O Afeto Que Não Se Encerra

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 248

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Eduardo Augusto Tomanik
(Organizador)
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA:


contribuições teóricas, metodológicas, éticas
e políticas sobre os processos afetivos

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2023
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Revisão: Os Autores

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


CATALOGAÇÃO NA FONTE
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


A256

O afeto que não se encerra: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e políticas sobre
os processos afetivos / Eduardo Augusto Tomanik (organizador). Curitiba : CRV, 2023.
248 p.

Bibliografia
ISBN Digital 978-65-251-4733-8
ISBN Físico 978-65-251-4732-1
DOI 10.24824/978652514732.1

1. Psicologia 2. Psicologia social – afetos 3. Construção social I. Tomanik, Eduardo


Augusto, org. II. Título III. Série.

CDU 159.9 CDD 150


Índice para catálogo sistemático
1. Psicologia – 150

2023
Foi feito o depósito legal conf. Lei nº 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 – E-mail: [email protected]
Conheça os nossos lançamentos: www.editoracrv.com.br
Conselho Editorial: Comitê Científico:
Aldira Guimarães Duarte Domínguez (UNB) Andrea Vieira Zanella (UFSC)
Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN) Christiane Carrijo Eckhardt Mouammar (UNESP)
Anselmo Alencar Colares (UFOPA) Edna Lúcia Tinoco Ponciano (UERJ)
Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ) Edson Olivari de Castro (UNESP)
Carlos Alberto Vilar Estêvão (UMINHO – PT) Érico Bruno Viana Campos (UNESP)
Carlos Federico Dominguez Avila (Unieuro) Fauston Negreiros (UFPI)
Carmen Tereza Velanga (UNIR) Francisco Nilton Gomes Oliveira (UFSM)
Celso Conti (UFSCar) Helmuth Krüger (UCP)
Cesar Gerónimo Tello (Univer. Nacional Ilana Mountian (Manchester Metropolitan
Três de Febrero – Argentina) University, MMU, Grã-Bretanha)
Eduardo Fernandes Barbosa (UFMG) Jacqueline de Oliveira Moreira (PUC-SP)
Elione Maria Nogueira Diogenes (UFAL) João Ricardo Lebert Cozac (PUC-SP)
Elizeu Clementino de Souza (UNEB) Marcelo Porto (UEG)
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Élsio José Corá (UFFS) Marcia Alves Tassinari (USU)


Fernando Antônio Gonçalves Alcoforado (IPB) Maria Alves de Toledo Bruns (FFCLRP)
Francisco Carlos Duarte (PUC-PR) Mariana Lopez Teixeira (UFSC)
Gloria Fariñas León (Universidade Monilly Ramos Araujo Melo (UFCG)
de La Havana – Cuba) Olga Ceciliato Mattioli (ASSIS/UNESP)
Guillermo Arias Beatón (Universidade Regina Célia Faria Amaro Giora (MACKENZIE)
de La Havana – Cuba) Virgínia Kastrup (UFRJ)
Jailson Alves dos Santos (UFRJ)
João Adalberto Campato Junior (UNESP)
Josania Portela (UFPI)
Leonel Severo Rocha (UNISINOS)
Lídia de Oliveira Xavier (UNIEURO)
Lourdes Helena da Silva (UFV)
Luciano Rodrigues Costa (UFV)
Marcelo Paixão (UFRJ e UTexas – US)
Maria Cristina dos Santos Bezerra (UFSCar)
Maria de Lourdes Pinto de Almeida (UNOESC)
Maria Lília Imbiriba Sousa Colares (UFOPA)
Paulo Romualdo Hernandes (UNIFAL-MG)
Renato Francisco dos Santos Paula (UFG)
Sérgio Nunes de Jesus (IFRO)
Simone Rodrigues Pinto (UNB)
Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)
Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

“Amar e mudar as coisas me interessa mais”


(Belchior: Alucinação).
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .......................................................................................... 11
Eduardo Augusto Tomanik

1. UM POUCO SOBRE OS AFETOS ........................................................... 17


Eduardo Augusto Tomanik

2. APRENDENDO A SENTIR: reflexões acerca dos


repertórios afetivos .......................................................................................... 39
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Eduardo Augusto Tomanik


Laura Ferreira Lago

3. A ATUAÇÃO SOCIAL DOS AFETOS NA CONSTRUÇÃO


DE VÍNCULOS ............................................................................................... 57
Mariana Hauser de Castilho

4. LIÇÕES DO MEDO .................................................................................... 75


Thiago Ohara
Eduardo Augusto Tomanik

5. “EU NÃO PRETENDIA TER FEITO O QUE FIZ”: os afetos na


construção das opções morais contemporâneas ............................................ 95
Bethânia Cabrera de Souza Bortolato
Eduardo Augusto Tomanik

6. IDENTIDADES, AFETOS, MEMÓRIA: registros de nós e de


nossas construções ....................................................................................... 115
Ana Céli Pavão Guerchmann
Eduardo Augusto Tomanik

7. A PARTICIPAÇÃO DOS AFETOS NAS VIOLÊNCIAS


DOMÉSTICAS VIVIDAS POR MULHERES .............................................. 135
Aline Daniele Hoepers
Eduardo Augusto Tomanik

8. PSICOLOGIA ORGANIZACIONAL E DO TRABALHO: um


pouco do campo de atuação e muito dos afetos ........................................... 149
Ana Céli Pavão Guerchmann
Regiane Cristina de Souza Fukui
9. LIÇÕES DO CAMPO DE ESTUDOS: os afetos nos artigos
nacionais da Psicologia ................................................................................. 165
Ana Céli Pavão Guerchmann
Letícia Bottura Calvoso
Eduardo Augusto Tomanik

10. TRANSGREDIR A CIÊNCIA, TRANSGREDIR NA CIÊNCIA:


articulando feminismos, afetos e decolonialidade ......................................... 187
Letícia Bottura Calvoso

11. SOBRE AFETOS, COM AFETO: manifesto por uma


ciência afetiva ................................................................................................ 221
Karen Eduarda Alves Venâncio

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


12. NAS TESSITURAS RELACIONAIS: os afetos em sua
dimensão ético-política .................................................................................. 229
Aline Daniele Hoepers

ÍNDICE REMISSIVO ................................................................................... 239

SOBRE OS AUTORES ................................................................................ 243


APRESENTAÇÃO
Como a maioria das que recebem a mesma denominação, esta apre-
sentação deverá servir para levar, aos eventuais leitores, informações gerais
sobre as intenções que deram origem à elaboração dos textos que compõem a
coletânea, os conteúdos que pretendemos que os entrelacem, os objetivos que
visamos que eles busquem alcançar e, especialmente, as funções científicas e
sociais amplas que gostaríamos que eles, individualmente e em seu conjunto,
viessem a cumprir.
Neste caso específico, porém, pretendemos que ela sirva a mais
duas finalidades.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

A primeira é a de constituir-se como uma espécie de prestação pública


de contas.
Somos todos participantes de um grupo institucional de pesquisas e de
estudos, denominado Hera II – Grupo de Estudos em Psicologia Social dos
Afetos. Eu, que assino esta apresentação, atuo como Professor Voluntário e
todas as demais autoras e autor foram ou continuam sendo, provisoriamente,
discentes do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
Estadual de Maringá, quer no Mestrado, quer no Doutorado ou em ambos,
em diferentes momentos de suas trajetórias acadêmicas.
A maioria já concluiu essas etapas de sua formação e hoje atua profissio-
nalmente na educação superior e ou em outras áreas de aplicação da Psicolo-
gia. Os vínculos profissionais e afetivos que estabelecemos ao longo de nossa
convivência acadêmica formal, no entanto, são fortes a ponto de manter-nos
unidos, mesmo depois de cumpridas nossas obrigações institucionais. Con-
tinuamos existindo como um grupo de pesquisas, companheirismo e afetos.
Todas aquelas pessoas cumpriram ou vêm cumprindo, rigorosa e adequa-
damente, os compromissos que assumiram no momento em que conquistaram
seu ingresso num Programa de Pós-Graduação numa Universidade Pública.
Poderiam, com justiça, dedicar-se apenas à suas atividades institucionais
atuais, quer como profissionais, quer como ainda alunos.
Ocorre que todos partilhamos a convicção de que as funções de um
Programa de Pós-Graduação não são apenas as de capacitar pessoas para o
ensino de nível superior, o planejamento e a efetivação de projetos específi-
cos de pesquisa (embora isto já não seja pouco). Aquelas funções incluem,
especialmente, as de possibilitar a construção e as reconstruções contínuas
de profissionais capazes de (re)pensar o mundo em que vivem, suas partici-
pações nele e as próprias teorias que adotam e a partir das quais direcionam
suas atividades. Profissionais/pessoas capazes de e dispostos a construir novos
conhecimentos e alternativas de ação.
12

Por isso, em alguns de nossos encontros de estudos, discussões e convi-


vência fomos amadurecendo a ideia de construir textos que pudessem apro-
veitar as informações que havíamos utilizado para a elaboração das Teses
e Dissertações já concluídas, com uma finalidade diferente: a de promover
avanços na base teórica que vínhamos compartilhando e que unificava todas
os nossos trabalhos e estudos anteriores.
Consideramos que os resultados imediatos e diretos de cada um dos
trabalhos de pesquisa que havíamos realizados já haviam sido avaliados,
aprovados e publicados. Nossas obrigações institucionais estavam cumpridas.
Nosso papel como produtores/construtores de novas formulações teóricas,
porém, ainda permanecia como uma possibilidade, uma necessidade social e
todo um conjunto de anseios pessoais.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Diante desse quadro, o desafio que nos propusemos foi o de elaborar um
conjunto de textos que trouxessem aprimoramentos, detalhamentos e avanços
teóricos, práticos, metodológicos e ético-políticos para uma teoria sobre os
afetos que tomasse como base uma Psicologia Social capaz de considerar os
sujeitos humanos como seres em (auto)construção.
Amadurecido e acolhido o desafio, decidimos que seria coerente que cada
um de nós ficasse livre para elaborar suas propostas, intenções e trajetórias.
Surgiram parcerias, intenções pessoais isoladas, incertezas, angústias, trocas...
Tudo aquilo que costuma acontecer diante de novos desafios.
Para evitar que cada texto tivesse que se delongar e trazer informações
sobre nossas bases teóricas, que provavelmente também estariam ou teriam
que estar presentes em outros, resolvemos que eu assumiria a tarefa de com-
por um primeiro capítulo que apresentasse, de modo sucinto, as principais
informações sobre a Teoria dos Sentimentos elaborada por Agnes Heller e
que vínhamos utilizando como nossa principal base de apoio.
Cada proposta, cada esboço de redação de um capítulo, cada nova ideia
ou pretensão foi apresentada, questionada, discutida e revisada coletivamente.
Cada texto passou pela leitura e as críticas de todos os demais participantes,
sucessivas vezes.
Em decorrência deste processo, a alternativa de que todos os textos fossem
assinados coletivamente não seria injusta. No entanto, provavelmente ela nos
traria problemas de reconhecimento formal das autorias, nos sistemas nacionais
de registro e de avaliação profissionais. Por isso, optamos por não a adotar.
Num primeiro momento, com o desenvolvimento dos textos, chegamos
a cogitar a organização dos mesmos em blocos, como normalmente se faz.
Pensamos em partes que tratassem, respectivamente, de contribuições teó-
ricas; das possibilidades e perspectivas de atuação; de aspectos e reflexões
metodológicas; e de preocupações ético-políticas. A leitura mais detalhada e
conjunta dos mesmos sugeriu que esta não seria uma alternativa interessante:
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 13

textos que tratavam com maior ênfase de uma especificidade teórica traziam,
também, implicações práticas que se combinavam com reflexões metodo-
lógicas e vice-versa; as preocupações e as possibilidades de reverberações
ético-políticas estavam e estão claramente presentes em todos eles.
Optamos, então, por uma distribuição sequencial, a partir das preocupa-
ções predominantes em cada texto, mas sem tentar delimitar grupos. Como
dissemos, há um texto inicial de apresentação das formulações teóricas que
foram adotadas em todos os demais, ao qual se seguem: textos mais voltados
para reflexões teórico-práticas, outros cujas preocupações são mais centra-
das em aspectos metodológicos e, ao final, alguns cujo foco principal são as
reflexões e proposições ético-estético-políticas.
Com a possível (mas não necessária) exceção do primeiro capítulo, a
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ordem de leitura dos demais poderá ficar à critério do leitor, como costuma
ocorrer nas coletâneas.
Em tempo, não poderíamos deixar de apresentar nossos agradecimen-
tos a Guilherme Elias da Silva e Marcos Leandro Klipan, pesquisadores e
professores do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
Estadual de Maringá. Mais que colegas e amigos, eles foram cúmplices de
nosso trabalho e suas colaborações nos foram de grande valia.
Até aqui, esta nossa apresentação caminhou do processo de elaboração
ao produto. Cabe agora a você, leitor, a tarefa de transformar esse produto na
base para um ou outros processos.
Fica o convite.
A segunda (ou terceira) intenção que pretendemos que esta apresentação
venha a atingir é a de constituir-se como um grito de revolta e desabafo.
Durante todo o período de idealização e de construção deste conjunto de
textos vivemos assolados por uma pandemia e um pandemônio.
Segundo o Observatório Covid-19, mantido pela Fundação Osvaldo Cruz,

