Memórias Literárias

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA

2023
© Das Organizadoras - 2023
Editoração e capa: Schreiben
Imagem da capa: Rawpixel.com - Freepik.com
Revisão: os autores
Livro publicado em: 25/09/2023
Conselho Editorial (Editora Schreiben):
Dr. Adelar Heinsfeld (UPF)
Dr. Airton Spies (EPAGRI)
Dra. Ana Carolina Martins da Silva (UERGS)
Dr. Deivid Alex dos Santos (UEL)
Dr. Douglas Orestes Franzen (UCEFF)
Dr. Eduardo Ramón Palermo López (MPR - Uruguai)
Dra. Geuciane Felipe Guerim Fernandes (UENP)
Dra. Ivânia Campigotto Aquino (UPF)
Dr. João Carlos Tedesco (UPF)
Dr. Joel Cardoso da Silva (UFPA)
Dr. José Antonio Ribeiro de Moura (FEEVALE)
Dr. José Raimundo Rodrigues (UFES)
Dr. Klebson Souza Santos (UEFS)
Dr. Leandro Hahn (UNIARP)
Dr. Leandro Mayer (SED-SC)
Dra. Marcela Mary José da Silva (UFRB)
Dra. Marciane Kessler (UFPel)
Dr. Marcos Pereira dos Santos (FAQ)
Dra. Natércia de Andrade Lopes Neta (UNEAL)
Dr. Odair Neitzel (UFFS)
Dr. Valdenildo dos Santos (UFMS)
Dr. Wanilton Dudek (UNIUV)

Esta obra é uma produção independente. A exatidão das informações, opiniões e conceitos
emitidos, bem como da procedência das tabelas, quadros, mapas e fotografias é de exclusiva
responsabilidade do(s) autor(es).

Editora Schreiben
Linha Cordilheira - SC-163
89896-000 Itapiranga/SC
Tel: (49) 3678 7254
[email protected]
www.editoraschreiben.com

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


M533 Memórias literárias : o poder da leitura e da escrita. / Organizadoras : Dirce Maria
da Silva... [et al.]. – Itapiranga : Schreiben, 2023.
240 p. : il. ; e-book.

E-book no formato PDF.


EISBN: 978-65-5440-177-7
DOI: 10.29327/5316492

1. Literatura. 2. Escrita. 3. Leitura. I. Título. II. Silva, Dirce Maria da. III.
Portela, Eunice Nóbrega. IV. Almeida, Cirlene Pereira dos Reis. V. Vasconcelos,
Marina Arantes Santos.

CDU 82

Bibliotecária responsável Kátia Rosi Possobon CRB10/1782


SUMÁRIO
PREFÁCIO .................................................................................................6
Dirce Maria da Silva
Eunice Nóbrega Portela
Cirlene Pereira dos Reis Almeida
Marina Arantes Santos Vasconcelos
APRESENTAÇÃO.......................................................................................8
Dirce Maria da Silva
Eunice Nóbrega Portela
Cirlene Pereira dos Reis Almeida
Marina Arantes Santos Vasconcelos

Eixo I
CAMINHOS DE LEITURA
MEMÓRIA LITERÁRIA, TROVADORISMO E CORDEL:
UMA PROPOSTA DIDÁTICA...................................................................12
Wendel de Souza Borges
BIBLIOTECA COMUNITÁRIA ROEDORES DE LIVROS
EM CEILÂNDIA/DF: FORMAÇÃO DE LEITORES NAS
VIAS DA MEMÓRIA..................................................................................27
Marina Arantes Santos Vasconcelos
Ana Paula Bernardes
Eixo II
LEITURA E PSICANÁLISE
GARCIA LORCA ENTRE DESEJO E ERÓTICA EM
“SONETOS DO AMOR OBSCURO”.........................................................37
Márcia Cristina Maesso
Roberto Medina
RESSONÂNCIAS E VAZIOS: UM EXAME DAS LACUNAS NAS
NARRATIVAS LITERÁRIAS SOBRE O INCONSCIENTE.......................55
Eunice Nóbrega Portela
PROFUNDEZAS DA ALMA REVELADAS:
UMA EXPLORAÇÃO PSICANALÍTICA DA COMPLEXIDADE
HUMANA NA LITERATURA...................................................................67
Eunice Nóbrega Portela
EXPLORANDO MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
ANÁLISE DA DUALIDADE IDENTITÁRIA DE JACOBINA EM
‘O ESPELHO’ DE MACHADO DE ASSIS: UM CONFRONTO
ENTRE O EU-HOMEM E O EU-OUTRO.....................................................82
Cirlene Pereira dos Reis Almeida

Eixo III
MULHERES NA LITERATURA
ENTRE PÁGINAS EM BRANCO E SILÊNCIOS LITERÁRIOS -
A MULHER E SUA AUSÊNCIA: REFLETINDO SOBRE
‘UM QUARTO SÓ SEU’, DE VIRGINIA WOOLF.....................................93
Maria Cristina Sebba
REFLEXÕES SOBRE O QUE É SER MULHER BASEADAS NA
PERSONAGEM ELIZABETH BENNET DE JANE AUSTEN.................100
Aline Mayane Tavares de Melo
ALÉM DO TEMPO: COMENTÁRIOS SOBRE
‘MEMÓRIAS DE ADRIANO’, DE MARGUERITE YOURCENAR........115
Dirce Maria da Silva

Eixo IV
MEMÓRIAS LITERÁRIAS, EDUCAÇÃO E DIREITO
MEMÓRIAS LITERÁRIAS: O SIGNIFICADO DO ENSINO DA
LEITURA E DA ESCRITA NA VIDA ESTUDANTIL..............................130
Débora Jesus de Queiroz
Cirlene Pereira dos Reis Almeida
MEMÓRIAS DE LEITURA NA FORMAÇÃO ACADÊMICA:
UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA SOBRE A INFÂNCIA E O
LÚDICO NA EDUCAÇÃO.......................................................................144
Lílian Viviane Gonçalves Martins
Dirce Maria da Silva
REVISANDO CONCEITOS E TECENDO REFLEXÕES
SOBRE A IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO BILÍNGUE
NO BRASIL..............................................................................................155
Horácio Lessa Ramalho
Dirce Maria da Silva
REVISITANDO CONCEITOS: SOBRE A EVOLUÇÃO
HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS..............................................166
Larissa Argenta Ferreira de Melo
Dirce Maria da Silva
Eixo V
A ESTÉTICA DA MEMÓRIA E DA EXPRESSÃO
UMA BREVE PRELEÇÃO SOBRE O BELO COMO
REPRESENTAÇÃO DO BEM.................................................................175
Dirce Maria da Silva
Francisco Ronaldo Frazão de Lima
MEMÓRIAS AFETIVAS NA ARTETERAPIA.........................................185
Elizabete Adelaide da Silva
Dirce Maria da Silva
VERSOS E MEMÓRIAS: A HARMONIA DOS DIAS COM O
PODER DA LEITURA E DA ESCRITA...................................................196
Washington Dourado
Dirce Maria da Silva

Eixo VI
RESENHAS
RESENHA
HUYSSEN, Andreas. SEDUZIDOS PELA MEMÓRIA ................................211
Marina Arantes Santos Vasconcelos
RESENHA
SILVA, Francisco José da. CAMINHOS E MEMÓRIAS DE MATÕES:
UMA HISTÓRIA SECULAR.............................................................................219
Dirce Maria da Silva
POSFÁCIO...............................................................................................234
Dirce Maria da Silva
ORGANIZADORAS................................................................................ 235
ÍNDICE REMISSIVO................................................................................237
PREFÁCIO

Conforme Carlos Ceia no verbete “Literatura1”, no início da era moder-


na, prosa e poesia, ciência e ficção, oratória, história, filosofia e cartas, passaram
a ser tratados como manifestações da mesma habilidade ou técnica. Mas a partir
das últimas duas décadas do século XVIII, com as modificações na separação
conceitual entre razão e imaginação, observaram-se novos direcionamentos,
atribuições e funções específicas voltadas a cada uma dessas facetas.
Filosofia e ciência passaram a se ocupar mais da razão, enquanto a ima-
ginação manteve conexões mais voltadas à sensibilidade, percepção e emoção,
com a Literatura sendo associada mais à arte, no sentido moderno da palavra. A
mudança de perspectiva deu origem a outros gêneros literários, a partir do lírico,
narrativo e dramático, que agrupados sob o termo “literatura”, passam por no-
vos processos de hibridizações e redefinições.
Nesse sentido, o livro MEMÓRIAS LITERÁRIAS: O PODER DA
LEITURA E DA ESCRITA caracteriza-se como uma exploração por trilhas de
experiências de leituras, abrangendo um espectro diversificado de textos que en-
globa poesias, revisões acadêmicas de literatura, discussões, ensaios, comentá-
rios críticos, projetos de leituras, recortes de pesquisas, resenhas, deslocando-se
das fronteiras estritas do gênero memorialismo.
Os textos compartilham relatos de revisitações a leituras que moldaram
pensamentos, formataram apreciações críticas, delinearam revisões e opiniões,
por meio dos caminhos percorridos ao longo de formações acadêmicas e jorna-
das de vida, numa convergência de autores, personagens e ideias que nos cativa-
ram e deixaram sua marca em nossa evolução intelectual.
Assim, numa celebração à diversidade textual, reuniu-se na presente obra
contribuições de poetas, de espiritualistas, de pesquisadores acadêmicos, psica-
nalistas, de psicólogos, arteterapeutas, administradores, advogados, pedagogos,
professores doutores, mestres e especialistas, formando um caleidoscópico mo-
saico de perspectivas.
Que esta obra inspire leitores a explorarem diferentes universos literários,

1 Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/literatura Acesso: 11/09/2023.

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
ou, universos literários diversificados, e os encoraje a compartilhar de suas me-
mórias e escritas.

Brasília, 11 de Setembro de 2023.

As Organizadoras
Me. Dirce Maria da Silva
Mestre em Direitos Humanos (Políticas Públicas) pelo Centro Universitário Unieuro/DF.
Dra. Eunice Nóbrega Portela
Doutora em Educação pela Universidade de Brasília (UnB).
Dra. Cirlene Pereira dos Reis Almeida
Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO).
Dra. Marina Arantes Santos Vasconcelos
Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília (UnB).

7
APRESENTAÇÃO

A leitura e a escrita são habilidades que têm importância fundamental em


nossas vidas. Por meio da leitura acessamos o conhecimento acumulado pela
humanidade ao longo dos séculos. A escrita, por sua vez, permite a propagação
e a permanência das ideias.
A pluralidade de estilos composicionais oferece oportunidades de com-
preensões que conduzem os leitores a explorarem perspectivas diferentes por meio
de novos olhares. É nesse contexto que o livro MEMÓRIAS LITERÁRIAS: O
PODER DA LEITURA E DA ESCRITA se apresenta.
A coletânea está organizada em seis Partes Temáticas.
O EIXO I, CAMINHOS DE LEITURA, comporta dois textos.
O primeiro, “Memória Literária, Trovadorismo e Cordel: Uma Proposta
Didática” convida o leitor a mergulhar na herança literária brasileira, exploran-
do a intersecção entre a tradição oral, o trovadorismo e o cordel, propondo uma
abordagem didática de resgate da Literatura de Cordel.
Por seu turno, “Biblioteca Comunitária Roedores de Livros em
Ceilândia/DF: Formação de Leitores nas Vias da Memória” convida a uma
jornada que destaca a importância da formação de leitores como um caminho
para a preservação da memória, do desenvolvimento intelectual e cultural.
A seguir, o EIXO II, LITERATURA E PSICANÁLISE traz quatro textos.
“Garcia Lorca entre Desejo e Erótica em ‘Sonetos do Amor Obscuro’”
analisa aspectos do desejo mergulhando nas complexidades emocionais desse
que é considerado um dos grandes nomes da Literatura espanhola.
O texto “Ressonâncias e Vazios: Um Exame das Lacunas nas Narrativas
Literárias sobre o Inconsciente” discorre sobre perspectivas de ocorrências da
psicanálise na Literatura.
Em seguida, em “Profundezas da Alma Reveladas: Uma Exploração
Psicanalítica da Complexidade Humana na Literatura”, a complexidade da
condição humana é analisada sob a lente psicanalítica, destacando que a pers-
pectiva literária pode revelar os recônditos esconderijos da alma humana.
Por sua vez, o texto “Explorando Memórias Literárias: Análise da
Dualidade Identitária de Jacobina em ‘O Espelho’ de Machado de Assis: Um
Confronto entre o Eu-Homem e o Eu-Outro” analisa a personagem refletida
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
num confronto entre dualidades.
No EIXO III, MULHERES NA LITERATURA, as representações fe-
mininas são abordadas em três capítulos.
O texto “Entre Páginas em Branco e Silêncios Literários: A Mulher e
Sua Ausência” denuncia a ausência de vozes femininas na literatura, a partir do
clássico “Um Quarto Só Seu”, de Virginia Woolf.
Em “Reflexões sobre o que é ser Mulher, Baseadas na Personagem
Elizabeth Bennet de Jane Austen”, a personagem desenvolve reflexões sobre a
feminilidade na literatura.
E em “Além do Tempo: Comentários sobre ‘Memórias de Adriano”
ocorre uma revisitação às memórias do Imperador romano Adriano, com
Marguerite Yourcenar.
O EIXO IV, MEMÓRIAS LITERÁRIAS, EDUCAÇÃO E DIREITO
traz três textos. O primeiro, “Memórias Literárias: O Significado do Ensino da
Leitura e a Escrita na Vida Estudantil” discorre sobre como a educação molda
o desenvolvimento pessoal.
Em “Memórias de Leitura na Formação Acadêmica: Uma Perspectiva
Histórica Sobre a Infância e o Lúdico na Educação”, as autoras revisitam lei-
turas da formação acadêmica, destacando a importância do lúdico na educação.
O texto “Revisando Conceitos e Tecendo Reflexões Sobre a Importância
da Educação Bilíngue no Brasil” apresenta reflexões da importância de uma
educação bilíngue no país.
E o capítulo “Revisitando Conceitos: Sobre a Evolução Histórica dos
Direitos Humanos” oferece uma revisão de conceitos fundamentais na seara
do Direito.
No EIXO V, A ESTÉTICA DA MEMÓRIA E DA EXPRESSÃO, o
texto intitulado “Uma Breve Preleção Sobre o Belo Como Representação do
Bem”, discorre sobre o conceito do “belo”.
No capítulo “Memórias Afetivas na Arteterapia”, as autoras desta-
cam a importância das recordações, lembranças e experiências nos processos
terapêuticos.
E o texto “Versos e Memórias: a Harmonia dos Dias com o Poder da
Leitura e da Escrita” traz uma série de poesias concomitantes a seus respectivos
comentários.
Por fim, no EIXO VI, das RESENHAS, há dois textos.
“Huyssen, Andreas. Seduzidos pela Memória: Arquitetura,
Monumentos, Mídia”, aborda a relação entre arquitetura, monumentos e mídia
na construção da memória.
E, “Caminhos e Memórias de Matões: uma História Secular” é um

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

apanhado sucinto sobre a história da cidade de Matões, no Maranhão.


Sabemos que em um mundo orientado para a informação, cada vez mais
complexo e interconectado, a leitura, a interpretação e a escrita são habilidades
cada vez mais requeridas em qualquer carreira profissional ou campo de estudos.
Esperamos que essa diversidade textual os inspire e divirta!

Brasília, 11 de setembro de 2023.

As Organizadoras
Me. Dirce Maria da Silva
Mestre em Direitos Humanos (Políticas Públicas) pelo Centro Universitário Unieuro/DF.
Dra. Eunice Nóbrega Portela
Doutora em Educação pela Universidade de Brasília (UnB).
Dra. Cirlene Pereira dos Reis Almeida
Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO).
Dra. Marina Arantes Santos Vasconcelos.
Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília (UnB).

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EIXO I

CAMINHOS DE LEITURA
MEMÓRIA LITERÁRIA, TROVADORISMO E
CORDEL: UMA PROPOSTA DIDÁTICA1
Wendel de Souza Borges2

INTRODUÇÃO

Deve-se ressaltar que o interesse deste artigo é contribuir para um diálogo


entre a Literatura e a História dentro do contexto educacional, de maneira a
promover a interdisciplinaridade, o uso da literatura como fonte histórica, uma
reflexão acerca da Idade Média na Península Ibérica e a leitura como meio de
fomentar a memória literária. Para tal intento, optou-se por uma metodologia
analítico-comparativa entre uma cantiga de escárnio do Rei-Trovador gale-
go, D. Afonso X e trechos da obra Lampião & Lancelote (2006), de Fernando
Vilela. Subjacente à metodologia, o estudo é ancorado à História Cultural e à
Residualidade Cultural e Literária, de Roberto Pontes.

DESENVOLVIMENTO

A cantiga trovadoresca satírica de escárnio e de maldizer produzida en-


tre os séculos XII e XIV propicia-nos um meio de informação sobre a socieda-
de medieval ibérica e acredita-se também que ela é memória literária, uma vez
que permanece em textos contemporâneos da literatura portuguesa e brasileira.
Sendo assim, faz-se necessário abordar o contexto histórico que a viu nascer e
prosperar, decair e desdobrar-se em influência para trovadores e poetas porvin-
douros; as suas características transgressoras e seu poder de desconstrução de
um imaginário tradicional instituído, no intuito de conceber outras leituras da
Idade Média.
Devemos rememorar que a poesia trovadoresca medieval da Península

1 Artigo extraído da Dissertação de Mestrado intitulada “Cantigas trovadorescas medievais


galego-portuguesas de escárnio e de maldizer: desdobramentos, transgressão e ensino de
história”, orientada pelo Prof.º Dr.º Getúlio Nascentes da Cunha e defendida na Universi-
dade Federal de Catalão em agosto de 2018.
2 Doutor em Estudos da Linguagem, em estágio pós-doutoral na Universidade Federal de
Uberlândia – [email protected].

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Ibérica, produto cultural propiciado pelo Renascimento do século XII3, é fruto
de uma gama de fatores políticos, religiosos, morais e sociais, deveras transgres-
sivos, construídos e construtores do imaginário do período. A cantiga trovado-
resca tem sido também objeto de pesquisas históricas e apontamentos de repre-
sentações do cotidiano e do imaginário medieval do oeste europeu, de modo
que, segundo José Rivair Macedo (2008, p. 110), as “pesquisas contribuíram
decisivamente para reabilitar aquele período”, e para elucidar algumas de suas
práticas sociais. Os estudos promoveram recentes descobertas sobre o medievo
e sobre as cantigas trovadorescas, de maneira a trazer lume à compreensão das
cantigas e ao período histórico em que estavam em voga. Portanto, essas pes-
quisas sobre o Trovadorismo galego-português favorecem a desconstrução do
imaginário que perdura ainda na sociedade hodierna sobre a Idade Média, uma
vez que, consoante Andréia Silva,
Não é inútil relembrar, aqui, que para algumas parcelas da população bra-
sileira o período medieval ainda é a “Idade das Trevas” ou é compreen-
dido pela perspectiva romântica e idealizadora. Em contrapartida, outros
setores sequer possuem uma referência sobre o período e desconhecem o
patrimônio cultural medieval (Silva, 2013, p. 343).

A literatura do Trovadorismo, inscrita como patrimônio cultural medie-


val, como memória literária e como fonte de referência sobre o período, deve ser
dada a conhecer, não tão somente por uma abordagem literária, mas também
agregando a essa, vieses antropológicos, sociológicos, psicológicos e históricos,
que permitam a sua utilização como ferramenta para o ensino de história e de
literatura. Assim, é necessário criar mecanismos que possibilitem aos docen-
tes e aos discentes, meios de ler as representações sociais construídas em outro
período da história, tanto como o imaginário vigente naquela sociedade e ain-
da, conforme o Plano Curricular Nacional de História (Brasil, 2001, p. 33), “a
construção de noções de continuidade e de permanência” de uma cultura e de
elementos de uma cultura em outra.
É fundamental a percepção de que o eu e o nós são distintos de outros
tempos, que viviam, compreendiam o mundo, trabalhavam, vestiam-se
e se relacionavam de outra maneira. Ao mesmo tempo, é importante a
compreensão de que o outro é, simultaneamente, o antepassado, aquele
que legou uma história (Brasil, 2001, p. 33).

3 Segundo Segismundo Spina (1997, p. 76-77) “o século XII é denominado o segundo Re-
nascimento (o primeiro fora o Carolíngio)”. E ainda, “o século XII surge como um século
dinâmico: criação e desenvolvimento das cidades, realização das Cruzadas e consequente-
mente do comércio ultramarino. Aparição da burguesia. O movimento urbano ocasionou
a transferência da supremacia das escolas monacais para as escolas episcopais; e estas,
eminentemente urbanas, dão origem às universidades do século XIII”.

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

Portanto, o estudo da Idade Média, por meio das cantigas trovadorescas


medievais de escárnio e de maldizer ibéricas, faz-se relevante, já que ele possibi-
lita ao aluno a construção de sua identidade e o “conhecimento sobre si mesmo,
sobre seu grupo, sobre sua região e seu país, à medida que conhece outras for-
mas de viver, bem como as diferentes histórias vividas pelas diversas culturas, de
tempos e espaços diferentes” (Brasil, 2001, p. 33).
Compreendendo as cantigas trovadorescas produzidas entre os séculos
XII e XIV, o aluno pode reconhecer que as cisões e as permanências culturais
brasileiras interligam-se à cultura portuguesa. Segundo José Luiz Fiorin (2009,
p. 117), para “a construção da identidade brasileira teria que ser levada em conta
a herança portuguesa e, ao mesmo tempo, apresentar o brasileiro como alguém
diferente do lusitano”. No entanto, deve-se ressaltar que o vínculo cultural com
Portugal é intenso, uma vez que a ideia de uma identidade genuinamente brasi-
leira remonta ao século XIX (Fiorin, 2009, p. 116).
Nesse ponto, a literatura faz-se relevante como agenciadora no proces-
so histórico da construção da identidade nacional, bem como deixa entrever
o patrimônio remanescente da literatura portuguesa. De acordo com Haquira
Osakabe e Enid Frederico, a literatura,
Pode ser um grande agenciador do amadurecimento sensível do aluno,
proporcionando-lhe um convívio com um domínio cuja principal caracte-
rística é o exercício da liberdade. Daí, favorecer-lhe o desenvolvimento de
um comportamento mais crítico e menos preconceituoso diante do mundo
(Osakabe e Frederico, 2004, p. 49).

Então, literatura e história, prestam-se ao exercício da liberdade de modo a


ampliar o entendimento dos estudantes proporcionando-lhes um comportamento
mais crítico e menos preconceituoso diante do mundo. Este, no qual insere-se é, como
o mundo medieval, dinâmico e complexo, por conseguinte, carente de um olhar
e de uma leitura mais criteriosa, fomentada por ambas as disciplinas, de modo
a, conforme o PCN de História,
Oferecer um contraponto que permita ressignificar suas experiências no
contexto e na duração histórica da qual fazem parte, e também apresentar
os instrumentos cognitivos que os auxiliem a transformar os acontecimen-
tos contemporâneos e aqueles do passado em problemas históricos a se-
rem estudados e investigados (Brasil, 2006, p. 65).

Essa afirmação evidencia a relevância e a necessidade de oportunizar


ao discente a utilização de recursos capazes de auxiliarem na sua construção
social, disponibilizando meios para que ele tenha a criticidade necessária para
problematizar o presente e o passado. Nesse sentido, pode-se ainda investigar o
passado através de permanências e elementos remanescentes no presente, pois

14
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
se é dado acreditar em sua sobrevivência no imaginário, nas práticas, nas repre-
sentações e nas memórias literárias.
Concorda-se com Schmidt (1997, p. 57), quando afirma que, “a sala de
aula não é apenas onde se transmite informações, mas onde uma relação de
interlocutores constroem sentidos”. Para que essa relação possa ser edificada,
foi elaborada uma proposta para o uso da cantiga trovadoresca medieval galego-
-portuguesa, especificamente a de escárnio e de maldizer, tanto para as aulas de
literatura quanto de história.
Embora a poesia trovadoresca medieval galego-portuguesa pareça restri-
ta a uma determinada época, uma vez que se estabeleceu, como afirma Maria
Tarracha Ferreira (1980, p. 9), “entre os fins do século XII, com o provável dos
primeiros documentos escritos não literários, e 1434, ano em que Fernão Lopes,
nomeado pelo rei D. Duarte cronista-mor do reino, cria verdadeiramente a prosa
literária nacional”. Por outro lado, há que se acreditar, como sugere Spina (1974,
p. 11), que as manifestações literárias portuguesas da Idade Média, prolonga-
ram-se até o ano de 1597. Por isso, o autor divide o período literário medieval
em “dois grandes movimentos literários”: o Trovadorismo e a poesia palaciana
do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende.
Mesmo que ambas as manifestações tivessem sua individualidade e pecu-
liaridades, há certas características que se mantiveram de uma na outra, como
a devoção pela dama e os embates poéticos. Portanto, acredita-se que as produ-
ções literárias são, parcialmente, fruto de rupturas com os momentos literários
precedentes, mas também construções estéticas e ideológicas remanescentes de
outros períodos que se encontram ativas no imaginário social. Mesmo que à
época da chegada dos portugueses em território brasileiro, seja coincidente com
à poesia do Cancioneiro Geral, foi a poesia do Trovadorismo que aqui desem-
barcou das naus portuguesas com uma tripulação que era eminentemente popu-
lar, por isso mais próxima da estética trovadoresca, uma vez que aquela estivesse
restrita aos salões das cortes palacianas (Fernandes, 2015, p. 171); e essa, era um
tipo de poesia que circulava por todas as categorias sociais.
Confrontamos os dois movimentos literários com o intuito de mostrar o
elo primevo entre a literatura portuguesa e sua inserção em terras brasileiras,
uma vez que a poesia constante no Cancioneiro Geral já prenunciava o apareci-
mento da Renascença cultural em Portugal, com as novidades estéticas trazidas
da Itália por Sá de Miranda, em 1526, como a medida nova4 que se contrapunha
a que foi denominada de medida velha.

4 Influenciados pela poesia do italiano, Francesco Petrarca (1304-1374), os poetas palacia-


nos passaram a adotar o que foi cognominado de medida nova, ou seja, composições
poéticas decassílabas, organizadas em dois quartetos e dois tercetos, o soneto. Já a medida
velha é uma forma de composição poética pentassilábica ou heptassilábica.

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

As composições poéticas produzidas em medida nova, como sonetos e


éclogas não se popularizaram de imediato, permanecendo circunscritas ao am-
biente aristocrático, em contrapartida, a poesia trovadoresca, outrora produzida
e cantada por nobres trovadores, agora integrava o imaginário popular. Em con-
sonância com Luís Soler,
Efetivamente, aqueles grupos [marinheiros] não foram recrutados entre as
camadas que podiam estar mais ou menos impregnadas da mudança de
civilização representada pela Renascença. Eram populações a nível de sol-
dadesca, de camponeses e pequenos comerciantes, no melhor dos casos;
de párias e buscadores de fortuna. [...] Por outra parte, na Corte lisboeta,
o “espírito da Renascença” certamente, aparelhava naus, fornecia armas
e recursos. Mas o que embarcou no outro lado do Atlântico, foi ainda
o “espírito medieval” com suas lendas, suas crendices e seus mitos, seus
hábitos, sua tábua de valores humanos e morais, suas rústicas diversões e
suas artes despretensiosas (Soler, 1978, p.74).

Logo, mediante essa permanência e em conformidade com a teoria da


Residualidade Cultural e Literária, proposta por Roberto Pontes (1999), há re-
síduos culturais que permanecem ativos no imaginário social e estes remanes-
cem de outros períodos nas produções culturais da contemporaneidade, por isso
transgressores do espaço-tempo. Sendo assim, o docente pode optar como me-
todologia, para a utilização das cantigas trovadorescas de escárnio e de maldizer
no ensino de história, partir de um texto da contemporaneidade, a fazer assim,
o deslocamento proposto por Marc Bloch (1965).
Publicado em 2006, o poema narrativo de caráter heroico-cômico, Lampião
& Lancelote, de Fernando Vilela5, narra em 282 versos heptassílabos (com algu-
mas poucas variantes hexassilábicas), a história do encontro entre as duas per-
sonagens no sertão nordestino brasileiro. Embora seja um extenso poema, utili-
zamos apenas os trechos necessários para que fosse realizada a análise. O texto
foi utilizado também como parâmetro para verificar o imaginário a respeito da
cavalaria e do cavaleiro e sua permanência na contemporaneidade, de modo a
fazer um contraponto com a análise da cantiga trovadoresca galego-portuguesa.
Favoreceu também a escolha do poema de Fernando Vilela, o fato de que
ele é uma forma de narrativa que se inscreve dentro do gênero de poesia popu-
lar, denominada de Literatura de Cordel6. Esta, reconhecidamente um elemento
característico e caracterizador da cultura, da identidade e da memória brasileira,

5 Fernando Vilela nasceu em São Paulo, em 1973. Graduou-se em Artes Plásticas pela UNI-
CAMP e tornou-se mestre pela ECA-USP. Além de escritor é também gravurista e professor.
6 Conforme o site do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a Li-
teratura de Cordel encontra-se em processo de tramitação de número 01450.008598/2010-
20, datado de 22/02/2010 para o seu tombamento como patrimônio imaterial brasileiro.
Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/426.

16
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
que, no entanto, estabelece vínculos residuais com a literatura luso-galega do
Trovadorismo.
Partamos então desse gênero de poesia popular, cuja origem reside em
Portugal e que aportou em terras brasileiras no século XVI, pois consoante
Marco Haurélio (2010, p. 14), seu “substrato chegou ao Brasil [...] à bordo das
primeiras caravelas”, pois “é próprio do homem, em seu constante deslocamen-
to geográfico, levar consigo, além dos conhecimentos que lhe garantam a sobre-
vivência, a sua cultura”. Expoente da cultura popular portuguesa, o cordel luso,
como afirma Maria Lopes-Rossi (2012, p. 161), “foi alterado e adaptado pelos
poetas populares nordestinos e hoje a literatura de folhetos”, como também é
designada a literatura de cordel, “publicada no Nordeste brasileiro apresenta
características próprias” que, segundo Mark Curran (2003, p. 17), “exibe mé-
trica, temas e performance da tradição oral”, uma vez que seus produtores e sua
audiência eram, a princípio, de modo geral, ágrafos.
Por isso, de acordo com Lopes-Rossi (2012, p. 161), “os cordéis eram
apresentados oralmente, em cantorias e desafios, e a conservação das produções
se dava por meio da memorização pelo público”. Tal qual ocorria com as canti-
gas trovadorescas medievais, o processo de difusão do Cordel era oral, portanto,
é imprescindível ao docente, solicitar ou realizar a leitura coletiva, recitando o
poema de Fernando Vilela, de modo que o aluno perceba a musicalidade dos
versos. Isso feito, deve-se destacar o vínculo do poema à tradição da Literatura
de Cordel e da literatura trovadoresca, pautada em uma oralidade primordial e
em uma estrutura estética peculiar.
Outro fator que colaborou para a cristalização das cantigas trovadorescas
no imaginário popular além do seu caráter oral, é a sua associação entre o texto
e a música, o que, consoante Adriana Rennó (1999, p. 114), facilitava “a memo-
rização dos versos por parte do público-ouvinte”. Tal memorização acontecia
também graças ao ritmo e à métrica da própria construção poética que interca-
lava sílabas tônicas e átonas, escandindo os versos, na maior parte das cantigas,
em redondilhas menores (versos pentassilábicos) e em redondilhas maiores (ver-
sos heptassilábicos), ou seja, compostos em medida velha.
Além da estrutura versificatória setissilábica, pode-se ressaltar ainda, a
presença das rimas como componente fundamental para a obtenção da musicali-
dade. Na obra Lampião & Lancelote, ela é organizada, de modo geral, em sextilhas
e septilhas, cujo esquema rímico é, respectivamente, ABCBDB e ABCBDDB.
Verificada pois, a questão residual na estrutura do poema, o primeiro per-
sonagem a ter sua aparição na obra analisada é Lancelote e é assim apresentado.

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

Meu povo peço licença


Para lhes apresentar
O primeiro personagem
Que aqui vai desfilar
Bom e nobre cavaleiro
Valoroso e altaneiro
Passa a vida a galopar
Ele é forte e delicado
Seu cavalo é todo branco
Trajado em armadura de prata
Capa de bordado santo
A luz do sol se reflete
Feito dardo se arremete
Todos cegam de espanto
Agora vou lhes dizer
Este homem é tão forte
Que mesmo em fogo cruzado
Levanta a cabeça e luta
Espalha bravura arguta
O seu nome é Lancelote”
(Vilela, 2006).

A princípio, pode-se ressaltar que a maneira em que os versos iniciais do


poema são apresentados é uma proposição remanescente da estrutura poética
do gênero épico. O cavaleiro apresentado na proposição é Lancelote. Integrante
do ciclo bretão7, esse personagem é a personificação dos ideais da nobreza e da
cavalaria medieval. Embora não seja uma criação da literatura ibérica é certo de
que se trata de uma figura bastante popular, uma vez que várias versões de sua
história foram construídas e reconstruídas entre o século XII e os dias atuais.
Em um anônimo Lais, cantiga trovadoresca com a matéria da Bretanha,
essa valorosa personagem, também nomeada Lançarote em Portugal, aparece
referida na seguinte rubrica que antecede a cantiga: Este lais fezerom donzelas
a dom [L]ançarot quando estava na Ínsoa da Lidiça, quando a Rainha Genevra
[o] achou com a filha do Rei Peles, e lhi defendeu que nom parecesse ant’ela
(Lopes e Ferreira, 2011, on-line).
Mesmo que a parte referente à matéria da Bretanha seja composta de
apenas oito cantigas, as narrativas do ciclo arturiano circulavam no ambiente
cortesão no qual nasceu e desenvolveu-se o Trovadorismo, inspirando e influen-
ciando o modus vivendi da cavalaria peninsular cristã. No fragmento de Lampião

7 Conforme Spina (1997, p. 24), os temas épicos, na Idade Média, eram agrupados em ci-
clos. Dos quais podem-se destacar o ciclo “clássico, por ilustrar figuras heroicas extraídas
do mundo clássico mediterrâneo (Grécia-Tróia-Roma); um segundo, denominado bizanti-
no, cuja procedência se deve às Cruzadas religiosas; e um terceiro grupo, o mais importan-
te, fruto da influência bretã e suscetível de classificar-se em três ciclos: o arturiano, o ciclo
de Tristão e o ciclo do Graal”.

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
& Lancelote, a representação desse personagem assenta-se no uso de adjetivos
como, bom, nobre, valoroso, altaneiro, forte e delicado, esses representam os valo-
res idealizados e admirados pela nobreza bélica que, no intuito de minimizar
a violência da sociedade medieval, adota um código de conduta que visava a
domesticação do cavaleiro nobre para uma vida na corte.
Destaca-se também, no poema, a associação metonímica entre o cavaleiro e
o cavalo, no verso “passa a vida a galopar”, que sugere que ambos se estabelecem
como uma unidade, esta, realiza uma atividade dinâmica em um espaço aber-
to e amplo, de modo a representar o espírito guerreiro, a vagância e a liberdade
atribuídos aos cavaleiros andantes. Essa imagem foi construída e resguardada na
memória literária, pois segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2006, p. 201),
“a figura do cavaleiro subsiste, não só na literatura ocidental da Idade Média,
como em todas as literaturas modernas”. Lancelote é o eleito entre os melhores,
que se põe a ocupar-se de aventuras, como fazem os demais cavaleiros da Távola
Redonda, nas andanças em demanda do sagrado, personificado pelo Graal.
O professor pode destacar também o processo de hibridismo cultural entre
elementos cristãos e pagãos, próprios da Idade Média, pois sendo uma persona-
gem mítica anterior ao cristianismo, ele transfigura-se em um representante dessa
religião, uma vez que o branco do cavalo, em unidade com o cavaleiro, simboliza
dentro dela os ideais de pureza e ascetismo, sendo pois, de acordo com Chevalier
e Gheerbrant (2006, p.144) “a cor da teofania (manifestação de Deus)”. Essa pre-
sença espiritual cromática associa-se também ao prata, cor da armadura na qual
tanto cavalo quanto cavaleiro parecem estar investidos. Esse prateado da armadu-
ra, na qual “a luz do sol se reflete”, que refulge com tamanha intensidade e que a
“todos cegam de espanto”, pode ser associado ao carro solar, geralmente puxado
por cavalos, esse objeto mítico é presente tanto no paganismo, relacionado à trági-
ca viagem de Faetonte, quanto no cristianismo, à ascensão de Elias.
Outro aspecto que pode ser abordado reside na incidência da expressão
fogo cruzado, que por meio de uma equivocatio, refere-se tanto à violência da guer-
ra, quanto às cruzadas e por extensão, aos expedicionários que nela incorriam,
os cruzados. Deve-se lembrar que parte da Península Ibérica, espaço em que se
desenvolveu o Trovadorismo e onde se deu o nascimento do Cordel, esteve du-
rante aproximadamente oito séculos sob o domínio muçulmano. E contra esse
conglomerado, os cavaleiros lançavam-se em cruzada, empreendendo sangren-
tos combates entre o norte cristão e o sul muçulmano, naquilo que foi chamado
de Reconquista Cristã.
Esse entrave bélico de quase 800 anos favoreceu o convívio entre os povos
das duas religiões que se influenciaram mutuamente, dentre tantos e variados as-
pectos, na língua e na literatura. O conflito propiciou também o desenvolvimento

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

da cavalaria, que por sua vez incendiou o imaginário daquela e das gerações
vindouras com uma imagem romantizada da guerra e em meio a ela, atos de
“bravura arguta”, a criação de uma cavalaria modelar e a figura do herói.
Em uma sociedade em que a informação é mediada oralmente, muitas
vezes os fatos e a fantasia entrelaçam-se de modo a constituir uma narrativa ori-
ginal que representa os valores ali em vigência. Sendo assim, a imagem fictícia
e real de Lancelote, tal qual representada no excerto permite-nos inferir que ela
pouco ou nada se modificou, mantendo-se no imaginário popular como o ideal
de cavalaria, representação da coragem, do espírito de combate, da virilidade e
da vassalagem amorosa, presente no amor cortês. Por isso, a alusão a ele suscita
na memória literária de mulheres e homens, um modelo de devoção amorosa e
arquétipo de masculinidade e cavalheirismo.
Essa memória e imaginário residual transgrediram o espaço peninsular
e o período médio, sobrevivendo em personagens constantemente reinseridos
como temas na Literatura de Cordel. E ainda, estabelecendo uma analogia en-
tre esse remanescente e as personagens típicas brasileiras, como o controverso
Lampião, pois este é também apresentado como um formidável guerreiro.
Agora eu lhes apresento
Um grande cangaceiro
Nascido em nosso país
Leal e bom companheiro
Para uns foi criminoso
Para outros justiceiro
Criado nas terras secas
Vaqueiro trabalhador
Cuidava de um ralo gado
Com coragem e com valor
Seu nome era Virgulino
Mas um dia veio a dor
Ao ver seu pai baleado
Ele partiu pra vingança
À frente dos cangaceiros
Se pôs logo em liderança
Bando de cabras armados
Ao inimigo com ganância!
(Vilela, 2006).

Personagem típico do Sertão nordestino, essa figura histórica é presente


no imaginário brasileiro de maneira mais intensa nessa região do que nas ou-
tras, embora estas também o identifiquem como um elemento componente da
cultura nacional, ou como apresentado no poema, “nascido em nosso país”. Tal
qual Lancelote, Lampião é possuidor também de (quase) todos os atributos re-
ferentes à cavalaria, como a lealdade, o companheirismo, a coragem e o ímpeto

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
guerreiro, exceto seu nascimento simples e seu ofício, visto que foi “criado nas
terras secas”, exercendo, primordialmente, a função de “vaqueiro”.
Embora não tenha nascimento nobre, para muitos o seu ideal o é: sua luta
é por vingança, motivada pelo assassínio de seu pai (Allysson Martins, 2014, p.
172). A representação dele edificada apresenta uma dupla leitura, conforme o poe-
ma, “para uns foi criminoso/para outros justiceiro”. Nesse último caso, vingança
poderia ser entendida como uma forma de justiça exercida pelo sertanejo, pelo tra-
balhador de poucas posses a cultivar as terras áridas e a cuidar “de um ralo gado”.
Assim, a sua proveniência humilde e a sua ambição não o aviltam, ao
contrário, o elevam e o redimem dos eventuais crimes que tenha cometido, por-
que o homem simples e cotidiano nele se reconhece e reconhece nele um guer-
reiro, um cavaleiro, um defensor dos oprimidos contra a cobiça dos poderosos,
um símbolo de vitória contra as injustiças sociais cometidas contra a população
do Nordeste brasileiro, portanto, um exemplo de resistência. O professor pode
salientar o vigor dessa personagem e sua permanência no imaginário social des-
tacando sua massificação na televisão brasileira, com a minissérie Lampião e
Maria Bonita (1982), sua emergência no cinema, com o filme Baile perfumado
(1997) e no movimento multicultural, Manguebeat.
Portanto, ambos os personagens, presentes na história e na literatura, in-
tegram o imaginário social brasileiro e ainda, reforçam a imagem construída
dos cavaleiros da Idade Média. Qualidades como a disciplina, a lealdade, a opu-
lência, a coragem, a capacidade de liderança e a habilidade na arte da guerra,
todas elas ligadas às questões marciais da cavalaria, vão para além destas, eram,
sobretudo, uma forma de conduta moral que os distinguiam como categoria
social e como arquétipo de valentia e perfeição.
Muito embora a representação que se faz no poema do cavaleiro e por
extensão, da cavalaria medieval nos permita uma leitura daquele período, deve-
-se creditar à literatura uma certa hipérbole das características imanentes a essa
ordem social. No entanto, é também a literatura que nos fornece uma outra pos-
siblidade de leitura da cavalaria e do cavaleiro. Essa, menos idealizada, fornece-
-nos elementos que possibilitam desconstruir o imaginário referente ao cavaleiro
medieval, humanizando-o ao expor características que estavam em desacordo
ao modelo de cavalaria.
Embora fosse função da nobreza empunhar armas no campo de combate
e muitas vezes, mediante essa função, se acovardar ante às pelejas, o coteife8 foi
também alvo do escárnio de jograis e trovadores dos cancioneiros medievais ga-
lego-portugueses, como nessa feroz cantiga de D. Afonso X, presente em Lopes,

8 Conforme Lopes e Ferreira et al (2011, on-line), é “o cavaleiro vilão”. Portanto, a cavalaria


não era composta apenas de cavaleiros provenientes da nobreza.

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

O genete
pois remete
seu alfaraz corredor
estremece
e esmorece
o coteife com pavor.
Vi coteifes orpelados
estar mui mal espantados
e genetes trosquiados
corriam-nos arredor;
tinham-nos mal aficados
[ca] perdian’a color.
Vi coteifes de gram brio
eno meio do estio
estar tremendo sem frio
ant’os mouros d’Azamor;
e ia-se deles rio
que Auguadalquivir maior.
Vi eu de coteifes azes,
com infanções iguazes,
mui peores ca rapazes;
e houveram tal pavor,
que os seus panos d’arrazes
tornarom doutra color.
Vi coteifes com arminhos,
conhecedores de vinhos,
e rapazes dos martinhos
que nom tragiam senhor
sairom aos mesquinhos,
fezerom tod’o peor.
Vi coteifes e cochões
com mui [mais] longos granhões
que as barvas dos cabrões:
[e] ao som do atambor
os deitavam dos arções
ant’os pees de seu senhor9.
Lopes (2002, p. 81).

9 Tradução livre a partir do glossário disponível em: https://cantigas.fcsh.unl.pt/glossario.asp.


O genete/quando remete/seu alfaraz corredor/estremece/e esmorece/o coteife com pavor/
vi coteifes orpelados/estarem gravemente espantados/e genetes tosquiados/corriam ao re-
dor/tinham-nos encurralados/que perdiam toda cor//vi coteifes de grande brio/e no meio
do estio/tremerem sem frio/ante os mouros de Azamor/e ia-se deles rio/maior que o Au-
guadalquivir//vi eu uma ala de coteifes/com infanções iguais/muito piores que rapazes/e
tiveram tamanho pavor/que seus panos d’arrás/tornaram-se d’outra cor/vi coteifes com
arminhos/conhecedores de vinhos/e rapazes dos martinhos/que não tinham senhor/saí-
ram infelizes/fazendo muito pior/ vi coteifes e cochões/com mais longos granhões/do que
barbas dos cabrões/a ao som do tambor/desciam dos arções/ante aos pés do seu senhor.

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
A narrativa de Afonso X constrói uma dinâmica imagem do movimen-
to bélico da Reconquista, compondo um cenário perturbador sobre o compor-
tamento desse grupo da aristocracia vilã (Fernandes Marques, 1996, p. 253),
ante à violência da guerra e à iminência da morte. Violência e iminência essas
corroboradas pela escrita atribuída a Rui de Pina (Sousa, 1989, p. 28), em sua
Crónica do Rei D. Afonso IV, de Portugal, que relata uma batalha entre cristãos e
muçulmanos,
E de todos estes exercytos, dos Christãos e dos Mouros, sayram tamtas
grytas, com tamtos estromdos de trombetas e atabaques e d outros des-
vayrados estormentos, que claramente momtanhas e vales tremyam, e pa-
reçia que ha cousas todas da tera de seus propyos luguares se movyam e
aramcavam, sendo esta batalha tam cruamemte fferyda, que has armas e
as ervas e as pedras do chão, heram ja todas timtas em sangue (Citado por
Sousa, 1989, p. 29).

A violência das batalhas e da guerra compunha o imaginário do homem


medieval, sobretudo, criando um perfil do guerreiro mouro como um agente de
crueldade e também de valentia, como atesta a cantiga que, por um lado critica
a falta de ação combativa dos coteifes, por outro enaltece a bravura, a destreza
e a simplicidade dos cavaleiros muçulmanos, que traziam a cabeça raspada e o
rosto escanhoado, conforme o termo trosquiados, em detrimento dos cavaleiros
cristão orpelados, termo utilizado sob a forma de equívoco, que alude tanto à lu-
xuosa indumentária que trajavam, quanto ao uso da barba, “o seu atributo viril”
(Fernandes Marques, 1996, p. 257).
Neste escárnio de mestria, composto em sete estrofes, cujo esquema rí-
mico na primeira estrofe é AABAAB e para as demais AAABAB, o Rei-Sábio,
achincalha o coteife ou cavaleiro vilão que “estremece” ante à vista do genete:
segundo Lopes e Ferreira (2011, on-line), provavelmente um guerreiro benime-
rim do Marrocos. Estes bravos guerreiros fechavam o cerco contra os cavaleiros-
-vilãos que esmoreciam e “perdian’a color”. Assim o poeta joga com a premissa
da falsa coragem, pois quando o cavaleiro se apresenta permite-se supor uma
presença valorosa, como nos versos iniciais: “Vi coteifes orpelados”; “Vi coteifes
de gram brio”; “Vi eu de coteifes azes”; “Vi coteifes com arminhos”.
No entanto, na quebra da expectativa, uma vez que se apresentavam exa-
geradamente bem trajados denotando valor é que reside a sátira e o humor, pois
os cavaleiros-vilãos, apesar de imponente figura, perdiam a valentia e o controle
de suas funções fisiológicas, uma vez que “ia-se deles rio e que os seus panos
d’arrazes / tornarom doutra color”, ante as investidas do guerreiro muçulmano.
Os versos em destaque encontram, para Graça Lopes (2002, p. 8), o mesmo
sentido das expressões populares contemporâneas “mijar de medo” e “borrar as
calças”. Ao evidenciar o baixo material e corporal do grupo satirizado, o poeta

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
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suscita o riso, ridicularizando os temerosos com a escatologia incontrolável de


seus corpos. Segundo Macedo (2000, p. 146), “os covardes, [...] eram apresen-
tados em traços ridículos durante as batalhas, por vezes chegando a urinar ou
defecar”, sendo, portanto, ambos os atos a representação e a materialização do
próprio imaginário sobre a covardia.
A constatação desse quadro, como afirma Bakhtin (2013, p. 17), é que
ele representa “o rebaixamento, isto é, a transferência ao plano material e cor-
poral, o da terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado,
espiritual, ideal e abstrato”. Logo, a cantiga desconstrói o imaginário referente
à cavalaria medieval, cuja literatura, seja nas canções de gesta, nas novelas de ca-
valaria ou nos lais de matéria da Bretanha, funda-se na representação de cavalei-
ros valorosos e destemidos, pois conforme Jean Delumeau (2009, p. 15), “a lite-
ratura das crônicas é igualmente inesgotável no que diz respeito ao heroísmo da
nobreza e dos príncipes. [...] Apresenta-os como impermeáveis a todo temor”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Delumeau (2009, p. 18) ratifica que “em qualquer época, a exaltação do


heroísmo é enganadora: discurso apologético, deixa na sombra um vasto campo
da realidade”. Isto é, aquilo que se esconde, uma vez comungado socialmente,
desperta o vexatório que não se antepõe diante dos olhos, mas cuja imagem é
construída por meio da narrativa da trova, que desvela, objetivando a troça e o
riso, os bastidores e a realidade dos campos de combate.
A literatura medieval das cantigas trovadorescas galego-portuguesas de
escárnio e de maldizer produzidas entre os séculos XII e XIV, ressaltam as falhas
e os vícios praticados por parte da sociedade peninsular ibérica da Idade Média.
A figura do cavaleiro, seja ele aristocrático ou vilão, é escarnecida. E por inter-
médio das composições de trovadores e jograis utilizadas como fonte histórica
do complexo sociocultural do medievo cristão, somos informados da ganância,
da violência, das práticas pagãs e da covardia em batalha dos cavaleiros inte-
grantes da cavalaria cristã utilizada no processo de reconquista.
É possível perceber que a história e a literatura não são feitas apenas de
rupturas, mas de permanências e ressignificações culturais que põem abaixo
uma metodologia crente de uma linearidade literária e histórica. Assim, é ex-
pressiva a força da literatura que, se por um lado se põe a reforçar uma memória
literária de heroísmo, por outro permite a desconstrução do imaginário vigente,
de modo que não necessariamente se excluam, mas que se complementem ou
oportunizem outras possiblidades de leitura sobre o mesmo tema ou o mesmo
período histórico.

24
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
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26
BIBLIOTECA COMUNITÁRIA ROEDORES DE
LIVROS EM CEILÂNDIA/DF: FORMAÇÃO DE
LEITORES NAS VIAS DA MEMÓRIA
Marina Arantes Santos Vasconcelos1
Ana Paula Bernardes2

INTRODUÇÃO

“Como nos sonhos,


atrás das altas portas não há nada,
nem sequer o vazio.
Como nos sonhos,
atrás do rosto que nos contempla não há ninguém.
Anverso sem reverso,
moeda de uma única efígie, as coisas.
Essas misérias são os bens
que o precipitado tempo nos deixa.
Somos nossa memória,
somos esse quimérico museu de formas inconstantes,
essa pilha de espelhos rotos.”
Jorge Luis Borges in Elogio da Sombra (1985).

A universalidade da literatura advém da particularidade de seu traçado. A


captura do instante reverbera nas ondas da imaginação e tornam-se memórias,
que carregam em si o potencial da cristalização e a oportunidade de eternização.
Assim podem ser compreendidas as memórias literárias em relação à experiên-
cia leitora. A vivência proporcionada pelo encontro com a leitura literária pode
ser transformadora e proporcionar descobertas capazes de estimular o desen-
volvimento psíquico e emocional desde as primeiras etapas de escolarização e
socialização humanas.

1 Marina Arantes Santos Vasconcelos é Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade


de Brasília e Professora da Educação Básica na Secretaria de Estado de Educação do Dis-
trito Federal. E-mail: [email protected].
2 Ana Paula Bernardes é Graduada em Artes Plásticas pela Universidade de Brasília, Es-
critora e Professora da Educação Básica na Secretaria de Estado de Educação do Distrito
Federal. E-mail: [email protected].

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

Coletiva ou individualmente, a prática da leitura deve ser incentivada em


todas as fases da vida. Os ancestrais da cultura ocidental já cultivavam o hábito
de contar histórias em rodas de conversa e convívio já desde a formação dos
primeiros clãs, formadores de família e sociedades. A oralidade é o ponto de
partida da cultura literária, que foi se sedimentando com o desenvolvimento da
escrita e a sofisticação dos meios de comunicação. Os registros perpetuados na
memória, contudo, permanecem arraigados na experiência dessas formas primi-
tivas de transmissão de crenças e valores.
A necessidade de se forjar mecanismos e ferramentas de armazenamento
do conhecimento e dos saberes herdados já desde os povos antigos culminou na
construção de estabelecimentos para preservação desse material enriquecedor
da cultura humana, que consiste no acúmulo de registros pictóricos e gráficos
da vida na Terra, incluindo os primeiros livros, mapas, pinturas, entre outros
verdadeiros tesouros artísticos e culturais do gênero humano.
Nesse contexto é que se situam as bibliotecas – autênticos memoriais
da ciência e da cultura –, entre as quais citamos a Biblioteca Comunitária de
Literatura Infantojuvenil no Shopping Popular de Ceilândia, no Distrito Federal,
Brasil, onde é desenvolvido o Projeto Roedores de Livros (PRL), com oficinas
de criação e mediação de leitura, a partir do qual são valorizadas as memórias
afetivas dos participantes, por meio da leitura de livros que têm o potencial de
marcar a infância e a juventude de crianças e adolescentes que frequentam o
espaço, assim como se pode perceber como a experiência leitora influencia a
criatividade e a imaginação, estimuladas por livros e autores específicos, que
influenciam na formação de valores e crenças desses jovens leitores.
Trata-se de um projeto que visa oferecer ferramentas e estratégias que
viabilizem o compartilhamento de memórias literárias particulares com outros
grupos de pessoas e promovam a conexão entre essas memórias literárias e a
literatura como patrimônio cultural.

28
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
DESENVOLVIMENTO

O Projeto Roedores de Livros é considerado por Ana Paula Bernardes


(2019) como um modo de se estabelecer sintonia com o mundo a partir da li-
teratura. Na condição de mediadores, os desenvolvedores do PRL partilham
histórias e colhem os frutos dessas partilhas com o público infantojuvenil. A
proposta é a realização da leitura com as crianças, e não para elas. Em um espa-
ço que abriga um acervo com mais de cinco mil livros infantojuvenis, localizado
na Torre A do Shopping Popular da Ceilândia (DF), são realizados encontros
em que ocorre a mediação de leituras, assim como empréstimos de livros, encon-
tros com escritores, ilustradores, editores, entre outros, de forma voluntária. No
gesto da partilha, segundo os idealizadores, adultos e crianças se tornam mais
tolerantes, amplificando os afetos, descobrindo-se mais plurais e mais humanos.
Realizado com recursos do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal
(FAC/DF), o Projeto consiste em uma ferramenta de compartilhamento de vi-
vências. O Instituto Roedores de Livros, associação sem fins lucrativos, nasceu
como projeto de leitura de 2006, que evoluiu e se consolidou como a Biblioteca
Comunitária Roedores de Livros. Nesses 17 anos, a Biblioteca destacou-se na
área de livro, leitura e literatura, formando acervo de mais cinco mil livros li-
terários infantojuvenis com qualidade e diversidade. Foi reconhecida no 16º
Concurso FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil) em “Os
Melhores Programas de Incentivo à Leitura junto a Crianças e Jovens de todo o
Brasil” (2011) e pelo Prêmio “Todos por um Brasil de Leitores” do MinC (2016).
O objetivo do PRL é despertar nas crianças e adolescentes o prazer pela
leitura e facilitar o acesso ao livro literário, contribuindo para formar um leitor
autônomo, capaz de desenvolver uma leitura crítica do seu mundo, por meio de
atividades gratuitas de mediação de leitura e oficinas de arte, encontros com au-
tores e ilustradores, empréstimos de livros, além de formar mediadores de leitura
e apoiar a organização de outras bibliotecas.
O Projeto é a razão de existir da Biblioteca, seja com trabalho volun-
tário, recursos públicos (editais) ou privados (doações). Já foram executados
três projetos por meio do Fundo de Apoio à Cultura do Governo do Distrito
Federal, com ampliação da oferta dos serviços. Nas palavras da colaborado-
ra Edna Freitas, consoante relato feito para o Diário dos Roedores de Livros
(Bernardes; Freitas, 2008), em edição datada de 31 de maio de 2008:

29
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

Nosso quadro de voluntários efetivos estava somente com 50%: eu e Célio.


Ana e Tino continuavam representando os Roedores no 10º Salão FNLIJ
do Livro para Crianças e Jovens no Rio de Janeiro. Dessa forma, além
de nosso assistente Daniel, escalamos dona Emília e Jardson para nos
ajudar. E foram ótimos! Em nosso primeiro momento orientei as crianças
a folhearem os livros. Observando o que gostam, enfim, sentindo o livro.
Algumas acharam até que tínhamos livros novos. Expliquei a mudança
de nosso olhar sobre as coisas, a cada dia. Disse-lhes também que tinha
uma surpresa para eles: alguém iria contar uma história. Quem? Quem?
Todos perguntaram. Apresentei-lhes dona Emília como a nossa contadora
de histórias do dia. Foi aplaudida por todos. Ela contou uma história de
“antigamente”, como ela mesma disse. Em intervalos diferentes, acabou
contando três histórias. Seguimos escalando quem gostaria de contar al-
guma história já ouvida anteriormente ou alguma que tenha sido lida por
eles nas semanas anteriores. Vitória contou uma história que ouvira de
alguém. Deysiane fez uma mediação ótima do livro O Livro! Mostrou que
quando a mediadora já conhece a história, tudo fica mais claro e gostoso
de ouvir. Marcela leu A Boca do sapo. Daniel, por sua vez, contou sobre o
livro da minhoca (Tem um cabelo na minha terra), o mais solicitado nos
últimos dias. Fiquei impressionada com a Wanessa e sua leitura de Deus
me ama como sou. Ela aprendeu direitinho como se faz a mediação. E
demonstrou conhecer muito bem o livro escolhido. Célio, inicialmente,
entregou um livro a dona Emília que escolheria uma criança para ganhá-lo
como prêmio por bom comportamento. Foi a própria dona Emília que
ganhou o livro, pela votação da maioria. Depois, Célio tirou mais três
livros da “cartola” que premiaram Jardson, Wanessa e Deysiane. Foi uma
alegria geral. Com estas demonstrações de puro prazer no ato de ler, senti
que estamos no caminho certo. Servimos leitura feito água de beber. E
agora, a leitura é-nos ser-vida, também, feito água de beber. Ouvir toda
as crianças lerem pelo simples prazer de ler, valeu por tudo. Em O prazer
do texto, Roland Barthes está muito certo quando nos diz que o texto é um
jogo de sedução. Tudo pode acontecer. Aqui, no Roedores de Livros, não
temos dúvida de que as crianças foram seduzidas pelo texto. E ler, hoje, é
um grande prazer. Valeu! Obrigada Célio, dona Emília, Daniel, Jardson,
e todas as crianças que, empenhadamente contribuíram para que o nosso
dia de hoje fosse um show de leitura. Wanessa, valeu! Ana e Tino, voltem
logo. Nosso efetivo de voluntários é ainda muito pequeno. Sinto que nosso
projeto acontece redondo quando estamos os quatro. E quem mais vier
será sempre muito bem-vindo. Sempre (Bernardes; Freitas, 2008).

Em execução desde 2006, o Roedores de Livros completou dezesseis anos


de existência em 7 de maio de 2022, oferecendo um sarau de aniversário na
Biblioteca Comunitária que recebe o nome do Projeto, em Ceilândia/DF. De
acordo com as informações divulgadas no site oficial, “(...) Teve bolo gostoso,
docinhos e salgados, história boa pra criançada, música e poesia para os con-
vidados e muita emoção ao relembrar as muitas histórias desses 16 anos. (...)”
(Bernardes; Freitas, 2022).
A Biblioteca é pioneira na adoção dos quatro principais eixos para

30
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
fortalecimento das bibliotecas comunitárias: espaço, acervo, mediação e gestão.
O espaço é alegre, organizado e versátil, um convite a exploração dos livros,
participação nas atividades e leitura. O destaque, como dito, é a mediação de
leitura. O PRL é formador de mediadores e utiliza a ação para estimular o inte-
resse pela leitura entre crianças e adolescentes, planejada para promover prazer
pela leitura e cultura leitora na comunidade. Finalmente, a gestão, realizada de
forma colaborativa, permite visão integrada do planejamento, monitoramento e
avaliação dos processos bibliotecários.
É para as crianças e adolescentes do Distrito Federal que a Biblioteca
propõe, pela literatura, reflexão sobre as mudanças culturais e sociais, abordando
temas como cidadania, direitos humanos, cultura antirracista e valorização
das culturas indígena e afro-brasileira. Outra inciativa é a oferta de recursos de
acessibilidade física e comunicacional.
Em A memória, a história, o esquecimento (Ricoeur, 2007), o teórico
francês defende que é “(...) essencialmente no caminho da recordação e do re-
conhecimento, esses dois fenômenos mnemônicos maiores de nossa tipologia
da lembrança, que nos deparamos com a memória dos outros. (...)” (Ricoeur,
2007, p. 131). Segundo Ricoeur (2007), o termo ‘reconhecimento’ guarda duas
perspectivas passíveis de interpretação. Num primeiro plano, remete às contri-
buições exteriores, voltadas à construção de sentidos a partir de suportes ex-
ternos; já uma segunda acepção aponta para os apoios internos, extraídos das
lembranças individuais e espontâneas. Os estudos sobre a memória coletiva, de
modo complementar, levam à constatação de que as lembranças não são dados
isolados, uma vez que é no aspecto relacional da mediação que se encontram as
ferramentas que conduzem os sujeitos a construírem seu arcabouço memorial.
Para Paul Ricoeur (2007), “(...) as lembranças comuns (...) permitem afir-
mar ‘que, na realidade, nunca estamos sozinhos’ (...) Temos (...) acesso a aconte-
cimentos reconstruídos para nós por outros que não nós. (...) é por seu lugar num
conjunto que os outros se definem. (...)” (Ricoeur, 2007, p. 131). Com isso, pode-se
depreender que a memória individual sem o olhar do outro tende a cristalizar-se,
já que a memória, segundo o citado filósofo contemporâneo (2007), requer apoios
exteriores. Nesse sentido, o ato de memória resultaria do conjunto de influências
do grupo. A iniciativa de aceitação do outro é que seria, então, individual.
O pensamento filosófico de Paul Ricoeur (2007) notadamente confere
sustentação teórica ao Projeto Roedores de Livros, justificando-o academica-
mente e legitimando seu funcionamento, visto que atesta a eficácia do método
desenvolvido, pautado nas relações interpessoais como potencializadoras de
conexões advindas da experiência leitora, mediada e voltada à construção de
memórias literárias que conferem à literatura o status de patrimônio cultural.

31
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

Na compreensão de Ana Paula Bernardes (2019), idealizadora e executo-


ra do Projeto Roedores de Livros, “Partilhar histórias com as crianças é um dos
mais sólidos caminhos para amplificar os afetos, desde que as telas convivam
com os livros, e que os adultos estejam juntos com as crianças nesses momentos.
Histórias e afetos.” (Bernardes; Freitas, 2019). Indagada sobre o diferencial do
projeto, Ana Paula Bernardes (2019) constata:
Há muitos projetos de mediação de leituras e acreditamos que essa ação se
dá por múltiplos caminhos que vão ao encontro desse leitor. O Roedores
de Livros é apenas mais um deles. O que pode-se destacar (...), no que se
refere à leitura com as crianças, é que, embora não haja uma fórmula exa-
ta, é preciso fazer desse momento (seja em casa, com seu filho, na hora de
dormir; seja na escola, com seus alunos, na sala de leitura; seja num proje-
to social numa borracharia, num hospital ou embaixo de uma mangueira)
um encontro em que além de boas histórias, haja afeto e respeito para com
o ouvinte (Bernardes; Freitas, 2019).

Pesquisadores contemporâneos têm atentado para a emergência da me-


mória entre as preocupações culturais e políticas centrais das sociedades ociden-
tais. Em Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia (Huyssen,
2000), o teórico aponta para a evidência de um contraste – o deslocamento do
privilégio conferido ao futuro, no começo do séc. XX, para uma volta ao passa-
do. Para Huyssen (2000), tal experiência parece ter provocado a necessidade de
problematização histórica e fenomenológica sobre o deslocamento provocado
na experiência e na sensibilidade do tempo. De acordo com seu pensamento
(Huyssen, 2000): “O que aí aparece, agora, em grande parte como uma comer-
cialização crescentemente bem-sucedida da memória pela indústria cultural do
ocidente, assume uma inflexão política mais explícita em outras partes do mun-
do.” (Huyssen, 2000, p. 14). Em suas palavras (Huyssen, 2000):
A minha hipótese é que, também nesta proeminência da mnemo-história,
precisa-se da memória e da musealização, juntas, para construir uma pro-
teção contra a obsolescência e o desaparecimento, para combater a nossa
profunda ansiedade com a velocidade de mudança e o contínuo encolhi-
mento dos horizontes de tempo e espaço (Huyssen, 2000, p. 28).

O teórico (Huyssen, 2000) sinaliza que “algo mais deve estar em causa,
algo que produz o desejo de privilegiar o passado e que nos faz responder tão
favoravelmente aos mercados de memória.” (Huyssen, 2000, p. 25). No seu en-
tendimento (Huyssen, 2000), “este algo (...) é uma lenta mas palpável transfor-
mação da temporalidade nas nossas vidas, provocada pela complexa interseção
de mudança tecnológica, mídia de massa e novos padrões de consumo, trabalho
e mobilidade global.” (Huyssen, 2000, p. 25). Segundo Huyssen (2000), “por
mais dúbia que hoje nos pareça a afirmação de que somos capazes de aprender

32
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
com a história, a cultura da memória preenche uma função importante (...) no
rastro do impacto da nova mídia na percepção e na sensibilidade humanas.”
(Huyssen, 2000, p. 25-26).
E neste ponto, é válido refletir a respeito dessa problematização provoca-
da por Huyssen (2000), no que tange às mudanças desencadeadas pelo “contí-
nuo encolhimento dos horizontes de tempo e espaço” na vida contemporânea,
considerando o papel que pode desempenhar a imaginação e o armazenamento
de lembranças a partir da experiência leitora, já desde as primeiras fases da in-
fância, na formação de valores e crenças dos jovens leitores. Para Ana Paula
Bernardes (2019):
São as histórias que nos tornam mais humanas. É a partir delas que sabe-
mos como viviam as pessoas no Egito, na Idade Média, como são os cos-
tumes na Rússia, como foi a vida e a arte de Leonardo da Vinci, como os
indígenas do Xingu pensam, como fazemos a receita de brigadeiro ou do
frango com angu e quiabo, por exemplo. Também aprendemos sobre dra-
gões, fadas, duendes. Entramos em contato com sentimentos profundos.
Histórias passadas de geração em geração através das reuniões em família
ou transmitidas por meio dos livros. No Roedores de Livros, são com os
livros que transmitimos essas histórias. Apresentamos o mundo para as
crianças. Seja ele real, através dos seus costumes, personagens históricos,
o bem e o mal que nos habita; ou seja ele pela fantasia, via fábulas, seres
fantásticos e mundos imaginados. O importante de partilhar essas histó-
rias é ajudar na construção desses pequenos leitores em cidadãos mais
conscientes do mundo em que vivem. Acreditamos que, com mais leitores
críticos, o mundo pode ser melhor para todos (Bernardes; Freitas, 2019).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No contexto dos estudos contemporâneos que envolvem Memória e


Literatura, o filósofo francês Paul Ricoeur (2007) cita os Pensamentos3 de Pascal
para desenvolver o conceito de “prestígios da imaginação” (Ricoeur, 2007, p.
282). Segundo o teórico (2007), “(...) O que os famosos Pensamentos (...) trazem
à baila, são os ‘efeitos’ do imaginário que resumem a expressão ainda não evo-
cada de levar a crer. Tal ‘efeito’ é um efeito de sentido na medida em que é um
efeito de força (...)” (Ricoeur, 2007, p. 282). Para dar suporte à sua argumenta-
ção, o filósofo contemporâneo (2007) segue explicando que esse efeito:
se trava na relação circular entre substituir e ser considerado como... é o
círculo do fazer acreditar. Aqui, o imaginário não designa mais a simples
visibilidade do ícone que coloca sob os olhos os acontecimentos e as perso-
nagens da narração, mas também uma potência discursiva (Ricoeur, 2007,
p. 282-283).

