De
facto, a despeito do reenvio, a divergência de soluções poderá subsistir porque os tribunais dos Estados com
conexão com a situação decidenda todos acolhem esta teoria e, portanto, aplicariam uma lei diferente
daquela que as suas regras de conflitos indicam (em caso de retorno ou devolução de competência, a L1
aplicaria a sua própria lei material, porque a L2 (considerada competente pelo DIP do foro) devolve a
competência para a lei do foro; mas se nos colocarmos do ponto de vista do Estado 2, a lei aplicável será a L2,
porque a lei competente, L1 (já que, recorde-se, o DIP da L2 remete para a L1), indica como competente a L2
– igual raciocínio se aplicará no caso de transmissão de competência, apenas com maior nº de leis envolvidas).
O interesse da boa administração da justiça como argumento a favor da teoria da devolução simples só teria
valor em caso de retorno e apenas considerando-se que este retorno diz respeito especificamente à lei
material do foro (caso contrário, entrar-se-ia no ciclo vicioso exposto). Todavia, aceitar esta remissão material
seria, desde logo, negar a própria teoria da referência global. Ademais, o verdadeiro fundamento do DIP não
se pretende com a aplicação do direito para cuja aplicação os juízes estão melhor preparados, mas antes com
a aplicação da lei que melhor esteja colocada para solucionar o problema.
De tudo o que foi dito resulta que a teoria clássica, da devolução simples, não pode ser sustentada; ou pelo menos
não pode ser sustentada no seu estado puro. Daí, aliás, que outras suas formas mitigadas tenham vindo a surgir.
b) Teoria do reenvio total ou da devolução dupla
A teoria do reenvio total, ou “foreign Court theory”, tem gozado de bastante favor junto dos tribunais ingleses. A sua
ideia básica é que a referência da norma de conflitos do foro a determinada lei estrangeira impõe aos tribunais locais
o dever de julgarem a causa tal como ela seria provavelmente julgada no Estado em que essa lei vigora.
Exemplificando:
Retomando o caso supra exposto do problema de capacidade negocial de um cidadão francês residente em Portugal. O (1)primeiro
passo a efetuar pelo juiz é averiguar a lei considerada competente pelo nosso sistema de DIP (L1): a lei competente é a lei da
nacionalidade da pessoa (art. 25º CC). O (2)segundo passo será, então, considerar a ordem jurídica francesa, na sua globalidade
(pois a referência da nossa regra de conflitos é uma “referência global”). Mas agora (3)iremos considerar, a respeito do DIP francês,
não só as respetivas regras de conflitos, como ainda a posição adotada pelo legislador francês quanto ao problema do reenvio.
Considerando que o DIP francês admite o reenvio, vejam-se, então, as hipóteses que poderão verificar-se:
a) A lei francesa (L2) também considera competente a lei da nacionalidade » aplicar-se-ão as normas materiais do sistema
jurídico francês (porque não há devolução nem transmissão de competência);
b) A lei francesa (L2) considera competente a lei do domicílio » aplicar-se-á a lei francesa (L2) pois a lei competente segundo
o DIP francês, que é a lei portuguesa (L1), considera competente a própria lei francesa – o juiz português, ao colocar-se
na posição de um juiz francês, conclui pela aplicação da lei francesa.
c) A lei francesa (L2) considera competente a lei espanhola (L3) » aplicar-se-á ou a lei francesa (L2) se a lei espanhola (L3)
devolver a competência; ou a lei espanhola (L3) se ela se considerar a si própria competente – o juiz português, ao colocar-
se na posição do juiz francês, conclui que só pode aplicar ou a lei francesa ou a lei espanhola.
(4)
Só após este raciocínio será de atentar especificamente na lei material aplicável, que será sempre aquela que aplicaria um juiz
do Estado cuja lei é considerada competente pelo DIP do foro.
Deste modo, a teoria em referência carateriza-se, em face da anterior, pela consideração dada, não só às regras de
conflitos estrangeiras, mas também à norma percetiva do reenvio, eventualmente contida na lei mandada aplicar. E,
nestes termos, os tribunais do foro podem ter que observar um só reenvio, ou um duplo reenvio:
Reenvio único: o juiz considera somente o reenvio efetuado da ordem jurídica considerada competente pelo
DIP do foro (L2) para um outro ordenamento jurídico (que pode ser o do foro – L1 ou um terceiro – L3), pois
aquela ordem jurídica competente (L2) adota um sistema de referência material (remete apenas para o direito
material, e não para o direito formal ou conflitual);
Reenvio duplo: o juiz considera, em primeiro lugar, o reenvio efetuado da ordem jurídica competente segundo
o DIP do foro (L2) para um outro ordenamento jurídico (L1 ou L3), e, em segundo lugar, o reenvio efetuado
deste ordenamento jurídico (L1 ou L3) para outro, pois aquela ordem jurídica competente (L2) adota um
sistema de referência global (acarentando que seja considerado não só o direito material, mas também o
direito formal ou conflitual do ordenamento jurídico que considera competente).
[São estes os casos previstos no exemplo exposto, pois consideramos previamente que o DIP francês admitia o reenvio]
Em suma, esta teoria parte do mesmo ponto que a teoria da referência global clássica (a teoria da devolução simples):
há que olhar para o ordenamento jurídico competente na sua globalidade, considerando não só as normas materiais
que o compõem, mas também as respetivas regras de conflitos. Todavia, acrescenta-lhe um aspeto fulcral: ao olhar as
regras de conflitos do ordenamento jurídico competente, para averiguar se há devolução ou transmissão da
competência para outro ordenamento, haverá que se considerar a posição que nesse ordenamento jurídico é tomada
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acerca do reenvio. Isto porque o juiz do foro procurará decidir exatamente como decidiria o juiz desse Estado, e
decerto que este último teria em conta esta questão – dela dependeria ou a aplicação direta do direito material da
ordem jurídica considerada competente (L1 » L2 » L3), ou a consideração de um segundo reenvio (L1 » L2 » L3 » L2).
Esta teoria parece, prima facie, isenta de mácula. No entanto, a verdade é que ela acaba por implicar os mesmos
problemas que a teoria da devolução simples. Na verdade, se todos os Estados adotassem este modelo, acabaria por
se cair de novo num ciclo vicioso: o juiz do foro (J1) quereria resolver o caso tal como ele seria resolvido pelo juiz do
Estado da lei competente (J2); e este último (J2), porque o DIP deste segundo Estado considera como competente a
lei do Estado daquele primeiro juiz, quereria resolver a questão tal como ela seria resolvida por aquele primeiro (J1).
!! Das críticas apontadas às duas aceções da teoria da referência global resulta uma conclusão fundamental: o
pensamento do reenvio não pode realmente ser erigido em princípio geral do direito de conflitos.
3.5 Posições pragmáticas
Acabámos de demostrar que o reenvio, como princípio geral, é inaceitável. Esta constatação gerou dois movimentos
distintos: por um lado, muitos adotaram uma disposição absolutamente hostil ao reenvio (tendência para a
reafirmação pura e simples do dogma da referência material); por outro lado, outros adotaram um posição intermédia,
não hostilizando o reenvio, mas também não o erigindo a princípio.
Este último é o juízo prevalecente nos dias. Da discussão que envolveu o reenvio durante largos anos duas foram as
conclusões principais:
O reenvio não pode ser considerado como princípio do DIP;
O reenvio permite atingir alguns fins valiosos para o DIP.
Portanto, se, por um lado, são de afastar as teorias que encaram o reenvio enquadro dogma, verdadeiro instituto
caraterizador do sistema conflitual, por outro, não haverá que excluir de forma absoluta a sua utilidade. É neste
intermédio que surgem as teorias pragmáticas, que vêm no reenvio um expediente prático, uma técnica, que pode
ser útil em determinadas situações concretas, embora não seja um princípio geral. Nos termos em que nos coloca esta
conceção Ferrer Correia:
“O reenvio (...) se não é verdadeiro como teoria das normas de conflitos, é perfeitamente utilizável como técnica”.
Dito isto, o reenvio só deverá ser mobilizado como instrumento quando por seu intermédio se conseguirem alcançar
os fins ou valores prosseguidos pelo DIP.
Vejam-se, então, as situações que podem estar em causa:
3.5.1 Retorno direto
Os casos de retorno direto correspondem às situações que acima denominamos de “retorno ou devolução stricto
sensu”: L1 » L2 » L1.
Nestas hipóteses, o reenvio só é instrumento apto a realizar a harmonia jurídica internacional se a lei estrangeira
considerada competente (L2), ao remeter para a lex fori (L1), o fizer para o direito interno material. Portanto, a
remissão feita pela lei estrangeira (L2) é única e exclusivamente dirigida ao direito material. Estamos aqui em face de
um ordenamento jurídico (L2) que acolhe a “teoria da referência material” (exs.: Brasil, Grécia, Dinamarca).
Nestes casos, a aceitação do reenvio permitirá aos tribunais portugueses julgar como julgariam os tribunais do Estado
cuja lei é competente, porque esta lei remete para o direito material português. Conclui-se, então, que havendo
retorno direto, ou devolução de competência stricto sensu, o reenvio será admitido se a referência para a lei interna
for uma referência material.
Se esta devolução fosse realizada segundo a teoria da referência global, em qualquer das suas duas vertentes, já não
se cumpriria a harmonia jurídica internacional pretendida:
A lei estrangeira adota a doutrina da devolução simples: entrar-se-ia no exposto ciclo vicioso atrás exposto –
L1 » L2 » L1 » L2... – porque a lei estrangeira (L2) designada pela lei do foro (L1) ao devolver a competência,
fá-lo de forma global, pelo que essa devolução implica a consideração do DIP do foro (L1), o qual, por sua vez,
remete para essa lei (L2).
A lei estrangeira adota a doutrina da devolução dupla: o reenvio é aqui desnecessário porque os tribunais do
Estado cuja lei é competente (L2), uma vez que aí se perfilha a doutrina da devolução dupla, iriam procurar
decidir como se fossem juízes do Estado do foro (L1), já que o respetivo DIP devolve a competência para a lex
fori. Assim sendo, basta aos tribunais do foro atuar como atuariam normalmente, para que se obtenha, sem
mais, a uniformidade dos julgados.
3.5.2 Transmissão de competência
A “transmissão de competência” verifica-se nos casos acima expostos da seguinte forma: L1 » L2 » L3.
