Socrates e o Cuidado de Si Ou A Terapeutica Da Alm

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PROMETEUS

FILOSOFIA EM REVISTA
Ano 1 - no.2 Julho-dezembro/ 2008 ISSN 1807-3042

SÓCRATES E O CUIDADO DE SI OU A TERAPÊUTICA DA ALMA

Raimundo Araújo dos Santos,


Mestre em Filosofia pela PUC-SP

Resumo: Esse artigo pretende ser uma abordagem simples, na verdade, um resumo, recolhido dos
textos de Platão sobre o auto-conhecimento e o cuidado de si. Esses são os elementos que
constituem a base do saber ético iniciado por Sócrates e o ponto de partida do que chamamos
terapêutica da alma.

Palavras-chave: conhecimento de si, cuidado de si, terapêutica da alma.

Abstract: This paper intends to be a simple approach, actually, a summary collected from the texts of
Plato, which deal with self-knowledge and self-care. These both are the elements that constitute the
basis of the ethical knowledge developed by Socrates and the starting point of the so-called
therapeutics of the soul.

Key-Words: knowledge of itself, care of itself, therapeutics of the soul.

“... para o homem nenhum bem supera o discorrer cada dia sobre a virtude e
outros temas de que me ouvistes praticar quando examinava a mim mesmo e
a outros, e que uma vida sem exame não é digna de um ser humano...”.
(Platão, Apologia, 38 a).

Eu estou a disposição tanto do pobre quanto do rico, sem distinção


[...] podeis reconhecer que sou bem um homem dado pelo deus à cidade por
esta reflexão: não é conforme à natureza do homem que eu tenha
negligenciado todo os meus interesses [...] para me ocupar do que diz
respeito a vós [...] para persuadir cada um a tornar-se melhor.
(Platão, Apologia, 32 b e 31 b).
16

Introdução:

Sócrates1, no melhor sentido grego da palavra, é um bom cidadão. Tendo nascido


pobre conservou-se assim por toda a sua vida. Andava pelas ruas de Atenas, no verão e no
inverno, descalço e vestindo sempre o mesmo (modelo) manto grosseiro. Tinha orgulho de
sua origem, sempre elogiou o esforço do trabalho e fez deste o modelo para sua filosofia,
sempre devotada ao cuidado de si e ao cuidado do outro.
Foi Sócrates quem inaugurou o continente da ética na história da Filosofia.
Seguindo a frase inscrita no templo de Apolo em Delfos “conhece-te a ti mesmo”,
Sócrates perguntava insistentemente sobre o ser do homem. O que é ser um homem justo? A
injustiça vale mais do que a justiça? O que é melhor para o ser do homem? Que fins deve
perseguir a vida humana? Qual é a forma de vida mais feliz? Qual é o modo de vida que
realiza mais plenamente todas as potencialidades do ser do homem? Com ele tem início esse
continente que podemos chamar de terapêutica da alma.
O que Sócrates descobriu como therapeutikós, andando pelas ruas de Atenas foi que
os valores predominantes entre os atenienses (a noção de vida feliz) estavam associados à
riqueza material e ao poder. Mostram isso muito claramente as próprias expressões
lingüísticas dos gregos. Por exemplo, kalós, (belo) agathós (bom) eram os adjetivos com que
eram qualificados os representantes da classe dominante, ou seja, os ricos e poderosos. Eis
que a maioria dos atenienses, ao ser interrogada a respeito das virtudes do homem e da vida
justa ou feliz, respondia, em geral, com as imagens vulgares que predominavam sobre tudo
isso. Ser feliz é ser rico. É satisfazer todos os desejos. É possuir muitos escravos e não precisar
trabalhar. É possuir o poder e ser famoso.
O exemplo de Ménon2 serve como uma boa ilustração. Quando interrogado por
Sócrates a respeito do que é a virtude, respondeu que existiam a virtude do homem livre, a
virtude da mulher, a virtude da criança, a virtude do escravo. Estava assim, apenas
reproduzindo o imaginário dominante na sociedade grega a respeito do que era a virtude.
Sendo uma sociedade hierarquizada, a sociedade grega expressava, no seu imaginário
dominante, a mesma hierarquia. A virtude do homem livre, senhor de escravos, era saber
mandar nas mulheres, nas crianças e nos escravos. Estes, oprimidos, deviam saber obedecer,
1
Se nos basearmos nas informações de Platão de que Sócrates morreu com cerca de setenta
anos, podemos deduzir que nasceu em 470 ou 469 a. C. De certeza, sabe-se que sua morte
ocorreu em 399 a. C. Nascera no demo de Alopecia, um dos distritos de Atenas. Era filho de
Sofronisco, talhador de pedras, e Fenarete, parteira.
2
Cf. Platão, Mênon, diálogo que trata da ensinabilidade da virtude.
17

