Patologização e Medicalização Tdah

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A " VISIBILIDADE " DA DIFICULDADE NO APRENDIZADO SOB O


DIAGNÓSTICO DE TDAH: PATOLOGIZAÇÃO E MEDICALIZAÇÃO NA
EDUCAÇÃO INFANTIL Dionéia Motta MONTE-SERRAT (IEL-UNICAMP/USP) 2

Chapter · December 2015

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2 authors:

Talita Suelen Zanetti de Carvalho Dionéia Motta Monte-Serrat or Monte Serrat


University of Campinas UNAERP/FFCLRP-USP
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Publicado na Revista Redisco (UESB) dezembro 2015
http://www2.uesb.br/labedisco/wp-content/uploads/2015/12/Jornal-n.51.pdf

A “VISIBILIDADE” DA DIFICULDADE NO APRENDIZADO SOB O


DIAGNÓSTICO DE TDAH: PATOLOGIZAÇÃO E MEDICALIZAÇÃO NA
EDUCAÇÃO INFANTIL

Talita Suelen Zanetti de CARVALHO (IEL-UNICAMP)1


Dionéia Motta MONTE-SERRAT (IEL-UNICAMP/USP)2

Resumo: O objetivo do presente estudo é relacionar a teoria discursiva ao fracasso


escolar de crianças com diagnóstico de Transtorno do Déficit de Atenção com
Hiperatividade que fazem uso da Ritalina. Analisamos os conceitos de patologização e
de medicalização infantil a fim de avaliar a linguagem médica que oferece a
correspondente “solução” sobre o TDAH.

Palavras-chave: Discurso médico. Fracasso escolar. Patologização. TDAH

Abstract: The aim of this paper is to pinpoint some aspects on discursive theory related
to school failure of children diagnosed with Attention Deficit Hyperactivity Disorder
which make use of Ritalin. We analyze the concepts of pathologizing and childish
medicalization in order to evaluate the medical discourse that offers the corresponding
"solution" on ADHD.
Keywords: Medical discourse. School failure. Pathologizing. ADHD

Introdução

Qualquer pessoa que tenha certo contato com o universo escolar, ou mesmo com
pais de filhos em idade escolar, pôde observar nos últimos anos o nascimento e a
instauração de uma “certeza” sobre o aumento da frequência de casos de crianças

1
Jornalista pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. Graduanda em
Letras pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Campinas/SP, Brasil. Email:
[email protected]
2
Professora Colaboradora IEL-UNICAMP; Doutora em Psicologia (FFCLRP-USP); Professora
Assistente B1 (Universidade de Ribeirão Preto). Doutorado Sanduíche Sorbonne Nouvelle, Paris 3, 2010;
Estágio EHESS, Paris, 2012. CAPES, FAPESP, CNPq. Email: [email protected]
diagnosticadas com algum tipo de transtorno que dificulta o aprendizado. O discurso
médico tornou “nítida” a causa dessa dificuldade no aprendizado, entre elas, a mais
comum é o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade, ou simplesmente
TDAH. De repente, aspectos normais da vida humana - como distração, dificuldade em
organizar tarefas, falar bastante -, foram deslocados para a singularidade de um “aluno
doente”. Uma simples busca pelo termo TDAH na internet dá a dimensão de quanto o
assunto está na ordem do dia, provocando a mobilização de pais, profissionais da saúde
e educadores, que pretendem alertar sobre o “problema” e indicar “tratamento”.
Entretanto, uma perspectiva crítica do discurso que gira em torno do assunto permite
observar as controvérsias que envolvem o diagnóstico do TDAH e, também, os
prejuízos que esse “tratamento” pode trazer para uma criança.
Nosso objetivo é analisar, segundo a teoria do Discurso (FOUCAULT,
[1963]1977), os sentidos que circulam, no contexto sócio-histórico, a respeito das
crescentes dificuldades enfrentadas pela escola com a consequente ampliação do
diagnóstico de TDAH e o aumento da patologização e medicalização infantil,
observando, especificamente, o incremento do consumo da Ritalina, nome comercial do
metilfenidato. Quanto à noção de patologização, nos baseamos no trabalho de Antonio
(2011), filiado à perspectiva da Neurolinguística Discursiva; e, quanto ao conceito de
medicalização, no estudo de Gaudenzi e Ortega (2011), em como se apropriaram da
interpretação de Foucault a respeito do assunto.

