YasminDeAndradeAlves Dissert
YasminDeAndradeAlves Dissert
YasminDeAndradeAlves Dissert
JOÃO PESSOA
2022
YASMIN DE ANDRADE ALVES
JOÃO PESSOA
2022
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________
Profª. Drª. Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne – UFPB
Orientadora (Presidente da Banca)
______________________________________________
Profª. Drª. Maria Graciele de Lima – UFPB
Examinadora interna
______________________________________________
Profª. Drª. Maria Simone Marinho Nogueira – UEPB
Examinadora externa
AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente, às diversas forças que regem este universo do qual faço parte,
e que ainda são um mistério para minha compreensão, mesmo ainda as chamando de Deus.
Ironicamente, visto que sempre gostei de estudar a religiosidade, não me considero uma pessoa
religiosa, nunca fui. Porém, perante o caos, a minha esperança e minha crença de que o acaso
não existe me fizeram seguir em frente e pensar que tudo passa. Agradeço imensamente ao
fluxo da vida e tudo o que ela nos proporciona, mesmo reconhecendo que muitas das batalhas
que enfrentamos são provocadas por nós mesmos.
Agradeço à minha família, que é, ao mesmo tempo, meu porto seguro e minha grande
provação. Conviver em quarentena por inúmeros meses foi um grande desafio, mas foi uma
experiência que me fez descobrir que a família é, independente de tudo – e aqui considero
qualquer configuração familiar – a maior prioridade. Agradeço aos meus pais, Emmanuel e
Joelma, e ao meu irmão, Ismael. Cada um de vocês tem, individualmente, características que
me inspiram e sou grata por isso. Com certeza esta pesquisa não teria sido desenvolvida se não
fosse pelo suporte e pelos anos de investimento material e emocional.
Agradeço, em especial, à minha mãe, pois ela, além de compartilhar comigo a
experiência de ser mulher numa sociedade patriarcal, é a minha maior inspiração. A cada dia
em que pesquisei sobre o protagonismo das mulheres e como nós poderíamos subverter o que
acreditamos ser comum, minha mãe me mostrava que era possível, na prática, continuar
tomando as rédeas e assumir nossa independência. Ela me motiva a ser uma pessoa melhor e
cada vez mais interessada na minha própria autonomia. Ela me ensina, todos os dias, que eu
não nasci para depender financeira e materialmente de ninguém, muito menos quando se trata
de um cônjuge. Obrigada por ser o meu maior exemplo de mulher!
Às minhas amigas, Sofia e Suelen, muito obrigada por toda a presença e apoio.
Passamos por períodos complicados durante este desgoverno e a pandemia, mas os momentos
e as conversas com vocês tornaram tudo mais leve. De dicas de livros às opiniões de parágrafos
da dissertação, vocês melhoraram cada segundo do meu processo de produção científica. Esta
pesquisa tem um pouco de cada uma. Espero que tenhamos mais e mais anos de amizade. Amo
vocês!
A Janyne e Bianca, grandes amigas dos tempos da adolescência, obrigada pelo apoio.
Vocês são sensacionais e cada momento que tivemos durante esses dois anos de mestrado foi
imprescindível para que eu visse que ainda era possível ter um pouco de vida normal!
Acreditem, esta pesquisa não teria sido concluída sem as noites de vinho, as surpresas de
aniversário, as comemorações em torno do mais novo membro do grupo, Joaquim, e toda a
compreensão envolvida nesse grupo.
Às amizades que fiz durante o mestrado, em especial Malu, Naíla, Soyama e Israela.
Obrigada pelos momentos de alegria. Achava que não seria capaz de me aproximar de ninguém
na vida virtual, mas vocês me provaram o contrário. Incluo, além disso, Zarqueu, que se tornou
um grande amigo e inspiração para mim, principalmente por me motivar a sair da zona de
conforto e encarar as responsabilidades, nem que precise tomar uma garrafa de vinho para tal.
Agradeço também à minha outra amiga Malu, da época do colégio, por ter se reaproximado, e
a Elayra, que está sempre presente, mesmo que não seja todos os dias.
Meus agradecimentos, ademais, ao CNPq e à CAPES, que são responsáveis por minha
trajetória enquanto bolsista ao longo da pós-graduação e integrante de grupos de pesquisa.
Espero que em pouco tempo tenhamos mais oportunidades e mais financiamento para a tão
necessária pesquisa científica. Os anos de 2020 e 2021 foram cruciais para demonstrar a
importância de investir em ciências, então me considero no dever de agradecer pelo
investimento.
Por fim, deixo meus agradecimentos especiais à minha orientadora, Luciana, que me
acompanha desde 2017, quando ainda estava na graduação. Luciana, você é uma professora
incrível e me considero extremamente privilegiada por ser sua orientanda. Além de ser uma
pesquisadora brilhante, és uma pessoa compreensiva, em quem deposito bastante confiança
para compartilhar minhas ideias, dúvidas e os problemas que surgem durante o processo de
pesquisa. Acredito que todo professor tem uma parcela de influência sobre a produção de seu
orientando, então é com muita gratidão que digo que esta pesquisa não teria sido feita sem o
apoio de uma orientadora como você. Espero que próximos orientandos venham e
compartilhem deste mesmo sentimento. Obrigada por estar comigo desde a graduação e por ser
essa mulher inspiradora!
Aos demais, toda minha gratidão. Espero continuar com tantas pessoas incríveis ao meu
redor, pois essas, sim, fazem a diferença positiva na vida.
"Eu defendo, sem equívoco, que existem escritas
marcadas; que a escrita foi, até agora, e de maneira
bem mais extensa, repressiva, mais do que supomos
ou confessamos [...], lugar no qual a mulher nunca
teve sua fala, sendo isso o mais grave e
imperdoável, já que é justamente a escrita a próprio
possibilidade de mudança, o espaço do qual pode se
lançar um pensamento subversivo, o movimento
precursor de uma transformação das estruturas
sociais e culturais”.
Hélène Cixous
RESUMO
As obras de autoria feminina produzidas no contexto da Baixa Idade Média exercem papéis
consideráveis na formação de uma consciência feminista e de reivindicações em torno da
reestruturação social. Considerando a propagação da mística feminina neste período, este
trabalho tem como objeto de estudo a obra O Espelho das Almas Simples e Aniquiladas e que
permanecem somente na vontade e no desejo de Amor, de Marguerite Porete (1290). Sendo a
obra (e sua autora) julgada por heresia pela Inquisição (1310), intenciona-se analisá-la, através
do método de pesquisa bibliográfico, em torno da tese de que a construção de seu discurso
subversivo em favor da remodelação da experiência espiritual deu-se por meio do uso
estratégico das alegorias em um contexto de opressão, usufruindo, do potencial político da
linguagem. Para tal, parte-se da ideia de que a subversão feminina dá-se em três planos: a)
através do contexto; b) do discurso; e c) da palavra escrita. Buscando desenvolver acerca do
protagonismo feminino medieval e da autoria e de revelar a importância do resgate de obras de
autoria feminina para a (re)construção de uma História das mulheres, leva-se em consideração
os movimentos mendicantes e a propagação das beguinas, bem como a organização social
francófona medieval. Neste sentido, a análise é desenvolvida com base nas três personagens
principais da obra, representadas por alegorias femininas: Alma, Dama Amor e Dama Razão.
Sendo assim, a pesquisa é fundamentada nos estudos acerca das alegorias e estudos feministas,
sobretudo os propostos por Hansen (2006), Tambling (2010), Ricoeur (2015), Fletcher (1970),
Newman (2005), Chance (2007), Rovere (2019) e Funck (2016), e nos estudos históricos
propostos por Le Goff e Schmitt (2017), Pernoud (1996), Bloch (2016), Power (1979), Simons
(2001), Lerner (1993), McGinn (2017), Dalarun (1990), Newman (1995), Delumeau (1978),
Verdeyen (1986), Kocher (2008), Deane (2011), dentre outros.
The works of female authorship produced in the context of the Low Middle Ages play
considerable roles in the formation of a feminist consciousness and demands around social
restructuring. Considering the propagation of feminine mysticism in this period, this work has
as its object of study the work The Mirror of Simple and Annihilated Souls, by Marguerite
Porete (1290). Since the work (and its author) was judged for heresy by the Inquisition (1310),
it is intended to analyze it, through the method of bibliographic research, around the thesis that
the construction of its subversive discourse in favor of the remodeling of the spiritual experience
it took place through the strategic use of allegories in a context of oppression, taking advantage
of the political potential of language. To this end, it starts from the idea that female subversion
takes place on three levels: a) through the context; b) the speech; and c) the written word.
Seeking to develop about the medieval female protagonism and authorship and to reveal the
importance of the rescue of works of female authorship for the (re)construction of a History of
women, it takes into account the mendicant movements and the propagation of the beguines, as
well as medieval francophone social organization. In this sense, the analysis is developed based
on the three main characters of the work, represented by female allegories: Soul, Love and
Reason. Therefore, the research is based on studies about allegories and feminist studies,
especially those proposed by Hansen (2006), Tambling (2010), Ricoeur (2015), Fletcher
(1970), Newman (2005), Chance (2007), Rovere (2019) and Funck (2016), and in the historical
studies proposed by Le Goff and Schmitt (2017), Pernoud (1996), Bloch (2016), Power (1979),
Simons (2001), Lerner (1993), McGinn (2017), Dalarun (1990), Newman (1995), Delumeau
(1978), Verdeyen (1986), Kocher (2008), Deane (2011), among others.
INTRODUÇÃO...................................................................................................................p. 12
3.1 O Espelho das Almas Simples: a construção do discurso poretiano através das
alegorias........................................................................................................................p. 113
3.1.1 Figuras alegóricas: Alma, Dama Amor e Dama Razão............................................p. 122
3.1.1.1 Alma........................................................................................................................p. 122
3.1.1.2 Dama Amor.............................................................................................................p. 126
3.1.1.3 Dama Razão.............................................................................................................p. 132
REFERÊNCIAS................................................................................................................p. 140
12
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como corpus a obra O Espelho das Almas simples e aniquiladas, da
escritora Marguerite Porete, situada no contexto da Baixa Idade Média. A obra é considerada
um tratado místico e tem como temática o processo de aniquilamento da Alma, personagem
principal, para unir-se ao divino, através de sete estágios de aniquilação. Tendo como categoria
analítica as alegorias, a pesquisa é pautada nos enfoques referentes à autoria feminina como
forma de contestação de espaços e na tese de que as alegorias são utilizadas na obra de
Marguerite Porete como mecanismos para a construção de um discurso que subverte sistemas,
autoridades e formas textuais estabelecidas.
Considerando esses aspectos, esta pesquisa também teve como objetivo reconstruir a
concepção, através da análise de uma obra literária medieval de autoria feminina, a respeito da
escritura feminina medieval e de seu impacto na literatura mística, voltando-se para as formas
de expressão da religiosidade provenientes das mulheres que explanavam suas experiências
dentro de um contexto de silenciamento e opressão. Assim, ao longo do mestrado acadêmico,
foram realizadas pesquisas bibliográficas acerca desses escritos no contexto da Baixa Idade
Média e desenvolvidos estudos acerca da temática, sobretudo por meio de publicações e
participações em eventos acadêmicos.
prevalecer. Percebe-se, portanto, que esse questionamento é feito desde muito pelas místicas,
revelando um protagonismo feminino que vai além dos mitos que circundam as mulheres.
A pesquisa está dividida em três capítulos, sendo o primeiro intitulado “A Idade das
Mulheres: protagonismo feminino e autoria no contexto medieval”. Este capítulo, que tem por
objetivo principal contextualizar o corpus, está direcionado às mulheres medievais e à
(re)construção do protagonismo feminino na Idade Média, explanando acerca do contexto
medieval e de como elas ocuparam determinadas funções. Buscando adentrar mais nas questões
históricas referentes ao medievo, tais como a feudalidade e as formas estratégicas pelas quais
as mulheres conseguiram se expressar, a primeira parte do capítulo tratará a respeito das
relações sociais e econômicas na Baixa Idade Média, recorte temporal feito em razão da época
na qual O Espelho foi escrito e publicado.
Ainda neste primeiro capítulo, teremos como segundo ponto principal a autoria feminina
e a subversão, a fim de desvendar o texto de Marguerite Porete e a história de sua autora,
condenada como herege relapsa após a insistência em divulgar a sua obra. Para desenvolver a
relação entre a participação feminina nos espaços de poder e a produção literária do período,
iniciaremos com informações acerca das representações femininas na literatura medieval
considerando a religiosidade como um caminho possível para a subversão feminina. A respeito
deste aspecto, adentraremos nas perspectivas possíveis para enxergar e identificar a subversão
na Idade Média, sobretudo nos textos literários. O exemplo principal de subversão que será
discutido é O Espelho das Almas Simples, que será embasado nos estudos sobre heresia, além
de ter seus pontos principais desenvolvidos ao longo do capítulo, juntamente à história de sua
autora. Sendo assim, nesta primeira parte da pesquisa, embasaremos nosso estudo,
14
principalmente, em Le Goff (2013), Le Goff e Schmitt (2017), Pernoud (1996), Bloch (2016),
Lamy (2015), Power (1979), Simons (2001), McGinn (2017), Lerner (1993), Bäuml (1980),
Dalarun (1990), Newman (1995), Beauvoir (2016), Delumeau (1978; 1989), Bolton (1983),
Opitz (1990), Bancel (2016), Spina (2007), Garí e Cirlot (2008), Field (2016), Verdeyen (1986),
Kocher (2008), Deane (2011), dentre outros.
Ricoeur (2015), Caetano (2007), Costa e Zdebskyi (2017), Eagleton (2019), Deplagne (2020),
Fletcher (1970), Franco Jr. (2008), Newman (2005), Chance (2007), Rovere (2019), Funck
(2016), e demais estudiosos.
Por fim, o terceiro capítulo, de título “As alegorias como mecanismos de subversão no
Espelho das Almas Simples”, tem como objetivo principal a análise da obra de Marguerite
Porete a partir da tese inicial acerca dos usos das alegorias. Esta análise será dividida partindo
das três personagens principais que compõem a narrativa, sendo elas a Alma, a Dama Amor e
a Dama Razão. Por serem figuras alegóricas, consideraremos que elas são ramificadas em
outras personificações, que correspondem às devidas ideias intencionadas pela autora.
Tem-se, desta maneira, um estudo sistematizado sobre a Alma e de que forma o livro é
organizado para dar abertura às coisas e seres representados por esta figura alegórica,
posicionando-a, por vezes, em situações nas quais a hierarquia social tão criticada por Porete
encontra-se no próprio processo de aniquilamento que leva a Alma a Deus. Por conseguinte,
partiremos para a análise da Dama Amor, que representa o amor divino e, em alguns momentos,
o próprio Deus. Neste ponto, buscaremos sistematizar as personificações relativas à Dama
Amor, a fim de organizar a forma com a qual Porete seleciona e atribui sentidos a elas, bem
como constrói a Dama Amor e quais as características escolhidas para que esta se torne a
personagem responsável pela escrita do livro e pelo andamento intencional da narrativa.
Sendo assim, a pesquisa tem sua finalização na análise da obra a partir da Dama Razão,
considerada antagonista na narrativa por ter sua identidade atrelada à Igreja (como instituição).
A Dama Razão é de suma importância na compreensão do discurso poretiano, pois é através
dela que o leitor é levado às repetições dos conceitos e ao desenvolvimento da ideia de
aniquilação. Ao contrário do que se espera, defenderemos que não é a Alma ou a Dama Amor
que tem papel fundamental para esclarecer a ideia de que os indivíduos devem seguir Santa
Igreja, a grande (Deus) ao invés da Santa Igreja, a pequena (igreja dos homens), mas, sim, a
Dama Razão, com toda a sua ignorância e dificuldade para apreender informações passadas
pela Dama Amor. É, portanto, essa Dama antagonista que, construída de forma a não conseguir
deter conhecimento suficiente, auxilia na subversão do discurso. Esta pesquisa é finalizada,
então, com a relação entre a antagonista e a audiência, autoria e a metalinguagem, com a
finalidade de autorizar um discurso, utilizando principalmente, além dos estudos vistos até
então, Kocher (2008), Lerner (1993) e Newman (1953).
16
CAPÍTULO 1
Porém, nesse ponto, é preciso ressaltar que não exclusivamente de trevas foi feita a
temida Idade Média. Nesta pesquisa, consideraremos não apenas a marca temporal que abrange
aproximadamente mil anos de produções intelectuais (do século V ao século XV)1, sobretudo
na literatura mística, como também os avanços na tomada de consciência das mulheres para
ocupação de espaços, sejam estes políticos, religiosos, ou literários.
1 Há controvérsias em relação à extensão da Idade Média. Para alguns pesquisadores, como Jacques Le Goff
(2013), a Idade Média persistiu até o advento da Primeira Revolução Industrial, o que incluiria o Renascimento
como parte do período medieval.
17
Em seu segundo tópico, este capítulo tratará a respeito da autoria feminina e suas
relações com o que compreendemos como subversão, construindo um caminho para a obra
corpus desta pesquisa, O Espelho das almas simples e aniquiladas e que permanecem somente
na vontade e no desejo do amor (1290), da beguina mística Marguerite Porete. Neste sentido,
serão abordados: a) a religiosidade como caminho para a subversão feminina durante a Idade
Média, tendo como ênfase a mística feminina; b) as possíveis perspectivas acerca da subversão
das mulheres, pontuando características dessa subversão especificamente feminina e os motivos
pelos quais ela existiu e continua existindo nos dias atuais, sendo a Idade Média um contexto
de possibilidades e de opressão na Literatura, simultaneamente; c) a heresia poretiana através
do Espelho das almas simples, com ênfase na linguagem, na autoria e na subversão; d) a
construção da consciência feminista através dos escritos literários medievais e as consequências
de suas publicações; e, por fim, e) a autoria feminina e a não arbitrariedade dos elementos
retóricos utilizados no texto literário. Sendo assim, este capítulo busca contextualizar o corpus,
oferecendo um arcabouço histórico e crítico-literário em torno das ideias medievais
características acerca das mulheres, indo em direção a em que consistiam essas ideias, quais
suas raízes e o porquê do crescente antifeminismo medieval, que definia a mulher cada vez mais
por seu sexo.
componentes. Além disso, é pertinente adentrar na própria noção de Literatura, posto que,
contextualmente, tem-se um grande foco nos estudos religiosos e na cultura cavalheiresca,
sendo grande parte das produções literárias voltadas para a temática do divino e do amor cortês,
além de ser pertinente ao debate presente entre o que seria um texto literário medieval,
sobretudo para o domínio da História.
É válido ressaltar que esses estudos embasam grande parte do conhecimento difundido
pelo poder político do Cristianismo pela Europa Ocidental durante o período, e o mundo
intelectual canônico 2 passa a ser amplamente desenvolvido entre os teólogos e clérigos, que
são, em suma, homens letrados (ou seja, que dominam a língua latina) e que exercem funções
politicamente influentes, que possuem conhecimento do Trivium e do Quadrivium, dos textos
clássicos, e valorizam, sobretudo, a Retórica, aspecto crucial para o desenvolvimento desta
pesquisa. Homens são citados por homens, no sentido de que o texto bíblico, sagrado para os
cristãos e considerado como um meio de ditar normas através do modelo teocrático de
sociedade e poderio, é interpretado a partir das visões e experiências de nomes como São Tomás
de Aquino, Santo Agostinho, São Paulo, Aristóteles (resgatado da Antiguidade e principal
filósofo utilizado para validação dos escritos religiosos), dentre demais exemplos notórios na
história medieval e clássica.
A respeito dessa forma de pensar no mundo medieval, Jacques Le Goff, trazendo à tona
a importância dos arquivos e dos produtos físicos para a reconstrução do medievo pela
historiografia (ou seja, a validação da História através do escrito), afirma que “sim, esta Idade
Média é feita de matérias, de produtos que se permutam, de desordens físicas e mentais”, mas
que a mesma também é “o tempo que se põe a transbordar de testemunhos da erudição e da
imaginação, onde se pode ouvir o que Roland Barthes chamou de ‘o documento como voz’.
[...] Também a pedra vive e fala” (LE GOFF, 2013, p. 32-33).
2 É importante destacar que o conhecimento é proveniente de diversas camadas sociais. Neste sentido, nomeia-se
“mundo intelectual canônico” aquele produzido no âmbito eclesiástico. Por outro lado, o conhecimento produzido
pela comunidade considerada leiga e iletrada também se faz bastante vasto e essencial, como veremos no decorrer
desta pesquisa.
19
Esta época está contida totalmente no cristianismo, o cristianismo na paixão [...]. Eis
todo o mistério da Idade Média, o segredo de suas lágrimas inesgotáveis e do seu
gênio profundo. Lágrimas preciosas, elas correram em límpidas lendas, em
maravilhosos poemas, e, amontoando-se no céu, elas se cristalizaram em gigantescas
catedrais que queriam se elevar para o Senhor! Sentados na margem desse grande rio
poético da Idade Média, eu distingo duas fontes diferentes pela cor de suas águas [...]
Duas poesias, duas literaturas: uma cavalheiresca, guerreira, amorosa; esta cedo se
torna aristocrática; a outra religiosa e popular [...]. A primeira também é popular na
sua origem [...]. (MICHELET, 1852, apud LE GOFF, 2013, p. 39)
Nesse sentido, partindo desses dois tipos de literatura (cavalheiresca e religiosa), a Igreja
e a Corte seriam os loci de poder que estabeleceriam o diálogo entre Deus e o indivíduo e entre
o senhor e seu vassalo, respectivamente; na literatura religiosa, seria a expressão concreta do
pensamento religioso e a ambientação dos estudos voltados à Teologia. Porém, é indispensável
ressaltar que a forma de vivenciar a religiosidade não era unicamente relacionada à Igreja. Da
mesma forma, os mitos cavalheirescos e a linguagem do amor cortês também não eram
unicamente relacionados à Corte. Apesar dos poderes políticos e econômicos, tanto da Igreja
Católica como do feudo, não se pode negar a influência de culturas populares na formação
dessas religiosidades e, com certeza, na organização da sociedade feudal.
Neste sentido, mesmo com a existência de uma classe econômica soberana, a dos
senhores feudais, que têm o domínio das terras e da mão de obra, ainda existe, na Baixa Idade
Média, um notável poder superior eclesiástico. Desta forma, para fins de estruturação, tem-se
como foco o contexto medieval francês, pois a França configura-se como o único país ocidental
que tem prevalecida a memória medieval nos planos cultural, político e religioso (LE GOFF;
SCHMITT, 2017, p. 599), além de ser cenário principal de difusão da obra literária que é objeto
de estudo desta pesquisa.
20
Inicialmente, muito se discute acerca do que seria a Idade Média. Por sua nomenclatura
de cunho desvalorizado, seria um “período intermediário” da História, sendo assim intitulado a
partir da vontade dos humanistas italianos do século XIV de retornar a um estado de “pureza”
do classicismo, no qual se prevalecia a autenticidade da língua e modelos reguladores do fazer
poético. A Idade Média, assim chamada por esses homens do conhecido Renascimento, seria
um período de muitos séculos de obscurantismo, de decadência intelectual, cultural e artística.
Como bem afirmam Le Goff e Schmitt (2017, p. 600), nesta concepção, o medievo é
“como uma interminável noite que os raios de sol do século XVI enfim dissiparam”. Sabendo
disso, é preciso romper com esses paradigmas impostos para uma real análise sobre o que as
produções escritas e literárias têm a nos esclarecer acerca da sociedade medieval e sobre a
influência de sua organização nos séculos posteriores, pois, assim como um discurso se
perpetua a partir de seu precedente, a sociedade também constrói seus alicerces por meio de
estruturas que são, muitas vezes, repetidas ou reinventadas. Desta forma, a Idade Média não é,
definitivamente, um período de obscurantismo.
Apesar de suas próprias limitações, que existem em todas as épocas, o período fez-se
palco de diversos avanços na literatura, na filosofia, na história, na arte, na medicina, dentre
outras áreas, sendo este fenômeno possível apenas e unicamente pela forma de pensar dos
indivíduos e pelas suas experiências, que incluem, naturalmente, as religiosas, políticas,
econômicas e sociais. Podemos afirmar que muitos desses avanços foram de grande
importância, sobretudo no que tange à emancipação feminina.
conquistaram diversos seguidores, sobretudo cistercienses. Após a sua morte, seus seguidores
afirmaram que ela seria o Espírito Santo encarnado no corpo de uma mulher, “que iria reformar
a igreja e salvar judeus e marginalizados” (TELLES, 2021). Seguindo este pensamento,
Maifreda de Pirovano, papisa dessa igreja e responsável por realizar celebrações, foi presa pela
Inquisição, junto a outros seguidores, resultando na queima de todos eles na fogueira.
O período medieval europeu ocidental tem como sustentação o feudo. Toda a sociedade
e sua organização giram em torno do sistema feudal e do poder que este propicia. O feudo é a
base não apenas da organização social desse medievo, mas também do início dos movimentos
de urbanização e da ascensão das diferentes religiosidades. De forma ampla, a noção de Europa
feudal nasce num contexto de representação dualista das relações pessoais, ou seja, um sistema
que cria dois quadros da sociedade medieval: de um lado, a ecclesia, dispositivo de toda difusão
ideológica predominante; de outro, o dominium, relação de “simultaneidade e unidade de
dominação sobre os homens e suas terras” (LE GOFF; SCHMITT, 2017, p. 499). Estes são
22
Como afirma Pernoud (1996, p. 13), por muito tempo acreditou-se na divisão social em
três ordens: clero, nobreza e terceiro estado, cada uma com suas próprias atribuições e separadas
umas das outras. Porém, na realidade histórica, e da mesma forma que observamos nos
documentos escritos, esta é uma hierarquia que busca explicar unicamente a distribuição das
forças de poder. Diferentemente do que percebemos nesta divisão, os meios comportam pessoas
de várias classes distintas, bastante misturadas entre si na vida cotidiana 3. A exemplo disto, “a
maior parte dos bispos são igualmente senhores; ora muitos deles saem do povo miúdo; um
burguês que compra uma terra nobre torna-se, em certas regiões, ele próprio nobre”
(PERNOUD, 1996, p. 13). Portanto, a hierarquização sistemática apresenta-se, na realidade,
não completamente verossímil ao comunitário, posto que há uma maior flexibilização a
depender da região.
3 Quanto à vida cotidiana medieval, Pernoud (1996, p. 161) destaca que há uma grande mudança de
comportamento ao longo dos primeiros séculos da Idade Média. Inicialmente, tem-se uma vida concentrada no
domínio do regime de autarquia feudal, em que cada corte busca sua autossuficiência. Existia, desta forma, uma
grande necessidade de defesa e de codependência entre as aldeias e o regime senhorial. Porém, a partir do século
XI, há uma tendência maior a concentrar a vida cotidiana nas ruas: “as novidades do dia, as decisões de polícia ou
de justiça, os levantamentos de impostos, os leilões ao ar livre, na praça pública, e também, mais correntemente,
as mercadorias para venda; a publicidade, em vez de se expor nas paredes em cartazes coloridos, é ‘falada’, como
na rádio dos nossos dias; muitas vezes, as autoridades locais veem-se mesmo obrigadas a reprimir os abusos e a
impedir os lojistas de ‘darem vozes’ de modo exagerado” (PERNOUD, 1996, p. 163). Percebe-se, então, o
crescimento da influência da oralidade e da comunicação do dia a dia nos ambientes públicos.
23
Por outro lado, os laços feudais não bastam nos laços sanguíneos. A sociedade de
parentelas e as relações de dependência pessoal que caracterizavam esse modelo eram, muitas
vezes, base para a relação estabelecida entre um indivíduo e seu chefe, ou seja, a vassalagem,
que tem suas raízes nos valores morais e nos interesses econômicos. Entretanto, diferentemente
deste ponto de vista, principalmente acerca da hierarquização da sociedade medieval, Bloch
(2016, p. 396) afirma que esse regime, ao qual podemos associar o feudo, a linhagem, a
vassalagem e a religiosidade, compunha uma “sociedade mais desigual do que hierarquizada:
de chefes, mais do que de nobres; de servos, não de escravos”. A problemática desta afirmação
24
se dá na desconsideração do fator centralizador das ideias em torno das trocas não apenas do
âmbito econômico, mas também do âmbito do conhecimento. Sem hierarquia não há
centralização, e afirmar que a sociedade medieval não fora possuidora e geradora de
centralização de poder significa negar os nomes ainda não descobertos pela história e que
ocuparam espaços relevantes – este é o exemplo das mulheres.