A pandemia de Covid-19, causada pelo vírus SARS-CoV-2 ou Novo Coro-


navírus, vem produzindo repercussões não apenas de ordem biomédica e
epidemiológica em escala global, mas também repercussões e impactos
sociais, econômicos, políticos, culturais e históricos sem precedentes na
história recente das epidemias. [...] a estimativa de infectados e mortos
concorre diretamente com o impacto sobre os sistemas de saúde, com a
exposição de populações e grupos vulneráveis, a sustentação econômica
do sistema financeiro e da população, a saúde mental das pessoas em
tempos de confinamento e temor pelo risco de adoecimento e morte,
acesso a bens essenciais como alimentação, medicamentos, transporte,
entre outros1.

1 Disponível em: https://portal.fiocruz.br/impactos-sociais-economicos-culturais-e-politicos-da-pandemia.


Acesso em: 20 fev. 2023.
14

Uma rápida busca pela internet vai nos mostrar que a palavra pande-
mônio serve para designar “confusão, balbúrdia”, mas também e especial-
mente no sentido que mais nos interessa aqui “reunião de indivíduos que se
associam para praticar o mal, promover desordens, etc.”2. Ao mesmo tempo
em que nos víamos como participantes do mundo, assolados por aquela
pandemia, tivemos também que conviver, em nosso país, com um período
de agressiva predominância de ações e de um ideário político de dominação
e de destruição.
Fomos surpreendidos pela persistência, em parte significativa de nossa
população, de ideais de colonialidade, ou seja, de concepções sobre a exis-
tência de um grupo minoritário que é naturalmente ou divinalmente (segundo
suas próprias convicções, claro) dotado de uma superioridade de direitos e

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


de qualidades que justificaria que eles se apropriassem e mantivessem como
controladores e mesmo proprietários do total dos itens que são ou deveriam
ser coletivos: a economia, os sistemas jurídicos, os meios de provimento da
existência, os modos de pensar, sentir e agir, o território, a natureza, os direitos
mais elementares de existência e coexistência, os poderes de decidir e garantir
a imposição de quem pode e deve viver, como e para quê...
Os autodenominados “cidadãos de bem” arvoram-se todos os direitos,
inclusive o de decidir quem pode ou não fazer parte de seu grupo.
Aliado a um sistema massivo de disseminação de mentiras, medo e
falsas esperanças, desenvolvido e já aplicado em outros países, que aqui foi
associado aos poderes de persuasão de uma extensa rede de entidades mone-
taristas-religiosas, aquele modo de pensar resultou na eleição de um governo
de extrema-direita, disseminador de um discurso de truculência, preconceitos,
desprezo e agressividade contra todo modo de coexistência não conforme a
suas concepções sobre uma falsa e dúbia moralidade e seu projeto econômico
de privatização imediata, irrestrita e irresponsável de bens públicos e de uti-
lização predatória e desenfreada dos recursos naturais.
As tentativas de apropriação, promovidas por estes grupos, da bandeira,
do hino e das cores nacionais são apenas a representação da concepção, com-
partilhadas por eles, de que o país, as pessoas, os recursos e as regras existem
como suas propriedades e para seu uso.
Como não poderia deixar de ser, o conhecimento científico, desenvol-
vido, criticado, revisto, aprimorado e acumulado há milênios (e que, portanto,
constitui um patrimônio cultural da humanidade), na medida em que não
atende aos interesses daquele grupo e nem serve para sustentar seus delírios

2 Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, https://dicionario.priberam.org/pandem %C3%B4nio. Acesso


em: 20 fev. 2023. Em tempo: a mesma palavra pode ser usada também para designar a reunião ou o local
de reunião de demônios, mas preferimos evitar o uso deste significado, para não cairmos no mesmo tipo
de raciocínio maniqueísta que estamos criticando.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 15

de superioridade autoatribuída, passou a ser alvo de seguidos ataques e de


tentativas toscas de desvalorização. O resgate e a disseminação massiva de
concepções como a de que Terra é um corpo plano (já superada a milênios) e
a (suspeitíssima) campanha a favor da utilização, como medida de combate
à covid-19, de um vermífugo cuja eficácia, para esta finalidade, foi sistema-
ticamente negada pelos especialistas e pelos próprios fabricantes, são apenas
alguns dos exemplos destes ataques obscurantistas.
As instituições universitárias sérias, produtoras e disseminadoras de
saberes e comprometidas com concepções sobre as igualdades humanas pas-
saram a ser alvos sistemáticos de ofensas depreciativas e preconceituosas e de
medidas grosseiras que visavam a promoção de sua desorganização funcional
e estrangulamento financeiro.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Apesar disso, elas sobreviveram, mantiveram-se ativas e produtivas.


Idealizar, planejar e construir os textos que compõem este livro foi
uma das formas que encontramos para fazer frente àqueles ataques, àque-
las propostas necropolíticas e de nos somarmos aos esforços de resistência
das universidades.
A obra, assim como cada um dos textos que a compõem, é um grito,
uma manifestação aberta e disponível de que aqui ainda estamos: acredi-
tando, produzindo e agindo. Unidos, esperançosos e celebrando a vida e os
direitos. De todos.
Apesar de alguns.

Eduardo Augusto Tomanik


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
1. UM POUCO SOBRE OS AFETOS
Eduardo Augusto Tomanik

Como definir o que só sei sentir?


(Catulo da Paixão Cearense: Ontem ao Luar).

Amor, raiva, medo, esperança, desejo, prazer, além de outros termos


semelhantes, fazem parte de nossas conversas, de nossos pensamentos e estão
presentes também nas relações que estabelecemos em nosso dia a dia.
Conhecemos bem aqueles termos. Em boa parte das vezes sabemos iden-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

tificá-los, conseguimos perceber, com algum grau de acerto, quando um deles


está atuando em nós ou em alguma outra pessoa e sabemos diferenciá-los e
colocá-los em categorias como benéficos ou prejudiciais, desejáveis ou não.
Com frequência nos esforçamos ou estamos dispostos a fazer isto para obter
ou passar a sentir alguns e para evitar ou diminuir outros.
Sabemos, ainda, que todos aqueles termos fazem parte dos processos
que chamamos, normalmente, de sentimentos ou emoções. Mas não sabemos
muito mais que isso.
Se nos perguntarem, por exemplo, o que é um sentimento, nossa resposta
provavelmente será apenas uma repetição meio disfarçada da pergunta: sen-
timento é tudo aquilo que sentimos.
Se tentarmos nos aprofundar mais no assunto, provavelmente esbarra-
remos em uma série de dúvidas:

• Por que sentimos? Por que sentimos assim e não de outro modo?
• De onde vêm os nossos sentimentos e emoções? Já nascemos
sabendo sentir ou aprendemos a fazer isto?
• Por que o outro não sente o mesmo que eu, diante das mes-
mas situações?
• Existem diferenças entre sentimentos e emoções?
• Afinal, o que são eles?

Talvez até tenhamos respostas para algumas dessas indagações, ou


pensemos ter, mas provavelmente a maioria delas será formada apenas por
suposições, convicções pessoais ou mesmo por derivações de informações
que lemos por aí e que nos pareceram certas, mas sem que tenhamos pen-
sado seriamente sobre elas. Provavelmente nossas respostas começarão
com um “eu acho que...”, e isto já servirá para denunciar nossas incertezas
e desconhecimentos.
18

É possível que uma ou mais das muitas suposições que lancei até aqui
sejam incorretas e não se apliquem ao que você sabe, mas, de modo geral, as
pessoas vivem seus sentimentos, convivem com eles e os compartilham, mas
não se dedicam muito a compreendê-los. Sabemos que sentimos, sabemos
o que sentimos, mas não sabemos ou não sabemos muito bem o que é sentir.
Se no campo das conversações e pensamentos cotidianos tende a predo-
minar esta tendência de vivenciar muito e pensar pouco sobre os sentimentos,
no universo dos pensamentos sistematizados e formalizados, da Filosofia e
das Ciências, tende a acontecer o contrário. Dos pensadores da Grécia clássica
aos neurocientistas atuais, de filósofos como Baruch Espinosa a naturalistas
como Charles Darwin, passando por provavelmente todas as subdivisões das
chamadas Ciências Sociais ou Humanas, há uma quantidade considerável de

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


teóricos e de teorias que visam definir, explicar e detalhar os sentimentos e
emoções, seus funcionamentos e suas relações com outras funções humanas,
como os pensamentos e as ações.
Algumas dessas proposições teóricas são próximas entre si. No entanto
todas tendem a divergir das demais em um ou mais pontos e muitas são con-
sideravelmente diferentes de outras. Uma informação simples pode nos dar
uma ideia sobre esta diversidade: Strongman (2004), considerando apenas
proposições relativamente recentes e restritas ao campo da Psicologia, reúne
mais de cem teorias diferentes sobre o tema das emoções.
O que fazer, diante deste quadro?
De nossa parte, optamos por adotar uma dessas teorias, a que nos pareceu
mais próxima de nossa forma de ver o mundo, e começarmos a trabalhar com
ela, sem nos mantermos fechados a outras contribuições que possivelmente
surgiriam. Não temos qualquer pretensão ou ilusão de que nossa escolha foi a
melhor – nem teríamos, se nossa escolha tivesse sido outra. Apesar disso, ela
vem nos possibilitando aprender, compreender e pensar sobre o campo dos
fenômenos que resolvemos estudar e foi a partir dela (mas não apenas dela)
que desenvolvemos as reflexões que vamos apresentar ao longo deste livro.
Por isto, neste primeiro capítulo, vamos tentar apresentar e refletir sobre
alguns dos pontos principais da teoria que adotamos, visando torná-los razoa-
velmente claros para os leitores que porventura não conheçam aquela teoria,
além de acrescentar a eles algumas de nossas (re)elaborações.

