E07 Caminho

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1897 M A R GA RE T O LIPH A N T

O Caminho
da Dama

1
DAS

BY E D ITO R A WIS H

Tradução:
Karine Ribeiro

Preparação:
João Rodrigues
Revisão:
João Rodrigues
Capa e projeto gráfico:
Marina Avila

Ilustração de capa:
Dabus

2023 ISBN 978-85-67566-63-4


Copyright 2023 Editora Wish. Este material possui direitos
de tradução e publicação e, ao não divulgá-lo sem prévia
autorização da editora, você está nos ajudando a continuar
publicando raridades para os leitores. Agradecemos por isso.

2
89
UMA RELÍQUIA DE

4
Sinopse
Uma morte sempre está
para acontecer quando
ela vai embora.

Uma viagem para a casa


de amigos que prometia
tranquilidade e calmaria se
transforma em uma descoberta
assustadora. Os cessar dos passos
de uma curiosa companhia são
conhecidos como o prelúdio
de uma tragédia. Certo dia,

5
em meio a uma pacífica
convivência, aqueles sons
misteriosos haviam parado e não
podiam mais ser ouvidos.

Publicado em 1897, O Caminho


da Dama é uma história
eletrizante sobre uma companhia
fantasmagórica, nas palavras
de Margaret Oliphant, uma das
mais notáveis e distintas vozes do
romance do século XIX.

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ano é delas!
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1882 M A R GA R E T O L I PH A N T

O Caminho
da Dama

E-book do
SEMESTRE
Obrigada pelo seu apoio!

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Sumário

Capítulo I 10

Capítulo II 55

Capítulo III 122

Capítulo IV 162

Capítulo V 204

Capítulo IV 238
1882 M A R GA RE T O LIPH A N T

O Caminho
da Dama
Capítulo I

E
u estava visitando algumas
pessoas na Escócia quando os
eventos que vou relatar acon-
teceram. Elas não eram amigas no
sentido das relações longas ou habi-
tuais; para resumir, eu as havia co-
nhecido na Suíça, no ano anterior;
10
mas nos vimos muito enquanto es-
távamos juntos, e tivemos aquela
intimidade fácil que a viagem traz
com mais prontidão do que qualquer
outra coisa. Havíamos nos visto em
um grande deshabillé tanto da mente
quanto das vestes nas manhãs frias
depois de uma noite de viagem, que
talvez seja o teste mais severo que
pode ser aplicado às aparências, e
entre toda a irritação das jornadas
curtas e longas, com os episódios
costumeiros de bagagens extravia-
das, hotéis indiferentes, confusões
de toda natureza, os quais são um
teste igualmente severo para os
11
nervos; e nossa amizade e afinidade
(tomo a liberdade de supor que era
mútua, ou elas jamais teriam me
convidado para Ellermore) perma-
neceram intactas. Sempre achei, e
ainda acho, que Charlotte Campbell
era uma das jovens mais charmosas
que já conheci; e os irmãos dela, caso
não tão inteiramente encantadores,
eram rapazes agradáveis, bons com-
panheiros de viagem, cheios de bons
humores e diversão. Por meio das
conversas deles, entendi de imediato
de que se tratava de uma grande fa-
mília. As alusões deles a Tom, Jack
e ao pequeno Harry, e a Mab e Mary,
12
talvez pudessem ser tediosas a um
crítico mais severo; mas gosto de sa-
ber das relações de outras pessoas,
pois eu mesmo tenho poucas. Fiquei
sabendo que a srta. Campbell fora
levada ao exterior pelos irmãos para
se recuperar de uma longa e difícil
tarefa de ser cuidadora, que havia
exaurido suas forças. Os pequeninos
haviam adoecido de escarlatina, e ela
permanecera com eles noite e dia.
― Ela deixou de dar atenção ao
resto de nós e costumava se trancar
lá ― contou Charley, que era o mais
novo dos dois. ― Ela só saía para uma
13
caminhada quando não estávamos.
Isso foi o pior ― acrescentou o jovem,
com grande simplicidade.
O fato de a irmã dele se dedicar
aos cuidados dos enfermos não era
impressionante; mas que ela se ne-
gasse à preciosa companhia deles era
de um heroísmo que tocou o coração
de seu irmão. Assim, aprendi muito
sobre a família. Chatty, como eles
a chamam, era a irmã-mãe, princi-
palmente dos pequeninos, que ha-
via sido deixada para cuidar deles
quase inteiramente sozinha desde
que a mãe deles falecera, muitos
14
anos antes. Ela não era uma garota,
literalmente. Estava na perfeição de
sua feminilidade e juventude ― mais
ou menos vinte e oito anos, a idade
em que algo da compostura da ma-
turidade ilumina a doçura dos anos
anteriores, e a idade suficiente para
acentuar todo o charme de ser tão
jovem. É principalmente entre jovens
mulheres casadas que vemos esse
tipo bonito e gracioso, encantadora
em todo e qualquer requerimento da
mente; mas quando se encontra em
uma mulher solteira é ainda mais ce-
lestial. Posso apenas pensar que essa
delicada maternidade e mocidade
15
― a dádiva perfeita de uma, a graça
impassível da outra ― tem sido a base
daquela devoção adoradora que nos
velhos tempos levou tantos santos ao
santuário da Virgem Maria. Mas, por
que me estendo tanto sobre Charlotte
Campbell no começo desta história,
não sei dizer, pois ela não é a figura
mais importante desta narrativa, e
sem querer estou enganando o leitor.
Eles me convidaram para ir vê-los
em Ellermore quando nos separamos
e, como não tenho nada contra uma
casa mais quente e mais amável do
que as câmaras no Temple, aceitei,
16
como pode-se imaginar, com entu-
siasmo. Nos separamos na primeira
semana de junho, e fui convidado no
fim de agosto. Eles tinham “muitos
tetrazes”, dissera Charley, com uma
liberdade de expressão agradável de
ouvir.
Charlotte adicionou:
― Mas você deve estar preparado
para uma vida caseira, sr. Temple, e
uma muito calma.
Eu respondi, claro, que se tivesse
escolhido o que mais gostava neste
mundo teria sido essa combinação, e
então ela sorriu e balançou a cabeça
17
um pouco, divertida. Ela não pareceu
se dar conta de que sua afirmação
fora essencial para a minha decisão.
Eles todos insistiam que havia “mui-
tos tetrazes”, e não posso dizer que
fui indiferente a isso.
Colin, o filho mais velho, era com
quem eu tinha menos familiaridade.
Ele era o que as pessoas chamam de
reservado. Não falava com a mesma
frequência que os demais. Apenas
mais tarde eu soube que ele ficava
constantemente em Londres, indo
e vindo, de forma que ele e eu pode-
ríamos ter visto um ao outro várias
18
vezes. Mesmo assim, ele gostava de
mim o suficiente. E foi enfático diante
do convite do irmão. Quando Charley
disse que havia muitos tetrazes, ele
adicionou, com a maior cordialidade:
“e você pode atirar em um veado”.
Havia um gosto do Norte no discurso
de todos; não demonstrado por me-
ras palavras, mas por uma ocasional
diversidade de idioma e mudança de
pronúncia. Eles sabiam e tinham bas-
tante orgulho disso. Eles não diziam
Escócia, mas Escós; e o sotaque deles
não poderia ser representado por ne-
nhuma das caricaturas do teatro, ou
o que convencionalmente aceitamos
19
como a pronúncia nacional. Quando
eu tentava pronunciar como eles,
meus próprios ouvidos me informa-
vam da caricatura que era.
Eu estava indo para a família re-
presentada por esses jovens quando
comecei a jornada no dia 20 de agosto,
um dia quente de verão, com poeira
e calor suficientes para merecer o
nome da estação. Quando cheguei ao
fim da minha jornada, no entanto,
havia apenas o suficiente para mar-
car a linha entre verão e outono:
uma nevoazinha dourada no ar, um
roxo de flores urze nas colinas, um
20
toque aqui e ali em um galho solto,
poucos, mas suficientes para contar.
Ellermore ficava no coração de um
lindo distrito cheio de montanhas
e lagos dentro da linha das Terras
Altas, e bem à margem de um dos
cenários de montanha mais selva-
gens na Escócia. Era situado entre
um anfiteatro de colinas, nenhuma
delas muito alta, mas da forma mais
pitoresca, com picos e cores como
a cordilheira alpina em miniatura,
tudo brilhando com o calor roxo da
urze, com um reluzir que parecia
neve, mas na verdade eram as que-
das-d’água brancas das torrentes da
21
montanha. Diante da casa havia um
pequeno lago rodeado pelas colinas,
da extremidade do qual corria um
riachozinho alegre, cheio de pedras, e
ainda mais brilhante por suas inter-
seções, que serpenteavam pelo vale e
desaguavam em outro lago de maior
grandeza e pretensões. Ellermore em
si era uma casa relativamente nova,
construída sobre um declive fino de
grama sobre o lago e protegida por
belas árvores ― grandes faias que
não deviam nada para Berkshire,
embora não fosse o que esperávamos
ver na Escócia, além dos freixos e pi-
nheiros que logo reconhecemos como
22
algo que cresce no norte. Eu não es-
tava preparado para a exuberância
das Terras Altas do Oeste ― o manto
verde das samambaias e das ervas
por toda parte, para não falar da ri-
queza das flores, que formavam um
centro de cores e cultivos ainda mais
brilhantes em meio a todo o púrpura
das colinas. Tudo era suave e rico e
quente ao redor da mansão. Eu tinha
esperado um cenário sério e uma
atmosfera cinzenta. Encontrei uma
exuberância de vegetação e cor por
toda a parte que era quase excessiva.
O pai dos meus amigos me recebeu
na porta que ficava sempre aberta, e
23
pela qual, me pareceu depois de um
tempo, todos podiam passar. Ele era
um velho alto, distinto mas acolhe-
dor, com cabelos e bigode grisalhos e
a cor fresca de um patriarca rural; o
que, no entanto, ele não era, e sim um
homem de negócios enérgico, como
descobri mais tarde. Os Campbells de
Ellermore não eram grandes chefes
naquele clã bastante extenso, embora
fossem pessoas bem conhecidas e
mantinham sua pequena proprie-
dade desde a antiguidade remota.
Mas eles não mantiveram sua genti-
leza nem se recusaram a aproveitar
as oportunidades que surgiram. Eu
24
havia observado, na grandiosa e rica
região da qual Glasgow é a capital,
que poucos se opõem contra o comér-
cio. A alta burguesia tem visto todas
as vantagens de combinar comércio
com tradição. Se não fosse por isso, é
provável que Ellermore tivesse sido
um local bem diferente. Agora, es-
tava cheia de todos aqueles sinais de
cuidado e simples luxo que tornam a
vida tão tranquila. Não tinha muita
exibição, mas havia uma profusão de
conforto. Tudo estava sobre veludo.
Provavelmente era mais como a casa
de um mercador rico do que como a de
uma família de longa descendência.
25
Nada poderia ser mais perfeito como
um lugar de prazer do que essa pe-
quena propriedade nas Terras Altas.
Eles tinham “muitos tetrazes” e tam-
bém muitas trutas em uma sucessão
de pequenos lagos e regatos da mon-
tanha. Tinham veados nas colinas.
Tinham a própria carne de carneiro, e
todo vegetal necessário para a grande
e agitada casa, de batatas e repolhos
a uvas e pêssegos. Mas, com toda essa
fortuna primitiva, pouco dinheiro
saía de Ellermore. Os “negócios” em
Glasgow cuidavam disso. Nunca
descobri quais eram exatamente os
negócios, mas proviam ocupação
26
para toda a família; e via-se que os
resultados eram dos mais agradáveis
no que se referia ao banqueiro do sr.
Campbell.
Estavam todos em casa, com ex-
ceção de Colin, o filho mais velho. A
ausência dele gerou muitas desculpas
a mim, algumas das quais pareciam
muito mais elaboradas do que o ne-
cessário. Fui indiferente à ausência
de Colin. Não era ele quem mais me
interessava; e embora Charley fosse
consideravelmente mais jovem do
que eu, gostei mais dele desde o início.
Tom e Jack eram ainda mais jovens.
27
Estavam bem ocupados com “os ne-
gócios” e voltavam para casa apenas
de sábado a segunda-feira. O pequeno
trio do berçário eram crianças encan-
tadoras. Vê-las reunidas em torno de
Charlotte era o suficiente para derre-
ter qualquer coração. Chatty, como
a chamavam, o que não é um nome
muito digno, mas cheguei a consi-
derá-lo o mais lindo do mundo, pois
soava por toda aquela casa alegre e
cheia. “Cadê a Chatty?” era a primeira
pergunta que todos faziam ao chegar.
Se ela não fosse encontrada imedia-
tamente, eles corriam pela casa, su-
biam as escadas e atravessavam os
28
corredores ― “Chatty! Cadê você?”
―, e ela sempre respondia de algum
lugar ou outro com uma voz plena
e suave, que era audível por toda a
parte, embora nunca fosse alta. “Aqui
estou, meninos”, dizia ela, com uma
bela inversão que me agradava. Na
verdade, tudo me agradava em Chatty
— demais, mais que a razão. Imaginei
o que seria de todos eles se, por exem-
plo, ela se casasse, e certa vez entrei
em uma discussão acalorada comigo
mesmo para provar que seria a coisa
mais egoísta do mundo a família im-
pedi-la de se casar, como muito pro-
vavelmente, eu não poderia deixar de
29
sentir, eles fariam. Ao mesmo tempo,
percebi, com um pequeno tremor,
como a coisa toda desmoronaria se,
por acaso, Chatty fosse levada em-
bora.
Gostei da minha estada bem mais
do que posso descrever. De manhã,
saíamos para as colinas ou pelo in-
terior. À noite, costumava acontecer
de sairmos depois do jantar, e eu era
deixado ao lado de Chatty, “os meni-
nos” tendo mil objetos de interesse,
enquanto o sr. Campbell se sentava
em sua biblioteca e lia os jornais,
que chegavam naquela época quer
30
por cavalo de Oban quer por barco.
Dessa forma, eu passava por toda a
“querência”, como o espaço ao redor
da casa é chamado na Escócia, com
Chatty, que estava disponível nesse
horário, exceto se o pai ou as crian-
ças precisassem dela. Ela dizia para
que eu fosse ficar com os rapazes,
quando sem dúvidas seria mais di-
vertido para mim assim; e, quando
garanti a ela que meu prazer era
ainda maior com ela, Chatty me deu
um sorriso franco e gracioso, balan-
çando a cabeça um pouco. Ela sorriu
suavemente, pedindo a mim que não
fosse tão educado ou pensasse que
31
ela se importaria caso eu a deixasse;
mas acho, no geral, que ela gostava
da minha presença na caminhada
noturna.

― Há algo que você não me contou


― falei ― e que deve ter. Não acredito
que sua família está aqui há tanto
tempo sem ter um fantasma.

Chatty se virou para me olhar,


para saber o que fora omitido em
suas descrições. Quando soube o quê,
sorriu um pouco, mas não com a ale-
gria zombeteira que eu esperara. Pelo
contrário, era o tipo de sorriso gentil
32
de reconhecimento de que algo fora
esquecido.

― Não a chamamos de fantasma


― respondeu ela. ― Perguntei-me se
você teria percebido. Gosto dela; mas
também estou acostumada com ela a
vida inteira. E aqui estamos, então ―
adicionou, enquanto chegávamos ao
topo de uma pequena colina e entrá-
vamos em um caminho elevado, que
eu conhecia pelo nome de Caminho
da Dama, sem ter ainda qualquer ex-
plicação sobre o motivo. Deve ter sido,
supus, o caminho para a velha casa, e
33
agora cercava uma porção do terreno
sem qualquer significado distinto.
No lado mais próximo dos jardins
e da casa, era apenas um pouco ele-
vado acima dos arbustos, mas o outro
lado subia até o cume de uma margem
alta, que descia de repente até o rio,
que, depois de escapar do lago, fazia
uma curva larga. Contornando essa
parte do terreno, uma fileira de faias
grandiosas erguia-se de cada lado do
caminho e, através das aberturas nas
árvores, a casa, os jardins luxuriantes
e o brilho prateado do lago eram vi-
síveis. O sol da tarde batia em nossos
34
olhos enquanto caminhávamos; um
pouco de ar suave, mas fresco, so-
prava entre as folhas, e aqui e ali um
cacho amarelo no meio de um galho
mostrava o primeiro toque de uma
decadência alegre. “Aqui estamos,
então.” Era uma frase curiosa; mas
existem algumas expressões idiomá-
ticas estranhas na forma escocesa ―
quero dizer, escós ― da nossa língua
comum, e agora estou acostumado a
aceitá-las sem tecer comentários.
― Acredito que deve haver al-
guma forma de voltar à vila ou à casa
sob este banco ― falei ―, embora
35
pareça não haver espaço para um ca-
minho?
― Por que você pergunta? ― disse
ela, sorrindo ao me olhar.
― Porque sempre ouço alguém
passando… imagino que por ali. Os
passos são muito nítidos. Não os está
ouvindo agora? Fiquei bastante con-
fuso, porque não consigo distinguir
onde o caminho pode estar.
Chatty tornou a sorrir, com um
significado nesse sorriso, e me olhou
atentamente, ouvindo. E então, de-
pois de um momento, ela disse:
― É por isso que você estava
36
perguntando. Se não ouvíssemos,
ficaríamos infelizes. Você nunca
soube por que esta parte é chamada
de Caminho da Dama?
Quando ela disse isso, tomei cons-
ciência de uma mudança estranha
nas minhas sensações ― não, devo
dizer que foi na minha audição, para
ser específico. Eu havia ouvido o som
com frequência e, depois de olhar para
trás para ver quem era e não avistar
ninguém, decidi que os passos soa-
vam de um caminho abaixo, o qual,
dali, não era visível. Agora minha
audição mudara, e eu não conseguia
37
entender como havia pensado em ou-
tra coisa; os passos estavam no nosso
nível, ao nosso lado ― como se uma
terceira pessoa nos acompanhasse
pelo caminho. Não acredito em fan-
tasmas, nem sou supersticioso, pelo
que observei (e observo mais do que
os outros), mas me senti sair do cami-
nho às pressas e com uma certa sen-
sação curiosa e emocionada. Apesar
de tudo, a ideia de esbarrar em algo
invisível me chocou.

― Ah ― disse Charlotte ―, dá
u ma… sensação desag radável.
38
Esqueci que você não está acostu-
mado, diferente de mim.
― Sou toleravelmente bem-acos-
tumado, pois ouvi falar disso com
frequência ― respondi. Ir para o ou-
tro lado era covarde, mas temi ter
feito isso com um movimento in-
voluntário. Então ri, o que pareceu
totalmente inapropriado e fictício, e
falei: ― Sem dúvida existe uma ex-
plicação bem fácil… alguma vibração
ou eco. A ciência da acústica resolve
muitos mistérios.
― Não há explicação ― disse
Charlotte, quase com raiva. ― Ela
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caminha por aqui desde que nos en-
tendemos por gente. É um mal si-
nal para nós, Campbells, quando ela
parte. Ela era a filha mais velha, como
eu; e acho que é nosso anjo da guarda.
Nenhum mal acontece, desde que ela
esteja aqui. Ouça-a! ― gritou ela, fi-
cando parada e com a mão erguida.
O sol baixo brilhou sobre ela, re-
fletindo um pouco da cor do verão
em seus cabelos castanhos, na niti-
dez lúcida de seus olhos castanhos,
nas bochechas tão claras e macias.
Fiquei ali ouvindo com uma agitação
que não podia controlar. Se eu tivesse
40
seguido meu impulso inicial, não
tenho certeza se não teria disparado
pelos arbustos; mas, claro, não segui.
E o som dessa terceira pessoa, cujos
passos eram inconfundíveis apesar
de ela ser invisível, fez meu coração
disparar. Decerto era a maior insen-
satez; pois devia haver uma explica-
ção para isso na natureza: disso eu
não tive dúvidas por um momento.
― Você está assustado ― disse
Chatty, com um sorriso.
― Bem, eu não estaria cumprindo
minha parte como devo, estaria, se
não sentisse a emoção necessária.
41
Deve ser desrespeitoso para um fan-
tasma não ser temido.
― Não diga fantasma ― disse
Chatty. ― Acho que isso é desrespeitoso.
É a Dama de Ellermore; todos a co-
nhecem. E você sabia que, quando
minha mãe morreu… a maior dor
que já senti… os passos cessaram?
Ah, é verdade! Você não precisa me
olhar como se fosse algo engraçado.
Faz dez anos agora, e eu era apenas
uma menina boba, não muito boa
para ninguém. Me mandaram para
tomar ar do lado de fora quando ela
estava tirando uma soneca, e vim
42
até aqui. Eu estava chorando, como
pode imaginar, e no início não prestei
atenção. Então me dei conta de ime-
diato… a Dama não estava. Depois,
me contaram que esse era o pior dos
sinais. Uma morte sempre está para
acontecer quando ela vai embora.

O páthos desse incidente confun-


diu todas as minhas tentativas de
tratá-lo com leveza, portanto segui-
mos um pouco em silêncio, e é desne-
cessário dizer que todo esse tempo eu
estava ouvindo, com toda a atenção,
aqueles passos estranhos, e enfim
43
me persuadi de que não passavam de
ecos dos nossos próprios.
― É muito curioso ― falei edu-
cadamente. ― Claro que você estava
muito agitada e absorta demais no
luto real para ter tempo de pensar
em qualquer explicação… o estado
da atmosfera talvez…
Chatty me lançou um olhar in-
dignado. Estávamos perto do fim
do caminho, e naquele momento eu
podia jurar que os passos, os quais
estavam um pouco mais à frente, ha-
viam se voltado para nos encontrar.
Sei que nada poderia soar como uma
44
tolice maior, e que poderia ser ape-
nas alguma vibração ou fenômeno
atmosférico. No entanto, era assim
que parecia: não uma ilusão ótica,
mas auditiva. Desde que os passos es-
tivessem sincronizados com os nos-
sos, eram menos perceptíveis; mas
quando se viraram e audivelmente
voltaram em nossa direção! Nem
toda a minha força mental podia
me impedir de sair do caminho para
deixá-los passar. Desta vez, vinham
diretamente entre nós, e a agilidade
do meu susto e retirada era natural-
mente muito mais significativa do
45
que o sorriso frouxo com que me jus-
tifiquei.
― É de fato um som bem curioso
― comentei, com um tremor que afe-
tou um pouco minha voz.
Chatty me deu um sorriso recon-
fortante. E não riu de mim, o que ser-
viu de consolo. Ela ficou parada por
um instante como se olhasse para
um passageiro visionário.
― Não temos medo ― disse ela ―,
nem os mais jovens; todos sabemos
que ela é nossa amiga.
Quando voltamos para o lado do
lago, onde, confesso, fiquei feliz em
46
estar, ao ar livre sem qualquer som-
bra enigmática das árvores, senti me-
nos objeção ao assunto.
― Queria que você me contasse a
história. Pois claro que há uma his-
tória, não é? ― perguntei.
― Não, não há história… pelo
menos nada trágico nem romântico.
Dizem que ela era a filha mais velha.
Às vezes me pergunto ― disse Chatty,
com um sorriso e um breve rubor ―
se ela não seria um pouco como eu.
Ela morou aqui a vida inteira, e teve
várias gerações de quem cuidar. Ah,
não, não houve nenhum assassinato
47
nem nada errado a respeito da nossa
Dama; ela só amava Ellermore acima
de tudo; e acho que ela recebeu per-
missão para cuidar de nós desde en-
tão.
― Isso é muito gentil, ela cuidar
de vocês ― falei, mal me aventu-
rando em colocar qualquer ênfase
no pronome ―, mas, afinal de con-
tas, deve ser um trabalho lento, você
não acha, caminhar aqui para cima e
para baixo para sempre? Chamo isso
de uma má recompensa para uma
boa mulher. Se ela tivesse sido ruim,
poderia ter sido uma boa punição.
48
― Sr. Temple! ― disse Chatty,
agora indignada. ― O senhor acha
que cuidar de seu próprio povo, tomar
conta deles, seja lá o que aconteça, é
uma coisa ruim… estar dedicada a
eles e ao cuidado deles? Eu não acho;
eu adoraria ter tal destino.
Talvez eu tivesse falado assim
para provocar a discussão.
― Devoção demais à família
existe. Eles são gratos? Eles partem e
se casam e te deixam para trás.
Ela olhou para mim um tanto
atordoada.
― Os membros podem variar, mas
49
a família jamais parte ― disse ela. ―
Sem falar que isso só pode se aplicar
a nós em nossa situação atual. Ela
deve ter visto muitos irem e virem;
mas isso não precisa envergonhá-la,
sabe, porque eles vão aonde ela está.
― Minha querida srta. Campbell,
espere um pouco; pense um pouco ―
falei. ― Onde ela está! No Caminho
da Dama, de acordo com sua história.
Esperemos que todos os seus ances-
trais e parentes não estejam lá.
― Suponho que você quer me
deixar irritada ― disse Chatty. ―
Ela está no paraíso… o senhor tem
50
dúvida disso? Mas todo dia, quando
o sol se põe, ela volta para casa.
― Ah, vem! ― falei. ― Se é apenas
ao pôr do sol, não é tão ruim.
A srta. Campbell me olhou com
dúvidas, como se não soubesse se de-
veria ficar com raiva.
― O senhor quer zombar do as-
sunto ― disse ela ―, rir dele; e mesmo
assim ― adicionou, com um pouco de
humor ―, você estava muito nervoso
meia-hora atrás.
― Reconheço que estive nervoso.
Me impressiono facilmente. Acredito
que essa seja a palavra para descrever.
51
Ficar nervoso em um momento é um
luxo como qualquer outro. Assustado,
você pode dizer, se preferir ser di-
reta. E fico satisfeito por ser no pôr
do sol, não quando está escuro. Isso
completa o círculo das minhas expe-
riências na Terra Alta ― falei ―; tudo
está perfeito agora. Atirei em tetra-
zes na colina e peguei trutas no lago,
encharquei minha pele e a sequei ao
vento; não quero nada além do fan-
tasma da família. E agora eu a vi, ou
pelo menos ouvi falar dela…
― Não posso fazer nada se você
quer zombar ― disse Chatty ―, mas
52
aviso que não concordo, sr. Temple.
Falemos de outra coisa. Nas Terras
Altas ― disse, com dignidade ―, te-
mos muitas visões sobre coisas.
― Há certas coisas das quais ape-
nas uma visão é possível ― falei.
― Que eu tenha a audácia e a imper-
tinência de rir de qualquer coisa que
você venere! Acredito que foi apenas
porque eu estava tão assustado…
Ela sorriu de novo daquele jeito
adorável e maternal, um sorriso de
indulgência, perdão e generosidade.
― Você está humilde demais
53
agora ― disse ela ―, e acho que ouvi
alguém me chamar. É hora de entrar.
E decerto havia alguém a cha-
mando; sempre havia, acho, a todo
momento, de noite e de dia.

