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YasminDeAndradeAlves Dissert

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA, CULTURA E TRADUÇÃO
LINHA DE PESQUISA: ESTUDOS CLÁSSICOS E MEDIEVAIS

YASMIN DE ANDRADE ALVES

O USO DAS ALEGORIAS COMO MECANISMOS DE SUBVERSÃO EM O


ESPELHO DAS ALMAS SIMPLES, DE MARGUERITE PORETE

JOÃO PESSOA
2022
YASMIN DE ANDRADE ALVES

O USO DAS ALEGORIAS COMO MECANISMOS DE SUBVERSÃO EM O


ESPELHO DAS ALMAS SIMPLES, DE MARGUERITE PORETE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras da Universidade Federal da
Paraíba, como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Letras.
Orientadora: Profª. Drª. Luciana Eleonora de Freitas
Calado Deplagne.

Área de concentração: Literatura, Cultura e


Tradução;
Linha de pesquisa: Estudos Clássicos e Medievais.

JOÃO PESSOA
2022
BANCA EXAMINADORA

______________________________________________
Profª. Drª. Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne – UFPB
Orientadora (Presidente da Banca)

______________________________________________
Profª. Drª. Maria Graciele de Lima – UFPB
Examinadora interna

______________________________________________
Profª. Drª. Maria Simone Marinho Nogueira – UEPB
Examinadora externa
AGRADECIMENTOS

Atingir um objetivo nem sempre significa seguir um caminho simples. O mestrado é um


grande passo que dou neste momento em minha vida, sobretudo ao concluí-lo em meio a tantas
adversidades. Jamais imaginei, em toda a minha existência, passar por tantos conflitos externos
e internos em um período de apenas dois anos. Também nunca cogitei que, naquela primeira
semana de aula da tão sonhada pós-graduação, em março de 2020, tantas coisas mudariam e
tudo viraria de cabeça para baixo. Lembro-me perfeitamente dos meus dois primeiros dias de
aula, ambos presenciais, nos quais havia a ameaça de uma pandemia, mas não levávamos tão a
sério, visto que o perigo maior parecia estar apenas do outro lado do mundo. Assim, mesmo a
empolgação sendo parte de quem sou, passar meses em casa, sendo pesquisadora entre quatro
paredes, olhando para uma tela de computador durante todos os meus dias, foram fatores que
tornaram o caminho mais tortuoso e desafiador. Porém, o desafio, assim como a empolgação,
também faz parte de mim. Pensei diversas vezes em como começar estes agradecimentos e não
encontrava palavras suficientes para definir o que sinto. Ao mesmo tempo em que sei do meu
potencial de realização e da minha força de vontade para concluir etapas, sei que não teria
conseguido sem algumas pessoas, às quais dedico estes agradecimentos.

Agradeço, primeiramente, às diversas forças que regem este universo do qual faço parte,
e que ainda são um mistério para minha compreensão, mesmo ainda as chamando de Deus.
Ironicamente, visto que sempre gostei de estudar a religiosidade, não me considero uma pessoa
religiosa, nunca fui. Porém, perante o caos, a minha esperança e minha crença de que o acaso
não existe me fizeram seguir em frente e pensar que tudo passa. Agradeço imensamente ao
fluxo da vida e tudo o que ela nos proporciona, mesmo reconhecendo que muitas das batalhas
que enfrentamos são provocadas por nós mesmos.

Agradeço à minha família, que é, ao mesmo tempo, meu porto seguro e minha grande
provação. Conviver em quarentena por inúmeros meses foi um grande desafio, mas foi uma
experiência que me fez descobrir que a família é, independente de tudo – e aqui considero
qualquer configuração familiar – a maior prioridade. Agradeço aos meus pais, Emmanuel e
Joelma, e ao meu irmão, Ismael. Cada um de vocês tem, individualmente, características que
me inspiram e sou grata por isso. Com certeza esta pesquisa não teria sido desenvolvida se não
fosse pelo suporte e pelos anos de investimento material e emocional.
Agradeço, em especial, à minha mãe, pois ela, além de compartilhar comigo a
experiência de ser mulher numa sociedade patriarcal, é a minha maior inspiração. A cada dia
em que pesquisei sobre o protagonismo das mulheres e como nós poderíamos subverter o que
acreditamos ser comum, minha mãe me mostrava que era possível, na prática, continuar
tomando as rédeas e assumir nossa independência. Ela me motiva a ser uma pessoa melhor e
cada vez mais interessada na minha própria autonomia. Ela me ensina, todos os dias, que eu
não nasci para depender financeira e materialmente de ninguém, muito menos quando se trata
de um cônjuge. Obrigada por ser o meu maior exemplo de mulher!

Às minhas amigas, Sofia e Suelen, muito obrigada por toda a presença e apoio.
Passamos por períodos complicados durante este desgoverno e a pandemia, mas os momentos
e as conversas com vocês tornaram tudo mais leve. De dicas de livros às opiniões de parágrafos
da dissertação, vocês melhoraram cada segundo do meu processo de produção científica. Esta
pesquisa tem um pouco de cada uma. Espero que tenhamos mais e mais anos de amizade. Amo
vocês!

A Janyne e Bianca, grandes amigas dos tempos da adolescência, obrigada pelo apoio.
Vocês são sensacionais e cada momento que tivemos durante esses dois anos de mestrado foi
imprescindível para que eu visse que ainda era possível ter um pouco de vida normal!
Acreditem, esta pesquisa não teria sido concluída sem as noites de vinho, as surpresas de
aniversário, as comemorações em torno do mais novo membro do grupo, Joaquim, e toda a
compreensão envolvida nesse grupo.

Agradeço às minhas amizades de longuíssima data, Lucas, Iviny e Carol, que o


Espiritismo aproximou e formou laços que jamais se desfazem. Saibam que vocês são
importantes para mim e que sou grata por todas as horas de conversas, filmes, passeios,
encontros poliglotas, e até mesmo aqueles desencontros (a vida adulta nos deixa menos
disponíveis para esses pequenos prazeres, infelizmente).

Agradeço a Plínio, o melhor amigo e companheiro que eu poderia ter. Se eu pudesse


resumir tudo o que ele já fez por mim nesses últimos dois anos e meio, ainda assim seria
insuficiente para expressar minha gratidão. Foram muitos PDFs, chamadas de vídeo, livros,
opiniões sobre minhas produções, além de risadas, séries, filmes, jogos, carinho, comidas e
quaisquer que fossem os afagos emocionais para que tudo ficasse bem em meio a tanta
ansiedade. Nunca imaginamos, em 2019, que passaríamos por tanto. Eu não chamaria de sorte,
mas posso afirmar que a vida foi generosa comigo ao me reaproximar de você. Ter sua
companhia neste período tão complicado melhorou a dificuldade de tudo. Você fez e faz a
diferença nos meus dias, sempre saiba disso!

Às amizades que fiz durante o mestrado, em especial Malu, Naíla, Soyama e Israela.
Obrigada pelos momentos de alegria. Achava que não seria capaz de me aproximar de ninguém
na vida virtual, mas vocês me provaram o contrário. Incluo, além disso, Zarqueu, que se tornou
um grande amigo e inspiração para mim, principalmente por me motivar a sair da zona de
conforto e encarar as responsabilidades, nem que precise tomar uma garrafa de vinho para tal.
Agradeço também à minha outra amiga Malu, da época do colégio, por ter se reaproximado, e
a Elayra, que está sempre presente, mesmo que não seja todos os dias.

Meus agradecimentos, ademais, ao CNPq e à CAPES, que são responsáveis por minha
trajetória enquanto bolsista ao longo da pós-graduação e integrante de grupos de pesquisa.
Espero que em pouco tempo tenhamos mais oportunidades e mais financiamento para a tão
necessária pesquisa científica. Os anos de 2020 e 2021 foram cruciais para demonstrar a
importância de investir em ciências, então me considero no dever de agradecer pelo
investimento.

Por fim, deixo meus agradecimentos especiais à minha orientadora, Luciana, que me
acompanha desde 2017, quando ainda estava na graduação. Luciana, você é uma professora
incrível e me considero extremamente privilegiada por ser sua orientanda. Além de ser uma
pesquisadora brilhante, és uma pessoa compreensiva, em quem deposito bastante confiança
para compartilhar minhas ideias, dúvidas e os problemas que surgem durante o processo de
pesquisa. Acredito que todo professor tem uma parcela de influência sobre a produção de seu
orientando, então é com muita gratidão que digo que esta pesquisa não teria sido feita sem o
apoio de uma orientadora como você. Espero que próximos orientandos venham e
compartilhem deste mesmo sentimento. Obrigada por estar comigo desde a graduação e por ser
essa mulher inspiradora!

Aos demais, toda minha gratidão. Espero continuar com tantas pessoas incríveis ao meu
redor, pois essas, sim, fazem a diferença positiva na vida.
"Eu defendo, sem equívoco, que existem escritas
marcadas; que a escrita foi, até agora, e de maneira
bem mais extensa, repressiva, mais do que supomos
ou confessamos [...], lugar no qual a mulher nunca
teve sua fala, sendo isso o mais grave e
imperdoável, já que é justamente a escrita a próprio
possibilidade de mudança, o espaço do qual pode se
lançar um pensamento subversivo, o movimento
precursor de uma transformação das estruturas
sociais e culturais”.
Hélène Cixous
RESUMO

As obras de autoria feminina produzidas no contexto da Baixa Idade Média exercem papéis
consideráveis na formação de uma consciência feminista e de reivindicações em torno da
reestruturação social. Considerando a propagação da mística feminina neste período, este
trabalho tem como objeto de estudo a obra O Espelho das Almas Simples e Aniquiladas e que
permanecem somente na vontade e no desejo de Amor, de Marguerite Porete (1290). Sendo a
obra (e sua autora) julgada por heresia pela Inquisição (1310), intenciona-se analisá-la, através
do método de pesquisa bibliográfico, em torno da tese de que a construção de seu discurso
subversivo em favor da remodelação da experiência espiritual deu-se por meio do uso
estratégico das alegorias em um contexto de opressão, usufruindo, do potencial político da
linguagem. Para tal, parte-se da ideia de que a subversão feminina dá-se em três planos: a)
através do contexto; b) do discurso; e c) da palavra escrita. Buscando desenvolver acerca do
protagonismo feminino medieval e da autoria e de revelar a importância do resgate de obras de
autoria feminina para a (re)construção de uma História das mulheres, leva-se em consideração
os movimentos mendicantes e a propagação das beguinas, bem como a organização social
francófona medieval. Neste sentido, a análise é desenvolvida com base nas três personagens
principais da obra, representadas por alegorias femininas: Alma, Dama Amor e Dama Razão.
Sendo assim, a pesquisa é fundamentada nos estudos acerca das alegorias e estudos feministas,
sobretudo os propostos por Hansen (2006), Tambling (2010), Ricoeur (2015), Fletcher (1970),
Newman (2005), Chance (2007), Rovere (2019) e Funck (2016), e nos estudos históricos
propostos por Le Goff e Schmitt (2017), Pernoud (1996), Bloch (2016), Power (1979), Simons
(2001), Lerner (1993), McGinn (2017), Dalarun (1990), Newman (1995), Delumeau (1978),
Verdeyen (1986), Kocher (2008), Deane (2011), dentre outros.

Palavras-chave: Literatura medieval; autoria feminina; alegoria; mística.


ABSTRACT

The works of female authorship produced in the context of the Low Middle Ages play
considerable roles in the formation of a feminist consciousness and demands around social
restructuring. Considering the propagation of feminine mysticism in this period, this work has
as its object of study the work The Mirror of Simple and Annihilated Souls, by Marguerite
Porete (1290). Since the work (and its author) was judged for heresy by the Inquisition (1310),
it is intended to analyze it, through the method of bibliographic research, around the thesis that
the construction of its subversive discourse in favor of the remodeling of the spiritual experience
it took place through the strategic use of allegories in a context of oppression, taking advantage
of the political potential of language. To this end, it starts from the idea that female subversion
takes place on three levels: a) through the context; b) the speech; and c) the written word.
Seeking to develop about the medieval female protagonism and authorship and to reveal the
importance of the rescue of works of female authorship for the (re)construction of a History of
women, it takes into account the mendicant movements and the propagation of the beguines, as
well as medieval francophone social organization. In this sense, the analysis is developed based
on the three main characters of the work, represented by female allegories: Soul, Love and
Reason. Therefore, the research is based on studies about allegories and feminist studies,
especially those proposed by Hansen (2006), Tambling (2010), Ricoeur (2015), Fletcher
(1970), Newman (2005), Chance (2007), Rovere (2019) and Funck (2016), and in the historical
studies proposed by Le Goff and Schmitt (2017), Pernoud (1996), Bloch (2016), Power (1979),
Simons (2001), Lerner (1993), McGinn (2017), Dalarun (1990), Newman (1995), Delumeau
(1978), Verdeyen (1986), Kocher (2008), Deane (2011), among others.

Keywords: Medieval literature; female authorship; allegory; mystique.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................................p. 12

CAPÍTULO 1 – A IDADE DAS MULHERES: PROTAGONISMO FEMININO E


AUTORIA NO CONTEXTO MEDIEVAL.......................................................................p. 16

1.1 Mulheres, Idade Média e a (re)construção do protagonismo feminino na


Literatura.......................................................................................................................p. 17
1.1.1 Relações sociais e econômicas na Baixa Idade Média...............................................p. 21
1.1.2 Diabólicas e Santas: mulheres e perspectivas cristãs..................................................p. 35
1.1.3 Grupos religiosos e transgressão social: mulieres religiosae e a vita apostolica.......p. 42

1.2 Autoria feminina e subversão: desvendando o texto de Marguerite Porete.............p. 55


1.2.1 Representações femininas e a produção literária: a religiosidade como caminho para a
subversão feminina....................................................................................................p. 55
1.2.2 Subversão das mulheres: perspectivas possíveis........................................................p. 63
1.2.3 O Espelho das almas simples e aniquiladas: a heresia poretiana................................p. 66

CAPÍTULO 2 – ALEGORIAS E MECANISMOS DE SUBVERSÃO NA LITERATURA


MEDIEVAL.........................................................................................................................p. 75

2.1 A alegoria medieval e suas manifestações: considerações preliminares....................p. 76


2.1.1 Alegoria dos poetas e alegoria dos teólogos: a perspectiva de Hansen......................p. 87
2.1.2 Os usos das alegorias nos gêneros textuais e o pensamento analógico medieval.......p. 92
2.1.3 As alegorias nos textos medievais..............................................................................p. 98
2.2 Subversão discursiva, discurso retórico e crítica feminista......................................p. 100

CAPÍTULO 3 – AS ALEGORIAS COMO MECANISMOS DE SUBVERSÃO NO


ESPELHO DAS ALMAS SIMPLES..................................................................................p. 112

3.1 O Espelho das Almas Simples: a construção do discurso poretiano através das
alegorias........................................................................................................................p. 113
3.1.1 Figuras alegóricas: Alma, Dama Amor e Dama Razão............................................p. 122
3.1.1.1 Alma........................................................................................................................p. 122
3.1.1.2 Dama Amor.............................................................................................................p. 126
3.1.1.3 Dama Razão.............................................................................................................p. 132

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................p. 137

REFERÊNCIAS................................................................................................................p. 140
12

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como corpus a obra O Espelho das Almas simples e aniquiladas, da
escritora Marguerite Porete, situada no contexto da Baixa Idade Média. A obra é considerada
um tratado místico e tem como temática o processo de aniquilamento da Alma, personagem
principal, para unir-se ao divino, através de sete estágios de aniquilação. Tendo como categoria
analítica as alegorias, a pesquisa é pautada nos enfoques referentes à autoria feminina como
forma de contestação de espaços e na tese de que as alegorias são utilizadas na obra de
Marguerite Porete como mecanismos para a construção de um discurso que subverte sistemas,
autoridades e formas textuais estabelecidas.

Considerando esses aspectos, esta pesquisa também teve como objetivo reconstruir a
concepção, através da análise de uma obra literária medieval de autoria feminina, a respeito da
escritura feminina medieval e de seu impacto na literatura mística, voltando-se para as formas
de expressão da religiosidade provenientes das mulheres que explanavam suas experiências
dentro de um contexto de silenciamento e opressão. Assim, ao longo do mestrado acadêmico,
foram realizadas pesquisas bibliográficas acerca desses escritos no contexto da Baixa Idade
Média e desenvolvidos estudos acerca da temática, sobretudo por meio de publicações e
participações em eventos acadêmicos.

Levando em consideração o discurso subversivo, houve foco na identificação dos


aspectos e das estratégias utilizadas na obra de Marguerite Porete e em outros exemplos de
autoria feminina, relacionando-as ao contexto e às relações de gênero inerentes a ele. Este
processo de pesquisa possibilitou o reconhecimento de outras produções de mulheres
medievais, bem como a contribuição de pesquisas em torno delas para a medievalística
brasileira. Dessa maneira, ao expor o impacto da obra poretiana na (re)construção da História
das mulheres, a pesquisa foi de encontro aos problemas de autoria, representação,
representatividade e autorização provenientes do ato de posicionar-se por meio da literatura em
contextos de opressão, destacando-se a linguagem mística.

Sendo fruto de anos de participação no Grupo de Pesquisa Christine de Pizan


(CNPq/UFPB), este estudo demonstra a necessidade de voltar-se para as obras ainda
desconhecidas das mulheres e questionar os motivos desse desconhecimento, com vistas a
modificar não apenas o cânone literário, mas todo o sistema que o sustenta e que o faz
13

prevalecer. Percebe-se, portanto, que esse questionamento é feito desde muito pelas místicas,
revelando um protagonismo feminino que vai além dos mitos que circundam as mulheres.

A pesquisa está dividida em três capítulos, sendo o primeiro intitulado “A Idade das
Mulheres: protagonismo feminino e autoria no contexto medieval”. Este capítulo, que tem por
objetivo principal contextualizar o corpus, está direcionado às mulheres medievais e à
(re)construção do protagonismo feminino na Idade Média, explanando acerca do contexto
medieval e de como elas ocuparam determinadas funções. Buscando adentrar mais nas questões
históricas referentes ao medievo, tais como a feudalidade e as formas estratégicas pelas quais
as mulheres conseguiram se expressar, a primeira parte do capítulo tratará a respeito das
relações sociais e econômicas na Baixa Idade Média, recorte temporal feito em razão da época
na qual O Espelho foi escrito e publicado.

Considera-se, inicialmente, que as relações sociais e econômicas na Baixa Idade Média


são definidas com base em diversos aspectos, mas principalmente em hierarquias de poder e na
terra. Além disso, há, ao contrário daquilo que normalmente se imagina, considerável
participação das mulheres na economia e no comércio, apesar da pouca influência política em
termos de tomadas de decisão. Porém, quanto a esse ponto, traremos à tona a contraposição
entre as mulheres ditas diabólicas e as santas, buscando visualizar de forma mais detalhada as
perspectivas cristãs em torno das mulheres e como este fator influenciou na propagação das
ideologias propagadas por elas em relação ao estilo de vida religioso e a própria experiência
religiosa. Importa destacar, além disso, a formação dos grupos religiosos e a participação das
mulieres religiosae na difusão da vita apostolica, observando esses fatos como princípios de
transgressão social e de insatisfação em relação ao sistema teocrático.

Ainda neste primeiro capítulo, teremos como segundo ponto principal a autoria feminina
e a subversão, a fim de desvendar o texto de Marguerite Porete e a história de sua autora,
condenada como herege relapsa após a insistência em divulgar a sua obra. Para desenvolver a
relação entre a participação feminina nos espaços de poder e a produção literária do período,
iniciaremos com informações acerca das representações femininas na literatura medieval
considerando a religiosidade como um caminho possível para a subversão feminina. A respeito
deste aspecto, adentraremos nas perspectivas possíveis para enxergar e identificar a subversão
na Idade Média, sobretudo nos textos literários. O exemplo principal de subversão que será
discutido é O Espelho das Almas Simples, que será embasado nos estudos sobre heresia, além
de ter seus pontos principais desenvolvidos ao longo do capítulo, juntamente à história de sua
autora. Sendo assim, nesta primeira parte da pesquisa, embasaremos nosso estudo,
14

principalmente, em Le Goff (2013), Le Goff e Schmitt (2017), Pernoud (1996), Bloch (2016),
Lamy (2015), Power (1979), Simons (2001), McGinn (2017), Lerner (1993), Bäuml (1980),
Dalarun (1990), Newman (1995), Beauvoir (2016), Delumeau (1978; 1989), Bolton (1983),
Opitz (1990), Bancel (2016), Spina (2007), Garí e Cirlot (2008), Field (2016), Verdeyen (1986),
Kocher (2008), Deane (2011), dentre outros.

O segundo capítulo, que tem como título “Alegorias e mecanismos de subversão na


literatura medieval”, corresponde ao desenvolvimento teórico acerca da categoria analítica
escolhida e será desenvolvido em torno da tese de que as alegorias são potenciais estratégicos
e mecanismos para construir discursos subversivos na literatura medieval. Para isto, a primeira
parte do capítulo trará considerações preliminares sobre a alegoria medieval e suas
manifestações. Intencionando trazer à tona questões relacionadas à autoria feminina e às
escolhas não arbitrárias realizadas pelas mulheres para exporem críticas relacionadas ao sistema
predominante na Idade Média (hierarquias eclesiásticas), serão explanados os conceitos em
torno das alegorias, do processo metafórico, das personificações e das convergências e
divergências entre as perspectivas possíveis para estudar esses elementos.

Dessa maneira, desenvolveremos nossa argumentação através da explanação conceitual


das alegorias, chegando às suas classificações possíveis, tais como alegoria dos poetas e
alegoria dos teólogos, buscando considerá-las no contexto medieval. Neste sentido, partiremos
para os usos das alegorias nos gêneros textuais e o pensamento analógico medieval, atrelando-
os aos exemplos de alegorias que encontramos nos textos medievais. Estes exemplos serão
explorados a fim de ilustrar como eram utilizados esses elementos e dentro de quais gêneros
literários eles estavam mais presentes.

Por conseguinte, ainda no segundo capítulo, adentraremos na questão da subversão


discursiva, do discurso retórico e da crítica feminista, visando a identificar os usos das alegorias
na escrita feminina medieval, considerando-as elementos literários e retóricos. Enfatizaremos,
portanto, por meio da crítica feminista, o potencial simbólico e o propósito político da
linguagem, de dizer o não dito, sobretudo quando estes provêm da autoria feminina. Por buscar
alcançar sentidos implícitos, as alegorias, elementos ligados à construção metafórica,
aproveitam imagens de significados comuns ao contexto e historicamente situados. Levaremos
em conta, desta forma, este conjunto de imagens levado ao leitor e a necessidade de analisar
sua recepção, tendo, por este motivo, O Espelho como principal caminho, considerando sua
repercussão negativa no período. Para o desenvolvimento teórico deste capítulo, utilizaremos
como base as perspectivas de Souki (2006), Ceia (1998), Hansen (2006), Tambling (2010),
15

Ricoeur (2015), Caetano (2007), Costa e Zdebskyi (2017), Eagleton (2019), Deplagne (2020),
Fletcher (1970), Franco Jr. (2008), Newman (2005), Chance (2007), Rovere (2019), Funck
(2016), e demais estudiosos.

Por fim, o terceiro capítulo, de título “As alegorias como mecanismos de subversão no
Espelho das Almas Simples”, tem como objetivo principal a análise da obra de Marguerite
Porete a partir da tese inicial acerca dos usos das alegorias. Esta análise será dividida partindo
das três personagens principais que compõem a narrativa, sendo elas a Alma, a Dama Amor e
a Dama Razão. Por serem figuras alegóricas, consideraremos que elas são ramificadas em
outras personificações, que correspondem às devidas ideias intencionadas pela autora.

Tem-se, desta maneira, um estudo sistematizado sobre a Alma e de que forma o livro é
organizado para dar abertura às coisas e seres representados por esta figura alegórica,
posicionando-a, por vezes, em situações nas quais a hierarquia social tão criticada por Porete
encontra-se no próprio processo de aniquilamento que leva a Alma a Deus. Por conseguinte,
partiremos para a análise da Dama Amor, que representa o amor divino e, em alguns momentos,
o próprio Deus. Neste ponto, buscaremos sistematizar as personificações relativas à Dama
Amor, a fim de organizar a forma com a qual Porete seleciona e atribui sentidos a elas, bem
como constrói a Dama Amor e quais as características escolhidas para que esta se torne a
personagem responsável pela escrita do livro e pelo andamento intencional da narrativa.

Sendo assim, a pesquisa tem sua finalização na análise da obra a partir da Dama Razão,
considerada antagonista na narrativa por ter sua identidade atrelada à Igreja (como instituição).
A Dama Razão é de suma importância na compreensão do discurso poretiano, pois é através
dela que o leitor é levado às repetições dos conceitos e ao desenvolvimento da ideia de
aniquilação. Ao contrário do que se espera, defenderemos que não é a Alma ou a Dama Amor
que tem papel fundamental para esclarecer a ideia de que os indivíduos devem seguir Santa
Igreja, a grande (Deus) ao invés da Santa Igreja, a pequena (igreja dos homens), mas, sim, a
Dama Razão, com toda a sua ignorância e dificuldade para apreender informações passadas
pela Dama Amor. É, portanto, essa Dama antagonista que, construída de forma a não conseguir
deter conhecimento suficiente, auxilia na subversão do discurso. Esta pesquisa é finalizada,
então, com a relação entre a antagonista e a audiência, autoria e a metalinguagem, com a
finalidade de autorizar um discurso, utilizando principalmente, além dos estudos vistos até
então, Kocher (2008), Lerner (1993) e Newman (1953).
16

CAPÍTULO 1

A IDADE DAS MULHERES: PROTAGONISMO FEMININO E AUTORIA NO


CONTEXTO MEDIEVAL

Ao falarmos de Idade Média, encontramo-nos imersos num imaginário que inclui


aspectos como ênfase na religiosidade, cavalaria, reinados, cortes, realezas, e demais imagens
que compõem esse período e demarcam-no como um cenário de conflitos, pragas, pestes e
inquisições, tudo envolto pelo característico poder da Igreja Católica e pelo modelo de
sociedade feudal. É inegável a quantidade de acontecimentos ocorridos durante o período
medieval – sobretudo pelo seu extenso intervalo de séculos, o que inclui também os eventos
negativos, que dão origem a grande parte dos mitos que o circundam.

Porém, nesse ponto, é preciso ressaltar que não exclusivamente de trevas foi feita a
temida Idade Média. Nesta pesquisa, consideraremos não apenas a marca temporal que abrange
aproximadamente mil anos de produções intelectuais (do século V ao século XV)1, sobretudo
na literatura mística, como também os avanços na tomada de consciência das mulheres para
ocupação de espaços, sejam estes políticos, religiosos, ou literários.

Neste sentido, e considerando uma maior contextualização, no primeiro tópico deste


capítulo, iniciaremos a (re)construção desse protagonismo, partindo de um ponto de vista mais
analítico sobre a História e indo em direção ao âmbito das religiosidades medievais. Neste
momento, serão discutidas as imagens associadas à mulher medieval, situada no dualismo
existente entre o diabólico e o divino dentro da perspectiva cristã. Atrelado a isto, seguiremos
para o estudo dos grupos religiosos não institucionalizados, muitos deles formados por pessoas
consideradas leigas pela ausência do conhecimento da língua latina. Neste tópico, serão
enfatizadas as mulieres religiosae e o fenômeno da vita apostolica.

Em seguida, a pesquisa partirá para as diferentes representações femininas e a produção


literária, buscando argumentar em torno da ideia de “caminhos cruzados”, posto que nem todas
as representações femininas na Idade Média possuíam a própria mulher como sua produtora e,

1 Há controvérsias em relação à extensão da Idade Média. Para alguns pesquisadores, como Jacques Le Goff
(2013), a Idade Média persistiu até o advento da Primeira Revolução Industrial, o que incluiria o Renascimento
como parte do período medieval.
17

simultaneamente, essas representações mudam de acordo com o fator da experiência; em outras


palavras, entrará em questão a autoria feminina e a autoria masculina na produção literária
diante dessas representações, que são conjuntas ao modelo social e às tendências políticas e
religiosas. Considera-se, assim, as mulheres dos séculos XI ao XIV e a influência do Amor
Cortês nas produções literárias, além de como a autoria masculina na representação das
mulheres impactou, desde Jean de Meun à Inquisição, no destino das mulheres e no advento da
caça às bruxas, tendo esta como ponto de partida a morte de uma das primeiras mulheres
queimadas pela Inquisição em 1310, Marguerite Porete, autora do corpus desta pesquisa,
condenada como herege relapsa.

Em seu segundo tópico, este capítulo tratará a respeito da autoria feminina e suas
relações com o que compreendemos como subversão, construindo um caminho para a obra
corpus desta pesquisa, O Espelho das almas simples e aniquiladas e que permanecem somente
na vontade e no desejo do amor (1290), da beguina mística Marguerite Porete. Neste sentido,
serão abordados: a) a religiosidade como caminho para a subversão feminina durante a Idade
Média, tendo como ênfase a mística feminina; b) as possíveis perspectivas acerca da subversão
das mulheres, pontuando características dessa subversão especificamente feminina e os motivos
pelos quais ela existiu e continua existindo nos dias atuais, sendo a Idade Média um contexto
de possibilidades e de opressão na Literatura, simultaneamente; c) a heresia poretiana através
do Espelho das almas simples, com ênfase na linguagem, na autoria e na subversão; d) a
construção da consciência feminista através dos escritos literários medievais e as consequências
de suas publicações; e, por fim, e) a autoria feminina e a não arbitrariedade dos elementos
retóricos utilizados no texto literário. Sendo assim, este capítulo busca contextualizar o corpus,
oferecendo um arcabouço histórico e crítico-literário em torno das ideias medievais
características acerca das mulheres, indo em direção a em que consistiam essas ideias, quais
suas raízes e o porquê do crescente antifeminismo medieval, que definia a mulher cada vez mais
por seu sexo.

1.1 Mulheres, Idade Média e a (re)construção do protagonismo feminino na Literatura

Voltando-se para o que se refere à produção literária e intelectual do medievo com o


olhar na autoria feminina, é preciso, inicialmente, compreender de que forma a sociedade feudal
é organizada, como propicia estes avanços, por que os propicia e quais são eles, posto que todos
esses elementos externos influenciam diretamente na produção literária e na escolha de seus
18

componentes. Além disso, é pertinente adentrar na própria noção de Literatura, posto que,
contextualmente, tem-se um grande foco nos estudos religiosos e na cultura cavalheiresca,
sendo grande parte das produções literárias voltadas para a temática do divino e do amor cortês,
além de ser pertinente ao debate presente entre o que seria um texto literário medieval,
sobretudo para o domínio da História.

É válido ressaltar que esses estudos embasam grande parte do conhecimento difundido
pelo poder político do Cristianismo pela Europa Ocidental durante o período, e o mundo
intelectual canônico 2 passa a ser amplamente desenvolvido entre os teólogos e clérigos, que
são, em suma, homens letrados (ou seja, que dominam a língua latina) e que exercem funções
politicamente influentes, que possuem conhecimento do Trivium e do Quadrivium, dos textos
clássicos, e valorizam, sobretudo, a Retórica, aspecto crucial para o desenvolvimento desta
pesquisa. Homens são citados por homens, no sentido de que o texto bíblico, sagrado para os
cristãos e considerado como um meio de ditar normas através do modelo teocrático de
sociedade e poderio, é interpretado a partir das visões e experiências de nomes como São Tomás
de Aquino, Santo Agostinho, São Paulo, Aristóteles (resgatado da Antiguidade e principal
filósofo utilizado para validação dos escritos religiosos), dentre demais exemplos notórios na
história medieval e clássica.

A respeito dessa forma de pensar no mundo medieval, Jacques Le Goff, trazendo à tona
a importância dos arquivos e dos produtos físicos para a reconstrução do medievo pela
historiografia (ou seja, a validação da História através do escrito), afirma que “sim, esta Idade
Média é feita de matérias, de produtos que se permutam, de desordens físicas e mentais”, mas
que a mesma também é “o tempo que se põe a transbordar de testemunhos da erudição e da
imaginação, onde se pode ouvir o que Roland Barthes chamou de ‘o documento como voz’.
[...] Também a pedra vive e fala” (LE GOFF, 2013, p. 32-33).

Para construir a História medieval e, aliada a ela, a concepção da produção literária


como um traço decisivo no direcionamento e no curso da História das Mulheres, seria preciso
dar ouvidos à voz do povo, pois este também é composto, logicamente, por mulheres. Porém,
majoritariamente, o que se perpetua é uma concepção androcêntrica dos costumes e das
tradições, perpetuada através da escrita. Assim, tendo por base a formação dessa(s) literatura(s)

2 É importante destacar que o conhecimento é proveniente de diversas camadas sociais. Neste sentido, nomeia-se
“mundo intelectual canônico” aquele produzido no âmbito eclesiástico. Por outro lado, o conhecimento produzido
pela comunidade considerada leiga e iletrada também se faz bastante vasto e essencial, como veremos no decorrer
desta pesquisa.
19

culturalmente inserida(s) no período medieval, é ressaltada por Le Goff a opinião de Michelet,


em seu La Passion comme principe d’art au Moyen Age (1852), que afirma:

Esta época está contida totalmente no cristianismo, o cristianismo na paixão [...]. Eis
todo o mistério da Idade Média, o segredo de suas lágrimas inesgotáveis e do seu
gênio profundo. Lágrimas preciosas, elas correram em límpidas lendas, em
maravilhosos poemas, e, amontoando-se no céu, elas se cristalizaram em gigantescas
catedrais que queriam se elevar para o Senhor! Sentados na margem desse grande rio
poético da Idade Média, eu distingo duas fontes diferentes pela cor de suas águas [...]
Duas poesias, duas literaturas: uma cavalheiresca, guerreira, amorosa; esta cedo se
torna aristocrática; a outra religiosa e popular [...]. A primeira também é popular na
sua origem [...]. (MICHELET, 1852, apud LE GOFF, 2013, p. 39)

Nesse sentido, partindo desses dois tipos de literatura (cavalheiresca e religiosa), a Igreja
e a Corte seriam os loci de poder que estabeleceriam o diálogo entre Deus e o indivíduo e entre
o senhor e seu vassalo, respectivamente; na literatura religiosa, seria a expressão concreta do
pensamento religioso e a ambientação dos estudos voltados à Teologia. Porém, é indispensável
ressaltar que a forma de vivenciar a religiosidade não era unicamente relacionada à Igreja. Da
mesma forma, os mitos cavalheirescos e a linguagem do amor cortês também não eram
unicamente relacionados à Corte. Apesar dos poderes políticos e econômicos, tanto da Igreja
Católica como do feudo, não se pode negar a influência de culturas populares na formação
dessas religiosidades e, com certeza, na organização da sociedade feudal.

Considerando essas influências e a ampliação das religiosidades, principalmente na


Baixa Idade Média, e o próprio sistema feudal como propiciador do movimento de
mercantilização e, atrelado a este, de urbanização, devemos iniciar o estudo acerca do
protagonismo feminino na Literatura medieval adentrando nas relações sociais e econômicas
desse período. Para compreender as questões em torno da autoria feminina durante a Idade
Média, é preciso situar a problemática de sua produção no contexto socioeconômico medieval,
que se assemelha diretamente ao religioso, posto que o período configura-se a partir do poder
teocrático.

Neste sentido, mesmo com a existência de uma classe econômica soberana, a dos
senhores feudais, que têm o domínio das terras e da mão de obra, ainda existe, na Baixa Idade
Média, um notável poder superior eclesiástico. Desta forma, para fins de estruturação, tem-se
como foco o contexto medieval francês, pois a França configura-se como o único país ocidental
que tem prevalecida a memória medieval nos planos cultural, político e religioso (LE GOFF;
SCHMITT, 2017, p. 599), além de ser cenário principal de difusão da obra literária que é objeto
de estudo desta pesquisa.
20

Inicialmente, muito se discute acerca do que seria a Idade Média. Por sua nomenclatura
de cunho desvalorizado, seria um “período intermediário” da História, sendo assim intitulado a
partir da vontade dos humanistas italianos do século XIV de retornar a um estado de “pureza”
do classicismo, no qual se prevalecia a autenticidade da língua e modelos reguladores do fazer
poético. A Idade Média, assim chamada por esses homens do conhecido Renascimento, seria
um período de muitos séculos de obscurantismo, de decadência intelectual, cultural e artística.

Como bem afirmam Le Goff e Schmitt (2017, p. 600), nesta concepção, o medievo é
“como uma interminável noite que os raios de sol do século XVI enfim dissiparam”. Sabendo
disso, é preciso romper com esses paradigmas impostos para uma real análise sobre o que as
produções escritas e literárias têm a nos esclarecer acerca da sociedade medieval e sobre a
influência de sua organização nos séculos posteriores, pois, assim como um discurso se
perpetua a partir de seu precedente, a sociedade também constrói seus alicerces por meio de
estruturas que são, muitas vezes, repetidas ou reinventadas. Desta forma, a Idade Média não é,
definitivamente, um período de obscurantismo.

Apesar de suas próprias limitações, que existem em todas as épocas, o período fez-se
palco de diversos avanços na literatura, na filosofia, na história, na arte, na medicina, dentre
outras áreas, sendo este fenômeno possível apenas e unicamente pela forma de pensar dos
indivíduos e pelas suas experiências, que incluem, naturalmente, as religiosas, políticas,
econômicas e sociais. Podemos afirmar que muitos desses avanços foram de grande
importância, sobretudo no que tange à emancipação feminina.

Precedendo um momento político aterrorizante para a História das Mulheres, a Caça às


Bruxas, a Idade Média também proporcionou a ocupação de espaços de poder por uma minoria
feminina, que deu luz à subversão das mulheres diante do sistema de poder teocrático. Essa
ocupação, porém, só foi permitida através de uma espécie de aproveitamento do próprio sistema
patriarcal. Isto significa que, diante de um contexto extremamente androcêntrico, no qual a
mulher não tinha, cultural e institucionalmente, a liberdade para exercer determinadas funções
– além de ser destinada a preencher lacunas dos padrões impostos, principalmente seguindo
regras e limitando-se a elas –, conseguiu-se, ainda assim, conquistar espaços de poder.

Assim, de forma bastante estratégica, grupos de mulheres utilizaram a organização


social da Idade Média em prol de sua própria emancipação, consciente ou inconscientemente.
Podemos citar como exemplo o caso de Guglielma, que viveu em Milão em 1260 e estabeleceu-
se como uma religiosa leiga que habita em sua própria casa. Sua prática de cura e sua santidade
21

conquistaram diversos seguidores, sobretudo cistercienses. Após a sua morte, seus seguidores
afirmaram que ela seria o Espírito Santo encarnado no corpo de uma mulher, “que iria reformar
a igreja e salvar judeus e marginalizados” (TELLES, 2021). Seguindo este pensamento,
Maifreda de Pirovano, papisa dessa igreja e responsável por realizar celebrações, foi presa pela
Inquisição, junto a outros seguidores, resultando na queima de todos eles na fogueira.

Outros exemplos de mulheres que protagonizaram e defenderam formas diferentes de


vivenciar a espiritualidade são notórios ao longo da História. Além da própria Marguerite
Porete, escritora da obra estudada nesta pesquisa, morta na fogueira em 1310 pela Inquisição,
temos o exemplo de Na Prous Boneta, beguina que vivia em Montpellier e também estabelecia
relações com a imagem do Espírito Santo reencarnado como mulher (neste caso, ela própria).
Segundo Telles (2021, p. 28), Na Prous foi presa em 1323 e “condenada à fogueira, com mais
vinte e duas pessoas, declarada herege e, raro para uma mulher, heresiarca, isto é, alguém que,
além de ter ideias heterodoxas, obtém sucesso em convencer os outros em suas prédicas”.

Sendo assim, e considerando esses exemplos de mulheres e os próximos que citaremos


a respeito de mulheres que, de alguma forma, subverteram a norma e sofreram alguma
consequência, seguiremos para a discussão acerca das relações sociais e econômicas na Baixa
Idade Média, contexto este que corresponde ao crescimento da sociedade urbana e dos grupos
religiosos informais, ou seja, que não estavam diretamente sob a jurisdição da Igreja Católica.
Nestes âmbitos, a emancipação feminina através da literatura mística ganha maior visibilidade
e as escritoras utilizam a seu favor as imagens difundidas das mulheres, suas representações, os
mitos que as circundam, os textos já propagados e populares de autoria masculina e a linguagem
popular através da língua vernácula.

1.1.1 Relações sociais e econômicas na Baixa Idade Média

O período medieval europeu ocidental tem como sustentação o feudo. Toda a sociedade
e sua organização giram em torno do sistema feudal e do poder que este propicia. O feudo é a
base não apenas da organização social desse medievo, mas também do início dos movimentos
de urbanização e da ascensão das diferentes religiosidades. De forma ampla, a noção de Europa
feudal nasce num contexto de representação dualista das relações pessoais, ou seja, um sistema
que cria dois quadros da sociedade medieval: de um lado, a ecclesia, dispositivo de toda difusão
ideológica predominante; de outro, o dominium, relação de “simultaneidade e unidade de
dominação sobre os homens e suas terras” (LE GOFF; SCHMITT, 2017, p. 499). Estes são
22

aspectos importantes a serem evidenciados de antemão a respeito de como se estabeleciam as


relações sociais e econômicas medievais, sobretudo para compreendermos de que forma eles,
inconscientemente, deixam espaços para mudanças por parte de uma minoria popular.

Como afirma Pernoud (1996, p. 13), por muito tempo acreditou-se na divisão social em
três ordens: clero, nobreza e terceiro estado, cada uma com suas próprias atribuições e separadas
umas das outras. Porém, na realidade histórica, e da mesma forma que observamos nos
documentos escritos, esta é uma hierarquia que busca explicar unicamente a distribuição das
forças de poder. Diferentemente do que percebemos nesta divisão, os meios comportam pessoas
de várias classes distintas, bastante misturadas entre si na vida cotidiana 3. A exemplo disto, “a
maior parte dos bispos são igualmente senhores; ora muitos deles saem do povo miúdo; um
burguês que compra uma terra nobre torna-se, em certas regiões, ele próprio nobre”
(PERNOUD, 1996, p. 13). Portanto, a hierarquização sistemática apresenta-se, na realidade,
não completamente verossímil ao comunitário, posto que há uma maior flexibilização a
depender da região.

No tocante à ecclesia, o todo institucional dominante do sistema feudal europeu, e


principal fonte para entender o pensar medieval das expressões da religiosidade, ela se mantém
como uma entidade estável, com regras explícitas e distribui aos membros de sua comunidade
papéis distintos. Desta maneira, concorda-se que a Igreja Católica “era uma instituição
dominante na medida em que todos os habitantes da Europa medieval estavam obrigatoriamente
relacionados com ela” (LE GOFF; SCHMITT, 2017, p. 501). Por outro lado, no que diz respeito
à produção agrária, tem-se, desde a Alta Idade Média, uma realidade de ruralização da
economia e da sociedade. Neste sentido,

a terra torna-se a fonte essencial de subsistência, de riqueza, de poder. Os atores desse


fenômeno primordial não aparecem na literatura da época. Mais até: eles se afastam
da literatura, após terem representado, se não os papéis principais, ao menos
personagens importantes nas literaturas grega e latina. Isso não vale apenas para a
massa camponesa. O dominus, eclesiástico ou laico, que se torna, ao menos desde o

3 Quanto à vida cotidiana medieval, Pernoud (1996, p. 161) destaca que há uma grande mudança de
comportamento ao longo dos primeiros séculos da Idade Média. Inicialmente, tem-se uma vida concentrada no
domínio do regime de autarquia feudal, em que cada corte busca sua autossuficiência. Existia, desta forma, uma
grande necessidade de defesa e de codependência entre as aldeias e o regime senhorial. Porém, a partir do século
XI, há uma tendência maior a concentrar a vida cotidiana nas ruas: “as novidades do dia, as decisões de polícia ou
de justiça, os levantamentos de impostos, os leilões ao ar livre, na praça pública, e também, mais correntemente,
as mercadorias para venda; a publicidade, em vez de se expor nas paredes em cartazes coloridos, é ‘falada’, como
na rádio dos nossos dias; muitas vezes, as autoridades locais veem-se mesmo obrigadas a reprimir os abusos e a
impedir os lojistas de ‘darem vozes’ de modo exagerado” (PERNOUD, 1996, p. 163). Percebe-se, então, o
crescimento da influência da oralidade e da comunicação do dia a dia nos ambientes públicos.
23

século V, em primeiro lugar, um possuidor de terras, quase nunca aparece enquanto


tal na literatura deste período. (LE GOFF, 2013, p. 168-169)

Isso significa que a literatura medieval é um conjunto de imagens que camuflam a


sociedade real, como um espelho deformador que reflete e seleciona desejos inconscientes (ou
conscientes) do coletivo, sendo este fundamentado em preconceitos, sensibilidades e interesses
diversificados de acordo com os grupos sociais do qual fazem parte. Estendidas para a
sociedade, essas imagens demonstram a complexidade das relações entre as classes que vão
surgindo provenientes da organização econômica (fundamentalmente rural) e,
consequentemente, do sistema feudal. Deste modo, a concepção de espelho deformador atrela-
se ao interesse coletivo de mudança, que será predominante na sociedade do século XIII, através
da grande difusão das ordens mendicantes e do movimento de urbanização.

Por conseguinte, compreender a sociedade medieval é estar a par de conceitos


relacionados a sua organização familiar. Todas as relações sociais na Idade Média têm como
pilar a estrutura da família, seja entre senhores e vassalos, ou entre mestres e aprendizes. Neste
momento, encontramos o interesse na linhagem, ligada a um grupo de pessoas, uma
comunidade, ou seja, uma grande família. O que importa, dessa forma, não é o indivíduo, mas
a linhagem, o domínio patrimonial e a defesa e administração, desempenhados pelo pai de
família ou pelo representante de cada âmbito.

