Pensamentos Subalternos

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Pensamentos

Subalternos

Aproximações críticas entre


diversidades, transculturalidades
e questões de gênero
Ana Carla Barros Sobreira
Elaine Pereira Andreatta
(Orgs.)
ANA CARLA BARROS SOBREIRA
ELAINE PEREIRA ANDREATTA
(Organizadoras)

PENSAMENTOS SUBALTERNOS: APROXIMAÇÕES ENTRE


DIVERSIDADES, TRANSCULTURALIDADES E QUESTÕES DE
GÊNERO

1
2023 by Editora Alfa Ciência
Copyright © Editora Alfa Ciência
Copyright do Texto © 2023 Os autores
Copyright da Edição © 2023 Editora Alfa Ciência
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Dr. Wellyson da Cunha Araújo Firmo

2
Diagramação: Editora Alfa Ciência
Edição de Arte: Editora Alfa Ciência
Revisão: Os Autores
Organizadoras: Ana Carla Barros Sobreira
Elaine Pereira Andreatta

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Pensamentos subalternos [livro eletrônico] :


aproximações entre diversidades,
transculturalidades e questões de gênero /
organizadoras Ana Carla Barros Sobreira, Elaine
Pereira Andreatta. -- Chapadinha, MA : Editora
Alfa Ciência, 2023.
PDF

Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-65-84518-28-5

1. Decolonialidade 2. Diversidade cultural


3. Educação - Brasil 4. Etnografia - Brasil
5. Literatura brasileira 6. Transculturalidade
I. Sobreira, Ana Carla Barros. II. Andreatta, Elaine
Pereira.

23-171696 CDD-370.981

Índices para catálogo sistemático:


1. Educação : Brasil 370.981

Eliane de Freitas Leite - Bibliotecária - CRB 8/8415

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(98) 98585-2320
www.editoraalfaciencia.com.br
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[email protected]

3
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ....................................................................................................................................6

PARTE 1

ENTRE A DOR E O SILÊNCIO: A INSUBMISSÃO DA VOZ FEMININA NO ROMANCE


A SECURA DOS OSSOS (2022), DE SANDRA GODINHO .................................................................... 11
José Benedito dos Santos

VISIBILIDADE À VOZ SUBALTERNA: UMA ANÁLISE DE VOLTO SEMANA QUE VEM


............................................................................................................................................................... 29
Janaina Buchweitz e Silva

TRADUZIR BORDERLANDS/LA FRONTERA: THE NEW MESTIZA. A TRADUÇÃO


COMO TRAVESSIA ............................................................................................................................... 41
Alice Maria de Araújo Ferreira
Gabriel Caetano Moreira

PARTE 2

AS POSSIBILIDADES DO CIBERESPAÇO: A PUBLICAÇÕES AUTOBIOGRÁFICAS


DE AUTORIA FEMININA NOS BLOGS PESSOAIS DA DOMINATRIX RAINHA FRÁGIL ...................... 59
Pamella Opsfelder de Almeida

VIVER NAS RUAS SENDO MULHER: NARRATIVAS DE VIOLÊNCIAS ...................... 76


Ana Luiza Barretto Bittar

DO DIA EM QUE ME BATIZARAM DE PUTA: UMA EXPERIÊNCIA PESSOAL DE


VIRALIZAÇÃO NAS REDES SOCIAIS ................................................................................................... 89
Elaine Pereira Andreatta

O RUÍDO DAS TUMBAS: SEGUINDO VESTÍGIOS DA COLONIZAÇÃO NAS


AMÉRICAS .......................................................................................................................................... 111
Leiliane Domingues da Silva
Ana Carla Barros Sobreira

4
VELHA GUARDA NÃO É MENINA NOVA: ENSAIO ETNOGRÁFICO SOBRE AS
REPRESENTAÇÕES GERACIONAIS NA VELHA GUARDA DA PORTELA........................................ 131
Nilton Rodrigues Junior
Leonardo Rocha de Vasconcellos

PARTE 3

O PERFIL DE LIDERANÇA DA MULHER NEGRA NO PÓS-COLONIALISMO .......... 148


Márcia Gomes de Oliveira

HIPÉRBOLES DA MORENIDADE: ESTILHAÇOS DO RACISMO ESTRUTURAL NA


CONSTITUIÇÃO IDENTITÁRIA DO NORTE BRASILEIRO .................................................................. 164
Yama Talita Passos Monteiro

IMAGENS E NADA MAIS: (DES)CONSTRUINDO UMA AESTHESIS VISUAL


ATRAVÉS DE PRODUÇÕES FOTOGRÁFICAS AMATEURS .............................................................. 174
Ana Carla Barros Sobreira

PARTE 4

EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: ADENTRANDO TERRITÓRIO(S) E


TERRITORIALIDADES [R]EXISTENTES ............................................................................................. 194
Emerson Sandro Silva Saraiva
Ceane Andrade Simões
Elaine Pereira Andreatta

A LEITURA CRÍTICA COMO PRÁTICA CONTRA-HEGEMÔNICA: UM RELATO DE


EXPERIÊNCIA EM UM CENTRO SOCIOEDUCATIVO DE MANAUS, AMAZONAS ............................. 211
Emerson Sandro Silva Saraiva
Bianca Luniere Vilaça

ASPECTOS HISTÓRICOS DA COMUNIDADE SURDA NO AMBIENTE


EDUCACIONAL: DESAFIOS E IDEIAS................................................................................................ 231
Amanda Malheiros Pereira
Carlos Elias Sobreira

ORGANIZADORAS .............................................................................................................................. 243

5
APRESENTAÇÃO

Este livro se constituiu como um espaço de reflexão e diálogo entre


vozes oriundas do Sul Global e que, de alguma forma, foram silenciadas pelo
pensamento hegemônico. Buscando dar visibilidade a essas vozes, acolhemos
textos de pesquisadores, professores e especialistas em diversas áreas das
Ciências Humanas em forma de encontro, compartilhando experiências
concretas que se colocam como práticas sociais situadas e que evidenciam
vivências sociointeracionais verdadeiras.
O primeiro bloco de textos destina-se a refletir sobre as vozes
subalternas na literatura, compreendendo a diversidade das produções
literárias e os deslocamentos promovidos a partir de um pensamento contra-
hegemônico, o que revela fazeres literários sob múltiplos olhares. O primeiro
capítulo, produzido por José Benedito dos Santos, discute o romance da
escritora premiada Sandra Godinho, A secura dos ossos, analisando a
construção da protagonista a partir dos estudos pós-colonial e Decolonial, para
compreender a identidade da personagem inserida na Amazônia brasileira. O
segundo capítulo, de Janaina Buchweitz e Silva, retrata outro tempo e espaço a
partir da análise da obra Volto na Semana que vem, de Maria Regina Jacob
Pilla, refletindo e analisando as experiências traumáticas da ditadura e a difícil
vocalização feminina dessa memória, fatores que desafiam a tradição
androcêntrica de escrita da História. Já o terceiro texto, de Alice Maria de
Araújo Ferreira e Gabriel Caetano Moreira, objetiva a tradução do primeiro
capítulo da obra Borderlands/La Frontera: The New Mestiza, de Gloria
Evangelina Anzaldúa. Por ser um texto multilíngue, os autores propõem
discutir, a partir das lentes tradutórias, em especial a escrita mestiza e a
inespecificidade de gênero textual.
A segunda parte desta coletânea reúne cinco textos, todos voltando seu
olhar para a narrativa, seja das próprias experiências, seja a partir de

6
autobiografias orais ou escritas. O bloco é aberto por Pamella Opsfelder de
Almeida, que analisa as publicações autobiográficas nos blogs pessoais da
Dominatrix Rainha Frágil, empreendendo uma investigação das possibilidades
proporcionadas pelos suportes digitais, de modo a se deparar com narrativas
de autoria feminina atravessadas pelo espaço democrático, sem censura prévia
e sem a edição de terceiros. Na sequência, Ana Luiza Barretto Bittar mobiliza
sua análise em torno das narrativas de violência de mulheres em situação de
rua, de modo a articular as vozes dessas mulheres às suas percepções sobre o
tema, evidenciando a vulnerabilidade extremada à violência da vida nas ruas, a
qual ainda é perpassada por questões de gênero. O terceiro texto é escrito por
Elaine Pereira Andreatta e trata de narrar a experiência da própria autora a
partir da viralização da sua fotografia nas redes sociais. Para tanto, a autora
reflete sobre estudos de gênero e teorias feministas no espaço universitário e
sobre pânico moral, o medo coletivo gerado pela necessidade de controle
social que toma conta das redes sociais, especialmente por grupos
conservadores. No quarto capítulo, Leiliane Domingues da Silva e Ana Carla
Barros Sobreira seguem, por meio da análise de fotografias de tumbas em
Oruro - Bolívia, os vestígios da colonização espanhola nas Américas, buscando
construir tensões entre o que as imagens evocam e as memórias nelas
escritas, tendo como base as perspectivas etnográficas e os estudos sobre
identidade e memória. Para fechar o bloco, Nilton Rodrigues Junior e Leonardo
Rocha de Vasconcellos produzem um ensaio etnográfico sobre as
representações geracionais da Velha Guarda da Portela, a fim de compreender
de que forma as experiências das idades dos integrantes de um conjunto
musical do samba se relacionam com outros elementos que compõem a
identidade individual em contextos sociais mais amplos.
O terceiro bloco, denominado ―Decolonialidade(s): olhares sob novas
perspectivas perspectivas‖, reúne produções acadêmicas que buscam imprimir
novos olhares teóricos, desnaturalizando e desconstruindo as ―verdades
sagradas‖ de uma colonização intelectual eurocêntrica. Márcia Gomes de
Oliveira abre o bloco discutindo as minorias marginalizadas, em especial, a
comunidade negra da periferia, do candomblé, do axé, invisibilizada pelo
racismo e pela intolerância religiosa para, então, refletir sobre o perfil de
liderança da mulheridade negra, o qual foi traçado ainda no período colonial, o

7
que fez com que muitas mulheres se tornassem líderes — uma resistência que
virou legado. O segundo capítulo da terceira parte é produzido por Yama Talita
Passos Monteiro, que empreende um debate em torno dos conceitos de raça,
racismo estrutural e Morenidade, para refletir sobre a exclusão da negritude na
Amazônia, a qual é perpassada pelo fenômeno social da morenidade, construto
da nacionalidade, em torno do ideal de identidade do norte. Por fim, o bloco se
encerra com as análises de Ana Carla Barros Sobreira acerca das imagens
fotográficas produzidas por amateurs na rede social Instagram. O texto
contribui para os estudos que questionam a matriz visual construída pela
modernidade/colonialidade, de modo a oferecer subsídios para a construção de
reflexões acerca das imagens de família no contexto do cotidiano.
O quarto e último conjunto de textos desta coletânea, intitulado
―Educação e diálogo: práticas de resistência e de desconstrução‖, trata de
propor reflexões em torno de currículos, metodologias e engavetamentos
escolares, de maneira a apontar para um projeto político, social, epistêmico e
ético, expresso pela pluralidade de saberes e práticas. O primeiro texto do
bloco, de Emerson Sandro Silva Saraiva, Ceane Andrade Simões e Elaine
Pereira Andreatta, apresenta uma experiência extensionista que impulsiona à
discussão crítica sobre Direitos Humanos e outros debates contemporâneos
urgentes. Isso os leva a propor um giro ao território que requer letramentos
sociais e críticos e oportunize uma prática pedagógica fundada em uma
perspectiva epistêmica decolonial, na luta por uma pedagogia
indisciplinada/insubordinada. O segundo texto, de Emerson Sandro Silva
Saraiva e Bianca Luniere Vilaça, analisa, a partir da teoria dos Letramentos
Críticos, uma experiência de Círculo de Leitura em um centro socioeducativo
de Manaus-AM, situando a prática de leitura crítica como atividade contra-
hegemônica capaz de protagonizar discursos socialmente desconsiderados: as
narrativas de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas. Já o
último texto deste conjunto, de autoria de Amanda Malheiros Pereira e Carlos
Elias Sobreira, apresenta um panorama que contempla aspectos históricos e
educacionais da comunidade surda no Brasil, reunindo debate teórico, que se
pauta nos critérios e aportes metodológicos da História da Educação, e
apontamentos práticos como forma de contribuir para a implementação de
atividades, ações e políticas públicas voltadas aos alunos surdos.

8
Esperamos, com este livro, contribuir para a abertura de um espaço para
pensar desde os limites da corporeidade a outras formas de sentir nossa
realidade. Não basta trabalhar a descolonização epistemológica se os afetos e
as sensações continuam a perceber a realidade colonialmente. Nossos
pensamentos e ações podem ser reconstruídos como espaços que abrem
outras possibilidades de ser e sentir, fornecendo ferramentas para questionar
como se configuram corporeidades, subjetividades e sensibilidades e para
entender que a colonização não é apenas uma questão logocêntrica, mas
também transita pelos nossos afetos.
Boas leituras!

Elaine Andreatta
Ana Carla Barros Sobreira

9
10
ENTRE A DOR E O SILÊNCIO: A
INSUBMISSÃO DA VOZ FEMININA NO
ROMANCE A SECURA DOS OSSOS
(2022), DE SANDRA GODINHO

José Benedito dos Santos1


.
RESUMO:
Na literatura amazonense/brasileira contemporânea, a partir da década de
1990, surgiu uma série de romances escritos por mulheres. Dentre essa
variedade de obras de autoria feminina, selecionamos A Secura dos Ossos
(2022), de Sandra Godinho. Este artigo tem como objetivo analisar a trajetória
da protagonista Tainá Terra, para tentar entender a maneira como se dá a
construção de uma personagem mestiça, filha de uma mulher branca e um
homem indígena, com ênfase nos termos identidade, assunção da cultura do
Outro, a reescritura da história dos povos originários do Brasil, em particular
dos Yanomami que habitam na Amazônia brasileira. Para tanto, adotam-se as
teorias pós-colonial e Decolonial como suporte teórico deste artigo. Ao final de
nossa análise, concluímos que o romance denuncia que as vozes e os saberes
indígenas foram silenciados, desde o período colonial até o presente, o que
impactou e ainda impacta sobre a construção da identidade de mulheres e
homens indígenas amazônicos. E, ao mesmo tempo, explicita que a
personagem Tainá Terra, ao se insurgir contra a violência patriarcal que trata
as mulheres como subalternas, assume a situação de protagonista de sua
própria história.

Palavras-chave: Sandra Godinho; Romance Histórico; Massacre; Amazônia


Brasileira.

INTRODUÇÃO
A literatura amazonense/brasileira contemporânea, nos últimos anos, tem
se debruçado sobre a violência, a (in)visibilidade das vozes subalternas que
foram silenciadas pelos saberes etnocêntricos e hegemônicos, os quais
contribuem para o apagamento identitário, mutilação e, principalmente, a
prática de genocídio contra os povos originários, ou seja, negam aos
verdadeiros proprietários da Amazônia e do Brasil, o direito de existirem como
1
Doutor em Literatura na Universidade de Brasília (UnB). Membro do Grupo de Estudos e
Pesquisas em Literaturas de Língua Portuguesa – GEPELIP, da Universidade Federal do
Amazonas (UFAM) e do GES (Grupo de Estudos Semióticos, Literatura, Cultura e Outras
Artes), da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Manaus – Amazonas. E-mail:
[email protected].

11
seres humanos. Além disso, essa literatura traz ao debate uma série de ações
socioambientais devastadoras como massacres, desmatamento e queimadas
da floresta, garimpo ilegal, expansão do agronegócio e biopirataria,
empreendidos por empresários brasileiros e estrangeiros. Entretanto,
pesquisadoras(es) de diferentes áreas do conhecimento, em particular da
literatura amazonense/brasileira contemporânea, evidenciam a crescente e
bem-sucedida luta das mulheres e dos povos originários por sua visibilidade
identitária, cultural e política.
Os povos indígenas da Amazônia brasileira, desde década de 1960, têm
experienciado um nível crescente da violência, tendo como pano de fundo o
modelo desenvolvimentista pensado para a nossa região, em que políticos,
empresários brasileiros e estrangeiros, militares, garimpeiros, grileiros,
posseiros, madeireiros, extrativistas, não só perseguiram, torturaram,
envenenaram, mataram e estupraram, como também desmataram, queimaram
e destruíram a floresta amazônica.
Nesse sentido, as epígrafes presentes no romance A Secura dos Ossos
(2023), de Sandra Godinho, direcionam o leitor para uma narrativa de cunho
testemunhal, intimista e perpassada pelo Xamanismo amazônico. A obra nos
remete a outros massacres acontecidos no Brasil, como na região Norte do
país, a exemplo dos massacres Paralelo 11 (1960), dos Waimiri-Atroari (1967-
1983) e dos Yanomami (1993). O mais recente extermínio foi cometido contra
centenas de crianças, mulheres e idosos da etnia Yanomami, ocorrido de forma
programada na fronteira entre o Estado de Roraima e a Venezuela, pelas
autoridades governamentais brasileiras, por meio da desassistência sanitária,
negligência, o que causou desnutrição severa nessa população. Negou-se,
assim, às mulheres, crianças e idosos da etnia Yanomami o direito de
existirem.
Desse modo, considerando que os genocídios contra os povos originários
da Amazônia confundem-se com a história do processo de formação do Brasil,
desde o século XVI até o presente, o texto de Sandra Godinho, assim como os
de outros autores que recuperam o tema, é fundamental para resgatar partes
ou versões esquecidas ou apagadas da história.
Sandra Godinho se estabeleceu no campo literário amazônico/brasileiro a
partir de 2010, quando começou a publicar seus primeiros contos, em várias

12
revistas brasileiras, obtendo diversos prêmios nacionais. A partir de 2016, a
autora passou a publicar romances e reunião de contos, como O Poder da Fé
(2016), O Verso do Reverso (2019), As Três Faces da Sombra (2020), Tocaia
do Norte (2020) e Estranha Entre Nós (2022), em que denuncia a violência do
patriarcado, da ditadura militar, de empresários brasileiros e estrangeiros
inescrupulosos, que veem a Amazônia, apenas, como uma região produtora de
matérias-primas e de mão de obra barata. Desse modo, as obras acima
mencionadas fornecem elementos de análise para melhor esclarecer o
passado, presente e o futuro das mulheres e dos homens indígenas, em
particular dos Yanomami e da Amazônia Brasileira, enquanto etnia e espaço
natural, respectivamente.
Estes questionamentos estão presentes em A Secura dos Ossos (2022),
novo livro da escritora Sandra Godinho que, mais uma vez, transita pelas linhas
da Literatura e nas entrelinhas da História brasileira, para denunciar um dos
capítulos mais violentos da história do massacre contra os Yanomami ocorrido
em 1993, na fronteira de Roraima com a Venezuela. A obra também evidencia
a secular prática de genocídio contra os povos indígenas, a expropriação das
riquezas e as violências contra a Amazônia Brasileira.
Conscientes disso, objetivamos, neste artigo, analisar o referido romance,
considerando a sua inserção no cenário da literatura brasileira contemporânea,
marcada pelas relações dialógicas e a expressão da violência presentes na
obra. Para tanto, dividimos este texto em duas seções. Na primeira parte deste
trabalho, intitulada ―Duas mulheres em busca de suas identidades‖
apresentamos e contextualizamos a obra no cenário da literatura brasileira
para, então, debater sobre o silenciamento, violência, extermínio, aos quais as
mulheres e homens indígenas amazônicos são submetidos. Na segunda parte,
―As múltiplas faces da cultura do Outro‖, analisamos de que forma as
personagens femininas convivem com suas identidades fragmentadas e, ao
mesmo tempo, entendemos como ocorre a adesão à cultura do Outro, a fim de,
assim, abrir espaço para mostrar mais de perto algumas das características
presentes no romance. Além disso, com as análises encampadas, será
possível ressaltar a relevância da obra de Godinho ao propor esse diálogo.

13
Em entrevista recente, a romancista Sandra Godinho explicou os motivos
que a fez ingressar na literatura: são de cunho pessoal e ideológico. Para tanto,
sua escrita tem como objetivo

resgatar a voz feminina enquanto cidadã do mundo, testemunha viva


da sociedade de uma época‖, como também, ―resgatar a voz das
mulheres que nem sempre foi considerada parte da história oficial,
inferiorizada ao longo de tantos séculos (Godinho, 2020)2.
.
Para tanto, a autora concede à protagonista Tainá Terra, do romance A
Secura dos Ossos (2022), o direito de falar, viajar, interagir, internalizar, além
de aderir à cultura do Outro. Sandra Godinho descreve a realidade vivida, de
uma sociedade invisibilizada, e ―acaba enveredando para uma problemática
que alcança uma das bases sensíveis dos pilares fundadores da história
brasileira: a violência contra a natureza e os povos indígenas‖ (Frota, 2022, p.
8). Como afirmado na epígrafe da obra, ―[a] busca às origens é também uma
busca de valores‖ (Godinho, 2022, p. 17), por isso, autora e personagem vão
ao encontro de histórias que precisam ser investigadas e contadas.
A denúncia do genocídio contra os povos originários do Brasil na
literatura amazonense/brasileira é, devemos deixar claro logo de saída,
extremamente marginal. Não se pode perceber na nossa cultura a denúncia
sobre este crime hediondo. É verdade que a violência contra os legítimos
proprietários do país se faz presente em vários romances e autores, alguns
canônicos, como O Guarani (1857), de José de Alencar, Macunaíma (1928),
de Mário de Andrade, Quarup (1967), de Antonio Callado, Maíra (1976), de
Darcy Ribeiro.
O termo genocídio3 surge, no cenário da justiça brasileira em 1996,
porque um grupo de garimpeiros executou com crueldade dezesseis indígenas,
a maioria mulheres, velhos e crianças. Em 1996, a Justiça conseguiu indiciar
23 garimpeiros. Apenas cinco deles foram julgados e condenados, mas

2
Entrevista por e-mail concedida a José Benedito dos Santos, no dia 03 de julho de 2020.

3 Genocídio é o extermínio deliberado de um povo - normalmente definido por diferenças


étnicas, nacionais, raciais, religiosas e, por vezes, sociopolíticas - no total ou em parte. O termo
foi cunhado por Raphael Lemkin em 1944, combinando a palavra grega γένος com o sufixo
latino -caedo. (ato de matar). Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-
br/article/what-is-genocide. Acesso em: 17/07/2023.

14
somente dois foram encarcerados. A justiça brasileira considerou como sendo
―tentativa de genocídio‖.
A possibilidade de a mulher branca ocupar seu lugar de fala na sociedade
brasileira assombrou o patriarcado, pois: ―[a] mulher branca é discriminada por
ser mulher, mas privilegiada estruturalmente por ser branca‖ (Ribeiro, 2019, p.
34). Porém, quando esta possibilidade de externar suas ideias se estende às
mulheres indígenas e negras, essas são sistematicamente silenciadas. Por outro lado,

[p]roduzir um corpus de literatura feminista junto com a demanda de


recuperação da história das mulheres foi uma das mais poderosas e
bem-sucedidas intervenções do feminismo contemporâneo. Em todas
as esferas das escritas literárias e da bibliografia acadêmica,
trabalhos produzidos por mulheres haviam recebido pouca ou
nenhuma atenção, uma consequência da discriminação de gênero.
Notavelmente, quando o movimento feminista expôs preconceitos na
composição de currículos, muitos desses trabalhos esquecidos e
ignorados foram redescobertos (hooks, 2020, p. 42).

Na obra, o tratamento dado à construção da narradora, do tema, do


espaço, do enredo e do tempo é tão expressivo quanto a denúncia sobre o
grau de violência adotado pelos proprietários de garimpos ilegais contra a etnia
Yanomami, pois o projeto estético da autora caminha ao lado do seu projeto
ético e político. Este último é evidente textualmente, por exemplo, com a
declaração da autora:

Sou solidária à causa indígena, contrária às tentativas de


apagamento e de invisibilidade dos indígenas ao longo da nossa
história. E me reconheço como um ser que faz parte de um povo de
culturas diversas, de vozes polifônicas, de um futuro coletivo
(Godinho, 2020).

Para Godinho, a literatura é uma ferramenta crítica poderosa para


questionar a (in)visibilidade atribuída às mulheres, sejam elas brancas,
indígenas ou negras. Também é uma forma de questionar quer seja a noção de
progresso e desenvolvimento pensada por políticos, empresários brasileiros e
estrangeiros, que veem a região amazônica como território a ser invadido,
saqueado, quer seja o desejo de exterminar os indígenas, pois são vistos como
entraves ao progresso.
Conforme Mikael Frota (2022), os romances Tocaia do Norte (2020) e A
Secura dos Ossos (2022), de Sandra Godinho, abordam a violência contra os

15
povos originários da Amazônia Brasileira, praticada sob a égide das
autoridades brasileiras omissas, pois ambas as narrativas ―ficcionalizam os
crimes humanitários, as atrocidades, as omissões e as manipulações impostas
pela ditadura militar brasileira‖ (Frota, 2022, p. 40) contra os Waimiri-Atroari.
Como também denuncia ―a relação topocídicas entre homens e natureza e o
genocídio dos Yanomami‖ (p. 40), ocorrido na região Norte do país, em 1993,
dessa vez, cometido pelos garimpeiros, comandados por proprietários de
garimpos ilegais, na Amazônia.
Nesse sentido, as obras Tocaia do Norte (2020) e A Secura dos Ossos
(2023), de Godinho, estão visibilizando, via literatura, a história da cultura
indígena, ao retirá-la do esquecimento, mostrando para o mundo dois
romances que ficcionalizam os anseios e dores, apagamento identitário,
aculturação, mutilação e genocídio de um povo, secularmente, oprimido,
colonizado, marginalizado, invisibilizado, enfim, vítima de extermínio, entre
alegorias, metáforas, mitos, rituais, saberes ancestrais e massacres. Apesar da
violência colonial e neocolonial, a cultura dos Yanomami resistiu e continua
resistindo.
Na primeira parte do romance, é apresentado o maravilhoso universo da
fictícia Encantado das Almas. Depois, nós leitores, viajamos com a
protagonista Tainá Terra em busca de nossas ―origens, ao umbigo de nossos
xamãs (...), das festas, mitos, saberes, nosso lugar de afeto, nossas aldeias‖
(Giannini, 2022).
Para tanto, Sandra Godinho apresenta as personagens Ama e Tainá
Terra (mãe e filha) como vozes insurgentes de mulheres amazônidas,
desconstruindo, dessa forma, a imagem de subalterna a elas atribuída e
repetidas ad nauseam pela história e literatura amazonense/brasileira, tendo
como respaldo o poder patriarcal, machista, misógino, feminicida, tão típicos de
nossa cultura. Assim, Godinho substitui as mulheres e homens indígenas como
objeto de estudo de pesquisadora(es) brasileiros e estrangeiros por mulheres e
homens amazônidas contando suas próprias histórias.
A Secura dos Ossos é, enfim, uma teia de eventos históricos, identitários,
políticos, em que as linhas da História e da ficção se encontram, para
denunciar mais de cinco séculos de opressão, massacres, aculturação, que
recaem sobre as mulheres e homens indígenas do Brasil. Para Giannini (2022),

16
―[a]s imagens guardadas nestas páginas são terríveis ― e são poéticas ―,
mas também necessárias‖. Nesse sentido,

a literatura contemporânea nos fornece subsídios para refletirmos


sobre este conturbado momento histórico do presente de mudanças
geopolíticas intensas, de acirramento de posições, de intolerância e
medo, mas também de uma presença histórica das mulheres em
todas as esferas da sociedade, em geral, e da literatura, em especial
(Almeida, 2019, p. 16).

Cabe ressaltar que o romance A Secura dos Ossos (2022) ficcionaliza, de


forma crítica, politizada e humanitária, a representação da Amazônia. O que
nos remete aos inúmeros massacres cometidos pela colonização europeia,
posteriormente incorporados pela elite amazônica/brasileira republicana, como
também pelas grandes empresas multinacionais que, desde a implantação da
Zona Franca de Manaus, em 1967, continuam saqueando a região. Todos
esses acontecimentos encontram ecos profundos em outras narrativas da
autora.

Duas mulheres em busca de suas identidades


As personagens femininas na literatura amazônica/brasileira sempre
foram retratadas e tidas como subalternas. Para desconstruir a tese de que as
mulheres brancas, indígenas e negras são sujeitos subalternizados, Sandra
Godinho, via ficcionalização, concede a palavra a uma jovem mestiça (filha de
uma mulher branca e de um indígena), para denunciar o silenciamento político,
histórico e literário que recaem sobre os povos originários da Amazônia, como
também, para resgatar sua história negligenciada e esquecida e não divulgada
pelos órgãos oficiais.
A protagonista Tainá Terra, ―uma adolescente de dezessete anos, filha
das matas, dos morros e dos rios‖ (Godinho, 2022, p. 23) sai do seu vilarejo em
busca da sua história. Antes de alcançar a aldeia em que seu pai reside, ela e
seu amigo Tião são feitos prisioneiros pelos Yanomami. Em seguida, são
encaminhados para aldeia. Chegando lá, deparam-se com o universo cultural
do povo Yanomami, sua cosmologia, seus costumes e suas tradições, mas
também com o xamã, pai da protagonista. Depois de algum tempo, ela
testemunha o terrível massacre da etnia Haximu, ocorrido em 1993, cometido
por garimpeiros ambiciosos que buscavam encontrar ouro.

17
Amana Terra é apresentada como uma mulher branca de alma e corpo
inquietos que, para amenizar sua angústia existencial, passa o dia
desenhando/costurando vestidos para si:

Minha mãe, gostava de passar seus dias entretida em cima de uma


máquina de costura, às voltas com tecidos de estampas florais que,
vez ou outra, conseguia de algum forasteiro, andarilho ou
comerciante que teimava em alcançar os ribeirinhos com o estoque
miúdo. Vinham de barco ou de voadeira, ofereciam um pouquinho de
tudo, algum tempero, miudezas, peças de armarinho, ferramentas,
tecidos, redes ou mosquiteiros para isolar os carapanãs e conseguir
dormir à noite. Mosquiteiros eram mercadorias muito desejada, o que
transformava o povoado em freguesia fiel (Godinho, 2022, p. 18.
Itálico nosso).

Assim, a narradora recupera a função social do regatão, figura histórica,


que ajudou no desenvolvimento da região amazônica, desde o ciclo da
borracha até o presente.
A presença do discurso patriarcal reverbera na voz do pai de Ama Terra,
narrada por Tainá: pois, ―[o] velho, entre resmungos e pragas, dizia que minha
mãe carregava o mesmo mal das mulheres de pedra, que se plantavam nos
becos, vielas e calçadas das grandes cidades, esperando ser vistas‖, e ainda
acrescenta que o avô ―afirmava que ela tinha morrido de pecado‖ (Godinho,
2022, p. 23). Na sociedade patriarcal brasileira, a mulher não tinha o direito de
escolher, apenas era obrigada a obedecer ao pai, depois ao marido. No caso
de Ama Terra, como ela fugiu em busca de sua liberdade, passou a ser
considerada pela comunidade e por seu pai como uma mulher ―perdida‖.
Em A Secura dos Ossos ―[e]coam as vozes de nossas raízes perdidas,
arrancadas, mutiladas, vítimas do genocídio e do apagamento que habita a
memória dos esquecidos‖ (Giannini, 2022). Entretanto, as personagens
femininas são arquitetadas como sonhadoras de mundo melhor, marcado pela
liberdade e igualdade para todos.
Ama Terra é construída como uma personagem que almeja um mundo,
mais igualitário para as mulheres. Para tanto, ela

[t]rocou o [seu] nome para Ama Terra, que lhe pareceu belo e mais
sonoro, mais de acordo com seu estado de espírito. Amaria a Terra e
tudo o que nela vicejasse, os campos, as matas, os rios e lagos. A
terra que era poeira e cinzas, passado e futuro. A terra que era pó a
guardar a ordem e a desordem dos homens (Godinho, 2022, p. 43).

18
O primeiro encontro entre Ama Terra e o indígena Yanomami causou
estranhamento em ambas as personagens, porém, essa mulher branca
inaugurou um novo olhar:

nunca tinha visto um índio antes e o jovem se apresentou com a pele


azeitonada, com os cabelos tão lisos quanto os seus, com os olhos
tão rasgados quanto os seus, com o olhar tão curioso quanto o seu.
Os olhares de um e de outro se cruzaram. Mesmo sendo diferentes,
eram parecidos, ambos traziam nas veias a mesma história de quem
vive à margem (Godinho, 2022, p. 43-44).

Ama Terra, além de inaugurar um novo olhar sobre o Outro, passa a se


relacionar com esse indígena Yanomami, porém, quando engravidou ―caiu em
desgraça depois que a novidade se espalhou pelo vilarejo, não porque tivesse
engravidado de um desconhecido,‖ (Godinho, 2022, p. 47), mas porque se
deitou com um homem indígena.
À semelhança de sua mãe, Tainá Terra durante sua adolescência
experimentou um crescente sentimento de abandono e exílio ― seja filial, seja
geográfico, seja existencial. Por essa razão, ela tenta compreender o abandono
a que foi relegada pela própria mãe ao ser deixada sob os cuidados do avô
materno. Para tanto, ela imaginava

um outro tempo e espaço, quando uma nova picada na mata seria


aberta para conectar Encantado das Almas a alguma civilização. Ou
quando [se] escafedesse dentro de uma voadeira para ganhar rumo,
se coragem eu tivesse. Que me levasse por esses caminhos
andantes de águas rasas para resgatar [sua] mãe perdida naquele
mundo de tantas moças perdidas (Godinho, 2022, p. 23).

O discurso da personagem Dona Zuleima, mulher branca, pobre,


abandonada pelo seu marido, moradora de uma comunidade amazônica
ribeirinha, reverbera o discurso etnocêntrico introjetado pelos colonizadores e
assumido, posteriormente, pela elite mestiça brasileira de que o indígena e o
negro são ―inferiores‖ ao homem branco. Em relação ao fato de que Ama Terra,
uma mulher branca, tenha se deitado com um indígena, aponta para uma
questão de gênero. Para Dona Zuleima, a miscigenação é um crime, pois
―desaprimora‖ a raça.

19
− Já está indo embora da aldeia? Já era hora. Você não é uma de
nós. É só outra mestiça coberta de vergonha.
− Com muita honra, dona Zuleima.
− Espero que, assim como sua mãe, nunca mais volte para cá. Não
queremos essa filiação equivocada, e um tanto selvagem, que ela lhe
concedeu. Não sei onde andava com a cabeça quando se deitou
com um índio. Para quê? Para desaprimorar a raça? (Godinho, 2022,
p. 61).

A narradora sugere que Dona Zuleima desconhece a história, além de


não saber ou fingir ignorar seu lugar social. Para ela:

era como se Ama descontruísse a própria identidade,


menosprezando os conterrâneos por ser quem eram, seres
desmerecedores de sua estima, não bons o bastante para continuar
a descendência e perpetuar a existência da vila. Era Ama iniciando o
apagamento dela e deles com sua gravidez inusitada e impositiva,
antecipando uma visão espetacularmente assombrosa de futuro
(Godinho, 2022, p. 47).

A teoria pós-colonial postula a ―mulher do terceiro mundo‖ como vítima


por excelência ― esquecida tanto pela ideologia imperialista quanto pelos
patriarcas nativos e estrangeiros (Gandhi, 1998, p. 834). Por outro lado, a
relação de dupla colonização atinge e continua atingindo as mulheres
brasileiras, afro-brasileiras e indígenas, pois

[a] teoria feminista e pós-colonial começou com uma tentativa de


simplesmente inverter remanescentes hierarquias de
gênero/cultura/raça, e elas têm progressivamente se congratulado
com o convite pós-estruturalista para recusar as oposições binárias
sobre as quais a autoridade patriarcal/colonial se constrói (Gandhi,
1998, p. 83).

É notório que o Brasil tem, em suas origens de formação, as marcas da


colonização europeia, a cultura escravocrata brutal, a prática do genocídio
contra os indígenas e africanos, um patriarcalismo violento que nega a
contribuição da figura feminina na construção do país, o que só lentamente
vem sendo modificado pelas lutas políticas afirmativas encetadas pelas
mulheres brasileiras.

Grosso modo, dentre tantos problemas socioculturais enfrentados pelas


mulheres brancas, indígenas, negras, afro-brasileiras, é notório o papel

4
Tradução nossa.

20
preponderante da literatura de autoria feminina amazônida/brasileira na
transformação do panorama literário, político, inclusão das minorias sociais e
étnicas no mapa identitário brasileiro, partindo do ponto vista de que a obra A
Secura dos Ossos (2022) propõe, a um só tempo, rasgar o véu do silêncio
sociocultural que paira sobre os povos originários do país, fragmentar a
hegemonia cultural, burlar o status quo e estabelecer novas fronteiras. Uma
mudança necessária e cada vez mais urgente.

Concordamos que com o fato de que as ―vozes de sujeitos escravizados


e marginalizados que, em sua maioria, protagonizam histórias ainda por
serem contadas‖ (Dalcastagnè; Dutra; Frederico, 2018, p. 12). Assim, com as
produções contemporâneas, ―[t]alvez possamos, enfim, imaginar a diversidade
maior de vozes compondo os discursos, sejam eles críticos e/ou ficcionais‖ (p.
12). Desse modo, o papel do escritor(a) vai muito mais além em sua
relevância social, política e não é, portanto, apenas o ato de escrever. É o que
observamos na citação a seguir:

O escritor é um ser que deve estar aberto a viajar por outras


experiências, outras culturas, outras vidas. Deve estar disponível
para se negar a si mesmo. Porque só assim ele viaja entre
identidades. E é isso que um escritor é – um viajante de identidades,
um contrabandista de almas. Não há escritor que não partilhe dessa
condição: uma criatura de fronteira, alguém que vive junto à janela,
essa janela que se abre para os territórios da interioridade (Couto,
2010, p. 1).

Nesse sentido, Sandra Godinho surge na literatura amazonense/brasileira


contemporânea, como uma escritora que ―viaja entre identidades‖, ao se
apresentar como uma intelectual feminina, branca, paulista radicada no
Amazonas, cidadã do mundo que não renuncia a seu papel como sujeito
político, evidenciando a consciência de que o trabalho com a linguagem, quer o
autor(a) tenha consciência ou não, reflete um fenômeno ideológico. Desse
modo, para ela, o ato de ―escrever [lhe] faz sentir viva. Escrever [lhe] traz
fôlego para continuar a luta que é manter-se viva numa sociedade tão desigual
e de tantas injustiças‖ (Godinho, 2020)5.
Ricardo Piglia, em ―Uma proposta para o novo milênio‖, para substituir a
sexta proposta não escrita por Calvino, propõe que a ―distância, deslocamento,

5
Entrevista por e-mail concedida ao pesquisador José Benedito dos Santos, no dia 03 de julho de 2020.

21
mudança de lugar‖, sejam adotadas pelo intelectual e escritor como estratégias
para se encontrar com o Outro:

A verdade tem a estrutura de uma ficção em que outro fala. Fazer na


linguagem um lugar para que o outro possa falar. A literatura seria o
lugar em que é sempre outro quem vem dizer. ―Eu sou outro‖, como
dizia Rimbaud. Sempre há outro aí. Esse outro é o que se deve
saber ouvir para que aquilo que se conta não seja mera informação,
mas tenha a forma da experiência. Creio, então, que poderíamos
imaginar que há uma sexta proposta. A proposta que eu chamaria,
então, de distância, deslocamento, mudança de lugar. Sair do centro,
deixar que a linguagem fale também na margem, no que se ouve, no
que chega de outro (Piglia, 2012, p. 4. Itálico nosso).

Conforme Ricardo Piglia (2004, p. 4),

[n]o ano de 2100, quando o nome de todos os autores estiver perdido


e a literatura for intemporal e anônima, esta pequena proposta sobre
o deslocamento e a distância será, talvez, um apêndice ou uma
intercalação apócrifa em um website chamado As seis propostas,
que para esses tempos serão lidas como se fossem registros em um
antigo manual de estratégia usado para sobreviver em tempos
difíceis.

Sandra Godinho, ao sair do centro em direção à periferia da Amazônia, se


permite ouvir a histórias dos povos indígenas silenciados pela cultura
hegemônica. Desse modo, ela cumpre a proposta de Calvino e Piglia, ao
resgatar para cena literária contemporânea a figura de mulheres e homens
indígenas amazônicos que habitam em uma região periférica, portanto, às
margens da sociedade amazônica/brasileira, para falarem de si, pois, ao longo
da história foram, em sua imensa maioria, silenciados, subtraídos ―
sequestrados, torturados, exterminados, desaparecendo, assim do mapa
identitário brasileiro.
Na obra Passagem para o outro como tarefa (2022, p. 13), Seligman-Silva
tematiza e problematiza uma miríade de questões como a experiência do
trauma, o testemunho, a condição do exílio, a decolonialidade, a violência dos
mais variados regimes de indistinção do outro e as consequências nefastas das
mais diversas práticas de estigmatização da diferença. Trata-se também de um
pensamento que não apenas se furta ao enfrentamento ético e político dos
desafios da contemporaneidade, como ainda se deixa atravessar e transformar
pelas mais diversas e urgentes questões contemporâneas da alteridade.

22
As múltiplas faces da cultura do Outro
O romance A Secura dos Ossos (2022), de Sandra Godinho, é antecedido
por três epígrafes. A primeira é atribuída a Davi Kopenawa, xamã Yanomami
que profetiza: ―[o]s brancos não entendem que, ao arrancar os minérios da
terra, eles espalharam um veneno que invade o mundo e que, desse modo,
ele acabará morrendo‖ (p. 16). A segunda é de autoria de Sandra Godinho, que
diz: ―[a] busca às origens é também uma busca de valores‖ (p. 17).
As questões socioculturais referentes à Amazônia Brasileira colonial e
pós-colonial se fazem presentes na produção literária da autora. Para tanto, os
romances Tocaia do Norte (2020) e A Secura dos Ossos (2022) ficcionalizam
dois grandes massacres cometidos contra os indígenas na região amazônica,
nos séculos XX, como já mencionado neste capítulo. Para além das estratégias
e das influências literárias que transbordam do livro, em certa medida, ele
dialoga com Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, publicado em 1902, que
denuncia a violência dos militares contra os sertanejos nordestinos que
habitavam o Arraial de Bom Jesus, localizado no interior da Bahia, sob a chefia
de Antônio Conselheiro, ocorrido no final do século XIX. Quase todos foram
exterminados pelo exército brasileiro.

Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu


até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na
precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando
caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram
quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na
frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados (Cunha, 2003,
p. 359).

Lançado em 1902, o livro de Euclides da Cunha teve a primazia de ser a


primeira obra a denunciar o extermínio de minorias sociais — um mérito que
não o impediu de, aos poucos, ser esquecido. Para Halina Leal (2022, p. 10),
―as experiências de quem está à margem da sociedade [são], expressas por
vulnerabilidade política e social, invisibilidades e violências‖.
No caso do livro em análise, um exemplo reside na mãe da personagem
Tião Rocha, que, depois que foi abandonada pelo seu marido, ―passou a dar-se
por qualquer trocado aos negociantes que surgiam nas beiras e nos barrancos
do rio, à guisa de arranjar o que comer‖ (Godinho, 2022, p 130). A fome

23
representada gera a conformidade com as violências ensejadas para obter
―[u]m pedaço de paca, um rabo de jacaré, uma pomba improvisada, um tracajá
desavisado e colhido, tudo virava repasto suculento em suas mãos‖ (p. 130). A
situação de miséria que atinge a comunidade de Encantado das Almas é
claramente expressa na obra:

o solo argiloso não permitia tantos cultivos. Nosso vilarejo sobrevivia


mesmo da caça e da pesca, ou de algum buritizeiro, açaí, pupunha,
tucumã ou castanha encontrados na mata. O vilarejo era um
murmúrio decadente dentro de um verde. Vicejante, mas sem luz o
bastante para se fazer ver. Ou ouvir (Godinho, 2022, p. 40).

Já o espaço da narrativa surge aos olhos do leitor como um cenário


maravilhoso e fantástico. A comunidade de Encantado das Almas ―era como a
terceira margem do Uraricoera, cujas águas pacíficas banhavam nossa aldeia,
perdida nas traseiras amazônicas‖ (Godinho, 2022, p. 21). Entre a ―ameaça dos
garimpeiros de um lado, que desciam com suas voadeiras tocando o terror
pelas margens das águas‖ e a ―ameaça dos Yanomami de outro, que
invocavam, em solidão e silêncio, o despertar das almas e dos espíritos da
floresta para a defesa da terra e da natureza (Godinho, 2022, p. 22), como
bradava o avô de Tainá, viviam os habitantes dessa comunidade ribeirinha
amazônica e isolada, portanto, na liminaridade, ou seja, entre a fartura e
miséria, o mágico e absurdo, o trágico e o sublime, entre garimpeiros, os tais
brancos ―civilizados‖, e os Yanomami. Assim, a convivência entre seres
humanos de diferentes etnias, facilitava a miscigenação, já que ―as mulheres e
suas crias plantadas em seus ventres pelos forasteiros que chegavam em
canoas, barcos ou voadeiras, com seus rifles cruzados às costas para abalar
os costumes do lugar‖ (Godinho, 2022, p. 40).
Na comunidade Encantado das Almas, os moradores, conforme o avanço
da idade, tornam-se cegos da vista, porém desenvolvem sensibilidades que
não só contornam a falta da visão como ampliam-se as sensibilidades
intuitivas, como vemos na descrição do Caolho, considerado um sábio no
vilarejo:

[u]m homem de meia-idade que andava em farrapos e via tudo em


dobro e antecipado, dádiva concebida pela única pupila sã que lhe
havia restado, um olho vidente que compensava o outro. Um órgão
órfão, mesmo com clarividência, podia compensar a falta do outro?

24
Andava ele para lá e cá na vila, como alma penada, meio pé no
presente e meio pé no futuro, calculando a gravidade das coisas
guardadas no seu olho de tudo-ver sempre no acerto (Godinho,
2022, p. 29).

Ama Terra, após ter engravidado, passou a se alimentar de flores, depois


de rosas trazidas por seu amado Yanomami. Quando sua filha nasceu passou
a exalar o cheiro da primavera. Depois de sua morte, passou a ter o cheiro de
orquídeas. Para ajudar na alimentação da família, Tião, à época com 10 anos
de idade, decidiu sair para pescar. Então, ele pescou ―[u]m peixe que trazia um
incomum brilho prateado no olhar‖ (p. 131). Sua mãe recusou a comer o peixe
porque estava contaminado pelo mercúrio usado pelos garimpeiros, para
separar o ouro das águas.
À noite, o Tambaqui pescado horas antes, ressuscitou para conversar
com Tião e ―[o]s olhos prateados do peixe piscaram para ele dentro da
escuridão das dobras. Tão vivos e tão inquisidores!‖. Foi grande a surpresa de
Tião e, por isso,

resolveu esconder o peixe, guardá-lo, assim existente, só para si. O


animal lhe apareceu muitas noites depois dessa, no escuro dele
mesmo, na hora soturna de lhe abrir acessos a novas dimensões.
Era no escuro que homem e animal se tornavam uma coisa só, uma
massa indistinta, unos nesse pensar, nesse ciclo do existir onde nem
todas as espécies sobreviviam (Godinho, 2022, p. 133).

Anos depois, Tião Rocha, amigo de infância da protagonista. ―com seus


olhos amarelos de gato maracajá que enxergava tudo à noite, com sua boca
aberta engolindo vida‖ (Godinho, 2022, p. 61), acompanha Tainá e juntos eles
empreendem uma viagem rumo ao desconhecido. Ele queria desbravar o
mundo, como também almejava conquistar riquezas para oferecer melhores
condição de vida a sua família. Na verdade, Tião Rocha repete o
comportamento dos meninos da comunidade Encantado das Almas, quando
atingiam a maioridade, pois eram obrigados a migrar em busca de trabalho.
Tião Rocha, depois conviver um tempo na aldeia Yanomami, foge e junta-
se aos garimpeiros, que invadiram uma área onde estavam alguns membros da
tribo Yanomami, na região montanhosa de fronteira entre Brasil e Venezuela.
Ele ajudou a executar dezesseis indígenas, a maioria mulheres, velhos e
crianças.

25
Nesse sentido, a personagem Tião Rocha repete uma tradição familiar,
pois, ―― Seu avô era assassino de aluguel, Tião. Vivia pelos matos, a mando
de fazendeiros que, na verdade, eram grileiros que faziam de tudo para
arrancar um pedaço de terra desses coitados‖ (Godinho, 2023, p. 68).
Tainá Terra, além de ser dotada com um olfato intenso, ao chegar na
aldeia chefiada por seu pai, gradativamente, internaliza os rituais da etnia
Yanomami, com a ajuda de sua irmã, Luara, nascida e educada nessa
comunidade indígena. Antes de falecer, o pai de Tainá Terra decide transferir
seus poderes de Xamã para ela.

− Sou seu pai. E xamã. Dou a você meus espíritos para que os
receba. Eles tiram de suas orelhas tudo o que as entope, estão
trocando sua língua pela dele, aprenda seus cantos, receba-os bem,
queira-os sempre por perto. Eles vão fazer crescer seu pensamento,
proteger, livrar dos espíritos maléficos e curar. Eu os envio a você
para que seja um xamã como eu. Proteja nossa aldeia (Godinho,
2022, p. 135).

Tal processo representa o encontro da personagem com sua


ancestralidade, compreendendo as suas raízes e assumindo seu lugar junto ao
povo originário.

BREVES CONSIDERAÇÕES FINAIS


O romance A Secura dos Ossos, de Sandra Godinho, é uma obra que nos
ajuda a compreender a profundidade do silenciamento sociocultural que recai
sobre os povos originários da Amazônia, o qual persiste na
contemporaneidade.
Assim, o livro de Godinho surge da margem, com objetivo de dar voz aos
povos originários da Amazônia que foram quase silenciados pela hegemonia
cultural europeia. Além do mais, vemos em suas páginas, um panorama do
imaginário indígena amazônico já´descrito em algumas das obras anteriores da
romancista.
Godinho cumpre, portanto, com essa obra, aquilo que certa vez Lygia
Fagundes Telles disse em As Meninas (1983, s/p) sobre a função do
escritor(a): ―ser testemunha do seu tempo e da sua sociedade. Escrever por
aqueles que não podem escrever. Falar por aqueles que muitas vezes esperam
ouvir da nossa boca a palavra que gostariam de dizer‖. Não só o texto aqui

26
analisado, mas também outras obras já produzidas pela autora conseguem
cumprir o que preconiza Telles: ―Comunicar-se com o outro próximo e se
possível, mesmo por meio de soluções ambíguas, ajudá-lo no seu sofrimento e
na sua esperança‖.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Sandra Regina Goulart. Sobre mulheres, escrita e resistência:


desafios contemporâneos. Interdisciplinar, São Cristóvão, UFS, v. 32, jul. Dez.,
p. 13-26, 2019.

CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990.

COUTO, Mia. Que África escreve o escritor africano? Pensatempos. Lisboa:


Editorial Caminho, 2005.

CUNHA, Euclides. Os Sertões. São Paulo: Nova Cultural, 2003.

DALCASTAGNÈ, Regina; DUTRA, Paula Queiroz; FREDERICO, Graziele


(Orgs). Literatura e Direitos Humanos. Porto Alegre: Zouk, 2018.

DUTRA, Paula Queiroz. Entre o silêncio e a dor: A violência contra a mulher em


romances contemporâneos. Brasília: Edições Carolina, 2022. (E-book).

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GODINHO, Sandra. A Secura dos Ossos. São Paulo: Editora Patuá, 2023.

FROTA, Mikael de Souza. Apiyemyeki Kamña Yakopa Kiña? O processo de


domesticação espacial em Tocaia do Norte, de Sandra Godinho. In:
ANDREATTA, Elaine Pereira; SANTOS, José Benedito dos; OLIVEIRA, Rita
Barbosa de. Cartografias do Norte: a produção literária de Sandra Godinho
(Orgs.). São Carlos: Pedro & João Editores, 2022.

GANDHI, Leela. Postcolonial Theory – A Critical Introduction. New York:


Columbia University Press, 1998.

GIANNINI, Paula. Aparatas. In: GODINHO, Sandra. A Secura dos Ossos. São
Paulo: Editora Patuá, 2023.

GODINHO, Sandra. A Secura dos Ossos. São Paulo: Editora Patuá, 2022.

HOOKS, bell. Pertencimento: uma cultura do lugar. Tradução Renata Balbino.


São Paulo: Elefante, 2022.

HOOKS, bell. O feminismo é para todo o mundo: políticas arrebatadoras.


Tradução Bhuvi Libanio. 13 ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020.

27
LEAL, Halina. Prefácio. In: HOOKS, bell. Pertencimento: uma cultura do lugar.
Tradução Renata Balbino. São Paulo: Elefante, 2022, p. 9-17.

MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem Anos de Solidão. Tradução Eliane Zagury. -


Rio de Janeiro: Editora Record, 2008.

PIGLIA, Ricardo. Uma proposta para o novo milênio. Revista Margens/


Márgenes, n.2. Lisboa, Buenos Aires, janeiro de 2012.

RANCIÈRE, Jacques. As margens da ficção. Tradução de Fernando Scheibe.


São Paulo: Editora 34, 2021.

RIBEIRO, Djamila. O lugar de fala. São Paulo: Editora Jandaíra, 2019.

SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva,


1978.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. Passagem para o outro como tarefa: tradução,


testemunho e pós-colonialidade. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2022.

SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar?. Tradução de Sandra Regina


Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2010.

TELLES, Lygia Fagundes. As Meninas. São Paulo: Companhia das Letras,


1983.

28
VISIBILIDADE À VOZ SUBALTERNA: UMA
ANÁLISE DE VOLTO SEMANA QUE VEM

Janaina Buchweitz e Silva6

RESUMO:
Este texto analisa a única publicação literária da escritora gaúcha Maria Regina
Jacob Pilla intitulada Volto semana que vem. Trata-se de uma obra em que a
escritora apresenta relatos de sua participação nas ditaduras militares do Brasil
e da Argentina e evidencia discussões acerca das questões gênero, teorizando
as diferenças sexuais e as relações de poder que se estabelecem entre
homens e mulheres. A obra analisada transita entre a ficção e a relatos da vida
real da autora e têm uma dimensão que perpassa todas as instâncias e
instituições sociais, sendo primordial considerarmos as relações de poder para
que possamos melhor compreender a participação das mulheres na sociedade
e nos eventos históricos.

Palavras-chave: Ditadura militar; Questões de gênero; Ficção; Autobiografia.

INTRODUÇÃO
Volto semana que vem é a única publicação literária da escritora gaúcha
Maria Regina Jacob Pilla, e foi lançada em 2015, próximo ao ano de
efemérides alusivo aos 50 anos do golpe militar no Brasil. Em seu livro, que é
apresentado como ficção brasileira, a autora rememora as ditaduras brasileira
e argentina, já que vivenciou o período em ambos países. Pilla nasceu e
cresceu em Porto Alegre, cidade na qual permaneceu até parte de sua
juventude, na década de 60, quando ganhou uma bolsa para cursar o
equivalente ao atual ensino médio e foi morar nos Estados Unidos, tendo
retornado ao Brasil após a conclusão dos estudos:

6
Doutora em Letras pela Universidade Federal de Pelotas. Mestra em Letras - Área de
Literatura Comparada -UFPel. Graduada em Letras- Habilitação em Língua Portuguesa e
Literaturas de Língua Portuguesa pela ULBRA Canoas. Graduada em Letras- Habilitação em
Língua Espanhola e Literaturas de Língua Espanhola pela Universidade Federal de Pelotas.
Especialista em Língua Espanhola - UCPel , Especialista em Educação - UFPel e Especialista
em Educação para a Diversidade -UFRGS. E-mail: [email protected].

29
Ao voltar, passei no vestibular da UFRGS e entrei no curso de
jornalismo, onde estive até sair do país. No início de meu primeiro
semestre na faculdade, ingressei no Partido Comunista Brasileiro e
logo depois na Dissidência do RS, que se formava. Em seguida,
participei da fundação do Partido Operário Comunista, o POC (Pilla,
2015, p. 93).

Percebemos que a autora narra diferentes passagens de sua vida, com


ênfase em sua participação na vida política do país durante o período que
vigorou a última ditadura militar. A vida da autora foi marcada por migrações e
exílios, já que após o retorno para o Brasil partiu do Rio Grande do Sul para
São Paulo, para, em seguida, se mudar para a França e depois para a
Argentina, onde foi torturada e mantida presa por três anos. Logo depois
recebeu asilo na França, onde permaneceu por quinze anos, até retornar ao
Brasil, somente em 1992,

―A aeronave da British Airways está no solo.‖ Era o meu voo. Ouvi o


aviso enquanto passeava inquieta pelo aeroporto em obras. Com o
coração aos saltos, cruzei o controle de passaportes. Não fui
barrada, meu nome ainda não chegara ali. Respirei uma grande
golfada de ar. Ao ocupar minha poltrona no avião, tinha as mãos tão
crispadas que as unhas marcavam as palmas. Não conseguia
respirar, a ameaça estava ali, suspensa no ar. Mesmo no meio do
oceano, horas mais tarde, ela não ia embora. E demorou a passar.
Foram mais de vinte anos de exílio e oito de divã (Pilla, 2015, p. 52).

Em artigo intitulado As mulheres e a ditadura militar no Brasil, Ana Maria


Colling (2004) defende que muitas vivências e atuações políticas foram
apagadas pelo discurso histórico, que foi parcial ao silenciar e esconder
sujeitos, cabendo aos sujeitos históricos que foram escamoteados do discurso
a tentativa de corrigir a história. Para Colling, no que tange à categoria das
mulheres, torna-se primordial a discussão sobre a temática do gênero para
teorizar a questão da diferença sexual e das relações de poder que se
estabelecem entre homens e mulheres.
Partindo da histórica distinção social que reserva o espaço público aos
homens e o espaço privado às mulheres, e considerando que as relações
políticas se dão de maneira mais enfática dentro de espaços públicos, temos
como consequência um entendimento geral de que os principais
acontecimentos históricos foram protagonizados pelos homens, cabendo a eles

30
a tarefa de narrá-los. Com relação ao período ditatorial brasileiro, Colling
(2004) argumenta que

[a] distinção entre o público e o privado estabelece a separação do


poder. O silêncio sobre a história das mulheres advém de sua não
participação na arena pública, espaço da política por excelência.
Neste sentido a história da repressão durante o período da ditadura
militar é uma história de homens. A mulher militante política não é
encarada como sujeito histórico, sendo excluída do jogo do poder
(Colling, 2004, p. 2).