É preciso mencionar, ainda, que Bloch (2016), quando trata acerca da temática, refere-
se primordialmente ao período em torno do século X, focando na história medieval a partir dos
dados históricos acerca da influência cavalheiresca. São pontos de extrema relevância para a
compreensão dos resquícios que essa sociedade carrega ao longo do tempo, inclusive no
momento em que o próprio modelo está em queda, como é o caso da Baixa Idade Média.
Portanto, os laços estabelecidos entre as pessoas, voltados quase exclusivamente às questões
econômicas e religiosas, são fundamentais no entendimento dessa mentalidade e de suas
manifestações por parte dos seus sujeitos.
o papel dos bispos e dos mosteiros é capital na formação da hierarquia feudal. Este
movimento que leva a arraia-miúda a procurar a protecção dos grandes proprietários,
a confiar-se a eles por actos de recomendação (commendatio) que vemos
multiplicarem-se desde o fim do Baixo Império, só podia funcionar a favor dos bens
25
Ainda segundo Pernoud (1996, p. 82), Carlos Magno tem papel importante na
compreensão dos interesses que essa hierarquia institucional solidamente organizada
apresentava, sobretudo em relação ao Império, no início da Idade Média. Aceitando a
feudalidade, achou mais útil usufruir do poder dos senhores do que combatê-lo, “favorecendo
a exaltação da cristandade”. Apoiado em bases espirituais no estabelecimento de uma ordem,
podemos afirmar que a natureza de seu poder propagou-se e fortificou a formação da
mentalidade religiosa medieval. As razões também são, entretanto, econômicas. Desta maneira,
e indo além, concorda-se que o poder predominante do clero “resulta simultaneamente de fados
econômicos e sociais e da mentalidade geral da época em que a necessidade de uma unidade
moral compensa a descentralização” na primeira metade do período medieval (PERNOUD,
1996, p. 83).
seja, mulheres que compõem a formação de uma identidade espiritual, de um modo de vida
religioso, mas que também estão situadas num contexto que propicia a difusão de seus
pensamentos. Temos, então, mulheres como Hildegarda de Bingen (monja beneditina do século
XII), Elisabeth de Schönau (também beneditina), Herrade de Landsberg (1125-1195), dentre
outras.
4 “[...] les couvents et les monastères forment des univers spirituels constituant des foyers d’émergence de hautes
figures de la spiritualité féminine”.
5
É essencial reconsiderar a afirmação de Bynum (2015, p. 11) em relação ao ascetismo das mulheres medievais,
considerado pela autora como individualista e extravagante. Sabe-se que as mulheres medievais foram exemplos
notórios de estabelecimento de relações com o mundo externo, sobretudo por transgredirem uma ordem de
comportamentos.
27
Dessa maneira, Power (1979, p. 13) enfatiza que é necessário buscar quais as fontes e
em que consistiam os ideais medievais característicos em torno das mulheres. Neste ponto, a
autora destaca a questão da opinião que persiste ao longo dos séculos e que se materializa na
história, representando, muitas vezes, o ponto de vista de uma minoria que possuía voz e que
era integrante das classes mais influentes, ou seja, a Igreja e a aristocracia. Assim, podemos
concordar que
Apesar desse interesse voltado para a terra, é possível tomar como exemplo o caso de
regiões entre a França e a Alemanha, singularmente no período relativo ao século XII.
Consideradas regiões avançadas no quesito da urbanização, estima-se que nem o reinado
francês nem o império alemão tinham controle sobre as fronteiras de suas terras, o que
favoreceu um trânsito intenso entre os principiados e uma maior independência das principais
cidades, enfraquecendo os acordos feudais das grandes potências vizinhas (SIMONS, 2001, p.
01).
Essas principais cidades correspondem a áreas como Flandres, Brabant, Hainaut, Artois,
Namur, Liège, Cambrai e Luxemburgo, que foram, inclusive, palco para o surgimento de
diversos grupos religiosos, incluindo os formados por maioria de mulheres, tais como o das
beguinas. Dessa forma, é de grande importância reconhecer como esses fatores da
6 “[...] las ideas sobre la mujer se formaron, de una parte, por los clérigos – normalmente célibes – y, de otra, por
una pequeña casta que tenía medios económicos para poder considerar a sus mujeres como un objeto de adorno,
en tanto que las subordinaban estrictamente al primer objeto de su interés: la tierra”.
28
Quanto a essa região, concentrada no sul dos Países Baixos, ela se mostra fundamental
para entender o processo de urbanização no qual estavam inseridas boa parte dessas mulheres
religiosas, incluindo a escritora Marguerite Porete, a qual também teve – possivelmente –
participação ativa nos arredores de Flandres e Hainaut. Simons (2001), em seu estudo intitulado
City of Ladies: Beguine Communities in the Medieval Low Countries, 1200-1565, explicita que,
mesmo com tanta diversidade, proveniente da irregularidade do estabelecimento de fronteiras
e do trânsito comercial, essas regiões compartilhavam características importantes, as quais o
autor enumera: a) eram locais habitados por pessoas multilíngues, ou que possuíam
proximidade com as culturas românicas e germânica; b) foram dominados por cidades
poderosas e independentes; e c) sua maior parte da população era alfabetizada.
Esses três aspectos, segundo Simons (2001, p. 03), distinguem essa comunidade de
outras vizinhas, que eram majoritariamente rurais e monolíngues, além de criarem um ambiente
urbano propício para determinar seu tecido social, ajudando-nos a compreender melhor as
relações de gênero, trabalho e religião durante a Idade Média, o que inclui a própria relação
com a terra. Nesse caminho, e relacionando esses fatores com o feudalismo e as hierarquias
culturalmente instauradas na sociedade medieval, percebemos que as relações sociais passam
por intensa modificação a partir do século XIII. Deste período em diante, ou do final do século
XII, a comunidade europeia ocidental encontra-se, no geral, cada vez menos fragmentada, tanto
que alguns reinos poderosos, tais como os da França, Inglaterra e Sicília Normanda, passaram
a introduzir novas formas de administração, demarcando as origens do Estado moderno
(MCGINN, 2017, p. 17).
bancos mais do que a economia de escambo”7. No século XIII, o cristianismo viu a necessidade
de modificar suas estruturas, principalmente pelo fato de que era baseado no estilo de vida
religiosa do monaquismo beneditino, essencialmente ligado à vida rural e à estrutura feudal. A
estrutura feudal, em seu momento de declínio, não mais sustentava a necessidade social de
novas respostas e de reorganização, incluindo na vida religiosa.
Assim, reconhece-se o feudo, produto da feudalidade, a qual Bloch (2016, p. 394) afirma
ser um tipo social, como detentor de um papel importante nesse processo de urbanização, pois,
ao mesmo tempo em que diz respeito a um modo de divisão de trabalho e de propriedade,
também define normas de conduta e relações de gênero na comunidade pela qual é composto.
Mesmo com essa mudança de concepção, é preciso destacar que, “sendo a soberania de um
Estado bastante vasto concebida como a regra, qualquer atentado a esse princípio parecia
classificar-se como anormal” (BLOCH, 2016, p. 394).
7 A economia de escambo caracterizou o início da Idade Média e tinha como principal característica a troca entre
serviços e bens.
30
religiosidades. Nesse caso, a urbanização tem seus pontos positivos, posto que inclui uma
liberdade mais acentuada das ações e descentraliza, em certa medida, a religiosidade e o ensino.
Tomando um aspecto simples como exemplo, porém muitas vezes ignorado quando
tratamos da posse de terras e do domínio patriarcal, a respeito de que, segundo a lei feudal,
mulheres podiam ser proprietárias de terras, nota-se que o próprio desconhecimento desse
direito é uma forma de apagamento das experiências femininas. Conforme Power (1979, p. 23),
essa circunstância do matrimônio feudal, na prática,
levava implícita uma certa humilhação da mulher enquanto pessoa. Enquanto a Igreja
subordinava a mulher ao seu marido, o feudalismo a subordinava ao feudo. Todos os
matrimônios feudais de conveniência estavam governados de acordo com os
interesses da terra. (Tradução livre)8
Sendo as cidades mais avançadas em termos de urbanização, elas têm esse processo
iniciado no século XII, momento em que mercadores e grupos mais abastados “desafiaram a
Igreja, que desde o início da Idade Média controlou todas as instituições educacionais e
estabeleceu escolas seculares que ofereciam instrução elementar em leitura, escrita e aritmética”
(SIMONS, 2001, p. 06. Tradução livre)9. Vale ressaltar, inclusive, que o nível de instrução
nessas regiões era bastante alto, a ponto de existir a oferta do ensino de latim para estudantes
mais jovens (entre 8 e 16 anos).
Esses são dados necessários para compreender também como a formação das áreas
urbanas propiciou a emancipação das mulheres nessa região, considerando que, carregando
resquícios da feudalidade, as mulheres estavam associadas à terra e à posse, além dos destinos
religiosos dados pelo poder teocrático. Nas regiões supracitadas, podíamos encontrar um alto
8 “[...] llevaba implícita una cierta humillación de la mujer como persona. En tanto que la Iglesia subordinaba a la
mujer a su marido, el feudalismo la subordinaba a su feudo. Todos os matrimonios feudales de conveniencia
estaban dictaminados de acuerdo con los intereses de la tierra”.
9 “[...] challenged the Church, which since the early Middle Ages had controlled all educational institutions, and
established secular schools that offered elementar instruction in reading, writing, and arithmetic”.
31
nível de alfabetização, incluindo as mulheres de camadas sociais alta e média. Além disso,
relata-se que as escolas eram mistas, sem divisão por gênero (tal como nas grandes cidades) e
sem indícios de que o nível de ensino era diferente para meninos e para meninas. Apesar disto,
no nível superior, principalmente ao longo do século XV, as mulheres de famílias mais ricas
recebiam formação por ensino domiciliar ou através de um convento, ao passo que os homens
eram enviados para estudos mais aprofundados.
Portanto, ter uma função social no âmbito do pensamento e das ideias dizia respeito aos
talentos masculinos, imbuídos em liderança e autoridade. Na Idade Média, esse tema já é
questionado pelas escritoras apenas pelo fato delas publicarem suas obras 10. Assim, esse
incômodo quanto à falta de acesso à língua escrita e aos estudos de modo geral, impactou as
mulheres independentemente do meio em que circulavam ou em que período da Idade Média
elas se encontravam.
Tem-se o exemplo de Christine de Pizan, autora do livro A Cidade das Damas e pioneira
da querelle des femmes. Situada no contexto do século XIV, Christine defendeu a educação
para ambos os sexos e, considerando-a uma mulher culta e instruída, pode-se perceber em suas
obras, como veremos mais adiante, a grande capacidade de realização das mulheres ao terem
contato com o ensino – tal como qualquer indivíduo.
10 Marguerite Porete escreve, em sua obra O Espelho das Almas Simples (1290), ao tomar a posição de narradora
e autora do livro e expor a autorização que obteve por meio de homens da Igreja para publicar: “Eu, criatura criada
por aquele que cria, por cujo intermédio o Criador fez esse livro de si para aqueles que não conheço, nem desejo
conhecer, pois não devo desejar isso. É suficiente para mim se isso está no conhecimento secreto da sabedoria
divina e na esperança. Eu os saúdo por meio do amor da paz da caridade na altíssima Trindade, que os considerou
dignos de direção, declarando nele o testemunho de suas vidas pelo registro dos clérigos que leram este livro”
(PORETE, 2008, p. 229).
32
Gerda Lerner disserta a respeito da tomada de consciência por parte das mulheres a
partir da Idade Média e destaca a importância do debate iniciado por Christine de Pizan, que se
pautou em algumas questões principais:
[...] o debate conhecido como querelle des femmes, o qual Christine havia iniciado e
que se prolongou nos principais países da Europa e na Inglaterra por um período de
quatrocentos anos, centrou-se nas questões relativas à educação das mulheres: seriam
mulheres totalmente humanas? As mulheres seriam capazes de absorver educação,
exercitar a razão e controlar seus sentimentos? E se a resposta às duas primeiras
perguntas fosse positiva e as oportunidades educacionais para as mulheres fossem
equalizadas, qual seria o efeito sobre a vontade das mulheres de continuar seus
serviços sexuais e maternos para os homens e para as famílias? (LERNER, 1993, p.
195. Tradução livre)11
Além disso, e abrindo um grande parêntesis sobre a educação das mulheres, faz-se
necessário mencionar o posicionamento de Lerner (1993) quanto às divisões de tarefas sociais
entre os sexos masculino e feminino. Segundo a autora, a divisão de papéis por gênero e
fundamentada no patriarcado desde o princípio configura-se como produtora de desigualdades
nas taxas de realização, levando as mulheres e os homens a gostarem de atividades específicas
por serem educados para tais.
Ademais, essa desvantagem educacional sistemática das mulheres foi, para Lerner
(1993, p. 192), a causa raiz da percepção da inferioridade feminina. Justifica-se, portanto, a
busca pela equidade como principal caminho para emancipação feminina, principalmente
durante um período como a Idade Média, em que, tradicionalmente, mulheres não estariam
aptas a ocupar determinados espaços de poder, tais como o religioso. Desta maneira,
concordamos que o argumento principal em torno do direito à educação das mulheres nos
direciona a uma teoria de emancipação feminina e proporciona uma leitura diferenciada acerca
da influência da alfabetização em algumas regiões durante a Idade Média, podendo este fato ser
associado diretamente à produção literária de autoria feminina medieval e seu avanço.
Quase coincidentemente, nos séculos anteriores, quando debates como esse já estavam
timidamente surgindo nas obras de autoria feminina, tem-se uma gradativa mudança nos
métodos de educação. Um ponto importante a ser destacado é o surgimento da escolástica no
11 “[...] the debate known as the querelle des femmes, which Christine had initated and which continued in the
major countires of Europe and in England for a period of four hundred years, focused on questions pertaining to
women’s education: Were women fully human? Were women capable of absorting education, exercising reason
and controlling their feelings? And if the answer to the firsst two questions was positive and aducational
opportunities for women were equalized, what would be the effect on women’s willingness to continue their sexual
and maternal services to men and to families?”.
33
final do século XI e todo o século XII, que seria um método sistemático e mais científico dos
estudos em busca do entendimento da fé, estabelecendo-se, assim, uma contraposição entre a
teologia dos mosteiros e a teologia das escolas urbanas (sem desconsiderar a influência
simultânea entre elas).
Portando, nesse cenário de maior índice de alfabetização e de busca pelo acesso à escrita,
além da maior difusão das línguas vernáculas e dos intercâmbios culturais e econômicos
promovidos pela urbanização, as relações sociais na Idade Média e os papéis exercidos pelas
mulheres tornam-se cada vez mais interessantes de serem analisados. Simons (2001, p. 09)
observa significativamente que as mulheres representaram o maior número populacional nas
comunidades urbanas medievais e ressalta que esse fator não foi causado, como muitos
defendem, por uma maior mortalidade masculina (guerras, doenças ou violência pública), mas,
sim, por um maior índice de imigração.
O motivo principal da imigração para centros urbanos maiores teria sido a facilidade
para conseguir empregos, incluindo serviços domésticos. A maioria dessas mulheres faziam
essa mudança quando tinham entre doze e dezoito anos, ou seja, no período pré-nupcial ou
nupcial. Assim, a possibilidade de encontrar empregos nas cidades foi, conforme Simons (2001,
p. 09), “particularmente bom para as mulheres durante os séculos de expansão urbana nos Países
Baixos, ou seja, do século XI ao século XIII” (tradução livre)12, cenário que se modifica ao
longo dos séculos XIV e XV, que tendem a afetar mais economicamente as cidades urbanas e
passam a impor leis e decretos mais severos em relação ao estilo de vida das mulheres,
intensificando o patriarcalismo.
12 “The prospect of finding employment in cities must have looked particularly good for women during the
centuries of urban expansion in the Low Countries, that is, from the eleventh through thirteenth centuries”.
34
fontes da prática jurídica nos ensinam que, por mais necessário ou produtivo que seja,
a aparição pública de uma mulher muitas vezes indica uma desordem potencial.
Algumas áreas da cidade com forte senso militar ou político assumiram até uma
identidade exclusivamente masculina, como aconteceu com as praças onde se reuniam
as milícias da cidade e as confrarias de tiro, e talvez também as muralhas da cidade.
As mulheres abundavam naturalmente nas praças do mercado, tanto como varejistas
quanto como compradoras, mas elas nunca poderiam chamar esses espaços de seus.
Em 1360, o magistrado da cidade de Bruxelas proibiu a eleição anual de uma “rainha”
pelas mulheres do mercado e as festividades femininas que as acompanhavam,
aparentemente porque isso levou à agressão contra os homens em anos anteriores. Em
outros espaços públicos, o comportamento de uma mulher estava obviamente sujeito
a restrições muito maiores do que o de um homem. Nenhum aspecto da presença de
uma mulher atraiu a ira dos homens mais do que sua aparência externa, representada
por seu vestido e sua fala. (Tradução livre)13
Na literatura, essas tensões podem ser encontradas nos fabliaux de língua francesa, que
foram escritos diretamente para o público das cidades (Artois, Hainaut e Flanders) e satirizavam
a situação das mulheres na área administrativa e financeira durante o século XIII. Por não serem
objeto de pesquisa, não iremos trazer à tona exemplos de fabliaux, mas importa, ainda assim,
mencionar sua existência.
13 “Sources from legal practice teach us that however necessary or productive, a woman’s public appearance often
signaled potential disorder. Some areas within the city imbued with strong military or political meaning even
assumed and exclusively male identity, as did the squares where the town militia and shooting confraternities
would meet, and perhaps also the city walls. Women naturally abounded on Market squares, both as retailers and
buyers, but they could never call these spaces theirs. In 1360, the city magistrate of Brussels prohibited the anual
election of a ‘queen’ by the marketwomen and its accompanying female festivities, apparently because it led to
agression against males in the previous years. In other public spaces, a woman’s behavior was obviously subject
to much greater constraints than was a man’s. No aspecto f a woman’s presente drew the ire of men more than her
outward appearance, represented by her dress and her speech”.
14 Apesar das imposições e limitações do Cristianismo sobre as mulheres, é importante ressaltar que a conquista
de determinada independência nesse âmbito constitui-se também como um fator de emancipação feminina, posto
que a sociedade era fundamentada nas práticas religiosas.
35
vida dentro desse contexto propiciou a formação de mulheres escritoras dentro do panorama
medieval.
Economicamente, por exemplo, as beguinas, das quais falaremos mais adiante, tiveram
o trabalho têxtil como primordial para sua independência e desenvolvimento de suas
comunidades, além dos insumos provenientes de doações. Sendo assim, e tendo como base
todos esses aspectos relacionados à vida produtiva, econômica e social, que eram (e continuam
sendo) de grande importância para o status de determinado grupo e, consequentemente, para
uma maior participação política 15, é necessário reconhecer quais as perspectivas em torno das
mulheres e como elas eram, de fato, vistas e levadas em consideração durante a Idade Média, a
fim de demonstrar de que maneira a autoria feminina mostrou-se subversiva em relação aos
próprios sujeitos que a protagonizaram, ou seja, as mulheres. É, portanto, neste sentido que
seguiremos para o próximo tópico deste capítulo.
15 Segundo Howell (1986, p. 23), o papel de um indivíduo na produção econômica poderia significar muitas coisas
sobre um indivíduo, mas isto era bastante incerto. Poderia indicar sua situação econômica (riqueza), seu status
político (papel na política em geral), definir seus benefícios sociais, ou o tipo de treinamento que recebe para
exercer determinada tarefa. Ainda conforme a autora, essas associações não se mantiveram consistentes porque,
ao final da Idade Média, a produtividade de um trabalho e o valor econômico atribuível a ele estavam em rápida
mudança.
36
Dentro de uma tradição voltada para o homem e seu poder político, apesar de existir
uma certa quantidade de mulheres ativas e, como fora dito anteriormente, pioneiras de
movimentações urbanas e econômicas, as perspectivas cristãs foram definidoras de vários
processos relacionados às formações dos grupos religiosos femininos (e da formação de um
caráter transgressor para eles) e das representações femininas nas produções literárias (desde a
oralidade). Identifica-se, sob este aspecto, a presença constante do ideal de subordinação
feminina atrelado à voz passiva inerente à forma de viver e de ver o mundo. Indo além,
encontramos problemas de gênero que foram vivenciados por mulheres e, dentro do âmbito
clerical, ainda mais intensamente.
Ou seja, mesmo sabendo que esses fatores não são exclusivos do cristianismo, é preciso
tomá-los como passíveis de críticas e, até certo ponto, como norteadores do contexto de
construção do discurso feminino e de seu caráter subversivo. Entretanto, antes de adentrarmos
nas concepções cristãs em torno das mulheres, e seguindo para a Idade Média Ocidental, é
possível encontrar esse complexo de crenças e práticas dentro das estratégias femininas de
evitar o silenciamento.
16 “The complex of beliefs and practices surrounding female soubordination, though infinitely variable, seems to
constitute one of the few melancholy universals to be observed across the immense range of human cultures.
Patriarchy did not originate with either the Greeks or the Hebrews, much less with their Christian heirs, even if its
classical and biblical forms happen to be those best known to the inheritors of European civilization”.
37
Newman (1995) defende que essas estratégias usadas por mulheres religiosas, ao serem
revisitadas e revisadas pela História, configuram-se como soluções contra a subordinação e a
manipulação dos papéis de gênero, sendo realizadas de forma conscientemente subversiva e
constituindo uma gradual cultura “pré-feminista”. Ao buscar explanar acerca do ideal da Deusa,
a autora ainda destaca que existem dois modelos de mulheres na Idade Média, sendo eles a
femina virilis (virago) e a imitatio Christi (mulheres de Cristo). Diferentemente da divisão
dualista feita anteriormente e defendida por Dalarun (1990) (mulheres associadas ao pecado
versus mulheres associadas ao sagrado), Barbara Newman (1995) postula esses dois modelos,
que são teoricamente opostos, mas que, na prática, combinam entre si, posto que ambos
oferecem opções às mulheres quanto a seguir uma vida espiritual sem obstáculos impostos pela
Bíblia17.
Neste caminho, tem-se femina virilis como o modelo preferido pelos homens ao longo
da Idade Média e que carrega o ideal do Novo Testamento, ou seja, de que o batismo revoga
todas as barreiras de gênero, classe e raça, formando uma retórica igualitária (NEWMAN, 1995,
p. 03). O batismo, nessa perspectiva, seria um designador de status social, separando aqueles
que são devotos ao cristianismo daqueles que são pagãos, e, quanto às mulheres, definindo
quais direitos teriam. Por outro lado, a imitatio Christi, predominante no marco temporal da
Baixa Idade Média, diz respeito às práticas da vida espiritual sobre as quais as mulheres
poderiam definir o estilo e as preferências (é, além disso, um indício de alto status espiritual).
É este modelo que prevalece na atmosfera religiosa do período.
17 A autora cita o exemplo de Timóteo 2:12: “Não permito que nenhuma mulher ensine ou tenha autoridade sobre
os homens; ela deve permanecer calada”.
18 Vale ressaltar que um tema bastante estudado acerca de Eva e Maria gira em torno de que, segundo Isidoro de
Sevilha, autor das Etimologias que nortearam a visão dos clérigos medievais, Eva significa a desgraça, mas
38
Assim, uma mulher virgem poderia significar tanto alguém do sexo feminino que nunca
teve nenhum tipo de relação sexual (definição de Jerônimo), como também alguém que mantém
um relacionamento espiritual com Deus (definição de Agostinho). Apesar disso, a segunda
definição prevalece ao longo do final da Idade Média e suplanta gradualmente o aspecto físico.
Este ponto de vista permeia a literatura de formação, que leva ao leitor a representação de um
modelo feminino que, mesmo seguindo uma vida espiritual, continua sendo uma mulher, um
corpo desejável e mãe em potencial.
Além disso, carregada de alegorias, essa literatura traz a ideia de que a união com Cristo
– o casamento – é superior ao casamento terreno, no qual entram em questão a gravidez e o ato
sexual. Porém, ao mesmo tempo, algumas mulheres podiam enxergar certa vantagem no
casamento espiritual (com Cristo):
Dessa maneira, Maria é projetada na mulher, de forma que seu modelo passa a servir
como norteador das práticas culturais das mulheres e dos julgamentos em torno das próprias
pela sociedade. Paralelamente, sua inimiga, Eva, “a primeira mulher que surge sob a pena de
Godofredo de Vandoma por volta de 1095, inaugurando e resumindo todo o seu sexo”
(DALARUN, 1990, p. 34), exerce seu peso na visão medieval da mulher. Essa situação
desfavorável que põe a mulher enquanto Outro, um segundo sexo, é ressaltada por Beauvoir
(2016) no século XX, ao analisar a explícita contribuição da ideologia cristã na opressão da
mulher:
Numa religião em que a carne é maldita, a mulher se apresenta como a mais temível
tentação do demônio. Tertuliano escreve: “Mulher, és a porta do diabo. Persuadiste
aquele que o diabo não ousava atacar de frente. É por tua causa que o filho de Deus
teve de morrer; deverias andar sempre vestida de luto e de andrajos”. E santo
Ambrósio: “Adão foi induzido ao pecado por Eva e não Eva por Adão. É justo que a
mulher aceite como soberano aquele que ela conduziu ao pecado”. E são João
também a vita. Seguindo o mesmo ponto de vista, a partir do século IX Eva torna-se o anagrama de Ave, ou seja,
evocar Eva significa invocar Maria. (DALARUN, 1990, p. 39)
19 “As Peter Brown has observed of late antiquity, the virginal life offered women an escape from the social
control vested in marriage, procreation, and kindship networks, and in the high middle ages its advocates were
glad to highlight this appeal. Antifeminist satire and the panegyric of virginity express the same suspicion from
different points of view; the first assumes that social control is desirable but laments that is not effective, while the
second denies that it is even desirable”.
39
Crisóstomo: “Em meio a todos os animais selvagens não se encontra nenhum mais
nocivo do que a mulher”. (BEAUVOIR, 2016, p. 134)
De fato, é inquestionável a relação de servidão nas classes mais elevadas, assim como a
maior autonomia das mulheres quando precisam exercer um papel econômico e social.
Entretanto, considerando a ideologia predominante e o discurso antifeminista que se propaga
durante os séculos seguintes, sobretudo o XV, é possível afirmar que não foram os sistemas
governados por homens que emanciparam as mulheres, mas, sim, que foram as mulheres,
através de suas estratégias, que implodiram o próprio sistema, ponto de vista que vem sendo
defendido até aqui. Portanto, é notório que os caminhos não se configuraram como facilitadores,
porém, tornaram-se meios pelos quais as mulheres puderam construir sua própria tradição.
Dessa forma, na imagem da Virgem Maria, a mulher encontra seu refúgio de pecadora
e seu exemplo. Paralelamente, a imitatio Christi segue-se como um modelo que inspira as
mulheres místicas, cuja vida espiritual é fundamentada no amor do aniquilamento da alma e na
infinidade de Deus. De forma oposta (porém também complementar) em relação à femina
virilis, a imitatio Christi deseja Deus incondicionalmente, colocando este desejo como um
desafio que deve ser aceito, sob pena de passar pelo sofrimento e pela ausência do amado. Tal
como em Hadewijch d’Anvers20, o desejo permeia as afirmações direcionadas ao divino em sua
paradoxal atração por este: “[...] Senti uma tensão tão grande do meu espírito que não poderia
me conter fora, no meio das pessoas, se tivesse saído. E esse desejo interior era estar unido com
Deus em fruição” (D’ANVERS, 2000, p. 14).
Um grande número de mulheres expressou seus sentimentos e suas ideias sobre Deus
por meio desse tipo de experiência mais íntima e centrada no próprio ser, menos universal, e
muitas delas foram as beguinas. Esse modelo de mulheres em Cristo trouxe de forma mais
incisiva a ideia de ser um nada diante da perfeição divina, mas esta não foi a única ideologia
20 Beguina mística do século XIII que escreveu livros de visões, nas quais encontrava Deus.
40
que transgrediu na tradição cristã. Considerando o sofrimento como uma demanda de amor, a
condenação ao inferno, tal qual é usada para proferir o medo no regime eclesiástico, não seria
passível de crença por parte dessas mulheres. Assim como afirma Newman (1995, p. 12),
“embora evitando uma afirmação direta do universalismo, várias mulheres expressaram dúvidas
ou desconforto palpável com a ideia de que Deus condenaria qualquer pessoa ao fogo do
inferno”.
imagens atribuídas às mulheres por essa doutrina. Tendo como agente representador o homem,
a figura madaleniana, assim como a de Eva e a da Virgem Maria, não compõe a reabilitação da
mulher na sociedade medieval. Madalena é compreendida como a pecadora na cidade: seu
pecado é a carne, afinal, ela se prostitui. Sua alma, fraca e passiva, de sexo frágil, é aceita de
bom grado por Cristo, a figura masculina, que a promove a corredentora e é a quem faz sua
primeira aparição ressuscitado para anunciar a boa nova (DALARUN, 1990, p. 48-49). Nesse
caminho, a identidade feminina espiritual é formada, dentro das influências do cristianismo, de
forma bastante heterogênea, mas, ainda assim, compondo uma unidade. Isso significa dizer que,
mesmo as mulheres seguindo um ou outro modelo, elas sempre seriam alvo da mesma
perspectiva que as toma como agentes do Satã.