O sistema de relações da sociedade medieval é, assim, desenvolvido de forma que haja


determinada centralização de poder, sendo este representado, em grande parte (se não
completamente), por figuras masculinas. A questão da linhagem na comunidade medieval é tão
presente que, segundo Bloch (2016, p. 136), “o mais bem servido dentre os heróis é aquele a
quem todos os guerreiros estão associados, seja pela relação nova e propriamente feudal da
vassalagem, seja pela antiga relação de parentesco”, ou seja, dois vínculos que são colocados
no mesmo plano e que prevalecem sobre os demais.

Por outro lado, os laços feudais não bastam nos laços sanguíneos. A sociedade de
parentelas e as relações de dependência pessoal que caracterizavam esse modelo eram, muitas
vezes, base para a relação estabelecida entre um indivíduo e seu chefe, ou seja, a vassalagem,
que tem suas raízes nos valores morais e nos interesses econômicos. Entretanto, diferentemente
deste ponto de vista, principalmente acerca da hierarquização da sociedade medieval, Bloch
(2016, p. 396) afirma que esse regime, ao qual podemos associar o feudo, a linhagem, a
vassalagem e a religiosidade, compunha uma “sociedade mais desigual do que hierarquizada:
de chefes, mais do que de nobres; de servos, não de escravos”. A problemática desta afirmação
24

se dá na desconsideração do fator centralizador das ideias em torno das trocas não apenas do
âmbito econômico, mas também do âmbito do conhecimento. Sem hierarquia não há
centralização, e afirmar que a sociedade medieval não fora possuidora e geradora de
centralização de poder significa negar os nomes ainda não descobertos pela história e que
ocuparam espaços relevantes – este é o exemplo das mulheres.

É preciso mencionar, ainda, que Bloch (2016), quando trata acerca da temática, refere-
se primordialmente ao período em torno do século X, focando na história medieval a partir dos
dados históricos acerca da influência cavalheiresca. São pontos de extrema relevância para a
compreensão dos resquícios que essa sociedade carrega ao longo do tempo, inclusive no
momento em que o próprio modelo está em queda, como é o caso da Baixa Idade Média.
Portanto, os laços estabelecidos entre as pessoas, voltados quase exclusivamente às questões
econômicas e religiosas, são fundamentais no entendimento dessa mentalidade e de suas
manifestações por parte dos seus sujeitos.

Quanto ao pensamento medieval, observa-se que o sujeito medieval é mais atrelado à


tradição, obedecendo à natureza, e buscando desenvolver aquilo que já existe. A isto se associa
o caráter empírico do modo de viver e de pensar: “a vida não assenta sobre princípios
determinados de antemão, são os princípios directores da existência que resultam das condições
a que esta é obrigada a adaptar-se” (PERNOUD, 1996, p. 194). Esse modo empírico pode,
inclusive, justificar bastante as tendências populares do período. A exemplo disso, prevalece,
por exemplo, o gosto pela poesia sem ornamentos, como forma natural de expressar-se. É algo
que faz parte da vida cotidiana e utiliza a linguagem comum, falada entre todos. Diferentemente
da concepção difundida na Antiguidade, o poeta é um homem completo, “não pensariam, como
Platão, em bani-lo da República, porque a poesia desempenha o seu papel na sua república, tal
como a eloquência na Grécia Antiga” (PERNOUD, 1996, p. 194).

Voltando-nos à questão da linhagem, no âmbito religioso, ela se daria por meio da


prevalência da centralização. Como observamos a partir da literatura medieval, a Igreja,
enquanto ecclesia, tem sua história intimamente relacionada à da própria Idade Média. Nos
primeiros séculos medievais, sua hierarquia organizada consolidou um espaço sólido para
atribuir funções e cargos a determinados homens e mulheres, que teriam, em teoria, o domínio
das ciências e, naturalmente, da Teologia. Politicamente, pelo menos na conjuntura francesa,

o papel dos bispos e dos mosteiros é capital na formação da hierarquia feudal. Este
movimento que leva a arraia-miúda a procurar a protecção dos grandes proprietários,
a confiar-se a eles por actos de recomendação (commendatio) que vemos
multiplicarem-se desde o fim do Baixo Império, só podia funcionar a favor dos bens
25

eclesiásticos [...]. Abadias como Saint-Germain-des-Près, Lérins, Marmoutiers, São


Vítor de Marselha, viram assim acrescentarem-se as suas possessões. Do mesmo
modo, os bispos tornaram-se frequentemente os senhores temporais de toda ou parte
da cidade da qual haviam feito a sua metrópole e cooperam activamente a defendê-la
das invasões. (PERNOUD, 1996, p. 81-82).

Ainda segundo Pernoud (1996, p. 82), Carlos Magno tem papel importante na
compreensão dos interesses que essa hierarquia institucional solidamente organizada
apresentava, sobretudo em relação ao Império, no início da Idade Média. Aceitando a
feudalidade, achou mais útil usufruir do poder dos senhores do que combatê-lo, “favorecendo
a exaltação da cristandade”. Apoiado em bases espirituais no estabelecimento de uma ordem,
podemos afirmar que a natureza de seu poder propagou-se e fortificou a formação da
mentalidade religiosa medieval. As razões também são, entretanto, econômicas. Desta maneira,
e indo além, concorda-se que o poder predominante do clero “resulta simultaneamente de fados
econômicos e sociais e da mentalidade geral da época em que a necessidade de uma unidade
moral compensa a descentralização” na primeira metade do período medieval (PERNOUD,
1996, p. 83).

Neste caminho, enfatiza-se que a Igreja carrega consigo a ideologia do medo,


principalmente dos pecados e das tentações. Porém, a dominação da riqueza, contrária a esses
temores, passa a ser parte do modelo teocrático, sobretudo em relação aos clérigos, ao passo
que o povo, contrariamente, passa a possuir preferência por aqueles que viviam com base na
pobreza evangélica. Sendo assim, denúncias sobre os abusos e os exageros possivelmente já
eram realizadas antes mesmo de críticas a esse respeito na literatura, como é o caso de alguns
escritores místicos, que defendiam uma vida de entrega ao divino sem intermediários.

A grande censura à valorização da riqueza material por parte da comunidade religiosa


laica é fortemente presente em suas próprias experiências enquanto grupo. Neste sentido, é
válido mencionar que os clérigos, alvo da centralização, formam um grupo que goza de
privilégios, inclusive dentro dos tribunais, fator associado a sua profissão e vida clerical. Isso
significa que é preciso levar como conceito principal essa vida clerical como preponderante na
definição de “clérigos” – estes frequentavam espaços de saber, tais como a Universidade,
tinham acesso aos mestres do conhecimento, fundamentalmente monges e padres, e submetiam-
se a obrigações como a interdição ao casamento.

Quanto às mulheres, temos exemplos notórios, mas, diferentemente dos espaços


ocupados pelos homens, encontramos a ocupação de espaços mais ligados à experiência
espiritual do que ao exercício do poder político direto (relacionado a tomada de decisões), ou
26

seja, mulheres que compõem a formação de uma identidade espiritual, de um modo de vida
religioso, mas que também estão situadas num contexto que propicia a difusão de seus
pensamentos. Temos, então, mulheres como Hildegarda de Bingen (monja beneditina do século
XII), Elisabeth de Schönau (também beneditina), Herrade de Landsberg (1125-1195), dentre
outras.

Assim, reitera-se que o Ocidente medieval, desde o século VII, principalmente em


países como Itália, Inglaterra e Irlanda, além de, posteriormente, o norte da França (Cambrai),
a Bélgica e a Alemanha, no que diz respeito à ocupação feminina religiosa, é influenciado pelos
conventos e mosteiros, que “formam universos espirituais constituindo centros de emergência
de altas figuras da espiritualidade feminina” (LAMY, 2015, p. 172. Tradução livre) 4.

Dentre esses exemplos, é preciso mencionar o caso de Hildegarde de Bingen, situada no


século XII, primeira abadessa beneditina reconhecida, que pode ser considerada um grande
fenômeno na política, na espiritualidade, na ciência e nas artes. Segundo Bynum (2015, p. 11),
citando a observação de Newman, “Hildegarda era profundamente diferente de figuras tardias,
tais como Catarina de Sena e Teresa de Ávila, as únicas mulheres levadas a sério como teólogas
ou como místicas pela Igreja Católica até recentemente”. Essa mística defendia uma “vida
monástica de obediência e de oração comunitária – não o asceticismo extravagante e
individualista de algumas mulheres medievais posteriores” (BYNUM, 2015, p. 11), citação esta
que é passível de críticas5. Apesar disso, Hildegarda

pleiteava em favor da pureza e do poder clericais, e defendia que as mulheres não


deveriam exercer o ministério sacerdotal, embora ela (virtualmente sozinha entre as
mulheres medievais) tivesse empreendido missões de pregação com aprovação
eclesiástica. Autorizada a escrever por ordem de Deus (como o eram muitas outras
mulheres medievais), Hildegarda dominava seus confessores, escribas e ilustradores
de um como incomum a santas, algumas das quais (tal como Isabel da Hungria e
Ângela de Foligno) eram tão controladas por seus confessores-escribas, que é difícil
saber se a piedade e até mesmo as palavras delas representam verdadeiramente a
mensagem divina que elas ouviram nos íntimos recônditos de seus corações.
(BYNUM, 2015, p. 11-12).

No âmbito econômico, é pertinente ressaltar a influência das mulheres nas atividades


comerciais locais e como eram configuradas e distribuídas estas atividades. A participação de

4 “[...] les couvents et les monastères forment des univers spirituels constituant des foyers d’émergence de hautes
figures de la spiritualité féminine”.
5
É essencial reconsiderar a afirmação de Bynum (2015, p. 11) em relação ao ascetismo das mulheres medievais,
considerado pela autora como individualista e extravagante. Sabe-se que as mulheres medievais foram exemplos
notórios de estabelecimento de relações com o mundo externo, sobretudo por transgredirem uma ordem de
comportamentos.
27

diferentes grupos na mudança econômica e, quase simultaneamente, cultural do modo de vida


impulsionou a facilidade da formação dos centros urbanos e o desenvolvimento das trocas
comerciais, que, contrariamente ao que se imagina, tem as mulheres também como
protagonistas. É compreensível que a participação feminina, nesse sentido, não seja
reconhecida da mesma forma que a dos homens, sobretudo pela História, afinal, a
(re)construção de uma História das mulheres passou a ser pensada de forma sistemática com o
advento do Feminismo e do resgate de mulheres que conseguiram ter participação ativa em seus
devidos contextos, o que tornou lenta, de certa forma, a compreensão sobre sua participação e
influência.

Dessa maneira, Power (1979, p. 13) enfatiza que é necessário buscar quais as fontes e
em que consistiam os ideais medievais característicos em torno das mulheres. Neste ponto, a
autora destaca a questão da opinião que persiste ao longo dos séculos e que se materializa na
história, representando, muitas vezes, o ponto de vista de uma minoria que possuía voz e que
era integrante das classes mais influentes, ou seja, a Igreja e a aristocracia. Assim, podemos
concordar que

as ideias sobre a mulher formaram-se, de uma parte, por clérigos – normalmente


celibatários – e, de outra, por uma pequena casta que possuía meios econômicos para
poder considerar suas mulheres como um objeto de decoração, enquanto as
subordinavam estritamente ao seu primeiro objeto de interesse: a terra. (POWER,
1979, p. 14. Tradução livre.)6

Apesar desse interesse voltado para a terra, é possível tomar como exemplo o caso de
regiões entre a França e a Alemanha, singularmente no período relativo ao século XII.
Consideradas regiões avançadas no quesito da urbanização, estima-se que nem o reinado
francês nem o império alemão tinham controle sobre as fronteiras de suas terras, o que
favoreceu um trânsito intenso entre os principiados e uma maior independência das principais
cidades, enfraquecendo os acordos feudais das grandes potências vizinhas (SIMONS, 2001, p.
01).

Essas principais cidades correspondem a áreas como Flandres, Brabant, Hainaut, Artois,
Namur, Liège, Cambrai e Luxemburgo, que foram, inclusive, palco para o surgimento de
diversos grupos religiosos, incluindo os formados por maioria de mulheres, tais como o das
beguinas. Dessa forma, é de grande importância reconhecer como esses fatores da

6 “[...] las ideas sobre la mujer se formaron, de una parte, por los clérigos – normalmente célibes – y, de otra, por
una pequeña casta que tenía medios económicos para poder considerar a sus mujeres como un objeto de adorno,
en tanto que las subordinaban estrictamente al primer objeto de su interés: la tierra”.
28

independência e do diálogo entre as cidades fortaleceu a participação feminina nas


movimentações econômicas do período e também na sua própria emancipação, sendo isto
relacionado também à difusão de escritos religiosos e posicionamento feminino diante do
sistema vigente e, consequentemente, à formação de uma tradição literária de autoria feminina
na Idade Média.

Quanto a essa região, concentrada no sul dos Países Baixos, ela se mostra fundamental
para entender o processo de urbanização no qual estavam inseridas boa parte dessas mulheres
religiosas, incluindo a escritora Marguerite Porete, a qual também teve – possivelmente –
participação ativa nos arredores de Flandres e Hainaut. Simons (2001), em seu estudo intitulado
City of Ladies: Beguine Communities in the Medieval Low Countries, 1200-1565, explicita que,
mesmo com tanta diversidade, proveniente da irregularidade do estabelecimento de fronteiras
e do trânsito comercial, essas regiões compartilhavam características importantes, as quais o
autor enumera: a) eram locais habitados por pessoas multilíngues, ou que possuíam
proximidade com as culturas românicas e germânica; b) foram dominados por cidades
poderosas e independentes; e c) sua maior parte da população era alfabetizada.

Esses três aspectos, segundo Simons (2001, p. 03), distinguem essa comunidade de
outras vizinhas, que eram majoritariamente rurais e monolíngues, além de criarem um ambiente
urbano propício para determinar seu tecido social, ajudando-nos a compreender melhor as
relações de gênero, trabalho e religião durante a Idade Média, o que inclui a própria relação
com a terra. Nesse caminho, e relacionando esses fatores com o feudalismo e as hierarquias
culturalmente instauradas na sociedade medieval, percebemos que as relações sociais passam
por intensa modificação a partir do século XIII. Deste período em diante, ou do final do século
XII, a comunidade europeia ocidental encontra-se, no geral, cada vez menos fragmentada, tanto
que alguns reinos poderosos, tais como os da França, Inglaterra e Sicília Normanda, passaram
a introduzir novas formas de administração, demarcando as origens do Estado moderno
(MCGINN, 2017, p. 17).

Economicamente, e também de forma abrangente, a Europa encontrava-se num período


de expansão econômica, com exceção dos períodos de guerra, peste e baixas colheitas, e estima-
se que o continente permanece nesse estado até o século XIV. A respeito do aspecto religioso,
McGinn (2017, p. 17) concorda que o mais significativo em torno dessa expansão (que é tanto
demográfica como econômica) “foi a urbanização dinamizada pelo crescimento dos negócios e
do comércio e pela transição gradual para uma economia capitalista baseada no dinheiro e nos
29

bancos mais do que a economia de escambo”7. No século XIII, o cristianismo viu a necessidade
de modificar suas estruturas, principalmente pelo fato de que era baseado no estilo de vida
religiosa do monaquismo beneditino, essencialmente ligado à vida rural e à estrutura feudal. A
estrutura feudal, em seu momento de declínio, não mais sustentava a necessidade social de
novas respostas e de reorganização, incluindo na vida religiosa.

Nesse processo de reorganização, o intercâmbio cultural entre os povos de diferentes


localidades, sobretudo falantes das línguas francesa e holandesa, abriram portas para uma maior
extensão das fronteiras políticas. Já não encontramos uma sociedade enraizada num sistema de
feudo restrito a determinadas normas de organização social, mas, sim, uma sociedade que está
em mobilização e desconstrói, aos poucos, a regularidade desse sistema.

Assim, reconhece-se o feudo, produto da feudalidade, a qual Bloch (2016, p. 394) afirma
ser um tipo social, como detentor de um papel importante nesse processo de urbanização, pois,
ao mesmo tempo em que diz respeito a um modo de divisão de trabalho e de propriedade,
também define normas de conduta e relações de gênero na comunidade pela qual é composto.
Mesmo com essa mudança de concepção, é preciso destacar que, “sendo a soberania de um
Estado bastante vasto concebida como a regra, qualquer atentado a esse princípio parecia
classificar-se como anormal” (BLOCH, 2016, p. 394).

É de suma importância perceber esse Estado como um locus regido pelo


androcentrismo, o que não se configura como uma novidade para os estudiosos; porém, o
aproveitamento de alguns pontos que caracterizam essa organização social é o princípio da
emancipação feminina. Isto demonstra que, mesmo sendo parte de um sistema, tornam-se
fatores subversivos quando utilizados por outras camadas sociais e, primordialmente, por um
outro sexo que exerce outras funções e está inserido em diferentes relações de gênero.

Antes de adentrarmos no fator da linguagem (crucial na análise do intercâmbio cultural


existente nas regiões francesa e belga e na repartição do feudo como um todo), reforça-se que,
ao mesmo tempo em que “é [...] como resultado da brutal dissolução de sociedades mais antigas
que se apresenta a feudalidade europeia” (BLOCH, 2016, p. 396), é a partir da dissolução – ou
modificação – desta que se fortalece o processo de urbanização e de ascensão de diferentes

7 A economia de escambo caracterizou o início da Idade Média e tinha como principal característica a troca entre
serviços e bens.
30

religiosidades. Nesse caso, a urbanização tem seus pontos positivos, posto que inclui uma
liberdade mais acentuada das ações e descentraliza, em certa medida, a religiosidade e o ensino.

Tomando um aspecto simples como exemplo, porém muitas vezes ignorado quando
tratamos da posse de terras e do domínio patriarcal, a respeito de que, segundo a lei feudal,
mulheres podiam ser proprietárias de terras, nota-se que o próprio desconhecimento desse
direito é uma forma de apagamento das experiências femininas. Conforme Power (1979, p. 23),
essa circunstância do matrimônio feudal, na prática,

levava implícita uma certa humilhação da mulher enquanto pessoa. Enquanto a Igreja
subordinava a mulher ao seu marido, o feudalismo a subordinava ao feudo. Todos os
matrimônios feudais de conveniência estavam governados de acordo com os
interesses da terra. (Tradução livre)8

Considerando que, na região correspondente aos Países Baixos do Sul, citados


anteriormente, o nível de urbanização avançou de forma bastante ampla em relação às outras
regiões próximas, é inegável que as mulheres exerciam diferentes atividades que giravam a
economia e integralizavam as cidades dentro de intercâmbios de saberes culturais diversos.
Estima-se que nas regiões de Brabant, Hainaut, Namur e Liège, consideradas bastante pequenas,
os complexos urbanos chegavam a envolver cerca de 30% da população total, se levarmos em
conta o intervalo entre os anos de 1338 e 1340 (SIMONS, 2001).

Sendo as cidades mais avançadas em termos de urbanização, elas têm esse processo
iniciado no século XII, momento em que mercadores e grupos mais abastados “desafiaram a
Igreja, que desde o início da Idade Média controlou todas as instituições educacionais e
estabeleceu escolas seculares que ofereciam instrução elementar em leitura, escrita e aritmética”
(SIMONS, 2001, p. 06. Tradução livre)9. Vale ressaltar, inclusive, que o nível de instrução
nessas regiões era bastante alto, a ponto de existir a oferta do ensino de latim para estudantes
mais jovens (entre 8 e 16 anos).

Esses são dados necessários para compreender também como a formação das áreas
urbanas propiciou a emancipação das mulheres nessa região, considerando que, carregando
resquícios da feudalidade, as mulheres estavam associadas à terra e à posse, além dos destinos
religiosos dados pelo poder teocrático. Nas regiões supracitadas, podíamos encontrar um alto

8 “[...] llevaba implícita una cierta humillación de la mujer como persona. En tanto que la Iglesia subordinaba a la
mujer a su marido, el feudalismo la subordinaba a su feudo. Todos os matrimonios feudales de conveniencia
estaban dictaminados de acuerdo con los intereses de la tierra”.
9 “[...] challenged the Church, which since the early Middle Ages had controlled all educational institutions, and
established secular schools that offered elementar instruction in reading, writing, and arithmetic”.
31

nível de alfabetização, incluindo as mulheres de camadas sociais alta e média. Além disso,
relata-se que as escolas eram mistas, sem divisão por gênero (tal como nas grandes cidades) e
sem indícios de que o nível de ensino era diferente para meninos e para meninas. Apesar disto,
no nível superior, principalmente ao longo do século XV, as mulheres de famílias mais ricas
recebiam formação por ensino domiciliar ou através de um convento, ao passo que os homens
eram enviados para estudos mais aprofundados.

No que tange a educação, levando em consideração a produção literária na região em


destaque, é preciso abrir um parêntesis em relação à educação das mulheres, além de
desenvolver mais acerca desse âmbito, que é vinculado diretamente aos processos econômicos,
políticos e sociais da sociedade medieval. Mesmo com uma determinada área urbana que
possibilita o ensino para as mulheres e sua participação ativa na sociedade, com determinada
independência econômica, não se pode deixar de reconhecer que, durante séculos, as mulheres
precisaram criar sua própria autorização para escrever e pensar, posto que os costumes e a
tradição definiam que esse tipo de atividade não era destinado a elas.

Portanto, ter uma função social no âmbito do pensamento e das ideias dizia respeito aos
talentos masculinos, imbuídos em liderança e autoridade. Na Idade Média, esse tema já é
questionado pelas escritoras apenas pelo fato delas publicarem suas obras 10. Assim, esse
incômodo quanto à falta de acesso à língua escrita e aos estudos de modo geral, impactou as
mulheres independentemente do meio em que circulavam ou em que período da Idade Média
elas se encontravam.

Tem-se o exemplo de Christine de Pizan, autora do livro A Cidade das Damas e pioneira
da querelle des femmes. Situada no contexto do século XIV, Christine defendeu a educação
para ambos os sexos e, considerando-a uma mulher culta e instruída, pode-se perceber em suas
obras, como veremos mais adiante, a grande capacidade de realização das mulheres ao terem
contato com o ensino – tal como qualquer indivíduo.

10 Marguerite Porete escreve, em sua obra O Espelho das Almas Simples (1290), ao tomar a posição de narradora
e autora do livro e expor a autorização que obteve por meio de homens da Igreja para publicar: “Eu, criatura criada
por aquele que cria, por cujo intermédio o Criador fez esse livro de si para aqueles que não conheço, nem desejo
conhecer, pois não devo desejar isso. É suficiente para mim se isso está no conhecimento secreto da sabedoria
divina e na esperança. Eu os saúdo por meio do amor da paz da caridade na altíssima Trindade, que os considerou
dignos de direção, declarando nele o testemunho de suas vidas pelo registro dos clérigos que leram este livro”
(PORETE, 2008, p. 229).
32

Gerda Lerner disserta a respeito da tomada de consciência por parte das mulheres a
partir da Idade Média e destaca a importância do debate iniciado por Christine de Pizan, que se
pautou em algumas questões principais:

[...] o debate conhecido como querelle des femmes, o qual Christine havia iniciado e
que se prolongou nos principais países da Europa e na Inglaterra por um período de
quatrocentos anos, centrou-se nas questões relativas à educação das mulheres: seriam
mulheres totalmente humanas? As mulheres seriam capazes de absorver educação,
exercitar a razão e controlar seus sentimentos? E se a resposta às duas primeiras
perguntas fosse positiva e as oportunidades educacionais para as mulheres fossem
equalizadas, qual seria o efeito sobre a vontade das mulheres de continuar seus
serviços sexuais e maternos para os homens e para as famílias? (LERNER, 1993, p.
195. Tradução livre)11

Além disso, e abrindo um grande parêntesis sobre a educação das mulheres, faz-se
necessário mencionar o posicionamento de Lerner (1993) quanto às divisões de tarefas sociais
entre os sexos masculino e feminino. Segundo a autora, a divisão de papéis por gênero e
fundamentada no patriarcado desde o princípio configura-se como produtora de desigualdades
nas taxas de realização, levando as mulheres e os homens a gostarem de atividades específicas
por serem educados para tais.

Ademais, essa desvantagem educacional sistemática das mulheres foi, para Lerner
(1993, p. 192), a causa raiz da percepção da inferioridade feminina. Justifica-se, portanto, a
busca pela equidade como principal caminho para emancipação feminina, principalmente
durante um período como a Idade Média, em que, tradicionalmente, mulheres não estariam
aptas a ocupar determinados espaços de poder, tais como o religioso. Desta maneira,
concordamos que o argumento principal em torno do direito à educação das mulheres nos
direciona a uma teoria de emancipação feminina e proporciona uma leitura diferenciada acerca
da influência da alfabetização em algumas regiões durante a Idade Média, podendo este fato ser
associado diretamente à produção literária de autoria feminina medieval e seu avanço.

Quase coincidentemente, nos séculos anteriores, quando debates como esse já estavam
timidamente surgindo nas obras de autoria feminina, tem-se uma gradativa mudança nos
métodos de educação. Um ponto importante a ser destacado é o surgimento da escolástica no

11 “[...] the debate known as the querelle des femmes, which Christine had initated and which continued in the
major countires of Europe and in England for a period of four hundred years, focused on questions pertaining to
women’s education: Were women fully human? Were women capable of absorting education, exercising reason
and controlling their feelings? And if the answer to the firsst two questions was positive and aducational
opportunities for women were equalized, what would be the effect on women’s willingness to continue their sexual
and maternal services to men and to families?”.
33

final do século XI e todo o século XII, que seria um método sistemático e mais científico dos
estudos em busca do entendimento da fé, estabelecendo-se, assim, uma contraposição entre a
teologia dos mosteiros e a teologia das escolas urbanas (sem desconsiderar a influência
simultânea entre elas).

Voltando-nos para as regiões mencionadas anteriormente, principalmente Flandres,


Hainaut e Brabant, o aumento do número de alfabetizados e consequente redução do número
de leigos não teve uma relação arbitrária com o surgimento das novas respostas religiosas, posto
que os grupos religiosos tinham amplo conhecimento dos textos sagrados, que eram escritos e
proferidos em latim. Apesar disto, segundo Bäuml (1980, p. 244), a partir do final do século
XII, “o aumento do uso da escrita em vernáculo, para fins literários e de documentação, rompeu
a ligação entre a instrução e o latim, e a literatura vernácula da tradição oral fez sua aparição na
forma escrita”.

Portando, nesse cenário de maior índice de alfabetização e de busca pelo acesso à escrita,
além da maior difusão das línguas vernáculas e dos intercâmbios culturais e econômicos
promovidos pela urbanização, as relações sociais na Idade Média e os papéis exercidos pelas
mulheres tornam-se cada vez mais interessantes de serem analisados. Simons (2001, p. 09)
observa significativamente que as mulheres representaram o maior número populacional nas
comunidades urbanas medievais e ressalta que esse fator não foi causado, como muitos
defendem, por uma maior mortalidade masculina (guerras, doenças ou violência pública), mas,
sim, por um maior índice de imigração.

O motivo principal da imigração para centros urbanos maiores teria sido a facilidade
para conseguir empregos, incluindo serviços domésticos. A maioria dessas mulheres faziam
essa mudança quando tinham entre doze e dezoito anos, ou seja, no período pré-nupcial ou
nupcial. Assim, a possibilidade de encontrar empregos nas cidades foi, conforme Simons (2001,
p. 09), “particularmente bom para as mulheres durante os séculos de expansão urbana nos Países
Baixos, ou seja, do século XI ao século XIII” (tradução livre)12, cenário que se modifica ao
longo dos séculos XIV e XV, que tendem a afetar mais economicamente as cidades urbanas e
passam a impor leis e decretos mais severos em relação ao estilo de vida das mulheres,
intensificando o patriarcalismo.

12 “The prospect of finding employment in cities must have looked particularly good for women during the
centuries of urban expansion in the Low Countries, that is, from the eleventh through thirteenth centuries”.
34

Dessa maneira, confirma-se que, ao contrário do que se pensa normalmente acerca do


papel feminino passivo durante a Idade Média, as mulheres foram ativas economicamente
durante esses séculos, mas, como alguns historiadores mencionam, não significa que foi uma
participação fácil. A respeito desse atrito, Simons (2001, p. 11) assinala que

fontes da prática jurídica nos ensinam que, por mais necessário ou produtivo que seja,
a aparição pública de uma mulher muitas vezes indica uma desordem potencial.
Algumas áreas da cidade com forte senso militar ou político assumiram até uma
identidade exclusivamente masculina, como aconteceu com as praças onde se reuniam
as milícias da cidade e as confrarias de tiro, e talvez também as muralhas da cidade.
As mulheres abundavam naturalmente nas praças do mercado, tanto como varejistas
quanto como compradoras, mas elas nunca poderiam chamar esses espaços de seus.
Em 1360, o magistrado da cidade de Bruxelas proibiu a eleição anual de uma “rainha”
pelas mulheres do mercado e as festividades femininas que as acompanhavam,
aparentemente porque isso levou à agressão contra os homens em anos anteriores. Em
outros espaços públicos, o comportamento de uma mulher estava obviamente sujeito
a restrições muito maiores do que o de um homem. Nenhum aspecto da presença de
uma mulher atraiu a ira dos homens mais do que sua aparência externa, representada
por seu vestido e sua fala. (Tradução livre)13

Na literatura, essas tensões podem ser encontradas nos fabliaux de língua francesa, que
foram escritos diretamente para o público das cidades (Artois, Hainaut e Flanders) e satirizavam
a situação das mulheres na área administrativa e financeira durante o século XIII. Por não serem
objeto de pesquisa, não iremos trazer à tona exemplos de fabliaux, mas importa, ainda assim,
mencionar sua existência.

Nesse sentido, o processo de urbanização e a emancipação feminina, além das


influências da religiosidade por meio da formação de grupos religiosos que não se encontravam
sob a jurisdição completa da Igreja, estão relacionados de forma que as mulheres conquistassem
uma posição que fosse além do sentido da feudalidade, ou seja, não mais a posse, a terra. Além
desses pontos, reforçamos que a religiosidade 14 e a educação dentro das próprias comunidades
religiosas tiveram grande influência na ascensão da literatura mística feminina, e o estilo de

13 “Sources from legal practice teach us that however necessary or productive, a woman’s public appearance often
signaled potential disorder. Some areas within the city imbued with strong military or political meaning even
assumed and exclusively male identity, as did the squares where the town militia and shooting confraternities
would meet, and perhaps also the city walls. Women naturally abounded on Market squares, both as retailers and
buyers, but they could never call these spaces theirs. In 1360, the city magistrate of Brussels prohibited the anual
election of a ‘queen’ by the marketwomen and its accompanying female festivities, apparently because it led to
agression against males in the previous years. In other public spaces, a woman’s behavior was obviously subject
to much greater constraints than was a man’s. No aspecto f a woman’s presente drew the ire of men more than her
outward appearance, represented by her dress and her speech”.
14 Apesar das imposições e limitações do Cristianismo sobre as mulheres, é importante ressaltar que a conquista
de determinada independência nesse âmbito constitui-se também como um fator de emancipação feminina, posto
que a sociedade era fundamentada nas práticas religiosas.
35

vida dentro desse contexto propiciou a formação de mulheres escritoras dentro do panorama
medieval.

Economicamente, por exemplo, as beguinas, das quais falaremos mais adiante, tiveram
o trabalho têxtil como primordial para sua independência e desenvolvimento de suas
comunidades, além dos insumos provenientes de doações. Sendo assim, e tendo como base
todos esses aspectos relacionados à vida produtiva, econômica e social, que eram (e continuam
sendo) de grande importância para o status de determinado grupo e, consequentemente, para
uma maior participação política 15, é necessário reconhecer quais as perspectivas em torno das
mulheres e como elas eram, de fato, vistas e levadas em consideração durante a Idade Média, a
fim de demonstrar de que maneira a autoria feminina mostrou-se subversiva em relação aos
próprios sujeitos que a protagonizaram, ou seja, as mulheres. É, portanto, neste sentido que
seguiremos para o próximo tópico deste capítulo.

1.1.2 Diabólicas e Santas: mulheres e perspectivas cristãs

Tendo como base a ascensão feminina através da religiosidade, faz-se importante


perceber, inicialmente, quais as concepções em torno da mulher medieval e sobre quais
fundamentos elas estão sustentadas. Conforme a tradição cristã, podemos dividir as mulheres
em grupos distintos: diabólicas (as filhas de Eva, protagonistas do pecado original) e santas
(filhas de Maria, cuja pureza deu à luz Jesus Cristo, a figura masculina central do cristianismo).

Nesta perspectiva, baseada num dualismo inerente ao medievo, encontramos diversos


estudos acerca das contradições envolvidas na associação da mulher a essa divisão do ser
feminino. Além disso, é preciso mencionar que essa perspectiva dualista rege a História das
mulheres na Idade Média, pois até mesmo a noção de heresia, difundida nesse mesmo período,
está diretamente associada ao comportamento feminino e suas práticas culturais, além de outras
questões, tais como o pecado, o casamento, o celibato e as normas de conduta em geral.

Neste sentido, Dalarun (1990, p. 29) disserta a respeito do monopólio masculino do


saber e da escrita, que é centrado no clero durante a idade feudal. Os homens, sendo monges ou

15 Segundo Howell (1986, p. 23), o papel de um indivíduo na produção econômica poderia significar muitas coisas
sobre um indivíduo, mas isto era bastante incerto. Poderia indicar sua situação econômica (riqueza), seu status
político (papel na política em geral), definir seus benefícios sociais, ou o tipo de treinamento que recebe para
exercer determinada tarefa. Ainda conforme a autora, essas associações não se mantiveram consistentes porque,
ao final da Idade Média, a produtividade de um trabalho e o valor econômico atribuível a ele estavam em rápida
mudança.
36

membros seculares, carregam consigo a responsabilidade de pensar a sociedade, que deveria


ser uma extensão da própria Igreja. Distante das mulheres e vivenciando o universo das escolas
de teologia, voltados para a vida dos monges, os homens detêm para si a imagem da mulher
mãe, dona de um corpo pecador e eternamente celibatária. Porém, esse distanciamento não é
atributo apenas dos homens da religião; a misoginia também faz parte das poesias laicas, do
mundo popular. Assim, Dalarun (1990, p. 30) questiona: além da ovacionada “bendita entre
todas as mulheres”, “as outras, todas as outras, o que recolheram elas de facto dos benefícios
desta bênção excepcional?”.

Dentro de uma tradição voltada para o homem e seu poder político, apesar de existir
uma certa quantidade de mulheres ativas e, como fora dito anteriormente, pioneiras de
movimentações urbanas e econômicas, as perspectivas cristãs foram definidoras de vários
processos relacionados às formações dos grupos religiosos femininos (e da formação de um
caráter transgressor para eles) e das representações femininas nas produções literárias (desde a
oralidade). Identifica-se, sob este aspecto, a presença constante do ideal de subordinação
feminina atrelado à voz passiva inerente à forma de viver e de ver o mundo. Indo além,
encontramos problemas de gênero que foram vivenciados por mulheres e, dentro do âmbito
clerical, ainda mais intensamente.

Assim, mesmo considerando o antifeminismo envolto nas perspectivas cristãs


tradicionais sobre as mulheres, partimos da ideia de que

o complexo de crenças e práticas que cercam a subordinação feminina, embora


infinitamente variável, parece constituir um dos poucos universais melancólicos a
serem observados na imensa gama de culturas humanas. O patriarcado não se originou
nem com os gregos nem com os hebreus, muito menos com seus herdeiros cristãos,
ainda que suas formas clássicas e bíblicas sejam as mais conhecidas dos herdeiros das
civilizações europeias (NEWMAN, 1995, p. 02. Tradução livre)16

Ou seja, mesmo sabendo que esses fatores não são exclusivos do cristianismo, é preciso
tomá-los como passíveis de críticas e, até certo ponto, como norteadores do contexto de
construção do discurso feminino e de seu caráter subversivo. Entretanto, antes de adentrarmos
nas concepções cristãs em torno das mulheres, e seguindo para a Idade Média Ocidental, é
possível encontrar esse complexo de crenças e práticas dentro das estratégias femininas de
evitar o silenciamento.

16 “The complex of beliefs and practices surrounding female soubordination, though infinitely variable, seems to
constitute one of the few melancholy universals to be observed across the immense range of human cultures.
Patriarchy did not originate with either the Greeks or the Hebrews, much less with their Christian heirs, even if its
classical and biblical forms happen to be those best known to the inheritors of European civilization”.
37

Newman (1995) defende que essas estratégias usadas por mulheres religiosas, ao serem
revisitadas e revisadas pela História, configuram-se como soluções contra a subordinação e a
manipulação dos papéis de gênero, sendo realizadas de forma conscientemente subversiva e
constituindo uma gradual cultura “pré-feminista”. Ao buscar explanar acerca do ideal da Deusa,
a autora ainda destaca que existem dois modelos de mulheres na Idade Média, sendo eles a
femina virilis (virago) e a imitatio Christi (mulheres de Cristo). Diferentemente da divisão
dualista feita anteriormente e defendida por Dalarun (1990) (mulheres associadas ao pecado
versus mulheres associadas ao sagrado), Barbara Newman (1995) postula esses dois modelos,
que são teoricamente opostos, mas que, na prática, combinam entre si, posto que ambos
oferecem opções às mulheres quanto a seguir uma vida espiritual sem obstáculos impostos pela
Bíblia17.

Neste caminho, tem-se femina virilis como o modelo preferido pelos homens ao longo
da Idade Média e que carrega o ideal do Novo Testamento, ou seja, de que o batismo revoga
todas as barreiras de gênero, classe e raça, formando uma retórica igualitária (NEWMAN, 1995,
p. 03). O batismo, nessa perspectiva, seria um designador de status social, separando aqueles
que são devotos ao cristianismo daqueles que são pagãos, e, quanto às mulheres, definindo
quais direitos teriam. Por outro lado, a imitatio Christi, predominante no marco temporal da
Baixa Idade Média, diz respeito às práticas da vida espiritual sobre as quais as mulheres
poderiam definir o estilo e as preferências (é, além disso, um indício de alto status espiritual).
É este modelo que prevalece na atmosfera religiosa do período.

Assim, e considerando esses dois modelos em torno das mulheres medievais,


compreende-se que, para elas, essa configuração poderia fornecer alternativas – e por isto
Newman (1995) as chama de “estratégias”. Estas duas “eram profundas, embora tenham raízes
diferentes na estrutura do pensamento cristão, mas oblíquas o suficiente para evitar ameaças
diretas e óbvias ao domínio masculino” (NEWMAN, 1995, p. 03). No quesito da femina virilis,
tem-se a virgindade como potencial para o estabelecimento de uma superioridade baseada na
passividade, na fragilidade e na limitação do corpo e da alma femininos, que aspiram ao ideal
de gênero da Santa Maria (e aqui encontramos a distinção entre Eva e Maria 18 fortemente
aplaudida pela comunidade que as cultua).

17 A autora cita o exemplo de Timóteo 2:12: “Não permito que nenhuma mulher ensine ou tenha autoridade sobre
os homens; ela deve permanecer calada”.
18 Vale ressaltar que um tema bastante estudado acerca de Eva e Maria gira em torno de que, segundo Isidoro de
Sevilha, autor das Etimologias que nortearam a visão dos clérigos medievais, Eva significa a desgraça, mas
38

Assim, uma mulher virgem poderia significar tanto alguém do sexo feminino que nunca
teve nenhum tipo de relação sexual (definição de Jerônimo), como também alguém que mantém
um relacionamento espiritual com Deus (definição de Agostinho). Apesar disso, a segunda
definição prevalece ao longo do final da Idade Média e suplanta gradualmente o aspecto físico.
Este ponto de vista permeia a literatura de formação, que leva ao leitor a representação de um
modelo feminino que, mesmo seguindo uma vida espiritual, continua sendo uma mulher, um
corpo desejável e mãe em potencial.

Além disso, carregada de alegorias, essa literatura traz a ideia de que a união com Cristo
– o casamento – é superior ao casamento terreno, no qual entram em questão a gravidez e o ato
sexual. Porém, ao mesmo tempo, algumas mulheres podiam enxergar certa vantagem no
casamento espiritual (com Cristo):

Como Peter Brown observou na Antiguidade, a vida virginal oferecia às mulheres


uma fuga do controle social investido no casamento, na procriação e nas redes de
relacionamentos sexuais, e na Alta Idade Média seus defensores ficavam contentes
em destacar esse apelo. A sátira antifeminista e o panegírico da virgindade expressam
a mesma suspeita de diferentes pontos de vista; a primeira assume que o controle
social é desejável, mas lamenta que não seja eficaz, enquanto a segunda nega que seja
até desejável. (NEWMAN, 1995, p. 34. Tradução livre)19

Dessa maneira, Maria é projetada na mulher, de forma que seu modelo passa a servir
como norteador das práticas culturais das mulheres e dos julgamentos em torno das próprias
pela sociedade. Paralelamente, sua inimiga, Eva, “a primeira mulher que surge sob a pena de
Godofredo de Vandoma por volta de 1095, inaugurando e resumindo todo o seu sexo”
(DALARUN, 1990, p. 34), exerce seu peso na visão medieval da mulher. Essa situação
desfavorável que põe a mulher enquanto Outro, um segundo sexo, é ressaltada por Beauvoir
(2016) no século XX, ao analisar a explícita contribuição da ideologia cristã na opressão da
mulher:

Numa religião em que a carne é maldita, a mulher se apresenta como a mais temível
tentação do demônio. Tertuliano escreve: “Mulher, és a porta do diabo. Persuadiste
aquele que o diabo não ousava atacar de frente. É por tua causa que o filho de Deus
teve de morrer; deverias andar sempre vestida de luto e de andrajos”. E santo
Ambrósio: “Adão foi induzido ao pecado por Eva e não Eva por Adão. É justo que a
mulher aceite como soberano aquele que ela conduziu ao pecado”. E são João

também a vita. Seguindo o mesmo ponto de vista, a partir do século IX Eva torna-se o anagrama de Ave, ou seja,
evocar Eva significa invocar Maria. (DALARUN, 1990, p. 39)
19 “As Peter Brown has observed of late antiquity, the virginal life offered women an escape from the social
control vested in marriage, procreation, and kindship networks, and in the high middle ages its advocates were
glad to highlight this appeal. Antifeminist satire and the panegyric of virginity express the same suspicion from
different points of view; the first assumes that social control is desirable but laments that is not effective, while the
second denies that it is even desirable”.
39

Crisóstomo: “Em meio a todos os animais selvagens não se encontra nenhum mais
nocivo do que a mulher”. (BEAUVOIR, 2016, p. 134)

Entrelaçado nessa ideologia, o feudalismo (e também o modelo capitalista dos séculos


que se seguem) classifica evidentemente a mulher à propriedade privada, à noção de terra
explicitada anteriormente. Estipula-se, inclusive, uma relação de servidão mais intensa nas
classes de possuidores de terras. Neste sentido, ao mesmo tempo em que Newman (1995) define
os dois modelos femininos medievais como estratégias para certa emancipação no meio
religioso, Beauvoir (2016, p. 141), em sua perspectiva feminista, afirma que “não foram nem o
feudalismo nem a Igreja que emanciparam a mulher”.

De fato, é inquestionável a relação de servidão nas classes mais elevadas, assim como a
maior autonomia das mulheres quando precisam exercer um papel econômico e social.
Entretanto, considerando a ideologia predominante e o discurso antifeminista que se propaga
durante os séculos seguintes, sobretudo o XV, é possível afirmar que não foram os sistemas
governados por homens que emanciparam as mulheres, mas, sim, que foram as mulheres,
através de suas estratégias, que implodiram o próprio sistema, ponto de vista que vem sendo
defendido até aqui. Portanto, é notório que os caminhos não se configuraram como facilitadores,
porém, tornaram-se meios pelos quais as mulheres puderam construir sua própria tradição.

Dessa forma, na imagem da Virgem Maria, a mulher encontra seu refúgio de pecadora
e seu exemplo. Paralelamente, a imitatio Christi segue-se como um modelo que inspira as
mulheres místicas, cuja vida espiritual é fundamentada no amor do aniquilamento da alma e na
infinidade de Deus. De forma oposta (porém também complementar) em relação à femina
virilis, a imitatio Christi deseja Deus incondicionalmente, colocando este desejo como um
desafio que deve ser aceito, sob pena de passar pelo sofrimento e pela ausência do amado. Tal
como em Hadewijch d’Anvers20, o desejo permeia as afirmações direcionadas ao divino em sua
paradoxal atração por este: “[...] Senti uma tensão tão grande do meu espírito que não poderia
me conter fora, no meio das pessoas, se tivesse saído. E esse desejo interior era estar unido com
Deus em fruição” (D’ANVERS, 2000, p. 14).

Um grande número de mulheres expressou seus sentimentos e suas ideias sobre Deus
por meio desse tipo de experiência mais íntima e centrada no próprio ser, menos universal, e
muitas delas foram as beguinas. Esse modelo de mulheres em Cristo trouxe de forma mais
incisiva a ideia de ser um nada diante da perfeição divina, mas esta não foi a única ideologia

20 Beguina mística do século XIII que escreveu livros de visões, nas quais encontrava Deus.
40

que transgrediu na tradição cristã. Considerando o sofrimento como uma demanda de amor, a
condenação ao inferno, tal qual é usada para proferir o medo no regime eclesiástico, não seria
passível de crença por parte dessas mulheres. Assim como afirma Newman (1995, p. 12),
“embora evitando uma afirmação direta do universalismo, várias mulheres expressaram dúvidas
ou desconforto palpável com a ideia de que Deus condenaria qualquer pessoa ao fogo do
inferno”.

É necessário pontuar que, nesse aspecto do modelo e da representação, a imitatio Christi


traz à tona o Amor Divino personificado em deusas, o que constitui uma figura importante nos
textos místicos medievais, sobretudo aqueles situados entre os séculos XII e XIII. Tem-se,
assim, a presença de uma figura feminina central – que pode ser nomeada Caritas, Fine Amour
ou Frau Minne – que altera profundamente a ideia tradicional existente da relação entre Deus e
a alma.