Assim, a autora defende que se instituiu a invisibilidade da mulher como


sujeito político, relatando que ao desenvolver trabalho de pesquisa sobre a
construção do sujeito ―mulher subversiva‖ sentiu imensa dificuldade em dar
visibilidade a essas mulheres, devido à fragilidade da documentação, cabendo-
lhe recorrer ao discurso oral, em que constatou que a militante política era tida
como uma desviante, sendo considerada pela repressão como alguém que não
estava em seu devido lugar. Colling (2004) salienta ainda que, durante a
ditadura, as mulheres tentavam camuflar sua sexualidade para que pudessem
participar do movimento:

As próprias mulheres militantes assumem a dominação masculina,


tentando camuflar a sua sexualidade numa categoria sem sexo – a
militante política. Para se constituírem como sujeitos políticos, estas
mulheres estabelecem identidade com o discurso masculino diluindo
as relações de gênero na luta política mais geral. A condição de
gênero está subsumida ao discurso de unificação dos sujeitos. Como
espaço fundamentalmente masculino, impunha-se às mulheres a
negação de sua sexualidade como condição para a conquista de um
lugar de igualdade ao lado dos homens. As relações de gênero
diluíam-se na luta política mais geral. As mulheres assexuavam-se
numa tentativa de igualarem-se aos companheiros militantes (Colling,
2004, p. 7).

Para a autora, as relações de gênero têm uma dimensão que perpassa


todas as instâncias e instituições sociais, sendo primordial considerarmos as
relações de poder para que possamos melhor compreender a participação das
mulheres na sociedade e nos eventos históricos, tais como o período da
ditadura militar brasileira ao qual se remete Pilla em seu texto.
Volto semana que vem é composto por algumas fotografias da autora, e
dividido em pequenos capítulos, que não estão em ordem cronológica. Já no

31
início, a autora inicia seu relato em 1953, para saltar para 1975, depois para
2010, e a seguir retornar para o ano de 1971, compondo uma estrutura
itinerante de tempo e espaço que se mantém ao longo de toda a narrativa, o
que pode causar no leitor a sensação de conhecer parte da história da autora a
partir de lampejos de memória:

No final de 1971, foi pela rota chilena que entrei na Argentina. Menos
arriscado. Certamente um caminho mais longo e uma marcha à ré na
história: saía de um país com um governo civil recém-eleito para
outro em plena ditadura militar (Pilla, 2015, p. 14).

São várias as alusões de Pilla aos três anos em que foi presa política,
quando permaneceu grande parte do tempo na penitenciária de Olmos, em
Buenos Aires:

Isabel Martínez, viúva de Perón, mandava na Casa Rosada. Em fins


de 1975 ela entregou aos militares o controle das penitenciárias.
Derramando suas estrelas por todos os espaços da pátria, os
militares preparavam o golpe de 1976. No final de 1975, essa
mudança nos rumos do governo civil argentino foi vivida por nós
como um terremoto.
Ainda estávamos em Olmos, e sabíamos da comissão de militares
que percorria os presídios para atualizar – eufemismo para
renovadas violências – os dossiês dos presos políticos. Isso
significava, possivelmente, novos interrogatórios, novos
constrangimentos e, quem sabe? novas torturas. A espera pela
comissão foi uma agonia. Além dos dilemas individuais de como
responder a tal ou qual pergunta ardilosa – os dossiês eram
estabelecidos com base em informações policiais – era preciso
remendar os esgarçamentos do medo (Pilla, 2015, p. 10-11).

No entanto, apesar de ser uma produção literária inserida no campo das


escritas de si, o texto de Pilla torna-se de difícil classificação pois, em
determinadas passagens opera como um testemunho de uma militante política,
em outras aponta para um tom mais ficcional, podendo ser entendida assim
enquanto uma autoficção. Nas palavras de Klinger: ―[...] consideramos a
autoficção como uma narrativa híbrida, ambivalente, na qual a ficção de si tem
como referente o autor, mas não como pessoa biográfica e sim o autor como
personagem construído discursivamente.‖ (Klinger, 2012, p.57, grifos da
autora).

32
Pilla narra o impacto que o desaparecimento dos presos políticos gerou
nas famílias, que permanecem até hoje em busca de informações sobre o
paradeiro e o destino de seus familiares, militantes políticos do período da
ditadura que desapareceram nos anos 70 e 80 e não mais retornaram. A
autora rememora momentos da infância, como quando teve a varicela
diagnosticada por seu pai médico, em 1954, ano em que o então presidente
Getúlio Vargas se suicidou, o que provocou protestos em Porto Alegre, que são
também mencionados por ela.
No entanto, a autora não relata somente as experiências que ela viveu
durante o período da ditadura, já que histórias de outras pessoas também são
narradas, como a de uma mãe que teve o filho assassinado por militares,

A mulher que atendeu a porta era uma senhora ainda jovem. O


homem de rosto inexpressivo entrou na sala. ―Sim, sou a mãe dele, e
o senhor?‖ Não vinha ao caso, ele estava ali para dizer que o filho
dela se suicidara, havia se jogado debaixo das rodas de um
caminhão. Foi logo avisando que trazia o corpo num caixão lacrado
para que ela não ficasse chocada com os ferimentos do menino,
arrastado pelo caminhão de carga. Dona Iracema procurou o apoio
da poltrona para dobrar o corpo, queria o conforto das entranhas.
Fazia poucos dias que o filho saíra por aquela porta levado por
policiais. (...) Os cabelos da senhora ficaram brancos, seu corpo foi
perdendo o prumo, e a partir daquele dia dona Iracema foi uma mãe
brasileira em busca da justiça que tarda.
Nunca entendeu como é possível um jovem de vinte e três anos ser
morto por causa de seus ideais (Pilla, 2015, p. 21-22).

Com isso, a autora tematiza, além da sua experiência, a de outras


mulheres que também vivenciaram o período da ditadura, seja militando em
movimentos de resistência, seja no caso das mães e familiares de militantes,
muitos deles assassinados ou sequestrados, o que também ocorreu no país
vizinho e é abordado por Pilla. Dessa forma, entende-se que o relato da autora
contribui para a necessária correção do discurso histórico aludida por Colling
(2004), já que, ao apresentar-nos suas experiências de militante, presa e
exilada política, Pilla contribui de forma a complementar as informações que
nos chegam no tempo presente sobre o período da ditadura militar brasileira, o
que ocasiona em um reconhecimento da atuação das mulheres no referido
período histórico.

33
Em 2007, foi lançado no Brasil o relatório Direito à memória e à verdade,
que originou três publicações em formato de livro: a primeira, lançada em 2009,
relata a história de afrodescendentes que morreram na luta contra a ditadura; a
segunda, lançada no mesmo ano, focaliza violações cometidas contra crianças
pelo aparelho repressor; e a terceira tem como centro a dimensão feminina, e
se intitula Direito à memória e à verdade: Luta, substantivo feminino. Essa
registra vida e morte de 45 militantes brasileiras que lutaram contra a ditadura,
além de apresentar o testemunho de outras 27 sobreviventes que narram as
agruras que vivenciaram durante o período. Nilcéa Freire, então ministra da
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República,
defende a importância da referida publicação, também como forma de correção
do discurso histórico:

Se nos impuséssemos o exercício de mapear os dez nomes que


mais aparecem nos livros de história, dificilmente aparecerá um de
mulher entre eles. Com a honrosa exceção da princesa Isabel, que
aparece sistematicamente como ―libertadora‖ e nunca como
―governante‖, o Brasil parece ter tido sua história parida
exclusivamente por homens. O relato oficial sobre a nossa trajetória
como nação é estritamente masculino; nos retratos oficiais, nossos
heróis têm, quase sempre, barba e bigode (Freire, 2010, p. 15).

A ministra menciona uma série de iniciativas de sua gestão que


buscaram dar visibilidade às mulheres que contribuíram para a construção
política e cultural do país, com vistas à ampliação da participação feminina nas
diferentes dimensões da sociedade, salientando que,

[a]brir os arquivos da ditadura que assolou o nosso país entre 1964 e


1985, dando voz às suas vítimas e construindo um relato alternativo
ao ―oficial‖ sobre o período, seria, só por isso, uma atitude de justiça
histórica. Fazer esse exercício de forma a garantir espaço às vozes
femininas que lá estiveram é não apenas se comprometer com a
construção de uma narrativa histórica mais completa e complexa
possível, mas principalmente reconhecer o fundamental papel
feminino nas lutas de resistência à ditadura (Freire, 2010, p. 16).

Assim, percebe-se a retomada da ideia de proporcionar maior


visibilidade às mulheres, principalmente no que concerne à sua participação na
vida política do país. Nilcéa Freire menciona, ainda, além da necessária justiça
histórica perante as mulheres que foram determinantes nos movimentos de

34
resistência à ditadura, que se faz necessária a retomada da discussão sobre o
período ditatorial no tempo presente, como forma da manutenção da
democracia duramente conquistada:

A superação dos fantasmas que ainda assombram nossa história


recente exige confrontá-los. Para exorcizá-los, será preciso retirá-los
dos lugares onde estão escondidos, nomeá-los, olhá-los nos olhos e
compreender os mecanismos que os permitem surgir, de forma a
certificar-nos de que não terão nenhum espaço para ressuscitar. Por
isso, devemos agradecer às bravas jovens que se insurgiram
naquele momento e às corajosas mulheres que agora emprestam
suas histórias para que entendamos o quanto é preciosa a
democracia que elas ajudaram a restabelecer. As falas dessas
mulheres contidas nesta publicação cumprem assim um duplo e
significativo papel histórico: fazem justiça às brasileiras, dando ao
seu papel na história do Brasil a relevância que efetivamente tem, e
servem como um instrumento de luta pelo fortalecimento das
liberdades democráticas. A simples leitura de seus relatos dá ao
leitor a imediata certeza de que, pela democracia, nenhum filho ou
filha deste país fugirá à luta (Freire, 2010, p. 17).

Na narrativa de Pilla, temos acesso ao discurso da mulher militante


política e à maneira como ela percebia a sociedade daquele período:

Era a reunião de pessoas que discordavam das diretivas do Partido


Comunista Brasileiro: ali se gestava a Dissidência do Rio Grande do
Sul. Entrei em cheio em algo que mudava. Era o debate político mais
arrebatador daqueles anos. Um punhado de jovens militantes
contestava frontalmente a autoridade e as posições políticas de um
partido tradicional povoado de figuras míticas. Chamavam-nos
depreciativamente ―os jovens‖. Seguíamos em frente passando por
cima de tudo: não queríamos uma vida como a deles, nossos pais.
Queríamos tudo, e tudo em excesso. A vida, o amor, a política, a
aventura, o mundo. Um mundo que fosse bem melhor do que aquele.
É claro que não sabíamos exatamente como era o sonho. O sonho e
seus rebeldes se fizeram naqueles anos do extraordinário que havia
virado cotidiano. Modelos não nos faltavam (Pilla, 2015, p. 31-32).

São relatados pela autora os hábitos da juventude de Porto Alegre dos


anos 60, que correspondeu a um período de tentativa de emancipação sexual
das mulheres, que buscavam iguais condições de participação nas esferas
políticas e social, incluindo o rompimento de diversas barreiras e formas de
preconceito. Assim, sentimentos, emoções e diferentes histórias pessoais são
abordadas pela autora:

35
No final dos anos 50, os points jovens em Porto Alegre eram a rua da
Praia e os bailes da Reitoria.
Indo pelos anos 60 eu já militava, e os ideais femininos da época
passavam longe das minhas preferências. Os bailes da Reitoria,
mesmo sendo unanimidade na minha geração, não exerciam o
mesmo fascínio sobre mim. Os namorados que me interessavam
estavam no meio militante. Ali a abordagem parecia fácil, mas
escondia enredos ardilosos. Eram pessoas mais complexas. Da
Europa veio a ideia do amor livre, termo pomposo para romper as
barreiras da culpa (Pilla, 2015, p. 50).

Em Memórias das mulheres do exílio, obra coletiva publicada nos anos


80 e organizada por diversas militantes do período ditatorial brasileiro, várias
mulheres narram suas memórias de exiladas e suas motivações para viverem
em outro país. O trabalho fez parte do projeto ―Memórias do exílio‖ que, em sua
segunda edição em formato de livro, contou com depoimentos exclusivos de
mulheres. A ideia para o livro surgiu com um grupo de mulheres brasileiras que
estavam exiladas em Lisboa, e as organizadoras apresentam algumas
justificativas para a elaboração de um volume com relatos somente de
mulheres, dentre elas, o fato de que muitas mulheres que acompanharam os
homens no exílio não se sentiam ou não eram consideradas exiladas pelos
demais.
Paralelo a isso, as organizadoras constataram que as mulheres
depoentes do primeiro volume do projeto se apresentavam como militantes
políticas, mas não na condição de mulheres. Assim, para as organizadoras, o
volume ―[...]era a tentativa de recuperar a nossa experiência no que ela tem
também de específico, torna-la descritível para transmiti-la‖ (Costa, 1980, p.
16). Paras essas mulheres, que entendem que seus depoimentos contribuem
para a construção da memória nacional, era importante tratar das experiências
políticas e ir além delas, em uma espécie de ampliação,

[p]or esta razão, buscamos a nossa vivência como mulheres no


terreno onde o subjetivo e o objetivo se entrelaçam: o das emoções e
o da história pessoal concreta, das mudanças cotidianas e nem por
isso menores, nem por isso menos históricas (Costa, 1980, p. 17).

Elas destacam que a partir de diversas narrativas individuais chegaram a


um ―grande NÓS anônimo‖ (Costa, 1980, p.17), em que experiências diversas

36
passaram a constituir um perfil coletivo com traços de universalidade,
compondo a história social.

As mulheres, como todos aqueles que nunca foram reconhecidos


pela historiografia, não têm a sua história registrada. Disso decorre
que o arrolar dos testemunhos do presente sobre o presente, das
histórias de vida, da tradição oral, seja um esforço de reconstituição,
assim como uma tentativa de dar livre curso à nossa imaginação e à
nossa criatividade, de dar instrumentos para o domínio do futuro.
E porque a dominação de qualquer grupo oprimido passa pela
apropriação da sua História, em busca de sua identidade social, mais
uma razão para um livro só de mulheres, sem ser um livro só sobre
mulheres ou só para mulheres (Costa, 1980, p. 17-18).

Assim percebemos novamente a questão da contestação do discurso da


história por parte de um grupo de mulheres que não se sentiu representada
nele. As organizadoras apontam ainda para a diversidade de situações de
exílio, destacando que a condição de exilada não deve ser necessariamente
confundida com a de asilada ou refugiada, salientando que a saída do pais é,
de certa forma, a expressão de uma vontade, ainda que configurada pela
situação extrema de sair para não morrer, já que, ―[p]or mais duras que tenham
sido quase todas as situações, há que constatar que privados de escolha foram
aqueles que quiseram sair e se viram impedidos, ou os que decidiram voltar e
desapareceram‖ (Costa, 1980, p. 18), observando ainda que não há um só tipo
de exílio, e sim muitos e diferentes exílios, como vemos no caso de Maria Pilla,
que vivenciou vários exílios. A seguir, um fragmento do capítulo Volto semana
que vem, que dá título ao livro:

―Ué, guria, pra onde tu vai?‖


O pai vestia um pijama claro, estava em pé na cozinha. Eu deveria
sair por uns dias. Quis exagerar para não assustar, se demorasse
mais que o previsto. Uma semana e estaria de volta. Poxa, tanto
tempo assim? É. Mando notícias.
Mais de dez anos se passaram até eu voltar àquela cozinha (Pilla,
2015, p. 19).

A autora problematiza o período da ditadura atrelando-o a outros


episódios, promovendo assim uma contextualização daquele período, com
vistas à ampliação do entendimento de como se deu a ditadura e de quais
eram seus reflexos, tanto dentro quanto fora do país. Ela relata:

37
Em plena ditadura militar, 1970 foi um ano de Copa do Mundo de
futebol. Em São Paulo, os edifícios da rua da Consolação exibiam
bandeirinhas auriverdes. Bandeiras e gritos. Os ares patrioteiros
eram exigidos de todos. A maioria obedecia.
As autoridades autoconstituídas diziam ter descoberto um grupo de
guerrilha no Araguaia. Às vezes um cortejo de carros da polícia e do
Exército descia aquela rua com as sirenes ligadas, anunciando o
enterro de um policial. A imprensa livre não se apressava em dar a
notícia inconveniente.
Nos dias de jogo o som da televisão tomava o lugar das pessoas nas
ruas. O ar era irrespirável no país do futebol. De boca a orelha
chegavam as notícias da tortura, dos primeiros mortos. O delegado
Fleury começava sua carreira de torturador. Os militantes corriam
para o exílio.
Coisas de exilados em Paris, muitos foram ao jogo da Seleção
Brasileira no estádio Parc des Princes, o ―Maracanã‖ deles. Coisa de
militantes, fomos também, para desfraldar uma enorme bandeira
anunciando que o Brasil – campeão do mundo de futebol – era o
campeão do mundo da tortura (Pilla, 2015, p. 62-63).

Além das discussões em torno do impacto político e social exercidos pelo


período de exceção, através das palavras de Pilla, conhecemos mais um pouco
das sequelas que a ditadura ocasionou nos relacionamentos pessoais e
familiares, muitas vezes desestruturando famílias que tiveram que conviver
com a ausência temporária ou definitiva de seus entes mais próximos.

Para a mãe, minha militância é que tinha matado o pai de estresse.


Fiquei aturdida. Não sabia como ordenar os argumentos para tirar de
sua cabeça ideia tão bárbara. Era um dia de passeio pela Torre
Eiffel. O bairro ao redor era vistoso, com suas casas burguesas,
árvores grandes e frondosas, grama crescendo pelos espaços livres.
Quase em silêncio, tomamos o elevador para subir ao topo da torre.
Naquele momento não havia turistas. Sozinha com ela no elevador, o
diálogo veio difícil. Falei que pensar o que ela pensava criava
discórdia entre nós, uma atmosfera de culpa, e que isso era o que a
ditadura queria: dividir, separar do convívio os diferentes. Disse que
o pai tinha morrido porque estava doente e que a medicina não
conseguira mudar esse fato. Aos 58 anos, ele dava a impressão de
já não querer viver. Para a mãe, foi uma perda tão devastadora que
ela necessitava de uma explicação. Eu olhava para ela impotente
(Pilla, 2015, p. 65).

Com relação aos textos literários que tematizam o período da ditadura


militar brasileira, Eurídice Figueiredo (2017) defende que o grande volume de
livros publicados, sobretudo a partir de 2010, é fruto do trabalho de elaboração
do trauma da ditadura que permanece no tempo presente, destacando que ―[...]
só a literatura é capaz de recriar o ambiente de terror vivido por personagens

38
afetados diretamente pela arbitrariedade, pela tortura, pela humilhação‖
(Figueiredo, 2017, p. 43). Sobre romances de autoria feminina que tematizam o
período da ditadura, Vecchi e Di Eugenio (2020) afirmam que

[a] dupla cicatriz, aquela do Brasil da ditadura e a das vozes


femininas nas suas urgências de buscar uma forma de contar a
história pessoal e coletiva - respondendo ao problema da escrita que
se confronta também com o problema da diferença sexual e a
resistência ao esquecimento - é a profunda diretriz desses romances
inscritos no sóbrio e difícil período da história brasileira. A dimensão
de gênero age possibilitando a constituição e a defesa de uma
memória feminina sobre um tempo traumático, uma leitura alternativa
da história, uma ―outra escrita‖ e restituição do que foi a época -
ainda presente - da ditadura militar (Vecchi; Di Eugenio, 2020, p. 7).

Assim, vemos no referencial teórico apresentado nesta pesquisa uma


reincidência da necessidade da inserção da participação das mulheres no
discurso que narra a História do Brasil. Em que pese o fato de que a maioria
das obras que versam sobre o período da ditadura terem sido publicadas por
autores homens, a divulgação das memórias de Maria Pilla em Volto semana
que vem podem ser compreendidas partindo da ideia de dupla cicatriz proposta
por Vecchi e Di Eugenio (2020):

Essa restituição, no feminino, do passado perdido, dos cacos de


traumas e perdas, das cicatrizes expostas que se vocalizam a partir
de um olhar disjuntivo e lateral, pode assim realizar-se através do
resgate (da restituição) de vozes periféricas e abandonadas, que
mostram outra possibilidade de contar uma história lacunosa e
incompleta, mas que na força débil e marginal do discurso das
mulheres encontra registro e consistência, tornando-se uma efetiva
possibilidade de salvar um passado de outro modo perdido para
sempre e sobretudo para todos. Sem diferença sexual, mas com uma
cicatriz que marcou em particular uma condição histórica sobre
outras, uma condição justamente feminina (Vecchi; Di Eugenio, 2020,
p. 7).

Desta forma, os autores defendem que as experiências traumáticas da


ditadura e a difícil vocalização feminina dessa memória desafiam a tradição
androcêntrica de escrita da História, o que ocorre no relato de Maria Pilla, que,
além de retomar o período da ditadura no tempo presente, contribui com uma
complementação do discurso oficial, ao narrar as experiências de uma militante
política mulher, passando assim a ser encarada também enquanto sujeito
histórico e contribuindo para a divulgação da participação das mulheres nos

39
eventos históricos e sociais do país, rechaçando com isso a condição de sujeito
que deve permanecer apenas na vida privada e doméstica.
As palavras de Maria Pilla, somadas a outras vozes de mulheres que
relatam suas experiências com a ditadura, como Derlei Catarina de Luca, em
No corpo e na alma (2002), Maria Valéria Rezende, em Outros Cantos (2016),
ou Lúcia Velloso Maurício, em Cacos de sonhos (2015), contribuem para que
ocorra o reconhecimento da importância que as mulheres tiveram no embate a
um dos períodos mais violentos da história do país, sendo que estas mulheres
retomam a valentia que exerceram nos anos de chumbo ao relatar-nos as
agruras da ditadura no tempo presente.

REFERÊNCIAS

COLLING, Ana Maria. As mulheres e a ditadura militar no Brasil. História em


revista. Universidade Federal de Pelotas. V.10, p.1-10, 2004. Disponível em:
https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/HistRev/article/view/11605
Acesso em: 02 ago. 2021.

COSTA, Albertina de Oliveira. et alii. Memórias das mulheres do exílio. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1980.

FIGUEIREDO, Eurídice. A literatura como arquivo da ditadura brasileira. 1ª ed.


1ª reimp. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2017.

KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada


etnográfica. 2ª ed. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012.

MERLINO, Tatiana, OJEDA, Igor (orgs). Direito à memória e à verdade: Luta,


substantivo feminino. São Paulo: Editora Caros Amigos, 2010.

PILLA, Maria. Volto semana que vem. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

VECCHI, Roberto, DI EUGENIO, Alessia. A dupla cicatriz: a ditadura brasileira


e a vocalização feminina da memória traumática de Ana Maria Machado.
Revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea. Brasília, n.60, p.1-10,
2020. Disponível em:
<https://www.scielo.br/j/elbc/a/VLVWKmmjvH3Ch7wnPcPQyLJ/?format=pdf&la
ng=pt> Acesso em: 01 ago. 2021.

40
TRADUZIR BORDERLANDS/LA
FRONTERA: THE NEW MESTIZA. A
TRADUÇÃO COMO TRAVESSIA

Alice Maria de Araújo Ferreira7


Gabriel Caetano Moreira8

RESUMO:
Este trabalho tem como objetivo a tradução do primeiro capítulo, The
Homelan,Aztlán/El otro México, da emblemática obra de Gloria Evangelina
Anzaldúa, Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. Borderlands é uma obra
que, além de ser multilíngue, serpenteia por diversas áreas, tais como os
estudos de fronteira, de identidade, estudos queer e sobre a cultura chicana
nos EUA. Buscou-se, então, a criação de um projeto de tradução que estivesse
apto a lidar com sua complexidade e que respeitasse a alteridade. Dentre as
questões presentes, propomo-nos discutir, a partir das lentes tradutórias, duas
em particular neste trabalho, a saber: a escrita mestiza e a inespecificidade de
gênero textual. Os conceitos fronteiriços, culturais e de identidade,
desenvolvidos em Borderlands por Anzaldúa (1987); a mestiçagem de Nouss
(2002) e Laplatine (2002); a poética de enunciação de Meschonnic (2010) e a
posição ética de Samoyautl (2020) e Glissant (2021 [1990]) entre outros
filósofos e pesquisadores das ciências humanas foram nosso alicerce teórico
para as reflexões e discussões desenvolvidas ao decorrer do texto. Como
resultado, além da tradução do texto propriamente dito, tivemos a oportunidade
de escutar e refletir sobre o processo de tradução que permitiu ouvir a voz
subalterna, mestiza e subversiva de Anzaldúa.

Palavras-chave: Gloria Anzaldúa; Mestiçagem; Tradução; Inespecificidade de


gênero; multilinguismo.

INTRODUÇÃO
Gloria Evangelina Anzaldúa (1942-2004) foi uma escritora e filósofa
chicana9, lésbica, queer e ativista. É autora de uma das obras mais marcantes
sobre a experiência existencial de chicanas e chicanos: Borderlands/La

7
Doutora em Linguística pela Universidade de São Paulo. Professora Associada do curso de
Tradução da Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]
8
Mestrando em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas e Bolsista
CAPES. Bacharel em Letras Tradução-Espanhol pela Universidade de Brasília. E-mail:
[email protected]
9
Palavra que remete à autoidentificação de Mexicano-americanos

41
Frontera: The New Mestiza (1987). Anzaldúa, ao longo das últimas décadas,
vem se tornado cada vez mais reconhecida por seus escritos e reflexões que
misturam biográfico e não-biográfico, o público e o privado e o ser e o não-ser.
Segundo ela mesma, no prefácio da obra:

Este livro, portanto, fala de minha existência. Minhas preocupações


com a vida interior do Ser e com a luta desse Ser em meio a
adversidades e violações; com a confluência de imagens primordiais;
com as posições únicas que a consciência assume nesses fluxos
confluentes; e com meu impulso quase instintivo de comunicar, falar
e escrever sobre a vida nas fronteiras, a vida nas sombras
(Anzaldúa, 1987, p.01 — Tradução nossa10).

A primeira edição datada em 1987, Borderlands/La frontera: The New


Mestiza, está dividida em duas partes: a primeira, Atravesando fronteras/
Crossing Borders, constituída de sete capítulos que narram a herança cultural,
as memórias, as reflexões e as vivências do povo chicano a partir e para além
da fronteira México-EUA pelas lentes de Anzaldúa. A segunda, Un Agitado
Viento / Ehécatl, The Wind, apresenta seis capítulos com trinta e oito poemas,
que expressam a relação da autora com sua herança cultural e consigo
mesma.
Além de Borderlands, Anzaldúa publicou antologias que a tornaram
referência na literatura feminina e latina de grupos minoritários. Entre eles, se
encontram This Bridge Called My Back: Writings by Radical Women of Color
(1981), Making Face, Making Soul/Haciendo Caras: Creative and Critical
Perspectives by Feminists of Color (1990) e This Bridge We Call Home: Radical
Visions for Transformation (2009). A autora se debruçou, também, sobre a
literatura infantil com as obras Friends from the Other Side/Amigos del Otro
Lado (1995) e Prietita y La Llorona (1996).
O trabalho possui como objetivo geral a tradução do primeiro capítulo da
1ª edição da obra, The Homeland: Aztlán/El otro México 11, para o português
brasileiro. A escolha do primeiro capítulo para o objeto de estudo desta
pesquisa se justifica pelos temas abordados pela autora logo no início da obra,

10
No original: This book, then, speaks of my existence. My preoccupations with the inner life of
the Self, and with the struggle of that Self amidst adversity and violation; with the confluence of
primordial images; with the unique positionings consciousness takes at these confluent
streams; and with my almost instinctive urge to communicate, to speak, to write about life on the
borders, life in the shadows.
11
Em nossa tradução: Nossa Terra, Aztlán/ El otro México.

42
como a (i)migração, a vivência na fronteira, o preconceito e a vivência da
mulher de cor. Esses temas são recorrentes na vida da escritora que atuou
como militante ativista do feminismo da diferença 12 e lutou com sua voz e suas
ideias pelo direito daqueles que estavam à margem da sociedade. Como
Anzaldúa não conta com muitas traduções 13 para o português brasileiro, a
tradução do capítulo introdutório de sua obra é uma forma de apresentar e
divulgar conceitos propostos pela autora.
Como objetivos específicos, busca-se criar um projeto de tradução po-
ético14 que não apague o multilinguismo da escrita de Glória Anzaldúa. Com
essa visada, o trabalho consiste em analisar a presença de diferentes línguas
nas enunciações tanto da narradora quanto dos personagens de modo a
discutir sua tradução. Várias questões apareceram no desenrolar da pesquisa
e nos propomos discutir duas em particular neste trabalho, a saber: a escrita
mestiza 15 e a inespecificidade de gênero.
Metodologicamente, o trabalho foi embasado nos próprios escritos e
estudos de Gloria Anzaldúa, para além de ser o objeto de estudo desta
pesquisa, a autora era/é uma renomada teórica feminista e pós-colonial que se
debruçou sobre os estudos de fronteira, mestizaje, identidade, raça, entre
outros.
Para embasar nossas discussões teóricas e práticas, buscamos. em
pensadores da tradução e dos estudos culturais, reflexões sobre o traduzir
textos literários em contexto de migração. Henri Meschonnic (2010) nos
auxiliou na análise do contínuo da linguagem com sua poética de enunciação
focada no discurso e no sujeito, logo no ritmo. Com Gaya Chakravorty Spivak
(2010) refletimos sobre a subalternidade, o sujeito subalterno e a

12
Vertente do feminismo que surgiu nos anos 80 liderado por mulheres não-brancas que
clamavam por seu espaço em meio ao feminismo branco vigente.
13
Hoje se encontram duas traduções publicadas no Brasil. Uma referente ao capítulo 5 [―How
to Tame a Wild Tongue‖] e a segunda ao último capítulo da obra [―La conciencia de la
mestiza‖].
14
Político, Ético e Poético.
15
A opção de deixar a palavra mestiza em espanhol e em itálico foi para que se obtivesse uma
referência a própria escrita da autora e ao título da obra. Durante diferentes passagens,
Anzaldúa, ao falar de mestizaje (mestiçagem), utiliza a forma em espanhol. Dessa maneira,
deixando em evidência a língua espanhola para que não fosse apagado o multilinguismo.

43
representação da mulher. Rubén Medina (2009), com suas análises e
profundas reflexões sobre os escritos de Anzaldúa, foi uma valiosa contribuição
no trabalho. Enfim, sobre a questão da tradução e migração, nos apoiamos nos
estudos de Alice Ferreira (2012; 2019), além de François Laplatine (2002) e
Alexis Nouss (2002), com os quais refletimos sobre o conceito de mestiçagem
e migração. Com esses pensadores, nos debruçamos sobre as estratégias de
tradução condizentes com nosso projeto.
Como metodologia prática, o ―Caderno do tradutor‖ nos permitiu o
registro do processo tradutório com suas hesitações e escolhas. Nosso
―Caderno do Tradutor‖, criado em word, foi composto por três colunas: a
primeira acolhia o texto fonte; a segunda, o texto em tradução e, a terceira foi
destinada ao registro de comentários, observações e notas. Tal metodologia é
proposta para que seja possível um olhar mais minucioso sobre a operação
tradutória (suas escolhas e estratégias) e diz respeito a aspectos
interlinguísticos, rítmicos e enunciativos. Além do Caderno do tradutor, a
prática tradutória também era discutida nos encontros quinzenais do grupo:
Tradução etnográfica e po-éticas do devir16, em que cada pesquisador
apresentava seu projeto e discutia as escritas da relação a partir dos
pensadores supracitados.
Portanto, esta pesquisa foi estruturada em duas partes, a primeira sendo
referente à escrita mestiza e suas principais características apontadas por
Medina (2009), quais sejam: a escrita multilíngue e a inespecificidade de
gênero textual; e a segunda parte diz respeito às implicações dessas
características no traduzir. Ambas as partes apresentam exemplos de
abordagens e análises perante a escrita de Anzaldúa. Sua obra, Borderlands,
mobiliza diferentes áreas de conhecimento devido a seu potencial
transformador e transcultural.

A ESCRITA MESTIZA
Uma das características de Gloria Anzaldúa discutida no trabalho é, sem
dúvida, sua escrita mestiza, reflexo de um processo migratório empreendido
por seus antepassados e que se manifesta na alternância e conjugação das

16
Grupo de pesquisa coordenado pela professora Alice Ferreira. O grupo se volta à tradução e
análise de textos literários, teórico-filosóficos e etnográficos

44
línguas envolvidas nessa travessia: o inglês e o espanhol, principalmente. O
segundo ponto discutido durante a pesquisa, decorrente do primeiro, diz
respeito à particularidade de processo tradutório de tal escrita tendo como
horizonte o não apagamento da mestiçagem.
Publicado em 1987 pela editora Aunt Lute Books17, Borderlands/La
frontera: uma nova mestiza traz à luz os problemas enfrentados pela população
Chicana que vive na fronteira México - EUA. A autora teoriza e sugere uma
nova identidade chicana e constrói este discurso com uma escrita que não
apaga nem a partida nem a chegada do sujeito e/i-migrante.
No artigo, ―El mestizaje através de la frontera: Vasconcelos y Anzaldúa‖
(2009), Rubén Medina, estudioso de Anzaldúa e dos Estudos
mexicanos/chicanos nos EUA, descreve a importância de Borderlands para as
noções de fronteira, mestizage e identidade. Nas palavras do autor:

Em Borderlands / La Frontera (1987), Anzaldúa articula várias


noções de mestiçagem, incluindo as duas formas de hibridação
(orgânica e intencional) postuladas por Bakhtin. Seu próprio livro
representa uma prática notável de hibridismo ao articular uma
mistura de gêneros (autobiografia, poesia, ensaio, relato histórico),
idiomas (inglês, espanhol, espanhol, frases em náuatle), conceitos
(ocidentais e nativos), e uma perspectiva que é ao mesmo tempo
histórica e utópica, moderna e pós-moderna (Medina, 2009, p. 115 —
Tradução nossa).18

A fronteira, o multilinguismo e a mestizaje estão interligados. Não se


trata de uma relação de ―causa-consequência‖, mas sim como processos
interligados em um mesmo patamar. Para Glissant (1990), as relações
humanas se fazem presente nas línguas, seja no campo religioso, político ou
cultural, a presença da relação na linguagem é indissociável. O autor acredita
que o multilinguismo nas relações (na língua, consequentemente) é vital para o
não apagamento da diversidade e multiplicidade de culturas, ou por assim

17
Faz-se importante mencionar que o objetivo da referida editora era/é de publicar escritos de
mulheres cujas vozes foram sempre mal representadas nos meios de comunicação.
18
No original: En Borderlands / La Frontera (1987), Anzaldúa articula varias nociones de
mestizaje, incluyendo las dos formas de hibridación (orgánica e intencional) que postula Bajtín.
Su libro en sí representa una práctica notable de hibridez al articular una mezcla de géneros
(autobiografía, poesía, ensayo, relato histórico), de lenguajes (inglés, español,spanglish, frases
en náhuatl), de conceptos (occidentales y nativos), y una perspectiva a la vez histórica y
utópica, moderna y posmoderna.

45
dizer, ―modos de ver o mundo‖. A escrita multilíngue é, portanto, segundo
Glissant, a escrita da relação e a escrita da mestizaje.

É por isso que a poética da Relação nunca é conjetural e não supõe


nenhuma rigidez de ideologia. Ela contradiz as confortáveis certezas
relacionadas à suposta excelência de uma língua. Poética latente,
aberta, de intenção multilíngue, em contato intenso com tudo o que é
possível. O pensamento teórico, que visa o fundamental e o alicerce,
com que ele na verdade se parece, furta-se a essas trilhas incertas
(Glissant, 2021 [1990], p. 58).

Rubén Medina (2009) acredita que a autora chicana descreve e propõe


em Borderlands duas noções de mestizaje, a primeira sendo fundamentada a
partir de um contexto histórico da fronteira e a segunda como uma proposta a
partir das(os) filhas(os) que e/i-migraram, as/os ―novas/os mestizas/os.:
Gloria Anzaldúa nos oferece uma rearticulação mais complexa da
mestiçagem. Ao contrário de Vasconcelos, a autora revisa o conceito
de mestiçagem a partir de sua própria experiência como sujeito
híbrido e com base em vários aspectos de sua identidade como
mulher, lésbica, feminista e chicana. Ela também considera a
relevância da inclusão do outro em sua identidade e sua capacidade
de mover-se entre culturas, negociar diferenças e interpretar esses
processos (Medina, 2009, p. 112 — Tradução nossa).19

Portanto, analisar a escrita de Anzaldúa unicamente como uma ―escrita


multilíngue‖ não abarca toda sua subjetividade. Seguindo os moldes da autora
em propor uma nova consciência mestiça, esta pesquisa propõe discutir a
escrita de Gloria Anzaldúa como uma escrita mestiza, ou seja, uma maneira de
escrever que perpassa e subverte as fronteiras, sejam elas geográficas ou de
gênero. O que a diferencia da ―escrita multilíngue‖ é justamente como ela o faz,
ultrapassando o nível linguístico e indo além.
A escrita mestiza da autora é composta por traços da escrita multilíngue,
como a pluralidade de línguas, muitas vezes em uma sentença ou por palavras
isoladas20, pela polifonia das diferentes vozes e sujeitos enunciadores que

19
No original: Gloria Anzaldúa quien nos ofrece una rearticulación más compleja del mestizaje.
A diferencia de Vasconcelos, la autora revisa el concepto de mestizaje a partir de su propia
experiencia como sujeto híbrido y con base en varios aspectos de su identidad como mujer,
lesbiana, feminista y chicana. Asimismo, considera la relevancia que tiene la inclusión del otro
en su identidad y en su capacidad para moverse entre culturas, negociar diferencias e
interpretar estos procesos.
20
A presença de diferentes línguas num discurso caracterizando a escrita multilíngue se
manifesta de várias maneiras, como mostra Rodrigo Rodrigues (2018) em seu trabalho sobre a
obra multilíngue Food, Poetry, and Borderlands Materiality: Walter Benjamin at the taquería, de

46
aparecem ao longo da obra, pela inespecificidade de gênero literário, pela
retomada do passado indígena e o testemunho que parte de sua vivência
fronteiriça permitindo a representação de um povo.
É importante salientar que esses parâmetros levantados durante a
pesquisa condizem unicamente para Gloria Anzaldúa, visto que a escrita
mestiza e o multilinguismo se manifestam de maneira única em cada sujeito a
partir de suas respectivas trajetórias, pois cada migração é única. Na visão dos
teóricos Laplantine e Nouss ―cada mestiçagem é única, particular e traça o seu
próprio futuro. O resultado desse encontro mantém-se desconhecido, razão
porque convém, em primeiro lugar, expor para compreender, sem construir
tipologias (Laplantine; Nouss, 2002, pág. 10).
Para conceituarmos a escrita mestiza, as ideias apresentadas por María
Inés Aldao (2021) sobre a crónica mestiza foram fundamentais para nossa
reflexão. De acordo com a autora, las crónicas seriam um compilado de textos
que reelaborariam materiais discursivos ou reais da história do continente
americano por meio de procedimentos narrativos de tradição heterogênea onde
o cronista mestizo não tem pretensão em determinar o gênero de sua obra.
Apesar de Anzaldúa não ter essa pretensão pela determinação de gênero e
ainda fazer a retomada do passado proposta por María Aldao, Gloria Anzaldúa
não se insere nas crónicas mestizas. Anzaldúa retoma o presente e o utiliza
como alicerce para a criação e formação de uma (nova) identidade para
chicanas e chicanos que vivem na/fora da fronteira.
Como mencionado anteriormente, esta pesquisa se atentou, dentre os
diferentes aspectos da escrita mestiza, ao multilinguismo e à inespecificidade
de gênero presente em Borderlands. Medina (2009) acredita que, ao construir
uma hibridez textual abordando diversos gêneros simultaneamente, Anzaldúa
desafia as convenções acadêmicas e resiste, por meio de sua escrita mestiza.
Para o autor, o que Gloria Anzaldúa faz é ser todos os gêneros em um, e ao
mesmo tempo não ser nenhum. Não obstante, Medina (2009) também afirma
que a hibridez e a heterogeneidade de Anzaldúa são uma reprodução do

Maríbel Alvarez. O autor levantou quatro diferentes manifestações do multilinguismo, elas são:
1) Multilinguismo manifestado como dois Monolinguismos; 2) Multilinguismo aparentemente
Pontual; 3) Multilinguismo manifestado na interferência sintática; 4) Multilinguismo inteiramente
apagado na língua e indistinguível textualmente. Todas as quatro manifestações foram
encontradas no 1º capítulo de Borderlands, o que não limita a obra a apenas essas
manifestações visto que a escrita mestiza é única a cada autor/a.

47
espaço cultural da fronteira EUA ‒ México que é convertida em uma prática
cultural dessa zona de contato. Nas palavras do autor:

Anzaldúa desafia as convenções do ensaio acadêmico, pluralizando


seu formato e rigor disciplinar ao misturar e justapor diversas
narrativas, histórias coletivas e individuais, e conceitos e
conhecimentos de diferentes repertórios culturais de tal forma que o
leitor cruza várias fronteiras (conhecimento) e entra em um espaço
textual fronteiriço próprio (Medina, 2009, p. — Tradução nossa).21

Ao não conseguirmos definir em qual categoria Borderlands se encaixa,


seja num ensaio acadêmico, seja em testemunhos pessoais e coletivos,
poesia, mito/lenda, prosa ou um documento histórico, percebemos que, assim
com a nova mestiza, seu texto é híbrido. Não se denominando ou se limitando
a apenas uma classificação, mas sim, em várias ao mesmo tempo, abordando
diferentes narrações. A não preocupação da autora com a
classificação/denominação se imprime justamente na representação da
inespecificidade de gênero como sua escrita mestiza.
Além disso, o inespecífico, como uma ―categoria estética‖ é antes de
tudo, um ato político-discursivo (Thomaz; Duarte; 2021, p. 2). A
inespecificidade, o não-identificável, o que não é comportado pelas tradicionais
estruturas de conhecimento representa uma multiplicidade, tanto de vozes
quanto de sujeitos, que vai contra a (hetero)normatividade vigente. Anzaldúa,
com sua inespecificidade de gênero, nos questiona e nos mostra seus
atravessamentos por meio de sua escrita. Tendo isso em mente, uma pesquisa
que vise determinar, especificar ou retirar Borderlands de sua condição de
inespecífico reforça as estruturas opressoras que Anzaldúa combate. Portanto,
ao invés de adotarmos ―gênero textual‖, para evitar reforçar as estruturas
determinantes, buscamos por em evidência seu discurso.
O que se propõe nesta pesquisa não é a exigência utópica do tradutor
da escrita mestiza e sim que o profissional não encare a inespecificidade como
um problema, mas como uma alternativa. A postura etnográfica e não-
apagadora da diferença, atrelada a um entendimento histórico e social, permite
21
No original: Anzaldúa desafía las convenciones del ensayo académico, pluralizando su
formato y rigor disciplinario mediante la mezcla y yuxtaposición de diversos relatos, historias
colectivas e individuales y conceptos y saberes de distintos repertorios culturales, de modo tal
que el lector cruce varias fronteras (de conocimiento) y entre a habitar en un espacio textual
fronterizo propio.

48
que a escrita mestiza seja reconhecida como uma maneira de ver e entender a
realidade partindo do ponto de vista daqueles que vivem à margem da
fronteira/sociedade.

TRADUZINDO A ESCRITA MESTIZA


A escrita mestiza de Gloria Anzaldúa apresenta diferentes desafios para
a tradução ao cruzarmos a fronteira com o português brasileiro. Esses
desafios, suas soluções e reflexões serão expostos ao longo desta seção.
Escrito majoritariamente em inglês e espanhol e com um ponto de vista
histórico, o capítulo Nossa Terra, Aztlán/El otro México, situa a origem tanto de
mexicanos quanto de chicanos no povo Cochise22, que, desafortunadamente,
tiveram contato com Hernán Cortés e seus colonizadores espanhóis trazendo a
devastação e colonização da terra e do povo. Aztlán é o nome, em náuatle, da
terra ancestral do povo Asteca. A autora se refere a Aztlán remetendo à terra
que foi tirada na colonização e durante o imperialismo estadunidense, e
segundo ela, todos os mexicanos e chicanos são originários do povo que ali
vivia, os Cochise.
Além de Aztlán, Anzaldúa (des)escreve sobre la travesía dos mexicanos
na fronteira México ‒ EUA e suas especificidades como a crise econômica
vigente na época, as situações de trabalho dos mexicanos e chicanos nas
maquiladoras23 e o atravessar da fronteira sendo uma mulher chicana (la
mojada24) perpassando por diferentes situações de perigo nas mãos do
coyote25, como os constantes abusos sexuais e estupros.
A inespecificidade de gênero textual pode ser vista como um ―problema‖
para o âmbito da tradução/do tradutor. Esse que, ao traduzir a escrita mestiza
de Borderlands se vê diante de tantos gêneros juntos e misturados, exigindo
que o profissional de tradução sempre esteja atravessando (junto com a
autora) esses gêneros e mudando suas próprias estratégias de tradução

22
Povo indígena que seria um antepassado comum para Mexicanos e Chicanos.
23
Empresas que importam peças e componentes de suas matrizes estrangeiras para que os
produtos manufaturados.
24
Mojado é uma denominação de cunho pejorativo para Chicanos e Chicanas. O termo é uma
alusão ao fato de muitos mexicanos-americanos cruzarem a fronteira México-EUA pelos rios,
estando sempre molhados. Mojada é a designação feminina. Anzaldúa denuncia os perigos
corridos durante a travessia da fronteira, e recai seu olhar para os perigos enfrentados pelas
mulheres migrantes.
25
Aquele quem faz a travessia de mexicanos e mexicanas para o outro lado da fronteira.

49
perante os diversos gêneros que estão dispostos na obra. A presença de
múltiplos gêneros mobiliza a experiência tradutória.
O testemunho, uma das práticas textuais mais dispostas ao longo do
texto de Anzaldúa, tem o poder de representação e embreia em duas
temporalidades que se tornam presentes. A primeira diz respeito ao tempo
presente da escritora, e a segunda ao tempo dos que atravessaram como a
mãe e a tia, por exemplo. Essas duas temporalidades ecoam no testemunho de
presentes diferentes, ou de diferentes sujeitos (testemunho da escritora;
testemunho de outro). Para Seligmann-silva (2008), o testemunho é marcado
pelo tempo presente.

O ato de testemunhar tem o seu valor em si, para além do valor


documental ou comunicativo deste evento. A cena do testemunho, se
testemunho de fato acontece, é sempre e paradoxalmente externa e
interna ao evento narrado. Interna porque em certo sentido não
existe um ―depois‖ absoluto da cena traumática, já que esta
justamente é caracterizada por uma perenidade insuperável
(Seligmann-Silva, p. 80-81, 2008).

Nos excertos abaixo, damos como exemplo dos dois testemunhos da


autora. O primeiro (Tabela 1) referente ao testemunho da autora em relação ao
destierro, a perda da terra originária — Aztlán — pelas mãos do Gringo
colonizador. É interessante observar que, no primeiro testemunho, inerente à
autora, ela o faz a partir do pronome plural ―nós‖, representando um povo, o
Chicano. O segundo (Tabela 2) se refere a dois testemunhos, o de Anzaldúa e
o de sua mãe, perante a seca que assolou sua fazenda e a perda de seu pai.
Anzaldúa se coloca como observadora (o testemunho de sua mãe perpassa
por ela) e como sujeito. Ambos os excertos se referem, em síntese, à perda de
uma terra, Aztlán e de sua família.

Tabela 1- Anzaldúa testemunha


The Gringo, locked into the fiction of white O Gringo, preso à ficção da superioridade
superiority, seized complete political power, branca, tomou o poder político completo,
stripping Indians and Mexicans of their land despojando os indígenas e mexicanos de suas
while their feet were still rooted in it. Con elterras enquanto seus pés ainda estavam
destierro y el exilo fuimos desuñados, enraizados. Con el destierro y el exilo fuimos
destroncados, destripados— we were jerked desuñados, destroncados, destripados —
out by the roots, truncated, disemboweled, tivemos cortadas nossas raízes, truncados,
dispossessed, and separated from our estripados, despojados e separados de nossa
identity and our history identidade e de nossa história.
Fonte: Elaborado pelo autor (2022).

50
Tabela 2- Testemunho atravessa Anzaldúa
My grandmother lost all her cattle, they stole Minha avó perdeu todo o seu gado, roubaram-
her land. lhe suas terras.
―Drought hit South Texas,‖ my mother tells ―A seca atingiu o sul do Texas‖, minha mãe
me. ―La tierra se puso bien seca y los me dizia, “La tierra se puso bien seca y los
animales comenzaron a morrirse de se’. Mi animales comenzaron a morrirse de se’. Mi
papá se murió de un heart attack dejando a papá se murió de un ataque cardíaco dejando
mama pregnant con ocho huercos, with eight a mamá grávida con ocho huercos, oito filhos
kids and one on the way. Yo fuí la mayor, e um a caminho. Yo fui la mayor, tenía diez
tenia diez años.
años.
Fonte: Elaborado pelo autor (2022).

Um projeto de tradução que não considere os diferentes modos de


expressão da escrita mestiza de Borderlands estaria atacando diretamente a
poética da obra. A tradução, como uma travessia, tem um potencial
transformador e transcultural inserindo novos discursos e transformando
discursos já estabelecidos. Para a professora doutora Alice Ferreira, teórica
dos estudos da tradução, ao falarmos de uma (po)ética de tradução, estamos
pensando em uma relação ética em que o sair de si, afetar-se com/pelo outro,
voltar a si e afetar o outro (2020) fazem parte da experiência tradutória. Nas
palavras de Berman, ―a essência da tradução é de ser abertura, diálogo,
mestiçagem, descentramento. Ela põe em relação, ou não é nada‖ (2002, p.
17, grifo nosso).
Assim, entendemos a tradução como uma travesía. Um atravessamento
de fronteiras que a escrita mestiza proporciona. Os atravessamentos do
espanhol e do náuatle na língua inglesa fazem um movimento na escrita que
afeta e retira o leitor não familiarizado de seu aconchego monolíngue. O que
Anzaldúa faz é habitar (e resistir) nesse equívoco, seja o entre-fronteiras ou
simplesmente na instância do ser (ser mulher de cor, ser chicana, ser lésbica e
ser mestiza). Traduzir o que a lógica dos estados-nação considera um
equívoco é traduzir na relação a escrita mestiza.
Durante o ato de traduzir, faz-se necessário reconhecer os sujeitos das
enunciações. Nas palavras de Alice Ferreira e Ana Rossi, a respeito do ato
tradutório:

Ao traduzir o outro, me aproprio dele devorando-o, sem, no entanto,


me transformar no outro, nem transformá-lo em mim mesmo, mas me
transformando com o outro e transformando-o num devir instável, em
formação, mestiço. Isso implica não só um ato de devoração,
enquanto leitura-apropriação, mas acompanhada de um processo de

51
digestão, enquanto crítica, que permite a transformação do corpo
(para não correr o risco de vomitá-lo antes!). A tradução
transforma/mestiça/muda as culturas como transforma/mestiça/muda
os períodos históricos (Ferreira, Rossi, 2013, p. 45).

Partindo desse ponto, ao nos depararmos com um texto mestizo, é


necessário que se entenda e se volte para o discurso que será traduzido. No
entanto, na escrita mestiza, a presença de múltiplas línguas cria cenários
perfeitos para diferentes sujeitos falarem e serem ouvidos, afinal, traduzimos
discursos e não línguas (Meschonnic, 2010).
Durante o processo tradutório, ao lidarmos com a escrita mestiza de
Anzaldúa, duas metodologias foram encontradas, a primeira, a não-tradução
das línguas minorizadas26 do texto (o espanhol e o náuatle) e a tradução (em
sua maior parte) do inglês, mantendo o atravessamento do espanhol, nesse
caso, no português. E a segunda, a utilização do itálico para que as diferentes
línguas na obra fossem diferenciadas e evidenciadas tal qual no original. Nos
excertos abaixo, encontram-se exemplos da não-tradução, a utilização do
itálico e a inespecificidade de gênero.

Tabela 3 - La Historia
In 1846, the U.S. incited Mexico to war. U.S. Em 1846, os Estados Unidos incitaram o
troops invaded and occupied Mexico, forcing México à guerra. As tropas americanas o
her to give up almost half of her nation, what is invadiram e ocuparam, forçando-o a desistir
now Texas, New Mexico, Arizona, Colorado de quase metade de sua nação, que equivale
and California. hoje ao Texas, Novo México, Arizona,
Colorado e Califórnia.
With the victory of the U.S. forces over the Com a vitória das forças dos EUA sobre o
Mexican in the U.S.-Mexican War, los México na Guerra, los norteamericanos
norteamericanos pushed the Texas border empurraram a fronteira do Texas para 160 km
down 100 miles, from el río Nueces to el río abaixo, de el río Nueces ao el río Grande. O
Grande. South Texas ceased to be part of the sul do Texas deixou de fazer parte do estado
Mexican state of Tamaulipas. mexicano de Tamaulipas.
Fonte: Elaborado pelo autor (2022).

Tabela 4 - La sangre
Miro el mar atacar Miro el mar atacar
la cerca en Border Field Park la cerca en Border Field Park
con sus buchones de agua, con sus buchones de agua,
an Easter Sunday resurrection no Domingo de Páscoa uma ressurreição
of the brown blood in my veins, do sangue marrom em minhas veias,
Fonte: Elaborado pelo autor (2022).

26
Minorizadas no sentido de oprimidas perante a hegemonia. É importante observar que no
texto, Anzaldúa utiliza o inglês como a língua majoritária e o espanhol como secundária,
ocorrendo assim, uma hierarquização entre as línguas. O náuatle, nesse panorama, é
duplamente minorizado, tanto pelo inglês quanto pelo espanhol.

52
Ressaltamos que a não-tradução não pode (ou não deve) ser resumida
ao simples ato de ―copiar e colar as partes em itálico‖ no texto traduzido. A
necessidade de um projeto de tradução particular a cada texto é indispensável.
Cada mestiçagem, cada multilinguismo, cada encontro cultural é único e se
dispõe de uma maneira diferente nos discursos. No trabalho de conclusão de
curso do aluno Rodrigo Martins (2018) sobre a (não) tradução como estratégia
ele afirma:

Pensar em termos de ―simplesmente deixar a marca da língua


estrangeira‖ no texto traduzido achata a questão e não a resolve. É
necessário, primeiro, um estudo sistemático e investigativo da
língua(gem) para entender como esses contatos se manifestam e
como eles constroem relações (de poder, de hegemonia, de tensão e
contato) – e isso se dá na escritura, e não na língua. E cada caso
desse contato multilíngue exige uma estratégia de tradução particular
(MARTINS, 2018, p. 64).

Na passagem abaixo, Anzaldúa retrata a saída dos astecas guiados por


Huitzilopochtli, o deus do sol e da guerra, em direção a Terra que viria a se
tornar a Cidade do México. A autora utiliza Tihueque, que em náuatle significa
―Agora nos deixe ir‖27. Ao inserir e retomar elementos da cultura originária junto
à presença das línguas (inglês, espanhol e náuatle) e colocá-los em forma de
poesia, o excerto abaixo representa mais um exemplo da escrita mestiza da
autora.

Tabela 5 - Tihueque, Tihueque


Now let us go. Agora nos deixe ir.
Tihueque, tihueque, Tihueque, tihueque,
Vámonos, vámonos. Vámonos, vámonos.
Un pájaro cantó. Un pájaro cantó.
Con sus ocho tribus salieron Con sus ocho tribus salieron
de la "cueva del origen.‖ de la "cueva del origen.‖
los aztecas siguieron al dios los aztecas siguieron al dios
Huitzilopochtli. Huitzilopochtli.
Fonte: Elaborado pelo autor (2022).

No âmbito da tradução do que poderíamos chamar de ―poesia‖, dentro


da inespecificidade de gênero, a não-tradução das línguas espanhol e náuatle
e a tradução do inglês, ou seja, deixar o espanhol e náuatle atravessarem o

27
KIM,Christina, 2020.

53
português. Adicionalmente, manter a forma no poema como em seu original
foram as estratégias utilizadas para o não-apagamento da escrita mestiza.
Tiphaine Samoyault (2020), em sua obra Traduction et violence, faz
questão de nos lembrar a violência exercida e causada pela tradução. Durante
a colonização, seja dos territórios africanos e/ou americanos, ou de encontros
culturais ao longo da história do planeta, a tradução foi usada como uma forma
de dominação e apagamento do outro, do multilíngue, do diferente. O que
Samoyault (2020) expõe em sua obra é que, inerente à tradução, existe um
papel transformador de culturas que, a depender de quem o maneja, pode
possuir um viés positivo ou negativo. A autora argumenta que a não-tradução é
um possível caminho para contornar a violência causada pela tradução, sendo
esse (não) ato uma insubordinação perante as noções já estabelecidas do que
define um texto traduzido, em suas palavras:

Daí surge a necessidade talvez de destacar uma ética última da


tradução que seria uma ética da não-tradução, proposta por vários
pensadores, que constataram, sobretudo, o fenômeno do
estrangulamento das línguas vernáculas pelas línguas veiculares, do
compromisso linguístico prosseguindo as regras do jogo do império
(Samoyault, 2020, p. 164 — Tradução nossa).28

Dito isso, a não-tradução e a utilização do itálico propostas nesta


pesquisa visam criar uma relação po-ética e não violenta para a construção de
um projeto po-ético de tradução. Essa prática é necessária para manter a
mestizaje da escrita, de modo que, mesmo depois de traduzido, continua sendo
um texto mestizo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
―Eu estava tentando articular e criar uma
teoria de existência nas fronteiras‖
Gloria Anzaldúa29

28
No original: D‘où la nécessité peut-être de mettre en évidence une dernière éthique de la
traduction qui serait une éthique de la non-traduction, proposée par plusieurs penseurs
constatant notamment le phénomène d‘étranglement des langues vernaculaires par les langues
véhiculaires, de compromis linguistique poursuivant les règles du jeu de l‘Empire.
29
ANZALDÚA, 2000, p. 214 — Tradução nossa. No original: ―I was trying to articulate and
create a theory of a Borderlands existence.‖

54
A epígrafe acima faz menção a uma resposta de Anzaldúa 30, ao ser
perguntada sobre qual era o objetivo de Borderlands. Como mencionado, tanto
na pesquisa quanto pela autora, percebe-se, ao longo de seu discurso e de sua
escrita, a tentativa em construir uma consciência híbrida, flexível e plural, que
seja forte o suficiente para resistir às agressões dominantes das lógicas dos
Estados-nação.
Das questões levantadas, entendemos que o ser mestiza de Anzaldúa
habita a fronteira, e ao habitá-la, se transforma e consequentemente
transforma tudo o que toca. As características da escrita mestiza da autora,
como o multilinguismo e a inespecificidade de gênero foram problematizadas
nesse trabalho para orientar o projeto tradutório.
Dito isso, a imposição de uma teoria da diferença, segundo Anzaldúa,
nos obriga a termos uma visão descentralizada da história, ou seja, uma
história que seja narrada por aqueles que sempre foram oprimidos e
subjugados durante gerações, podendo, assim, quebrar a vigente tradição do
silêncio (BARROSO, 2016).
Portanto, no âmbito dessa pesquisa, a posição de Tiphaine Samoyautl
de não-tradução como comportamento ético e não violento do processo
tradutório, nos permitiu alcançar nosso objetivo inicial de não apagamento do
discurso de Gloria Anzaldúa. Em outras palavras, manter no texto traduzido,
sua escrita mestiza.
Afinal, se traduzir é ouvir a voz do outro (Spivak, 2010), é necessário
ouvir esse outro do jeito que ela/ele fala, com suas particularidades, sem despi-
lo de suas características e aceitá-lo ―em sua radical diferença, ou seja, para
que o outro seja de fato outro e não uma projeção narcísica e/ou egóica do
mesmo‖ (Ferreira, 2020). A pesquisa teve como resultado, além da tradução do
texto propriamente dito, refletir sobre o processo de tradução que permitiu ouvir
a voz do subalterno ao recriar a escrita mestiza da autora para o leitor
brasileiro.