A via complexa do saber sobre o TDAH

Tal como afirmamos, de súbito surgiu um saber sobre o TDAH e, ressalte-se,


surgiu no contexto escolar! Ora, são notórias as dificuldades vividas pelo sistema de
ensino brasileiro. Salas lotadas, professores mal remunerados e frequentes casos de
violência já são lugar-comum quando se fala da educação no Brasil. Esse cenário é o
resultado de ampliação do acesso à educação sem os investimentos necessários em
infraestrutura e formação docente, que tem como conseqüência o baixo desempenho
apresentado pelos estudantes brasileiros em avaliações nacionais e internacionais. Em
resumo: o fracasso escolar apresenta-se como uma realidade para muitos alunos.
O que se tem observado, para além das estatísticas, é que o desempenho
considerado insatisfatório da educação tem levado, muitas vezes, à individualização do
problema, que culpa o indivíduo, ao mesmo tempo em que não o reconhece como
sujeito inscrito no contexto escolar.
Foucault ([1963]1977, p. VII e IX) nos alerta para um “vínculo fantástico” entre
o saber e o sofrimento, assegurado por uma via complexa que contesta a objetividade
através do discurso redutor do médico, fundando um olhar positivo. Passa à existência
um conhecimento “neutro” que redistribui os corpos e os olhares, interferindo na
relação entre “o que fala e aquilo de que se fala” (op. cit.).
É no contexto desse conhecimento “neutro” que há a busca de soluções para o
problema. Isso mobiliza uma série de profissionais como psicopedagogos, médicos e
psicólogos e encontra, na patologização, uma resposta que parece atender a muitos
anseios: a escola, que se isenta de responsabilidade pelas dificuldades de aprendizado
do aluno; os pais, que se redimem de culpa, afinal trata-se de um “problema de saúde”;
e os próprios sujeitos, que passam para a condição de vítimas.
Essa realidade escolar como pano de fundo para muitos diagnósticos de TDAH
traz a consequência da medicalização, como explica Silva:

o medicamento consegue responder a várias demandas, explícitas e


implícitas, pois num primeiro momento consegue eliminar as queixas
direcionadas à criança, dando a impressão de que é eficaz, e que o
problema está resolvido, dando certo alívio aos que se mobilizaram
para conter a criança hiperativa. (SILVA et al. 2012, p. 48)

Vejamos a relação entre “o que fala” e “aquilo de que se fala”. A Associação


Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA) - na posição daquele que fala – afirma que o
TDAH é
um transtorno neurobiológico, de causas genéticas, que aparece na
infância e frequentemente acompanha o indivíduo por toda a sua vida.
Ele se caracteriza por sintomas de desatenção, inquietude e
impulsividade. Ele é chamado às vezes de DDA (Distúrbio do Déficit
de Atenção)3.

O site dessa instituição associa os sintomas desse transtorno a dificuldades na


escola e no relacionamento com pais, professorese outras crianças, conforme aponta
Silva :

O diagnóstico do TDAH colocou os sintomas de forma tão genérica


que facilmente qualquer indivíduo se enquadra nele. E uma vez
internalizada essa ideia, o tratamento provavelmente será, por todas as

3
http://www.abdatdah.org/br/sobre-tdah/o-que-e-o-tdah.html acesso em 16/06/2015
razões já apontadas, o medicamentoso. Dessa forma, remediando a sua
inquietação, mais uma vez camuflando todas as outras questões
envolvidas. (SILVA et al. 2012, p. 49)

