Ebook Etnopsicologia e Saude

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ETNOPSICOLOGIA E SAÚDE

Etnopsicologia e Saúde 2

Este livro foi desenvolvido pelo grupo de trabalho de Etnopsicologia da


Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP). A
publicação desta obra foi financiada com verba da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), com o apoio do
Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Todos os membros do GT
Etnopsicologia atuaram como assessores ad-hoc dos textos que compõem a
presente obra.

GT Etnopsicologia da ANPEPP
Coordenador: Prof. Dr. Fabio Scorsolini-Comin
(Universidade de São Paulo)
Vice-coordenadora: Profa. Dra. Eliane Domingues
(Universidade Estadual de Maringá)

Membros
Profa. Dra. Alice Costa Macedo
(Universidade Federal do Recôncavo da Bahia)
Profa. Dra. Eliane Domingues
(Universidade Estadual de Maringá)
Prof. Dr. Fabio Scorsolini-Comin
(Universidade de São Paulo)
Prof. Dr. Gabriel Inticher Binkowski
(Universidade de São Paulo)
Prof. Dr. James Ferreira Moura Junior
(Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira)
Prof. Dr. José Francisco Miguel Henriques Bairrão
(Universidade de São Paulo)
Profa. Dra. Lana Claudia de Souza Fonseca
(Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro)
Prof. Dr. Marcelo Gustavo Aguilar Calegare
(Universidade Federal do Amazonas)
Prof. Dr. Maurício da Silva Neubern
(Universidade de Brasília)
Profa. Dra. Reimi Solange Chagas
(Universidade Presbiteriana Mackenzie)
Prof. Dr. Rodrigo Ribeiro Frias
(Universidade de São Paulo)
Profa. Dra. Ronilda Iyakemi Ribeiro
(Universidade de São Paulo e Universidade Paulista)
Profa. Dra. Sonia Grubits
(Universidade Dom Bosco)
Etnopsicologia e Saúde 3

Fabio Scorsolini-Comin
José Francisco Miguel Henriques Bairrão
(Organizadores)

ETNOPSICOLOGIA E SAÚDE
Etnopsicologia e Saúde 4

Copyright © Autoras e autores

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos das autoras e dos
autores.

Fabio Scorsolini-Comin; José Francisco Miguel Henriques Bairrão [Orgs.]

Etnopsicologia e Saúde. São Carlos: Pedro & João Editores, 2023. 250p. 16 x
23 cm.

ISBN: 978-65-265-0437-6 [Digital]

DOI: 10.51795/9786526504376

1. Etnopsicologia. 2. Saúde. 3. Corpo e cuidado. 4. Cultura. I. Título.

CDD – 150

Capa: Petricor Design


Ficha Catalográfica: Hélio Márcio Pajeú – CRB - 8-8828
Revisão: Lourdes Kaminski
Diagramação: Diany Akiko Lee
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito

Conselho Científico da Pedro & João Editores:


Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/Brasil); Hélio
Márcio Pajeú (UFPE/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da
Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello (UFSCar/Brasil);
Ana Cláudia Bortolozzi (UNESP/Bauru/Brasil); Mariangela Lima de Almeida
(UFES/Brasil); José Kuiava (UNIOESTE/Brasil); Marisol Barenco de Mello
(UFF/Brasil); Camila Caracelli Scherma (UFFS/Brasil); Luís Fernando Soares
Zuin (USP/Brasil).

Pedro & João Editores


www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 – São Carlos – SP
2023
Etnopsicologia e Saúde 5

SUMÁRIO

A ETNOPSICOLOGIA E A SUA TESSITURA NA 7


PÓS-GRADUAÇÃO BRASILEIRA
CONTEMPORÂNEA
Fabio Scorsolini-Comin
José Francisco Miguel Henriques Bairrão

CAPÍTULO 1 - CONTRIBUIÇÕES DA 15
ETNOPSICOLOGIA PARA O CAMPO DA SAÚDE
Eliane Domingues
Gabriel Inticher Binkowski

CAPÍTULO 2 - CORPOS ESPIRITUAIS E 35


NARRATIVAS SOBRE SAÚDE E DOENÇA: BREVE
ENSAIO EM ETNOPSICOLOGIA
Maurício da Silva Neubern

CAPÍTULO 3 - ESCUTA É PERFUME: POR UMA 55


CLÍNICA ETNOPSICOLÓGICA
Fabio Scorsolini-Comin

CAPÍTULO 4 - UMBANDA “PÉ NO CHÃO”, 79


ESCUTA AO “PÉ DA LETRA”: RAÍZES DA
INTERPRETAÇÃO “DE TERREIRO”
Alice Costa Macedo
José Francisco Miguel Henriques Bairrão

CAPÍTULO 5 - CULINÁRIA SAGRADA IORUBÁ, 107


TEMPERAMENTO HUMANO E SAÚDE
Ronilda Iyakemi Ribeiro
Etnopsicologia e Saúde 6

CAPÍTULO 6 - SAÚDE FÍSICA E MENTAL: 133


ATENDIMENTO MÉDICO-MÁGICO-RELIGIOSO
IORUBÁ E ATENDIMENTO MÉDICO MODERNO
EM TERRITÓRIO AFRICANO
Rodrigo Ribeiro Frias

CAPÍTULO 7 - HABITAR FRONTEIRAS NO 161


CUIDADO À VIDA: UMA PERSPECTIVA
SITUADA ENTRE OS TERREIROS AFRO-
BRASILEIROS E O SERVIÇO DA REDE INDÍGENA
Pâmela Damilano dos Santos
Danilo Silva Guimarães

CAPÍTULO 8 - SAÚDE INTEGRAL E BEM VIVER 199


SOB A ÓTICA INDÍGENA
Geana Baniwa
Marcelo Calegare

CAPÍTULO 9 - DO ORVALHO DA NOITE AO 225


SERENO DA MADRUGADA: UM SUBSÍDIO
ORIENTAL PARA A CIÊNCIA PSICOLÓGICA
OCIDENTAL
Carolina Mikaela Silva Kato
José Francisco Miguel Henriques Bairrão

ÍNDICE REMISSIVO 243

SOBRE OS AUTORES E AS AUTORAS 245


Etnopsicologia e Saúde 7

A ETNOPSICOLOGIA E A SUA TESSITURA NA


PÓS-GRADUAÇÃO BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA

Fabio Scorsolini-Comin
José Francisco Miguel Henriques Bairrão

A Etnopsicologia possui como seu principal operador


conceitual a noção de cultura. Uma de suas premissas consiste na
ideia de que as pessoas, em todas as sociedades, têm desenvolvido
compreensões compartilhadas a respeito de aspectos da vida
pessoal e social, as quais, em termos heurísticos, podem ser
chamadas de psicológicas. Seu objetivo primordial é propor pontes
dialógicas entre as etnoteorias com as teorias científicas que
embasam a atuação nessa vertente, de modo a respeitar as
especificidades culturais do Outro. Embora não possa ser
considerado um campo epistêmico propriamente recente, a sua
presença nos mais diversos espaços acadêmicos tem sido
requisitada como forma de contribuir com a produção de saberes
que possam romper com a pretensa superioridade dos
conhecimentos acadêmicos, brancocêntricos e elitizados,
notadamente americano e eurocentrados, ampliando as
possibilidades de escuta das mais silenciadas vozes em nossa
sociedade.
A composição do grupo de trabalho sobre Etnopsicologia junto
à Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia
(ANPEPP) surge no esteio dessa necessidade. O GT Etnopsicologia
tem por objetivo dar visibilidade aos estudos realizados nesse campo
no contexto brasileiro, permitindo a solidificação de parcerias
interinstitucionais entre pesquisadores, professores e estudantes de
pós-graduação engajados nessa reflexão e nessa práxis. Além disso,
este GT pretende se posicionar como campo de resistência na
valorização dos saberes tradicionais e na escuta a populações que
não ocupam o centro do debate acadêmico.
Etnopsicologia e Saúde 8

A primeira participação do GT Etnopsicologia em um


simpósio da ANPEPP ocorreu no ano de 2022. Mas os membros que
compõem o GT Etnopsicologia vêm desenvolvendo parcerias há
bastante tempo, de modo que a sua organização e composição foi
oficializada em evento nacional organizado pelo grupo no ano de
2021. Mas, antes disso, uma importante história precisa ser
registrada e reconhecida. Obviamente, há que se considerar que
essa história aqui narrada não se trata de toda a história da
Etnopsicologia brasileira, objetivo este que ultrapassaria os limites
impostos por este texto de apresentação, mas de uma parte
expressiva dessa história em vivo movimento.
Uma das formas de evidenciar o modo como esse GT vem se
articulando é recorrer ao histórico de construção dos simpósios de
Etnopsicologia. Essa, no entanto, é apenas uma das possibilidades
de tecer essa história. A primeira edição do Simpósio Nacional de
Etnopsicologia ocorreu no ano de 2016 e foi sediada na Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade
de São Paulo. Foi organizada pelo Laboratório de Etnopsicologia
da USP, com a coordenação do Prof. Dr. José Francisco Miguel
Henriques Bairrão. O objetivo do evento era demarcar o campo da
Etnopsicologia no Brasil a partir da reunião dos diferentes
pesquisadores e profissionais que contribuíram, ao longo do
tempo, com o desenvolvimento dessa área. Entre os membros que
compõem este GT, participaram deste evento a Profa. Dra. Alice
Costa Macedo (UFRB), o Prof. Dr. Fabio Scorsolini-Comin (USP), o
Prof. Dr. José Francisco Miguel Henriques Bairrão (USP), o Prof. Dr.
Maurício da Silva Neubern (UnB) e a Profa. Dra. Ronilda Iyakemi
Ribeiro (USP e UNIP).
Esse encontro inicial foi um marco para a Etnopsicologia
brasileira, com importantes ressonâncias para o modo como esse
campo vem se desenvolvendo desde então. Entre os seus principais
frutos, pode-se destacar a necessidade de maior organização e
sistematização desse campo de estudos e pesquisas no Brasil,
congregando pesquisadores e pesquisadoras de algum modo
alinhados aos pressupostos etnopsicológicos. A partir desse
Etnopsicologia e Saúde 9

encontro, um importante produto foi lançado na tentativa de


reconhecer a diversidade dos pesquisadores e das pesquisadoras
que performam o campo etnopsicológico brasileiro, dando origem
à obra Etnopsicologia brasileira: mosaico e aplicações, organizada por
Godoy e Bairrão (2018). Este livro pode ser lido como uma
continuidade de diálogo inaugurado anteriormente em
Etnopsicologia no Brasil: teorias, procedimentos, resultados (Bairrão &
Coelho, 2015), composto a partir dos estudos do Laboratório de
Etnopsicologia da USP e de seus colaboradores interinstitucionais.
Em 2018, a segunda edição do Simpósio de Etnopsicologia foi
realizada na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, sob a
coordenação da Profa. Dra. Alice Costa Macedo, também
pesquisadora do Laboratório de Etnopsicologia da USP. Se a
primeira edição teve como objetivo reunir os principais
pesquisadores da área e demarcar esse campo em nosso cenário, a
segunda edição estabeleceu um diálogo mais aprofundado com a
educação. Tentando responder a como a Etnopsicologia pode
contribuir com o saber e o fazer em educação, o simpósio continuou
a cumprir seu objetivo, agora trazendo para o debate novas
questões e diferentes interlocutores.
A terceira edição foi realizada em 2021 de maneira remota, em
função da pandemia da COVID-19, sediada virtualmente na Escola
de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo,
Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde e da
Organização Pan-Americana de Saúde. A terceira edição teve como
tema a Etnopsicologia e a Saúde e foi coordenada pelo Prof. Dr.
Fabio Scorsolini-Comin, que é pesquisador do Laboratório de
Etnopsicologia da USP e coordenador do ORÍ – Laboratório de
Pesquisa em Psicologia, Saúde e Sociedade da USP. Em um mundo
ainda em trânsito pandêmico, uma das questões levantadas pela
edição de 2021 foi: de que modo os conhecimentos da
Etnopsicologia podem ser úteis para compreender e intervir nesse
particular momento de instabilidade e de vulnerabilidade?
Além dessa questão norteadora, o III Simpósio Nacional de
Etnopsicologia teve por objetivo aprofundar os debates teóricos e
Etnopsicologia e Saúde 10

metodológicos no campo da Etnopsicologia, incentivando a


difusão dos conhecimentos etnopsicológicos entre graduandos,
pós-graduandos e toda comunidade. Foi por ocasião da
organização dessa terceira edição que se passou a delimitar, mais
concretamente, a necessidade de composição formal de um grupo
de pesquisadores e pesquisadoras em Etnopsicologia no Brasil.
Mundialmente, a Etnopsicologia se faz presente em
significativos centros de formação e pesquisa, como Centre
Georges Devereux (Paris VIII), Department of Global Health &
Social Medicine (Harvard), Duke University (EUA), University of
California (Santa Cruz, EUA), University of Princeton (EUA),
dentre outros. No Brasil, o Laboratório de Etnopsicologia da USP
tem sido reconhecido como um centro de referência neste campo.
Assim, o evento deu continuidade à reunião de especialistas
brasileiros nesta perspectiva, mas também buscou ampliar essa
troca de conhecimentos em um âmbito internacional, criando vias
de consolidação da Etnopsicologia no Brasil e do fortalecimento da
produção teórica e metodológica na área. A escrita deste presente
livro é uma das ações que emergiram desse evento, revelando o
modo como os membros do GT Etnopsicologia e seus convidados
têm pensado e produzido nesse campo.
A terceira edição contou com 578 inscritos e 38 trabalhos
apresentados. Entre os membros do GT de Etnopsicologia,
participaram desta edição a Profa. Dra. Alice Costa Macedo
(UFRB), a Profa. Dra. Eliane Domingues (UEM), o Prof. Dr. Fabio
Scorsolini-Comin (USP), o Prof. Dr. José Francisco Miguel
Henriques Bairrão (USP), o Prof. Dr. Maurício da Silva Neubern
(UnB), a Profa. Dra. Ronilda Iyakemi Ribeiro (USP e UNIP), o Prof.
Dr. Gabriel Inticher Binkowski (USP), o Prof. Dr. Marcelo Calegare
(UFAM) e a Profa. Dra. Lana Claudia de Souza Fonseca (UFRRJ). É
importante referir, no evento, a realização de uma mesa redonda
no dia 09 de novembro de 2021 com pesquisadores do campo da
Etnopsicologia, situação na qual foi firmado o compromisso de
composição oficial de um GT e apresentação de proposta à
ANPEPP. Assim, a atuação desse GT se projetava, desde o início,
Etnopsicologia e Saúde 11

para a pós-graduação, garantindo o aporte não apenas das


pesquisas nesse campo, mas dos incrementos à formação de novos
pesquisadores e de novas pesquisadoras.
Além dessas interlocuções, destaca-se a existência de grupos
de pesquisa coordenados por membros deste GT que têm
produzido ao longo das duas últimas décadas importantes
conhecimentos na área de Etnopsicologia, com a formação de
pesquisadores nesse campo. Esses grupos estão cadastrados no
Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq. Desde 2006, a Profa.
Dra. Ronilda Ribeiro é coordenadora do grupo de pesquisa
intitulado Estudos Transdisciplinares da Herança Africana. O Prof.
Dr. Rodrigo Ribeiro Frias é um dos membros deste grupo. Desde o
início dos anos 2000, o Prof. Dr. José Francisco Miguel Henriques
Bairrão é coordenador do Laboratório de Etnopsicologia da USP,
grupo do qual a Profa. Dra. Alice Costa Macedo é vice-
coordenadora. Também participam do Laboratório de
Etnopsicologia outros três membros deste GT: Prof. Dra. Eliane
Domingues, Profa. Dra. Lana Claudia de Souza Fonseca e Prof. Dr.
Fabio Scorsolini-Comin.
Mais recentemente, dois outros grupos de pesquisa no campo
da Etnopsicologia foram criados no Brasil. Em 2018, o Prof. Dr.
Fabio Scorsolini-Comin criou o ORÍ - Laboratório de Pesquisa em
Psicologia, Saúde e Sociedade, sediado na Escola de Enfermagem
de Ribeirão Preto da USP, grupo que conta com a participação da
Profa. Dra. Alice Costa Macedo, na Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia, criou o POÁ - Psicologias para Organizações
Populares e Ancestralidades, que conta com a participação do Prof.
Dr. José Francisco Miguel Henriques Bairrão e do Prof. Dr. Fabio
Scorsolini-Comin. A partir desse histórico de colaborações, foi
criado o GT Etnopsicologia, sob a coordenação do Prof. Dr. Fabio
Scorsolini-Comin (Universidade de São Paulo) e vice-coordenação
da Profa. Dra. Eliane Domingues (Universidade Estadual de
Maringá), em sua primeira gestão. Em 2023, está sendo organizada
a quarta edição do evento, agora na Universidade Estadual de
Maringá e sob a presidência da Profa. Dra. Eliane Domingues,
Etnopsicologia e Saúde 12

dando continuidade à escrita desse grupo a partir desses encontros


e da chegada de novos interlocutores que têm se aproximado para
a tessitura de um futuro sempre incerto e desafiador, capaz de
lançar a esse campo novos questionamentos necessários para
impulsionar também as nossas próprias transformações.
Em 2022, a partir do tema do XIX Simpósio Nacional da
ANPEPP – “Psicologia em Tempos de Desdemocratização: Estado,
Políticas Públicas e Desigualdades” – o GT teve como objetivo
refletir sobre o papel da Etnopsicologia para a intervenção junto a
populações em vulnerabilidade social diante das lacunas de
assistência e dos ataques aos direitos humanos observadas nesse
período de instabilidade em nossa democracia. A partir de
reflexões teóricas amparadas nos conhecimentos que compõem a
Etnopsicologia, como a Psicologia, a Psicanálise e a Antropologia,
foram endereçadas questões oportunizadas pelo simpósio às
populações com as quais temos pesquisado e produzido
conhecimentos nos últimos anos: indígenas, populações
quilombolas, ribeirinhas, populações em situação de
vulnerabilidade social e povos de santo, por exemplo.
A Etnopsicologia é uma etnociência que valoriza os saberes
nativos, comprometendo-se com uma abordagem teórica e empírica
que não se aparta do seu compromisso com o social. É nesse sentido
que ganham espaço significativo em nossas pesquisas as questões
relacionadas às políticas públicas e às desigualdades, por exemplo,
sobretudo diante de um cenário político complexo e de
desmantelamento de políticas de proteção e de garantia de direitos
priorizado como vértice analítico no XIX Simpósio da ANPEPP,
movimento este que se acirrou nos últimos anos.
Embora, na atualidade do ano de 2023 e de tudo o que ele
projeta, estejamos vislumbrando a possibilidade de que um novo
movimento político ecoe positivamente para a reconstrução depois
de anos de destruição, a posição de luta deve permanecer. Tais
elementos ficam ainda mais expressivos quando consideramos, por
exemplo, os tensionamentos em relação à garantia de direitos de
povos indígenas e seus territórios, apenas para ilustrar um dos
Etnopsicologia e Saúde 13

tensionamentos contemporâneos sobre os quais a Etnopsicologia


tem sido convocada a participar.
No campo da educação, essa luta também deve ecoar. Na
pós-graduação, recorte específico adotado para a narrativa da
Etnopsicologia no meio acadêmico brasileiro, a posição ocupada
pela Etnopsicologia deve ser a que se compromete com as escutas
e os pertencimentos que, historicamente, foram silenciados e
invisibilizados. Sabemos que a pós-graduação ainda é um
território a que poucos têm acesso em nosso país, um campo
marcadamente elitizado e que nem sempre emprega o que produz
para a ruptura com o que nos afasta. O compromisso com uma
etnociência, por fim, não deve ser apenas algo que parta de quem
se alinha epistemologicamente ao campo “etnopsi”, mas pode
atravessar uma ciência e uma prática menos elitistas, mais
sensíveis e mais dispostas ao encontro com o diverso, o diferente,
ou mesmo com o que estranhamos e que, de fato, nos constitui.
Esse parece ser um dos desafios da pós-graduação brasileira, tão
sustentada, ainda, em noções de ciência e tecnologia pouco
engajadas socialmente e tão apartadas do reconhecimento da
importância das humanidades nesse cenário.
É também por essa razão que a presença da Etnopsicologia a
partir de um GT, e não como um saber que atravessa diferentes
linhas e abordagens, torna-se emblemático na ANPEPP,
associação que congrega todos os programas de pós-graduação
em Psicologia brasileiros, o que, por si só, já revela a necessidade
de abertura à diversidade. Esperamos que essa visibilidade
permita cada vez mais a solidificação desse campo, marcando
oficialmente uma história que, por vezes, foi tecida de modo mais
fragmentado e a partir de movimentos mais individuais e
concentrados em determinados centros. Ainda que tecida por
muitas mãos até aqui, vicejamos, no futuro, que essas se ampliem,
se multipliquem, se diversifiquem, compondo o que ainda não é
possível mesmo avistar.
Este GT pretende, a partir das pesquisas que vêm sendo
realizadas por seus membros, problematizar tanto o papel teórico
Etnopsicologia e Saúde 14

que a Etnopsicologia pode desempenhar para contribuir com a


compreensão do atual cenário, bem como produzir elementos que
possibilitem intervir nessa realidade junto a populações
historicamente marginalizadas ou apartadas de seus direitos. Este
livro não se apresenta apenas como um dos primeiros produtos do
trabalho coletivo deste GT, nem reflete estritamente a tônica do III
Simpósio de Etnopsicologia, que tematizou, de modo amplo, o
conceito de saúde e as contribuições da Etnopsicologia. Este livro
representa a partilha de questionamentos que nos fizeram não
apenas chegar até a Etnopsicologia como escolher compor esse
campo, desde então.
Essas reflexões se ancoram em diferentes olhares que
permitem a esse campo pensar, acolher e permanentemente
problematizar os sentidos de saúde-doença-cuidado nos mais
diversos territórios de nossa participação e afetação. Esperamos
que os endereçamentos compartilhados aqui possam ser úteis na
sustentação desse campo na pós-graduação brasileira, fortalecendo
não apenas o GT que ora corporificamos na ANPEPP – e que não é,
de maneira alguma, estático –, mas também as contribuições desse
saber e desse fazer para a formação de pós-graduandos,
pesquisadores e futuros docentes em nosso país. Que essas e outras
questões permaneçam vivas em nossas memórias, em nossos
corpos e no que pudermos tecer juntos.

Referências

Bairrão, J. F. M. H., & Coelho, M. T. Á. D. (Orgs.). (2015).


Etnopsicologia no Brasil: teorias, procedimentos, resultados.
EDUFBA.
Godoy, D. B. O. A., & Bairrão, J. F. M. H. (Orgs.). (2018).
Etnopsicologia brasileira: mosaico e aplicações. Editora da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo.
Etnopsicologia e Saúde 15

CAPÍTULO 1

CONTRIBUIÇÕES DA ETNOPSICOLOGIA PARA O


CAMPO DA SAÚDE

Eliane Domingues
Gabriel Inticher Binkowski

Apresentação

O objetivo deste capítulo é apresentar as contribuições da


etnopsicologia para o campo da saúde. As reflexões aqui
desenvolvidas são fundamentadas em Georges Devereux, Marie
Rose Moro e outros autores que orbitam um campo que aparece
através de uma variedade denominativa, metodológica e
conceitual, tal como etnopsiquiatria, etnopsicanálise, clínica
transcultural e psicologia intercultural. Para Devereux (1951/2013),
o maior obstáculo que podemos encontrar no atendimento de uma
pessoa de outra cultura é o nosso próprio etnocentrismo, o qual
costuma ter em sua defesa um relativismo cultural que não passaria
do sintoma de um niilismo ético cuja concepção de normalidade é
culturalmente codificada (Devereux, 1996).
A partir dessa ideia, apresentaremos exemplos de situações
que destacam o etnocentrismo de profissionais da saúde, propondo
o exercício do descentramento como caminho possível na busca da
superação desse etnocentrismo. Segundo Moro (2017), trabalhar
com pessoas de origens diferentes nos ajuda na busca do
descentramento, assim como os conhecimentos da antropologia
que nos mostram o que é norma na nossa cultura, não é na cultura
do outro. Ainda, o descentramento viria acompanhado do
princípio técnico da elaboração da alteridade do próprio clínico,
num movimento temporal de sensibilidade, abertura e
transformação na direção de um outro (Moro, 2006).
Etnopsicologia e Saúde 16

Para finalizar, considerando o lugar central atribuído por


Devereux (1967/2018) à análise da contratransferência do
pesquisador na situação de pesquisa, propomos, também, a
necessidade da análise da contratransferência dos profissionais da
saúde em seu campo de atuação como mais um recurso importante
para superar o etnocentrismo.

Introdução

As reflexões aqui desenvolvidas têm como base algumas


ideias já apresentadas em formato de aula na Residência
Multiprofissional em Urgência e Emergência, no grupo de estudos
em Etnopsicanálise da Universidade Estadual de Maringá e no III
Simpósio Nacional de Etnopsicologia, realizado na Universidade
de São Paulo, em 2021, além de outras intervenções e espaços de
trabalho nos quais os autores atuam, notadamente em dispositivos
e modalidades clínicas e de intervenções com populações marcadas
pela diferença cultural, como imigrantes e refugiados.
O capítulo é voltado para estudantes e profissionais que não
necessariamente se dedicam ao estudo e à pesquisa em
etnopsicologia, mas que têm se deparado nos mais diversos contextos,
na área da saúde, com pessoas com diferentes expressões e
compreensões da saúde e da doença, assim como das formas de
tratamento e das tecnologias da saúde, marcadas por suas culturas de
origem. Além disso, como situa Laplantine (2004), a atuação na saúde
interage com processos de aculturação e deculturação1, que podem

1 O primeiro, a aculturação, acontece em diferentes níveis, grupal, cultural e


individual, marcando a chegada de uma ou mais pessoas (família, grupo) a uma
dada sociedade, a qual conta com uma cultura com uma organização e expressão
diferente daquela da sociedade de origem dos sujeitos. Mesmo se tal processo
aponta para a eventualidade de transformações mútuas, tanto na sociedade de
acolhimento como naquele que nela é recebido (mudanças linguísticas, gestuais,
vestimentárias, culinárias e outros elementos tanto objetivos como subjetivos,
ligados às experiências, afetos etc.), costuma-se dar maior relevo às
transformações daqueles que chegam a uma sociedade, seja em modificações
devidamente buscadas quanto àquelas que mais parecem fruto da convivência ou,
Etnopsicologia e Saúde 17

promover aberturas de vulnerabilidade e de submissão aos discursos


científicos e suas tecnologias, incorrendo, por vezes, em um
movimento agressivo em relação ao outro.
Nosso objetivo é apresentar as contribuições da etnopsicologia
para área da saúde a leitores que atuam neste campo e desejam
pautar sua atuação no acolhimento da alteridade. Partimos, neste
capítulo, das definições dos termos etnopsicologia, etnopsicanálise
e etnopsiquiatria.
Na página do III Simpósio Nacional de Etnopsicologia (2021)2,
é apresentada a seguinte definição: “a etnopsicologia se origina de
uma perspectiva multidisciplinar cujo principal operador
conceitual é a cultura. Seu objetivo primordial é propor pontes
dialógicas entre as inúmeras etnoteorias com as teorias científicas
que embasam a atuação nessa vertente, de modo a respeitar as
especificidades culturais do Outro”. Em Pagliuso e Bairrão (2015),
encontramos um breve histórico da etnopsicologia, denominação
que passou a ser usada em substituição à psicologia dos povos,
utilizada no século XIX para designar os estudos da psicologia que
levavam em consideração as diferenças culturais.

sobretudo, do desejo e/ou necessidade de pertencimento. Quanto ao segundo


processo, a deculturação, ele fora tratado de um modo um tanto pessimista por
Devereux (1970/2015), indicando a perda ou mesmo o abandono de elementos
culturais, o que implica um caráter de submissão desse fenômeno. Ainda, o autor
apontava que a deculturação poderia ser neurótica ou psicótica, marcando as
diferentes formas de transformação de símbolos ou signos. Na deculturação
neurótica, o uso de algum elemento, seja um mito, uma prática maternagem ou
um objeto de uso cotidiano, ainda permanece ligado ao seu contexto e função de
origem, mesmo que transformado e sendo preservado de um modo tangenciado
(como quando compramos um arco e flecha indígena e o penduramos na parede,
como objeto de decoração); já a deculturação psicótica se caracteriza por uma
perda dos traços referentes à própria humanidade de uma cultura ou de pessoas
oriundas de uma cultura. Laplantine (1994) considera que uma experiência de
confinamento tal como um campo de concentração nazista tenha esse
funcionamento, com a despersonalização e a deshumanização progressiva e
terminal dos submetidos.
2 https://www.even3.com.br/iii_simposio_nacional_de_etnopsicologia/
Etnopsicologia e Saúde 18

Georges Devereux é citado, por Pagliuso e Bairrão (2015),


como um dos autores que aporta importantes contribuições à
etnopsicologia, embora o autor não utilize o termo etnopsicologia
e, sim, etnopsicanálise/etnopsiquiatria, além de outras expressões
como psiquiatria transcultural ou psicoterapia metacultural (Moro,
2006). Devereux foi um antropólogo e psicanalista húngaro que
estudou e fez sua carreira entre França e Estados Unidos. Ele é
conhecido pela criação da etnopsicanálise/etnopsiquiatria,
disciplina que articula a psicanálise e a antropologia (também
poderíamos incluir aqui outras disciplinas e outros saberes) na
compreensão dos fenômenos humanos a partir de uma perspectiva
pluridisciplinar (não interdisciplinar) e complementarista. No
número 1 da revista Ethnopsichiatrica, Devereux (1978) assim
definiu a disciplina:

A etnopsiquiatria – necessariamente concebida como etnopsicanálise


(infra) – é uma ciência pluridisciplinar e não interdisciplinar. Ela
parece ser a mais compreensiva das ciências do homem, tanto das
ciências puras quanto das aplicadas e também dos pontos de vista
diacrônicos e sincrônicos. Reconhecida ou não como tal, seu
problema de base é aquele que sustenta todas as ciências do homem:
a relação de complementaridade entre a compreensão do indivíduo,
da sociedade e de sua cultura (p. 1, tradução nossa).

A recusa do termo interdisciplinaridade por Devereux se deve


à ideia de fusão que a palavra traz, do domínio de uma disciplina
sobre a outra, como ocorre na perspectiva da escola Cultura e
Personalidade3, em que o psiquismo é visto como reflexo da
cultura. Além disso, segundo Laplantine (1998), a

3A escola Cultura e Personalidade é uma corrente da antropologia que “(...) estuda


os caracteres distintivos dos seres humanos pertencentes a uma mesma cultura,
considerada uma totalidade irredutível a uma outra” (Laplantine, 1998, p. 21).
Essa corrente se desenvolveu nos anos 1930, principalmente nos Estados Unidos, e
incorpora conhecimentos também da psicologia, psicanálise e psiquiatria. Entre
seus principais expoentes estão A. Kardiner, E. H. Erickson, M. Mead, M. J.
Herskovits, R. Linton e R. Benedict (Laplantine, 1998).
Etnopsicologia e Saúde 19

interdisciplinaridade traz implícita a ideia de que uma disciplina


pede socorro à outra, podendo dispensá-la quando achar
conveniente. Diante disso, Georges Devereux propõe uma ousada
novidade metodológica, a noção de “complementarismo”
(Devereux, 1972). Esse se fundamenta na ideia de que a
compreensão dos fenômenos humanos necessita de pelo menos
uma dupla análise: do exterior (da cultura) pela antropologia e do
interior (psiquismo) pela psicanálise. Em análises complexas,
outros campos disciplinares e modalidades discursivas poderiam
ser inscritas em uma investigação, respeitando a complexidade dos
fenômenos humanos e sua irredutibilidade ou mesmo à
supremacia de qualquer visada epistemológica.
Com efeito, essa articulação entre diferentes disciplinas ou
discursos evita um erro bastante comum quando do cruzamento
disciplinar: o reducionismo de um campo a outro, como quando se
psicologiza um fenômeno que também é sociológico, ou quando se
explica um determinado evento a partir de um campo apenas. Por
exemplo, nos fenômenos de massa, é comum que eles sejam
explicados excessivamente por discursos que dão ênfase às
manifestações psicológicas, sociológicas, políticas, econômicas etc.,
o que não contribui em nada para ampliar as concepções de certo
evento e, por conseguinte, para alargar os diferentes eixos
epistemológicos envolvidos. Na verdade, o complementarismo é, a
título epistemológico, uma defesa também ética contra o próprio
centramento disciplinar, assim como o etnocentrismo se configura
como um caso de centramento de perspectiva cultural.
Sobre o emprego dos termos etnopsiquiatria e etnopsicanálise
por Devereux, eles aparecem em sua obra sem definições específicas.
Os títulos de dois de seus principais livros são: Essais
d’ethnopsychiatrie Générale (1970) e Ethnopsychanalyse complémentariste
(1972). Na introdução dos Essais d’ethnopsychiatrie Générale, Devereux
(1970/2015) escreve que o livro contém a quase-totalidade dos artigos
que, em conjunto, formulam a teoria e os métodos de base da
etnopsiquiatria psicanalítica, e que seus estudos epistemológicos
estão em Ethnopsychanalyse complémentariste.
Etnopsicologia e Saúde 20

Cabe, aqui, salientar que essas obras são compostas por artigos
publicados ao longo de várias décadas em periódicos e livros de
diferentes disciplinas, o que explica também a volatilidade
denominativa. Em seguida, podemos considerar que é o próprio
intercruzamento predominante entre a psicanálise e a antropologia
que faz o fio de Ariadne através do qual torna-se possível se
orientar no pensamento de Devereux.
Em Laplantine (1998), encontramos que a etnopsiquiatria é “o
estudo das relações entre as condutas psicopatológicas e as culturas
nas quais se inserem. Mais exatamente, é uma pesquisa
pluridisciplinar e a prática terapêutica nela fundamentada, que se
esforça por compreender a dimensão cultural das perturbações
mentais e a dimensão psiquiátrica das culturas [...]”. Um estudo de
Devereux que se enquadra neste sentido é o livro Ethnopsichiatrie
des indiens Mohaves (1961), que sistematiza as teorias e práticas
psiquiátricas dos indígenas Mohave (Bloch, 2012). Um outro estudo
é Psychothérapie d’un indien des plaines (1951), em que Devereux
apresenta “[...] a primeira teoria e o primeiro exemplo concreto da
utilização dos mecanismos culturais em psicoterapia” (Menniger,
citado por Devereux 1951/2013).
No livro Psychothérapie d’un indien des plaines4, encontramos a
transcrição de 30 sessões de análise de um indígena da etnia
Blackfoot, ex-combatente pelo exército americano na Segunda
Guerra Mundial. Na época da análise, ele se encontrava internado
em um hospital para veteranos de guerra, em Topeka, nos Estados
Unidos. O indígena, chamado por Devereux de Jimmy,
apresentava queixas de crises de ansiedade, pesadelos, fobias (de
altura e água), dores de cabeça e alcoolismo.
Devereux, que ainda se encontrava em formação em
psicanálise, inicialmente foi convidado a elaborar um parecer
antropológico sobre o caso, mas o que ele fez, fundamentado na
psicanálise freudiana, constituiu-se como sessões de análise diárias

4 O livro foi adaptado para o cinema em 2013 por Arnaud Desplechin, com o título
Jimmy P. Na versão brasileira, o filme foi traduzido como Terapia intensiva.
Etnopsicologia e Saúde 21

com Jimmy (Devereux,1951/2013; Domingues, Honda, & Reis,


2019). No livro, Devereux (1951/2013) escreve que

A maior dificuldade no tratamento de um índio das planícies, não é


a sua doença, mas a concepção do terapeuta do que é saúde. [...]
Infelizmente o etnocentrismo desempenha um papel preponderante
nos objetivos e nas técnicas de tratamento. [...] Um psiquiatra uma
vez ironicamente disse: todo manual sobre terapia poderia ter como
título: como ser como eu sou [...] (p. 227).

Apoiados em Devereux, de que o maior obstáculo no


tratamento de alguém de uma cultura diferente é nosso próprio
etnocentrismo, apresentaremos situações de etnocentrismo na área
da saúde, propondo caminhos para superá-lo.

Etnocentrismo e descentramento

O etnocentrismo, segundo Rocha (1988), é uma visão de


mundo em que o nosso próprio grupo (grupo do eu) é tomado
como centro de tudo e todos os outros são pensados, sentidos e
avaliados através dos nossos valores, nossos modelos, nossas
definições do que é a existência. O etnocentrismo não é
exclusividade de um determinado povo ou época.
Na antiguidade, os povos “civilizados” (da cidade) eram
comparados aos povos “bárbaros” (de fora da cidade). Na era
cristã, os missionários se questionavam se os indígenas tinham ou
não alma. No século XVIII, as diferenças entre os povos passam a
ser estudadas a partir da ideia de evolução de um estado de
selvageria para o de civilização (Roudinesco & Plon, 1998). Uma
das concepções centrais do Iluminismo, aliás, passava por uma
evolução e extensão da civilização (de matriz europeia) em seus
preceitos morais, epistêmicos e políticos.
É comum pensarmos a diferença a partir do conhecido (grupo
do eu) e o que é considerado diferente gerar estranheza ou até
mesmo produzir um choque cultural. Se o grupo do outro faz tudo
Etnopsicologia e Saúde 22

diferente do meu grupo, se veste diferente, come diferente, cuida


dos filhos de outra maneira etc., se eles estiverem certos, eu e o meu
grupo só podemos estar errados. A constatação da diferença pode
ameaçar a nossa identidade cultural (Rocha, 1988).
O que fazemos com esses sentimentos de estranheza e como eles
interferem no nosso trabalho é que devemos tomar como objeto de
reflexão. É problemático quando não permitimos que o outro fale por
si mesmo, quando não escutamos o outro e falamos em nome dele.
Quando não conseguimos pensar a diferença e colocamos a nossa
visão como a única possível, a superior, a certa, a natural (Rocha,
1988). Mesmo que, aparentemente, estejamos movidos por “boas
intenções”, nossos pensamentos e ações podem expressar um
“etnocentrismo cordial”5 – expressão utilizada por Rocha (1998).
Como bem apontava Freud, em O estranho (1919, que
recentemente contou com duas propostas de tradução no Brasil, O
infamiliar, 2019 e O incômodo, 2021), esse sentimento de estranho
entrega o encontro com aquilo que é inconsciente, decorrendo daí
essa experiência de estranhamento que, por vezes, temos no
contato com algumas obras de arte e até mesmo com certas práticas
culturais. No âmbito da pesquisa e de práticas com diferentes
populações, esse estranho pode levar à formação de mecanismos
de defesa, como Devereux (1967/2012) descreve em inúmeras
passagens de De l’angoisse à la méthode dans les sciences du
comportement: a observação de ritos ou práticas culturais que
provocam incômodo justamente porque remetem a traços ou
elementos recalcados no universo simbólico-cultural do
pesquisador, podendo levar a formações do inconsciente
envolvendo o material em questão, como atos falhos ao descrever,
pesadelos e até uma angústia (ou preguiça…) insuperável quando

5 Nessa expressão encontramos uma referência à expressão “homem cordial”,


cunhada por Sérgio Buarque de Hollanda na obra Raízes do Brasil (1936/2015). Essa
cordialidade se refere ao brasileiro, cujos traços culturais implicam gentileza,
hospitalidade e expansão emocional. No entanto, isso esconderia uma falta de
abertura à diferença, numa impermeabilidade ao outro e a seus traços culturais,
sociais e de classe.
Etnopsicologia e Saúde 23

do tratamento do material. Mais ainda, não devemos deixar todas


as manifestações preconceituosas que seguidamente aparecem
quando do encontro com a alteridade cultural.
Como sugere Moro (2002), a alteridade pode ser vivida e
sentida como um sistema de realiança, e não como substrato para a
incomunicabilidade. Essa noção, realiança, foi popularizada pelo
sociólogo Michel Maffesolli, indicando uma busca constante pela
ruptura com o isolamento através de ligações funcionais entre
sujeitos e grupos e da substituição dos laços primários da
comunicação humana por formas mais elaboradas de trocas (Bolle
de Bal, 2003). Isso implica novos processos e tecnologias de
mediação (como a TV o fizera na segunda metade do século XX,
gerando novos conteúdos e formas de sociabilidade) e também com
a possibilidade de laços múltiplos e variáveis entre as pessoas,
como se dá com as novas formas de relacionamento (do ficar da
adolescência do final do século passado até os relacionamentos por
aplicativos e algoritmos, como vemos hoje em dia).
Oliveira e Vieira (2019) relatam o incômodo da sociedade
envolvente em relação à presença de crianças indígenas Kaingang
acompanhando os pais na venda de artesanato nos semáforos da
cidade de Maringá, estado do Paraná. Tal incômodo pode ser
pensado como expressão de um “etnocentrismo cordial”. Diante
dessa situação, a ASSINDI (organização não governamental que
acolhe os Kaingang em Maringá) criou um centro social que oferece
alimentação, materiais pedagógicos e profissional capacitado para
acolher as crianças Kaingang enquanto os pais vendem artesanato.
Mas, mesmo a criação do centro, não impediu que as crianças
continuassem a acompanhar os pais nos semáforos. Quando as
famílias Kaingang foram indagadas sobre o porquê de não
deixarem as crianças no centro, “a resposta veio rápida e certeira:
‘quem deixa o filho pra outro cuidar é branco, Kaingang não faz
isso!’” (Oliveira & Viana, 2019, p. 212).
A ASSINDI chegou até mesmo a ser convidada pelo Ministério
Público para prestar esclarecimentos sobre a presença das crianças
indígenas nos semáforos. Os esclarecimentos foram elaborados
Etnopsicologia e Saúde 24

juntamente com os pais das crianças, que explicaram que a venda


de artesanato faz parte do aprendizado da pessoa Kaingang e que
eles não delegam o cuidado dos filhos a outras pessoas, como é
prática comum na sociedade envolvente. Além disso, práticas
como pedir dinheiro nos semáforos, que, na nossa visão, são
entendidas como mendicância, na visão dos Kaingang, são
entendidas como de reciprocidade e partilha de uma pessoa que
tem mais com outra que não tem (Oliveira & Viana, 2019).
Nas duas situações, a ASSINDI buscou envolver os Kaingang
e compreender a visão deles sobre as situações que os afetavam.
Esse modo de agir implica em um deslocamento do centro do meu
grupo, para o grupo do outro, implica em um descentramento. O
descentramento é necessário na busca da superação do
etnocentrismo, mesmo que este seja “cordial”.
Segundo Moro (2017), não devemos comparar o mundo do
outro ao mundo do eu, embora esse seja o movimento natural (ou
melhor, cultural), comparar o que não conheço ao que conheço. O
centro deve ser o outro, o outro que detém o sentido. O centro deve
ser o outro e não eu. Isto não se dá de maneira espontânea, temos
que parar, contextualizar, pensar e descentrar.
Vejamos alguns exemplos de situações no campo da saúde em
que o profissional não colocou o outro como centro, teve
dificuldade em se descentrar e acabou tendo uma conduta
etnocêntrica e violenta. A primeira situação aconteceu em um
hospital localizado na cidade de São Paulo e foi relatada por uma
profissional da saúde:

Então, eu já cheguei aqui e uma boliviana entrou no sábado e aí lá no


centro obstétrico ela queria [o parto] de pé, de pé, e aí ela pediu o
cesto né, em espanhol. Pediu o cesto porque ela não queria que o
bebê dela caísse, porque ninguém queria pegar o bebê dela e estavam
forçando ela a deitar. Aí ela pediu o cesto, ela não pediu o lixo, ela
pediu o cesto [risos], só que o pessoal falou assim “ela quer jogar o
bebê no lixo”, aí uma médica que nós tínhamos falou assim “não,
você vai ter o bebê deitada”, tentando lá se comunicar da forma como
pode. Então pegou ela por trás, deitou a paciente lá na mesa, fizeram
Etnopsicologia e Saúde 25

o parto deitada. Essa paciente, ela, nossa, ficou louca! Só que eles
entenderam que ela queria jogar o bebê no lixo, não queria o bebê.
[...] Mas ela muito tranquila, falou “eles não entenderam, agora que
eu entendi que aquilo que eu pedia que era o cesto, era o lixo, só que
eu não queria jogar o meu bebe no lixo”. [...] Então isso é uma
dificuldade, você tem que conhecer a cultura das suas pacientes [...]”
(Castro, Oliveira, & Custódio, 2015).

A mulher boliviana, longe de querer jogar o seu bebê no lixo,


queria ampará-lo ao modo de sua cultura. Neste caso, diferente da
situação das crianças Kaingang que acompanham os pais na venda
de artesanato, nos deparamos com um cenário de urgência em que
não há tempo para o diálogo e exige uma ação imediata. Em
situações como esta, o recurso aos conhecimentos da antropologia
nos ajuda a nos descentrar, mesmo que não conheçamos a cultura
específica da paciente, pois a antropologia nos mostra que o que é
norma na nossa cultura, não é na do outro (Moro, 2017). Se na nossa
cultura é norma que o parto seja feito em um hospital e longe do
grupo, isto não acontece da mesma forma em todas as culturas.

Em nome de uma universalidade vazia e de uma técnica


reducionista, não somos capazes de integrar em nossos serviços
de atendimento e prevenção de saúde, outras técnicas complexas
diferentes das nossas. Interrogamo-nos raramente sobre a dimensão
cultural da parentalidade, e pior, não consideramos essas formas de
pensar e agir úteis para estabelecer uma aliança com o paciente, uma
aliança que irá nos ajudar a compreender, a prevenir e tratar.
Infelizmente, a técnica é nua, sem nuance cultural. Pensamos que
basta aplicar um protocolo de atendimento médico para que o ato
médico seja eficaz (Catroli & Moro, 2013, p. 165).

Segundo Catroli e Moro (2013), o período da gravidez e logo


após o nascimento do bebê são momentos de vulnerabilidade
específica para mães imigrantes e um período de risco para a
interação mãe-bebê. Existem diversas formas de ser mãe e pai.
“Toda dificuldade da equipe de saúde reside em dar lugar à criação
Etnopsicologia e Saúde 26

desses modos singulares de parentalidade e em se abster de todo


julgamento sobre a ‘melhor forma de ser pai e mãe’” (Catroli &
Moro, 2013, p. 164-165).
Em alguns países, a gravidez não pode ser anunciada, a mulher
ou o marido não podem comer determinados alimentos durante a
gravidez da mulher. Esses elementos passam a ser da ordem do
privado na situação de imigração e podem se opor à lógica médica e
cultural do país de acolhida (Catroli & Moro, 2013).
O momento da gravidez e parto pode ser particularmente
difícil para as mulheres imigrantes, sobretudo quando essas não
estão com outras mulheres da mesma cultura e se deparam com
procedimentos e técnicas que não respeitam e se chocam com seus
modos de cuidados tradicionais. Por exemplo, em determinadas
culturas, deve-se ocultar a gravidez o máximo de tempo possível
para não atrair a inveja de outras mulheres. No caso de Medina,
Moro expõe as possíveis interpretações equivocadas que podem
acontecer devido ao etnocentrismo e dificuldade em se descentrar
dos profissionais de saúde quando acompanham mulheres
imigrantes na gravidez e no parto (Catroli & Moro, 2013).
Medina, imigrante grávida na França, teve um súbito ataque
de medo ao ter que preencher a declaração de gravidez. Sentiu-se
desprotegida, que poderia ser atacada e perder seu bebê. Ao invés
de interpretar essa situação como um desejo ambivalente que põe
risco à gravidez, devemos entendê-la como uma forma de proteger
o bebê, de ser uma boa mãe. Para Medina, fazer ultrassonografia
era algo quase pornográfico, ela se recusava a olhar a
ultrassonografia que os médicos insistiam em lhe mostrar. Tudo
isso era interpretado como dificuldade da mãe em investir no seu
bebê (Catroli & Moro, 2013).
O trabalho de parto de Medina foi demorado e difícil, o que
levou a equipe de saúde a propor uma cesariana, que foi recusada
pela parturiente e seu marido. Frente à recusa do casal, os
profissionais da saúde recorreram a uma outra mulher da mesma
cultura da futura mãe que recentemente tinha tido bebê para
Etnopsicologia e Saúde 27

conversar com ela. “Nas palavras de Medina, foi aí que o bebê


decidiu ‘sair sozinho’” (Catroli & Moro, 2013, p. 167).
Medina e a mulher boliviana que teve seu parto em São Paulo
têm em comum, além do nascimento de um filho em um país
estrangeiro, a não compreensão de suas culturas e interpretações
de seus comportamentos distorcidos pelo etnocentrismo de
profissionais de saúde. Elas não foram vistas como boas pacientes
por não se submeterem passivamente às técnicas e aos
procedimentos da nossa cultura. A paciente boliviana não queria
ter o parto deitada, Medina sentia medo em declarar sua gravidez,
não queria ver a imagem do interior de seu corpo nem fazer uma
cesárea. As condutas das duas mulheres imigrantes são também
interpretadas como não sendo condutas de boas mães, são vistas
como mães que rejeitam seus filhos quando, na realidade, estão
agindo de acordo com o que é ser uma boa mãe em suas culturas.
Pesquisas sobre a percepção das mulheres imigrantes sobre os
aspectos culturais da gestação, parto e pós-parto em seus países de
origem e no Brasil podem ser importantes para ampliar os
conhecimentos dos profissionais de saúde e auxiliá-los no exercício
do descentramento e acolhimento da alteridade. O artigo de Silva,
Castro, Monteiro (2021) a apresenta o resultado de uma pesquisa
com mulheres sírias que tiveram partos no Brasil. De acordo com
as autoras, as mulheres sírias entrevistadas, principalmente as
muçulmanas, relataram desconforto com o exame de toque vaginal
no pré-natal, realizado por profissionais do sexo masculino,
inclusive com a presença de estudantes de medicina. Sobre o parto,
as entrevistadas relataram que na Síria o parto é um evento
feminino que conta com a presença de outras mulheres da família
e que no Brasil quem as acompanhou foi o marido, devido à
ausência dos familiares, o que ocasionou nessas mulheres um
sentimento de solidão, principalmente no pós-parto. As mulheres
muçulmanas também se queixaram da dificuldade em obter
informações sobre algum médico que pudesse realizar a
circuncisão em seus bebês, prática considerada muito importante
entre as famílias. Além das dificuldades com a língua, pois os
Etnopsicologia e Saúde 28

profissionais não falavam nem árabe ou inglês. Segundo Silva et al.


(2021):

Para garantir a assistência de qualidade é importante levar em


consideração não só o acesso aos serviços de saúde, mas transpor as
barreiras linguísticas e do desconhecimento cultural, conhecer suas
crenças e hábitos étnicos, mitos, tabus e práticas que envolvem os
comportamentos sexuais (p. 7-8).

Transpor as barreiras do desconhecimento cultural é uma


tarefa necessária. Além da realização de pesquisas como a de Silva
et al. (2021), o estudo da antropologia e trabalhar com pessoas de
origens diferentes contribuem para transpor essas barreiras e nos
descentrar (Moro, 2017). Devereux (1970/2015) propunha pensar na
distinção entre cultura e Cultura para dar conta da relação entre as
singularidades de uma cultura em si, especificamente ligada a uma
sociedade, sua história, línguas, seus processos geopolíticos e seus
recalques e a Cultura humana, que poderíamos atualmente
transpor como o simbólico pensado pelos estruturalistas, como
Lévi-Strauss e Lacan.
Metodologicamente, na atuação clínica, essa distinção se torna
um operador para fazermos uso da alteridade como uma ponte
conectora, e não como redutora ou divisora. Assim, como Moro
sinaliza em inúmeros trabalhos, as práticas transculturais dão relevo
às riquezas implícitas na diferença, mais do que às dificuldades de
relação. Para dar cabo disso, um dos recursos mais importantes
passa pela apreensão do que é mobilizado pelo clínico e/ou
profissional de saúde quando no contato com a diferença (Rouchon
et al., 2009). Assim sendo, a análise da contratransferência do
profissional de saúde nos contextos de trabalho e pesquisa torna-se
um recurso essencial para superar o etnocentrismo.
Etnopsicologia e Saúde 29

Contratransferência

A transferência e a contratransferência são termos que fazem


parte do vocabulário da psicanálise e que ocupam lugar central na
clínica psicanalítica. Segundo Devereux (1967/2018), a transferência
consiste em que o analisando repita na relação com o analista
reações características a pessoas significativas do seu passado,
reagindo ao analista “[...] como se ele fosse essa pessoa, provocando,
por vezes, deformações grosseiras da realidade (p. 15).” A
contratransferência, por sua vez, é definida por Devereux como:

a soma total das deformações que afetam a percepção e as reações do


analista em relação a seu paciente; essas deformações consistem
naquilo que o analista responde a seu paciente como se esse
constituísse uma imago primitiva, e se comportasse na situação
analítica em função de suas próprias necessidades, vontades e
fantasmas inconscientes – frequentemente infantis (p. 16).

A transferência e a contratransferência têm “fonte e estruturas


idênticas” e é uma convenção nomear de contratransferência a
reação do analista e de transferência as do analisando (Devereux
1967/2018). Embora ambas tenham sido descobertas na relação
analítica, elas aparecem com maior ou menor intensidade nas
relações interpessoais de uma forma geral, como identificou
Ferenczi (Roudinesco & Plon, 1998). Logo, nas situações
profissionais e de pesquisa também devemos atentar para a
presença da transferência e da contratransferência e de como elas
afetam a prática e podem distorcer os resultados das pesquisas.
Borges, Periano e Moro (2018) propõem uma definição de
contratransferência que se adequa bem para pensarmos nos
contextos de trabalho e pesquisa no campo da saúde. Segundo as
autoras, “a contratransferência do clínico/pesquisador é a soma de
todas as reações (sentimentos e pensamentos) explícitas e
implícitas do profissional em relação ao seu paciente ou a seu
objeto de pesquisa” (p. 156). Essas reações, além de uma dimensão
Etnopsicologia e Saúde 30

afetiva, incluem também uma dimensão cultural que diz respeito a


como somos afetados pela alteridade das pessoas com as quais
trabalhamos e seus modos de compreender e agir em relação à
doença. Para Rouchon (2007), o alargamento do conceito de
transferência e da noção de contratransferência para além de seu
uso clínico oferece um recurso metodológico transformador aos
operadores de práticas com populações de diferentes culturas,
enriquecendo as dimensões profissionais e pessoas dos sujeitos que
se lançam nessas práticas.
No livro De l’angoisse à la méthode dans les sciences du
comportement, Devereux (1967/2012) desenvolve o argumento de
que a análise da contratransferência do pesquisador é fundamental
não somente na clínica, mas também em quaisquer pesquisas
envolvendo seres humanos. Aqui, poderíamos mesmo acrescentar
que sempre há contratransferência entre pesquisador, seus objetos
e métodos, mesmo nas ciências ditas duras, naturais ou exatas, pois
o ato de pesquisar e aprender envolve um circuito de curiosidade,
enigma e investimento libidinal.
Considera-se que os dados nas pesquisas em ciências humanas
são de três tipos: 1) O comportamento do sujeito (objeto); 2) As
perturbações induzidas pelo observador (pesquisador) nas suas
atividades de observação (pesquisa); 3) O comportamento do
observador (pesquisador): suas angústias, suas manobras
defensivas, suas estratégias de pesquisa, suas decisões. É sobre a
última que temos menos conhecimentos (Devereux, 1967/2018).
Sobre o segundo ponto – as perturbações induzidas pelo
pesquisador na situação de pesquisa – é necessário considerar que,
nas investigações com seres humanos, o pesquisador deve admitir
que ele não observa jamais o comportamento que aconteceria na
sua ausência e o que lhe é dito pelo narrador é dito para ele e não
para um outro. Tão importante quanto observar os determinantes
contratransferenciais presentes na situação da pesquisa, é estar
atento ao status atribuído ao pesquisador pelos participantes da
pesquisa, que se relacionam com a personalidade do pesquisador
(Devereux, 1967/2012).
Etnopsicologia e Saúde 31

Além disso, características como a origem, a idade, o sexo,


marcadores de classe e etnia também interferem naquilo que o
pesquisador pode ver e ouvir. Em suas pesquisas de campo na
antropologia, Devereux (1967/2012) observou que o sexo do
pesquisador determinava o que ele podia ver. Por exemplo, a um
homem pode ser proibido acompanhar um nascimento ou um
ritual de iniciação feminina, enquanto a uma mulher pode ser
proibido assistir a um ritual de iniciação masculina. Ademais,
existem certas atitudes que não poderemos jamais aprender – pois
carregamos marcas de gênero que compõem nossa subjetividade.
Outras marcas nós apreendemos de forma parcial em função de
nosso próprio etnocentrismo (Devereux, 1967/2012).
Sobre o terceiro ponto – o comportamento do pesquisador, suas
reações e sentimentos –, Devereux (1967/2012) enfatiza que a
subjetividade do pesquisador está em jogo em todas as etapas da
pesquisa, porque o objeto estudado, em alguma medida, toca no
inconsciente, despertando angústia, ou seja, reações
contratransferenciais. Essas reações podem deformar a percepção e a
interpretação dos dados. Quanto mais ansiógena for a situação
pesquisada, maiores poderão ser as defesas inconscientes levantadas,
ou seja, maior será a possibilidade de deformação causada na
interpretação do que se está vendo, maior será a dificuldade em
pensá-la e utilizar métodos de pesquisa adequados.
Diante disso, sendo inevitável a contratransferência do
pesquisador (e as consequentes distorções da pesquisa), a única
saída é considerá-la como dado fundamental em todas as
pesquisas. Essa postura não apenas poderia evitar erros e
problemas, mas também seria capaz de produzir insights de
maneira mais significativa do que com qualquer outro dado
(Devereux, 1967/2012).
Se a análise da contratransferência é fundamental nas
pesquisas com seres humanos para evitar deformações nos
resultados, entendemos que também no contexto da saúde
devemos atentar para a contratransferência dos profissionais
como um recurso auxiliar para evitar distorções que podem levar
Etnopsicologia e Saúde 32

a práticas violentas e discriminatórias que não conseguem acolher


ou mesmo tolerar a alteridade.