3 Pascal apud Ricoeur (2007).

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
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Importa aqui chamar a atenção para o fato de que, para Ricoeur (2007):
a própria imaginação é uma potência (...) ‘ela leva a acreditar, a duvidar, a
negar a razão’; (...) ‘a imaginação dispõe de tudo; faz a beleza, a justiça e
a felicidade que é o todo do mundo’. Qual outra potência além da imagi-
nação poderia revestir de prestígio juízes, médicos, pregadores? (Ricoeur,
2007, p. 284).

Consoante o pensamento de Andreas Huyssen (2000):


Se reconhecemos a distância constitutiva entre a realidade e a sua repre-
sentação em linguagem ou imagem, devemos, em princípio, estar aber-
tos para as muitas possibilidades diferentes de representação do real e de
suas memórias. Isto não quer dizer que vale tudo. A qualidade permanece
como uma questão a ser decidida caso a caso. Mas a distância semiótica
não pode ser encurtada por uma e única representação correta (Huyssen,
2000, p. 22).

Segundo esse raciocínio, a ‘potência discursiva’ é assegurada pela for-


ça da própria imaginação, que é dotada do poder de ‘levar a crer’. De acordo
com o autor de A memória, a história, o esquecimento (2007), “(...) é aí que a
imaginação começa a desempenhar seu papel (...) é a força que se limita pela imaginação
(...)”. (Ricoeur, 2007, p. 284). Trata-se da potencialidade que a imaginação pas-
sa a exercer na construção das relações discursivas e textuais. A potencialidade
– ou a força – reside no poder, mencionado acima, de ‘levar a crer’, de ‘levar a
acreditar’, desencadeado por mecanismos emaranhados, correlacionados e legi-
timados pela linguagem.
E é seguindo esse ‘fio da meada’ que o Projeto Roedores de Livros vale-se
da linguagem – literária, primordialmente – para valorizar a experiência leitora
de crianças e jovens e contribuir para a construção de memórias literárias que
lhes incentivem a atuar criativamente no cotidiano da família, da escola, das co-
munidades que frequentam e, destacadamente, da Biblioteca Comunitária onde
é desenvolvido o PRL – ponto de partida para a formação de leitores de livros e
cidadãos do mundo.

34
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
REFERÊNCIAS
BERNARDES, Ana Paula; FREITAS, Tino. Entrevista concedida por ocasião
do lançamento do livro Tapete Vermelho. Brasília: Editora do Brasil, 2019.
BERNARDES, Ana Paula; FREITAS, Tino. Diário dos Roedores de Livros.
Disponível em: Roedores de Livros, 2008. Acesso em: 29/8/2023.
BERNARDES, Ana Paula; FREITAS, Tino. Jornal do Rato Leitor: Edição
Especial. Disponível em: Roedores de Livros: VIDA LONGA AOS ROEDO-
RES: 16 ANOS DE AMOR! EDIÇÃO ESPECIAL DO JORNAL DO RATO
LEITOR!, 2022. Acesso em: 29/8/2023.
BORGES, Jorge Luís. Elogio da Sombra. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1985.
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos,
mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain Fran-
çois [et al.]. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.

35
EIXO II

LITERATURA E PSICANÁLISE
GARCIA LORCA ENTRE DESEJO E ERÓTICA EM
“SONETOS DO AMOR OBSCURO”
Márcia Cristina Maesso1
Roberto Medina2

Parler d’amour, en effet, on ne fait que ça dans le discours analytique.


Jacques Lacan

Amor de mis entrañas, viva muerte,


en vano espero tu palabra escrita
Garcia Lorca

INTRODUÇÃO

Depois de quase 50 anos, na década de 80 do século XX, vem a público o


conjunto de onze sonetos, escritos por Federico Garcia Lorca, entre 1935 e 1936,
que comporiam o poemário “Jardín de los sonetos”. Garcia Lorca, homem do
teatro e da poesia, é fuzilado no início da Guerra Civil espanhola pelas armas
totalitárias e franquistas, em 1936. Mataram o homem, mas não conseguiram
destruir sua arte universal e andaluza. Os sonetos portam o endereçamento e
a expressão de desejo ao outro, seja o leitor, seja o espectador, seja o amado/
amante, mediante, segundo a tradição literária, a forma fixa: o soneto. Os poe-
mas de Garcia Lorca, na forma da letra do inconsciente, portam as mais dila-
cerantes vozes que o desejo e o amor podem evocar na dimensão humana, de
maneia altissonante, com recuos no tempo memorial e erótico, mas recriando
novos efeitos de linguagem no modo de pensar, de sentir, de agir e, quiçá, de
amar em nome de Eros.
Nas edições atuais, na Espanha, no Brasil e no mundo, o poemário lor-
queano, que ficou muito tempo apagado e escondido das antologias, se denomina

1 Profa. Doutora. no Programa de Pós-graduação de Psicologia Clínica e Cultura na UnB-


-DF; e-mail: [email protected].
2 Doutor em Teatro e Literatura pelo Póslit-UnB. Atualmente, realiza o doutoramento no
Programa de Pós-graduação de Psicologia Clínica e Cultura na UnB-DF, com estágio de
Pós-doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (RS) e pós-doutorando no
Póslit-UnB; e-mail: [email protected].
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

“Sonetos del amor oscuro”3. Vale nota o significante “oscuro” do título. Seria
o amor que não pode se mostrar e dizer seu nome? Aquilo que vem do mais
íntimo? Há uma relação entre o corpo textual e o corpo desejante na relação
homoerótica? Um amor “oscuro” por ser portador do que nos marca na radica-
lidade e na impossibilidade expressiva do pulsional? O curioso é que surge um
amor múltiplo no campo do desejo em forma literária fixa que se reivindica pa-
radoxal e deslizante na erótica dos temas e das figuras poéticas de Garcia Lorca.
Diante dos olhos do Brasil e da Espanha, os tempos de atraso cultural e de
ideologias totalizantes, ser homossexual é um rebaixamento e um medo, em psi-
canálise, da feminilidade, algo que compõe a todos nós, no nível do inconsciente.
Ou seria uma angústia da castração? Garcia Lorca, nascido em 1898, produz com
voracidade literária e artística, mas subjaz à pulsão erótica dos encontros amoro-
sos com outros homens. Consolidou-se na dramaturgia e na produção poética,
assumindo nos poemas o epíteto de Píndaro: “Torna-te o que tu és”. Não é novi-
dade, na lírica lorqueana, o tema do “amor-paixão”, aquele gerador de angústias,
de pequenas alegrias, de aprisionamento amoroso e de tempo de espera.
O poeta lia seus poemas para círculo de amigos, com a alegria e o entu-
siasmo andaluzes; no entanto, publicar os poemas homoeróticos de amor era
tamanha ousadia para os olhos ortodoxos e conservadores naquele tempo de
hipocrisia e de exigência cultural de ficar na “obscuridade”. Na prática da letra,
as manifestações do inconsciente tomam a mão de Garcia Lorca e armam o seu
canto na escrita em arroubos de liberdade e de expressão lírica de notável beleza
poética, ao estilo da “Geração espanhola de 27”, cuja voz autoral ecoa até a
contemporaneidade.

3 Sugerimos a leitura de: MAURER, Christopher. Poetry. In: BONADDIO, Federico (Ed.).
A companion to Federico García Lorca. Woodbridge: Tamesis Books, 2007, p. 16-38.)
“Nos meses anteriores ao seu assassinato pelas tropas franquistas, durante os primeiros
dias da Guerra Civil Espanhola, Lorca estava trabalhando em uma coleção de sonetos,
“Jardín de los sonetos”, que reuniria alguns dos muitos que havia redigido ao longo de
sua vida, um sinal de uma tendência na poesia espanhola que Lorca descreveu como um
regresso às “formas tradicionais, depois de um amplo e ensolarado passeio pela liberdade
da métrica e da rima”. A sequência mais importante dessa obra acabou por ser a intitulada
“Sonetos do amor obscuro”, uma coleção de onze sonetos homoeróticos de amor, escritos
em 1935 e inspirados por Rafael Rodríguez Rapún, o jovem estudante de engenharia que
havia trabalhado como assistente de Lorca em La Barraca. Alguns desses sonetos se en-
contram mais revisados ​​e polidos do que outros, embora todos tenham sido incorporados
ávida e indiscriminadamente ao cânone da obra, após a publicação póstuma da sequência
em uma edição pirateada, em 1983, seguida da primeira publicação oficial no jornal ABC,
de Madri. A versão final – se é que alguma vez Lorca tenha preparado um rascunho que
considerasse final – perdeu-se. É triste que os dois trabalhos de Lorca que lidam mais ou-
sada e diretamente com o homoerotismo existam hoje apenas em versões “inacabadas”, e
que alguns dos amigos mais próximos de Lorca optaram por não publicar versões comple-
tas das cartas que ele lhes escreveu. (MAURER, 2007, p. 37)

38
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
A OBSCURIDADE DESEJANTE E A VOZ POEMÁTICA

García Lorca deu voz à relação de corpos nos enlevos místicos e nos re-
cursos expressivos surrealistas, fraturando a lógica associativa e deslizando a
posição estável de um possível “eu”. Nos sonetos, vem a ressaca de todo um
vivido, metamorfoseado em matéria poética: amor, angústia, ódio, indiferença e
destruição das fronteiras individuais. Na tradução de William Agel de Mello, de
2012, “Sonetos do amor obscuro e Divã do Tmarit”, edição bilíngue, seguiremos
adotando como referência para este trabalho, apesar de cotejarmos também com
antologia “Federico Garcia Lorca: obra poética completa”, de 1996, trabalho
tradutório de mesma lavra.
A fim de cercarmos a temática mestra de Garcia Lorca, o desejo e a eró-
tica em sua poesia, o seguinte soneto será nosso ponto de abertura na investiga-
ção: “El amor duerme en el pecho de poeta” (2012, p. 32-33). No traço da letra
lorqueana, fica franqueada a posição homoerótica para se ler o conjunto dos
poemas nos dois versos a seguir:
“Tú nunca entenderás lo que te quiero porque duermes en mí y estás dormido”
A voz poemática enceta um endereçamento para outro homem que na forma
de “amor” ou Eros encontra-se apoiado no peitoral do eu lírico, o qual se dirige ao
“Tu”, alertando sobre a impossibilidade de um saber totalizante, pois “o quanto te
quero” é fugidio, assim como o desejo que se caracteriza e se irmana à imaginação
e ao horror. A imaginação aqui seria secundária à imagem. O que o metonímico
“peito” vem atualizar são as marcas de passagem sobre o corpo e a presença de uma
ausência. Sabemos, com dor, que do amor nem tudo pode ser dito, apesar de poder-
mos amar no nível do discurso, ou seja, da linguagem. Há uma relação paradoxal
entre pensamento, imagem, desejo e alucinação. As forças pulsionais reunidas nesse
afeto amoroso se sinalizam e fogem em “e estás adormecido”.
Além do declarado “tu” ser masculino, de acordo com Ian Gibson
(2009, p. 19-20)4, somos informados do estado de sono, o qual se transporta,

4 GIBSON, Ian. “Caballo azul de mi locura”. Lorca y el mundo gay. Barcelona, Planeta,
2009, na p. 30: “Dos años antes —concretamente el 26 de abril de 1982—, Vicente Alei-
xandre me había concedido una entrevista. Le pregunté por los Sonetos del amor oscuro.
Me permitió grabar la conversación. Me dijo que el amor oscuro, en el concepto de Lorca,
«era el amor de la difícil pasión, de la pasión maltrecha, de la pasión oscura y dolorosa,
no correspondida o mal vivida, pero no quería decir específicamente que era el amor ho-
mosexual. Eso de oscuro puede aplicarse a cualquier clase de amor amor. Nunca él me
dijo “ese es esto”; no, no, no me dijo nada, era el amor doloroso, el amor con un puñal
en el pecho... oscuro por el siniestro destino del amor sin destino, sin futuro». Con todo,
Aleixandre no dudó en decirme a continuación que los sonetos fueron inspirados por una
persona concreta, por supuesto masculina, a quien no se creía con derecho a identificar.
Y siguió: «Ya no existe el tipo de prejuicios que existían antes. Hay que aceptar al hombre
entero. ¿Qué importa eso?» Parece seguro, pese a las reticencias de Aleixandre, que para
Lorca el adjetivo oscuro, referido al amor, sí tenía un claro matiz homosexual.”

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possivelmente, para o estado onírico. Na mesma estrofe, o “eu lírico” insiste em


o ocultar mediante o choro ao ser “perseguido por uma voz de penetrante aço”.
A partir do significante “aço”, parece-nos que o que se procura tem de ficar em
estado de refúgio, pois a presença total corre riscos de esfacelamento. Na propo-
sição lacaniana, a falta está sustentando o desejo5. Nem tudo se pode esclarecer
no amor ou para os amantes.
É válido notar que a voz é sempre produto de um corpo que fala. É o
objeto da pulsão invocante. Essa voz que ameaça parece portar o impedimento
da satisfação do desejo e a irrealização do prazer. Isso enfraquece os afetos que
poderiam estar ativos como potência de pensar, de agir e de amar totalmente. O
eu lírico denuncia que porta um “peito dolorido” e que as palavras que chegam
ao amado são “turvas”, as quais “têm mordido as asas de teu espírito severo”.
Ficam assinaladas as posições de perturbação causadoras de instabilidade e de
perda de intensidade no amante. Mas, ao mencionar “teu espírito severo”, a
voz poemática se volta para algo que escapa e que liga os amantes, tentativa
de desafiar o obscuro dessa ligação que afeta os corpos desejantes, buscando
plenitude e repouso. Querer-se a completude, mas isso está na ordem do
impossível. Voltamos ao desafio lacaniano: a falta nos constitui.
Se o “amor obscuro” equivale ao amor homossexual, não se pode deixar de
considerar, inclusive, os traços de amor difícil, desesperado e torturado (GIBSON,
2009, p. 22). Abre-se, sobremaneira, a concepção cósmica do amor: o amor por ser
amor, sem adjetivações. Mesmo que por tempos se tenha omitido publicamente
que Garcia Lorca era gay, como um tabu familiar e no conservadorismo espanhol,
incontestavelmente, existem imbricações entre sua vida, obra poética e dramatúr-
gica e seu cruel assassinato em 1936. Ao nos depararmos com questões sobre se-
xualidade e sexo, de modo fatal, vamos nos deparar como campo de algo errático,
opaco e obscuro nas subjetividades por conta dos aspectos biográficos, históricos
e sociais. O rastro das ideologias forja o espírito do tempo e da época da escritura
de Garcia Lorca, dando mostras de uma “moral sexual civilizada”.

5 Pulsão invocante: Para Jean-Michel Vivès (2009, p. 330): “Penso que, a partir desse ponto,
podemos levantar a hipótese de que a dinâmica do tratamento, no que concerne à pulsão
invocante, é caracterizada por uma modificação do lugar do sujeito no circuito da invo-
cação. De fato, ao longo do tratamento, o sujeito que viveu até então, seja submetido ao
apelo incondicional do Outro, seja tendo falhado a esse apelo, se descobre igualmente
apelante e, consequentemente, desejante. Desse modo, ele entra em uma dinâmica de in-
vocação. Invocação que implica, simultaneamente, o reconhecimento do Outro e de sua
falta, que essa ausência na presença seja significável, permanecendo ao mesmo tempo
irredutível, é o que Lacan propõe cernir no enigmático S (A barrado), significante da au-
sência na presença.” Sugerimos ler: VIVÈS, Jean-Michel. Para introduzir a questão da
pulsão invocante. In: Revista latino-americana de psicopatologia fundamental, volume
12 (2), junho, 2009. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rlpf/a/LXG4qQWF8Mx-
qmJhnyMWhRxL/abstract/?lang=pt. Acessado em mai, 2022.

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Apresenta-se a ilogicidade dos corpos desejantes em contraposição ao
preço a se pagar à cultura que manda no desejo dos indivíduos, causando mal-
-estar e altas taxas libidinais, mesmo sabendo que toda satisfação pulsional,
mesmo pagando seu vintém, exige uma parcela na realidade concreta. Muitos
tiranos querem corpos dóceis e não desejantes, ao ignorar que o inconsciente
não é marcado pelo simples traço biológico de homem ou de mulher, como uma
“ignorância erudita”.6
A natureza do desejo é desejar. Isso equivale a afirmar que todos procu-
ramos a natureza da libido, a descoberta de nós mesmos e a experiência erótica
com o outro como forma de satisfação e de gozo. Freud já havia previsto isso nos
primórdios da Psicanálise ao apresentar um indivíduo na radicalidade do de-
samparo, sem importar para gêneros, mostrando que estamos à mercê de nossa
condição fundamental da constituição subjetiva diante de um outro, que, como
nós, também está ao encalço de constituição e construção de laços sociais, ape-
sar de conflituosos e sem garantias. Ou seja, falamos aqui da castração como a
incompletude subjetiva que nos determina, sim, nós – os “neuróticos normais”,
mesmo com fúria e entusiasmo. Em relação a Garcia Lorca, para a crítica es-
pecializada, os amores mais tumultuosos e entusiasmados na vida do poeta es-
panhol foram Salvador Dalí7, Emilio Aladrén e Rafael Rodríguez Rapún. Além
de amorosa, constatamos a temática constante no “Sonetos del amor oscuro”:
a dor, o desengano, o sofrimento do amor não correspondido e a frustração eró-
tica. Conforme declara Christopher Maurer (2008, p. 16)8: “Lorca is a poet of
desire, rather than love; of longing, rather than fulfilment.”9
O fazer artístico de García Lorca, o lírico e o dramático, cruza sua criação
com a metáfora andaluza do “duende”, conforme afirma Roberto Medina (2017)10:
Para García Lorca, a palavra não é apenas condutora da estética, mas
representa também o húmus que forja a matéria que ela faz vibrar. Essa
poesia selvagem e magnética transita dos versos para as peças teatrais. O
sublime, nesses textos literários, transborda-se de terror e de êxtase, como
que direcionado para a morte: evento único e misterioso. Assim como o
“duende” está no instintivo humano e precisa do corpo do homem para
existir, também na arte enduendada e no “aqui e agora” é que a poesia
verdadeira se torna carne selvagem (Medina, 2017).
6 GAY, Peter. A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud: a educação dos sentidos.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
7 GIBSON, Ian. Lorca-Dalí. El amor que no pudo ser. Barcelona: DeBolsillo, 2016.
8 BONNADIO, Federico. A Companion to Federico García Lorca. Tamisis Books, 2008.
9 Nossa tradução: “Lorca é um poeta do desejo, mais do que do amor; da angústia, em vez
da realização.”
10 PÉREZ-LABORDE, Elga, org. Lorca Total. Textos sobre a poesia e o teatro de Federico
García Lorca aos 80 anos de sua morte comemorada no Brasil – 1898-1936. Campinas,
SP: Pontes Editores, 2017.

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A vitalidade da poesia, a partir desse inconsciente e demoníaco “duen-


de”, para Garcia Lorca, deve vir dos “últimos recantos do sangue”. Nesse senti-
do, o sangue no interior do corpo é vida, no exterior, pode representar violência
e, ao mesmo tempo, seiva erótica. E por que não como experiência de nós mes-
mos, em plena obscuridade e subjetividade pulsante, numa relação da pulsão
de morte e do vazio instaurado pela ausência absoluta do objeto de desejo? O
vazio, indicativo da falta, traz das entranhas do sujeito à plasmação da obra
poética nos processos sublimatórios da arte. Esse objeto faltante e sem prede-
terminação aponta para a estrutura de furo e de falta no desejo dos homens,
numa exterioridade íntima. Conforme Lacan preconiza no Seminário 7 (1986,
p. 259-260)11: “Sublimar é elevar o objeto à dignidade da Coisa.” Nesse aspecto,
podemos acreditar que os sonetos de amor obscuro de Garcia Lorca formalizam
a obscuridade de sua obra para além do nível simbólico. Mas destacamos que
jamais é totalmente privada uma experiência “subjetiva”. O significante caduca
em alguma parte e diz mais do que pretende no mesmo discurso ou silencia
onde deveria construir determinada significância, apenas emite um semidizer,
diante do abismo da experiência e do espanto que a vida causa.
Prosseguindo no soneto “El amor duerme en el pecho del poeta”, os ter-
cetos finais são elucidativos dessa busca desesperada:
“Grupo de gente salta en los jardines
esperando tu cuerpo y mi agonía
en caballos de luz y verdes crines.
Pero sigue durmiendo, vida mía.
¡Oye mi sangre rota en los violines!
¡Mira que nos acechan todavía!”
A voz lírica constata a invasão nos jardins como se também o despertasse,
já podemos crer que o peito caracteriza um conjunto de afetos. A ambiência é
surreal, pois os cavalos utilizados são “de luz e verdes crinas”. A luz, dependen-
do da intensidade, pode incendiar ou cegar, somando-se o verde desses cavalos,
de forte simbolização erótica e fálica, pode sugerir certa juventude ou frescor
juvenil, gerando incertezas no nível de beleza e de juventude. A agonia do eu
lírico é pura angústia por ter de se pôr em posição de combate por conta dos
obstáculos externos e sociais a essa união amorosa.
O amado, por sugestão, deve continuar o sono, uma vez que há um tipo de
despossessão da voz lírica ao posicionar o amado como “vida minha”. Eis uma
ânsia delirante de os apaixonados se tornarem “um”; isso sempre fica no campo do

11 LACAN, Jacques. O seminário, livro 7 – A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 1986.

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
impossível amoroso. Eros não dá conta dessa parte alucinada da paixão. No verso
final, “Vê que nos espreitam ainda!”, resta a dúvida dos que amam, pois a comple-
tude não se completa, e a falta ronda as palavras e os jardins dos amantes em plenos
pedaços de gozo enamorado na linguagem e no sexual. Vale destacar que nosso
corpo é nosso último reduto somático e psíquico. Só é possível gozo na carne.

A ERÓTICA ENDUENDADA E DESEJANTE

Os amantes tentam se alienar um no outro, como se fosse possível devo-


rarem-se e passarem a eternidade em autofagia de afetos. O exercício de leitura
da lírica, portanto, de uma erótica, gera planos de identificação, extraindo bele-
zas dos desenganos amorosos. Ian Gibson dá o próprio testemunho: “Me leía
sus Sonetos del amor oscuro, prodigio de pasión, de entusiasmo, de felicidad, de
tormento, puro y ardiente monumento al amor”12 (GIBSON, 1987, p. 393)13. A
intensidade da experiência leitora denota a sinceridade poética ao conjunto dos
poemas mediante a exposição pura dos afetos e, concomitantemente, o desejo
abrasivo do fogo da paixão, no que tem de felicidade e de tormento. Como sa-
bemos, na escritura de Garcia Lorca, o poema se transforma em uma criatura
verbal bastante singular.
Na obra de Georges Bataille, “O erotismo” (1957/2014)14, o autor propõe
que o erotismo, como atividade sexual e pulsional, é característica, exclusiva-
mente, humana, diferenciando-se dos demais animais que obedecem a ciclos de
reprodução. Nesse sentido, o humano busca uma experiência de gozo erótico,
sem que haja nada para legislar sobre a constelação de corpos ou dispositivos
para controlar as pulsões, aliando o sagrado e o profano, como nas bacanais
dionisíacas em êxtase e entusiasmo. Claro que o gozo é mortífero nessa medida;
no entanto, são a lei e a proibição que permitem os atos transgressores, gerando
te(n)são entre transgressão e limite.
Na perspectiva de Georges Bataille, o erotismo é a forma humana de se-
xualidade, no processo psíquico, possui caráter de fabulação, desnaturalizando
a sexualidade humana no plano carnal e imediato, mas articulando a euforia e
a quebra de limites, num processo de junção entre o mental, o fabulatório e o
carnal. O carnal animalesco compreende o sexo no plano do imediatismo e no
domínio do silêncio. O erotismo nos transporta para a esfera da liberdade e nos
diferencia do controle do trabalho e das interdições. Apesar da abertura e quebra
dos limites, o jogo é paradoxal, pois é a lei que dá suporte para o erotismo e que

12 Nossa tradução: “Lia seus Sonetos do amor obscuro, prodígio de paixão, de entusiasmo, de
felicidade, de tormento, puro e ardente monumento ao amor.”
13 GIBSON, Ian. Federico García Lorca volumen 2. Barcelona: Editorial Grijalbo, 1987.
14 BATAILLE, Georges. O Erotismo. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

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abre espaço para a expansão dos limites, vindo a produzir cultura, pensamento
e linguagem. Isso pode sinalizar o que vemos em “Sonetos del amor oscuro”: o
erotismo dos corpos, o erotismo sagrado e o erotismo dos corações. Se o huma-
no pretende transcender os limites, o erotismo é a aprovação da morte, mediante
seus representantes simbólicos, na vida.
Vale nota que a transgressão no gozo erótico é temporária, no anseio de
liberdade como traço violento que barra o que apaga, como “a pequena morte”
orgasmática, momento especial no processo e na experiência de vida. De acordo
com Michel Foucault (2001, p. 33)15, sobre as barreiras transgressoras do orgiás-
tico, do excesso e do inconsciente em relação à “sexualidade envergonhada”:
“sua singularidade dilacerante e ereta, perde-se no espaço que ela assinala com
sua soberania e por fim se cala, tendo dado um nome ao obscuro.”
Se há uma erótica nos corpos, ela também se realiza nos versos com ex-
trema força elemental e vital contra o passar do tempo – e da morte – e contra
as ameaças de despedaçamento do estado amoroso. Mesmo estando no campo
da arte literária, há o limite da palavra, pois nem tudo pode ser dito ou repre-
sentado. A repetição e a retomada do sintoma da letra insistem em voltar, como
se fosse uma goteira subjetiva, pondo em contato o anímico e o corpóreo numa
opacidade originária, encoberta na própria sombra da realidade psíquica dando
corpo à experiência irrecusável do inconsciente artístico, ao estilo do “infami-
liar”16 proposto por Freud (2019, p. 33): “o infamiliar é uma espécie do que é
aterrorizante, que remete ao velho conhecido, há muito íntimo”.
O estranho-familiar traz à escritura o que deveria ter permanecido oculto,
como certa inquietante estranheza, por exemplo, na estética e na experiência
literária. Ou seja, o repetido é recordado e ganha ressignificação nas formas
múltiplas da arte por meio de vitalidade de uma estrutura, no caso de Garcia
Lorca, textual no universo simbólico, pois o que deveria ficar escondido e velado
se deixa perceber, mesmo na obscuridade, como as partes íntimas do corpo – ou
como a ardência do desejo homoerótico. Ambas posições desejantes e sexuais
borram as bordas do público e do privado.
Fazem uma espécie de triângulo edipiano: a leitura, os sonetos e os fan-
tasmas do leitor, mediante o olhar-escuta. Parece-nos que coabitam os efeitos
do texto no imaginário inconsciente do leitor similar à escuta flutuante e psi-
canalítica, deixando rastros de deslocamentos provocados em seu próprio de-
sejo. Conforme Joel Birman (2016, p. 86)17 afirma sobre as pulsões sexuais: “os
15 FOUCAULT, Michel. Prefácio à transgressão. In: Ditos e escritos. Vol. III. Rio de Janei-
ro: Forense Universitária, 2001.
16 FREUD, Sigmund. O infamiliar. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2019.
17 BIRMAN, Joel. As pulsões e seus destinos: do corporal ao psíquico. 1a. ed., Rio de Ja-
neiro: Best Seller, 2016.

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
objetos das pulsões sexuais seriam igualmente intercambiáveis e móveis, na me-
dida em que a experiência da satisfação e a obtenção do prazer constituiriam os
alvos do imperativo pulsional.”
Mais ainda: o desejo escondido é agora revelado pela tessitura do texto
como se a escritura poética refizesse o trajeto do desejo com movimentos e áreas
de indeterminação, mesmo sendo ficção, pode se articular no circuito pulsional.
Como nos sonetos de Garcia Lorca, o desejo e a erótica atuam e se dissimulam
na escritura, buscando a possibilidade de tornar-se no campo das representações
o marco das intensidades da união de corpos: algo do esquecimento ou da me-
mória ardente. Daí, a marca indelével é a do desamparo, sempre com a demanda
de amor na atividade ou na passividade dos amantes.

TODA DEMANDA É DEMANDA DE AMOR

Dizem que os temas não são escolhidos pelo escritor, mas são a pele do
próprio artista. Se observarmos a “Trilogia da terra espanhola” (2022)18, desig-
nada por Luciana Ferrari Montemezzo, as peças trágicas escritas por Garcia
Lorca, “Bodas de Sangue” (1933), “Yerma” (1934) e “A Casa de Bernarda Alba”
(1936), as personagens lorqueanas estão rodeadas pelas suas circunstâncias e
pelos desejos sexuais insatisfeitos, praticamente sob o jugo das interdições e das
transgressões. A dramaturgia de Garcia Lorca tem a densidade em amalgamar
força poética e dramática num teatro de expressão universal, tanto nos temas
quanto no estilo singular de suas tragédias. A pesquisadora e tradutora Luciana
Ferrari Montemezzo, ao ressaltar semelhanças e afinidades entre as três peças,
afirma (2022, p. 15): “Não só o ambiente é comum – os pequenos vilarejos anda-
luzes –, mas também os temas relativos às normas sociais e familiares, à solidão
humana e ao desejo de liberdade são constantes. [...] há uma série de símbolos
que se repetem, com variações de intensidades [...].”
A dramaturgia de Garcia Lorca aponta para os fatos cotidianos e huma-
nos e dá um salto vivo e contestador na realidade estética por meio da recria-
ção artística de “raíces telúricas ‘duende’ o demonio socrático”, circundando
os recursos expressivos do fazer poético-dramático entre vida, morte e desejo,
este último sempre no campo do impossível e da irrealização. Como acrescenta
Rafael Martínez Nadal (1970, p. 133)19: “El amor para Lorca estará, por propia
definición, en contacto inseparable con la muerte: verso y reverso de una misma

18 MONTEMEZZO, Luciana Ferrari. Trilogia da terra espanhola/Luciana Montemezzo;


traduzido por Luciana Ferrari Montemezzo; ilustrado por Federico Garcia Lorca. Porto
Alegre: Bestário/Class, 2022.
19 NADAL, Rafael Martínez. El público. Amor, teatro y caballos en la obra de Federico
Garcia Lorca. Oxford: The Dolphin Book Co., Ltd, 1970.

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realidad, sin posible huida”20. Tanto na lírica quanto na dramaturgia de Garcia


Lorca as relações antitéticas permanecem: vida e arte, vida e liberdade, vida e
morte – drama poético e poesia dramática. Garcia Lorca soube, em pleno início
do século XX, beber nas fontes da tradição e nos experimentalismos vanguar-
distas, unindo o popular e o erudito, o telúrico e o onírico, o desejo voraz e a
indiferença, o erótico e a castração, o místico e o profano, as regras do coração e
o peso da ordem social e cultural, renovando a poesia e o teatro espanhóis como
atitude vital e vigor artístico-revolucionário.
Nos onze poemas de “Sonetos del amor oscuro”, traços da vida do poeta
insistem no fazer poético como simbolização ou como um resto na materiali-
dade da linguagem do semblante ou do simulacro, marcando a causa do desejo
no poemário: objeto e sujeito. O mesmo amante faz as vezes de amado e de ser
odiado, sendo o amor como significante de identificação e o ódio como signifi-
cante da rivalidade e de estrangeiridade. O erótico está na extrapolação do mun-
do homogêneo e do que foge à razão, mediante o interdito e a transgressão da
norma requerida pela cultura, apagando as fantasias mais intensas da voz poéti-
ca dos poemas, estabelecendo a não contenção das pulsões eróticas e subjetivas.
Ou seja, o erótico busca o mundo heterogêneo e a extrapolação dos prin-
cípios de utilidade. Na erótica dos amantes de Garcia Lorca, o desejo não se cala
frente aos tabus, violando regras e cultura – o gesto poético e erótico arrebata
os sentimentos, como possibilidade de retirada do abismo de risco da morte,
mesmo levando o sujeito pelo fascínio mortífero. Na celebração de encontro de
corpos de homens, a atividade sexual e a morte provocam a transgressão social
e a interdição. Eis a ânsia de plenitude, pois o interdito é sagrado, por ser fruto
do fascínio e da angústia desse amor obscuro.
Duas notas importantes: por um lado, para o neurótico, há um “pavor
de desejo”, é preciso investimento para que o desejo aconteça; por outro lado,
a fantasia é pura insistência, mas existe a impossibilidade de plena realização
do desejo, pois acabaria com a estrutura de falta, parte fundante do sujeito. O
amor21, como paixão imaginária, é a maior invenção humana, por nos endere-
çarmos ao outro, livrando-nos um pouco do desamparo, ressaltando que só há
desejo porque existe falta, incompletude, parte estruturante de todos nós. É o
erotismo (a sexualidade pulsional) que nos torna humanos, ao buscarmos certo
tipo de prazer e de gozo no lúdico do encontro sexual.
A atividade erótica está presente em todas as experiências de interdição
e de transgressão, por tentativa de encontrar o objeto de desejo, isto é, objeto
20 Nossa tradução: “Para Lorca, o amor estará, por definição, em contato inseparável com a
morte: verso e reverso da mesma realidade, sem escapatória possível”.
21 Sugerimos a leitura de: FERREIRA, Nadiá Paulo. A teoria do amor na psicanálise. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
como desejo de fusão ou de destruição. Basta nos lembrarmos dos apaixona-
dos, tentam criar sempre o “um”, mesmo não havendo essa possibilidade – só a
morte permite isso. A experiência erótica é arriscar-se e entregar-se parcialmente
ao todo, saindo da solidão do ser individual, sabendo que a experiência interior
não alcança o outro: a beira do abismo, zona limítrofe. O limite da experiência
interior22 é perder-se eroticamente.
Para discutirmos uma erótica no próximo poema de Garcia Lorca, “El poe-
ta pide a su amor que le escriba” (2012, p. 20-21), retomamos as ideias de Georges
Bataille acerca do erotismo dos corpos (desejo de físico, desejo carnal, relação se-
xual efetiva, um corpo que deseja outro corpo), do erotismo dos corações (desejo
de fusão, desejo de amar o outro, desejo de autofagia – entrega ao outro e doação
do outro para si) e do erotismo sagrado (aqui registramos o essencial: toda expe-
riência erótica é sagrada; experiência entre o eu e o todo, experiência mística e reli-
giosa). Ainda Georges Bataille (2014, p. 91) postula: “De maneira fundamental, é
o sagrado o que é objeto de um interdito”. Para elucidar: ao abandonar a autopro-
teção, como entrega sem limites às finalidades sem fim, o indivíduo experiencia o
erótico e o sagrado nas mais variadas vertentes de violação.
Mais uma vez, arte e vida se conjugam na erótica poética de Garcia Lorca,
pois toda vida tem como motor uma dor ou um desejo nebuloso. O mistério é
alma da essência da poesia. E “mistério” significa que a linguagem só pode in-
dicar, mas jamais nomear, de maneira absoluta, o que desejamos, como se hou-
vesse uma mendicância nos significantes. A poesia lorqueana mostra a impossi-
bilidade de tudo dizer e a infelicidade se fosse possível alcançar essa plenitude.
Como sintoma de escritura, Garcia Lorca trabalha na dramaturgia e na
poesia diferentes figuras do desejo: o impulso sexual, o amor homoerótico, de-
sejo de casamento ou maternidade, o anseio por justiça social, o impulso para
a realização pessoal a qualquer preço. Sobremodo, o desejo do poeta se firma,
através da linguagem literária, para cercar a realidade externa e a mais íntima,
como experiência interior e, portanto, erótica, com plena intertextualidade na
mística de San Juan de la Cruz, ao poetizar a preparação para o encontro com
Deus: “a noite obscura da alma”. Passemos ao soneto “El poeta pide a su amor
que le escriba”:

22 Sugerimos a leitura de: BATAILLE, Georges. A Experiência Interior, seguida de Método


de Meditação e Postscriptum 1953: Suma Ateológica, vol. I. Trad. Fernando Scheibe. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2016.

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Amor de mis entrañas, viva muerte,


en vano espero tu palabra escrita
y pienso, con la flor que se marchita,
que si vivo sin mí quiero perderte.
(5) El aire es inmortal. La piedra inerte
mi conoce la sombra ni la evita.
Corazón interior no necesita
la miel helada que la luna vierte.
Pero yo te sufrí. Rasgué mis venas,
(10) tigre y paloma, sobre tu cintura
en duelo de mordiscos y azucenas.
Llena, pues, de palabras mi locura
o déjame vivir en mi serena
noche del alma para siempre oscura.
O poema lorqueano está direcionado a um outro como endereçamento e
como demanda, não para um amor geral, mas para o específico e “seu” amado
objetal. Essa erótica dos apaixonados impulsiona e os move pela urgência de
que o outro tenha algo para uma plenitude que venha a saciar o amante. O mais
curioso é que o solicitante trabalha artisticamente com a escrita, e será a escrita
do amado que poderá trazer algum traço vivo da demanda de amor. Os amantes
são fisgados pelo brilho ou prestígio que se supõe que o outro seja possuidor. Já
fica sinalizada a secrecidade no desejo de escrita numa leitura atenta do traço
(ou marca de uma presença em ausência) a ser decifrado como velamento mais
do que registro, sendo possível perceber a rasura do desejo do “poeta”, isto é, al-
cançamos uma verdade não toda, pois o velamento é a ocultação da vida erótica
real do ato fundador entre os amantes: os corpos que deixaram um trilhamento
de Eros um no outro, reforçando a ideia psicanalítica de Das Ding23 (a Coisa)24.
O apelo ou demanda é enviado ao outro que se encontra interiorizado
como parte integrante do corpo e da alma, recebendo a condição de oxímoro:
“morte viva”. O amor, como demanda, tem um objeto, ou melhor, toda deman-
da, acima das demandas cotidianas, é sempre de amor, desde a infância. No
caso, o amante é objeto de desejo. Lacan, nos “Escritos”, alerta sobre o enigma
e a perturbação no desejo do “poeta” (1998, p. 269): “o desejo do homem encon-
tra seu sentido no desejo do outro, não tanto porque o outro detenha as chaves

23 Sugerimos ler: Projeto para uma psicologia científica (1895), de Freud, e o Seminário 7, de
Lacan.
24 Das Ding é o que sobra ou fica de fora e deixa uma marca ou um traço que, por sua vez,
desenha trilhamentos.

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
do objeto desejado, mas porque seu primeiro objeto é ser reconhecido pelo ou-
tro.” A “morte viva”, além de indiciar as pulsões sexuais, põe em xeque o outro
como sujeito do suposto saber. Como se minha vida dependesse de algo que tu
tens e sabes sobre mim. Ao mesmo tempo, algo que me liga apaixonadamente
às tuas pulsões de morte.
Em suma, o “poeta” denuncia a tentativa frustrada do erotismo fusional
para ser “um” na relação amorosa. Para que o outro envie a “palavra escrita”,
é preciso que haja um desejo de escrita para compor significantes de dizer, nem
sempre o que se lê é o que se sente. Daí, há a presença da mascarada de discur-
sos entre o dito e não dito. A minha palavra, de fato, alcança o desejo do outro?
Mesmo sabendo que o desejo está sempre à deriva e que não se localiza ou se no-
meia, é esquiva em determinado lugar e presença em outro espaço? A angústia
amorosa passa a ser um tempo que maltrata e castiga o amante, frustrando-o na
expectativa, porque a letra esperada não chega. O que é vivo ganha a face do es-
gotamento e da destruição com o passar do tempo “com a flor que se murcha”.
É preferível abandonar o amado e o desejo por ele a ter de sofrer a despossessão
de si mesmo. O eu se despontencializa sem o objeto de amor. Tal como a primei-
ra estrofe do soneto cria ambiência representacional de uma morte em vida e sua
insuportabilidade. O sujeito poético está face a face com a radicalidade do vazio.
Na segunda estrofe, os homens estão juntos e separados da natureza. A
exemplo do “ar” e da “pedra”, ambos permanecem insensíveis ao que ocorre
como turbulência num “coração interior”, metonímia do corpo e dos afetos vei-
culadores da demanda sem resposta. Esse amante e sofredor afasta a possibilida-
de da retórica dos românticos em noite enluarada, gozando das delícias como a
doçura do encontro amoroso, do qual o mel seria indicial. No entanto, a relação
de picada e de ferimento é sutil e silenciosa na metáfora, pois a abelha traz o
doce e a dor da ferroada. As relações amorosas25 e seus desdobramentos, muitas
vezes, perversos não eliminam a ideia de que o que o apaixonado busca imagi-
nariamente está no outro, e esse outro, como objeto de amor, deve satisfazer sua
demanda de amor; única e somente assim “os atritos do cotidiano” camonianos
e do coração ficariam apassentados.
Altos ideais, baixas expectativas no amor-paixão: radical atração – ful-
minante repulsa. Coisa contrária, não menos arriscado do que o amor-paixão,
é o amor-ser como oposição ao amor como aprisionamento do outro. É o ser
do outro que está na demanda de amor como dom ativo, mesmo sendo o ser do
outro uma instância de fantasia e de ficção. É um além que se pretende amar,
além mesmo do objeto amado. Esse outro amado. Esse outro odiado. Esse outro
enigmático, onde dorme meu desejo. O ideal é amar em troca do nada por nada.

25 Sugerimos a leitura de: “A palavra na transferência”, no Seminário 1, de Jacques Lacan.

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

Em psicanálise, quando toca a questão do desejo, é o confronto com o vazio


para além do apego ao objeto que pode ser ofertado no lugar onde, supostamen-
te, residiria o Bem e o Belo e suas possibilidades de satisfações plenas e de gozo.
A terceira estrofe traz a relação do “poeta” frente ao seu sofrimento e
sua angústia sem espaço possível para existir, como violação do real de forma
externa e interna, sem barreiras para impedir a avalanche de dores causadas pela
ausência e pelo silêncio do amado, sem o outro ficam mudos os significantes
para novas buscas. O “poeta” se desespera e diz que “eu te sofri”. O sofrer não
é causa do martírio do apaixonado, esse amor já se confunde com a carne do
amante e transgride o último refúgio do demandador: o corpo. Lembramos:
o gozo erótico só é possível através do corpo. A falta nada significa quando a
fixação totaliza o espaço, sem a menor possibilidade de ventilação; é algo do
desejo que move o amante no abismo das “entranhas” amorosas. O ato de ras-
gar, esfacelar, destruir e comer se equivalem na atitude de automutilação. Se o
amor me habita, para destruí-lo, direciono todas a angústia e o ódio na minha
própria direção. Ajo em pleno não saber que ignora a neblina das representações
do outro em mim. No ritual de destruição e de violência, agrupam-se os signifi-
cantes “tigre”, “paloma”, “cintura”, “mordiscos”, “açucenas” e “duelo”, como
na tauromaquia espanhola, estamos na arena erótica com o toureiro e o touro
frente a frente, a morte é tragédia anunciada. O ato sexual é o entrechoque de
corpos. Transamos com nossas fantasias por meio do corpo do outro. O bestial
e demoníaco nos invade nas mãos e pele, na língua e dentes, nos ouvidos, no
cheiro, na bunda, no peito, na vagina e no pênis. Todo o corpo está erotizado
para o encontro com a morte, como o gozo extremo; no nível sexual, apenas
encontramos “la petite mort” pelo orgasmo.
Com o que sempre resta, pois toda satisfação é parcial, buscamos reen-
cenar com o amado a primeira grande cena de gratificação, que se preserva no
campo do impossível. No final do duelo, nem sempre o toureiro é vencedor
na tourada. Desse enfrentamento, podemos, muitas vezes, apenas reter alguns
fragmentos dos gestos de mordiscos que resistem ao recalcamento. Parece haver
certo tipo de trabalho para que o trauma, vivido passivamente e sem preparação,
faça-se algo ativamente experimentado como símbolo do bestial e do demoníaco
de um mundo sem sombra e sem crepúsculo, onde o contraditório do amor exis-
ta por instantes fugazes e bélicos – na paralisia do tempo da cena sintomática de
finitude do ser amante.
Nesse percurso, movidos na leitura interpretativa e flutuante, chegamos à
última estrofe dessa erótica linguageira e poética de Garcia Lorca. Interpretamos
à maneira francesa o final do soneto, como “le coup de grâce”, o tiro de miseri-
córdia. O poeta, em desespero, suplica uma palavra do amante para que possa

50
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
dar destino ao seu sofrimento, mesmo antes sabendo que a espera era em vão,
porque a força desatinada para o esquecimento se encontra impotente, e o amor
sentido tem plasticidade infinita e resiste a ser esquecido ou a ser criado em
novos modos de vitalidade em si e no Outro. Como recurso extremo, o “poeta”
solicita o transbordamento de palavras que o acalmariam no estado delirante.
Mais uma vez pede para se deixar viver, não vive, nem quer viver, necessita da
beatitude do outro para a continuidade da própria vida. Eis o erotismo do exces-
so em plena carne que se mostra à luz da pele do corpo textual. Só desse modo,
o fim da vida do “poeta” pode se encontrar em preparação para o encontro
místico com o divino por meio de algo que se processa na “noche del alma”. O
retorno do desamparo se manifesta enigmático e paradoxal, como o simbólico
do erótico – a obscuridade. O título do poema “O poeta pede ao seu amor que
lhe escreva” parece ser uma súplica numa carta. Como os corações amorosos
sabem: toda carta encontra seu destinatário – um leitor ou o Outro.

O VAZIO COMO FURO E PROLONGAMENTO DA “NOCHE DEL


ALMA”

+ 11 - 2: Há muito tempo lidamos com os imperativos e entreves da inter-


pretação, pois quem analisa um texto, um quadro, uma peça teatral, uma vida,
um filme diz mais sobre si do que o objeto ou bem cultural que se deixa perceber.
Se algo sempre escapa do artista, os intérpretes são incapazes de oferecer sen-
tidos únicos e totalizantes em sua investida interpretativa, porque, mesmo nas
ruínas, algo de obscuro permanece indecifrável e pulsante – algo do enigma e
dos rumores da linguagem. Freud e Lacan tentaram se manter na linha contra
o psicobiografismo em suas análises, mas falharam; esse rateio (le ratage) é cons-
tituidor de nossa condição humana, mesmo quando estamos nos bosques das
artes, da estética, da psicanálise e da filosofia.
Em “Sonetos del amor oscuro”, Garcia Lorca deixa seus traços na cultura
espanhola e mundial, com sua poética enduendada: enigmática e fascinante. O
“oscuro” vem com luz negra para trepidar o sono do leitor e dos desejos vivos em
cada verso. Em sua erótica de arrebatamento, as tensões transformam o amante
na coisa amada, o desejado em desejante. Confundem-se o desejo, o desejado
e o desejante na obscuridade dos significantes do amor, levando os amantes a
atos de loucura dionisíca, de arroubos e de mudez além dos não flechados ou
indiferentes. Outros pensam que o amor bom só serve para fazer poesia ou filme.
No entanto, mesmo com dor e sofrimento, o significante do amor não
escapa das ruas, das telas de cinemas, das clínicas psicanalíticas, dos lençóis, das
canções populares e das telas dos computadores e celulares. Esse tema nos fisga
e nos rapta, provocando arruaças ou música. Não de modo diferente, a escritura

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

de Garcia Lorca é radical arrebatamento. Despossesão. Se o inconsciente é es-


truturado como linguagem, o amor também tem estrutura de ficção, assim como
a verdade. Esse impossível que os poemas analisados apontam carrega a impos-
sibilidade que se mostra nas demandas amorosas que sempre exigem, não pe-
dem, e que o outro não consegue atender. A falta é o indicial do próprio desejo.
O outro só tem a falta para oferecer, marca de sua singularidade e subjetividade.
Nada posso ofertar, pois é só isso que tenho. No grau máximo da erótica, per-
guntamos: o que podemos fazer com os nossos “nada”?
- 2 + 11 - 1: Para Lacan (2005)26, mesmo o amante se oferecendo em
amor, ele terá apenas a falta como apoio para seguir amando. A matemática dos
corações é perversa no cálculo amoroso, uma vez que é com mendicância que se
ama. Se houvesse plenitude e completude, o amor ficaria enterrado no cemitério
do esquecimento. A falta é o motor eletrizante do desejo. Somos sujeitos dese-
jantes quando abraçamos o nada que é o que o outro oferece ou entrega como
objeto perdido e que nunca existiu. O espaço da falta – a falha – é o lugar onde
nos inscrevemos na relação amorosa, da infância até a morte. Tanto para Freud
quanto para Lacan, o sintoma passa a ser saída para o mal-estar produzido pelo
objeto de desejo.
Contudo, a maneira como essa saída se estrutura difere para um e outro,
sendo que o intercâmbio de posição de amante para a de amado parece ser o
signo maior de amor e de desejo, como ensinou Platão, em “O banquete”, no
caso dos guerreiros viris Aquiles e Pátroclo, na Guerra de Troia. Eles encenam
a metáfora (substituição) do amor como amor de transferência – o amado que
segue o amante na morte, não como ato sacrificial, a saber, representam o amor
que se encontra na dimensão do que falta ao sujeito em plena erótica desejante.
Segundo Elizabete Siqueira (2014, p. 8)27: “da busca de um bem, encontra-se a
realização do desejo que não é a posse de um objeto, mas o efeito da emergência
à realidade do desejo como tal que goza de desejar.”
Para que desçam as cortinas deste texto e que se acendam as luzes obscu-
ras da experiência interior no palco da erótica lorqueana, invocamos mais um
soneto de Garcia Lorca (2012, p. 30-31), pois o corte é necessário, artifício da
castração e possibilidade de continuidade no erotismo da vida erótica e desejan-
te, em busca de um objeto preciso e obscuro (em grego, ágalma) nos laços com o
outro: “¡Ay voz secreta del amor oscuro!”

26 Sugerimos a leitura de: LACAN, Jacques. O seminário, livro 10 – A angústia. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
27 SIQUEIRA, Elizabete. A metáfora do amor. In: Opção Lacaniana online nova série Ano
5, Número 15, novembro 2014. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/
numero_15/A_meta_fora_do_amor.pdf. Acessado em: maio, 2022.

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
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FREUD, Sigmund. Compêndio de psicanálise e outros escritos inacabados. Tra-
dução Pedro Heliodoro Tavares, revisão técnica Maria Rita Salzano Moraes. Belo
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LACAN, Jacques. O seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge
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LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

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RESSONÂNCIAS E VAZIOS:
UM EXAME DAS LACUNAS NAS NARRATIVAS
LITERÁRIAS SOBRE O INCONSCIENTE
Eunice Nóbrega Portela1

INTRODUÇÃO

O estudo do inconsciente humano é complexo e apaixonante, um domí-


nio em que as fronteiras entre a realidade consciente e o mundo interior se en-
trelaçam de maneira enigmática. Desde os primeiros escritos de Sigmund Freud
o conceito do inconsciente tem sido terreno fértil para reflexões profundas sobre
a natureza da mente humana. No entanto, à medida que exploramos as vastas
paisagens da psicologia da mente, surgem perguntas intrigantes e desafiadoras.
Essas questões, muitas vezes escondidas em entrelinhas das narrativas li-
terárias, podem revelar ressonâncias e vazios na nossa compreensão do incons-
ciente. Isso ocorre porque narrativas literárias sobre o inconsciente levantam
questões que não são totalmente explícitas, mas que têm impactos significativos
na maneira como entendemos o conceito de inconsciente.
O conceito de inconsciente na teoria de Sigmund Freud é um dos pila-
res fundamentais da psicanálise. Ele representa uma parte intrincada e crucial
da mente humana, repleta de pensamentos, desejos e memórias, que não estão
acessíveis à consciência imediata.
Segundo Freud, o inconsciente é uma parte da mente que contém pen-
samentos, desejos e memórias reprimidas ou não acessíveis à consciência. Ele
acredita que o inconsciente é uma fonte de impulso e motivação para o compor-
tamento humano, e que nossas emoções e comportamentos são influenciados

1 Doutora em Educação com ênfase em Psicologia Social pela Universidade de Brasília. Mes-
tre em Educação. Pós-Graduada em Psicopedagogia Clínica e Institucional, Neuropsicolo-
gia Clínica e Terapia Cognitivo Comportamental. Especialista em Orientação Educacional e
Administração Escolar. Graduada em Pedagogia pela Universidade de Brasília. Pós-Douto-
rado Profissional em Psicanálise. Escritora, Pesquisadora, Palestrante, Consultora Educacio-
nal e Empresarial, Docente Universitária; Psicanalista Clínica, Neuropsicóloga. Terapeuta
Cognitivo Comportamental- TCC. Presidente do Instituto de Pesquisa, Desenvolvimento e
Apoio a Neurodivergentes-IPDAN. E-mail: [email protected].

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

por essas forças ocultas, de impacto profundo nas ações e emoções.


O inconsciente desempenha papel intrigante e fundamental nas narrativas
literárias. Muitos escritores e romancistas, ao longo da história, exploraram as
profundezas do inconsciente humano, incorporando conceitos e temas psicana-
líticos em suas narrativas.
Este ensaio tem como objetivo examinar lacunas em narrativas literárias
sobre o inconsciente, apresentando ressonâncias e vazios encontrados nas obras
analisadas. Não há pretensão de se esgotar o assunto, apenas de conduzir a uma
reflexão inicial sobre diferentes representações do inconsciente na Literatura.
Para isso, exploramos algumas formas como os autores abordam a complexida-
de do psiquismo humano, destacando elementos simbólicos, metáforas e dispo-
sitivos narrativos utilizados para dar voz aos recônditos da mente.
Além disso, analisamos, em certa medida, como tais representações do
inconsciente dialogam com teorias psicológicas, enriquecendo a compreensão
da psiquê humana. Este ensaio, ao lançar luz sobre tema tão fascinante e em
constante evolução, convida o leitor a se aproximar deste campo vasto e fértil do
inconsciente, por meio da Literatura, cientes de que essa jornada é apenas um
ponto de partida que pode levar a investigações futuras e aprofundadas.

DESENVOLVIMENTO

Segundo a teoria psicanalítica de Freud, o inconsciente é uma parte da


mente que contém pensamentos, desejos e memórias reprimidas, ou não aces-
síveis à consciência. Freud acreditava que o inconsciente é a fonte de impulso e
motivação do comportamento humano, isto é, que nossas emoções e compor-
tamentos são influenciados por essas relações ocultas existentes entre os atos
conscientes. Ele afirma que “o que é ‘inconsciente’ não pode ser motivado pela
busca de prazer. Mas ainda assim, não é inerte, agindo incessantemente em cada
função mental que conhecemos” (Freud, 1900,1940,1996).
Freud (1996) argumenta que o inconsciente é formado por conteúdos re-
primidos, constituídos principalmente por impulsos sexuais e agressivos, que fo-
ram suprimidos pela sociedade ou pela própria pessoa. Ele também ressalta que
as experiências da infância têm papel fundamental na formação do inconsciente,
e que traumas e eventos negativos podem se tornar reprimidos e inconscientes,
afetando pensamentos e comportamentos.
Conforme Freud, a parte inconsciente da personalidade é depósito dos
impulsos e experiências que foram esquecidos ou reprimidos. De lá, eles con-
tinuam a exercer influência poderosa sobre o comportamento. Para Freud, o
conceito de inconsciente é central para a compreensão da abordagem da mente
humana (Freud, 1923, 1940, 1996).

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Nessa perspectiva, o inconsciente constitui-se em uma chave para o enten-
dimento de muitos comportamentos e problemas psicológicos humanos. Freud
desenvolveu a Psicanálise como um método para explorar e tratar as questões
do inconsciente. Ele acreditava que ao trazer conteúdos ocultos para a consciên-
cia, as pessoas poderiam resolver conflitos internos e alcançar maior compreen-
são de si mesmas. Além disso, Sigmund Freud, nas “Cartas a Wilhelm Fliess”
(1996) afirma que “o inconsciente é a verdadeira realidade psíquica, e que em
sua profundidade repousa o núcleo do nosso ser”.
A Literatura, ao longo da história, tem explorado de maneira magistral,
o complexo domínio da mente humana. Essa exploração, muitas vezes, trans-
cende as palavras, criando espaço para ambiguidade e mistério. Dessas lacunas,
onde o não dito e o não revelado residem, emergem miríades de narrativas intri-
gantes e significativas.

RESSONÂNCIAS E VAZIOS

As ressonâncias e vazios encontrados nas narrativas literárias sobre o in-


consciente podem ser diversos e intrigantes. Elas podem se manifestar por meio
da exploração da psicologia profunda, do estudo da intertextualidade, na varie-
dade de vozes narrativas. Enquanto o vazio se revela na ocultação e na ambigui-
dade, no silêncio e no esquecimento, na incerteza e no mistério.
Algumas obras literárias mergulham profundamente no inconsciente,
revelando camadas obscuras da mente humana, reveladas pelas ressonâncias
exploradas pela psicologia profunda. Isso pode ser feito por meio de análise da
complexidade dos personagens, como também pelo rico simbolismo do estu-
do dos sonhos, no acesso a memórias reprimidas. Nesse sentido, no campo da
Literatura existem obras que mergulham de forma intensa e profunda no incons-
ciente humano, explorando camadas abstrusas da mente. Algumas dessas obras
serão, a partir de agora, descritas ao longo deste estudo.
No romance existencialista “O Estrangeiro”, Albert Camus (2009) repre-
senta o protagonista Meursault como alguém completamente alheio a emoções
e impulsos inconscientes. Nesse sentido, a estória retrata a falta de conexão emo-
cional da personagem com o mundo ao redor, e as consequências advindas disso.
Outra obra ilustrativa da exploração do inconsciente humano é “Ulisses”,
de James Joyce (1972), obra em que o autor mergulha profundamente na men-
te de seus personagens, utilizando uma técnica narrativa inovadora conhecida
como “monólogo interior”, para explorar os pensamentos, sonhos e memórias
dos personagens principais, sobretudo de Leopold Bloom e Stephen Dedalus,
revelando suas complexas psicologias.

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

No clássico romance modernista, James Joyce utiliza, ao longo da prodi-


giosa narrativa, técnicas de fluxo de consciência e narrativas em terceira pessoa,
para explorar perspectivas e experiências de Bloom e Dedalus, enquanto estes
percorrem as ruas de Dublin.
Jerome David Salinger (2019) no livro “O Apanhador no Campo de
Centeio” mostra o narrador, Holden Caulfield, oferecendo uma visão íntima de
sua mente, enquanto luta contra seu descontentamento para com a sociedade e
para com suas próprias complexidades emocionais. O livro é considerado um
estudo de personagem profundamente psicológico.
Em “A Metamorfose” de Franz Kafka (1997), um conto surrealista, o au-
tor realiza, numa trama permeada de incerteza e mistério, uma profunda explo-
ração do inconsciente e dos sentimentos de alienação. O protagonista, Gregor
Samsa, desperta um dia transformado em um inseto, desencadeando uma nar-
rativa que mergulha nas reações psicológicas dele e nas implicações dessa trans-
formação em sua mente.
Em “O Conde de Monte Cristo” de Alexandre Dumas (2017), apesar
de ser uma emocionante aventura de capa e espada, a jornada do protagonista
Edmond Dantès se desdobra como uma exploração profundamente psicológica,
revelando suas motivações inconscientes enquanto busca vingança contra aque-
les que o traíram. Esta obra não apenas entretém, mas também mergulha nas
complexidades da mente do protagonista.
Nessas obras literárias os autores mergulham nas complexidades do in-
consciente humano, explorando pensamentos, emoções e impulsos que muitas
vezes estão ocultos na mente de seus personagens. Cada uma delas oferece uma
perspectiva única sobre a psicologia profunda e como ela pode ser representada.
Por meio do recurso literário da intertextualidade, as obras muitas vezes
aludem a teorias psicológicas, filosóficas ou obras anteriores, que exploram o
domínio do inconsciente. Essas conexões têm o poder de aprimorar a compreen-
são do leitor e estabelecer ligações com seu conhecimento prévio, enriquecendo
assim a experiência de leitura.
Por sua vez, Virginia Woolf (1980), em “Mrs. Dalloway”, romance mo-
dernista, faz uso extensivo de fluxo de consciência para explorar a mente de sua
personagem principal, Clarissa Dalloway. Na obra, Woolf incorpora conceitos
freudianos como a interpretação dos sonhos, para revelar complexidades psico-
lógicas de Clarissa.
Nesaa obra, ao empregar a técnica narrativa do fluxo de consciência,
Woolf que transporta os leitores às mentes dos personagens, proporcionando
entendimento detalhado de Clarissa Dalloway e de outros personagens, desve-
lando suas complexidades psicológicas.

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Outro clássico literário que merece destaque é “Hamlet”, de William
Shakespeare (1978), autor conhecido por sua capacidade de explorar temas
psicológicos em suas tragédias. “Hamlet” embarca em uma jornada emocional
tumultuada que levanta questões profundas sobre a mente humana, a sanidade
e a moralidade, de impacto duradouro e significativo no campo da psicologia
moderna. A obra de Shakespeare continua a ser referência fundamental para a
compreensão das complexidades psicológicas do ser humano.
Fiodor Dostoiévski (2001), em “Crime e Castigo”, obra-prima da Literatura
russa, explora a psicologia de seu protagonista, Raskolnikov, que comete um assas-
sinato e luta com sua consciência. O autor incorpora elementos filosóficos como
o niilismo, para enriquecer a exploração das complexidades da mente humana.
Outra obra ilustrativa e notável quando se trata de explorar a psicologia
dos personagens, é “O Som e a Fúria” de William Faulkner (2003), obra que
mergulha nas complexidades de uma família disfuncional. Nela, Faulkner adota
abordagem narrativa inovadora, ao utilizar diferentes narradores, incluindo um
personagem com deficiência intelectual, para nos levar diretamente às mentes
dos personagens e suas percepções únicas do mundo.
As ricas referências introduzidas por Faulkner na trama enriquecem so-
bremaneira a experiência de leitura, permitindo que os leitores explorem a psi-
cologia dos personagens, com seus significados e simbolismos.
O título “O Som e a Fúria” de William Faulkner não está diretamente rela-
cionado a “Macbeth”, de Shakespeare no “solilóquio da futilidade”. Na verdade,
Faulkner faz alusão às emoções intensas dos seus personagens, sugerindo que suas
vidas são cheias de tumulto e ruído, com significados profundos e complexos.
William Faulkner (2014) também nos presenteia com uma narrativa úni-
ca em seu clássico “Enquanto Agonizo”. Neste romance, contado através das
vozes de 15 personagens diferentes, o autor nos oferece sua própria perspectiva
sobre os eventos que se desenrolam durante a jornada da família Bundren para
enterrar sua mãe. A diversidade de vozes revela uma ampla gama de percepções
e motivações dos personagens, proporcionando uma exploração multifacetada
do inconsciente humano. Faulkner nos convida a mergulhar profundamente
na psicologia de cada personagem, enriquecendo assim nossa compreensão da
complexidade das experiências humanas e das relações familiares.
José Saramago (1995) em “Ensaio sobre a Cegueira”, romance distópico,
isto é, que descreve uma sociedade imaginária, geralmente no futuro, caracte-
rizada por condições opressivas, caóticas, totalitárias ou indesejáveis, aborda
questões psicológicas e filosóficas em um contexto em que uma epidemia de
cegueira súbita afeta a sociedade. Saramago faz referências à filosofia existen-
cialista e à psicologia da percepção para criar uma narrativa rica em significado.

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Nesse sentido, percebemos que a Literatura tem a capacidade de empregar


uma diversidade de vozes narrativas, em primeira ou terceira pessoa, por meio
de narradores oniscientes ou monólogos interiores, a fim de retratar uma ampla
gama de perspectivas e vivências do mundo interior e do inconsciente humano,
ou seja, a multiplicidade de vozes narrativas na Literatura é uma ferramenta
poderosa para representar diferentes perspectivas e experiências do inconsciente.
Trazemos a seguir, outros exemplos de obras literárias que empregam vo-
zes narrativas diversas, para explorar o tema do inconsciente.
“O Sol Também se Levanta” de Ernest Hemingway (2015), é um roman-
ce modernista, narrado em primeira pessoa, o personagem Jake Barnes. A nar-
rativa permite ao leitor mergulhar na mente de Jake e experimentar suas lutas
emocionais e psicológicas, após ser ferido na Primeira Guerra Mundial.
Essa obra literária demonstra como a escolha da voz narrativa pode ter
um impacto significativo na representação das experiências do inconsciente e na
construção de personagens complexos. Cada voz narrativa oferece uma janela
única para a mente dos personagens, permitindo ao leitor uma compreensão
mais profunda de suas psicologias e motivações.
Adentrar nos territórios literários é uma jornada desafiadora, por que pre-
cisamos entender como a Literatura usa o vazio como ferramenta narrativa,
convidando-nos a explorar o inconsciente humano e a nos confrontar com as
incertezas que permeiam nossa existência.
Por meio dessas narrativas, é possível desvendar segredos, medos e dese-
jos que se escondem nas sombras da psique humana, lembrando-nos de que, por
vezes, são os espaços vazios que mais clamam por nossa atenção e compreensão,
pois o vazio pode se manifestar em instâncias tríplices como: ocultação e ambi-
guidade; silêncio e esquecimento; ou incerteza e mistério.
Algumas narrativas literárias podem optar por manter o inconsciente
oculto e ambíguo, deixando para o leitor a tarefa de decifrar o que está nas en-
trelinhas. Isso cria vazios deliberados que convidam à interpretação. O incons-
ciente, frequentemente, lida com memórias reprimidas e traumas.
Algumas narrativas literárias podem escolher representar o vazio deixa-
do pelo que foi esquecido ou reprimido, explorando o impacto disso nas vidas
dos personagens. A incerteza e o mistério aparecem nas narrativas quando o
inconsciente é retratado como um espaço de mistério e incerteza. Determinados
autores podem optar por não fornecer respostas definitivas sobre as questões do
inconsciente, criando vazios que desafiam a compreensão do leitor.
A Literatura explora o vazio deixado pelo que foi esquecido ou reprimido,
bem como a incerteza e o mistério associados ao inconsciente. Encontramos obras
literárias que abordam esses temas primorosamente, como as listadas a seguir.

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Scott Fitzgerald (2011) na sua obra “O Grande Gatsby”, romance clássico
americano, aborda o tema do esquecimento e do vazio deixados por eventos
passados. O protagonista, Jay Gatsby, é assombrado por um amor perdido e vive
em busca de um passado idealizado que ele reprimiu e não consegue recuperar.
Marcel Proust (2006) no clássico “Em Busca do Tempo Perdido”, mo-
numental obra de sete volumes, explora a memória e o esquecimento de forma
profunda. O narrador, Marcel, busca recuperar memórias perdidas e explorar o
impacto do tempo na psique humana.
Outro livro que explora o mistério e a ambiguidade da mente de serial kil-
lers e psicopatas é “O Silêncio dos Inocentes”, de Thomas Harris (2015). Neste
thriller psicológico, Hannibal Lecter é exemplo notável de um personagem que
mantém seus pensamentos e motivos ocultos.
Essas obras literárias destacam como o esquecimento, a repressão, a in-
certeza e o mistério são temas recorrentes na Literatura, quando se trata de re-
presentar o inconsciente e as complexidades da mente humana. Cada uma delas
oferece uma visão única desses aspectos, convidando os leitores a explorar o
psiquismo humano.
Portanto, ao examinar as ressonâncias e vazios nas narrativas literárias sobre
o inconsciente, podemos observar como os escritores exploram a complexidade des-
se fascinante tema. Eles escolheram amplificar certos aspectos, enquanto deixam
outros na obscuridade, criando representações literárias do inconsciente humano.