54
Capítulo II

Seria mentira dizer que me livrei da


lembrança da Dama de Ellermore
quando fui para o quarto na ala, de-
pois de uma noite alegre, através de
uma longa e escorregadia galeria. A
experiência curiosa que eu acabara
de vivenciar permaneceu na minha
mente com um toque de perplexi-
dade agradável.
― Claro ― falei para mim mesmo
―, deve haver algo para explicar
aqueles passos… algum caminho
oculto por onde o som deve vir.
Talvez minha primeira ideia fosse
55
se revelar correta ― talvez houvesse
uma estrada secundária para a fa-
zenda ou os estábulos, em que em al-
guns estados da atmosfera, ou talvez
até sempre, ecoava de volta os sons de
passos em certa vibração subterrâ-
nea. Já ouviu-se falar de algo assim;
já ouviu-se falar, de fato, de todo tipo
de mistério natural, alguns tão fáceis
de entender quanto a outra explica-
ção; mas, desde que se tenha a ciência
consigo, quer a compreenda quer não,
estará bem. Eu não conseguia deixar
de imaginar, no entanto, se, caso eu
viesse a ouvir aqueles passos na longa
galeria do lado de fora do quarto, eu
56
deveria relacionar a questão con-
fortavelmente à ciência da acústica.
Fiquei atormentado, até adormecer,
por uma vaga expectativa de ouvi-los.
Eu não conseguia tirá-los da cabeça
ou dos ouvidos, de tão distintos que
eram ― o passo leve, suave, mas com
energia, evidentemente o passo de
uma mulher. Não conseguia deixar
de me lembrar, com uma sensação de
formigamento pelas minhas veias,
da característica distinta de sua vi-
rada ― voltando, os passos indo em
uma linha oposta aos nossos. Pareceu
para mim que a qualquer momento
57
eu os ouviria na galeria, e então como
poderia explicá-los?
No dia seguinte ― pois dormi
muito bem depois que consegui cair
no sono, e o que ouvi de forma al-
guma atormentou meus sonhos ―,
consegui escapar de todas as ocu-
pações agradáveis da casa e, assim
que fiquei sozinho, fui em direção ao
Caminho da Dama. Falei que tinha
cartas a escrever ― uma frase des-
gastada, que, claro, significa o que
quiserem ouvir. Andei para lá e para
cá no Caminho da Dama, e não conse-
gui ouvir nem ver nada. Em um lado
58
dos arbustos não havia possibilidade
de qualquer caminho escondido; do
outro, o banco descia para a água. O
caminho corria de um canto do lago
até meio caminho do platô verde no
qual a casa estava e, na extremidade
superior, ia até o terreno elevado
atrás da casa; mas nenhuma estrada
passava por ali, nem havia a menor
aparência de qualquer modo pelo
qual um som contínuo pudesse ser
comunicado. Examinei com o maior
dos cuidados, olhando atrás de toda
árvore, como se o segredo pudesse es-
tar ali, e meu coração saltou quando
percebi o que pareceu para mim um
59
caminho estreito e desgastado pelo
terreno.
A curiosidade nos prega as maio-
res peças mesmo quando está atenta.
Era uma ideia estranha que eu, que
tinha ido até ali com o objetivo de
encontrar uma forma de explicar o
curioso fenômeno sobre o qual uma
superstição tão longa e duradoura
tinha sido construída, seria tão ra-
pidamente infectado por ela. Vi um
pequeno rastro, bastante estreito
mas muito distinto, e, embora eu
com certeza não acreditasse na Dama
de Ellermore, por dentro supus que
60
aquele era o rastro dela. Senti uma
sensação curiosa. A certeza estava
por baixo do ceticismo, como se fos-
sem duas coisas sem conexão uma
com a outra. Se alguém me visse,
pensaria que eu procurava por algo
entre os arbustos, pois observava
cuidadosamente cada centímetro do
solo e cada árvore.
Era um fascínio contra o qual eu
não podia lutar. A Sociedade Psíquica
não existia na época, pelo que eu
saiba, mas havia várias mentes fora
daquele corpo inquisitivo cuja auten-
ticação de uma história de fantasmas
61
ou, para falar em termos mais práti-
cos, a dissolução de uma superstição,
é muito atraente. Consegui fugir dos
compromissos da família mais uma
vez no mesmo horário no qual a srta.
Campbell e eu havíamos visitado o
Caminho da Dama na noite ante-
rior. Era uma tarde adorável, suave
e quente, o céu ocidental iluminado
com cores, os grandes galhos das
faias jogados na maturidade escura
do verde sobre o tom de laranja e car-
mesim, derretendo em um vermelho-
-rosado celestial enquanto subiam
mais alto, e se lançando em montes
espumosos pelo azul sereno acima.
62
As mesmas cores maravilhosas
brilhavam no reflexo do lago. O ar era
de uma clareza mágica, e a terra e o
céu pareciam parados com um quase
fascínio de seu próprio encanto, feli-
cidade e paz.
Da minha parte, no entanto, per-
cebi isso apenas passageiramente,
pois estava concentrado em outros
pensamentos. Do lago soava um tu-
multo suave de vozes. Era noite de
sábado e os garotos estavam em casa.
Estavam pegando barcos para uma
remada noturna, e a vela branca do
iate se erguia entre as nuvens rosadas
63
daquele céu resplandecente. Fiquei
entre duas daquelas faias que for-
mavam um tipo de arco e olhei para
elas, distraído por um instante por
um agradável som distante que vi-
nha suavemente pelo ar de verão.
No momento seguinte, me virei de
repente com um susto, tentando ver
quem vinha atrás de mim. Não ha-
via, nem preciso dizer, vivalma ali.
As faias balançavam com suavidade
no ar quente; as longas sombras de
seus grandes troncos permaneciam
ininterruptas ao longo do caminho;
nada mais era visível, nem mesmo
um pássaro na margem do lago.
64
Sem ar, fiquei entre as duas árvores,
de costas para o lago, olhando para
nada enquanto os passos suaves se
aproximavam baixinhos, e passavam
por mim ― passavam por mim! Com
um sopro breve de ar, pensei, tal qual
uma figura franzina poderia fazer;
mas talvez isso fosse minha imagina-
ção. Imaginação! Não era tudo ima-
ginação? Ou não? Não havia sombras
ou escuridão para esconder uma fi-
gura; a luz completa do dia radiante
com cores; o ar quase vivo e agradá-
vel, todo doce com prazer. Fiquei ali,
mudo e sem forças para me mover.
Ela passou suavemente, sem mudar
65
a regularidade gentil de seu rumo,
até o final do caminho. Os passos fi-
caram mais distantes conforme se
afastavam de mim. Jamais ouvi com
tanta intenção na minha vida. Pensei:
“Se eu os deixar de ouvir, saberei que
é apenas minha imaginação fértil.” E
assim eles prosseguiram, quase fora
do alcance da audição, apenas o toque
mais leve sobre o chão; e então houve
uma pausa momentânea, e meu co-
ração parou de bater, mas saltou ou-
tra vez até minha garganta e enviou
ondas ensandecidas latejando por
meus ouvidos no momento seguinte;
66
haviam dado meia-volta e agora re-
tornavam.
Não posso descrever o efeito ex-
traordinário. Se estivesse escuro teria
sido totalmente diferente. A clari-
dade, a vida ao redor e a ausência de
tudo o que associamos com o sobre-
natural produziram uma emoção
que não era possível nomear. Não era
medo; mesmo assim, meu coração
batia de uma forma que não havia
batido em qualquer emergência peri-
gosa (e passei por algumas bastante
preocupantes) antes; meu fôlego pa-
receu quase me escapar. Ela voltaria
67
até onde eu estava? Ela voltou, pas-
sando por mim mais uma vez, com
o mesmo movimento do ar (ou assim
pensei), e se voltou outra vez. Mas
dessa vez meus batimentos retiniam
tanto em meus ouvidos que não pude
mais suportar. Me virei e caminhei
rápido, tropeçando no pequeno de-
clive e me perdendo nos arbustos que
estavam quase abaixo do alcance do
sol baixo, agora quase posto, e que em
contraste parecia úmido e frio. Era
algo como entrar em um banho de ar
frio após o calor e a glória lá em cima.
Foi assim que minha primeira
68
ex per iênc ia ter m i nou . A sr ta .
Campbell me olhou com um pouco
de curiosidade e um meio sorriso
quando me juntei ao grupo na lateral
do lago. Ela imaginou onde eu havia
estado, e talvez parte da agitação
estranha que senti, mas não obser-
vou mais nada; e como eu estava em
tempo de encontrar espaço no barco,
onde ela havia se sentado com as
crianças, nada perdi por meu encon-
tro com a misteriosa transeunte no
Caminho da Dama.
Não me aproximei do local por
alguns dias, mas não posso dizer
69
que ficou tanto tempo assim fora dos
meus pensamentos. Eu tivera longas
discussões comigo mesmo sobre o as-
sunto, pensando que eu ouvira o som
antes de saber da superstição, e en-
tão não tive dificuldade em acreditar
que era o som de algum passante no
caminho adjacente, talvez invisível
dali. Eu não conseguira encontrar tal
caminho, mas ainda poderia existir
em algum ângulo do qual, de acordo
com a lei natural da transmissão de
som… Rá! Que jargão era esse! Eu não
a ouvira se virar, não a sentira passar
por mim, não a observara voltar? E
70
então me interrompi com uma risada
alta.
― Bobo! Você não teve nenhuma
dessas sensações antes de ouvir a his-
tória ― falei.
E isso era verdade; mas eu ouvira
os passos antes de saber da história;
e, agora que estou pensando no as-
sunto, fiquei muito assustado com
eles, e me decidi a desvendá-los, como
há de saber.
― E que evidência você tem de
que a primeira interpretação não era
a certa? ― perguntei-me com uma ca-
reta; e para essa questão dei as costas
71
com um desprezo desesperado pela
pertinácia daquela outra pessoa que
sempre tem tantas objeções a fazer.
Interpretação! Alguma intepreta-
ção poderia desfazer o efeito que senti
com aquela transeunte invisível? Mas
o efeito mais desagradável foi este:
eu não conseguia excluir da minha
mente a expectativa de ouvir aqueles
mesmos passos na galeria do lado de
fora do meu quarto, à noite. Era uma
longa galeria que se estendia por toda
a extensão da ala, muito polida e um
tanto escorregadia, um local onde
qualquer som era importante. Nunca
72
fui para o meu quarto sem a sensação
de que a qualquer momento poderia
ouvir aqueles passos atrás de mim ou
de que, depois de fechar a porta, po-
deria ter consciência deles passando.
Nunca ouvi, mas também nunca me
livrei desse pensamento.
Alguns dias depois, no entanto,
outro incidente aconteceu para fazer
o Caminho da Dama e sua visitante
invisível saírem da minha mente.
Estávamos voltando para casa no
longo crepúsculo do norte, após uma
expedição na montanha. Não con-
sigo lembrar exatamente por que
73
eu era o último a voltar. Acho que
a srta. Campbell havia se esquecido
de dar instruções à esposa do vigia
na estalagem, algo que me volunta-
riei a fazer em seu lugar. O caminho
mais curto seria pelo Caminho da
Dama, se algum tipo de sensação
duvidosa não tivesse me impedido
de tomá-lo. Embora eu tenha dito e
sentido que o efeito daqueles passos
misteriosos era ainda maior à luz do
dia, eu ainda tinha um certo tipo de
relutância natural em me colocar a
caminho de encontrá-los quando a
escuridão começava a cair. Preferi
os arbustos, embora fossem mais
74
escuros e menos atrativos. Quando
saí das sombras dele, no entanto, al-
guém me encontrou, aparentemente
vindo daquela direção. A princípio,
pensei ser Charlotte, pois o perfil era
como o da moça. Estava quase es-
curo, e a pouca luz que havia estava
atrás dela, de forma que eu não con-
seguia distinguir suas feições. Ela
era alta e magra, e aparentemente
estava enrolada em uma longa capa,
um vestido costumeiro o suficiente
naquelas regiões chuvosas. Também
acho que o véu lhe cobria o rosto. A
forma como ela se aproximava dava
a entender que falaria comigo, o que
75
me surpreendeu um pouco, embora
não houvesse nada extraordinário
nisso; pois, claro, a essa altura toda
a vizinhança sabia que eu era um
visitante em Ellermore. Havia um
ar de timidez e hesitação enquanto
ela se aproximava, então supus que
minha aparência a assustava um
pouco, e mesmo assim era receptiva
como uma forma inesperada de ela
conseguir fazer o que queria. Tant
de choses en um mot, você dirá ― e
mesmo assim era bem verdade. Ela
veio até mim rapidamente quando
se decidiu. Sua voz era muito suave,
mas muito peculiar, com um tipo de
76
som distante, como se o véu ou o ar
da noite interpusesse um tipo de dis-
tância visionaria entre nós dois.
― Não posso falar com eles. Não
devo falar com eles ― disse ela, e en-
tão pausou um pouco e pareceu me
observar com olhos que brilhavam
fracamente através das sombras,
como estrelas em um céu enevoado.
― Posso ajudá-la? Estou morando
aqui ― falei, muito surpreso.
― Diga a eles que é Colin! Colin!
Com problemas e tentado. Ah, e eu
não devo falar!
― Colin! ― repeti, assustado; e
77
então depois de um momento: ―
Perdoe-me, esta é uma mensagem
desconfortável a confiar a um estra-
nho. Ele está doente? O que devo di-
zer a eles?
Eu estava ainda menos interes-
sado do que surpreso.
― Com grandes problemas e ten-
tado ― repetiu ela, com um tipo de
lamento. ― Ah, o bom rapaz, o bom
rapaz!
― Pare! ― gritei. ― Pare! ― Pois
ela parecia prestes a desmaiar. ― Se
devo dizer isso, deve haver algo mais.
Quem manda a mensagem? Eles me
78
perguntarão, é claro. E o que há de
errado?
Ela pareceu torcer as mãos sob a
capa, e me olhou com uma atitude e
gesto de súplica.
― Com grandes problemas ―
disse ela ―, com grandes problemas!
E eu não posso fazer nada; nem falar,
nem sequer falar!
E, apesar de tudo o que eu pudesse
dizer, ela me deixou, desaparecendo
entre os arbustos escuros. Pode-se
supor que essa não é uma tarefa ade-
quada a se dar a um convidado, um
que não devia nada além de prazer
79
e gentileza aos Campbells, mas mal
conhecia as preocupações deles. Eles
eram, é verdade, de espírito muito
livre, e pareciam ter poucos dessous
des cartes e casos na vida, como se
pode imaginar. Mas falavam menos
livremente de Colin. Esperava-se
que ele viesse várias vezes, mas ja-
mais aparecera. Parecia que ele tinha
uma forma de adiar sua chegada e,
“é claro”, era dito na família, jamais
vinha quando se esperava. Mais de
uma vez, me vi prestando atenção
no tom mal-humorado com o qual
o velho cavalheiro falava dele às ve-
zes e na defesa sempre adotada por
80
Charlotte. Ele era o mais velho, e po-
deria naturalmente assumir uma
maior independência de ação do que
os outros rapazes, que mal haviam
saído da idade escolar na casa do pai.
Mas por isso, assim como pela ra-
zão ainda mais natural e aparente de
que levar-lhes más notícias de quais-
quer naturezas era muito desagradá-
vel e inapropriado da minha parte, o
pedido que tão estranhamente recebi
pesava muito sobre mim. Pensei no
assunto enquanto me vestia para o
jantar (estivemos fora o dia inteiro
e, por isso, o jantar seria servido bem
81
mais tarde), com grande perplexi-
dade e preocupação. Eu era obrigado
a transmitir uma mensagem que me
foi imposta dessa maneira? Se a dama
tinha notícias de alguma importân-
cia para dar, por que se afastou de
casa, onde poderia comunicá-las de
imediato, e as confidenciou a um es-
tranho? Por outro lado, eu teria razão
se omitisse algo que pudesse ser de
tanta importância para eles? Talvez
fosse algo que ela não quisesse asso-
ciado a si. Às vezes, pessoas em tais
circunstâncias até escrevem uma
carta anônima para avisar do que
acham necessário, sem denunciar à
82
vítima do infortúnio que alguém que
ela conhece sabe da situação. Ali es-
tava a justificativa da ação da dama.
Isso poderia ser feito com a maior
gentileza para com eles, se não para
comigo; e se pudesse haver algum
perigo real e Colin estivesse em apu-
ros, como ela dissera? Pensei ansio-
samente nisso antes de descer, mas
mesmo enquanto entrava naquela
sala de estar iluminada e genial, tão
cheia de rostos animados e conversas
alegres, eu ainda não havia decidido
o que fazer. Quando voltamos a ela
após o jantar, eu ainda não tinha cer-
teza. Era tarde, e as crianças foram
83
mandadas para a cama. Os garotos
foram para os estábulos para ver se
os cavalos não estavam exaustos pelo
dia de trabalho. O sr. Campbell se re-
tirou para sua biblioteca. Por um mo-
mento, fui deixado sozinho, algo que
raramente acontecia. Por fim, a srta.
Campbell veio de um dos quartos dos
garotos, com um ar de descanso e do-
çura, como um reflexo das pequenas
orações que ela estivera ouvindo e do
repouso infantil que havia deixado,
que paira ao redor de uma jovem mãe
quando ela coloca seus filhos para
dormir. Charlotte, por seu direito
de não ser mãe, apenas uma mãe
84
voluntária por substituição, tinha
ainda uma luz mais suave ao seu re-
dor na doçura deste dever que Deus e
sua boa vontade, não apenas simples
natureza, concederam-lhe. Com a tez
iluminada, ela entrou com suavidade
na sala.

― Está sozinho, sr. Temple? ―


disse ela, um tanto surpresa. ― Que
rude dos rapazes. ― E, doce como era,
se aproximou e puxou a cadeira em
direção à mesa em que eu estava.