Originalmente, a mística nupcial, na qual prevalecem essas imagens, traz consigo a


imagem de um Deus masculino e uma alma feminina que têm uma relação erótica entre si. Ao
desconstruir essa noção binária e instaurar uma figura divina feminina e uma alma também
feminina, as mulheres passam a modificar estruturalmente a mística e a formar um estilo próprio
de compreensão do divino, materializada na mística cortês feminina, que tem como referência
principal o amor cortês. Essa veneração a um amor divino feminizado carrega o peso da
linguagem incompreendida, o que tem como consequência a dúvida da divisão do que seria a
ortodoxia e a heterodoxia, afinal, são mulheres cristãs que, mesmo seguindo os preceitos do
cristianismo e divulgando-os, propagam seus pontos de vista em relação a eles e mostram-se
como um perigo ao modelo vigente.

A análise teórica feminista de Simone de Beauvoir no século XX acerca da História das


mulheres, já citada anteriormente, também discute acerca dessas mulheres e da identidade
espiritual formada por elas. Apesar de voltar-se mais para a questão histórica e menos à questão
literária, Beauvoir (2016, p. 139) reconhece a dualidade entre as mulheres santas e as mulheres
diabólicas – ou, como Delumeau (1978; 1989) prefere nomear, “as agentes de Satã”.
Reconhece-se que “ante a Eva pecadora, a Igreja foi levada a exaltar a Mãe do Redentor. Seu
culto tornou-se tão importante que se pode dizer que no século XIII Deus se fizera mulher; uma
mística da mulher desenvolve-se [...] no plano religioso” (BEAUVOIR, 2016, p. 139).

Ademais, não se pode ignorar a existência da figura de Madalena, que fortalece o


discurso da salvação através da penitência e completa a tríade das perspectivas cristãs e das
41

imagens atribuídas às mulheres por essa doutrina. Tendo como agente representador o homem,
a figura madaleniana, assim como a de Eva e a da Virgem Maria, não compõe a reabilitação da
mulher na sociedade medieval. Madalena é compreendida como a pecadora na cidade: seu
pecado é a carne, afinal, ela se prostitui. Sua alma, fraca e passiva, de sexo frágil, é aceita de
bom grado por Cristo, a figura masculina, que a promove a corredentora e é a quem faz sua
primeira aparição ressuscitado para anunciar a boa nova (DALARUN, 1990, p. 48-49). Nesse
caminho, a identidade feminina espiritual é formada, dentro das influências do cristianismo, de
forma bastante heterogênea, mas, ainda assim, compondo uma unidade. Isso significa dizer que,
mesmo as mulheres seguindo um ou outro modelo, elas sempre seriam alvo da mesma
perspectiva que as toma como agentes do Satã.

Desta forma, antes de prosseguirmos para a essa construção da identidade feminina


espiritual, importa mencionar brevemente que grande parte das teorias desenvolvidas até os
dias atuais põe a mulher sob o espectro da castração proposta por Freud na psicanálise, como
analisa Luce Irigaray (2017) em seu conjunto de ensaios intitulado Este sexo que não é só um
sexo: sexualidade e status social da mulher. A ideologia em si, antes mesmo do surgimento da
teoria psicanalítica, já era internalizada no comportamento e na cultura patriarcal da Idade
Média e, por esse motivo, é citada de forma crítica por Newman (1995), Beauvoir (2016),
Delumeau (1978; 1989) e Lerner (1993). Sob todos os aspectos, a mulher é vista como uma
incógnita, um mistério, tanto por seu corpo físico como por sua alma; ela é vista, sobretudo,
através do medo.

Esse medo é fundamental para compreender, também, por que os discursos tornam-se
subversivos e se eles são provenientes de um medo ou de uma reação contra uma maior atitude
por parte dos grupos de mulheres. No âmbito da religiosidade, podemos dizer que a contradição
do cristianismo em relação às mulheres e ao comportamento de Jesus Cristo com as suas
seguidoras é explícita, o que demonstra o peso político de uma religião na busca por uma
sociedade homogênea. Jesus, conforme os escritos bíblicos (e tomando-os apenas como registro
escrito), teria se cercado voluntariamente de mulheres e as associa à sua atividade de pregação,
como narra Lucas: “Os Doze [apóstolos] acompanhavam-no, bem como algumas mulheres que
42

haviam sido curadas de maus espíritos e doenças: Maria, apelidada de Madalena [...]” (Lc VIII,
1-4 apud DELUMEAU, 1978, p. 429. Tradução livre)21.

Sendo assim, as perspectivas cristãs ligadas à ecclesia que prevalecem na Idade Média
em torno das mulheres são, principalmente, as de Tomás de Aquino – “a mulher é um macho
deficiente” – e de Agostinho:

Todo ser humano, declara ele, possui uma alma espiritual assexuada e um corpo
sexuado. No indivíduo masculino, o corpo reflete a alma, o que não é o caso da
mulher. O homem é portanto plenamente imagem de Deus, mas não a mulher, que só
o é por sua alma e cujo corpo constitui um obstáculo permanente ao exercício de sua
razão. Inferior ao homem, a mulher deve então ser-lhe submissa. (DELUMEAU,
1989, p. 317)

Apesar dessa diabolização da mulher e das consequências disso para a própria História
das mulheres (como a escrita do Malleus Maleficarum, que deu início institucionalizado à caça
às bruxas), há a ideia de que o Amor Cortês do século XII trouxe determinada ascensão à figura
feminina por colocar a mulher num pedestal. De fato, o fine amour “concedia a iniciativa às
damas e constituía uma maneira de triunfo sobre uma misoginia quase universal, sem por isso
negar a sexualidade” (DELUMEAU, 1989, p. 319). Entretanto, é preciso situar essa tradição do
amor das cortes tanto na literatura e na lírica trovadoresca como na própria sociedade.

Neste sentido, faz-se necessário primeiramente identificar os usos dessa tradição na


produção literária feminina e as formas pelas quais as ideologias dos grupos de mulheres se
manifestam. Para tal, e também a fim de contextualizar, reconhece-se o surgimento das
beguinas e de outros grupos itinerantes compostos por mulheres como um marco histórico para
a literatura de autoria feminina e para a verdadeira representação ativa da imagem da mulher.
Sendo assim, seguiremos para a discussão acerca dos grupos religiosos liderados por mulheres
e sua influência na transgressão social durante a Idade Média.

1.1.3 Grupos religiosos e transgressão social: mulieres religiosae e a vita apostolica

Na efervescente mudança econômica e social dos Países Baixos do sul e meridionais,


surgem simultâneas mudanças nas formas de vivenciar a religiosidade. Devido às diversas
influências externas e à crescente urbanização, além de um cada vez mais elevado índice de
alfabetização, essas regiões proporcionaram o desenvolvimento e a disseminação de ideias

21 «Les Douze, écrit saint Luc, l'accompagnaient ainsi que quelques femmes qui avaient été guéries d'esprits
mauvais et de maladies : Marie, surnommée la Magdaléenne..., Jeanne, femme de Chouza, intendant d'Hérode,
Suzanne et plusieurs autres qui les assistaient de leurs biens» (Lc VIII, 1-4).
43

dissidentes sobre o cristianismo e sua institucionalização e implementação através da Igreja


(SIMONS, 2001, p. 12).

Dessa forma, é a partir do século XI que presenciamos o nascimento da revolução


urbana, as movimentações de imigração e os intercâmbios culturais, que eclodem no século
XIII e concretizam novas formas de pensamento e de estilo de vida. Esses fatores
impulsionaram as iniciativas reformistas tanto na vida monástica como na vida religiosa, sendo
esta última mais relacionada aos movimentos populares, majoritariamente compostos por
leigos, que direcionavam suas críticas de forma explícita à Igreja.

Segundo os estudos de Simons (2001) e Bolton (1983), o surgimento dessas novas


respostas religiosas deu-se não apenas pela mudança cultural, mas também por causa das
próprias instituições da Igreja que não eram equipadas o suficiente para atender a todas as
demandas das pessoas que buscavam viver a vida religiosa. A isto se deve a credulidade popular
através da tradição oral.

Assim, sabe-se que o século XIII carrega consigo o declínio do feudalismo e a


monetarização da economia, incluindo a ascensão de uma nova classe social – a burguesia –
em oposição à nobreza. No panorama religioso, considera-se que a sociedade medieval era
extremamente ligada aos fenômenos da natureza e tinha consolidada a ideia de que a perfeição
espiritual só seria possível fora do mundo, pois este é o lugar dos castigos e dos sofrimentos. É
neste ponto que encontramos a vida de clausura dominante na mentalidade medieval e
determinante para sua tomada de decisão no quesito referente ao estilo de vida.

Sendo um período também de bastantes problemas, como pragas, doenças e guerras (e


por isso associado a uma “obscuridade” da História), o medo teria sido o principal motivador
para depositar a fé nos ensinamentos da Igreja, aumentando o poder desta instituição e,
consequentemente, a desconfiança do povo sobre determinadas práticas. Por estar
intrinsecamente relacionada ao âmbito político, algumas reformas foram importantes para a
intensificação da busca pela vida religiosa que fosse além da própria Igreja, a exemplo de uma
reforma eclesiástica proposta pelo papa Gregório VII durante o século XI 22, que intensificou o
poder papal.

22 O papa Gregório VII governou a Igreja entre os anos de 1073 a 1085. Com sua reforma, buscou combater a
imoralidade do povo e reduziu o poder do imperador Henrique IV, que se opôs à reforma por romper com a
submissão do clero ao Império.
44

Pode-se afirmar, dessa maneira, que este foi um momento primordial para o surgimento
das novas iniciativas religiosas, posto que alguns religiosos perceberam-se contra a conduta
clerical, que estava cada vez mais centrada no poder econômico e mais distante da vida proposta
pelos evangelhos. Ordens monásticas foram formadas durante esse período, tais como os
agostinianos, as carmelitas, os dominicanos e os franciscanos, muito antes de encontrarem
apoio na corte do bispo ou qualquer tipo de autorização institucional.

Esses grupos iniciais tiveram como ponto central o desejo pela vita apostolica, baseada
na pobreza voluntária, assim como a primeira comunidade cristã de Jerusalém descrita nos Atos
dos Apóstolos. Esse estilo de vida compreendia a rejeição dos bens pessoais, das riquezas, a
fim de abrir o indivíduo para a vida de perfeição em Cristo, que, segundo a Bíblia, aconselha
que “se você quer ser perfeito, vá, venda os seus bens e dê o dinheiro aos pobres, e você terá
um tesouro no céu. Depois, venha e siga-me” (Mateus 19:21).

É assim, portanto, que se aumenta o investimento desses grupos em obras de caridade


em troca das recompensas espirituais, que correspondem ao distanciamento dos valores terrenos
e à aproximação ao divino, longe dos valores temporais. Importa ressaltar que, assim como
afirma McGinn (2017, p. 22), “a nova etapa na compreensão da vita apostolica está
inseparavelmente ligada ao crescimento da heresia popular nos séculos XII e XIII”, o que
significa dizer que estamos diante do aumento de condenações populares e de maior
intensificação e radicalização do poder teocrático.

Apesar disso, o processo de aumento de grupos religiosos (principalmente de místicos,


como os cistercienses e as beguinas) foi gradual e teve seu auge no século XIII. É necessário
perceber que a vida apostólica tinha, além da pobreza, a pregação como principal prática
religiosa. A isto consistia ir a público, ou seja, levar os textos bíblicos e seus ensinamentos por
meio da linguagem comum para o alcance das pessoas. A problemática encontrada nesse
detalhe é a forma com a qual essa pregação era realizada, iniciando-se uma verdadeira disputa
proveniente do clero e da percepção de que o conhecimento teológico não poderia ser difundido
de maneira livre e aberta, segundo os clérigos.

Tem-se a existência de alguns registros escritos acerca das pregações, a exemplo da


Crônica de Laon (1177), que narra um episódio de pregação realizado por Pedro Valdez de
Lyon, um rico comerciante convertido em meados de 1170 e que começou a pregar
publicamente e a viver da pobreza após ter conhecido a história de Santo Aleixo:
45

[Valdez], [...] tendo feito um voto ao Deus do céu de daí em diante e por toda a sua
vida jamais possuir nem ouro nem prata, nem preocupar-se com o amanhã, começou
a reunir associados nesse modo de vida. Eles seguiram seu exemplo em dar aos pobres
tudo o que tinham e se tornaram devotos da pobreza voluntária. Pouco a pouco, tanto
em público como em particular, começaram a pregar contra seus próprios pecados e
os dos outros. (WAKEFIELD; EVANS, 1969 apud MCGINN, 2017, p. 23)

Além desse notável exemplo, podemos destacar Francisco de Assis e Clara de Assis,
personagens históricas e religiosas que propagaram e vivenciaram esse estilo de vida e
espiritualidade.

Nessa direção, o problema principal da pregação consistia no fato de que era uma
atividade dos bispos e dos sacerdotes, considerados sucessores dos apóstolos. Esses homens
tinham conhecimento da Teologia e da língua latina, além de ocuparem uma posição de poder
que os permitia decidir a sociedade e o funcionamento institucional da mesma, o que não era
possível – nem imaginável – para uma pessoa leiga.

Porém, voltando-nos aos grupos monásticos, podemos citar inicialmente o exemplo dos
monges beneditinos, que faziam voto de pobreza antes de entrar no mosteiro. Ao renunciar seus
bens, causavam um acúmulo de riquezas para o sustento do próprio mosteiro. Esse ideal de
pobreza pode variar de sentido a depender do grupo social que o realiza. Segundo Simons
(2001, p. 14),

o ideal de pobreza apostólica pode [...] ser realizado, com algumas restrições, como
um estado de espírito e não como um fato da vida. A pobreza voluntária era relativa
em outro sentido, pois os grupos religiosos que se diziam pobres o faziam,
obviamente, em relação a outros considerados ricos. Às vezes, as diferenças seriam
mínimas, mas, para a maioria dos pobres voluntários dessa época, o conceito de
pobreza implícita ou explicitamente contrastava com o estilo de vida dos “seculares”
da Igreja (bispos, párocos e membros da do baixo clero encarregado do cuidado de
almas e dotado de uma renda pessoal da propriedade da igreja); ou com os
representantes do monaquismo tradicional, que teoricamente excluíam a propriedade
pessoal, mas permitiam que seus adeptos vivessem com bastante conforto, enquanto
a comunidade era coletivamente dotada de propriedades consideráveis, senão
enormes. Em ambos os casos, escolher ser “pobre” significava questionar, em menor
ou maior grau, o regime de propriedade estabelecido pela Igreja. (Tradução livre)23

23 “The ideal of apostolic poverty might therefore be realized, with some restrictions, as a state of mind rather
than as a fact of life. Voluntary poverty was relative in yet another sense because religious groups who claimed to
be poor did so, obviously, in relation to others perceived as wealthy. Sometimes the differences would be slight,
but to most of the voluntary poor in this age, the concept of poverty implicitly or explicitly contrasted with the
lifestyle of the ‘‘secular’’ Church (bishops, parish priests, and members of the lower clergy entrusted with the care
of souls and endowed with a personal income from church property); or with the representatives of traditional
monasticism, which theoretically excluded personal property but allowed its adherents to live quite comfortably
while the community was collectively endowed with sizable if not enormous estates. In either case, electing to be
‘‘poor’’ meant to question, to a lesser or greater degree, the property regime of the established Church”.
46

Dessa forma, politicamente, compreendemos esse fato como uma estratégia de


concentração de riquezas por parte da Igreja, que começa, durante esse período de ascensão
religiosa, a instigar ainda mais um cristianismo pautado nesses fundamentos. Percebe-se a
contradição de interesses do período: a liberdade de pregação como princípio de uma vida
espiritual e a renúncia de bens como primordial para viver esta vida e, simultaneamente, para
sustentar a Igreja e os mosteiros e conventos. Entretanto, deve-se destacar novamente que o
encorajamento da formação de grupos mendicantes e da vida devocional durante o século XIII
teve grande responsabilidade da Igreja.

Quanto à participação feminina na formação de grupos religiosos, incluindo


principalmente os mendicantes, considera-se que havia mulheres eremitas e reclusas, além de
muitos grupos femininos que viviam em comunidades religiosas semelhantes às masculinas,
que eram sua contraparte. Encontramos, por exemplo, na Carta 211 de Agostinho, também
conhecida como Regula Sororum, aconselhamentos por parte do autor a respeito dos grupos e
formas possíveis de organização. Além dele, Jerônimo também faz seus aconselhamentos
acerca da abstenção da vida comum para alcançar a perfeição religiosa.

Na Alta Idade Média, a Regra de S. Bento não possuía determinações específicas para
as mulheres que viviam nos desertos egípcios ou em clausura, mas elas provavelmente também
seguiam alguma recomendação (BOLTON, 1983, p. 93). Ademais, no século X, a vida em
mosteiros era mais diferente que nos séculos seguintes. Durante esse século, encontramos
registros de mosteiros duplos dirigidos por uma abadessa e que dispunham de comunidades de
freiras e monges, porém, eles passaram a ser separados e os conventos de freiras tenderam a ser
pouco numerosos, com restrita admissão – geralmente compostos por mulheres da aristocracia
e, por este motivo, conservando a proteção aristocrática dos conventos.

Como se pode constatar, existe uma história bastante excludente em torno do acesso à
vida religiosa institucional, restrita a uma parcela da população que possuía bens e que, por
isso, conseguiam espaço no meio religioso – um verdadeiro controle do discurso, visto que este
é associado ao contexto de produção. Mesmo assim, na mudança de tendências durante o início
do século XII, concorda-se que a sociedade medieval estava sob circunstâncias nas quais “as
mulheres não iam aceitar a sua exclusão das novas formas de vida religiosa que estavam então
em desenvolvimento e que tinham como principal objetivo a prática da vida apostolica”
(BOLTON, 1983, p. 94).
47

Dessa maneira, com a grande busca pela vida religiosa, a quantidade de conventos
passou a ser insuficiente para as mulheres interessadas, o que gerou um grande impacto na
forma de vivenciar a religiosidade e na participação feminina nos novos movimentos e ordens
desse século, que eram majoritariamente masculinos e passam a ter seguidores de ambos os
sexos. É a partir de então que a emancipação feminina através da religiosidade se inicia, unida
à nova mística24.

Quanto a essa nova mística, podemos compreendê-la como resultado das novas
maneiras de compreender e apresentar a presença de Deus. McGinn (2017, p. 30) pontua três
aspectos que podem resumir os desenvolvimentos da mística do século XIII: 1) as “novas
atitudes quanto à relação entre mundo e claustro”; 2) “uma nova relação entre homens e
mulheres no caminho místico”; e 3) “novas formas de linguagem e modos de representação da
consciência mística”.

Segundo o autor, a primeira grande tradição mística cristã ocidental, ou seja, a


monástica, nasceu a partir de uma elite religiosa que busca um modelo da Jerusalém Celeste no
claustro. A essa mística latina primitiva atribui-se os nomes de Ambrósio, Agostinho e Gregório
Magno, todos monges que tiveram seus escritos preservados para serem lidos nos mosteiros.
No século XII, tem-se o nome do monge cisterciense Bernardo de Claraval e sua obra Sermões
sobre o Cântico dos Cânticos. Na concepção deste místico, que foi uma grande inspiração para
as beguinas e para os cistercienses como um todo, a experiência do divino dá-se através da
união amorosa com Cristo e cada alma é capaz de encontrar em si mesma a aspiração às núpcias
do Verbo (MCGINN, 2017, p. 30).

As diferenças entre a mística medieval primitiva e a mística que começa a se


desenvolver no século XII são bastante ligadas ao aspecto da democratização da experiência.
Para a última, todos os cristãos poderiam usufruir da presença divina através das experiências
cotidianas, não necessariamente dentro de conventos e mosteiros. A vida retida do mundo não
mais era vista como necessária para compreender Deus e para o indivíduo desapegar-se de si
mesmo.

Ao longo do século XIII e início do século XIV, essa ideologia é desenvolvida de forma
intensa pelo dominicano alemão Mestre Eckhart, que chegou a ocupar a cadeira de teologia na
Universidade de Paris, após redigir as Quaestiones Parisienses IV e V. Em seus sermões, deixa

24 McGinn (2017) utiliza o termo “nova mística” para se referir à mística da Baixa Idade Média.
48

explícito que Deus pode ser encontrado em todas as partes e pessoas, não necessitando de uma
imagem:

Mas Deus não necessita sequer de qualquer imagem, tampouco possui Ele qualquer
imagem que seja. Sem qualquer semelhança, intermediário ou imagem – Deus age
diretamente na alma: naquele chão mesmo do qual falávamos, onde imagem alguma
jamais penetrou, apenas Ele mesmo com o seu ser. Isto não há criatura que possa fazer.
(ECKHART, s/n, p. 4)

Esse místico foi de grande influência para os escritos de Marguerite Porete, que viveu
durante o mesmo período e também publicou uma obra. Eckhart fala a respeito do abandono da
alma, do desapego terreno e da experiência mística através de si mesmo, sem intermediários
(ou seja, uma visão intramundana, como afirmam os estudiosos). Apesar de seguir essa
perspectiva, é válido destacar algumas questões pontuadas por Rimlinger (2018, p. 36) acerca
das razões que levaram o Capítulo Geral a nomeá-lo para o cargo na Universidade de Paris, ao
passo em que a região de Estrasburgo (onde Eckhart inicia seus estudos e sua influência) estava
composta por mulheres que desejavam viver a fé cristã, mas precisavam ser supervisionadas.

Além disso, Rimlinger (2018, p. 37) também pontua o fato de que, ao desenvolver a
atividade de pregador popular para um público majoritariamente composto por mulheres (além
de ter estreita ligação com os conventos femininos), seus sermões, consequentemente, foram
pronunciados e divulgados por elas. Estes são aspectos importantes para observar até que ponto
a mística difundida por Eckhart e pelas mulheres místicas ocupam posições semelhantes a nível
religioso e social, ou até mesmo se podemos considerá-las da mesma maneira a nível
subversivo.

Porém, a fim de exemplificar o ponto de vista do dominicano, destacamos um de seus


textos escritos em língua vernácula, encontrado no Primeiro Sermão:

E deve se saber que por dentro a alma está livre e esvaziada de todo e qualquer
intermediário e imagem – eis porque a ela Deus pode se unir livremente sem forma e
sem semelhança. Se a pessoa diz que um mestre espiritual qualquer possui força, não
se pode atribuir esta força que ele quiçá possua, senão a Deus sem limites. Quanto
mais forte e cheio de recursos hábeis é o mestre, tanto mais expedito é o seu trabalho,
e tanto mais se constata a simplicidade com que realiza seu trabalho. (ECKHART,
s/n, p. 4)

Com vistas a retomarmos a questão social da mística e considerando que a esta passou
por um processo de democratização, importa reafirmar que muitas pessoas leigas tiveram
acesso aos ensinamentos cristãos, às leituras feitas acerca desses textos e ao estilo de vida
apostólica, que também estava ligado à própria filosofia da mística. A todos estes fatores deve-
se destacar o poder da língua vernácula em oposição à língua latina, assim como a formação
das ordens mendicantes e maior popularização dos grupos religiosos, como fora mencionado.
49

Dentre os diversos grupos formados, sobretudo os mendicantes, podemos enfatizar o


movimento das beguinas, as mulieres religiosae, que compuseram um movimento de mulheres
que, diferentemente de outros, não tinha qualquer dependência ou ligação com sua “parte
masculina”. Foi um grupo iniciado e pensado por mulheres, com direito próprio 25.

Há muito o que se dizer a respeito das beguinas e sobre sua influência na mística (ou vice-
versa), na política e na economia (consequentemente, também na literatura). Porém, é válido
mencionar primeiramente que a mística que se forma a partir do século XII promove mudanças
principalmente nos papéis de gênero dentro do campo religioso, sobretudo no quesito da
pregação. Simons (2001, p. 127) mostra-nos que entre 1260 e 1274, enquanto Giles de Orléans,
Rutebeuf, Guibert de Tournai e muitos outros lançavam seus ataques às beguinas,

pelo menos três mestres parisienses – Tomás de Aquino, Henrique de Gante e Eustácio
de Arras – debatiam se as mulheres podiam ser permitidas a pregar em público. Todos
os três argumentaram contra a proposição, alegando que as mulheres sempre foram
proibidas de falar em público sobre assuntos religiosos; que as pregadoras, por sua
própria aparência, constituiriam uma distração para o público masculino; que as
mulheres não tinham o treinamento, a habilidade natural para a sabedoria, a segurança
para serem confiáveis em uma posição tão responsável; e, finalmente, que as mulheres
por natureza eram subordinadas ao sexo masculino e, portanto, não podiam ocupar
uma posição de autoridade sobre eles. Como escreveu Tomás de Aquino, embora
algumas mulheres possam ter sido agraciadas por Deus com o talento e a sabedoria
para exortar outras, elas devem fazê-lo em particular, dentro de casa. (Tradução
livre)26

Mas estas reações – que já eram esperadas dentro do contexto sobre o qual estamos nos
situando – acerca do comportamento das mulheres nesse novo modo de vida mais itinerante
não foi exclusivamente contra as beguinas e também não foi de forma geral, mas, sim,
majoritária. Esta tradição de mulheres, que se desenvolve fortemente em Liège, teve o apoio de
figuras como Jacques de Vitry27, que as desenvolveu ao criar fundações de freiras cistercienses
e escrever acerca do quão santas seriam as mulheres ditas beguinas.

25 Segundo Bolton (1983, p. 94), as beguinas possivelmente foram herdeiras de um pequeno grupo, sobre o qual
se sabe muito pouco, composto pelas licoisae.
26 “Between 1260 and 1274, while Giles of Orléans, Rutebeuf, Guibert of Tournai, and many others, launched
their attacks on beguines, at least three Parisian masters—Thomas Aquinas, Henry of Ghent, and Eustace of
Arras—debated whether women could be allowed to preach in public. All three argued against the proposition on
the familiar grounds that women had always been prohibited from speaking in public on religious subjects; that
female preachers by their very appearance would constitute a distraction to a male audience; that women lacked
the training, the natural ability for wisdom, the reliability to be trusted in such a responsible position; and finally,
that women by their nature were subordinate to the male sex and therefore could not hold a position of authority
over them. As Thomas Aquinas wrote, even though some women may have been graced by God with the talent
and wisdom to exhort others, they should do so in private, within the household”.
27 Famoso pregador, foi o responsável por escrever a Vita de Marie de Oignies, na qual cita que, em torno de
1212, “muitas donzelas sagradas (sanctae virgines) se reuniram em lugares diferentes [da diocese de Liège]...;
desprezaram as tentações da carne, desprezaram as riquezas do mundo pelo amor do noivo celestial em pobreza e
50

Em seu estudo, Bolton (1983) reafirma a importância de reconhecer a história da


participação feminina em outros grupos mendicantes, até chegar nas beguinas. O primeiro
exemplo que a autora nos oferece é o das clunicenses e das beneditinas; regidas pela Regra
Beneditina apenas a partir do século VII, as freiras tinham uma relação bastante problemática
com as recomendações do beneditismo, que era bem menos favorável a elas que aos homens.
Em Marcigny, por exemplo, os padrões de disciplina eram bastante severos e,
consequentemente, muito criticados, especialmente pelos cistercienses. A rigorosidade na
clausura dentro dos conventos chegou ao ponto do papa referir-se às freiras como “pessoas
enclausuradas e mortas para o mundo de forma a poderem dedicar-se inteiramente a Deus”
(BOLTON, 1983, p. 96).

Além desses exemplos, houve a formação dos Cônegos Premonstratenses, ordem


fundada por Norberto de Santen, que atraiu multidões de mulheres nos Países Baixos e no Norte
da França e formou o mosteiro duplo de Prémontré no ano de 1121 (BOLTON, 1983, p. 98).
Ademais, Gilbert de Sempringham forma a Ordem Gilbertense, também na primeira metade do
século XII. Este grupo observava as práticas dos cistercienses e obteve grande interesse popular,
pois mostrava-se aberto a receber mulheres de todas as classes sociais, desde as mais pobres até
as da aristocracia.

Nas Constituições Gilbertenses, “as freiras obedeciam a uma regra beneditina


modificada que dava relevo a uma reclusão completa e à ausência total do canto e da música”,
ao passo que os cônegos “deviam obediência à Regra de Santo Agostinho” e “os irmãos laicos
ou conversi estavam organizados de acordo com regras cistercienses” (BOLTON, 1983, p. 99).
Sendo assim, a influência dos cistercienses foi inegável no estilo de vida desses grupos. Quanto
às freiras cistercienses, a partir do século XII elas formaram um número considerável de
seguidoras, mas eram rejeitadas por parte dos homens da Ordem, sob o argumento de que eram
muito frágeis para sustentar a aspera vita.

Nesse movimento de mudança cultural de concepção sobre os papéis das mulheres no


âmbito da religiosidade, reconhece-se que começa um grande período de florescimento da
mística feminina. Essas mulheres em Cristo, conforme nomenclatura dada por Newman (1995),
tiveram seu apogeu a partir do ano de 1200, mesmo com a presença de outras mulheres também

humildade, ganhando uma refeição esparsa com suas próprias mãos. Embora suas famílias fossem ricas, elas
preferiam suportar dificuldades e pobreza, deixando para trás sua família e a casa de seu pai, em vez de abundar
em riquezas ou permanecer em perigo em meio à pompa mundana” (VITRY, apud SIMONS, 2001, p. 35.
Tradução livre)
51

místicas, mas ligadas ao clero, como já mencionado. Forma-se uma verdadeira mística das
mulheres, com suas devidas especificidades e representações, bem como modos de experiências
diferenciados e linguagem específica, incluindo as alegorias e a forma com a qual estas são
usadas, além da intencionalidade estreitamente ligada à experiência feminina na Idade Média.

A respeito desta mística feminina, falaremos mais adiante, posto que está
intrinsecamente ligada às produções literárias e às formas de representação. O que se pode ter
como ideia primária é que essas mulheres ameaçam os homens da Igreja por estarem
ambiguamente posicionadas entre os religiosos e os seculares, os leigos e os eruditos. Chamadas
de trobairitz de Deus, elas “fundiram o discurso monástico do misticismo nupcial com o
discurso secular dominante do amor – o fine amour dos trovadores e poetas – para revelar novas
possibilidades para a alma em sua busca pela aventura divina” (NEWMAN, 1995, p. 12-13).

Para uma compreensão inicial, podemos afirmar que a mística baseada no fundamento
do amor cortês, ou seja, do amor mundano, que é a principal característica da literatura mística
de autoria feminina, considera Deus tanto do gênero masculino quanto do feminino, sendo desta
mesma forma com o amante de Deus. O amado poder ser visto como Cristo em sua forma
humana, como Dama Amor, como Trindade, ou mesmo como “fruição abissal”, ao passo que
o amante pode ser uma noiva, um servo, um cavaleiro ou uma alma aniquilada (NEWMAN,
1995, p. 13).

Mesmo considerando mística feminina como uma forma de emancipação das mulheres
através, principalmente, da literatura, há pontos de vista que divergem dessa concepção.
McGinn (2017) afirma corretamente que é preciso evitar generalizações acerca de uma única
mística característica e exclusiva de todas as mulheres, porém, ao longo de sua abordagem sobre
a reconstrução histórica do ponto de vista feminino, esclarece que no contexto da Igreja
medieval era “impossível para as mulheres criar novos modos de viver o Evangelho sem a
cooperação e a aprovação dos homens”, além de reforçar que, da mesma forma, “as vozes das
mulheres místicas medievais apenas raramente chegaram até nós sob a forma de uma destinação
direta escrita ‘do seu próprio ponto de vista’”; “o que nós ouvimos chega até nós sob a forma
de um diálogo no qual as contribuições de vozes masculinas e femininas estão ambas presentes
de vários modos, muitas vezes de um modo mutuamente enriquecedor” (MCGINN, 2017, p.
37).

De fato, os diálogos acontecem. Também é verdadeiro afirmar que muitas mulheres


precisavam da aprovação de figuras masculinas para exercerem determinados papéis ou terem
52

a possibilidade de expor suas ideias, como uma forma de validação (LERNER, 1993). Porém,
esquece-se do ponto primordial em torno dessa problemática: a autoria feminina é
primariamente, e sobretudo nesse período, ligada à experiência do sujeito mulher em seu
contexto. Isto significa dizer que, se um contexto é opressor e limitador da propagação de ideias
de determinado grupo (e aqui citamos especificamente o caso da Europa medieval ocidental), a
produção literária desse grupo será subversiva e terá sua autonomia. Não se deve, assim,
desconsiderar essa autonomia discursiva, inclusive pelos próprios exemplos de condenações de
heresia que se tem ao longo da história medieval. Apenas há heresia mediante a existência de
discursos que subvertem a ordem do esperado.

Seguindo adiante, a respeito das beguinas, podemos afirmar que sua formação se deu
principalmente nos Países Baixos, especificamente nas fronteiras dos principiados de Brabante
e Flandres, área também denominada de Lotaríngia, por volta do século XIII. Posteriormente,
as beguinas expandiram seu movimento em direção ao Norte da França e à região do Reno.
Consistiam num grupo laico de mulheres religiosas, de caráter urbano e sem regras definidas
de comportamento, muito menos um fundador ou figura de liderança 28. Por ser um movimento
bastante democratizado, não possuía relações de hierarquia nem exigiam normas de conduta
das suas seguidoras, tais como votos de castidade ou celibato (muitas delas eram casadas,
inclusive). O seu modo de vida era primordialmente de acordo com a vida apostólica, então elas
optavam por viver a vida de castidade ou continência, mas sempre com a renúncia a todos os
bens terrenos e dedicando-se ao ideal evangélico de pobreza. É possível dizer que sua origem
se deu graças à formação de grupos anteriores, tais como os cátaros, os cistercienses e os
premonstratenses, posto que as proximidades entre esses grupos são bastante evidentes.

Como dito anteriormente, o século XII presenciou o início do que, no século XIII, seria
uma grande busca pela vida religiosa. A exemplo da influência desses grupos anteriores às
beguinas, destacamos o fato de que as casas premonstratenses dos Países Baixos do sul
(Averbode e Grimbergen), por exemplo, incluíram um grande número de mulheres durante o
século XII, bem como diversas outras instituições de cânones regulares (SIMONS, 2001, p. 19).
Porém, diferentemente das beguinas, as freiras premonstratenses viviam extremamente

28 Lambert le Bègue, clérigo dissidente, foi por muito tempo considerado o “fundador” das beguinas, mas esta
ideia está errada e, segundo Simons (2001, p. 24), é apenas um produto de uma lenda construída nos meios
eclesiásticos locais de Liège por volta de 1250 e ressuscitado por historiadores do século XIX.
53

enclausuradas e subordinadas aos homens da comunidade, ou atreladas ao complexo monástico


de forma reclusa.

Quanto às mulheres cátaras (primeiro grupo a ser considerado herético, desde o século
XI), as evidências indicam que, nas comunidades da França e da Itália do século XIII, elas
ocupavam papéis de liderança, tanto como pregadoras quanto como professoras, o que diminuiu
quando os cátaros instauraram hierarquias de organização nas quais os homens acabaram
ocupando os espaços de poder. O problema dessa hierarquia também se dava pela própria
crença dos cátaros que impedia a igualdade de gênero no culto e na vida social (SIMONS, 2001,
p. 21).

De acordo com os estudos históricos realizados acerca do Catarismo, constatou-se que


as comunidades cátaras francesas incluíam com frequência condenações às mulheres em suas
pregações públicas. O corpo feminino seria um corpo vil, crença que tinha como consequência
a ideia de que a procriação, por aprisionar os espíritos humanos na matéria maligna (carne
humana), só poderia ser realizada por aqueles que eram deste mesmo patamar (ou seja, as
mulheres). Essa concepção em torno do corpo feminino era tamanha que aos homens
“perfeitos” (status dado dentro da própria comunidade) não era permitido tocar nas mulheres,
pois poderiam ficar poluídos.

Dessa forma, percebemos como o movimento beguino torna diferente a experiência


religiosa das mulheres e, mesmo com influências em torno da pregação e da vida mendicante
por parte de ordens anteriores, atribui um novo significado à experiência da vida espiritual e
protagoniza, de forma completamente autônoma e espontânea, a influência no espaço público.
É necessário destacar, além disso, que esse movimento não foi intencionalmente herético,
mesmo sendo acusado de heresia em seus anos finais. Segundo Bolton (1983, p. 103), “as
beguinas não fizeram exigências polêmicas ao clero e não levaram muito a fundo como os
heréticos a necessidade do mérito pessoal no sacerdócio” e “foram frequentemente confundidas
com os heréticos, especialmente porque foi das suas supostas filiações albigenses que o seu
nome derivou”.

Em relação à burocracia, Jacques de Vitry, interessado nas beguinas por enxergá-las


como potencialmente úteis à Igreja, conseguiu uma autorização em 1216 para que as mulheres
religiosas que não pertenciam a uma ordem se reunissem e vivessem em comunidades religiosas
(béguinages) na região de Flandres, mesmo após o decreto do Concílio de Latrão de 1215,
54

liderado por Inocêncio III. A partir de 1230, as beguinas expandiram-se de forma intensa.
Segundo Opitz (1990, p. 423),

o número das comunidades femininas que levavam uma vida semi-religiosa era ainda
mais elevado. Só a cidade de Colónia possuía, em meados do século XIV, 169
conventos de beguinas com cerca de 1170 residentes; em Estrasburgo havia na mesma
época cerca de 600 beguinas: pensa-se que nesta cidade a proporção de mulheres que
levavam uma vida religiosa poderia atingir os 10% da população feminina total.

Importa afirmar que a ausência de vínculos institucionais das beguinas deu-se no início
do movimento. À medida que começaram a adquirir propriedades, passaram a adotar
regulamentos para a vida em comunidade, que podia se manifestar na experiência dentro dos
béguinages ou de forma circundante no meio urbano. Ambos os estilos existiram e atenderam
a necessidades diferenciadas. Quanto às comunidades formais, que se expandem a partir da
segunda metade do século XIII, podemos afirmar que não teve tanta influência da autorização
do papa.

Antes de 1231, as beguinas de Cologne receberam cartas de proteção por meio de um


legado papal. Em 1233, o papa Gregório IX estendeu formalmente a proteção às beguinas da
Alemanha por meio de uma bula que chegou também às de Cambrai. Já em 1230, encontramos
a primeira menção ao beguinato mais antigo, o St. Mathiashof de Aachen e, com o passar dos
anos, outros foram instaurados em Valenciennes, Namur, Louvain e Ghent. Vale salientar que
não apenas as comunidades beguinas foram se expandido, como também, consequentemente,
seu estilo de vida, incluindo todos os centros urbanos dos Países Baixos, chegando fortemente
na França (principalmente ao norte) e na Alemanha (também ao norte).

Além disso, dentre as instituições de beguinas, o tipo mais comum era o convento, “uma
associação de beguinas que viviam juntas ou próximas umas das outras sob a orientação de uma
única superior, a ‘senhora’ (magistra) ou prioresa” (SIMONS, 2001, p. 50. Tradução livre) 29.
Nesses casos, as beguinas obedeciam a determinados regulamentos e, muitas vezes, estavam
sujeitas à autoridade do pároco por prestarem serviços religiosos na igreja paroquial.

Indo além das regras de instituição, não podemos deixar de mencionar La règle des fins
amans, datada do final do século XIII e escrita em língua francesa para as beguinas da região
parisiense. Esse texto é imerso nas metáforas do amor cortês e detalha como funcionava a vida

29 “[...] an association of beguines living together or in close proximity to one another under the guidance of a
single superior, the ‘‘mistress’’ (magistra) or prioress”.
55

das beguinas. Segundo Bancel (2016, p. 69. Tradução livre) 30, não se trata de um texto cheio
de prescrições, “mesmo que faça alusão à maneira de vestir, de conversar, de orar, ou de
relacionar-se com o ‘padre’ ou a ‘madre espiritual’”. O texto menciona, sobretudo, “a atitude
interior e o significado espiritual de ser beguina, verdadeira amante de Jesus Cristo, o ‘abade
dos amantes’”.

A Règle é de fundamental importância também para perceber o apreço das beguinas


pelas línguas vernáculas e o abandono do latim para expressar a experiência espiritual, além de
ter como modelo a literatura laica trovadoresca do amor cortês, utilizada principalmente pelos
cistercienses. Este ponto é crucial para adentrarmos na subversão feminina através da literatura,
estipulando como principal exemplo a escritora do Espelho das Almas simples, Marguerite
Porete. Sendo assim, prossegue-se para a discussão acerca da autoria feminina e da produção
literária medieval quanto às representações das mulheres, perpassando aspectos como a
formação da identidade espiritual feminina, a religiosidade como forma de transgressão, o uso
das línguas vernáculas, a heresia feminina e a literatura mística de Marguerite Porete.

1.2 Autoria feminina e subversão: desvendando o texto de Marguerite Porete

Considerando o estudo realizado no primeiro tópico deste capítulo acerca do contexto


medieval e da participação e do protagonismo femininos em diversos âmbitos da sociedade,
tais como a economia, a religiosidade, a literatura e a vida privada, percebemos que existem
relações entre os estilos de vida da Idade Média (e seus resquícios, tais como a feudalidade) e
as formas pelas quais as mulheres buscaram impor suas formas de pensamento e reivindicar
seus espaços. Neste tópico, aprofundaremos essas formas de reivindicação, sobretudo através
da autoria feminina e das produções literárias do período medieval, buscando desvendar
aspectos da literatura mística a partir do exemplo de Marguerite Porete, escritora do corpus
desta pesquisa.

1.2.1 Representações femininas e a produção literária: a religiosidade como caminho para a


subversão feminina

30 “[...] aunque sí aluda a la manera de vestir, de conversar, de orar, o de relacionarse con el ‘padre’ o la ‘madre
espiritual’. Pero, sobre todo, menciona na actitud interior y el significado espiritual de ser beguina, verdadera
amante de Jesucristo, el ‘abade de los amantes’”.
56

A literatura medieval tem como tema bastante recorrente o amor cortês, principalmente
por este estar relacionado à própria cultura medieval e suas concepções sociais formadas pelo
feudalismo e pelas figuras que encontramos protagonizando as narrativas, como os cavaleiros
e as damas, o senhor feudal e a própria Igreja. Neste sentido, faz-se importante perceber que as
representações femininas na literatura são, muitas vezes, condicionadas a uma tradição na qual
a mulher tem seu papel determinado. Há pontos de vista que se mostram favoráveis à figura
feminina no sentido de demonstrar seu papel ativo no poder de escolha e tomada de decisão,
porém, como veremos, esse fato ocorre majoritariamente nas produções de autoria feminina,
que se distanciam, muitas vezes, das novelas de cavalaria, levando-nos ao seguinte
questionamento: seria a tradição cortês, predominante no período, realmente um princípio de
emancipação feminina?

Antes de tudo, é preciso compreender o funcionamento da cultura literária medieval e


como ela teve o seu desenvolvimento até desencadear nas formas que encontramos na Baixa
Idade Média, sobretudo na literatura mística. Tendo como base o estudo sistemático de Spina
(2007), que sintetiza de forma objetiva a literatura medieval, seus tipos, temas, formas e
evoluções, podemos afirmar que há uma grande diferença entre a literatura da Alta Idade Média
e a da Baixa Idade Média. De fato, a literatura não é homogênea, mas, considerando a sociedade
medieval como mais ligada às tradições, há uma grande tendência da literatura, sobretudo a
canônica, de seguir determinados padrões temáticos e estilísticos.

Na Alta Idade Média, por exemplo, encontramos o predomínio de uma literatura


essencialmente monástica, que pode ser limitada aos poemas litúrgicos e às narrativas
hagiográficas. Neste período, vários fatores, como o alto número de pessoas não alfabetizadas
e a dificuldade de produzir materiais escritos, promoveram a predominância da oralidade, ao
passo que a produção escrita, “privilégio dos mosteiros, compreendia formas de expressão que
foram, em grande parte, superadas ou substituídas depois do século XI” (SPINA, 2007, p. 16).
Assim, temos alguns gêneros históricos, como as hagiografias, as biografias, além dos gêneros
de semificção, como as tragédias, as comédias, as sátiras e as elegias.

Ademais, conforme Spina (2007, p. 17), dentre as formas mais duradouras durante esse
período, apenas a epístola poética é de maior interesse para a lírica trovadoresca dos séculos
posteriores. No âmbito da oralidade, as produções giravam em tornos dos contos, das canções
amorosas e de demais tipos de canto – porém, vale ressaltar que as produções orais sempre
foram bastante condenadas pela Igreja. As formas e os sentidos alegóricos também se faziam
57

fortemente presentes na literatura da Alta Idade Média; tem-se como exemplos a égloga
alegórica, os carmina figurata31 e as altercationes32.

Na passagem temporal estabelecida pelos estudiosos entre a Alta e a Baixa Idade Média,
ou seja, entre os séculos IX e XII, período muitas vezes chamado de “hiato”33, encontramos a
poesia latina dos poetas goliardos34, o drama litúrgico (e, neste caso, destacamos as peças da
monja alemã Rosvita de Gandersheim) e a poesia al-Andalus, protagonizada pelos árabes e
judeus da região da Andaluzia. Nesse caminho, e seguindo ao período da Baixa Idade Média,
nota-se a literatura mais dividida, no sentido de que se torna mais fácil sua sistematização (o
que não significa que a produção deve ser categorizada sempre de forma sistemática, mas, sim,
que encontramos padrões que se repetem).

Assim, no esquema das formas literárias proposto por Spina (2007, p. 21-22), tem-se
três tipos principais de literatura: a) a literatura empenhada, que seria composta de textos
religiosos (hinos, hagiografias e poemas sacros), incluindo o teatro religioso e os textos de
caráter didático; b) a literatura semi-empenhada, que prevalece até o século XIV, composta pelo
lirismo goliardesco, pela poesia alegórica (tal como no Roman de la Rose e na Divina Comédia),
pelos fabliaux (a exemplo da escritora Marie de France) e pelo teatro cômico (tal como o Jeu
de la Feuillée, de Adam de la Halle); e c) a literatura de ficção, composta pela poesia épica, que
inclui as sagas escandinavas e as canções de gesta, as quais perpassam pelo ciclo carolíngio, o
ciclo de Guillaume d’Orange e o ciclo de Doon de Mayence.