LACUNAS NA NARRATIVA: O INEFÁVEL E O INCONSCIENTE

Conforme Freud, nas tramas da Literatura, há momentos em que as pa-


lavras se tornam insuficientes para capturar a enredamento das experiências hu-
manas e os recantos mais densos da psiquê. Essas lacunas na narrativa muitas
vezes refletem o encontro entre o inefável, o que não pode ser plenamente ex-
presso em linguagem, e o inconsciente, o reino oculto da mente, que influencia
nossos pensamentos e ações. Nesse cruzamento, os escritores revelam o poder
da sugestão, do simbolismo e do subtexto, para evocar emoções e compreensões
que transcendem as palavras.
A Literatura frequentemente explora momentos em que os personagens
enfrentam emoções intensas, experiências transcendentais ou eventos profundos
que desafiam a descrição verbal. Esses momentos podem ser marcados por uma
sensação de silêncio ou inadequação linguística. Ao evocar o inefável, os escrito-
res convidam os leitores a mergulhar na experiência subjetiva dos personagens,
onde a linguagem tradicional não pode penetrar completamente.
As lacunas na narrativa também podem ser entendidas como um eco das
influências do inconsciente. O inconsciente, cheio de desejos reprimidos, medos

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M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

e memórias esquecidas, muitas vezes não é diretamente acessível à consciência.


Em vez disso, ele se manifesta através de símbolos, sonhos e outras formas in-
diretas. As lacunas na narrativa podem ser interpretadas como representações
literárias desse fluxo subterrâneo de pensamentos e emoções.
Para preencher as lacunas entre o inefável e o consciente, os escritores
frequentemente recorrem a metáforas e simbolismos. Uma paisagem desolada
pode refletir a tristeza profunda de um personagem, enquanto um objeto aparen-
temente trivial pode ser imbuído de significados mais profundos. Esses elemen-
tos simbólicos atuam como pontes entre a experiência interna do personagem e
a compreensão do leitor.
As lacunas na narrativa também podem ser deliberadamente deixadas
pelos escritores, para permitir que os leitores preencham os espaços em bran-
co com sua própria interpretação. Isso cria uma colaboração entre o escritor
e o leitor, momentos em que a imaginação e as experiências pessoais do leitor
contribuem para a construção da história. Esse subtexto sutil permite que as
narrativas alcancem um nível mais profundo de conexão emocional e intelectual
entre ambos.
Portanto, ao examinar as lacunas na narrativa, sob o prisma do inefável
e do inconsciente, somos lembrados de que a Literatura é arte que vai além das
palavras, ao explorar as complexidades da experiência humana, de formas que,
muitas vezes, não podem ser plenamente expressas. Essas lacunas nos convidam
a mergulhar na subjetividade dos personagens, a explorar fluxos do inconsciente
e a encontrar significados nas entrelinhas, onde a linguagem tradicional cede
espaço ao poder do simbolismo e da sugestão.
A Literatura, como espelho da complexidade humana, muitas vezes utili-
za o que não é dito ou explícito na narrativa para revelar os cantos sombrios e as
profundezas ocultas da mente. O silêncio literário pode ser um meio poderoso
de representar pensamentos reprimidos, emoções não expressas e conflitos inter-
nos, nesse sentido, ecoa a teoria psicanalítica de que as camadas mais profundas
da psique muitas vezes permanecem ocultas ao exame superficial.
Quando um autor escolhe omitir informações ou deixar lacunas na nar-
rativa, os leitores são desafiados a preencher esses espaços com suas próprias
interpretações. Esses subtextos, muitas vezes representando pensamentos não
compartilhados ou sentimentos subterrâneos, podem espelhar as partes não ex-
ploradas da psique humana. Da mesma forma que o inconsciente influi nas ações
e emoções, o subtexto literário revela motivações subjacentes dos personagens.
O silêncio na narrativa literária, frequentemente, reflete a repressão e os
mecanismos de defesa da psiquê. Personagens que evitam falar sobre um de-
terminado assunto podem estar refletindo um esforço inconsciente para evitar

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
memórias traumáticas ou emoções desconfortáveis. O silêncio pode ser uma
manifestação literária da repressão psicanalítica, onde o que não é dito, é tão
revelador quanto o que é dito.
Muitas vezes, os personagens literários enfrentam dilemas internos, em
que suas ações não correspondem às verdadeiras intenções. Esses conflitos in-
ternos são refletidos no que não é dito - nas hesitações, nas palavras não ditas e
nas escolhas ambíguas. Esses momentos literários nos lembram que o silêncio
pode ser uma expressão dos conflitos e das tensões internas que ocorrem dentro
de cada indivíduo.
A Literatura frequentemente busca transmitir a riqueza das experiências
emocionais humanas, mesmo quando as palavras são insuficientes. O subtexto
emocional é um terreno fértil onde os sentimentos não expressos encontram sua
voz. Personagens que escondem suas verdadeiras emoções podem ser reflexos
das complexidades do inconsciente, onde desejos e medos se entrelaçam.
Ao olharmos para o que não é dito ou explícito na narrativa literária,
somos lembrados de que as palavras são apenas a superfície da experiência hu-
mana. A psicanálise nos ensina que há muito mais acontecendo na mente do
que podemos ver ou ouvir diretamente. A Literatura, com sua capacidade única
de explorar a complexidade humana, nos convida a ler nas entrelinhas, nos sub-
textos e nos silêncios para descobrir os aspectos ocultos da mente e da psique que
moldam as vidas dos personagens e, por extensão, a nossa própria compreensão
do ser humano.
A Literatura tem o poder único de capturar a complexidade da experiên-
cia humana de maneira que muitas vezes não pode ser adequadamente expressa
por palavras simples. Na perspectiva psicanalítica, a habilidade da Literatura
em abordar nuances da psique humana, é fundamental para a compreensão dos
desejos, conflitos e emoções complexas, que muitas vezes permanecem ocultos
sob a superfície (Freud, 1930,1996; 1927, 1996).
Na Literatura frequentemente são utilizados simbolismo e subtexto para
transmitir nuances emocionais e psicológicas que não podem ser facilmente
descritas. A perspectiva psicanalítica enxerga esses elementos literários como
reflexos das operações do inconsciente. Assim como os sonhos são repletos de
símbolos que revelam desejos reprimidos, os símbolos literários podem aludir a
emoções e conflitos profundos que os personagens e os leitores podem não estar
conscientemente cientes (Freud,1900,1996).
A Literatura, frequentemente, mergulha nas motivações ocultas dos per-
sonagens, desvendando os fatores inconscientes que impulsionam suas ações.
A perspectiva psicanalítica ressalta a importância das motivações inconscien-
tes na compreensão da psicologia humana. Ao explorar os desejos reprimidos,

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traumas não resolvidos e conflitos internos dos personagens, a Literatura ofe-


rece um vislumbre das forças subjacentes que moldam a experiência humana
(Freud, 1940, 1996).
As complexidades das relações humanas muitas vezes não podem ser
plenamente compreendidas através de interações superficiais. A Literatura nos
permite adentrar nos diálogos internos dos personagens e nos processos mentais
que influenciam suas interações. A perspectiva psicanalítica enfatiza a influên-
cia do inconsciente nas relações interpessoais e na maneira como os desejos e as
emoções inconscientes podem moldar as dinâmicas complexas entre as pessoas
(Freud, 1940, 1996, 1930,1996).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No vasto universo da Literatura, as narrativas sobre o inconsciente ecoam


como uma sinfonia de ressonâncias e vazios. O estudo dessas lacunas revela um
terreno fértil para a exploração da complexidade e da mente humana, onde as
palavras muitas vezes falham em capturar a totalidade da experiência. Conforme
mergulhamos nas profundezas das narrativas literárias sobre o inconsciente, so-
mos lembrados de que, assim como na vida, há mistérios que resistem a explica-
ções e segredos, e que permanecem ocultos nas sombras.
No entanto, é precisamente nesse terreno de ressonâncias e vazios, que
encontramos espaço para a reflexão, a interpretação pessoal e a conexão com os
temas universais da condição humana. Portanto, que continuemos a explorar es-
sas narrativas, cientes de que, mesmo nas lacunas, encontramos o potencial para
compreensão mais profunda e apreciação mais rica do que significa ser humano.
A Literatura é um meio eficaz de desvelar conflitos internos que muitas
vezes permanecem escondidos sob a fachada social. Personagens literários fre-
quentemente lutam com dilemas morais, traumas passados e emoções contra-
ditórias. A perspectiva psicanalítica vê esses conflitos internos como manifesta-
ções da luta entre os impulsos conscientes e os conteúdos inconscientes.
Ao mergulhar nas narrativas literárias, os leitores são convidados a uma
introspecção profunda, semelhante à análise psicanalítica. Ao testemunhar as
jornadas emocionais e psicológicas dos diferentes personagens, os leitores são
desafiados a refletir sobre suas próprias experiências e emoções. Isso espelha a
natureza da terapia psicanalítica, que busca trazer à luz as complexidades do
inconsciente para promover a autoconsciência e a cura.

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
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PROFUNDEZAS DA ALMA REVELADAS:
UMA EXPLORAÇÃO PSICANALÍTICA DA
COMPLEXIDADE HUMANA NA LITERATURA
Eunice Nóbrega Portela1

INTRODUÇÃO

A psicanálise, uma abordagem inovadora e provocativa para compreen-


der a mente humana, encontra terreno fértil na Literatura, onde os labirintos
da psique são meticulosamente traçados. Neste ensaio, mergulharemos nas
profundezas da alma humana por meio das lentes da psicanálise Freudiana, ex-
plorando como essa teoria revela nuances, conflitos e mistérios nos personagens
literários e em suas narrativas. À medida que sondamos as camadas ocultas
das mentes fictícias, desvendamos também as complexidades da nossa própria
natureza humana.
A psicanálise é uma teoria complexa que busca compreender a psique hu-
mana, investigando os processos mentais, as emoções, os comportamentos e
os conflitos internos que influenciam o indivíduo. Desenvolvida por Sigmund
Freud no final do século XIX, a psicanálise revolucionou a maneira como enten-
demos a mente e teve um profundo impacto na psicologia, na psiquiatria e em
diversas áreas das ciências humanas.
A principal premissa da psicanálise é que grande parte do funcionamento
mental ocorre no nível inconsciente, ou seja, aspectos dos pensamentos, dese-
jos e traumas são reprimidos e não estão acessíveis à consciência do indivíduo.
Esses elementos inconscientes podem, no entanto, influenciar fortemente o
comportamento, os relacionamentos e as escolhas pessoais.

1 Doutora em Educação com ênfase em Psicologia Social pela Universidade de Brasília. Mes-
tre em Educação. Pós-Graduada em Psicopedagogia Clínica e Institucional, Neuropsicolo-
gia Clínica e Terapia Cognitivo Comportamental. Especialista em Orientação Educacional e
Administração Escolar. Graduada em Pedagogia pela Universidade de Brasília. Pós-Douto-
rado Profissional em Psicanálise. Escritora, Pesquisadora, Palestrante, Consultora Educacio-
nal e Empresarial, Docente Universitária; Psicanalista Clínica, Neuropsicóloga. Terapeuta
Cognitivo Comportamental- TCC. Presidente do Instituto de Pesquisa, Desenvolvimento e
Apoio a Neurodivergentes-IPDAN. E-mail: contato@ draeunicenobrega.com.

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Antes de adentrarmos nos labirintos da psique nas narrativas literárias,


vamos aquecer nossa memória sobre alguns conceitos fundamentais da psi-
canálise que ajudará a desvendar as nuances da teoria psicanalítica nas obras
literárias.
A principal premissa da psicanálise é que grande parte do funcionamento
mental ocorre no nível inconsciente, ou seja, aspectos dos pensamentos, dese-
jos e traumas são reprimidos e não estão acessíveis à consciência do indivíduo.
Esses elementos inconscientes podem, no entanto, influenciar fortemente o
comportamento, os relacionamentos e as escolhas pessoais.
Para Sigmund Freud, o inconsciente é uma parte da mente que contém
pensamentos, desejos e memórias reprimidas ou não acessíveis à consciência.
Ele acreditava que o inconsciente é uma fonte de impulso e motivação para o
comportamento humano e que nossas emoções e comportamentos são influen-
ciados por essas forças ocultas e têm impacto profundo nas ações e nas emoções
(Freud, 1900/1996).
Na concepção psicanalítica “o inconsciente é a verdadeira realidade
psíquica; em sua profundidade repousa o núcleo do nosso ser”, relatou o au-
tor em “Carta a Wilhelm Fliess” (1895). Em outra obra “Novas Conferências
Introdutórias à Psicanálise” Freud afirma que “não há realidade psíquica que
não seja também subjetiva” (Freud, 1897/1996).
Embora o inconsciente ocupe lugar central da teoria psicanalítica, outros
conceitos permeiam os meandros que a fundamenta: a psicanálise explora os de-
sejos e conflitos internos, muitas vezes inconscientes, que podem causar angústia
mental e influenciar o comportamento; os mecanismos psicológicos inconscien-
tes que as pessoas usam para lidar com pensamentos e sentimentos ameaçadores
ou perturbadores, como a repressão, a negação e a projeção (Freud, 1940/1996).
O Complexo de Édipo e um conceito central que descreve os sentimen-
tos de atração e rivalidade de uma criança em relação aos pais, influencian-
do o desenvolvimento da personalidade e dos relacionamentos. Enquanto a
Transferência e Contratransferência são descritos como processos em que os
sentimentos e experiências inconscientes do paciente são transferidos para o te-
rapeuta (transferência) e vice-versa (contratransferência), influenciando a dinâ-
mica terapêutica (Freud,1924b/1996).
A interpretação dos sonhos é uma ferramenta importante na psicanálise
para acessar conteúdos inconscientes e insights sobre a psique do indivíduo. No
pressuposto da terapia psicanalítica busca trazer à consciência conteúdos repri-
midos, promovendo a compreensão e a resolução de conflitos, e assim possibili-
tar o crescimento pessoal e a mudança (Freud, 1900/1996; 1908a).

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
A psicanálise acredita que a mente é composta por forças em conflito.
Desejos inconscientes podem entrar em conflito com normas sociais, valores
pessoais e outros aspectos da personalidade, resultando em tensões e angús-
tias. A teoria psicanalítica freudiana postula que o desenvolvimento huma-
no passa por estágios psicossexuais (oral, anal, fálico, latência e genital), nos
quais as experiências e os conflitos da infância influenciam a personalidade
adulta (Freud, 1905/1996).
Na abordagem psicanalítica freudiana, os “Mecanismos de Defesa” são
estratégias psicológicas inconscientes que a mente utiliza para lidar com confli-
tos internos, ansiedades e emoções perturbadoras. Esses mecanismos ajudam a
reduzir a ansiedade e proteger o ego (a parte da mente consciente que lida com
a realidade) do impacto emocional desses conflitos. É importante ressaltar que
esses mecanismos de defesa são processos inconscientes e podem ser adaptativos
em certas situações (Freud, 1923b/1996).
A teoria psicanalítica enfatiza a influência das relações familiares e das pri-
meiras experiências na formação da personalidade. Traços de relacionamentos
parentais podem ser transferidos para relacionamentos posteriores. Pressupõe
que os comportamentos humanos são determinados por forças psíquicas, muitas
vezes desconhecidas. Isso vai contra a ideia de livre arbítrio absoluto. A psi-
canálise também envolve a terapia psicanalítica, na qual o paciente explora o
inconsciente por meio de conversas regulares com um terapeuta. A relação te-
rapêutica e a análise das transferências são aspectos importantes deste processo
(Freud,1938/40; 1996).
Revisitar esses conceitos fundamentais traz à memória não somente a
construção teórica freudiana, como também a sua importância. A psicanálise
influenciou uma série de correntes da psicologia e inspirou a pesquisa sobre
a mente humana, incluindo a terapia psicanalítica, que utiliza seus princípios
para ajudar os indivíduos a explorar seus problemas emocionais e mentais.
Apesar das críticas e evoluções ao longo dos anos, a psicanálise continua a
ser uma abordagem significativa para a compreensão da psique humana e do
comportamento e está presente em grandes obras literárias que revisitaremos
nessa memória literária.

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DESENVOLVIMENTO

No labirinto da mente humana existe um domínio misterioso onde os


pensamentos, desejos e memórias se entrelaçam, sem o controle consciente. Esse
território é conhecido como o inconsciente, um componente fundamental da teo-
ria psicanalítica de Sigmund Freud. Em seu trabalho seminal “A Interpretação
dos Sonhos” (1899), Freud delineou a concepção de que os processos mentais
operam em níveis distintos de consciência, lançando as bases para a exploração
posterior das profundezas da narrativa interior (Freud, 1907/1996; 1900/2019).
A partir da perspectiva psicanalítica, os pensamentos conscientes repre-
sentam apenas a ponta visível de um iceberg, enquanto as vastas extensões do
inconsciente permanecem ocultas. Como Freud expressou, “onde estava o Id,
o Ego deve ser”. O Id, a parte mais primitiva da personalidade, abriga impulsos
instintivos e desejos inatos que são muitas vezes inaceitáveis à sociedade. O Ego,
mediador entre o Id e o mundo exterior, trabalha para satisfazer esses desejos de
maneira socialmente aceitável (Freud, 1923b/1996).
As teorias freudianas sustentam que a exploração do inconsciente ocorre
por meio de processos como a livre associação e a interpretação de sonhos. A
livre associação, uma técnica terapêutica, envolve expressar pensamentos e sen-
timentos sem censura consciente, permitindo que conteúdos ocultos surjam. A
análise de sonhos, por sua vez, é vista como uma “estrada real para o conheci-
mento do inconsciente”. Os sonhos são entendidos como manifestações simbó-
licas dos desejos reprimidos, e sua interpretação ajuda trazer à luz os conteúdos
ocultos (Freud, 1907/1996; 1900/2019).
Além das contribuições de Freud, o psicanalista Carl Jung introduziu a
ideia do inconsciente coletivo, um repositório de imagens arquetípicas e mitoló-
gicas compartilhadas por toda a humanidade. Essas imagens, chamadas arquéti-
pos, emergem nas narrativas pessoais e culturais, influenciando a maneira como
percebemos e interpretamos o mundo (Jung, 1986).
A aplicação do conceito de inconsciente à narrativa interior revela como
os elementos ocultos moldam a experiência individual. Personagens literários,
por exemplo, muitas vezes lutam contra conflitos internos e desejos reprimidos
que se manifestam através de suas ações e escolhas. Ao analisar personagens
como Édipo, cujo complexo de Édipo retrata desejos inconscientes de natureza
incestuosa, ou Hamlet, que confronta seu próprio conflito interno entre a vin-
gança e a moralidade, percebemos como o inconsciente enriquece e complexifi-
ca as narrativas (Freud, 1924a).
Nessa perspectiva, a interseção do inconsciente com a narrativa interior
nos lembra da profundidade da experiência humana. Através da lente psicanalí-
tica, a narrativa se desdobra como um terreno fértil para explorar os meandros
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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
da mente, revelando os segredos enterrados e os conflitos que moldam as esco-
lhas e a evolução dos personagens. A busca para compreender essa dinâmica
oculta não apenas enriquece nossa compreensão da Literatura, mas também nos
conecta à complexidade universal da psique humana.
De acordo com Freud, a teoria do inconsciente se manifesta na Literatura,
ela desvela as profundezas ocultas da mente humana, e sua influência se estende
além da psicologia, para penetrar as páginas da Literatura. Ao explorar persona-
gens, tramas e simbolismos através da lente psicanalítica, testemunhamos a for-
ma como a teoria do inconsciente ganha vida, lançando luz sobre as motivações
e conflitos subjacentes nas narrativas literárias (Freud, 1915; 1996).
Um exemplo icônico da manifestação da teoria do inconsciente na
Literatura é encontrado na peça “Hamlet”, de William Shakespeare O protago-
nista, Hamlet, personifica o conflito interno inerente à teoria freudiana. Seus so-
lilóquios são janelas para o seu inconsciente, revelando as batalhas entre o Ego e
o Id. O dilema moral de vingar a morte de seu pai, combinado com o complexo
de Édipo, latente em relação à mãe, é uma personificação vívida dos conflitos in-
conscientes que Freud explorou (Shakespeare, 1819/2008; Freud, 1915; 1996).
Outra obra que ilustra a teoria do inconsciente é “Alice no País das
Maravilhas”, de Lewis Carroll. Através do cenário surreal e das situações ilógicas
enfrentadas por Alice, a história reflete os aspectos caóticos do inconsciente. O
país das maravilhas é um terreno de sonhos e pesadelos, onde as regras da realida-
de são subvertidas. As transformações de tamanho de Alice, por exemplo, podem
ser interpretadas como uma representação de suas flutuações internas de poder e
autoestima, reflexos dos desejos e conflitos inconscientes (Carroll, 1988).
Na obra “O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde”, de Robert Louis
Stevenson, a dualidade entre a persona civilizada e a selvagem é uma manifes-
tação vívida dos conceitos freudianos. O Dr. Jekyll representa o Ego, enquanto
Mr. Hyde personifica os impulsos e desejos reprimidos do Id. Através desse en-
redo, a história explora a luta interna entre o controle consciente e os impulsos
inconscientes (Stevenson, 1996; Freud, 1923b/1996).
No conto “A Metamorfose”, de Franz Kafka, o protagonista Gregor Samsa
acorda transformado em um inseto. A interpretação psicanalítica dessa meta-
morfose, sugere uma representação visual da alienação e repressão dos desejos e
conflitos internos. A narrativa apresenta a ideia de que a mente humana pode se
tornar tão estranha e incontrolável quanto a própria metamorfose (Kafka, 1997).
Ao examinar esses exemplos e muitos outros na Literatura, vemos a teoria
do inconsciente de Freud como uma ferramenta poderosa para entender os ele-
mentos subjacentes das narrativas. O cenário literário é um terreno fértil onde os
desejos reprimidos, complexos psicológicos e conflitos internos se manifestam

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M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

por meio dos personagens e suas jornadas. Através desse olhar psicanalítico, as
histórias se tornam espelhos da psique humana, ecoando a complexidade que
reside nas profundezas do inconsciente.
Ao explorar os personagens cujas motivações e ações são influenciadas
por impulsos inconscientes, foi possível perceber que a literatura frequentemen-
te nos mergulha nas complexidades da mente humana, revelando personagens
cujas ações e motivações são guiadas por forças obscuras, aquelas que permane-
cem ocultas nas profundezas do inconsciente. Esses personagens, enquanto lu-
tam contra conflitos internos e impulsos insondáveis, ilustram de maneira vívida
a influência da teoria do inconsciente de Freud (1916; 1996).
Um exemplo notável é o personagem Heathcliff, do romance “O Morro
dos Ventos Uivantes”, de Emily Brontë. Heathcliff é atormentado por um amor
obsessivo e uma busca implacável por vingança. Sua infância traumática e a
paixão incontrolável que sente por Catherine desencadeiam uma espiral de emo-
ções reprimidas. A profundidade de seu amor e ódio é um reflexo dos impulsos
inconscientes de desejo e agressão que Freud postulou (Brontë, 1976).
Outro exemplo é o protagonista Macbeth, da peça “Macbeth”, de
William Shakespeare. À medida que ambiciona o poder e comete assassinatos
para alcançá-lo, Macbeth enfrenta um conflito interno que espelha a teoria do
inconsciente. Seus impulsos de ambição e agressão, ainda que reprimidos pela
moralidade, emergem como forças incontroláveis que o conduzem à sua própria
destruição (Shakespeare, 1978).
Na obra “Lolita”, de Vladimir Nabokov, o narrador Humbert é um exem-
plo fascinante de alguém cujas motivações são profundamente influenciadas por
impulsos inconscientes. Sua obsessão sexual por Dolores Haze, uma jovem de
quem ele se torna padrasto, é uma manifestação do complexo de Édipo, em que
o desejo reprimido pelo pai rivaliza com a busca de um objeto de desejo proibido
(Nabokov, 1994; 2006).
Cabe trazer à tona outro personagem que ilustra a influência do in-
consciente, que é Raskólnikov, de “Crime e Castigo”, de Fiódor Dostoiévski.
Raskólnikov comete um assassinato em busca de uma teoria de superioridade
moral. Sua luta interna entre a justificativa consciente e os remorsos inconscien-
tes revela a tensão entre as diferentes partes da personalidade que Freud descre-
veu (Dostoiévski, 2001).
A Literatura é um espelho da complexidade humana, e esses personagens
se tornam veículos para explorar a teia intricada de desejos, medos e conflitos
que residem no inconsciente. Ao examinar suas motivações e ações, somos con-
vidados a contemplar a profundidade do ser humano e a realidade das forças
obscuras que influenciam nossas vidas. Através desses personagens, a teoria do

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
inconsciente ganha vida, nos lembrando que nossa psique é um terreno vasto e
misterioso, repleto de impulsos que moldam nossa trajetória.

SONHOS E SÍMBOLOS

No silêncio da noite, quando os olhos se fecham e a mente vagueia, os so-


nhos surgem como um portal para o desconhecido, um reino onde os impulsos
inconscientes encontram voz. Na Literatura e na psicanálise, os sonhos e os sím-
bolos que eles carregam revelam camadas ocultas da psique humana, oferecendo
uma janela para os desejos reprimidos, conflitos internos e aspirações profundas
(Freud,1899).
Na concepção desse teórico, os sonhos, frequentemente enigmáticos e
fragmentados, ecoam as teorias de Sigmund Freud sobre o inconsciente. Os
sonhos são a via direta para o Id, onde os desejos e impulsos inaceitáveis en-
contram uma expressão disfarçada (Freud,1899). Em obras literárias como “A
Tempestade”, de William Shakespeare, os sonhos são frequentemente usados
para transmitir verdades internas que os personagens não conseguem enfrentar
conscientemente (Shakespeare, 1982).
Os símbolos, por outro lado, formam a linguagem secreta do inconscien-
te, transmitindo significados profundos além das palavras. O “Grande Irmão”
em “1984”, de George Orwell, não é apenas um líder político, mas também um
símbolo do controle totalitário. Esses símbolos transcendem o enredo e atuam
como portais para as profundezas da psique coletiva e individual (Orwell, 2009).
Carl Jung, um dos seguidores de Freud, expandiu a compreensão de sím-
bolos na psicanálise, introduzindo o conceito de arquétipos. Esses elementos
universais e compartilhados da psique humana permeiam a Literatura (Jung,
2002). Na “Odisseia”, de Homero, o arquétipo da jornada heroica é evidente à
medida que Ulisses enfrenta obstáculos, refletindo os desafios e a autodescober-
ta do próprio herói interior de cada leitor (Homero, 2006).
Em “O Grande Gatsby”, de F. Scott Fitzgerald, o icônico símbolo do
olhar do Dr. T.J. Eckleburg, representa um observador onipresente e inescapá-
vel, ecoando a noção de culpa e julgamento inconsciente (Fitzgerald, 2011).
A Literatura e a psicanálise compartilham um terreno comum na explora-
ção dos sonhos e dos símbolos. Assim como os analistas de sonhos decifram as
metáforas escondidas nas histórias noturnas, os leitores atentos decodificam os
símbolos nas páginas literárias, desvendando as camadas profundas de significa-
do e entendendo mais plenamente a experiência humana.
Nas entrelinhas dos sonhos e nas entrelinhas das palavras, descobrimos
os fios que conectam nossa consciência à vastidão do inconsciente. O poder dos
sonhos e dos símbolos é um testemunho da natureza multifacetada da mente

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humana, um convite para explorar as profundezas daquilo que está além do


alcance da vigília (Freud,1900, 1996; Jung,2002).
Revelando o papel dos sonhos como uma janela para os desejos reprimidos
e conflitos internos, quase poético, na quietude do sono, quando a mente se liberta
das amarras da vigília, os sonhos emergem como mensageiros das profundezas
inexploradas da psique humana. Por trás da cortina noturna, eles atuam como
narradores de histórias enigmáticas, uma janela para o mundo do inconsciente,
onde os desejos reprimidos e os conflitos internos encontram uma voz singular.
Os sonhos, com sua teia complexa de imagens e enredos, são frequente-
mente a manifestação disfarçada dos impulsos reprimidos. De acordo com as teo-
rias de Freud, os desejos mais profundos e muitas vezes socialmente inaceitáveis
encontram um refúgio nos recantos dos sonhos. Eles são os rebeldes do incons-
ciente, expressando-se por meio de metáforas e simbolismo (Freud,1900, 1996).
Imagine um indivíduo que almeja poder e dominação, mas que reprimiu
esses desejos na vida consciente. Em seus sonhos, ele pode se encontrar lide-
rando um exército ou governando um reino, cenários onde seus desejos não
encontram obstáculos. Os conflitos internos que surgem em sonhos desse tipo
oferecem um espelho para as tensões entre o desejo e a moralidade, o que muitas
vezes não é visível em nossa vida diurna (Freud, 1908,1996).
Os pesadelos também têm um papel vital em expor conflitos internos.
Uma pessoa que vive sob o peso da culpa pode experimentar pesadelos intensos
em que se encontra em situações de punição. Esses pesadelos podem estar asso-
ciados a transgressões passadas ou à sensação de que há algo dentro de si que
precisa ser confrontado e reconciliado (Freud,1900, 1996).
Os sonhos são frequentemente chamados de “a estrada real para o in-
consciente”, porque permitem que os desejos reprimidos e os conflitos inter-
nos escapem das restrições do consciente. Eles não estão sujeitos às mesmas
censuras que nossa mente consciente impõe a nós mesmos. Portanto, eles nos
fornecem uma visão direta do que está acontecendo nas profundezas da psique
(Freud,1900, 1996).
Na Literatura, os sonhos têm sido usados de maneira magistral para
revelar o mundo oculto dos personagens. Em “Dom Casmurro”, de Machado
de Assis, os sonhos de Bentinho em relação à Capitu refletem seus medos e
desconfianças, revelando sua luta interna contra os ciúmes e a possibilidade
da traição (Assis, 1994).
Assim, os sonhos se destacam como uma ferramenta poderosa para a
auto exploração e também como uma janela rica para os escritores e leitores
compreenderem os conflitos subjacentes às vidas e personalidades dos perso-
nagens literários. Eles são as histórias não contadas, os desejos não expressos

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
e os dilemas não resolvidos que habitam nossas mentes enquanto dormimos,
lembrando-nos de que as profundezas da psique humana são tão vastas quanto o
próprio cosmos noturno.
Examinando símbolos recorrentes na Literatura, vê-se que sugerem ca-
madas mais profundas de significados novos e profundas descobertas. É na tessi-
tura das palavras e nas entrelinhas das histórias, que os escritores frequentemen-
te tecem símbolos recorrentes que transcendem à trama, sugerindo significados
mais profundos e universais. Esses símbolos são como chaves secretas, abrindo
portas para camadas ocultas da psique e da condição humana, proporcionando
aos leitores uma oportunidade de explorar temas essenciais que ecoam além das
páginas (Jung, 2002).
Um dos símbolos mais antigos e poderosos na Literatura é a jornada he-
roica. Personagens que embarcam em jornadas épicas, enfrentando desafios,
superando obstáculos e passando por transformações, são espelhos dos heróis
e heroínas que habitam nossos próprios desejos e medos. Da “Odisseia”, de
Homero, a “O Senhor dos Anéis”, de J.R.R. Tolkien, a jornada heroica ecoa o
anseio humano por autodescoberta e crescimento pessoal, refletindo o eterno
conflito entre o eu e o desconhecido (Tolkien, 2002).
A dualidade entre luz e escuridão é um símbolo recorrente que denota os
conflitos internos, a moralidade e a busca pelo conhecimento. Em “Dr. Jekyll e
Mr. Hyde”, a separação entre essas duas facetas do mesmo personagem encap-
sula a luta entre o bem e o mal dentro de todos nós. Esse símbolo ressoa com
a compreensão universal das dualidades que existem dentro da psique humana
(Stevenson, 1996).
A janela frequentemente simboliza a perspectiva e o desejo de escapar da
realidade, enquanto o espelho representa a autoimagem e a autorreflexão. Em
“Jane Eyre”, de Charlotte Brontë, a janela no sótão de Thornfield Hall repre-
senta a liberdade e os sonhos de Jane, enquanto o espelho na mesma sala reflete
sua solidão e desejo de conexão. Esses símbolos revelam as aspirações e as lutas
internas dos personagens (Brontë, 2018).
Enquanto a água é um símbolo fluido e versátil, muitas vezes associa-
do à vida, purificação e transformação. Em “O Velho e o Mar”, de Ernest
Hemingway, o oceano é tanto um terreno de desafios físicos quanto um símbolo
da jornada interna do protagonista, refletindo suas esperanças, medos e a busca
por significado (Hemingway, 1962).
O ciclo da morte e do renascimento é uma metáfora universal para a
transformação e a renovação. Em “O Morro dos Ventos Uivantes”, os ciclos de
morte e renascimento simbolizam a perpetuação dos desejos, paixões e conflitos
ao longo das gerações, transcendendo a vida física (Brontë, 1976).

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Esses símbolos, recorrentes na Literatura, operam como portais para sig-


nificados mais profundos e universais, conectando leitores a questões fundamen-
tais da existência humana. Eles transcendem a singularidade das histórias e se
tornam espelhos que refletem nossas próprias experiências e anseios. Por meio
desses símbolos, a Literatura se transforma em uma janela para os corações e
mentes humanos, revelando as complexidades que ecoam em todos nós.
Retomando o Complexo de Édipo e as relações interpessoais, queremos
enfatizar que no cerne das relações interpessoais reside um intricado labirinto de
emoções, desejos e influências que muitas vezes remontam à infância e à dinâ-
mica familiar. Nesse contexto, o Complexo de Édipo, uma teoria fundamental
da psicanálise, oferece uma lente perspicaz para entender a maneira como os
relacionamentos são influenciados pelos laços emocionais e pelos conflitos in-
conscientes enraizados na história de cada indivíduo (Freud, 1996).
O Complexo de Édipo, nomeado após o personagem mitológico grego
Édipo, aborda o desejo inconsciente de uma criança de se ligar emocionalmente
a um dos pais do sexo oposto, rivalizando com o genitor do mesmo sexo. Esse
complexo se desenrola em fases distintas, incluindo a Fase Oral, Anal e Fálica,
cada uma com implicações únicas nas relações futuras (Freud, 1996).
Sendo assim, à medida que crescemos, esses desejos e conflitos são inter-
nalizados, moldando nossas percepções de amor, intimidade e identidade. Na
vida adulta, o Complexo de Édipo continua a desempenhar um papel, muitas
vezes inconscientemente, nas nossas interações com parceiros românticos, ami-
gos e até mesmo figuras de autoridade.
Além disso, o Complexo de Édipo também lança luz sobre fenômenos
como a escolha de parceiros românticos. O termo “complexo de Édipo inverti-
do” descreve quando uma pessoa busca parceiros que se assemelham ao genitor
do mesmo sexo. Ou seja, uma mulher que se sentia próxima de seu pai pode in-
conscientemente procurar parceiros que compartilhem características semelhan-
tes, muitas vezes sem perceber a conexão. No entanto, é importante ressaltar que
o Complexo de Édipo não é uma sentença definitiva para os relacionamentos.
Em última análise, o Complexo de Édipo oferece uma janela para a intrin-
cada tapeçaria das relações interpessoais. Ao reconhecer a influência dos laços
familiares, dos desejos inconscientes e das experiências infantis em nossos re-
lacionamentos adultos, podemos adentrar nesse labirinto com uma perspectiva
mais compassiva e enriquecedora.
Na vastidão da Literatura, as dinâmicas familiares e os conflitos de
poder frequentemente se desdobram como tramas intrincadas, refletindo o
prisma multifacetado do Complexo de Édipo. Através desse olhar, persona-
gens e enredos ganham uma profundidade psicológica adicional, revelando

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
as complexas interações entre os membros da família e as lutas pelo poder
subjacentes a essas relações.
O Complexo de Édipo, com suas camadas de desejo e rivalidade, arro-
ja uma luz poderosa sobre os relacionamentos familiares. Na tragédia “Édipo
Rei”, de Sófocles, o próprio Édipo é um exemplo clássico de como as dinâmicas
familiares podem moldar a tragédia humana. Seu desejo inconsciente de estar
próximo de sua mãe e o subsequente assassinato de seu pai torna-se a base de
uma trama repleta de reviravoltas angustiantes (Sófocles, 2002).
O conflito entre pai e filho, tão presente no Complexo de Édipo, reverbera
em inúmeras histórias literárias. No clássico “Hamlet”, de William Shakespeare,
o príncipe Hamlet enfrenta uma luta interior angustiante ao descobrir a traição
de seu pai e a subsequente união de sua mãe com seu tio. Seu desejo de vingança
e sua luta pelo poder moral colidem em um turbilhão de emoções que ecoam a
complexidade do Complexo de Édipo (Shakespeare, 1978).
As figuras maternas também desempenham papéis cruciais nesse contex-
to. Em “A Casa dos Espíritos”, de Isabel Allende, as dinâmicas entre mães e fi-
lhas são exploradas ao longo de gerações, revelando os traços herdados e os con-
flitos que se repetem. As filhas muitas vezes buscam reconciliar seus próprios
desejos e identidades com os de suas mães, espelhando o desejo inconsciente de
se identificar com a figura parental do mesmo sexo (Allende, 1995).
Além das narrativas familiares, o Complexo de Édipo também lança luz
sobre as tramas de poder na Literatura. Em “Macbeth”, de Shakespeare, o de-
sejo de poder de Macbeth e a influência das bruxas o levam a uma espiral de
destruição. Seu desejo de governar e a luta interna contra a moralidade ilus-
tram a batalha do ego com os desejos inconscientes, uma faceta intrínseca do
Complexo de Édipo (Shakespeare, 1978).
Portanto, ao analisar as dinâmicas familiares e os conflitos de poder na
Literatura sob o prisma do Complexo de Édipo, testemunhamos a ressonância
profunda entre a teoria psicanalítica e a experiência humana retratada nas pági-
nas. As histórias se tornam mais do que simples contos; elas se transformam em
espelhos para nossas próprias batalhas internas, desejos reprimidos e comple-
xos relacionamentos com aqueles que moldaram nossa jornada desde o início
(Freud,1996; Sófocles,1976,1993).
A busca de identidade e a construção de relacionamentos complexos são
temas intrincados que ecoam profundamente na Literatura, refletindo as com-
plexidades da experiência humana. Por meio de personagens que enfrentam de-
safios de autodescoberta e interações interpessoais intricadas, somos convidados
a explorar as várias facetas da jornada pela identidade e pela conexão.
A busca de identidade muitas vezes se desenrola como uma jornada de

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auto exploração e compreensão. Em “O Apanhador no Campo de Centeio”, de


J.D. Salinger, o protagonista Holden Caulfield busca desesperadamente por um
senso de identidade em um mundo que ele vê como falso e superficial. Sua jor-
nada é uma reflexão dos conflitos interiores e das dúvidas que muitos enfrentam
ao tentar entender quem eles são e qual é o seu lugar no mundo (Salinger, 2019).
Outro exemplo poderoso é encontrado em “Mrs. Dalloway”, de Virginia
Woolf. A protagonista Clarissa Dalloway enfrenta uma crise de identidade en-
quanto se prepara para uma festa. À medida que ela se move entre suas memó-
rias e interações sociais, o leitor testemunha suas reflexões internas sobre sua
vida passada e as escolhas que a trouxeram até o presente. A narrativa explora
a complexidade da construção da identidade ao longo do tempo (Woolf, 1980).
Relacionamentos complexos, por sua vez, muitas vezes refletem as
tensões e as dinâmicas que surgem quando as identidades individuais se en-
trelaçam. Em “Orgulho e Preconceito”, de Jane Austen, as interações entre
Elizabeth Bennet e Mr. Darcy ilustram a complexidade das relações amorosas.
As barreiras sociais, preconceitos e mal-entendidos criam um tecido intricado
de desafios que devem ser superados para que um relacionamento verdadeiro
possa florescer (Austen, 2018).
Em “O Grande Gatsby”, de F. Scott Fitzgerald, a busca de Jay Gatsby por
Daisy Buchanan revela como os relacionamentos complexos podem ser molda-
dos por idealizações e expectativas não realizadas. Gatsby constrói uma imagem
idealizada de Daisy em sua mente, que se choca com a realidade do relaciona-
mento deles. A narrativa ilustra como as projeções de identidade e as aspirações
podem afetar profundamente os relacionamentos (Fitzgerald, 2011).
Ao explorar esses temas na Literatura, os autores nos oferecem um espe-
lho para nossas próprias lutas internas e conexões humanas. A busca pela iden-
tidade e a construção de relacionamentos complexos são intrínsecas à condição
humana, e a Literatura nos permite refletir sobre essas experiências de maneira
profunda e enriquecedora. Por meio das histórias desses personagens, somos
convidados a explorar os cantos mais profundos de nossa própria jornada de
autodescoberta e interações interpessoais.

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Emergindo do desafio de desvendar as profundezas da alma reveladas, por


meio de uma exploração psicanalítica da complexidade humana na Literatura,
entendemos que quando observada sob a perspectiva psicanalítica, torna-se uma
ferramenta rica para explorar as profundezas da experiência humana.
Ela vai além das palavras superficiais, alcançando as partes mais obscuras
e sutis da psique humana. A Literatura e a psicanálise juntas oferecem uma abor-
dagem holística para compreender a complexidade dos desejos, medos, conflitos
e emoções que compõem a rica tapeçaria da condição humana.
A jornada pela psicanálise na Literatura nos lembra que, assim como nas
páginas dos romances e contos, nossas vidas são intrincadas histórias de desejo,
conflito e autodescoberta. A psicanálise nos desafia a olhar para além da super-
fície e a abraçar a complexidade do ser humano. À medida que nos envolvemos
com as obras literárias psicanaliticamente enriquecidas, encontramos não ape-
nas personagens fictícios, mas também reflexos de nós mesmos, espelhando o
universo da mente humana.
Em última análise, a Literatura desenha um paralelo vívido entre as nar-
rativas dos personagens e a jornada terapêutica da psicanálise. Ao enfrentar o
passado e explorar as profundezas do inconsciente, os personagens e os indiví-
duos na vida real podem encontrar cura, resolução e uma maior compreensão
de si mesmos. Através das páginas da Literatura, somos convidados a testemu-
nhar as jornadas emocionais dos personagens, lembrando-nos de que enfrentar
o passado é muitas vezes o caminho para a libertação e a transformação interior.

REFERÊNCIAS
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Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. VII. Rio de
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de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes. São Paulo: Abril
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81
EXPLORANDO MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
ANÁLISE DA DUALIDADE IDENTITÁRIA DE
JACOBINA EM ‘O ESPELHO’ DE MACHADO
DE ASSIS: UM CONFRONTO ENTRE O
EU-HOMEM E O EU-OUTRO
Cirlene Pereira dos Reis Almeida1

“Na jornada do autoconhecimento, o eu-homem e o eu-outro dançam em um


intricado equilíbrio, revelando a complexidade da identidade que se tece entre as
linhas da individualidade e da interação social (Barros, 2004).”

INTRODUÇÃO

Este trabalho objetiva fazer uma análise do comportamento humano do


personagem Jacobina no conto “O espelho – esboço de uma teoria da alma hu-
mana”, escrito por Machado de Assis e publicado no ano de 1882, uma vez que
percebe-se, no decorrer da construção do texto, como o olhar do outro dicoto-
miza a identidade do sujeito, a ponto de sucumbir-lhe o próprio “eu” em prol de
outro “eu” nascido e construído socialmente.
“O espelho” tem como tema central a questão da identidade, ou melhor,
o problema da divisão do eu ou do desdobramento da personalidade. O
conto trata de um momento da vida de Jacobina, narrador e protagonista
da história, que passa por um processo de (re) estruturação e que, inusi-
tadamente, confronta-se com o Outro que lhe habita, ou seja, com seu
próprio desejo (Barros, 2004).

A partir desse ponto de vista, serão ressaltados certos aspectos do texto,


levando em consideração as metáforas que refletem o estado, as atitudes e o
comportamento do personagem Jacobina.
Sabe-se que muitos seres humanos vivem de aparência em seu círculo social,

1 Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Mestre


em Linguística pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ); Coor-
denadora dos Cursos de Letras e Pedagogia do Centro Universitário de Desenvolvimen-
to do Centro-Oeste (UNIDESC); Professora efetiva da Universidade Estadual de Goiás
(UEG), Campus Uruaçu. E-mail: [email protected].

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
de forma a não deixar transparecer a sua real personalidade. Nessa perspectiva,
“O espelho” narra a história de Jacobina que junto a um grupo de amigos discute
assuntos metafísicos até iniciarem uma discussão a respeito da alma. Todos os
presentes tinham uma opinião diferente sobre o assunto, abrindo uma brecha para
uma investigação sobre de que forma as identidades construídas socialmente cor-
roboram a dicotomização do ser humano no Eu-homem e no Eu-outro. O eu-ho-
mem seria a alma interior e o eu-outro a alma exterior do indivíduo. O conto traz
reflexões sobre o homem e sua psique, posto que discute a relações do ser humano
consigo mesmo, no entanto, preso a um contexto social e cultural determinado,
que aborda o fato de que “o ser humano não consiste somente na ‘realidade psí-
quica’, mas habita um corpo e vive em sociedade – aspectos refletidos no espelho
No conto, Jacobina narra uma parte da história de sua vida quando tinha
cerca de 20 anos de idade, trazendo à tona a ideia de que o ser humano possui duas
almas. Durante a narrativa, Jacobina, cujo apelido de infância era “Joãozinho”,
relembra a transformação que houve em sua vida desde que se tornara alferes do
exército, cargo esse que lhe rendeu uma série de elogios. Na verdade, o enredo do
conto remete ao indivíduo que começa a enxergar-se pelo olhar do outro.
Com isso, ocorre o apagamento do eu diante do espelho que é resultado
de um processo interno que se dá em decorrência do não reconhecimento do
sujeito, levando-o a se ver e a se enxergar pelo olhar de fora, gerando o conflito
entre a identidade individual e a identidade social.

IDENTIDADE INDIVIDUAL VERSUS IDENTIDADE SOCIAL:


QUANDO UMA CONFRONTA A OUTRA

Todo indivíduo tem aspectos que demonstram características grupais e


características individuais, tais características são formadas através do convívio
social que ajudam a construir a identidade de cada um. Para Goffman (1980, p.
5) “os ambientes sociais estabelecem as categorias de pessoas que têm probabili-
dade de serem neles encontradas”.
O sujeito tem a necessidade de criar uma identidade, pois com isso ele se
diferenciará dos outros indivíduos e adquirirá uma imagem de si, sendo então
capaz de exibir seu modo de ser ou o jeito como se comportará em diversas
situações sociais.
A identidade faz com que o indivíduo tenha uma marca pessoal. Dentre a
construção da identidade existem a identidade individual e a identidade social,
ambas contribuem para a composição do “eu” de cada indivíduo.
Sobre a Identidade social, está relacionada a como o indivíduo se en-
xerga em relação a outros, todas as pessoas que ele encontra serão de extrema
importância, visto que esse tipo de identidade é construída coletivamente, ela

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

dependerá até mesmo da classe social em que todos pertencem, isso devido ao
comportamento que poderá ser adotado, ou seja, é a identificação de um ser
com os outros.
Já a Identidade individual é mais específica que a social e se refere ao
sentimento de unicidade (se sentir único entre muitas pessoas), é a identificação
da diferença de um ser entre outros.
O conceito aproximado de unicidade e identidade individual está explici-
to no livro Estigma como:
Uma idéia implícita na noção de “unicidade” de um indivíduo é a de
“marca positiva” ou “apoio de identidade”, por exemplo, a imagem foto-
gráfica do indivíduo na mente dos outros ou o conhecimento de seu lugar
específico em determinada rede de parentesco (Goffman, 1980, p.50.)

Tais identidades são consideradas opostas, porque a identidade social


exige que o indivíduo esteja no mesmo nível social que o outro, buscando o
crescimento do “nós”, do grupo, considera as consequências como um todo.
Já a identidade individual leva em consideração apenas as diferenças existentes
entre um ser e o outro, busca o crescimento pessoal, considerará apenas as con-
sequências individuais de seus atos e as experiências pessoais. Essas identidades
entram em confronto concernente ao contato com a sociedade, quanto maior for
à desigualdade entre essas duas identidades, maior será o controle social para
com o indivíduo.
No conto machadiano, é possível perceber a similaridade de concepções
quando Jacobina afirma que “a perda da alma exterior implica a [a perda] da
existência inteira” (p. 30). Essa assertiva deixa latente a visão da dualidade da
alma humana na qual o indivíduo e a pessoa apresentariam dois lados, interior e
exterior, sendo que essa última é que conferirá a consistência do primeiro.
Não tendo o olhar do outro, Jacobina se vê em um estado deplorável de
solidão que se aproxima da angústia. Há pouco tempo tivera um reconheci-
mento do pequeno círculo de amigos que o rodeava e de repente se vê só. Esse
momento de solidão ocupa boa parte da narrativa machadiana.
Nessa passagem, é que se percebe a perfeita analogia entre o espelho e o
olhar do outro, a não existência desse olhar impede Jacobina de ver a si mesmo
como acreditava que era visto. É algo tão forte que o próprio espelho parece ter
perdido a capacidade de reproduzir nitidamente a imagem do protagonista.

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
A IDENTIDADE SOCIAL COMO FORMA DE INSERÇÃO E DE
ACEITAÇÃO SOCIAL

A identidade social é caracterizada essencialmente pela forma como nós


nos vemos, ou seja, é um sentido do “eu” conjugada com a forma como os ou-
tros nos veem. Segundo Dubar (2005, p.135), para se apresentar uma definição
de identidade deve se considerar a noção de dualidade, ou seja, a “identidade
para si” e a “identidade para o outro”.
Considerando a relação entre a identidade para “si” e a identidade para o
“outro”, que acontece nos processos de socialização, Dubar (2005) explica que nos-
sa identidade é formada pela interação entre a minha identidade para mim, que
seria aquilo que eu penso (a minha autoimagem) e a minha identidade para o outro
(aquilo que eu acho que os outros pensam que sou ou o julgamento que penso
fazerem de mim). É importante destacar, que aquilo que eu acho que os “outros”
pensam ao meu respeito, pode não ser necessariamente um julgamento correto.
A identidade social tem como particularidade a necessidade de ser reconhe-
cida pelos outros. Para Tomasini (1998, p. 118), isso significa que “os valores que
compõem a identidade de uma sociedade vão influenciar todas as relações entre
os indivíduos, relações que se estabelecem em todo o cotidiano”. A autora destaca
que ocorre um confronto entre o que é considerado diferente e o modelo de nor-
malidade, surgindo daí “a imagem que o indivíduo tem de si mesmo e uma identi-
dade social construída com base nos interesses e nas definições de outras pessoas”.
Segundo Hilka Machado (2003), o indivíduo, de forma a adquirir um sen-
timento de pertença a determinado grupo, abre mão de vários momentos de sua
vida. De certo modo pode-se dizer que a identidade não é algo inata ao indivíduo,
ela é socialmente construída no âmbito de suas relações com outras pessoas.
Segundo Brandão (1990), a identidade não é construída de uma forma
singular, de maneira exclusiva, vai sendo progressivamente produzida. Desse
modo, ao considerarmos a construção da identidade devemos vê-la, não como
algo acabado, mas como um processo em andamento (Hall, 2006).
A construção da identidade é um processo que vai buscar significado nas
relações vividas no dia a dia, onde o “outro” também faz parte do processo cons-
trutivo, porque cada pessoa possui uma identidade múltipla, que tem de mane-
jar, combinar e modificar quotidianamente. Portanto, o processo de construção
da identidade condiciona o comportamento do indivíduo em determinadas si-
tuações, intimamente relacionadas com a cultura e a sociedade em que esse
indivíduo está inserido. Ao mesmo tempo, o indivíduo possui a sua própria iden-
tidade, o que lhe permite diferenciar-se ou identificar-se com o “outro”, numa
ação contínua de aceitação e rejeição. Esse processo significa reconhecer-se a si
próprio e também ser reconhecido.
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M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

Os termos identidade e social conduzem, de maneira recíproca, a repre-


sentações e sentimentos que o indivíduo desenvolve a respeito de si próprio, ad-
quiridos do conjunto de experiências vivenciadas, no qual ele constrói e recons-
trói sua identidade. Isso representa a junção da percepção do próprio indivíduo
em relação a si mesmo, do que o outro acredita que ele seja e daquilo que ele
almeja ser, sendo que a percepção sobre si é alterada em função das mudanças
ocorridas na sua história e nas relações sociais que esse indivíduo estabelece ao
longo de sua vida.
Entretanto, a questão identitária é complexa, pois, as identidades impli-
cam em procurar obter reconhecimento, que se faz frente à alteridade, pois é no
encontro e no embate com o “outro” que se busca afirmação pelo reconheci-
mento daquilo que nos diferencia e que, por isso mesmo, pode, em simultâneo,
desvelar uma máscara que seria mostrada ao outro (e a si mesmo), promovendo
um conflito neste jogo social.

ENTRE O EU-HOMEM E O EU-OUTRO NO CONTO O ESPELHO: A


DICOTOMIA ENTRE O SER E O TER

No conto machadiano, o eu-homem de Jacobina vai de encontro ao Eu-


outro, que se trata do eu-social e esse fato ocorre quando o protagonista prestes
a completar 25 anos é nomeado o “Alferes da Guarda Municipal”. A partir de
então, se transforma no orgulho da família, passando a ser tratado de maneira
diferente por todos da cidade, a ponto de receber todo o fardamento de presente
e, ao mesmo tempo, ser invejado por outros os quais almejavam seu posto.
O personagem, anteriormente, chamado de “Joãozinho” passa a ser o
“Senhor Alferes” bajulado por todos o que gerará a contradição entre o seu eu
interior e o seu eu exterior.
O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equi-
libraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma
parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que
era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza,
e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do
posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que
ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra
se dispersou no ar e no passado (Assis, 1994, p. 32)

No decorrer do conto, o Seu Alferes é convidado pela tia, Dona Marcolina,


a passar alguns dias no sítio de propriedade dela, pois queria vê-lo. Chegando ao
sítio, um lugar bem isolado e solitário, foi tratado muito bem por todos, inclusive
pelos escravos da tia que o chamavam sempre de “Nhô Alferes”. Porém, o que
mais lhe despertou a atenção fora um espelho que se encontrava no quarto que

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
lhe fora reservado para ficar. Jacobina descreve o espelho como “[...] obra rica
e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples”
(Assis, 1882; Assis, 1994).
Jacobina ficou alguns dias no sítio da tia. Nesse período, Dona Marcolina,
teve de viajar para atender uma das filhas que já se encontrava em leito de mor-
te, deixando então o Senhor Alferes cuidando do sítio com a responsabilidade
de administrar as terras, os animais e os escravos. Esses últimos, aproveitando
a situação, fogem logo após a partida de tia Marcolina, deixando Jacobina na
mais completa solidão.
É nesse momento de solidão que o eu-outro entra em choque com o eu-
homem diretamente. No dia seguinte à viagem da tia, o personagem fica na
expectativa de o cunhado aparecer, fato que não aconteceu. Ficou uma semana
sozinho no sítio e, nesse período, sentiu-se como um cadáver andando, sem sua
identidade de Seu Alferes, se sentiu um débil com sensações de enlouquecer.
Durante todo esse tempo, não havia se olhado no espelho, pois temia ver dois
em um só.
Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o
espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso
inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela
casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a con-
tradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar
para o espelho com o fim justamente de achar-me dois (Assis, 1994, p.34)

Logo, Senhor Alferes olha para o espelho e não consegue se identificar,


apenas enxerga uma nuvem distorcida, uma sombra da sombra, o que o deixou
desesperado vendo feições inacabadas no reflexo do espelho. É então que ele
decide vestir sua farda de alferes e se olhar no espelho:
Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e,
como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada;
o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, ne-
nhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a
alma exterior. [...] Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recua-
va, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato,
era um ente animado. Daí em diante, fui outro (Assis, 1994, p.25)

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

A farda representa algo que existe fora do sujeito. No contexto das re-
presentações sociais2 o fardamento representa o status ocupado pelo alferes. As
representações já estão formadas e cristalizadas pela interação do universo fa-
miliar de Jacobina. Da mesma forma, o objeto do olhar do outro é também
construído socialmente.
O Senhor Alferes se identificou com o seu Eu-outro completamente, viu
que sua figura social era sua farda exaltando a sua imagem. A falta de bajulação
constante o fez entrar em conflito com seu eu-homem e o seu eu-outro de forma
que Jacobina sentiu alterações no seu sistema nervoso a ponto de transpassar
sua alma para sua real personalidade.
O conto retrata, de forma abstrata, o comportamento humano. Na socieda-
de há muitos exemplos de pessoas que fingem ser o que não são ou que definem
os indivíduos ao seu redor pelo que são ou pelo que possuem. Através desse pré-
-julgamento, o exterior ganha mais força do que o interior, visto que, para algumas
pessoas o ser humano possui valor pelo que tem e não pelo que realmente é.
O protagonista, em meio a essa dicotomia e por intermédio da descrição
de suas experiências, traz à tona a desconstrução de sua identidade ou da sua
alma interior que é consumida paulatinamente. A ascensão social de Jacobina
indica a construção social de sua pessoa, que surge como produto de relações
hierárquicas que lhe proporcionam regalias, status, beleza e bens materiais; iden-
tidade ligada a um papel social e é essa que sobressai no decorrer da narrativa,
visto que o personagem chega ao ponto de não se reconhecer mais sem a farda.
Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da
guarda nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa
casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! Tão contente! Chamava-me o seu
alferes. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados... e o motivo não
foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que estes perde-
ram... O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios fize-
ram em mim uma transformação que o natural sentimento da mocidade
ajudou e completou. (p. 32-5).

2 As representações sociais, segundo definição clássica apresentada por Jodelet (1985), são
modalidades de conhecimento prático orientadas para a comunicação e para a compreen-
são do contexto social, material e ideativo em que vivemos. Representações sociais, numa
abordagem psicossocial, referem-se a formas de conhecimento que se manifestam como
elementos cognitivos □ imagens, conceitos, categorias, teorias, mas que não se reduzem
jamais aos componentes cognitivos. Sendo socialmente elaboradas e compartilhadas, con-
tribuem para a construção de uma realidade comum, que possibilita a comunicação. Deste
modo, as representações são, essencialmente, fenômenos sociais que, mesmo acessados a
partir do seu conteúdo cognitivo, têm de ser entendidos a partir do seu contexto de pro-
dução. Ou seja, a partir das funções simbólicas e ideológicas a que servem e das formas
de comunicação onde circulam. O conceito de representação social na abordagem psi-
cossocial. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/3V55mtPK8KXtksmhbkcctkj/
Acesso em 30 de agosto de 2023.

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
A promoção e a consequente ascensão social do personagem sofrem uma
mudança bastante contundente. Jacobina sai do papel de dominado socialmente
transformando-se em dominante. E essa mudança de papel contribui para que
o eu-homem perca o anterior sentido da existência e, passando a construir suas
ações em conformidade com o que rege o senso comum daqueles que represen-
tam a autoridade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo objetivou analisar o comportamento do personagem Jacobina,


do conto machadiano “O espelho” de Machado de Assis, a partir do confronto
entre a identidade social e individual do protagonista.
Considerando o objetivo acima, observou-se no texto machadiano que a
identidade do sujeito eu-outro absorveu o eu verdadeiro de Jacobina, persona-
gem do conto. Seu fardamento de alferes da guarda nacional era a única identi-
dade reconhecida por aqueles ao seu redor, fato esse percebido quando o espelho
de seu quarto não mais refletia o homem conhecido primeiramente como ape-
nas Joãozinho, mas sim uma nuvem distorcida.
Nessa perspectiva, a vestimenta do Senhor Alferes retrata sua imagem
social, o seu Eu-outro, predominando sobre o seu Eu-homem, que se refere ao
seu interior. O personagem passa a viver uma pessoa que não é por influência de
uma sociedade com pré-julgamentos de valores e ideais onde a conta bancária
ou seus pertences definem sua personalidade no meio social.
Apesar de ser escrito em 1882, o conto exprime um sentimento presente
até a atualidade, pois a sociedade ainda possui poder de persuasão sobre os indi-
víduos, já que o eu-outro continua a buscar reconhecimento perante as relações
desenvolvidas ao longo de sua vida.

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M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

Post Scriptum

Machado de Assis merece todas as homenagens. O poema abaixo é uma


singela homenagem a esse grande gênio da Literatura Brasileira, feito com o
auxílio da Inteligência Artificial.

“Dança da Identidade: Teia do Eu-Homem e Eu-Outro”


Na jornada do ser, em dança sutil,
Eu-homem e eu-outro, um jogo a tecer,
Equilíbrio intricado, traços a fluir,
Na busca profunda do eu conhecer.

Linhas da individualidade entrelaçadas,


Com a interação social a se mesclar,
Identidade complexa, vidas entrelaçadas,
Nessa trama de ser e de se revelar.

Passos no caminho do autoentendimento,


No palco da alma, um ballet sem fim,
Onde o eu e o outro, em harmonia se fundem,
E a essência da vida se revela enfim.

Nessa dança do eu, na busca persistente,


Desvendam-se mistérios em cada movimento,
E a teia da identidade, sutil e fluente,
Se tece na coreografia do pensamento.

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado. Machado de Assis: obra completa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994.
ASSIS, Machado de. O espelho – esboço de uma nova teoria da alma huma-
na, 1994.
BARROS, Marta Cavalcante de. “O espelho”: entre o si mesmo e um ou-
tro. Psyche (Sao Paulo), São Paulo, v. 8, n. 13, p. 61-70, jun. 2004.
BRANDÃO, Carlos. Identidade e etnia: construção da pessoa e resistência
cultural. São Paulo: Brasiliense, 1990.
DUBAR, Claude. A socialização: construção das identidades sociais e pro-
fissionais. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade de-
teriorada. 4ª ed. Brasil: LTC, 1980.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz
Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro, 11ª Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
IGNATTI, Angela Sivalli. O fantástico n’ “o espelho”, de Machado de As-
sis: observações freudianas sobre a dualidade da alma humana. Disponível
em: <http://revistapandorabrasil.com/revista_pandora/insolito/angela.pdf>
Acesso em: 30 de agosto de 2023.
MACHADO, Hilka Vier. A identidade e o contexto organizacional: perspec-
tivas de análise. Revista de Administração Contemporânea. Curitiba, Edição
Especial, v. 51, n. 73, p. 51-73, 2003.
SPINK, Mary Jane P. O conceito de representação social na abordagem psi-
cossocial. Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pon-
tifícia Universidade Católica de São Paulo. Rua Monte Alegre 984, São Paulo,
SP, Brasil. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/3V55mtPK8KXtks-
mhbkcctkj/ Acesso: 30 de agosto de 2023.
TOMASINI, Maria Elisabete Archer. Expatriação social e a segregação ins-
titucional da diferença: reflexões. In: BIANCJETTI, Lucídio; FREIRE, Ida
Mara.(Org.). Um olhar sobre a diferença – interação, trabalho e cidadania. (Sé-
rie Educação Especial). Campinas: Papirus, 1998, p.111-133.

91
EIXO III

MULHERES NA LITERATURA
ENTRE PÁGINAS EM BRANCO E SILÊNCIOS
LITERÁRIOS - A MULHER E SUA AUSÊNCIA:
REFLETINDO SOBRE ‘UM QUARTO SÓ SEU’,
DE VIRGINIA WOOLF
Maria Cristina Sebba1

INTRODUÇÃO

Virginia Woolf (1882-1941) foi uma escritora britânica, considerada uma


das ilustres e influentes do Modernismo no século XX. Durante o período en-
tre guerras ela desempenhou um papel de extrema importância na sociedade
literária londrina. Segundo os seus biógrafos, Woolf se ressentia de não ter se
aprofundado nos estudos. Filha de um editor, casada com um crítico literário,
com uma vida cercada pelo ambiente intelectual, não conseguira realizar o que
almejara, no caso, seguir a carreira acadêmica, sonho não realizado.
Muitas mulheres estiveram nessa situação, de não estudar, e se mantive-
ram em trabalhos domésticos, dependentes financeiramente de seus maridos,
por não terem a oportunidade de se expandir com as suas capacidades intelec-
tuais e seus direitos.
Nesse sentido, o presente texto propõe um caminho metodológico crí-
tico-descritivo, que aborda o impacto, sobretudo de gênero, na realização dos
sonhos e aspirações intelectuais das mulheres. O objeto deste texto poderia ser
aplicado, tranquilamente, em uma pesquisa ou ensaio, com o objetivo de com-
preender melhor as restrições enfrentadas pelas mulheres naquela época, e suas
lutas para superá-las.

1 Doutorado em Ciências da Saúde pela Universidade de Brasília. Mestrado em Psicologia


pela Universidade de Brasília. Graduação em Psicologia pelo Centro de Ensino Unifica-
do de Brasília. Graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás.
Possui experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia do Ensino e da Apren-
dizagem E-mail: [email protected].

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M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

DESENVOLVIMENTO

Ao ser convidada por um grupo de jovens universitários para proferir pa-


lestras sobre o tema “As mulheres e a Literatura”, em 1928, Virginia Woolf, após
exposições de debates, viu-se a refletir de forma mais constante sobre a mulher e
sua ausência no convívio literário. Suas reflexões seguintes se dirigiram, princi-
palmente, para a questão da falta da liberdade de se expressar, de agir, e sobre a
insignificância da mulher na sociedade.
No texto “Um Quarto Só Seu,” ela chegou à conclusão de que “uma mu-
lher, se quiser escrever literatura, precisa ter dinheiro e um quarto só seu”, ponto
de vista ainda hoje um tanto quanto mal compreendido. Woolf, como forma de
trazer mais luz ao seu texto, ela propõe o questionamento: “Mas o que tem a ver
o tema “As mulheres e a Literatura” com isso?” Segundo ela,
O máximo que eu conseguiria seria lhes oferecer uma opinião sobre um ponto
secundário. Uma mulher se quiser escrever literatura, precisa ter dinheiro e
um quarto só seu; e isso, como vocês verão, não traz qualquer solução para o
grande problema da verdadeira natureza da mulher e da verdadeira natureza
da literatura. Dispenso-me o dever de chegar a uma conclusão sobre essas
duas questões: as mulheres e a literatura, pois, no que me diz respeito, conti-
nuam a ser problemas não resolvidos (Woolf, 2019, p.6).