e cada um obedecer de acordo com a sua específica situação social, a mulher cumprindo as
suas “virtudes” de esposa, a criança como filho, o escravo como trabalhador. O próprio
artesão ainda que como homem livre, mas pobre, devia possuir uma virtude específica.
Ora, Sócrates não via sabedoria nessas imagens da virtude. Pelo contrário, via nelas o
motivo de muitos males (paranomias). Por isso, dialogava com os oprimidos, mesmo com as
mulheres, como Teódota, Aspásia e Diotima, atribuindo-lhes muitas vezes sabedoria. Era
pobre e amigo de pobres como Ésquines e Aristodemo. Era nascido na família de artesãos e
admirador do trabalho destes, amigo de sapateiros, como Simão, e de escravos, como Fédon
– que, libertado graças à sua intervenção (terapêutica) tornou-se filósofo e fundador da
escola de Elis. Outro dos seus continuadores, Diógenes o cínico, também foi escravo. Por
isso mesmo, Sócrates não se contentava com as imagens dominantes da virtude. Está certo
de que a inscrição no templo de Apolo o impulsionava para uma grande tarefa: convidar os
homens a se examinarem, porque todo mal advém da ignorância que leva as pessoas a
inverterem os sentidos dos valores. Como no caso de Mênon, o conjunto de virtudes
apontado por ele era a expressão da multiplicidade imaginária-ideológica e não o ser da
virtude, não a forma universal da virtude. Mênon pensava saber o que era o ser da virtude,
mas não possuía a conceito de virtude, descrevia apenas como virtude os pré-conceitos dele
e de seus contemporâneos.
A terapêutica socrática tem início na constatação dessas paranomias e estabelece que
o uso de uma precisa téchne é o caminho para colocá-las em dúvida e destrui-las, abrindo
espaço para a concepção do que poderia vir a ser um novo modo de vida com nova gama
de valores.

A especificidade da terapêutica socrática

A atividade filosófica de Sócrates tem como sustentação, no seu ponto de partida,


não a discussão sobre a natureza do universo3, ou o modo de existência do que se
denominam “cosmo”, pois, segundo o próprio Sócrates, quem se dedica a essas pesquisas,
absorvendo-se totalmente nelas, esquece de si mesmo, ou seja, daquilo que mais importa: o
homem e os problemas do homem4.

3
Cf. Platão, Apologia 19 c ss.
4
Cf. Xenofonte, Memoráveis I, 1, 12 e 16. In Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural,
1972. Cf. também o Fedro 230a, onde Sócrates fala da necessidade de examinar antes a si
mesmo que qualquer outra coisa (referindo-se, nesse caso, à interpretação dos mitos).
18

