Memórias Literárias
Memórias Literárias
Memórias Literárias
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
2023
© Das Organizadoras - 2023
Editoração e capa: Schreiben
Imagem da capa: Rawpixel.com - Freepik.com
Revisão: os autores
Livro publicado em: 25/09/2023
Conselho Editorial (Editora Schreiben):
Dr. Adelar Heinsfeld (UPF)
Dr. Airton Spies (EPAGRI)
Dra. Ana Carolina Martins da Silva (UERGS)
Dr. Deivid Alex dos Santos (UEL)
Dr. Douglas Orestes Franzen (UCEFF)
Dr. Eduardo Ramón Palermo López (MPR - Uruguai)
Dra. Geuciane Felipe Guerim Fernandes (UENP)
Dra. Ivânia Campigotto Aquino (UPF)
Dr. João Carlos Tedesco (UPF)
Dr. Joel Cardoso da Silva (UFPA)
Dr. José Antonio Ribeiro de Moura (FEEVALE)
Dr. José Raimundo Rodrigues (UFES)
Dr. Klebson Souza Santos (UEFS)
Dr. Leandro Hahn (UNIARP)
Dr. Leandro Mayer (SED-SC)
Dra. Marcela Mary José da Silva (UFRB)
Dra. Marciane Kessler (UFPel)
Dr. Marcos Pereira dos Santos (FAQ)
Dra. Natércia de Andrade Lopes Neta (UNEAL)
Dr. Odair Neitzel (UFFS)
Dr. Valdenildo dos Santos (UFMS)
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1. Literatura. 2. Escrita. 3. Leitura. I. Título. II. Silva, Dirce Maria da. III.
Portela, Eunice Nóbrega. IV. Almeida, Cirlene Pereira dos Reis. V. Vasconcelos,
Marina Arantes Santos.
CDU 82
Eixo I
CAMINHOS DE LEITURA
MEMÓRIA LITERÁRIA, TROVADORISMO E CORDEL:
UMA PROPOSTA DIDÁTICA...................................................................12
Wendel de Souza Borges
BIBLIOTECA COMUNITÁRIA ROEDORES DE LIVROS
EM CEILÂNDIA/DF: FORMAÇÃO DE LEITORES NAS
VIAS DA MEMÓRIA..................................................................................27
Marina Arantes Santos Vasconcelos
Ana Paula Bernardes
Eixo II
LEITURA E PSICANÁLISE
GARCIA LORCA ENTRE DESEJO E ERÓTICA EM
“SONETOS DO AMOR OBSCURO”.........................................................37
Márcia Cristina Maesso
Roberto Medina
RESSONÂNCIAS E VAZIOS: UM EXAME DAS LACUNAS NAS
NARRATIVAS LITERÁRIAS SOBRE O INCONSCIENTE.......................55
Eunice Nóbrega Portela
PROFUNDEZAS DA ALMA REVELADAS:
UMA EXPLORAÇÃO PSICANALÍTICA DA COMPLEXIDADE
HUMANA NA LITERATURA...................................................................67
Eunice Nóbrega Portela
EXPLORANDO MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
ANÁLISE DA DUALIDADE IDENTITÁRIA DE JACOBINA EM
‘O ESPELHO’ DE MACHADO DE ASSIS: UM CONFRONTO
ENTRE O EU-HOMEM E O EU-OUTRO.....................................................82
Cirlene Pereira dos Reis Almeida
Eixo III
MULHERES NA LITERATURA
ENTRE PÁGINAS EM BRANCO E SILÊNCIOS LITERÁRIOS -
A MULHER E SUA AUSÊNCIA: REFLETINDO SOBRE
‘UM QUARTO SÓ SEU’, DE VIRGINIA WOOLF.....................................93
Maria Cristina Sebba
REFLEXÕES SOBRE O QUE É SER MULHER BASEADAS NA
PERSONAGEM ELIZABETH BENNET DE JANE AUSTEN.................100
Aline Mayane Tavares de Melo
ALÉM DO TEMPO: COMENTÁRIOS SOBRE
‘MEMÓRIAS DE ADRIANO’, DE MARGUERITE YOURCENAR........115
Dirce Maria da Silva
Eixo IV
MEMÓRIAS LITERÁRIAS, EDUCAÇÃO E DIREITO
MEMÓRIAS LITERÁRIAS: O SIGNIFICADO DO ENSINO DA
LEITURA E DA ESCRITA NA VIDA ESTUDANTIL..............................130
Débora Jesus de Queiroz
Cirlene Pereira dos Reis Almeida
MEMÓRIAS DE LEITURA NA FORMAÇÃO ACADÊMICA:
UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA SOBRE A INFÂNCIA E O
LÚDICO NA EDUCAÇÃO.......................................................................144
Lílian Viviane Gonçalves Martins
Dirce Maria da Silva
REVISANDO CONCEITOS E TECENDO REFLEXÕES
SOBRE A IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO BILÍNGUE
NO BRASIL..............................................................................................155
Horácio Lessa Ramalho
Dirce Maria da Silva
REVISITANDO CONCEITOS: SOBRE A EVOLUÇÃO
HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS..............................................166
Larissa Argenta Ferreira de Melo
Dirce Maria da Silva
Eixo V
A ESTÉTICA DA MEMÓRIA E DA EXPRESSÃO
UMA BREVE PRELEÇÃO SOBRE O BELO COMO
REPRESENTAÇÃO DO BEM.................................................................175
Dirce Maria da Silva
Francisco Ronaldo Frazão de Lima
MEMÓRIAS AFETIVAS NA ARTETERAPIA.........................................185
Elizabete Adelaide da Silva
Dirce Maria da Silva
VERSOS E MEMÓRIAS: A HARMONIA DOS DIAS COM O
PODER DA LEITURA E DA ESCRITA...................................................196
Washington Dourado
Dirce Maria da Silva
Eixo VI
RESENHAS
RESENHA
HUYSSEN, Andreas. SEDUZIDOS PELA MEMÓRIA ................................211
Marina Arantes Santos Vasconcelos
RESENHA
SILVA, Francisco José da. CAMINHOS E MEMÓRIAS DE MATÕES:
UMA HISTÓRIA SECULAR.............................................................................219
Dirce Maria da Silva
POSFÁCIO...............................................................................................234
Dirce Maria da Silva
ORGANIZADORAS................................................................................ 235
ÍNDICE REMISSIVO................................................................................237
PREFÁCIO
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O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
ou, universos literários diversificados, e os encoraje a compartilhar de suas me-
mórias e escritas.
As Organizadoras
Me. Dirce Maria da Silva
Mestre em Direitos Humanos (Políticas Públicas) pelo Centro Universitário Unieuro/DF.
Dra. Eunice Nóbrega Portela
Doutora em Educação pela Universidade de Brasília (UnB).
Dra. Cirlene Pereira dos Reis Almeida
Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO).
Dra. Marina Arantes Santos Vasconcelos
Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília (UnB).
7
APRESENTAÇÃO
9
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)
As Organizadoras
Me. Dirce Maria da Silva
Mestre em Direitos Humanos (Políticas Públicas) pelo Centro Universitário Unieuro/DF.
Dra. Eunice Nóbrega Portela
Doutora em Educação pela Universidade de Brasília (UnB).
Dra. Cirlene Pereira dos Reis Almeida
Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO).
Dra. Marina Arantes Santos Vasconcelos.
Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília (UnB).
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EIXO I
CAMINHOS DE LEITURA
MEMÓRIA LITERÁRIA, TROVADORISMO E
CORDEL: UMA PROPOSTA DIDÁTICA1
Wendel de Souza Borges2
INTRODUÇÃO
DESENVOLVIMENTO
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Ibérica, produto cultural propiciado pelo Renascimento do século XII3, é fruto
de uma gama de fatores políticos, religiosos, morais e sociais, deveras transgres-
sivos, construídos e construtores do imaginário do período. A cantiga trovado-
resca tem sido também objeto de pesquisas históricas e apontamentos de repre-
sentações do cotidiano e do imaginário medieval do oeste europeu, de modo
que, segundo José Rivair Macedo (2008, p. 110), as “pesquisas contribuíram
decisivamente para reabilitar aquele período”, e para elucidar algumas de suas
práticas sociais. Os estudos promoveram recentes descobertas sobre o medievo
e sobre as cantigas trovadorescas, de maneira a trazer lume à compreensão das
cantigas e ao período histórico em que estavam em voga. Portanto, essas pes-
quisas sobre o Trovadorismo galego-português favorecem a desconstrução do
imaginário que perdura ainda na sociedade hodierna sobre a Idade Média, uma
vez que, consoante Andréia Silva,
Não é inútil relembrar, aqui, que para algumas parcelas da população bra-
sileira o período medieval ainda é a “Idade das Trevas” ou é compreen-
dido pela perspectiva romântica e idealizadora. Em contrapartida, outros
setores sequer possuem uma referência sobre o período e desconhecem o
patrimônio cultural medieval (Silva, 2013, p. 343).
3 Segundo Segismundo Spina (1997, p. 76-77) “o século XII é denominado o segundo Re-
nascimento (o primeiro fora o Carolíngio)”. E ainda, “o século XII surge como um século
dinâmico: criação e desenvolvimento das cidades, realização das Cruzadas e consequente-
mente do comércio ultramarino. Aparição da burguesia. O movimento urbano ocasionou
a transferência da supremacia das escolas monacais para as escolas episcopais; e estas,
eminentemente urbanas, dão origem às universidades do século XIII”.
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M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
se é dado acreditar em sua sobrevivência no imaginário, nas práticas, nas repre-
sentações e nas memórias literárias.
Concorda-se com Schmidt (1997, p. 57), quando afirma que, “a sala de
aula não é apenas onde se transmite informações, mas onde uma relação de
interlocutores constroem sentidos”. Para que essa relação possa ser edificada,
foi elaborada uma proposta para o uso da cantiga trovadoresca medieval galego-
-portuguesa, especificamente a de escárnio e de maldizer, tanto para as aulas de
literatura quanto de história.
Embora a poesia trovadoresca medieval galego-portuguesa pareça restri-
ta a uma determinada época, uma vez que se estabeleceu, como afirma Maria
Tarracha Ferreira (1980, p. 9), “entre os fins do século XII, com o provável dos
primeiros documentos escritos não literários, e 1434, ano em que Fernão Lopes,
nomeado pelo rei D. Duarte cronista-mor do reino, cria verdadeiramente a prosa
literária nacional”. Por outro lado, há que se acreditar, como sugere Spina (1974,
p. 11), que as manifestações literárias portuguesas da Idade Média, prolonga-
ram-se até o ano de 1597. Por isso, o autor divide o período literário medieval
em “dois grandes movimentos literários”: o Trovadorismo e a poesia palaciana
do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende.
Mesmo que ambas as manifestações tivessem sua individualidade e pecu-
liaridades, há certas características que se mantiveram de uma na outra, como
a devoção pela dama e os embates poéticos. Portanto, acredita-se que as produ-
ções literárias são, parcialmente, fruto de rupturas com os momentos literários
precedentes, mas também construções estéticas e ideológicas remanescentes de
outros períodos que se encontram ativas no imaginário social. Mesmo que à
época da chegada dos portugueses em território brasileiro, seja coincidente com
à poesia do Cancioneiro Geral, foi a poesia do Trovadorismo que aqui desem-
barcou das naus portuguesas com uma tripulação que era eminentemente popu-
lar, por isso mais próxima da estética trovadoresca, uma vez que aquela estivesse
restrita aos salões das cortes palacianas (Fernandes, 2015, p. 171); e essa, era um
tipo de poesia que circulava por todas as categorias sociais.
Confrontamos os dois movimentos literários com o intuito de mostrar o
elo primevo entre a literatura portuguesa e sua inserção em terras brasileiras,
uma vez que a poesia constante no Cancioneiro Geral já prenunciava o apareci-
mento da Renascença cultural em Portugal, com as novidades estéticas trazidas
da Itália por Sá de Miranda, em 1526, como a medida nova4 que se contrapunha
a que foi denominada de medida velha.
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5 Fernando Vilela nasceu em São Paulo, em 1973. Graduou-se em Artes Plásticas pela UNI-
CAMP e tornou-se mestre pela ECA-USP. Além de escritor é também gravurista e professor.
6 Conforme o site do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a Li-
teratura de Cordel encontra-se em processo de tramitação de número 01450.008598/2010-
20, datado de 22/02/2010 para o seu tombamento como patrimônio imaterial brasileiro.
Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/426.
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
que, no entanto, estabelece vínculos residuais com a literatura luso-galega do
Trovadorismo.
Partamos então desse gênero de poesia popular, cuja origem reside em
Portugal e que aportou em terras brasileiras no século XVI, pois consoante
Marco Haurélio (2010, p. 14), seu “substrato chegou ao Brasil [...] à bordo das
primeiras caravelas”, pois “é próprio do homem, em seu constante deslocamen-
to geográfico, levar consigo, além dos conhecimentos que lhe garantam a sobre-
vivência, a sua cultura”. Expoente da cultura popular portuguesa, o cordel luso,
como afirma Maria Lopes-Rossi (2012, p. 161), “foi alterado e adaptado pelos
poetas populares nordestinos e hoje a literatura de folhetos”, como também é
designada a literatura de cordel, “publicada no Nordeste brasileiro apresenta
características próprias” que, segundo Mark Curran (2003, p. 17), “exibe mé-
trica, temas e performance da tradição oral”, uma vez que seus produtores e sua
audiência eram, a princípio, de modo geral, ágrafos.
Por isso, de acordo com Lopes-Rossi (2012, p. 161), “os cordéis eram
apresentados oralmente, em cantorias e desafios, e a conservação das produções
se dava por meio da memorização pelo público”. Tal qual ocorria com as canti-
gas trovadorescas medievais, o processo de difusão do Cordel era oral, portanto,
é imprescindível ao docente, solicitar ou realizar a leitura coletiva, recitando o
poema de Fernando Vilela, de modo que o aluno perceba a musicalidade dos
versos. Isso feito, deve-se destacar o vínculo do poema à tradição da Literatura
de Cordel e da literatura trovadoresca, pautada em uma oralidade primordial e
em uma estrutura estética peculiar.
Outro fator que colaborou para a cristalização das cantigas trovadorescas
no imaginário popular além do seu caráter oral, é a sua associação entre o texto
e a música, o que, consoante Adriana Rennó (1999, p. 114), facilitava “a memo-
rização dos versos por parte do público-ouvinte”. Tal memorização acontecia
também graças ao ritmo e à métrica da própria construção poética que interca-
lava sílabas tônicas e átonas, escandindo os versos, na maior parte das cantigas,
em redondilhas menores (versos pentassilábicos) e em redondilhas maiores (ver-
sos heptassilábicos), ou seja, compostos em medida velha.
Além da estrutura versificatória setissilábica, pode-se ressaltar ainda, a
presença das rimas como componente fundamental para a obtenção da musicali-
dade. Na obra Lampião & Lancelote, ela é organizada, de modo geral, em sextilhas
e septilhas, cujo esquema rímico é, respectivamente, ABCBDB e ABCBDDB.
Verificada pois, a questão residual na estrutura do poema, o primeiro per-
sonagem a ter sua aparição na obra analisada é Lancelote e é assim apresentado.
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7 Conforme Spina (1997, p. 24), os temas épicos, na Idade Média, eram agrupados em ci-
clos. Dos quais podem-se destacar o ciclo “clássico, por ilustrar figuras heroicas extraídas
do mundo clássico mediterrâneo (Grécia-Tróia-Roma); um segundo, denominado bizanti-
no, cuja procedência se deve às Cruzadas religiosas; e um terceiro grupo, o mais importan-
te, fruto da influência bretã e suscetível de classificar-se em três ciclos: o arturiano, o ciclo
de Tristão e o ciclo do Graal”.
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
& Lancelote, a representação desse personagem assenta-se no uso de adjetivos
como, bom, nobre, valoroso, altaneiro, forte e delicado, esses representam os valo-
res idealizados e admirados pela nobreza bélica que, no intuito de minimizar
a violência da sociedade medieval, adota um código de conduta que visava a
domesticação do cavaleiro nobre para uma vida na corte.
Destaca-se também, no poema, a associação metonímica entre o cavaleiro e
o cavalo, no verso “passa a vida a galopar”, que sugere que ambos se estabelecem
como uma unidade, esta, realiza uma atividade dinâmica em um espaço aber-
to e amplo, de modo a representar o espírito guerreiro, a vagância e a liberdade
atribuídos aos cavaleiros andantes. Essa imagem foi construída e resguardada na
memória literária, pois segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2006, p. 201),
“a figura do cavaleiro subsiste, não só na literatura ocidental da Idade Média,
como em todas as literaturas modernas”. Lancelote é o eleito entre os melhores,
que se põe a ocupar-se de aventuras, como fazem os demais cavaleiros da Távola
Redonda, nas andanças em demanda do sagrado, personificado pelo Graal.
O professor pode destacar também o processo de hibridismo cultural entre
elementos cristãos e pagãos, próprios da Idade Média, pois sendo uma persona-
gem mítica anterior ao cristianismo, ele transfigura-se em um representante dessa
religião, uma vez que o branco do cavalo, em unidade com o cavaleiro, simboliza
dentro dela os ideais de pureza e ascetismo, sendo pois, de acordo com Chevalier
e Gheerbrant (2006, p.144) “a cor da teofania (manifestação de Deus)”. Essa pre-
sença espiritual cromática associa-se também ao prata, cor da armadura na qual
tanto cavalo quanto cavaleiro parecem estar investidos. Esse prateado da armadu-
ra, na qual “a luz do sol se reflete”, que refulge com tamanha intensidade e que a
“todos cegam de espanto”, pode ser associado ao carro solar, geralmente puxado
por cavalos, esse objeto mítico é presente tanto no paganismo, relacionado à trági-
ca viagem de Faetonte, quanto no cristianismo, à ascensão de Elias.
Outro aspecto que pode ser abordado reside na incidência da expressão
fogo cruzado, que por meio de uma equivocatio, refere-se tanto à violência da guer-
ra, quanto às cruzadas e por extensão, aos expedicionários que nela incorriam,
os cruzados. Deve-se lembrar que parte da Península Ibérica, espaço em que se
desenvolveu o Trovadorismo e onde se deu o nascimento do Cordel, esteve du-
rante aproximadamente oito séculos sob o domínio muçulmano. E contra esse
conglomerado, os cavaleiros lançavam-se em cruzada, empreendendo sangren-
tos combates entre o norte cristão e o sul muçulmano, naquilo que foi chamado
de Reconquista Cristã.
Esse entrave bélico de quase 800 anos favoreceu o convívio entre os povos
das duas religiões que se influenciaram mutuamente, dentre tantos e variados as-
pectos, na língua e na literatura. O conflito propiciou também o desenvolvimento
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da cavalaria, que por sua vez incendiou o imaginário daquela e das gerações
vindouras com uma imagem romantizada da guerra e em meio a ela, atos de
“bravura arguta”, a criação de uma cavalaria modelar e a figura do herói.
Em uma sociedade em que a informação é mediada oralmente, muitas
vezes os fatos e a fantasia entrelaçam-se de modo a constituir uma narrativa ori-
ginal que representa os valores ali em vigência. Sendo assim, a imagem fictícia
e real de Lancelote, tal qual representada no excerto permite-nos inferir que ela
pouco ou nada se modificou, mantendo-se no imaginário popular como o ideal
de cavalaria, representação da coragem, do espírito de combate, da virilidade e
da vassalagem amorosa, presente no amor cortês. Por isso, a alusão a ele suscita
na memória literária de mulheres e homens, um modelo de devoção amorosa e
arquétipo de masculinidade e cavalheirismo.
Essa memória e imaginário residual transgrediram o espaço peninsular
e o período médio, sobrevivendo em personagens constantemente reinseridos
como temas na Literatura de Cordel. E ainda, estabelecendo uma analogia en-
tre esse remanescente e as personagens típicas brasileiras, como o controverso
Lampião, pois este é também apresentado como um formidável guerreiro.
Agora eu lhes apresento
Um grande cangaceiro
Nascido em nosso país
Leal e bom companheiro
Para uns foi criminoso
Para outros justiceiro
Criado nas terras secas
Vaqueiro trabalhador
Cuidava de um ralo gado
Com coragem e com valor
Seu nome era Virgulino
Mas um dia veio a dor
Ao ver seu pai baleado
Ele partiu pra vingança
À frente dos cangaceiros
Se pôs logo em liderança
Bando de cabras armados
Ao inimigo com ganância!
(Vilela, 2006).
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
guerreiro, exceto seu nascimento simples e seu ofício, visto que foi “criado nas
terras secas”, exercendo, primordialmente, a função de “vaqueiro”.
Embora não tenha nascimento nobre, para muitos o seu ideal o é: sua luta
é por vingança, motivada pelo assassínio de seu pai (Allysson Martins, 2014, p.
172). A representação dele edificada apresenta uma dupla leitura, conforme o poe-
ma, “para uns foi criminoso/para outros justiceiro”. Nesse último caso, vingança
poderia ser entendida como uma forma de justiça exercida pelo sertanejo, pelo tra-
balhador de poucas posses a cultivar as terras áridas e a cuidar “de um ralo gado”.
Assim, a sua proveniência humilde e a sua ambição não o aviltam, ao
contrário, o elevam e o redimem dos eventuais crimes que tenha cometido, por-
que o homem simples e cotidiano nele se reconhece e reconhece nele um guer-
reiro, um cavaleiro, um defensor dos oprimidos contra a cobiça dos poderosos,
um símbolo de vitória contra as injustiças sociais cometidas contra a população
do Nordeste brasileiro, portanto, um exemplo de resistência. O professor pode
salientar o vigor dessa personagem e sua permanência no imaginário social des-
tacando sua massificação na televisão brasileira, com a minissérie Lampião e
Maria Bonita (1982), sua emergência no cinema, com o filme Baile perfumado
(1997) e no movimento multicultural, Manguebeat.
Portanto, ambos os personagens, presentes na história e na literatura, in-
tegram o imaginário social brasileiro e ainda, reforçam a imagem construída
dos cavaleiros da Idade Média. Qualidades como a disciplina, a lealdade, a opu-
lência, a coragem, a capacidade de liderança e a habilidade na arte da guerra,
todas elas ligadas às questões marciais da cavalaria, vão para além destas, eram,
sobretudo, uma forma de conduta moral que os distinguiam como categoria
social e como arquétipo de valentia e perfeição.
Muito embora a representação que se faz no poema do cavaleiro e por
extensão, da cavalaria medieval nos permita uma leitura daquele período, deve-
-se creditar à literatura uma certa hipérbole das características imanentes a essa
ordem social. No entanto, é também a literatura que nos fornece uma outra pos-
siblidade de leitura da cavalaria e do cavaleiro. Essa, menos idealizada, fornece-
-nos elementos que possibilitam desconstruir o imaginário referente ao cavaleiro
medieval, humanizando-o ao expor características que estavam em desacordo
ao modelo de cavalaria.
Embora fosse função da nobreza empunhar armas no campo de combate
e muitas vezes, mediante essa função, se acovardar ante às pelejas, o coteife8 foi
também alvo do escárnio de jograis e trovadores dos cancioneiros medievais ga-
lego-portugueses, como nessa feroz cantiga de D. Afonso X, presente em Lopes,
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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)
O genete
pois remete
seu alfaraz corredor
estremece
e esmorece
o coteife com pavor.
Vi coteifes orpelados
estar mui mal espantados
e genetes trosquiados
corriam-nos arredor;
tinham-nos mal aficados
[ca] perdian’a color.
Vi coteifes de gram brio
eno meio do estio
estar tremendo sem frio
ant’os mouros d’Azamor;
e ia-se deles rio
que Auguadalquivir maior.
Vi eu de coteifes azes,
com infanções iguazes,
mui peores ca rapazes;
e houveram tal pavor,
que os seus panos d’arrazes
tornarom doutra color.
Vi coteifes com arminhos,
conhecedores de vinhos,
e rapazes dos martinhos
que nom tragiam senhor
sairom aos mesquinhos,
fezerom tod’o peor.
Vi coteifes e cochões
com mui [mais] longos granhões
que as barvas dos cabrões:
[e] ao som do atambor
os deitavam dos arções
ant’os pees de seu senhor9.
Lopes (2002, p. 81).
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
A narrativa de Afonso X constrói uma dinâmica imagem do movimen-
to bélico da Reconquista, compondo um cenário perturbador sobre o compor-
tamento desse grupo da aristocracia vilã (Fernandes Marques, 1996, p. 253),
ante à violência da guerra e à iminência da morte. Violência e iminência essas
corroboradas pela escrita atribuída a Rui de Pina (Sousa, 1989, p. 28), em sua
Crónica do Rei D. Afonso IV, de Portugal, que relata uma batalha entre cristãos e
muçulmanos,
E de todos estes exercytos, dos Christãos e dos Mouros, sayram tamtas
grytas, com tamtos estromdos de trombetas e atabaques e d outros des-
vayrados estormentos, que claramente momtanhas e vales tremyam, e pa-
reçia que ha cousas todas da tera de seus propyos luguares se movyam e
aramcavam, sendo esta batalha tam cruamemte fferyda, que has armas e
as ervas e as pedras do chão, heram ja todas timtas em sangue (Citado por
Sousa, 1989, p. 29).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
REFERÊNCIAS
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FIORIN, José Luiz. A construção da identidade nacional brasileira. In: Bakh-
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br/index.php/bakhtiniana/article/view/3002/1933 Acesso: 04-5-2108.
HAURÉLIO, Marco. Breve história da Literatura de Cordel. São Paulo: Cla-
ridade, 2010.
LOPES, Graça Videira. Cantigas de escárnio e maldizer dos trovadores e jo-
grais galego-portugueses. Lisboa: Editorial Estampa, 2002.
LOPES, Graça Videira; FERREIRA, Manuel Pedro. (2011-). Cantigas Medie-
vais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos
Medievais, FCSH/NOVA. Disponível em: http://cantigas.fcsh.unl.pt . Acesso
em: 23-03-2016.
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M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)
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BIBLIOTECA COMUNITÁRIA ROEDORES DE
LIVROS EM CEILÂNDIA/DF: FORMAÇÃO DE
LEITORES NAS VIAS DA MEMÓRIA
Marina Arantes Santos Vasconcelos1
Ana Paula Bernardes2
INTRODUÇÃO
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
DESENVOLVIMENTO
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
fortalecimento das bibliotecas comunitárias: espaço, acervo, mediação e gestão.
O espaço é alegre, organizado e versátil, um convite a exploração dos livros,
participação nas atividades e leitura. O destaque, como dito, é a mediação de
leitura. O PRL é formador de mediadores e utiliza a ação para estimular o inte-
resse pela leitura entre crianças e adolescentes, planejada para promover prazer
pela leitura e cultura leitora na comunidade. Finalmente, a gestão, realizada de
forma colaborativa, permite visão integrada do planejamento, monitoramento e
avaliação dos processos bibliotecários.
É para as crianças e adolescentes do Distrito Federal que a Biblioteca
propõe, pela literatura, reflexão sobre as mudanças culturais e sociais, abordando
temas como cidadania, direitos humanos, cultura antirracista e valorização
das culturas indígena e afro-brasileira. Outra inciativa é a oferta de recursos de
acessibilidade física e comunicacional.
Em A memória, a história, o esquecimento (Ricoeur, 2007), o teórico
francês defende que é “(...) essencialmente no caminho da recordação e do re-
conhecimento, esses dois fenômenos mnemônicos maiores de nossa tipologia
da lembrança, que nos deparamos com a memória dos outros. (...)” (Ricoeur,
2007, p. 131). Segundo Ricoeur (2007), o termo ‘reconhecimento’ guarda duas
perspectivas passíveis de interpretação. Num primeiro plano, remete às contri-
buições exteriores, voltadas à construção de sentidos a partir de suportes ex-
ternos; já uma segunda acepção aponta para os apoios internos, extraídos das
lembranças individuais e espontâneas. Os estudos sobre a memória coletiva, de
modo complementar, levam à constatação de que as lembranças não são dados
isolados, uma vez que é no aspecto relacional da mediação que se encontram as
ferramentas que conduzem os sujeitos a construírem seu arcabouço memorial.
Para Paul Ricoeur (2007), “(...) as lembranças comuns (...) permitem afir-
mar ‘que, na realidade, nunca estamos sozinhos’ (...) Temos (...) acesso a aconte-
cimentos reconstruídos para nós por outros que não nós. (...) é por seu lugar num
conjunto que os outros se definem. (...)” (Ricoeur, 2007, p. 131). Com isso, pode-se
depreender que a memória individual sem o olhar do outro tende a cristalizar-se,
já que a memória, segundo o citado filósofo contemporâneo (2007), requer apoios
exteriores. Nesse sentido, o ato de memória resultaria do conjunto de influências
do grupo. A iniciativa de aceitação do outro é que seria, então, individual.
O pensamento filosófico de Paul Ricoeur (2007) notadamente confere
sustentação teórica ao Projeto Roedores de Livros, justificando-o academica-
mente e legitimando seu funcionamento, visto que atesta a eficácia do método
desenvolvido, pautado nas relações interpessoais como potencializadoras de
conexões advindas da experiência leitora, mediada e voltada à construção de
memórias literárias que conferem à literatura o status de patrimônio cultural.