Neste livro, considerado um ensaio, a autora se debruça sobre a relação


entre condição social das mulheres no ambiente acadêmico, que não são desta-
cadas em livros como autoras e pensadoras.
Woolf faz uma minuciosa análise de condições sociais de mulheres na
história, das limitações impostas a elas, fatos que demonstram a pouca represen-
tatividade feminina no universo intelectual ao longo dos séculos. Diante dessas
constatações e fatos, Virginia Woolf passa a pensar em criar estratégias para as
mulheres driblarem tais situações, de modo a conseguirem impor-se com mais
força em seu ambiente social, daí o motivo do título
Ao falar do papel da mulher no ambiente literário, Woolf questiona sobre
“qual seria a condição necessária para ter um quarto só seu?” Segundo a autora,
“uma mulher que quer escrever literatura, precisa ter dinheiro e um quarto só
seu”. Se hoje, a reivindicação de um quarto para si, bem como do direito de
ter seu próprio dinheiro, pode ainda soar como uma afronta numa sociedade
patriarcal e machista, a impossibilidade de aquisição de dinheiro e a falta de um
local para fazer as necessárias reflexões, sem ser incomodada por seus afazeres
domésticos, era um sonho ainda mais distante para a mulher dos séculos XVIII
e XIX, pois tais privilégios eram reservados exclusivamente a homens.
Vemos que a exploração central de “Um Quarto Só Seu” gira em torno
da disparidade flagrante entre os sexos, despertando contemplação profunda e

94
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
significativa. Nesse sentido, a frase de Jean-Paul Sartre, que oferece uma ele-
gante concepção sobre a liberdade, pode ser alvo de interpretações errôneas ou
usos controversos, soando um tanto quanto conformista. Sartre afirma que “a
liberdade reside no desejo daquilo que está ao alcance de cada um.”
Mas o conceito geral de que a liberdade está ligada ao desejo do que está
ao alcance de cada um é uma ideia central do Existencialismo, que pode ser
encontrada em várias obras e ensaios de Sartre, como “O Ser e o Nada”, em que
ele explora a relação entre liberdade, escolha e ação humana.
Nesse sentido, Virginia Woolf destaca, em seu magnífico ensaio, a indis-
pensável necessidade de um espaço exclusivamente feminino, como refúgio sa-
grado, onde a mulher possa se desconectar do mundo e permitir que suas ideias
fluam desimpedidas. A análise perspicaz de Woolf é bastante avançada para a
época, ao argumentar que a mulher deve possuir tanto a autonomia financeira
quanto o controle sobre sua própria existência, em adição ao espaço privado, a
fim de nutrir seu poder criativo.
Felizmente, o cenário do século XXI trouxe a emergência de uma liber-
dade que se destinou um pouco mais às mulheres, incorporada de forma natural
em suas rotinas, um justo imperativo. Sabemos que a necessidade de um recinto
singular é importante, pois afazeres intelectuais como a leitura e a escrita solici-
tam ambientes sem interrupções que incomodam.
Mas não basta apenas existir. Esse lugar, de fato, deve ser respeitado.
Enquanto a mulher estiver trabalhando, é justo não ser interrompida em seus
pensamentos. Muitas vezes ela precisa trabalhar até tarde da noite, até a madru-
gada, pois, durante o dia há outras tarefas, nem sempre associadas aos interesses
intelectuais, afazeres esses nunca ou raramente realizados pelo homem, como
cuidar da casa e dos filhos.
Essa impossibilidade resulta na falta de produção por parte da mulher, o
que não denota uma intelectualidade inferior. Pelo contrário, demonstra força
e resiliência. É da natureza da mulher se ater aos cuidados da casa e dos fi-
lhos, enquanto os homens, afastados do cotidiano dos lares, sempre foram vistos
como trabalhadores que exercem atividades superiores. Uma situação injusta!
Sabemos que a superioridade não é inerente aos homens. O que ocorre é que
mulheres, desde sempre, foram submetidas à escassez de chances, crescimento e
desenvolvimento social fora do ambiente doméstico.
Os desdobramentos que emergem com base na leitura sobre o tema “Um
Quarto só Seu” são imensas, porque as mudanças de lá para cá não foram tão
abundantes. Ser vista sempre pelo olhar masculino, ainda é uma forma de não
existir. A posição inferior imposta fazia com que muitas mulheres fossem leva-
das a registrar suas ideias, sentimentos e formas de ver o mundo em forma de

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

diários, cartas, que não poucas vezes, elas próprias rasgavam ou queimavam,
como se não tivesse o seu devido valor. Talvez, no interior delas, encontrasse re-
latos de desabafos, conflitos internos, indignação da sua falta de liberdade como
pessoa do sexo feminino.
Virginia Woolf chegou ao início do século XIX e encontrou, para sua
surpresa, livros escritos por mulheres, em forma de romance, como os de Jane
Austen, escritora inglesa.
Mesmo com toda desenvoltura, Austen relata que em seu romance
“Orgulho e Preconceito”, quando escrevia em espaço recluso, gostaria que nele
tivesse uma dobradiça na porta, que rangesse, pois assim daria tempo de escon-
der seu manuscrito, antes que alguém entrasse e lesse. Não se sentira bem em
escrever sobre um tema assim, havia algo vergonhoso em escrever sobre orgu-
lho, sobre preconceito. Nós, mulheres, nunca venceremos o preconceito se con-
tinuarmos a esconder nossas habilidades e quem somos.
Enquanto diversas mulheres se empenham conscientemente na prática
da escrita, algumas ainda não se deram conta da riqueza de possibilidades que
escapam de seu alcance devido à persistência do machismo e da misoginia.
Tanto na época de Virginia Woolf, como na sociedade contemporânea,
existe ainda preconceito com à produção intelectual da mulher. Falta às mu-
lheres, como citado anteriormente, chances iguais de educação e trabalho, pois,
devido à ausência dessa liberdade de espaço e à sua constante participação em
tarefas domésticas, as mulheres sempre foram privadas da oportunidade de se
integrarem a um ambiente intelectual.
Em território brasileiro, certos campos, como medicina, engenharia e
matemática foram, desde sempre, culturalmente dominados pelo gênero mas-
culino, destacando-se, inclusive, como setores que mantém ainda hoje grande
disparidade de gênero.
Ainda vivemos numa sociedade em que a imagem da mulher que manda,
que dá ordens, é ainda mal vista. Para o pensamento comum, se ela quer manter
a sua feminilidade, ela tem que abrir mão de posições que exijam dela controle
e poder. Quando uma mulher expressa opiniões sobre assuntos controversos é
prontamente rotulada como uma “disseminadora do conhecimento”, revelando
uma visão profundamente enraizada da perspectiva masculina. Essa abordagem
não a reconhece como um indivíduo autônomo.
A dificuldade de aceitar essa disparidade de gênero é considerável, talvez
até insuperável. Os seres humanos compartilham uma igualdade intrínseca, uma
vez que são todos parte da mesma espécie e compartilham um mundo comum.
No entanto, as diferenças individuais são inerentes à natureza humana, pois cada
indivíduo é singular e único. Essa variação irrepetível entre os seres humanos,

96
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
referida como “pluralidade” pela psicologia, é o que os distingue uns dos outros.
A filósofa Hanna Arendt também defendia a “liberdade da mulher” na
sociedade. Arendt discute a questão da liberdade das mulheres em várias de suas
obras, mas uma das mais notáveis é “A Condição Humana”, publicada em 1958.
Nessa obra, ela aborda a natureza da atividade política e o papel da ação pública
na esfera política, discutindo como as mulheres historicamente foram excluídas
dessas esferas, e como a busca pela igualdade e liberdade para as mulheres é uma
parte essencial da política moderna.
Também nesse sentido, ha uma frase de Simone de Beauvoir que sempre
me chamou bastante atenção. Em seu trabalho seminal “O Segundo Sexo”, de
1949, em que ela aborda questões de gênero, feminismo e a construção social
do feminino, ela diz: “ninguém nasce mulher, mas se torna mulher”. Mas isso
quer dizer, na realidade, que “nenhum destino biológico, psíquico, econômico
define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto
da civilização que elabora esse produto intermediário entre macho e o castrado
que qualificam o feminino”.
Vê-se claramente que Beauvoir defende a singularidade dos sexos. Simone
de Beauvoir, filósofa, intelectual, ativista e professora. Integrante do movimento
existencialista francês contribuiu com o feminismo, abrindo caminho para que
as mulheres começassem a negar com firmeza a obrigação social de casar e ter
filhos. Essa discussão se desenvolve até hoje, ao se colocar casamento e materni-
dade como uma escolha. Sem dúvida, sua grande contribuição no feminismo foi
na luta de igualdade de gênero. Além disso, ela sempre foi adepta da liberdade
como principal característica da sobrevivência do ser humano, especificamente
na posição social da mulher. Dizer que uma mulher só se realiza ao formar uma
família, engravidar e ter filhos, segundo ela, é um “pseudonaturalismo” conser-
vador, que procura manter o patriarcado, conceito que até hoje é usado nas lutas
feministas, no qual prevalecem atitudes machistas.
O machismo desautoriza o querer da mulher. É tão verdadeiro que basta
ouvir os grandes compositores brasileiros, quando em suas músicas apresentam
as mulheres num papel inferior. Na música, “Esse Cara”, de Caetano Veloso,
“ele é quem quer, ele é o homem, eu sou apenas uma mulher”. Na canção,
“Sem Açúcar”, de Chico Buarque, a letra traz: “na presença dele eu me calo, eu
de dia sou uma mulher, eu de noite sou seu cavalo, a cerveja dele é sagrada, a
vontade dele é mais justa”.
No livro de Graciliano Ramos, “São Bernardo”, se lê esta frase: “se a
mulher não se encolhe e se arrepia, ela é safada; sim, é justo matar uma mulher
infiel”. Isso nos mostra que o querer e o falar são do homem. O desejo feminino
é ilegítimo. A honra masculina exige a violência e tende a fazer do homem um

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

assassino, um neurótico obsessivo pela postura machista.


Isso não quer dizer que o homem pode se apresentar como “macho sim
senhor” e estabelecer uma diferença entre ele, como forte, bom e superior, e a
mulher como fraca, má e inferior, pois, a mulher nesse universo não tem vez e
nem voz, e a sua emancipação requer uma consciência crítica que a luta femi-
nista sustenta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na contemporaneidade testemunhamos a libertação que permitiu uma


visão mais clara de nossa identidade como mulheres.
Em “Um Quarto Só Seu”, o tom de crítica à sociedade e aos papéis im-
postos às mulheres já começa pelo título e desenha toda narrativa até o fim.
Na obra, identifiquei-me com sua personalidade em diversos momentos, sempre
buscando a liberdade em aprender coisas novas e sempre se indignando com a
falta de espaço da mulher na posição social, na posição de trabalho, enfim, em
sua posição política no mundo.
Ao longo da narrativa a autora guia seus leitores a uma tomada de cons-
ciência de que o mundo de significados que fundamenta práticas sociais e pes-
soais vivenciadas no cotidiano não podem ser vistas como naturais e imutáveis,
mas sim, passíveis de mudanças.
Com isso, Virgínia Woolf abre a possibilidade de que por meio do desen-
volvimento de um pensamento crítico, cada indivíduo pode conseguir reformu-
lar os significados atribuídos à vida, aos outros e a nós mesmos. Para acelerar e
internalizar esse processo de tomada de consciência, é necessário a introdução
da Educação de Gênero nas escolas. Só assim conseguiremos mudar nossas prá-
ticas cotidianas, possibilitando com que todos alcancem, de fato, a cidadania
plena a que Woolf se refere.
A autora teve coragem de abordar tais questões, do ponto de vista social
e cultural, nos esclarecendo sobre o significado e a importância do movimento
feminista, e evidenciando a permanência de uma ideologia patriarcal, dita con-
temporânea, que ainda prevalece e se articula com o processo de desenvolvi-
mento psicológico, uma vez que fundamenta o currículo oculto das escolas, nas
quais nossas meninas são socializadas para serem femininas, dóceis, obedientes,
e nossos meninos para serem assertivos, valentes, corajosos. Em seus ambientes,
os meninos são ensinados comumente a engolir a raiva e reprimir as lágrimas.
Dessa maneira, também nos calamos sobre os movidos como os pais
estão criando as crianças e os adolescentes, e como estão reproduzindo para eles
regras para esses mesmos papéis. Como cada um lida com essa realidade? Essa
é a questão corajosa que este livro nos inspira a fazer. Para isso, e sem cair numa

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
exposição simplista, a Psicologia do desenvolvimento nos conduz pelos cami-
nhos dos fundamentos teóricos, epistemológicos e filosóficos, para em seguida
nos apresentar e discutir as grandes questões que hoje constituem a preocupação
dos grandes pesquisadores que se dedicam ao tema do feminismo.
Podemos ver que os caminhos trilhados pela autora são essenciais para
quem, como ela, almeja a desconstrução de significados, em especial, os que
dizem respeito às relações de gênero, objetivando acelerar uma verdadeira mu-
dança, tanto no interior de cada indivíduo, como na sociedade de modo geral.
Virginia Woolf foi considerada uma celebridade defensora da condição
das mulheres na sociedade no século XX. Seus argumentos reverberam até os
dias atuais nas discussões femininas e de gênero.

REFERÊNCIAS:
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universi-
tária, 2007.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Eu-
ropeia do Livro, 1960a.
BUARQUE, Chico. Sem Açúcar. Philips, 1975. Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=FXvWCEKPEdE.
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 46. ed. Rio de Janeiro: Record, 1986.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
VELOSO, Caetano. Esse Cara. Universal Music, 1972. Disponível em: ht-
tps://www.youtube.com/watch?v=VH6a4Dr9gJs.
WOOLF, Virginia. Um Quarto só Seu. Tradução: Denise Rottmann. Editora:
Primeira edição na coleção L&PM POCKET, Porto Alegre. Fevereiro de 2019,
página, 156.

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REFLEXÕES SOBRE O QUE É SER MULHER
BASEADAS NA PERSONAGEM ELIZABETH BENNET
DE JANE AUSTEN
Aline Mayane Tavares de Melo1

INTRODUÇÃO

Para se pensar acerca da soberania de liberdades individuais neste século


XXI, é fundamental considerar a emancipação feminina e todo o debate sobre gê-
neros feito em séculos anteriores. Foi a luta das mulheres por mais voz que trouxe
para o espaço público debates antes traçados no ambiente doméstico: o casamen-
to, a violência nos casamentos, a escolha de querer ou não ser mãe, a desigualdade
de oportunidades, etc. Foi o feminismo, sob a forma de quatro ondas, que come-
çou a questionar os padrões de comportamento estabelecidos para homens e mu-
lheres, tendo em vista as particularidades e desejos de cada indivíduo. E quando
as mulheres reivindicaram o direito de não serem condenadas aos estereótipos do
seu gênero, elas abriram novas possibilidades de estar no mundo.
Desenvolver um trabalho com essa temática traz um leque de questiona-
mentos que podem ser feitos sobre o que realmente significava e significa ser
mulher, pois a história de épocas, envolvendo mulheres que enfrentaram as resis-
tências de seu tempo e que hoje têm seus nomes gravados na história, serviram
de guia ao encontro com Jane Austen, uma das escritoras mais importantes da
literatura inglesa do século XVIII. A questão da relação entre casamento e mu-
lher é um dos temas centrais de suas obras.
Pensando nisso, o artigo visa levar à compreensão do ser mulher, a partir
de Elizabeth Bennet, personagem da obra Orgulho e Preconceito. Para tanto, de
forma mais específica, busca identificar as relações afetivas e sociais apresenta-
das pela personagem, a fim de mostrar como é feita a representação da mulher
na literatura de Jane Austen.

1 Mestra em Cognição, Tecnologias e Instituições pela Universidade Federal Rural do Semi-


-Árido. Especialista em Literatura e Ensino pelo Instituto Federal do Rio Grande do Nor-
te. Graduada em Letras pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Professora
da Educação Básica no RN. Email: [email protected].

100
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Sendo assim, por meio da pesquisa bibliográfica de autoras feministas
como Beauvoir, dentro de uma visão bakhtiniana, foram possíveis algumas aná-
lises desse universo social.

REFLEXÕES SOBRE O QUE É SER MULHER BASEADAS NA


PERSONAGEM ELIZABETH BENNET DE JANE AUSTEN
As lutas femininas em Quatro Ondas e o lugar de Jane Austen
Muito embora não haja ainda um consenso entre teóricos da academia,
acredita-se que o movimento feminista se encontra na Quarta Onda, tendo fei-
to um upgrade em sua pauta, acrescentando outras, tais como a cultura do estu-
pro, a representação da mulher na mídia, abusos e discriminação vivenciados
em ambientes acadêmicos e de trabalho, entre a denúncia e o silenciamento.
O que caracteriza essa fase é o uso maciço das redes sociais. Contudo, para
chegar a essa fase, existiram três ondas com pautas bem particulares em cada
momento histórico.
A Primeira Onda surge no final do século XIX e permanece até metade
do século seguinte, trazendo como exigência o direito ao voto, à medida que os
direitos estavam sendo debatidos no que concerne à participação na vida pública
e na política.
Deve-se lembrar que, no referido período, para o homem, o casamento é
um modo de vida; para a mulher, um destino, por isso “[...] a jovem que procura
um marido não atende a um apelo masculino: provoca-o” (Beauvoir, 2016a, p.
191) Sendo firmado o acordo, a mulher recebe seu passaporte para a coletivida-
de. Por causa disso muitas jovens casavam: para serem livres, já que essa institui-
ção jurídica se mostra uma carreira mais vantajosa que outras, pois as condições
da vida moderna eram mais instáveis e incertas.
Simone de Beauvoir já vislumbrava uma saída, observando a presença da
indústria moderna:
A igualdade só se poderá reestabelecer quando os dois sexos tiverem direi-
tos juridicamente iguais, mas essa libertação exige a entrada de todo o sexo
feminino na atividade pública. A mulher só se emancipará quando puder
participar em grande medida social na produção, e não for mais solicita-
da pelo trabalho doméstico senão numa medida insignificante (Beauvoir,
2016, p. 85).

Nessa fase em que as mulheres lutavam para ocupar os espaços públicos,


na prática, ainda permaneciam submissas aos maridos ou aos seus pais.
Com a Segunda Onda, há uma discussão mais consistente sobre a condi-
ção feminina, tendo se iniciado em meados dos anos 1950 até meados dos anos
1990, buscando respostas para entender a raiz da opressão de gênero. Entre 1960
101
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

e 1970, mostrou-se mais radical, visto que explorou os aspectos biológicos, com
ênfase na maternidade.
A partir desse momento, a discussão sobre sexualidade e direitos reprodu-
tivos seria inevitável. Resta acrescentar que, em fins da década de 1970, a pílula
anticoncepcional foi inventada. Os estudos que diferenciavam sexo e gênero têm
início nesse período, conduzindo as mulheres a se enxergarem como uma cons-
trução social. Patricia Collins e Dorothy Smith foram nomes importantes na
construção de uma ciência social feminista, defendendo que a teoria necessitava
ser construída por mulheres, já que eram experienciadas por estas.
A elas, juntaram-se mulheres socialistas/marxistas, engrossando a discus-
são sobre a divisão sexual do trabalho, gerando uma crítica à diferença salarial.
Sheila Rowbotham e Angela Davis acrescentaram ao debate questões raciais às
de gênero que estavam em curso.
Os anos 1990 prepara a Terceira Onda, ao provocar mudanças nas sociedades.
O muro de Berlin se dissolve à semelhança das ditaduras na América Latina, promo-
vendo mudança de mentalidade. Com o advento da internet e o movimento punk, as
garotas rebeldes incluem a negação a corporativismos e gritam seus ideais em zines
, cujo conteúdo versava sobre patriarcado, estupro e empoderamento feminino.
Dentro dessa linha evolutiva de lutas e conquistas femininas, Jane Austen
(1775 - 1817) vive o calor das chaminés das fábricas como autora protofeminista,
uma vez que se antecipa ao movimento feminista, porém abordando temas que
se tornariam pautas de reivindicações. É contemporânea da Revolução Francesa
que, de certa forma, denunciou a condição de opressão de gênero, destacando a
superioridade e a dominação imposta pelos homens. Na Inglaterra, havia uma
grande efervescência social e cultural, pois era uma época favorável às artes,
chamado de Era Georgiana, passando-se durante os reinados de George I, II,
III e IV. Nesse período, a autora começa a escrever suas histórias com toque de
ironia, narradas com base no que ela observava em sua própria sociedade.
No período em que foram escritos os seus romances, muitas mulheres
liam para se distrair. Tais mulheres viviam presas à trabalhos domésticos, es-
poso, filhos, a uma rotina diária muito cansativa, e que, muitas vezes, viam no
casamento uma forma de sustento. Ler seus romances davam a elas novas pers-
pectivas do que poderiam ser porque a escritora inglesa, de certa forma, abriu
novos caminhos de desconstrução de ideias.
Além disso, suas obras tinham um estilo cômico muito comum, costura-
das com ironias que construíam a representação feminina, mostrando a desvalo-
rização da mulher na época. Conforme Vivien Jones,

102
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Os romances de Jane Austen são comédias românticas. Ou seja, elas são
estórias de amor com finais felizes. ‘Comédia’ aqui não é somente usada
para sugerir algo que faz rir, embora os romances de Austen geralmente fa-
zerem isso também, mas como o oposto da ‘tragédia’. Em outras palavras,
descreve uma positiva visão celebrativa da vida, representando felicidade
e ideais. Os romances de Austen são frequentemente comparados com as
comédias de Shakespeare. Sendo familiar como uma delas percebesse que
terminam de maneira semelhante, com casamentos simbolizando reconci-
liação e harmonia (Jones, 1997, p. 50).

Ela esclarece que, ao chamar os romances de Austen de “comédias”, não


se refere apenas ao humor presente em suas histórias, mas à estrutura narrativa
geral, que se opõe à tragédia. Nas comédias românticas de Austen, os enredos
giram em torno de relações amorosas, em que as protagonistas, geralmente mu-
lheres, enfrentam diversos desafios e obstáculos para alcançar o amor verdadeiro
e a felicidade. Embora os romances possam conter momentos de tensão e difi-
culdades, o desfecho é quase sempre feliz, com casamentos que simbolizam a
reconciliação e a harmonia entre os personagens.
A comparação entre os romances de Jane Austen e as comédias de
Shakespeare é muito apropriada, pois ambos os autores trabalharam com ele-
mentos cômicos, românticos e finais felizes em suas obras. Ambos os estilos
literários celebram a vida, retratando os ideais e as aspirações humanas em um
contexto positivo.
Correia e Pereira (2017) afirmam que Jane Austen, ao questionar o padrão
inalcançável da mulher enquanto idealização, desloca o debate para o fenômeno
da escrita feminina da literatura em um espaço majoritariamente masculino. E,
apesar de que mulheres tenham sido retratadas em grandes obras escritas por
homens, os modelos femininos eram sempre concebidos a partir do olhar mas-
culino e os problemas inerentes à condição das mulheres eram sempre tratados
superficialmente, quando não totalmente ignorados.
Algumas de suas personagens se negam a casar, pois preferem ficar sozinhas
a terem que sustentar uma relação medíocre. Embora suas obras tragam o casamen-
to como foco de discussão, Jane Austen não casou. Suas ironias para denunciar
situações de opressão nas obras que produziu apontam para uma mulher real e uma
mulher ficcional muito bem delineadas por Virgínia Woolf em Um teto todo seu:
Uma criatura muito estranha, complexa, emerge então. Na imaginação,
ela é da mais alta importância; em termos práticos, é completamente insig-
nificante. Atravessa a poesia de uma ponta à outra; por pouco está ausente
da história. Domina a vida de reis e conquistadores na ficção; na vida real,
era escrava de qualquer rapazola cujos pais lhe enfiassem uma aliança no
dedo. Algumas das mais inspiradas palavras, alguns dos mais profundos
pensamentos saem-lhe dos lábios na literatura; na vida real, mal sabia ler e
escrever e era propriedade do marido (Woof, 1990, p. 56).

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
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Woolf destaca a dicotomia entre a representação literária das mulheres e a


sua realidade histórica. Ela observa que as mulheres na literatura frequentemen-
te são retratadas como figuras poderosas e influentes, que desempenham papéis
de destaque na poesia e na ficção. No entanto, na vida real, as mulheres muitas
vezes eram relegadas a posições de submissão e opressão, limitadas por normas
sociais restritivas e patriarcais. Ela enfatiza a importância da imaginação e da
criação literária na construção de personagens femininas fortes e independentes,
que possam desafiar as limitações impostas pela sociedade. Ela também aponta
para a necessidade de mudanças sociais que permitam às mulheres terem suas
próprias vozes, educação e independência financeira, para que possam transcen-
der as limitações impostas a elas na vida real.
A autonomia na escolha de se casar ou não, na realidade, não fez parte da
realidade de suas contemporâneas. De certo modo, Jane Austen é, na vida real,
o ser ficcional de suas obras. Nesse sentido, é importante refletir sobre o conceito
de mulher. Na visão de Funck (2011), o termo é estereotipado, ou seja, a mulher
é um indivíduo cuja subjetivação ocorre dentro das normas e comportamentos
socialmente definidos como femininos pelo seu contexto cultural.
Simone de Beauvoir (1967) compreende que ser mulher é uma categoria
que existe na sociedade, assim como o ser homem. Mas, não é como se exis-
tissem duas categorias diferentes, como A e B, é como se existisse a categoria
masculina sendo positiva e a feminina sendo negativa. Compreendendo-se que
ser mulher é ser um não homem, então teríamos o homem compondo a catego-
ria positiva e as mulheres compondo a categoria negativa. Mas o homem, além
de ele compreender a categoria positiva, ele compõe a categoria neutra, porque,
quando falamos de ser humano, o que nos vem à cabeça é um homem. A pa-
lavra é usada no português para abranger muitas vezes as mulheres, estamos
nos referindo aos seres humanos de um modo geral. Ninguém fala mulheres,
referindo-se aos seres humanos. Usamos essa palavra para nos referirmos a uma
singularidade da espécie humana.
Para a autora, o homem não constitui uma singularidade da espécie hu-
mana porque ele é considerado sujeito e a mulher é considerada objeto, porque,
na verdade, temos essa tendência: enxergamo-nos como sujeito e tudo aquilo
que não é a gente, que é diferente, o não eu, o negativo, é o objeto. Ela traz a
ideia de outro quando diz que as próprias mulheres se enxergam como outro,
quando aceitam a submissão, quando aceitam a ideologia do homem.
Esse conceito de Outro trazido por ela é semelhante ao pensamento de
Ribeiro (2017), quando esta diz que o lugar de fala é o lugar social de localização
de poder dentro da estrutura e não a partir da vivência especificamente, ou de
experiência individual. Ou seja, as autoras compreendem que o olhar masculino

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
coloca as mulheres no lugar de objeto e isso as impede de se tornarem um ser
“para si”.
Beavouir (1967) também afirma que por muitas vezes é confortável ser
o outro. Pode até ter o lado ruim, uma vez que o caminho de ser o outro pode
constituir muitas vezes um caminho nefasto porque você se sente estranho em
suas próprias vontades, porque você não transcende, não se constitui como su-
jeito. Contudo, por outro lado, é um caminho fácil, porque não existe uma an-
gústia sentida quando se tem liberdade. Então, sem generalizações, as mulheres
se comprazem em ser o objeto, de certa forma porque são condicionadas a isso.
A autora admite que as mulheres são, de fato inferiores, porém não por
uma questão de natureza, ou por questão de essência, mas por uma questão de
construção social. A existência feminina foi construída e, por isso mesmo, con-
dicionante para que o segundo sexo fosse inferior.
Há quem diga que Jane Austen foi percursora do feminismo. Para Perrot
(2008, p. 154), “em sentido muito amplo, ´feminismo´, ´feministas´ designam
aqueles e aquelas que se pronunciam e lutam pela igualdade dos sexos”. Deve-
se considerar que essas categorias não estavam em voga no tempo da escrita de
Jane Austen. Schimidt (1999) pontua:
O feminismo, desde suas origens, sempre partiu de reflexões sobre a práti-
ca e a ênfase na experiência, prendendo-se ao fato de que, historicamente,
essa categoria foi determinante na transformação de realidades no campo
social. Sem cair na armadilha de um conceito a-histórico, reificado e uni-
tário de experiência e sem incorrer no esvaziamento textual da experiência
propiciada pela repercussão do pós-estruturalismo nas teorias do sujeito, é
possível reconfigurar o conceito de experiência a partir da noção de efeito
da interação entre a subjetividade e a prática social (Schimidt, 1999, p.38).

O uso dos conceitos “feminista” ou “não feminista” extrapola a possibili-


dade de categorização rígida e não pode ser dissociado de contextos mais com-
plexos. A constituição de uma crítica feminista é o processo de desconstrução de
leituras consagradas, como destaca Xavier (1999):
Apesar de ser chamada por muitos de revolucionária, Jane era uma au-
tora conservadora, não queria revolucionar nada, não queria que a so-
ciedade inglesa funcionasse de outro jeito, mas ela critica de dentro, a
ironia se constrói justamente por não querer mudança, ela queria conti-
nuar naquele regime, porém tendo uma visão crítica do que acontece ali
(Xavier, 1999, p.16)

Para início de conversa, Jane Austen adota o romance como gênero das
suas narrativas, o qual figura dentro da lógica do entretenimento, ainda não con-
siderado como gênero literário nesse período. Duzentos anos após sua morte,
ela é uma das escritoras inglesas mais famosas, principalmente pelos romances:

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

Orgulho e preconceito (1813), Emma (1815), Razão e Sensibilidade (1811) e Persuasão


(1818), conquistando admiradores pelo mundo inteiro.
Todos os seus romances publicados em vida eram anônimos. Seu nome
só foi exposto após seu falecimento, pois o que era escrito por uma mulher não
poderia ter credibilidade, respeito, não poderia ser vendido. O papel da mulher,
nesse período, é o de subserviência. A única coisa que uma mulher podia fazer
para assegurar sua existência material era o casamento. Quanto a isso, Perrot
(2005, p. 78)) afirma que: “ser mulher nunca é fácil, sobretudo naquele século
XIX que, em sua realidade triunfante, provavelmente levou a seu paroxismo a
divisão sexual dos papéis e dos espaços, definindo “o lugar das mulheres” com
um rigor apoiado no discurso cientifico”.
Jane Austen já trazia, de forma implícita, traços que representavam uma
violência simbólica nas suas obras, quando fala de casamento, por exemplo. Em
todas as suas representações de mulher, a união entre o sexo feminino e mas-
culino figura como foco central da trama. Bourdieu (2003a) e Beauvoir (1967)
trazem o conceito de violência simbólica presente no casamento, mostrando que
a mulher é preparada desde a infância para as relações matrimoniais: “A mulher
está votada à perpetuação da espécie e à manutenção do lar, isto é, à imanência”
(Beauvoir, 1967, pag. 169). Os ritos simbólicos do casamento são a exaltação da
virilidade e a expressão do contrato que faz da mulher uma posse. Eles ditam os
costumes da cultura dominante, a cultura masculina.
Sendo assim, as obras da autora inglesa tentam transmitir para leitor uma
educação sentimental, de que casamento é difícil, chato, requer uma maturidade
das partes e que, se os enamorados não vencem preconceitos, não ficam juntos.
É revolucionária a forma com a qual ela apresenta a praticidade com que se deve
lidar com sua vida material e afetiva. Em outras palavras, uma forma prática de
olhar para o amor e para posses, distinguindo-os.
Em Orgulho e Preconceito (1813), vemos toda a estrutura do século XIX,
por meio de mulheres que querem casar, expondo-se os motivos. Primeiro, por
que a propriedade delas depende disso, ou seja, manter a vida material depende
de ter um homem, conseguir um marido é como conseguir um emprego. Não
importa se existe afeto.
O homem dirige a mulher que, por sua vez, é a responsável pela casa e
garante o sucesso e a estabilidade dessa união na qual cada um faz jus à
sua virtude: o homem no público, a mulher no privado. A mulher repre-
senta um papel importante a ser cumprido na casa: é ela que desempenha
o trabalho que o marido não pode cumprir, pois está ocupado cumprindo
seus deveres de cidadão (está trabalhando). Ela é levada a crer que o seu
trabalho é igualmente importante e insubstituível (Foucalt apud Caballero,
2016, pg. 69).

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
A voz de Foucault (2016) sobre atribuições dos papéis femininos é bas-
tante precisa. Essa naturalização, ainda no século XIX, que é feita com a força
produtiva movida pelo trabalho doméstico, aliena e aprisiona mulheres, camu-
flando funções de trabalho com atributos de feminilidade. Federici (2019), na
obra O ponto zero da revolução teoriza sobre esse tipo de trabalho que, por muito
tempo foi negligenciado na cadeia produtiva das sociedades. A recusa do traba-
lho doméstico como um destino natural das mulheres só veio ocorrer de fato,
após a Segunda Guerra Mundial, revelando o trabalho das mulheres como o
verdadeiro segredo da acumulação primitiva do capital.
O que a autora chama de ponto zero deve ser entendido, ao mesmo tem-
po, como um local de perda completa e de possibilidades, pois, somente quando
todas as possibilidades e ilusões são perdidas, o ser humano é levado a encon-
trar, inventar, lutar por novas formas de vida e reprodução. Por sua vez, “a repro-
dução de seres humanos é o fundamento de todo sistema político e econômico,
e a imensa quantidade de trabalho doméstico remunerado e não remunerado,
realizados por mulheres dentro de casa, é o que mantém o mundo em movimen-
to” (Federici, 2019, p. 17).
Em suma, a autora constata o lugar desse grau zero, não antes sem fazer
justiça a teorias econômicas que deixaram de fora essa força produtiva que ema-
na da mão-de-obra (quase em tempo integral) das mulheres.

Elizabeth Bennet: o ser mulher

Antes de serem feitas análises, é necessário recuperar uma fala como pon-
to de partida para a trama de Orgulho e Preconceito: o desejo da senhora Bennet
(mãe de Elizabeth), a saber, ver suas filhas bem casadas. Segue o excerto:
“É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, pos-
suidor de boa fortuna, deve estar necessitado de esposa. Por pouco que os
sentimentos ou as opiniões de tal homem sejam conhecidos, ao se fixar
numa nova localidade, essa verdade se encontra de tal modo impressa nos
espíritos das famílias vizinhas, que o rapaz é desde logo considerado a
propriedade legítima de uma de suas filhas” (Austen, 1982, p. 09).

O trecho descreve uma visão irônica e satírica da sociedade do século


XIX, em que a busca por casamento era frequentemente guiada por interesses
financeiros e convenções sociais, em vez de sentimentos verdadeiros. É men-
cionado que um homem solteiro com boa fortuna é considerado necessitado de
esposa pelas famílias ao seu redor, e é logo visto como uma “propriedade legíti-
ma” para uma das filhas dessas famílias.
Entende-se por bem casada, segundo o entendimento da senhora Bennet, a
mulher que consegue estabelecer um contrato matrimonial com um dono de boa

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M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

fortuna. Ademais, a matriarca via nisso um modo de assegurar suas filhas alguma
riqueza. Isso demonstra um costume no período em que se passa o romance na
Inglaterra, a saber, as mulheres não herdavam as fortunas. Então, nenhuma das
cinco filhas ficaria com sua propriedade. Na verdade, elas herdariam uma parte da
fortuna da mãe delas, que foi dada no dote, mas era uma quantia irrisória.
[...] — Como se chama ele? (pergunta o pai de Elizabeth)
— Bingley. (responde a mãe de Elizabeth)
— É casado ou solteiro?
— Oh, solteiro, naturalmente, meu caro. Solteiro e muito rico! Quatro ou
cinco mil libras por ano. Que boa coisa para as nossas meninas, hein?
— Como assim? De que modo pode isso afetá-las?
— Meu caro Mr. Bennet —, replicou a sua esposa —, como você, às vezes,
é enfadonho! Deve saber que ando pensando em casar uma delas...
— Será este o projeto do homem ao se instalar aqui?
— Projeto? Tolice... Como é que você pode dizer uma coisa destas? É até
muito provável que ele se apaixone por uma delas. Portanto, assim que
chegue você deve ir visitá-lo.
— Não vejo motivo para isto. Você pode ir com as meninas, ou pode até
mandá-las sozinhas, o que talvez ainda seja melhor, pois como você é tão
bela quanto qualquer uma delas, Mr. Bingley pode preferi-la [...] (Austen,
1982, p. 09-10).

O casal central Elizabeth e Darcy não tem uma relação muito afetuosa no
início da trama, mas os diálogos tratados por eles são cheios de duplos sentidos.
Percebe-se um misto de aversão, curiosidade e desejo entre os dois. Inicialmente,
ela não havia “caído no gosto” de Darcy e o sentimento era recíproco, porque a
primeira impressão entre eles foi desagradável: ela achava-o orgulhoso; ele não
a achava tão bonita, a ponto de chamar sua atenção.
[...] — Você está dançando com a única moça realmente bonita que existe
nesta sala — disse Mr. Darcy, olhando para a mais velha das irmãs Bennet.
— Oh, é a mais bela moça que já vi na minha vida, mas bem atrás de você
está uma das suas irmãs, que é muito bonita e agradável. Deixe-me pedir
ao meu par que o apresente a ela?
— Qual? — perguntou ele, voltando-se e detendo um momento a vista
em Elizabeth até que, encontrando os seus olhos, desviou os seus e disse,
friamente: — É tolerável, mas não tem beleza suficiente para tentar-me.
Não estou disposto agora a dar atenção a moças que são desprezadas pelos
outros homens. É melhor você voltar ao seu par e se deliciar com os seus
sorrisos, pois está perdendo tempo comigo [...] (Austen, 1982, p. 17)

Elizabeth é apresentada no livro como uma jovem de personalidade forte,


inteligente, e o pai dela descreve-a como a mais viva entre as irmãs: “Nenhuma
delas tem muito o que se lhes recomende —, respondeu Mr. Bennet —; são tolas
e ignorantes como as outras moças. Mas Lizzy é realmente um pouco mais viva
do que as irmãs” (Austen, 1982, p. 10)

108
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Ela não gostava de fazer o que a sociedade esperava e, de certa, forma,
condicionava para que fizesse. Como boa moça, deveria aprender vários atributos
para ser uma boa esposa, como: desenhar, pintar, tocar piano, várias qualidades
que a sociedade achava necessário a uma mulher. Contudo, queria ser algo para
além disso. Tinha uma boa relação com o pai, por isso ele a apoiava nas decisões,
instigando-a a querer ser mais do que uma simples esposa. Elizabeth se preocupa-
va com as irmãs mais novas e tinha uma relação muito próxima com a irmã Jane.
Questionadora, ela sempre reflete não somente sobre o papel da mu-
lher naquele período, como também sobre a beleza, o casamento. Ela não se
amedrontava com a superioridade das pessoas de classes mais altas, sobretudo
quando tentavam intimidá-la, fato que acontece quando a tia de Darcy, Lady
Catherine, questiona sobre sua idade e ela prontamente não a responde:
[...] — Sob minha palavra — disse Lady Catherine —, você dá a sua opi-
nião muito decididamente para uma pessoa de tão pouca idade. Diga-me,
quantos anos tem? — Com três irmãs mais moças já crescidas — replicou
Elizabeth —, Vossa Senhoria não pode esperar que eu lhe dê uma resposta.
Lady Catherine pareceu ficar atônita com a resposta e Elizabeth suspeitou
que ela tinha sido a primeira pessoa que jamais ousara fazer pouco de uma
tão pomposa impertinência.
— Você não pode ter mais de vinte anos, portanto não precisa esconder a
sua idade.
— Ainda não fiz 21 anos [...] (Austen, 1982, p. 152).

Justa, ela não se conforma com o papel social que a mulher desempenhava
no período. Era considerada como uma moça independente, pois gostava de cami-
nhar sozinha e o livro sempre descreve isso. Naquele período, no qual a mulher era
criada para aprender atributos para conseguir um marido, a possibilidade de ela ca-
minhar sozinha, a pé, é uma grande relevância para o papel dela de independência.
Outra questão é sobre o casamento, uma peça central no período do roman-
ce na Inglaterra. Elizabeth acha tão ridículo da parte da mãe buscar estratégias
para tentar casar suas filhas, quanto desnecessário, que rejeitou uma proposta feita
pelo seu primo, já que não tinha nenhum tipo de sentimento por ele. Assim, ela faz
uma escolha, deixando todos chocados, ao rejeitar uma oferta dessas.
Já em Emma (1815), temos uma personagem adorada por todos, que não
quer casar. A maior ironia no romance reside no fato de Emma ter um poder do-
méstico, acreditando que, com ele, pode mudar o mundo ao seu redor na tentati-
va de controlar a vida de alguns outros personagens. Em Razão e Sensibilidade, ve-
mos as tradições, os costumes que rodeiam a realidade feminina da classe Gentry
(pequena nobreza rural) em que estão inseridas as irmãs Dashwood, Elinor e
Marianne que são forçadas a enfrentar diversas dificuldades sociais e financeiras
após a morte de seu pai, pois são deixadas em uma situação financeira precária.

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A autora critica o casamento puramente por interesse financeiro ou so-


cial, mostrando que ele pode levar à infelicidade e à falta de realização pessoal.
Ao mesmo tempo, Austen destaca que o casamento movido apenas pela paixão
sem uma base sólida pode ser igualmente problemático. Em um breve diálogo
com a Literatura brasileira, esse último elemento citado, presente no enredo de
Jane Austen, dialoga com um momento vivido pela personagem Aurélia, pro-
tagonista da obra Senhora, escrita por José de Alencar (2007), na qual há uma
transação comercial envolvendo o casamento. Aurélia foi criada por um homem
e, por isso, no final da obra, acaba cedendo ao poder masculino, retroalimentan-
do o sistema patriarcal à medida que acaba reproduzindo-o.
Em linhas gerais, tudo gira em torno do casamento, Federici (2019) abor-
da a ideia de que o capitalismo se beneficia da exploração do trabalho das mu-
lheres, especialmente na função de criada ou dona de casa. Ela destaca que o tra-
balho desempenhado pelas mulheres em suas casas é complexo e abrange uma
combinação de serviços físicos, emocionais e sexuais. No contexto patriarcal e
capitalista, as mulheres foram historicamente confinadas aos papéis de donas de
casa, encarregadas de cuidar da família, das tarefas domésticas e da reprodução.
Por isso, sua obra permanece, porque ela estabelece com clareza os con-
tornos de uma sociedade profundamente machista. Contudo, ela não é determi-
nista. Não é porque se vive em uma sociedade profundamente machista que não
se pode ter relações significativas vindas de homens e mulheres sensíveis e que
podem se encontrar. Nesse sentido, sua leitura é um clássico fundamental para
se entender o que a sociedade vive hoje.

Da obra de Jane Austen para a sala de aula

Tendo em vista a pertinência dos estudos de gênero na atualidade, as mu-


danças na concepção de família e a luta pelos direitos civis, a obra de Jane Austen
proporciona olhares sobre a condição das mulheres na trajetória historiográfica.
Sendo assim, o presente artigo propõe uma sequência didática, dentro de
uma concepção dialógica de linguagem, como forma de materializar um traba-
lho de leitura, considerando que o gênero é um “instrumento que fornece um
suporte para a atividade, nas situações de comunicação, e uma referência para
os aprendizes” (Schnewly e Dolz, 2004, p. 75).
Nesse processo de elaboração do modelo, consideramos três princípios
(Schnewly e Dolz, 2004): o da legitimidade, que consiste em referendar o conhe-
cimento teórico sobre o gênero; o da pertinência, que diz respeito à capacidade
do educando, bem como às finalidades pedagógico-escolares e ao processo de
ensino-aprendizagem; finalmente, o da solidarização, que torna coerente o saber
atrelado aos objetivos buscados.

110
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Em suma, o docente seleciona o que se deve ensinar para, em seguida, criar
várias sequências sobre um mesmo assunto, de acordo com as necessidades da tur-
ma. Cientes do que vem a ser uma sequência didática, apresentaremos o modelo
didático criado para trabalhar a obra de Jane Austen com alunos de Ensino Médio.

FIGURA 1: Sequências Didáticas para o Clube de Leitura de Jane Austen

SEQUÊNCIA DIDÁTICA PARA O


CLUBE DE LEITURA JANE AUSTEN

CONTEÚDOS DE
GÊNEROS DURAÇÃO RECURSOS UTILIZADOS LÍNGUA PORTUGUESA E
LITERATURA
Obra: Orgulho e Preconceito, de Jane
Austen.
Filme: O clube de leitura de Jane Sequências textuais narrativa
1ª e 2ª sema-
Austen (2007) - Mostra cinco mulhe- e descritiva, atentando para o
nas:
res e um homem que decidem formar trabalho com os tempos verbais,
(seis aulas)
um grupo de leitura dedicado a estu- referentes textuais e sequencia-
dar os trabalhos da autora do século dores lógicos da narração, com
Romance
XIX, Jane Austen. Ao mesmo tempo ênfase em paragrafação e uso de
(Para Estu-
em que discutem as problemáticas conectivos (parte I).
do)
das obras, passam por desafios seme- Análise semiótica e historiográ-
Diário de
lhantes. fica dos quatro perfis de mulhe-
Leitura
Canções: Amélia (Mário Lago); Des- res nas canções.
(Orientações
construindo Amélia (Pitty); Dona de Orientações para os Blogs ou
para o Blog)
mim, de Iza; Dandara (Nina Olivei- fanpage no face.
ra); Realeza popular, de Enéas Dias
e Marcos Moura. (Garantido 2019)
3ª e 4ª
Elementos da narrativa para en-
semanas:
tender o romance. (Parte 1: narra-
(seis aulas)
dor, personagens, tempo, espaço) Ironia e paródia.
Elementos SEIS
da narrativa SEMANAS
Diário de leitura no BLOG: o que é,
Diário de
como se faz
Leitura
Sequência textual narrativa,
atentando para o trabalho com
5ª Semana: Elementos da narrativa para enten-
os tempos verbais, referentes
(Três aulas) der o romance. (Parte 2: enredo)
textuais e sequenciadores lógi-
cos da narração (parte II).
Critérios de avaliação
Coesão e coerência textual - (1,0
6ª Semana:
ponto)
Avaliação da (Aula no laboratório)
Gênero textual exigido (adequa-
turma
ção da linguagem) - (1,0 ponto)
Discussões Resultados e discussões sobre o
Juízo de valor sobre o livro - (1,0
sobre os projeto.
ponto)
blogs dos
Aspectos gramaticais - (1,0 pon-
alunos na Premiação para os três primeiros
to)
rede lugares - blog.
Recursos gráficos, visuais e so-
noros (estética do blog) - (1,0
ponto)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho trouxe uma breve reflexão sobre o ser mulher, relembrando as


pautas das ondas feministas iniciadas no final do século XIX, marcado pela luta
por igualdade política e jurídica e levou para as ruas, especialmente, mulheres
brancas e de Classe Média. Tais pautas, de forma embrionária e sem preten-
sões de um movimento em si, foram mencionadas por Jane Austen em suas
obras, quando a autora inglesa decidiu pôr em foco o casamento e a condição
da mulher na sociedade, deixando claro que as opressões atingem as mulheres
de modos diferentes.
O ser mulher é resultado de um movimento em constante florescimento,
marcado por diferentes grupos, práticas e ações. Por isso mesmo falar em con-
dição feminina significa, cada vez mais, falar no plural. Sendo assim, o estudo
buscou fazer uma leitura sobre o ser mulher, analisando a personagem Elizabeth
Bennet, da obra Orgulho e Preconceito, da escritora inglesa Jane Austen. A partir
dela, podemos ter uma melhor compreensão sobre como se davam as relações
afetivas e sociais da personagem.
É válido pontuar o quão semelhantes são as situações narradas em suas
obras e sua própria história de vida. Parece que Jane Austen escreveu sobre sua
própria realidade, do período em que vivia, conferindo à voz da personagem
uma crítica aos costumes e tradições do tempo, também mostrando preocupação
com as pressões sobre as mulheres e as representações ideológicas sobre elas.
A personagem Elizabeth, que é confessadamente uma das mais queridas
da autora, pode simbolizar os desejos e vontades da mulher de seu tempo, que
queria apenas ser livre para fazer suas escolhas, viver sua vida, etc. Jane Austen
não usa o modelo de mulher estereotipado da época, predominando a racionali-
dade em suas protagonistas. Isso mostra que há nela a base de todas as persona-
gens fortes que já tivemos posteriormente na Literatura contemporânea.
Pode-se dizer que a literatura de Jane Austen oferece várias reflexões so-
bre o papel e a condição das mulheres em sua época, bem como sobre questões
mais amplas relacionadas à feminilidade. Suas obras são ambientadas no século
XIX, época em que as expectativas e os papéis sociais das mulheres eram forte-
mente definidos e limitados. Embora os contextos sociais tenham mudado sig-
nificativamente desde os tempos de Jane Austen, muitos dos temas abordados
em sua literatura ainda ressoam com questões contemporâneas relacionadas aos
papéis e expectativas das mulheres na sociedade. Através de suas obras, Austen
continua a ser uma autora relevante e uma fonte de inspiração para a discussão
sobre o que significa ser mulher e como as mulheres podem buscar sua própria
independência e felicidade.

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
REFERÊNCIAS
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Paulo: Abril Cultural, 1982.
AUSTEN, Jane. Razão e Sensibilidade. São Paulo: Editora Landmark, 2010.
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AUSTEN, Jane. Emma. São Paulo: Editora Landmark, 2010. Edição bilingue:
inglês/português.
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Orgulho e preconceito e o pensamento independente em evidência. Artigo
publicado pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, 2017. Disponível
em: http://www.usp.br/cje/jorwiki/exibir.php?id_texto=345. Acesso em: 30
de out. 2022.
FEDERICI, S. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e
luta feminista. São Paulo: Editora Elefante, 2019.
FUNK, S. B. O que é uma mulher? In: Palavra e poder: representações na
literatura de autoria feminina. Brasília, DF: Universidade de Brasília, Departa-
mento de Teoria Literária e literaturas, 2011. Revista Cerrados. Vol. 20, N. 31.
GERHARDT, E.; SILVEIRA, D. T. Métodos de pesquisa. Porto Alegre: Edi-
tora da UFRGS, 2009.
JONES, V. How to study Jane Austen. London: The Macmillan Press, 1997.
PERROT, M. As mulheres ou os silêncios da história. Trad. Viviane Ribeiro.
Bauru, SP: EDUSC, 2005.
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São Paulo: contexto, 2008.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.
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SCHIMDT, R. T. Descentramentos/convergências: ensaios de crítica feminis-
ta. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2017.
SCHNEUWLY, Bernard. DOLZ, Joaquim e colaboradores. Gêneros Orais e

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M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

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XAVIER, E. Para além do cânone. In: RAMALHO, C. (Org.) Literatura e
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WOOLF, V. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

114
ALÉM DO TEMPO:
COMENTÁRIOS SOBRE ‘MEMÓRIAS DE ADRIANO’,
DE MARGUERITE YOURCENAR
Dirce Maria da Silva1

INTRODUÇÃO

Dentre autores de referência, reconhecidos por suas contribuições signi-


ficativas para o gênero memorialismo, está Marguerite Yourcenar (1903-1987),
escritora francesa, conhecida por obras históricas e autobiográficas, dentre elas
“Memórias de Adriano”, livro com uma narrativa memorialística em primeira
pessoa, situado entre o texto histórico e a biografia romanceada, de imaginação
ficcional criticamente depurada, no qual Yourcenar assume a voz do persona-
gem, numa ambientação cultural e psicológica que obedece a um majestoso pro-
cesso de reconstituição arqueológica.
O romance é desenvolvido por meio de uma série de cartas escritas pelo
Imperador Romano a seu amigo, Marco Aurélio, que seria mais tarde seu suces-
sor. As cartas compõem o núcleo narrativo desse romance epistolar, que servem

1 Mestre em Direitos Humanos, Cidadania e Estudos Sobre a Violência. Graduada em Le-


tras Português/Inglês e suas respectivas Literaturas. O curso de Letras, minha primeira
graduação, ofereceu-me compreensão da linguagem e das narrativas humanas, enquanto
o Mestrado, com foco em Políticas Públicas, ajudou-me a melhor compreender o contex-
to social e político em que as questões de direitos ocorrem, fazendo-me melhor enten-
der como cidadania, políticas públicas e linguagem estão intrinsecamente relacionadas.
Membro (Técnico) do Grupo de Pesquisa Literatura e Espiritualidade (GPLE), vinculado
ao Departamento de Teoria Literária e Literaturas (POSlit / TEL) da Universidade de
Brasília. Membro Fundadora do Instituto de Pesquisa, Desenvolvimento e Apoio a Neu-
rodivergentes (IPDAN) (Instagram: ipdan.org.br). Atualmente trabalha como professora
da Educação Básica na Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. E-mail:
[email protected].

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como estrutura literária para o Imperador Adriano2 contar a história de sua vida
e de seu governo, situando-se próximo da narrativa de confissão.
Mémoirs D’hadrien (Suivi de Carnets de Notes de “Memoires D’Hadrien”), título
original em francês, foi publicado pela primeira vez em 1951. A edição da qual ex-
traímos os excertos é a 11ª, publicada pela Editora Nova Fronteira/RJ, em 1980.
Cada uma das seis seções que compõem a obra: Animula Vagula Blandula;
Varius Multiplex Multiformis; Tellous Stabilita; Saeculum Aureum; Disciplina
Augusta e Patientia, desempenham papéis específicos na construção da narrativa e
na exploração da personalidade de Adriano. Daremos ênfase aqui a excertos das
três primeiras.
Os excertos elencados nesta modesta apreciação são recortes das passa-
gens que destaquei durante a primeira leitura de “Memoires D’Hadrien”, às quais,
ocasionalmente, retorno. Tomei a liberdade de acrescentar informações sobre
algumas figuras dos excertos originais, explicando-as nas Notas de Rodapé, in-
seridas como informações gerais de pesquisa livre, apenas como forma de me-
lhorar a fruição textual.
A primeira parte, Animula Vagula Blandula, a seguir, inicia a narrativa
com uma atmosfera que evoca a essência das memórias que o Imperador está
prestes a compartilhar. Trazem a sensação de nostalgia e introspecção.

DESENVOLVIMENTO DAS SEÇÕES


Animula Vagula Blandula (Pequena Alma Terna Flutuante)

De início, Adriano compartilha de reflexões filosóficas e pessoais sobre uma


variedade de assuntos, incluindo a natureza da vida, o significado da morte e as
responsabilidades de um Imperador. Ele é representado por Yourcenar como um
líder intelectual e humanista, cujas preocupações vão além do poder e da política.

2 Em 24 de janeiro de 76 D.C, nasceu Publius Aelius Hadrianus (Adriano), em Roma, ou,


segundo algumas fontes, em Itálica, uma cidade na província romana da Hispania Betica,
a 9 km da atual Sevilha, que foi fundada por Cipião, o Africano, ainda durante a 2ª Guerra
Púnica, onde foram assentados colonos romanos de origem italiana, entre os quais prova-
velmente estava a família dos Élios. O pai de Adriano, Publius Aelius Hadrianus Afer, era
um senador romano e primo de Marcus Ulpius Trajanus, seu conterrâneo de Itálica que
se tornaria, em 98 D.C, o imperador Trajano, foi o primeiro imperador nativo de uma pro-
víncia fora da Itália. A sua mãe, Domícia Paulina, também vinha de uma família da classe
senatorial radicada na Espanha. Quando Adriano tinha apenas 10 anos de idade, no ano
de 86 D.C, os seus pais faleceram e ele ficou sob a tutela de Trajano e de Publius Acilius
Attianus, um conterrâneo de seu pai. Aos 14 anos de idade, Adriano, que estava em Itálica,
foi chamado para ir morar em Roma por Trajano. Na capital do Império, Adriano recebeu
uma esmerada educação, em companhia de outros rapazes da alta aristocracia romana.
Ele governou o Império Romano de 117 d.C. a 138 d.C. e é tido como um dos imperadores
romanos mais cultos e intelectuais de sua época. Disponível em: https://historiasderoma.
com/category/adriano/ Acesso em: 28/08/2023.

116
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Ao retornar de mais uma de suas incursões, escrevendo a seu amigo
Marco, ele discorre, dentre os assuntos, sobre seu atual estado de saúde. A mor-
te, inexorável, é tema explorado em boa parte das cartas retratadas ao longo da
narrativa desenvolvida por Yourcenar.
Sobre a proximidade da sua morte, à página 13, o Imperador se descreve
como “um homem que avança em idade e prepara-se para morrer com uma hidropisia
do coração3”.
Adriano escolheu passar parte de seu reinado viajando pelas várias pro-
víncias do Império. Historiadores, a exemplo de Edward Gibbon4, em sua obra
“A História do Declínio e Queda do Império Romano” (1776-1778), afirmam
que isso talvez refletisse o desejo de Adriano de estabelecer uma comunidade
global e ecumênica, fundamentada nos princípios da cultura helenista.
Mas seu quadro de insuficiência cardíaca congestiva não se deu por ser ele
um glutão. Sobre questões alimentares, ele discorre nas páginas 17 e 18:
“Comer em excesso é hábito romano. Eu, porém, fui sóbrio por volúpia. [...] Comer
um fruto é fazer entrar em si mesmo um belo objeto vivo, estranho e nutrido como nós pela
terra. É consumar um sacrifício no qual nós nos preferimos ao objeto. Jamais mastiguei a
crosta do pão das casernas sem maravilhar-me de que essa massa pesada e grosseira pudes-
se transformar-se em sangue, calor e, talvez, coragem”.
À página 19 ele escreve a respeito da carne, do vinho e do amor:
“A carne cozida nas noites das caçadas, possuía uma espécie de qualidade sacra-
mental, que nos levava muito longe, quase além das origens selvagens das raças. O vinho
inicia-nos nos mistérios vulcânicos do solo e nas riquezas minerais ocultas. Uma taça de
Samos5 degustada ao meio-dia, em pleno sol, ou, ao contrário, saboreada numa noite de
inverno, num estado de fadiga tal que nos permita sentir no fundo do diafragma seu fluxo
quente, sua abrasadora dispersão ao longo das artérias, é uma sensação quase sagrada e,
por vezes, demasiado forte para um cérebro humano”.
Experimentou rapidamente a abstinência de carne nas escolas de filoso-
fia, pois nesses lugares, conforme descreve, acontece se provar todos os métodos
de conduta. Ele fala, à página 21, sobre moral e cinismo:
“Os escrúpulos religiosos dos gimnosofistas6 e sua repugnância pelas carnes san-
grentas ter-me-iam impressionado, se não perguntasse a mim mesmo em que o sofrimento

3 Insuficiência cardíaca, descrita por vezes como insuficiência cardíaca congestiva.


4 Disponível em: https://www.britannica.com/biography/Edward-Gibbon/The-Decline-
-and-Fall Acesso: 27/08/2023.
5 Variedade de vinho produzida na ilha grega de Samos, localizada no Mar Egeu.
6 Do grego “gymnos,” que significa “nu,” e “sophistes,” que significa “sábio”. Conhecidos
por sua prática de viver em simplicidade e austeridade, incluindo o hábito de vestir-se com
pouca ou nenhuma roupa. Ascetas buscavam a sabedoria e a iluminação através de uma
vida de contemplação, meditação e estudo.

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da erva que se corta diferia essencialmente do sofrimento dos carneiros que se degolam.
Os cínicos e os moralistas concordam em colocar a volúpia do amor entre os prazeres ditos
grosseiros, como o prazer de comer e de beber, declarando-a, contudo, menos indispensável
do que aqueles, visto que eles podem perfeitamente prescindir dela. Do moralista tudo se
espera, mas espanto-me que o cínico se tenha enganado. Admitamos que uns e outros
receiem seus próprios demônios, seja porque lhes resistam, seja porque se lhes entreguem,
esforçando-se por aviltar o prazer a fim de lhes tirar o poder quase terrível, sob o qual su-
cumbem, e diminuir o estranho mistério no qual se sentem perdidos”.
Discorrendo sobre seu corpo que desvanecia, em tom de lúcida aceitação
da fragilidade humana, da necessidade de repouso, e da finitude, ele reflete, à
página 27:
“Começo a conhecer a morte; ela tem outros segredos, muito mais estranhos ainda
à nossa atual condição humana. A divindade desse grande restaurador, o sono, quer que
seus efeitos benéficos se exerçam sobre a pessoa adormecida sem qualquer indagação, da
mesma forma que a água carregada de poderes curativos não se preocupa com a identidade
de quem a bebe na nascente. Adormecidos, Caio Calígula e Aristides7 equivalem-se. Eu
próprio renuncio a meus vãos e importantes privilégios e já não me distingo do guarda
negro que dorme atravessado no umbral de minha porta. Que é a nossa insônia senão a
obstinação maníaca da nossa inteligência em manufaturar pensamentos e formular uma
série de raciocínios, silogismos e definições que lhe são próprios?”
Em outras palavras, o personagem nos diz que a existência humana dian-
te do sono e da morte, independentemente de seu status ou inteligência, compar-
tilha, ao final, da mesma experiência comum.
Na seção a seguir, Varius Multiples Multiformis, Adriano relata sentimen-
tos e experiências de sua formação e educação, e no que isso influenciou sua
vida como governador do Império Romano.

Varius Multiplex Multiformis (Diversificado, Múltiplo, Multiforme)

Neste momento do livro, a abordagem da autora enriquece sobremaneira


a narrativa, tornando o personagem mais acessível, pois permite melhor com-
preensão de aspectos da personalidade e das motivações do protagonista. Ele
relata na página 40:
“A convenção oficial exige que um imperador romano nasça em Roma, mas foi em
Itálica que nasci. Foi a esse país seco e, no entanto, fértil, que sobrepus mais tarde muitas
regiões do mundo. A convenção tem a vantagem de provar que as decisões do espírito e da
vontade transcendem as circunstâncias. O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em

7 Caio Júlio César Augusto Germânico, mais conhecido pelo apelido “Calígula”, foi um
Imperador romano que governou de 37 d.C. a 41 d.C. Aristides, também conhecido como
Aristides, o Justo, foi um político e estadista ateniense do século V a.C.

118
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos: minhas primeiras
pátrias foram os livros. Em menos escala, as escolas”.
Adriano redefine a seu modo, no trecho em questão, o conceito de pátria
e identidade, ao destacar que a essência de uma pessoa não está ligada a um
lugar físico de nascimento, mas à jornada do conhecimento e da autodescober-
ta. Quando ele menciona que as suas “primeiras pátrias foram os livros”, está
afirmando a importância da educação e do intelecto, que foram preponderantes
em sua formação.
Afirmando a ideia de que a identidade de alguém pode ser forjada por
meio da experiência intelectual, a despeito de onde tenha nascido, Yourcenar
(Adriano) nos convida a considerar o papel da educação e do pensamento crítico
na formação das identidades e na compreensão do mundo, pois somos mol-
dados, para além do local de nascimento, pelas ideias que exploramos e pelas
lições que aprendemos ao longo de nossa vida. Adriano nos encoraja, assim, a
valorizar o poder do conhecimento e da reflexão em nossa busca da compreen-
são de nós mesmos e do mundo que nos rodeia.
Sobre a escola, educação, sedução do conhecimento, ele afirma, à página
41, que “o maior dos sedutores não foi Alcebíades8, mas, Sócrates”. E ainda:
“Os métodos dos gramáticos e dos retóricos são talvez menos absurdos do que eu
imaginava, na época em que lhes estava sujeito. A gramática, com sua mistura de regras
lógicas e de uso arbitrário, propõe ao espírito jovem um antegosto do que lhe oferecerão
mais tarde as ciências da conduta humana, o direito ou a moral, todos os sistemas enfim,
em que o homem codificou sua experiência instintiva. Quanto aos exercícios de retórica,
em que éramos sucessivamente Xerxes e Temístocles, Otaviano e Marco Antônio, arreba-
tavam-me e eu me sentia um novo Proteu. Tais exercícios ensinaram-me a penetrar alter-
nadamente no pensamento de cada homem e a compreender que cada um se decide, vive
e morre segundo suas próprias leis. A leitura dos poetas surtiu efeitos mais perturbadores
ainda: não estou certo de que a descoberta do amor seja necessariamente mais deliciosa do
que a da poesia”.

8 Figura proeminente na Grécia Antiga, conhecida principalmente por seu envolvimento na


política ateniense durante a Guerra do Peloponeso, que ocorreu no século V a.C. Ele nas-
ceu por volta de 450 a.C. e faleceu em 404 a.C. Ele era notável por sua habilidade retórica
e carisma, o que o tornou um influente líder político.

119
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

Compreende-se que nos exercícios de retórica os alunos assumiam papéis


de figuras históricas como Xerxes e Temístocles, ou Otaviano e Marco Antônio9.
Isso parece tê-lo cativado. A leitura dos poetas é descrita por ele como algo mais
impactante, abrindo-lhe a mente para a profundidade emocional que rivaliza
com a experiência do amor. Adriano enfatiza, dessa forma, o poder da literatura
e da poesia em particular, em tocar a alma e despertar compreensão mais pro-
funda do mundo e das emoções humanas.
Como acréscimo representativo da importância que ele dispensava ao pa-
pel fundamental dos estudos, ele afirma, à página 71: “Um homem que lê, pensa ou
calcula pertence à espécie e não ao sexo”.
Sobre seu amor pela língua grega, ele escreve à página 42:
“Serei, até o final, reconhecido a Escauro10 por me haver iniciado dede jovem no
estudo do grego. Era menino ainda quando ensaiei pela primeira vez traçar com o uso do
estilete os caracteres de um alfabeto desconhecido: começava então minha grande emigração e
minhas longas viagens e o sentimento de uma escolha tão deliberada e tão involuntária como
a do amor. Amei essa língua por sua flexibilidade, sua elasticidade, sua riqueza de vocabu-
lário, no qual se atesta, em cada palavra, o contato direto e variado com a realidade. Amei-a
também porque quase tudo que os homens disseram de melhor foi em grego. Os sacerdotes
egípcios mostraram-me seus antigos símbolos, antes sinais do que propriamente palavras,
esforços muito antigos para classificar o mundo e as coisas, linguagem sepulcral de uma raça
extinta. Durante a guerra judaica, o Rabino Joshua explicou-me literalmente certos textos
dessa língua de sectários, tão obcecados pelo seu Deus a ponto de negligenciarem o lado
humano. Familiarizei-me no exército com a linguagem dos auxiliares celtas; lembro-me es-
pecialmente de certos cantos... Mas os jargões bárbaros valem, no máximo, pelas reservas de
palavras que eles acrescentam à linguagem humana e por tudo o que, sem dúvida, exprimi-
rão no futuro. O grego, ao contrário, tem atrás de si tesouros de experiências, abrangendo a
sabedoria do homem e a sabedoria do Estado. Dos tiranos jônicos aos demagogos de Atenas,
da pura austeridade de um Agésilas11 aos excessos de um Denys ou de um Demétrio, da

9 Xerxes I foi um Rei persa que comandou a Segunda Guerra Greco-Persa que tentou invadir a
Grécia em 480 a.C.; Temístocles, estrategista ateniense, desempenhou papel crucial na Batalha
de Salamina, onde a frota grega derrotou a frota persa de Xerxes. Otaviano, também conhecido
como Augusto, primeiro imperador romano a estabelecer o Império Romano após a queda
da República. Governou de 27 a.C. a 14 d.C.; Marco Antônio, político e general romano que
se aliou a Cleópatra e desafiou Otaviano em uma guerra civil, que resultou em sua derrota na
Batalha de Ácio em 31 a.C. O Proteu, mencionado por Adriano, era um deus marinho asso-
ciado à mudança e à transformação, conhecido por assumir diferentes formas. Considerado
profeta, para obter informações dele, os mortais precisavam prendê-lo ou enganá-lo. Proteu
está na “Odisseia” de Homero, ao ser requisitado por Menelau, rei grego de Esparta, marido
de Helena, quando do rapto desta por Páris, fato que desencadeou a Guerra de Troia.
10 Político e general romano que viveu no século I a.C.
11 Rei de Esparta (399-360 a. C.), considerado um dos mais brilhantes líderes militares da
Antiguidade.

120
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
traição de Demarato à fidelidade de Filopemen12, tudo que cada um de nós pode tentar
para prejudicar os seus semelhantes ou para servi-los já foi feito, pelo menos uma vez, por
um Grego. Sucede o mesmo com as nossas escolhas pessoais: do cinismo ao idealismo, do
ceticismo de Pirro 13aos sonhos sagrados de Pitágoras14, nossas recusas ou nossos consenti-
mentos já existiram, nossos vícios e nossas virtudes têm modelos gregos. Nada se compara
à beleza de uma inscrição latina votiva ou funerária: umas poucas palavras gravadas sobre
a pedra resumem com majestade impessoal tudo o que o mundo necessita saber de nós. Foi
em latim que administrei o império; meu epitáfio será talhado em latim sobre a parede do
meu mausoléu, às margens do Tibre15, mas em grego, terei vivido e pensado”.
Chega a ser comovente a profunda apreciação do Imperador pela cultura
grega, sua conexão com a língua e a importância dela em sua vida e governança.
Não poupando elogios, ele reconhece o valor de todas as línguas, mas destaca que
apenas o grego consegue bem descrever a profundidade da sabedoria humana.
Nesse sentido, Marguerite Yourcenar nos oferece uma visão do homem,
que revela sua complexidade, para além de seu papel político. Ele é alguém que
questiona as convenções e os padrões estabelecidos; reflete sobre a própria jor-
nada, busca entendimento mais profundo de si e do mundo ao redor. Alguém
em busca de significado e sabedoria.
O trecho em que ele discorre sobre a razão, é um encantador exemplo que
Yourcenar entrega na seção Varius Multiplex Multiformis, à página 92:
“É um erro ter razão cedo demais. Mais do que isso, duvidava de mim mesmo e
sentia-me culpado daquela forma baixa de incredulidade que nos impede de reconhecer
a grandeza de um homem que conhecemos excessivamente. Esquecia-me de que alguns
homens alteram os limites do Destino, ou por outra, mudam a História”.
Vê-se que a maturidade trouxe ao Imperador compreensão mais profun-
da da vida e das ações humanas. Ele também duvidou de si mesmo, nada mais
humano, afinal!
Sabemos que a reflexão e os questionamentos nos levam a explorar novos

12 Denis, variante do nome Dionísio, na mitologia grega era o deus do vinho, das festas, do
teatro e da fertilidade. Mas pode ser uma possível referência a Dionísio de Halicarnasso, his-
toriador e retórico grego que viveu durante o período de Adriano, conhecido por suas obras
sobre a história de Roma e sua retórica. Demarato: rei de Esparta no século VI a.C. Filope-
men, cujo nome completo era Tito Quíncio Flaminino Filopemen, foi um general e estadista
romano que viveu no século II a.C. Ele é conhecido por suas campanhas militares na Grécia
e seu papel na promoção da liberdade das cidades gregas contra a dominação macedônica.
13 Pirro: rei do Épiro, região no noroeste da Grécia, que viveu no século III a.C.
14 Pitágoras: filósofo, matemático e fundador de uma escola de pensamento chamada pi-
tagorismo. Viveu na Grécia Antiga por volta do século VI a.C. Famoso por seu teorema
geométrico, o Teorema de Pitágoras, que relaciona os lados de um triângulo retângulo.
15 Rio que corta Roma. É mencionado em várias obras literárias e artísticas ao longo dos
séculos, como na “Eneida” de Virgílio; no “Decameron” de Boccaccio e em”A Divina
Comédia”, de Dante Alighieri.

