Esquinas
Esquinas
Esquinas
Marcus V. Matias*1
Resumo:
Este artigo propõe uma análise do romance gráfico Esquinas (2016), de Robson
Cavalcante, cuja produção independente e sua representação estética caracterizam uma
obra segundo as concepções de literatura marginal. Para conceituar literatura marginal
trago como referência teórica as concepções de Sérgius Gonzaga (1981) e Rejane
Oliveira (2011). Trago também uma abordagem conceitual sobre a produção de
narrativas gráficas de vertente poético-filosófica, a qual define bem a estética de
Esquinas, pela perspectiva nietzschiana. Pretende-se, com este artigo, provocar uma
discussão sobre o que vem a ser a produção literária marginal e suas principais
características na contemporaneidade.
Esquinas não são apenas locais geográficos, são também palcos para
espectadores anônimos, voyeurs. Lugares de trânsito, onde as mais diversas histórias se
entrelaçam e se bifurcam seguindo destinos aleatórios. Também circundam as esquinas
os rumos em definição, caminhos partidos sob olhares de mendigos, andarilhos
perdidos, lúmpens e cachorros vadios. Leitores de enredos alheios, os habitantes das
esquinas observam o que Will Eisner chama de “o desfile da vida”.
Eisner, aliás, em seu romance gráfico intitulado New York (1986), ilustra esses
palcos urbanos onde cenas do quotidiano são o principal enredo, mas ele o faz pela
perspectiva das escadarias típicas de alguns dos bairros nova-iorquinos: “Arquibancadas
em um estádio são as escadarias de um cortiço, uma ponte levadiça, um bem comum,
uma plataforma com assentos muito seguros na arena da cidade, da qual assiste-se ao
desfile da vida.” (EISNER, 1986, p. 17)2
No lugar de escadarias nova-iorquinas, entretanto, este artigo propõe uma
análise das histórias mimetizadas pelo traço do poeta Robson Cavalcante sobre o que
acontece nas esquinas do município de Teotônio Vilela (situado na Zona da Mata de
Alagoas). Esquinas é justamente o título do romance gráfico de Cavalcante, o qual,
1
É doutor pela Universidade Federal de Alagoas, onde leciona Literatura em Língua Inglesa.
2
Bleachers in a stadium are the tenement stoops, a drawbridge, a common, a stage let too safe seats in the
arena of the city from which to watch the parade of life.
assim como Eisner, destaca enredos e dilemas existenciais e morais encenados na arena
da vida. Eis o foco de sua narrativa: as sutilezas da vida quotidiana.
O título desta obra, intrigante e curioso, já sugere a relação convergente entre
esse local de destinos cruzados e as várias temáticas que transitam em seu entorno. Suas
esquinas não são retas dobradas apenas pelas inconstâncias da geografia urbana, mas
também por tramas do quotidiano perpassadas por questionamentos sobre o verdadeiro
sentido da vida.
Talvez essa abordagem mais existencial e as temáticas de um realismo pungente
possam definir os princípios da obra de Cavalcante, ou, para além dessa obra, o próprio
conceito de romance gráfico, se compararmos estas produções de base literária às
comumente chamadas “histórias em quadrinhos”. Esquinas, em particular, traz sete
histórias em formato de contos em arte sequencial sobre o quotidiano periférico de um
município interiorano. Em cada uma delas é possível perceber como o conceito de
esquina pode ser metaforizado em diversos sentidos: escolha de um novo rumo;
caminho interrompido; transitoriedade; inconstância; fronteira; desvio (só para citar
algumas). Tais leituras que podemos fazer de Esquinas sugerem o olhar sobre algo que
de tão comum é estranho, ou melhor, nos mostra o estranhamento do comum.
As histórias nesse romance gráfico também nos provocam ao se apresentarem no
formato de arte sequencial: modo narrativo que por muito tempo foi considerado pela
crítica tradicional como inferior ou, na melhor das hipóteses, marginal. Nesse sentido,
se no formato ainda há o preconceito (mesmo que cada vez menor) sobre o seu meio de
produção narrativa, o que dizer quando o enredo retrata a vida quotidiana de uma
pequena cidade do interior nordestino?