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M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)
O teórico (Huyssen, 2000) sinaliza que “algo mais deve estar em causa,
algo que produz o desejo de privilegiar o passado e que nos faz responder tão
favoravelmente aos mercados de memória.” (Huyssen, 2000, p. 25). No seu en-
tendimento (Huyssen, 2000), “este algo (...) é uma lenta mas palpável transfor-
mação da temporalidade nas nossas vidas, provocada pela complexa interseção
de mudança tecnológica, mídia de massa e novos padrões de consumo, trabalho
e mobilidade global.” (Huyssen, 2000, p. 25). Segundo Huyssen (2000), “por
mais dúbia que hoje nos pareça a afirmação de que somos capazes de aprender
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
com a história, a cultura da memória preenche uma função importante (...) no
rastro do impacto da nova mídia na percepção e na sensibilidade humanas.”
(Huyssen, 2000, p. 25-26).
E neste ponto, é válido refletir a respeito dessa problematização provoca-
da por Huyssen (2000), no que tange às mudanças desencadeadas pelo “contí-
nuo encolhimento dos horizontes de tempo e espaço” na vida contemporânea,
considerando o papel que pode desempenhar a imaginação e o armazenamento
de lembranças a partir da experiência leitora, já desde as primeiras fases da in-
fância, na formação de valores e crenças dos jovens leitores. Para Ana Paula
Bernardes (2019):
São as histórias que nos tornam mais humanas. É a partir delas que sabe-
mos como viviam as pessoas no Egito, na Idade Média, como são os cos-
tumes na Rússia, como foi a vida e a arte de Leonardo da Vinci, como os
indígenas do Xingu pensam, como fazemos a receita de brigadeiro ou do
frango com angu e quiabo, por exemplo. Também aprendemos sobre dra-
gões, fadas, duendes. Entramos em contato com sentimentos profundos.
Histórias passadas de geração em geração através das reuniões em família
ou transmitidas por meio dos livros. No Roedores de Livros, são com os
livros que transmitimos essas histórias. Apresentamos o mundo para as
crianças. Seja ele real, através dos seus costumes, personagens históricos,
o bem e o mal que nos habita; ou seja ele pela fantasia, via fábulas, seres
fantásticos e mundos imaginados. O importante de partilhar essas histó-
rias é ajudar na construção desses pequenos leitores em cidadãos mais
conscientes do mundo em que vivem. Acreditamos que, com mais leitores
críticos, o mundo pode ser melhor para todos (Bernardes; Freitas, 2019).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Importa aqui chamar a atenção para o fato de que, para Ricoeur (2007):
a própria imaginação é uma potência (...) ‘ela leva a acreditar, a duvidar, a
negar a razão’; (...) ‘a imaginação dispõe de tudo; faz a beleza, a justiça e
a felicidade que é o todo do mundo’. Qual outra potência além da imagi-
nação poderia revestir de prestígio juízes, médicos, pregadores? (Ricoeur,
2007, p. 284).
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
REFERÊNCIAS
BERNARDES, Ana Paula; FREITAS, Tino. Entrevista concedida por ocasião
do lançamento do livro Tapete Vermelho. Brasília: Editora do Brasil, 2019.
BERNARDES, Ana Paula; FREITAS, Tino. Diário dos Roedores de Livros.
Disponível em: Roedores de Livros, 2008. Acesso em: 29/8/2023.
BERNARDES, Ana Paula; FREITAS, Tino. Jornal do Rato Leitor: Edição
Especial. Disponível em: Roedores de Livros: VIDA LONGA AOS ROEDO-
RES: 16 ANOS DE AMOR! EDIÇÃO ESPECIAL DO JORNAL DO RATO
LEITOR!, 2022. Acesso em: 29/8/2023.
BORGES, Jorge Luís. Elogio da Sombra. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1985.
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos,
mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain Fran-
çois [et al.]. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.
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EIXO II
LITERATURA E PSICANÁLISE
GARCIA LORCA ENTRE DESEJO E ERÓTICA EM
“SONETOS DO AMOR OBSCURO”
Márcia Cristina Maesso1
Roberto Medina2
INTRODUÇÃO
“Sonetos del amor oscuro”3. Vale nota o significante “oscuro” do título. Seria
o amor que não pode se mostrar e dizer seu nome? Aquilo que vem do mais
íntimo? Há uma relação entre o corpo textual e o corpo desejante na relação
homoerótica? Um amor “oscuro” por ser portador do que nos marca na radica-
lidade e na impossibilidade expressiva do pulsional? O curioso é que surge um
amor múltiplo no campo do desejo em forma literária fixa que se reivindica pa-
radoxal e deslizante na erótica dos temas e das figuras poéticas de Garcia Lorca.
Diante dos olhos do Brasil e da Espanha, os tempos de atraso cultural e de
ideologias totalizantes, ser homossexual é um rebaixamento e um medo, em psi-
canálise, da feminilidade, algo que compõe a todos nós, no nível do inconsciente.
Ou seria uma angústia da castração? Garcia Lorca, nascido em 1898, produz com
voracidade literária e artística, mas subjaz à pulsão erótica dos encontros amoro-
sos com outros homens. Consolidou-se na dramaturgia e na produção poética,
assumindo nos poemas o epíteto de Píndaro: “Torna-te o que tu és”. Não é novi-
dade, na lírica lorqueana, o tema do “amor-paixão”, aquele gerador de angústias,
de pequenas alegrias, de aprisionamento amoroso e de tempo de espera.
O poeta lia seus poemas para círculo de amigos, com a alegria e o entu-
siasmo andaluzes; no entanto, publicar os poemas homoeróticos de amor era
tamanha ousadia para os olhos ortodoxos e conservadores naquele tempo de
hipocrisia e de exigência cultural de ficar na “obscuridade”. Na prática da letra,
as manifestações do inconsciente tomam a mão de Garcia Lorca e armam o seu
canto na escrita em arroubos de liberdade e de expressão lírica de notável beleza
poética, ao estilo da “Geração espanhola de 27”, cuja voz autoral ecoa até a
contemporaneidade.
3 Sugerimos a leitura de: MAURER, Christopher. Poetry. In: BONADDIO, Federico (Ed.).
A companion to Federico García Lorca. Woodbridge: Tamesis Books, 2007, p. 16-38.)
“Nos meses anteriores ao seu assassinato pelas tropas franquistas, durante os primeiros
dias da Guerra Civil Espanhola, Lorca estava trabalhando em uma coleção de sonetos,
“Jardín de los sonetos”, que reuniria alguns dos muitos que havia redigido ao longo de
sua vida, um sinal de uma tendência na poesia espanhola que Lorca descreveu como um
regresso às “formas tradicionais, depois de um amplo e ensolarado passeio pela liberdade
da métrica e da rima”. A sequência mais importante dessa obra acabou por ser a intitulada
“Sonetos do amor obscuro”, uma coleção de onze sonetos homoeróticos de amor, escritos
em 1935 e inspirados por Rafael Rodríguez Rapún, o jovem estudante de engenharia que
havia trabalhado como assistente de Lorca em La Barraca. Alguns desses sonetos se en-
contram mais revisados e polidos do que outros, embora todos tenham sido incorporados
ávida e indiscriminadamente ao cânone da obra, após a publicação póstuma da sequência
em uma edição pirateada, em 1983, seguida da primeira publicação oficial no jornal ABC,
de Madri. A versão final – se é que alguma vez Lorca tenha preparado um rascunho que
considerasse final – perdeu-se. É triste que os dois trabalhos de Lorca que lidam mais ou-
sada e diretamente com o homoerotismo existam hoje apenas em versões “inacabadas”, e
que alguns dos amigos mais próximos de Lorca optaram por não publicar versões comple-
tas das cartas que ele lhes escreveu. (MAURER, 2007, p. 37)
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
A OBSCURIDADE DESEJANTE E A VOZ POEMÁTICA
García Lorca deu voz à relação de corpos nos enlevos místicos e nos re-
cursos expressivos surrealistas, fraturando a lógica associativa e deslizando a
posição estável de um possível “eu”. Nos sonetos, vem a ressaca de todo um
vivido, metamorfoseado em matéria poética: amor, angústia, ódio, indiferença e
destruição das fronteiras individuais. Na tradução de William Agel de Mello, de
2012, “Sonetos do amor obscuro e Divã do Tmarit”, edição bilíngue, seguiremos
adotando como referência para este trabalho, apesar de cotejarmos também com
antologia “Federico Garcia Lorca: obra poética completa”, de 1996, trabalho
tradutório de mesma lavra.
A fim de cercarmos a temática mestra de Garcia Lorca, o desejo e a eró-
tica em sua poesia, o seguinte soneto será nosso ponto de abertura na investiga-
ção: “El amor duerme en el pecho de poeta” (2012, p. 32-33). No traço da letra
lorqueana, fica franqueada a posição homoerótica para se ler o conjunto dos
poemas nos dois versos a seguir:
“Tú nunca entenderás lo que te quiero porque duermes en mí y estás dormido”
A voz poemática enceta um endereçamento para outro homem que na forma
de “amor” ou Eros encontra-se apoiado no peitoral do eu lírico, o qual se dirige ao
“Tu”, alertando sobre a impossibilidade de um saber totalizante, pois “o quanto te
quero” é fugidio, assim como o desejo que se caracteriza e se irmana à imaginação
e ao horror. A imaginação aqui seria secundária à imagem. O que o metonímico
“peito” vem atualizar são as marcas de passagem sobre o corpo e a presença de uma
ausência. Sabemos, com dor, que do amor nem tudo pode ser dito, apesar de poder-
mos amar no nível do discurso, ou seja, da linguagem. Há uma relação paradoxal
entre pensamento, imagem, desejo e alucinação. As forças pulsionais reunidas nesse
afeto amoroso se sinalizam e fogem em “e estás adormecido”.
Além do declarado “tu” ser masculino, de acordo com Ian Gibson
(2009, p. 19-20)4, somos informados do estado de sono, o qual se transporta,
4 GIBSON, Ian. “Caballo azul de mi locura”. Lorca y el mundo gay. Barcelona, Planeta,
2009, na p. 30: “Dos años antes —concretamente el 26 de abril de 1982—, Vicente Alei-
xandre me había concedido una entrevista. Le pregunté por los Sonetos del amor oscuro.
Me permitió grabar la conversación. Me dijo que el amor oscuro, en el concepto de Lorca,
«era el amor de la difícil pasión, de la pasión maltrecha, de la pasión oscura y dolorosa,
no correspondida o mal vivida, pero no quería decir específicamente que era el amor ho-
mosexual. Eso de oscuro puede aplicarse a cualquier clase de amor amor. Nunca él me
dijo “ese es esto”; no, no, no me dijo nada, era el amor doloroso, el amor con un puñal
en el pecho... oscuro por el siniestro destino del amor sin destino, sin futuro». Con todo,
Aleixandre no dudó en decirme a continuación que los sonetos fueron inspirados por una
persona concreta, por supuesto masculina, a quien no se creía con derecho a identificar.
Y siguió: «Ya no existe el tipo de prejuicios que existían antes. Hay que aceptar al hombre
entero. ¿Qué importa eso?» Parece seguro, pese a las reticencias de Aleixandre, que para
Lorca el adjetivo oscuro, referido al amor, sí tenía un claro matiz homosexual.”
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5 Pulsão invocante: Para Jean-Michel Vivès (2009, p. 330): “Penso que, a partir desse ponto,
podemos levantar a hipótese de que a dinâmica do tratamento, no que concerne à pulsão
invocante, é caracterizada por uma modificação do lugar do sujeito no circuito da invo-
cação. De fato, ao longo do tratamento, o sujeito que viveu até então, seja submetido ao
apelo incondicional do Outro, seja tendo falhado a esse apelo, se descobre igualmente
apelante e, consequentemente, desejante. Desse modo, ele entra em uma dinâmica de in-
vocação. Invocação que implica, simultaneamente, o reconhecimento do Outro e de sua
falta, que essa ausência na presença seja significável, permanecendo ao mesmo tempo
irredutível, é o que Lacan propõe cernir no enigmático S (A barrado), significante da au-
sência na presença.” Sugerimos ler: VIVÈS, Jean-Michel. Para introduzir a questão da
pulsão invocante. In: Revista latino-americana de psicopatologia fundamental, volume
12 (2), junho, 2009. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rlpf/a/LXG4qQWF8Mx-
qmJhnyMWhRxL/abstract/?lang=pt. Acessado em mai, 2022.
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Apresenta-se a ilogicidade dos corpos desejantes em contraposição ao
preço a se pagar à cultura que manda no desejo dos indivíduos, causando mal-
-estar e altas taxas libidinais, mesmo sabendo que toda satisfação pulsional,
mesmo pagando seu vintém, exige uma parcela na realidade concreta. Muitos
tiranos querem corpos dóceis e não desejantes, ao ignorar que o inconsciente
não é marcado pelo simples traço biológico de homem ou de mulher, como uma
“ignorância erudita”.6
A natureza do desejo é desejar. Isso equivale a afirmar que todos procu-
ramos a natureza da libido, a descoberta de nós mesmos e a experiência erótica
com o outro como forma de satisfação e de gozo. Freud já havia previsto isso nos
primórdios da Psicanálise ao apresentar um indivíduo na radicalidade do de-
samparo, sem importar para gêneros, mostrando que estamos à mercê de nossa
condição fundamental da constituição subjetiva diante de um outro, que, como
nós, também está ao encalço de constituição e construção de laços sociais, ape-
sar de conflituosos e sem garantias. Ou seja, falamos aqui da castração como a
incompletude subjetiva que nos determina, sim, nós – os “neuróticos normais”,
mesmo com fúria e entusiasmo. Em relação a Garcia Lorca, para a crítica es-
pecializada, os amores mais tumultuosos e entusiasmados na vida do poeta es-
panhol foram Salvador Dalí7, Emilio Aladrén e Rafael Rodríguez Rapún. Além
de amorosa, constatamos a temática constante no “Sonetos del amor oscuro”:
a dor, o desengano, o sofrimento do amor não correspondido e a frustração eró-
tica. Conforme declara Christopher Maurer (2008, p. 16)8: “Lorca is a poet of
desire, rather than love; of longing, rather than fulfilment.”9
O fazer artístico de García Lorca, o lírico e o dramático, cruza sua criação
com a metáfora andaluza do “duende”, conforme afirma Roberto Medina (2017)10:
Para García Lorca, a palavra não é apenas condutora da estética, mas
representa também o húmus que forja a matéria que ela faz vibrar. Essa
poesia selvagem e magnética transita dos versos para as peças teatrais. O
sublime, nesses textos literários, transborda-se de terror e de êxtase, como
que direcionado para a morte: evento único e misterioso. Assim como o
“duende” está no instintivo humano e precisa do corpo do homem para
existir, também na arte enduendada e no “aqui e agora” é que a poesia
verdadeira se torna carne selvagem (Medina, 2017).
6 GAY, Peter. A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud: a educação dos sentidos.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
7 GIBSON, Ian. Lorca-Dalí. El amor que no pudo ser. Barcelona: DeBolsillo, 2016.
8 BONNADIO, Federico. A Companion to Federico García Lorca. Tamisis Books, 2008.
9 Nossa tradução: “Lorca é um poeta do desejo, mais do que do amor; da angústia, em vez
da realização.”
10 PÉREZ-LABORDE, Elga, org. Lorca Total. Textos sobre a poesia e o teatro de Federico
García Lorca aos 80 anos de sua morte comemorada no Brasil – 1898-1936. Campinas,
SP: Pontes Editores, 2017.
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
impossível amoroso. Eros não dá conta dessa parte alucinada da paixão. No verso
final, “Vê que nos espreitam ainda!”, resta a dúvida dos que amam, pois a comple-
tude não se completa, e a falta ronda as palavras e os jardins dos amantes em plenos
pedaços de gozo enamorado na linguagem e no sexual. Vale destacar que nosso
corpo é nosso último reduto somático e psíquico. Só é possível gozo na carne.
12 Nossa tradução: “Lia seus Sonetos do amor obscuro, prodígio de paixão, de entusiasmo, de
felicidade, de tormento, puro e ardente monumento ao amor.”
13 GIBSON, Ian. Federico García Lorca volumen 2. Barcelona: Editorial Grijalbo, 1987.
14 BATAILLE, Georges. O Erotismo. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
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abre espaço para a expansão dos limites, vindo a produzir cultura, pensamento
e linguagem. Isso pode sinalizar o que vemos em “Sonetos del amor oscuro”: o
erotismo dos corpos, o erotismo sagrado e o erotismo dos corações. Se o huma-
no pretende transcender os limites, o erotismo é a aprovação da morte, mediante
seus representantes simbólicos, na vida.
Vale nota que a transgressão no gozo erótico é temporária, no anseio de
liberdade como traço violento que barra o que apaga, como “a pequena morte”
orgasmática, momento especial no processo e na experiência de vida. De acordo
com Michel Foucault (2001, p. 33)15, sobre as barreiras transgressoras do orgiás-
tico, do excesso e do inconsciente em relação à “sexualidade envergonhada”:
“sua singularidade dilacerante e ereta, perde-se no espaço que ela assinala com
sua soberania e por fim se cala, tendo dado um nome ao obscuro.”
Se há uma erótica nos corpos, ela também se realiza nos versos com ex-
trema força elemental e vital contra o passar do tempo – e da morte – e contra
as ameaças de despedaçamento do estado amoroso. Mesmo estando no campo
da arte literária, há o limite da palavra, pois nem tudo pode ser dito ou repre-
sentado. A repetição e a retomada do sintoma da letra insistem em voltar, como
se fosse uma goteira subjetiva, pondo em contato o anímico e o corpóreo numa
opacidade originária, encoberta na própria sombra da realidade psíquica dando
corpo à experiência irrecusável do inconsciente artístico, ao estilo do “infami-
liar”16 proposto por Freud (2019, p. 33): “o infamiliar é uma espécie do que é
aterrorizante, que remete ao velho conhecido, há muito íntimo”.
O estranho-familiar traz à escritura o que deveria ter permanecido oculto,
como certa inquietante estranheza, por exemplo, na estética e na experiência
literária. Ou seja, o repetido é recordado e ganha ressignificação nas formas
múltiplas da arte por meio de vitalidade de uma estrutura, no caso de Garcia
Lorca, textual no universo simbólico, pois o que deveria ficar escondido e velado
se deixa perceber, mesmo na obscuridade, como as partes íntimas do corpo – ou
como a ardência do desejo homoerótico. Ambas posições desejantes e sexuais
borram as bordas do público e do privado.
Fazem uma espécie de triângulo edipiano: a leitura, os sonetos e os fan-
tasmas do leitor, mediante o olhar-escuta. Parece-nos que coabitam os efeitos
do texto no imaginário inconsciente do leitor similar à escuta flutuante e psi-
canalítica, deixando rastros de deslocamentos provocados em seu próprio de-
sejo. Conforme Joel Birman (2016, p. 86)17 afirma sobre as pulsões sexuais: “os
15 FOUCAULT, Michel. Prefácio à transgressão. In: Ditos e escritos. Vol. III. Rio de Janei-
ro: Forense Universitária, 2001.
16 FREUD, Sigmund. O infamiliar. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2019.
17 BIRMAN, Joel. As pulsões e seus destinos: do corporal ao psíquico. 1a. ed., Rio de Ja-
neiro: Best Seller, 2016.
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
objetos das pulsões sexuais seriam igualmente intercambiáveis e móveis, na me-
dida em que a experiência da satisfação e a obtenção do prazer constituiriam os
alvos do imperativo pulsional.”
Mais ainda: o desejo escondido é agora revelado pela tessitura do texto
como se a escritura poética refizesse o trajeto do desejo com movimentos e áreas
de indeterminação, mesmo sendo ficção, pode se articular no circuito pulsional.
Como nos sonetos de Garcia Lorca, o desejo e a erótica atuam e se dissimulam
na escritura, buscando a possibilidade de tornar-se no campo das representações
o marco das intensidades da união de corpos: algo do esquecimento ou da me-
mória ardente. Daí, a marca indelével é a do desamparo, sempre com a demanda
de amor na atividade ou na passividade dos amantes.
Dizem que os temas não são escolhidos pelo escritor, mas são a pele do
próprio artista. Se observarmos a “Trilogia da terra espanhola” (2022)18, desig-
nada por Luciana Ferrari Montemezzo, as peças trágicas escritas por Garcia
Lorca, “Bodas de Sangue” (1933), “Yerma” (1934) e “A Casa de Bernarda Alba”
(1936), as personagens lorqueanas estão rodeadas pelas suas circunstâncias e
pelos desejos sexuais insatisfeitos, praticamente sob o jugo das interdições e das
transgressões. A dramaturgia de Garcia Lorca tem a densidade em amalgamar
força poética e dramática num teatro de expressão universal, tanto nos temas
quanto no estilo singular de suas tragédias. A pesquisadora e tradutora Luciana
Ferrari Montemezzo, ao ressaltar semelhanças e afinidades entre as três peças,
afirma (2022, p. 15): “Não só o ambiente é comum – os pequenos vilarejos anda-
luzes –, mas também os temas relativos às normas sociais e familiares, à solidão
humana e ao desejo de liberdade são constantes. [...] há uma série de símbolos
que se repetem, com variações de intensidades [...].”
A dramaturgia de Garcia Lorca aponta para os fatos cotidianos e huma-
nos e dá um salto vivo e contestador na realidade estética por meio da recria-
ção artística de “raíces telúricas ‘duende’ o demonio socrático”, circundando
os recursos expressivos do fazer poético-dramático entre vida, morte e desejo,
este último sempre no campo do impossível e da irrealização. Como acrescenta
Rafael Martínez Nadal (1970, p. 133)19: “El amor para Lorca estará, por propia
definición, en contacto inseparable con la muerte: verso y reverso de una misma
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
como desejo de fusão ou de destruição. Basta nos lembrarmos dos apaixona-
dos, tentam criar sempre o “um”, mesmo não havendo essa possibilidade – só a
morte permite isso. A experiência erótica é arriscar-se e entregar-se parcialmente
ao todo, saindo da solidão do ser individual, sabendo que a experiência interior
não alcança o outro: a beira do abismo, zona limítrofe. O limite da experiência
interior22 é perder-se eroticamente.
Para discutirmos uma erótica no próximo poema de Garcia Lorca, “El poe-
ta pide a su amor que le escriba” (2012, p. 20-21), retomamos as ideias de Georges
Bataille acerca do erotismo dos corpos (desejo de físico, desejo carnal, relação se-
xual efetiva, um corpo que deseja outro corpo), do erotismo dos corações (desejo
de fusão, desejo de amar o outro, desejo de autofagia – entrega ao outro e doação
do outro para si) e do erotismo sagrado (aqui registramos o essencial: toda expe-
riência erótica é sagrada; experiência entre o eu e o todo, experiência mística e reli-
giosa). Ainda Georges Bataille (2014, p. 91) postula: “De maneira fundamental, é
o sagrado o que é objeto de um interdito”. Para elucidar: ao abandonar a autopro-
teção, como entrega sem limites às finalidades sem fim, o indivíduo experiencia o
erótico e o sagrado nas mais variadas vertentes de violação.
Mais uma vez, arte e vida se conjugam na erótica poética de Garcia Lorca,
pois toda vida tem como motor uma dor ou um desejo nebuloso. O mistério é
alma da essência da poesia. E “mistério” significa que a linguagem só pode in-
dicar, mas jamais nomear, de maneira absoluta, o que desejamos, como se hou-
vesse uma mendicância nos significantes. A poesia lorqueana mostra a impossi-
bilidade de tudo dizer e a infelicidade se fosse possível alcançar essa plenitude.
Como sintoma de escritura, Garcia Lorca trabalha na dramaturgia e na
poesia diferentes figuras do desejo: o impulso sexual, o amor homoerótico, de-
sejo de casamento ou maternidade, o anseio por justiça social, o impulso para
a realização pessoal a qualquer preço. Sobremodo, o desejo do poeta se firma,
através da linguagem literária, para cercar a realidade externa e a mais íntima,
como experiência interior e, portanto, erótica, com plena intertextualidade na
mística de San Juan de la Cruz, ao poetizar a preparação para o encontro com
Deus: “a noite obscura da alma”. Passemos ao soneto “El poeta pide a su amor
que le escriba”:
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23 Sugerimos ler: Projeto para uma psicologia científica (1895), de Freud, e o Seminário 7, de
Lacan.
24 Das Ding é o que sobra ou fica de fora e deixa uma marca ou um traço que, por sua vez,
desenha trilhamentos.
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
do objeto desejado, mas porque seu primeiro objeto é ser reconhecido pelo ou-
tro.” A “morte viva”, além de indiciar as pulsões sexuais, põe em xeque o outro
como sujeito do suposto saber. Como se minha vida dependesse de algo que tu
tens e sabes sobre mim. Ao mesmo tempo, algo que me liga apaixonadamente
às tuas pulsões de morte.
Em suma, o “poeta” denuncia a tentativa frustrada do erotismo fusional
para ser “um” na relação amorosa. Para que o outro envie a “palavra escrita”,
é preciso que haja um desejo de escrita para compor significantes de dizer, nem
sempre o que se lê é o que se sente. Daí, há a presença da mascarada de discur-
sos entre o dito e não dito. A minha palavra, de fato, alcança o desejo do outro?
Mesmo sabendo que o desejo está sempre à deriva e que não se localiza ou se no-
meia, é esquiva em determinado lugar e presença em outro espaço? A angústia
amorosa passa a ser um tempo que maltrata e castiga o amante, frustrando-o na
expectativa, porque a letra esperada não chega. O que é vivo ganha a face do es-
gotamento e da destruição com o passar do tempo “com a flor que se murcha”.
É preferível abandonar o amado e o desejo por ele a ter de sofrer a despossessão
de si mesmo. O eu se despontencializa sem o objeto de amor. Tal como a primei-
ra estrofe do soneto cria ambiência representacional de uma morte em vida e sua
insuportabilidade. O sujeito poético está face a face com a radicalidade do vazio.
Na segunda estrofe, os homens estão juntos e separados da natureza. A
exemplo do “ar” e da “pedra”, ambos permanecem insensíveis ao que ocorre
como turbulência num “coração interior”, metonímia do corpo e dos afetos vei-
culadores da demanda sem resposta. Esse amante e sofredor afasta a possibilida-
de da retórica dos românticos em noite enluarada, gozando das delícias como a
doçura do encontro amoroso, do qual o mel seria indicial. No entanto, a relação
de picada e de ferimento é sutil e silenciosa na metáfora, pois a abelha traz o
doce e a dor da ferroada. As relações amorosas25 e seus desdobramentos, muitas
vezes, perversos não eliminam a ideia de que o que o apaixonado busca imagi-
nariamente está no outro, e esse outro, como objeto de amor, deve satisfazer sua
demanda de amor; única e somente assim “os atritos do cotidiano” camonianos
e do coração ficariam apassentados.
Altos ideais, baixas expectativas no amor-paixão: radical atração – ful-
minante repulsa. Coisa contrária, não menos arriscado do que o amor-paixão,
é o amor-ser como oposição ao amor como aprisionamento do outro. É o ser
do outro que está na demanda de amor como dom ativo, mesmo sendo o ser do
outro uma instância de fantasia e de ficção. É um além que se pretende amar,
além mesmo do objeto amado. Esse outro amado. Esse outro odiado. Esse outro
enigmático, onde dorme meu desejo. O ideal é amar em troca do nada por nada.
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
dar destino ao seu sofrimento, mesmo antes sabendo que a espera era em vão,
porque a força desatinada para o esquecimento se encontra impotente, e o amor
sentido tem plasticidade infinita e resiste a ser esquecido ou a ser criado em
novos modos de vitalidade em si e no Outro. Como recurso extremo, o “poeta”
solicita o transbordamento de palavras que o acalmariam no estado delirante.
Mais uma vez pede para se deixar viver, não vive, nem quer viver, necessita da
beatitude do outro para a continuidade da própria vida. Eis o erotismo do exces-
so em plena carne que se mostra à luz da pele do corpo textual. Só desse modo,
o fim da vida do “poeta” pode se encontrar em preparação para o encontro
místico com o divino por meio de algo que se processa na “noche del alma”. O
retorno do desamparo se manifesta enigmático e paradoxal, como o simbólico
do erótico – a obscuridade. O título do poema “O poeta pede ao seu amor que
lhe escreva” parece ser uma súplica numa carta. Como os corações amorosos
sabem: toda carta encontra seu destinatário – um leitor ou o Outro.
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
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RESSONÂNCIAS E VAZIOS:
UM EXAME DAS LACUNAS NAS NARRATIVAS
LITERÁRIAS SOBRE O INCONSCIENTE
Eunice Nóbrega Portela1
INTRODUÇÃO
1 Doutora em Educação com ênfase em Psicologia Social pela Universidade de Brasília. Mes-
tre em Educação. Pós-Graduada em Psicopedagogia Clínica e Institucional, Neuropsicolo-
gia Clínica e Terapia Cognitivo Comportamental. Especialista em Orientação Educacional e
Administração Escolar. Graduada em Pedagogia pela Universidade de Brasília. Pós-Douto-
rado Profissional em Psicanálise. Escritora, Pesquisadora, Palestrante, Consultora Educacio-
nal e Empresarial, Docente Universitária; Psicanalista Clínica, Neuropsicóloga. Terapeuta
Cognitivo Comportamental- TCC. Presidente do Instituto de Pesquisa, Desenvolvimento e
Apoio a Neurodivergentes-IPDAN. E-mail: [email protected].