― Fico feliz em ter sido deixado se


puder conversar com você ― falei; e
85
então, antes que pudesse me conter,
contei a ela.
Chatty era o tipo de mulher a
quem é um alívio contar o que se
passa no coração. O fato de que era a
preocupação dela pareceu comovê-la
menos do que o cuidado comigo. Ela
ficou muito surpresa e perturbada.
― Colin está com problemas? Ah,
pode ser verdade ― disse ela, e então
se interrompeu. ― Você é amigo dele,
não me entenderá mal, sr. Temple.
Ele é muito independente, e não tão
aberto quanto o resto de nós. Isso não
é um defeito. Somos todos um tanto
86
dados a falar; não mantemos segre-
dos… exceto Colin. E ele fica mais
fora de casa do que o restante. ― A
primeira necessidade na mente dela
parecia ser isso, defender o ausente.
E então veio a pergunta: de quem
poderia ser o aviso? Charley entrou
nesse momento, e ela o chamou, an-
siosa. ― Uma coisa muito estranha
aconteceu. Alguém se aproximou do
sr. Temple entre os arbustos e pediu a
ele para nos dizer que Colin está com
problemas.
― Colin! ― Vi que Charley es-
tava, como Charlotte estivera, mais
87
preocupado do que surpreso. ―
Quando foi que você teve notícias
dele?
― Na segunda; mas o estranho é:
quem é que poderia ter enviado tal
mensagem? Você falou de uma dama,
sr. Temple?
― Como ela era? ― perguntou
Charley.
Descrevi tão bem quanto possível.
― Ela era alta e muito magra;
usava uma capa, então não pude dis-
tingui-la muito, e o véu cobria o rosto.
Estava quase escuro.
88
― É óbvio que ela não queria ser
reconhecida ― disse Charley.
― Havia algo peculiar na voz dela,
mas não consigo descrever; um tom
estranho, diferente de tudo…
― Marion Gray tem uma voz pe-
culiar; ela é alta e magra. Mas como
ela poderia saber sobre Colin?
― Direi quem é mais provável
de ser ― exclamou Charley ―: Susie
Cameron. O irmão dela está em
Londres agora; podem ter ouvido fa-
lar dele.
― A h, Deu s ten ha pied ade!
Ah, Deus tenha piedade! Logo os
89
Camerons! ― disse Charlotte, tor-
cendo as mãos.
O gesto me pareceu tão similar
ao da estranha com véu que senti
um choque curioso. Não tive tempo
de seguir a sugestão vaga e estranha
que pareceu entrar em minha mente;
mas a sensação era a de que eu havia
tocado, de repente, alguém na escu-
ridão.
― Seja lá quem for ― falei ―,
ela não estava indiferente, mas sim
muito preocupada e interessada…
― Susie faria isso ― disse Charley,
olhando significativamente para a
90
irmã, que se levantou da cadeira,
transtornada.
― Vou telegrafar para ele imedia-
tamente ― disse ela ―, mas já está
tão tarde.
― E que bem faria telegrafar? Se
ele está com problemas, isso não o
ajudará.
― Mas o que posso fazer? O que
mais posso fazer? ― exclamou ela.
Eu os havia lançado em uma
tristeza repentina, e agora só podia
olhar como um espectador ansioso
mas impotente, sentindo ao mesmo
tempo que havia invadido a aflição
91
de uma família; pois era evidente que
eles não estiveram despreparados
para o “problema” com Colin. Senti
que minha posição era muito cons-
trangedora, e me levantei para partir.
― Me sinto muito culpado ― falei
―, como se tivesse trazido más notí-
cias; mas tenho certeza de que vocês
acreditariam que eu não me introme-
teria por nada no mundo…
Charlotte me deu um sorriso pá-
lido e apontou para a cadeira que eu
deixara.
― Não, não ― disse ela ―, não
parta, sr. Temple. Não escondemos de
92
você que estamos ansiosos… antes,
estivemos ansiosos mesmo… mas
não parta. Acho que não contarei ao
meu pai, Charley. Atrapalharia o des-
canso dele. Deixe que descanse esta
noite, seja lá o que aconteça, e não há
nada que possamos fazer a essas ho-
ras…
― Veremos o que o correio traz
amanhã ― disse Charley.
E de repente a conversa terminou
com a entrada dos garotos, trazendo
um sopro de ar noturno consigo. Os
cavalos não estavam mal, embora
tivessem estado fora o dia inteiro;
93
até o velho Goerdie Resmungão, o co-
cheiro, não tinha nada a dizer.
― Você pode pegá-los de volta
amanhã, Chatty, se quiser ― disse
Tom.
Ela havia se sentado para tricotar,
e os olhava com uma expressão tran-
quila.
― Espero não ser tão insensata ―
disse ela, sossegada; pude ver apenas
um breve tremor em sua mão quando
parou de tricotar as meias que fazia.
Depois de um tempo, ela deixou
o trabalho de lado, foi ao piano e to-
cou acompanhamentos, aos quais
94
primeiro Jack e depois Tom canta-
ram. Ela fez isso sem esboçar qual-
quer esforço, cedendo a todos os
desejos dos mais novos, enquanto eu
olhava, ponderando. Como mulhe-
res conseguem fazer coisas assim? É
mais do que se pode imaginar.
Na manhã seguinte, o sr. Campbell
perguntou, “a propósito”, mas com
um vinco na testa que, agora sabendo
do assunto, eu podia entender, se ha-
via alguma carta de Colin.
― Não ― respondeu Charlotte
(que havia revirado todas as cartas
com um escrutínio rápido e ansioso).
95
― Mas isso não é nada ― acrescentou
―, pois tivemos notícias na segunda-
-feira.
O velho cavalheiro emitiu um
“Hmpf” de desprazer.
― Diga a ele que acho que é uma
grande falta de maneiras ele não es-
tar aqui para receber o sr. Temple.
― Ah, pai, o sr. Temple com-
preende ― disse Charlotte, enquanto
me olhava com aqueles olhos suaves,
nos quais havia agora uma expres-
são que foi ao meu coração um apelo
imediato à minha simpatia e à minha
tolerância, ordenando-me que não
96
perguntasse, não falasse, mas que
sentisse o mesmo por ela.
Se ela pudesse saber a onda de
sentimento com que meu coração
respondeu; mas tive que ter cuidado
para não transparecer muito conhe-
cimento, muita simpatia.
Depois disso, dois dias se passa-
ram sem qualquer incidente. Não
sei dizer que cartas, ou outro tipo
de comunicação, foram enviadas
para Colin. Eles gostavam muito de
telegramas, e sempre mostravam
mensagens. Havia uma estação de te-
légrafo no vilarejo, o que a princípio
97
me surpreendeu muito; mas eu dei-
xara de me perguntar, vendo que era
sempre usada. Pessoas relacionadas
a negócios, com grandes “empresas”
a gerenciar, a utilizam com mais fa-
cilidade do que os outros. Mas ou ne-
nhuma resposta foi obtida ou nada
satisfatório, pois não tive notícias.
A segunda noite foi um domingo, e
eu estava voltando sozinho de um
passeio no vale. Era o costume do sr.
Campbell ler para sua casa um ser-
mão nas tardes de domingo, e como
eu já havia, em conformidade ao
costume da família, ouvido dois na
igreja, parti nessa ocasião, escolhendo
98
em vez disso a liberdade e o silêncio
de uma caminhada rural. Era uma
tarde cheia de nuvens e houve chuva.
As nuvens pairavam baixo nas co-
linas, e metade dos picos ao redor
havia se recolhido na névoa. Eu mal
havia colocado os pés dentro dos por-
tões quando encontrei mais uma vez
a dama cuja mensagem havia trazido
tanta dor. As árvores se arqueavam
acima desse ponto, e mesmo durante
a luz do dia era de uma sombra pro-
funda. Agora, na pouca luz da tarde,
estava escuro como a noite. Eu podia
ver pouca coisa mais da figura alta
e magra, a súbita percepção que me
99
deu ― mal posso dizer por quê ― uma
emoção curiosa de algo como medo.
Ela veio rapidamente na minha di-
reção, um contorno, nada mais, até
que a mesma voz peculiar, doce mas
afiada, quebrou o silêncio:
― Contou para eles?
Tive que me esforçar para res-
ponder com calma. Meu coração ha-
via começado a bater forte com uma
emoção sobre a qual eu não tinha
controle, como um cavalo que se as-
susta com algo que seu cavaleiro não
consegue ver.
― Sim, contei ― falei, semicerrando
100
os olhos, e mesmo assim sentindo
como se meus sentidos estavam tão
inquietos quanto os daquele cavalo,
e não me obedeciam, nem olhavam
nem examinavam a aparência dela
como eu queria. Mas de fato teria sido
em vão, pois estava escuro demais
para enxergar.
― Mas nada foi feito, nada foi
feito! ― exclamou ela. ― Eu viria por
nada?
E houve de novo aquele movi-
mento, o mesmo que eu vira em
Charlotte, o torcer das mãos dela.
― Perdoe-me ― falei ―, a senhorita
101
pode me dizer quem é? Sou um estra-
nho aqui; sem dúvidas se a senhorita
fosse ver a srta. Campbell pessoal-
mente, ou me dissesse quem é…
Senti as palavras de alguma forma
presas na minha garganta, e ela se
afastou de mim com um movimento
súbito. É difícil caracterizar um gesto
na escuridão, mas pareceu haver um
movimento de impaciência e deses-
pero nele.
― Quem eu seria ― exclamou ela
― que não poderia falar? É porque
você é um estranho e quer bem a eles.
Colin, Colin! Ah, o bom rapaz!
102
― Levarei sua mensagem, mas,
pelo amor de Deus, se é tão impor-
tante, me conte quem é que a envia
― falei.
Ela balançou a cabeça e rapida-
mente passou por mim, apesar dos
apelos ansiosos que tentei fazer. A
dama pareceu estender a mão para
acenar para mim enquanto eu ficava
ali, a observando. Bem então, a porta
do chalé foi aberta. Supus que a mu-
lher lá dentro tinha sido perturbada
pelo som das vozes, e assim uma luz
de lareira se derramou na estrada.
Por essa luz vi uma figura magra
103
passar rapidamente, e então uma
forma corpulenta com um avental
branco apareceu e ficou à porta. A
visão da esposa do cocheiro em suas
proporções largas e confortáveis me
deram uma certa calma, não sei dizer
por quê. Apressei-me até ela.
― Quem é que passou por aqui
agora? ― perguntei.
― Quem passou por aqui agora?
Ninguém passou. Pensei ter ouvido
uma voz, e que talvez fosse Geordie;
mas não vi ninguém passando.
― Besteira! Você deve tê-la visto
― gritei apressadamente. ― Ela não
104
pode estar fora de vista ainda. Sem
dúvida você saberia quem é… uma
dama, alta e magra, usando capa…
― Senhor, você deve estar brin-
cando! ― exclamou a mulher. ― Que
dama, senão a srta. Chatty, estaria
andando por aqui a essas horas?
Dama! Deve ter sido a filha do pro-
fessor. Ela usa um daqueles capotes.
Mas ninguém passou por aqui a essa
hora, tenho certeza.
― Então por que você saiu bem
agora? ― perguntei.
A mulher me contemplou com
um brilho de fogo dos pés à cabeça.
105
― Você é o cavalheiro inglês que
está ficando na casa ― disse ela. ― De
fato, ouvi um passo, que sem dúvidas
era o do senhor, e pensei que poderia
ser meu marido. Mas não havia nin-
guém; muito menos passou pela mi-
nha porta uma dama, usando fosse lá
o quê, indo ou vindo. É você, Geordie?
― ela chamou, de repente, enquanto
um passo se aproximando do portão
do lado externo se tornava audível.
― Ah, sou só eu ― respondeu o
marido dela na escuridão.
― Encontrou uma dama enquanto
vinha para cá? Este cavalheiro diz
106
que uma dama passou pelo portão, e
não vi dama alguma. Eu a teria visto
pela janela mesmo se a porta não es-
tivesse aberta.
― Não vi nenhuma dama ― disse
Geordie, entrando com um barulho
considerável, o qual agora eu me
lembrava de ter estado perto de mim
quando havia passado pela entrada
minutos antes. ― Não vi ninguém;
não é hora de uma dama estar na es-
trada em pleno sábado.
Foi então que uma sugestão louca
tomou conta de minha mente. Como,
não sei dizer. Eu não era o tipo de
107
homem, pensei, para tal tolice. Minha
imaginação tinha sido um pouco to-
cada, é certo, pela questão curiosa
daqueles passos; mas isso, que pare-
cia fazer meu coração parar e enviava
um arrepio pela minha coluna, era
muito diferente, e era loucura não me
entreter por um momento. Eu pisei
nela instantaneamente, esmagan-
do-a na soleira da mente.
― Aparentemente nem você nem
eu estamos enganados ― falei, com
uma risada no alto tom de Geordie,
que ele mesmo, era evidente, havia
empregado de uma maneira jovial,
108
de forma bastante consistente com
princípios muito bons em respeito
ao Sábado, de acordo com o que eu
ouvira.
Eu rira disso enquanto partia, in-
sistindo na piada para mim mesmo
enquanto me apressava pelo cami-
nho. Era extremamente engraçado,
pensei; seria uma história impor-
tante entre minhas outras expe-
riências na Escócia. Mas, de alguma
forma, meu riso morreu em um tipo
débil de tremor. A noite ficaria escura
mesmo enquanto eu emergia sob as
árvores, por conta de uma grande
109
nuvem cheia de chuva que rolara pelo
céu, extinguindo-o. Fiquei feliz em
ver as luzes da casa brilhando diante
de mim. A cortina não fora puxada
na última janela da sala de estar, e
da escuridão olhei para uma cena
que era cheia de calor e calma casei-
ros. Embora fosse agosto, havia um
pequeno fulgor de fogo. A leitura do
sermão acabara. O velho sr. Campbell
ainda estava na mesinha com a Bíblia
diante de si, mas fechada. Charlotte
estava nos fundos, com os pequenos
Harry e Mary ao lado, “ouvindo a pa-
ráfrase deles.”
110
Pelas costas, de uma forma meio
clandestina, os meninos ensinavam
um cachorro esperto a realizar seus
truques, e Charlotte balançava o dedo
de vez em quando com um olhar
sorridente e admoestador. Charley
estava lendo ou escrevendo no canto
da sala. O som suave das vozes das
crianças, das risadas contidas e dos
sussurros dos garotos, e o comentá-
rio preguiçoso do pai, vez ou outra,
produziam um murmúrio suave que
era como o próprio sopro da quie-
tude e da paz. Como eu, seu hóspede
favorecido, tão em débito com a gen-
tileza deles, ousava chegar com uma
111
mensagem misteriosa e perturbar a
tranquilidade deles mais uma vez?
Quando fui para a sala de estar,
apenas uma hora depois, Charlotte
me olhou com um sorriso e um co-
mentário divertido sobre minha fuga
da leitura da noite. Mas, quando me
olhou nos olhos, sua expressão mu-
dou. Ela largou o livro e depois de
pensar um pouco foi até a janela pela
qual eu havia olhado, a qual ficava
em um canto fundo, acenando dis-
cretamente para que eu a seguisse.
― Que noite escura ― disse ela,
fingindo olhar para fora, e então, em
112
um tom baixo e apressado: ― Senhor
Temple, ficou sabendo de algo mais?
― Nada mais, mas decerto a
mesma coisa repetida. Vi a dama ou-
tra vez.
― E quem é ela? Diga-me com fran-
queza, sr. Temple. A mesma coisa…
que Colin está com problemas? Sem
maiores detalhes? Não consigo ima-
ginar quem pode se interessar tanto.
Mas o senhor perguntou o nome dela?
― Perguntei, mas ela não respon-
deu. Ela fez um movimento de des-
dém e prosseguiu. Implorei a ela que
viesse ver a senhorita, e que não me
113
desse tal tarefa; mas não adiantou.
Não sei se devo preocupá-la com um
aviso vago que parece ter apenas a
intenção de causar dor.

― Ah, sim ― exclamou ela. ― Ah,


sim, foi certo me contar. Ah, se eu
soubesse quem era! Talvez o senhor
possa descrevê-la melhor, já que a
viu uma segunda vez. Mas Colin tem
amigos… quem, não sabemos. Ah, sr.
Temple, é exigir muito de sua genti-
leza, mas você não poderia tê-la se-
guido e descoberto quem ela era?

― Eu poderia ter feito isso ― falei.


114
― Para falar a verdade, foi muito re-
pentino e fiquei muito assustado.
Chatty me olhou rapidamente
com um ar questionador e empalide-
ceu um pouco; mas, se ela compreen-
deu a fantasia estranha e selvagem
que eu nem sequer me permitia
perceber, não sei dizer; pois Charley,
vendo-nos juntos e num estado de
ansiedade nervosa, também se jun-
tou a nós, e ficamos conversando em
voz baixa até que o sr. Campbell quis
saber se havia algum problema.
― Vocês estão parecendo um
grupo de conspiradores ― disse o
115
velho cavalheiro, com uma meia ri-
sada.
Ele sempre me tratou de forma
bondosa e graciosa; mas, agora que
eu sabia algo sobre os problemas fa-
miliares, pude perceber uma veia de
irritação reprimida, uma certa vigi-
lância, a qual o tornava alarmante
para os outros membros da família.
Charlotte nos lançou um olhar de ad-
vertência.
― Contarei a ele amanhã. Não de-
morarei mais, mas não esta noite ―
disse ela. ― O sr. Temple estava nos
contando sobre sua caminhada, pai.
116
Ele acabou de chegar, a tempo de evi-
tar a chuva.
― Bem ― disse o velho ―, ele de-
certo não espera não tomar chuva
aqui nas Terras Altas. O clima que
tivemos foi maravilhoso.
E com isso a conversa assumiu um
tom bastante doméstico. Dessa vez, a
srta. Campbell não conseguiu afastar
a expressão de animação e agitação
em seus olhos. Mas ela escapou junto
com as crianças para colocá-las para
dormir, e nos sentamos e conversa-
mos sobre política e outros assuntos
mundanos. Os rapazes partiriam
117
todos de Ellermore no dia seguinte:
Tom e Jack para o “trabalho”, Charley
para tratar de algum outro assunto.
O sr. Campbell me pediu desculpas
formais por eles.
― Eu esperava que Colin já esti-
vesse em casa para prestar as honras
das Terras Altas; mas esperamos por
ele todos os dias ― disse.
Ele manteve os olhos fixos em
mim, como se quisesse dar ênfase
às suas palavras e desafiar qualquer
dúvida que pudesse surgir em minha
mente.
Na manhã seguinte, fui convocado
118
por Charley antes de descer para “vir
logo e falar com meu pai”. Encontrei-o
na biblioteca, que dava para a sala de
jantar. Ele andava de um lado a ou-
tro com grande agitação. Começou
a falar comigo antes mesmo que eu
estivesse à vista.

― Senhor, com quem você tem


se encontrado por conta de Colin? É
alguma fofoca que o enganou. Não
preciso dizer-lhe, sr. Temple, sendo
advogado e inglês, que uma declara-
ção anônima… ― Pela primeira vez
o velho cavalheiro se esqueceu de si
119
mesmo, de seu respeito por seu con-
vidado, de suas boas maneiras.

Ele estava irritado, obstinado, fe-


rido de orgulho e sentimento. Com
um murmúrio de apelo, Charlotte o
tocou no braço e voltou os olhos para
mim com uma desaprovação ansiosa.
Mas a última coisa em que pensei foi
ficar ofendido.

― Compreendo ― falei. ― Nem


seria dever meu trazer quaisquer
sugestões desagradáveis para esta
casa… se não fossem por minha pró-
pria mente estar tão sobrecarregada
120
com isso e por a srta. Campbell ser
tão perspicaz.
Ele lançou um olhar para ela,
meio afetuoso, meio descontente, e
então me disse, irritado:
― Mas quem era a mulher? Essa é
a questão; é isso que eu quero saber.
Meus olhos encontraram os de
Charlotte. Ela estava muito pálida
e olhava para mim com ansiedade,
como se de alguma forma tivesse
adivinhado a fantasia selvagem que
mais uma vez passou pela minha
mente contra toda a razão e sem
qualquer vontade minha.

121
Capítulo III

O sr. Campbell não devia ser inco-


modado. Ele estava muito ansioso,
irritado e doente; mas não sei dizer
se ele não entregaria para mim que a
mensagem, a qual ele via como uma
declaração anônima, poderia causar-
-lhe qualquer desconforto, ou se era
perplexidade e confusão da mente,
ou se ele de fato sentia uma confiança
da qual nem seus filhos compartilha-
vam. Mas ele se recusou a ser influen-
ciado de qualquer maneira por essa
comunicação estranha. Devia ser
alguma mulher intrometida, disse
122
ele; alguma abelhuda ― havia muitas
por ali ― que, pensando que poderia
evitar ser descoberta dessa forma,
havia pensado que aquela era uma
grande oportunidade de enganar. Ele
se desculpou muito por suas palavras
de mais cedo. Era mal-educado, disse
ele; estava envergonhado por pensar
que tinha se deixado levar; mas não
queria saber da mensagem. Parecia
que a srta. Campbell havia escrito e
também telegrafado para o irmão.
A carta ainda não tinha resposta;
mas Colin respondera ao telegrama
de forma um tanto agressiva, decla-
rando que estava bem.
123
― O que você queria que ele fi-
zesse? ― disse o sr. Campbell, com
fúria contida.
Charlotte não disse mais nada em
minha presença, mas eu adivinhei
que ela tentava, caso não ir pessoal-
mente, permitir-se que fosse até o
irmão. A posição era bastante cons-
trangedora, em especial quando to-
dos os irmãos haviam partido para
seus negócios, tomando o barco que
tinha partido pela manhã. Parecia
estranho um desconhecido perma-
necer em tais circunstâncias, en-
tão planejei postar uma carta ao
124
meio-dia me convocando de volta à
cidade. Eles sabiam, é claro, que as
cartas não vinham até Londres em
uma segunda-feira; mas Charlotte
pelo menos não teceu qualquer co-
mentário. O pai dela me lançou um
olhar bastante feroz, irritado e sus-
cetível, e disposto a se ofender com
qualquer coisa que parecesse atribuir
importância a esse episódio curioso;
e as crianças deram um grito alto
e se lamentaram; mas não fizeram
nenhuma tentativa séria de mudar
minha resolução. Vi que até a srta.
Campbell estava de acordo, o que me
deu uma pontada de dor, ansioso
125
como eu estava em concordar com
ela de todas as maneiras possíveis. O
último barco me levaria para a esta-
ção de trem mais próxima a tempo
da viagem noturna, ou sugeriram
que eu fosse até lá de carro, o que me
daria mais tempo. Eu havia feito to-
dos os meus preparativos e, um tanto
triste, tinha voltado para o andar de
baixo para falar pela última vez com
a mulher cuja doce companhia du-
rante aquelas duas ou três semanas
tinha sido para mim mais do que eu
poderia dizer. Quando a encontrei,
ela usava chapéu e me aguardava no
corredor.
126
― Pensei que o senhor gostaria
de dar uma última volta ― disse ela,
com um sorriso, no qual (esperei) ha-
via certa tristeza.