Uma das consequências dessa forma genérica com que os sintomas são descritos
é a apropriação do discurso médico pela instituição escolar. Estão disponíveis na
internet os mais diversos tipos de materiais, como cartilhas4 e testes, voltados para
educadores com o intuito de “treinar” os professores a identificar o TDAH. Um
exemplo é a cartilha TDAH: uma conversa com educadores5, que tem como objetivo
principal “fornecer informações importantes sobre TDAH que possam auxiliar o
professor e demais profissionais envolvidos na arte de educar para que consigam
identificar os sintomas e as características do TDAH”. Esse material explica como o
diagnóstico deve ser feito, reiterando que ele é exclusivamente clínico, e que deve ser
realizado a partir de entrevistas com a criança, com os pais e do levantamento de
informações sobre a vida escolar da criança.
Sendo assim, o diagnóstico do transtorno de ser feito com base nas descrições
dos manuais de classificação como o DSM-IV (Manual de Diagnóstico e Estatística da
Associação Psiquiátrica Americana) e o CID-10 (Classificação Estatística Internacional
de Doenças da Organização Mundial da Saúde). Deve obedecer a uma série de critérios
de ocorrência e frequência.
Entre os alertas sobre a necessidade de atenção na identificação dos sintomas, a
cartilha apresenta, de um modo bastante simplista, quadros que exemplificam a
ocorrência desses sintomas em sala de aula, o que pode levar, facilmente, a equívocos.

4
http://www.tdah.org.br/br/sobre-tdah/cartilhas-sobre-tdah.html acesso em 17/06/2015
5
http://www.tdah.org.br/images/stories/site/pdf/tdah_uma_conversa_com_educadores.pdf acesso em
17/06/2015
Para ilustrar essa situação, reproduzimos abaixo recortes desses quadros:
Figura 01: Recorte da Tabela 1 da Cartilha TDAH: uma conversa com educadores.

Figura 02: Recorte da Tabela 1 da Cartilha TDAH: uma conversa com educadores.

A partir de que momento o “remexer-se na cadeira” ou o “agir a „todo vapor‟” se


transformou em discurso racional que delineia um discurso científico sobre o transtorno
de TDAH? Qualquer familiar ou professor que tenha contato frequente com crianças
deve admitir que elas, em regra, apresentam pelo menos alguns desses “sintomas”.
Como aquilo que antes eram qualidades da criança transformou-se em linguagem
médica? Houve, convenhamos, uma mutação no discurso, entre o que se enuncia e o
que se silencia. Surge uma linguagem médica com seu objeto mensurado, pronto, sem
algo que preceda essa mensurabilidade: como avaliar aspectos subjetivos como “fala em
demasia” ou “está a mil por hora”?
A espacialização e a verbalização do patológico (Foucault, 1963/1977) podem
ser facilmente reconhecidas na leitura do questionário SNAP-IV (SWANSON, NOLAN
e PELHAM – versão IV), traduzido do inglês e utilizado como instrumento de
avaliação, como ponto de partida para o diagnóstico do TDAH. As questões abaixo
transcritas devem ser respondidas pelo professor da criança:

Figura 02: Recorte do questionário SNAP-IV, construído a partir dos sintomas do


Manual de Diagnóstico e Estatística - IV Edição (DSM-IV) da Associação Americana de
Psiquiátrica.(Versão em Português validada por Mattos, P. et al, 2006.)

O que se estabelece nesses contornos da conduta da criança, avaliada segundo


um critério subjetivo é, segundo Foucault ([1963]1977, p. X) uma “relação entre o
visível e o invisível”. Essa relação faz o saber mudar de estrutura e faz aparecer, no
olhar e na linguagem, algo que estava aquém ou além de seu domínio. Essa nova
estrutura, que desloca o olhar, instaura o “problema” que, por sua vez, impõe uma
“solução”, a qual traz a sonhada “plenitude” da objetividade científica.

O medicamento como plenitude da objetividade científica

Optamos neste estudo pela utilização das informações fornecidas pelo Boletim
de Farmacoepidemiologia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa),
segundo o qual o TDAH afeta de 8 a 12% das crianças do mundo. No Brasil, de acordo
com a Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA), esse número varia de 5 a
8%.
O citado Boletim fez um levantamento, em 2013, a partir dos registros do
Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC), e apontou para
um aumento de 75% no consumo do metilfenidato por crianças de 6 a 16 anos, entre os
anos de 2009 e 2011. Esse resultado reflete uma ampliação do diagnóstico de TDAH e o
avanço do tratamento medicamentoso para o transtorno.
A Ritalina, nome comercial do metilfenidato, é o principal medicamento
utilizado no tratamento do TDAH.
Sendo um estimulante da família das anfetaminas (como a cocaína), se
consumida em certa dosagem, defende-se que auxiliaria no
desempenho de tarefas escolares e acadêmicas, pois aumenta a
atividade das funções executivas, aumentando a concentração além de
atuar como atenuador da fadiga.(ITABORAHY, 2009, apud SILVA et
al. 2012, p. 46)