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DESENVOLVIMENTO
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Nessa perspectiva, o inconsciente constitui-se em uma chave para o enten-
dimento de muitos comportamentos e problemas psicológicos humanos. Freud
desenvolveu a Psicanálise como um método para explorar e tratar as questões
do inconsciente. Ele acreditava que ao trazer conteúdos ocultos para a consciên-
cia, as pessoas poderiam resolver conflitos internos e alcançar maior compreen-
são de si mesmas. Além disso, Sigmund Freud, nas “Cartas a Wilhelm Fliess”
(1996) afirma que “o inconsciente é a verdadeira realidade psíquica, e que em
sua profundidade repousa o núcleo do nosso ser”.
A Literatura, ao longo da história, tem explorado de maneira magistral,
o complexo domínio da mente humana. Essa exploração, muitas vezes, trans-
cende as palavras, criando espaço para ambiguidade e mistério. Dessas lacunas,
onde o não dito e o não revelado residem, emergem miríades de narrativas intri-
gantes e significativas.
RESSONÂNCIAS E VAZIOS
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Outro clássico literário que merece destaque é “Hamlet”, de William
Shakespeare (1978), autor conhecido por sua capacidade de explorar temas
psicológicos em suas tragédias. “Hamlet” embarca em uma jornada emocional
tumultuada que levanta questões profundas sobre a mente humana, a sanidade
e a moralidade, de impacto duradouro e significativo no campo da psicologia
moderna. A obra de Shakespeare continua a ser referência fundamental para a
compreensão das complexidades psicológicas do ser humano.
Fiodor Dostoiévski (2001), em “Crime e Castigo”, obra-prima da Literatura
russa, explora a psicologia de seu protagonista, Raskolnikov, que comete um assas-
sinato e luta com sua consciência. O autor incorpora elementos filosóficos como
o niilismo, para enriquecer a exploração das complexidades da mente humana.
Outra obra ilustrativa e notável quando se trata de explorar a psicologia
dos personagens, é “O Som e a Fúria” de William Faulkner (2003), obra que
mergulha nas complexidades de uma família disfuncional. Nela, Faulkner adota
abordagem narrativa inovadora, ao utilizar diferentes narradores, incluindo um
personagem com deficiência intelectual, para nos levar diretamente às mentes
dos personagens e suas percepções únicas do mundo.
As ricas referências introduzidas por Faulkner na trama enriquecem so-
bremaneira a experiência de leitura, permitindo que os leitores explorem a psi-
cologia dos personagens, com seus significados e simbolismos.
O título “O Som e a Fúria” de William Faulkner não está diretamente rela-
cionado a “Macbeth”, de Shakespeare no “solilóquio da futilidade”. Na verdade,
Faulkner faz alusão às emoções intensas dos seus personagens, sugerindo que suas
vidas são cheias de tumulto e ruído, com significados profundos e complexos.
William Faulkner (2014) também nos presenteia com uma narrativa úni-
ca em seu clássico “Enquanto Agonizo”. Neste romance, contado através das
vozes de 15 personagens diferentes, o autor nos oferece sua própria perspectiva
sobre os eventos que se desenrolam durante a jornada da família Bundren para
enterrar sua mãe. A diversidade de vozes revela uma ampla gama de percepções
e motivações dos personagens, proporcionando uma exploração multifacetada
do inconsciente humano. Faulkner nos convida a mergulhar profundamente
na psicologia de cada personagem, enriquecendo assim nossa compreensão da
complexidade das experiências humanas e das relações familiares.
José Saramago (1995) em “Ensaio sobre a Cegueira”, romance distópico,
isto é, que descreve uma sociedade imaginária, geralmente no futuro, caracte-
rizada por condições opressivas, caóticas, totalitárias ou indesejáveis, aborda
questões psicológicas e filosóficas em um contexto em que uma epidemia de
cegueira súbita afeta a sociedade. Saramago faz referências à filosofia existen-
cialista e à psicologia da percepção para criar uma narrativa rica em significado.
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Scott Fitzgerald (2011) na sua obra “O Grande Gatsby”, romance clássico
americano, aborda o tema do esquecimento e do vazio deixados por eventos
passados. O protagonista, Jay Gatsby, é assombrado por um amor perdido e vive
em busca de um passado idealizado que ele reprimiu e não consegue recuperar.
Marcel Proust (2006) no clássico “Em Busca do Tempo Perdido”, mo-
numental obra de sete volumes, explora a memória e o esquecimento de forma
profunda. O narrador, Marcel, busca recuperar memórias perdidas e explorar o
impacto do tempo na psique humana.
Outro livro que explora o mistério e a ambiguidade da mente de serial kil-
lers e psicopatas é “O Silêncio dos Inocentes”, de Thomas Harris (2015). Neste
thriller psicológico, Hannibal Lecter é exemplo notável de um personagem que
mantém seus pensamentos e motivos ocultos.
Essas obras literárias destacam como o esquecimento, a repressão, a in-
certeza e o mistério são temas recorrentes na Literatura, quando se trata de re-
presentar o inconsciente e as complexidades da mente humana. Cada uma delas
oferece uma visão única desses aspectos, convidando os leitores a explorar o
psiquismo humano.
Portanto, ao examinar as ressonâncias e vazios nas narrativas literárias sobre
o inconsciente, podemos observar como os escritores exploram a complexidade des-
se fascinante tema. Eles escolheram amplificar certos aspectos, enquanto deixam
outros na obscuridade, criando representações literárias do inconsciente humano.
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memórias traumáticas ou emoções desconfortáveis. O silêncio pode ser uma
manifestação literária da repressão psicanalítica, onde o que não é dito, é tão
revelador quanto o que é dito.
Muitas vezes, os personagens literários enfrentam dilemas internos, em
que suas ações não correspondem às verdadeiras intenções. Esses conflitos in-
ternos são refletidos no que não é dito - nas hesitações, nas palavras não ditas e
nas escolhas ambíguas. Esses momentos literários nos lembram que o silêncio
pode ser uma expressão dos conflitos e das tensões internas que ocorrem dentro
de cada indivíduo.
A Literatura frequentemente busca transmitir a riqueza das experiências
emocionais humanas, mesmo quando as palavras são insuficientes. O subtexto
emocional é um terreno fértil onde os sentimentos não expressos encontram sua
voz. Personagens que escondem suas verdadeiras emoções podem ser reflexos
das complexidades do inconsciente, onde desejos e medos se entrelaçam.
Ao olharmos para o que não é dito ou explícito na narrativa literária,
somos lembrados de que as palavras são apenas a superfície da experiência hu-
mana. A psicanálise nos ensina que há muito mais acontecendo na mente do
que podemos ver ou ouvir diretamente. A Literatura, com sua capacidade única
de explorar a complexidade humana, nos convida a ler nas entrelinhas, nos sub-
textos e nos silêncios para descobrir os aspectos ocultos da mente e da psique que
moldam as vidas dos personagens e, por extensão, a nossa própria compreensão
do ser humano.
A Literatura tem o poder único de capturar a complexidade da experiên-
cia humana de maneira que muitas vezes não pode ser adequadamente expressa
por palavras simples. Na perspectiva psicanalítica, a habilidade da Literatura
em abordar nuances da psique humana, é fundamental para a compreensão dos
desejos, conflitos e emoções complexas, que muitas vezes permanecem ocultos
sob a superfície (Freud, 1930,1996; 1927, 1996).
Na Literatura frequentemente são utilizados simbolismo e subtexto para
transmitir nuances emocionais e psicológicas que não podem ser facilmente
descritas. A perspectiva psicanalítica enxerga esses elementos literários como
reflexos das operações do inconsciente. Assim como os sonhos são repletos de
símbolos que revelam desejos reprimidos, os símbolos literários podem aludir a
emoções e conflitos profundos que os personagens e os leitores podem não estar
conscientemente cientes (Freud,1900,1996).
A Literatura, frequentemente, mergulha nas motivações ocultas dos per-
sonagens, desvendando os fatores inconscientes que impulsionam suas ações.
A perspectiva psicanalítica ressalta a importância das motivações inconscien-
tes na compreensão da psicologia humana. Ao explorar os desejos reprimidos,
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
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WOOLF, Virginia. Mrs. Dalloway. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,
1980.
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PROFUNDEZAS DA ALMA REVELADAS:
UMA EXPLORAÇÃO PSICANALÍTICA DA
COMPLEXIDADE HUMANA NA LITERATURA
Eunice Nóbrega Portela1
INTRODUÇÃO
1 Doutora em Educação com ênfase em Psicologia Social pela Universidade de Brasília. Mes-
tre em Educação. Pós-Graduada em Psicopedagogia Clínica e Institucional, Neuropsicolo-
gia Clínica e Terapia Cognitivo Comportamental. Especialista em Orientação Educacional e
Administração Escolar. Graduada em Pedagogia pela Universidade de Brasília. Pós-Douto-
rado Profissional em Psicanálise. Escritora, Pesquisadora, Palestrante, Consultora Educacio-
nal e Empresarial, Docente Universitária; Psicanalista Clínica, Neuropsicóloga. Terapeuta
Cognitivo Comportamental- TCC. Presidente do Instituto de Pesquisa, Desenvolvimento e
Apoio a Neurodivergentes-IPDAN. E-mail: contato@ draeunicenobrega.com.
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
A psicanálise acredita que a mente é composta por forças em conflito.
Desejos inconscientes podem entrar em conflito com normas sociais, valores
pessoais e outros aspectos da personalidade, resultando em tensões e angús-
tias. A teoria psicanalítica freudiana postula que o desenvolvimento huma-
no passa por estágios psicossexuais (oral, anal, fálico, latência e genital), nos
quais as experiências e os conflitos da infância influenciam a personalidade
adulta (Freud, 1905/1996).
Na abordagem psicanalítica freudiana, os “Mecanismos de Defesa” são
estratégias psicológicas inconscientes que a mente utiliza para lidar com confli-
tos internos, ansiedades e emoções perturbadoras. Esses mecanismos ajudam a
reduzir a ansiedade e proteger o ego (a parte da mente consciente que lida com
a realidade) do impacto emocional desses conflitos. É importante ressaltar que
esses mecanismos de defesa são processos inconscientes e podem ser adaptativos
em certas situações (Freud, 1923b/1996).
A teoria psicanalítica enfatiza a influência das relações familiares e das pri-
meiras experiências na formação da personalidade. Traços de relacionamentos
parentais podem ser transferidos para relacionamentos posteriores. Pressupõe
que os comportamentos humanos são determinados por forças psíquicas, muitas
vezes desconhecidas. Isso vai contra a ideia de livre arbítrio absoluto. A psi-
canálise também envolve a terapia psicanalítica, na qual o paciente explora o
inconsciente por meio de conversas regulares com um terapeuta. A relação te-
rapêutica e a análise das transferências são aspectos importantes deste processo
(Freud,1938/40; 1996).
Revisitar esses conceitos fundamentais traz à memória não somente a
construção teórica freudiana, como também a sua importância. A psicanálise
influenciou uma série de correntes da psicologia e inspirou a pesquisa sobre
a mente humana, incluindo a terapia psicanalítica, que utiliza seus princípios
para ajudar os indivíduos a explorar seus problemas emocionais e mentais.
Apesar das críticas e evoluções ao longo dos anos, a psicanálise continua a
ser uma abordagem significativa para a compreensão da psique humana e do
comportamento e está presente em grandes obras literárias que revisitaremos
nessa memória literária.
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DESENVOLVIMENTO
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por meio dos personagens e suas jornadas. Através desse olhar psicanalítico, as
histórias se tornam espelhos da psique humana, ecoando a complexidade que
reside nas profundezas do inconsciente.
Ao explorar os personagens cujas motivações e ações são influenciadas
por impulsos inconscientes, foi possível perceber que a literatura frequentemen-
te nos mergulha nas complexidades da mente humana, revelando personagens
cujas ações e motivações são guiadas por forças obscuras, aquelas que permane-
cem ocultas nas profundezas do inconsciente. Esses personagens, enquanto lu-
tam contra conflitos internos e impulsos insondáveis, ilustram de maneira vívida
a influência da teoria do inconsciente de Freud (1916; 1996).
Um exemplo notável é o personagem Heathcliff, do romance “O Morro
dos Ventos Uivantes”, de Emily Brontë. Heathcliff é atormentado por um amor
obsessivo e uma busca implacável por vingança. Sua infância traumática e a
paixão incontrolável que sente por Catherine desencadeiam uma espiral de emo-
ções reprimidas. A profundidade de seu amor e ódio é um reflexo dos impulsos
inconscientes de desejo e agressão que Freud postulou (Brontë, 1976).
Outro exemplo é o protagonista Macbeth, da peça “Macbeth”, de
William Shakespeare. À medida que ambiciona o poder e comete assassinatos
para alcançá-lo, Macbeth enfrenta um conflito interno que espelha a teoria do
inconsciente. Seus impulsos de ambição e agressão, ainda que reprimidos pela
moralidade, emergem como forças incontroláveis que o conduzem à sua própria
destruição (Shakespeare, 1978).
Na obra “Lolita”, de Vladimir Nabokov, o narrador Humbert é um exem-
plo fascinante de alguém cujas motivações são profundamente influenciadas por
impulsos inconscientes. Sua obsessão sexual por Dolores Haze, uma jovem de
quem ele se torna padrasto, é uma manifestação do complexo de Édipo, em que
o desejo reprimido pelo pai rivaliza com a busca de um objeto de desejo proibido
(Nabokov, 1994; 2006).
Cabe trazer à tona outro personagem que ilustra a influência do in-
consciente, que é Raskólnikov, de “Crime e Castigo”, de Fiódor Dostoiévski.
Raskólnikov comete um assassinato em busca de uma teoria de superioridade
moral. Sua luta interna entre a justificativa consciente e os remorsos inconscien-
tes revela a tensão entre as diferentes partes da personalidade que Freud descre-
veu (Dostoiévski, 2001).
A Literatura é um espelho da complexidade humana, e esses personagens
se tornam veículos para explorar a teia intricada de desejos, medos e conflitos
que residem no inconsciente. Ao examinar suas motivações e ações, somos con-
vidados a contemplar a profundidade do ser humano e a realidade das forças
obscuras que influenciam nossas vidas. Através desses personagens, a teoria do
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
inconsciente ganha vida, nos lembrando que nossa psique é um terreno vasto e
misterioso, repleto de impulsos que moldam nossa trajetória.
SONHOS E SÍMBOLOS
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O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
e os dilemas não resolvidos que habitam nossas mentes enquanto dormimos,
lembrando-nos de que as profundezas da psique humana são tão vastas quanto o
próprio cosmos noturno.
Examinando símbolos recorrentes na Literatura, vê-se que sugerem ca-
madas mais profundas de significados novos e profundas descobertas. É na tessi-
tura das palavras e nas entrelinhas das histórias, que os escritores frequentemen-
te tecem símbolos recorrentes que transcendem à trama, sugerindo significados
mais profundos e universais. Esses símbolos são como chaves secretas, abrindo
portas para camadas ocultas da psique e da condição humana, proporcionando
aos leitores uma oportunidade de explorar temas essenciais que ecoam além das
páginas (Jung, 2002).
Um dos símbolos mais antigos e poderosos na Literatura é a jornada he-
roica. Personagens que embarcam em jornadas épicas, enfrentando desafios,
superando obstáculos e passando por transformações, são espelhos dos heróis
e heroínas que habitam nossos próprios desejos e medos. Da “Odisseia”, de
Homero, a “O Senhor dos Anéis”, de J.R.R. Tolkien, a jornada heroica ecoa o
anseio humano por autodescoberta e crescimento pessoal, refletindo o eterno
conflito entre o eu e o desconhecido (Tolkien, 2002).
A dualidade entre luz e escuridão é um símbolo recorrente que denota os
conflitos internos, a moralidade e a busca pelo conhecimento. Em “Dr. Jekyll e
Mr. Hyde”, a separação entre essas duas facetas do mesmo personagem encap-
sula a luta entre o bem e o mal dentro de todos nós. Esse símbolo ressoa com
a compreensão universal das dualidades que existem dentro da psique humana
(Stevenson, 1996).
A janela frequentemente simboliza a perspectiva e o desejo de escapar da
realidade, enquanto o espelho representa a autoimagem e a autorreflexão. Em
“Jane Eyre”, de Charlotte Brontë, a janela no sótão de Thornfield Hall repre-
senta a liberdade e os sonhos de Jane, enquanto o espelho na mesma sala reflete
sua solidão e desejo de conexão. Esses símbolos revelam as aspirações e as lutas
internas dos personagens (Brontë, 2018).
Enquanto a água é um símbolo fluido e versátil, muitas vezes associa-
do à vida, purificação e transformação. Em “O Velho e o Mar”, de Ernest
Hemingway, o oceano é tanto um terreno de desafios físicos quanto um símbolo
da jornada interna do protagonista, refletindo suas esperanças, medos e a busca
por significado (Hemingway, 1962).
O ciclo da morte e do renascimento é uma metáfora universal para a
transformação e a renovação. Em “O Morro dos Ventos Uivantes”, os ciclos de
morte e renascimento simbolizam a perpetuação dos desejos, paixões e conflitos
ao longo das gerações, transcendendo a vida física (Brontë, 1976).
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
as complexas interações entre os membros da família e as lutas pelo poder
subjacentes a essas relações.
O Complexo de Édipo, com suas camadas de desejo e rivalidade, arro-
ja uma luz poderosa sobre os relacionamentos familiares. Na tragédia “Édipo
Rei”, de Sófocles, o próprio Édipo é um exemplo clássico de como as dinâmicas
familiares podem moldar a tragédia humana. Seu desejo inconsciente de estar
próximo de sua mãe e o subsequente assassinato de seu pai torna-se a base de
uma trama repleta de reviravoltas angustiantes (Sófocles, 2002).
O conflito entre pai e filho, tão presente no Complexo de Édipo, reverbera
em inúmeras histórias literárias. No clássico “Hamlet”, de William Shakespeare,
o príncipe Hamlet enfrenta uma luta interior angustiante ao descobrir a traição
de seu pai e a subsequente união de sua mãe com seu tio. Seu desejo de vingança
e sua luta pelo poder moral colidem em um turbilhão de emoções que ecoam a
complexidade do Complexo de Édipo (Shakespeare, 1978).
As figuras maternas também desempenham papéis cruciais nesse contex-
to. Em “A Casa dos Espíritos”, de Isabel Allende, as dinâmicas entre mães e fi-
lhas são exploradas ao longo de gerações, revelando os traços herdados e os con-
flitos que se repetem. As filhas muitas vezes buscam reconciliar seus próprios
desejos e identidades com os de suas mães, espelhando o desejo inconsciente de
se identificar com a figura parental do mesmo sexo (Allende, 1995).
Além das narrativas familiares, o Complexo de Édipo também lança luz
sobre as tramas de poder na Literatura. Em “Macbeth”, de Shakespeare, o de-
sejo de poder de Macbeth e a influência das bruxas o levam a uma espiral de
destruição. Seu desejo de governar e a luta interna contra a moralidade ilus-
tram a batalha do ego com os desejos inconscientes, uma faceta intrínseca do
Complexo de Édipo (Shakespeare, 1978).
Portanto, ao analisar as dinâmicas familiares e os conflitos de poder na
Literatura sob o prisma do Complexo de Édipo, testemunhamos a ressonância
profunda entre a teoria psicanalítica e a experiência humana retratada nas pági-
nas. As histórias se tornam mais do que simples contos; elas se transformam em
espelhos para nossas próprias batalhas internas, desejos reprimidos e comple-
xos relacionamentos com aqueles que moldaram nossa jornada desde o início
(Freud,1996; Sófocles,1976,1993).
A busca de identidade e a construção de relacionamentos complexos são
temas intrincados que ecoam profundamente na Literatura, refletindo as com-
plexidades da experiência humana. Por meio de personagens que enfrentam de-
safios de autodescoberta e interações interpessoais intricadas, somos convidados
a explorar as várias facetas da jornada pela identidade e pela conexão.
A busca de identidade muitas vezes se desenrola como uma jornada de
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O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
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SÓFOCLES. A trilogia tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona. Rio
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Lenita Maria Rímoli Esteves e Almiro Pisetta. 4ª tiragem. SP: Editora Martins
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EXPLORANDO MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
ANÁLISE DA DUALIDADE IDENTITÁRIA DE
JACOBINA EM ‘O ESPELHO’ DE MACHADO
DE ASSIS: UM CONFRONTO ENTRE O
EU-HOMEM E O EU-OUTRO
Cirlene Pereira dos Reis Almeida1
INTRODUÇÃO
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
de forma a não deixar transparecer a sua real personalidade. Nessa perspectiva,
“O espelho” narra a história de Jacobina que junto a um grupo de amigos discute
assuntos metafísicos até iniciarem uma discussão a respeito da alma. Todos os
presentes tinham uma opinião diferente sobre o assunto, abrindo uma brecha para
uma investigação sobre de que forma as identidades construídas socialmente cor-
roboram a dicotomização do ser humano no Eu-homem e no Eu-outro. O eu-ho-
mem seria a alma interior e o eu-outro a alma exterior do indivíduo. O conto traz
reflexões sobre o homem e sua psique, posto que discute a relações do ser humano
consigo mesmo, no entanto, preso a um contexto social e cultural determinado,
que aborda o fato de que “o ser humano não consiste somente na ‘realidade psí-
quica’, mas habita um corpo e vive em sociedade – aspectos refletidos no espelho
No conto, Jacobina narra uma parte da história de sua vida quando tinha
cerca de 20 anos de idade, trazendo à tona a ideia de que o ser humano possui duas
almas. Durante a narrativa, Jacobina, cujo apelido de infância era “Joãozinho”,
relembra a transformação que houve em sua vida desde que se tornara alferes do
exército, cargo esse que lhe rendeu uma série de elogios. Na verdade, o enredo do
conto remete ao indivíduo que começa a enxergar-se pelo olhar do outro.
Com isso, ocorre o apagamento do eu diante do espelho que é resultado
de um processo interno que se dá em decorrência do não reconhecimento do
sujeito, levando-o a se ver e a se enxergar pelo olhar de fora, gerando o conflito
entre a identidade individual e a identidade social.
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dependerá até mesmo da classe social em que todos pertencem, isso devido ao
comportamento que poderá ser adotado, ou seja, é a identificação de um ser
com os outros.
Já a Identidade individual é mais específica que a social e se refere ao
sentimento de unicidade (se sentir único entre muitas pessoas), é a identificação
da diferença de um ser entre outros.
O conceito aproximado de unicidade e identidade individual está explici-
to no livro Estigma como:
Uma idéia implícita na noção de “unicidade” de um indivíduo é a de
“marca positiva” ou “apoio de identidade”, por exemplo, a imagem foto-
gráfica do indivíduo na mente dos outros ou o conhecimento de seu lugar
específico em determinada rede de parentesco (Goffman, 1980, p.50.)
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
A IDENTIDADE SOCIAL COMO FORMA DE INSERÇÃO E DE
ACEITAÇÃO SOCIAL
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
lhe fora reservado para ficar. Jacobina descreve o espelho como “[...] obra rica
e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples”
(Assis, 1882; Assis, 1994).
Jacobina ficou alguns dias no sítio da tia. Nesse período, Dona Marcolina,
teve de viajar para atender uma das filhas que já se encontrava em leito de mor-
te, deixando então o Senhor Alferes cuidando do sítio com a responsabilidade
de administrar as terras, os animais e os escravos. Esses últimos, aproveitando
a situação, fogem logo após a partida de tia Marcolina, deixando Jacobina na
mais completa solidão.
É nesse momento de solidão que o eu-outro entra em choque com o eu-
homem diretamente. No dia seguinte à viagem da tia, o personagem fica na
expectativa de o cunhado aparecer, fato que não aconteceu. Ficou uma semana
sozinho no sítio e, nesse período, sentiu-se como um cadáver andando, sem sua
identidade de Seu Alferes, se sentiu um débil com sensações de enlouquecer.
Durante todo esse tempo, não havia se olhado no espelho, pois temia ver dois
em um só.
Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o
espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso
inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela
casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a con-
tradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar
para o espelho com o fim justamente de achar-me dois (Assis, 1994, p.34)
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A farda representa algo que existe fora do sujeito. No contexto das re-
presentações sociais2 o fardamento representa o status ocupado pelo alferes. As
representações já estão formadas e cristalizadas pela interação do universo fa-
miliar de Jacobina. Da mesma forma, o objeto do olhar do outro é também
construído socialmente.
O Senhor Alferes se identificou com o seu Eu-outro completamente, viu
que sua figura social era sua farda exaltando a sua imagem. A falta de bajulação
constante o fez entrar em conflito com seu eu-homem e o seu eu-outro de forma
que Jacobina sentiu alterações no seu sistema nervoso a ponto de transpassar
sua alma para sua real personalidade.
O conto retrata, de forma abstrata, o comportamento humano. Na socieda-
de há muitos exemplos de pessoas que fingem ser o que não são ou que definem
os indivíduos ao seu redor pelo que são ou pelo que possuem. Através desse pré-
-julgamento, o exterior ganha mais força do que o interior, visto que, para algumas
pessoas o ser humano possui valor pelo que tem e não pelo que realmente é.
O protagonista, em meio a essa dicotomia e por intermédio da descrição
de suas experiências, traz à tona a desconstrução de sua identidade ou da sua
alma interior que é consumida paulatinamente. A ascensão social de Jacobina
indica a construção social de sua pessoa, que surge como produto de relações
hierárquicas que lhe proporcionam regalias, status, beleza e bens materiais; iden-
tidade ligada a um papel social e é essa que sobressai no decorrer da narrativa,
visto que o personagem chega ao ponto de não se reconhecer mais sem a farda.
Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da
guarda nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa
casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! Tão contente! Chamava-me o seu
alferes. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados... e o motivo não
foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que estes perde-
ram... O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios fize-
ram em mim uma transformação que o natural sentimento da mocidade
ajudou e completou. (p. 32-5).
2 As representações sociais, segundo definição clássica apresentada por Jodelet (1985), são
modalidades de conhecimento prático orientadas para a comunicação e para a compreen-
são do contexto social, material e ideativo em que vivemos. Representações sociais, numa
abordagem psicossocial, referem-se a formas de conhecimento que se manifestam como
elementos cognitivos □ imagens, conceitos, categorias, teorias, mas que não se reduzem
jamais aos componentes cognitivos. Sendo socialmente elaboradas e compartilhadas, con-
tribuem para a construção de uma realidade comum, que possibilita a comunicação. Deste
modo, as representações são, essencialmente, fenômenos sociais que, mesmo acessados a
partir do seu conteúdo cognitivo, têm de ser entendidos a partir do seu contexto de pro-
dução. Ou seja, a partir das funções simbólicas e ideológicas a que servem e das formas
de comunicação onde circulam. O conceito de representação social na abordagem psi-
cossocial. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/3V55mtPK8KXtksmhbkcctkj/
Acesso em 30 de agosto de 2023.
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
A promoção e a consequente ascensão social do personagem sofrem uma
mudança bastante contundente. Jacobina sai do papel de dominado socialmente
transformando-se em dominante. E essa mudança de papel contribui para que
o eu-homem perca o anterior sentido da existência e, passando a construir suas
ações em conformidade com o que rege o senso comum daqueles que represen-
tam a autoridade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Post Scriptum
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O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
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91
EIXO III
MULHERES NA LITERATURA
ENTRE PÁGINAS EM BRANCO E SILÊNCIOS
LITERÁRIOS - A MULHER E SUA AUSÊNCIA:
REFLETINDO SOBRE ‘UM QUARTO SÓ SEU’,
DE VIRGINIA WOOLF
Maria Cristina Sebba1
INTRODUÇÃO
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DESENVOLVIMENTO
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
significativa. Nesse sentido, a frase de Jean-Paul Sartre, que oferece uma ele-
gante concepção sobre a liberdade, pode ser alvo de interpretações errôneas ou
usos controversos, soando um tanto quanto conformista. Sartre afirma que “a
liberdade reside no desejo daquilo que está ao alcance de cada um.”
Mas o conceito geral de que a liberdade está ligada ao desejo do que está
ao alcance de cada um é uma ideia central do Existencialismo, que pode ser
encontrada em várias obras e ensaios de Sartre, como “O Ser e o Nada”, em que
ele explora a relação entre liberdade, escolha e ação humana.
Nesse sentido, Virginia Woolf destaca, em seu magnífico ensaio, a indis-
pensável necessidade de um espaço exclusivamente feminino, como refúgio sa-
grado, onde a mulher possa se desconectar do mundo e permitir que suas ideias
fluam desimpedidas. A análise perspicaz de Woolf é bastante avançada para a
época, ao argumentar que a mulher deve possuir tanto a autonomia financeira
quanto o controle sobre sua própria existência, em adição ao espaço privado, a
fim de nutrir seu poder criativo.
Felizmente, o cenário do século XXI trouxe a emergência de uma liber-
dade que se destinou um pouco mais às mulheres, incorporada de forma natural
em suas rotinas, um justo imperativo. Sabemos que a necessidade de um recinto
singular é importante, pois afazeres intelectuais como a leitura e a escrita solici-
tam ambientes sem interrupções que incomodam.
Mas não basta apenas existir. Esse lugar, de fato, deve ser respeitado.
Enquanto a mulher estiver trabalhando, é justo não ser interrompida em seus
pensamentos. Muitas vezes ela precisa trabalhar até tarde da noite, até a madru-
gada, pois, durante o dia há outras tarefas, nem sempre associadas aos interesses
intelectuais, afazeres esses nunca ou raramente realizados pelo homem, como
cuidar da casa e dos filhos.