Apesar dessa divisão sistemática que traz à tona os principais gêneros e as mais
difundidas manifestações literárias do período, não podemos deixar de destacar a ausência da
categoria da poesia mística como um gênero à parte, sobretudo a mística feminina. A literatura
mística pode ser considerada uma literatura de caráter híbrido em relação aos outros tipos
existentes, pois reúne diversas características, tanto da poesia lírica da Baixa Idade Média como
da literatura didática (como os exemplum), além de possuir fortes aspectos do romance cortês e
da poesia moçárabe. Assim, dentre as cantigas dos trovadores e os romances de cavalaria,

31 Poemas formados por versos e letras que formam desenhos figurativos.


32 Contestações entre personagens, sendo eles reais ou fictícios.
33 Discordamos de Spina (2007, p. 18) quando afirma que o período do século IX ao século XII “trata-se de uma
época de obscurantismo, de ignorância e de miséria, abalada pela anarquia que sucedeu à morte do imperador
Carlos Magno e pelas invasões devastadoras dos vikings e magiares, de tristes consequências para a Europa
Ocidental”, pois este raciocínio segue direção contrária a todos os avanços expostos até aqui em relação ao período
medieval, além de propagar a falsa ideia de que não houve produções significativas no período, sobretudo por ser
protagonizado por pessoas leigas.
34 Classe de clérigos itinerantes que produziam canções em latim de caráter tabernário.
58

encontramos o amor cortês como principal meio condutor das relações entre os sujeitos e
formador de uma tradição especialmente ligada ao amor mundano.

O amor cortês é um conceito desenvolvido em 1883 por Gaston Paris, ao analisar o


romance O cavaleiro da charrete, de Chrétien de Troyes. A expressão foi utilizada para
designar a relação entre um homem e uma mulher e, dentro do romance, as diversas proezas
realizadas pelo cavaleiro para prestar obediência à sua dama (LE GOFF; SCHMITT, 2017, p.
55). Esse amor, diferente de qualquer outro, seria o que podemos chamar de fine amour, tal
como expresso pelos trovadores do sul da França, e corresponde a um amor perfeito e acabado
e uma relação ideal:

Essa relação ideal aparece como verdadeiro objeto cultural e seus testemunhos são
sempre de textos ditos literários. Fala-se de “amor cortês” – de fine amor – em
primeiro lugar para a abundante produção de poemas de amor nos domínios das
línguas d’oc e d’oïl, e depois para as intrigas romanescas, de que a França do norte
deixou florescente produção. Portanto, o romance dito “cortesão”, baseado nos
destinos de “finos amantes”, demonstrará grande vitalidade. (LE GOFF; SCHMITT,
2017, p. 55-56).

Esse modelo cortesão prepondera até o século XV, principalmente por meio de sua
retórica amorosa abundantemente metafórica (a ideologia propaga-se, também, durante o
século XIX, com o advento do período romântico e a retomada de figuras utilizadas durante a
Idade Média). O amor cortês não se constitui de forma unânime, sendo, em realidade,
representado de forma plural e podendo definir o amor de um cavaleiro por sua dama
inacessível (casada), ou até mesmo um amor erótico, carnal e adúltero. Além disso, pode
representar o relacionamento entre dois jovens apaixonados que buscam o casamento.

De qualquer maneira, essa tradição encontra nas cantigas dos trovadores, nos romances
corteses e nas próprias vidas dos poetas seus principais veículos de difusão. Produções como o
Tratado do Amor Cortês, de André Capelão (século XII), contribuem para a reflexão do público
acerca do amor vivenciado e ditado por meio dos tratados medievais, os quais exigem certos
padrões comportamentais. Ademais, o próprio modo de vida dos poetas estimula a difusão desse
tipo de concepção, reforçando o aspecto da oralidade na lírica trovadoresca:

Quando a “Vida” de um trovador tornava-se notável e apta a servir de exemplum


relacionado à cortesia ou a qualquer outro aspecto trovadoresco, ela transformava-se
em uma narrativa que em alguns casos não tardava a adquirir dimensões lendárias.
Outros trovadores e jograis passavam então a incluir estes relatos de “vidas” no seu
repertório de peças de espetáculo ou de recitação, alternando-as com as cantigas de
amor ou outros gêneros de canção. Já nos séculos trovadorescos começaram a surgir
coletâneas de “vidas” dos principais poetas-cantadores – espécie de biografias
estilizadas onde podiam ser lidas as histórias de vida, as aventuras e desventuras destes
ou daqueles trovadores (BOUTIÈRE; SCHUTZ, 1964, apud BARROS, 2011, p. 196).
59

Neste sentido, podemos situar o amor cortês num âmbito de grande influência do
comportamento aristocrático. A própria ideia de fine amour remete a “uma arte de viver que
implica polidez, refinamento de costumes, elegância, e ainda, além dessas qualidades
puramente sociais, o sentido da honra cavaleirosa” (LE GOFF; SCHMITT, 2017, p. 56). Assim,
tem-se inúmeras etapas a serem seguidas para alcançar a relação amorosa, exprimindo o modelo
feudo-vassálico e trazendo à tona aspectos linguísticos do sistema feudal, a exemplo do termo
“minha senhora”, usado pelo homem que se torna vassalo de sua dama, da mesma forma que é
vassalo de seu senhor.

Portanto, trata-se explicitamente de uma questão de posse e de servidão: o cavaleiro


deve homenagem à dama e, após servir corretamente a ela, tem direito a uma recompensa, que
pode ser um beijo, uma declaração, ou qualquer tipo de atenção voltada a ele. Indo além da
servidão, encontramos o aspecto mais importante do amor cortês para esta pesquisa: a forte
presença da alegoria do deus Amor, revelando a submissão do vassalo a esse sentimento e
tornando-se a única razão de viver do poeta (LE GOFF; SCHMITT, 2017, p. 57).

Segundo Le Goff e Schmitt (2017, p. 57), “a ética do amor cortês não se resume à
imitação do serviço feudal: no âmbito do que surge como uma verdadeira religião do amor, a
dama é o objeto de um culto”. Este aspecto da religiosidade amorosa expande-se para a
realidade dos religiosos, sobretudo dos místicos, que encontraram na lírica cortesã a linguagem
ideal para expressar seus sentimentos e suas relações com o divino. Quanto às mulheres, a
posição não é completamente benéfica como aparenta ser. Mesmo com o amor cortês
promovendo a relação de vassalagem na qual a mulher encontra-se numa posição superior e de
objeto de desejo, há pontos divergentes que já foram trabalhados por teóricos medievalistas e
teóricas feministas.

Primeiramente, trazemos o seguinte ponto de vista de Power (1979, p. 29-30), ao


destacar a problemática do amor cortês em relação às mulheres na criação de uma falsa
concepção de que esse foi propiciado pelos homens e disseminado culturalmente pela maioria
das pessoas no período medieval:

É óbvio que uma teoria que considerava o culto da dama como próximo ao de Deus e
que a concebia como fonte de feitos gloriosos, como uma criatura romântica metade
divina, deveria ter feito algo para contrariar a doutrina que prevalecia sobre a
inferioridade da mulher. O processo de colocar as mulheres sobre um pedestal havia
iniciado e, reflitamos sobre o que pensamos sobre o valor final de tal elevação, ao
menos era melhor que afundá-las, como os Padres primitivos estavam inclinados a
fazer, em um abismo sem fundo. Porém, é fácil exagerar o alcance em que a cavalaria
pôde elevar a posição real da mulher na sociedade medieval em geral. A exaltação da
dama era o ideal exclusivo de uma pequena casta aristocrática: quem estivesse fora
60

desta casta não tinha parte alguma na influência refinadora do amor cortês. (Tradução
livre)35

Além de Power (1979), destacamos um trecho de Beauvoir (2016), no qual a autora


explicita o conhecimento acerca do acobertamento do amor cortês das questões de participação
política das mulheres, e outras como o próprio casamento e o adultério (que, no amor cortês,
recebe uma imagem relativamente positiva, pois demonstra as façanhas do cavaleiro em busca
de conquistar um espaço privilegiado na vida de sua dama e, obviamente, um prestígio social),
e coloca a tradição como base para um aprofundamento cultural dentro de uma civilização
primordialmente masculina:

Pretendeu-se muitas vezes que o amor cortês que nasce no Sul mediterrâneo, por volta
do século XII, teria acarretado uma melhoria na sorte da mulher. Acerca dessas
origens, diversas teses se defrontam: segundo uns, a “cortesia” decorre das relações
da suserana com seus jovens vassalos; segundo outros, ela estaria ligada às heresias
cátaras e ao culto da Virgem; outros, enfim, fazem derivar o amor profano do amor a
Deus em geral. Não se tem muita certeza de que as cortes de amor tenham realmente
existido. O certo é que, ante a Eva pecadora, a Igreja foi levada a exaltar a Mãe do
Redentor. Seu culto tornou-se tão importante que se pode dizer que no século XIII
Deus se fizera mulher; uma mística da mulher desenvolve-se, portanto, no plano
religioso. Por outro lado, os lazeres da vida de castelo permitem às mulheres nobres
fazer florescer em volta delas o luxo da conversação, da cortesia, da poesia [...].
Observa-se no sul primeiramente e, em seguida, no norte, um amadurecimento
cultural que beneficia as mulheres e lhes dá um novo prestígio. O amor cortês foi
descrito, frequentemente, como platônico [...]. O amor cortês era uma compensação à
barbárie dos costumes oficiais. “O amor, no sentido moderno da palavra, só ocorre na
Antiguidade fora da sociedade oficial”, observa Engels. “O ponto exato em que a
Antiguidade se detém nas suas tendências para o amor sexual é aquele de que parte a
Idade Média: o adultério”. E é com efeito essa forma que revestirá o amor enquanto a
instituição do casamento se perpetuar. (BEAUVOIR, 2016, p. 139-140)

Assim, importa destacar dois aspectos de seu ponto de vista. Primeiramente, a situação
das mulheres durante esse período e as questões em torno disso. Segundo, o estabelecimento de
uma identidade feminina ao amor cortês, influenciado pela mística (de maneira geral) e tendo
como consequência a mística feminina. Em relação à primeira questão, podemos retomar ao
âmbito socioeconômico da Baixa Idade Média e o desenvolvimento das cidades, assim como o
avanço das atividades artesanais e mercantis. Com o comércio em desenvolvimento, foi
necessária mais mão de obra, ou seja, maior participação feminina e autonomia das mulheres.

35 “Es obvio que una teoría que consideraba el culto de la dama como próximo al de Dios y que la concebía a ella
como fuente de hechos gloriosos, como una criatura romántica mitad divina, debió hacer algo para contrarrestar
la doctrina que prevalecía sobre la inferioridad de la mujer. El proceso de colocar a las mujeres sobre un pedestal
se habió iniciado y, pensemos lo que pensemos del valor último de tal elevación, al menos era mejor que hundirlas,
como los Padres primitivos estaban inclinados a hacer, en un abismo sin fondo. Sin embargo, es fácil exagerar el
alcance en que la caballería pudo eelevar la posición real de la mujer en la sociedad medieval en general. La
exaltación de la dama era el ideal exclusivo de una pequeña casta aristocrática: quienes se hallaban fuera de esta
casta no tenían parte alguna en la influencia refinante del amor cortesano”.
61

Burocraticamente, vimos que a vida da mulher muda nas zonas urbanas, mas não nos meios
legais, o que implica em inúmeras limitações e em atribuições secundárias às mulheres.

Em relação à segunda questão, referente à mística feminina e a uma formação de


identidade feminina dentro da tradição cortês (e também da religiosa), defendemos de antemão
que o protagonismo das mulheres, por meio da literatura escrita, parte delas mesmas, não dos
homens. Os poetas trovadores, mesmo estimulando determinada ascensão da posição das
mulheres por torná-las objeto de desejo (mesmo que, como mencionado, a posição do cavaleiro
seja principalmente de prestígio social, não necessariamente de valorização da mulher), não
devem ser situados como pioneiros de uma tradição que enaltece as mulheres (até mesmo pelo
fato de que não existiram apenas homens poetas).

Desta forma, unido ao contexto de religiosidade efervescente e de percepção da


possibilidade de tornar o caminho religioso uma forma de adquirir determinada autonomia na
vida social, o amor cortês, tomado como tradição, torna-se a linguagem e o estilo principal da
literatura mística, porém, especialmente moldado na mística feminina para formas alegóricas e
personificações que determinam figuras femininas como protagonistas. Neste sentido,
encontramos o Amor Divino personificado como uma deusa (Caritas, Fine Amour ou Frau
Minne) intensamente nos textos de autoria feminina. A noção de amor ganha uma persona, uma
imagem, que é representada pela própria deusa.

Protagonizada pelas beguinas, a mística feminina (ou mystique courtoise; mística


cortês), segundo Newman (1995, p. 13. Tradução livre) 36, transpõe a dinâmica social do amor
cortês e “tanto o trovador quanto a beguina alegram-se na infinitude do desejo, o desrespeito
sem fim da experiência é deliberadamente oposto: em vez de aceitação e prestígio, ela busca a
humilhação e o exílio, e geralmente os encontra”. Tem-se o jogo de identidade entre o
masculino e o feminino, a abjeção e exaltação, compondo uma imagem de múltiplos espelhos
a partir de uma unidade limitada, que seria o próprio sujeito.

Nessa construção, Newman (1995, p. 13) afirma que as beguinas místicas rompem de
forma brusca com o misticismo nupcial proveniente dos beneditinos e dos cistercienses e suas
diferenças são bastante explícitas: os monges consideraram a alma um microcosmo da
verdadeira Noiva de Deus, que seria a comunidade geral (Santa Igreja), ao passo que, para as

36 “Both the troubadour and the beguine take joy in the boundlessness of desite, the endless desferreal of
experience is deliberately opposed: instead of acceptance and prestigie she seeks humiliation and exile, and usually
finds them”.
62

beguinas, esta é reduzida a uma pequena figura que precisa do apoio daquela que Deus ama
verdadeiramente (a alma) para conseguir sua sobrevivência. Este posicionamento gerou
bastante repercussão e pode ter sido uma das causas principais pelas quais as beguinas sofreram
tantas perseguições ao longo dos anos, porém, não podemos desconsiderar que é um grande
passo na História das mulheres e da literatura de autoria feminina, posto que há uma contestação
de um sistema criado e majoritariamente – ou quase exclusivamente – masculino, mesmo que
por vias religiosas.

Assim, a mística feminina, experiência do sagrado que parte das mulheres, tem suas
devidas particularidades. Primeiramente, é preciso notar que essas mulheres tinham por opção
a expressão através das línguas vernáculas, tais como o alemão, o francês médio, ou o holandês
antigo. Ao traduzirem suas experiências para sua língua, elas criam palavras inexistentes, dando
origem a um vocabulário místico. Essas línguas vulgares, segundo Salé (2013, p. 11. Tradução
livre)37, “trazem um novo frescor à linguagem mística submetida até então às regras estritas e
limitadas da língua latina”.

A partir disso, temos o uso da palavra feminina Minne, que designa o noivo, Deus,
Amor, o Amado, o Bem Amado, e resgata um sentido de experiência interior a Deus,
diferentemente de amor, associada a qualquer sentimento meramente amoroso. Ao encontrar-
se com Minne, a alma desfruta da fruição, que a leva a experiências profundas e indizíveis.
Semelhantemente, “a ausência do ente querido é insuportável para elas, essa ausência cria uma
busca obsessiva e permanente, uma raiva de amar ou uma fúria de amar” (SALÉ, 2013, p. 11.
Tradução livre)38. Esse contato com o divino sempre é direto e intenso.

O fino amante, ou seja, a alma que se dirige a Deus, é definido na Règle des fins amans:

Chama-se “autêntico amante” (fin amant) aquele ou aquela que ama Deus com
autenticidade (finement). Quando se deseja elogiar uma taça de ouro, diz-se que é ouro
fino [autêntico]. Ou seja, a taça é de ouro totalmente puro e ouro fino. É assim que
Jesus Cristo quer ser amado por nós, com autenticidade (finement). Quer dizer,
puramente, com todo o nosso coração, com todas as nossas forças e com todas as
nossas virtudes. E é uma maravilha! Assim nos amou ele! Mostrou-nos amor de
coração. É como se dissesse-lhes: “não posso falar, mas abri o meu peito para você.
Lindo e doce filho, põe a mão no meu peito, pega meu coração! É seu”. Esta grande

37 “Les langues vulgaires deviennent littéraires et apportent une nouvelle fraîcheur au langage mystique soumis
jusqu’alors aux règles strictes et limitées de la langue latine”.
38 “[...] l’absence de l’être aimé leur étant insupportable, cette absence créé une quête obsessive et permanente,
une rage d’aimer ou une fureur d’aimer [...]”.
63

bondade não devemos esquecer. (La Règle des fins amans, apud BANCEL, 2016, p.
20. Tradução livre)39

Esse ponto de vista da experiência do divino é característico do místico, que seria aquele que,
no ato do recolhimento, despoja-se de todas as coisas que podem ser consideradas
intermediários (ou empecilhos) para unir-se a Deus. A experiência mística, dessa forma, é
compartilhada por meio dos relatos e das visões e utilizando a linguagem vernácula. Assim,
segundo Nogueira (2013, p. 162-163), a escrita mística feminina, liderada por almas
“femininas” e por um conjunto de imagens também protagonizados dessa maneira, soa como
uma transgressão em diferentes níveis, sendo estes: transgressão de gênero, transgressão da
ortodoxia da Igreja, transgressão linguística e transgressão dos limites da relação entre o
humano e o divino.

Considerando que os mecanismos de linguagem utilizados são primordialmente as


alegorias e personificações, além da própria metáfora em si, afirma-se que essas transgressões
ocorrem pelo fator discurso atrelado a esses mecanismos. Ao tomarmos a alegoria como “aquilo
que representa uma coisa para dar a ideia de outra através de uma ilação moral” (CEIA, 1998,
p. 01), podemos afirmar que as transgressões correntes na mística feminina, sobretudo em
relação ao sistema clerical e, no caso de Marguerite Porete, como veremos a seguir, à própria
organização social, podem ser atribuídas às escolhas feitas dos elementos no ato da escrita e o
uso deles de forma estratégica para a formação de um discurso verdadeiramente subversivo e
condizente com a situação do sujeito feminino situado no contexto medieval – a autora.

Desta maneira, as místicas abrem espaço para novas possibilidades de interpretação e


criam diversas analogias de forma simultânea para buscar passar a mensagem que querem,
desestabilizando o tradicional. Esse aspecto levou a maioria a consequências graves dentro de
seu contexto, principalmente pelo início da Inquisição e da intensificação das condenações por
heresia. Portanto, cabe-nos apresentar quais as perspectivas possíveis acerca da subversão das
mulheres místicas e as implicações em torno de seu contexto de produção.

39 «Se llama “auténtico amante” (fin amant) a aquel o aquella que ama a Dios con autenticidad (finement). Cuando
se quiere alabar una copa de oro, se dice que es de oro fino [auténtico]. Es decir, que la copa es totalmente pura de
oro, y de oro fino. Así quiere Jesucristo ser amado por nosotros, con autenticidad (finement). Es decir, puramente,
y de todo corazón y con todas nuestras fuerzas y con toda nuestra virtud. ¡Y es una maravilla! Así nos amó él. Nos
mostró amor de corazón. Es como si os dijese: “no puedo hablar, pero te he abierto mi pecho. Hermoso y dulce
hijo, bella y dulce hija, pon tu mano en mi pecho, ¡toma mi corazón!, pues es tuyo”. Esta gran bondad no la
debemos olvidar».
64

1.2.2 Subversão das mulheres: perspectivas possíveis

Considerando que o engajamento laico do século XIII confrontou diretamente o


estabelecimento da ordem clerical, a existência de atritos não surpreende, sobretudo
reconhecendo os inúmeros casos de “heresia popular” registrados. Simons (2001, p. 15) afirma
que R. I Moore intitulou a paróquia dos séculos XI e XII como um ponto de encontro entre dois
conceitos opostos de sociedade: um deles formado por seus membros leigos que usam a língua
vernácula para se expressarem, e outro formado por uma hierarquia vertical e administrado de
cima pelo alto clero, usando o latim como principal meio de comunicação.

Levando em conta a história das beguinas e das mulheres que escreviam seus escritos
místicos, sua ideologia de chegar a Deus sem intermediários, além da prática da vida apostólica,
levou a caminhos bastante obscuros de acusações por parte do clero, principalmente por
buscarem situar conhecimentos que seriam exclusivos do lado hierárquico da sociedade no meio
das pessoas comuns. De certa forma, “a vida conventual torna a mulher independente do
homem” (BEAUVOIR, 2016, p. 146) e, na relação mística, autônoma em sua essência, “as
almas femininas haurem a inspiração e a força de uma alma viril; e o respeito de que gozam na
sociedade permite-lhes realizar difíceis empreendimentos” (BEAUVOIR, 2016, p. 146).
Mesmo assim, a opinião dos homens acerca das mulheres é pouco favorável. Destacamos a
afirmação de Beauvoir (2016, p. 147) a respeito desse contexto com base na literatura:

Sem dúvida, os poetas corteses exaltaram o amor; surgem numerosas Arts d’amour,
entre as quais um poema de André de Chapelain e o célebre Roman de La Rose, em
que Guillaume de Lorris incita jovens a se devotarem às damas. Mas a essa literatura,
influenciada pela dos trovadores, opõem-se as obras de inspiração burguesa que
atacam as mulheres com maldade: fabulários, farsas, lais censuram-lhes a preguiça, o
coquetismo, a luxúria. Seus maiores inimigos são os clérigos.

O Roman de la Rose, dividido em duas partes, sendo a primeira por Guillaume de Lorris
e a segunda por Jean de Meung, apresenta-se como uma das obras principais tanto nos estudos
das alegorias medievais como nas perspectivas em torno da imagem das mulheres e de suas
delimitações sociais. Assim, tem-se essa obra como impulsionadora da Querelle des Femmes,
um movimento crítico que perdura até o século XV e tem seu ponto de partida na questão do
casamento, considerado por Jean de Meung, clérigo, como um terreno odioso para o homem,
pois “o amor é terra odiosa / o amor é ódio amoroso”40.

40 L’amour ce est pays haineux / L’amour ce est haine amoureuse.


65

Christine de Pizan, protagonista desse movimento de crítica por meio da escrita e de


busca pelos direitos das mulheres, sobretudo no que diz respeito à instrução, ataca os clérigos
em seu texto L’Épitre au Dieu d’amour e recebe como resposta o Chaperon des dames, escrito
por Martin le Franc, lido duzentos anos depois. Esses eventos expressam o poder do discurso
feminino por meio da palavra escrita e o espaço que ele é capaz de ocupar ao buscar se impor.
Desta forma, a escrita feminina medieval apresenta-se como estratégica no sentido de atribuir
um discurso subversivo, ou seja, contrário à ordem estabelecida, a gêneros comuns e compostos
por elementos de uma lírica protagonizada por homens em sua autoria. É, portanto, a passagem
da representação para a representatividade.

Dessa forma, cabe-nos questionar por que existe uma subversão por parte das mulheres
e de que forma ela se manifesta nas obras literárias escritas por elas. Além disso, também
importa perceber que essa subversão, no caso das mulheres, é um atentado contra a Igreja e
seus moldes. Sendo a mulher já bastante acusada por ser quem é, ou seja, o sexo feminino
abominável, isto se agrava nas acusações de heresia e as torna alvos ainda maiores de
silenciamento.

Portanto, a subversão feminina dá-se em três planos: a) através do contexto, no qual,


como pudemos analisar, as mulheres conseguem ter determinada autonomia por meio de
diferentes âmbitos, incluindo o religioso; b) através do discurso, onde encontramos as diversas
formas de reivindicação e por quais motivos elas reivindicam; e c) através da palavra escrita,
locus tradicionalmente destinado a uma elite social que aprende a língua latina, mas, no caso
das mulheres, opta-se pelo uso dos vernáculos, demonstrando grande estratégia para a
disseminação de ideias e a democratização das mesmas.

A esses três planos, tem-se como consequência mais comum a condenação por heresia
por meio de decretos e bulas papais, ou seja, documentos registrados e oficializados por
teólogos e clérigos, homens da lei e da religião que representam o poder do conhecimento e
moldam a sociedade. Esses documentos emanam, principalmente, acusações de heresia, que
seriam comportamentos não compatíveis com a ortodoxia.

Para ilustrar, destacamos o Decreto Cum de quibusdam mulieribus do Concílio de Viena


(1311-1312), responsável por deixar as beguinas sob condenação:

As mulheres comumente chamadas beguinas, como não prometem obediência a


ninguém, não renunciam suas posses nem professam regra aprovada alguma, não são
certamente “religiosas, embora usem o hábito das beguinas e se associem a certos
religiosos, para aqueles que sentem uma inclinação particular. Temos escutado fontes
de confiança que têm relatado que algumas beguinas, conduzidas quase por certa
66

loucura, argumentam e predicam sobre a Santíssima Trindade e a essência divina, e


expressam opiniões contrárias à fé católica sobre artigos de fé e os sacramentos da
Igreja. Tais beguinas alcançam muitas pessoas simples e as conduzem a vários erros.
Geram muitos outros perigos para as almas, sob sua capa de santidade. Temos
recebido com frequência informes desfavoráveis sobre seu ensinamento e com justiça
as consideramos sob suspeita. Com a aprovação do Sagrado Concílio, proibimos
perpetuamente seu modo de vida e o eliminamos completamente da Igreja de Deus.
Ordenamos expressamente essas e outras mulheres semelhantes, sob pena de
excomunhão, na qual incorreriam automaticamente se agissem de outra forma, que
não seguiam esse caminho de vida de forma alguma e o adotaram há muito tempo ou
recentemente. E sob a mesma pena proibimos estritamente os religiosos mencionados
mais acima, dos quais se dizem haver favorecido essas mulheres e as terem persuadido
para adotar a forma de vida beguinal, que não deem conselho algum, ajudem ou
ofereçam às mulheres que abraçaram esse modo de vida, ou tenham intenção de
abraçá-la, sem que se possa alegar ao dito anteriormente privilégio algum. (apud
BANCEL, 2016, p. 87. Tradução livre)41.

Portanto, cabe-nos identificar, a partir dessas perspectivas de subversão – e


considerando as consequências, tais como a condenação por heresia e a atribuição do caráter
herético a esses escritos e aos estilos de vida dessas mulheres – exemplos práticos desses
fatores. É neste ponto que entraremos na vida e obra de Marguerite Porete, beguina condenada
como herege relapsa no ano de 1310 pela Inquisição.

1.2.3 O Espelho das almas simples e aniquiladas: a heresia poretiana

Ao voltarmo-nos para os textos místicos de autoria feminina, podemos destacar o


Marguerite Porete como principal autora no que tange à subversão. Perpassando os três planos
da subversão feminina, Marguerite demonstra em sua obra a intenção de uma reestruturação
social e espiritual, escrevendo em língua vernácula (francês médio) e utilizando formas
alegóricas da linguagem com propósitos políticos, carregadas de intencionalidade. Visando a

41 “Las mujeres comúnmente llamadas beguinas, como no prometen obediencia a nadie, no renuncian a sus
posesiones, ni profesan regla aprobada alguna, no son ciertamente “religiosas”, aunque lleven el hábito de las
beguinas, y se asocien a ciertos religiosos, hacia los que sienten una inclinación particular. Hemos escuchado
fuentes de confianza que han relatado que algunas beguinas, conducidas casi por cierta locura, argumentan y
predican sobre la Santísima Trinidad y la esencia divina, y expresan opiniones contrarias a la fe católica sobre
artículos de fe y los sacramentos de la Iglesia. Tales beguinas atrapan así a mucha gente sencilla y les conducen a
varios errores. Generan muchos otros peligros para las almas, bajo su capa de santidad. Hemos recibido con
frecuencia informes desfavorables sobre su enseñanza y con justicia las consideramos bajo sospecha. Con la
aprobación del Sagrado Concilio, prohibimos perpetuamente su modo de vida y lo eliminamos completamente de
la Iglesia de Dios. Ordenamos expresamente a esas y otras mujeres semejantes, bajo pena de excomunión, en la
que incurrirían de manera automática si actuaran de otro modo, que no sigan ese sendero de vida bajo ninguna
forma, lo hayan adoptado hace tiempo o recientemente. Y bajo la misma pena prohibimos estrictamente a los
religiosos mencionados más arriba, de los que se dice haber favorecido a esas mujeres y haberlas persuadido para
adoptar la forma de vida beguinal, que den consejo alguno, ayuden o favorezcan a las mujeres que han abrazado
esa forma de vida, o tengan intención de abrazarla, sin que se pueda alegar a lo anteriormente dicho privilegio
alguno.»
67

focar, no segundo capítulo, na matriz significativa da linguagem e nas imagens formadas


através dela e por ela, é preciso explanar, finalizando este capítulo, acerca do Espelho das Almas
simples e aniquiladas e que permanecem somente na vontade e no desejo de Amor (1290) e da
vida de sua autora.

Marguerite Porete, redescoberta apenas no século XX por Romana Guarnieri, é uma


verdadeira incógnita a ser desvendada. Sua história de vida não é historicamente (re)conhecida,
muito menos se tem dados suficientes a seu respeito, porém, o que podemos afirmar é que está
situada no contexto do governo de Luís IX e que possivelmente nasceu no condado de Hainaut
(e, por isso, muitas vezes mencionada como Marguerite de Hainaut), na fronteira da Bélgica
com o norte da França, uma das regiões mais avançadas no quesito da urbanização e do acesso
ao ensino, além de ter sido uma área de bastante movimentação migratória e terreno fértil para
o desenvolvimento dos grupos mendicantes e das beguinas.

Subentende-se, principalmente por meio dos documentos inquisitoriais de sua


condenação, que Marguerite fez parte do movimento beguino, mas não viveu numa comunidade
formal e possivelmente era uma beguina que pregava de forma itinerante, pois, conforme afirma
Kocher (2008, p. 23), se ela fosse freira, provavelmente os inquisidores teriam nomeado o
convento ou a ordem religiosa a qual pertencia, como era o que se fazia habitualmente para
reconhecer membros de instituições eclesiásticas específicas.

Ficou bastante conhecida por sua obra polêmica, O Espelho das Almas simples e
aniquiladas, na qual demonstra domínio sobre a escrita e sobre o gênero tratado místico, além
de amplo conhecimento acerca dos textos bíblicos, o que pode nos levar à possibilidade de que
veio de uma família nobre e teve acesso à educação. A isto também se acrescenta o fato de que
seu livro foi traduzido em outras línguas, incluindo o latim, e teve diversas cópias produzidas
(possivelmente pela própria autora), demonstrando determinado poder aquisitivo para esse tipo
de produção. Garí e Cirlot (2008, p. 231. Tradução livre) 42 afirmam que

[...] era uma beguina independente desde o ponto de vista religioso e social, mas
também o que era desde um ponto de vista econômico, tanto porque podia custear os
altíssimos custos de elaboração de múltiplas cópias de seu livro como porque talvez
fosse capaz de elaborá-las ela mesma; talvez incluso a essa « beguina clériga » era
uma copista profissional numa cidade em que, como em todas da época, existia um

42 “[...] era una beguina Independiente desde el punto de vista religioso y social, pero también lo era desde um
punto de vista económico, no tanto porque pudiera sufragar los altísimos costes de elaboración de múltiples copias
de su libro como porque quizás fuese capaz de elaborarlas ella misma; quizás incluso esa « beguina clériga » era
una copista profesional en una ciudad en la que como en todas las de la época existía un importante mercado de
libros y donde talvez había mujeres que aprendían en los oficios de miniaturista y calígrafo”.
68

importante mercado de livros e onde talvez havia mulheres que aprendiam os ofícios
de miniaturista e calígrafo.

Sua obra expressa a experiência mística através de sete estágios para fundir-se ao divino,
ou seja, a transcendência do próprio ser para chegar a Deus (Dama Amor) sem intermediários,
resultando numa minimização, característica da mística feminina, da necessidade de recorrer à
hierarquia eclesiástica e “a reduzir o exercício das virtudes morais à condição de um estágio
preliminar imperfeito” (SCHWARTZ, 2005, p. 27). Para tal, Marguerite utiliza o gênero dos
Specula e compõe 140 capítulos em forma de diálogos entre a Alma (personagem principal), a
Dama Amor (representando o Amor Divino), a Dama Razão (antagonista e representante das
instituições eclesiásticas) e suas diversas personificações derivadas.

A Alma, perpassando sete estágios, busca retornar ao seu estado primitivo por meio do
aniquilamento, momento em que se dá a união definitiva com Deus, união esta que podemos
associar à existente entre o amante e o Amado da literatura cortesã. O próprio título de sua obra,
Mirouer, “implica uma superfície parcialmente reflexiva, mas também um processo de
comparação entre o real e o imaginado, e entre o real e o escrito” (KOCHER, 2008, p. 08.
Tradução livre)43. O livro funciona, assim, como um espelho que designa um ideal para
representar o progresso dos ouvintes, implicando numa clareza na linguagem para a formação
de imagens para sua audiência. Porém, iremos desenvolver a temática do espelho ao longo da
análise da obra, no terceiro capítulo desta pesquisa.

Historicamente, Marguerite fica conhecida primeiramente não pela sua obra, mas, sim,
pela sua condenação (por causa de sua obra). Os documentos inquisitoriais, nos quais podemos
perceber alguns aspectos da vida da autora, são do ponto de vista do inquisidor dominicano
Guilherme de Paris, o que implica uma certa cautela em sua leitura, conforme afirma Field
(2016, p. 10). Neste sentido, temos um histórico de denúncias da Igreja contra Marguerite.

Sua condenação inicial, protagonizada pelo bispo de Cambrai (Guido de Collemezzo),


deu-se entre 1296 e 1306, sendo ordenado que o livro fosse queimado em Valenciennes na
presença da autora. Além disso, o bispo ordenou que Marguerite “nunca mais falasse ou
escrevesse sobre as ideias contidas em seu livro, sob pena de ser condenada como herege e
entregue à justiça secular para punição” (FIELD, 2016, p. 10. Tradução livre) 44. Porém, mesmo

43 “The noun mirouer, as it is used in Porete’s title, implies a partially reflective surface, but also a processo f
comparison between the real and the imagined, and between the real and the written”.
44 “Guido ordered her, in writing, never again to speak or write about the ideas her book contained, under threat
of being condemned as a heretic and turned over to secular justice for punishment”.
69

com as ameaças, a autora entra em conflito com a autoridade eclesiástica e assume que, por
várias vezes, divulgou as ideias de seu livro e possuía outras cópias do mesmo. Nos documentos
de Guilherme de Paris também constam acusações de que Marguerite distribuiu insistentemente
o seu livro para as pessoas simples e leigas, além de ter comentado ao bispo João de
Châteauvillain, da região de Châlons-sur-Marne.

Em 1306, Filipe de Marigny torna-se bispo de Cambrai e, exercendo a terceira acusação


sobre Marguerite Porete e seu livro, transfere-a para a jurisdição de William de Paris, em Paris.
Nesse mesmo período, que seria por volta de 1308, posto que a beguina fica sob custódia por
um ano e meio, encontramos o nome de Guiard de Cressonessart, um apoiador que foi a Paris
para tentar defendê-la. Por ambos não cooperarem com o juramento para início do processo
inquisitorial, William estende-o até março de 1310 (FIELD, 2016, p. 10). Segundo Field (2016,
p. 10), ele passa a exercer uma série de passos discretos contra Marguerite, seu livro e seu
apoiador:

Em uma reunião em março (data não especificada) na casa dominicana em Paris, ele
reuniu mestres em direito canônico e teologia da Universidade de Paris e pediu
conselho sobre como lidar com esses recalcitrantes detidos. Até onde os documentos
mostram, ele não expôs todos os fatos da vida anterior de Marguerite, mas
simplesmente perguntou “o que deveria ser feito” com este homem e esta mulher que
se recusavam a cooperar. Os teólogos submeteram-se aos canonistas, que emitiram
dois pareceres datados de 3 de abril, indicando que Guiard e Marguerite poderiam ser
considerados hereges simplesmente em virtude de sua contumácia e, portanto,
poderiam ser entregues ao braço secular para punição, a menos que decidissem
cooperar rapidamente. “Relaxamento para o braço secular” significava morte certa na
fogueira, e a ameaça desse destino foi o suficiente para fazer Guiard prestar juramento
e responder às perguntas do inquisidor. (Tradução livre)45

Após esse episódio, vinte e um mestres em teologia foram reunidos no dia 11 de abril a
fim de extrair partes do livro que tivessem proposições consideradas heréticas ou que
contradiziam com os textos sagrados. Concordando todos que o livro de fato possuía essas
características, a acusação voltou-se para Marguerite com o acúmulo dos confrontos anteriores,
levando-a a ser condenada por seu comportamento perante as autoridades e pela desobediência
em relação à divulgação de seu livro. Foi dessa forma que a beguina foi levada ao braço secular,
no dia 01 de junho de 1310, na Place de Grève, em Paris. Guilherme de Paris ordenou, assim,

45 “At a meeting in March (date unspecified) at the Dominican house in Paris, he called together masters of canon
law and theology from the University of Paris and asked for counsel on how to handle these recalcitrant detainees.
As far as the extant documents show, he did not lay out all the facts of Marguerite’s previous life, but simply asked
“what was to be done” with this man and woman who were refusing to cooperate. The theologians deferred to the
canonists, who issued two opinions dated 3 April indicating that Guiard and Marguerite could rightly be considered
heretics simply by virtue of their contumacy, and thus could be handed over to the secular arm for punishment
unless they quickly decided to cooperate. “Relaxation to the secular arm” meant certain death at the stake, and the
threat of this fate was enough to cause Guiard to take an oath and answer the inquisitor’s questions”.
70

que o livro fosse queimado junto a sua autora, ao passo que Guiard de Cressonessart foi
condenado à prisão perpétua.

Os documentos do julgamento contra Marguerite e Guiard estão preservados até os dias


atuais nos Arquivos Nacionais em Paris, mas nunca foram publicados na íntegra. Porém, como
afirma Verdeyen (1986, p. 47), isso não significa que sua existência fosse desconhecida.
Segundo o autor, “já em 1888, o historiador americano Henry Charles Lea publicou dois
documentos do processo, relatando a investigação e a condenação de Marguerite Porete”
(VERDEYEN, 1986, p. 47. Tradução livre)46. Quanto aos relatos de sua condenação,
encontramos nas Grandes Chroniques de France, escritas por monges da abadia de Saint-
Denis, a alegação de que Porete “foi além e transgrediu a Sagrada Escritura” (KOCHER, 2008,
p. 27).

Importa destacar que o período entre 1280 e 1320 corresponde, na França, a um


momento em que o número de processos por heresia passa por uma redução significativa, visto
que a perseguição contra os cátaros se encerra e a Caça às Bruxas demonstra-se com vistas a
iniciar-se. Em relação a este período, é preciso destacar que a bruxaria, segundo Telles (2021,
p. 29), torna-se heresia apenas a partir de 1484, após a publicação de uma bula do Papa
Inocêncio VIII. Porém, segundo a autora, “é por volta de 1430 que se inicia uma intensa
perseguição – cujo auge ocorreu entre 1550 e 1650 – que passou a caracterizar o período como
o da caça às bruxas na Europa”.

Ademais, essa época corresponde ao recomeço da criminalização da heresia, o que


inclui o mantimento de documentos detalhados a respeito dos suspeitos de heresia e seus
comportamentos, além dos tipos de ações que os inquisidores podiam realizar (KOCHER, 2008,
p. 28). Simultaneamente, a ascensão da mística elevou essas condenações a um nível mais
intrínseco às próprias ideias dos místicos, não necessariamente suas ações. Um exemplo disto
é o fato de que a lei local (da região em que Marguerite Porete estaria situada) não proibia as
mulheres a falar publicamente – pelo contrário, as mulheres participavam da vida comum tal
como os homens.

Dessa forma, a condenação de Marguerite não foi associada necessariamente ao ato da


fala pública, mas à sua recusa a parar de divulgar ideias “heréticas” por meio da linguagem oral
e da escrita, fortalecendo ainda mais o que defendemos acerca do caráter subversivo do discurso

46 “Déjà em 1888, l’historien américain Henry Charles Lea a publié deux pièces du dossier, relatant l’enquête et
la condamnation de Marguerite”.
71

da escritora. Assim, podemos afirmar que as ideias da mística feminina (e seu discurso), sofrem
uma dura crítica dentro de um contexto político complexo, e sendo por este motivo, talvez, o
fato de que essa mística era herética.

Neste sentido, a fim de compreender a heresia por meio do contexto histórico e as


correntes espirituais que moldaram o conceito popular e canônico desse fenômeno, Deane
(2011, p. 154) pontua que a crítica feroz que tanto marcou a heresia irrompeu em uma interseção
histórica que foi moldada por quatro desenvolvimentos distintos:

(1) uma onda notável de espiritualidade feminina ativa do início do século XIII ao
século XV; (2) o desabrochar de um novo e frequentemente vernáculo misticismo
cristão que, embora profundamente enraizado nas autoridades escriturísticas e
patrísticas, representava um perigo espiritual percebido para as almas das pessoas
comuns; (3) a certeza papal e eclesiástica crescente de que os hereges secretos,
principalmente as mulheres, estavam poluindo o corpo da cristandade; e (4) a luta
cada vez mais árdua do papado para manter o prestígio e a autoridade do cargo não
apenas contra os líderes seculares como o rei Filipe IV da França (r. 1285-1314), mas
também dentro de suas próprias fileiras. (Tradução livre)47

Assim, tem-se Marguerite e o Espelho situados num contexto em que a mística estava
facilmente tomada como um discurso herético, sobretudo se proferida e divulgada em vernáculo
e por meio de linguagem popular.

A obra de Marguerite diz muito a respeito da própria autora. Podemos observar que,
possivelmente, Porete possuía um alto nível de alfabetização e alguma fonte de renda, como
sugere Kocher (2008, p. 31), pois os livros demandavam tempo para serem copiados e,
consequentemente, um custo. Concordamos com a estudiosa ao explanar que esses detalhes a
respeito da publicação do livro levam-nos a concluir que Porete não era uma pessoa sem
moradia, ou mendicante, então não é possível considerar sua obra como um relato
autobiográfico, muito comenos como fruto de sua própria experiência mística, tal como as
demais.

Além disso, O Espelho foi enviado para três clérigos que o aprovaram, o que mostra que
sua autora tinha determinada proximidade com autoridades, ou ao menos um possível contato.
A obra recebeu elogios por parte de seus avaliadores, como é possível ver no último capítulo,
no qual Marguerite faz questão de mencionar a autorização que obteve:

47 “(1) a remarkable groundswell of active female spirituality from the early thirteenth through the fifteenth
centuries; (2) the blossoming of a new and often vernacular Christian mysticism that, although deeply rooted in
scriptural and patristic authorities, represented a perceived spiritual hazard to the souls of common folk; (3)
mounting papal and ecclesiastical certainty that secret heretics, particularly women, were polluting the body of
Christendom; and (4) the papacy’s increasingly labored struggle to maintain the office’s prestige and authority not
only against secular leaders such as King Philip IV of France (r. 1285–1314) but also within its own ranks”.
72

[...] O primeiro deles foi um Frei Menos de grande nome, vida e santidade que era
chamado de Frei João. [...] Esse Frei disse que este livro foi feito pelo Espírito Santo
e que se todos os clérigos do mundo o ouvissem e pudessem compreendê-lo, não
saberiam em nada contradizê-lo. [...] Depois, o viu e leu um monge cisterciense
chamado Dom Franco, da Abadia de Villers. Ele disse que assegurava, por meio das
Escrituras, ser verdade tudo o que este livro diz. Depois leu um certo mestre em
Teologia chamado Godfrey de Fontaines. Ele não disse nada desfavorável sobre o
livro, tanto quanto os outros. Mas aconselhou que não muitos o vissem, porque, como
ele disse, poderiam colocar de lado a vida para a qual foram chamados, aspirando essa
outra à qual nunca chegarão. (PORETE, 2008, p. 230)

Também encontramos os avisos de preocupação quanto aos perigos da compreensão do


verdadeiro sentido da obra por parte da audiência, levando a autora a reforçar a autorização que
lhe foi concedida por meio desses três religiosos: “Essa aprovação foi feita para a paz dos
ouvintes (sic); e, similarmente, para a vossa paz falamos a mesma coisa, que essa semente possa
frutificar cem vezes para aqueles que ouvirão e que serão dignos. Amém” (PORETE, 2008, p.
230). Nesse sentido, podemos afirmar que O Espelho teve consequências graves junto a sua
autora, primordialmente por seu conteúdo. Este conteúdo é repassado por meio de uma escrita
complexa e de uma construção metafórica que abre uma gama ampla para diferentes
interpretações. Ademais, Marguerite utiliza majoritariamente figuras alegóricas femininas,
apesar de encontrarmos o seu LongePerto, expresso pela Dama Amor, e o Vouloir (Querer),
que aparece na edição francesa da obra (le Vouloir).

Dessa maneira, por meio de um diálogo construído e protagonizado por essas figuras
alegóricas (Dama Amor, Dama Razão e Alma), a autora insere sua audiência na narrativa e
utiliza recursos retóricos para formar sua doutrina das Almas Simples, livres das Virtudes.
Antes de expor a respeito dos sete estágios pelos quais a Alma deve passar para atingir o
completo aniquilamento, a Dama Amor cita nove características que é preciso encontrar nessa
vida baseada na paz da caridade:

Amor: – Mas há uma outra vida, que chamamos paz da caridade na vida aniquilada.
Dessa vida queremos falar, perguntando se podemos encontrar:
I. uma alma
II. que se salva pela fé e sem obras,
III. que é somente no amor,
IV. que nada faz por Deus,
V. que nada deixa de fazer por Deus
VI. a quem nada pode ser ensinado,
VII. de quem nada pode ser tomado
VIII. ou dado,
IX. e que não tem nenhuma vontade. (PORETE, 2008, p. 35-36)

A partir disso, Marguerite deixa evidentes as críticas às formas de vida monástica do período,
que correspondiam aos dogmas, jejuns e orações, salientando seu ponto de vista através de
metáforas e comparações.
73

Portanto, é imprescindível reconhecer que a obra, que contém as características de um


tratado místico, mas não está situada num gênero específico, forma um conjunto de ideias
acessíveis e facilmente alcançáveis para a audiência. Segundo Kocher (2008, p. 53), a narrativa
varia o grau de dificuldade das aulas e utiliza ciclos de repetição e analogia, o que podemos
inferir como uma forma de transmissão oral da obra (por meio da repetição, principalmente) e
uma maneira de fixar as ideias contidas por trás dessas analogias, alegorias, metáforas e
comparações.