O reenvio nos casos em que há transmissão de competência (a lei competente remete para uma lei terceira) é
admissível sempre que ele permita obter a uniformização dos julgados. Vejam-se, então, que casos são esses:
A lei para qual a lei competente transmite a competência (L3) considera-se competente: nestes casos é
evidente que, graças ao reenvio, a harmonia jurídica entre os únicos Estados interessados, será uma realidade
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(tanto os Estado do foro, como o Estado da lei considerada competente pelo DIP do foro, como o Estado
terceiro para o qual esta transmite a competência, aplicam a L3).
A lei para a qual a lei competente transmite a competência (L3) reconhece a sua competência em decorrência
do reenvio: nesta hipótese a L3 não se considera, ab initio, competente, remetendo a competência ou para a
lei do foro (L1), ou para a lei que a considerou competente (L2) ou para uma quarta lei (L4). Todavia, a
referência feita para a L1, ou L2 ou L4 poderá ser uma referência global. E se assim for, é muito provável que,
ao fim e ao cabo, em sequência de novos reenvios, a L3 acabe por ser a lei competente.
Vejam-se exemplos de hipóteses em que essa solução será a alcançada:
A L2 (considerada competente pela lei do foro – L1) transmite a competência para a L3,
segundo uma referência material. A L3, por sua vez, devolve a competência para a L2, nos
termos da referência global, acabando por reconhecer a sua competência, já que admite o
reenvio que a L2 faz para si (L3). Perante este cenário, o tribunal do foro deveria aplicar a L3,
pois também (a) os juízes do Estado da L2 aplicam a L3 (por referência material) e, além disso,
(b) os juízes do Estado da L3 aplicam a sua própria lei em virtude da devolução operada pela
lei competente ao abrigo do respetivo DIP (L2).
A L2 (considerada competente pela lei do foro – L1) transmite a competência para a L3,
segundo uma referência material; e L3, por sua vez, efetiva nova transmissão para L4. A L4
devolve a competência para a L3. Nestes termos, a L3 acabaria por reconhecer a sua própria
competência, porquanto ela é-lhe atribuída pela L2, segundo uma referência material, e pela
L4, que lhe devolve a competência atribuída pelo DIP da L3. Perante este quadro, o tribunal
do foro haveria que aplicar a L3, já que (a) os juízes do Estado da L2 aplicam a L3 (por referência
material), (b) os juízes do Estado da L4 aplicam também a L3 (pois o DIP da L4 devolve a
competência à L3, seja essa devolução com ou sem reenvio) e (c) os juízes do Estado L3
acabariam por aplicar a sua própria lei em virtude da devolução de L4.
Podemos concluir, então, que, assim como nos casos de retorno, também na transmissão de competência o reenvio
pode ser o meio próprio para alcançar a harmonia jurídica internacional. Esta resultado será obtido sempre que se
constate que todos os sistemas jurídicos em contacto com a situação a disciplinar designam um deles como aplicável.
3.5.3 Retorno indireto
Estão agora em causa hipóteses em que o retorno à lex fori é ordenado por uma lei diferente da L2. Em face de uma
situação destas, duas soluções podem ser propugnadas:
1. Remetendo a L3 para a L1, haverá que aplicar sempre o direito material de L1.
A favor desta solução, aduz-se que o reenvio é sempre vantajoso desde que conduza à aplicação da lei
do foro. Este é um argumento, como referido, criticável do nosso ponto de vista.
2. Remetendo a L3 para a L1, só deverá reconhecer-se a devolução (levando o Estado do foro a aplicar a sua
própria lei, L1), quando preenchidos dois requisitos:
a) A referência da L2 para a L3 é uma referência global (admite-se, então, que seja considerado o DIP da
L3, nos termos do qual a lei competente é a L1);
b) A referência da L3 para a L1 é uma referência material (não é considerado o DIP da L1, pois caso
contrário entrar-se-ia num processo circular: L1 » L2 » L3 » L1 » L2 » L3...).
3.6 O reenvio oculto
Nas matérias de estatuto pessoal (divórcio, adoção, etc.), não existem no DIP inglês e estadunidense normas de
designação da lei aplicável, mas tão-só normas de conflitos de jurisdições (conflitos relativos à determinação do
tribunal com competência internacional para decidir o caso decidendo). E é assim porque esses ordenamentos
jurídicos consideram sempre aplicável, nestas matérias, a lei do foro. Deste modo, pergunta-se: quid iuris se num caso
concreto, por exemplo de divórcio, o DIP português manda aplicar a lei britânica? É certo que não há sequer qualquer
regra de conflitos no ordenamento jurídico britânico que devolva ou transmita a competência, pelo que, prima facie,
parecem não se colocam quaisquer problemas – aplicar-se-ia a lei britânica, em respeito rigoroso à regra de conflitos
interna. Porém, seria esta solução suscetível de alcançar harmonia jurídica internacional? Na verdade, não. Com efeito,
do ponto de vista do direito britânico, a lei aplicável é a lei material do foro. Consequentemente, se os tribunais
portugueses são os tribunais competentes, então a lei aplicável deve ser a lei material interna. Só assim a decisão que
venha a ser proferida é reconhecida nos Estados interessados.
4. Conflitos negativos de sistemas e o DIP português
4.1 Considerações iniciais
Já sabemos que o reenvio não pode ser erigido em princípio geral de DIP. Mas também já ficou exposto que seria
injustificável recusá-lo de forma absolta. Como referimos, uma coisa é o reenvio enquanto princípio geral de DIP, outra
coisa é o reenvio enquanto técnica.
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As regras de conflitos visam, através da eleição do fator de conexão considerado mais apropriado, determinar a lei
aplicável a certa matéria ou setor normativo. A lei que deste modo resulta aplicável ao caso concreto é tomada nos
seus preceitos e instituições jurídico-materiais. Todavia, o facto de essa lei não se reputar como competente vem
introduzir um elemento novo. Tal elemento poderá ser atendível, se ele se oferecer como caminho para se atingirem
os fins inerentes ao DIP. Designadamente, se todos os Estados primordialmente interessados na situação controversa
são unânimes em sujeitar a questão a um concreto direito material, então deve ser nesse sentido que o tribunal do
foro deve seguir (aceitando o reenvio para esse direito), embora o DIP interno não considere, diretamente, esse direito
como aplicável. Nestes casos, o reenvio é um expediente essencial para a obtenção da harmonia jurídica internacional.
4.2 O estado da questão antes da entrada em vigor do CC de 1966
Antes do Código atual, a corrente dominante na doutrina portuguesa era contrária ao reenvio, enquanto que na
jurisprudência do STJ já se encontravam alguns arestos que aludiam expressamente ao reenvio enquanto teoria.
O Código de Seabra não continha nenhuma disposição sobre a matéria e, embora tivessem sido recebidas
internamente a Convenção de Haia e a Convenção de Genebra, que se referiam à possibilidade de admitir o reenvio
em certos casos, estes diplomas não representavam a posição do nosso legislador em face do problema, já que a sua
natureza é convencional.
4.3 A posição adotada no atual CC
O problema está atualmente resolvido no nosso Código Civil. Refira-se, desde logo, que o nosso legislador optou por
não assumir uma atitude radical: por um lado, o Código rejeita a ideia de aplicação sistemática do reenvio (art. 16º
CC); por outro lado, define-se com certo rigor o âmbito em que o reenvio deve atuar (arts. 17º e ss. CC).
A este respeito, importa referir, desde já, que o legislador português, ao consagrar esta solução legal, perfilhou uma
orientação geral altamente progressista (sobretudo se considerarmos o momento da sua redação).
Como já se fez notar, a ideia de harmonia jurídica internacional foi a fonte de inspiração do legislador português.
Vejam-se, então, as manifestações desta ideia nas soluções consagradas:
Art. 18º/1 CC: em caso de (1) retorno ou devolução stricto sensu (devolução da competência para a lei do
foro), o direito material da lex fori só se torna aplicável se a norma de conflitos estrangeira para ele devolver
precisamente. Portanto, haverá de estar em causa um ordenamento jurídico que acolha um sistema de
referência material (remete unicamente para o direito material da lei competente).
Nas hipóteses de (2) retorno indireto (em que a norma de conflitos da lei designada pelo DIP português remete
para uma terceira lei que, por sua vez, devolve a competência à lex fori), o reenvio será de aceitar, também
no quadro do art. 18º/1, por extensão ancorada na ratio legis do preceito, se verificadas duas condições:
1. Aceitação da transferência de competência (da L3 para a L1) por parte do sistema jurídico (L2)
designado pelo DIP português (L1);
2. Referência material da terceira legislação para a lei do foro (portanto, o sistema jurídico desta terceira
lei deverá acolher a teoria da referência material).
Preenchendo-se estes dois pressupostos, o resultado obtido será considerado válido por ambos os sistemas
estrangeiros interessados, tal como sucede no caso de retorno direto, o caso diretamente regulado neste
preceito. Daí que esta extensão da aplicação do art. 18º/1 CC seja perfeitamente concebível.
Art. 17º/1 CC: em caso de transmissão de competência (transmissão da competência para uma terceira lei), o
reenvio é admitido, reconhecendo-se como aplicável a terceira lei (L3) indicada como competente pela lei
designada pelo DIP do foro (L2), quando essa terceira lei se repute como competente.
Mas, quid iuris se essa terceira lei (L3) não se considera competente? Podem colocar-se duas hipóteses:
a) A terceira lei (L3), indicada pela L2, devolve a competência a esta » o problema extingue-se (tanto a
L1, lei do foro, como a L3, consideram a L2 como competente);
b) A terceira lei (L3) indica como competente uma quarta legislação (L4) » gera-se uma cadeia de
reenvios, devendo aplicar-se a lei que se repute a si mesma como competente, se todas as demais leis
para ela remeterem, direta ou indiretamente (por intermédio do reenvio).
A exposição precedente permite compreender que autores internacionais, como Von Overbeck, considerem ser a lei
portuguesa a única que só admite o reenvio quando ele se mostrar conforme com o “princípio altruísta”: em todos os
casos, a admissão do reenvio nunca surge alicerçada em interesses nacionalistas, estando sempre dependente da
consecução da harmonia jurídica internacional. Veja-se o que foi dito de forma esquemática:
Reenvio
1º Grau (Retorno) 2º Grau (Transmissão)
Retorno direto » condição de admissibilidade: referência
Condição de admissibilidade:
material da L2 para a L1 – art. 18º/1 CC
L3 reputa-se competente
Retorno indireto » condições de admissibilidade:
art. 17º/1 CC
1. Aceitação da transmissão pela L2;
2. Referência material da L3 para a L1.
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4.4 Restrições ao reenvio no âmbito do estatuto pessoal
Na perspetiva do legislador português, existe um conjunto de matérias que, pela sua natureza eminentemente
pessoal, devem ser governadas por uma lei que os indivíduos possam olhar como sua lei, à qual se possam considerar
ligados por um vínculo verdadeiramente substancial e permanente. A esta luz, inevitavelmente a opção recairá sobre
uma de duas leis: ou a lei da nacionalidade, ou a lei do domicílio.