Considerações finais

Para finalizar, gostaríamos de destacar que superar o


etnocentrismo em nossas práticas não é tarefa fácil,
principalmente no campo da saúde, composto por uma série de
tecnologias, técnicas e protocolos rígidos marcados pelo modo
de pensar da cultura ocidental, com suas marcas coloniais,
patriarcais, sexistas e racistas. Porém, é necessário que os
pesquisadores e profissionais da saúde aceitem esse desafio,
incluam em suas pesquisas a questão da diversidade cultural e o
diálogo com a antropologia e com campos de saber que
consideram esse acolhimento da diversidade.
Fiquemos atentos aos sentimentos mobilizados na relação
com o outro, ou seja, consideremos a contratransferência, tanto
em suas dimensões subjetivas mais singulares e pessoais
(envolvendo a história idiossincrática de cada profissional) como
também os elementos e a prioris culturais, sociais e também
epistemológicos. Só assim poderemos avançar em práticas que
busquem superar o etnocentrismo e que coloquem o outro e não
o eu (e meu grupo) como centro, o que deve ser uma baliza ética
fundamental para todos nós.

Referências

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Etnopsicologia e Saúde 35

CAPÍTULO 2

CORPOS ESPIRITUAIS E NARRATIVAS


SOBRE SAÚDE E DOENÇA:
BREVE ENSAIO EM ETNOPSICOLOGIA

Maurício da Silva Neubern

Apresentação

A Etnopsicologia se constitui como uma proposta de conhecer


os outros, contrária às teorias e métodos colonialistas (Bairrão,
2017). Não seria, a bem dizer, conhecer o mundo dos outros, mas
de conhecê-lo por meio de uma relação e um diálogo com ele, em
termos amplos.
A ideia de que não se pode afirmar nada sobre o outro, mas
com o outro, é sustentada por outros princípios, como a
inexistência de diferenças entre os que sabem e os que creem, o
cético e o diplomata e, ainda, a ideia segundo a qual o próprio
pesquisador não pertence apenas a um Ethos (pertencimento)
científico, integrando-se a muitos outros que precisa aprender a
reconhecer, sob a pena de não ser mutilado (Neubern, 2012). Tais
princípios levam a uma conclusão importante: os sentidos e
significados que se constroem, por exemplo, em uma experiência
espiritual não podem ser desvencilhados da ecologia de
referências, objetos, saberes, técnicas, cosmovisões e narrativas do
qual emergem, pois, do contrário, a pesquisa pode simplesmente
retomar um rumo colonialista.
Adotando a postura de quem, a princípio, é estrangeiro nesse
universo, o pesquisador se insere nele como um ignorante gentil,
aquele que nada sabe sobre os outros (Neubern, 2018a). E um dos
passos fundamentais para essa inserção é o conhecimento das
narrativas, isto é, construções simbólicas partilhadas socialmente,
Etnopsicologia e Saúde 36

que tais maquinários promovem em torno de temas essenciais para


pessoas grupos e comunidades, referindo-se a temas como Deus,
morte, vida, espíritos, corpo, sexo, dinheiro, saúde, trabalho, família,
dentre outros. Ocorrem dentro de parâmetros éticos, estéticos e de
verdade, constituindo-se como referências centrais para as condutas
daqueles que a partilham (Scorsolini-Comin, 2015). Oferecidas pelos
saberes coletivos que antecedem as pessoas por gerações, podem ser
subjetivadas de diferentes modos, mas tendem a manter referências
com certa constância que é legitimada socialmente, ou seja, o
consenso coletivo comumente é capaz de afirmar se tal apropriação
é coerente ou não com as narrativas originais.
No presente capítulo, serão destacadas narrativas ligadas aos
corpos espirituais e como elas oferecem potencial terapêutico para
pessoas com dores e doenças crônicas, apontando suas relações
com adoecimento e cura. Não serão desenvolvidas situações
específicas, com detalhamento de mudanças e ganhos terapêuticos,
mas apenas citados alguns casos ilustrativos nos quais o potencial
terapêutico dessas narrativas possui um papel relevante. O
trabalho se constitui em um breve ensaio e, portanto, o que propõe
aqui é uma aproximação inicial que destaca algumas categorias –
individualidade e continuidade, de um lado, e Ethos e coletividade,
de outro – para pessoas já inseridas em alguma afiliação espiritual
que viviam sob tais condições1.
Percebeu-se, ao longo dos anos, que a noção de corpos
espirituais possuía um caráter explicativo importante para tais
pessoas, no sentido de favorecer construções relevantes sobre os

1Trata-se de um trabalho panorâmico e inicial sobre um conjunto de usuários do


serviço de hipnoterapia ao longo dos últimos 10 anos junto ao projeto CHYS
(Complexidade, Hypnose e Subjetividade) do Instituto de Psicologia da
Universidade de Brasília (UnB). Destaca-se, ainda, que, sendo submetidos aos
comitês de ética da UnB, todos as pesquisas, como a dos casos aqui relatados,
cumpriram rigorosamente com as condições de pesquisa com seres humanos,
como a assinatura de termos de consentimento e o sigilo da identidade (como a
mudança de dados e adoção de nomes fictícios), em consonância com as
normativas do Conselho Nacional de Saúde.
Etnopsicologia e Saúde 37

problemas que viviam, ligando a cosmovisão espiritual e o


cotidiano de suas vidas terrenas. O teor explicativo era
acompanhado também de considerável potencial terapêutico,
sendo capaz de gerar significados e sentidos de grande relevância
em momentos e situações críticos.
Uma advertência se faz importante sobre a escolha do termo.
Embora tenha havido uma prevalência das ideias espíritas no
sentido de Allan Kardec, para quem o termo usado comumente é o
de um corpo espiritual (períspirito), havia também um grupo
expressivo de noções advindas de esotéricos, para quem há vários
corpos espirituais. Acontece que, mesmo entre os espíritas, há uma
tendência mais recente em se compreender a diversidade de corpos
espirituais, como mostram alguns trabalhos posteriores a Kardec.
Por conta desses fatores, adotou-se o termo no plural, referindo-se
a ‘corpos espirituais’. Também deve-se ressaltar que, no momento
dessa pesquisa, o estudo se centrou mais nos relatos e explicações
dos usuários e, eventualmente, de seus acompanhantes. O estudo e
a discussão sobre os textos e livros ligados a tais grupos ficarão para
um momento posterior.

Individualidade e continuidade

As diferentes noções de corpos espirituais se apresentam como


importante solução filosófica para um problema central: a
continuidade da existência após a morte (Morin, 1970). Diante de um
fenômeno como a morte, que sempre provoca fortes impactos, a
pessoa não é diluída em um todo a ponto de perder sua identidade.
Embora alguns corpos espirituais, como os ligados à vitalidade,
dissolvam-se na natureza, outros asseguram que a individualidade
e identidade da pessoa que se vai sejam mantidas no novo universo
do mundo espiritual. Se, por um lado, alguém pode adentrar nessa
nova fase em diferentes níveis de compreensão sobre o que se passa,
por outro, ele permanece o mesmo, sendo identificado por outros
seres com quem passa a interagir.
Etnopsicologia e Saúde 38

Desse modo, o corpo espiritual apresenta algumas


características de grande relevância para se pensar a própria
existência. Um primeiro ponto que se destaca é que uma pessoa é
mantida na existência física graças a esses corpos que permitem que
o espírito, imaterial, diáfano e indefinido, consiga entrar e
permanecer no mundo material, onde aquele ser se torna concreto e
definido, passando a possuir uma relação próxima com a matéria.
Daí a ótica evolucionista ligada aos corpos espirituais, pois é a partir
dos vários mergulhos na matéria que um espírito pode evoluir.
Permitem, desse modo, que duas grandes potências do universo –
espírito e matéria – se entrelacem em uma perspectiva de favorecer
a evolução dos seres para que se aperfeiçoem cada vez mais, o que
se inicia nos reinos inferiores da natureza, passa pelo humano e se
dirige à angelitude. Situam o ser humano em uma trajetória
evolutiva, a bem dizer, infinita, da qual o sofrimento faz parte
integrante e pode se constituir como modo de aprendizado possível.
Nesse sentido, na condição humana, a individualidade e a
identidade se firmam principalmente porque os seres passam a
possuir liberdade de escolha e se tornam responsáveis por suas
ações. Em várias existências, um espírito assume diferentes
identidades, influenciadas pela cultura, história, genética de cada
tempo, que lhes permitirá importantes experiências evolutivas. Ao
mesmo tempo, sua individualidade permanece e possibilita uma
ligação entre essas existências que permite, inclusive, uma espécie
de registro de suas diferentes ações e reações diante das
vicissitudes que encontra. Os corpos espirituais se tornam,
portanto, verdadeiros arquivos dessas experiências, onde são
registrados memórias, cenas, acontecimentos dos quais a pessoa
participou e as consequências de tais eventos diante das leis
cósmicas. A conhecida noção de karma (ação) tem aí sua explicação,
pois as ações de uma pessoa são registradas nela mesma a partir de
seus corpos espirituais, nas quais também se inscrevem as leis
superiores. As doenças seriam, desse modo, sinais de que houve
algum tipo de afastamento ou transgressão dessas leis.
Etnopsicologia e Saúde 39

Algumas implicações de semelhante cosmovisão merecem ser


ressaltadas no tocante aos processos de adoecimento. Grosso
modo, as doenças e o sofrimento físico, em geral, não são processos
desse plano, mas apenas a manifestação material deles. Dentre as
pessoas entrevistadas, há um consenso no qual o tratamento
médico é fundamental e precisa ser seguido para tratar desse
aspecto material, mas, ao mesmo tempo, ele não é capaz de acessar
os aspectos mais profundos de um adoecer que, para tanto, são
acessados em termos espirituais.
Isso requer, por um lado, diferentes tecnologias culturais
capazes de intervir nos planos sutis dos corpos espirituais, como
ritos, passes, orações, cirurgias espirituais, contrafeitiços e
prescrições diversas (como banhos em horas e lugares específicos,
ervas, despachos, alimentação, orações e leituras de texto). Mesmo
quando tais intervenções não se mostram eficazes sob os critérios
médicos, elas são concebidas como atuantes no plano sutil, de
modo a promover a limpeza ou remoção de problemas nos corpos
espirituais ainda não materializados no corpo físico. No entanto,
em outras circunstâncias, essas ações são mais visíveis, sendo
capazes de promover curas que desafiam a medicina humana
(Nuñez, 2008). O caso de Ester (nome fictício), 56 anos, é muito
ilustrativo nesse sentido:

Eu tinha sofrido um acidente de carro horrível ... o carro virou e eu não


conseguia mais mexer as pernas, minha coluna doía muito ... o médico disse
que eu não teria mais como andar ... só um milagre ... eu fiquei desesperada
porque ainda era moça, tinha 20 e poucos anos ... não tinha me casado ...
então, minha irmã colocou meu nome lá naquele centro do Rio de Janeiro
que faz orações a distância. Toda sexta-feira eu tinha que ficar na cama, em
casa, com lençol branco e um copo de água na cabeceira. Fiz isso várias vezes
e fui me sentindo melhor. Até que voltei a andar ... O Dr Paulo, quando me
viu, não acreditou ... ficou me perguntando o que eu tinha feito ... fiquei com
medo de falar ... sabe lá, né? Médicos não acreditam ... até falei depois ... ele
me levou para frente de um monte de médicos, pediu pra eu tirar a roupa e
andar. No começo fiquei com vergonha, porque, imagina, pelada na frente
Etnopsicologia e Saúde 40

daquele monte de homens ... mas depois até achei graça e comecei a desfilar,
toda faceira!

Segundo as elucidações dos especialistas de tais saberes (no


caso, médiuns que se pronunciaram posteriormente a pedido de
Ester), um caso como este se explica porque as intervenções
espirituais, mesmo a distância, atuam em regiões do corpo
acessíveis às ações energéticas sutis via corpos espirituais. Sendo
uma ponte entre o mundo de matéria e energia sutil e o corpo físico,
o corpo espiritual permite, em algumas situações, uma ação
concreta sobre órgãos e sistemas físicos, de modo a influenciar a
matéria e promover cura.
O caso de Ester é curioso também porque o acidente, mesmo
que possuísse origens kármicas, não provocou lesões prévias nos
corpos espirituais, atuando diretamente no físico. Todavia, mesmo
em tais situações, o papel de intermediário dos corpos espirituais
permanece ativo, por razões que nem os especialistas, nem os seres
do mundo espiritual, deixam claras.
É possível que a explicação passe, como dito depois pelos
guias espirituais de Ester, por uma espécie de mensagem a ela e sua
família: embora fosse de formação Católica, a cura da jovem se
constituiu em uma espécie de chamado para a vida espiritual. Ela
não se converteu ao Espiritismo ou à Umbanda, religiões que se
integravam no centro onde buscou ajuda, tendo continuado
católica. Contudo, após alguns anos, alguns membros de sua
família nuclear passaram a apresentar muitas manifestações
mediúnicas, às quais ela parece ter rapidamente se adaptado.
Em casos como o de Ester, o corpo espiritual está associado a
uma dimensão de poder acima das condições e conhecimentos do
plano terreno. Ele e a materialidade que o compõe, assim como
compõe o universo sutil do mundo espiritual (Corbin, 1979/2005),
tornam-se eixos explicativos sobre formas de intervir no corpo com
poderes que podem superar os limites humanos, como no caso das
curas de pessoas sem perspectivas médicas. O impacto de
semelhante poder pode se constituir como um importante
Etnopsicologia e Saúde 41

elemento de captura, no qual pessoas (ou seus parentes) que estão


desenganadas podem aderir a um especialista ou grupo espiritual
após uma intervenção desse tipo.
É certo que tais poderes podem também ser geradores de
sofrimento junto a pessoas que não se veem contempladas por eles,
embora saibam de muitas histórias nas quais isso ocorreu. Entretanto,
as narrativas ligadas aos mesmos, por seu teor de mistério,
comumente deixam aberta uma perspectiva de esperança, como na
assertiva comumente repetida pelos usuários estudados na qual “a
Deus tudo é possível.” Acresce-se, ainda, que, mesmo quando a cura
não se efetiva, a ideia na qual algo com tamanho poder se ocupa
daquela pessoa também tende a ser muito reconfortante, seja porque
a cura pode, em algum momento, surgir, seja porque a sabedoria de
onde emana tal poder está no controle da situação.
Por outro lado, o tratamento espiritual também requer uma
espécie de transformação da pessoa no rumo de uma vida
espiritual, para que se aperfeiçoe, sobretudo, em termos de sua
conduta. A busca de incorporar em si ideais como amor, humildade
e perdão, muitas vezes associados a práticas filantrópicas, é um
modo de se aproximar dos seres superiores por meio da melhor
qualidade das matérias sutis que compõem os corpos espirituais.
Modos de agir, pensar, sentir e falar estão, desse modo, na raiz dos
processos espirituais de saúde e doença, sejam originados em vidas
passadas ou na atual, de maneira que a modificação dessas
dimensões favorece a saúde em termos amplos.
Há, aqui, um ponto digno de nota, no qual se verificam as
influências modernas (Dumont, 1983) no tocante à ação
individual. Diferentemente do que se dá em outras culturas, nas
quais o adoecimento costuma vir pela intenção de um outro, como
o feitiço lançado por um feiticeiro ou ancestral (Nathan, 2004), nas
cosmovisões estudadas, a responsabilidade recai sobre a pessoa
acometida. Seja porque, em suas ações, infringe leis superiores
(por exemplo, pela difamação de alguém ou por vícios), seja
porque, em seu modo de pensar e sentir, mantém-se conectada a
Etnopsicologia e Saúde 42

vibrações inferiores, tornando-se vulnerável à ação de espíritos,


desafetos ou feitiços.
Em termos gerais, tais conceitos sugerem associações
importantes nas narrativas compartilhadas entre as pessoas,
principalmente no tocante à temporalidade da experiência entre
adoecimento e cura. As noções de corpos espirituais permitem,
para muitos, uma continuidade entre as sucessivas idas e vindas do
espírito entre o plano material (onde encarna) e o espiritual. Em
termos de compreensão das origens da doença, inclusive quando
esta produz sofrimento, o teor antecedente tende a trazer um alento
significativo: em muitas das histórias reencarnacionistas são
comuns eventos terríveis (guerras, roubos, violências, traições)
como causas de dolorosos processos expiatórios. Mesmo que não
tenha consciência de eventos desse tipo, a pessoa pode ter a noção
de que algo trágico do passado seja o responsável por sua situação
na atualidade, o que pode lhe oferecer alguma lógica para
compreender sua situação.
Por outro lado, a continuidade da vida para além das
fronteiras da morte física traz considerável potencial de esperança,
pois, se a doença não cessa no hoje, há de cessar logo adiante. Se o
corpo físico possui por função trazer para si as máculas dos corpos
espirituais, a morte ganha, desse modo, um sentido libertador,
marcando o início de novo momento na trajetória evolutiva.
No entanto, a individualidade ocupa em tais narrativas um
papel central, pois a experiência de tempo depende do papel
protagonista da pessoa para ser subjetivada. Isso porque o tempo do
sofrimento pode ser dilatado ou abreviado conforme as decisões e
ações de cada sujeito. Se é razoável conceber que a responsabilidade
espiritual pode, facilmente, resvalar para núcleos de culpa em
alguns, ela também pode constituir como o meio principal para que
a pessoa se integre ao tratamento como sujeito do mesmo.
A proposta de reforma interior feita por tais narrativas pode
implicar dimensões terapêuticas de grande valia para uma pessoa,
envolvendo uma revisão e reconciliação consigo, assim como com
vínculos próximos, e também a criação de novas possibilidades de
Etnopsicologia e Saúde 43

geração de sentido sobre a vida (Binswanger, 1935; 2008; Raposa,


2020). De um modo geral, é por meio da capacidade reflexiva do
sujeito que se torna possível fazer as relações entre o passado, o
presente e o futuro, de modo a manter um vínculo lógico entre eles.
Pela própria importância conferida em tais cosmovisões à ação
individual (como por meio de termos como o livre-arbítrio), há uma
disposição para que a pessoa assuma um papel ativo e consciente
diante de sua condição e do tratamento que lhe é proposto.
Em outras palavras, tais narrativas situam o sujeito, em termos
de conduta e construções subjetivas, dentro de um papel coerente
com o tratamento espiritual, o que permite fazer com que as
narrativas sejam subjetivadas e construam sentidos construtivos
para ele. É como se fossem incorporadas por ele, em seu próprio
corpo e mundo de experiências (Lakoff & Johson, 1999). Assim, se
o passado, enquanto tempo cronológico, não pode ser modificado,
o presente é decisivo para que seus efeitos sejam ressignificados e
um novo futuro seja projetado, não como algo distante, mas como
algo que começa a se viver no agora, de maneira que o tempo
vivido se modifique substancialmente, constituindo-se como ponto
fundamental para o processo de cura. Tais narrativas podem
favorecer desde construções que permitam conceber e lidar com as
doenças de modo mais tranquilo a situações de profundas
transformações espirituais de conversão (James, 1902/1987).

Ethos e coletividade

É comum que, em manifestações mediúnicas, os seres


espirituais se apresentem ligados a algum povo ou etnia com traços
característicos: fenótipos, vestuários, gestos, linguajar, adereços,
objetos (armas, instrumentos musicais) que ajudam em sua
identificação por parte dos interlocutores. E tudo isso se torna
possível graças à plasticidade dos corpos espirituais e das matérias
que os compõem. Esse fenômeno é interessante de ser ressaltado,
pois, comumente, as pessoas a que se ligam não apresentam
qualquer vínculo terreno com tais grupos e etnias (Neubern, 2018a).
Etnopsicologia e Saúde 44

No entanto, quando uma pessoa se vê envolvida em


semelhantes manifestações, pode desenvolver processos de grande
relevância para seu tratamento, principalmente porque a tipicidade
de tais espíritos parece abrir perspectivas amplas sobre seu vir-a-
ser. “O que eu tenho a ver com chineses, indígenas, franceses,
hindus, africanos ou alemães?”, como perguntam, parece sair da
mera retórica e adentrar um campo pertinente sobre possibilidades
futuras. Em termos de cosmovisões, há entrelaçamentos
conceituais que merecem destaque.
A formação humana, contendo espírito – corpos espirituais –
matéria, possui muita semelhança com o próprio universo, sendo
composto por Deus – matéria sutil (Grande Éter, Fluído Cósmico)
– matéria visível, o que situa o ser humano como alguém que
compartilha uma condição genuína de criatura e de um co-criador,
principalmente por poder, a bem dizer, imitar o poder divino por
meio de seu pensamento. Há, portanto, uma dimensão de
pertencimento (Ethos) que é constitutiva, na qual o ser humano é
um cidadão do próprio cosmos, já que se assemelha a ele, é gerado
nele e pode nele criar muitas coisas.
Todavia, o pertencimento ganha outras versões em termos
culturais, quando na cosmovisão daquele saber se indica uma
ligação espiritual, por exemplo, por meio da reencarnação entre
aquele grupo de espíritos e a pessoa sob tratamento. Estas apontam
para um passado cronológico no qual a pessoa pode ter
reencarnado junto a esse grupo ou ter tido fortes relações com ele
em outra vida. O Ethos também pode fazer referência a um tempo
mítico, como no Candomblé e outras religiões de matriz africana
(Clément, 2011), no qual a ligação entre os orixás e a pessoa se faz
por meio das forças da natureza que os primeiros representam.
De qualquer forma, mesmo que se considere a importância da
individualidade, tais cosmovisões ressaltam o teor coletivo do
processo evolutivo dos espíritos, sempre fazendo referência a
termos que remetem ao Ethos, como famílias espirituais e egrégoras.
Desse modo, uma encarnação jamais ocorre tendo por parâmetros
exclusivos as necessidades individuais, pois precisa ser pensada
Etnopsicologia e Saúde 45

em termos da evolução conjunta do grupo e dos compromissos


assumidos nas relações entre espíritos. O caráter coletivo aqui
presente traz implicações diretas sobre os corpos espirituais da
pessoa que reencarna que podem: ter por referência o fenótipo de
tal grupo (sendo semelhante ou muito distinto dele); possuir as
características psicológicas típicas daquele grupo; trazer as
memórias de cenas coletivas, às vezes acessadas em transes rituais,
o que é raro (Neubern, 2018a); trazer a potencialidade de saúde e
doença ligada aos eventos coletivos em que o grupo tomou parte.
O Ethos traz, ainda, uma dimensão de compromisso ético e
afetivo entre o referido grupo espiritual e a pessoa encarnada. Não
são raras as situações nas quais há fortes ataques espirituais
motivados pela vingança em função de traições ou outras sortes de
problema; em tais circunstâncias, além da doença a ser tratada, há
a necessidade de uma reconciliação entre as partes, de modo a
desfazer ou amenizar a vinculação destrutiva entre ambos. Em
outros momentos, os grupos servem como apoio, não apenas na
intervenção junto ao problema, mas por oferecer à pessoa um
círculo de pertencimento cósmico, que transcende os limites da
matéria, um círculo no qual ela não se encontra sozinha e,
independentemente do desfecho do problema, estará sempre
presente. É assim que, para algumas pessoas, mesmo que a
aparência dos espíritos que se apresentam seja estranha, há
também um sentimento de familiaridade que é de considerável
importância para a lida com os problemas enfrentados.
Os corpos espirituais, nessas cosmovisões, por conta de sua
própria materialidade são comumente associados a verdadeiras
paisagens espirituais (Corbin, 1979/2005). Não são raras as
descrições de paisagens naturais, animais, edificações e cidades
que acompanham o encontro com os espíritos, o que situa os
protagonistas em uma espacialidade própria, capaz de misturar
cenários terrenos e espirituais, ou apenas remeter a estes. Os teores
materiais e espaciais de tais cenas tornam-se, assim, poderosos
instrumentos de comunicação junto às pessoas que podem se
mostrar curiosas, impactadas, emocionadas ou até aterrorizadas.
Etnopsicologia e Saúde 46

Não obedecendo às leis comuns do plano físico, essas dimensões,


ao mesmo tempo em que são vívidas e impactantes, podem ser
moldadas pelo pensamento da própria pessoa e dos seres que a
acompanham nessa viagem. No entanto, podem também
desaparecer, como que por encanto, caso a pessoa não possua mais
condição ou permissão para presenciá-las.

Foi assim que Jeane, 39 anos, com uma doença autoimune sem
diagnóstico preciso, relatou ter presenciado a si mesma e seu
mentor espiritual como filha e pai, em uma época antiga da Índia.
Ele sempre se apresentava para ela como um homem ocidental,
cabelos grisalhos e olhos azuis, portando um turbante, o que ela
não compreendia. Até que ele a levou, durante um transe em
terapia, a algumas cenas da Índia, na qual ela se recusava a ser
esposa de um pretendente escolhido por seu pai e cometia o
suicídio, atirando-se de um penhasco. Suas dores pelo corpo,
inexplicáveis aos médicos, viriam de um perispírito ferido por conta
desse evento. Isso pareceu fazer muito sentido para ela, tanto sobre
o turbante de seu mentor, como por conta das origens de suas dores
e o terrível casamento em que se encontrava.

Nesse caso, ocorrido em hipnoterapia, os corpos espirituais


desempenham um papel central. Eles indicam tanto um ponto
importante de sua relação com o ser espiritual, que havia sido seu
pai, como o evento trágico que seria a origem de sua misteriosa
doença. Há, também, um cenário marcado por momentos da
cultura indiana da época (casamentos previamente arranjados) e
suas respectivas paisagens, sendo que todo esse acervo estaria
gravado na memória de seu perispírito, termo usado pelos espíritas
para o corpo espiritual. Há, ligada à noção de perispírito, tanto uma
dimensão particular da relação com os outros, como uma
familiaridade de pertencimento.
Em termos do potencial terapêutico dessas narrativas, é
possível destacar o duplo aspecto do termo Ethos (Figueiredo,
1992). Por um lado, refere-se a uma dimensão ética, na qual
constam os deveres de uns para com os outros que cada um deveria
Etnopsicologia e Saúde 47

acatar e praticar em suas condutas diárias. Não estão esses deveres


inscritos em um livro, receituário ou lugar externo, mas na própria
constituição dos corpos espirituais, nos quais estão inscritas as leis
cósmicas superiores. Assim, ao faltar com a ética que daí advém,
há um registro da transgressão nos corpos espirituais, que pode se
manifestar como reminiscência, sentimento de algo a ser feito (ou
que a persegue), intuição que a guia a se relacionar com certas
pessoas e até uma doença. Não é demais destacar que a dimensão
ética aqui remete às relações com os outros, o que a constitui como
essencialmente social.
Por outro lado, Ethos também significa morada, o que traz a
questão do pertencimento como um dos pontos centrais da
existência no plano terreno e espiritual. O espírito vive
coletivamente, não apenas por uma questão de obediência às leis,
mas, principalmente, porque o pertencimento a tais grupos é
condição básica de sua evolução. É por meio dos acertos mútuos
das diferenças entre eles, mas também do afeto e da afinidade, que
o crescimento espiritual tem lugar, seja em termos individuais, seja
em termos coletivos.
Um primeiro campo de narrativas que daí deriva coloca a
questão do dever quanto ao outro como central. Não são raras as
situações nas quais, face a uma doença séria, principalmente quando
há risco de morte, que uma pessoa queira estabelecer mal entendidos
ou se reconciliar, via perdão, diante de algum vínculo comprometido
por ações anteriores (Neubern, 2013). A palavra reconciliação é aqui
muito apropriada (Binswanger, 2008), posto que ela demanda que as
partes revejam o que cabe a cada uma e busquem nova negociação de
sentido para a relação da qual participam.
A doença, no caso, seja por conta do sofrimento que pode
impor, seja devido aos riscos que pode trazer, comumente leva as
pessoas a esse tipo de reflexão, possuindo, para muitas delas, um
teor transformador. Desse modo, o pensar-se na relação por conta
dos deveres éticos assume um papel importante, uma vez que
associa a disponibilidade para reconciliação como um princípio
importante da cura, seja pela responsabilidade assumida junto ao
Etnopsicologia e Saúde 48

outro diante de eventuais ofensas ou desentendimentos, seja


devido às mudanças de sentimento que pode proporcionar:
ressentimentos e mágoas maculam os corpos espirituais e são focos
potenciais de novos adoecimentos. Livrar-se deles, substituindo-os
por novas disposições frente aos outros ganha um caráter
altamente emancipatório.
Já o campo do pertencimento também possui implicações da
mais alta pertinência, uma vez que insere a pessoa em algo maior
que ela, fazendo com que se sinta parte de um grupo ou
coletividade. De certo modo, rompendo com o individualismo
moderno, tais narrativas resgatam um teor coletivo comum nas
sociedades tradicionais, mas cada vez mais raros nas sociedades
globalizadas (Nathan, 2001).
Uma primeira consequência disso se refere ao impacto sobre o
posicionamento solitário no qual muitas pessoas adoecidas se
sentem por razões diversas. As dores crônicas, principalmente
quando não detectadas em exames objetivos, o estigma de muitas
doenças e a redução da capacidade física e mental não raramente
levam tais pessoas a se isolarem do convívio social, guardando para
si uma série de impressões e experiências que vivenciam e não se
sentem seguras para compartilhar. Isso porque, em muitos
cenários, a preocupação com a gravidade da doença, a
desconfiança por parte de familiares e profissionais, o medo da
morte, a insegurança econômica caso esta ocorra e outros
problemas que decorrem da própria condição da doença (como
depressão, redução da libido e perdas econômicas) tornam-se
barreiras consideráveis para que tais pessoas busquem apoio junto
a seus próprios vínculos (Neubern, 2018b).
Logo, a simples ideia na qual alguém a quem a pessoa é
próxima no plano invisível a ampara e sustenta possui, em muitos
casos, considerável potencial terapêutico. Esse outro espiritual que
lhe é, de alguma forma, apresentado, é alguém que pode sondar
seu pensar e sentir, conhecer a legitimidade de seu sofrimento e
ainda auxiliá-la quanto a uma série de questões. Na ausência de
alguma via mediúnica, o simples monólogo pode ser
Etnopsicologia e Saúde 49

compreendido como um diálogo com os espíritos e o reconforto


pode se instalar, mesmo quando as crises da doença a ameaçam.
Tal ideia nem sempre é garantia de melhor aproximação com
os vínculos próximos, como parentes e amigos, mas pode facilitar
nesse sentido. Desse modo, quando o círculo social mais próximo
comunga dessas ideias, frequentemente pode haver uma
considerável ampliação do potencial terapêutico individual e
social, pois o grupo pode funcionar como um campo de ressonância
de novos significados capazes de servir de alternativas relevantes
não apenas para a pessoa afetada, mas também para seus próximos.
Todavia, as cenas com paisagens, acessíveis pela própria
pessoa ou descritas a ela por um outro, possuem, ainda, um apelo
mais profundo ligado a uma perspectiva do Sagrado (Corbin,
1951/2015; Otto, 2017). De algum modo, o potencial semiótico de
tais imagens remete à visão de um mundo superior, por vezes
considerado como paraíso ou algo próximo disso, um lugar
próximo à perfeição e acessível aos bons. O sentimento de amor e
fraternidade entre os seres, acompanhados da beleza, da bondade
e da justiça em tais cenários parecem ser dominantes, mostrando-
se muito superiores às contradições do mundo humano, onde a
doença ainda necessita existir para promover a evolução. Além
disso, o prazer ligado a tais cenários não raras vezes é relatado
como algo sem comparação com as sensações do mundo humano
para o qual não se encontram palavras que o descrevam.
Ao serem apresentados para as pessoas, tais cenários se
colocam como grandes promessas a serem atingidas (James,
1896/2001), onde a situação de sofrimento atual deixará de existir,
dando lugar a uma condição de harmonia muito mais ampla em
um lugar que, de algum modo, pertence àquela pessoa e aos seus
afins. Contudo, o teor dessa promessa não se restringe a um futuro
longínquo, mas pode ser vivido, sob certas condições, no hoje,
principalmente como mensagem espiritual sobre o que a pessoa
poderá desfrutar mais adiante. Os relatos sobre tais paisagens
presentes nos transes e sonhos são boas ilustrações disso.
Etnopsicologia e Saúde 50

Considerações finais

Ao se conceberem algumas das diversas narrativas sobre os


corpos espirituais de pessoas com doenças crônicas, é importante
ressaltar que os modos de subjetivação entre as narrativas e as
experiências dessas pessoas não são jamais lineares (Gonzalez
Rey, 2019). Há situações de revolta e inconformidade por meio
das quais algumas pessoas rompem com tais narrativas e criam
caminhos próprios.
Além disso, há uma série de registros do mundo social ligados
ao trabalho, à vizinhança, ao dinheiro, ao momento político, à
violência, às questões específicas da família, para se citarem apenas
alguns, que se configuram em tais processos de subjetivação,
conferindo-lhes um teor bastante singular. Logo, a potencialidade
de tais construções sociais possui certa capacidade de
determinação, mas não deve ser compreendida sob uma ótica
determinista, principalmente porque o protagonismo das pessoas
enquanto sujeitos de seus processos é uma condição terapêutica
importante. Também é importante ressaltar que o conhecimento
das narrativas é apenas uma primeira parte de uma pesquisa
etnopsicológica, na qual há ainda uma série de requisitos que
precisam ser melhor desenvolvidos a partir da própria inserção do
terapeuta ou pesquisador no campo de estudo (Bairrão, 2017;
Nathan, 2001; Neubern, 2012; Scorsolini-Comin, 2015).
Contudo, o potencial de redefinição das mesmas toca em
questões de relevância central para os processos envolvidos no
tratamento. A título de uma aproximação, seria possível conceber
que uma primeira redefinição mais ampla se liga à temporalidade,
situando a cura como um processo infinito. Se os corpos espirituais
se depuram por vias como a doença, o processo evolutivo ao qual
se submetem é um processo de purificação, o que permite ser
apropriado como um processo constante de cura, no qual o espírito
se desvencilha das influências materiais e se reencontra com sua
essência de beleza e verdade.
Etnopsicologia e Saúde 51

Para pessoas nas quais a cura da doença física acontece, tal


narrativa lhes proporciona uma nova perspectiva de vida,
principalmente no sentido de valorizar as oportunidades da vida
comum como grandes bênçãos do mundo espiritual. Como relatou
Anselmo, 54 anos, após passar meses internado por conta de um
câncer, retirado por cirurgia: “Como é bom poder estar fora daquela
cama. Sentir o sol batendo na pele, poder andar na rua ... comer o pão da
padaria ... tomar o café da manhã domingo com a família!”
Ao mesmo tempo, as pessoas que não experimentam essa
cura, além de refletirem a doença como uma lição (uma terrível
professora, segundo alguns), podem desenvolver significados
ligados a uma esperança, mesmo depois da morte. Sendo a doença
um processo de expurgo das impurezas dos corpos espirituais,
deve haver aprendizado, sem se deixar dominar por sentimentos
como revolta e tristeza. O futuro pode ser concebido como um
modo de libertação, pois, uma vez cumprido o aprendizado, não
haverá mais motivo para viver a doença. Costuma haver, em tais
cenários, o binômio vida – morte, sendo a primeira associada a uma
necessidade de aprendizado e a segunda a um processo de
emancipação, tanto para a pessoa como para seu círculo social mais
próximo.
Vale destacar, ainda, que a própria vivência dessa
emancipação parece antecipar algumas experiências do mundo
espiritual para a pessoa que ainda lida com o sofrimento da doença,
como apontado anteriormente (James, 1896/2001). Por tais razões,
as experiências mediúnicas, os transes hipnóticos e os sonhos, ao
trazerem esse paraíso para o cenário concreto e material da
existência, possuem efeitos terapêuticos de grande valia, seja pelo
alívio imediato de algumas expressões de sofrimento, seja por
confirmarem a crença de que semelhante paraíso existe. A fala de
Marcela, 40 anos, diagnosticada com lúpus, é significativa nesse
sentido, ao retornar de um transe induzido por hipnose:

Nesse lugar havia montanhas, cascatas e pinheiros. Um rio lindo passava


perto de nossa casa. O sol se punha em cores muito belas ... tonalidades em
Etnopsicologia e Saúde 52

lilás, vermelho, amarelo, rosa e azul ... tudo meio dourado ... impossível de
serem descritas ... eu e meu pai tocávamos piano na varanda. Schubert ... e
eu chorava porque chegava a hora de voltar. Meu pai me dizia que tinha que
vir, mas que aquela era nossa casa e que, se cumprisse meus compromissos
aqui na Terra, em breve estaríamos juntos de novo. Eu chorava muito, mas
entendia. Ali não sentia nenhuma dor ... era tudo muito prazeroso.

Esse mundo espiritual pode ser, para muitos, um lugar de afeto,


nos quais vínculos importantes se fazem presentes, mesmo que
desconhecidos nesse mundo. Pode implicar uma forte associação
entre o belo e o prazer, destacando existir um outro lugar permeado
por venturas de diferentes modos, inclusive artísticas. Remete
também a uma dimensão superior, de onde se torna possível
contemplar e auxiliar o mundo terreno e, ao mesmo tempo, se
conectar e interagir com o poder divino (Corbin, 1951/2015).
Semelhante mundo, talvez por ser, aparentemente, a antítese do
mundo de alguém que sofre intensamente por doença crônica,
mostra-se como importante referência terapêutica, não apenas como
uma perspectiva futura, mas como um futuro que se concretiza no
presente. Assim, solidão, dor, desespero e morte são contrapostos por
afeto, prazer, esperança e vida em narrativas que, em muitas ocasiões,
confirmam-se por meio de experiências da própria pessoa ou pela
revelação dos especialistas, como no caso dos médiuns.
Por fim, não seria exagero afirmar que tais narrativas oferecem
uma solução pragmática para uma velha antinomia das ciências da
saúde, entre as categorias saúde e doença (Gonzalez Rey, 2011).
Isso porque as narrativas remetem a uma temporalidade que
parece brincar com o tempo cronológico, pois, ao mesmo tempo em
que, via presente, conseguem visitar o passado e o futuro, situam o
futuro como um ponto no qual a cura impreterivelmente há de
acontecer. O teor de eternidade com que se constituem se torna,
assim, um forte fulcro para construções ligadas a uma esperança
concreta no cotidiano. Ao mesmo tempo, ao situarem um espaço
com matéria diferenciada, moldável pelo pensamento e povoado
por seres que são afins e também possuem consideráveis poderes
Etnopsicologia e Saúde 53

(acima mesmo dos humanos), antecipam uma perspectiva de


pertencimento que se confirma na própria experiência, como
exemplificado no caso de Marcela.
Esse modo de jogar com tempo, espaço, matéria e outro, sem
banalizar seus limites, está muito associado, em tais saberes
coletivos, à busca da própria essência espiritual, em pureza, beleza
e perfeição, no qual o ser reconhece e se reconhece facilmente este
universo plástico (Corbin, 1951/2015). Mais que isso, associa-se
também a uma concepção na qual a doença é apenas um momento
evolutivo e, ao mesmo tempo, um processo de cura. Lutar contra
ela, pelos meios físicos (caracterizados pelas forças mecânicas e
vitais das ciências terrenas) nem sempre é possível, dados os
impactos, por vezes devastadores, que pode exercer contra o
organismo. Contudo, ao se conectar com aquilo que parece ser
essencial nessas narrativas – a essência espiritual – a luta se torna
possível e a vitória, de algum modo, acontecerá.

Referências

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Etnopsicologia e Saúde 55

CAPÍTULO 3

ESCUTA É PERFUME:
POR UMA CLÍNICA ETNOPSICOLÓGICA

Fabio Scorsolini-Comin

Apresentação

A clínica etnopsicológica pode ser definida como um espaço


de escuta no qual as etnoteorias produzidas pelo outro em seu
contexto de referência não são apenas incluídas, mas fortemente
consideradas na composição de inteligibilidades que narram sobre
o sujeito, o seu pertencimento e a sua possibilidade de fruição no
mundo. Com efeito, as noções de adoecimento, saúde e de
mudança, bem como as estratégias de enfrentamento e os critérios
de alta/cura são baseados não em pressupostos trazidos pelo
psicoterapeuta, mas produzidos junto com o paciente/cliente a
partir das etnoteorias partilhadas nesse espaço de cuidado.
Recupero, neste capítulo1, uma breve apresentação da minha
Tese de Livre Docência intitulada “O divã de alfazema: a clínica
etnopsicológica no cuidado em saúde mental”, defendida no ano de
2020 junto ao Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências
Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo. Assim, descrevo a composição de uma
clínica etnopsicológica dentro de um terreiro de umbanda localizado
na periferia da cidade de Ribeirão Preto-SP, discutindo os desafios e
as potencialidades dessa escuta etnopsicológica. A mística olfativa
representada pelo perfume no título nos convida a uma espécie de

1Estudo derivado do projeto “A clínica etnopsicológica como tecnologia para o


cuidado em saúde mental: estudo longitudinal” (Processo CNPq 306832/2020-8),
Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq.
Etnopsicologia e Saúde 56

sensorialidade que frequentemente nos escapa quando pensamos na


preponderância da escuta e da presença no contato com o outro e no
fazer psicológico hegemônico. Assim, pretendo, neste capítulo,
reunir pistas para responder à seguinte questão: quais aromas
povoam nossa escuta na clínica etnopsicológica?

Introdução

A escolha do título do presente capítulo obviamente se ancora


no título de minha Tese de Livre Docência: “O divã de alfazema”.
Mas uma memória anterior torna-se presente quando nomeio o
presente capítulo. Certa vez, ao assistir ao filme documentário
“Música é perfume” (Gachot, 2005), que narra o processo de criação
artística de Maria Bethânia e a sua formação como intérprete, a
cantora dizia que a música era como o perfume, chegando
sensorialmente antes dos demais elementos. Assim, o perfume, o
aroma, o cheiro, enfim, teriam a condição de nos invadir antes dos
demais sentidos, processo que, segundo ela, também se daria com a
música, ao invadir a memória e instantaneamente nos reconectar a
sentimentos e experiências outrora evocados: quando ouvimos uma
música somos alçados ao momento em que a ouvíamos
anteriormente, despertando memórias e sentimentos que
associamos com a obra. Músicas, desse modo, nos permitiriam
reviver experiências importantes e quase de modo imediato:
músicas que embalaram amores, separações, conquistas, momentos
de alegria. O mesmo se daria com um cheiro percebido por nosso
olfato. Cheiros nos trazem lembranças e também nos transportam
para mundos e momentos diversos: o cheiro da casa de infância, o
cheiro de uma pessoa, de uma comida, de um lugar, de um perfume.
A escuta em psicoterapia tem sido descrita a partir de uma
ancoragem hegemonicamente auditiva. A escuta do outro e com o
outro, portanto, nos fala da possibilidade de estar com o outro por
meio da atenção e da depuração daquilo que se diz e do que se
consegue ouvir. Nessa acepção, o bom psicoterapeuta é aquele
capaz de se colocar em uma posição de escuta, de atenção pelo que
Etnopsicologia e Saúde 57

o outro diz e pelo modo que diz. Um bom ouvinte, nesse sentido,
seria, em potencial, um bom psicoterapeuta. Também falamos
muito da presença, da capacidade de estar com o outro, de ser com
o outro no espaço do encontro. Isso nos fala da capacidade de
emprestarmos nosso corpo à escuta do outro e à representação por
parte do outro. Mas na Psicologia esse corpo também não é
explorado em toda a sua potência, haja vista a dificuldade que
encontramos, muitas vezes, de incluir a experiência do toque, o que
é retomado por muitas tradições e abordagens que são mais
porosas ao corpo e à presença.
Mas, aqui, não recupero esse corpo que toca, essa presença que
acompanha, nem mesmo essa escuta atenta – o que, em absoluto,
coloca esses sentidos em uma posição de subalternidade. Busco
recuperar o cheiro, o perfume e o aroma que também nos dizem
muito ao estarmos diante do outro. Em uma clínica composta
dentro de um terreiro de umbanda, como narrarei neste capítulo,
talvez esse sentido possa emergir de modo bastante natural: o
terreiro possui um cheiro, os rituais possuem um cheiro, tudo o que
se usa ritualmente na umbanda possui cor, textura, gosto e... cheiro!
É por essa razão que, retomando a comparação com o perfume,
também compreendo que a escuta que podemos promover na
Etnopsicologia é como um cheiro. Escutar é também estar atento e
aberto aos aromas que compõem territórios e experiências, de
modo que não podemos pensar em uma clínica etnopsicológica que
não esteja aberta e interessada em uma escuta por todos os seus
poros sensoriais. É um pouco dessa experiência que pretendo
compartilhar a seguir.

A construção de uma clínica etnopsicológica

É importante, neste momento, fazer dois esclarecimentos


iniciais sobre a escrita que desenvolverei a seguir. Denomino essa
experiência como a construção de “uma” clínica etnopsicológica.
Este relato, assim como os estudos aqui recuperados, não possuem
como objetivo balizar a proposição de uma única clínica
Etnopsicologia e Saúde 58

etnopsicológica. Isso transformaria esse relato em um estudo


metodológico não apenas bastante audacioso, como também
falacioso: a partir dos pressupostos de uma clínica que se constrói
com o outro e por meio de diferentes etnoterias, respeitando a todo
momento a alteridade, almejar o delineamento de um único fazer é
um equívoco epistemológico. Assim, compartilho uma experiência
significativa em minha formação sem que isso vise a sistematizar
um modelo. É, pois, uma possibilidade de escuta etnopsicológica
em psicoterapia.
Outra ponderação inicial é que o presente relato se organiza
em um ir-e-vir a partir de memórias de ressonâncias que me
habitam no momento dessa escrita. Não assumo, aqui, o
compromisso com uma organização linear, seguindo uma sucessão
de fatos cronológicos e descrições didaticamente organizadas. Pelo
contrário, este relato se tece com retornos, recuperações, hiatos e
avanços que mostram uma experiência viva não apenas em minha
memória, mas, sobretudo, em um fazer que me habita mesmo
quando escrevo pretensamente distanciado desse contexto em
função das restrições sanitárias impostas pela pandemia da
COVID-19 desde o ano de 2020. Passo, então, a esse ir-e-vir.
Em 2022, a minha inserção como pesquisador no campo da
umbanda completou uma década. No entanto, o meu contato com
a Etnopsicologia é anterior, a partir da leitura de estudos
produzidos pelo Laboratório de Etnopsicologia da Universidade
de São Paulo, coordenado pelo Prof. Dr. José Francisco Miguel
Henriques Bairrão desde a sua criação.
Assim que passei a frequentar o terreiro de umbanda que ilumina
este capítulo – e toda a minha trajetória de estudos na área -, foi
premente a necessidade de escolher um aspecto ao qual poderia me
dedicar para pesquisar neste contexto. Tinha como comparação os
estudos que já haviam sido produzidos sobre a umbanda, além de
pesquisas desenvolvidas naquele mesmo terreiro por pesquisadores do
Laboratório de Etnopsicologia da USP.
Este terreiro está localizado na cidade de Ribeirão Preto,
interior do estado de São Paulo. Trata-se da Tenda de Umbanda
Etnopsicologia e Saúde 59

Oxalá e Iemanjá, cujo pai de santo é o senhor Antonio Henriques,


conhecido popularmente como Toninho. Muitas vezes, este terreiro
é também identificado como o terreiro do Pai Toninho ou,
simplesmente, terreiro do Toninho. Localiza-se em um dos bairros
mais antigos de Ribeirão Preto, atualmente bastante habitado por
uma população mais idosa.
Um importante aspecto retrata o território no qual este terreiro
se faz presente: em uma quadra ao lado localiza-se um terreiro cujo
pai de santo foi formado por Toninho e na quadra acima há um
terreiro do qual Toninho já participara no passado, ocupando,
inclusive, a posição de pai de santo da comunidade. Esses três
terreiros, em conjunto, compõem um território no qual a umbanda
se difunde como um equipamento de cuidado bastante popular,
atendendo não apenas à comunidade local, mas pessoas vindas de
diferentes regiões da cidade, até mesmo de outros municípios
próximos (Scorsolini-Comin & Macedo, 2021).
Ao longo da minha participação nas giras como pesquisador e
observador pude delimitar meu interesse de pesquisa naquele
contexto. A partir das diversas queixas de saúde mental
apresentadas pelos trabalhadores da Casa (médiuns e cambonos) e
também por consulentes (pessoas que frequentavam a Casa em
busca de auxílio nas giras e consultas espirituais), um interesse
genuíno pelo acolhimento psicológico a essas pessoas passou a
orientar o meu olhar dentro daquele espaço.
Esse interesse foi sendo construído não apenas pelo modo como
essas pessoas me perguntavam sobre os atendimentos clínicos (haja
vista que eu me apresentava como pesquisador e também como
psicólogo), mas também sobre a dificuldade de acesso a
equipamentos formais de cuidado. Alguns, inclusive, destacavam
que não se sentiram acolhidos em atendimentos em equipamentos
formais, sempre aventando a possibilidade de que esse não
acolhimento estivesse associado ao fato de serem da umbanda ou
trazerem relatos mediúnicos e ligados ao mundo espiritual.
A atenção para esse aspecto – e a possibilidade de uma escuta
clínica a essas demandas – foi mediada por dois importantes
Etnopsicologia e Saúde 60

interlocutores que sempre refiro ao rememorar essa experiência:


o próprio pai de santo, Toninho, que frequentemente me dizia que
havia pessoas que precisavam ser cuidadas emocionalmente, e
não apensas espiritualmente, além da Profa. Dra. Alice Costa
Macedo, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, que
havia me apresentado para a comunidade no início de 2012 e
também desenvolvia no mesmo cenário o seu trabalho de campo
durante o doutorado em Psicologia. Alice, à época, reconhecia em
mim a capacidade de atender a uma demanda que se apresentava
naquela comunidade.
Uma reflexão que me tomava, à época, era também a
possibilidade de intervir junto a essas pessoas, em uma espécie de
“retorno” para aquelas pessoas que frequentemente participavam de
nossas pesquisas científicas, que contribuíam para que nossos
estudos fossem produzidos. Mas como estávamos contribuindo com
aqueles interlocutores? Quais os benefícios concretos de nossas
pesquisas para aquelas pessoas? De fato, pensar em um atendimento
era uma forma de cuidar de uma comunidade que permitia a nossa
construção como pesquisadores, estabelecendo um diálogo mais
propositivo entre pesquisa e extensão universitária.
A possibilidade de um atendimento psicológico no terreiro era
vista com entusiasmo por Toninho. Ele divulgava os atendimentos
às pessoas da comunidade, inclusive aos médiuns. Ele promovia
essa divulgação a partir de um processo que poderíamos
aproximar da noção de “triagem”, em uma perspectiva mais
conservadora. Mas se tratava de uma triagem a partir de uma
etnoteoria: Toninho conversava com as pessoas que
cotidianamente o procuravam e acabava endereçando a queixa: por
vezes dizia à pessoa que o procurava que seria importante
consultar um médico, outras vezes dizia que poderia se tratar de
uma questão espiritual a ser acolhida na consulta com os médiuns,
outras vezes dizia que se tratava de algo de natureza “emocional”,
“psicológica”, “da cabeça”.
Essas classificações e indicações ocorriam a partir de uma
etnoteoria composta por meio de suas referências, de seu
Etnopsicologia e Saúde 61

pertencimento, de seu papel como pai de santo, de sua experiência


como líder religioso e médium, de sua experiência com a escuta do
outro. Ao compor o que eu passava a denominar como clínica
etnopsicológica, era fundamental abrir a minha escuta a esses
encaminhamentos e a essas avaliações de queixa elaboradas
etnoteoricamente por Toninho. Ora, se a proposta era justamente
compor um espaço para uma abordagem clínica em
Etnopsicologia, a valorização das etnoteorias dessa comunidade
não deveriam estar presentes apenas durante o atendimento, mas
em toda a composição dessa escuta, inclusive com a participação
de interlocutores como Toninho, essenciais para essa experiência.
Para que esse aspecto fique mais claro recorro a um exemplo.
Certa vez, quando Toninho estava em uma feira, encontrou com
um senhor que já havia frequentado o terreiro em diversas
ocasiões, sendo morador da comunidade. No entanto, este senhor
estava afastado do terreiro há algum tempo. Ao reencontrar
Toninho, comentou sobre os problemas que vinha passando, ainda
que de modo breve. Toninho já conhecia algumas dessas queixas,
algumas delas já tratadas do ponto de vista espiritual no terreiro e
mesmo em outras conversas. Toninho dizia que se havia sido feito
um tratamento espiritual e ele não tinha surtido efeito, que poderia
ser um problema de outra natureza. A partir dessa interpretação,
quando conversou com esse senhor comentou que havia um
psicólogo no terreiro que estava atendendo em psicoterapia e que
poderia auxiliá-lo.
Ele enfatizava que não se tratava de um atendimento
espiritual, mas psicológico – fazendo, ele mesmo, uma leitura que,
por vezes, também seguia a lógica da especialidade criticada
dentro do modelo biomédico. No entanto, não se tratava de uma
leitura fragmentada, pelo contrário: ao considerar que uma queixa
poderia ser ouvida por ele, pai de santo, ou por um médium
incorporado durante a gira ou, ainda, por um psicólogo durante
uma sessão de psicoterapia, atestava que todas essas escutas
incidiam sobre um só sujeito, sujeito este acolhido em todas as suas
especificidades no território por ele habitado – o terreiro. Essa
Etnopsicologia e Saúde 62

possibilidade de problematizar a queixa fazia parte de uma


concepção integral de cuidado, assim como assinalado em
investigações conduzidas em outras comunidades de terreiro (Silva
& Scorsolini-Comin, 2020). Outro aspecto é que todas essas formas
de cuidado estavam disponíveis no mesmo lugar, o terreiro,
reafirmando a composição de um equipamento popular de saúde
sustentado na integralidade.
O que quero evidenciar é que a recomendação (ou
encaminhamento?) de um atendimento psicológico àquele senhor
não significava a sua fragmentação, como se um problema “de
cabeça” não pudesse guardar aproximações com seu estado
espiritual. Essa lógica de integração atravessa o modo de cuidar na
umbanda. Embora tenhamos leituras que refletem sobre
aproximações entre esses espaços religiosos com equipamentos
formais de saúde, como se seguissem uma mesma lógica –
biomédica, assistencialista (Gomberg, 2011; Montero, 1985) –, é
fundamental ponderar que nem sempre um atendimento com um
profissional de saúde, por exemplo, abre brechas para
questionamentos acerca da religiosidade/espiritualidade do sujeito.
Frequentemente, nos atendimentos com médicos e
enfermeiros, por exemplo, nem mesmo se pergunta ao sujeito se
ele possui alguma religião/ religiosidade/espiritualidade. Quando
há esse questionamento, frequentemente se localiza dentro de um
padrão de anamnese. Ainda que o sujeito responda
afirmativamente, não se possibilita o aprofundamento neste
aspecto. Assim, possuir uma religião/religiosidade/
espiritualidade, ainda que fale diretamente sobre o acolhimento a
um sujeito integral, nem sempre é um vértice sobre o qual os
atendimentos em saúde se debruçam (Carvalho, Souza, Rossato,
& Scorsolini-Comin, 2021; Cunha & Scorsolini-Comin, 2021).
Assim, abrir-se à possibilidade de inclusão da religião/
religiosidade/espiritualidade do sujeito em seu atendimento de
saúde é um desafio maior. O modo como esses elementos acabam
sendo evocados nos atendimentos, por vezes de maneira cosmética,
acaba promovendo o chamado acolhimento desacolhedor
Etnopsicologia e Saúde 63