Os afetos
O que são os sentimentos? O que é sentir?
De acordo com Agnes Heller1, que vem sendo nossa principal base de
apoio, “sentir significa estar implicado em algo” (2004).
1 Agnes Heller nasceu na Hungria, em 1929, trabalhou na Austrália e nos Estados Unidos e faleceu, de volta
ao seu país de origem, em 2019.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 19

A cada momento de nossa vida entramos em contato com uma infinidade


de pessoas, acontecimentos, objetos, mensagens, memórias e combinações de
fatores como esses. Cada um desses encontros ou contatos produz mudanças
em nós, altera nossa atenção, nossos interesses, nossas disposições. Tudo
aquilo com o que entramos em contato exerce efeitos sobre nós; nos afeta de
algum modo.
É conveniente, agora, abrirmos um parêntese em nosso raciocínio. Até
aqui, vínhamos usando termos como emoções e sentimentos sem distinguir
entre eles e sem atribuir-lhes qualquer significado específico. Isto ocorre tam-
bém nas nossas conversas cotidianas. No entanto, levando em conta a última
frase do parágrafo anterior, desse ponto em diante vamos passar a denominar
o conjunto daqueles processos como afetos.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Ao fazer isto, pode parecer que estamos desobedecendo à teoria proposta


por Heller já que tanto na tradução espanhola (2004) quanto na italiana (2017)
de seu principal livro sobre este assunto, o termo sentimentos é usado para
referir-se ao conjunto total dos processos, enquanto afetos serve para designar
um subconjunto específico deles. Porém, a própria Heller (2004, pp. 93; 2017,
pp. 94) já nos autoriza a cometer esta pequena desobediência ao afirmar que a
escolha que fez por estes nomes foi apenas uma opção pessoal, sem motivos
mais consistentes e que eles poderiam ser substituídos, sem que isto repre-
sentasse um problema. Aberto o precedente, tomamos a liberdade de adotar
algumas outras denominações sem seguir o que seria a tradução mais direta,
tentado tornar nosso texto melhor adaptado ao uso que é feito dos termos na
linguagem coloquial do Brasil. Fizemos isto inclusive nos trechos traduzidos,
tomando o cuidado de indicar, em notas de rodapé, as denominações originais.
Retornando, e para fechar este parêntese, temos optado por usar a deno-
minação afetos para lembrar que eles são os efeitos produzidos em nós por
nossos contatos com o mundo, com os outros e até mesmo conosco.
A aparente simplicidade desta definição pode transmitir a impressão
de que os afetos são (ou que Heller supõe que eles sejam) eventos simples,
reações instintivas e impensadas dos seres humanos e que todos reagiríamos
do mesmo modo, automaticamente, aos mesmos estímulos. Nada disso.
Heller reconhece que os humanos são também seres biológicos. Todos
temos um corpo e isto nos impõe uma série de necessidades e de limitações,
ao mesmo tempo em que nos abre uma imensa gama de possibilidades. No
entanto, nossa existência como humanos envolve muito mais que busca ins-
tintiva da satisfação de nossas necessidades biológicas. Segundo ela:

[...] tudo o que faz do ser humano um humano de fato, quer dizer, todos
os elementos de informação que constituem a existência de nossa espé-
cie estão fora do organismo no momento do nascimento: eles podem ser
20

encontrados nas relações interpessoais nas quais nos envolvemos (Heller,


2004, pp. 29).

Em outras palavras, só nos tornamos humanos através dos contatos que


mantemos com outros humanos. Naquilo que mais nos interessa aqui, os afetos
também são desenvolvidos a partir de nossas vivências. Assim como apren-
demos a falar e a pensar, também aprendemos a sentir. Estes aprendizados
tendem a ser progressivos e, ao longo dele, vamos nos tornando capazes de
elaborar diferentes tipos de afetos. Conhecer e entender este tipo é, também,
um caminho que pode nos ajudar a entender a nós mesmos.

Uma tipologia dos afetos

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Segundo Heller, um humano recém-nascido é um organismo dotado
de alguns impulsos inatos que são essenciais para sua sobrevivência. Esses
impulsos são sinais que indicam que alguma das suas necessidades básicas não
está satisfeita, mas são transmitidos apenas para o corpo da própria criança.
Eles indicam fome, sede, cansaço, calor, frio, necessidades excretórias...
Como estão ligados diretamente à sobrevivência, os impulsos são
impositivos, ou seja, têm que ser satisfeitos e não podem ser diminuídos ou
excluídos por algo que não esteja diretamente relacionado à sua satisfação:
uma criança com fome precisa comer e fazê-la dormir não vai servir para
diminuir sua fome.
Inicialmente as reações da criança a cada um dos impulsos são instin-
tivas, bastante simples e pouco diferenciadas. Porém, muito rapidamente, a
criança, em contato com seus cuidadores, passa a desenvolver modalidades
de movimentos e de emissão de sons que vão se constituindo em sinais cada
vez mais diferenciados e direcionados ao outro. Logo os cuidadores passam
a perceber que existe um choro para a fome, outro para as assaduras, as dores
do sistema digestivo e assim por diante.
Ao mesmo tempo, a criança vai desenvolvendo a capacidade de escolher.
“O recém-nascido tem simplesmente fome. A criança de peito e a criança
pequena vão passando a sentir fome de algo: daquilo que o entorno social
lhes oferece para saciar a fome” (Heller, 2004, pp. 86) e, assim, lhes ensina
que aquilo é comestível e saboroso.
O sorriso, que antes era apenas um movimento facial aleatório, passa
a ser uma manifestação direcionada e que pode render, para a criança, altas
doses de uma necessidade que não existia anteriormente: a da atenção.
Assim, muito cedo a criança vai deixando de ser guiada exclusivamente
pelos impulsos e passa a desenvolver uma nova modalidade de implicações
que não envolvem apenas seu próprio corpo: “os impulsos não apenas se
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 21

diferenciam muito cedo no processo de crescimento como, ao mesmo tempo,


passam a ser codeterminados social e situacionalmente” (Heller, 2004, pp. 86).
Os impulsos, comandados biologicamente e restritos ao corpo da criança, vão
rapidamente sendo substituídos por afetos impulsivos2, uma modalidade de
relação da criança com suas necessidades básicas, que envolve também proces-
sos de aprendizagem social e que a coloca em contato com os seus cuidadores.
Ainda que continuem tendo, como seu ponto de partida, as necessidades
fisiológicas da criança, “os afetos impulsivos são o resultado da demolição
de reações animais instintivas a estímulos internos” (Heller, 2004, pp. 93).
Aquele pequeno ser biológico vai, gradativamente, sendo humanizado.
Após desenvolvermos os afetos impulsivos, já não reagimos apenas
aos instintos.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Como, em que circunstâncias, de que forma, onde, etc., satisfazemos as


necessidades indicadas pelos impulsos... esses fatores são sempre deter-
minados socialmente: por exemplo, como e o que temos que comer e
beber, como descansar e como satisfazer às necessidades sexuais, a neces-
sidade de calor ou de refrigeração, onde devemos defecar, etc. (Heller,
2004, pp. 88).

Além disso, as próprias necessidades, embora associadas a fatores bio-


lógicos, são sempre sociais: não queremos simplesmente comer, mas que-
remos comer aquilo que é culturalmente tido como comível. Como diz a
canção: “Bebida é água/ Comida é pasto/ Você tem sede de quê?/ Você tem
fome de quê?”3
Em seu processo de desenvolvimento, a criança passa também a rela-
cionar-se e a envolver-se com eventos situados fora de seu corpo, e aprende
a fazer isto de acordo com as normas, os costumes e os modos de relação
adotados por seu grupo humano de referência. Ela passa a desenvolver e a
vivenciar afetos sociais4. Segundo Heller (2004, pp. 93), eles “[...] são o
resultado da demolição de reações instintivas a estímulos externos”.
Enquanto os afetos impulsivos envolvem modalidades humanizadas das
necessidades fisiológicas (fome, sede, sexo, sono, equilíbrio da temperatura...),
os afetos sociais incluem processos como medo, raiva, alegria, tristeza...
Estes processos afetivos normalmente são desencadeados a partir do
contato do ser humano com um objeto ou acontecimento específicos e relacio-
nados diretamente a ele: sinto medo por que um animal me ameaça, fico feliz
por que alcancei meu objetivo, enraiveço por que aquela pessoa me ofendeu...

2 Os textos de Heller trazem as denominações “sentimientos impulsivos” (2004) e “sentimenti della pulsioni
(drive)” (2017).
3 Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Brito; Comida.
4 Os textos de Heller usam, nestes casos, as denominações “afetos” (2004) e “affetti” (2017).
22

Eventualmente, memórias e elaborações mentais podem também assu-


mir o papel de desencadeadores desse tipo de afetos, mas, nestes casos, eles
tendem a ser menos intensos do que aqueles que foram gerados a partir dos
próprios objetos ou acontecimentos: imaginar que atingi meu objetivo pode
produzir em mim algum grau de alegria, mas provavelmente não o mesmo
que seria produzido pela conquista efetiva daquele objetivo.
Heller destaca que todos os afetos sociais,

[...] sem exceção, pertencem à espécie humana em geral e não são idiossin-
cráticos [específicos] nem social, nem individualmente. Nenhuma cultura
desconhece a expressão do medo (e o medo, mesmo), [...] a expressão de
raiva (e a raiva), a expressão de alegria e de tristeza (nem os sentimentos

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


de alegria e de tristeza, o riso, os gritos, etc) (2004, pp. 95).

No entanto, pode haver diferenças, tanto culturais quanto grupais e pes-


soais, em relação ao que provoca ou deve ser capaz de desencadear estes
afetos. Escorpiões podem ser vistos como asquerosos e ameaçadores em uma
cultura e como saborosos e nutritivos, ainda que perigosos, em outra. Uma
temporada um pouco mais longa de chuvas pode causar tristeza em alguém que
goste de exercitar-se ao ar livre e muita alegria num lavrador, especialmente
se este viver em uma região mais árida.
Pode haver diferenças também, ainda que dentro de certos limites, na
expressão dos afetos sociais. As manifestações de alegria permitidas e ado-
tadas por alguns grupos sociais são muita mais intensas e expansivas que as
permitidas por outros grupos, por exemplo.
Enquanto os afetos impulsivos são fundamentais para a manutenção bio-
lógica dos sujeitos, os afetos sociais constituem elementos importantes para
a manutenção da homeostase social, sejam como direcionadores das tomadas
de decisão e das ações efetuadas, ou como sinalizadores dos efeitos daquelas
ações ou decisões: busco situações e pessoas que me provoquem alegria; gritei
com meu amiguinho, ele foi embora e agora estou triste...
Mais adiante, em seu desenvolvimento, a criança entrará em contato,
aprenderá que existem e passará a desenvolver e a vivenciar um outro conjunto
de afetos, muito mais elaborados e complexos: os sentimentos orientativos5.
Enquanto os afetos sociais são suscitados por elementos específicos e
mais diretamente relacionados ao próprio sujeito,

Os sentimentos orientativos são sentimentos afirmativos ou negativos a


respeito de qualquer aspecto da vida, incluindo a ação, o pensamento, os
julgamentos etc. [...] os sentimentos orientativos (afirmativos ou negativos)

5 Aqui adotamos a mesma denominação que Heller (2004; 2017).


O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 23

não devem ser confundidos com o que normalmente chamamos de “sen-


timentos bons” ou “sentimentos maus”. [...] tampouco devem ser confun-
didos com sentimentos de alegria ou tristeza (Heller, 2004, pp. 108-109,
com aspas no original).