É com base neste raciocínio que o legislador nacional consagrou exceções ao esquema exposto acima. Trata-se de
situações em que, embora verificadas as condições de admissibilidade do reenvio, ele não terá lugar. Veja-se:
Art. 18º/2 CC: o retorno da competência à lei do foro (L1) quando prescrito pela lei pessoal (que é aqui a lei
considerada competente pelo DIP do foro – L2), só é possível em dois casos:
a) O interessado tem residência habitual em território português;
Justificação: o reenvio tem como único efeito a substituição da lei da nacionalidade pela lei do
domicílio, sendo que tanto uma como outra representam soluções justas e equivalentes em matéria
de lei pessoal.
b) A lei da residência habitual do interessado (L3) remete também para o direito português.
Justificação: o reenvio resultado do acordo entre a lei da nacionalidade e a lei do domicílio, que são
os dois sistemas jurídicos interessados nas questões de estatuto pessoal.
Art. 17º/2 CC: a transmissão de competência para terceira legislação (L3) operada pela lei pessoal (que é aqui
a lei considerada competente pelo DIP do foro – L2) não será aplicável:
a) Se o interessado residir habitualmente em território português;
Justificação: a lei do domicílio é a lei portuguesa, e a lei da nacionalidade é a lei considerada
competente pelo DIP português, pelo que não se desvelam razões para aplicar uma terceira lei, tendo
em conta que estamos no domínio do estatuto pessoal.
b) Se o interessado residir em país cujo direito de conflitos devolva para a lei da nacionalidade.
Justificação: se tanto o DIP português como o DIP da lei do domicílio consideram competente a lei da
nacionalidade, não parece haver motivo para aplicar terceira lei.
A restrição enunciada no art. 17º/2 CC não se aplica (admitindo-se o reenvio) sempre que (cumulativamente):
1. A lei indicada pela regra de conflitos da lei da nacionalidade (L3) for a lei da situação do imóvel;
2. A L3 (lei indicada pele regra de conflitos da lei nacionalidade) se considerar competente;
3. Se trate de uma das matérias enumeradas no art. 17º/3 CC.
Justificação: este art. 17º/3 CC é uma manifestação indireta do princípio da maior proximidade, sendo este
admitido neste contexto uma vez que é a própria lei da nacionalidade (L2) que considera competente a lei da
situação da coisa (L3).
A este propósito, poderá suscitar-se a seguinte questão: poderá admitir-se o reenvio, na modalidade de transmissão
de competência (para a L3), mesmo não se verificando o requisito do art. 17º/1 CC, porque está em causa uma matéria
de estatuto pessoal e tanto a lei do domicílio como a lei da nacionalidade (sendo uma delas reputada competente pelo
DIP do foro) indicam essa L3 como competente? A posição sustentada é a de que se deverá, efetivamente, considerar
competente a L3, ainda que esta não se repute competente (faltando, por isso, o preenchimento do requisito do art.
17º/1 CC). Aplica-se aqui o raciocínio atrás exposto acerca da aplicação de uma determinada lei quando todas as leis
interessadas estão de acordo quanto à sua competência. Especificamente, estando em causa uma matéria de estatuto
pessoal, essas “leis interessadas” que terão de estar de acordo são a lei do domicílio e a lei da nacionalidade. Note-se,
porém, que esta solução não se infere diretamente dos preceitos do Código Civil. Contudo, ela ajusta-se perfeitamente
aos seus princípios.
4.5 Conexões favoráveis e contrárias ao reenvio
Além das restrições ao reenvio decorrentes da natureza pessoal da matéria envolvida, outras restrições se colocam,
agora em decorrência de incompatibilidade do reenvio com os fins específicos de algumas regras de conflitos.
Esta ideia só está expressamente aflorada no art. 19º/2 CC, nos termos do qual só não haverá reenvio, ainda que
verificados os requisitos para a sua admissibilidade, quando a lei estrangeira aplicável o for por força da vontade das
partes contratantes, nos termos do art. 3º da Convenção de Roma de 1980. Portanto, se a lei designada pelas partes
remeter para outra, essa transmissão ou retorno não releva. Como se compreende, se se dá às partes a faculdade de
escolher a lei porque querem reger as suas relações, não faria sentido aplicar uma outra lei, para a qual remete aquela
primeira (as partes não a escolheram porque o respetivo DIP manda aplicar uma outra lei).
Embora o Código Civil não o preveja expressamente, entende-se que também a regra de conflitos que confere
competência, em matéria de forma externa dos negócios jurídicos, à lei do lugar da celebração, implica a exclusão de
todo o entendimento conforme ao princípio do reenvio. A eleição do lugar da celebração do negócio como elemento
de conexão visa facilitar às partes a realização de negócios jurídicos em Estados diferentes daqueles a que tais negócios
pertencem por sua substância e efeitos (portanto, cujas normas materiais têm que respeitar). Assim sendo, não faria
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sentido forçá-los a observar as formalidades exigidas por uma outra lei, impondo-lhes o ónus de as indagar antes de
realizar o negócio (ónus esse que se pretende, exatamente, afastar).
4.6 O princípio do favor negotii
Uma primeira questão pertinente nesta matéria é a de saber se o favor negotii poderá fundamental, só por si
(independentemente da harmonia jurídica internacional), o reenvio. Noutros termos: deverá o reenvio admitir-se só
porque ele se apresenta como meio necessário para assegurar a validade de determinado negócio jurídico?
Esta é uma questão que poderia suscitar, decerto, aderência, quer da doutrina, quer do legislador. Todavia, o Código
Civil português só aceitou a referida possibilidade na hipótese de a invalidade do negócio resultar de um vício de forma
(arts. 36º/2 e 65º/1 CC). Esta solução corresponde inteiramente à intenção de facilitar a contratação, nos termos
supramencionados [vide supra: Cap. III, 4.1, a)].
Além de se assumir como fundamento autónomo do reenvio, o favor negotii pode ainda constituir-se como seu limite.
Dispõe o art. 19º/1 CC que se resultar do reenvio a invalidade ou ineficácia de um negócio jurídico que seria válido ou
eficaz em face da lei indicada pelo DIP português (L2), é esta a lei que se aplica, ficando salvaguardada a validade ou
eficácia do ato. Entende-se que se os interessados realizaram o negócio jurídico de conformidade com as disposições
de um sistema de direito material que é o declarado competente pela regra de conflitos do foro, crendo que seria este
o direito material aplicável, então não seria justo frustrar a confiança que depositaram na validade do ato. Quanto à
questão de saber quando é que podemos concluir que os interessados se orientaram pelo direito material indicado
pela regra de conflitos portuguesa, o legislador manteve-se silente. Ainda assim, entendemos ser este um verdadeiro
pressuposto da aplicação do art. 19º/1 CC, sendo que a sua não verificação em concreto deverá determinar o
afastamento deste preceito. Esta solução decorre da ratio legis da própria norma, não se podendo considerar que tal
pressuposto não pode ser exigido apenas pelo facto de ele não vir expressamente previsto na lei. Ora, o que se entende
é que ele se haverá como verificado sempre que a relação a disciplinar estivesse em contacto, de alguma forma, com
a ordem jurídica portuguesa no momento da sua constituição.
4.7 Conclusões
Do que ficou exposto resulta que as normas contidas nos arts. 17º a 19º CC não resolvem por simples aplicação
mecânica e direta todos os problemas relacionados com a matéria do reenvio. As fórmulas legais aparecem-nos aqui
não como algo de concluso, mas antes como tentativas de aproximação dos objetivos visados, marcos indicativos, cuja
função é definir uma linha de rumo (e não definir o caminho em toda a sua extensão).
Porque assim, será proveitoso associar as regras explanadas aos princípios que elas visam cumprir:
Princípio da harmonia jurídica internacional » fundamenta o reenvio nos casos especiais previstos no arts.
17º/1 e 18º/1 CC.
Princípio da harmonia jurídica qualificada » fundamenta a exclusão do reenvio (abstratamente possível ao
abrigo dos arts. 17º/1 e 18º/1 CC) nos casos indicados nos arts. 17º/2 e 18º/2 (a contrario sensu) CC.
Princípio da maior proximidade » fundamenta o reenvio (não se excluindo essa possibilidade por aplicação do
art. 17º/2 CC) o nos casos especiais previstos no art. 17º/3 CC.
Princípio favor negotii » fundamenta a exclusão do reenvio na hipótese do art. 19º/1 CC.
Regra: referência material » não admissibilidade do reenvio – art. 16º CC
Exceções:
Art. 17º/1 CC » admissibilidade da transmissão de Art. 18º/1 CC » admissibilidade do retornou ou
competência devolução stricto sensu
Salvo os casos do art. 17º/2 CC Salvo os casos do art. 18º/2 CC
(retorno à regra geral) (retorno à regra geral)
Art. 17º/3 CC » readmissibilidade do reenvio
(apesar de reunidos os requisitos do art. 17º/2 CC)
Afastamento de qualquer exceção » não admissibilidade do reenvio (aplicação regra geral) – art. 19º CC
5. Conflitos positivos de sistemas
O problema do reenvio, exposto e solucionado acima, constitui, como dissemos logo de início, um expediente que
pretende solucionar conflitos negativos de sistemas – hipóteses em que nenhum ordenamento jurídico se considera
competente para disciplina a situação (nem o ordenamento do foro, nem o ordenamento que o DIP do foro considera
competente). No entanto, além destes conflitos, também conflitos positivos se poderão colocar – hipóteses em que
vários ordenamentos jurídicos se reputam como competentes. A resolução destes conflitos pode dar-se por duas vias:
1. Princípio da maior proximidade;
2. Reconhecimento de direito adquiridos.
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Iremos atentar em cada uma delas separadamente.
6. O princípio da maior proximidade
6.1 Origem histórica e formulação do princípio
O princípio da maior proximidade foi formulado por Zitelmann, em decorrência do conteúdo inovador do acórdão do
Tribunal da Cassação de Turim no processo Massa c. Ricci, em 1874.
Este princípio, assim originado, tem o seguinte conteúdo:
“sendo um conjunto de bens e direitos concebidos unitariamente pela lei mais apropriada para o reger,
designadamente a lei pessoal, haverá que separar dessa universalidade os elementos que são regidos autonomamente
por uma lei mais bem colocada para os regular, mormente a lei da situação das coisas”.