(Neubern, 2013). Isso significa que o sujeito tem a ilusão de que a


sua religião/religiosidade/espiritualidade pode ser ouvida e ser
importante em seu tratamento de saúde, mas isso acaba não
ocorrendo na prática.
Além disso, esse não acolhimento pode se dar quando o sujeito
narra o seu pertencimento a alguma religião/religiosidade/
espiritualidade distante do ideal hegemônico cristão presente
fortemente em nosso país. Assim, religiões de matriz africana,
como a umbanda e o candomblé, podem ser simplesmente
excluídas de qualquer forma de cotejamento no campo dos
atendimentos em saúde pelo fato de ainda serem alvo de
intolerância religiosa em nosso país – ainda que se propague
erroneamente uma imagem de um Brasil multirreligioso, sincrético
e tolerante (Batista, Guimarães, & Placeres, 2017).
A clínica etnopsicológica, contrapondo-se a esse movimento,
apresenta não apenas a possibilidade de acolhimento, inclusão e
consideração da religião/religiosidade/espiritualidade do sujeito
na oferta de psicoterapia, como uma valorização dos saberes
tradicionais e das etnoteorias presentes no contexto de referência,
em uma escuta próxima ao que Ribeiro (2016) nos apresenta no
contexto das religiões de matriz africana, ancorando-se nos saberes
tradicionais. Não estamos, com isso, defendendo uma Psicologia
religiosa, pelo contrário: ao possibilitarmos uma escuta que tome
por base as referências do sujeito, aproximando epistemes e
etnoteorias podemos, de fato, valorizar o pertencimento do sujeito,
a sua ancestralidade, as suas referências para compreender o
mundo em que vive e, com isso, pensar sobre o seu cotidiano – o
que inclui os processos de saúde e doença, a cura, o tratamento, a
busca por recursos para restabelecer a saúde e o equilíbrio.
Mas, voltemos ao caso do senhor que havia encontrado com
Toninho na feira. Este senhor, que foi atendido por mim ao longo
de muito tempo, também passou a frequentar mais ativamente o
terreiro. Ele se consultava com os guias espirituais nos dias das
giras e também comigo, às sextas-feiras pela manhã. Esse universo
das consultas era frequentemente narrado nos atendimentos
Etnopsicologia e Saúde 64

psicológicos e eram por mim acolhidos: o que essas entidades


diziam? Quais aflições ele compartilhava com esses guias? Quais
orientações lhe eram passadas nessas consultas? Quais as
ressonâncias dessas diferentes escutas em seu modo de lidar com o
cotidiano e com os desafios impostos a partir da sua queixa
principal? Acessar esse universo era considerar que o cuidado,
naquele contexto, ocorria de modo integrado.
Desde que conheci este terreiro em 2012, passei a frequentá-lo
como pesquisador e também como consulente. Ao me posicionar
como pesquisador que queria conhecer o modo como a umbanda
funcionava, era orientado a desempenhar a função de cambono.
Neste papel de ajudante dos médiuns incorporados eu
acompanhava as consultas espirituais, também treinando a minha
escuta. Assim, como cambono, não apenas ajudava nos rituais
como também tinha uma posição privilegiada para observar, como
pesquisador, o desenvolvimento dos trabalhos e,
fundamentalmente, as consultas mediúnicas.
Mas esse triplo posicionamento – como psicoterapeuta, cambono
e pesquisador – possibilitou-me algumas situações de desconforto e
de estranhamento. Uma delas ocorreu quando eu estava atuando
como cambono e o mesmo senhor que eu atendia em psicoterapia foi
se consultar com o médium que eu estava auxiliando em uma gira.
Essa situação, aparentemente embaraçosa do ponto de vista ético,
acabou sendo endereçada do ponto de vista etnopsicológico.
Em um primeiro momento me senti desconfortável. Tentei,
rapidamente, trocar de lugar com outro cambono, mas todos estavam
ocupados, envolvidos em outros atendimentos. Eu também não
poderia abandonar o meu posto, haja vista que era um protocolo do
terreiro que toda consulta fosse acompanhada por um cambono.
Imaginava que o espaço da consulta mediúnica seria um lugar
que não poderia ser habitado pelo psicoterapeuta e que ali o
paciente/cliente (chamado de consulente) teria que ter a liberdade
de falar sem que outro interlocutor bastante conhecido pudesse
coabitar aquele espaço, naquele momento. Mas, ao mesmo tempo,
o espaço da consulta espiritual estava sempre presente na
Etnopsicologia e Saúde 65

psicoterapia. Era, inclusive, uma situação bastante corriqueira o


relato das conversas com os guias espirituais serem compartilhados
comigo em atendimento psicológico. Isso também acontecia nos
atendimentos a esse senhor.
Procedi do mesmo modo com que auxiliava em todas as
consultas espirituais como cambono: ouvia a queixa e esclarecia
alguma dúvida em relação à linguagem usada pelo guia espiritual.
Em outras palavras, fazia a mediação entre os dois, tentando tornar
o diálogo possível – tanto explicando a queixa para a entidade de um
modo mais compreensível dentro do sistema linguístico-cultural
expresso pela entidade como também explicando as recomendações
da entidade ao consulente, caso houvesse dúvidas. É importante
esclarecer que o papel do cambono nesse sentido é bastante diverso,
pois há entidades que demandam essa mediação e outras que
dificilmente recorrem ao cambono para ajudar nesse diálogo. Eu
também anotava algumas prescrições, como banhos e rituais que
deveriam ser realizados pelo consulente posteriormente.
Mas, neste caso, uma primeira impressão foi a de que a queixa
apresentada pelo senhor (como consulente) era exatamente a
queixa que se repetia na psicoterapia quando se posicionava como
paciente/cliente. Ainda que houvesse frequentemente relatos das
consultas espirituais na psicoterapia, eu me surpreendi com o
modo com que a queixa fora apresentada naquele momento para a
entidade. Na psicoterapia era recorrente a queixa desse senhor,
tanto no sentido de ela não ter se solucionado, como evidenciando
a complexidade dessa resolução ao longo do tempo.
Continuávamos, assim, a trabalhar com a queixa de modo a
compreendê-la melhor, tentando ora depurá-la para mim, ora para
o próprio paciente/cliente.
A mesma queixa, agora apresentada à entidade, fazia-me
pensar em diferentes possibilidades e problematizações. A
primeira delas era a de que as duas formas de atendimento
(espiritual e psicológica) estavam a serviço de uma mesma queixa,
de um mesmo sujeito em sofrimento. Embora soubesse que as
consultas espirituais guardassem proximidade com a psicoterapia,
Etnopsicologia e Saúde 66

haja vista que ambas são espaços de escuta, ainda permanecia em


mim uma expectativa de exclusividade em relação ao saber
psicológico – como se a psicoterapia ocupasse um lugar de maior
importância para o sujeito e no qual ele poderia se expressar de
modo diferente das demais relações estabelecidas. Ali eu percebia
que não havia assuntos exclusivamente tratados em terapia ou
espiritualmente – ambos os espaços eram faces de uma mesma
escuta, para um mesmo sujeito.
A entidade passava a ser um importante interlocutor no caso:
tanto ela como eu tentávamos ajudar aquele senhor. Embora
pudéssemos supor, como anteriormente comentado em relação a
Toninho, que se tratava de atendimentos de diferentes naturezas, era
importante considerar que aquele senhor era um só. A sua queixa
era a mesma, não se desdobrando em elementos ora espirituais, ora
psicológicos. O modo de narrar a queixa era o mesmo. O local de
ambos os atendimentos, inclusive, era o mesmo. Para aquele senhor,
ambos os atendimentos estavam integrados e visavam a ajudá-lo, a
acolhê-lo, a acompanhá-lo naquele momento difícil.
Isso me fazia refletir que a fragmentação não estava
necessariamente no olhar de Toninho que classificava as queixas
como sendo de ordem “psicológica” ou “espiritual”, direcionando a
natureza do acompanhamento terapêutico, mas também na minha
formação biomédica que insistia em atravessar a tentativa de
composição de um acolhimento eminentemente etnopsicológico.
Como psicoterapeuta, era importante escutar a minha fragmentação.
Não se tratava de recusar a minha formação ou de atacá-la, mas
justamente problematizá-la. Eu estava realmente aberto às etnoteorias
ou estava apenas reafirmando, com os meus atendimentos, uma
posição pretensamente superior do saber psicológico?
Ali, no terreiro, o campo me dizia como escutar: aquele senhor
tinha de ser ouvido nesses dois momentos, por esses dois
interlocutores. Aquele senhor, sim, estava integrado, de modo que
não poderia cindir a mesma queixa em duas narrativas distintas em
função dos diferentes interlocutores. Ele não era um ao ficar diante
da entidade e outro ao se apresentar a mim. Não havia uma
Etnopsicologia e Saúde 67

classificação de problemas a serem conversados com o guia


espiritual e problemas a serem tratados com o psicoterapeuta.
Naquela consulta, diante desses dois interlocutores, era um só,
simbolizado na mesma narrativa de queixa, na mesma verbalização
do problema, na mesma inquietação. Então o desafio se
apresentava não para ele que narrava, mas para quem o escutava.
Este episódio foi bastante significativo em meu processo de
construção como psicoterapeuta dentro da Etnopsicologia e pela
própria solidificação daquele espaço de escuta. Isso destaca a
necessidade de que possamos também revisitar os dilemas éticos,
por vezes, impostos em nosso fazer psicológico. Por justamente
respeitar a ética daquele contexto era que eu não poderia me
ausentar da possibilidade de acompanhar aquela consulta. Por ser
ético é que aquela situação poderia ser considerada posteriormente
no espaço terapêutico, sendo questionada, atacada, alvo de
reflexão. Mas aquele senhor não tratou do episódio em terapia
posteriormente. Talvez, novamente, porque o desconforto fosse
fundamentalmente meu. Ele estava integrado, em busca de um
cuidado integral.
E foi ao longo desses atendimentos que a clínica
etnopsicológica passava a ser corporificada como espaço de
acolhimento, de pertencimento, de inclusão. Ao chegar ao terreiro
para os atendimentos, às vezes, alguns pacientes/clientes
esperavam do lado de fora do terreiro, em um longo banco de
madeira que Toninho havia construído para acomodar as pessoas
que frequentavam as giras no período noturno. No período da
manhã, no entanto, ali ficavam as pessoas que seriam atendidas na
clínica etnopsicológica. Toninho ficava do lado de fora, recebia as
pessoas, dizia para elas se sentarem e aguardarem. Desse modo, a
experiência compartilhada neste capítulo é indissociável do papel
ocupado por Toninho nessa escuta.
E foi ouvindo esses dois importantes interlocutores – Toninho
e Alice -, que passei a considerar a possibilidade de construção de
um espaço de escuta psicológica na comunidade. Esse espaço foi
rapidamente providenciado por Toninho: em uma sala de sua casa,
Etnopsicologia e Saúde 68

onde também funcionava o terreiro, havia reservado uma poltrona


e um sofá para os atendimentos. Tratava-se de um espaço que
poderia ser utilizado sempre que necessário, mantendo as
condições de conforto e confidencialidade para os atendimentos.
A esse respeito é importante relatar que o terreiro (em que se
davam os rituais) ocupava um espaço dentro da casa de Toninho. A
garagem da casa era onde os consulentes aguardavam os
atendimentos nos dias de gira (segundas e sextas-feiras à noite).
Havia, desse modo, uma indissociação entre a Casa (terreiro) e a casa
(de Toninho). Do mesmo modo, Toninho recebia várias pessoas em
busca de orientação durante a semana, em dias e horários em que não
havia atendimento mediúnico. Nessas ocasiões, Toninho recebia as
pessoas, conversava com elas e as orientava.
Mas, retornemos à experiência da construção da clínica
etnopsicológica (lembre-se, leitor/a, do ir-e-vir previamente
anunciado). Primeiramente, comecei a atender pessoas da
comunidade no mesmo horário em que ocorriam as giras de
atendimento espiritual, nas sextas-feiras à noite. Esses atendimentos
se davam em uma espécie de plantão psicológico, ou seja, sem
necessidade de agendamento ou encaminhamento prévios. Ao
longo da realização das giras, tinha a possibilidade de atender, em
média, dois pacientes/clientes. No início, atendia pessoas da
comunidade que frequentavam o terreiro, além de familiares dos
médiuns que trabalhavam na Casa. A experiência de composição de
um plantão psicológico no terreiro foi apresentada em detalhes em
algumas publicações (Scorsolini-Comin, 2014a, 2014b, 2015a).
O plantão psicológico neste contexto pode ser considerado uma
inovação no campo da saúde mental, haja vista a composição de um
equipamento de cuidado formal dentro de um espaço de cuidado
popular e religioso. O enquadre do plantão possibilitava, neste
contexto, atender a pessoas com demandas urgentes, sem
necessidade de agendamento prévio, com a possibilidade de um ou
dois retornos, a fim de encaminhar a queixa. Muitos atendimentos
ocorriam em apenas uma sessão. Outros eram encaminhados à
psicoterapia no mesmo local – o que passou a ser possível em um
Etnopsicologia e Saúde 69

momento posterior de instalação desse serviço -, ou mesmo por


indicação de serviços de atendimento gratuitos na cidade,
normalmente em clínicas sociais ou em serviços-escola de Psicologia.
Há que se retomar que todos os atendimentos realizados nessa
experiência se deram com pessoas na idade adulta ou com idosos.
Demandas por atendimento a crianças ou adolescentes
frequentemente eram encaminhadas a equipamentos sociais ou com
oferta de psicoterapia gratuita, como nos serviços-escola.
Muitos dos casos atendidos nessa época de oferta do plantão
psicológico passavam por uma dupla escuta: normalmente eram
pessoas que se consultavam com os guias espirituais e,
posteriormente, comigo. Obviamente que essa característica colocava
essas duas escutas em diálogo, de modo que ambas compunham um
modo de pensar um cuidado àquelas pessoas: era,
fundamentalmente, a possibilidade de que essas pessoas fossem
ouvidas em suas aflições e queixas, muitas delas naturalizadas em seu
cotidiano ou até mesmo escamoteadas a partir de discursos que, por
vezes, nomeavam essas pessoas como “loucas”, “perturbadas”, sem
quaisquer possibilidades de acolhimento. No terreiro podiam ser
ouvidas a partir de dois prismas integrados: por um médium/guia
espiritual e também por um psicólogo. Os atendimentos psicológicos
se colocavam não em contraposição aos espirituais, mas buscando
sempre a complementaridade. A escuta das etnoteorias, retomando,
era um dos pilares do atendimento etnopsicológico.
Com o passar do tempo, passei a disponibilizar mais um
período para atendimentos psicológicos, mas agora com
agendamento prévio. Às sextas-feiras pela manhã me dispunha a
atender a pessoas da comunidade, bem como médiuns que não
podiam ser atendidos no momento do plantão por estarem
desenvolvendo atividades mediúnicas nas giras. Essa experiência
se deu entre os anos e 2013 e 2018.
Ao longo desses anos, pude entrar em contato com diferentes
pessoas em busca de ajuda, muitas delas atendidas por um longo
período de tempo no terreiro, na possibilidade de composição de
uma escuta perene e não apenas com foco em um dado problema,
Etnopsicologia e Saúde 70

como ocorria mais frequentemente no espaço do plantão. Também


há que se considerar que muitos casos atendidos inicialmente em
plantão passaram a ser transferidos para a psicoterapia agendada,
a fim de aprofundar em demandas que nem sempre se
solucionavam em um ou dois encontros no plantão.
Como o meu objetivo neste capítulo não foi propor balizas
para a construção de uma clínica etnopsicológica, mas, sim, narrar
uma possibilidade de escuta etnopsicológica, não me detive à
descrição mais detalhada do modo como esses atendimentos foram
enquadrados nessa abordagem. A esse respeito, brevemente
gostaria de destacar que a interface que construí não se deu
propriamente com a psicanálise, como encontramos de modo mais
frequente – haja vista, por exemplo, a nomenclatura
Etnopsicanálise (Devereux, 1972), bastante referida, mas com a
abordagem centrada na pessoa (Rogers, 1977).
Há que se destacar que a Etnopsicologia é uma etnociência na
qual podem conviver diferentes referenciais e abordagens teóricas
(Lutz, 1985). Desse modo, existem leituras e aproximações da
Etnopsicologia com diversas outras abordagens, como a junguiana,
a fenomenológica e também a cognitiva, apenas para citar alguns
exemplos. Nessa experiência, a aproximação ocorreu com a
abordagem centrada na pessoa.
A aproximação/inspiração construída com a abordagem
centrada na pessoa deu-se, fundamentalmente, por meio das
atitudes/condições facilitadoras propostas por Rogers (1977):
autenticidade/congruência, consideração positiva incondicional
pelo outro e empatia. Para Rogers, essas condições seriam
suficientes para o estabelecimento de uma relação terapêutica e
para uma escuta capaz de promover mudanças.
Essa influência foi destacada em um dos primeiros relatos dos
atendimentos ocorridos neste terreiro, em publicação de 2014 – em
que me referi ao plantão psicológico centrado na pessoa para tratar
da experiência ocorrida neste terreiro (Scorsolini-Comin, 2014a),
ainda em um diálogo tímido com a Etnopsicologia. Pensar sobre as
condições facilitadoras, em meu processo de construção como
Etnopsicologia e Saúde 71

psicoterapeuta neste contexto, ajudou-me a estar com esses


pacientes/clientes, sobretudo no início. Buscando ser autêntico em
relação ao meu pertencimento identitário (como psicoterapeuta,
pesquisador, professor universitário e frequentador do terreiro em
que os atendimentos ocorriam), considerando positivamente todos
aqueles com quem estive em atendimento (acreditando em suas
potencialidades para a mudança), bem como assumindo a empatia
(colocando-me em seus lugares e aproximando-se de suas
vivências), pude estar, de fato, nesse processo.
A empatia, aqui em uma perspectiva rogeriana, pressupõe não
apenas a capacidade de se colocar no lugar do outro, mas de saber
pensar sobre o meu pertencimento, sobre meus privilégios, sobre
as posições que ocupo, sobre o meu lugar no terreiro e, portanto,
na clínica etnopsicológica. Para aprofundamento na descrição dos
atendimentos e na avaliação do desenvolvimento desses
pacientes/clientes com o passar do tempo em psicoterapia,
inclusive a sua conexão com a Etnopsicologia, recomendo o acesso
a outros estudos já publicados (Scorsolini-Comin, 2017, 2020).
Fato é que pensar nessas atitudes me possibilitou estar com
esses interlocutores, em uma perspectiva de cuidado em saúde
mental humanista e humanizada. Em meu processo de tornar-
me psicoterapeuta, essas atitudes dialogaram diretamente com o
que a Etnopsicologia ia me ensinando ao longo do tempo – de
compor a clínica, de realizar o trabalho de campo, de participar
das giras, de vivenciar esse contexto. Por ser autêntico com todos
os atravessamentos dessa escuta, pude assumir as indefinições,
incorporar o não-saber, aprendendo a observar, a pisar com
calma – como nos diz o ponto cantado: pisa na umbanda, pisa
devagar. A escuta desse território e a possibilidade de
sensorialmente experienciá-lo me dotaram de maior segurança
para pensar essa clínica.
Ao final deste capítulo, quero enfatizar o modo como essa
experiência tem sido fundamental em meu fazer profissional. Ao
entrar no terreiro de umbanda com uma curiosidade de
pesquisador que se misturava à minha curiosidade pessoal por
Etnopsicologia e Saúde 72

aquele universo religioso, pude aprender para além de qualquer


construção como pesquisador. Pude, nesse contexto, me constituir
como psicoterapeuta. Pude reconhecer na Etnopsicologia não
apenas um campo de pertencimento, mas uma possibilidade de
efetivamente estar com o outro – escutando-o e também me
escutando nesses encontros. Pude aprender a valorizar a escuta do
campo como fundamental. Isso pode contribuir para, efetivamente,
romper com epistemes que nos aprisionam e que nos fazem apenas
reeditar o já-visto, o já-sabido, o instituído que não pode gerar
novos caminhos.
Quando penso em meu posicionamento como professor e
pesquisador no campo da saúde mental, considero que a presente
experiência tem sido muito especial na possibilidade de diálogo
com minhas alunas e alunos – futuras enfermeiras e futuros
enfermeiros, em sua maioria. A partir dela podemos falar sobre
integralidade do cuidado, falamos em humanização em saúde,
abordamos a questão da intolerância religiosa, do racismo, das
práticas hegemônicas e colonizadoras, buscamos rupturas, brechas,
possibilidades de uma circulação diferente daquela na qual somos
predominantemente formados.
É óbvio que não se trata de uma ruptura total e definitiva. É
óbvio que não se trata de uma transformação que faz cair por terra
tudo o que sabíamos e no que acreditávamos anteriormente. Trata-
se, sim, de um movimento. Um ir-e-vir, como anunciei no início da
recuperação desta experiência neste capítulo. A possibilidade de
fluir, de romper, de retornar, de fazer hiatos reflexivos, de
suspender certezas e de abrir-se a uma escuta por todos os poros é
sim uma recomendação ao final deste capítulo. Mas como toda
recomendação, ela não se compromete com qualquer tipo de
adesão ou com protocolos rigidamente construídos. Assim, finalizo
com a expectativa de que, de algum modo, essa clínica
etnopsicológica possa promover ressonâncias em outras clínicas
etnopsicológicas existentes e ainda por se fazerem.
Em 2018, impossibilitado de dar continuidade aos
atendimentos no terreiro por conta de novos compromissos
Etnopsicologia e Saúde 73

profissionais assumidos e por questões institucionais, passei a


atender os mesmos pacientes/clientes em uma clínica da Escola de
Enfermagem de Ribeirão Preto da USP, onde atuo como docente.
Em 2020, os atendimentos foram encerrados em função da
pandemia da COVID-19. Optei, à época, por não realizar
atendimentos on-line, haja vista que estava atendendo apenas uma
paciente/cliente, com a qual passei a manter contato a distância
apenas para acompanhamento.
Os atendimentos realizados ao longo de todo esse período
foram narrados e discutidos em estudos científicos (Scorsolini-
Comin, 2015b, 2017, 2018), dando origem também à Tese de Livre
Docência (Scorsolini-Comin, 2020), na qual pude mergulhar de
modo mais intensos em três casos que atendi ao longo de quase
todo esse percurso. Essas leituras podem ser importantes para
aprofundamento, estudo e mesmo para continuar a despertar
inquietações – e debates.

Considerações finais

Na apresentação deste capítulo anunciei uma pergunta que


pretendia ser respondida a partir dessa escrita: quais aromas
povoam nossa escuta na clínica etnopsicológica? A partir do relato
apresentado neste capítulo, observamos a composição de um
cuidado em saúde mental a partir da escuta das etnoteorias
produzidas em um dado contexto, no caso, em uma comunidade
de um terreiro de umbanda. Gostaria, ao final desse percurso, de
fazer dois importantes apontamentos.
O primeiro deles refere-se ao fato de que a clínica
etnopsicológica não se apresenta como um modelo, protocolo ou
qualquer delineamento que possa ser descrito em um manual, a
exemplo de outras abordagens. Qualquer tentativa de uma maior
sistematização pode justamente comprometer um dos principais
aspectos desse olhar e dessa escuta, que é a possibilidade de
afetação no e pelo campo.
Etnopsicologia e Saúde 74

Como discutimos aqui, a intervenção etnopsicológica emergiu


a partir do campo, em campo, buscando respostas também neste
mesmo espaço e em seus interlocutores. Trata-se, portanto, de uma
forma de corporificar as etnoteorias, ultrapassando as
recomendações presentes em intervenções que se denominam
“culturais” ou “multiculturais”. A cultura não é um elemento
externo que dever ser dominado pelo psicoterapeuta, mas algo com
o qual esse profissional tem que estar aberto a conhecer, a
mergulhar, a corporificar. Estar, de fato, em campo.
O último apontamento visa a justificar a costura a partir do
aroma – argumento este defendido em minha Tese de Livre
Docência e aqui novamente recuperado. O terreiro de umbanda é
um espaço de fruição olfativa. Ao nos aproximarmos de um
terreiro podemos sentir o seu cheiro, às vezes de ervas aromáticas,
às vezes da defumação, às vezes de pólvora ou de outro elemento
ritual. Podemos sentir o cheiro do terreiro antes mesmo de
chegarmos até ele.
Isso nos coloca diante da necessidade de exercitarmos a nossa
sensorialidade para além dos elementos com os quais estamos mais
acostumados, com a visão e com a audição, sobretudo. A escuta
pode e deve se constituir para além daquilo que podemos
sensorialmente ouvir a partir do relato do outro, para além daquilo
que podemos ver e observar do/no outro.
Este perfume, invisível, invadiu a experiência em tela sem que
eu pudesse controlar essa fruição: certa vez, ao conversar com um
paciente/cliente sobre os distanciamentos e as aproximações entre
a escuta na consulta espiritual e aquela ocorrida no “consultório”,
fui invadido pelo cheiro característico do terreiro. Era impossível
me recusar à experiência de efetivamente estar no terreiro,
escutando, sentindo aquele aroma. O perfume era um elemento do
qual não se podia desviar.
A aprendizagem a partir desse elemento me permitiu construir
em meu corpo uma abertura para a escuta em saúde mental que eu
não havia ainda construído mesmo com tantos anos de estudo e de
interesse pelo tema. Esse aprendizado se deu em campo, invadido – e
Etnopsicologia e Saúde 75

constituído – pelo cheiro da defumação que tantas vezes presenciei na


abertura das giras: fumo, palha de alho, sal grosso e carvão. Acabo
por, sensorialmente, responder à pergunta inicial proposta neste
capítulo. Partilho essa aprendizagem também interessado no perfume
que me invade nesse momento de escrita e naquele que, porventura,
habite a sua leitura.

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Etnopsicologia e Saúde 78
Etnopsicologia e Saúde 79

CAPÍTULO 4

UMBANDA “PÉ NO CHÃO”, ESCUTA AO “PÉ DA LETRA”:


RAÍZES DA INTERPRETAÇÃO “DE TERREIRO”

Alice Costa Macedo


José Francisco Miguel Henriques Bairrão

Apresentação

Nos terreiros de umbanda, enquanto campo de pesquisa, é


importante “escutar” todos os enunciados, sejam eles “proferidos”
por meio de vozes, de gestos, de movimentos, de cores, de sons ou
de sabores. Neste capítulo, busca-se compreender como as
disposições materiais na umbanda já são, em si, dizeres, ou seja,
objetiva-se identificar recursos e elucidar o modus operandi dos seus
processos interpretativos.
Para tanto, procedeu-se ao método etnográfico aliado à escuta
psicanalítica, em uma perspectiva etnopsicológica, a partir de um
estudo de caso no terreiro de Oxalá, no interior de São Paulo. Estar
em campo é permitir-se estar imerso, “ser afetado”, envolvido,
tocado, interpretado a partir da lógica própria da umbanda. Os
detalhes percebidos/escutados em campo estarão enraizados em
coisas-significantes, ao pé da letra, e trazem em si sua própria
interpretação. Por outro lado, sugere-se que não é apenas o Outro
que fala através das coisas-significantes e a partir da idiomática
umbandista. As coisas é que se ligam umas às outras formando
frases, produzindo sentido. Ao mesmo tempo, o sujeito praticante,
sua vida, sua subjetividade, seus desejos e memórias também
estarão lá, incluídos nas “orações” da umbanda e significados nesse
amparo semântico que vem do Outro umbandista.
Etnopsicologia e Saúde 80

Introdução

A umbanda é um culto de possessão de matriz africana, uma


prática religiosa cujos participantes, em transe, incorporam
espíritos (guias ou entidades) que “baixam” nos terreiros em
cerimônias geralmente públicas (as giras), a fim de “trabalhar” a
serviço de seus fiéis e consulentes, ao ajudá-los a resolver “seus
males” nas chamadas consultas (Brumana & Martinez, 1991). Tais
espíritos pertencem às linhas da umbanda, que são “evocadas” nos
rituais em dias específicos dedicados a cada uma delas. As
principais linhas da umbanda (pelo menos as mais tradicionais e
assíduas) são: a linha dos exus e pombagiras, baianos, caboclos,
crianças e pretos-velhos.
Além disso, esses guias protagonizam inúmeros outros rituais
característicos, tais como desenvolvimento mediúnico, festas para
orixás, defumação, trabalhos de descarrego, amaci (banhos de
cabeça), coroação dos médiuns iniciantes (rito iniciático), entre
outros. A umbanda é apresentada, por muitos estudiosos, como
uma “religião genuinamente brasileira” (Negrão, 1996, p. 147): eis
aí um “título” muito caro aos seus adeptos que se comprazem nessa
ideia, pois lhes proporciona um senso de “legitimidade e
originalidade”, na medida em que seu universo sagrado é assim
considerado “fruto da fusão dos cultos das três raças que
constituiriam a nacionalidade” (p. 147), a matriz africana, a
indígena e a europeia.
Desse modo, como marcas das matrizes africana e indígena, a
umbanda integra o culto aos orixás, o uso de ervas, medicina
tradicional, fumo, defumação, elementos da natureza como
inerentes ao culto, assim como o transe de possessão dos caboclos
e de toda a linha de espíritos característicos de personagens
históricos e tradicionalmente brasileiros. A marca europeia
apresenta-se também nessa tríade ancestral a partir do catolicismo
popular e do kardecismo, especificamente o da vertente “à
brasileira” de Chico Xavier, líder religioso espírita reconhecido no
país e natural de Minas Gerais (Stoll, 2004).
Etnopsicologia e Saúde 81

Para além desse perfil genuinamente brasileiro, e até antes


disso, a umbanda é uma arte terapêutica de proveniência banta e
comprometida com a saúde em sentido lato dos seus praticantes.
Seus ritos públicos podem variar bastante de Casa para Casa, mas
uma invariante é a realização das “consultas” no decorrer das quais
o sistema (idiomático) umbandista interpreta os humanos que o
interpelam. Nesse sentido, a partir de um estudo de caso, o
presente capítulo busca identificar recursos e elucidar o modus
operandi dos seus processos interpretativos.
Quando você adentra um terreiro é tomado por um turbilhão
de informações visuais, sons, cheiros, sabores, sinestesias diversas.
Em todo o contexto umbandista, os “dizeres não verbais”
antecedem a fala, como ladrilhos aparentemente soltos de uma
complexa bricolagem que, pouco a pouco, a partir do refinamento
da escuta participante (Bairrão, 2005), vão compondo um mosaico
de imediato não cognoscível, mas que encaixa significantes em uma
cadeia deslizante e ancora sentidos em si.
Todos os detalhes devem ser cautelosamente “escutados”,
sejam enunciados por vozes, gestos, movimentos ou quaisquer
outros estímulos que nos invadem em todos os nossos órgãos do
sentido. A localização do terreiro, por exemplo, nos diz muito; o
seu nome de batismo; aquele que o chefia (pai ou mãe de santo) e
aquele que o guia (o espírito chefe da Casa); o modo como foi
edificado, as pinturas de suas paredes, a consistência da pisada no
chão e o olhar endereçado ao céu-telhado, a organização de seu
espaço, a ornamentação do congá, a disposição de seus
participantes, as vestimentas, os pontos cantados (músicas rituais),
dentre outros preciosos detalhes.
Aqui o rito etnográfico inclui presença, concentração, leveza,
percepção, fluidez, memória, pele, olhos atentos, ouvidos
refinados, tato, olfato, ritmo nos pés, cadência do corpo, cautela na
voz, pensamentos concatenados e, ao mesmo tempo, razão
suspensa, atenção flutuante.
Nesse cenário, busca-se compreender o método etnográfico
em entrelace com o acento psicanalítico na escuta participante: a
Etnopsicologia e Saúde 82

imersão do pesquisador, o modo como o campo vai se enunciando


e o refinamento do instrumento da escuta. Objetiva-se, portanto,
apresentar como as disposições materiais nos terreiros já são, em si,
dizeres, assim como as sinestesias, as sensações físicas, cheiros,
sabores, sons, imagens e a organização da Casa.

A escuta do terreiro

Este capítulo foi construído a partir de um estudo qualitativo,


de perfil exploratório e corte transversal (Flick, 2006), por meio da
etnografia (Laplantine, 2004), em entrelace com o método de
investigação psicanalítica alargado a espaços coletivos e/ou rituais,
abreviadamente denominado de escuta participante (Bairrão,
2005). Trata-se de um recorte da tese de doutorado apresentada
pela primeira autora, sob orientação do segundo autor, intitulada
“Encruzilhadas da interpretação: cuidado e significação na
umbanda” (Macedo, 2015), que recebeu financiamento da FAPESP
(Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
Foi desenvolvido a partir de um estudo de caso de um terreiro
de umbanda da cidade de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo.
O sacerdote da Casa, Sr. Toninho, tem quase cinquenta anos na
umbanda, chefia um terreiro que ele mesmo defende como “de raiz”,
com fortes marcas da matriz africana (presença do atabaque, culto
aos orixás, congá que mistura santos católicos e entidades
umbandistas, pontos cantados e riscados etc.). Além disso, ele ainda
define que “sua” umbanda é “feijão com arroz”, de “pé no chão”.
Segundo Bogdan e Biklen (1991), o estudo de caso pode ser
entendido como um funil, cuja parte mais larga é o ponto de partida:
à medida que o pesquisador encontra aquilo que corresponde ao seu
interesse de pesquisa, ele delimita sua “área de trabalho”, definindo
como foco um indivíduo, um grupo, um contexto, uma única fonte
de documentos ou um acontecimento específico. A escolha de um
determinado foco “é sempre um ato artificial, uma vez que implica
a fragmentação do todo onde ele está integrado” (Bogdan & Biklen,
1991, p. 91). Por outro lado, ainda que tal delimitação possa sempre
Etnopsicologia e Saúde 83

correr o risco de distorções, o que se propõe em um estudo de caso


não é, em hipótese alguma, reduzir um contexto amplo em suas
partes constituintes (Flick, 2009).
Esse debate foi problematizado por Belzen (2010), ao propor o
estudo da religião em uma perspectiva qualitativa com a utilização,
entre outras metodologias, do estudo de caso, que se propõe a
investigar questões que gravitam em torno do “como” e “o que”, não
para indagações de “porquês” ou de relações causais. Esse tipo de
estudo focaliza sua atenção nos sentidos e na busca pela
compreensão e não em explicações, predições de padrões estáveis e
de longo alcance, ou controle de variáveis. Em vez de se centrar em
representatividades estatísticas, os estudos de caso estão
preocupados com o que é típico, “o que implica que a exemplificação
está sendo feita de acordo com considerações teórico-sistemáticas, e
não ao acaso” (Belzen, 2010, p. 155). A psicanálise, ao longo de sua
história, selecionou modelos de estudo que se mostraram
paradigmáticos para tecer análises de seus casos clínicos.
Quando Freud (1893-1895/1996), por exemplo, busca entender
a estrutura da histeria a partir de casos clínicos (Dora, por exemplo)
e, com base nisso, arquitetar sua teoria psicanalítica, não estaria
correto dizer que sua busca era entender Dora, enquanto indivíduo;
tampouco seria prudente afirmar que ele tinha intenção de, a partir
do estudo de caso de Dora (e outros), prever comportamentos e
sintomas de outras pacientes com o diagnóstico de histeria; muito
menos teria ele a pretensão de, com isso, deduzir que todas as
histéricas “funcionariam” de uma maneira X ou Y (ou
“funcionariam” da mesma forma que Dora, por exemplo).
Diferentemente, a partir de casos clínicos, poderia ele mapear
meandros de uma estrutura histérica, que, por sua vez, permitiria
embasar seu estudo sobre a estrutura das neuroses e, em última
instância, daria sustentação à pedra angular de sua tese psicanalítica,
a arquitetura do inconsciente. Era dessa forma que Freud, tendo
conhecimento de uma vasta quantidade de tratamentos e com base
em sua experiência clínica, selecionou alguns casos que se revelaram
úteis como modelos paradigmáticos para sua tese.
Etnopsicologia e Saúde 84

Ao seguir um raciocínio semelhante, pode-se afirmar que há


detalhes no terreiro de Oxalá que são singulares dele e do modo
como o Sr. Toninho conduz os trabalhos espirituais. Mas, por outro
lado, há algo que sinaliza a umbanda de modo geral, porque os
sentidos deslizam sobre uma cadeia infinita de “significantes
itinerantes”, estabelecendo relações entre as tantas Casas de
umbanda no Brasil.
Foi realizada uma etnografia sobre o terreiro de Oxalá com
base na observação participante e em registros em diário de campo.
Segundo Angrosino (2009), a observação participante não se
constitui como método de pesquisa propriamente dito, pois se trata
de uma técnica herdada do método etnográfico, remete a um
“contexto comportamental específico” e permite ao pesquisador
estar no meio da comunidade estudada para coletar dados, sendo
ele reconhecido e interpretado não somente como “cientista”, mas
como novo integrante do cenário nativo (seja como participante,
membro, amigo etc.). Desse modo, a observação participante e
outras técnicas etnográficas introduziram um considerável grau de
subjetividade no método de análise dos dados e, portanto, o
pesquisador deve desapegar-se da prerrogativa de ter controle
sobre todos os elementos da pesquisa (Angrosino, 2009).
Deve-se, todavia, destacar que, no caso específico, deste
presente estudo, estamos falando de técnicas etnográficas sendo
incorporadas não por antropólogos, mas por psicólogos que
trabalham com uma abordagem psicanalítica. É desse modo que
tais técnicas assumem nova roupagem: Bairrão (2005) propõe a
noção de escuta participante, entendida como a extensão do
método psicanalítico a pesquisas de campo, mediante a utilização
de técnicas etnográficas.
A partir da escuta participante (Bairrão, 2005), utilizamos as
técnicas etnográficas da observação participante e das anotações
em diário de campo, mas situando sempre o lugar do pesquisador
na transferência. No caso específico de pesquisas em terreiros de
umbanda, por exemplo, isso nos permite compreender que o
pesquisador é comumente incluído em campo (e pela comunidade)
Etnopsicologia e Saúde 85

como consulente, membro ou filho da Casa e assim devemos nos


perceber e nos permitir “ser” (no lugar em que o outro vem ao
nosso encontro e nos interpreta), não para “seduzir” os
interlocutores ou para, como um requinte de esperteza, acessar um
volume maior de dados, mas porque:

O fenômeno só pode mostrar-se da maneira como acontece, revela-


se dialogicamente, executando os atos que são a sua natureza. O
observador é sempre um tu a ser cuidado no seu ser (e nunca apenas
um profissional no desempenho de um papel). Furtar-se a este tipo
de tratamento impediria o aprofundamento da análise, não por uma
recusa do encantado em fornecer informações, mas pela expectativa
do pesquisador, descabida, de que aquele subsistisse fora do estilo
de se revelar que lhe é inerente. A participação como consulente é
consubstancial ao fenômeno. […] Dada a interpelação e a estrutura
dialógica do fenômeno, a participação revela-se um instrumento de
refinamento da audição (Bairrão, 2005, p. 245-246).

Ainda, devemos sublinhar que o uso da psicanálise em pesquisas


de campo está longe de se reduzir a uma chave hermenêutica (Bairrão,
2015), ou seja, a escuta participante no terreiro de umbanda não se
limita a atribuir significados ou construir interpretações sobre os
fenômenos sociais que se observa, escuta, sente, vivencia. Mas, por
outro lado, ela permite acionar uma escuta fina do que se constitui
enquanto combinatória significante e daquilo que escapa à narrativa
consciente (seja na forma do que está inscrito no corpo, seja na forma de
discursos, chistes, atos falhos, sonhos, danças, gestos, cores, sons).
Deve-se destacar, com base nisso, que a escuta não se reduz aos
ouvidos, mas inscreve o corpo em campo.
Nesse sentido, esta pesquisa propõe lançar luz sobre a forma
como a umbanda se enuncia. A escuta desse modo próprio de
enunciação do Outro é onde reside o refinamento do método que
aqui se pretende discutir.
A grande ênfase da perspectiva etnopsicológica repousa sobre
o estudo das chamadas “cosmovisões nativas”. Trata-se de
modelos explicativos construídos pelas comunidades pesquisadas
Etnopsicologia e Saúde 86

(uma espécie de “psicologia nativa” ou etnopsicologia). Por outro


lado, como propõe Lutz (1985), a intenção do etnopsicólogo não
deve estar focada somente na investigação dessas “etnoteorias”
(em seu modo próprio de se enunciar), mas também (e
comparativamente) no modo como as teorias do próprio
pesquisador podem lançar luz sobre as etnopsicologias “nativas”,
na tentativa de averiguar em que medida ambas se compreendem
e se iluminam reciprocamente.
Lutz (1985) destaca, portanto, a relevância de se estar atento às
comparações entre as “psicologias acadêmicas” e as “cosmologias
nativas” nos inúmeros contextos em que vários sistemas de
significados interagem. Ela mesma se pergunta: comparar para quê
e por quê? Fazemos comparações para evitar achatamentos ou
reduções do fenômeno estudado: para Lutz (1985), o etnopsicólogo
só consegue se eximir de uma postura reducionista quando ele
passa a situar, em sua pesquisa, as características das “etnoteorias”
de ambos, observado e observador, diferentemente de pretender
descrever, por exemplo, comunidades e indivíduos “não
ocidentais” dentro de uma estrutura de comparação cujas normas
comportamentais e psicológicas são ocidentais.
Devereux (1977) e Nathan (1994) são expoentes importantes da
etnopsiquiatria francesa e envolveram-se em debates de extrema
relevância para esta questão sobre perspectivas comparativas das
culturas. A proposta não é ouvir os dizeres do outro e atribuir-lhes
interpretações extrínsecas ao sistema, mas atentar-se ao que o outro
enuncia verbalmente ou não verbalmente e buscar compreender
que a própria enunciação, em si, já carrega sua interpretação. Straus
(1977), igualmente, defendeu a importância fundamental de
pesquisas em etnopsicologia para a interpretação das culturas e
para o entendimento do comportamento social humano.
A partir dessa proposta, destaca-se que buscar uma
interpretação dessas culturas a partir de referenciais extrínsecos às
mesmas é romper com a proposta etnopsicológica. Por outro lado,
não se pode negligenciar o fato de que não há possibilidade,
conforme apontou Lutz (1985), de um sistema etnopsicológico ser
Etnopsicologia e Saúde 87

explicado apenas em seus próprios termos. Dessa forma, não é


viável investigar uma “etnoteoria” sem que se remeta a outro
sistema teórico; caso contrário, é como se o pesquisador fosse a
campo como uma “tábula rasa”, ou seja, sem o seu próprio sistema
interpretativo (Lutz, 1985, p. 68). Na pesquisa em etnopsicologia, o
pesquisador conta com seus saberes para apreender e tomar como
“objeto” o saber do “outro”, porém, sem interpretações extrínsecas
ao sistema em questão.
Nessa direção, a partir do diálogo entre antropologia e
psicanálise, é possível propor um modelo de escuta que permita ao
pesquisador compreender como o outro constrói suas próprias
concepções, ou seja, qual é a sua arquitetura do conhecimento,
como ele enuncia seus próprios dizeres e como tais enunciações já
contêm, em si, suas próprias interpretações.

O terreiro de Oxalá

A Tenda de Umbanda de Oxalá é um terreiro que funciona em


uma garagem estreita na casa onde hoje mora o pai de santo. É um
templo pequeno comparativamente aos outros terreiros de
Ribeirão Preto já frequentados em ocasião de outras pesquisas do
Laboratório de Etnopsicologia da USP (Dias & Bairrão, 2014; Rotta
& Bairrão, 2020; Scorsolini-Comin & Macedo, 2021). Logo na
entrada, um portão de metal, sempre aberto durante os rituais, dá
acesso a um salão curto que acomoda até 80 pessoas em dias de
gira, onde fica a assistência. Enfileirados, há vários bancos de
madeira em cor azul, onde as pessoas sentam e se espremem para
aguardar o início dos atendimentos.
As paredes do terreiro são azuis e o chão é verde. Ao observar
as fotografias do lugar, muitas pessoas perguntam: “o ritual é em
lugar aberto? Aqui atrás parece que dá para ver o céu límpido, a
grama verde embaixo”. As cores no cimento parecem simular a
presença da natureza: supõe que o ritual acontece “no tempo” sob o
azul do céu, sem telhado, sem concreto, livre, em ar puro, com os pés
ancorados sobre a terra, o mato, a mata... com as raízes humanas
Etnopsicologia e Saúde 88

aterradas no solo. Tal detalhe enuncia algo sobre o terreiro e,


sobretudo, algo sobre a própria umbanda. Pai Benedito (preto-velho
recebido por Toninho, o pai de santo) diz aos filhos sobre a
importância de manter o contato com a natureza (com a terra):

Tira essas ferradura da pata [tira os sapatos dos pés]... bota as pata
[os pés] onde tem terra… abre os trapo [as roupas] e fica pelado…
deixa esvaziar… a natureza tem muito segredo ainda…. Esse não
presta [mostra o chão de cimento do terreiro pintado de verde
imitando a grama]… a terra é que puxa, descarrega as energia, as
coisa ruim…

Em uma das paredes do terreiro, um quadro emoldura um


certificado: “Federação Espírita”. Trata-se de um certificado da
Federação de Umbanda do Estado de São Paulo, com a foto do pai
de santo e o nome do templo: Centro de Umbanda Oxalá. Toninho
costuma dizer que aquele é o seu diploma. Em cada parede há
muitos detalhes: pinturas de orixás, dois arcos com penas coloridas,
uma espada de madeira (referência aos caboclos de Ogum, a
exemplo do Ogum da Mata do próprio pai de santo) e, bem no
cantinho (ao lado da porta e no alto), um pequeno altar com a
imagem de Obaluaê1, um alguidar com pipocas e uma vela de sete
dias acesa. À esquerda do salão, há três atabaques dispostos lado a
lado sobre um suporte de ferro.
O diploma apresenta-se como uma insígnia de extrema
relevância para uma denominação religiosa que historicamente sofreu
perseguições do próprio Estado e discriminações advindas de
diversos segmentos da sociedade. Os títulos atribuídos pelas
Federações de Umbanda representam, em certa medida, a construção
de mecanismos públicos para fiscalização, vigilância e cerceamento
das religiões de matriz africana (Negrão, 1996). Obter esse documento,

1Orixá associado à doença e à saúde; deus da varíola, das pestes, é o médico dos
orixás. Rege a linha das almas, a linha da calunga (cemitério). Obaluaê é o jovem
guerreiro (ligado à cura), enquanto Omolu é o velho sábio feiticeiro e também
curandeiro.
Etnopsicologia e Saúde 89

em última instância, é garantir a segurança do centro espírita contra


quaisquer sanções legais. Além disso, trata-se de um “diploma” para
um homem analfabeto que “não tem estudo”, mas é, em sua
comunidade, uma autoridade espiritual, diplomado e respeitado
pelos seus filhos de santo e consulentes.
Nas paredes, os ornamentos vociferam as heranças culturais e
espirituais dos povos tradicionais brasileiros: os ancestrais africanos e
indígenas da umbanda. Por fim, a ode a Obaluaê que recebe uma
prateleira própria e individual, na lateral do espaço, distante dos
outros orixás. Toninho não é filho de Obaluaê, mas quase todos os
seus guias trabalham na linha dele, de cemitério e cura. Além disso,
Obaluaê em um lugar de destaque simboliza a relevância da cura
nesses rituais e incarna de certo modo os pilares da umbanda: amor,
caridade e humildade.
O congá2 é feito por duas prateleiras, com poucas imagens (se
compararmos com os congás de outros terreiros de umbanda). Ter
poucas imagens, de certa forma, diz algo sobre o centro do Sr.
Toninho, que destaca com veemência a característica da
simplicidade. Segundo ele mesmo diz: “na umbanda, é como comer
feijão com arroz, é a simplicidade, bem feito... não adianta acender
um caminhão de vela sem fé... vale mais chegar com um toco de
vela acesa, mas com fé no coração”.
Na prateleira superior do altar, encontra-se Jesus Cristo no
centro (com os braços abertos e uma roupa branca), ao lado a
Cabocla Jurema, Santa Bárbara, São Miguel, uma pomba branca (o
Espírito Santo), uma imagem de São Francisco, Nossa Senhora de
Fátima, Iemanjá, Santo Expedito, Nossa Senhora Aparecida. Na
prateleira inferior: São Sebastião, Caboclo Ogum da Mata, São
Benedito, Cosme e Damião, pretos-velhos e uma imagem de São

2 Congá é o altar dos terreiros de umbanda.


Etnopsicologia e Saúde 90

Jorge. Abaixo do congá, uma imagem de São Jerônimo sobre uma


pedra e, ao lado, um ponto riscado3 de Iemanjá.
A maneira como o terreiro organiza o espaço e mistura as
imagens de diferentes tradições é, em si, uma interpretação, pois já
apresenta seu estilo de compreender o universo religioso e tecer
associações que costuram uma diversidade de elementos
pertencentes a seu contexto cultural. Porém, apenas faz alusão à
forma como a umbanda constrói suas “visões”, mas está longe de
revelar por completo o modo como arquiteta suas interpretações.
Ocultar algo é escolher o que mostrar e vice-versa. Sobre o congá é
possível, por exemplo, descrever quais são os elementos da cultura
afro-brasileira selecionados. Para dar conta de uma descrição
minuciosa sobre as imagens do congá, escolheu-se uma
organização que apresentasse primeiro os personagens com os
quais Toninho trabalha, ou seja, seus orixás de cabeça, que são os
patronos do terreiro. Toninho trabalha com Ogum e tem, como
orixás de cabeça, Oxalá e Iemanjá.
Jesus Cristo: Na umbanda, seleciona-se a imagem de Cristo de
túnica branca e de braços abertos que, segundo os umbandistas,
estaria associado ao acolhimento, ao amor, à caridade, em detrimento
de sua imagem na cruz que estaria mais próxima da penitência, do
sacrifício. Jesus remete à imagem de Oxalá na posição central e na
prateleira mais alta. O terreiro carrega seu nome e o pai de santo é filho
dele. O Oxalá de Toninho traz a qualidade da juventude e da guerra,
Oxaguiã, cuja imagem africana apresenta um Oxalá com a espada e o
pilão nas mãos.
São Francisco de Assis: segundo Toninho, eis um santo que, ao
lado do próprio Jesus Cristo, remete às qualidades de Oxalá. São
Francisco fundou a ordem mendicante dos Frades Menores, mais
conhecidos como franciscanos, tendo se dedicado aos mais pobres
dos pobres. Toninho destaca com frequência que a marca principal

3Segundo Toninho, o ponto riscado representa o “registro de identidade” (RG) do


espírito: trata-se de um círculo que ele desenha no chão dentro do qual traça os
principais elementos que o caracterizam e com os quais trabalhará no ritual.
Etnopsicologia e Saúde 91

de seu terreiro é a simplicidade, é a “umbanda feijão com arroz”, o


“pé no chão”, a “umbanda de raiz”.
Iemanjá: ao lado de Oxalá, a imagem da mãe, Iemanjá,
associada à Virgem Maria. Os Santos de Cabeça de Toninho são:
Oxalá e Iemanjá.
São Jorge e Ogum: sobre o cavalo, o santo abatendo um dragão
ao lado de uma imagem do Caboclo (um índio) Ogum da Mata
sobre um cavalo abatendo uma onça: no imaginário sincrético afro-
brasileiro, Ogum da Mata sobre o cavalo é a versão afro-indígena
de São Jorge guerreiro. Na umbanda, Toninho trabalha com Ogum,
orixá guerreiro, associado à espada, à forja do ferro.
O traço bélico aparece ainda marcado por meio de outros
santos, como Santo Expedito e São Miguel:
Santo Expedito: é outra forte marca do “espírito guerreiro”
presente no congá, ao lado de outros, tais como Caboclo Ogum, São
Jorge e Iansã. Além disso, Santo Expedito representa a resolução de
causas impossíveis, aspecto imprescindível em um terreiro cuja
marca ritual preponderante é composta pelas consultas oferecidas
a filhos angustiados e em busca de acolhimento, cura, conselhos,
soluções.
São Miguel: aparece como mais uma imagem “bélica” no
congá. No catolicismo, São Miguel é um anjo vencedor do demônio
cuja imagem de guerreiro segura uma espada na mão direita e uma
balança na esquerda e aparece pisando em um dragão ou um diabo,
o que nos remete à imagem de São Jorge (Augras, 2005). Na
umbanda, está associado também ao culto das almas (a linha de
Omolu e a dos pretos-velhos) e à justiça (pela presença da balança).
Os guias4 recebidos por Toninho fazem trabalhos de cura. O
médico dos orixás é Omolu, deus da cura, da doença e da saúde.
Como já dito anteriormente, em uma das paredes do terreiro, em
um cantinho bem no alto, separado dos outros santos do congá,
está Omolu, uma imagem coberta por palhas da costa, através das
quais, segundo a tradição africana, ele escondia suas chagas

4 Os espíritos da umbanda.
Etnopsicologia e Saúde 92

(Augras, 2005). Ao lado dele, uma vela branca e um alguidar com


pipoca, elemento que ele utiliza para a limpeza (cada milho que se
transforma em pipoca simboliza uma pústula do deus da varíola).
Ao ser questionado sobre o porquê da separação desse deus dos
outros, Toninho explica: “a gente faz o que o orixá ia querer se
estivesse cá e ele ia querer ficar longe dos outros, ele se escondia,
escondia as feridas, não gosta de aparecer”. Para Pai Benedito
(preto-velho recebido por Pai Toninho), “Obaluaê é o médico dos
médicos, o deus da peste, deus da doença. Então tem que usar ele
pra fazer a cura”.
No ritual de abertura deste terreiro, saúdam-se apenas três
deusas com as quais se trabalha nesta Casa: Iemanjá, Oxum e Iansã.
As três estão representadas no altar. A primeira já foi mencionada
anteriormente. Sobre as outras:
Santa Bárbara: Iansã é orixá guerreira associada à imagem de
Santa Bárbara, vestida de vermelho, com coroa na cabeça e espada
na mão.
Nossa Senhora Aparecida: Oxum é orixá associada à maternidade,
ao amor, à beleza e à fecundidade, representada pela imagem de
Nossa Senhora Aparecida, santa negra, padroeira do Brasil.
Todos os orixás para quem se fazem saudações na abertura da
gira são representados por uma imagem no congá: Oxalá, Xangô,
Ogum, Oxóssi, Cosme e Damião, Pretos-Velhos, além das deusas
Iansã, Iemanjá, Oxum, já descritas anteriormente.
São Sebastião: Oxóssi é o orixá caçador, rei das matas, associado
metonimicamente a São Sebastião pela flecha a partir de uma
inversão simbólica relativamente à narrativa mítica católica –
Oxóssi é o deus flecheiro, enquanto Sebastião é o santo flechado
(Bairrão, 1999).
São Jerônimo: Xangô é o orixá das pedreiras, da justiça, do fogo.
No congá, ele está sobre uma pedra, no chão. É a maior imagem do
congá. Todos os filhos de santo desse terreiro, ao “bater cabeça”5,
devem deitar a cabeça sobre o congá, tocar a cabeça de Xangô e

5 Ritual de saudação ao congá.


Etnopsicologia e Saúde 93

bater três vezes no ponto de Iemanjá. Dizer isso significa que São
Jerônimo assume um lugar de destaque nesta Casa de Umbanda.
Os três pilares da direita umbandista estão representados no
altar: pretos-velhos, caboclos e crianças. O congá do terreiro de
Oxalá possui inúmeras imagens de pretos-velhos de diferentes
tamanhos. Além disso, a presença de determinados santos
(elencados a seguir) remete à importância dessas entidades:
Nossa Senhora de Fátima: o dia que marcou a aparição desta
santa na Europa a três crianças pastoras é o mesmo dia de
celebração da abolição dos escravos no Brasil (13 de maio) e o
mesmo dia em que a umbanda homenageia seus pretos-velhos.
São Benedito: o santo negro, de origem africana, que carrega o
mesmo nome do preto-velho do pai de santo, Pai Benedito do
Cruzeiro das Almas.
A marca do caboclo se apresenta por meio da Jurema e do
Ogum da Mata: duas imagens de índios presentes no congá
representando os caboclos da umbanda. Os erês estão presentes
por meio da imagem dos gêmeos Cosme e Damião: representantes
das crianças da umbanda.
A pomba branca: no centro do congá, representa uma imagem
ambígua, associada tanto ao espírito santo quanto à pomba Juriti,
cujo canto traz maus presságios. No ritual de abertura das giras, há
um ponto cantado de saudação à Juriti6, que exalta o significante da
“virada” associado aos exus da umbanda. A música enaltece o
cantar de mau presságio na virada da noite para o dia (o horário de
meia-noite remete aos exus).
Na parede em frente ao congá (do outro lado do salão),
encontra-se a tronqueira do terreiro: trata-se de um buraco na
parede que é fechado por uma portinhola de metal com cadeado.
A tronqueira é o local onde se faz o assentamento dos exus, já que
eles não ficam no altar junto com as outras entidades. É um local
interpretado como defesa e firmeza do terreiro, onde se oferecem
cigarros e bebidas aos exus e pombagiras.