Como o nome sugere, eles servem para nos orientar diante de situações
sociais ou de elaborações mentais mais complexas. Atuam como que nos
avisando sobre as consequências positivas ou os riscos prováveis de uma
opção ou evento, especialmente quando não conseguimos formular avaliações
claras e fundamentadas em informações mais detalhadas sobre aquelas pos-
sibilidades: “tenho a impressão de que o professor gostou do que eu disse”;
“o entrevistador foi bastante simpático, mas acho que ele não indicará minha
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

contratação”; “apesar da simpatia que ela demonstra, alguma coisa me diz


que esta pessoa não é confiável”; “imagino que, depois que conseguir meu
diploma, vou conseguir levar uma vida melhor” [...].
Não por acaso, os termos que aparecem nesses exemplos (tenho a impres-
são, acho, alguma coisa me diz, imagino) servem bem para ilustrar a sutileza
que costuma estar presente nestes processos afetivos e a complexidade de
sua elaboração.
Nos dois grupos anteriores de afetos, os eventos desencadeadores ten-
diam a ser amplos, bem mais definidos e facilmente perceptíveis: uma neces-
sidade orgânica, uma situação já prevista socialmente, um acontecimento
inesperado... Além disso, as reações afetiva, cognitiva e motora tendiam a ser
direcionadas ao passado: o sujeito sentia, pensava e agia em relação ao que já
havia acontecido. Este direcionamento ao passado provavelmente era invertido
apenas quando, em um afeto social, o evento desencadeador era imaginário.
No grupo dos sentimentos orientativos, os eventos desencadeadores
tanto podem ser minúsculos e extremamente sutis (uma pequena mudança
na expressão facial ou na entonação da voz do outro, que tenham ocorrido ou
que eu imagino que ocorreram), quanto muito amplos e complexos: a pers-
pectiva de uma guerra, a ocorrência de uma pandemia, uma situação política...
De um modo geral, esse grupo de afetos tende a ser voltado para o futuro,
mesmo que tenham sido desencadeados por um evento atual ou passado.
Como o nome sugere, eles servem como guias ou como direcionadores de
decisões ou de posicionamentos sobre o que fazer ou o que esperar, diante
daquela situação.
Por isto, o desenvolvimento das capacidades de elaborar, vivenciar,
reconhecer e utilizar estes afetos depende de um aprendizado social bastante
intenso e detalhado.

A formação dos sentimentos orientativos é resultado da demolição com-


pleta dos instintos. São as objetivações sociais que moldam e guiam
24

totalmente estes sentimentos. É totalmente certo que não nascemos com


eles. Sem a experiência adquirida por meio das objetivações sociais somos
completamente incapazes de nos orientar. Quanto mais amplas as experiên-
cias, maiores são o campo de ação do indivíduo e o papel desempenhado
pelos sentimentos orientativos (Heller, 2004, pp. 109).

Assim, crianças normalmente são menos hábeis na elaboração deste


tipo de sentimentos e costumam guiar-se menos por eles que os adultos. Isto
costuma criar situações divertidas: é muito comum que adultos se sintam
envergonhados por declarações ou ações infantis que parecem (para os adul-
tos) demasiada ou inadequadamente sinceras, mesmo que intimamente estes
concordem com elas.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Subindo mais um degrau na escala de abstração e de complexidade,
chegamos ao grupo das emoções6.
Em nossa linguagem cotidiana o termo emoções costuma ser usado para
designar afetos que surgem repentinamente e que alcançam grande intensi-
dade: “o presente que recebi me deixou tão emocionado que cheguei a chorar”.
Por vezes, consideramos que aquela intensidade pode ser grande a ponto de
fazer com que o sujeito perca o controle sobre suas ações e decisões: “tomado
de forte emoção, o réu efetuou seis disparos contra a vítima...”.
A classificação proposta por Heller não leva em consideração qualquer
um desses critérios; para ela, as emoções constituem um grupo de afetos que
se caracterizam por seu alto grau de abstração e elaboração intelectual. Elas
são relacionadas não a fatos ou objetos específicos, mas a concepções sociais
mais elaboradas, como a humanidade, os valores, a natureza...
Podemos usar, como um exemplo desta categoria de afetos, a afirmação
de Heller (2004, pp. 125) de que “as categorias emocionais mais amplas são
a felicidade e a dor (a dor espiritual)”.
Nesta frase, a felicidade é usada para designar algo diferente do afeto
social que chamamos, normalmente, de alegria. Como vimos, a alegria seria
um conjunto de eventos internos e de manifestações externalizadas, bastante
sistematizadas e facilmente reconhecíveis, derivadas de ou originadas a partir
de um acontecimento específico ou de um conjunto relativamente bem deli-
mitado de acontecimentos. Sabemos o que é, como é, quando alguém está
alegre e frequentemente conseguimos perceber ou supor o que deu origem a
este processo afetivo.
A felicidade, por sua vez, é um processo difuso e sutil: ela não se mani-
festa através de expressões corporais, ações e verbalizações facilmente reco-
nhecíveis e nem sempre pode ser claramente reconhecida até mesmo por
6 Os textos de Heller trazem as denominações “sentimientos cognoscitivos-situacionales, emociones propia-
mente dichas (2004) e “sentimenti cognitivo-situazionali o emozioni” (2017).
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 25

aquele que a experiencia. Uma boa ilustração sobre isto pode ser fornecida
pela frase “eu era feliz e não sabia”7.
Além disso, na medida em que nem sempre é originada a partir de um
evento específico, pode ser muito difícil perceber os limites temporais de um
processo de felicidade.
Raciocínios semelhantes poderiam ser aplicados ao que Heller chama de
dor espiritual, para destacar que se trata de um processo afetivo muito diferente
daqueles causados por uma dor física. A dor espiritual seria aquela produzida,
por exemplo, por uma avaliação muito negativa ou uma preocupação intensa
sobre o futuro das novas gerações, ou de um grupo específico de crianças.
Segundo Heller (2004), as emoções constituem um grupo de afetos muito
diversificado. Características que estão presentes em umas podem não estar
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

em outras. De modo geral, elas podem referir-se ao passado, ao presente ou


ao futuro, mas há aquelas que são tipicamente voltadas a uma dessas dimen-
sões temporais: a esperança, por exemplo, é sempre direcionada ao futuro.
Como dissemos, nem sempre elas estão relacionadas ou podem ser associa-
das a um desencadeador específico, embora isto possa acontecer em alguns
casos, como preocupações e o envolvimento produzidos por uma tragédia
ou comoção social.
Além disso, as denominações de algumas emoções, que parecem vir
sendo mantidas ao longo do tempo e em diferentes culturas, podem servir para
ocultar o fato de que elas são aplicadas a processos muito diferentes entre si,
tanto no que se refere às experiências íntimas quanto aos modos previstos de
exteriorização delas.
Como exemplo, o trabalho de Badinter (1985) mostrou que o amor
materno, que por muito tempo foi tido como um processo emocional inato e
universal, era apenas uma denominação genérica e enganosa, já que reunia
práticas sociais, posturas pessoais e relacionamentos afetivos extremamente
diferenciados. Quase ao final de seu livro, esta autora afirma: “parece, por-
tanto, que não há comportamento materno suficientemente unificado para que
se possa falar de instinto ou atitude materna ‘em si’” (pp. 345). Mães podem
amar seus filhos (ou não). Mas isto não significa que aquilo que chamamos
de amor materno seja sempre uma mesma emoção, que envolva os mesmos
conteúdos pessoais e as mesmas manifestações e relações.
De acordo com Heller, os afetos impulsivos e os sociais,

[...] existiram sempre e permanecerão essencialmente idênticos ao longo


da existência da humanidade e o papel dos sentimentos orientativos se
incrementará com o enriquecimento das relações humanas. Porém, não
podemos supor que todas as emoções que existam atualmente existirão

7 Ataulfo Alves, Meus tempos de criança.


26

necessariamente no futuro e nem mesmo aquelas que de alguma forma


tenham existido em todas as culturas ou na maioria delas (2004, pp. 120).

Além dos aspectos físico e cognitivo, o ser humano cresce ou se desen-


volve também na medida em que aprende a elaborar e a vivenciar afetos cada
vez mais complexos. Ao mesmo tempo, as sociedades humanas tornam-se
mais complexas na medida em que os seres humanos aprendem a relacionar-se
e a afetar-se de modos mais elaborados
Até aqui temos procurado seguir a classificação proposta por Heller para
destacar que os afetos podem diferir entre si em relação à sua origem, dire-
cionamento e complexidade. As mesmas formulações podem nos ser úteis,
também, para tentarmos elaborar algumas reflexões sobre o que unifica, ou

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


aquilo que eles têm em comum. Em outras palavras, vamos tentar entender
os vários elementos ou fatores que estão presentes em todos os afetos e como
eles atuam para a composição destes.

A composição dos afetos

Já vimos que todos os afetos são produzidos por um elemento desenca-


deador; há sempre algo que nos afeta. Mas o que seria este algo? Heller nos
adiante que ele pode ser “[...] outro ser humano, um conceito, eu mesmo, um
processo, um problema, uma situação, outro sentimento [...] outra implicação”
(2004, pp. 16).
Estes elementos desencadeadores podem ser externos (um objeto, um
acontecimento, a ação de outra pessoa) ou internos a nós (uma dor, um pen-
samento, uma lembrança). Também podem ter o que chamaríamos de uma
existência material ou ser imateriais, imaginários. Poderíamos usar como
exemplo, aqui, os mesmos anteriores, excluindo a dor, se estivermos consi-
derando-a como um sinal físico.
Apesar de presentes, estes elementos desencadeadores nem sempre são
identificados ou imediatamente identificáveis. Quantas vezes você já pen-
sou ou ouviu alguém dizer algo como: “ando meio irritado, mas não sei
com o quê”?
Num nível mais complexo, alguns desencadeadores de nossos processos
afetivos só se tornam claros para nós como parte de processos psicoterapêu-
ticos. Outros, nem assim. De qualquer modo, nossas implicações sempre são
relativas ou derivadas de algo.
Os eventos, interpretados e dotados de significados e avaliações pessoais
produzem, na pessoa, alterações corporais.
Estas alterações envolvem uma quantidade imensa de detalhes bioquími-
cos e neurofisiológicos que vêm sendo detalhadamente estudados e debatidos
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 27

por outros campos e profissionais das Ciências, mas não temos qualquer
intenção (nem competência), para discuti-los aqui. Para nossos propósitos,
basta considerar que elas podem ser internas (percebidas apenas pela própria
pessoa) ou externalizadas, tornando-se acessíveis às percepções dos demais.
Podem ser, ainda, sutis ou intensas, localizadas ou difusas pelo corpo.
Elas podem variar desde uma pequena sensação íntima e invisível para
os demais, de satisfação, desconfiança ou medo (aquele famoso friozinho na
barriga), até uma crise intensa de raiva, evidenciada por uma transformação
que abrange, normalmente, o tônus muscular, a postura, a respiração, o modo
de olhar, o tom de voz e a modulação das palavras.
Por mais internas, sutis e localizadas que sejam, cada um dos nossos
afetos sempre envolve algum grau de alterações corporais mesmo que, por
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

vezes, não consigamos percebê-las.