A téchne de Sócrates, analogamente à arte do seu pai, talhador de pedras, vai pouco
a pouco destruindo o excessivo, as imagens falsas e informes, e lançando movimento em
direção à concepção da idéia em si e por si da virtude; analogamente à arte da sua mãe, que
era parteira, ele leva as pessoas a conceberem suas próprias idéias, com as quais elas se
sentiram renascidas. O momento inicial desse movimento negativo é exatamente esse
enquadramento da dúvida (aporia), que se dá com a ironia, uma das dimensões do método
socrático. A dúvida é o movimento que irrompe no choque contraditório das múltiplas
imagens. Paralisa a certeza existente e mostra à consciência de um indivíduo que ele não
pode mais conduzir o rumo da sua vida através daquela mesma rota. A dúvida, a aporia
(ausência de passagem) coloca o indivíduo diante do nada das suas imagens, do nada do seu
caminho, do nada dos fins da sua vida5.
Sócrates conseguia, assim, obrigar os atenienses a repensarem as suas imagens de
belo e de bom, de justo e injusto, de vida feliz e de ideal de cidade. Assim como desde sua
juventude abalara as próprias certezas, sempre repetindo que apenas sabia que não sabia,
abalava também as certezas de todos, pobres ou ricos, homens livres ou escravos, artesãos,
políticos, prostitutas, sofistas ou juízes. Todos diante de Sócrates eram obrigados a repensar
os seus fins.
Quem estaria, no entanto, disposto a perder as doces imagens costumeiras? Quem
estaria disposto a perder as suas cômodas certezas? Quem estaria disposto a perder as coisas
que considerava belas e boas, ainda que pudessem não ser nem belas e nem boas? Quem
estaria disposto, sobretudo, a cair em profunda dúvida e vivenciar a angústia de contestar os
próprios fins mais amplos de todo o sistema tradicional da vida ateniense?
Sócrates estava certo de que os males que acometem os homens têm origem no
modo como eles encaram os fins de sua vida, por isso é que as suas perguntas, suas dúvidas,
suas indagações sobre a virtude e a justiça não se detiveram na negação apenas dos fins
individuais dos atenienses; a força de sua terapêutica não se limitou a um método ( téchne)
de conhecimento, a uma moral individual, a uma filosofia particular de vida.
Quando Sócrates obrigou a atividade filosófica a voltar-se fundamentalmente sobre o
mundo humano, a divisa “conhece-te a ti mesmo” do templo de Apolo assumiu uma
reflexibilidade mais ampla e mais profunda do que um preceito para reger meramente a
5
A partir de Sócrates se desenvolveu a temática da filosofia da dúvida ( a-poria = ausência
de passagem). A aporia como sistematizará Aristóteles (livro beta da Metafísica) se desdobra
na diaporia, isto é, no atravessar a dúvida, e eventualmente, quando se consegue atingir a
superação da dúvida, o processo aporético encontra a euporia, isto é, a feliz chegada, o fim
da angustiante viagem através da dúvida. Cf. Benoit, H. Sócrates – O nascimento da razão
negativa- Moderna, São Paulo, 1996, nota 1, p. 12.
19

vida individual dos homens. Se Sócrates, ao seguir esse preceito, inaugurou a Ética, a
inaugurou como inseparável da Política.

O cuidado de si e o cuidado dos outros

Sócrates “pensava que não se pode ser justo sozinho”6 ,ou seja, que não pode haver
vida feliz para um cidadão quando toda uma cidade vive sob o signo da injustiça. Daí o
compromisso assumido de empreender a tarefa de examinar não só a si mesmo, mas
também os outros.
O cuidado de si não se opõe ao cuidado da cidade. Do mesmo modo que se empenha
no cuidado de si, Sócrates, na Apologia e no Críton, proclama como seu dever, como aquilo
pelo que deve a tudo sacrificar, mesmo a sua vida, a obediência às leis da cidade.
O cuidado de si é, portanto, indissoluvelmente cuidado da cidade e cuidado dos
outros, como se vê pelo exemplo do próprio Sócrates, cuja razão de viver é ocupar-se com
os outros. Há, de acordo com Jean Brun, em Sócrates, em um só tempo um aspecto
“missionário” e “popular”, que se reencontrará posteriormente em certos filósofos da era
helenística, disposto no trecho da Apologia, na citação que introduz essas considerações, a
saber, o “colocar-se à disposição tanto do pobre quanto do rico, sem distinção e pelo
reconhecimento de que é um homem encarregado pelo deus a ocupar-se dos assuntos da
cidade, convidando cada um a tornar-se melhor”7.
O compromisso de Sócrates com uma terapêutica da alma humana faz dele um
homem do mundo, mas que ao mesmo tempo está fora do mundo, porque transcende os
homens e as coisas dos homens por sua exigência moral e pelo empenho que ela implica. É
só misturado aos homens e às coisas, no cotidiano que se pode compreender a verdadeira
filosofia. Sócrates foi o primeiro a mostrar que, em todos os tempos e em todos os lugares,
em tudo o que nos chega e em tudo o que fazemos, a vida cotidiana dá a possibilidade de
filosofar. E somente nesse filosofar é que se encontra a possibilidade da vida feliz que, por
sua vez, depende de um itinerário, de uma ascese que conduz ao conhecimento de si.
A terapêutica socrática é um cuidar de si, fundada no conhecimento de si. Seu fim é a
vida feliz para o homem como indivíduo e como cidadão. O saber socrático retira sua
legitimidade do esforço investigativo, da téchne, capaz de fornecer a razão do que é dito
(lógon didónai). Daí que para orientar com segurança os caminhos da sua terapêutica, sem