6 “Ai, ai, como é bonito ver, da meia-noite pro dia, o cantar da Juriti”.
Etnopsicologia e Saúde 94

O espaço físico descrito até aqui é o local onde ocorrem as giras


de umbanda. Por outro lado, um terreiro se compõe de espaços em
seu entorno que são por ele abarcados como parte de sua conjuntura
sagrada. Por exemplo, o lugar ritual de assentamento dos exus não
se restringe à tronqueira: na esquina do terreiro existia um bar, que
pertencia a um parente do pai de santo, onde os frequentadores
(todos os amigos do terreiro) jogavam sinuca. Simbolicamente, seria
uma extensão da tronqueira: lugares onde circulam hábitos
mundanos, bebidas, jogos e, frequentados preferencialmente à noite,
estão associados ao exu. Além disso, esquina remete à encruzilhada,
local ideal para ofertas a esta entidade (o senhor dos caminhos). O
bar hoje não funciona mais, foi fechado em decorrência de “intrigas
femininas”, segundo os moradores.
Ao lado do bar, há uma casa que pertence ao compadre do
Toninho, Silvinho, que é muito respeitado na comunidade: com um
copo de cerveja em mãos, nunca se esquece de cumprimentar todos
os presentes, espalhando seu bom humor e sua simpatia.
Extremamente sensível e atento àqueles que estão à sua volta, em
um tom de cuidadoso deboche, reacende o sorriso em qualquer um.
É um assíduo frequentador do bar ao lado. É ele o dono da casa
onde ocorrem as giras de umbanda, por isso está sempre por perto,
mas nunca entra no espaço ritual, com exceção das giras de exus ou
quando era convidado pelos guias “cruzados” recebidos pelo
irmão de Toninho, Luís (pai-pequeno, que faleceu durante a
pandemia, vítima da COVID-19). Exu é também o senhor das
porteiras, guardião de toda casa de umbanda e não é à toa que
tronqueira de terreiro fica sempre perto das portas, ele protege as
entradas e as saídas. Por esse motivo, todas as giras de umbanda
devem ser iniciadas com a licença dos exus e pombagiras e devem
ser encerradas com uma saudação aos mesmos.
Em frente ao terreiro, vive Seu Luís (tem o mesmo nome do
irmão do Toninho), um homem que se apresenta como baiano, mas,
na verdade, nasceu e foi criado em Ribeirão Preto. O fato é que ele
está sempre bêbado e não há mais o que fazer para ajudá-lo. Mora
na rua e dorme na calçada em frente ao terreiro. Certa vez, havia
Etnopsicologia e Saúde 95

uma oferenda para exu em uma esquina próxima, que continha


uma garrafa de cachaça, cigarros e velas pretas. Seu Toninho estava
passando por perto e Seu Luís, ao lado, perguntou-lhe: “posso ficar
com a garrafa?” O pai de santo, profundo conhecedor do sistema
simbólico umbandista, respondeu-lhe: “sim, você pode”. Afinal, a
quem, simbolicamente estavam sendo ofertados aqueles presentes?
Outras importantes perguntas se impõem diante desta narrativa:
por que ele se apresenta como baiano? Qual é a relação entre os
exus e os baianos neste terreiro?
Os baianos compõem uma linha intermediária na umbanda: não
é direita e não é esquerda, estão em trânsito. Não se coloca exu e
pombagira como imagens à mostra em congá de terreiro. No caso do
terreiro de Seu Toninho, não há também imagens de baianos no altar.
As imagens deles estão no quartinho dos fundos, local onde ficam
expostas duas imagens das pombagiras protetoras da casa, sendo uma
delas associada aos baianos da umbanda (Maria Quitéria).
Embora não apareça aos olhos da assistência, o “quartinho dos
fundos” ou “quartinho dos santos” é um espaço ritual tão
importante quanto o salão onde ocorrem as giras. Lá funcionava
antigamente o terreiro de Oxalá, onde existe hoje um “segundo
altar” (nesse caso, oculto) com todos os santos e entidades que não
estão no congá do salão principal. Além disso, nas paredes desse
quartinho estão todos os presentes que Toninho ganha de seus
filhos de santo ou das pessoas que já passaram pelo seu terreiro:
quadros, santos, imagens, brinquedos dos erês etc. É lá que muitos
trabalhos são feitos, onde muitas velas são acesas e onde Toninho
costuma fazer um rito que indica qual é o santo de cabeça de seus
filhos de santo.
Nesse local, além do “segundo congá”, encontram-se também
dois altares: um deles ofertado aos erês, com inúmeros brinquedos
e doces. O outro, na parede oposta ao congá, dedicado às
pombagiras, onde estão duas imagens, a Sete Saias e a Maria
Quitéria, além de cigarros e duas taças com bebidas (champanhe,
cinzano ou anis). Maria Quitéria é pombagira de umbanda, mas seu
nome remete a uma personagem histórica importante da Bahia:
Etnopsicologia e Saúde 96

dizem os nordestinos que Quitéria é nossa Joana D'Arc, tornou-se


soldado e lutou pela independência baiana, consolidada em 2 de
julho de 1822. Exu e Pombagira, no terreiro de Oxalá, estabelecem
forte vínculo com os baianos.
Fora de seus terreiros, muitos pais-de-santo costumam fazer
trabalhos em outros cenários típicos da umbanda: a encruzilhada,
a mata, a cachoeira e o mar. A presença das encruzilhadas neste
centro de umbanda é marcada pelo bar na esquina. A presença da
mata está marcada no quintal do terreiro, onde Toninho cultiva
diversos tipos de plantas utilizadas para banhos, chás, receitas para
cura etc. As plantas ficam em canteiros que contornam os muros de
uma vilinha onde vive toda a família do pai de santo: os Henriques.
Nas paredes da vilinha e do próprio terreiro, encontram-se as
gaiolas dos passarinhos criados pela família (bichos que toda sexta-
feira o caboclo Ogum da Mata promete soltar na natureza). Trata-
se de um antigo hobby do Toninho, todos eles com as devidas
licenças e certificados emitidos pelo IBAMA. Ao entrar no terreiro
e fechar os olhos, a mata não parece tão distante: sente-se o cheiro
forte de ervas e ouvem-se diferentes cantos de pássaros.
Quando é preciso fazer um trabalho em água doce, não é
necessário ir tão longe: ao sair do terreiro e seguir uma quadra à
direita, desemboca-se no Rio Pardo. Mas se é preciso recolher água
doce para usar no ritual ou despejar algum líquido já utilizado em
água corrente (em cascata), há ao lado do salão onde se faz a gira
uma grande pia de pedra. Ali, sim, abre-se a torneira e eis a
cachoeira. Sob a pia, a praia: três grandes garrafas de água cheias
de mar. No fundo delas, encontram-se ainda algas marinhas e areia
da praia. Muitos filhos de santo vão para o litoral e trazem na
bagagem água do mar em garrafas para que seja usada nos
trabalhos dos espíritos da umbanda.
Etnopsicologia e Saúde 97

Coisas-significantes: costuras em tecido interpretativo

Diante do refinamento e complexidade do fenômeno descrito,


é possível sugerir que os objetos, palavras, organizações, gestos e
outros elementos rituais podem ser compreendidos como
“ingredientes-coisas-significantes” que se entrelaçam a partir de
múltiplas combinatórias, compondo o tecido interpretativo da
umbanda. A noção de coisas e gestos como significantes já foi
apontada por Bairrão (2011).
Em sua obra Trèsors, Geffray (2001) revela um ponto de vista
semelhante, com base em uma perspectiva lacaniana, sobre os
discursos e fragmentos da vida social dos Yanomami e dos
Trobriandeses. Geffray revela seu método interpretativo e o modo
como relaciona psicanálise e antropologia, considerando que
coisas, palavras, gestos e sensações podem ser analisados e assumir
significância: “a palavra se retira e cede lugar ao objeto, que
intervém de tal maneira que o discurso não se interrompe e que a
verdade da palavra no discurso seja significada” (Geffray, 2001, p.
76, tradução nossa).
Ao consubstanciarem-se em coisas-significantes, os dizeres
revelam uma composição de ingredientes, gestos, cheiros,
sensações, objetos, prescrições, sabores que, a partir de sua
natureza simbólica, segundo Geffray (2001), permitem o
engajamento do sujeito em seu próprio discurso. É a função
simbólica capaz de transfigurar os objetos e realçá-los no
imaginário até assegurar-lhes uma roupagem específica
constituída de propriedades estéticas que somente serão
enxergadas (ou escutadas, uma vez que são também dizeres
circunscritos no corpo ou nos órgãos de sentido) por quem está
imerso no universo cultural em questão (Geffray, 2001). Caso
contrário, os objetos são apenas objetos e os sentidos a eles
atribuídos tornam-se incongruentes ou associações vazias.
Desse modo, é importante sublinhar que o uso de
ingredientes-coisas-significantes em rituais de umbanda pode
variar entre os terreiros, entre os médiuns e, sobretudo, em função
Etnopsicologia e Saúde 98

do caso considerado. Nesse sentido, sua aplicação nunca ocorre


mecanicamente ou descontextualizada do universo de suas
comunidades e dos espíritos que os prescrevem. Com base nisso,
os “ingredientes-coisas-significantes” utilizados, por exemplo, por
Pai Benedito (preto velho incorporado pelo Sr. Toninho) em seus
trabalhos parecem metáforas atuadas pelo corpo, pelos elementos
rituais, pelo ritmo, timbres de vozes, cores, sons, movimentos dos
pés, ações das mãos. Assemelham-se a uma oração, mas
performaticamente rezada pelo corpo, como frases que compõem
um poema cuja decifração é o próprio sistema simbólico
umbandista em funcionamento.
Sugere-se, portanto, que a interpretação na umbanda parece
apresentar ricas possibilidades de combinações gramaticais de
recursos que se revelam para além do verbal. Assim, aprofundá-los
exige uma análise sobre a poética no idioma umbandista, assim
como sobre as metáforas, metonímias e as imagens corporais em
seus processos interpretativos.
Na umbanda, toda palavra proferida é uma coisa e toda coisa é
uma palavra. O Pai Benedito7 costuma fazer com frequência um
trabalho de cura utilizando pipoca, azeite de oliva, abacaxi, mel e
água de mina. A pipoca deve ser estourada no azeite de oliva. O
azeite dourado reluz, traz a luminosidade do deus da peste. A parte
superior do abacaxi (junto com a “coroa”) deve ser cortada, como se
montássemos uma tampa. Da parte que sobrou, retira-se o miolo da
fruta, descartando todo o seu recheio, deixando-a oca, somente a
casca. Lá dentro coloca-se o nome da pessoa enferma, enche com
mel, um pouco de pipoca, depois mel de novo e mais um pouco de
pipoca, até encher. Coloca-se o abacaxi sobre um alguidar, enchendo
o pote com mais pipoca. Coloca sobre o altar, diante da imagem de
São Lázaro. Ao lado, a vela de sete dias e a água de mina em um
copo. Na frente do trabalho, Toninho bate três vezes com a mão

7 O preto velho de Toninho é o Pai Benedito do Cruzeiro das Almas, entidade que
trabalha na linha dos cemitérios e da cura, ou seja, do orixá Omolu (em sua versão
mais idosa) e Obaluaê (sua versão mais jovem).
Etnopsicologia e Saúde 99

direita, faz uma oração em silêncio e depois bate palma três vezes.
Ele diz que bate palma porque as palmas despertam o velho Omolu.
As pipocas que estouram na panela podem ser associadas às
pústulas de Obaluaê, as feridas, assim como os espinhos sobre a
casca do abacaxi. A tampa é a coroa do Rei (Obá) da varíola. No
interior da fruta (da pele, da terra), é onde o trabalho deve ser feito.
Enterra-se o nome do enfermo no abacaxi, sob a pipoca e o mel. O
mel tem a mesma coloração do azeite, também reluz e clareia. A
doçura simbólica já está no mel (a bondade e a comiseração de
Omolu): os “ingredientes” já são significantes, pois trazem, em si
mesmos, interpretações acontecendo em ato. Ao mesmo tempo, o
mel adoça pouco a pouco o azedo do abacaxi. Omolu está associado
à dor do corte e da queimadura: as cirurgias dos enfermos
acamados, o corte do bisturi na superfície, as vísceras no interior
do corpo, a cura, as queimaduras na pele. Trata-se de objetos e, ao
mesmo tempo, são versos de uma oração (a Obaluaê ou a São
Lázaro). Dor, doença, profundidade, corte, doçura, pureza,
limpeza e cura podem ser palavras vazias se não estiverem
associadas aos objetos anteriores. Um transmuta-se no outro,
compõem as mesmas frases, as mesmas orações.
Os trabalhos para o amor podem esclarecer esta questão. Certa
vez, Pai Benedito atendeu uma moça que gostaria de reconquistar
seu marido, pois o casamento estava caminhando para o divórcio.
Ela tinha que fazer uma farofa de milho e colocar em um alguidar.
Farofa de milho é ofertada aos exus, espíritos associados à sedução,
à sensualidade, ao desejo e, no caso da pombagira, ao poder
feminino em sua plenitude. Portanto, em um trabalho, a farofa de
milho presentifica não só o espírito para quem se oferece a comida,
mas seus atributos espirituais. Em torno do alguidar, a moça
deveria acender velas brancas. Dentro do alguidar, deveriam ser
colocados dois bonecos de pano branco amarrados por uma fita
branca. A “amarração” é simbólica, mas é também incarnada nos
dois representantes do casal na cena. Ao confeccionar o boneco, a
mulher deve, antes de costurá-los, colocar o nome dele dentro da
boneca e o nome dela dentro do boneco.
Etnopsicologia e Saúde 100

Aqui marca-se a literalidade com que se trabalha no sistema


simbólico umbandista: para que se amem novamente um estará
literalmente dentro do outro, atados, incorporados um ao outro.
Por fim, o trabalho deverá ser colocado em um bambuzal, planta
que garante a presença de uma deusa, Iansã, senhora dos ventos e
tempestades de quem as pombagiras são “escravas”, explicam os
umbandistas. Iansã é orixá, é uma Santa (é santa e bárbara), é cor
vermelha, é um bambu, é fogo, espada, guerra (é palavra, é
sagrado, é coisa, objeto, planta, força), um feminino que se deseja
evocar em um trabalho para restituir o poder de uma mulher em
busca da reconquista de seu casamento.
Amarração se pode fazer com laço de fita, com “amor
agarradinho” (uma flor que carrega esse nome) ou com maçã bem
madura e bem vermelha. A maçã está miticamente associada ao
amor (e ao pecado, na mitologia cristã) e o nome da planta também
remete a ele. As receitas parecem não dissociar o estatuto
significante do verbal de suas formas ou coisas existentes no
mundo. Devem ser utilizados dois pedaços de papel, um com o
nome dele e um com o nome dela; os nomes devem ser colocados
um em cima do outro: se o rapaz quiser se aproximar da moça, seu
nome deve vir por cima e o dela por baixo. Se a mulher quiser se
aproximar do homem, deve-se fazer o inverso. A posição dos
papéis remete à inversão do que ocorre na relação dos fiéis.
Nos trabalhos de umbanda, há uma composição de metáforas
e metonímias, tal como se orquestram as formações do
inconsciente, entrelaçam-se em cadeias que se cruzam na vertical e
na horizontal, respectivamente. Trata-se de deslocamentos e
condensações como se cada elemento se encaixasse em outro para
compor um mosaico. Ao longo do trabalho de campo, Pai Toninho
se esforça por oferecer explicações à pesquisadora sobre os
elementos de seu sistema. Ele tenta destacar ladrilhos de uma
complexa bricolagem para oferecê-los, revelando que, ao se negar
a dar respostas racionais, apresenta uma rede que, em si, não tem
nada de arbitrária, mas já é um tecido interpretativo, pois enuncia
algo. A própria combinatória em si mesma já se apresenta como
Etnopsicologia e Saúde 101

interpretação e evoca efeitos de sentido. A seguir, apresenta-se o


relato do caso:
No início da pesquisa, a primeira autora levava o gravador
para o terreiro, sentava-se ao lado do pai de santo ou caminhava
atrás dele e começava a “tirar dúvidas”. Por exemplo, um dia
começou a perguntar acerca de alguns detalhes do ritual sobre os
quais ela gostaria de obter explicações. Fazia perguntas “técnicas”
demais como: “por que os exus trabalham de preto?” Toninho
começou respondendo: “o exu trabalha de preto... é... como assim
por que ele trabalha de preto?” Por fim, e em sequência, esboçou
sua explicação apresentando uma complexa cadeia significante.
A pesquisadora continuava obstinada como se aquelas
perguntas lhe garantissem a explicação para as “coisas da
umbanda” e corria atrás do chefe da Casa com um gravador em
punho: “e o que significa ser um exu de cemitério?”. Toninho
respondeu impaciente: “significa exu que trabalha em cemitério”.
Depois ele parecia perceber que a moça estava um pouco frustrada
com sua maneira lacônica de responder às demandas. Sentou-se ao
seu lado e passou a apresentar-lhe uma lista de linhagens de exu:
“tem o exu das sete encruzilhadas, a falange do Omolu, do Obaluaê
é a falange do cemitério... ou quando se diz sou filho de Xangô...
ele trabalha na pedreira... tem um exu que é o guarda da cachoeira...
o exu da mara... o Exu Quebra Galho, por exemplo... onde você
entra você pede licença ao exu...”.
Logo depois, mais três perguntas bem diretas seguidas das
devidas respostas: “Por que exu e pombagira bebem pinga,
cachaça, champanhe, vinho?”; “por que depois das giras, algumas
comidas ofertadas aos guias devem ser despachadas na mata?”; “o
que é um ponto riscado e o que cada um quer dizer?”. Embora as
perguntas fossem um tanto quanto inadequadas, ele se esforçava
por apresentar algumas respostas, explicações, pois observava que
aquelas dúvidas realmente afligiam-na. Era como se estivesse
cuidando da pesquisadora, arrefecendo sua angústia, embora
soubesse que ela não parecia estar no caminho certo, ou seja, que
não era bem esse o jeito de se fazer pesquisa com ele.
Etnopsicologia e Saúde 102

Aos poucos, aprende-se que a compreensão das filigranas não


habita as perguntas teóricas ou as respostas racionais. Há outro
modo de compreender e só é possível aprender isso ao perceber
como o pai de santo e seus guias trabalham. As respostas de
Toninho revelam que a umbanda parece se apropriar de
combinatórias significantes, sem a intervenção de um “ego
narrador e sabedor” de teorias ou teologias umbandistas.
Retome-se a sua explicação sobre exus. É possível escutar a
combinatória que se oferece na voz do pai de santo: preto, noite,
cova, encruzilhada, quimbanda, capa, preta, caveira, alma, rua,
guarda, porta, porteira, morte, doença, esquerda, embaixo,
cemitério. As explicações parecem esclarecer que, na umbanda, não
é o médium que explica, conhece ou faz, mas parece haver um
“saber” de outra ordem, imanente à articulação desses
significantes. A maneira como ele enlaça esses significantes já é sua
própria interpretação, onde é sempre o Outro que enuncia. Não
apenas se enuncia de um lugar no Outro, mas é como se o Outro,
no caso consubstanciado na idiomática umbandista, em si mesmo
comportasse uma função enunciante e interpretativa que é recebida
na umbanda “pé no chão” e escutada ao “pé da letra”.
Toninho diz que seu terreiro é “pé no chão” pela
simplicidade, pelo fazer bem-feito o habitual (a umbanda “feijão
com arroz”) e por ser uma Casa “de raiz”, esta última expressão
polissêmica que remete à ancestralidade: para Toninho, a origem
primeva da umbanda tem fundamento na tradição africana. A
parte subterrânea do tronco ancestral é a raiz, o que sorve a vida na
terra, o que nutre a árvore é o assentamento da Casa de Santo, a
África. No terreiro de Toninho, quem está perto da terra vem
curvado, próximo ao solo, o preto velho (a ancestralidade que nos
aterra, nos ancora à terra firme, ao território a que pertencemos), o
Exu (a cor preta que nos aterra e ao mesmo tempo carrega
memórias históricas aterradoras) e o velho Omolu (o que manipula
as forças nas covas, sob a terra). O Enterrado é o Morto, o simbólico,
mais vivo, pulsante e presente do que nunca.
Etnopsicologia e Saúde 103

Na umbanda “de raiz”, as coisas e os cenários do mundo,


incluídos os hábitos e as vidas de pessoas, arquitetam-se em sentidos
e interpretações que se experimentam esteticamente. Palavras e folhas
de livros (que não as das plantas) são prescindíveis para que algo se
nomeie e signifique (Bairrão, 2011). Cada trabalho na umbanda
possui um sentido e cada trabalho é suscetível de uma interpretação,
sendo esta última construída com base no caso particular de cada
umbandista (sua aflição, seus desejos e necessidades). Tome-se como
exemplo um lugar onde será feito um dado despacho: o cemitério. Se
a oferenda envolver pipoca, pode ser um trabalho de cura dedicado a
Omolu. Mas se for feita com velas pretas e vermelhas, pode ser um
trabalho para exu de cemitério. Com inhame, a oferenda é para Ogum
(Ogum Megê rege os cemitérios também). E quando se espera ventar
para fazer a mandinga, os pedidos no cemitério são para a Rainha dos
Mortos (Iansã, deusa dos ventos). No sistema da umbanda não há
uma chave interpretativa fixa que solucionaria todos os enigmas
simbólicos presentes nos trabalhos sagrados, de modo que sua análise
dependeria das combinatórias e do “compositor” de ritos e oferendas.
Os exemplos trazidos aqui neste capítulo são de pessoas que,
em estado de transe mediúnico ou não (em possessão ou não),
oferecem consultas, prescrições, curas e narrativas elaboradas a
partir de um sistema simbólico próprio e a partir de meandros que
envolvem um encadeamento singular de significantes e a produção
de sentidos.

Considerações finais

O fazer na etnografia em diálogo com a psicanálise permite


incluir a perspectiva da escuta participante (Bairrão, 2005). Estar
em campo é permitir-se estar imerso, “ser afetado” (Favret-Saada,
2005), envolvido, tocado, interpretado a partir da lógica própria da
umbanda. É aterrar-se, ancorar-se com os pés no chão em terra de
terreiro, mas atento, ainda que seja uma atenção que flutue por
entre dizeres tão múltiplos, refinados e complexos.
Etnopsicologia e Saúde 104

A escuta deve buscar todos os detalhes, dentre falas, memórias,


histórias, pontos cantados, riscados no chão, movimentos, ritmos,
danças, toques de atabaque, velas, sensações térmicas, cores,
imagens, sabores, odores, assim como os caminhos reais que levam
ao terreiro, a sua localização, a sua edificação, organização interna.
Tudo isso estará enraizado em coisas-significantes, ao pé da letra, e
trazem em si sua própria interpretação.
Por outro lado, sugere-se que não é apenas o Outro que fala
através das coisas-significantes e a partir da idiomática
umbandista. As coisas é que se ligam umas às outras formando
frases numa cópula “magicamente” lógica, produzindo sentido.
Ao mesmo tempo, o sujeito praticante, sua vida, sua
subjetividade, seus desejos e memórias também estarão lá,
incluídos nas “orações” (gramaticais e sagradas) da umbanda e
significados nesse amparo semântico que vem do Outro
umbandista. É desse modo, por fim, que o sujeito praticante vem
buscar alento no colo de seus pais e mães de santo, em seus ritos,
“magias”, suas “ciências de pé no chão”, raízes, pertencimento,
acolhimento, bem-estar e cura.

Referências

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Etnopsicologia e Saúde 107

CAPÍTULO 5

CULINÁRIA SAGRADA IORUBÁ,


TEMPERAMENTO HUMANO E SAÚDE

Ronilda Iyakemi Ribeiro

Apresentação

Este capítulo foi desenvolvido com os objetivos de subsidiar


debates sobre Etnopsicologia, Religião e Saúde e buscar
entendimento da lógica de comunicação, ritualmente estabelecida
entre pessoas de distintos temperamentos e divindades africanas
por meio da oferenda de alimentos como recurso de prevenção e
cura. O método utilizado associou o processamento de dados
bibliográficos e virtuais à observação participante no Oduduwa
Templo dos Orixás (Mongaguá, Estado de São Paulo), local de
ensino e prática da Religião Tradicional Iorubá (África Ocidental) e
a diálogos com o Babalorixá King, natural de Abeokutá (Ogun
State, Nigeria), liderança do referido Templo.
Os principais resultados evidenciam que, embora a complexa
dinâmica estabelecida entre pessoas desejosas de preservar sua
saúde ou necessitadas de cura e Orixás ou Ancestrais Veneráveis
por meio da oferenda de alimentos possa ser parcialmente
compreendida com base em teorias do temperamento humano,
essas teorias se mostraram insuficientes para a compreensão
pretendida. Uma discussão dos achados conduz à conclusão de que
a lógica que possibilita reconhecer relações precisas entre
alimentação e tipos de temperamento humano não se aplica à
complexa dinâmica energética estabelecida no interior da tríade
temperamento humano, qualidade dos alimentos ofertados e axé
(energia vital) dos Orixá e Ancestrais Veneráveis reverenciados.
Etnopsicologia e Saúde 108

A possibilidade de estabelecer correspondências precisas entre


os elementos dessa tríade dependerá de um estudo das qualidades
de axé presentes em cada um dos três componentes da tríade,
qualidades essas que não se restringem à dimensão físico-química
dos fenômenos. Isso evidencia a necessidade de estudos
transdisciplinares que permitam e possibilitem a inclusão
metodológica de elementos sutis, próprios de dimensões etéricas e
astrais dos fenômenos fisicamente observáveis e medidos.

Introdução

Que lugar ocupo ao abordar o tema central deste capítulo?


Posso dizer que me equilibro no alto de um tripé: um pé no cenário
acadêmico, onde pesquiso e ensino/aprendo Psicologia,
Antropologia de África Negra, Cultura e Religião Iorubás e
Afrolatinidades; outro pé em coletivos de diálogo interreligioso e,
o terceiro, no cenário de demandas sociais de meu espaço-tempo.
Busco compreender melhor algumas questões da Sabedoria Iorubá
adotando dupla ótica: evidentemente, a ótica negro-africana, e
outra, europeia, proporcionada pelo hermetismo cristão,
especificamente pela Ciência Espiritual ou Antroposofia.
A adoção dessa dupla ótica é justificável dada a semelhança
relativa à noção de pessoa e a alguns fundamentos filosóficos
desses corpos de saberes. De um primeiro movimento de
aproximação a esses saberes resultou o texto Por uma psicoterapia
inspirada nas sabedorias negro-africana e antroposófica¸ publicado em
coautoria (Ribeiro, Sàlámì, & Diaz, 2004), na obra Espiritualidade e
Prática Clínica, organizada por Angerami (2004).
Não estou certa de que haverá muitos leitores interessados
como eu pelo estudo dos rituais de oferendas de alimentos a orixás
e a ancestrais veneráveis ou pelo uso ritualístico de alimentos na
prevenção e cura de doenças físicas e mentais. Quem estará
interessado em problematizar a dinâmica energética própria de
rituais religiosos que incluem a oferenda de alimentos a seres
espirituais e seu efeito transformador de condições humanas
Etnopsicologia e Saúde 109

indesejáveis? Quem estará interessado em percorrer caminhos de


entendimento das possíveis relações entre axé de orixás, axé de
alimentos e axé pessoal, especialmente identificáveis nos
temperamentos humanos?
Em minha prática de adepta da religião tradicional iorubá
realizo oferendas e testemunho outras pessoas fazendo o mesmo,
sempre atenta à eficácia desses rituais na prevenção de
desequilíbrios de toda ordem e na cura. A mim interessa saber, por
exemplo, porque o orixá Obatalá “aprecia” canjica e “abomina”
azeite de dendê e porque eu, filha de Obatalá, supero obstáculos,
ultrapasso barreiras, realizo proezas quando ofereço a esse orixá
um bom prato de canjica... e ele aceita.
Aprendi que na interação de pessoas com orixás, mediada por
alimentos, ocorre um fluxo específico da energia vital, denominada
axé pelos iorubás: axé do orixá que recebe a oferenda, axé do
alimento ofertado e axé do ofertante. Este, também identificável em
seu temperamento. Como distintos seres possuem distintas
qualidades de axé, cada orixá, cada pessoa e cada alimento tem seu
axé específico. Salvo raríssimas exceções, os orixás não são
humanos deificados e, sim, seres naturais, identificados, cada qual,
por sua relação de domínio e controle de determinado elemento da
natureza: há orixás da terra, da água, do fogo e do ar. Considerando
os orixás como seres espirituais que ocupam cargos hierárquicos na
Natureza, havendo “Orixás da Terra”, como Nanã, por exemplo;
“Orixás da Água”, como Iemanjá e Oxum; “Orixás do Ar”, como
Obatalá e “Orixás do Fogo”, como Xangô, esses seres espirituais
são, simultaneamente, regentes dos elementares e dos elementos da
natureza e élan vital desses elementares e elementos.
O axé, força vital propiciadora do poder de realização, é
energia que flui nos planos físico, psicológico, social e espiritual.
Não há força maior que essa e toda realização depende dela. Se
bem administrado, aumenta com o passar do tempo e o acúmulo
de experiências, acompanhado do aumento de fertilidade,
prosperidade e longevidade. Em outras palavras, a aquisição
gradual e contínua de conhecimentos sobre as formas de
Etnopsicologia e Saúde 110

aquisição e preservação do axé, associada à capacidade de


discernir e julgar com justiça e bom senso favorecem o acúmulo
do axé (Sàlámì & Ribeiro, 2015).
Sua transmissão se dá por meio de contato com portadores da
força vital, ou por ingestão. Entre os principais portadores/
transmissores de axé se incluem os babalaôs, sacerdotes de Ifá-
Orunmilá; os babalorixás e as ialorixás, respectivamente,
sacerdotes e sacerdotisas dos demais orixás; obás (reis); homens e
mulheres praticantes das artes de feitiçaria e bruxaria; praticantes
de oògùn (onixegun), a prática mágico-medicinal-religiosa. Todo
iniciado adquire, por meio de processo iniciático, a condição de
alaxé, portador do axé do orixá no qual foi iniciado.
Além dos processos iniciáticos, realizados por sacerdotes, e
dos processos terapêuticos, realizados por médicos tradicionalistas
(onixegun), há outros processos de obtenção do axé, entre os quais
a herança energética deixada de um indivíduo para outro por
vínculo consanguíneo ou por empatia pessoal e o bori, ritual de
oferenda ao Ori, a divindade pessoal, o Eu, a presença espiritual
que anima o ser humano.
Ao ministrar a disciplina de Psicologia aplicada à Nutrição na
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, alguns
anos atrás, fiquei ainda mais intrigada com essa questão da lógica
subjacente à eficácia das oferendas de comida. Mantinha olhos e
ouvidos atentos. Uma tarde fui informada de que uma roda de
conversa reuniria alunos e professores com um babalorixá disposto
a abordar o tema “Comida de Santo” e lá fui eu. A apresentação do
tema começou com a descrição da estrutura das Casas de Axé, locais
de prática das religiões de matrizes africanas, a descrição da cozinha
e da conduta religiosa dos responsáveis pelo preparo das oferendas
para, finalmente, abordar a questão dos alimentos ritualísticos.
A descrição do preparo do acarajé, “comida preferida” de
alguns orixás, incluiu uma explicação detalhada do valor
nutricional do feijão fradinho, elemento tão importante no preparo
do acarajé e de outras “comidas de santo”. O babalorixá tratou de
ensinar aos acadêmicos da Nutrição que esse feijãozinho possui 78
Etnopsicologia e Saúde 111

Calorias; 5,1g de Proteína; 7,5 g de Fibra; 13,5 g de Carboidrato; 127


µg de Folato (vitamina B9); 0,12 mg de Tiamina (vitamina B1); 0,10
mg de Cobre e 1,1 mg de Ferro. Preciso dizer algo mais? Seria essa
a informação que os nutricionistas pretendiam obter ao se
inscreverem para participar dessa Roda de Conversa?
Certamente, é relevante conhecer as propriedades nutricionais
do feijão fradinho quando nossa preocupação é nutrir corpos
físicos. Mas, o que essa informação acrescenta quando nosso
interesse é relativo à nutrição também de corpos sutis dos seres
humanos e à nutrição de outros seres? Nosso interesse recai sobre
o axé veiculado nos rituais de oferendas de comida e no uso de
alimentos para prevenção e cura de desequilíbrios físicos, mentais
e sociais. Pelo menos é isso que se espera da fala de um sacerdote
ou sacerdotisa de religiões africanas ou de matrizes africanas.
Observando que as divindades do panteão iorubá têm
“preferências” e “interdições alimentares” e que nós, devotos,
temos ewós (interdições) alimentares, denominados “quizilas” nos
espaços religiosos bantu, como não desejar compreender as
relações entre ofertantes, alimentos ofertados (ou evitados) e seres
espirituais reverenciados por meio desses rituais? Elaborei tabelas
e tabelas de alimentos ritualísticos buscando relações intrínsecas
entre eles, sempre questionando a respeito das preferências e das
interdições alimentares das divindades, mas não apenas isso:
querendo compreender também o fundamento lógico das
recomendações alimentares trazidas pelo jogo oracular e
transmitidas aos adeptos por sacerdotes e sacerdotisas do culto.
Que tipo de conexão se estabelece entre as divindades e seus
ofertantes por meio das oferendas de comida? Estamos tratando de
uma prática que, no caso africano, se repete há mais de oito
milênios. Seria somente simbólica a sua eficácia? Não! Não é tão
simples assim.
No estudo por mim realizado foi associada à pesquisa
bibliográfica e virtual uma coleta de dados no Oduduwa, Templo dos
Orixás, local de ensino e prática da religião tradicional iorubá. Não
estendi a coleta de dados a espaços de ensino e prática de religiões
Etnopsicologia e Saúde 112

brasileiras afrodiaspóricas. Além do aprofundamento teórico


proporcionado por leituras, realizei entrevistas semidirigidas e
observação participante. Dialoguei com o Babalorixá King, liderança
do Templo, iorubá, nigeriano de Abeokutá, Ogun State, e com altos
sacerdotes e sacerdotisas, residentes em Abeokutá, que anualmente
permanecem no Templo do início de dezembro ao final de fevereiro.
Durante o período de pandemia foi possível intensificar minha
presença e participação nos rituais de preparo e oferenda de alimentos
a orixás e ancestrais veneráveis, me servindo do fato de ocupar
posição na família iorubá por casamento e maternidade e por meu
reconhecido compromisso existencial com o povo iorubá, sua cultura
e sua religião tradicional.
Talvez fosse desnecessário abrir parênteses, mas me parece
importante lembrar que rituais de oferenda de alimentos a seres
espirituais não são exclusividade das religiões de matrizes
africanas: estão presentes em diversas religiões, fenômeno
enfatizado por Roque (2016) na obra Culinária Sagrada.
Os processos educacionais e terapêuticos da religião
tradicional iorubá (África Ocidental) visam ao desenvolvimento de
“pessoas fortes”, carregadas de axé, a força vital. Bons portadores
de axé são as pessoas solidárias, voltadas para o bem comum, o que
implica, necessariamente, na prática de virtudes pessoais. Por isso
a (re)educação de valores é continuamente realizada no âmbito
religioso, indissociável do âmbito sociocultural.
Em narrativas do Corpus Literário de Ifá, livro sagrado dos
iorubás, entre os valores fundamentais estão incluídos o respeito aos
ancestrais (princípio da ancestralidade) e aos mais velhos (princípio
da senioridade); a fertilidade, a prosperidade, a longevidade e a
paciência, sendo a prática desta última uma das principais condições
de conquista das demais. A paciência pressupõe boa dose de
benevolência, conforme o dito popular iorubá:

A cabaça do benevolente não quebra


O prato do benevolente não trinca
Crianças, saúde e dinheiro fluem para dentro da casa do benevolente.
Etnopsicologia e Saúde 113

Não basta realizar rituais mágico-religiosos para aumentar e


intensificar a própria carga de axé para ser curado, obter dádivas
ou afastar pessoas e condições indesejáveis: é indispensável
associar tais procedimentos a um rigoroso processo de
autoeducação, de aprimoramento de si. Considerando, por
exemplo, a necessidade de se tornar paciente, no âmbito dessa
religião mesmo, o apoio de orixás para alguém se tornar mais
paciente envolve rituais que, geralmente, incluem a oferenda de
alimentos específicos.
Ao iniciar meus estudos sobre o tema aqui abordado estabeleci
os objetivos de contribuir com novos subsídios para os debates
sobre Psicologia e Religião ao explorar a lógica da comunicação
ritualmente estabelecida entre homens e divindades por meio da
oferenda de alimentos; aprofundar estudos sobre o temperamento
humano e suas bases genéticas, bioquímicas e energéticas e, com
base em estudos sobre os quatro elementos da natureza – terra,
água, ar e fogo, identificar possíveis afinidades entre os elementos
da tríade – homens-alimentos-divindades.
Parte do texto resultante desse trabalho de pesquisa aqui
apresentado foi organizado em seções: Seção I. Revisitando estudos
sobre temperamento, caráter e personalidade; Seção II. Noções de
pessoa, temperamento e saúde (II.1 Noção greco-romana de
pessoa, temperamento e saúde; II.2 Noção judaico-cristã de pessoa,
temperamento e saúde; II.3 Noção antroposófica (hermetismo
cristão) de pessoa, temperamento e saúde; II.4 Noção iorubá de
pessoa, de temperamento e de saúde); Seção III. Comida de Santo
– “alimentando” seres espirituais; Resultados: possíveis relações
entre Comida de Santo, Temperamento Humano e Saúde.

Seção I. Revisitando estudos sobre temperamento, caráter e


personalidade

Em artigo intitulado “Particularidades sobre o temperamento,


a personalidade e o caráter, segundo a psicologia corporal”, Volpi
(2012) assinala que esses termos têm sido utilizados sem o devido
Etnopsicologia e Saúde 114

cuidado conceitual. Movido pela mesma constatação, Pasquali


(2000) e Massimi (2005) saíram em busca de um arcabouço teórico
que lhes possibilitasse conceituá-los com precisão. Uma vez
identificado por esses autores que no âmbito da Psicologia, como em
diversos outros âmbitos, há ambiguidades relativas à compreensão
do que seja temperamento, algumas vezes confundido com
personalidade, outras vezes considerado causa de reações
emocionais, outras vezes, ainda, atribuído de outros significados,
esses três autores se dedicaram à tarefa de elucidar conceitos.
Pasquali (2000) nos lembra que a palavra temperare, utilizada
por Galeno de Pérgamo (129-199 d.C.), designava o equilíbrio dos
humores no corpo, tido por condição indispensável à boa saúde.
Essa palavra teria dado origem à palavra temperamento, cujo
significado foi expandido para abranger referências à estrutura
predominante do humor e da motivação de animais e de pessoas.
Uma apresentação mais completa dos sistemas de explicação do
temperamento foi realizada por esse autor e publicada na excelente
obra Os tipos humanos: a teoria da personalidade.
Em seu extenso e minucioso trabalho, Pasquali traçou um
histórico da construção da teoria dos humores, atrelada à tradição
filosófica do número quatro, de Pitágoras (572-497 a.C.) e à teoria
cosmológica dos quatro elementos de Empédocles de Acragas (490-
430 a.C.), filósofo para quem toda substância é composta dos
elementos terra, fogo, água e ar.
A teoria dos
humores não é o único
sistema que
fundamenta a
compreensão dos
temperamentos. Volpi
(2012) destaca, entre
outras, a teoria
morfológica, cuja
tipologia relaciona
características físicas a
Etnopsicologia e Saúde 115

características psicológicas. Para esse autor, o mais aceitável é que


certas características decorrem de processos fisiológicos do sistema
linfático e da ação endócrina de determinados hormônios. Por esse
caminho se pode explicar o papel da genética e do meio na
composição dos temperamentos. O temperamento seria, pois, uma
disposição inata, geneticamente determinada, para reagir a
estímulos ambientais.
As teorias morfológicas, formuladas inicialmente pelo
psiquiatra alemão Kretschmer, já em 1921, e embora relacionadas
às teorias bioquímicas, enfatizam aspectos estruturais do corpo:
buscam reconhecer tipos corporais para estabelecer uma tipologia.
A possível relação entre estrutura corporal e personalidade levou a
uma classificação segundo a qual um físico delgado e delicado, por
exemplo, estaria associado a um temperamento introvertido,
enquanto um físico rotundo, pesado e curto estaria associado a um
temperamento extrovertido e jovial. Kretschmer chegou a
explicitar três tipos de temperamento correspondentes a tipos
orgânicos, cujas características acham-se reunidas em tabela
organizada por Pasquali (2000, p. 9) e reproduzida a seguir.

Figura 1. Relação entre tipo físico, temperamento e personalidade


segundo Kretschmer
Tipo Físico Descrição Temperamento Descrição
Pícnico Gordo, Ciclotímico Quando alegre:
arredondado diastésico jovial, loquaz,
Oscila entre otimista; quando
tristeza e alegria deprimido: afável,
tranquilo,
silencioso
Leptossômico Alto, esguio Esquizotímico Idealista,
Psico-estésico reformador
sensibilidade e
frieza.
Atlético Robusto, Ixotímico Tenaz e explosivo
muscular
Etnopsicologia e Saúde 116

Cloniger, Svrakic e Przybeck (1998, citados por Pasquali, 2000)


propuseram um modelo tridimensional da personalidade baseado em
sete dimensões, quatro das quais de temperamento (dimensões de
base prioritariamente biológica) e outras três de caráter (dimensões de
base prioritariamente psicológica). Volpi (2012), por sua vez, após
enunciar diversas teorias psicológicas do temperamento, afirmou que
o mais aceitável é admitir que certas características do temperamento
estão associadas a processos fisiológicos do sistema linfático e da ação
endócrina de hormônios, de modo análogo ao proposto por Volpi. No
âmbito dessa explicação, segundo a qual tanto a genética quanto o
meio exercem ação sobre o temperamento, este pode ser
compreendido como uma disposição pessoal e inata, pronta a reagir a
estímulos ambientais. Temperamento seria, pois, o aspecto somático
da personalidade.
Volpi (2012) afirma que o temperamento pode ser transmitido
de pais para filhos e, embora não seja passível de aprendizagem,
pode ser abrandado por meio de ação educacional, competindo ao
caráter realizar a ação modeladora. Da constituição da
personalidade, processo que ocorre desde a gestação, participam
elementos do temperamento, geneticamente herdados, e elementos
do caráter, adquiridos do meio ambiente.
Strelau e Angleitner (1987, citados por Pasquali, 2000)
descrevem cinco características que diferenciam temperamento de
personalidade: 1) o temperamento é biologicamente determinado;
a personalidade é produto do ambiente social; 2) características
temperamentais podem ser identificadas desde cedo na infância; a
personalidade é moldada ao longo de todo o desenvolvimento
infantil; 3) diferenças individuais com características
temperamentais, como ansiedade, extroversão-introversão são
observáveis também em animais; personalidade é prerrogativa dos
seres humanos; 4) o temperamento se expressa por meio de
qualidades estilísticas; a personalidade se expressa por meio de
comportamentos e 5) o temperamento não desempenha função
integrativa no comportamento humano, mas a personalidade, sim.
Etnopsicologia e Saúde 117

Seção II. Noções de pessoa, temperamento e saúde

A concepção de temperamento acha-se intimamente relacionada


à noção de pessoa. Em O corpo e suas dimensões anímicas, espirituais e
políticas: perspectivas presentes na história da cultura ocidental e brasileira,
Massimi (2005), importante referência nos estudos da história da
Psicologia, reuniu perspectivas de corpo com suas dimensões
anímicas, espirituais e políticas. Remontando a concepções
formuladas ao longo da tradição ocidental, privilegiou as de
pensadores da Grécia clássica, da tradição judaico-cristã, da Idade
Média, da Idade Moderna e do Brasil Colônia.

II.1 Noção greco-romana de pessoa, temperamento e saúde

Hipócrates (460-377 a.C.) considerava haver íntima unidade


entre corpo e alma e entendia que à medicina do corpo corresponde
uma medicina da alma, sendo a saúde da unidade corpo-alma
identificável por meio de avaliação do equilíbrio: qualquer
desequilíbrio (no corpo ou na alma) causa doenças. Segundo essa
concepção, um excesso de apetite sensorial (paixão) ou de
determinado “humor” pode causar doenças físicas e psicológicas.
A Hipócrates devemos a primeira formulação da teoria dos
humores, também teoria dos temperamentos. A medicina
hipocrática, tendo por princípio da saúde o equilíbrio e por
considerar que toda doença decorre de um desequilíbrio no corpo
ou no espírito, reconheceu como verdadeira a profunda unidade
entre corpo e alma.
Pasquali (2000) narra que além de criar a teoria dos humores
ou dos temperamentos, Hipócrates (460-377 a.C.) relacionou
aspectos cósmicos à saúde das pessoas. Os quatro humores
fundamentais, determinantes das características psicossomáticas
do indivíduo são, segundo Hipócrates, a bílis preta (atrabilis), a
bílis amarela (bílis), a fleuma (linfa) e o sangue, aos quais
correspondem os temperamentos melancólico ou nervoso,
característico de pessoas tristes e sonhadoras, de reações lentas e
Etnopsicologia e Saúde 118

intensas; colérico ou bilioso, típico de pessoas de reações rápidas e


intensas, cujo humor se caracteriza por desejos intensos e
impulsividade, com predominância da bile; fleumático ou linfático,
típico de pessoas de reações fracas, lentas, apáticas, de sangue frio;
e sanguíneo, típico de pessoas de humor variável e de reações
rápidas e débeis. O predomínio de determinado humor na
constituição individual determina características pessoais e o tipo
de temperamento, conforme enunciado na Figura 2 apresentada a
seguir, retirada de Pasquali (2000, p. 8):

Figura 2. Características pessoais e temperamentos


Produção Temperamento Características Reações
Excessiva Pessoais
Bílis Melancólico Pessoas tristes e Lentas e intensas
negra sonhadoras
Bílis Colérico Pessoas Rápidas e
amarela (bilioso) impulsivas, com intensas
desejos intensos
Sangue Sanguíneo Pessoas de humor Rápidas e débeis
oscilante
Água Fleumático Pessoas lentas e Fracas e lentas
apáticas

Teorias aristotélicas, apoiadas em uma visão integral de


pessoa, a entenderam como unidade psicossomática individual,
social e cósmica. Aristóteles (384 a.C.), filósofo da Antiguidade,
discípulo de Platão e mestre de Alexandre, o Grande, considerava
o corpo um “executor” de operações anímicas e a alma, um
princípio vital: o corpo era considerado integrante da natureza
humana e submetido à alma. Não para lhe servir de instrumento,
mas por terem ambos a mesma finalidade. Sendo a relação entre
corpo e alma considerada uma relação de amor e amizade e o
equilíbrio, o princípio da saúde, todo e qualquer desequilíbrio, no
corpo ou na alma, era considerado causa de doença.
Aristóteles descreveu propriedades básicas dos elementos: à
terra estão associados o frio e a secura; ao fogo, a secura e o calor; à
Etnopsicologia e Saúde 119

água, a umidade e o frio e ao ar, o calor e a umidade, conforme


apresentado na Figura 3 a seguir, retirada de Pasquali (2000, p. 8):

Figura 3. Propriedades básicas dos elementos


Frio Calor Umidade Secura
Terra
Água
Fogo
Ar

Essa teoria, posteriormente


difundida pelo greco-romano
Galeno de Pérgamo (129-199
d.C.), perdurou por mais de
2.500 anos, postulando que a boa
saúde depende do equilíbrio na
dosagem dos humores corporais.
This Photo by Unknown O excesso de algum desses
Author is licensed under CC quatro humores produz doenças
BY-SA no corpo e traços exagerados de
personalidade. Do predomínio
de determinado humor na constituição corporal decorre um
temperamento específico.

II.2 Noção judaico-cristã de pessoa, temperamento e saúde

Os textos bíblicos da tradição judaico-cristã retomam a visão


aristotélica de uma sociedade civil estruturada com base na
arquitetura de corpos individuais. Perseguindo o ideal de
relacionamentos fraternos, a soma de ações individuais constitui o
corpo social. A criatura humana, imagem e semelhança de Deus,
por Ele modelada, se torna vivente ao receber do Criador o sopro
vital, passando a ser constituída de corpo (modelado em argila),
alma e espírito.
Etnopsicologia e Saúde 120

Referindo-se à composição dos humores do corpo, origem dos


vários temperamentos, Massimi (2005) assinala que do excesso ou
escassez de determinado humor decorrem patologias físicas e
psicológicas, sendo preciso preservar o equilíbrio entre humores
para se obter uma vida saudável. Rodrigues (1556-1660) ilustra o
uso da teoria dos temperamentos mencionando os Catálogos
Trienais do Brasil, redigidos pelas comunidades jesuíticas em
atendimento à exigência do Padre Geral da Companhia. Registra,
então, que nos vários locais de “residência” de jesuítas junto a
aldeias indígenas da Província da Bahia era exigida a presença de
sacerdotes dotados de talentum ad linguas - capacidade para falar e
pregar no idioma dos índios, e de talentum ad concionatum –
capacidade para pregar o Evangelho. Dos jesuítas residentes no
Colégio se exigia indivíduos de “compleição melancólica” porque
o excesso do humor da melancolia predispõe a atividades
intelectuais e indivíduos de “compleição fleumática” porque o
excesso desse humor propicia aptidão para os “ofícios domésticos”.
O corpo religioso, social e político da Companhia utilizava o
conhecimento de “corpo psíquico individual” em suas relações
com o ambiente para favorecer a adaptação dos missionários a
distintos contextos.

II.3 Noção antroposófica (hermetismo cristão) de pessoa,


temperamento e saúde

[...] pra se entender tem que se achar


Que a vida não é só isso que se vê.
É um pouco mais, que os olhos não conseguem perceber
E as mãos não ousam tocar e os pés recusam pisar...
(Sei lá Mangueira. Samba de Hermínio Bello de Carvalho e
Paulinho da Viola)
Etnopsicologia e Saúde 121

No âmbito do Hermetismo
Cristão, o austríaco Rudolf
Steiner (1861-1925), que fora
presidente da Sociedade
Teosófica da Alemanha por dez
anos (1902-1912), ao se tornar
dissidente fundou a
Antroposofia, ou Ciência
Espiritual. Baseado em
minuciosos estudos sobre a
natureza e o desenvolvimento
This Photo by Unknown Author humanos, Steiner descreveu o
is licensed under CC BY-NC- homem como cidadão de dois
ND
mundos – um material e outro
sutil - e discorreu, pormenorizadamente, sobre a noção de pessoa,
de temperamento humano e saúde, relacionando o temperamento
aos quatro elementos da natureza.
Steiner postulou que embora possamos perceber somente o
corpo biológico de uma pessoa, isto não significa que o ser humano
seja redutível a essa condição material. Postulou que a entidade
humana é tetramembrada, integrada por corpo físico; corpo etérico,
“corpo do sistema glandular”, corpo das forças plasmadoras,
construtor do corpo físico; corpo astral, “corpo do sistema nervoso”,
portador do prazer e do sofrimento, da alegria e da dor, dos
instintos, impulsos, paixões, desejos e tudo o que nos comove e
membro portador do eu.
A entidade humana compartilha com o meio material sua
condição de possuir corpo físico; compartilha com as plantas sua
condição de possuir corpo etérico e compartilha com os animais sua
condição de possuir corpo astral. Seu quarto membro, o portador
do eu, é exclusividade humana, que nos capacita a dizer “eu” e
chegar à independência. O verdadeiro portador do eu é o sangue;
a expressão física do corpo astral é, entre outras, o sistema nervoso;
a expressão física do corpo etérico é, entre outras, o sistema
glandular e a expressão do corpo físico são os órgãos sensoriais.
Etnopsicologia e Saúde 122

Temos aqui, apresentada grosso modo, a noção antroposófica


de pessoa. Em “O percurso do pensamento de Rudolf Steiner e seu
possível lugar no espaço psicológico”, sua dissertação de mestrado,
Paula Franciulli (2015) argumenta, com muita propriedade, em
defesa da pertença da Antroposofia de Rudolf Steiner (1861-1925),
ao conjunto de psicologias. Um de seus argumentos é o de que a
Antroposofia compartilha com diversas propostas teóricas da
psicologia o estudo do ser humano em relação consigo mesmo, com
o outro, com o mundo e com o cosmos.
Franciulli (2015) refere-se à crise relativa à unicidade da
Psicologia, já presente quando Vygotsky (1934/2010) afirmava que
a causa de haver várias teorias psicológicas é, basicamente, a
ambiguidade entre materialismo e idealismo, que deu lugar a
psicologias consideradas por Figueiredo (2012) como
microcomunidades relativamente independentes, portadoras de
crenças e métodos próprios. Este autor propôs que o espaço
psicológico já estava configurado antes de a Psicologia adquirir
status de ciência, uma vez que já se atribuía caráter psicológico a
tudo o que dissesse respeito à capacidade humana de refletir sobre
as subjetividades.
Franciulli (2015) propõe que a contribuição de Rudolf Steiner
seja reconhecida no espaço psicológico, tal como esse espaço é
explorado por Figueiredo (2008; 2011), haja vista que o
espaço/tempo vivido por Steiner é contemporâneo ao de
pensadores que fundamentaram o surgimento da Psicologia.
Sabemos que os múltiplos modos de fazer psi, germinados no
século XVI e consagrados como ciência no século XIX, ainda são
explorados atualmente.
Enquanto algumas matrizes da Psicologia privilegiam teorias
empíricas, racionais ou positivistas, como o Associacionismo, o
Funcionalismo, o Estruturalismo e o Behaviorismo, por exemplo,
outras matrizes privilegiam abordagens idiográficas, sendo entre
estas últimas que Franciulli (2015) posiciona a epistemologia
steineriana.
Etnopsicologia e Saúde 123

Por meio dos aspectos cognitivo-emocionais que permearam a


vida de Steiner, essa autora analisa a construção de seu pensamento,
utilizando, para isso, a perspectiva metateórica do Construtivismo
Semiótico-Cultural em Psicologia (CSC), entendendo por aspectos
cognitivo-emocionais os constructos relativos à subjetividade humana
atuantes no desenvolvimento do sujeito em suas interações consigo,
com o outro e com o mundo.
A epistemologia elaborada por Steiner, que teve por base os
escritos científicos de Johan Wolfgang Goethe (1749-1832), é
considerada por seus estudiosos uma epistemologia
fenomenológica que traz implícita a cosmovisão goethiana
(Franchiulli, 2015).
Observo que outra expressiva e singular contribuição de
Steiner é sua concepção espiritualista, que viria a incluí-lo, muitos
anos depois, entre os teóricos da Quarta Força em Psicologia. Ele
acompanhava as pesquisas e teorias que iam surgindo e fazia
comentários em conferências. Em Conceitos fundamentais para uma
Psicologia Antroposófica, coletânea de conferências proferidas por
Steiner, Treichler (2011) reúne pontos de vista que denotam
claramente a contribuição desse grande pensador para uma
psicologia que considere a dimensão espiritual do humano, tal
como concebida pelo Hermetismo Cristão, com especificidades
próprias do pensamento antroposófico.
Até hoje perdura a resistência do saber psicológico dito
científico para aceitar a possibilidade de sermos seres espirituais
que encarnamos e reencarnamos por vezes sucessivas, nos
servindo de veículos físicos e sutis para transitarmos em espaços
físicos, etéricos e astrais. Estudiosos e pesquisadores, entre os quais
me incluo orgulhosamente, têm se visto obrigados a dissociar suas
convicções, impropriamente chamadas crenças, de sua práxis
profissional para se furtarem ao risco de serem considerados
ingênuos ou ignorantes. Até quando?
Retomando a noção antroposófica de temperamento, temos
que, embora os quatro temperamentos - sanguíneo, colérico,
fleumático e melancólico – sejam mesclados, é possível reconhecer a
Etnopsicologia e Saúde 124

predominância de algum deles, o que permite classificar as pessoas,


genericamente, em quatro grupos humanos. E, embora o herdado
dos antepassados seja revelador de qualidades físicas e morais de
uma pessoa, apenas as características herdadas são insuficientes
para dar a conhecê-la, pois, como afirma Steiner (1996, p. 17), há em
toda pessoa algo que é trazido do mundo espiritual para unir-se ao
que é recebido dos antepassados. Esse algo, advindo do cerne de sua
natureza, é fruto de vidas anteriores. Ou seja, a Antroposofia admite
a lei da sucessão de vidas terrenas, segundo a qual todo ser humano
ingressa na vida física trazendo experiências de uma sequência de
vidas anteriores, sem que isto tenha qualquer coisa a ver com o que
está em sua corrente hereditária.
Segundo essa concepção, cada um de nós traz de encarnações
pregressas o cerne da própria entidade humana e o reveste com o
que lhe é fornecido pelos pais. E, então, somente se faz possível
realizar o que o instrumento físico permite e o instrumento físico
apenas permite a presença de elementos que confluíram na
corrente hereditária e foram transmitidos por pai e mãe para um
indivíduo que desceu do mundo espiritual. Steiner considera

uma lógica de pernas curtas querer fazer remontar as qualidades


espirituais de um ser humano à sua corrente de antepassados.
Devemos fazer remontar essas qualidades àquilo que o homem traz
consigo de encarnações anteriores. [...] Sua verdadeira essência
individual se reveste de envoltórios fornecidos pelos antepassados,
mas as qualidades que traz consigo são puramente individuais. [...]
Vemos, portanto, que estamos diante da confluência de duas
correntes: por um lado, o que recebe de sua família e, por outro lado,
o que desenvolve com base no que há de mais íntimo em sua
natureza, ou seja, predisposições, qualidades e aptidões interiores e
destino exterior (1996, p. 20-21).