Esse medo é fundamental para compreender, também, por que os discursos tornam-se
subversivos e se eles são provenientes de um medo ou de uma reação contra uma maior atitude
por parte dos grupos de mulheres. No âmbito da religiosidade, podemos dizer que a contradição
do cristianismo em relação às mulheres e ao comportamento de Jesus Cristo com as suas
seguidoras é explícita, o que demonstra o peso político de uma religião na busca por uma
sociedade homogênea. Jesus, conforme os escritos bíblicos (e tomando-os apenas como registro
escrito), teria se cercado voluntariamente de mulheres e as associa à sua atividade de pregação,
como narra Lucas: “Os Doze [apóstolos] acompanhavam-no, bem como algumas mulheres que
42
haviam sido curadas de maus espíritos e doenças: Maria, apelidada de Madalena [...]” (Lc VIII,
1-4 apud DELUMEAU, 1978, p. 429. Tradução livre)21.
Sendo assim, as perspectivas cristãs ligadas à ecclesia que prevalecem na Idade Média
em torno das mulheres são, principalmente, as de Tomás de Aquino – “a mulher é um macho
deficiente” – e de Agostinho:
Todo ser humano, declara ele, possui uma alma espiritual assexuada e um corpo
sexuado. No indivíduo masculino, o corpo reflete a alma, o que não é o caso da
mulher. O homem é portanto plenamente imagem de Deus, mas não a mulher, que só
o é por sua alma e cujo corpo constitui um obstáculo permanente ao exercício de sua
razão. Inferior ao homem, a mulher deve então ser-lhe submissa. (DELUMEAU,
1989, p. 317)
Apesar dessa diabolização da mulher e das consequências disso para a própria História
das mulheres (como a escrita do Malleus Maleficarum, que deu início institucionalizado à caça
às bruxas), há a ideia de que o Amor Cortês do século XII trouxe determinada ascensão à figura
feminina por colocar a mulher num pedestal. De fato, o fine amour “concedia a iniciativa às
damas e constituía uma maneira de triunfo sobre uma misoginia quase universal, sem por isso
negar a sexualidade” (DELUMEAU, 1989, p. 319). Entretanto, é preciso situar essa tradição do
amor das cortes tanto na literatura e na lírica trovadoresca como na própria sociedade.
21 «Les Douze, écrit saint Luc, l'accompagnaient ainsi que quelques femmes qui avaient été guéries d'esprits
mauvais et de maladies : Marie, surnommée la Magdaléenne..., Jeanne, femme de Chouza, intendant d'Hérode,
Suzanne et plusieurs autres qui les assistaient de leurs biens» (Lc VIII, 1-4).
43
22 O papa Gregório VII governou a Igreja entre os anos de 1073 a 1085. Com sua reforma, buscou combater a
imoralidade do povo e reduziu o poder do imperador Henrique IV, que se opôs à reforma por romper com a
submissão do clero ao Império.
44
Pode-se afirmar, dessa maneira, que este foi um momento primordial para o surgimento
das novas iniciativas religiosas, posto que alguns religiosos perceberam-se contra a conduta
clerical, que estava cada vez mais centrada no poder econômico e mais distante da vida proposta
pelos evangelhos. Ordens monásticas foram formadas durante esse período, tais como os
agostinianos, as carmelitas, os dominicanos e os franciscanos, muito antes de encontrarem
apoio na corte do bispo ou qualquer tipo de autorização institucional.
Esses grupos iniciais tiveram como ponto central o desejo pela vita apostolica, baseada
na pobreza voluntária, assim como a primeira comunidade cristã de Jerusalém descrita nos Atos
dos Apóstolos. Esse estilo de vida compreendia a rejeição dos bens pessoais, das riquezas, a
fim de abrir o indivíduo para a vida de perfeição em Cristo, que, segundo a Bíblia, aconselha
que “se você quer ser perfeito, vá, venda os seus bens e dê o dinheiro aos pobres, e você terá
um tesouro no céu. Depois, venha e siga-me” (Mateus 19:21).
[Valdez], [...] tendo feito um voto ao Deus do céu de daí em diante e por toda a sua
vida jamais possuir nem ouro nem prata, nem preocupar-se com o amanhã, começou
a reunir associados nesse modo de vida. Eles seguiram seu exemplo em dar aos pobres
tudo o que tinham e se tornaram devotos da pobreza voluntária. Pouco a pouco, tanto
em público como em particular, começaram a pregar contra seus próprios pecados e
os dos outros. (WAKEFIELD; EVANS, 1969 apud MCGINN, 2017, p. 23)
Além desse notável exemplo, podemos destacar Francisco de Assis e Clara de Assis,
personagens históricas e religiosas que propagaram e vivenciaram esse estilo de vida e
espiritualidade.
Nessa direção, o problema principal da pregação consistia no fato de que era uma
atividade dos bispos e dos sacerdotes, considerados sucessores dos apóstolos. Esses homens
tinham conhecimento da Teologia e da língua latina, além de ocuparem uma posição de poder
que os permitia decidir a sociedade e o funcionamento institucional da mesma, o que não era
possível – nem imaginável – para uma pessoa leiga.
Porém, voltando-nos aos grupos monásticos, podemos citar inicialmente o exemplo dos
monges beneditinos, que faziam voto de pobreza antes de entrar no mosteiro. Ao renunciar seus
bens, causavam um acúmulo de riquezas para o sustento do próprio mosteiro. Esse ideal de
pobreza pode variar de sentido a depender do grupo social que o realiza. Segundo Simons
(2001, p. 14),
o ideal de pobreza apostólica pode [...] ser realizado, com algumas restrições, como
um estado de espírito e não como um fato da vida. A pobreza voluntária era relativa
em outro sentido, pois os grupos religiosos que se diziam pobres o faziam,
obviamente, em relação a outros considerados ricos. Às vezes, as diferenças seriam
mínimas, mas, para a maioria dos pobres voluntários dessa época, o conceito de
pobreza implícita ou explicitamente contrastava com o estilo de vida dos “seculares”
da Igreja (bispos, párocos e membros da do baixo clero encarregado do cuidado de
almas e dotado de uma renda pessoal da propriedade da igreja); ou com os
representantes do monaquismo tradicional, que teoricamente excluíam a propriedade
pessoal, mas permitiam que seus adeptos vivessem com bastante conforto, enquanto
a comunidade era coletivamente dotada de propriedades consideráveis, senão
enormes. Em ambos os casos, escolher ser “pobre” significava questionar, em menor
ou maior grau, o regime de propriedade estabelecido pela Igreja. (Tradução livre)23
23 “The ideal of apostolic poverty might therefore be realized, with some restrictions, as a state of mind rather
than as a fact of life. Voluntary poverty was relative in yet another sense because religious groups who claimed to
be poor did so, obviously, in relation to others perceived as wealthy. Sometimes the differences would be slight,
but to most of the voluntary poor in this age, the concept of poverty implicitly or explicitly contrasted with the
lifestyle of the ‘‘secular’’ Church (bishops, parish priests, and members of the lower clergy entrusted with the care
of souls and endowed with a personal income from church property); or with the representatives of traditional
monasticism, which theoretically excluded personal property but allowed its adherents to live quite comfortably
while the community was collectively endowed with sizable if not enormous estates. In either case, electing to be
‘‘poor’’ meant to question, to a lesser or greater degree, the property regime of the established Church”.
46
Na Alta Idade Média, a Regra de S. Bento não possuía determinações específicas para
as mulheres que viviam nos desertos egípcios ou em clausura, mas elas provavelmente também
seguiam alguma recomendação (BOLTON, 1983, p. 93). Ademais, no século X, a vida em
mosteiros era mais diferente que nos séculos seguintes. Durante esse século, encontramos
registros de mosteiros duplos dirigidos por uma abadessa e que dispunham de comunidades de
freiras e monges, porém, eles passaram a ser separados e os conventos de freiras tenderam a ser
pouco numerosos, com restrita admissão – geralmente compostos por mulheres da aristocracia
e, por este motivo, conservando a proteção aristocrática dos conventos.
Como se pode constatar, existe uma história bastante excludente em torno do acesso à
vida religiosa institucional, restrita a uma parcela da população que possuía bens e que, por
isso, conseguiam espaço no meio religioso – um verdadeiro controle do discurso, visto que este
é associado ao contexto de produção. Mesmo assim, na mudança de tendências durante o início
do século XII, concorda-se que a sociedade medieval estava sob circunstâncias nas quais “as
mulheres não iam aceitar a sua exclusão das novas formas de vida religiosa que estavam então
em desenvolvimento e que tinham como principal objetivo a prática da vida apostolica”
(BOLTON, 1983, p. 94).
47
Dessa maneira, com a grande busca pela vida religiosa, a quantidade de conventos
passou a ser insuficiente para as mulheres interessadas, o que gerou um grande impacto na
forma de vivenciar a religiosidade e na participação feminina nos novos movimentos e ordens
desse século, que eram majoritariamente masculinos e passam a ter seguidores de ambos os
sexos. É a partir de então que a emancipação feminina através da religiosidade se inicia, unida
à nova mística24.
Quanto a essa nova mística, podemos compreendê-la como resultado das novas
maneiras de compreender e apresentar a presença de Deus. McGinn (2017, p. 30) pontua três
aspectos que podem resumir os desenvolvimentos da mística do século XIII: 1) as “novas
atitudes quanto à relação entre mundo e claustro”; 2) “uma nova relação entre homens e
mulheres no caminho místico”; e 3) “novas formas de linguagem e modos de representação da
consciência mística”.
Ao longo do século XIII e início do século XIV, essa ideologia é desenvolvida de forma
intensa pelo dominicano alemão Mestre Eckhart, que chegou a ocupar a cadeira de teologia na
Universidade de Paris, após redigir as Quaestiones Parisienses IV e V. Em seus sermões, deixa
24 McGinn (2017) utiliza o termo “nova mística” para se referir à mística da Baixa Idade Média.
48
explícito que Deus pode ser encontrado em todas as partes e pessoas, não necessitando de uma
imagem:
Mas Deus não necessita sequer de qualquer imagem, tampouco possui Ele qualquer
imagem que seja. Sem qualquer semelhança, intermediário ou imagem – Deus age
diretamente na alma: naquele chão mesmo do qual falávamos, onde imagem alguma
jamais penetrou, apenas Ele mesmo com o seu ser. Isto não há criatura que possa fazer.
(ECKHART, s/n, p. 4)
Esse místico foi de grande influência para os escritos de Marguerite Porete, que viveu
durante o mesmo período e também publicou uma obra. Eckhart fala a respeito do abandono da
alma, do desapego terreno e da experiência mística através de si mesmo, sem intermediários
(ou seja, uma visão intramundana, como afirmam os estudiosos). Apesar de seguir essa
perspectiva, é válido destacar algumas questões pontuadas por Rimlinger (2018, p. 36) acerca
das razões que levaram o Capítulo Geral a nomeá-lo para o cargo na Universidade de Paris, ao
passo em que a região de Estrasburgo (onde Eckhart inicia seus estudos e sua influência) estava
composta por mulheres que desejavam viver a fé cristã, mas precisavam ser supervisionadas.
Além disso, Rimlinger (2018, p. 37) também pontua o fato de que, ao desenvolver a
atividade de pregador popular para um público majoritariamente composto por mulheres (além
de ter estreita ligação com os conventos femininos), seus sermões, consequentemente, foram
pronunciados e divulgados por elas. Estes são aspectos importantes para observar até que ponto
a mística difundida por Eckhart e pelas mulheres místicas ocupam posições semelhantes a nível
religioso e social, ou até mesmo se podemos considerá-las da mesma maneira a nível
subversivo.
E deve se saber que por dentro a alma está livre e esvaziada de todo e qualquer
intermediário e imagem – eis porque a ela Deus pode se unir livremente sem forma e
sem semelhança. Se a pessoa diz que um mestre espiritual qualquer possui força, não
se pode atribuir esta força que ele quiçá possua, senão a Deus sem limites. Quanto
mais forte e cheio de recursos hábeis é o mestre, tanto mais expedito é o seu trabalho,
e tanto mais se constata a simplicidade com que realiza seu trabalho. (ECKHART,
s/n, p. 4)
Com vistas a retomarmos a questão social da mística e considerando que a esta passou
por um processo de democratização, importa reafirmar que muitas pessoas leigas tiveram
acesso aos ensinamentos cristãos, às leituras feitas acerca desses textos e ao estilo de vida
apostólica, que também estava ligado à própria filosofia da mística. A todos estes fatores deve-
se destacar o poder da língua vernácula em oposição à língua latina, assim como a formação
das ordens mendicantes e maior popularização dos grupos religiosos, como fora mencionado.
49
Há muito o que se dizer a respeito das beguinas e sobre sua influência na mística (ou vice-
versa), na política e na economia (consequentemente, também na literatura). Porém, é válido
mencionar primeiramente que a mística que se forma a partir do século XII promove mudanças
principalmente nos papéis de gênero dentro do campo religioso, sobretudo no quesito da
pregação. Simons (2001, p. 127) mostra-nos que entre 1260 e 1274, enquanto Giles de Orléans,
Rutebeuf, Guibert de Tournai e muitos outros lançavam seus ataques às beguinas,
pelo menos três mestres parisienses – Tomás de Aquino, Henrique de Gante e Eustácio
de Arras – debatiam se as mulheres podiam ser permitidas a pregar em público. Todos
os três argumentaram contra a proposição, alegando que as mulheres sempre foram
proibidas de falar em público sobre assuntos religiosos; que as pregadoras, por sua
própria aparência, constituiriam uma distração para o público masculino; que as
mulheres não tinham o treinamento, a habilidade natural para a sabedoria, a segurança
para serem confiáveis em uma posição tão responsável; e, finalmente, que as mulheres
por natureza eram subordinadas ao sexo masculino e, portanto, não podiam ocupar
uma posição de autoridade sobre eles. Como escreveu Tomás de Aquino, embora
algumas mulheres possam ter sido agraciadas por Deus com o talento e a sabedoria
para exortar outras, elas devem fazê-lo em particular, dentro de casa. (Tradução
livre)26
Mas estas reações – que já eram esperadas dentro do contexto sobre o qual estamos nos
situando – acerca do comportamento das mulheres nesse novo modo de vida mais itinerante
não foi exclusivamente contra as beguinas e também não foi de forma geral, mas, sim,
majoritária. Esta tradição de mulheres, que se desenvolve fortemente em Liège, teve o apoio de
figuras como Jacques de Vitry27, que as desenvolveu ao criar fundações de freiras cistercienses
e escrever acerca do quão santas seriam as mulheres ditas beguinas.
25 Segundo Bolton (1983, p. 94), as beguinas possivelmente foram herdeiras de um pequeno grupo, sobre o qual
se sabe muito pouco, composto pelas licoisae.
26 “Between 1260 and 1274, while Giles of Orléans, Rutebeuf, Guibert of Tournai, and many others, launched
their attacks on beguines, at least three Parisian masters—Thomas Aquinas, Henry of Ghent, and Eustace of
Arras—debated whether women could be allowed to preach in public. All three argued against the proposition on
the familiar grounds that women had always been prohibited from speaking in public on religious subjects; that
female preachers by their very appearance would constitute a distraction to a male audience; that women lacked
the training, the natural ability for wisdom, the reliability to be trusted in such a responsible position; and finally,
that women by their nature were subordinate to the male sex and therefore could not hold a position of authority
over them. As Thomas Aquinas wrote, even though some women may have been graced by God with the talent
and wisdom to exhort others, they should do so in private, within the household”.
27 Famoso pregador, foi o responsável por escrever a Vita de Marie de Oignies, na qual cita que, em torno de
1212, “muitas donzelas sagradas (sanctae virgines) se reuniram em lugares diferentes [da diocese de Liège]...;
desprezaram as tentações da carne, desprezaram as riquezas do mundo pelo amor do noivo celestial em pobreza e
50
humildade, ganhando uma refeição esparsa com suas próprias mãos. Embora suas famílias fossem ricas, elas
preferiam suportar dificuldades e pobreza, deixando para trás sua família e a casa de seu pai, em vez de abundar
em riquezas ou permanecer em perigo em meio à pompa mundana” (VITRY, apud SIMONS, 2001, p. 35.
Tradução livre)
51
místicas, mas ligadas ao clero, como já mencionado. Forma-se uma verdadeira mística das
mulheres, com suas devidas especificidades e representações, bem como modos de experiências
diferenciados e linguagem específica, incluindo as alegorias e a forma com a qual estas são
usadas, além da intencionalidade estreitamente ligada à experiência feminina na Idade Média.
A respeito desta mística feminina, falaremos mais adiante, posto que está
intrinsecamente ligada às produções literárias e às formas de representação. O que se pode ter
como ideia primária é que essas mulheres ameaçam os homens da Igreja por estarem
ambiguamente posicionadas entre os religiosos e os seculares, os leigos e os eruditos. Chamadas
de trobairitz de Deus, elas “fundiram o discurso monástico do misticismo nupcial com o
discurso secular dominante do amor – o fine amour dos trovadores e poetas – para revelar novas
possibilidades para a alma em sua busca pela aventura divina” (NEWMAN, 1995, p. 12-13).
Para uma compreensão inicial, podemos afirmar que a mística baseada no fundamento
do amor cortês, ou seja, do amor mundano, que é a principal característica da literatura mística
de autoria feminina, considera Deus tanto do gênero masculino quanto do feminino, sendo desta
mesma forma com o amante de Deus. O amado poder ser visto como Cristo em sua forma
humana, como Dama Amor, como Trindade, ou mesmo como “fruição abissal”, ao passo que
o amante pode ser uma noiva, um servo, um cavaleiro ou uma alma aniquilada (NEWMAN,
1995, p. 13).
Mesmo considerando mística feminina como uma forma de emancipação das mulheres
através, principalmente, da literatura, há pontos de vista que divergem dessa concepção.
McGinn (2017) afirma corretamente que é preciso evitar generalizações acerca de uma única
mística característica e exclusiva de todas as mulheres, porém, ao longo de sua abordagem sobre
a reconstrução histórica do ponto de vista feminino, esclarece que no contexto da Igreja
medieval era “impossível para as mulheres criar novos modos de viver o Evangelho sem a
cooperação e a aprovação dos homens”, além de reforçar que, da mesma forma, “as vozes das
mulheres místicas medievais apenas raramente chegaram até nós sob a forma de uma destinação
direta escrita ‘do seu próprio ponto de vista’”; “o que nós ouvimos chega até nós sob a forma
de um diálogo no qual as contribuições de vozes masculinas e femininas estão ambas presentes
de vários modos, muitas vezes de um modo mutuamente enriquecedor” (MCGINN, 2017, p.
37).
a possibilidade de expor suas ideias, como uma forma de validação (LERNER, 1993). Porém,
esquece-se do ponto primordial em torno dessa problemática: a autoria feminina é
primariamente, e sobretudo nesse período, ligada à experiência do sujeito mulher em seu
contexto. Isto significa dizer que, se um contexto é opressor e limitador da propagação de ideias
de determinado grupo (e aqui citamos especificamente o caso da Europa medieval ocidental), a
produção literária desse grupo será subversiva e terá sua autonomia. Não se deve, assim,
desconsiderar essa autonomia discursiva, inclusive pelos próprios exemplos de condenações de
heresia que se tem ao longo da história medieval. Apenas há heresia mediante a existência de
discursos que subvertem a ordem do esperado.
Seguindo adiante, a respeito das beguinas, podemos afirmar que sua formação se deu
principalmente nos Países Baixos, especificamente nas fronteiras dos principiados de Brabante
e Flandres, área também denominada de Lotaríngia, por volta do século XIII. Posteriormente,
as beguinas expandiram seu movimento em direção ao Norte da França e à região do Reno.
Consistiam num grupo laico de mulheres religiosas, de caráter urbano e sem regras definidas
de comportamento, muito menos um fundador ou figura de liderança 28. Por ser um movimento
bastante democratizado, não possuía relações de hierarquia nem exigiam normas de conduta
das suas seguidoras, tais como votos de castidade ou celibato (muitas delas eram casadas,
inclusive). O seu modo de vida era primordialmente de acordo com a vida apostólica, então elas
optavam por viver a vida de castidade ou continência, mas sempre com a renúncia a todos os
bens terrenos e dedicando-se ao ideal evangélico de pobreza. É possível dizer que sua origem
se deu graças à formação de grupos anteriores, tais como os cátaros, os cistercienses e os
premonstratenses, posto que as proximidades entre esses grupos são bastante evidentes.
Como dito anteriormente, o século XII presenciou o início do que, no século XIII, seria
uma grande busca pela vida religiosa. A exemplo da influência desses grupos anteriores às
beguinas, destacamos o fato de que as casas premonstratenses dos Países Baixos do sul
(Averbode e Grimbergen), por exemplo, incluíram um grande número de mulheres durante o
século XII, bem como diversas outras instituições de cânones regulares (SIMONS, 2001, p. 19).
Porém, diferentemente das beguinas, as freiras premonstratenses viviam extremamente
28 Lambert le Bègue, clérigo dissidente, foi por muito tempo considerado o “fundador” das beguinas, mas esta
ideia está errada e, segundo Simons (2001, p. 24), é apenas um produto de uma lenda construída nos meios
eclesiásticos locais de Liège por volta de 1250 e ressuscitado por historiadores do século XIX.
53
Quanto às mulheres cátaras (primeiro grupo a ser considerado herético, desde o século
XI), as evidências indicam que, nas comunidades da França e da Itália do século XIII, elas
ocupavam papéis de liderança, tanto como pregadoras quanto como professoras, o que diminuiu
quando os cátaros instauraram hierarquias de organização nas quais os homens acabaram
ocupando os espaços de poder. O problema dessa hierarquia também se dava pela própria
crença dos cátaros que impedia a igualdade de gênero no culto e na vida social (SIMONS, 2001,
p. 21).
liderado por Inocêncio III. A partir de 1230, as beguinas expandiram-se de forma intensa.
Segundo Opitz (1990, p. 423),
o número das comunidades femininas que levavam uma vida semi-religiosa era ainda
mais elevado. Só a cidade de Colónia possuía, em meados do século XIV, 169
conventos de beguinas com cerca de 1170 residentes; em Estrasburgo havia na mesma
época cerca de 600 beguinas: pensa-se que nesta cidade a proporção de mulheres que
levavam uma vida religiosa poderia atingir os 10% da população feminina total.
Importa afirmar que a ausência de vínculos institucionais das beguinas deu-se no início
do movimento. À medida que começaram a adquirir propriedades, passaram a adotar
regulamentos para a vida em comunidade, que podia se manifestar na experiência dentro dos
béguinages ou de forma circundante no meio urbano. Ambos os estilos existiram e atenderam
a necessidades diferenciadas. Quanto às comunidades formais, que se expandem a partir da
segunda metade do século XIII, podemos afirmar que não teve tanta influência da autorização
do papa.
Além disso, dentre as instituições de beguinas, o tipo mais comum era o convento, “uma
associação de beguinas que viviam juntas ou próximas umas das outras sob a orientação de uma
única superior, a ‘senhora’ (magistra) ou prioresa” (SIMONS, 2001, p. 50. Tradução livre) 29.
Nesses casos, as beguinas obedeciam a determinados regulamentos e, muitas vezes, estavam
sujeitas à autoridade do pároco por prestarem serviços religiosos na igreja paroquial.
Indo além das regras de instituição, não podemos deixar de mencionar La règle des fins
amans, datada do final do século XIII e escrita em língua francesa para as beguinas da região
parisiense. Esse texto é imerso nas metáforas do amor cortês e detalha como funcionava a vida
29 “[...] an association of beguines living together or in close proximity to one another under the guidance of a
single superior, the ‘‘mistress’’ (magistra) or prioress”.
55
das beguinas. Segundo Bancel (2016, p. 69. Tradução livre) 30, não se trata de um texto cheio
de prescrições, “mesmo que faça alusão à maneira de vestir, de conversar, de orar, ou de
relacionar-se com o ‘padre’ ou a ‘madre espiritual’”. O texto menciona, sobretudo, “a atitude
interior e o significado espiritual de ser beguina, verdadeira amante de Jesus Cristo, o ‘abade
dos amantes’”.
30 “[...] aunque sí aluda a la manera de vestir, de conversar, de orar, o de relacionarse con el ‘padre’ o la ‘madre
espiritual’. Pero, sobre todo, menciona na actitud interior y el significado espiritual de ser beguina, verdadera
amante de Jesucristo, el ‘abade de los amantes’”.
56
A literatura medieval tem como tema bastante recorrente o amor cortês, principalmente
por este estar relacionado à própria cultura medieval e suas concepções sociais formadas pelo
feudalismo e pelas figuras que encontramos protagonizando as narrativas, como os cavaleiros
e as damas, o senhor feudal e a própria Igreja. Neste sentido, faz-se importante perceber que as
representações femininas na literatura são, muitas vezes, condicionadas a uma tradição na qual
a mulher tem seu papel determinado. Há pontos de vista que se mostram favoráveis à figura
feminina no sentido de demonstrar seu papel ativo no poder de escolha e tomada de decisão,
porém, como veremos, esse fato ocorre majoritariamente nas produções de autoria feminina,
que se distanciam, muitas vezes, das novelas de cavalaria, levando-nos ao seguinte
questionamento: seria a tradição cortês, predominante no período, realmente um princípio de
emancipação feminina?
Ademais, conforme Spina (2007, p. 17), dentre as formas mais duradouras durante esse
período, apenas a epístola poética é de maior interesse para a lírica trovadoresca dos séculos
posteriores. No âmbito da oralidade, as produções giravam em tornos dos contos, das canções
amorosas e de demais tipos de canto – porém, vale ressaltar que as produções orais sempre
foram bastante condenadas pela Igreja. As formas e os sentidos alegóricos também se faziam
57
fortemente presentes na literatura da Alta Idade Média; tem-se como exemplos a égloga
alegórica, os carmina figurata31 e as altercationes32.
Na passagem temporal estabelecida pelos estudiosos entre a Alta e a Baixa Idade Média,
ou seja, entre os séculos IX e XII, período muitas vezes chamado de “hiato”33, encontramos a
poesia latina dos poetas goliardos34, o drama litúrgico (e, neste caso, destacamos as peças da
monja alemã Rosvita de Gandersheim) e a poesia al-Andalus, protagonizada pelos árabes e
judeus da região da Andaluzia. Nesse caminho, e seguindo ao período da Baixa Idade Média,
nota-se a literatura mais dividida, no sentido de que se torna mais fácil sua sistematização (o
que não significa que a produção deve ser categorizada sempre de forma sistemática, mas, sim,
que encontramos padrões que se repetem).
Assim, no esquema das formas literárias proposto por Spina (2007, p. 21-22), tem-se
três tipos principais de literatura: a) a literatura empenhada, que seria composta de textos
religiosos (hinos, hagiografias e poemas sacros), incluindo o teatro religioso e os textos de
caráter didático; b) a literatura semi-empenhada, que prevalece até o século XIV, composta pelo
lirismo goliardesco, pela poesia alegórica (tal como no Roman de la Rose e na Divina Comédia),
pelos fabliaux (a exemplo da escritora Marie de France) e pelo teatro cômico (tal como o Jeu
de la Feuillée, de Adam de la Halle); e c) a literatura de ficção, composta pela poesia épica, que
inclui as sagas escandinavas e as canções de gesta, as quais perpassam pelo ciclo carolíngio, o
ciclo de Guillaume d’Orange e o ciclo de Doon de Mayence.