Estamos em face de situações em que a lex fori concebe um determinado conjunto de bens e direito de forma unitária
– por exemplo, a herança – considerando competente para a sua disciplina uma única lei – a lei pessoal do de cujus –
a qual comunga da mesa conceção. No entanto, alguns dos elementos dessa universalidade estão ainda sujeitos a uma
outra ordem jurídica – a lei da situação das coisas –, que não perfilha a referida conceção unitária do conjunto de bens.
Em relação a estes elementos, há um conflito positivo de sistemas: pretende, por um lado, aplicar-se a lei pessoal (que
vê no conjunto de bens uma universalidade e, por isso, propõe-se a regular todos os seus elementos conjuntamente),
e, por outro, tem também vontade de aplicação a lei da situação das coisas (que não vê o conjunto de bens como uma
unidade e, por isso, quer regular somente determinados elementos). Nestes casos, o estatuto do todo cede ao estatuto
da parte, por se entender que este último tem com os elementos em causa uma conexão mais forte. Em suma:
“A lei pessoal abdica da sua competência perante a competência mais forte da lei da situação.”
6.2 Acepções do princípio
O princípio enunciado é suscetível de dias acepções:
1. Aceção restrita: a lei reguladora de um património (herança, património de um incapaz, património dos
cônjuges, etc.) cede a sua competência à do Estado da situação de coisas certas e determinadas, na medida
em que estas coisas estiverem sujeitas nesse Estado (por motivos de política económica ou semelhantes) a
um regime especial de direito material (ex.: regime do fidecomisso, dos morgados, do casal de família, etc.).
2. Aceçpão ampla: a lei definida como aplicável a certa universalidade de bens abdica da sua competência em
favor da lei da situação dalguns desses bens (imóveis), não só na hipótese de existir um regime especial de
direito material que lhes seja aplicável, mas também naquela em que a lei da situação da coisa se considera
exclusivamente aplicável no que diz respeito a tais bens.
Enquanto naquela acepção restrita só se admite a cedência da competência quando a lei da situação da coisa sujeita
as coisas em causa a um regime especial de direito material, nesta conceção ampla, além destes casos, também essa
cedência terá lugar quando o ordenamento jurídico em causa se considera exclusivamente aplicável. Significa isto que,
no primeiro caso, considera-se apenas o direito material do Estado da situação das coisas; já no segundo caso,
considera-se tanto o direito material, como o direito conflitual (DIP), desse Estado.
Importa notar que, neste último caso, só se dará aplicação à lei da situação da coisa na medida em que ela se considere
competente por esse título (enquanto lei da situação da coisa). Se o DIP do Estado da situação da coisa considerar o
próprio ordenamento jurídico como aplicável a outro título (ex.: enquanto lei do domicílio do hereditando), já não
haverá cedência da competência por parte da lei reguladora do conjunto de bens.
Ora, entre nós, entende-se ser mais avisada a primeira formulação (1.) apresentada. Desde logo, porque a ela se
podem apontar diversas vantagens:
A aplicabilidade de um regime distinto a certos bens dentro de uma universalidade de bens (que, como tal,
deveria ser disciplinada também de forma unitária) só pode justificar-se porque esses bens (separados do
todo) gozam de um regime especial;
A existência de um regime especial para certos bens significa que eles foram afetados, pelo Estado em causa,
a um determinado escopo específico (ex.: finalidades de política social e económica);
A assunção de determinadas finalidades específicas como fundamento do regime especial aplicável aos bens
separados do conjunto determina que esse regime especial é inderrogável para o respetivo Estado – as normas
que o compõem haverão de ser reconhecidas como “normas de aplicação necessária e imediata”.
Ao invés, à segunda formulação (2.) apresentada podem ser apontados diversos reparos:
A abdicação da competência pela lei pessoal perante a lei da situação da coisa não garante o reconhecimento
da sentença no Estado da situação da coisa, pois este Estado pode reservar para os seus tribunais a
competência jurisdicional na matéria (não reconhecendo sentenças de tribunais estrangeiros);
A abdicação da competência pela lei pessoal perante a lei da situação da coisa também não garante o
reconhecimento da sentença no Estado da situação da coisa, pois esse Estado pode até não sujeitar o
reconhecimento de decisões de tribunais estrangeiros à condição de neles ter sido aplicado a lei competente
segundo o DIP local;
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Se o objetivo desta conceção é o reconhecimento da sentença do Estado da situação da coisa, então haveria
que admitir a cedência da competência mesmo quando a respetiva lei se considera competente a outro título
(que não como lei da situação da coisa) e haveria ainda que admitir a competência de Estados terceiros,
quando o DIP daquele Estado considerasse a respetiva lei competente.
De tudo o que foi dito resulta que cai por terra o único argumento invocável pelos autores que propugnam esta
segunda acepção do princípio da maior proximidade: o argumento de que se os tribunais do foro decidirem a questão
ignorando os preceitos da lei do Estado da situação das coisas quando ela se considera exclusivamente competente,
então a decisão não seria reconhecida nesse Estado e, consequentemente, seria insuscetível de execução.
6.3 A solução do DIP português
Dos diplomas legislativos ou pré-legislativos nacionais conhecidos, só o anteprojeto do Código Civil de 1964
enveredava pela perfilhada acepção restrita do princípio da maior proximidade. Apesar de o art. 5º desse anteprojeto
conter a doutrina mais acertada na presente matéria, esse texto acabou por não ser adotado pelo legislador.
O Código Civil de 1966 acabou por não incluir nenhum preceito nesta matéria.
Não obstante, entendemos que o princípio da maior proximidade em sentido restrito é aplicável entre nós como regra
geral porque ele parece decorrer, implicitamente, do regime da qualificação e do regime das normas de aplicação
necessária e imediata (vide, por exemplo, o regime da casa de morada de família [vide supra: Parte I, Cap. I, 1.3]).
Embora seja esta a regra geral (pelo menos, assim o entendemos), o nosso ordenamento consagra algumas exceções,
em que é acolhida uma acepção ampla do princípio:
Afloramento indireto do princípio: art. 17º/3 CC » se a lei pessoal devolver para a lei da situação da coisa, é
esta última a lei aplicável;
Afloramento direto do princípio: art. 47º CC » a lei da situação da coisa é competente para regular a capacidade
para constituir direitos reais sobre imóveis quando ela própria se auto-qualificar como competente.
7. O reconhecimento dos direitos adquiridos
7.1 Origem e configuração do problema
Afastadas a ideia de um super-direito internacional privado (em que haveriam regras de conflitos de escalão superior,
as quais resolveriam os conflitos entre sistemas) e a conceção da autolimitação espacial das normas de conflitos (que
afastaria a aplicação do DIP do foro em alguns casos), a única solução para os conflitos positivos de sistemas que
parece viável é a que se traduz no prevalecimento da lex fori. Nestes termos, é à regra de conflitos do foro que caberá
sempre a designação da lei aplicável, não relevando o facto de uma outra ordem jurídica se julga competente para
regular a situação decidenda ou que é considerada competente por uma terceira lei.
Ainda assim, pergunta-se: deverão admitir-se exceções a este princípio da prevalência do direito de conflitos da lex
fori? Vimos já que uma exceção a esse princípio é o reconhecimento, em certos termos, da aplicação do princípio da
maior proximidade. Outra eventual exceção poderá surgir em matéria de reconhecimento de situações internacionais
constituídas no estrangeiro. Pergunta-se, a este respeito: não deverá aceitar-se uma ideia de competência alternativa,
de modo que as relações internacionais constituídas no estrangeiro possam ser reconhecidas no foro ou com base na
lei de primordial designação (a lei indicada pelo DIP do foro) ou com base numa outra lei conforme a qual essas
relações foram criadas?
A noção de “direito adquirido” tem sido utilizada em direito internacional privado em diferentes ocasiões e para
diversos fins:
1. Teoria dos “vested rights” » modo de conciliação da prática universal da aplicação do direito estrangeiro com
o princípio da territorialidade e o dogma da soberania estadual: jamais os tribunais de um país aplicariam leis
estrangeiras, ou dariam execução a sentenças provindas de outros Estados, mas poderiam, todavia,
reconhecer os direitos regularmente adquiridos em virtude de lei ou sentença estrangeira.
2. Teoria da autonomia do problema do reconhecimento dos direitos adquiridos (Pillet) » o conflito de leis e o
reconhecimento dos direitos adquiridos seriam problemas perfeitamente distintos: o reconhecimento de
situações constituídas no estrangeiro teria lugar sempre que no momento em que os seus factos constitutivos
se verificaram eles estavam apenas em contacto com um Estado, cuja lei foi observada (aqui não se coloca
qualquer problema de conflito de leis).
3. Princípio da não-transatividade (Batista Machado) » o reconhecimento de direitos estrangeiros decorre de
uma regra básica, implícita em todo o sistema de DIP, segundo a qual a quaisquer factos seriam aplicáveis as
leis que com eles se achem em conexão. Daqui resultaria que uma lei só pode ser aplicada a factos que apenas
com ela estejam em conexão.
Ora, a conceção por nos acolhida decorre, de certa forma, do princípio enunciado em último lugar. Entende-se, desde
logo, que por força do princípio da não-transatividade, fica impossibilitada a aplicação da lei material do foro a relações
constituídas no estrangeiro. Todavia, em decorrência do princípio da não denegação da justiça, o juiz do tribunal do
foro não pode abster-se de se pronunciar sobre a questão que lhe é submetida a juízo. Assim, somos levados à
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conclusão de que se nos depara uma lacuna no sistema jurídico do foro: as regras de conflitos existentes dizem apenas
respeito às situações jurídicas plurilocalizadas, nada dispondo acerca da questão de saber qual a lei a aplicação a uma
situação puramente interna mas não nacional. Esta lacuna deverá, então, ser preenchida com uma norma que
determine a aplicação nesses casos da lei estrangeira da qual a relação em juízo depende exclusivamente.
Em suma: a hipótese da situação jurídica de conexão única não obriga a conceber a existência de um princípio
postulante do reconhecimento extraterritorial dos direitos adquiridos; o reconhecimento dessa situação decorre
imediatamente da aplicação da lei estrangeira, por imposição de uma norma do ordenamento do foro que atribui
competência à lei estrangeira com a qual a situação está unicamente em contacto. Portanto, no sistema de DIP haverá
dois tipos de regras de atribuição de competência: as regras de conflitos, por um lado, e, por outro, as normas que
indicam como lei aplicável a situações puramente internas a (única) lei a que elas se encontram vinculadas.
As teorias acabadas de expor utilizam já a noção de direito adquirido, mas fazem-no em termos de absoluta
esterilidade: a solução apresentada sempre resultaria do funcionamento normal do sistema de DIP.