Entre a linha hereditária e a individualidade está o


temperamento, que fica, pois, entre o que trazemos individualmente
e o que provém de nossa linhagem hereditária: do encontro, união e
mútua influência dessas duas correntes resulta o temperamento, que
Etnopsicologia e Saúde 125

equilibra eterno e efêmero. Na natureza humana os quatro membros


interagem e, dependendo da predominância de um deles, temos este
ou aquele temperamento, resultante da dinâmica específica de
interação desses membros: quando a força do eu predomina sobre
os demais membros, surge o temperamento colérico; quando
predomina a força do corpo astral, surge o temperamento
sanguíneo; quando predomina a força do corpo etérico, surge o
temperamento fleumático e quando predomina a força do corpo
físico, surge o temperamento melancólico.
Tais conhecimentos integram o
corpo teórico que fundamenta a
Medicina, a Psicologia e a Nutrição
de base antroposófica, bem como a
Educação Waldorf e a Biodinâmica,
entre outras disciplinas. A
recomendação alimentar adequada a
cada temperamento é fundamental
nos processos educacionais e nos
processos de saúde, tanto na ação preventiva quanto na ação
terapêutica.

II.4 Noção iorubá de pessoa, de temperamento e de saúde

Nas tradições negro-africanas, das quais tenho particularizado


o estudo da etnia iorubá, essa é a concepção de homem e de
universo: tudo relacionado a tudo, como uma imensa teia: tocamos
um ponto e fazemos vibrar o todo. Acho interessante que nossa
concepção ocidental de realidade tenha se afastado tanto dos
saberes milenares preservados nessas sociedades. Reconhecida
nessa concepção holística a indissolúvel correspondência entre
fenômenos humanos, naturais e cósmicos, um único passo conduz
ao reconhecimento de haver correspondência entre seres humanos,
seres da natureza/seres cósmicos e alimentos.
Os iorubás, grupo étnico presente na Nigéria, Togo e
República do Benin, considera a pessoa constituída de elementos
Etnopsicologia e Saúde 126

biológicos, psíquicos, geracionais, sociais e espirituais, o que


envolve nove componentes, alguns intrínsecos ao indivíduo e
outros extrínsecos a ele: ará, ojiji, okan, emí, iwá, Ori, egbé, aiye e ilê
(Frias, 2016; 2019).
Ará é o corpo físico; ojiji, “fantasma humano” ou sombra, é a
representação visível da essência espiritual que acompanha o ser
humano durante toda a vida e morre com ará, embora não seja
enterrado com ele; okan, o coração, fonte das ações, é considerado a
sede da inteligência e do pensamento intuitivo; emí é o “Eu”, ser
espiritual que habita ará (emí significa, também, vida, fôlego,
espírito, alma, ser e sopro), é o princípio vital, intimamente
relacionado à respiração, mas não redutível a ela. Por ocasião da
morte se diz que emí se foi.
A palavra iwá designa temperamento, personalidade, caráter,
atitude e comportamento e a palavra Ori designa cabeça. A cabeça
física representa e é símbolo de Ori inú, a cabeça interior, essência
do orixá Ori. Temos optado por grafar com inicial maiúscula a
palavra Ori quando designa o orixá pessoal, que guia, acompanha
e ajuda a pessoa antes do nascimento, durante a vida e após a
morte. Ori está relacionado a iwá e ao axé, a força vital, mais intensa
em alguns do que em outros.
Entre os elementos extrínsecos da constituição humana estão
ojó (dia, data, tempo, ciclo, fase) e ilê (casa, lar, espaço, terra, planeta
terra, mundo, universo). Tanto quanto a família em que se nasce, o
corpo e os coletivos de pertença, o tempo e o espaço interferem nas
ocorrências existenciais determinadas pelo destino. A palavra egbé,
que significa sociedade, comunidade, grupo, associação,
corporação, fraternidade, círculo de amigos e companhia (Sàlámì,
2020), é outro conceito importantíssimo para a compreensão da
lógica iorubá de concepção de pessoa e de sociedade, uma vez que
os principais valores privilegiam o bem comum e o
compartilhamento. Egbé alude a grupos de pertença, constituídos
por indivíduos que partilham a mesma predestinação e/ou têm
laços em comum. A confluência de predestinações individuais
compõe uma predestinação coletiva, mais duradoura. O
Etnopsicologia e Saúde 127

nascimento de uma criança deve-se ao encontro de pais, avós e


bisavós, que integram seu egbé biológico, primeiro egbé de
pertença. No decorrer da vida todos integramos diversos coletivos,
parte dos quais no aiyê, parte dos quais no orun.
Cabe ressaltar que a concepção iorubá de saúde inclui, para
além das condições físicas e mentais, as condições sociais e
econômicas. A prática de oogun previne e cura doenças físicas e
mentais, bem como outros desequilíbrios de ordem financeira e
social, uma vez que todo desequilíbrio é efeito da escassez de axé e
o axé pode ser reposto. Relevante observar, então, que a concepção
iorubá de saúde inclui todas as dimensões da existência: tanto as
condições de saúde física e emocional quanto as condições de
“saúde social e financeira”.

Seção III. Comida de Santo – “alimentando” seres espirituais

Aos orixás, seres da natureza/seres cósmicos e aos ancestrais


veneráveis, seres humanos já idos/seres cósmicos são ofertados
alimentos, portadores de qualidades nutricionais e de axé. A
oferenda de alimentos a essas entidades espirituais são recursos
litúrgicos fundamentais para a dinamização de seu axé. Se
tomamos por base os ensinamentos antroposóficos, segundo os
quais o temperamento humano resulta da interação de duas
correntes de axé – a corrente intergeracional, que oferece sua carga
genética, e a corrente das sucessivas encarnações da
individualidade humana que, advinda do mundo espiritual,
experiencia uma nova encarnação em determinado grupo familiar,
concluímos que é impossível a transmissão do axé nos processos
litúrgicos iorubás não ter uma lógica subjacente.
Crus ou processados ritualmente, os alimentos são oferecidos
aos Orixás para dinamizar seu axé. Dizer que Orixás e Ancestrais
Veneráveis têm “preferências e interdições alimentares” é um
recurso figurativo para designar os alimentos que lhes são
oferecidos ou que, pelo contrário, têm sua oferta interditada.
Estamos tratando de campos energéticos e o que denominamos
Etnopsicologia e Saúde 128

dinamização do axé é o processo por meio do qual se “ativa” o axé


específico, a qualidade energética específica de habitantes do
orun, o mundo suprassensível. Estamos falando, pois, da
interação de fluxos de energia presentes no ser humano e nos
seres naturais e cósmicos.
A escolha de alimentos e seu preparo são atividades
ritualísticas realizadas de acordo com ensinamentos preservados
em narrativas do Corpus Literário de Ifá (Odu Corpus), livro sagrado
dos iorubás, algumas das quais acham-se registradas na obra Exu e
a Ordem do Universo de Sálàmí e Ribeiro (2015). A definição do ser
espiritual ao qual deve ser realizada a oferenda depende de
consulta ao jogo oracular, por meio do qual respondem Odus,
Orixás e Ancestrais Veneráveis. Alguns princípios já são do
conhecimento de todos. Por exemplo, é de conhecimento bastante
difundido nas Casas de Axé brasileiras que o azeite de dendê é
interdito de Oxalá e que o carneiro é interdito de Oyá (Iansã).
Assim como os Orixás, as pessoas também têm, cada qual, o seu
ewó alimentar, ou seja, sua interdição alimentar, também
denominada quizila em idioma bantu.
Alimentos específicos, preparados ritualmente, tanto podem
ser entregues como oferenda a Orixás e Ancestrais Veneráveis
quanto podem ser utilizados em sarás e ebós. Oferendas são
realizadas para fortalecer a conexão do adepto com orixás, ou para
agradecer por bens recebidos ou, ainda, para solicitar sua
intervenção em assuntos dos mais diversos âmbitos. Sará é o ato
litúrgico da comensalidade, geralmente realizado em espaço
profano: refeições são compartilhadas em grupo para “produzir
alegria”, da qual deriva determinada qualidade de axé a ser
utilizado para determinada finalidade de cura ou de prevenção.
Ebós são rituais realizados para afastar um mal já instalado, evitar
um mal que está por vir, ou atrair o bem para qualquer âmbito da
existência – pessoal, conjugal, familiar, profissional etc.
Neste contexto tratei de particularizar dados sobre
especificidades dos alimentos de Orixás, buscando relacionar a
razão pela qual certos alimentos são destinados a determinados
Etnopsicologia e Saúde 129

Orixás para dinamizar seu axé em benefício do ofertante. Há uma


lógica não explicitada na seleção desses alimentos e, segundo me
parece, um caminho para a compreensão dessa lógica da
comunicação entre homens e divindades por meio de alimentos
talvez seja o da exploração atenta das qualidades energéticas de
três componentes da relação ritualmente estabelecida: das
divindades reverenciadas, dos ofertantes e da própria oferenda.
Refleti longamente sobre esse tema e cheguei à conclusão que
um recurso a ser experimentado é o de identificar afinidades
energéticas entre os elementos da tríade – homens-alimentos-
divindades, ou seja, verificar “simpatias” e antipatias”
estabelecidas entre esses elementos com base nos quatro elementos
da natureza – terra, água, ar e fogo.
Segundo me parece, no âmbito da Psicologia, o principal
ponto de ancoragem para essa busca são os estudos sobre
temperamento humano. Revisitando esses estudos encontrei
elementos indispensáveis no Saber Antroposófico, particularmente
na produção da Educação e da Psicologia Antroposóficas. Essa
aproximação é favorecida pelo fato de o Saber Antroposófico
compartilhar com o Saber Iorubá concepções de universo e de
pessoa que dialogam muito bem entre si (Ribeiro, Sálàmí, & Diaz,
2004; Ribeiro, 2015).
Os elementos e alimentos de oferendas, de ebós e de outros
rituais requerem a adoção de técnicas de manipulação. Cada um
deles tem função própria e momento certo de ingressar no ritual.
Uma descrição abrangente desses elementos e alimentos exige maior
espaço de exposição do que o disponível em um capítulo de livro.

Possíveis relações entre Comida de Santo, Temperamento


Humano e Saúde

Chegando ao fim desta etapa de estudo reconheci que os


princípios, as normas, as regras e as finalidades da culinária
sagrada iorubá não estão registradas em livros ou manuais de
fácil consulta, como o que se pode realizar no âmbito do saber
Etnopsicologia e Saúde 130

antroposófico ou no âmbito de outros saberes, como os da


Macrobiótica e do Taoísmo, por exemplo. No caso iorubá, estando
todos os conhecimentos reunidos no já mencionado Corpus
Literário de Ifá (Odu Corpus) e sendo eles transmitidos de geração
em geração ao longo da corrente de tradição oral, quando se trata
de definir, caso a caso, especificidades dos rituais de oferenda –
definição do Orixá a ser “alimentado”; do local de entrega da
oferenda e de conduta alimentar a ser adotada pelo devoto – o
acesso mais usual a tais informações e conhecimento é realizado
por meio do jogo oracular. A leitura oracular é realizada por
Babalaôs, sacerdotes de Ifá-Orunmilá, por meio do opelé (corrente
divinatória) e/ou dos ikins (coquinhos do dendezeiro) e por
Babalorixás e Ialorixás, sacerdotes dos demais Orixás, por meio
do erindilogun, jogo dos dezesseis búzios.
Detalhes de todos os procedimentos litúrgicos estão contidos
nos milhares de itans, narrativas míticas do Odu Corpus, corpo de
saberes organizado em 16 Odus Principais e 240 Odus “Filhos”, o
que perfaz um total de 256 conjuntos de itans. Magnífico é o fato de
essas recomendações obtidas por meio de um jogo de acaso serem
de precisão e eficácia inquestionáveis.
Os iorubás se referem a relações entre Ori Inu, a “cabeça
interior” ou Eu Superior, Ipin Ori, o Destino, e Iwa, o complexo que
reúne personalidade, caráter, temperamento, atitudes, condutas e
comportamentos, identificando que a dinâmica estabelecida entre
essas instâncias resulta do fato de entrarem em jogo as qualidades
de Ori, a divindade pessoal, as determinações de Ipin Ori, o
Destino, e as qualidades da personalidade, do caráter e do
temperamento. O que, em linguagem ocidental, talvez possa adotar
a formulação segundo a qual a qualidade de vida está na
dependência de uma interação de qualidade positiva entre essas
instâncias da pessoa.
Etnopsicologia e Saúde 131

Considerações finais

Os resultados evidenciaram que a complexa dinâmica


estabelecida entre Ori (Eu Superior), Iwá (temperamento, caráter,
personalidade), Orixás e Ancestrais Veneráveis e “Comida de
Santo” obedece a princípios e leis já descritos por teorias do
temperamento humano. No entanto, essas teorias são necessárias,
porém insuficientes para dar a compreender tal dinâmica de
relações. Isto porque a especificidade do axé (energia vital) de cada
Orixá e dos Ancestrais Veneráveis, de cada temperamento
humano, nunca “puro”, uma vez que toda pessoa reúne em si
peculiaridades de distintos temperamentos e, finalmente, dos
alimentos oferecidos aos seres espirituais, é distinta da lógica que
permite estabelecer relações precisas entre temperamentos e
alimentação humanos.
A impossibilidade de identificar afinidades entre
componentes da referida tríade (pessoas-alimentos-divindades),
utilizando, exclusivamente, estudos sobre os quatro elementos da
natureza, decorre da dificuldade de estabelecer correspondências
precisas no interior dessa tríade sem um estudo complementar das
qualidades de axé. Fica evidente a necessidade de desenvolver
estudos transdisciplinares complementares, que possibilitem
adotar recursos de inclusão metodológica do transcendente.

Referências

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de subjetivação (1500-1900). (7ª ed.). Escuta.
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ed.). Vozes.
Figueiredo, L. C. M., & Ribeiro de Santi, P. L. (2011). Psicologia: uma
(nova) introdução. (3ª ed.). Educ.
Etnopsicologia e Saúde 132

Franciulli, P. (2015). O percurso do pensamento de Rudolf Steiner e seu


possível lugar no espaço psicológico. (Dissertação de Mestrado em
Psicologia, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo).
Franciulli, P. (2016). A epistemologia de Rudolf Steiner integrando
o espaço psicológico: diálogos possíveis com a Psicologia
Cultural. In Conselho Regional de Psicologia de São Paulo,
Psicologia, Espiritualidade e Epistemologias Não-Hegemônicas
(Volume 3, pp. 127-134). CRP-SP.
Massimi, M. (2005). O corpo e suas dimensões anímicas, espirituais
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ocidental e brasileira. Mnemosine, 1(1), 4-23.
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Sàlámì, S. (King) & Ribeiro, R. I. (2015). Exu e a ordem do Universo.
(2ª ed.). Oduduwa.
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comportamento humano. (2ª ed.). Antroposófica. Coleção Textos
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Treichler, M. (Org.). (2011). Conceitos fundamentais para uma
Psicologia Antroposófica. Trad. J. Cardoso. Antroposófica/Sophia
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Volpi, J. H. (2012). Particularidades sobre o temperamento, a
personalidade e o caráter, segundo a Psicologia Corporal.
Revista Online Psicologia Corporal, 13, 1-8.
Etnopsicologia e Saúde 133

CAPÍTULO 6

SAÚDE FÍSICA E MENTAL:


ATENDIMENTO MÉDICO-MÁGICO-RELIGIOSO IORUBÁ E
ATENDIMENTO MÉDICO MODERNO EM
TERRITÓRIO AFRICANO

Rodrigo Ribeiro Frias

Apresentação

Neste capítulo, tenho por objetivo debater noções de saúde,


doença, cura e morte inspiradas nos iorubás da Nigéria (África
Ocidental), com enfoque em doenças mentais e propostas
tradicionais da etnia para o enfrentamento desses quadros. Temas
como Medicina Tradicional, Etnofarmacologia e Etnopsicologia são
abordados, bem como desafios atuais para a interação entre os
sistemas de trato médico, psicológico e farmacológico tradicional e
moderno. Como o método de investigação utilizado em minhas
investigações de doutorado e pós-doutorado incluiu um minucioso
levantamento de dados bibliográficos e virtuais apresento parte
desse levantamento, por considerá-lo útil para outros
pesquisadores.

Introdução

Em minha tese de doutorado, investiguei metamorfoses


identitárias de sacerdotes não iorubás de orixás inspiradas no
convívio com sacerdotes iorubás (Frias, 2019). O campo de
pesquisa foi o Egbé Oduduwa, coletivo de ensino e prática da
Religião Tradicional Iorubá, com templos em Abeokutá (Ogum,
Nigéria), Mongaguá (São Paulo, Brasil), Pium (Tocantins, Brasil),
Liubliana (Liubliana, Eslovênia) e La Coruña (Galícia, Espanha).
Etnopsicologia e Saúde 134

O percurso teórico pautou religiões brasileiras de matrizes


africanas; definições coloniais e pós-coloniais de raça-etnia,
relações étnico-raciais; enfrentamento do racismo e de seus efeitos
psicossociais; definições negro-africanas de Psicologia da Religião
e Psicologia Africana.
Mostrei que muitos estudos psi associaram a mediunidade
manifestada em ambientes sagrados negros a anomalias, psicoses,
esquizofenia e outros fenômenos, entre os quais a dissociação.
Apresentei abordagens psi de países africanos, com ênfase na
África do Sul e na Nigéria e argumentei por uma Psicologia
descolonizada e descolonizante. Caracterizei a noção iorubá de
pessoa, a tradição oral e a Religião Tradicional Iorubá como
parâmetros socializadores. Neste capítulo, fruto parcial de um
estágio de pós-doutorado, abordo noções iorubás de saúde,
doença, cura e morte prenunciadas na tese; conceitos de
diagnóstico e intervenção terapêutica entre os iorubás; e diálogos
entre ocidentais e tradicionalistas no campo da saúde.
Os iorubás habitam Nigéria, Togo, República do Benim (antiga
Daomé), Gana e Costa do Marfim, na África Ocidental.1
Concentrados no sudoeste da Nigéria, onde perfazem 21% da
população, estão, ao lado dos hausas e dos igbos, entre os maiores
grupos étnicos deste país. Acredita-se que há de 25 a 30 milhões de
iorubás, talvez mais, mas sua divisão em vários países desde a
Conferência de Berlim de 1885 dificulta o censo demográfico. A
despeito das diferenças regionais todos creem em Olodunmare, o
Ser Supremo, e em deidades suprarregionais; se consideram
descendentes de Oduduwa, patriarca das dinastias iorubás;
compartilham a mesma visão de mundo e apontam Ilê Ifé como
local de origem da humanidade.

1 A respeito do povo iorubá consultar Castro (1967, 1983), Ribeiro (1996), Sàlámì
(1999), Jegede (2002, 2005), Ekeopara e Ogbonnaya (2014), Ọsanyìnbí e Falana
(2016), Mafimisebi e Oguntade (2010), K. Abímbólá (2007), Falola e Akínyẹmí
(2016), Paul (2018) e Frias (2019, 2020).
Etnopsicologia e Saúde 135

O tráfico transatlântico modelou ambientes religiosos e sociais


de inspiração iorubá em diversos países das Américas e do Caribe,
entre os quais Brasil, Estados Unidos, Cuba e Porto Rico. Chegaram
ao Brasil pela primeira vez no século XVIII, em sua maioria vindos
de Daomé, e foram concentrados em regiões suburbanas ricas e
desenvolvidas do Norte e do Nordeste e zonas urbanas em apogeu,
entre as quais Salvador e Recife.2
Para os iorubás, o ser humano é constituído de ara (corpo,
parentes, habitantes de um local); ojiji (representação da essência
espiritual); okan (dimensão espiritual, consciência, coração, sede da
inteligência, da intuição e das ações); emi (princípio vital); iwá
(caráter, personalidade, temperamento, comportamentos); ori odé,
cabeça exterior, símbolo de ori inu, cabeça interior, essência do orixá
Ori. Além da corporeidade, sua constituição inclui outros
elementos: ojó (tempo); ilê (espaço, mundo); e egbé (sociedade,
comunidade). Arranjo de predestinações individuais que
partilham interdependência, obrigações mútuas e tradições sociais,
a comunidade determina o ser social, religioso, político, moral e
cultural. Os valores comunitários precedem os individuais e o bem-
estar individual sujeita-se ao comunitário. A pessoa é definida
como pessoa por um processo socializador permanente.3
Na Nigéria se estuda, entre outros temas, malária; suicídio,
etnomedicina; medicina e espiritualidade; saúde sexual e
reprodutiva; gestação, saúde do feto, parto e saúde infantil; saúde
mental; formação e atuação profissionais; saúde pública; recursos
de cura; dificuldades socioeconômicas e demográficas relativas a
cuidados médicos; nutrição; e o papel de crenças e fatores
socioculturais na busca por saúde. Concorda-se que
representações de saúde, doença, cura e morte resultam de
elementos culturais, socioeconômicos, históricos e demográficos;

2 A respeito de religiões brasileiras de matrizes africanas consultar Amaral (2001),


Montero (2006), Amaral e Silva (1993, 2005, 2006), Silva (2008) e Silva Jr (2016).
3 A respeito da noção iorubá de pessoa consultar Fadipe (1970), Abímbólá (1975),

Ribeiro (1996), Gyekye (2002), Ademowo (2013), Ademowo e Balogun (2014),


Sàlámì e Ribeiro (2015) e Frias (2016, 2019, 2020).
Etnopsicologia e Saúde 136

que 80% dos africanos recorrem a tratamentos tradicionais; e que


incentivar produções locais de medicamentos e sua integração a
sistemas de saúde melhora o acesso a serviços de atenção
primária. O sistema médico vincula-se ao sistema cultural e o
diagnóstico das doenças e a prescrição de tratamento envolvem
significado social e ritual, proximidade, identificação,
aconselhamento e familiaridade com a terapia.
Servindo-me do fato de que o método de investigação
utilizado em meus trabalhos acadêmicos de doutorado e pós-
doutorado incluiu um minucioso levantamento de dados
bibliográficos e virtuais, transporto para o contexto presente parte
desse levantamento por considerá-lo útil para outros
pesquisadores. Optei por realizar notas de rodapé para facilitar a
identificação dos principais estudiosos de cada tema específico.

Notas sobre a Religião Tradicional Iorubá4

Religiões tradicionais africanas seguem o adágio lembrado por


Hampate Bâ (1982) de que, do Ser Supremo a um grão de areia, está
tudo entrelaçado no universo, como em uma imensa teia de aranha.
A variedade de etnias africanas foi determinante para a
diversidade religiosa no Brasil.5 Enfoco a Religião Tradicional
Iorubá, conhecida por ritos como iniciações em orixás, pactos com
seres espirituais, rituais de bori (oferenda ao orixá Ori) e de ebó
(oferenda aos demais orixás), jogos oraculares, rituais de imposição
de nome, casamentos e atos fúnebres. Abímbólá (1975) sugere que
sua finalidade mais nobre é a de aprimorar iwá.

4 Para informações sobre a Religião Tradicional Iorubá consultar Awolalu (1976,


1979), Awolalu e Dopamu (1979), Mbiti (1990), Sàlámì (1990, 1992, 1999a, 1999b),
A. Dopamu (1999), M. T. Drewall (1992), Ribeiro (1996, 2010), Jemiriye e Awosusi
(2007), Ekeke e Ekeopara (2010), Ekeopara e Ogbonnaya (2014), Sàlámì e Ribeiro
(2015), Frias (2019).
5 A respeito de diversidade religiosa no Brasil consultar Santos (1999), Amaral (2001),

Diaz e Ribeiro (2004), Amaral e Silva (2006, 2008) Ribeiro (2004, 2011, 2016), Silva
(2007), Frias e Ribeiro (2015), Frias (2016, 2019), Montero (2016) e Silva Jr (2017).
Etnopsicologia e Saúde 137

O sistema divinatório e o Corpus Literário de Ifá, geridos por


Orunmilá-Ifá, divindade oracular e da sabedoria, são uma das
bases das práticas iorubás, reunindo dados míticos e históricos e
saberes sobre ciências naturais, biologia, botânica, encantamentos,
adivinhação, plantas medicinais, doenças e cura. Associa-se
Ossaim, patrono do reino vegetal e dos herbalistas, a Orunmilá-Ifá,
a quem teria ensinado o uso medicinal de plantas. A orientação é
sistematizada pela oralidade,6 expressa em fórmulas como oruko
(nomes dos seres), iba (saudações a orixás, ancestrais, mestres,
anciãos e outros seres veneráveis), oriki (saudações ao Ori ou à
origem dos seres), adura (rezas, súplicas ou petições), orin (cantigas
de louvação a orixás e ancestrais) e itan (narrativas que integram os
odus do Corpus Literário de Ifá), entre outras.
Os orixás que se expressam nos sistemas divinatórios podem
aconselhar seus devotos a ingerir certos alimentos ou evitá-los, usar
roupas de certas cores ou evitá-las, praticar virtudes e evitar
contravirtudes. Deseja-se preservar ou aumentar o axé das pessoas,
que se expressa pela ausência de morte precoce, doenças,
desgraças, fome, fracassos e outros elementos indesejáveis e pela
presença de saúde, longevidade, prosperidade, equilíbrio, alegria e
outros elementos desejáveis por serem bons.7 Os principais campos
de atuação das divindades são a natureza, domínio preferencial de
orixás, e a sociedade, domínio preferencial de ancestrais, embora
nas representações iorubás haja processos de naturalização da
sociedade e socialização da natureza e alguns orixás sejam
reconhecidamente humanos divinizados.
Cada orixá tem culto próprio, que inclui narrativas míticas,
rezas, cantigas, saudações, oferendas, vestimentas e símbolos, além

6 A respeito da tradição oral iorubá consultar W. Abímbólá (1975, 1977a, 1977b,


1997), W. Abímbólá (Ed., 1975), A. Aboluwodi (2014), M. A. Ademilokun (2014),
A. J. Ademowo e N. O. Balogun (2014), Sàlámì (1999a, 1999b), S. Sàlámì e R. I.
Ribeiro (2015).
7 Além de W. Abímbólá, pode-se consultar as seguintes obras relacionadas ao

sistema divinatório e ao Corpus Literário de Ifá: Bascom (1969, 1980), R. R. Frias


(2009), R. I. Ribeiro (2007, 2014b) e Diaz e Ribeiro (2004).
Etnopsicologia e Saúde 138

de predileções comportamentais, valores e virtudes. O ingresso no


culto implica, além da transmissão do axé da divindade para o
devoto, o aprendizado de práticas regulares e o exercício de
virtudes que mantêm o indivíduo agregado ao grupo e o ajudam a
conquistar e preservar valores como vida longa, saúde, casamento,
prole numerosa e prosperidade, além de tornar permanente a sua
socialização.8

Concepções iorubás de saúde, doença, cura e morte

A perspectiva tradicional iorubá valoriza o bem-estar biológico,


mental, emocional, social e espiritual. As divindades associadas às
práticas médico-mágico-religiosas incluem Obaluaiê, patrono da
enfermidade e da cura; Akogun, de oogun, a tradição médico-
mágico-religiosa; Ossaim, do reino vegetal, guardião do axé da flora,
com domínio sobre magia, medicina e cura com plantas; Aroni,
aprendiz de Ossaim na prática de oogun; Erinlé, orixá feminino
aprendiz de Ogum nas artes da caça e da guerra e associada a
Ossaim na prática de oogun; Oxumarê ou Exumarê, relacionado à
magia; e Ogê, zelador da saúde física. Há outras especializações:
equilíbrios mental e emocional são regidos por Obatalá ou Oxalá,
modelador dos corpos humanos (que, por isso mesmo, zela por
condições biológicas), Ori, Iwá, Oxum e Iemanjá. Os órgãos genitais
e o sistema reprodutor masculino são regulados por Exu e Egungun,
e os femininos são regulados por Iyami Oxorongá e Geledé. A
fertilidade, a procriação, a gestação e os cuidados com fetos, recém-
nascidos e crianças pequenas são de Oxum e Iemanjá. Xangô e
Obaluaiê cuidam de crianças, especialmente das abiku; Dadá é
protetor das crianças com cabelo encaracolado.

8Tratam da noção iorubá de Ser Supremo: W. Abímbólá (1975a, 1975b, 1976, 1977,
1997), W. Abímbólá (Ed., 1975), J. O. Awolalu (1979), J. O. Awolalu e P. A. Dopamu
(1979), T. F. Jemiriye e A. Awosusi (2007), J. S. Mbiti (1990), J. K. Olupona (1993),
Ribeiro (1996) e Sàlámì e Ribeiro (2015).
Etnopsicologia e Saúde 139

A condição física espelha a condição familiar. A família


estendida é um grande corpo e alguém pode adoecer como bode
expiatório do grupo. O trato comumente inclui o enfermo, seus
familiares e a lida com as condições espirituais por detrás disso.
Cultua-se Egungun, Geledé e outras corporações com a finalidade
de tratar enfermidades materiais e imateriais atribuídas a
atribulações ancestrais, assim como se cultua qualquer divindade
com a esperança de se curar qualquer atribulação pertencente aos
seus domínios. Coletividades adoecem tanto quanto indivíduos. O
princípio da comunalidade estabelece que o coletivo tem
importância superior ao individual, a ponto de não se estar bem
quando todos não estão. Por se tratar de uma sociedade oral estima-
se a palavra falada, veículo dos saberes mais importantes e da
memória coletiva da etnia, incluindo normas sociais, código ético-
moral e expressões da religiosidade. A mentira, a calúnia, a
maledicência, a fofoca, a conversação fútil e outras práticas orais são
lepras da palavra, capazes de adoecer quem as profere ou acolhe.

Saúde e boa morte

O culto aos mortos celebra códigos normativos e ético-morais,


socialização, saúde coletiva e transgeracionalidade. A harmonia
entre indivíduo e coletividade indica boa saúde e a ruptura indica
que a saúde individual ou grupal pode estar comprometida. Todos
desejam se tornar ancestrais veneráveis e serem lembrados e
louvados após a morte. A morte biológica pode ser natural ou não
natural, boa ou má, em tempo certo, antes do tempo ou depois do
tempo. A morte não é apenas clínica: situações, oportunidades,
relacionamentos, sonhos e outros entes também morrem. Alguém,
biologicamente morto, pode não viver na memória dos vivos, nem
ser evocado ou celebrado, sofrendo uma morte simbólica para além
da extinção corporal.
Ser ancestral venerável requer bom comportamento, bom
caráter e boa personalidade, adesão a compromissos coletivos,
papéis sociais relevantes, virtudes e valores, manutenção básica dos
Etnopsicologia e Saúde 140

aspectos materiais da existência, a presença de boas relações


amorosas e a gestação de descendentes saudáveis. O morto
celebrável pode ter sido um herói civilizatório, alguém cujos feitos
notáveis se tornaram modelos, um guardião da moralidade
tradicional e uma pessoa comum que tenha modelado a si mesma
com base em moldes civilizatórios iorubás ideais. É importante
dispor de boa saúde em todos os âmbitos, morrer em idade avançada
e de morte natural, depois dos pais biológicos, e receber os ritos
fúnebres apropriados. O ancestre objeto de culto permanece
próximo aos descendentes e os serve, educa, protege e admoesta.9
Os ancestrais preservam as relações intra e intergeracionais,
a coesão social, o código ético-moral e os aspectos genéticos,
reprodutivos e sociais da saúde; influenciam a chuva e as
colheitas, trazem prosperidade e combatem infortúnios naturais e
não naturais. Os nomes Egungun, Geledé, Orô, Igunukô e Agemó
indicam corporações de seres espirituais, cultos a ancestrais
masculinos ou femininos, instituições que sediam esses cultos e
ancestrais masculinos ou femininos da humanidade ou de
famílias particulares. Vinculam-se à boa morte e ao término de um
ciclo de vida aceitável, pleno, repleto de sentido. A boa morte é
celebrada, entre outras razões, porque o ancestral reuniu as
condições para ser cultuado.
Os sistemas oraculares permitem conhecer a vontade dos
mortos viventes, solicitar sua orientação e ajuda e os apaziguar. Os
ancestrais intermediam as relações de seus descendentes com o
mundo suprassensível e nutrem bons sentimentos por eles, de cujas
atividades cotidianas participam. Durante os rituais podem
incorporar em devotos preparados e vestidos para tais ocasiões.
Eles partilham as oferendas recebidas, acolhem rezas, cantigas e
saudações e guiam assuntos de família, tradições, costumes, ética,
moral, saúde e fertilidade, punindo vícios morais e resguardando

9 Investigaram crenças sobre ancestralidade Idowu (1963), Mbiti (1990), Awolalu


(1976, 1979), Awolalu e Dopamu (1979), Babayemi (1980), Mbiti (1990), Na’hallah
(1996), Ige (2006) e Ukwamedua (2018).
Etnopsicologia e Saúde 141

os próprios mortos. Há solenidade, riso, integração e coesão; sente-


se que os mundos visível e invisível coexistem. Pode-se venerar os
ancestrais ciclicamente ou em qualquer data, especialmente nas
indicadas pelos sistemas divinatórios.

Saúde e morte ruim

Celebra-se a morte pacífica, em idade avançada e por causas


naturais. Ressalva-se toda morte precoce, violenta, não natural ou
sofrida demais. Lamenta-se o fenômeno abiku, há muito retratado
na tradição oral e na cultura e religião iorubás. A palavra abiku
resulta da contração de “nascido para morrer” ou “o parimos e ele
morreu”. Indivíduos nesta condição integram Egbé Abiku,
sociedade com a qual estabelecem o pacto de nascer repetidas vezes
por meio do ventre das mesmas mães apenas para morrer com
brevidade e renascer pouco depois, repetindo o ciclo
indeterminadamente.
Os abiku-omodê morrem ainda na infância e os abiku-agbá
morrem jovens ou adultos; ambos estabelecem o pacto ojó ori com
a sociedade, se comprometendo a retornar ao plano suprassensível
em determinada data e determinadas circunstâncias. Sucessivos
abortos espontâneos ou planejados, mortes prematuras, doenças
constantes, por vezes de sintomatologia complexa ou causa não
determinada, acidentes com sequelas graves e exposição a danos
irreversíveis são sintomas de abiku. Algumas experiências de
morte de abiku coincidem com datas significativas (Beier, 1954;
Ilechukwu, 2007; Mobolade, 1971, 1973; Tomšič, 2011).
A morte pode ser social. O abiku é dependente químico,
errante, rebelde, arrojado, delinquente, desobediente,
escarnecedor, provocador, apreciador de riscos, vingativo. Chora
sem razão aparente, fala sozinho ou com amigos imaginários, vive
sem vontade de brincar com outras crianças, sofre fracassos e
acidentes constantes, sente inferioridade, medo ou coragem em
excesso e desenvolve quadros nervosos e depressivos. Pode dispor
de talentos, beleza, sedução, inteligência e intuição. Vivendo entre
Etnopsicologia e Saúde 142

os dois mundos, pode viajar em sonhos para encontrar seus pares


no plano suprassensível, lembrando disso acordado ou não, sofrer
sonambulismo, pesadelos, terror noturno e incontinência urinária
ao dormir. Pode abençoar ou punir pessoas e antecipar a data da
própria morte diante da menor contrariedade – a ponto de adultos
evitarem educá-lo com o mesmo rigor que aos demais ou
admoestá-lo. Crianças abiku e seus familiares podem sofrer
estigmas, discriminação e preconceito.
Descobrir e quebrar o pacto de um abiku com a sua sociedade
espiritual pode salvá-lo, mas o seu trato requer o trato da família e,
por vezes, da comunidade. Deve-se fortalecer os vínculos do abiku
com seus grupos no plano sensível e enfraquecê-los no
suprassensível. É possível torná-lo irreconhecível para seus pares
no mundo espiritual, ou reconhecível, mas não atraente a ponto de
eles o buscarem.
O tratamento tradicional inclui iniciações em orixás e
processos devocionais, rituais de ebó, bori e sará. Patronos da
fecundação, da gestação, do parto, da infância e da esperança na
vida, os orixás ewê (da juventude) são protetores dos abiku. O
grupo inclui Egbé Aragbô (Sociedade dos Habitantes da Floresta,
do Além ou dos Espíritos Amigos), corporação constituída por
Egbé Aiê (amigos do mundo visível) e por Egbé Orun (amigos do
mundo invisível), que atuam em ambos os planos da existência;
Ibeji, que oferece fertilidade e multiplicação; Kori, associada à
adolescência, à juventude, à alegria, à fertilidade nos diversos
âmbitos e à esperança no viver; Logolô, que equilibra o axé, a força
vital; e Iroco, senhor dos mistérios e da rapidez, dedicado ao
equilíbrio emocional e à saúde.
Um dos recursos empregados no trato dos abiku são os nomes
próprios. Contrações de sentenças que revelam a condição da
criança e agem com a intenção de mantê-la viva e afastar o perigo,
solicitam ou exigem que seu portador permaneça no mundo,
reconhecem que se trata de um abiku, indicam que houve auxílio
para a sobrevivência da criança, advertem o abiku na esperança de
que desista de morrer cedo ou o insultam ou ameaçam.
Etnopsicologia e Saúde 143

A morte precoce de uma das crianças gêmeas ou de ambas


também é complexa. Ibeji, contração de ibi (parir) e eji (dois), designa
dois partos e o orixá que tem nestas crianças o seu símbolo por
excelência. O primeiro a nascer é chamado Taiwo (Vai experimentar
a vida), e o segundo, Kehinde (O último a chegar). Pode haver
desequilíbrio entre os irmãos, de modo que um deles tenha mais
bênçãos, não sendo raro que o outro sofra revezes, a ponto de morrer
antes da idade adulta. Os meios de equilibrar a força vital dos dois –
favorecendo o azarado sem prejudicar o sortudo – incluem os cultos
a Egbé, Kori, Xangô e Ibeji, além de rituais regulares. Quando uma
criança dos mesmos pais nasce depois dos gêmeos ela é chamada de
Idowu (Equilíbrio das crianças Ibeji); acredita-se que este irmão
balanceará aos mais velhos.
Os gêmeos humanos são considerados semidivindades e
associados a prosperidade, fertilidade, fecundidade, dinheiro, boa
saúde, longevidade e outras bênçãos. Acredita-se que têm mais
poderes mortos do que vivos e, ainda assim, a morte de um ou de
ambos provoca comoção. Quando um deles morre providencia-se
uma estatueta esculpida, consagrada a Ibeji, reproduzindo as
partes masculinas ou femininas da criança falecida; se ambos
morrem providencia-se duas estátuas. Deixadas em espaços sacros,
se oferece a elas o mesmo que é oferecido a gêmeos vivos. Promove-
se celebrações com a presença de crianças e a oferta de comida e
bebida abundantes – oferecidas também às estátuas, levadas para
o meio das crianças nas celebrações. Os pais não se referem aos
filhos como mortos. Se um dos pais se sente mal faz-se rituais e
entrega-se oferendas às estatuetas, pedindo-se pelo
restabelecimento de sua saúde.

Notas a respeito das doenças entre os iorubás

As noções iorubás de saúde, doença, cura e morte têm aspectos


biológicos, mentais, emocionais, sociais e espirituais. Compreende-
se o universo como uma unidade que inclui seres não nascidos,
vivos, mortos (mortos-viventes, já idos, alguns deles ancestrais) e
Etnopsicologia e Saúde 144

deidades. Seres espirituais protegem quem vive de acordo com


normas e valores regulatórios, cuja transgressão pode resultar em
adoecimento. A boa saúde pode resultar de boas interações
horizontais, dos seres humanos entre si, ou de boas relações
verticais, deles com os seres sobrenaturais.
A consulta divinatória para o recém-nascido indica sua
personalidade, os ewós, interdições que deve respeitar e os rituais
indicados para que disponha de uma vida saudável, longa e
próspera. Seu estado é descrito por aspectos positivos – aláfia, sere
(não doente), jéun dadá, mu dadá (come bem, bebe bem), ko ru (não
magro), sun dadá (dorme bem), su dadá (defeca bem), tó dadá (urina
bem), wo dadá (emocionalmente estável) – ou negativos – ko le jéun
(não come bem), ko sun (não dorme bem), o nru (perda de peso).
Doenças como ikó eyin (tosse acompanhando o crescimento dos
dentes), otu (frio), iba (febre), iyagbé eyin (diarreia acompanhando o
crescimento dos dentes), inu dodo (espasmo) e panu (erupções
cutâneas do bebê após o nascimento) são consideradas aspectos
normais do desenvolvimento infantil.
Doenças são atribuídas a causas sobrenaturais, naturais e
hereditárias. Para Jegede (2005), a doença natural se manifesta em
seis fatores biológicos: aisun (vigília, perturbação do sono), aiwo
(inquietação, desatenção), aijé (jejum, inapetência), aimu (ausência
do desejo de beber), aitó (incapacidade de urinar) e aisu
(incapacidade de defecar). A doença natural é tratada pelas
medicinas ocidentais e tradicionais, mas a doença de causas não
naturais pode se recusar a ser curada por vias ocidentais e as
doenças de causa genética podem não ter cura. Doenças
promovidas por divindades são prevenidas por meio de rituais, de
obediência a ewós, de adesão a normas e de fortalecimento do
caráter, do comportamento e das palavras. Doenças promovidas
por inimigos são prevenidas por meio de oogun, amuletos, anéis,
escarificações e ingestões. Evita-se a doença natural ou se minimiza
seus efeitos permanecendo em ambiente higiênico, evitando certas
Etnopsicologia e Saúde 145

comidas ou algo excessivamente quente ou frio, tendo-se um sono


regular e hábitos saudáveis.10
O campo das doenças mentais é sensível quando se considera
diferentes grupos étnicos e práticas religiosas com viés
euramericano e pós-colonial.11 Os primeiros estudos universitários
nigerianos a respeito dessas doenças surgiram no século XX, mas
tradicionalistas já lidavam com psicoses, neuroses e outras
condições ligadas à saúde mental muito antes disso. Entre os
iorubás, as doenças mentais podem resultar de punições sagradas,
maldições, quebra de normas ou do fato de os portadores serem
bodes expiatórios familiares. Elas inspiram temores e estigmas,
sendo comum desejar mais a morte do doente que a vergonha.
A. S. Jegede (2002) as classifica em três categorias, were
amutórunwa (circunstâncias do nascimento), were iran (questões
geracionais) e were afìxe (aflições psicológicas), sendo em geral os
quadros graves observáveis em comportamentos atípicos. O termo
were alaso indica que o doente veste roupas, sendo possível
reconhecê-lo por comportamentos e falas pontuais, não pela
aparência; asinwin é o estado que não pode mais ser escondido, pois
já mostra sua condição em público, sem vergonha nem conexão
com a realidade. Neste nível a família se dissocia do enfermo,
chamado de omó ijóba (criança do governo, por não ter
responsáveis). Esse enfermo é inimputável, não está sujeito a leis
ou princípios éticos e se alguém o agride pode ir preso; como todos
se afastam, o enfermo não é tratado e mesmo condições benignas e
reversíveis podem piorar. (A. S. Jegede, 2005; C. O. Jegede, 2016).
O diagnóstico é feito por especialistas como o babalaô
(sacerdote de Orunmilá-Ifá), o babalorixá (sacerdote dos demais

10 Sobre a Medicina Tradicional Iorubá ver: Paul (2018), Borokini e Lawal (2014) e
K. Abímbólá (2001, 2013).
11 Ver também: Ovuga e outros (1999), Mpofu (2002), Moll (2002), Ayorinde e

outros (2004), Kapungwe e outros (2010), Juma (2011), Gesinde e Sanu (2013),
Pheko e outros (2013), Monteiro e Balogun (2014a, 2014b), Twesigye (2014),
Idemudia (2015), Madu (2015), C. O. Jegede (2016), Akomolafe (2010, 2013);
Idemudia (2015).
Etnopsicologia e Saúde 146

orixás), o onixegun (médico tradicional) e o elegbogi (herbalista),


que podem analisar o passado da família do doente, sua história
individual, suas atitudes e gestos, seus olhos, pele, urina e fezes e
os sonhos recorrentes que possa ter. A consulta oracular pode
indicar as causas e os tratamentos mais adequados para as
doenças.12 O trato é multifatorial: usa-se materiais de origem
animal, vegetal e mineral, rituais, encantamentos, rezas, cantigas e
saudações. Os remédios são administrados de diversas maneiras,
sendo a mais comum a ingestão oral. Não se aceita que o indivíduo
sem contato com a realidade não deseje ser tratado. Se tudo estiver
em ordem a morbidade será curada física e espiritualmente. Nas
ciências psi debate-se a possibilidade de integração entre os
sistemas tradicional e moderno de cura do sofrimento psíquico e
das doenças mentais.

Alguns caminhos de cura entre os iorubás

Entre os iorubás a interação entre os sistemas tradicional e


ocidental de cura teve início na metade do século XIX, quando
missionários cristãos se associaram a administradores coloniais e
buscaram se consolidar em territórios da etnia oferecendo serviços
médicos e educacionais, logo condenando a medicina tradicional e
os sistemas divinatórios e diagnósticos locais. Na colônia, pessoas
foram apartadas de suas tradições e crenças contrárias a elas foram
instituídas. Mas o sistema tradicional iorubá de cura sobreviveu e
hoje há iniciativas em prol da integração entre ambos os sistemas
ou da incorporação de um pelo outro.13
A palavra aláfia expressa contentamento quando orixás e
ancestrais demonstram ter aceitado as oferendas por completo ou,
em consultas oraculares, respondem satisfatoriamente; o termo

12Ver K. Abímbólá (2013), Awojoodu e Baran (2009), Taye (2009), Ogundele (2007)
e Makinde (1988).
13A respeito das relações entre os sistemas tradicional e ocidental de cura ver: Paul

(2018), Makinde (1988), Oyebola (1980a, 1980b, 1980c).


Etnopsicologia e Saúde 147

associa saúde, bem-estar e felicidade, indicando que alguém


saudável pode ser feliz. Ilera significa saúde; aye e iye, vida,
vivacidade, saúde, intuição; dida-ara, sanidade do corpo e boa
saúde; da, estar bem de saúde. Oro significa riqueza, prosperidade,
tesouro, opulência e saúde, indicando que a boa saúde é uma
riqueza; designa também os problemas eliminados por meio do
ebó, indicando que a prosperidade e a saúde se manifestam na
ausência de males.
Aida-ara, aidara, aida, ailera, aisàn, amodi, arun, arunkarun, ojojo,
okunrun, otu e otutu indicam indisposição, doença, moléstia,
fraqueza, debilidade, fragilidade, achaque, dor, ponto fraco,
convulsão, paroxismo, febre. Aisi-alafia, miséria, doença, falta de
paz. Bibólówó-arun é estar livre de doença ou em recuperação. Wora
é curar-se e ser apreciador da boa culinária; a boa alimentação,
ramo das medicinas preventiva e curativa, é um bom valor: é bom
ter como alimentar a si e aos demais em uma cultura/religião em
que os orixás comem pelas bocas das pessoas. Ajinna, awotan,
imularada, imusan, ipajumó e iwosan indicam cura, tratamento,
recuperação, restabelecimento, cicatrização, abrandamento. Jinna,
mujina e wojina, curar feridas. Mularada, mularale, musan, san, sepa,
xawotan, wora, wosan, wotan e woye, tratar, melhorar, estar melhor,
curar, curar completamente, sarar, abrandar, cicatrizar.
Oogun, ìsègùn e egbògi têm as acepções de medicina, magia,
medicamento, remédio, veneno, fetiche, amuleto, encantamento -
práticas médico-mágico-religiosas tradicionais iorubás. Ajésara
designa magia, simpatia preventiva, profilaxia, vacina. Edi
encantamento, magia, sortilégio, feitiço, amuleto, talismã, fascínio,
atração. Ogede e isajé magia, bruxaria, sortilégio, encantamento;
isoso tem as mesmas acepções e a de gentileza, indicando que
caráter, comportamento e personalidade têm efeitos preventivos,
curativos e atrativos. Sa e sagun, valer-se de magia ou
encantamento para atingir um objetivo ou alguém e usar de
comportamento encantador, simpático, sedutor, que atrai coisas
boas; soogùn, fazer magia, preparar remédio, praticar oogun;
Etnopsicologia e Saúde 148

sogunsi, fazer magia contra alguém; jalogun, molestar por meio de


magia maligna.
Oloogun e onisegun designam o médico-mago-religioso
tradicionalista praticante de oogun; Sadahunse, o exercício
profissional da arte médico-mágico-religiosa; Adaweta, o vendedor
de plantas medicinais e Adahunse, o médico-mago-religioso
tradicionalista, herbanário e curandeiro, que cura com plantas.
Ilo oogun é prescrição médico-mágico-religiosa, dosagem de
medicamento ou remédio. Abô é o preparo médico-mágico-
religioso de origem mineral, vegetal e/ou animal, cozido ou não,
para ingerir ou banhar-se. Afoxé é um preparo médico-mágico-
religioso que confere poder à fala, empregado para abençoar ou
amaldiçoar. Como as elocuções verbais têm força no processo de
cura, nada mais lógico do que fortalecer o poder da palavra com
todos os meios disponíveis.
K. Abímbólá (2013) recomenda cautela com o ajogun Arun
(Doença), ser sobrenatural que aflige até mesmo as divindades. A
Medicina Tradicional Iorubá tem finalidades preventivas, curativas
e paliativas.14 Os remédios são bebidos, comidos, vestidos,
enterrados, pendurados, expostos, usados para lavar o corpo,
carregados em bolsos, jogados fora após o uso ou usados com
encantamentos. Medicina e religião se relacionam entre si e com
sistemas divinatórios, ritualísticos e sobrenaturais. Alguns
preparos não são considerados eficazes fora do universo religioso
e certas curas são atribuídas à intervenção divina. No mundo
numinoso, os seres possuem nomes esotéricos ou de origem, sendo
necessário recitar encantamentos para despertá-los e direcionar
suas forças vitais para os propósitos medicinais pretendidos.
Conforme K. Abímbólá (2007, 2013), as crenças que moldam a
medicina e os códigos moral e normativo iorubás têm uma
dimensão sobrenatural. Para o autor, a palavra cultura tem as

14O tema Medicina Tradicional Iorubá tem sido tratado também por C. O. Jegede
(2016), A. S. Jegede (2009), Borokini e Lawal (2014), K. Abímbólá (2007, 2013),
Ogundele (2007), Makinde (1988) e Awolalu (1979).
Etnopsicologia e Saúde 149

acepções de alta cultura, conquistas sociais, produtos de artes,


ciências e tecnologia, cultivo artificial e crescimento de organismos
microscópicos, espécies e plantas, técnicas agrícolas, ideais, crenças
e costumes, sendo que a medicina tradicional iorubá, repositório de
conquistas factuais, teóricas e metodológicas, conta com técnicas
cultivadas, aprendidas e transmitidas, integra estruturas de crença
e tem aplicações práticas.
A medicina tradicional busca prevenir e reduzir doenças,
mortes prematuras, incapacidades e manifestações de sofrimento;
prolongar a vida e a saúde física e mental; controlar infecções
comunitárias; treinar e organizar profissionais; e cultivar
mecanismos para desenvolver esses bens sociais. Campo de
saberes sobre as dimensões orgânica, ambiental, psicológica e
biológica da vida, estruturada, dividida em aspectos, dinâmica e
variável, permite manifestar crenças sobre ontologia, metafisica e
métodos de realização e promoção de saúde, integridade e bem-
estar que, internalizados pelos indivíduos, operacionalizam no
regulamento das várias dimensões da existência – a começar pelo
sangue, beneficiário final de todos os medicamentos e alimentos.
Para Ogundele (2007) e Borokini e Lawal (2014), as
informações aprendidas por tradicionalistas são memorizadas em
conformidade com o que os ancestrais transmitiram, uma das
razões pelas quais se trata de uma profissão de tempo integral.
Toda criança aprende nomes populares e esotéricos e usos
terapêuticos, nutricionais e sacros de plantas e cada situação é uma
oportunidade de ensino. Rigoroso e intenso, o treino pode exigir do
aluno pagamentos e a prestação de serviços gratuitos ao mestre. Há
patronato após a formação básica, mas é necessário vincular-se a
associações profissionais e atualizar e ampliar os conhecimentos ao
longo de um processo contínuo.15

15Ainda sobre Medicina Tradicional Iorubá ver: Paul (2018), Adefolaju (2014),
Borokini e Lawal (2014), Erinoso e Aworinde (2012), Ogundele (2007), Oyebola
(1980a, 1980b, 1980c).
Etnopsicologia e Saúde 150

O ingresso no sistema médico tradicional ocorre por vários


meios, o familiar em especial, e é pavimentado pelo aprendizado.
Hoje há treinamentos em instituições formais por períodos
determinados e em cursos estabelecidos. Também há pesquisas
formais e fabricação padronizada de medicamentos, com rótulos
com informações de fabricante, preparo, dosagem, métodos de
conservação, doenças a que se destinam, data de manufatura e
validade e registro. Algumas drogas têm registro de testes e
propaganda.
Os tradicionalistas se especializam em áreas como clínica
geral, farmácia, comércio de ervas, ortopedia, parto, psiquiatria,
dentição, pediatria, generalismo, enfermaria, ginecologia e rezas.
Atendem doentes com suporte cultural, religioso e psicológico, têm
seu trabalho autenticado pela comunidade e os clientes são
inclinados a obedecê-los, sentindo empatia e segurança emocional.
Realizam-se cirurgias de diferentes graus de complexidade.
O sistema médico iorubá emprega substâncias de origem
animal, vegetal e mineral e métodos, atitudes e crenças de fundo
social, cultural e religioso para resguardar o bem-estar integral.16
As fontes de saber incluem, além dos humanos estudiosos,
Olodumare, orixás, ancestrais, espíritos da floresta, feiticeiros,
bruxas e outros seres. Também se aprende por meio da observação
de características das plantas e de animais e por meio de visões e
sonhos, em um universo simbólico no qual as analogias são
fundamentais.
Pesquisas etnofarmacológicas e etnobotânicas inspiradas em
saberes iorubás têm sido estimuladas tanto no continente de
origem quanto na diáspora africana nas Américas e Caribe. Há
compêndios com a apresentação de nomes, características e usos de
plantas, além de estudos sobre aspectos químicos e farmacológicos

16 Sobre o sistema médico iorubá ver Borokini e Lawal (2014).


Etnopsicologia e Saúde 151

de plantas, políticas relacionadas à medicina herbal, caminhos para


aquisição e aplicação de procedimentos teórico-metodológicos.17
Empregadas para a cura há séculos, as plantas continuam a
base do desenvolvimento de drogas modernas, ainda que seus usos
tradicionais ainda sejam vistos com desdém e desrespeito, como
especulação e fetiche. Têm-se debatido regulamentação,
rotulagem, adequação, controle de qualidade, padrões de higiene,
precisão das dosagens, segurança, eficácia, toxicidade, detecção de
princípios ativos, modos de administração, interação de
medicamentos herbais com alimentos e registros escritos das
receitas. Falta uma legislação que regule seu preparo e comércio;
falta apoio financeiro para o seu desenvolvimento formal. A
segurança, a eficácia e a qualidade podem guiar a regulação e os
padrões de qualidade e pessoas podem identificar plantas boas
para o trato de doenças.