30
O diálogo ocorre em seu livro Interviews/Entrevistas (2000).

55
REFERÊNCIAS

BARROSO, Susana. La Consciencia de La Mestiza e a teorização da


diferença: uma leitura de Borderlands/La Frontera, de Gloria Anzaldúa. Cabo
dos Trabalhos, Coimbra, nº13; 2016. Disponível em: 14_SusanaBarroso.pdf
(uc.pt). Acesso em 25 de julho de 2022.

BERMAN, A. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Trad. Marie-


Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan, Andreia Guerini. Rio de Janeiro: 7
Letras, 2007.

FERREIRA, Alice Maria Araújo. Noções fundamentais para se pensar a poética


do traduzir de Meschonnic. Traduzires, Brasília, v. 1, n. 1, p. 95-102, maio
2012.

FERREIRA, Alice Maria Araújo. Traduzir-se po-eticamente. Aletria: Revista de


Estudos de Literatura, [S. l.], v. 30, n. 4, p. 43–64, 2020.

GLISSANT, Édouard. Poética da Relação. Trad: Marcela Vieira e Eduardo


Jorge de Oliveira. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021 [1990].

GROSFOGUEL, Ramón. Racismo/sexismo epistémico, universidades


occidentalizadas y los cuatro genocidios/epistemicidios del largo siglo XVI.
Tradução de Fernanda Miguens, Maurício Castro e Rafael Maieiro. Tabula
Rasa. Bogotá- Colombia, No.19: 31-58, julio-diciembre 2013.

LAPLANTINE, François. NOUSS, Alexis. A Mestiçagem. Tradução de Ana


Cristina Leonardo, Lisboa, Instituto Piaget, 2002.

MARTINS, Rodrigo Rodrigues. Traduzindo a escrita mulitilíngue no ensaio


Food, Poetry, and Borderlands Materiality: Walter Benjamin at the taquería, de
Maríbel Alvarez: dois projetos, duas traduções, uma crítica dialética do traduzir.
2018. 116 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Letras -
Tradução - Inglês) — Universidade de Brasília, Brasília, 2018.

MEDINA, Rubén. El mestizaje a través de la frontera: Vasconcelos y


Anzaldúa. Mexican Studies/Estudios Mexicanos, v. 25, n. 1, p. 101-123, 2009.

MESCHONNIC, Henri. Poética do Traduzir. Tradução: Jerusa Pires Ferreira e


Suely Fenerich. São Paulo: Perspectiva, 2010.

MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o


significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF, v. 34, n. 1, p.
287-324, 2008.

SAMOYAULT, Tiphaine. Traduction et violence. Paris: Seuil, 2020.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local do testemunho. Metamorfoses. Revista de


Estudos Literários Luso-Afro-Brasileiros, v. 10, n. 2, p. 176-203, 2010.

56
SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar?. UFMG, 2010.

THOMAZ, Paulo César; DUARTE, Débora Lucas. Inespecificidade e política na


literatura brasileira recente. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea
[S/l], n. 64, 2021. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/elbc/a/DZVLWBkkhdPcWtDG6Lxq3hQ/

57
58
AS POSSIBILIDADES DO CIBERESPAÇO: AS
PUBLICAÇÕES AUTOBIOGRÁFICAS DE
AUTORIA FEMININA NOS BLOGS PESSOAIS DA
DOMINATRIX RAINHA FRÁGIL 31

Pamella Opsfelder de Almeida32

RESUMO:
As escritas femininas são historicamente circunscritas a espaços privados, e
não é raro que os escritos íntimos de mulheres, tidos como desimportantes,
sejam destruídos ao final de suas vidas (Perrot, 2006). Mesmo quando existe
pretensão de publicação de escritos femininos, estes dificilmente são
reproduzidos em mídias impressas, haja vista a preferência editorial por obras
de autoria masculina. Entretanto, com a popularização do ciberespaço a partir
do final do século XX, observa-se um processo de desintermediação (Lévy,
1999), ou seja, de eliminação dos intermediários entre os produtores de
conteúdo e seus consumidores. Explorando esse potencial, a disseminação de
blogs pessoais a partir de 1994 (Pimentel, 2011) permitiu que muitas mulheres
publicassem suas memórias na Internet. Tendo em vista esse percurso
histórico, este artigo investiga as possibilidades proporcionadas pelos suportes
digitais (Lima-Lopes, 2018) para a publicação de escritas autobiográficas
femininas. Para tanto, toma-se por corpus os blogs e sites pessoais da
dominatrix Rainha Frágil, de forma a compreender como os suportes digitais
viabilizam a publicação não só de relatos pessoais mas também de produções
eróticas de autoria feminina. Nesse sentido, a análise do corpus revelou que os
suportes digitais possibilitam a publicação de narrativas de autoria feminina de
maneira mais democrática, sem censura prévia e sem a edição de terceiros.
Ressalta-se, no entanto, que a circulação desses conteúdos restringe-se a
nichos específicos, de maneira que as potencialidades dos suportes digitais
são limitadas por sua inserção em práticas sociais mais amplas.

Palavras-chave: Escrita feminina; Escrita autobiográfica; Erotismo; Internet,


Dominatrix

31
Artigo originalmente publicado como capítulo em: ALMEIDA, P. O. de. A espacialidade do
reino na representação identitária da dominatrix Rainha Frágil em narrativas de memória
publicadas na internet. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) — Universidade
Estadual de Campinas, Campinas: 2022.
32
Mestra e doutoranda em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). Atualmente pesquisa as relações de poder de gênero e sexualidade entre
membros de grupos de Whatsapp de BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão,
Sadismo e Masoquismo). Participa do Grupo de Pesquisa MíDiTeS: Mídias Digitais, Tecnologia
e Sociedade. E-mail: [email protected].

59
INTRODUÇÃO: UM (BREVE) PERCURSO HISTÓRICO DA ESCRITA
FEMININA
Ao perscrutar a escrita de autoria feminina na composição de arquivos
históricos, Perrot (2006) constatou que as produções de mulheres são mais
facilmente encontradas em arquivos privados, nos quais predomina a escrita
íntima, do que em arquivos públicos. De acordo com a autora, a
―correspondência, [o] diário íntimo [e a] autobiografia não são gêneros
especificamente femininos, mas se tornam mais adequados às mulheres
justamente por seu caráter privado‖ (Perrot, 2006, p. 28). Nessa perspectiva,
Palma (2017) observa que os gêneros discursivos restritos ao universo
doméstico, incluindo as narrativas autobiográficas e os diários, ―ajudaram a
traçar espaços de autodefinição feminina, ao permitir que suas autoras se
afirmassem como ‗eu‘, podendo, logo, elaborar a si mesmas a partir de uma
perspectiva subjetivada‖ (Palma, 2017, p. 11).
Ainda segundo Perrot (2006), não é raro que os escritos íntimos de
mulheres sejam destruídos ao final de suas vidas por elas mesmas ou por seus
descendentes, uma vez que os escritos femininos são, muitas vezes, tidos
como desimportantes e, por isso, descartáveis. O próprio ato de organizar
arquivos, conservá-los e guardá-los ―supõe uma certa relação consigo mesma,
com sua vida, com sua memória. Pela força das coisas, é um ato pouco
feminino‖ (Perrot, 2006, p. 30 apud Palma, 2017, p. 11).
Outra questão fundamental para o entendimento do arquivamento da
escrita feminina é a noção de que aquele que procura manter um arquivo de si
deve possuir as condições materiais para o acúmulo de documentos. É nesse
sentido que os suportes digitais, popularizados com a facilitação do acesso ao
computador e à Internet no final do século XX, têm agido como
impulsionadores da produção de arquivos pessoais, não só de mulheres, mas
de grupos historicamente subalternizados em geral, já que oferecem um
espaço virtual praticamente ilimitado para armazenamento de informações.
Sem as constrições do espaço físico, o ciberespaço possibilita que qualquer
pessoa com acesso a um computador e à Internet crie e distribua conteúdo
para todo o mundo.

60
Nessa linha de pensamento, Lévy (1999) defende que o ciberespaço
pode proporcionar uma sociedade mais democrática por possibilitar uma
comunicação ―de todos para todos‖ sem a necessidade do aval da imprensa
tradicional. Segundo o autor, essa democratização se daria, principalmente,
pelo processo de desintermediação, ou seja, de eliminação dos intermediários
entre os produtores de conteúdo e seus consumidores. Nas palavras de Lévy
(1999),

até agora, o espaço público de comunicação era controlado através


de intermediários institucionais que preenchiam uma função de
filtragem e de difusão entre os autores e os consumidores de
informação: estações de televisão, de rádio, jornais, editoras,
gravadoras, escolas etc. Ora, o surgimento do ciberespaço cria uma
situação de desintermediação [...]. Quase todo mundo pode publicar
um texto sem passar por uma editora nem pela redação de um jornal
(Lévy, 1999, p. 45).

Esse processo, segundo o autor, possibilitaria uma liberdade de


expressão sem precedentes. Não é por acaso que os conteúdos eróticos, tão
censurados e filtrados nas mídias de comunicação tradicionais, sejam tão
facilmente acessados na Internet. A liberdade de expressão propiciada pela
desintermediação é ainda mais decisiva para as produções eróticas de autoria
feminina. As narrativas produzidas por mulheres enfrentam, por si sós,
dificuldades de publicação nas mídias impressas tradicionais, de modo que as
textualidades eróticas de autoria feminina são ainda incipientes diante de
cânones literários e mercados editoriais majoritariamente masculinos e regidos
por ressalvas morais a respeito da sexualidade.
É importante notar também que, mesmo quando as produções eróticas
de autoria feminina são publicadas por editoras ou por outros veículos de
informação de massa, passam sempre por revisões e edições, que, muitas
vezes, buscam tornar os textos mais vendáveis ou palatáveis ao público. Nesse
sentido, Palma (2017) afirma que as produções autobiográficas publicadas
pelas mídias tradicionais são sempre ―expressão da movimentação de uma
língua que foi parcialmente domada pelas dinâmicas editoriais e tradutórias‖
(Palma, 2017. p. 21). Em outras palavras,

o diário-livro não é o diário-arquivo, passou por um processo de


amansamento de linguagem. Na ação de outrem, os textos foram

61
mutilados, compilados, alterados, linearizados, submetidos a
encadeamentos de traduções e a transposições de suportes (Palma,
2017, p. 21).

Tendo em vista que a edição e o amansamento do texto são pré-


requisitos para a publicação no suporte de papel, o suporte digital
desintermediado apresenta-se como um espaço no qual as mulheres e outros
sujeitos subalternizados podem postar suas narrativas autobiográficas sem
qualquer censura prévia ou alteração editorial. Nessa perspectiva, este artigo
busca compreender como as potencialidades dos suportes digitais transformam
o processo de produção de narrativas de autoria feminina. Para tanto, é preciso
estudar as características das materialidades que estruturam tais narrativas: os
suportes digitais.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA
Relacionada na área da comunicação às diferentes materialidades
utilizadas nas produções artísticas, a noção de suporte diz respeito às
potencialidades técnicas dos meios que influenciam na criação de conteúdo.
Nesse sentido, considerando as diferentes linguagens suportadas por cada
mídia, Lima-Lopes (2018) afirma que as produções textuais são ―fruto das
potencialidades do suporte e do uso social da tecnologia‖ (Lima-Lopes, 2018,
p. 15).
Inspirando-se na máxima de McLuhan (2003) o meio é a mensagem,
Lima-Lopes (2018) concebe uma noção de suporte que se assemelha à noção
mcluhaniana de meio. Assim sendo, os suportes podem ser compreendidos
como potenciais materiais que regulam as possibilidades comunicacionais.
Sendo o suporte determinante para a produção da mensagem, é razoável
considerar que, com a disseminação da Internet no final do século XX e com a
popularização dos blogs pessoais a partir de 1994, a escrita autobiográfica
realizada em suportes digitais difira de maneira significativa daquela produzida
no suporte de papel.
Tendo em vista as especificidades dos suportes digitais, este artigo se
propõe a analisar como essas potencialidades transformam as produções
textuais de cunho autobiográfico de autoria feminina. Para tanto, analisa-se as
narrativas de memória da dominadora Rainha Frágil, também conhecida como

62
E. A.33, de modo a compreender como essas textualidades contrastam com
narrativas confessionais publicadas em suportes de papel.
Nesse contexto, é importante esclarecer que dominadora ou dominatrix
é a mulher que domina o submisso sexual nas práticas de BDSM (Bondage,
Disciplina, Dominação, Submissão e Sadomasoquismo). Acrônimo que reúne
sujeitos adeptos de práticas eróticas fetichistas, o BDSM pode ser definido
como

o uso consciente de dominação e submissão psicológica, e/ou


restrição física, e/ou dor, e/ou práticas relacionadas em um ambiente
seguro, legal e de forma consensual a fim de que os participantes
experimentem excitação erótica e/ou crescimento pessoal (Wiseman,
1996, p. 10).

Praticante dos jogos eróticos de BDSM, a dominadora Rainha Frágil


relata suas experiências como mulher que assume o papel dominante em
relações de dominação e submissão em diversos sites e blogs, os quais ela
mantém desde 2001. Nesse sentido, o corpus desta pesquisa é constituído
pelos textos publicados nos blogs e sites mantidos pela dominatrix no período
de 2001 a 2021, conforme representa o Quadro 1:

Quadro 1 – O corpus da pesquisa


Sigla Nome do blog Domínio virtual Vigência

Site 1 Samia, Rainha Frágil34 http://br.geocities.com/rainhafragil/ 2001-2002

Samia, a Rainha Frágil, e


Blog 1 http://rainhafragil.blogspot.com/ 2001-2002
idéiafix{S}35

Blog 2 Frágil Reino 36 http://www.fragilreino.blogger.com.br/ 2003-2004

33
Os nomes da autora e de terceiros foram substituídos por iniciais, de forma a preservar suas
identidades, conforme previsto no Projeto de Pesquisa aprovado pelo Comitê de Ética em
Pesquisa (CEP). CAAE: 45384321.6.0000.8142.
34
Disponível em:
<https://web.archive.org/web/20091019074450/http://br.geocities.com/rainhafragil/geral3.html>.
Acesso em: 06 jan. 2021.
35
Disponível em:
<https://web.archive.org/web/20040102200722/http://rainhafragil.blogspot.com/>. Acesso em:
06 jan. 2021
36
Disponível em:
<https://web.archive.org/web/20080110111534/http://www.fragilreino.blogger.com.br/>. Acesso
em: 14 jan. 2021.

63
Blog 3 Frágil Reino 37 http://fragilreino.blogspot.com/ 2004-2008

Blog 4 Frágil Reino 38 https://fragilreino.com/ 2008-2021

Fonte: Elaborado pela autora

A PÁGINA WEB E AS POSSIBILIDADES DOS SUPORTES DIGITAIS


Segundo Pimentel (2011), ―blogs são diários eletrônicos ou diários
virtuais divulgados na Internet. O termo é uma corruptela de WEBLOG (WEB –
a rede de computadores mundial – e LOG – tipo de diário de bordo)‖ (Pimentel,
2011, p. 9). Se o blog é um diário virtual, ele pode ser compreendido como
composto por diferentes páginas web, assim como o diário de papel é
constituído por folhas de celulose. Essa diferença de suporte já marca
contrastes significativos entre as narrativas produzidas no papel e aquelas
publicadas em blogs.
Nessa perspectiva, é importante notar que uma das principais
características da página web é sua multimodalidade. Segundo Lemke (2006),
―multimodalidade refere-se à combinação ou integração de vários sistemas de
signos ou sistemas de recursos semióticos como linguagem, representação,
gestos, matemática, música, etc.‖ (Lemke, 2006, p. 3). O autor também ressalta
que a realidade material da comunicação é inerentemente multimodal, já que
todo meio físico carrega signos que podem ser interpretados por meio de
outros sistemas de significado. Nessa perspectiva, tanto a página web quanto a
página de papel proporcionam uma comunicação multimodal. O que difere
esses dois tipos de página são as mídias que elas suportam: a página web
suporta não só textos escritos e imagens estáticas, tal qual a página de papel,
mas também imagens em movimento (GIFs e vídeos) e sons.
Na página de papel, a multimodalidade pode ser observada por meio da
própria escrita, uma vez que a caligrafia, a escolha de uma fonte, de um
tamanho e de uma cor de texto carrega significados visuais. Além disso,
conforme aponta Pimentel (2011), as produções em papel de cunho
autobiográfico não são restritas à linguagem verbal. As agendas, popularizadas
na década de 1980 e semelhantes aos diários, eram constituídas não só por
37
Disponível em: <http://fragilreino.blogspot.com/>. Acesso em: 06 jan. 2021.
38
Disponível em: <https://fragilreino.com/>. Acesso em: 06 jan. 2021.

64
textos escritos, mas também ―por imagens, fotografias, papéis de bombom,
ingressos de cinema ou teatro e outros pequenos objetos repletos de
recordação‖ (Pimentel, 2011, p. 6).
De forma semelhante, a página web pode ser definida como ―uma lista
sequencial de elementos separados ― blocos de texto, imagens, videoclipes
digitais e links para outras páginas‖ (Manovich, 1999, p. 3). Nas páginas da
web que constituem os blogs e sites pessoais da dominatrix Rainha Frágil,
especificamente, observa-se a presença tanto de textos verbais quanto de
fotografias tiradas pela própria autora. Essas fotos retratam os homens
submissos com os quais a dominadora se relaciona 39 e obedecem a
convenções estéticas da comunidade BDSM, conforme evidenciam as Figuras
1 e 2:

Figura 1 – Captura de tela do texto Bethina do blog Frágil Reino (Blog 4)40

Fonte: https://fragilreino.com/

Figura 2 – Captura de tela da página idéiafix{S} do site Samia, Rainha Frágil (Site 1)

39
É importante notar que a Rainha Frágil é heterossexual e relaciona-se somente com homens
submissos, de forma que suas atividades eróticas produzem uma dinâmica que inverte os
papéis sociais e sexuais de gênero, que atribuem à mulher um papel passivo na relação
sexual, enquanto que ao homem é confiado o papel de ativo.
40
Partes das imagens foram desfocadas por meio de edição digital.

65
Fonte: http://br.geocities.com/rainhafragil/

É possível observar, na Figura 1, a fotografia de um sujeito do sexo


masculino, deitado em uma cama e amarrado por fita adesiva. O
enquadramento da fotografia foca suas nádegas, sobre as quais uma calcinha
cor-de-rosa escorrega para derramar-se sobre os lençóis, evocando uma cena
de desnudamento. De modo semelhante, a Figura 2 apresenta quatro fotos do
submisso de Rainha Frágil, ideiafix, em poses sexualmente sugestivas. Na
primeira foto, localizada no canto superior esquerdo da tela, o homem retratado
encontra-se vendado e amordaçado. Na segunda fotografia, localizada no
canto superior direito, o sujeito encontra-se de costas, trajado em uma
camiseta e saia e com as mãos e pernas amarradas por uma corda.
Já a terceira foto, no canto inferior esquerdo, mostra as vestimentas
femininas de ideiafix — uma saia, uma calcinha e sapatos de salto pretos — e
suas pernas amarradas por uma corda. Por fim, na última fotografia, que se
encontra no canto inferior direito da tela, o sujeito retratado encontra-se
montado sobre um instrumento de tortura chamado de burro espanhol.
Amordaçado e vendado, o sujeito fotografado tem as mãos amarradas para
trás.
Observa-se, por meio da feminização do sujeito retratado, da amarração
de seu corpo e da utilização de apetrechos relacionados ao universo fetichista
como a venda, a mordaça e o equipamento de tortura, que essas fotografias se
inserem em um âmbito que não é apenas o do erótico, mas de um tipo

66
específico de erotismo, situado nos moldes do sadomasoquismo. Também é
importante notar que as fotografias não retratam as faces dos sujeitos
representados, que aparecem de costas para a câmera, e têm seus rostos
cortados pelo enquadramento da foto ou encontram-se vendados, preservando,
assim, seu anonimato. Propõe-se que essa tentativa de manter anônimos os
sujeitos fotografados deva-se ao estigma social que ainda envolve as práticas
BDSM e, principalmente, a figura do homem masoquista, que não corresponde
às expectativas sociais que recaem sobre a sexualidade masculina.
Além das possíveis edições que cortam as faces dos sujeitos
fotografados, as fotos são editadas por meio da adição do texto Rainha Frágil
sobre as imagens, que funciona como marca d‘água que assegura os direitos
da autora sobre as fotografias postadas. Além de garantir o reconhecimento da
origem das fotos, evitando, assim, que elas sejam apropriadas por outras
dominatrixes, as marcações de texto sobrepostas às imagens podem ser
interpretadas como uma demonstração de poder: marcando as fotos de seus
submissos com seu nome, a dominadora garante, simbolicamente, a posse
sobre seus corpos.
Por meio da breve análise das fotografias retratadas nas Figuras 1 e 2, é
possível afirmar que os blogs e sites da dominadora funcionam não só como
arquivos de narrativas de memória, mas também como arquivos eróticos
multimodais. Armazenando fotos por ela produzidas que obedecem a
convenções fetichistas de representação, os blogs e sites possibilitam a
formação, a publicação e a disseminação de pornografia de autoria feminina.
A análise das Figuras ilustra outra característica da página web que a
difere da página de papel: a produção de intertextualidade por meio de
hiperlinks. Na Figura 1, observa-se na coluna à esquerda uma seção
denominada read next, constituída por imagens e hiperlinks que direcionam o
usuário para outros textos do blog. Na coluna situada do lado direito da página,
por sua vez, encontram-se as seções visite também e blogs amigos. Na
primeira, os links redirecionam o usuário para a página do Facebook da
dominatrix e para o site da Via Libido Sex Shop. Já os links da segunda seção
ligam o blog Frágil Reino a outros blogs de temática BDSM, a saber: A Vida de
uma Domme, Brenno Furrier, Castidade CE e LordeEstevão.

67
De maneira semelhante, na Figura 2, verifica-se que a coluna à
esquerda é composta pelas seções Menu Rápido, Novidades, A Rainha Frágil,
Meu Diário, Sala de Estar, Internet, Biblioteca, Senzala, Encontros Reais,
Comunidade, Revista Ínfimo e Sex Shop. Elencando links importantes para
outras partes do site, as seções Menu Rápido e Novidades facilitam a
navegação por parte dos internautas. Já as seções Meu Diário e Sex Shop
transportam o usuário para outros sites externos ao Site 1. Nesse sentido, a
seção Meu Diário leva o internauta ao Blog 1, também de autoria da
dominadora, enquanto a seção Sex Shop redireciona o usuário para o site da
loja de produtos eróticos da qual a dominatrix é proprietária. Por fim, as demais
seções redirecionam o internauta a repartições temáticas do site.
No final da listagem de seções, é possível observar três ícones. O
terceiro deles, intitulado Formulário, redireciona o internauta para uma página
de contato, conforme se pode observar na Figura 3.

Figura 3 – Captura de tela da página Formulário do site Samia, Rainha Frágil (Site 1)

Fonte: http://br.geocities.com/rainhafragil/

Consistindo dos dizeres ―Olá! Deixe seu recado! =]‖ e de espaços a


serem preenchidos com o nome, o e-mail, o assunto e a mensagem que o leitor
deseja escrever, o formulário também dá ao usuário a opção de enviar um e-
mail diretamente ao endereço da dominadora. A página Formulário, nesse
sentido, ilustra o caráter comunicativo entre produtor e consumidor de conteúdo
nos suportes digitais, relativamente ausente nos diários de papel.

68
Assim sendo, por meio da análise das Figuras 1, 2 e 3, constatam-se
duas possibilidades do suporte digital das quais os suportes de papel carecem:
a vinculação direta com outras páginas por meio de hiperlinks e a interação
entre produtor e consumidor de conteúdo. Nesse sentido, examinar-se-ão,
inicialmente, as especificidades do suporte digital relacionadas ao uso de links
para, em seguida, considerar como a relação entre autor e leitor modifica-se na
Internet.
Segundo Lemke (2002), o tipo de relação construída por hiperlinks é,
essencialmente, de intertextualidade e, como se sabe, as relações intertextuais
não são exclusivas dos suportes digitais. Diários de papel costumam estar
repletos de intertextualidade, por meio de citações de outros textos, livros,
poemas, letras de músicas, etc. As colagens de jornais e revistas, comuns na
constituição de agendas, também produzem relações intertextuais.
As diferenças entre a intertextualidade possibilitada pelo suporte de
papel e aquela criada por meio de hiperlinks no suporte digital residem
principalmente no fato de que, ao contrário das relações intertextuais traçadas
na folha de celulose, as relações produzidas pelos hiperlinks propiciam a
formação de redes de informação. Essas redes, por sua vez, possibilitam a
comunicação entre usuários que possuem interesses em comum, ou seja, que
clicam nos mesmos links. Aí reside uma das vantagens dos suportes digitais
sobre os de papel: a facilidade da criação de conexões entre indivíduos que
partilham dos mesmos gostos.
Assim sendo, os links que vinculam os blogs e sites da Rainha Frágil a
outros blogs de temática fetichista esboçam a formação de uma comunidade
virtual de BDSM. Tal esforço de criação de uma rede virtual de
sadomasoquismo, que também é observável em outros domínios virtuais
semelhantes, sustenta-se não só pelo desejo de encontrar pessoas com
interesses em comum na Internet, mas principalmente pela possibilidade,
propiciada pela web, de exploração de um estilo de vida que não é socialmente
aceito com relativa discrição.
Nesse sentido, a importância do anonimato para a formação de uma
comunidade virtual de BDSM explicita-se pelo enquadramento das fotos dos
submissos sexuais, que esconde suas faces, e pela utilização de pseudônimos,
tanto pela autora, que assina seus textos com o nome Rainha Frágil, quanto

69
por seus leitores. Além do caráter performático inerente a essa prática, a
escolha de um nome específico para o universo fetichista indica a preferência
pela separação entre a vida pessoal e a vivência sadomasoquista, ainda que
essa vivência seja, contraditoriamente, exposta publicamente na Internet.
Nessa perspectiva, a preocupação com o anonimato que a dominadora
exibe ao postar conteúdos em seus domínios virtuais demonstra o paradoxo
em que vive: enquanto dominatrix, ela governa absoluta dentro das fronteiras
de seu reino; esse governo, porém, é mantido em segredo do mundo exterior.
Nesse contexto, a interatividade anônima e a manutenção de comunidades
fechadas propiciadas pela Internet permitem a conciliação de dois desejos da
autora: a publicação de seus escritos e a manutenção de uma vida discreta.
Nessa perspectiva, a caixa de comentários, possibilidade de contato
direto entre autor e leitor imbricada no próprio código da página, permite maior
ou menor discrição por parte do usuário, já que este pode escolher entre
assumir seu nome real, um pseudônimo ou manter-se anônimo. De forma
semelhante, a possibilidade de compartilhamento dos conteúdos dos blogs e
sites em redes sociais, apesar de potencializar uma rápida disseminação desse
domínio virtual, dificilmente será utilizada para distribuir as narrativas da Rainha
Frágil para não-praticantes de BDSM, devido ao estigma social que ronda
essas práticas. Os hiperlinks que direcionam os usuários para os blogs de
dominatrixes e de outros adeptos do fetichismo circulam, provavelmente,
somente entre aqueles que já possuem inserção na comunidade.
É inegável que a possibilidade de interação direta entre autor e leitor,
representada nos sites e blogs pela divulgação das redes sociais da dominatrix
e pela seção de comentários, empreende uma transformação nas textualidades
autobiográficas. Embora a escrita de si seja sempre performativa, mesmo
quando mantida em arquivos privados, a pressuposição da leitura das
narrativas autobiográficas por um outro aumenta o grau de performatividade
envolvido nesses processos de produção textual. Ao dirigir-se a seus leitores
como submissos, utilizando-se de um tom dominante e postando fotos de suas
atividades sexuais, a autora transforma suas produções autobiográficas
multimodais em uma espécie de espetáculo fetichista virtual, em que ela
performa o papel de dominadora e, seu público, de dominado.

70
Além da facilitação da interação entre autor e leitor, ricamente explorada
pela dominatrix em seus sites e blogs, os suportes digitais trazem uma outra
potencialidade: a possibilidade de edição textual, mesmo após a publicação.
Segundo Bolter e Grusin (2000), os suportes digitais são caracterizados pela
possibilidade de substituição de um conteúdo por outro, já que as produções
postadas na Internet podem ser excluídas e apagadas da rede em um clique.
Em contraste, as textualidades impressas em suportes de papel raramente são
substituídas por versões mais atualizadas, já que as cópias físicas de versões
anteriores coexistem com a versão corrente até que sua materialidade seja
destruída. Nesse sentido, os autores afirmam que ―a substituição é a essência
do hipertexto e, em certo sentido, toda a World Wide Web é um exercício de
substituição: ‗A impressão permanece ela mesma; o texto eletrônico se
substitui‘‖ (Bolter; Grusin, 2000, p. 45).
Ilustrando essa potencialidade do hipertexto, o texto Vamos foder,
então!, publicado no Blog 4,, narra a situação em que um comentário
previamente postado no blog da dominadora simplesmente desapareceu,
conforme é possível observar no Exemplo 01.

Ex 01: Caríssimo, eu não sei onde foi parar seu comentário. Sei que o aprovei. Será
que se tocou e você mesmo o apagou? Que bom! No céu um anjo disse ―amém‖.

Representando, provavelmente, um comentarista que se arrependeu de


seus escritos, o sumiço da mensagem assegura que o usuário pode excluir seu
comentário por completo do blog, sem deixar qualquer rastro dessa remoção
de conteúdo. O mesmo ocorre com as narrativas autobiográficas publicadas
pela dominatrix em seus sites e blogs, que podem ser editadas à vontade.
Adicionando, modificando ou excluindo textualidades de seus domínios virtuais,
ela pode, assim, criar espaços virtuais que representem e acompanhem as
mudanças em suas crenças, personalidades e preferências estéticas que
ocorrem ao longo do tempo.
Exemplificando a possibilidade de edição e substituição constante dos
conteúdos postados nos suportes digitais, o Exemplo 02 mostra a indecisão da
dominadora Rainha Frágil em editar ou não uma postagem de seu blog:

71
Ex 02: Fiquei com vontade de editar o texto Felicidade Realista com a correção feita
por A. Mas daí vai ficar estranho e então eu ia ter que apagar também o comentário
dela. não gosto de apagar mensagens. Mas Só pra lembrar que o texto então é de
Martha Medeiros e não de Mario Quintana como eu havia informado.

Tendo reproduzido em seu blog o texto Felicidade Realista e o atribuído


a Mário Quintana, a autora foi avisada por uma comentarista de que o texto
era, na verdade, de autoria de Martha Medeiros. A dominadora expressou
então vontade de editar sua postagem original, retificando o nome do autor do
texto. Por uma questão de coerência, no entanto, ela deveria também apagar o
comentário que apontava a existência do erro. Devido a sua aversão a apagar
mensagens, a dominatrix optou por não editar a postagem original, deixando
então uma nota em uma postagem posterior avisando a seus leitores de que
havia atribuído erroneamente o texto a Mário Quintana.
Compreende-se, nesse sentido, que a materialidade dos suportes
digitais e da página web, caracterizada pela multimodalidade, pela
interatividade e pela presença de hiperlinks para outros domínios da Internet,
empreende significativas transformações no processo de produção de
narrativas autobiográficas, que se tornam mais interativas, mutáveis e
performáticas que aquelas produzidas em suportes de papel.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As análises das narrativas autobiográficas dos blogs e sites da
dominadora Rainha Frágil demonstram que existem continuidades e
descontinuidades entre as potencialidades proporcionadas pelos suportes
digitais e de papel. Nesse sentido, as principais características observadas
tanto nos textos produzidos nos suportes digitais dos blogs e sites quanto no
suporte de papel do diário são a exploração dos recursos da intertextualidade e
da multimodalidade e sua relativa conformidade às delimitações sociais da
escrita feminina, que, em ambos os suportes, encontra-se circunscrita a
produções de caráter íntimo e confessional.
A conformidade às restrições sociais impostas à escrita feminina, no
entanto, ocorre nos suportes digitais apenas de modo parcial. Se, por um lado,
é possível afirmar que as narrativas autobiográficas postadas nos sites e blogs
da dominatrix resignam-se a discursar sobre acontecimentos ocorridos na

72
esfera íntima da vida da autora, o conteúdo dessas narrativas é largamente
disruptivo em relação às expectativas sociais que recaem sobre a escrita de
mulheres. Além de exibirem relatos que descrevem práticas eróticas
dissidentes da ―normalidade‖, os blogs e sites da Rainha Frágil funcionam
como arquivos de fotografias pornográficas. É possível, nesse sentido,
sustentar que a autora está produzindo não só conteúdo confessional, mas
também pornografia de autoria feminina.
Nessa perspectiva, as textualidades publicadas nos blogs podem ser
interpretadas como subversivas, pois desafiam a pressuposição de que o
conteúdo pornográfico é produzido por e para homens. Desestabiliza-se
também, nessas fotografias, a noção de que é o corpo feminino,
necessariamente, aquele fetichizado pelas produções pornográficas.
Contrastando com a maioria dos conteúdos eróticos que retratam interações
entre homens e mulheres, as fotografias disponibilizadas nos blogs e sites da
dominatrix enquadram o corpo masculino como objeto de desejo, raramente
revelando corpos femininos que, mesmo quando fotografados, encontram-se
sempre vestidos.
O consumo dessa textualidade também é distinto daquele efetivado nos
suportes não-digitais, uma vez que os leitores dos sites e blogs podem
comunicar-se diretamente com a produtora do conteúdo por meio de redes
sociais e pela seção de comentários. A interatividade entre autor e leitor, bem
como a presença de links que direcionam os usuários para outros blogs de
temáticas semelhantes, propiciam que se formem comunidades virtuais de
BDSM. Nesse contexto, a circulação pública propiciada pelos suportes digitais
transforma as narrativas autobiográficas da dominadora em verdadeiros
espetáculos sadomasoquistas virtuais, nos quais os leitores podem envolver-se
em maior ou menor grau, tendo inclusive a chance de adentrar os escritos
íntimos como os mais novos escravos da dominadora.
Ressalta-se, no entanto, que a circulação desses conteúdos, ainda que
pública, restringe-se a nichos específicos e que mesmo com essa restrição de
alcance muitos usuários sentem a necessidade de manter o anonimato. Desse
modo, não são raras a utilização de pseudônimos e a ocultação das faces dos
sujeitos retratados nos relatos e fotografias eróticas postados, devido ao
estigma social que ainda envolve as práticas BDSM.

73
Conforme o exposto, constata-se que os suportes digitais abrem um
leque de possibilidades para a construção das narrativas autobiográficas que
os suportes de papel fazem de maneira limitada. De fato, como defende Lévy
(1999), o ciberespaço propicia maior liberdade de expressão quando
comparado às mídias impressas, especialmente no concernente à publicação
de conteúdos relacionados a sexualidades dissidentes.
É preciso considerar, contudo, como aponta Lima-Lopes (2018), que as
produções textuais são condicionadas não só pela materialidade de seus
suportes, mas pelos usos sociais dessas tecnologias. Nesse contexto, os blogs
e sites da dominatrix, apesar de possibilitarem a publicação de escrita íntima e
de arquivos pornográficos de autoria feminina, ainda se encontram inseridos
em uma sociedade que estigmatiza as relações sexuais sadomasoquistas e
desvaloriza as produções textuais de mulheres (Perrot, 2006), de modo que
seu conteúdo, ainda que subversivo, encontra-se circunscrito a uma rede de
adeptos do BDSM. Compreende-se, dessa forma, que as potencialidades dos
suportes digitais têm seu impacto restringido por sua inserção em práticas
sociais mais amplas.

REFERÊNCIAS

BOLTER, J. David.; GRUSIN, Richard. Remediation: Understanding New


Media. Reprint edition. Cambridge: The MIT Press, 2000.

LEMKE, Jay. Toward critical multimedia literacy: Technology, research, and


politics. In: MCKENNA, M.; REINKING, D.; LABBO, L.; KIEFFER, R. (Orgs.).
International handbook of literacy and technology, v. 2, p. 3–14. London:
Routledge, 2006.

LÉVY, Pierre. A revolução contemporânea em matéria de comunicação.


Revista FAMECOS, v. 5, n. 9, p. 37-49, 1999. Disponível em:
<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/30
09>. Acesso em 23 de abril de 2020.

LIMA-LOPES, Rodrigo. Esteves. de. Apontamentos sobre mídias digitais: qual


caminho para o gênero 2.0? In: LIMA-LOPES, R. E. de.; BUZATO, M. E. K.
(Orgs.). Gênero Reloading. Campinas: Pontes, 2018.

MCLUHAN, Marshall. Understanding media: the extensions of man. Corte


Madera, CA: Gingko Press, 2003.

74
PALMA, Daniela. As casas de Carolina: espaços femininos de resistência,
escrita e memória. Cadernos Pagu, n. 51, 2017.

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Editora Contexto,
2006.

PIMENTEL, Carmem. A escrita íntima na internet: do diário ao blog pessoal.


Anais do VII Congresso Internacional da Abralin. Curitiba: 2011. Disponível em:
<www.omarrare.uerj.br/numero14/carmenPimentel.html>. Acesso em 16 de
julho de 2020.

WISEMAN, Jay. SM 101: A Realistic Introduction. San Francisco, CA: Greenery


Press, 1996.

75
VIVER NAS RUAS SENDO MULHER:
NARRATIVAS DE VIOLÊNCIAS

Ana Luiza Barretto Bittar 41

RESUMO:
A vida nas ruas é uma condição de extrema marginalização e de maior
exposição à violência, especialmente para as mulheres. Nesse contexto, este
trabalho, de caráter qualitativo, pretende articular vozes de mulheres que
narram experiências de violências relacionadas à vida nas ruas e suas
percepções sobre o tema. Para isso, apresenta trechos de narrativas orais
coletados por diferentes pesquisadores (Bittar, 2020; Estimar, 2019; Machado,
2016) a fim de explorar as percepções dessas mulheres sobre essas
violências. Os dados apontam para uma percepção de vulnerabilidade
extremada, sendo a violência perpetrada tanto por pessoas que não vivem nas
ruas quanto por aqueles que também vivem nelas. Além disso, revelam a
percepção de que a violência pode ser acentuada pelas representações feitas
sobre a vida nessa condição, especialmente no caso de mulheres.

Palavras-chave: Mulheres em situação de rua; Violência; Narrativas orais.

INTRODUÇÃO
Quem transita pelo centro de São Paulo em 2023 se depara, em boa
parte das regiões centrais, com um problema social gritante: a quantidade de
pessoas vivendo nas ruas da principal capital do país. Segundo o levantamento
mais recente, realizado pelo Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com
a População em Situação de Rua (OBPopRua/POLOS-UFMG)42, há, na capital
paulista, 52.226 pessoas em situação de rua.
Viver nas ruas é, certamente, viver em condições de extrema
vulnerabilidade e marginalização. Essa condição pode ganhar ainda contornos

41
Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada do Instituto de Estudos
da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Mestra em Linguística Aplicada pela
Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected].
42
A pesquisa foi realizada com dados do Cadastro Único, tendo como mês de referência
fevereiro de 2023. Foi publicada pelo portal de notícias G1. Disponível em:
https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/04/05/cidade-de-sp-contabiliza-mais-de-52-mil-
moradores-de-rua-alta-de-82percent-em-2023-afirma-pesquisa.ghtml. Acesso em: 27 jul. 2023.

76
específicos para as mulheres que representam, em média, 15% da população
que habita as ruas do país (Brasil, 2008). O recorte de gênero permite
observar tanto diferentes motivações para a ida às ruas quanto diferenças de
acesso a escolaridade, renda e saúde (Brasil, 2008 apud Bittar, 2020) e, ao
mesmo tempo, obriga a olhar para uma das principais faces da vida de
mulheres nas ruas: a superexposição à violência.
Há quatro anos, quando realizei o trabalho de campo para a pesquisa de
Mestrado desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Linguística
Aplicada da Universidade Estadual de Campinas 43, uma parcela dessa
população ocupava a Praça da Sé, considerada o centro geográfico e o marco
zero da capital paulista. Foi nesse local que conversei com algumas mulheres
que viviam nas ruas da cidade.
Estava interessada, durante a pesquisa, em investigar representações
dessas mulheres sobre essa realidade social e sobre suas vidas pessoais.
Para isso, incorporei aspectos teórico-metodológicos do campo da História Oral
(Alberti, 2005; Thompson, 2002; Losano, 2006) e do trabalho com narrativas
autobiográficas de Arfuch (2010) e de Bosi (1994, 2003), a fim de registrar
trajetórias de vida44 de mulheres que viviam nas ruas.
O resultado do trabalho foi publicado na dissertação ―Sobreviver e
sonhar: histórias e memórias de mulheres em situação de rua‖ (Bittar, 2020),
em que procurei refletir tanto sobre a atividade de construção de si a partir das
narrativas de trajetória de vida de duas mulheres que viviam nas ruas de São
Paulo quanto sobre as representações da vida nessa realidade social. A análise
foi feita a partir de temas diversos abordados por elas, como alimentação,
moradia, segurança, movimentos sociais e solidariedade, os quais foram
entrelaçados às questões da sobrevivência nas ruas e da formulação de
sonhos nesse contexto. Para isso, construí uma espécie de tecelagem entre as
falas das entrevistadas e as vozes de outras mulheres em situação de rua
registradas por diferentes pesquisadores (em especial, Estimar, 2019; Tiene,
2004; e Rosa; Brêtas, 2015).

43
Mestrado realizado no Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada da Universidade
Estadual de Campinas.
44
O construto de trajetórias de vida tem sido trabalhado por pesquisas desenvolvidas no
âmbito do grupo de pesquisa Nós-Outros: Linguagem, Memória e Direitos Humanos, liderado
pelos professores doutores Daniela Palma e Daniel Silva.

77
Neste texto, pretendo tratar de um tema que não era central na
pesquisa, mas que ganhou destaque na fala de uma das participantes: a
violência. Sabe-se que a violência é, principalmente a partir da década de 80,
uma realidade brasileira e um grave problema de segurança pública. Além
disso, sabe-se que, em um contexto de vida nas ruas, a exposição a essa
mazela tende a ser ainda maior, especialmente no caso das mulheres, vítimas
mais frequentes de agressões físicas e sexuais. Pretendo, então, retornando às
conversas que tive durante a pesquisa, abordar as representações sobre a
violência no contexto das ruas feitas por mulheres que vivem ou viveram nessa
situação. Além disso, pretendo ressaltar os significados que elas atribuem a
diferentes tipos de violências sofridas nessa condição.
Para isso, serão articulados dados colhidos durante o trabalho de campo
e falas registradas por outros pesquisadores. Devido ao caráter qualitativo
proposto, os registros aqui apresentados não pretendem ser representativos da
vida de mulheres em situação de rua no país, mas acredita-se que, ao
transitarem entre o individual e o social, podem contribuir para uma maior
inteligibilidade desse grave problema.

QUANDO A CASA É UM ESPAÇO DE VIOLÊNCIA


―Na rua você não dorme, você cochila‖
(Informação oral apud Bittar, 2020, p. 100).

A frase que ouvi de uma mulher durante o trabalho de campo define a


rua como espaço de exposição e de vulnerabilidade extremas, no qual o
próprio ato de dormir representa um perigo. Porém, nas falas de muitas
mulheres que vivem nas ruas, a casa anterior também não é descrita como um
lugar de segurança. Esse é o caso das duas mulheres que narraram suas
histórias de vida em entrevistas realizadas na Praça da Sé. A primeira, jovem,
disse que havia sido abusada pelo pai quando criança, enquanto a segunda foi,
em suas palavras, ―feita de escrava‖ e ―serviçal‖ pelos tios (Bittar, 2020).
Os pesquisadores Rosa e Brêtas (2015) também destacaram, em suas
pesquisas, a violência como um fator amplamente mencionado por mulheres
para a construção da trajetória até as ruas. Histórias de violência no âmbito do

78
lar foram igualmente registradas por Machado (2016), como exemplificam os
relatos a seguir:

Meu marido me espancava quando nóis dois bebia. E era aquela


briga na frente dos meus filhos. (...) A última vez nóis tava morando
no Colina Azul, noutra fazenda e lá foi a derradeira, quase fiquei cega
dum olho de tanto soco e bicuda que ele deu no meu rosto. Que eu
não gosto de lembrar disso de jeito nenhum (chorando) (Machado,
2016, p. 85-86).

(...) Meu irmão foi e contou pro meu pai. Meu pai foi e me espancou.
No que ele me espancou eu corri pra rua. Conheci umas amigas
minhas que dormiam num predim. Lá eles bebia, consumia droga.
Daí eu fui pra lá. Fiquei dois meses no Jardim Novo Mundo.
Começou por aí. Eu fiquei dois meses fora de casa no Jardim Novo
Mundo, porque meu pai me espancou (Machado, 2016, p. 86).

Relatos similares foram colhidos também pelos pesquisadores que


produziram o Relatório Mulheres Sem Teto em Situação de Rua (Estimar,
2019):

Morava eu, meu pai, meus cinco irmãos e a mulher que eu achava
que era minha mãe. Agora eu fiquei sabendo que ela não é minha
mãe, que é minha tia. Mas quando meu pai era vivo a gente era
muito unido, aonde um ia o outro ia atrás. Perdi meu pai com 11
anos. Quando ele morreu, no cemitério ela já estava com o amante
dela. Eles começaram a me espancar. Por causa desse padrasto eu
fui mandada embora e fui viver uma nova vida. Eu estava com 16 pra
17 anos (Estimar, 2019, n.p.).

Eu me casei três vezes. Meu primeiro marido levantava da cama,


nem escovava os dentes e já ia pra um bar, era viciado em jogo de
baralho e dominó. O meu segundo companheiro me atacou, me deu
socos na cabeça, acho que ele devia estar noiado, quase me manda
pro cemitério, fiquei três dias internada. Já sofri violência sexual, eu
tomava calmantes, hoje eu não tomo mais, por medo de tomar e ser
atacada, porque ele me estuprou dormindo. Meu ex-marido, o
terceiro, era ruim pra mim, me batia, me trancava em casa, eu era
uma prisioneira. Quando ele faleceu, eu fiquei sozinha, tiraram meus
filhos, os dois pequenos. Eu me revoltei e saí da cidade (Estimar,
2019, n.p.).

Como nesses depoimentos, as trajetórias de violência no lar se


multiplicam nos relatos colhidos pelas pesquisas mencionadas, apesar de
inexistirem dados estatísticos que indiquem o percentual de mulheres que
sofreram violência antes de viver nessa condição. De acordo com a Pesquisa
Censitária da População em Situação de Rua realizada pela Prefeitura de São

79
Paulo em 2019, 40,3% dos entrevistados haviam ido para as ruas ou para
centros de acolhidas devido a conflitos familiares. Se somarmos esse dado aos
fatores de separação do cônjuge e de perda de pai ou mãe, chega-se a quase
metade da população que vive nas ruas indicando problemas ligados à família
como principais motivadores para a ida nas ruas (São Paulo, 2019).
Interessaria saber, portanto, qual percentual desses conflitos envolvem
violências e, principalmente, quais seriam os resultados no grupo específico de
mulheres.
Desse modo, por mais que faltem ainda dados estatísticos sobre a
violência pregressa na trajetória dessas mulheres, os diversos relatos colhidos
por pesquisadores reforçam que, quando tratamos de violência nas ruas,
especialmente no caso de mulheres, é importante considerar que ela é, em
muitos casos, precedida por uma violência no âmbito do lar. Isso pode nos
levar a refletir ainda sobre a dificuldade que muitas mulheres podem encontrar
para sair de situações de violência na esfera familiar por medo de que essa
trajetória as leve para o mencionado perigo de dormir nas ruas.

REPRESENTAÇÕES VIOLENTAS E VIOLÊNCIA NAS RUAS


―Quando eu me deparei com a calçada, eu
pensei: caramba, véi, olha aonde eu
cheguei. Não tenho mais nada, mais
ninguém, tô seca, suja, tô com fome‖
(Estimar, 2019, n.p.).

A chegada nas ruas pode ser um primeiro momento de se deparar com


diferentes sentimentos, dentre eles, a percepção sobre a exposição à violência.
Sobre esse momento, uma das entrevistadas pelo Instituto Estimar relatou: ―eu
tinha medo, né, de me pegar, e me dar umas facada, a gente se apavora. Uma
época que jogava álcool, né? Eu tinha muito medo‖ (Estimar, 2019, n.p.). Além
do medo por sua segurança física, este é também, muitas vezes, o momento
de lidar com as representações sobre estar nessa condição: ―no começo, eu
fiquei com vergonha‖, relata outra participante (Estimar, 2019, n. p.).
O diálogo que tive com uma senhora evidencia a consciência das
representações que são feitas pelas outras pessoas quando se está nessa
condição. Narrei anteriormente (Bittar, 2020) que ela costumava ficar quase

80
todos os dias sentada em frente a uma loja do centro da cidade de Campinas
pedindo um ―trocado‖ a quem ali passasse. Ela me contou que, ―graças a
Deus‖, não vivia mais nas ruas, lugar em que havia morado quando era mais
jovem, mas lembranças narradas contribuem para ilustrar a percepção que tem
sobre as representações que são feitas sobre si por ficar na rua pedindo
dinheiro. Uma delas diz respeito a ter tido, por um tempo, uma relação de
amizade com uma moça que, segundo ela, sempre que passava pelo local,
parava para conversar e para ajudá-la. A moça dizia que gostaria de visitá-la na
sua casa, mas a senhora afirmou que tinha medo de que o pai da garota
descobrisse e chamasse a polícia. Além disso, falando sobre como era tratada
pelos transeuntes e elogiando o respeito que a garota tinha por ela, contou,
tímida, que se lembra de um dia chuvoso em que dividiram um guarda-chuva:
―imagina, uma moça bonita dessas andando abraçada assim comigo debaixo
de um guarda-chuva no meio da cidade‖.
De forma ainda um tanto sutil, o que essa senhora narra é a percepção
de uma relação de diferença estabelecida socialmente. No campo da teoria
cultural, esse processo é amplamente estudado, em especial por como se
constrói pela linguagem. Para Tadeu Silva (2000, p.82),

a identidade e a diferença se traduzem, assim, em declarações sobre


quem pertence e sobre quem não pertence, sobre quem está incluído
e quem está excluído. Afirmar a identidade significa demarcar
fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que
fica fora.

No relatório produzido pelo Instituto Estimar (2019), as mulheres relatam


suas percepções sobre as representações que os outros têm sobre si,
enquanto quem está ―de fora‖, de forma mais contundente. Essa diferenciação
é percebida pelo olhar:

Olham de um jeito que é triste, dói. Às vezes gera um ódio (Estimar,


2019, n.p.).

Uns olham com cara feia, outros com cara de nojo. Incomoda
(Estimar, 2019, n.p.).

Eles olham como se a gente fosse um cachorro, a sujeira da cidade


(Estimar, 2019, n.p.).

81
É um olhar de crítica, mas ser um usuário não é fácil, essas pessoas
são doentes. É preciso aproximar, quebrar as barreiras de medo
(Estimar, 2019, n.p.).

Outras narram a percepção desse processo de distinção por meio de


ações:

Tem muito preconceito, tem mulher que vê a gente e se encolhe


toda, abraça a mochila, segura a mão de criança (Estimar, 2019,
n.p.).

Outro dia eu ia fazer uma faxina, indicada pela Mundial [igreja].


Quando eu cheguei, a moça me dispensou. Eu saí dali chorando
(Estimar, 2019, n.p.).

Tem muito preconceito, até com as mulheres de albergue, muita


discriminação, é difícil arrumar emprego (Estimar, 2019, n.p.).

Dessa forma, olhares e gestos são signos que representam a abjeção e


são sentidos pelos sujeitos considerados abjetos. Em conversas que tive
durante o trabalho de campo, percebi como muitas mulheres passavam a se
construir em contraposição a essa representação, em um empenho constante
de negá-la e de afirmar para si uma outra identidade.
Dados da Pesquisa Censitária de São Paulo (São Paulo, 2019) indicam
que quase 60% das pessoas em situação de rua na cidade afirmam já ter
sofrido agressão verbal (xingamento, humilhação, ameaça) por pessoas que
passam na rua, sendo esse número ainda maior por parte de comerciantes
(65,5%), agentes públicos de serviços de acolhida / centros de convivência
(68,8%) e pela polícia (71,7%).
Além disso, como se sabe, a violência nas ruas não se limita à esfera
dos olhares, dos gestos e das palavras, mas se materializa, com certa
frequência, em violências físicas, que são narradas por diversas mulheres,
como nos exemplos a seguir:

É você dormir e não saber se vai acordar no outro dia, se vai estar
vivo ou não (Estimar, 2019, n.p.).

Você tá dormindo e esses playboyzinhos muito loucos, farinhados,


que passam, botam fogo, jogam bagulho, água na gente (Estimar,
2019, n.p.).

Algumas mulheres narram também a violência sexual sofrida:

82
Quando eu tava dormindo bêbada, abusaram de mim. Eu acordei eu
tava sem roupa (Machado, 2016, p. 86).

Da cocaína ela (a amiga) me levou pra um lugar, três caras abusou


de mim, sem eu querer. Eles me machucaram muito! (...) Aí ela
pegou, como nóis tava longe ela pegou e falou pra mim que nóis ía
de carona. Nessa carona tinha três caras e depois disso nóis. Num
sei o que aconteceu, só sei que depois disso nóis.. Aconteceu! Nóis
tava num lugar lá. Eles me machucou muito! E a menina ficou lá
olhando pra mim e rindo. O que aconteceu (Machado, 2016, p. 87).

(...). Eles me trata assim é porque tem uns que quando bebe demais
fica chamando eu de vadia, piranha, vagabunda. Entendeu? Mas eu
acho que eu sou eu. Eu não tô fazendo nada pra ninguém (Machado,
2016, p. 91).

Assim, o álcool e as drogas são apontados como fatores que exacerbam


essa vulnerabilidade. Além disso, algumas mulheres expressam, como nesta
última fala, a percepção de que essa violência está atrelada, muitas vezes, às
representações que são feitas de si enquanto mulher que está nas ruas. Uma
das mulheres com quem conversei durante o trabalho de campo também
constrói essa relação:

E às vezes que nem tipo eu já fui violentada várias vezes e eu já


apanhei várias vez, mas... a dor passe né, uma coisa ou outra, cê
acaba acostumando, que nem eu já fui abusada várias vezes então
você acostuma, mas assim, principalmente palavra sabe, as pessoas
humilha na rua, as pessoas xinga sabe, as pessoas acha... que nem,
tem gente que fala assim ―ah, os cara tá na rua‖, os cara tá na rua
normal entendeu? Agora se você vê uma mulher que bebe, se você
vê uma mulher que usa droga, ah ela é vagabunda, ah ela não
presta, sabe... tem mó preconceito pro lado das mulher na rua
sabe.... e assim, na rua se você não fica esperta sendo mulher, cê
acaba sendo usada como objeto sexual... e se não é dos cara que
fica em situação de rua, é de pessoas de classe média, que vem
atrás sabe, pessoas assim que cê vê que tem dinheiro sabe, que não
tem o que fazer da vida aí vem pra rua só pra pegar mulher pra usar,
pra fazer de objeto sexual sabe... o que ele não faz com a mulher
dele ele quer fazer com os outro na rua... entendeu? (Informação oral
apud Bittar, 2020, p. 85).

Em sua visão, não é apenas o fato de estar na rua – espaço de maior


exposição – mas de ser mulher ―de rua‖, como sujeito considerado de menor
valor e, portanto, mais sujeito à violência, que implica em uma maior
vulnerabilidade de seu corpo. Tal percepção de um processo de diferenciação e
de estigmatização atrelado à sua condição pode ser ainda exacerbado por

83
atitudes que, socialmente, reforçariam sua imagem como de mulher ―de menor
valor‖:

Aqui mesmo na rua, que nem eu sempre fiquei aqui na rua,


entendeu, eu nem uso short porque, porque os cara já mexe eu com
roupa assim normal, entendeu, aqui, se cê põe uma roupa que cê
gosta, uma coisa assim que começa chamar um pouco de atenção,
solta os cabelos, se maquia, qualquer coisa já é motivo pra você ser
abusada sabe, porque, porque você tá dando um, cê que deu
motivos, entendeu...e aí se o cara abusa de você e tudo, não dá
nada pra ele, entendeu, não dá nada... ninguém faz nada, entendeu
porque o povo ―ah cê tá na rua cê sabe como a rua é, cê vai ficar
usando short na rua?‖ tá, mas e o calor, que nem hoje mesmo, olha o
calor que tá... (Informação oral apud Bittar, 2020, p. 86).

Outra mulher entrevistada por Machado (2016) reafirma essa visão:

Porque se você ver homem na rua bebendo você acha normal,


mulher você pensa assim é uma vagabunda. Ah! Era só isso que eu
queria falar (Machado, 2016, p. 91).