Essa impossibilidade resulta na falta de produção por parte da mulher, o
que não denota uma intelectualidade inferior. Pelo contrário, demonstra força
e resiliência. É da natureza da mulher se ater aos cuidados da casa e dos fi-
lhos, enquanto os homens, afastados do cotidiano dos lares, sempre foram vistos
como trabalhadores que exercem atividades superiores. Uma situação injusta!
Sabemos que a superioridade não é inerente aos homens. O que ocorre é que
mulheres, desde sempre, foram submetidas à escassez de chances, crescimento e
desenvolvimento social fora do ambiente doméstico.
Os desdobramentos que emergem com base na leitura sobre o tema “Um
Quarto só Seu” são imensas, porque as mudanças de lá para cá não foram tão
abundantes. Ser vista sempre pelo olhar masculino, ainda é uma forma de não
existir. A posição inferior imposta fazia com que muitas mulheres fossem leva-
das a registrar suas ideias, sentimentos e formas de ver o mundo em forma de
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diários, cartas, que não poucas vezes, elas próprias rasgavam ou queimavam,
como se não tivesse o seu devido valor. Talvez, no interior delas, encontrasse re-
latos de desabafos, conflitos internos, indignação da sua falta de liberdade como
pessoa do sexo feminino.
Virginia Woolf chegou ao início do século XIX e encontrou, para sua
surpresa, livros escritos por mulheres, em forma de romance, como os de Jane
Austen, escritora inglesa.
Mesmo com toda desenvoltura, Austen relata que em seu romance
“Orgulho e Preconceito”, quando escrevia em espaço recluso, gostaria que nele
tivesse uma dobradiça na porta, que rangesse, pois assim daria tempo de escon-
der seu manuscrito, antes que alguém entrasse e lesse. Não se sentira bem em
escrever sobre um tema assim, havia algo vergonhoso em escrever sobre orgu-
lho, sobre preconceito. Nós, mulheres, nunca venceremos o preconceito se con-
tinuarmos a esconder nossas habilidades e quem somos.
Enquanto diversas mulheres se empenham conscientemente na prática
da escrita, algumas ainda não se deram conta da riqueza de possibilidades que
escapam de seu alcance devido à persistência do machismo e da misoginia.
Tanto na época de Virginia Woolf, como na sociedade contemporânea,
existe ainda preconceito com à produção intelectual da mulher. Falta às mu-
lheres, como citado anteriormente, chances iguais de educação e trabalho, pois,
devido à ausência dessa liberdade de espaço e à sua constante participação em
tarefas domésticas, as mulheres sempre foram privadas da oportunidade de se
integrarem a um ambiente intelectual.
Em território brasileiro, certos campos, como medicina, engenharia e
matemática foram, desde sempre, culturalmente dominados pelo gênero mas-
culino, destacando-se, inclusive, como setores que mantém ainda hoje grande
disparidade de gênero.
Ainda vivemos numa sociedade em que a imagem da mulher que manda,
que dá ordens, é ainda mal vista. Para o pensamento comum, se ela quer manter
a sua feminilidade, ela tem que abrir mão de posições que exijam dela controle
e poder. Quando uma mulher expressa opiniões sobre assuntos controversos é
prontamente rotulada como uma “disseminadora do conhecimento”, revelando
uma visão profundamente enraizada da perspectiva masculina. Essa abordagem
não a reconhece como um indivíduo autônomo.
A dificuldade de aceitar essa disparidade de gênero é considerável, talvez
até insuperável. Os seres humanos compartilham uma igualdade intrínseca, uma
vez que são todos parte da mesma espécie e compartilham um mundo comum.
No entanto, as diferenças individuais são inerentes à natureza humana, pois cada
indivíduo é singular e único. Essa variação irrepetível entre os seres humanos,
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
referida como “pluralidade” pela psicologia, é o que os distingue uns dos outros.
A filósofa Hanna Arendt também defendia a “liberdade da mulher” na
sociedade. Arendt discute a questão da liberdade das mulheres em várias de suas
obras, mas uma das mais notáveis é “A Condição Humana”, publicada em 1958.
Nessa obra, ela aborda a natureza da atividade política e o papel da ação pública
na esfera política, discutindo como as mulheres historicamente foram excluídas
dessas esferas, e como a busca pela igualdade e liberdade para as mulheres é uma
parte essencial da política moderna.
Também nesse sentido, ha uma frase de Simone de Beauvoir que sempre
me chamou bastante atenção. Em seu trabalho seminal “O Segundo Sexo”, de
1949, em que ela aborda questões de gênero, feminismo e a construção social
do feminino, ela diz: “ninguém nasce mulher, mas se torna mulher”. Mas isso
quer dizer, na realidade, que “nenhum destino biológico, psíquico, econômico
define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto
da civilização que elabora esse produto intermediário entre macho e o castrado
que qualificam o feminino”.
Vê-se claramente que Beauvoir defende a singularidade dos sexos. Simone
de Beauvoir, filósofa, intelectual, ativista e professora. Integrante do movimento
existencialista francês contribuiu com o feminismo, abrindo caminho para que
as mulheres começassem a negar com firmeza a obrigação social de casar e ter
filhos. Essa discussão se desenvolve até hoje, ao se colocar casamento e materni-
dade como uma escolha. Sem dúvida, sua grande contribuição no feminismo foi
na luta de igualdade de gênero. Além disso, ela sempre foi adepta da liberdade
como principal característica da sobrevivência do ser humano, especificamente
na posição social da mulher. Dizer que uma mulher só se realiza ao formar uma
família, engravidar e ter filhos, segundo ela, é um “pseudonaturalismo” conser-
vador, que procura manter o patriarcado, conceito que até hoje é usado nas lutas
feministas, no qual prevalecem atitudes machistas.
O machismo desautoriza o querer da mulher. É tão verdadeiro que basta
ouvir os grandes compositores brasileiros, quando em suas músicas apresentam
as mulheres num papel inferior. Na música, “Esse Cara”, de Caetano Veloso,
“ele é quem quer, ele é o homem, eu sou apenas uma mulher”. Na canção,
“Sem Açúcar”, de Chico Buarque, a letra traz: “na presença dele eu me calo, eu
de dia sou uma mulher, eu de noite sou seu cavalo, a cerveja dele é sagrada, a
vontade dele é mais justa”.
No livro de Graciliano Ramos, “São Bernardo”, se lê esta frase: “se a
mulher não se encolhe e se arrepia, ela é safada; sim, é justo matar uma mulher
infiel”. Isso nos mostra que o querer e o falar são do homem. O desejo feminino
é ilegítimo. A honra masculina exige a violência e tende a fazer do homem um
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M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
exposição simplista, a Psicologia do desenvolvimento nos conduz pelos cami-
nhos dos fundamentos teóricos, epistemológicos e filosóficos, para em seguida
nos apresentar e discutir as grandes questões que hoje constituem a preocupação
dos grandes pesquisadores que se dedicam ao tema do feminismo.
Podemos ver que os caminhos trilhados pela autora são essenciais para
quem, como ela, almeja a desconstrução de significados, em especial, os que
dizem respeito às relações de gênero, objetivando acelerar uma verdadeira mu-
dança, tanto no interior de cada indivíduo, como na sociedade de modo geral.
Virginia Woolf foi considerada uma celebridade defensora da condição
das mulheres na sociedade no século XX. Seus argumentos reverberam até os
dias atuais nas discussões femininas e de gênero.
REFERÊNCIAS:
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universi-
tária, 2007.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Eu-
ropeia do Livro, 1960a.
BUARQUE, Chico. Sem Açúcar. Philips, 1975. Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=FXvWCEKPEdE.
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 46. ed. Rio de Janeiro: Record, 1986.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
VELOSO, Caetano. Esse Cara. Universal Music, 1972. Disponível em: ht-
tps://www.youtube.com/watch?v=VH6a4Dr9gJs.
WOOLF, Virginia. Um Quarto só Seu. Tradução: Denise Rottmann. Editora:
Primeira edição na coleção L&PM POCKET, Porto Alegre. Fevereiro de 2019,
página, 156.
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REFLEXÕES SOBRE O QUE É SER MULHER
BASEADAS NA PERSONAGEM ELIZABETH BENNET
DE JANE AUSTEN
Aline Mayane Tavares de Melo1
INTRODUÇÃO
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Sendo assim, por meio da pesquisa bibliográfica de autoras feministas
como Beauvoir, dentro de uma visão bakhtiniana, foram possíveis algumas aná-
lises desse universo social.
e 1970, mostrou-se mais radical, visto que explorou os aspectos biológicos, com
ênfase na maternidade.
A partir desse momento, a discussão sobre sexualidade e direitos reprodu-
tivos seria inevitável. Resta acrescentar que, em fins da década de 1970, a pílula
anticoncepcional foi inventada. Os estudos que diferenciavam sexo e gênero têm
início nesse período, conduzindo as mulheres a se enxergarem como uma cons-
trução social. Patricia Collins e Dorothy Smith foram nomes importantes na
construção de uma ciência social feminista, defendendo que a teoria necessitava
ser construída por mulheres, já que eram experienciadas por estas.
A elas, juntaram-se mulheres socialistas/marxistas, engrossando a discus-
são sobre a divisão sexual do trabalho, gerando uma crítica à diferença salarial.
Sheila Rowbotham e Angela Davis acrescentaram ao debate questões raciais às
de gênero que estavam em curso.
Os anos 1990 prepara a Terceira Onda, ao provocar mudanças nas sociedades.
O muro de Berlin se dissolve à semelhança das ditaduras na América Latina, promo-
vendo mudança de mentalidade. Com o advento da internet e o movimento punk, as
garotas rebeldes incluem a negação a corporativismos e gritam seus ideais em zines
, cujo conteúdo versava sobre patriarcado, estupro e empoderamento feminino.
Dentro dessa linha evolutiva de lutas e conquistas femininas, Jane Austen
(1775 - 1817) vive o calor das chaminés das fábricas como autora protofeminista,
uma vez que se antecipa ao movimento feminista, porém abordando temas que
se tornariam pautas de reivindicações. É contemporânea da Revolução Francesa
que, de certa forma, denunciou a condição de opressão de gênero, destacando a
superioridade e a dominação imposta pelos homens. Na Inglaterra, havia uma
grande efervescência social e cultural, pois era uma época favorável às artes,
chamado de Era Georgiana, passando-se durante os reinados de George I, II,
III e IV. Nesse período, a autora começa a escrever suas histórias com toque de
ironia, narradas com base no que ela observava em sua própria sociedade.
No período em que foram escritos os seus romances, muitas mulheres
liam para se distrair. Tais mulheres viviam presas à trabalhos domésticos, es-
poso, filhos, a uma rotina diária muito cansativa, e que, muitas vezes, viam no
casamento uma forma de sustento. Ler seus romances davam a elas novas pers-
pectivas do que poderiam ser porque a escritora inglesa, de certa forma, abriu
novos caminhos de desconstrução de ideias.
Além disso, suas obras tinham um estilo cômico muito comum, costura-
das com ironias que construíam a representação feminina, mostrando a desvalo-
rização da mulher na época. Conforme Vivien Jones,
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Os romances de Jane Austen são comédias românticas. Ou seja, elas são
estórias de amor com finais felizes. ‘Comédia’ aqui não é somente usada
para sugerir algo que faz rir, embora os romances de Austen geralmente fa-
zerem isso também, mas como o oposto da ‘tragédia’. Em outras palavras,
descreve uma positiva visão celebrativa da vida, representando felicidade
e ideais. Os romances de Austen são frequentemente comparados com as
comédias de Shakespeare. Sendo familiar como uma delas percebesse que
terminam de maneira semelhante, com casamentos simbolizando reconci-
liação e harmonia (Jones, 1997, p. 50).
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
coloca as mulheres no lugar de objeto e isso as impede de se tornarem um ser
“para si”.
Beavouir (1967) também afirma que por muitas vezes é confortável ser
o outro. Pode até ter o lado ruim, uma vez que o caminho de ser o outro pode
constituir muitas vezes um caminho nefasto porque você se sente estranho em
suas próprias vontades, porque você não transcende, não se constitui como su-
jeito. Contudo, por outro lado, é um caminho fácil, porque não existe uma an-
gústia sentida quando se tem liberdade. Então, sem generalizações, as mulheres
se comprazem em ser o objeto, de certa forma porque são condicionadas a isso.
A autora admite que as mulheres são, de fato inferiores, porém não por
uma questão de natureza, ou por questão de essência, mas por uma questão de
construção social. A existência feminina foi construída e, por isso mesmo, con-
dicionante para que o segundo sexo fosse inferior.
Há quem diga que Jane Austen foi percursora do feminismo. Para Perrot
(2008, p. 154), “em sentido muito amplo, ´feminismo´, ´feministas´ designam
aqueles e aquelas que se pronunciam e lutam pela igualdade dos sexos”. Deve-
se considerar que essas categorias não estavam em voga no tempo da escrita de
Jane Austen. Schimidt (1999) pontua:
O feminismo, desde suas origens, sempre partiu de reflexões sobre a práti-
ca e a ênfase na experiência, prendendo-se ao fato de que, historicamente,
essa categoria foi determinante na transformação de realidades no campo
social. Sem cair na armadilha de um conceito a-histórico, reificado e uni-
tário de experiência e sem incorrer no esvaziamento textual da experiência
propiciada pela repercussão do pós-estruturalismo nas teorias do sujeito, é
possível reconfigurar o conceito de experiência a partir da noção de efeito
da interação entre a subjetividade e a prática social (Schimidt, 1999, p.38).
Para início de conversa, Jane Austen adota o romance como gênero das
suas narrativas, o qual figura dentro da lógica do entretenimento, ainda não con-
siderado como gênero literário nesse período. Duzentos anos após sua morte,
ela é uma das escritoras inglesas mais famosas, principalmente pelos romances:
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O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
A voz de Foucault (2016) sobre atribuições dos papéis femininos é bas-
tante precisa. Essa naturalização, ainda no século XIX, que é feita com a força
produtiva movida pelo trabalho doméstico, aliena e aprisiona mulheres, camu-
flando funções de trabalho com atributos de feminilidade. Federici (2019), na
obra O ponto zero da revolução teoriza sobre esse tipo de trabalho que, por muito
tempo foi negligenciado na cadeia produtiva das sociedades. A recusa do traba-
lho doméstico como um destino natural das mulheres só veio ocorrer de fato,
após a Segunda Guerra Mundial, revelando o trabalho das mulheres como o
verdadeiro segredo da acumulação primitiva do capital.
O que a autora chama de ponto zero deve ser entendido, ao mesmo tem-
po, como um local de perda completa e de possibilidades, pois, somente quando
todas as possibilidades e ilusões são perdidas, o ser humano é levado a encon-
trar, inventar, lutar por novas formas de vida e reprodução. Por sua vez, “a repro-
dução de seres humanos é o fundamento de todo sistema político e econômico,
e a imensa quantidade de trabalho doméstico remunerado e não remunerado,
realizados por mulheres dentro de casa, é o que mantém o mundo em movimen-
to” (Federici, 2019, p. 17).
Em suma, a autora constata o lugar desse grau zero, não antes sem fazer
justiça a teorias econômicas que deixaram de fora essa força produtiva que ema-
na da mão-de-obra (quase em tempo integral) das mulheres.
Antes de serem feitas análises, é necessário recuperar uma fala como pon-
to de partida para a trama de Orgulho e Preconceito: o desejo da senhora Bennet
(mãe de Elizabeth), a saber, ver suas filhas bem casadas. Segue o excerto:
“É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, pos-
suidor de boa fortuna, deve estar necessitado de esposa. Por pouco que os
sentimentos ou as opiniões de tal homem sejam conhecidos, ao se fixar
numa nova localidade, essa verdade se encontra de tal modo impressa nos
espíritos das famílias vizinhas, que o rapaz é desde logo considerado a
propriedade legítima de uma de suas filhas” (Austen, 1982, p. 09).
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fortuna. Ademais, a matriarca via nisso um modo de assegurar suas filhas alguma
riqueza. Isso demonstra um costume no período em que se passa o romance na
Inglaterra, a saber, as mulheres não herdavam as fortunas. Então, nenhuma das
cinco filhas ficaria com sua propriedade. Na verdade, elas herdariam uma parte da
fortuna da mãe delas, que foi dada no dote, mas era uma quantia irrisória.
[...] — Como se chama ele? (pergunta o pai de Elizabeth)
— Bingley. (responde a mãe de Elizabeth)
— É casado ou solteiro?
— Oh, solteiro, naturalmente, meu caro. Solteiro e muito rico! Quatro ou
cinco mil libras por ano. Que boa coisa para as nossas meninas, hein?
— Como assim? De que modo pode isso afetá-las?
— Meu caro Mr. Bennet —, replicou a sua esposa —, como você, às vezes,
é enfadonho! Deve saber que ando pensando em casar uma delas...
— Será este o projeto do homem ao se instalar aqui?
— Projeto? Tolice... Como é que você pode dizer uma coisa destas? É até
muito provável que ele se apaixone por uma delas. Portanto, assim que
chegue você deve ir visitá-lo.
— Não vejo motivo para isto. Você pode ir com as meninas, ou pode até
mandá-las sozinhas, o que talvez ainda seja melhor, pois como você é tão
bela quanto qualquer uma delas, Mr. Bingley pode preferi-la [...] (Austen,
1982, p. 09-10).
O casal central Elizabeth e Darcy não tem uma relação muito afetuosa no
início da trama, mas os diálogos tratados por eles são cheios de duplos sentidos.
Percebe-se um misto de aversão, curiosidade e desejo entre os dois. Inicialmente,
ela não havia “caído no gosto” de Darcy e o sentimento era recíproco, porque a
primeira impressão entre eles foi desagradável: ela achava-o orgulhoso; ele não
a achava tão bonita, a ponto de chamar sua atenção.
[...] — Você está dançando com a única moça realmente bonita que existe
nesta sala — disse Mr. Darcy, olhando para a mais velha das irmãs Bennet.
— Oh, é a mais bela moça que já vi na minha vida, mas bem atrás de você
está uma das suas irmãs, que é muito bonita e agradável. Deixe-me pedir
ao meu par que o apresente a ela?
— Qual? — perguntou ele, voltando-se e detendo um momento a vista
em Elizabeth até que, encontrando os seus olhos, desviou os seus e disse,
friamente: — É tolerável, mas não tem beleza suficiente para tentar-me.
Não estou disposto agora a dar atenção a moças que são desprezadas pelos
outros homens. É melhor você voltar ao seu par e se deliciar com os seus
sorrisos, pois está perdendo tempo comigo [...] (Austen, 1982, p. 17)
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Ela não gostava de fazer o que a sociedade esperava e, de certa, forma,
condicionava para que fizesse. Como boa moça, deveria aprender vários atributos
para ser uma boa esposa, como: desenhar, pintar, tocar piano, várias qualidades
que a sociedade achava necessário a uma mulher. Contudo, queria ser algo para
além disso. Tinha uma boa relação com o pai, por isso ele a apoiava nas decisões,
instigando-a a querer ser mais do que uma simples esposa. Elizabeth se preocupa-
va com as irmãs mais novas e tinha uma relação muito próxima com a irmã Jane.
Questionadora, ela sempre reflete não somente sobre o papel da mu-
lher naquele período, como também sobre a beleza, o casamento. Ela não se
amedrontava com a superioridade das pessoas de classes mais altas, sobretudo
quando tentavam intimidá-la, fato que acontece quando a tia de Darcy, Lady
Catherine, questiona sobre sua idade e ela prontamente não a responde:
[...] — Sob minha palavra — disse Lady Catherine —, você dá a sua opi-
nião muito decididamente para uma pessoa de tão pouca idade. Diga-me,
quantos anos tem? — Com três irmãs mais moças já crescidas — replicou
Elizabeth —, Vossa Senhoria não pode esperar que eu lhe dê uma resposta.
Lady Catherine pareceu ficar atônita com a resposta e Elizabeth suspeitou
que ela tinha sido a primeira pessoa que jamais ousara fazer pouco de uma
tão pomposa impertinência.
— Você não pode ter mais de vinte anos, portanto não precisa esconder a
sua idade.
— Ainda não fiz 21 anos [...] (Austen, 1982, p. 152).
Justa, ela não se conforma com o papel social que a mulher desempenhava
no período. Era considerada como uma moça independente, pois gostava de cami-
nhar sozinha e o livro sempre descreve isso. Naquele período, no qual a mulher era
criada para aprender atributos para conseguir um marido, a possibilidade de ela ca-
minhar sozinha, a pé, é uma grande relevância para o papel dela de independência.
Outra questão é sobre o casamento, uma peça central no período do roman-
ce na Inglaterra. Elizabeth acha tão ridículo da parte da mãe buscar estratégias
para tentar casar suas filhas, quanto desnecessário, que rejeitou uma proposta feita
pelo seu primo, já que não tinha nenhum tipo de sentimento por ele. Assim, ela faz
uma escolha, deixando todos chocados, ao rejeitar uma oferta dessas.
Já em Emma (1815), temos uma personagem adorada por todos, que não
quer casar. A maior ironia no romance reside no fato de Emma ter um poder do-
méstico, acreditando que, com ele, pode mudar o mundo ao seu redor na tentati-
va de controlar a vida de alguns outros personagens. Em Razão e Sensibilidade, ve-
mos as tradições, os costumes que rodeiam a realidade feminina da classe Gentry
(pequena nobreza rural) em que estão inseridas as irmãs Dashwood, Elinor e
Marianne que são forçadas a enfrentar diversas dificuldades sociais e financeiras
após a morte de seu pai, pois são deixadas em uma situação financeira precária.
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
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Em suma, o docente seleciona o que se deve ensinar para, em seguida, criar
várias sequências sobre um mesmo assunto, de acordo com as necessidades da tur-
ma. Cientes do que vem a ser uma sequência didática, apresentaremos o modelo
didático criado para trabalhar a obra de Jane Austen com alunos de Ensino Médio.
CONTEÚDOS DE
GÊNEROS DURAÇÃO RECURSOS UTILIZADOS LÍNGUA PORTUGUESA E
LITERATURA
Obra: Orgulho e Preconceito, de Jane
Austen.
Filme: O clube de leitura de Jane Sequências textuais narrativa
1ª e 2ª sema-
Austen (2007) - Mostra cinco mulhe- e descritiva, atentando para o
nas:
res e um homem que decidem formar trabalho com os tempos verbais,
(seis aulas)
um grupo de leitura dedicado a estu- referentes textuais e sequencia-
dar os trabalhos da autora do século dores lógicos da narração, com
Romance
XIX, Jane Austen. Ao mesmo tempo ênfase em paragrafação e uso de
(Para Estu-
em que discutem as problemáticas conectivos (parte I).
do)
das obras, passam por desafios seme- Análise semiótica e historiográ-
Diário de
lhantes. fica dos quatro perfis de mulhe-
Leitura
Canções: Amélia (Mário Lago); Des- res nas canções.
(Orientações
construindo Amélia (Pitty); Dona de Orientações para os Blogs ou
para o Blog)
mim, de Iza; Dandara (Nina Olivei- fanpage no face.
ra); Realeza popular, de Enéas Dias
e Marcos Moura. (Garantido 2019)
3ª e 4ª
Elementos da narrativa para en-
semanas:
tender o romance. (Parte 1: narra-
(seis aulas)
dor, personagens, tempo, espaço) Ironia e paródia.
Elementos SEIS
da narrativa SEMANAS
Diário de leitura no BLOG: o que é,
Diário de
como se faz
Leitura
Sequência textual narrativa,
atentando para o trabalho com
5ª Semana: Elementos da narrativa para enten-
os tempos verbais, referentes
(Três aulas) der o romance. (Parte 2: enredo)
textuais e sequenciadores lógi-
cos da narração (parte II).
Critérios de avaliação
Coesão e coerência textual - (1,0
6ª Semana:
ponto)
Avaliação da (Aula no laboratório)
Gênero textual exigido (adequa-
turma
ção da linguagem) - (1,0 ponto)
Discussões Resultados e discussões sobre o
Juízo de valor sobre o livro - (1,0
sobre os projeto.
ponto)
blogs dos
Aspectos gramaticais - (1,0 pon-
alunos na Premiação para os três primeiros
to)
rede lugares - blog.
Recursos gráficos, visuais e so-
noros (estética do blog) - (1,0
ponto)
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS
AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. Tradução de Lúcio Cardoso. São
Paulo: Abril Cultural, 1982.
AUSTEN, Jane. Razão e Sensibilidade. São Paulo: Editora Landmark, 2010.
Edição bilingue: inglês/português.
AUSTEN, Jane. Emma. São Paulo: Editora Landmark, 2010. Edição bilingue:
inglês/português.
ALENCAR, José. Senhora: perfil de mulher. São Paulo: Saraiva, 2007.
AMARAL, J. F. Como fazer uma pesquisa bibliográfica. 2007. Disponível
em: https://cienciassaude.medicina.ufg.br/up/150/o/Anexo_C5_Como_fa-
zer_pesquisa_bibliografica.pdf. Acesso em: 20 de out. 2022.
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: fatos e mitos, vol. 1 (1949). Tradu-
ção Sérgio Milliet. – 3ª edição – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: a experiência vivida, vol. 2 (1967).
Tradução Sérgio Milliet. 3ª edição – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
CORREIA, L. M.; PEREIRA, R. C. M. Mulher, Literatura e Feminismo:
Orgulho e preconceito e o pensamento independente em evidência. Artigo
publicado pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, 2017. Disponível
em: http://www.usp.br/cje/jorwiki/exibir.php?id_texto=345. Acesso em: 30
de out. 2022.
FEDERICI, S. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e
luta feminista. São Paulo: Editora Elefante, 2019.
FUNK, S. B. O que é uma mulher? In: Palavra e poder: representações na
literatura de autoria feminina. Brasília, DF: Universidade de Brasília, Departa-
mento de Teoria Literária e literaturas, 2011. Revista Cerrados. Vol. 20, N. 31.
GERHARDT, E.; SILVEIRA, D. T. Métodos de pesquisa. Porto Alegre: Edi-
tora da UFRGS, 2009.
JONES, V. How to study Jane Austen. London: The Macmillan Press, 1997.
PERROT, M. As mulheres ou os silêncios da história. Trad. Viviane Ribeiro.
Bauru, SP: EDUSC, 2005.
PERROT, M. Minha história das mulheres. Trad. Angela M. S. Corrêa. 1. ed.
São Paulo: contexto, 2008.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.
112 p.
SCHIMDT, R. T. Descentramentos/convergências: ensaios de crítica feminis-
ta. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2017.
SCHNEUWLY, Bernard. DOLZ, Joaquim e colaboradores. Gêneros Orais e
113
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ALÉM DO TEMPO:
COMENTÁRIOS SOBRE ‘MEMÓRIAS DE ADRIANO’,
DE MARGUERITE YOURCENAR
Dirce Maria da Silva1
INTRODUÇÃO
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como estrutura literária para o Imperador Adriano2 contar a história de sua vida
e de seu governo, situando-se próximo da narrativa de confissão.
Mémoirs D’hadrien (Suivi de Carnets de Notes de “Memoires D’Hadrien”), título
original em francês, foi publicado pela primeira vez em 1951. A edição da qual ex-
traímos os excertos é a 11ª, publicada pela Editora Nova Fronteira/RJ, em 1980.
Cada uma das seis seções que compõem a obra: Animula Vagula Blandula;
Varius Multiplex Multiformis; Tellous Stabilita; Saeculum Aureum; Disciplina
Augusta e Patientia, desempenham papéis específicos na construção da narrativa e
na exploração da personalidade de Adriano. Daremos ênfase aqui a excertos das
três primeiras.
Os excertos elencados nesta modesta apreciação são recortes das passa-
gens que destaquei durante a primeira leitura de “Memoires D’Hadrien”, às quais,
ocasionalmente, retorno. Tomei a liberdade de acrescentar informações sobre
algumas figuras dos excertos originais, explicando-as nas Notas de Rodapé, in-
seridas como informações gerais de pesquisa livre, apenas como forma de me-
lhorar a fruição textual.
A primeira parte, Animula Vagula Blandula, a seguir, inicia a narrativa
com uma atmosfera que evoca a essência das memórias que o Imperador está
prestes a compartilhar. Trazem a sensação de nostalgia e introspecção.
116
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Ao retornar de mais uma de suas incursões, escrevendo a seu amigo
Marco, ele discorre, dentre os assuntos, sobre seu atual estado de saúde. A mor-
te, inexorável, é tema explorado em boa parte das cartas retratadas ao longo da
narrativa desenvolvida por Yourcenar.
Sobre a proximidade da sua morte, à página 13, o Imperador se descreve
como “um homem que avança em idade e prepara-se para morrer com uma hidropisia
do coração3”.
Adriano escolheu passar parte de seu reinado viajando pelas várias pro-
víncias do Império. Historiadores, a exemplo de Edward Gibbon4, em sua obra
“A História do Declínio e Queda do Império Romano” (1776-1778), afirmam
que isso talvez refletisse o desejo de Adriano de estabelecer uma comunidade
global e ecumênica, fundamentada nos princípios da cultura helenista.
Mas seu quadro de insuficiência cardíaca congestiva não se deu por ser ele
um glutão. Sobre questões alimentares, ele discorre nas páginas 17 e 18:
“Comer em excesso é hábito romano. Eu, porém, fui sóbrio por volúpia. [...] Comer
um fruto é fazer entrar em si mesmo um belo objeto vivo, estranho e nutrido como nós pela
terra. É consumar um sacrifício no qual nós nos preferimos ao objeto. Jamais mastiguei a
crosta do pão das casernas sem maravilhar-me de que essa massa pesada e grosseira pudes-
se transformar-se em sangue, calor e, talvez, coragem”.