121
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

caminhos, a buscar respostas, a refletir sobre nossas crenças e ações. A dúvida


pode estar ligada a certa vulnerabilidade emocional. Mas a superação dela pode
levar a um senso mais profundo de autoconhecimento e autoconfiança. Vemos
que com o tempo o personagem passa a valorizar mais as pessoas que o cercam,
e lança dúvida sobre o próprio legado.
A seção seguinte, Tellus Stabilita se concentra em questões de estabilidade
do Império e em eventos políticos que moldaram seu reinado.

Tellus Stabilita (Terra Pacificada)

A visão política de Adriano, conforme retratada por Yourcenar na pre-


sente seção é reveladora de um líder consciente dos limites do Império e das res-
ponsabilidades como governante. As políticas internas incluem suas tentativas
de consolidar o poder imperial e equilibrar interesses entre o Senado Romano
e os súditos. A abordagem é marcada pela moderação e pelo desejo de evitar
conflitos desnecessários. Ele escreve:
“Minha vida havia entrado em ordem, mas não o Império [...]. Eliminei de vez as
conquistas perigosas: não somente a Mesopotâmia, onde não nos teríamos podido manter,
como também a Armênia, demasiado excêntrica e demasiado longínqua, que só conservei
na categoria de Estado Vassalo” (p. 103).
A decisão de abandonar conquistas distantes e potencialmente problemá-
ticas demonstra abordagem pragmática em relação ao poder que detém, pois
a expansão territorial excessiva poderia sobrecarregar os recursos do Império,
criando problemas de administração e segurança.
Ao manter a Armênia como um Estado vassalo ele demonstra abordagem
flexível à governança, permitindo que territórios mais distantes mantivessem
certa autonomia, sob a suserania imperial, o que também pode ser visto como
estratégia para minimizar conflitos, mantendo o equilíbrio de poder na região, o
que denota preocupação com a estabilidade e a eficiência na gestão do Império.
Em seguida, sobre a paz, ele declara: “A paz era minha meta, mas não ab-
solutamente meu ídolo” (p. 105), demonstrando que estaria disposto a enfrentar
desafios, se necessário, para manter a integridade e a segurança do Império.
Numa demonstração da preocupação em legar ao mundo identidade pes-
soal sólida, ele declara à página 112:
“Queria que meu prestígio fosse pessoal, colado à minha pele, imediatamente men-
surável em termos de agilidade mental, de força, ou de atos realizados. Os títulos, se vies-
sem, viriam mais tarde, acrescidos de outros títulos, testemunhos de vitórias mais secretas,
às quais sequer ousava pretender ainda. Restava-me, no momento, a preocupação de me
tornar ou de ser o máximo possível Adriano”.
Percebe-se aí o desejo de reconhecimento com base nas habilidades

122
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
e méritos individuais, demonstrando sua preferência por ganhar respeito por
meio de ações e realizações tangíveis, em vez de depender apenas dos títulos ou
posições. A menção à “agilidade mental” e “força” destaca a importância que
tais aspectos possuem em sua vida. Nesse sentido, o Imperador expressa vonta-
de de ser autêntico e único; ele preocupa-se em ser verdadeiro consigo mesmo,
ressaltando a importância de manter a identidade de seu legado.
Numa reflexão comovente com respeito ao tempo em que viveu, o excerto
disposto à página 119, demonstra perspectiva profundamente reflexiva e otimista:
“E agradecia aos deuses por me terem concedido viver num tempo em que a tarefa
que me coube consistia em reorganizar prudentemente o mundo, e não em extrair do caos
uma matéria ainda informe, ou em deitar-me sobre um cadáver para tentar ressuscitá-lo.
Felicitava-me pelo fato de que nosso passado tivesse sido bastante antigo para nos fornecer
exemplos, e não bastante pesado para nos esmagar; felicitava-me também pelo fato de que
o desenvolvimento das nossas técnicas tivesse atingido tal ponto que facilitasse a higiene
das cidades e a prosperidade dos povos sem os excessos que ameaçariam sobrecarregar o
homem com aquisições inúteis; que nossas artes, árvores um tanto fatigadas pela abun-
dância dos seus dons, fossem capazes ainda de produzir alguns frutos deliciosos. Alegrava-
me que nossas religiões vagas e veneráveis, decantadas de toda intransigência ou de todo
ritual selvagem, nos associassem misteriosamente aos sonhos mais antigos do homem e da
terra, sem, contudo, proibir as explicações laicas dos fatos, numa visão racional da con-
duta humana. Agradava-me enfim que estas mesmas palavras Humanidade, Liberdade
e Felicidade não tivessem ainda sido desvalorizadas pelo excesso de aplicações ridículas”.
Expressando apreço, o excerto transmite visão positiva de mundo, enfati-
zando a importância da estabilidade, da sabedoria adquirida com o passado, do
equilíbrio e moderação entre avanços técnicos, da coexistência entre espiritua-
lidade e racionalidade e valor dos ideais humanistas, denotando gratidão pelo
contexto histórico e cultural em que se encontra.
Com relação ao campo do direito, à página 120, o Imperador é mais cé-
tico. Adriano revela desconfiança em relação à eficácia das leis, numa visão
realista sobre a capacidade de controle do comportamento humano. Ele escreve:
“Devo confessar que acredito pouco nas leis. Quando demasiado duras são trans-
gredidas com razão. Quando muito complicadas, o engenho humano encontra facilmente
o meio de escapar por entre as malhas dessa rede frágil e escorregadia. O respeito pelas leis
antigas corresponde ao que a piedade humana tem de mais profundo; serve também de tra-
vesseiro à inércia dos juízes. As leis mais antigas participam da selvageria que elas mesmas
pretendem corrigir; as mais veneráveis são ainda um produto da força. A maioria das nos-
sas leis penais não atinge, talvez felizmente, senão uma pequena parte dos culpados; nos-
sas leis civis jamais serão bastante flexíveis para se adaptar à fluída variedade dos fatos.
Mudam menos rapidamente do que os costumes; perigosas quando estes as ultrapassam,

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

o são ainda mais quando pretendem precedê-los. Contudo, desse amontoado de inovações
perigosas que oferecem tantos riscos, ou de rotinas obsoletas, surgem aqui e ali, como na
medicina, algumas fórmulas aproveitáveis. Os filósofos gregos ensinaram-nos a conhecer
um pouco melhor a natureza humana: nossos melhores juristas vêm trabalhando há algu-
mas gerações visando ao bom senso. Eu mesmo efetuei algumas dessas reformas parciais
que são as únicas duradouras. Toda lei muitas vezes transgredida é má: cabe ao legislador
revogá-la ou substituí-la antes que o desprezo por uma disposição insensata não se estenda
a outras leis mais justas. Propus-me como meta uma anulação prudente de leis supérfluas
e a promulgação, com firmeza, de um pequeno grupo de decisões sábias. Parecia chegado o
momento de reavaliar, no interesse da humanidade, todas as prescrições antigas”.
Nesse sentido, numa mostra de visão sobre as complexidades inerentes
ao sistema legal, ele reconhece os desafios e advoga por mudanças que sejam
capazes de garantir justiça social.
Yourcenar o representa a seguir como profundo apreciador dos livros e
sabedor da importância das bibliotecas, à página 131:
“Fundar bibliotecas era construir celeiros públicos, aprovisionar reservas contra
o inverno do espírito cuja aproximação eu podia prever mesmo contra minha vontade.
Tenho reconstruído muito: é uma forma de colaborar com o tempo sob seu aspecto de pas-
sado, é preservar ou modificar seu espírito, fazer dele uma espécie de reserva para o futuro;
é reencontrar sob as pedras o segredo das origens. Nossa vida é breve; falamos sem cessar
dos séculos que nos precederam ou daqueles que virão depois de nós como se uns e outros
nos fossem totalmente estranhos; entretanto, tocava neles ao remanejar as pedras. Aquelas
paredes que eu escorava estão quentes ainda do contato dos corpos desaparecidos; mãos que
ainda não existem acariciarão um dia estes fustes de coluna. Quanto mais meditei sobre
minha morte, e sobretudo sobre a morte de um outro, mais tenho desejado anexar às nossa
vidas esses prolongamentos quase indestrutíveis”.
A bonita metáfora do “inverno do espírito” sugere períodos de ignorância
ou esquecimento. O personagem entende que a sabedoria e o conhecimento são
recursos valiosos que devem ser protegidos da decadência cultural, como forma
de manter viva a herança intelectual da humanidade.
Sobre a importância da conexão entre passado e futuro, o Imperador deseja
anexar à vida humana tais “prolongamentos quase indestrutíveis” que as bibliote-
cas representam. Ele percebe o conhecimento como uma forma de imortalidade,
que transcende ao tempo e continua a influenciar e enriquecer a humanidade ao
longo das eras. As bibliotecas são “guardiãs do conhecimento e da cultura”.
Ao expressar-se sobre a arte e a sua preferência pela representação do ser
humano como tema central, eis alguns comentários seus a respeito, à página
135, a seguir.
“Meus contatos com as artes bárbaras levaram-me à conclusão de que cada raça

124
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
se limita a certos temas, a certos modos, entre os modos possíveis; cada época opera uma
triagem entre as possibilidades oferecidas a cada raça. Vi no Egito deuses e reis colos-
sais; encontrei no pulso dos prisioneiros sármatas braceletes que repetem ilimitadamente
o mesmo cavalo a galope ou as mesmas serpentes que se entredevoram. Mas nossa arte
(quero dizer, a arte dos Gregos) preferiu limitar-se ao homem. Nós, somente nós, soubemos
mostrar a força e a agilidade latentes num corpo imóvel; nós, só nós, transformamos uma
fronte lisa no equivalente a um pensamento sábio. Sou como nossos escultores: o humano
me satisfaz plenamente; nele encontro tudo, até o eterno. A floresta, tão amada para mim
se resume toda inteira na imagem do centauro; a tempestade nunca respira melhor do que
nas echarpes enfunadas das deusas marinhas. Os objetos naturais, os emblemas sagrados
nada valem se não forem carregados de associações humanas: a pinha fálica e fúnebre, a
taça com as pombas que sugere a sesta junto às fontes, o grifo que arrebata para o céu o
bem-amado”.
Observa-se que ele entende a arte como forma de capturar a essência da
humanidade, por meio de objetos e símbolos que ganham significado através de
associações com a experiência humana.
No trecho a seguir, à página 148-149, Yourcenar faz uma reflexão sobre
a harmonia entre a divindade e a humanidade na vida do Imperador romano e
sua compreensão da divindade:
“Vislumbrava de outro modo meu relacionamento com o divino [...]. Eu era um
dos segmentos da roda, um dos aspectos dessa força única empenhada na multiplicida-
de das coisas, água e touro, homem e cisne, falo e cérebro simultaneamente, Proteu que
ao mesmo tempo é Júpiter. Foi por essa época que comecei a sentir-me deus. Não faças
confusão: era sempre, era mais que nunca o mesmo homem nutrido com os frutos e os
animais da terra, devolvendo ao solo os resíduos desses alimentos, sacrificando ao sono a
cada revolução dos astros, inquieto até a loucura quando faltava por muito tempo a cálida
presença do amor. Minha força, minha agilidade física ou mental eram cuidadosamente
sustentadas por uma ginástica toda humana. Mas que dizer senão que tudo isso era divi-
namente vivido? Aos quarenta e quatro anos, sentia-me sem impaciência, seguro de mim,
tão perfeito quanto me permitia minha natureza. Eterno. Compreendo bem que se trata,
neste caso, de uma concepção do intelecto: os delírios, se é preciso que lhes sejam dado tal
nome, vieram mais tarde. Era deus simplesmente porque era homem”.
Adriano não entende espiritualidade e divindade como algo separado ou
transcendental, mas como elementos intrínsecos à existência humana e da com-
plexidade do mundo.

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“PEQUENA ALMA TERNA FLUTUANTE16”

Em seu leito de morte ele compôs o poema Animula Vagula Blandula, que
dá nome à primeira seção na obra de Yourcenar:

“Animula vagula, blandula,


Hospes comesque corporis
Quae nune abibis in loca
Pallidula, rígida, nudula,
Nec, ut soles, dabis iocos...”

“Pequena alma terna flutuante


Hóspede e companheira de meu corpo,
Vais descer aos lugares pálidos duros nus
Onde deverás renunciar aos jogos de outrora...”
P. AElius Hadrianus, Imp.

Lucidez e aceitação refletem o esperar da transição inevitável. É claro o


tom de despedida, de alguém que está prestes a embarcar em uma jornada de
transformação e novas descobertas. A alma, companheira inseparável, se prepa-
ra para o desconhecido.
A imagem “descer aos lugares pálidos duros nus” encerra metáfora resig-
nada de alguém prestes a ser submetido a desafios, complexidades e responsabi-
lidades típicas de outra existência.
Palavras como “pálidos,” “duros”, “nus”, parecem, a princípio, austeras,
ao sugerir que a jornada pode não ser fácil, retratando alusões a mistérios so-
bre “o não aqui”. Mas a consciência de ser “pequena e terna”, representando
delicadeza e vulnerabilidade, transforma a iminência do morrer em experiência
subjetiva poética tocante.

CONCLUSÕES FINAIS

Este texto ofereceu uma análise apreciativa de alguns trechos de


“Memórias de Adriano”, examinando momentos-chave na jornada de um dos
imperadores mais icônicos da história romana. Nosso objetivo foi nos aproxi-
mar da narrativa de Marguerite Yourcenar, que habilmente mergulha nas com-
plexidades da mente e do coração de seu personagem, destacando aspectos mais
humanos do protagonista.
Marguerite Yourcenar nos brinda com uma experiência literária que

16 O poema abre a primeira seção do livro.

126
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
transcende a mera narrativa histórica, nos guiando por uma jornada introspec-
tiva nas profundezas da psique humana. Através de sua obra, ela não apenas
desvenda os eventos de um passado distante, mas também expõe os desejos, me-
dos e incertezas que são inerentes à condição humana, ressaltando a perenidade
desses sentimentos ao longo do tempo.
Dessa forma, esta obra de ficção autobiográfica impecável, com sua mes-
tria na recriação do passado e a maneira pela qual suas palavras transcendem as
barreiras do tempo, nos convoca à reflexão sobre questões universais. Por meio
de sua narrativa exemplar, ambientada em uma época notável, e com um per-
sonagem que é amplamente considerado como um dos melhores exemplos dos
atributos do Humanismo antigo, somos instigados a explorar temas atemporais
que ecoam ao longo da história.

Adendo

Devido a limitações de diretriz de extensão de texto na presente obra,


optei por destacar trechos das três primeiras seções do livro.
Os capítulos seguintes, Saeculum Aureum, permite ao leitor adentrar em
outros momentos do reinado do Imperador Adriano e conhecer realizações no-
táveis durante seu império. A seção oferece um magnífico vislumbre das con-
quistas e feitos que moldaram sua visão de liderança e governo.
Na seção Disciplina Augusta o foco está nos valores e na filosofia de gover-
no de Adriano. Ele compartilha suas estratégias para equilibrar o poder, revelan-
do sua compreensão do papel de Imperador e líder.
Em Patientia, Adriano explora as complexidades da liderança e da vida,
destacando como a virtude da paciência desempenhou papel fundamental em
sua abordagem para enfrentar desafios e adversidades, o que nos fornece visão
mais profunda de sua personalidade e de sua capacidade de resistência.
O Caderno de notas das Memórias de Adriano serve como apêndice que
oferece informações adicionais sobre a meticulosidade da pesquisa e sobre o
processo de escrita de Marguerite Yourcenar.
A seção Nota, à página 317, fornece esclarecimentos que contribuem
para a compreensão do contexto histórico, bem como da personalidade do
personagem.
Essas derradeiras seções enriquecerão ainda mais a compreensão da vida
e do pensamento de Adriano. A estrutura fragmentada do livro permite que os
leitores explorem diferentes facetas do Imperador e da época em que ele viveu,
de maneira contextualizada, sem perdas de referentes.

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

REFERÊNCIAS
YOURCENAR, Marguerite. Memórias de Adriano: seguido do caderno de
notas das “Memórias de Adriano” e da Nota / Marguerite Yourcenar; tradu-
ção de Martha Calderaro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, 325 p. (Cole-
ção Grandes romances).

128
EIXO IV

MEMÓRIAS LITERÁRIAS,
EDUCAÇÃO E DIREITO
MEMÓRIAS LITERÁRIAS: O SIGNIFICADO DO
ENSINO DA LEITURA E DA ESCRITA NA
VIDA ESTUDANTIL
Débora Jesus de Queiroz1
Cirlene Pereira dos Reis Almeida2

Às mestres da educação que contribuíram fortemente na minha aprendizagem: Professora


Creuza, do 1º ano do Ensino Fundamental I; Professora Claicir de Jesus, do 5º
ano do Ensino Fundamental I; Professora Cleusa Guimarães, da 2º série do
Ensino Médio (in memorian); Professora Valéria Mônica Cotrim, do 3º semestre da
Licenciatura. Os meus sinceros agradecimentos.

INTRODUÇÃO

Esta escrita tem como foco relatar breves acontecimentos das descobertas
do gosto pela leitura e escrita, de como o ensino de uma forma mais significativa e
formativa podem ser o empurrãozinho para o hábito de ler e o gosto pela escrita.
Interagindo com falas de autores que reforçam o quanto é importante esse aprendi-
zado na tenra infância, focando em conceitos de Lev Vygotsky (Desenvolvimento
e Aprendizagem) e David Ausubel (Aprendizagem Mecânica e Significativa).
No mesmo sentido, pontuar questões relevantes que representam o sig-
nificado base, que é a importância da escrita e leitura em todas as fases da vida
humana, prestigiando aqui os mestres que em seus pequenos gestos mediadores
1 Licenciatura Plena em Pedagogia (2021), Pós Graduada em Gestão Escolar e Coordenação
Pedagógica (2022), Pós Graduando em Docência da Educação Profissional e Tecnológica
(2023). Pós graduanda em Alfabetização e Letramento (2024). Professora do 2º Ano do En-
sino Fundamental I. Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/4825828201731085. E-mail: deboraje-
[email protected].
2 Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás; Mestre em Letras
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Pós-Graduada em Gramática,
Gestão de Sala de Aula em Nível Superior, Orientação Educacional. Graduada em Letras
pela Universidade Católica de Brasília. Graduada em Pedagogia pelo Instituto Brasileiro
de Educação. Professora e Coordenadora no Centro Universitário de Desenvolvimento do
Centro-Oeste (UNIDESC). Membro do Núcleo docente Estruturante do mesmo curso.
Professora efetiva da Universidade Estadual de Goiás (UEG) nos cursos de Direito e Peda-
gogia. Professora da Secretaria de Educação de Valparaíso de Goiás. Link Lattes: http://
lattes.cnpq.br/5384051819016083. E-mail: [email protected].

130
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
e significativos puderam florescer mais uma entre tantos leitores e escritores da
sociedade brasileira, bem como, elencar como está o comportamento da socie-
dade brasileira com seu hábito de ler e apresentar ações que fazem a diferença
para o ensino e aprendizado voltado para a leitura e a escrita.
No tópico ERA UMA VEZ... COMO TUDO COMEÇOU! é descrito um
relato de como foi essa descoberta e as fases que determinaram um aprendizado
significativo, até os tempos atuais, com as evoluções, reflexões e percepções, em
momentos e contextos em que a autora descobriu e continua a descobrir, descor-
tinar horizontes, em toda a sua trajetória, além de abordar o ensino da literatura
e a elaboração de texto, acontecimentos em sala de aula que apresentaram, de
forma significativa e formativa, o ensino e aprendizado, bem como a didática e
a interação de professor e aluno.
O segundo momento, O HÁBITO DE LER- PESQUISAR E LEITURA
E ESCRITA E SEU ENSINO NA PRÁTICA, respectivamente, são dedicados
à descrição de dados relevantes sobre o hábito de ler da população brasileira no
ano 2019, trazendo reflexões e apontamentos de mediações, para além das rea-
lidades que a educação enfrenta.
O terceiro tópico, TECNOLOGIAS MIDIÁTICAS E A EDUCAÇÃO
MEDIADORA, volta-se às tecnologias como ferramentas de aprendizagem,
apresentando a visão da autora mediante sua experiência e olhar crítico sobre
as ferramentas tecnológicas voltadas ao ensino e aprendizagem escolar, apresen-
tando autores que dialogam e defendem o uso correto e formas de manuseio,
práticas e intervenções para o ensino em sala de aula.
Nas considerações finais, reiteramos a importância da escrita e da leitura,
ligando pontos que foram descritos ao longo do texto, no intuito de reforçar e
propagar tais feitos, que merecem ser amplamente divulgados.

ERA UMA VEZ... COMO TUDO COMEÇOU!

Estudar para muitos pode ser cansativo ao longo da jornada, mas para
quem está em seus primeiros dias de aula é totalmente incrível, nos meus primei-
ros anos sendo mais específica na 1º série do ensino fundamental I, em uma aula
de Português, a professora observa que uma aluna não consegue ainda ler mas
consegue codificar as letras para responder a atividade no livro sobre a raposa e
a uva. Após esse ocorrido a professora pergunta se a aluna aprendeu a ler, onde
ela prontamente responde que não, a professora chama o pai dessa aluna para
uma conversa e dias depois em casa o pai a presenteia com gibis da Turma da
Mônica sendo esse fator crucial para seu aprendizado prazeroso com a leitura.
Desde então, mensalmente ele a presenteia com os gibis.
Sobre esse breve relato desde a observação da professora mediante o

131
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

aprendizado da aluna e sua ação para sua mediação, se relaciona a perspectiva


de didática e os aspectos cognitivos da interação de professor e aluno que pela
visão de Libâneo, sintetiza que:
Para atingir satisfatoriamente uma boa interação no aspecto cognitivo é
preciso levar em conta o manejo dos recursos da linguagem (variar o tom
de voz, fala com simplicidade sobre temas complexos): conhecer bem o
nível de conhecimentos dos alunos: ter um bom plano de aula e objetivos
claros: explicar aos alunos o que se espera deles em relação a assimilação
da matéria (Libâneo, 1990 p. 250).

Essa breve ação mediadora transformou e melhorou o aprendizado da


aluna que após essa atitude passou a ler mais e mais gibis, a medida em que foi
crescendo modificou seu gênero literário, já em seu infanto-juvenil passou a ler
livros de Pedro Bandeira3 entre outros autores, mas volta e meia se dedicava as
obras desse escritor do qual se identificava muito com suas obras literárias.
Ler não é procedimento natural, porque supõe um aparato, constituído pela
instrução recebida na escola e fora dela: mas a leitura, sim, é atitude simples,
porque, no momento de sua prática, invocam-se os conhecimentos adquiri-
dos, e na sua reelaboração se faz espontaneamente (Zilberman, 2001 p. 25).

Nos anos finais do Ensino Fundamental I no 5º ano especificamente a


professora de matemática com fama de brava e disciplinadora, em seu primeiro
dia ao exigir um caderno de 15 matéria para somente a sua disciplina, foi um
momento de muita tensão mas que ao decorrer dos meses se mostrou extre-
mamente necessário e significativo, mesmo utilizando em suas aulas a apren-
dizagem mecânica, houve também breves momentos para a aprendizagem sig-
nificativa, principalmente quando os alunos superavam os desafios existentes
na disciplina, as explicações que haviam aberturas para perguntas e erros dos
alunos, onde a professora com muita sabedoria conduzia de forma mediadora
mesmo sendo brava e disciplinadora ela conseguia em sua maioria ensinar a
matemática. A sua forma de ensinar encaixa perfeitamente com o conceito de
David Ausubel sobre a aprendizagem mecânica.
Ausubel diz que a aprendizagem mecânica é importante, necessária e ine-
vitável para os casos de conceitos inteiramente novos para o aluno, entre-
tanto, após esse primeiro momento de ineditismo, ela passará a se transfor-
mar em uma aprendizagem significativa, desde que o aluno se cerque de
explicações e saia da memorização (Monteiro, 2012 p. 119).

A sua preocupação com a aprendizagem do aluno buscando que apren-


dessem o conteúdo de verdade principalmente o que era proposto em sala de
aula vai em alinhamento no que defende Carvalho (2009), onde a aprendizagem

3 Pedro Bandeira de Luna escritor brasileiro de livros infanto-juvenis.

132
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
requer interpretação, pois é importante relacionar novas informações com co-
nhecimentos prévios e experiências pessoais. A diversidade na sala de aula pro-
move interpretações diferentes, atendendo às necessidades individuais dos alu-
nos. Em vez de tentar eliminar as diferenças, é fundamental aceitá-las e usá-las
como um recurso para o grupo. Essa ação foi bem trabalhada em sala durante
todos os semestres, sendo evidente nas conversas informais entre colegas de sala
que estavam de fato aprendendo a matemática.
Já na fase de adolescência se dedica a biografias e romances de banca
de revistas, no Ensino Médio novamente nas aulas de Português a professora
utiliza uma metodologia significativa, para ensinar a Literatura Brasileira em
suas aulas, utilizando as rodas de conversa, resumos expandidos e uma vasta
opção de leitura literária, bem como a escrita autônoma de cada aluno sobre
seu entendimento da obra e do autor, aulas expositivas com seminários, debates
e apresentações orais. Dando um novo significado e aprendizagem dos alunos,
onde em sua maioria descreviam o seu entendimento real da obra.
Monteiro (2012) ao descrever a aprendizagem sob a visão de Vygotsky
relata que a aprendizagem é fundamental para o desenvolvimento, destacando a
importância do papel do professor nesse processo. A aprendizagem e o desenvol-
vimento ocorrem por meio da internalização, que é o processo pelo qual o sujei-
to interage com outras pessoas, seja de forma interpessoal ou intrapsíquica, sen-
do que nessa interação, o indivíduo constrói o conhecimento, que é produzido
sócio culturalmente, tornando-o parte de sua estrutura interna ou intrapessoal,
o processo de internalização é responsável por transformar o conhecimento ex-
terno em parte integrante do indivíduo.
Já na fase acadêmica duas professoras trazem inquietações em suas aulas,
uma no sentido do entendimento voltado para a didática e a simbologia no con-
texto da tenra infância, trazendo em suas aulas o conceito de debates, leituras,
ditados e escritas como resenhas, tópicos, resumos e seminários criativos onde
os discentes necessitavam estudar e apresentar o seu real aprendizado do tema,
a caracterizando como uma mediação simbólica.
Monteiro (2012), ao enfatizar na visão de Vygotsky o conceito de me-
diação simbólica nos mostra que existe um mundo abstratamente construído
em nossa mente, possibilitado pelo acesso à cultura e às interações com outras
pessoas. Essa mediação permite que as representações culturais sejam transpor-
tadas para nossa linguagem, pensamento e relações com os outros, demonstran-
do a capacidade de atribuir significados simbólicos que enriquecem e moldam
nossa compreensão do mundo ao nosso redor.
A outra professora apresenta a importância da literatura Infantil fugindo
do contexto padrão, apresentando outras obras e autores que também seguem

133
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

a linhagem da literatura mas que são poucos apresentados e estudados as suas


obras, com aulas criativas em que os discentes aprendem a exercer sua parte lite-
rária com poemas, versos, arte e diálogos abertos. Conhecendo que a literatura
infantil vai muito além dos contos em que são rotulados como o padrão.
Ainda pontuado a visão David Ausubel, Monteiro (2012) descreve a im-
portância da aprendizagem cognitiva estar centrada na valorização dos conheci-
mentos prévios dos alunos. Dar atenção especial a esses conhecimentos pode ser
crucial para melhorar a qualidade do ensino e, consequentemente, do trabalho
final de ensinar. Reconhecer e utilizar os conhecimentos prévios dos alunos é
uma abordagem significativa para potencializar o processo de aprendizagem.
Por fim as professoras relatadas em todo o texto se enquadram naquilo
que Libâneo descreve sobre os aspectos sócio- emocional da interação entre pro-
fessor e aluno.
O professor estabelece objetivos sociais e pedagógicos, seleciona e orga-
niza os conteúdos, escolhe métodos, organiza a classe. Entretanto, essas
ações docentes devem orientar os alunos para que respondam a elas como
sujeitos ativos e independentes. A autoridade deve fecundar- a relação
educativa e não cerceá-la (Libâneo, 1990 p. 251)

Ao analisar toda a trajetória estudantil da autora observa se que se passa


por todas as fases da leitura sendo elas de acordo com Perissé (2005) começa
pela recreativa aquela que é livre de preocupações, de narrativas leves, um pas-
seio entre páginas abertas. Segue para a funcional que passa ter anotações perti-
nentes e acompanhadas de pequenos resumos. Vai para a reflexiva onde obtém
uma alto reflexão tendo uma profundidade nos textos escolhidos. E chega na
inspiradora que é quando utilizada para produzir novos textos.
Ações mediadoras, significativas e direcionadas contribuíram para uma
aprendizagem que contribuem para toda a vida, pois foi feita como quando um se-
meador semeia a semente na terra, quando regada e cuidada, cresce forte e produz
frutos que serão colhidos e levados para todo o campo. Como os valores que são
ensinados e enraizados em nosso caráter, o que aprendemos com prazer e signifi-
cado também é levado para toda uma vida, bem como o hábito de ler e escrever.
A motivação dos alunos para a aprendizagem através de conteúdos signi-
ficativos e compreensíveis para eles, assim como de métodos adequados
é fator preponderante na atitude de concentração e atenção dos alunos.
Se estes estiverem envolvidos nas tarefas e dimensão as oportunidades de
distração e de indisciplina (Libâneo, 1990 p.253)

Hoje em dia essa jovem trabalha a disciplina de Língua Portuguesa traz


consigo a importância de passar a informação de forma clara e objetiva, mas
sempre levando em consideração o conhecimento prévio de seus alunos, dando

134
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
espaço para suas dúvidas, dialogando sobre seus questionamentos, ouvindo suas
ideias e sonhos (por que não?), enfatizando a importância da leitura, principal-
mente da nossa riquíssima literatura brasileira, fornecendo lhes feedbacks de
suas produções textuais, mas ainda ao analisar em âmbito geral se depara com
uma juventude sem interesse em ler e escrever, tema esse que será descrito no
próximo tópico.

O HÁBITO DE LER-PESQUISAR

Ao trabalhar a disciplina de português que engloba Leitura e Interpretação


de texto (Redação), Gramática e Literatura e na realização das pesquisas para
organizar o material didático para a disciplina de Redação me atentei ao fato
de que sempre foi presente na disciplina o desinteresse em ler e escrever, não
em âmbito geral mas uma parte considerada em toda a vida estudantil houve
colegas que reclamavam sobre o porquê e para quê escrever ou ler algo que era
solicitado nas aulas de português.
Portanto, ao pesquisar principalmente em foco com as redações do ENEM4
foi observado o grande número de redações zeradas (95.788 redações), sendo que
em branco (43.391), fuga do tema (28.408), cópia do texto motivador (7.551),
texto insuficiente (6.215), não atendimento ao tipo textual (4.865), parte desconec-
tada (2.818) outros motivos (2.540), redações nota mil, somente 22 dos inscritos.
Observando esse panorama é preciso elencar pontos extremamente re-
levantes sobre o hábito de ler e escrever do brasileiro e para isso ao pesquisar
sobre, foram encontrados dados interessantes realizado no Brasil no ano de 2019
pelo Instituto Pró- Livro5 que verifica vários fatores sobre esse hábito peculiar
além de várias outras informações pertinentes ao tema.
Baseando se nos dados mais recentes no ano de 2019 e em pontos espe-
cíficos sobre a leitura e escrita como gênero, as barreiras para a leitura e o que
gostam de fazer em seu tempo livre. A pesquisa é bem mais extensa do que se
apresenta aqui, o foco principal a ser relatado está relacionado exclusivamente
no hábito em geral, independente de gênero literário, classe social, raça ou prefe-
rência de autores, sendo esses quesitos apresentados na pesquisa no geral.
Sobre a questão de gênero as mulheres leem mais que os homens, sendo
elas 54,2% e eles 45,9%; Crianças entre 05 a 10 anos são 11,7%; infanto-juvenil
de 11 a 13 anos 6,5%; adolescentes entre 14 a 17 anos 9,8%; jovens entre 18 a 24
4 Dados do ENEM 2021. Disponível em: <https://educacao.uol.com.br/noticias/2022/03/17/
22-nota-maxima-quase-96-mil-zeraram-redacao-enem-2021.htm> Acesso em 24 julho de
2023.
5 Pesquisa realizada pelo Instituo Pro- Livro em parceira com Itaú Cultural. Disponível
em:< https://www.prolivro.org.br/5a-edicao-de-retratos-da-leitura-no-brasil-2/a-pesqui-
sa-5a-edicao/> Acesso em: 19 de julho de 2023.

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

anos 13,8%; adultos 25 a 29 anos 8,7%; adultos de 30 a 39 anos 18,2%; de 40 a


49 anos 12,2%; 50 a 69 são 16,6% e de 70 ou mais 2,7%.
As barreiras que são enfrentadas para ler 47% dos entrevistados afirmam ser
a falta de tempo, entre outras como preferir outras atividades, não ter paciência,
por não gostar, pelas dificuldades em ler, a falta de lugar apropriado entre outros.
Quando questionados do que gostam de fazer em tempo livre dos 17 itens
citados, escrever aparece na 8º posição com 46% e a leitura de livros físicos ou
digitais está mais abaixo na 11º posição com 24% das escolhas.
Contudo ao descrever os breves detalhes desses itens da pesquisa geral
é necessário observar que o hábito de ler se faz predominantes entre o gênero
feminino, estando mais presente da maior parte da fase de vida adulta entre os
30 a 49 anos e entre os jovens nas fases da infância de 05 a10 anos e no início
da fase adulta entre os 18 e 24 anos e sobre os momentos de lazer, escrever está
acima da leitura o que corroboram com o conceito de Terra (2005).
Uma coisa é certa as novas tecnologias não decretaram, como previam,
o fim das práticas de leitura e escrita, pelo contrário. Nunca se escreveu e
nunca se leu tanto como nos dias atuais. O tempo todo, seja em casa ou no
trabalho ou até mesmo no ônibus que nos transporta, estamos diante de
uma tela de computador, lendo mensagens, notícias, postagens e respon-
dendo a mensagem, publicando em redes sociais, fazendo comentários em
um blog (Terra, 2005 p. 200).

Em nossa história brasileira literária existem autores e escritores que mui-


to contribuíram e contribuem para a produção de livros, e obras literárias que
são base para as questões6 de português presentes no ENEM sendo: Tendências
contemporâneas 23,7%; Preceitos básicos dos estudos literários 14,3%;
Modernismo no Brasil 1º fase 9,5%; Origens do realismo, realismo machadiano
e Pré Modernismo 4,8%.
Porém mesmo com tantas informações presentes na última era, cursos
que podem ser assisttidos e gravados dentro de casa, a propagação de forma rá-
pida e imediata, amargamos índices ruins na produção textual como o próprio
ENEM relata em seus levantamentos e consenquetemente a leitura de forma
funcional, recrativa, reflexiva e por fim inspiradora. É preciso abordar e enten-
der como se dá esse processo de ensino aprendizado na prática, apresentado
práticas que podem melhorar e impulsionar a escrita e a leitura na escola.

6 Questões do ENEM Literatura. Disponível em:< https://descomplica.com.br/blog/lite-


ratura-enem/>Acesso em: 27/06/2023.

136
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
LEITURA E ESCRITA E SEU ENSINO NA PRÁTICA

Até o momento foram abordados as ideias e conceitos sobre a prática,


o ensino e aprendizagem é válido e significativo apresentar também ações que
englobam a essência de uma aprendizagem significativa, ativa e criativa.
A produção de texto é uma habilidade fundamental que permite ao indi-
víduo expressar suas ideias de forma clara e coerente. No ensino, a prática de
produção de texto é um elemento importante para o desenvolvimento da escrita
e da comunicação, bem como para o aprimoramento da compreensão leitora e
da capacidade crítica. E alerta, sobre as mudanças comportamentais também na
questões de gêneros textuais:
Se os gêneros textuais / discursivos mais tradicionais presentes em nossa
sociedade letrada, alcançaram o espaço de produção do ensino, também
os chats brevemente alcançarão. Refletir sobre uma possível apropriação
desse novo gênero da contemporaneidade pelo contexto do ensino, não é
pois, tarefa para um futuro distante (Costa, 2011 p. 61)

Infelizmente, ainda existem muitos desafios na implementação efetiva de


práticas de produção de texto no ensino. Muitos professores ainda se concen-
tram em ensinar regras gramaticais e ortográficas, em vez de fornecer aos alunos
oportunidades para escrever e revisar seus trabalhos. Os alunos às vezes são
“ensinados” a escrever de forma rápida e mecânica, sem ter a chance de pensar
e refletir sobre o que estão escrevendo.
Para as fases de Ensino Fundamental I e II o uso de ditado interativo, relei-
tura com focalização, reescrita com transgressão ou correção podem desencadear
a reflexão ortográfica tendo os textos como suporte, enfatiza Morais (1999);
No ensino médio por exemplo, trabalhar os textos (descritivos, dissertati-
vos, narrativos e argumentativos) com temas os quais estejam relacionados direta-
mente com o cotidiano dos alunos, que consista na descrição de um objeto qual-
quer sem revelar sua identidade, que deveria ser descoberta pelos demais. Aqui se
utiliza o texto descritivo. Um texto do tipo narrativo pode ser sobre o que os estu-
dantes não haviam feito nas férias. Um texto argumentativo como uma proposta
de produção de texto para o diretor-geral da escola, cuja escolha do gênero fique
a critério dos alunos, reivindicando, dando sugestões, elogios entre várias outros.
Um texto dissertativo, com temas emblemáticos como a presença feminina nas
eleições presidenciais entre outros. Relatam Milanezi e Gontijo (2017).
Ainda sobre a fase do Ensino Médio é importante e necessário ensinar e
incentiva a leitura literária bem como apresentar a sua magnitude não somente
para fazer a prova do ENEM os preparando de forma mecanizada e direta sobre
a Literatura, mas também como enfatiza Santos (2008), a leitura literária tem o
poder de democratizar o ser humano, pois permite que conheçamos a diversidade
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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

e complexidade do homem e da sociedade. Isso nos torna mais compreensivos e


tolerantes, condições essenciais para a democracia cultural. A literatura traz para
o seu universo histórias e perspectivas de estrangeiros, diferentes e excluídos, o que
nos ajuda a ser menos preconceituosos e mais abertos às diferenças. Além disso,
a leitura literária elimina barreiras de tempo e espaço, permitindo-nos viajar por
diferentes épocas e lugares, conhecer povos e culturas distintas das nossas. Esse
conhecimento nos torna menos pretensiosos e presunçosos, ao percebermos que
há tempos, lugares e experiências além das nossas próprias.
No geral, a literatura desempenha um papel crucial na ampliação da nos-
sa visão de mundo e no desenvolvimento de uma sociedade mais inclusiva, res-
peitosa e aberta às diversidades culturais e humanas.
No curso superior, as tecnologias podem ser um repositório de conheci-
mento, contendo uma infinidade de informações para auxiliar o leitor para a
sua formação em seu processo de amadurecimento literário. As modalidades de
texto também são variáveis: há web -aulas, entrevistas com escritores e especia-
listas, resenhas, resumos, análises acadêmicas e não acadêmicas, wikis, enfim,
uma infinidade de textos multimodais que tratam de literatura.
Outra opção é uma plataforma digital na qual o professor centralize e or-
ganize um pouco mais esses links e conhecimentos a fim de auxiliar o aprendiz
no momento de leitura literária. Seja de maneira controlada (em plataformas
digitais), seja de maneira mais “anárquica” (mergulhando no oceano da rede),
o acesso às tecnologias pode exercer papel de repositório de múltiplas informa-
ções que, como camadas, tornam a experiência literária mais robusta.
Outra oportunidade que surge quando lidamos com tecnologias digitais é a
de usá-las como ferramenta de interação (síncrona e/ou assíncrona). Atualmente,
a rede nos permite interagir de maneira menos ou mais direta com inúmeras pes-
soas em todo o planeta. Ferramentas como fóruns, chats, Skype, Hangouts permi-
tem facilitar o diálogo entre indivíduos que queiram discutir qualquer assunto.
Explorar as tecnologias digitais como ferramentas para construção/pro-
dução de novos conhecimentos sobre um texto literário. É um híbrido de reposi-
tório de conteúdo e ferramenta de interação: o leitor pode compartilhar publica-
mente suas observações sobre a obra (ou suas releituras), seja por meio de textos
escritos (resenhas, ensaios e outros gêneros, em blogs ou revistas digitais), seja
por textos orais ou multimodais (vídeos, podcasts, animações ou ilustrações). Ao
publicar suas impressões/leituras sobre uma obra, a rede também permite que
outras pessoas dialoguem com esses novos autores, alimentando um processo de
coautoria constante: eu leio, eu escrevo, o outro lê o que eu escrevi, ele escreve,
eu leio o que foi escrito sobre o que escrevi (que era sobre o que li), escrevo de
novo... e o processo dialógico e dialético se retroalimenta, em cadeia, novamente

138
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
encorpando as leituras feitas sobre o objeto estético, agregando camadas, leitu-
ras diversas sobre a mesma obra, exemplifica Ganzela (2017).
Por fim, para todas as modalidades estudantis presencial ou on-line, o
feedback dos professores podem fornecer oportunidades para que os alunos es-
crevam de forma criativa, com temas relevantes e interessantes para eles. Além
disso, o uso de atividades de revisão, comentários e orientações precisas dos
professores pode ajudar os alunos a melhorar sua escrita e torná-la mais eficaz.
Um fator que pode ser levado em consideração é o avanço dasa tecnologias e sua
gama de aparatos em que jovens e adultos estão inseridos. Tema esse que será
abordado em seguida.

TECNOLOGIAS MIDIÁTICAS E A EDUCAÇÃO MEDIADORA

A escola é o ambiente no qual passamos uma grande parte de nossas


vidas, que é regido por normas e parâmetros que os professores em sala de aula
necessitam planejar, explanar e avaliar mediante a esses documentos pertinentes
da Educação Brasileira. Os recursos midiáticos estão cada vez mais presentes na
sala de aula, mas e o método de ensino, bem como a ação mediadora e a autoa-
valiação conseguem acompanhar esse ritmo? Vejamos no que tange a questão do
ensino, mais em específico os gêneros escolares.
Os gêneros escolares oferecem uma estrutura e um propósito específico
para a comunicação escrita, permitindo que os estudantes desenvolvam habi-
lidades de escrita adequadas a diferentes situações e contextos. Eles também
ajudam os alunos a compreenderem as características distintas de cada tipo de
texto, incluindo sua estrutura, estilo, vocabulário e intenção comunicativa.
As tecnologias mudaram o comportamento do professor, hoje eles proje-
tam suas aulas em data show, planejam e descrevem seus planos de aula em seus
notebooks, apresentam as aulas em slides e utilizam plataformas para produzir
aulas, formulários entre várias outras ações midiáticas.
Os bons professores e orientadores sempre foram e serão fundamentais
para avançarmos na aprendizagem. Eles ajudam a desenhar roteiros inte-
ressantes, problematizam, orientam, ampliam os cenários, as questões, os
caminhos a serem percorridos. O diferente hoje é que eles não precisam
estar o tempo todo junto com os alunos, nem precisam estar explicando as
informações para todos. A combinação de aprendizagens personalizadas,
grupais e tutoriais no projeto pedagógico é poderosa para obter os resulta-
dos desejados (Moran, 2017 p.48).

Mas e o aluno; como é esse aluno, com acesso a tantas informações, con-
teúdos e plataformas, nas palavras e observações de Ronaldo Casagrande, ele
define como:

139
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

Hoje esse novo aluno passa horas na rede jogando complexos games de
estratégia, montando táticas em conjunto com pessoas que nem conhece
pessoalmente, ao mesmo tempo em que houve músicas em seu celular,
troca mensagens eletrônicas com seus amigos e, de tempos em tempos,
olha a série que está rolando na TV (Casagrande, 2019 p. 52).

Portanto, as práticas desempenhadas sofreram e sofrem adaptações bem


como a leitura e a escrita em sala de aula. A diferença entre o tratamento exaus-
tivo da escrita na escola e a liberdade criativa da internet pode, de fato, ter im-
pactos nos resultados dos enunciados produzidos em ambos os contextos. Na
escola, é comum que a ênfase seja colocada na correção gramatical, na estrutu-
ração formal e na organização das ideias, o que pode resultar em redações mais
padronizadas e estruturadas.
Por outro lado, na internet, especialmente em plataformas mais informais
como redes sociais e fóruns, a criatividade e a espontaneidade têm espaço para
florescer. Os enunciados na internet muitas vezes são menos preocupados com
regras gramaticais estritas e podem adotar uma linguagem mais coloquial, repleta
de gírias, abreviações e emojis. A interação rápida e dinâmica online favorece uma
comunicação mais fluida, com respostas imediatas e adaptadas ao contexto.
Navegando na rede, não estaremos, portanto, apenas nos apropriando de
um novo instrumental técnico revolucionário ou de novos códigos sono-
ros – visuais ou gráfico – auditivo – comunicativo para escrever e ler, mas
sim, construindo um novo objeto conceitual mediado por novos tipos de
interação linguística, social e cultural (Costa, 2011 p. 26).

Mediar essa aprendizagem em volta com as tecnologias é portanto um


novo desafio que professores tem a frente. Porém existem aqueles que potenciali-
zam o seu uso de forma inovadora e auxiliadora para a aprendizagem do ensino.
A mediação entre o uso da tecnologia e o processo de ensino podem ser tornar
atraente, divertido e significativo aos olhos dos alunos, sendo ele o protagonista
de sua aprendizagem, na busca de que ele não se desconecte da escola atual,
como enfatiza Casagrande (2019), quando descreve que o uso das tecnologias,
bem como as metodologias ativas nesse processo de ensino aprendizado.
A escrita na internet coloca nos mesmos planos a exterioridade da orali-
dade e a interioridade da escrita. O navegador pode se fazer autor de ma-
neira mais profunda participando da estruturação do hipertexto, criando
novas ligações, acrescentando ou modificando e conectando um hiperdo-
cumento a outro. A partir do hipertexto, toda leitura pode tornar se escrita
(Freitas, 2011 p. 35).

Embora a internet permita essa expressão criativa e imediata, é importante


reconhecer que esse ambiente também pode gerar erros e desvios linguísticos. A
falta de ênfase na correção gramatical pode levar a dificuldades de compreensão

140
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
e comunicação em contextos formais.
Os alunos aprendem ao serem desafiados a demonstrar seu desempenho
em níveis mais avançados do que estão familiarizados em determinado momen-
to. Essa oportunidade é alcançada por meio de envolvimento em projetos co-
laborativos com os colegas, permitindo que eles produzam significados mais
profundos ao investigar assuntos, resultando em um maior desenvolvimento e
complexidade dos conhecimentos envolvidos. (Moraes, 2012).
Vale ressaltar que é na escola que essas metodologias exercem sua eficá-
cia, bem como defini, Delfillippe e Cunha (2011), enfatizam a compreensão e a
sua preocupação em não criticar o trabalho da escola, e concorda que o ensino
dos gêneros escolares é de extrema relevância, sendo ferramentas fundamentais
para a organização e aprimoramento tanto da fala quanto da escrita dos alunos.
A combinação dessas abordagens pode ser benéfica para um desenvolvimento
completo das habilidades linguísticas dos indivíduos.
Assim, ambos os ambientes têm seus méritos e contribuições para o de-
senvolvimento da escrita e da comunicação. A escola busca fornecer aos alunos
as bases sólidas e as habilidades necessárias para se comunicarem de forma clara
e eficaz em diversos contextos, enquanto a internet proporciona um espaço va-
lioso para a criatividade, a expressão pessoal e a interação social, embora tam-
bém apresente desafios em termos de uso correto da língua.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Memórias com boas recordações e reflexões feitas ao longo do processo


da vida humana, podem mudar a visão sobre muitas coisas que acontecem na
vida, no sentido educacional de tudo isso, as boas memórias de uma aprendiza-
gem significativa e mediadora, apresenta a essência que esse ser humano desen-
volveu ao decorrer de sua trajetória.
O professor que tem uma boa didática, prioriza o aprendizado do aluno
em toda a sua magnitude bem como faz a mediação para um ensino verdadeiro
de seu conteúdo, não vendo o erro como uma forma de traumatizá-lo mas sim
conduzi-lo ao certo, respeitando seus limites e observando sua evolução essa
que muitas vezes não estará sempre em suas aulas, sendo um fruto colhido bem
mais a frente mas que germinou a semente ali numa conversa com os pais, numa
indicação de leitura, na abertura para a escrita autônoma, na apresentação de
novos conceitos fora do convencional entre tantas outras formas.
Esse processo de ensino e aprendizado visto no panorama quantitativo
amarga números péssimos quanto ao hábito de ler e escrever porém, as mudan-
ças começam com pequenos gestos em sala de aula, pois são esses seres extraor-
dinários que estão á frente das salas, que estudam, capacitam e organizam para

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

ministra -lás, tem o poder de acender essa pequena chama. Trabalho esse ardo e
que requer muita criatividade, tempo e paciência, difícil porém não é impossível.
Tanto a leitura quanto a escrita tem importância significativa no processo
educacional e no contexto de aprendizagem, ambas sendo trabalhada de forma
significativa através de metodologias e planejamentos que favoreçam o aprendi-
zado e a autonomia na escrita do aluno potencializa, ao utilizar as metodologias
ativas como ferramenta de ensino aprendizado baseando-se em planejamentos
que condizem com seu cotidiano e saindo da forma mecânica para a significati-
va da aprendizagem.

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O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
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143
MEMÓRIAS DE LEITURA NA FORMAÇÃO
ACADÊMICA: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA
SOBRE A INFÂNCIA E O LÚDICO NA EDUCAÇÃO
Lílian Viviane Gonçalves Martins1
Dirce Maria da Silva2

Acreditamos que a educação exige um constante esforço de reflexão horizontal. Nesse esfor-
ço reflexivo, sabe-se que há muito para ser pensado e rememorado, para não deixar morrer
o sonho de que transformar é possível (Paulo Freire).

INTRODUÇÃO

O presente texto apresenta uma sucinta revisão de literatura no que diz


respeito à compreensão da infância, convergindo para a importância do lúdico
na educação e na aprendizagem infantil.
Procura-se considerar aqui o valor do lúdico no contexto educacional,
reconhecendo a infância como uma fase crucial de desenvolvimento, observan-
do-se abordagens educacionais que evoluíram ao longo dos séculos, influencia-
das por paradigmas sociais, filosóficos e psicológicos. Nessa trajetória, o lúdi-
co emerge como um componente vital, moldando a compreensão de como as
crianças aprendem e se desenvolvem.

1 Licenciada em Pedagogia. O excerto ora publicado é parte do Trabalho de Conclusão de Curso


de Licenciatura em Pedagogia intitulado: A Construção do Pensamento Matemático na Edu-
cação Infantil, apresentado no Instituto de Ciências Sociais e Humanas - Centro de Ensino
Superior do Brasil: Instituto Superior de Educação, em Valparaíso de Goiás. E-mail: lilianane-
[email protected].
2 Mestre em Direitos Humanos, Cidadania e Estudos Sobre a Violência. Graduada em Letras
Português/Inglês e suas respectivas Literaturas. O curso de Letras, primeira graduação, ofere-
ceu-me compreensão da linguagem e das narrativas humanas, enquanto o Mestrado, com foco
em Políticas Públicas, ajudou-me a melhor compreender o contexto social e político em que
as questões de cidadania e direitos, ocorrem, fazendo-me melhor entender como cidadania,
direitos e linguagem estão intrinsecamente relacionadas e imbricadas. Membro (Técnico) do
Grupo de Pesquisa Literatura e Espiritualidade (GPLE), vinculado ao Departamento de Te-
oria Literária e Literaturas (POSlit / TEL) da Universidade de Brasília. Membro Fundadora
do Instituto de Pesquisa, Desenvolvimento e Apoio a Neurodivergentes (IPDAN) (Instagram:
ipdan.org.br). Atualmente trabalha como professora da Educação Básica na Secretaria de Es-
tado de Educação do Distrito Federal. E-mail: [email protected].

144
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
O texto destaca que as atividades lúdicas não apenas promovem a alegria e a
criatividade, mas também desempenham papel fundamental na formação de habili-
dades cognitivas, sociais e emocionais, contribuindo para uma educação significati-
va nos primeiros anos de vida, pois a exploração do lúdico na Educação Infantil não
só promove um desenvolvimento holístico, mas também oferece uma abordagem
eficaz para estabelecer as bases para o sucesso acadêmico futuro, incluindo o domí-
nio da matemática, disciplina considerada como das mais desafiadoras.
A abordagem metodológica utilizada limita-se a uma revisão de literatura
narrativa que envolveu a coleta, seleção e análise de um conjunto de estudos e
trabalhos acadêmicos relevantes sobre o referido tema.

UM BREVE PANORAMA DA TRAJETÓRIA HISTÓRICA DA


INFÂNCIA

A perspectiva de compreensão da infância ao longo de diferentes períodos


conduziu o tratamento voltado à criança a modificações de paradigmas. A manei-
ra como os adultos passam a enxergar as crianças ao longo do tempo, faz com que
a quebra de antigos padrões seja vista como algo natural e necessário. Até mais
precisamente o início do século XX, a maioria das abordagens em relação à infân-
cia a considerava como uma construção tão somente do ponto de vista histórico.
O historiador francês Philippe Ariès, conhecido por suas contribuições à
história da infância e à análise das mudanças nas atitudes culturais em relação às
crianças ao longo do tempo, explica que a maneira como a sociedade ocidental
percebe e trata a criança mudou significativamente ao longo das épocas. Em sua
obra História Social da Criança e da Família (1981), ele defende a ideia de que a
concepção moderna de infância como uma fase distinta e protegida da vida não
era comum em sociedades pré-modernas.
Em épocas passadas, as crianças eram vistas como miniaturas dos adultos
e eram integradas precocemente a atividades e responsabilidades. Não existia
um estágio de infância claramente definido e as crianças eram consideradas par-
te da esfera adulta desde cedo.
Ariès argumenta que a ideia de uma infância separada e protegida emer-
giu gradualmente a partir do século XVII, como resultado de mudanças nas
mentalidades, na educação e na estrutura familiar. Isso levou a uma crescente
valorização da inocência e da vulnerabilidade infantis, assim como ao desenvol-
vimento de espaços e atividades dedicados exclusivamente às crianças, como
creches, escolas e o lúdico na educação.
A perspectiva de Ariès provocou muitos debates, não sem contestações,
sobre como a sociedade construiu a infância e como essa construção evoluiu his-
toricamente. Mas Ariès não propõe estabelecer conclusões definitivas em suas

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

investigações, mas sim, contribuir para reflexões sobre a natureza complexa e


multifacetada do estudo da história da infância.
Dessa forma, sua contribuição possui enorme relevância, pois existe um
vazio histórico em relação ao assunto, pelo fato de a infância e a figura da crian-
ça não serem, em termos culturais, até o século XIX, consideradas como tópicos
discursivos reconhecidos como relevantes.
Kuhlmann Jr e Fernandes (2012) endossam a abordagem de Ariès, pois
entendem que a mudança da mentalidade sobre a infância precisa ser entendi-
da como processo histórico. Os autores argumentam que é necessário buscar
compreender as diferentes concepções sobre a infância, em variados momentos,
entendendo que a história da infância se move por “linhas sinuosas” e que o dis-
curso em torno dela possui variáveis que condizem com o contexto em tese, em
que concepções são influenciadas pela economia, sociedade, política, cultura e
pela disseminação de conhecimentos vigentes.
Conforme Kuhlmann Jr e Fernandes (2012), isso é importante para se
evitar interpretações simplistas que possam resultar em entendimentos equivo-
cados, pois a representação de crianças no passado pode ser, muitas vezes, um
recurso intrigante, que nos oferece pistas sobre as dinâmicas sociais que prevale-
ceram em cada época.
Ariès discorre em sua obra sobre as diversas representações na arte sacra,
como a amamentação em variados momentos e culturas diferentes. Na Idade
Média, conforme explica, as crianças passam a não serem mais representadas
na arte, o que pode ser um indicativo de que não existia uma consciência da
infância tal como existe na modernidade.
Ademais, sabe-se que as crianças não tinham uma função social antes de
serem iniciadas no trabalho, quando pobres. Já as crianças de famílias nobres
tinham tutores e deveriam ser preparadas para suas funções futuras. Conforme
Ariès, é a partir do século XVI que tem início o processo de maiores cuidados
com as crianças, de uma forma geral.
Mas Andrade (2010) salienta que a escola que passa a separar a criança
do adulto e a formar alunos, recai sobre as crianças das famílias abastadas, uma
vez que as crianças de famílias pobres continuavam a serem destinadas, desde
tenra idade, ao trabalho.
Nesse sentido, conforme Kishimoto (2002) emerge um deslocamento de
paradigma na percepção da educação infantil, que começa a se manifestar na
forma como a criança é tratada, e que passa a oferecer maiores indícios sobre a
compreensão da infância como a concebemos hoje.
Nesse sentido, antes do Renascimento, os jogos e brincadeiras praticados
pelas crianças eram interpretados como formas de recreação ou descanso das

146
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
atividades que exigiam esforço físico ou mental. Mas a partir da Renascença,
houve um período denominado de “compulsão lúdica”, em que o jogo passa a
ser utilizado também como meio para disseminar princípios de moral, ética e
conhecimentos em história, geografia e outras áreas.
Philippe Ariès discute igualmente, em sua obra, a abordagem dos castigos
na história da infância, explicando como a percepção de maus tratos evoluiu
ao longo do tempo, com as atitudes em relação à disciplina imposta às crianças
mudando significativamente em diferentes períodos históricos.
Com isso, vê-se que a história da infância está ligada à história das práti-
cas disciplinares, percebendo-se como as mudanças nas abordagens em relação
a castigos e disciplina refletem a evolução mais ampla da compreensão da infân-
cia ao longo do tempo.
A abordagem mais benevolente a partir do século XVII foi influenciada
pelo pensamento humanista e pela sensibilidade crescente em relação à infância,
o que levou a uma diminuição gradual da violência física nos métodos discipli-
nares, fortalecendo a ideia de que as crianças são seres mais vulneráveis e neces-
sitados de cuidados e orientação específicos.

SOBRE A IMPORTÂNCIA DO JOGO E DO LÚDICO NA EDUCAÇÃO


INFANTIL

Segundo Kishimoto (2002), renomados intelectuais, a exemplo de


François Rabelais (1494-1553), consideravam a brincadeira como uma prática
livre que promovia o avanço da capacidade intelectual e facilitava o processo de
aprendizagem, ao reconhecer as necessidades naturais das crianças, passando a
ver o jogo como um método eficaz para absorver conteúdos escolares.
Em contraposição aos métodos tradicionais centrados na instrução verbal
e na abordagem punitiva, a perspectiva renascentista defendia que os educadores
deveriam incorporar elementos lúdicos aos materiais de estudo. Isso é evidente
em obra clássicas como “Gargantua e Pantagruel (1532-1534)3”, que apresenta
o jogo tanto retratado como uma atividade de sorte e/ou decadência, quanto
reconhecido por suas potencialidades educativas.
Conforme Kishimoto (2002), Rabelais não explora detalhadamente a

3 “Gargantua e Pantagruel” é uma série de romances escrita por François Rabelais no sécu-
lo XVI. Essas obras contêm histórias e anedotas que exploram temas diversos, incluindo a
educação. O lúdico não é o foco central desses romances, mas algumas passagens sugerem
a importância do elemento lúdico na educação. Pantagruel (c. 1532); Gargântua (1534); O
terceiro livro de Pantagruel (1546); O quarto livro de Pantagruel (1552); O quinto livro de
Pantagruel (c. 1564). As obras também apresentam uma visão crítica sobre os métodos de
ensino tradicionais e a ênfase excessiva na memorização e na instrução formal. Rabelais
defende a ideia de que a educação deve ser adaptada às necessidades individuais das crian-
ças e que o lúdico pode ser uma ferramenta valiosa nesse processo (Kishimoto, 2002).

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importância do lúdico na educação, mas algumas passagens sugerem a ideia de que


a aprendizagem prazerosa, baseada em atividades lúdicas e interativas, pode ser
mais eficaz e apropriada para o desenvolvimento das crianças. Em “Gargantua”,
por exemplo, a história descreve como o personagem Gargântua, quando crian-
ça, teve um professor chamado Ponocrates, que adotou abordagem educacional
baseada em brincadeiras e jogos. Gargântua é encorajado a aprender por meio de
exercícios lúdicos, de forma a tornar o processo de aprendizado mais envolvente.
Também Michel de Montaigne (1533-1592), ensaísta e filósofo francês no
século XVI, no mesmo sentido, ao abordar sobre a educação em seus ensaios,
inclui a importância do lúdico no processo educacional. Montaigne acreditava
que a educação não deveria ser um processo rígido e disciplinado, mas adaptado
às necessidades e inclinações individuais.
Conforme Kishimoto (2002), Montaigne percebia a educação/ludicidade
com relevância para a possibilidade de desenvolvimento da linguagem e do ima-
ginário que o jogo infantil proporciona, revelando as características da mente da
criança e possibilitando sua observação. Esta visão se alinha à nova percepção
sobre infância e a criança como dotada de valores positivos, que precisa ser in-
centivada a se exprimir espontaneamente através do jogo, pensamento que irá se
consolidar no período do Romantismo.
Neste momento histórico, pensadores e intelectuais recorrem à analogia
do desenvolvimento infantil como uma síntese da história do conjunto da hu-
manidade, reconhecendo na criança uma alma semelhante à do poeta e con-
siderando o jogo como a expressão desta criança. A criança não é mais vista
apenas como um ser em desenvolvimento com características passageiras, mas
sim, como alguém que imita e brinca, é espontânea e livre (Kishimoto, 2002).
Conforme Andrade (2010), a partir do século XVII começa a emergir a
distinção entre a esfera pública e privada, ficando a primeira a cargo do Estado
e a segunda a cargo da família, a quem caberia garantir a sobrevivência, física,
social e psicológica da prole, enquanto a necessidade de formar futuros cidadãos
estava pautada por uma visão moralista, pública, que passa a atribuir à infância
a necessidade de estudo, instrução e escolarização.
Jean Jacques Rousseau (1712-1778), também contribui sobremaneira com
essa perspectiva, por meio de suas elaborações sobre uma equivalência entre a
infância e os povos primitivos, denominada de teoria da Recapitulação. De for-
ma resumida, nela, entendia-se a infância como a fase do imaginário, da poesia,
à semelhança dos povos dos tempos da mitologia e surge, a partir disso, a visão
de que o jogo é uma conduta espontânea, livre, de expressão de tendências in-
fantis (Kishimoto, 2002).
Friedrich Fröbel (1782-1852), pedagogo alemão do século XIX, via o jogo

148
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
como uma maneira fundamental pela qual as crianças interagem com o mundo
ao seu redor e constroem conhecimento. Ele acreditava que o lúdico era a forma
pela qual as crianças expressavam sua criatividade, curiosidade e imaginação.
Em suas palavras, “O brincar é a atividade mais elevada da criança, pois é a mais
próxima do processo criativo em si mesmo” (Kishimoto, 2002).
Fröbel defendia que o lúdico não era apenas uma atividade secundária,
mas o próprio cerne da educação infantil. Sua abordagem influenciou a pedago-
gia moderna, ressaltando a importância de proporcionar às crianças um ambien-
te onde o lúdico fosse valorizado e integrado ao processo educativo.
No século XX, o jogo e as atividades lúdicas passaram a desempenhar
papel crucial na educação, contribuindo de diversas formas para o desenvolvi-
mento integral das crianças. A importância do jogo e do lúdico na Educação
Infantil é vasta, pois abrange aspectos cognitivos, emocionais, sociais e físicos.
O advento da modernidade tornou mais nítidos tais processos, com co-
branças maiores da sociedade no que diz respeito à educação formal, como po-
demos ver a seguir:
Se, na Idade Média, a criança ingressava no “mundo dos adultos” para ali
fazer a sua aprendizagem, com a modernidade, a defesa da necessidade
de uma educação fundada nas instituições familiar e escolar fez dessas
instituições o novo “mundo dos adultos” pelo qual elas deveriam passar.
Com isso, a transformação da criança em aluno seria, ao mesmo tempo, a
definição do aluno como a criança, nesse processo em que o critério etário
se torna ordenador da composição e da seriação do ensino nas classes
escolares (Kuhlmann Jr. e Fernandes, 2004).