Decerto havia emoção nos olhos


dela; e em seus movimentos, um certo
tipo de avidez e quase impaciência.
Saímos e cruzamos o gramado até a
lateral do lago. O sol começava a se
pôr; o céu estava todo iluminado, com
os lindos tons do pôr do sol do norte.
Charlotte nada disse até estarmos to-
talmente a sós ― longe demais para
as crianças correrem até nós, como
127
costumavam fazer. Então ela parou
de repente e me olhou nos olhos.
― Sr. Temple ― disse ela ―, você
pensará que sou desalmada, deixan-
do-o partir sem nada dizer, embora
eu saiba bem o motivo. O senhor acha
que é um fardo para nós neste mo-
mento. Ah, não, o senhor não é fardo
algum. Mas sou egoísta; não desejo
impedi-lo… quero que faça algo por
mim.
― Qualquer coisa ― exclamei ―,
qualquer coisa possível para um ho-
mem.
― Eu sabia que o senhor diria isso;
128
foi esse o motivo de eu dizer que não
sinto tanto. Não tentei impedi-lo.
Senhor Temple, não fecharei meus
olhos para a situação, como meu
pai fez. Tenho certeza de que, seja lá
quem falou com o senhor, o aviso foi
verdadeiro. Quero que vá até Colin
e me conte a verdade ― disse ela, de
repente, depois de uma pausa mo-
mentânea.
― Até Colin? ― perguntei. ― Mas
a senhorita sabe que não nos conhe-
cemos bem. Ele não escreveu para
mim, e sim para Charley…
― E eu. Espero que o senhor não
129
me exclua ― disse ela, com um sorriso
fraco. ― Mas que desculpa melhor do
que a necessidade do senhor de estar
lá? Senhor Temple, se eu pedir, você
vai? Ah, faço melhor… eu suplico ao
senhor! Vá e me conte a verdade.
― Claro que irei no instante em
que a senhorita pedir, srta. Campbell;
mas e se eu o ofender, o irritar? Ele
pode achar que fui até lá para espiá-
-lo. Ele pode achar…
― Ah, sr. Temple, não tema. Você
tem sido tão amistoso conosco. Pense
no conforto que será para mim. O se-
nhor foi envolvido em tudo isso. Não
130
é um estranho; e mesmo assim, se
soubesse o conforto, a satisfação que
é o senhor ser um estranho! Entende?
Posso falar com você. Não estou ex-
pondo o pobre Colin a alguém que o
conhece a vida toda e que dirá: “Eu
sabia que isso aconteceria”. Entende?
― perguntou ela, com lágrimas nos
olhos.
E espero ter sido homem suficiente
para compreender sem me ofender
ou pensar demais na confiança depo-
sitada em mim. Entendo que eu era
um tipo de esperança desolada; que
eu era como uma corda atirada a um
131
homem se afogando; ainda mais va-
lorizado porque não era um deles ―
talvez porque eu despareceria, assim
que me fizesse útil ― e não seria mais
visto. Mas isso não era ― ah, decerto
não ― o que ela queria dizer! Ela não
era o tipo de mulher que descartaria
alguém que a servira. Caminhamos
de um lado a outro na lateral da
água, que cada vez mais parecia com
um espelho em chamas, um escudo
manchado decorado com cada cor
imaginável, embora nossas mentes
não tivessem espaço para sua beleza,
e eu só o visse de esguelha ao passar.
Ali, ela me contou muito sobre Colin,
132
coisas que eu não sabia nem tinha
adivinhado ― sobre as inclinações e
gostos dele, que não eram como os de
ninguém, e como eles não conheciam
os amigos nem o que o irmão fazia.
― Mas sempre esperamos que isso
passasse ― disse ela ―, pois ele é de
bom coração. Lembra-se de como ele
foi gentil comigo quando conhece-
mos o senhor? Ele sempre é gentil.
Desse modo, caminhamos e con-
versamos até que eu houvesse visto
um novo lado da personalidade dela
e de sua vida. A casa havia parecido
para mim tão alegre e despreocupada;
133
mas as sombras escuras estavam lá
assim como estão em toda parte, e o
coração dela costumava falhar uma
batida com o suspense e a angústia.
Depois disso, voltamos devagar para
a casa, ainda absortos nessa conversa,
pois era hora da minha última refei-
ção em Ellermore.
Quando vimos a porta, que estava
aberta como sempre, de repente avis-
tamos o sr. Campbell vindo em nossa
direção em uma pressa desvairada,
tão diferente de seu andar costu-
meiro e tranquilo que cheguei a me
assustar. Os pés dele pareciam girar
134
enquanto se apressavam, tamanha
era a pressa dele. O chapéu estava
afastado da testa; o casaco, voando
atrás de si ― precipitado, como um
homem perseguido, ou em um da-
queles pânicos que arrancam o fôlego
e os sentidos, ou, talvez ainda mais,
como se um vento forte estivesse so-
prando atrás dele. Quando chegou
perto de nós, ele disse, apressado:
― Venham aqui! Venham aqui,
vocês dois! ― E, se virando, agitou-se
com a mesma pressa sem fôlego, cha-
mando-nos com um gesto.
― Ele deve ter ouvido algo mais
135
― comentou Charlotte, correndo
atrás dele.
Eu a segui. O sr. Campbell não
disse nada para a filha quando ela
o alcançou. Ele quase a empurrou
quando a moça pousou a mão no
braço dele. Estava apressado até
nisso. Caminhou com pressa, tro-
peçando, até chegar ao Caminho da
Dama, que estava no nível do sol, um
caminho dourado entre os troncos de
árvores. Era uma breve subida, que o
cansou ainda mais. Ele seguiu alguns
metros pelo caminho, e então parou e
olhou para a filha e para mim, de mão
136
erguida para chamar nossa atenção.
O rosto dele estava perfeitamente
pálido. Espanto e desânimo em cada
uma de suas rugas. Gotas gordas de
suor pontilhavam sua testa. Ele pare-
ceu querer falar, mas não conseguia;
então ergueu o dedo para atrair nossa
atenção. Pelos primeiros segundos,
minha atenção estava tão concen-
trada no homem e na singularidade
de sua aparência e gesto, que não
pensei em mais nada. O que ele que-
ria que fizéssemos? Ficamos os três
na luz vermelha, que parecia lançar
uma espada de fogo sobre nós. Houve
um farfalhar fraco das folhas e dos
137
galhos acima, e um trinar de pássa-
ros; mas na grande quietude o leve
bater da água na costa era audível,
embora o lago estivesse a certa dis-
tância. Grande quietude ― era isso;
não havia nada se movendo além
dessas ações suaves da natureza. Ah!
Era isso! Charlotte empalideceu tam-
bém, como o pai, enquanto ouvia.
Pareço vê-los agora: o velho de cabeça
branca, seu rosto lívido, a expressão
assustada e terrível em seus olhos, e
ela o olhando, todo o seu ser envolvido
na arte de ouvir, a própria postura e
vestes ouvindo também, os lábios se
entreabrindo, a vida partindo de si,
138
como se algo drenasse o sangue de
seu coração.
O sr. Campbell abaixou a mão.
― Ela partiu ― disse ele. ― Ela
partiu. ― Era um tom de desespero, e
então, com uma voz tomada de emo-
ção: ― Achei que talvez fosse minha
culpa. Às vezes você diz que estou
ficando tolo. ― Foi o tom mais co-
movente que ouvi dele, a humildade
dolorosa do velho confessando um
defeito, iluminado com um brilho de
esperança febril de que, neste caso, o
defeito pudesse ser uma explicação
bem-vinda.
139
― Quer ido pa i ― excla mou
Charlotte, pousando a mão no braço
dele (ela parecia prestes a desmaiar
um momento antes, mas se recupe-
rou) ―, pode ser apenas um aviso.
Pode não ser motivo de desespero,
mesmo agora.
O velho apenas repetiu, patético
em sua simplicidade:
― Ela partiu, ela partiu. ― E en-
tão, depois de uma pausa de um mi-
nuto: ― Você lembra o que aconteceu
da última vez?
― Ah, pai! Ah, pai! ― exclamou
Charlotte.
140
Me afastei da cena um passo ou
dois. O que eu, um estranho, tinha a
ver com isso? Eles haviam se esque-
cido da minha presença, e ao ouvir
meu passo os dois me olharam com
uma expressão selvagem e ansiosa,
seguida por uma decepção nítida.
Então ele suspirou e disse, com o re-
torno da compostura:
― Faça suas malas e vamos par-
tir em breve, Chatty. Não há tempo a
perder.
Eles foram juntos para a casa,
de braços dados, e fiquei sozinho no
Caminho da Dama. Minha cabeça
141
estava praticamente girando. Era
a tolice mais supersticiosa? O que
era? O senso comum, que vem em
momentos inconvenientes e nos en-
currala, aproximou-se e me olhou
na cara, com olhos cínicos. Bem! Eles
eram loucos, idiotas ou o quê? Fiquei
parado e ouvi até que meu sentido
da incongruência e do absurdo foi
demais para suportar. Os passos que
uma vez ouvi com tanta clareza se-
guindo o caminho, e que na minha
audição haviam voltado, não eram
mais audíveis. O vento nos galhos, o
agito de um pássaro no galho, os mel-
ro-pretos cantando alto nos arbustos,
142
até, como falei, o quebrar da água na
costa estavam audíveis, mas nada
mais. Segui até o final e retornei. Não
havia som. Bem, pensei, suponho que
o som que o causava deve ter parado
por um motivo ou outro; e ri. Mas
no momento seguinte minha pele se
arrepiou, e um tipo de calafrio subiu
pelo meu couro cabeludo. Eu estava,
supus, sob tamanha influência da fa-
mília que me era impossível observar
isso de uma forma sensível. O fato é
que, por mais que a ciência da acús-
tica pudesse explicá-los, aqueles sons
misteriosos haviam parado e não po-
diam mais ser ouvidos.
143
A hora seguinte foi para mim tão
confusa e incoerente que não conse-
gui entendê-la. Fui deixado sozinho.
Apenas um serviçal veio até mim
para dizer que a carruagem estaria à
porta em uma certa hora. Charlotte
e o pai haviam desaparecido e, quer
fossem comigo quer tivessem a inten-
ção de me deixar partir sem se des-
pedirem, eu não soube dizer. Quando
a carruagem se aproximou da porta,
no entanto, os dois apareceram. O
sr. Campbell estava cuidadosamente
coberto, embora a noite não estivesse
fria. Ele parecia mais frágil do que su-
pus que fosse, e mais velho; havia um
144
tremor em seu rosto, e ele cambaleou
enquanto entrava com dificuldade
na carruagem. Chegamos na estação
sem mal dizer palavra.
― Fez as malas direito, Chatty?
Pegou um tapete para a jornada? Tem
certeza de que trouxe dinheiro sufi-
ciente?
― Sim, pai, sim ― disse Charlotte.
Era evidente que ele dependia total-
mente dela.
Chatty me lançou um olhar que
pedia que eu oferecesse o braço ao
pai quando chegamos na estação de
trem, e correu de um lado a outro,
145
pegando os bilhetes e fazendo tudo
o que era necessário.
― Deixe que eu faça ― falei. ―
Não consigo suportar vê-la fazendo
tal trabalho.
― O senhor me serve melhor desta
forma ― disse ela.
E então veio a longa jornada,
balançando pela noite com aquele
clangor do movimento e a vibração
do ar separado, que parece ensur-
decer a mente assim como o corpo e
esmagar os pensamentos ansiosos.
O sr. Campbell dormiu um pouco,
com a fina cabeça branca apoiada
146
nos travesseiros, e então Charlotte se
aproximou de mim e nós conversa-
mos. Com humildade, pedi a ela ins-
truções do que fazer, e ela implorou,
com um certo terror no rosto, que eu
ficasse com eles, que fosse junto até
os aposentos de Colin. Chatty con-
versou muito comigo em tons suaves
durante a noite, com uma confiança
e uma familiaridade que me tocaram
profundamente. Pareceu ajudá-la a
passar por aquelas horas terríveis.
Ela me contou que, quando a mãe
morreu, os passos pararam. Não fo-
ram essas palavras que usou. Disse:
147
― Quando a dama partiu da outra
vez.
― Querida srta. Campbell ― falei
―, você que é tão racional, tão cheia
de sentido e pensamento, o que aque-
les passos poderiam ter a ver com
uma questão tão séria? Era um dia
santo e as pessoas estavam fora da fa-
zenda. Sem dúvidas foi essa a causa.
Não havia eco da outra estrada, fosse
lá o que fosse.
Ela me olhou com um ar de dar
dó.
― O senhor acredita mesmo
nisso? ― disse ela. ― E não acha que
148
o mundo está muito terrível ― a voz
dela se suspendeu por um momento
naquela pequena peculiaridade na-
cional, a repetição que lhe dá força
― quando, em vez de ser um bom
guardião, uma alma gentil, é apenas
um eco vulgar, uma coisa que nada é?
A lágrima reluziu em seus olhos
enquanto ela se demorava no leve
cântico de seu discurso sobre os bons
e gentis, mas secou e ela se voltou para
mim com desafio quando desprezou
o vulgar, o material. Então ela acres-
centou, com uma voz baixa e cheia de
admiração:
149
― E quem, sr. Temple, foi até o se-
nhor e lhe deu o aviso?
― Eu mesmo já me fiz essa per-
gunta, srta. Campbell.
― Sim, e também a respondeu.
Quem mais? É isso o que faz meu co-
ração doer.
― Se encontrarmos seu irmão ―
falei ―, como espero que façamos,
bem e feliz…
A expressão dela mudou.
― Nesse caso… Deus queira! Ah,
Deus queira! O senhor pode dizer o
que quiser, sr. Temple. ― Depois de
um momento, ela disse rapidamente:
150
― Como é aquilo que os franceses di-
zem sobre o imprevisto ser sempre
aquilo que acontece primeiro? Nesse
caso… ― Mas ela não me disse o que
havia previsto.
Ter Charlotte ali, algo com o qual
eu nem sonhara, viajando comigo,
talvez para me dever alguma coisa,
e decerto, sem dúvida alguma, me
envolver na teia de sua vida, foi tão
inesperado e tão encantador que,
de outra maneira, talvez eu não pu-
desse ser tão profundamente afetado
por seus problemas. Se era doloroso
para eles, era bom para mim ― não
151
conseguia deixar de sentir o coração
crescer em meu peito, apesar da pena
que havia na fragilidade do velho, no
sono inquieto no qual ele caíra, e da
abertura desprotegida de sua expres-
são adormecida, tudo isso revelado na
dor, na ansiedade, na irritação de sua
infelicidade sob o lampião tremelu-
zente. E mesmo assim a pena não me
afetava. Um velho, um bom homem,
cuja vida fora cheia de gentilezas fei-
tas para os outros ― eu vira e ouvira
falar disso por todo o canto. Ele havia
dado todo tipo de ajuda para seus de-
pendentes. Nos “negócios”, ser órfão
era ser filho do mestre; e a mão dele
152
estava sempre pronta ― seu coração,
como sua porta, sempre aberto. E
mesmo assim era essa a recompensa
desse homem, que fizera tanto pe-
los outros. Seu próprio primogênito,
seu orgulho! Eu não sabia o que eles
temiam, mas não era doença nem
morte ― era o mal em uma forma ou
de outra ―, vício, talvez crime. Que
Deus nos ajudasse! Se a justiça fosse
a regra deste mundo, ele devia ter
sido protegido de todo mal pela mais
impecável e mais devota das filhas;
suas próprias boas ações teriam vol-
tado a ele em gratidão e bênçãos; ele
teria sido o homem feliz dos Salmos,
153
orgulhoso nos portões. Pena! E agora
sua cabeça branca estava baixa.
Chegamos a Londres na luz do
novo dia, o que nos fez parecer mais
fatigados; e então eles conversaram
a respeito do que fazer. A decisão por
fim foi adiar por uma hora ou duas a
visita a Colin, para que o sr. Campbell
pudesse descansar um pouco. Fui
com eles ao hotel. Charlotte ficou em
silêncio, mas me lançou um olhar
suplicante, e a fraqueza do pai dela
parecia crescer a cada hora. Ele que-
ria minha ajuda para ir ao andar de
cima. Procurou-me, e me chamou
154
para ficar ao seu lado com um breve
movimento ranzinza. Talvez, por
alguma confusão mental, ele pare-
cia considerar que de alguma forma
tinha direto a meus serviços. Mas,
embora eu sentisse sua fraqueza, não
permitiria que Charlotte fosse até o
irmão sozinha.
― Estou bem ― disse ele. ― Estou
bem. É porque não dormi. Para vocês,
jovens que dormem, isso faz toda a
diferença.
Na verdade, ele era o único de nós
que dormira. O café da manhã foi
preparado para nós em um daqueles
155
cômodos vazios nos grandes cara-
vançarais novos para os viajantes que
são tão associados com fatiga e deso-
cupação, com lembranças apressadas
e dolorosas, e encontros e partidas
melancólicos. Quando entrei nele,
Charlotte estava à janela e me cha-
mou às pressas. Ela pegou meu braço
assim que a alcancei, arrastando-me
para perto da janela.
― Olhe! É ela? ― exclamou louca-
mente. ― Olhe! Olhe! Ou ela partirá.
Ela apontava para a rua, que estava
agitada com transeuntes. Distingui-
los era difícil. Eles se moviam e
156
passavam diante de nós, uma cor-
rente sem fim de homens e mulheres.
― Não, não; não olhe ali… à es-
querda ― disse Charlotte. ― Ali, ali!
Não vi nada além das pessoas
passando umas pelas outras, todas
igualmente comuns e desconheci-
das. Fiz Charlotte se sentar, pois ela
tremia.
― É impossível distinguir uma
pessoa nessa rua tão lotada ― falei.
― Ah, não! Não! Eu a vi tão bem
quanto vejo o senhor agora. Ela es-
tava no meio de um grupo que pa-
receu se abrir e deixá-la ser vista.
157
Estava usando uma capa cinza e véu,
exatamente como você a descreveu.
Ela balançou a cabeça para mim. Por
um momento, pensei que podia ou-
vi-la falar.
― Sua imaginação está agitada.
Como você poderia ver a essa distân-
cia toda? Ouvir, então? Impossível.
Charlotte disse, solenemente:
― Pensei que ela disse: “Tarde de-
mais, tarde demais!” Sei que eu não
conseguia ouvir. Não me critique.
Estou muito infeliz. Olhe! Olhe! Está
vendo-a agora?
Alguém usando uma capa de fato
158
desapareceu na multidão enquanto
eu olhava, mas quem poderia dizer
quem era? Talvez uma trabalhadora
a caminho da labuta. Peguei a mão
de Charlotte, que tremia, e a segurei.
Ela soluçava baixinho.
― Tudo isso é demais para você ―
falei. ― Criticá-la? Ah, se eu pudesse
tirar esse peso de seus ombros, seja
lá o que for!
Ela tentou sorrir.
― Talvez tenha sido minha ima-
ginação, como você diz. O que é a
imaginação? Faz alguma diferença?
― Chatty não tinha consciência de
159
como eram significativas suas pala-
vras, mas falava como se enfeitiçada,
sem saber o que era real e irreal.
Era por volta das onze da manhã
quando eles partiram. Coloquei o sr.
Campbell em um táxi, onde ele se
sentou desconfortável com a bengala
entre os joelhos, apoiando-se nela, e o
rosto como o de um velho e bondoso
juiz, concentrado para tomar uma
decisão dolorosa. Charlotte sentou-se
ao lado dele. Quanto a mim, entrei em
uma carruagem e pedi ao cocheiro
que os seguisse. Parecia impossível
prever o que aconteceria. Eu mesmo
160
havia começado a ficar supersticioso
e imaginativo, e pensei uma dúzia de
vezes ter visto uma mulher usando
capa que nos seguia com uma expres-
são melancólica, ou balançando a ca-
beça, como Charlotte a vira. Será que
ela vira ou só imaginara? E se havia
imaginado, perguntei-me com as pa-
lavras dela, fazia alguma diferença?

161
Capítulo IV

A residência de Colin se provou ser o


último lugar em que eu pensaria ser
provável que ele estivesse ― em uma
das ruas elegantes, respeitáveis e an-
tiquadas de Bloomsbury. Era provável
que ele se sentisse mais disfarçado ali
do que em regiões sob menos inspe-
ção pública, e onde conhecidos pode-
riam encontrá-lo mais rapidamente.
Desci rápido da carruagem para aju-
dar o sr. Campbell a desembarcar do
táxi, e ele segurou meu braço com
força, um tanto confuso.
― Sim, quero seu braço. Eu…
162
estou um pouco trêmulo esta manhã.
Não me deixe, Charley! ― disse ele.
― Pai, é o sr. Temple ― disse
Charlotte.
Ele me olhou com olhos opacos e
um meio sorriso.
― Ah, decerto é o sr. Temple.
Esqueça, ele também me ajudará.
Antes, ele estivera tão determi-
nado a não deixar transparecer sua
preocupação por Colin, de forma que
esse súbito abandono da compostura
me deixou surpreso. Troquei um
olhar com Charlotte por sobre o om-
bro dele.
163
― O senhor virá, como ele deseja?
― disse ela.
Eu não podia culpá-la por querer
minha presença, mas senti pelo peso
da mão do velho no meu braço que eu
era necessário, e não falei mais nada.
Era evidente que a visão da car-
ruagem e do grupo chegando agitou
a casa. A porta foi aberta por uma
jovem, vestida demais para ser uma
serviçal ― a filha da senhoria, sem
dúvidas ―, que veio com a intenção
distinta de não deixar ninguém en-
trar. Sim, o sr. Campbell morava ali,
disse ela; mas ele não esstava bem,
164
estava confinado em seu quarto. Ela
disse que era provável que o rapaz
ainda estivesse na cama; tinha dei-
xado ordens de não ser incomodado.
― Ele nos receberá ― d isse
Charlotte. ― Deixe-nos passar, por
gentileza, e me mostre o quarto de
meu irmão.
A jovem deu um gritinho.
― Ah! Não posso deixá-los entrar.
Eu não ouso. O que todos dirão para
mim?
― O que está acontecendo aqui?
― disse o velho, abrindo caminho;
de fato, ele me empurrou como se eu
165
fosse um instrumento para abrir o
caminho. Assim, subiu os degraus e
avançou para a porta, com a moça se
afastando. Isso me fez entrar no pri-
meiro cômodo, uma sala bagunçada.
― Entre e diga a Colin que estou aqui
― ordenou para a filha.
― A h! Es tou d i z endo, o sr.
Campbell não pode recebê-los… ele
está de cama ― exclamou a garota,
fechando a porta atrás de si e ficando
com as costas contra ela, evidente-
mente assustada demais para saber
o que fazer.
O cômodo tinha um bom tamanho,
166
embora estivesse completamente ba-
gunçado, mal mobiliado e desbotado.
Portas dobráveis, que estavam fecha-
das, levavam a outro cômodo nos fun-
dos. Por fim, uma dessas foi aberta e
entrou outra jovem, um pouco mais
velha do que a primeira, e ainda mais
bem-vestida, de um modo elaborado,
a qual se aproximou de nós com im-
petuosidade súbita, fechando a porta
com cuidado atrás de si.

― Eu gostaria de saber quem está


fazendo toda essa algazarra, tendo
uma pessoa doente na casa ― disse
167
ela. ― Eu sou a sra. Campbell, caso
tenham algo a me dizer.
Ela balançou a cabeça com um ar
determinado, confrontando a srta.
Campbell como se fosse sua anta-
gonista natural. Charlotte suspirou
baixo. Ela se colocou diante do pai,
como se para defendê-lo do encon-
tro inesperado. Mas o velho agarrou
o vestido dela e a tirou do caminho.
Então se levantou, trêmulo, segu-
rando meu braço.
― Você é… o quê? ― disse ele, co-
locando a mão na orelha.
― Cavalheiro ― disse a mulher ―,
168
não sei quem o senhor é para entrar
assim na casa de um estranho, nem
essa pessoa aí… sua filha, presumo?
Se tem algo a dizer a ele, aqui estou
para responder-lhe; ele é um cava-
lheiro, e nos casamos na igreja, assim
como qualquer pessoa. Se ela acha
que tem qualquer direito sobre ele,
terá que dizer para mim…
― Chatty, essa é a esposa de Colin?
― É o que parece, pai ― disse
Charlotte, balançando a cabeça. E
então disse: ― Estou muito grata.
Poderia ser pior. E se não há dano
maior do que este, ah, querido pai…
169
pode ter sido um engano. Pode ser
que tudo esteja bem ainda.
― Meu Deus! Esposa de Colin! ―
exclamou o velho, afastando-me e
tornando a se sentar na cadeira. Ele
havia erguido a voz, e as palavras pa-
receram retumbar pela casa.
E então foram respondidas por um
grito e um gemido alto que se mistu-
raram do outro lado da porta fechada.
Em seguida ela foi aberta de repente,
e um Colin de barba por fazer, ema-
ciado e meio vestido entrou. Nunca
vi figura mais trágica. Os olhos dele
estavam vermelhos e selvagens; a
170
barba, meio crescida; a escuridão em
seu rosto e seu cabelo despenteado
jogado sobre a camisa branca, amas-
sada, que lhe cobria os ombros. Ele
olhou ao redor, absorvendo tudo; não
apenas o súbito aparecimento do pai
e da irmã, e a aparência de morte do
velho (que nenhum de nós percebeu
naquele momento), mas também o
contraste entre Charlotte, ali parada,
e a mulher, que imediatamente co-
meçou a gritar quando ele apareceu
e tentou forçá-lo a voltar para dentro,
nunca duvidei que a cena atingiu o
coração do homem meio enlouque-
cido e virou a balança de imediato.
171
Ele deu um olhar desesperado, afas-
tando com fúria a mão de sua esposa,
a qual havia sido pousada em seu
braço, e desapareceu outra vez. No
momento seguinte, o disparo alto de
uma pistola foi ouvido, perto, como
se cada um de nós tivesse tomado um
tiro. Isso, eu sei, foi o que senti. Ao
mesmo tempo, soou uma queda alta
no cômodo ao lado, e um gemido ― o
primeiro e o último.
Seria tolice tentar explicar a cena
que se seguiu. A mulher que se cha-
mara de sra. Campbell abriu as por-
tas com força e correu para o cômodo
172
atrás delas. Ele estava caído debaixo
de uma mesa que fora arrastada até
a lateral de um sofá-cama. Havia
acabado de se levantar, era evidente
pela massa de cobertores caída no
chão. Uma xícara de chá e o que so-
brara da comida estavam na mesa, a
uma distância alcançável da cama.
Ele estivera tomando café da manhã
quando a terrível interrupção come-
çou. Ao lado do prato, várias cartas,
algumas delas abertas. Um estojo
aberto estava na mesa, com uma pis-
tola dentro. Ele ainda estava caído
no chão, com fumaça escapando da
boca. Segui a mulher, que se atirou ao
173
lado dele no chão e fez a casa estreme-
cer com gritos. Eu não tinha qualquer
conhecimento do assunto, mas tinha
certa experiência, e havia visto feri-
mentos e acidentes. Só de olhar, eu
soube que o médico, o qual imedia-
tamente corri para buscar, seria inú-
til. O tiro fora mortal. Mas os vivos
precisariam de cuidados, caso não os
mortos. Por sorte, encontrei o médico
dali a poucas portas, ainda em casa,
cuidando de pobres pacientes reuni-
dos diante da porta. Ele me seguiu de
imediato. Contei a ele com o máximo
de detalhes que pude enquanto cor-
ríamos de uma casa à outra. Quando
174
chegamos na cena da tragédia, vi
que a mesa fora afastada; o cômodo,
aberto; e que o ar matutino da janela
aberta soprava a cabeça pesada como
mármore que Charlotte, sentada ao
chão, apoiava em seu colo. Mas nin-
guém, nem mesmo o novato mais
inexperiente, teria sido enganado por
aquela expressão. Colin estava longe
da calorosa agitação daquele dia ale-
gre, como se já estivesse morto havia
um século, para nunca mais ser cha-
mado a assumir seus erros ou a fugir
do olhar de seu pai zangado.
175
Sua esposa estava ali, chorando e
repreendendo ao mesmo tempo.
― Ah, vocês vieram até aqui para
enlouquecê-lo? ― gritou ela. ― Ele
estava melhorando. E daí que ele per-
deu o dinheiro? Ainda havia muito.
Teríamos ido ao exterior, como ele
disse. Teríamos seguido em frente.
Não é muito o que eu e ele queríamos.
Vocês vieram aqui para enlouquecê-
-lo de vez? Ele disse que eu não de-
veria falar com vocês. Ah, Campbell!
Campbell! Você não está me ouvindo
chorar? É apenas um desmaio. Sei
que é apenas um desmaio. Se vocês
176
tivessem partido e deixado que ele
ficasse quietinho comigo, ele teria se
recuperado.
O médico abriu a camisa do rapaz,
na qual havia pouco sangue, embora
estivesse escurecida pela fumaça da
pistola, que parecia ter sido pousada
ali. Charlotte, tão parada quanto o
corpo que aninhava, estava sentada
com o olhar fixado nele, seguindo
cada movimento. Depois de uma
breve avaliação, o médico pousou a
mão gentilmente no braço dela.
― Se a senhorita me permitir
― disse ele, cheio de compaixão ―,
177
vamos colocá-lo na cama. ― Então,
com ainda mais gentileza, adicionou:
― Você não pode fazer mais nada por
ele.
Juntos, e com dificuldade, o mé-
dico e eu o colocamos na cama. A mu-
lher atrás de nós começou a chorar e
gritar, com perguntas e reprovações.
― É um desmaio, doutor. Ah, tra-
ga-o de volta, traga-o de volta! De que
você serve se não pode fazer isso? É
culpa deles, por terem entrado aqui
tão de repente, e ele ficou com medo
de enfrentá-los, eles são tão difíceis e
cruéis. Ah, doutor, você não vê que é
178
um desmaio? Dê algo a ele; faça algo
para despertá-lo!
― Tente fazer silêncio ― disse o
médico, com certa severidade em seu
tom. Ele sabia quem ela era, e pensava
nela, como era evidente, apenas como
a filha da senhoria. ― A senhora pode
tomar o exemplo desta senhorita, que
tem muito mais a ver com a situação.
Médico algum poderia despertar o
pobre rapaz! Recomponha-se, minha
boa garota, e leve a senhorita para
fora.
A jovem deu um grito alto.
― Quem você está chamando de
179
garota? ― exclamou ela. ― Sou a es-
posa dele! A esposa dele por direito!
E ele está apenas desmaiado. Ah,
Campbell! Campbell! Não está me
ouvindo? Ah, doutor, pelo amor de
Deus, acorde-o!
Pobre criatura! Por trás da emo-
ção e do orgulho também havia sen-
timentos reais. Ela se lançou aos pés
da cama chorando, com gritos altos
e histéricos que soaram pela casa. A
mãe e a irmã dela apareceram e, es-
tupefatas pela presença de Charlotte
e pelo horror da catástrofe, haviam
sido deixadas de lado, mas agora
180
entravam para se lamentarem pelo
morto e para ameaçar os vivos.
― Leve a senhorita embora ―
disse o médico, voltando-se para
mim.
Charlotte não se movera. Estava
aos pés da cama, o rosto como már-
more, sem perceber o barulho e o
tumulto ao seu lado. Ela poderia es-
tar completamente sozinha com seu
morto, de tão parada que estava; os
olhos fixados nele, segurando o lenço
com o qual estivera secando a teta
morta dele. A situação parecia parali-
sá-la. Às vezes a boca dela tremia um
181
pouco, mas ela não chorou nem disse
nenhuma palavra. Peguei a mão dela
e a conduzi para longe, e ela se virou
um pouco em minha direção com
uma expressão de dar dó.
― Chegamos tarde demais ―
disse ela.
― Venha; não há nada que a se-
nhorita possa fazer agora. Ah, permi-
ta-me levá-la embora; há outros que
precisam da senhorita!
― Nada que eu possa fazer ― disse
ela, atordoada ―, nada que ninguém
possa fazer. Tarde demais! Tarde de-
mais!
182
Mas ela não se mexia. Estava em
uma região onde os sons de fora não
podiam alcançá-la. Talvez, naquele
momento, nem sequer fosse dor o que
sentia, mas um espanto e solenidade
que silenciavam cada pensamento.

