128-Texto Do Artigo-187-1-10-20200527
128-Texto Do Artigo-187-1-10-20200527
128-Texto Do Artigo-187-1-10-20200527
NA SEGURANÇA PÚBLICA
Rodrigo Kraemer*
Resumo
gens de uma concepção equivocada de importante não eram mais apenas as in-
inteligência como uma espécie de inves- formações sobre as forças inimigas, mas
tigação mais apurada. Vários fatores, de sobre a produção de aço, a construção
ordem histórica mas também cultural, de estradas, o número de engenheiros de
associados à inteligência mas também cada país e outras informações sobre a
intrínsecos aos órgãos policiais, contri- economia, a sociedade, a geografia, etc.,
buíram para uma interpretação diferen- propiciando análises mais profundas e
ciada do conceito de inteligência nos produzindo estimativas e prospecções.
órgãos policiais.
O uso das informações de combate
é tão velho quanto a luta humana or-
A inteligência normalmente é apresenta- ganizada. A produção de informações
da como sendo uma atividade antiga que estratégicas, entretanto, numa escala
sempre acompanhou a humanidade, nor- abrangente e numa base sistemática,
malmente sendo exemplificada com casos na paz e na guerra, não é mais antiga
que a Segunda Guerra mundial (PLATT,
na Bíblia e na obra de Sun-Tzu (FERRO,
1967, p. 19-20).
2006, p. 82). Mas o surgimento do que
entendemos por inteligência aconteceu Conscientes dessa poderosa ferramen-
apenas a partir do século XX, quando ta que ajudaria a construir o futuro das
começou a se desenvolver a análise de nações, os Estados Nacionais desenvol-
inteligência – também chamada de seg- veram a atividade criando organismos
mento inteligência – e a se vislumbrar as estatais de inteligência, pois ficou clara
possibilidades de se conseguir informa- a necessidade de dados e informações
ções através de outros métodos que não integradas e analisadas sobre as amea-
apenas a espionagem, como as fontes ças, intenções e capacidades dos outros
abertas, e realizar a análise desses dados. países. E esses organismos começaram
a desenvolver a análise de inteligência,
A concepção militar clássica da função
das informações era simples e direta: um juntando dados negados conseguidos
agente secreto conseguia um informe através da espionagem com dados de
sensacional indicando o plano de batalha fontes abertas, produzindo uma meto-
do inimigo, e com base nesse informe o
dologia capaz de assegurar uma con-
comandante militar tomaria sua decisão.
Não foi senão depois de a 1ª Guerra fiabilidade nas informações produzidas,
Mundial ter-se desenrolado por algum por meio de técnicas desenvolvidas no
tempo que ambos os lados começaram a meio acadêmico:
perceber que a análise de materiais como
jornais inimigos podia proporcionar infor- Quando o OSS [Escritório de Serviços
mes importantes e, destarte, puseram-se Estratégicos], o serviço secreto de in-
a criar órgãos dedicados a essa espécie formações dos Estados Unidos durante
de trabalho. (HILSMANN, 1956, p. 6-7) a guerra, foi criado em 1941, uma das
ideias básicas era a opinião diabólica, de
A pesquisa em fontes abertas propiciou que os eruditos, em certos aspectos, po-
um grande desenvolvimento dessa ativi- diam ocupar o lugar dos espiões. A ideia
dade e foi responsável por vantagens es- pareceu dar certo e desde o fim da guer-
ra um número cada vez maior de pessoas
tratégicas fundamentais que ajudaram em passou a acreditar que é nas agências de
muito a decidir a 2ª Guerra Mundial. O informações estratégicas que a pesquisa
Acredito que isso faz parte de uma for- Já a investigação possui características
ma de encarar a profissão que põe muita bem distintas da inteligência, pois, en-
esperança no ‘policial vocacionado’ que,
após vários anos na profissão, aprendeu quanto a primeira trabalha com o pas-
inúmeros ‘macetes’. Valorizamos apenas sado, com o que já aconteceu, buscan-
a prática, deixando pouco espaço para do produzir provas e identificar autorias
o aprendizado teórico. (MINGARDI,
de crimes, tendo como cliente final o
2006a, p. 9)
Judiciário, a inteligência trabalha prin-
Mas não é somente nas polícias judiciá- cipalmente com o presente e o futuro,
rias que existe esse saber prático da ati- buscando produzir conhecimentos para
vidade, pois Muniz também notou que, assessorar o processo decisório e tendo
nas polícias militares, ocorre o mesmo como destinatário final o Executivo.