Dessa forma, essas mulheres constroem a percepção de uma íntima


relação entre as representações que são feitas sobre si e as violências
sofridas. Ao considerarem que suas vidas são menos protegidas devido a esse
tipo de representação, o que elas narram faz ressonância à ideia de Butler
(2019, p. 52) de que enquanto ―certas vidas são altamente protegidas, outras
não encontrarão um suporte‖. Assim, evidencia uma reflexão sobre esse
processo de diferenciação e sobre suas consequências em suas vidas.
Portanto, para essas mulheres, não é apenas o fato de estar na rua que as
torna mais vulneráveis, mas também as representações difundidas sobre ser
mulher ―de rua‖.

VIOLÊNCIA ENTRE MULHERES E PESSOAS QUE ESTÃO NAS RUAS


As violências relatadas, especialmente a partir de um processo de
diferenciação feito por aqueles que não vivem nessa condição, não podem
esconder, ainda, a violência que acontece entre as próprias pessoas que vivem
nas ruas, inclusive entre as próprias mulheres.
Segundo os dados censitários da Prefeitura de São Paulo, quase 60%
dos entrevistados afirmam já terem sido vítimas de espancamento ou de
paulada ou terem participado de briga ou de luta corporal com outras pessoas

84
que vivem nas ruas, além de quase metade afirmar já ter sofrido agressão
verbal por parte desse mesmo grupo (São Paulo, 2019). Participantes da
pesquisa do Estimar também abordam esse tema:

É difícil conviver com os caras de rua, alguns querem que as


mulheres vão fazer programa, roubar para dar dinheiro para eles.
São folgados (Estimar, 2019, n.p.).

É muito difícil. Se você não tiver uma voz de autoridade, eles botam
você no esquema, pra arrumar dinheiro, batem, estupram (Estimar,
2019, n.p.).

Não tem muito respeito, principalmente pra gente que usa droga.
Oferecem um trago e já acha que vai conseguir comprar a gente
(Estimar, 2019, n.p.).

De pior eu acho que são as brigas, a covardia. Vão na maloca do


outro, dá facada, joga fogo. Às vezes, quem faz isso é o próprio
morador de rua (Estimar, 2019, n.p.).

Muitas mulheres relatam ainda o clima de violência e competitividade


vivido entre as mulheres que estão nessa condição:

Aí você pegou, com as mulheres a relação é mais difícil ainda. É


muito ciúme, uma quer ser mais bonita do que a outra, mais chic que
a outra (Estimar, 2019, n.p.).

Não tem muito clima. São pouquíssimas mulheres, uma disputa


enorme. Querem ser umas melhores que as outras. Eu não entendo
isso (Estimar, 2019, n.p.).

A gente não confia na outra mulher da rua, né? Ela também tá jogada
que nem eu, então eu tinha medo da outra, né? (Estimar, 2019, n.p.).

Também na relação entre as mulheres, as drogas são narradas como


um fator que potencializa a violência:

Ah, é muita briga, muita. É aquilo: eu sou melhor, eu posso mais.


Tudo gera briga, treta, principalmente quando estão drogadas
(Estimar, 2019, n.p.).

Com algumas dá para dialogar, mas outras a droga já afetou tanto a


vida delas que você fala um bom dia e elas já te olham de forma
agressiva (Estimar, 2019, n.p.).

O pior na rua é a maldade. É desconhecer quem está sorrindo pra


você, que pode ser sua pior inimiga. E a droga está por trás de tudo
(Estimar, 2019, n.p.).

85
Dessa forma, por mais que não haja dados que indiquem
percentualmente a abrangência das violências sofridas ou cometidas por
mulheres por outras pessoas que vivem nas ruas, os depoimentos reforçam
esse cenário como uma realidade desse contexto social. Como destaca o
relatório do Estimar (2019), algumas entrevistadas relatam ainda as ruas como
um território com regras próprias:

É uma violência tremenda, física e psicológica. É uma selva. Se for


dormir num lugar onde uma pessoa já dormia, já tem confusão
(Estimar, 2019, n.p.).

Eu vejo o cara socando a menina, ninguém pode fazer nada porque,


na lei deles, é assim que funciona. Eu estou aprendendo isso agora
(Estimar, 2019, n.p.).

Assim, ao tratar de violência nesse contexto, é importante considerar a


própria relação com as pessoas que vivem nele, a qual se, por um lado, pode
servir de proteção, por outro, também está cercada de violências de ordens
diversas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
―A gente que é da rua vê muitas coisas que
as pessoas não veem. Muita coisa de ruim
acontece‖ (Estimar, 2019, n.p.).

Os relatos registrados por diversos pesquisadores contribuem para


considerar as ruas como um espaço de extrema vulnerabilidade à violência,
seja pela maior exposição do próprio corpo, pelo consumo de álcool e drogas,
por uma cultura de violência ou pelas representações formuladas socialmente
sobre estar nessa condição. Assim, essa violência é narrada como sendo
perpetrada tanto por pessoas que não estão nas ruas quanto por aqueles que
nelas vivem.
Nesse contexto, é possível pensar, a partir das falas apresentadas, o
gênero feminino como um marcador de acentuação dessa vulnerabilidade.
Além da maior exposição à violência sexual, segundo as entrevistadas, as
representações de mulheres que estão nas ruas como sendo de ―menor valor‖
as expõem ainda mais à violência, tornando seus corpos estigmatizados e
ainda menos protegidos.

86
Assim, por mais que sejam escassos dados estatísticos que ajudem a
compreender esse cenário, especialmente em relação às mulheres, as falas
aqui reunidas, colhidas por pesquisadores diferentes, apontam para a
necessidade de se investigar esse problema de maneira ainda mais ampla, de
modo que políticas públicas possam ser pensadas considerando as
particularidades desse grupo e a sua relação com diversas formas de violência,
seja na trajetória até as ruas, na vida nesse espaço e na construção de uma
possível vida fora dele.

REFERÊNCIAS

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TIENE, Izalene. Mulher moradora na rua: entre vivências e políticas sociais.


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88
DO DIA EM QUE ME BATIZARAM DE
PUTA: UMA EXPERIÊNCIA PESSOAL DE
VIRALIZAÇÃO NAS REDES SOCIAIS

Elaine Pereira Andreatta45

RESUMO:
O presente texto tem como objetivo realizar uma análise em torno da
experiência de viralização de uma imagem pessoal em redes sociais, que
envolve discussões acerca dos estudos de gênero dentro do espaço
universitário e que leva os pesquisadores que se propõem a discuti-las à
exposição nas redes. Desse modo, proponho-me a refletir acerca de um
momento histórico no Brasil em que os debates evidenciam a presença de
grupos conservadores que levantam tensões em relação à pesquisa acadêmica
de estudos de gênero. Para tanto, avalia-se o avanço dos estudos de gênero e
seus conceitos (Scott, 1995; Grossi, 1998; Piscitelli, 2009; dentre outros); o
envolvimento da universidade nas reflexões acerca de gênero e sexualidade
(Carrara, 2015; Simões, 2018) e; por último, a definição de pânico moral
(Miskolci, 2007; Machado, 2004), que surge como resposta à intensificação
desses estudos para, então, demonstrar como esse medo coletivo gerado pela
necessidade de controle social toma conta das redes sociais em um evento
que envolve a mim, como professora universitária da área de Letras, a partir de
uma fotografia viral. Para isso, contextualizo o acontecimento e analiso alguns
comentários on-line de internautas em um post da página ―Quebrando o Tabu‖,
que mostra a minha imagem em uma palestra realizada em colóquio de
literatura no espaço universitário, evidenciando o pânico moral impulsionado
por indivíduos e grupos conservadores.

Palavras-chave: Gênero; Viralização; Redes sociais; Pânico moral.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Revisito este texto para esta publicação. Sua primeira escrita foi
concebida como trabalho final de uma disciplina sobre estudos de gênero no
âmbito do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social na

45
Professora na Universidade do Estado do Amazonas (UEA); Doutoranda em Linguística
Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); Bolsista da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM). Membro dos Grupos de Pesquisa
GEEF-UFPB (Grupo de Pesquisa, Estágio e Formação Docente), GEPPPE- UEA (Grupo de
Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas e Educação) e Nós-Outros: Linguagem, Memória e
Direitos Humanos- IEL/UNICAMP. E-mail: [email protected].

89
Universidade Federal do Amazonas (UFAM) 46, que cursei como aluna ouvinte
em 2019. À época, ainda não havia começado o doutorado e buscava aprender
mais sobre estudos feministas e de gênero para embasar o projeto de pesquisa
que vinha construindo sobre narrativas femininas em espaço de privação de
liberdade47. Na disciplina, as leituras feitas, os debates propostos, os conceitos
refletidos e aprendidos, levaram-me a realizar uma racionalização da minha
vivência, mais especificamente, de um evento acontecido no ano de 2018: a
viralização de uma fotografia em que eu palestrava sobre a presença da mulher
como personagem na literatura brasileira em um colóquio de estudos literários.
Na fotografia, além da minha imagem, um slide atrás de mim constando a
seguinte inscrição: ―Puta: adjetivo usado pela sociedade para descrever a
mulher que tem atitudes iguais às de qualquer homem padrão‖.
O contexto mais específico em que se inserem a frase e a cena serão
explicados ao longo deste texto. O que importa esclarecer neste momento
inicial é o fato de que a fotografia circulou tanto com abordagens positivas,
quanto com abordagens negativas, beirando ao linchamento virtual e fazendo
com que eu, à época, parasse de verificar esse movimento nas redes sociais
por recear algum tipo de violência decorrente desse episódio, em especial, as
violências simbólicas que se destinam às mulheres. Um ano depois dele, ao
cursar a disciplina e decidir produzir esta análise, voltei às páginas públicas e
com maior número de seguidores para ler comentários, legendas de
compartilhamentos e fazer as devidas quantificações do movimento virtual, a
fim de tentar compreender, pelo menos um pouco, o processo de viralização
decorrente dos sentidos produzidos pelas pessoas ao se depararam com a
fotografia.
Assim, eu revisitei um evento da minha história como professora
universitária, como mulher, mãe, esposa, filha, tia, lidando com algo que eu
havia varrido para baixo do tapete, o que é paradoxal, por ser um evento que
havia se tornado público. Munida dos discursos das teorias feministas e de
gênero, dos debates em sala de aula, da força da voz coletiva que luta pela

46
Agradeço às professoras Márcia Calderipe e Fátima Weiss, ministrantes da disciplina, que,
com as reflexões que propuseram, incentivaram esta análise.
47
A pesquisa mencionada vem sendo realizado no âmbito do Programa de Pós-graduação em
Linguística Aplicada na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), sob a orientação da
professora Daniela Palma.

90
desconstrução de discursos conservadores de uma sociedade patriarcal, eu me
sentia pronta a resgatar essa narrativa e analisá-la. Assim o fiz em 2019,
produzindo um artigo final para a disciplina mencionada. No entanto, ainda
restava o receio de publicá-lo, movimento que faço agora, o que justifica essas
informações iniciais.
Para a presente publicação, revisito o texto, relendo minhas reflexões e
reorganizando muitas delas. Compreendo que, ao analisar os acontecimentos,
proponho uma práxis refletiva, uma experiência dotada de sentidos, uma vez
que

[a]s palavras com que nomeamos o que somos, o que fazemos, o


que pensamos, o que percebemos ou o que sentimos são mais do
que simplesmente palavras. E, por isso, as lutas pelas palavras, pelo
significado e pelo controle das palavras, pela imposição de certas
palavras e pelo silenciamento ou desativação de outras palavras são
lutas em que se joga algo mais do que simplesmente palavras, algo
mais que somente palavras (Bondía, 2002, p. 21).

Nesse sentido, produzo uma narrativa diferente daqueles que buscaram


linchar virtualmente uma discussão de gênero, descontextualizando-a,
tomando-a para si, a partir de discursos pré-concebidos, de uma obsessão pela
opinião na era das redes, pois, como afirma Bondía (2002, p. 22), o sujeito ―é
alguém que tem uma opinião supostamente pessoal e supostamente própria e,
às vezes, supostamente crítica sobre tudo o que se passa, sobre tudo aquilo de
que tem informação‖.
Assim, para ultrapassar a incapacidade da experiência, reflito sobre o
que passou, o que aconteceu, mas, essencialmente, sobre o que me tocou e
afetou, o que me ameaçou, porque o ―sujeito da experiência é um sujeito ‗ex-
posto‘‖ (Bondía, 2022, p, 24) e ―é também um sujeito sofredor, padecente,
receptivo, aceitante, interpelado, submetido‖ (p. 25). Logo, este texto tem a ver
com as formas de ―elaboração do sentido ou do sem-sentido do que nos
acontece‖, e isso é ―ligado à existência de um indivíduo ou de uma comunidade
humana particular‖ (p. 27). Em outras palavras, refletindo sobre a minha
experiência, busco compreender algumas ações de uma sociedade concreta e
singular.
Portanto, este texto tem como objetivo realizar uma análise em torno da
experiência de viralização de uma imagem pessoal em redes sociais, que

91
envolve discussões acerca dos estudos de gênero dentro do espaço
universitário e que leva os pesquisadores ― eu e tantos outros ― que se
propõem a discuti-las à exposição nas redes. Para tanto, reflito sobre o avanço
dos estudos de gênero e seus conceitos (Scott, 1995; Grossi, 1998; Piscitelli,
2009; dentre outros); sobre o envolvimento da universidade nas reflexões
acerca de gênero e sexualidade (Carrara, 2015; Simões, 2018) e; por último,
sobre a definição de pânico moral (Miskolci, 2007; Machado, 2004) que surge
como resposta à intensificação desses estudos. Em seguida, contextualizo o
acontecimento ― a viralização da minha fotografia nas redes sociais ― e
analiso alguns comentários on-line de internautas em um post da página
―Quebrando o Tabu‖, evidenciando o pânico moral impulsionado por indivíduos
e grupos conservadores.
Para a análise, seleciono comentários/legendas em blocos, a saber: o
primeiro que diz respeito ao papel da universidade e à desmoralização do
trabalho de pesquisa; o segundo bloco apresenta o ataque pessoal à minha
imagem como mulher; o terceiro que remete à recuperação do conceito de
―puta‖ e; o quarto bloco, em relação à suposta ofensa proferida aos homens na
frase da fotografia. A análise procede à descrição e interpretação dos sentidos
do discurso, de modo a compreender o pânico moral instaurado em torno das
discussões de gênero promovidas no espaço universitário, além do ataque às
pesquisas sobre gênero e, por consequência, aos pesquisadores e à
universidade.

SOBRE OS ESTUDOS DE GÊNERO E O ENVOLVIMENTO DA


UNIVERSIDADE
Os mecanismos de poder que nos levaram às tensões e às contradições
que envolvem discussões de gênero no contexto contemporâneo configuram
uma reação à difusão, no campo da educação, do ideal de igualdade de gênero
e de reconhecimento da diversidade sexual. Nesse sentido, é possível
perceber há algum tempo um acirramento e retomada dos debates e
antagonismos no Brasil que têm, de um lado, grupos conservadores que
reacendem e reafirmam as discussões em torno de dispositivos de repressão e
controle e, de outro, uma discussão profícua acerca dos conceitos que
envolvem gênero e sexualidade e, portanto, uma preocupação em promover,

92
no espaço escolar e acadêmico, a educação sexual, o debate em torno dos
papéis sociais e da luta pela igualdade de direitos, além de reafirmar políticas
afirmativas e de combate ao preconceito.
Grossi (1998), em seu texto ―Identidade de gênero e sexualidade‖,
apresenta uma importante reflexão teórica acerca da categoria gênero e seus
estudos, observando que os estudos de gênero se configuram com um dos
efeitos das lutas libertárias dos anos 60, em especial: ―as revoltas estudantis de
maio em Paris, a primavera de Praga na Tchecoslováquia, os black panters, o
movimento hippie e as lutas contra a guerra do Vietnã nos EUA, a luta contra a
ditadura militar no Brasil‖ (1998, p. 2). Tais movimentos tiveram considerável
importância para a busca da justiça e igualdade, mas, segundo Grossi (1998, p.
2), o surgimento da problemática de gênero teve seu momento-chave ―quando
as mulheres que deles participavam perceberam que, apesar de militarem em
pé de igualdade com os homens, tinham nestes movimentos um papel
secundário‖.
A autora afirma, ainda, que, de forma paralela a essas lutas, evidencia-
se, nos anos 60, um momento de grande questionamento da sexualidade e a
compreensão do sexo não apenas como prática reprodutiva, mas como fonte
de prazer. Também despontam movimentos sociais como o movimento
feminista e o movimento gay, os quais ―vão refletir-se no campo acadêmico‖
(Grossi, 1998, p. 2). Logo, a universidade é o espaço de conhecimento
influenciado pelas lutas sociais, buscando abrir caminhos para os estudos de
gênero e sexualidade. Além disso, muitas estudantes e professoras que
participam desses movimentos iniciam, nas disciplinas diversas, uma
investigação em torno do lugar da mulher na sociedade, concentrando seu
campo de estudos em torno da problemática da condição feminina, o que surge
no Brasil nos anos 70 e 80 e que passa a ser chamado, a partir dos anos 80 de
―estudos sobre as mulheres‖. De acordo com Grossi (1998), a partir disso, os
estudos de gêneros passam a problematizar a determinação biológica e refletir
sobre as identidades sociais.
Dessa forma, os estudos de gênero e sexualidade se intensificam e
chegam ao Brasil influenciados por pesquisadoras norte-americanas. Scott
(1995, p. 74) afirma que ―o termo ‗gênero‘ torna-se uma forma de indicar
‗construções culturais‘ ― a criação inteiramente social de idéias sobre os

93
papéis adequados aos homens e às mulheres‖. Olha-se, portanto, para as
origens ―sociais das identidades subjetivas de homens e de mulheres‖ (Scott,
1995, p. 75). No entanto, com os posteriores estudos de gênero e de
sexualidade, o termo configura-se como uma categoria útil que distingue
―prática sexual dos papéis sexuais atribuídos às mulheres e aos homens. (...) O
uso de ‗gênero‘ enfatiza todo um sistema de relações que pode incluir o sexo,
mas não é diretamente determinado pelo sexo, nem determina diretamente a
sexualidade‖ (Scott, 1995, p. 75).
Nesse sentido, o entendimento de ―gênero‖ resultou na reflexão sobre
conceitos normativos que determinam comportamentos, tornando-se
impossível separar as concepções de gênero de questões políticas e culturais.
Scott apresenta duas importantes definições: ―(1) o gênero é um elemento
constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os
sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de
poder‖ (1995, p. 87). Tais definições reafirmam a necessidade de lutas sociais
em busca de igualdade, rompendo com a aprendizagem tradicional dos papéis
masculino e feminino que estabelecem complexas redes de poder.
Piscitelli, no texto ―Gênero: a história de um conceito‖ (2009), afirma que
―quando as distribuições desiguais de poder entre homens e mulheres são
vistas como resultado das diferenças, tidas como naturais, que se atribuem a
uns e outras, essas desigualdades também são ‗naturalizadas‘‖ (Piscitelli,
2009, p.119) e o termo ―gênero‖ serve para desmontar a naturalização das
diferenças consideradas inatas. A autora, ao referenciar o estudo de Gayle
Rubin (O tráfico das mulheres: notas sobre a economia política do sexo, de
1975), utiliza o conceito de sistema sexo/gênero, dizendo que este está
relacionado a ―uma sociedade que transforma a sexualidade fisiológica em
produtos da atividade humana‖ (Piscitelli, 2009, p. 119), como o casamento e a
divisão sexual do trabalho. Além disso, a repressão da sexualidade da mulher
obrigatoriamente está relacionada ao conceito de heterossexualidade, o que
acaba por oprimir homossexuais.
Com efeito, nesta breve discussão acerca dos caminhos percorridos
pelos estudos de gênero, percebemos que eles difundiram reflexões sobre as
diferenças e as desigualdades, questões que têm um caráter político, mas que
também refletem sobre as noções de masculinidade e de feminilidade, bem

94
como de liberdade de comportamento e de normatização, fatores que, em
conjunto, influenciam para a manutenção ou quebra de controle social exercido
nas relações de poder.
A universidade, em conjunto com a militância dos movimentos sociais,
tem propagado essas discussões que constituem, em contextos políticos
favoráveis, políticas sexuais e educacionais. Nesse ponto, parece importante
salientar que

[a] produção da academia e a produção da militância ― que


em algum momento poderiam ser consideradas paralelas ―
em muitos pontos se entrecruzam. Academia e militância,
também na experiência dos movimentos feministas brasileiros,
se mesclam, interagem e se influenciam mutuamente (Miguel,
2003, n.p).

Tais grupos propõem a ampliação, nesse sentido, ―[d]a ideia de ser


humano, abrindo espaço da compreensão, da inteligibilidade e da dignidade
também para todos/as os/as ‗diferentes‘, em termos de gênero e sexualidade‖
(Piscitelli, 2009, p. 146), o que pode ser revertido em reconhecimento da
diversidade, em busca de legitimação de igualdade de gêneros, em políticas
públicas de inclusão.
Simões (2018) afirma que o campo de estudos de gênero e sexualidade
está intimamente ligado às reivindicações de movimentos sociais e ao
―enfrentamento das demandas políticas e judiciais associadas à defesa e
promoção de direitos‖ (Simões, 2018, p. 433). Como exemplos, é possível citar,
segundo a autora (com algumas contribuições minhas), o programa Brasil sem
homofobia, criado em 2014, pelo governo federal; a Primeira Conferência
LGBT, em 2008; o reconhecimento da união homoafetiva estável pelo STF, em
2011; o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, em 2013; a Lei do
Feminicídio, aprovada em 2015 e; a decisão do Supremo Tribunal Federal
(STF), em 13 de junho de 2019, que faz com que a discriminação por
orientação sexual e identidade de gênero passe a ser considerada um crime.
Se, então, as questões de diversidade sexual e de gênero passam a
experimentar avanços que podem ser ditos consideráveis desde a virada do
milênio, em contrapartida, há a recusa no reconhecimento da diversidade,
promovido especialmente por um ―etnocentrismo cristão‖, o qual silencia a

95
diversidade de modo a contribuir para a marginalização de uma série de grupos
sociais: mulheres, gays, lésbicas, travestis, transsexuais etc. Assim, se as
conexões teóricas e políticas encetadas pelas pesquisas nos espaços
acadêmicos contribuíram para promover a quebra de paradigmas, as quais
geram a possibilidade de uma transformação social em busca da igualdade,
indivíduos e grupos conservadores se preocuparam em manter e reafirmar uma
rede complexa de regulações sociais para manutenção do controle social e dos
papéis sexuais.

PÂNICO MORAL: MEDO VIRAL DIFUNDIDO PELO DISCURSO


CONSERVADOR
Desse modo, cabe aqui buscar o conceito de pânico moral, um medo
coletivo que emerge com relação às mudanças, as quais são consideradas
ameaçadoras, uma vez que determinados comportamentos confrontam a
ordem social estabelecida e naturalizada. Determinados pânicos morais
desencadeiam reações específicas de ataque, violência física, agressões
verbais e isso é intensificado hoje com a comunicação em rede, em que a tela
do computador se torna um elemento encorajador aos julgamentos
provenientes de noções conservadoras e os espaços virtuais viram
mecanismos de difusão de comportamentos.
Miskolci (2007), ao refletir sobre o casamento gay, pânico moral e
controle social, recupera o estudo do inglês Stanley Cohen, de 1960, o qual
afirma que quando emerge um pânico moral,

uma condição, um episódio, uma pessoa ou um grupo de pessoas


passa a ser definido como um perigo para valores e interesses
societários; sua natureza é apresentada de uma forma estilizada e
estereotipada pela mídia de massa; as barricadas morais são
preenchidas por editores, bispos, políticos e outras pessoas de
Direita; especialistas socialmente aceitos pronunciam seus
diagnósticos e soluções; recorre-se a formas de enfrentamento ou
desenvolvem-nas. Então a condição desaparece, submerge ou
deteriora e se torna mais visível (Cohen apud Miskolci, 2007, p. 111).

O autor ainda observa que, em determinadas situações, o objeto do


pânico é algo novo, mas que em tantas outras vezes, o discurso é recuperado
e se repete, ganhando notoriedade. O efeito do pânico moral também varia,

96
ganhando ―repercussões mais sérias e duradouras e pode produzir mudanças
tais como aquelas em política legal e social ou até mesmo na forma como a
sociedade se compreende (Cohen apud Miskolci, 2007, p. 111).
Segundo Machado (2004), Cohen propõe três fases para a reação social
que dá origem ao pânico moral: uma fase de inventário do problema, uma fase
de significação e uma fase de ação. Na primeira, observa-se o acontecimento
como problema social, interpreta-se inicialmente diante de condicionamentos e
todas as interpretações seguintes derivam dessa inicial. Na segunda,
mobilizam-se opiniões e atitudes, com posicionamento emocional e intelectual
face ao problema, com identificação de dados, como a crise de família ou crise
de autoridade. A terceira e última fase é a de ação e de remediação do
problema, o qual integra dois níveis distintos: 1) sensibilização: refere-se à
focalização da atenção e consciência do público, típico da fase mais acentuada
do pânico moral, pelo qual comportamentos até então considerados
irrelevantes se tornam suspeitos e; 2) mobilização da cultura de controle social:
aciona-se o papel das agências formais de controle.
Machado (2004, p. 3) avalia que ―daí resulta uma imagem demonizada
do grupo desviante, que o retrata como atípico e anormal, em contraste com
uma imagem idealizada e hiper-normativa do pano de fundo social‖. Nesse
sentido é que, segundo Miskolci (2007), os pânicos morais levam sempre à
discussão acerca do controle social e legal, julgando o que é apropriado a uma
forma de comportamento. Além disso, de forma recorrente, os empreendedores
morais tendem a sugerir medidas educacionais, de prevenção e
regulamentação legal, a fim de garantir o controle social.
No que diz respeito à discussão em torno das políticas sexuais e da
compreensão da sexualidade, bem como do conceito de gênero como
categoria analítica e propiciadora de reflexões e transformações sociais, com o
pânico moral e a chegada à terceira fase, em seu segundo nível, uma vez que
as agências de controle (política, Estado, justiça) encontram-se
desacreditados, os atores passam a ser os cidadãos comuns, mobilizados em
torno de um medo coletivo contra ações de pessoas desviantes que, de forma
exagerada, passam a ser vistas como demônios. Machado (2004, p. 8) aciona
Goode e Ben-Yehuda (1994), os quais dizem que no ―pânico moral, as reações
dos media, das agências de controle, dos políticos, dos grupos de ação e do

97
público em geral, são desproporcionadas em relação ao perigo real e atual que
uma dada ameaça coloca à sociedade‖
Assim, reforça-se uma política conservadora que se volta não apenas
contra as discussões em torno do gênero e sexualidade e tudo que as envolve,
mas em relação a todos aqueles que promovem debates, como a universidade,
os professores, os movimentos sociais, os cientistas, os artistas, os
pesquisadores etc. Todos passam a ser atacados, o que se torna mais simples
com a tecnologia proporcionada pela internet e com a rapidez das informações
em circulação nas redes sociais. Além disso, o ataque de indivíduos e grupos
conservadores à universidade e, de modo macroestrutural, à educação,
evidencia-se por acontecimentos como a criação do grupo ―Escola sem
partido‖, com discursos que incentivam a educação domiciliar, com incitações
ao registro em vídeo de professores denominados como ―doutrinadores‖, com a
repetição exaustiva do termo ―ideologia de gênero‖, uma categoria acusatória
que, conforme Borges e Borges (2018, p. 4), é reforçada por

grupos religiosos e atores políticos/ religiosos que divulgam crenças


em torno da ameaça de um incentivo à homossexualidade, uma livre
escolha sobre o gênero, a destruição da família tradicional e dos
conceitos de homem e mulher, ressaltando-se, a partir dessas
concepções, um recorrente estado de pânico moral e constantes
mobilizações sobre a presença das questões de gênero e
sexualidade nos planos de educação.

Carrara (2015), em seu artigo ―Moralidades, racionalidades e políticas


sexuais no Brasil contemporâneo‖, menciona as palavras de uma importante
autoridade católica brasileira, a qual diz que, de acordo com a ―ideologia de
gênero‖, ―não existiria mais homem e mulher distintos segundo a natureza mas, ao
contrário, só haveria um ser humano neutro ou indefinido que a sociedade — e não
o próprio sujeito — faria ser homem ou mulher, segundo as funções que lhe
oferece‖. A ―ideologia de gênero‖, assim definida, seria ―anticristã‖, ―arbitrária‖ e
―antinatural‖ (apud Carrara, 2015, p. 323).
Quanto ao ataque à universidade, cabe dizer que ele não se deu apenas
diante de uma acirrada polarização política e da ascensão da extrema-direita no
Brasil, mas também por meio de um desmonte na educação nos últimos anos.
Como exemplo, é possível citar que, no mês de maio de 2019, o Ministério da
Educação anunciou o corte de 30% da verba destinada às universidades federais,

98
o que causou a mobilização de parcela da população. No entanto, outra parcela da
população que apoiou a medida governamental dedicou-se, em redes sociais, a
mobilizar acontecimentos para linchar virtualmente instituições públicas,
professores e pesquisas48.
Borges e Borges (2018, p. 11) afirmam que ―além das interpretações
equivocadas, esses grupos e políticos religiosos sobrepõem também a
perspectiva de que a ‗família é a instituição educadora por excelência‘‖. Nesse
sentido, o ato de transformar a universidade em um espaço que não ensina
algo relevante vem ao encontro do interesse em evitar que a presença das
questões de gênero e sexualidade nas políticas educacionais e nos debates
em sala de aula agredisse, segundo as suas crenças, a liberdade da família em
educar crianças e adolescentes conforme suas convicções.
Além disso, usa-se como estratégia para a geração do pânico moral,
conforme afirma Machado (2004, p. 14), ―o estado de ansiedade ou medo latente
da população [o qual] forneceria o combustível para o medo‖. Logo, ―a agenda
moral destes grupos determinaria o seu conteúdo ou, dito de outro modo, o seu
ponto de fixação‖ (2004, p. 14). Nesse sentido, a negação da diversidade sexual, a
cultura patriarcal e heteronormativa que reforça preconceitos são motivos para a
difusão de um pânico moral que contribui para posicionamentos políticos, para
instauração e repetição de narrativas e para ataques em redes sociais, de modo a
reforçar tais comportamentos e rechaçar qualquer comportamento desviante.
Portanto, o controle social ainda remete aos julgamentos, regras e ordenamentos
morais necessários às relações de poder exercidas por grupos específicos.

EU, MULHER E PROFESSORA UNIVERSITÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE


VIRALIZAÇÃO
Por último, gostaria de evidenciar o ataque sofrido no espaço virtual
vivenciado por mim, como professora universitária de Língua Portuguesa e
Literatura, a partir de uma fotografia que circulou nas redes sociais após a
realização de uma palestra em um colóquio de literatura em um espaço
universitário. Foi exatamente esse fato que me incentivou a produzir este texto e

48
Para saber mais, leia o artigo ―Da depravação ao desperdício de recursos: estratégias de
desconstrução da universidade pública em redes de fake news‖, de Tomás, Tomás e Andreatta
(2020), disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/verbum/article/view/50747.

99
refletir acerca de um momento histórico no Brasil em que os debates
evidenciam a presença de indivíduos e grupos conservadores que levantam
tensões em relação à pesquisa acadêmica de estudos de gênero, o que gera o
ataque à pesquisa e a viralização, beirando ao linchamento virtual.
Para tanto, contextualizo rapidamente o teor da palestra ministrada por
mim intitulada: Minha força não é bruta, não sou freira nem sou puta: inscrições
corporais e performances femininas na literatura. A ideia era introduzir a
discussão sobre a visão binária da mulher na literatura (ou santa ou puta), por
longos anos de representação, para chegar às produções contemporâneas na
literatura brasileira, que mostram uma quebra desses estereótipos. A análise se
encaminhava para a reflexão sobre a imagem feminina na literatura
contemporânea que aparece de forma diversa e não padronizada, o que evita a
invisibilidade daqueles sujeitos sociais que não se enquadravam em nenhuma
delas.
Para iniciar a palestra, busquei em dicionários, páginas da internet, em
posts e comentários on-line, as diferentes definições dos vocábulos
―freira/santa‖ e "puta". Em uma das definições de ―puta‖, uma das pessoas da
plateia fez uma fotografia, a qual circulou, inicialmente, no aplicativo Whatsapp
e, posteriormente, no Facebook, Instagram e Twitter. A fotografia é a que
apresento a seguir:
Na foto (Figura 1), a imagem atrás de mim, que aparece referenciada, foi
postada pela página Feminismo porque sim, que é, por sua vez, um repost da
página Feminismo e Sororidade49. O objetivo de trabalhar com o verbete era
fazer refletir sobre as diferentes definições que mudam conforme o tempo, o
lugar social do falante, a constituição do discurso. Na sequência da palestra,
apresentei os resultados da pesquisa em torno dos dados relativos às mulheres
escritoras e personagens da professora e pesquisadora Regina Dalcastagné,
da UNB, a partir do texto denominado ―Uma Mapa de ausências‖, o qual faz um
mapeamento do romance contemporâneo brasileiro de um determinado
período e tematiza a invisibilidade das mulheres como autoras e personagens.
Por último, apresentei a análise da imagem feminina em quatro obras

49
Fazendo buscas nas redes sociais, consegui fazer essas referências, mas é importante
ressaltar a possibilidade de a autoria da frase ser, ainda, de outra pessoa, considerando que a
viralização nas redes é incontrolável, o que dificulta a descoberta de autoria.

100
contemporâneas: As meninas, obra publicada na década de 1970 e escrita por
Lygia Fagundes Telles, com as personagens Lorena, Lia e Ana Clara; A
audácia dessa mulher, de Ana Maria Machado, publicada em 1999, com a
personagem Beatriz; Duas Iguais (2004), de Cíntia Moscovich, com as
personagens Clara e Ana e; por fim, Deixei ele lá e vim, de Elvira Vigna, obra
de 2006, com a personagem Shirley.

Figura 1 - Registro fotográfico da palestra

Fonte: Fotografia tirada por acadêmica50

Faço essa contextualização na ânsia de esclarecer uma série de


desconfortos gerados pela foto, uma vez que o foco ficou sendo apenas a
definição de ―puta‖ circulando de forma descontextualizada. Após o
compartilhamento no Whatsapp e no Facebook, a circulação da foto ganhou a
dimensão que não pude mais mensurar e sequer controlar. Eu mesma a postei
em um determinado momento, no intuito de produzir a contextualização, mas
acabei ocultando passados poucos dias. Um tempo depois, alguns contatos da
rede social me marcaram na página Quebrando o tabu, na qual a minha
fotografia foi publicada no dia 05 de julho de 2018, com a legenda positiva
―Queria muito assistir a essa aula‖. A postagem contou com 38 mil reações, 1,7

50
A fotografia foi tirada pela acadêmica Natália Maia, a quem agradeço pela disponibilização da
imagem.

101
mil comentários e 10 mil compartilhamentos51. A fotografia também foi
compartilhada em outras páginas bastante visitadas, como Lana Del Rey Vevo
(não consegui visualizar os dados) e Queima Lento (4,8 mil reações, 1,8 mil
comentários e 50 mil compartilhamentos), mas sem legenda. Cito os dados
para que se possa ter a dimensão do descontrole no que se refere à circulação
e às ações dos usuários nas redes sociais em torno de algo que estava
destinado a um público específico, mas que alcançou um número considerável
de pessoas.
Como sabia do post na página Quebrando o tabu, realizei um
comentário explicando o contexto da fotografia, o que contribuiu para dirimir os
ataques e os equívocos para quem o lesse. O (a) administrador(a) da página 52
adicionou o meu comentário à legenda, o que facilitou o entendimento da
proposta. Nas outras páginas citadas, apesar das diversas reações,
comentários e compartilhamentos, o foco se deu em relação à frase projetada e
não em relação à discussão proporcionada no espaço universitário.
A seguir, apresentamos alguns comentários on-line que são produzidos
ora no post da página Quebrando o tabu, ora para legendas escritas por
pessoas que compartilharam a fotografia, de modo a evidenciar os aspectos
avaliados neste texto: o pânico moral instaurado em torno das discussões de
gênero promovidas no espaço universitário, a preocupação com o controle
social que reage à liberdade das mulheres e quer recuperar comportamentos
normatizados, além do ataque às pesquisas sobre gênero e, por consequência,
aos pesquisadores e à universidade.
Para tanto, separamos os comentários por blocos. O primeiro bloco diz
respeito ao papel da universidade e à desmoralização do trabalho de pesquisa
realizado nela, questionando sua relevância e ainda comparando a áreas de
conhecimento consideradas ―mais produtivas‖, reflexo da valorização do
mercado e do capital:

51
Os dados foram atualizados em 31 de julho de 2023. Os dados anteriores, coletados em
2019, eram mais altos. Tal mudança pode ser justificada pela exclusão de contas que
interagiram à época.
52
Aproveito para agradecer ao(à) administrador(a) da página por adicionar a legenda solicitada
por mim.

102
Figura 2 - Captura de tela: Comentário 153

Fonte: Quebrando o Tabu


Figura 3 - Captura de tela: Comentário 2

Fonte: Quebrando o Tabu


Figura 4 - Captura de tela: Comentário 3

Fonte: Quebrando o Tabu

Figura 5 - Captura de tela: Legenda 1 (compartilhamento)

Fonte: Quebrando o Tabu

Figura 6 - Captura de tela: Legenda 2 (compartilhamento)

Fonte: Quebrando o Tabu

53
Os comentários são printados de página pública no Facebook (Quebrando o Tabu), mas,
mesmo assim, suprime-se a identidade (nome e fotografia) daqueles que comentam para
anonimizá-los.

103
Nas 5 capturas de tela, a reverberação de um quase mantra que,
mesmo dito em outras palavras, ecoa: ―É isso que se faz nas universidades?‖.
Evidencia-se que ―o pânico moral não deve ser visto como uma erupção súbita
de preocupação‖ (Machado, 2004, p. 17), mas uma preocupação que se
intensifica, em momentos específicos, e que ganha força em contextos políticos
polarizados como os vividos no Brasil no ano de 2018 e nos anos seguintes. É,
portanto, um discurso comunicacional endêmico, com incidência significativa
em uma parcela da população e que vem acompanhado de uma grande
preocupação: a suposta destruição da família.
Nesse caso, o medo coletivo da universidade é instaurado e tal
necessidade pode ser explicada por dois grandes fatores, um é a preocupação
dos grupos conservadores quanto à representação dos espaços escolares e
universitários para os alunos, o que contribuiu para o equivocado discurso de
doutrinação; outro é o rechaço da universidade pública, o que potencializa o
impulsionamento do ensino privado e abandono da responsabilidade do estado
com a educação superior pública e gratuita.
Além disso, conforme ressaltam Borges e Borges (2018), ―a eficácia do
discurso que adverte a ―ideologia de gênero‖, difundido pelos mass media, deu-
se, segundo Gomes (2013, p. 187), por ‗uma ênfase exagerada sobre o risco
de vitimização, o que contribuiu para a construção de um estado de pânico
moral‘‖. E, para manter o controle social, estrategicamente, promove-se o
linchamento virtual, o ataque pessoal, conforme podemos observar nos
comentários a seguir:

Figura 7 - Captura de tela: Comentário 4

Fonte: Quebrando o Tabu

Figura 8 - Captura de tela: Comentário 5

Fonte: Quebrando o Tabu

104
Figuras 9 e 10 - Captura de tela: Comentários 6 e 7

Fonte: Quebrando o Tabu

Figura 11 - Captura de tela: Comentário 8

Fonte: Quebrando o Tabu

Como observamos, as figuras 7 a 11 evidenciam a agressão verbal, o


discurso de ódio que leva ao linchamento virtual. Conforme observa Eliane
Tânia Freitas (2017), em seu artigo ―Linchamentos virtuais: ensaio sobre o
desentendimento humano na internet‖, realiza-se um julgamento público e
segue-se uma série de novas publicações para reforçar a primeira, as quais
podem culminar em ameaças, insultos e exposição de privacidade. No caso do
comentário 7, figura 10, a ameaça é clara: ―deveriam ser exterminados‖, assim
como os insultos nos outros comentários: ―coisa de feminazi abortista‖, ―vcs
são um câncer degenerativo‖, ―feminista babaca‖. A autora ainda afirma:

O discurso de ódio, marcadamente ideologizado, tenderia a tomar


como objeto de seus ataques características identitárias de
indivíduos e grupos, como raça, gênero, identidade sexual,
nacionalidade (ou identidade regional), etnia, aspectos físicos em
desacordo com os padrões estéticos hegemônicos ou
comportamentos que escapem à normatividade. Ele procura
acentuar a inferioridade de seu alvo e o caráter inescapável de sua
condição, naturalizada. O objeto do linchamento é, ao contrário, não
um modo de ser, mas uma ação ou comportamento (atitude, discurso
verbal) percebido como decorrente de erro ou transgressão moral,
contra o qual se apresentam denúncias que, por mais severas que
sejam, admitem correções (Freitas, 2017, p. 156).

Nesse sentido, não era a minha credibilidade que estava sendo atacada
apenas, mas a de grupos em sua integralidade: das mulheres, das feministas,
dos professores universitários. Talvez essa citação justifique o fato de que
quase a totalidade dos comentários agressivos foram produzidos por homens
em relação a uma mulher feminista e professora universitária que, no contexto

105
da fotografia, questiona o conceito de ―puta‖ e reflete sobre o conceito de
―homem padrão‖ e comportamento sexual. O comentário abaixo ilustra essa
afirmação, uma vez que o controle social imposto pelo seu autor recupera
comportamentos sociais permitidos à mulher em sua ordem moral de
sociedade:

Figura 12 - Captura de tela: Comentário 9

Fonte: Quebrando o Tabu

Nesse comentário, há a clara reafirmação de um comportamento


moldado atribuído à mulher na divisão sexual do trabalho, além de uma forma
de desqualificação dos fazeres da mulher no espaço público. Também se
enfatiza o uso do imperativo na frase, marcada por três pontos de exclamação
finais. Perrot (1995) observa que o fortalecimento da divisão entre produção e
reprodução foi impulsionada pelo industrialismo capitalista, o que colocou a
mulher na esfera doméstica, a ―dona de casa‖ responsável pela organização da
vida privada, pelo trabalho doméstico, pelo cuidado com os filhos e com o
marido. O comentário recupera esse olhar que impede o alcance das mulheres
ao espaço público, negando conquistas alcançadas e buscando o sentimento
de vergonha e julgamento para que o seu desejo seja concretizado. Mais do
que isso, o autor do comentário se dá ao direito de dizer isso a mulheres que
ele nem conhece.
Nos comentários encontrados, foram vários os que buscaram no
dicionário o conceito de ―puta‖ e o reproduziram, trabalhando sempre com a
noção de certo e errado. O dicionário, nesse sentido, é visto pelos internautas
como uma representação de padronização e de poder diante do conhecimento,
dado por uma cultura hegemônica. Em nenhum momento, avaliam-se os
verbetes como a descrição dos sentidos promovidos por uma língua e nem sua
dinamicidade. No entanto, isso diz muito de quem o utiliza como argumento,
pois a língua, assim como o comportamento, sofre controle social e
policiamento moral, vide as polêmicas em torno da palavra ―presidenta‖ para
referir-se à Dilma Roussef no Brasil ou, ainda, discussões em redes sociais que

106
acabam em monitoramento da língua em vez de debate de ideias. Observemos
os comentários que remetem ao dicionário:

Figura 13 - Captura de tela: Comentário 9

Fonte: Quebrando o Tabu

Figura 14 - Captura de tela: Comentário 10

Fonte: Quebrando o Tabu

Expressões como ―na verdade‖ e a explicação de vários sentidos para a


palavra ―puta‖ presente demonstra uma forma professoral e que se quer
superior aos outros falantes, performance muito comum nas redes sociais.
Para rechaçar argumentos, ataca-se por meio de conhecimento padronizado,
sem sequer avaliar contextos e objetivos do processo comunicativo e menos
ainda o conteúdo da discussão.
Outra recorrência também se deu em torno do sentimento de ofensa em
relação à frase da fotografia, o que foge da análise em relação ao pânico moral
sobre as discussões em torno de gênero, mas relaciona-se à preocupação
quanto ao questionamento do comportamento sexual masculino,
historicamente aceito e justificado, mas não permitido à mulher, o que se
considera discriminação:

Figura 15 – Captura de tela: Comentário 11

Fonte: Quebrando o Tabu

Figura 16 - Captura de tela: Comentário 12

Fonte: Quebrando o Tabu

107
Figura 17: Comentário 13

Fonte: Quebrando o Tabu

Nos comentários presentes nas figuras 15 a 17, os homens reagem à


comparação feita pela frase: se o comportamento padrão do homem é o
mesmo comportamento do que se considera ―puta‖, então há ―homemfobia‖ (e
preciso registrar que rio), há discriminação, há falta de respeito, é que o dizem.
Mais uma vez, as desigualdades imprimem-se no discurso, já que as mulheres
são frequentemente ofendidas em espaços públicos e privados pela sua
liberdade sexual.
Em um país onde os casos de estupro e de feminicídio ainda
apresentam dados alarmantes, comentários como esses devem ser
questionados, debatidos, rechaçados. As redes sociais ― como espaço sem
regulamentação e fiscalização, como lugar em que a manifestação agressiva
parece tornar-se mais naturalizada ― precisam ser observadas não só no que
diz respeito ao debate sobre gênero, mas em diferentes pautas relevantes que
contribuem para a formação de opinião.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os discursos que consideram as discussões de gênero e a diversidade
sexual ativam, conforme evidenciamos, a reação de indivíduos e grupos
conservadores para a regulação moral na contemporaneidade, o que gera um
alarde para a inclusão das temáticas de gênero e sexualidade na educação,
seja promovida nos espaços escolares da educação básica ou nos espaços
universitários. Esse alarde contribui para a instalação de um pânico coletivo,
forma reguladora de comportamento e não como discussão para a redução das
desigualdades e a compreensão da diversidade.
A experiência vivida por mim é apenas mais uma diante das centenas de
situações de agressões, cancelamentos, linchamentos virtuais e violências
produzidas em redes sociais e transpostas para a vida cotidiana das pessoas.
Por isso, é importante avaliar, analisar, debater. Exprimir essa experiência que

108
me afetou foi também uma forma de lutar, problematizando discursos
arraigados em práticas de controle.
Por isso é que o discurso alarmista em relação à ―ideologia de gênero‖, à
destruição da família, à ―doutrinação‖ nas escolas e universidades está a
serviço de uma forte resistência conservadora que impede a liberdade dos
sujeitos se constituírem como sujeitos sexuais e de gênero. Este texto, que
reflete sobre o dia em que me batizaram de puta, é uma voz de um conjunto de
vozes de pesquisadores e pesquisadoras que pretendem resistir.

REFERÊNCIAS

BONDÍA, Jorge Larossa. Notas sobre a experiência e o saber de Experiência.


Leituras SME; Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19.

BORGES, Rafaela Oliveira, BORGES, Zulmira Newlands. Pânico moral e


ideologia de gênero articulados na supressão de diretrizes sobre questões de
gênero e sexualidade nas escolas. Revista Brasileira de Educação. V. 23,
2018, p.1-23.

CARRARA, Sergio. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil


contemporâneo. MANA 21(2), 2015, p. 323-345.

FREITAS, Eliane Tânia. Linchamentos virtuais: ensaio sobre o


desentendimento humano na internet. Revista Antropolítica, n. 42, Niterói, 1.
sem. 2017, p.140-163.

GROSSI, Miriam. Identidade de Gênero e Sexualidade. Antropologia em


Primeira Mão, n.24, PPGAS/UFSC, Florianópolis, 1998, p. 1-14.

MACHADO, Carla. Pânico Moral: Para uma Revisão do Conceito. Interacções,


número 7, 2004, p. 60-80.

MIGUEL, Sonia Malheiros. Publicando nas ONGs feministas: entre a academia


e a militância. Revista Estudos Feministas, Volume: 11, Número: 1, 2003.

MISKOLCI, Richard. Pânicos morais e controle social – reflexões sobre o


casamento gay. Cadernos Pagu (28), janeiro-junho de 2007, p. 101-128.

PERROT, M. Escrever uma história das mulheres: relato de uma experiência.


Cadernos Pagu, n 4. Núcleo de estudos de gênero, IFCH-UNICAMP, 1995.

PISCITELLI, Adriana. Gênero, a história de um conceito. In: ALMEIDA, Heloisa


Buarque de; SZUAKO, José (Orgs.). Diferenças, igualdade. São Paulo:
Berlendis & Vertecchia, 2009, p. 116-149.

109
SCOTT, Joan, Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação &
Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, p. 71-99.

SIMÕES, Júlio Assis. Antropologia e diversidade sexual e de gênero no Brasil:


tramas de políticas e saberes. In: LIMA, Antonio Carlos de Souza; BELTRÃO,
Jane Felipe Beltrão; CASTILHO, Andrea Lobo; LACERDA, Paula Lacerda;
OSORIO, Patricia (Org.). A Antropologia e a Esfera Pública no Brasil. 1ª. ed., v.
1, 2018, p. 433 a 448.

110
O RUÍDO DAS TUMBAS: SEGUINDO
VESTÍGIOS DA COLONIZAÇÃO NAS
AMÉRICAS

Leiliane Domingues da Silva54


Ana Carla Barros Sobreira55

RESUMO:
Neste artigo propomos tecer algumas reflexões acerca das tumbas como
espaços de recordação e de vestígios quanto à colonização espanhola nas
Américas, lançando questões de como podemos observar os vestígios que são
testemunhas de um tempo e o que poderíamos descobrir ao analisarmos esses
traços temporais. Nosso esforço se resume em tentar construir tensões entre
as imagens que nos evocam e as memórias nelas escritas, o que elas revelam
e o que documentam, tendo como base as perspectivas etnográficas e os
estudos sobre identidade e memória. Para tanto, buscamos apoio em autores
como Joël Candau (2016), Maurice Halbwachs (2013), Daniela Palma (2015),
entre outros.

Palavras-chave: Memória; Identidade; Colonização; Tumbas.

Os homens morrem porque não são capazes de juntar o


começo ao fim, dizia Alcmeón de Crotona. Somente
Mnemosyne, divindade da memória, permite unir aquilo
que fomos ao que somos e ao que seremos,
preocupação que evoca o bom vinho de Rabelais, esse
vinho de memoria que permite ao homem saber ao
mesmo tempo o que ele foi e o que será...

Joël Candau (2016, p. 58)

UM PRIMEIRO MOMENTO
Neste texto, propomos tecer algumas reflexões acerca das tumbas como
espaços de recordação e de vestígios quanto à colonização espanhola nas
Américas, lançando questões de como podemos observar os vestígios que são
testemunhas de um tempo, e o que poderíamos descobrir ao analisarmos

54
Doutoranda em Ciências, Tecnologias e Inclusão -UFF. Mestre em Diversidade e Inclusão -
UFF. E-mail: [email protected]
55
Doutoranda em Linguística Aplicada- IEL- Unicamp. Mestrado em Estudos Linguísticos -
UFU. E-mail: [email protected].

111
esses traços temporais. Nosso esforço se resume em tentar construir tensões
entre as imagens que nos evocam e as memórias nelas escritas, o que elas
revelam e o que documentam, tendo como base algumas de nossas leituras
recentes de autores que faremos referência no corpo deste texto. Para que
ficássemos um pouco mais tranquilos, formulamos um questionamento inicial
que buscou entender o que estava visível em uma tumba, de um local
eclesiástico, e o que o não-visível nos proporcionava.
Dessa maneira, buscamos apoio em teóricos como Didi-Huberman
(1998; 2013), Samain (2006; 2012), Palma (2015), Assmann (2011), Ruchatz
(2008), entre outros, que orientaram o debruçar sobre o desconhecido com
outros olhares, outras formas de ver e de buscar entender o que estava no
não-dito, em um tempo distante, mas presente, intercalando modos de pensar
e de sentir, e o que os lugares que estávamos visitando nos suscitavam.
Como não conhecíamos totalmente o contexto dos detalhes das tumbas
de padres católicos enterrados em um local eclesiástico na Cordilheira dos
Andes, procuramos abrir nossos olhares objetivando pensar quais seriam os
questionamentos que as formas que nos olhavam estavam nos comunicando.
Como elencar de maneira a desvendar o que estava diante dos nossos olhos,
entrevendo as dificuldades de interpretação, as pistas, os vestígios, as lacunas,
e também as limitações? Como recompor as memórias através de uma relação
dialógica entre a forma vazia que estava diante de nossos olhos e os vestígios
de um tempo, observando os elementos visuais que poderiam despertar
emoções e sensações?
Ao chegar à Bolívia, mais especificamente à capital do estado de Oruro,
uma cidade no topo da Cordilheira dos Andes com o mesmo nome do estado,
Oruro, nos deparamos com uma cultura tipicamente oral. As falas que eram
expressas regiam condutas, os comportamentos das pessoas, e até um estilo
cultural diferente do qual estávamos acostumados no Brasil. De repente, nos
vimos desenvolvendo uma pesquisa em meio às comunidades originárias,
falantes do Quéchua, totalmente ágrafas, com costumes, crenças e memórias
que nos eram desconhecidos.
Na realidade, ainda íamos nos debruçar nos estudos sobre seus mitos,
suas histórias, suas formas de leitura de uma outra realidade e de construção
de sentidos. Assim, começamos a penetrar em suas formas de organização de

112
pensamentos suscitadas por outros meios de comunicação, outros sentidos
sinestésicos que, a nosso ver, nos foram adormecidos devido a nosso contato
frequente com a escrita alfabética.
Ao iniciar o estudo das imagensoppo observamos que elas estão
presentes em todos os meios de comunicação humana. Elas povoam desde a
escrita até a mais longínqua comunidade originária dos Andes. Acrescentamos,
porém, que talvez a natureza dessas imagens pode variar, em especial as
imagens míticas, oriundas das comunidades ágrafas. Dubois (1992), por
exemplo, resume as diferentes visualidades modernas e seus suportes
técnicos com excelente clareza. 56 É nesse contexto que as Ciências Humanas
começam a pensar em uma antropologia da comunicação, ―[...] é que a própria
antropologia visual se dá conta de que, ao fazê-la, torna-se necessário ao
mesmo tempo, explorar melhor os campos da visualidade humana tout-court‖
(Samain, 1998, p. 56) (grifo do autor).
E se continuarmos a pensar em imagens como objetos, sem dúvida,
haveremos de pressupor questionamentos em termos de fabulação, ou seja,
em como construir o mundo a partir de nosso olhar. As tumbas, por exemplo,
como imagens materializadas, estão fixas em um congelamento de tempo e
nos convidam a entrar na espessura das memórias que elas evocam. É como
pensá-las através de uma descontinuidade, uma desfragmentação, buscando
―a presença de uma ausência‖ (Darwich, 2020). E durante nossa presença
física construímos uma dimensão tátil, uma espécie de lembrança corporal,
porque ao visitar cada tumba, insistimos na decodificação de um signo visual,
―[...] um signo de recepção, um signo dado por visto [...]‖ (Samain, 1998, p. 57),
e através de fragmentos que encontramos, construímos histórias e vivenciamos
o não-vivido.
Acreditamos que será interessante que o leitor deste texto mergulhe no
percurso que fizemos participando como cúmplice em nossa aventura: o
chegar a um lugar desconhecido, que nos chamou atenção à primeira vista,
que expressava uma beleza melancólica e solitária, compartilhando o desejo
de seguir ali em seu lugar, documentando algo que, a princípio, não
conseguíamos entender. O leitor vai se deparar com fotos dos lugares que

56
A este propósito, referenciamos o autor no final deste ensaio.

113
visitamos e comentários escritos, para que pudéssemos transmitir, através da
palavra e da fotografia as sensações que as imagens nos proporcionavam.
Para concluir, ao final deste texto, apresentamos algumas reflexões referentes
a uma experiência que não deixou de ser uma forma de revelação. O leitor
poderá apreciar também, duas séries de fotografias que deram origem a este
artigo.

O CONTEXTO DA PESQUISA
No caminho de Oruro a Cala Cala, no altiplano boliviano, no topo da
Cordilheira dos Andes, chegamos a 4.200 metros de altitude levando em
consideração o nível do mar. Um dos lugares mais altos do mundo. Nos
dirigimos a um pequeno povoado chamado Sepulturas. O nome da
comunidade já evoca narrativas que nos leva a questionar qual o significado do
nome. São as sepulturas dos padres católicos enterrados na capela
abandonada e também uma região onde se pode encontrar várias sepulturas
Incas.
Do lado esquerdo da estrada avistamos uma igreja no topo da montanha
que nos chamou a atenção. Igrejas como aquela estão espalhadas por toda a
região dos Andes, testemunhas da colonização espanhola nas Américas e da
presença da catequização dos indígenas pelos padres espanhóis. Pode-se
observar a igreja que relatamos na figura 1 e que é conhecida na região como
La Capilla de Sepulturas (A Capela de Sepulturas).

Figura 1 – La Capilla de Sepulturas.

114
Fonte: Acervo das autoras.

Quase todas as igrejas do altiplano estão em completo abandono,


algumas contam com cuidadores locais, outras ainda imponentes, destacam-se
nos cenários inóspitos da Cordilheira dos Andes. Acredita-se que a construção
dessas igrejas se deu pelo fato de fazerem parte dos primeiros assentamentos
espanhóis na região, e porque eram estrategicamente construídas como parte
de uma rota de intercâmbio de produtos desde os Salares de Uyuni na Bolívia
até Cuzco no Peru.
A Igreja de Sepulturas oficialmente denominada Señor de San Salvador
de Sepulturas se localiza na cidade de Sepulturas que também se chama
Chullpas (tumbas Incas e pré-Incas (tradução livre) que são comuns na região.
A igreja foi declarada monumento nacional em 1967. De acordo com
historiadores bolivianos a igreja data de 1785, e podemos ver a data em seu
portal lateral.

Figura 2- A Igreja de Sepulturas.

Fonte: Acervo das autoras.

A igreja é construída principalmente de adobe, uma espécie de tijolo


grande de argila, seco ou cozido ao sol, às vezes acrescido de palha ou capim,
para torná-lo mais resistente. Apresenta paredes com larguras de um metro de
espessura em forma de cruz. O teto é feito de colmo, uma espécie de caule
como o bambu. A torre do sino fica ao lado da entrada principal da igreja, e é
grandiosa, conservando o sino ainda em seu local original. Em seguida, pode-
se apreciar uma fotografia da torre.

115
Figura 3- A Torre do sino.

Fonte: Acervo das autoras.