Nas palavras de Ferrer Correia, a doutrina dos direitos adquiridos em DIP encontra a sua expressão mais acabada numa
proposição do tipo seguinte:
“todo o facto constitutivo, modificativo ou extintivo de uma situação jurídica, que se tenha verificado em país
estrangeiro e que seja apto para produzir essa consequência jurídica segundo os preceitos de uma legislação que se
lhe repute aplicável, será reconhecido como tal no Estado do foro.”
! Nestes termos, a questão dos direitos adquiridos não surge, como entendiam as doutrinas atrás expostas, em relação
a relações jurídicas puramente internas, com contacto com uma única ordem jurídica. Nestes casos, mesmo a questão
colocando-se em tribunais estrangeiros, a única lei aplicável sempre será a lei da ordem jurídica a que a relação se
encontra exclusivamente ligada. Verdadeiramente, o problema dos direitos adquiridos surge em situações em que a
relação jurídica se constitui num país estrangeiro (A) ao abrigo da lei considerada competente pelo DIP desse país, que
poder a lei do foro (A) ou uma outra (B), vindo agora essa relação submeter-se ao juízo de um tribunal nacional, sendo
que o DIP do foro considera como aplicável uma outra lei (C). Pergunta-se, então: deverão os tribunais nacionais
reconhecer a validade da relação jurídica porque ela se constitui em conformidade com a lei que, no momento, era a
considerada competente (A ou B)? ou deverão solucionar a questão à luz da lei designada pelo DIP do foro (C)?
O problema dos direitos adquiridos nos termos em que agora o expusemos foi corretamente considerado por duas
conceções doutrinais:
Doutrina da unilateralidade: os sistemas de DIP unilaterais apenas prevêm os casos em que é aplicada a lei do
foro, pelo que nos demais casos serão reconhecidas as situações constituídas em países estrangeiros ao abrigo
dos preceitos da legislação considerada competente – se a lei aplicável não é a lex fori, então os tribunais
haverão de reconhecer a aplicação da lei estrangeira considerada competente no Estado onde a relação se
constitui (porque o DIP do foro não dispõe sobre qual a lei estrangeira a aplicar);
Doutrina da autolimitação espacial das regras de conflitos: as regras de conflitos do foro só se aplicam nas
hipóteses em que a situação controversa tenha tido, no momento da sua constituição, alguma conexão com
o ordenamento jurídico do foro – não existindo uma conexão com o ordenamento jurídico do foro, quando a
questão é colocada nos seus tribunais, eles reconhecerão como aplicável a lei estrangeira que tiver sido
efetivamente aplicada.
No entanto, ficou já exposto acima [vide supra: Parte I, Cap. II, 3.1 e Parte I, Cap. II, 3.3] que tanto uma como outra
conceções não são de propugnar. Relembrem-se as críticas principais a cada uma:
Os méritos do sistema da unilateralidade não suplantam os seus inconvenientes, designadamente porque este
sistema não constitui um processo apto a prosseguir as finalidades do DIP;
Nada na natureza da regra de conflitos constitui obstáculo à aplicação desta norma a categorias de relações
internacionais sem conexões com a lex fori (elas não são regulae agendi, mas antes regulae decidendi).
Não obstante entendermos que a doutrina da autolimitação espacial das regras de conflitos não tem razão de ser,
haverá casos em que efetivamente se impõe o afastamento do sistema de conflitos do foro. E não porque as regras
de conflitos são autolimitadas espacialmente, mas sim porque só dessa forma se conseguem cumprir os fins que
imputamos ao DIP, designadamente o objetivo de promover a estabilidade e continuidade da vida jurídica
internacional. De facto, poderão verificar-se situações em que o cumprimento deste intento depende do afastamento
do DIP do foro em relação a situações jurídicas constituídas no estrangeiro e que não tinha, ao tempo da sua
constituição, qualquer conexão com o ordenamento jurídico do foro. Sublinhe-se, porém, que esta posição não
significa, de modo algum, o acolhimento da teoria da autolimitação espacial das normas de conflitos. Ora veja-se:
Pode acontecer que uma situação, constituída num Estado estrangeiro, não seja válida ao abrigo da lei
considerada competente pelo DIP desse Estado, mas que já o seja ao abrigo da lei designada pelo DIP do foro.
Segundo a teoria da autolimitação espacial das regras de conflitos, a lei aplicável seria a lei designada pelo DIP
do Estado onde a relação se constituiu, pelo que a relação considerar-se-ia inválida. Já para a posição que
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acolhemos, entende-se que esta solução seria atentatória das finalidades do DIP. Assim sendo, numa situação
como a exposta seria de considerar aplicável a lei indicada pelo DIP do foro, segundo a qual a relação seria
considerada válida. Só assim, designadamente, não seriam desconsideradas as expetativas das partes, que
constituíram a relação com a convicção de que ela seria reconhecida em pelo menos uma das ordens jurídicas
interessadas. Se essa ordem é a considerada competente segundo o DIP do foro, então haverá que considerá-
la como aplicável.
O caso em juízo pode achar-se em contacto com duas leis, que o regulam diferentemente, sendo necessário
identificar um critério que legitimasse a preferência por uma dessas leis. Ora, não seria razoável procurar
resolver a questão por uma “via substancialista”, pesquisando a lei que melhor se adeque ao caso concreto,
apenas porque se entende ser de afastar a aplicação do sistema de conflitos do foro. Para evitar o casuísmo e
a incerteza que daqui decorreriam, haverá que convocar as regras de conflitos do foro, as quais poderiam
indicar como aplicável a lei indicado pelo sistema de conflitos do Estado onde se constitui a relação, ou a outra
lei com a qual essa relação também está em contacto.
É bem possível que o laço existente entre a situação a reconhecer e a lei estrangeira não seja de molde a
justificar a competência dessa lei. É certo que a prossecução dos fins do DIP implica uma abertura ao
reconhecimento das situações constituídas no estrangeiro, de modo a não se frustrarem as expetativas dos
indivíduos e a, consequentemente, se favorecer a estabilidade das relações da vida jurídica internacional. Não
obstante, haverá que averiguar sempre se a lei que se considera competente tira a sua competência dalgum
fundamento válido, verdadeiramente legítimo. Se não há um nexo atendível entre a relação jurídica a
disciplinar e a lei que se considerou competente, então não fará sentido reconhecer-se a sua competência.
NOTA: se a situação jurídica em análise se constituiu, modificou ou extinguiu de harmonia com os preceitos
de uma lei que é considerada aplicável por todos os países com os quais a mesma se achava conexa ao tempo
em que se produziu o efeito constitutivo, modificativo ou extintivo, então não se coloca o problema de saber
se a lei em questão se baseia em algum título legítimo.
Entre a conceção exposta e a doutrina da autolimitação espacial das regras de conflitos (de Francescakis) há,
efetivamente, um elemento comum: a ideia de limitação do campo de aplicação no espaço das normas de conflitos
da lex fori. Portanto, tanto em uma como em outra posições se entende que, em certas circunstâncias, o DIP do foro
terá que abdicar da sua competência normal para designar a lei aplicável, em ordem a favorecer o reconhecimento de
situações jurídicas constituídas no estrangeiro. No entanto, é exatamente quanto à questão de saber em que situações
esse afastamento deve ter lugar que as posições doutrinais divergem:
a) Francescakis: o sistema de conflitos do foro deve ser afastado em virtude do simples facto de a situação
considerada não ter tido no momento da sua constituição contacto algum com a ordem jurídica do foro;
b) Meijers: o sistema de conflitos do foro não será aplicado quando se verificar um acordo unânime das leis
conectadas com a situação sub judice, ao tempo da sua constituição, quanto à competência de uma delas;
c) Makarov: o sistema de conflitos do foro será afastado quando se verificar um acordo entre a maioria
preponderante das leis conectadas com a situação em juízo, ao tempo da sua constituição, quanto à
competência de uma delas.
A doutrina de Meijers constituía o núcleo central do art. 21º do Tratado Benelux (hoje abandonado). De facto, a
solução proposta pelo jurista é incontestavelmente justa. Se todos os sistemas interessados consideravam
competente a lei que foi aplicada, então a estabilidade da vida internacional que se pretende só seria alcançada
reconhecendo-se a situação jurídica assim constituída. Todavia, a utilidade desta doutrina afigura-se duvidosa no
âmbito de um sistema de conflitos que admita o reenvio como processo de alcançar a harmonia jurídica. Verifica-se,
efetivamente, que o mesmo resultado seria alcançado através do mecanismo do reenvio. Pois uma de duas hipóteses
poderia verificar-se: (1) ou o sistema de DIP do foro participa no “acordo de leis interessadas”, e neste caso o reenvio
sempre permitirá solucionar o conflito da mesma forma; (2) ou o sistema de DIP do foro não participa nesse acordo,
e falta a condições primordial para a aplicação da doutrina de Meijers – o consenso unânime dos sistemas
interessados. Ora, se tanto o reenvio como a exposta doutrina permitem chegar ao mesmo resultado, parece-nos
preferível consagrar o reenvio como instrumento utilizável, já que ele cumpre mais eficazmente a harmonia jurídica
internacional. De facto, o reenvio é um expediente que permite obter essa harmonia jurídica internacional quer
quanto a situações jurídicas constituídas no estrangeiro, como quanto a situações jurídicas constituídas internamente.
Ele é, portanto, um instrumento mais abrangente, que acaba por dispensar a doutrina de Meijers.
No quadro das principais doutrinas respeitantes ao problema do reconhecimento de direitos adquiridos, cabe ainda
referência à posição de Niederer. Para o autor, o princípio do reconhecimento dos direitos adquiridos teria um significa
e uma função semelhantes aos da cláusula geral de ordem pública. Assim sendo, o afastamento do DIP do foro haveria
de ter lugar quando a estrita observância da lei por ele designada fosse lesiva de um direito validamente adquirido ao
abrigo de outra legislação, sendo que essa lesão do direito adquirido seria manifestamente injusta. Também esta
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doutrina não pode aceitar-se, na medida em que não advoga o reconhecimento de uma situação jurídica estrangeira
pelo simples facto de se considerar competente a lei à sombra da qual ela se constitui, antes só o reclamando quando
a justiça do caso o impusesse. Esta teoria é, como se vê, extremamente imprecisa, em virtude do caráter
eminentemente subjetivo do critério que propõe. Certamente que igual crítica se aponta também à exceção de ordem
pública internacional, só aqui o mal é reconhecidamente sem remédio (o que não sucede na matéria que nos ocupa).