― Charlotte ― exclamei, emo-


cionado demais para lembrar-me de
qualquer regra de etiqueta ―, onde
está seu pai? Você se esqueceu dele!
Para onde ele foi? Seu pai? ― Eu es-
tava de fato alarmado pela ausência
dele.

― Ah! ― Ela deu um suspiro que


183
parecia vir bem do fundo do coração.
― Meu pai!

E se virou devagar. As portas esta-


vam entreabertas e mostravam ape-
nas uma porção da cadeira na qual o
sr. Campbell havia se colocado, e da
qual parecia jamais ter se movido.
Um braço frouxo e uma mão desco-
rada se penduravam para fora dela.
A cabeça dele, caída sobre o peito, es-
tava meio visível. Por um momento,
não pensei em nada além de que ele
morrera ali, onde estava sentado, e a
visão dele adicionou a última pitada
184
de horror à cena. Ambos mortos, pai
e filho, num só golpe!
Em um segundo, Charlotte estava
ao lado do pai, enquanto eu não fazia
nada mais do que me assustar, horro-
rizado. Ela afrouxou o xale em torno
do pescoço dele e mudou a posição da
cabeça, antes que eu pudesse chegar
até lá. Charlotte era toda pensamento,
toda energia; ela que um momento
antes também havia sido trans-
formada em mármore! Por sorte, o
médico, que ainda estava ali, aproxi-
mou-se dele; e nós o deitamos ali, no
sofá esfarrapado, que correspondia à
185
cama no outro cômodo, onde estava
seu filho. Era uma leve convulsão pa-
ralítica, disse o médico; um ataque
do qual ele se recuperaria em breve.
A situação era tão lamentável que até
mesmo o médico ficou comovido. Ele
me puxou de lado e perguntou onde
eles moravam e quais eram as cir-
cunstâncias; e, quando expliquei que
eles haviam chegado naquela manhã,
o homem ofereceu quartos em sua
própria casa, até que o sr. Campbell
se recuperasse. Fiquei grato em acei-
tar sua proposta, me encontrando na
estranha posição de líder do triste
grupo, e responsável por tudo, já que
186
Charlotte estava totalmente ocupada
com o pai e não aguentaria ser per-
turbada por detalhes miseráveis que
precisavam ser acertados. Tive que
a deixar para arranjar tudo, mas me
apressei de volta assim que possível.
E dificilmente vi algo tão terrível
como a longa vigília daquele velho
mudo; o avanço das intermináveis
horas do dia, a chegada da noite. Ela
percebeu minha presença sem fazer
nenhum comentário e se referiu a
mim como se eu fosse um irmão, sem
dizer uma palavra. Isto me deu um
prazer pessoal, do qual fiquei meio
envergonhado naquele momento tão
187
terrível; mas, fora isso, o dia passou
como um sonho.
À noite, houve um sinal de volta
da consciência. Ele abriu os olhos,
pareceu reconhecer a filha ao seu
lado e, inutilmente, tentou erguer o
braço. A inabilidade de fazer isso o
perturbou e, talvez, tenha ajudado a
deixá-lo agitado. A princípio, a fala
dele era apenas um balbucio confuso,
principalmente de reclamação e ir-
ritação por ser mantido ali. Parecia
pensar que estava preso ao sofá, e
ficou muito irritado em suas ordens
inarticuladas para ser solto. Mas,
188
aos poucos, a mente dele ficou mais
calma e sua fala foi voltando.
― Estou pensando, estou pen-
sando ― disse ele. ― Talvez eu tenha
estado… confuso. Onde está o mé-
dico? Maxwell, onde você está? ― E
tentou virar a cabeça para olhar ao
redor.
Maxwell era o nome do médico
deles, em casa. Charlotte quase ficou
sobre o pai, ansiosa para evitar que
ele visse qualquer coisa que pudesse
trazer a cena daquela manhã à mente;
a essa altura já estava escurecendo, e
duas velas tremeluzentes e horríveis
189
deixavam o cômodo difícil de deci-
frar. Mas ele se lembrou de algo, do
que se passou. Um breve sorriso apa-
receu em seu rosto.
― Mas, Chatty, nós… nós encon-
tramos Colin? ― gaguejou ele.
― Sim, pai.
― Que bom… que bom! Que gri-
taria é essa? Devem ser os rapazes
trazendo ele para casa.
Me virei, sentindo que não aguen-
taria, e, estimulado e fatigado como
estava, quase temia dar um escân-
dalo histérico. Mas ela aguentou.
Ficou perfeitamente parada, com as
190
costas para a luz, bloqueando, como
se tivesse asas, tudo aquilo que po-
deria estimular a memória dele. Ela
disse ao pai, com uma voz que jamais
falhou, como ele devia se deixar ser
levado para a cama. E, de fato, ele se
submeteu como uma criança, logo
ficando ligeiramente interessado em
partir, e, quando o colocamos na li-
teira para levá-lo embora, sentiu-se
revigorado pelo ar suave da noite que
soprava em seu rosto. Felizmente, o
caminho era muito curto e, embora
houvesse alguma dificuldade em
passar pela multidão que se aglome-
rava à porta havia algumas horas,
191
atraída pelos rumores da tragédia lá
dentro, conseguimos fazer isso sem
incomodá-lo muito. Eu o vi lançar
um olhar trêmulo ao redor e me in-
clinei para ouvir o que ele dizia, mas
tudo o que consegui entender foi um
murmúrio sobre “Um lugar estranho,
essa Londres, um lugar estranho”.
Ele parecia ter esquecido tudo, exceto
uma vaga e confusa ideia de Colin,
e de que ele tinha sido encontrado e
levado para casa.
O velho adormeceu logo de-
pois de ser colocado na cama, em
um quarto confortável, onde havia
192
uma enfermeira de plantão. Então
Charlotte veio até mim de mãos es-
tendidas.
― O senhor está muito cansado ―
disse ela ―, precisa descansar; mas
eu devo voltar para ele.
― Não, não esta noite. Tudo isso é
suficiente para matá-la. Já cuidei de
tudo.
― Disso tenho certeza ― disse ela,
com um sorriso gentil e fraco ―, e
nem mesmo direi que sou grata. Mas
pode me levar de volta? Não pedirei
mais nada.
Voltamos, como ela disse, para o
193
quarto onde Colin estava. A decência
e a calma haviam sido restauradas na
câmara da morte; o som de um choro
histérico era ouvido vez ou outra lá de
cima, ficando mais alto, pensei (mas
posso estar errado), quando se sabia
quem estava embaixo. Mais abaixo
tudo estava silencioso e imóvel; havia
uma vela acesa, a única vigilância
dos mortos. Ergui esta luz fraca para
mostrar o rosto dele, enquanto o ra-
paz jazia ali com todo o vigor da idade
adulta, uma figura que parecia feita
para resistir a todas as tempestades
da vida. Ele estava deitado como se
estivesse dormindo, perfeitamente
194
calmo, como se a vergonha ou a tris-
teza nunca tivessem chegado perto
dele. Ela ficou em silêncio por um
longo tempo, sem dizer uma palavra
nem derramar uma lágrima. Colin
tinha sido seu companheiro especial
na infância ― um ano mais novo
que ela, não mais. Compreendi que a
dor dessa separação não deveria ser
evaporada em lágrimas fáceis. Eu
mesmo, que tinha tão pouco a ver com
ele, tinha a impressão de que cada
momento em que o vi e cada palavra
que o ouvi dizer voltavam para mim
no silêncio e na escuridão trágicos,
interrompidos apenas pela luz fraca
195
que tremeluzia no ar e vinha da janela
aberta. Um jovem no auge, com tudo
pela frente; filho de um homem rico,
herdeiro de tudo o que o dinheiro po-
deria comprar ou o amor doméstico
conceder ― e tudo findado assim. Na
tristeza e na miséria, na companhia
de uma mulher que não era digna
de servir sua irmã como empregada,
mas transformada em sua esposa ―
num horror tão profundo pela desco-
berta de que, para escapar dos olhos
de seu pai, ele correu para a presença
de Deus com seu próprio sangue nas
mãos: fora da calma da existência,
cotidiana e comum, que salvo para
196
os abismos misteriosos da vida e da
morte!
Quando Charlotte ficou de joelhos
ao lado da cama, não pude suportar
mais, e, abaixando a vela, fugi para
a sala ao lado, a cena do outro capí-
tulo dessa tragédia, e sentei-me à es-
curidão para esperar por ela, minha
cabeça latejando, todo o meu ser con-
fuso e trêmulo. Mesmo em um mo-
mento assim, outros pensamentos
invadem. Pode-se imaginar que devo
ter sentido, depois de uma união tão
maravilhosa dos laços de intimidade,
que não havia esperanças que eu não
197
fosse capaz de nutrir. Mas isso nem
de longe era o caso. Será que alguma
vez me aventurei a imaginar que ela
poderia se desvencilhar de todas as
mãos que a seguravam e entrar na
minha vida e se tornar uma parte de
mim? Se fosse assim, eu via agora a
total sandice do pensamento. Fiquei
na janela olhando para os lampiões
e para o brilho do reflexo na calçada,
a qual estava molhada pelas chuvas
sem trégua. Algumas pessoas ainda
estavam ao redor de uma casa na qual
um homem se matara. A curiosidade
que espera a morte, em especial a
morte violenta, espiava pela porta,
198
como se algo desse mistério fosse
revelado quando ela fosse aberta.
De minha parte, senti que não ha-
via novidade em nenhum incidente,
mas que isso, e apenas isso, poderia
ter acontecido desde o princípio dos
tempos.
Quando deixamos a funerária,
Charlotte se agarrou a mim com um
tremor nervoso que era o primeiro
sinal de exaustão que demonstrou
até então. Mesmo nela, as evidências
da fraqueza humana precisavam ser
reconhecidas; seu passo firme cam-
baleou enquanto descia os degraus, e
199
ela ficou satisfeita em ter meu braço
como apoio. Mas a paz dessa cena de-
pois do tumulto da manhã havia co-
brado seu preço. Ela começou a falar
sobre Colin.
― Ele era meu irmão ― disse ela.
― O senhor sabia que uma família
grande se divide em pares? A irmã de
Charley também morreu, e desde en-
tão ele tem estado amistoso comigo;
mas sempre foi Colin e Chatty, Chatty
e Colin.
― Vocês dois se confortarão ― fa-
lei. ― Charley é um bom rapaz.
― Ah! Ele é bom, e Colin sempre foi
200
um problema… mas ele não é Colin.
Sr. Temple, se nosso menino tivesse
morrido pelas mãos de Deus, e não
pelas próprias… ― Ela se interrom-
peu e estremeceu, a voz morrendo na
garganta. ― Eu quase estaria feliz ―
adicionou depois, com súbita energia.
― Ele e a vida dele jamais estiveram
em harmonia.
Senti todo o corpo dela tremer
com um longo suspiro de uma tris-
teza que estava além das lágrimas.
― Então não era apenas o casa-
mento dele?
― O senhor pensa tão pouco de
201
nós? ― exclamou ela. ― Teríamos
feito o melhor que pudéssemos com
isso. Eu, não há nada, nada que eu não
pudesse fazer. A esposa de Colin teria
sido sagrada. E desde que o amasse…
― Então ela se interrompeu. ― Depois
o senhor ficará sabendo. Conheço
nosso nome, nossa honra estava em
xeque. Ah, quando o senhor souber,
não o julgue, sr. Temple. Se ele fez algo
errado, já pagou por isso… sempre é
o dobro na infelicidade e na dor… e
agora ele está nas mãos de Deus.
Depois disso, ficamos em silêncio.
Caminhamos bem devagar, porque
202
ela estava exausta, e eu teria ficado
feliz se cada metro fosse um quilôme-
tro, pois parecia que Charlotte jamais
seria tão minha.

203
Capítulo V

Charley, para quem eu havia tele-


grafado, veio no dia seguinte, muito
ansioso e infeliz, com um horror de
vergonha e exposição que me deu
a mais estranha das impressões.
Decerto não era o meu nome que foi
exposto como relacionado a tal catás-
trofe; mas a catástrofe em si foi tão
lamentável que mal consegui com-
preender o aspecto especial em que
ele a via. Charley evitou até fazer os
trâmites necessários, e se escondeu de
qualquer um que pudesse reconhecê-
-lo. A primeira coisa que ele vira em
204
Londres foi o relatório do inquérito
no jornal matutino; o horror disso, e
a certeza de que circularia por toda a
parte, tornando toda a possibilidade
de abafar o caso impossível, foi mais
do que ele poderia aguentar. Foi dele
que ouvi toda a história. O gasto de
Colin fora por anos o problema e ter-
ror da família, e parecia que ele havia
se lançado em transações arriscadas
para resolver a situação. As cartas
que foram encontradas meio lidas
sobre a mesa dele mostravam como
as garras do destino estavam se fe-
chando ao seu redor. Estava evidente
pela meia revelação de Charley que o
205
caso claramente estava ruim para o
infrator, cujo nome fora utilizado por
toda a parte. Isso chegou ao jovem
não de uma vez, mas aos poucos, en-
quanto as cartas de Colin, e de vários
representantes de negócios de todas
as partes, chegavam.
Na noite do funeral ele veio até
mim, pálido e desesperado.
― O que farei? ― perguntou. ―
Meu pai não consegue dar qualquer
atenção – dizem que qualquer novo
choque pode matá-lo.
― É tão ruim assim? ― perguntei.
206
― Ruim? Estamos arruinados, é
isso ― exclamou Charley.
Ele era, como descobri mais tarde,
um homem de negócios muito bom,
mas jamais tivera que carregar a res-
ponsabilidade nos ombros, e agora,
deixado sozinho de repente, subita-
mente cara a cara com a calamidade,
seu autocontrole o abandonou por
um momento. Pouco a pouco, ele se
abriu para mim. Os “negócios” eram
tão rentáveis e bons que por fim tudo
poderia se acertar; mas enquanto
isso ele estava paralisado e não sabia
o que fazer. O sr. Campbell estava em
207
um tipo de estado tranquilo e meio
infantil, sem sofrer muito, e bastante
inconsciente acerca do que aconte-
cera. Consultá-lo era impossível, e
Tom e Jack eram apenas meninos que
pouco sabiam das ramificações dos
negócios.
― Comentou algo com sua irmã?
― perguntei, e o pobre Charley desa-
bou.
― Como posso falar com Chatty?
― disse ele. ― Ele sempre foi o ir-
mão dela. Não posso arriscar partir
o coração dela. Já está ruim demais
como está… Colin faleceu, e toda essa
208
tristeza… e meu pai sem saber de
nada. Se ela descobrir tudo o que ele
jogou sobre nós, o que fará?
― Você acha que ela não sabe?
― falei. ― Não foi por nada que seu
irmão buscou meios tão terríveis de
escapar. Pode ter certeza de que ela
espera o pior, mesmo que não saiba.
― Se eu pudesse pensar isso!
A conversa deu a ele um pouco de
compostura. A mera ideia de que ha-
via alguém com quem ele podia falar
livremente lhe era um apoio. Mesmo
falar comigo já era algo. Tínhamos
estado na funerária para ver se tudo
209
estava pronto para a melancolia do dia
seguinte, e a visão da sra. Colin vestida
de crepe novo, com as fitas brancas de
um coquete de viúva destacando sua
beleza comum, tinha quase sido mais
do que qualquer um de nós poderia
suportar. De minha parte, tudo rela-
tivo à esposa parecia misterioso. Se
Colin tivesse desperdiçado a riqueza
da família em aposentos luxuosos,
aos pés de uma daquelas belas damas
que nunca se satisfazem com o luxo,
teria sido mais compreensível. Mas
os aposentos em Bloomsbury e a filha
da senhoria pareciam dar um ar bur-
lesco à tragédia. Os acessórios teriam
210
sido ruins e cruéis, não respeitáveis
e comuns. Mas parecia haver muitas
maneiras de cortejar a ruína; e deve
ter havido outros capítulos desconhe-
cidos na vida dele antes que chegasse
a esse ponto. Talvez, de fato, o casa-
mento às pressas e o recolhimento
naquele retiro esfarrapado fossem
esforços para voltar de maneira me-
lhor. Segui com Charley até a casa do
médico, na qual a irmã e o pai dele
ainda estavam, pensando em deixá-lo
lá, mas ele agarrou meu braço.
― Você esteve aqui o tempo todo
― disse ele, a voz trêmula.
211
Charlotte veio até nós na sala de
jantar da casa do médico, aquela que
correspondia à outra na qual o pri-
meiro ato da tragédia acontecera.
Ela estava muito pálida, mas mesmo
assim nos cumprimentou com um
sorriso. Seu pai estava como sempre
― bastante confortável, sem suspei-
tar de nada, e de vez em quando per-
guntando se Colin fora para casa.
― “O melhor lugar para ele, Chatty,
o melhor lugar para ele”, é o que ele
me diz ― disse ela, com lágrimas
caindo ―, e o médico diz que deve-
mos deixá-lo pensar isso. Ele disse:
212
“Você deve cuidar dos assuntos de
Londres, Charley. Devemos deixar
assim pelo tempo que pudermos.”
― Se houver algum negócio a fa-
zer… ou se alguém for confiar em nós
― disse Charley.
Ela estivera pálida antes, mas pa-
receu ficar ainda mais, quase fantas-
magórica.
― Confiar em nós! ― disse ela, a
voz fraca. ― É tão ruim a ponto de
termos quebrado a confiança?
― Chatty, não sei como você su-
portará. Estamos arruinados, acho
― exclamou o jovem.
213
Ela gesticulou como se não fosse
nada.
― O que você quer dizer com con-
fiança? ― perguntou. ― Há algo que
não podemos cumprir?
― Não sei como os “negócios”
prosseguirão. Não sei como nos sus-
tentaremos. Estamos comprometi-
dos e enrolados por todos os lados, e
eu não sou inteligente como meu pai.
Teremos que sacrificar tudo.
Chatty inspirou fundo.
― Então que sacrifiquemos tudo,
Charley. É o que o meu pai faria.
Não precisa hesitar; mas não, não os
214
“negócios”… estes devemos manter.
Você não consegue pensar emnada
que possa mantê-los, em nome das
crianças? ― perguntou ela. ― E pen-
sar em todos os pobres homens de-
sempregados em pleno inverno!
― Devemos pensar em nós, Chatty
― disse o irmão dela, com certa in-
dignação.
― Eu penso. Eles se recupera-
riam com o tempo. Eles são sua vida
― disse ela. ― Salve-os, se possível.
Não entregue nossas vidas em mãos
alheias.
― E n t ã o ― d i s s e C h a rl e y,
215
inspirando fundo e se apoiando na
prateleira da cornija com um tipo de
ação desesperada ―, então só há uma
coisa a fazer, Chatty. Devemos vender
Ellermore.
Por um momento, ela o encarou
de olhos arregalados; então se sentou
de repente na cadeira mais próxima.
Queria apoio do tipo físico, como ele.
Sem dúvida uma visão de seu lar e
todas as suas comodidades ― o local
onde todos haviam nascido, o centro
de orgulho e importância da família
e todas as tradições desta ― passava
diante de seus olhos. Por minutos,
216
ela não respondeu. Então se esforçou
para falar:
― Bem ― disse, baixinho ―,
bem, então devemos nos decidir.
Venderemos Ellermore.
― Chatty ― exclamou o jovem,
de olhos marejados ―, que bom é po-
der falar com você! É isso? Manter os
“negócios” e vender Ellermore? Trará
um bom dinheiro, sabe. Tem muitos
acres. Algum cavalheiro inglês…
― Ah, Charley, não me torture! ―
exclamou ela, em agonia. Então, bai-
xinho, acrescentou: ― Os “negócios”
são a sua vida. E ainda há muitos de
217
nós. Devemos pensar nos meninos
e nas crianças… e depois em nossa
honra e no nome de nosso pai.
― Foi o que pensei, mas temi dizer.
Pensei que você gritaria: “Ellermore!
Ellermore!” e deixaria que os “negó-
cios” se resolvessem sozinhos.
Ela me olhou com um sorriso
fraco.
― Não sabia que você achava que
sou uma tola. Suponho que seja por-
que sou mulher.
― Chatty, não diga isso! ― excla-
mou o jovem. Tal sugestão começa
a provocar a fúria de um jovem.
218
Irritado, ele quase se esqueceu da gra-
vidade da situação.
Ela prosseguiu:
― Ellermore significa felicidade,
mas os “negócios” significam vida.
Vida é o que devemos ter, até… até
que nos seja tomada ― adicionou ela,
estremecendo. ― Mas a felicidade!
Ah, sim, ela voltará. Não sou tão jo-
vem nem tão ignorante a ponto de
não saber que retornará, e para todos
os jovens, em breve! Haverá você e eu
por um tempo, Charley; e eu por mais
tempo, mas não para sempre. Mas
no momento não estamos felizes.
219
Iremos escapar de alguma coisa…
da piedade, da simpatia e das inda-
gações. Pelo menos escaparemos de
tudo isso. Tenho certeza de que meu
pai pensaria assim. Mas como vamos
contar a ele, não sei. Ele está bem
alegre; é como se fosse uma criança.
Mas, quando o levarmos para casa, e
esta não for Ellermore, ele saberá.
Os dois secaram as lágrimas en-
quanto contemplavam essa dificul-
dade, com a qual nenhum sabia lidar.
Naturalmente, eu fora deixado de
lado na discussão; mas ouvi-los deba-
ter, consultar a opinião um do outro,
220
falando da coisa principal a ser feita,
era mais do que eu podia suportar.
Não consegui deixar de me lembrar
da casa feliz, com todas as suas van-
tagens e fortuna caseira ― os barcos
no lago, os tetrazes nas colinas, o luxo
e a abundância. Aquela porta jamais
fora fechada para estranhos ou os
pobres. E eles haviam nascido para
essa condição, sentados à velha casa
entre as colinas, que até parecia im-
possível imaginá-los em outro local
ou circunstâncias. Isso tornou ainda
mais maravilhoso perceber que ne-
nhum deles hesitou. A ideia de como
contar ao pai, como mantê-lo em seu
221
atual estado de alegre inconsciência,
de fato os comoveu com uma pontada
de perplexidade; mas nenhuma inde-
cisão, nenhum apego àquilo de que
mais gostavam, nenhum protesto
contra o destino cruel que os privou
de seu lar, estava nos pensamentos de
nenhum deles. Há quem pense que
essa escolha é fria. Para mim, o he-
roísmo silencioso foi muito mais co-
movente do que qualquer heroísmo
explícito. Eu sabia o quanto isso seria
doloroso e os respeitava ainda mais
porque nenhum deles hesitou, nem
sequer parou para pensar no assunto,
como se o sacrifício fosse demais. Fui
222
para casa, deixando-os juntos, com
uma pontada de impotência no co-
ração. Eu me pergunto se os muito
ricos alguma vez são estimulados por
aqueles desejos ardentes de ajudar, de
agir contra o sofrimento, que tantas
vezes arde no peito dos comparativa-
mente pobres. Eu tinha o suficiente
para minhas próprias necessidades e
pouco desejava riqueza, mas quando
pensei em ajudá-los, em me tornar
seu fiador e ajudante, meu cora-
ção ardeu. Pensei quase com avidez
numa herança que estava chegando
para mim, pela qual até aquele mo-
mento eu estava muito contente em
223
esperar. Eu me pergunto, repito, se
tais anseios nunca chegam aos muito
ricos, que poderiam satisfazê-los com
facilidade e sem qualquer esforço.
Talvez não; ou teríamos sabido. Os
Quixotes da vida privada raramente
são milionários. Eu não pude fazer
nada; e talvez tenha sido por essa
razão que desejei tanto o que estava
fora do meu alcance.
Devo admitir que, entre todos es-
ses pensamentos sérios, uma loucura
curiosa, como suponho que deve se
chamar, me acompanhava aonde
quer que eu fosse. A sensação era a de
224
que eu me encontrava o tempo todo
com a mesma figura dos terrenos de
Ellermore que me avisara acerca do
perigo que Colin corria. Eu me ques-
tionei de todas as maneiras possíveis,
tentando descobrir alguma insta-
bilidade nervosa, algum distúrbio
funcional, que pudesse explicar isso.
Mas eu estava muito bem ― minha
mente estava ocupada e agitada de-
mais para me deixar qualquer tempo
para considerar o corpo, que seguia
de maneira rápida e fácil, ocupado
com tudo em vez de consigo mesmo.
Estas, penso eu, são as condições de
saúde perfeita; e eu estava tão bem
225
como sempre estive em minha vida.
No entanto, estava sempre com a sen-
sação de que encontraria a mulher
de véu nas ruas. Ela viria em minha
direção, ou passaria suavemente por
mim, seu vestido me tocando, fa-
zendo disparar meu pulso. Isso cos-
tumava acontecer principalmente no
bairro da tragédia; mas havia outros
lugares onde essa mesma estranha
aparição era visível. Às vezes eu per-
cebia nela aquele gesto familiar, o
torcer das mãos, que me lembrava de
Charlotte. Às vezes eu parecia quase
penetrar a obscuridade do véu e reco-
nhecer um rosto não muito diferente
226
do de Charlotte. Fiquei acostumado
com esse pensamento. Convenci-me
de que não passava de uma impres-
são da qual não conseguia me livrar,
mas que era ilusória. Embora jamais
tenha conseguido entender por que
meu coração disparava. A última
vez que pensei tê-la visto foi junto
ao túmulo onde, com uma tristeza
silenciosa impossível de descrever,
depositamos o pobre Colin. Charley
e eu o acompanhamos sozinhos até
aquele local final de descanso. Nosso
amigo médico conseguiu, não sei di-
zer como, impedir que a esposa e sua
família comparecessem, como todos
227
pretendiam fazer, tomados por afli-
ção. Não sei o que disse a eles ― que
isso era algo que damas de importân-
cia social nunca faziam, um ponto
sobre o qual a sra. Colin era muito
suscetível, ou algum outro argu-
mento dessa natureza. De qualquer
forma, ele conseguiu manter qual-
quer elemento vulgarizador longe do
simples funeral.
Nós o seguimos sozinhos, Charley
e eu. Charlotte não se atreveu a arre-
dar o pé do lado do pai por tanto tempo
sem dar um explicação, e Charley en-
colheu-se com uma suscetibilidade
228
dolorosa ao ver todos que conhecia.
Sem nenhum daqueles exageros flo-
ridos que se tornaram uma questão
de moda e vaidade, sem qualquer sé-
quito indiferente, nós dois ficamos ao
lado do túmulo, o irmão mais novo
com um controle da dor que era de
partir o coração, e eu com toda a re-
verência de uma pena, não menos
comovente. Quando desviei o olhar
do leito “profundo” de silêncio e
quietude absolutos, pensei tê-la visto
parada na beira dele, torcendo as
mãos. O som de um soluço abafado de
Charley desviou minha atenção por
um momento e, quando olhei outra
229
vez, ela havia sumido. O rosto ― a
expressão era como a de Charlotte.
É impossível para mim descrever a
mistura de ternura e terror com que
me dei conta disso ― como se pu-
desse ter sido a própria Charlotte, no
espírito, que viera, em puro desejo, ao
túmulo de seu irmão.
― Você viu aquela dama? ― per-
guntei a Charley enquanto voltáva-
mos.
― Que dama? ― disse ele, agi-
tado. Estava tomado de dor, tristeza
e vergonha, pois jamais conseguira
superar esse terrível infortúnio da
230
família, e sua mente, pobrezinho, es-
tava distraída pensando no que fazer,
como lidar com as questões compli-
cadas que estavam em suas mãos. Em
seguida, implorou pelo meu perdão.
― Não sei o que estou fazendo. Pensar
que Colin está lá, e que tudo acabou
para ele… ele, que tinha mais cabeça
do que todos nós juntos; e se tivesse
pedido ajuda talvez tudo teria ficado
bem. Eu teria juntado a minha força à
dele ― exclamou o jovem, incapaz de
se controlar ―, lado a lado; e teríamos
resolvido tudo. ― Então, depois de
uma pausa, durante a qual ele virou
a cabeça para se livrar das lágrimas,
231
acrescentou: ― Você disse que viu
uma dama? Não reparei. Acho que
era a esposa dele.
Não falei mais nada, mas sabia
muito bem que não era a esposa de
Colin. Quem era? Ou era nada mais
do que uma loucura, produto do
meu próprio cérebro estimulado e
exausto?
Alguns dias depois, fui à estação
para vê-los partir. O sr. Campbell
nunca melhorou mais do que havia
melhorado na primeira noite. A mão
dele e um lado de seu corpo estavam
quase sem forças, e sua mente caíra
232
em um estado que seria cruel cha-
mar de imbecilidade. Era mais como
a mente de uma criança se recupe-
rando de uma doença, satisfeita e exi-
gindo atenção constante. De vez em
quando, ele fazia perguntas demais.
O que seria de Colin, caso estivesse
doente, se havia ido para casa?
― O melhor lugar para ele, Chatty,
o melhor lugar para ele ― repetia. ―
E se você o persuadir a se casar, tudo
bem.
Tudo isso Charlotte tinha que
aguentar com uma expressão calma,
com concordância gentil; e agora que
233
Charley estava ali, eu havia saído por
completo da mente do velho. Quando
me viu, desculpou-se por não estar
em condições de receber um estra-
nho.
― Veja bem, estou me recupe-
rando de uma doença severa ― dizia
ele. ― Conte ao sr. Temple, Chatty, o
quanto estive doente.
Ele estava nesse estado quando o
deixei na carruagem que haviam ar-
ranjado para a jornada. Eles tinham
todos os hábitos do luxo, e jamais
hesitaram com esse gasto, como te-
riam feito pessoas acostumadas aos
234
sacrifícios diários. Ele me disse que
estava feliz em ir para casa; que teria
saído de Londres antes se não fosse
por Chatty, que “queria ver um pouco
do lugar”.
― Estou indo ver meu filho Colin,
que foi para casa antes de nós… não
é, Chatty?
― Sim, pai ― disse ela.
― Sim, sim. Fiquei bastante ca-
quético, e muito, muito bobo ― disse
o velho, em um tom de compaixão
extraordinária. ― Às vezes, não te-
nho certeza do que digo, mas Chatty
me mantém bem. Colin foi antes de
235
nós; ele tem uma boa cabeça para
os negócios; logo, consertará tudo…
junto ― adicionou ele, com um sen-
tido curioso o qual parecia ter su-
perado seus outros poderes a ponto
de que uma explicação das ações de
Colin fosse necessária ― da minha
aposentadoria. Já não sirvo para os
negócios; mas ainda esperamos vê-lo
em Ellermore.
Em Ellermore! Charlotte me olhou
com um olhar de angústia, de auto-
controle e paciência costumeira que
era quase sublime. Enquanto ele fa-
lava, as mãos dela se juntaram e se
236
agarraram com o mesmo movimento
que eu reparara em outra pessoa. Em
outra pessoa… mas em quem?