Na condição de pesquisadores-interpretantes, não tínhamos nenhum


conhecimento prévio do local que estávamos visitando. Nos propusemos
assim, a conviver com o ambiente que estávamos começando a conhecer,
observando as paisagens, os artefatos que ainda se mantinham no local, as
árvores, os transeuntes, os sons. Na nossa frente havia um repertório de
sentidos em termos de sensações e emoções, e procuramos vivenciar melhor
tudo o que o local nos evidenciava. Tiramos fotografias inicialmente sem
mesmo saber o porquê, era um processo intuitivo, pois o local nos tocava,
como uma experiência afetiva de diálogo com o passado, não sabendo até
onde essa experiência nos iria conduzir.
No ambiente havia uma forte presença de solidão, do nada, mas
também de alguma coisa. Nos faltavam palavras para objetivar o que

116
sentíamos, apenas fotografávamos. Escrever naquele momento era algo
inimaginável, seguramente a escrita não daria conta de nossas sensações. Ao
nos aproximarmos da entrada central da igreja, sentimos que ela nos desafiava
a desvendá-la. Miramos os batentes gastos pelo uso, imaginamos as
cerimônias de casamento, os batismos, os padres que subiam e desciam por
eles, mas vimos também a mão indígena nas artes dos umbrais da porta, e,
todavia, nos faltavam palavras para narrar nossas inquietações.

Figura 4- A porta central da igreja.

Fonte: Acervo das autoras.

Estávamos desejosos de narrar a paisagem. Nos aproximamos de um


tronco no pátio da igreja e que viemos saber depois se chamava rollo, um local
para castigos, principalmente para indígenas que não se convertiam a fé
católica. Na figura 5 pode-se apreciar o tronco.

117
Figura 5- O rollo (tronco).

Fonte: Acervo das autoras.

Prosseguindo nossa experiência, voltamos para casa com muitas fotos,


mas nenhuma linha de pensamento concreta que as unisse. Eram fotos de um
lugar, soltas, independentes, eram apenas peças visuais. Imprimimos cada
uma delas e começamos a separá-las do primeiro momento que chegamos à
comunidade de Sepulturas até nossa volta. Sabíamos que a experiência havia
sido inquietante, mas não sabíamos o que nos havia proporcionado tal
sensação.
Agrupamos as fotografias em forma de sequência, como uma pequena
montagem, buscávamos, talvez, integrá-las, formando uma montagem
elementar. Restava-nos perguntar o que essas imagens nos davam a ver,
buscamos agitar a enunciação de uma memória, questionando em silêncio,
sem palavras, o passado, um tempo vivido, um tempo em que pessoas
estiveram ali, que vivenciaram emoções, paixões, cores e corpos híbridos
começamos a nos perguntar o que era que restava de tudo aquilo.
Sem nenhum planejamento, fomos ao encontro de evocações de
memórias, de vestígios soterrados como barcos encalhados no fundo do mar e
foi assim, graças ao nosso desconcerto diante de um amontoado de

118
fotografias, que começamos a tecer uma colcha de retalhos do tempo, como
fragmentos de tempos suspensos. E estava ali na nossa frente. Nossa
inquietação era de interação com os corpos iguais aos nossos, mas
―[...]esvaziados de sua vida, de sua fala, de seus movimentos, de seu poder de
levantar os olhos[...]‖ (Didi-Huberman, 2010, p. 37).
Era a imagem das tumbas dos padres católicos que nos falavam como
memória ―[...]um grande jardim de arquivos declaradamente vivos [...]‖
(Samain, 2005, p. 23). Poderíamos pensar que as tumbas que estavam na
fotografia estariam apenas na ordem do efêmero, do fugaz e do frágil. Que
representavam apenas um fluxo do tempo que se perdeu e um refluxo de uma
realidade que nós vislumbrávamos, mas o lugar que ela estava, nos conduziu
rumo a um fio, a uma ligação de pensamento, uma construção de sentidos e
começamos a perceber que aquela forma fria e silenciosa de pedra oval, era
uma imagem-tempo, uma memória viva de sobrevivência, parafraseando Didi-
Huberman.

Figura 6- As tumbas dos padres no pátio da igreja.

Fonte: Acervo das autoras.

Vivenciamos assim uma fantasia morbidamente necromante, um lugar


vivo e vazio, uma memória de invasores coloniais que adentraram um território
inóspito por poder. As tumbas revelaram as memórias dos habitantes de
Sepulturas, da conquista dos Chullpas, semeados com o sangue dos Incas. Foi
como se ouvíssemos as vozes dos padres, suas rezas em espanhol, para um

119
povo falante do Quéchua, assombrados por não entender a linguagem do
colonizador. E vivenciamos o tempo conquistado extremadamente vivo e
imediato. Mesmo sendo as tumbas os lugares de descanso dos mortos, esses
locais transmitiam memórias e vestígios de uma colonização forçada.
Mas as lacunas, mesmo depois de conversarmos com as imagens
materiais das tumbas, ainda eram permanentes em nossos questionamentos.
Qual o porquê dos corpos inumados no pátio da igreja? E novamente
buscamos apoio em leituras para entender. Eram os mais abastados, padres
que cumpriram suas obrigações com a igreja e com seu ministério eclesiástico,
e que foram os mais cruéis, como relata Guaman Poma de Ayla em seu diário
gráfico Nueva Corónica y Buen Gobierno57.
As tumbas perpassavam uma presença de algo invisível na imagem que
nos olhava e nós queríamos ―do visível, atingir o invisível‖ parafraseando
Palma (2009, p. 224). Tal é, portanto, que observamos que aquele lugar
também havia sido um lugar de barbárie e de torturas contra os povos
originários dos Andes. Foi um lugar de conflitos entre culturas e religiões, e que
tinha construído sua própria história. Logo, nosso olhar atravessou as tumbas,
o rollo, o portal da igreja decorado por mãos indígenas, a porta cheia de Wara
waras58, como uma zona de segurança, fazendo alusão a um livro de James
Scott que demonstrou que os indígenas utilizavam ―as armas dos fracos 59‖.

ENTRE VESTÍGIOS E MEMÓRIAS: PREENCHENDO LACUNAS


Graças à organização das fotos que tentamos agrupar, conseguimos
desenrolar um longo tecido de tempos suspensos. Começamos, além de
observar as fotos, a fazer uma pesquisa sobre a igreja, buscando fazer as
imagens falarem para que pudéssemos escrever. Aceitamos o desafio de

57
Ver referência ao final deste texto.
58
Enfeites indígenas utilizados nas portas das casas.
59
Quando tratamos do conceito de ―arma dos fracos‖, nos apoiamos nas teorias delineadas por
Canagarajah (2009), que evidencia que os grupos minoritários por serem desprovidos de
poder, desafiam os grupos dominantes, por meio de atos simples no dia-a-dia. Através desses
atos, as comunidades mantem sua dignidade e continuam a desenvolver ideologias
clandestinas. Podemos exemplificar algumas dessas armas como a conversa pelas costas, a
paródia, a gozação e a satirização da fala das comunidades dominantes como uma forma
indireta de oposição. Neste texto, destacamos o uso das Wara waras nas portas das igrejas
como forma de manter a religiosidade indígena, uma das armas dos colonizados.

120
direcionar nossa experiência visual para nossas leituras recentes. Procuramos,
desse modo, interrogar as fotos e fazê-las pensar à luz do seu próprio silêncio.
Seduzidas pelo curioso apelo das tumbas dos padres espanhóis,
voltamos a cidade de Sepulturas, escutamos cantos, relacionamos com as
fotos. As tumbas continuaram mudas, mas esse mutismo nos provocou a
memória que nos exigiu respostas, nem sempre possíveis. E ouvimos
novamente a Flor de Retama, canto das wawas60 de Sepulturas. A mesma ―flor
da vassoura‖ que estava perto dos túmulos protegendo os mortos, mas que
floresce, até hoje, sobre o sangue dos indígenas caídos, e que a própria Igreja
adotou para a proteção das casas em forma de cruz latina, construindo um
hibridismo cultural. A música que descrevemos em seguida, como as tumbas, é
testemunha dos horrores vivenciados pelos habitantes da região e fala da
presença dos colonizadores ―[...] que vêm matar os indígenas...e que Tata Inti61
está indignado, descongelando a neve dos Andes, para com ela soterrar os
opressores [...]‖ (Tradução própria):

Flor de Retama
Vengan todos a ver
¡Ay, vamos a ver!
Vengan hermanos a ver
¡Ay, vamos a ver!
En la Plazuela de Huanta,
Amarillito flor de retama,
Amarillito, amarillando
Flor de retama.
Por Cinco Esquinas están,
Los Sinchis entrando están.
En la plazuela de huanta
Los Sinchis rodeando están.
Van a matar estudiantes
Huantinos de corazón,
Amarillito, amarillando
Flor de retama;
Van a matar campesinos
Huantinos de corazón,
Amarillito, amarillando
Flor de retama.
En donde la vida
Se hace más fría que la muerte misma
Taita inti arde indignado
Las grandes nieves se descongelan
Y los grandes lagos comienzan a colmarse
El gran aluvión, está por llegar
Para sepultar, mundos que oprimen
Y sobre la tierra nueva; florecerá la retama

60
Meninas em Quéchua.
61
O d-us Sol.

121
Y así las palmas que suenen arriba
Ta ta ta
Donde la sangre del…
Aí vamos a ver

E entre textos e imagens, a reciprocidade entre a escrita e o texto,


construímos uma cumplicidade patente, que foi necessária e decisiva para
responder às nossas inquietações iniciais. Ao mergulhar em um terreno
desconhecido, organizamos pensamentos, construímos e desconstruímos
semioses, voltamos à comunidade que nos acolheu, devolvendo suas
memórias visuais e agora escritas por meio deste texto, para que tanto eles,
como nós, pudessem lembrar do passado, questionar o presente e projetar o
futuro.
As tumbas, como suporte de memória, nos fizeram relacionar as
atividades ainda vivas dos habitantes locais, suas crenças e seus modos de
vida. A igreja de Sepulturas faz parte de uma construção mais ampla de
memória social de seu povo, já que continua imponente em sua montanha,
como símbolo da exploração dos colonizadores europeus.
A simbologia das tumbas transcende apenas nossas visões e sensações
empíricas, elas se fixaram no imaginário popular como vestígios da presença
do catolicismo. No dia 4 de dezembro, o único dia em que a igreja é aberta, se
festeja, com danças indígenas o dia de Santa Bárbara. Mas são nas danças
Incas, Os Tobas, que participam muitas das comunidades da região, com suas
vestimentas originárias, e tomam posse de seu próprio solo usurpado pelos
europeus.
A construção da temporalidade cultural dos povos de Sepultura,
demonstra uma alegria de estar vivo, mas chora a tristeza do sangue
derramado por seus irmãos. Mesmo se referindo a um tempo especifico, as
pessoas do povoado revivem as memórias desenvolvidas através de contos
orais e essas reminiscências, ―[...] se desenvolvem a partir de laços de
convivência familiares, escolares, profissionais. Elas entretêm a memória de
seus membros, que acrescenta, unifica, diferencia, corrige e passa a limpo‖
(BOSI, 1987, p. 330).

122
DESVENDARES DA PESQUISA E AS SÉRIES DE FOTOGRAFIAS
Foram três experiências distintas, porém interligadas, que deram
origem à pesquisa relatada neste artigo. A primeira, quando nos propomos a
visitar uma cidade conhecida por uma capela abandonada e que mantinha
acesa a chama das festas e dos rituais celebrados, uma vez por ano, no pátio
da igreja, pelas comunidades originárias da região. A segunda, quando, na
condição de interpretantes, convivemos com fotografias tiradas durante a
viagem, buscando interrogá-las, escolhê-las e fazer uma montagem elementar.
E, no terceiro momento, quando voltamos à cidade para, a partir de conversas
informais com os habitantes da região, relacionarmos suas tradições com as
fotografias que tínhamos em mãos.
Tivemos como prerrogativa não apenas pensar sobre as fotografias que
estávamos observando, mas fazer com que as fotos nos falassem e nos
transmitissem mensagens, ou seja, nos deixamos levar pela atmosfera de
narrativas e semioses que eram colocadas diante de nosso olhar, buscando
escutar as mensagens que nos eram proporcionadas.
Entre textos, imagens, lacunas, traços e vestígios, construímos
reciprocidades e cumplicidades que foram, sem dúvida, latentes e necessárias.
Vale aqui lembrar uma citação de Gombrich (1983, p. 323) que evidencia:

Se considerarmos a comunicação do ponto de vista privilegiado da


linguagem, vamos descobrir que a imagem visual é sem igual no que
diz respeito a sua capacidade de despertar, que sua utilização para
fins expressivos é problemática e que, reduzida a si-mesma, a
possibilidade de se igualar à função enunciativa da linguagem lhe
falta radicalmente.

Assim, nos restava buscar encontrar entre as complexas expressões


das linguagens escritas e das imagens, suas intersecções e conjugações.
Entendemos que, ao mergulhar num arquivo antropológico desconhecido como
são as imagens de tumbas, construímos diversos questionamentos, e que em
uma pesquisa como esta que descrevemos neste texto, não formulamos
respostas prontas, mas buscamos, a partir da escrita, suscitar o desejo de
novas investigações que promovam o diálogo entre imagens post mortem e os
seres vivos, descobrindo novas formas de comunicação, de construção de

123
significados e que busquem ouvir os chamados. Em seguida apresentamos as
séries de fotografias na ordem em que foram analisadas.

Série A: 8 Fotos.
Título: A Chegada e a Capela
1. Foto 1. A Capela de Sepulturas no alto da montanha. Vista da estrada.
2. Foto 2. Vista lateral da igreja. O pátio.
3. Foto 3. A torre da Igreja em forma de cúpula.
4. Foto 4. Vista dos murais da igreja.
5. Foto 5. Porta central de entrada da capela. Porta central. Wara Waras.
Os batentes de entrada.
6. Foto 6. Construção no pátio da igreja próxima ao tronco. Simula uma
pequena capela ou local de reuniões.
7. Foto 7. O tronco/rollo no pátio da igreja.
8. Foto 8. Entrada lateral da igreja. Pátio de tumbas.

124
Série B: 6 fotos.
Título: O local eclesiástico das tumbas

125
1. Foto 1. O pátio das tumbas. Tumbas dos padres.
2. Foto 2. Pedras das tumbas com escritos.
3. Foto 3. Cemitério no pátio da igreja. Covas dos menos abastados ou de
hierarquia inferior aos padres. Coroinhas.
4. Foto 4. Vista lateral da torre da igreja. Tumbas dos padres.
5. Foto 5. Tumbas dos padres.
6. Foto 6. Tumba. Datas. Escritos.

126
ESPAÇOS DE RECORDAÇÃO EM SEPULTURAS
Para a materialização da análise, observamos como a comunidade de
Sepulturas se relacionava com a igreja e os mortos que ali estavam. Assim,
realizamos entrevistas e conversas informais na comunidade. As narrativas
orais dos habitantes da região desvendaram compartilhamentos que
evidenciam lembranças e performances de memórias. Os discursos
performados pelos narradores reúnem-se em torno de um sentimento coletivo
que reside no plano discursivo. No entanto, há uma realidade vivenciada pela
construção de memórias que transcende o plano do discurso e se materializa
nos rituais das festas que são performadas em atos concretos de memória
coletiva: na abertura da igreja uma vez ao ano, nas danças no pátio, no
pijchar62 da coca, nas oferendas a Pachamama63.
Nesse contexto, formulamos um questionamento que buscou direcionar
nossos estudos: Qual poderia ser a realidade do compartilhamento dessas
lembranças ou representações do passado? E mais ainda de um passado não-
vivido? Segundo Candau (2016), esses compartilhamentos podem ser
considerados enunciados construídos por uma determinada comunidade que
acompanham a valorização de uma identidade local, ou seja, uma
representação quanto a sua origem, história e natureza de sua comunidade e
assim,

[...] é provável que os membros de uma mesma sociedade


compartilhem as mesmas maneiras de estar no mundo
(gestualidade, maneiras de dizer, maneiras de fazer, etc.), adquiridas

62
Ato de mascar a folha da coca.
63
Mãe Terra.

127
quando de sua socialização primeira, maneiras de estar no mundo
que contribuem a defini-los e que memorizam sem ter consciência, o
que é o princípio mesmo de sua eficácia. Desse ponto de vista, seria
preciso atribuir nuances às concepções situacionais de identidade
sem, no entanto, rejeitá-las, afirmando que pode existir um núcleo
memorial, um fundo ou um substrato cultural, ou ainda o que Ernest
Gellner chama de "capital cognitivo fixo", compartilhado por uma
maioria dos membros de um grupo e que confere a este uma
identidade dotada de uma certa essência (Candau, 2016, p. 26).

Dessa forma, a perpetuação das lembranças pela comunidade de


Sepulturas se constitui por ser uma prática social situada que confere
sentimentos de pertencimento e veiculam traços culturais e interações
sociosituacionais como também recursos simbólicos mobilizados que
evidenciam segundo Candau (2016, p. 27), "[...] estratégias de designação e de
atribuição de características identitárias reais ou fictícias [...]".
E assim, os cantos, as danças, as histórias orais que circulam na
comunidade se constituem como performances narrativas de identidade. Mas
também não deixam de ser atos de criação que segundo Schank e Abelson
(1977, p. 44) se evidenciam como um "[...] processo de criação mesmo da
história para o resto de nossa vida. Falar é recordar". E, ao contar, recriam-se
os discursos, os textos orais, refaz-se um acontecimento passado, vive-se
novamente no contexto do acontecimento. Há aqui um diálogo com os seres
presentes tanto fisicamente como nas memórias e os seres participantes dessa
criação transitam entre mundos e momentos de recordação.

REFLEXÕES FINAIS
Ao construirmos processos existenciais performados em narrativas
expressas nos discursos, trazemos à tona as lembranças, as recordações e as
memórias, e esses acontecimentos objetivam sempre a manutenção da
existência humana como também tenta evitar o seu declínio. ―É por isso que
muitas vezes as pessoas, ao envelhecer, tornam-se muito falantes ou então
definitivamente silenciosas, após terem aceitado o inevitável" (Candau, 2016, p.
73).
Ao se movimentar em um passado criado e recriado, os sujeitos
transitam entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e evidenciam
mundos relativamente estáveis, verossímeis e previsíveis, onde seus projetos

128
de vida adquirem sentido e onde a sucessão de episódios narrados perde seu
sentido aleatório e passa a integrar um continuum lógico. Para Halbwachs
(1994), existe uma lógica nessa ação, pois delineia um ponto de partida e um
ponto de chegada e que se perpetua para a posteridade. As performances
narrativas, assim, constituem uma ilusão da eternidade e uma ficção
unificadora. É nesse contexto que se materializa o medo da morte e do
esquecimento e onde os fatos passados se transformam no presente como
também as posições onde os sujeitos vivos e mortos ocupam nesse presente.
Graças a essas práticas sociais as unidades pessoais se reelaboram, os
sujeitos constroem suas identidades e suas histórias, se engajam em
construções narrativas renovadas, iluminando episódios de suas próprias vidas
deixando outros na sombra. Porém, as próprias sombras participam do todo
constitutivo das memórias e não podemos deixar de destacar que, para
Candau (2016, p. 76),

[...] mesmo a narrativa mais atenta é trabalhada pelo esquecimento


ao qual se teme, pelas omissões que se desejam e pelas amnésias
que se ignoram, tanto quanto é estruturada pelas múltiplas pulsões
que, na classificação de nosso passado, nos faz dar sentido e
coerência à nossa trajetória de vida.

Assim, nesse texto, buscamos tecer interconexões entre o mundo dos


vivos e dos mortos, escutando as vozes que ecoam das tumbas e que
permanecem vivas nas memórias, lembranças e recordações da comunidade
de Sepulturas. O medo do esquecimento leva-os a performar narrativas, ritos e
festas que através dos relatos se ajustam às condições expressivas da
comunidade. O sentimento do passado se recria e, como evidenciou
Halbwachs (1994), se destaca nos quadros sociais de memória, onde um
tecido memorial é cerzido, alimentando os sentimentos de identidade. Trata-se
de um trabalho coletivo que acontece entre os sujeitos e se manifesta entre
semioses e imagens.

REFERÊNCIAS

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Memória Cultural. Tradução: Paulo Soethe. Campinas- SP: Editora da
Unicamp. 2011.

129
AYLA, Guaman Poma de. Nueva Corónica y Buen Gobierno. Lima: Fondo de
Cultura Económica, 2005.

CANDAU, Jöel. Memória e identidade. São Paulo: Editora Contexto, 2016.

DARWICH, Mahmud. Da presença da ausência. Tradução: Marco Calil. Editora


Tabla, 2020. DICIONÁRIO DO GOOGLE. Disponível em
https://www.google.com/search?q=dicionario+google&oq=dicionario+google&a
qs=chrome..69i57j0l9.4448j0j15&sourceid=chrome&ie=UTF-8. Acesso em: 13
de junho de 2021.

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Neves. São Paulo: Editora 34, 2010.

DIDI-HUBERMANN, Georges. Cascas. Serrote. N. 13. São Paulo: Instituto


Moreira Salles, p. 98-133, 2013.

GOMBRICH, Ernst. L’écologie des images. Paris: Flammarion, 1983.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução: Beatriz Sidou. São


Paulo: Centauro, 2013.

ORURO. Blog em Homenaje al Departamento de Oruro. Guia Turística.


Disponível em http://orurodelbicentenario.blogspot.com/2017/10/destinos-
turisticos-los-chulpares-del.html

PALMA, Daniela. A cidade que nos olha: imagem e vestígio nos noturnos de
Cássio Vasconcelos. Galáxia. N. 29, p 223-236, Jun 2015.

RUCHATZ, J. The Photograph as Externalization and Trace. In: ERLL, A.;


NÜNNING, A. (ed.) Cultural Memory Studies: an international and
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SAMAIN, Etienne. Desafios da Imagem: Fotografia, iconografia e vídeo nas


Ciências Sociais. 3. ed.. Editora Papirus.1998.

SAMAIN, Etienne. Por uma arqueologia sensorial do pensamento humano. 15º


Encontro Anual da COMPOS. UNESP- Bauru, 6 a 9 de junho de 2006.

SAMAIN, Etienne. Como pensam as imagens. Campinas-São Paulo. Editora da


Unicamp. p. 21, 2012.

SCHANK, Roger. ABELSON, Robert. P. Scripts plans goals and understanding


Hillsdale. NJ: Erlbaum, 1977.

130
VELHA GUARDA NÃO É MENINA NOVA:
ENSAIO ETNOGRÁFICO SOBRE AS
REPRESENTAÇÕES GERACIONAIS NA
VELHA GUARDA DA PORTELA

Leonardo Rocha de Vasconcellos64


Nilton Rodrigues Junior65

RESUMO:
Este artigo objetiva apresentar a Conjunto Musical da Velha Guarda da Portela
como um espaço de negociação e arranjos das trajetórias individuais e do
espaço coletivo. Tentamos compreender de que forma as experiências das
idades dos integrantes de um conjunto musical do samba se relacionam com
outros elementos que compõem a identidade individual em contextos sociais
mais amplos. Buscamos observar em quais situações a idade é um diferencial
e quais outros fatores são determinantes na formação das identidades
individuas e coletivas dos integrantes do grupo. Os integrantes da Velha
Guarda da Portela, todos idosos e alguns pertencentes ao grupo dos mais
idosos (com mais de 80 anos), foram tratados como uma possibilidade de
pensar a velhice de maneira ímpar evidenciando que essa não é um fator
definidor das identidades individuais de seus integrantes, que, nos parecem,
acabam por definir suas identidades sociais mais a partir de suas pertenças ao
samba e à música e menos como velhos.

Palavras-chave: Velha Guarda; Idosos; Identidades; Samba.

INTRODUÇÃO
Gostaríamos de iniciar nosso artigo colocando uma premissa:
consideramos que as pesquisas sobre as experiências geracionais devem se
comprometer com a multiplicidade da experiência humana, seguindo a

64
Mestrando no Programa de Pós-graduação em Pesquisa e Clínica em Psicanálise da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com a pesquisa sobre os Fenômenos
Psicossomáticos. Especialista em Trauma e Urgências subjetivas pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Bacharel em Psicologia pela Universidade Estácio de
Sá. Professor e supervisor em Psicanálise da UNISUAM. Atende em consultório particular.
Autor de artigos científicos.
65
Pós-doutorando em Teologia pela PUC-Rio, Doutor e Mestre em Antropologia pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bacharel em Psicologia pela Universidade Santa
Úrsula. Foi Professor, Coordenador e Membro do Conselho Geral do Pré-Vestibular para
Negros e Carentes. Autor do Álbum da Família Portelense: Histórias e Imagens. Professor na
Universidade Estácio de Sá e UNISUAM. Atende em consultório particular. Autor de artigos
científicos e de literatura. Franciscano Secular. E-mail: [email protected].

131
orientação de que ―[...] a Antropologia não se resume a um objeto, ela se
interessa pela diferença [...]‖ (Peirano, 2006, p. 53), por conseguinte,
compreender as lógicas culturais que informam as relações geracionais implica
agregar outras formas de pertencimentos identitários.
Nosso objetivo é compreender de que forma as experiências das idades
dos integrantes de um conjunto musical do samba se relacionam com outros
elementos que compõem a identidade individual em contextos sociais mais
amplos. Durante nosso exercício interpretativo permanecemo-nos
constrangidos pela seguinte questão: ―[...] quais são as condições estruturais e
situacionais que determinam que às vezes totalidades e às vezes indivíduos se
elevem à condição de fazedores da história?‖ (Sahlins, 2006, p. 123). A
questão que nos mobilizou pode ser colocada nos seguintes termos: em quais
situações a idade é um diferencial e quais outros fatores são determinantes na
formação das identidades individuas e coletivas dos integrantes do Conjunto
Musical da Velha Guarda da Portela?
Conforme Debert (2004) há duas grandes teorias sobre a velhice que
informam acerca dos estudos tanto da gerontologia como da geriatria e das
ciências humanas: a teoria da atividade e a teoria do desengajamento. Para a
autora essas teorias são antagônicas e podem ser definidas da seguinte
maneira: na teoria do desengajamento ―[...] trata-se de construir um quadro
apontando a situação de pauperização e abandono a que o velho é relegado‖
(2004, p. 73); enquanto na teoria da atividade ―[...] trata-se de apresentar os
idosos como seres ativos, capazes de dar respostas originais aos desafios que
enfrentam em seu cotidiano‖ (2004, p. 73). Ainda para Debert, a teoria do
desengajamento está ligada à situação familiar, pois ―[...] a família arca com o
peso dessa situação‖ (2004, p. 73).
Por ora, em nosso trabalho, os integrantes da Velha Guarda da Portela,
todos idosos e alguns pertencentes ao grupo dos mais idosos (com mais de 80
anos), serão tratados como uma possibilidade de pensar a velhice de maneira
ímpar. Não estamos afirmando que na Velha Guarda da Portela não haja uma
questão geracional, mas sim que essa não é o fator definidor das identidades
individuais de seus integrantes, que, nos parecem, acabam por definir suas
identidades sociais mais a partir de suas pertenças ao samba e à música e
menos como velhos.

132
O QUE É A VELHA GUARDA DA PORTELA?
A Velha Guarda da Portela é um conjunto musical fundado em julho de
1970 por iniciativa do músico Paulinho da Viola, que reuniu homens e
mulheres, em geral com mais de 60 anos e que tinham como objetivo
representar o Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela.
É importante assinalar a diferença entre a Velha Guarda Show, objeto
de nosso artigo, com a Ala da velha guarda. Essa última é composta por
integrantes da Escola de Samba com mais de 60 anos e que participam do
quadro de associado da Escola de Samba há mais de 15 anos. Monarco,
diretor da Velha Guarda, reconhece essa função fundante de Paulinho da
Viola:

Se hoje a Velha Guarda está agrupada em conjunto, graças à ideia


de Paulinho da Viola em produzir um disco, em 1970, com pessoal
da antiga, depois desse disco, foi agrupada a Velha Guarda da
Portela, o conjunto show da Velha Guarda.

Todavia, esse processo de ―agrupamento‖ não foi realizado de forma


―espontânea‖ ou ―arbitrária‖, mas baseado em três princípios defendidos por
Paulinho da Viola: primeiro, o samba como música marginal, ou seja, ―[...] o
samba sempre foi um negócio de comunidade [...] é a forma de expressão mais
natural da forma de vida no morro, que é uma comunidade marginal, de
marginais, de gueto‖ (Jornal Última Hora, 28/07/1971). Segundo, existe um
sentimento preservacionista:

Reparei que, depois de fazermos as fotos, o pessoal se reuniu [...]


tinha o Mijinha, seu Armando, Caetano e eles fazendo um som
incrível, uma coisa de momento. Aquilo me deu uma dor, porque
tinha que ser gravado. Era uma batucada tocada de uma maneira
como eu nunca vi [...] ainda pensei que aquilo certamente estaria no
próximo disco, mas se perdeu (Revista O Globo, 20/08/2006).

Em terceiro lugar, a associação da originalidade do samba ligada a


parcelas específicas da população carioca e a espaços territoriais delimitados,
isto é, ―quando eu fui para a Escola de Samba e vi o povo do samba mesmo,
como eles se comportavam, como compunham, como eles viviam [...] aí que eu

133
percebi que era um universo que eu não conhecia direito, aí que você começa
a ver que tem toda uma história ali atrás‖ (Coutinho, 1999, p. 152).
Essa formação, entretanto, não foi feita de uma só vez, pois ―[...] a
estrutura do grupo foi-se consolidando lentamente [...] após o término da
primeira década, consolidava-se o grupo da Velha Guarda da Portela‖
(Vargens, 2001:90,91,93). Portanto, a narrativa fundacional do grupo está
relacionada à gravação do Long Play ―Portela Passado de Glória: a Velha
Guarda da Portela‖, produzido e apresentado por Paulinho da Viola em
09/07/1970, pela RGE e que tinha como objetivo, conforme texto do encarte
assinado pelo próprio Paulinho da Viola: ―Reunir o maior número possível de
obras inéditas dessas figuras maravilhosas, que influíram direta ou
indiretamente na criação da escola [Portela], de dar uma ideia ao público de
sua importância‖.
Dois artigos de jornais de São Paulo, que foram publicados com uma
diferença de 21 dias entre eles, ajudam a pensar a formação da Velha Guarda
da Portela como um processo cultural que foi criado a partir de elementos tanto
internos quanto circundantes e que serviram para definir as fronteiras do grupo.
Primeiro o jornal Folha de São Paulo, de 22/04/1972: ―A Velha Guarda da
Portela, com Elton Medeiros, será apresentada por Paulinho da Viola hoje 22
hs no Zimbuca, agradável barzinho da Rua Consolação 1777‖. Em seguida, o
jornal O Estado de São Paulo, em 13/05/1972: ―Às 22 hs audição com Paulinho
da Viola, Elton Medeiros e os antigos músicos da Portela‖.
Há, porém, uma diferença tanto enunciativa como sociológica entre as
categorias ―Velha Guarda da Portela‖, utilizada pela Folha de São Paulo e
―antigos músicos da Portela‖, utilizada pelo O Estado de São Paulo. No caso do
jornal O Estado de São Paulo não houve, nem mesmo, a percepção da
existência de um conjunto musical. É importante destacar que quando a Velha
Guarda da Portela foi a São Paulo já contava com dois anos de formação e que
seu primeiro disco havia sido divulgado pela Revista VEJA no final de 1970
entre os melhores discos do ano.
Se no jornal da Folha de São Paulo temos um grupo com fronteiras
definidas, com personalidade e com individualidade, no jornal O Estado de São
Paulo pode ser qualquer compositor, qualquer integrante, qualquer músico.
Desse modo, transformar ―velhos músicos‖ em um conjunto musical foi um

134
trabalho de elaboração de fronteiras. Nesse sentido, Vargens, ao tratar da
Velha Guarda da Portela afirmou que ―[...] levou algum tempo para que aqueles
senhores deixassem de ser apenas um punhado de grandes sambistas para se
tornarem um conjunto musical, com personalidade definida e trajetória própria
(2001, p. 90).
Cremos que se pode traduzir ―personalidade definida‖, em termos mais
antropológicos, pelo conceito de fronteira. Hannerz define fronteira como sendo
―[...] uma linha clara de demarcação, em relação à qual uma coisa ou está
dentro ou está fora [...] algo através do que se dão os contatos e interações‖
(1997, p.15-16). O autor continua informando sobre as linhas de demarcação
entre dentro e fora: ―[...] às vezes, o limite é visível, outras vezes não. É melhor
entendê-lo como um ziguezague ou uma linha pontilhada‖ (1997, p. 17).
Na Velha Guarda da Portela a formação de uma fronteira, de sua
―personalidade definida‖, da passagem de ―antigos músicos da Portela‖ para a
―Velha Guarda da Portela‖ não foi um fato que se deu definitivamente, mas sim
uma ação efetivada por meio de negociações entre as carreiras individuais e as
representações coletivas.
Quando os integrantes do grupo falam de suas carreiras ―fora‖ da Velha
Guarda, o que eles enunciam são as fronteiras do grupo, um ―fora‖ e um
―dentro‖. O ―dentro‖ é percebido não como um lugar possível de se alcançar o
sucesso, mas, ao contrário, como sendo um lugar do ―reconhecimento
merecido‖. Isto é, a Velha Guarda proporcionaria uma realização pessoal,
enquanto a ―vida fora‖ da Velha Guarda, anterior ou concomitante, garantiria o
sucesso. Pertencer à Velha Guarda antes de ser um espaço de facilitação de
inserção social para seus membros é o coroamento de trajetórias individuais.
Por isso, apesar de o grupo se apresentar como um grupo de velhos,
conforme sua alcunha, não há, de maneira coletiva, uma percepção ou
construção do processo de envelhecimento, antes, esse processo é
experimentado ou não por cada integrante, dependendo, conforme argumenta
Alves (2004), dos percursos anteriores de cada um.

135
ESTAMOS VELHOS, MAS AINDA NÃO MORREMOS
O Hino da Velha Guarda, de autoria de Chico Santana, traz um
elemento importante para pensar a questão de geração na Velha Guarda da
Portela. Vejamos a letra:

A Velha Guarda da Portela vem saudar


Com este samba para a mocidade brincar
Estamos aí, como vocês estão vendo
Estamos velhos, mas ainda não morremos
Enquanto há vida há esperança
Diz o velho ditado, quem espera sempre alcança
Nosso teor não é humilhar a ninguém
Nós só queremos mostrar o que a Velha Guarda tem

Há um duplo movimento geracional nesse texto: primeiro, não há uma


negação das idades, afinal ―estamos velhos‖ indica, bastante direito, a que
idade seus integrantes pertencem, no entanto, há uma relativização dos
estereótipos da velhice presentes nas frases: ―ainda não morremos‖, ―enquanto
a vida há esperança‖ e ―nós só queremos mostrar o que a Velha Guarda tem‖.
Há, portanto, um rompimento da associação da velhice com a morte, ou
pelo menos a morte iminente ou muito mais, a ideia de que ser velho é já estar
morto para muitas das ações humanas, traz consequências ímpares para cada
integrante da Velha Guarda da Portela. No Hino, cada um pode se ver como
velho, mas não necessariamente associado ao final de alguma coisa, nem
mesmo a etapa biológica da vida.
O que a letra do samba traz, e certamente produz de representação não
só para os integrantes do grupo, mas também para aqueles que são
produzidos por ele, é a possibilidade de associar velhice, uma fase aceita como
natural, com a continuidade de determinadas atividades sociais.
Uma brevíssima análise interessante pode ser feita a partir da palavra
"ainda". Ainda é advérbio formado pela contração das palavras a + inda. Seu
significado é múltiplo, ou seja, até agora, até o presente, até então, até aquele
tempo (passado), até lá, um dia, algum dia, de novo, novamente, outra vez,
afinal, por fim, finalmente. No Hino, esse advérbio se liga ao verbo estar, isto é,
estamos velhos, mas ainda não morremos.
O ver estar indica um estado permanente, no presente do indicativo da
1ª pessoa do plural, seu emissor não é um indivíduo, mas uma coletividade.

136
Estamos velhos é um estado inevitável e permanente, não negado pelo samba.
Por outro lado, ainda, como advérbio de tempo, indica um estado temporário,
transitivo, uma situação futura, no caso a morte.
O Hino da Velha Guarda, mais que cantar a Velha Guarda, faz eco à
situação de cada integrante, que, apesar de estar velho (estamos), participa de
modo dinâmico na construção tanto do conjunto musical como das
representações coletivas sobre o samba (ainda).
Outro samba que ajuda na compreensão da relação da Velha Guarda
com o pertencimento geracional é o ―Quantas Lágrimas‖, de Manacéa, que
apresentamos em seguida:

Ah, quantas lágrimas eu tenho derramado


Só em saber que não posso mais
Reviver o meu passado
Eu vivia cheio de esperança
E de alegria, eu cantava, eu sorria
Mas hoje em dia eu não tenho mais
A alegria dos tempos atrás
Só melancolia os meus olhos trazem
Ai, quanta saudade a lembrança traz
Se houvesse retrocesso na idade
Eu não teria saudade
Da minha mocidade

A mocidade passa a ser vista não como um tempo melhor que a velhice.
O que o samba indica é que, na mocidade, há a possibilidade de construir
esperança, enquanto que na velhice essa possibilidade se reduz. É
interessante quando pensamos que a juventude pode ser vista como uma
―tirania social‖ que acaba se transformando ―em valor, um bem a ser
conquistado em qualquer idade [...]‖ (Debert, 2004, p. 21). Quando o samba de
Manacéa compara a sua ―mocidade‖ com o ―hoje em dia‖, seu movimento não
é o de negar a velhice, mas uma etapa na qual algumas ―alegrias‖ se
encerram. Não há uma impossibilidade, mas uma limitação.
Decorre daí que a Velha Guarda é um grupo que se utiliza de dois
aspectos: primeiro da tradição do samba e, nesse sentido, as idades
cronológicas são usadas como ―[...] um mecanismo privilegiado na criação de
atores políticos [...]‖ (Debert, 2004, p.42). Segundo, no plano das relações
sociais, há mesmo que somente momentaneamente um apagamento dos
marcadores de idade, pois não é por meio de suas idades que os sambistas se

137
relacionam, o que possibilita que alguns integrantes escapem ―[...] dos
constrangimentos e dos estereótipos, das normas e padrões de
comportamento baseados nas idades [...]‖ (Debert, 2004, p. 57).
No entanto, faço aqui uma ressalva: a ideia de que na mocidade os
tempos eram melhores, creio que o que a Velha Guarda possibilita é ratificar a
seguinte assertiva: ―[...] é possível e saudável envelhecer sem se confinar aos
padrões antigos [...]‖ (Debert, 2004, p.185), escapando dos diversos
estereótipos atribuídos aos velhos, tais como passivo, acomodado, não
participante, reclamão, babão, sonolento, comilão, ridículo, entre outros. Na
prática, vamos apresentar duas histórias de vida de integrantes da Velha
Guarda.

HISTÓRIAS DE VIDA
Essas histórias de vida foram elaboradas a partir de entrevistas com as
integrantes da Velha Guarda da Portela. As breves indicações ajudarão a
compreender melhor a relação que elas mantêm com a questão geracional e
com outros contornos de pertencimento e formação identitária. Cada biografia
aqui apresentada descreve um território de disputa, de reordenamento e de
ressemantização das representações de idades e de relações intra e
intergerações que transversalizam suas representações coletivas. Conforme
Becker (1971, p. 79),

Muitos grupos desviantes, incluindo músicos profissionais, são


estáveis e duradouros e, como todos os grupos estáveis,
desenvolvem um modo de vida distinto. Para entender o
comportamento de um indivíduo que faz parte de tal grupo, é
necessário entender esse modo de vida66.

Sahlins (2006) fornece um pressuposto para a elaboração das histórias


de vida aqui apresentadas, segundo ele, o indivíduo concreto, cujas relações
com a totalidade são mediadas por uma experiência biográfica particular na
família e em outras instituições, tem assim de expressar os universais culturais

66
Muchos grupos desviados, entre los cuales se cuentan los músicos profesionales, son
estables y duraderos, y, como todos los grupos estables, desarrollan un modo de vida
característico. Para comprender la conducta de un individuo que es miembro de un tal grupo,
es necesario comprender este modo de vida. (Tradução própria).

138
numa forma individual (2006, p. 145). Não estamos apresentando, todavia, um
inventário exaustivo das biografias dessas personagens, mas o que interessa
para nosso tema.

TIA DOCA
Jilçária Cruz Costa, tia Doca, nasceu em 20/12/1932, no morro da
Serrinha, em Madureira, e faleceu em 25/01/2009, com 77 anos. Desses,
dedicou 50 anos a Portela. Casou-se com Altair Costa, filho de Alvarenga. Seu
sogro foi o autor do samba ―Lá Vem Ela‖, samba com o qual a Portela fez seu
primeiro desfile oficial na Praça XI em 1931, ―e a Portela ganhou o carnaval
aquele ano‖, disse Doca. Seu marido, Altair Costa, era da Ala da velha guarda.
Doca, quando falou do marido e das relações que a velha guarda mantém com
a Velha Guarda Show, revelou as tramas conflituosas existentes entre as duas
velhas guardas.
Para ela, havia uma divisão entre ―velha guarda lá de baixo‖, da
Portelinha identificada como a Ala da velha guarda e uma ―Velha Guarda do
Portelão‖, que seria a Velha Guarda da Portela Show. Achava que essa divisão
sempre foi ruim porque divide os portelenses. Mesmo admitindo que não há
como trabalhar com um conjunto musical com todos os integrantes da velha
guarda, para ela, não deveria haver tal separação, afinal são todos portelenses.
Em suas palavras,

Velha Guarda pra fazer show não pode ser duzentas nem quinhentas
pessoas, tudo bem, mas esse negócio você é velha guarda lá de
baixo, eu sou Velha Guarda do Portelão, não tem nada a ver, é da
Escola gente. É isso que eu não gosto. Só isso que eu não gosto,
separação [...] tudo é velha guarda e é da mesma escola. Foi dali
que tudo começou (referindo-se a Portelinha).

Interessante que Doca identificou a causa da separação não na Ala da


Velha Guarda, mas na Velha Guarda Show: ―[...] a gente não pode sentar na
mesa da velha guarda, a gente, não que eles não queiram, é a minha parte
(Velha Guarda) que não quer sentar na mesa que senta o pessoal da
Portelinha‖. Isso revela que a lógica da separação não é uma iniciativa da Ala
da Velha Guarda, mas da Velha Guarda Show. Mas esse tema acabou por não

139
ser ventilado por Doca, que preferiu continuar a falar de Velha Guarda de modo
mais geral, incluindo Ala e Conjunto Musical.
Para Doca, o que qualifica alguém para ser integrante da Velha Guarda
é a idade e o passado na Escola. É importante perceber que ao adotar o
elemento idade como um diferenciador, Doca estava se referindo à categoria
velha. Por isso, falou que quando chegou na Velha Guarda não tinha um
passado muito longo na Portela, pois já vinha de uma atuação nas Escolas de
Samba do Morro da Serrinha, mas é enfática ao afirmar que: ―[...] eu já vim
para Portela já mulher, mãe de filho, formada‖, ou seja: tinha idade.
Quando foi convidada a entrar para a Velha Guarda da Portela foi para
resolver uma situação de crise no grupo. Iara e Vicentina que eram as
primeiras pastoras da Velha Guarda foram ―convidadas‖ por Natal da Portela,
irmão de Vicentina e primo de Iara, para assumirem a cozinha do Portelão, o
que levou o grupo a ficar sem pastoras.
A própria Doca quando falou de sua entrada na Velha Guarda revelou além da
questão da substituição de todas as pastoras, a reiteração do conflito existente
entre Velha Guarda Show e Ala da velha guarda. Em suas palavras:

Minha chegada na Velha Guarda foi uma coisa tão assim, que eu
não esperava, que eu não sabia que tinha [...] para mim Velha
Guarda era só aqueles velhinhos [risos] eu fui para Velha Guarda, eu
não sabia que tinha Velha Guarda Show, para mim velha guarda é
uma só e continua sendo, para mim velha guarda é uma só.

Interessante notar que ela usa o verbo ser no presente, ―Velha Guarda é
uma só‖, mesmo quando está se referindo à sua entrada na Velha Guarda no
início da década de 1970.
Apesar de dizer: ―não sou ninguém‖, foi por intermediação sua que
Neide Santana, filha de Chico Santana, entrou na Velha Guarda,

Eu quando fui falar da filha do Chico Santana, eu falei com o


presidente (da Portela), não falei com gente pequenininha igual a
mim não. Falei: oh, aqui na Velha Guarda entram os filhos [...] dos
homens que [...] já pertenceram a Velha Guarda, também tem que ter
a idade, falei logo na idade.

Continuou falando das pastoras e da atual formação delas, numa fala


cheia de vacilações,

140
Somos eu, Neide e Eunice, Eunice graças a deus, ainda é viva, mas
ela não tá indo por enquanto não, porque ainda está com as pernas
fraquinhas, ela teve muito doente. Então sou eu, a Neide filha do
Chico Santana, (com a voz mais grave) a Surica entrou depois e a
filha do Manacéa, que agora entrou no lugar do Manacéa. Mas quem
entrou primeiro fui eu.

Em toda a fala de Doca, ela foi coerente com sua ideia de que Velha
Guarda é uma só. Para ela, o critério de entrada na velha guarda está assim
definido: ―[...] eu conheço a Velha Guarda assim: só pode entrar para velha
guarda depois de 50 anos, com quase 60 anos, que eu sei que é assim, mas
agora mudou‖.
Todas essas mudanças que Doca identificou ― alteração na idade,
separação entre a Ala da Velha Guarda e a Velha Guarda Show, falta de
disciplina, aumento do número de pastoras ― não foram vistas como questões
sobre as quais ela possa intervir: ―[...] não sou eu que vou botar nada em
ordem, a casa não é minha [...]‖. Todavia, as coisas mudaram independentes
da vontade de Doca:

Agora tá saindo gente lá da cidade metida no meio da Velha Guarda,


eu acho que tá perdendo aquele, aquele gostinho, aquela coisa, que
tinha, aquela coisa de Velha Guarda. Velha Guarda não é menina
nova, é tudo mulher velha.

Quando indagada se ela gostava de cantar, sua resposta foi


interessante, pois ela não romantizou seu lugar de pastora:

Eu gosto (com voz arrastada), mas assim né, não é toda hora que eu
gosto não, tem hora (risos) tem hora que eu não gosto não, tem
horas, meu filho fala muito: - mãe, aí eu digo: hi! Também tem hora
que a gente tá cansada, a idade já tá me pesando também.

TIA EUNICE
Eunice Fernandes da Silva nasceu em 16/05/1920 e faleceu em
23/03/2015. Morou em Turiaçu, bairro vizinho de Madureira, numa vila de casa
junto com a filha.
Diferente de outros integrantes da Velha Guarda, Eunice quando chegou
à Portela ―já era cacurucaia‖, com quase 40 anos. Primeiro criou os sete filhos,
―depois eu me debandei‖, diz. Antes de entrar para a Portela fez parte da

141
Escola de Samba Unidos de Turiaçu, onde ocupava o cargo de Diretora da Ala
das Baianas, além de puxar sambas de terreiro na quadra da Escola. Em 1960,
foi convidada para integrar a Ala das Baianas da Portela. Sua frequência à
Portela era facilitada pela situação de morar em um edifício em frente à quadra.
Quando falou dos primeiros anos na Velha Guarda lembrou que não
havia dinheiro: ―[...] era eu e Doca quantas vezes saíamos com o nosso
dinheiro de passagem, nosso e não ganhava nada. Quantos shows nós
fizemos assim‖. Contudo, reconheceu que o ganho que a Velha Guarda lhe
proporcionou foi mais do que um ganho monetário: ―a gente queria era
aparecer‖.
Seu sustento financeiro não estava diretamente ligado ao universo do
samba, pois em sua vida profissional exerceu a função de decoradora de
interiores. Trabalhou em uma empresa em Copacabana, embora no final da
vida vivia exclusivamente do dinheiro que recebia da Velha Guarda: ―[...] não
tenho nada, só tenho a Velha Guarda [...] a Velha Guarda tem sido muito boa
para mim‖.
Eunice, apesar de ter continuado a ser contada como integrante da
Velha Guarda, nos últimos anos de vida, deixou de frequentar os shows do
grupo, como também parou de desfilar na Portela em função de seu precário
estado de saúde. No carnaval de 2005, enquanto a Portela desfilava, Eunice
estava internada devido aos problemas cardíacos. Mesmo não desfilando
reconheceu que os desfiles são cansativos: ―mas você sente um cansaço,
assim agradável‖. Apesar dessa situação de afastamento, sua vaga não foi
preenchida e nem deixou de receber as contribuições financeiras que cabe a
cada integrante do grupo.
Falando da sua situação acima descrita insistiu que ―não-é-só-dinheiro‖,
resvalando no tema da solidão, pois mesmo o conjunto garantindo o
recebimento de sua contribuição financeira não se sentia visitada pelos outros
integrantes.

Tem tempo que não vem ninguém aqui. Surica foi que veio aqui
umas duas vezes, mas Surica é muito ocupada, a mulher anda de
mais, a mulher vai pra cá, vai pra lá. Chamada pro lugar, ela vai. Tá
certa, enquanto ela puder, enquanto eu pude, eu fui.

142
Eunice demonstrou um grande orgulho por ter sido considerada uma
grande dançarina de miudinho. Conforme ela, o miudinho é um passo de dança
muito difícil e cansativo, pois tem que se dançar toda a música sem se tirar os
pés do chão. A idade voltou a aparecer, apesar de ser tratada com humor,
quando falou de sua condição física disse que ―os pés já não obedecem, agora
tem que ser o ligeirinho‖.

CONSIDERAÇÕS FINAIS
Simone de Beauvoir afirma que ―[...] o que define o sentido e o valor da
velhice é o sentido atribuído pelos homens à existência, é o seu sistema global
de valores‖ (1976, p. 97), nesse sentido, é possível atribuir à Velha Guarda
uma capacidade de vivenciamento da velhice não a partir de suas
características intrínsecas, mas, principalmente, a partir das trajetórias
individuais de seus integrantes. Ou seja, a vivência de cada integrante da
Velha Guarda no espaço do samba, seja como compositor, músico ou
intérprete garante uma experiência diferenciada da velhice.
A relação entre uma predestinação ao samba e a vivência das idades
cronológicas marca a possibilidade de rompimento com uma autorreferência a
partir da idade cronológica.
A Velha Guarda possibilita um rompimento com o movimento de
reprivatização da velhice como ―[...] uma progressiva responsabilização do
velho e da velha por seu próprio bem-estar nessa fase da vida‖ (Barros, 2004,
p.19). Nessa mesma seara, Alves define a velhice como ―[...] um processo que
passa a ser manipulado pelo sujeito, gerando discursos que valorizam o
autocontrole individual sobre o próprio corpo‖ (Alves, 2004, p. 15).
A formação de uma Velha Guarda, portanto, não limitou as múltiplas
inserções individuais de seus integrantes, esses, enquanto individualidades
criativas, continuam articulando representações em diferentes contextos
sociais, afirmando-se de forma independente. O espaço cultural que se formou
com a fundação da Velha Guarda da Portela não limitou a apropriação e a
construção de objetos e estratégias de inserção de seus integrantes em
contextos sociais mais amplos.
Para concluir, veremos o quanto as teses de Miriam Goldenberg nos
ajudam na análise de nosso artigo. A autora afirma que uma possível saída

143
para a boa velhice: ter um projeto existencial, projeto que não será construído
nem inventado na velhice, mas desde sempre, desde que o indivíduo se torna
responsável pela sua própria vida (Goldenberg, 2008).
Na Velha Guarda, não há uma negação das idades (estamos velhos do
Hino do grupo), mas uma marcação nas trajetórias individuais de cada
integrante, facilitando com que cada um experimente a velhice não como uma
nova etapa da vida, a última etapa e marcada por fortes representações
negativas de morte, limitações, impedimentos etc., mas como um continuum
vivencial. Isto é, ―[...] em uma linha de continuidade, não haveria rupturas
bruscas, mas todo um processo de vida, que se inicia com o nascimento e
finaliza com a morte‖ (Goldenberg, 2008)
Apesar de o nome do grupo fazer uma explicita referência a um estado
geracional ― Velha ―, não há por parte dos integrantes nenhuma experiência
pessoal fortemente marcada pela idade, pois mesmo que Doca fale das
meninas novas e Eunice de que era cacurucaia, as referências recaem não nas
idades, mas nos espaços sociais em disputa. Na primeira, os desfiles, e, na
segunda, o poder-autoridade.
Neste sentido, a Velha Guarda, antes de ser um grupo que é
constituído pela referência às idades, é, fundamentalmente, o espaço de seu
desaparecimento, uma vez que ―[...] são pessoas que tiveram que inventar um
próprio lugar no mundo social. Pessoas que se reinventaram
permanentemente‖ (Goldenberg, 2008).
Não há, portanto, nada de natural na relação da Velha Guarda com a
velhice, mas uma construção discursiva que harmoniza idades com outros
pertencimentos dos integrantes, ―[...] que constroem trajetórias individuais
rompendo com os padrões sociais‖ (Goldenberg, 2008) É o que Goldenberg
(2008) chama de ―indivíduos individuais‖.
O que a Velha Guarda possibilita aos seus integrantes, num diálogo
entre projetos pessoais e representações coletivas, é de ―viver a vida de acordo
com seus projetos individuais, como sempre fizeram‖ (Goldenberg, 2008),
transitando entre as limitações ―naturais‖ da velhice e os projetos individuais de
longa duração. Desse modo, os integrantes da Velha Guarda tornam-se
―indivíduos únicos, que marcaram fortemente suas épocas, influenciando

144
comportamentos e criando modas‖ (Goldenberg, 2008), conforme vemos na
reportagem do Jornal do Brasil, de 21/05/1998,

É um engano supor que a Velha Guarda alcança tão somente um


público restrito da zona norte ou os acadêmicos e pesquisadores que
vivem futucando o passado. Nada disso, o Rio, na sua quente
diversidade, se fez representar. Na plateia [o texto refere-se à
apresentação no Canecão], acompanhando música por música,
estavam artistas, executivos, garotada de piercings e cabelo
comprido, gatinhas adolescentes, pessoas de todas as idades e de
todos os estilos.

Cabe, pois, concluir que a eficácia que a Velha Guarda possibilita aos
seus integrantes não está nem só no grupo em si, nem no absoluto de suas
representações coletivas, mas em um espaço de negociação e arranjos das
trajetórias individuais e do espaço coletivo. A Velha Guarda é, portanto, gente
velha com as limitações corporais, com as ―esquisitices‖ do passado, com as
formas peculiares de ser sambistas, mas com um frescor e com uma
positividade diante da vida ― o ainda do Hino ― que contagia a todos de
quaisquer idades. Com a Velha Guarda da Portela, aprendemos que mesmo
que as representações coletivas da velhice controlem aspectos da vida
cotidiana, ainda assim, os percursos individuais não são anulados.

REFERÊNCIAS

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envelhecimento, gênero e sociabilidade. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2004.

BARROS, Myriam. Velhice na contemporaneidade. In: ALVES, Andréa.


PEIXOTO, Clarice (org.). Família e envelhecimento. Rio de Janeiro, Editora
FGV, 2004.

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BECKER, Howard. La cultura de un grupo desviado: los músicos profesionales


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146
147
O PERFIL DE LIDERANÇA DA MULHER
NEGRA NO PÓS-COLONIALISMO

Márcia Gomes de Oliveira67

RESUMO:
Este artigo visa problematizar acerca de minorias marginalizadas, aqui em
destaque a comunidade negra da periferia, do candomblé, do axé, uma minoria
ainda mais invisibilizada pelo classismo, pelo racismo e pela intolerância
religiosa. Tal condição iniciou com o aniquilamento da sua história pela elite
dominante, sobretudo a elite europeia, branca e escravista que perdura até
hoje, ocasionando um desconhecimento de muitas pessoas da própria origem
e suas ascendências. Esta escrita busca enaltecer e valorizar a história desta
comunidade, visibilizando a raça e a cultura negra, levando em conta,
principalmente, a sua ancestralidade, uma vez que, para falar de um povo, é
necessário conhecer suas raízes, seu passado e sua história. O perfil de
liderança da mulheridade negra foi traçado ainda no período colonial quando
não havia distinção entre um trabalho realizado pela mulher negra e o homem
negro. Muitas mulheres tornaram-se líderes justamente por conta dessas
condições, pois era uma resistência que virou legado.

Palavras-chave: Minorias; Mulher negra; História; Liderança.

INTRODUÇÃO
Quando trazidos para o Brasil pelos europeus no período colonial,
negros e negras trouxeram junto sua cultura, linguagem, seus modos e suas
histórias de vida, pois muitos foram arrancados de suas realidades e
introduzidos em novas vivências, inclusive que se contrastavam bastante com
o que viviam em solo nativo. Nesse contexto, muitos tornaram-se conhecidos
por seu protagonismo nas variadas formas de resistir à escravidão.
Como mencionado anteriormente, muitos africanos eram parte de uma
elite local em suas comunidades, eram respeitados, seguidos e servidos. É o
caso da princesa Aqualtune, filha do rei Mani-Kongo, respeitada por seu papel

67
Márcia Gomes de Oliveira é Mestra em Estudos Literários pela Universidade Federal do
Tocantins (2019), onde desenvolveu pesquisa sobre literatura infanto-juvenil com temática
negra e lgbttqia+, atualmente é Professora na Universidade Estadual do Amapá-UEAP,
Pesquisadora e Militante das questões étnico-raciais, identitárias e religiosas com ênfase nas
religiões de Matriz Africana. E-mail: [email protected].