Surgem então, nos Estados Unidos e Europa, instituições filantrópicas


que retiravam as crianças das ruas, onde eram frequentemente abandonadas, e
tinham como principal enfoque não o desenvolvimento, mas a guarda, higiene,
alimentação e cuidados físicos.
Conforme Paschoal e Machado (2009), tais instituições já se apresenta-
vam como tendo um caráter pedagógico, posto que em muitos desses espaços
as crianças deveriam aprender habilidades, adquirir hábitos de obediência, bon-
dade, identificar as letras do alfabeto, pronunciar bem as palavras e assimilar
noções de moral e religião, além de tricotar e desenvolver habilidades manuais.
Paschoal e Machado defendem que tais instituições teriam caráter precipuamen-
te educacional e não somente assistenciais.
No Brasil, Garcia (2002) afirma que o país passava pelas dinâmicas es-
pecíficas de uma sociedade recém-saída da escravidão e construída pela expro-
priação de territórios e extermínio dos povos indígenas. Para a autora, a manei-
ra de compreender uma história depende de como a contamos. A história das
Américas, e no que nos diz respeito, da América Latina, sempre nos foi contada

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M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

do ponto de vista dos que pretenderam descobri-la, colonizá-la, “civilizá-la”, já


que se acreditavam portadores da Civilização.
Nesse sentido, de acordo com Rizzo (2003), a educação infantil no Brasil
surge em meio a profundas dificuldades e, devido a isso, tem caráter exclusiva-
mente assistencialista, a princípio. De modo geral, o seu objetivo era o de ajudar
viúvas e mulheres que precisavam trabalhar fora de casa. Parte deste mesmo
processo determinou a criação de instituições de acolhimento de órfãos abando-
nados, onde se depositavam os filhos indesejados de mães solteiras oriundas de
famílias da corte, como a Roda dos Expostos das Santas Casas de Misericórdia.
Cabe assinalar que as diferenças sociais estabeleceram, desde sempre, pri-
vilégios a uns em detrimento de outros. Conforme Andrade (2010), no Brasil as
diferenças sociais, raciais e de gênero foram centrais para estabelecer múltiplas
vivências de infância, com a criança indígena passando por um processo de acul-
turação, promovida pelos jesuítas, que enxergavam na infância um período de
“iluminação e revelação”.
A criança negra, filha de pessoas escravizadas, era destinada ao trabalho
antes mesmo dos sete anos. A criança branca, de famílias abastadas, era designa-
da para os estudos. Não havia aqui, portanto, uma noção universal de infância,
mas múltiplas vivências do ser criança em meio a uma só cultura.
Conforme Paschoal e Machado (2009) a implementação de creches e jar-
dins de infância no final do século XIX e durante as primeiras décadas do século
XX, no Brasil, foram acompanhadas por tendências com percepções diferencia-
das. A jurídico-policial defendia a infância moralmente abandonada, enquanto
a visão médico-higienista e a concepção religiosa tinham o intuito de combater
a alta mortalidade infantil, que ocorria tanto no interior das famílias como nas
instituições de atendimento à infância.
De acordo com Andrade (2010), a escola torna-se, também por aqui, uma
instituição essencial para a sociedade, local onde as crianças seriam submetidas
a um regime disciplinar cada vez mais rigoroso.
O desenvolvimento da psicologia infantil no século XIX foi fortemente
influenciada pela biologia, fazendo transposições dos achados dos estudos com
animais para os entendimentos sobre as crianças. Com isso, Kishimoto (2002)
esclarece que adotando-se o pressuposto da necessidade da espécie, não se devia
perder de vista a vontade e consciência infantis em busca do prazer como justi-
ficativa psicológica.
Nesse sentido, Kishimoto acrescenta que o jogo seria, então, uma ação
espontânea, natural (influência biológica), prazerosa e livre (influência psicoló-
gica), ligada à educação, dada a ligação com o treino de instintos. Mesmo com
esta justificativa biológica, a importância do jogo continua sendo destacada a

150
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
partir de um paralelo que não apresentava evidências de ser real, tornando-o um
conceito pouco objetivo e, portanto, questionável.
No século XX, a visão sobre o jogo e sua importância ganha outros con-
tornos. Édouard Claparède (1873-1940), neurologista e psicólogo suíço que se
destacou pelos seus estudos nas áreas da psicologia infantil, da pedagogia e da
formação da memória, procurou conceituar cientificamente a brincadeira, con-
tando com influências da biologia e do Romantismo. Para Claparède, o jogo
exerce papel importante como motor do autodesenvolvimento e, por conseguin-
te, é um método natural de educação e desenvolvimento.
Claparède via o jogo como uma atividade que permite às crianças explo-
rar o mundo, testar hipóteses, resolver problemas e adquirir novas habilidades.
Ele acreditava que o lúdico era um meio pelo qual as crianças podiam experi-
mentar, praticar e internalizar conhecimentos de maneira ativa e envolvente.
Conforme Kishimoto (2002), Lev Semionovitch Vigotski (1896-1934),
psicólogo bielorrusso, autor da psicologia sócio-histórica, fez contribuições sig-
nificativas para a compreensão da importância do lúdico no desenvolvimento
infantil e na aprendizagem. Ele enfatizava como o brincar desempenha um pa-
pel crucial na construção do conhecimento, nas interações sociais e na formação
de habilidades cognitivas.
Vygotsky tem como base de compreensão do jogo infantil a filosofia mar-
xista-leninista, que preconiza que a construção dos processos psicológicos se dá
a partir do contexto sociocultural. Assim, são os processos histórico-sociais que
alteram não apenas a vida social, mas também o pensamento humano e, por
consequência, as brincadeiras e a conduta, predominante a partir dos 3 anos,
no jogo de desempenho de papeis, que resulta de influências sociais recebidas
previamente.
Kishimoto (2002) explica também que Jean Piaget (1896-1980) defende
que é por meio da brincadeira e da imitação que ocorre o desenvolvimento natu-
ral. Mesmo não se debruçando sobre o desenvolvimento de um conceito de brin-
cadeira, Piaget dá destaque ao aspecto da imitação, que participa de processos
de acomodação, na forma de ação assimiladora para a expressão da conduta,
que tem características metafóricas, espontâneas e prazerosas. Para Piaget, a
brincadeira, enquanto processo assimilativo, participa do conteúdo da inteligên-
cia, assim como da aprendizagem.
Conforme Kishimoto, Jerome Seymour Bruner (1915- 2016), psicólogo
e educador americano, também abordou a importância do lúdico na educação
infantil. Ele enfatizava como o brincar desempenha um papel crucial no apren-
dizado, na construção de conhecimento e no desenvolvimento das habilidades
cognitivas das crianças.

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M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

Bruner acreditava que o lúdico não era apenas uma atividade recreativa,
mas sim uma forma de aprendizado ativo e envolvente. Ele defendia que as
crianças aprendem melhor quando estão ativamente envolvidas em atividades
que as desafiam e as motivam. O brincar proporciona um ambiente onde as
crianças podem explorar, experimentar, questionar e descobrir por si mesmas.
Para Pierre Bourdieu (1930-2002), sociólogo francês que influenciou de
maneira significativa o campo da educação, por meio de suas teorias e análises
críticas sobre as estruturas sociais, desigualdades e poder na sociedade, espe-
cialmente no que diz respeito à reprodução das desigualdades sociais através
do sistema educacional, o jogo serviria como parâmetro para entender rela-
ções sociais.
George Herbert Mead (1863-1931), filósofo e psicólogo social america-
no, não tratou explicitamente da importância do lúdico na educação em suas
obras. No entanto, suas ideias sobre o desenvolvimento social e a formação
da identidade têm implicações que podem ser relacionadas à valorização do
lúdico na educação.
A educadora brasileira Jussara Hoffmann (2001) fala sobre a impor-
tância do lúdico na educação em várias de suas obras. Em “Avaliar para
Promover: As Setas do Caminho” Hoffmann discute diferentes abordagens
de avaliação educacional, incluindo a avaliação formativa e a importância de
tornar o processo de avaliação mais significativo para os alunos. Ela enfatiza
como o lúdico pode ser um elemento fundamental para promover uma ava-
liação mais autêntica e construtiva, permitindo que os alunos se envolvam
ativamente no processo de aprendizado.
Hoffmann ressalta que o lúdico pode promover a criatividade, a curiosi-
dade e a autonomia. Ao se envolver em atividades lúdicas, as crianças são incen-
tivadas a tomar iniciativa, a fazer escolhas e a expressar suas ideias de maneira
livre, o que contribui para um aprendizado mais autêntico e profundo. Para ela,
o lúdico pode ser utilizado como ferramenta valiosa e autêntica, porque, por
meio de jogos, projetos e atividades práticas, os educadores podem observar
e compreender melhor o processo de aprendizagem, capturando insights sobre
habilidades, interesses e necessidades das crianças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O panorama de paradigmas e referências que cercam a brincadeira in-


fantil ilustra a complexidade de sua interação com os comportamentos sociais
e naturais. Essa abordagem multifacetada enriquece nossa compreensão da im-
portância do lúdico na formação das crianças, abrindo portas para um entendi-
mento mais profundo de suas implicações nas esferas psicológicas, culturais e

152
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
sociais. Em meio a esse cenário, a aprendizagem de disciplinas como a matemá-
tica ganha destaque especial.
O valor do lúdico no aprendizado da matemática se manifesta como uma
ponte entre a teoria e a prática. Ao oferecer às crianças a oportunidade de ex-
plorar conceitos matemáticos de maneira concreta e envolvente, a brincadei-
ra transforma a abstração em algo tangível. Jogos, quebra-cabeças e atividades
lúdicas não apenas tornam os princípios matemáticos acessíveis, mas também
estimulam o pensamento crítico, a resolução de problemas e a compreensão das
relações numéricas.
Assim como a brincadeira infantil em geral, o lúdico na aprendizagem da
matemática transcende a mera superficialidade. Ele se torna uma ferramenta po-
derosa para fomentar a curiosidade, a criatividade e a motivação intrínseca das
crianças em relação a uma disciplina frequentemente considerada desafiadora.
Ao considerar o caráter metafórico que a brincadeira muitas vezes assume, é
possível enxergar como a ludicidade ilumina o caminho para uma compreensão
mais profunda e duradoura das complexidades da matemática.
A exploração da brincadeira infantil e do lúdico como instrumento de
aprendizagem nos lembra que há riquezas inexploradas nos vínculos entre a
diversão e o conhecimento. Ao compreender e cultivar essa conexão, abrimos
possibilidades notáveis para moldar a educação de maneira mais eficaz e holís-
tica, preparando as gerações futuras para um aprendizado que transcende a sala
de aula e se estende para a vida.

REFERÊNCIAS
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2a ed. Rio de Janei-
ro: LTC, 1981.
ANDRADE, Lucimary Bernabé Pedrosa. Educação infantil: discurso, legis-
lação e práticas institucionais. Cultura Acadêmica, 2010.
GARCIA, Regina Leite. Teórico e o campo currículo: relendo uma história
mal contada- suas repercussões no currículo, 2012. Disponível em: https://
www.fe.unicamp.br/gtcurriculoanped/33RA/trabalhos/REGINA_LEITE_
GARCIA_UFF.pdf Acesso: 12, ago, 2023.
HOFFMANN, Jussara. Avaliar para Promover: As Setas do Caminho. Porto
Alegre: Mediação, 2001.
HOFFMANN,Jussara. Avaliar: respeitar primeiro, educar depois. 4. ed. Por-
to Alegre: Mediação, 2013b.
KISHIMOTO, Tizuko Morchida (Org.). Jogo, Brinquedo, Brincadeira e a
Educação. São Paulo: Cortez, 2002.

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

KUHLMANN Moysés Jr.; FERNANDES, Fabiana Silva. Educação Infantil


e Sociedade: questões contemporâneas. Editora Nova Harmonia Ltda, 2012.
Capítulo 2, Infância: construção social e histórica.
PASCHOAL, Jaqueline Delgado; MACHADO, Maria Cristina Gomes. A his-
tória da Educação Infantil do Brasil: Avanços, Retrocessos e Desafios dessa
Modalidade Educacional. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n.33, p.78-
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PIAGET, Jean. Coleção Educadores, Ed. Massangana, 2010.
RABELAIS, François. Gargântua e Pantagruel. Belo Horizonte (Minas Ge-
rais): Editora Itatiaia, 2003. [1532-1564].
RIZZO, Gilda. Creche: organização, currículo, montagem e funcionamento.
3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
VYGOTSKY, Lev. Coleção Educadores. Ed. Massangana, 2010.

154
REVISANDO CONCEITOS E TECENDO REFLEXÕES
SOBRE A IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO
BILÍNGUE NO BRASIL
Horácio Lessa Ramalho1
Dirce Maria da Silva2

A pessoa que conhece apenas uma língua, não a conhece de fato (Goethe).

Emily Dickinson’s Poem

Essential Oils - are wrung -


The Attar from the Rose
Be not expressed by Suns - alone -
It is the gift of Screws -
The General Rose - decay -
But this - in Lady’s Drawer
Make Summer - When the Lady lie
In Ceaseless Rosemary...
...that is...
Óleos Essenciais - estão torcidos -
O Aroma da Rosa
Não seja expresso pelos sóis - sozinho -
É o presente dos Parafusos -
Uma rosa geral - decadência -
Mas isso - na gaveta da senhora
Faça o Verão - Quando a Senhora mente
Em Alecrim Incessante.

1 Graduado em Ciência Política com Ênfase em Políticas Públicas, com Master Business
Administration pela Fundação Getúlio Vargas em Relações Governamentais. E-mail: ho-
[email protected].
2 Mestre em Direitos Humanos, Cidadania e Estudos Sobre a Violência. Graduada em Letras
Português/Inglês e suas respectivas Literaturas. O curso de Letras, primeira graduação, ofe-
receu-me compreensão da linguagem e das narrativas humanas, enquanto o Mestrado, com
foco em Políticas Públicas, ajudou-me a melhor compreender o contexto social e político
em que as questões de cidadania ocorrem, fazendo-me melhor entender como cidadania,
direitos e linguagem estão intrinsecamente relacionadas e imbricadas. Membro (Técnico)
do Grupo de Pesquisa Literatura e Espiritualidade (GPLE), vinculado ao Departamento
de Teoria Literária e Literaturas (POSlit / TEL) da Universidade de Brasília. Membro Fun-
dadora do Instituto de Pesquisa, Desenvolvimento e Apoio a Neurodivergentes (IPDAN)
(Instagram: ipdan.org.br). Atualmente trabalha como professora da Educação Básica na Se-
cretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. E-mail: [email protected].

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M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

INTRODUÇÃO

O Brasil é uma nação de dimensões continentais, identificada como um


país “monolíngue”. Conforme Cummins (2003), definir bilinguismo depende de
questões de ordem política, social e cultural. O conceito é amplo, mas de forma
sucinta, refere-se à capacidade de uso de duas línguas de forma proficiente. A
eloquência, ou proficiência, pode variar desde a fluência equilibrada em ambas
as línguas até diferentes níveis de habilidades em cada uma delas.
As políticas linguísticas em nosso país tendem a subtrair as línguas, ao
invés de utilizar políticas linguísticas ‘aditivas’, isto é, olvida-se, por vezes, em
termos político-culturais e linguísticos, que convivemos com falantes imigrantes
de todos os cantos do mundo, como espanhóis, japoneses, italianos, alemães,
para citar apenas alguns, sem falar nas mais de 170 línguas indígenas, de famílias
diferentes existentes em solo brasileiro, e ainda, a Língua Brasileira de Sinais3.
A diversidade linguística no país deve ser incentivada e respeitada, pois o
domínio de uma língua para além da nativa facilita a comunicação direta com
pessoas de outras origens e promove um entendimento mais profundo das diver-
sas culturas que compõem a sociedade global.
Nesse sentido, o presente texto propõe uma breve revisão de literatura, a
partir de autores como Krashen (1989), Cummins (2001), Kramsch (2009), den-
tre outros, concomitante a uma análise introspectivo-reflexiva, de pretensão en-
saística, sobre a importância do aprendizado de outros idiomas. De acordo com
Quadros (2010), “em uma perspectiva “aditiva”, saber outras línguas apresenta
vantagens tanto no campo cognitivo quanto no campo político, social e cultu-
ral”. De forma concomitante, discorremos sobre a importância e necessidade de
uma sociedade efetivamente bilíngue em nosso país.

CULTURA, LINGUAGEM, LEITURA E INTERPRETAÇÃO DE


MUNDO

De acordo com Kramsch (2009, p. 4), pesquisadora americana na aqui-


sição de segunda língua e teoria social e cultural, o poema de Emily Dickinson
retrata, de maneira artística, a interligação entre natureza, cultura e linguagem.
O poema sugere a representação de uma “Rosa Geral”, como elemento natural
presente num jardim de flores, belo, porém anônimo entre outras rosas da mes-
ma espécie, transitório e facilmente esquecível, pois,

3 MEC. Parecer CNE/CEB nº 2/2020, aprovado em 9 de julho de 2020 - Diretrizes Curri-


culares Nacionais para a oferta de Educação Plurilíngue.

156
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
A natureza, sozinha, não consegue capturar nem preservar a singular be-
leza de uma rosa específica em um momento específico, sendo impotente
perante o declínio biológico e a inevitável morte das rosas e das mulheres.
Ela apenas pode trazer o verão quando a estação o permite. Em contraste,
a cultura transcende a temporalidade biológica, sendo também um “pre-
sente”, mas com características distintas. Mediante um processo tecnoló-
gico sofisticado elaborado para extrair a essência das rosas, a cultura induz
a natureza a revelar suas capacidades “essenciais” (Kramsch, 2009, p. 4).

Nesse sentido. sabemos que a aquisição de uma segunda língua é pro-


cesso complexo. Recomenda-se, mediante isso, desde tenra idade, a exposição
constante a ouras línguas-alvo, pois assim os estudantes têm a oportunidade de
começar, logo cedo, a expandir o vocabulário, aprimorar a compreensão grama-
tical e desenvolver as habilidades comunicativas.
Conforme Krashen (1989), remado linguista na área da aquisição de se-
gunda língua, educação bilíngue e compreensão de textos devem caminhas jun-
tas desde cedo, promovendo o processo de “input”, em que alunos são expostos
a material desafiador, mas já compreensível e fundamental para a aquisição na-
tural do idioma. Isso se dá por que a leitura com seus diversos tipos, específicos
para cada ocasião e contexto, permite, mediante mediação, que os alunos absor-
vam estruturas linguísticas de maneira natural.
A leitura é uma janela para compreender e apreciar diferentes culturas.
Em escolas bilíngues, onde os alunos frequentemente estão expostos a duas ou
mais línguas, a leitura oferece uma maneira rica e envolvente de explorar as
nuances culturais associadas a cada idioma.
Autores como Jim Cummins (2001), renomado pesquisador na área da
educação bilíngue, destaca que a leitura de textos autênticos, como literatura,
contos populares e jornais, permite que os alunos mergulhem nas tradições e
perspectivas culturais ligadas aos idiomas que estão aprendendo.
Sem dúvidas, há benefícios claros da leitura no aprendizado de idiomas
em escolas bilíngues públicas, mas também há desafios a serem enfrentados,
tais como dificuldades de acesso a materiais de leitura adequados em ambas
as línguas, bem como a falta de apoio para desenvolver habilidades de leitura
crítica. Para superar esses desafios, é essencial adotar estratégias como a sele-
ção cuidadosa de materiais de leitura diversificados e culturalmente relevantes,
além de incorporar atividades de discussão e análise de textos para aprofundar
a compreensão.

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A IMPORTÂNCIA DO BILINGUISMO EM UM MUNDO MULTI-


CULTURAL

Conforme a Cambridge Assessment International Education, “educação


bilíngue refere-se ao uso de duas ou mais línguas para o ensino de matérias de
conteúdo”. Um “aluno bilíngue” é, no sentido mais amplo do conceito, um
aluno que usa a primeira língua em casa/na comunidade e uma segunda língua,
como o inglês, na escola. O documento também explicita sobre vantagens da
educação bilíngue,
1. Desenvolvimento de habilidades linguísticas: O aprendizado de uma
segunda língua é uma habilidade valiosa que pode ajudar os alunos a se
comunicarem com pessoas de diferentes culturas e contextos, além de
abrir portas para oportunidades futuras de trabalho.
2. Aumento da compreensão cultural: O ensino em duas línguas pode
ajudar os alunos a compreender melhor as diferentes culturas e a apreciar
a diversidade do mundo.
3. Melhora do desempenho acadêmico: Estudos mostram que alunos que
frequentam escolas bilíngues têm um desempenho acadêmico melhor do
que aqueles que frequentam escolas monolíngues.
4. Preparação para o mercado global: Em um mundo cada vez mais co-
nectado, a capacidade de falar mais de uma língua é uma habilidade valio-
sa para o mercado global.
5. Maior flexibilidade cognitiva: O aprendizado de uma segunda língua
pode ajudar os alunos a desenvolver habilidades cognitivas, como a ca-
pacidade de resolver problemas e a flexibilidade mental (Mehisto, 2012;
Cambridge, 2020; Grifos Nossos).

Nesse mesmo sentido, para a educadora Selma Moura, pedagoga,


Mestre em Linguagem e Educação e Especialista em Linguagem das Artes pela
Universidade de São Paulo (USP), o bilinguismo traz apenas vantagens. Os excer-
tos abaixo fazem parte de uma entrevista por ela concedida à Revista Educação.
Criança precisa mesmo começar a estudar outra língua tão cedo?
O ser humano nasce com potencial para aprender qualquer língua e, de-
pendendo do contexto em que se insere, pode tornar-se bilíngue desde
muito cedo. Dados indicam que mais da metade da população mundial é
bilíngue, então o bilinguismo, ao invés de ser a exceção, é a regra na maior
parte do mundo.
Quais as principais vantagens oferecidas pelas escolas bilíngues?
Quando feita com qualidade, a educação bilíngue, além de favorecer a
proficiência em duas ou mais línguas, desenvolve a flexibilidade cognitiva,
a sensibilidade comunicativa, a apreciação por outras culturas e o conhe-
cimento acadêmico em todas as áreas. Dá aos alunos a oportunidade de se
comunicar com um número muito maior de pessoas e, assim, ter sua voz e

158
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
visão visibilizadas. Pode contribuir com a empregabilidade e com a colo-
cação profissional ou acadêmica em outros países. O bilinguismo é, com-
provadamente, uma das habilidades essenciais aos cidadãos do século 21.
E desvantagens?
Não há desvantagens intrínsecas à educação bilíngue, da mesma forma
como não há desvantagens sobre o ensino de matemática, ou ciências.
Mas pode haver em relação à forma como essa educação for feita, caso os
professores não sejam bem formados, o currículo não seja bem desenvol-
vido e a avaliação não seja coerente e integrada, da mesma forma como
pode ocorrer com uma educação monolíngue. O desafio, na verdade, é a
qualidade do ensino (Revista Educação, Entrevista publicada em 22 de
agosto de 2018; Grifos Nossos).

Uma escola bilíngue é uma instituição educacional que oferece um pro-


grama de ensino em duas línguas diferentes, com o objetivo de desenvolver a
proficiência linguística e a compreensão cultural dos alunos em relação a ambas
as línguas. Essa definição de escola bilíngue pode variar de acordo com a região
ou país, mas em geral, tal instituição oferece ensino em duas línguas durante
todo o período escolar, desde a Educação Infantil até o Ensino Médio.
A presença de mais escolas bilíngues no país é de suma importância na for-
mação das novas gerações, que farão cada vez mais parte de um mundo globali-
zado e multicultural. Instituições de ensino bilíngues não apenas proporcionam
o aprendizado de um segundo idioma, mas também promovem compreensão
mais profunda das culturas associadas às línguas estudadas.
Krashen (1989) afirma que, “a língua é mais do que uma ferramenta de
comunicação; é a expressão de nossa cultura e identidade.” Escolas bilíngues
oferecem a oportunidade de cultivar essa conexão entre língua e cultura desde
cedo, contribuindo para a formação de cidadãos globalmente conscientes.
Cummins (2001) é categórico ao afirmar que “o aprendizado em um am-
biente bilíngue pode melhorar o desempenho acadêmico geral, pois promove ha-
bilidades cognitivas avançadas, flexibilidade mental e capacidade de resolução
de problemas”. Isso é especialmente relevante para crianças em idade escolar,
pois a exposição precoce a diferentes línguas estimula a plasticidade cerebral,
facilitando a aquisição de múltiplas línguas ao longo da vida e facilitando a
aprendizagem em outros componentes curriculares.
A comunicação transcende fronteiras, logo, a importância de escolas
bilíngues é inegável. García (2014) também destaca que “a proficiência em mais
de uma língua amplia as oportunidades profissionais, fortalece a compreensão
intercultural e promove a tolerância e a diversidade”.

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VANTAGENS E DESAFIOS DE UMA ESCOLA BILÍNGUE

Nas escolas bilíngues com imersão total todo o ensino é ministrado em


ambas as línguas, sem distinção clara entre ambos os idiomas. É comum que
uma das línguas seja predominante no início, mas com o tempo, elas passam a
ser igualmente enfatizadas.
No modelo da escola bilíngue com imersão parcial, o ensino é ministra-
do em ambas as línguas, mas com uma distribuição desigual do tempo de aula.
Por exemplo, uma língua pode ser ensinada durante um período específico do
dia, enquanto a outra é usada em outras atividades.
Já nas escolas bilíngues de transição, a escola oferece ensino nas duas
línguas, mas com a expectativa de que os alunos eventualmente passem a fre-
quentar uma escola que ensina exclusivamente em uma das línguas.
No Brasil, um dos principais desafios é a formação de professores qualifi-
cados para lecionar nesse contexto. Muitos profissionais não possuem o domínio
adequado das habilidades comunicativas, quais sejam, em inglês, por exemplo:
1) Listening: capacidade de entender o que é dito em inglês, distinguindo palavras
e frases, compreendendo rapidamente o significado. 2) Speaking: a capacidade de
falar, de modo a ser compreendido pelos interlocutores. 3) Reading: a capacidade
de ler textos em inglês, uma das habilidades linguísticas mais buscadas, pois é
cada vez mais exigida em diversos campos de atuação e estudos. 4) Writing: ha-
bilidade que possibilita que a pessoa escreva em inglês, além do imprescindível
conhecimento de gramática do idioma em questão (Cultura Inglesa, 2022).
Outro desafio para a implementação da escola pública bilíngue no Brasil
é a falta de material didático adequado. O desenvolvimento de material de qua-
lidade para o ensino bilíngue é fundamental para garantir que os alunos tenham
acesso ao conteúdo de forma clara e eficaz. Isso é de suma importância porque
o material disponível pode não estar adaptado à realidade brasileira, gerando
dificuldades no processo de ensino e aprendizagem.
A falta de infraestrutura adequada também é um desafio para a escola pú-
blica bilíngue. A maior parte dos estabelecimentos escolares não possui estrutura
necessária para acomodar aulas de língua estrangeira, com salas de aula equipa-
das por recursos tecnológicos e bibliotecas especializadas, pelo menos, o que pode
comprometer a qualidade do ensino e prejudicar o desenvolvimento dos alunos.
Além desses desafios iniciais, a diversidade cultural e linguística do Brasil
é fator que deve ser considerado na implementação da escola bilíngue. Conforme
mencionado anteriormente, de acordo com Ronice Quadros (2010), “é preciso
levar em conta as diferentes línguas, como as indígenas, e culturas estrangeiras
presentes no país, de forma a garantir que todas as comunidades sejam atendidas
de maneira adequada e justa”. Nesse sentido, a implantação da escola pública
160
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
bilíngue no Brasil requer um esforço conjunto e integrado entre os governos, as
escolas e a sociedade em geral.
Estudos mais aprofundados de experiências bilíngues exitosas em outros
países, como Canada e Estados Unidos, guardadas as devidas especificidades
contextuais, podem ser bastante proveitosos.
Numa rápida pesquisa pode-se ver que no Canadá, escolas bilíngues são
encontradas em todo o país e oferecem programas de ensino em inglês e francês.
O ensino bilíngue é obrigatório em algumas províncias do país, como Quebec
e New Brunswick, e opcional em outras. Além disso, muitas escolas públicas e
particulares oferecem programas de imersão em uma das línguas oficiais, permi-
tindo que os alunos aprendam em ambiente totalmente imersivo.
Nos Estados Unidos, o ensino bilíngue não é tão comum quanto no
Canadá. Embora o país tenha grande número de falantes de espanhol, o ensino
bilíngue é oferecido apenas em algumas escolas de áreas com grande população
de falantes da língua espanhola, especialmente na Califórnia e no Texas. Mas
algumas escolas particulares nos Estados Unidos oferecem programas bilíngues
em outras línguas, como francês, alemão e mandarim. Essas escolas geralmente
usam o método de imersão total, no qual os alunos aprendem em um ambiente
que usa a língua estrangeira como língua de instrução.
De maneira geral, a experiência bilíngue no Canadá é mais abrangente e
comum do que nos Estados Unidos, devido à obrigatoriedade do ensino bilín-
gue em algumas províncias do país e à presença do francês como língua ofi-
cial. No entanto, em ambos os países, as escolas bilíngues e programas bilíngues
têm como objetivo promover a diversidade cultural e linguística, e fornecer aos
alunos habilidades valiosas para o mercado de trabalho global (Marini, 2018;
Salles, 2020).

FUNDAMENTOS LEGAIS PARA A EDUCAÇÃO PLURILÍNGUE


NO BRASIL - UMA OVERVIEW

O Conselho Nacional de Educação (CNE) em 2020 aprovou as Diretrizes


Nacionais para a Educação Plurilíngue no Brasil (Parecer CNE/CEB nº 2/2020,
aprovado em 9 de julho de 2020). A resolução trouxe definições e regulamenta-
ções para orientar a comunidade escolar e esclarecer a população a respeito da
concepção de escola bilíngue.
O Parecer trata da Educação Plurilíngue como um todo, conforme norma-
tivas internacionais e nacionais sobre a Educação Escolar Indígena, a Educação
de Surdos e a Educação em regiões de fronteiras. Sobre a Educação Bilíngue na
América Latina, o Parecer esclarece:

161
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

O continente latino-americano vem se esforçando para atingir níveis de


proficiência em língua inglesa mais adequados às exigências em curso. As
motivações que impulsionaram tentativas de incremento são comumente
relacionadas às necessidades de comunicação internacional, à competi-
tividade econômica e à globalização dos negócios. Mas são diferentes as
estratégias, os programas e os investimentos.
Um estudo sobre a qualidade do aprendizado de língua inglesa na América
Latina identificou avanços e desafios nas escolhas feitas em países como
Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, México,
Panamá, Peru e Uruguai. Esses países concentravam 84% da população
e 87% do Produto Interno Bruto (PIB) da região em 2015. Mesmo sendo
marcadamente hispanófona, 68% dos executivos apontam o inglês como a
principal língua dos negócios, contra 6% do espanhol e 8% do Mandarim
Os indicadores utilizados no estudo se basearam na existência de política
de ensino da língua inglesa na rede pública que integrasse:
- plano nacional;
- qualificação de professores;
- objetivos de aprendizagem;
- padrões de ensino-aprendizagem;
- avaliação de proficiência de professores e estudantes.
Brasil e Argentina eram apontados como os únicos a não terem definido
padrões de aprendizagem específicos para a língua inglesa – isso foi an-
tes da BNCC. De um lado, Colômbia, Panamá e Peru apostaram no trei-
namento de professores no exterior. O Peru, em especial, tinha somente
27% dos professores do Ensino Fundamental habilitados para o ensino de
língua inglesa. Chile (Programa Inglés Abre Puertas – PIAP) e Uruguai
(Plan Ceibal) empreendem esforços na educação bilíngue na rede pública
há mais de uma década, e colhem os frutos desse trabalho. Em termos
de longevidade são exceções no continente. Iniciativas análogas que ob-
jetivam desenvolvimento consistente em língua inglesa para os estudantes
da educação básica ocorrem na Colômbia (Colombia Bilingüe); na Costa
Rica (Enseñanza del Inglés como Lengua Extrajeira – EILE); e no México
(Programa Nacional de Inglés – PRONI).
Decorrentes das limitações dos modelos tradicionais de ensino, o ponto
de partida que fomentou essas opções de enfrentamento ao baixo nível
de proficiência em língua inglesa se assemelha a motivações análogas
na Europa. Em 1996, a Espanha focou na Educação Infantil, ofertando
inicialmente educação bilíngue para aproximadamente 1.200 crianças a
partir de 3 anos de idade em pouco mais de 40 escolas públicas, tendo
posteriormente alcançado mais de 200 mil estudantes.
A insatisfação com os resultados frente às exigências econômicas e às ne-
cessidades de aprender continuamente mobilizam ações em vários países.
De um lado, vê-se a consolidação da língua inglesa como língua da glo-
balização dos mercados; de outro, a sua ampla utilização como língua
de pesquisas científicas e do fenômeno. Nesse sentido, essas experiências
educativas, especialmente na educação pública, destacam:
- Busca pela integração da língua adicional ao currículo da escola;
- Incentivo à diversidade cultural;

162
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
- Estímulo ao uso de metodologias e tecnologias contemporâneas;
- Eventual uso de certificação de proficiência;
- Foco nos primeiros anos da educação básica;
- Oferta da língua adicional a todos os estudantes das instituições que de-
senvolvem o programa;
- Construção de referenciais e guias de boas práticas;
- Envolvimento de professores, pais, estudantes e especialistas na arquite-
tura dos projetos educacionais;
- Leitura, escrita, audição e fala, introduzidas desde o início do
programa;
- Participação de especialistas no assessoramento das escolas (Parecer
CNE/CEB nº: 2/2020; Grifos Nossos).
[...]

As escolas bilíngues devem trabalhar as mesmas disciplinas de escolas


convencionais, seguindo as diretrizes da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC, 2018).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É crescente a demanda pela educação bilíngue, dentro do escopo da


Educação Plurilíngue, pela necessidade de formar cidadãos mais preparados
para um mundo globalizado
Através do aprendizado de um segundo idioma as barreiras linguísticas
são derrubadas, permitindo a troca de ideias, experiências e perspectivas entre
pessoas de diferentes partes do mundo. Isso não apenas enriquece a nossa com-
preensão geral, mas também contribui para a construção de relações interpes-
soais e interculturais mais fortes, promovendo a tolerância, empatia e respeito
pela diversidade.
A leitura, o contato com o livro, com as letras, desde tenra idade, desem-
penha papel crucial no aprendizado de idiomas. Além de servir como veículo
para aquisição linguística, ela também é porta de entrada para a compreensão
cultural e a apreciação das diferentes linguagens e das formas de comunicação
presentes na comunidade educacional. Ao abordar os desafios e implementar
estratégias eficazes, as escolas bilíngues podem transformar a leitura em uma
ferramenta poderosa para conectar diferentes culturas e modos de vida.
Habilidades linguísticas ampliadas oferecem vantagens profissionais.
Com a globalização, empresas tendem a valorizar mais os profissionais que con-
seguem se comunicar eficazmente em mais de um idioma. Em última análise, o
aprendizado de um segundo idioma transcende as palavras e se torna um veículo
para a promoção da unidade global em busca de uma coexistência pacífica.
Finalizando, apresentamos um poema que enseja nosso desejo de desen-
volvimento e ascensão do ensino e aprendizagem de idiomas no Brasil:

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M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

Nas margens onde a língua se desenha,


Em suas matizes, a mente se banha,
Aprender, em dois idiomas, é a façanha,
Desvendar horizontes, a vida enseja.

Escolas bilíngues, sabedoria em ascensão,


No Brasil, terra diversa, a comunhão,
Dois mundos se abraçam, em fusão,
Aprendizado duplo, amor em expansão.

Nas páginas da leitura, o encanto floresce,


O segundo idioma em cada verso se aquece,
Palavras que dançam, a mente engrandecem,
Nas mãos do leitor, o mundo se oferece.

A língua é a chave que o mundo desvenda,


Bilíngue é o coração que a cultura estende,
No Brasil, nas escolas, a visão se expande,
Leitura e idiomas, janelas que se abrem e se acendem.
Nesse sentido, o poema de Emily Dickinson traz à tona a importância
da multiculturalidade. Ao explorar a essência da rosa e sua transformação em
óleos essenciais, a poesia sugere que a verdadeira beleza e valor não podem ser
capturados por um único elemento. A referência aos “screws” (parafusos) como
doadores do “attar” (essência) ressalta a colaboração e a união de diversas partes
na criação de algo precioso. Nesse sentido, o poema evoca uma metáfora para a
interação entre diferentes culturas e identidades no mundo multicultural.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasí-
lia, 2018.
CAMBRIDGE. Educação para alunos bilíngues. Disponível em: https://
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164
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
KRAMSCH, Claire. Language and Culture. Oxford Introductions to Lan-
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meros benefícios cognitivos, sociais, culturais e econômicos. (Publicado por
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SALLES, André. Sistema educacional no Canadá: Seu guia completo. Página
Neway for you. Publicado em: 22 de outubro de 2020. Disponível em: https://
newayforyou.com/sistema-educacional-no-canada-seu-guia-completo/ Acesso:
26 de agosto de 2023.

165
REVISITANDO CONCEITOS: SOBRE A EVOLUÇÃO
HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS
Larissa Argenta Ferreira de Melo1
Dirce Maria da Silva2

As marcas das lutas do passado contribuem para a construção do presente e do futuro que se quer
(As autoras).

INTRODUÇÃO

A memória desempenha um papel fundamental no desenvolvimento dos


Direitos Humanos, atuando como um fio condutor que conecta o passado ao
presente e molda o futuro. Através da lembrança das lutas e conquistas do passa-
do, a memória inspira ações e orienta a evolução dos Direitos. Ela não nos deixa
esquecer das batalhas travadas para garantir dignidade, liberdade e igualdade
para todos.
A história das violações passadas alerta contra a repetição de erros e pro-
move a responsabilização por transgressões cometidas. Ao preservar a memória
histórica, as sociedades podem construir um alicerce sólido para a promoção
contínua dos Direitos Humanos, com base no entendimento das lutas e triunfos
que moldaram o presente.

1 Mestranda em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios pelo Centro Universitário


IESB. Pós- Graduada em Direito Processo Civil. Graduada em Direito pela UniDF e em
Administração pela Universidade de Brasília. Advogada e Bancária. E-mail: laruargen-
[email protected].
2 Mestre em Direitos Humanos, Cidadania e Estudos Sobre a Violência. Graduada em
Letras Português/Inglês e suas respectivas Literaturas. O curso de Letras, primeira gra-
duação, ofereceu-me compreensão da linguagem e das narrativas humanas, enquanto o
Mestrado, com foco em Políticas Públicas, ajudou-me a melhor compreender o contexto
social e político em que as questões de cidadania e direitos, ocorrem, fazendo-me melhor
entender como cidadania, direitos e linguagem estão intrinsecamente relacionadas e imbri-
cadas. Membro (Técnico) do Grupo de Pesquisa Literatura e Espiritualidade (GPLE), vin-
culado ao Departamento de Teoria Literária e Literaturas (POSlit / TEL) da Universidade
de Brasília. Membro Fundadora do Instituto de Pesquisa, Desenvolvimento e Apoio a
Neurodivergentes (IPDAN) (Instagram: ipdan.org.br). Atualmente trabalha como profes-
sora da Educação Básica na Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. E-mail:
[email protected].

166
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
O conceito de “Direitos Humanos” sofreu alterações terminológicas e in-
terpretativas ao longo da evolução histórica, em especial pelo fato de configurar-
-se em normas abstratas, que carregam em seu bojo o conceito histórico-social
do que significam “direitos” e “humanos”.
A terminologia A terminologia enfrenta dificuldades, principalmente por-
que as definições estão ligada à teoria usada para limitar a compreensão sobre
o assunto.
Verifica-se, assim, a existência de variadas correntes buscando realizar a
tarefa, cada qual utilizando fatores delimitadores do rol de situações que enqua-
drariam no conceito de “Direitos Humanos”, não raro utilizando nomenclatu-
ras distintas para as definições e conceituações.
O presente artigo objetiva apresentar breve reflexão sobre esse processo
evolutivo, que tem como marco de maior relevância, o advento da Declaração
Universal dos Direitos Humanos (DUDH), e o fortalecimento da Organização
das Nações Unidas (ONU).

O SURGIMENTO DA NOÇÃO DE DIREITOS HUMANOS

Os filósofos gregos, em especial Aristóteles, já elaboravam reflexões acer-


ca da existência de direitos vinculados ao Estado (polis), mas também de regras
aplicáveis à toda humanidade. O conceito, inicialmente latente no espectro fi-
losófico, foi sendo desenvolvido, de modo a consolidar-se também nos aspectos
morais, teológicos e legais.
Ao longo da história das sociedades diversas atrocidades foram cometidas
contra grupos populacionais e segmentos sociais, com especial destaque à escravi-
dão e ao genocídio praticado pelos nazistas. Tais situações geram dúvidas e ques-
tionamentos sobre como se conciliou a onipresente noção da existência de direitos
inerentes à condição humana, construída a partir de constantes práticas de viola-
ções aos mais diversos povos, muitas vezes através da aniquilação e exploração.
No contexto do poder religioso cristão, que teve como seu ápice (ainda que
com atores distintos) na Idade Média, com suas Cruzadas, buscava-se combater
todos aqueles que eram definidos como “não cristãos”, direcionando-se a grupos
sociais específicos, como as folclóricas bruxas, países e territórios que praticassem
religiões distintas. Para tal utilizou-se, basicamente, de conquista e submissão da
população local ao Cristianismo, sob pena de extermínio. Nota-se, assim, que a
condição de “humano” vinculava-se à prática do Catolicismo. Situação semelhan-
te ocorreu no âmbito da reforma protestante e também de guerras civis.
O Absolutismo rompeu com a crença na existência de um direito natural
dos homens, reconhecendo tão somente a vontade do monarca como fonte de
direitos e obrigações.

167
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

Com o advento das Revoluções Americana e Francesa, retomou-se a no-


ção de existência de direitos inerentes a todos os indivíduos, sem limitações re-
ligiosas ou fronteiras nacionais. Na ocasião, reconhecia-se neste rol de direitos
aqueles atualmente intitulados de “1ª geração”, com destaque à propriedade,
vida e liberdade.
Em 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a ‘Declaração
Internacional dos Direitos Humanos’, que atualmente serve como marco teó-
rico à existência da Teoria Internacional de Direitos Humanos, estendendo a
todos os indivíduos, sem discriminação de raça, gênero, nacionalidade ou reli-
gião, a condição de “humano”, portador de direitos advindos desta condição,
que devem ser preservados pela totalidade dos países, vedando-se intepretação
restritiva dos mesmos, ou sua diminuição.

DIREITOS HUMANOS - UMA CONCEITUAÇÃO INICIAL

Conforme entendimento atualmente predominante, estudiosos apresen-


tam proposições sobre a conceituação de “Direitos Humanos”, as quais se com-
plementam no sentido da busca de uma definição que efetivamente contemple
o tipo de garantia que se pretende assegurar a todas que se enquadram na con-
dição humana.
Peres Luño (2016, p.48) considera-os como o “conjunto de faculdades e
instituições que, em cada momento histórico concretiza as exigências de digni-
dade liberdade e igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positiva-
mente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional”.
Carvalho Ramos (2016, p. 40), em complemento à definição anterior-
mente relacionada, entende os Direitos Humanos como “conjunto mínimo de
direitos necessários para assegurar a vida do ser humano baseada na liberdade,
igualdade e dignidade”.
Nota-se a semelhança entre as conceituações, que refletem o momento his-
tórico vigente, que busca uma sistematização que permita entendimento global
quanto a esses direitos, a despeito das características culturais e ideológicas de
cada povo. Os direitos a serem assegurados e protegidos são entendidos como ine-
rentes à natureza humana, conforme conscientização temporal da existência des-
ses direitos e a imprescindibilidade destes para a existência de forma livre e digna.

168
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
ABORDAGEM INICIAL DAS CORRENTES EVOLUTIVO-
FORMATIVAS NOS DIREITOS HUMANOS
Sobre os Jusnaturalistas

A corrente Jusnaturalista defende que o direito é independente da vonta-


de humana, ele existe antes mesmo do homem e acima das leis do homem, para
os jusnaturalistas, o direito é algo natural e tem como pressupostos os valores
do ser humano, e busca sempre uma ideal de justiça. Sendo este um Direito
Universal, imutável e inviolável. Um tipo de lei que é imposta pela natureza.
Isso vai ao encontro do pensamento de São Tomás de Aquino, baluarte
desta corrente, que entendia os Direitos Humanos como aqueles advindos da ra-
zão divinal e coexistentes com a humanidade desde a sua criação (direito natural
de razão divina). Por consequência, utilizava a denominação “direito natural”,
tendo em vista o entendimento de que estes direitos são inerentes à própria na-
tureza humana.
Tal entendimento ignora o aspecto histórico inerente à identificação do
que seriam tais direitos, e sua consequente mutação ao longo do tempo. Segundo
Kant, a liberdade constituía um direito inato; de acordo com Aristóteles, a es-
cravidão era intrínseca à natureza; e conforme Locke, a propriedade privada
representava um direito inerente. Ora, se os direitos são intrínsecos à existência
da humanidade, presume-se que estes se manteriam inalteráveis desde sempre, o
que não se verifica em experiência prática.
Norberto Bobbio (1999, pp. 22-23) vislumbra duas teses básicas do mo-
vimento jusnaturalista: A pressuposição de duas instâncias jurídicas: o direito
positivo e o direito natural. A segunda tese do jusnaturalismo é a superioridade
do direito natural em face do direito positivo. Neste sentido, o direito positivo
deveria, conforme a doutrina jusnaturalista, adequar-se aos parâmetros
imutáveis e eternos de justiça. O direito natural enquanto representativo da
justiça serviria como referencial valorativo e ontológico, perante pena da ordem
jurídica identificar-se com a força ou o mero arbítrio. Neste sentido, o direito
vale caso seja justo e, pois, legítimo, daí resultando a subordinação da validade
à legitimidade da ordem jurídica.
Os jusnaturalista do direito natural moderno utilizam a expressão “direitos
do homem”, vinculando-a ao termo “humanos”, deliberadamente masculino, e
que dependendo do contexto interpretativo, exclui mulheres e crianças. Destaca-
se, inclusive, que à época do surgimento desta corrente, as mulheres e crianças
não usufruíam da proteção jurídica, submetendo-se à proteção dos homens, que
sobre eles tinham poder de vida e morte. Então o conceito de “direitos do ho-
mem”, de fato, se aplicava tão somente aos homens, assim como todo o rol de

169
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

direitos existente à época. No atual momento, que busca a universalidade dos


Direitos Humanos a todos pertencentes à condição humana, tal entendimento
perde seu valor.

Sobre os Positivistas

O Positivismo teve sua influência nos mais variados aspectos sociais,


marcando o período de ascensão do pensamento racional. Por consequência, o
direito passou a se confundir com a normatização, de modo que sua existência
se condicionava ao reconhecimento formal pelo Estado. Não se compreendia
a existência de direitos que não houvessem sido identificados e compilados, de
modo que situações que fugissem desta condição se enquadrariam no não-direi-
to, o que reflete a dualidade desta corrente.
Em decorrência deste entendimento, tem-se que o conceito de “direitos
humanos” compreendido neste contexto se presta a um retrato fiel do entendi-
mento vigente naquele momento histórico, que tinha por premissa os direitos de
primeira geração (igualdade, liberdade e fraternidade), e a intepretação destes
por cada Estado.
A mais grave crítica a esta corrente é a mesma que se faz, no contexto
atual, à diferença entre Direitos Humanos constantes no ordenamento jurídico
interno de determinado Estado, e qualquer outro não positivado, mesmo que
vigente em contexto internacional.
Partindo da premissa de reconhecer somente o que está positivado interna-
mente, sem nenhum tipo de visão “de fora”, permite-se a prática de verdadeiras
violações aos Direitos Humanos. O exemplo mais proeminente desta situação
ocorreu na Alemanha nazista. O extermínio de judeus se deu em conformidade
aos direitos positivados no ordenamento jurídico alemão, dos quais os judeus
foram excluídos, por entendimento de que não eram parte da “humanidade”.

Sobre a Fundamentação Moral

Carvalho Ramos (2016, p. 57), ao citar Dworkin, nos diz que “os direitos
morais consistem no conjunto de direitos subjetivos originados diretamente de va-
lores (contidos em princípios) independentemente da existência de regras postas”.
Esta “moralidade” não necessariamente seria positivada, mas explícita
por princípios. Seriam, portanto, uma reflexão acerca de diretrizes, levando-se
em consideração os valores vigentes em determinado contexto histórico, adap-
tando-se a aplicação (pela via jurisdicional) às necessidades de cada povo.
Ressalta-se que o fato de se permitir aos Estados adaptarem os princí-
pios e normas internacionais de Direitos Humanos ao seu contexto particular

170
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
não supõe a possibilidade de qualquer tipo de interpretação. Ao contrário, serve
como base norteadora da qual não se poderá afastar, em nenhum aspecto, nem
mesmo sob alegação efetivação da soberania interna.
Carvalho Ramos (2016, p. 59), adepto da base moral para definição dos
direitos humanos, afirma que “a fundamentação de direitos humanos como di-
reitos morais busca a conciliação entre os Direitos Humanos entendidos como
exigências éticas ou valores e os direitos humanos entendidos como direitos po-
sitivados” A partir deste entendimento, fundamenta a existência de sua Teoria
Internacional dos Direitos Humanos.

DA TEORIA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS

Segundo Carvalho Ramos, (2016, p.28) “[...] as normas de Direitos


Humanos, vagas ou repletas de conceitos indeterminados, necessitam incessan-
temente da concretização judicial de seu alcance e sentido”. Assim, pode-se per-
ceber a ligação entre o conceito de Direitos Humanos, vigente em determinado
contexto histórico-cultural, e sua transmutação em decisão jurisprudencial.
A fundamentação internacional do que se entende como Direitos
Humanos, conflita, não raro, com o entendimento de determinado estado so-
bre estes direitos. Nestes casos, surge o dilema a ser combatido pela Teoria
Internacional dos Direitos Humanos, e externado por Carvalho Ramos (2016, p.
53): “Se os direitos humanos são aqueles declarados e reconhecidos pelo Estado,
o que fazer quando não existe esse prévio reconhecimento pelo Estado? Como
protegê-lo com efetividade, então? ”
Tal resposta, ainda segundo Carvalho Ramos (2016, p.55) “está no refe-
rencial ético que justifica terem os Direitos Humanos posição superior no orde-
namento jurídico, capaz inclusive de se sobrepor a eventual ausência de reconhe-
cimento explícito por parte do Estado”.
Principalmente após o fim da Segunda Guerra Mundial (e os horrores do
nazismo), criou-se no ambiente internacional um desejo por paz, de defesa da
democracia e dos Direitos Humanos. Para tal intento, houve a necessidade da
existência de normatização supranacional que estabelecesse um núcleo mínimo
de direitos dos quais não se poderia abdicar em função da condição de humani-
dade inerente a todos os indivíduos, sem distinção.
O surgimento da Organização das Nações Unidas (ONU) e os tratados e
decisões decorrentes de sua existência, são os principais reflexos da concretiza-
ção do caráter de universalidade das discussões acerca dos Direitos Humanos e
da manutenção da paz mundial.
O marco teórico de maior relevância, neste contexto, é a criação con-
junta da documentação que possibilitou a Declaração Universal dos Direitos

171
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

Humanos, aprovada em 10 de dezembro de 1948, e que serve como ancoragem


a manutenção da existência dos Direitos Humanos, com caráter internacional,
supranacional, originados tão somente da condição humana do indivíduo.
Carvalho Ramos (2016, p. 68) destaca que “A soberania dos Estados
foi, lentamente, sendo reconfigurada, aceitando-se que a proteção de Direitos
Humanos era um tema internacional, e não um mero tema de jurisdição local”.
Nesse sentido, ele acrescenta.
Sem uma teoria sistematizada de direitos humanos repleta de marcos de
orientação para decisões futuras, deslegitima-se o próprio intérprete in-
ternacional, que muitas vezes terá que avaliar atos estatais aprovados por
maioria democrática, mas violadores de direitos humanos de minorias
(Carvalho Ramos, 2016, p.38).

Por esta razão, busca-se, no contexto histórico-cultural vigente em âmbito


mundial, a elaboração de uma Teoria Geral Internacional de Direitos Humanos,
de modo que as oscilações interpretativas de determinado Estado não impactem
no respeito aos Direitos Humanos, conforme são reconhecidos em contexto global.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme explanado, a definição de “Direitos Humanos” reflete o enten-


dimento preponderante em determinado contexto histórico, econômico e social.
Em especial, no que se refere ao conceito de humanidade, e dos indivíduos que
gozam desta prerrogativa. Felizmente, na atualidade, consolidou-se o entendi-
mento de que todos os seres humanos, independente de especificidades concer-
nentes à sua individualidade, são portadores de Direitos Humanos,
Verificou-se a existência de diversas correntes, que buscaram definir quais
seriam os Direitos Humanos, e a respectiva nomenclatura que os definiriam,
dentre as quais destacou-se os negacionistas, jusnaturalistas, positivistas e de
fundamentação moral, corrente esta adotada por André de Carvalho Ramos,
autor referência neste artigo.
A despeito das críticas a cada um dos entendimentos, mostra-se inegá-
vel a contribuição dos mesmos para o atual entendimento e conceituação dos
Direitos Humanos.
Percebe-se que a conscientização social, quanto aos valores e garantias,
que deveriam ser contemplados no rol de Direitos Humanos, coaduna-se com a
evolução do pensamento social. Comportamentos que, até pouco tempo, eram
entendidos como legítimos e não violadores de Direitos Humanos (inclusive
pelos que padeciam em função deles como, por exemplo, os escravos), hoje são
abominados de maneira global pela humanidade, incluindo aqueles que sequer
estão submetidos à violação. Não raro, tem-se, por exemplo, genocídios sofridos

172
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
por determinados povos que não se manifestam no âmbito internacional quanto
à violação de seus direitos, mas que os têm representados por Estado diverso
daquele em que o fato ocorre. Tal comportamento é reflexo do anseio mundial
de busca por paz social.
A proteção aos Direitos Humanos passa, então, a ser entendida como res-
ponsabilidade de todos, que se comprometem a deles zelar no âmbito do ordena-
mento interno de seus países, mas também em contexto mundial, impedindo ou
denunciando atos que os violem. Tal situação não se opõe à manutenção das so-
beranias nacionais. Presta-se mais a uma espécie de regulação que impeça que o
exercício do poder soberano ocorra às custas do sacrifício dos Direitos Humanos
do povo a ele submetido, como ocorreu, por exemplo, no caso da escravidão.
“Os Direitos Humanos nascem como direitos naturais universais, desen-
volvem-se como direitos positivos particulares (quando cada Constituição incor-
pora declaração de direitos) para finalmente encontrar a plena realização como
direitos positivos universais” (Bobbio, 2004, p.30), pois,

Ao longo da corrente do tempo em fluxo,


Os Direitos Humanos entrelaça e transforma,
Um conceito de significado profundo,
Em constante dança, pois evolução é a norma.

REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 2004, pág.30.
PERES LUÑO, Antônio. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitui-
cion. Ed. Madrid: Tecnos, 1995, p.48.
RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem
internacional. Ed Saraiva Jur, 2016.

173
EIXO V

A ESTÉTICA DA MEMÓRIA E
DA EXPRESSÃO
UMA BREVE PRELEÇÃO SOBRE O BELO
COMO REPRESENTAÇÃO DO BEM
Dirce Maria da Silva1
Francisco Ronaldo Frazão de Lima2

Para os puros, todas as coisas são puras


(São Paulo, o Apóstolo das virtudes, e do bem).

INTRODUÇÃO

O conceito de belo tem sido explorado ao longo dos séculos por poetas, fi-
lósofos e pensadores de culturas e épocas diversas, com a beleza sendo celebrada
como representação do bem.
No presente texto, uma preleção ensaística sobre o belo na natureza,
aborda-se visões que se relacionam com a ideia do belo e do bem, valendo-se
de leituras de filósofos clássicos, modernos e contemporâneos, como esteio e
inspiração, para apresentar ao final uma sucinta exegese do poema musical
“Só Há o Belo”.
1 Mestre em Direitos Humanos e Estudos Sobre a Violência. Graduada em Letras Portu-
guês/Inglês e suas respectivas Literaturas. O curso de Letras, minha primeira graduação,
ofereceu-me compreensão da linguagem e das narrativas humanas, enquanto o Mestrado
em Direitos Humanos, com foco em políticas públicas, ajudou-me a melhor compreen-
der o contexto social e político em que as questões de cidadania ocorrem. Essa intersec-
ção multidisciplinar mostram-me cada vez mais como áreas diferentes do conhecimento
dialogam, nas diferentes e complexas questões da sociedade contemporânea. Membro
(Técnico) do Grupo de Pesquisa Literatura e Espiritualidade (GPLE), vinculado ao De-
partamento de Teoria Literária e Literaturas (POSlit / TEL) da Universidade de Brasília.
Membro Fundadora do Instituto de Pesquisa, Desenvolvimento e Apoio a Neurodivergen-
tes – IPDAN/DF (Instagram: ipdan.org.br; [email protected])). Atualmente trabalha
como professora da Educação Básica na Secretaria de Estado de Educação do Distrito
Federal. E-mail: [email protected].
2 Pós-doc em Engenharia Elétrica. Professor Adjunto do Departamento de Engenharia Elé-
trica da Universidade de Brasília (Aposentou-se em 1996). Engenheiro Elétrico na área
de Planejamento da Expansão da Rede Elétrica da Companhia Energética de Brasília
(Aposentou-se em 2014). Psicólogo Clínico (UNICEUB/2014), com TCC sobre o tema
Psicoterapia e Espiritualidade, segundo a Gestalt Terapia. CRP-18659. Pós-graduado em
Psicologia Pré-perinatal. Helper in Pathwork. Formação em andamento na área da Saúde
em Biodecodáge-Decodificação biológica de doenças pelo Instituto Cintia Chiarelli/PR.
E-mail: [email protected].

175
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

Em termos literários, o presente texto vale-se, sobretudo, da riqueza con-


ceitual e legado da obra “Teoria Literária”, de Hênio Tavares (1991), para explo-
rar conceitos e premissas que moldam a presente palestra.

SOBRE A BELEZA – EN PASSANT

A Beleza é um conceito multifacetado. A ideia de beleza está relacionada


à harmonia e à simetria e tem raízes em tempos imemoriais. Para nos atermos
ao escopo estético-literário, abordaremos o conceito a partir dos gregos.
Platão (427-347 a. C.) acreditava que a Beleza era a forma ideal e trans-
cendental, não encontrada na realidade material, mas apenas no mundo das
ideias. Em sua obra “A República,” ele descreveu o “Mundo das Ideias” ou
“Mundo das Formas,” descrevendo a beleza como forma pura e eterna que ser-
via como modelo para todas as manifestações de bem na realidade material.
Segundo Platão, a beleza estava intrinsecamente ligada à verdade e à virtude, e
mediante sua contemplação poderíamos ser conduzidos à ascensão espiritual.
De forma distinta, Aristóteles (384-322 a. C.) tinha abordagem mais em-
pirista e centrada na realidade em relação ao conceito. Ele argumentava que a
beleza não era forma ideal, mas uma qualidade presente nos objetos do mundo
real. Ele desenvolveu a ideia de “katharsis” (purificação ou purgação) em sua
“Poética,” sugerindo que a experiência da tragédia, que envolve elementos esté-
ticos, poderia gerar emoções purificadoras no público. Para Aristóteles, a beleza
estava relacionada à harmonia, proporção e equilíbrio.
Em seu texto seminal, “A Poética”, Aristóteles discute a beleza da tragédia
e do drama, explorando elementos que tornam uma obra literária esteticamente
agradável. Seus conceitos de Mimese (imitação da vida real) e Catharsis (purifica-
ção das emoções do público através da experiência da tragédia), Complexidade/
Unidade (interação de personagens e eventos e estrutura coerente que liga todos
os elementos da história), perduram até nossos dias.
De forma sucinta, listamos abaixo características que diferem os dois filó-
sofos gregos no que diz respeito ao conceito de Beleza:

Tabela 1: A Beleza em Platão e Aristóteles


Platão: beleza como aspecto transcendental, for- Aristóteles: beleza como qualidade presente no
ma ideal não encontrada na realidade; mundo material.

Platão: relacionava a beleza à verdade e à virtude; Aristóteles: enfatizava a harmonia e a proporção.

Platão: acreditava que a contemplação da beleza Aristóteles: associava a apreciação da beleza à


era uma busca espiritual; experiência estética e à catarse emocional.
Fonte: Os autores, 2023.

176
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Abordagens diferentes que se locupletam. Ambos os filósofos reconhe-
cem a importância do conceito de Beleza para a experiência humana.
Na transição entre a Antiguidade Tardia e a Idade Média, encontram-se
Agostinho e Aquino. Ambos os filósofos viam a beleza como algo significativo
em termos espirituais e teológicos. Mas enquanto Santo Agostinho enfatizava
a beleza como uma via para a conexão com Deus, Santo Tomás de Aquino a
tratava como uma qualidade intrínseca às coisas e à criação divina.
Santo Agostinho (354-430) explorou a ideia de beleza em várias de suas
obras, sobretudo em “Confissões”. Agostinho argumenta que a beleza era uma
qualidade intrínseca de Deus e que toda beleza terrena era apenas um reflexo da
beleza divina. Valendo-se mais detidamente da filosofia de Platão, ele associava
a busca da beleza à verdade e a Deus. Para ele, a beleza era uma forma de nos
aproximarmos mais de Deus e de encontrar significado espiritual na criação.
Por sua vez, Santo Tomás de Aquino (1225-1274) também discutiu o
conceito de beleza em suas obras, principalmente na “Summa Theologiae.” Ele
definiu a beleza como uma das três propriedades da forma, juntamente com a
integridade e a proporção. Concordando com Aristóteles, para Aquino a beleza
estava relacionada à harmonia e à proporção, com algo sendo considerado belo
quando suas partes estavam em equilíbrio e harmonia.
Mais recentemente, Edmund Burke, orador irlandês do século XVIII,
em sua obra “Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do
Sublime e do Belo” (1757), argumenta que a beleza na literatura é uma experiência
subjetiva e pessoal, relacionando-a a sentimentos de prazer e satisfação estética.
Burke distingue grandezas como sublime/grandeza, terror/poder, belo/
suavidade, simetria/harmonia, significado/transcendência, argumentando que
tais sentimentos estéticos são inerentes à natureza humana e são evocados por
experiências diversificadas. Suas análises dos conceitos de beleza e sublime e
como eles se relacionam à experiência humana, influenciaram sobremaneira a
teoria estética.
Já no século XX, o pensador russo Roman Jakobson propôs a teoria das
Funções da Linguagem, que descreve diferentes aspectos da comunicação lin-
guística. Uma dessas funções é a “poética,” na qual a linguagem é usada de
maneira especial para chamar a atenção para a própria forma e expressividade,
o que pode ser considerado forma de buscar a beleza, ao destacar suas caracte-
rísticas estilísticas.
Mikhail Bakhtin, crítico literário russo, explica-nos que a beleza na li-
teratura está vinculada à verossimilhança, isto é, à capacidade de uma obra de
arte criar um mundo fictício que pareça real e autêntico para o leitor. Segundo
Bakhtin, a beleza em uma obra literária está intrinsecamente ligada à capacidade

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M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

dessa obra de criar um mundo fictício que parece verossímil a quem o leia. Ele
argumenta que a literatura ganha seu poder estético quando consegue refletir a
vida de maneira convincente, fazendo com que os personagens, diálogos e cená-
rios pareçam verdadeiros e palpáveis.
Roland Barthes argumenta que a beleza na literatura pode ser subversiva e
desafiadora, isto é, o que é percebido como belo pode ser usado para questionar
normas e valores sociais, ou seja, Barthes acredita que o que é percebido como
belo em uma obra literária pode ser usado de maneira desafiadora, muitas vezes
desconstruindo as expectativas do leitor e desafiando a ordem estabelecida. Para
Barthe, a beleza não é estática, mas dinâmica, capaz de provocar reflexão e esti-
mular a mudança na percepção das convenções sociais, tornando-se assim força
subversiva e revolucionária na literatura.
John Keats, “o último romântico”, demonstra como a beleza está asso-
ciada à pureza em suas “Odes,” que expressam, em forma de poesia, beleza e
verdade. Para Keats, a beleza não é qualidade superficial, mas forma elevada de
expressão artística.
As “Odes” de Keats “encapsulam a exploração da beleza como cami-
nho em direção à transcendência, em que a poesia se torna veículo para a bus-
ca do sublime e da compreensão mais profunda do mundo”. Em “Ode a um
Rouxinol”, ele nos fala no canto V:
Não posso ver as flores a meus pés se abrindo,
Nem o suave olor que desce das ramagens,
Mas no escuro odoroso eu sinto defluindo
Cada aroma que incensa as árvores selvagens,
A impregnar a grama e o bosque verde-gaio,
O alvo espinheiro e a madressilva dos pastores,
Violetas a viver sua breve estação;
E a princesa de maio, A rosa-almíscar orvalhada de licores
Ao múrmuro zumbir das moscas do verão
(Keats, 1819; Trad. de Augusto Campos, 1987, p. 130-149).

Keats parece nos transportar para um lugar onde os sentidos possuem


íntima, ampla e profunda conexão com a natureza, numa demonstração do po-
der da poesia em evocar experiências sensoriais e de transmitir a sensação de se
estar imerso na beleza natural.

178
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
SOBRE A FILOSOFIA DO BEM

A “Filosofia do Bem e do Belo”, que no mundo ocidental tem suas raízes


na filosofia grega antiga, é campo que se dedica à investigação e reflexão sobre a
natureza do bem e sua relação com o mundo e os seres humanos.
Herdeira da ética e da moralidade, a “Filosofia do Bem” postula que
ações virtuosas, como a bondade, a justiça e a compaixão, são a essência da
natureza humana e que a busca do bem moral é uma jornada fundamental na
vida. As correntes filosóficas que abraçam essa ideia veem a busca do bem como
um caminho para uma conexão espiritual mais profunda, pois acreditam que ao
viver de acordo com valores morais, as pessoas se aproximam de uma verdade
espiritual ou transcendental.
A “Filosofia do Bem” promove o altruísmo e o serviço aos outros como
meio de manifestar o bem na criação. Isso envolve ajudar e cuidar dos neces-
sitados, contribuindo para o bem-estar da humanidade como um todo. Nesse
sentido, a busca do bem como processo de purificação e transformação pessoal,
envolve superar características negativas e cultivar virtudes que refletem o bem.
A “Filosofia do Bem” se estende à apreciação e completo respeito pela
natureza. A ideia de que só há o bem em toda criação lembra-nos que há uma ética
ambiental, que busca a preservação e a harmonia do meio ambiente.
É importante observar que a concepção do bem e sua relação com
a criação podem variar amplamente entre diferentes sistemas de crenças e
correntes filosóficas. No entanto, a “Filosofia do Bem” inspira indivíduos a bus-
car uma vida mais significativa e altruísta, contribuindo para um mundo mais
justo e harmonioso.

SOBRE A ILUSÃO DO MAL

“A Ilusão do Mal” é uma ideia que sugere que o mal, em sua essência,
como uma distorção da realidade. Essa perspectiva é explorada em diversas tra-
dições filosóficas, religiosas e espirituais e tem implicações na forma como en-
frentamos desafios e adversidades.
Uma das maneiras pelas quais essa perspectiva pode nos ajudar a superar
desafios e adversidades é promovendo uma visão de que o sofrimento e a nega-
tividade não são inerentes à existência, mas sim produtos de nossas percepções
e apegos. Isso pode levar a uma maior aceitação das dificuldades e a uma abor-
dagem mais tranquila diante das adversidades.
A crença na ilusão do mal também pode encorajar a responsabilidade
pessoal. Se o mal é visto como uma ilusão, isso pode nos motivar a assumir a res-
ponsabilidade por nossas ações e escolhas, reconhecendo que somos capazes de

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
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superar padrões prejudiciais de pensamento e comportamento.


Essa perspectiva muitas vezes promove a empatia e a compaixão em rela-
ção aos outros, pois reconhece que as pessoas podem ser levadas a cometer atos
prejudiciais devido a suas próprias ilusões e sofrimentos, o que pode abrir espaço
para a compreensão e o perdão.
A ilusão do mal pode motivar a busca pelo bem e pelo conhecimento,
pois sugere que a verdadeira natureza da realidade está ligada à bondade e à
sabedoria. Isso pode também nos encorajar a procurar a iluminação espiritual
e o aprimoramento pessoal.
É importante não se perder de vista que essa perspectiva não nega a exis-
tência do sofrimento e da injustiça no mundo, mas oferece uma maneira de
reinterpretar essas experiências à luz de uma compreensão mais profunda da
realidade. Cada pessoa pode abordar essa crença de maneira única. Para muitos,
ela pode servir como uma fonte de conforto, esperança e orientação, em face das
adversidades da vida.

A CONEXÃO ENTRE A NATUREZA E O BEM

A conexão entre a natureza e o bem-estar humano é tema amplamente


apreciado. A contemplação da natureza pode promover uma mentalidade posi-
tiva, contribuindo para o bem-estar emocional e mental.
A beleza encontrada na natureza frequentemente evoca emoções positi-
vas e uma sensação de admiração. Observar paisagens naturais, flores, árvores e
animais, pode inspirar sentimentos de gratidão e apreciação, que são componen-
tes-chave do bem-estar emocional.
A natureza nos lembra da constante renovação e do ciclo da vida. Isso pode
ser inspirador, especialmente em momentos de perdas ou dificuldades, ajudando
pessoas a lidar com eventos difíceis de maneira mais resiliente, pois a natureza
desperta a sensação de conexão com algo maior. Essa sensação de pertencimento
pode contribuir para um sentimento de propósito e significado na vida, fatores que
também são fundamentais para o bem-estar emocional e mental.
Em síntese, a conexão entre a natureza e o bem-estar emocional e mental
é profunda e bem documentada. A contemplação da natureza oferece oportu-
nidade de se encontrar conforto e cultivar mentalidade positiva, incorporando a
natureza em nossas vidas diárias, mesmo que seja apenas por breves momentos,
o que pode ter um impacto bastante significativo em nossa saúde.

180
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
O BEM COMO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO ESPIRITUAL

Conforme podemos constatar, no caminho da experiência humana existe


a busca incessante pela compreensão da dualidade bem e mal, dilema que atra-
vessa os séculos, desafiando filósofos, teólogos e pensadores de todos os matizes.
O verso “Só há o bem em toda natureza,” excerto do poema de Francisco
Frazão, que conta com versão musicada por Dirce Salomé em ritmo de valsa,
cantada durante as sessões terapêuticas, momentos em que nos conectamos de
forma mais próxima com nossas subjetividades, em busca de autoconhecimento,
por meio da musicoterapia, da fruição musical, ressoa o excerto poético como
uma declaração-afirmação-desejo, que nos convida a refletir sobre a natureza des-
sa dualidade e a possibilidade de que o mal seja, de fato, tão somente uma ilusão.
À medida que exploramos essas palavras, embarcamos em uma jornada
rumo à compreensão da natureza essencial do bem e do mal, questionando
nossas percepções e crenças arraigadas em busca da verdade subjacente à
existência humana.
Nesse sentido, o hino-excerto poético nos convida também a refletir sobre
as implicações que essa dualidade pode ter em nossas vidas, a forma mesmo
como percebemos o mundo que nos cerca. Apresentamos a seguir o hino-poema
na íntegra.