Estas alterações são associadas a outro componente: a identificação
dos afetos.
Identificar, neste caso, significa enquadrar numa categoria já reconhecida
e denominada pelo grupo. Cada idioma, dialeto ou gíria típica de um grupo
contém uma listagem de afetos e cada termo desta listagem serve como indi-
cador sobre o que é, como é, como deve ou pode ser expresso um afeto e traz
indicações, também, sobre o que pode ou deve originá-lo.
Uma vez identificado, um afeto pode ser mais facilmente expresso ou
evidenciado e, ao menos em princípio, ser melhor compreendido por outras
pessoas. Uma vez que recebe um nome, o afeto parece deixar de ser uma
sensação indeterminada (“[...] uma coisa ruim aqui dentro”) ou um conjunto
aparentemente caótico de impressões e de pensamentos (“não sei o que está
acontecendo comigo”) e passar a ser algo mais conhecido, explicável e mais
facilmente direcionável.
A partir do momento em que nomeio o afeto, posso aplicar a ele as regras
de interpretação e de ação já prescritas pelo grupo. Quando descubro (ou penso
que descubro) que o que sinto é inveja, passo a contar com todo um conjunto
de conhecimentos sobre este afeto e a saber o que fazer em relação a isto. Já
não estou mais sozinho, com um afeto que é só meu. Posso dizer (ou não) a
outros o que sinto, supor que eles vão reconhecer e compreender o que estou
sentindo e como vão reagir a isto.
A identificação de um afeto ao mesmo tempo me coloca como parte do
grupo dos que o vivenciam ou já o vivenciaram e como parte do grupo muito
maior, dos que reconhecem a existência dele.
Identificados (nominados) ou não, afetos envolvem ou podem envolver
também mudanças de condutas. Além das alterações corporais, os modos
de agir, as intenções das ações e as relações com os demais e com o próprio
28

sujeito podem ser e frequentemente são modificados, em função dos proces-


sos afetivos.
Por vezes, estas mudanças envolvem ações que estão mais diretamente
relacionadas ao elemento desencadeador do afeto. Se estamos preocupados
com uma prova, podemos passar a dedicar a maior parte do nosso tempo e
dos nossos esforços ao estudo dos conteúdos previstos para a mesma. É claro
que, indiretamente, vamos alterar também outras condutas, já que teremos
menos tempo para dedicar a elas.
Mas há afetos capazes de promover mudanças bem mais amplas, que
envolvem quase todo o nosso modo de agir, não importa em relação à quê
e nem mesmo se aquilo com que nos relacionamos está ou não diretamente

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


ligado ao objeto central e mobilizador do afeto. Podemos pensar, como exem-
plos, em uma pessoa apaixonada e em outra enraivecida. Ambas, provavel-
mente, vão passar a agir de modo a irradiar seus afetos não apenas em direção a
quem está diretamente associado ou é seu objeto, mas vão tratar tudo, pessoas
e coisas, em decorrência deles. Assim como a primeira pessoa pode passar a
deliciar-se com as formas, cores e perfume de uma flor, a outra pode pisotear
a mesma flor, e colocar doses altas de sua energia neste ato.
Em ambos os casos, não seria correto supor que foi a flor ou algumas
de suas caraterísticas que produziram aquelas condutas. O que determinou a
diferença das ações foi outro componente dos afetos: as interpretações. Estas
estão presentes e fazem parte de todos os demais componentes.
Apenas para seguir a mesma ordem que adotamos até aqui, vamos nos
deter, inicialmente nos elementos desencadeadores. Não são os fatos, as pes-
soas, os pensamentos ou o que quer que seja que produz, por si mesmo, ou
que determina isoladamente nosso envolvimento. Vimos que, muito cedo,
em nosso desenvolvimento, aprendemos a interpretar os sinais que provêm
de nossos corpos ou do ambiente ao redor, a partir dos significados que já
são atribuídos a eles pelos outros humanos com os quais convivemos: isto é
fome, aquilo é dor; isto é comestível, aquilo é sujo; isto causa prazer, aquilo
machuca, e assim por diante.
Estas interpretações tendem a tornar-se cada vez mais detalhadas, com-
plexas e pessoais, na medida em que vamos aprimorando nosso desenvol-
vimento cognitivo e ampliando nossas experiências psicossociais. Assim,
se de início elas envolvem apenas a atribuição de um significado social ao
elemento desencadeador, logo passam a incluir também elaborações pessoais,
que envolvem os conhecimentos e as experiências anteriores daquele que as
elabora, os estados afetivos que ele já vem vivenciando, suas expectativas e
o contexto dentro do qual todo este processo ocorre.
Será fácil entender tudo isto se compararmos duas situações.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 29

Na primeira, você está numa praça relativamente movimentada, no meio


do dia, esperando uma pessoa querida. De repente, sente que alguém, vindo
de algum ponto atrás de você, colocou a mão suavemente em seu ombro.
Na segunda, já é tarde da noite, a mesma praça está deserta e pouco ilu-
minada; você passa por ela já com alguma apreensão, pois sabe que aquele
não costuma ser um local seguro nessas horas. De repente, sente que alguém,
vindo de algum ponto atrás de você, colocou a mão suavemente em seu ombro.
Nas duas situações, o evento final foi descrito exatamente com as mesmas
palavras. No entanto, ele produziria em você a mesma alteração afetiva? Se
sua resposta for não (como imagino que seja), você terá todas as condições
para entender e aceitar a afirmação de que os afetos não são desencadeados
por eventos isolados e independentes da pessoa que é afetada, mas pelas
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

interpretações que esta elabora a respeito daqueles eventos.


Processos de interpretação psicossocial estão presentes em cada um dos
elementos que compõem um processo afetivo. Mesmo as alterações corporais,
por menos que isto pareça possível, são também, ou podem ser interpretadas
por aqueles que as vivenciam. Não apenas captamos, de modo simples e direto,
aquelas alterações; procuramos, de modo imediato, associá-las aos eventos
com os quais entramos em contato (e interpretamos) para que elas possam
tornar-se compreensíveis. Sinto que meu rosto está afogueado. Mesmo que
não veja isto, sei que ele mudou sua coloração, está mais rubro. Não estou
febril e acabei de ver uma cena que considero inapropriada ou de ouvir um
comentário que vai contra meus princípios de conduta. A interpretação é quase
que automática: fiquei roxo de vergonha.
Assim interpretadas, algumas alterações corporais passam a exercer uma
função muito diversa da que tenderiam a ter, em outras condições. Sinto dores
no corpo, mas me alegro por saber que elas são resultantes dos exercícios
físicos que pratiquei no dia anterior. Tento, de todos os modos, conter um
bocejo, mesmo estando sonolento, para que o professor não perceba que não
estou gostando de sua aula.
Aqui tocamos em um ponto muito importante: buscamos interpretar não
apenas as nossas alterações corporais, mas também as dos outros, quando
externalizadas. Boa parte das nossas ações e relações sociais dependem das
habilidades que tivermos desenvolvido de captar e interpretar os sinais afeti-
vos expressos por outras pessoas. Isto pode nos ajudar a apresentar reações e
posturas adequadas ao que supomos que elas estão sentindo.
Interpretar, de modo rápido e preciso, os sinais afetivos evidenciados,
ainda que sutilmente, pelos outros, é o sonho que sustenta a elaboração, a
publicação e a aquisição de um número enorme de obras, muitas delas até
criativas, mas poucas confiáveis. Este mercado de promessas serve, ao menos,
para evidenciar a importância daquelas habilidades.
30

O problema que dificulta a elaboração daquelas receitas de interpretação


é que as avaliações que fazemos sobre nossas alterações corporais afetivas
também levam em conta nossas intenções, nossas interpretações sobre o outro
e suas intenções e sobre o contexto. Isto tudo nos leva a refletir sobre a ade-
quação ou não de evidenciarmos estes sinais, para quem, onde, como, quando
e para quê. Em outras palavras, nem sempre evidenciamos o que estamos
experienciando intimamente. Muitas vezes, procuramos ou tentamos mostrar
o que consideramos melhor que o outro perceba ou pense saber sobre nós, ao
menos naquele momento.
Dificilmente conseguimos ocultar alterações muito intensas, como um
momento de intensa raiva ou medo. Por outro lado, podemos ser capazes de
simular a manifestação delas, sem que isto faça parte, de fato de um processo

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


afetivo. Temos, inclusive, uma categoria profissional, a dos atores, que vive
disso e que é avaliada justamente por sua capacidade de realizar tais simulações
convincentemente. Um bom ator ou atriz é aquele que finge bem sentir o que
não está sentindo. Há outros, também, que atuam com o mesmo objetivo, mas
preferem não ser identificados como atores. Estes fingem que não estão fingindo.
De qualquer modo, o jogo de ocultar/evidenciar e de perceber/avaliar as
alterações corporais que fazem parte de processos afetivos é intenso, frequente
e constante em nossas relações sociais.
As interpretações estão presentes, também, nos demais componentes dos
processos afetivos. Mesmo a identificação de um afeto não é mais que um
procedimento de interpretação.
As interpretações são elaboradas levando em conta as condições imedia-
tas do sujeito (estado afetivo imediatamente anterior, suas intenções e outras
implicações naquele momento), suas experiências anteriores (vivências, rela-
ções, aprendizados, tendências afetivas mais duradouras) e suas perspectivas
de futuro. Todos estes elementos são sempre mediados pelas normas, conhe-
cimentos e convicções dos grupos sociais com os quais o sujeito convive e
se identifica (a família, os grupos de amigos, o das pessoas que ele admira e
adota como modelos...). Estes grupos mais restritos, por sua vez, fazem parte
de outros, mais amplos, que compartilham, senão todos, a maioria dos saberes
e direcionamentos que compõem uma cultura.
De acordo com Le Breton (2009) e Heller (2004), cada cultura esta-
belece o conjunto dos afetos existentes, reconhecíveis e vivenciáveis (que
afetos existem); as condições e momentos para a experienciação de cada um
(quando e onde eles devem ser vivenciados) e os modos desejáveis, aceitáveis,
indesejáveis e inaceitáveis de vivência e de expressão (como eles devem ser
experienciados e expressos).
O principal veículo de divulgação, justificação e imposição de todos
estes saberes e normas é a linguagem verbal (e, nas sociedades modernas,
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 31

sua equivalente escrita). Podemos observar como nossos semelhantes agem


e tentar imitá-los, mas é linguagem verbal que vai nos receber e assimilar
todas aquelas normas culturais e, mais ainda, vai nos possibilitar o acesso às
interpretações dos outros sobre suas vivências íntimas, não externalizadas; às
identificações e todas as demais interpretações de nossas próprias experiências
afetivas e aos eventuais compartilhamentos das mesmas. Além disso, vai,
também nos trazer informações sobre as ocasiões e limites de experienciação
e manifestação dos afetos (Berger; Luckmann, 1983; Lane, 1989; 2000).
É possível que os componentes que listamos aqui não sejam os únicos ou
que possam combinar-se de outros modos. No entanto, mesmo estas breves
enumeração e descrições já nos permitem elaborar algumas outras reflexões.
A primeira delas é a de que estas separações são muito mais recursos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

didáticos que descrições claras do que ocorre. Embora tenhamos tentado


organizar a apresentação do que chamamos de componentes numa sequência,
isto não significa que cada um daqueles elementos vai, mesmo, aparecer ou
ser executado na mesma ordem ou separadamente dos demais. Processos
afetivos podem ocorrer de modo instantâneo e terem duração muito breve,
mas também podem estender-se por longos períodos de tempo e passarem
por transformações gradativas. Nesses dois extremos de duração e em todas
as graduações entre eles, nada nos autoriza a supor que cada um daqueles
elementos vai manifestar-se ou atuar isoladamente, cumprir seu papel e depois
ser sucedido pelo elemento seguinte.
Parece perfeitamente lógico que a recepção do elemento desencadeador
deverá vir antes de sua interpretação e esta deverá ser sucedida pela reação
correspondente. Esta sequência temporal, porém, só nos parece linear e acei-
tável por que, para elaborar nossas reflexões, elegemos o momento do contato
com o elemento desencadeador como se ele ocorresse isoladamente. Como
recurso didático, criamos uma situação hipotética que poderíamos chamar
de zero afetivo: como se até aquele momento o sujeito estivesse vivendo um
vazio de contatos e de outros afetos.
O problema é que este zero afetivo não existe: o contato com o que
passamos a considerar como elemento desencadeador ocorre como parte de
outros envolvimentos e provavelmente só se torna significativo em decorrência
deles. É isto que faz, por exemplo, com que um mesmo objeto ou aconteci-
mento provoque interesses e reações diferentes em pessoas muito próximas e
até que compartilhem interesses semelhantes; apesar destas proximidades, o
estado afetivo de cada uma, no instante do contato com aquele objeto; nunca
será o mesmo.
Isto nos mostra que um processo afetivo qualquer nunca existe de modo
independente do momento vivido e das experiências anteriores da pessoa.
Aquele processo não se inicia no momento do contato com o elemento
32

desencadeador. Começar a refletir sobre o afeto a partir deste momento, repito,


é apenas uma escolha didática nossa.
Em outra direção, a análises dos componentes dos afetos nos permite
distinguir, neles, uma dimensão íntima, que só acessível e perceptível pela
pessoa afetada e outra pública, que abrange todas as manifestações exteriores
daquele processo. Em princípio, estas duas dimensões devem ser coerentes e
harmônicas, já que fazem parte do mesmo processo afetivo. Em boa parte das
situações, elas são. No entanto, as sutilezas e as intenções dos jogos de contatos
sociais podem fazer com que elas sejam bem distintas. Acredito que cada um de
nós já viveu situações nas quais procurou “não mostrar o que estava sentindo”.
Os tipos de relações sociais e os interesses envolvidos nelas costumam ser
fatores determinantes para o quanto cada um de nós permite ou faz com que

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


as duas dimensões de um mesmo afeto apresentem conteúdos mais próximos
ou distantes. Poderíamos dizer que isto constitui um indicador muito forte do
grau de confiança que depositamos nesta ou naquela pessoa.
Cada uma das dimensões é voltada para pessoas diferentes. Isto não
significa, porém, que a dimensão íntima seja composta apenas por elementos
pessoais, nem que a dimensão pública englobe apenas elementos coletivos.
Os dois tipos de elementos estão presentes e participam das duas dimensões.
O conjunto dessas discussões mostra que, por menos que isto seja per-
ceptível, nenhum afeto é simples e automático. Afetos não devem ser vistos
como fatos, ocorrências prontas e independentes de nossas participações.
Heller (2004) afirma que o mais correto seria pensar neles como síndromes,
ou seja, como conjuntos de causas, condições e manifestações. Afetos são
sempre complexos.