Apesar dessa divisão sistemática que traz à tona os principais gêneros e as mais
difundidas manifestações literárias do período, não podemos deixar de destacar a ausência da
categoria da poesia mística como um gênero à parte, sobretudo a mística feminina. A literatura
mística pode ser considerada uma literatura de caráter híbrido em relação aos outros tipos
existentes, pois reúne diversas características, tanto da poesia lírica da Baixa Idade Média como
da literatura didática (como os exemplum), além de possuir fortes aspectos do romance cortês e
da poesia moçárabe. Assim, dentre as cantigas dos trovadores e os romances de cavalaria,
encontramos o amor cortês como principal meio condutor das relações entre os sujeitos e
formador de uma tradição especialmente ligada ao amor mundano.
Essa relação ideal aparece como verdadeiro objeto cultural e seus testemunhos são
sempre de textos ditos literários. Fala-se de “amor cortês” – de fine amor – em
primeiro lugar para a abundante produção de poemas de amor nos domínios das
línguas d’oc e d’oïl, e depois para as intrigas romanescas, de que a França do norte
deixou florescente produção. Portanto, o romance dito “cortesão”, baseado nos
destinos de “finos amantes”, demonstrará grande vitalidade. (LE GOFF; SCHMITT,
2017, p. 55-56).
Esse modelo cortesão prepondera até o século XV, principalmente por meio de sua
retórica amorosa abundantemente metafórica (a ideologia propaga-se, também, durante o
século XIX, com o advento do período romântico e a retomada de figuras utilizadas durante a
Idade Média). O amor cortês não se constitui de forma unânime, sendo, em realidade,
representado de forma plural e podendo definir o amor de um cavaleiro por sua dama
inacessível (casada), ou até mesmo um amor erótico, carnal e adúltero. Além disso, pode
representar o relacionamento entre dois jovens apaixonados que buscam o casamento.
De qualquer maneira, essa tradição encontra nas cantigas dos trovadores, nos romances
corteses e nas próprias vidas dos poetas seus principais veículos de difusão. Produções como o
Tratado do Amor Cortês, de André Capelão (século XII), contribuem para a reflexão do público
acerca do amor vivenciado e ditado por meio dos tratados medievais, os quais exigem certos
padrões comportamentais. Ademais, o próprio modo de vida dos poetas estimula a difusão desse
tipo de concepção, reforçando o aspecto da oralidade na lírica trovadoresca:
Neste sentido, podemos situar o amor cortês num âmbito de grande influência do
comportamento aristocrático. A própria ideia de fine amour remete a “uma arte de viver que
implica polidez, refinamento de costumes, elegância, e ainda, além dessas qualidades
puramente sociais, o sentido da honra cavaleirosa” (LE GOFF; SCHMITT, 2017, p. 56). Assim,
tem-se inúmeras etapas a serem seguidas para alcançar a relação amorosa, exprimindo o modelo
feudo-vassálico e trazendo à tona aspectos linguísticos do sistema feudal, a exemplo do termo
“minha senhora”, usado pelo homem que se torna vassalo de sua dama, da mesma forma que é
vassalo de seu senhor.
Segundo Le Goff e Schmitt (2017, p. 57), “a ética do amor cortês não se resume à
imitação do serviço feudal: no âmbito do que surge como uma verdadeira religião do amor, a
dama é o objeto de um culto”. Este aspecto da religiosidade amorosa expande-se para a
realidade dos religiosos, sobretudo dos místicos, que encontraram na lírica cortesã a linguagem
ideal para expressar seus sentimentos e suas relações com o divino. Quanto às mulheres, a
posição não é completamente benéfica como aparenta ser. Mesmo com o amor cortês
promovendo a relação de vassalagem na qual a mulher encontra-se numa posição superior e de
objeto de desejo, há pontos divergentes que já foram trabalhados por teóricos medievalistas e
teóricas feministas.
É óbvio que uma teoria que considerava o culto da dama como próximo ao de Deus e
que a concebia como fonte de feitos gloriosos, como uma criatura romântica metade
divina, deveria ter feito algo para contrariar a doutrina que prevalecia sobre a
inferioridade da mulher. O processo de colocar as mulheres sobre um pedestal havia
iniciado e, reflitamos sobre o que pensamos sobre o valor final de tal elevação, ao
menos era melhor que afundá-las, como os Padres primitivos estavam inclinados a
fazer, em um abismo sem fundo. Porém, é fácil exagerar o alcance em que a cavalaria
pôde elevar a posição real da mulher na sociedade medieval em geral. A exaltação da
dama era o ideal exclusivo de uma pequena casta aristocrática: quem estivesse fora
60
desta casta não tinha parte alguma na influência refinadora do amor cortês. (Tradução
livre)35
Pretendeu-se muitas vezes que o amor cortês que nasce no Sul mediterrâneo, por volta
do século XII, teria acarretado uma melhoria na sorte da mulher. Acerca dessas
origens, diversas teses se defrontam: segundo uns, a “cortesia” decorre das relações
da suserana com seus jovens vassalos; segundo outros, ela estaria ligada às heresias
cátaras e ao culto da Virgem; outros, enfim, fazem derivar o amor profano do amor a
Deus em geral. Não se tem muita certeza de que as cortes de amor tenham realmente
existido. O certo é que, ante a Eva pecadora, a Igreja foi levada a exaltar a Mãe do
Redentor. Seu culto tornou-se tão importante que se pode dizer que no século XIII
Deus se fizera mulher; uma mística da mulher desenvolve-se, portanto, no plano
religioso. Por outro lado, os lazeres da vida de castelo permitem às mulheres nobres
fazer florescer em volta delas o luxo da conversação, da cortesia, da poesia [...].
Observa-se no sul primeiramente e, em seguida, no norte, um amadurecimento
cultural que beneficia as mulheres e lhes dá um novo prestígio. O amor cortês foi
descrito, frequentemente, como platônico [...]. O amor cortês era uma compensação à
barbárie dos costumes oficiais. “O amor, no sentido moderno da palavra, só ocorre na
Antiguidade fora da sociedade oficial”, observa Engels. “O ponto exato em que a
Antiguidade se detém nas suas tendências para o amor sexual é aquele de que parte a
Idade Média: o adultério”. E é com efeito essa forma que revestirá o amor enquanto a
instituição do casamento se perpetuar. (BEAUVOIR, 2016, p. 139-140)
Assim, importa destacar dois aspectos de seu ponto de vista. Primeiramente, a situação
das mulheres durante esse período e as questões em torno disso. Segundo, o estabelecimento de
uma identidade feminina ao amor cortês, influenciado pela mística (de maneira geral) e tendo
como consequência a mística feminina. Em relação à primeira questão, podemos retomar ao
âmbito socioeconômico da Baixa Idade Média e o desenvolvimento das cidades, assim como o
avanço das atividades artesanais e mercantis. Com o comércio em desenvolvimento, foi
necessária mais mão de obra, ou seja, maior participação feminina e autonomia das mulheres.
35 “Es obvio que una teoría que consideraba el culto de la dama como próximo al de Dios y que la concebía a ella
como fuente de hechos gloriosos, como una criatura romántica mitad divina, debió hacer algo para contrarrestar
la doctrina que prevalecía sobre la inferioridad de la mujer. El proceso de colocar a las mujeres sobre un pedestal
se habió iniciado y, pensemos lo que pensemos del valor último de tal elevación, al menos era mejor que hundirlas,
como los Padres primitivos estaban inclinados a hacer, en un abismo sin fondo. Sin embargo, es fácil exagerar el
alcance en que la caballería pudo eelevar la posición real de la mujer en la sociedad medieval en general. La
exaltación de la dama era el ideal exclusivo de una pequeña casta aristocrática: quienes se hallaban fuera de esta
casta no tenían parte alguna en la influencia refinante del amor cortesano”.
61
Burocraticamente, vimos que a vida da mulher muda nas zonas urbanas, mas não nos meios
legais, o que implica em inúmeras limitações e em atribuições secundárias às mulheres.
Nessa construção, Newman (1995, p. 13) afirma que as beguinas místicas rompem de
forma brusca com o misticismo nupcial proveniente dos beneditinos e dos cistercienses e suas
diferenças são bastante explícitas: os monges consideraram a alma um microcosmo da
verdadeira Noiva de Deus, que seria a comunidade geral (Santa Igreja), ao passo que, para as
36 “Both the troubadour and the beguine take joy in the boundlessness of desite, the endless desferreal of
experience is deliberately opposed: instead of acceptance and prestigie she seeks humiliation and exile, and usually
finds them”.
62
beguinas, esta é reduzida a uma pequena figura que precisa do apoio daquela que Deus ama
verdadeiramente (a alma) para conseguir sua sobrevivência. Este posicionamento gerou
bastante repercussão e pode ter sido uma das causas principais pelas quais as beguinas sofreram
tantas perseguições ao longo dos anos, porém, não podemos desconsiderar que é um grande
passo na História das mulheres e da literatura de autoria feminina, posto que há uma contestação
de um sistema criado e majoritariamente – ou quase exclusivamente – masculino, mesmo que
por vias religiosas.
Assim, a mística feminina, experiência do sagrado que parte das mulheres, tem suas
devidas particularidades. Primeiramente, é preciso notar que essas mulheres tinham por opção
a expressão através das línguas vernáculas, tais como o alemão, o francês médio, ou o holandês
antigo. Ao traduzirem suas experiências para sua língua, elas criam palavras inexistentes, dando
origem a um vocabulário místico. Essas línguas vulgares, segundo Salé (2013, p. 11. Tradução
livre)37, “trazem um novo frescor à linguagem mística submetida até então às regras estritas e
limitadas da língua latina”.
A partir disso, temos o uso da palavra feminina Minne, que designa o noivo, Deus,
Amor, o Amado, o Bem Amado, e resgata um sentido de experiência interior a Deus,
diferentemente de amor, associada a qualquer sentimento meramente amoroso. Ao encontrar-
se com Minne, a alma desfruta da fruição, que a leva a experiências profundas e indizíveis.
Semelhantemente, “a ausência do ente querido é insuportável para elas, essa ausência cria uma
busca obsessiva e permanente, uma raiva de amar ou uma fúria de amar” (SALÉ, 2013, p. 11.
Tradução livre)38. Esse contato com o divino sempre é direto e intenso.
O fino amante, ou seja, a alma que se dirige a Deus, é definido na Règle des fins amans:
Chama-se “autêntico amante” (fin amant) aquele ou aquela que ama Deus com
autenticidade (finement). Quando se deseja elogiar uma taça de ouro, diz-se que é ouro
fino [autêntico]. Ou seja, a taça é de ouro totalmente puro e ouro fino. É assim que
Jesus Cristo quer ser amado por nós, com autenticidade (finement). Quer dizer,
puramente, com todo o nosso coração, com todas as nossas forças e com todas as
nossas virtudes. E é uma maravilha! Assim nos amou ele! Mostrou-nos amor de
coração. É como se dissesse-lhes: “não posso falar, mas abri o meu peito para você.
Lindo e doce filho, põe a mão no meu peito, pega meu coração! É seu”. Esta grande
37 “Les langues vulgaires deviennent littéraires et apportent une nouvelle fraîcheur au langage mystique soumis
jusqu’alors aux règles strictes et limitées de la langue latine”.
38 “[...] l’absence de l’être aimé leur étant insupportable, cette absence créé une quête obsessive et permanente,
une rage d’aimer ou une fureur d’aimer [...]”.
63
bondade não devemos esquecer. (La Règle des fins amans, apud BANCEL, 2016, p.
20. Tradução livre)39
Esse ponto de vista da experiência do divino é característico do místico, que seria aquele que,
no ato do recolhimento, despoja-se de todas as coisas que podem ser consideradas
intermediários (ou empecilhos) para unir-se a Deus. A experiência mística, dessa forma, é
compartilhada por meio dos relatos e das visões e utilizando a linguagem vernácula. Assim,
segundo Nogueira (2013, p. 162-163), a escrita mística feminina, liderada por almas
“femininas” e por um conjunto de imagens também protagonizados dessa maneira, soa como
uma transgressão em diferentes níveis, sendo estes: transgressão de gênero, transgressão da
ortodoxia da Igreja, transgressão linguística e transgressão dos limites da relação entre o
humano e o divino.
39 «Se llama “auténtico amante” (fin amant) a aquel o aquella que ama a Dios con autenticidad (finement). Cuando
se quiere alabar una copa de oro, se dice que es de oro fino [auténtico]. Es decir, que la copa es totalmente pura de
oro, y de oro fino. Así quiere Jesucristo ser amado por nosotros, con autenticidad (finement). Es decir, puramente,
y de todo corazón y con todas nuestras fuerzas y con toda nuestra virtud. ¡Y es una maravilla! Así nos amó él. Nos
mostró amor de corazón. Es como si os dijese: “no puedo hablar, pero te he abierto mi pecho. Hermoso y dulce
hijo, bella y dulce hija, pon tu mano en mi pecho, ¡toma mi corazón!, pues es tuyo”. Esta gran bondad no la
debemos olvidar».
64
Levando em conta a história das beguinas e das mulheres que escreviam seus escritos
místicos, sua ideologia de chegar a Deus sem intermediários, além da prática da vida apostólica,
levou a caminhos bastante obscuros de acusações por parte do clero, principalmente por
buscarem situar conhecimentos que seriam exclusivos do lado hierárquico da sociedade no meio
das pessoas comuns. De certa forma, “a vida conventual torna a mulher independente do
homem” (BEAUVOIR, 2016, p. 146) e, na relação mística, autônoma em sua essência, “as
almas femininas haurem a inspiração e a força de uma alma viril; e o respeito de que gozam na
sociedade permite-lhes realizar difíceis empreendimentos” (BEAUVOIR, 2016, p. 146).
Mesmo assim, a opinião dos homens acerca das mulheres é pouco favorável. Destacamos a
afirmação de Beauvoir (2016, p. 147) a respeito desse contexto com base na literatura:
Sem dúvida, os poetas corteses exaltaram o amor; surgem numerosas Arts d’amour,
entre as quais um poema de André de Chapelain e o célebre Roman de La Rose, em
que Guillaume de Lorris incita jovens a se devotarem às damas. Mas a essa literatura,
influenciada pela dos trovadores, opõem-se as obras de inspiração burguesa que
atacam as mulheres com maldade: fabulários, farsas, lais censuram-lhes a preguiça, o
coquetismo, a luxúria. Seus maiores inimigos são os clérigos.
O Roman de la Rose, dividido em duas partes, sendo a primeira por Guillaume de Lorris
e a segunda por Jean de Meung, apresenta-se como uma das obras principais tanto nos estudos
das alegorias medievais como nas perspectivas em torno da imagem das mulheres e de suas
delimitações sociais. Assim, tem-se essa obra como impulsionadora da Querelle des Femmes,
um movimento crítico que perdura até o século XV e tem seu ponto de partida na questão do
casamento, considerado por Jean de Meung, clérigo, como um terreno odioso para o homem,
pois “o amor é terra odiosa / o amor é ódio amoroso”40.
Dessa forma, cabe-nos questionar por que existe uma subversão por parte das mulheres
e de que forma ela se manifesta nas obras literárias escritas por elas. Além disso, também
importa perceber que essa subversão, no caso das mulheres, é um atentado contra a Igreja e
seus moldes. Sendo a mulher já bastante acusada por ser quem é, ou seja, o sexo feminino
abominável, isto se agrava nas acusações de heresia e as torna alvos ainda maiores de
silenciamento.
A esses três planos, tem-se como consequência mais comum a condenação por heresia
por meio de decretos e bulas papais, ou seja, documentos registrados e oficializados por
teólogos e clérigos, homens da lei e da religião que representam o poder do conhecimento e
moldam a sociedade. Esses documentos emanam, principalmente, acusações de heresia, que
seriam comportamentos não compatíveis com a ortodoxia.
41 “Las mujeres comúnmente llamadas beguinas, como no prometen obediencia a nadie, no renuncian a sus
posesiones, ni profesan regla aprobada alguna, no son ciertamente “religiosas”, aunque lleven el hábito de las
beguinas, y se asocien a ciertos religiosos, hacia los que sienten una inclinación particular. Hemos escuchado
fuentes de confianza que han relatado que algunas beguinas, conducidas casi por cierta locura, argumentan y
predican sobre la Santísima Trinidad y la esencia divina, y expresan opiniones contrarias a la fe católica sobre
artículos de fe y los sacramentos de la Iglesia. Tales beguinas atrapan así a mucha gente sencilla y les conducen a
varios errores. Generan muchos otros peligros para las almas, bajo su capa de santidad. Hemos recibido con
frecuencia informes desfavorables sobre su enseñanza y con justicia las consideramos bajo sospecha. Con la
aprobación del Sagrado Concilio, prohibimos perpetuamente su modo de vida y lo eliminamos completamente de
la Iglesia de Dios. Ordenamos expresamente a esas y otras mujeres semejantes, bajo pena de excomunión, en la
que incurrirían de manera automática si actuaran de otro modo, que no sigan ese sendero de vida bajo ninguna
forma, lo hayan adoptado hace tiempo o recientemente. Y bajo la misma pena prohibimos estrictamente a los
religiosos mencionados más arriba, de los que se dice haber favorecido a esas mujeres y haberlas persuadido para
adoptar la forma de vida beguinal, que den consejo alguno, ayuden o favorezcan a las mujeres que han abrazado
esa forma de vida, o tengan intención de abrazarla, sin que se pueda alegar a lo anteriormente dicho privilegio
alguno.»
67
Ficou bastante conhecida por sua obra polêmica, O Espelho das Almas simples e
aniquiladas, na qual demonstra domínio sobre a escrita e sobre o gênero tratado místico, além
de amplo conhecimento acerca dos textos bíblicos, o que pode nos levar à possibilidade de que
veio de uma família nobre e teve acesso à educação. A isto também se acrescenta o fato de que
seu livro foi traduzido em outras línguas, incluindo o latim, e teve diversas cópias produzidas
(possivelmente pela própria autora), demonstrando determinado poder aquisitivo para esse tipo
de produção. Garí e Cirlot (2008, p. 231. Tradução livre) 42 afirmam que
[...] era uma beguina independente desde o ponto de vista religioso e social, mas
também o que era desde um ponto de vista econômico, tanto porque podia custear os
altíssimos custos de elaboração de múltiplas cópias de seu livro como porque talvez
fosse capaz de elaborá-las ela mesma; talvez incluso a essa « beguina clériga » era
uma copista profissional numa cidade em que, como em todas da época, existia um
42 “[...] era una beguina Independiente desde el punto de vista religioso y social, pero también lo era desde um
punto de vista económico, no tanto porque pudiera sufragar los altísimos costes de elaboración de múltiples copias
de su libro como porque quizás fuese capaz de elaborarlas ella misma; quizás incluso esa « beguina clériga » era
una copista profesional en una ciudad en la que como en todas las de la época existía un importante mercado de
libros y donde talvez había mujeres que aprendían en los oficios de miniaturista y calígrafo”.
68
importante mercado de livros e onde talvez havia mulheres que aprendiam os ofícios
de miniaturista e calígrafo.
Sua obra expressa a experiência mística através de sete estágios para fundir-se ao divino,
ou seja, a transcendência do próprio ser para chegar a Deus (Dama Amor) sem intermediários,
resultando numa minimização, característica da mística feminina, da necessidade de recorrer à
hierarquia eclesiástica e “a reduzir o exercício das virtudes morais à condição de um estágio
preliminar imperfeito” (SCHWARTZ, 2005, p. 27). Para tal, Marguerite utiliza o gênero dos
Specula e compõe 140 capítulos em forma de diálogos entre a Alma (personagem principal), a
Dama Amor (representando o Amor Divino), a Dama Razão (antagonista e representante das
instituições eclesiásticas) e suas diversas personificações derivadas.
A Alma, perpassando sete estágios, busca retornar ao seu estado primitivo por meio do
aniquilamento, momento em que se dá a união definitiva com Deus, união esta que podemos
associar à existente entre o amante e o Amado da literatura cortesã. O próprio título de sua obra,
Mirouer, “implica uma superfície parcialmente reflexiva, mas também um processo de
comparação entre o real e o imaginado, e entre o real e o escrito” (KOCHER, 2008, p. 08.
Tradução livre)43. O livro funciona, assim, como um espelho que designa um ideal para
representar o progresso dos ouvintes, implicando numa clareza na linguagem para a formação
de imagens para sua audiência. Porém, iremos desenvolver a temática do espelho ao longo da
análise da obra, no terceiro capítulo desta pesquisa.
Historicamente, Marguerite fica conhecida primeiramente não pela sua obra, mas, sim,
pela sua condenação (por causa de sua obra). Os documentos inquisitoriais, nos quais podemos
perceber alguns aspectos da vida da autora, são do ponto de vista do inquisidor dominicano
Guilherme de Paris, o que implica uma certa cautela em sua leitura, conforme afirma Field
(2016, p. 10). Neste sentido, temos um histórico de denúncias da Igreja contra Marguerite.
43 “The noun mirouer, as it is used in Porete’s title, implies a partially reflective surface, but also a processo f
comparison between the real and the imagined, and between the real and the written”.
44 “Guido ordered her, in writing, never again to speak or write about the ideas her book contained, under threat
of being condemned as a heretic and turned over to secular justice for punishment”.
69
com as ameaças, a autora entra em conflito com a autoridade eclesiástica e assume que, por
várias vezes, divulgou as ideias de seu livro e possuía outras cópias do mesmo. Nos documentos
de Guilherme de Paris também constam acusações de que Marguerite distribuiu insistentemente
o seu livro para as pessoas simples e leigas, além de ter comentado ao bispo João de
Châteauvillain, da região de Châlons-sur-Marne.
Em uma reunião em março (data não especificada) na casa dominicana em Paris, ele
reuniu mestres em direito canônico e teologia da Universidade de Paris e pediu
conselho sobre como lidar com esses recalcitrantes detidos. Até onde os documentos
mostram, ele não expôs todos os fatos da vida anterior de Marguerite, mas
simplesmente perguntou “o que deveria ser feito” com este homem e esta mulher que
se recusavam a cooperar. Os teólogos submeteram-se aos canonistas, que emitiram
dois pareceres datados de 3 de abril, indicando que Guiard e Marguerite poderiam ser
considerados hereges simplesmente em virtude de sua contumácia e, portanto,
poderiam ser entregues ao braço secular para punição, a menos que decidissem
cooperar rapidamente. “Relaxamento para o braço secular” significava morte certa na
fogueira, e a ameaça desse destino foi o suficiente para fazer Guiard prestar juramento
e responder às perguntas do inquisidor. (Tradução livre)45
Após esse episódio, vinte e um mestres em teologia foram reunidos no dia 11 de abril a
fim de extrair partes do livro que tivessem proposições consideradas heréticas ou que
contradiziam com os textos sagrados. Concordando todos que o livro de fato possuía essas
características, a acusação voltou-se para Marguerite com o acúmulo dos confrontos anteriores,
levando-a a ser condenada por seu comportamento perante as autoridades e pela desobediência
em relação à divulgação de seu livro. Foi dessa forma que a beguina foi levada ao braço secular,
no dia 01 de junho de 1310, na Place de Grève, em Paris. Guilherme de Paris ordenou, assim,
45 “At a meeting in March (date unspecified) at the Dominican house in Paris, he called together masters of canon
law and theology from the University of Paris and asked for counsel on how to handle these recalcitrant detainees.
As far as the extant documents show, he did not lay out all the facts of Marguerite’s previous life, but simply asked
“what was to be done” with this man and woman who were refusing to cooperate. The theologians deferred to the
canonists, who issued two opinions dated 3 April indicating that Guiard and Marguerite could rightly be considered
heretics simply by virtue of their contumacy, and thus could be handed over to the secular arm for punishment
unless they quickly decided to cooperate. “Relaxation to the secular arm” meant certain death at the stake, and the
threat of this fate was enough to cause Guiard to take an oath and answer the inquisitor’s questions”.
70
que o livro fosse queimado junto a sua autora, ao passo que Guiard de Cressonessart foi
condenado à prisão perpétua.
46 “Déjà em 1888, l’historien américain Henry Charles Lea a publié deux pièces du dossier, relatant l’enquête et
la condamnation de Marguerite”.
71
da escritora. Assim, podemos afirmar que as ideias da mística feminina (e seu discurso), sofrem
uma dura crítica dentro de um contexto político complexo, e sendo por este motivo, talvez, o
fato de que essa mística era herética.
(1) uma onda notável de espiritualidade feminina ativa do início do século XIII ao
século XV; (2) o desabrochar de um novo e frequentemente vernáculo misticismo
cristão que, embora profundamente enraizado nas autoridades escriturísticas e
patrísticas, representava um perigo espiritual percebido para as almas das pessoas
comuns; (3) a certeza papal e eclesiástica crescente de que os hereges secretos,
principalmente as mulheres, estavam poluindo o corpo da cristandade; e (4) a luta
cada vez mais árdua do papado para manter o prestígio e a autoridade do cargo não
apenas contra os líderes seculares como o rei Filipe IV da França (r. 1285-1314), mas
também dentro de suas próprias fileiras. (Tradução livre)47
Assim, tem-se Marguerite e o Espelho situados num contexto em que a mística estava
facilmente tomada como um discurso herético, sobretudo se proferida e divulgada em vernáculo
e por meio de linguagem popular.
A obra de Marguerite diz muito a respeito da própria autora. Podemos observar que,
possivelmente, Porete possuía um alto nível de alfabetização e alguma fonte de renda, como
sugere Kocher (2008, p. 31), pois os livros demandavam tempo para serem copiados e,
consequentemente, um custo. Concordamos com a estudiosa ao explanar que esses detalhes a
respeito da publicação do livro levam-nos a concluir que Porete não era uma pessoa sem
moradia, ou mendicante, então não é possível considerar sua obra como um relato
autobiográfico, muito comenos como fruto de sua própria experiência mística, tal como as
demais.
Além disso, O Espelho foi enviado para três clérigos que o aprovaram, o que mostra que
sua autora tinha determinada proximidade com autoridades, ou ao menos um possível contato.
A obra recebeu elogios por parte de seus avaliadores, como é possível ver no último capítulo,
no qual Marguerite faz questão de mencionar a autorização que obteve:
47 “(1) a remarkable groundswell of active female spirituality from the early thirteenth through the fifteenth
centuries; (2) the blossoming of a new and often vernacular Christian mysticism that, although deeply rooted in
scriptural and patristic authorities, represented a perceived spiritual hazard to the souls of common folk; (3)
mounting papal and ecclesiastical certainty that secret heretics, particularly women, were polluting the body of
Christendom; and (4) the papacy’s increasingly labored struggle to maintain the office’s prestige and authority not
only against secular leaders such as King Philip IV of France (r. 1285–1314) but also within its own ranks”.
72
[...] O primeiro deles foi um Frei Menos de grande nome, vida e santidade que era
chamado de Frei João. [...] Esse Frei disse que este livro foi feito pelo Espírito Santo
e que se todos os clérigos do mundo o ouvissem e pudessem compreendê-lo, não
saberiam em nada contradizê-lo. [...] Depois, o viu e leu um monge cisterciense
chamado Dom Franco, da Abadia de Villers. Ele disse que assegurava, por meio das
Escrituras, ser verdade tudo o que este livro diz. Depois leu um certo mestre em
Teologia chamado Godfrey de Fontaines. Ele não disse nada desfavorável sobre o
livro, tanto quanto os outros. Mas aconselhou que não muitos o vissem, porque, como
ele disse, poderiam colocar de lado a vida para a qual foram chamados, aspirando essa
outra à qual nunca chegarão. (PORETE, 2008, p. 230)
Dessa maneira, por meio de um diálogo construído e protagonizado por essas figuras
alegóricas (Dama Amor, Dama Razão e Alma), a autora insere sua audiência na narrativa e
utiliza recursos retóricos para formar sua doutrina das Almas Simples, livres das Virtudes.
Antes de expor a respeito dos sete estágios pelos quais a Alma deve passar para atingir o
completo aniquilamento, a Dama Amor cita nove características que é preciso encontrar nessa
vida baseada na paz da caridade:
Amor: – Mas há uma outra vida, que chamamos paz da caridade na vida aniquilada.
Dessa vida queremos falar, perguntando se podemos encontrar:
I. uma alma
II. que se salva pela fé e sem obras,
III. que é somente no amor,
IV. que nada faz por Deus,
V. que nada deixa de fazer por Deus
VI. a quem nada pode ser ensinado,
VII. de quem nada pode ser tomado
VIII. ou dado,
IX. e que não tem nenhuma vontade. (PORETE, 2008, p. 35-36)
A partir disso, Marguerite deixa evidentes as críticas às formas de vida monástica do período,
que correspondiam aos dogmas, jejuns e orações, salientando seu ponto de vista através de
metáforas e comparações.