!! Vistas as principais doutrinas nesta matéria, é momento de elencar as diretrizes principais da posição propugnada:
A perspetiva correta para resolver o problema do reconhecimento das situações jurídicas constituídas no
estrangeiro não é a que consiste em negar, em determinado campo, a aplicação das normas conflituais do
foro. O caminho será o que leva à construção de regras especiais de DIP, as quais estabeleçam alternativas
para a aplicação das regras de conflitos normais e das leis por essas regras designadas. Só deste se consegue,
não um reconhecimento indiscriminado das relações jurídicas estrangeiras, mas um reconhecimento seletivo,
que parta da aferição da competência da lei ao abrigo da qual a relação se constituiu. No fundo, trata-se de
optar por um sistema conflitual de conexão múltipla alternativa para estes casos.
A competência da lei que foi efetivamente aplicada, embora tenha que ser aferida, nem sempre será aferida
por critério próprios da lex fori. Assim não será quando a referida lei aplicada seja considerada aplicável por
todos os Estados aos quais a relação controversa dizia respeito ao tempo em que foi constituída.
As conexões alternativas a estabelecer deverão ter em conta a matéria jurídica a considerar.
Uma vez definida a lei ou leis de competência alternativa (à lei determinada pelo DIP do foro), o
reconhecimento da situação jurídica constituída será concedido:
Às situações jurídicas que tenham sido criadas nos termos e em virtude de uma dessas leis;
Às situações jurídicas que tenham sido criados nos termos de um outro sistema jurídico, desde que:
a) O sistema jurídico aplicado seja considerado aplicável por uma das leis de competência
alternativa (designada pelo DIP do foro, através das regras de conflitos alternativas);
b) Se verifiquem as condições necessárias para que essa lei de competência alternativa
(designada pelo DIP do foro, através das regras de conflitos alternativas) designe aquele
terceiro sistema jurídico como aplicável.
O princípio do reconhecimento das situações jurídicas constituídas no estrangeiro não é aplicável às situações
que se constituem meramente em virtude da lei (ex lege).
7.2 O reconhecimento dos direitos adquiridos no Código Civil
No Código Civil português, depara-se-nos uma clara aplicação da doutrina preconizada (sintetizada nos pontos
acabados de elencar). Contudo, a expressão literal pela qual o legislador operou esta consagrou tem um alcance
limitado: a doutrina do reconhecimento dos direitos adquiridos só é referida no capítulo do estatuto pessoal.
Dispõe o art. 31º/2 CC:
“São, porém, reconhecidos em Portugal os negócios jurídicos celebrados no país da residência habitual do
declarante, em conformidade com a lei desse país, desde que esta se considere competente.”
Segundo o art. 31º/1 CC, a lei pessoal dos indivíduos é a do seu Estado nacional. Porém, aquele nº 2 derroga
parcialmente esta regra: são reconhecidos em Portugal os negócios jurídicos celebrados no país da residência habitual
do declarante, de conformidade com a lei desse país, contando que essa lei se considere competente. Dá-se aqui
expressão à ideia exposta de aplicação alternativa: embora a lei competente pelo DIP do foro seja a lei da
nacionalidade, alternativamente poderá admitir-se a aplicação da lei da residência, quando a situações jurídica foi aí
constituída e essa lei se considerava competente (o DIP do Estado da constituição da relação jurídica entendia ser
aplicável a lex fori).
Como se compreende, aflora no texto do art. 31º/2 CC uma ideia da favor negotii: são apresentadas duas leis em
alternativa – a lei da nacionalidade e a lei do domicílio – bastando que o negócio jurídico esteja de acordo com uma
delas para que seja considerado válido. Esta norma tanto se aplica aos estrangeiros como aos próprios nacionais.
Do que foi dito decorre, então, que a posição acolhida no Código Civil se afasta das doutrinas que criticamos,
exatamente quanto às falhas apontadas:
O sistema conflitual português é um sistema bilateral, bem como o é a regra enunciada;
Poderá aplicar-se a regra de conflitos do foro (art. 31º/1 CC) a relações jurídicas que não tinham conexão, no
momento da sua constituição, com o ordenamento jurídico português, não se verificando as condições de que
dependente a aplicabilidade do art. 31º/2 CC;
É assegurado o controlo da competência da lei ao abrigo da qual a relação jurídica se constituiu, já que só se
admite o afastamento do DIP português se essa lei for a lei do domicílio do indivíduo (entende-se que esta
tem sempre uma ligação estreita com as situações que digam respeito ao domiciliado);
Não é exigido, para a aplicação do art. 31º/2 CC, o acordo de todas as leis interessadas no sentido de ser
aplicável a lei da residência habitual;
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O legislador português preocupou-se em estabelecer uma norma legal com regime específico de modo a
obstar a subjetivismos e a casuísmos;
Não são abrangidas pelo preceito as situações jurídicas constituídas ex lege, mas tão-só aquela que tenham
origem negocial.
Antes de prosseguir, importa, então, elencar os pressupostos de que depende a aplicação do art. 31º/2 CC:
1. Matéria de estatuto pessoal;
2. Lugar da celebração do negócio ser o lugar da residência habitual; Requisitos literais
3. Validade do negócio à luz da lei da residência habitual;
4. Lei da residência considera-se competente;
5. Relação jurídica consolidada; Requisitos reconhecidos
6. Questão colocada a título principal;
pela doutrina, decorrentes
7. Situação jurídica não constituída ex lege;
da ratio do preceito
8. Problema não decorrer de sentença transitada em julgado.
Quanto aos requisitos literais, decorrentes do art. 31º/2 CC, eles decorrem do entendimento que o legislador nacional
fez acerca de quando é que é razoável o afastamento do sistema conflitual. No fundo, estão em causa as diretrizes
que evidenciam o acolhimento da conceção propugnada.
Vejam-se, agora, os requisitos teleológicos acrescentados pela doutrina:
Relação jurídica consolidada: a situação constituída no país estrangeiro deverá nele ter desenvolvido, por um
período de tempo razoável, os efeitos jurídicos dela decorrem. Só assim se pode defender existirem
expetativas jurídicas dos interessados merecedoras de tutela.
Situações jurídica não constituída ex lege: o princípio do reconhecimento dos direitos adquiridos só vale em
relação a situações decorrentes de negócio jurídico, e quando a questão suscitada diga respeito à sua validade
ou eficácia. Efetivamente, é nestes casos que as expetativas das partes e de terceiros se apresentam como
especialmente merecedoras de tutela jurídica. As situações criadas ex lege, como as decorrentes de matérias
como o poder paternal, as relações entre os cônjuges, a administração do património de menores ou
incapazes, etc. haverão de ser disciplinadas de acordo com a lei designada pelo DIP português, já que não se
admite aqui o seu afastamento.
Problema não decorrente de sentença transitada em julgado: o problema solucionado no art. 31º/2 CC diz
respeito ao reconhecimento de direitos adquiridos, e já não ao problema do reconhecimento de sentenças
estrangeiras (o qual é resolvido em sede própria).
Questão colocada a título principal: só faz sentido a aplicação do preceito em causa quando a questão
suscitada seja a questão principal do processo; se ela for mera questão prévia, da qual resultarão conclusões
que servirão de auxílio à resolução do problema principal, então não há razões suficientemente fortes para
que se perfilhe o afastamento do DIP nacional.
Como referido, o art. 31º/2 CC parece ter vindo acolher a conceção propugnada acima acerca do reconhecimento de
direitos estrangeiros. Porém, a expressão literal do preceito parece, aos autores, limitada. Por isso mesmo, além dos
requisitos implícitos enunciados, os autores vieram também propor uma aplicação analógica ou extensiva do referido
preceito, com intuito de cumprir a teleologia que lhe está imanente:
Negócio celebrado no Estado da situação da coisa: o Código Civil tem várias manifestações do relevo dado ao
Estado da situação da coisa em matérias de estatuto pessoal – arts. 17º/3 e 47º CC –, em linha com o princípio
da maior proximidade; por isso, entende-se que também o reconhecimento de direitos adquiridos se deverá
estender aos casos em que tais direitos, relativos ao estatuto pessoal, tenham sido adquiridos, não no Estado
do domicílio, mas no Estado da situação das coisas.
Negócio celebrado num terceiro país mas em conformidade com a lei em vigor no Estado do domicílio: o
elemento verdadeiramente significativo do art. 31º/2 CC não é o lugar efetivo de celebração do negócio
jurídico, mas sim o facto de as partes se terem colocado sob a égide da lei do Estado do domicílio. Assim sendo,
haverá que estender o preceito aos casos em que o negócio não foi celebrado no Estado domicílio mas foi
celebrado de acordo com a lei desse Estado, ainda produzindo plenamente os seus efeitos jurídicos.
Negócio celebrado num terceiro país de acordo com uma lei que é a considerada competente pelo DIP do
Estado do domicílio: à semelhança do referido anteriormente, o que releva substancialmente para o problema
que nos ocupa é que o negócio celebrado seja plenamente válido e produza regularmente os seus efeitos no
Estado do domicílio, o que sucederá ainda que ele tenha sido celebrado de acordo com uma lei que não a
desse Estado, mas que é aí reconhecida como lei competente (pelas regras de conflitos desse Estado).
Negócio celebrado de acordo com a lei considerada competente pelo DIP da nacionalidade: se o facto de uma
situação jurídica ser válida e eficaz perante o ordenamento jurídico do Estado do domicílio nos leva a
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reconhecê-la, então igual solução se impõe quando a relação em causa se constitui ao abrigo da lei
considerada competente pelo DIP do Estado da nacionalidade, sendo essa relação válida e eficaz neste Estado.
Esta solução resulta de duas vias:
1. Extensão analógica do art. 31º/2 CC » se entendemos acima que basta que a situação seja
válida no Estado do domicílio (seja porque foi constituída ao abrigo da respetiva lei ou porque
foi constituída ao abrigo da lei considerada competente pelo respetivo DIP), então também
bastará que a situação jurídica seja válida no Estado da nacionalidade para que ela seja
reconhecida.
2. Interpretação restritiva do art. 17º/2 CC » a operação de ampliação efetuada implica que se
restrinja o âmbito de aplicação deste preceito, que recusa o reenvio da lei pessoal para uma
terceira lei quando a lei da residência é a portuguesa.
Negócio celebrado de acordo com uma lei que não se reputa competente mas que é considerada competente
ou pelo DIP do domicílio ou pelo DIP da nacionalidade: como ficou já exposto, devem reconhecer-se todas as
situações válidas e eficazes nos Estados do domicílio e da nacionalidade, ainda que essa validade e eficácia
advenham da aplicação da lei considerada competente pelos respetivos sistemas conflituais.
NOTA: também esta solução resulta da extensão analógica do art. 31º/2 CC e da interpretação restritiva do
art. 17º/2 CC, nos termos expostos.