À página 19 ele escreve a respeito da carne, do vinho e do amor:
“A carne cozida nas noites das caçadas, possuía uma espécie de qualidade sacra-
mental, que nos levava muito longe, quase além das origens selvagens das raças. O vinho
inicia-nos nos mistérios vulcânicos do solo e nas riquezas minerais ocultas. Uma taça de
Samos5 degustada ao meio-dia, em pleno sol, ou, ao contrário, saboreada numa noite de
inverno, num estado de fadiga tal que nos permita sentir no fundo do diafragma seu fluxo
quente, sua abrasadora dispersão ao longo das artérias, é uma sensação quase sagrada e,
por vezes, demasiado forte para um cérebro humano”.
Experimentou rapidamente a abstinência de carne nas escolas de filoso-
fia, pois nesses lugares, conforme descreve, acontece se provar todos os métodos
de conduta. Ele fala, à página 21, sobre moral e cinismo:
“Os escrúpulos religiosos dos gimnosofistas6 e sua repugnância pelas carnes san-
grentas ter-me-iam impressionado, se não perguntasse a mim mesmo em que o sofrimento
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da erva que se corta diferia essencialmente do sofrimento dos carneiros que se degolam.
Os cínicos e os moralistas concordam em colocar a volúpia do amor entre os prazeres ditos
grosseiros, como o prazer de comer e de beber, declarando-a, contudo, menos indispensável
do que aqueles, visto que eles podem perfeitamente prescindir dela. Do moralista tudo se
espera, mas espanto-me que o cínico se tenha enganado. Admitamos que uns e outros
receiem seus próprios demônios, seja porque lhes resistam, seja porque se lhes entreguem,
esforçando-se por aviltar o prazer a fim de lhes tirar o poder quase terrível, sob o qual su-
cumbem, e diminuir o estranho mistério no qual se sentem perdidos”.
Discorrendo sobre seu corpo que desvanecia, em tom de lúcida aceitação
da fragilidade humana, da necessidade de repouso, e da finitude, ele reflete, à
página 27:
“Começo a conhecer a morte; ela tem outros segredos, muito mais estranhos ainda
à nossa atual condição humana. A divindade desse grande restaurador, o sono, quer que
seus efeitos benéficos se exerçam sobre a pessoa adormecida sem qualquer indagação, da
mesma forma que a água carregada de poderes curativos não se preocupa com a identidade
de quem a bebe na nascente. Adormecidos, Caio Calígula e Aristides7 equivalem-se. Eu
próprio renuncio a meus vãos e importantes privilégios e já não me distingo do guarda
negro que dorme atravessado no umbral de minha porta. Que é a nossa insônia senão a
obstinação maníaca da nossa inteligência em manufaturar pensamentos e formular uma
série de raciocínios, silogismos e definições que lhe são próprios?”
Em outras palavras, o personagem nos diz que a existência humana dian-
te do sono e da morte, independentemente de seu status ou inteligência, compar-
tilha, ao final, da mesma experiência comum.
Na seção a seguir, Varius Multiples Multiformis, Adriano relata sentimen-
tos e experiências de sua formação e educação, e no que isso influenciou sua
vida como governador do Império Romano.
7 Caio Júlio César Augusto Germânico, mais conhecido pelo apelido “Calígula”, foi um
Imperador romano que governou de 37 d.C. a 41 d.C. Aristides, também conhecido como
Aristides, o Justo, foi um político e estadista ateniense do século V a.C.
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos: minhas primeiras
pátrias foram os livros. Em menos escala, as escolas”.
Adriano redefine a seu modo, no trecho em questão, o conceito de pátria
e identidade, ao destacar que a essência de uma pessoa não está ligada a um
lugar físico de nascimento, mas à jornada do conhecimento e da autodescober-
ta. Quando ele menciona que as suas “primeiras pátrias foram os livros”, está
afirmando a importância da educação e do intelecto, que foram preponderantes
em sua formação.
Afirmando a ideia de que a identidade de alguém pode ser forjada por
meio da experiência intelectual, a despeito de onde tenha nascido, Yourcenar
(Adriano) nos convida a considerar o papel da educação e do pensamento crítico
na formação das identidades e na compreensão do mundo, pois somos mol-
dados, para além do local de nascimento, pelas ideias que exploramos e pelas
lições que aprendemos ao longo de nossa vida. Adriano nos encoraja, assim, a
valorizar o poder do conhecimento e da reflexão em nossa busca da compreen-
são de nós mesmos e do mundo que nos rodeia.
Sobre a escola, educação, sedução do conhecimento, ele afirma, à página
41, que “o maior dos sedutores não foi Alcebíades8, mas, Sócrates”. E ainda:
“Os métodos dos gramáticos e dos retóricos são talvez menos absurdos do que eu
imaginava, na época em que lhes estava sujeito. A gramática, com sua mistura de regras
lógicas e de uso arbitrário, propõe ao espírito jovem um antegosto do que lhe oferecerão
mais tarde as ciências da conduta humana, o direito ou a moral, todos os sistemas enfim,
em que o homem codificou sua experiência instintiva. Quanto aos exercícios de retórica,
em que éramos sucessivamente Xerxes e Temístocles, Otaviano e Marco Antônio, arreba-
tavam-me e eu me sentia um novo Proteu. Tais exercícios ensinaram-me a penetrar alter-
nadamente no pensamento de cada homem e a compreender que cada um se decide, vive
e morre segundo suas próprias leis. A leitura dos poetas surtiu efeitos mais perturbadores
ainda: não estou certo de que a descoberta do amor seja necessariamente mais deliciosa do
que a da poesia”.
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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)
9 Xerxes I foi um Rei persa que comandou a Segunda Guerra Greco-Persa que tentou invadir a
Grécia em 480 a.C.; Temístocles, estrategista ateniense, desempenhou papel crucial na Batalha
de Salamina, onde a frota grega derrotou a frota persa de Xerxes. Otaviano, também conhecido
como Augusto, primeiro imperador romano a estabelecer o Império Romano após a queda
da República. Governou de 27 a.C. a 14 d.C.; Marco Antônio, político e general romano que
se aliou a Cleópatra e desafiou Otaviano em uma guerra civil, que resultou em sua derrota na
Batalha de Ácio em 31 a.C. O Proteu, mencionado por Adriano, era um deus marinho asso-
ciado à mudança e à transformação, conhecido por assumir diferentes formas. Considerado
profeta, para obter informações dele, os mortais precisavam prendê-lo ou enganá-lo. Proteu
está na “Odisseia” de Homero, ao ser requisitado por Menelau, rei grego de Esparta, marido
de Helena, quando do rapto desta por Páris, fato que desencadeou a Guerra de Troia.
10 Político e general romano que viveu no século I a.C.
11 Rei de Esparta (399-360 a. C.), considerado um dos mais brilhantes líderes militares da
Antiguidade.
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
traição de Demarato à fidelidade de Filopemen12, tudo que cada um de nós pode tentar
para prejudicar os seus semelhantes ou para servi-los já foi feito, pelo menos uma vez, por
um Grego. Sucede o mesmo com as nossas escolhas pessoais: do cinismo ao idealismo, do
ceticismo de Pirro 13aos sonhos sagrados de Pitágoras14, nossas recusas ou nossos consenti-
mentos já existiram, nossos vícios e nossas virtudes têm modelos gregos. Nada se compara
à beleza de uma inscrição latina votiva ou funerária: umas poucas palavras gravadas sobre
a pedra resumem com majestade impessoal tudo o que o mundo necessita saber de nós. Foi
em latim que administrei o império; meu epitáfio será talhado em latim sobre a parede do
meu mausoléu, às margens do Tibre15, mas em grego, terei vivido e pensado”.
Chega a ser comovente a profunda apreciação do Imperador pela cultura
grega, sua conexão com a língua e a importância dela em sua vida e governança.
Não poupando elogios, ele reconhece o valor de todas as línguas, mas destaca que
apenas o grego consegue bem descrever a profundidade da sabedoria humana.
Nesse sentido, Marguerite Yourcenar nos oferece uma visão do homem,
que revela sua complexidade, para além de seu papel político. Ele é alguém que
questiona as convenções e os padrões estabelecidos; reflete sobre a própria jor-
nada, busca entendimento mais profundo de si e do mundo ao redor. Alguém
em busca de significado e sabedoria.
O trecho em que ele discorre sobre a razão, é um encantador exemplo que
Yourcenar entrega na seção Varius Multiplex Multiformis, à página 92:
“É um erro ter razão cedo demais. Mais do que isso, duvidava de mim mesmo e
sentia-me culpado daquela forma baixa de incredulidade que nos impede de reconhecer
a grandeza de um homem que conhecemos excessivamente. Esquecia-me de que alguns
homens alteram os limites do Destino, ou por outra, mudam a História”.
Vê-se que a maturidade trouxe ao Imperador compreensão mais profun-
da da vida e das ações humanas. Ele também duvidou de si mesmo, nada mais
humano, afinal!
Sabemos que a reflexão e os questionamentos nos levam a explorar novos
12 Denis, variante do nome Dionísio, na mitologia grega era o deus do vinho, das festas, do
teatro e da fertilidade. Mas pode ser uma possível referência a Dionísio de Halicarnasso, his-
toriador e retórico grego que viveu durante o período de Adriano, conhecido por suas obras
sobre a história de Roma e sua retórica. Demarato: rei de Esparta no século VI a.C. Filope-
men, cujo nome completo era Tito Quíncio Flaminino Filopemen, foi um general e estadista
romano que viveu no século II a.C. Ele é conhecido por suas campanhas militares na Grécia
e seu papel na promoção da liberdade das cidades gregas contra a dominação macedônica.
13 Pirro: rei do Épiro, região no noroeste da Grécia, que viveu no século III a.C.
14 Pitágoras: filósofo, matemático e fundador de uma escola de pensamento chamada pi-
tagorismo. Viveu na Grécia Antiga por volta do século VI a.C. Famoso por seu teorema
geométrico, o Teorema de Pitágoras, que relaciona os lados de um triângulo retângulo.
15 Rio que corta Roma. É mencionado em várias obras literárias e artísticas ao longo dos
séculos, como na “Eneida” de Virgílio; no “Decameron” de Boccaccio e em”A Divina
Comédia”, de Dante Alighieri.
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M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
e méritos individuais, demonstrando sua preferência por ganhar respeito por
meio de ações e realizações tangíveis, em vez de depender apenas dos títulos ou
posições. A menção à “agilidade mental” e “força” destaca a importância que
tais aspectos possuem em sua vida. Nesse sentido, o Imperador expressa vonta-
de de ser autêntico e único; ele preocupa-se em ser verdadeiro consigo mesmo,
ressaltando a importância de manter a identidade de seu legado.
Numa reflexão comovente com respeito ao tempo em que viveu, o excerto
disposto à página 119, demonstra perspectiva profundamente reflexiva e otimista:
“E agradecia aos deuses por me terem concedido viver num tempo em que a tarefa
que me coube consistia em reorganizar prudentemente o mundo, e não em extrair do caos
uma matéria ainda informe, ou em deitar-me sobre um cadáver para tentar ressuscitá-lo.
Felicitava-me pelo fato de que nosso passado tivesse sido bastante antigo para nos fornecer
exemplos, e não bastante pesado para nos esmagar; felicitava-me também pelo fato de que
o desenvolvimento das nossas técnicas tivesse atingido tal ponto que facilitasse a higiene
das cidades e a prosperidade dos povos sem os excessos que ameaçariam sobrecarregar o
homem com aquisições inúteis; que nossas artes, árvores um tanto fatigadas pela abun-
dância dos seus dons, fossem capazes ainda de produzir alguns frutos deliciosos. Alegrava-
me que nossas religiões vagas e veneráveis, decantadas de toda intransigência ou de todo
ritual selvagem, nos associassem misteriosamente aos sonhos mais antigos do homem e da
terra, sem, contudo, proibir as explicações laicas dos fatos, numa visão racional da con-
duta humana. Agradava-me enfim que estas mesmas palavras Humanidade, Liberdade
e Felicidade não tivessem ainda sido desvalorizadas pelo excesso de aplicações ridículas”.
Expressando apreço, o excerto transmite visão positiva de mundo, enfati-
zando a importância da estabilidade, da sabedoria adquirida com o passado, do
equilíbrio e moderação entre avanços técnicos, da coexistência entre espiritua-
lidade e racionalidade e valor dos ideais humanistas, denotando gratidão pelo
contexto histórico e cultural em que se encontra.
Com relação ao campo do direito, à página 120, o Imperador é mais cé-
tico. Adriano revela desconfiança em relação à eficácia das leis, numa visão
realista sobre a capacidade de controle do comportamento humano. Ele escreve:
“Devo confessar que acredito pouco nas leis. Quando demasiado duras são trans-
gredidas com razão. Quando muito complicadas, o engenho humano encontra facilmente
o meio de escapar por entre as malhas dessa rede frágil e escorregadia. O respeito pelas leis
antigas corresponde ao que a piedade humana tem de mais profundo; serve também de tra-
vesseiro à inércia dos juízes. As leis mais antigas participam da selvageria que elas mesmas
pretendem corrigir; as mais veneráveis são ainda um produto da força. A maioria das nos-
sas leis penais não atinge, talvez felizmente, senão uma pequena parte dos culpados; nos-
sas leis civis jamais serão bastante flexíveis para se adaptar à fluída variedade dos fatos.
Mudam menos rapidamente do que os costumes; perigosas quando estes as ultrapassam,
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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)
o são ainda mais quando pretendem precedê-los. Contudo, desse amontoado de inovações
perigosas que oferecem tantos riscos, ou de rotinas obsoletas, surgem aqui e ali, como na
medicina, algumas fórmulas aproveitáveis. Os filósofos gregos ensinaram-nos a conhecer
um pouco melhor a natureza humana: nossos melhores juristas vêm trabalhando há algu-
mas gerações visando ao bom senso. Eu mesmo efetuei algumas dessas reformas parciais
que são as únicas duradouras. Toda lei muitas vezes transgredida é má: cabe ao legislador
revogá-la ou substituí-la antes que o desprezo por uma disposição insensata não se estenda
a outras leis mais justas. Propus-me como meta uma anulação prudente de leis supérfluas
e a promulgação, com firmeza, de um pequeno grupo de decisões sábias. Parecia chegado o
momento de reavaliar, no interesse da humanidade, todas as prescrições antigas”.
Nesse sentido, numa mostra de visão sobre as complexidades inerentes
ao sistema legal, ele reconhece os desafios e advoga por mudanças que sejam
capazes de garantir justiça social.
Yourcenar o representa a seguir como profundo apreciador dos livros e
sabedor da importância das bibliotecas, à página 131:
“Fundar bibliotecas era construir celeiros públicos, aprovisionar reservas contra
o inverno do espírito cuja aproximação eu podia prever mesmo contra minha vontade.
Tenho reconstruído muito: é uma forma de colaborar com o tempo sob seu aspecto de pas-
sado, é preservar ou modificar seu espírito, fazer dele uma espécie de reserva para o futuro;
é reencontrar sob as pedras o segredo das origens. Nossa vida é breve; falamos sem cessar
dos séculos que nos precederam ou daqueles que virão depois de nós como se uns e outros
nos fossem totalmente estranhos; entretanto, tocava neles ao remanejar as pedras. Aquelas
paredes que eu escorava estão quentes ainda do contato dos corpos desaparecidos; mãos que
ainda não existem acariciarão um dia estes fustes de coluna. Quanto mais meditei sobre
minha morte, e sobretudo sobre a morte de um outro, mais tenho desejado anexar às nossa
vidas esses prolongamentos quase indestrutíveis”.
A bonita metáfora do “inverno do espírito” sugere períodos de ignorância
ou esquecimento. O personagem entende que a sabedoria e o conhecimento são
recursos valiosos que devem ser protegidos da decadência cultural, como forma
de manter viva a herança intelectual da humanidade.
Sobre a importância da conexão entre passado e futuro, o Imperador deseja
anexar à vida humana tais “prolongamentos quase indestrutíveis” que as bibliote-
cas representam. Ele percebe o conhecimento como uma forma de imortalidade,
que transcende ao tempo e continua a influenciar e enriquecer a humanidade ao
longo das eras. As bibliotecas são “guardiãs do conhecimento e da cultura”.
Ao expressar-se sobre a arte e a sua preferência pela representação do ser
humano como tema central, eis alguns comentários seus a respeito, à página
135, a seguir.
“Meus contatos com as artes bárbaras levaram-me à conclusão de que cada raça
124
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
se limita a certos temas, a certos modos, entre os modos possíveis; cada época opera uma
triagem entre as possibilidades oferecidas a cada raça. Vi no Egito deuses e reis colos-
sais; encontrei no pulso dos prisioneiros sármatas braceletes que repetem ilimitadamente
o mesmo cavalo a galope ou as mesmas serpentes que se entredevoram. Mas nossa arte
(quero dizer, a arte dos Gregos) preferiu limitar-se ao homem. Nós, somente nós, soubemos
mostrar a força e a agilidade latentes num corpo imóvel; nós, só nós, transformamos uma
fronte lisa no equivalente a um pensamento sábio. Sou como nossos escultores: o humano
me satisfaz plenamente; nele encontro tudo, até o eterno. A floresta, tão amada para mim
se resume toda inteira na imagem do centauro; a tempestade nunca respira melhor do que
nas echarpes enfunadas das deusas marinhas. Os objetos naturais, os emblemas sagrados
nada valem se não forem carregados de associações humanas: a pinha fálica e fúnebre, a
taça com as pombas que sugere a sesta junto às fontes, o grifo que arrebata para o céu o
bem-amado”.
Observa-se que ele entende a arte como forma de capturar a essência da
humanidade, por meio de objetos e símbolos que ganham significado através de
associações com a experiência humana.
No trecho a seguir, à página 148-149, Yourcenar faz uma reflexão sobre
a harmonia entre a divindade e a humanidade na vida do Imperador romano e
sua compreensão da divindade:
“Vislumbrava de outro modo meu relacionamento com o divino [...]. Eu era um
dos segmentos da roda, um dos aspectos dessa força única empenhada na multiplicida-
de das coisas, água e touro, homem e cisne, falo e cérebro simultaneamente, Proteu que
ao mesmo tempo é Júpiter. Foi por essa época que comecei a sentir-me deus. Não faças
confusão: era sempre, era mais que nunca o mesmo homem nutrido com os frutos e os
animais da terra, devolvendo ao solo os resíduos desses alimentos, sacrificando ao sono a
cada revolução dos astros, inquieto até a loucura quando faltava por muito tempo a cálida
presença do amor. Minha força, minha agilidade física ou mental eram cuidadosamente
sustentadas por uma ginástica toda humana. Mas que dizer senão que tudo isso era divi-
namente vivido? Aos quarenta e quatro anos, sentia-me sem impaciência, seguro de mim,
tão perfeito quanto me permitia minha natureza. Eterno. Compreendo bem que se trata,
neste caso, de uma concepção do intelecto: os delírios, se é preciso que lhes sejam dado tal
nome, vieram mais tarde. Era deus simplesmente porque era homem”.
Adriano não entende espiritualidade e divindade como algo separado ou
transcendental, mas como elementos intrínsecos à existência humana e da com-
plexidade do mundo.
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M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)
Em seu leito de morte ele compôs o poema Animula Vagula Blandula, que
dá nome à primeira seção na obra de Yourcenar:
CONCLUSÕES FINAIS
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
transcende a mera narrativa histórica, nos guiando por uma jornada introspec-
tiva nas profundezas da psique humana. Através de sua obra, ela não apenas
desvenda os eventos de um passado distante, mas também expõe os desejos, me-
dos e incertezas que são inerentes à condição humana, ressaltando a perenidade
desses sentimentos ao longo do tempo.
Dessa forma, esta obra de ficção autobiográfica impecável, com sua mes-
tria na recriação do passado e a maneira pela qual suas palavras transcendem as
barreiras do tempo, nos convoca à reflexão sobre questões universais. Por meio
de sua narrativa exemplar, ambientada em uma época notável, e com um per-
sonagem que é amplamente considerado como um dos melhores exemplos dos
atributos do Humanismo antigo, somos instigados a explorar temas atemporais
que ecoam ao longo da história.
Adendo
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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)
REFERÊNCIAS
YOURCENAR, Marguerite. Memórias de Adriano: seguido do caderno de
notas das “Memórias de Adriano” e da Nota / Marguerite Yourcenar; tradu-
ção de Martha Calderaro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, 325 p. (Cole-
ção Grandes romances).
128
EIXO IV
MEMÓRIAS LITERÁRIAS,
EDUCAÇÃO E DIREITO
MEMÓRIAS LITERÁRIAS: O SIGNIFICADO DO
ENSINO DA LEITURA E DA ESCRITA NA
VIDA ESTUDANTIL
Débora Jesus de Queiroz1
Cirlene Pereira dos Reis Almeida2
INTRODUÇÃO
Esta escrita tem como foco relatar breves acontecimentos das descobertas
do gosto pela leitura e escrita, de como o ensino de uma forma mais significativa e
formativa podem ser o empurrãozinho para o hábito de ler e o gosto pela escrita.
Interagindo com falas de autores que reforçam o quanto é importante esse aprendi-
zado na tenra infância, focando em conceitos de Lev Vygotsky (Desenvolvimento
e Aprendizagem) e David Ausubel (Aprendizagem Mecânica e Significativa).
No mesmo sentido, pontuar questões relevantes que representam o sig-
nificado base, que é a importância da escrita e leitura em todas as fases da vida
humana, prestigiando aqui os mestres que em seus pequenos gestos mediadores
1 Licenciatura Plena em Pedagogia (2021), Pós Graduada em Gestão Escolar e Coordenação
Pedagógica (2022), Pós Graduando em Docência da Educação Profissional e Tecnológica
(2023). Pós graduanda em Alfabetização e Letramento (2024). Professora do 2º Ano do En-
sino Fundamental I. Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/4825828201731085. E-mail: deboraje-
[email protected].
2 Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás; Mestre em Letras
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Pós-Graduada em Gramática,
Gestão de Sala de Aula em Nível Superior, Orientação Educacional. Graduada em Letras
pela Universidade Católica de Brasília. Graduada em Pedagogia pelo Instituto Brasileiro
de Educação. Professora e Coordenadora no Centro Universitário de Desenvolvimento do
Centro-Oeste (UNIDESC). Membro do Núcleo docente Estruturante do mesmo curso.
Professora efetiva da Universidade Estadual de Goiás (UEG) nos cursos de Direito e Peda-
gogia. Professora da Secretaria de Educação de Valparaíso de Goiás. Link Lattes: http://
lattes.cnpq.br/5384051819016083. E-mail: [email protected].
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
e significativos puderam florescer mais uma entre tantos leitores e escritores da
sociedade brasileira, bem como, elencar como está o comportamento da socie-
dade brasileira com seu hábito de ler e apresentar ações que fazem a diferença
para o ensino e aprendizado voltado para a leitura e a escrita.
No tópico ERA UMA VEZ... COMO TUDO COMEÇOU! é descrito um
relato de como foi essa descoberta e as fases que determinaram um aprendizado
significativo, até os tempos atuais, com as evoluções, reflexões e percepções, em
momentos e contextos em que a autora descobriu e continua a descobrir, descor-
tinar horizontes, em toda a sua trajetória, além de abordar o ensino da literatura
e a elaboração de texto, acontecimentos em sala de aula que apresentaram, de
forma significativa e formativa, o ensino e aprendizado, bem como a didática e
a interação de professor e aluno.
O segundo momento, O HÁBITO DE LER- PESQUISAR E LEITURA
E ESCRITA E SEU ENSINO NA PRÁTICA, respectivamente, são dedicados
à descrição de dados relevantes sobre o hábito de ler da população brasileira no
ano 2019, trazendo reflexões e apontamentos de mediações, para além das rea-
lidades que a educação enfrenta.
O terceiro tópico, TECNOLOGIAS MIDIÁTICAS E A EDUCAÇÃO
MEDIADORA, volta-se às tecnologias como ferramentas de aprendizagem,
apresentando a visão da autora mediante sua experiência e olhar crítico sobre
as ferramentas tecnológicas voltadas ao ensino e aprendizagem escolar, apresen-
tando autores que dialogam e defendem o uso correto e formas de manuseio,
práticas e intervenções para o ensino em sala de aula.
Nas considerações finais, reiteramos a importância da escrita e da leitura,
ligando pontos que foram descritos ao longo do texto, no intuito de reforçar e
propagar tais feitos, que merecem ser amplamente divulgados.
Estudar para muitos pode ser cansativo ao longo da jornada, mas para
quem está em seus primeiros dias de aula é totalmente incrível, nos meus primei-
ros anos sendo mais específica na 1º série do ensino fundamental I, em uma aula
de Português, a professora observa que uma aluna não consegue ainda ler mas
consegue codificar as letras para responder a atividade no livro sobre a raposa e
a uva. Após esse ocorrido a professora pergunta se a aluna aprendeu a ler, onde
ela prontamente responde que não, a professora chama o pai dessa aluna para
uma conversa e dias depois em casa o pai a presenteia com gibis da Turma da
Mônica sendo esse fator crucial para seu aprendizado prazeroso com a leitura.
Desde então, mensalmente ele a presenteia com os gibis.
Sobre esse breve relato desde a observação da professora mediante o
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
requer interpretação, pois é importante relacionar novas informações com co-
nhecimentos prévios e experiências pessoais. A diversidade na sala de aula pro-
move interpretações diferentes, atendendo às necessidades individuais dos alu-
nos. Em vez de tentar eliminar as diferenças, é fundamental aceitá-las e usá-las
como um recurso para o grupo. Essa ação foi bem trabalhada em sala durante
todos os semestres, sendo evidente nas conversas informais entre colegas de sala
que estavam de fato aprendendo a matemática.
Já na fase de adolescência se dedica a biografias e romances de banca
de revistas, no Ensino Médio novamente nas aulas de Português a professora
utiliza uma metodologia significativa, para ensinar a Literatura Brasileira em
suas aulas, utilizando as rodas de conversa, resumos expandidos e uma vasta
opção de leitura literária, bem como a escrita autônoma de cada aluno sobre
seu entendimento da obra e do autor, aulas expositivas com seminários, debates
e apresentações orais. Dando um novo significado e aprendizagem dos alunos,
onde em sua maioria descreviam o seu entendimento real da obra.
Monteiro (2012) ao descrever a aprendizagem sob a visão de Vygotsky
relata que a aprendizagem é fundamental para o desenvolvimento, destacando a
importância do papel do professor nesse processo. A aprendizagem e o desenvol-
vimento ocorrem por meio da internalização, que é o processo pelo qual o sujei-
to interage com outras pessoas, seja de forma interpessoal ou intrapsíquica, sen-
do que nessa interação, o indivíduo constrói o conhecimento, que é produzido
sócio culturalmente, tornando-o parte de sua estrutura interna ou intrapessoal,
o processo de internalização é responsável por transformar o conhecimento ex-
terno em parte integrante do indivíduo.
Já na fase acadêmica duas professoras trazem inquietações em suas aulas,
uma no sentido do entendimento voltado para a didática e a simbologia no con-
texto da tenra infância, trazendo em suas aulas o conceito de debates, leituras,
ditados e escritas como resenhas, tópicos, resumos e seminários criativos onde
os discentes necessitavam estudar e apresentar o seu real aprendizado do tema,
a caracterizando como uma mediação simbólica.
Monteiro (2012), ao enfatizar na visão de Vygotsky o conceito de me-
diação simbólica nos mostra que existe um mundo abstratamente construído
em nossa mente, possibilitado pelo acesso à cultura e às interações com outras
pessoas. Essa mediação permite que as representações culturais sejam transpor-
tadas para nossa linguagem, pensamento e relações com os outros, demonstran-
do a capacidade de atribuir significados simbólicos que enriquecem e moldam
nossa compreensão do mundo ao nosso redor.
A outra professora apresenta a importância da literatura Infantil fugindo
do contexto padrão, apresentando outras obras e autores que também seguem
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
espaço para suas dúvidas, dialogando sobre seus questionamentos, ouvindo suas
ideias e sonhos (por que não?), enfatizando a importância da leitura, principal-
mente da nossa riquíssima literatura brasileira, fornecendo lhes feedbacks de
suas produções textuais, mas ainda ao analisar em âmbito geral se depara com
uma juventude sem interesse em ler e escrever, tema esse que será descrito no
próximo tópico.
O HÁBITO DE LER-PESQUISAR
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
LEITURA E ESCRITA E SEU ENSINO NA PRÁTICA
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
encorpando as leituras feitas sobre o objeto estético, agregando camadas, leitu-
ras diversas sobre a mesma obra, exemplifica Ganzela (2017).
Por fim, para todas as modalidades estudantis presencial ou on-line, o
feedback dos professores podem fornecer oportunidades para que os alunos es-
crevam de forma criativa, com temas relevantes e interessantes para eles. Além
disso, o uso de atividades de revisão, comentários e orientações precisas dos
professores pode ajudar os alunos a melhorar sua escrita e torná-la mais eficaz.
Um fator que pode ser levado em consideração é o avanço dasa tecnologias e sua
gama de aparatos em que jovens e adultos estão inseridos. Tema esse que será
abordado em seguida.