73
caracteriza aqueles que vivem a vida do espírito (capítulo 62); e a morte do espírito, a qual “traz
a flor do amor da Deidade” (PORETE, 2008, p. 119). Indo em direção aos sete estágios, a Dama
Amor afirma de antemão que “dos quatro primeiros estágios nenhum é tão elevado que a Alma
não viva nele em grande servidão. Mas o quinto estágio está na liberdade da caridade, pois é
liberado de todas as coisas”.
Sendo assim, para compreender O Espelho como uma obra de caráter subversivo em
seu discurso através desses elementos supracitados, além de demais outros que também
compõem a obra, a exemplo da audiência e da participação da autora na narrativa, é preciso
definir as alegorias e a forma como elas se manifestam e são utilizadas durante a Idade Média,
bem como a retórica contida em seu uso. Além disso, é necessário ter como prioridade a autoria
feminina, fator que irá nos levar a uma análise de cunho feminista dessa obra através dos
elementos retóricos escolhidos não arbitrariamente pela autora. Por fim, seguiremos ao segundo
capítulo desta pesquisa, a fim de demonstrar esses aspectos e dissertar acerca de uma teoria das
alegorias a partir da perspectiva da autoria feminina, da crítica literária feminista, da teoria da
literatura e da perspectiva histórica medieval.
75
CAPÍTULO 2
Considerando esses aspectos, este segundo capítulo tem como principal objetivo trazer
à tona conceitos e perspectivas acerca das alegorias e seus usos, a fim de desencadear na análise
da obra O Espelho das Almas simples, de Marguerite Porete. Para tal, o capítulo iniciará com
uma explanação sistemática em torno dos conceitos e das perspectivas do processo metafórico
presente nas alegorias e nas personificações, buscando trazer considerações preliminares
encadeadas numa argumentação a respeito do ponto de vista aqui defendido. Em relação a essas
considerações, destacaremos as possíveis sistematizações das alegorias, principalmente através
das perspectivas de Hansen (2006), Ricoeur (2015) e Fletcher (1970).
teocrático do período. Neste ponto, importa trazer à tona as alegorias femininas e as discussões
em torno dessas atribuições de gênero a certas imagens. Ademais, é preciso também observar
como são aplicadas nos textos e quais são os sentidos que provocam na audiência.
Por fim, importa trazer à tona o uso das alegorias na escrita de autoria feminina
medieval, além das próprias alegorias femininas e as discussões em torno do porquê dessa
atribuição de gênero em torno dessas imagens. Pretende-se finalizar o capítulo considerando as
alegorias mecanismos retóricos para a subversão discursiva e exemplificando os modos com os
quais estas aparecem nos textos de algumas obras do período, indo em direção ao corpus da
pesquisa, O Espelho das almas simples e aniquiladas. Sendo assim, este capítulo propõe-se a
desenvolver uma nova perspectiva acerca do uso das alegorias, tendo como base os textos de
autoria feminina da Idade Média, e a formar uma possível adição aos conceitos de alegoria
desenvolvidos até então, incluindo a perspectiva feminista como ponto de ruptura.
Tratar acerca de uma obra de autoria feminina medieval diz respeito a considerar todos
os recursos retóricos utilizados na criação da narrativa para buscar não apenas seguir um gênero
literário do período, mas também para materializar a intencionalidade do texto em sua relação
77
com o contexto e com a autoria. Desta forma, esta pesquisa vem trazendo à tona a
contextualização da escrita mística feminina da Idade Média e, em especial, a obra de
Marguerite Porete, O Espelho das Almas Simples, no sentido de romper com o paradigma
meramente do âmbito da retórica clássica e evidenciar o aspecto literário na organização
estratégica das alegorias nas obras.
coisa diferente do sentido literal”, evidenciando o processo metafórico envolvido no uso das
alegorias em seus variados contextos. Ademais, Ceia (1998, p. 01) acrescenta que esse termo
substituiu um anteriormente existente, hypónoia, cujo sentido é de uma significação oculta e
era utilizado para realizar interpretações dos mitos de Homero por meio de exemplos, princípios
morais e personificações.
Hansen (2006), seguindo uma perspectiva mais retórica, explicita que o conceito de
alegoria fora proposto na Retórica antiga como uma modalidade da elocução, um ornamento
do discurso. Neste sentido, retoma os conceitos de Aristóteles, Cícero e Quintiliano, e separa
os pontos de vista greco-latino e cristão. Segundo o autor, a definição de Lausberg, retomada
desses três pensadores, é a de que “a alegoria é a metáfora continuada como tropo de
pensamento, e consiste na substituição do pensamento em causa por outro pensamento, que está
ligado, numa relação de semelhança, a esse mesmo pensamento” (HANSEN, 2006, p. 07). A
respeito desse conceito, Hansen (2006) também mostra a divisão entre a alegoria dos poetas e
a alegoria dos teólogos, duas classificações provenientes da perspectiva greco-latina e cristã.
Assim, há duas alegorias,
Seguindo mais adiante, corroborando com Souki (2006), Tambling (2010) considera a
alegoria um elemento de incorporação de ideias abstratas, atribuído essencialmente ao ato da
leitura e, por isso, estabelecendo diferenças entre ler alegoricamente e ler no sentido literal.
Souki (2006, p. 93) mostra-nos que é comum defini-la como uma “figura de linguagem capaz
de exprimir, de forma concreta, uma ideia abstrata”, além de ser associada “a recursos
expressivos que evidenciam a contraposição existente entre a ideia e a materialidade, através
da personificação de uma abstração”. Porém, num sentido mais propriamente medieval e
histórico, ela poderia ser definida como “uma expressão ardilosa das funções religiosas e
políticas, que servem para uma determinada intenção ideológica”.
embora uma alegoria e uma metáfora partam de princípios semelhantes, elas diferem
entre si. Ambas estabelecem uma relação entre dois elementos concretos para
expressar um significado abstrato. Mas, enquanto a metáfora é construída a partir de
uma associação que se apoia na semelhança entre dois elementos diferentes, a
associação da alegoria é feita de forma arbitrária, sem nenhuma regra de similaridade.
Na alegoria, o significado desejado se incorpora a um objeto escolhido, como
resultado de um ato intencional. A diferença existente entre a metáfora e a alegoria se
situa no fato de que nesta o significado apoia no significante e pode ser
constantemente alterado, o que não acontece na metáfora.
Isso significa que a alegoria configura-se a partir de um processo metafórico, mas não
exerce a mesma função que uma metáfora. Podemos imaginá-la, assim, como uma imagem que
cria um senso de semelhança “que não é conscientemente observado, nem é desenvolvido
posteriormente por associação com qualquer outra coisa” (TAMBLING, 2010, p. 12. Tradução
livre)48. Ademais, numa alegoria, é necessário que “as abstrações que determinam o sentido
alegórico procurado sejam de imediata compreensão” (CEIA, 1998, p. 02). As diferenças entre
a metáfora e a alegoria serão desenvolvidas em maiores detalhes nos próximos tópicos deste
capítulo, mas podemos trazer de antemão a perspectiva de Ceia (1998, p. 03), que afirma que
Além desses autores, encontramos uma definição em Le Goff e Schmitt (2006, p. 89),
que destacam que “a procura do sentido oculto ou no texto ou na aparência, ocupa lugar
considerável no pensamento e na arte literária da Idade Média”. Através de uma retomada às
tradições clássicas, considera-se que a Antiguidade pagã, por meio da mitologia, ascendeu o
uso das personificações enquanto recursos poéticos e as desenvolve com a retórica clássica.
Nesta, encontramos uma dupla definição acerca das alegorias, podendo ser uma metáfora
prolongada, como afirma Quintiliano, ou um tropo (dizer algo para significar outra coisa), como
defendem Agostinho e Isidoro de Sevilla (LE GOFF; SCHMITT, 2006, p. 89). Na Idade Média,
os textos sagrados, que incluem as parábolas de Jesus e os textos do Velho Testamento, seriam
48 “[...] it creates a sense of a resemblance which is not consciously remarked on, nor is it developed later by
association with anything else”.
80
também uma forma de propagar o uso das alegorias, posto que buscam extrair diferentes
sentidos que teriam a finalidade de defender uma verdade cristã.
Essa questão dos diferentes sentidos atribuídos à própria concepção de alegoria vai de
encontro ao que Tambling (2010, p. 11) enfatiza acerca da leitura da alegoria ter sido um
verdadeiro obstáculo a uma resposta imediata a um texto, causando a perda do seu sentido
literal, o que provocou determinado descaso, por bastante tempo, por parte dos medievalistas
ao minimizarem a importância da presença das alegorias nos textos medievais. Ainda segundo
esse autor, a alegoria tem um conjunto amplo de significados, porém, eles foram modificados
nos últimos anos com o avanço dos estudos literários e culturais, motivo pelo qual não existe
um consenso geral a respeito de sua abordagem.
49 “It is an allegorical mode, providing concrete forms for complex, abstract ideas which it makes recognizable”.
82
principalmente na cultura egípcia e nas intenções dos seus hieróglifos, sendo esta a primeira
aparição da alegoria como forma de desvendar significados e de tornar compreensível à
população as intenções contidas nessas imagens. A este fato associa-se também a aproximação
das alegorias com o âmbito da religiosidade, característica que está fortemente presente no
cristianismo medieval, que se porta em busca da verdade divina, imutável e simples. Na Grécia,
por sua vez, a alegoria exercia a função de renovadora de sentidos, compondo um movimento
de resgate dos mitos de Homero.
Importa mencionar que, conforme Ceia (1998, p. 04), até a Idade Média, “a alegoria
serviu de instrumento de defesa de teólogos, que recorreram às interpretações alegóricas da
Bíblia para superarem todas as dúvidas heréticas”. Isto foi consequência do uso da linguagem
alegórica como meio para alcançar um modelo de perfeição, tornando-a uma extensão da
exegese bíblica (SOUKI, 2006, p. 97).
Estruturada para fins religiosos, a linguagem alegórica medieval passou a ser parte da
vida religiosa desde o início da Idade Média, prolongando-se até o ápice da produção literária
dos místicos dos séculos XIII e XIV. Foi concebida, dessa forma, como uma “mediadora da
relação entre Deus e os homens”, sendo a linguagem prioritária dos místicos e místicas. No
âmbito clerical, encontramos referências à Igreja na literatura teológica com nomes alegóricos,
tais como Aurora, Cidade, Arca, dentre outros. Segundo Ceia (1998, p. 04),
Santo Agostinho ensinou que a Bíblia devia ser lida de forma alegórica: “No Velho
Testamento, o Novo Testamento está dissimulado; no Novo Testamento, o Velho
Testamento é revelado”. Para o Autor de A Cidade de Deus, a alegoria não está nas
palavras, mas deve ser encontrada nos acontecimentos históricos. Ao homem não é
permitido o conhecimento literal e imediato das Escrituras, pois só por um sentido
segundo o homem se poderá aproximar (mas nunca chegar totalmente) da Verdade
divina.
83
É preciso considerar, ademais, que Tomás de Aquino também elabora reflexões acerca das
alegorias, estabelecendo distinções entre a alegoria teológica (não ligada à retórica, mas, sim, à
visão de mundo) e a alegoria secular (literária).
Quanto ao caráter retórico das alegorias, podemos afirmar, assim como defende Ricoeur
(2015, p. 53), que
a retórica não pode ser esgotada em uma disciplina puramente argumentativa, pois
está voltada para o ouvinte, e não pode, portanto, deixar de considerar o caráter do
falante à disposição da audiência; em poucas palavras, ela permanece na dimensão
intersubjetiva e dialogal do uso público do discurso, donde resulta que a consideração
das emoções, das paixões, dos hábitos e das crenças continua a ser da competência da
retórica, mesmo que ela não deva suplantar a prioridade do argumento verossímil,
pois o argumento propriamente retórico dá conta ao mesmo tempo do grau de
verossimilhança relativo à matéria discutida e do valor persuasivo relativo à qualidade
do falante e do ouvinte.
Caetano (2007, p. 72) afirma que a alegoria retórica “refere-se à oposição entre sentido
próprio e figurado, este último a metáfora, caracterizada como desvio do sentido literal”.
Diferentemente do proposto em Ricoeur (2015), a metáfora aqui seria parte da classificação da
alegoria, e não a alegoria como parte da família da metáfora. Todavia, esta alegoria retórica
possuiria dois sentidos, um próprio (inteligível) e um figurado (sensível), tal como afirma
Ricoeur (2015). Assim, o ponto principal e a chave para partirmos para uma melhor
compreensão dos usos das alegorias por parte da mística de autoria feminina, sobretudo em O
Espelho, é o fato de que a alegoria retórica “é mimética e configura, ao mesmo tempo, um
procedimento intencional da autoria” (CAETANO, 2007, p. 72).
Porém, considerando o contexto medieval do uso das alegorias, e tendo em mente sua
importância no cotidiano e na cultura da Idade Média, percebe-se que essa divisão,
desenvolvida também por Hansen (2006), diz muito mais a respeito da visão que se tinha do
mundo e das coisas criadas por uma entidade divina do que essencialmente sobre uma cultura
literária medieval. Isto significa que entender as alegorias medievais é voltar-se para uma
sistematização de como o indivíduo do período enxergava o mundo, lidava com os
acontecimentos e representava-os, bem como buscava interpretá-los.
84
enigmas por meio do discurso”, mas de maneira que apenas o sentido alegórico se sobressaia
(COSTA; ZDEBSKYI, 2017, p. 30).
Porém, é importante destacar que o ponto de vista dos estudos históricos considera a
literatura, principalmente a medieval, não fictícia,
É considerado, dessa maneira, o mito, sendo a ideia de alegoria ligada aos movimentos
transculturais existentes na História. O aspecto de desconsiderar a ficcionalidade do texto
medieval traz problemáticas em torno do conceito de literatura e de como podemos realizar um
estudo dentro da perspectiva literária em torno de um texto de autoria medieval. Neste ponto, é
preciso retomar os fatores que fazem de uma obra ser ou não literária e, com isso, repensar
pontos de vista históricos, discursivos, e até mesmo literários.
O conceito de literatura pode ser discutido sob vários pontos de vista. Deixa-se de lado,
neste momento, a ideia de literatura enquanto conjunto de textos escritos, pois esta visão limita
os estudos literários medievais à ideia de que os textos são meramente documentos históricos,
principalmente pelo caráter teocêntrico do indivíduo medieval, que acreditava no decorrer dos
acontecimentos conforme a vontade divina. Desta forma, representar esses acontecimentos por
meio da palavra seria uma forma de expressão da realidade vivida no medievo. Porém, como
bem afirma Eagleton (2019, p. 01), acreditar que a literatura é uma escrita imaginativa, apenas
86
relacionada à ficção, não procede como definição eficaz. Portanto, se a literatura não é apenas
ficção, podemos afirmar que, mesmo que não exista ficcionalidade nos textos medievais, como
defende-se na perspectiva histórica e retórica, ainda assim podemos falar de uma literatura
medieval.
Eagleton (2019) revela-nos que definir literatura através da distinção entre “fato” e
“ficção” é uma abordagem que tende a levar ao pensamento de que a história, a filosofia e as
ciências naturais seriam destituídas de imaginação, dado ao fato de que não são construídas
sobre os alicerces da ficção, mas, sim, dos fatos. Podemos, dessa maneira, pensar na literatura
como o emprego da linguagem de forma peculiar, mas não no sentido puramente formalista da
aplicação da técnica e do fato material, tal como uma máquina; pelo contrário, a obra literária
é um veículo de ideias e uma reflexão sobre a realidade social (EAGLETON, 2019, p. 04).
se é certo que muitas das obras estudadas como literatura nas instituições acadêmicas
foram “construídas” para serem lidas como literatura, também é certo que muitas não
o foram. Um segmento de texto pode começar sua existência como história ou
filosofia, e depois passar a ser classificado como literatura; ou pode começar como
literatura e passar a ser valorizado por seu significado arqueológico. Alguns textos
nascem literários, outros atingem a condição de literários, e a outros tal condição é
imposta. Sob esse aspecto, a produção do texto é muito mais importante do que o seu
nascimento. O que importa pode não ser a origem do texto, mas o modo pelo qual as
pessoas o consideram. Se elas decidirem que se trata de literatura, então, ao que
parece, o texto será literatura, a despeito do que o seu autor tenha pensado.
(EAGLETON, 2019, p. 13)
Fala-se, portanto, de uma literatura medieval que possui construções complexas, bases
profundas e possibilidades interpretativas diversas. Ricas de intencionalidade, as obras
medievais, mesmo imbuídas no pensamento teocêntrico, também carregam reflexões políticas
e questionamentos acerca do seu entorno. Quando citamos o fenômeno dos movimentos
religiosos do século XIII, por exemplo, notamos que toda produção veiculada por esses grupos
tem suas reivindicações morais, políticas e religiosas. A partir do momento em que o texto
sagrado, a Bíblia, deixa de ser exclusivo e passa a ser democratizado por esses grupos, ou seja,
passa por processos de releitura, podemos afirmar que a literatura medieval ganha ainda mais
força e, em certo ponto, acessibilidade.
seria a instrução. Deplagne (2020), em seu trabalho intitulado O parto de Christine: o exercício
do diálogo retórico como construção do conhecimento no livro A Cidade das Damas (1405),
de Christine de Pizan, ao abordar a obra de Christine de Pizan, afirma que a questão retórica,
neste caso, pareceria ser o ponto principal de identificação do objetivo dos escritos, posto que
revela ao leitor a audiência para a qual se destinam e seu conteúdo.
Hansen (2006) traz até nós um ponto de vista importante quando tratamos acerca de
textos religiosos, ou fundamentados em textos sagrados. Inicialmente, o autor destaca que a
interpretação cristã é essencialista, ou seja, o texto é a revelação da Verdade divina e esta se dá
por meio de enigmas. Neste ponto, podemos dizer que a questão é de ordem prática, pois é
relacionada à recepção do texto; enquanto um leitor poderia enxergar, em um determinado
contexto, a “má aplicação de regras retóricas, outro ouviria a Voz da Coisa” (HANSEN, 2016,
p. 15).
Partindo dessa questão, o autor menciona que a confusão entre aplicação de regras
retóricas e o foco na Palavra é fator semelhantemente realizado pelos românticos, os quais
88
definem o símbolo como categoria oposta à alegoria. Nesse período, a alegoria é considerada
do particular para o universal, ao passo que o símbolo seria um paradigma e elemento único,
tendo significação imediata (exemplo: a cruz, que simboliza a crucificação de Jesus e é
associada diretamente ao cristianismo). Desta forma, tem-se que o símbolo manifesta-se do
externo para o interno, ao passo que a alegoria manifesta-se do interno para o externo, na
perspectiva romântica.
Por outro lado, retoricamente, deve-se pontuar que a alegoria diz b para significar a,
dividindo-se em dois níveis, o da designação concretizante (b) e o da significação abstrata (a)
(HANSEN, 2006, p. 17). Neste plano duplo, a alegoria admite novos significados,
diferentemente do símbolo, que é estanque; nesse processo de admissão, pode-se realizar
transposições: “o significado da designação b pode ser totalmente independente do significado
da abstração a [...]” (HANSEN, 2006, p. 16-17). Sendo assim, a maior diferença entre a alegoria
para os românticos e a alegoria para as tradições anteriores é a universalidade do símbolo e a
particularidade da alegoria, ambos sendo inversamente proporcionais, onde “o símbolo é o
universal no particular; a alegoria, o particular para o universal” (HANSEN, 2006, p. 17).
É possível, ainda, perceber que Hansen (2006) concorda com os românticos no quesito
discursivo, quando estes acreditam que ele é sempre sucessivo e anacrônico. Neste aspecto, o
fato de a tradição romântica considerar a arte como expressão do artista, ou seja, uma atividade
realizada no campo da inspiração e dos sentimentos, leva a crer que a alegoria é, sobretudo,
uma convenção retórica, podendo distanciar o artista de seu processo artístico. Por ser
convenção, e por estar ligado à retórica, acreditou-se, por muito tempo, que a alegoria era
mecânica, posto que fora desenvolvida primordialmente pelos clássicos, ao passo que a criação
romântica seria orgânica.
Neste sentido, importa destacar que Hansen (2006) traz o ponto de vista de Lukácks,
que julga, por meio de seu historicismo, a alegoria como um modo inferior e que deveria ser
89
superado. A crítica feita por Lukácks gira em torno da ideia de que a alegoria seria do domínio
das artes da Transcendência, ou seja,
das artes cujo sentido está dado fora delas, na Eternidade. Tal concepção significa que
o artista contemporâneo é formalista, quando alegorizante, pois opera com uma forma
vazia a que não mais corresponde nenhuma transcendência num mundo de fragmentos
e mercadorias ou, ainda, porque propõe reacionariamente a transcendência num
mundo em que ela é ideologia. [...] Lukács generaliza para toda alegoria o que
historicamente se aplicaria apenas à alegoria medieval. (HANSEN, 2006, p. 21)
A alegoria medieval seria, de certa forma, uma temporalidade datada, percepção que é
generalizada, por Lukács, por todos os tempos da História. As alegorias medievais, mais
especificamente, serão tratadas no segundo tópico deste capítulo, pois se faz necessário
compreendê-la em diferentes níveis e por meio de exemplos, como bem menciona Tambling
(2010)50.
Porém, seguindo para o conceito de alegoria dos poetas, Hansen (2006, p. 29) explicita
que, segundo Quintiliano, a alegoria pode representar a) “uma coisa (res) em palavras e outra
em sentido”, ou b) “algo totalmente diverso do sentido das palavras”, ou seja, arbitrário. Para
a, estariam incluídos a metáfora, o enigma e a comparação, ao mesmo tempo em que, em b,
estariam o provérbio, a contradição, o sarcasmo e a ironia, que seria um tropo de oposição, pois
afirma uma coisa, mas quer dizer outra. Neste sentido, Hansen (2006) também acrescenta a
paródia, pois possui caráter representativo ou mimético, mas desmente o que expõe, sendo, da
mesma forma, um tropo de oposição. Portanto, para Quintiliano, a alegoria é um tropo
(transposição).
50 Tambling (2010, p. 19) afirma ser possível analisar as alegorias clássicas e medievais por meio de quatro
maneiras, trazendo-nos a ideia de uma alegoria quádrupla (há quatro maneiras diferentes de interpretar um texto).
Em segundo lugar, seria possível interpretar um texto pela ideia de que a alegoria atua como um véu; por fim,
também haveria a terceira e última possibilidade, que é a da leitura figurativa do texto.
90
Esta alegoria retórica, ou alegoria dos poetas, considera que o tropo implica o sentido
figurado e o literal (sem figuração). Seria, assim, “o tropo de salto contínuo”, significando que
“toda ela apresenta incompatibilidade semântica, pois funciona como transposição contínua do
próprio pelo figurado. Por isso, ela é também uma espacialização prevista do inteligível (ou
próprio) no sensível (ou figurado)” (HANSEN, 2006, p. 31). O significado ausente vai, desta
maneira, tornando-se presente no enunciado, conforme sua aparição acontece. É válido ainda
mencionar a definição de alegoria enquanto metáfora continuada, a qual Quintiliano afirma ser,
sintaticamente falando, “um diagrama da significação do discurso” (HANSEN, 2006, p. 43).
Seria dividida, portanto, em três níveis: a) um sentido literal (referencial ou descritivo); b) um
sentido figurado (associativo ou conceitual); e c) outro sentido literal ausente (“substância”
temática) (HANSEN, 2006, p. 44).
Além desses fatores, a alegoria dos poetas teria certas “virtudes”, sendo duas delas a
brevidade e a clareza discursivas, principalmente para tornar o discurso ainda mais verossímil.
Quando à regra da clareza, ela
é mesmo o critério central da classificação retórica dos tipos de alegoria. É ela também
que determina os graus de maior ou menor aceitabilidade nas operações de abstração
seletiva nas matérias do discurso, da combinação ou associação das suas partes, da
ampliação ou engrandecimento de ações e objetos e, enfim, da metamorfose ou
produção de efeitos de “maravilhoso”. (HANSEN, 2006, p. 44)
Atrelado a isto, Hansen (2006, p. 45) lembra que a alegoria dos poetas, unida ao discurso
retórico, também pressupõe uma técnica do bem dizer, considerando que “o discurso antigo é
principalmente oral”. Portanto, os discursos seguem modelos de constituição, não sendo
diferente quanto ao uso das alegorias.
Por outro lado, a alegoria dos teólogos, ou alegoria hermenêutica, seria “uma técnica de
interpretação que decifra significações tidas como verdades sagradas em coisas, homens, ações
e eventos das Escrituras” (HANSEN, 2006, p. 91). Neste ponto, temos duas perspectivas
91
diferentes. Primeiramente, a alegoria greco-romana, que nos traz a ideia de que o mundo é um
objeto de representação própria e figurada.
Assim, sendo a alegoria hermenêutica ligada à noção de que a poesia e a prosa são os
meios pelos quais o mundo é representado, ela considera que as coisas, signos na ordem da
natureza, são também revelações. Portanto, se nos textos sagrados são designados
acontecimentos, coisas e pessoas todos significando verdades morais, então a leitura desses
signos, ou seja, sua prática interpretativa, deve ser sempre ligada ao sentido espiritual das
figuras alegóricas, distanciando-se das palavras, que são o maior foco da alegoria dos poetas.
É válido salientar que esta esquematização trazida por Hansen (2006) é explicitamente
ligada às leituras dos indivíduos medievais, que, segundo Pernoud (1996, p. 195), não tinham
a noção de liberdade individual; na Idade Média, ela não aparece como um direito absoluto,
mas, sim, como um resultado de acúmulo de terras ou bens. Neste sentido, sendo os indivíduos
medievais centrados no lar, na família, na paróquia ou no grupo ao qual pertence (PERNOUD,
1996, p. 197), não seria uma novidade perceber que, quando se tratando da interpretação de
escritos realizada por uma parcela importante da sociedade, que são os padres e teólogos, o foco
seria no acontecimento e no curso divino das coisas, impossíveis de serem modificadas.
É dessa maneira que a interpretação alegórica dos teólogos relê “o Mesmo em suas
variações temporais minuciosas, pois Deus é Causa e Coisa e a natureza e a história são seus
efeitos e signos” (HANSEN, 2006, p. 92). Assim, é essencial destacar que
51 Segundo Hansen (2006, p. 92), “em que o sentido próprio também é discurso e pressuposto do figurado”.
92
Salvação. Os signos falam; mas, no excesso de sentido absoluto que é Deus, são
paradoxalmente mudos e vazios: falam fazendo falar o silêncio Dele revelado em
coisas, homens e eventos; têm sentido porque o Sentido está fora deles, na Eternidade,
orientando-os providencialmente como umbra futurorum, sombra das coisas futuras.
A interpretação inscreve a história humana no paradigma teológico da Queda: a
referência inatingível do discurso é a língua adâmica que se falou antes de Babel. O
instrumento da interpretação é a analogia, segundo a qual as imagens são uma
imitação que participa em Deus através da expressão. Deus, perfeição suprema, é a
ordem; o homem conhece a ordem, imitando a perfeição e expressando-a; as coisas
recebem a ordem, participando da analogia divina quando realizam na sua substância
uma Lei que elas mesmas não conhecem, mas que Ele imprime nelas. Assim, como
ato do conhecimento, a interpretação é capaz de desvendar tal Lei, uma vez que o
homem imita e expressa. (HANSEN, 2006, p. 94)
Quanto às leituras dos teólogos, podemos imaginar que as marcas de Deus nos textos
eram lidas com base em três perspectivas diferentes, ou graus de proximidade, sendo elas a
sombra, o vestígio e a imagem. Respectivamente, temos uma imagem criada (e confusa) de
Deus, ou seja, uma figuração primária; em seguida, evidencia-se uma distinção da figura divina,
o que seria uma figuração mais distante; e, por fim, uma figuração definitiva, distinta e próxima
do sentido de Deus.
A imagem, nesse ponto de vista, seria “toda propriedade da criatura”, quer dizer, causa
e objeto. Portanto, a interpretação alegórica dos teólogos, feita como tipologia 52, dá-se em três
níveis diferentes, conforme a aproximação entre o que está sendo dito e Deus (quanto mais
próximas deste, mais associado à imagem). Sendo assim, importa tratar de forma sucinta acerca
das alegorias dos pontos de vista de Fletcher (1970) e Franco Jr. (2008), sendo o primeiro
relativo à busca das alegorias nas figuras das personagens e nos gêneros textuais e, o segundo,
aos princípios de similitude do pensamento analógico medieval.