As atuações dos afetos

Se entendemos o que são e como se formam os afetos, podemos passar


a refletir sobre como eles atuam, em nossas ações e decisões cotidianas.
Em primeiro lugar, se tudo aquilo com que entramos em contato, física ou
imaginariamente, nos afeta, então estamos sempre e continuamente afetados.
Heller (2004, pp. 130) detalha que os afetos podem variar tanto em intensi-
dade quanto em profundidade. Embora ela não ofereça definições precisas
sobre estas duas medidas, as reflexões que lança a partir delas nos têm levado
a considerar a intensidade como uma medida que leva em consideração a
comparação de um afeto com ele mesmo, em outras condições e situações,
ou com outros, semelhantes e a profundidade como uma medida de quanto
ele envolve de nossa atenção ou de nosso comprometimento.
Acontece que atividades rotineiras, repetitivas, que exigem de nós pouco
ou quase nenhum esforço para sua execução, tendem a gerar envolvimentos
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 33

muito sutis, com intensidades e profundidades tão baixas que podem sequer
ser percebidos. Todas as manhãs acordo, executo meus rituais de higiene e
de alimentação rotineiros, visto o uniforme e vou para o trabalho. Tudo isto
é tão rotineiro que quase nem me dou conta de que estou executando estas
atividades. Nada disto parece me afetar.
O que não nos damos conta, nestas situações, é que a intensidade e a
profundidade de nossos afetos são muito pequenas e que, além disso, nos
acostumamos a prestar mais atenção às mudanças afetivas que às continui-
dades delas. De qualquer modo, algum grau e modalidade de afeto sempre
estará presente. Mesmo quando dormimos, nosso corpo e nossas lembranças
continuam atuando e nos afetando.
Além disso, na medida em que estamos continuamente em contato com
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

uma infinidade de elementos que são, ao menos potencialmente, capazes


de interferir em nossos pensamentos e ações, provavelmente jamais estare-
mos envolvidos em um único processo afetivo. Assisto a uma aula e posso
estar muito (ou muito pouco) interessado e entusiasmado com o conteúdo
da mesma. Ao mesmo tempo, a postura, a aparência e os gestos de quem
ministra a aula; o perfume agradável (ou não) de que se senta ao meu lado; a
temperatura da sala; as pessoas, no fundo da sala, que insistem em conversar;
o colega que cochila; minha barriga que ronca, me lembrando que já estamos
próximos ao horário do almoço; tudo isto e muito mais me lança em um jogo
permanente de muitos afetos. Muitos deles estão presentes em cada uma das
nossas atividades e relações.
Cada um desses afetos envolverá, sempre, componentes diversificados
e nem sempre coerentes entre si.
Há uma linha de raciocínio bastante frequente e valorizada em nossas
conversas cotidianas e que supõe a existência de uma separação clara entre o
que pensamos e o que sentimos. Brandão (2012), entre outros autores, mostra
que as suposições sobre esta separação já estavam presentes no pensamento
dos filósofos clássicos da Grécia e que permanecem, ainda hoje, como parte de
muitas das concepções científicas. Na Psicologia, boa parte das linhas teóricas
clássicas tendiam e algumas das atuais ainda tendem a tratar separadamente
os pensamentos, as emoções e as ações.
Muitas vezes ouvimos e até partilhamos instruções sobre a conveniência
de “pensar friamente”, ou seja, a deixar de lado as emoções e a tentar orientar
nossas decisões apenas por análises e conclusões lógicas e racionais (mesmo
que não saibamos bem o que isto significa). Por vezes, isto pode chegar a
compor um ideal de vida: “hoje eu tenho apenas uma pedra no meu peito,
exijo respeito, não sou mais um sonhador...”8.

8 Chico Buarque, Samba do grande amor.


34

As proposições de Heller englobam a adoção de uma linha de raciocínio


oposta: a de que pensar, agir e sentir são atividades integradas e inseparáveis.
Ao pensar em algo, estou também implicado, tanto em relação àquilo
sobre o qual penso, quanto no próprio processo de pensar. Qualquer pensa-
mento é também um envolvimento afetivo. Do mesmo modo, qualquer pro-
cesso afetivo envolve uma série de interpretações que, são, em última análise,
pensamentos. Completando esta integração, qualquer ação, disposição para
agir ou não e direcionamento de nossas ações envolve conjuntos de reflexões
e afetos. Sempre estamos implicados, ou seja, afetivamente envolvidos, em
tudo o que fazemos ou pensamos. Segundo Heller,

A implicação não é um “fenômeno concomitante”. Não é que haja ação,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


pensamento, fala, busca de informação, reação e que tudo isto esteja
“acompanhado” por uma implicação; se trata de que a própria implicação
é o fator construtivo inerente da atuação, do pensamento etc., [...] (Heller,
2004, pp. 17, com aspas no original).

Seguindo esta mesma linha de raciocínio, temos que tomar o cuidado de


não considerar as ações como mero subprodutos do raciocínio e dos afetos. As
atividades humanas não são apenas consequências de nossas decisões; elas são
também experiências capazes de gerar novos significados e de produzir novos
envolvimentos, em relação à tudo aquilo sobre o que agimos, aos objetivos
de nossas ações e à própria atividade.
Estas teias de interações entre processos que aprendemos a conside-
rar como separados atuam, também, no que chamamos de memória. Bosi
(2007) nos lembra que a memória não é um conjunto de operações simples e
automático de armazenamento e recuperação de fatos ou dados. Nem tudo o
que presenciamos ou vivemos será armazenado. Mesmo sem nos dar conta,
selecionamos o que será retido e a riqueza de detalhes que serão associados
àquela recordação. De acordo com Heller (2004), a seleção e o detalhamento
dos conteúdos da memória decorrem do tipo de envolvimento que mantive-
mos, originalmente, com as pessoas, fatos e situações.
Situações banais, do tipo que tendem a nos transmitir a impressão de
que sequer nos afetaram, provavelmente não passarão a fazer parte de nossas
lembranças. Ao contrário, dificilmente nos esqueceremos de situações ou de
relações que nos mobilizaram afetivamente com intensidade.
De modo divertido, Heller (2004) mostra que situações muito agradáveis
tendem a parecer breves, quando vividas, e a ocupar extensões consideráveis
em nossas memórias. Inversamente, situações desinteressantes parecem ser
intermináveis, quando vividas, mas são memorizadas (se forem) de modo
breve e pouco detalhado.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 35

“As férias mal começaram e já acabaram”, dizemos, mas, em compensação,


ao evocá-las recordamos tantos momentos e detalhes que estas “breves”
férias acabam por ser todo um mundo. Em compensação [...] durante as
aulas chatas, os dois últimos minutos antes que toque o sinal parecem inter-
mináveis [...]. E o que acontece quando nos recordamos [disso]? As aulas
chatas e o tempo de trabalho repetitivo “se desvanecem”, deixando apenas
traços de um “mal sentimento” ou uma “má impressão” que resumem toda
a nossa recordação (Heller, 2004, pp. 60, com aspas no original).

Os afetos também se fazem presentes nos momentos em que evocamos


as nossas lembranças. Ao recordar, não somos mais os mesmos que éramos
no momento em que vivemos ou entramos em contato com o que memoriza-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

mos. Já passamos por outras experiências, desenvolvemos outros interesses


e relações e estamos experienciando afetos que, embora possam continuar
a ser chamados pelos mesmos nomes, serão qualitativamente diferentes dos
que vivenciávamos.
Assim, ao buscar nossas memórias, nós as revestimos com nossos afe-
tos atuais, executando uma (re)produção dos conteúdos originais. O que, no
momento inicial, nos parecia uma relação intensa de amizade e companhei-
rismo (e que poderia ser isto mesmo), hoje pode nos reaparecer como pura
farsa se, por alguma razão bem posterior àquela, já não me relaciono bem
com a mesma pessoa. Algo semelhante acontece quando nos vemos em uma
foto na qual ostentávamos, orgulhosos de nossa boa aparência, uma roupa
que correspondia à última moda – de vinte anos atrás.
Recordar, então, é resgatar nossos afetos anteriores, recoloridos ou res-
significados por nossos afetos atuais.
Assim como se fazem presentes nas relações passadas, através das
memórias, os afetos atuam em nossas relações presentes e futuras. Como
vimos, eles tanto nos orientam em nossos relacionamentos mais próximos
e de cunho mais imediato (como afetos orientativos), quanto nos permitem
estabelecer laços, preocupações, previsões e planejamentos de nossas ações
em relação à acontecimentos e possibilidades muito mais amplos e de longo
prazo (como emoções).
No entanto, é conveniente tomarmos, aqui, algum cuidado. Em nossas
falas cotidianas, termos como afeto e afetivo são, quase sempre, usados para
classificar momentos, atos ou pessoas que envolvem carinho, delicadeza e
cuidados com a natureza ou outras pessoas. Com os significados que estamos
emprestando a eles, aqueles termos passam a englobar o conjunto de tudo o
que normalmente chamamos de sentimentos, emoções, desejos, anseios etc.
Nesta concepção, afetos podem envolver cuidados com o outro, preo-
cupações a favor dele, intenções de estabelecimento de relações construtivas
36

e mutuamente benéficas, avaliações favoráveis sobre o mundo, sobre uma


situação específica, o outro e a própria pessoa, mas também o inverso disto
tudo. Ódio, inveja, rejeição, desvalorização, intenções destrutivas são, tam-
bém, afetos e, como tal, são aprendidos. O mesmo pode ser dito sobre a
indiferença, o distanciamento, o não conhecimento sobre o outro ou o não
reconhecimento dele como um igual, um outro humano, com seus problemas,
suas limitações, suas diferenças, seus afetos.
Isto nos leva a algumas novas indagações:

• Que afetos aprendemos a elaborar, a experienciar e a utilizar?


• A que tipos de relações sociais eles nos direcionam e para quais
nos capacitam?

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


• Que tipos de afetos compartilhamos? Que tipos ensinamos?
• Eles são os melhores que poderíamos e deveríamos ter apren-
dido, vivenciado, compartilhado e estar ensinando? Se não são,
quais seriam?
• Por que isso ocorre? Por que ocorre assim?