Só Há o Belo3
Só há o belo em toda natureza
Lindas flores amarelas e azuis
Folhas verdes que flutuam no espaço
Sob um céu ensolarado, azul de anil
Folhas verdes que flutuam no espaço
Sob um céu ensolarado, azul de anil
Só há o bem em toda natureza
Que com amor nos preenche o coração
Todo mal é irreal, é fruto da ilusão
Só há o bem em toda criação
Todo mal é irreal é fruto da ilusão
Só há o bem em toda criação4
Francisco Frazão, Psicólogo, Helper Passwork/DF

3 O Hinário Guiança Divina de Francisco Ronaldo Frazão de Lima é composto dos hinos:
1. Só há o belo (Valsa); 2. Processo interno (Valsa); 3. Vontade consciente (Marcha); 4.
Aceitar a correção (Marcha); 5. Eu Sou Fonte (Valsa); 6. Flores do meu Jardim (Marcha);
7. Guiança Divina (Marcha e Valsa); 8. Contemplando a Estrela D’alva (Valsa); 9. Emo-
ções (Valsa); e 10. Estar na Mansão de Deus (Marcha).
4 Escrito há mais de uma década, se transformou em um hino, musicado em ritmo de valsa
por Dirce Salomé, cantado nas sessões terapêutico-musicais.

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Nesse sentido, a dualidade entre bem e mal, em termos espirituais, refe-


re-se à concepção de que há uma luta constante entre forças opostas que repre-
sentam a virtude e a negatividade, questão fundamental nas tradições espirituais
e religiosas, contextos em que o bem muitas vezes é associado à luz, à pureza, à
bondade e à moralidade, enquanto o mal é relacionado à escuridão, à impureza,
à maldade, às trevas.
Essa dualidade desafia indivíduos a fazerem escolhas que promovam o
bem e a superar as tentações ou influências negativas em suas vidas, em busca
da elevação espiritual e da harmonia com o divino.
No contexto espiritual, o bem está frequentemente associado à morali-
dade e à ética, visto como princípio que orienta a conduta e nos leva a escolher
ações que promovam a bondade, a compaixão e a virtude. Nesse contexto, a bus-
ca pelo bem envolve a purificação do coração e a adesão a códigos morais que
ajudam a pessoa a se aproximar de uma vida mais significativa e em harmonia
com os valores espirituais e subjetivos.
O bem muitas vezes é considerado o objetivo final do desenvolvimento es-
piritual. Buscar o bem é buscar a iluminação, a realização espiritual e a conexão
profunda com o divino ou com uma dimensão espiritual superior. Essa busca
pode levar à compreensão de que o bem é inerente à natureza essencial de todas
as coisas e que a realização espiritual é, em última análise, a realização do bem.
Conceitos perenes, inerentes à existência humana, a dicotomia entre bem
e mal é trabalhada ainda por alguns autores ao longo da história que não pode-
mos deixar citar, tais como Paramahansa Yogananda, que enfatiza a vitória do
bem no nível anímico, argumentando que a busca da espiritualidade e da medi-
tação pode purificar a alma, afastando influências negativas.
No nível mental, filósofos como Immanuel Kant argumentam que a mo-
ralidade e a razão podem triunfar sobre impulsos mentais negativos, promoven-
do o bem na tomada de decisões.
Na esfera psíquica, psicólogos como Carl Jung exploraram a psicologia
do bem e do mal e destacaram a importância da integração das partes sombrias
da psique para alcançar a harmonia psíquica, favorecendo o bem.
Em termos matérias e sociais, Mahatma Gandhi defendia a não violência
como um caminho para a vitória do bem sobre o mal no plano material, promo-
vendo a justiça e a igualdade.

182
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
MAS, AFINAL, O QUE É O BELO?

“Etimologicamente, a palavra Estética vem do grego, significa “sensa-


ção”. É uma parte da Filosofia que se ocupa de uma teoria geral da sensibili-
dade” (Tavares, 1991, p. 9). Então, segundo esse objeto, pode-se afirmar ser a
Estética a ciência do Belo ou a filosofia da Arte.
A partir desse ponto, Hênio Tavares (1991) em Teoria Literária, traz à
luz premissas que nos fazem pensar a respeito do assunto, quando nos relembra
que Kant, na “Crítica da Razão Pura”, deu-lhe por objetivo o estudo da sensibi-
lidade e das formas puras do sentimento. Também outro alemão, Alexandre G.
Baumgarten (1714-1762) diz, “a Estética é uma ciência psicológica, limitando
seus confins pelas balizas do belo subjetivo”.
Platão afirmava ser “o Belo o esplendor da verdade”. Santo Tomás es-
creveu que “belas são as coisas que vistas, agradam”. Para Aristóteles, no
capítulo VII de sua “Poética”, “o Belo consiste na ordem e na grandeza”
(Tavares, 1991, p. 10).
Olavo Bilac, em seu texto “A Beleza e a Graça”, em Conferências
Literárias (1906) nos diz que Voltaire, quando lhe pediram que definisse o Belo,
respondeu, com graça e razão: “le beau pour le crapaud, c’est sa crapaude.”. E
Malba Tahan, por sua vez, em “Uma Lenda Sobre a Beleza” afirma que “o Belo
é a unidade na variedade” (Tavares, 1991, p. 14).
Entretanto, ainda conforme Tavares (1991), se o belo é o que nos agrada,
segundo afirma a teoria sensorial, pela qual tudo aquilo que causa satisfação aos
sentidos é belo, também há as coisas que, embora sejam agradáveis, nada en-
cerram de beleza, tais como as estórias que caracterizam o belo-trágico. Então,
nesse sentido, a estética nos convida a pensar ainda mais sobre a complexidade
do belo, pois “há mentiras e desacordos belíssimos nas lendas e mitologias”.
Isso, certamente, nos desafia a ampliar nossa compreensão a respeito do
belo, que pode residir não apenas nos prazeres sensoriais, mas também na ri-
queza da narrativa, na reflexão filosófica e na capacidade de despertar emoções
profundas, o que nos incentiva a explorar a diversidade das formas que o belo
pode assumir, além da superfície do que nos agrada visualmente.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

As virtudes do belo não estão circunscritas ao aspecto estético. O concei-


to é amplo. Pode ser visto como um reflexo do bem, a inspirar nossas vidas, a
despertar nosso desejo por virtude, a nos conectar com o divino, pois, à medida
que continuamos a explorar a conexão entre o belo e o bem, somos convidados
a contemplar como a percepção da beleza pode nos conduzir a outras compreen-
sões, igualmente significativas.
Ao dizer que “O belo é o esplendor da verdade”, Platão pauta a Beleza
em si mesma, no mundo das ideias, separada do mundo sensível no qual vive-
mos. Assim, as coisas seriam mais ou menos belas a partir de sua participação
nessa ideia suprema de Beleza, que independem da interferência ou do julga-
mento humano.
Aristóteles, por sua vez, entende que o Belo não pode ser desligado do ho-
mem, já que ele está em nós, é uma fabricação humana. Para ele, as artes podem
imitar a natureza, como também podem abordar o impossível, o irracional e o
inverossímil. Isto é, para Aristóteles as artes podem ter uma utilidade prática,
que é completar o que falta na natureza.
O belo e a esperança costumam andar de mãos dadas, alimentando-se
mutuamente. Dessa forma, esta preleção é um pequeno exercício pessoal de
cultivo à esperança; uma ode mesmo à esperança5, a nos ensina que, apesar
das lutas e desafios, o belo pode prevalecer em nossa existência, nutrindo-nos,
conduzindo-nos a caminhos mais plenos, significativos, e com mais propósitos.

REFERÊNCIAS
CAMPOS, Augusto. Vialínguagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1987,
p. 130-149.
MLA. Aristóteles. A Política de Aristóteles. Oxford: Clarendon Press, 1905.
PLATÃO. Banquete, Fédon, Sofista e Político. [Tradução José Cavalcante de
Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa]. Coleção Os Pensadores. São Paulo:
Nova Cultural, 1991.
TAVARES, Hênio. Teoria Literária. Villa Rica Editoras Reunidas Limitada.
Belo Horizonte, Rio de Janeiro, 1991.

5 O Culto à Esperança pode se manifestar na religião e na espiritualidade; na política e nos


movimentos sociais; na psicologia do bem-estar; na Literatura e na Arte; na Educação; na
terapia e aconselhamento. Na Literatura, Gabriel García Márquez em sua mágica obra
“Cem Anos de Solidão” explora o tema da esperança. Na narrativa, em meio a circuns-
tâncias desafiadoras, Márquez faz uso do realismo mágico para transmitir mensagens pro-
fundas sobre a natureza humana e a busca por um futuro melhor.

184
MEMÓRIAS AFETIVAS NA
ARTETERAPIA
Elizabete Adelaide da Silva1
Dirce Maria da Silva2

O reconhecimento interno e a conexão com lembranças


afetivas positivas resultaram para mim em sentimentos de gratidão.

INTRODUÇÃO

Na Arteterapia, os processos envolvem o uso da criação artística como


ferramenta terapêutica para explorar e expressar emoções, pensamentos e
memórias.
As memórias afetivas desempenham papel crucial nesses processos, pois
estão intrinsecamente ligadas a experiências emocionais que podem influenciar
a forma como as pessoas se relacionam consigo mesmas e com os outros. Elas
podem ser tanto positivas quanto negativas, e frequentemente moldam nossos
padrões de pensamento, comportamento e relacionamentos. Elas são suscitadas
nos processos arteterapêuticos para a promoção da autoexploração, cura emo-
cional e crescimento pessoal.

1 Arteterapeuta. Pós-Graduada em Arteterapia, Educação e Saúde (Especialização); Pós-


-Graduada em Musicoterapia com ênfase em Práticas Integrativas na área da Saúde (Es-
pecialização). Graduada em Estudos Sociais com habilitação em História (Licenciatura
Plena pela UPIS/DF). Servidora pública da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, com
atuação concomitante nas Práticas Integrativas de Saúde, desenvolvendo ações juntos à
comunidade com Arteterapia e Musicoterapia. E-mail: [email protected].
2 Mestre em Direitos Humanos, Cidadania e Estudos Sobre a Violência. Graduada em
Letras Português/Inglês e suas respectivas Literaturas. O curso de Letras, primeira gra-
duação, ofereceu-me compreensão da linguagem e das narrativas humanas, enquanto o
Mestrado, com foco em Políticas Públicas, ajudou-me a melhor compreender o contexto
social e político em que as questões de cidadania e direitos, ocorrem, fazendo-me melhor
entender como cidadania, direitos e linguagem estão intrinsecamente relacionadas e imbri-
cadas. Membro (Técnico) do Grupo de Pesquisa Literatura e Espiritualidade (GPLE), vin-
culado ao Departamento de Teoria Literária e Literaturas (POSlit / TEL) da Universidade
de Brasília. Membro Fundadora do Instituto de Pesquisa, Desenvolvimento e Apoio a
Neurodivergentes (IPDAN) (Instagram: ipdan.org.br). Atualmente trabalha como profes-
sora da Educação Básica na Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. E-mail:
[email protected].

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O autoconhecimento permite que o arteterapeuta reconheça suas próprias


emoções, preconceitos e experiências pessoais. Isso possibilita a criação de uma
relação autêntica e empática com os clientes, tornando mais fácil para eles sen-
tirem que são compreendidos e aceitos.
Por conseguinte, o presente texto tem como objetivo fazer um sucinto
recorte de um processo arteterapêutico pessoal desenvolvido para uma das dis-
ciplinas do curso de especialização em Arteterapia, trazendo uma análise de
literatura descritiva e pessoal, com ênfase na importância da autoexpressão e das
memórias afetivas, por meio da criação artística.

DESENVOLVIMENTO

Embora possa ser desenvolvida a partir de diferentes referenciais teóricos,


conforme Ciornai (1995), a Arteterapia é definida em todos eles por um ponto
em comum: o uso da arte como meio à expressão da subjetividade. Sua noção
central é que a linguagem artística reflete (em muitos casos melhor do que a
verbal) nossas experiências interiores, proporcionando uma ampliação da cons-
ciência acerca dos fenômenos subjetivos.
De acordo com Angela Philippini (1995), “a Arteterapia reflete possibili-
dades de construir, expandir e multiplicar espaços de criação, a princípio inter-
nos e materializados externamente, em formas expressivas”.
Os processos arteterapêuticos geralmente seguem um ciclo que envolve
a criação artística, a reflexão sobre a obra produzida e a exploração das emo-
ções, memórias e significados associados a essa criação. A arte serve como uma
linguagem simbólica, que permite aos indivíduos comunicar aspectos de suas
experiências, muitas vezes difíceis de expressar verbalmente. A interação entre
o processo criativo e a obra de arte resultante pode levar à autoconsciência, à
compreensão das próprias emoções e ao desenvolvimento pessoal.
Nesse sentido, o arteterapeuta, por meio da prática autoreflexiva concomi-
tante, vai construindo, ao longo do caminho, uma simbiose de conhecimentos e
autoconhecimento que funciona como, de acordo com Filippini (1995), “recursos
auxiliares na preparação e estruturação de um espaço criativo interno”, tarefa es-
sencial que permite a expressão e produção simbólica, numa construção artesanal,
que vai resgatando, ativando e expandindo possibilidades criativas individuais.
Conforme Pereira (2008), processos terapêuticos evocam memórias afe-
tivas da infância e desempenham papel crucial na psicoterapia e crescimento
emocional dos indivíduos, pois as memórias estão profundamente enraizadas
em nossa experiência inicial, moldando significativamente nossa personalidade,
crenças e padrões comportamentais ao longo da vida. O acesso a memórias da
infância são considerados bastante salutares, pois,

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
O mundo infantil remete a um universo de espontaneidade, curiosidade,
brincadeiras, imaginação e lembranças, sendo estas não apenas de coisas
boas ou positivas, mas também de recordações que feriram, que ficam gra-
vados internamente como herança da história individual. Logo, o mundo
que envolve a criança remonta aos fatos reais e simbólicos, que foram sal-
vos na memória afetiva (Pereira, 2008).

Então, a infância pode ser concebida como “um período que contém algo
mágico, em função da capacidade de criação e imaginação dos indivíduos. A
criança interior guarda ainda o potencial de todas as infâncias que ainda perma-
necem no íntimo de cada indivíduo” (Pereira, 2008).
Nesse sentido, através da expressão artística, os indivíduos podem aces-
sar emoções de forma segura e simbólica, permitindo que as experiências
emocionais sejam exploradas mais profundamente, pois o autoconhecimento
proporcionado ao se trabalhar memórias afetivas na Arteterapia nos permite
ter insights profundos.
Por conseguinte, as recordações desempenham um papel de extrema rele-
vância na prática terapêutica, com a ampliação e acesso à autoconsciência, po-
dendo levar a uma melhor compreensão de padrões de comportamento desen-
cadeadores de registros emocionais em áreas que precisam de tratamento e cura.

A CONSTRUÇÃO DE UMA MANDALA-ÁRVORE DO FILTRO DOS


SONHOS

No simbolismo ancestral o círculo é o símbolo do espaço infinito, sem co-


meço e sem fim. Representa a eternidade e a totalidade, começando onde
termina e terminando onde começa (Fraisse, 1997).

A história/lenda a seguir, inspirou-me a desenvolver o processo de uma


Mandala-Árvore do Filtro dos Sonhos.

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A Mandala do Filtro dos Sonhos

Conta uma antiga lenda dos nativos norte-americanos, que um velho índio, ao fazer
uma Busca da Visão no topo de uma montanha, lhe apareceu Iktomi, a Aranha, e co-
municou-se em linguagem sagrada. A Aranha pegou um aro de cipó e começou a tecer
uma teia com cabelo de cavalo e as oferendas recebidas. Enquanto tecia, o espírito da
Aranha falou sobre os ciclos da vida, do nascimento à morte e das boas e más forças que
atuam sobre nós em cada uma dessas fases. Ela dizia:
“Se você trabalhar com forças boas, será guiado na direção certa e entrará em harmonia
com a natureza. Do contrário, irá para direção que causará dor e infortúnios”.
No final a Aranha devolveu ao velho índio o aro de cipó com uma teia no centro, dizendo-lhe:
“No centro está a teia que representa o ciclo da vida. Use-a para ajudar seu povo a alcan-
çar seus objetivos, fazendo bom uso de suas ideias, sonhos e visões. Eles vêm de um lugar
chamado Espírito do Mundo que se ocupa do ar da noite com sonhos bons e ruins. A teia
quando pendurada se move livremente e consegue pegar sonhos, quando eles ainda estão
no ar. Os bons sonhos sabem o caminho e deslizam suavemente pelas penas até alcançar
quem está dormindo. Já os ruins ficam presos no círculo até o nascer do sol, e desapare-
cem com a primeira luz do novo dia”.
Esse círculo é conhecido como “Dream Catcher” (Apanhador de Sonhos). Aqui no Brasil
é chamado de Filtro dos Sonhos ou Coletor de Sonhos. Trata-se de um instrumento de
poder para assegurar bons sonhos para aqueles que dormem debaixo dele, e também para
trazer visões. Geralmente são colocados onde a luz bate pela manhã, em frente à janela.
Os nativos nos ensinam que os sonhos passam pelo furo no centro e os maus sonhos ficam
presos na teia e se dissipam à luz do amanhecer3.
Nesse sentido, em sonhos ou em estados alterados de consciência, o en-
contro de si pode aparecer personificado em figuras das quais emana sabedoria e
superioridade, como deuses e deusas e a figura do Velho Sábio, no caso em tela,
a figura da aranha, sábia tecelã. Pode ainda expressar-se por meio de figuras
quaternárias como o quadrado, a cruz e o próprio número quatro (as quatro
estações do ano, os quatro pontos cardeais), bem como símbolos que exprimem
a totalidade, como o círculo ou a mandala (Hall, 2003, p. 219).
Conforme Chevalier e Gheerbrant (1995), o “círculo mágico” é uma parte
fundamental da mandala, forma geométrica circular utilizada desde tempos ime-
moriais em práticas artísticas, espirituais e terapêuticas. O “círculo mágico”, tam-
bém conhecido como “círculo sagrado” ou “fronteira protetora”, é a linha que de-
limita o espaço interno da mandala. Ele é considerado um espaço especial, seguro
e simbolicamente significativo. É considerado o símbolo da totalidade da mente.

3 Disponível em: http://pensamentomatematizado.blogspot.com/2014/11/mandala-e-fil-


tro-dos-sonhos_73.html. Acesso em: 12 de agosto, 2022.

188
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Durante muito tempo a mandala foi usada como expressão artística.
Modernamente passou a ser também bastante utilizada em processos terapêuti-
cos, com a qual se desenvolvem trabalhos de acesso a subjetividades e sentimen-
tos muitas vezes adormecidos.
Conforme Jung (2000), “a mandala pode ser compreendida como sím-
bolo que expressa o si mesmo, o arquétipo da totalidade e o processo de individuação,
ou seja, uma representação simbólica da psique”. De acordo com Jung, existem
vários tipos de mandalas, desde sua forma mais simples, como círculo, ou com
seus desdobramentos em cruz, flor ou quaternidade.
Nesse sentido, a mandala é considerada uma técnica da Arteterapia de
abordagem junguiana, que possibilita a estimulação de funções psíquicas menos
desenvolvidas a iluminar aspectos sombrios da psique. Isso ocorre porque ela
permite o distanciamento emocional, trabalha a racionalidade, além de auxiliar
na organização de ideias.
Na perspectiva junguiana, a mandala apresenta dupla eficácia: a de pro-
mover a ordem psíquica ou restabelecê-la. Mas as mandalas não são produtos de
sonhos e sim resultados de uma imaginação ativa. Ao desenhar uma mandala,
o sujeito entra em contato com seu inconsciente e, através desse contato, surgem
sentimentos que serão expressos. Essas informações irão ajudar na construção
do seu self.
É nesse contexto que Jung verifica que o centro primeiramente pertence
à consciência, depois, ao chamado inconsciente pessoal, e, finalmente, a um
segmento de tamanho indefinido, chamado inconsciente coletivo, cujos arquétipos
são comuns a toda humanidade (Dibo, 2006, p. 66-73).
Para fecharmos a ideia que precisamos da importância do símbolo da
mandala, Neihardt (2004) nos explica:
Tudo o que o poder do mundo faz, é feito num círculo. O céu é redondo e
eu ouvi dizer que a Terra é redonda como uma bola, e as estrelas também.
O vento em seu maior poder, rodopia. Os pássaros fazem seus ninhos em
círculos. O sol se levanta e se põe novamente em círculo. A lua faz a mes-
ma coisa, e ambos são redondos. Até as estações formam um grande cír-
culo em suas mudanças, e sempre voltam novamente para onde estavam.
A vida de um homem é um círculo, da infância até a velhice, o mesmo
acontecendo onde o poder se movimenta” (Neihardt, 1832/2004).

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

Figura 1: Mandala-Árvore do Filtro dos Sonhos

Fonte: Acervo da Autora, 2022.

A Mandala-Árvore representa a busca pela fundamentação, através da


teoria e da empiria, dos processos realizados. Procurei simbolizar em seu firme
caule, a minha caminhada durante o curso. Os galhos voltados para cima são os
aprendizados; seus frutos gerarão futuras sementes que alimentarão o meu eu. A
cor do ouro, colocada no arco, também faz referência à alquimia, numa alusão
à transmutação que o filtro representa. Os frutos estão dentro do arco dourado.
A imagem da árvore, conforme Chevalier e Gheerbrant (1995) é
frequentemente usada para representar a conexão entre diferentes níveis
de existência, a interligação de todas as coisas e a busca pelo conhecimento,
crescimento e transcendência. Sua simbolização é encontrada nas mitologias
antigas, na Cabalá judaica, nas tradições esotéricas e alquímicas e religiões indí-
genas como um simbolismo Universal.
Jung (2007) afirma que a alquimia lhe trouxe a confirmação que ele bus-
cava, ou seja, as descrições dos processos da matéria que os alquimistas pre-
senciavam eram as mesmas que se constatavam com os fenômenos psíquicos
observados por ele. Dizia ele: “A meu ver, a ajuda dada pela alquimia para a
compreensão dos símbolos do processo de individuação é da maior importância”.
Jung comparava a psique humana com a alquimia, pois a alquimia traz
a imagem, o pensamento por imagens, e as linguagens metafóricas. Portanto, a
alquimia fala da psique, pois a imagem é um dado psíquico por excelência. De
acordo com Franz (1990),
190
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Pode-se abordar um arquétipo de diversas maneiras, e qualquer fato pode
levar a tudo. Se você começa com a árvore do mundo, você pode facilmen-
te provar que cada tema mitológico conduz finalmente à árvore do mundo.
Se você começa com o sol, você pode facilmente provar que tudo é sol, e,
finalmente, que tudo é um tema solar (Franz, 1990, p. 10).

Franz acrescenta que “se você escolher a Grande Mãe, ou a Árvore do


Mundo, ou o Sol, o mundo subterrâneo, ou o Olho, ou qualquer outra coisa,
como tema, você pode compilar um material comparativo que irá se adequando
ao seu objetivo e ponto de vista” (Franz, 1990, p. 11).
Dessa forma, para Jung, a concepção de terapia situa-se dentro de uma
abordagem que leva o homem à confrontação consigo mesmo, até o encontro
dos dinamismos inconscientes de ordem coletiva, pois considerava que o cresci-
mento da personalidade se faz a partir do inconsciente.
Então, o processo que comumente denominamos de humanização, Jung
chama de Individuação, não pelo fato do indivíduo ser o centro, mas porque a rela-
ção entre individual e coletivo torna-se melhor resolvida. Isto quer dizer que, “o
processo de individuação é o processo pelo qual um ser torna-se um “In-divíduo”
psicológico, ou seja, uma unidade autônoma e indivisível, uma totalidade”.
Dentre esses importantes e amplos conceitos aqui abordados, de forma
apenas inicial, Chevalier e Gheerbrant (1995, p. 585) reiteram que “a mandala
é, concomitantemente, imagem e motor de ascensão espiritual, que incentiva o
caminhar para uma interiorização cada vez mais profunda da vida”.
Nesse sentido, é por meio de uma concentração progressiva do múltiplo
no uno que o eu pode ser integrado no todo e o todo reintegrado no eu.
Jung (2000), então, recorre à imagem da mandala para designar a repre-
sentação simbólica da psique, cuja essência nos é desconhecida. Ele observou
que essas imagens são utilizadas para consolidar o mundo interior e para favore-
cer a meditação em profundidade.
Dessa forma, concordando com as palavras de Jung, citado por Franz
(1990), “podem-se compilar todas as Grandes Mães do mundo, e todos os san-
tos, e tudo o mais, e o que se conseguir juntar significará absolutamente nada,
caso se deixe de lado a experiência afetiva do indivíduo”.
Assim como nos fala Marie-Louise von Franz4 no conto “A Fiandeira”,
que toca em temas de sacrifício, poder, desafios e a importância de conhecer o
nome verdadeiro das coisas (ou seja, de confrontar e entender a própria sombra),
em minha história a fiandeira sou eu e a minha mandala é “a palha transformada

4 Estudiosa, psicoterapeuta analítica, alemã, discípula de Carl Gustav Jung, conhecida por
suas análises de contos de fadas e mitos sob uma perspectiva psicológica e simbólica. “A
Fiandeira” foi publicado em seu livro “Shadow and Evil in Fairy Tales” (Sombra e Mal
em Contos de Fadas), em 1974.

191
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

em ouro”, que representa aqui a figura do meu Self, em possibilidades, desafios,


retrocessos e árduas progressões (Franz, 1990, p. 159).

Figura 2: Mandala-Árvore do Filtro dos Sonhos

Fonte: Acervo da Autora, 2022.

A Mandala-Árvore do Filtro dos Sonhos foi feita para simbolizar as 21 aulas


do curso de pós-graduação em nível de Especialização em Arteterapia, e ainda
para homenagear e agradecer. Cada frutinha vermelha representa uma das aulas;
nas raízes estão os nomes dos professores e das respectivas disciplinas. Eu a fiz com
cordões de algodão, com uma árvore ao centro, em alusão à localidade de nasci-
mento dos meus pais, no município pernambucano de Floresta, distante 433 km da
capital, Recife. Floresta fica próximo da cidade de Algodões, ambas localizadas na
Microrregião de Sertão do Moxotó, no estado do Pernambuco (PE), Brasil.
No momento que eu fui fotografar, veio-me à memória a imagem das fiti-
nhas do Senhor do Bonfim, que são amarradas no gradil em volta da Igreja, em
Salvador, e também no braço ou tornozelo. Costuma-se dar três firmes nós, durante
os quais se fazem pedidos a serem realizados. Cada um dos cordéis dispostos na
Mandala-Árvore do Filtro dos Sonhos, em meio a recordações e lembranças, foram
firmados com pedidos para força, sabedoria, saúde resiliência e agradecimentos.
Sabemos que memórias afetivas e individuação são conceitos-chave na
Arteterapia. Ao trabalhar com memórias carregadas de emoção, podemos nos
aproximar de aspectos escondidos ou reprimidos de nós mesmos. A expressão
artística permite que abordemos essas memórias de maneira simbólica, não li-
near e intuitiva, de forma mais autêntica, autoconsciente e integrada.

192
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Conforme Jung (2000) nos explica, “o inconsciente é criativo, guarda emo-
ções que não conseguem ter acesso à consciência e precisam ser liberadas”. Nisso
entra a arte com sua essência lúdica e saudável, a nos ajudar a descobrir que temos
um banco de dados com informações do nosso passado que, somadas a ideias do
presente, formarão pensamentos novos, criativos, reveladores e curadores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O curso de pós-graduação em Arteterapia foi permeado por vivências


próprias em busca de autoconhecimento. Os processos pessoais durante o de-
senvolvimento do trabalho acadêmico foram de grande importância, pois em
momentos críticos fui chamada a buscar mais forças, compreensão, treinar o
exercício da resiliência, e a não desistir.
De acordo com Philippini,
O fazer artístico, por meio de suas múltiplas faces: colagens, fotografias,
desenho, pintura, tecelagem, bordado, costura, mosaicos, assemblagens,
construções, criação de personagens, máscaras, modelagens, escrita criati-
va, vídeo, teatro e movimento, permite a configuração de ‘comunicações
únicas’ de acordo com a subjetividade de cada criador (Philippini, 2009).

Nesse sentido, o trabalho acima autoapresentado faz parte da constituição


de uma série de outros trabalhos durante o processo dessa formação, que me fi-
zeram viver, conforme explica Pain (1996), “entre aquilo que Freud (1911-1913)
chamou de “o princípio da realidade” e “o princípio do prazer”, mas consciente
de que as leis da ideação estética acham um lugar, ao considerar possibilidades,
dificuldades e agruras”. Nesse sentido, acrescento,
Na mente, dançam dois princípios, lado a lado,
Um busca prazeres doces, em sonhos encantados,
O outro, mais sensato, na realidade se apoia,
Buscando o equilíbrio onde a vida se entrelaça.
O princípio do prazer, qual estrela cintilante,
Guia desejos, onde o instante é o bastante,
Mas o princípio da realidade, voz da razão,
Nos leva pela senda da vida, com sabedoria e visão.
Em sonhos e desejos, o prazer se faz forte,
Mas é no mundo real que a jornada dá seu recorte,
Entre sonhos e ações, a mente encontra seu leme,
E no intricado balé dos princípios, o ser se esquematiza e semeia.

Desse modo, a consciência de si é elemento fundamental para o profissio-


nal no contexto da Arteterapia, pois a subjetividade desempenha papel crucial
no cotidiano do trabalho. A importância da busca do autoconhecimento hoje me

193
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

parece ainda mais significativo, pois me ajuda, como arteterapeuta, a identificar


meus próprios limites, e a acionar mecanismos de defesas para proteção daquilo
com o qual não posso lidar, auxiliando-me a evitar o esgotamento emocional e o
Burnout, ações vitais para manter uma prática terapêutica saudável e sustentável.
O mergulho nas atividades propostas e o desenvolvimento de processos
autoterapêuticos trouxeram-me, além de autoconhecimento, gratidão, sentimen-
to poderoso que tem impactos profundos em nossa saúde mental, emocional e
bem-estar geral, pois nos ensina a reconhecer e valorizar as coisas positivas em
nossa vida, em grandes conquistas ou pequenos momentos.

REFERÊNCIAS
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos,
sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 9. ed. - Rio de
Janeiro, José Olympio, 1995.
CIORNAI, Selma. Arte-terapia: o resgate da criatividade na vida. In: M. M.
M. J Carvalho (Org.), A arte cura? Recursos artísticos em psicoterapia (pp. 59-
63). Campinas, SP: Editorial Psy II, 1995.
DIBO, Monalisa. Mandala: um estudo na obra de C. G. Jung. In: GREEN, S.
El Livro de los mandalas del mundo. Santiago, Chile: Océano Âmbar, 2005.
Revista Último Andar - PUC-SP (15), 109-120, dez., 2006.
FRAISSE, Anne. Apresentação do Círculo Psico-Energético. Manuel d’ En-
seignement d’ Ecole Française d’ Analyse Psycho-Organique - Tome 3, 2ª ed.
Paris: EFAPO, 1997.
FRANZ, Marie-Louise von. A interpretação dos contos de fada. [Tradução
de Maria Elci Spaccaquerche Barbosa; revisão Ivo Stornioio]. (Coleção amor e
psique). São Paulo: Paulus, 1990.
FREUD, Sigmund. (1911-1913) - Vol. 10 - Observações Psicanalíticas Sobre
Um Caso de Paranoia. Categorias: Freud / Obras de Freud Traduzidas Direto
do Alemão. Tradução: Paulo César de Souza. Editora: Companhia das Letras,
2010.
HALL, James A. A Experiência Junguiana: análise e individuação. São Pau-
lo: Cultrix, 2003.
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo / CG. Jung; [tra-
dução Maria Luíza Appy, Dora Mariana R. Ferreira da Silva]. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2000.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia e Alquimia. 3ª ed. Obras Completas de C.G.
Jung. Vol. XIII. Trad. Dora M. R. F. da Silva & Maria L. Appy. Petrópolis:
Vozes, 2007.
NEIHARDT (1832). O Uso de Mandalas na Orientação Profissional. In:

194
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
SOARES, et all. ORMEZZANO (Org.). Questões de Arteterapia. PF/RS:
UPF, 2004.
PAIN, Sara. Teoria e técnica da arte-terapia: a compreensão do sujeito. /
Sara Pain e Gladys Jarreau; trad. Rosana Severino Di Leone - Porto Alegre:
Artes Médicas, 1996.
PEREIRA, Maria da Glória Garcez. O encontro com a criança interior: pas-
saporte para a individuação. Rio de Janeiro: ISEPE, 2008.
PHILIPPINI, Ângela. Universo Junguiano em Arteterapia. In: Revista Ima-
gens da Transformação, Vol. II, Rio de Janeiro, 1995.
PHILIPPINI, Ângela. Linguagens e Materiais Expressivos em Arteterapia:
uso, indicações e Propriedades. Rio de Janeiro: Wak, 2009.

195
VERSOS E MEMÓRIAS: A HARMONIA DOS DIAS
COM O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Washington Dourado1
Dirce Maria da Silva2

“O que me perturba na Bíblia não são os textos que eu


não entendo, são os que eu entendo bem demais.” Mark Twain

INTRODUÇÃO

No universo da literatura, os poemas transcendem as fronteiras do espaço


e do tempo, criando uma tapeçaria complexa de emoções, ideias e imagens.
Cada poema é uma janela para a alma do poeta e uma porta para a interpretação
pessoal do leitor.
No campo da escrita como linguagem versificada, mormente na área da

1 Poeta. Bacharel em Comunicação Social e Pedagogia, pela Universidade de Brasília e


bacharelando em Direito; Pós-graduado em Psicopedagogia, pela Universidade Gama Fi-
lho/RJ. Sócio Benemérito da Academia Taguatinguense de Letras/DF; Sócio fundador
da Academia Evangélica de Letras do DF. Natural de Recife dos Cardosos, Ibititá, Cha-
pada Diamantina/Bahia, teve seus os dons artísticos revelados aos 10 anos idade, ao ser
premiado em um Recital no Colégio Polivalente, em Irecê, Bahia, Brasil. Em Brasília/DF,
na adolescência e na juventude, viu o seu talento artístico ser consolidado e reconhecido.
Tem diversas participações em Eventos, Concursos Literários e Obras, tais como: Coleti-
vo de Poetas (participação), Org. Menezes y Moraes, 1997/98. Dicionário dos Escritores
de Brasília (verbete), de Napoleão Valadares, 1994. Concurso: Poetas da Cidade-Brasília,
50 anos, 2010. Participações em Antologias Poéticas, dentre elas: Primeira Antologia da
Academia Taguatinguense de Letras, 2017; Antologia Literária: Poesias, Cantos e Contos,
2021; Antologia Sementes de Esperança, 2022. Possui livros no prelo e vários e-books.
Servidor Público do Superior Tribunal de Justiça. E-mail: [email protected].
2 Mestre em Direitos Humanos, Cidadania e Estudos Sobre a Violência. Graduada em Letras
Português/Inglês e suas respectivas Literaturas. O curso de Letras, primeira graduação, ofe-
receu-me compreensão da linguagem e das narrativas humanas, enquanto o Mestrado, com
foco em Políticas Públicas, ajudou-me a melhor compreender o contexto social e político em
que as questões de cidadania e direitos, ocorrem, fazendo-me melhor entender como cidada-
nia, direitos e linguagem estão intrinsecamente relacionadas e imbricadas. Membro (Técnico)
do Grupo de Pesquisa Literatura e Espiritualidade (GPLE), vinculado ao Departamento de
Teoria Literária e Literaturas (POSlit / TEL) da Universidade de Brasília. Membro Fundado-
ra do Instituto de Pesquisa, Desenvolvimento e Apoio a Neurodivergentes (IPDAN) (Insta-
gram: ipdan.org.br). Atualmente trabalha como professora da Educação Básica na Secretaria
de Estado de Educação do Distrito Federal. E-mail: [email protected].

196
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
poesia como instrumento de conscientização e espiritualização, Washington
Dourado desenvolve, com leveza e profundidade, os meandros mais sublimes da
rima, como arte das vivências em suas multiplicidades.
Nesse contexto, o presente texto explora a sensibilidade das palavras por
meio de uma seleção diversificada de poemas, cada um com sua própria voz e
perspectiva. Da celebração do amor à contemplação das questões existenciais,
da beleza das paisagens naturais à crítica social, esses poemas constituem um
rico mosaico de experiências poéticas.
Nesta aventura que empreenderemos, adentraremos em um conjunto de
títulos inspiradores, cada qual retratando um vislumbre do universo íntimo do
poeta. Esses títulos nos convidam a ponderar sobre nosso próprio vínculo com
as palavras e a arte poética, nos instigando a explorar as profundezas de nossa
conexão com a linguagem e a poesia.

DESENVOLVIMENTO - POESIAS E SUAS EXEGESES

1
A IDADE E SUAS POSSIBILIDADES
A idade não é limitação,
quando o amor tudo determina;
Ela atinge os píncaros da mais alta dimensão,
sem se esquecer da humildade,
pérola da verdade, rara e fina...

Quando a idade é bem vivida,


sorvida como um cálice substancial,
colorida se torna a vida,
com lindos raios de sol,
de onde se contempla o farol
da Justiça, com fulgor infinito, primordial.

A idade tende a auxiliar,


o caminhante, cuja senda parece não ter fim...
mas, depois dos montes, vislumbrará,
as deliciosas essências de um jardim...

A idade é para ser bem vivida,


como a vida em toda sua dimensão:
amando, cantando, trabalhando na avenida,
abrindo-se às odes floridas que encantam o coração...

197
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

Se por acaso a idade não for mais suportada,


em vão, pensa-se que em nada se transforma;
mas, adquirindo uma veste iluminada,
como essência encantada,
adquire, em Deus, novas formas...
Dourado - 2023

SOBRE “A IDADE E SUAS POSSIBILIDADES”

Esta poesia é uma construção daquilo que se refere à idade, seus múlti-
plos aspectos e possibilidades. Ela é destinada a um público de todas as idades,
mormente aqueles da maturidade, da vivência e os aspectos diversificados de
consciência; especifica que a idade não é uma limitação, mas uma maneira úni-
ca e possível de se realizar na vida, compreender as suas nuances, aproveitando
as chances, que muitas vezes, não realizadas, são perdidas.
Ela constrói um pensamento de que o amor é o que tudo determina, que
abre possibilidades no andar pelo caminho, pois com o amor, jamais se estará
sozinho.
Destaca, também, que a idade é capaz de alcançar as mais altas dimen-
sões, seja na capacidade de sonhar, pensar, criar ou algo fazer, no sentido de que
não encontra limites na sua máxima expressão de acontecer e se fazer brilhar,
em todo o viver.
Menciona também, o sentido de que, quando a idade é bem vivida, me-
lhor e mais interessante se torna os aspectos da vida. E quando bem sorvida,
serve como um cálice substancial, colorindo a vida nos máximos conceitos de
uma possibilidade transcendental.
Com isso, pode-se contemplar o farol irradiante de justiça, força e bem
querer, despertando um fulgor infinito, todo invicto, refletindo nas característi-
cas mais importantes e interessantes do ser.
O seu sentido de positividade pode levar o leitor a absorver as ricas essên-
cias de um jardim, com as suavidades sublimes, cujo frescor é sempre presente
e sem fim.
Coloca-se uma condicionante, na quarta estrofe, no sentido de que, quan-
do ela é bem vivida, abrem-se caminhos para uma magnífica dimensão, poden-
do amar, cantar na avenida, como um buquê florescente, que abarca o coração.
Enfim, a poesia traz um sentido de superação dos momentos de lutas e
transformação, dizendo que ela pode ser iluminada, como uma veste modifica-
da, adquirindo em Deus, novas formas de espiritualização.

198
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
2
A INSPIRAÇÃO É A LÂMPADA DO CORAÇÃO
A poesia é Lâmpada para o Coração,
ante a efervescência pensante do mundo.
É um aconchego de calor e iluminação,
que traz suavização ao ser, com ares fecundos...

Dos mistérios que povoam a natureza,


com certeza, é a alegria interior
do coração, que em ondas de correntezas,
pulsa vertentes de paz e louvor.

Cupido certamente tem suas ponderações,


quando nos liga versamente a alguém;
e a poesia, em ondas prazerosas de sensações,
envolve-nos em galopes d’além...

O coração se embala nas odes da empolgação,


que somente sua presença oferece,
e com olores de pura inspiração,
ao Ser Divinal, poeticamente, agradece.

Seja festivo, nobre coração!


Esteja sozinho ou acompanhado;
na inteireza ou suspirando na consolação,
Teus ais transcendentais serão suavizados.

Quando a poesia aquece todo o peito,


o que parecia não ter jeito, encontra guarida;
novos instintos se encaixam, perfeitos,
com a jovialidade e magnificência da vida.

Assim, um coração que se extasia,


noite e dia, não sente o tempo passar;
a aragem poética o alivia,
contemplando infindas possibilidades do espaço estelar...

Poético e alado é o coração,


que em voos, degraus e projeções, sabe por onde ir,
rumo ao mundo de uma nova dimensão,
onde o limite é a imaginação, e o encontro, o doce interagir...
Dourado - 2023
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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
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SOBRE “A INSPIRAÇÃO E A LÂMPADA DO CORAÇÃO”

Esta é uma daquelas poesias do autor que ressalta o poder da beleza e


do imaginário existente nas câmaras internas do coração, revelando o seu lado
romântico e supersônico do ser que cria e recria, ao prazer de sua imaginação.
Pela primeira estrofe, observa-se o poder que tem a lâmpada no coração,
ante um mundo carente de paz e a efervescência da iluminação. Sendo a poesia
lâmpada para a existência, seu calor imaginário e literário atinge a todos os que,
por ela, desejam eflúvios irradiantes de paz na consciência.
Na segunda estrofe, vemos que dos mistérios existentes na natureza, a
alegria interior do coração faz-nos atingir píncaros colossais de encanto e beleza.
Pois esse mistério vem como correntezas de inspiração, paz, louvor e libertação
interior. Interessante notar, o poder que o autor denota à poesia sensível, invo-
cando os mistérios profundos, inundando a mente do ser com toques imaginá-
rios, provenientes das esferas superiores, invisíveis.
Na terceira estrofe, é atribuído ao poder mitológico de Cupido, a capaci-
dade de ligar, em versos a alguém, demonstrando o poder imaginário que verte,
em ondas etéreas do belo além. E nessa linha de pensamento, é a poesia o fio
condutor, a verve possível que faz a ligação com o bem, o ser romântico, ou seja,
com a sensibilidade do mundo de alguém.
Na quinta estrofe, o leitor recebe uma vertente de positividade, quando
afirma que o coração deve ser festivo, mesmo que esteja sozinho ou com a com-
panhia de alguém, despertando a visão de novas possibilidades. Destaca tam-
bém, o poder da natureza, que com ondas e olores de inspiração, atinge o Ser
Divinal, em um viver agradecido e fortalecido.
Na sexta estrofe, vemos um contraste entre o ser que tem o peito aquecido
pela poesia, ante a entrega da problemática do mundo; ali ele encontra guarida
e se sacia.
Na sequência, expressa o poder poético, quando o ser absorve novos ins-
tintos perfeitos de jovialidade, com o lado meigo da vida em sua integralidade.
No ato contínuo, o coração do poeta se sente extasiado, não importa o pe-
ríodo do tempo, atingindo, assim, os mais profundos anseios do seu ser realizado.
Fazendo uma ligação com a poética universal, o autor expressa que a sua
arte pode alcançar vislumbres estelares de todo o teor, mormente na esfera astral.
Na sétima estrofe, o autor atribui ao coração a potência supra humana de
ser alado, com voos imaginários, atingindo assim, dimensões de consciência de
sua missão: encontro, projeção e realização.
E na segunda parte, a partir dessa dimensão alcançada, o coração poético
não vê limite na imaginação, sendo que o seu encontro é um campo florescente
de paz, gozo e constante inteiração.
200
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
3
MÃE, AMOR DE INESTIMÁVEL VALOR...
Mãe, palavra sublime, primorosa de amor,
com a qual o Criador plasmou a linha do existir;
De onde se emana tanta beleza e esplendor,
a transcendente fragrância que alenta o sorrir?

A Mãe nos ensinou a singela doutrina


do respeito e da filosofia da paz e da comunhão;
do amor à natureza, aos animais, num saudável clima,
de mútuo entendimento, de recato e ao bem, admiração.

Disposta, a Mãe preparou pela manhã


o doce alimento, cheio de força para iluminar o viver;
semelhante a uma estrela, de consciência sã,
deu-nos a matriz feliz que imortaliza o ser.

Maravilhoso e perenal deveria ser,


o contato dos pais com o seu querido brotinho;
Qual outra árvore deu-nos a seiva, o maternal prazer,
qual outro acalanto verteu tanto fervor e carinho?

Seja a Mãe, moderna ou tradicional,


com experiência de uma novata ou da que se doou em flor;
Que a felicidade lhe seja uma fonte substancial,
nutriz de realidades, plena de atos palpáveis de amor!

E como tudo que Deus criou é perfeito,


Elas merecem aqui e ali, uma dimensão fragorosa de luz,
E protegidas por mãos suaves dos Anjos eleitos,
tenham sempre a companhia insubstituível de Jesus!...
Dourado – 2023

SOBRE O POEMA “MÃE, AMOR DE INESTIMÁVEL VALOR”

Esta é uma temática poética das mais prediletas do autor, pois abor-
da um assunto, uma data muito querida e propalada: O Dia das Mães, que
envolve encanto, descrição e lembranças infinitas deixadas ao longo da
caminhada.
Um dos dias mais comemorados, o Dia das Mães sempre despertou no
autor, ardente paixão, tanto pela sua genitora, Edelzuita de Castro Dourado,

201
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

mulher iluminada, que sempre presente, aquecia-lhe todo o coração.


Não dá para especificar a data exata desta poesia, pois semelhante a ou-
tras demais, faz parte do vocabulário literário, que ainda deslumbra e encanta
os seus dias.
Na primeira estrofe é destacada a sublimidade que merece esse ser divi-
nal, afirmando ser ela, uma fonte, da qual Deus plasmou, com perfeição, a linha
do existir, do ser humano primordial.
Na sequência, o autor pergunta de onde se extrai, desse ser, tamanho es-
plendor e beleza, que verte em mil potências, a fragrância do sorriso, em fortes
ondas e correntezas.
Destaca na segunda estrofe, que a mãe é um manancial de ensinamen-
tos, que levam a comunhão do ser, com a linda expressão da filosofia, em seus
pensamentos.
É citado, na sequência, as áreas abrangentes destas mensagens, sendo o
amor à natureza, a tônica que desperta o respeito às espécies, ao ser humano, em
suas múltiplas linhagens.
Destaca-se na terceira estrofe, a força materna, incomunal, expressando
a sua inata disposição, ao trazer à existência, tanto o pão material quanto o ser,
o lado transubstancial. Invocando em seguida a força universal, diz ser a mãe
comparada a uma estrela radiosa, trazendo seu brilho ao filho, para gozar de
uma existência feliz e exitosa.
O desejo do poeta é que todos os pais deveriam ser magníficos, vicejantes
como brotinhos, florescendo no campo da existência, como ramos incontáveis
de frescor e carinho.
Indaga-se nessa estrofe, quem mais poderia oferecer à existência, esse
amor tão terno e maternal, um acalanto tão vantajoso e maravilhoso, quanto a
esse amor sempre presente e divinal.
Em seguida, há um contraste, ao se comparar as titulações que se dão
ao amor maternal, seja moderna, novata, bem vivida ou a tradicional. Todas
tem vez presente, e marcam a existência com seu toque único de louvor e
magnificência.

202
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
4
O ALFA E O ÔMEGA
Cristo é o Alfa confirmadíssimo,
A primeira posição em toda corrida!
Na vanguarda é o Deus Poderosíssimo,
Capaz de solucionar tudo na vida!

Ele é o Ômega preferidíssimo,


E acima de nós sempre estará,
Pois na retaguarda traz o Ser Altíssimo:
A maior vitória, perenes glórias para quem o invocar!
Dourado - 2023

SOBRE “O ALFA E O ÔMEGA”

Ao nomear que Cristo é o Alfa confirmadíssimo, há uma declaração de


cunho essencialmente espiritualista, abrangendo em seu espectro, um amonta-
nhado e carinhoso ponto de vista.
Reporta-se à primazia de uma linguagem especial, elegendo o Verbo
Encarnado como um aparato guiador do ser que se encontra na matéria física,
fundamental.
O termo confirmadíssimo, dá ao leitor um critério de absoluta certeza, em
meio às agruras da vida, com elegância à mestria e nobreza.
Ao afirmar ser Ele a primeira posição em toda corrida, desperta no ima-
ginário humano consolo, bem aventurança e acolhida.
Mencionando ser Ele a vanguarda, nomeia também ser o Deus poderosís-
simo, avistando tudo, de modo completo e perfeitíssimo.
Na primeira estrofe encerra dizendo que Ele é capaz de solucionar tudo
na vida, dando, assim, a certeza de que Nele está a segura entrada e a guarda
primordial em cada saída.
Essa primeira estrofe dá o cunho de especificidade, nomeando Jesus
Cristo como a pedra de esquina, a principal de toda a humanidade.
Quando Ele é chamado por Alfa da criação primeira, dá-nos o entendimen-
to de que estava junto ao Pai, desde o princípio em que tudo formou, e trouxe luz
aos homens com sua luz altaneira, pois se elevou da cruz, com infindável amor.
Com a denominação de Alfa, principiador de nossos dias, também veio
nos provar sua milagrosa encarnação, e nascido da Virgem Maria, mostrou sua
Divindade, suprimindo a idolatria, como o Verbo Encarnado da revelação
Quanto à segunda estrofe, vemos a nomeação de ser Ele o Ômega

203
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

preferidíssimo, no sentido de ser a última palavra do alfabeto grego, e por con-


sequência, a chave que nos garante a sobrenaturalidade, frente a esse mundo
imerso em materialidade.
Por outro ângulo, podemos nomeá-lo como a última causa e fim da exis-
tência, não no sentido de cessão da vida, mas de continuidade dos vários graus
de consciência.
Na sequência, descreve que acima de nós sempre estará, no sentido de
que além do viés da materialidade, existe um vínculo de espiritualidade, que Ele
permeia e vive a nos cercar.
Decreta-se, também, de que Ele está acima de toda problemática que a
natureza humana erigiu, abrindo-nos a possibilidade de que o plano superior, ao
lado humano veio e o atingiu.
Na terceira linha, denota-se de que na retaguarda traz o Ser Altíssimo, na
expressão máxima de que por todos os lados, Ele é capaz de nos observar, nos
atingir e nos aureolar.
E na quarta linha, dando sequência à terceira, diz que o ser terá a maior
vitória, perenes glórias para quem o invocar, respaldando o sentido complexo
e maior dessa superioridade, de alcançar com prazeres infinitos a todo aquele
que o anelar de todo o coração, com as forças de sua alma, ultrapassando esses
valores com essa sublime dimensão.
Agora, remontando-se aos textos escriturísticos sagrados, ao mencio-
nar no Apocalipse de São João, ser Cristo, o Alfa, o princípio imorredouro de
toda criação, e em consequência, o Ômega, o fim último de toda espécie de
manifestação.
Nomeia-se com tudo isso, que Cristo revolucionou o sonhar, com as belas
formas da amplidão, pondo no ser a capacidade de realizar e de enobrecer o
mais pobre coração.
Ao exprimir que Ele é o Alfa iluminador, desde o princípio do próprio
sonhar, dá uma inventividade incrível ao amor, para que o homem pudesse, tam-
bém, se imortalizar.
Ao apontar que Ele é confirmadíssimo, deixa uma porta aberta à imagi-
nação, a todo aquele que deseja o bem querer, destacando no íntimo a realização
do bem maior, que revoluciona o ser.
Destacando-o como sendo a primeira posição, é como se abrisse um por-
tão ao alvorecer dourado, para que o homem realizasse sua primazia, dando-lhe
asas de sonhos inovadores, para viver a perene alegria.
Teríamos outra forma de dizer que Ele é o Alfa maior, que tudo criou e
com amor, irrigou nos sonhos a reta perfeição, deu-nos a guarida em todo seu
esplendor e a própria vida, como o melhor galardão?

204
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Sendo o Alfa, em tudo Ele é o ponto inicial, e o pensamento rico, triunfa-
dor, pois transformou as sementes do bem no que era mal, levando-nos além, ao
seu reino misterioso de luz e efusivo amor.
Quando o autor destaca ser Ele o próprio Alfa encarnado, que nos deu
guarida, fé e retidão, foi para que se tivesse um viver pleno e iluminado, com a
pérola maior, brilhando no íntimo do coração.
Adentrando na esfera onírica, traduz-se que de tudo Ele é o principiador,
ao trazer a meiguice de um reto sonhar e com a magnitude universal do amor,
deu ao homem a capacidade de suas obras, também imortalizar.
Ao ser chamado de vanguardista, sua palavra reverberou no infinito, dan-
do o grito para o homem despertar e com revelação deu-nos o amor irrestrito,
vida abundante para uma alma eternamente consolar.
Conhecido como o Ômega, Ele também pode ser a última palavra para
ressuscitar o ser em sua imensa solidão e com voz suave vem o chamar, para
viver a dinâmica alvissareira das magníficas transformações.
Também pode nomeá-lo como a última canção do viver, para uma vida
inteira imaginar; pois pondo a paixão no interior do ser, deu-nos elasticidade e
vivacidade para a graça sublime, nele encontrar.
Ao expressar que Ele é o Ômega, o ultimato da revelação, da canção
maior que o ser surpreende, dá a entender que traz luz ao homem com sua trans-
formação e o amor maior que a tudo transcende.
Como Ômega preferidíssimo, Ele é a finalidade inteira do realizar, dos
princípios maiores que a humanidade criou, e com inventividade incrível do
potencializar, pôs no íntimo a perenidade solícita do amor.
Com uma abordagem pedagógica, ao explicar ser Cristo o fim do próprio
renascer, fez brotar as possibilidades imensas da vida, e com brasas vivas, o
nosso íntimo veio reacender, iluminando e vibrando a parte mais nobre do ser.
Da mesma forma, sendo o Ômega, Ele é o ultimato para viver um cha-
mado de artes, alegrias e poesias propiciadoras do amor, da gratidão de ser um
imediato, uma revelação para um mundo produtor de descobertas para tornar
feliz, numa magnífica ação, a população.
Denominando-o como o Ômega da própria existência, nos garantiu a
excelência do modo de viver, pois abrindo os portais da magnífica excelência,
deu-nos a oportunidade de a imortalidade, experimentar e viver.
Ao expressar que Ele propiciou o último chamado para adentrarmos na
escalada da amplidão, é nesse campo onde se vê o infinito estrelado, de anjos e
legiões da sua própria criação.
Quando o autor traduz ser Ele, desde o princípio o Verbo realizador, de
coisas notáveis para inundar a existência, é como se desse a vida formas mil, dar

205
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

o amor, para que o homem, produzisse o bem no altar da sua própria consciência.
E com a capacidade de solucionar tudo na vida, Ele traria o princípio do
reino iluminado, nos ofertando o achado da divina revelação, e pondo no ínti-
mo, um excelente resultado de vida plena, excelente realização.

5
ANJO DO ENCONTRO
Quando está no íntimo - solidão,
Pensando no que fazer
Ou mesmo a quem procurar,
Um anjo esperto envia um toque ao seu coração,
Um alento coragem,
Secreta linguagem,
Ondas dialéticas do si encontrar...

Quando pensa que tudo está perdido,


Um tesouro incomensurável, escondido,
Revela-se, sem se perceber;
E no mais profundo dos seus gemidos,
Um toque do anjo amigo,
Tece novos sonhos de esperança para você...

Floresce universo de luz,


Labirinto veloz que lhe conduz,
À essência da vida,
Em seu ser...
Dourado – 2023

SOBRE “ANJO DO ENCONTRO”

Esta poesia revela um especial momento, quando pensamos no íntimo da


solidão, procurando uma resposta e como para tudo há uma saída, há um anjo
do Criador, que animando o coração, relembra um toque inédito da própria vida.
Na primeira estrofe, esta poesia traz o alento do encontrar, uma coragem
de uma linguagem rica e serena, pois um anjo, no íntimo pode tocar, mesmo
aquelas almas parecidas ‘ínfimas’, mas de uma capacidade esplendorosa e ame-
na. Este anjo vem com uma secreta linguagem, mostrando o portal que é o alvo-
recer, e com agilidade e uma rica coragem, dá-nos a magnitude de um reto viver.
Na segunda estrofe, o autor descreve que, quando se pensa que tudo está
perdido, é onde os tesouros escondidos são revelados; ai há um encontro do que

206
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
era perdido, dá-nos a possibilidade de encontrar o tão almejado achado.
E assim ele revela-se sem se perceber, nos mais profundo dos nossos gemi-
dos, e com um toque amigo, traz o alvorecer dos sonhos possíveis, ora esqueci-
dos. E com uma aceno magnânimo de um amigo, traz a alvorada da mais linda
canção, pois se abrindo ao próprio abrigo, dá-nos os sonhos de esperança de
revelação. Assim floresce um universo de luz, com a capacidade veloz de tudo
conduzir, leva-nos às portas do arco íris azuis, rumo à capacidade infinita do
bem universal reproduzir.
O anjo traz a essência da vida, com a reverberação da própria noção, pois
traz no íntimo uma inédita saída e para o ser, o princípio da criação. Este anjo
revela-se na intimidade, das procuras infinitas que o homem retém, e com a lin-
guagem secreta de inventividade, leva-nos ao seio mais profundo do além. Um
alento da coragem é produzida, com vida infinita do realizar, e em ondas dialé-
ticas produz a vida, a canção da estética, do perfeito criar. E quando se pensa
que tudo não há mais jeito, e com modo perfeito, ele vem com o toque realizador
e revela o tesouro em nosso leito, com a capacidade irrestrita do poder criador.
Dessa forma, ele se revela sem se perceber, no mais profundo da angústia,
na amplidão e com toques suaves ressuscita no ser, a capacidade amiga como
o anjo da revelação. E assim ele vem nos tecer sonhos e guaridas, para a vida
se transformar, e com capacidades infinitas que renova o ser, dá-nos as bênçãos
irrestritas do infinito realizar.
Completando a sequência, o anjo floresce o universo de luz, labirintos ve-
lozes que chegam ao alvorecer, e as capacidades infinitas, ele nos conduz, dando
graça que perpassa e revoluciona o ser. Dessa forma, ele floresce um universo
inteiro de luz, com caminhos abertos, velozes da amplidão, e trazendo a essência
da vida que nos conduz, alcançamos o tesouro da vida, da própria realização.

6
A MAIS BELA ROSA
Andando por um belo jardim,
encontrei flores lindas de se admirar;
elas exalavam frescor de um perfume afim,
que fazem a essência do amor despertar...

Pensei em trazer para você,


a rosa mais linda que avistei;
mas logo vim perceber:
- “Para que, se você
é a mais infinda que encontrei!”

207
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

A flor que em você está,


é a da juventude eterna,
e que jamais terá fim;
e a cada instante ela vem se renovar,
colorir e se enfeitar,
tornando-se a mais bela rosa,
encantante e perfumosa
de todo o universo jardim!...
Dourado – 2023

SOBRE “A MAIS BELA ROSA”

Essa poesia revela a grandiosidade do ser, que representa a mais bela flor
existente no íntimo do jardim, pois com adubos misteriosos faz renascer pre-
ciosidades imensas que parece não ter fim. É um chamariz que pode ser encon-
trado, nos caminhos abertos da procura e da solidão e no jardim encantado, se
produz a beleza, o intimo da nobreza, que habita no coração.
Continua na primeira estrofe, dizendo que, andando por este lindo jar-
dim, a alma livre, em toda sua manifestação se pode encontrar, com a beleza
vista que não tem fim, aos tesouros mais recônditos da beleza e do humano
imaginar. E ali se encontra a maior deferência, de encontrar uma flor, que é o es-
plendor da amplidão, a vida abundante em plena reverência, capaz de iluminar
um tão nobre coração.
Analisando a segunda estrofe, vê-se o encontro dessa essência, que vem
ao ser como a potencialidade de iluminar o coração, em todo seu esplendor
e com as capacidades divinas do bem realizar, traz a noção e os conceitos
idealizados pelo imenso amor. E assim, quando o poeta pensa em trazer pra
você, a rosa mais linda do universo do si encantar, revela a beleza magnânima
de todo alvorecer, que habita no íntimo da atividade abstrata e real de amar.
Mas ao se perceber essa grandiosidade, pergunta-se para que outra revelação,
se no íntimo do ser mora a imortalidade, o símbolo infinito do amor e da
transformação?
Com a última estrofe, o autor expressa que a rosa que há em você, é uma
de primeira qualidade, de atributos infinitos do poder criador, está sempre pre-
sente, revelando a sua aragem e os odores infinitos do próprio esplendor.
E assim, a rosa que está em você é uma de primeiríssima qualidade e não
importa o tempo, jamais chegará ao fim, e com as fragrâncias mil das ricas po-
tencialidades, revela a mais bela rosa preciosa de todo o jardim. Essa é a rosa
mais bendita da criação, que em sua inédita expressão, brotou um olor infinito,

208
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
revelando o amor em sua mais alta dimensão, criado e ornado pelo próprio po-
der bendito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A variedade de títulos apresentada demonstra como a poesia é um veículo


versátil para a expressão e interpretação de sentimentos e pensamentos. A lin-
guagem poética permite que os poetas explorem a complexidade da experiência
humana de maneiras únicas, oferecendo aos leitores um vislumbre das emoções
que unem a todos nós como seres humanos.
Ao contemplarmos esses títulos e suas respectivas poesias, somos lem-
brados da importância contínua da poesia como uma forma de comunicação
profunda e significativa. Ela nos convida a entrar em um diálogo atemporal com
a polifonia de vozes que o poeta nos traz, ressoando suas palavras em nossa pró-
pria experiência. Através da poesia, podemos encontrar conexões com mundo,
enriquecendo nossa compreensão da vida e da beleza que a rodeia. Dessa for-
ma, o escritor Washington Dourado faz este entrelace linguístico, versificando
de forma sublime, com uma visão poética do mundo sensível dos sentimentos
e pensamentos, levando os leitores a uma sutil reflexão sobre a existência e as
diversas temáticas da espiritualidade e da consciência.

REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Alberto Filipe (2004). Educação e Imaginário. Da Criança Mítica
às Imagens da Infância. Maia: ISMAI.
BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução de Padre Antônio Pereira de Fi-
gueredo. Rio de Janeiro: Encyclopaedia Britannica, 1980. Edição Ecumênica.
GRIMAL, Pierre (1992 [1951]). Dicionário da Mitologia Grega e Romana.
Trad. de Victor Jabouille. Lisboa: Difel.
JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos e reflexões. Editora Nova Fronteira,
1986.
MOORE, Thomas (1999). Como Educar a Alma. Trad. de Sara Batalha. Lis-
boa: Planeta Editora.

209
EIXO VI

RESENHAS
RESENHA
Marina Arantes Santos Vasconcelos1

HUYSSEN, Andreas. SEDUZIDOS PELA MEMÓRIA: ARQUITETURA,


MONUMENTOS, MÍDIA. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

Em Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia, Andreas


Huyssen (2000) aponta para a emergência da memória entre as preocupações
culturais e políticas centrais das sociedades ocidentais. Evidencia o contraste en-
tre o deslocamento do privilégio conferido ao futuro, no começo do século XX,
para uma volta ao passado. Nesse contexto, segundo o teórico (Huyssen, 2000),
os elementos “energizadores” da cultura modernista teriam sido os chamados
“futuros presentes”, que, a partir da década de 1980, teriam sido deslocados para
uma atenção direcionada aos denominados “passados presentes”.
Huyssen (2000) historiciza cronologicamente os discursos da memória a
partir da década de 1960, passando para a explicação de que “Os discursos de
memória aceleraram-se na Europa e nos Estados Unidos no começo da década
de 1980, impulsionados, então, primeiramente pelo debate cada vez mais amplo
sobre o Holocausto.” (Huyssen, 2000, p. 11).
Como ilustração de suas reflexões, o autor (Huyssen, 2000) realiza a ex-
planação de eventos emblemáticos, que se situam no contexto do Holocausto e
da história do Terceiro Reich, para apresentar situações subsequentes, as quais
realizam o resgate, pela memória, dos acontecimentos originais. Huyssen (2000)
destaca que esse denominado “movimento testemunhal” recebeu “intensa co-
bertura da mídia internacional, remexendo as codificações da história nacional
posteriores à Segunda Guerra Mundial” (Huyssen, 2000, p. 11), em diversos
países, como França, Áustria, Itália, Japão, Estados Unidos e Suíça.
Tomando como ponto de partida a história da construção do Holocaust
Memorial Museum, de Washington., planejado na década de 1980, mas inaugu-
rado em 1993, o autor procura avaliar a situação; e constata que “o crescente

1 Marina Arantes Santos Vasconcelos é Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade


de Brasília e Professora da Educação Básica na Secretaria de Estado de Educação do Dis-
trito Federal. E-mail: [email protected].

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

poder da cultura da memória no final da década de 1990 (...) também levanta


questões difíceis sobre o uso do Holocausto como um lugar-comum universal
para os traumas históricos.” (Huyssen, 2000 p. 12). Huyssen nos apresenta, en-
tão, a indagação: “em que medida pode-se, agora, falar de uma globalização do
discurso do Holocausto?” (Huyssen, 2000, p. 12).
Ao desenvolver o tema, o autor (Huyssen, 2000) reúne questões como
a cultura da memória no fim dos anos 1990 e a ênfase ao tema do Holocausto
sintetizando-as por meio do termo “globalização da memória”. Esse novo ter-
mo, para Huyssen (2000), abrigaria, em si, dois sentidos relacionados, confi-
gurando o que chama de “paradoxo da globalização”. Para Huyssen (2000),
“O Holocausto se transformou numa (...) prova da incapacidade da civilização
ocidental de praticar a anamnese, de refletir sobre sua inabilidade constitutiva
para viver em paz com diferenças e alteridades” (Huyssen, 2000, p. 13). Segundo
defende (Huyssen, 2000). “Por outro lado, (...) É precisamente a emergência do
Holocausto como uma figura de linguagem universal que permite à memória
do Holocausto começar a entender situações locais específicas, historicamente
distantes e politicamente distintas do evento original” (Huyssen, 2000, p. 13).2
O perigo que essa segunda acepção apresenta, para o autor, é o seguinte
(Huyssen, 2000): “Assim como pode energizar retoricamente alguns discursos de
memória traumática, a comparação com o Holocausto também pode servir como
uma falsa memória ou simplesmente bloquear a percepção de histórias especí-
ficas.” (Huyssen, 2000, p. 13) – “as tramas secundárias”. Para o autor, o lugar
que a memória do Holocausto ocupa na modernidade ocidental deixa a memória
narrativa atual sem cobertura em um escopo mais amplo. (Huyssen, 2000, p. 13).
Nessa perspectiva, Andreas Huyssen sugere que existem duas vertentes
atuais na cultura da memória. Por um lado, o que ele denomina “entretenimento
memorialístico” (Huyssen, 2000, p. 14), o qual envolve, entre outros exemplos
(Huyssen, 2000): “literatura memorialística e confessional, romances autobio-
gráficos e históricos pós-modernos (com suas difíceis negociações entre fato e
ficção), documentários na televisão (History Channel).” (Huyssen, 2000, p. 14).
A outra vertente conteria o que ele (Huyssen, 2000) denomina “o lado
traumático da cultura da memória”, junto ao cada vez mais onipresente discurso
do Holocausto” (Huyssen, 2000, p. 14), abrangendo (Huyssen, 2000): “vasta li-
teratura psicanalítica sobre o trauma, controvérsia sobre a síndrome da memória
recuperada, entre outros.” (Huyssen, 2000, p. 14-15).
Em seguida, o autor (Huyssen, 2000) desenvolve um pensamento referente

2 Essa segunda acepção pode ser percebida sob uma perspectiva metafórica, no sentido de
que o Holocausto pode representar simbolicamente –universalmente – experiências parti-
culares, individuais, ou nacionais.