148
nas terras congolesas, veio ao Brasil após ver seu pai e seu reino derrotados
na Batalha de Ambuíla68 contra as forças angolanas e portuguesas pelo
controle do território de Dembos, que separava Angola e Congo. Totalmente
invisibilizada pela história afro-brasileira em livros didáticos e paradidáticos,
mesmo sendo do conhecimento da sociedade a Lei 10.639,69 Aqualtune é uma
figura muito importante para a história e cultura negra, antes, durante e após o
período colonial.
Ela ressignificou a liderança feminina de luta dentro do sistema
escravocrata e passou isso para seu povo, sua comunidade e seus herdeiros,
inclusive, nós, enquanto povo preto e, portanto, descendentes afro-brasileiros.
Nesse sentido que sua história não deveria passar despercebida, sobretudo
nas aulas de história do Brasil. É, pois, partindo desse legado que dialogamos
acerca das religiões de matriz africana na especificidade do candomblé. Como
aqui os negros não eram tratados dignamente, ao chegarem, tiveram sua
cultura negada e excluída, caracterizando a opressão por parte do sistema
escravocrata. Isso fez com que seus cultos fossem além da prática de sua
religiosidade, mas também uma forma de resistência, como observado por
Barbara (2002, p. 13):

[...] desde sempre temos relatos de uma certa preponderância das


mulheres nas religiões de possessão, como na Grécia antiga com os
cultos de mistério das Mênades; ou como importantes papéis
sagrados, como o da adivinhação na Sibila ou da Pítia, até a África,
com os cultos de Isisou da grande mãe da Mesopotâmia, na bacia do
Mediterrâneo ou na Índia. A interpretação disso tudo sempre foi
elemento de polêmica; as respostas encontradas pelos estudiosos
foram sempre limitadas. Lembramos autores que apontam a
sobrevivência em alguns lugares do mundo de uma religião arcaica
fundamentada em divindades femininas, como Grottanelli (1991) e
Eliade (1975); ou ainda as hipóteses de Lewis (1972; 1993) ou
aquela de Martino (1961; 143-146), com o tema do ―Eros precluido‖,
um tema que procura mais reproduzir um símbolo que interpretá-lo.

Destaca-se nesse processo escravocrata em que negros e negras


tentavam sobreviver juntamente com sua cultura, linguagem e religiosidade, o

68
A batalha de Ambuíla ocorreu em 29 de outubro de 1665 entre o reino de Portugal e o reino
de Congo pela garantia de Dembos, região formada por pequenos reinos que separava Angola
de Congo, tal questão surgiu após o desejo de expansão das colônias portuguesas que ao fim
da batalha saíram vitoriosas.
69
A lei 10639/03, versa sobre o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana, ressalta a
importância da cultura negra na formação da sociedade brasileira.

149
sincretismo religioso, tema muito visto em livros de história. Indivíduos negros e
negras lançaram mãos de uma estratégia para não perderem sua própria fé:
inseridos no contexto do catolicismo, os escravizados passaram então a
promover uma assimilação entre elementos do cristianismo e do candomblé.
Tal prática retardou o processo de extinção da cultura africana, muito embora
todos saibam que muito se perdeu, pois, se hoje existe um legado presente nas
casas de candomblé, deve-se a esses ancestrais que souberam ser fiéis aos
seus ensinamentos religiosos.
Partindo da ideia de que evangelizar o indígena e o negro era parte
fundamental da empreitada colonial, chamar intolerância religiosa de algo novo,
que surgiu há pouco é uma grande falácia. Ainda no período colonial, as
manifestações de religiosidades africanas eram consideradas pagãs, sendo
magias e feitiçarias e, portanto, podiam sofrer sanções de acordo com o código
cristão. Daí advém toda a carga negativada de coisa que não presta que recaiu
sobre as religiões de matriz africana e, consequentemente, de seus
seguidores. Desse modo, a religiosidade negra teve efeitos marcantes no
imaginário dos agentes colonizadores sob um misto de admiração e de terror,
encarnado nas figuras das ‗feiticeiras‘ e ‗curandeiras‘ (Bastide apud Ferreira,
1985, p. 96), já que essas práticas religiosas foram denominadas de
‗curandeirismo‘, ‗feitiçaria‘, ‗espiritismo‘ e ‗baixo espiritismo‘ até a metade do
séc. XX.
A partir da era colonial que condenou as práticas religiosas de matriz
africana, o que prosseguiu não foi muito diferente. Com o início da república,
instituíram-se práticas legalizadas de sancionar os cultos e crenças dos irmãos
da África. Ao código penal de 1890 foram introduzidos os artigos 156, 157 e
15870, que versam justamente sobre práticas ilegais incluindo as religiões de

70
Código Penal de 1890:
―Art. 156. Exercer a medicina em qualquer de seus ramos, a arte dentária ou a farmácia;
praticar a homeopatia, a dosimetria, o hipnotismo ou magnetismo animal, sem estar habilitado
segundo as leis e regulamentos. Penas – de prisão celular por um a seis meses, e multa de
100$000 a 500$000. Parágrafo único. Pelos abusos cometidos no exercício ilegal da medicina
em geral, os seus atores sofrerão, além das penas estabelecidas, as que forem impostas aos
crimes que derem casos.‖
Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias,
para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis,
enfim, para fascinar e subjugar a credulidade pública: Penas – de prisão celular de um a seis
meses, e multa de 100$000 a 500$000. Parágrafo 1.º Se, por influência, ou por consequência
de qualquer destes meios, resultar ao paciente privação ou alteração, temporária ou

150
matriz africana, condenando definitivamente tal religião ao estereótipo de ―coisa
do mal‖ que perdura até a nossa atualidade.
Tais medidas evidenciam a associação dos cultos africanos a tudo que
fosse deliberadamente desprezível, além de perigoso, pois a figura da religião
do povo negro era deslegitimada por estar atrelada ao não divino, ao
paganismo, ao engano e ao charlatanismo. É possível também destacar alguns
pontos de ordem moral e discriminatória na condenação das crenças africanas,
tanto no início do século XIX como no início do século XX, quando uma grande
diferença é notável no tratamento em relação aos ritos africanos e o espiritismo
branco.
Proteger e garantir direitos a uma população vulnerabilizada envolve
muitas questões. Existe uma série de lutas e embates que podem ser
observadas por dentro do Estado, e todas as fontes de atuação e de
fundamentação teórica influenciam nesse processo. A sua discussão conceitual
e disputas na sociedade refletem na efetividade dos mecanismos de proteção
do sujeito em situação de discriminação, além do que o envolvimento ou
descolamento do conjunto social na materialização (em forma de política de
Estado) de um direito é fundamental para o sucesso desse processo (Flores,
2005, p. 18).
Dentro de todo esse contexto das religiões de matriz africanas, um papel
protagonista se destaca; o de mulheres, em sua grande maioria negras, como
lideranças legítimas e respeitadas de toda uma comunidade. Aqui, destaca-se
um grande nome do candomblé baiano, ‗Mãe Stella de Oxossi‘, uma notável
líder que seguiu notáveis líderes mulheres que a antecederam à frente dos
terreiros de candomblé, sendo referências religiosas e, por vezes, também
políticas de seus filhos de santo e de toda a comunidade candomblecista.

permanente, das faculdades psíquicas. Penas – de prisão celular por um ano a seis anos, e
multa de 200$000 a 500$000. Parágrafo 2º Em igual pena, e mais na privação de exercício da
profissão por tempo igual ao da condenação, incorrerá o médico que diretamente praticar
qualquer dos atos acima referidos, ou assumir a responsabilidades deles. (...).‖.
―Art. 158. Ministrar ou simplesmente prescrever, como meio curativo, para uso interno ou
externo, e sob qualquer forma preparada, substância de qualquer dos reinos da natureza,
fazendo ou exercendo assim, o ofício do denominado curandeirismo. Penas – de prisão celular
por um a seis meses, e multa de 100$000 a 500$000. Parágrafo único. Se do emprego de
qualquer substância resultar a pessoa privação ou alteração, temporária ou permanente, de
suas faculdades psíquicas ou funções fisiológicas, deformidades, ou inabilitação do exercício
de órgão ou aparelho orgânico, ou, em suma, alguma enfermidade: Penas – de prisão celular
por um a seis anos, e multa de 200$00 a 500$000. Se resultar morte: Pena – de prisão celular
por seis a vinte e quatro anos.‖

151
Para Campos (2003, p. 29),

Maria Stella de Azevedo Santos nasceu em Salvador, Bahia, no dia 2


de maio de 1925. Filha de Esmeraldo Antigno dos Santos com
Thomazia de Azevedo Santos, ela fazia parte de uma família negra
de classe média. Apesar de bastante racista, a estrutura social de
Salvador no início do século XX permitia certa mobilidade por meio
de casamentos inter-raciais ou por ascensão econômica. A tia de
Stella, por exemplo, dona Arcanja, era casada com um descendente
de portugueses, José Carlos da Cruz Fernandes, e dona Theodora,
sua avó, que tinha uma venda no mercado São Miguel, ascendeu
socialmente graças ao comércio de peixe. Stella recebeu da avó
Theodora ―a herança do candomblé‖. Esse legado muitas vezes
representou uma carga para sua existência.

Este artigo busca justamente um resgate da história da mulher negra


desde o período escravocrata até os dias atuais. Se voltarmos ao passado da
nossa própria história, saberemos mensurar a dor, o sofrimento, a opressão
que essas mulheres, nossas ancestrais, viveram. Se o feminismo negro até
hoje ainda não se consolidou totalmente como nos moldes do feminismo
europeu, muito se deve a esse período tão marcante na identidade da mulher
negra afro-brasileira e afro-americana, como também podemos observar em
muitos escritos de intelectuais negros e negras americanas.
A exploração racista de mulheres negras como trabalhadoras, tanto no
campo quanto no ambiente doméstico, não era tão desumana e desmoralizante
quanto a exploração sexual. O sexismo dos patriarcas brancos do período
colonial poupou homens negros escravizados da humilhação do estupro
homossexual e de outras formas de assédio sexual. Enquanto o sexismo
institucionalizado era um sistema social que protegia a sexualidade dos
homens negros, ele legitimava a exploração sexual das mulheres negras
(hooks, 2020, p. 51).

LIDERANÇAS FEMININAS NEGRAS


O histórico opressor por parte dos negros e negras trazidos para cá
ainda no período colonial permanece nessa estrutura consolidada nos dias
atuais. È possível observar que muitas dinâmicas políticas atuais do
capitalismo global ainda se entrelaçam com práticas e discursos notadamente
coloniais, uma condição que tem implicações nas formas de se relacionar
contemporâneas, sejam elas sociais ou político-econômicas.

152
O amálgama entre distintas culturas proposto pelo contexto histórico
colonial acarretou o crescimento de uma parte em detrimento da outra,
favorecendo desigualdade em termos econômicos que só cresceu cada vez
mais afastado de um ideal de equidade entre todos. O contato entre duas
civilizações distintas em vários aspectos acarretou muitas questões que
impactaram até hoje a vida dos ditos colonizadores e colonizado, com a ideia
de domínio dos mais avançados sobre os mais atrasados, o que caracterizou
as relações típicas e as formas pelas quais um domina o outro, reverberando
suas existências desiguais com processos discriminatórios.
É a partir desse resgate histórico de opressão do período colonial que
observamos a trajetória da mulher, evidentemente que da mulher negra,
ressaltando não só toda a opressão em particular sofrida por ela, mas também
o quanto isso serviu de base para que ela protagonizasse papel essencial na
história de construção de um povo, de uma civilização, deixando um legado de
resistência, coragem, bravura e luta pelos seus ideais de humanidade.
Para iniciar essa observação, comecemos por duas importantes figuras
de mulher negra: a princesa Aqualtune e Mãe Stella de Oxóssi, ambas
despertam para um importante aspecto que chama atenção: o predomínio da
liderança feminina e uma centralidade do princípio feminino dentro dos cultos
afro-brasileiros, bem como nas lendas africanas, principalmente no que
concerne à mitologia que é fundamento e dá base a estes cultos em muitos
cantos do Brasil.
Segundo Barbara (2002, p. 9),

[a]o longo do processo ritual, as sacerdotisas adquirem uma


sabedoria sobre o corpo e através do corpo que as ajuda e as
fortalece no desempenho de tarefas cotidianas, esse processo, abre
a possibilidade corporal de criar e de orientar novas maneiras de
viver. A experiência da fé transborda da força e alegria evidenciadas
nos rituais através do grande cuidado para e com o orixá, experiência
que a condição histórica das mulheres negras trazidas ao Brasil
como escravas, não conseguiu abalar. As mulheres afro-
descendentes continuam no candomblé a cultuar suas divindades,
continuam a louvar as águas, continuam enfim praticando os
preceitos das ―antigas‖ como dizem as velhas sacerdotisas, dando
força a si mesmas e conselhos a quem as procuram.

Como já mencionado anteriormente, mesmo após a lei 10.639 ter sido


construída à base de muitas reivindicações, muito pouco se tem em livros

153
didáticos e paradidáticos acerca da cultura e história afro-brasileira e a história
da princesa Aqualtune se insere nesta situação. Ressalta-se que as lendas são
baseadas em pessoas reais, a princesa Aqualtune é, pois, um ancestral vivo,
que deve ser do conhecimento de todos, porque sua história tem muito da
nossa história e da nossa cultura, um símbolo de resistência que, mais tarde,
daria à luz a mãe daquele que viria a se tornar um mártir da causa negra:
Zumbi dos Palmares:

[...] essas ligações por muito tempo foram esquecidas e desprezadas


pelas narrativas literárias destinadas ao público infantil e juvenil.
Entretanto, a partir do ano de 2003, com a promulgação da Lei
10.639/03, o mercado editorial e o sistema educacional passam a
produzir e consumir literatura, história e cultura africanas e afro-
brasileiras em resposta às ações afirmativas que reivindicam o
reconhecimento e legitimidade da história desse povo. A partir disso,
os escritores brasileiros voltaram os olhares para o continente
esquecido, e passaram a inserir, nas narrativas infantis e juvenis,
personagens negros com raízes nas histórias africanas e afro-
brasileiras. Dentre esses personagens que, mesmo de maneira
tímida começaram a aparecer na literatura, estão as princesas
africanas (Segabinazi, 2017, p. 206).

Muitos nomes importantes de mulheres negras líderes e protagonistas


têm, ao longo da história do Brasil, seus nomes apagados em documentos ou
livros. É justamente para que se dê visibilidade a essas mulheres que o
presente artigo apresenta duas delas, ao mesmo tempo que chama atenção
para que mais pesquisas em torno dessas líderes apareçam e resistam ao
cerco que o patriarcado nos enreda todos os dias.
Este debate se justifica como oportunidade de ampliar os conhecimentos
acerca dessa temática. Estabelecer tal diálogo é conhecer um pouco mais da
história da nossa cultura brasileira, uma vez que tal sincretismo afro-brasileiro
só foi possível porque os negros escravizados trazidos para cá mantiveram
suas raízes. Na ideia de não somente defender suas tradições, mas também
para resistirem contra todo o sistema escravocrata vigente no período colonial,
e mesmo passado todo o horror do período escravista, ainda hoje os negros
não podem exercer sua religião sem que sofram duras retaliações por parte de
uma sociedade que não evolui.
Na certeza de que esse diálogo, a reflexão, respeito e equidade de
direitos aconteçam mediados pela literatura e pelos estudos étnicos-raciais,

154
construímos um efeito discutível acerca de verdades institucionalizadas. No
século XXI, vigente modernidade, o preconceito arraigado deve ser combatido
e desmistificado diante de tanto legado cultural carregado pelas religiões de
matriz africana e seu processo histórico. Para isso, apresentamos também
personagens que a história dominante escondeu, marginalizou, aniquilou, não
deixando muita coisa em escrituras oficiais, pois esta é marcada por uma
história branca europeia ratificada e oficializada como única a contar sua
versão.
Por isso, Oliveira (2008, p. 2) defende:

Não basta, portanto, a mera inclusão no mercado editorial e no


espaço escolar de produções literárias que apresentam protagonistas
negros (as), ou que delineiam as religiosidades de matrizes
africanas, a cultura afro-brasileira, o continente africano e temáticas
afins. Diante da propagação da inferiorização do segmento étnico-
racial negro nos materiais didáticos e na literatura, mais ainda é
necessário, na atualidade, redobrarmos a atenção em relação às
produções nesse enfoque, pois, em virtude da Lei 10.639/03, a
tendência é que haja investimento no mercado editorial, culminando
com publicações e reedições nem sempre elaboradas com a devida
qualidade estética e temática, no tocante à história e cultura africana
e afro-brasileira, conforme exigência das Diretrizes Curriculares
Nacionais (2005) que regulamentam a aludida lei.

Nesse sentido, pesquisas que abordem essas questões são bem-vindas


e corroboram juntamente com os movimentos sociais e políticas de afirmação
da comunidade negra, uma vez que precisamos nos fazer ouvir, precisamos
resistir e combater o racismo e todo seu histórico corrosivo à sociedade. A
mulher negra, ao longo do tempo, foi subestimada e sofreu diferentes formas
de opressão e, ainda assim, soube resistir e deixar um legado de bravura e
luta.

O FEMINISMO NEGRO NA LITERATURA


Como exemplo de literatura africana temos ―Aqualtune e as histórias da
África‖ (lenda africana). No texto, somos apresentados à história de Maria,
Guilherme e Aqualtune (Alice), três adolescentes que vão viajar para uma
fazenda longe da cidade. O destino dos viajantes mirins pertencia à família de
Maria e ficava localizado na Serra da Barriga, no Alagoas ― cenário que faz
parte de um contexto da época da escravidão que ocorrera anos atrás, mais

155
precisamente no século XVII. Os jovens caçadores de aventura acreditavam
que o ponto alto da viagem seria caçar vaga-lumes, mas, na realidade,
estavam prestes a vivenciar uma grande aventura que transformaria suas
mentes de maneira marcante.
A história se inicia dentro de um antigo casarão que havia sido um
engenho de cana-de-açúcar. O trio conhece Vó Cambinda e seu bisneto Kafil.
Eles moram nas proximidades do casarão e são descendentes de escravos. Ao
conhecer um pouco mais da cultura quilombola, Alice se descobre parte
importante de uma antiga lenda africana acerca da princesa Aqualtune e, junto
com seus amigos, enfrenta muitas aventuras para ir em busca da verdade por
trás dessa antiga lenda.
Diante de um pequeno resumo dessa lenda africana somos levados a
refletir alguns aspectos da questão negra dentro da literatura, situação bem
atípica quando pensamos em leituras infantojuvenis, pois a maioria delas
apresenta traços de personagens europeus e tem sempre uma história com
início, meio e fim bem conhecidos pelo público em geral.
No ano de 2003, é instituída a lei 10639/03 já mencionada neste artigo,
numa tentativa de se fazer conhecer e valorizar a cultura afro-brasileira,
tornando-se obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana
em todas as escolas, sendo públicas ou particulares, do ensino fundamental
até o ensino médio. Diante deste novo quadro que se apresentava, as leituras
até então vigentes e hegemônicas tiveram que se readaptar frente aos novos
tempos impulsionados pelos movimentos sociais de afirmação, bem como das
políticas públicas reivindicadas por esses mesmos grupos. A partir daí, as
princesas negras puderam enfim aparecer e junto com elas muitas histórias, e
a cultura afro-brasileira e africana puderam finalmente ter alguma visibilidade.
Vale lembrar que os PCNs de 1998 já tratavam desta temática nos temas
transversais como pluralidade cultural, mas a abrangência da questão só se
tornou enfática com a lei citada acima.
Analisar como o perfil da mulher negra se dá nas lendas africanas
especificamente ―Aqualtune e as histórias da África‖, bem como também à
frente dos ilês de candomblé, com mãe Stella de Oxóssi, é fazer um resgaste
da história de um povo que se tornou escravo, porque assim o condicionaram
quando entraram em seus países, ocasionando conflitos, guerras, disputas,

156
saqueamento de suas riquezas, além de retirar sua dignidade quando o
condicionaram a cruel condição de escravos, sem direito a nada e expostos a
mais diversas formas de crueldade humana. Esse período a que nos referimos
se deu no processo de escravidão no Brasil e, vale lembrar, foram quase
quatro séculos. É um período que está na raiz na nossa identidade nacional, o
que significa é possível ignorar, como muitos o fazem, mas não se pode
apagar.
Dessa forma, retratar na literatura a cultura, a história, as tradições, a
religião, as linguagens africanas, é reconhecer que somos África também, é
reconhecer que entre Brasil e África existe uma forte relação e uma dívida
histórica impagável, uma reparação que nunca, em tempo algum, será
alcançada frente a tudo que aconteceu.
Nesse sentido, é necessário este debate para uma um resgate e, ao
mesmo tempo, valorização da cultura iorubá que herdamos de nossos irmãos
africanos que aqui se estabeleceram para que ações de invisibilidade de nossa
cultura e história não se perpetuem. Pelo contrário, que novas políticas
públicas de ações afirmativas se juntem às que já estão em vigor, que os
movimentos negros espalhados por todo o país cresçam ainda mais,
fortalecendo-se, porque é por meio dessas ações que resistiremos a toda
opressão perpetrada pelo racismo estrutural e institucional da sociedade em
que vivemos.

A CULTURA IORUBÁ
No decorrer do processo escravocrata, onde predominou o tráfico
clandestino de escravos, muitas culturas também aqui se estabeleceram, uma
vez que os escravos eram de diferentes partes do continente africano. No
entanto, há um destaque para os escravos "Nagôs", designação comumente
dada aos negros escravizados e vendidos na antiga Costa dos Escravos e que
falavam o iorubá. Os iorubanos ou iorubás são um povo do sudoeste
da Nigéria, no Benim (antiga República do Daomé) e no Togo.
Tal cultura é pouco difundida na história da nossa identidade nacional,
no entanto, há um predomínio dela em território brasileiro, principalmente em
Salvador, uma vez que lançadas ao Brasil por meio da escravidão, as culturas
africanas reconstruíram cada uma com suas peculiaridades e idiossincrasias

157
em diferentes graus, marcas profundas que lhes revelam extensão da alma. E
em solo Baiano, essa presença ― que se recria hoje em importantes
instituições como as comunidades de terreiro ― é devida basicamente à
cultura nagô que, trazida da África Ocidental, esteve entre o fim do século
XVIII e o fim do XIX, como uma das últimas a serem escravizadas no Brasil.

Nestas comunidades foram radicados costumes, hierarquias,


literatura, arte, mitologia, comportamentos, valores e ações que,
mesmo dinamicamente reelaborados na diáspora, correspondem aos
diversos reinos e regiões de onde procederam. O complexo cultural
nagô no Brasil remonta suas origens às regiões que correspondem
hoje ao sudoeste e centro da Nigéria e ao sul e centro da República
de Benin [...] (Santos, 1993, p. 42).

Destacamos aqui grupos étnicos como Ketu, Egba, Egbado e Sabé


como sendo alguns dos segmentos nagôs que vieram para a Bahia
provenientes da grande área iorubá que congregava sul e centro da
atual República de Benim, ex-Daomé, parte da República do Togo e todo
sudoeste da Nigéria.
Todos estes grupos, dando destaque para os Kètu, contribuíram
decisivamente para a implantação da cultura nagô em Salvador,
ressignificando suas instituições e procurando adaptá-las ao novo ambiente
desconhecido, com o máximo de fidelidade aos padrões básicos de origem,
ainda que passando pelo intenso e cruel comércio que se desenvolveu entre a
Bahia e a costa ocidental da África durante todo o século XIX até os anos
iniciais que se seguiram à Abolição.
Para entender a supremacia da etnia yorubá-nagô na Bahia, é
importante recordar que, nos últimos momentos do tráfico negreiro, um enorme
contingente de escravos dessa região foi trazido para Salvador. Nesse
momento, os núcleos familiares continuaram e foram tão desmembrados como
no início da escravatura, permitindo uma maior manutenção da cultura e
dos costumes. Nas palavras de Edison Carneiro, no clássico Candomblés da
Bahia (1978): "Os nagôs logo se consagraram numa espécie de elite e não
encontraram dificuldade de impor, à massa escrava, a sua religião".
No que diz respeito aos negros muçulmanos (malês), uma minoria entre
grupos étnicos pequenos que poderiam ser rivais dos nagôs, pelo
seu sectarismo, afastavam não só os escravos como toda a sociedade branca".

158
A conhecida Mãe Aninha Obá Biyi (fundadora do ilê axé opô afonjá, que mais
tarde veio a ser comandado por Mãe Stella de Oxóssi), tinha como pais um
casal de africanos da etnia grunci, chamados de Aniyó e Azambiyó, que, por
obra do destino, fora iniciada no candomblé pelos nagôs da Casa Branca do
Engenho Velho, tendo a presença de Xangô, seu orixá, abençoando ainda
mais as tradições iorubás em sua trajetória.
A influência africana no Brasil é enorme dado o passado de escravidão
que perdurou por muito tempo, tempo suficiente para que a cultura iorubá aqui
se instalasse definitivamente. Tal influência é notória no comportamento, no
andar, no falar, nas manifestações populares, folclore, literatura e,
principalmente nas manifestações religiosas, as quais foram enormemente
enriquecidas pelas crendices, tabus, superstições, cantigas de roda,
gastronomia africanas, a ponto de existir uma junção de aspectos católicos de
diferentes religiões que se misturavam e é algo visto, até os dias de hoje, como
sincretismo religioso.
Infelizmente, a cultura iorubá não teve seu valor reconhecido, o que
denota algo muito negativo se levarmos em conta que, no Brasil ― onde o
negro foi um dos mais importantes grupos étnicos na formação social, cultural e
econômica, e para onde ele foi trazido como escravo desde o período colonial
por volta de 1530 ― sua contribuição não foi devidamente reconhecida. O
Brasil, enquanto sociedade, não soube acolher e muito menos apreciar a
grande riqueza cultural que aqui surgia e se misturaria formando uma
amálgama afro-brasileiro. O que vemos ainda hoje é uma negação dessa
cultura por meio de preconceitos raciais que envolvem não só a questão da cor
da pele, mas também questões religiosas, culturais, étnicas, etc. Lima (2018, p.
7) observa:

É ousado, mas possível de se afirmar, que a abolição da escravatura


ainda não é fato consumado, pois sabe-se que longo tempo se
passou, mas os dados e estatísticas envolvendo negros demonstram
que as consequências deste período de escravização ainda possuem
inúmeras ―feridas‖ na atualidade, sobre as quais a sociedade deverá
ainda dar conta: maior população vítima de violência, racismo,
discriminação nos mais diversos ambientes e setores, desigualdades
sociais, grande população negra carcerária, desigualdade de acesso
e permanência nos muitos níveis de ensino; dentre outras. Poucos
são os que despertam para a efetivação de mudanças reais nestas
questões.

159
Na contramão de todos esses aspectos negativos acerca da valorização
da cultura afro-brasileira, ressaltamos que tais padrões dominantes têm sido
colocados em xeque pelos movimentos negros organizados que,
continuamente, tencionam tal estrutura opressora por meio da imprensa negra,
criação de jornais, manifestações artísticas como a música e o teatro,
chamamos atenção para o Teatro Experimental Negro construído em 1944, um
projeto idealizado por Abdias do Nascimento.
Muitos são os movimentos construídos ao longo dos tempos para que a
comunidade negra pudesse ter seus direitos garantidos, inclusive quanro às
questões de dignidade humana mesmo, uma vez que o racismo impacta
diretamente não só física, mas mental e emocionalmente. Nesse sentido, o
Movimento Negro Unificado de 1978, com quase 41 anos, obteve conquistas
importantes como a demarcação de terras quilombolas; a Lei 10.639, que
prevê o ensino da história afro-brasileira nas escolas; o crescimento ― ainda
que insuficiente ― da quantidade de pessoas negras nas universidades; e o
fortalecimento da consciência racial dos jovens, além de contribuir
decisivamente para o desmantelamento do mito da democracia racial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar da pouca visibilidade que pautas como essas têm em espaços
acadêmicos, um caminho já começou a ser percorrido por intelectuais,
ativistas, militantes negros como Lélia Gonzales, Neusa Santos Souza, Sueli
Carneiro, Beatriz Nascimento, Abdias do Nascimento, Virginia Bicudo e tantos
outros nomes não menos importantes nessa luta por ocupação de espaços de
poder pela comunidade negra. Os debates que esses vanguardistas
propuseram acontecem desde a década de 70, mas, infelizmente, as
universidades silenciaram estes teóricos, priorizando um currículo branco.
Muito embora tenha existido um epistemicídio em relação às produções
dos intelectuais negros, como diz Sueli Carneiro, eles abriram o caminho e
levantaram esses debates e, cabe a todos, principalmente, dentro dos
ambientes acadêmicos, lê-los e reverenciá-los para que esta caminhada seja
sequenciada no sentido de garantir o espaço pelo qual tanto lutamos.

160
Outros importantes avanços surgiram no sentido de valorizar essa
cultura afro-brasileira contemplados, por exemplo, nos Parâmetros Curriculares
Nacionais, em forma de temas transversais que tratam da diversidade cultural.
Tal qual os PCNs, a lei 10.639/03 trata justamente da implementação e
valorização da cultura africana e afro-brasileira dentro das escolas para que tal
assunto, por tanto tempo marginalizado e pouco difundido, pudesse ganhar os
lares escolares, familiares, acadêmicos e sociais. Dessa forma, permite-se que
muitos brasileiros conheçam sua própria história, oficial e não distorcida pelas
elites brancas e racistas deste país.
São questões relevantes de muito impacto social que precisam ser
revistas junto à sociedade para que uma política de reparação histórica seja
feita. Isso pode começar por meio de políticas públicas voltadas para os
negros, bem como o incentivo em massa para os movimentos sociais negros,
sem os quais não sobreviveríamos a tantos casos de racismo existentes neste
país. Esses movimentos dão espaço e lugar de fala para os negros,
principalmente dentro das universidades onde existe a política de cotas ainda
tão atacada pela hegemonia branca que teme perder seus privilégios de
maioria nos espaços de poder. Para Lima (2018, p. 7):

Ao averiguar o processo histórico e a abolição da escravatura,


constata-se que ínfima ou nenhuma política pública foi providenciada
para sanar tantas perdas de vida e de trabalho forçado, sustentado
por tantos séculos. Quase ao mesmo tempo, incentivos à vinda de
imigrantes europeus eram dadas, enquanto os ―novos libertos‖ foram
―jogados à própria sorte‖. Concomitante a estas questões, a história
transmitida de geração em geração elegeu as versões que sempre
colocaram os brancos e homens como destaque, deixando de lado
os inúmeros personagens negros que influenciaram e determinaram
fatos importantes na história brasileira; como Zumbi dos Palmares
que comandou o maior quilombo brasileiro.

É justamente por conta desse não-reconhecimento citado acima que tal


compromisso ― na incorporação da comunidade negra brasileira ao mercado
de trabalho, dentro das universidades, na política, na ampliação da educação
formal, enfim, na criação das condições infraestruturais de uma sociedade de
classes que diminua os estigmas criados pela escravidão ― deve adotado por
todos, numa postura antirracista. A imagem do negro enquanto povo e o
banimento, no pensamento social brasileiro, do conceito de "raça", substituído

161
pelos de "cultura" e de formação da identidade nacional brasileira, são as
expressões maiores desse compromisso

REFERÊNCIAS

BÁRBARA, Rosamaria. A dança das iabás: dança, corpo e cotidiano das


mulheres de candomblé. Tese (doutorado em sociologia) - Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2002.

BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil: contribuição a uma


sociologia das interpenetrações de civilizações. São Paulo: Pioneira, 1985
[1960].

CAMPOS, Vera Felicidade de Almeida. Mãe Stella de Oxóssi: perfil de uma


liderança religiosa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2003.

CARNEIRO, Edison. Candomblés da Bahia. 6.ed. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1978.

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perspectivas contemporâneas. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2014.

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In: MOURA, Marcelo Oliveira de. Irrompendo no Real: Escritos de Teoria
Crítica dos Direitos Humanos. Pelotas: Educat, 2005.

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Tradução: Bhuvi Libanio. 3. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020.

LIMA, Fabiana Ferreira de. ―Personalidades negras?! Só conheço zumbi,


professora!‖ - a construção do ―heroi‖ e a invisibilização do negro na
história. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as
(ABPN), [S.l.], v. 10, n. Ed. Especial, p. 05-21, jun. 2018. ISSN 2177-2770.
Disponível em: <https://abpnrevista.org.br/index.php/site/article/view/383>.
Acesso em: 30 dez. 2020.

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Memória e continuidade. Revista USP, (18), 40-51.

162
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i18p40-51. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/25990/27721. Acesso em: 26
dez. de 2020.

SEGABINAZI, Daniela Maria. As princesas africanas na literatura juvenil: do


branqueamento silenciador ao protagonismo questionável. Caderno Seminal
Digital, v.1, nº 27, 2017, p. 203-244.

163
HIPÉRBOLES DA MORENIDADE:
ESTILHAÇOS DO RACISMO ESTRUTURAL
NA CONSTITUIÇÃO IDENTITÁRIA DO
NORTE BRASILEIRO

Yama Talita Passos Monteiro71

RESUMO:
A urgência da reflexão sobre raça e suas especificidades vem eclodindo a
partir de casos de brutalidade dirigidas ao povo negro. Levando em
consideração todo o contexto em que vivemos, enxergamos que tópicos como
o próprio racismo estrutural são colocados em xeque, já que a máxima que
perdura no imaginário conservador é a de que ―o racismo só acontece aqui no
Brasil‖. Para que possamos nos debruçar sobre os ideais de raça e,
principalmente, o de racismo estrutural, daremos voz às colocações de Silvio
Almeida (2019) ao lado do viés da Morenidade discutido por Mônica Conrado
(2015). Toda a discussão nos leva ao ponto deste estudo: a exclusão da
negritude na Amazônia perpassada pelo fenômeno social da morenidade,
construto da nacionalidade, em torno do ideal de identidade do norte. Ambos
os autores trazem a ideia de ―inconsciência de si mesmo‖ a partir da presença
de fenômenos sociais perpetuados por eras. O racismo estrutural se faz
matéria quando a própria instituição de poder cria, depois da ―libertação‖
escravocrata, uma política de limpeza racial que, dentro do contexto
Amazônico, subalterniza a morenidade ― e os indivíduos nela inseridos ― a
uma hipérbole vocabular e identitária.

Palavras-chave: Racismo estrutural; Morenidade; Identidade negra; Amazônia.

INTRODUÇÃO
A urgência da reflexão sobre raça e suas especificidades vem eclodindo
a partir de casos de brutalidade dirigidas ao povo negro. Um desses casos que
emergiu discussões e protestos foi o do sufocamento de um homem negro, nos
Estados Unidos, por um policial branco. Posicionamentos e diálogos foram e
ainda são cobrados dentro das mais diversas esferas, suscitando essa mais do
que urgente reflexão, uma vez que comportamentos como este vêm de uma
organização ideológica social que perdura há eras.

71
Mestranda no Programa de Pós Graduação em Teoria e História literária da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: [email protected]

164
Quando tratamos de raça e racismo, comprovamos, mais do que nunca,
que o Brasil é um país com imensas dificuldades no trato com as
particularidades do tema. Levando em consideração todo o contexto em que
vivemos, indo da presidência ao ribeirinho, enxergamos que tópicos como o
próprio racismo estrutural são colocados em xeque, já que a máxima que
perdura no imaginário é a de que ―o racismo só acontece aqui no Brasil‖.
Para que possamos nos debruçar sobre os ideais de raça e,
principalmente, o de racismo estrutural, daremos voz às colocações de Silvio
Almeida (2019). Integrante da série de livros Feminismos plurais, coordenada
por Djamila Ribeiro, a obra Racismo estrutural versa sobre as discussões
histórico-sócio-metodológicas das racialidades contemporâneas. O autor afirma
que o livro não foi pensado para ser uma enciclopédia do racismo, mas sim
como um direcionador de discussões acerca dos temas tratados. De fato, as
reflexões trazidas por Almeida (2019) nos acompanham por caminhos longos e
estreitos dentro da constituição teórica de raça e racismo, porém, deixaremos
nossas considerações para um percurso mais à frente. Singramos nossas
perspectivas rumando às metodologias que nos norteiam. Ao lado das fontes
de Silvio de Almeida, complementaremos a prosa com o viés da Morenidade,
vocábulo bastante discutido nas academias amazônicas a partir da ideia de
silenciamento e apagamento racial em torno da negritude nos territórios
nortistas brasileiros. Para tanto, estabeleceremos diálogo com Mônica Conrado
(2015) e suas Metáforas da cor.

PENSAR COR E RAÇA DENTRO E FORA DA AMAZÔNIA


No que se refere aos pressupostos de Silvio Almeida (2019), iniciamos a
reflexão com as considerações acerca da raça propriamente dita. Como
dissemos anteriormente, não estamos tratando de uma obra enciclopédica, em
que há definições fechadas e cristalizadas, mas com uma constante dialógica
em que são postos apontamentos e contradições em torno do racismo, assim
como as pontuações de suas classificações que constantemente são tidas
como únicas ou, até mesmo, confundidas.
Raça, enquanto termo, não se abstém na rigidez de sua significação. O
autor pontua que seu sentido é fortemente atrelado a toda historicidade de sua
aplicação dentro da sociedade, desvelando a presença de conflitos,

165
contradições, poder e decisões que apenas evidenciam seu funcionamento
relacional e histórico. Logo, para ele, toda a caminhada conceitual da história,
da ideologia e da política são parte fundamental do conceito de raça. Essa
trajetória também elucida um pouco sobre como o homem, dentro do contexto
social, foi perpassado pela compreensão da filosofia moderna. Sua noção, de
acordo com Almeida (2019, p. 18), é imersa em subjetividades, tornando-se
assim ―um dos produtos mais bem-acabados da história moderna‖.
É neste momento que avançamos na encruzilhada epistemológica do
conceito teórico de raça. O autor pontua dois pontos básicos que coexistem
dentro do traçado histórico de significação do termo: a característica biológica e
a étnico-cultural. A primeira comporta-se como a que abrange a identidade
racial enquanto traço físico e fenótipos raciais. A segunda age em função da
origem geográfica, da religião, da língua e das ―formas de existir‖. Portanto, o
autor pontua que os processos discriminatórios se constroem a partir da
deturpação dos registros étnico-culturais de cada raça.
Não nos atentaremos aos procedimentos literais e lineares da obra de
Almeida, mas sim, construiremos uma narrativa de idas e vindas.
Contemplaremos os momentos e trechos que achamos pertinente abarcar em
determinados momentos da reflexão,com isso, enveredamos pelos caminhos
do preconceito enquanto generalidade.
Como havíamos discutido inicialmente, o termo tem ganhado relevância
dentro e fora do país, fomentando meios de discussão em torno dos eventos
explícitos e implícitos ocorridos na sociedade. Consideramos aqui ainda a
forma como a pandemia impactou diversas esferas de convivência, abrindo
abismos psicológicos e (re)centralizando atitudes. É necessário que
entendamos estes e outros conceitos para que possamos utilizá-los como
instrumentos de sobrevivência. Travar esta luta com os devidos conhecimentos
acerca de nossas lutas políticas e ideológicas é mais do que essencial em meio
a um (des)governo, vivenciado a partir de 2018, que teme o saber e
negligencia seus meios de (r)existência.
Quando falamos de racismo estrutural, não estamos falando de um
racismo propriamente dito, uma categoria específica. Enunciamos o tema como
materialização e identificação de fenômenos sociais que existem em prol da
desestruturação do indivíduo em um determinado meio. O autor comunga

166
nossos ideais quando afirma que o racismo não é um ato, mas sim um
processo em que as mais variadas instituições de organização social
reproduzem a subalternidade de determinados grupos. Tal consideração nos
mostra que todo e qualquer racismo é estrutural. Toda materialização racista se
enquadra nos entremeios de comportamento coletivo ideológico, fazendo com
que tais discussões acerca da subserviência racial englobe, ainda, o branco.
Nossas linhas não correm o mínimo risco de pontuar o tal do ―racismo reverso‖,
porém, Almeida (2019) insere-o enquanto indivíduo que ―participa da
constituição ou reprodução‖ do ato racista em si, movendo-se enquanto agente
ativo e/ou passivo.
Ambas as discussões se aliam à existência de uma teoria geral sobre a
constituição da noção de raça. O racismo transmutado em processo de
reprodução age sob as condições sócio-políticas de interseção humana,
criando e colocando negros e brancos em posições antagônicas. Logo,
observamos que falar sobre racismo não é apenas uma questão de discussão
unicamente moral, histórica ou jurídica, mas sim uma reflexão de como a
economia, por exemplo, se equipara e se comporta enquanto projeção das
desigualdades materiais entre as classes e raças pelo mundo. Outro exemplo
que podemos elencar baseados na discussão de Almeida é como a crise
política emerge em meio ao racismo estrutural enquanto elemento de evidência
da forma como os governos não conseguem elaborar respostas ou reações a
atitudes em massa que não sejam pautadas na violência.
O artista Emicida, em Ismália (2019), uma das músicas do álbum
Amarelo, levanta tais pautas quando rememora o acontecimento dos 80 tiros
disparados ―por engano‖ pelo Exército Brasileiro72:

Minha cor não é uniforme / Hashtags #PretoNoTopo, bravo! / 80 tiros


te lembram que existe pele alva e pele alvo / Quem disparou usava
farda (Mais uma vez) / Quem te acusou nem lá num tava (Banda de
espírito de porco) / Porque um corpo preto morto é tipo os hit das
parada: / Todo mundo vê, mas essa porra não diz nada.

72
O fato referido aconteceu em abril de 2022, quando o automóvel de uma família foi atingido
por mais de 80 disparos pelo Exército Brasileiro, no RJ. As cinco pessoas que estavam no
carro iam para um chá de bebê. Evaldo dos Santos Rosa, de 51 anos, morreu na hora. Para
mais informações, acessar: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/04/08/delegado-
diz-que-tudo-indica-que-exercito-fuzilou-carro-de-familia-por-engano-no-rio.ghtml.

167
A questão é que, assim como Emicida, Silvio Almeida pontua que após a
discussão sobre racismo estrutural, existe a conclusão de que existem peles
alvas e peles-alvo. O momento atual não admite mais pensamentos e
raciocínios que encaram o racismo como atos individuais ou simplesmente
comportamentais. O racismo assume postos em materializações institucionais.
Logo, encaramos as facetas que o racismo toma enquanto fenômeno
social. Sua complexidade se estabelece perante o contexto mundial,
relacionando-se com diversas outras áreas de ocupação. Ela configura o
funcionamento do imaginário social acerca destas temáticas, relacionando
intrinsecamente outros níveis de sociabilidade, como a vida pessoal, política e
financeira. O autor afirma que estabelecer-se enquanto indivíduo antirracista é
assumir o comportamento de defesa de sistemas básicos que garantem
direitos mais básicos ainda, como a luta pela resistência do Sistema Único de
Saúde brasileiro.
Declarar-se antirracista é (re)tomar territorialidades tomadas pela
colonialidade contemporânea. Cristalizado desde os cargos mais altos da
sociedade, o colonialismo ocupa territórios e espaços que foram roubados e
negados perante a negritude. Damos voz ao que Almeida (2019) pontua
quando diz que o negro é uma criação espacial de identidade. Por eras, corpos
negros se isolaram e subentenderam suas identidades por medo de terem,
mais uma vez, seu âmago territorial identitário retirado à força. No entanto, não
é somente a cor que configura o individualismo preto, mas justamente a
territorialização específica de existências, crenças, vivências e memórias que
cada pessoa estabelece dentro de si. Pertencer àquele território faz deste
sujeito um negro. Ao ter contato com a colonialidade, tal indivíduo sente-se um
completo estranho, já que a tomada brusca de identidade contamina a
construção territorial.
Aqui, ancoramos nos portos da nação e sua relação com a raça.
Almeida (2019, p. 61) afirma que dentro dos processos de formação dos
Estados é que residem as significações e importâncias da ideia de
nacionalidade. Tal noção atua como ―narrativa acerca de laços culturais,
orgânicos e característicos de um determinado povo‖, isso tudo repousado
sobre um território governado de forma centralizada por um único poder. Além

168
disso, deste cenário emerge um discurso em torno da unidade Estatal,
remontado o funcionamento de uma identidade comum.
Por fim, a partir das conclusões de Almeida (2019, p. 62) sobre raça e
nação, o nacionalismo é um solo em que indivíduos renascem como parte de
um todo. O mesmo povo que, no interior de uma espacialidade, nasce e
encontra-se enquanto sujeitos, sofre a destruição, dissolução e incorporação
de ―tradições, costumes e culturas regionais‖ que em algum momento entrarão
em conflito com os postulados da soberania do Estado-Nação. Portanto, os
contextos políticos em que vivemos desde o ano de 2018 só evidenciam que a
manifestação de determinadas nacionalidades enquanto ―orgulho nacional‖ e
―amor à pátria‖ é apenas resultado de práticas pré-estabelecidas pelo Estado-
nação e convertidas em discursos e atos de fomento à segregação social e
violência exacerbada. O autor pontua ainda que ―do mesmo modo que o
nacionalismo cria as regras de pertencimento dos indivíduos [...], também cria
regras de exclusão‖ (Almeida, 2019, p. 63).
Essas regras de exclusão, como já pontuamos, configuram fenômenos
sociais em determinados momentos da história. É nesse momento em que
enveredamos para a historicidade do apagamento da negritude na formação
identitária do Norte. Essa reflexão perpassa toda a historiografia acumulada
aos montes sob corpos negros residentes de mocambos, quilombos e aldeias
da Amazônia.
A discussão etnográfica do negro no Norte do país versa sobre a política
de apagamento introduzida pelo referido nacionalismo. De acordo com Mônica
Conrado (2015), a própria academia científica vem sufocando os 75% de
presença negra dentro dos territórios explorados, excluindo sua representação
enquanto terceira parte de um tripé que comunga ― teoricamente ― com a
colonização europeia. A ocupação dos territórios geográficos e identitários da
Amazônia foi, como qualquer outro fenômeno populacional, parte de um
processo de mesclagem ideológica, imaginária e política. Com isso, o resultado
de todo o processo ainda reverbera até hoje quando discutimos a presença do
termo Moreno dentro das espacialidades nortistas.
Para Conrado (2015), a Morenidade é aplicada em toda a etnografia do
topo do país. Classificar-se como moreno, ali, é entender-se como parte de um
universo de constantes hipérboles perpetuadas de forma cultural e ideológica.

169
O ―mito indígena‖ se apresenta na constituição do imaginário caboclo, já que o
que perpetua é a singela comunhão, de longe pacífica, entre o europeu
explorador ― em todos os sentidos ― e o nativo. Mascarar a negritude de um
povo toma outros vieses de reflexão quando entendemos que, por
especificidades nacionalistas e, por que não, racistas, criar um termo para
―diminuir‖ o impacto de raça dentro de um determinado espaço de identidade é
uma política de silenciamento e apagamento projetada há muitos anos.
Mas o que seria propriamente essa Morenidade? Para que possamos
responder, em vez de clarearmos as ideias, escureceremos os conceitos:
Conrado (2015, p. 221) afirma que ―tratar-se-ia, nesse caso, de uma etiqueta
local para não ofender, dada a disseminação da ideia de que cor/raça não se
discute‖. Logo, chegamos a mais uma encruzilhada de pressupostos sobre tal
hipótese, emergindo de três vias de caminho. A primeira, de acordo com a
autora, é a supervalorização da presença indígena nos territórios em questão,
voltando a historicidade para a completa verdade do referido ―mito indígena‖,
assim como a construção e a ideia de que a escravidão de negros foi pouca, ou
até mesmo escassa, dentro das espacialidades amazônicas. Indo na
contramão, a segunda via de caminhos entra com a descoberta do negro a
partir da obra de Vicente Salles, o que anda em conjunto com a invenção da
Morenidade como marca de identidade perante o assujeitamento do negro
dentro do discurso local.
As territorialidades discutidas dentro do conceito de nacionalidade vêm
se expandindo em questões do próprio estruturalismo colonial presente nos
ideais brasileiros. Enquanto normalizamos o racismo como atos individuais e
não como entendimentos institucionalizados, vemos que, do ponto de vista
colonial, as entradas e presenças negras no Norte são fonte principal da
construção de uma identidade idealizada e valorizada a partir da miscigenação,
símbolo de perfeita harmonia e integração social. No entanto, de acordo com
Conrado (2015), a partir do século XX, surgiram novos tons e termos referentes
à ocupação espacial da Morenidade, tomando outros rumos de resistência e
pertencimento, aliando-se a outras territorialidades já pré-existentes, como a
noção de Negritude. Aqui, encontramos a terceira via de compreensão da
morenidade.

170
Os contos advindos do nacionalismo estrutural vêm reverberando nos
entremeios da expansão urbana dos Estados do Norte. Enquanto Almeida
(2019) discute a face do racismo, o pertencimento da negritude expande-se
rumo à conscientização da população negra e de suas marcas simbólicas.
Terreiros, grupos culturais e espaços recreativos vão tomando força na
integração, autovalorização e discussão acerca do racismo presente no
apagamento histórico e ideológico da raça negra presente nestes espaços. É aí
que vemos que a identidade negra da Amazônia é, de acordo com Conrado
(2015, p. 219), ―inevitavelmente marcada pelo confronto com uma metáfora de
identidade, fruto do ideário nacional de mestiçagem e pelo próprio
reconhecimento de serem diferentes‖.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Aliados a essa discussão, colocamos em diálogo duas vozes que ecoam
em um único canto. Ambos os autores discutidos neste texto trazem a ideia de
―inconsciência de si mesmo‖ a partir da presença de fenômenos sociais
perpetuados por eras. O racismo estrutural se faz matéria quando a própria
instituição de poder, como no caso das presidências e governos, cria, depois
da ―libertação‖ escravocrata, uma política de limpeza racial. Toda a
circularidade dos preceitos racistas faz com que o processo histórico cultural da
constituição identitária amazônica seja atravessado pela busca de uma
identidade alternativa. Casados com o alto grau de impacto psicológico que os
atos de racismo causam, a ideia de ser moreno entra como uma possibilidade
quase que naturalizada para amenizar choques pessoais e culturais.
Por ora, quebro as amarras científicas do texto e peço licença para que,
de alguma forma, contribua com a narrativa. As discussões trazidas até o
momento foram deveras pertinentes para a reflexão de várias esferas de
pensamento. Uma dessas esferas vai das salas de encontro73 em Campinas
até a cidade de Manaus. Enquanto discutíamos os termos e pertencimentos da
colonialidade teórica, eu me perdia em meio às inúmeras diásporas internas.

73
As salas dos encontros dizem respeito aos momentos de aprendizado e debate no curso de
Pós-graduação em Teoria e História Literária, no Instituto de Estudos de Linguagem-
IEL/Unicamp.

171
Os impactos do racismo estrutural vão, como já dito, para além das requisições
e preconceitos de cor.
As ideologias sob as quais fomos criados ainda persistiam em nossa
mente quando, no ensino médio, tirava sarro e criava situações sobre a
ocasião em que uma amiga morena ― muito branca pra ser negra e muito
negra pra ser branca ― conseguiu uma vaga em odontologia na faculdade do
Estado por meio das ações afirmativas. Esse fantasma da memória nunca
havia me assombrado até o momento em que, na graduação, li sobre a
história, cultura e importância da Negritude em todos os aspectos do mundo.
Graças aos Orixás e, claro, aos grandes mestres da graduação, pude repensar
tais comportamentos e me desculpar ― mesmo que em memória ― com a
colega de escola.
O ponto que trago aqui é que, mesmo achando que havia desconstruído
os preconceitos racistas em relação às cotas, esse mesmo fantasma emergiu
das entranhas dos meus pensamentos e voltou quando, em 2020, prestei o
processo seletivo para o curso de Mestrado. Sabia da existência das ações
afirmativas, porém, agora com outras amarras coloniais e identitárias, não me
sentia confortável enquanto mulher parda em submeter o processo todo dentro
das ações direcionadas aos alunos pretos. Mesmo discutindo tais questões no
projeto, mesmo lendo diversas obras sobre representatividade e identidade
negra, eu não conseguia me enxergar enquanto mulher preta, muito menos me
identificar oficialmente perante processos e bancas. Silvio Almeida pontua
muito bem quando afirma que as subjetividades identitárias entram em choque
quando submetidas aos fenômenos racistas contemporâneos. Meu maior medo
era de que o julgamento alheio fosse contrário aos meus ideais e pensamentos
de autoafirmação enquanto mulher preta. Esconder-me de mim era menos
melindroso do que submeter-me aos olhos de um edital.
Encurtando prosas, digo que assim como os impactos e abismos sociais
trazidos pelo racismo estrutural, as negações e interpretações errôneas de
todas as identidades pré-construídas dentro de nossa sociedade vão bem mais
fundo que qualquer outra situação interna ou externa. Hoje, mais do que
respaldada Identitariamente, singro meus caminhos de memória de identidade
em torno de reafirmar meu lugar, onde quer que me haja instalação.

172
REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen Produção Editorial


LTDA, 2019.

CONRADO, Mônica. CAMPELO, Marilu. RIBEIRO, Alan. Metáforas da Cor:


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<www.direito.caop.mp.pr.gov.br/arquivos/File/PaulLittle__1.pdf>. Acesso: 01 jul.
2023.

173
IMAGENS E NADA MAIS:
(DES)CONSTRUINDO UMA AESTHESIS
VISUAL ATRAVÉS DE PRODUÇÕES
FOTOGRÁFICAS AMATEURS

Ana Carla Barros Sobreira74


.

RESUMO:
A colonialidade do ver como produção da modernidade/colonialidade pode ser
observada nos modos canônicos de composição das imagens representadas
na fotografia. As transgressões estéticas dos fotógrafos amadores (os
amateurs) retratam gestos e composições que se distanciam das escolas de
Belas Artes e dos fazeres hegemônicos revelando vias outras de produções
técnicas fotográficas. Nesse olhar, este texto objetiva contribuir para o
desenvolvimento de estudos que questionem a matriz visual construída pela
modernidade/colonialidade, buscando oferecer subsídios para a construção de
reflexões acerca das imagens de família no contexto do cotidiano apresentadas
no Instagram, como também discutir os mecanismos pelos quais essa nova
forma de fotografar desponta como produções visuais decolonizadoras.

Palavras-chave: Decolonialidade; Fotografia Amadora; Matriz Visual;


Instagram.

INTRODUÇÃO

Este texto surgiu no momento em que assistia a um filme de Agnès


Varda, de 200075, intitulado Os Catadores e Eu, onde me vi inserida em uma
nova forma de fazer arte, tanto através das mãos filmadoras de Varda, que
buscavam coletar diferentes fotografias de catadores em suas viagens, como
através dos olhares dos próprios catadores que apareciam como personagens
constitutivos do filme. Diante de mim, estava uma forma outra de fazer arte, de

74
Doutorado em andamento em Linguística Aplicada no Instituto de Estudos Linguísticos- IEL-
na UNICAMP. Mestre em Estudos Linguísticos pelo PPGEL - Universidade Federal de
Uberlândia- UFU. Especialista em Ensino de Línguas Mediado por Computador. FALE. UFMG.
Possui graduação em Letras-Inglês pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB)- Campus II-
Campina Grande. E-mail: [email protected].
75
Destaco um agradecimento especial a Profa. Dra. Fabiana Bruno, do IFCH, pelas suas
contribuições durante a disciplina Tópicos Especiais em Antropologia, que muito me orientou
nos estudos com as imagens.

174
construir semioses e de projetar através da câmera sensações encobertas e
reveladas pela construção fílmica da diretora.
Minhas observações, no entanto, quero evidenciar aqui, não são de uma
expert em arte, mas de um ser humano como tantos outros, e cujo olhar foi
construído pela modernidade/colonialidade, ou seja, um olhar repressor,
excludente, desumano, que busca o controle da humanidade objetivando
presenteá-la de alguma forma com promessas de salvação.
E nesse contexto, quando olhei nos olhos dos personagens do filme de
Varda, coloquei em prática um processo de desnudamento crítico do meu
próprio olhar, tirando o véu que a modernidade/colonialidade me havia
colocado e comecei a (re)descobrir processos diversos de decolonização que
poderiam forjar novos futuros de revoluções materiais e imateriais, de novas
aesthesis, sensações, prazeres, gostos e percepções.
A tarefa de (des)construção e (re)construção tornou-se assim grandiosa,
pois os conceitos que me foram injungidos pelos imaginários panópticos
coloniais não são fáceis de serem questionados, muito menos reformulados.
Entendi, assim, que deveria estabelecer um diálogo entre meus próprios
saberes e aqueles aos quais tenho estado exposta, para assim poder postular
uma verdadeira prática decolonial. Entendi que deveria, através dos estudiosos
e teóricos das Artes Visuais, dos Estudos Culturais, da Linguística Aplicada,
entre outros, buscar entender como as diversas visualidades coloniais e suas
etnografias imperiais se tornaram ferramentas de legitimação na arte, na
música, na fotografia, e como mantiveram seus paradigmas de dominação.
Tecendo uma reflexão inicial, podemos questionar como poderíamos
decolonizar nossos olhares, e como poderíamos construir diálogos entre as
culturas visuais eurocentradas e as visualidades que foram invisibilizadas e
inferiorizadas pelas tecnologias desenvolvidas pela colonialidade/modernidade
do ver. Nesse sentido, torna-se importante reconhecer a colonialidade
intrínseca em conhecimentos que foram forjados como totalizadores e
universais, desvelando formas outras de fazer arte, de sentir e de perceber.
E esse é o processo que procurarei manter ao longo deste texto:
refletiremos juntos, os leitores e eu, sobre nossas construções estéticas e
nossos conceitos do belo sem nos surpreendermos com outras formas de
beleza que subvertam as normas hegemônicas, dando vazão a novos talentos

175
e outros silenciados, mesmo que para nosso lócus de visão essas revelações
possam apresentar uma ausência de estética.
Podemos, a partir de um questionamento inicial, direcionarmos nossa
leitura nos perguntando como essa estética que vivenciamos em nosso
cotidiano se constituiu e porque nos é tão doloroso aceitar outras formas de
olhar e de ver. O mundo colonial nos cobriu com uma colcha e é importante
estar consciente que retirá-la é um trabalho árduo. Buscamos a decolonização
da arte como também do conhecimento e objetivamos escrever novas
narrativas na história da arte, descobrindo novas formas de expressão através
de outras perspectivas e outras aesthesis.
Nessa seara, se pensarmos na etimologia da palavra aesthesis
observamos que ela provém do grego aisthetiké, utilizada nas línguas
europeias modernas. Seu significado, segundo o Dicionário Online de
Português, se refere as sensações e às habilidades de entender sentimentos,
sensibilidades e aptidões para compreender os efeitos causados pela
percepção do belo, ou seja, uma estese.
Surge então, a posteriori, uma operação cognitiva que vem transformar
a aesthesis em estética e que se relaciona diretamente com as diversas
sensações de beleza. Isso quer dizer que, se buscarmos uma lei universal que
ligue a aesthesis à beleza, ela praticamente não existe. A partir daí a
teorização das sensações, o gosto pela criatividade na música, na linguagem,
nas imagens, entre tantos outros, se universalizou, propagando o conceito de
estética da burguesia pelas civilizações, dando origem à estética e ao conceito
do belo.
Acontece que a arte contemporânea não ficou estática no tempo. Os
processos culturais começaram a despontar através de transgressões do
conceito de belo, revelando novas formas de fazer arte, como na fotografia. O
conceito canônico de fotografia com seus modos de composição de imagens,
como os quatro pontos de ouro e o foco da câmera, começaram a ser
questionados pelos fotógrafos amadores apresentando novas estéticas e
outros gestos que não foram ensinados nas escolas de belas artes.
Os fotógrafos amadores (os amateurs) surgem, assim, como uma forma
outra de fazer arte desvelando processos decolonizadores do ver, distinguindo-
se dos profissionais da fotografia e abrindo leques de questionamentos acerca

176
das questões de autoria, de uma arte não-material que registra o cotidiano, o
banal, o dia a dia das famílias, o ordinário e que são expostos nas redes
sociais.
Esses artistas apresentam sua arte através do imaginário da vida
privada que desponta com propósitos de arruinar os conceitos
estéticos da grande arte. Ao inspirar-se em suas necessidades
cotidianas de suas vidas de todos os dias, constroem processos
decolonizadores na arte e na fotografia e assim, "[...] da foto amadora
suas composições que dissimulam rostos, seus enquadramentos
enviesados e seus sujeitos banais rompem com a fotografia da arte
convencional" (Becker, 1988, p. 72, apud Maresca, 2003, p. 29).