Mas e o aluno; como é esse aluno, com acesso a tantas informações, con-
teúdos e plataformas, nas palavras e observações de Ronaldo Casagrande, ele
define como:
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Hoje esse novo aluno passa horas na rede jogando complexos games de
estratégia, montando táticas em conjunto com pessoas que nem conhece
pessoalmente, ao mesmo tempo em que houve músicas em seu celular,
troca mensagens eletrônicas com seus amigos e, de tempos em tempos,
olha a série que está rolando na TV (Casagrande, 2019 p. 52).
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
e comunicação em contextos formais.
Os alunos aprendem ao serem desafiados a demonstrar seu desempenho
em níveis mais avançados do que estão familiarizados em determinado momen-
to. Essa oportunidade é alcançada por meio de envolvimento em projetos co-
laborativos com os colegas, permitindo que eles produzam significados mais
profundos ao investigar assuntos, resultando em um maior desenvolvimento e
complexidade dos conhecimentos envolvidos. (Moraes, 2012).
Vale ressaltar que é na escola que essas metodologias exercem sua eficá-
cia, bem como defini, Delfillippe e Cunha (2011), enfatizam a compreensão e a
sua preocupação em não criticar o trabalho da escola, e concorda que o ensino
dos gêneros escolares é de extrema relevância, sendo ferramentas fundamentais
para a organização e aprimoramento tanto da fala quanto da escrita dos alunos.
A combinação dessas abordagens pode ser benéfica para um desenvolvimento
completo das habilidades linguísticas dos indivíduos.
Assim, ambos os ambientes têm seus méritos e contribuições para o de-
senvolvimento da escrita e da comunicação. A escola busca fornecer aos alunos
as bases sólidas e as habilidades necessárias para se comunicarem de forma clara
e eficaz em diversos contextos, enquanto a internet proporciona um espaço va-
lioso para a criatividade, a expressão pessoal e a interação social, embora tam-
bém apresente desafios em termos de uso correto da língua.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)
ministra -lás, tem o poder de acender essa pequena chama. Trabalho esse ardo e
que requer muita criatividade, tempo e paciência, difícil porém não é impossível.
Tanto a leitura quanto a escrita tem importância significativa no processo
educacional e no contexto de aprendizagem, ambas sendo trabalhada de forma
significativa através de metodologias e planejamentos que favoreçam o aprendi-
zado e a autonomia na escrita do aluno potencializa, ao utilizar as metodologias
ativas como ferramenta de ensino aprendizado baseando-se em planejamentos
que condizem com seu cotidiano e saindo da forma mecânica para a significati-
va da aprendizagem.
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O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
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143
MEMÓRIAS DE LEITURA NA FORMAÇÃO
ACADÊMICA: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA
SOBRE A INFÂNCIA E O LÚDICO NA EDUCAÇÃO
Lílian Viviane Gonçalves Martins1
Dirce Maria da Silva2
Acreditamos que a educação exige um constante esforço de reflexão horizontal. Nesse esfor-
ço reflexivo, sabe-se que há muito para ser pensado e rememorado, para não deixar morrer
o sonho de que transformar é possível (Paulo Freire).
INTRODUÇÃO
144
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
O texto destaca que as atividades lúdicas não apenas promovem a alegria e a
criatividade, mas também desempenham papel fundamental na formação de habili-
dades cognitivas, sociais e emocionais, contribuindo para uma educação significati-
va nos primeiros anos de vida, pois a exploração do lúdico na Educação Infantil não
só promove um desenvolvimento holístico, mas também oferece uma abordagem
eficaz para estabelecer as bases para o sucesso acadêmico futuro, incluindo o domí-
nio da matemática, disciplina considerada como das mais desafiadoras.
A abordagem metodológica utilizada limita-se a uma revisão de literatura
narrativa que envolveu a coleta, seleção e análise de um conjunto de estudos e
trabalhos acadêmicos relevantes sobre o referido tema.
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M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
atividades que exigiam esforço físico ou mental. Mas a partir da Renascença,
houve um período denominado de “compulsão lúdica”, em que o jogo passa a
ser utilizado também como meio para disseminar princípios de moral, ética e
conhecimentos em história, geografia e outras áreas.
Philippe Ariès discute igualmente, em sua obra, a abordagem dos castigos
na história da infância, explicando como a percepção de maus tratos evoluiu
ao longo do tempo, com as atitudes em relação à disciplina imposta às crianças
mudando significativamente em diferentes períodos históricos.
Com isso, vê-se que a história da infância está ligada à história das práti-
cas disciplinares, percebendo-se como as mudanças nas abordagens em relação
a castigos e disciplina refletem a evolução mais ampla da compreensão da infân-
cia ao longo do tempo.
A abordagem mais benevolente a partir do século XVII foi influenciada
pelo pensamento humanista e pela sensibilidade crescente em relação à infância,
o que levou a uma diminuição gradual da violência física nos métodos discipli-
nares, fortalecendo a ideia de que as crianças são seres mais vulneráveis e neces-
sitados de cuidados e orientação específicos.
3 “Gargantua e Pantagruel” é uma série de romances escrita por François Rabelais no sécu-
lo XVI. Essas obras contêm histórias e anedotas que exploram temas diversos, incluindo a
educação. O lúdico não é o foco central desses romances, mas algumas passagens sugerem
a importância do elemento lúdico na educação. Pantagruel (c. 1532); Gargântua (1534); O
terceiro livro de Pantagruel (1546); O quarto livro de Pantagruel (1552); O quinto livro de
Pantagruel (c. 1564). As obras também apresentam uma visão crítica sobre os métodos de
ensino tradicionais e a ênfase excessiva na memorização e na instrução formal. Rabelais
defende a ideia de que a educação deve ser adaptada às necessidades individuais das crian-
ças e que o lúdico pode ser uma ferramenta valiosa nesse processo (Kishimoto, 2002).
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
como uma maneira fundamental pela qual as crianças interagem com o mundo
ao seu redor e constroem conhecimento. Ele acreditava que o lúdico era a forma
pela qual as crianças expressavam sua criatividade, curiosidade e imaginação.
Em suas palavras, “O brincar é a atividade mais elevada da criança, pois é a mais
próxima do processo criativo em si mesmo” (Kishimoto, 2002).
Fröbel defendia que o lúdico não era apenas uma atividade secundária,
mas o próprio cerne da educação infantil. Sua abordagem influenciou a pedago-
gia moderna, ressaltando a importância de proporcionar às crianças um ambien-
te onde o lúdico fosse valorizado e integrado ao processo educativo.
No século XX, o jogo e as atividades lúdicas passaram a desempenhar
papel crucial na educação, contribuindo de diversas formas para o desenvolvi-
mento integral das crianças. A importância do jogo e do lúdico na Educação
Infantil é vasta, pois abrange aspectos cognitivos, emocionais, sociais e físicos.
O advento da modernidade tornou mais nítidos tais processos, com co-
branças maiores da sociedade no que diz respeito à educação formal, como po-
demos ver a seguir:
Se, na Idade Média, a criança ingressava no “mundo dos adultos” para ali
fazer a sua aprendizagem, com a modernidade, a defesa da necessidade
de uma educação fundada nas instituições familiar e escolar fez dessas
instituições o novo “mundo dos adultos” pelo qual elas deveriam passar.
Com isso, a transformação da criança em aluno seria, ao mesmo tempo, a
definição do aluno como a criança, nesse processo em que o critério etário
se torna ordenador da composição e da seriação do ensino nas classes
escolares (Kuhlmann Jr. e Fernandes, 2004).
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
partir de um paralelo que não apresentava evidências de ser real, tornando-o um
conceito pouco objetivo e, portanto, questionável.
No século XX, a visão sobre o jogo e sua importância ganha outros con-
tornos. Édouard Claparède (1873-1940), neurologista e psicólogo suíço que se
destacou pelos seus estudos nas áreas da psicologia infantil, da pedagogia e da
formação da memória, procurou conceituar cientificamente a brincadeira, con-
tando com influências da biologia e do Romantismo. Para Claparède, o jogo
exerce papel importante como motor do autodesenvolvimento e, por conseguin-
te, é um método natural de educação e desenvolvimento.
Claparède via o jogo como uma atividade que permite às crianças explo-
rar o mundo, testar hipóteses, resolver problemas e adquirir novas habilidades.
Ele acreditava que o lúdico era um meio pelo qual as crianças podiam experi-
mentar, praticar e internalizar conhecimentos de maneira ativa e envolvente.
Conforme Kishimoto (2002), Lev Semionovitch Vigotski (1896-1934),
psicólogo bielorrusso, autor da psicologia sócio-histórica, fez contribuições sig-
nificativas para a compreensão da importância do lúdico no desenvolvimento
infantil e na aprendizagem. Ele enfatizava como o brincar desempenha um pa-
pel crucial na construção do conhecimento, nas interações sociais e na formação
de habilidades cognitivas.
Vygotsky tem como base de compreensão do jogo infantil a filosofia mar-
xista-leninista, que preconiza que a construção dos processos psicológicos se dá
a partir do contexto sociocultural. Assim, são os processos histórico-sociais que
alteram não apenas a vida social, mas também o pensamento humano e, por
consequência, as brincadeiras e a conduta, predominante a partir dos 3 anos,
no jogo de desempenho de papeis, que resulta de influências sociais recebidas
previamente.
Kishimoto (2002) explica também que Jean Piaget (1896-1980) defende
que é por meio da brincadeira e da imitação que ocorre o desenvolvimento natu-
ral. Mesmo não se debruçando sobre o desenvolvimento de um conceito de brin-
cadeira, Piaget dá destaque ao aspecto da imitação, que participa de processos
de acomodação, na forma de ação assimiladora para a expressão da conduta,
que tem características metafóricas, espontâneas e prazerosas. Para Piaget, a
brincadeira, enquanto processo assimilativo, participa do conteúdo da inteligên-
cia, assim como da aprendizagem.
Conforme Kishimoto, Jerome Seymour Bruner (1915- 2016), psicólogo
e educador americano, também abordou a importância do lúdico na educação
infantil. Ele enfatizava como o brincar desempenha um papel crucial no apren-
dizado, na construção de conhecimento e no desenvolvimento das habilidades
cognitivas das crianças.
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Bruner acreditava que o lúdico não era apenas uma atividade recreativa,
mas sim uma forma de aprendizado ativo e envolvente. Ele defendia que as
crianças aprendem melhor quando estão ativamente envolvidas em atividades
que as desafiam e as motivam. O brincar proporciona um ambiente onde as
crianças podem explorar, experimentar, questionar e descobrir por si mesmas.
Para Pierre Bourdieu (1930-2002), sociólogo francês que influenciou de
maneira significativa o campo da educação, por meio de suas teorias e análises
críticas sobre as estruturas sociais, desigualdades e poder na sociedade, espe-
cialmente no que diz respeito à reprodução das desigualdades sociais através
do sistema educacional, o jogo serviria como parâmetro para entender rela-
ções sociais.
George Herbert Mead (1863-1931), filósofo e psicólogo social america-
no, não tratou explicitamente da importância do lúdico na educação em suas
obras. No entanto, suas ideias sobre o desenvolvimento social e a formação
da identidade têm implicações que podem ser relacionadas à valorização do
lúdico na educação.
A educadora brasileira Jussara Hoffmann (2001) fala sobre a impor-
tância do lúdico na educação em várias de suas obras. Em “Avaliar para
Promover: As Setas do Caminho” Hoffmann discute diferentes abordagens
de avaliação educacional, incluindo a avaliação formativa e a importância de
tornar o processo de avaliação mais significativo para os alunos. Ela enfatiza
como o lúdico pode ser um elemento fundamental para promover uma ava-
liação mais autêntica e construtiva, permitindo que os alunos se envolvam
ativamente no processo de aprendizado.
Hoffmann ressalta que o lúdico pode promover a criatividade, a curiosi-
dade e a autonomia. Ao se envolver em atividades lúdicas, as crianças são incen-
tivadas a tomar iniciativa, a fazer escolhas e a expressar suas ideias de maneira
livre, o que contribui para um aprendizado mais autêntico e profundo. Para ela,
o lúdico pode ser utilizado como ferramenta valiosa e autêntica, porque, por
meio de jogos, projetos e atividades práticas, os educadores podem observar
e compreender melhor o processo de aprendizagem, capturando insights sobre
habilidades, interesses e necessidades das crianças.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
152
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
sociais. Em meio a esse cenário, a aprendizagem de disciplinas como a matemá-
tica ganha destaque especial.
O valor do lúdico no aprendizado da matemática se manifesta como uma
ponte entre a teoria e a prática. Ao oferecer às crianças a oportunidade de ex-
plorar conceitos matemáticos de maneira concreta e envolvente, a brincadei-
ra transforma a abstração em algo tangível. Jogos, quebra-cabeças e atividades
lúdicas não apenas tornam os princípios matemáticos acessíveis, mas também
estimulam o pensamento crítico, a resolução de problemas e a compreensão das
relações numéricas.
Assim como a brincadeira infantil em geral, o lúdico na aprendizagem da
matemática transcende a mera superficialidade. Ele se torna uma ferramenta po-
derosa para fomentar a curiosidade, a criatividade e a motivação intrínseca das
crianças em relação a uma disciplina frequentemente considerada desafiadora.
Ao considerar o caráter metafórico que a brincadeira muitas vezes assume, é
possível enxergar como a ludicidade ilumina o caminho para uma compreensão
mais profunda e duradoura das complexidades da matemática.
A exploração da brincadeira infantil e do lúdico como instrumento de
aprendizagem nos lembra que há riquezas inexploradas nos vínculos entre a
diversão e o conhecimento. Ao compreender e cultivar essa conexão, abrimos
possibilidades notáveis para moldar a educação de maneira mais eficaz e holís-
tica, preparando as gerações futuras para um aprendizado que transcende a sala
de aula e se estende para a vida.
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REVISANDO CONCEITOS E TECENDO REFLEXÕES
SOBRE A IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO
BILÍNGUE NO BRASIL
Horácio Lessa Ramalho1
Dirce Maria da Silva2
A pessoa que conhece apenas uma língua, não a conhece de fato (Goethe).
1 Graduado em Ciência Política com Ênfase em Políticas Públicas, com Master Business
Administration pela Fundação Getúlio Vargas em Relações Governamentais. E-mail: ho-
[email protected].
2 Mestre em Direitos Humanos, Cidadania e Estudos Sobre a Violência. Graduada em Letras
Português/Inglês e suas respectivas Literaturas. O curso de Letras, primeira graduação, ofe-
receu-me compreensão da linguagem e das narrativas humanas, enquanto o Mestrado, com
foco em Políticas Públicas, ajudou-me a melhor compreender o contexto social e político
em que as questões de cidadania ocorrem, fazendo-me melhor entender como cidadania,
direitos e linguagem estão intrinsecamente relacionadas e imbricadas. Membro (Técnico)
do Grupo de Pesquisa Literatura e Espiritualidade (GPLE), vinculado ao Departamento
de Teoria Literária e Literaturas (POSlit / TEL) da Universidade de Brasília. Membro Fun-
dadora do Instituto de Pesquisa, Desenvolvimento e Apoio a Neurodivergentes (IPDAN)
(Instagram: ipdan.org.br). Atualmente trabalha como professora da Educação Básica na Se-
cretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. E-mail: [email protected].
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INTRODUÇÃO
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
A natureza, sozinha, não consegue capturar nem preservar a singular be-
leza de uma rosa específica em um momento específico, sendo impotente
perante o declínio biológico e a inevitável morte das rosas e das mulheres.
Ela apenas pode trazer o verão quando a estação o permite. Em contraste,
a cultura transcende a temporalidade biológica, sendo também um “pre-
sente”, mas com características distintas. Mediante um processo tecnoló-
gico sofisticado elaborado para extrair a essência das rosas, a cultura induz
a natureza a revelar suas capacidades “essenciais” (Kramsch, 2009, p. 4).
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
visão visibilizadas. Pode contribuir com a empregabilidade e com a colo-
cação profissional ou acadêmica em outros países. O bilinguismo é, com-
provadamente, uma das habilidades essenciais aos cidadãos do século 21.
E desvantagens?
Não há desvantagens intrínsecas à educação bilíngue, da mesma forma
como não há desvantagens sobre o ensino de matemática, ou ciências.
Mas pode haver em relação à forma como essa educação for feita, caso os
professores não sejam bem formados, o currículo não seja bem desenvol-
vido e a avaliação não seja coerente e integrada, da mesma forma como
pode ocorrer com uma educação monolíngue. O desafio, na verdade, é a
qualidade do ensino (Revista Educação, Entrevista publicada em 22 de
agosto de 2018; Grifos Nossos).
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
- Estímulo ao uso de metodologias e tecnologias contemporâneas;
- Eventual uso de certificação de proficiência;
- Foco nos primeiros anos da educação básica;
- Oferta da língua adicional a todos os estudantes das instituições que de-
senvolvem o programa;
- Construção de referenciais e guias de boas práticas;
- Envolvimento de professores, pais, estudantes e especialistas na arquite-
tura dos projetos educacionais;
- Leitura, escrita, audição e fala, introduzidas desde o início do
programa;
- Participação de especialistas no assessoramento das escolas (Parecer
CNE/CEB nº: 2/2020; Grifos Nossos).
[...]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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165
REVISITANDO CONCEITOS: SOBRE A EVOLUÇÃO
HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS
Larissa Argenta Ferreira de Melo1
Dirce Maria da Silva2
As marcas das lutas do passado contribuem para a construção do presente e do futuro que se quer
(As autoras).
INTRODUÇÃO
166
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
O conceito de “Direitos Humanos” sofreu alterações terminológicas e in-
terpretativas ao longo da evolução histórica, em especial pelo fato de configurar-
-se em normas abstratas, que carregam em seu bojo o conceito histórico-social
do que significam “direitos” e “humanos”.
A terminologia A terminologia enfrenta dificuldades, principalmente por-
que as definições estão ligada à teoria usada para limitar a compreensão sobre
o assunto.
Verifica-se, assim, a existência de variadas correntes buscando realizar a
tarefa, cada qual utilizando fatores delimitadores do rol de situações que enqua-
drariam no conceito de “Direitos Humanos”, não raro utilizando nomenclatu-
ras distintas para as definições e conceituações.
O presente artigo objetiva apresentar breve reflexão sobre esse processo
evolutivo, que tem como marco de maior relevância, o advento da Declaração
Universal dos Direitos Humanos (DUDH), e o fortalecimento da Organização
das Nações Unidas (ONU).
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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
ABORDAGEM INICIAL DAS CORRENTES EVOLUTIVO-
FORMATIVAS NOS DIREITOS HUMANOS
Sobre os Jusnaturalistas
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M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)
Sobre os Positivistas
Carvalho Ramos (2016, p. 57), ao citar Dworkin, nos diz que “os direitos
morais consistem no conjunto de direitos subjetivos originados diretamente de va-
lores (contidos em princípios) independentemente da existência de regras postas”.
Esta “moralidade” não necessariamente seria positivada, mas explícita
por princípios. Seriam, portanto, uma reflexão acerca de diretrizes, levando-se
em consideração os valores vigentes em determinado contexto histórico, adap-
tando-se a aplicação (pela via jurisdicional) às necessidades de cada povo.
Ressalta-se que o fato de se permitir aos Estados adaptarem os princí-
pios e normas internacionais de Direitos Humanos ao seu contexto particular
170
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
não supõe a possibilidade de qualquer tipo de interpretação. Ao contrário, serve
como base norteadora da qual não se poderá afastar, em nenhum aspecto, nem
mesmo sob alegação efetivação da soberania interna.
Carvalho Ramos (2016, p. 59), adepto da base moral para definição dos
direitos humanos, afirma que “a fundamentação de direitos humanos como di-
reitos morais busca a conciliação entre os Direitos Humanos entendidos como
exigências éticas ou valores e os direitos humanos entendidos como direitos po-
sitivados” A partir deste entendimento, fundamenta a existência de sua Teoria
Internacional dos Direitos Humanos.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
por determinados povos que não se manifestam no âmbito internacional quanto
à violação de seus direitos, mas que os têm representados por Estado diverso
daquele em que o fato ocorre. Tal comportamento é reflexo do anseio mundial
de busca por paz social.
A proteção aos Direitos Humanos passa, então, a ser entendida como res-
ponsabilidade de todos, que se comprometem a deles zelar no âmbito do ordena-
mento interno de seus países, mas também em contexto mundial, impedindo ou
denunciando atos que os violem. Tal situação não se opõe à manutenção das so-
beranias nacionais. Presta-se mais a uma espécie de regulação que impeça que o
exercício do poder soberano ocorra às custas do sacrifício dos Direitos Humanos
do povo a ele submetido, como ocorreu, por exemplo, no caso da escravidão.
“Os Direitos Humanos nascem como direitos naturais universais, desen-
volvem-se como direitos positivos particulares (quando cada Constituição incor-
pora declaração de direitos) para finalmente encontrar a plena realização como
direitos positivos universais” (Bobbio, 2004, p.30), pois,
REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 2004, pág.30.
PERES LUÑO, Antônio. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitui-
cion. Ed. Madrid: Tecnos, 1995, p.48.
RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem
internacional. Ed Saraiva Jur, 2016.
173
EIXO V
A ESTÉTICA DA MEMÓRIA E
DA EXPRESSÃO
UMA BREVE PRELEÇÃO SOBRE O BELO
COMO REPRESENTAÇÃO DO BEM
Dirce Maria da Silva1
Francisco Ronaldo Frazão de Lima2
INTRODUÇÃO
O conceito de belo tem sido explorado ao longo dos séculos por poetas, fi-
lósofos e pensadores de culturas e épocas diversas, com a beleza sendo celebrada
como representação do bem.
No presente texto, uma preleção ensaística sobre o belo na natureza,
aborda-se visões que se relacionam com a ideia do belo e do bem, valendo-se
de leituras de filósofos clássicos, modernos e contemporâneos, como esteio e
inspiração, para apresentar ao final uma sucinta exegese do poema musical
“Só Há o Belo”.
1 Mestre em Direitos Humanos e Estudos Sobre a Violência. Graduada em Letras Portu-
guês/Inglês e suas respectivas Literaturas. O curso de Letras, minha primeira graduação,
ofereceu-me compreensão da linguagem e das narrativas humanas, enquanto o Mestrado
em Direitos Humanos, com foco em políticas públicas, ajudou-me a melhor compreen-
der o contexto social e político em que as questões de cidadania ocorrem. Essa intersec-
ção multidisciplinar mostram-me cada vez mais como áreas diferentes do conhecimento
dialogam, nas diferentes e complexas questões da sociedade contemporânea. Membro
(Técnico) do Grupo de Pesquisa Literatura e Espiritualidade (GPLE), vinculado ao De-
partamento de Teoria Literária e Literaturas (POSlit / TEL) da Universidade de Brasília.
Membro Fundadora do Instituto de Pesquisa, Desenvolvimento e Apoio a Neurodivergen-
tes – IPDAN/DF (Instagram: ipdan.org.br; [email protected])). Atualmente trabalha
como professora da Educação Básica na Secretaria de Estado de Educação do Distrito
Federal. E-mail: [email protected].
2 Pós-doc em Engenharia Elétrica. Professor Adjunto do Departamento de Engenharia Elé-
trica da Universidade de Brasília (Aposentou-se em 1996). Engenheiro Elétrico na área
de Planejamento da Expansão da Rede Elétrica da Companhia Energética de Brasília
(Aposentou-se em 2014). Psicólogo Clínico (UNICEUB/2014), com TCC sobre o tema
Psicoterapia e Espiritualidade, segundo a Gestalt Terapia. CRP-18659. Pós-graduado em
Psicologia Pré-perinatal. Helper in Pathwork. Formação em andamento na área da Saúde
em Biodecodáge-Decodificação biológica de doenças pelo Instituto Cintia Chiarelli/PR.
E-mail: [email protected].
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M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Abordagens diferentes que se locupletam. Ambos os filósofos reconhe-
cem a importância do conceito de Beleza para a experiência humana.
Na transição entre a Antiguidade Tardia e a Idade Média, encontram-se
Agostinho e Aquino. Ambos os filósofos viam a beleza como algo significativo
em termos espirituais e teológicos. Mas enquanto Santo Agostinho enfatizava
a beleza como uma via para a conexão com Deus, Santo Tomás de Aquino a
tratava como uma qualidade intrínseca às coisas e à criação divina.
Santo Agostinho (354-430) explorou a ideia de beleza em várias de suas
obras, sobretudo em “Confissões”. Agostinho argumenta que a beleza era uma
qualidade intrínseca de Deus e que toda beleza terrena era apenas um reflexo da
beleza divina. Valendo-se mais detidamente da filosofia de Platão, ele associava
a busca da beleza à verdade e a Deus. Para ele, a beleza era uma forma de nos
aproximarmos mais de Deus e de encontrar significado espiritual na criação.
Por sua vez, Santo Tomás de Aquino (1225-1274) também discutiu o
conceito de beleza em suas obras, principalmente na “Summa Theologiae.” Ele
definiu a beleza como uma das três propriedades da forma, juntamente com a
integridade e a proporção. Concordando com Aristóteles, para Aquino a beleza
estava relacionada à harmonia e à proporção, com algo sendo considerado belo
quando suas partes estavam em equilíbrio e harmonia.
Mais recentemente, Edmund Burke, orador irlandês do século XVIII,
em sua obra “Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do
Sublime e do Belo” (1757), argumenta que a beleza na literatura é uma experiência
subjetiva e pessoal, relacionando-a a sentimentos de prazer e satisfação estética.
Burke distingue grandezas como sublime/grandeza, terror/poder, belo/
suavidade, simetria/harmonia, significado/transcendência, argumentando que
tais sentimentos estéticos são inerentes à natureza humana e são evocados por
experiências diversificadas. Suas análises dos conceitos de beleza e sublime e
como eles se relacionam à experiência humana, influenciaram sobremaneira a
teoria estética.
Já no século XX, o pensador russo Roman Jakobson propôs a teoria das
Funções da Linguagem, que descreve diferentes aspectos da comunicação lin-
guística. Uma dessas funções é a “poética,” na qual a linguagem é usada de
maneira especial para chamar a atenção para a própria forma e expressividade,
o que pode ser considerado forma de buscar a beleza, ao destacar suas caracte-
rísticas estilísticas.
Mikhail Bakhtin, crítico literário russo, explica-nos que a beleza na li-
teratura está vinculada à verossimilhança, isto é, à capacidade de uma obra de
arte criar um mundo fictício que pareça real e autêntico para o leitor. Segundo
Bakhtin, a beleza em uma obra literária está intrinsecamente ligada à capacidade
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dessa obra de criar um mundo fictício que parece verossímil a quem o leia. Ele
argumenta que a literatura ganha seu poder estético quando consegue refletir a
vida de maneira convincente, fazendo com que os personagens, diálogos e cená-
rios pareçam verdadeiros e palpáveis.
Roland Barthes argumenta que a beleza na literatura pode ser subversiva e
desafiadora, isto é, o que é percebido como belo pode ser usado para questionar
normas e valores sociais, ou seja, Barthes acredita que o que é percebido como
belo em uma obra literária pode ser usado de maneira desafiadora, muitas vezes
desconstruindo as expectativas do leitor e desafiando a ordem estabelecida. Para
Barthe, a beleza não é estática, mas dinâmica, capaz de provocar reflexão e esti-
mular a mudança na percepção das convenções sociais, tornando-se assim força
subversiva e revolucionária na literatura.
John Keats, “o último romântico”, demonstra como a beleza está asso-
ciada à pureza em suas “Odes,” que expressam, em forma de poesia, beleza e
verdade. Para Keats, a beleza não é qualidade superficial, mas forma elevada de
expressão artística.
As “Odes” de Keats “encapsulam a exploração da beleza como cami-
nho em direção à transcendência, em que a poesia se torna veículo para a bus-
ca do sublime e da compreensão mais profunda do mundo”. Em “Ode a um
Rouxinol”, ele nos fala no canto V:
Não posso ver as flores a meus pés se abrindo,
Nem o suave olor que desce das ramagens,
Mas no escuro odoroso eu sinto defluindo
Cada aroma que incensa as árvores selvagens,
A impregnar a grama e o bosque verde-gaio,
O alvo espinheiro e a madressilva dos pastores,
Violetas a viver sua breve estação;
E a princesa de maio, A rosa-almíscar orvalhada de licores
Ao múrmuro zumbir das moscas do verão
(Keats, 1819; Trad. de Augusto Campos, 1987, p. 130-149).
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
SOBRE A FILOSOFIA DO BEM
“A Ilusão do Mal” é uma ideia que sugere que o mal, em sua essência,
como uma distorção da realidade. Essa perspectiva é explorada em diversas tra-
dições filosóficas, religiosas e espirituais e tem implicações na forma como en-
frentamos desafios e adversidades.
Uma das maneiras pelas quais essa perspectiva pode nos ajudar a superar
desafios e adversidades é promovendo uma visão de que o sofrimento e a nega-
tividade não são inerentes à existência, mas sim produtos de nossas percepções
e apegos. Isso pode levar a uma maior aceitação das dificuldades e a uma abor-
dagem mais tranquila diante das adversidades.