2.1.2 Os usos das alegorias nos gêneros textuais e o pensamento analógico medieval
Fletcher (1970), em seu trabalho intitulado Allegory: the theory of a Symbolic Mode,
retoma a discussão das alegorias com base nas personagens as quais ele chama de heróis
alegóricos. Partindo dos questionamentos acerca de quais seriam as coisas que essas
personagens deveriam realizar, ou qual comportamento deveriam aderir, para serem
considerados alegóricos, o autor conclui que sua questão principal é sobre qual o modo de uma
ficção alegórica, como deixa explícito nas primeiras páginas de seu estudo. Tratando-se da
Idade Média, é notório que não podemos pensar numa teoria da alegoria dentro do campo
52 No método tipológico, idealizado por Orígenes (séc. II d.C.), o mundo físico funciona como um espelho do
mundo material. Esta visão foi, assim, aderida pelos padres primitivos e predominou na Idade Média.
93
Iniciando sua argumentação, Fletcher (1970) traz a definição simples de que a alegoria
diz uma coisa para significar outra, assim como os demais teóricos vistos até então. Porém, ele
acrescenta que a alegoria “destrói a expectativa normal que temos sobre a linguagem, de que
nossas palavras ‘significam o que dizem’” (FLETCHER, 1970, p. 02. Tradução livre) 53. Desta
forma, podemos imaginar que o leitor está diante de um horizonte de expectativas que, quando
se deparando com os elementos alegóricos, tem seu caminho subvertido pela própria linguagem.
É por este motivo que o autor afirma que a alegoria é considerada um modo, pois é “um processo
fundamental de codificação de nossa fala. Pela própria razão de ser um procedimento linguístico
radical, pode aparecer em todos os tipos de trabalhos diferentes [...]”, e, por isto, não pertence
a um único gênero textual, podendo ser utilizadas em poesias, prosas, textos dramáticos,
tratados, ou seja, todos os gêneros (FLETCHER, 1970, p. 02. Tradução livre) 54.
Quanto à Idade Média, Fletcher (1970, p. 05) afirma que as alegorias, presentes nos
textos sagrados e repassados através das homilias e dos exórdios dos padres, iam para casa com
seus ouvintes, a exemplo das parábolas que chegavam até eles e eram motivo para reflexão
acerca do sentido oculto. Difere, portanto, da alegoria que chega ao leitor moderno, que tem
acesso aos romances e passa pelo processo de atribuição de significado às alegorias através de
outra intencionalidade, a qual, no medievo, era essencialmente moral. Entretanto, mesmo
reconhecendo a presença de um sentido oculto, ele afirma que
devemos evitar a noção de que todas as pessoas devem ver o duplo sentido, para que
a obra seja corretamente chamada de alegoria. Pelo menos num ramo da alegoria, o
enigma irônico serve a propósitos políticos e sociais pelo próprio fato de que uma
autoridade reinante [...] não vê o significado secundário da “língua de Esopo”. Mas
alguém vê esse significado e, uma vez visto, é fortemente sentido como a intenção
final por trás do significado primário. (FLETCHER, 1970, p. 08. Tradução livre) 55
Neste mesmo caminho, afirmamos que a linguagem figurada nunca pode ser
compreendida totalmente no momento presente em que é utilizada, sendo, portanto, impossível
53 “It destroys the normal expectation we have about language, that our words ‘mean what they say’”.
54 “In this sense we see how allegory is properly considered a mode: it is a fundamental process of encoding our
speech. For the very reason that it is a radical linguistic procedure, it can appear in all sorts of different works
[...]”.
55 “[...] we must avoid the notion that all people must sec the double meaning, for the work to be rightly called
allegory. At least one branch of allegory, the ironic aenigma serves political and social purposes by the very fact
that a reigning authority (as in a police state) does not see the secondary meaning of the ‘Aesoplanguage’. But
someone does see that meaning, and, once seen, it is felt strongly to be the final intention behind the primary
meaning”.
94
desassociar o uso alegórico da linguagem aos seus propósitos políticos e seu potencial de
subversão. Talvez seja devido a este aspecto que as alegorias também têm seus sentidos como
alvo de posse de determinados grupos dominantes, a exemplo das leituras das Escrituras
conforme o que a Igreja direciona.
Seguindo mais adiante, ainda é notório afirmar que Fletcher (1970, p. 26. Tradução
livre) traz a concepção de que as alegorias seriam como “agentes”. Para desenvolver esta noção,
o autor afirma que os agentes podem exercer sua função em dois tipos diferentes, sendo
56 “[...] is a primarily historical matter, since it concerns romantic conceptions of the mind, and of ‘imagination’
in particular”.
95
destinados a “representar ideias abstratas ou a representar pessoas reais e históricas” 57. Para tal,
as alegorias teriam agentes, a exemplo das abstrações personificadas, ou seja, as
personificações, que “podem criar uma personalidade diante de nossos olhos, mas criam uma
aparência de personalidade” (FLETCHER, 1970, p. 27. Tradução livre) 58. O processo de
personificação, nesta perspectiva, seria de tipo inverso, posto que o poeta transforma ideias em
pessoas reais, ao passo que, quando são personificações de pessoas históricas, o procedimento
seria de figuração ou tipologia.
O que podemos destacar, a fim de compreender o ponto de vista do autor e como ele se
aplica nas leituras dos textos medievais, é que os agentes alegóricos – as personificações – são
considerados seres reais por seu poder de representação, mesmo que façam referência a ideias
e estejam relacionadas ao domínio da subjetividade. As personificações, por serem
materializações das ideias, requerem, portanto, limites sobre seus atos, podendo agir apenas
com outros agentes semelhantes (FLETCHER, 1970, p. 32). Existe, portanto, um controle da
mensagem transmitida pela personificação.
Para enfatizar ainda mais essas características acerca dos agentes alegóricos, Fletcher
(1970) compara o processo de personificação com o comportamento de uma pessoa que estaria
possuída por um demônio. Ele afirma:
Neste sentido, o que este teórico traz de diferente é a noção de que a alegoria moral,
muito utilizada na Idade Média, seria uma “interpretação dramática de disputas entre virtudes
e vícios”, sendo, por este motivo, a agência demoníaca semelhante à alegórica. Ademais, o
autor compara essa situação com a relação entre as virtudes no sentido cristão (pureza) e no
sentido pagão (força), sendo aplicável em ambos os casos (FLETCHER, 1970, p. 41). Tradução
57 “The agency here is of two sorts: the agents are intended either to represent abstract ideas or to represent actual,
historical persons”.
58 “[...]they may not actually create a personality before our eyes, but they do create a semblance of personality”.
59 “Daemons [...] share this major characteristic of allegorical agents, the fact that they compartmentalize function.
If we were to meet an allegorical character in real life, we would say of him that he was obsessed with only one
idea, or that he had an absolutely one-track mind, or that his life was patterned according to absolutely rigid habits
from which he never allowed himself to vary”.
96
livre)60. Por motivos como esses, a teoria de Fletcher (1970) será aplicada na análise desta
pesquisa posteriormente, visto que fornece uma base para compreendermos o eixo de
significação das alegorias, ao mesmo tempo em que demonstra as diferenças entre elas e outras
formas metafóricas (e até mesmo o processo metafórico), além de considerar esses recursos
como agentes, não receptores.
Por outro lado, é preciso trazer à tona a compreensão acerca da ideia de similitude, muito
presente no debate historiográfico conceitual. A grande problemática envolta do debate acerca
das formas metafóricas está, dentre outras coisas, no imaginário, que seria, segundo Franco Jr.
(2008, p. 01), um “sistema de imagens verbais e visuais articulado segundo lógica própria”. É
a este processo, ligado a uma lógica própria, que o estudioso refere o pensamento analógico,
baseado em analogias. Conforme esta perspectiva, na Idade Média, o pensamento era articulado
segundo lógicas próprias e as manifestações do racionalismo eram limitadas ao espaço, ao
tempo e aos segmentos sociais. Neste sentido, pode-se afirmar que o desabrochar do
pensamento lógico iniciou-se após o século XII, coincidentemente, ou não, durante o momento
de desabrochar do criticismo como um todo, inclusive no âmbito da religião. Assim, a
população, majoritariamente cristã, passou muito tempo realizando conexões analógicas, tendo
a vida regida por este movimento de associação, criando-se o imaginário medieval61.
Sendo assim, considera-se que, mesmo com essa concepção, é cabível afirmar que o
indivíduo medieval não deixou de estabelecer laços afetivos entre as palavras (significante) e
aquilo que elas indicavam (significado), o que demonstra a inaplicabilidade da arbitrariedade
do signo, proposta pela Linguística moderna, na visão analógica medieval (FRANCO JR., 2008,
p. 02). Esta visão estava presente em todos os níveis culturais da Idade Média, incluindo a
cultura erudita e a vulgar, com vistas à compreensão de todos os grupos acerca dos textos
sagrados.
Dessa maneira, um pensamento baseado em analogias (do grego ana, que indica “por
meio de”, e legein, que indica “correspondência”, “assemelhar”) seria aquele que se fundamenta
60 “If moral allegory is the narrative or dramatic rendition of contests between virtues and vices, however, it will
inevitably be a contest between warring powers. By equating daemonic and allegorical agency, I believe we shall
be able to explain the relationship between virtue in its Christian sense of “purity” and in its original pagan sense
of “strength.” We can also easily enough describe non-Christian allegory”.
61 Hilário Franco (2008) ainda destaca que o pensamento analógico fora ignorado por boa parte dos historiadores
durante muitos anos, sendo de interesse apenas da teologia, pois não era reconhecido seu papel na sociedade
medieval. Isto se deve segundo dois motivos: por um lado, a ideia de que a Idade Média era uma Idade das Trevas
ou uma Idade da Fé, na qual não existia a razão; por outro, a aceitação da visão cristã medieval acerca do mundo,
uma visão unilateral que não relacionava as partes do mundo.
97
sobre a “transferência de propriedades de algo conhecido para outro menos conhecido”, ou seja,
que “gera conhecimento conectado com outros, e não apenas cumulativo” (FRANCO JR., 2008,
p. 02). Portanto,
Porém, é válido destacar que o fato de um tipo de pensamento ter prevalecido em função
de outro (o pensamento analógico em contraposição ao lógico) não significa, necessariamente,
que os dois não existissem durante o mesmo período, pois uma forma de decifrar o mundo não
exclui a outra, inclusiva na Idade Média (FRANCO JR., 2008, p. 04). Neste sentido, mesmo
com o uso de analogias, principalmente pelo princípio de similitude, o racionalismo era presente
na cultura medieval, posto que o cristianismo estimulara a visão lógica e linear de ver o mundo.
Em relação a esse impasse, é essencial citar que
Dessa maneira, levando em consideração os usos das analogias, faz-se preciso expor a
distinção entre símbolo e alegoria de acordo com o autor supracitado. Na visão de Franco Jr.
(2008), a alegoria seria, assim como para Aristóteles, uma metáfora prolongada, funcionando
como uma comparação entre dois elementos através de um. Por outro lado, o símbolo não funde
os elementos, preservando a identidade de cada um e evidenciando apenas pontos em comum.
São, respectivamente, homologias, pois possuem semelhança de estrutura, e analogias, pois
possuem semelhança de função. É importante compreender essa diferença, sobretudo para
98
analisar textos ligados ao cristianismo, que considera o mundo uma imagem dos modelos de
Deus materializados na Palavra:
O símbolo está para o sentimento assim como a alegoria para o pensamento: enquanto
a analogia é fundamento do símbolo e este expressão verbal e/ou visual daquela,
constituindo-se ambos em formas complementares de entrever a realidade intangível,
a alegoria é dedutiva, é conceitual, é construção de algo no lugar de outro. (FRANCO
JR., 2008, p. 05)
Portanto, para alcançar Deus, o inalcançável, era necessário, para o indivíduo medieval,
observar a natureza, palco das expressões do mundo divino no mundo humano (Modelo e
imagem). Sendo assim, o universo, grande rede de analogias, constituía-se como a presença de
Deus, à sua “imagem e semelhança”. Apesar disso, e voltando-nos para o fenômeno da alegoria
unicamente, reconhecemos que a identificação desta nos textos medievais é plausível a título
de exemplificação. Segue-se, então, para as manifestações das alegorias nos textos medievais.
Como destacado ao longo desta análise, as alegorias fazem parte da cultura literária
medieval, no sentido de que estão presentes também na forma de pensamento e de expressão
dos indivíduos. Neste tópico, o objetivo é percorrer pelos exemplos de usos das alegorias na
Idade Média e mencionar obras que fazem parte deste universo, mas indo além das Escrituras.
Podemos destacar, inicialmente, o Roman de la Rose, iniciado por Guillaume de Lorris e
finalizado por Jean de Meun entre o início do século XIII e o início do século XIV. Destaca-se,
nesta obra, a alegoria da rosa, associada às experiências de um Amante no Jardim das Delícias.
A rosa, nesta narrativa, é a mulher por ele desejada. No caminho para conquistar seu objeto de
desejo, e tendo como cenário este jardim, o Amante tem suas qualidades materializadas em
personificações, que o ajudam e estão presentes no cenário como personagens.
62 Dante, seguindo as tendências clássicas, também tem uma concepção dupla de alegoria, que pode ser, segundo
ele “alegoria dos poetas” (a verdade escondida sob a ficção) e a “alegoria dos teólogos (quando os níveis literal e
alegórico são verdadeiros) (TAMBLING, 2010, p. 23).
63 “Dante’s hollowed-out space within the mountainside of Purgatory is therefore syncretic, since it fuses together
two allegories. It borrows from the secular garden of The Romance of the Rose as well as from the spiritual garden
of the Song of Songs, as interpreted by Bernard of Clairvaux (who appears in cantos 32 and 33 of Dante’s Paradiso).
This plurality, that the garden is both secular and religious, adds to the ‘polysemous’ nature of the allegory”.
100
presença das damas – Razão, Retidão e Justiça – que guiam a autora, também personagem no
livro:
Erguendo a cabeça para olhar de onde vinha aquele clarão, vi elevarem-se diante de
mim três damas coroadas, de quão alta distinção. O esplendor, que de duas faces
emanava, arrojava-se sobre mim, iluminando todo o compartimento. Inútil perguntar
se fiquei deslumbrada, sobretudo porque as três damas conseguiram entrar, apesar das
portas estarem fechadas. (PIZAN, 2012, p. 54)
Por fim, ainda podemos mencionar que as alegorias nos textos medievais fizeram-se
presentes nas obras que teorizavam o gênero dos tratados místicos e tiveram como alicerce o
topos religioso do amor, tais como Psychomachia, de Prudêncio; Cosmographia, de Bernardus
Silvestris; De plancto naturae, de Alain de Lille; Didascalicon, de Hugo de Saint-Victor; dentre
outros, mostrando, assim, a devida presença das alegorias não apenas na forma de escrever o
mundo, mas, principalmente, de representá-lo, sobretudo no que tange ao mundo sensível.
(KOCHER, 2008, p. 166).
uma “aparência satisfatória” do texto (quando referido o estilo), e atuando sobre as emoções
dos juízes/audiência, demonstrando as verdades e, sobretudo, o caráter do orador.
É cabível acrescentar, ainda, que textos que são lidos como subversivos, ou seja, que
seguem um caminho contrário àquilo que se espera de uma obra escrita propagadora de ideias,
podem não ter sua subversão compreendida em sua própria contemporaneidade. Em casos como
estes, podemos mencionar que textos como o de Marguerite Porete, que teve suas
consequências e seu julgamento, são o contrário do que se esperava do gênero textual e do ciclo
social dentro do qual estavam inseridos.
Philosophia, Ecclesia, Frau Minne, Dame Nature, Dama Razão, e a lista continua.
(NEWMAN, 2005, p. 01. Tradução livre)65
Newman (2005) ainda reforça que a presença dessas deusas têm sido um constrangimento para
os medievalistas, pois são estudadas por meio de perspectivas distintas. Tem-se os estudos
literários, que as tratam como “personificações ou construções ideológicas”; os historiadores
da arte, que enxergam sua iconografia; e os teólogos históricos, que não desenvolvem tantos
trabalhos a respeito delas.
Distanciando-nos do debate acerca do porquê dessa proliferação, que não direciona aos
objetivos principais desta pesquisa, destacamos que as deusas medievais, construídas, em
termos textuais, metaforicamente e sendo expressas de forma alegórica, compartilham
semelhanças familiares. Sendo todas elas criações da imaginação cristã, Newman (2005) afirma
que, por serem símbolos sagrados, podiam ser tomadas com diversos graus de seriedade, pois
65 “[...] saints belonged to the realm of belief, pagan gods to that of make-believe. Mythography had no use for
St. Catherine, nor did hagiography require Apollo, unless a virgin was denouncing him on the way to her
martyrdom. But the third pantheon, the allegorical goddesses, mingled freely with both of the others. The God of
medieval Christendom was father of one Son but many daughters: Sapientia, Philosophia, Ecclesia, Frau Minne,
Dame Nature, Lady Reason, and the list goes on”.
66 “If we neglect this dimension, we may take the goddesses' presence for granted and forget to ask why they
should have proliferated in the high Middle Ages, appearing in such prominent roles in such a variety of contexts”.
103
Mesmo tendo em conta a importância de nos atermos às deusas, estas não seriam as
únicas formas alegóricas presentes em textos medievais. Importa destacar sua presença devido
ao grande uso delas nos textos de autoria feminina, que não dispensaram as personificações
representadas por mulheres, muitas vezes atribuindo o aspecto masculino apenas à figura de
Deus. Nesta direção, convém destacar algumas indagações de Newman (2005) a respeito dessas
figuras.
67 “Like other sacred symbols, goddesses could be taken with varying degrees ofseriousness: at times they
dwindled to the status ofrhetorical tropes, and some writers used them parodically. But in the most imaginative
and provocative texts, both Latin and vernacular, they add an irreducible fourth dimension to the spiritual universe.
As emanations of the Divine, mediators between God and the cosmos, embodied universals, and not least,
ravishing objects of identification and desire, the goddesses substantially transformed and deepened Christendom's
concept of God, introducing religious possibilities beyond the ambit ofscholastic theology and bringing them to
vibrant imaginative life. How they did so will be the subject ofthis book”.
68 “[...] women suffer marginalization similar to that of the colonized because of gender difference”.
104
Portanto, ao destacar que o que é privado pode ser deslocado para o domínio público, a
autora afirma que uma literatura “menor” pode expressar as diferenças que a constituem
enquanto produzidas por uma minoria (na Idade Média, seria primordialmente o gênero). Uma
literatura menor refere-se, nesta perspectiva, a uma literatura minoritária dentro de uma língua
maior, o que promove uma singularidade política e revolucionária.
69 “Marginalization by gender, nation, race, and class within a culture, ongoing and never ending, results in the
loss of articulation of meaning in everyday life and, therefore, requires continuing opposition, or subversion”.
105
vernáculas em obras medievais que expressam desejos de mudanças e buscam ocupar espaços,
sobretudo por serem essas as línguas do povo.
Ao mesmo tempo, o fato de, por exemplo, existirem mulheres que traduziram seus textos
para o latim (“língua maior”), como Marguerite Porete, ou mesmo aquelas que escreveram em
latim, mesmo fazendo parte do âmbito clerical, como Hildegarda de Bingen, é um aspecto que
demonstra a valoração de ideias semelhantes e de desejos de mudanças que se aproximam entre
si. É nesta direção que corroboramos com Chance (2007, p. 04), ao afirmar que
uma literatura menor não precisa necessariamente se aplicar apenas aos povos
deslocados dentro de uma cultura. As mulheres medievais inscreviam uma literatura
menor em vários sentidos, independentemente de “menor” refletir a escrita de uma
minoria, o que as mulheres medievais certamente eram; ou escrever em uma língua
importante, como o latim, em que suas contribuições foram relativamente menores
em número do que as de escritores eclesiásticos do sexo masculino, embora estudos
recentes tenham demonstrado quão abundantes foram; ou escrever em uma tradição
linguística que era tanto patriarcal quanto de gênero e, portanto, necessariamente
representativa de sua autoridade em uma voz menor dentro dessa língua. (Tradução
livre)70
Ainda mencionando o ponto de vista de Chance (2007), a língua latina na Idade Média
protagonizou uma misoginia implícita, posto que o patriarcado controlava o processo de escrita
especificamente nesta língua, não sendo à toa que os métodos legais em torno da pregação feita
por pessoas que não eram da Igreja levaram à perseguição de inúmeros religiosos tidos como
70 “A minor literature need not necessarily apply only to displaced peoples within a culture. Medieval women
inscribed a minor literature in several senses, regardless of whether “minor” reflects the writing of a minority,
which medieval women certainly were; or writing in a major language, such as Latin, in which their contributions
were relatively fewer in number than those of ecclesiastical male writers, although recent scholarship has
demonstrated how plentiful they were; or writing in a linguistic tradition that was both patriarchal and gendered
and, therefore, by necessity representative of their authority in a minor voice within that language”.
106
hereges. Assim, a misoginia medieval teve seu apoio cultural e teológico. O peso do uso da
língua latina na Idade Média em relação à sua sustentação da misoginia e generalização do
feminino “restringiu o acesso masculino às mulheres e, portanto, a autonomia das mulheres,
principalmente quando [elas] ocupavam funções eclesiásticas” (CHANCE, 2007, p. 06.
Tradução livre)71.
71 “[...] restricted male access to women and, therefore, women’s autonomy, especially when women occupied
ecclesiastical roles”.
107
(FUNCK, 2016, p. 20). Logicamente, as questões que envolvem essa ausência na Idade Média
são ligadas aos problemas que pontuamos até aqui, e não se aplicam totalmente à situação
contemporânea. Porém, destacamos a ausência dos estudos dessas obras, situação que também
vem sendo modificada nos últimos anos e já se encontra em um cenário bastante evoluído.
Ainda a respeito da literatura feita por mulheres, defendemos que, por ser observada
“como texto (objeto criado) ou como musa (inspiração), a mulher escritora não encontra uma
tradição em que se apoiar e, sim, uma socialização na qual o ato de escrever lhe é apresentado
como alheio à sua natureza” (FUNCK, 2016, p. 72), intensificando uma tradição literária
masculina. Estes fatores, aplicáveis à Idade Média (visto que as mulheres, de fato, não eram
introduzidas no ambiente da escrita), reforçam a ideia de que “a mulher precisa quebrar a
tradição e obter autonomia ou autoridade criadora por meio de uma dupla subversão: subversão
da linguagem e subversão da estrutura narrativa” (FUNCK, 2016, p. 73).
[...] a consciência das mulheres de que pertencem a um grupo subalterno; que sofreram
injustiças como grupo; que sua condição de subordinação não é natural, mas
determinada pela sociedade; que devem se unir a outras mulheres para remediar esses
erros; e, finalmente, que eles devem e podem fornecer uma visão alternativa da
organização social na qual tanto as mulheres quanto os homens desfrutarão de
autonomia e autodeterminação. (LERNER, 1993, p. 14. Tradução livre)72
Portanto, fazer o resgate de um texto que foi escrito por uma mulher durante a Idade
Média é um movimento de reconhecimento de que existiu uma consciência feminista em torno
da criação dessas narrativas. Levando em consideração as alegorias, elas são usavas como
estratégias narrativas para a elaboração de argumentos que alcancem sua audiência, com fins
de persuasão, mas também demonstrando um grande domínio sobre a criação literária, os textos
fundamentais (no caso, as Escrituras), o gênero textual escolhido e a estrutura linguística.
72 “[...] the awareness of women that they belong to a subordinate group; that they have suffered wrongs as a
group; that their condition of subordination is not natural, but is societally determined; that they must join with
other women to remedy these wrongs; and finally, that they must and can provide an alternate vision of societal
organization in which women as well as men will enjoy autonomy and self-determination”.
108
dos teólogos, pois, como destacado, realizavam interpretações alegóricas dos textos sagrados
para limitar o campo de leitura e superar qualquer sinal de heresia.
Assim, sendo parte da vida religiosa medieval, a linguagem alegórica foi prioritária
também pelas místicas, sobretudo por ser mediadora das relações entre os indivíduos e Deus,
sempre usada intencionalmente e de acordo com as circunstâncias. Quanto a Marguerite Porete,
destacam-se alguns aspectos (que desenvolveremos no próximo capítulo) que fazem com que
o uso da linguagem alegórica seja fator de construção de um discurso subversivo, sendo eles a
acessibilidade do texto pelo gênero escolhido, o uso da língua vernácula, a exploração (e
formação) de imagens comuns ao público a quem se dirige, o caráter oral, a tradução 73 e a
difusão.
73 Segundo Bodden (2011, p. 16. Tradução livre), “as traduções (vernáculas) eram atos políticos. Envolvem a
escolha de um significado dentro de toda a gama semântica disponível para uma determinada palavra”.
109
Seguindo este raciocínio, a maioria das escritoras medievais acharam necessário deixar
evidente ao leitor sua indignidade:
Hildegard de Bingen, uma das mulheres mais cultas de seu século, referia-se a si
mesma como “ignota”, uma mulher ignorante. Metchthild de Magdeburg também
assegurou ao leitor sua simplicidade e ignorância de aprendizado. Juliana de Norwich,
a poderosa mística inglesa, usava quase a mesma língua, chamando-se de
“unlettyrde”, com o que provavelmente queria dizer que não tinha instrução em latim,
a língua dos homens instruídos. Enquanto místicos e místicas usavam o argumento de
sua própria ignorância, o “topos da humildade”, como os críticos literários o
designam, o mesmo não era verdade para as desculpas quase inevitáveis com que as
escritoras prefaciavam seu trabalho. (LERNER, 1993, p. 51. Tradução livre)75
74 “The female mystics rather submerged the self in order to become open to ecstatic revelations. They saw
themselves as insignificant instrumets through which the power of God is manifested, ‘God’s little trumpet’, as
Hildegard referred to herself. The search for na authentic self had to take different forms for women than it did for
men, since for men authority was assumed, while for women it was utterly denied. Thus each woman asserting
authority was a self-defined freak and had to deal with that fact in her writing before her audiences could be open
to her language and thought”.
75 “Hildegard of Bingen, one of the most learned women of her century, referred to herself as ‘ignota’, an ignorant
woman. Mechthild of Magdeburg similarly assured the reader of her simplicity and ignorance of learning. Julian
of Norwich, the powerful English mystic, used almost the same language, calling herself ‘unlettyrde’, by which
she probably meant that she was uneducated in Latin, the language of learned men. While both male and female
mystics used the argument of their own ignorance, the ‘humility topos’, as literary critics designate it, the same
was not true for almost inevitable apologies with which women writers prefaced their work”.
110
literária masculina. Uma prova disto é a preferência das autoras, por exemplo, a outros gêneros
literários além daqueles preferidos pelos homens, tais como o poema épico heroico e a poesia
erudita. Além disso, observa-se a natureza da linguagem como dupla (o latim e a língua
materna) como veículo de aculturação de gênero que silencia as mulheres, exigindo que existam
outras formas de lidar com a linguagem dentro dos textos, incluindo a adesão a outros gêneros
textuais.
Chance (2007), ao citar a teoria da complexidade proposta por Laurie Finke em Feminist
Theory, Women’s Writing, fala a respeito da técnica da heteroglossia 76, que seria fundamentada
na identidade e nos textos escritos (as produções culturais da sociedade). Contrapondo a voz
monolítica do patriarcado, Finke observa a heterogeneidade das formações socioeconômicas e
dos interesses dos diferentes grupos, relacionados às práticas hegemônicas que suavizam ou
reprimem os conflitos (CHANCE, 2007, p. 09).
Com isso, sua teoria reconhece a história como “produto de uma supressão de conflito
e discórdia, oposições dominadas – cologando [...] a ‘textualidade da história e a historicidade
da textualidade’” (CHANCE, 2007, p. 09. Tradução livre) 77. De forma sintetizada, podemos
pensar no uso do termo “caça furtiva”, proposto por Michel de Certau, que diz respeito às
estratégias que minam as práticas culturais hegemônicas e permitem que os que não são
empoderados manipulem as suas condições de existência, tudo por meio de um encontro
dialógico desestabilizador entre códigos que se contrapõem, que são conflitantes (CHANCE,
2007).