É nesse contexto que propomos, neste artigo, através da análise de


fotografias de artistas amadores postadas no Instagram, tecer reflexões que
nos levem a observar os processos de decolonização do ver através de novas
formas de fotografar que subvertem a arte canônica à medida que expõem
fotos da intimidade familiar e trazem à tona narrativas das vidas em família.
Objetivamos, através dos resultados das análises aqui expostas, revelar uma
estética popular por meio da produção atual de imagens que se concentram em
uma rede social como contexto mutável e itinerante, e onde a estética não se
concentra em um único grupo detentor do saber nem em uma única autoridade
competente, mas transita no contexto do ciberespaço, construindo formas
outras de memórias.
O texto está dividido em seções que buscam a fluidez da leitura e
seguem a seguinte ordem: Introdução, em que direcionamos os leitores para o
tema do artigo. Uma primeira seção intitulada A colonialidade do ver:
delineando o conceito, em que tratamos de inserir os leitores ao embasamento
teórico que deu suporte a escrita deste texto. A seção 2, que denominamos A
estética popular da fotografia familiar nas redes sociais: construindo memórias
críticas, conta com uma subseção intitulada Por uma aesthesis decolonial, em
que apresentamos a análise e os resultados dos dados coletados entre os
artistas amateurs no Instagram. Apresentamos, ainda, uma última seção com
as reflexões finais e as referências citadas no corpo do texto.

177
A COLONIALIDADE DO VER: DELINEANDO O CONCEITO
Seguindo as linhas do pensamento decolonial que se constituiu a partir
de um movimento teórico-prático de resistência à lógica da
modernidade/colonialidade, Joaquin Barriendos desenvolve o conceito de
colonialidade do ver e buscar observar as reorganizações existentes em termos
dos olhares que ocorrem quando nos deparamos com uma nova cultura visual
transatlântica e que se faz evidente com a chegada dos colonizadores às
Américas.
Para Barriendos (2008), essa colonialidade do ver se apresenta através
de uma articulação geopolítica do olhar e do que é visto, em um jogo que se
configura através de uma antropofagia dupla. E é através do mito universalista
e totalitarista construído pela modernidade/colonialidade que podemos
identificar uma geopolítica do conhecimento como proposta por Grosfoguel
(2007) que estabelece entrecruzamentos e imbricações de visualidades, sejam
elas geográficas, espirituais, étnicas ou linguísticas.
Dessa forma, no momento em que iniciamos estudos acerca das
relações existentes entre dispositivos visuais, nos deparamos com uma
colonialidade do poder que define hierarquias produzidas e reproduzidas tanto
pelas técnicas como pelas imagens. A colonialidade do ver, desse modo,
contribui para a manutenção dos mecanismos de controle do conhecimento e
da visualização da alteridade e deve ser entendida como,

[...] uma maquinaria heterárquica de poder que se expressa em todo


o capitalismo, mas na forma explícita do que Quijano chama de
heterogeneidade histórico-estrutural; em outras palavras, a
colonialidade do ver consiste em uma série de sobreposições,
derivações e recombinações heterárquicas [...] (Barriendios, 2011, p.
35).

Ao utilizarmos as perspectivas decoloniais como ferramenta de análise


de visualidades, não podemos deixar de estar conscientes da existência dos
construtos coloniais que tecem teias através de processos que são
constitutivos da modernidade. O projeto decolonial busca questionar o
narcisismo histórico da cultura hegemônica europeia e da razão moderna. Ou
seja, nas palavras de Mignolo (2000, p. 27),

178
Esses projetos formam um paradigma-outro porque têm em comum a
perspectiva e a crítica à modernidade a partir da colonialidade, ou
seja, não é mais a modernidade se refletindo no espelho,
preocupada com os erros do colonialismo, mas vista pela
colonialidade que a observa refletindo-se no espelho. E porque
questionam a própria lógica pela qual a modernidade foi pensada e
ainda é pensada como modernidade.

Dessa forma, o pensamento decolonial vem propor um desprendimento


das epistemologias hegemônicas que vieram colonizar os saberes e
conhecimentos do Sul Global e, ao mesmo tempo, um diálogo com um
pensamento-outro que possa inaugurar a multivocalidade e a pluralidade de
pontos de enunciação geohistoricamente situados, como observa Mignolo
(2005, p. 29),

[...] o giro decolonial é a abertura e a liberdade de pensamento e das


formas-outras de vida (economias-outras, teorias-outras, politicas-
outras); a limpeza das colonialidades do ser e do saber; o
desprendimento da retórica da modernidade e do seu imaginário
imperial.

E é nesse momento histórico que testemunhamos, através das teorias


decoloniais, uma crítica que se vai formando sobre as visualidades que,
segundo Mignolo (2005), nos faz descobrir que os processos coloniais estão
também envolvidos com o visual. Seria, segundo Cartagena (2009), uma
segunda época em que vivenciamos a matriz colonial do poder. Sem dúvida, as
concepções e classificações que aplicamos às artes visuais se relacionam
diretamente com a cultura culta advinda do aristotelismo e do Renascimento e
é aqui onde iniciamos a construção de processos crítico-reflexivos, buscando
entender até que ponto, nos dias atuais, podemos nos ater a uma visão única
do belo e da estética.
Shohat e Stam (1998) já defendem uma estética polissêmica que
apresente a diversidade das culturas e que faça parte de análises policêntricas,
dialógicas e relacionais de culturas visuais, ou seja, uma estética que se
concentre "[...] na dinâmica relacional entre culturas, evitando, sobretudo, o
privilégio epistemológico de qualquer grupo ou parte do mundo" (apud Valle,
2020, p. 64). Propomos aqui questionamentos que busquem a reutilização de
uma estética popular latino-americana com foco nas "fotografias de família"

179
produzidas pelos artistas amateurs e que, sem dúvida, encerram imensas
potencialidades artísticas.
É nesse contexto que buscamos observar a importância cultural das
fotos de família no âmbito de uma rede social e que fazem parte de um mundo
em constante transformação. Uma proposta que nos leva a mergulhar na
intimidade da vida privada e da vida doméstica, desconstruindo as visões
eurocêntricas da estética fotográfica e apresentando outros olhares para as
visões da intimidade. A família como uma passarela para a construção de
autobiografias, reais ou imaginárias, descortinam a "[...] liberdade criadora e a
gratuidade que são as duas vantagens principais desse tipo de colaboração
intrafamiliar ―(Maresca, 2007, p. 210).

A ESTÉTICA POPULAR DA FOTOGRAFIA FAMILIAR NAS REDES


SOCIAIS: CONSTRUINDO MEMÓRIAS CRÍTICAS
A fotografia como arte decolonizadora e subversiva surge como um
percurso reflexivo, pois, sendo fotografias (imagens), elas não deixam de
compor, como sugere Didi-Huberman (2010), lugares singulares de um
pensamento que as habita. E a construção desses pensamentos nos toca.
Lemos as imagens a partir de nossas formações heterogêneas e quando
observamos o que temos diante de nossos olhos, de certa forma, podemos
dizer que o olhar também nos constitui. Então poderíamos inferir que nossos
saberes culturais visuais perpassam processos de colonização que cercam a
experiência do olhar, tornando essa experiência um mistério a ser desvendado.
Nesse contexto, a experiência do olhar não deixa de ser uma construção
cultural que foi aprendida e cultivada através de processos etnocêntricos. Ela
nunca foi um presente recebido. E é por essa razão que existem relações entre
a arte, a tecnologia, as práticas sociais e o papel do observador envolvendo a
ética, a política, a construção estética e o que vemos e o que é visto.
A experiência visual ao ser tratada pela estética nos leva a questionar
qual a estética que utilizamos quando olhamos. O que, afinal de contas, se
encaixa no campo do olhar quando observamos uma fotografia? Todas as
nossas vivências como seres multiétnicos despontam inquietações, um
"suplemento perigoso", como propôs Derrida (1978), que desvela relações de
ambiguidade entre a arte e a estética.

180
Dessa forma, ao pensarmos em imagens, não podemos nos
desvencilhar do conceito de construção social e de como nós mesmos fomos
construídos. Ao pensarmos que as imagens nos aparecem automaticamente,
esquecemos que elas não são nem transparentes nem naturais, "[...] são na
verdade construções simbólicas, como que uma linguagem a ser apreendida,
um sistema de códigos que lança um véu ideológico entre nós e o mundo real"
(Mitchel, 2006, p. 8).
A fotografia amateur reflete uma virada epistemológica da hegemonia do
visível e retrata questionamentos sobre o domínio dos meios visuais através de
uma estética preestabelecida. Um desdobramento que pode ser encarado com
horror pelos iconófobos, aqueles que culpam os meios digitais pelo declínio da
estética hegemônica constituída e uma alegria para os iconófilos, aqueles que
veem emergir formas outras de constituição estética das imagens e dos meios
visuais.Isso porque a hegemonia sempre foi uma construção da
modernidade/colonialidade não um componente intrínseco dos saberes
culturais humanos. E, ao examinarmos as fronteiras cambiantes, nos
deparamos com uma construção social das visualidades que nos remete a um
campo de pesquisa extremamente atual.

POR UMA AESTHESIS DECOLONIAL


Os artistas amateurs que postam suas fotos em redes sociais trilham
caminhos para a construção de uma nova estética que podemos chamar de
uma estética decolonial. Uma estética que é abertamente política, pois
subverte a lógica colonial da arte na modernidade e a construção do
pensamento hegemônico. Trata-se também da vivência de um novo processo
histórico que descortina processos anteriores e ocidentais de colonização. As
fotos amateurs fazem parte de uma decolonização estética e não deixa de ser
uma entre tantas outras ferramentas para desarmar a montagem colonial e
construir subjetividades decoloniais, isso porque essas estéticas populares
deslocam as estéticas imperiais que estão, nessa nova era, submetidas ao
mercado e aos valores corporativos.
Nesse ponto o leitor deste texto poderia se perguntar o que nos
apresenta de tão revolucionário fotos familiares da vida diária postadas em
uma rede social. Trata-se de uma desobediência epistêmica, de formação de

181
novas conjecturas e de questionamentos sobre uma lógica naturalizada que
cria expectativas do que deve ser e que nos foi imposto pelos pensamentos
etnocêntricos. Tanto a opressão como a negação constituem a lógica da
colonialidade e, segundo Mignolo (2007-2008, pp. 18-19),

[a] repressão e a negação são duas vertentes da lógica da


colonialidade: a primeira opera na ação de um indivíduo sobre o
outro, em relações desiguais de poder. A segunda é sobre os
indivíduos, na forma como negam o que sabem no fundo. Os
processos decoloniais consistem em retirar ambos de seus lugares
reprimidos, mostrando também as características imperiais da
negação. A opressão e a negação não se limitam ao sujeito europeu
moderno: o assalariado de Marx ou o sujeito europeu moderno
analisado por Freud. Operam na opressão racial-colonial, e também
na negação dos sujeitos imperiais e coloniais: o negro que quer ser
branco, e o senhor que se recusa a ver a opressão e a exploração de
outro ser humano é eticamente condenável e humanamente
inaceitável.

Nesse contexto, evidencio aqui que parte da minha pesquisa de


doutoramento no Instituto de Estudos Linguísticos da UNICAMP 76, em
Campinas-SP, passou por desenvolver uma análise conceitual que dialogasse
com as teorias decoloniais oriundas do Sul Global. Trata-se também de temas
metodológicos que visam propor leituras de imagens fotográficas apresentadas
em redes sociais por artistas amadores.
No ano de 2021, conectei-me pela primeira vez com imagens produzidas
e postadas em redes sociais e que hoje denomino "Arquivos das
Emergências". São fotografias de famílias que emergem como forma outra de
fazer arte e que transcendem o bojo canônico estabelecido pelas artes
visuais. Desde minhas primeiras incursões, descobri aspectos importantes na
fotografia dos artistas amateurs, entre elas: 1. Essas fotografias apresentavam
uma diversidade de temas como casamentos, viagens, refeições em família,
festas entre outros e; 2. Tratava-se de uma fotografia paisagística urbana de
eventos públicos.
Para a coleta dos dados, escolhi aleatoriamente um artista amador entre
os mais de 2.000 que me deparei no Instagram e a partir daí me atrevi a
observar os olhares fotográficos com os quais estava sendo exposta. Para a

76
A este propósito, destaco aqui que minha pesquisa de doutorado é intitulada "Cerzindo
tramas e texturas: ressignificacaoes de construção de saberes expressos nos tecidos andinos
feitos por mulheres", e está sendo orientada pela Profa. Dra. Daniela Palma, no IEL-Unicamp.

182
análise que deu como resultado este texto, observamos o trabalho do fotógrafo
amador NB77 que costuma apresentar suas fotografias de família, de suas
viagens, desenhos e trabalhos. Observamos que, em todas as fotografias, há
um acentuado despojamento diante da técnica fotográfica tradicional que exibe
uma forma de emancipação e insere uma fissura a partir da constituição de
uma memória fotográfica. Vale salientar aqui que buscamos indagar durante os
estudos uma possibilidade outra do fazer fotográfico que viesse disparar
processos reflexivos e críticos e que despertassem um giro decolonial do ver e
desse modo uma nova forma de representação visual e de construção de
memórias.
Artistas já reconhecidos como Bernard Plossu também reivindicam
técnicas outras com aparatos considerados medíocres, baratos e de plásticos
enquanto que muitos fotógrafos realizam seus trabalhos tirando fotos
aleatórias, resgatando traços comuns no imaginário amador como o tremido, a
mutilação dos personagens e a falta dos quatro pontos de ouro.
Fotógrafos como Robert Frank, Lee Friedlander ou Garry Winogrand, já
trataram de questionar os modos canônicos de composição das imagens, são
elas as transgressões estéticas que sem dúvida podem ser observadas nas
pinturas de Picasso. Vale observar também que os fotógrafos amateurs se
distinguem dos artistas profissionais pela necessidade frequente de suas
fotografias estarem presentes nas redes sociais, uma outra forma subversiva
de se libertar da natureza antinômica da arte.
NB se destaca por registrar o banal e o ordinário sob um viés que
recompõe a vida familiar tal como aparece nos antigos álbuns de família, ou
seja, a família encenada, glorificada e sempre feliz e convencional. Apresento
na figura 1 uma das fotos analisadas que denominei "Família".

77
As fotografias apresentadas neste texto foram gentilemente cedidas e autorizadas pelo autor
para uso neste estudo. Preferi, no entanto, desfocar os rostos que aparecem na fotografia,
objetivando evitar a exposição desnecessária dos participantes.

183
Figura 1- Família

Fonte: Instagram. Acesso em: outubro de 2022.

As cenas da vida privada postadas no Instagram do artista refletem uma


arte que busca evitar o peso de grandes cenas ou de grandes personagens,
promove o imaginário do cotidiano e evidencia composições subversivas e
decolonizadoras. Na figura 2 pode-se observar uma cena famíliar de ceia entre
o artista e sua esposa.

Figura 2- Casal

Fonte: Instagram. Acesso em: outubro de 2022.

Ou seja, segundo o argumento da exposição The Art of the Everyday:


France in the 90s,

184
Os artistas apresentados nesta exposição encontram, eles também,
sua inspiração nas necessidades cotidianas da vida de todos os dias
e rejeitam deliberadamente a reverência fora da moda pelo bom
gosto ("le grand goût") que antes aparecia na arte francesa (1997
apud Maresca, 2003, p. 209).

Observa-se um registro de transgressões que nos aproxima das


propostas decoloniais questionadoras. As imagens que o artista NB expõe de
sua própria família nos apresentam narrativas de sua vida como um reflexo no
espelho. Podemos ver seus filhos brincando no jardim, no parque, correndo e
pulando, penetramos em sua intimidade, nos cômodos da casa, da cozinha a
sala de estar, vivenciamos seus instantes cotidianos, descobrimos cenas de
família, o cansaço do rosto do dia em que o próprio fotógrafo não estava tão
bem. Nas figuras 3 e 4, pode-se observar cenas de seu filho no parque.

Figuras 3 e 4- Filho

Fonte: Instagram. Acesso em: outubro de 2022.

Vale observar aqui que muitas das fotografias do artista NB podem gerar
polêmicas ao expor a intimidade física principalmente de sua filha, atitudes que
podem ser julgadas como exibicionistas e provocantes. Artistas como Nan
Goldin ou o japonês Araki também foram criticados por explorarem um
potencial provocador à medida que expuseram sua intimidade erótica. Da
mesma forma, Sally Man e Tierney Gearon foram criticados por exibirem fotos
julgadas como provocantes e que exibiam seus filhos nus. Nas figuras 5 e 6,
essas cenas de nudez de sua filha são apresentadas e denominei "Cenas do
banho".

185
Figuras 5 e 6- Cenas do banho.

Fonte: Instagram. Acesso em: outubro de 2022.

A dimensão social das fotografias amateurs transcendem a simples


exibição da vida íntima, pois, segundo NB, busca construir uma obsessão
visual que reflete sua própria infância e isso dialoga com outros artistas como
na arte de Jean-Pierre Tingaud, de 1985, intitulada Les Correspondances, onde
o artista apresenta uma enorme produção autobiográfica de Dens Roche, o
imaginário barroco do tcheco Jan Kaudek e os retratos de Nicholas Nixon.
As crianças servem como um modelo de constituição das imagens da
própria vida do fotógrafo e ele retrabalha as imagens que ele guarda de sua
própria infância, ou seja, ele se imagina através delas e aproveita com
frequência os traços e os corpos dos parentes próximos para materializar sua
imaginação.
Um outro ponto que vale evidenciar aqui é que as imagens amateurs
refletem o efeito do tempo ano após outro, como pode ser observado na série
de Richard Vedon sobre os anos íntimos de seu pai. Fotografar familiares
constrói processos de revelação dos efeitos do tempo e os artistas amateurs
fazem isso sistematicamente.
A disponibilidade de um filho que cresce junto ao fotógrafo disponibiliza
a facilidade para construir séries sobre o tempo. Na sequência a seguir, pode-
se observar uma das composições do artista NB, em que expressa a
contiguidade do tempo da gravidez ao nascimento e momentos de sua filha.

186
Vale observar também que, em muitas de suas postagens, ele se inclui, o que
nos faz observar nesse processo de exploração analítica a necessidade de
fixar sua presença em determinado tempo da vida da criança, ou seja, desde a
gravidez, o nascimento e os momentos de seu crescimento.

Figura 7- Gravidez

Fonte: Instagram. Acesso em: outubro de 2022.

Figura 8- O nascimento

Fonte: Instagram. Acesso em: outubro de 2022.

187
Figura 9- A recém-nascida.

Fonte: Instagram. Acesso em: outubro de 2022.

Figura 10- A infância 1.

Fonte: Instagram. Acesso em: outubro de 2022.

Figura 11- A infância 2.

188
Fonte: Instagram. Acesso em: outubro de 2022.

Figura 12- A infância 3.

Fonte: Instagram. Acesso em: outubro de 2022.

A exposição das fotos de família no Instagram do artista revela uma


estética que não foi inventada, mas desponta como ferramentas de pesquisa e
de reflexão quanto a construção de memórias, ou seja, "[...] sobre a banalidade
ou, ao contrário, a estranheza do cotidiano, sobre os efeitos do tempo"
(Maresca, 2003, p. 212). Quanto à estética, vale observar aqui se realmente
estaria sempre no nível zero da fotografia ou se estaríamos lendo cada foto
com olhares colonizadores. Seria interessante que outros pesquisadores
empreendessem investigações acerca da evolução da fotografia desde os anos
de 1960 até os dias atuais, suas transformações e variações, o efeito dos
Iphones, as exposições em redes sociais, os flashes digitais.
As fotos de família que analisamos no Instagram e que são comuns aos
artistas que as postam refletem um novo gênero pictórico que atrai para si os
olhares até de produtores de imagens profissionais. Em março de 1999, por
exemplo, foi realizada uma exposição na Biblioteca Nacional da França,
intitulada La Confusion des Genres: Photographie, Photographies, onde foram
apresentadas comunicações sobre as fotos de família e a arte contemporânea.
Além de sua inserção no universo da arte moderna, as fotografias amateurs
despertaram o afã dos publicitários que, ao se alimentarem do imaginário da

189
estética popular desse tipo de fotografia, promovem campanhas sobre a
família, férias, ambientes domésticos, entre tantos outros.
Seriam necessários outros estudos mais aprofundados para entender as
fronteiras construídas pelo pensamento etnocêntrico e que se revelam através
de escritas outras nas fotografias das redes sociais. Essas fotografias já não
estão estáticas em uma exibição de um ateliê ou de um cânone que detém os
critérios da beleza, mas fazem parte de um universo vivo e itinerante de um
mundo em constante movimento.

REFLEXÕES FINAIS
Quero concluir este texto propondo novas investigações sobre os
artistas amateurs que fazem parte de um movimento decolonizador e que
propõem a construção de uma estética outra quanto a arte de fotografar.
Gostaria de me juntar a estudiosos que estejam refletindo sobre as imagens
como constitutivas de fenômenos, acontecimentos, revelações, epifanias,
temporalidades e que tecem o tecido social e que interpelam o nosso cotidiano.
Gostaria também de, ao olhar cada fotografia postada por um artista que
é tão efêmera quanto o próprio tempo, deixar-me inquietar na medida em que
cada imagem carrega em si lembranças, sobrevivências e insurgências. As
revelações dos tempos passados, do presente e dos devires nos convocam a
tomar posição na construção de uma história humana em que nós mesmos
somos os principais protagonistas.
E assim pensar cada fotografia, como nos propôs Walter Benjamin
(1971), através de uma perspectiva aberta, (re)descobrindo novos valores para
a nossa era em especial no Antropoceno que nos faz buscar entender nossa
posição como seres responsáveis por nossos próprios atos e como sugere
Didi-Huberman (2010, p. 191) "[...] entender as pulsões e sofrimentos do
mundo, de transformá-los, de remontá-los em uma forma explicativa,
implicativa e alternativa".
Este texto se propôs a construir diálogos com o futuro do humano, isso
porque queremos questionar o que faremos das imagens nossas e dos outros
e como elas podem ser ferramentas para a construção de lugares de
conhecimentos, dessa vez, oriundos do Sul Global. Como queremos que cada
ato de memória postado nas redes sociais sejam formas de repensar nossos

190
olhares em desconstrução e como esses olhares podem ser campos de
desejos realizáveis no futuro. A isso convido a todos para se juntar nesse
caminho e trilhar, por meio de um pensamento decolonizador, o caminho para
um futuro outro.

REFERÊNCIAS

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192
193
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS:
ADENTRANDO TERRITÓRIO(S) E
TERRITORIALIDADES [R]EXISTENTES

Emerson Sandro Silva Saraiva78


Ceane Andrade Simões79
Elaine Pereira Andreatta80

RESUMO:
Este texto parte de uma experiência em um curso de extensão denominado
―Educação em Direitos Humanos: perspectivas e desafios na sociedade
neoliberal e na globalização da economia‖, realizado no ano de 2019, que
buscou mobilizar temáticas contextuais trazendo à cena uma discussão crítica
sobre Direitos Humanos e debates contemporâneos urgentes, considerando a
perpetuação de opressões e hierarquias de raça/cor/etnia, de gênero e de
classe. Diante dessa experiência, este capítulo propõe-se a refletir sobre
elementos transgressores da educação para a emancipação e para a liberdade
(hoocks, 2017). Para tanto, discutimos sobre a educação política em Direitos
Humanos (Monteiro et al., 2013; Santos, 2014), a qual direciona a
problematizar territórios e territorialidades para compreendermos os fenômenos
sociais e repensar, hoje, as limitações dos DH. Assim, ao mobilizar nossa
discussão a partir da experiência e dos nossos estudos, reafirmamos que um
processo decisório de políticas públicas e educação capaz de refletir
problemáticas, desafios, possibilidades e necessidades exige a participação de
uma sociedade democrática, envolvendo todos os setores da sociedade para
que o giro ao território (Escobar, 2014; 2016), que requer letramentos sociais e
críticos (Street, 2014; Janks, 2016), oportunize uma prática pedagógica
fundada em uma perspectiva epistêmica decolonial, na luta por uma pedagogia
indisciplinada/insubordinada.

78
Professor na Universidade do Estado do Amazonas (UEA); Doutor em Educação pela
Universidade Federal do Amazonas (UFAM); Membro do GEPPPE- UEA (Grupo de Estudos e
Pesquisas em Políticas Públicas e Educação). E-mail: [email protected]
79
Professora na Universidade do Estado do Amazonas (UEA); Mestre em Educação -
Processos Formativos e Desigualdades Sociais pela FFP- Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ); Doutoranda em Educação pelo PPGED - Universidade Federal do Pará
(UFPA); Membro do GEPPPE- UEA (Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas e
Educação). E-mail: [email protected]
80
Professora na Universidade do Estado do Amazonas (UEA); Mestra em Letras- Estudos
Literários pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM); Doutoranda em Linguística
Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); Bolsista da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM). Membro dos Grupos de Pesquisa
GEEF-UFPB (Grupo de Pesquisa, Estágio e Formação Docente), GEPPPE- UEA (Grupo de
Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas e Educação) e Nós-Outros: Linguagem, Memória e
Direitos Humanos- IEL/UNICAMP. E-mail: [email protected]

194
Palavras-chave: Educação e direitos humanos; Pedagogia indisciplinar;
Democracia.

INTRODUÇÃO
Percebendo os efeitos do aprofundamento de deterioração democrática
na sociedade brasileira, capitaneada pelo enfraquecimento institucional, pela
polarização política e disseminação de notícias falsas, em escala nunca vista,
bem como pela inoculação dos discursos de ódio, como política de
manipulação de afetos nestes últimos anos, nós, membros do Grupo de
Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas e Educação da Universidade do
Estado do Amazonas (GEPPPE – UEA), sentimos a necessidade de promover
uma reflexão mais consistente com a comunidade acadêmica na qual atuamos,
em torno da conjuntura nacional e mundial. Propusemos, assim, um curso de
natureza extensionista buscando mobilizar temáticas contextuais, enredando o
debate sobre a sociedade neoliberal e suas violências, bem como trazendo à
cena uma discussão crítica sobre Direitos Humanos.
Assim, neste texto, propomos algumas reflexões a partir do curso
intitulado ―Educação em Direitos Humanos: perspectivas e desafios na
sociedade neoliberal e na globalização da economia‖, realizado no segundo
semestre de 2019 — após o pandemônio eleitoral de 2018 no Brasil e meses
antes de sermos impactados pela realidade pandêmica.
Entendemos que o debate em torno da educação em Direitos Humanos
(Monteiro et al., 2013; Santos, 2014), ancorada em elementos transgressores
da educação para a emancipação e para a liberdade (hoocks, 2017) e contra a
barbárie (Cássio, 2019) — tantas vezes não contemplados nos currículos
universitários de cursos de licenciatura —, traz em si uma perspectiva de
confrontação às hierarquias acadêmicas e às práticas colonizadoras nesse
âmbito. Sabemos que, mesmo com a emergência desse debate e com
experiências importantes concebidas nos últimos anos, o conhecimento
acadêmico-científico eurocêntrico ainda estrutura nos currículos fortes marcas
da colonialidade que perpetuam opressões e hierarquias de raça/cor/etnia, de
gênero e de classe.
O curso promovido como ação de extensão assumiu o compromisso
com uma perspectiva popular e emancipatória (Gadotti, 2017) voltada às

195
necessidades sociais que emergem nos diálogos entre a universidade e a
comunidade. Assim, visou analisar a importância da educação em direitos
humanos, seus desafios e perspectivas frente à sociedade neoliberal e a
globalização da economia; discutir o movimento de informação e conhecimento
sobre o neoliberalismo e a globalização em tempos de letramento digital, fake
news e pós-verdade; refletir sobre o papel da educação em direitos humanos,
além de abordar a ideia de encarceramento social, a violência e manutenção
do status quo. Tais objetivos contribuíram para apresentar temas capazes não
só de denunciar práticas de opressão que evidenciam a manutenção de
relações de colonialidade e exploração, mas também de permitir um
posicionamento, um horizonte, uma prática de resistir, transgredir e intervir
(Walsch, 2013), buscando desnudar um modelo neoliberal vigente (Valim,
2017) e discutir a colonialidade do poder (Mignolo, 2003).
Desse modo, dialogar com a comunidade acadêmica sobre o papel da
educação em direitos humanos representa uma necessidade diante do
crescimento da violência, da desvalorização do campo científico e da
barbarização da sociedade. O curso representou, nesse sentido, a necessidade
de pensar a (re)construção da democracia em diferentes espaços
sociopolíticos e culturais, mediante as perspectivas dos direitos humanos e da
necessidade de uma educação democrática que valorize o direito de participar,
aprender e ensinar, considerando o compromisso com a justiça social, o qual
tem em vista transgredir narrativas já conhecidas e produzir novas, uma vez
que toda prática social é também uma prática de saber que mobiliza um
conjunto variado de epistemologias que se fundam nas regiões periféricas e
semiperiféricas do sistema-mundo (Santos, 2010).
Como uma experiência dialógica, de onde emergiram temas contextuais,
nossa metodologia abrangeu a realização de conversas e debates formativos.
Para isso, empregamos obras fílmicas, acesso a mídias digitais, propagandas,
páginas de redes sociais e análise de fake news. O curso transcorreu em 30
horas, das quais 16 horas foram encontros coletivos presenciais e 14 horas de
estudo orientado. As temáticas foram pensadas não apenas pelos professores,
mas sugeridas pelos acadêmicos participantes do grupo que observavam o
crescimento de discursos de ódio em relação a pautas sociais e a grupos

196
minoritários na própria universidade, além do crescimento alarmante de um
discurso fascista e conservador, limitador da pluralidade cultural e de ideias.
Os encontros foram realizados por meio de leitura de materiais,
exposição, conversas e debates formativos mediados por bibliografia básica
(constituídos por textos em formatos variados), mas com ênfase nos diálogos
produzidos entre os participantes e socialização de impressões e
conhecimentos, com apresentação de dados e interrogações sobre a realidade
brasileira e global, de modo a considerar a diversidade existente entre os
participantes. Além disso, a prática de oficina esteve presente como uma
possibilidade de desconstrução da estrutura hierarquizante que reserva aos
participantes um papel passivo (hoocks, 2017), ou, ainda, mudando o foco de
atenção dos métodos para os sujeitos (Arroyo, 2012).
Nesse contexto, os encontros foram realizados a partir dos seguintes
conteúdos: I- Fake News, pós-verdade, discurso de ódio e letramentos em
tempos de era digital81; II- Encarceramento social, massa de manobra,
violência e a manutenção do status quo; III- Educação em direitos humanos e
as possibilidades de mudança da sociedade brasileira, mediante a globalização
da economia e o neoliberalismo. O curso assumiu assim um espectro amplo de
discussões contextuais, bem como pontos de partida e formas de abordagem
que, no seu bojo, apontaram para a necessidade de aguçar a nossa percepção
ou sensibilizar para os riscos, desafios e para a inconclusão (ou parcialidade)
da democracia liberal e da garantia dos Direitos Humanos no Brasil, seja a
partir da manipulação da opinião pública, com a explosão da (des)informação
digital, do encarceramento em massa ou da histórica negação de direitos e
expropriação dos territórios. Um triste exemplo é que, enquanto escrevemos
sobre esta experiência realizada após o desastroso ano de 2018 e a traumática
pandemia da Covid-19, mais uma chacina é levada a cabo em um bairro
periférico do país e mais uma criança negra, moradora de favela em uma grade
cidade, é assassinada à luz do dia pela polícia, ou seja, atravessamos o terror
promovido pelo Estado, em "plena" democracia.
Por isso mesmo, para conectar temáticas tão diversas, o curso, em sua
concretização, precisou se aproximar de uma experiência não (inter)disciplinar,

81
Para este primeiro conteúdo, contamos com a participação da Profa. Dra. Renata Nobre
Tomás, a quem agradecemos.

197
mas propriamente indisciplinar buscando — como aponta Larrosa (2012), ao
falar da pesquisa enquanto experiência — liberar a disciplina da sua carga de
excessiva formalidade ou ―formatação metodológica‖ e abrir o decurso das
atividade para múltiplas expressões, uma vez que a realidade se apresenta de
maneira complexa, multifacetada e multideterminada.
A partir dessa experiência e de suas provocações, nas seções
seguintes, abordaremos a educação política em Direitos Humanos,
direcionando para uma compreensão que cada vez mais nos convoca à
reflexão que é a emergência dos territórios e das territorialidades, ou seja, a
necessidade do giro aos territórios para compreendermos os fenômenos
sociais e repensar, hoje, as limitações dos DHs. Esse giro ao território, requer
letramentos sociais, críticos e (trans)culturais, como veremos.

POR UMA EDUCAÇÃO POLÍTICA EM DIREITOS HUMANOS


A educação é uma das problemáticas da nossa sociedade que encontra
como desafio a promoção do conhecimento crítico, a transformação de
espaços escolares e não escolares, a mudança de valores e conceitos, a
desconstrução de hierarquias e dos aspectos conservadores de manutenção e
controle social. Daí a impossibilidade da neutralidade da educação que resulta
dessa qualidade que a educação requer ser: política (Freire, 2019, p.33).
Desta maneira, a educação e seus usos, ultrapassam espaços escolares
e podem vir carregadas de intenções, ideologias, violências apresentando
princípios e características que fomentam o consumo, a competitividade e a
meritocracia afastando as pessoas e criando individualidades que destroçam a
democracia.
Ao supormos que as precárias condições de vida, as violências e a
alienação se refletem na educação enquanto processo de dominação,
reconhecemos que essas ações ferem a política de direitos humanos
apresentada pela Carta das Nações Unidas, em 24 de outubro de 1945. Em
seu art. 1º, a carta salienta que ―Todos os seres humanos nascem livres e
iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem
agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade‖ (United Nations,
2000, p. 3)

198
Em um mundo onde as liberdades são forjadas, controladas e a
educação não está ao alcance de todos, se percebe a ausência de respeito aos
direitos humanos. As diferenças abissais de equidade e igualdade revelam uma
sociedade de classes e de grupos sociais que competem entre si e promovem
lutas separando a ideia de humanidade.
No curso de Extensão de Educação em ―Direitos Humanos: perspectivas
e desafios na sociedade neoliberal e na globalização da economia‖, revelou-se
a possibilidade de diálogos, olhares, devaneios, preconceitos que temos do
mundo, das pessoas e das políticas sociais, econômicas, culturais e, da
coletividade e individualidades.
Para resgatar o pensamento, a metodologia optou por escutas e
conversas pautadas nas dúvidas do que estava e está estabelecido. Utilizamos
como proposta, pensar com os participantes as informações do cotidiano,
conhecimentos que pensamos que detemos e sensos comuns divulgados em
várias plataformas e realidades sociais em contraponto com o conhecimento
científico sobre a educação enquanto política de direitos humanos.
Uma das pautas de discussão, exemplificando, foi a reforma do Ensino
Médio que representou uma demanda imposta, sem a participação social, e
que abarcou um currículo pautado na mercadorização da educação e na
substituição de professores por tecnologias da informação, além de negação
da participação social e de professores na elaboração de uma pauta
democrática. Sem que realmente se fizesse escuta e diagnóstico, o resultado
não refletiu as reais necessidades da educação brasileira.
Várias propagandas governamentais e de setores privados de educação
pautaram o ―NEM – Novo Ensino Médio‖ como algo surpreendente que
respeitava a escolha de estudantes e professores. No entanto, a formação
docente e as condições de trabalho não cooperaram para a natureza de uma
educação pública, gratuita equitativa e de qualidade, o que alavancou a
ampliação de um mercado competitivo, em que as escolas privadas pudessem
oferecer educação como serviço para um mundo competitivo que investe em
capital social ou capital humano.
A negação da educação e dos direitos humanos aparece
contundentemente neste exemplo das discussões, porque reflete o papel do
tipo de sociedade colonial que nos constituímos e do processo do capital como

199
instrumento de controle da sociedade. Neste modelo, há versões de racismo,
fascismo, nazismos, xenofobia, misoginia, questões de gênero, representando
modos de sistematizar conflitos, comportamentos e a ―formulação de verdades
programadas‖ para manutenção do status quo.
A reforma do Ensino Médio foi uma das situações do cotidiano que
representava, por meio da educação, que estávamos e ainda estamos diante
de uma democracia ameaçada no mundo globalizado economicamente. E as
redes sociais, as tecnologias, embora sejam importantes para a sociedade que
temos hoje, trabalharam juntos na elaboração deste encarceramento de
mentes e sociedade. Daí a necessidade de uma educação política, pautada na
perspectiva do letramento como uma prática social (Street, 2014), com a
participação dos sujeitos em práticas e eventos de letramentos, ou seja, como
um sujeito ativo nas relações comunitárias, consciente dos seus direitos,
aprendendo e ensinando por meio das experiências.
Portanto, a educação política pautada nos direitos humanos ainda é
importante, porque os direitos humanos consistem em um conjunto de direitos
considerados indispensáveis para uma vida humana pautada na liberdade,
igualdade, equidade e dignidade. Além disso, uma educação pautada em DH
traz para o debate a questão ética, política e antropológica na condição de que
somos todos seres humanos, independente das diferenças (Ramos, 2021),
mas conscientes da sua existência.
A educação enquanto política representa a leitura crítica da(s)
realidade(s) e suas problemáticas em diálogos que confrontem a história, o
presente e o futuro em movimentos de fazer e refazer relações, análises das
contradições e criação de caminhos considerando os diversos cotidianos e
suas interações com a sociedade globalizada e, ao mesmo tempo,
contraditória. Desse modo, ao elaborar, executar e avaliar um curso de
extensão que pretendeu refletir sobre educação em direitos humanos,
focalizando também discussões sobre a ameaça à democracia reverberada
pela produção, reprodução, distribuição e controle dos inúmeros textos em
circulação nos espaços digitais, dentre eles as fake news, constitui-se também
como uma possível estratégia de enfrentamento. Em diálogo com os
participantes, reafirmou-se a compreensão de Signorini (2011) ao citar Eno
(2010), no atual momento, o especialista não é mais aquele que acessa as

200
informações, mas aquele que melhor as interpreta, considerando a quantidade
de informações disponíveis. Por isso, uma educação libertadora implica um
olhar para o que realmente é preciso ensinar em nossas salas de aula,
maximizando relações, diálogos e redes, a fim de construir significados para
além das pós-verdades estabelecidas e de uma cultura hegemônica.
Considerando as concepções do letramento crítico (Janks, 2016, p. 26),
que pensa a formação do sujeito como cidadão atuante no sentido de
transformar e reduzir desigualdades, já que ―num mundo em que a única
certeza, além da morte e dos impostos, é a própria mudança, o letramento
crítico tem que ser ágil o suficiente para mudar à medida que a situação muda‖.
Para Jordão (2016, p. 46), ―ser crítico significa buscar constantemente entender
as suas e construir outras formas de ver, de fazer, de ser e de estar no mundo‖,
uma vez que é preciso ler o mundo para estar nele e, assim, a criticidade
―significa viver em movimento e perceber-se como agente na construção dos
sentidos — agente suspenso em teias de significação que ele próprio teceu em
sua experiência de vida‖ (Jordão, 2016, p. 46), acrescenta o autor.
Assim, para desmontar a colonialidade, precisamos nos questionar por
que nos reproduzimos na lógica do capital, do racismo, do preconceito, do
desrespeito entre outros elementos complexos que formam a sociedade e sua
normalização, que se fizeram por meio da subalternização da sociedade e
colonização europeia no Brasil e em outros lugares do mundo (Ortiz Ocaña;
Arias; Conedo, 2018, p. 20).
Discutir estes aspectos caminha pela ideia de pensar na Europa, na
origem do conservadorismo político e econômico, no liberalismo, na Revolução
Francesa e suas rupturas e imposições de proprietários do poder,
preservadores da ordem e da propriedade privada e da manutenção da
sociedade. Sem discutir esses elementos e suas variações, seria complicado
compreender o aumento da liberdade de mercado e a diminuição da liberdade
social e isso são formas de violências.
Ao dialogar sobre as questões da violência e suas variações, entre elas
a violência pela linguagem imposta, a cultura ser copiada e posta em uso
obrigatório, os valores éticos, morais, religiosos, o movimento político-
econômico e a definição por padrões de poder sobre o que é certo/errado e as
punições, sua normalidade/ anormalidade, estamos fundamentando a luta para

201
a descolonização, ruptura e uma pedagogia indisciplinada/insubordinada. Para
desvelar ―— o que a linguagem colonial tentou esconder, ocultar, tornar
aceitável‖ (Fanon, 2022, p.17).
A mentalidade conservadora é colonial. Ter tempo para discutir a
mentalidade conservadora significa dar passos para um processo de
conhecimento, autoconhecimento e democracia, significa que a educação é
uma política e como tal precisa ser analisada em seus pormenores e na sua
totalidade. Os participantes do curso apresentaram esta curiosidade, embora
tivéssemos observado que havia um grupo conservador também presente nas
atividades.
Este espaço de contradições é provocativo porque traduz a possibilidade
de afirmação da consciência crítica que se constrói nas discussões, nos
debates e na percepção das ambiguidades. Essa se mostrou uma das
maneiras de descolonizar. Não menos frustrante entendemos também que ―a
descolonização é sempre um fenômeno violento‖ (Fanon, 2022, p. 28).
Outro aspecto pautado nas rodas de conversa e entre leituras e
discussões dos assuntos apresentados nas páginas sociais foi sobre a crise
atual e o novo conservadorismo ou neoconservadorismo que aponta a
sociedade como responsável pela crise e não o mercado e o Estado Mínimo 82.
O neoconservadorismo fundamenta-se em uma política econômica que valoriza
o capital e que se traduz em altas taxas de desemprego como se fosse uma
―situação transitória‖, além de pregar a ―redução de custos de legitimação do
sistema político‖ em prol do mercado e do desenvolvimento de uma política
cultural que negue a ciência e os intelectuais por trabalharem contra a ―esfera
pública despolitizada‖, portanto a valorização na nova sociedade precisa
centrar-se na cultura tradicional, integração de valores absolutos e ―contenção
da concorrência no mercado e na modernização acelerada‖ (Sierra, 2019, p.
23).
Nos debates, foi possível detectar nesses materiais e nas apresentações
nas redes sociais a superficialidade das propostas, falta de uma discussão
82
Estado Mínimo: O conceito de Estado Mínimo está atrelado ao Estado Liberal, uma forma de
Estado não intervencionista. O setor econômico é o comando da sociedade, a ideia é o
desenvolvimento de liberdade individual sem interferência do estado, cabendo aos indivíduos e
seus grupos determinar seus próprios interesses. A ideia está baseada em: ―A riqueza das
nações‖, de Adam Smith, de 1776 (Carvalho Filho, 2008).

202
crítica, histórica e social frente à organização da sociedade e retirada da
atenção por meio de conflitos pontuais, enfrentamento de grupos e identidades
sociais, diferenças culturais, xenofobia, racismo, gênero, religião, segurança,
educação tradicional e militarizada e manutenção da família.
Ao pensar o curso por uma educação política, era fundamental
compreender que educação envolve questões históricas, variáveis complexas
que implicam a coletividade e os mecanismos de participação ou de controle no
processo de condução, ou libertação da sociedade.
A educação política é intencional e considera as subjetividades em
ampla relação com a coletividade. Logo, a análise de muitas perspectivas se
faz necessária, o senso comum é importante, porque reflete o andamento do
controle social exercido por alguém ou por um grupo, assim como temos as
questões filosóficas, jurídicas, sociológicas, econômicas, culturais e
administrativas que corroboram com a organização de políticas públicas e suas
metas e finalidades. Assim, o diálogo entre todos os saberes é também uma
urgência quando pensamos na indisciplina que propomos, o que reverbera as
práticas e os escritos de Paulo Freire. Moita Lopes (2006) afirma que a
construção do conhecimento sobre a vida social pode e deve vir da
contribuição daqueles que vivem excluídos, em uma atitude de desconstrução
e reconstrução de saberes, dialogando com o mundo contemporâneo e suas
práticas sociais.
A educação, nesse sentido, caracteriza-se pela tentativa de desconstruir
o estabelecido, rebelar-se contra os caminhos percorridos e tidos
conservadoramente como solução para as questões de nosso tempo. Discutir o
comportamento estabelecido como correto, duvidar das habilidades e
competências atribuídas aos novos tempos e aplicadas como normativas às
pessoas.

TERRITÓRIOS, TERRITORIALIDADES E EDUCAÇÃO EM DIREITOS


HUMANOS
Os desafios apontados na seção anterior nos convocam, nesse
compromisso de pensar a Educação em Direitos Humanos, a democracia e a
descolonização da própria universidade, a entender as limitações, tensões e
acomodações que esses (e outros) conceitos nos induzem. Daí a necessidade

203
de pautarmos uma pedagogia indisciplinada para lidar com esses temas. O
curso aqui abordado, muito embora não tenha enunciado inicialmente essa
concepção, já a formulava e praticava a partir dos incômodos que algumas
categorias nos provocavam, numa tentativa de trazer a discussão sobre DH e
democracia para outro solo, percebendo a sua condição necessária, mas ao
mesmo tempo insuficiente diante do cenário que atravessamos. Esse giro,
intuitivamente, nos levou ao(s) território(s) e às territorialidades [r]existentes e
que se orientam para a produção da vida, dignidade e justiça (Escobar, 2014).
Nesse sentido, em um de nossos encontros, enfocamos o debate sobre
as possibilidades de pensar os Direitos Humanos e a democracia a partir
daqueles e daquelas que vivem sistematicamente a violação dos seus direitos,
como camponeses e camponesas exploradas e pessoas perseguidas
politicamente, buscando enfatizar as suas experiências e vozes. Isso exigiu
partir de perguntas incômodas como, por exemplo, ―por que a maioria dos
seres humanos não são sujeitos de direitos humanos?‖ (Santos, 2013) para
pensar nos abismos sociais entre a minoria que goza de direitos humanos e a
grande maioria que não. Tais abismos foram historicamente criados pelos
sistemas que ainda vigoram até o momento: o capitalismo, o colonialismo e o
heteropatriarcado. Mas, como estimular a nossa imaginação social para a
emancipação, libertação e dignidade humana que se conectem a uma outra
experiência de democracia e direitos, incompatível com o capitalismo?
Desse modo, recuperamos, no contexto brasileiro, alguns conflitos
passados e contemporâneos que indicam como a democracia liberal não
conseguiu transformar a sociedade. Analisarmos, por exemplo, a obra fílmica
Cabra Marcado Para Morrer (1984), do diretor Eduardo Coutinho, como
importante exercício de memória e historicidade para compreender as severas
violações de direitos humanos que atravessam a vida da população
expropriada da terra. Como afirma a personagem principal desse filme, Dona
Elizabeth Teixeira, líder campesina:

A mesma necessidade de 1964 está traçada, ela não fugiu um


milímetro; a mesma necessidade na fisionomia do operário, do
homem do campo e do estudante. A luta que não pode parar. [...] É
preciso mudar o regime, porque onde tiver essa democracia aí, essa
democraciazinha aí... Democracia sem liberdade? Democracia com

204
salário de miséria e de fome? Democracia com o filho do operário, do
camponês sem ter direito de estudar? Não pode. Não tem como.

Os conflitos territoriais que ameaçam as condições de existência de


grande parte da população brasileira, especialmente pessoas racializadas,
pauperizadas, indígenas, mulheres e grupos em deslocamento (inclusive
transnacionais e refugiados ambientais), não estão circunscritos ao campo,
mas ao território urbano e aos espaços de confluência entre ambos, bem como
às águas e florestas (pois já não podemos, ainda mais a partir dos territórios
Amazônicos, nos conformar com uma ideia generalizante de ˜campo" ou,
tampouco com uma perspectivas dicotômica e essencializante de campo x
cidade. Os problemas vividos nas grandes cidades, notoriamente os problemas
da moradia, mobilidade e saneamento urbanos nos apontam para as graves
violações de DHs impostas às populações também nesses contextos. Porém, o
que [r]existe nesses territórios? Qual a agência desses grupos sociais diante
das pressões e opressões? Como pisar nesse chão entendendo as suas lutas
cotidianas? Que vozes, subjetividades, memórias e modos de existir ecoam
desses espaços?
A líder campesina Elizabeth Teixeira é enfática ao apontar que a mesma
necessidade está traçada. Nós, a partir da educação, temos o compromisso
ético de pensar os direitos e a democracia a partir dessas realidades concretas,
não reproduzindo acriticamente modelos educacionais, concepções e formas-
escolas que muito pouco atendem as necessidades de formação e
emancipação humana dos diferentes coletivos.
Nesse sentido, é necessário atentar para a dimensão ontológica nos
territórios e reconhecer suas potencialidades e desafios que podem significar
um processo de politização necessário para seguirmos afirmando um mundo
onde caibam muitos mundos. Assim, numa pedagogia indisciplinada,
mundificar a educação é uma tarefa política das mais importantes em nossa
quadra histórica, pois significa que o uni-mundo moderno que abarca tão
somente (o direito a) um Mundo; uma Educação; uma Episteme; uma Razão;
uma "Humanidade" não está à altura da vida digna que todos, todas e todes
necessitamos gozar. É preciso evidenciar que esse uni-mundo aporta apenas a
determinação de um modo de ser, não assumindo a pluralidade como condição

205
de abertura a outras existências, pois não se trata de ―um‖, artigo indefinido,
senão aquilo que designa a existência única, aquilo que se reivindica como
único e universal.
Mundificar a educação é fazer a escuta sensível dos territórios e envolve
a valorização de práticas e concepções específicas que dele emergem e de
seus processos de atualização, na perspectiva de seguir indagando sobre
quais os gestos que podem dar vida ao sentirpensar (Escobar, 2014) implicado
e encorpado na educação e que avancem das perspectivas limitadoras dos
Direitos Humanos que não alcançam a todos, todas e todes, para abranger
também outras formas de vida e respeito ao ambiente e aos chamados Direitos
da Natureza.
Ainda sobre os territórios e as diversas territorialidades, aqui pensadas
como sensibilidades, concepções plurais e diferentes modos de produzir a vida,
importa deixar emergir e questionar: que mundos coexistem nele? Quem está
sendo chamado para esses diálogos entre mundos? Como compreender e
ampliar as sensibilidades para ele? Quais as táticas para seguir fazendo
comunidade por meio dos diferentes processos educativos e produzindo
projetos comuns mesmo quando estamos sob os controles
institucionais/estatais e sob a lógica empresarial da educação?
Para a ampliação das possibilidades de leitura das dinâmicas territoriais
e suas territorialidades, Arturo Escobar (2016, n.p.) enuncia dentre alguns
apontamentos o seguinte:

Em termos gerais, os mundos se entremeiam uns com os outros, se


coproduzem e afetam, tudo isso sobre a base de conexões parciais
que não os esgotam em sua inter-relação. Daí surge uma das
perguntas mais cruciais da ontologia política: como desenhar
encontros através da diferença ontológica, isto é, encontros entre
mundos? (Blaser, 2010, Law, 2011, De la Cabana, 2015). O contexto
para isso não será nada fácil sempre e quando prime uma
concepção da globalização como universalização da modernidade,
mas se a interpretação apresentada neste artigo tem alguma
validade, abre-se a possibilidade histórica de outro grande projeto: a
globalidade como estratégia para preservar e fomentar o pluriverso
(Blaser, 2010). Chamamos essa estratégia de ―ativação política da
relacionalidade‖ (Blaser, De la Cadena e Escobar, 2009).

Considerando ainda essa compreensão de relacionalidade, esse autor


propõe que ―Todos existimos porque existe tudo‖ (Escobar, 2016, n.p.). Por

206
isso, a estratégia pluriversal de ―ativação política da relacionalidade‖ destacada
por ele dialoga com a obra Ideias para adiar o fim do mundo, do pensador
indígena Ailton Krenak (2019), no sentido de não aceitarmos a manutenção do
que ele chama de "clube da humanidade", que, ao fim e ao cabo, dá acesso a
um existir pleno apenas a um pequeno grupo, enquanto exclui a grande maioria
do gozo da vida e do que os povos ameríndios denominam de bem-viver.
Dessa maneira, ao convidarmos a esse giro ao território e às
territorialidades, estamos buscando um contraponto aos estreitamentos que
recaem sobre os direitos, Direitos Humanos, democracia e educação, que sob
o sistema capitalista, enclausuram, encapsulam e expropriam a própria vida em
sentido amplo. Assim, ao falarmos de Direitos Humanos, é sempre importante
situar a que direitos e a que humanidades estamos a nos referir e, diante da
crise globalitária, identificar e reconhecer a pluralidade de existências e
resistências em curso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A realização deste curso nos convoca a pensar que uma universidade
que se enuncia como popular, segundo Gadotti (2017, p. 8) ―deveria ser de
todos, mas não só‖, já que uma universidade se compreende como popular não
pela possibilidade de dar acesso a todos os sujeitos, mas porque é
atravessada pela concepção de uma educação popular.
Nesse sentido, as atividades de ensino e pesquisa, conectadas às
práticas extensionistas que se abrem à comunidade e às demandas que esta
apresenta, oportunizam uma prática pedagógica fundada em uma perspectiva
epistêmica decolonial, ao problematizar discursos, ações e acontecimentos que
fortalecem e reproduzem a subjugação e a dominação das classes populares.
A universidade é, desse modo, espaço para a articulação de estratégias de
enfrentamento ao pensamento canônico.
Além disso, um processo decisório de políticas públicas e educação que
possa refletir problemáticas, desafios, possibilidades e necessidades exige a
participação de uma sociedade democrática, espaços de escuta, consulta livre
prévia e informada das comunidades/coletivos, espaços de estudo e
envolvimento de todos os setores da sociedade. Isso é fundamental para a

207
organização de uma frente contrária ao estabelecido a uma pedagogia ou
educação indisciplinada/insubordinada.

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210
A LEITURA CRÍTICA COMO PRÁTICA
CONTRA-HEGEMÔNICA: UM RELATO DE
EXPERIÊNCIA EM UM CENTRO
SOCIOEDUCATIVO DE MANAUS,
AMAZONAS

Emerson Sandro Silva Saraiva83


Bianca Luniere Vilaça84

RESUMO:
Esta pesquisa teve por objetivo refletir sobre a prática de leitura de poemas
como atividade de Letramento Crítico (LC) através da análise de um Círculo de
leitura com adolescentes em um centro socioeducativo de internação feminina.
Como suporte teórico, dispomos dos conceitos de Leitura explorado por
Martins (1997), Petit (2009; 2016) e Freire (2019a; 2019b) e de LC discutido
por Janks (2010; 2012); Freire (2019a, 2019b) e Jordão (2007; 2013).
Salientamos que pesquisas que versam sobre a contra-hegemonia e
subalternidade também amparam as discussões empreendidas nesta pesquisa.
Como metodologia, empregamos a pesquisa bibliográfica e a pesquisa de
campo, adotando como corpus de análise as narrativas discentes. Entre os
instrumentos, utilizamos o diário de campo, o Círculo de leitura e a entrevista
semiestruturada. Vale apontar que, durante as visitas de campo, empregamos
a observação participante e para analisar o corpus coletado partimos da
análise qualitativa e do método dialético. Assim, entre os resultados, obtivemos
que a leitura de poemas possibilitou dialogar com diversos temas geradores de
reflexões críticas com as adolescentes. Com isso, situamos a prática de leitura
crítica como atividade contra-hegemônica que protagonizou discursos
socialmente desconsiderados, as narrativas de adolescentes em cumprimento
de medidas socioeducativas.

Palavras-chave: Leitura; Letramento Crítico; Contexto socioeducativo; Contra-


hegemonia.

83
Professor na Universidade do Estado do Amazonas (UEA); Doutor em Educação pela
Universidade Federal do Amazonas (UFAM); Membro do GEPPPE- UEA (Grupo de Estudos e
Pesquisas em Políticas Públicas e Educação). E-mail: [email protected].
84
Graduada em Licenciatura em Letras - Língua Portuguesa pela Universidade do Estado do
Amazonas (UEA). Atua nas áreas de Ciências Humanas, Educação, Políticas Públicas e
práticas educativas em contexto socioeducativo e prisional. Atualmente, participa do Grupo de
Estudos, Pesquisa e Extensão sobre Políticas, Educação, Violências e Instituições (GEPPEvi),
da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).E-mail: [email protected].

211
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A presente pesquisa partiu da concepção de que a prática educativa de
leitura, além da escrita, tem contribuído para a prática de análises reflexivas e
críticas, ou seja, o Letramento Crítico. Por esse motivo, Michèle Petit (2016)
afirma que projetos essencialmente de leitura têm ganhado destaque nas
últimas décadas e isso ocasionou a necessidade de aplicá-los em espaços
diversificados e contextos críticos. Uma vez que, segundo a autora citada, no
contexto atual, ler ocupa um papel essencial, pois ―ler talvez antes de tudo para
elaborar um sentido, dar forma a sua experiência, ou ao seu lado escuro‖ (Petit,
2016, p. 43), assim como para dar significado à realidade, constitui um
processo importante para reconhecer-se como sujeito para uma cidadania
ativa.
Um espaço representante dessa necessidade atual de atribuição de
sentido por meio da leitura é um centro socioeducativo85 de internação, onde os
(as) adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa86 são
designados para o cumprimento de medida socioeducativa de privação de
liberdade. Essa medida socioeducativa, por privar o direito de ir e vir, pode
ocasionar a supressão do direito ao respeito, à dignidade, à identidade e à
integridade física, psicológica e moral do sujeito adolescente (Costa, 2006).
Nesse sentido, acreditamos, assim como Costa (2006), na importância
de viabilizar programas de ação educativa para que, através de
acontecimentos estruturantes, os (as) adolescentes tenham espaço para o
autoconhecimento e reflexões críticas sobre suas experiências e realidades
sociais que estão inseridos nas práticas de Letramento Crítico (LC). Além
disso, a atividade educativa de leitura funciona como uma margem de
manobra87 que oportuniza a promoção dos aspectos individuais e sociais
citados, pois ler ou ouvir uma leitura em voz alta, essencialmente de textos
literários, auxiliam nesse processo, ainda mais para os sujeitos que não
dispõem de um território pessoal, como afirma Petit (2016).
85
Espaço físico adequado para o acompanhamento das medidas legais, como afirma Ramidoff
(2017).
86
Aquele a quem foi atribuído judicialmente a responsabilidade sobre uma conduta descrita
como ato infracional pelo Código Penal brasileiro (BRASIL, 1990) e está em cumprimento de
medidas protetivas e/ou socioeducativas, baseadas em decisões sociopedagógicas de uma
equipe interprofissional (Ramidoff, 2017).
87
Descrita por Petit (2016) como um salto, provocado pela leitura de um texto, às lembranças e
representações simbólicas.