6
M. Merleau-Ponty, 1965. p. 38, p. 65.
7
Cf. Apol. 32 b. Cf ainda Epicteto, Diatribes I, IV, 24; I, XXIX, 18, IV, IV, 21.
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incorrer nos erros da tradição grega baseada nas falsas imagens dos valores; sem se perder
na confusão criada pelos sofistas, era preciso encontrar a definição (o lógon didónai) de
homem.

A necessidade de definição da essência do Homem

Nenhuma téchne ou terapêutica lograria alcançar bons resultados em sua ação se


não soubesse dar as razões (lógon didónai) do seu objeto. Lembremos que Sócrates vive em
um contexto de disputa entre a poesia, a sofística e a filosofia. A primeira, sempre teve a
primazia na definição dos elementos da Paidéia que deviam formar o espírito ateniense, mas
vem aos pouco perdendo terreno, abalada pelas críticas provenientes de todos os lados:
sejam internas, sejam da filosofia e, principalmente da sofística8. Mas, a batalha final fica
reservada à sofística e à filosofia, que aqui não nos interessa colocar em cena. Apenas nos
importa apontar que na disputa pela primazia na condução da Paidéia grega, a disputa entre
filosofia e sofística ganha contornos de definição em favor da primeira quando Sócrates traz
à luz todas as paranomias (contradições), aporias e incertezas dos sofistas e o xeque-mate ao
qual se viram expostas todas as tentativas por eles atuadas, pois dependiam
substancialmente do fato de terem falado dos problemas do homem sem ter indagado de
maneira adequada a natureza ou essência do homem, ou ao fato de tê-la determinado de
modo totalmente inadequado. Pois bem, diferentemente dos sofistas, Sócrates conseguiu
fazer isso, e de tal modo, que pôde dar à problemática do homem um significado
decididamente novo.
Sua téchne terapêutica não poderia atingir seu fim se não conhecesse bem seu objeto.
E seu objeto é o homem. E o que é o homem? Pergunta Sócrates. O homem é a sua alma9,
8
Sobre as críticas internas à poesia cf. Jaeger, W. Paidéia, Martins Fontes, p.719; Xenófanes,
frg 9 Diehl; Detienne, M. Los maestros en la verdad, Taurus, Madrid. Sobre a crítica da
filosofia à poesia cf. Platão, Íon, República, Fedro. in Platone – Tutti Gli Scritti – a cura de
Reale G. Ruscuni, Milano, 1996.
9
Como mostra Reale, G. in História da Filosofia Antiga vol. I, São Paulo Loyola, p. 258.
embora a literatura e a filosofia grega, os órficos, os físicos, os líricos, os trágicos já falassem
há séculos de psyché (alma), ninguém antes de Sócrates entendeu por alma aquilo que
Sócrates entendeu e, depois de Sócrates, todo o Ocidente. Para Homero, alma era o espírito
no sentido de “fantasma”, que abandonava o homem na sua morte, para ir como vã e
inconsciente larva, vagar sem objetivo no Hades. Para os órficos, ao invés, era o demônio
que em nós expiava a culpa, e que era tanto mais ele mesmo quanto mais se separava do eu
consciente, e tanto mais ativo quanto mais se enfraquecia nossa consciência (portanto, no
sono, na perda dos sentidos e na morte); para os físicos, era o princípio ou um momento do
princípio (portanto, água, ar fogo), enfim, para os poetas, era algo indeterminado e, em todo
caso jamais teoricamente definido. Ao contrário, a alma, para Sócrates, coincide com a
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uma vez que é a alma que o distingue de todas as outras coisas, pois a alma é o eu
consciente, é a personalidade intelectual e moral. É só a partir dessa definição que é possível
estabelecer uma verdadeira terapêutica que possa corrigir os males que tem acometido esses
tempos de paidéia dirigida pela poesia, pela sofística e pela noção de alma órfica e
pitagórica10.
Toda doutrina socrática pode ser resumida nessas proposições convergentes:
“conhecer a si mesmo” e “cuidar de si mesmo”. E conhecer a “si mesmo” não quer dizer
conhecer o próprio nome nem o próprio corpo, mas examinar-se interiormente e conhecer
a própria alma, assim como cuidar de si não quer dizer cuidar do próprio corpo, mas da
própria alma. Ensinar o os homens a conhecer e a cuidar de si mesmos é a tarefa suprema
da qual Sócrates considera ter sido investido por deus e o faz com distinção porque conhece
a alma dos homens.
No prólogo da obra platônica Protágoras11, a diferença entre os sofistas e Sócrates é
marcante: os sofistas são varejistas de alimentos da alma, mas não conhecem nem os
alimentos nem a alma, portanto, não sabem se fazem bem ou não; enquanto Sócrates é
claramente representado como aquele que conhece esses alimentos e conhece a alma, e é
apresentado como “médico da alma” 12.
No Laques, a ciência da educação é apresentada como a “ciência que tem como fim a
alma, precisamente a dos jovens” 13.
E, no Cármides, assim é apresentada essa obra de educação:

“Querofonte chamou-me e disse-me: - Que achas daquele


jovenzinho, ó Sócrates? É um belo rosto?
Sócrates - Sobrenatural! Disse eu.
Querofonte - Bem, acrescentou; se aceitar despir-se parecer-te-á que
nem sequer tem rosto; tão perfeitas e belas são as suas formas.
Sócrates - Os outros também confirmaram as palavras de
Querofonte, e eu exclamei: Por Heracles! Vós falais de um ser invencível, se
ele também possui uma coisa, uma pequena coisa.
Crítias - Que coisa? Perguntou Crítias.
Sócrates - Se a alma também for bela, disse eu. É necessário que a
tenhas, ó Crítias, porque é da tua família.
Crítias - Oh, é perfeitamente belo e bom também nisso.

nossa consciência pensante e operante, com a nossa razão e com a sede da nossa atividade
pensante e eticamente operante. Em poucas palavras: para Sócrates a alma é o eu
consciente, é a personalidade intelectual e moral.
10
Para uma visão mais extensa do orfismo, cf. Reale G. op. cit p. 371-386 e a bibliografia aí
indicada.
11
Platão, Protágoras 310 b – 314 c.
12
Platão, Protágoras, 313 d-e.
13
Platão, Laques, 185 e.
22

Sócrates - E então, disse eu, por que não queremos despir justamente
a alma e começar a contemplá-la antes do corpo?14
Mas eis uma passagem ainda mais decisiva tirada do Alcibíades.
Depois de ter afirmado que é preciso, segundo o dito de Delfos, conhecer a si
mesmo e encontrar os meios para cuidar de si, vale dizer, os meios que
permitam tornar-se o quanto possível melhor, e depois de ter, como na
Apologia, ligado a própria obra educativa ao querer do dáimon, Sócrates diz:
Sócrates – Vamos, dize-me com que arte (téchne) podemos cuidar de
nós mesmos?
Alcibíades: – Não saberei dizer.
Sócrates – Nisso, contudo, estamos de acordo: não com uma arte
com a qual poderemos tornar melhores qualquer uma das nossas coisas, mas
com a arte de tornar melhores a nós mesmos?
Alcibíades – É verdade.
Sócrates – Ora, teríamos conhecido qual é a arte que torna melhores
os calçados, se não conhecêssemos os calçados?
Alcibíades – Impossível....
Sócrates – E, portanto, conhecer a si mesmo é uma coisa fácil e era
talvez um homem qualquer aquele que, no templo de Delfos, consagrou
aquele mote, ou é, ao invés, uma coisa difícil e não para todos?
Alcibíades – A mim, Sócrates, amiúde pareceu ser coisas de todos,
normalmente dificílima.
Sócrates – Mas, ó Alcibíades, fácil ou não, para nós é assim: se nos
conhecermos, saberemos, talvez, também qual é o cuidado que devemos ter
com nós mesmos; se não nos conhecermos, jamais o saberemos.
Alcibíades – Assim é.
Sócrates – Dize-me, pois, de que modo poder-se-á encontrar “esse si
mesmo”?
E depois de ter distinguido entre sujeito que utiliza determinado
instrumento e o próprio instrumento, e mostrado que este é o meio que
aquele utiliza, o diálogo prossegue:
Sócrates – E não serve o homem de todo o corpo?
Alcibíades – Certo.
Sócrates – Mas, não dissemos que uma coisa é quem serve de algo,
outra coisa é aquilo de que ele se serve?
Alcibíades – Sim.
Sócrates – Uma coisa, portanto é o homem, outra o seu corpo.
Alcibíades – Parece que sim.
Sócrates - Que é, pois, o homem?
Alcibíades – Não sei dizer.
Sócrates – Isso, porém, podes dizer: que ele é o que se serve do
corpo.
Alcibíades – Sim.
Sócrates – E o que é que se serve do corpo senão a alma?
Alcibíades – Não é outra coisa [...].
Sócrates – a alma, portanto, nos ordena conhecer quem nos
admoesta: “conhece-te a ti mesmo”15.
Reale16 mostra que, como canto do cisne, Platão põe na boca de
Sócrates justamente o discurso sobre a alma e, como recomendação