237
Capítulo IV

Então se seguiu um período de total


calma na minha vida. Pareceu-me
que todo o interesse havia sumido
dela. Voltei às minhas velhas ocupa-
ções, do moco como eram, e elas não
eram muito interessantes. Eu tinha
o suficiente, o que talvez seja toda
a condição da vida, e, quanto mais
confortável, menos interessante. Se
era um discípulo de Salomão que
desejava esse estado, deve ter sido
quando era como seu mestre, blasé,
e havia descoberto que tanto a ambi-
ção quanto o prazer eram vaidades.
238
Havia pouco espaço ou necessidade
para pessoas como eu no mundo. Eu
me divertia, como dizem. Quando
me cansava dos meus aposentos so-
litários, fazia visitas. Quando me
cansava da Inglaterra, viajava para
o exterior. Nada poderia ser mais in-
teressante, ou mais completamente
tedioso, em especial para quem havia
visto, acidentalmente, uma vida real e
agitada. Nem preciso mencionar que
pensava na casa em Ellermore quase
o tempo todo. Charlotte me escrevia
de vez em quando, e às vezes me pa-
recia que eu era o homem mais vil da
terra, sentado ali, observando tudo o
239
que eles faziam, traçando cada passo
e vicissitude dos problemas deles em
meu próprio bem-estar garantido.
Era monstruoso e, mesmo assim, o
que eu poderia fazer? Eles não teriam
aceitado a ajuda da minha pequena
suficiência. Mas se, como falei, tal
desejo impaciente de ajudar viesse de
vez em quando para aqueles que têm
o poder de isso fazer, seria a política
econômica tão infalível a ponto de
tornar o mundo melhor? Não havia
nem uma palavra sequer de recla-
mação nas cartas de Charlotte, mas
elas me faziam ficar enfurecido com
minha impotência. Ela me disse que
240
todos os preparativos estavam sendo
feitos para a venda de Ellermore, mas
que a condição de seu pai era tal que
eles não sabiam como comunicar a
ele o desafio que viria.
“Ele ainda não sabe de tudo o que
se passou”, Charlotte me escreveu, “e
me pergunta coisas que fazem meu
coração se partir; espero que Deus me
perdoe pelo que sou obrigada a dizer
para ele. Tememos deixá-lo receber
visitas, com medo de que ele descu-
bra a verdade; pois de fato a falsidade,
mesmo quando bem-intencionada,
é sempre sua própria punição. O dr.
241
Maxwell, que não se importa com o
que diz quando pensa ser para o bem
do paciente, fará parecer que ele pre-
cisa tomar novos ares; e esse é o ar-
tifício que teremos que manter pelo
resto da vida de meu pai para explicar
por que não voltamos a Ellermore.”
Ela escreveu em outra que havia
toda a esperança de que conseguis-
sem vendê-la em uma transação pri-
vada, e que enquanto isso os amigos
estavam sendo muito gentis, e que os
“negócios” prosseguiam. A carta não
mencionava que deixar Ellermore
lhe era algo além de uma questão de
242
necessidade. Ela não disse nada so-
bre seu local de nascimento, o lar de
todas as suas associações, o local que
eu sabia ser tão querido. Não houve
hesitação nem aflição. Contanto que
o pobre velho, o pai ferido, privado de
sua casa e do primogênito, sem saber
de nada disso, pudesse ser mantido
nessa ilusão, era apenas isso o que
Charlotte buscava.
E não acho que eles pediram que
eu fosse até lá antes que desocupas-
sem a residência. Eu fui porque assim
o quis. Não consegui ficar longe por
mais tempo. Falei com Charlotte, e
243
talvez também comigo, como forma
de desculpa, que eu poderia ajudar
a cuidar do sr. Campbell durante a
mudança. O fato é que eu não conse-
guia mais ficar longe dela. Poderia ter
arriscado qualquer intrusão, confiar
em mim de outra forma, pelo mero
erro de estar perto dela e ajudá-la da
forma mais insignificante.
Assim que eles pa r ti ra m de
Londres, a aparição que eu via tantas
vezes desapareceu. Não preciso di-
zer que pensei nisso com frequência
suficiente para ter provocado várias
aparições ― para o caso de que estas
244
dependessem dos meus pensamen-
tos; mas ela nunca mais apareceu.
Tentei, de todas as maneiras, expli-
car isso. Não pude acreditar que fosse
uma mera ilusão dos meus olhos e
do meu cérebro estimulados, pois
não tinha consciência de qualquer
agitação ou razão para isso quando
a vi pela primeira vez nos arbustos
de Ellermore; e, se a imaginação foi
suficiente para produzir tal imagem,
agora havia ainda mais razão para
que ela voltasse para mim! E então
pensei, o que me deu certo prazer,
numa possibilidade que me ocorrera,
de que o coração e os pensamentos
245
ansiosos de Charlotte tivessem de
algum jeito assumido uma forma
sombria, uma espécie de véu físico, e
que foi ela mesma, sem saber, quem
me assombrou. Se nossos pensamen-
tos mais profundos pudessem assim
tomar forma, com que frequência,
quando estivéssemos em outro lu-
gar, uma sombra nossa poderia falar
com nossos entes queridos? Não seria
de admirar, disse a mim mesmo, se
Charlotte me visse, sob as árvores ou
à beira do lago em Ellermore. Muitas
e muitas vezes, sentado em meus
aposentos, eu estava lá em espírito,
seguindo-a, lembrando-me do que
246
ela provavelmente estaria fazendo
naquele momento, correndo atrás
dela de cômodo em cômodo. Esta so-
lução do mistério me foi satisfatória.
Pensei, poderia muito bem ser que o
espírito fosse visível em sua peregri-
nação amorosa apenas para alguém
que tivesse total simpatia por ele.
Portanto, senti, com uma humildade
contida, que era muito improvável
que ela percebesse qualquer indício
de meu desejo e permanecesse ao meu
redor; mas que era muito natural que
a visse. E isso explicava de todo por
que eu não via nada agora. Ela não
estivera pensando em mim, mas em
247
Colin, tanto morto quanto vivo ― em
toda a tragédia de sua curta história.
Se ela tivesse permitido tal pensa-
mento para mim em sua mente, sem
dúvidas eu a teria visto agora.
Não apresento isto como uma teo-
ria pela qual tais aparições possam
ser explicadas, apenas comento como
um dos muitos pensamentos sobre o
assunto que encheram minha mente
e o que mais me deu prazer. Achei que
ninguém, exceto a própria Charlotte
― nem mesmo uma visita invisível
―, poderia ter feito meu coração ba-
ter tão forte; mas era tudo fantasioso,
248
com base em nada, uma suposição
entre tantas outras suposições. Era
quase Natal quando não suportei
mais ficar longe. Eles deixariam
Ellermore dentro de uma ou duas se-
manas. O sr. Campbell foi persuadido
de que um dos locais mais tranquilos
e protegidos para onde os inválidos
eram enviados na Escócia seria me-
lhor para ele. Charlotte me escreveu,
meio desesperada, a respeito das di-
ficuldades da partida deles.
“Meu coração quase para de ba-
ter”, disse ela; e isso era demais.
Depois disso, não pude mais hesitar.
249
Ela tinha medo até mesmo do renas-
cimento da vida que poderia ocorrer
quando seu pai fosse tirado de sua re-
clusão; de algum velho amigo impru-
dente que não pudesse ser evitado e
que pudesse falar com ele sobre Colin.
“Meu coração quase para de bater.”
Naquela noite, fui para a Escócia de
trem e, no dia seguinte, quando ainda
não passava de meio-dia, cheguei a
Ellermore.
Que mudança! A urze havia mor-
rido nas colinas; o lago ensolarado
era de um azul metálico; os fios bran-
cos de água que desciam por todas as
250
fendas das montanhas eram torren-
tes. Aqui e ali, nos picos mais altos,
havia uma pitada de neve. Os abetos
eram as únicas coisas substanciais na
paisagem mais próxima. Os arbustos
estavam todos nus e emplumados,
com cada galho nítido contra o azul.
O sol brilhava quase tão intensa-
mente quanto no verão e espalhava
um brilho de reflexos por toda parte
sobre a grama molhada e sobre os ria-
chos que corriam em cada pequena
depressão. A casa destacava-se entre
toda aquela luz, entre o rendilhado
nu das árvores, com suas tourelles
escocesas-francesas, e a extensão do
251
gramado esmeralda, mais verde do
que nunca a seus pés, com todos os
canteiros de flores nus; a fumaça azul
subindo no ar, a porta aberta como
sempre. No entanto, havia pouco
movimento nessa cena invernal.
A vida ao ar livre estava em xeque.
Não havia filho em casa que deixasse
vestígios de sua presença. A cabana
estava fechada e vazia. Concluí que a
carruagem e todos os luxos haviam
sido abandonados, e o cocheiro e
sua família haviam desaparecido.
Mas essa era toda a diferença visí-
vel. Fui recebido por uma das servi-
çais, cujo rosto eu conhecia. Nunca
252
havia muitos serviçais homens em
Ellermore, e isso não me pareceu in-
comum. Ela me levou para a sala de
estar, que estava deserta e tinha uma
aparência mais formal do que antes.
― A srta. Charlotte costuma ficar
com o pai ― disse a mulher. ― Ele
é muito frágil, mas maravilhosa-
mente contente, como uma criança.
Ela sempre fica lá com ele. Não faz
bem para ela. O senhor a verá muito,
muito pálida e diferente do que era.
Alguns minutos depois, Charlotte
apareceu. Havia um brilho de prazer
(eu esperava) em seu rosto, mas ela
253
estava pálida, muito pálida, como
dissera a criada; cansada e emaciada.
Depois da primeira saudação, que a
alegrou, ela desabou um pouco e der-
ramou algumas lágrimas precipita-
das, pelas quais se desculpou, dizendo
que tudo havia voltado, mas que ela
estava feliz, muito feliz em me ver! E
então acrescentou rapidamente, para
que eu não me magoasse:
― Chegou a ponto de eu mal po-
der deixar meu pai; e seguir com a
mentira é terrível.
― Não chame de mentira.
― Ah, mas é isso o que é; e há
254
sempre punição. Fico aterrorizada de
que algum acidente aconteça, que ele
descubra tudo de uma só vez. ― Então
ela me olhou com firmeza, dando um
sorriso de dar dó. ― Senhor Temple,
Ellermore está vendida.
― Está? ― perguntei, com um ge-
mido. Pensei que talvez algo aconte-
cesse no último instante para evitar
o sacrifício.
Ela balançou a cabeça, sem res-
ponder às minhas palavras, mas sim
à expressão no meu rosto.
― Era o que queríamos. Nós o le-
varemos a Bridge of Allan. Ele está
255
quase satisfeito por ir; não pensa em
nada mais… ah, pobre velho, pobre
velho! Se ao menos eu pudesse levá-
-lo para lá em segurança; mas temo
a jornada mais do que temi qualquer
coisa na vida.
Falamos disso por certo tempo, e
sobre todos os preparativos que ela
fizera. Charley viria lhe ajudar na
mudança, mas acho que minha pre-
sença de alguma forma parecia a ela
uma segurança a mais, da qual ficou
satisfeita. Ela não ficou mais do que
meia hora comigo.
― Será tedioso para você, sr.
256
Temple ― disse ela, com mais da ca-
dência de seu sotaque nacional do
que eu percebera antes (ou talvez eu
reparasse mais agora depois dos me-
ses de ausência). ― Não há ninguém
em casa além das crianças, e elas es-
tão sabidas demais para a idade, por
conta das muitas coisas que jamais
devem contar ao papai; mas o senhor
conhece o lugar, e vai querer des-
cansar um pouco. ― Ela estendeu a
mão para mim de novo. ― E eu estou
muito feliz em vê-lo.
Nada na minha vida fez meu co-
ração ficar mais satisfeito do que
257
aquelas simples palavras. Ela estar
“muito feliz” era pagamento sufi-
ciente para qualquer coisa que eu pu-
desse fazer. Mas, nesse meio-tempo,
não havia nada que eu pudesse fazer.
Vaguei pelo lugar silencioso até ficar
cansado, relembrando uma centena
de lembranças agradáveis. Mesmo
para mim, um estranho, que um ano
antes nunca tinha visto Ellermore,
era difícil deixá-la; e, quanto aos que
nasceram lá, e aos seus pais antes de-
les, parecia ser algo excessivo a pedir.
Mas a natureza foi tão indiferente
ao desaparecimento dos habitantes
humanos, cujo pequeno período de
258
algumas centenas de anos não era
nada em sua longa história, como
teria sido à queda de uma rocha na
encosta de uma colina, ou ao derru-
bar de uma árvore na floresta. Aliás,
os homens são tão pouco importan-
tes que a rocha e a árvore teriam sido
habitantes mais antigos do que os
Campbells; e por que, para isso, o sol
devia moderar seu brilho, ou os céus
claros, se nublarem?
Depois, entrei e vaguei pela casa,
que estava muito silenciosa. De fato
um som abafado vinha do quarto das
crianças, e quando bati à porta fui
259
recebido por um tumulto de alegria;
mas no momento seguinte a pequena
Mary ergueu seu dedinho e disse:
― Ah, Harry! Ah, Katie! Não fa-
çam barulho para não perturbar o
papai!
O velho em seus aposentos domi-
nava a casa inteira; o absoluto silêncio
e deserção dela (quando as crianças
foram passear à tarde) tiveram um
efeito indescritível na minha mente.
Era como se o local, ainda limpo e
preparado para o dia a dia, e mesmo
assim vazio de qualquer vida visível,
estivesse cheio de seres invisíveis,
260
para quem esses prazeres existiam.
Um tipo de surpresa tomou conta de
mim quando me sentei em um desses
cômodos. Senti-me deslocado ali ―
como se todos os visitantes solenes na
velha casa devessem se ressentir da
presença de um estranho. Sim, eu era
um estranho; até a própria Charlotte
me chamara assim, embora ninguém
estivesse mais por perto ou tivesse
tanto a ver com a vida dela nas re-
centes crises. Senti um tipo de pra-
zer amargo ao pensar nisso, embora
eu pudesse ser rejeitado por aqueles
outros, por não ter nada a ver com a
casa.
261
Minha mente estava tão tomada
por esses pensamentos que quase não
percebi, durante minhas caminhadas
solitárias, que seguia para o Caminho
da Dama. Eu quase havia chegado
perto das árvores, no entanto, quando
fui trazido às pressas de volta às es-
tranhas circunstâncias que haviam
formado um acompanhamento para
a história familiar deles. Fiquei cho-
cado ao ouvir outra vez os passos da
guardiã de Ellermore. Então ela havia
voltado! A princípio, a agitação da
emoção instintiva me deu um pra-
zer singular. Fiquei entre as árvores
e ouvi seu passo suave indo e vindo
262
com absoluta satisfação. Senti que
eles não estavam de todo abandona-
dos desde que ela estivesse ali. Meu
coração disparou. Comecei a espe-
cular sobre a possibilidade de ainda
salvar a antiga casa. Perguntei-me
como poderiam livrar-se dela sem o
consentimento e a assinatura do sr.
Campbell; e tentei acreditar que, no
último momento, algo pudesse acon-
tecer. Mas quando me voltei para a
casa, essa fantástica confiança natu-
ralmente me falhou. Comecei a con-
templar o outro lado da questão ― os
novos moradores. Talvez “algum ca-
valheiro inglês”, como Charley dissera
263
com certa zombaria; algum homem
rico, que poderia comprar as charne-
cas e os lagos por bem mais do que
valia, e trazer, talvez, uma horda de
esportistas para banir toda a calma e
poesia de Ellermore. Pensei com pena
e raiva no que a Dama faria nessa si-
tuação. Ela ainda assombraria seu
caminho favorito quando todos os
que amava partissem? Ficaria lá, em
desamparada fidelidade ao solo, ou
partiria com sua raça banida? Ou
então partiria de vez e cortaria o laço
que a prendia à terra? Pensei ― pois a
fantasia, uma vez exposta, vai longe
sem qualquer controle consciente
264
da mente ― que seria possível que
os intrusos na casa dos Campbell se
assustassem com ruídos e aparições,
e com todos aqueles poderes mais
vulgares do invisível, que às vezes
ouvimos. Se a Dama de Ellermore
aceitasse se valer de tais artifícios,
sem dúvida poderia encontrar es-
píritos inferiores e menos elevados
no invisível, para os quais este tipo
de peça seria agradável. Envolvi-me
muito nessa divagação, como se esti-
vesse formando ideias depreciativas
para um amigo querido, e corei de
vergonha. Fiquei com raiva de mim
mesmo, como se tivesse permitido
265
que alguém sugerisse a Charlotte que
fizesse isso. Meu coração ficou cheio
enquanto eu seguia esses pensamen-
tos. Seria possível que algum vínculo
misterioso, de um tipo além do nosso
conhecimento, a conectasse àquele
solo amado? Fiquei impressionado
com a ideia do que ela poderia sofrer,
em sua vigília solitária, ao ver a casa
cheia de uma família estranha; no
entanto, talvez, aos poucos, tornan-
do-se amiga deles, cuidando deles
como havia feito com os seus, naquela
doçura do esquecimento de si mesma
e do terno amor da humanidade que
é a atmosfera dos abençoados. Em
266
toda a substância desse ser espiri-
tual havia, para mim, uma sombra
beatificada de Charlotte. Senti que
isso era o que ela seria capaz de fazer
se fosse possível que aqueles que ela
mais amava não dependessem mais
de seus cuidados.
Você dirá que tudo isso é muito
fantasioso, e não nego que seja justo
pensar assim.
O dia seguinte foi similar ao ante-
rior. Charlotte estava muito ansiosa.
Queria que a mudança acontecesse à
tarde, mas quando a hora chegou ela
teve medo.
267
― Amanhã ― disse ela, e estre-
meceu. ― Não sei do que estou com
medo, mas meu coração me falha, me
falha.