Sintetizando tudo o que foi dito até aqui: o art. 31º/2 CC é um caso particular de aplicação de uma diretiva geral,
segundo a qual são fixados os pressupostos para que sejam reconhecidas situações constituídas no estrangeiro, ao
abrigo de lei estrangeira que não é a indicada como competente pela regra de conflitos portuguesa.
O que há de verdadeiramente importante e inovador naquele preceito é a dupla ideia de que (1)a necessidade de
reconhecimento das situações jurídicas constituídas em país estrangeiro pode forçar ao afastamento da lei de
competência normal segundo as regras de conflitos da lex fori, (2)contando que entre a situação em causa e o sistema
jurídico que presidiu à sua criação exista um nexo suficientemente forte, do ponto de vista do DIP local, para
fundamentar a competência desse sistema.
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Se o indivíduo tem nacionalidade de um específico Estado federado, quando ela existe a par da nacionalidade
federal;
Se é possível saber o domicílio atual do sujeito;
Se é conhecido o último domicílio do sujeito.
Havia ainda quem entendesse que, em último caso, o indivíduo considerar-se-ia nacional da capital do país.
A orientação consagrada no Código Civil acabou por ser mais prática do que esta. Como referido, se falharem os
expedientes referidos acima em 1º e 2º lugar, desistir-se-á de resolver a questão pela lei nacional do interessado.
“Troca-se” o elemento de conexão, que deixa de ser a nacionalidade para ser a residência habitual.
Os princípios expostos aplicam-se tão-somente ao caso em que o sistema jurídico complexo designado pelo DIP do
foro seja competente a título de lei nacional do indivíduo. Não sendo este o caso, a situação coloca-se em termos bem
diferentes. De facto, fora deste caso – da lei nacional – todos os demais elementos de conexão terão como base um
fator territorial (por ex.: lugar da situação do facto; local da residência; etc.). E a verificação deste fator em nada é
dificultada pelo facto de no país em causa vigorarem vários sistemas jurídicos – é um elemento de conexão factual, e
não um elemento de conexão jurídico.
3. Conflitos internos interpessoais
O critério exposto, que decorre do art. 20º/1 e 2 CC, diz respeito aos chamados conflitos interlocais. Uma outra
variedade de conflitos internos são os conflitos interpessoais. Agora, as várias leis em presença não regem territórios
distintos, mas distintas categorias de pessoas. Sobre este problema dispõe o nº 3 do art. 20º CC: se a legislação
considerada competente constituir uma ordem jurídica territorialmente unitária, mas nela vigorarem diversos
sistemas de normas aplicáveis a diversas categorias de pessoas (ex.: direito muçulmano e direito secular, vigente em
Estados Muçulmanos, sendo este último aplicável a quem aí reside e não é muçulmano), observar-se-á o estabelecido
nessa legislação quanto aos conflitos de sistemas. Se acaso não for de todo possível determinar o conteúdo dessas
normas de direito interpessoal, recorrer-se-á à solução prevalecente na prática.
Quando a regra jurídica do foro designa a lei nacional, ser-se-á naturalmente conduzido à lei da confissão ou do grupo
étnico a que pertence o interessado, segundo os critérios do Estado em causa. Porém, quando a regra jurídica do foro
designar a lei da residência, o sistema interpessoal reenviará provavelmente à lex fori, devendo este reenvio ser aceite.
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b) O juiz decide de conformidade com a lex fori, sendo esta aplicável a título subsidiário.
Crítica: quanto à hipótese enunciada em a), vale o que foi dito em 2.; quando à hipótese enunciada em b), o
recurso sistemático à lei do foro, como lei subsidariamente aplicável, poderia conduzir a resultados
frontalmente contrários à lei competente.
4. Não sendo possível averiguar o conteúdo do direito realmente vigente num determinado Estado, deverá
socorrer-se ao direito nele provavelmente vigente; isto é, deverá aplicar-se o sistema que se tiver por mais
chegado ao designado pela norma de conflitos do foro.
Crítica: a mera circunstância de dois sistemas pertencerem à mesma família, ou de um deles ter servido de
modelo ao outro, pode nada querer dizer relativamente ao modo como um e outro solucionam determinada
questão, pelo que esta presunção, embora legítima, pode levar a resultados desrazoáveis.
Tudo ponderado, a orientação que recomendamos é a seguinte: não sendo possível o conhecimento direto (arestos
judiciais e obras de juristas responsáveis) do direito estrangeiro, impõe-se o recurso às presunções:
Se o tribunal não consegue estabelecer de modo preciso o conteúdo das normas do direito estrangeiro
relativas ao caso em juízo, mas consegue informar-se com segurança acerca dos princípios gerais desse direito
na matéria em questão, deverá decidir de harmonia com tais princípios;
Se tudo o quanto se conhece acerca do direito estrangeiro aplicável é ter ele sido fundamentalmente
influenciado por outro sistema jurídico, deverá recorrer-se a este sistema jurídico inspirador da lei aplicável,
desde que a matéria em apreço envolva a convocação de meras linhas gerais do ordenamento ou de
caraterísticas básicas do instituto;
Se é sabido que foi operada no ordenamento estrangeiro uma alteração de regime mas não se conhece
diretamente o conteúdo da nova lei, a solução dada pela lei antiga permanece válida, salvo se ela for
abertamente contrariada pelo espírito da alteração de regime verificada.
Para além dos tipos de situações a que acabamos de aludir, torna-se extremamente arriscado guardar fidelidade ao
sistema de presunções. Persistindo esta orientação além dos limites indicados, o risco de se observar uma norma
inteiramente distinta da do ordenamento competente passa a superar a probabilidade contrária.
Por isso, haverá que mudar o rumo neste ponto. Não se conseguindo recorrer a qualquer daquelas presunções, deverá
entender-se que a conexão estabelecida pela regra de conflitos não permite atingir um direito aplicável. Assim sendo,
haverá que procurar a solução do problema utilizando a conexão subsidiária que exista na lei (se ela existir). Na
hipótese de a conexão em causa não ter sucedâneo, impõe-se a utilização da lei material do foro. Esta utilização surge
em ultima ratio, e tem como escopo, pura e simplesmente, evitar a denegação de justiça.
Poderia sustentar-se que a solução aqui preconizada não vai de encontro ao disposto no art. 23º/2 CC, já que aí se
dispõe que sendo impossível determinar o conteúdo da lei aplicável, haverá que recorrer imediatamente ao elemento
de conexão subsidiário. Ora, na verdade, aquele preceito não exclui a legitimidade do recurso a presunções para se
determinar o conteúdo da lei aplicável. Ideia esta corroborada pelo facto de as presunções serem meios admitidos de
prova. Portanto, a solução propugnada é perfeitamente compatível com o preceito legal.
3. Impossibilidade de determinação do elemento de conexão utilizado pela regra de conflitos
Não sendo possível determinar o elemento de conexão utilizado pela regra de conflitos, porque não é possível
determinar os elementos de facto ou de direito de que ele depende, devem observar-se os seguintes critérios:
Se nada se sabe, de todo em todo, acerca da nacionalidade dos interessados, deverá utilizar-se a conexão
subsidiária em matéria de estatuto pessoal – o domicílio. Presumem-se, portanto, os interessados apátridas;
Se há dúvidas acerca de saber qual de duas nacionalidades é a do interessado, ou de saber qual de dois países
é o do domicílio, etc., proceder-se-á nos mesmos termos que ficaram expostos para os casos de falta de prova
da existência e conteúdo do direito estrangeiro, mas só depois de se concluir não ser possível sequer
determinar qual a nacionalidade ou domicílio, etc. mais provável.
É nestes termos que deverá interpretar-se a 2ª parte do nº 2 do art. 23º CC.
4. Interpretação do direito estrangeiro
O juiz nacional tem que aplicar o direito estrangeiro como o juiz estrangeiro o faria. Assim sendo, haverá que imputar
ao preceito estrangeiro em causa o conteúdo e alcance que lhe forem atribuídos no âmbito do respetivo sistema
legislativo – art. 23º/1 CC. Para tanto, o tribunal do foro deverá observar as conceções correntes sobre a interpretação
das leis na doutrina e jurisprudência do Estado cuja lei é aplicada, de modo a seguir a metodologia aí dominante. Se o
sentido da norma a aplicar estiver fixado por uma jurisprudência uniforme e constante, haverá que interpretar o
preceito nesse sentido. Só quando a jurisprudência se apresentar dividida poderá o juiz nacional apreciar livremente
o preceito, corrigindo-o ou melhorando-o. Isto, claro está, sempre dentro dos limites e através dos meios da
metodologia dominante no Estado cuja lei é aplicada. Isto porque lhe cumpre aplicar aquela lei, e não uma sua imagem
falseada pelos particularismos jurídicos do Estado do foro.
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Capítulo VII – A fraude à lei em DIP
1. Configuração do problema
A fraude à lei em DIP consiste em alguém iludir a competência da lei de aplicação normal, a fim de afastar um preceito
de direito material dessa lei, substituindo-lhe outra lei onde tal preceito, que não convém às partes ou a uma delas,
não existe. A intenção fraudulenta é levada a cabo através de uma adequada manipulação da regra de conflitos,
normalmente do elemento de conexão. Normalmente, o elemento de conexão utilizado é a nacionalidade.
Fraude à regra de conflitos
Elemento subjetivo Elemento objetivo
» intenção fraudulenta » manipulação da regra de conflitos
A manipulação do fator de conexão da norma não é essencial à relevância da fraude. Esta pode incidir sobre o objeto
da conexão. Não pode considerar-se haver fraude no caso de uma pessoa coletiva cujos fundadores deliberem fixar-
lhe a sede em determinado país unicamente para beneficiar da menos severa legislação desse país relativamente à
daquele onde a sociedade se propõe a exercer a sua principal atividade. Entende-se que neste domínio a fraude só
será de considerar nas hipóteses que chamamos de “internacionalização artificial” da pessoa coletiva: dá-se à pessoa
coletiva puramente interna caráter internacional através da simples fixação da respetiva sede em país estrangeiro. Ao
invés do vimos antes, aqui a fixação da sede é puramente artificial, não real, isto é, não decorrendo de uma deliberação
séria e efetiva.
Considerações análogas são cabidas no caso dos contratos, sempre que a lei aplicável seja a lei escolhida pelas partes.