Considerações finais

Até 80% da população nigeriana recorre a médicos tradicionais,


em detrimento dos ortodoxos.18 Dados comportamentais,
socioeconômicos e históricos, associados ao apreço pela herança
cultural e a crenças como a de que a doença pode resultar de ações de
forças sobrenaturais conscientes e sencientes – independentemente do
nível de escolaridade – somam-se a barreiras como a pobreza material
crônica, o custo elevado do atendimento médico e a falta de
instalações mais adequadas.
A perspectiva étnica é central. Toda visão de mundo tem seus
princípios e favorece o desenvolvimento dos saberes de um povo
de dada maneira e em dada direção, mas o legado colonial

17Sobre medicina herbal ver: Verger (1995), Oladunmoye e Kehinde (2011) Erinoso
e Aworinde (2012), Ogundele (2007), Oyebola (1979, 1980a, 1980b, 1980c, 1981),
Kayode, Amoo e Ayeni (2016) Aiyeloja e Bello (2006), Omotosho e outros (2014),
Soladoye e outros (2013), Olorunnisola e outros (2013).
18 Paul (2018), Adefolaju (2014), Borokini e Lawal (2014), Erinoso e Aworinde

(2012), Mafimisebi e Oguntade (2010), Ogundele (2007) e Makinde (1988).


Etnopsicologia e Saúde 152

considera cada constructo do ponto de vista ocidental. Os


tradicionalistas observam a ecologia humana, compartilham
crenças, valores e símbolos culturalmente moldados com seus
pacientes, chegam a eles em áreas de difícil acesso e têm
habilidades de relacionamento interpessoal. A medicina
tradicional é comunitária e acessível e sua eficácia é elevada.
Pensa-se que práticas médicas ocidentais são inadequadas,
drogas sintéticas estão em falta ou são adulteradas, patogênicos
resistem a elas, instalações médicas modernas são inacessíveis e
deficitárias, investimentos são baixos, profissionais que atendem
neste modelo são mal treinados e desmotivados, tratando pacientes
sem consideração e sem explicar a eles a natureza e as causas das
doenças, os serviços técnicos são de má qualidade e os tratamentos,
de alto custo para indivíduos e para poderes públicos, são
apartados da cultura, da família e da comunidade e focados apenas
nos aspectos biológicos da doença.
Mas também à medicina tradicional são associadas lacunas:
argumenta-se que doses não são padronizadas e não contam com
validação científica nem com verificação empírica viável, que seus
depositários não possuem as habilidades para diagnosticar
desordens sérias, e que, embora estejam sempre dispostos a aceitar
as limitações de seus conhecimentos, não possuem os
equipamentos necessários para conduzir exames físicos, podendo
haver dubiedade e falta de escrúpulos, além de serem vistos como
fetichistas e praticantes de bruxaria.
Alguns investigadores defendem o diálogo entre tradicional e
ocidental. Recomendam-se cuidados diante dos tratamentos
tradicionais, padronização das dosagens fitoterápicas prescritas,
organização científica dos remédios, mensuração das evidências
empíricas e combate à extinção de plantas empregadas em
medicamentos. Considera-se que o corpo de saberes modelado por
sua visão de mundo é mais bem propagado por meio da língua de
seu povo. Se considera, pois, que a adoção de línguas estrangeiras
pode afetar sistemas culturais, modos de representação e
pensamentos africanos. Por isso, criar mecanismos de tradução
Etnopsicologia e Saúde 153

e/ou desenvolver as línguas locais para equivalência de termos


médicos é central para os tratamentos.
Sugere-se a criação de escolas de Medicina, Saúde Pública e
áreas correlatas e disciplinas ligadas à Medicina Tradicional,
Etnobotânica, Botânica Econômica e Farmacologia na grade
curricular universitária. Recomenda-se o estudo sistemático da
ecologia humana e de outros sistemas de saberes relativos à saúde.
É enfatizada a relevância da alfabetização de tradicionalistas e a
transferência de saberes para crianças alfabetizadas; o estudo de
idiomas e de medicamentos locais e a disseminação desses saberes;
a modernização de recursos; a realização de pesquisas sobre
técnicas de cura, prevenção e reabilitação, o trabalho contínuo junto
a tradicionalistas e seu emprego em escolas de Medicina.
É reconhecida a necessidade de criação de conselhos regionais
de profissionais, de associações de classe e de representações em
governos e conselhos legislativos. Mostram-se urgentes a criação
de hospitais e clínicas para exercício da medicina natural, a
padronização das doses, a publicação e comercialização de
documentos e a revolução de representações de saúde, doença e
cura na opinião pública e na mídia.
Recomendo que os tópicos aqui debatidos sejam replicados em
outras investigações. O diálogo entre tradicional e moderno é
possível, a aplicação de saberes ancestrais pode ser útil para o
desenvolvimento de fármacos e de outros recursos de combate a
doenças, as denúncias de práticas racistas e discriminatórias em
ambientes científicos no passado, e mesmo hoje, continuam
necessárias e a exaltação da diversidade étnico-racial no Brasil e no
mundo, com a justa evidência da humanidade de povos não
hegemônicos, pode servir aos propósitos de se construir respeito,
equidade, justiça social e tantos outros pontos fundamentais para o
combate a crenças e práticas coloniais que, infelizmente, perduram
entre nós. Há muitos grupos étnicos na África e nas Américas com
os quais é viável construir saberes e sistemas de comunicação
conjuntos e espero ter evidenciado a importância de compreender
suas línguas, suas perspectivas socioculturais e seus sistemas de
Etnopsicologia e Saúde 154

crenças como estratégia para viabilizar o diálogo e reproduzir as


suas perspectivas de modo eficiente, respeitoso e honesto.

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Etnopsicologia e Saúde 160
Etnopsicologia e Saúde 161

CAPÍTULO 7

HABITAR FRONTEIRAS NO CUIDADO À VIDA:


UMA PERSPECTIVA SITUADA ENTRE OS TERREIROS
AFRO-BRASILEIROS E O SERVIÇO DA REDE INDÍGENA

Pâmela Damilano dos Santos


Danilo Silva Guimarães

Apresentação

Ao compartilhar as experiências vividas pela primeira autora


enquanto pesquisadora e psicóloga voluntária atuante na Rede de
atenção à Pessoa Indígena (Rede Indígena), um serviço
universitário transdisciplinar situado no Departamento de
Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da Universidade
de São Paulo (PSE-IPUSP), coordenado pelo segundo autor,
buscamos contribuir com questões éticas, ontológicas e
epistemológicas que atravessam o processo de formação em
Psicologia. A busca por atendimento psicológico, incluindo pessoas
indígenas e/ou iniciadas nas tradições afro-brasileiras que,
historicamente, não receberam a devida atenção das tradições
hegemônicas de conhecimento em Psicologia (Valsiner, 2017),
encontra, no serviço, possibilidades de acolhimento.
A partir de um exercício introspectivo de orientação dialógica
(Brait, 2005), compartilhamos questões que emergem
espontaneamente a partir das memórias de outras refrações de si
mesma (Faraco, 2005), como a refração umbandista da primeira
autora que vivencia no corpo os ritos de cuidado próprios dos
saberes de terreiro, e sua refração psicóloga que, atualmente,
atende pessoas indígenas que, em alguns casos, também cultuam
sua espiritualidade/ancestralidade em terreiros afro-brasileiros.
Orientada por uma perspectiva de abertura incondicional às
Etnopsicologia e Saúde 162

diferenças, própria dos fundamentos de uma Psicologia Indígena


que vem sendo elaborada pelo segundo autor, buscamos
aprofundar espaços de diálogo da psicologia com sabedorias
indígenas, incluindo sabedorias dos terreiros afro-brasileiros, sobre
a circulação das diferenças no cuidado à vida.

Introdução

Pois o que salva a humanidade,


é que não há quem cure a curiosidade.
(Tom Zé, in Curiosidade)

Convidamos a quem nos lê que se aventure em uma imersão


imaginativa sobre a temática do cuidado à vida que permeia nossos
muitos e diversos caminhos de formação em Psicologia, para que
possamos percorrer, juntes, os caminhos dessa narrativa
compartilhada no presente capítulo, na busca por contribuir com a
construção de espaços de cuidado psicológico cada vez mais
abertos à diversidade étnico-cultural brasileira. Recorrendo a um
recurso narrativo mais próximo do mito, da contação de história,
buscamos estabelecer um começo de conversa com quem nos lê a
partir de um exercício afetivo-imaginativo sobre uma situação
hipotética que, em sua potência criativa ficcional, dá a ver uma
realidade bastante concreta que nos interpela com questões éticas
que, mais dia menos dia, cruzará os caminhos de cuidado na
formação em Psicologia.

Contos para estudantes de Psicologia

Era uma vez um(a) estudante de Psicologia, ingressante em uma


universidade pública de referência e muito disputada, que, para a
maioria das pessoas, sempre foi um sonho inalcançável. Imagine que
essa pessoa é você, ocupando um espaço aparentemente inacessível
para sua família ou colegas do bairro onde cresceu. Mas ali está você,
buscando aproveitar todo o aprendizado oferecido em sua formação.
Etnopsicologia e Saúde 163

Você participa de um grupo de supervisão clínica onde colegas


compartilham os atendimentos.
O grupo vem discutindo o caso de uma paciente atendida por
um dos colegas, que vamos imaginar que seja iniciada no
Candomblé ou outra tradição afro-brasileira. Agora imagine que
essa paciente traga para o encontro terapêutico diversas
experiências que ela associa à espiritualidade e, durante a
supervisão clínica, os sentidos de ordem espiritual relatados são
conformados a noções de psicodiagnóstico e categorias
psicológicas sem, no entanto, haver qualquer tentativa de
negociação de sentidos compartilhados no encontro clínico.
Imagine que, apesar da paciente se referir diversas vezes à sua
relação com seu Orixá na qual foi iniciada, ao longo de meses de
acompanhamento, nunca se fala com profundidade sobre os
sentidos de seu Orixá em supervisão, pois o nome do Orixá sequer
é lembrado pelo terapeuta. No entanto, apesar de nossa profunda
ignorância/desconhecimento dos fundamentos do Candomblé no
qual a paciente é iniciada, a supervisão segue “naturalmente”,
traduzindo seus relatos em conceitos psicológicos.
Imagine, ainda, que a paciente relata ter sonhado com um
familiar já falecido, atribuindo sentidos de ordem espiritual a essa
experiência, e, na supervisão, o sonho é rapidamente interpretado
como um processo de luto mal elaborado. Agora, imagine você, que
certas experiências oníricas “estranhas” ou estrangeiras às
interpretações psicológicas tradicionais também tivessem ocorrido
com você desde a infância, sonhos esses que, mesmo a partir das
ferramentas teóricas em Psicologia que você viera aprendendo desde
que ingressou na universidade, continuavam não fazendo muito
sentido. E que, talvez, estivessem justamente aí, nessas memórias
oníricas, as primeiras sementes de seu interesse pela Psicologia.
Imagine, ainda, como seria caso você também frequentasse
terreiros afro-brasileiros e, por isso, tivesse algum repertório
cultural que partilhasse, ainda que parcialmente, alguns sentidos
atribuídos pela paciente sobre suas experiências. Nesse caso,
traduzir as experiências espirituais da paciente em conceitos
Etnopsicologia e Saúde 164

psicológicos não facilitaria a compreensão do caso para você, que


encontra mais familiaridade nos próprios termos da paciente,
culturalmente situados a partir das tradições afro-brasileiras de
terreiro, do que nas tentativas de tradução da experiência relatada
em conceitos psicológicos. Nesse caso, suas vivências pessoais de
terreiro participam de sua escuta, possibilitando no mínimo a
curiosidade de escutar os relatos da paciente a partir de um outro
lugar, para além dos conceitos psicológicos partilhados entre o
grupo de supervisão, a partir de um lugar de reconhecimento, um
certo compromisso ético de “levar a sério” seus relatos em seus
próprios termos.
Agora, lembre-se que você está apenas começando sua
formação clínica e todos do grupo de supervisão parecem pouco
abertos a negociar a possibilidade de experimentar “levar a sério”
esses sentidos espirituais em seus próprios termos (do
Candomblé). Você teria coragem de insistir sobre a necessidade de
olhar com mais calma e curiosidade sobre o que os fundamentos
do Candomblé têm a dizer a respeito dos relatos da paciente? Não
estaria você apenas projetando suas experiências pessoais no caso?
Não seria o caso de buscar se informar mais a respeito de noções
básicas de psicodiagnóstico antes de levantar uma argumentação
aparentemente tão impensável para o grupo de supervisão? E se
esse questionamento colocasse em risco sua própria legitimidade
científica e profissional em Psicologia por desvelar suas “crenças”
pessoais “farejadas” pelos seus?
A partir de situações como esta, refletimos sobre nossas
próprias práticas, conforme propõe a filósofa da ciência Isabelle
Stengers, que traz dos movimentos de ativismo neo-pagãos a
seguinte imagem: as cinzas das bruxas queimadas nas fogueiras da
Santa Inquisição ainda pairam em nossas narinas (Stengers, 2012),
enquanto metáfora sobre como alguns modos de se fazer ciência
podem reproduzir uma herança inquisitória que marcou
historicamente a ascensão do Ocidente moderno. Em situações
como estas, é possível sentir “o cheiro da fumaça” quando um certo
orgulho moderno de (supostamente) ser capaz de “conhecer
Etnopsicologia e Saúde 165

melhor” do que outros gêneros de conhecimento direciona os


caminhos de nossa formação científica. Se, “em nome da Ciência”,
atropelamos as diferenças culturais que encontramos no caminho
como se fossem obstáculos a serem superados, conhecimentos no
máximo tolerados, mas jamais levados a sério em sua relevância, o
conhecimento produzido nesse caminho pouco se diferenciaria das
crenças religiosas da Santa Inquisição (Stengers, 2012).
Como foi que passamos a nos especializar na capacidade
“inquisitória” de “farejar” os outros, de maneira velada, e pouco
nos disponibilizarmos a “farejar” a nós mesmos e nossas práticas?
O que nos dá tamanho direito tão “natural” de desencantar e
traduzir mundos em termos supostamente melhores e mais
legítimos? Como lidar com o risco de reproduzir violências
epistêmicas capazes de produzir uma certa psicopatologização da
fé de uma pessoa pertencente às tradições afro-brasileiras que
procurou os serviços psicológicos de uma instituição pública de
referência (inter)nacional? Como podemos (re)aprender tudo
aquilo que for necessário para cuidar da vida sem desencantá-la de
seu mistério?1 Como cuidar da vida em meio ao desencantamento
já produzido historicamente?
É a partir dos afetos emergentes dessas experiências inquietantes
(Simão, 2020; 2004; 2003), que podem atravessar o percurso de
formação de qualquer estudante de Psicologia, que se mobilizam as
questões éticas, ontológicas e epistemológicas deste capítulo. Este é
um primeiro ensaio, ainda bastante embrionário, para desdobrar
temas de interesse sobre o cuidado à vida, que permeia a pesquisa de
Doutorado Direto da primeira autora, que, contando com a orientação
do segundo autor, busca aprofundar questões que já estavam
presentes desde a proposta inicial de Mestrado2.

1 Menções ao pensamento da filósofa da ciência Isabelle Stengers em Reclaiming


animism (2012) e A invenção das ciências modernas (2002).
2 Pesquisa de Mestrado em Psicologia Experimental (PSE-IPUSP), sob orientação

do Prof. Dr. Danilo Silva Guimarães, intitulada “Um diálogo epistemológico sobre
questões de multiplicidade, coexistência e circulação das diferenças: o sincretismo
Etnopsicologia e Saúde 166

Por sua vez, o Mestrado visava a estabelecer um diálogo


epistemológico com os conhecimentos emergentes dos terreiros
afro-brasileiro, não enquanto tema de interesse antropológico, mas
sim, como é cada vez mais presente em voz própria nos debates
acadêmicos atuais. Autores fundamentados na sabedoria dos
terreiros afro-brasileiros vêm trazendo uma perspectiva decolonial
de construção de conhecimento em suas respectivas áreas de
conhecimento (L’Odò, 2017; Luangomina, 2019; Rufino, 2017;
Simas & Rufino, 2018).
Paralelamente às atividades de pesquisa, a primeira autora
passou a se dedicar a atendimentos psicológicos voluntários no
serviço da Rede de Atenção à Pessoa Indígena (Rede Indígena)
situado no Departamento de Psicologia Experimental do Instituto
de Psicologia da Universidade de São Paulo (PSE-IPUSP). Ao
longo dessa vivência, para sua surpresa, as questões de pesquisa
que até então estavam excessivamente abstratas a partir de
referenciais teóricos sociológicos e/ou debates políticos na arena
virtual que a pesquisadora buscou acompanhar ao longo do
Mestrado, ganharam corpo e tonalidade afetiva quando,
inesperadamente, certos temas de relevância à pesquisa
começaram a emergir em algumas das relações de cuidado
psicológico cultivadas no serviço.
A influência das relações de cuidado psicológico cultivadas foi
decisiva no redirecionamento da pesquisa: a partir da concretude
dessas relações a autora se reencontrou com os afetos que mobilizam
sua curiosidade de pesquisadora desde a graduação, que envolve
uma dimensão ética própria das relações de cuidado. Isso a levou a
rememorar sua trajetória na formação clínica, reconhecendo suas
motivações pessoais para adentrar a pesquisa científica desde a
graduação, ainda em Iniciação Científica em Antropologia3, quando

dos terreiros brasileiros enquanto potência criativa”, com apoio da Fundação de


Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), (Processo nº 2019/22742-3).
3 Pesquisa de Iniciação Científica em Antropologia (FFLCH-USP), sob orientação

da Profa. Dra. Marta Rosa Amoroso, intitulada “O fenômeno onírico: expandindo


Etnopsicologia e Saúde 167

já buscava (ainda muito intuitivamente) aprofundar uma formação


teórica para além das referências hegemônicas de uma formação
acadêmica ocidentalizada (Grosfoguel, 2016), pois suas inquietações
epistemológicas se enraizavam em uma inclinação pessoal de querer
oferecer um cuidado psicológico mais adequado às pessoas que
vivem sua relação com o sagrado, culturalmente, situadas em
tradições não-ocidentais, como, por exemplo, pessoas iniciadas nas
tradições afro-brasileiras e/ou indígenas que buscam atendimento
psicológico e, infelizmente, frequentemente se deparam com uma
escuta que desconsidera a relevância e as especificidades da tradição
cultural e/ou espiritual na qual a pessoa está inserida. Por vezes, sua
narrativa é no máximo tolerada em seu caráter ficcional, mas nunca
“levada a sério” (Stengers, 2012) em sua dignidade e relevância de
um saber quando este diverge dos referenciais hegemônicos de uma
formação acadêmica ocidentalizada (Grosfoguel, 2016).
Nisso está o risco da/o psicóloga/o assumir uma postura
dogmática, ou seja, fechada em seus próprios axiomas e
indisponível para colocar-se em questão (Figueiredo, 2008),
perdendo-se, assim, da dimensão ética da relação quando
pressupõe traduções inequívocas das experiências que lhe foram
relatadas em conceitos psicológicos, sem a devida abertura para a
negociação desses sentidos compartilhados na intimidade da
relação de cuidado. Diante das limitações teóricas com as quais se
deparou nos primeiros anos de formação clínica, seu movimento
em direção à Antropologia foi justamente buscar outros
referenciais para se pensar as experiências com o sagrado que
muitas pessoas trazem aos encontros psicológicos, sem capturar o
fenômeno a uma dimensão exclusivamente psicológica.
Justamente, na antropologia, foi possível entrar em contato
com outras elaborações sobre a experiência onírica e a relação
espiritual com o sagrado em termos culturalmente situados, a
partir da perspectiva cosmológica Guarani que, em grande

os possíveis da noção de sonho ao navegar entre a psicologia cultural e o


perspectivismo ameríndio” com apoio da FAPESP (Processo nº 2018/03716-0).
Etnopsicologia e Saúde 168

medida, contribuiu para sua formação que, hoje, se aproxima de


uma Psicologia Indígena junto ao segundo autor. Atualmente, o
esforço de pesquisa da primeira autora, contando com a orientação
do segundo autor, é trazer para o debate psicológico a relevância
das contribuições das sabedorias indígenas e afro-diaspóricas
sobre o cuidado à vida, sabedorias estas que se fazem presentes
tanto nos terreiros afro-brasileiros quanto na singularidade das
vivências das pessoas às quais prestamos atendimento psicológico,
como é o caso da Rede Indígena.

Desenvolvimento

O próprio processo de escrita da primeira autora, ancorada em


uma perspectiva cultural e dialógica em Psicologia, apoia-se nas
proposições teórico-metodológicas do segundo autor (Guimarães,
2020a, 2020b, 2017, 2013, 2012) sobre o processo de construção de
conhecimento. Entendemos que toda construção de sentido é
culturalmente situado e deriva dos ritos e mitos próprios de um
certo campo cultural específico que baliza os limites e
possibilidades de emergência de elaborações afetivo-cognitivas,
propondo um certo modo de elaboração de conhecimento
direcionado para a ação no mundo, processo esse que resulta em
novidades, através desse processo criativo singular que, antes de
propor alguma reflexão ou novidade no campo da construção de
conhecimento (nesse caso, científico), emerge da experiência
pessoal da pesquisadora engajada em e afetada por experiências
concretas (Bastos & Guimarães, 2014; Guimarães et al., 2019), ou
seja, pelos ritos, que afetam o corpo enquanto sujeito empírico,
atravessado pelas dimensões sensoriais, estéticas e afetivas das
trocas cotidianas e concretas (Guimarães, 2017).
Ampliando a noção de rito enquanto práticas culturalmente
situadas que se dão nas trocas cotidianas vivenciadas no encontro
com o outro (Guimarães et al., 2019; Guimarães, 2017), entendemos
que é a partir de um corpo afetivo e objetivo (Guimarães, 2017) que
se disponibiliza a ser afetado e transformado pela participação
Etnopsicologia e Saúde 169

ritual, que emergem, posteriormente, as construções de sentido


possíveis de serem verbalizadas em uma narrativa compartilhável
a respeito da emergência de novidade na construção de
conhecimento (Bastos & Guimarães, 2014; Guimarães, 2017; 2020b;
Guimarães et al., 2019).
A possibilidade de refletir sobre nossos próprios caminhos de
formação em Psicologia exige, metodologicamente, um exercício
introspectivo que se apoia em noções de dialogismo (Brait, 2005),
segundo uma perspectiva bakhtiniana, no ato estético-criativo da
escrita que leva em consideração as múltiplas refrações da pessoa
concreta que coexistem – como, por exemplo, ser psicóloga,
umbandista e pesquisadora em formação. Desse modo, os aspectos
relevantes à discussão de cada refração de si mesma podem ser
narrados pela autora-pessoa (Faraco, 2005). Construir conhecimento
a partir do emaranhado complexo daquilo que é vivido na
concretude das experiências passa, em um primeiro momento, pelo
mito (Guimarães, 2017), no sentido de elaborar uma narrativa que
dá sentido às experiências estético-afetivas que o rito proporciona.
Trata-se da emergência das primeiras imagens e/ou palavras que
dão sentido à experiência vivida pelo corpo, por onde os afetos
circulam antes mesmo que possa ser elaborado simbolicamente em
uma narrativa, processo esse de sedimentação de saberes e
memórias em uma dimensão concreta e afetiva que precede o verbal
que entendemos enquanto memórias corporificadas (Guimarães,
2020b), indicando que guardam um saber e um sentido que foram se
acumulando e se sedimentando no corpo, mas que ainda não foram
elaborados simbolicamente em uma narrativa compartilhável.
Vale destacar que o sentido de memória empregado por
Guimarães (2020b) considera tanto uma dimensão narrativa de sua
própria trajetória na qual uma pessoa identifica suas experiências
pessoais e/ou coletivas, mas também – e, principalmente –
gostaríamos de destacar um aspecto corporificado da memória, no
sentido de que as experiências pessoais e/ou coletivas do presente
estão impregnadas por experiências passadas que nem sempre
foram elaboradas e articuladas a uma dimensão verbal. Ao passo
Etnopsicologia e Saúde 170

que esse precipitado de sedimentos emerge no presente, essas


memórias corporificadas podem ser reconstituídas e reelaboradas,
inclusivamente, em uma narrativa compartilhável a posteriori.
É apoiada nesse duplo aspecto da memória, que envolve as
afetações corporificadas que precedem a dimensão narrativa, que
buscamos (re)acessar as experiências significativas da prática do
cuidado que, hoje, sedimentam-se ao colocar questões a serem
compartilhadas neste capítulo, enquanto uma primeira
oportunidade de elaboração e compartilhamento dos desafios e
potenciais criativos de uma prática de cuidado psicológico em
contexto interétnico ou intercultural, como é o caso das
experiências na Rede Indígena/IPUSP.
Buscando dar especial atenção a essa dimensão da afetação do
corpo, partimos de diálogos prévios da área entre Psicologia e
Antropologia (Guimarães, 2012, 2013, 2017), em que a noção de
corpo tomada decorre do conceito de corpo enquanto “feixe de
afecções” (Viveiros de Castro, 1996), que traz para o diálogo com a
Psicologia uma especial atenção para as múltiplas afecções que
constituem esse corpo, bem como opera uma torção conceitual
interessante sobre a subjetividade, que se situa no corpo, uma
perspectiva concreta no mundo.
A fim de aprofundar, metodologicamente, essa dimensão
afetiva do corpo envolvido nos processos de construção de
conhecimento, retomamos os diálogos entre Psicologia e
Antropologia, agora, a partir de uma possível aproximação com a
noção de “ser afetado” de Jeanne Favret-Saada. Suas contribuições
metodológicas na Antropologia, a partir de suas pesquisas
etnográficas sobre feitiçaria rural na França, ampliam e
aprofundam a noção de afeto em sua área de atuação, bem como a
partir de suas próprias experiências de “desenfeitiçamento” em
campo, seguidas de terapia analítica, contribuindo na construção
de conhecimento sobre uma certa antropologia das terapias de
cuidado ocidentais e não-ocidentais. Metodologicamente, a autora
propõe que a opacidade inerente às experiências (inclusive de si
Etnopsicologia e Saúde 171

mesmo) seja o centro das análises, e não aquilo que se dá a ver no


discurso verbal e intencional (Siqueira, 2005).
Favret-Saada tensiona a noção de afeto tal como é tratada na
Antropologia, geralmente ignorada ou negada em sua relevância
nas experiências humanas, no máximo relatada enquanto um
produto cultural na literatura anglo-saxã ou enquanto algo a ser
neutralizado, quando o único destino possível do afeto é a
representação, conforme observou na etnopsicologia francesa e na
psicanálise. Sua proposta, em contrapartida, é dar maior enfoque à
dimensão pré-simbólica da experiência, sugerindo que a eficácia
terapêutica se dá justamente no trabalho com o afeto não
representado (Siqueira, 2005).
O que chama atenção nas contribuições da autora em um
possível diálogo com nossas práticas e modos de construir
conhecimento em Psicologia é sua aposta metodológica em dar
centralidade ao afeto não representado, que se faz observável de
outras formas para além da fala enquanto um comportamento
observável, como, por exemplo, na dimensão imagética da
memória de um sonho, ou, ainda, nos afetos do corpo, quando o
afeto ainda não pode ser, sequer, compartilhado verbalmente em
uma narrativa, ainda que se trate de um diário pessoal. Seu debate
metodológico parte da exposição de suas próprias experiências
pessoais. Por exemplo: de, sem nenhum motivo aparente, certo
acontecimento em campo despertar a memória de um sonho que
teve, assim como outras pessoas reconhecerem alterações em seus
corpos durante o tempo de permanência em campo. Ao tematizar
tais experiências pessoais dando-lhes estatuto epistemológico, a
autora sugere que tais eventos tratam-se de evidências de que uma
comunicação não-verbal aconteceu, ou seja, que a pesquisadora foi
afetada pela feitiçaria que buscava pesquisar, em vez de,
tradicionalmente, “colher” informações em campo através dos
relatos verbais, o que não era uma opção diante da incontornável
dimensão do segredo da comunidade na presença de uma
etnógrafa.
Etnopsicologia e Saúde 172

A partir dos próprios desafios metodológicos experimentados,


sugere que se sustentem os incômodos de ser afetado,
reconhecendo que essa dimensão não-verbal da experiência
evidencia, em si mesma, que uma comunicação significativa está
acontecendo, ainda que seja impossível compreendê-la no
momento em que se está “enfeitiçado”, em que se é afetado pela
experiência (Siqueira, 2005). Sustentar ser afetado e suspender suas
preocupações de tomar notas entre outras tarefas cognitivas foi o
que proporcionou, para a autora, tomar os afetos não
representados enquanto fonte de conhecimento e, com isso, suas
reflexões metodológicas colocam questões também à Psicologia.
Tais reflexões metodológicas evocam memórias da primeira
autora sobre seu percurso de formação enquanto psicóloga e
umbandista, período no qual, certa vez, notou recorrentes dores de
cabeça logo após sair dos atendimentos de uma certa paciente que,
na época, ainda não fazia ideia, mas estava às voltas de entrar em
contato com eventos traumáticos do passado da paciente que, até
então, nunca tinha contado a ninguém. Olhando o evento em
retrospectiva, sob as lentes metodológicas de Favret-Saada, é
possível reconhecer essa dimensão do afeto não representado
permeando os encontros de cuidado e, possivelmente, essas
manifestações físicas no corpo da psicóloga após os encontros
podiam ser, justamente, sinal de que uma comunicação estava
acontecendo, em uma dimensão antepredicativa.
Certo dia, durante uma noite de “gira” (encontro de cuidado
próprio das práticas rituais da Umbanda) que a primeira autora
frequentava, mencionou esse recorrente incômodo físico à Preta-
velha (uma entidade da Umbanda) com a qual se consultava, que
sugeriu que trabalhasse descalça para que pudesse “descarregar”
aquilo que não era seu, pois se estava ali para cuidar, antes de tudo,
precisava também ter seus próprios cuidados. Tão acostumada que
ainda estava com a (auto)disciplinarização dos corpos (Guimarães,
2017), naturalizada ao longo dos anos de nossa formação pessoal e
acadêmica, parecia-lhe impensável pisar o chão enquanto realizava
Etnopsicologia e Saúde 173

atendimentos na Clínica-Escola do Instituto de Psicologia (CEIP-


USP), mas guardou consigo o ensinamento.
Ao longo do processo, certo dia a paciente revelou eventos
traumáticos vividos que nunca teve coragem de compartilhar com
mais ninguém na vida, nem mesmo sua família. Nesse dia, pela
primeira vez a paciente chorou e até pediu desculpas por seu
descontrole. Nesse dia, em que a psicóloga foi surpreendida com
revelações traumáticas que até então nunca foram sequer cogitadas
a partir do que se manifestava verbalmente no trabalho terapêutico,
foi o primeiro dia em que aquelas sensações físicas depois dos
atendimentos não aconteceram mais, ao longo de uma relação
terapêutica que durou muito tempo. A relevância do
compartilhamento desse evento, ao que se propõe nossa discussão,
se dá por ser um marco significativo que coparticipou afetivamente
do início da atuação da primeira autora no serviço de atendimento
psicológico da Rede Indígena, a convite do segundo autor,
coordenador e fundador do projeto.

A experiência de atuação na Rede Indígena

O serviço da Rede Indígena começou a prestar atendimento


psicológico a pessoas indígenas a partir da demanda espontânea e
cada vez mais crescente de pessoas indígenas que buscavam por
uma escuta psicológica sensível às suas especificidades enquanto
pessoa indígena. Dado o histórico de atuação da Rede Indígena
junto a comunidades indígenas parceiras, esse serviço tem sido
bastante procurado para a oferta de atendimentos psicológicos.
Em 2019, a primeira autora passou a prestar um dos primeiros
atendimentos psicológicos oferecidos no espaço da Casa de
Culturas Indígenas, por solicitação de uma estudante universitária
indígena, quando ainda não havia um serviço de atendimento
psicológico devidamente estruturado como temos hoje. Hoje, a
primeira autora é capaz de rememorar esse período de sua
formação acessando nuances afetivas significativas que
coparticiparam de seu aceite, na época, não apenas pelo interesse
Etnopsicologia e Saúde 174

comum em contribuir para a Rede Indígena da qual participava em


diferentes núcleos de ação ao longo dos anos desde o início da
graduação em Psicologia, mas também por poder experimentar
outros espaços, com outras disposições, para realizar atendimentos
psicológicos, como seria o caso de passar a atender em uma Opy
(casa de reza e reuniões Guarani), construída sobre o chão de terra
batido, como é a Casa de Culturas Indígenas construída no IPUSP.
A Casa contou com os cuidados e orientações de lideranças Mbyá
Guarani das comunidades parceiras.
Além de sua relação de alguns anos com a Rede Indígena e a
Casa de Culturas Indígenas, hoje é relevante retomar uma outra
nuance da dimensão afetiva do interesse da primeira autora em
colaborar com o serviço: a sincronicidade de eventos em sua vida
pessoal em que, aos cuidados da Umbanda, há pouco tempo tinha
sido orientada por uma entidade a tentar trabalhar descalça, com
os pés no chão durante os atendimentos psicológicos, ou quando
não fosse possível, que andasse descalça logo após os
atendimentos, preferencialmente sobre a terra, pois, na época,
vinha percebendo que saía fisicamente afetada de alguns
atendimentos psicológicos prestados na Clínica-Escola do Instituto
de Psicologia (CEIP-USP).
Em um primeiro momento, tão naturalizado que estava para a
estudante uma (auto)disciplina do corpo, logo assumiu que seria
impensável atender com os pés descalços no chão da clínica da
universidade, mas levou consigo esse ensinamento na memória.
Pouco tempo depois, quando recebeu o convite de atender na Casa
de Culturas Indígenas, construída sobre chão de terra batido, tal qual
um terreiro, imediatamente se animou a poder contribuir com esse
novo serviço da Rede Indígena, que seria também novidade em sua
vida pessoal, apontando para novas possibilidades de como
construir um “ser psicóloga” menos incompatível com seu “ser
umbandista”, ambos ainda em um processo de formação em aberto.
A Casa foi construída por indígenas Mbyá Guarani em
colaboração com pessoas da comunidade acadêmica, que
participaram espontaneamente do processo construtivo. Busca ser
Etnopsicologia e Saúde 175

um espaço mais acolhedor e confortável às pessoas e comunidades


indígenas parceiras da Rede Indígena que vinham participar de
encontros na Universidade. Feita segundo os fundamentos de uma
Opy (casa de reza, encontros e trocas Guarani), construída sobre o
chão de terra batido dentro do espaço do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo, a Casa presentifica com sua
materialidade e arquitetura própria, um novo ethos, novas
possibilidades de habitar e ocupar o espaço acadêmico e, agora,
aponta também para novas possibilidades de se construir um
espaço de cuidado também psicológico, justamente por oferecer
um outro “setting” que proporciona certas experiências de trocas
interétnicas. E a partir da experiência da primeira autora, em seu
processo de formação em Psicologia e na Umbanda,
concomitantemente, a Casa de Culturas Indígenas revelou mais
uma nova camada da experiência possível, ao proporcionar uma
certa liberdade e flexibilidade para que outros ritos de cuidado
pudessem coexistir, abrigados por sua arquitetura própria.
Nessa Casa construída sobre o chão de terra batida,
proporcionando algum nível de des-disciplinarização do corpo, a
primeira autora teve a experiência de permitir-se atuar enquanto
psicóloga pisando no terreiro, por assim dizer, dentro do Instituto
de Psicologia da Universidade de São Paulo. Olhando em
retrospectiva, essa experiência que a Casa oportunizou parece ter
formado um corpo mais flexível e sensível a ser afetado pelos
encontros de cuidado interétnicos que, hoje, acontecem até mesmo
em formato virtual.
Chama a atenção o modo como a Casa de Culturas Indígenas
se dispõe a habitar o território da Universidade de São Paulo de
maneira a construir um novo ethos de abertura para a diversidade
de Culturas Indígenas que coexistem em nosso território que,
originalmente, não tem fronteiras para a cultura Guarani: yvy rupa
tem o sentido de terra sem fronteiras, que o caminho que fazemos
pela terra não tem separações e delimitações, tão diferente dos
conceitos de fronteira baseados em um modo de habitar o mundo
segundo o conceito de Estado-Nação. Por esse ser um espaço
Etnopsicologia e Saúde 176

construído a partir dos fundamentos da sabedoria Guarani,


presentifica um modo de habitar o mundo que é próprio das muitas
Culturas Indígenas, com uma abertura incondicional às diferenças,
sem delimitar fronteiras precisas. Isso favoreceu que alguns saberes
das tradições afro-brasileiras que se sedimentavam na
corporeidade da primeira autora, ainda em seu processo de
formação em Psicologia, pudessem coexistir não só em seu corpo,
mas, também, em um primeiro espaço de cuidado psicológico onde
outro “setting”, outro ethos de cuidado era possível.

O que emerge no cultivo do espaço de cuidado?

O serviço de atendimento psicológico da Rede Indígena é


aberto a pessoas indígenas, sem restringir ao reconhecimento
comprovado de pertencimento étnico a uma comunidade indígena.
As questões identitárias das pessoas indígenas atendidas, muitas
em dolorosos processos de retomada, tem emergido de maneira
singular na intimidade do encontro de cuidado psicológico, ao
passo que algum vínculo de confiança é estabelecido com a
psicóloga, para que as pessoas indígenas atendidas sintam-se à
vontade e com confiança de dar a ver facetas de si mesmas que, por
vezes, transbordam categorias identitárias fixas presentes no
campo social e da arena política de debate.
Em processos bastante movediços em andamento, a primeira
autora reconhece que seu trabalho no serviço de cuidado
psicológico da Rede Indígena, em muitos momentos, parece que
vem sendo sobre os processos criativos singulares de como habitar
as fronteiras pessoais, bem como, de encontrar (ou criar) meios de
circular pelas diversas fronteiras sociais. As possibilidades e limites
dessas experiências são incertas e seguem se atualizando a cada
(re)encontro de cuidado.
Ao compartilhar tais experiências, buscamos caminhar para
uma construção de conhecimento criativa que se permita circular
entre outros gêneros de conhecimento junto à Psicologia, que nos
oferecem outros modos de significação daquilo que, por vezes, os
Etnopsicologia e Saúde 177

conceitos psicológicos não dão conta e precisam de contínua


ressignificação. Com isso, ao compartilhar algumas vinhetas
clínicas que despertaram, a posteriori, algumas reflexões éticas e
epistemológicas, esperamos poder colaborar de alguma forma com
companheiras/os de pesquisa e/ou atuação clínica que, assim como
nós, buscam oferecer um cuidado psicológico sensível aos desafios
sociais contemporâneos.
Certa vez, uma pessoa indígena em contexto urbano e em
processo de retomada, que é atendida pela primeira autora, relatou
que mentiu sobre o motivo real pelo qual faltou no encontro
anterior. O motivo era sua autoimagem: se sentia tão estranha e
inadequada que não gostaria de ser vista por ninguém. Conforme
foi possível aprofundar o diálogo na duração do encontro,
chegaram a questões étnico-raciais identitárias e de pertencimento
que atravessam afetivamente sua autoimagem desde que se
conhece por gente. A pessoa relatou seu profundo estranhamento
sobre sua própria imagem no espelho, explicando em detalhes que
varia muito, pois a cada vez que olha parece diferente, e, na maioria
das vezes, parece-lhe muito estranho, em contraposição a todas as
outras pessoas que parecem normais.
No modo como esse relato afetou a psicóloga que ofereceu
testemunho, parecia não se tratar apenas de um estranhamento
baseado em padrões de beleza racistas, mas, principalmente, o
estranhamento diante da impossibilidade de coesão identitária, ou,
nas palavras da própria pessoa, de não saber quem é, de não poder
se reconhecer nem negro, nem indígena, completamente. A
afirmação desse dilema sobre não poder ser completamente nada,
no entanto, só apareceu ao fim do encontro, depois de percorrerem
novamente sua história familiar ou, melhor dizendo, revisitando as
muitas lacunas em sua história familiar, cujos apagamentos
seletivos da memória familiar pareciam presentificar justamente os
efeitos históricos das políticas de embranquecimento, em um país
onde, quem é brasileiro é “tudo e nada”, segundo seus relatos da
experiência de sentir-se como se não tivesse raízes, como se viesse
Etnopsicologia e Saúde 178

de lugar nenhum, flutuando no mundo ou, no máximo, como uma


mudinha plantada em um vaso que não irá prosperar.
Quando criança, perguntavam-lhe se não tinha nenhuma
ascendência de fora do Brasil, com grande frustração em ser “só”
brasileiro, de ser “só daqui mesmo”, ao passo que nunca pôde saber
precisamente de suas raízes. Pareceu, para a psicóloga, que sua
experiência social de ser uma pessoa racializada em um país sem
memória coletiva de suas ancestralidades indígenas e
afrodiaspóricas, expressava-se em um profundo estranhamento de
sua autoimagem supostamente incoerente, por coexistir em sua
face fenótipos negros e indígenas. Dessa forma, conforme relatou,
não se sentia indígena de verdade e também não podia se afirmar
enquanto negro, pois reconhecia não viver diversos processos
violentos de racialização que homens negros relatam nos coletivos
do movimento negro, o primeiro lugar em que buscou pertença
política e identitária.
Hoje, reconhece-se enquanto indígena em retomada, mas
questiona-se sobre isso, relatando que colocava bastante
expectativa na possibilidade de ser reconhecido por alguma etnia,
uma possibilidade que, sinceramente, acha bastante remota diante
dos profundos apagamentos da memória familiar. Os poucos
vestígios de pertença indígena da família estão nos fenótipos, nos
apelidos de “Índio”, mas jamais no reconhecimento explícito de
nenhum membro da família, assunto que sempre que busca trazer
à tona, é silenciado. Tanto quando pergunta de sua descendência
negra, por parte de mãe, quanto das descendências indígenas por
parte de mãe e pai, a família diz que eles têm sangue de índio, mas
não são indígenas.
O legado indígena de sua família se perpetuou nos fenótipos
físicos e nos ensinamentos não-ditos: o avô paterno que fumava
cachimbo, que cuidava de sua horta com plantas medicinais e fazia
benzimento nos netos até que fora proibido pelo pai, desde que se
tornou pastor evangélico. Uma memória familiar marcada por
silenciamentos e apagamentos que, justamente, revelam suas
ancestralidades renegadas. Esses apagamentos da memória
Etnopsicologia e Saúde 179

coletiva de uma família que, há gerações, identifica-se enquanto


parda, parecem revelar as muitas nuances históricas e afetivas da
experiência de miscigenação. Estamos em um país marcado pela
violência colonial e pelas políticas de embranquecimento, não
apenas na dimensão biogenética das gerações futuras dos ditos
“brasileiros”, como também na dimensão simbólica, afetivo-
cognitiva, embranquecendo/apagando a memória coletiva de
pertença das famílias racializadas, ditas pardas, que, em grande
medida, representam a maioria de nossa população. A Psicologia,
portanto, deveria dedicar mais atenção às complexidades das
experiências de miscigenação para além dos discursos
homogeneizantes próprios do mito da democracia racial.
Essas reflexões emergem para a primeira autora apenas a
posteriori dos encontros e dos reencontros onde houve a
possibilidade de reacessar essas questões e co-construir sentidos
possíveis para a elaboração dessa experiência, que, atualmente, a
imagem de ser uma planta sem raízes, solta no mundo, levada pelo
fluxo do tempo e dos apagamentos históricos, chegou em uma nova
imagem: foi cogitado poder ser água e fluir por uma história
familiar de constantes migrações e transformações, reconhecendo
os apagamentos que aconteceram no processo, mas sentindo-se um
pouco menos impelido a afirmar sua existência a partir de um
pertencimento identitário contingenciado a encontrar suas origens
em fronteiras territoriais bem delimitadas. Imaginou que,
possivelmente, sua memória familiar não simplesmente se diluiria,
mas, quem sabe, seria o próprio rio fluindo, o que, na percepção da
psicóloga, indicou a possibilidade do reconhecimento dos
violentos processos de apagamento histórico de sua família não
impedir que existisse também um reconhecimento dos processos
criativos pessoais ao se reconhecer como o próprio rio que flui.
É a partir da sensibilidade vivida na particularidade dos
encontros, na convivência cotidiana semanal que, muitas vezes,
demanda uma companhia silenciosa que seja capaz de oferecer
testemunho às dores sem nomeá-las apressadamente, que somente a
posteriori pode emergir alguma abstração um pouco mais geral, no
Etnopsicologia e Saúde 180

processo de construção de sentidos sensível às particularidades


daquele encontro partilhado afetivamente. Essas reflexões emergem
do espanto da psicóloga diante da revelação, muito recente, dessa
pessoa atendida no serviço, que demorou para trazer esses temas de
inquietação, pois temia perder sua vaga caso trouxesse à tona suas
questões identitárias sobre sentir-se em um limbo em que não é
reconhecido nem como negro, nem como indígena “de verdade”,
por não ter o reconhecimento de pertença de um povo.
Assim, ao dar a ver sua incoerência identitária no espaço de
cuidado psicológico, por falar sobre sua sensação de não ser
indígena “de verdade”, temia perder seu lugar de pertencimento e
direito de ser atendido, como reconheceu acontecer em espaços de
militância pelos quais já circulou e outros nos quais circula
atualmente, em que a afirmação identitária tem grande importância
estratégica por sua relevância política. Reconheceu grande alívio
por poder falar abertamente sobre suas questões sem que isso
colocasse em risco seu pertencimento, seu direito à vaga em um
serviço voltado para pessoas indígenas “de verdade”, seja lá o que
signifique essa suposta verdade, era esse seu receio.
Diante dos dilemas políticos e sociais da afirmação identitária
adentrando as dinâmicas de cuidado, a psicóloga propôs, então,
que pudessem construir juntos um espaço de confiança em que
essas incoerências pudessem aparecer sem medo, para que fosse
possível falar sensivelmente dessa experiência de miscigenação de
alguma outra forma além dessa ameaça política aos direitos e de
perda de pertencimento que tanto o aterroriza, e que, quem sabe,
daí por diante seja possível construir juntos novos sentidos para
essa experiência e nomeá-la como ele desejar, sem que isso coloque
em risco, de maneira alguma, sua pertinência ao serviço público
onde ele escolheu buscar por cuidado psicológico.
A particularidade dessa vinheta clínica expressa questões
fundamentais que vêm se manifestando, de diferentes formas, em
outras relações de cuidado que cultivamos na Rede Indígena.
Ainda que cada uma se manifeste de maneira singular, conforme
avançamos os diálogos em reuniões de supervisão, parecem
Etnopsicologia e Saúde 181

apontar também para algumas questões gerais. No espaço (ainda


que virtual) de encontro de cuidado psicológico ofertado a essas
pessoas indígenas, é possível testemunhar uma outra qualidade de
discurso sobre questões identitárias, de modo que as
ambiguidades, as incoerências de posições opostas ou conflituosas
que habitam a mesma pessoa podem se dar a ver na intimidade do
encontro de cuidado psicológico, apoiado em uma relação de
confiança onde as pessoas, por vezes, relatam ser um espaço onde
não temem ser julgadas.
No processo de amadurecimento da primeira autora, diante
do desafio de ser uma psicóloga branca buscando oferecer um
cuidado psicológico a pessoas indígenas atento às especificidades
culturais, foi muito significativo quando os vínculos de confiança
foram estabelecidos, justamente, a partir das diferenças, e não
apesar delas. Ao longo de seu processo de amadurecimento
enquanto psicóloga da Rede Indígena, testemunhou, muito
afetada, o relato da dor que é não poder contar certas vivências para
as pessoas de seu próprio povo, e ter que contar apenas com o
acolhimento de mulheres brancas que não vivem a mesma coisa.
Ao longo da relação terapêutica, um vínculo de confiança a
partir das diferenças entre uma mulher indígena e uma mulher
branca foi se estabelecendo, o que envolveu algumas solicitações
fora dos horários agendados de atendimento psicológicos para
acolher questões que, até então, a pessoa atendida só se sentia à
vontade para compartilhar com a psicóloga. Ao longo do trabalho,
foi se tornando possível que a pessoa passasse a generalizar essa
confiança de se expor inteiramente também em outras relações,
passando gradualmente a contar com outras pessoas de sua rede
de relacionamentos próximos, deixando de ter tanto medo de se
mostrar verdadeiramente e ser julgada e/ou rejeitada.
Pessoas atendidas no serviço da Rede Indígena relatam,
muitas vezes, que estão em busca de uma escuta psicológica
afinada com as questões indígenas. Dado o histórico de atuação da
Rede Indígena em parceria com comunidades indígenas, parece
que é oferecido esse possível primeiro “chão comum” de confiança,
Etnopsicologia e Saúde 182

mas que, muitas vezes, vem também permeado pela imaginação de


que serão atendidos por parentes indígenas, conforme nota-se em
muitos contatos que recebemos por e-mail. Nos primeiros
encontros, muitas expectativas são frustradas e é justamente a
partir daí que passamos a co-construir um espaço de cuidado
psicológico interétnico, em que os vínculos de confiança vêm se
construindo não pela identidade, como é comum no campo social
e da militância unidos pela luta política por direitos coletivos,
historicamente negados às pessoas indígenas, mas no espaço de
cuidado psicológico.
Os vínculos de confiança vêm se construindo a partir da
diferença: pela possibilidade de dar a ver as contradições e as
incoerências que permeiam a pessoa, sem sentir-se julgada ou
rapidamente capturada em uma categoria estática ou um
diagnóstico pela psicóloga branca que, de fato, não sente na pele o
que uma pessoa indígena em retomada tem que lidar. Mas nem por
isso é incapaz de oferecer uma escuta sensível às suas vivências que
tocam questões sociais e políticas complexas, que a psicóloga de
fato não conhece com a mesma profundidade das pessoas
indígenas que atende, em sua maioria militantes muito engajadas
nos movimentos sociais indígenas. A relação terapêutica oferece
um espaço de escuta atenta à sua singularidade, livre de
julgamentos ou intervenções diretivas. Entendemos que isso abre
um espaço de espontaneidade que resguarda a possibilidade de
cultivar as potências criativas da pessoa (Figueiredo, 2008).
Na prática do cuidado, a primeira autora testemunhou relatos
de pessoas que sentiam que somente no espaço de cuidado
psicológico conseguiam se mostrar por inteira/o, sem medo de
julgamento ou ser mal interpretada(o). Espera-se que esse processo
possa ser generalizado para outros espaços da vida das pessoas,
sendo um primeiro espaço onde é possível dar a ver outras facetas
de si mesma/o que, supostamente, não seriam bem aceitas nas
relações familiares, amorosas e/ou de amizades, mesmo entre seu
povo ou até nos espaços de militância onde a pessoa circula.
Etnopsicologia e Saúde 183

Mas, por vezes, isso é feito ocupando uma posição


relativamente estática. Chamou a atenção da primeira autora, ao
longo da experiência de atendimentos, como as mulheres indígenas
atendidas que ocupam algum espaço político tendem a ser lidas e
admiradas, exclusivamente, enquanto mulheres fortes. A essa
qualidade reconhecida e admirada, a partir da intimidade de um
encontro de cuidado, desvelou-se uma outra faceta: a dor de não
poder dar a ver outras dimensões de si mesma para além da tão
admirada mulher forte. A dor de não poder divergir. A dor de não
poder reconhecer que é múltipla, que é habitada por muitas, que o
reconhecimento da existência dessa mulher forte, por vezes, eclipsa
a sua coexistência com outras facetas de si mesma igualmente
importantes e valorosas.

Como elaborar em palavras os afetos tecidos artesanalmente nas


relações de cuidado?

Oferecer um cuidado psicológico atento às especificidades


culturais da pessoa não se trata, necessariamente, de buscar
oferecer uma escuta previamente instruída sobre as especificidades
culturais de uma certa etnia/grupo social ao qual a pessoa se
identifica pertencente. Justamente, diante dos sofrimentos
testemunhados acerca dos imperativos de coesão identitária, que
se expressam em sentimentos de profunda inadequação e não-
pertencimento, uma alternativa tem sido imaginar como habitar
essas fronteiras, tanto sociais quanto pessoais.
Em uma perspectiva cultural e dialógica em Psicologia, é
importante reconhecer a heterogeneidade constituinte dos grupos
culturais, bem como da cultura pessoal (Valsiner, 2017). Nessa
perspectiva, não é possível tomar um grupo cultural enquanto uma
pertença identitária coesa e estática passível de comparações com
outros grupos culturais, como, por exemplo, é comum em estudos
transculturais. Caminhando para uma Psicologia Indígena
(Guimarães, 2020a), uma abertura para as diferenças que as
reconheça e acolha, sem operar uma captura estática do que se
Etnopsicologia e Saúde 184

apresenta, talvez seja um dos principais fundamentos que orientam


a atuação na Rede indígena.
As Psicologias Indígenas têm muito a ensinar, reconhece
Valsiner (2019), justamente, por apresentar um modo de lidar com
as diferenças entre Eu-Outro (que pode ser uma pessoa, uma
cultura, uma ideia etc.) enquanto uma separação inclusiva, ou seja,
diferenças que se mantêm separadas em sua especificidade sem
inviabilizar a relação de trocas e mútua afetação, diferente do que
ocorre na separação exclusiva, como em geral apresentam os sistemas
axiomáticos ocidentais de Psicologia (Valsiner, 2019). Sua
sistematização teórico-metodológica é orientada por um
movimento ético de construir um novo ethos capaz de “abrigar
aquilo que excede às pretensões de unidade dos projetos
epistemológicos e pressupostos ontológicos que fundamentam as
ciências modernas” (Guimarães, 2017, p. 282).
A partir dessa proposição teórico-metodológica, a atuação na
Rede Indígena busca cultivar um novo ethos no espaço de cuidado
psicológico aberto às diferenças e à emergência de novidades ao
longo da relação. Essa experiência poderia ser pensada em termos
de uma co-construção artesanal de um novo ethos em cada relação
de cuidado, a partir de suas singularidades e das constantes
(re)negociações de sentidos que vão se co-construindo na duração
dos encontros.
Diante da experiência de alteridade radical de testemunhar o
processo singular de cada pessoa indígena atendida, ao trazerem
questões identitárias complexas e, por vezes, com uma dimensão
traumática (Coelho Júnior & Figueiredo, 2007), a partir dos maus
encontros vividos, a psicóloga se resguarda à posição de
testemunho enquanto possibilidade de cuidado ofertado, evitando
interpretações ou intervenções diretivas. Na atuação da Rede
Indígena, conforme sistematizado por Guimarães (2017), partimos
de uma noção de cuidado (Figueiredo, 2007) que visa a criar um
“espaço vital desobstruído” na relação, onde a pessoa tenha a
liberdade necessária para “alucinar, sonhar, brincar, pensar e, mais
Etnopsicologia e Saúde 185

amplamente, criar o mundo na sua medida e segundo suas


possibilidades” (Figueiredo, 2007, p. 22).
A atuação na Rede Indígena sempre foi muito orientada por
uma atenção à sensibilidade dos corpos e da possibilidade (ou não)
de promover algum alinhamento (ainda que temporário) dos
ritmos pessoais nos encontros (Guimarães et al., 2019).
Aprendizados, inicialmente muito mais intuitivos, através da
convivência na Rede Indígena que marcaram o próprio processo de
formação da primeira autora desde o início de sua graduação, são
memórias e saberes tácitos que, pouco a pouco, foram se
sedimentando no corpo, guardião que carrega essas memórias
corporificadas (Guimarães, 2020b), um precipitado de afetos e
saberes que ainda não foram, ou não tiveram a oportunidade de
serem elaborados em uma narrativa a ser compartilhada.
Diante do relato de experiências que não podem ser traduzidas
em palavras, ou nessa tentativa, sempre passível aos equívocos
inerentes ao diálogo (Guimarães, 2013), o primeiro passo é
disponibilizar-se à mutua afetação na dimensão dos ritos, das trocas
cotidianas (Guimarães, 2017; Guimarães et al., 2019), como é o caso
da frequência dos encontros de cuidado onde muitos afetos
emergem em companhia do outro. O posicionamento de ofertar um
espaço de testemunho nessas relações de cuidado, em um primeiro
momento, pode ser o de uma companhia silenciosa que se deixa
afetar e, na duração dos encontros, vai emoldurando as experiências
que testemunha, semelhante a ser escrivã(o), ou melhor dizendo, ser
artesã(o) para trabalhar com os afetos que emergem quando estes
ainda não encontram palavras que lhes caibam, e nesse encontro,
buscam compor uma imagem capaz de ser ofertada em testemunho,
emoldurando essa experiência4. Esse modo de atuação privilegia

4A escolha da psicóloga e primeira autora de, muitas vezes, oferecer testemunho


através de uma imagem, de sua apreensão estético-afetiva, é uma decorrência de
sua bagagem prática dos anos de formação clínica participando de um grupo de
supervisão orientado por uma perspectiva de cuidado em que a relação ética
precede a técnica, e visando uma comunicação significativa para além das teorias
psicológicas, as dimensões estéticas e criativas tinham centralidade nas
Etnopsicologia e Saúde 186

uma linguagem estética enquanto recurso semiótico nos encontros


de cuidado, buscando oferecer imagens abertas a serem
ressignificadas, enquanto um convite para a co-construção de
sentidos na continuidade da sustentação do diálogo.
Em uma abordagem dialógica e cultural em Psicologia,
podemos pensar na oferta de imagens enquanto uma possibilidade
de dar sentidos semiabertos à experiência, enquanto símbolos
pleromatizados (Valsiner, 2017), abertos a novas ressignificações
no diálogo ao longo do tempo. Ao oferecer uma imagem enquanto
intervenção no espaço de cuidado psicológico, convidamos a
pessoa a compor, a desenhar junto, o que envolve ressignificar ou
até mesmo apagar a imagem oferecida, enquanto uma primeira
tentativa de estabelecer uma co-construção de sentidos
parcialmente compartilhados a partir da experiência cotidiana de
convívio, ao longo da frequência de encontros de cuidado
psicológicos que se seguem (Guimarães, 2017).