Creio que duas outras reflexões podem auxiliá-lo a refletir sobre


estas indagações.
A primeira: como vimos, todo afeto é, simultaneamente, um processo
individual, corporal, grupal e cultural. Ele envolve a história do sujeito, a
dos seus grupos de relações mais imediatas e culturais e, em certa medida a
história de toda a humanidade. Aquilo que sentimos, hoje, decorre de todo o
processo de construção das culturas humanas, o que envolve, especialmente,
a criação e o desenvolvimento das linguagens.
Em cada afeto e em tudo o que sentimos somos únicos e, ao mesmo
tempo, todos.
De modo complementar, e finalizando esta parte, a presença e a par-
ticipação de elementos coletivos em todos os processos afetivos não deve
nem pode nos fazer esquecer ou desconsiderar a participação de cada um na
elaboração, direcionamento e expressão de seus afetos.
Há uma certa predisposição social a aceitar que afetos (ou, ao menos,
alguns deles) surgem independentes de nossa participação e nos forçam a fazer
o que não queremos. Convenhamos: por vezes isto pode ser confortável ou
conveniente. No entanto, é falso.
Por mais que tenha aprendido a sentir e a agir assim, ou que não tenha
aprendido modos alternativos, ainda assim, seus afetos são seus. Você participa
ativamente deles e, se não consegue evitá-los ou redirecioná-los, é responsável
por entender por que não o faz e por aprender a fazê-lo.
Responder a indagações como aquelas pode ser um bom começo.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 37

REFERÊNCIAS
Badinter, E. (1985) Um Amor conquistado: o mito do amor materno. Nova
Fronteira.

Berger, P. L. & Luckmann, T. (1983). A construção social da realidade. Vozes.

Bosi, E. (2007). Memória e sociedade; lembranças de velhos. Companhia


das Letras.

Brandão, I. (2012). Afetividade e transformação social. Sobral: Edições


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Universitárias.

Heller, A. (2004). Teoría de los sentimentos. Coyoacán.

Heller, A. (2017). Teoria dei sentimenti. Castelvecchi.

La Taille, Y. de. (2006). Moral e ética: dimensões intelectuais e afeti-


vas. Artmed.

Lane, S. T. M. (1989). Linguagem, pensamento e representações sociais. In S.


T. M. Lane, & W. Codo (Org.). Psicologia Social: o Homem em movimento.
Brasiliense.

Lane, S. T. M. (2000). Os fundamentos teóricos. In Lane, S. T. M. e Araújo,


Y (Org.). Arqueologia das emoções. Vozes.

Strongman, K. T. (2004). A Psicologia da Emoção. Climepsi.


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
2. APRENDENDO A SENTIR: reflexões
acerca dos repertórios afetivos
Eduardo Augusto Tomanik
Laura Ferreira Lago

Ana

Até os seus 3 anos, Ana1 viveu sob os cuidados de sua mãe e sua avó
paterna. Neste período, seu pai estava preso. Quando ela ainda tinha 3 anos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

sua mãe sumiu. Ana não lembra o que aconteceu e não entende porque
foi abandonada.
Dos 3 aos 6 anos continuou a morar na casa de sua avó paterna e recorda
que ia visitar o pai, que ainda estava preso.

[...] daí meu pai saiu da cadeia quando eu tinha 6 anos. Aí ele casou
com outra mulher e eles tiveram outra filha, a Gabriele. Com 4 meses a
Gabriele morreu. Depois que ela morreu, 2 meses depois, eu fui morar
com meu pai. E minha madrasta não gostava de mim. Aí ela fazia intriga
pro meu pai me bater, aí meu pai me batia, eu fugia de casa, meu pai me
batia, eu fugia de casa [...].

Ir morar com o pai e madrasta não foi uma escolha sua. Se pudesse,
preferiria ter continuado com sua avó, porque tinha medo do pai.

Eu tinha medo dele, até minha vó tinha medo dele. Meu pai batia até na
minha vó. Uma vez meu pai bateu na minha vó, porque ele tinha, guardou
um pedaço de carne na geladeira, aí era natal, aí ele num tinha ido buscar
a carne, aí minha vó fez a carne. Depois de uns dias ele foi lá buscar a
carne e ele bateu na minha vó porque nós comeu a carne... (risos nervo-
sos). Você acredita? Que horror, né?

Ana contou que sofreu muitas agressões físicas do pai e que ele a obri-
gava a ir para a escola na chuva, a pé. Como moravam longe, precisava sair
da casa 2 horas antes do horário das aulas. Sua madrasta também a agredia.

Aí um dia ela [madrasta] inventou que eu tinha roubado 50 reais de


um tapete que ela tinha vendido, aí ele me bateu muito, muito, muito,
muito, muito e eu fui com a cara... Minha cara tava pior que a do Chuck

1 Os nomes das adolescentes entrevistadas são fictícios.


40

(o boneco assassino). Aí o Conselho (Tutelar) me tirou de lá, aí eu fui


pro abrigo...

Ana tinha, nesta época, 7 anos. Os técnicos que trabalhavam na entidade


que a acolheu se lembram da gravidade dos ferimentos em seu rosto, que a
deixaram deformada. Ela também se lembra do dia em que chegou ao aco-
lhimento, logo após passar por exame de corpo de delito no Instituto Médico
Legal e de como foi recebida: “aí eu cheguei lá, eu cheguei lá e lembro de
todo mundo falando: nossa que neguinha feia!”
Ana permaneceu acolhida nesta entidade por cerca de 8 anos. Ela era
considerada, pelos funcionários, como adolescente difícil, por conta de seus
comportamentos de oposição e enfrentamento e de seu envolvimento com o

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


uso de drogas. Ela mesma confirma boa parte dessas condutas:

Eu levava as criancinhas pra fumar maconha no rio [...] Eu ia pros festeril


[...] Aprontava muito, ué? [...] Nós pegava, esperava todo mundo entrar
e nós saia da igreja, nós ia dar umas voltinha (risos), fumar maconha,
contar piada, tomar cachaça, pedir dinheiro pro outros. Era meio louco,
mas era legal, eu gostava.

Por volta de seus 15 anos, Ana já havia passado alguns períodos vivendo
pelas ruas, descumprindo as normas da instituição. Os funcionários descon-
fiavam que ela estivesse envolvida com exploração sexual, para garantir o
consumo de drogas que já incluíam, além da maconha, a cocaína. Por isto, e
por considerarem que ela colocava outras crianças e adolescentes em risco,
solicitaram a transferência de Ana para outra instituição.
O local de acolhimento para o qual Ana foi transferida só atende ado-
lescentes, geralmente envolvidos com o uso e o tráfico de drogas, além de
outros atos infracionais.
Mesmo estando formalmente acolhida nesta segunda instituição, Ana
passou a viver períodos em situação de rua ou morando em outros locais.
Envolveu-se mais ativamente com o tráfico de drogas, indo morar “na casa
lá onde o povo vendia droga”, em um bairro de Londrina. Outras adoles-
centes que frequentavam o mesmo local relatavam histórias de violências
física, sexual e psicológica que sofriam ali. Além disso, no mesmo bairro
havia um ponto rival de venda de drogas. Ana não tardou a ser envolvida por
estas circunstâncias.

É eu tava ameaçada aqui por causa que eu vendia droga prum povo e
depois eu num queria mais vender drogas pra eles [...] Eu num lembro
direito porque, aí eu fui pra lá... MENTIRA! Eu tava grávida de outro cara
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 41

(risos). Eu tava grávida de um cara que é de outra biqueira2 (risos). Aí


descobriram que eu tinha ficado com esse cara, aí eles queriam me bater,
me ameaçaram com arma e tudo, aí eu tive que sair fora. Aí quando eu
descobri que tava grávida eu fui lá pra uma clínica em Uraí. Aí depois
eu fui pra Maringá, que o PPCAAM3 me encaminhou pra lá.

Ana foi encaminhada para uma instituição de Maringá que acolhe gestan-
tes, de qualquer faixa etária, que estão em situação de risco e vulnerabilidade
social. Ela permaneceu ali por cerca de 2 meses. Neste período foram realiza-
dos os encaminhamentos necessários para o acompanhamento de sua gestação,
assim como lhe foram dadas orientações e informações sobre maternidade e
cuidados infantis. Ela mantém boas lembranças sobre o local, principalmente
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

relacionadas à alimentação. Contou que “comia monte de porcaria, comia


Neston, bolachinha pra prenha, assistia tevê...” (sic).
Ana sofreu um aborto espontâneo e logo voltou para Londrina. Ali foi
encaminhada para uma casa de acolhimento para mulheres em situação de risco e
vulnerabilidade social, pois já completara a maioridade. Segundo ela, neste local
de acolhimento, as condições de permanência e convivência não eram agradáveis:

É, porque lá eu num posso nem deitar no sofá, se eu lavar minha roupa eu


tenho que ficar de olho no varal, senão eles roubam tudo minhas roupa,
igual aconteceu [...] Se pensa que quando eu falo que a comida lá parece
lavagem, não é mentira não, parece lavagem mesmo, quando eu fui pra
lá o homem tava colocando arroz assim [...] O arroz cheio de água, maior
horrível, pra cá, eu vou pra lá vou dormir [...] De manhã cedo eu vou ter
que sair, vou sair pra onde? Vou ir pra onde? (chorando muito).

Em entrevistas conosco, as memórias de Ana revelaram uma trajetória


permeada por afetos de rejeição e abandono. Até os seus 18 anos, ela viveu em
muitos lugares e foi cuidada por várias pessoas. As responsáveis pelos seus cuida-
dos iniciais, na infância, foram as que a rejeitaram e abandonaram à própria sorte.
Quando indagada sobre seus afetos, Ana demonstrou dificuldade em falar
sobre o assunto. As poucas lembranças que expos se referiam a vivências de
rejeição reiteradas, primeiro da mãe, depois da avó e ainda do pai. Disse sentir
medo do pai e nada pela mãe e pela avó. Disse que não entende porque sua
mãe a abandonou e que sua avó dizia preferir os cachorros a ela.
Expressou sentir muito medo do pai devido as agressões físicas já sofri-
das e que teme ser agredida novamente por ele. Disse não entender o porquê
de tantas agressões, mas relacionou o fato à falta de amor.

2 Ponto de venda de drogas.


3 Programa de Proteção à Crianças e Adolescentes Ameaçadas de Morte.
42

Perguntamos, então, sobre o amor. Ana disse não saber o que é isso,
se alguém já sentiu isso por ela e que acredita nunca ter sentido algo assim
por alguém.

Laura: E quando foi pro abrigo, você poderia ter morado com outros
parentes seus?
Ana: Não, ninguém me quis. Ninguém me quer... Num sei, acho que eles
tem trauma de mim...
Laura: E você tem trauma deles?
Ana: Não, nem gosto deles.
Laura: De ninguém?
Ana: Não...

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Em outro momento de nossas conversas, Ana afirmou:

Eu penso que ninguém gosta de mim. Eu fico sem entender algumas coi-
sas: Eu num entendo porque minha mãe me abandonou, porque meu pai
não gosta de mim! Às vezes, até penso em me matar! Aí, às vezes, eu num
entendo porque tem que ser desse jeito [...] Só comigo parece. Aí pra mim
num ficar pensando nessas coisas eu uso droga, pelo menos eu fico na
pira da droga e num fico pensando essas coisas.