A crença na ilusão do mal também pode encorajar a responsabilidade
pessoal. Se o mal é visto como uma ilusão, isso pode nos motivar a assumir a res-
ponsabilidade por nossas ações e escolhas, reconhecendo que somos capazes de
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
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O BEM COMO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO ESPIRITUAL
Só Há o Belo3
Só há o belo em toda natureza
Lindas flores amarelas e azuis
Folhas verdes que flutuam no espaço
Sob um céu ensolarado, azul de anil
Folhas verdes que flutuam no espaço
Sob um céu ensolarado, azul de anil
Só há o bem em toda natureza
Que com amor nos preenche o coração
Todo mal é irreal, é fruto da ilusão
Só há o bem em toda criação
Todo mal é irreal é fruto da ilusão
Só há o bem em toda criação4
Francisco Frazão, Psicólogo, Helper Passwork/DF
3 O Hinário Guiança Divina de Francisco Ronaldo Frazão de Lima é composto dos hinos:
1. Só há o belo (Valsa); 2. Processo interno (Valsa); 3. Vontade consciente (Marcha); 4.
Aceitar a correção (Marcha); 5. Eu Sou Fonte (Valsa); 6. Flores do meu Jardim (Marcha);
7. Guiança Divina (Marcha e Valsa); 8. Contemplando a Estrela D’alva (Valsa); 9. Emo-
ções (Valsa); e 10. Estar na Mansão de Deus (Marcha).
4 Escrito há mais de uma década, se transformou em um hino, musicado em ritmo de valsa
por Dirce Salomé, cantado nas sessões terapêutico-musicais.
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
MAS, AFINAL, O QUE É O BELO?
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
CAMPOS, Augusto. Vialínguagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1987,
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MLA. Aristóteles. A Política de Aristóteles. Oxford: Clarendon Press, 1905.
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Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa]. Coleção Os Pensadores. São Paulo:
Nova Cultural, 1991.
TAVARES, Hênio. Teoria Literária. Villa Rica Editoras Reunidas Limitada.
Belo Horizonte, Rio de Janeiro, 1991.
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MEMÓRIAS AFETIVAS NA
ARTETERAPIA
Elizabete Adelaide da Silva1
Dirce Maria da Silva2
INTRODUÇÃO
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DESENVOLVIMENTO
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
O mundo infantil remete a um universo de espontaneidade, curiosidade,
brincadeiras, imaginação e lembranças, sendo estas não apenas de coisas
boas ou positivas, mas também de recordações que feriram, que ficam gra-
vados internamente como herança da história individual. Logo, o mundo
que envolve a criança remonta aos fatos reais e simbólicos, que foram sal-
vos na memória afetiva (Pereira, 2008).
Então, a infância pode ser concebida como “um período que contém algo
mágico, em função da capacidade de criação e imaginação dos indivíduos. A
criança interior guarda ainda o potencial de todas as infâncias que ainda perma-
necem no íntimo de cada indivíduo” (Pereira, 2008).
Nesse sentido, através da expressão artística, os indivíduos podem aces-
sar emoções de forma segura e simbólica, permitindo que as experiências
emocionais sejam exploradas mais profundamente, pois o autoconhecimento
proporcionado ao se trabalhar memórias afetivas na Arteterapia nos permite
ter insights profundos.
Por conseguinte, as recordações desempenham um papel de extrema rele-
vância na prática terapêutica, com a ampliação e acesso à autoconsciência, po-
dendo levar a uma melhor compreensão de padrões de comportamento desen-
cadeadores de registros emocionais em áreas que precisam de tratamento e cura.
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Conta uma antiga lenda dos nativos norte-americanos, que um velho índio, ao fazer
uma Busca da Visão no topo de uma montanha, lhe apareceu Iktomi, a Aranha, e co-
municou-se em linguagem sagrada. A Aranha pegou um aro de cipó e começou a tecer
uma teia com cabelo de cavalo e as oferendas recebidas. Enquanto tecia, o espírito da
Aranha falou sobre os ciclos da vida, do nascimento à morte e das boas e más forças que
atuam sobre nós em cada uma dessas fases. Ela dizia:
“Se você trabalhar com forças boas, será guiado na direção certa e entrará em harmonia
com a natureza. Do contrário, irá para direção que causará dor e infortúnios”.
No final a Aranha devolveu ao velho índio o aro de cipó com uma teia no centro, dizendo-lhe:
“No centro está a teia que representa o ciclo da vida. Use-a para ajudar seu povo a alcan-
çar seus objetivos, fazendo bom uso de suas ideias, sonhos e visões. Eles vêm de um lugar
chamado Espírito do Mundo que se ocupa do ar da noite com sonhos bons e ruins. A teia
quando pendurada se move livremente e consegue pegar sonhos, quando eles ainda estão
no ar. Os bons sonhos sabem o caminho e deslizam suavemente pelas penas até alcançar
quem está dormindo. Já os ruins ficam presos no círculo até o nascer do sol, e desapare-
cem com a primeira luz do novo dia”.
Esse círculo é conhecido como “Dream Catcher” (Apanhador de Sonhos). Aqui no Brasil
é chamado de Filtro dos Sonhos ou Coletor de Sonhos. Trata-se de um instrumento de
poder para assegurar bons sonhos para aqueles que dormem debaixo dele, e também para
trazer visões. Geralmente são colocados onde a luz bate pela manhã, em frente à janela.
Os nativos nos ensinam que os sonhos passam pelo furo no centro e os maus sonhos ficam
presos na teia e se dissipam à luz do amanhecer3.
Nesse sentido, em sonhos ou em estados alterados de consciência, o en-
contro de si pode aparecer personificado em figuras das quais emana sabedoria e
superioridade, como deuses e deusas e a figura do Velho Sábio, no caso em tela,
a figura da aranha, sábia tecelã. Pode ainda expressar-se por meio de figuras
quaternárias como o quadrado, a cruz e o próprio número quatro (as quatro
estações do ano, os quatro pontos cardeais), bem como símbolos que exprimem
a totalidade, como o círculo ou a mandala (Hall, 2003, p. 219).
Conforme Chevalier e Gheerbrant (1995), o “círculo mágico” é uma parte
fundamental da mandala, forma geométrica circular utilizada desde tempos ime-
moriais em práticas artísticas, espirituais e terapêuticas. O “círculo mágico”, tam-
bém conhecido como “círculo sagrado” ou “fronteira protetora”, é a linha que de-
limita o espaço interno da mandala. Ele é considerado um espaço especial, seguro
e simbolicamente significativo. É considerado o símbolo da totalidade da mente.
188
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Durante muito tempo a mandala foi usada como expressão artística.
Modernamente passou a ser também bastante utilizada em processos terapêuti-
cos, com a qual se desenvolvem trabalhos de acesso a subjetividades e sentimen-
tos muitas vezes adormecidos.
Conforme Jung (2000), “a mandala pode ser compreendida como sím-
bolo que expressa o si mesmo, o arquétipo da totalidade e o processo de individuação,
ou seja, uma representação simbólica da psique”. De acordo com Jung, existem
vários tipos de mandalas, desde sua forma mais simples, como círculo, ou com
seus desdobramentos em cruz, flor ou quaternidade.
Nesse sentido, a mandala é considerada uma técnica da Arteterapia de
abordagem junguiana, que possibilita a estimulação de funções psíquicas menos
desenvolvidas a iluminar aspectos sombrios da psique. Isso ocorre porque ela
permite o distanciamento emocional, trabalha a racionalidade, além de auxiliar
na organização de ideias.
Na perspectiva junguiana, a mandala apresenta dupla eficácia: a de pro-
mover a ordem psíquica ou restabelecê-la. Mas as mandalas não são produtos de
sonhos e sim resultados de uma imaginação ativa. Ao desenhar uma mandala,
o sujeito entra em contato com seu inconsciente e, através desse contato, surgem
sentimentos que serão expressos. Essas informações irão ajudar na construção
do seu self.
É nesse contexto que Jung verifica que o centro primeiramente pertence
à consciência, depois, ao chamado inconsciente pessoal, e, finalmente, a um
segmento de tamanho indefinido, chamado inconsciente coletivo, cujos arquétipos
são comuns a toda humanidade (Dibo, 2006, p. 66-73).
Para fecharmos a ideia que precisamos da importância do símbolo da
mandala, Neihardt (2004) nos explica:
Tudo o que o poder do mundo faz, é feito num círculo. O céu é redondo e
eu ouvi dizer que a Terra é redonda como uma bola, e as estrelas também.
O vento em seu maior poder, rodopia. Os pássaros fazem seus ninhos em
círculos. O sol se levanta e se põe novamente em círculo. A lua faz a mes-
ma coisa, e ambos são redondos. Até as estações formam um grande cír-
culo em suas mudanças, e sempre voltam novamente para onde estavam.
A vida de um homem é um círculo, da infância até a velhice, o mesmo
acontecendo onde o poder se movimenta” (Neihardt, 1832/2004).
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4 Estudiosa, psicoterapeuta analítica, alemã, discípula de Carl Gustav Jung, conhecida por
suas análises de contos de fadas e mitos sob uma perspectiva psicológica e simbólica. “A
Fiandeira” foi publicado em seu livro “Shadow and Evil in Fairy Tales” (Sombra e Mal
em Contos de Fadas), em 1974.
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Conforme Jung (2000) nos explica, “o inconsciente é criativo, guarda emo-
ções que não conseguem ter acesso à consciência e precisam ser liberadas”. Nisso
entra a arte com sua essência lúdica e saudável, a nos ajudar a descobrir que temos
um banco de dados com informações do nosso passado que, somadas a ideias do
presente, formarão pensamentos novos, criativos, reveladores e curadores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS
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sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 9. ed. - Rio de
Janeiro, José Olympio, 1995.
CIORNAI, Selma. Arte-terapia: o resgate da criatividade na vida. In: M. M.
M. J Carvalho (Org.), A arte cura? Recursos artísticos em psicoterapia (pp. 59-
63). Campinas, SP: Editorial Psy II, 1995.
DIBO, Monalisa. Mandala: um estudo na obra de C. G. Jung. In: GREEN, S.
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Revista Último Andar - PUC-SP (15), 109-120, dez., 2006.
FRAISSE, Anne. Apresentação do Círculo Psico-Energético. Manuel d’ En-
seignement d’ Ecole Française d’ Analyse Psycho-Organique - Tome 3, 2ª ed.
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FRANZ, Marie-Louise von. A interpretação dos contos de fada. [Tradução
de Maria Elci Spaccaquerche Barbosa; revisão Ivo Stornioio]. (Coleção amor e
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FREUD, Sigmund. (1911-1913) - Vol. 10 - Observações Psicanalíticas Sobre
Um Caso de Paranoia. Categorias: Freud / Obras de Freud Traduzidas Direto
do Alemão. Tradução: Paulo César de Souza. Editora: Companhia das Letras,
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lo: Cultrix, 2003.
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo / CG. Jung; [tra-
dução Maria Luíza Appy, Dora Mariana R. Ferreira da Silva]. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2000.
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Jung. Vol. XIII. Trad. Dora M. R. F. da Silva & Maria L. Appy. Petrópolis:
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NEIHARDT (1832). O Uso de Mandalas na Orientação Profissional. In:
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
SOARES, et all. ORMEZZANO (Org.). Questões de Arteterapia. PF/RS:
UPF, 2004.
PAIN, Sara. Teoria e técnica da arte-terapia: a compreensão do sujeito. /
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Artes Médicas, 1996.
PEREIRA, Maria da Glória Garcez. O encontro com a criança interior: pas-
saporte para a individuação. Rio de Janeiro: ISEPE, 2008.
PHILIPPINI, Ângela. Universo Junguiano em Arteterapia. In: Revista Ima-
gens da Transformação, Vol. II, Rio de Janeiro, 1995.
PHILIPPINI, Ângela. Linguagens e Materiais Expressivos em Arteterapia:
uso, indicações e Propriedades. Rio de Janeiro: Wak, 2009.
195
VERSOS E MEMÓRIAS: A HARMONIA DOS DIAS
COM O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Washington Dourado1
Dirce Maria da Silva2
INTRODUÇÃO
196
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
poesia como instrumento de conscientização e espiritualização, Washington
Dourado desenvolve, com leveza e profundidade, os meandros mais sublimes da
rima, como arte das vivências em suas multiplicidades.
Nesse contexto, o presente texto explora a sensibilidade das palavras por
meio de uma seleção diversificada de poemas, cada um com sua própria voz e
perspectiva. Da celebração do amor à contemplação das questões existenciais,
da beleza das paisagens naturais à crítica social, esses poemas constituem um
rico mosaico de experiências poéticas.
Nesta aventura que empreenderemos, adentraremos em um conjunto de
títulos inspiradores, cada qual retratando um vislumbre do universo íntimo do
poeta. Esses títulos nos convidam a ponderar sobre nosso próprio vínculo com
as palavras e a arte poética, nos instigando a explorar as profundezas de nossa
conexão com a linguagem e a poesia.
1
A IDADE E SUAS POSSIBILIDADES
A idade não é limitação,
quando o amor tudo determina;
Ela atinge os píncaros da mais alta dimensão,
sem se esquecer da humildade,
pérola da verdade, rara e fina...
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M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)
Esta poesia é uma construção daquilo que se refere à idade, seus múlti-
plos aspectos e possibilidades. Ela é destinada a um público de todas as idades,
mormente aqueles da maturidade, da vivência e os aspectos diversificados de
consciência; especifica que a idade não é uma limitação, mas uma maneira úni-
ca e possível de se realizar na vida, compreender as suas nuances, aproveitando
as chances, que muitas vezes, não realizadas, são perdidas.
Ela constrói um pensamento de que o amor é o que tudo determina, que
abre possibilidades no andar pelo caminho, pois com o amor, jamais se estará
sozinho.
Destaca, também, que a idade é capaz de alcançar as mais altas dimen-
sões, seja na capacidade de sonhar, pensar, criar ou algo fazer, no sentido de que
não encontra limites na sua máxima expressão de acontecer e se fazer brilhar,
em todo o viver.
Menciona também, o sentido de que, quando a idade é bem vivida, me-
lhor e mais interessante se torna os aspectos da vida. E quando bem sorvida,
serve como um cálice substancial, colorindo a vida nos máximos conceitos de
uma possibilidade transcendental.
Com isso, pode-se contemplar o farol irradiante de justiça, força e bem
querer, despertando um fulgor infinito, todo invicto, refletindo nas característi-
cas mais importantes e interessantes do ser.
O seu sentido de positividade pode levar o leitor a absorver as ricas essên-
cias de um jardim, com as suavidades sublimes, cujo frescor é sempre presente
e sem fim.
Coloca-se uma condicionante, na quarta estrofe, no sentido de que, quan-
do ela é bem vivida, abrem-se caminhos para uma magnífica dimensão, poden-
do amar, cantar na avenida, como um buquê florescente, que abarca o coração.
Enfim, a poesia traz um sentido de superação dos momentos de lutas e
transformação, dizendo que ela pode ser iluminada, como uma veste modifica-
da, adquirindo em Deus, novas formas de espiritualização.
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
2
A INSPIRAÇÃO É A LÂMPADA DO CORAÇÃO
A poesia é Lâmpada para o Coração,
ante a efervescência pensante do mundo.
É um aconchego de calor e iluminação,
que traz suavização ao ser, com ares fecundos...
Esta é uma temática poética das mais prediletas do autor, pois abor-
da um assunto, uma data muito querida e propalada: O Dia das Mães, que
envolve encanto, descrição e lembranças infinitas deixadas ao longo da
caminhada.
Um dos dias mais comemorados, o Dia das Mães sempre despertou no
autor, ardente paixão, tanto pela sua genitora, Edelzuita de Castro Dourado,
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
4
O ALFA E O ÔMEGA
Cristo é o Alfa confirmadíssimo,
A primeira posição em toda corrida!
Na vanguarda é o Deus Poderosíssimo,
Capaz de solucionar tudo na vida!
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Sendo o Alfa, em tudo Ele é o ponto inicial, e o pensamento rico, triunfa-
dor, pois transformou as sementes do bem no que era mal, levando-nos além, ao
seu reino misterioso de luz e efusivo amor.
Quando o autor destaca ser Ele o próprio Alfa encarnado, que nos deu
guarida, fé e retidão, foi para que se tivesse um viver pleno e iluminado, com a
pérola maior, brilhando no íntimo do coração.
Adentrando na esfera onírica, traduz-se que de tudo Ele é o principiador,
ao trazer a meiguice de um reto sonhar e com a magnitude universal do amor,
deu ao homem a capacidade de suas obras, também imortalizar.
Ao ser chamado de vanguardista, sua palavra reverberou no infinito, dan-
do o grito para o homem despertar e com revelação deu-nos o amor irrestrito,
vida abundante para uma alma eternamente consolar.
Conhecido como o Ômega, Ele também pode ser a última palavra para
ressuscitar o ser em sua imensa solidão e com voz suave vem o chamar, para
viver a dinâmica alvissareira das magníficas transformações.
Também pode nomeá-lo como a última canção do viver, para uma vida
inteira imaginar; pois pondo a paixão no interior do ser, deu-nos elasticidade e
vivacidade para a graça sublime, nele encontrar.
Ao expressar que Ele é o Ômega, o ultimato da revelação, da canção
maior que o ser surpreende, dá a entender que traz luz ao homem com sua trans-
formação e o amor maior que a tudo transcende.
Como Ômega preferidíssimo, Ele é a finalidade inteira do realizar, dos
princípios maiores que a humanidade criou, e com inventividade incrível do
potencializar, pôs no íntimo a perenidade solícita do amor.
Com uma abordagem pedagógica, ao explicar ser Cristo o fim do próprio
renascer, fez brotar as possibilidades imensas da vida, e com brasas vivas, o
nosso íntimo veio reacender, iluminando e vibrando a parte mais nobre do ser.
Da mesma forma, sendo o Ômega, Ele é o ultimato para viver um cha-
mado de artes, alegrias e poesias propiciadoras do amor, da gratidão de ser um
imediato, uma revelação para um mundo produtor de descobertas para tornar
feliz, numa magnífica ação, a população.
Denominando-o como o Ômega da própria existência, nos garantiu a
excelência do modo de viver, pois abrindo os portais da magnífica excelência,
deu-nos a oportunidade de a imortalidade, experimentar e viver.
Ao expressar que Ele propiciou o último chamado para adentrarmos na
escalada da amplidão, é nesse campo onde se vê o infinito estrelado, de anjos e
legiões da sua própria criação.
Quando o autor traduz ser Ele, desde o princípio o Verbo realizador, de
coisas notáveis para inundar a existência, é como se desse a vida formas mil, dar
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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)
o amor, para que o homem, produzisse o bem no altar da sua própria consciência.
E com a capacidade de solucionar tudo na vida, Ele traria o princípio do
reino iluminado, nos ofertando o achado da divina revelação, e pondo no ínti-
mo, um excelente resultado de vida plena, excelente realização.
5
ANJO DO ENCONTRO
Quando está no íntimo - solidão,
Pensando no que fazer
Ou mesmo a quem procurar,
Um anjo esperto envia um toque ao seu coração,
Um alento coragem,
Secreta linguagem,
Ondas dialéticas do si encontrar...
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
era perdido, dá-nos a possibilidade de encontrar o tão almejado achado.
E assim ele revela-se sem se perceber, nos mais profundo dos nossos gemi-
dos, e com um toque amigo, traz o alvorecer dos sonhos possíveis, ora esqueci-
dos. E com uma aceno magnânimo de um amigo, traz a alvorada da mais linda
canção, pois se abrindo ao próprio abrigo, dá-nos os sonhos de esperança de
revelação. Assim floresce um universo de luz, com a capacidade veloz de tudo
conduzir, leva-nos às portas do arco íris azuis, rumo à capacidade infinita do
bem universal reproduzir.
O anjo traz a essência da vida, com a reverberação da própria noção, pois
traz no íntimo uma inédita saída e para o ser, o princípio da criação. Este anjo
revela-se na intimidade, das procuras infinitas que o homem retém, e com a lin-
guagem secreta de inventividade, leva-nos ao seio mais profundo do além. Um
alento da coragem é produzida, com vida infinita do realizar, e em ondas dialé-
ticas produz a vida, a canção da estética, do perfeito criar. E quando se pensa
que tudo não há mais jeito, e com modo perfeito, ele vem com o toque realizador
e revela o tesouro em nosso leito, com a capacidade irrestrita do poder criador.
Dessa forma, ele se revela sem se perceber, no mais profundo da angústia,
na amplidão e com toques suaves ressuscita no ser, a capacidade amiga como
o anjo da revelação. E assim ele vem nos tecer sonhos e guaridas, para a vida
se transformar, e com capacidades infinitas que renova o ser, dá-nos as bênçãos
irrestritas do infinito realizar.
Completando a sequência, o anjo floresce o universo de luz, labirintos ve-
lozes que chegam ao alvorecer, e as capacidades infinitas, ele nos conduz, dando
graça que perpassa e revoluciona o ser. Dessa forma, ele floresce um universo
inteiro de luz, com caminhos abertos, velozes da amplidão, e trazendo a essência
da vida que nos conduz, alcançamos o tesouro da vida, da própria realização.
6
A MAIS BELA ROSA
Andando por um belo jardim,
encontrei flores lindas de se admirar;
elas exalavam frescor de um perfume afim,
que fazem a essência do amor despertar...
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M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)
Essa poesia revela a grandiosidade do ser, que representa a mais bela flor
existente no íntimo do jardim, pois com adubos misteriosos faz renascer pre-
ciosidades imensas que parece não ter fim. É um chamariz que pode ser encon-
trado, nos caminhos abertos da procura e da solidão e no jardim encantado, se
produz a beleza, o intimo da nobreza, que habita no coração.
Continua na primeira estrofe, dizendo que, andando por este lindo jar-
dim, a alma livre, em toda sua manifestação se pode encontrar, com a beleza
vista que não tem fim, aos tesouros mais recônditos da beleza e do humano
imaginar. E ali se encontra a maior deferência, de encontrar uma flor, que é o es-
plendor da amplidão, a vida abundante em plena reverência, capaz de iluminar
um tão nobre coração.
Analisando a segunda estrofe, vê-se o encontro dessa essência, que vem
ao ser como a potencialidade de iluminar o coração, em todo seu esplendor
e com as capacidades divinas do bem realizar, traz a noção e os conceitos
idealizados pelo imenso amor. E assim, quando o poeta pensa em trazer pra
você, a rosa mais linda do universo do si encantar, revela a beleza magnânima
de todo alvorecer, que habita no íntimo da atividade abstrata e real de amar.
Mas ao se perceber essa grandiosidade, pergunta-se para que outra revelação,
se no íntimo do ser mora a imortalidade, o símbolo infinito do amor e da
transformação?
Com a última estrofe, o autor expressa que a rosa que há em você, é uma
de primeira qualidade, de atributos infinitos do poder criador, está sempre pre-
sente, revelando a sua aragem e os odores infinitos do próprio esplendor.
E assim, a rosa que está em você é uma de primeiríssima qualidade e não
importa o tempo, jamais chegará ao fim, e com as fragrâncias mil das ricas po-
tencialidades, revela a mais bela rosa preciosa de todo o jardim. Essa é a rosa
mais bendita da criação, que em sua inédita expressão, brotou um olor infinito,
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
revelando o amor em sua mais alta dimensão, criado e ornado pelo próprio po-
der bendito.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Alberto Filipe (2004). Educação e Imaginário. Da Criança Mítica
às Imagens da Infância. Maia: ISMAI.
BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução de Padre Antônio Pereira de Fi-
gueredo. Rio de Janeiro: Encyclopaedia Britannica, 1980. Edição Ecumênica.
GRIMAL, Pierre (1992 [1951]). Dicionário da Mitologia Grega e Romana.
Trad. de Victor Jabouille. Lisboa: Difel.
JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos e reflexões. Editora Nova Fronteira,
1986.
MOORE, Thomas (1999). Como Educar a Alma. Trad. de Sara Batalha. Lis-
boa: Planeta Editora.
209
EIXO VI
RESENHAS
RESENHA
Marina Arantes Santos Vasconcelos1
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2 Essa segunda acepção pode ser percebida sob uma perspectiva metafórica, no sentido de
que o Holocausto pode representar simbolicamente –universalmente – experiências parti-
culares, individuais, ou nacionais.
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
ao “processo de musealização; ”Para ele, “É como se o objetivo fosse conseguir
a recordação total. – noção de ‘arquivista maluco.’” (Huyssen, 2000, p. 15). A
questão central aqui, para o autor, é investigar se há “algo mais para ser discuti-
do neste desejo de puxar todos esses vários passados para o presente; Algo que
seja, de fato, específico à estruturação da memória e da temporalidade de hoje
e que não tenha sido experimentado do mesmo modo nas épocas passadas”
(Huyssen, 2000, p. 15). Seria, aqui, a busca pelo aspecto singular da cultura da
memória contemporânea.
O que Huyssen (Huyssen, 2000) explica é que “O que aí aparece, agora,
em grande parte como uma comercialização crescentemente bem-sucedida da
memória pela indústria cultural do ocidente, assume uma inflexão política mais
explícita em outras partes do mundo. Especialmente desde 1989, as questões
sobre memória e o esquecimento têm emergido como preocupações dominan-
tes” (Huyssen, 2000, p. 14) em diversas partes do mundo, a exemplo “do debate
cultural e político em torno dos presos políticos desaparecidos e seus filhos nos
países latino-americanos, levantando questões fundamentais sobre violação de
direitos humanos, justiça e responsabilidade coletiva.” (Huyssen, 2000, p. 16).
Com essas reflexões, Andreas Huyssen (2000) chega à constatação de que
“o lugar político das práticas de memória é ainda nacional e não pós-nacional ou
global” (Huyssen, 2000, p. 17), enfocando os “debates sobre a memória nacional
imbricados com os efeitos da mídia global” (Huyssen, 2000, p. 17), e reforçando
os “trabalhos comparativos sobre mecanismos e lugares-comuns de traumas his-
tóricos e práticas de memória nacional.” (Huyssen, 2000, p. 17).
Nesse sentido, Huyssen volta a destacar que a “consciência temporal da
alta modernidade no ocidente procurou garantir o futuro”; entretanto, “a cons-
ciência temporal do final do século XX envolve a não menos perigosa tarefa de
assumir a responsabilidade pelo passado.” (Huyssen, 2000, p. 17-18). A crítica do
autor (Huyssen, 2000) está no fato de que, segundo ele, “ambas as tentativas são
assombradas pelo fracasso”. (Huyssen, 2000, p. 18). Neste ponto, Huyssen (2000)
introduz a discussão referente a um segundo paradoxo: “os críticos acusam a pró-
pria cultura da memória contemporânea de amnésia” (Huyssen, 2000, p. 18). Em
seguida, indaga: “e se o aumento explosivo de memória for inevitavelmente acom-
panhado de um aumento explosivo de esquecimento?” (Huyssen, 2000, p. 18).
Andreas Huyssen (2000) problematiza as relações entre memória e esque-
cimento, levando em consideração as pressões das novas tecnologias da infor-
mação, as políticas midiáticas e o consumismo desenfreado. E ressalta: “Freud
já nos ensinou que a memória e o esquecimento estão indissolúvel e mutuamen-
te ligados; que a memória é apenas uma outra forma de esquecimento e que o es-
quecimento é uma forma de memória escondida.” (Huyssen, 2000, p. 18). Nesse
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
(Huyssen, 2000) que “Se reconhecemos a distância constitutiva entre a realidade
e a sua representação em linguagem ou imagem, devemos, em princípio, estar
abertos para as muitas possibilidades diferentes de representação do real e de suas
memórias. Isto não quer dizer que vale tudo. A qualidade permanece como uma
questão a ser decidida caso a caso. Mas a distância semiótica não pode ser encur-
tada por uma e única representação correta.” (Huyssen, 2000, p. 22).
Com seus exemplos (Huyssen, 2000), chama a atenção para o fato de
que questões cruciais da cultura contemporânea estão precisamente localizadas
no limiar entre dois tipos de representação, a exemplo da memória dramática
(Shoah, de Claude Lanzmann) e do que denominou mídia comercial (Lista de
Schindler, de Spielberg). (Huyssen, 2000, p. 22). O que o autor (Huyssen, 2000)
defende é que “a mídia não transporta a memória pública inocentemente; ela a
condiciona na sua própria estrutura e forma.” (Huyssen, 2000, p. 22-23).
Neste ponto, cita (Huyssen, 2000) o teórico Marshall Mc Luhan3 e sua no-
ção de que “o meio é a mensagem”, alertando para o fato de que é “bastante sig-
nificativo que o poder da nossa eletrônica mais avançada dependa inteiramente de
quantidades de memória.” (Huyssen, 2000, p. 23). Huyssen (2000) parece concluir
que: “Se hoje a ideia de arquivo total leva os triunfalistas do ciberespaço a abraçar
as fantasias globais à La McLuhan, os interesses de lucro dos comerciantes de me-
mória de massa parecem ser mais pertinentes para explicar o sucesso da síndrome
da memória. Trocando em miúdos: o passado está vendendo mais do que o futu-
ro. Mas por quanto tempo, ninguém sabe.” (Huyssen, 2000, p. 23-24).
Em resumo, questiona (Huyssen, 2000): “dado que o crescimento explo-
sivo da memória é história, como não resta dúvida de que será, terá alguém real-
mente se lembrado de alguma coisa? (...) Os computadores, dizem, poderão não
saber reconhecer a diferença entre o ano 2000 e o ano 1900 – mas nós sabemos?”
(Huyssen, 2000, p. 24-25). Huyssen (2000) passa a refletir sobre o argumento pa-
drão do teórico Theodor Adorno, segundo quem a mercadorização é o mesmo
que esquecimento, e a teoria de críticos que defendem que a comercialização de
memórias gera apenas amnésia. Sinaliza (Huyssen, 2000) que “algo mais deve
estar em causa, algo que produz o desejo de privilegiar o passado e que nos faz
responder tão favoravelmente aos mercados de memória: este algo, eu sugeriria,
é uma lenta mas palpável transformação da temporalidade nas nossas vidas, pro-
vocada pela complexa interseção de mudança tecnológica, mídia de massa e no-
vos padrões de consumo, trabalho e mobilidade global.” (Huyssen, 2000, p. 25).