14
Platão, Cármides, 154 d-e.
15
Platão, Alcibíades maior , 128 d – 130 e; cf. também Xenofonte Memoráveis, III, 12, 5 ss
onde se encontra o mesmo conceito de corpo como “instrumento” da alma.
16
Reale, G. Hist. da Fil. Ant. I p 264.
23

final aos discípulos, quase que como um testamento espiritual, ele o


faz dizer que a única coisa que o preme é que eles cuidem de si
mesmos, ou seja, que cuidem da própria alma.
Se Sócrates devota sua vida toda à missão de levar os homens a conhecerem a si
mesmos, a cuidarem de si é porque ele entende que a vida virtuosa e a vida saudável são
sinônimas. A virtude, não poderia ser outra coisa que não ciência, conhecimento, e o
homem virtuoso é o homem que conhece a si mesmo, e esse conhecer a si mesmo leva,
necessariamente, ao cuidado de si, da sua alma. É a virtude presente na alma quem indica o
quanto a alma é boa e sã.
Se o homem se distingue pela sua alma e se alma é o eu consciente e inteligente,
então a virtude (areté), ou seja, aquilo que atualiza plenamente essa consciência e
inteligência não pode ser senão a ciência e o conhecimento.
O valor supremo para os homens é, portanto, o conhecimento, uma vez que é
justamente o conhecimento que faz a alma ser do modo como deve ser e, por isso, realiza o
homem, cuja essência é a alma.
Assim, se os valores fundamentais dos atenienses eram, principalmente, aqueles
ligados ao corpo: a vida, a saúde, o vigor físico, a beleza, ou bens exteriores, ou ligados à
exterioridade do homem, como a riqueza, o poder, a fama e semelhantes, entendemos o
porquê Sócrates os ataca e os aponta como sintomas de um homem ou sociedade doente. E
entendemos porque Sócrates não fala de saúde e doença do corpo. Se há doenças que são
conseqüências da contingência ou fraqueza humana elas não devem ser motivos de
preocupação e os médicos são competentes para cuidar delas. Mas o verdadeiro cuidado do
homem deve ser com sua alma, pois é nela que as doenças, vícios podem se instalar e levar
à ruína todo homem, toda sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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______Alcibíades Maior. Col. Diálogos vol. V . Trad. Carlos Alberto Nunes. Universidade
Federal do Pará, 1975.
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BRUN, JEAN. Sócrates, Lisboa, Dom Quixote, 1984.
GOTLLIEB, A. O sonho da razão – Uma história da filosofia ocidental da Grécia ao
Renascimento Trad. Pedro Jorgensen Júnior. São Paulo DIFEL, 2007.
24

PLATÃO, XENOFONTE, ARISTÓFANES. Sócrates. Col. Os Pensadores. São Paulo, Abrail


Cultural. 1972 (Contém a Apologia de Sócrates de Platão; Ditos e feitos memoráveis de
Sócrates e Apologia de Sócrates de Xenofonte; As Nuvens de Aristófanes).
REALE, G. História da Filosofia Antiga Vol I. Trad. Marcelo Perine, São Paulo, Loyola, 1993
SAUVAGE, M. Sócrates e a consciência do Homem. Rio de Janeiro, Agir Editora, 1959.
STONE, I. F. O julgamento de Sócrates. São Paulo Companhia das Letras, 1993
WOLFF, F. Sócrates, o sorriso da razão. São Paulo Brasiliense, 1982.

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