O termo marginal parece ganhar mais relevo nessa obra quando observamos o
seu modo de distribuição: até o momento da escrita deste artigo, Esquinas ainda não foi
oficialmente publicada, mas distribuída em cópias artesanais para leitores e leitoras que
não reconhecem tal preconceito em relação ao gênero. Lembrando a “geração
mimeógrafo” ou de “fanzines”, a qual caracterizou a literatura marginal entre as décadas
de 70 e 80, a abordagem analítica que proponho de Esquinas se faz, portanto, pela
perspectiva da literatura poética marginal.
Embora “literatura marginal” seja um termo de definições complexas, já que traz
dois conceitos voláteis (literatura e marginal), há na crítica literária algumas tentativas
de se chegar a uma definição aproximada do que vem a ser essa produção literária que
parece correr ao largo das chamadas literaturas canônicas e oficiais. Sérgius Gonzaga,
por exemplo, em “Literatura marginal” (1981), faz um apanhado sócio histórico entre as
décadas de 60 e 80 para definir o que vem a ser esse gênero no Brasil.
Na busca por uma arqueologia do marginal na literatura brasileira, Gonzaga
acaba por definir três vertentes conceituais para categorizar tais produções: 1- a criação
editorial artisticamente diferenciada daquela das grandes editoras; 2- tipo de linguagem
apresentada nos textos, sendo esta mais próxima da realidade do dia a dia; 3- escolha de
protagonistas, cenários e situações presentes nas obras, que, preferencialmente,
representem os excluídos ou vítimas de preconceitos sociais (mulheres, velhos, negros,
gays e/ou pobres).
Tendo por base as definições de Gonzaga percebo que em Esquinas, pelo menos,
duas delas são mais marcantes: a linguagem; e a escolha dos protagonistas, cenário e
situações apresentadas. A primeira característica, a editoração diferenciada, também tem
sua particularidade na obra de Cavalcante, embora não se destaque tanto quanto as
outras.
Na primeira história de Esquinas, a qual chamarei de história número 1 3, um
homem (aparentemente um tipo lúmpen conversando com seu amigo) é tomado por uma
reflexão sobre dilemas existenciais ao observar que todo dia um velho passa pela
esquina carregando sacos de pão, sempre na mesma hora. Análogo ao movimento
divergente de ruas que se cruzam, o debate entre os dois amigos que observam o velho
é, ao mesmo tempo, perpassado por devaneios filosóficos e expressões mundanas e
interjeições coloquiais.
A linguagem utilizada pelos personagens de Cavalcante é tal qual se articula no
dia a dia de seus falantes, sem a interferência estilística, o pudor ou a preocupação do
autor em utilizar o vernáculo oficial e polido. Em vez disso, os diálogos simples e
diretos são construídos por expressões e vocabulários regionais, assim como trejeitos
típicos dos moradores daquela região, como podemos ver na sequência abaixo:
Imagem 1: fragmento de Esquinas – história 1
3
Nenhuma história tem título.
Fonte: Cavalcante, 2016.
Em um dado momento ele parece ser tomado por velhas lembranças, as quais o
fazem reavivar o sentimento de carinho e o amor que unira os dois, como se estivesse
chegado ao fim de uma longa reflexão sobre o que fizera de sua vida até então e como
os anos passados conseguiram amenizar seu amor. A tomada de consciência sobre como
aquele convívio entre ambos estava se tornando letárgico é representada por expressões
do homem e por meio de uma sequência dinâmica de imagens fragmentadas que muito
lembram a estética cinematográfica (enquadramentos ágeis). A narrativa sobre o
afloramento da consciência de seu amor pela esposa segue ao longo de seis páginas e é
organizada de tal modo que nos leva da apresentação de duas pessoas pacatas ao clímax
do redescobrimento de uma forte emoção, apenas no transcorrer da exposição das
expressões de ambos:
Imagem 4: fragmento de Esquinas – história 3
Fonte: Cavalcante, 2016.
Referências:
CAVALCANTE, Robson. Esquinas. Teotônio Vilela, 2016.
EISNER, Will. New York. Nova York – New York: DC Comics, 1986.