Por fim, partindo para a análise do Espelho das Almas Simples, as estratégias
identificadas nas escritoras medievais compartilham um denominador implícito dentro do texto,
como propõe Chance (2007), o qual varia em natureza de codificação a ventriloquismo e
“bodytalk”. Segundo a autora, “a codificação incorpora o texto estrategicamente com códigos
literários, como imagens simbólicas e recursos retóricos, como eufemismo, elisão, ironia e
hipérbole para efetuar uma ‘poética do silêncio’, ao mesmo tempo em que o ventriloquismo
“fora as personagens femininas de meios ocultos de exercício de poder”, personagens estas que
exibem um “bodytalk”, que seria um “discurso dúplice resistente”, ou seja, “um discurso tanto
social quanto cultural e reflexivo de sistemas de gênero repressivos; o outro discurso a voz
76 Conceito proposto por Bakhtin que significa que a fala de outro na língua de outro deve expressar as intenções
desse falante, porém de forma desviada.
77 “[...]the theory has also to acknowledge history as the product of a suppression of conflict and discord,
overpowered oppositions––put elegantly, the “textuality of history and the historicity of textuality”.
111
feminina encarnada que perturba e revolta” (CHANCE, 2007, p. 09. Tradução livre) 78. Sendo
assim, seguiremos adiante com o poder subversivo do discurso alegórico no corpus desta
pesquisa.
78 Encoding embeds the text strategically with literary codes such as symbolic images and rhetorical features such
as understatement, elision, irony, and hyperbole to effect a “poetics of silence”. Ventriloquism endows women’s
female characters with concealed means of exercising power. Such female characters exhibit a “bodytalk”
(“resistant doubled discourse”): one discourse both social and cultural and reflective of repressive gender systems;
the other discourse the embodied female voice that disrupts and riots.
112
CAPÍTULO 3
O incômodo gerado pela obra de Marguerite deu-se, sobretudo, ao alto nível crítico que
a autora traz para sua audiência e ao uso do conhecimento teológico restrito ao clero. Além
destes aspectos, e sendo um dos mais importantes, temos o fator da autoria feminina como
impulsionador de medidas legais contra o livro e sua autora, e o uso da língua vernácula, porém
também traduzindo-a para o latim e outras línguas.
personagens fazem menções constantes aos ouvintes e incluem figuras de poder relativos ao
período, tais como mercadores, teólogos e, até mesmo, as beguinas. É de se destacar, inclusive,
a presença de um capítulo final unicamente voltado para a comprovação da autorização da obra,
onde podemos encontrar as palavras proferidas por três homens religiosos, já mencionados
anteriormente, cujas opiniões têm peso sobre a importância desse livro e do entendimento dele.
3.1 O Espelho das Almas Simples: a construção do discurso poretiano através das
alegorias
O Espelho das Almas Simples e Aniquiladas pode ser considerado um dos textos mais
subversivos da literatura francófona medieval. Seu discurso, construído em torno de uma
narrativa mística completamente alegórica e misturando diversos gêneros a fim de formar o que
podemos nomear de “tratado místico”, é fundamentado na fusão de diversos paradoxos, gerando
inovações no modo de expressão, que não são encontrados em outros textos de objetivos
semelhantes.
Kocher (2008, p. 03. Tradução livre) 79 afirma que O Espelho “é um texto elaborado
tanto para performance oral quanto para leitura privada, e não por acaso se dirige a públicos
inscritos que incluem tanto ‘leitores’ quanto ‘ouvintes’”. Quanto a este aspecto, nota-se que sua
linguagem é baseada na visualização das imagens ditas à audiência, ou seja, fazendo das
alegorias um fator determinante na interpretação por parte dos ouvintes. O caráter retórico é,
desta forma, essencial e auxiliado por meio das personificações, que seriam ramificações das
alegorias sobre as quais o livro se sustenta.
Nessa direção, tem-se que a obra gira em torno de três personificações alegóricas
principais: a Dama Amor, que alegoriza o amor divino e, diversas vezes, é o próprio Deus; a
Dama Razão, que alegoriza a Igreja enquanto instituição e, portanto, faz o papel de antagonista;
e a Alma, que representa aqueles que decidem seguir pelo caminho de unir-se a Deus, sendo a
personagem que decide os caminhos trilhados e expõe suas impressões acerca dos sete estágios
de aniquilamento de seu próprio eu. Dentre essas três principais personagens – as quais
podemos considerar como formas alegóricas das hierarquias tanto sociais quanto espirituais (e
aqui consideraremos que existe uma hierarquia divina, no sentido de que a Alma está na base,
ao passo que Deus está no topo) e que estão relacionadas entre si – destacamos, de forma
sistematizada, as seguintes personificações que surgem ao longo da narrativa:
79 “[...] it is a text crafted for oral performance as well as for private Reading, and not incidentally adresses
inscribed audiences that include both ‘readers’ and ‘listeners’”.
115
Quadro 1 – Personificações
As personificações surgem como personagens que sustentam o discurso por trás de cada
alegoria principal. Assim, podemos destacar que, no primeiro exemplo (Dama Amor), as
personificações giram em torno daquilo que irá não apenas caracterizar o que seria o amor
divino, mas também quais são os elementos que o compõem. Tem-se, além disso, uma
flexibilidade maior quanto ao gênero das personagens, sendo o amor personificado tanto no
masculino quanto no feminino, o que não aparece, por exemplo, no Roman de la Rose, no qual
o amor é uma personificação masculina, devido ao próprio gênero da palavra em francês, que
seria um substantivo epiceno.
A respeito da Alma, Kocher (2008, p. 05) cita Amy Hollywood (1995), que afirma que
Em outras palavras, a Alma é, ao mesmo tempo, personagem e cenário, sendo este observado
por todos os ouvintes/leitores da obra, que tem por função natural guiar outras Almas ao
aniquilamento.
80 “The Mirror, like the Romance of the Rose, brings the genre of personification allegory in its macrocosmic
dimension together with the tradition of psychological personification found in the romances. The Soul is both a
character in a lerger drama, that of the movement of created beings to the divine, and the arena where that drama
takes place”
116
O Espírito Santo: – [...] pode-se bem dizer que aquele que pede com frequência é
pequeno ou pobre, mesmo que não peça grande coisa. Pois todo o estado, qualquer
que seja, é apenas um jogo de bola ou uma brincadeira de criança comparado ao estado
supremo do nada querer, o estado no qual os liberados permanecem sem se afastarem.
Pois aquele que é liberado em seu reto estado não pode nem recusar, nem querer, nem
prometer nada em troca de algo que alguém lhe poderia dar; pelo contrário, daria tudo
para manter a lealdade. (PORETE, 2008, p. 110)
Por não seguir uma estrutura linear, o livro conta com uma série de repetições e duplos
sentidos, incluindo saídas e revisitações de temas por meio de imagens que se cruzam e que,
por vezes, voltam e são ditas por diferentes vozes. O tema no aniquilamento, por exemplo, é
primeiramente apresentado de forma implícita no capítulo 4, quando Dama Amor finaliza seu
ato afirmando que “[...] notai que aquele que viesse a ter a caridade perfeita, seria mortificado
nos afetos da vida do espírito por obra da caridade” (PORETE, 2008, p. 35), para que, no
capítulo 5 (Da vida que se chama paz da caridade na vida aniquilada), a mesma personagem
possa enfim detalhar de que maneira se daria a vida aniquilada:
Amor: – Mas há uma outra vida, que chamamos paz da caridade na vida aniquilada.
Dessa vida queremos falar, perguntando se podemos encontrar:
I. uma alma
II. que se salva pela fé e sem obras.
III. que é somente no amor,
IV. que nada faz por Deus,
V. que nada deixa de fazer por Deus
VI. a quem nada pode ser ensinado,
VII. ou dado,
IX. e que não tem nenhuma vontade”. (PORETE, 2008, p. 35-36)
117
Para cada ponto mencionado pela Dama Amor, a preocupação com a definição do
aniquilamento é exposta novamente apenas no capítulo 11, quando a Dama Razão demonstra
ser desprovida de compreensão e leva a Dama Amor a repetir os mesmos conceitos ao longo
do livro. Esse é um exemplo de organização retórica exercida por Marguerite, cujo objetivo é
evidenciar, a cada repetição, o quanto o ouvinte/leitor precisa compreender os sentidos de suas
palavras.
Ainda realizando o convite, Marguerite adianta ao público a quem se dirige que a Razão,
a partir do capítulo 13 do livro, tem a função de ser contrária, porém sem envergonhar-se, ao
que seria o verdadeiro caminho da Alma. Neste ponto, a alegoria da Dama Razão enquanto
representante dos ideais opostos abre espaço para que Marguerite se aproprie da imagem de
Deus na Dama Amor:
Era uma vez uma donzela, filha de um rei de grande e nobre coração, e nobre
coragem também, que vivia num reino distante. Aconteceu que essa donzela ouviu
falar da grande cortesia e nobreza do Rei Alexandre e logo passou a amá-lo em
virtude do grande renome de sua gentileza. Contudo, essa donzela estava tão
distante de seu grande senhor, em quem fixou seu amor, que não o podia ver ou
ter. Estava então inconsolável, pois nenhum amor exceto esse a satisfaria. Quando
viu que esse amor longínquo, tão próximo dentro dela, estava tão distante
externamente, a donzela pensou consigo mesma que poderia confortar sua
melancolia imaginando alguma figura de seu amor, que continuamente teria em seu
coração. Ela mandou pintar uma imagem que representava o semblante do rei
que amava, a mais próxima possível daquela que se apresentava a ela em seu amor
por ele e no afeto amoroso que a havia capturado. E, por meio dessa imagem e de
outros artifícios, ela sonhava com o rei. (PORETE, 2008, p. 31-32. Grifos nossos)
O fato de a obra iniciar com formas alegóricas de linguagem demonstra que, dentre os
elementos de composição da narrativa, estão os três planos de enunciação, identificados por
Valette (2012) como diferentes organizações e desdobramentos das vozes em variados níveis
discursivos, sendo o amor divino o princípio dessa construção. Porém, cabe-nos uma digressão
importante antes de nos atermos a esses planos. As alegorias são utilizadas intencionalmente
por Marguerite a partir da escolha do gênero specula, “espelho”, que tem sua própria existência
e nomenclatura como parte de um processo metafórico.
O elemento do “espelho”, que também dá título à obra, demonstra inicialmente para quê
o livro é feito e a quem está sendo designado. Naturalmente, por ser um exempla, é direcionado
àqueles que buscam o conhecimento acerca da espiritualidade e, conforme o ponto de vista do
discurso de Porete, àqueles que são capazes e que se abrem para tal. Ao aconselhar uma relação
direta com Deus, estabelece-se uma relação diferente com a ideia de espelho e a obra é colocada
como substituta da própria Bíblia. Segundo a perspectiva de Lefebvre (2019, p. 01. Tradução
livre)82, O Espelho
O espelho, elemento que dá título à obra e ao gênero, lembra, assim, um objeto reflexivo,
de representação e confusão (LEFEBVRE, 2019). Neste caso, importa mencionar que esse
espelho, enquanto objeto, era de difícil acesso e de menor qualidade, sobretudo por ser feito de
cobre. Ao permitir ver o que não conseguimos ver, na Idade Média ele simbolizou o pensamento
na identidade do indivíduo e no saber relacionado ao outro, inclusive Deus. A respeito disto, o
autoconhecimento entra em questão, principalmente por passar primeiramente pelo
81 “The text uses four gender pairings to represent the spiritual relationship between the Soul and God: with a
feminine lover of a masculine beloved (often), a masculine lover of a masculine beloved (rarely), a feminine lover
of a feminine beloved (often), and a masculine lover of a feminine beloved (rarely)”.
82 Pour développer cette pensée théologique complexe, le Mirouer se construit autour d’une rhétorique, d’un mode
discursif et d’un usage du français qui rappellent le roman et sa conception de la fin’amor. [...] représente donc à
la fois ce verre flou qui sépare l’homme du monde céleste, mais également ce cristal transparent qui rappelle que
l’homme est produit à la semblance de Dieu et qu’il est donc non seulement son image, mais le reflet de ce Dernier,
comme le microcosme est le reflet d’un macrocosme. Enfin, il faut noter que la part allégorique du texte ne tient
pas qu’à un discours anagogique ou qu’aux influences courtoises, mais également au titre lui-même, Le Mirouer,
qui rappelle l’objet matériel réflexif, à la fois objet de représentation et objet de confusion.
120
conhecimento visual, o que, segundo Lefebvre (2019, p. 01. Tradução livre) 83, era bastante
parcial na Idade Média:
Além disso, a alegoria do espelho também perpassa pela questão da distância que existe
entre a pessoa e o reflexo. Dessa forma, há um desejo de romper a superfície para unir-se à
imagem projetada, mas esta superfície é o mediador entre ambos (pessoa e reflexo). Seria esta,
então, a intenção de Marguerite, já levantada no Prólogo, no qual a donzela chega, como
observamos, a pintar o rosto do rei Alexandre, mas ainda assim há intermediários entre eles,
sendo por isso que ela não consegue encontrá-lo ou vê-lo.
Amor: – Vós, filhos da Santa Igreja, para vos ajudar fiz este livro, a fim de que ouçais
para melhor valorizar a perfeição da vida e o estado de paz ao qual a criatura pode
chegar pela virtude da caridade perfeita, a criatura a quem esse dom é dado pela
Trindade toda; escutareis esse dom exposto nesse livro pelo Entendimento do Amor
que responderá às perguntas da Razão. (PORETE, 2008, p. 33)
O segundo plano seria referente à apresentação do amor como tema literal e figurado da
narrativa, tendo em vista que o Prólogo adianta a temática do livro e demonstra, inicialmente,
que, mesmo sendo a Alma aquela que será ativa em busca de Deus, a alegoria principal é a do
amor divino (em comparação ao amor mundano), representada pela Dama Amor. Assim,
encontramos um paradoxo: ao passo que a Dama Amor é quem escreve o livro e narra o
aniquilamento da Alma, a Alma também tem seu papel principal como representante daqueles
que deixam de ser escravos das Virtudes e passam a ensinar aos ouvintes, guiando o roteiro da
história, posto que Amor narra justamente sua trajetória. Acreditamos que este paradoxo seja
intencional na medida em que a Alma, em seu sétimo estágio, permanece aniquilada no Amor,
havendo sentido em existir contínuos desdobramentos de roteiro.
83 Le miroir pose donc un problème identitaire, en soulignant l’inadéquation entre l’être et la représentation: il
partage un espace réel avec l’être, tout en jouant sur la distance qu’il opère entre l’ici et l’ailleurs représenté par le
reflet du réel.
121
[...] O Espelho é feito para ser aprofundado e vivenciado. A viagem que nos oferece,
que se explica com um método rigoroso, não se transcreve, no entanto, de forma
linear, mas sim por idas e vindas, voltas e desvios que fazem cintilar através deste
Espelho, ora um aspecto, ora outro, até que nos guie à liberdade total. [...] este modo
de ir e vir conforta-nos com a certeza, a grande coerência que traz à escrita, certeza e
coerência que nunca se traem da primeira à última linha do livro. (SALÉ, 2013, p. 40.
Tradução livre)84
Indo mais adiante, afirma-se que, considerando o exemplo de amor mundano oferecido
aos leitores como guia para a experiência do amor divino, Marguerite utiliza histórias presentes
no imaginário medieval, sendo a do Prólogo muito relativa ao Roman d’Alexandre, de
Alexandre de Paris, datado do final do século XII:
Alma (que escreve este livro): – [...] ouvi falar de um rei de grande poder, que era por
gentil cortesia, por grande cortesia de nobreza e generosidade, um nobre Alexandre.
Mas ele estava tão distante de mim, e eu dele, que não sabia como me consolar. E para
que eu me lembrasse dele, ele me deu este livro que representa de alguma maneira o
seu amor. Contudo, ainda que eu tenha a sua imagem, não estou menos num país
estranho, distanciada do palácio onde vivem os mais nobres amigos desse senhor, que
são completamente puros, perfeitos e livres graças aos dons desse rei com quem
permanecem. (PORETE, 2008, p. 32)
84 “Elle parle uniquement par expérience et Le Miroir est fait pour être approfondi et expérimenté. Le parcours
qu’elle nous propose, qui est expliqué avec une rigoureuse méthode, n’est cependant pas transcrit avec une forme
linéaire, mais plutôt par des va et-vient, des tours et des détours qui font miroiter à travers ce Miroir, tantôt un
aspect, tantôt un autre jusqu’à nous guider à la liberté totale. [...] cette façon d’aller et revenir nous réconforte de
par la certitude, la grande cohérenceque cela apporte à l’écrit, certitude et cohérence qui ne se trahissent jamais de
la première jusqu’à la dernière ligne de l’ouvrage”.
122
Essa forma de iniciar o texto, sobretudo por fazer a auto-referência quanto à escrita do
livro por parte da Alma, que toma sua autoria emprestada, denota uma preocupação com o uso
do discurso em prol da formação de uma narrativa na qual a Alma já está em sua posição
desejada e busca ensinar aos ouvintes como acontece o processo. Utilizando, portanto, a dor da
dama por seu amante, a autora utiliza os recursos da imagem: a representação (pintura) da
imagem mental que a dama tem sobre o rei que nunca foi visto, e que apenas toma conhecimento
de sua reputação. Encontramos, assim, a ausência do corpo e a tradução da palavra para a
imagem através do sentimento, que percorre toda a narrativa e molda a relação estabelecida
entre a Alma e Deus. (KOCHER, 2008, p. 87)
O tema central do livro, denotado pela parábola do Rei Alexandre, é um caminho para
termos a primeira ideia da forma com a qual as alegorias serão trabalhadas no discurso de
Porete. As temáticas que ela explora, neste sentido, giram em torno do amor, da nobreza, das
relações de gênero, da representação, das diferenças sociais (hierarquias), do sistema político e
de produção econômica. Portanto, por meio da palavra, podemos encontrar essas temáticas nas
figuras alegóricas principais da obra: Dama Amor, Dama Razão e Alma. Sendo assim,
partiremos para tratá-las individualmente.
3.1.1.1 A Alma
Essa afirmação é possível a partir do momento em que consideramos que a Alma, além
de representar todos aqueles que são tocados por Deus e passam pelo despojamento, faz parte
de uma hierarquia de poderes, sendo dependente do amante, ao mesmo tempo em que busca
ativamente por ele. Quanto a essa ausência de passividade, podemos dizer que Porete subverte
o esperado dentro de um escrito místico (ou seja, uma alma que aguarda seu amado), da mesma
forma em que faz uma alusão crítica possível à vida em confinamento, muito propagada pela
123
Igreja. Neste ponto, encontramos uma função da alegoria explicitada por Fletcher (1970), que
afirma que essa destrói a expectativa normal que possuímos a respeito da linguagem e do
significado das nossas palavras.
Essa alma tem seis asas, como os Serafins. Ela não deseja nada que venha por um
intermediário. Esse é o estado próprio dos Serafins: não há nenhum intermediário
entre o seu amor e o amor divino. Eles recebem sempre sua mensagem sem mediação
e o mesmo ocorre com essa alma, pois ela não busca a ciência divina entre os mestres
deste século, mas ao verdadeiramente desprezar o mundo e a si mesma [...].
(PORETE, 2008, p. 36)
Para enfatizar o que busca essa Alma, o discurso poretiano utiliza, então, outra forma
alegórica, que tem sua primeira aparição no seguinte diálogo:
Amor: – Essa Alma [...] não se importa com vergonha nem honra, com pobreza nem
riqueza, com bem-estar ou ansiedade, com amor ou ódio, com inferno ou paraíso.
Razão: – Ó, por Deus, Amor, o que quer dizer isso?
Amor: – O que quer dizer? [...] Certo, isso somente aquele a quem Deus deu o
entendimento o sabe e nenhum outro, pois nem as Escrituras o contêm, nem a
sabedoria humana o compreende, nem o trabalho de uma criatura lhe permite
entender, ou compreender, mas esse dom vem do Altíssimo para o qual essa criatura
é arrebata pela plenitude da compreensão, e nada permanece em seu entendimento
[...]. (PORETE, 2008, p. 38-39)
É desta maneira que a Dama Razão, introduzida por meio da dúvida, pois não compreende as
palavras de Amor, é utilizada para que a narrativa tenha como foco inicial a compreensão acerca
da Alma e do que é preciso para entendê-la.
Quanto às hierarquias, afirmamos que elas são um dos pontos principais desenvolvidos
por Porete e, possivelmente, foco de sua narrativa. Além das próprias protagonistas serem
figuras alegóricas, encontramos menções às relações econômicas e religiosas do período e do
contexto no qual a obra estava situada. Um primeiro exemplo dessas alegorias de cunho social
pode ser visto no seguinte trecho, iniciado por uma fala da Dama Amor:
[...] A Caridade não pede recompensa a nenhuma criatura por algum bem ou prazer
que tenha proporcionado.
124
[...] A Caridade é uma mercadora tão sábia que ganha em todos os lugares, lá onde
os outros perdem, e escapa das correntes às quais os outros se prendem, garantindo
assim a multiplicação do que agrada ao Amor. (PORETE, 2008, p. 35. Grifo nosso)
Alma: – Eu vos confesso, dama Amor: houve um tempo em que assim estive, mas
agora é um outro tempo; vossa cortesia me libertou dessa servidão. Por isso agora
posso bem lhes dizer e cantar:
Virtudes, de vós me libertei para sempre,
Terei agora o coração mais livre e mais feliz;
Vosso serviço é muito constante, bem o sabeis.
Em vós coloquei meu coração por um tempo, sem nada reter;
Sabeis que a vós totalmente me abandonei;
Fui uma vez vossa serva, mas agora me libertei. [...]
De vossa dominação, que tanto me afligiu, me livrei.
Nunca fui tão livre, exceto longe de vós;
De vossa dominação parti, em paz repousei. (PORETE, 2008, p. 38. Grifo nosso)
Assim, percebe-se que a Dama Amor toma para si um posicionamento explícito acerca
da Alma: ela defende que a Alma possui esses dons pelo fato de não possuir nada daquilo que
se compreende por caminho divino. Dessa forma, a alegoria da Alma é desenvolvida a partir da
ausência da vontade. Por estar aniquilada de todos os seus desejos e sentimentos, “a vontade,
que lhe dava o desejo, está morta” (PORETE, 2008, p. 39). Esta condição é estimulada pelo
fato de que, para aproximar-se de Amor, as almas aniquiladas precisam não ter vontade, além
de viver da Compreensão, do Louvor e de Amor, transformadas, na narrativa, em
personificações que aparecem para dar ênfase ao entendimento da Alma. Dessa maneira, são
Almas que não possuem um julgamento acerca de si próprias, o que demanda num
distanciamento do status de salvação ou condenação, bem defendido pela Dama Amor: “essas
Almas não sabem se considerar boas ou más, não têm mais a compreensão de si mesmas, e não
sabem mais julgar se estão salvas ou condenadas” (PORETE, 2008, p. 41).
Além dessas menções ao que caracteriza a ideologia cristã proferida pelo clero
medieval, o discurso poretiano apresenta que a Alma perde sua vontade e seu desprezo, de
forma que “não deseja nem despreza pobreza e tribulação, missa e sermão, jejum e oração, e dá
à Natureza tudo o que é necessário, sem remorso de consciência” (PORETE, 2008, p. 42).
Fazendo estas associações entre o funcionamento do sistema econômica do período,
possivelmente bem compreendido pelos interlocutores, Porete aproxima sua reivindicação em
torno das hierarquias ao seu público. Ao expor, em uma sentença, status social e dogmas
institucionais, a Alma passa a ser uma figura alegórica que representa a ausência necessária
desses elementos para os indivíduos.
125
Da mesma maneira, utiliza como forma de validação a Dama Amor, que possui o
entendimento divino e defende a contradição com o que defendem os clérigos. Podemos citar,
desta forma, o momento em que esta Dama contraria a ideia de pecado:
(Amor): – Assim, tal Alma não tem nenhuma inquietação em relação ao pecado que
tenha cometido, nem esperança em alguma coisa que possa fazer, senão somente na
bondade de Deus. E o tesouro secreto dessa bondade a aniquilou de tal forma
internamente, que ela está morta para todos os sentimentos, de dentro e de fora, à
medida que tal Alma não realiza mais nenhuma obra, nem por Deus, nem por ela, e
assim a todos os seus sentidos perdeu nessa prática, a ponto de não saber como buscar
ou encontrar Deus, nem como a si mesma conduzir. (PORETE, 2008, p. 89).
Importa destacar que muitas das características da Alma são dadas pela Dama Amor,
mesmo que seja a Alma a detentora de um conhecimento não humano e necessário aos ouvintes.
Enfatiza-se, ao longo da narrativa, o aspecto da ausência de compreensão das personagens que
fazem parte do conjunto de ideias proferidas pela Razão, da qual falaremos nos próximos
tópicos. Não obedecendo mais às Vontades, que são do domínio da Razão, a Alma agora
obedede ao Amor: “Razão: – A quem, então ela pertence? / Amor: – À minha vontade [...], que
a transformou em mim” (PORETE, 2008, p. 65). É nesse processo que percebemos a alegoria
da Alma fundamentada na ideologia central do amor cortês e das trocas hierárquicas da
sociedade medieval da região pela qual circulou a obra.
em ausência. Utiliza-se, dessa maneira, uma relação por metáfora (semelhança), dada por meio
das alegorias:
Luz da Fé: – E para esse propósito vos diremos [...] como faremos comparações com
esse Sacramento para que entendais melhor.
Tomai esse Sacramento, colocai-o num pilão junto com outras coisas e triturai esse
Sacramento até que não possais mais ver nem sentir a Pessoa que aí colocastes.
(PORETE, 2008, p. 55)
Amor: – [...] Se estas Almas, que assim são, tivessem alguma coisa – e pouca gente
sabe onde elas estão, mas é necessário que elas existam pela justa bondade do Amor,
para sustentar a fé da Santa Igreja –, portanto, se elas tivessem alguma coisa e se
soubessem que outros teriam mais necessidade do que elas, elas não a reteriam de
forma alguma, ainda que estivessem certas de que a terra nunca mais traria o pão,
o trigo ou outro sustento. (PORETE, 2008, p. 60. Grifos nossos)
desenvolve sua argumentação através de um resgate histórico das perspectivas em torno das
hipóteses a respeito do porquê do gênero feminino nas personificações.
Inicialmente, Newman (2005, p. 36) explana o posicionamento de Paul Piehler, que fala
a respeito da constituição de uma experiência psíquica central na alegoria medieval por meio
da manifestação das deusas em cenários transcendentais, ou seja, da ordem do sensível. A
hipótese mais antiga acerca dessas manifestações teria sido de Joseph Addison, em 1721, que
notou o predomínio das formas femininas e atribuiu este fato às normas gramaticais. Segundo
Newman, nesta perspectiva,
Dessa maneira, é notório o posicionamento de Newman (2005, p. 37), que traz a ideia
da falta de uma persona nas alegorias das deusas. Isto significa afirmar que essas alegorias
femininas são mais abstrações que necessariamente pessoas, o que leva muitos estudiosos a
considerarem que existe um processo de feminização da própria retórica. Porém, a autora sugere
que feminino não está obrigatoriamente no mesmo nível de mulher; desta forma, não estaríamos
falando de representações de mulheres, mas de modos de imaginação religiosa (NEWMAN,
2005, p. 38).
Portanto, são pontuadas quatro proposições a respeito das funções religiosas dessas
deusas medievais (e, naturalmente, da Dama Amor):
85 [...]abstract nouns in Latin take the feminine gender, so when artists and poets wished to personify virtues they
necessarily represented them "in petticoats". Addison attributed the fairly late appearance of male personifications
to the decay of grammatical inflection in the European vernaculars.
128
Primeiro, [...] as deusas floresceram porque era muito mais seguro teologizar sobre
elas do que sobre a Trindade. Em segundo lugar, as deusas eram capazes de mediar
vários tipos de experiência religiosa, ou acesso ao Divino, que não podiam ser
facilmente acomodados dentro da estrutura da doutrina escolástica ou pastoral.
Terceiro, o uso de figuras de deusas permitiu que os escritores sondassem a mente
divina e analisassem os conflitos internos de Deus, por assim dizer, da mesma forma
que a alegoria os capacitava a dramatizar os conflitos humanos. Finalmente, tanto
autores masculinos quanto femininos usaram deusas para atender a necessidades
psicológicas e culturais específicas de gênero, que variavam consideravelmente de
caso para caso. (NEWMAN, 2005, p. 39. Tradução livre)86
Compreendida dessa forma, a Dama Amor, quem escreve o livro, tem sua imagem bem
definida por Porete a partir do início do livro, que tem por abertura o discurso desta mesma
dama referindo-se à audiência. É preciso destacar, inicialmente, que a Dama Amor, ao contrário
da Alma, ocupa uma posição hierárquica semelhante à de Deus na narrativa, ao passo que a
Alma ocupa uma posição mais baixa, sendo necessário passar por sete estágios de
aniquilamento para que possa, finalmente, alcançar o nível de Deus. Nota-se a insistência do
discurso poretiano em evidenciar a Dama Amor como detentora de poderes na narrativa, sendo
ela a representante de tudo aquilo que é desejado por aqueles que compõem a audiência – e que,
naturalmente, não são capazes de seguir os mesmos passos da Alma, pois esta não tem mais
desejo.