Além desses aspectos, os capítulos são curtos e há grande repetição de conceitos. Em


muitos casos, as personificações introduzem um conceito e, posteriormente, ao longo dos
capítulos, torna-os mais concretos e mais amplos. A quantidade de personagens – as
personificações – também é condizente com as protagonistas da obra (Dama Amor, Dama
Razão e Alma), sugerindo ao leitor que existem conjuntos de personagens liderados por cada
protagonista. Assim, podemos citar como exemplo as seguintes personificações: Compreensão,
Louvor, Amor Cortês, Caridade, Divindade, Humildade, Verdade, Pura Cortesia, Fé, Filho, Pai,
Espírito Santo, Entendimento da Razão, Sua Alteza o Entendimento do Amor, Compreensão
Clara, Luz da Fé, Tentação, Luz do Intelecto do Espírito, Intelecto, Conhecimento, Justiça
Divina, Santa Igrejas a pequena, Santa Igreja, a grande, Santa Trindade, Dama Natureza,
Espírito, Medo, dentre outras.

Ainda a respeito da narrativa, a Alma, em seu movimento de união com o divino,


perpassa sete estágios de aniquilamento, que são situados na obra como estágios de ascensão.
É no capítulo 55 (Como Amor responde às perguntas de Razão) que a Dama Amor afirma
existirem dois tipos de pessoas que vivem a vida de perfeição, sendo o primeiro caracterizado
da seguinte forma:

Há uns que mortificam completamente o corpo ao realizar as obras de caridade; e


possuem um prazer tão grande em suas obras que não têm mais nenhuma compreensão
de que pode haver um estado melhor do que o estado das obras das virtudes e da morte
por martírio, unido ao desejo de perseverar nisso com a ajuda da oração cheia de
pedidos, acrescido da boa vontade, sempre com o propósito de reter o que têm, como
se isso fosse o melhor dos estados possíveis. Tal gente é feliz [...], mas perecem em
suas obraspor achar que seu estado é suficiente. Tais pessoas, diz Amor, são chamadas
de reis, mas estão em um país onde todos têm somente um olho. Mas, sem dúvida,
aqueles que têm dois olhos os consideram servos. (PORETE, 2008, p. 106-107).

Libertando-se das Virtudes e dos intermediários, a Alma pertence ao grupo de almas


que aniquilaram suas vontades e passaram por três mortes: a morte do pecado, “na qual a Alma
deve morrer inteiramente de tal maneira que não permaneça nela nem cor, nem sabor, nem odor
de coisa alguma do que Deus proíbe na Lei” (PORETE, 2008, p. 113); a morte da natureza, que
74

caracteriza aqueles que vivem a vida do espírito (capítulo 62); e a morte do espírito, a qual “traz
a flor do amor da Deidade” (PORETE, 2008, p. 119). Indo em direção aos sete estágios, a Dama
Amor afirma de antemão que “dos quatro primeiros estágios nenhum é tão elevado que a Alma
não viva nele em grande servidão. Mas o quinto estágio está na liberdade da caridade, pois é
liberado de todas as coisas”.

Em relação ao sexto estágio, ele é “glorioso, pois a abertura do doce movimento da


glória, que o gentil Longeperto dá, não é senão uma manifestação que Deus quer que a Alma
tenha sua própria glória, que ela terá para sempre” (PORETE, 2008, p. 115). No sétimo estágio,
encontramos a demonstração daquilo que acontece no sexto, de forma tão rápida que “mesmo
quem a recebe não tem a percepção do dom que lhe é dado” (PORETE, 2008, p. 115). Assim,
enfatiza através de Amor que

[...] quando o corpo está completamente mortificado e a vontade se delicia na


vergonha, na pobreza e nas tribulações: então ela é completamente espírito e não outra
coisa. Portanto, essas criaturas espirituais têm pureza de consciência, paz nos afetos,
e o entendimento na razão. (PORETE, 2008, p. 129)

Paralelamente a isso, importa mencionar a diferença que Marguerite estipula entre o


termo “espírito” e o termo “alma”. Em sua obra, o uso flexível da linguagem fica evidente, além
da liberdade de escolha dos termos: “[...] vos digo que aqueles que observam os mandamentos,
e para os quais isso basta, têm o nome de ‘alma’ e não de ‘espírito’, e seu nome correto é ‘alma’
e não ‘espírito’, pois tal gente está longe da vida do espírito” (PORETE, 2008, p. 129). Nesta
última passagem, nota-se o posicionamento insistente sobre sua argumentação em torno da
Alma que deve seguir os preceitos da Dama Amor, não da Dama Razão, e como são aqueles
que seguem esta (estão “longe da vida do espírito”).

Sendo assim, para compreender O Espelho como uma obra de caráter subversivo em
seu discurso através desses elementos supracitados, além de demais outros que também
compõem a obra, a exemplo da audiência e da participação da autora na narrativa, é preciso
definir as alegorias e a forma como elas se manifestam e são utilizadas durante a Idade Média,
bem como a retórica contida em seu uso. Além disso, é necessário ter como prioridade a autoria
feminina, fator que irá nos levar a uma análise de cunho feminista dessa obra através dos
elementos retóricos escolhidos não arbitrariamente pela autora. Por fim, seguiremos ao segundo
capítulo desta pesquisa, a fim de demonstrar esses aspectos e dissertar acerca de uma teoria das
alegorias a partir da perspectiva da autoria feminina, da crítica literária feminista, da teoria da
literatura e da perspectiva histórica medieval.
75

CAPÍTULO 2

AS ALEGORIAS E MECANISMOS DE SUBVERSÃO NA LITERATURA


MEDIEVAL

Compreender as alegorias como mecanismos de subversão implica em considerar esses


elementos como recursos retóricos que são usados de forma estratégica e não arbitrária, a fim
de alcançar um sentido que está implícito. Podemos imaginar o uso das alegorias – e de outros
elementos ligados à construção metafórica – como o aproveitamento de imagens que têm
significados contextualmente desenvolvidos e que são por vezes repetidos, sendo, por este
motivo, historicamente situados. Esse conjunto de imagens que é levado ao leitor está
diretamente relacionado ao sujeito-autor e ao contexto no qual a obra está inserida, revelando a
necessidade de analisar de que forma estão organizadas, dentro do texto literário medieval, as
alegorias e para quais sentidos estas se voltam.

Considerando esses aspectos, este segundo capítulo tem como principal objetivo trazer
à tona conceitos e perspectivas acerca das alegorias e seus usos, a fim de desencadear na análise
da obra O Espelho das Almas simples, de Marguerite Porete. Para tal, o capítulo iniciará com
uma explanação sistemática em torno dos conceitos e das perspectivas do processo metafórico
presente nas alegorias e nas personificações, buscando trazer considerações preliminares
encadeadas numa argumentação a respeito do ponto de vista aqui defendido. Em relação a essas
considerações, destacaremos as possíveis sistematizações das alegorias, principalmente através
das perspectivas de Hansen (2006), Ricoeur (2015) e Fletcher (1970).

Posteriormente, importará trazer à tona o pensamento analógico medieval e a


perspectiva de Franco Jr. (2008) acerca do fenômeno da similitude. Neste caminho, falaremos
a respeito dos usos das alegorias nos textos medievais e quais são os gêneros textuais presentes
na Idade Média que usufruem desse mecanismo. Dissertaremos, ainda neste âmbito, acerca das
aproximações e divergências entre as alegorias, as personificações, o símbolo, a figura e o
próprio processo metafórico, voltando-nos para o potencial simbólico e o propósito político da
linguagem, principalmente nas obras místicas.

Dessa maneira, pretende-se tratar a respeito da alegoria medieval e suas manifestações.


Para isto, identificaremos suas principais características, sua formação em relação ao
pensamento do indivíduo medieval e como podemos sistematizá-la dentro do contexto
76

teocrático do período. Neste ponto, importa trazer à tona as alegorias femininas e as discussões
em torno dessas atribuições de gênero a certas imagens. Ademais, é preciso também observar
como são aplicadas nos textos e quais são os sentidos que provocam na audiência.

Por conseguinte, discutiremos a subversão discursiva dentro das obras de autoria


feminina que utilizam as alegorias como estratégia. Para desenvolver este tópico, será realizada
uma análise conceitual a respeito do discurso retórico medieval, bem como as perspectivas dos
estudos medievais na compreensão do que seria um texto literário na Idade Média e por que
não podemos limitá-los ao aspecto meramente retórico. Neste sentido, também será discutido o
conceito de consciência feminista, pois, considerando o fator da autoria feminina e dos impactos
que este aspecto tem sobre a construção e a recepção da obra, é necessário perceber como o
discurso é desenvolvido e quais intencionalidades carrega.

Na mesma direção, e atrelado à perspectiva da crítica feminista, compreenderemos de


que forma as alegorias expõem essa consciência e são usadas como forma de difundir discursos
tomados como subversivos dentro do contexto medieval. Assim, trataremos a respeito da
autoria feminina e da não arbitrariedade dos elementos retóricos, defendendo que nenhuma
escolha é arbitrária, sobretudo na escrita de uma obra literária, e que podemos, sim, defender a
existência de uma literatura medieval que não é puramente sobre a retórica.

Por fim, importa trazer à tona o uso das alegorias na escrita de autoria feminina
medieval, além das próprias alegorias femininas e as discussões em torno do porquê dessa
atribuição de gênero em torno dessas imagens. Pretende-se finalizar o capítulo considerando as
alegorias mecanismos retóricos para a subversão discursiva e exemplificando os modos com os
quais estas aparecem nos textos de algumas obras do período, indo em direção ao corpus da
pesquisa, O Espelho das almas simples e aniquiladas. Sendo assim, este capítulo propõe-se a
desenvolver uma nova perspectiva acerca do uso das alegorias, tendo como base os textos de
autoria feminina da Idade Média, e a formar uma possível adição aos conceitos de alegoria
desenvolvidos até então, incluindo a perspectiva feminista como ponto de ruptura.

2.1 A alegoria medieval e suas manifestações: considerações preliminares

Tratar acerca de uma obra de autoria feminina medieval diz respeito a considerar todos
os recursos retóricos utilizados na criação da narrativa para buscar não apenas seguir um gênero
literário do período, mas também para materializar a intencionalidade do texto em sua relação
77

com o contexto e com a autoria. Desta forma, esta pesquisa vem trazendo à tona a
contextualização da escrita mística feminina da Idade Média e, em especial, a obra de
Marguerite Porete, O Espelho das Almas Simples, no sentido de romper com o paradigma
meramente do âmbito da retórica clássica e evidenciar o aspecto literário na organização
estratégica das alegorias nas obras.

Defende-se que esta narrativa é construída por meio da formação de um discurso


subversivo atrelado à mulher escritora, que, como fora dito anteriormente, tem sua subversão
dividida em três planos, sendo eles a) o contexto, b) o discurso, e c) a palavra escrita (locus).
Quanto à transgressão, associada aqui diretamente a uma característica intrínseca da mística
feminina (NOGUEIRA, 2019), vimos que as obras místicas das mulheres perpassam os planos
do gênero, da ortodoxia da Igreja, da língua e dos limites da relação entre o humano e o divino.
Dessa maneira, importa voltarmo-nos ao plano da obra literária, sobretudo no âmbito
discursivo, cuja subversão é resultado da escolha dos elementos retóricos utilizados em sua
construção, neste caso o uso de alegorias, personificações e metáforas.

Considerando esses fatores, percebemos que as alegorias foram bastante utilizadas


durante a Idade Média sob diferentes aspectos, incluindo obras de autoria masculina e feminina.
Sendo, de fato, parte da tradição literária do período, as alegorias são encontradas
expansivamente na Divina Comédia, no Roman de La Rose, dentre outras obras bastante
significativas para a sociedade literária medieval. Assim, faz-se importante descrevê-las e
conceituá-las, a fim de compreender que elas são direcionadas fundamentalmente à linguagem
e aos caminhos que esta pode nos revelar. Essa compreensão abre margem para desvendar as
formas como as alegorias e os outros processos metafóricos associados a ela são utilizados na
obra de Porete e de que forma a alegoria poretiana utiliza-os como estratégia de narrativa,
sobretudo ao elaborar argumentos compreensíveis para sua audiência e para o sistema ao qual
ela se opõe.

Etimologicamente, o termo alegoria é derivado de allos (outro) e agorium (falar na


ágora, ou seja, a linguagem pública). Sendo assim associada ao direcionamento a um público,
falar alegoricamente significa, segundo Souki (2006, p. 93), “falar em linguagem acessível a
todos, remetendo a outro nível de significação, dizendo uma coisa e expressando outra; a
alegoria é, por excelência, uma linguagem oblíqua”. Direcionando-se ao sentido e afastando-se
do fator audiência, Ceia (1998, p. 01), por outro lado, afirma que “uma alegoria é tudo aquilo
que representa uma coisa para dar a ideia de outra através de uma ilação moral”. Ao mesmo
tempo, este autor explicita que o termo allegoría significaria “dizer o outro”, ou “dizer alguma
78

coisa diferente do sentido literal”, evidenciando o processo metafórico envolvido no uso das
alegorias em seus variados contextos. Ademais, Ceia (1998, p. 01) acrescenta que esse termo
substituiu um anteriormente existente, hypónoia, cujo sentido é de uma significação oculta e
era utilizado para realizar interpretações dos mitos de Homero por meio de exemplos, princípios
morais e personificações.

Hansen (2006), seguindo uma perspectiva mais retórica, explicita que o conceito de
alegoria fora proposto na Retórica antiga como uma modalidade da elocução, um ornamento
do discurso. Neste sentido, retoma os conceitos de Aristóteles, Cícero e Quintiliano, e separa
os pontos de vista greco-latino e cristão. Segundo o autor, a definição de Lausberg, retomada
desses três pensadores, é a de que “a alegoria é a metáfora continuada como tropo de
pensamento, e consiste na substituição do pensamento em causa por outro pensamento, que está
ligado, numa relação de semelhança, a esse mesmo pensamento” (HANSEN, 2006, p. 07). A
respeito desse conceito, Hansen (2006) também mostra a divisão entre a alegoria dos poetas e
a alegoria dos teólogos, duas classificações provenientes da perspectiva greco-latina e cristã.
Assim, há duas alegorias,

uma alegoria construtiva ou retórica, uma alegoria interpretativa ou hermenêutica.


Elas são complementares, podendo-se dizer simetricamente inversas: como
expressão, a alegoria dos poetas é uma maneira de falar e escrever; como
interpretação, a alegoria dos teólogos é um modo de entender e decifrar. (HANSEN,
2006, p. 08)

Seguindo mais adiante, corroborando com Souki (2006), Tambling (2010) considera a
alegoria um elemento de incorporação de ideias abstratas, atribuído essencialmente ao ato da
leitura e, por isso, estabelecendo diferenças entre ler alegoricamente e ler no sentido literal.
Souki (2006, p. 93) mostra-nos que é comum defini-la como uma “figura de linguagem capaz
de exprimir, de forma concreta, uma ideia abstrata”, além de ser associada “a recursos
expressivos que evidenciam a contraposição existente entre a ideia e a materialidade, através
da personificação de uma abstração”. Porém, num sentido mais propriamente medieval e
histórico, ela poderia ser definida como “uma expressão ardilosa das funções religiosas e
políticas, que servem para uma determinada intenção ideológica”.

Assim, direcionada a uma intenção ideológica, podemos afirmar que a alegoria é um


recurso retórico que pode ser usado estrategicamente em prol de um propósito político, o que
diz respeito à reestruturação social. Ao mesmo tempo, o conceito de alegoria também abre
espaço para incluir desde textos específicos até a afirmação de que toda literatura e escrita são
79

alegóricas (TAMBLING, 2010, p. 11). Nesta pesquisa, consideraremos a perspectiva de que o


que é alegórico é colocar uma coisa em função de outra (TAMBLING, 2010, p. 11).

Essa ideia de substituição ou de função é atribuída ao processo metafórico no qual está


incluída a alegoria. Entretanto, conforme Souki (2006, p. 94),

embora uma alegoria e uma metáfora partam de princípios semelhantes, elas diferem
entre si. Ambas estabelecem uma relação entre dois elementos concretos para
expressar um significado abstrato. Mas, enquanto a metáfora é construída a partir de
uma associação que se apoia na semelhança entre dois elementos diferentes, a
associação da alegoria é feita de forma arbitrária, sem nenhuma regra de similaridade.
Na alegoria, o significado desejado se incorpora a um objeto escolhido, como
resultado de um ato intencional. A diferença existente entre a metáfora e a alegoria se
situa no fato de que nesta o significado apoia no significante e pode ser
constantemente alterado, o que não acontece na metáfora.

Isso significa que a alegoria configura-se a partir de um processo metafórico, mas não
exerce a mesma função que uma metáfora. Podemos imaginá-la, assim, como uma imagem que
cria um senso de semelhança “que não é conscientemente observado, nem é desenvolvido
posteriormente por associação com qualquer outra coisa” (TAMBLING, 2010, p. 12. Tradução
livre)48. Ademais, numa alegoria, é necessário que “as abstrações que determinam o sentido
alegórico procurado sejam de imediata compreensão” (CEIA, 1998, p. 02). As diferenças entre
a metáfora e a alegoria serão desenvolvidas em maiores detalhes nos próximos tópicos deste
capítulo, mas podemos trazer de antemão a perspectiva de Ceia (1998, p. 03), que afirma que

se introduzíssemos algum dado que pudesse desviar o leitor desta conclusão


[imediata], construiríamos uma metáfora e não uma alegoria. A linguagem alegórica
não possui o mesmo dinamismo que a linguagem metafórica, que é susceptível de
variações semânticas mais profundas, ao ponto de não suportar a repetição de um
mesmo significado nem depender de significados pré-fixados.

Além desses autores, encontramos uma definição em Le Goff e Schmitt (2006, p. 89),
que destacam que “a procura do sentido oculto ou no texto ou na aparência, ocupa lugar
considerável no pensamento e na arte literária da Idade Média”. Através de uma retomada às
tradições clássicas, considera-se que a Antiguidade pagã, por meio da mitologia, ascendeu o
uso das personificações enquanto recursos poéticos e as desenvolve com a retórica clássica.
Nesta, encontramos uma dupla definição acerca das alegorias, podendo ser uma metáfora
prolongada, como afirma Quintiliano, ou um tropo (dizer algo para significar outra coisa), como
defendem Agostinho e Isidoro de Sevilla (LE GOFF; SCHMITT, 2006, p. 89). Na Idade Média,
os textos sagrados, que incluem as parábolas de Jesus e os textos do Velho Testamento, seriam

48 “[...] it creates a sense of a resemblance which is not consciously remarked on, nor is it developed later by
association with anything else”.
80

também uma forma de propagar o uso das alegorias, posto que buscam extrair diferentes
sentidos que teriam a finalidade de defender uma verdade cristã.

Essa questão dos diferentes sentidos atribuídos à própria concepção de alegoria vai de
encontro ao que Tambling (2010, p. 11) enfatiza acerca da leitura da alegoria ter sido um
verdadeiro obstáculo a uma resposta imediata a um texto, causando a perda do seu sentido
literal, o que provocou determinado descaso, por bastante tempo, por parte dos medievalistas
ao minimizarem a importância da presença das alegorias nos textos medievais. Ainda segundo
esse autor, a alegoria tem um conjunto amplo de significados, porém, eles foram modificados
nos últimos anos com o avanço dos estudos literários e culturais, motivo pelo qual não existe
um consenso geral a respeito de sua abordagem.

Dessa maneira, atribuída ao processo metafórico, apesar de diferenciar-se da metáfora,


a alegoria não carrega consigo a ideia de substituição ou empréstimo tal como exerce a
metáfora, muito menos de transferência, por isto sendo preferível o uso do termo “em função
de”. A exemplo disto, Ricoeur (2015, p. 36-37), em seu trabalho A metáfora viva, ao analisar
as perspectivas de Aristóteles acerca da metáfora sob um ponto de vista mais estruturalista,
sobretudo através da Retórica e da Poética, traz algumas características e funções inerentes a
esse elemento, tais como o preenchimento de uma lacuna semântica, atribuindo-a,
posteriormente, à ideia de ornamento, que terá relação com as definições propostas por
Agostinho, por exemplo, e exerce influência direta nas alegorias dos teólogos medievais
(HANSEN, 2006).

Segundo Ricoeur (2015, p. 30), “a metáfora é definida em termos de movimento: a


epiphorá de uma palavra é descrita como uma sorte de deslocamento de... para...”, e a isto
justifica-se que a palavra metáfora, em Aristóteles, “aplica-se a toda transposição de termos”.
A metáfora seria uma diferença no sentido, realizada pela mímesis, tendo a realidade como uma
referência, mas sem tornar-se uma determinação. É nesse aspecto que a expressão “imitação da
natureza” exerce a função de “distinguir o poético do natural”, o que, no poema, seria a imitação
das ações humanas ou de coisas que já foram, ou deveriam ser (RICOEUR, 2015, p. 73). Nessa
perspectiva, toda mímesis “está no horizonte de um ser no mundo que ela torna manifesto na
mesma medida em que a eleva ao mythos. A verdade do imaginário, a potência de revelação
ontológica da poesia” são o que, em Ricoeur (2015, p. 74), faz parte da concepção de
Aristóteles, ligando a “função referencial à revelação do Real como ato”.
81

Entretanto, mesmo sendo a metáfora associada à substituição na perspectiva de Ricoeur


(2015), o próprio sentido da alegoria contradiz – e encontra-se ligado a – essa especificidade da
metáfora, pois, conforme visto anteriormente, etimologicamente allegoreo está relacionado a
um significado oculto, abaixo do significado superficial, funcionando como um véu. Assim,
além das diferenças entre alegoria-metáfora, é possível atribuirmos diferenças de conceitos e
usos entre alegoria-símbolo e alegoria-personificação.

De forma abrangente, Ricoeur (2015, p. 99) identificou a existência de uma “família da


metáfora”, quebrando sua unidade em diferentes classes de figuras, elencando a personificação
como primeira subespécie da ficção (que apresenta um grande parentesco com a metáfora por
atribuir a um pensamento traços de outro). Essa primeira subespécie, feita não apenas por meio
da metáfora, mas também por metonímia e sinédoque, faz de um ser inanimado ou abstrato um
ser vivo, como uma pessoa, que pensa e exerce funções de um ser humano, bem como tem a
capacidade de pensar, formar opiniões e defender pontos de vista por meio da argumentação.
Por outro lado, para Tambling (2010, p. 12), a personificação seria um tipo particular de
alegoria, funcionando como uma modalidade alegórica “que dá formas concretas a ideias
complexas e abstratas que as torna reconhecíveis” (tradução livre)49.

Voltando ao conceito de alegoria, o primeiro autor também identifica as dificuldades da


diferenciação dos sentidos, posto que ela “apresenta um pensamento sob a imagem de outro
pensamento, mais apropriado para torná-la mais sensível ou mais evidente do que se fosse
apresentada diretamente e sem nenhuma espécie de véu” (FONTANIER, 1968, p. 114 apud
RICOEUR, 2015, p. 100). Concordando com Fontanier, Ricoeur (2015, p. 100) defende que a
alegoria distingue-se pelo fato de que a metáfora “oferece apenas um sentido verdadeiro, o
sentido figurado, ao passo que a alegoria ‘consiste em uma proposição de duplo sentido, com
sentido literal e com sentido espiritual simultaneamente’”.

Esses fatores conceituais, um tanto quanto nebulosos à primeira vista, principalmente


pela proximidade entre eles, abrem margem para um apanhado histórico preliminar dos usos da
alegoria. Segundo Souki (2006, p. 95), a alegoria (nome dado por Filão de Alexandria entre 25
a.C e 50 d.C. para designar um outro dizer, ou o não dito) passa a ser reconhecida na Grécia
helenística como uma “linguagem capaz de fornecer, através das aparências, significações
subjacentes”. Porém, segundo a autora, sua função já era exercida antes de sua formação,

49 “It is an allegorical mode, providing concrete forms for complex, abstract ideas which it makes recognizable”.
82

principalmente na cultura egípcia e nas intenções dos seus hieróglifos, sendo esta a primeira
aparição da alegoria como forma de desvendar significados e de tornar compreensível à
população as intenções contidas nessas imagens. A este fato associa-se também a aproximação
das alegorias com o âmbito da religiosidade, característica que está fortemente presente no
cristianismo medieval, que se porta em busca da verdade divina, imutável e simples. Na Grécia,
por sua vez, a alegoria exercia a função de renovadora de sentidos, compondo um movimento
de resgate dos mitos de Homero.

Na época do cristianismo primitivo, a alegoria também desempenha papel de mediação,


mas sua leitura (a leitura alegórica) assume funções messiânicas unidas ao classicismo e aos
valores cristãos (SOUKI, 2006, p. 97). O caráter profano das alegorias ficava, portanto, cada
vez mais claro em sua tentativa de sistematização:

Na procura de unir duas diferentes formas de viver, numa experiência de


transcendência, o Cântico dos Cânticos, composto de sensuais poemas salomônicos,
inconcebíveis dentro dos padrões da moral cristã, se transformou em elemento de
grande força representativa para a formação das convicções religiosas. Como num
texto cristão o amor profano não poderia conter a força religiosa sugerida por
Salomão, o Cântico dos Cânticos, sob um enfoque alegórico, se transforma, ainda que
contivesse muitos outros significados, na celebração do amor de Deus por sua Igreja.
(SOUKI, 2006, p. 97)

Importa mencionar que, conforme Ceia (1998, p. 04), até a Idade Média, “a alegoria
serviu de instrumento de defesa de teólogos, que recorreram às interpretações alegóricas da
Bíblia para superarem todas as dúvidas heréticas”. Isto foi consequência do uso da linguagem
alegórica como meio para alcançar um modelo de perfeição, tornando-a uma extensão da
exegese bíblica (SOUKI, 2006, p. 97).

Estruturada para fins religiosos, a linguagem alegórica medieval passou a ser parte da
vida religiosa desde o início da Idade Média, prolongando-se até o ápice da produção literária
dos místicos dos séculos XIII e XIV. Foi concebida, dessa forma, como uma “mediadora da
relação entre Deus e os homens”, sendo a linguagem prioritária dos místicos e místicas. No
âmbito clerical, encontramos referências à Igreja na literatura teológica com nomes alegóricos,
tais como Aurora, Cidade, Arca, dentre outros. Segundo Ceia (1998, p. 04),

Santo Agostinho ensinou que a Bíblia devia ser lida de forma alegórica: “No Velho
Testamento, o Novo Testamento está dissimulado; no Novo Testamento, o Velho
Testamento é revelado”. Para o Autor de A Cidade de Deus, a alegoria não está nas
palavras, mas deve ser encontrada nos acontecimentos históricos. Ao homem não é
permitido o conhecimento literal e imediato das Escrituras, pois só por um sentido
segundo o homem se poderá aproximar (mas nunca chegar totalmente) da Verdade
divina.
83

É preciso considerar, ademais, que Tomás de Aquino também elabora reflexões acerca das
alegorias, estabelecendo distinções entre a alegoria teológica (não ligada à retórica, mas, sim, à
visão de mundo) e a alegoria secular (literária).

Quanto ao caráter retórico das alegorias, podemos afirmar, assim como defende Ricoeur
(2015, p. 53), que

a retórica não pode ser esgotada em uma disciplina puramente argumentativa, pois
está voltada para o ouvinte, e não pode, portanto, deixar de considerar o caráter do
falante à disposição da audiência; em poucas palavras, ela permanece na dimensão
intersubjetiva e dialogal do uso público do discurso, donde resulta que a consideração
das emoções, das paixões, dos hábitos e das crenças continua a ser da competência da
retórica, mesmo que ela não deva suplantar a prioridade do argumento verossímil,
pois o argumento propriamente retórico dá conta ao mesmo tempo do grau de
verossimilhança relativo à matéria discutida e do valor persuasivo relativo à qualidade
do falante e do ouvinte.

É a partir desse mecanismo retórico e da participação de uma audiência que as modalidades de


alegoria podem ser divididas entre: a) construtiva ou retórica, que diz respeito a uma operação
discursiva ligada à retórica; e b) hermenêutica, que seria uma prática interpretativa associada
ao âmbito transcendental, religioso, sagrado.

Caetano (2007, p. 72) afirma que a alegoria retórica “refere-se à oposição entre sentido
próprio e figurado, este último a metáfora, caracterizada como desvio do sentido literal”.
Diferentemente do proposto em Ricoeur (2015), a metáfora aqui seria parte da classificação da
alegoria, e não a alegoria como parte da família da metáfora. Todavia, esta alegoria retórica
possuiria dois sentidos, um próprio (inteligível) e um figurado (sensível), tal como afirma
Ricoeur (2015). Assim, o ponto principal e a chave para partirmos para uma melhor
compreensão dos usos das alegorias por parte da mística de autoria feminina, sobretudo em O
Espelho, é o fato de que a alegoria retórica “é mimética e configura, ao mesmo tempo, um
procedimento intencional da autoria” (CAETANO, 2007, p. 72).

Porém, considerando o contexto medieval do uso das alegorias, e tendo em mente sua
importância no cotidiano e na cultura da Idade Média, percebe-se que essa divisão,
desenvolvida também por Hansen (2006), diz muito mais a respeito da visão que se tinha do
mundo e das coisas criadas por uma entidade divina do que essencialmente sobre uma cultura
literária medieval. Isto significa que entender as alegorias medievais é voltar-se para uma
sistematização de como o indivíduo do período enxergava o mundo, lidava com os
acontecimentos e representava-os, bem como buscava interpretá-los.
84

Em sua primeira classificação, alegoria dos poetas, em oposição e simultânea


complementaridade com a alegoria dos teólogos, seria uma semântica das palavras, ao passo
que a segunda seria uma semântica das realidades. É válido destacar que estas são reveladas
por coisas, homens e acontecimentos, e que todos são nomeados por palavras. Desta forma, ao
ler alegoricamente, o leitor buscaria os procedimentos formais envolvidos no processo de
figuração (convenção linguística), ou analisaria a significação por meio da busca pelo sentido
preexistente que é revelado na alegoria (HANSEN, 2006, p. 09). Assim, relacionada à
ornamentação do discurso, a alegoria seria um preceito técnico e intencional do autor, de forma
que sua interpretação é prevista por regras que regulam sua clareza e se adequam de acordo
com as circunstâncias e o gênero discursivo.

Como visto, o ponto característico acerca da alegoria como ornamento é a distinção


entre sentido próprio e figurado, numa visão dualista. Ademais, é preciso reforçar novamente
que tanto a construção quanto a interpretação da alegoria greco-latina são essencialmente
linguísticas, como bem pontua Hansen (2006, p. 11). Por outro lado, a alegoria dos teólogos,
ou hermenêutica, que será mais desenvolvida nesta pesquisa por ser cristã e medieval, tem o
essencialismo como principal aspecto. Este essencialismo é atribuído principalmente à crença
nos textos sagrados e a busca pela interpretação dos mesmos. Podemos sintetizar essas ideias,
portanto, da seguinte forma:

[...] ao passo que a Retórica greco-latina teorizou a alegoria como simbolismo


linguístico, os padres primitivos da Igreja e a Idade Média a adaptaram, pensando-a
como simbolismo linguístico revelador de um simbolismo natural, das coisas, escrito
desde sempre por Deus na Bíblia e no mundo. Por outros termos, os padres fizeram a
distinção de sentido literal, expresso por “letras” de palavras humanas como sentido
literal próprio e sentido literal figurado, e sentido espiritual, revelado por coisas,
homens e acontecimentos das Escrituras”. (HANSEN, 2006, p. 12)

Faz-se necessário pontuar, além disso, a alegoria do ponto de vista histórico em


contraponto com o literário. Para tal, retomamos o conceito de literatura para o estudo de textos
escritos durante a Idade Média. É possível afirmar que a análise e o uso do conceito de alegoria
têm sua devida importância na compreensão do imaginário cultural e social, como bem afirmam
Costa e Zdebskyi (2017). Segundo estes autores, que partem do ponto de vista histórico, a
constante modificação dos sentidos atribuídos à alegoria permitiu que esta fosse aceita e
compreendida como uma figura de linguagem, ou seja, estando na ordem dos sentidos (COSTA;
ZDEBSKYI, 2017). Neste sentido, o ato de pensar alegoricamente seria uma correspondência
de sentidos opostos, um literal e um oculto, ambos relacionados por meio da semelhança. Em
outras palavras, a alegoria seria uma forma encontrada pela cultura moderna de “construir
85

enigmas por meio do discurso”, mas de maneira que apenas o sentido alegórico se sobressaia
(COSTA; ZDEBSKYI, 2017, p. 30).

Na perspectiva dos autores supracitados, a construção do pensamento alegórico seria


um pensamento cultural fundamentado na palavra, que seria o elemento que dá sentido e
significado às coisas do mundo, diferentemente da perspectiva medieval das alegorias dos
teólogos, que é uma “interpretação religiosa de coisas, homens e eventos figurados em textos
sagrados” (HANSEN, 2006, p. 08). Assim, a palavra e a linguagem bastariam para atribuir
sentido ao mundo.

A crítica da perspectiva histórica em relação às alegorias dá-se no momento em que,


considerando o mundo um cenário de experiências de sujeitos inseridos em espaços históricos,
a análise alegórica mantém seu fundamento na palavra e não se volta para as temporalidades
(COSTA; ZDEBSKYI, 2017, p. 30). Fala-se, portanto, de uma tensão temporal, sobretudo do
ponto de vista do historiador, em relação ao contato com as fontes medievais e às experiências
reveladas por meio das narrativas.

Porém, é importante destacar que o ponto de vista dos estudos históricos considera a
literatura, principalmente a medieval, não fictícia,

mas enquanto experiência de estética imagética de uma confluência temporal


intrínseca ao período. Um dos fundamentos do mito e do rito. Por isso, a alegoria no
contexto antigo e medieval não estava tensionada pela linguagem externa a sensação
humana, mas diretamente conectada com o seu imaginário e a sua forma de
experimentar a vida. (COSTA; ZDEBSKYI, 2017, p. 31).

É considerado, dessa maneira, o mito, sendo a ideia de alegoria ligada aos movimentos
transculturais existentes na História. O aspecto de desconsiderar a ficcionalidade do texto
medieval traz problemáticas em torno do conceito de literatura e de como podemos realizar um
estudo dentro da perspectiva literária em torno de um texto de autoria medieval. Neste ponto, é
preciso retomar os fatores que fazem de uma obra ser ou não literária e, com isso, repensar
pontos de vista históricos, discursivos, e até mesmo literários.

O conceito de literatura pode ser discutido sob vários pontos de vista. Deixa-se de lado,
neste momento, a ideia de literatura enquanto conjunto de textos escritos, pois esta visão limita
os estudos literários medievais à ideia de que os textos são meramente documentos históricos,
principalmente pelo caráter teocêntrico do indivíduo medieval, que acreditava no decorrer dos
acontecimentos conforme a vontade divina. Desta forma, representar esses acontecimentos por
meio da palavra seria uma forma de expressão da realidade vivida no medievo. Porém, como
bem afirma Eagleton (2019, p. 01), acreditar que a literatura é uma escrita imaginativa, apenas
86

relacionada à ficção, não procede como definição eficaz. Portanto, se a literatura não é apenas
ficção, podemos afirmar que, mesmo que não exista ficcionalidade nos textos medievais, como
defende-se na perspectiva histórica e retórica, ainda assim podemos falar de uma literatura
medieval.

Eagleton (2019) revela-nos que definir literatura através da distinção entre “fato” e
“ficção” é uma abordagem que tende a levar ao pensamento de que a história, a filosofia e as
ciências naturais seriam destituídas de imaginação, dado ao fato de que não são construídas
sobre os alicerces da ficção, mas, sim, dos fatos. Podemos, dessa maneira, pensar na literatura
como o emprego da linguagem de forma peculiar, mas não no sentido puramente formalista da
aplicação da técnica e do fato material, tal como uma máquina; pelo contrário, a obra literária
é um veículo de ideias e uma reflexão sobre a realidade social (EAGLETON, 2019, p. 04).

Nesta direção, a literatura medieval, sobretudo a mística, cumpre o papel de obra


literária e de artifício de desautomatização da linguagem, distanciando-se do que se conhece
cotidianamente. Mesmo assim, é válido destacar que,

se é certo que muitas das obras estudadas como literatura nas instituições acadêmicas
foram “construídas” para serem lidas como literatura, também é certo que muitas não
o foram. Um segmento de texto pode começar sua existência como história ou
filosofia, e depois passar a ser classificado como literatura; ou pode começar como
literatura e passar a ser valorizado por seu significado arqueológico. Alguns textos
nascem literários, outros atingem a condição de literários, e a outros tal condição é
imposta. Sob esse aspecto, a produção do texto é muito mais importante do que o seu
nascimento. O que importa pode não ser a origem do texto, mas o modo pelo qual as
pessoas o consideram. Se elas decidirem que se trata de literatura, então, ao que
parece, o texto será literatura, a despeito do que o seu autor tenha pensado.
(EAGLETON, 2019, p. 13)

Fala-se, portanto, de uma literatura medieval que possui construções complexas, bases
profundas e possibilidades interpretativas diversas. Ricas de intencionalidade, as obras
medievais, mesmo imbuídas no pensamento teocêntrico, também carregam reflexões políticas
e questionamentos acerca do seu entorno. Quando citamos o fenômeno dos movimentos
religiosos do século XIII, por exemplo, notamos que toda produção veiculada por esses grupos
tem suas reivindicações morais, políticas e religiosas. A partir do momento em que o texto
sagrado, a Bíblia, deixa de ser exclusivo e passa a ser democratizado por esses grupos, ou seja,
passa por processos de releitura, podemos afirmar que a literatura medieval ganha ainda mais
força e, em certo ponto, acessibilidade.

No campo dessas releituras, não podemos deixar de mencionar a forte influência da


retórica. É possível afirmar que as alegorias são usadas, durante a Idade Média, como um
artefato retórico presente, sobretudo, nos tratados, ou seja, nos textos cujo objetivo principal
87

seria a instrução. Deplagne (2020), em seu trabalho intitulado O parto de Christine: o exercício
do diálogo retórico como construção do conhecimento no livro A Cidade das Damas (1405),
de Christine de Pizan, ao abordar a obra de Christine de Pizan, afirma que a questão retórica,
neste caso, pareceria ser o ponto principal de identificação do objetivo dos escritos, posto que
revela ao leitor a audiência para a qual se destinam e seu conteúdo.

Na construção da argumentação de Christine, encontramos Damas alegóricas


dialogando com a própria autora/protagonista, construindo um diálogo que “atua não como
mera conversação, mas no sentido de fazer circular conhecimentos, sentidos diversos, entre os
interlocutores, capaz de tecer, a partir dele, relações e promover conhecimento múltiplo e novos
saberes” (DEPLAGNE, 2020, p. 260). É, portanto, uma argumentação em favor de algo e que
tem caráter de denúncia de uma realidade de seu tempo, sendo, desta forma, uma obra literária
que tem sua visão acerca do mundo externo ao autor e leva o leitor à intencionalidade da obra;
inegavelmente, uma obra literária medieval construída alegórica e retoricamente.

Dessa maneira, é necessário compreender as perspectivas através das quais as alegorias,


sobretudo nos textos místicos, podem ser interpretadas e analisadas. Primeiramente,
aprofundaremos a perspectiva retórica de Hansen (2006) acerca da diferenciação entre a
alegoria dos poetas e a alegoria dos teólogos para, em seguida, observarmos os pontos de vista
de Fletcher (1970), Ricoeur (2015) e Franco (2008), sendo, respectivamente, acerca das
diferenciações entre alegoria e outros termos a ela associados, do lugar da alegoria na metáfora
e, por fim, da alegoria no pensamento analógico medieval.

2.1.1 Alegoria dos poetas e alegoria dos teólogos: a perspectiva de Hansen

Hansen (2006) traz até nós um ponto de vista importante quando tratamos acerca de
textos religiosos, ou fundamentados em textos sagrados. Inicialmente, o autor destaca que a
interpretação cristã é essencialista, ou seja, o texto é a revelação da Verdade divina e esta se dá
por meio de enigmas. Neste ponto, podemos dizer que a questão é de ordem prática, pois é
relacionada à recepção do texto; enquanto um leitor poderia enxergar, em um determinado
contexto, a “má aplicação de regras retóricas, outro ouviria a Voz da Coisa” (HANSEN, 2016,
p. 15).

Partindo dessa questão, o autor menciona que a confusão entre aplicação de regras
retóricas e o foco na Palavra é fator semelhantemente realizado pelos românticos, os quais
88

definem o símbolo como categoria oposta à alegoria. Nesse período, a alegoria é considerada
do particular para o universal, ao passo que o símbolo seria um paradigma e elemento único,
tendo significação imediata (exemplo: a cruz, que simboliza a crucificação de Jesus e é
associada diretamente ao cristianismo). Desta forma, tem-se que o símbolo manifesta-se do
externo para o interno, ao passo que a alegoria manifesta-se do interno para o externo, na
perspectiva romântica.

É válido salientar que, nas tradições antigas, greco-latina, medieval e renascentista, o


símbolo e a alegoria correspondem ao mesmo elemento, não havendo distinção clara entre eles.
Há, portanto, uma teorização mecânica acerca da alegoria durante o século XIX, sempre
associada ao campo “exterior ao pensamento pretendido, como um luxo discursivo que se
permite dispender signos inúteis para a economia do sentido, que poderia ser significado
imediatamente” (HANSEN, 2006, p. 17).

Por outro lado, retoricamente, deve-se pontuar que a alegoria diz b para significar a,
dividindo-se em dois níveis, o da designação concretizante (b) e o da significação abstrata (a)
(HANSEN, 2006, p. 17). Neste plano duplo, a alegoria admite novos significados,
diferentemente do símbolo, que é estanque; nesse processo de admissão, pode-se realizar
transposições: “o significado da designação b pode ser totalmente independente do significado
da abstração a [...]” (HANSEN, 2006, p. 16-17). Sendo assim, a maior diferença entre a alegoria
para os românticos e a alegoria para as tradições anteriores é a universalidade do símbolo e a
particularidade da alegoria, ambos sendo inversamente proporcionais, onde “o símbolo é o
universal no particular; a alegoria, o particular para o universal” (HANSEN, 2006, p. 17).

É possível, ainda, perceber que Hansen (2006) concorda com os românticos no quesito
discursivo, quando estes acreditam que ele é sempre sucessivo e anacrônico. Neste aspecto, o
fato de a tradição romântica considerar a arte como expressão do artista, ou seja, uma atividade
realizada no campo da inspiração e dos sentimentos, leva a crer que a alegoria é, sobretudo,
uma convenção retórica, podendo distanciar o artista de seu processo artístico. Por ser
convenção, e por estar ligado à retórica, acreditou-se, por muito tempo, que a alegoria era
mecânica, posto que fora desenvolvida primordialmente pelos clássicos, ao passo que a criação
romântica seria orgânica.

Neste sentido, importa destacar que Hansen (2006) traz o ponto de vista de Lukácks,
que julga, por meio de seu historicismo, a alegoria como um modo inferior e que deveria ser
89

superado. A crítica feita por Lukácks gira em torno da ideia de que a alegoria seria do domínio
das artes da Transcendência, ou seja,

das artes cujo sentido está dado fora delas, na Eternidade. Tal concepção significa que
o artista contemporâneo é formalista, quando alegorizante, pois opera com uma forma
vazia a que não mais corresponde nenhuma transcendência num mundo de fragmentos
e mercadorias ou, ainda, porque propõe reacionariamente a transcendência num
mundo em que ela é ideologia. [...] Lukács generaliza para toda alegoria o que
historicamente se aplicaria apenas à alegoria medieval. (HANSEN, 2006, p. 21)

A alegoria medieval seria, de certa forma, uma temporalidade datada, percepção que é
generalizada, por Lukács, por todos os tempos da História. As alegorias medievais, mais
especificamente, serão tratadas no segundo tópico deste capítulo, pois se faz necessário
compreendê-la em diferentes níveis e por meio de exemplos, como bem menciona Tambling
(2010)50.

Porém, seguindo para o conceito de alegoria dos poetas, Hansen (2006, p. 29) explicita
que, segundo Quintiliano, a alegoria pode representar a) “uma coisa (res) em palavras e outra
em sentido”, ou b) “algo totalmente diverso do sentido das palavras”, ou seja, arbitrário. Para
a, estariam incluídos a metáfora, o enigma e a comparação, ao mesmo tempo em que, em b,
estariam o provérbio, a contradição, o sarcasmo e a ironia, que seria um tropo de oposição, pois
afirma uma coisa, mas quer dizer outra. Neste sentido, Hansen (2006) também acrescenta a
paródia, pois possui caráter representativo ou mimético, mas desmente o que expõe, sendo, da
mesma forma, um tropo de oposição. Portanto, para Quintiliano, a alegoria é um tropo
(transposição).

Importa destacar a importância que tem a perspectiva de Quintiliano sobre os padres


primitivos e medievais para a interpretação alegórica dos textos sagrados. Porém, ao adaptarem-
na aos seus moldes, esses pensam a alegoria como uma “revelação dos mistérios divinos”, não
como ornamentação retórica (HANSEN, 2006, p. 30). Conforme o estudioso,

o tropo é a transposição semântica de um signo em presença [S1] para um signo em


ausência [S2]. A transposição baseia-se na relação possível entre um ou mais traços
semânticos dos significados de S¹ e S². A relação pode ocorrer por metáfora
(semelhança), por sinédoque (inclusão), por metonímia (causalidade), por ironia
(oposição). (HANSEN, 2006, p. 30)

Por conseguinte, a incompatibilidade semântica no tropo percebida pelo leitor é dada


“do microcontexto (o lugar ocupado por S¹ no enunciado) e do macrocontexto (as outras partes

50 Tambling (2010, p. 19) afirma ser possível analisar as alegorias clássicas e medievais por meio de quatro
maneiras, trazendo-nos a ideia de uma alegoria quádrupla (há quatro maneiras diferentes de interpretar um texto).
Em segundo lugar, seria possível interpretar um texto pela ideia de que a alegoria atua como um véu; por fim,
também haveria a terceira e última possibilidade, que é a da leitura figurativa do texto.
90

do enunciado necessárias para determinar S² na leitura” (HANSEN, 2006, p. 31). Essa


incompatibilidade, causada pela ausência de algum aspecto do micro ou do macrocontexto,
força o leitor a fazer transposições do termo presente (S¹) ao termo ausente (S²), através de um
signo intermediário, que seria algum ponto de semelhança entre ambos, comprovando-se a
necessidade de considerar a alegoria como própria de lugares-comuns (loci ou topoi), que são
retomados diversas vezes por diversos autores medievais; são as alegorias medievais e o que
elas representam figurativamente.