O art. 3º da Convenção de Roma de 1980 consagra o princípio da liberdade de escolha da lei que há-de reger o
contrato. Este princípio não conhece limitações, contando que se trate de uma negócio jurídico internacional. A fraude
neste domínio só poderá verificar-se num caso: o contrato está conectado com uma única lei e as partes deram-lhe
aparência de contrato internacional para puderem escolher a lei aplicável. Nesta hipótese o caráter internacional foi
fraudulentamente atribuído ao contrato pelo ato das partes. É, aliás, isto que dispõe o art. 3º/3 Convenção de Roma.
A este respeito é ainda de referir que atualmente admite-se a relevância da fraude à lei estrangeira, pelo menos
quando essa fraude tenha consistido na evicção da lei estrangeira competente a favor doutra também estrangeira.
2. Sanção da fraude à lei
A sanção da fraude à lei consiste no regresso ao estado de coisas a que o fraudante pretendeu evadir-se, com a
concomitante ineficácia da situação que ele visou criar.
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Aquela primeira é a doutrina atualmente dominante e a que perfilhamos. O problema a que chamamos “ordem pública
internacional” é o de evitar a situação que se produziria com a aplicação da norma estrangeira, situação essa contrária
aos valores últimos da nossa ordem jurídica. Não se trata, pois, de excluir genericamente a intervenção de quaisquer
leis estrangeiras em determinado setor do direito privado interno, mas apenas de recusar a aplicação a certos factos
concretos de certos preceitos jurídico-materiais em razão do seu conteúdo concreto.
Disto resulta, então, que a ordem pública é um problema privativo da fase de aplicação das normas jurídicas. Ora, a
aplicação de normas jurídico-materiais, em DIP, só pode dar-se após a identificação do ordenamento jurídico aplicável
e da selecção das respetivas normas materiais chamadas in casu. Assim sendo, a ordem pública internacional funciona
como impedimento à aplicação da lei competente, como exceção às regras de conflitos da lex fori.
Contudo, não pode negar-se a existência de certas zonas de regulamentação particularmente sensíveis , onde se
requerem outras formas mais eficientes de preservação dos valores jurídicos nacionais. Nestes domínio haverá que
definir regras de conflitos especiais, de caráter unilateral, com base nas quais, verificado o facto previsto no elemento
de conexão, se determine a exclusiva aplicabilidade do ordenamento do foro. Há quem vale aqui em “cláusulas
especiais de ordem pública”, por oposição à “cláusula geral de ordem pública” – entre nós: art. 22º CC.
Além disso, mesmo no direito material dos Estados há, por vezes, normas cujo escopo é tão importante que a sua
violação se tem como insuportável, de tal forma que essas normas são portadoras de uma vontade de aplicação geral.
Falamos aqui das “normas de aplicação necessário e imediata” [vide supra: Parte 1, Cap. I, 1.3].
Ordem Pública Internacional
Sentido Negativo Sentido Positivo
Exceção de ordem pública Normas de aplicação necessária e imediata
Cláusula geral Cláusulas especiais
2. Caraterísticas da ordem pública
Podem apontar-se à ordem pública as seguintes caraterísticas:
Excecionalidade: como ficou exposto, a ordem pública internacional surge como “exceção”, na medida em
que determina, excecionalmente, a não aplicação de normas materiais estrangeiras a uma concreta situação,
sendo que nos casos “normais” essa aplicação não é questionada. No fundo, trata-se de um desvio à aplicação
das regras de conflitos do foro (pois, em vez de se aplicar a lei estrangeira indicada, aplicar-se-á a lei interna).
Imprecisão: o conteúdo da noção de ordem pública internacional é forçosamente vago e impreciso, pois este
é um conceito indeterminado, que não se define pelo seu conteúdo mas apenas pela sua função – só sabemos
que estamos em face de uma situação que convoca a ordem pública internacional comparando os resultados
advenientes da aplicação da lei estrangeira com os resultados advenientes da aplicação da lex fori. A
incompatibilidade de qualquer norma estrangeira comas conceções fundamentais, o espírito ou a alma do
ordenamento do foro só é aferível em concreto, e nunca em abstrato. E esta aferição sempre dependerá de
avaliações subjetivas do juiz, não havendo qualquer medida objetiva convocável.
Atualidade: o juízo pelo qual se exprime a oposição aos princípios da ordem pública de certo resultado, juízo
esse que se traduz na própria ordem pública internacional, é função de conceções que hão-de vigorar no
próprio país onde a questão se põe e na própria ocasião do julgamento. Os valores, interesses, e espírito do
sistema que fundam a inaplicabilidade da norma estrangeira terão de ser os que vigoram no momento em
que a questão se coloca.
Caráter nacional: evidentemente, os padrões ou princípios que determinam a inaplicabilidade de normas
materiais estrangeiras haverão de ser apenas os que conformam a ordem jurídica nacional em cujo seio se
cogita a possibilidade de aplicação de normas estrangeiras. A ordem pública internacional diz respeito ao
Estado do foro, ao respetivo ordenamento jurídico.
3. Necessidade de balizar o campo de atuação da ordem pública
Dada a impossibilidade de definir conceitualmente a ordem pública internacional, em ordem a dela retirar um critério
objetivo, haverá que estabelecer os limites da atuação desta exceção:
Não se trata de ajuizar da justiça da lei estrangeira, mas antes de aferir da compatibilidade da situação que
resultaria da aplicação da lei estrangeira com as conceções ético-jurídicas fundamentais da lex fori;
A justificação da não aplicação da norma estrangeira em princípio aplicável exige que entre a factualidade sub
judice e o ordenamento do foro interceda um nexo suficientemente forte. Se a relação em causa é uma relação
estranha à comunidade local, então não poderá a solução que se lhe atribui verdadeiramente abalar as
convicções ético-jurídicas do ordenamento jurídico local.
Há, porém, que ressalvar os casos em que a norma ou instituição estrangeira entra em conflito com
princípios que nos parecem essenciais a toda a comunidade humana que deseje realmente nortear-se
pela representação de valores ético-jurídicos e assentar neles as suas estruturas sociais (ex.: princípio
da dignidade humana – não se coaduna, em caso algum, com a escravatura). Neste caso não se exige
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um nexo de particular intensidade, pois basta a ligação que resulta do facto de a questão estar a ser
julgada nos tribunais daquele Estado.
A este respeito há que chamar a atenção para a “teoria do efeito atenuado da intervenção da cláusula de ordem
pública”. Segundo esta doutrina, a exceção de ordem pública internacional intervirá quando se tratar, quer da criação
no Estado do foro de uma relação jurídica (ex.: divórcio, adoção, etc.), quer do reconhecimento de uma relação já
criada nesse Estado. A ordem pública já não intervirá quando se trate de relação constituída no estrangeiro, ainda que
ela seja contrária aos valores internos. Imagine-se, por exemplo, um divórcio celebrado no estrangeiro, na sequência
do qual os ex-cônjuges contraíram segundas núpcias. O não reconhecimento do divórcio teria, evidentemente, mais
inconvenientes que o próprio reconhecimento, por muito que aquele divórcio tenha atentado contra valores
fundamentais internos. É nesta linha que diversos Estados com um horizonte ético-cultural semelhante ao nosso têm
vindo a admitir a atribuição de direitos sucessórios aos descendentes de um casamento poligâmico e até à segunda
mulher do polígamo. Não está aqui em causa, propriamente, o reconhecimento do casamento poligâmico, mas sim o
reconhecimento de direitos sucessórios a pessoas que se encontravam em determinada posição em relação ao de
cujus e que, por isso, são considerados herdeiros.
4. Função proibitiva e permissiva da ordem pública
Ordem Pública Internacional
Função proibitiva/impeditiva Função permissiva/positiva
» evitar a constituição ou reconhecimento em Portugal » permitir a constituição em Portugal de uma situação
de uma relação jurídica permitida pela lei estrangeira jurídica que a lei estrangeira aplicável não autoriza
Portanto, a exceção de ordem pública internacional fundamenta o afastamento da lei estrangeira considerada
aplicável pelo DIP do foro, sendo que esse afastamento pode implicar: ou a exclusão do reconhecimento ou da
constituição de relações jurídicas que essa lei estrangeira permitira; ou a constituição de relações jurídicas que essa
lei não permite. O efeito direto da ordem pública é sempre o efeito impeditivo; mas poderá suceder que, in casu, ela
implique um efeito permissivo.
5. Consequências da intervenção da ordem pública
A exceção de ordem pública internacional tem sempre por consequência o afastamento de um preceito ou conjunto
de preceitos da lei estrangeira considerada competente pelo DIP do foro. A não aplicação desses preceitos traz consigo
o não reconhecimento da situação jurídica (e não a nulidade, sublinhe-se!) ou a impossibilidade de constituição dessa
situação (ex.: casamento, adoção, divórcio, etc.). Esta é a consequência normal da ordem pública internacional.
A exclusão da norma de direito estrangeiro pode dar em resultado a formação de uma lacuna. Fica então a questão:
que lei aplicar à situação sub judice? Prima facie, o recurso à lex fori parece o caminho lógico a seguir. Porém, esta não
é uma via de solução necessária.
Refira-se, desde logo, que as hipóteses de autênticas lacunas de regulamentação engendradas pelos funcionamento
da ordem pública são rara. O caso fica, as mais das vezes, resolvido pela mera não aplicação do preceito estrangeiro
(ex.: a lei estrangeira aplicável impõe como impedimento matrimonial as raças diferentes dos nubentes; afastando-se
este preceito, o casamento celebra-se sem mais – não é necessária a aplicação de qualquer lei em “substituição”
daquele). As verdadeiras lacunas apenas surgirão nos casos em que é mister aplicar uma qualquer norma material ao
caso. Nestes casos, entendemos que não se deve resolver imediatamente a questão pela aplicação da lex fori. O
desejável é que tanto quanto possível se resolva o problema ainda no quadro da lei designada competente,
naturalmente mediante mobilização de outras normas dessa lei (que não os preceitos cuja aplicação foi recusada). De
facto, o afastamento operado pela ordem pública internacional diz respeito unicamente a certas normas materiais, e
não ao ordenamento jurídico estrangeiro in toto. Este método será especialmente adequado quando o preceito
jurídico-material rejeitado pela nossa ordem jurídica constitui no respetivo ordenamento jurídico (estrangeiro) uma
exceção a um princípio geral. Nestes casos, afastada a exceção, aplicar-se-á a regra. Esta doutrina foi acolhida no art.
22º/2 CC. Assim sendo, só se recorrerá à lei portuguesa se a legislação estrangeira competente, no seu todo (à exceção
das normas materiais afastadas), não fornecer um critério adequado ou apropriado, isto é, se dessa legislação não se
conseguir retirar uma solução adequada ao caso que não se aparte muito da que a ordem pública internacional forçou
a recusar mas que também não seja abertamente violadora dos valores ético-jurídicos do foro.
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