A expectativa em relação aos efeitos do medicamento vai ao encontro da forma


como ele é consumido. De acordo com o Boletim da Anvisa, há um aumento do
consumo no segundo semestre e diminuição no período de férias, o que indica uma
relação direta entre o consumo e o desempenho escolar. Podemos observar, com esses
resultados, que a “racionalidade médica” pôde, nas palavras de Foucault ([1963]1977, p.
XI), “penetrar na espessura da percepção” de modo que determinou “a” “verdade” sobre
o TDAH, propiciando, assim, uma abertura para a prática da medicalização
generalizada.
Outro fenômeno observado é a ampliação do consumo do medicamento por
adultos. O diagnóstico de TDAH para esse público conta, também, com um
questionário6 semelhante ao das crianças:

6 Mattos, P. et al. Adaptação Transcultural para o Português da Escala Adult Self-ReportScale (ASRS-18,
versão1.1) para avaliação de sintomas do Transtorno de Déficit de Atenção / Hiperatividade (TDAH) em
adultos. Revista Brasileira de Psiquiatria (in press).
Figura 04: Recorte do questionário ASRS-18 desenvolvido por pesquisadores em
colaboração com a Organização Mundial de Saúde.

Chama a atenção o caráter subjetivo da avaliação, que permite a atribuição de


sentidos múltiplos aos termos utilizados. Por exemplo, quais parâmetros são usados para
classificar um projeto como “chato” ou difícil”? Além disso, a capacidade de
concentração e organização varia de indivíduo para indivíduo. Há tarefas que são
desafiantes para uns e não o são para outros; há pessoas mais organizadas que outras.
Esses aspectos não necessariamente indicam que a pessoa é portadora de algum
transtorno. Não é isso que a tabela de avaliação acima indica. Esta última trabalha com
elementos que já serviriam como indícios do transtorno em menor ou maior grau, se
lermos atentamente. Exemplo desse fato é a utilização do foco e da atenção por períodos
prolongados de tempo (que se tornaram exigências da vida moderna) como critérios de
avaliação. Ora, mantê-los ininterruptamente não parece possível em qualquer atividade,
seja o indivíduo portador ou não de TDAH. Observamos, a título de exemplo, que a
tabela acima coloca pergunta de modo a induzir uma resposta em favor do diagnóstico
de distúrbio, sugerindo haver “dificuldade de manter a atenção” em tarefa “chata” e
“repetitiva”.
A percepção de um corpo sensível se torna transparente, cresce e atinge também
o público adulto. Sem levar em conta a necessidade crescente de atenção múltipla,
raciocínio rápido e conectividade constante na atualidade, o novo diagnóstico tem
levado muitos adultos a acreditarem que não correspondem às expectativas da sociedade
moderna e que, de fato, possuem um problema de ordem biológica, tratável
quimicamente. Essa situação, consequentemente, amplia o consumo de Ritalina, com a
finalidade de melhorar o desempenho cognitivo,

maximizando sua produtividade, aumentando sua capacidade de


concentração, diminuindo o cansaço físico, entre outros efeitos
promovidos pelo medicamento, assim atendendo às exigências do
mundo pós-moderno, de competitividade e produtividade. (SILVA et
al. 2012, p. 51)

Cabe ressaltar quea “redenção” da medicalização generalizada ignora as reações


adversas que pode provocar: além de dependência química, podem ocorrer angústica
emocional excessiva, inquietação, distúrbios do sono, excitação emocional, agitação e
muitas outras, descritas na própria bula.

Patologização e medicalização sob o viés da teoria discursiva

Um dos primeiros indícios que leva crianças em idade escolar ao diagnóstico de


TDAH é a “dificuldade” no processo de aquisição da leitura e da escrita. Esse fato,
aliado à ampla exposição, pela mídia, de doenças relacionadas a transtornos de
aprendizagem, leva ao que Antonio (2011) denomina como pré-diagnóstico realizado
por pais e professores:
O movimento de pré-diagnóstico por parte dos pais, atrelado ao fácil
acesso a listas de sintomas e à busca por algo que explique as
dificuldades dos filhos junto a profissionais muitas vezes mal
preparados, gera uma banalização dessas patologias, ou seja, faz com
que comportamentos e ritmos de aprendizagem que são normais na
vida de uma criança acabem sendo considerados sintomas de doença
(COLLARES e MOYSÉS, 1996; COUDRY, 1985, 2001, 2007, 2009,
2010; LIMA, 2005; MOYSÉS, 2001; MOYSÉS e COLLARES, 2007;
PATTO, 1990; BORDIN, 2008, 2009, 2010 apud ANTONIO, 2011, p
. 02).