Ocupando a posição de Bem Amado, Dama Amor pode ser encontrada de diferentes
formas na narrativa. Existem passagens em que sua identidade é distanciada da figura masculina
de Deus, sendo estabelecida uma diferenciação entre o próprio Deus e a imagem da Dama
Amor: “[...] Pois Ele é tudo em tudo, onipotente, onisciente e a bondade total. É nosso pai,
nosso irmão e nosso bem-amado leal. Ele não tem começo. É incompreensível fora de si mesmo.
Ele não tem fim, três pessoas e um só Deus, tal é [...] o Bem-amado de nossa alma” (PORETE,
2008, p. 37). De forma semelhante, a própria Dama, que tem por função alegorizar o amor
divino e todos os caminhos que ele pode revelar às almas aniquiladas, caracteriza e define Deus
como uma terceira pessoa:
Amor: – Ela sabe [...] pela virtude da fé, que Deus é onipotente, todo sabedoria e
bondade perfeita e que Deus Pai realizou a obra da encarnação, e também o Filho e o
Espírito Santo. Deus Pai uniu a natureza humana à pessoa de Deus Filho, e a pessoa
de Deus Filho a uniu (a natureza humana) a si, e Deus o Espírito Santo a uniu a Deus
Filho. Portanto, o Pai tem em si uma única natureza, que é a natureza divina; e a pessoa
86 First, [...] goddesses flourished because it was so much safer to theologize about them than about the Trinity.
Second, goddesses were able to mediate various types of religious experience, or access to the Divine, that could
not easily be accommodated within the framework of scholastic or pastoral doctrine. Third, the deployment of
goddess figures allowed writers to probe the divine mind and analyze God's inner conflicts, so to speak, in much
the same way that allegory enabled them to dramatize human conflicts. Finally, bothc male and female authors
used goddesses to meet gender-specific psychological and cultural needs, which varied considerably from case to
case.
129
do Filho tem em si três naturezas, isto é, a mesma natureza divina que o Pai tem, e a
natureza da alma e do corpo, e é uma pessoa na Trindade; e o Espírito Santo tem em
si a mesma natureza divina que o Pai e o Filho têm. [...] é um só poder, um só saber e
uma só vontade; um só Deus em três pessoas; três pessoas e um só Deus. Esse Deus
está em tudo de acordo com sua natureza divina, mas sua humanidade é glorificada
no paraíso, unida à pessoa do Filho como também ao Sacramento do Altar. (PORETE,
2008, p. 54-55)
Percebemos que, apesar da referência a Deus como uma terceira pessoa, a Dama Amor
é utilizada como um veículo de conhecimento das Escrituras e como forma de guia, com fins
pedagógicos. Além disso, é ela quem faz os movimentos de chamado à audiência, também
utilizando de lugares-comuns para aproximar-se dos ouvintes e levá-los a seguir o mesmo
caminho da Alma:
Amor: – [...] Entre vós, pequenos, que na vontade e no desejo pilhais vosso alimento,
desejai ser como ela é. Pois aquele que deseja o menos e não deseja o mais não é digno
da menor bênção de Deus, em virtude de sua covardia, na qual se deixa cair, e assim
parece que está sempre faminto. (PORETE, 2008, p. 66)
Dessa maneira, assim como a Alma desenvolve a narrativa por fazer referência àqueles
que passam por todas as hierarquias do conhecimento divino e, nesta direção, molda os rumos
da obra, Amor tem a função de buscar essas almas e convidá-las, utilizando uma linguagem
comum para os que são capazes de compreender e construindo imagens alcançáveis ao público.
Ademais, a estratégia retórica utilizada nas falas da Dama Amor demonstra a necessidade de
sempre reafirmar a posse que esta tem sobre o livro, no sentido de recorrer à sua posição de
representante de Deus:
Amor: – [...] Entendei essas palavras divinamente, por amor, ouvintes deste livro!
Esse Longeperto, que chamamos de centelha, por sua abertura e rápido fechamento,
recebe a Alma no quinto estágio e a coloca no sexto, à medida que sua obra se
manifesta e dura. Mas pouco dura o estado do sexto estágio, pois ela é reconduzida ao
quinto. (PORETE, 2008, p. 111. Grifo nosso)
[...] Agora entendei, diz Amor, o sentido profundo deste livro. Uma coisa vale tanto
quanto a apreciamos e pela necessidade que se tem, e não mais. Quando eu quis, diz
Amor, e quando me agradou e tive necessidade de vós (digo necessidade à medida
que vos convoco), vós me recusastes por vários de meus mensageiros. Ninguém o
sabe, exceto eu, somente eu. Eu vos enviei os Tronos para vos purificar e adornar, os
Querubins para vos iluminar e os Serafins para vos inflamar. Por todos esses
mensageiros vos convoquei, diz Amor, (e eles vos fizeram saber) para fazer a minha
vontade e realizar os estados do ser para os quais vos chamo, mas nunca fizestes conta.
Ao ver isso, diz Amor, vos deixei por vossa própria conta para vos salvar. Se me
houvésseis obedecido, seríeis diferentes, por vosso próprio testemunho. Mas vos
salvareis por vós, contudo isso será numa vida aprisionada por vosso próprio espírito,
que nunca estará sem algum encargo. Pois não obedecestes às minhas mensagens e
às Virtudes, quando eu quis, por meio de tais mensagens, emancipar vosso corpo e
libertar vosso espírito; também porque, diz Amor, não me obedecestes quando vos
chamei por meio das sutis Virtudes que vos enviei, e por meus Anjos, por meio dos
quais argumentei convosco, não posso mais vos dar o direito da liberdade que tenho,
pois a justiça não o pode fazer. Se houvésseis obedecido, diz Amor, quando vos
chamei para a vontade das Virtudes que enviei, e por meus mensageiros por meio das
130
Razão: – Mas quem sois vós, Amor? [...] Acaso não sois uma das Virtudes conosco,
mesmo que acima de nós?
Amor: – Eu sou Deus, diz Amor, pois Amor é Deus e Deus é Amor, e essa Alma é
Deus por condição do Amor. Eu sou Deus pela natureza divina e essa Alma é Deus
pela justiça do Amor. Assim, essa minha preciosa amada é ensinada e guiada por mim,
sem ela, pois ela foi transformada em mim e, por isso, diz Amor, porta o meu
ensinamento. (PORETE, 2008, p. 65)
A Dama Razão, caracterizada por sua ignorância, acreditando ser Amor uma das
virtudes que devem ser seguidas pelas almas, leva a Dama Amor a esclarecer sua verdadeira
posição e sua função na narrativa. Neste momento, sua identidade é a própria identidade de
Deus e da Alma, que foi transformada nela. Como afirma Kocher (2008, p. 101):
Os personagens chamados Deus, Amor e Alma são difíceis de separar, embora muitas
vezes falem de forma independente. [...] Esta mistura de papéis dos personagens
combina com a estratégia geral do Espelho de representar gênero e outras categorias
sociais como variáveis, mutáveis e permeáveis, pois qualquer divisão simples entre
masculino e feminino geralmente cede. Porete representa o gênero como um conceito
tão fluido que os leitores modernos podem ser obrigados a pensá-lo de novas
maneiras, e tomá-lo como uma alegoria evocativa de estados espirituais. (Tradução
livre)87
Este caráter volátil também pode ser atribuído ao próprio caráter da obra como um todo.
Marguerite Porete, tendo como foco o questionamento de determinados padrões religiosos,
explora as relações de domínio, provando que a Alma ocupa, por muitas vezes, uma posição
subordinada, mesmo sendo, em outras partes, equiparada a Deus:
(Amor): – Ah, dulcíssima Alma, diz Amor, o que quereis que Ele vos dê? Não sou
uma criatura? Quereis ter de vosso Bem-amado algo que não lhe está confiado dar a
vós, nem a vós receber? Acalmai-vos, doce Alma, se em mim acreditais. Ele não dá a
uma criatura nada que não tenhais, e tal dom Ele o dá como convém a vós.
Alma: – Ah, dama Amor, [...] não me dissestes isso quando vos conheci pela primeira
vez. Pois vós me dissestes que entre o Bem-amado e a bem-amada não há domínio;
87 The characters named God, Love, and the Soul are difficult to separate even though they often speak
independently. This mixing of characters’ roles matches the Mirror’s overall strategy of representing gender and
other social categories as variable, changing, and permeable, for any simple division between masculine and
feminine often gives way. Porete represents gender as a concept so fluid that modern readers may be obliged to
think of it in new ways, and to take it as an evocative allegory for spiritual states.
131
mas há, como me parece, pois um tem tudo e o outro não tem nada em comparação
ao seu tudo. Mas se pudesse corrigir isso, eu o corrigiria, pois se eu pudesse tanto
quanto vós podeis eu vos amaria tanto quanto valeis. (PORETE, 2008, p. 76)
O uso retórico da fraqueza e subordinação forma uma grande estratégia para que o
discurso poretiano alcance sua subversão. Sendo ricamente contraditório, o texto perpassa,
sobretudo por meio da Dama Amor, a tradição cortês, que coloca a mulher como objeto de
desejo e bem-amada. A respeito disto, é válido mencionar o ponto de vista de Kocher (2008, p.
102), que afirma que Porete interpreta a fraqueza de uma maneira diferente daquela conhecida
pela tradição do amor cortês, utilizando-a como uma metáfora de gênero para que haja o acesso
a Deus. Nesta perspectiva, a feminilidade faria parte do conjunto de metáforas que a autora
constrói para descrever a abnegação da Alma, que é indispensável no processo de
aniquilamento. Assim, a Dama Amor, que exalta a todo momento a necessidade da humildade,
é uma alegoria estratégica para os ouvintes do livro, que são levados a enxergar a pobreza de
espírito como único caminho para chegar a Deus.
Neste ponto, antes de irmos em direção à antagonista (Dama Razão), faz-se importante
observamos a atenção dada à audiência, sobretudo aos homens e mulheres, mercadores e
nobres, senhores e vassalos, ativos e contemplativos, humildes e exaltados (PORETE, 2008).
A respeito destes, podemos mencionar a seguinte fala da Alma:
Alma: – Ah, dulcíssimo Jesus Cristo, diz essa Alma, não vos preocupeis com tal
gente! Eles são tão egoístas que buscam somente seus interesses, vos esquecendo,
por conta da grosseria que a eles lhes basta.
Amor: – Ah, sem dúvida, diz Amor, isso é uma grande vilania.
Alma: – Esse é o costume, diz essa Alma, dos mercadores que no mundo são
chamados de vilões, e, de fato, vilões eles são. Pois os cavalheiros não sabem se
misturar no mercado, nem sabem ser egoístas. Mas vos direi, diz essa Alma, o que
me apaziguará em relação a tal gente. É isso, dama Amor, eles estão fora da corte
dos vossos segredos, assim como estaria um vilão na corte de um cavalheiro no
julgamento de seus pares, onde ninguém pode estar se não for da mesma
linhagem – ao menos na corte do rei. E com isso me tranquilizo, diz essa Alma, pois
eles também estão fora da corte de vossos segredos, lá onde os outros são chamados,
os que nunca esquecerão as obras de vossa doce cortesia, isto é, o desprezo, a pobreza
e os tormentos insuportáveis que haveis sofrido por nós. Esses não esquecerão jamais
os dons do vosso sofrimento, que para eles é sempre um espelho e um modelo.
(PORETE, 2008, p. 118-119. Grifo nosso)
Sendo uma representação alegórica que vai além de comentários acerca da sociedade,
Porete atribui identidade às almas que fariam parte da experiência espiritual, resgatando
elementos da vida real para construir sua obra mística e posicionando, durante a narração, as
analogias sociais conforme sua intenção. A renúncia do poder individual é um ponto importante
a ser considerado na obra de Porete, levando em consideração que o processo de aniquilação é
a perda de si; simultaneamente, também representa a vontade de ascender, de subir de status, e
132
(Amor): – É dito, e eu mesma o digo, que há uma grande diferença entre os anjos por
natureza, uns em relação aos outros, como há entre os homens e os asnos. [...] E tanto
como há para se dizer dos anjos, de uns em relação aos outros, assim como ouvistes,
há para se dizer, pela graça, dos aniquilados sobre os quais falamos em relação a todos
aqueles que não o são. É muito bem-nascido quem é de tal linhagem. Essa é a gente
da realeza. Eles têm um coração excelentemente nobre e de grande realização, e não
podem realizar obra de pequeno valor, nem começar coisa alguma que não alcance a
boa perfeição. Eles são os menores que podem ser e devem se tornar os maiores,
pelo próprio testemunho de Jesus Cristo, que disse que os menores seriam os
maiores no Reino dos Céus. Deve-se, de fato, acreditar nisso, mas não acredita
nisso quem não é isso mesmo. Pois aquele que é aquilo que acredita, acredita
verdadeiramente. Mas aquele que crê naquilo que ele não é, não vive aquilo em que
acredita. Este não crê verdadeiramente, pois a verdade da crença está em ser aquilo
que se crê. E aquele que nisso crê é aquele que é isso. Ele não tem mais nada a fazer
consigo, nem com os outros, nem com o próprio Deus, não mais do que se ele não
fosse; e assim que ele é. Entendei o sentido oculto. É em sua vontade que não há
nada para ele, não mais do que se ele não fosse [...]. (PORETE, 2008, p. 165-166.
Grifo nosso)
Aqui fala Amor: – Entre vós, ativos e contemplativos e, talvez, os aniquilados pelo
amor verdadeiro, que ouvireis alguns dos prodígios do puro amor, do nobre e elevado
amor da Alma Liberada e de como o Espírito Santo nela colocou sua vela, como num
navio, eu vos rogo por amor que ouçais com grande aplicação do vosso entendimento
interior sutil e com grande diligência. Caso contrário, todos os que venham a ouvi-lo
o entenderão mal, se não estiverem assim dispostos. (PORETE, 2008, p. 31)
A Razão não dialoga diretamente com a audiência, sobretudo por ser o elemento da obra
que representa a Santa igreja, a pequena. Além deste aspecto, ela também não tem a capacidade
suficiente de entendimento para poder repassar quaisquer que sejam os ensinamentos. Sua
posição é dada desde o princípio. Exemplos notórios para justificar esta afirmação são os que
se encontram nos capítulos 68 e 69, momentos em que a Alma fala a respeito da prática das
Virtudes e dialoga com a Razão, chamando todos aqueles que a seguem de bestas e asnos. No
capítulo 68, encontramos a seguinte passagem:
conduz, a beleza me apraz, a bondade me nutre. O que posso mais fazer, já que vivo
em paz? (PORETE, 2008, p. 123-124. Grifo nosso)
Razão: – Ah, dama Alma, diz Razão, tendes duas leis, ou seja, uma para vós e outra
para nós: a nossa para crer, e a vossa para amar. Dizei-nos, se for vossa vontade, por
que chamastes os que educamos de bestas e asnos.
Alma: – Essa gente, a quem chamo asnos, busca Deus nas criaturas, em
monastérios para rezar, no paraíso criado, nas palavras dos homens e nas
Escrituras. Sem dúvida, diz essa Alma, para tal gente Benjamin não nasceu porque
Rachel aí vive. É necessário que Rachel morra para o nascimento de Benjamin, pois
até que Rachel morra, Benjamin não pode nascer. Parece aos iniciados que tal gente,
que o busca em montanhas e em vales, insiste que Deus esteja sujeito aos
sacramentos e obras deles.
Ai deles! Eles têm o mal, o que é uma pena. E ainda o terão, diz essa Alma, enquanto
mantiverem em prática tais costumes! Mas aqueles que adoram Deus não apenas nos
templos e monastérios, mas que o adoram em todos os lugares por meio da união com
a vontade divina, esses têm tempos bons e proveitosos. (PORETE, 2008, p. 125. Grifo
nisso)
Por meio desses trechos, nota-se a real ligação entre a Dama Razão e os argumentos em
defesa da reestruturação social, que, no caso de Marguerite, inicia-se na vivência da
espiritualidade. Desta forma, a Dama Amor, por estar sempre destacando que é preciso bem
compreender para alcançar o “bom entendimento deste livro”, também posiciona a Dama Razão
como aquela que é seguida por aqueles que não compreendem o verdadeiro significado do amor
divino. Assim, a alegoria da Dama Razão é construída sobre o alicerce de duas representações,
Santa Igreja, a grande e Santa Igreja, a pequena, que aparecem pela primeira vez no seguinte
trecho:
(Fé, Esperança e Caridade): – Ó Santa Trindade, [...] onde estão tais Almas supremas,
que são como este livro descreve? Quem são elas? Onde estão? O que fazem? Ensinai-
nos sobre elas por meio do Amor, que tudo sabe, para apaziguar aqueles que se
espantam ao ouvir este livro. Pois toda a Santa Igreja, se o ouvisse ser lido, ficaria
maravilhada, dizem estas três Virtudes divinas.
(Fé): – É verdade, diz a própria Fé.
(Amor): – Na verdade, Santa Igreja, a pequena [...]; essa é a Igreja que é governada
pela Razão, e não Santa Igreja, a grande, diz o Amor Divino, que é governada por nós.
(PORETE, 2008, p. 61-62)
O uso do termo Santa Igreja na narrativa, sobretudo para se referir ao lugar que não é
ocupado pelas “Almas supremas”, demonstra um domínio estratégico e retórico de Marguerite
para identificar partes dessa instituição que não correspondem aos ideais defendidos por ela.
Considerando o contexto no qual Porete está inserida, destaca-se a intensa movimentação dos
grupos mendicantes e a insatisfação popular com os moldes de vida propagados pela Igreja
(instituição). Ao realizar uma tentativa de articulação social da diferença por meio dos espaços
intermediários (CHANCE, 2007), a autora cria um terreno estratégico no qual se utiliza o termo
135
Santa Igreja, associando-o à característica de algo menor, menos potente, menos digno.
Possivelmente por ser um termo bastante utilizado, a característica de santidade inserida nele
não condiz com sua essência e com aquilo que representa, levando o texto a um aspecto quase
humorístico ou satírico.
Assim, a deusa que representa a Razão é a mesma que representa os desejos, as paixões,
os vícios, o comércio, o luxo e as instituições, incluindo as Escrituras. Sobre este último aspecto,
poder-se-ia afirmar que Porete não estima os textos sagrados por sua inacessibilidade e
linguagem, pois são escritos em língua latina, a língua dos teólogos. Supõe-se, ao mesmo
tempo, que se refereria à leitura dos textos sagrados, não necessariamente aos ensinamentos
presentes nas Escrituras, visto que, ao longo de seu texto, posiciona-as sempre próximas do
Entendimento do Amor, que as ilumina.
Nesta direção, mesmo utilizando termos que se referem à própria instituição, a autora
divide a Santa Igreja em duas partes, não anulando a importância de existir uma santa igreja.
Porém, a pequena, reduzida ao conhecimento humano, é governada pela Razão (que, neste
momento, tem sua posição definitivamente atribuída), ao passo que a grande seria a igreja
governada pela Dama Amor e todas as personificações que fazem referência ao plano divino.
Governada pela Razão, a Santa Igreja (a pequena) representa, da mesma maneira, os interesses
humanos pertencentes ao mundo externo, que se distanciam do mundo espiritual:
Santa Igreja: – E o que é essa Alma?, diz Santa Igreja. Dulcíssimo Espírito Santo,
ensinai-nos, pois essa palavra supera nossas Escrituras, e assim não podemos
apreender pela Razão o que ela diz. E estamos tão estupefatos, diz Santa Igreja, que
não ousamos nos opor a ela. (PORETE, 2008, p. 90)
Amor: – É verdade, ó Santa Igreja, que estais abaixo dessa Santa Igreja! Pois tais
Almas são propriamente chamadas de Santa Igreja, porque sustentam, ensinam e
nutrem toda a Santa Igreja. E não propriamente elas, mas a Trindade dentro delas.
Essa é a verdade, diz Amor, e que ninguém duvide.
Ó Santa Igreja que estais abaixo desta Santa Igreja, agora dizei, diz Amor, que quereis
dizer sobre essas Almas, que são assim recomendadas e louvadas para além de vós,
vós que fazeis tudo de acordo com os conselhos da Razão?
Santa Igreja: – Queremos dizer, diz Santa Igreja, que tais Almas estão numa vida
acima de nós, pois Amor nelas permanece e a Razão permanece em nós; mas isso não
é contra nós, diz Santa Igreja a Pequena, ao contrário, pois a recomendamos e a
louvamos por meio do sentido oculto de nossas Escrituras. (PORETE, 2008, p. 91-92)
136
Dessa maneira, a Santa Igreja faz parte da construção da Dama Razão através da
linguagem alegórica com fins políticos, sobretudo por posicioná-la como um elemento à parte
dos sete estágios que a alma percorre. Neste sentido, a Dama Razão alegoriza as “bestas e
asnos”, os mercadores e clérigos. Portanto, Dama Amor argumenta: “– Ah, Razão, sempre tereis
a visão de um só olho, vós e todos os que são nutridos por vossa doutrina. Pois aquele que vê
as coisas diante de seus olhos e não as compreende, tem a visão de um só olho, e assim acontece
convosco” (PORETE, 2008, p. 92).
Por fim, tomando posse do poder das palavras do Evangelho, Marguerite utiliza a Dama
Razão como um meio principal para defender seu ponto de vista através de uma alegoria que
remete à posição contrária de sua argumentação. É desta maneira que a alegoria da Razão parte
para o plano da retórica e participa da narrativa como um articulador, realizando repetições em
torno das questões que Porete deseja esclarecer aos seus ouvintes e, simultaneamente, formando
a imagem antagonista de uma Santa Igreja menor hierarquia.
137
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa teve como principal tese o uso das alegorias na construção de um discurso
subversivo. Buscou-se, para tal, argumentar em torno dos aspectos históricos referentes à Idade
Média, sobretudo em relação às mulheres, e realizar um estudo em torno de uma bibliografia a
respeito das alegorias nesse mesmo período. Assim, a análise realizada teve como principais
focos as três personagens principais – Alma, Dama Amor e Dama Razão – bem como as formas
com as quais Marguerite Porete organizou sua obra através das representações dessas figuras
alegóricas.
O Espelho das Almas Simples é uma obra que contraria as tradições ligadas e
preservadas pelos indivíduos medievais e expõe questões em torno da organização social e das
problemáticas de um sistema ligado à Igreja. Apesar de ser um texto voltado à aniquilação da
alma e à chegada ao divino, é extremamente relacionado às experiências da própria vida comum
e do impacto dos dogmas e das tradições na vida cotidiana daqueles que buscam uma verdadeira
vida em Deus. Além disso, o texto é organizado de maneira a facilitar a compreensão dos
ouvintes quanto às ideias em torno do que seria o divino, baseando-se em antagonistas e
protagonistas, situando os antagonistas no lado das instituições religiosas.
Encontramos, por meio das alegorias, uma perspectiva retórica baseada na alegoria
hermenêutica, ou seja, alegoria dos teólogos. Porém, sendo esta associada ao uso dos clérigos
e daqueles que detêm o poder sobre as Escrituras, percebemos a subversão em torno da noção
de alegoria, posto que Marguerite utiliza-a também como expressão – ou seja, alegoria dos
poetas. Sendo uma maneira de falar e escrever, ao mesmo tempo que é um modo de entender e
decifrar o mundo, encontramos no Espelho a retórica argumentativa baseada nos elementos
metafóricos, constituindo, portanto, um processo intencional de autoria. Sendo assim, o uso das
alegorias revela e denuncia a visão que se tem do mundo e das coisas criadas por uma figura
divina, mas, simultaneamente, busca um ideal de experiência.
Inicialmente, foi observado que a Idade Média demanda uma ênfase maior nos aspectos
da religiosidade e da organização social, baseada em um imaginário que inclui a cavalaria, as
realezas, mas também os mercadores e a movimentação comercial. Distanciando-se do cenário
de conflitos, focamos, portanto, nos aspectos relacionados às produções literárias dos
indivíduos medievais, sobretudo as mulheres místicas. Assim, foi percebido que a sociedade
feudal, em momento de declínio, abriu possibilidades para as mulheres, apesar da intensa
perseguição.
138
As limitações impostas nesse contexto também não foram empecilhos suficientes para
a tomada de consciência das mulheres para a ocupação dos espaços políticos, que se deram por
meio da religiosidade e da literatura. Viu-se, neste sentido, que a opressão tem um papel
negativo, no sentido de permitir que as mulheres tenham voz diante de problemas sociais e
participação política, mas também se configurou como um palco para as estratégias discursivas.
Estas estavam ligadas ao uso do vernáculo, em lugar do Latim, que seria a “língua maior” e
ligada ao patriarcado.
Desta forma, esta pesquisa perpassou pela História das mulheres, a fim de demonstrar
que houve influência significativa delas tanto na literatura como na vida comum. Focamos, para
tal, nas beguinas, um grupo de mulheres religiosas que viviam da vita apostolica e que foi
responsável pela formação de escritoras como Marguerite Porete e Hadewijch d’Anvers.
Ambas tinham, em seus escritos, a essência da vita apostolica e da vida em Deus através da
experiência. No caso de Porete, observamos que, ao utilizar as alegorias (sendo muitas delas
comuns à sociedade francófona na qual se encontrava) a favor de seu posicionamento, ela
subverte as formas esperadas da linguagem e da organização textual de sua obra, exibindo as
formas alegóricas ligadas ao antagonismo e representantes do sistema institucional da Igreja, o
protagonismo relacionado a uma alma que se mostra apta a seguir os conselhos da Dama Amor
e que se destaca por isso, e a autoria atribuída à alegoria da Dama Amor, demonstrando
autoridade e propriedade na sua argumentação.
Concluímos que O Espelho das Almas Simples é uma obra de importância essencial para
os estudos medievais e feministas, considerando que sua recepção se deu de forma
extremamente negativa. É preciso ressaltar, nesta direção, que os meios legais dados pela
139
Inquisição para considerar e julgar a obra como herética (e sua autora como herege relapsa),
levando à morte da escritora, perpassam fortemente pela História das mulheres. O sentido de
heresia foi compreendido, assim, como algo que não está de acordo com o que se entende por
Verdade, porém, existiria tal verdade? Tomando a realidade da Baixa Idade Média como uma
realidade teocrática e fundamentada na experiência religiosa, afirmamos que as consequências
da obra de Porete foram um grito contra a voz reverberante das mulheres por reivindicações de
mudanças políticas. Levando em consideração a formação de uma consciência feminista,
observamos que as obras das mulheres medievais, nunca completamente aceitas (inclusive a
própria Hildegarda, que possuía uma posição social bastante privilegiada, foi canonizada
apenas séculos mais tarde) pelo sistema social vigente, têm seu peso na reconstrução de uma
história feminina, pois guardam resquícios de desejos de mudança e de críticas e insatisfações
a um sistema patriarcal.
Sendo assim, ao observamos que todo sistema até então conhecido (à exceção dos
grupos sociais anteriores à Antiguidade e grupos menores de regiões não ocidentais) fora
governado por homens, nota-se o dever que existe, dentro dos estudos literários, em torno da
redescoberta de obras de autoria feminina. O uso da língua vernácula é um ponto a ser
destacado, por exemplo, dado que argumentamos que o uso do latim também pode ser tomado
como uma dominação masculina em torno da religião. Indo além, as consequências do uso da
linguagem e da língua deram-se em escritoras de outros tempos, que também tiveram
consequências trágicas, a exemplo de Olympe de Gouges, que morreu guilhotinada por
propagas suas ideias e escritos. Portanto, esta pesquisa é a valorização da voz reverberada por
uma das mulheres que atribuiu a si própria o poder da palavra e, mesmo com três processos
seguidos, defendeu seu posicionamento até sua morte. É, desta maneira, mais uma mulher
dentre todas as gerações que também usam a linguagem em favor de reestruturações. Se há
opressão, também sempre haverá luta, sendo este fato constantemente relacionado à nossa
realidade atual, a exemplo de Marielle Franco e outras mulheres que incomodaram e tiveram
suas consequências impostas pelo patriarcado e pelo domínio político e econômico. Assim, que
estas vozes continuem ressoando em nossos tempos e nos que virão.
140
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