processo, a existência de um saber que se
produz cotidianamente pelo policial da li-
nha da frente que escapa à padronização, Outro ponto é que o
possuindo especificidades próprias: termo “operações” possui
O que os PMs sabem não está ordenado
significados diferentes para
em um formato científico, não aparece a atividade de Inteligência e
quantificável ou traduzido nas estatísti-
cas, não pode ser provado com números,
para o ambiente policial.
tabelas e gráficos. Este saber atrelado ao
episódico, constrangido pelas contingên-
cias, parece resistir à padronização (MU- O que as duas possuem em comum são
NIZ, 1999, p. 157). as técnicas operacionais utilizadas para
a busca de dados negados. Essas técni-
Se a experiência cotidiana é que defi- cas, que, na inteligência, são oriundas
ne a prática policial sem se utilizar da
da espionagem, podem ser utilizadas na
produção científica, não é de se estra-
investigação para a busca de provas para
nhar a aparente confusão apresentada
se chegar à autoria de um crime. Em-
entre inteligência e investigação. Então,
bora muito parecidas, elas possuem al-
como primeiro fator explicativo sobre a
gumas nomenclaturas diferentes, como,
confusão, temos uma cultura policial de
por exemplo, a vigilância (na inteligência)
valorização da prática em detrimento da
teoria. Essa característica propiciou uma e a campana (na investigação policial), e
aversão à análise de inteligência – muito ambas se referem a buscar dados para
mais relacionada à pesquisa e às univer- produzir um conhecimento. O ponto de
sidades – e uma valorização da busca, da congruência entre as duas é a utilização
área de operações. de técnicas operacionais semelhantes, e
é a partir disso que ocorrem incompre-
A análise de inteligência seleciona dados, ensões nas demais atribuições dessas di-
avalia, interpreta e integra, e também se ferentes atividades.
utiliza de dados negados, provenientes
da atividade de operações de inteligên- Então, como segundo fator, podemos
cia, que completam a formação da ima- perceber que as semelhanças entre as
gem necessária à tomada de decisão. técnicas operacionais de inteligência
estrutura, temos uma espécie de hori- tinta, pois, se antes as ASI eram mais li-
zontalidade nas relações de inteligência, gadas ao SNI que ao próprio órgão, nes-
pois o órgão central, nesse caso, não sa nova configuração, temos o contrário,
possui as prerrogativas que o seu ante- as seções de inteligência dos diferentes
cessor possuía (FIGUEIREDO, 2005), e órgãos são “nativos” e têm mais afinida-
as estruturas de inteligência espalhadas de com seus órgãos de origem que com
pelos Ministérios não são padronizadas, a própria ABIN.
como o eram anteriormente, mas estru-
turas criadas pelos órgãos de maneira Se existe uma maior descentralização no
singular, sem definição clara de normas e SISBIN em comparação ao SISNI, e se
regras. O que resulta disso é que “o sis- cada órgão de inteligência nos diversos
tema de inteligência do Brasil apresenta Ministérios possui estruturas diferentes e
um perfil institucional de ‘confedera- trabalham com inteligência à sua maneira
ção’, muito mais do que de ‘federação’” e desenvolvem suas próprias doutrinas e
(ANTUNES; CEPIK, 2003, p. 119). A métodos de trabalho, podemos perceber
diferença básica entre sistema federado que esse pode tem sido um terreno fér-
e confederado é que o primeiro, embora til para reinterpretações diversas sobre o
possua certa liberdade para decisão, não que seria inteligência.
pode se separar do poder central, en-
Para ilustrar esse processo, podemos
quanto o segundo possui total autono-
perceber que a inteligência está sendo
mia para decidir sobre sua permanência
adjetivada de diferentes maneiras, sendo
ou não no sistema. Esse novo sistema de
chamada de inteligência de segurança
inteligência deu mais liberdade aos Mi-
pública, inteligência policial, inteligência
nistérios para efetivar sua própria área
criminal, além de algumas designações
de assessoria em inteligência, e cada ór-
de inteligência de acordo com o órgão
gão implantou, à sua maneira, seções,
que a produz, como inteligência ministe-
núcleos, divisões, coordenações ou dire-
rial – esta seria a inteligência do Ministé-
torias de inteligência. Mas essa liberda-
rio Público – ou inteligência previdenciá-
de de implantação acarretou uma maior
ria – da Previdência Social.