Para ele (Huyssen, 2000), “por mais dúbia que hoje nos pareça a afirmação
3 É importante sinalizar que o teórico, entre outros estudos, foi quem desenvolveu noções
centrais para cultura moderna, a exemplo das expressões “impacto sensorial”, “o meio é a
mensagem” e “aldeia global”, como metáforas para a sociedade contemporânea.
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
sugada neste cada vez mais veloz redemoinho de imagens, espetáculos e eventos
e, portanto, está sempre em perigo de perder a sua capacidade de garantir a esta-
bilidade cultural ao longo do tempo” (Huyssen, 2000, p. 29-30).
Finalmente, Huyssen (2000) resgata, sequencialmente, as reflexões sobre
as contribuições das categorias de espaço e tempo nas experiências e nas per-
cepções humanas. De acordo com o teórico (Huyssen, 2000), “[as categorias]
Espaço e tempo, (...) longe de serem imutáveis, estão sempre sujeitas a mudan-
ças históricas.” (Huyssen, 2000, p. 30). O teórico (Huyssen, 2000) desenvolve
seu argumento a partir da noção de que: “Uma das lamentações permanentes
da modernidade se refere à perda de um passado melhor (...) A questão, no en-
tanto, não é a perda de alguma idade de ouro de estabilidade e permanência.”
(Huyssen, 2000, p. 30).
Para ele (Huyssen, 2000): “Trata-se mais da tentativa, na medida em que
encaramos o próprio processo real de compressão do espaço-tempo, de garantir
alguma continuidade dentro do tempo, para propiciar alguma extensão do espa-
ço vivido dentro do qual possamos respirar e nos mover.” (Huyssen, 2000, p. 30).
Huyssen (2000) afirma que: “Com certeza, o fim do século XX não nos
oferece acesso fácil ao lugar-comum da idade de ouro. As memórias do século
XX nos confrontam, não com uma vida melhor, mas com uma história única
de genocídio e destruição em massa, a qual, a priori, barra qualquer tentativa
de glorificar o passado.” (Huyssen, 2000, p. 31). Para ele (Huyssen, 2000), “O
mal-estar da civilização metropolitana do final do século (...) parece fluir de uma
sobrecarga informacional e percepcional combinada com uma aceleração cultu-
ral, com as quais nem nossa psique nem os nossos sentidos estão bem equipados
para lidar” (Huyssen, 2000, p. 32).
Segundo defende (Huyssen, 2000): “Quanto mais rápido somos empur-
rados para o futuro global que não nos inspira confiança, mais forte é o nosso
desejo de ir mais devagar e mais nos voltamos para a memória em busca do
conforto.” (Huyssen, 2000, p. 32). Surgem, então, noções como a ideia do “ar-
quivo” e dos “arqueólogos de dados” apontando para “uma das maiores ironias
da ‘idade da informação’ (Huyssen, 2000): “Se não encontrarmos métodos de
preservação duradoura das gravações eletrônicas, esta poderá ser a era sem me-
mória”. (Huyssen, 2000, p. 33). Nos seus termos (Huyssen, 2000): “De fato, a
ameaça do esquecimento emerge da própria tecnologia à qual confiamos o vasto
corpo de registros eletrônicos e dados, esta parte mais significativa da memória
cultural do nosso tempo.” (Huyssen, 2000, p. 33).
Assim, pensando sobre as “transformações atuais do imaginário temporal
trazidas pelo espaço e pelo tempo virtuais” (Huyssen, 2000), Huyssen (2000)
destaca que: “as atuais culturas críticas de memória, com sua ênfase nos direitos
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RESENHA
Dirce Maria da Silva1
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das localidades no estado do Maranhão que mais registra crescimento significativo,
mesmo diante de gestões municipais consideradas pouco eficientes, no que diz res-
peito ao planejamento e desenvolvimento urbano (Silva, 2013, p. 29).
No segundo capítulo o autor dedica-se à descrição dos aspectos físicos
da região, abordando informações sobre a geografia, hidrografia, limites terri-
toriais, topografia, cursos d’água, corpos d’água temporários, lagoas, climatolo-
gia, tipos de vegetação e médias de temperatura.
Conforme esclarece Silva (2013, p. 45), as mudanças territoriais ocorridas
ao longo do tempo, até a determinação atual, deixaram a cidade distante das
margens do rio Itapecuru e do Parnaíba, este último servindo de limite com o
estado do Piauí.
A topografia da cidade não apresenta elevações significativas, o ponto
mais alto é o Morro do Pico, que se eleva a 283 metros e está situado a dois
quilômetros do centro urbano. O município é caracterizado por vastas chapadas
com abundantes áreas planas circundantes.
No que diz respeito a recursos aquáticos e lagoas, destaca-se a Lagoa do
Roseno, localizada na área urbana, em um bairro tradicional de Matões, no
início da Rua Barão do Rio Branco, desempenhando papel de ponto turístico na
cidade. Quanto à vegetação, o município é composto por campos de vegetação
rasteira e florestas com árvores de diferentes tamanhos, com espécies de grande,
médio e pequeno porte.
O terceiro capítulo versa sobre aspectos econômicos. A obra destaca a
importância que os recursos naturais possuem no desenvolvimento da região.
Entre os recursos vegetais, o babaçu em particular, é árvore frutífera da qual
quase todos os componentes podem ser aproveitados e é predominante na região
(Silva, 2013, p. 53).
Ao falar sobre a economia do babaçu, o autor explica que as amêndoas
são usadas na fabricação do azeite e de leite; as cascas do coco, após a retira-
da das castanhas, podem ser transformadas em carvão; as palhas da palmeira
servem para a cobertura de casas. A resistente folha da palma do babaçu é utili-
zada na confecção de utensílios domésticos, como abanos e esteiras, enquanto
os talos das folhas são empregados na construção de estruturas de taipa, isto
é, paredes preenchidas com barro nas casas mais rústicas. Outras árvores que
produzem frutos bastante apreciados e são partes integrantes da economia local
é o buriti, o tucum e o pequizeiro, encontrados nas áreas de planalto, chapadas
e alagadiços da região (Silva, 2013, p. 53).
No que se refere aos recursos minerais, além da abundância de argila e
piçarra na área, há também ocorrências de pedras, conhecidas como “cabeça de
negro”, utilizadas na pavimentação de estradas. A produção delas é realizada
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
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estações de rádios FM e canais de televisão (Silva, 2013, p. 73-74).
O município de Matões teve a instalação do primeiro serviço telefônico
em 1982, numa iniciativa realizada em parceria entre as Telecomunicações do
Maranhão (TELMA) e a Prefeitura de Matões. A partir de 2007 a evolução
trouxe a internet discada para a cidade (Silva, 2013, p. 76).
As estradas e rodagens no interior do Brasil sempre tiveram um papel
de importância fundamental no desenvolvimento das regiões. Conforme Silva
(2013, p. 108) a Estrada Real era rota oficial e exclusiva, único caminho para o
trânsito de pessoas e mercadorias. Era o caminho oficial, utilizado pela família
real, pelos comerciantes, vendedores ambulantes e autoridades religiosas. A pas-
sagem de animais ocorria por uma rota separada. Qualquer tentativa de abrir
novas rotas era considerada crime grave.
Nesse sentido, no tópico denominado Ruas Antigas, à página 81, o autor
faz uma descrição minuciosa sobre todas as ruas, praças, avenidas e becos da
cidade. Sobre a Rua São Pedro, ele nos informa que ela já foi a principal via de
entrada da cidade, uma vez que fazia parte da Estrada Real.
Conforme Silva (2013, p. 82), ali residiram famílias que desempenharam
papéis importantes na história de Matões. Promovida a Avenida São Pedro, con-
tinuou a abrigar outras famílias típicas e tradicionais da sociedade matoense,
a exemplo de D. Maria Raimunda, Joaquim, esposo da professora Cleide, o
Osmar, o Soares, filho de Seu Elias Olaia, D. Maria Luiza, D. Pinenen, rezadei-
ra e D. Saló espírita.
Os aspectos políticos são abordados no Capítulo IV. Ao iniciá-lo, o autor
faz um apanhado geral dos traços referentes à Administração Pública matoense.
O primeiro administrador do município de Matões, de 1835 a 1839, ainda no
período Imperial, foi o Cel. Antônio José de Assunção, e o último do período, o
Cel. Sérgio Pereira da Silva (Silva, 2013, p. 123).
O então Conselho de Intendência nomeado pelo Governador, durante
a Primeira República, contou com os nomes como João Rodrigues da Silveira
Júnior; Antônio Joaquim da Silva Rios; Manoel Rodrigues da Silveira; José
Lino de Assunção; João de Sá Coutinho, Bento José de Araújo, Pedro de Moura
Sobrinho e seus respectivos Intendentes eleitos (Silva, 2013, p. 124-130).
No período do Estado Novo (1930-1947), sob a ditadura de Vargas, o
Prefeito era nomeado pelos Interventores. Dentre os nomes do período estão
Aristides da Silva Rios; Raimundo Nonato de Araújo; Raimundo de Oliveira
Silva; Firmino Câmara; Raimundo Martins Ferreira; Raimundo de Sousa Rego;
Manoel Pereira Lima e Henrique de Sousa Lima (Silva, 2013, p. 130-134).
No período de 1947 a 1988 Matões teve como Prefeitos e Vice-Prefeitos
nomes como Lauro Barbosa, Myrson Vianna, Antenor Pereira de Brito, João
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
uma lista de conquistas sociais e de direitos pelas mulheres, no cenário brasileiro
e no contexto matoense, apresentada a seguir:
1850 - O Código Comercial simplifica procedimentos e facilita a vida da mulher
negociante, quando no impedimento de seus maridos.
1871 - Na ausência de Dom Pedro II, a Princesa Isabel assume pela
primeira vez a regência do Império, o que vai se repetir várias vezes, dado que o
imperador costumava viajar com frequência.
1888 - Com a aprovação, pelo Parlamento, da Lei Áurea, após intensas campa-
nhas pela imprensa e de mobilização social, via entidades civis, finalmente chega ao fim a
escravidão no Brasil.
1890 - Deputado Saldanha Marinho apresenta emenda, concedendo o direito ao
voto feminino. Mas, por falta de mobilização das mulheres, foi rejeitado.
1899 - Apresentam-se projetos dando livre o exercício dos profissionais liberais à
mulher diplomada.
1910 - A educadora baiana Leolinda Daltro funda o Partido Republicano
Feminino. Em 1917, no Rio de Janeiro, ela lidera passeata pela extensão do direito do
voto das mulheres.
1918 - A bióloga e depois advogada Bertha Lutz, propôs formar uma Associação
de mulheres, a fim de “canalizar todos esses esforços”.
1922 - Por grande maioria, mas em ato restrito a uma recomendação aos poderes
públicos, o Congresso Jurídico Brasileiro aprova a constitucionalidade e a oportunidade
do voto feminino.
1927 - Eleito e empossado em outubro o governador do Rio Grande do Norte,
Juvenal Lamartine, que incluiria temas da campanha feminista em sua plataforma. E
assim, mas também graças ao federalismo então vigente, a mulher potiguar passa a poder
votar e ser votada. Em novembro, Celina Guimarães Viana, se torna a primeira eleitora
brasileira. Em 1928, também no Rio Grande do Norte, Alzira.
1933 - Carlota Pereira de Queiroz é eleita para primeira Deputada Federal na
América Latina. É a voz feminina no Congresso Nacional Brasileiro. Paulista de 42 anos.
No ano anterior, durante a revolução constitucionalista, quando São Paulo se mobilizou
contra o governo de Getúlio Vargas, ela havia liderado 700 mulheres, com o apoio da Cruz
Vermelha para dar assistência aos feridos nos combates.
1934 - A nova Constituição, de cujo anteprojeto participou Bertha Lutz, como
representante feminina, consolida o direito ao voto feminino, estabelecido na prática pelo
Código Eleitoral há dois anos. A Carta também garantia novos direitos às mulheres, como
serem indicadas Ministra de Estado e eleitas Presidente da República. Além disso, asse-
gurava e regulava direitos trabalhistas femininos, incluía artigos e parágrafos sobre ma-
ternidade e infância. Na primeira eleição em que puderam votar e ser votadas, Joanna
da Rocha Santos é eleita prefeita de São João dos Patos, no Maranhão. No mesmo ano,
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Ministra do Estado Brasileiro.
1982 - Era eleita para o cargo de vereadora mais uma mulher matoense: Leonor
Ferreira da Silva.
1988 - Participação maciça da mulher brasileira na Assembleia Constituinte, na
época 29 deputadas federais.
1988 - Era eleita a primeira mulher da região de Pedreiras: professora Juracema
de Arêa Leão, esposa do ex-vice-prefeito João Coutinho Brito. Neste mandato foi eleita
presidente da Câmara de Vereadores, para o biênio de 1989/1990. Sendo reeleita no ano
de 1996.
1988 - Em Matões, também foi eleita outra mulher guerreira da região de União:
Maria Adriano Gomes dos Anjos, uma defensora da pobreza.
1990 - Júnia Marise é a primeira mulher eleita para o Senado Brasileiro.
1994 - A maranhense Roseana Sarney é a primeira governadora eleita no Brasil.
Reeleita em 1998, atual governadora do Estado. Assumiu pela força da Lei, em substitui-
ção ao ex-governador Jackson Lago, afastado do cargo. Roseana concorrerá nas eleições
deste ano, para seu quarto mandato. Com larga experiência na vida pública, foi senadora
da república e deputada federal por mais de um mandato.
1995 - Benedita da Silva é a primeira negra brasileira a se eleger a senadora da
república.
2000 - Os matoenses elegem mais quatro vereadoras: Walmeire Moura Gomes
Coutinho e Taís Garcia Coutinho, representando o povoado de Pedreiras; Tânia Maria de
Oliveira Pinheiro e Maria Gomes Adriano dos Anjos, pela sede do município.
2002 - Duas governadoras são eleitas: Rosinha Garotinho (Rio de Janeiro) e
Wilma de Farias (Rio Grande do Norte).
2003 - A bancada feminina na Câmara dos Deputados atinge o seu maior número,
com a eleição de 52 parlamentares.
2004 - Mais três vereadoras matoenses conseguem a reeleição: Walmeire Coutinho,
Maria Gomes Adriano dos Anjos e Tânia Pinheiro.
2006 - São eleitas três governadoras: Ana Júlia Carepa, no Pará; Wilma Faria
(reeleita), Rio Grande do Norte; e Yeda Crusius, Rio Grande do Sul (Silva, 2013, p.
208-210; Citação Fonte: arquivo da Câmara Municipal de Matões, 2009 e Jornal
da Câmara, DF, 2009).
Quando da publicação de “Caminhos e Memórias de Matões: Uma
História Secular”, em 2012 (a publicação do livro físico ocorreu em 2013), a
então Prefeita de Matões era Suely Pereira, que eleita em 2008, foi a segunda
mulher a se eleger prefeita no município (Silva, 2013, p. 210).
Silva destaca a eleição de Dilma Rousseff, primeira mulher a ocupar o
cargo de presidente do Brasil, pois a despeito de eventuais discordâncias, a elei-
ção de Rousseff tem importância histórica para o Brasil, uma vez que marcou
227
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
implementadas por educadores em todo município matoense, contribuindo para
um ensino mais alinhado às melhores práticas educacionais em nível nacional
(Silva, 2013, p. 232).
Em seguida, no período de 1997 a 2004, o setor educacional do município
de Matões experimentou mudanças significativas e avanços que refletiram dire-
tamente na qualidade da educação local, por meio da aplicação da nova Lei de
Diretrizes e Bases da Educação, a Lei 9394/96, que trouxe diretrizes e princípios
modernizados para o sistema educacional como um todo (Silva, 2013, p. 232).
Assim, na conjunção de elementos entre às leis, planos nacionais, parâme-
tros educacionais e trabalho criterioso e contínuo dos agentes públicos, o sistema
educacional matoense foi, paulatinamente, sendo fortalecido, procurando promo-
ver educação de qualidade, alinhado às diretrizes nacionais, o que contribui de
forma contínua para o desenvolvimento social da comunidade (Silva, 2013, p.
221-242).
Hoje, o município oferta ensino em todos os níveis e etapas da Educação
Básica, Técnica, Educação de Jovens e Adultos e Nível Superior, privilegian-
do, concomitantemente, a Educação Inclusiva, contando com estabelecimentos
educacionais nas esferas municipais e estaduais, além de instituições particulares
de ensino (Silva, 2013, p. 245-249).
O tópico especial Biblioteca Pública Municipal, encerra, no Capítulo V,
os aspectos referentes à Educação. Dentre os objetivos fundamentais de sua
implantação está a reconstituição e a manutenção memorialística, histórica e
crítica do município de Matões dentre os anos 1835 a 2012, constando em seu
acervo, conforme o autor, de leis, decretos, resoluções, regulamentos, portarias,
ofícios e depoimentos da história da educação no município, em seus, até aquele
momento, 177 anos de existência (Silva, 2013, p. 250).
É necessário enfatizar que a história da Igreja Católica no município de
Matões desempenhou papel fundamental no progresso cultural da região. Ali, o
legado de fé e devoção religiosa remonta aos primórdios da cidade, no século XVIII,
período colonial, quando Matões ainda era apenas um pequeno arraial, vinculado
à freguesia de São José das Aldeias Altas, a atual Caxias/MA (Silva, 2013, p. 250).
Deste então a comunidade já demonstrava profundo respeito pelas tradi-
ções Católicas, participando ativamente de celebrações religiosas e da devoção
aos santos. Mesmo em períodos de ausência de padres residentes, os moradores
se uniam para recitar a Ave Maria, fazer pedidos de proteção divina e expressar
o desejo de que uma capela fosse erguida, para melhor abrigarem suas devoções
(Silva, 2013, p. 251).
Segundo minuciosa pesquisa realizada pelo autor, na Paróquia de Nossa
Senhora da Conceição, antiga freguesia de São José dos Matões, foi possível
229
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Por seu turno, as expressões culturais populares em Matões, conforme
Silva (2013, p. 282) abrangem ampla gama de tradições que enriquecem a iden-
tidade local. Dentre elas destacam-se os folguedos tradicionais, como o bumba-
-meu-boi e os animados carnavais. Além disso, as Rodas de São Gonçalo e São
Benedito, bem como o Reisado e o Folclore do Saber do Povo são eventos que
fazem parte da vida da comunidade, proporcionando conexão profunda com
suas raízes culturais.
O artesanato local é testemunho da habilidade e criatividade dos morado-
res de Matões, enquanto a culinária regional cativa os mais diferentes paladares,
com pratos típicos que refletem a riqueza da tradição gastronômica da cidade. E
também as lendas, transmitidas de geração em geração, adicionam uma camada
de mistério e encanto à cultura local, mantendo viva a herança oral da comuni-
dade (Silva, 2013, p. 289).
A Literatura de Cordel e a poesia são meios artísticos pelos quais as histórias
e experiências são compartilhadas e celebradas. Nesse sentido, elas servem como
veículos para expressar a identidade, a memória e as aspirações também do povo de
Matões, contribuindo para a preservação de sua cultura (Silva, 2013, p. 289).
Assim, a história de Matões se mantém viva e dinâmica, pois sabemos
que o conjunto das manifestações culturais reflete a vitalidade e a diversidade
do patrimônio cultural de um povo, e, nesse sentido, a comunidade matoense
mantém suas tradições e saberes populares, por meio do cultivo de expressões
artísticas, culturais e históricas, que enriquecem a vida local e fortalecem a liga-
ção entre as gerações.
Em relação ao esporte, de acordo com as informações fornecidas por
Silva (2013, p. 303), no ano de 1915, Henrique Lima, um imigrante cearense
que se estabeleceu na cidade, trouxe consigo sua admiração pela arte do futebol,
tornando-se assim o pioneiro da prática desse esporte em Matões. Na década de
trinta, a cidade já estava competindo com o time Flores Atlético Club, da cidade
de Timon/MA.
Em 1976 houve o estabelecimento da Sociedade Esportiva Cultural
Matoense, cujo presidente e fundador foi o próprio Professor Francisco José da
Silva, o autor do livro que estamos a resenhar. Este clube contou com a partici-
pação ativa de atletas e sócios (Silva, 2013, p. 304).
A partir desse ponto, o autor começa a listar os nomes dos atletas em suas
respectivas modalidades, incluindo aqueles que conseguiram alguma projeção
fora da cidade, como é o caso desta resenhista.
O Professor Francisco José da Silva, carinhosamente conhecido como
Chico Grud, um Educador Físico aposentado da Secretaria de Educação de
Matões, sempre desempenhou um papel fundamental na promoção da prática
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
gama de elementos visuais como fotografias, desenhos, tabelas e quadros, con-
comitantes às respectivas descrições. A obra se destaca assim, de forma multifa-
cetada, por oferecer abordagem simultaneamente arqueológica, social, histórica
e memorialística da cidade.
“Caminhos e Memórias de Matões: Uma História Secular” é um teste-
munho científico-literário que entrelaça reflexão cultural, disseminação de co-
nhecimento, reconfigurando o presente, por meio do entendimento do passado.
Não tenho dúvidas em afirmar que esta obra é um tesouro destinado a ser apre-
ciado pelas gerações futuras, garantindo a contínua preservação da rica herança
cultural e histórica de Matões.
O livro “Caminhos e Memórias de Matões: Uma História Secular” é,
segundo palavras do autor, “a realização de um desejo que se estendeu por qua-
se quatro décadas, envolvendo dedicação incansável à pesquisa oral, à produção
escrita e à compilação de documentos”. Francisco José da Silva, o autor, celebra
seus 76 anos de vida, marcados, por entre outras histórias de sua longa e profícua
existência, por essa notável jornada de trabalho e paixão pela história de Matões.
233
POSFÁCIO
Caro leitor,
234
ORGANIZADORAS
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M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)
236
ÍNDICE REMISSIVO
A
Aprendizagem 110, 130, 131, 132, 133, 134, 137, 139, 140, 141, 142, 143, 144, 147,
148, 149, 151, 152, 153, 159, 160, 162, 163
Arteterapia 9, 185, 186, 187, 189, 192, 193, 195
Atividades lúdicas 145, 148, 149, 152, 153
B
Beauvoir 97, 101, 104, 106
Beleza 176, 177, 183, 184
Belo 9, 117, 156, 175, 177, 178, 181, 183, 184, 200, 207
Bem-estar 179, 180, 184, 194
Biblioteca 8, 25, 28, 29, 30, 31, 34, 229
Brasil 9, 13, 14, 17, 25, 26, 28, 29, 35, 37, 38, 41, 54, 66, 79, 91, 135, 136, 144, 149,
150, 154, 156, 160, 161, 162, 163, 164, 165, 188, 192, 196, 220, 222, 223, 225,
226, 227, 228
C
Cantigas trovadorescas 13, 14, 16, 17, 24
Complexo de Édipo 68, 76, 77
Condição das mulheres 99, 103, 110, 112
Confirmadíssimo 202, 203, 204
Cultura modernista 211, 214
D
Direitos Humanos 7, 9, 10, 115, 144, 155, 166, 167, 168, 169, 170, 171, 172, 173,
175, 185, 196, 219, 235
Distrito Federal 27, 28, 29, 31, 115, 144, 155, 166, 175, 185, 196, 211, 219, 235, 236
Dramaturgia 38, 45, 46, 47
E
Édipo 65, 68, 70, 71, 72, 76, 77, 80, 81
Educação Básica 27, 100, 115, 144, 155, 166, 175, 185, 196, 211, 219, 229, 235, 236
Educação Plurilíngue 156, 161, 163, 165
Elizabeth Bennet 9, 78, 100, 107, 112
Ensino Fundamental 130, 132, 137, 162
Erotismo 43, 44, 46, 47, 49, 51, 52, 65, 80
Escolas bilíngues 157, 158, 159, 160, 161, 163, 165
Espiritualidade 123, 125, 182, 184, 203
Eu-homem 83, 89, 90
Eu-outro 83, 86, 88, 89
Existência humana 76, 118, 125, 181, 182
237
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)
F
Federico Garcia Lorca 37, 39, 45, 54
Filosofia 6, 179, 183
Filtro dos Sonhos 187, 188, 190, 192
Foucault 44, 107
Freud 41, 44, 48, 51, 52, 53, 55, 56, 57, 61, 63, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74,
76, 77, 80, 193, 194, 213, 214
G
Garcia Lorca 8, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 50, 51, 52, 54
Globalização 162, 163, 212
H
Habilidades 8, 10, 96, 123, 139, 141, 145, 149, 151, 152, 156, 157, 158, 159, 160, 161,
164
História 9, 12, 13, 14, 25, 26, 117, 121, 145, 154, 185, 219, 227, 232, 233
Holocausto 211, 212, 214
I
Idade Média 12, 13, 14, 15, 18, 19, 21, 24, 25, 26, 33, 146, 149, 167, 177
Identidade 14, 16, 25, 76, 77, 78, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 98, 118, 119,
122, 123, 137, 152, 159, 216, 230, 231
Identidade social 83, 84, 85, 89
Imperador 9, 115, 116, 117, 118, 121, 122, 123, 124, 125, 127, 128
Império 116, 117, 118, 120, 122, 224, 225
Inconsciente 37, 38, 41, 42, 44, 52, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 67, 68,
69, 70, 71, 72, 73, 74, 76, 77, 79, 80, 87, 189, 191, 193, 194
Infância 28, 33, 48, 52, 56, 69, 72, 76, 83, 106, 130, 133, 136, 144, 145, 146, 147, 148,
150, 186, 187, 189, 226
J
Jacobina 8, 82, 83, 84, 86, 87, 88, 89
Jane Austen 9, 78, 96, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 110, 111, 112, 113
L
Leitura E Escrita 130, 135, 136, 143
Literatura 6, 7, 8, 10, 12, 16, 17, 20, 25, 26, 27, 28, 33, 37, 54, 56, 57, 59, 60, 61, 62,
63, 64, 67, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 90, 94, 100, 110, 112, 113, 114,
115, 133, 135, 136, 137, 144, 155, 166, 175, 184, 185, 196, 211, 219, 231, 235,
236
Literatura Brasileira 7, 10, 27, 90, 133, 211, 236
Literatura de Cordel 8, 16, 17, 20, 25, 231
Literatura Portuguesa 12, 14, 15, 26
Livros 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 94, 96, 119, 124, 132, 136, 196, 214
Lúdico 9, 46, 144, 145, 147, 148, 149, 151, 152, 153
M
Machado de Assis 8, 74, 82, 89, 90, 91
238
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Mandala 188, 189, 191
Mandala-Árvore 187, 190, 192
Marguerite Yourcenar 9, 115, 121, 127, 128
Matões 9, 10, 219, 220, 221, 222, 223, 224, 226, 227, 228, 229, 230, 231, 232, 233
Memória 5, 8, 9, 12, 13, 16, 19, 20, 24, 27, 28, 31, 32, 33, 34, 35, 45, 61, 68, 69, 151,
166, 187, 192, 211, 212, 213, 214, 215, 216, 217, 218, 231
Memórias afetivas 28, 185, 186, 187, 192
Memórias de Adriano 9, 115, 127, 128
Moralidade 59, 70, 72, 74, 75, 77, 170, 179, 182
Mulher 41, 76, 94, 95, 96, 97, 98, 100, 101, 102, 103, 104, 106, 107, 109, 112, 113,
201, 224, 225, 226, 227, 228
Mulheres 20, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108,
110, 111, 112, 113, 135, 150, 157, 169, 224, 225, 226
N
Narrativas literárias 55, 56, 57, 60, 61, 64, 68, 71
O
Orgulho e Preconceito 78, 96, 100, 106, 107, 111, 112, 113
P
Poema 16, 17, 18, 19, 20, 21, 43, 47, 48, 51, 90, 126, 156, 163, 164, 175, 181, 196
Poesia 6, 12, 15, 16, 17, 30, 37, 38, 39, 41, 42, 46, 47, 51, 54, 103, 104, 119, 120, 148,
164, 178, 197, 198, 199, 200, 201, 206, 208, 209, 231
Projeto Roedores de Livros 28, 29, 31, 32, 34
Psicanálise 8, 38, 42, 46, 50, 51, 53, 55, 63, 65, 67, 68, 69, 73, 76, 79, 80
Psicologia 37, 55, 67, 91, 93, 99, 143, 175, 194, 235
Psique 60, 61, 62, 63, 67, 68, 69, 71, 72, 73, 74, 75, 79, 83, 127, 182, 189, 190, 191,
194, 217
Psique humana 60, 61, 62, 63, 67, 69, 71, 72, 73, 74, 75, 79, 127, 190
R
Renascença 15, 16, 147
Romances 79, 102, 103, 105, 106, 128, 133, 147, 212
S
Segunda Guerra Mundial 107, 171, 211
Simbolismo 57, 61, 62, 63, 74, 187, 190
Soneto 15, 37, 39, 42, 47, 49, 50, 52
Sonhos 70, 80, 187, 188, 190, 192
T
Tecnologias 131, 136, 138, 139, 140, 163, 213, 214
Trovadorismo 8, 13, 15, 17, 18, 19
V
Virginia Woolf 9, 58, 78, 93, 94, 95, 96, 99
Vygotsky 130, 133, 151
239