Esta alegoria retórica, ou alegoria dos poetas, considera que o tropo implica o sentido
figurado e o literal (sem figuração). Seria, assim, “o tropo de salto contínuo”, significando que
“toda ela apresenta incompatibilidade semântica, pois funciona como transposição contínua do
próprio pelo figurado. Por isso, ela é também uma espacialização prevista do inteligível (ou
próprio) no sensível (ou figurado)” (HANSEN, 2006, p. 31). O significado ausente vai, desta
maneira, tornando-se presente no enunciado, conforme sua aparição acontece. É válido ainda
mencionar a definição de alegoria enquanto metáfora continuada, a qual Quintiliano afirma ser,
sintaticamente falando, “um diagrama da significação do discurso” (HANSEN, 2006, p. 43).
Seria dividida, portanto, em três níveis: a) um sentido literal (referencial ou descritivo); b) um
sentido figurado (associativo ou conceitual); e c) outro sentido literal ausente (“substância”
temática) (HANSEN, 2006, p. 44).

Além desses fatores, a alegoria dos poetas teria certas “virtudes”, sendo duas delas a
brevidade e a clareza discursivas, principalmente para tornar o discurso ainda mais verossímil.
Quando à regra da clareza, ela

é mesmo o critério central da classificação retórica dos tipos de alegoria. É ela também
que determina os graus de maior ou menor aceitabilidade nas operações de abstração
seletiva nas matérias do discurso, da combinação ou associação das suas partes, da
ampliação ou engrandecimento de ações e objetos e, enfim, da metamorfose ou
produção de efeitos de “maravilhoso”. (HANSEN, 2006, p. 44)

Atrelado a isto, Hansen (2006, p. 45) lembra que a alegoria dos poetas, unida ao discurso
retórico, também pressupõe uma técnica do bem dizer, considerando que “o discurso antigo é
principalmente oral”. Portanto, os discursos seguem modelos de constituição, não sendo
diferente quanto ao uso das alegorias.

Por outro lado, a alegoria dos teólogos, ou alegoria hermenêutica, seria “uma técnica de
interpretação que decifra significações tidas como verdades sagradas em coisas, homens, ações
e eventos das Escrituras” (HANSEN, 2006, p. 91). Neste ponto, temos duas perspectivas
91

diferentes. Primeiramente, a alegoria greco-romana, que nos traz a ideia de que o mundo é um
objeto de representação própria e figurada.

Assim, sendo a alegoria hermenêutica ligada à noção de que a poesia e a prosa são os
meios pelos quais o mundo é representado, ela considera que as coisas, signos na ordem da
natureza, são também revelações. Portanto, se nos textos sagrados são designados
acontecimentos, coisas e pessoas todos significando verdades morais, então a leitura desses
signos, ou seja, sua prática interpretativa, deve ser sempre ligada ao sentido espiritual das
figuras alegóricas, distanciando-se das palavras, que são o maior foco da alegoria dos poetas.

Sendo assim, diferentemente da alegoria greco-latina, que é uma técnica verbal51, a


alegoria dos teólogos (considerada por este termo por ter sido praticada principalmente pelos
padres na Idade Média) é “uma ‘semântica’ de realidades reveladas pelas coisas representadas
pelas palavras, não importa sejam palavras de sentido próprio ou figurado” (HANSEN, 2006,
p. 92). Nota-se, dessa maneira, que a preocupação maior nessa prática interpretativa – ler
alegoricamente – é a estrutura do universo, não a sistematização verbal, e por este motivo é
realizada segundo três coordenadas, todas fundamentadas na consideração da presença de Deus
a) nas coisas sensíveis, b) nos seres espirituais, almas e puros espíritos, e c) “na alma humana,
segundo graus de maior ou menos proximidade na maneira pela qual figuram Deus” (HANSEN,
2006, p. 92).

É válido salientar que esta esquematização trazida por Hansen (2006) é explicitamente
ligada às leituras dos indivíduos medievais, que, segundo Pernoud (1996, p. 195), não tinham
a noção de liberdade individual; na Idade Média, ela não aparece como um direito absoluto,
mas, sim, como um resultado de acúmulo de terras ou bens. Neste sentido, sendo os indivíduos
medievais centrados no lar, na família, na paróquia ou no grupo ao qual pertence (PERNOUD,
1996, p. 197), não seria uma novidade perceber que, quando se tratando da interpretação de
escritos realizada por uma parcela importante da sociedade, que são os padres e teólogos, o foco
seria no acontecimento e no curso divino das coisas, impossíveis de serem modificadas.

É dessa maneira que a interpretação alegórica dos teólogos relê “o Mesmo em suas
variações temporais minuciosas, pois Deus é Causa e Coisa e a natureza e a história são seus
efeitos e signos” (HANSEN, 2006, p. 92). Assim, é essencial destacar que

a hermenêutica lê os signos do texto bíblico segundo uma referência vertical,


anafórica, cujo sentido é a Significação de todas as significações: Deus, a Graça, a

51 Segundo Hansen (2006, p. 92), “em que o sentido próprio também é discurso e pressuposto do figurado”.
92

Salvação. Os signos falam; mas, no excesso de sentido absoluto que é Deus, são
paradoxalmente mudos e vazios: falam fazendo falar o silêncio Dele revelado em
coisas, homens e eventos; têm sentido porque o Sentido está fora deles, na Eternidade,
orientando-os providencialmente como umbra futurorum, sombra das coisas futuras.
A interpretação inscreve a história humana no paradigma teológico da Queda: a
referência inatingível do discurso é a língua adâmica que se falou antes de Babel. O
instrumento da interpretação é a analogia, segundo a qual as imagens são uma
imitação que participa em Deus através da expressão. Deus, perfeição suprema, é a
ordem; o homem conhece a ordem, imitando a perfeição e expressando-a; as coisas
recebem a ordem, participando da analogia divina quando realizam na sua substância
uma Lei que elas mesmas não conhecem, mas que Ele imprime nelas. Assim, como
ato do conhecimento, a interpretação é capaz de desvendar tal Lei, uma vez que o
homem imita e expressa. (HANSEN, 2006, p. 94)

Quanto às leituras dos teólogos, podemos imaginar que as marcas de Deus nos textos
eram lidas com base em três perspectivas diferentes, ou graus de proximidade, sendo elas a
sombra, o vestígio e a imagem. Respectivamente, temos uma imagem criada (e confusa) de
Deus, ou seja, uma figuração primária; em seguida, evidencia-se uma distinção da figura divina,
o que seria uma figuração mais distante; e, por fim, uma figuração definitiva, distinta e próxima
do sentido de Deus.

A imagem, nesse ponto de vista, seria “toda propriedade da criatura”, quer dizer, causa
e objeto. Portanto, a interpretação alegórica dos teólogos, feita como tipologia 52, dá-se em três
níveis diferentes, conforme a aproximação entre o que está sendo dito e Deus (quanto mais
próximas deste, mais associado à imagem). Sendo assim, importa tratar de forma sucinta acerca
das alegorias dos pontos de vista de Fletcher (1970) e Franco Jr. (2008), sendo o primeiro
relativo à busca das alegorias nas figuras das personagens e nos gêneros textuais e, o segundo,
aos princípios de similitude do pensamento analógico medieval.

2.1.2 Os usos das alegorias nos gêneros textuais e o pensamento analógico medieval

Fletcher (1970), em seu trabalho intitulado Allegory: the theory of a Symbolic Mode,
retoma a discussão das alegorias com base nas personagens as quais ele chama de heróis
alegóricos. Partindo dos questionamentos acerca de quais seriam as coisas que essas
personagens deveriam realizar, ou qual comportamento deveriam aderir, para serem
considerados alegóricos, o autor conclui que sua questão principal é sobre qual o modo de uma
ficção alegórica, como deixa explícito nas primeiras páginas de seu estudo. Tratando-se da
Idade Média, é notório que não podemos pensar numa teoria da alegoria dentro do campo

52 No método tipológico, idealizado por Orígenes (séc. II d.C.), o mundo físico funciona como um espelho do
mundo material. Esta visão foi, assim, aderida pelos padres primitivos e predominou na Idade Média.
93

simbólico sem considerar as interpretações alegóricas, como tratado anteriormente, muito


menos os padrões de alegorias que se repetem durante o período.

Iniciando sua argumentação, Fletcher (1970) traz a definição simples de que a alegoria
diz uma coisa para significar outra, assim como os demais teóricos vistos até então. Porém, ele
acrescenta que a alegoria “destrói a expectativa normal que temos sobre a linguagem, de que
nossas palavras ‘significam o que dizem’” (FLETCHER, 1970, p. 02. Tradução livre) 53. Desta
forma, podemos imaginar que o leitor está diante de um horizonte de expectativas que, quando
se deparando com os elementos alegóricos, tem seu caminho subvertido pela própria linguagem.
É por este motivo que o autor afirma que a alegoria é considerada um modo, pois é “um processo
fundamental de codificação de nossa fala. Pela própria razão de ser um procedimento linguístico
radical, pode aparecer em todos os tipos de trabalhos diferentes [...]”, e, por isto, não pertence
a um único gênero textual, podendo ser utilizadas em poesias, prosas, textos dramáticos,
tratados, ou seja, todos os gêneros (FLETCHER, 1970, p. 02. Tradução livre) 54.

Quanto à Idade Média, Fletcher (1970, p. 05) afirma que as alegorias, presentes nos
textos sagrados e repassados através das homilias e dos exórdios dos padres, iam para casa com
seus ouvintes, a exemplo das parábolas que chegavam até eles e eram motivo para reflexão
acerca do sentido oculto. Difere, portanto, da alegoria que chega ao leitor moderno, que tem
acesso aos romances e passa pelo processo de atribuição de significado às alegorias através de
outra intencionalidade, a qual, no medievo, era essencialmente moral. Entretanto, mesmo
reconhecendo a presença de um sentido oculto, ele afirma que

devemos evitar a noção de que todas as pessoas devem ver o duplo sentido, para que
a obra seja corretamente chamada de alegoria. Pelo menos num ramo da alegoria, o
enigma irônico serve a propósitos políticos e sociais pelo próprio fato de que uma
autoridade reinante [...] não vê o significado secundário da “língua de Esopo”. Mas
alguém vê esse significado e, uma vez visto, é fortemente sentido como a intenção
final por trás do significado primário. (FLETCHER, 1970, p. 08. Tradução livre) 55

Neste mesmo caminho, afirmamos que a linguagem figurada nunca pode ser
compreendida totalmente no momento presente em que é utilizada, sendo, portanto, impossível

53 “It destroys the normal expectation we have about language, that our words ‘mean what they say’”.
54 “In this sense we see how allegory is properly considered a mode: it is a fundamental process of encoding our
speech. For the very reason that it is a radical linguistic procedure, it can appear in all sorts of different works
[...]”.
55 “[...] we must avoid the notion that all people must sec the double meaning, for the work to be rightly called
allegory. At least one branch of allegory, the ironic aenigma serves political and social purposes by the very fact
that a reigning authority (as in a police state) does not see the secondary meaning of the ‘Aesoplanguage’. But
someone does see that meaning, and, once seen, it is felt strongly to be the final intention behind the primary
meaning”.
94

desassociar o uso alegórico da linguagem aos seus propósitos políticos e seu potencial de
subversão. Talvez seja devido a este aspecto que as alegorias também têm seus sentidos como
alvo de posse de determinados grupos dominantes, a exemplo das leituras das Escrituras
conforme o que a Igreja direciona.

Diferentes leituras abririam espaço para o paganismo, mesmo que as alegorias


estivessem sendo utilizadas e que seus significados ocultos devessem ser descobertos pela
audiência. Podemos mencionar, neste caso, um sentido privado das alegorias, a depender do
momento e do domínio político nos quais estão situadas. Seriam estes os motivos pelos quais
obras alegóricas sofreram suas consequências em seu momento presente? Ou apenas sucesso
retórico daqueles que detinham os textos? Estas são questões válidas para a posterior análise da
obra de Marguerite Porete, bem como de outras místicas medievais.

Entretanto, despedindo-nos das digressões, Fletcher (1970) defende que, quando


tratamos de literatura, é preciso considerar que em todos os textos haverá um grau de alegoria.
Isto significa dizer que todo texto alegórico é mais ou menos alegórico, ao passo que jamais
encontraremos uma “alegoria pura”, nem mesmo na Divina Comédia, de Dante, por muitas
considerada uma obra completamente alegórica. A problemática destas definições vem com a
imposição de uma norma que se aplicaria a todo texto literário.

Sendo, dessa forma, um conceito aplicável, mas repleto de controvérsias, Fletcher


(1970, p. 13) pontua que a primeira delas é a diferenciação entre alegoria e símbolo, trazida
pelos românticos e explanada também por Hansen (2006). A contraposição desses dois termos
parte de Goethe e é considerada por Fletcher como uma questão histórica, “uma vez que diz
respeito às concepções românticas da mente e da ‘imaginação’ em particular” (FLETCHER,
1970, p. 13. Tradução livre)56. Por conseguinte, essa distinção é pautada em mecanismos
avaliativos do que seria a boa poesia (simbólica) e a má (alegórica), não sendo aderida na análise
feita nesta pesquisa.

Seguindo mais adiante, ainda é notório afirmar que Fletcher (1970, p. 26. Tradução
livre) traz a concepção de que as alegorias seriam como “agentes”. Para desenvolver esta noção,
o autor afirma que os agentes podem exercer sua função em dois tipos diferentes, sendo

56 “[...] is a primarily historical matter, since it concerns romantic conceptions of the mind, and of ‘imagination’
in particular”.
95

destinados a “representar ideias abstratas ou a representar pessoas reais e históricas” 57. Para tal,
as alegorias teriam agentes, a exemplo das abstrações personificadas, ou seja, as
personificações, que “podem criar uma personalidade diante de nossos olhos, mas criam uma
aparência de personalidade” (FLETCHER, 1970, p. 27. Tradução livre) 58. O processo de
personificação, nesta perspectiva, seria de tipo inverso, posto que o poeta transforma ideias em
pessoas reais, ao passo que, quando são personificações de pessoas históricas, o procedimento
seria de figuração ou tipologia.

O que podemos destacar, a fim de compreender o ponto de vista do autor e como ele se
aplica nas leituras dos textos medievais, é que os agentes alegóricos – as personificações – são
considerados seres reais por seu poder de representação, mesmo que façam referência a ideias
e estejam relacionadas ao domínio da subjetividade. As personificações, por serem
materializações das ideias, requerem, portanto, limites sobre seus atos, podendo agir apenas
com outros agentes semelhantes (FLETCHER, 1970, p. 32). Existe, portanto, um controle da
mensagem transmitida pela personificação.

Para enfatizar ainda mais essas características acerca dos agentes alegóricos, Fletcher
(1970) compara o processo de personificação com o comportamento de uma pessoa que estaria
possuída por um demônio. Ele afirma:

Demônios [...] compartilham essa característica principal dos agentes alegóricos, o


fato de compartimentalizar sua função. Se encontrássemos um personagem alegórico
na vida real, diríamos que ele era obcecado por apenas uma ideia, ou que ele tinha
uma mente absolutamente unidirecional, ou que sua vida foi padronizada de acordo
com hábitos absolutamente rígidos dos quais ele nunca se permitiu variar.
(FLETCHER, 1970, p. 40. Tradução livre)59

Neste sentido, o que este teórico traz de diferente é a noção de que a alegoria moral,
muito utilizada na Idade Média, seria uma “interpretação dramática de disputas entre virtudes
e vícios”, sendo, por este motivo, a agência demoníaca semelhante à alegórica. Ademais, o
autor compara essa situação com a relação entre as virtudes no sentido cristão (pureza) e no
sentido pagão (força), sendo aplicável em ambos os casos (FLETCHER, 1970, p. 41). Tradução

57 “The agency here is of two sorts: the agents are intended either to represent abstract ideas or to represent actual,
historical persons”.
58 “[...]they may not actually create a personality before our eyes, but they do create a semblance of personality”.
59 “Daemons [...] share this major characteristic of allegorical agents, the fact that they compartmentalize function.
If we were to meet an allegorical character in real life, we would say of him that he was obsessed with only one
idea, or that he had an absolutely one-track mind, or that his life was patterned according to absolutely rigid habits
from which he never allowed himself to vary”.
96

livre)60. Por motivos como esses, a teoria de Fletcher (1970) será aplicada na análise desta
pesquisa posteriormente, visto que fornece uma base para compreendermos o eixo de
significação das alegorias, ao mesmo tempo em que demonstra as diferenças entre elas e outras
formas metafóricas (e até mesmo o processo metafórico), além de considerar esses recursos
como agentes, não receptores.

Por outro lado, é preciso trazer à tona a compreensão acerca da ideia de similitude, muito
presente no debate historiográfico conceitual. A grande problemática envolta do debate acerca
das formas metafóricas está, dentre outras coisas, no imaginário, que seria, segundo Franco Jr.
(2008, p. 01), um “sistema de imagens verbais e visuais articulado segundo lógica própria”. É
a este processo, ligado a uma lógica própria, que o estudioso refere o pensamento analógico,
baseado em analogias. Conforme esta perspectiva, na Idade Média, o pensamento era articulado
segundo lógicas próprias e as manifestações do racionalismo eram limitadas ao espaço, ao
tempo e aos segmentos sociais. Neste sentido, pode-se afirmar que o desabrochar do
pensamento lógico iniciou-se após o século XII, coincidentemente, ou não, durante o momento
de desabrochar do criticismo como um todo, inclusive no âmbito da religião. Assim, a
população, majoritariamente cristã, passou muito tempo realizando conexões analógicas, tendo
a vida regida por este movimento de associação, criando-se o imaginário medieval61.

Sendo assim, considera-se que, mesmo com essa concepção, é cabível afirmar que o
indivíduo medieval não deixou de estabelecer laços afetivos entre as palavras (significante) e
aquilo que elas indicavam (significado), o que demonstra a inaplicabilidade da arbitrariedade
do signo, proposta pela Linguística moderna, na visão analógica medieval (FRANCO JR., 2008,
p. 02). Esta visão estava presente em todos os níveis culturais da Idade Média, incluindo a
cultura erudita e a vulgar, com vistas à compreensão de todos os grupos acerca dos textos
sagrados.

Dessa maneira, um pensamento baseado em analogias (do grego ana, que indica “por
meio de”, e legein, que indica “correspondência”, “assemelhar”) seria aquele que se fundamenta

60 “If moral allegory is the narrative or dramatic rendition of contests between virtues and vices, however, it will
inevitably be a contest between warring powers. By equating daemonic and allegorical agency, I believe we shall
be able to explain the relationship between virtue in its Christian sense of “purity” and in its original pagan sense
of “strength.” We can also easily enough describe non-Christian allegory”.
61 Hilário Franco (2008) ainda destaca que o pensamento analógico fora ignorado por boa parte dos historiadores
durante muitos anos, sendo de interesse apenas da teologia, pois não era reconhecido seu papel na sociedade
medieval. Isto se deve segundo dois motivos: por um lado, a ideia de que a Idade Média era uma Idade das Trevas
ou uma Idade da Fé, na qual não existia a razão; por outro, a aceitação da visão cristã medieval acerca do mundo,
uma visão unilateral que não relacionava as partes do mundo.
97

sobre a “transferência de propriedades de algo conhecido para outro menos conhecido”, ou seja,
que “gera conhecimento conectado com outros, e não apenas cumulativo” (FRANCO JR., 2008,
p. 02). Portanto,

o pensamento analógico é método extensivo que depende mais das propriedades


sintáxicas do conhecimento do que de seu conteúdo específico. Ele busca similitudes
entre seres, coisas e fenômenos, todos conectados em uma totalidade que os ultrapassa
e é comum a cada elemento. Tais pontos estruturais presentes em todo componente
do universo decorrem de uma realização primordial, de uma unidade básica de tudo,
escalonada por semelhanças dos termos análogos entre si e por referência deles ao
termo primeiro, ao protótipo. (FRANCO JR., 2008, p. 02)

Essas correlações estabelecidas entre os termos através do pensamento analógico podem


ser, nesta perspectiva, diretas (por similitude) ou invertidas (por contraste), mesmo sendo, em
ambos os casos, realizado o pensamento indutivo, que forma conexões automáticas e
espontâneas entre aquilo que está sendo dito e aquilo que se quer dizer (a expressão
materializada através da palavra, quer dizer, a forma de pensar e estar no mundo).
Encontramos, por exemplo, muitas analogias na Bíblia, incluindo analogias de atribuição e de
proporção.

Porém, é válido destacar que o fato de um tipo de pensamento ter prevalecido em função
de outro (o pensamento analógico em contraposição ao lógico) não significa, necessariamente,
que os dois não existissem durante o mesmo período, pois uma forma de decifrar o mundo não
exclui a outra, inclusiva na Idade Média (FRANCO JR., 2008, p. 04). Neste sentido, mesmo
com o uso de analogias, principalmente pelo princípio de similitude, o racionalismo era presente
na cultura medieval, posto que o cristianismo estimulara a visão lógica e linear de ver o mundo.
Em relação a esse impasse, é essencial citar que

o cristianismo, síntese da mística oriental (Jesus) e da filosofia grega (Paulo) pretendia


[superá-lo] [...], oferecendo a possibilidade de conhecer o incognoscível (Deus) por
meio do concreto (Criação). Alcançar o intangível pelo sensível tornava-se possível
pela observação de um tecido de reflexos, de comparações de gradações, de metáforas,
de símbolos. Em suma, de analogias. (FRANCO JR., 2008, p. 04)

Dessa maneira, levando em consideração os usos das analogias, faz-se preciso expor a
distinção entre símbolo e alegoria de acordo com o autor supracitado. Na visão de Franco Jr.
(2008), a alegoria seria, assim como para Aristóteles, uma metáfora prolongada, funcionando
como uma comparação entre dois elementos através de um. Por outro lado, o símbolo não funde
os elementos, preservando a identidade de cada um e evidenciando apenas pontos em comum.
São, respectivamente, homologias, pois possuem semelhança de estrutura, e analogias, pois
possuem semelhança de função. É importante compreender essa diferença, sobretudo para
98

analisar textos ligados ao cristianismo, que considera o mundo uma imagem dos modelos de
Deus materializados na Palavra:

O símbolo está para o sentimento assim como a alegoria para o pensamento: enquanto
a analogia é fundamento do símbolo e este expressão verbal e/ou visual daquela,
constituindo-se ambos em formas complementares de entrever a realidade intangível,
a alegoria é dedutiva, é conceitual, é construção de algo no lugar de outro. (FRANCO
JR., 2008, p. 05)

Portanto, para alcançar Deus, o inalcançável, era necessário, para o indivíduo medieval,
observar a natureza, palco das expressões do mundo divino no mundo humano (Modelo e
imagem). Sendo assim, o universo, grande rede de analogias, constituía-se como a presença de
Deus, à sua “imagem e semelhança”. Apesar disso, e voltando-nos para o fenômeno da alegoria
unicamente, reconhecemos que a identificação desta nos textos medievais é plausível a título
de exemplificação. Segue-se, então, para as manifestações das alegorias nos textos medievais.

2.1.3 As alegorias nos textos medievais

Como destacado ao longo desta análise, as alegorias fazem parte da cultura literária
medieval, no sentido de que estão presentes também na forma de pensamento e de expressão
dos indivíduos. Neste tópico, o objetivo é percorrer pelos exemplos de usos das alegorias na
Idade Média e mencionar obras que fazem parte deste universo, mas indo além das Escrituras.
Podemos destacar, inicialmente, o Roman de la Rose, iniciado por Guillaume de Lorris e
finalizado por Jean de Meun entre o início do século XIII e o início do século XIV. Destaca-se,
nesta obra, a alegoria da rosa, associada às experiências de um Amante no Jardim das Delícias.
A rosa, nesta narrativa, é a mulher por ele desejada. No caminho para conquistar seu objeto de
desejo, e tendo como cenário este jardim, o Amante tem suas qualidades materializadas em
personificações, que o ajudam e estão presentes no cenário como personagens.

No Roman de la Rose, encontramos personagens que são nomeados como sentimentos


(a exemplo de Ciúmes, Vergonha e Medo) e que atuam, são agentes, na narrativa, de acordo
com o que eles representam. Pode-se citar o momento em que Ciúme constrói um castelo para
trancar a Rosa (mulher desejada) e Bem-Vindo (espírito presente na mulher que a faz sentir-se
pronta para ceder), representando que a Senhora sente um ciúme imenso pela fidelidade de seu
amante, o que a impede de ceder a ele (TAMBLING, 2010). Sendo assim, o leitor é convidado
a desvendar os significados por trás dessas personagens, por meio das ações que elas realizam
diante do desenrolar da narrativa. Traz, inclusive, ilações morais, a fim de passar uma
mensagem para o leitor.
99

Além do Roman de la Rose, encontramos os usos das alegorias fortemente presentes em


Dante Alighieri62. O autor tem sua própria noção acerca das alegorias, desenvolvida na Epístola
X, onde ele discute os diferentes níveis das alegorias (que seriam quatro, assim como defende
Tomás de Aquino). O mais importante em mencionar Dante é o fato de que ele aplicou suas
noções de alegoria na sua obra, a Commedia, que é um registro fictício de uma viagem que o
próprio autor fez pelo Inferno, Purgatório e Paraíso. Considerada uma obra completamente
alegórica por alguns estudiosos, encontramos na Divina Comédia alegorias também
relacionadas aos espaços de cada caminho percorrido na narrativa, como a Floresta Escura
(pecado), a Pantera (luxúria), o Leão (soberba), a Loba (cobiça), a Colina (caminho para Deus),
a Selva (escuridão, desconhecido), dentre outras.

Além da Commedia, podemos citar Giovanni Boccacio, autor do Decamerão, porém já


no século XIV. Ao escrever a Genealogia deorum gentilium (A Genealogia dos Deuses
Gentios), o autor traz à tona a discussão entre poesia e filosofia, defendendo que os poetas
protegem a verdade ao utilizar um véu, que seria a alegoria (TAMBLING, 2010, p. 24). As
representações alegóricas também se fazem presentes (e exercem grande influência sobre os
escritos de Marguerite Porete e outras místicas do período) no Cântico dos Cânticos, do monge
cisterciense Bernardo de Clairvaux (1090-1153), que, através de uma linguagem erótica,
também fala sobre um jardim espiritual, podendo referir-se à Virgem, à Igreja, ou ao Paraíso.
Encontramos, neste ponto, a alegoria do jardim, constantemente utilizada no medievo:

O espaço oco de Dante na encosta da montanha do Purgatório é [...] sincrético, pois


funde duas alegorias. Toma emprestado do jardim secular do Romance da Rosa, bem
como do jardim espiritual do Cântico dos Cânticos, interpretado por Bernardo de
Clairvaux (que aparece nos cantos 32 e 33 do Paraíso de Dante). Essa pluralidade, de
que o jardim é secular e religioso, contribui para a natureza “polissêmica” da alegoria.
(TAMBLING, 2010, p. 26. Tradução livre)63

É essencial mencionar a obra A Cidade das Damas, de Christine de Pizan, datada do


século XV. Ao construir uma narrativa subversiva que busca desconstruir a estrutura de mundo
patriarcal conhecida e partir para a utopia de uma cidade construída por mulheres, Christine
traz à tona uma obra composta majoritariamente por alegorias e personificações, sobretudo pela

62 Dante, seguindo as tendências clássicas, também tem uma concepção dupla de alegoria, que pode ser, segundo
ele “alegoria dos poetas” (a verdade escondida sob a ficção) e a “alegoria dos teólogos (quando os níveis literal e
alegórico são verdadeiros) (TAMBLING, 2010, p. 23).
63 “Dante’s hollowed-out space within the mountainside of Purgatory is therefore syncretic, since it fuses together
two allegories. It borrows from the secular garden of The Romance of the Rose as well as from the spiritual garden
of the Song of Songs, as interpreted by Bernard of Clairvaux (who appears in cantos 32 and 33 of Dante’s Paradiso).
This plurality, that the garden is both secular and religious, adds to the ‘polysemous’ nature of the allegory”.
100

presença das damas – Razão, Retidão e Justiça – que guiam a autora, também personagem no
livro:

Erguendo a cabeça para olhar de onde vinha aquele clarão, vi elevarem-se diante de
mim três damas coroadas, de quão alta distinção. O esplendor, que de duas faces
emanava, arrojava-se sobre mim, iluminando todo o compartimento. Inútil perguntar
se fiquei deslumbrada, sobretudo porque as três damas conseguiram entrar, apesar das
portas estarem fechadas. (PIZAN, 2012, p. 54)

Por fim, ainda podemos mencionar que as alegorias nos textos medievais fizeram-se
presentes nas obras que teorizavam o gênero dos tratados místicos e tiveram como alicerce o
topos religioso do amor, tais como Psychomachia, de Prudêncio; Cosmographia, de Bernardus
Silvestris; De plancto naturae, de Alain de Lille; Didascalicon, de Hugo de Saint-Victor; dentre
outros, mostrando, assim, a devida presença das alegorias não apenas na forma de escrever o
mundo, mas, principalmente, de representá-lo, sobretudo no que tange ao mundo sensível.
(KOCHER, 2008, p. 166).

2.2 Subversão discursiva, discurso retórico e crítica feminista

Conforme defendem Tambling (2010) e Kocher (2008), a alegoria está associada à


autorização e desautorização de um texto em relação à sua recepção. Ademais, segundo Souki
(2006), pensando pelo lado propriamente medieval, as alegorias também podem ser
materializações das funções religiosas e políticas, servindo para uma determinada intenção
ideológica. Assim, publicar um texto em determinados contextos de opressão implica trabalhar
com a linguagem de forma que esta tenha sua capacidade política e social desafiada, o que pode
levar, muitas vezes, ao encontro de novas formas de expressão. Dentro destas, podemos retomar
o fato de que o que faz um discurso ser subversivo é o resultado das escolhas dos elementos
retóricos em sua construção, condicionados ao que o contexto sócio-histórico e as
circunstâncias de recepção do texto têm a oferecer.

Nesta perspectiva, mencionamos que a capacidade retórica de um texto diz respeito a


seu potencial de persuasão. Trazendo de forma breve a Retórica de Aristóteles, afirma-se que,
na formação de um discurso, devem ser considerados três pontos: o meio de produção da
persuasão; o estilo a ser empregado; e o modo correto de dispor as partes do discurso
(ARISTÓTELES, 2011)64. Quanto à persuasão, a Retórica nos expõe a ideia de que ela pode
ser construída através de uma correta disposição dos elementos, ou seja, pela construção de

64 Livro III da Retórica.


101

uma “aparência satisfatória” do texto (quando referido o estilo), e atuando sobre as emoções
dos juízes/audiência, demonstrando as verdades e, sobretudo, o caráter do orador.

Consideramos, nesta pesquisa, as alegorias como elementos que facilitam a construção


de um discurso intencional, carregado de subversão e altamente persuasivo através de técnicas
de repetição, mistura de gêneros, uso de imagens comuns à audiência, dentre outros aspectos
que facilitam o entendimento e tornam o texto influente. Quanto à subversão, podemos dizer
que um texto datado do século XIX, por exemplo, que trate a respeito de um problema social
historicamente situado, pode não ser subversivo, se considerando sua existência nos anos
posteriores, bem como vice-versa.

É cabível acrescentar, ainda, que textos que são lidos como subversivos, ou seja, que
seguem um caminho contrário àquilo que se espera de uma obra escrita propagadora de ideias,
podem não ter sua subversão compreendida em sua própria contemporaneidade. Em casos como
estes, podemos mencionar que textos como o de Marguerite Porete, que teve suas
consequências e seu julgamento, são o contrário do que se esperava do gênero textual e do ciclo
social dentro do qual estavam inseridos.

É possível identificar a subversão nos textos medievais à medida em que se conhece e


se considera os condicionamentos do contexto. Neste sentido, é válido retomar que dividimos
a subversão em três planos: contexto, discurso e palavra escrita (locus). Iniciamos, assim, com
o fato de que o catolicismo medieval apresenta, de forma ostensivamente monoteísta, um Deus
em três pessoas. Segundo Newman (2005), inicialmente vieram os santos, sendo a Virgem
Maria a maior presença nos santuários e figura principal. Posteriormente, tem-se a presença dos
antigos deuses pagãos, que, nos termos da autora, foram “desinfectados de crença”, mas ainda
bastante úteis para propósitos astrológicos. A visão do cosmos dependia de sua existência, que
era encontrada nos nomes dos planetas e dias da semana, além de seus cultos em festivais
cristãos e a presença de seus mitos no imaginário.

Materializados nos textos, essas duas vertentes não se misturaram:

[...] os santos pertenciam ao reino da crença, os deuses pagãos ao do faz de conta. A


mitologia não tinha utilidade para Santa Catarina, nem a hagiografia exigia Apolo, a
menos que uma virgem o denunciasse a caminho de seu martírio. Mas o terceiro
panteão, as deusas alegóricas, misturavam-se livremente com os outros. O Deus da
cristandade medieval era pai de um Filho, mas de muitas filhas: Sapientia,
102

Philosophia, Ecclesia, Frau Minne, Dame Nature, Dama Razão, e a lista continua.
(NEWMAN, 2005, p. 01. Tradução livre)65

Newman (2005) ainda reforça que a presença dessas deusas têm sido um constrangimento para
os medievalistas, pois são estudadas por meio de perspectivas distintas. Tem-se os estudos
literários, que as tratam como “personificações ou construções ideológicas”; os historiadores
da arte, que enxergam sua iconografia; e os teólogos históricos, que não desenvolvem tantos
trabalhos a respeito delas.

De fato, defendemos que é preciso considerar essas deusas, na perspectiva literária,


como formas alegóricas e construções ideológicas, sobretudo pela forma como são inseridas
nos textos e o processo metafórico envolvido na construção das narrativas, mas não descartamos
suas existências concretas no imaginário medieval e no cotidiano religioso dessas sociedades.
Newman (2005, p. 02) segue uma direção contrária a esse pensamento, pois afirma que, ao
atribuirmos a classificação de “personificações” ou “figuras alegóricas”, corremos o risco de
banalizar seu significado religioso. Conforme sua perspectiva, se negligenciarmos a força
emocional que essas deusas possuem em seu contexto, “podemos tomar como certa a presença
das deusas e esquecer de perguntar por que elas deveriam ter proliferado na alta Idade Média,
aparecendo em papéis tão proeminentes em tantos contextos” (NEWMAN, 2005, p. 02.
Tradução livre)66.

Distanciando-nos do debate acerca do porquê dessa proliferação, que não direciona aos
objetivos principais desta pesquisa, destacamos que as deusas medievais, construídas, em
termos textuais, metaforicamente e sendo expressas de forma alegórica, compartilham
semelhanças familiares. Sendo todas elas criações da imaginação cristã, Newman (2005) afirma
que, por serem símbolos sagrados, podiam ser tomadas com diversos graus de seriedade, pois

às vezes diminuíam ao status de tropos retóricos, e alguns escritores as usavam


parodicamente. Mas nos textos mais significativos e provocativos, latinos e
vernáculos, eles acrescentam uma quarta dimensão irredutível ao universo espiritual.
Como emanações do Divino, mediadoras entre Deus e o cosmos, [...] objetos
arrebatadores de identificação de desejo, as deusas transformaram e aprofundaram
substancialmente o conceito de Deus da cristandade, introduzindo possibilidades

65 “[...] saints belonged to the realm of belief, pagan gods to that of make-believe. Mythography had no use for
St. Catherine, nor did hagiography require Apollo, unless a virgin was denouncing him on the way to her
martyrdom. But the third pantheon, the allegorical goddesses, mingled freely with both of the others. The God of
medieval Christendom was father of one Son but many daughters: Sapientia, Philosophia, Ecclesia, Frau Minne,
Dame Nature, Lady Reason, and the list goes on”.
66 “If we neglect this dimension, we may take the goddesses' presence for granted and forget to ask why they
should have proliferated in the high Middle Ages, appearing in such prominent roles in such a variety of contexts”.
103

religiosas além do âmbito da teologia escolástica e trazendo para uma vida


imaginativa e vibrante. (NEWMAN, 2005, p. 03. Tradução livre)67

Mesmo tendo em conta a importância de nos atermos às deusas, estas não seriam as
únicas formas alegóricas presentes em textos medievais. Importa destacar sua presença devido
ao grande uso delas nos textos de autoria feminina, que não dispensaram as personificações
representadas por mulheres, muitas vezes atribuindo o aspecto masculino apenas à figura de
Deus. Nesta direção, convém destacar algumas indagações de Newman (2005) a respeito dessas
figuras.

Inicialmente, a autora se questiona de que forma os escritores e leitores da Idade Média


entendiam o status ontológico dessas deusas, bem como se eles, de fato, acreditavam nelas e
quais convicções filosóficas sustentavam o fascínio pela alegoria. Ademais, e relacionando-se
mais com os escritos místicos, que são atrelados à experiência, a estudiosa questiona se é
possível distinguir as personificações que aparecem em textos alegóricos daquelas que surgem
em visões reais, e por que tinham preferência por personificações femininas, considerando que
deveriam conciliar suas declarações sobre essas filhas de Deus e, ao mesmo tempo, ter devoção
ao Filho de Deus. Por fim, vale destacar as dúvidas em torno de a que funções religiosas elas
serviam e se foram encontradas resistências para sua aceitabilidade, além de se os homens e
mulheres medievais possuíam consciência de que estavam explorando a linguagem feminina
de Deus mesmo que os espaços ocupados pelas mulheres fossem extremamente limitados.

A todos esses questionamentos, Barbara Newman poderia ter considerado as estratégias


discursivas dos grupos que são contextualmente marginalizados; no caso da Idade Média, temos
as mulheres, primordialmente aquelas que tinham sua prática religiosa não institucional, como
as beguinas e as pertencentes aos outros grupos religiosos que se intensificaram no século XIII.
Com as teorias pós-coloniais, a noção de que existe uma cultura dominante e controladora e
outra passiva e controlada mostrou que as mulheres sofrem “marginalização semelhante à do
colonizado por causa da diferença de gênero” (CHANCE, 2007, p. 01. Tradução livre) 68.
Podemos aproveitar desse ponto de vista, trazido à tona por Chance (2007) a partir da ideia de

67 “Like other sacred symbols, goddesses could be taken with varying degrees ofseriousness: at times they
dwindled to the status ofrhetorical tropes, and some writers used them parodically. But in the most imaginative
and provocative texts, both Latin and vernacular, they add an irreducible fourth dimension to the spiritual universe.
As emanations of the Divine, mediators between God and the cosmos, embodied universals, and not least,
ravishing objects of identification and desire, the goddesses substantially transformed and deepened Christendom's
concept of God, introducing religious possibilities beyond the ambit ofscholastic theology and bringing them to
vibrant imaginative life. How they did so will be the subject ofthis book”.
68 “[...] women suffer marginalization similar to that of the colonized because of gender difference”.
104

“fora constitutivo”, de Judith Butler, o aspecto da marginalização, que é o deslocamento de um


grupo para um status menor, quando existem espaços dominados por outra cultura.

Semelhantemente a esse processo, na Idade Média, as mulheres são introduzidas e se


identificam com a “cultura marginalizada do feminino” (CHANCE, 2007), identificação esta
que traz consigo a alienação dentro de um ambiente essencialmente patriarcal e que se sustenta
por meio dessa dissonância. Assim, há a prevalência da marginalização das mulheres no
contexto em que falar de ocupação de espaços, ou seja, tomada de consciência política, é
também falar de religião, de um sistema teocrático. Quanto a essas questões, Jane Chance
(2007, p. 02. Tradução livre) 69 afirma que “a marginalização por gênero, nação, raça e classe
dentro de uma cultura, contínua e sem fim, resulta na perda de articulação do significado na
vida cotidiana e, portanto, requer oposição ou subversão contínuas”. Fundamentando-se nos
exercícios das minorias e na constituição desses sujeitos, a autora trata a respeito dos
hibridismos culturais, numa tentativa de articulação social da diferença, pois são eles os espaços
intermediários que fornecem terreno para estratégias de individualidade.

Em consonância com essas ideias, Chance (2007) questiona como as estratégias de


representação ou empoderamento vêm a ser formuladas nas reivindicações por minorias sociais,
independentemente do tempo em que estão situadas. Nota-se, assim, a profunda aproximação
entre a ideia de estratégias de representação e empoderamento e os usos da linguagem,
sobretudo em sociedades majoritariamente orais, nas quais a palavra escrita ainda é de domínio
mais restrito, como é o caso do medievo.

Portanto, ao destacar que o que é privado pode ser deslocado para o domínio público, a
autora afirma que uma literatura “menor” pode expressar as diferenças que a constituem
enquanto produzidas por uma minoria (na Idade Média, seria primordialmente o gênero). Uma
literatura menor refere-se, nesta perspectiva, a uma literatura minoritária dentro de uma língua
maior, o que promove uma singularidade política e revolucionária.

Quando falamos de literatura medieval, enxergamos um movimento contrário e


simultâneo. Encontramos obras escritas em línguas vernáculas que promovem singularidade
política ao se preocuparem com o alcance do coletivo e ao reconhecerem a insuficiência da
língua para descrever o divino e as experiências com ele. Assim, percebemos o uso das línguas

69 “Marginalization by gender, nation, race, and class within a culture, ongoing and never ending, results in the
loss of articulation of meaning in everyday life and, therefore, requires continuing opposition, or subversion”.
105

vernáculas em obras medievais que expressam desejos de mudanças e buscam ocupar espaços,
sobretudo por serem essas as línguas do povo.

Ao mesmo tempo, o fato de, por exemplo, existirem mulheres que traduziram seus textos
para o latim (“língua maior”), como Marguerite Porete, ou mesmo aquelas que escreveram em
latim, mesmo fazendo parte do âmbito clerical, como Hildegarda de Bingen, é um aspecto que
demonstra a valoração de ideias semelhantes e de desejos de mudanças que se aproximam entre
si. É nesta direção que corroboramos com Chance (2007, p. 04), ao afirmar que

uma literatura menor não precisa necessariamente se aplicar apenas aos povos
deslocados dentro de uma cultura. As mulheres medievais inscreviam uma literatura
menor em vários sentidos, independentemente de “menor” refletir a escrita de uma
minoria, o que as mulheres medievais certamente eram; ou escrever em uma língua
importante, como o latim, em que suas contribuições foram relativamente menores
em número do que as de escritores eclesiásticos do sexo masculino, embora estudos
recentes tenham demonstrado quão abundantes foram; ou escrever em uma tradição
linguística que era tanto patriarcal quanto de gênero e, portanto, necessariamente
representativa de sua autoridade em uma voz menor dentro dessa língua. (Tradução
livre)70

As mulheres medievais não eram, em sua maioria, alfabetizadas em latim, o que


favoreceu, por muito tempo, a formação de autoras a partir dos movimentos mendicantes do
século XIII, cuja tradição era itinerante e oral em sua pregação. Porém, mesmo encontrando a
língua vernácula como meio de difusão de ideias, saber latim não era necessariamente um
passaporte para pertencer à elite daqueles que usavam a língua, ou seja, os homens da Igreja,
ditos teólogos. Pelo contrário, o latim sempre reforçou, para as escritoras medievais, as barreiras
existentes nas diferenças de gênero e de status. Isto significa dizer que uma escritora que tivesse
domínio da língua latina (como é possivelmente o caso de Marguerite Porete, visto que sua obra
tinha uma tradução latina) estaria pertencendo a duas culturas, o que significaria alcançar duas
posições possíveis: o monasticismo ou a vida de beguina, ambas reduzidas às funções ocupadas
pelo sexo masculino.

Ainda mencionando o ponto de vista de Chance (2007), a língua latina na Idade Média
protagonizou uma misoginia implícita, posto que o patriarcado controlava o processo de escrita
especificamente nesta língua, não sendo à toa que os métodos legais em torno da pregação feita
por pessoas que não eram da Igreja levaram à perseguição de inúmeros religiosos tidos como

70 “A minor literature need not necessarily apply only to displaced peoples within a culture. Medieval women
inscribed a minor literature in several senses, regardless of whether “minor” reflects the writing of a minority,
which medieval women certainly were; or writing in a major language, such as Latin, in which their contributions
were relatively fewer in number than those of ecclesiastical male writers, although recent scholarship has
demonstrated how plentiful they were; or writing in a linguistic tradition that was both patriarchal and gendered
and, therefore, by necessity representative of their authority in a minor voice within that language”.
106

hereges. Assim, a misoginia medieval teve seu apoio cultural e teológico. O peso do uso da
língua latina na Idade Média em relação à sua sustentação da misoginia e generalização do
feminino “restringiu o acesso masculino às mulheres e, portanto, a autonomia das mulheres,
principalmente quando [elas] ocupavam funções eclesiásticas” (CHANCE, 2007, p. 06.
Tradução livre)71.