212
Ademais, com relação à leitura compartilhada, Bajour (2012) diz que por
meio dela é possível tornar evidente a intimidade, o desejo e a história do outro
por meio de palavras, gestos ou silêncios, uma vez que eles têm significados
sugestivos durante e após uma leitura. Logo, discutir coletivamente a leitura
realizada, bem como escutar os relatos feitos por outros participantes, envolve
confiança nas capacidades dos leitores e empatia para com as diferentes
possibilidades de construções de sentido sobre um mesmo texto (Bajour,
2012).
Assim, a pesquisa proposta justifica-se pelos seguintes pontos: em
primeiro lugar, por representar uma ação contra-hegemônica ante aos
processos de estigmatização sofridos pelos (as) adolescentes em cumprimento
de medidas socioeducativas; em segundo lugar, o presente estudo contribui
para futuros desenvolvimentos de projetos com adolescentes em cumprimento
de medida socioeducativas, pois os projetos de leitura em espaço de educação
não-formal, sob o viés do Letramento Crítico, constituem-se como uma
abordagem recente no meio educativo.
Dessa maneira, em busca de um caminho humanizador-pedagógico
para minimizar os efeitos supressores de direito dos sujeitos adolescentes em
cumprimento de medida socioeducativa, partimos da seguinte questão: de que
maneira a leitura como atividade de Letramento Crítico contribui para a prática
da criticidade, a partir da perspectiva de adolescentes em situação de
cumprimento de medida socioeducativa em um centro socioeducativo de
internação feminina?
Nesse sentido, o objetivo central da pesquisa proposta consistiu em
compreender a contribuição da prática de leitura como atividade de Letramento
Crítico através da análise de um Círculo de Leitura com adolescentes em
situação de cumprimento de medida socioeducativa em um centro
socioeducativo. Para isso, a pesquisa foi desenvolvida a partir das seguintes
etapas. Primeiro, foi necessário tecer reflexões acerca da leitura, com base na
literatura, como atividade de Letramento Crítico (LC). Em seguida, realizamos
visitas de campo e aplicamos um Círculo de Leitura em um centro
socioeducativo de internação feminina de Manaus, a partir do gênero discursivo
poema. E, por fim, avaliamos as experiências das adolescentes com o Círculo

213
de Leitura por meio da observação participante e entrevista semiestruturada, a
fim de revelar a colaboração do ato de Leitura para a prática da criticidade.

A LEITURA PARA O LETRAMENTO CRÍTICO: UMA PRÁTICA EDUCATIVA


CONTRA-HEGEMÔNICA
A Leitura, ou o ato de ler, consiste no procedimento de assimilação, não
só de expressões linguísticas formais, como também das demais linguagens
humanas, como afirma Martins (1997). Nessa perspectiva, uma propriedade
conferida à leitura diz respeito a sua faculdade de permitir o estabelecimento,
pelo leitor, de conexões com o imaginário, poético e simbólico para entender a
si mesmo e entender a realidade que está inserido, como afirma Petit (2009;
2016). Sobre essa última afirmação, vale destacar algumas especificidades,
pois a Leitura de textos 88 como prática de criticidade constitui o ponto central
deste estudo.
Logo, o contato com os gêneros textuais contos, crônicas e poemas, por
exemplo, que dispõem de possibilidades representativas diversas dos
sentimentos e das racionalidades humanas de forma metafórica e inconsciente,
é um meio que permite que o leitor potencialize o olhar crítico sobre o contexto
que está inserido, além da reflexão sobre os aspectos sócio-históricos
reguladores das práticas hierárquicas e excludentes (Petit, 2009; 2016).
O conceito de Letramento, segundo Soares (2009), pode ser definido
como a condição das pessoas que estão envolvidas em diversificadas práticas
sociais de leitura e de escrita. Além disso, a autora destaca que há duas
dimensões do Letramento que se complementam, uma individual (vista como
atributo pessoal) e uma social (vista como fenômeno cultural). Então, a
definição específica de Letramento depende de como a leitura e/ou a escrita
são consideradas e em um determinado contexto individual e social (Soares,
2009), sendo, portanto, um conceito fluído que dispõe de diferentes categorias,
níveis e funções.
Portanto, reconhecemos, a partir de Soares (2009) e Kleiman (1998),
que a multiplicidade de significados que podem ser conferidos ao Letramento
representa uma vasta possibilidade de definições operacionais para atender

88
Unidades linguísticas de sentido, instrumentos e produtos da interação verbal que constituem
as práticas socioculturais (Koch, 2003).

214
aos requisitos de uma determinada mediação de um evento de letramento89
e/ou de sua avaliação. Dessa forma, para fins desta pesquisa, adotamos o
conceito de Letramento como uma prática educativa de cunho crítica.
Um dos teóricos que exerceu grande influência sobre a concepção do
que hoje se entende como Letramento Crítico foi Paulo Freire (Silva, 2021a;
Sardinha, 2018), pois, em seus escritos, o autor incentivou o engajamento em
práticas educativas direcionadas à reflexão crítica, libertadora e para tomada
de ações que visam ao questionamento e ao enfretamento dos problemas
político-sociais causados pela relação opressor-oprimido (Freire, 2019a).
Freire (2019a) ressalta ainda que o educando, quanto mais consciente
das situações concretas de injustiças que está inserido, mais se sente apto a
realizar uma atitude interventiva, seja ela qual for, uma vez que está associada
ao seu grau de luta por libertação. Além disso, o autor dispôs de uma vasta
contribuição associada à prática docente (Freire, 2019b), entre elas: a
importância de valorizar os conhecimentos socioculturais dos educandos e que
ensinar para a criticidade exige estabelecimento das relações dialógicas entre
educadores e educandos.
Além de compartilharmos das concepções de Paulo Freire, também
adotamos as ideias defendidas por Jordão (2007) como base para o que
entendemos como Letramento Crítico. Segundo a pesquisadora, a prática da
criticidade demanda um movimento dialógico de percepção e confronto acerca
de diferentes perspectivas, sendo os sujeitos participantes ativos nesse
processo de conscientização e ação sobre as estruturas sociais.
Nesse sentido, seguindo o pensamento da autora, destacamos alguns
pontos sobre o conceito de Letramento Crítico adotados na presente pesquisa.
Assim, ―no LC a língua é discurso, espaço de construção de sentidos e
representação de sujeitos e do mundo‖ (Jordão, 2013, p. 73). Sobre isso, a
autora reforça que não há neutralidade nos discursos materializados nos
textos, então todos os sentidos atribuídos a um texto advêm das ideias que
foram convencionadas em relações sociais. Isso significa que toda e qualquer
atividade que solicite construção de sentido acontece em processo de

89
Atividade singular que confere a um letramento um papel específico, sendo uma prática
planejada que pode ser aplicada diversas vezes (Street, 2014).

215
referência a sistemas ideológicos de crenças, interesses e valores (Jordão,
2013).
Por esses motivos, Jordão (2013) aponta que, no Letramento Crítico,
para praticar a criticidade é necessário, em primeiro lugar, que os sujeitos
percebam as próprias ideologias e os textos como construções sócio-históricas
discursivas. Em segundo, entrem em diálogo para atribuir e/ ou contrastar
ideias presentes nos textos no caminho de, por fim, desconstruir os discursos
nele arraigados para ressignificá-lo. Dessa forma, o mediador do evento de
letramento para LC deve oportunizar a construções, questionamentos,
negociações dialógicas de sentidos dos textos visando à reflexão crítica e
problematizadora (Jordão, 2013).
Ainda a respeito das etapas para o Letramento Crítico, apesar de, em
geral, essa abordagem não dispor de métodos de aplicabilidade definidos
(Jordão, 2013), compartilhamos do Ciclo de Redesenho Crítico, The Redesign
Cycle, de Hilary Janks, para o desenvolvimento de uma atividade de
Letramento Crítico. Segundo Janks (2010), esse ciclo constitui-se de Design,
Deconstruct e Redesign. A etapa de Design, como explica Janks (2012),
também reforçado na pesquisa de Santiago e Lima-Neto (2020), trata de
compreender a construção do texto e percebê-lo como um discurso não-neutro
para a formação de sentidos.
Já a etapa de Deconstruct, conforme os estudiosos citados, trata de
refletir criticamente sobre o texto lido. Isso pode ser feito, como demonstra
Janks (2010; 2012), através de questionamentos de compreensão e
interpretação textuais para guiar uma discussão coletiva. Ainda sobre isso,
Santiago e Lima-Neto (2020) afirmam que é necessário que essa etapa seja
capaz de ocasionar formações críticas de sentido sobre o texto para possibilitar
o prosseguimento para a última etapa.
Por fim, a etapa de Redesign consiste em voltar para o texto e
ressignificá-lo para uma proposta ou discussão de transformação social
(Santiago; Lima-Neto, 2020). Vale destacar que Janks (2012) considera que
não há neutralidade discursiva na construção dos textos, isso significa que
―todo redesenho origina um novo texto que requer desconstrução‖ (Janks,
2012, p. 183). Portanto, O Ciclo de Redesenho Crítico, de Hilary Janks,
apresenta-se como um conjunto de conceitos essenciais para o Letramento

216
Crítico, pois acreditamos que, na conjuntura atual, onde há diversas maneiras
de produzir sentidos em textos, precisamos refletir criticamente sobre os
discursos que os envolvem para ressignificá-los em favor da transformação das
estruturas sociais, como reforça Janks (2012).
Dessa maneira, considerando todas as ideias discutidas para tratar da
abordagem teórica referente ao ponto central da pesquisa, acreditamos que ler
sob a perspectiva do LC é possibilitar a reflexão, de forma individual e/ou
coletiva, sobre as injustiças sociais e relações de poder na sociedade. E
considerando, sobretudo, que as colaboradoras são adolescentes em
cumprimento de medidas socioeducativas, situamos a leitura crítica como
prática contra-hegemônica.
Segundo Moraes (2010), o pensamento hegemônico, com base em
Antonio Gramsci, é firmado pela classe dominante por meio de várias frentes
de convencimento e dominação das classes subalternas 90, como sua influência
na organização sociopolítica do Estado. Todavia, sua influência não se encerra
nessa questão pois, o pensamento hegemônico está presente também ―no
plano ético-cultural, na expressão de saberes, nas práticas, modos de
representação e modelos de autoridade que querem legitimar-se e
universalizar-se‖ (Moraes, 2010, p. 55).
Então, considerando que as ideologias do plano hegemônico estão em
constante luta para excluir as diversidades socioeconômicas e culturais que
atravessam os vários grupos sociais, são necessárias práticas, sobretudo
educativas, que sejam sistematizadas em prol da transformação das relações
sociais em prol dos grupos subalternos, como afirmam Sobral; Ribeiro(2020). É
nesse contexto que se insere a importância das práticas contra-hegemônicas.
Conforme Moraes (2010), os projetos contra-hegêmicos podem revelar
novas formas de subjetividades e evidenciar realidades que direcionam novas
perspectivas ante o pensamento instituído pelo pensamento hegemônico. Além
disso, de acordo com Almeida (2010, p. 14), para Spivak, ―não se pode falar
pelo subalterno, mas pode-se trabalhar ‗contra‘ a subalternidade, criando
espaços nos quais o subalterno possa se articular e, como consequência,
possa também ser ouvido‖. Assim, consideramos que a leitura como atividade

90
A partir da teoria de Spivak (2010).

217
de Letramento Crítico em um centro socioeducativo é uma prática contra-
hegemônica que abre possibilidades de protagonizar os sujeitos
subalternizados e suas visões sobre a realidade que estão inseridos.

PERCURSO METODOLÓGICO
O estudo proposto partiu do método de abordagem da pesquisa
bibliográfica. Esse método, segundo Lakatos e Marconi (1992), utiliza
contribuições de diversos autores e pesquisas variadas para compreender
determinado tema, geralmente advindos de artigos, livros, teses e dissertações.
Nesse sentido, o primeiro ponto da pesquisa visou reunir conhecimentos sobre
os aspectos que envolvem a Leitura e o Letramento Crítico com base na
literatura.
Em sequência, adotamos a pesquisa de campo com a finalidade de
coletar os dados. Segundo Gil (2002), essa abordagem propõe o envolvimento
do pesquisador com a comunidade estudada. Por isso, o autor diz que os
procedimentos e instrumentos que dizem respeito a essa abordagem são de
especificidade de cada estudo e seus objetivos. Na pesquisa proposta,
optamos pelas etapas de pesquisa exploratória inicial para a caracterização do
espaço onde será desenvolvido o Círculo de Leitura e do público com o qual
será praticado.
Para isso, objetivando também um registro documental e avaliação final
da experiência dos(as) participantes com o Círculo de Leitura, foi utilizada a
entrevista semiestruturada como instrumento de pesquisa. Nesse instrumento,
de acordo com Alvarenga (2012), o pesquisador prepara perguntas
norteadoras e abertas com temas mistos, ou seja, existem perguntas pré-
definidas, mas no decorrer da entrevista, o entrevistador tem a liberdade de
mudar a ordem delas ou aprofundar-se em algum tópico que surgiu entre as
respostas do entrevistado.
Dando prosseguimento à pesquisa de campo, foi elaborado e aplicado
com as adolescentes um Círculo de Leitura sistemático com o objetivo de
responder à pergunta norteadora do estudo proposto. Esse instrumento,
conforme Cosson (2021, p. 29), ―é uma reunião de um grupo de pessoas para
discutir um texto, para compartilhar a leitura de forma mais ou menos
sistemática‖. Isso significa que o Círculo apresenta a possibilidade de assumir

218
diversificadas configurações a depender do local, do texto, do público, dos
interesses deste último, bem como dos objetivos que levam à organização
dele.
Assim sendo, compartilhamos das ideias do autor, quando ele afirma
que todos os aspectos que envolvem a preparação do Círculo de Leitura
devem ser personalizados para o público-alvo. Então, para utilizá-lo como
estratégia a fim de possibilitar o desenvolvimento de atividades de Letramento
Crítico, adaptamos as etapas propostas por Cosson (2021) que são:
Modelagem, Prática e Avaliação.
Destacamos que Cosson (2021) também trata de alguns pontos que
dizem respeito aos critérios de seleção das obras. Entretanto, como ele
ressalta, cabe ao mediador do Círculo a seleção inicial dos livros que acredita
que possam responder aos diferentes interesses e níveis de leituras dos
participantes, existindo a possibilidade de ocorrer modificações, de acordo com
o andamento da atividade.
Portanto, considerando um público de adolescentes que vivenciam a era
digital, sofrem com os processos de estigmatização – entre outras violências –
adotamos, como critério de escolha dos livros, as seguintes proposições:
primeiro, textos contemporâneos, devido à linguagem apresentar-se mais
próxima da empregada pelas participantes e segundo, obras brasileiras de
autoras negras, pois acreditamos que também é importante valorizar os
escritos de autoras que têm passado por constante processo de resistência e
afirmação através da escrita literária.
Por último, optamos pelo gênero poema, por ser um gênero de textos
curtos com vasta utilização das linguagens metafóricas e simbólicas que
acreditamos possibilitar maior movimentação entre diversas leituras. Nesse
sentido, optamos pelas obras: Querem nos calar: poemas para serem lidos em
voz alta, coletânea organizada por Mel Duarte (2019), Tudo nela brilha e
queima e Jamais peço desculpas por me derramar: poemas de temporal e
mansidão de Ryane Leão (2017; 2019). Elas trazem à discussão diferentes
temáticas, sobretudo, aspectos relacionados à negritude, à escrita de poesia,
subjetividade, resistência, recomeço, afeto, preconceitos, estereótipos,
machismo e violência que atravessam a vida da mulher negra no Brasil.

219
Assim, para análise qualitativa (Trivinos, 1987) — seguindo a
perspectiva do LC — durante e após o Círculo de Leitura, foi empregado o
método dialético. Já como instrumento, utilizamos a observação participante,
considerando as narrativas discentes como corpus de análise e o diário de
campo como registro ativo. Conforme Richardson (2012), o método dialético
nas pesquisas sociais adquire o aspecto de investigação da realidade, sendo
umas das correntes epistemológicas que considera os fatores histórico-sociais
como importante para a compreensão de um fenômeno. Além disso, Gil (1987)
afirma que, na perspectiva desse método, é necessário conectar todas as
relações contextuais que o envolvem para reconhecer e analisar um
determinado fenômeno.
Então, a observação participante e o diário de campo mostram-se como
instrumentos imprescindíveis para a coleta e registro das narrativas das
participantes. Dado que, na observação participante, conforme Alvarenga
(2012), o pesquisador participa diretamente das atividades com o grupo. Ou
seja, a análise e registro permanecem constantes durante todo o processo,
além de firmar conexão e confiança dos participantes com o pesquisador,
permitindo que estes se sintam confortáveis para manifestarem sentimentos e
conhecimentos a respeito das ideias discutidas.
O diário de campo, segundo Weber (2009), consiste em uma ferramenta
de registro que tem por base o exercício da observação participante do objeto
de investigação. Nele, segundo a autora, deve-se relacionar os eventos
observados e/ ou compartilhados a fim de acumular o corpus para análise
posterior. Logo, pode-se adaptar o seu us6o de acordo com os objetivos da
pesquisa, possibilitando o registro dos discursos, as posições dos participantes,
o caminhar das relações entre os mediadores e os participantes, assim como
as relações entre eles.
Por fim, é necessário dispor de algumas considerações a respeito do
corpus de análise da presente pesquisa,ou seja, as narrativas discentes. Nesse
sentido, compartilhamos da concepção de Clandinin e Connelly (2015), que
aborda as narrativas como um fenômeno possível de ser estudado e analisado.
Esses fenômenos, segundo os citados, são relevantes para estudo, pois parte
da ideia de que, através das narrativas, as pessoas representam suas
constantes reflexões, mudanças, seus pontos de vista como sujeitos em

220
processo, importante corpus para analisar a prática do Letramento Crítico. Por
isso, as narrativas discentes foram coletadas durante o Círculo de Leitura e
após essa atividade, durante a entrevista semiestruturada. Logo, os textos de
campo91, bem como os dados advindos da entrevista, foram possíveis de
serem analisados para atingir o objetivo geral e responder à pergunta
norteadora do estudo proposto.

CÍRCULO DE LEITURA: RELATO DE EXPERIÊNCIA E ANÁLISE DE


RESULTADOS
A pesquisa de campo foi realizada em seis encontros, sendo o primeiro
destinado ao reconhecimento do espaço e ao público-alvo e os demais para o
desenvolvimento do Círculo de Leitura. O centro socioeducativo de internação
feminina onde a pesquisa foi desenvolvida atende as medidas de internação,
semiliberdade e internação provisória. Além disso, dispõe de uma equipe
interprofissional para atender as necessidades vitais das adolescentes. Nesse
sentido, observamos a presença de socioeducadoras, assistentes sociais,
psicólogas e enfermeiras que auxiliam na garantia dos direitos individuais
dispostos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (BRASIL, 1990) e
reiterado pela Lei Nº 12.594 que regulamenta o Sistema Nacional de
Atendimento Socioeducativo (SINASE) (Brasil, 2012).
O encontro inicial revelou possibilidades e limitações tanto para o uso de
recursos tecnológicos, como para a aplicação de atividades relacionadas à
leitura. Entre as possibilidades, destacamos o espaço da sala de aula, a sala
de informática e o acesso a uma estante de livros diversos – resultado de
doações da comunidade. Os demais espaços não são destinados às atividades
escolares, como enfermaria, sala para atendimento psicológico, refeitório e as
celas. Já entre as limitações, percebemos a falta de equipamentos tecnológicos
para utilização em sala de aula e um espaço destinado à leitura, como uma
biblioteca.
Todavia, salientamos que as limitações citadas não impedem a
promoção de cursos de qualificação profissional e nem atividades de extensão
promovidas por professores pesquisadores. Dado que, durante a realização do

91
Expressão utilizada por Clandinin e Connelly (2015) para se referir às narrativas registradas no diário
de campo.

221
Círculo de Leitura, duas adolescentes internadas participavam de outras
atividades, como palestras e cursos profissionalizantes de curta duração
fomentados por outras entidades públicas de saúde e educação. Assim,
considerando as condições citadas, o Círculo de Leitura foi desenhado
conforme as possibilidades observadas e com o apoio da equipe interdisciplinar
do centro socioeducativo durante toda a aplicação da pesquisa. Destacamos
que não foi possível a gravação das falas das adolescentes durante os
encontros, nem na entrevista semiestruturada. 92
O primeiro encontro do Círculo de Leitura teve por objetivo conhecer
duas adolescentes internadas, situar os seus conhecimentos prévios sobre
poemas e despertar interesse pela leitura dos livros previamente selecionados,
como é definida a etapa de Modelagem do Círculo por Cosson (2021). Nessa
perspectiva, estabelecemos um diálogo inicial com as adolescentes para
conhecer os seus perfis, pois é necessário protagoniza-las e reconhecer os
seus saberes socialmente construídos a partir das suas vivências, como aponta
Freire (2019b).
A primeira adolescente, 16 anos, nasceu em um município do interior do
estado do Amazonas e está cursando o ensino médio. Então, para o
cumprimento da medida socioeducativa de internação, a adolescente foi
retirada do convívio familiar e trazida para a capital do estado. No momento da
aplicação da pesquisa, a adolescente estava há dois meses no centro
socioeducativo.
A segunda adolescente, 15 anos, nasceu na capital do estado do
Amazonas e também encontrava-se cursando o ensino médio. Ela estava em
cumprimento de medida de internação provisória aguardando a decisão judicial
sobre o tempo e a medida socioeducativa a ser cumprida. A adolescente
estava apenas há três semanas no socioeducativo no momento da aplicação
da pesquisa.
Ambas relataram a ausência de práticas de leitura dentro e fora do
ambiente escolar, assim como o desconhecimento das obras e autoras
sugeridas. Além disso, apontaram familiaridade com as mídias digitais e com
vídeos e textos curtos veiculados nessas plataformas. Vale destacar que

92
A gravação não foi autorizada dado que as adolescentes se encontravam sob a tutela do Estado.

222
ambas afirmaram que nunca tiveram interesse em conhecer os livros dispostos
na estante disponibilizada no ambiente em que estavam inseridas e que tinham
maior apreciação por atividades artísticas.
Considerando esses apontamentos, apresentamos um vídeo 93 sobre as
autoras e apontamos a importância da poesia na visão das próprias autoras.
Isso foi feito para demonstrar que a partir da leitura de textos literários, como
também aponta Pétit (2009), é possível movimentar os pensamentos, construir
sentidos e estabelecer diálogos simbólicos com as próprias vivências. Assim, o
primeiro encontro finalizou com a disponibilização dos livros e com a proposta
de leitura livre deles – Querem nos calar: poemas para serem lidos em voz alta
(Duarte, 2019), Tudo nela brilha e queima (Leão, 2017) e Jamais peço
desculpas por me derramar: poemas de temporal e mansidão (Leão, 2019) —
com o intuito de possibilitar a escolha das próprias adolescentes daquele que
mais lhe foi possível firmar associações simbólicas.
O segundo encontro se iniciou com os apontamentos trazidos pelas
adolescentes sobre a leitura dos livros. Ambas relataram a facilidade de
entendimento nas leituras dos poemas, devido à linguagem contemporânea e
popular, bem próxima daquela que elas utilizam no cotidiano, apesar de que,
em alguns poemas da coletânea organizada por Mel Duarte (2019), há
referências a algumas músicas e artistas que eram desconhecidas para elas.
Além disso, elas comentaram maior apreciação pela escrita de Ryane Leão
(2017; 2019), especialmente na obra Jamais peço desculpas por me derramar:
poemas de temporal e mansidão (Leão, 2019). Acreditamos que isso se deu
devido aos temas emergentes tratados nessa obra, como recomeços,
esperança, subjetividades femininas, autoaceitação e autocuidado.
Nessa perspectiva, o segundo encontro foi desenvolvido com diversas
leituras orais - feitas pelas próprias adolescentes - de poemas que mais lhe
interessaram da obra de Ryane Leão (2019). A fim de ilustrar uma das relações
simbólicas que foram estabelecidas nesse encontro, abaixo segue a Figura 1:

93
PlANETA NA FLIP – RYANE LEÃO, LUZ RIBEIRO E MEL DUARTE: poesia, revolução e
coletividade. [s.l.], 2018. 1 vídeo (10 min). Publicado pelo canal Planeta de Livros Brasil.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2nRg9n3P-ok. Acesso em: 02 set. 2022.

223
Figura 1 – Poema.

Fonte: Leão (2019, p. 14).

A partir desse poema, as duas adolescentes apresentaram relações


associativas diferentes. A primeira, 16 anos, apontou que o poema acima a fez
lembrar de sua irmã mais nova, pois as metáforas apresentadas na escrita do
poema colocaram em palavras como ela enxerga a sua irmã. Já a segunda
adolescente, 15 anos, relatou uma autoidentificação com o poema, pois
acredita que suas ações se assemelham com o que foi descrito pela autora.
Considerando os fatos citados acima, percebemos que as etapas
descritas sobre o Letramento Crítico (Janks, 2010; 2022) apareceram de modo
fluído devido à temática abordada no poema e a sua linguagem
contemporânea. Isso significa também a assertividade das obras escolhidas, a
partir dos critérios pré-estabelecidos. Todavia, destacamos que a
expressividade linguística das adolescentes foi progredindo durante o Círculo
com a mediação e apresentação de termos que auxiliaram a materialização de
suas interpretações. Por fim, os relatos das duas adolescentes corroboram as
ideias defendidas por Petit (2009; 2016), pois notamos que a leitura literária de
poemas possibilitou a materialização de sentimentos e possibilitou associações
com a família e a compreensão de suas próprias subjetividades.
Assim, o segundo encontro do Círculo finalizou com a recomendação de
prosseguimento de leitura livre dos livros. Mas, dessa vez, foi incentivado a
busca por poemas que representassem as suas perspectivas sobre a realidade
a sua volta. Isso foi sugerido tendo em vista que Freire (2019a; 2019b) aponta

224
a reflexão sobre a realidade social como um aspecto relevante no processo de
prática da criticidade.
O terceiro encontro e o quarto encontro do Círculo de Leitura colocaram
em foco os poemas da obra organizada por Mel Duarte (2019) – Querem nos
calar: poemas para serem lidos em voz alta. Sobre essa obra, as adolescentes
relataram que desconheciam grande parte das autoras dessa coletânea e que
muitos deles apresentaram a temática solicitada no fim do segundo encontro.
Feitas essas considerações, as adolescentes realizaram diversas leituras orais
de poemas que acreditaram representar sua visão sobre sua realidade social.
A fim de demonstrar o progresso realizado com as leituras, segue abaixo a
Figura 2 – poema escrito por Bell Puã retirado de Duarte (2019, p. 39):

Figura 2 - Poema intitulado Todas as mulheres de Bell Puã.

Fonte: Duarte (2019, p. 39).

A partir desse poema, uma das adolescentes, 16 anos, destacou que


refletiu sobre as pressões sociais estéticas que o patriarcado impõe sobre as
vestimentas e o comportamento das mulheres, além das injustiças que têm o
efeito de ―aparar as asas‖ das mulheres, como cita Puã (Duarte, 2019, p. 39).
Nesse sentido, estabelecemos um diálogo sobre os tópicos citados para
apontar vivências e analisá-las. Vale destacar que as adolescentes não se
mostraram tão confiantes ao tratar dessas temáticas quanto estavam no
encontro anterior.
Dessa forma, o terceiro e o quarto encontro demonstraram que a leitura
de poemas também pode auxiliar na abordagem de temas sensíveis às
adolescentes através da linguagem metafórica da poesia, como também afirma
Petit (2016). Além disso, esses encontros demonstraram a possibilidade de

225
contribuir com a prática da criticidade sobre a realidade social, portanto,
implicações relacionadas ao Letramento Crítico - Freire (2019a); Janks (2010;
2022); Jordão (2007). Percebemos que as adolescentes conseguiram, a partir
das leituras, fazer associações com suas vivências e refletir sobre o contexto
social que estão inseridas. Vale destacar que o segundo, o terceiro e o quarto
encontro funcionaram como a etapa Prática do Círculo, como descrito por
Cosson (2021).
O quinto encontro, a etapa de Avaliação (Cosson, 2021), teve como
objetivo uma entrevista semiestruturada com as duas adolescentes sobre a
experiência com o Círculo de Leitura. Mais especificamente, consideramos
importante indagá-las a respeito da sua percepção pessoal de progresso na
prática de interpretação textual no decorrer do Círculo e se a leitura de poemas
auxiliou na compreensão da realidade social e no seu autoconhecimento. Vale
destacar novamente que não foi autorizada a gravação da entrevista, somente
registros no diário de campo.
A primeira adolescente entrevistada, 16 anos, relatou que sentiu
dificuldade no início, pois não tinha o hábito de leitura, nem conhecia
previamente as autoras. Além disso, apontou que a mediação durante os
encontros foi importante para praticar a interpretação textual dos poemas e
compreender os sentidos dos textos. Por fim, a adolescente destacou que
apreciou o Círculo de leitura, pois conseguiu estabelecer relações com a sua
vida, entretanto, gostaria que tivesse a realização de atividades ou jogos
durante o Círculo.
Já a segunda adolescente, 15 anos, compartilhou, em grande parte, da
mesma opinião. Ela também não lia literatura com frequência, nem tinha
conhecimento da escrita das autoras trabalhadas. Além do mais, ela afirmou ter
apreciado o Círculo de Leitura, por causa da linguagem dos poemas e dos
seus temas. Por fim, ela mencionou que gostaria de ter feito atividades práticas
durante os encontros, apesar de ter sentido que praticou bastante a sua
interpretação textual ao conseguir relacionar os poemas com suas vivências.
Deste modo, considerando todos os fatos descritos, acreditamos que as
atividades de leitura, sobretudo de poemas, auxiliaram como prática de
Letramento Crítico das adolescentes em cumprimento de medida
socioeducativa, com destaque em dois aspectos. Primeiro, a leitura possibilitou

226
a materialização de pensamentos através da linguagem metafórica. Isso
significa que as adolescentes enxergaram nos poemas diversas formas de
expressar os seus sentimentos. Segundo, a partir dos poemas, foi possível
dialogar sobre diversos fatos sociais e refletir criticamente sobre eles. Logo, a
prática de leitura de poemas através do método do Círculo de Leitura, de
Cosson (2021), demonstrou resultados positivos para as adolescentes e
reafirmou a importância de viabilizar ações educativas em contextos
socioeducativos, configurando-se como uma atividade contra-hegemônica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo geral da pesquisa foi compreender a contribuição da prática
de leitura como atividade de Letramento Crítico através da análise de um
Círculo de Leitura com adolescentes em cumprimento de medida
socioeducativa em um centro socioeducativo. Como principal direcionamento
teórico, adotamos o conceito de Leitura, de Letramento Crítico e de práticas
contra-hegemônicas como base nas discussões empreendidas.
Para alcançar o objetivo da pesquisa, dispomos do método de
abordagem da pesquisa bibliográfica e da pesquisa de campo. No que diz
respeito aos instrumentos de pesquisa, empregamos o Círculo de Leitura, a
observação participante, o diário de campo como registro ativo e a entrevista
semiestruturada. Além disso, assumimos como corpus de análise as narrativas
discentes. Por fim, para a análise qualitativa durante e após o Círculo de
Leitura, empregamos o método dialético.
Assim, com os resultados do Círculo de Leitura, foram observados
aspectos que apontam para o atendimento do objetivo da pesquisa. As duas
adolescentes participantes do Círculo realizaram diversas interpretações
textuais, além de estabelecerem relações simbólicas entre as temáticas
abordadas nos poemas, com suas subjetividades e com as suas relações
familiares.
Dessa maneira, apontamos a necessidade da viabilização de projetos de
leitura para adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, dado
que acreditamos que o Círculo de Leitura possibilita a criação de um espaço
seguro para compartilhar associações diversas que emergem do contato com
os poemas. E, por fim, situamos a atividade de leitura crítica como uma prática

227
contra-hegemônica que objetivou protagonizar sujeitos subalternizados com a
finalidade de confrontar pensamentos hegemônicos excludentes da diversidade
sociocultural.

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230
ASPECTOS HISTÓRICOS DA
COMUNIDADE SURDA NO AMBIENTE
EDUCACIONAL: DESAFIOS E IDEIAS

Amanda Malheiros Pereira94


Carlos Elias Sobreira95

RESUMO:
Nosso objetivo com esse texto é de apresentar um panorama geral,
contemplando aspectos históricos e educacionais da comunidade surda no
Brasil. Para tal intento, utilizamos algumas fontes redigidas em nosso país. A
elaboração de textos que disseminem tal conhecimento visa contribuir para a
quebra de preconceitos e, ainda, tem como propósito contribuir de alguma
forma para as discussões que tendem a melhorar a acessibilidade das pessoas
surdas, desenvolvendo teorias e métodos de aprendizagem a serem
implementados na educação especial. A fim de atender nossos objetivos, nossa
pesquisa, de caráter bibliográfico, se pautou nos critérios e aportes
metodológicos da História da Educação.

Palavras-chave: Comunidade surda; História da educação; Pesquisa


bibliográfica.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
No que diz respeito à História da Educação, a surdez foi alvo de diversos
estudos e debates, em que cada corrente da filosofia ou psicologia, por
exemplo, propunham um método mais adequado para o desenvolvimento da
condição específica de aprendizagem da população surda. Cada época, trouxe
consigo tendências didáticas adaptadas ao contexto que pertenceram. Nesse
sentido, a escrita desse texto busca analisar, em linhas gerais, quais as
contribuições dos teóricos ao longo da História da Educação, e outros aspectos
que possibilitaram uma maior inclusão da surdez no viés educacional.
94
Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Educação (PPE – UEM), na linha de
História e Historiografia da Educação. E-mail: [email protected]
94
Doutorando do Programa de Pós Graduação em História (PPH – UEM), na linha de História
Política. E-mail: [email protected]

231
Marc Bloch (2001), com a fundação da Escola dos Annales, nos dá a
possibilidade de percepção do homem enquanto sujeito da História. Podemos
assim, observar as relações que se dão através dos fatos, suas
problematizações entre o contexto histórico da educação especial no Brasil
com um estudo acerca do ser humano ao longo do tempo, percebendo
estagnações e avanços até os dias atuais. Ao aliarmos o passado com a
atualidade, as indagações do presente texto se referem ao que nos faz, como
historiadores, voltar ao passado, utilizando testemunhos e transmissões (Bloch,
2001).
Historicamente, as pessoas que possuem algum tipo de deficiência foram
consideradas por vezes amaldiçoadas, ou seres semidivinos, mas sempre
foram excluídas do contexto social e vistas como objeto de caridade da
comunidade. Assim, os surdos eram considerados dignos de pena e vítimas da
incompreensão da sociedade e até mesmo da própria família. Além disso, o
imaginário e as representações sociais da deficiência contribuiram para que a
atenção à saúde dessa população se tornasse ainda mais complexa (Duarte,
2013). No entanto, com o passar do tempo, essa visão foi se modificando e,
atualmente, tem surgido discussões entre profissionais de diversas áreas de
conhecimento, como na filosofia, sociologia, psicologia, pedagogia e saúde.
No Brasil, podemos indicar os anos 1990 como o marco da insurgência
dos movimentos surdos brasileiros:

Nessa década, iniciam-se os debates conceituais sobre língua


de sinais, bilinguismo, os reflexos dos modelos clínicos-
terapêuticos e socioantropológicos na educação de surdos,
teorizações sobre a cultura e identidades surdas e os impactos
de todos esses estudos na organização de um processo de
educação bilíngue para surdos no Brasil (Fernandes & Moreira,
2014, p. 52).

Tal movimento teve como protagonismo, por um lado, ativistas surdos,


seus familiares e profissionais da área e, por outro lado, pesquisadores que
procuravam refletir academicamente acerca de um campo epistemológico,
localizando os movimentos dos surdos no espaço das lutas multiculturalistas
mundiais, realizadas por grupos políticos minoritários em defesa de direitos
étnico-raciais, de gênero, de orientação sexual, de liberdade religiosa, entre
outros (Fernandes; Moreira, 2014, p. 52). Em outras palavras, a comunidade

232
surda viu-se representada na essência da estratégia política do movimento
multiculturalista dos anos 1990, na tentativa de constituir uma identidade
cultural.
A criação do espaço discursivo dos Estudos Surdos elaborou, seguindo
essa lógica, uma possibilidade de problematizar os discursos hegemônicos
sobre a surdez, no intento de modificar as representações dominantes em
relação às identidades surdas, que as colocavam no campo da anormalidade
ou da deficiência (Fernandes; Moreira, 2014). Entre as questões essenciais
que sedimentaram o espaço discursivo dos Estudos Surdos, uma vez apartada
a arbitrariedade da ―normalidade‖, está localizada a discussão em torno do
direito a uma educação bilíngue, vista como espaço de resistência e edificação
da identidade surda. Entretanto, o cenário social libertou a língua, mas não
criou espaços efetivos para seu uso e desenvolvimento, conduzindo para que a
configuração identitária mobilizasse as lutas surdas, a partir da década de
1990, e as referências relativas à identificação linguística (Fernandes; Moreira,
2014).
Em seu Decreto n° 5.626, de 22 de dezembro de 2005, a Constituição
Brasileira considera a pessoa surda aquela que, por ter perda auditiva,
compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais,
manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de
Sinais- Libras96. Dessa forma, convém definir como pessoa surda aquela que,
por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de
experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da
Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS).
Sem desconsiderar os avanços no campo educacional, a surdez ainda é
um tema abordado de maneira insuficiente em nossa sociedade. A
desinformação acontece, principalmente, por conta do preconceito que coloca
as pessoas surdas como incapacitadas por diversos motivos. Assim, é
fundamental que todos tenhamos algum conhecimento sobre esse assunto,
afinal, os obstáculos do convívio em sociedade para a pessoa surda, gerados
principalmente pela ausência de conhecimento, promovem a limitação da

96
Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm.
Acesso em: 19 jul. 2023.

233
participação dos surdos em diferentes contextos, como espaços públicos,
mercado de trabalho e interações sociais.
Os surdos possuem as mesmas capacidades cognitivas e intelectuais
dos demais indivíduos. O que muda, em evidência, é a dificuldade de
acessibilidade ao sujeito surdo para promoção de seu desenvolvimento, visto
que este possui peculiaridades específicas dada a condição da surdez. Dessa
forma, a inclusão permanente perante a sociedade transforma a realidade e
sensibiliza a difusão da Língua de Sinais, por isso, desenvolver uma
comunicação acessível, beneficia a comunidade surda.
O processo educacional para surdos deve seguir o caminho que
desmistifica qualquer tipo de preconceito presente na sociedade, afinal, o surdo
é um sujeito normal tanto quanto os ouvintes, a especificidade está na
ausência justamente da audição, o que não o impossibilita de levar uma vida
com igualdade aos demais e assim,

[...] em educação fomos caminhando da ideia do geral, do


homogêneo para a heterogeneidade da clientela, a partir da
classe social a qual cada um pertence, dos distintos momentos
históricos, dos locais, enfim, estabelece- se a necessidade de
pensar as especificidades (Bianchetti, 1998, p. 41).

Desse modo, os aspectos da aprendizagem de alunos surdos variam de


acordo com as dificuldades permanentes ou temporais impostos pela
sociedade. Em termos brasileiros, a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), de 2015,
busca garantir a igualdade e a não discriminação aos surdos, sendo um
importante conquista nesse sentido. Diante das várias manifestações, é latente
a necessidade da promoção da interação e igualdade de inserção do aluno
com especificidade, assim as diretrizes para educação especial abrem as
discussões, e uma nova realidade aparece para conscientização da
importância da igualdade e da equidade.
Em termos diádicos, entre os grandes teóricos do século XX, mais
atentamente voltados para o viés pedagógico, podemos citar Lev Vigotsky
(1896- 1934), com sua corrente denominada sócio-histórica, que trouxe
grandes contribuições sobre a Psicologia da Aprendizagem e do
Desenvolvimento, além da Educação. Para a comunidade surda, podemos
dizer que os aspectos de seu método e teoria capacitam o desenvolvimento

234
humano a longo prazo, abandonando a ideia de uma essência pré-determinada
ou limitações radicais de faixa etária lançando um olhar otimista sobre a
educação especial.
No que tange à aprendizagem, a proposta de educação bilíngue para
surdos ainda é amplamente discutida. Nessa linha de pensamento, o sujeito
deve adquirir a língua de sinais como primeira língua, de forma natural e, uma
segunda língua, a língua da sociedade ouvinte majoritária (oral e/ou escrita),
construídas por intermédio das bases linguísticas obtidas por meio da língua de
sinais. Também se discute a importância da inserção da criança surda na
comunidade surda para formação do processo de identidade e também da
cultura, com o intento de levar os profissionais que trabalham com surdos a
refletir sobre a importância da LIBRAS para o surdo (Caporali, 2015). A
educação bilíngue valoriza aspectos tanto da língua de sinais, quanto da língua
oral, e por isso é considerada uma abordagem importante para garantir o pleno
desenvolvimento acadêmico e social dos surdos.
Essa abordagem objetiva a inclusão escolar de crianças e jovens surdos
para que participem de uma educação transformadora mediada por
experiências linguísticas e culturais plenamente acessíveis ao sujeito da
aprendizagem, pela organização de espaços de escolarização com a educação
bilíngue por exemplo, contemplando especificidades para os surdos, sobretudo
na educação infantil e séries iniciais, promotores do pleno desenvolvimento da
Libras e da língua portuguesa como patrimônios históricos e culturais
brasileiros.
Assim, as classes e escolas bilíngues para surdos são indispensáveis
para essa educação de fato inclusiva, revolucionária, crítica, no sentido de
superar o mero respeito às diferenças, especulado pela igualdade de
tratamento jurídico como bem tutelado pelo Estado, em direção à verdadeira
emancipação social dos estudantes e trabalhadores surdos brasileiros
(Fernandes; Moreira, 2014, p. 67).

DESAFIOS PARA A EDUCAÇÃO BÁSICA DE JOVENS SURDOS


O primeiro desafio significativo enfrentado na educação da comunidade
surda é o acesso à língua de sinais, que é a língua natural dessa comunidade.
A língua de sinais é uma forma rica e completa de comunicação, com sua

235
própria gramática e estrutura linguística. No entanto, muitas vezes, a língua de
sinais é ignorada ou subestimada em sistemas educacionais que priorizam a
língua falada e escrita.
O acesso à língua de sinais é crucial desde os estágios iniciais da vida
da criança surda. Bebês surdos nascem em famílias ouvintes e nem sempre
têm a oportunidade de serem expostos à língua de sinais em seus primeiros
anos de vida. Essa falta de acesso precoce pode resultar em atrasos no
desenvolvimento da linguagem e no aprendizado, o que pode afetar
negativamente o progresso acadêmico futuro.
Outro aspecto importante é a necessidade de professores e profissionais
da educação serem proficientes em língua de sinais para facilitar a
comunicação e interação em sala de aula. Infelizmente, ainda existem casos
em que educadores não estão familiarizados com a língua de sinais e não
podem fornecer o suporte adequado aos alunos surdos. De acordo com o
Censo Escolar de 2020, apenas 3% de todos os professores do Brasil têm a
capacidade de se comunicar com os alunos surdos por meio da Linguagem
Brasileira de Sinais (LIBRAS) (INEP, 2020).
Uma solução para esse desafio é a promoção da educação bilíngue para
alunos surdos, que envolve a integração da língua de sinais e da língua escrita
do país. Essa abordagem permite que os alunos surdos tenham acesso ao
currículo acadêmico de maneira efetiva e, ao mesmo tempo, preservem sua
identidade e cultura surda. Além disso, é importante reconhecer que a língua
de sinais é uma parte intrínseca da identidade surda e sua supressão pode
levar a problemas emocionais e sociais para os indivíduos surdos. Portanto,
valorizar e promover o uso da língua de sinais na educação é essencial para o
bem-estar geral dos alunos surdos. Garantir o acesso à língua de sinais não é
apenas um direito básico dos indivíduos surdos, mas também é fundamental
para alcançar uma educação inclusiva e de qualidade. Superar esse desafio
requer a conscientização da importância da língua de sinais, a formação
adequada de professores e profissionais da educação, além da implementação
de políticas que promovam a inclusão linguística e cultural na educação.
Além da falta de profissionais qualificados para exercer a profissão,
como acima mencionado, ainda é muito incipiente a produção, com qualidade,
de materiais educacionais eficazes e eficientes para a comunidade surda. Os

236
materiais educacionais desempenham um papel fundamental na experiência de
aprendizagem dos estudantes. No entanto, muitos desses recursos não estão
disponíveis em formatos acessíveis para os alunos surdos, o que limita seu
acesso ao conhecimento e afeta diretamente seu desempenho acadêmico.
Essa falta de materiais adequados pode ocorrer em várias áreas da educação,
como livros didáticos, materiais impressos, recursos audiovisuais e até mesmo
em plataformas educacionais on-line.
Um exemplo comum de inadequação dos materiais educacionais é a
ausência de recursos em língua de sinais. Como mencionado anteriormente, a
língua de sinais é a língua natural dos surdos, e utilizá-la como meio de
instrução é fundamental para garantir que os alunos compreendam plenamente
os conceitos apresentados em sala de aula. No entanto, muitos recursos
educacionais ainda não incluem interpretações em língua de sinais, o que
prejudica o acesso igualitário ao conteúdo para os alunos surdos.
Outra questão é a falta de legendas em vídeos e materiais audiovisuais.
Legendas são essenciais para permitir que os estudantes surdos
compreendam o conteúdo falado em filmes, documentários e outros materiais
multimídia. Sem essas legendas, os alunos surdos podem perder informações
importantes e ficar em desvantagem no aprendizado em comparação aos seus
colegas ouvintes. Além disso, a qualidade e precisão da tradução e
interpretação em língua de sinais também são aspectos críticos. Uma tradução
inadequada pode levar a mal-entendidos e erros de compreensão,
comprometendo, assim, o processo educacional.
Superar esse desafio requer esforços coordenados por parte das
instituições educacionais, editoras, desenvolvedores de plataformas
educacionais e outros envolvidos na produção de materiais educacionais. É
importante considerar a diversidade dos alunos e garantir que os materiais
sejam inclusivos, abrangendo a língua de sinais e outros recursos visuais
sempre que necessário. Tecnologias digitais também podem desempenhar um
papel crucial na superação desse desafio. A criação de recursos digitais
interativos com recursos de tradução em língua de sinais e legendas pode ser
uma forma eficaz de tornar os materiais educacionais mais acessíveis para a
comunidade surda. A colaboração com profissionais surdos e especialistas em

237
educação para surdos é fundamental para garantir que os materiais atendam
às necessidades específicas dessa comunidade.

COMBATENDO ESTIGMAS E PRECONCEITOS


Um desafio delicado e impactante na educação da comunidade surda é
o estigma e a discriminação associados à surdez. Esse problema pode afetar
profundamente o bem-estar emocional, a autoestima e o desenvolvimento
acadêmico dos alunos surdos. Desde cedo, muitos indivíduos surdos podem se
deparar com atitudes negativas e preconceituosas devido à sua surdez. Essa
discriminação pode vir de colegas, professores e até mesmo de membros da
comunidade em geral. O estigma em relação à surdez pode levar a
estereótipos prejudiciais, como a crença equivocada de que os surdos têm
limitações intelectuais ou que precisam ser "consertados" para se encaixarem
na sociedade ouvinte.
Esses estigmas e preconceitos podem ser internalizados pelos alunos
surdos, afetando sua autoconfiança e autoimagem. Eles podem começar a
duvidar de suas próprias capacidades e potencial, o que pode resultar em um
impacto negativo em seu desempenho acadêmico e motivação para aprender.
Outra manifestação do estigma e da discriminação pode ocorrer na forma de
falta de inclusão social. Alunos surdos podem se sentir excluídos e isolados em
ambientes educacionais que não valorizam ou respeitam sua identidade e
língua de sinais. Isso pode dificultar o desenvolvimento de relacionamentos
significativos com colegas e limitar suas oportunidades de interação social.
Para superar esse desafio, é essencial promover a conscientização
sobre a surdez e desconstruir os estigmas associados a ela. Isso envolve
educar a comunidade em geral sobre a riqueza da cultura surda, as
capacidades e contribuições dos indivíduos surdos e a importância da língua
de sinais como uma forma legítima de comunicação. Nas escolas, é
fundamental criar um ambiente inclusivo e acolhedor para os alunos surdos.
Isso pode ser alcançado por meio de programas de sensibilização, em que
alunos e educadores aprendem sobre a cultura surda, as necessidades dos
colegas surdos e a importância da inclusão.
Além disso, é crucial combater a discriminação no ambiente educacional
e garantir que os alunos surdos sejam tratados com respeito e igualdade. Isso

238
pode incluir a implementação de políticas de combate ao bullying e à
discriminação e à promoção de valores de inclusão e diversidade em toda a
escola. Professores e educadores também desempenham um papel vital na
superação desse desafio. Eles devem receber treinamento adequado para
trabalhar com alunos surdos e desenvolver habilidades de comunicação
eficazes em língua de sinais, além de serem modelos de respeito e empatia
para toda a comunidade escolar.
Ao enfrentar o estigma e a discriminação, podemos criar um ambiente
educacional mais inclusivo, onde os alunos surdos se sintam valorizados,
respeitados e apoiados em seu processo de aprendizagem. Essa abordagem
não apenas melhora o bem-estar emocional dos alunos surdos, mas também
enriquece a experiência educacional de toda a comunidade escolar,
promovendo uma cultura de respeito, aceitação e diversidade. Outro ponto que
reforça esses estigmas e estereótipos é a barreira de comunicação existente
entre surdos e ouvintes. Essa barreira pode ser um dos desafios mais
impactantes na vida acadêmica dos alunos surdos. A maioria das pessoas
ouvintes não domina a língua de sinais, o que pode dificultar a comunicação
efetiva entre alunos surdos e seus colegas ouvintes, professores e funcionários
da escola.
Essa falta de comunicação pode levar a situações em que os alunos
surdos se sentem isolados e excluídos, prejudicando sua participação nas
atividades sociais e acadêmicas. Eles podem enfrentar dificuldades para fazer
amigos, colaborar em projetos em grupo e participar de conversas informais
com colegas, resultando em sentimentos de solidão e alienação. Ademais, a
falta de compreensão e sensibilização sobre as necessidades de comunicação
dos alunos surdos por parte de colegas e educadores pode agravar ainda mais
essa situação. Isso pode levar a interações frustrantes, mal-entendidos e até
mesmo a percepção errônea de que os alunos surdos são desinteressados ou
não engajados em suas atividades educacionais.
Para enfrentar esse desafio, é essencial promover a conscientização
sobre as necessidades de comunicação dos alunos surdos e incentivar a
inclusão e a empatia na comunidade escolar. Isso pode ser realizado por meio
de palestras, workshops e atividades educacionais que visem aumentar a
compreensão da cultura surda e da língua de sinais. Outra medida importante é

239
a disponibilidade de intérpretes qualificados em sala de aula e em outros
ambientes escolares. Os intérpretes desempenham um papel crucial ao facilitar
a comunicação entre alunos surdos e seus colegas e professores ouvintes,
permitindo que os alunos surdos participem plenamente das aulas e atividades
escolares. Além disso, incentivar a interação social entre alunos surdos e
ouvintes pode ajudar a quebrar as barreiras de comunicação e promover a
inclusão. Atividades extracurriculares que envolvam todos os alunos,
independentemente de suas habilidades auditivas, podem ser uma maneira
eficaz de promover a convivência e o entendimento mútuo.

REFLEXÕES FINAIS
A titulo de conclusão, queremos evidenciar que é essencial fornecer
suporte emocional e psicossocial aos alunos surdos, oferecendo espaços para
que expressem suas preocupações e desafios. Ter profissionais de apoio,
como psicólogos ou orientadores, que estejam cientes das necessidades
específicas dos alunos surdos, pode ser valioso para ajudá-los a superar
dificuldades e lidar com questões emocionais. Portanto, enfrentar as
dificuldades de comunicação e interação social é fundamental para criar um
ambiente educacional verdadeiramente inclusivo para alunos surdos. Ao
promover a conscientização, fornecer intérpretes qualificados e incentivar a
convivência e o entendimento mútuo, podemos criar um ambiente onde todos
os alunos se sintam valorizados e respeitados, independentemente de suas
habilidades auditivas. Isso permitirá que os alunos surdos tenham uma
experiência educacional mais rica e que possam desenvolver plenamente seus
talentos, potenciais e amizades ao longo de sua jornada acadêmica.
A tecnologia desempenha um papel cada vez mais importante na
educação, e a ausência de dispositivos e recursos tecnológicos adequados
pode prejudicar o processo de aprendizagem dos alunos surdos. No entanto,
muitos alunos ainda enfrentam dificuldades em acessar a tecnologia devido a
diferentes fatores, como a falta de recursos financeiros ou a falta de
conhecimento sobre as opções disponíveis.
Uma das principais formas pelas quais a tecnologia pode beneficiá-los é
através de recursos de comunicação. Por exemplo, dispositivos eletrônicos,
como Tablets ou computadores, podem ser utilizados para facilitar a

240
comunicação em sala de aula, permitindo que os alunos surdos se
comuniquem com seus colegas e professores por meio de texto, mensagens
ou videochamadas. Além disso, a tecnologia pode ser utilizada para fornecer
recursos de acessibilidade, como legendas em tempo real durante aulas e
palestras, permitindo que os alunos acompanhem o conteúdo de forma mais
eficiente.
Outra área em que a tecnologia é essencial é no acesso a materiais
educacionais. Com a crescente digitalização dos recursos educacionais, é
importante garantir que os materiais sejam disponibilizados em formatos
acessíveis para os alunos surdos, como vídeos com legendas ou interpretação
em língua de sinais, e-books com suporte para língua de sinais e outros
recursos visuais. Além disso, a falta de acesso a dispositivos adequados pode
dificultar as atividades educacionais on-line, como cursos virtuais ou
plataformas de aprendizagem eletrônica. Sem a tecnologia apropriada, esses
alunos podem enfrentar desafios no acesso a materiais, comunicação com
colegas e professores, e participação plena nas atividades de aprendizagem.
Superar esse desafio requer esforços tanto no nível individual quanto no
institucional. É fundamental que as escolas e instituições de ensino forneçam
recursos tecnológicos adequados aos alunos surdos, garantindo que eles
tenham acesso igualitário a dispositivos e softwares que facilitem a
comunicação e o acesso ao conteúdo educacional. Além disso, programas
governamentais e organizações sem fins lucrativos podem desempenhar um
papel importante na promoção do acesso à tecnologia para a comunidade
surda. Isso pode incluir iniciativas de doação de dispositivos, treinamento em
tecnologia assistiva e apoio financeiro para garantir que os alunos surdos
possam se beneficiar plenamente dos avanços tecnológicos disponíveis.
Em resumo, a tecnologia desempenha um papel vital na educação
inclusiva da comunidade surda. Ao garantir que os alunos surdos tenham
acesso a dispositivos e recursos tecnológicos adequados, podendo aumentar
suas oportunidades de aprendizagem, promover sua participação plena na
educação e ajudá-los a desenvolver suas habilidades e potenciais acadêmicos.
A tecnologia tem o poder de quebrar barreiras e construir pontes, possibilitando
uma educação mais inclusiva e igualitária para todos os alunos surdos.

241
REFERÊNCIAS

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e cidadania, 5 ed. Campinas: Papiros, 2017.

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242
1. 2.
ORGANIZADORAS

ANA CARLA BARROS SOBREIRA

Doutorado em andamento em Linguística


Aplicada no Instituto de Estudos Linguísticos-
IEL- na UNICAMP. Mestre em Estudos
Linguísticos pelo PPGEL - Universidade
Federal de Uberlândia- UFU. Especialista em
Ensino de Línguas Mediado por Computador.
FALE. UFMG. Possui graduação em Letras-
Inglês pela Universidade Federal da Paraíba
(UFPB)- Campus II- Campina Grande. Tem experiência na área de Letras,
com ênfase em Linguística Aplicada, EAD, Letramento em Contexto
Indigena. Membro da Red de Investigación en Educación, Empresa y
Sociedad (REDIEES) Bogotá-Colômbia. Participa do Grupo de Estudos:
CGScholar coordenado por Kope, W.; Kalantzis,M. - Grupo de Pesquisa Nós-
Outros: Linguagem, Memória e Direitos Humanos, coordenado pela Profa.
Dra. Daniela Palma IEL-UNICAMP e pelo Prof. Dr. Daniel do Nascimento e
Silva -UFSC e Grupos de Estudos em Semiótica na USP.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3271645672158399

243
ELAINE PEREIRA ANDREATTA

Possui graduação em Letras-Habilitação


Língua Portuguesa pela Universidade
Regional do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul (2001). Especialização em
Ensino-Aprendizagem de Línguas também
pela UNIJUÍ (2005). Mestrado em Letras-
Estudos Literários pela UFAM-
Universidade Federal do Amazonas (2013).
Atualmente, é professora assistente na
Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e Doutoranda em Linguística
Aplicada pela UNICAMP. Tem experiência profissional na Educação Básica
e no Ensino Superior. Possui pesquisas em Literatura Contemporânea,
literatura infantojuvenil, literatura e ensino, leitura e letramento, atuando
também nas discussões do ensino-aprendizagem de língua materna, teoria e
prática da leitura e produção textual, além de discussões que permeiam a
interface entre linguagem, identidade e memória. É membro dos Grupos de
Pesquisa: GEEF-UFPB (Grupo de Pesquisa, Estágio e Formação Docente),
GEPPPE- UEA (Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas e
Educação) e Nós-Outros: Linguagem, Memória e Direitos Humanos-
IEL/UNICAMP. Bolsista Fapeam (Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado do Amazonas).
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4237395097967610

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