Tive que telegrafar a Charley para


informá-lo da mudança, e outro longo
dia se passou. Chovia, e isso era um
obstáculo.

― Não posso levá-lo nesse mau


tempo ― disse Charlotte. Ela veio até
mim várias vezes, torcendo as mãos.
― Não me decido ― exclamou. ―
Não consigo, não consigo me decidir.
Sinto que algo terrível vai acontecer.
268
― Pude apenas pegar a mão trêmula
dela e tentar confortá-la.
― Mas deve ser feito ― arrisquei-
-me a dizer. ― Você ficará mais feliz
quando isso acabar.
Ela me lançou um olhar enlou-
quecido de pânico.
― Não sei o que temo. Queria que
fosse tirado das minhas mãos.
Eu a compreendi, e fiz todos os
preparativos.
No dia seguinte, ao meio-dia, seria
a hora. Encomendei uma carruagem
na cidade mais próxima, não sem
saber do risco de o velho perceber
269
que não era a dele e perguntar o que
aquilo significava. Cada passo do
caminho era cercado de riscos; mas
ainda assim, se tivesse que ser feito,
era melhor que fosse rápido. Essas
palavras já haviam me assombrado.
Resolvi tudo. Fiz com que ela saísse
comigo para tomar um pouco de ar
à tarde.
― A senhorita está se matando ―
falei. ― É isso o que a deixa tão ner-
vosa e tão diferente de quem é.
Ela concordou, embora contra sua
vontade. Uma mulher que estivera
a serviço deles a vida inteira, e que
270
partiria com eles, a qual Charlotte
tratava, como disse, “como uma de
nós”, cuidaria do sr. Campbell en-
quanto isso. E acho que Charlotte
teve pouco prazer em sua excursão
pouco costumeira. Ela estava muito
trêmula, quase como se tivesse es-
quecido como caminhar, e se apoiou
no meu braço de forma que foi muito
doce para mim. Nenhuma palavra
de amor fora trocada entre nós; e ela
não me amava, exceto como amava
Charley e Harry e os outros. Acho que
eu tinha lugar entre eles, depois do
último irmão. Mesmo assim, ela não
sabia por instinto o que se passava no
271
meu coração. E ela sabia que se apoiar
em mim, demonstrar que precisava
de mim, era a melhor forma de me
agradar. Vagamos por ali com um
tipo de felicidade triste; e então, com
um impulso mútuo, tomamos a dire-
ção do Caminho da Dama. Ficamos lá
juntos, ouvindo os passos.
― Consegue ouvi-los? ― pergun-
tou Charlotte, com um sorriso. ―
Querida dama! Que esteve aqui desde
que me entendo por gente.
Ela falava como as crianças, no
total abandono de seu ser, como se
voltasse para se refrescar à plena
272
simplicidade do sotaque e da lingua-
gem, à fala suave e nativa com a qual
nascera.
― Ela ficará, você acha? ― per-
guntou, e então, com um sobressalto,
agarrou meu braço: ― O que foi isso…
um grito?
Não um grito, mas um suspiro.
Pareceu passar pela floresta e entre
as árvores. Você dirá que era apenas
o vento. Não sei dizer. Para mim era
um suspiro, pessoal e de partir o co-
ração. E você pode pensar que foi para
ela. As lágrimas caíram de seus olhos.
Charlote disse, falando com o ar:
273
― Estamos nos separando, você
e eu. Ah, volte para o paraíso, e não
nos deixe perturbá-la mais. Ah, volte
para a sua casa, minha boa dama, e
não nos deixe perturbá-la mais!
― Charlotte ― falei, pegando o
braço dela para apoiá-la.
Ela me lançou um sorriso, como
alguém que não podia, mesmo entre
os mais altos pensamentos, negligen-
ciar ou ser rude, mas afastou a mão
e a juntou à outra.
― Somos iguais ― disse ela, as
lágrimas caindo ― e temos o mesmo
coração. Somos ansiosas demais; mas
274
Deus está acima de todos nós. Volte
para o seu lugar agradável, e diga à
minha mãe que eu jamais os deixarei.
Vá, minha boa dama, parta! E deixe
que Deus cuide de nós.
Esperamos, e acho que ela quase
desejava uma resposta. Mas não
houve uma. Peguei o braço dela outra
vez, e a conduzi para longe, trêmula.
O momento e a agitação também ti-
nham sido demais para mim.
― Você diz a ela para partir, que
ela é ansiosa demais, que ela deve
confiar você a Deus… e no mesmo
fôlego pede que você mesma nunca
275
os deixe. A senhorita acha que Deus
não a quer, que Ele quer que você fi-
que entre Ele e eles?
Segurei o braço dela com tanta
emoção que acho que quase a machu-
quei. Charlotte me lançou um olhar
assustado, e secou os olhos com a
mão.
― É muito diferente ― disse ela.
― Estou viva e posso trabalhar para
eles. Dei-me conta, de uma só vez, que
no fim das contas as pessoas são dife-
rentes. Talvez a morte não torne uma
mulher mais sábia do que a vida. E
pode ser que ninguém tenha pensado
276
em contar para ela. Ela pensará que
pode deter qualquer mal que se apro-
xime, por estar aqui; mas, se não for
o desejo de Deus detê-lo, como ela po-
deria fazer isso? O senhor sabe que ela
tentou ― disse Charlotte, me olhando
com melancolia ―, ela tentou, Deus a
abençoe por isso! Ah, você sabe como
ela estava ansiosa; mas nem eu nem
ela conseguimos… nem eu nem ela!
Nesse momento, fomos interrom-
pidos por alguém correndo até nos,
chamando:
― Senhorita Charlotte! Senhorita
Charlotte! Precisam da senhorita!
277
― Em um tom louco e agitado. Era a
mulher que fora deixada para cuidar
do sr. Campbell, e Charlotte se assus-
tou ao vê-la. Ela tirou a mão do meu
braço e correu pelo caminho.

― Ah, Margaret, por que você o


deixou?