Outrossim, falar de subversão discursiva em obras medievais de autoria feminina leva à


integração das redes de recepção e disseminação dessas mulheres como parte de sua própria
tradição literária e às maneiras pelas quais elas influenciaram a escrita de outras, sobretudo
quando lidas em outras temporalidades e situações interculturais (CHANCE, 2007). Vale
salientar que o ato de buscar esses textos também é uma ação subversiva, pois

devemos admitir que um dos principais instrumentos do machismo contemporâneo


não está apoiado apenas em milênios de dominação e falsas evidências, promulgadas
por instituições, práticas, construções teóricas e jurídicas, que colocavam as mulheres
em situação de inferioridade com relação aos homens. Ele consiste também em
inculcar a ideia [...] de um passado sem partilha, uniformemente masculino, como se
a história da filosofia, a história intelectual em geral [...], pudesse ter se desenrolado
durante dois ou três milênios simplesmente sem a presença das mulheres. (ROVERE,
2019, p. 07-08)

Esta é a perspectiva arqueofeminista adotada nesta pesquisa, com vistas a considerar os


usos das alegorias como formas de subversão feminina, tomando-as como imagens e
representações ideológicas nos textos literários. O arqueofeminismo é um método que diz
respeito à busca de textos de autores e autoras anteriores ao advento do feminismo que
trouxeram à tona as questões acerca das mulheres e do sistema social como um todo. Conforme
explica Rovere (2019, p. 10), “arqueofeminismo não é apenas uma forma antiga de feminismo,
que diz respeito às sociedades diferentes da nossa (não industrializadas, não capitalistas)”, indo
além, também revela que os “textos desses(as) autores(as) ainda estão em processo de
exumação, sendo lentamente retirados dos fundos das bibliotecas por numerosos(as)
pesquisadores(as), em um trabalho similar ao de arqueólogos(as) [...]”.

Aplicar esse conceito à pesquisa de escritoras medievais contrapõe duas questões


básicas que giram em torno da literatura de autoria feminina, sendo a primeira a ideia, “adotada
tanto por homens quanto por mulheres, de que há um padrão universal, descorporificado e
assexuado, e que qualquer coisa especificamente feminina não pode representar a experiência
humana”, e a segunda relativa à “ausência de mulheres escritoras no cânone acadêmico”

71 “[...] restricted male access to women and, therefore, women’s autonomy, especially when women occupied
ecclesiastical roles”.
107

(FUNCK, 2016, p. 20). Logicamente, as questões que envolvem essa ausência na Idade Média
são ligadas aos problemas que pontuamos até aqui, e não se aplicam totalmente à situação
contemporânea. Porém, destacamos a ausência dos estudos dessas obras, situação que também
vem sendo modificada nos últimos anos e já se encontra em um cenário bastante evoluído.

Ainda a respeito da literatura feita por mulheres, defendemos que, por ser observada
“como texto (objeto criado) ou como musa (inspiração), a mulher escritora não encontra uma
tradição em que se apoiar e, sim, uma socialização na qual o ato de escrever lhe é apresentado
como alheio à sua natureza” (FUNCK, 2016, p. 72), intensificando uma tradição literária
masculina. Estes fatores, aplicáveis à Idade Média (visto que as mulheres, de fato, não eram
introduzidas no ambiente da escrita), reforçam a ideia de que “a mulher precisa quebrar a
tradição e obter autonomia ou autoridade criadora por meio de uma dupla subversão: subversão
da linguagem e subversão da estrutura narrativa” (FUNCK, 2016, p. 73).

Dessa maneira, para realizar a análise da obra de Marguerite Porete, é necessário


acrescentar que as obras das mulheres medievais, mesmo situadas num contexto anterior ao
feminismo, são caracterizadas como expressões da formação de uma consciência feminista:

[...] a consciência das mulheres de que pertencem a um grupo subalterno; que sofreram
injustiças como grupo; que sua condição de subordinação não é natural, mas
determinada pela sociedade; que devem se unir a outras mulheres para remediar esses
erros; e, finalmente, que eles devem e podem fornecer uma visão alternativa da
organização social na qual tanto as mulheres quanto os homens desfrutarão de
autonomia e autodeterminação. (LERNER, 1993, p. 14. Tradução livre)72

Portanto, fazer o resgate de um texto que foi escrito por uma mulher durante a Idade
Média é um movimento de reconhecimento de que existiu uma consciência feminista em torno
da criação dessas narrativas. Levando em consideração as alegorias, elas são usavas como
estratégias narrativas para a elaboração de argumentos que alcancem sua audiência, com fins
de persuasão, mas também demonstrando um grande domínio sobre a criação literária, os textos
fundamentais (no caso, as Escrituras), o gênero textual escolhido e a estrutura linguística.

Com o objetivo de se opor e questionar o sistema religioso e político do período,


Marguerite traz à tona significados políticos para suas personificações e utiliza as alegorias com
intenções ideológicas com vistas à reestruturação social. Importa lembrar que, como
mencionado no início deste trabalho, até a Idade Média, a alegoria foi um instrumento de defesa

72 “[...] the awareness of women that they belong to a subordinate group; that they have suffered wrongs as a
group; that their condition of subordination is not natural, but is societally determined; that they must join with
other women to remedy these wrongs; and finally, that they must and can provide an alternate vision of societal
organization in which women as well as men will enjoy autonomy and self-determination”.
108

dos teólogos, pois, como destacado, realizavam interpretações alegóricas dos textos sagrados
para limitar o campo de leitura e superar qualquer sinal de heresia.

Assim, sendo parte da vida religiosa medieval, a linguagem alegórica foi prioritária
também pelas místicas, sobretudo por ser mediadora das relações entre os indivíduos e Deus,
sempre usada intencionalmente e de acordo com as circunstâncias. Quanto a Marguerite Porete,
destacam-se alguns aspectos (que desenvolveremos no próximo capítulo) que fazem com que
o uso da linguagem alegórica seja fator de construção de um discurso subversivo, sendo eles a
acessibilidade do texto pelo gênero escolhido, o uso da língua vernácula, a exploração (e
formação) de imagens comuns ao público a quem se dirige, o caráter oral, a tradução 73 e a
difusão.

Nesta direção, e considerando todos os fatores que impulsionam o caráter subversivo do


texto, vale mencionar que as crenças na inferioridade da mulher e na sua posição subordinada
são anteriores ao cristianismo, mas foram fortemente motivadas quando a Igreja passa a
instituir-se de forma hierárquica, compondo um clero masculino. Neste ponto, entram em
questão o controle da poligamia, a proibição do divórcio, dentre outras reformas que levaram a
família monogâmica ao posto de unidade econômica básica da sociedade e fortaleceram ideais
misóginos, levando as mulheres, sobretudo solteiras, à vulnerabilidade econômica.

Esses fatores também influenciaram fortemente as acusações de feitiçaria contra


mulheres e a perseguição aos hereges, que, em sua maioria, eram mulheres (LERNER, 1993;
FEDERICI, 2017). Os ataques ideológicos pelas ideias misóginas contra as mulheres levaram
estas a lutarem contra a concepção de que eram privadas de autoridade e autenticidade, o que,
segundo Lerner (1993, p. 47), levou-as a gastar uma quantidade excessiva de tempo e energia
ao se desculpar pelo próprio pensamento (acrescento, neste ponto, a insegurança envolvida no
processo de difundir um ponto de vista por meio da literatura escrita).

Voltando-nos às obras das místicas, nota-se uma forte aproximação com as


autobiografias e jornadas espirituais, tal como podemos ver em Hildegarda de Bingen,
Hadewijch d’Anvers, Beatriz de Nazaré, Margery Kempe, dentre outras. Nestas, e destacando
o caso de Hildegarda (por ser vinculada ao clero), percebe-se a carência de autoridade ao tratar
de si mesma como um exemplo de vida que conduz à salvação. Segundo Lerner (1993, p. 47),

73 Segundo Bodden (2011, p. 16. Tradução livre), “as traduções (vernáculas) eram atos políticos. Envolvem a
escolha de um significado dentro de toda a gama semântica disponível para uma determinada palavra”.
109

as místicas femininas submergiram o eu para se abrirem às revelações extáticas. Elas


se viam como instrumentos insignificantes através dos quais o poder de Deus se
manifestava, “a pequena trombeta de Deus”, como Hildegard se referia a si mesma.
A busca de um eu autêntico teve que assumir formas diferentes para as mulheres do
que para os homens, uma vez que para os homens a autoridade era assumida, enquanto
para as mulheres era totalmente negada. Assim, cada mulher que afirmava autoridade
era uma aberração autodefinida e tinha que lidar com esse fato em sua escrita antes
que seu público pudesse estar aberto à sua linguagem e pensamento. (Tradução livre)74

Em Marguerite Porete, encontramos uma atitude autêntica em relação à afirmação de


autoridade. Na verdade, é preciso destacar que a autora utiliza seu discurso conscientemente
como legitimação de poder. Porém, mesmo participando como pensadoras autônomas do
discurso público, as mulheres, sobretudo Porete, tiveram que remover três obstáculos,
pontuados conforme Lerner (1993, p. 48): a) o fato de que elas eram autoras de sua própria
obra; b) o reconhecimento de que tinham direito ao pensamento próprio; e c) que seu
pensamento poderia estar enraizado em experiências ou conhecimentos diferentes dos de seus
mentores. Para tal, “precisavam encontrar símbolos e linguagem codificada para permitir que
seus leitores acompanhassem o processo pelo qual elas próprias tiveram que passar para
pensar”, evocando e legitimando seu conhecimento adquirido através da experiência promovida
pela sociedade patriarcal.

Seguindo este raciocínio, a maioria das escritoras medievais acharam necessário deixar
evidente ao leitor sua indignidade:

Hildegard de Bingen, uma das mulheres mais cultas de seu século, referia-se a si
mesma como “ignota”, uma mulher ignorante. Metchthild de Magdeburg também
assegurou ao leitor sua simplicidade e ignorância de aprendizado. Juliana de Norwich,
a poderosa mística inglesa, usava quase a mesma língua, chamando-se de
“unlettyrde”, com o que provavelmente queria dizer que não tinha instrução em latim,
a língua dos homens instruídos. Enquanto místicos e místicas usavam o argumento de
sua própria ignorância, o “topos da humildade”, como os críticos literários o
designam, o mesmo não era verdade para as desculpas quase inevitáveis com que as
escritoras prefaciavam seu trabalho. (LERNER, 1993, p. 51. Tradução livre)75

A partir disso, afirma-se que a necessidade de subversão literária pelas escritoras


medievais ocasionou a formação “espaços de expressão” próprios dentro de uma tradição

74 “The female mystics rather submerged the self in order to become open to ecstatic revelations. They saw
themselves as insignificant instrumets through which the power of God is manifested, ‘God’s little trumpet’, as
Hildegard referred to herself. The search for na authentic self had to take different forms for women than it did for
men, since for men authority was assumed, while for women it was utterly denied. Thus each woman asserting
authority was a self-defined freak and had to deal with that fact in her writing before her audiences could be open
to her language and thought”.
75 “Hildegard of Bingen, one of the most learned women of her century, referred to herself as ‘ignota’, an ignorant
woman. Mechthild of Magdeburg similarly assured the reader of her simplicity and ignorance of learning. Julian
of Norwich, the powerful English mystic, used almost the same language, calling herself ‘unlettyrde’, by which
she probably meant that she was uneducated in Latin, the language of learned men. While both male and female
mystics used the argument of their own ignorance, the ‘humility topos’, as literary critics designate it, the same
was not true for almost inevitable apologies with which women writers prefaced their work”.
110

literária masculina. Uma prova disto é a preferência das autoras, por exemplo, a outros gêneros
literários além daqueles preferidos pelos homens, tais como o poema épico heroico e a poesia
erudita. Além disso, observa-se a natureza da linguagem como dupla (o latim e a língua
materna) como veículo de aculturação de gênero que silencia as mulheres, exigindo que existam
outras formas de lidar com a linguagem dentro dos textos, incluindo a adesão a outros gêneros
textuais.

Chance (2007), ao citar a teoria da complexidade proposta por Laurie Finke em Feminist
Theory, Women’s Writing, fala a respeito da técnica da heteroglossia 76, que seria fundamentada
na identidade e nos textos escritos (as produções culturais da sociedade). Contrapondo a voz
monolítica do patriarcado, Finke observa a heterogeneidade das formações socioeconômicas e
dos interesses dos diferentes grupos, relacionados às práticas hegemônicas que suavizam ou
reprimem os conflitos (CHANCE, 2007, p. 09).

Com isso, sua teoria reconhece a história como “produto de uma supressão de conflito
e discórdia, oposições dominadas – cologando [...] a ‘textualidade da história e a historicidade
da textualidade’” (CHANCE, 2007, p. 09. Tradução livre) 77. De forma sintetizada, podemos
pensar no uso do termo “caça furtiva”, proposto por Michel de Certau, que diz respeito às
estratégias que minam as práticas culturais hegemônicas e permitem que os que não são
empoderados manipulem as suas condições de existência, tudo por meio de um encontro
dialógico desestabilizador entre códigos que se contrapõem, que são conflitantes (CHANCE,
2007).

Por fim, partindo para a análise do Espelho das Almas Simples, as estratégias
identificadas nas escritoras medievais compartilham um denominador implícito dentro do texto,
como propõe Chance (2007), o qual varia em natureza de codificação a ventriloquismo e
“bodytalk”. Segundo a autora, “a codificação incorpora o texto estrategicamente com códigos
literários, como imagens simbólicas e recursos retóricos, como eufemismo, elisão, ironia e
hipérbole para efetuar uma ‘poética do silêncio’, ao mesmo tempo em que o ventriloquismo
“fora as personagens femininas de meios ocultos de exercício de poder”, personagens estas que
exibem um “bodytalk”, que seria um “discurso dúplice resistente”, ou seja, “um discurso tanto
social quanto cultural e reflexivo de sistemas de gênero repressivos; o outro discurso a voz

76 Conceito proposto por Bakhtin que significa que a fala de outro na língua de outro deve expressar as intenções
desse falante, porém de forma desviada.
77 “[...]the theory has also to acknowledge history as the product of a suppression of conflict and discord,
overpowered oppositions––put elegantly, the “textuality of history and the historicity of textuality”.
111

feminina encarnada que perturba e revolta” (CHANCE, 2007, p. 09. Tradução livre) 78. Sendo
assim, seguiremos adiante com o poder subversivo do discurso alegórico no corpus desta
pesquisa.

78 Encoding embeds the text strategically with literary codes such as symbolic images and rhetorical features such
as understatement, elision, irony, and hyperbole to effect a “poetics of silence”. Ventriloquism endows women’s
female characters with concealed means of exercising power. Such female characters exhibit a “bodytalk”
(“resistant doubled discourse”): one discourse both social and cultural and reflective of repressive gender systems;
the other discourse the embodied female voice that disrupts and riots.
112

CAPÍTULO 3

AS ALEGORIAS COMO MECANISMOS DE SUBVERSÃO NO ESPELHO DAS


ALMAS SIMPLES

O livro de Marguerite Porete, intitulado O Espelho das Almas Simples e Aniquiladas e


que permanecem somente na vontade e no desejo do Amor (século XIII), pode ser considerado
uma das obras mais subversivas da Idade Média, principalmente por ser, além de uma obra
mística, voltada profundamente às questões sociais que giram em torno da sociedade francófona
medieval. Como se sabe, O Espelho foi redescoberto apenas no século XX, tendo sua autoria
atribuída alguns anos depois deste momento. Neste sentido, a história de sua autora foi de
grande importância para reconhecer o incômodo que gerou sua obra, levando-nos a lê-lo como
algo além de um tratado místico.

O incômodo gerado pela obra de Marguerite deu-se, sobretudo, ao alto nível crítico que
a autora traz para sua audiência e ao uso do conhecimento teológico restrito ao clero. Além
destes aspectos, e sendo um dos mais importantes, temos o fator da autoria feminina como
impulsionador de medidas legais contra o livro e sua autora, e o uso da língua vernácula, porém
também traduzindo-a para o latim e outras línguas.

Levando esses pontos em consideração, este capítulo tem o objetivo de argumentar


acerca da construção do discurso poretiano, tendo como premissa principal o uso das alegorias
de forma intencional e com propósitos políticos de reestrutução social, fato que desencadeou
na rejeição da obra e em seu julgamento. Desta forma, a fim de perceber como se deu essa
construção, realizaremos a análise das figuras alegóricas a partir das três personagens
principais: Alma, Dama Amor e Dama Razão. Por conseguinte, destacaremos a personificação
da Santa Igreja, a pequena, considerando o uso da linguagem alegórica com fins de crítica ao
domínio religioso e político do clero e de busca por liberdade espiritual, e da Santa Igreja, a
pequena, ligada à Dama Amor, personificando a verdadeira igreja dos homens, aquela na qual
podemos verdadeiramente encontrar Deus.

Nesta direção, evidenciaremos as passagens alegóricas que se direcionam ao resgate dos


aspectos sociais da Baixa Idade Média (principalmente na região em que houve a circulação da
obra). Em seguida, traremos à tona o fator da audiência, da autoria e da metalinguagem como
formas de autorização das intenções discursivas na obra, posto que, ao longo da narrativa, as
113

personagens fazem menções constantes aos ouvintes e incluem figuras de poder relativos ao
período, tais como mercadores, teólogos e, até mesmo, as beguinas. É de se destacar, inclusive,
a presença de um capítulo final unicamente voltado para a comprovação da autorização da obra,
onde podemos encontrar as palavras proferidas por três homens religiosos, já mencionados
anteriormente, cujas opiniões têm peso sobre a importância desse livro e do entendimento dele.

Por conseguinte, indo além das personificações, identificaremos as passagens alegóricas


referentes às Escrituras sagradas e de que forma Marguerite as expõe para os leitores, focando
no uso retórico e na intencionalidade da autora. Sendo assim, a fim de concluir a análise das
alegorias, destacaremos aquelas que são fundamentais na confrontação dos sistemas sociais da
Idade Média e na formação da consciência feminista, pois, sendo elas parte fundamental do
discurso reivindicador, é necessário expor o que estão exatamente reivindicando. Portanto,
partiremos para as considerações finais, que girarão em torno da publicação, difusão e
consequências do discurso subversivo de Marguerite Porete e da forma com a qual utilizou as
alegorias – muitas vezes, imagens já conhecidas pela sociedade medieval – a favor de ideais
contrários àquilo que se esperava de um texto religioso.

3.1 O Espelho das Almas Simples: a construção do discurso poretiano através das
alegorias

O Espelho das Almas Simples e Aniquiladas pode ser considerado um dos textos mais
subversivos da literatura francófona medieval. Seu discurso, construído em torno de uma
narrativa mística completamente alegórica e misturando diversos gêneros a fim de formar o que
podemos nomear de “tratado místico”, é fundamentado na fusão de diversos paradoxos, gerando
inovações no modo de expressão, que não são encontrados em outros textos de objetivos
semelhantes.

Segundo Kocher (2008), O Espelho desenvolve técnicas particulares de combinar


diferentes alegorias sociais, interrelacionando-as com o objetivo de descrever e modelar,
simultaneamente, a experiência espiritual da Alma, personagem principal, heroína da narrativa.
Neste sentido, podemos encontrar analogias da Alma com nobres e servos, mulheres e homens,
ricos e pobres, ou em relacionamentos amorosos com identidades do mesmo sexo ou mistos
com Deus (KOCHER, 2008).
114

É possível afirmar, ainda, que as alegorias representam, ao longo da narrativa de Porete,


a flexibilidade do sujeito em relação à sua própria transformação. Isto é percebido por meio dos
caminhos percorridos pela Alma, que representa o indivíduo que passa pela experiência mística
de ser uno em Deus; são caminhos de idas e vindas, nos quais a Alma por vezes compreende e
por vezes não compreende. Desta maneira, exibe as formas como o ser humano pode enxergar
a sua própria espiritualidade diante de um contexto limitante, que o leva a tomar como
experiência possível apenas o caminho da ortodoxia. Assim, sendo a escrita mística baseada na
experiência, a Alma perpassa esses caminhos, materializados em sete estágios, os quais
retomaremos ao longo deste capítulo.

Kocher (2008, p. 03. Tradução livre) 79 afirma que O Espelho “é um texto elaborado
tanto para performance oral quanto para leitura privada, e não por acaso se dirige a públicos
inscritos que incluem tanto ‘leitores’ quanto ‘ouvintes’”. Quanto a este aspecto, nota-se que sua
linguagem é baseada na visualização das imagens ditas à audiência, ou seja, fazendo das
alegorias um fator determinante na interpretação por parte dos ouvintes. O caráter retórico é,
desta forma, essencial e auxiliado por meio das personificações, que seriam ramificações das
alegorias sobre as quais o livro se sustenta.

Nessa direção, tem-se que a obra gira em torno de três personificações alegóricas
principais: a Dama Amor, que alegoriza o amor divino e, diversas vezes, é o próprio Deus; a
Dama Razão, que alegoriza a Igreja enquanto instituição e, portanto, faz o papel de antagonista;
e a Alma, que representa aqueles que decidem seguir pelo caminho de unir-se a Deus, sendo a
personagem que decide os caminhos trilhados e expõe suas impressões acerca dos sete estágios
de aniquilamento de seu próprio eu. Dentre essas três principais personagens – as quais
podemos considerar como formas alegóricas das hierarquias tanto sociais quanto espirituais (e
aqui consideraremos que existe uma hierarquia divina, no sentido de que a Alma está na base,
ao passo que Deus está no topo) e que estão relacionadas entre si – destacamos, de forma
sistematizada, as seguintes personificações que surgem ao longo da narrativa:

79 “[...] it is a text crafted for oral performance as well as for private Reading, and not incidentally adresses
inscribed audiences that include both ‘readers’ and ‘listeners’”.
115

Quadro 1 – Personificações

Compreensão, Amor, Louvor, Amor Cortês, Caridade, Divindade,


Humildade, Verdade, Pura Cortesia, Fé, Filho, Pai, Espírito Santo,
Sua Alteza o Entendimento do Amor, Compreensão Clara, Luz da
Dama Amor Fé, Fé, Cortesia da Bondade do Amor, Luz do Intelecto do Espírito,
Intelecto, Conhecimento, Luz, Justiça Divina, Esperança, Santa
Trindade, Santa Igreja, a grande, Deidade, Amor Puro, Amor Leal,
Alegria, Deus, Pessoa de Deus Pai, o Esposo dessa Alma, Cortesia,
Espírito, Compreensão da Luz Divina,
Entendimento da Razão, Tentação, Santa Igreja, a pequena, Natureza,
Dama Razão Discrição, Temor, Vontade, Virtudes, Desejo, Vergonha,
Estupefação, Razão Aprisionada, Medo, Indulgência, Misericórdia,
Vontade Desobediente.
Alma Alma de Fé, Alma de Luz, Alma Liberada, Entendimento da Alma
Aniquilada, Nobreza da Unidade da Alma, A Luz da Alma, Autora.

As personificações surgem como personagens que sustentam o discurso por trás de cada
alegoria principal. Assim, podemos destacar que, no primeiro exemplo (Dama Amor), as
personificações giram em torno daquilo que irá não apenas caracterizar o que seria o amor
divino, mas também quais são os elementos que o compõem. Tem-se, além disso, uma
flexibilidade maior quanto ao gênero das personagens, sendo o amor personificado tanto no
masculino quanto no feminino, o que não aparece, por exemplo, no Roman de la Rose, no qual
o amor é uma personificação masculina, devido ao próprio gênero da palavra em francês, que
seria um substantivo epiceno.

A respeito da Alma, Kocher (2008, p. 05) cita Amy Hollywood (1995), que afirma que

O Espelho, assim como o Roman de la Rose, traz o gênero da alegoria da


personificação em sua dimensão macrocósmica junto com a tradição da
personificação psicológica encontrada nos romances. A Alma é tanto um personagem
de um drama maior, aquele do movimento dos seres criados para o divino, quanto a
arena onde esse drama acontece. (Tradução livre)80

Em outras palavras, a Alma é, ao mesmo tempo, personagem e cenário, sendo este observado
por todos os ouvintes/leitores da obra, que tem por função natural guiar outras Almas ao
aniquilamento.

80 “The Mirror, like the Romance of the Rose, brings the genre of personification allegory in its macrocosmic
dimension together with the tradition of psychological personification found in the romances. The Soul is both a
character in a lerger drama, that of the movement of created beings to the divine, and the arena where that drama
takes place”
116

Quanto ao processo de aniquilamento, diz-se que a Alma perpassa sete estágios de


mortificação da própria identidade, subvertendo o padrão daquilo que se imaginaria de uma
alma que vive no divino, ou seja, que vive das virtudes, dos jejuns e das orações. A condição
maior imposta à Alma é o abandono total das Virtudes, que a escravizavam quando seguia as
tradições. Para desenvolver este ponto tão crucial para o discurso poretiano, a autora utiliza as
personificações relativas à Dama Amor e argumenta por meio delas, colocando-as em posição
superior em relação às demais, tal como podemos perceber neste trecho:

O Espírito Santo: – [...] pode-se bem dizer que aquele que pede com frequência é
pequeno ou pobre, mesmo que não peça grande coisa. Pois todo o estado, qualquer
que seja, é apenas um jogo de bola ou uma brincadeira de criança comparado ao estado
supremo do nada querer, o estado no qual os liberados permanecem sem se afastarem.
Pois aquele que é liberado em seu reto estado não pode nem recusar, nem querer, nem
prometer nada em troca de algo que alguém lhe poderia dar; pelo contrário, daria tudo
para manter a lealdade. (PORETE, 2008, p. 110)

Dessa maneira, a Alma seria a representação de todas as almas humanas, incluindo


homens e mulheres com ou sem instrução; em resumo, a Alma é a protagonista que representa
e ensina, mesmo que siga os passos definidos pela Dama Amor. É a Alma que estimula o
antagonismo entre Dama Amor e Dama Razão e define a estrutura da obra. Ademais, a Alma é
também alvo das relações hierárquicas que estão envoltas nas alegorias. Sendo assim, o discurso
místico de Marguerite Porete e a narrativa em torno da Alma são fortalecidos pela estrutura
desconcertante do texto.

Por não seguir uma estrutura linear, o livro conta com uma série de repetições e duplos
sentidos, incluindo saídas e revisitações de temas por meio de imagens que se cruzam e que,
por vezes, voltam e são ditas por diferentes vozes. O tema no aniquilamento, por exemplo, é
primeiramente apresentado de forma implícita no capítulo 4, quando Dama Amor finaliza seu
ato afirmando que “[...] notai que aquele que viesse a ter a caridade perfeita, seria mortificado
nos afetos da vida do espírito por obra da caridade” (PORETE, 2008, p. 35), para que, no
capítulo 5 (Da vida que se chama paz da caridade na vida aniquilada), a mesma personagem
possa enfim detalhar de que maneira se daria a vida aniquilada:

Amor: – Mas há uma outra vida, que chamamos paz da caridade na vida aniquilada.
Dessa vida queremos falar, perguntando se podemos encontrar:
I. uma alma
II. que se salva pela fé e sem obras.
III. que é somente no amor,
IV. que nada faz por Deus,
V. que nada deixa de fazer por Deus
VI. a quem nada pode ser ensinado,
VII. ou dado,
IX. e que não tem nenhuma vontade”. (PORETE, 2008, p. 35-36)
117

Para cada ponto mencionado pela Dama Amor, a preocupação com a definição do
aniquilamento é exposta novamente apenas no capítulo 11, quando a Dama Razão demonstra
ser desprovida de compreensão e leva a Dama Amor a repetir os mesmos conceitos ao longo
do livro. Esse é um exemplo de organização retórica exercida por Marguerite, cujo objetivo é
evidenciar, a cada repetição, o quanto o ouvinte/leitor precisa compreender os sentidos de suas
palavras.

Porém, voltando-nos ao discurso poretiano, as alegorias também surgem como forma


de produção de um efeito, uma presença que não tem como ser suprida apenas por meio da
linguagem, mesmo tendo-a como caminho para tal. Desta forma, cria-se, como afirma Certeau
(2015), uma performance, ou seja, a linguagem em exercício. Para tal, a obra é organizada de
forma que as alegorias tenham um progressivo potencial de entendimento por parte da
audiência, a quem a autora se dirige diversas vezes ao longo da narrativa. Para iniciar sua
narrativa, Marguerite realiza um convite em versos, deixando explícito a quem se dirige o livro
e o que é necessário para compreendê-lo:

Vós que este livro lereis,


Se bem o quiserdes entender,
Pensai no que vos direi,
Pois ele é difícil de compreender;
À humildade, que da Ciência é a guardiã
E das outras Virtudes a mãe,
Deveis vos render.
Teólogos e outros clérigos,
Aqui não tereis o entendimento
Ainda que tenhais as ideias claras
Se não procederdes humildemente;
E que Amor e Fé conjuntamente
Vos façam suplantar a Razão,
Pois são as damas da mansão.
(PORETE, 2008, p. 1)

Ainda realizando o convite, Marguerite adianta ao público a quem se dirige que a Razão,
a partir do capítulo 13 do livro, tem a função de ser contrária, porém sem envergonhar-se, ao
que seria o verdadeiro caminho da Alma. Neste ponto, a alegoria da Dama Razão enquanto
representante dos ideais opostos abre espaço para que Marguerite se aproprie da imagem de
Deus na Dama Amor:

A própria Razão nos dá testemunho


No capítulo XIII desse livro,
E disso não se envergonha,
Que Amor e Fé a fazem viver
E delas não se libera,
Pois são suas senhoras,
Que humilde a fazem ser.
118

Tornai humildes as vossas ciências


Que estão na Razão asseguradas,
E colocai sobretudo a confiança
Naquelas que o Amor vos pode dar
E que a Fé sabe iluminar,
E assim compreendereis este livro
Que por Amor faz a alma viver.
(PORETE, 2008, p. 1)

Um ponto importante a destacar é a presença do Prólogo, que nos leva identificar os


alcances das alegorias principais do texto. O Prólogo do Espelho desenvolve, segundo Valette
(2012, p. 274), um pequeno exemplo do amor mundano e convida o seu leitor a “compreender”
o amor divino igualmente. É dessa maneira que Marguerite utiliza as imagens presentes no
imaginário medieval com a finalidade de confrontar o discurso tradicional, pois, ao transpô-las
para uma narrativa mística cujo objetivo é subverter a ordem daquilo que se entende por “chegar
ao divino”, ela possibilita a realização de inferências por parte de seus leitores/ouvintes e facilita
a explicação daquilo que seria o amor divino:

Era uma vez uma donzela, filha de um rei de grande e nobre coração, e nobre
coragem também, que vivia num reino distante. Aconteceu que essa donzela ouviu
falar da grande cortesia e nobreza do Rei Alexandre e logo passou a amá-lo em
virtude do grande renome de sua gentileza. Contudo, essa donzela estava tão
distante de seu grande senhor, em quem fixou seu amor, que não o podia ver ou
ter. Estava então inconsolável, pois nenhum amor exceto esse a satisfaria. Quando
viu que esse amor longínquo, tão próximo dentro dela, estava tão distante
externamente, a donzela pensou consigo mesma que poderia confortar sua
melancolia imaginando alguma figura de seu amor, que continuamente teria em seu
coração. Ela mandou pintar uma imagem que representava o semblante do rei
que amava, a mais próxima possível daquela que se apresentava a ela em seu amor
por ele e no afeto amoroso que a havia capturado. E, por meio dessa imagem e de
outros artifícios, ela sonhava com o rei. (PORETE, 2008, p. 31-32. Grifos nossos)

Ao observamos os trechos destacados acima, é possível reconhecer a presença dos


elementos referentes à vida na corte (donzela, rei, nobreza, cortesia, senhor) e do amor cortês
(“esse amor longínquio, tão próximo dentro dela, estava tão distante externamente”), que são
comumente encontrados em obras medievais de língua vernácula. A donzela também manda
pintar uma imagem que representasse o rei, ou seja, que fosse um espelho de seu amor e que
possibilitasse seu encontro imaginário com ele.

Neste sentido, o Espelho apresenta a Alma personificada como amante num


relacionamento mundano e, conforme analisa Kocher (2008), ela pode ser compreendida em
diversos gêneros que representam a relação espiritual entre a Alma e Deus. Sendo assim, a
Alma pode ser lida como “um amante feminino de um amado masculino (frequentemente), um
amante masculino de um amado masculino (raramente), um amante feminino de um amado
119

feminino (frequentemente)”, além de “um amante masculino de uma amada feminina


(raramente)” (KOCHER, 2008, p. 84-85. Tradução livre) 81.

O fato de a obra iniciar com formas alegóricas de linguagem demonstra que, dentre os
elementos de composição da narrativa, estão os três planos de enunciação, identificados por
Valette (2012) como diferentes organizações e desdobramentos das vozes em variados níveis
discursivos, sendo o amor divino o princípio dessa construção. Porém, cabe-nos uma digressão
importante antes de nos atermos a esses planos. As alegorias são utilizadas intencionalmente
por Marguerite a partir da escolha do gênero specula, “espelho”, que tem sua própria existência
e nomenclatura como parte de um processo metafórico.

O elemento do “espelho”, que também dá título à obra, demonstra inicialmente para quê
o livro é feito e a quem está sendo designado. Naturalmente, por ser um exempla, é direcionado
àqueles que buscam o conhecimento acerca da espiritualidade e, conforme o ponto de vista do
discurso de Porete, àqueles que são capazes e que se abrem para tal. Ao aconselhar uma relação
direta com Deus, estabelece-se uma relação diferente com a ideia de espelho e a obra é colocada
como substituta da própria Bíblia. Segundo a perspectiva de Lefebvre (2019, p. 01. Tradução
livre)82, O Espelho

é construído em torno de uma retórica, um modo discursivo e um uso do francês que


remetem ao romance e sua concepção do fine amour. [...] representa, portanto, tanto
esse vidro embaçado que separa o homem do mundo celeste, mas também esse cristal
transparente que nos lembra que o homem é produzido à semelhança de Deus e que,
portanto, ele não é apenas sua imagem, mas o reflexo deste último, como o
microcosmo é o reflexo do macrocosmo.

O espelho, elemento que dá título à obra e ao gênero, lembra, assim, um objeto reflexivo,
de representação e confusão (LEFEBVRE, 2019). Neste caso, importa mencionar que esse
espelho, enquanto objeto, era de difícil acesso e de menor qualidade, sobretudo por ser feito de
cobre. Ao permitir ver o que não conseguimos ver, na Idade Média ele simbolizou o pensamento
na identidade do indivíduo e no saber relacionado ao outro, inclusive Deus. A respeito disto, o
autoconhecimento entra em questão, principalmente por passar primeiramente pelo

81 “The text uses four gender pairings to represent the spiritual relationship between the Soul and God: with a
feminine lover of a masculine beloved (often), a masculine lover of a masculine beloved (rarely), a feminine lover
of a feminine beloved (often), and a masculine lover of a feminine beloved (rarely)”.
82 Pour développer cette pensée théologique complexe, le Mirouer se construit autour d’une rhétorique, d’un mode
discursif et d’un usage du français qui rappellent le roman et sa conception de la fin’amor. [...] représente donc à
la fois ce verre flou qui sépare l’homme du monde céleste, mais également ce cristal transparent qui rappelle que
l’homme est produit à la semblance de Dieu et qu’il est donc non seulement son image, mais le reflet de ce Dernier,
comme le microcosme est le reflet d’un macrocosme. Enfin, il faut noter que la part allégorique du texte ne tient
pas qu’à un discours anagogique ou qu’aux influences courtoises, mais également au titre lui-même, Le Mirouer,
qui rappelle l’objet matériel réflexif, à la fois objet de représentation et objet de confusion.
120

conhecimento visual, o que, segundo Lefebvre (2019, p. 01. Tradução livre) 83, era bastante
parcial na Idade Média:

É no reflexo projetado que o espelho pode unir identidade e diferença em um princípio


analógico que permite, por um lado, pensar o homem, mas também o mundo ou as
artes. O espelho coloca, assim, um problema de identidade, ao sublinhar a
inadequação entre ser e representação: partilha um espaço real com o ser, ao mesmo
tem que joga com a distância que opera entre o aqui e o algures representado pelo
reflexo da realidade.

Além disso, a alegoria do espelho também perpassa pela questão da distância que existe
entre a pessoa e o reflexo. Dessa forma, há um desejo de romper a superfície para unir-se à
imagem projetada, mas esta superfície é o mediador entre ambos (pessoa e reflexo). Seria esta,
então, a intenção de Marguerite, já levantada no Prólogo, no qual a donzela chega, como
observamos, a pintar o rosto do rei Alexandre, mas ainda assim há intermediários entre eles,
sendo por isso que ela não consegue encontrá-lo ou vê-lo.

Portanto, voltando-nos aos planos de enunciação percebidos por meio do Prólogo,


concordamos que o primeiro plano de enunciação seria a figura alegórica da Dama Amor, que
se apresenta como autora e narradora da obra, a exemplo do seguinte trecho do segundo capítulo
(Da obra de Amor e porque ela fez este livro ser escrito):

Amor: – Vós, filhos da Santa Igreja, para vos ajudar fiz este livro, a fim de que ouçais
para melhor valorizar a perfeição da vida e o estado de paz ao qual a criatura pode
chegar pela virtude da caridade perfeita, a criatura a quem esse dom é dado pela
Trindade toda; escutareis esse dom exposto nesse livro pelo Entendimento do Amor
que responderá às perguntas da Razão. (PORETE, 2008, p. 33)

O segundo plano seria referente à apresentação do amor como tema literal e figurado da
narrativa, tendo em vista que o Prólogo adianta a temática do livro e demonstra, inicialmente,
que, mesmo sendo a Alma aquela que será ativa em busca de Deus, a alegoria principal é a do
amor divino (em comparação ao amor mundano), representada pela Dama Amor. Assim,
encontramos um paradoxo: ao passo que a Dama Amor é quem escreve o livro e narra o
aniquilamento da Alma, a Alma também tem seu papel principal como representante daqueles
que deixam de ser escravos das Virtudes e passam a ensinar aos ouvintes, guiando o roteiro da
história, posto que Amor narra justamente sua trajetória. Acreditamos que este paradoxo seja
intencional na medida em que a Alma, em seu sétimo estágio, permanece aniquilada no Amor,
havendo sentido em existir contínuos desdobramentos de roteiro.

83 Le miroir pose donc un problème identitaire, en soulignant l’inadéquation entre l’être et la représentation: il
partage un espace réel avec l’être, tout en jouant sur la distance qu’il opère entre l’ici et l’ailleurs représenté par le
reflet du réel.
121

O terceiro plano de enunciação seria na passagem de um conhecimento discursivo


teológico a um pensamento contemplativo. Percebe-se que, para tal, foi necessário atribuir a
Deus figuras que representassem seu teor irrepresentável. Nesta direção, temos diversas
personificações que demonstram as características daquilo que é considerado parte do divino e,
à medida que o discurso teológico (repleto de parábolas e referências às Escrituras) avança
continuamente, o pensamento contemplativo prevalece sobre ele e encontramos uma forma de
subversão relativa ao discurso. Nestes casos, encontramos o que Fletcher (1970) afirma e
defende a respeito dos agentes alegóricos (personificações), que passam a ser considerados
seres reais por seu poder de representação. Essas personificações aparecem no texto de
Marguerite como materializações de ideias e condutores de mensagens.

Assim, Marguerite Porete não se limita ao discurso do ensinamento teológico, do


repasse de ensinamentos, mas expande sua narrativa para um pensamento contemplativo aos
ouvintes. O discurso teológico é caracterizado pela leitura de imagens que explicam o mundo
(HANSEN, 2006); desta maneira, ele também se limita ao que já está dito, diferentemente do
pensamento contemplativo, que ultrapassa esse nível, dado que propõe a liberdade espiritual:

[...] O Espelho é feito para ser aprofundado e vivenciado. A viagem que nos oferece,
que se explica com um método rigoroso, não se transcreve, no entanto, de forma
linear, mas sim por idas e vindas, voltas e desvios que fazem cintilar através deste
Espelho, ora um aspecto, ora outro, até que nos guie à liberdade total. [...] este modo
de ir e vir conforta-nos com a certeza, a grande coerência que traz à escrita, certeza e
coerência que nunca se traem da primeira à última linha do livro. (SALÉ, 2013, p. 40.
Tradução livre)84

Indo mais adiante, afirma-se que, considerando o exemplo de amor mundano oferecido
aos leitores como guia para a experiência do amor divino, Marguerite utiliza histórias presentes
no imaginário medieval, sendo a do Prólogo muito relativa ao Roman d’Alexandre, de
Alexandre de Paris, datado do final do século XII:

Alma (que escreve este livro): – [...] ouvi falar de um rei de grande poder, que era por
gentil cortesia, por grande cortesia de nobreza e generosidade, um nobre Alexandre.
Mas ele estava tão distante de mim, e eu dele, que não sabia como me consolar. E para
que eu me lembrasse dele, ele me deu este livro que representa de alguma maneira o
seu amor. Contudo, ainda que eu tenha a sua imagem, não estou menos num país
estranho, distanciada do palácio onde vivem os mais nobres amigos desse senhor, que
são completamente puros, perfeitos e livres graças aos dons desse rei com quem
permanecem. (PORETE, 2008, p. 32)

84 “Elle parle uniquement par expérience et Le Miroir est fait pour être approfondi et expérimenté. Le parcours
qu’elle nous propose, qui est expliqué avec une rigoureuse méthode, n’est cependant pas transcrit avec une forme
linéaire, mais plutôt par des va et-vient, des tours et des détours qui font miroiter à travers ce Miroir, tantôt un
aspect, tantôt un autre jusqu’à nous guider à la liberté totale. [...] cette façon d’aller et revenir nous réconforte de
par la certitude, la grande cohérenceque cela apporte à l’écrit, certitude et cohérence qui ne se trahissent jamais de
la première jusqu’à la dernière ligne de l’ouvrage”.
122

Essa forma de iniciar o texto, sobretudo por fazer a auto-referência quanto à escrita do
livro por parte da Alma, que toma sua autoria emprestada, denota uma preocupação com o uso
do discurso em prol da formação de uma narrativa na qual a Alma já está em sua posição
desejada e busca ensinar aos ouvintes como acontece o processo. Utilizando, portanto, a dor da
dama por seu amante, a autora utiliza os recursos da imagem: a representação (pintura) da
imagem mental que a dama tem sobre o rei que nunca foi visto, e que apenas toma conhecimento
de sua reputação. Encontramos, assim, a ausência do corpo e a tradução da palavra para a
imagem através do sentimento, que percorre toda a narrativa e molda a relação estabelecida
entre a Alma e Deus. (KOCHER, 2008, p. 87)

O tema central do livro, denotado pela parábola do Rei Alexandre, é um caminho para
termos a primeira ideia da forma com a qual as alegorias serão trabalhadas no discurso de
Porete. As temáticas que ela explora, neste sentido, giram em torno do amor, da nobreza, das
relações de gênero, da representação, das diferenças sociais (hierarquias), do sistema político e
de produção econômica. Portanto, por meio da palavra, podemos encontrar essas temáticas nas
figuras alegóricas principais da obra: Dama Amor, Dama Razão e Alma. Sendo assim,
partiremos para tratá-las individualmente.

3.1.1 Figuras alegóricas: Alma, Dama Amor e Dama Razão

3.1.1.1 A Alma

A Alma, heroína da narrativa, pode ser considerada o ponto central da construção da


subversão do discurso poretiano. Sendo um elemento que representa, durante diversas partes da
narrativa, uma figura ativa em relação a Deus e próxima da Dama Amor, que é o entendimento
divino, “a alma, tocada por Deus e despojada do pecado no primeiro estado de graça, é elevada
pelas graças divinas ao sétimo estado de graça, no qual tem a plenitude de sua perfeição pela
fruição divina no país da vida” (PORETE, 2008, p. 31).

Essa afirmação é possível a partir do momento em que consideramos que a Alma, além
de representar todos aqueles que são tocados por Deus e passam pelo despojamento, faz parte
de uma hierarquia de poderes, sendo dependente do amante, ao mesmo tempo em que busca
ativamente por ele. Quanto a essa ausência de passividade, podemos dizer que Porete subverte
o esperado dentro de um escrito místico (ou seja, uma alma que aguarda seu amado), da mesma
forma em que faz uma alusão crítica possível à vida em confinamento, muito propagada pela
123

Igreja. Neste ponto, encontramos uma função da alegoria explicitada por Fletcher (1970), que
afirma que essa destrói a expectativa normal que possuímos a respeito da linguagem e do
significado das nossas palavras.

A caracterização da Alma é realizada inicialmente a partir da continuação do objetivo


do livro: se é a liberdade espiritual, então não há intermediários. Assim, diz Dama Amor:

Essa alma tem seis asas, como os Serafins. Ela não deseja nada que venha por um
intermediário. Esse é o estado próprio dos Serafins: não há nenhum intermediário
entre o seu amor e o amor divino. Eles recebem sempre sua mensagem sem mediação
e o mesmo ocorre com essa alma, pois ela não busca a ciência divina entre os mestres
deste século, mas ao verdadeiramente desprezar o mundo e a si mesma [...].
(PORETE, 2008, p. 36)

Para enfatizar o que busca essa Alma, o discurso poretiano utiliza, então, outra forma
alegórica, que tem sua primeira aparição no seguinte diálogo:

Amor: – Essa Alma [...] não se importa com vergonha nem honra, com pobreza nem
riqueza, com bem-estar ou ansiedade, com amor ou ódio, com inferno ou paraíso.
Razão: – Ó, por Deus, Amor, o que quer dizer isso?
Amor: – O que quer dizer? [...] Certo, isso somente aquele a quem Deus deu o
entendimento o sabe e nenhum outro, pois nem as Escrituras o contêm, nem a
sabedoria humana o compreende, nem o trabalho de uma criatura lhe permite
entender, ou compreender, mas esse dom vem do Altíssimo para o qual essa criatura
é arrebata pela plenitude da compreensão, e nada permanece em seu entendimento
[...]. (PORETE, 2008, p. 38-39)

É desta maneira que a Dama Razão, introduzida por meio da dúvida, pois não compreende as
palavras de Amor, é utilizada para que a narrativa tenha como foco inicial a compreensão acerca
da Alma e do que é preciso para entendê-la.

Dessa forma, a Alma é demonstrada como possuidora de um conhecimento que


nenhuma sabedoria humana contém, muito menos nas Escrituras, posto que esse dom vem do
Altíssimo, por meio do arrebatamento. Tem-se, no trecho supracitado, referências ao que falta
(positivamente) nessa Alma – a honra, a pobreza, a riqueza, o bem-estar, a ansiedade, o amor,
o ódio, o inferno e o paraíso – e que são traços de um contexto no qual hierarquias prevalecem,
sobretudo econômica e religiosamente.