Antonio (2011) tem como objeto de análise a Dislexia, porém a discussão é


válida também para as observações sobre TDAH, pois os diagnósticos de ambas as
doenças têm sido realizados, como já dito, com base em listas de supostos sintomas que
definem o quadro como patológico ou não. Essa realidade se fundamenta na ideia de
que o ensino-aprendizado é um processo comum a todos os indivíduos e a não
correspondência às expectativas da instituição escolar acaba por impor outros
enquadramentos como o patológico.
É nesse contexto que a medicalização surge como plenitude da objetividade
científica, como “a” resposta às demandas da escola. Como explicam Gaudenzi e Ortega
(2011), o termo “medicalização” surgiu no final da década de 60 para fazer referência à
“apropriação dos modos de vida do homem pela medicina”. Nesse caso, a medicina
moderna se apresenta como “uma prática social que transformou o corpo individual em
força de trabalho com vistas a controlar a sociedade”, agindo como um poder sobre a
vida, regulando a população, conforme lição de Foucault.
A medicina passa, no século XVIII, a exercer um papel fundamental
no controle e gestão do corpo, interferindo nos modos de vida e nas
condutas individuais e coletivas através da definição de regras que
deveriam orientar a vida moderna, não apenas no que diz respeito à
doença, mas também às formas gerais do comportamento humano.
(FOUCAULT [1963]1977 apud GAUDENZI e ORTEGA, 2011, p. 251)

A pré-determinação do diagnóstico de TDAH funciona como uma gestão do


corpo de crianças e adultos, sem considerar os contextos sócio-históricos de cada um,
nem considerar suas relações com o ensino e com o universo escolar. Esse processo de
patologização e medicalização idealiza a subjetividade indeterminável dessas crianças e
desses adultos e determina que estes atinjam sua “perfeição” sob a “proteção” da
ritalina. Segundo Foucault ([1963]1977, p. 39), a medicina deixa de ser apenas o corpus
de técnicas da cura para envolver também o conhecimento do homem saudável, a
distribuição de conselhos da vida equilibrada, a regência de relações físicas e morais do
indivíduo e da sociedade em que vive.
A quem interessa esse olhar?
Não é nosso objetivo, nem foi desde o início, indicar soluções para a questão do
crescente aumento do diagnóstico do TDAH e do consumo da ritalina. Pretendemos
instigar um olhar crítico sobre este problema alarmante em nossa sociedade: o do
tratamento medicamentoso de “desvios” de conduta. A abordagem discursiva sobre o
contexto sócio-histórico em que esse processo de patologização e medicalização ocorre
pode apresentar novas interpretações, novas formas de resistência para esse processo
que, segundo Foucault, lentamente
percorre, contorna e, pouco a pouco, os penetra, conferindo-lhes
apenas sua própria c1areza. A permanência da verdade no núcleo
sombrio das coisas está, paradoxalmente, ligada a este poder soberano
do olhar empírico que transforma sua noite em dia. Toda a luz passou
para o lado do delgado facho do olho que agora gira em torno dos
volumes e diz, neste percurso, seu lugar e sua forma. O discurso
racional apoia-se menos na geometria da luz do que na espessura
insistente, intransponível do objeto: em sua presença obscura, mas
prévia a todo saber, estão a origem, o domínio e o limite da
experiência. O olhar está passivamente ligado a esta passividade
primeira que o consagra à tarefa infinita de percorrê-la integralmente e
dominá-la. (FOUCAULT, [1963]1977, p. XII)

Referências Bibliográficas

ANTONIO, G. D. R. Da sombra à luz: a patologização de crianças sem


patologia. Dissertação de Mestrado. Campinas, SP: 2011
FOUCAULT, M., (1963) O nascimento da clínica, trad. Roberto Machado,Rio
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