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
ao “processo de musealização; ”Para ele, “É como se o objetivo fosse conseguir
a recordação total. – noção de ‘arquivista maluco.’” (Huyssen, 2000, p. 15). A
questão central aqui, para o autor, é investigar se há “algo mais para ser discuti-
do neste desejo de puxar todos esses vários passados para o presente; Algo que
seja, de fato, específico à estruturação da memória e da temporalidade de hoje
e que não tenha sido experimentado do mesmo modo nas épocas passadas”
(Huyssen, 2000, p. 15). Seria, aqui, a busca pelo aspecto singular da cultura da
memória contemporânea.
O que Huyssen (Huyssen, 2000) explica é que “O que aí aparece, agora,
em grande parte como uma comercialização crescentemente bem-sucedida da
memória pela indústria cultural do ocidente, assume uma inflexão política mais
explícita em outras partes do mundo. Especialmente desde 1989, as questões
sobre memória e o esquecimento têm emergido como preocupações dominan-
tes” (Huyssen, 2000, p. 14) em diversas partes do mundo, a exemplo “do debate
cultural e político em torno dos presos políticos desaparecidos e seus filhos nos
países latino-americanos, levantando questões fundamentais sobre violação de
direitos humanos, justiça e responsabilidade coletiva.” (Huyssen, 2000, p. 16).
Com essas reflexões, Andreas Huyssen (2000) chega à constatação de que
“o lugar político das práticas de memória é ainda nacional e não pós-nacional ou
global” (Huyssen, 2000, p. 17), enfocando os “debates sobre a memória nacional
imbricados com os efeitos da mídia global” (Huyssen, 2000, p. 17), e reforçando
os “trabalhos comparativos sobre mecanismos e lugares-comuns de traumas his-
tóricos e práticas de memória nacional.” (Huyssen, 2000, p. 17).
Nesse sentido, Huyssen volta a destacar que a “consciência temporal da
alta modernidade no ocidente procurou garantir o futuro”; entretanto, “a cons-
ciência temporal do final do século XX envolve a não menos perigosa tarefa de
assumir a responsabilidade pelo passado.” (Huyssen, 2000, p. 17-18). A crítica do
autor (Huyssen, 2000) está no fato de que, segundo ele, “ambas as tentativas são
assombradas pelo fracasso”. (Huyssen, 2000, p. 18). Neste ponto, Huyssen (2000)
introduz a discussão referente a um segundo paradoxo: “os críticos acusam a pró-
pria cultura da memória contemporânea de amnésia” (Huyssen, 2000, p. 18). Em
seguida, indaga: “e se o aumento explosivo de memória for inevitavelmente acom-
panhado de um aumento explosivo de esquecimento?” (Huyssen, 2000, p. 18).
Andreas Huyssen (2000) problematiza as relações entre memória e esque-
cimento, levando em consideração as pressões das novas tecnologias da infor-
mação, as políticas midiáticas e o consumismo desenfreado. E ressalta: “Freud
já nos ensinou que a memória e o esquecimento estão indissolúvel e mutuamen-
te ligados; que a memória é apenas uma outra forma de esquecimento e que o es-
quecimento é uma forma de memória escondida.” (Huyssen, 2000, p. 18). Nesse

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

sentido, Huyssen (2000) realiza uma conexão entre os processos psíquicos da


recordação, do recalque e do esquecimento (Freud) e as sociedades de consumo
contemporâneas: “um fenômeno público de proporções sem precedentes que
pede para ser interpretado historicamente”. (Huyssen, 2000, p. 18). A reflexão
sobre o fenômeno amplia-se do individual para o coletivo.
Sobre essa ampliação, o autor cita as abordagens sociológicas da memória
coletiva, como exemplo, a de Maurice Halbwachs, e conclui que elas “não são
adequadas para dar conta da dinâmica atual da mídia e da temporalidade, da
memória, do tempo vivido e do esquecimento.” (Huyssen, 2000, p. 19). E aí apre-
senta (Huyssen, 2000) uma inquietação central às suas ideias: “se ainda é possível,
nos dias de hoje, a existência de formas de memória consensual coletiva e, em
caso negativo, se e de que forma a coesão social e cultural pode ser garantida sem
ela.” (Huyssen, 2000, p. 19). Para o autor (Huyssen, 2000), “a memória da mídia
sozinha não será suficiente.” (Huyssen, 2000, p. 19). Isso porque, para o autor
(Huyssen, 2000), “Quanto mais nos pedem para lembrar, no rastro da explosão
da informação e da comercialização da memória, mais nos sentimos no perigo do
esquecimento e mais forte é a necessidade de esquecer.” (Huyssen, 2000, p. 20).
Em resumo, Huyssen (2000) sinaliza as perguntas essenciais de seu texto:
“Devo então voltar à questão: por quê? E especialmente: por que agora? Por que
esta obsessão pela memória e pelo passado e por que este medo do esquecimen-
to? Por que estamos construindo museus como se não houvesse mais amanhã?
E por que só agora o Holocausto passou a ser algo como uma cifra onipresente
para as nossas memórias do século XX, por caminhos inimagináveis vinte anos
atrás?” (Huyssen, 2000, p. 20).
Nesse ponto, o teórico (Huyssen, 2000) faz um reconhecimento: “não po-
demos discutir memória pessoal, geracional ou pública sem considerar a enorme
influência das novas tecnologias de mídia como veículos para todas as formas de
memória.” (Huyssen, 2000, p. 20-21). Assim, conclui (Huyssen, 2000) que “não é
mais possível, por exemplo, pensar em Holocausto ou em outro trauma histórico
como uma questão ética ou política séria, sem levar em conta os múltiplos modos
em que ele está agora ligado à mercadorização e à espetacularização em filmes,
museus, docudramas, sites na Internet, livros de fotografia, histórias em quadri-
nhos, ficção, até contos de fada (...) e música popular.” (Huyssen, 2000, p. 21).
Para Huyssen (2000), a natureza da abordagem “Depende muito, portanto,
das estratégias específicas de representação e de mercadorização e do contexto no
qual elas são representadas.” (Huyssen, 2000, p. 21). Nesse ponto, o que Huyssen
(2000) destaca é que não pretende realizar uma oposição entre “memória séria” e
“memória trivial”, que tenha como paradigma “a velha dicotomia alta/baixa da
cultura modernista sob uma nova aparência.” (Huyssen, 2000, p. 21). E explica

214
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
(Huyssen, 2000) que “Se reconhecemos a distância constitutiva entre a realidade
e a sua representação em linguagem ou imagem, devemos, em princípio, estar
abertos para as muitas possibilidades diferentes de representação do real e de suas
memórias. Isto não quer dizer que vale tudo. A qualidade permanece como uma
questão a ser decidida caso a caso. Mas a distância semiótica não pode ser encur-
tada por uma e única representação correta.” (Huyssen, 2000, p. 22).
Com seus exemplos (Huyssen, 2000), chama a atenção para o fato de
que questões cruciais da cultura contemporânea estão precisamente localizadas
no limiar entre dois tipos de representação, a exemplo da memória dramática
(Shoah, de Claude Lanzmann) e do que denominou mídia comercial (Lista de
Schindler, de Spielberg). (Huyssen, 2000, p. 22). O que o autor (Huyssen, 2000)
defende é que “a mídia não transporta a memória pública inocentemente; ela a
condiciona na sua própria estrutura e forma.” (Huyssen, 2000, p. 22-23).
Neste ponto, cita (Huyssen, 2000) o teórico Marshall Mc Luhan3 e sua no-
ção de que “o meio é a mensagem”, alertando para o fato de que é “bastante sig-
nificativo que o poder da nossa eletrônica mais avançada dependa inteiramente de
quantidades de memória.” (Huyssen, 2000, p. 23). Huyssen (2000) parece concluir
que: “Se hoje a ideia de arquivo total leva os triunfalistas do ciberespaço a abraçar
as fantasias globais à La McLuhan, os interesses de lucro dos comerciantes de me-
mória de massa parecem ser mais pertinentes para explicar o sucesso da síndrome
da memória. Trocando em miúdos: o passado está vendendo mais do que o futu-
ro. Mas por quanto tempo, ninguém sabe.” (Huyssen, 2000, p. 23-24).
Em resumo, questiona (Huyssen, 2000): “dado que o crescimento explo-
sivo da memória é história, como não resta dúvida de que será, terá alguém real-
mente se lembrado de alguma coisa? (...) Os computadores, dizem, poderão não
saber reconhecer a diferença entre o ano 2000 e o ano 1900 – mas nós sabemos?”
(Huyssen, 2000, p. 24-25). Huyssen (2000) passa a refletir sobre o argumento pa-
drão do teórico Theodor Adorno, segundo quem a mercadorização é o mesmo
que esquecimento, e a teoria de críticos que defendem que a comercialização de
memórias gera apenas amnésia. Sinaliza (Huyssen, 2000) que “algo mais deve
estar em causa, algo que produz o desejo de privilegiar o passado e que nos faz
responder tão favoravelmente aos mercados de memória: este algo, eu sugeriria,
é uma lenta mas palpável transformação da temporalidade nas nossas vidas, pro-
vocada pela complexa interseção de mudança tecnológica, mídia de massa e no-
vos padrões de consumo, trabalho e mobilidade global.” (Huyssen, 2000, p. 25).
Para ele (Huyssen, 2000), “por mais dúbia que hoje nos pareça a afirmação

3 É importante sinalizar que o teórico, entre outros estudos, foi quem desenvolveu noções
centrais para cultura moderna, a exemplo das expressões “impacto sensorial”, “o meio é a
mensagem” e “aldeia global”, como metáforas para a sociedade contemporânea.

215
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

de que somos capazes de aprender com a história, a cultura da memória preen-


che uma função importante nas transformações atuais da experiência temporal,
no rastro do impacto da nova mídia na percepção e na sensibilidade humanas.”
(Huyssen, 2000, p. 25-26).
Para dar força à sua argumentação, Huyssen (2000) compara as ideias de
Theodor Adorno às de Walter Benjamin, em torno da relação entre: 1. “o privilé-
gio que damos à memória e ao passado”; 2. “o impacto potencial da nova mídia
sobre a percepção e a temporalidade”. (Huyssen, 2000, p. 26). Na percepção de
Huyssen (2000), “a crítica de Adorno é correta, no que se refere à comercialização
em massa dos produtos culturais, mas não ajuda a explicar o crescimento da sín-
drome de memória dentro da indústria da cultura. (...) Por outro lado, Benjamin
está correto ao atribuir ao retrô uma dimensão que dá cognitividade à memória.
(Huyssen, 2000, p. 26).” No entanto, conclui (Huyssen, 2000) que: “Em vez de co-
locar-nos ao lado de Benjamin contra Adorno ou vice-versa, como ocorre comu-
mente, o interessante seria utilizarmos produtivamente a tensão entre estes dois
argumentos para uma análise do presente.” (Huyssen, 2000, p. 26).
Huyssen (2000) cita, em seguida, dois filósofos alemães conservadores –
Hermann Lübbe e Odo Marquard – e sua teoria a respeito do que chamaram de
“’musealização’, como central para o deslocamento da sensibilidade temporal
do nosso tempo” (Huyssen, 2000, p. 27). De acordo com os pensadores (apud
Huyssen, 2000), “a musealização já não era mais ligada à instituição do museu
no sentido estrito, mas tinha se infiltrado em todas as áreas da vida cotidiana.
(...) Lübbe argumentou que a modernização vem inevitavelmente acompanhada
pela atrofia das tradições válidas, por uma perda da racionalidade e pela entro-
pia das experiências de vida estáveis e duradouras.” (Huyssen, 2000, p. 27).
Huyssen (2000) ressalta, então: “A minha hipótese é que, também nes-
ta proeminência da mnemo-história, precisa-se da memória e da musealização,
juntas, para construir uma proteção contra a obsolescência e o desaparecimento,
para combater a nossa profunda ansiedade com a velocidade de mudança e o
contínuo encolhimento dos horizontes de tempo e espaço” (Huyssen, 2000, p.
28). E acrescenta (Huyssen, 2000): “Na teoria de Lübbe, o museu (...) oferece
formas tradicionais de identidade cultural a um sujeito moderno desestabiliza-
do” (Huyssen, 2000, p. 29).
Em síntese, Huyssen (2000) extrai da teoria de Herman Lübbe que: “a
musealização compensa a perda de tradições vividas” (Huyssen, 2000, p. 29);
no entanto, propõe (Huyssen, 2000) que: “qualquer senso seguro do próprio
passado está sendo desestabilizado pela nossa indústria cultural musealizante e
pela mídia, que funcionam como atores centrais no drama moral da memória.”
(Huyssen, 2000, 29-30) Para ele (Huyssen, 2000): “A própria musealização é

216
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
sugada neste cada vez mais veloz redemoinho de imagens, espetáculos e eventos
e, portanto, está sempre em perigo de perder a sua capacidade de garantir a esta-
bilidade cultural ao longo do tempo” (Huyssen, 2000, p. 29-30).
Finalmente, Huyssen (2000) resgata, sequencialmente, as reflexões sobre
as contribuições das categorias de espaço e tempo nas experiências e nas per-
cepções humanas. De acordo com o teórico (Huyssen, 2000), “[as categorias]
Espaço e tempo, (...) longe de serem imutáveis, estão sempre sujeitas a mudan-
ças históricas.” (Huyssen, 2000, p. 30). O teórico (Huyssen, 2000) desenvolve
seu argumento a partir da noção de que: “Uma das lamentações permanentes
da modernidade se refere à perda de um passado melhor (...) A questão, no en-
tanto, não é a perda de alguma idade de ouro de estabilidade e permanência.”
(Huyssen, 2000, p. 30).
Para ele (Huyssen, 2000): “Trata-se mais da tentativa, na medida em que
encaramos o próprio processo real de compressão do espaço-tempo, de garantir
alguma continuidade dentro do tempo, para propiciar alguma extensão do espa-
ço vivido dentro do qual possamos respirar e nos mover.” (Huyssen, 2000, p. 30).
Huyssen (2000) afirma que: “Com certeza, o fim do século XX não nos
oferece acesso fácil ao lugar-comum da idade de ouro. As memórias do século
XX nos confrontam, não com uma vida melhor, mas com uma história única
de genocídio e destruição em massa, a qual, a priori, barra qualquer tentativa
de glorificar o passado.” (Huyssen, 2000, p. 31). Para ele (Huyssen, 2000), “O
mal-estar da civilização metropolitana do final do século (...) parece fluir de uma
sobrecarga informacional e percepcional combinada com uma aceleração cultu-
ral, com as quais nem nossa psique nem os nossos sentidos estão bem equipados
para lidar” (Huyssen, 2000, p. 32).
Segundo defende (Huyssen, 2000): “Quanto mais rápido somos empur-
rados para o futuro global que não nos inspira confiança, mais forte é o nosso
desejo de ir mais devagar e mais nos voltamos para a memória em busca do
conforto.” (Huyssen, 2000, p. 32). Surgem, então, noções como a ideia do “ar-
quivo” e dos “arqueólogos de dados” apontando para “uma das maiores ironias
da ‘idade da informação’ (Huyssen, 2000): “Se não encontrarmos métodos de
preservação duradoura das gravações eletrônicas, esta poderá ser a era sem me-
mória”. (Huyssen, 2000, p. 33). Nos seus termos (Huyssen, 2000): “De fato, a
ameaça do esquecimento emerge da própria tecnologia à qual confiamos o vasto
corpo de registros eletrônicos e dados, esta parte mais significativa da memória
cultural do nosso tempo.” (Huyssen, 2000, p. 33).
Assim, pensando sobre as “transformações atuais do imaginário temporal
trazidas pelo espaço e pelo tempo virtuais” (Huyssen, 2000), Huyssen (2000)
destaca que: “as atuais culturas críticas de memória, com sua ênfase nos direitos

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

humanos, em questões de minorias e gêneros e na reavaliação dos vários passa-


dos nacionais e internacionais, percorrem um longo caminho para proporcionar
um impulso favorável que ajude a escrever de um modo novo e, portanto, para
garantir um futuro de memória.” (Huyssen, 2000, p. 34). Por fim, fica a pergun-
ta: para essa garantia, cabe pensarmos sobre as contribuições de obras literárias
que aproximam memória e literatura?

218
RESENHA
Dirce Maria da Silva1

SILVA, Francisco José da. CAMINHOS E MEMÓRIAS DE MATÕES:


UMA HISTÓRIA SECULAR/ Francisco José da Silva. – Timon: Grafiset,
2013. 500 p. ISBN: (978-85-99631-02-7).

A obra “Caminhos e Memórias de Matões: Uma História Secular”, da


qual a presente resenha é apenas um sucinto recorte, está estruturada em seis
capítulos meticulosamente elaborados, que se dedicam a um exame minucioso
e abrangente da centenária trajetória da cidade de Matões, desde que era apenas
um povoado, por meio de suas origens mais remotas, até sua metamorfose em
uma cidade.
Inicialmente, a abordagem cronológica lança as bases para a história do
município de “Sam Joze dos Mattoes”. A história, conforme Silva (2013, p. 7),
tem suas origens no estabelecimento do arraial de São José das Aldeias Altas,
remontando aos primórdios do século XVIII, concomitante à criação do julgado
de Caxias das Aldeias Altas, ocorrida em 1747. A partir de então, o território
passou a ser vinculado como Termo, conforme registros contidos na história.
A ocupação inicial do povoado ocorreu por meio de uma convergência
de diferentes grupos, que incluía sesmeiros, criadores de gado e religiosos, que

1 Mestre em Direitos Humanos e Estudos Sobre a Violência (Políticas Públicas). Graduada


em Letras Português/Inglês e suas respectivas Literaturas. O curso de Letras, minha pri-
meira graduação, ofereceu-me compreensão da linguagem e das narrativas humanas, en-
quanto o Mestrado em Direitos Humanos, na linha de políticas públicas, ajudou-me a me-
lhor compreender o contexto social e político em que as questões de cidadania ocorrem.
Essa intersecção multidisciplinar mostraram-me como áreas diferentes do conhecimento
dialogam, em diferentes e complexas questões da sociedade contemporânea. Graduada
em Pedagogia – Séries Iniciais/Supervisão e Orientação Educacional. Graduada em Ad-
ministração. Pós-graduada em nível de especialização em Gestão Pública e Negócio (IFB/
DF); Docência do Ensino Superior, Língua Inglesa, Educação a Distância, Recursos Hu-
manos e Psicopedagogia Clínica e Institucional. Membro (Técnico) do Grupo de Pesquisa
Literatura e Espiritualidade (GPLE), vinculado ao Departamento de Teoria Literária e Li-
teraturas (POSlit / TEL) da Universidade de Brasília. Membro Fundadora do Instituto de
Pesquisa, Desenvolvimento e Apoio a Neurodivergentes - IPDAN/DF (Instagram: ipdan.
org.br). Atualmente trabalha como professora da Educação Básica na Secretaria de Estado
de Educação do Distrito Federal. E-mail: [email protected].

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

tentavam se estabelecer dentro do mesmo contexto de expansão territorial. Esse


processo foi resultado da abertura das estradas reais, que também deram origem
a rotas que serviam para a condução de boiadas, durante o século XVIII (Silva,
2013, p. 18).
Nas últimas décadas do referido século, até o início do XIX, conforme
Silva (2013, p. 18-19), São José dos Matões começou a ganhar relevância, es-
pecialmente durante os conflitos pela adesão do Maranhão à Independência do
Brasil, ocorridos entre 1822 e 1823. Nesse período, o povoado servia como um
ponto de descanso para as tropas que acompanhavam as expedições dos coman-
dantes portugueses em território brasileiro.
Após a proclamação da adesão do Maranhão à Independência de
Portugal, em 1833, a Vila de São José dos Matões foi oficialmente estabelecida,
por meio de uma Resolução Régia, datada de 19 de abril de 1833. Essa decisão
foi posteriormente ratificada pela Lei Provincial número 7, de 29 de abril de
1835. Dessa lei também resultou a divisão da província em Comarcas e Termos
(Silva, 2013, p. 18-19).
No entanto, a busca pela autonomia política, entre a elevação do povoado
à categoria de Vila, por meio da Resolução Régia mencionada, à criação do
Município de Matões em 30 de dezembro de 1952, através da Lei nº 849, repre-
sentou uma jornada prolongada, repleta de desafios, marcada pela perseverança
e resistência.
Em 1955, Matões abrigava uma população de quase quinze mil habitan-
tes, ocupando área de 1.702 km2. A economia estava centrada quase que total-
mente na extração do babaçu e na produção de arroz.
O crescimento da cidade foi prejudicado devido à sua distância dos rios,
determinada após as decisões legais, o que a deixou afastada das correntes que
impulsionavam o desenvolvimento civilizacional e comercial pela via fluvial.
Como resultado, o município dependeu, por um longo período, quase que uni-
camente das duas festas religiosas anuais realizadas em janeiro, o Festejo de
São Sebastião, e em agosto, o Festejo do Divino Espírito Santo, como principais
fontes de sustento (Queiroz, 1959 apud Silva, 2013, p. 20).
De acordo com o censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística em 20102, a população residente na cidade de Matões era composta por
31.015 pessoas (Silva, 2013, p. 38). Atualmente, a cidade é reconhecida como uma

2 Segundo dados do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística 2022, a popula-


ção da cidade de Matões (MA) chegou a 32.174 pessoas, o que representa um aumento de
1,69%, comparando com o Censo de 2010. O atual Prefeito é Ferdinando Araújo Coutinho
(2021). Gentílico: matoense. Área Territorial: 2.108,671 km². População residente: 32.174
pessoas (IBGE, 2022). Densidade demográfica: 15,26 hab/km². Escolarização 6 a 14 anos:
97,5%. Índice de desenvolvimento humano municipal (IDHM): 0,550. (Nota da resenhista).

220
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
das localidades no estado do Maranhão que mais registra crescimento significativo,
mesmo diante de gestões municipais consideradas pouco eficientes, no que diz res-
peito ao planejamento e desenvolvimento urbano (Silva, 2013, p. 29).
No segundo capítulo o autor dedica-se à descrição dos aspectos físicos
da região, abordando informações sobre a geografia, hidrografia, limites terri-
toriais, topografia, cursos d’água, corpos d’água temporários, lagoas, climatolo-
gia, tipos de vegetação e médias de temperatura.
Conforme esclarece Silva (2013, p. 45), as mudanças territoriais ocorridas
ao longo do tempo, até a determinação atual, deixaram a cidade distante das
margens do rio Itapecuru e do Parnaíba, este último servindo de limite com o
estado do Piauí.
A topografia da cidade não apresenta elevações significativas, o ponto
mais alto é o Morro do Pico, que se eleva a 283 metros e está situado a dois
quilômetros do centro urbano. O município é caracterizado por vastas chapadas
com abundantes áreas planas circundantes.
No que diz respeito a recursos aquáticos e lagoas, destaca-se a Lagoa do
Roseno, localizada na área urbana, em um bairro tradicional de Matões, no
início da Rua Barão do Rio Branco, desempenhando papel de ponto turístico na
cidade. Quanto à vegetação, o município é composto por campos de vegetação
rasteira e florestas com árvores de diferentes tamanhos, com espécies de grande,
médio e pequeno porte.
O terceiro capítulo versa sobre aspectos econômicos. A obra destaca a
importância que os recursos naturais possuem no desenvolvimento da região.
Entre os recursos vegetais, o babaçu em particular, é árvore frutífera da qual
quase todos os componentes podem ser aproveitados e é predominante na região
(Silva, 2013, p. 53).
Ao falar sobre a economia do babaçu, o autor explica que as amêndoas
são usadas na fabricação do azeite e de leite; as cascas do coco, após a retira-
da das castanhas, podem ser transformadas em carvão; as palhas da palmeira
servem para a cobertura de casas. A resistente folha da palma do babaçu é utili-
zada na confecção de utensílios domésticos, como abanos e esteiras, enquanto
os talos das folhas são empregados na construção de estruturas de taipa, isto
é, paredes preenchidas com barro nas casas mais rústicas. Outras árvores que
produzem frutos bastante apreciados e são partes integrantes da economia local
é o buriti, o tucum e o pequizeiro, encontrados nas áreas de planalto, chapadas
e alagadiços da região (Silva, 2013, p. 53).
No que se refere aos recursos minerais, além da abundância de argila e
piçarra na área, há também ocorrências de pedras, conhecidas como “cabeça de
negro”, utilizadas na pavimentação de estradas. A produção delas é realizada

221
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

em grande escala, com toneladas delas sendo exportadas.


Quanto aos recursos animais, após a proibição pelo IBAMA, a caça a
animais silvestres foi praticamente extinta na região, mas não se pode esquecer
que tal prática já foi fonte de subsistência para muitas famílias num passado não
muito distante (Silva, 2013, p. 53).
Nesse sentido, o setor primário, que engloba também a agricultura, é, ain-
da, fonte econômica significativa para uma parte considerável da população,
mesmo diante do crescimento das atividades industriais na região, conforme
Silva (2013, p. 54).
A chegada de grandes empresas, como a Suzano Papel e Celulose ao
município trouxe um conjunto de outras empresas relacionadas, resultando em
investimentos nas áreas de biotecnologia, biomassa e geração de energia, o que
contribuiu para a consolidação da expansão de novos empreendimentos na área
(Silva, 2013, p. 59). Além disso, a Fundação Ayrton Senna, que implementa
programas voltados para a educação, é outra instituição presente em Matões.
A progressão histórica de Matões também foi influenciada pela atividade co-
mercial, que nos primórdios envolvia viajantes boiadeiros que percorriam as trilhas
que atravessavam o território do município, bem como por mercadores ambulantes
que visitavam a região desde os primeiros tempos, provenientes de estados vizinhos
do Nordeste, a negociarem animais e diversos outros produtos (Silva, 2013, p. 64).
Foi também na década de 1980 que a cidade de Matões recebe as primeiras
instituições financeiras, com a primeira agência bancária, do Banco do Brasil. A ci-
dade dispõe de uma casa lotérica da Caixa Econômica Federal e de uma agência dos
Correios. As grandes redes de lojas, como Armazém Paraíba, Audiolar, Eletronorte,
dentre outras, também estão presente no comércio da cidade (Silva, 2013, p. 68).
Com o desenvolvimento das estradas e rodovias, conforme Silva (2013,
p. 70), o sistema de transporte público passou por transformações, evoluindo
de poucos caminhões que operavam no município para a inserção comercial de
empresas de transporte de passageiros, com a Líder, empresa de ônibus oriunda
de Teresina/PI, que estabeleceu linhas diárias entre Timon e Matões. Com o
tempo foram surgindo mais alternativas, como as vans, que complementam o
serviço de transporte coletivo na área.
No que diz respeito aos meios de comunicação, a “Voz São Francisco”,
de propriedade de Francisco José da Silva, utilizava sistemas de alto-falantes
para transmissões na cidade. O sistema funcionava de maneira semelhante a
uma estação de rádio, com uma programação estabelecida em horários especí-
ficos, com anúncios publicitários, com propagandas e patrocinadores, permane-
cendo em operação até o final da década de 1980. Com o avanço da tecnologia
e os sistemas de comunicação evoluindo para formas mais modernas, vieram

222
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
estações de rádios FM e canais de televisão (Silva, 2013, p. 73-74).
O município de Matões teve a instalação do primeiro serviço telefônico
em 1982, numa iniciativa realizada em parceria entre as Telecomunicações do
Maranhão (TELMA) e a Prefeitura de Matões. A partir de 2007 a evolução
trouxe a internet discada para a cidade (Silva, 2013, p. 76).
As estradas e rodagens no interior do Brasil sempre tiveram um papel
de importância fundamental no desenvolvimento das regiões. Conforme Silva
(2013, p. 108) a Estrada Real era rota oficial e exclusiva, único caminho para o
trânsito de pessoas e mercadorias. Era o caminho oficial, utilizado pela família
real, pelos comerciantes, vendedores ambulantes e autoridades religiosas. A pas-
sagem de animais ocorria por uma rota separada. Qualquer tentativa de abrir
novas rotas era considerada crime grave.
Nesse sentido, no tópico denominado Ruas Antigas, à página 81, o autor
faz uma descrição minuciosa sobre todas as ruas, praças, avenidas e becos da
cidade. Sobre a Rua São Pedro, ele nos informa que ela já foi a principal via de
entrada da cidade, uma vez que fazia parte da Estrada Real.
Conforme Silva (2013, p. 82), ali residiram famílias que desempenharam
papéis importantes na história de Matões. Promovida a Avenida São Pedro, con-
tinuou a abrigar outras famílias típicas e tradicionais da sociedade matoense,
a exemplo de D. Maria Raimunda, Joaquim, esposo da professora Cleide, o
Osmar, o Soares, filho de Seu Elias Olaia, D. Maria Luiza, D. Pinenen, rezadei-
ra e D. Saló espírita.
Os aspectos políticos são abordados no Capítulo IV. Ao iniciá-lo, o autor
faz um apanhado geral dos traços referentes à Administração Pública matoense.
O primeiro administrador do município de Matões, de 1835 a 1839, ainda no
período Imperial, foi o Cel. Antônio José de Assunção, e o último do período, o
Cel. Sérgio Pereira da Silva (Silva, 2013, p. 123).
O então Conselho de Intendência nomeado pelo Governador, durante
a Primeira República, contou com os nomes como João Rodrigues da Silveira
Júnior; Antônio Joaquim da Silva Rios; Manoel Rodrigues da Silveira; José
Lino de Assunção; João de Sá Coutinho, Bento José de Araújo, Pedro de Moura
Sobrinho e seus respectivos Intendentes eleitos (Silva, 2013, p. 124-130).
No período do Estado Novo (1930-1947), sob a ditadura de Vargas, o
Prefeito era nomeado pelos Interventores. Dentre os nomes do período estão
Aristides da Silva Rios; Raimundo Nonato de Araújo; Raimundo de Oliveira
Silva; Firmino Câmara; Raimundo Martins Ferreira; Raimundo de Sousa Rego;
Manoel Pereira Lima e Henrique de Sousa Lima (Silva, 2013, p. 130-134).
No período de 1947 a 1988 Matões teve como Prefeitos e Vice-Prefeitos
nomes como Lauro Barbosa, Myrson Vianna, Antenor Pereira de Brito, João

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

Alves de Morais, Mário Alves de Carvalho (por dois períodos), Leônidas


Barbosa Porto; Pedro Alves Pinheiro; Raimundo Santiago Sobrinho; Maria
Brito de Carvalho, e Alcino Pereira da Silva (Silva, 2013, p. 134-148).
A partir de 1988, administraram a cidade de Matões os Prefeitos José João
de Sousa Pereira; Rubens Pereira da Silva; Gilberto de Oliveira Tenório; Pedro
Alves Pinheiro e Suely Torres e Silva, esta última, conforme o autor, numa das
melhores gestões que Matões já teve, entre 2009 e 2012, ano em que o presente
livro ora resenhado foi publicado (Silva, 2013, p. 149-159).
O Poder Legislativo e sua Câmara Municipal estão detalhadamente des-
critos na obra, perpassando por cada um dos vereadores que deram sua contri-
buição como agentes públicos em Matões/Maranhão (Silva, 2013, p. 159 -194).
O Professor Chico Grud, como é popularmente conhecido Francisco José
da Silva, autor da presente obra, em 1976 foi convidado para ser companheiro
de chapa, como vice-prefeito, junto à Professora Mariota, como era popular-
mente conhecida D. Maria Brito de Carvalho. Eles foram eleitos em 1976, para
a gestão entre 31/01/1977 a 31/01/1983 (incluída a prorrogação). Nas eleições
de 1982, o Professor Francisco foi eleito pela 4ª vez ao cargo de vereador. Em
1987, ele assumiu a presidência da Câmara Legislativa, no período entre 1987 e
1988 (Silva, 2013, p. 184).
O Poder Judiciário está contemplado, em sua primeira parte, entre as
páginas 195 e 214, momento em que o autor traz detalhes sobre a Divisão
Judiciária do Império, a perda da autonomia política para Cajazeiras, em 1867,
concomitante à conquista do Foro Civil, Conselho de Jurados e Delegacia
Independente de Caxias/MA.
A segunda parte da história judiciária da cidade traz informações sobre os
primeiros juízes da comarca, o Ministério Público, os promotores de justiça, do
período de 1992 a 2009. Também estão ali informações a respeito dos delegados,
subdelegados e inspetores de quarteirões (Silva, 2013, p. 200- 204).
Silva (2013), no interior do capítulo Aspectos Políticos, discorre sobre a
importância das conquistas sociais dos direitos das mulheres e do aumento da
participação da representação da mulher nos cenários sociais e políticos. De
acordo com o autor, a partir do século XVIII, houve um aumento significati-
vo na busca por direitos por parte das mulheres em várias partes do mundo.
Acrescentemos que o fenômeno pode ser atribuído ao “Iluminismo”, período
caracterizado pelo surgimento de ideias progressistas sobre direitos individuais,
liberdade e igualdade.
Nesse sentido, é importante manter na íntegra, na presente resenha, o
excerto textual dado à figura feminina pelo autor em sua detalhada obra. A
Mulher no Cenário Político é um tópico em que Silva (2013, p. 208), destaca

224
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
uma lista de conquistas sociais e de direitos pelas mulheres, no cenário brasileiro
e no contexto matoense, apresentada a seguir:
1850 - O Código Comercial simplifica procedimentos e facilita a vida da mulher
negociante, quando no impedimento de seus maridos.
1871 - Na ausência de Dom Pedro II, a Princesa Isabel assume pela
primeira vez a regência do Império, o que vai se repetir várias vezes, dado que o
imperador costumava viajar com frequência.
1888 - Com a aprovação, pelo Parlamento, da Lei Áurea, após intensas campa-
nhas pela imprensa e de mobilização social, via entidades civis, finalmente chega ao fim a
escravidão no Brasil.
1890 - Deputado Saldanha Marinho apresenta emenda, concedendo o direito ao
voto feminino. Mas, por falta de mobilização das mulheres, foi rejeitado.
1899 - Apresentam-se projetos dando livre o exercício dos profissionais liberais à
mulher diplomada.
1910 - A educadora baiana Leolinda Daltro funda o Partido Republicano
Feminino. Em 1917, no Rio de Janeiro, ela lidera passeata pela extensão do direito do
voto das mulheres.
1918 - A bióloga e depois advogada Bertha Lutz, propôs formar uma Associação
de mulheres, a fim de “canalizar todos esses esforços”.
1922 - Por grande maioria, mas em ato restrito a uma recomendação aos poderes
públicos, o Congresso Jurídico Brasileiro aprova a constitucionalidade e a oportunidade
do voto feminino.
1927 - Eleito e empossado em outubro o governador do Rio Grande do Norte,
Juvenal Lamartine, que incluiria temas da campanha feminista em sua plataforma. E
assim, mas também graças ao federalismo então vigente, a mulher potiguar passa a poder
votar e ser votada. Em novembro, Celina Guimarães Viana, se torna a primeira eleitora
brasileira. Em 1928, também no Rio Grande do Norte, Alzira.
1933 - Carlota Pereira de Queiroz é eleita para primeira Deputada Federal na
América Latina. É a voz feminina no Congresso Nacional Brasileiro. Paulista de 42 anos.
No ano anterior, durante a revolução constitucionalista, quando São Paulo se mobilizou
contra o governo de Getúlio Vargas, ela havia liderado 700 mulheres, com o apoio da Cruz
Vermelha para dar assistência aos feridos nos combates.
1934 - A nova Constituição, de cujo anteprojeto participou Bertha Lutz, como
representante feminina, consolida o direito ao voto feminino, estabelecido na prática pelo
Código Eleitoral há dois anos. A Carta também garantia novos direitos às mulheres, como
serem indicadas Ministra de Estado e eleitas Presidente da República. Além disso, asse-
gurava e regulava direitos trabalhistas femininos, incluía artigos e parágrafos sobre ma-
ternidade e infância. Na primeira eleição em que puderam votar e ser votadas, Joanna
da Rocha Santos é eleita prefeita de São João dos Patos, no Maranhão. No mesmo ano,

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

Antonieta de Barros, deputada estadual em Santa Catarina, torna-se a primeira negra a


ser eleita no Brasil.
1936 - Bertha Lutz toma posse como segunda deputada federal brasileira e apre-
senta proposição pioneira sobre Estatuto da Mulher. Em 1937, com o fechamento do
Congresso Nacional pela Ditadura do Estado Novo, interrompe-se a carreira parlamentar
de Bertha Lutz.
1946 - A nova Constituição consolida a obrigatoriedade do direito de voto às
mulheres.
1947 - Lygia Lessa Brito, a mulher de carreira política mais duradora na América
Latina, se elege vereadora no Rio de Janeiro e, como deputada federal, permanece no cená-
rio político até 1983, tendo vencido todas as eleições que disputou. Houve criação do banco
de leite materno, a concessão de aposentadoria, com 25 anos, aos professores primários e a
regulamentação da profissão de artistas.
1950 - Ivete Vargas, sobrinha-neta do Getúlio Vargas, é eleita deputada federal
pelo PTB. É de sua autoria a lei que garante estabilidade no emprego à mulher grávida.
Cassada em 1969 pelo Regime Militar. Volta à Câmara em 1983. Foi eleita mais de seis
mandatos a deputada federal.
1955 - É a vez da mulher matoense. É eleita com maioria de votos a primeira mu-
lher na política municipal: Terezinha de Brito Morais, filha de Raimundo Alves de Morais
(Mundico Morais) e de Elza Brito de Morais, de tradicional família política do município.
Irmã da ex-prefeita Mariota. Foi eleita a (primeira) Presidente da Câmara de Vereadores de
Matões. Sendo reeleita, na eleição seguinte, para o cargo de vereadora. Em 1960, vence as
eleições municipais, como candidata a vice-prefeita, a professora Maria de Castro Oliveira,
esposa do líder político Dozinho Brito e companheira de chapa de José Maria Barbosa
Ribeiro. Conforme um acordo político, entre os dois grupos, José Maria cederia dois anos
para sua vice. Afastando-se para tratar de assuntos de seu interesse, assumiu o governo no
dia 15 de novembro de 1962, tornando-se a primeira prefeita da cidade. Não terminado os
dois anos, entregou para José Maria, que reassumiu o governo até 31 de janeiro de 1965.
1970 - Tivemos mais uma vez uma mulher representante na Câmara dos
Vereadores, professora Maria José e Couto Silva.
1976 - A educadora Maria Brito de Carvalho, conhecida como Mariota, é a pri-
meira mulher eleita a prefeita do nosso município. De larga experiência da vida públi-
ca, esposa do ex-prefeito Dr. Mário Carvalho, é descendente de uma família tradicional
política, “os Morais”. Esteve frente à Prefeitura Municipal, no período de 1982 a 1988,
em consequência de prorrogação de dois anos de governo. Irmã da primeira mulher eleita
a um cargo político no município: Teresinha Brito Morais.
1979 - Eunice Michiles se torna a primeira senadora do Brasil, suplente, ocupa a
vaga do titular pelo seu falecimento.
1982 - Maria Esther de Figueiredo Ferreira, indicada para a Educação, a primeira

226
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Ministra do Estado Brasileiro.
1982 - Era eleita para o cargo de vereadora mais uma mulher matoense: Leonor
Ferreira da Silva.
1988 - Participação maciça da mulher brasileira na Assembleia Constituinte, na
época 29 deputadas federais.
1988 - Era eleita a primeira mulher da região de Pedreiras: professora Juracema
de Arêa Leão, esposa do ex-vice-prefeito João Coutinho Brito. Neste mandato foi eleita
presidente da Câmara de Vereadores, para o biênio de 1989/1990. Sendo reeleita no ano
de 1996.
1988 - Em Matões, também foi eleita outra mulher guerreira da região de União:
Maria Adriano Gomes dos Anjos, uma defensora da pobreza.
1990 - Júnia Marise é a primeira mulher eleita para o Senado Brasileiro.
1994 - A maranhense Roseana Sarney é a primeira governadora eleita no Brasil.
Reeleita em 1998, atual governadora do Estado. Assumiu pela força da Lei, em substitui-
ção ao ex-governador Jackson Lago, afastado do cargo. Roseana concorrerá nas eleições
deste ano, para seu quarto mandato. Com larga experiência na vida pública, foi senadora
da república e deputada federal por mais de um mandato.
1995 - Benedita da Silva é a primeira negra brasileira a se eleger a senadora da
república.
2000 - Os matoenses elegem mais quatro vereadoras: Walmeire Moura Gomes
Coutinho e Taís Garcia Coutinho, representando o povoado de Pedreiras; Tânia Maria de
Oliveira Pinheiro e Maria Gomes Adriano dos Anjos, pela sede do município.
2002 - Duas governadoras são eleitas: Rosinha Garotinho (Rio de Janeiro) e
Wilma de Farias (Rio Grande do Norte).
2003 - A bancada feminina na Câmara dos Deputados atinge o seu maior número,
com a eleição de 52 parlamentares.
2004 - Mais três vereadoras matoenses conseguem a reeleição: Walmeire Coutinho,
Maria Gomes Adriano dos Anjos e Tânia Pinheiro.
2006 - São eleitas três governadoras: Ana Júlia Carepa, no Pará; Wilma Faria
(reeleita), Rio Grande do Norte; e Yeda Crusius, Rio Grande do Sul (Silva, 2013, p.
208-210; Citação Fonte: arquivo da Câmara Municipal de Matões, 2009 e Jornal
da Câmara, DF, 2009).
Quando da publicação de “Caminhos e Memórias de Matões: Uma
História Secular”, em 2012 (a publicação do livro físico ocorreu em 2013), a
então Prefeita de Matões era Suely Pereira, que eleita em 2008, foi a segunda
mulher a se eleger prefeita no município (Silva, 2013, p. 210).
Silva destaca a eleição de Dilma Rousseff, primeira mulher a ocupar o
cargo de presidente do Brasil, pois a despeito de eventuais discordâncias, a elei-
ção de Rousseff tem importância histórica para o Brasil, uma vez que marcou

227
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

o pioneirismo da presença feminina na mais alta esfera política do país, pela


primeira vez em sua história (Silva, 2013, p. 210).
O autor destaca ainda a representação de Roseana Sarney, que atuou na
vida pública, em praticamente todas as esferas e níveis. Foi a primeira gover-
nadora do estado do Maranhão e a segunda do país, chegando a Senadora da
República, em 2006 (Silva, 2013, p. 211-2012).
Ato contínuo, quanto aos aspectos sociais elencados no Capítulo V, o autor
enfatiza ações referentes ao setor da saúde, da assistência social, educação, cul-
tura, religião, manifestações populares, esporte, lazer e turismo. Apresentamos
a seguir, traços sobre os referidos aspectos.
Silva (2013, p. 217) inicia por discorrer sobre a sensível questão do setor
da saúde. Conforme o autor, os atendimentos médicos no município, até os anos
sessenta do século XX eram precários e bastante dependentes das cidades de
Caxias/MA e de Teresina/PI.
Em 1956, na administração de João Alves de Morais, Matões recebeu a
primeira casa de saúde, por meio de um convênio com o Governo do Estado.
Nos anos 90, a chegada a Matões do Dr. Evaldo Angelim da Silva, empresário
do ramo, promoveu mudanças no setor da saúde da cidade. Após muita luta,
resiliência e conquistas, atualmente, o Hospital Municipal Divino Espírito Santo
desenvolve programas de assistência integral à criança, atendimento à saúde da
mulher, atendimento integral a adultos e adolescentes, e também realiza análises
clínicas (Silva, 2013, p. 217-219).
No que diz respeito ao âmbito educacional, é importante destacar que
Matões sempre valorizou profundamente a busca pelo conhecimento. Como
indicado por Silva (2013, p. 221), a história educacional da região foi moldada
pela influência inicial dos jesuítas, seguida por contribuições significativas de
diversos padres e vigários, que por meio de suas ações e importantes contribui-
ções, desempenharam papéis fundamentais no desenvolvimento do sistema de
ensino municipal.
Um marco importante na trajetória educacional de Matões foi a promul-
gação do Decreto 250, datado de 25/02/1932, que resultou na criação das pri-
meiras escolas na Vila de São José dos Matões. Além disso, em 1954, teve início
a construção do primeiro grupo escolar no centro da cidade, conhecido como
Escola Municipal Sérgio Pereira, atualmente denominada Unidade Escolar
Eugênio Barros (Silva, 2013, p. 222).
O Plano Decenal de Educação para o período de 1993 a 2003, que esta-
beleceu metas nacionais e estratégias para o aprimoramento da educação em
um horizonte de dez anos, junto a iniciativas complementadas pelo Parâmetros
Curriculares Nacionais, forneceu orientações pedagógicas essenciais que foram

228
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
implementadas por educadores em todo município matoense, contribuindo para
um ensino mais alinhado às melhores práticas educacionais em nível nacional
(Silva, 2013, p. 232).
Em seguida, no período de 1997 a 2004, o setor educacional do município
de Matões experimentou mudanças significativas e avanços que refletiram dire-
tamente na qualidade da educação local, por meio da aplicação da nova Lei de
Diretrizes e Bases da Educação, a Lei 9394/96, que trouxe diretrizes e princípios
modernizados para o sistema educacional como um todo (Silva, 2013, p. 232).
Assim, na conjunção de elementos entre às leis, planos nacionais, parâme-
tros educacionais e trabalho criterioso e contínuo dos agentes públicos, o sistema
educacional matoense foi, paulatinamente, sendo fortalecido, procurando promo-
ver educação de qualidade, alinhado às diretrizes nacionais, o que contribui de
forma contínua para o desenvolvimento social da comunidade (Silva, 2013, p.
221-242).
Hoje, o município oferta ensino em todos os níveis e etapas da Educação
Básica, Técnica, Educação de Jovens e Adultos e Nível Superior, privilegian-
do, concomitantemente, a Educação Inclusiva, contando com estabelecimentos
educacionais nas esferas municipais e estaduais, além de instituições particulares
de ensino (Silva, 2013, p. 245-249).
O tópico especial Biblioteca Pública Municipal, encerra, no Capítulo V,
os aspectos referentes à Educação. Dentre os objetivos fundamentais de sua
implantação está a reconstituição e a manutenção memorialística, histórica e
crítica do município de Matões dentre os anos 1835 a 2012, constando em seu
acervo, conforme o autor, de leis, decretos, resoluções, regulamentos, portarias,
ofícios e depoimentos da história da educação no município, em seus, até aquele
momento, 177 anos de existência (Silva, 2013, p. 250).
É necessário enfatizar que a história da Igreja Católica no município de
Matões desempenhou papel fundamental no progresso cultural da região. Ali, o
legado de fé e devoção religiosa remonta aos primórdios da cidade, no século XVIII,
período colonial, quando Matões ainda era apenas um pequeno arraial, vinculado
à freguesia de São José das Aldeias Altas, a atual Caxias/MA (Silva, 2013, p. 250).
Deste então a comunidade já demonstrava profundo respeito pelas tradi-
ções Católicas, participando ativamente de celebrações religiosas e da devoção
aos santos. Mesmo em períodos de ausência de padres residentes, os moradores
se uniam para recitar a Ave Maria, fazer pedidos de proteção divina e expressar
o desejo de que uma capela fosse erguida, para melhor abrigarem suas devoções
(Silva, 2013, p. 251).
Segundo minuciosa pesquisa realizada pelo autor, na Paróquia de Nossa
Senhora da Conceição, antiga freguesia de São José dos Matões, foi possível

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D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

encontrar dentre os documentos históricos da Igreja, registros de batizados, ca-


samentos e registros de óbitos, realizados em suas épocas, com muitas infor-
mações importantes, que constituem hoje acervo do Patrimônio Histórico do
Município. Mas, infelizmente, muitos documentos estavam danificados pelos
cupins, ação do tempo e falta de cuidados apropriados, pois muitos foram en-
contrados em simples caixas de papelão (Silva, 2013, p. 252).
É importante reconhecer a contribuição significativa dos primeiros
religiosos que passaram por Matões, em particular os jesuítas, que viajaram
desde a Bahia em direção a Aldeias Altas. Sua presença e influência espiritual
deixaram marcas indeléveis na comunidade, promovendo a fé, coesão social, e
identidade cultural.
Nesse sentido, a religião desempenhou papel central na vida cotidiana
dos moradores, moldando a cultura local e fornecendo alicerce espiritual para o
desenvolvimento da região. A história da Igreja Católica em Matões é tida como
um testemunho da profunda importância da religião na formação dessa cidade,
pois auxiliou no estabelecimento da conexão essencial entre a comunidade.
Quando às festas religiosas, os populares festejos, além da festa da pa-
droeira Nossa Senhora da Conceição, são realizadas a festa do Divino Pai
Eterno e São Sebastião. A padroeira é Nossa Senhora da Conceição, festejada
em 8 de dezembro, momento em que se conta com ações e programações mais
voltadas para as ações religiosas, mesmo.
Já o Festejo do Divino Espírito Santo, em agosto, tornou-se o mais tradi-
cional. Nesses dias, romeiros, pagadores de promessas e filhos ausentes sempre
retornam, para festejarem as bênçãos junto a seus familiares e amigos (Silva,
2013, p. 271).
Além da religião Católica, a cidade também passou a contar, desde o iní-
cio do Século XX, com diversidade religiosa, a qual desempenha papel funda-
mental na vida cultural e social da comunidade. A presença de religiões protes-
tantes como a Igreja Adventista do Sétimo Dia, a Assembleia de Deus, a Igreja
Batista e Testemunhas de Jeová trouxeram perspectivas espirituais diferenciadas
aos religiosos.
O advento mais recente da Igreja Universal do Reino de Deus denota que
a constante evolução no campo das crenças espirituais é reflexo natural da plu-
ralidade de experiências e de perspectivas diferenciadas, que enriquecem a vida
da comunidade (Silva, 2013, p. 267-271).
Não podemos deixar de acrescentar que a diversidade de manifestações
de fé, além de enriquecer a variedade religiosa existente, também promove a
tolerância, o respeito mútuo e o consequente diálogo inter-religioso, o que con-
tribui para o desenvolvimento social geral, e das individualidades.

230
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Por seu turno, as expressões culturais populares em Matões, conforme
Silva (2013, p. 282) abrangem ampla gama de tradições que enriquecem a iden-
tidade local. Dentre elas destacam-se os folguedos tradicionais, como o bumba-
-meu-boi e os animados carnavais. Além disso, as Rodas de São Gonçalo e São
Benedito, bem como o Reisado e o Folclore do Saber do Povo são eventos que
fazem parte da vida da comunidade, proporcionando conexão profunda com
suas raízes culturais.
O artesanato local é testemunho da habilidade e criatividade dos morado-
res de Matões, enquanto a culinária regional cativa os mais diferentes paladares,
com pratos típicos que refletem a riqueza da tradição gastronômica da cidade. E
também as lendas, transmitidas de geração em geração, adicionam uma camada
de mistério e encanto à cultura local, mantendo viva a herança oral da comuni-
dade (Silva, 2013, p. 289).
A Literatura de Cordel e a poesia são meios artísticos pelos quais as histórias
e experiências são compartilhadas e celebradas. Nesse sentido, elas servem como
veículos para expressar a identidade, a memória e as aspirações também do povo de
Matões, contribuindo para a preservação de sua cultura (Silva, 2013, p. 289).
Assim, a história de Matões se mantém viva e dinâmica, pois sabemos
que o conjunto das manifestações culturais reflete a vitalidade e a diversidade
do patrimônio cultural de um povo, e, nesse sentido, a comunidade matoense
mantém suas tradições e saberes populares, por meio do cultivo de expressões
artísticas, culturais e históricas, que enriquecem a vida local e fortalecem a liga-
ção entre as gerações.
Em relação ao esporte, de acordo com as informações fornecidas por
Silva (2013, p. 303), no ano de 1915, Henrique Lima, um imigrante cearense
que se estabeleceu na cidade, trouxe consigo sua admiração pela arte do futebol,
tornando-se assim o pioneiro da prática desse esporte em Matões. Na década de
trinta, a cidade já estava competindo com o time Flores Atlético Club, da cidade
de Timon/MA.
Em 1976 houve o estabelecimento da Sociedade Esportiva Cultural
Matoense, cujo presidente e fundador foi o próprio Professor Francisco José da
Silva, o autor do livro que estamos a resenhar. Este clube contou com a partici-
pação ativa de atletas e sócios (Silva, 2013, p. 304).
A partir desse ponto, o autor começa a listar os nomes dos atletas em suas
respectivas modalidades, incluindo aqueles que conseguiram alguma projeção
fora da cidade, como é o caso desta resenhista.
O Professor Francisco José da Silva, carinhosamente conhecido como
Chico Grud, um Educador Físico aposentado da Secretaria de Educação de
Matões, sempre desempenhou um papel fundamental na promoção da prática

231
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
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esportiva na cidade. No período em que morei no Maranhão, durante parte da


minha adolescência, tive a oportunidade de desenvolver meu interesse pelo es-
porte através das suas instruções.
Eu, Dirce Maria, expresso minha gratidão pela gentileza do autor em
incluir meu nome em seu notável trabalho de antropologia social, especifica-
mente no Capítulo V, intitulado “Aspectos Sociais”, no contexto da Secretaria
Municipal da Juventude, Cultura, Esporte e Lazer. Meu nome foi citado ao lado
de diversos outros jovens que tiveram a honra de, de algum modo, fazer parte
dessa história e poder ser mencionado no livro de Matões (Silva, 2013, p. 306).
O turismo não constitui base econômica da cidade ou da região, exceto
durante os períodos festivos de janeiro e de agosto, quando a cidade se transfor-
ma em grande anfitriã, ao atrair milhares de visitantes para suas ruas, Igrejas e
festas. Nesses momentos, a atividade comercial local experimenta notável au-
mento nas vendas e na arrecadação financeira (Silva, 2013, p. 310).
Além das duas populares festividades religiosas, a cidade oferece algumas
atrações naturais que costumam atrair visitantes, como a Lagoa da Cana Brava,
situada a 18 km da sede, o Balneário Natural Buriti Grande, a apenas 5 km da
cidade, a Lagoa da Bela Vista e, na sede, o Balneário Vereador Roseno Costa.
No próximo capítulo, intitulado “Personalidades”, o autor apresenta per-
fis de “Figuras Ilustres” residentes da cidade que estampam a diversidade de
personagens que moldaram a história de Matões. A lista perpassa por nomes
como o do Senhor Albertino (p. 317), Joelma Teixeira e José Abdenaldo (p.
331), Rozilda Lima e Rubens Pereira e Silva Júnior (p. 343), entre muitos outros
filhos de Matões.
Além disso, o livro também dedica espaço a outros moradores catego-
rizados como “Personalidades Populares”, e explora o tópico das “Figuras
Folclóricas”. Essas listas estão organizadas em ordem alfabética, abrangendo a
diversidade de indivíduos que compõem a sociedade de Matões (Silva, 2013, p.
315-368).
A partir deste ponto encontram-se os Anexos (p. 367-492) e as Referências
Bibliográficas (p. 403-502).
Dessa forma, neste sucinto resumo, destacamos excertos do livro
“Caminhos e Memórias de Matões: Uma História Secular”, obra grandio-
sa, que hibridiza em descrições detalhadas, o discurso científico e a narrativa
poética.
Cada um dos capítulos é um mergulho profundo, que leva o leitor a co-
nhecer um pouco mais sobre essa peculiar cidade, situada no interior do estado
do Maranhão, com seus avanços, retrocessos e desafios.
Francisco José da Silva enriquece sua narrativa, ao inserir uma ampla

232
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
gama de elementos visuais como fotografias, desenhos, tabelas e quadros, con-
comitantes às respectivas descrições. A obra se destaca assim, de forma multifa-
cetada, por oferecer abordagem simultaneamente arqueológica, social, histórica
e memorialística da cidade.
“Caminhos e Memórias de Matões: Uma História Secular” é um teste-
munho científico-literário que entrelaça reflexão cultural, disseminação de co-
nhecimento, reconfigurando o presente, por meio do entendimento do passado.
Não tenho dúvidas em afirmar que esta obra é um tesouro destinado a ser apre-
ciado pelas gerações futuras, garantindo a contínua preservação da rica herança
cultural e histórica de Matões.
O livro “Caminhos e Memórias de Matões: Uma História Secular” é,
segundo palavras do autor, “a realização de um desejo que se estendeu por qua-
se quatro décadas, envolvendo dedicação incansável à pesquisa oral, à produção
escrita e à compilação de documentos”. Francisco José da Silva, o autor, celebra
seus 76 anos de vida, marcados, por entre outras histórias de sua longa e profícua
existência, por essa notável jornada de trabalho e paixão pela história de Matões.

Francisco José da Silva é Graduado em Química e em Educação Física pela


Universidade Estadual do Maranhão. É Professor aposentado da Secretaria de
Educação de Matões. E-mail: [email protected].

233
POSFÁCIO

Caro leitor,

O que torna a presente obra especial é a variedade de vozes e perspectivas


que ela reúne.
Que os textos reunidos nesta singela coletânea inspirem à exploraração
de outras interpretações, a partir das que aqui foram apresentadas. A leitura e
a escrita são as ferramentas que nos permitem construir pontes entre diferentes
pontos de vista e culturas, e é através delas que podemos continuar a enriquecer
nossa compreensão do mundo e da humanidade.
Agradecemos a todos que se juntaram a nós nesta jornada literária.
Esperamos que os textos desta obra continuem a ecoar em suas vidas,
inspirando a busca pelo conhecimento e a expressão criativa.
Que esta obra os encoraje a compartilhar suas memórias, a revisitar tex-
tos, e que por meio de seus escritos, possam ressignificá-los, pois em um mundo
que celebra a pluralidade de vozes e formas de expressão, é por meio da leitura e
da escrita que estabelecemos entendimento entre experiências diversas, aprofun-
dando nossa compreensão do mundo e da condição humana.
Afinal, a leitura é a porta que nos conduz ao prazer de inúmeras vidas,
enquanto a escrita literária é a janela pela qual compartilhamos a felicidade de
criar mundos inteiros.
Que desfrutemos mais de prazerosas leituras!

Dirce Maria da Silva


Brasília, Setembro de 2023.

234
ORGANIZADORAS

Dirce Maria da Silva


Mestre em Direitos Humanos e Estudos Sobre a Violência. Graduada em Letras
Português/Inglês e suas respectivas Literaturas. O curso de Letras, minha pri-
meira graduação, ofereceu-me compreensão da linguagem e das narrativas hu-
manas, enquanto o Mestrado em Direitos Humanos, com foco em políticas pú-
blicas, ajudou-me a melhor compreender o contexto social e político em que as
questões de cidadania ocorrem. Essa intersecção multidisciplinar mostram-me
cada vez mais como áreas diferentes do conhecimento dialogam, nas diferentes e
complexas questões da sociedade contemporânea. Membro (Técnico) do Grupo
de Pesquisa Literatura e Espiritualidade (GPLE), vinculado ao Departamento
de Teoria Literária e Literaturas (POSlit / TEL) da Universidade de Brasília.
Membro Fundadora do Instituto de Pesquisa, Desenvolvimento e Apoio a
Neurodivergentes – IPDAN/DF (Instagram: ipdan.org.br;). Atualmente traba-
lha como professora da Educação Básica na Secretaria de Estado de Educação
do Distrito Federal. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7836053563578154. Orcid:
https://orcid.org/0000-0001-57141419.
E-mail: [email protected]

Eunice Nóbrega Portela


Doutora em Educação com ênfase em Psicologia Social pela Universidade de
Brasília. Mestre em Educação. Pós-Graduada em Psicopedagogia Clínica e
Institucional, Neuropsicologia Clínica e Terapia Cognitivo Comportamental.
Especialista em Orientação Educacional e Administração Escolar. Graduada
em Pedagogia pela Universidade de Brasília. Pós-Doutorado Profissional em
Psicanálise. Escritora, Pesquisadora, Palestrante, Consultora Educacional e
Empresarial, Docente Universitária; Psicanalista Clínica, Neuropsicóloga.
Terapeuta Cognitivo Comportamental- TCC. Presidente do Instituto de Pesquisa,
Desenvolvimento e Apoio a Neurodivergentes-IPDAN. Lattes: Http://lattes.
cnpq.br/4499951422512139. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2706-5448.
E-mail: [email protected]

235
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

Cirlene Pereira dos Reis Almeida


Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-
GO). Mestre em Linguística pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-RJ); Coordenadora dos Cursos de Letras e Pedagogia do Centro
Universitário de Desenvolvimento do Centro-Oeste (UNIDESC); Professora
efetiva da Universidade Estadual de Goiás (UEG), Campus Uruaçu. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/5384051819016083.
E-mail: [email protected]

Marina Arantes Santos Vasconcelos


Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília e Professora
da Educação Básica na Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5959957836265726.
E-mail: [email protected]

236
ÍNDICE REMISSIVO

A
Aprendizagem 110, 130, 131, 132, 133, 134, 137, 139, 140, 141, 142, 143, 144, 147,
148, 149, 151, 152, 153, 159, 160, 162, 163
Arteterapia 9, 185, 186, 187, 189, 192, 193, 195
Atividades lúdicas 145, 148, 149, 152, 153
B
Beauvoir 97, 101, 104, 106
Beleza 176, 177, 183, 184
Belo 9, 117, 156, 175, 177, 178, 181, 183, 184, 200, 207
Bem-estar 179, 180, 184, 194
Biblioteca 8, 25, 28, 29, 30, 31, 34, 229
Brasil 9, 13, 14, 17, 25, 26, 28, 29, 35, 37, 38, 41, 54, 66, 79, 91, 135, 136, 144, 149,
150, 154, 156, 160, 161, 162, 163, 164, 165, 188, 192, 196, 220, 222, 223, 225,
226, 227, 228
C
Cantigas trovadorescas 13, 14, 16, 17, 24
Complexo de Édipo 68, 76, 77
Condição das mulheres 99, 103, 110, 112
Confirmadíssimo 202, 203, 204
Cultura modernista 211, 214
D
Direitos Humanos 7, 9, 10, 115, 144, 155, 166, 167, 168, 169, 170, 171, 172, 173,
175, 185, 196, 219, 235
Distrito Federal 27, 28, 29, 31, 115, 144, 155, 166, 175, 185, 196, 211, 219, 235, 236
Dramaturgia 38, 45, 46, 47
E
Édipo 65, 68, 70, 71, 72, 76, 77, 80, 81
Educação Básica 27, 100, 115, 144, 155, 166, 175, 185, 196, 211, 219, 229, 235, 236
Educação Plurilíngue 156, 161, 163, 165
Elizabeth Bennet 9, 78, 100, 107, 112
Ensino Fundamental 130, 132, 137, 162
Erotismo 43, 44, 46, 47, 49, 51, 52, 65, 80
Escolas bilíngues 157, 158, 159, 160, 161, 163, 165
Espiritualidade 123, 125, 182, 184, 203
Eu-homem 83, 89, 90
Eu-outro 83, 86, 88, 89
Existência humana 76, 118, 125, 181, 182

237
D irce M aria da S ilva | Eunice Nóbrega Portela | Cirlene Pereira dos R eis Almeida
M arina Arantes S antos Vasconcelos (Organizadoras)

F
Federico Garcia Lorca 37, 39, 45, 54
Filosofia 6, 179, 183
Filtro dos Sonhos 187, 188, 190, 192
Foucault 44, 107
Freud 41, 44, 48, 51, 52, 53, 55, 56, 57, 61, 63, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74,
76, 77, 80, 193, 194, 213, 214
G
Garcia Lorca 8, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 50, 51, 52, 54
Globalização 162, 163, 212
H
Habilidades 8, 10, 96, 123, 139, 141, 145, 149, 151, 152, 156, 157, 158, 159, 160, 161,
164
História 9, 12, 13, 14, 25, 26, 117, 121, 145, 154, 185, 219, 227, 232, 233
Holocausto 211, 212, 214
I
Idade Média 12, 13, 14, 15, 18, 19, 21, 24, 25, 26, 33, 146, 149, 167, 177
Identidade 14, 16, 25, 76, 77, 78, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 98, 118, 119,
122, 123, 137, 152, 159, 216, 230, 231
Identidade social 83, 84, 85, 89
Imperador 9, 115, 116, 117, 118, 121, 122, 123, 124, 125, 127, 128
Império 116, 117, 118, 120, 122, 224, 225
Inconsciente 37, 38, 41, 42, 44, 52, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 67, 68,
69, 70, 71, 72, 73, 74, 76, 77, 79, 80, 87, 189, 191, 193, 194
Infância 28, 33, 48, 52, 56, 69, 72, 76, 83, 106, 130, 133, 136, 144, 145, 146, 147, 148,
150, 186, 187, 189, 226
J
Jacobina 8, 82, 83, 84, 86, 87, 88, 89
Jane Austen 9, 78, 96, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 110, 111, 112, 113
L
Leitura E Escrita 130, 135, 136, 143
Literatura 6, 7, 8, 10, 12, 16, 17, 20, 25, 26, 27, 28, 33, 37, 54, 56, 57, 59, 60, 61, 62,
63, 64, 67, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 90, 94, 100, 110, 112, 113, 114,
115, 133, 135, 136, 137, 144, 155, 166, 175, 184, 185, 196, 211, 219, 231, 235,
236
Literatura Brasileira 7, 10, 27, 90, 133, 211, 236
Literatura de Cordel 8, 16, 17, 20, 25, 231
Literatura Portuguesa 12, 14, 15, 26
Livros 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 94, 96, 119, 124, 132, 136, 196, 214
Lúdico 9, 46, 144, 145, 147, 148, 149, 151, 152, 153
M
Machado de Assis 8, 74, 82, 89, 90, 91

238
MEMÓRIAS LITERÁRIAS:
O PODER DA LEITURA E DA ESCRITA
Mandala 188, 189, 191
Mandala-Árvore 187, 190, 192
Marguerite Yourcenar 9, 115, 121, 127, 128
Matões 9, 10, 219, 220, 221, 222, 223, 224, 226, 227, 228, 229, 230, 231, 232, 233
Memória 5, 8, 9, 12, 13, 16, 19, 20, 24, 27, 28, 31, 32, 33, 34, 35, 45, 61, 68, 69, 151,
166, 187, 192, 211, 212, 213, 214, 215, 216, 217, 218, 231
Memórias afetivas 28, 185, 186, 187, 192
Memórias de Adriano 9, 115, 127, 128
Moralidade 59, 70, 72, 74, 75, 77, 170, 179, 182
Mulher 41, 76, 94, 95, 96, 97, 98, 100, 101, 102, 103, 104, 106, 107, 109, 112, 113,
201, 224, 225, 226, 227, 228
Mulheres 20, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108,
110, 111, 112, 113, 135, 150, 157, 169, 224, 225, 226
N
Narrativas literárias 55, 56, 57, 60, 61, 64, 68, 71
O
Orgulho e Preconceito 78, 96, 100, 106, 107, 111, 112, 113
P
Poema 16, 17, 18, 19, 20, 21, 43, 47, 48, 51, 90, 126, 156, 163, 164, 175, 181, 196
Poesia 6, 12, 15, 16, 17, 30, 37, 38, 39, 41, 42, 46, 47, 51, 54, 103, 104, 119, 120, 148,
164, 178, 197, 198, 199, 200, 201, 206, 208, 209, 231
Projeto Roedores de Livros 28, 29, 31, 32, 34
Psicanálise 8, 38, 42, 46, 50, 51, 53, 55, 63, 65, 67, 68, 69, 73, 76, 79, 80
Psicologia 37, 55, 67, 91, 93, 99, 143, 175, 194, 235
Psique 60, 61, 62, 63, 67, 68, 69, 71, 72, 73, 74, 75, 79, 83, 127, 182, 189, 190, 191,
194, 217
Psique humana 60, 61, 62, 63, 67, 69, 71, 72, 73, 74, 75, 79, 127, 190
R
Renascença 15, 16, 147
Romances 79, 102, 103, 105, 106, 128, 133, 147, 212
S
Segunda Guerra Mundial 107, 171, 211
Simbolismo 57, 61, 62, 63, 74, 187, 190
Soneto 15, 37, 39, 42, 47, 49, 50, 52
Sonhos 70, 80, 187, 188, 190, 192
T
Tecnologias 131, 136, 138, 139, 140, 163, 213, 214
Trovadorismo 8, 13, 15, 17, 18, 19
V
Virginia Woolf 9, 58, 78, 93, 94, 95, 96, 99
Vygotsky 130, 133, 151

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