Human communication-processes operate with partial (rather than


full) intersubjectivity (Rommetveit 1992), within wich illusions of
full intersubjetivity are but means for maintaining further
communication, rather than depictions of the true nature of
phenomena (Valsiner, 2017, p. 137)5.

Em uma perspectiva cultural e dialógica em Psicologia, é


importante reconhecer que as possibilidades de compartilhamento
de sentidos são sempre parciais, atentando-nos para a
impossibilidade de completa apreensão da natureza do fenômeno.

supervisões. Trata-se de um tema de profunda densidade, que não poderá ter o


devido aprofundamento no presente capítulo, no entanto, esta breve menção visa
reconhecer a importância das contribuições que co-participaram do processo de
formação da primeira autora e situar suas reflexões em pesquisa a partir da
concretude de suas próprias experiências de formação.
5 Processos de comunicação humana operam com parcial (em vez de completa)

intersubjetividade (Rommetveit 1992), no qual ilusões de total intersubjetividade


são apenas meios para manter a continuidade da comunicação, do que de fato
representações da verdadeira natureza do fenômeno (Valsiner, 2017, p. 137).
Etnopsicologia e Saúde 187

Ou seja, é importante reconhecer os limites das tentativas de


tradução e dos equívocos inerentes ao diálogo (Guimarães, 2013,
2017), ainda que, ao mesmo tempo, a possibilidade de diálogo, em
uma perspectiva dialógica, dependa justamente de uma certa
disposição afetiva no encontro capaz de sustentar a esperança de
mútua compreensão, uma certa capacidade de cultivar a “fé no
diálogo” ainda que o compartilhamento de sentidos seja sempre
parcial (Simão, 2010). Entendemos, ainda, a partir do método da
equivocação controlada (Viveiros de Castro, 1994), em
Antropologia, que a participação ritual, na disponibilidade de ser
afetado, é uma via de transdução de sentidos que, de alguma
forma, controla os equívocos inerentes às tentativas de tradução
entre diferentes mundos (Guimarães et al., 2019).
Assim, reconhecendo os limites de tradução entre um mesmo
conceito, até mesmo o uso de uma mesma palavra que esteja
enraizada em diferentes ritos e mitos culturalmente situados
(Guimarães, 2017), atentamo-nos sempre a negociar os sentidos
atribuídos a alguma palavra/imagem que emerge nos encontros de
cuidado psicológico, quando começa a ganhar alguma centralidade
no diálogo. Reconhecendo as diferenças inerentes a um encontro
de cuidado interétnico, que busca construir ao longo da relação
algum nível de compartilhamento de sentidos sobre experiências,
muitas vezes, insabidas não só para a psicóloga como, em alguma
dimensão, emerge aquilo que era insabido até de si/para si mesmo
(Leão & Guimarães, 2021). Diante da grandiosidade daquilo que
emerge no encontro, carregado de afetos, esse insabido
(Guimarães, 2017; Leão & Guimarães, 2021), para a própria pessoa
e para a psicóloga demanda um esforço criativo que emerge,
primeiramente pela via estética-imagética, e, por vezes, é um
recurso de linguagem privilegiado.

Desenhando juntas: imagens de cuidado

Uma dessas tentativas de intervenção a partir de uma


linguagem mais estético-imagética deu-se na relação de cuidado
Etnopsicologia e Saúde 188

com uma mulher indígena jovem, que vive os dilemas de ser a


primeira ingressante indígena em seu Programa de Pós-graduação,
bem como ser a primeira pessoa em sua família a ingressar no
ensino superior e, nesse âmbito acadêmico, buscar tratar de
questões relevantes a seu povo, que honrem suas tradições e suas
necessidades. Nessa experiência de ser pioneira em ocupar
diversos espaços historicamente negados, emergem questões a
respeito do sentimento de inadequação e de não pertencer
inteiramente a nenhum desses espaços, colocando em questão sua
própria capacidade pessoal, duvidando de si mesma em dimensões
éticas e acadêmicas.
Diante da alteridade radical dos relatos de tão complexa
experiência de sofrimento, a psicóloga se resguardou em uma
posição de testemunho que, após ser companhia silenciosa que se
deixa ser afetada pelo relato, como forma de expressar, de alguma
forma, sua apreensão afetiva em testemunho a sua dor, ofereceu
uma imagem. Disse que enquanto a escutava, imaginou uma
mulher que pisa em diferentes territórios, um pé em cada território,
que é grande o bastante para não caber inteiramente em nenhum
desses territórios pelos quais transita. Perguntou se essa imagem
fazia algum sentido para ela, e, então, sentindo espaço para alguma
intervenção posterior, disse que parecia que a dor maior era a de
não caber inteiramente em nenhum desses vários territórios, mas
que essa imagem também a fazia pensar em uma mulher que
transborda fronteiras bem delimitadas, ocupando um ponto de
vista que talvez não se limite em ocupar um ou outro território e,
quem sabe, essa mobilidade também seja um modo de
pertencimento, ainda que não esteja dado, mas em construção,
reconhecendo que esse processo não é necessariamente fácil, mas
que ela não estaria sozinha nisso.
Essa imagem foi ofertada pela psicóloga em testemunho aos
relatos íntimos que emergiram logo nos primeiros encontros, e a
psicóloga não voltou a tocar no assunto. Nos encontros que se
sucederam, a imagem foi trazida diversas vezes pela pessoa
atendida para se referir aos assuntos que emergiram naquele
Etnopsicologia e Saúde 189

encontro, de modo que podemos entender que a imagem foi


elaborada e partilhada por ela, que passou então a usá-la enquanto
ponto de partida para relatar suas novas elaborações e dificuldades
para lidar com suas questões de pertencimento. Mais do que aceitar
enquanto “verdadeiros” ou não os sentidos atribuídos à imagem
pela psicóloga inicialmente, vem chamando atenção como essa
imagem que emergiu foi capaz de estabelecer conexões com
experiências complexas e difíceis de acessar que, a partir dessa
imagem, é possível sustentar uma continuidade do assunto, que
passa a ser revisitado pela pessoa ao longo de seu processo de
elaboração de tais questões, assim como das transformações das
questões iniciais.
Posteriormente, mais do que tratar de questões de
pertencimento no sentido de duvidar da pertinência a um ou outro,
a imagem passa a também ser trazida pela pessoa para evocar seus
movimentos pelos diferentes territórios, e não com um enfoque na
dificuldade de se encaixar em um espaço de pertencimento.
Possivelmente, enquanto o início de um processo de reconhecimento
de si mesma, de reconhecer seus limites pessoais, permitindo
diferenciar-se, divergir nos espaços que ocupa e nas relações que
estabelece, enquanto objetivo mais recente do trabalho terapêutico.
Certa vez, a primeira autora atendia uma mulher indígena que
relatava se sentir muito triste e sem motivo. Relatava que, de repente,
um sentimento horrível de coisas do passado a tomava como se
estivesse acontecendo de novo naquele exato momento em contexto
totalmente diferente, o que a deixava se sentindo muito culpada e a
duvidar de si mesma e de seu merecimento de tudo na vida,
inclusive de ser merecedora de sua espiritualidade que cultiva
através de práticas de terreiros de Umbanda. Ao perguntar como é
quando surgem esses momentos de crise, ela relatou que, às vezes,
ela fica tão mal que as entidades que a acompanham aparecem para
trabalhar dando aconselhamento a ela. Ao perguntar que tipo de
conselhos ela recebia das suas entidades nessas situações, ela
respondeu à psicóloga: “elas trabalham igual você”.
Etnopsicologia e Saúde 190

Muito surpresa e um tanto perdida com essa aproximação


entre seu trabalho e o das entidades que acompanham esta pessoa,
a psicóloga pediu que ela descrevesse um pouco mais essa
experiência caso se sentisse confortável. Então ela relatou que os
aconselhamentos nem sempre são tão calmos como fala a
psicóloga, às vezes vêm em forma de “esporro” de algumas
entidades mais enérgicas e agitadas, mas que era um “esporro”
com carinho de cuidado, porque as suas entidades sempre dizem
que ela não sabe de tudo, que ainda tem muita coisa a aprender,
mas que não deve se cobrar tanto, e que, de maneira geral, os
aconselhamentos são a respeito do seu autojulgamento muito
severo consigo mesma.
Surfando um pouco nessa metáfora poética que a pessoa
atendida fez entre aproximar o cuidado psicológico e os
aconselhamentos de suas entidades, a partir desse parcial “chão
comum” de também conhecer um pouco das vivências no contexto
da Umbanda, a psicóloga propôs que ela experimentasse pensar no
nosso espaço de cuidado psicológico tal qual um terreiro, onde
temos dia e hora certa para nos encontrar, nos cuidar e dar
passagem às entidades que precisam se manifestar, remetendo-se
às suas próprias memórias corporificadas (Guimarães, 2020b) sobre
os primeiros aprendizados de cultivo da mediunidade que envolve
a capacidade de buscar restringir a abertura dos canais de conexão
com as entidades apenas quando estiver no terreiro, um lugar
seguro, com hora marcada, delimitando, assim, alguma fronteira
temporal/espacial da vida cotidiana e do sagrado.
O que se seguiu nos encontros posteriores, após experimentar
essa intervenção apoiada em alguma metáfora poética entre os
diferentes espaços de cuidado, é que ela relatou ter se sentido muito
mais tranquila, o que foi até estranho para ela, chegando a se
questionar se aquela tranquilidade duraria para sempre.
Acreditava que isso se devia ao fato de saber que, aconteça o que
acontecer, ela tinha a segurança de que, naquela hora marcada,
teria um espaço só pra ela, onde poderia se mostrar por inteira,
Etnopsicologia e Saúde 191

sabendo que não seria julgada e que poderia colocar seus fantasmas
para fora sem medo.
Poder experimentar oferecer um espaço de cuidado
psicológico que, de alguma maneira, para a pessoa atendida, se
assemelhasse às vivências próprias dos terreiros afro-brasileiros,
foi uma etapa muito significativa do trabalho, não só para a pessoa
atendida como também para a psicóloga nessa mútua-afetação.
Poder cultivar um modo de ser psicóloga que, de alguma forma,
ainda que indiretamente, seja capaz de honrar a memória da
sensação de acolhimento, de lugar seguro e livre de julgamentos que
os terreiros afro-brasileiros propiciam em contexto ritual, como foi
na experiência pessoal da primeira autora, é um aprendizado tácito
que precede as palavras.
Aprendizado este que se deve à convivência ritual própria dos
cuidados da Umbanda, uma memória corporificada (Guimarães,
2020b) que foi se sedimentando no corpo da psicóloga que se
disponibiliza a ser afetada (Siqueira, 2005) nos atendimentos
psicológicos, a partir desse corpo co-constituído e marcado pelos
cuidados e saberes próprios da Umbanda, ainda que de maneira
bastante intuitiva e que, na própria escrita deste capítulo,
reconstitui e reelabora os sentidos dessas memórias em uma
primeira narrativa possível de ser compartilhada (Guimarães,
2020b), buscando, assim, contribuir para o processo de formação
em Psicologia de outras pessoas que cultivam relações de cuidado
nas diversas fronteiras étnico-culturais e/ou religiosas.

Considerações finais

Enquanto um convite a pensarmos juntes sobre os processos


de formação em Psicologia, neste capítulo buscamos compartilhar
as experiências próprias das relações de cuidado cultivadas na
Rede Indígena, na qual a primeira autora atua enquanto psicóloga
voluntária juntamente ao segundo autor, coordenador do serviço.
Essas experiências, até o momento, parecem transbordar conceitos
pré-estabelecidos e, por vezes, demandam (ou ao menos convidam
Etnopsicologia e Saúde 192

a) uma reflexão mais profunda sobre nossas teorias e práticas


psicológicas. Os “passeios” por outras linguagens, outros registros
simbólicos, outros gêneros de conhecimento são importantes para
arejar a formação da/o estudante de Psicologia (Figueiredo, 2008),
um aprendizado tácito que a primeira autora teve a oportunidade
de vivenciar junto ao segundo autor a partir das primeiras
atividades de cultura e extensão promovidos pela Rede Indígena
desde o início de sua graduação.
Afetada por essas experiências junto à Rede Indígena, ao longo
de sua formação clínica, a primeira autora buscou cultivar um
espaço criativo em que a dimensão ética precede a técnica e, com
isso, demanda esforços constantes de reelaboração de nossas
práticas. Entendemos que os desafios próprios das relações de
cuidado demandam que a/o psicóloga/o se disponibilize a ser
afetado/a em uma dimensão que precede a representação,
permitindo-se lidar com o afeto não representado na concretude da
relação vivida. É só a partir dessa “participação” afetiva que podem
emergir reflexões a posteriori.
Entendemos que a possibilidade de uma comunicação
significativa entre diferentes mundos para além dos incontornáveis
equívocos da palavra reside na coragem de se disponibilizar a ser
afetada/o na dimensão do rito, ao permitir-se acessar a dimensão
estético-afetiva do encontro, onde as práticas que afetam e
transformam os corpos e os ritmos das trocas cotidianas vão
promovendo algum nível de sintonização dos ritmos, ainda que
parcial e temporária, que possibilite uma comunicação significativa
no encontro interétnico, onde os agentes partem de diferentes
referenciais culturais, mas, ainda assim, pela via do rito, constroem
alguma sintonização possível a partir da convivência cotidiana
e/ou na disponibilidade de ser afetado na duração do encontro
(Guimarães, 2017, 2020a, 2020b; Guimarães et al., 2019).
Nessa perspectiva, o cultivo das relações de cuidado são
contínuos esforços de sintonização dos ritmos, promovendo uma
comunicação significativa (ainda que sempre parcial) na duração
dos encontros e na frequência dos (re)encontros que vão
Etnopsicologia e Saúde 193

produzindo alguma estabilidade de sentido (Guimarães et al.,


2019). Em grande medida, essa possibilidade de comunicação
significativa, ainda que sempre parcial, sustenta-se pelos vínculos
de confiança que vão se tecendo ao longo do processo, em um nível
afetivo pré-reflexivo que, apenas posteriormente, é capaz de ser
elaborado em uma narrativa (Guimarães, 2020b). Por exemplo,
quando essas dimensões do vínculo de cuidado se expressam
verbalmente nos encontros, apenas a posteriori de alguns encontros
significativos em que a confiança fora estabelecida a partir de uma
postura ética da psicóloga diante da pessoa que busca por cuidado,
postura essa que, muitas vezes, precede a técnica e, nesse momento,
não necessariamente se apoia em conceitos psicológicos prévios. É
só a partir da concretude dessas relações, de como elas afetam a
psicóloga, é que podem emergir, a posteriori, alguma elaboração de
sentido possíveis.
Diante de alguns desafios próprios da relação de cuidado, por
exemplo, a primeira autora já acompanhou narrativas sobre a
espiritualidade da pessoa em atendimento a partir de outros
referenciais conceituais para além da Psicologia, acessando uma
refração de si mesma (Faraco, 2005) que se constituiu a partir dos
ritos da Umbanda. Por vezes, esse movimento da psicóloga
proporcionou algum possível “chão comum” diante dos desafios
do processo de comunicação interétnico. Guardadas as devidas
diferenças, a possibilidade de experimentar uma linguagem mais
próxima dos saberes da espiritualidade do que dos saberes da
Psicologia no contexto de atendimento psicológico, em alguns
casos, tem facilitado os processos de comunicação e resultado em
elaborações muito interessantes das pessoas atendidas. Algumas
delas até propuseram comparações metafóricas entre o que se faz
em um terreiro e o que vem se co-construindo no espaço de
cuidado psicológico oferecido a pessoas indígenas.
Ao rememorar como foi o processo pessoal da primeira autora
de realizar atendimentos psicológicos a pessoas indígenas na Casa
de Culturas Indígenas, compreendemos a possibilidade de que
certos ritos de (auto)cuidado próprios dos saberes de terreiros afro-
Etnopsicologia e Saúde 194

brasileiros podem (co)participar dos ritos de cuidado próprio da


atuação em Psicologia. Reconstituindo essas memórias, ao passo
que busca compartilhar uma narrativa (Guimarães, 2020b) sobre
seu próprio processo de formação em Psicologia, a primeira autora
reconhece novos significados, hoje, à sua memória de quando
aceitou compor esse novo serviço da Rede Indígena: ao realizar
atendimentos psicológicos na Casa de Culturas Indígenas, emerge
aí um espaço existencial onde foi possível coexistir seu “ser
psicóloga” e seu “ser umbandista”, enquanto refrações de si mesma
(Faraco, 2005), em seu processo de formação e que, a partir de um
espaço físico concreto, a Casa de Culturas Indígenas, um primeiro
espaço de coexistência se mostrou possível de ser cultivado dentro
da Universidade.
De certa forma, a Casa de Culturas Indígenas proporcionou
um espaço de cuidado e acolhimento, antes de tudo, para a própria
psicóloga que se dispunha a, nesse espaço, oferecer cuidados
psicológicos. Ao longo de seu processo pessoal de formação, tanto
na Psicologia quanto na Umbanda desde 2017, processo esse que
não ocorreu livre de tensões e ambivalências, a primeira autora
vinha tateando a possibilidade de abrigar em si mesma a
coexistência desses diferentes saberes. Ao sentir que essas
diferenças poderiam coexistir também no espaço de cuidado
psicológico abrigado pela Casa de Culturas Indígenas, encontrou
novas possibilidades de integração entre essas diferentes refrações
de si mesma. O ato de atender na Casa de Culturas Indígenas
marcou, fisicamente, novas possibilidades concretas de abrigar a
coexistência de diferentes gêneros de conhecimento, seja no
território da Universidade, seja no corpo-território de cada
estudante de Psicologia em seus singulares processos de formação.
Conforme buscamos compartilhar até aqui, a partir das
experiências das relações de cuidado cultivadas na Rede Indígena,
vem se desdobrando a ideia, ainda bastante embrionária, de habitar
fronteiras enquanto um modo de estar no mundo, enquanto
alternativa dos imperativos de coesão identitária frequentemente
relatados nos atendimentos. Habitar fronteiras expressa
Etnopsicologia e Saúde 195

poeticamente a possibilidade de cultivar um espaço existencial


onde a ambivalência possa se dar a ver, justamente, porque é nesse
espaço fronteiriço onde as diferenças se encontram e acentuam seus
contrastes. A fim de cultivar as potências criativas da pessoa que
vive a experiência de habitar zonas de fronteiras (por vezes muito
hostis no campo social), o espaço de cuidado psicológico pode ser
um dos primeiros espaços fronteiriços de coexistência das
diferenças, um tanto mais livre das tantas expectativas de
afirmação identitária e de coesão do discurso presentes no campo
social e político, oferecendo um espaço de liberdade para a
indefinição de suas próprias fronteiras pessoais, onde
eventualmente podem emergir e se dar a ver dimensões insabidas
(Leão & Guimarães, 2021) de si mesma/o, construindo um
(primeiro) espaço seguro onde os sentidos podem ser acessados e
ressignificados pela pessoa, visando a cultivar suas potências
criativas a partir da possibilidade de viver a espontaneidade e a
disponibilidade de abrigar as diferenças de si mesma/o em
contínua transformação.
Este é apenas um dos muitos caminhos de cuidado possíveis
em relações interétnicas/interculturais, traçados a partir de uma
perspectiva situada entre a sabedoria dos terreiros afro-brasileiros
e o serviço da Rede Indígena, e que, possivelmente assim como
você, se interessa em refletir sobre os processos de formação em
Psicologia, o que inclui colocar a si mesma/o em questão sempre
que necessário para reelaborar suas teorias e práticas psicológicas,
orientado por um princípio ético que, talvez, seja o que nos una: a
busca por oferecer um cuidado psicológico sensível à diversidade
étnico-cultural própria de nossa população.
Etnopsicologia e Saúde 196

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Etnopsicologia e Saúde 199

CAPÍTULO 8

SAÚDE INTEGRAL E BEM VIVER SOB A ÓTICA INDÍGENA

Geana Baniwa
Marcelo Calegare

Apresentação

A saúde integral indígena é um dos assuntos atualmente mais


discutidos entre as organizações indigenistas, sociedade civil e
pessoas interessadas no assunto. Vale ressaltar que, desde que nós
indígenas fomos reconhecidos como pessoas de direito, a saúde e
as políticas públicas voltadas a esse público vêm sendo uma das
temáticas que apresenta déficit quando nos referimos ao bem viver
dos povos e comunidades tradicionais em geral (Calegare et al.,
2013) e, especialmente, aos povos nativoamericanos, mobilizando
comunidades a recuperarem suas identidades indígenas para
terem acesso aos serviços de saúde, por exemplo (Calegare, 2014;
Calegare & Higuchi, 2016). Apesar disso, os nativos de diversas
partes do mundo, incluindo todos aqueles do Brasil e,
particularmente, da Amazônia brasileira, possuem conhecimentos
próprios e milenares que os auxiliam no bem viver considerado a
partir da diversidade étnica, social e organizacional existente entre
todas essas populações autóctones (Calegare, 2012; Calegare &
Tamboril, 2017).
A partir de nosso ponto de vista etnopsicológico, propomos,
neste capítulo1, um resgate e valorização dos conhecimentos
tradicionais existentes a respeito da saúde integral e do bem viver
dos indígenas brasileiros de um modo generalizado, dialogando

1Os autores agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do


Amazonas (FAPEAM) pelo fomento recebido para a realização deste estudo.
Etnopsicologia e Saúde 200

com a concepção ocidental de saúde. Sempre lembrando que


nossos saberes estão simbolicamente representados a partir do
olhar sagrado e cosmologia de nossa existência indígena em um
território. Abordamos as políticas voltadas à população indígena,
tratamos da complementaridade da saúde tradicional e ocidental
para a atenção às pessoas indígenas, o olhar sagrado da saúde
integral e do bem viver, bem como os desafios à valorização dos
conhecimentos e práticas tradicionais indígenas.

Bem viver e saúde integral

Bem Viver tem sido o termo da moda, atualmente. É oriundo do


universo dos povos nativoamericanos da região andina equatoriana
de nosso continente. Foi trazido pelo equatoriano Acosta (2016), a
partir da tradição andina da língua kíchwa pela noção de sumak
kawsay (sumak = bonito, bom, excelente, lindo, primoroso; kawsay =
vida), que foi traduzida ao espanhol e, consequentemente, ao
português, como bem viver. Essa noção indígena equatoriana, que
também se encontra de forma análoga entre outros povos
nativoamericanos, africanos e de outras regiões do globo, remete à
sabedoria ancestral que considera os bons conviveres entre as pessoas
e a natureza de modo respeitoso e sustentável. Ressalta a existência de
direitos humanos e aqueles da natureza, pois todos fazemos parte de
um mesmo universo integrado.
Assim, o bem viver diz respeito a um modo de viver prévio
àquele imposto pelo sistema capitalista, pelo qual se valoriza a vida
coletiva, os espaços comuns, o sentipensar, a circulação da palavra e
do pensar bonito, os seres da natureza e a espiritualidade, tudo
integrado a formas sustentáveis de consumo consciente em
pequena escala. Esse conjunto indissociável caracteriza uma
sabedoria ancestral, porém atual, mantida através do modo de vida
de muitos povos nativoamericanos (Romero et al., 2021).
Feito esse preâmbulo inicial, ao falarmos do bem viver
indígena não estamos fazendo uma alusão apenas a uma questão
de saúde e doença, e sim a todos aspectos da vida ligados à
Etnopsicologia e Saúde 201

alimentação, ancestralidade, coletividade, culturalidade, educação


de costumes e tradições, espiritualidade, humanidade, lazer e
territorialidade, entre outras dimensões que poderíamos elencar.
Podemos considerar, de modo resumido, que estes e muitos outros
elementos são essenciais à vida dos povos indígenas dentro de suas
localidades. Por outro lado, refletimos que o termo bem viver tem
sido usado, em linhas gerais, enquanto o que mais se aproxima do
que os não indígenas entendem por saúde integral. Isso nos revela
que o termo comumente usado no mundo ocidental para se referir
à saúde difere do entendimento de bem-estar e viver bem dos
povos indígenas.
Com isso, propomos neste capítulo um resgate e valorização
dos conhecimentos tradicionais existentes a respeito da saúde
integral e do bem viver dos indígenas brasileiros de um modo
generalizado, dialogando com a concepção ocidental de saúde.
Sempre lembrando que nossos saberes estão simbolicamente
representados a partir do olhar sagrado de nossa existência
indígena em um território. Também descreveremos algumas
políticas essenciais para a saúde integral indígena e enfatizaremos
a importância da preservação dos conhecimentos tradicionais,
mesmo diante das transformações históricas que ocorrem ao longo
dos anos. É necessário ressaltar que não se trata de sobrepor o
conhecimento tradicional ao ocidental ou vice-versa, mas colocá-
los em patamar de igual condição e importância um em relação ao
outro, sobretudo quando consideramos as populações socialmente
diversas como as populações indígenas.
Nossa meta é promover a valorização e tornar consciente a
importância dos saberes ancestrais e tradicionais que possuem
significado particular, simbólico e sagrado para os povos ancestrais
nativoamericanos (Romero et al., 2021), especialmente aqueles que
estão aqui no Brasil há muito mais anos que os colonizadores
portugueses. Que este capítulo possa proporcionar inquietações e
curiosidades a respeito do universo sagrado, o bem viver e a saúde
integral dos povos indígenas, que desde há muito tempo lidam de
maneira particular para a sua sobrevivência. Em nosso texto
Etnopsicologia e Saúde 202

abordaremos, inicialmente, as políticas voltadas à população


indígena para, em seguida, tratar da complementaridade da saúde
tradicional e ocidental para a atenção às pessoas indígenas, o olhar
sagrado da saúde integral e do bem viver entre indígenas, os
desafios da saúde integral indígena e, por fim, a valorização dos
conhecimentos e práticas tradicionais indígenas.

As políticas de saúde voltadas à população indígena

Segundo Wenczenovicz (2018), a diversidade cultural dos


povos indígenas do Brasil é composta por 305 etnias distribuídas
em todos os estados do país, falantes de 274 línguas, reafirmando
a identidade multicultural do país. Isso, entretanto, consiste em
um desafio para a elaboração e a implementação de políticas
públicas que sejam generalistas para atender a toda a população,
mas diferenciadas para lidar com os públicos específicos. Nesse
sentido, Martins (2021) ressaltou que os povos indígenas são
brasileiros e, como tais, devem ter acesso de qualidade aos
serviços da rede do Sistema Único de Saúde (SUS) e demais ações
do Estado, dito democrático.
Sendo assim, a saúde integral indígena é um dos desafios a
ser pensado quando nos referimos às políticas públicas. Com o
avançar da luta indígena sobre o tema da saúde, houve a criação de
políticas para essa população destinadas ao contexto e às
características socioculturais presentes entre os nativos. Um marco
importante foi a conferência internacional de Alma-Ata, em 1978,
com discussões relacionadas ao desenvolvimento da atenção
primária à saúde (APS), como base para sua efetivação enquanto
direito fundamental e a redução das desigualdades estabelecidas
entre povos (Mendes et al., 2018).
Durante vinte anos de luta dos povos indígenas houve
também a conquista da estruturação do Subsistema de Atenção à
Saúde Indígena (SASI), implementado no ano de 1999, que está
estruturado e organizado por meio dos Distritos Sanitários
Especiais Indígenas (DSEIs) (Nóbrega, 2016). Entretanto, a
Etnopsicologia e Saúde 203

implantação efetiva do SASI enfrenta, até os dias atuais, inúmeros


desafios que colocam em risco a vida dos povos originários. A
construção dessa política que resgata e assegura o direito à saúde
deve ser afirmativa para que haja a promoção do princípio da
equidade, principalmente quando se trata da atenção à saúde
integral dos povos indígenas (Scalco et al., 2020).
A Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) esclareceu que o
SASI, sob responsabilidade do governo federal, foi instituído para
organizar a Atenção Básica (AB) de forma diferenciada dentro das
aldeias indígenas, com a participação dos povos originários nos
momentos decisórios (FUNASA, 2002). Para tanto, foi instituída a
Política Nacional de Atenção à Saúde Indígena (PNASI), em 2002,
que estabeleceu uma série de diretrizes que objetivam garantir o
acesso à atenção integral à saúde indígena (Nóbrega, 2016).
Durante a 4° Conferência Nacional de Saúde dos Povos Indígenas,
em 2006, foram reivindicadas melhorias na situação de saúde e
questionada a gestão da FUNASA.
Após críticas e denúncias direcionadas à FUNASA, em 2010,
foi aprovada a criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena
(SESAI), um marco importante para a saúde integral dos povos
indígenas, mas que até o momento atual muito se tem questionado
sobre a atuação desse órgão. Além disso, na 5° Conferência, em
2013, subsequente à criação da SESAI, houve reinvindicações e
entre as principais expressas nessa ocasião estava a garantia da
assistência integral, para além da atenção básica. Outra
reivindicação era de que a atenção primária fosse fortalecida em
associação e respeitando os saberes tradicionais indígenas, o que
parecia não se consolidar mesmo após a criação da secretaria
(Mendes et al., 2018).
Além dessas diretrizes e políticas, existem programas que
oferecem capacitações aos profissionais que auxiliam nos planos de
ações dos trabalhos a serem desenvolvidos dentro das
comunidades, com oferta de serviço com qualidade à população
indígena. Todavia, algumas continuam apenas no papel e as
políticas seguem não sendo tão eficazes como esperado, além de
Etnopsicologia e Saúde 204

apresentarem marcantes desigualdades. Outra dificuldade


relacionada à implementação dessas políticas se refere ao uso do
Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena (SIASI),
restrito somente aos profissionais e gestores que o utilizam
(Mendes et al., 2018).
Seguindo a linha das lutas políticas, temos como exemplo as
mulheres indígenas que compõem uma parte da população
culturalmente diferenciada, que demandam por políticas de saúde
adequada que integrem e considerem os múltiplos contextos
étnicos dos quais fazem parte (Ferreira, 2013). Para sanar essa
lacuna, entendemos que seja necessária a participação das
mulheres nessa construção de política para que haja uma
colaboração da saúde ocidental com a tradicional, em termos de
trabalho em conjunto em prol do bem viver das mulheres
indígenas. Não apenas políticas voltadas ao público feminino, mas
o engajamento de seus pontos de vista também na construção e
planejamento das políticas voltadas às crianças, adolescentes,
jovens, adultos e idosos.
Segundo Ferreira (2013), as mulheres indígenas reivindicaram
que os serviços de saúde respeitem as especificidades culturais de
seus povos, enfatizando a importância de valorizar e apoiar o
trabalho dos especialistas dos sistemas médicos tradicionais e
incentivar as práticas indígenas de cuidado com a saúde da mulher
e da criança. Descreveu, ainda, que, diante de todas as políticas
relacionadas à saúde dos povos indígenas, não houve até o
momento avanços para o desenvolvimento de programas
culturalmente adequados à realidade dos nativos.
Compreendemos que seja por falta de incentivo, de recursos, de
pessoal preparado para criação dessas políticas e ações de
programas que beneficiariam em larga escala os nativos.
Mendes et al. (2018) defenderam a participação social dos
indígenas, com o objetivo de permitir que estes se insiram nas
estratégias de planejamento e avaliação dos serviços prestados a
seus povos e, consequentemente, busquem maior resolutividade
para os problemas. Assim, defendemos a participação política e
Etnopsicologia e Saúde 205

social dos próprios indígenas nessas construções, viabilizando os


direitos e o protagonismo diante da causa não só da saúde
indígena, mas de outras esferas que compõem a luta dos nativos,
como as mulheres indígenas têm feito.

A complementaridade da saúde tradicional e ocidental para os


povos indígenas

Diferentes estudos realizados com povos indígenas em todo o


mundo enfatizaram a necessidade de constituição de serviços de
saúde culturalmente sensíveis, em diferentes níveis de atenção à
saúde, visando a resgatar a cultura como o centro da relação entre
pacientes e prestadores dos serviços de saúde (Gomes &
Esperidião, 2017). Dentro do contexto da saúde integral indígena,
sob a ótica do próprio indígena, consideramos o cuidado ocidental
como complementar aos cuidados tradicionais que possuímos. Em
muitos casos, a procura da assistência aos serviços de saúde
ocidental é tida como uma última alternativa.
Para melhor entendimento podemos citar um exemplo
descrito por Barreto (2017), que argumentou que, ao mesmo tempo
em que a pessoa indígena recorre aos serviços públicos de saúde,
ela também pode estar sendo tratada por especialistas de cura do
seu povo. Ele exemplificou que um indígena da etnia Yepamahsã
(Tukano) pode estar sendo tratado por um especialista (kumuã) e,
concomitantemente, estar realizando um tratamento prescrito
pelos profissionais de saúde que atuam em sua aldeia.
Kadri et al. (2021) ressaltaram que, geralmente, os diagnósticos
dos agravos provenientes dos serviços de saúde não concorrem
com aqueles que são realizados pelos especialistas indígenas no
contexto das medicinas tradicionais. Pelo contrário, por remeterem
a diferentes saberes sobre as causalidades das doenças e atuarem
sobre distintos âmbitos constitutivo da pessoa, elas podem ser
acionadas ao mesmo tempo, atuando de modo complementar para
o restabelecimento da saúde da pessoa indígena.
Etnopsicologia e Saúde 206

Nesse mesmo sentido, Ferreira (2013) descreveu que a


diversidade de especialistas e práticas indígenas corresponde à
própria diversidade das medicinas tradicionais indígenas. E é o que
traremos a seguir, sobre o olhar sagrado do bem viver e a saúde
integral dos povos indígenas, bem como suas cosmovisões e
práticas que são diversas e ricas em conhecimento.

O olhar sagrado da saúde integral e do bem viver entre indígenas

Como salientado por Alcântara e Sampaio (2017), o bem viver


implica reconhecer a vida a partir de uma cosmovisão, concepção
ou visão de mundo, que integra o ser humano à natureza. Esta
última é entendida como sujeito de direitos, independentemente de
sua utilidade prática e imediata para os seres humanos.
Como nos lembraram Fernandes et al. (2021, 2022) em relação
aos Yepamahsã, para tal povo a natureza não é um mero objeto a
ser explorado como recurso natural pelas pessoas: ela é viva e
relacional, sendo morada de seres com os quais se relacionam
cotidianamente e é palco de muitas narrativas míticas. Dessa feita,
para os povos indígenas o bem viver, como descrito na introdução
do presente capítulo, envolve vários fatores e neste capítulo
enfatizamos o eixo saúde integral, isto é, tudo o que envolve o viver
bem da pessoa enquanto ser integrado ao universo.
Sendo assim, partimos do entendimento de que os
conhecimentos a respeito da saúde integral estão compreendidos
dentro dos saberes tradicionais da vida e da natureza, que resultam
dos conhecimentos transmitidos oralmente pelos antepassados
para as gerações seguintes por meio das práticas e relações
cotidianas durante todo processo de socialização (Conselho Federal
de Psicologia [CFP], 2019). A Lei n.º 13.123/2015 definiu que o
conhecimento tradicional é a informação ou prática de população
indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional sobre as
propriedades ou usos diretos ou indiretos associada ao patrimônio
genético de espécies vegetais, animais, microbianas ou espécies de
Etnopsicologia e Saúde 207

outra natureza, incluindo substâncias oriundas do metabolismo


destes seres vivos (Brasil, 2015).
Entretanto, tais saberes tradicionais não dizem respeito
unicamente ao uso de recursos naturais, mas à (re)produção
ancestral, cultural, econômica, social e religiosa ligadas às formas
de organização social (Calegare et al., 2014) e cosmopolítica dos
povos indígenas, que se expressam por conhecimentos, inovações
e práticas cotidianas que indicam como manter uma vida boa e
equilibrada, afastando os desentendimentos, destruição da
memória, doenças, feitiços, intrigas, mazelas e percalços do dia a
dia (Fernandes et al., 2021, 2022).
Por muitos anos esses saberes vêm sendo transmitidos de pais
a filhos, netos e bisnetos, sem os quais nossos povos sofreriam
perdas que poderiam ocasionar danos históricos irreparáveis à nossa
existência. Assim, manter tais conhecimentos vivos exerce uma
importância extrema, pois estes remetem à manutenção da vida de
nosso povo. Mais do que isso, é reconhecido que esses saberes a
respeito da vida e da natureza possuem o antídoto contra a crise
socioambiental que ameaça o planeta desde os anos 1970, por serem
respeitosos com a natureza não apenas pelo uso sustentável dos
recursos naturais, mas pela reverência ao sagrado presente em todo
ambiente (Acosta, 2016; Calegare & Silva Jr., 2011, 2014).
É importante ressaltar que cada povo indígena possui seus
próprios conhecimentos tradicionais e que apenas estudos
aprofundados sobre cada um deste pode, em parte, descrever as
características representativas sobre o olhar simbólico e sagrado a
respeito da saúde integral. Nesse sentido, lembramos que os
elementos sagrados são centrais nas histórias e narrativas míticas.
E os conhecedores de tais saberes sagrados, mantidos pela memória
e tradição oral, ou até mesmo pelo registro escrito, também são
respeitados pelas comunidades tradicionais/indígenas. São esses
detentores dos conhecimentos tradicionais os responsáveis pelo
restabelecimento da saúde das pessoas indígenas dentro de seus
territórios ou de territórios vizinhos.
Etnopsicologia e Saúde 208

Em geral, cada povo indígena possui seu modo de


entendimento, tratamento, investigação, cuidado e cura aos males
e/ou manutenção do bem-estar. Uma coisa que consideramos que
todos tenham em comum é que cada saber tem sua origem a partir
dos conhecimentos perpassados por seus ancestrais segundo
narrativas míticas sagradas e, além disso, que cada conjunto desses
saberes exerce um poder e crença que ajudam na sobrevivência de
determinado povo dentro de seus territórios. Sendo assim, como
enfatizou Martins (2021), cada povo é uma nação com organização
própria e concepções de corpo, cuidado, divindades, família, língua,
saúde, tempo, valores, dentre tantos outros aspectos que demarcam
seus modos singulares de vida e de compreender qual seu sentido.
No contexto Rio Negrino, na região noroeste do estado do
Amazonas, nosso local de naturalidade, os saberes tradicionais
existentes entre os indígenas se perpetuam de geração em geração
há muitos anos. A saúde integral indígena, termo comumente
utilizado neste capítulo, possui simbologia própria para os nativos
desse território. Dentro de nossas comunidades, utilizamos de
mecanismos particulares como rezas, uso de plantas medicinais,
ervas e chás que variam de acordo com o conhecimento praticado
em cada região e povo.
Entre os Yepamahsã do Alto Rio Negro, por exemplo, a
compreensão que se tem é que as doenças são causadas por
diferentes fatores e agentes etiológicos, originadas a partir da não
observância das prescrições de comportamentos e condutas ligadas
aos relacionamentos com os seres invisíveis e com práticas
cotidianas e alimentares. O tratamento terapêutico adequado será
indicado a partir da identificação do agente responsável por causar
o distúrbio ou doença, podendo combinar as práticas de
benzimentos ao uso de remédios elaborados à base de plantas
(Barreto, 2017; Fernandes et al., 2022).
Vale ressaltar que apenas alguns indígenas mais velhos detêm
os conhecimentos tradicionais e/ou sagrados, sendo os responsáveis
em repassá-los aos mais novos. Entretanto, quando estes são
repassados, cabe ao aprendiz manter a prática e perpetuá-la. O que
Etnopsicologia e Saúde 209

se tem vivenciado, infelizmente, é que, com frequência, muitos


indígenas acabam desconsiderando a preciosidade de tais
conhecimentos. Os jovens são os que mais demonstram desinteresse.
Entendemos que isso seja possivelmente resultado do contato
interétnico, que interferiu e vem interferindo em seu modo de pensar
e agir, distanciando-os cada vez mais das tradições ancestrais.
As práticas realizadas necessitam de cuidados especiais antes,
durante e depois da ritualização ou reza. Inclusive, necessita-se de
resguardos, atenção com ações, consumo de alimentos e cuidado
com as emoções do doente, familiares e do responsável pelo ritual.
Quando não há o devido cuidado, pode haver malefícios ao doente,
podendo resultar na piora do quadro de saúde ou levá-lo à morte.
É necessário que haja um cuidado espiritual da pessoa indígena e
esse cuidado é o que, de alguma maneira, garante a melhora do
doente. Portanto, as prescrições de cuidados são bastante
enfatizadas, respeitadas e seguem regras para a segurança e bem-
estar dos indígenas. Dessa feita, a saúde integral da pessoa
indígena considera todas as esferas de sua vida, tanto ambiental,
emocional, espiritual, física e social.
Algumas práticas realizadas por nossos povos são
incompreendidas e geram questionamentos da sociedade não
indígena, que desconsideram aquilo que nós indígenas temos de
mais valioso: os conhecimentos sagrados que nos são ensinados
desde criança. Diante disso há um embate, pois certos processos ou
ritualizações nativas vão além da compreensão do mundo
ocidental e, por vezes, também não há um diálogo entre as
medicinas tradicionais e a oficial ocidental.
Etnopsicologia e Saúde 210

Desafios à saúde integral indígena

Dentre inúmeros desafios que podemos enumerar à saúde


integral indígena, iniciaremos discorrendo a respeito do trabalho
das equipes de saúde dos aparelhos oficiais do Estado, desenhados
através das políticas públicas anteriormente mencionadas voltadas
à população indígena. É necessário considerar que há muitas
limitações nos trabalhos dos profissionais de saúde contratados
para trabalharem no SUS, além da existência de poucos
profissionais para atender às pessoas indígenas especificamente.
Por mais que atualmente tenha crescido, o número de profissionais
que trabalham com a população ainda é baixo para atender
milhares de indígenas em suas regiões. Assim, o primeiro
problema é o de contingente numérico insuficiente e, associado a
este, o de formação inadequada para lidar com a realidade
pluriétnica brasileira.
Faz-se necessário destacar também as dificuldades dos
profissionais não indígenas para lidar com a pessoa indígena.
Grosso modo, podemos dizer que há entre um atendente e um
atendido um processo de contato intercultural de pessoas oriundas
de culturas relativamente diferentes. Pode haver entendimentos ou
desentendimentos nessa interação. Isso, em si, requer das equipes
maior sensibilização para atuarem nas comunidades indígenas,
visando ao equilíbrio da assistência dos profissionais de saúde com
os sistemas tradicionais de crenças e práticas de cura (Ferreira et
al., 2020). Como descreveram Mendes et al. (2018), a gestão da
SESAI ainda se mostra centralizada e limitada pelo modo como seu
quadro de pessoal é composto: os problemas com a formação de
profissionais para a atuação em ambientes interétnicos e a elevada
rotatividade parecem muito distantes de serem solucionados.
Outro desafio é o das longas distâncias a serem percorridas
para chegar até as comunidades indígenas: faltam recursos e
materiais por vezes básicos para os atendimentos, além de
dificuldades no acesso via terra, fluvial ou pelo ar. Em decorrência
desses fatores, está sujeito a que muitas das populações mais
Etnopsicologia e Saúde 211

afastadas não consigam ter acesso adequado aos serviços de saúde


de nível básico. Se considerarmos o acesso ao nível mais complexo,
isso ainda é mais precário. Em tese, há uma facilitação do acesso
aos serviços de saúde à pessoa indígena e que funcionaria como
impulsionadora para que algumas comunidades busquem
recuperar suas raízes indígenas (Calegare, 2014; Calegare &
Higuchi, 2016). Entretanto, as condições práticas demonstram que
as dificuldades de atendimento à saúde pelos aparelhos de saúde
oficial não facilitam nem a vida da pessoa indígena, nem as
propostas feitas pelos não indígenas.
Quando há atendimentos realizados pelas equipes de saúde,
estes acontecem por intervalo de tempo que podem ser longos:
quinzenalmente ou até meses ou anos, dependendo da
acessibilidade da equipe aos locais e, ainda, das intempéries
ambientais que cada região possui. Cabe salientar os esforços que os
profissionais realizam mesmo diante de precariedades logísticas,
falta de recursos e apoio em seus trabalhos: mesmo na falta destes,
vão para as comunidades realizar os atendimentos. Por outro lado,
Mendes et al. (2018) descreveram que a presença de estruturas de
saúde precárias, insumos e equipamentos escassos, somados à alta
rotatividade de profissionais e à complexidade logística encontrada
em algumas regiões, têm reflexos negativos na qualidade da
prestação de serviços dentro dos territórios indígenas.
Outra informação importante que Gomes e Esperidião (2017)
trouxeram é que houve discussões sobre estabelecimentos de saúde
hospitalar culturalmente sensíveis aos povos indígenas, com
capacidade de atuação dentro de contexto intercultural. Esta foi
reconhecida pelo Estado brasileiro a partir da promulgação
da Portaria nº 645 de 27 de março de 2006, que instituiu o
certificado hospital amigo do indígena, a ser oferecido aos
estabelecimentos de saúde da rede SUS. No entanto, as autoras
descreveram que essa portaria nunca foi regulamentada e, segundo
informações da SESAI, não há nenhum hospital brasileiro com tal
certificação, mesmo existindo algumas iniciativas isoladas em
municípios da região Norte. A ausência dessa discussão no cenário
Etnopsicologia e Saúde 212

nacional, que já perdura anos, evidencia a fragilidade política do


setor para a constituição do resgate da humanização do cuidado e
da integralidade da atenção à saúde dos povos indígenas.
Por esses e outros motivos, os nativos recorrem aos seus
próprios conhecimentos, como tem sido feito há muito tempo. Isso
foi relatado por Diakara (2022), indígena Dessana, que, ao recordar
dos ensinamentos de seus ancestrais, conseguiu se curar da
COVID-19, por exemplo. Também muitos indígenas do Alto Rio
Negro recorreram aos saberes ancestrais para se curar daquela
doença, usando de benzimentos, chás e plantas medicinais. É
necessário ressaltar, como descrito anteriormente, que não se trata
de defender a sobreposição dos conhecimentos tradicionais dos
povos indígenas sobre aquele do saber moderno ocidental, mas sim
de considerá-los tão válidos e complementares quanto outros.
Ressalta-se, ainda, que cada prática ou ritual que é feito para o
restabelecimento da saúde integral da pessoa indígena possui todo
um processo. Quando a pessoa se vê sem estratégias, após várias
tentativas de cura dentro do sistema tradicional, é o momento em
que busca os serviços de saúde do município. É também,
paradoxalmente, quando se inicia o processo de deslegitimação de
seus conhecimentos e de suas práticas ou rituais.
Um dos casos encontrados na literatura sobre os direitos
violados relacionados à saúde integral indígena é o do nascimento
da filha de uma liderança Mbyá-Guarani no Hospital da Pontifícia
Universidade Católica (PUC) em Porto Alegre (Ferreira, 2013). O
cacique considerou inadequada a assistência prestada à sua esposa
e à recém-nascida durante o parto e período pós-parto, pois a
criança precisou ficar internada na Unidade de Terapia Intensiva
(UTI) por ter nascido em sofrimento fetal devido ao mecônio. Ao
chegar ao hospital, a família indígena ficou assustada diante da
possibilidade de a bebê estar sendo alimentada com leite de mulher
branca, porque isso lhe causaria outras doenças futuramente. O
cacique então verbalizou: “é preciso que as instituições busquem
ouvir o que os Guarani estão dizendo [...] que se respeite o ponto
de vista Guarani, porque muitas vezes quando falamos sobre o
Etnopsicologia e Saúde 213

nosso conhecimento, os responsáveis por atender a saúde indígena


não acreditam” (p. 1156).
Outro caso foi relatado por Barreto (2017), que aconteceu com
sua sobrinha Yepamahsã, que havia sido picada por uma cobra. Ela
foi encaminhada do DSEI (Distritos Sanitários Especiais Indígenas)
de São Gabriel da Cachoeira para Manaus e, pelo seu estado grave,
os médicos decidiram amputar sua perna. A equipe médica e de
assistência social estava fazendo ameaças e pressão para a
amputação, alegando risco de morte da paciente, enquanto que
“meu irmão buscava forças para convencer os médicos de que
aquilo não era necessário, e sugeria realizar um tratamento à base
do bahsese e ervas medicinais” (p. 599). Bahsese pode ser traduzido
grosseiramente como “rezas”.
Foi necessária mobilização da mídia e do Ministério Público
Federal pelos Yepamahsã, gerando pressão para uma reunião entre
a equipe médica e especialistas indígenas. Em claro desacordo para
um trabalho conjunto, conseguiram retirar a paciente daquele
hospital, sob protesto e arrogância da equipe médica, e fazer o
tratamento em outro hospital, mas aliando aos cuidados dos
especialistas Yepamahsã. Ao final, a menina se curou e continua
vivendo nas aldeias indígenas. O autor conclui que “as concepções
indígenas de doença e saúde não se restringem ao aspecto biológico.
Esse é o ponto. Antes o contrário, envolvem aspectos cosmopolíticos
que condicionam a prática da boa saúde” (Barreto, 2017, p. 601).
Outro exemplo foi trazido por Gomes e Esperidião (2017), que
relataram haver preconceito em relação aos indígenas explicitado de
forma sutil ou de forma velada, tanto por alguns profissionais de
saúde quanto pela população em geral, que aguarda o atendimento
nas unidades especializadas de saúde. Trabalhos realizados com
populações indígenas do Chile e com povos do Pacífico confirmam
que diferentes povos indígenas, em todo o mundo, citam
dificuldades no relacionamento entre pacientes e médicos, além da
percepção de indiferença e do tratamento discriminatório na relação
com os profissionais dos serviços de saúde.
Etnopsicologia e Saúde 214

Sendo assim, quando o indígena é encaminhado a alguma casa


de saúde ou hospital, seja no município ou na capital, ele se vê
impotente, longe de seu território e da família sob uma realidade
diferente da que vive. Muitas vezes não entende os procedimentos
adotados e até mesmo apresenta dificuldades em comunicar-se
com a equipe por conta da língua. Nesse sentido, tem seus direitos
violados e, muitas vezes, sofre preconceito ou discriminação.
Esses inúmeros casos que ocorrem em instituições de saúde
nos fazem refletir sobre como o mundo ocidental ou os cuidados
dos não indígenas ainda são limitados e carregados de estereótipos,
havendo deslegitimação do saber dos povos indígenas. Será que os
profissionais estão preparados para os atendimentos e cuidados
com as populações vistas como vulnerabilizadas, como as
populações indígenas? Cabe a nós refletirmos criticamente acerca e
considerar que é uma discussão que necessita ser feita, merecendo
destaque em outros trabalhos que poderão vir a ser escritos.
Segundo Coimbra Jr. e Santos (2000), as relações entre saúde-
doença e povos indígenas podem ser resultantes tanto das
desigualdades sociais e discriminação racial quanto de fatores
biológicos e genéticos. A discriminação étnico-racial pode ter um
grande impacto sobre o indivíduo ou grupo, além de ser elemento
desencadeador de doenças. Kadri et al. (2021) enfatizaram
também que o conjunto dos saberes e práticas, no entanto, não
apenas auxiliam no cuidado com a saúde, mas também produzem
pessoas, estruturam subjetividades, constroem corpos e forjam
identidades singulares.