Quanto às hierarquias, afirmamos que elas são um dos pontos principais desenvolvidos
por Porete e, possivelmente, foco de sua narrativa. Além das próprias protagonistas serem
figuras alegóricas, encontramos menções às relações econômicas e religiosas do período e do
contexto no qual a obra estava situada. Um primeiro exemplo dessas alegorias de cunho social
pode ser visto no seguinte trecho, iniciado por uma fala da Dama Amor:

[...] A Caridade não pede recompensa a nenhuma criatura por algum bem ou prazer
que tenha proporcionado.
124

[...] A Caridade é uma mercadora tão sábia que ganha em todos os lugares, lá onde
os outros perdem, e escapa das correntes às quais os outros se prendem, garantindo
assim a multiplicação do que agrada ao Amor. (PORETE, 2008, p. 35. Grifo nosso)

A relação entre a Alma e as Virtudes também é um ponto importante a ser destacado.


Fala-se a respeito de uma relação de servidão, com menções a serviços, liberdade e dominação:

Alma: – Eu vos confesso, dama Amor: houve um tempo em que assim estive, mas
agora é um outro tempo; vossa cortesia me libertou dessa servidão. Por isso agora
posso bem lhes dizer e cantar:
Virtudes, de vós me libertei para sempre,
Terei agora o coração mais livre e mais feliz;
Vosso serviço é muito constante, bem o sabeis.
Em vós coloquei meu coração por um tempo, sem nada reter;
Sabeis que a vós totalmente me abandonei;
Fui uma vez vossa serva, mas agora me libertei. [...]
De vossa dominação, que tanto me afligiu, me livrei.
Nunca fui tão livre, exceto longe de vós;
De vossa dominação parti, em paz repousei. (PORETE, 2008, p. 38. Grifo nosso)

Assim, percebe-se que a Dama Amor toma para si um posicionamento explícito acerca
da Alma: ela defende que a Alma possui esses dons pelo fato de não possuir nada daquilo que
se compreende por caminho divino. Dessa forma, a alegoria da Alma é desenvolvida a partir da
ausência da vontade. Por estar aniquilada de todos os seus desejos e sentimentos, “a vontade,
que lhe dava o desejo, está morta” (PORETE, 2008, p. 39). Esta condição é estimulada pelo
fato de que, para aproximar-se de Amor, as almas aniquiladas precisam não ter vontade, além
de viver da Compreensão, do Louvor e de Amor, transformadas, na narrativa, em
personificações que aparecem para dar ênfase ao entendimento da Alma. Dessa maneira, são
Almas que não possuem um julgamento acerca de si próprias, o que demanda num
distanciamento do status de salvação ou condenação, bem defendido pela Dama Amor: “essas
Almas não sabem se considerar boas ou más, não têm mais a compreensão de si mesmas, e não
sabem mais julgar se estão salvas ou condenadas” (PORETE, 2008, p. 41).

Além dessas menções ao que caracteriza a ideologia cristã proferida pelo clero
medieval, o discurso poretiano apresenta que a Alma perde sua vontade e seu desprezo, de
forma que “não deseja nem despreza pobreza e tribulação, missa e sermão, jejum e oração, e dá
à Natureza tudo o que é necessário, sem remorso de consciência” (PORETE, 2008, p. 42).
Fazendo estas associações entre o funcionamento do sistema econômica do período,
possivelmente bem compreendido pelos interlocutores, Porete aproxima sua reivindicação em
torno das hierarquias ao seu público. Ao expor, em uma sentença, status social e dogmas
institucionais, a Alma passa a ser uma figura alegórica que representa a ausência necessária
desses elementos para os indivíduos.
125

Da mesma maneira, utiliza como forma de validação a Dama Amor, que possui o
entendimento divino e defende a contradição com o que defendem os clérigos. Podemos citar,
desta forma, o momento em que esta Dama contraria a ideia de pecado:

(Amor): – Assim, tal Alma não tem nenhuma inquietação em relação ao pecado que
tenha cometido, nem esperança em alguma coisa que possa fazer, senão somente na
bondade de Deus. E o tesouro secreto dessa bondade a aniquilou de tal forma
internamente, que ela está morta para todos os sentimentos, de dentro e de fora, à
medida que tal Alma não realiza mais nenhuma obra, nem por Deus, nem por ela, e
assim a todos os seus sentidos perdeu nessa prática, a ponto de não saber como buscar
ou encontrar Deus, nem como a si mesma conduzir. (PORETE, 2008, p. 89).

Importa destacar que muitas das características da Alma são dadas pela Dama Amor,
mesmo que seja a Alma a detentora de um conhecimento não humano e necessário aos ouvintes.
Enfatiza-se, ao longo da narrativa, o aspecto da ausência de compreensão das personagens que
fazem parte do conjunto de ideias proferidas pela Razão, da qual falaremos nos próximos
tópicos. Não obedecendo mais às Vontades, que são do domínio da Razão, a Alma agora
obedede ao Amor: “Razão: – A quem, então ela pertence? / Amor: – À minha vontade [...], que
a transformou em mim” (PORETE, 2008, p. 65). É nesse processo que percebemos a alegoria
da Alma fundamentada na ideologia central do amor cortês e das trocas hierárquicas da
sociedade medieval da região pela qual circulou a obra.

Indo além, podemos entender que a Alma, ao transformar-se em Amor, que é a


personificação do próprio amor divino, faz-se alegoria subversiva para aqueles que buscam uma
vida espiritual não vinculada aos dogmas e às tradições, sendo muitos deles pregadores
itinerantes e pessoas religiosas que não estavam sob jurisdição, assim como as beguinas do
século XIII, e os demais grupos que foram julgados como heréticos por serem reconhecidos
como uma ameaça ao corpo da cristandade, sobretudo as mulheres, como afirma Deane (2011).

Em suma, a criação de uma alegoria da Alma na obra de Porete, em posição de


protagonista, leva a narrativa a um caminho não tradicional da nova mística, pois encontramos
o desenvolvimento de uma ideia de movimento ativo da espiritualidade em oposição à luta para
manter o prestígio da tradição religiosa cristã. Esses aspectos podem ser levados em
consideração através do que Hansen (2006) discorre a respeito da alegoria como tropo, ou seja,
como transposição de sentidos. Passando da materialidade para a imaterialidade, Marguerite
utiliza palavras e termos que são associados ao processo no qual a Alma se encontra, a fim de
facilitar a compreensão do público e desenvolver, numa linguagem que permite esse processo
(diferentemente do latim), a transposição semântica de um signo em presença para um signo
126

em ausência. Utiliza-se, dessa maneira, uma relação por metáfora (semelhança), dada por meio
das alegorias:

Luz da Fé: – E para esse propósito vos diremos [...] como faremos comparações com
esse Sacramento para que entendais melhor.
Tomai esse Sacramento, colocai-o num pilão junto com outras coisas e triturai esse
Sacramento até que não possais mais ver nem sentir a Pessoa que aí colocastes.
(PORETE, 2008, p. 55)
Amor: – [...] Se estas Almas, que assim são, tivessem alguma coisa – e pouca gente
sabe onde elas estão, mas é necessário que elas existam pela justa bondade do Amor,
para sustentar a fé da Santa Igreja –, portanto, se elas tivessem alguma coisa e se
soubessem que outros teriam mais necessidade do que elas, elas não a reteriam de
forma alguma, ainda que estivessem certas de que a terra nunca mais traria o pão,
o trigo ou outro sustento. (PORETE, 2008, p. 60. Grifos nossos)

Nessas passagens, encontramos a incompatibilidade semântica do tropo que pode ser


percebida pelo leitor, sobretudo nas partes em destaque. Assim, o microcontexto e o
macrocontexto (HANSEN, 2006), ausentes em algum aspecto, forçam o leitor a fazer as
transposições necessárias, encontrando semelhanças, ou seja, os lugares-comuns (loci ou topoi).
Ao citar aspectos do cotidiano e da própria organização da sociedade medieval, o discurso
poretiano se apropria desses lugares-comuns e atinge níveis de significação necessários para
compreender a posição que a Alma tem dentro da narrativa, priorizando as hierarquias e
utilizando-as como crítica em potencial.

Porém, a Alma está em relações hierárquicas dentro de um conjunto de imagens. Sendo


a obra literária um veículo de ideias e a materialização de reflexões sobre a realidade social
(EAGLETON, 2019), as hierarquias também são preenchidas por outras alegorias. Assim, se a
Alma é a personagem que está inserida numa posição inferior e que move a narrativa conforme
chega a um estado de ascensão, faz-se necessário sistematizarmos a alegoria da Dama Amor,
responsável pela narrativa, do ponto de vista poretiano, e situada numa posição superior,
utilizando, portanto, um discurso que combina seu estado divino e sua função de guia para as
almas aniquiladas.

3.1.1.2 Dama Amor

A fim de argumentar acerca do papel da alegoria da Dama Amor na narrativa e de como


ela é construída dentro do discurso poretiano, faz-se necessário pontuar o fenômeno das deusas,
já desenvolvido por Newman (2005). Questionando e voltando-se às personificações femininas,
principalmente aquelas que representam deusas (como no caso da Dama Amor), a autora
127

desenvolve sua argumentação através de um resgate histórico das perspectivas em torno das
hipóteses a respeito do porquê do gênero feminino nas personificações.

Inicialmente, Newman (2005, p. 36) explana o posicionamento de Paul Piehler, que fala
a respeito da constituição de uma experiência psíquica central na alegoria medieval por meio
da manifestação das deusas em cenários transcendentais, ou seja, da ordem do sensível. A
hipótese mais antiga acerca dessas manifestações teria sido de Joseph Addison, em 1721, que
notou o predomínio das formas femininas e atribuiu este fato às normas gramaticais. Segundo
Newman, nesta perspectiva,

substantivos abstratos em latim assumem o gênero feminino, então quando artistas e


poetas desejavam personificar virtudes, eles necessariamente as representavam "em
anáguas". Addison atribuiu o aparecimento bastante tardio das personificações
masculinas à decadência da inflexão gramatical nos vernáculos europeus.
(NEWMAN, 2005, p. 36. Tradução livre)85

A respeito deste fenômeno, Barbara Newman disserta que as personificações masculinas


não se encaixariam na categoria que ela intitula Platônica ou Realista: com personificações
femininas, a linguagem da deusa é usada com abandono (NEWMAN, 2005, p. 36). Assim, a
lógica de representação virtualmente demandaria figuras femininas. A Dama Amor, por
exemplo, é uma alegoria presente em diversas obras e constitui o imaginário medieval referente
à espiritualidade. Apresentando-se sob diversas faces, tais como Caritas, Dame Amour ou
Minne, a deusa está presente representando o plano do divino e contrariando a expectativa da
demonização tradicional das figuras femininas.

Dessa maneira, é notório o posicionamento de Newman (2005, p. 37), que traz a ideia
da falta de uma persona nas alegorias das deusas. Isto significa afirmar que essas alegorias
femininas são mais abstrações que necessariamente pessoas, o que leva muitos estudiosos a
considerarem que existe um processo de feminização da própria retórica. Porém, a autora sugere
que feminino não está obrigatoriamente no mesmo nível de mulher; desta forma, não estaríamos
falando de representações de mulheres, mas de modos de imaginação religiosa (NEWMAN,
2005, p. 38).

Portanto, são pontuadas quatro proposições a respeito das funções religiosas dessas
deusas medievais (e, naturalmente, da Dama Amor):

85 [...]abstract nouns in Latin take the feminine gender, so when artists and poets wished to personify virtues they
necessarily represented them "in petticoats". Addison attributed the fairly late appearance of male personifications
to the decay of grammatical inflection in the European vernaculars.
128

Primeiro, [...] as deusas floresceram porque era muito mais seguro teologizar sobre
elas do que sobre a Trindade. Em segundo lugar, as deusas eram capazes de mediar
vários tipos de experiência religiosa, ou acesso ao Divino, que não podiam ser
facilmente acomodados dentro da estrutura da doutrina escolástica ou pastoral.
Terceiro, o uso de figuras de deusas permitiu que os escritores sondassem a mente
divina e analisassem os conflitos internos de Deus, por assim dizer, da mesma forma
que a alegoria os capacitava a dramatizar os conflitos humanos. Finalmente, tanto
autores masculinos quanto femininos usaram deusas para atender a necessidades
psicológicas e culturais específicas de gênero, que variavam consideravelmente de
caso para caso. (NEWMAN, 2005, p. 39. Tradução livre)86

Compreendida dessa forma, a Dama Amor, quem escreve o livro, tem sua imagem bem
definida por Porete a partir do início do livro, que tem por abertura o discurso desta mesma
dama referindo-se à audiência. É preciso destacar, inicialmente, que a Dama Amor, ao contrário
da Alma, ocupa uma posição hierárquica semelhante à de Deus na narrativa, ao passo que a
Alma ocupa uma posição mais baixa, sendo necessário passar por sete estágios de
aniquilamento para que possa, finalmente, alcançar o nível de Deus. Nota-se a insistência do
discurso poretiano em evidenciar a Dama Amor como detentora de poderes na narrativa, sendo
ela a representante de tudo aquilo que é desejado por aqueles que compõem a audiência – e que,
naturalmente, não são capazes de seguir os mesmos passos da Alma, pois esta não tem mais
desejo.

Ocupando a posição de Bem Amado, Dama Amor pode ser encontrada de diferentes
formas na narrativa. Existem passagens em que sua identidade é distanciada da figura masculina
de Deus, sendo estabelecida uma diferenciação entre o próprio Deus e a imagem da Dama
Amor: “[...] Pois Ele é tudo em tudo, onipotente, onisciente e a bondade total. É nosso pai,
nosso irmão e nosso bem-amado leal. Ele não tem começo. É incompreensível fora de si mesmo.
Ele não tem fim, três pessoas e um só Deus, tal é [...] o Bem-amado de nossa alma” (PORETE,
2008, p. 37). De forma semelhante, a própria Dama, que tem por função alegorizar o amor
divino e todos os caminhos que ele pode revelar às almas aniquiladas, caracteriza e define Deus
como uma terceira pessoa:

Amor: – Ela sabe [...] pela virtude da fé, que Deus é onipotente, todo sabedoria e
bondade perfeita e que Deus Pai realizou a obra da encarnação, e também o Filho e o
Espírito Santo. Deus Pai uniu a natureza humana à pessoa de Deus Filho, e a pessoa
de Deus Filho a uniu (a natureza humana) a si, e Deus o Espírito Santo a uniu a Deus
Filho. Portanto, o Pai tem em si uma única natureza, que é a natureza divina; e a pessoa

86 First, [...] goddesses flourished because it was so much safer to theologize about them than about the Trinity.
Second, goddesses were able to mediate various types of religious experience, or access to the Divine, that could
not easily be accommodated within the framework of scholastic or pastoral doctrine. Third, the deployment of
goddess figures allowed writers to probe the divine mind and analyze God's inner conflicts, so to speak, in much
the same way that allegory enabled them to dramatize human conflicts. Finally, bothc male and female authors
used goddesses to meet gender-specific psychological and cultural needs, which varied considerably from case to
case.
129

do Filho tem em si três naturezas, isto é, a mesma natureza divina que o Pai tem, e a
natureza da alma e do corpo, e é uma pessoa na Trindade; e o Espírito Santo tem em
si a mesma natureza divina que o Pai e o Filho têm. [...] é um só poder, um só saber e
uma só vontade; um só Deus em três pessoas; três pessoas e um só Deus. Esse Deus
está em tudo de acordo com sua natureza divina, mas sua humanidade é glorificada
no paraíso, unida à pessoa do Filho como também ao Sacramento do Altar. (PORETE,
2008, p. 54-55)

Percebemos que, apesar da referência a Deus como uma terceira pessoa, a Dama Amor
é utilizada como um veículo de conhecimento das Escrituras e como forma de guia, com fins
pedagógicos. Além disso, é ela quem faz os movimentos de chamado à audiência, também
utilizando de lugares-comuns para aproximar-se dos ouvintes e levá-los a seguir o mesmo
caminho da Alma:

Amor: – [...] Entre vós, pequenos, que na vontade e no desejo pilhais vosso alimento,
desejai ser como ela é. Pois aquele que deseja o menos e não deseja o mais não é digno
da menor bênção de Deus, em virtude de sua covardia, na qual se deixa cair, e assim
parece que está sempre faminto. (PORETE, 2008, p. 66)

Dessa maneira, assim como a Alma desenvolve a narrativa por fazer referência àqueles
que passam por todas as hierarquias do conhecimento divino e, nesta direção, molda os rumos
da obra, Amor tem a função de buscar essas almas e convidá-las, utilizando uma linguagem
comum para os que são capazes de compreender e construindo imagens alcançáveis ao público.
Ademais, a estratégia retórica utilizada nas falas da Dama Amor demonstra a necessidade de
sempre reafirmar a posse que esta tem sobre o livro, no sentido de recorrer à sua posição de
representante de Deus:

Amor: – [...] Entendei essas palavras divinamente, por amor, ouvintes deste livro!
Esse Longeperto, que chamamos de centelha, por sua abertura e rápido fechamento,
recebe a Alma no quinto estágio e a coloca no sexto, à medida que sua obra se
manifesta e dura. Mas pouco dura o estado do sexto estágio, pois ela é reconduzida ao
quinto. (PORETE, 2008, p. 111. Grifo nosso)
[...] Agora entendei, diz Amor, o sentido profundo deste livro. Uma coisa vale tanto
quanto a apreciamos e pela necessidade que se tem, e não mais. Quando eu quis, diz
Amor, e quando me agradou e tive necessidade de vós (digo necessidade à medida
que vos convoco), vós me recusastes por vários de meus mensageiros. Ninguém o
sabe, exceto eu, somente eu. Eu vos enviei os Tronos para vos purificar e adornar, os
Querubins para vos iluminar e os Serafins para vos inflamar. Por todos esses
mensageiros vos convoquei, diz Amor, (e eles vos fizeram saber) para fazer a minha
vontade e realizar os estados do ser para os quais vos chamo, mas nunca fizestes conta.
Ao ver isso, diz Amor, vos deixei por vossa própria conta para vos salvar. Se me
houvésseis obedecido, seríeis diferentes, por vosso próprio testemunho. Mas vos
salvareis por vós, contudo isso será numa vida aprisionada por vosso próprio espírito,
que nunca estará sem algum encargo. Pois não obedecestes às minhas mensagens e
às Virtudes, quando eu quis, por meio de tais mensagens, emancipar vosso corpo e
libertar vosso espírito; também porque, diz Amor, não me obedecestes quando vos
chamei por meio das sutis Virtudes que vos enviei, e por meus Anjos, por meio dos
quais argumentei convosco, não posso mais vos dar o direito da liberdade que tenho,
pois a justiça não o pode fazer. Se houvésseis obedecido, diz Amor, quando vos
chamei para a vontade das Virtudes que enviei, e por meus mensageiros por meio das
130

quais argumentei convosco, teríeis o direito da liberdade que eu tenho. (PORETE,


2008, p. 136. Grifo nosso)

Afirmamos, neste sentido, que Porete posiciona Dama Amor em um patamar


inalcançável para todos, mas, ao mesmo tempo, acessível por utilizar uma linguagem capaz de
descrever e definir Deus, diferentemente dos outros tipos de linguagem. Podemos notar,
portanto, que o discurso poretiano é organizado de forma a representar o amor e o conhecimento
divino através da atribuição de semelhanças de imagem: Dama Amor distancia-se de Deus para
definí-lo e esclarecê-lo, cumprindo sua função pedagógica; porém, ela também é Deus:

Razão: – Mas quem sois vós, Amor? [...] Acaso não sois uma das Virtudes conosco,
mesmo que acima de nós?
Amor: – Eu sou Deus, diz Amor, pois Amor é Deus e Deus é Amor, e essa Alma é
Deus por condição do Amor. Eu sou Deus pela natureza divina e essa Alma é Deus
pela justiça do Amor. Assim, essa minha preciosa amada é ensinada e guiada por mim,
sem ela, pois ela foi transformada em mim e, por isso, diz Amor, porta o meu
ensinamento. (PORETE, 2008, p. 65)

A Dama Razão, caracterizada por sua ignorância, acreditando ser Amor uma das
virtudes que devem ser seguidas pelas almas, leva a Dama Amor a esclarecer sua verdadeira
posição e sua função na narrativa. Neste momento, sua identidade é a própria identidade de
Deus e da Alma, que foi transformada nela. Como afirma Kocher (2008, p. 101):

Os personagens chamados Deus, Amor e Alma são difíceis de separar, embora muitas
vezes falem de forma independente. [...] Esta mistura de papéis dos personagens
combina com a estratégia geral do Espelho de representar gênero e outras categorias
sociais como variáveis, mutáveis e permeáveis, pois qualquer divisão simples entre
masculino e feminino geralmente cede. Porete representa o gênero como um conceito
tão fluido que os leitores modernos podem ser obrigados a pensá-lo de novas
maneiras, e tomá-lo como uma alegoria evocativa de estados espirituais. (Tradução
livre)87

Este caráter volátil também pode ser atribuído ao próprio caráter da obra como um todo.
Marguerite Porete, tendo como foco o questionamento de determinados padrões religiosos,
explora as relações de domínio, provando que a Alma ocupa, por muitas vezes, uma posição
subordinada, mesmo sendo, em outras partes, equiparada a Deus:

(Amor): – Ah, dulcíssima Alma, diz Amor, o que quereis que Ele vos dê? Não sou
uma criatura? Quereis ter de vosso Bem-amado algo que não lhe está confiado dar a
vós, nem a vós receber? Acalmai-vos, doce Alma, se em mim acreditais. Ele não dá a
uma criatura nada que não tenhais, e tal dom Ele o dá como convém a vós.
Alma: – Ah, dama Amor, [...] não me dissestes isso quando vos conheci pela primeira
vez. Pois vós me dissestes que entre o Bem-amado e a bem-amada não há domínio;

87 The characters named God, Love, and the Soul are difficult to separate even though they often speak
independently. This mixing of characters’ roles matches the Mirror’s overall strategy of representing gender and
other social categories as variable, changing, and permeable, for any simple division between masculine and
feminine often gives way. Porete represents gender as a concept so fluid that modern readers may be obliged to
think of it in new ways, and to take it as an evocative allegory for spiritual states.
131

mas há, como me parece, pois um tem tudo e o outro não tem nada em comparação
ao seu tudo. Mas se pudesse corrigir isso, eu o corrigiria, pois se eu pudesse tanto
quanto vós podeis eu vos amaria tanto quanto valeis. (PORETE, 2008, p. 76)

O uso retórico da fraqueza e subordinação forma uma grande estratégia para que o
discurso poretiano alcance sua subversão. Sendo ricamente contraditório, o texto perpassa,
sobretudo por meio da Dama Amor, a tradição cortês, que coloca a mulher como objeto de
desejo e bem-amada. A respeito disto, é válido mencionar o ponto de vista de Kocher (2008, p.
102), que afirma que Porete interpreta a fraqueza de uma maneira diferente daquela conhecida
pela tradição do amor cortês, utilizando-a como uma metáfora de gênero para que haja o acesso
a Deus. Nesta perspectiva, a feminilidade faria parte do conjunto de metáforas que a autora
constrói para descrever a abnegação da Alma, que é indispensável no processo de
aniquilamento. Assim, a Dama Amor, que exalta a todo momento a necessidade da humildade,
é uma alegoria estratégica para os ouvintes do livro, que são levados a enxergar a pobreza de
espírito como único caminho para chegar a Deus.

Neste ponto, antes de irmos em direção à antagonista (Dama Razão), faz-se importante
observamos a atenção dada à audiência, sobretudo aos homens e mulheres, mercadores e
nobres, senhores e vassalos, ativos e contemplativos, humildes e exaltados (PORETE, 2008).
A respeito destes, podemos mencionar a seguinte fala da Alma:

Alma: – Ah, dulcíssimo Jesus Cristo, diz essa Alma, não vos preocupeis com tal
gente! Eles são tão egoístas que buscam somente seus interesses, vos esquecendo,
por conta da grosseria que a eles lhes basta.
Amor: – Ah, sem dúvida, diz Amor, isso é uma grande vilania.
Alma: – Esse é o costume, diz essa Alma, dos mercadores que no mundo são
chamados de vilões, e, de fato, vilões eles são. Pois os cavalheiros não sabem se
misturar no mercado, nem sabem ser egoístas. Mas vos direi, diz essa Alma, o que
me apaziguará em relação a tal gente. É isso, dama Amor, eles estão fora da corte
dos vossos segredos, assim como estaria um vilão na corte de um cavalheiro no
julgamento de seus pares, onde ninguém pode estar se não for da mesma
linhagem – ao menos na corte do rei. E com isso me tranquilizo, diz essa Alma, pois
eles também estão fora da corte de vossos segredos, lá onde os outros são chamados,
os que nunca esquecerão as obras de vossa doce cortesia, isto é, o desprezo, a pobreza
e os tormentos insuportáveis que haveis sofrido por nós. Esses não esquecerão jamais
os dons do vosso sofrimento, que para eles é sempre um espelho e um modelo.
(PORETE, 2008, p. 118-119. Grifo nosso)

Sendo uma representação alegórica que vai além de comentários acerca da sociedade,
Porete atribui identidade às almas que fariam parte da experiência espiritual, resgatando
elementos da vida real para construir sua obra mística e posicionando, durante a narração, as
analogias sociais conforme sua intenção. A renúncia do poder individual é um ponto importante
a ser considerado na obra de Porete, levando em consideração que o processo de aniquilação é
a perda de si; simultaneamente, também representa a vontade de ascender, de subir de status, e
132

a impossibilidade de ser um caminho acessível a todos, além da existência de uma figura


dominante e de relações de servitude.

A linhagem também compõe a alegoria da Dama Amor, que, atrelada ao ideal de


cortesia, leva aos ouvintes a mensagem de que os aniquilados são servidos de uma boa
linhagem:

(Amor): – É dito, e eu mesma o digo, que há uma grande diferença entre os anjos por
natureza, uns em relação aos outros, como há entre os homens e os asnos. [...] E tanto
como há para se dizer dos anjos, de uns em relação aos outros, assim como ouvistes,
há para se dizer, pela graça, dos aniquilados sobre os quais falamos em relação a todos
aqueles que não o são. É muito bem-nascido quem é de tal linhagem. Essa é a gente
da realeza. Eles têm um coração excelentemente nobre e de grande realização, e não
podem realizar obra de pequeno valor, nem começar coisa alguma que não alcance a
boa perfeição. Eles são os menores que podem ser e devem se tornar os maiores,
pelo próprio testemunho de Jesus Cristo, que disse que os menores seriam os
maiores no Reino dos Céus. Deve-se, de fato, acreditar nisso, mas não acredita
nisso quem não é isso mesmo. Pois aquele que é aquilo que acredita, acredita
verdadeiramente. Mas aquele que crê naquilo que ele não é, não vive aquilo em que
acredita. Este não crê verdadeiramente, pois a verdade da crença está em ser aquilo
que se crê. E aquele que nisso crê é aquele que é isso. Ele não tem mais nada a fazer
consigo, nem com os outros, nem com o próprio Deus, não mais do que se ele não
fosse; e assim que ele é. Entendei o sentido oculto. É em sua vontade que não há
nada para ele, não mais do que se ele não fosse [...]. (PORETE, 2008, p. 165-166.
Grifo nosso)

Possivelmente, a alegoria da Dama Amor seja o objeto de desejo da Alma como um


lugar inalcançável, mas que, no âmbito espiritual, torna-se tangível, sendo por este motivo o
caminho espiritual o único viável para essa subida, pois unir-se a Deus também significa ter
poder supremo. Sendo assim, essa deusa também explana, por meio de diferentes passagens, a
existência de um sentido oculto, que está sempre sendo repetido e levado de forma analógica e
alegórica para os ouvintes. É, portanto, por meio da Dama Razão que esses sentidos ocultos são
organizados de forma a serem esclarecidos.

3.1.1.3 Dama Razão

Considera-se a Dama Razão como locus de significação atrelada ao andamento da


narrativa e à organização da argumentação proposta por Marguerite Porete em torno da
reestruturação social. Considerando que as alegorias também podem ser consideradas formas
de expressão que exercem funções políticas e religiosas e servem para intenções ideológicas
determinadas (SOUKI, 2006), sobretudo no sentido mais medieval, defende-se que a presença
de uma antagonista é a marca quase explícita de uma intencionalidade subversiva.
133

Apesar de servir de instrumento de defesa dos teólogos para superarem as dúvidas


heréticas (CEIA, 1998), a linguagem alegórica foi estendida, no Espelho, a um nível que
privilegia seu uso como linguagem prioritária. A isto se deve o fato de encontrarmos uma deusa
imbuída nas propriedades da Natureza e sendo representante de tudo aquilo que é contrário ao
caminho proposto pela Dama Amor.

Afirmamos que as partes direcionadas à audiência são as primeiras pistas do caráter


antagonista da Dama Razão. Assim, existe, na construção da Dama Razão, uma forte influência
da audiência e da Dama Amor. Podemos mencionar, primeiramente, a fala da Dama Amor a
respeito do que os ouvintes podem esperar do livro que estão prestes a ler:

Aqui fala Amor: – Entre vós, ativos e contemplativos e, talvez, os aniquilados pelo
amor verdadeiro, que ouvireis alguns dos prodígios do puro amor, do nobre e elevado
amor da Alma Liberada e de como o Espírito Santo nela colocou sua vela, como num
navio, eu vos rogo por amor que ouçais com grande aplicação do vosso entendimento
interior sutil e com grande diligência. Caso contrário, todos os que venham a ouvi-lo
o entenderão mal, se não estiverem assim dispostos. (PORETE, 2008, p. 31)

Neste primeiro momento, encontramos a menção direta aos ativos, contemplativos e os


aniquilados pelo amor verdadeiro (ou seja, aqueles que são representados pela Alma), e uma
elevação do valor acerca do que será lido adiante. Encontram-se, nesta fala, elementos como
“puro amor”, “nobre e elevado amor da Alma Liberada”, além de analogias que fazem uso de
imagens comuns aos ouvintes e situadas contextualmente, a exemplo do navio e da vela. O
aviso é dado: é preciso atenção e aplicação para entender e seguir os ensinamentos contidos na
obra; ainda mais, é preciso disposição, sob o risco do mal entendimento.

A Razão não dialoga diretamente com a audiência, sobretudo por ser o elemento da obra
que representa a Santa igreja, a pequena. Além deste aspecto, ela também não tem a capacidade
suficiente de entendimento para poder repassar quaisquer que sejam os ensinamentos. Sua
posição é dada desde o princípio. Exemplos notórios para justificar esta afirmação são os que
se encontram nos capítulos 68 e 69, momentos em que a Alma fala a respeito da prática das
Virtudes e dialoga com a Razão, chamando todos aqueles que a seguem de bestas e asnos. No
capítulo 68, encontramos a seguinte passagem:

Alma: – Ó gente tão pequena, rude e inconveniente, diz ela.


Razão: – A quem falais?, diz Razão.
Alma: – A todos os que vivem de vosso conselho, diz ela, que são tamanhas bestas
e asnos que por sua grosseria me fazem dissimular e não falar minha linguagem
para que não encontrem a morte no estado da vida, onde estou em paz sem de lá
me mover. Eu digo, diz a Alma, que, em virtude de sua grosseria, convém que eu me
cale e oculte minha linguagem, que aprendi em segredo na corte secreta do doce país,
no qual a cortesia é lei, o amor é a medida, e a bondade, o alimento; a doçura me
134

conduz, a beleza me apraz, a bondade me nutre. O que posso mais fazer, já que vivo
em paz? (PORETE, 2008, p. 123-124. Grifo nosso)

A continuação destas afirmações acontece no capítulo seguinte, onde encontramos:

Razão: – Ah, dama Alma, diz Razão, tendes duas leis, ou seja, uma para vós e outra
para nós: a nossa para crer, e a vossa para amar. Dizei-nos, se for vossa vontade, por
que chamastes os que educamos de bestas e asnos.
Alma: – Essa gente, a quem chamo asnos, busca Deus nas criaturas, em
monastérios para rezar, no paraíso criado, nas palavras dos homens e nas
Escrituras. Sem dúvida, diz essa Alma, para tal gente Benjamin não nasceu porque
Rachel aí vive. É necessário que Rachel morra para o nascimento de Benjamin, pois
até que Rachel morra, Benjamin não pode nascer. Parece aos iniciados que tal gente,
que o busca em montanhas e em vales, insiste que Deus esteja sujeito aos
sacramentos e obras deles.
Ai deles! Eles têm o mal, o que é uma pena. E ainda o terão, diz essa Alma, enquanto
mantiverem em prática tais costumes! Mas aqueles que adoram Deus não apenas nos
templos e monastérios, mas que o adoram em todos os lugares por meio da união com
a vontade divina, esses têm tempos bons e proveitosos. (PORETE, 2008, p. 125. Grifo
nisso)

Por meio desses trechos, nota-se a real ligação entre a Dama Razão e os argumentos em
defesa da reestruturação social, que, no caso de Marguerite, inicia-se na vivência da
espiritualidade. Desta forma, a Dama Amor, por estar sempre destacando que é preciso bem
compreender para alcançar o “bom entendimento deste livro”, também posiciona a Dama Razão
como aquela que é seguida por aqueles que não compreendem o verdadeiro significado do amor
divino. Assim, a alegoria da Dama Razão é construída sobre o alicerce de duas representações,
Santa Igreja, a grande e Santa Igreja, a pequena, que aparecem pela primeira vez no seguinte
trecho:

(Fé, Esperança e Caridade): – Ó Santa Trindade, [...] onde estão tais Almas supremas,
que são como este livro descreve? Quem são elas? Onde estão? O que fazem? Ensinai-
nos sobre elas por meio do Amor, que tudo sabe, para apaziguar aqueles que se
espantam ao ouvir este livro. Pois toda a Santa Igreja, se o ouvisse ser lido, ficaria
maravilhada, dizem estas três Virtudes divinas.
(Fé): – É verdade, diz a própria Fé.
(Amor): – Na verdade, Santa Igreja, a pequena [...]; essa é a Igreja que é governada
pela Razão, e não Santa Igreja, a grande, diz o Amor Divino, que é governada por nós.
(PORETE, 2008, p. 61-62)

O uso do termo Santa Igreja na narrativa, sobretudo para se referir ao lugar que não é
ocupado pelas “Almas supremas”, demonstra um domínio estratégico e retórico de Marguerite
para identificar partes dessa instituição que não correspondem aos ideais defendidos por ela.
Considerando o contexto no qual Porete está inserida, destaca-se a intensa movimentação dos
grupos mendicantes e a insatisfação popular com os moldes de vida propagados pela Igreja
(instituição). Ao realizar uma tentativa de articulação social da diferença por meio dos espaços
intermediários (CHANCE, 2007), a autora cria um terreno estratégico no qual se utiliza o termo
135

Santa Igreja, associando-o à característica de algo menor, menos potente, menos digno.
Possivelmente por ser um termo bastante utilizado, a característica de santidade inserida nele
não condiz com sua essência e com aquilo que representa, levando o texto a um aspecto quase
humorístico ou satírico.

Assim, a deusa que representa a Razão é a mesma que representa os desejos, as paixões,
os vícios, o comércio, o luxo e as instituições, incluindo as Escrituras. Sobre este último aspecto,
poder-se-ia afirmar que Porete não estima os textos sagrados por sua inacessibilidade e
linguagem, pois são escritos em língua latina, a língua dos teólogos. Supõe-se, ao mesmo
tempo, que se refereria à leitura dos textos sagrados, não necessariamente aos ensinamentos
presentes nas Escrituras, visto que, ao longo de seu texto, posiciona-as sempre próximas do
Entendimento do Amor, que as ilumina.

Nesta direção, mesmo utilizando termos que se referem à própria instituição, a autora
divide a Santa Igreja em duas partes, não anulando a importância de existir uma santa igreja.
Porém, a pequena, reduzida ao conhecimento humano, é governada pela Razão (que, neste
momento, tem sua posição definitivamente atribuída), ao passo que a grande seria a igreja
governada pela Dama Amor e todas as personificações que fazem referência ao plano divino.
Governada pela Razão, a Santa Igreja (a pequena) representa, da mesma maneira, os interesses
humanos pertencentes ao mundo externo, que se distanciam do mundo espiritual:

Santa Igreja: – E o que é essa Alma?, diz Santa Igreja. Dulcíssimo Espírito Santo,
ensinai-nos, pois essa palavra supera nossas Escrituras, e assim não podemos
apreender pela Razão o que ela diz. E estamos tão estupefatos, diz Santa Igreja, que
não ousamos nos opor a ela. (PORETE, 2008, p. 90)

Ainda a respeito da Santa Igreja, encontramos relações hierárquicas, pois, da mesma


forma que há uma hierarquia entre Alma, Dama Amor e Dama Razão, também existe entre as
Santas Igrejas:

Amor: – É verdade, ó Santa Igreja, que estais abaixo dessa Santa Igreja! Pois tais
Almas são propriamente chamadas de Santa Igreja, porque sustentam, ensinam e
nutrem toda a Santa Igreja. E não propriamente elas, mas a Trindade dentro delas.
Essa é a verdade, diz Amor, e que ninguém duvide.
Ó Santa Igreja que estais abaixo desta Santa Igreja, agora dizei, diz Amor, que quereis
dizer sobre essas Almas, que são assim recomendadas e louvadas para além de vós,
vós que fazeis tudo de acordo com os conselhos da Razão?
Santa Igreja: – Queremos dizer, diz Santa Igreja, que tais Almas estão numa vida
acima de nós, pois Amor nelas permanece e a Razão permanece em nós; mas isso não
é contra nós, diz Santa Igreja a Pequena, ao contrário, pois a recomendamos e a
louvamos por meio do sentido oculto de nossas Escrituras. (PORETE, 2008, p. 91-92)
136

Dessa maneira, a Santa Igreja faz parte da construção da Dama Razão através da
linguagem alegórica com fins políticos, sobretudo por posicioná-la como um elemento à parte
dos sete estágios que a alma percorre. Neste sentido, a Dama Razão alegoriza as “bestas e
asnos”, os mercadores e clérigos. Portanto, Dama Amor argumenta: “– Ah, Razão, sempre tereis
a visão de um só olho, vós e todos os que são nutridos por vossa doutrina. Pois aquele que vê
as coisas diante de seus olhos e não as compreende, tem a visão de um só olho, e assim acontece
convosco” (PORETE, 2008, p. 92).

Por fim, tomando posse do poder das palavras do Evangelho, Marguerite utiliza a Dama
Razão como um meio principal para defender seu ponto de vista através de uma alegoria que
remete à posição contrária de sua argumentação. É desta maneira que a alegoria da Razão parte
para o plano da retórica e participa da narrativa como um articulador, realizando repetições em
torno das questões que Porete deseja esclarecer aos seus ouvintes e, simultaneamente, formando
a imagem antagonista de uma Santa Igreja menor hierarquia.
137

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa teve como principal tese o uso das alegorias na construção de um discurso
subversivo. Buscou-se, para tal, argumentar em torno dos aspectos históricos referentes à Idade
Média, sobretudo em relação às mulheres, e realizar um estudo em torno de uma bibliografia a
respeito das alegorias nesse mesmo período. Assim, a análise realizada teve como principais
focos as três personagens principais – Alma, Dama Amor e Dama Razão – bem como as formas
com as quais Marguerite Porete organizou sua obra através das representações dessas figuras
alegóricas.

O Espelho das Almas Simples é uma obra que contraria as tradições ligadas e
preservadas pelos indivíduos medievais e expõe questões em torno da organização social e das
problemáticas de um sistema ligado à Igreja. Apesar de ser um texto voltado à aniquilação da
alma e à chegada ao divino, é extremamente relacionado às experiências da própria vida comum
e do impacto dos dogmas e das tradições na vida cotidiana daqueles que buscam uma verdadeira
vida em Deus. Além disso, o texto é organizado de maneira a facilitar a compreensão dos
ouvintes quanto às ideias em torno do que seria o divino, baseando-se em antagonistas e
protagonistas, situando os antagonistas no lado das instituições religiosas.

Encontramos, por meio das alegorias, uma perspectiva retórica baseada na alegoria
hermenêutica, ou seja, alegoria dos teólogos. Porém, sendo esta associada ao uso dos clérigos
e daqueles que detêm o poder sobre as Escrituras, percebemos a subversão em torno da noção
de alegoria, posto que Marguerite utiliza-a também como expressão – ou seja, alegoria dos
poetas. Sendo uma maneira de falar e escrever, ao mesmo tempo que é um modo de entender e
decifrar o mundo, encontramos no Espelho a retórica argumentativa baseada nos elementos
metafóricos, constituindo, portanto, um processo intencional de autoria. Sendo assim, o uso das
alegorias revela e denuncia a visão que se tem do mundo e das coisas criadas por uma figura
divina, mas, simultaneamente, busca um ideal de experiência.

Inicialmente, foi observado que a Idade Média demanda uma ênfase maior nos aspectos
da religiosidade e da organização social, baseada em um imaginário que inclui a cavalaria, as
realezas, mas também os mercadores e a movimentação comercial. Distanciando-se do cenário
de conflitos, focamos, portanto, nos aspectos relacionados às produções literárias dos
indivíduos medievais, sobretudo as mulheres místicas. Assim, foi percebido que a sociedade
feudal, em momento de declínio, abriu possibilidades para as mulheres, apesar da intensa
perseguição.
138

As limitações impostas nesse contexto também não foram empecilhos suficientes para
a tomada de consciência das mulheres para a ocupação dos espaços políticos, que se deram por
meio da religiosidade e da literatura. Viu-se, neste sentido, que a opressão tem um papel
negativo, no sentido de permitir que as mulheres tenham voz diante de problemas sociais e
participação política, mas também se configurou como um palco para as estratégias discursivas.
Estas estavam ligadas ao uso do vernáculo, em lugar do Latim, que seria a “língua maior” e
ligada ao patriarcado.

Desta forma, esta pesquisa perpassou pela História das mulheres, a fim de demonstrar
que houve influência significativa delas tanto na literatura como na vida comum. Focamos, para
tal, nas beguinas, um grupo de mulheres religiosas que viviam da vita apostolica e que foi
responsável pela formação de escritoras como Marguerite Porete e Hadewijch d’Anvers.
Ambas tinham, em seus escritos, a essência da vita apostolica e da vida em Deus através da
experiência. No caso de Porete, observamos que, ao utilizar as alegorias (sendo muitas delas
comuns à sociedade francófona na qual se encontrava) a favor de seu posicionamento, ela
subverte as formas esperadas da linguagem e da organização textual de sua obra, exibindo as
formas alegóricas ligadas ao antagonismo e representantes do sistema institucional da Igreja, o
protagonismo relacionado a uma alma que se mostra apta a seguir os conselhos da Dama Amor
e que se destaca por isso, e a autoria atribuída à alegoria da Dama Amor, demonstrando
autoridade e propriedade na sua argumentação.

O Espelho demonstra, por fim, o alcance das alegorias na construção das


argumentações. Ao posicionar seus pontos principais de forma repetitiva e trazer à tona imagens
do cotidiano da sociedade medieval francesa, Porete aproxima seus ensinamentos, que são
repassados pela Dama Amor, dos seus ouvintes, a quem se dirige na maior parte da obra. Apesar
de ser um texto que trata sobre o caminho da Alma para unir-se a Deus e as adversidades
encontradas no caminho, frutos da ignorância da Dama Razão, podemos afirmar que as
alegorias foram utilizadas também como forma de induzir o leitor/ouvinte a uma reestruturação
social. Isto é feito à medida que são colocadas, na obra, problemas relacionados ao comércio, à
religião institucionalizada, dentre outros. É de se destacar, ademais, a forte influência do amor
cortês, que faz parte do imaginário medieval, para levar os ouvintes à compreensão plena de
sua mensagem.

Concluímos que O Espelho das Almas Simples é uma obra de importância essencial para
os estudos medievais e feministas, considerando que sua recepção se deu de forma
extremamente negativa. É preciso ressaltar, nesta direção, que os meios legais dados pela
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Inquisição para considerar e julgar a obra como herética (e sua autora como herege relapsa),
levando à morte da escritora, perpassam fortemente pela História das mulheres. O sentido de
heresia foi compreendido, assim, como algo que não está de acordo com o que se entende por
Verdade, porém, existiria tal verdade? Tomando a realidade da Baixa Idade Média como uma
realidade teocrática e fundamentada na experiência religiosa, afirmamos que as consequências
da obra de Porete foram um grito contra a voz reverberante das mulheres por reivindicações de
mudanças políticas. Levando em consideração a formação de uma consciência feminista,
observamos que as obras das mulheres medievais, nunca completamente aceitas (inclusive a
própria Hildegarda, que possuía uma posição social bastante privilegiada, foi canonizada
apenas séculos mais tarde) pelo sistema social vigente, têm seu peso na reconstrução de uma
história feminina, pois guardam resquícios de desejos de mudança e de críticas e insatisfações
a um sistema patriarcal.

Sendo assim, ao observamos que todo sistema até então conhecido (à exceção dos
grupos sociais anteriores à Antiguidade e grupos menores de regiões não ocidentais) fora
governado por homens, nota-se o dever que existe, dentro dos estudos literários, em torno da
redescoberta de obras de autoria feminina. O uso da língua vernácula é um ponto a ser
destacado, por exemplo, dado que argumentamos que o uso do latim também pode ser tomado
como uma dominação masculina em torno da religião. Indo além, as consequências do uso da
linguagem e da língua deram-se em escritoras de outros tempos, que também tiveram
consequências trágicas, a exemplo de Olympe de Gouges, que morreu guilhotinada por
propagas suas ideias e escritos. Portanto, esta pesquisa é a valorização da voz reverberada por
uma das mulheres que atribuiu a si própria o poder da palavra e, mesmo com três processos
seguidos, defendeu seu posicionamento até sua morte. É, desta maneira, mais uma mulher
dentre todas as gerações que também usam a linguagem em favor de reestruturações. Se há
opressão, também sempre haverá luta, sendo este fato constantemente relacionado à nossa
realidade atual, a exemplo de Marielle Franco e outras mulheres que incomodaram e tiveram
suas consequências impostas pelo patriarcado e pelo domínio político e econômico. Assim, que
estas vozes continuem ressoando em nossos tempos e nos que virão.
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