descentralização do sistema, com cada
órgão desenvolvendo também sua pró- O que ocorreu após a criação do SIS-
pria doutrina e seu método. O que no- BIN foi uma proliferação da inteligência,
tamos de imediato é que o único órgão mas, em vez de a atividade se difundir,
de inteligência desse sistema é a própria prolifera-se apenas a nomenclatura sem
ABIN, pois os demais são órgãos des- substancial alteração nas atribuições
tinados a vários fins e possuem apenas anteriormente desenvolvidas por cada
uma pequena estrutura de inteligência. órgão. Agrell exemplifica de maneira
Para ser mais claro, enquanto a finali- muito eficaz esse processo de prolifera-
dade da ABIN é produzir inteligência, a ção e uso indiscriminado do conceito ao
finalidade da Receita Federal é arrecadar, explicitar um caso que ocorreu em um
a da Polícia Federal é investigar crimes, banco sueco em que havia um depar-
etc. Então, temos aqui uma situação dis- tamento de inteligência, mas que esse
Referências
AGRELL, Wilhem. Quando Tudo é Inteligência – nada é inteligência. Tradução de Cel. Ivan Fialho. Pu-
blicação original em Occasional Papers, Suécia, v. 4, n. 4. 2002.
ANTUNES, Priscila Carlos Brandão. SNI & ABIN: entre a teoria e a prática. Rio de Janeiro: FGV, 2002.
BRASIL. Lei nº 9.883, de 7 de dezembro de 1999. Institui o Sistema Brasileiro de Inteligência, cria a
Agência Brasileira de Inteligência - ABIN, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planal-
to.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9883.htm>.
COSTA, Fabricio Piassi. O valor judicial dos documentos produzidos pela Agência Brasileira de Inteli-
gência (ABIN). Jus Navigandi, Teresina, PI, ano 14, n. 2112, 13 abr. 2009. Disponível em: <http://jus.
com.br/artigos/12626>. Acesso em: 12 mar. 2012.
FERRO, Alexandre Lima. Inteligência de Segurança Pública. Revista Brasileira de Inteligência. Brasília,
DF, v. 2, n. 2, p. 77-92, abr. 2006.
FERRO JÚNIOR, Celso Moreira. A Inteligência e a Gestão da Informação Policial: conceitos, técnicas e
tecnologias definidos pela experiência profissional e acadêmica. Brasília: Fortium, 2008.
FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do silêncio. Rio de Janeiro: Record, 2005.
HILSMAN, Roger. Informações estratégicas e decisões nacionais. Traduzido do original em inglês Stra-
tegic intelligence and national decisions pelo Major Álvaro Galvão Pereira. [S.l]: SNI, 1966. Datilogra-
fado. Disponível em <http://www.memoriasreveladas. arquivonacional.gov.br/Media/X9/BRANRIOX-
90TAI208P1.pdf>. Acesso em: 21 abr. 2012.
LIMA, Roberto Kant de; MISSE, Michel; MIRANDA, A. P. M. Violência, Criminalidade, Segurança Públi-
ca e Justiça Criminal no Brasil: uma bibliografia. BIB, Rio de Janeiro, n. 50, 2º sem. 2000.
LOWENTHAL, Mark M. Inteligência: dos segredos a políticas. 3. ed. [S.l.]: CQ Press, 2001.
______________. Inteligência policial e crime organizado. In: LIMA, Renato Sérgio de; PAULA, Liana
de (Orgs.). Segurança pública e violência: o estado está cumprindo seu papel? São Paulo: Contexto,
2006b.
MUNIZ, Jacqueline. Ser policial é sobretudo uma razão de ser: cultura e cotidiano na Polícia Militar do
Rio de Janeiro. 1999. Tese (Doutorado) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 1999.
PATRÍCIO, Josemária da Silva. Inteligência de Segurança Pública. Revista Brasileira de Inteligência, Bra-
sília, DF, v. 2, n. 3, p. 53-58, set. 2006.
SHULSKY, Abram N.; SCHMITT, Gary J. Silent Warfare: Understanding the world of intelligence. Vir-
ginia: Brassey’s Inc. Dules, 2002.
SUN-TZU. A Arte da Guerra. Obra traduzida do chinês por Thomas Cleary; tradução Euclides Luiz
Calloni, Cleusa M. Wosgrau. São Paulo: Pensamento, 2007.