Valorização dos conhecimentos e práticas tradicionais indígenas

Diante dessas questões, percebemos a necessidade de


valorização e a defesa dos conhecimentos tradicionais, seja para sua
não deslegitimação e extinção, ou para mostrar à sociedade que há
conhecimentos diferentes coexistindo com aqueles da ciência
oficial, esta última criticada por ser eurocêntrica, brancocêntrica e
colonizadora (Calegare & Silva Jr., 2014). Como defendemos em
Etnopsicologia e Saúde 215

outro trabalho, muito ainda tem de ser feito, pois é preciso


reconhecer e considerar as epistemologias indígenas como valiosas
e que cabe às psicólogas, como profissionais da saúde, conhecer e
respeitar os modos de ser, ver e viver de mundo dos diferentes
grupos e povos (Baniwa & Calegare, 2021).
De uns anos para cá, vemos a crescente discussão sobre a
questão da saúde integral indígena e do bem viver, a importância
que os conhecimentos tradicionais existentes exercem sobre a vida
dos povos indígenas e as práticas utilizadas dentro de seus
territórios. A própria Constituição Federal de 1988 reconhece a
importância das práticas entre os povos indígenas, como
mencionado nos artigos 231 e 232, reconhecendo suas práticas
culturais – o que inclui suas medicinas (Brasil, 1988).
Assim, o olhar simbólico e sagrado que direciona a questão da
saúde integral indígena vai além do que podemos compreender
por nossa perspectiva biopsicossocial de perspectiva ocidental,
pois existem características que fogem do imaginário cultural e
social de muitos de nós. São necessárias imersão, abertura,
sensibilidade e compreensão para buscar entender aspectos que
envolvem a saúde da pessoa indígena. Isso requer também
reconhecer que o cuidado que cada nativo possui sobre sua própria
saúde e aquela do outro parte de compreensões cosmológicas que
buscam explicar a origem, o desenvolvimento e o processo de cura
e tratamento por uma perspectiva epistemológica e ontológica
diferente da ocidental.
A partir da imersão no universo indígena, podemos conhecer
os sentidos e significados que são apresentados em relação ao
mundo e à natureza, que posteriormente contribuirão para o
entendimento do aspecto da saúde integral entre os indígenas.
Como exemplificou Barreto (2017), o conhecimento ocidental
explica o mundo segundo uma divisão de reinos (mineral, vegetal,
animal), mas, entre os povos do Alto Rio Negro, “conhecer o
mundo significa necessariamente estabelecer relações
cosmopolíticas, sem dividi-las em relações sociais e meio natural”
(p. 603). Para eles, todos os ambientes dos espaços (aquático,
Etnopsicologia e Saúde 216

terra/floresta, aéreo) são habitados por outros seres humanos


(invisíveis) e saber como se relacionar com eles, pelas relações
cosmopolíticas e ancoradas na epistemologia indígena, traz a
possibilidade de relações harmoniosas, equilíbrio social e
ambiental à pessoa e à coletividade indígena. Para o Yepamahsã,
“o bem viver dos humanos, sem doença ou estar bem de saúde,
depende da interação e comunicação com esses humanos” (p. 604).
A não comunicação com esses outros seres humanos resulta em
conflitos sociais, desequilíbrio ambiental, escassez de recursos
naturais e surtos de doenças como formas de vinganças.
Outro exemplo foi citado por Ferreira (2013), do caso dos
Mbyá-Guarani do Rio Grande do Sul. Para se manterem
vinculados ao seu espírito divino (nhe’e), fonte de saúde e bem-
estar, é fundamental zelarem pela pureza das suas substâncias
corporais – sêmen, sangue e leite – que pode ser comprometida
pelo contato mantido com as substâncias do mundo branco. Para
esse povo, durante a gestação, o parto e pós-parto, por exemplo,
tendo em vista proteger e promover a saúde da mãe e da criança,
empregam várias práticas de autoatenção. Preparam um remédio
feito com cinzas de fogueira, de modo a evitar que a criança e a
mulher adoeçam em virtude do ataque dos espíritos maus que
habitam o mundo.
Apesar desses exemplos citados em que houve sobressalência
do saber indígena para alcançar a cura, estamos diante de um
cenário de influência do mundo não indígena sobre as práticas de
saúde integral dos nativoamericanos. Como bem sabemos, o
contato interétnico já existe há muito tempo e, diante desse fator,
muitos saberes tradicionais foram deixados de lado, esquecidos
ou extintos pelos colonizadores. Ainda nos tempos atuais temos a
interferência e influência do mundo não indígena sobre as
práticas, rituais e conhecimentos indígenas. Diante disso,
continua havendo mudanças nos modos de tratamento, de
conceber e até de entender tais práticas.
Temos, ainda, uma consideração a respeito de nosso olhar
indígena a respeito do bem viver e saúde integral. Dentro de nossa
Etnopsicologia e Saúde 217

visão cosmológica Baniwa, nós povos indígenas possuímos uma


saúde diferente dos não indígenas. Em uma conversa com nosso tio
(ancião), este residente na comunidade Cabeçudo no Rio Içana, ao
noroeste do estado do Amazonas, próximo ao município de São
Gabriel da Cachoeira, ele descreveu que os não indígenas não
possuem o que chamamos de saruãsá, palavra em nossa língua
nheengatú, que traduzido aproximadamente equivale a: resultado
de evitações ou proibições de regras que não podem ser
descumpridas e quando descumpridas trazem malefícios.
Entre nós indígenas, quando descumprimos determinadas
regras ou ações, estas trazem consequências sérias. Portanto, desde
o momento em que a mulher indígena descobre que está grávida
necessita ter cuidados para que a mesma e o bebê não se encontrem
saruã, ou seja, que não sejam acometidos por doença ou outras
ações em decorrência do descumprimento das regras, já que, por
sermos indígenas, somos propensos a tais consequências de ordem
sobrenatural, que pode se revelar em sintomas físicos, como o
adoecimento. Sendo assim, é esperado em nossa cultura Baniwa
que sigamos determinadas regras, por exemplo, durante a primeira
menstruação, antes e após a gestação da mãe, cuidados com o bebê,
entre outros.
Nosso tio ancião nos relatou que entre os não indígenas não há
essas interdições ou prescrições. Segundo a visão cosmológica
Baniwa, isso decorre do fato de não possuírem o que chamamos de
saruãsá. O que não acontece conosco indígenas, pois qualquer
descuido, seja durante o casamento, parto, picada de cobra, entre
outras intercorrências, poderá nos trazer malefícios. E quando há a
violação dessas regras, para que haja o reestabelecimento da/o
indígena é necessário o benzimento e/ou a reza.
A explicação que nosso tio ancião dá sobre essa diferença é a
de que, conforme a visão cosmológica de nosso povo Baniwa, os
não indígenas vieram ou se originaram dos ossos da sucuri – cobra
que está presente constantemente na história do povo. Lembrando,
porém, que os indígenas possuem origens cosmológicas distintas
que caracterizam os clãs e nações. Em linhas gerais, essa visão
Etnopsicologia e Saúde 218

cosmológica sobre a diferença da saúde dos não indígenas e sobre


a saúde integral dos indígenas traz explicações próprias segundo
as histórias que compõem a vida de nosso povo Baniwa. Isso é uma
discussão extensa que merece um texto exclusivo, mas que é
necessário aqui descrever e enfatizar.
Em função de questões de ordem cultural e espiritual, os
indígenas apresentam vulnerabilidade epidemiológica em relação
a alguns males para os quais a medicina ocidental e os remédios
não apresentam eficácia. Ou seja, em alguns casos a saúde ocidental
não apresenta o efeito esperado ou positivo, o que também faz com
que a pessoa indígena se utilize de seu próprio saber tradicional,
pois não encontra resultado satisfatório na medicina ocidental. Por
exemplo, a pandemia da COVID-19 afetou muitas pessoas
indígenas no Amazonas e a explicação simplista era de que a
genética indígena era mais vulnerável do que a da população
brasileira em geral. Entretanto, as explicações indígenas para o
acometimento dessa doença são de outra ordem (Diakara, 2022). É
preciso, portanto, conhecer e desvendar o que diferencia a saúde
integral dos indígenas em suas diferentes perspectivas étnicas.
O sistema público de saúde precisa estar pautado na realidade
em que os povos indígenas vivem, considerando seus modos de
ser, existir e viver, bem como respeitar e considerar a visão de
mundo que possuem como forma de intervir e adequar os
trabalhos voltados a essa população. Como já descrito
anteriormente, consideramos que seja um trabalho complementar
de alinhamento das práticas tradicionais com a ocidental, pois uma
não exclui a outra. Apesar das sociedades indígenas terem sofrido
modificações a partir do contato com outras sociedades, é
importante que sejamos defensores desses conhecimentos que os
ancestrais indígenas se preocuparam em repassar como modo de
existir e reexistir dos povos indígenas.
Em suma, levantamos a bandeira da valorização e do respeito
aos conhecimentos tradicionais voltados à saúde integral dos
povos indígenas para que não haja uma continuação da
deslegitimação de suas práticas e saberes em nenhuma esfera. Que
Etnopsicologia e Saúde 219

sejamos capazes de defender os saberes ancestrais como modo de


garantir a existência e perpetuação desses conhecimentos
milenares. Para tanto, acreditamos serem importantes os estudos
de autores indígenas e não indígenas sobre a temática da saúde
integral indígena, que trazem as visões cosmológicas e simbólicas
sobre a vida e a natureza a partir do diálogo com pessoas que
chamamos de bibliotecas humanas: os nossos anciões, avós,
benzedores, curandeiros, especialistas, pais, pajés, pessoas mais
velhas, rezadores etc.

Considerações finais

Neste capítulo, pudemos apontar algumas limitações que


existem na formulação e implementação das políticas públicas
destinadas à saúde integral dos povos indígenas: o baixo
contingente de profissionais de saúde, as distâncias das áreas
indígenas, o despreparo das equipes, o choque interétnico, o
conflito epistemológico, entre outros. Revelamos que ainda é
preciso muitos avanços para que consideremos o modelo brasileiro
como de sucesso, apesar de já haver algum progresso e que merece
ser reconhecido, especialmente por profissionais que vêm se
capacitando ao longo dos últimos anos. O que os tem ajudado é a
presença cada vez maior de pessoas indígenas com cursos
universitários, que, ao transmitirem as necessidades de seus povos,
contribuem para a transformação das práticas executadas nas
políticas públicas.
Outro aspecto importante que levantamos neste capítulo diz
respeito à própria noção de saúde integral indígena, que tem esse
nome por considerar que a pessoa é um elemento que integra o
universo e, para chegar ao bem-estar, equilíbrio e vida boa,
necessita levar em conta a cosmologia de cada povo. Nesse sentido,
apontamos a necessidade de considerar e valorizar os
conhecimentos tradicionais, sagrados e cosmológicos, que fazem
parte da vida dos povos nativoamericanos. É preciso legitimar e
respeitar os saberes de cada povo, como meio de favorecer o bem
Etnopsicologia e Saúde 220

viver das populações indígenas existentes no país, além de


propiciar o estabelecimento de diálogos interculturais que
promovam a articulação dos saberes tradicionais com aqueles
biomédicos da medicina ocidental. O respeito e a aliança entre
saberes são chaves fundamentais para o bem-estar indígena e,
quiçá, da população em geral.
A partir de nosso ponto de vista de psicóloga indígena da etnia
Baniwa, compartilhamos da perspectiva da Etnopsicologia que
considera a cultura como um operador conceitual dentro de uma
perspectiva transdisciplinar. Sabemos que nós indígenas temos uma
visão particular e compartilhada a respeito da vida pessoal, social e
com os seres da natureza ao nosso redor que podemos considerar
como diferente do olhar ocidental. Temos, nesse sentido, uma tarefa
de colocar em debate nossa visão de mundo e nossas especificidades
culturais que, em termos heurísticos, podemos chamar de
psicológica, comparando-as com aquelas da Psicologia tradicional,
sem, com isso, considerar uma melhor que a outra.
Em suma, o saber a respeito da saúde integral e, dentro desta,
a Psicologia que nos interessa estudar, trabalhar e ensinar, necessita
ter compromisso com a desconstrução da perspectiva
colonizadora, etnocêntrica, elitista e individualizante que
homogeneíza as pessoas e as vicissitudes do viver. É preciso
considerarmos outras epistemologias e ontologias, como aquelas
que neste capítulo esboçamos, dando abertura para discussões
voltadas aos aspectos não só de saúde enquanto uma condição
pessoal isolada, mas enquanto uma questão coletiva relacionada à
integração com a cultura, educação, economia, espiritualidade,
território, entre outras dimensões, que considere os saberes sobre a
vida, o mundo e a natureza sob a ótica indígena.
Isso nos abre as portas para percebemos a vastidão dos
conhecimentos tradicionais dos povos indígenas e que cada estudo
realizado pode até explicar, em parte, as características e
particularidades que compõem a saúde integral de algum povo
indígena, mas que, entretanto, não explicará o todo da vida dos
povos nativoamericanos. Nesse sentido, muito ainda precisará ser
Etnopsicologia e Saúde 221

conhecido e explorado, já que muitos conhecimentos vão além da


nossa compreensão, como descrito no capítulo.

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Etnopsicologia e Saúde 225

CAPÍTULO 9

DO ORVALHO DA NOITE AO SERENO DA MADRUGADA:


UM SUBSÍDIO ORIENTAL PARA A
CIÊNCIA PSICOLÓGICA OCIDENTAL

Carolina Mikaela Silva Kato


José Francisco Miguel Henriques Bairrão

Apresentação

Nas últimas décadas, progrediram tentativas de refletir


criticamente pressuposições da natureza psíquica de matriz
ocidental que não tomem como doença nem deslegitimem,
respectivamente, processos psíquicos e concepções
etnopsicológicas avessas à unicidade identitária do eu e ao
postulado da sua descrição exaustiva, mediante a sua tradução em
fatos e conceitos positivos e objetiváveis. Porém, nem sempre isso
se fez acompanhar do mesmo no relativo ao emprego de termos
como vazio, nada, ausência, desapego etc., de forma menos
contaminada pela sua associação a quadros psicopatológicos.
Neste breve ensaio, subsidiário da Iniciação Científica da
primeira autora sob orientação do segundo autor, sugere-se que
essa limitação, presumivelmente tributária de uma “fobia”
tipicamente ocidental relativamente à morte e genericamente ao
ontologicamente negativo, denega tanto a sua naturalidade como a
necessidade da sua inscrição, tanto no âmbito da experiência
psíquica como no campo da teoria psicológica. Esta condição
recomenda, se não mesmo torna necessário, o contraponto deste
ponto cego de etnopsicologias ocidentais, inclusivamente as
acadêmicas e científicas, com perspectivas menos intolerantes e
preconceituosas para com a morte e o “nada”. A correção dessa
incapacidade de compreender e lidar com o não ser é um
Etnopsicologia e Saúde 226

imperativo não apenas para a psicologia, mas também para todas


as ciências e profissionais do campo da saúde, que pode ser
facultado mediante a consideração, ainda que em linhas gerais, do
modo como essa questão se propõe em outros horizontes culturais
e suas decorrentes concepções etnopsicológicas, que, no caso deste
ensaio, serão brevemente ilustradas por uma tradição literária e
“filosófica” budista.

Introdução

Parcela muito significativa dos constructos psicológicos


ocidentais e, em particular, na vertente da sua presunção científica,
assenta-se no postulado de uma entidade anímica,
contemporaneamente referida lato sensu como “subjetividade”, à
qual se intenta conferir objetividade mediante a pressuposição da
sua positividade. Embora este projeto “científico” tenha conduzido
a desdobramentos notáveis na forma de criação de tecnologias de
controle do comportamento, padrões de normalidade e definições
de saúde, por outro lado, o seu progressivo refinamento e o
enfrentamento empírico de condições descritas como patologias
mentais permitiram mapear estados anímicos admitidos como
normais que primam pela cisão do sujeito, a tal ponto que, quando
não absolutizadas, essas cisões podem ser tomadas como
intrínsecas e naturais à condição humana.
A comparação com outras épocas e culturas mostra que não é
de hoje que fissuras, paradoxos e contradições surgem no
indivíduo e subvertem a sua consciência e autocontrole.
Hierarquizar essas concepções é uma forma de etnocentrismo, no
caso da ciência psicológica, agravado pela pretensão de definir
saúde e doença em torno dos polos da consciência, autonomia,
razão e positividade, em contraposição ao inconsciente, ao
descontrole, ao irracional e ao negativo. Pode-se mesmo
argumentar que, provavelmente, as sociedades que se dissociam da
atomicidade do self e admitem a sua pluralidade ou
molecularidade, ou até mesmo admitem lacunas e vazios que
Etnopsicologia e Saúde 227

perfuram a positividade e o potencial de objetivação da substância


psíquica, são, talvez, em maior número e, pelo menos por um
critério quantitativo, mais “normais” do que a exceção ocidental.
Dessa forma, ainda que não uniformemente, o reconhecimento
e aceitação de que a subjetividade, salvo pressupostos metafísicos
muito veementes, está longe de se confundir com uma substância
simples e unitária, embora sofra resistências, ao longo do tempo
tendeu a ser aceito por parcela significativa da ciência psicológica.
Em contrapartida, o mesmo progresso na direção de uma
normalização não se tem verificado quando estão em causa
referências ao não ser ou ao vazio, valorizadas em outras culturas
e que são componentes cruciais de suas concepções
etnopsicológicas, mas, igualmente comuns em estados de estupor
e formas de alienação, relativamente aos quais pouco ou nada pode
ser dito nem atribuído outro conteúdo que não a imputação de
vazio ou nada, sempre conotados de forma muito negativa e como
indicadores de mal-estar e de estados patológicos (vide, por
exemplo, Laplantine, 1979).
Mesmo em elaborações ocidentais complexas e refinadas da
teoria psicológica, como a psicanálise, para a qual desde sempre a
morte e o seu lugar no mais medular da vida anímica nunca
passaram despercebidos (Monzani, 1989) e no âmbito da qual, no
decorrer do tempo, vieram a receber apurada atenção clínica e
metapsicológica (Green, 2010), ela tende a ser, de fato, muito mal
vista, quase exclusivamente indexada ao primitivo e ao patológico,
como se o seu rosto e o seu traço nunca pudessem destacar-se de
malefícios (Bairrão, 2019). A introdução de uma reformulação da
teoria pulsional pelo próprio Freud, na qual a morte recebe posição
de destaque, motivou algumas das principais dissensões e
polêmicas duradouras no campo analítico, sintoma evidente das
ferozes resistências e maus-tratos a esta temática. O mínimo
“insulto” que no contexto psicanalítico lhe é dirigido imputa-lhe
uma espécie de avareza simbólica, na forma do mutismo, por cuja
responsabilidade, tendo em vista que noutros contextos o morto
“fala pelos cotovelos” (Bairrão, 2016), é lícito ficar em dúvida a
Etnopsicologia e Saúde 228

respeito de se tratar de uma condição de fato ou de uma projeção


de surdez teórico-clínica.
Dessa forma, pode ficar pouco claro o que pode ser
considerada uma descrição fenomenológica de condições psíquicas
de sofrência contemporâneas e a parcela a atribuir a uma forma de
policiamento ontológico, tendo em vista que o contexto dito
ocidental em que emergiu o sujeito psicológico moderno prima
pela valorização da autonomia e da individualidade de forma
positiva, transparente e sem fraturas. Não se pretende, com isso,
promover estados de estupor e/ou depressões graves, crises de
ausência etc., como equivalentes a realizações anímicas em outros
contextos culturais entendidos como normais ou almejáveis, ainda
que os mesmos termos as traduzam. Está em pauta apenas a
eventual contaminação pela coincidência dos termos e dos
conceitos de processos e constructos psíquicos “negativos” —
admissíveis em contextos culturais diversos e, inclusive, como
sucede no caso de práticas budistas (empregamos o termo no plural
porque, não obstante uma base em comum, há nuances e
acentuações diversas conforme as escolas e as épocas), propostos
como metas a serem universalmente atingidas — com o emprego
depreciativo e sem discernimento da distinção entre um estatuto
ontológico negativo de uma condição anímica e o uso de termos
idênticos ou similares para caracterizar carências e ou condições
patológicas do psiquismo e, em particular, estados anímicos afeitos
a condições psicopatológicas. O risco desse não discernimento, que
atrela automaticamente negatividade a privação ou carência de ser
como “coisas ruins”, pode afetar tanto a apreensão de contributos
legítimos para a teoria psicológica provenientes de outros
horizontes culturais (e aqui temos em vista especificamente
subsídios originários do budismo), como também a descrição e
compreensão de estados psíquicos não necessariamente
depreciáveis, censuráveis ou doentios, em pessoas sujeitas ao
escrutínio das modernas psicologias acadêmicas.
Para esse efeito, neste capítulo, procede-se a uma breve
recuperação de como algumas condições que envolvem a
Etnopsicologia e Saúde 229

referência ao não ser, ao negativo, ao nada, são positivamente


valorizadas (observe-se de passagem como o nosso vocabulário
sub-reptícia e, preconceitualmente, indexa valorativamente o
positivo) noutros horizontes culturais, no caso precipuamente
denominados como “orientais”, e, mais especificamente, em
tradições budistas.

O budismo

O budismo não possui uma tradição metafísica como a do


pensamento ocidental. O próprio termo filosofia é uma palavra de
origem grega que carrega consigo um conjunto de pressupostos da
cultura de um povo situado historicamente. Alguns estudiosos
dirão que, por essa razão, não existiria uma filosofia oriental nos
termos em que a tradição de pensamento ocidental, herdeira do
processo civilizatório greco-romano, entende por filosofia.
Dessa forma, indaga-se se, quando pensadores do Oriente e
monges budistas discorrem sobre temas tais como o ser e o não-ser,
o vazio e o nada, ou a impermanência, por exemplo, os estariam
situando tendo em vista as mesmas “coisas” e os mesmos termos
que eles nomeiam, lato sensu, numa tradição ocidental. Yao (2010),
por exemplo, argumenta que o nada em Heidegger (Nichts) não
seria o mesmo nada do taoísmo (wu 無) e nem o mesmo nada do
budismo (śūnyatā). Não obstante, entende que, apesar de existirem
diferentes concepções de “nada”, há formas de aproximá-los de
modo não-reducionista, de modo a lançar luz sobre questões
teóricas centrais tais como o ser e o não-ser.
Ainda assim, é importante questionar qual seria o real intuito
e os motivos que cercam as tentativas de aproximação entre
distintas correntes de pensamento. Nessa linha, Møllgaard (2014)
discorre a favor da possibilidade de fazer um diálogo intercultural
sem cair no erro de se utilizar categorias abrangentes e objetiváveis
tais como “pensamento ocidental” e “pensamento oriental”.
Seguindo essa premissa, é importante delinear o intuito do
presente ensaio como um trabalho que não pretende fazer
Etnopsicologia e Saúde 230

operações de equivalência entre conceitos resultantes de processos


históricos muito distintos. Sem esses questionamentos como um
guia, corre-se o risco de assumir o referencial do pensamento
ocidental como o padrão universal ao qual as outras formas de
pensar devem se ajustar.
Categorias como “percepção”, “entendimento” e “razão”, por
exemplo, tão centrais do ponto de vista de perspectivas tanto
psicológicas como epistemológicas ocidentais, pouco ou mal
descrevem a orientação budista para o mesmo horizonte de
questões, que parece ser melhor traduzida por termos como
“contacto” (aparentemente um tipo de percepção muito mais ampla
em que o acento recai sobre o percipiente e pouco destaque ou nulo
destaque é dado ao percepto), intenção (noção que introduz questões
éticas como um vetor nuclear e determinante da “observação”) e
“atenção” (entendida como um ato e uma qualidade de estar
(presente), tanto ou mais do que como uma espécie de função
psíquica objetivável e quantificável (Sucitto, 2012).
Definir o budismo é, em si, um desafio, pois, para além de ser
uma religião que engloba diferentes modos de praticá-la, que
foram se desenvolvendo através dos séculos, também possui um
legado de representações e projeções sobre o que é o budismo
formuladas por pensadores orientais e ocidentais que extrapolam
as suas referências originais e se misturam a ela. Por outro lado, há
algo na raiz da tradição budista que anuncia uma aversão à ideia
de que existe uma maneira de representá-la que seja absoluta e
suficiente em si mesma, de modo que há algo no budismo que
permite essas múltiplas representações e interpretações, sem que
isso implique em enfraquecimento ou diluição de sua verdade.
Tendo isso posto, pretende-se, primeiramente, apresentar o
budismo, em linhas gerais, por uma de suas possíveis vias
discursivas, mas sem ter com isso a pretensão de cristalizar essa
forma de apresentar o budismo como a única ou a mais correta.
A palavra budismo vem do sânscrito Buddha (que significa
“Desperto”), empregado geralmente para designar o fundador
histórico do budismo, o príncipe Sidarta Gautama, que viveu no
Etnopsicologia e Saúde 231

nordeste da Índia há aproximadamente 2.500 anos. A prerrogativa


gnóstica do budismo considera o homem mergulhado num estado
comparável ao sono ou à embriaguez, condicionado por desejos e
apegos e ignorante de sua verdadeira natureza, bem como da do
universo em que se encontra situado (Gonçalves, 2005).
O Buda histórico, conhecido como Sidarta Gautama ou Buda
Shakyamuni (o sábio silencioso da tribo sakya), teria sido o
primeiro ser humano do nosso tempo a despertar para esse
conhecimento, alcançando a libertação de todos os sofrimentos e
angústias próprios da condição humana. Por compaixão pela
humanidade, ele passou a compartilhar sua sabedoria com as
demais pessoas para emancipá-las de seu sofrimento (Gonçalves,
2005; Gyamtso & Goldfield, 2003).
Mesmo em seus ensinamentos, Shakyamuni evitou abordar
questões metafísicas tais como a essência do ser, do espírito e da
real natureza das coisas. Ao invés disso, ele acreditava que a
purificação da vida e o treinamento da mente são mais importantes
para a pessoa que quer seguir o Caminho do Dharma e, assim como
ele, despertar (Garfield, 1995; Gyamtso & Goldfield, 2003). Seus
ensinamentos visavam, através da prática diligente, levar as
pessoas a lidarem com o próprio sofrimento e a entrar em um reino
de paz verdadeira.
Talvez por isso, e porque a proposta desse ensino não visa à
transmissão e corroboração de uma doutrina ou sistema de
pensamento assente numa representação fixa e positiva das coisas e
das pessoas (cuja insustentabilidade, em outros quadrantes se tenta
solucionar mediante o dispositivo da crença e especulações
intelectuais, não apenas em contextos religiosos, mas inclusivamente
em meios supostamente científicos), o budismo e a realidade
(includente do negativo) para a qual apontam tendem a transmitir-se
não conceitualmente, mediante alusões ao inefável e circunscrições
das limitações do dizer que se comunicam esteticamente e, como tal,
num contexto ocidental, imediatamente se traduzem como arte.
Ora, o que como arte se compreende no Ocidente pode
facultar, para aquém de representações, uma imersão no real,
Etnopsicologia e Saúde 232

incogitável pelas estratégias científicas psicológicas


contemporâneas. Desse modo, o Oriente (budista) corrobora o Sul
– mais precisamente a África sub-sahariana (Kramer, 1993) – na
direção de relativizar o suposto privilégio e prioridade da ciência
positiva na apreensão e “descrição” da realidade. Em particular, o
Budismo Zen, vertente nipônica de uma tradição budista das mais
bem-sucedidas no Ocidente e no Brasil, vê a arte como um veículo
para a verdade. Essa verdade é concebida não como uma
representação abstrata de um fato ou valor, mas como uma
experiência da realidade: a arte pode ser um produto criativo com
qualidades formais e a capacidade de representar algo ou expressar
sentimento estético, mas em que tais qualidades são secundárias à
sua capacidade de nos colocar em contato com a verdade (Graham,
2000). Assim, tem-se a primazia da arte enquanto artifício de
desvelamento da verdade, em contraste ao seu valor estético.
As diversas manifestações de arte nesse budismo, tais como as
cerimônias de chás, os arranjos florais, a arquearia e até as diversas
artes marciais, longe de servirem como uma espécie de reflexo
simbólico e ritualizado da doutrina Zen, pretendem-se como
manifestações do espírito budista no plano imediato e concreto da
vida. Os antigos mestres viam no consumo de chá, por exemplo,
uma forma de vivência ativa do Zen. Muitas vezes, as instruções e
ensinamentos eram transmitidas por monges através dessas
práticas, visando à demonstração concreta e à vivência ativa do
espírito de Buda em sua cotidianidade radical.
Importa ressaltar que o cotidiano no Zen não significa uma
atitude de automatismo e passividade perante a vida, mas sim uma
atitude antinatural que requer um esforço de atenção plena à própria
vida que está se revelando a todo momento no aqui e agora. Nesse
sentido, a arte no Zen não é uma cópia de algo, não representa,
simboliza ou descreve a realidade. A arte no Zen é a própria
realidade se manifestando e tais manifestações são a própria vida
acontecendo no momento presente. A cotidianidade radical
vivenciada com atenção plena, seja na arte da arquearia ou no ato de
beber chá, também coincide com a verdade (Graham, 2000). Assim
Etnopsicologia e Saúde 233

concebida, a arte propicia que a pregnância do vazio em todas as


formas se faça sensível. Mediante o artifício da forma ou objeto
estético, é a própria vacuidade da realidade em si e do self como real,
estética e materialmente situados independentemente e para além
do envelope biológico antropomórfico, que está em causa.
A profundidade e vastidão dos ensinamentos do Buddha e a
consequente variedade de escolas e estilos que surgiram após sua
morte tornam impraticável abordar o seu conjunto em um ensaio
de caráter exploratório. Por esta razão, optou-se por apresentar o
budismo através de uma de suas principais escolas: a escola
Madhyamaka da Sabedoria Fundamental do Caminho do Meio,
pertencente ao ramo do budismo Mahayana (O Grande Veículo).
Em especial, pretende-se apresentar brevemente os preceitos do
budismo através de dois escritores budistas de suma importância
na fundação e propagação da vertente Mahayana, sendo o primeiro
o pensador Nagarjuna (do século II a. C.) e o segundo o monge
poeta Dōgen (que viveu de 1200 a 1253).

Nagarjuna

A principal temática que concerne à escola da Sabedoria


Fundamental do Caminho do Meio é o vazio (śūnyatā). Segundo
essa escola, O Caminho do Meio significa que a verdadeira
natureza dos fenômenos que experimentamos está no meio, entre
todos os extremos possíveis que podem ser concebidos pelo
intelecto. A realidade estaria genuinamente vazia de qualquer
fabricação conceitual que poderia tentar descrever o que ela é
(Garfield; 1995; Gyamtso & Goldfield, 2003).
O budismo propõe a não negação da impermanência (o que
implicaria em negar o mundo, atitude alheia aos valores do budismo),
mas a aceitação plena dessa condição (Carvalho, 2005). A posição de
Nagarjuna é a de que todas as metafísicas, tanto substancialistas como
niilistas, nos aprisionam numa visão parcial das coisas e nos impedem
a experiência do que é mais autenticamente real (Ferraro, 2013). A
verdadeira natureza da realidade transcende todas as noções
Etnopsicologia e Saúde 234

conceituais que o ser humano pode ter do que as coisas podem ser
(Ferraro, 2013; Gyamtso & Goldfield, 2003).
Para a escola Madhyamaka, o caminho que leva à realização
direta da inconcebível, genuína natureza da realidade, começa com
o ganho de certeza nessa profunda visão do vazio. Não é suficiente
apenas ler os ensinamentos que dizem que todos os fenômenos são
vazios e que a natureza da realidade está além de sua
conceitualização, sem se conhecer as razões pelas quais esses
ensinamentos são precisos. Se assim fosse, teríamos apenas mais
uma representação do mundo que o homem escolhe abraçar em fé
cega. A mera opinião de que os ensinamentos são válidos por si só
não os torna imunes a dúvidas nem a questionamentos que possam
vir à tona. Por outro lado, quando se conquista convicção nos
ensinamentos sobre o vazio, através da prática diligente da
Sabedoria Fundamental do Caminho do Meio, então será
impossível que surjam dúvidas (Gyamtso & Goldfield, 2003;
Narain, 1997). Aqui evidencia-se a experiência humana de encontro
com o sagrado presente no caráter gnóstico do budismo: não se
pode conhecê-lo verdadeiramente e questioná-lo ao mesmo tempo.
Nagarjuna utiliza-se de lógica, mediante a redução ao
absurdo, para solapar as teorias adversárias que pretendem
capturar a realidade de forma definitiva e estável, isto é, obter a
essência de algum ente (Bartz, 2018). Os seguintes versos
exemplificam o recurso paradoxal em Nagarjuna:

Se não existe nenhuma entidade,


O que é uma não-entidade?
E se tanto as entidades quanto as não-entidades
São vazias de características,
Quem seria capaz de distinguir entidades de não-entidades?
[...] Assim, o espaço não é uma entidade,
Nem uma não-entidade,
Nem algo para ser caracterizado,
Nem uma característica.
(citado por Garfield, 1995, p. 156-157, tradução nossa)
Etnopsicologia e Saúde 235

A principal questão sobre a qual Nagarjuna discorre é o tema


da realidade enquanto śūnyatā (vazio). Nessa perspectiva, as coisas
não se definem pelo que elas seriam em si, mas sim pela rede de
condicionamentos e relacionamentos que as ligam e as cooriginam
em um determinado contexto, sendo o natural de todo fenômeno
estar interligado e em constante transformação (Gonçalves, 2005;
Gyamtso & Goldfield, 2003). Segue um pequeno verso de
Nagarjuna acerca do vazio:

Se o vazio é possível,
Então tudo é possível,
Mas se o vazio é impossível,
Então, nada mais é possível.
(citado por Gyamtso & Goldfield, 2003, p. 156, tradução nossa).

O que significa dizer “Se o vazio é possível”? Segundo


Nagarjuna, significa que as coisas não existem realmente, mas sim
que elas existem na dependência conjunta de causas e condições.
Vazio não significa completo nada, significa origem dependente,
assim, vazio e surgimento dependente teriam o mesmo sentido
para Nagarjuna. Portanto, quando o vazio é possível, tudo é
possível. Se as coisas realmente existissem, isto é, se não fossem
vazias, elas nunca mudariam; e como as coisas teriam sua própria
natureza e não iriam depender de causas e condições para serem,
não haveria como causas e resultados existirem, de modo que nada
poderia jamais surgir ou cessar (Gyamtso & Goldfield, 2003).

Não há um único fenômeno


Que não surja de forma dependente.
Portanto, não há um único
fenômeno
Que não seja vazio.
(citado por Gyamtso & Goldfield, 2003, p. 158, tradução nossa).

No Ocidente e, por tabela, na moderna psicologia, pressupõe-se


que existe uma substancialidade inerente aos fenômenos e à própria
Etnopsicologia e Saúde 236

consciência, que entifica os fenômenos, ignorando-se seu caráter


acontecimental, o que interdita ver a radical não essencialidade de
todas as coisas e de todas as condições. Para o budismo, em última
instância, elas são insubstanciais, não propriamente por de todo
inexistirem, mas por serem aflorações efêmeras de cadeias de
interdependência inerentemente insubsistentes.

Paralelos com a poesia filosófico-religiosa de Dōgen

Segundo Carvalho (2005), Dōgen e toda a tradição Zen-budista


são influenciados por Nagarjuna. Dōgen Zenji foi um mestre Zen-
budista, fundador da escola Soto e um dos mais importantes
pensadores japoneses. Por muito tempo desconhecido no Ocidente,
Dōgen foi somente traduzido para uma língua ocidental pela
primeira vez em 1958. Utilizando uma linguagem profundamente
poética, repleta de jogos inusitados com as palavras e ideias, o
mestre produziu diversos tratados filosófico-religiosos para
transmitir os preceitos budistas sobre a existência, dos quais
Shobogenzo, ou “O Olho do Tesouro da Verdadeira Lei”, é o mais
conhecido (Carvalho, 2005).
De modo a apreciar as contribuições únicas de Dōgen para a
literatura kōan, é necessário entender como funciona o estudo
tradicional do kōan, o qual é uma narrativa, diálogo ou afirmação
no Budismo Zen, que contém aspectos que são inacessíveis à razão.
É fundamental diferenciar entre o estudo do kōan e a introspecção
formal (de caráter contemplativo) do kōan. O seu estudo tende a
confiar no intelecto. Tem como objetivo lançar luz sobre os
ensinamentos clássicos do budismo, de forma semelhante com o
que um professor irá fazer com seus alunos em um discurso
instrutivo, esclarecendo os pontos-chave e as ideias centrais
contidas em um texto. Por outro lado, o kōan também pode ser
objeto de introspecção meditativa, no ato do praticante sentar-se
em zazen tendo o kōan em mente, deixando de tentar resolvê-lo ou
entendê-lo. Nesse sentido, pode-se dizer que não existe uma
resposta ou interpretação para um kōan, pois o ato de contemplá-
Etnopsicologia e Saúde 237

lo introspectivamente requer um certo estado de consciência, em


vez de uma abstração de compreensão intelectual (Loori &
Tanahashi, 2005). Com isso, visa-se a compreensão no cerne da
realização, e não a intelectualização de uma ideia ou fenômeno.
Seguindo a influência de Nagarjuna, Dōgen desenvolve em
seus textos as teorias da originação dependente (ou do surgimento
condicionado) e da vacuidade. Como discutido, essas teorias
apontam para a intrínseca interdependência entre tudo que existe
no universo. Não existe nada separado ou autônomo, mas algo
sempre em relação a outras coisas, criando uma verdadeira rede de
conexões representada por um círculo fechado, que resulta numa
realidade sunya ou “vazia”, justamente porque lhe falta essa
autonomia básica de existência. Longe de indicar uma negação da
realidade, o budismo simplesmente vê nessa vacuidade a prova da
impermanência das coisas. Como Dōgen afirma em um de seus
textos, aceitar a impermanência é realizar a natureza búdica.
Para ilustrar como essas teorias emergem da escrita de Dōgen,
podemos recorrer a passagens do texto Udonge (“A flor de
udumbara”) do Shobogenzo.

Diante de uma assembleia de milhões de monges no Pico do Abutre, o


Honorável em Todo o Mundo apanha uma flor de udumbara e pisca o
olho. Em seguida a face de Mahakasyapa abre-se em um sorriso. O
Honorável em Todo o Mundo diz, ‘Eu possuo o shobogenzo (o olho do
tesouro do verdadeiro dharma) e a fina mente do nirvana (da completa
iluminação); eu o transmito a Mahakasyapa. [...] O tempo do girar das
flores é a totalidade do Tempo em si mesmo. [...] Flores girantes são
postas a girar pelos olhos, a girar pela mente, a girar pelas narinas e a
girar pelas flores que giram. Em geral, as montanhas, os rios e a terra, o
sol e a lua, o vento e a chuva; as pessoas, os animais, a grama e as árvores
— enfim, todas as coisas miscelâneas do presente que se mostram por
toda a parte — são somente o girar da flor de udumbara. [...] Até este
estudo que agora realizamos é tão somente um giro da flor de
udumbara (citado por Carvalho, 2005, p. 137).
Etnopsicologia e Saúde 238

Nessa passagem aparentemente simples estaria condensada


toda a doutrina Zen. A flor está interligada a tudo o mais que existe,
influenciando e sendo influenciada, girando em consonância ao
universo todo. A Sangha (comunidade de monges) e a natureza se
reúnem em torno da sabedoria de Buddha num mesmo instante
eterno, que acontece e reacontece a cada vez que o texto é lido. É
importante notar que essa interdependência congrega a natureza
— e todas as coisas — sem colocar o ser humano no centro de tudo.

Temporalidade na concepção do budismo Zen

A questão do tempo aparece de forma radical em passagens


do Uji (“Ser-tempo”) do Shobogenzo:

O ser-tempo tem a qualidade de fluir. O assim chamado hoje flui


para o amanhã, o hoje flui para o ontem, o ontem flui para o hoje. E
o hoje flui para o hoje, o amanhã flui para o amanhã. Porque fluir é
uma qualidade do tempo, momentos do passado e do presente não
se sobrepõem ou se alinham lado a lado. Qingyuan é tempo,
Huangbo é tempo, Jiangxi é tempo, Shitou é tempo, porque o self e
o outro já são tempo. A prática-iluminação é tempo. Se respingar de
lama e ficar molhado também é tempo (citado por Dōgen &
Tanahashi, 1995, p. 94, tradução nossa).

As noções de passado, passagem, fluxo, continuidade, e assim


por diante, são conceitos que só fazem sentido em relação às coisas,
assim como a impressão da ideia de movimento surge quando
estamos parados em relação a algo, como alguém parado nas margens
de um rio olhando um barco navegar. Porém, a ideia de fluir é ilusória,
pois não há nada que exista que possa estar fora do tempo: não
estamos na margem, e não há margem. Para o budismo, a fluidez é
qualidade do tempo e dos seres em geral, de forma que a delimitação
e aparente linearidade entre ontem, hoje e amanhã não existe.
Entre os fluxos de ilusões descritos pelo budismo, destaca-se
um relacionado à positivação das percepções e das condições
sensoriais, e outro vinculado à ideia de um antes e de um depois, de
Etnopsicologia e Saúde 239

uma linearidade entre o passado e o futuro, as quais em


contrapartida, numa perspectiva científica psicopatológica, são
critérios de orientação de um paciente para a realidade e cuja
ausência é considerada indicativo de doença mental ou degeneração
neurológica. No caso do budismo, grosso modo, é como se essa
relação fosse invertida e a apreensão penetrante da natureza da
mente se mostrasse por sinais contrários às duas concepções.
A ideia de uma subtração ao self de um teor substantivo,
reduzido a fluxos de acontecência temporal e, em última
instância, inexistente ou pelo menos incapturável, não
“positivável”, é ilustrada pela constatação de que “o self já é
tempo” e que “se respingar de lama e ficar molhado também é
tempo” (Dōgen & Tanahashi, 1995, p. 94). Uji é “ser-tempo” ou
ainda, quando utilizado como verbo, é “temposer”, equiparando
radicalmente essas instâncias (Carvalho, 2005, p. 131).
Contrariando o senso comum e a tradição filosófica ocidental, o
tempo aqui deixa de corresponder a uma linha de eventos
separada dos eventos em si. Dōgen nos convida a compreender
que a natureza mesma do Ser é tempo.

Considerações finais

Cada um à sua maneira, os pensadores que abordamos nos


convidam a questionar as ideias fixas e pré-concebidas sobre a
existência, contribuindo para enriquecer com uma visão do Oriente
uma reflexão sobre o alcance e o sentido do psicológico numa direção
integradora da negatividade, que se traduz como morte, vazio, nada,
impermanência, outras tantas figuras, em última instância, do não ser.
Entre o nada sintomático e a sabedoria do vazio, deve haver um
lugar para a negatividade na psicologia. Apesar da diferença
geográfica, cultural e temporal, é possível contrastar pontos de
aproximação entre concepções budistas e psicológicas ocidentais
relativas ao vazio, ao nada, à impermanência, à insubstancialidade de
um eu, e mesmo à implausível delimitação entre uma entidade
antropomórfica definida como um ente biopsicossocial e o seu
Etnopsicologia e Saúde 240

entorno. Indicações nessa direção, que permitem contrabalançar a má


fama da morte e do não ser nas abordagens psicológicas, como se se
tratassem de acidentes provenientes do exterior e inimigos da
condição humana e não, por assim dizer, dos seus únicos
componentes não efêmeros, podem ser resgatadas na forma de
subsídios para a retificação de condutas clínicas e teóricas a partir de
concepções orientais exemplificadas pelo budismo, no caso, mais
especificamente, extraídas da sua vertente propagada pelos mestres
Nagarjuna e Dōgen.
É claro que esse exercício não se presume uma exegese rigorosa
e completa e muito menos pretende validar positivamente uma
comparação. Apenas se ensaia mostrar que termos que traduzem
sofisticadas elaborações lato sensu filosóficas e etnopsicológicas
orientais, ao serem os mesmos que se associam à incidência de graves
manifestações psicopatológicas contemporâneas, talvez admitam,
para além da sua utilização imediata na descrição fenomenológica de
distúrbios ou desordens mentais, um entendimento ou nova
perspectiva de condições permanentemente indexadas como doentias
e que talvez nem sempre o sejam ou não o sejam da forma pretendida
pela generalidade das matrizes metafísicas da psicologia científica
contemporânea, que em última análise nada mais é do que uma
etnopsicologia (ocidental), entre outras.
A contribuição pretendida é apenas um pequeno passo para
suspender estigmas e distorções, que, no entanto, a vários títulos se
faz necessária e pode desembocar em estudos futuros mais
específicos, analíticos e melhor circunstanciados. Esse exercício
também é importante não apenas como um esforço de higiene e de
cotejo crítico de baluartes da ação científica e profissional da
psicologia, como também para poder reequacionar pontos opacos de
pré-concepções ocidentais que estigmatizam o vazio, o nada, a morte,
a negatividade em geral, deixando uma lacuna teórica em processos
que foram talvez melhor reconhecidos e descritos em outras culturas
e, que quando se impõem, seja a pessoas de outras origens culturais,
seja a integrantes da cultura ocidental, são grosseiramente
compreendidos ou estigmatizados.
Etnopsicologia e Saúde 241

Para o desenvolvimento da teoria psicológica, uma possante


contribuição da ontologia budista, provavelmente a principal, talvez
seja a ênfase na cooriginação interdependente de todos os fenômenos.
Quando se realiza que passado e futuro se contraem em um momento
atual, discerne-se que cada concatenação presente de
interdependências está impregnada da ausência do que já foi, do que
poderia ter sido, do que nunca será, do que eventualmente poderá vir
a ser; ou seja, condensa uma multitude de vazio correlativa dos nós
do encadeamento.
Seja por argumentação “filosófica” ou por manipulação poética
das palavras, esses pensadores nos convidam a realizar um
movimento da atitude natural para a antinatural, pondo em xeque a
crença na estabilidade da vida, mostrando como a impermanência é
qualidade intrínseca da natureza das coisas. Chamam nossa atenção,
também, para a dependência mútua e visceral entre todas as coisas,
que se lançam em direção umas às outras e, assim, conferem ao outro
seu sentido original (cooriginariedade), uma noção cada vez mais
deixada de lado na nossa era atual de individualismo exacerbado.

Referências

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Etnopsicologia e Saúde 242

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Etnopsicologia e Saúde 243

ÍNDICE REMISSIVO

contratransferência: 16, 28, 29, 30, 31, 32

corpo: 27, 36, 37, 38, 39, 40, 42, 43, 46, 57, 74, 81, 85, 97, 98, 99, 114,
115, 117, 118, 119, 120, 121, 125, 126, 130, 135, 139, 147, 148, 152, 161,
166, 168, 169, 170, 171, 172, 174, 175, 176, 185, 191, 208

cuidado: 24, 55, 59, 62, 64, 67, 68, 69, 71, 72, 73, 82, 85, 94, 114, 161,
162, 165, 166, 167, 168, 170, 172, 176, 177, 180, 181, 182, 187, 190, 191,
192, 193, 194, 195, 204, 205, 208, 209, 212, 214, 215

cultura: 7, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 25, 26, 27, 28, 32, 38, 46, 90, 108, 112,
117, 141, 147, 148, 149, 152, 175, 183, 184, 192, 205, 217, 220, 229, 240

diagnóstico: 46, 83, 134, 136, 145, 182

doença: 16, 21, 30, 35, 41, 42, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 63, 88,
91, 92, 99, 102, 117, 118, 133, 134, 135, 138, 143, 144, 147, 148, 151,
152, 153, 200, 208, 212, 213, 214, 216, 217, 218, 225, 226, 239

Ethos: 35, 36, 43, 44, 45, 46, 47, 175, 176, 184

etnocentrismo: 15, 16, 19, 21, 22, 23, 24, 26, 27, 28, 31, 32, 226

etnopsicanálise: 15, 16, 17, 18, 19, 70

etnopsiquiatria: 15, 17, 18, 19, 20, 86

identidade: 22, 37, 38, 90, 182, 202

interpretação: 31, 61, 79, 82, 86, 90, 98, 101, 102, 103, 104, 236
Etnopsicologia e Saúde 244

iorubá: 107, 108, 109, 111, 112, 113, 125, 126, 127, 129, 130, 133, 134,
135, 136, 137, 138, 146, 148, 149, 150

morte: 36, 37, 42, 47, 48, 51, 52, 102, 126, 133, 134, 135, 137, 138, 139,
140, 141, 142, 143, 145, 209, 213, 225, 227, 233, 239, 240

narrativa: 13, 35, 51, 67, 85, 92, 95, 162, 167, 169, 170, 171, 185, 191,
193, 194, 236

políticas públicas: 12, 199, 202, 210, 219

Psicologia Indígena: 162, 168, 183

psicoterapia: 18, 20, 56, 58, 61, 63, 64, 65, 66, 68, 69, 70, 71, 108

saúde mental: 55, 59, 68, 71, 72, 73, 74, 135, 145

transferência: 29, 30, 84, 153

umbanda: 40, 55, 57, 58, 59, 62, 63, 64, 71, 71, 74, 79, 80, 81, 82, 84,
85, 87, 88, 89, 90, 91, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 100, 101, 102, 103, 104, 172,
174, 175, 189, 190, 191, 193, 194
Etnopsicologia e Saúde 245

SOBRE OS AUTORES E AS AUTORAS

Alice Costa Macedo é psicóloga, mestra e doutora em Psicologia


pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo, com estágio doutoral na École des
Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. Professora Adjunta
da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), junto ao
Centro de Formação de Professores (Amargosa - BA).
Coordenadora do Grupo de Pesquisa e Extensão POÁ (Psicologias
por Organizações Populares e Ancestralidades), ligado à UFRB,
atuando em duas linhas de pesquisa: ERÊditários (com projetos
voltados para a infância) e Lideranças Nascentes, Mulheres Raízes
(com projetos voltados às lideranças mulheres mães quilombolas).
É membro do Laboratório de Etnopsicologia da USP e do ORÍ -
Laboratório de Pesquisa em Psicologia, Saúde e Sociedade, também
da USP. Membro do GT Etnopsicologia da Associação Nacional de
Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP).

Carolina Mikaela Silva Kato é psicóloga pela Faculdade de


Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de
São Paulo. Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em
Psicologia da mesma instituição e membro do Laboratório de
Etnopsicologia da USP.

Danilo Silva Guimarães é psicólogo, mestre e doutor em


Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo, com período sanduíche na Clark University (EUA). É Livre-
Docente na área de História e Filosofia da Psicologia pela
Universidade de São Paulo. Professor Associado do Departamento
de Psicologia Experimental e do Programa de Pós-graduação em
Psicologia Experimental da USP. Desenvolve e orienta pesquisas
na área de problemas teóricos e metodológicos da pesquisa
psicológica: construtivismo semiótico-cultural, com ênfase em
Etnopsicologia e Saúde 246

Psicologia indígena. Coordena o serviço Rede de Atenção à Pessoa


Indígena do IPUSP. Membro do GT Psicologia Dialógica da
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia
(ANPEPP). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.

Eliane Domingues é psicóloga pela Universidade Estadual de


Maringá, com mestrado e doutorado em Psicologia (Psicologia
Social) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, tendo
realizado doutorado sanduíche na Université Paris 7 (École
Doctorale Recherches en Psychanalyse et Psychopathologie).
Professora associada do curso de Psicologia e do Programa de Pós-
graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá.
Trabalha atualmente com os seguintes temas: Etnopsicanálise,
Georges Devereux, Clínica Transcultural, Povos Indígenas,
Migrantes, Refugiados, Psicanálise e Política. Membro do GT
Etnopsicologia da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
graduação em Psicologia (ANPEPP).

Fabio Scorsolini-Comin é professor associado do Departamento


de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de
Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo,
Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da
Pesquisa em Enfermagem. Orientador do Programa de Pós-
graduação em Enfermagem Psiquiátrica e do Programa
Interunidades de Doutoramento em Enfermagem da Universidade
de São Paulo (USP). Psicólogo, mestre, doutor e livre-docente em
Psicologia pela USP. Realizou estágio doutoral na Faculdade de
Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto
(Portugal). Realizou dois Pós-Doutorados na área de Tratamento e
Prevenção Psicológica, ambos pela USP. Líder do ORÍ - Laboratório
de Pesquisa em Psicologia, Saúde e Sociedade (CNPq) e
coordenador do Centro de Psicologia da Saúde da EERP-USP.
Membro do Laboratório de Etnopsicologia da USP e do POÁ –
Psicologias por Organizações Populares e Ancestralidades, ligado
à Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Membro do GT
Etnopsicologia e Saúde 247

Etnopsicologia da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-


graduação em Psicologia (ANPEPP). Bolsista de Produtividade em
Pesquisa do CNPq.

Gabriel Inticher Binkowski é psicanalista e professor do


Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo. Mestre em Clínica Transcultural e
Doutor em Psicologia pela Université Sorbonne Paris Nord.
Membro do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política
(PSOPOL) e da Unité Transversale de Recherche Psychogenèse et
Psychopathologie (UTRPP). Supervisor clínico no Grupo Veredas:
Psicanálise e Migração e um dos coordenadores do Relapso - Grupo
Interuniversitário de Pesquisa em Religião, Laço Social e
Psicanálise. Faz parte do GT Psicanálise, Política e Cultura da
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia
(ANPEPP) e do GT de Etnopsicologia, também na ANPEPP.
Pesquisa temas como psicanálise e religião, psicopatologia e
religiosidade, clínica das migrações, práticas inter e transculturais
e questões envolvendo ética da pesquisa e dos dispositivos clínicos
da psicanálise na atualidade.

Geana Baniwa é psicóloga pelo Centro Universitário Fametro,


Manaus. Mestranda em Psicologia na Universidade Federal do
Amazonas, especializando-se em Direitos Humanos, Relações
Étnico-raciais e Saúde pela FIOCRUZ. Psicóloga no Projeto
Reajudari Se Kérupe Ajude-Me a Sonhar, Serviço Especializado em
Abordagem Social. Pesquisadora do Yandê Kaá Pura - Pessoa,
Sociedade e Ambiente na Amazônia (UFAM).

José Francisco Miguel Henriques Bairrão graduou-se em


Psicologia e em Filosofia pela Universidade de São Paulo.
Doutorou-se em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas
e é Livre-Docente pela Universidade de São Paulo. Atualmente, é
pesquisador e professor associado no Departamento de Psicologia
e no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de
Etnopsicologia e Saúde 248

Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de


São Paulo. Coordena o Laboratório de Etnopsicologia desta
instituição, cadastrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do
CNPq, onde orienta e desenvolve pesquisas pautadas pelo
interesse em não divorciar reflexão epistemológica (Epistemologia
da Psicologia, Filosofia da Psicanálise) e pesquisa empírica
(Psicologia da Cultura, Psicologia da Religião), bem como abertas
a argumentos e contribuições interdisciplinares. Participa do
Fórum Inter-religioso para uma Cultura de Paz e Liberdade de
Crença da Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania de São Paulo.
Membro do POÁ – Psicologias por Organizações Populares e
Ancestralidades, ligado à Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia. Membro do GT Etnopsicologia da Associação Nacional de
Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP).

Marcelo Gustavo Aguilar Calegare é psicólogo, mestre e doutor


em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade
de São Paulo. Realizou pós-doutorado na Universidade de
Brasília. Professor da Faculdade de Psicologia e do Programa de
Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do
Amazonas. Seus interesses de pesquisa estão relacionados à
Psicologia Social e Comunitária, Psicologia Florestal, identidades
e ações coletivas, povos e comunidades tradicionais indígenas e
não indígenas na cidade e na floresta, florestalidades amazônicas,
áreas protegidas e questões socioambientais. Pesquisador do
Yandê Kaá Pura - Pessoa, Sociedade e Ambiente na Amazônia
(UFAM). Membro do GT Etnopsicologia da Associação Nacional
de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP).

Maurício da Silva Neubern é psicólogo, mestre e doutor em


Psicologia pela Universidade de Brasília, com período sanduíche
na Université Paris Diderot (França). Professor do Departamento
de Psicologia Clínica e do Programa de Pós-graduação em
Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília. Realizou
pós-doutorado no Centre Edgar Morin da École de Hautes Études
Etnopsicologia e Saúde 249

en Sciences Sociales (França). Sua principal linha de pesquisa


investiga a complexidade, a subjetividade e a hipnose nas relações
terapêuticas. Líder do grupo de pesquisa CHYS – Complexidade,
Hipnose e Subjetividade (CNPq). Membro do GT Etnopsicologia
da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em
Psicologia (ANPEPP).

Pâmela Damilano dos Santos é psicóloga pelo Instituto de


Psicologia da Universidade de São Paulo. Doutoranda pelo
Programa de Pós-graduação em Psicologia Experimental da USP,
dedicando-se à pesquisa em questões de diversidade cultural,
ontológica e epistemológica. Membro da Rede de Atenção à Pessoa
Indígena - Rede Indígena/IPUSP, um serviço multidisciplinar de
atenção às vulnerabilidades psicossociais de pessoas e
comunidades indígenas que conta com diversos projetos criados
em parceria com comunidades Mbyá Guarani de São Paulo.

Rodrigo Ribeiro Frias possui graduação em Letras-Português pela


Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, Mestrado em Teoria Literária e
Doutorado em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da
USP. Como pesquisador, atua na área de confluência da Literatura
com a Antropologia, a Psicologia e a Educação. Nessa confluência,
o foco de seus interesses recai sobre o potencial educacional de
narrativas mitológicas e outras formas literárias da tradição oral;
recai também sobre os conceitos de identidade religiosa e
comunidade. Nos últimos anos, vem se dedicando a estudos e
pesquisas sobre a etnia iorubá (África Ocidental), especialmente
sobre o Corpus Literário de Ifá, corpo da tradição oral desse grupo
étnico, de marcante presença no Brasil. Membro do GT
Etnopsicologia da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
graduação em Psicologia (ANPEPP).

Ronilda Iyakemi Ribeiro é etnopsicóloga. Doutora em Psicologia


e em Antropologia da África Negra pela Universidade de São
Etnopsicologia e Saúde 250

Paulo. Pesquisadora da Universidade Paulista e professora sênior


da USP. Orientadora no Programa de Pós-graduação em Integração
da América Latina da USP. Coordenadora do Grupo de Pesquisa
Estudos Transdisciplinares das Heranças Africana e Indígena
(CNPq). Membro do Coletivo Coalizão InterFé em Saúde e
Espiritualidade (Brasil), do Fórum Inter-religioso para uma
Cultura de Paz e Liberdade de Crença da Secretaria de Estado da
Justiça e Cidadania de São Paulo e do Projeto Creer en Plural, da
Red Latinoamericana y del Caribe para la Democracia. Patronesse
do Egbé Omó Oduduwa in Brasil. Ialorixá (Religião Tradicional
Iorubá). Membro do GT Etnopsicologia da Associação Nacional de
Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP).

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