― Não foi culpa minha ― disse


a mulher, seguindo-a. Também me
apressei, e a explicação foi para nós
dois. ― Ele queria ir à biblioteca;
nada o impediria. Tentei tudo o que
pude, mas o que eu poderia fazer? E
não precisa temer, srta. Charlotte.
278
Ah! Mal tenho fôlego para contar. Ele
voltou a ser quem é.
Charlotte correu pelo caminho
como uma criatura correndo pela
vida. Então parou por um instante
na porta da casa para gesticular para
que eu a seguisse. A biblioteca era um
dos cômodos que haviam sido par-
cialmente desmontados. Os quadros
haviam sido retirados das paredes, e
vários livros, que ela pretendia levar
consigo, estavam reunidos sobre as
mesas. O sr. Campbell havia mexido
em alguns deles para se sentar em
seu lugar favorito. Ele a olhou com
279
curiosidade, quase com severidade,
quando ela entrou ansiosa e sem fô-
lego. Ele havia mudado muito. Era
robusto e vigoroso, como uma torre,
quando entrei pela primeira vez em
Ellermore, ainda não fazia seis meses.
Agora, tinha metade de seu porte. O
casaco que ele não usava havia me-
ses pendia frouxo em seu corpo; seus
cabelos brancos eram longos e ele
usava barba, o que mudou muito sua
aparência. Toda essa mudança ocor-
reu desde que o deixei em Londres,
quando me disse que iria se juntar
a Colin; mas houve outra mudança
mais notável, que eu, com admiração,
280
e Charlotte, com terror, reconhece-
mos de imediato ― a prostração de
sua mente havia desaparecido. Ele
encarou a filha com olhos inteligen-
tes, quase severamente inteligentes.
― Ah, pai, o senhor mandou me
chamar! ― exclamou Charlotte. ―
Saí para tomar ar… saí… por alguns
minutos…
― Por que você não deveria sair,
Chatty? ― disse ele. ― E por que dei-
xou Margaret para cuidar de mim?
Estive doente, sei bem; mas por que
devo ser observado dentro da minha
própria casa?
281
Ela me lançou um olhar desespe-
rado, e então disse:
― Ah, não era isso, pai, não era
isso!
― Mas eu digo que era. Ela te-
ria me impedido de descer a escada,
aquela mulher. ― Ele deu uma risa-
dinha, que foi terrível para nós no
estado em que estávamos. ― E você
veio correndo, como se houvesse algo
a temer. Quem é este atrás de você? É
um dos seus irmãos ou…
― É o sr. Temple, pai ― disse ela,
novamente alarmada.
― Sr. Temple ― disse ele, com uma
282
nuvem de desprazer no rosto. Então
se recompôs e recuperou os bons mo-
dos. ― Pelo que me lembro, a casa
estava muito desorganizada quando
você esteve aqui antes, sr. Temple.
Você pensará que estamos sempre ba-
gunçados; mas estive doente, e tudo
saiu do controle. Este não é lugar ―
adicionou, virando-se para Charlotte
― para receber um estranho. Para
que tudo isto? ― disse, em tom feroz,
gesticulando para os livros, alguns
dos quais estavam reunidos aos seus
pés, no chão.
283
Mais uma vez, ela fez uma pausa
desesperada.
― São livros para levar conosco
― respondeu. ― O senhor se lembra,
pai, de que estamos partindo.
― Partindo! ― exclamou ele, irri-
tado. ― Onde estão minhas cartas?
Onde estão seus irmãos? O que você
está fazendo com este cavaleiro…
peço mil desculpas, sr. Temple!… e
a casa neste estado? Penso que há
algo errado. Onde estão minhas car-
tas? Não é certo não haver cartas?
Depois de estar afastado dos negócios
por tanto tempo, ter minhas cartas
284
mantidas longe de mim, sr. Temple,
é irritante ― disse ele, voltando-se
para mim com um ar de explicação.
― Talvez seja um engano que os faz
pensarem que não sou igual a eles;
mas se você acha que me permitirei
ser tratado como criança…
Ele gaguejou um pouco, em sua
raiva, e depois fez um grande esforço
para se controlar. E então olhou para
nós, mais uma vez com um pouco
de severidade, e confundiu todas as
nossas esperanças com uma simples
pergunta.
― Onde está Colin?
285
O que poderia ser mais natural?
Charlotte me lançou um olhar e fi-
cou parada, branca como a morte,
imóvel, torcendo os dedos. Quantas
vezes ela havia dito que a mentira
era seu próprio castigo, mesmo uma
mentira como aquela. Ela respon-
dera com palavras ambíguas quando
o pai estava no estado de fraqueza
do qual havia despertado, e ele foi
facilmente convencido. Mas agora
Charlotte estava confusa com a per-
gunta repentina. Não conseguia
enfrentar com um subterfúgio o
olhar sério do pai; a cabeça dela
pendia, as mãos entrelaçadas com
286
um aperto lamentável, enquanto
ele a olhava de maneira autoritária,
mas ainda calmo. Durante todo esse
tempo a porta ficou entreaberta e
Margaret ficou esperando do lado de
fora, ouvindo tudo o que acontecia,
sem qualquer pensamento malicioso,
muito interessada e ansiosa para se
sentir deslocada. Mas, quando ouviu
esta exigência, a mulher ficou horro-
rizada. Ela deu um passo para dentro
da porta.
― Ah, Ellermore! ― exclamou.
― Ah! Meu velho mestre, não parta
o coração dela nem o meu! Ouvi-lo
287
perguntar por Colin, e Colin esteve
em seu túmulo por esses quatro lon-
gos meses, pobrezinho, pobrezinho!
― Ela arrancou o avental enquanto
falava, e começou a chorar e soluçar
alto.
Charlotte havia estendido a mão
para impedir a revelação, mas a dei-
xou cair e ficou muda, de cabeça baixa
e mãos retorcendo, uma imagem si-
lenciosa de luto e culpa, como se fosse
ela quem tivesse dado o golpe.
O velho sentou-se e ouviu com
um semblante cada vez mais pálido
e com olhos atentos, que pareciam
288
tremeluzir como se estivessem fora
de seu controle. Ele tentou falar,
mas com o tremor de seus lábios não
conseguiu articular nada. Então se
levantou lentamente e ficou pálido e
atordoado, como um homem à beira
de um precipício.
― Meu filho está morto e eu não
sabia ― disse, devagar, pausando en-
tre as palavras. Os lábios se entrea-
briram, sua expressão comovente e
trêmula, transfigurada, ao que pa-
recia, devido a um tipo de surpresa
entristecida, pensando. Então ele se
voltou para Charlotte, com um apelo
289
de dar dó: ― Contaram-me e eu me
esqueci?
A humilhação daquela derrota
humana dominou sua alma desper-
tada.
Ela se aproximou rapidamente e
o abraçou.
― Querido pai, o senhor estava
tão doente, eles não permitiram que
contássemos. Ah, eu sabia… eu sabia
que seria pior quando acontecesse.
Ele afastou a filha e se sentou,
trêmulo. Naquele momento terrível
ele não queria ninguém. O horror da
humilhação individual, a ideia de
290
que pudesse ter ouvido a notícia e se
esquecido, era mais terrível ainda do
que a novidade.
― Que bom ― disse ele. ― Que
bom ― balbuciou, com aqueles lábios
frouxos.
Encolhi-me, sentindo uma profa-
nação estar ali, espectador do último
mistério da natureza; mas Charlotte
fez um leve movimento que me im-
pediu de me retirar. Pela primeira vez
ela sentiu medo; seu coração havia
falhado.
Durante alguns minutos o pai
permaneceu em silêncio. O pôr do
291
sol havia desaparecido, o crepúsculo
enevoado estava caindo. Margaret,
culpada e infeliz, mas ainda inca-
paz de reprimir os soluços, sacudia
o avental branco e olhava em volta
com um olhar de desculpas, então
retirou-se para o outro lado do cô-
modo. Tudo ficou em silêncio depois
daquela troca interrompida de pa-
lavras. Ele se recostou, apertando e
abrindo as mãos, os lábios e as feições
todos em movimento, se pelo desejo
de falar ou pelo mero funcionamento
de emoções indescritíveis, não sei
dizer. Quando de repente, de uma só
vez, com a voz de um homem forte,
292
alta e plena, ele irrompeu no grito
que ressoou por todo o mundo ― a
expressão da angústia de todo pai.
― Absalão, meu filho, meu filho!
Eu queria ter morrido por você, meu
filho, meu filho!
Corremos até ele ao mesmo tempo.
Por sorte, o velho não reconheceu mi-
nha presença, mas tornou a afastar
Charlotte.
― O que você teme? ― disse ele,
quase seriamente. ― Que eu o es-
queça outra vez? Isso não é possível.
Você acha que a tristeza mata; mas
não, ela traz de volta à vida. Traz de
293
volta à vida ― repetiu, erguendo-se
da cadeira. Então olhou ao redor,
solene. ― Margaret, mulher, venha
aqui e me dê a mão. Somos parceiros
no problema, nós dois, e não devemos
nos separar. Enquanto esta for mi-
nha casa, haverá um local nela para
você. Depois, quando pertencer a…
ah! Quando pertencer a Charley ―
gritou ele, com um súbito soluço.
Charlotte tornou a me olhar.
Estava pálida de desespero. Como dar
a última notícia para ele?
― Pai ― disse ela, às costas do
homem ―, o senhor está muito
294
cansado. Não quer ir descansar até
amanhã e depois ouvir as notícias?
Então contaremos… tudo o que acon-
teceu…
Sua voz tremia como uma folha
ao vento, mas ela não conseguia de-
monstrar nenhum outro sinal de
terror e desespero. Houve uma longa
pausa depois disso, e ficamos à espera,
sem saber como o momento termina-
ria. Acredito que foi a minha visão
que decidiu tudo, no fim das contas.
Um rápido movimento de irritação
passou pelo rosto do velho.
― Acho que você está certa, Chatty
295
― disse ele. ― Acho que você está
certa. No estado em que estou, não
estou bem, e com a informação que
acabei de receber… ― Ele se inter-
rompeu, e olhou fixamente para
mim. ― Sinto muito por jamais ter-
mos conseguido dar a devida atenção
a você, sr. Temple. Veja bem, meu fi-
lho estava detido e agora está morto,
e eu não sabia até agora. Perdoe-me
por essa recepção, que não é a que eu
gostaria de oferecer. ― Ele gesticu-
lou. ― Você é amigo de Colin. Saberá
fazer concessões. Sim, minha que-
rida, ficarei melhor no meu quarto.
296
Irei, com a permissão do sr. Temple…
irei… para a minha cama.
Um grunhido baixo escapou dele;
um tipo de sorriso terrível apareceu
em seus lábios.
― Para a minha cama ― repetiu.
― É só o que podemos fazer, nós, ve-
lhos, quando somos atingidos pela
mão de Deus. Deitar e virar o rosto
para a parede… o rosto para a parede.
― Ele se levantou e pegou o braço
da filha, dando alguns passos em
direção à porta, a qual eu segurava
aberta. Então ele se virou e olhou ao
redor com ar de quem tem um favor
297
a conceder. ― Você também pode vir,
Margaret. Pode vir e me ajudar a dei-
tar.
Essa estranha interrupção de
todos os planos, que desesperou
Charlotte, deu-me muito em que pen-
sar enquanto permanecia no quarto
que escurecia aos poucos. Era evi-
dente que agora nada lhe poderia ser
escondido; e quem teria a ousadia de
contar ao pai enlutado, no início do
luto pelo primogênito, que horrores
acompanharam a morte de Colin e
que pena a família teve de pagar?
Pensei em todas as possibilidades,
298
mas nada parecia praticável, ne-
nhuma maneira de revelar a situação
sem um choque que pudesse matar.
A sala meio desmontada parecia cada
vez mais sombria conforme a luz di-
minuía. A porta continuava aberta,
como quando aquela pequena procis-
são a abandonou.
Meus sentidos estavam todos em
alerta. Me pareceu que a premoni-
ção de uma nova calamidade estava
no ar; e, quando Charlotte apareceu
meia hora mais tarde, como um fan-
tasma saindo das sombras, eu quase
esperei ouvir que já havia acontecido.
299
Mas, mesmo nessas profundezas do
tormento, era uma felicidade sentir
que ela veio até mim em busca de
alívio. Ela se deixou cair em uma ca-
deira perto da janela onde eu estava.
Vi as linhas suaves e pálidas de seu
rosto ― a expressão de ansiedade
contida em seus olhos. Ela me contou
que o pai foi se deitar sem fazer mais
perguntas e que Margaret, que fora
babá de Colin, parecia quase mais
agradável para ele do que ela mesma.
Ele virou o rosto para a parede, como
havia dito que faria, e nada além de
um suspiro prolongado e ocasional
dizia que ele estava acordado.
300
― Acho que ele não piorou… no
corpo ― disse ela. ― Ele aguentou
bem mais do que poderíamos ter
esperado. Mas como contarei a ele
como aconteceu, e como falarei de
Ellermore? ― Ela chorou em uma
prostração e autoabandono que me
assustaram; mas dispensou minha
preocupação com um movimento
da mão. ― Ah, deixe-me chorar! É o
único alívio que tenho.
Quando se afastou de mim, in-
quieta e ansiosa, eu saí, tão em silên-
cio, tão incapaz de banir todas essas
ansiedades da minha mente quanto
301
ela. A noite estava quase escura,
suave e amena. Era uma daquelas
noites em que a lua, sem ser visível,
suaviza e ameniza a escuridão e faz
da noite uma espécie de crepúsculo.
Enquanto eu caminhava, para me
ocupar, uma chuva fina e suave co-
meçou a cair; mas isso não me afetou
de forma alguma. Foi mais reconfor-
tante do que desagradável. Desci até
a beira do lago, onde a luz pálida da
água era tocada por inúmeras gotas
de chuva; depois voltei a subir, dando
voltas e mais voltas pela casa, sem
me importar com a direção. A essa
302
hora eu sempre evitava o Caminho da
Dama, mal sei dizer por quê. Naquela
noite, na minha estranha familiari-
dade com tudo e no descuido de todos
os assuntos, exceto um, de repente
entrei nele com um capricho que não
conseguia explicar, talvez com um
desejo compreensível da companhia
de alguém que pudesse compreen-
der meus pensamentos. Os passos
místicos me deram uma espécie de
prazer. Se foi um hábito ou algum
novo sentimento de camaradagem
humana que as palavras apaixo-
nadas de Charlotte causaram, mal
posso dizer; mas a agitação com que
303
até então sempre havia observado a
observadora misteriosa desapareceu
da minha mente. Em vez disso, senti
uma pena profunda e terna por ela.
Seria possível que um espírito pu-
desse estar “excessivamente ansioso”,
como disse Charlotte, esforçando-se
em vão, mas não de maneira inde-
vida, para tirar a tutela suprema das
mãos de Deus? A ideia me era nova.
Pensar que uma criatura boa e aben-
çoada pudesse errar tanto, pudesse
errar de maneira tão humana e per-
severar tão pacientemente, embora
nunca fosse capaz de remediar os
304
males, parecia de alguma forma mais
possível do que um guardião celeste
poder vigiar, por gerações, com tão
poucos resultados. Isso me deu uma
grande compaixão pela observadora
solitária que se rebelava assim, de
uma forma celestial de amor, contra a
lei da natureza que a separava da vida
visível. Minha antiga ideia de que po-
deria ser a própria Charlotte em uma
forma de sombra inconsciente, cujo
amor protetor e maternal provocou
esses esforços súbitos, aos poucos se
transformou na sensação de que era
uma Charlotte anterior, sua própria
parente e protótipo, que nem mesmo
305
agora podia deixar Deus administrar
sua família sem sua ajuda.
Enquanto pensava, fui surpreen-
dido mais uma vez pelo mesmo sus-
piro que ouvira de Charlotte. Sim,
sim, podia ser o vento. Não tive
tempo para debater explicações co-
migo mesmo. Foi um suspiro suave e
longo, como o ato de tirar o fôlego de
um peito sobrecarregado. Dei meia-
-volta, estava tão perto de mim, e ali,
ao meu lado, tão próxima que poderia
tocá-la, estava a Dama que eu tantas
vezes imaginara ― a mesma figura
que encontrei nas ruas de Londres
306
e na floresta de Ellermore. Suponho
que recuei, um pouco agitado com as
antigas sensações, pois ela pareceu
estender a mão na escuridão pálida
e começou a falar baixinho, rapida-
mente, como se mal houvesse tempo
suficiente para o que tinha a dizer.
― Partirei como os outros ― disse
ela. ― Nenhum deles jamais me pediu
para ir embora; mas era verdade… era
verdade. Nunca fiz nenhum bem…
apenas os assustei ou os agradei. Está
em mãos melhores… está em mãos
melhores.
C o m a s p a l av r a s v ie r a m o
307
movimento familiar, o torcer de
mãos, que era igual ao de Charlotte,
e ela pareceu chorar; mas, antes que
eu pudesse dizer qualquer coisa (e o
que poderia ter dito?), ela falou outra
vez com pesar:
― Não devo falar com eles; mas
você quer o bem deles, e pode aju-
dar… agora, de novo, de novo!
― Como posso ajudar? ― excla-
mei. ― Conte-me, Dama, seja lá quem
você for; eu o farei. Eu o farei… mas
como posso fazê-lo? Não tenho poder.
Conte-me…
Estendi a mão para tocar o vestido
308
dela, mas ele derreteu para longe do
meu alcance.
― Você pode ajudar se quiser…
se quiser ― pareceu dizer ela, sem
fôlego e com pressa; e a voz dela já
estava longe.
― O que posso fazer? ― perguntei.
Eu havia me esquecido tanto do velho
terror que me coloquei no caminho
dela, bloqueando-o. ― Diga-me como,
como! Diga-me, pelo amor de Deus, e
por Charlotte.
A figura sombria pareceu recuar
diante de mim. Pareceu desapare-
cer, depois reapareceu e então se
309
dissolveu por completo na penum-
bra branca, enquanto a voz flutuava
para longe, ainda dizendo, como num
suspiro: “Se quiser, se quiser”. Eu não
conseguia ouvir mais nada. Fui atrás
dessa voz suspirante até o final do ca-
minho. Pareceu que eu a perseguia,
determinado a compreender, e que
ela fugia, os passos apressados, tor-
nando-se quase inaudíveis enquanto
voavam diante de mim. Continuei
às pressas, sem saber o que fazia, de-
terminado apenas a saber o que era;
para obter uma explicação, e através
de quais meios eu não me importava.
De repente, antes que eu percebesse,
310
meus passos tropeçaram pela en-
costa no outro extremo e a água pá-
lida e viva com todas as ondulações
da chuva apareceu bem aos meus pés.
Os passos afundaram na margem do
lago e cessaram com uma vibração
semelhante ao som mais agudo num
silêncio mais absoluto do que qual-
quer outro que já ouvi na natureza.
Ofeguei, com o pé tocando a beira da
água; tudo o que pude fazer foi me
firmar ali.
Corri de volta para a casa num
estado de agitação que não consigo
descrever. Em parte era um pavor
311
nervoso. Eu não o disfarcei; mas em
parte era uma ansiedade desconcer-
tante e uma ânsia por saber o que
eu poderia fazer. Nem preciso dizer
que eu tinha a mais absoluta fé nisso.
Impossível ter uma conversa assim,
ou pensar que teve, sem acreditar no
que foi dito nela. Não havia nenhuma
dúvida em minha mente, exceto uma
pergunta ansiosa e agitada ― como
foi, como poderia ser? Procurei pos-
sibilidades. Antes de chegar à casa,
eu estava tão ansioso que havia es-
quecido todos os outros incidentes.
Minha busca por ela parecia nada
mais do que natural, e o silêncio
312
repentino que parecia formigar de-
sapareceu da minha mente.
― Você pode ajudar se quiser! Se
quiser! ― repeti para mim mesmo
mil vezes, com uma pressa e ânsia
febris.
De fato, não fiz nada além de re-
peti-las. Não consegui comer, nem
descansar. Quando Charlotte apare-
ceu tarde da noite para contar que
o pai adormecera, que o médico que
viera declarara que ele de fato estava
se recuperando, eu estava andando
de um lado a outro na sala de estar,
repetindo essas palavras.
313
― Ele diz que é incrível, que pode
ser a recuperação completa ― disse
Charlotte ―, mas que devemos es-
conder todas as outras circunstân-
cias dele; principalmente, se possível,
sobre Ellermore. Mas como será pos-
sível? Como posso fazer isso? “Ajudar
se quiser?” Senhor Temple, o que está
dizendo?
― Não é nada ― falei. ― Uma ve-
lha rima que ficou na minha cabeça.
Ela me olhou, ansiosa.
― Algo mais aconteceu? Você viu
ou ouviu… ― A mente dela estava tão
atenta para cada tom e expressão, que
314
eu dificilmente conseguiria esconder
algo dela.
― Estive no Caminho ― falei ― e,
estando agitado, foi mais do que os
meus nervos puderam suportar.
Ela tornou a me olhar, melancó-
lica.
― O senhor não me enganaria, sr.
Temple ― disse ela, e voltou ao as-
sunto original.
O médico temia, acima de tudo, que
o sr. Campbell partisse de Ellermore
no dia seguinte; que ele fosse cedo
e, acima de tudo, não suspeitasse do
motivo. Ela ainda temia a mudança,
315
mas não havia alternativa; e não era
possível adiá-la, pois cada dia, cada
hora, aumentava a possibilidade da
descoberta.
― Mas você não pode manter a ilu-
são para sempre ― falei. ― E quando
ele descobrir?
Charlotte torceu as mãos.
― É contra a minha vontade; mas
o que posso fazer? ― Ela fez uma
pausa, e então disse, com dignidade
melancólica: ― Pode matá-lo, cedo
ou tarde. Eu mesma não gostaria que
minha vida fosse salva por uma men-
tira; mas sou fraca quando se trata
316
do meu pai, e Deus compreende tudo.
Ah, estou começando a sentir isso, sr.
Temple. Nós buscamos e buscamos,
e pensamos no que é o melhor, e co-
metemos uma centena de erros; mas
Deus vê os motivos. Ele nunca erra.
Ela se afastou de mim na calma
desse pensamento ― o segredo de
toda a calma. Tive a impressão de que
eu, em minha ansiedade cega, adivi-
nhando o enigma que me fora dado, e
a minha pobre Dama dos céus, ainda
tentando ser a providência daquela
casa, ficamos igualmente para trás.
Não consegui descansar a noite
317
toda. Tudo o que pude fazer foi per-
manecer no meu quarto depois que
a família reduzida foi descansar. Foi
uma noite estranha, iluminada por
aquela luz mística da lua minguante,
na qual parece haver sempre algo que
é funesto e profetiza o mal. Pode-se
imaginar criaturas malignas, orva-
lhos ruins caindo. Sentei-me à janela
sempre que conseguia me convencer
a ficar parado, com o ar úmido me
saturando e a luz fria envolvendo
tudo abaixo numa brancura e numa
escuridão de contrastes exagerados.
Eu esperava ver, olhando para
318
mim, a figura ansiosa e melancólica
que tantas vezes vira, apelando para
mim novamente. Mas nada rompeu
a lacuna da luz branca; nada além da
sombra das árvores nuas, delineada
em cada galho acima da escuridão
dos arbustos abaixo, interrompia o
brilho da lua. Quando me deitei, foi
apenas para pensar com mais aten-
ção, com maior inquietação do que
antes. O que é que eu poderia fazer?
Como eu poderia ajudá-los? Como
poderia salvá-los? A manhã sombria
e o fato de ter ouvido os primeiros
movimentos da casa foram para mim
um alívio que não consigo descrever.
319
Agora, pelo menos, haveria algo que
eu poderia fazer ― algo que não fosse
vago nem obscuro entre as possibi-
lidades, mas certo e viável, o que é,
entre todas as coisas, o maior alívio
para o pensamento agitado.
Charlotte veio tomar café da ma-
nhã comigo, o que nunca havia feito.
Ela me contou que o pai teve uma
boa noite, que derramou lágrimas ao
acordar e começou a falar de Colin
com ternura e calma; e que tudo pa-
recia prometer que a preocupação
amolecida e triste da dor, distraindo
sua mente de outros assuntos, seria
320
uma vantagem para ele. Foi agradá-
vel ser deixado com Margaret, que
adorava o filho dele e que tinha sido
plenamente avisada acerca da ne-
cessidade de não falar a respeito das
circunstâncias de sua morte. O cor-
reio chegou enquanto conversáva-
mos. Ficou sobre a mesa por alguns
minutos, intocado, pois nenhum de
nós estava ansioso pela correspon-
dência. Estávamos sozinhos à mesa e
Charlotte havia descansado, embora
eu, não, e estava quase alegre agora
que chegara o momento da separação
final. A necessidade da ação a ins-
pirou, assim como a mim. E talvez,
321
embora eu mal ousasse pensar as-
sim, aquela mesa tranquila a que nos
sentávamos sozinhos, que poderia
ter sido a nossa mesa, na nossa casa,
numa nova vida cheia de paz e de
sóbria felicidade, a acalmasse. Essa
sugestão agitou meu sangue. No mo-
mento, parecia que a esperança que
eu nem ousava nutrir, de um mo-
mento calmo de bem-aventurança e
repouso, havia se tornado realidade.
Por fim ela me entregou a chave e
pediu que eu abrisse a bolsa.
― Estive relutando em perturbar
este momento de paz ― disse ela,
322
com um sorriso cheio de doçura e
confiança ―, e nada exterior parece
trazer muitas consequências agora;
mas os meninos podem ter algo a di-
zer e há também as suas cartas. Quer
abri-las, sr. Temple?
Eu também relutava ― mais do
que ela ― em perturbar a calma; e o
mundo exterior não me era nada, en-
quanto me sentava ali com ela e po-
dia imaginar o meu próprio mundo.
Mas fiz o que ela pediu.
As cartas são como o destino; de-
vem ser encontradas, com tudo o que
há de bom e de mal nelas. Entreguei
323
a Charlotte as dela e abri algumas,
provavelmente tão importantes para
eles, embora me parecessem tão insig-
nificantes e desnecessárias, as quais
eram endereçadas para as serviçais.
Então me voltei para minha própria
parte. Eu tinha duas cartas, uma com
uma larga borda preta, que fora enca-
minhada de um lugar para outro em
minha busca e tinha quase dez dias
― pois, como a maioria das pessoas,
examinei primeiro a parte externa.
A outra, uma grande e substancial
carta azul, que significava negócios.
Lembro-me agora da indiferença
com que abri primeiro o envelope de
324
luto. Havia tantos carimbos postais
nele que nunca me dei conta de sua
origem, algo que me teria esclarecido
de imediato.
Céus! O que foi que li? Um anún-
cio, cheio de perífrases, de arrepen-
dimentos formais, sobre a morte do
meu velho primo Jocelyn dez dias an-
tes. Dei um gemido poderoso ― posso
ouvi-lo agora ― e abri a segunda, a
carta oficial. Claro que eu sabia o que
era, claro que estava consciente de que
nada poderia interferir, e, no entanto,
a oportunidade do anúncio foi tal que
a natureza humana, habituada a ser
325
recusada, não me permitiu acreditar
na possibilidade. Então me levantei.
― Preciso ir ― exclamei ―, não
posso perder um minuto. Pare tudo…
não faça nada até que eu retorne, pelo
amor de Deus.
― Senhor Temple, o que aconte-
ceu? Charley ― disse Charlotte, pá-
lida de terror.
Ela pensou que outra catástrofe
havia acontecido, outra notícia fatal,
que eu não podia contar a ela. Mas eu
estava absorvido demais na minha
própria agitação para pensar nisso.
― Não faça nada ― fa lei.
326
― Encontrarei Charley no caminho e
contarei a ele. Tudo ficará bem, tudo
ficará bem; só espere até que eu volte.
Com pressa, corri para a porta,
depois voltei, sem saber o que fazia,
e a peguei nos braços antes que eu
percebesse ― não nos meus braços,
mas com as mãos em seus ombros,
segurando-a por um momento louco.
Eu mal conseguia vê-la por causa das
lágrimas nos meus olhos.
― Espere ― falei ―, espere até que
eu volte! Agora posso fazer o que ela
diz! Agora minha hora chegou; não
faça nada até eu voltar.
327
Deixei minhas mãos caírem so-
bre as dela, peguei-as e beijei-as num
tremor selvagem, sem explicação.
Então corri. Lembro-me de encontrar
as crianças e de ter deixado de lado
suas mãozinhas estendidas e suas
saudações matinais. Eram dois qui-
lômetros ou mais até o pequeno cais
onde o barco matinal levava as co-
municações para o mundo. Cheguei
ali às pressas, e mal voltei a mim até
que desci no barulho, na neblina, no
rugido das ruas úmidas, nas multi-
dões e no tráfego de Glasgow. No mo-
mento seguinte (pois o tempo voou, e
eu com ele, de modo que não prestei
328
atenção em sua passagem), eu estava
no clamor dos “negócios”, abrindo
caminho através da sujeira e da lama
de um grande pátio, com máquinas
espalhadas ao redor, entre as grandes
casas com suas janelas abertas, até o
escritório onde Charley, em conversa
com um estranho, deu um pulo de
terror ao me ver.
― O que aconteceu? ― exclamou
ele. ― Meu pai?
Eu mal tinha fôlego para lhe dizer
o que eu precisava.
― Seu pai ― exclamei ― recobrou
os sentidos. Você não pode vender
329
nada sem ele… tudo deve ser inter-
rompido agora.
Eu soube, com certeza, sem preci-
sar de qualquer prova, que o homem
com quem Charley estava conver-
sando, evidentemente um esportista
em todos os traços do rosto e das
roupas, era o futuro comprador de
Ellermore.
Lembro-me pouco da conversa
que se seguiu. Estava agitado e ani-
mado; pois nem Charley ficaria con-
vencido, nem o outro consentiria em
abandonar o acordo. Mas deixei meu
ponto claro. Como o sr. Campbell
330
havia recuperado seus sentidos, ficou
claro que nenhum tratado poderia ser
concluído sem seu consentimento.
(De qualquer forma, não teria sido
legal, mas suponho que de alguma
forma eles tivessem superado isso.)
Lembro-me de Charley se voltando
para mim com um protesto apaixo-
nado, quando, quase por violência
e obstinação, eu afastei seu compa-
nheiro.
― Não consigo entender, sr.
Temple ― disse ele. ― Enlouqueceu?
Meu pai deve consentir; não há como
questionar isso. Ellermore deve ser
331
vendida… para este comprador ou
para outro ― argumentou, suspi-
rando.
Peguei minha carta azul, que ha-
via enfiado no bolso, e entreguei a ele.
― É para mim que Ellermore deve
ser vendida ― falei.
Minha herança chegara. Não ha-
via nada de extraordinário nisso
― era o meu direito; mas nunca
uma herança chegou a mim em um
momento mais adequado. Charley
voltou comigo naquela tarde, de-
pois de uma reunião às pressas com
seus irmãos, que vieram até mim,
332
apertando minha mão até quase fa-
zê-la cair, e exclamando uns com os
outros, em seus tons baixos e suaves,
como trovões, que, acontecesse o que
for, eu era um bom sujeito, um verda-
deiro amigo. Se não tivessem sido tão
tímidos, teriam me abraçado, menos,
creio eu, pela sensação de escape de
um grande infortúnio que mal ha-
viam percebido do que pelo prazer
generoso no que consideravam uma
espécie de generosidade nobre. Essa
era a visão deles. Charley talvez fosse
mais esclarecido. Ele foi muito silen-
cioso durante a viagem, mas a certa
altura disse:
333
― Você está fazendo isso por
Chatty, Temple. Se você a levar em-
bora, será tão ruim quanto perder
Ellermore.
Balancei a cabeça. Então, se não
havia sentido antes, senti a desespe-
rança de minha posição.
― Só há uma coisa que você pode
fazer por mim: não conte nada a ela
― falei.
E acredito que ele assim o fez. Foi
por vontade própria que Charlotte
veio até mim depois da conversa
apressada em que Charley apresen-
tou-lhe minha proposta. Ela estava
334
muito séria, embora a doçura de seu
olhar arrancasse o coração em meu
peito. Ela estendeu as mãos para
mim, mas seus olhos extraíram todo
o significado caloroso desse gesto.
― Senhor Temple, você pode achar
ousadia minha dizer, mas somos ami-
gos e podemos falar. Se em sua grande
generosidade houver ainda um pen-
samento… um pensamento de que
uma mulher pode recompensar o que
foi feito por ela e pelos dela… ― Seu
belo semblante, lindo em seu amor,
ternura e nobre dignidade, mas tão
pálido, ficou subitamente corado. Ela
335
tirou as mãos das minhas e as jun-
tou. ― Isso está além do meu poder…
além do meu poder!
― Prefiro que assim o seja ― ex-
clamei. Deus me ajude! Era mentira,
e ela sabia. ― Não quero recompensa.
Serei recompensado o suficiente sa-
bendo que você está aqui.
E assim tem permanecido desde
então, e pode, talvez, ser assim para
sempre ― não sei dizer. Somos
queridos amigos. Quando acontece
alguma coisa na família, sou chamado
e tudo me é contado. E sou assim
também com ela. Conhecemos todos
336
os segredos um do outro ― aqueles
segredos que não são de fortuna ou
incidente, mas de alma. Existe algo
melhor no casamento do que isso? E
ainda assim há um anseio humano
por algo mais.
Naquela noite, voltei pa ra o
Caminho da Dama com uma espé-
cie de desejo doloroso de dizer a ela,
à outra, que eu havia cumprido sua
ordem, que ela havia sido uma ver-
dadeira guardiã de seu povo até o
fim. Andei de um lado para o outro
na hora escura, quando o sol deve-
ria estar se pondo, e mais tarde, já
337
no crepúsculo. A chuva caía suave-
mente, batendo nas folhas escuras
e intensas das sempre-vivas, caindo
direto nos galhos nus. Mas nenhum
passo suave de uma vivalma soava
na trilha desgastada. Chamei-a, mas
não houve resposta, nem mesmo a
resposta de um suspiro.
Será que ela havia voltado com
o coração partido para sua casa no
céu, reconhecendo, enfim, que não
cabia a ela proteger seu povo? Meu
coração dói por ela pensar assim,
mas ainda deve ter sido uma dor
doce e facilmente curada naquelas
338
regiões abençoadas, saber que aque-
les que ela amava estavam mais
seguros sob os cuidados de Deus
quando os dela falharam ― como
todo o resto deve falhar.

TH E E N D

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340
E X TR A: BIOGR AFIA

Margaret Oliphant
A obra de Margaret Oliphant é uma
leitura indispensável para qualquer
pessoa interessada nas mulheres do
341
século XIX, chegando a ser compa-
rada a Jane Austen e George Eliot.
Apesar de ter sido uma autora po-
pular em vida, sua obra pratica-
mente caiu na obscuridade após sua
morte, em 1897. Alvo de muitas crí-
ticas quando viva, seu trabalho vem
sendo redescoberto por leitores e es-
tudiosos dos escritores vitorianos.
Margaret Oliphant nasceu e viveu
até os dez anos de idade na Escócia
e, apesar de ter passado o restante
de sua vida em Liverpool, nunca
abandonou suas raízes escocesas, o
que se refletiu em diversas de suas
342
obras. Segundo sua biografia na BBC,
embora ela tenha vivido apenas por
curtos períodos na Escócia, grande
parte de sua escrita se passa no país
ou mostra uma preocupação com
temas escoceses, além de trazer, em
sua escrita, fortes conexões com a
tradição oral escocesa. Acredita-se
que Katie Stewart, o romance histó-
rico jacobino, seja baseado na histó-
ria familiar da própria autora.
Margaret Oliphant casou-se com
seu primo Frank Wilson Oliphant, e
acredita-se que tenha sido um casa-
mento feliz até conflitos familiares
343
abalarem o lar, com o envolvimento
de out ros membros da fa m í l ia
Wilson. Entretanto, em 1859, poucos
anos depois, ela o perderia para a tu-
berculose. Sem seu marido, Oliphant
se tornou a única provedora da famí-
lia, com filhos pequenos e uma pilha
de dívidas. Além do próprio núcleo
familiar, ela ainda seria responsável
por sustentar seu irmão Willie, al-
coólatra, e os três filhos de seu outro
irmão, Frank.
No século XIX as mulheres ainda
estavam começando a consquistar
espaços e existiam poucas opções
344
para que elas pudessem construir
uma carreira. Como outras autoras
da época, Margaret Oliphant vivia
de sua escrita. Isso significava que
ela precisava produzir e publicar em
grandes quantidades para conseguir
sustentar sua família. Entretanto,
por mais que ela tenha se tornado
uma das mais prolíficas autoras da
era vitoriana, sua produtividade a
colocou como alvo de críticas ferre-
nhas à qualidade de seu trabalho.
Essas críticas, infelizmente, eram
comuns a outras autoras também.
L.M. Montgomery, autora de Anne
345
de Green Gables e de O Lado Mais
Sombrio, publicado pela Wish, por
exemplo, também conseguiu fazer
da escrita uma carreira, mas preci-
sou produzir muito e foi criticada.
Sobre isso, segundo a introdu-
ção sobre Margaret Oliphant no
Victorian Fiction Research Guides, "ela
nunca baixou seriamente os seus
padrões, raramente se rendeu a es-
crever de acordo com uma fórmula e
estava sempre pronta para cumprir
uma encomenda e produzir um ro-
mance conforme exigido pelos seus
editores, sempre - ou quase sempre
346
- certificando-se de satisfazer a sua
própria consciência artística".
Também existe debate a res-
peito de seu posicionamento a res-
peito da luta pelos direitos das
mulheres e ao movimento feminista.
Ainda segundo a introdução sobre
Margaret Oliphant no Victorian
Fiction Research Guides, em seus
primeiros anos como autora ela não
demonstrava simpatia pelo sufrágio
feminino, entretanto, com o tempo,
ela foi mudando de opinião. Com o
passar dos anos sua mudança de po-
sicionamento foi se tornando visível
347
também em suas obras. Segundo sua
biografia na BBC, "grande parte de
seu trabalho posterior trata da injus-
tiça enfrentada pelas mulheres e é
uma crítica significativa aos valores
sociais do século XIX". Kirsteen, obra
publicada em 1890, se enquadraria
nesta categoria.
Seg u ndo Joh n Stoc k C la rke
em Margaret Oliphant Secondary
Bibliography, "a carreira de Oliphant
pode ser divida em quatro fases,
marcadamente diferentes na natu-
reza do trabalho que ela estava reali-
zando, na resposta dos críticos a esse
348
trabalho e no contexto cultural que
fornece o quadro para uma avalia-
ção desse trabalho e a resposta a ele".
De acordo com o autor, essas
quatro fases seriam: de 1849 a 1862,
período de primeiros romances que,
apesar da evidência do talento da au-
tora, Oliphant ainda estaria em um
processo de autodescoberta como ro-
mancista; de 1862 a 1876, período de
The Chronicles of Carlingford e seus
sucessores imediatos, em que sua
identidade como romancista estava
mais madura e ela foi sendo mais
reconhecida pelos críticos; de 1876 a
349
1890, quando os talentos de Oliphant
se aprofundaram e adquiriram uma
riqueza e complexidade que poucos
críticos conseguiram apreciar com
sucesso consistente, embora fizes-
sem cada vez mais referência à sua
criatividade inesgotável; e de 1890
a 1899, a década em que Oliphant se
viu cada vez mais fora de simpatia
pelo clima cultural, embora não na
opinião dos críticos e obituaristas.
Em 50 anos de carreira Margaret
Oliphant escreveu mais de 100 obras
de ficção, diversos contos, biogra-
fias e artigos, se tornando uma das

350
mais notáveis e distintas vozes do
romance do século XIX.
Publicado em 1897, O Caminho da
Dama é uma história eletrizante so-
bre uma companhia fantasmagórica
e, agora, chega para os assinantes da
Sociedade das Relíquias Literárias.

351
Profissionais
que trabalharam
neste conto

Karine Ribeiro
TR A DUÇÃO

Escritora premiada, tradutora e revisora,


graduanda em Tradução pela UFMG.
@karineescreve

352
João
Rodrigues
PRE PA R AÇÃO E
RE V ISÃO

Bacharel em Tradução
e especialista em
Produção e Revisão
Textual.
@jojsrodrigues

353
Dabus
ILUSTR AÇÃO

Dabus é ilustradora,
tatuadora e quadrinista.
Seu estilo combina o fofo
com o sombrio. @dabus.Ink

Marina Avila
PROJE TO G R Á FICO

Produtora editorial e
fundadora da Wish. Mãe
de gatos e de livros.
@marinalivros
Valquíria Vlad
COMUNICAÇÃO E
COMUNIDA DE

Escritora, pesquisadora
e publicitária formada
pela Universidade
Federal do Ceará (UFC).
@valquiriavlad

Laura Brand
ME DIAÇÃO E
PA R ATE X TOS

Editora, coordenadora
editorial, jornalista e
criadora de conteúdo.
Formada pela PUC-MG
e Columbia Journalism
School. @nostalgiacinza
355
Muito obrigada
por apoiar este
financiamento
coletivo!
Neste mês foi possível viabilizar a cura-
doria, tradução, revisão e ilustração do
conto The Lady's Walk! A cada mês de as-
sinatura, a Wish continuará resgatando
os tesouros do passado em novas edições
para os caçadores das Relíquias Literárias.

Vamos resgatar estes contos raros juntos?

Relíquia E-book 07/Out 2023

356
N O P R ÓX I M O M Ê S
Uma história sensível sobre
ciúmes, inveja e morte
Da mesma autora de
Mulherzinhas, Louisa May Alcott

357

Você também pode gostar