Questionada sobre a vida que estava levando, foi breve e incisiva: “isto
não é vida!”
Embora os depoimentos apresentados por Ana sejam breves, parciais
e não contemplem a totalidade do que ela viveu e sentiu, há um elemento
constante, neles, que nos levou a utilizá-lo como ponto de partida para a com-
posição deste capítulo. Ela sente-se abandonada (e provavelmente esta seja
a marca mais dolorida de sua vida), queixa-se de que ninguém gosta dela (e
provavelmente isto também seja um fato), mas parece não se dar conta de que
ela também parece não ter desenvolvido ou mantido qualquer relação afetiva
de cuidado e de carinho, com quem quer que seja.
Em nenhum momento seus relatos incluem uma ou um colega, uma
cuidadora ou cuidador, uma parceira ou parceiro com quem tenha desenvol-
vido uma relação de apego, com quem tenha se preocupado ou a quem tenha
tentado auxiliar ou apoiar, em algum momento.
Dito de modo simples e mesmo correndo algum risco de parecer super-
ficial, parece que Ana não aprendeu a amar.
Seja como substantivo ou como verbo, amor e amar são palavras que vem
sendo utilizadas com uma infinidade de significados, muitas vezes francamente
opostos e inconciliáveis. Neste texto, nos limitaremos a adotar a proposição
de Maturana (1998), segundo a qual o amor é a disposição corporal sob a
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 43

qual uma pessoa realiza ações que constituem o outro como legítimo outro na
existência. Assim, longe de ser um afeto pessoal e eventualmente unilateral,
dirigido a outro ou outros e que pode incluir, desejo, carinho, apego, cuida-
dos, mas também posse e controle, o amor a que estamos tentando nos referir
aqui pode incluir um ou mais desses elementos, mas é fundamentalmente um
processo relacional e igualitário de coexistência respeitosa, onde um aceita
o outro em sua legitimidade de ser o que é. Esta aceitação do outro como
diverso, mas ao mesmo tempo importante e legítimo, é a condição básica do
estabelecimento de situações de compreensão e cooperação que, por sua vez
possibilitam que cada um provoque transformações no outro e, simultanea-
mente, transforme-se.
Estamos nos referindo, então, a um amplo leque de afetos que envol-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

vem a aproximação, o respeito e o compartilhamento com outra ou outras


pessoas. Esse compartilhamento pode envolver, em diferentes medidas, bens
materiais, espaço, os corpos, sonhos, planos, outros afetos...O fundamental é
que envolva, também, algum grau de reciprocidade.
Em momento algum, Ana cita algo semelhante a isto. De modo geral,
as pessoas que ela cita, com exceção dos de seu núcleo familiar de origem,
parecem ter tido pouca importância e permanência em sua vida. Ela participava
de festas e consumia drogas com outras crianças, até apreciava os cuidados
de uma ou outra das funcionárias da instituição; morou em casas onde havia
venda de drogas e, ao que parece, abusos; relacionou-se com um rapaz de
uma quadrilha rival, engravidou dessa relação, mas nenhuma dessas pessoas
parece ter qualquer importância especial, para ela, como amiga, companheira,
cúmplice, parceira...
Segundo as memórias de Laura, que acompanhou boa parte da sua tra-
jetória, a gravidez citada por Ana foi a sua segunda. Na primeira, o feto era
anencéfalo e ela sofreu um aborto espontâneo. No decorrer da segunda, Ana
teria até manifestado algum apego ao novo bebê, mas ela já não mostrou
resquícios desse envolvimento, após o segundo aborto ter ocorrido.
Os parceiros que contribuíram para a existência desses dois processos
de gravidez sequer têm seus nomes citados por elas. Além deles, Ana citou
um outro namorado, que teria conhecido pela internet, mas que estava preso e
com o qual ela pouco ou nada conviveu, antes de encerrar seu relacionamento.
Em resumo, pessoas passaram por sua vida e Ana passou por elas. Nada,
ou muito pouco, além disso.
Os relatos de Ana sugerem que ela conhece e foi capaz de vivenciar
(por vezes, intensamente) e de identificar, uma série de afetos: medo, raiva,
tristeza. No entanto, em relação a todo o conjunto de afetos que poderiam
estar presentes e caracterizar uma relação de amor, Ana não conseguiu ir além
44

de citar um nome e de reconhecer uma falta; a falta de algo que permanece


desconhecido, misterioso.
Além das memórias de Ana, ao longo deste texto utilizaremos outros
depoimentos que nos foram apresentados por adolescentes que, como ela,
haviam passado grande e, eventualmente, a maior parte de suas vidas em
instituições públicas de acolhimentos de menores e que, na época das entre-
vistas, estavam em vias de ser ou já tinham sido obrigadas a deixar os locais
onde viviam, por terem atingido ou por estarem próximas de completar a
idade limite de 18 anos. Essas entrevistas ocorreram como parte do processo
de elaboração da Dissertação de Mestrado da primeira autora (Lago, 2017),
e foram realizadas por ela, sob a orientação do segundo autor. Além dos
momentos das entrevistas, por conta de sua atuação profissional, Laura Lago

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


já conhecia e acompanhava as trajetórias de vidas das adolescentes cujas
histórias são parcialmente retratadas nos 3 textos.
O foco principal da Dissertação e de um texto dela derivado (Lago e
Tomanik, 2018), foram as emoções que permearam diferentes momentos
das trajetórias de vida daquelas adolescentes, tal como elas as recordavam.
Para a composição do presente capítulo, vamos retomar alguns daqueles
depoimentos, procurando extrair, deles, pistas que nos permitam elaborar
reflexões sobre a existência de repertórios afetivos, sua importância e suas
possibilidades de construção.
Assim como reconhecemos a existência e a necessidade de desenvolvi-
mento de repertórios cognitivos, motores, de habilidades sociais e profissio-
nais, podemos propor, também, a existência de repertórios afetivos, conjuntos
de afetos aprendidos e possíveis de serem vivenciados pelos sujeitos, e este
é o tema central deste nosso texto.

Carolina

Carolina guarda poucas lembranças de seus primeiros anos. Inicialmente


vivia com seu pai, sua mãe e seus irmãos. Após a separação dos genitores,
passou a morar com a avó paterna, uma tia paterna, seu pai e seus irmãos.
Deste período, guarda recordações mais nítidas, especialmente de momentos
difíceis, como quando seu pai foi preso e ficou sob os cuidados da avó:

Ah nós fazia praticamente nada, né? Porque meu pai era usuário de dro-
gas, aí a gente pegou e, como ele foi preso, então minha vó ficou muito
abalada, muito triste, e meus dois irmãos não se ajudava, deixava ela
mais nervosa, deixava ela mais brava e tudo isso [...]. Eu fui ajudando
ela, eu sempre ajudei ela. Onde que ela ia eu ia junto. Até que chegou um
dia, dia num sei que lá do 09, 29/09, alguma coisa assim, que ela morreu.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 45

Após a morte da avó, outras de suas lembranças envolvem o fato de que


o pai, que era usuário de drogas como maconha e crack, costumava levar
outros homens para consumi-las em sua casa.

Ele usava em casa, no banheiro, com 3 homens. E quando ele fumava


maconha, o homem, amigo, os 2 amigos dele, roubavam a casa nossa....
É foi uma história muito triste, eles roubava nossa casa, só que meu pai
não sabia que eles roubava...

Em uma ocasião, estes homens assistiram vídeos pornográficos na sala e


Carolina e seu irmão mais novo estavam ali presentes. Um daqueles homens
praticou atos libidinosos com a adolescente e seu irmão.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Segundo ela, seu pai, por ser usuário de drogas perdeu os poderes fami-
liares sobre ela e seus irmãos. Entretanto, não consegue se lembrar sobre
como este processo aconteceu.

Meu pai foi usuário de drogas e o juiz tomou nós dele. Até hoje eu não
sei, até hoje da situação, o que aconteceu mesmo [...]. Algumas pessoas
assim, acasos e casos, inventa uma coisa e outra pessoa inventa outra.
Então num sei que que é isso, é porque num sei o que que é [...].

Apesar da confusão das lembranças Carolina considerou que sua avó


paterna faleceu e que esse fato deve ter tido relação com a medida de acolhi-
mento institucional, já que quem cuidava efetivamente dela e de seus irmãos
era a avó.
Segundo Carolina, ir para o acolhimento institucional foi assustador. Ela
e seus irmão estavam na escola, no momento da busca para o encaminhamento
ao acolhimento, e ninguém lhes explicou o que estava acontecendo e para
onde eles seriam levados. Quando chegou ao acolhimento, ficou sabendo que
ela e os irmãos dormiriam em locais separados.

É, eu achava que era chato, tipo assim, eu fiquei 3 dias chorando, mas
num era tão chato que eu percebi, mas foi difícil pra mim [...] Foi difícil
porque eu era apegada com meus irmão, dormia com meus irmão, foi
muito difícil.

Apesar de toda aquela desinformação e desse estranhamento inicial, as


lembranças seguintes dela já são bem mais agradáveis.

Ah, elas [as mães sociais] me receberam com muito amor, falô assim
que é bom o lugar, que eu vou gostar do lugar, que não se preocupa que
eu estou em boas mãos. E eu sei que eu estou em boas mãos, porque até
46

hoje nunca aconteceu nada comigo, graças a deus e nunca vai acontecer
porque esse povo cuida muito bem, esse povo ajuda, até pra remédio,
essas coisas eles faz, compra, tudo que você pedir eles faz.

Carolina relatou, ainda, que contava com o apoio das mães sociais para
realizar as tarefas do dia a dia, como acordar para ir para a escola, preparar
seus alimentos, marcar consultas médicas. Em seguida, chorando, questionou
se seria capaz de realizar essas tarefas sem o apoio das “tias”.
A família de Carolina a recebia para visitas, ocasionalmente. Relatou
que esses encontros não eram agradáveis para ela, já que sentia medo do pai
e que, por isso, não gostava de pernoitar na casa dele. Reclamou que seu pai
e seu irmão falavam mal do acolhimento e pediam que ela voltasse a residir

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


com eles. A adolescente disse que preferia continuar a viver no acolhimento,
pois lá recebia “do bom e do melhor” (sic).
Carolina completaria 18 anos no ano em que a entrevista foi realizada e
sabia que teria que deixar de viver naquela instituição de acolhimento, mas
que não se achava preparada para essa mudança. Apesar disso, não pretendia
voltar a residir com sua família: “[...] é, mas eu já falei, sempre falei, que eu
nunca vou mais morar com minha família. De maneira nenhuma, num quero
mais voltar com a minha família. Num quero mais”.
Carolina chorou muito enquanto falava de suas perspectivas para o futuro.
Mostrava-se ansiosa e insegura por não saber como cuidaria de si mesma
quando seu desacolhimento ocorresse:

Sozinha também eu num consigo porque eu num vou conseguir acordar


pra ir pra escola, eu não vou conseguir acordar pra fazer nada pratica-
mente sozinha [...] Ah, eu num sei, eu num sou muito de comer, mas eu
num sei porque eu num como. Agora que tem umas coisas assim, eu fico
o dia inteirinho sem comer. Se eu ficar sozinha eu vou ficar o dia inteiro
sem comer. Aí dá um treco ni mim se eu ficar sem comer. Sozinha também,
eu pensei que sozinha num vai dar certo, então o único lugar é ficar com
alguém. Alguém que eu já conheço ou sei lá eu.

A adolescente disse que estava pensando em ir morar com o namorado.


Ela o havia conhecido no trabalho e quando completasse 18 anos eles comple-
tariam 4 meses de namoro. Ela acreditava que morar com o namorado poderia
evitar que ela tivesse que ir para onde não queria: a casa do pai, a casa da avó
ou o acolhimento para adultos.

Num quero mais voltar pra casa da minha família, porque é um trauma
que eu tenho da minha família toda, exclusive meu pai. Eu num sei se eu
vou vencer esse trauma, mas eu tenho um trauma mesmo, até que eu num
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 47

queria nem falar pras tias, mas eu tenho muito trauma da minha família,
né? Trauma, trauma mesmo.

Quando indagada sobre o que seria esse trauma, mostrou dificuldade


em explicar o que sente. Disse entender o trauma que tem do genitor, que
é devido às lembranças do passado, da época que pai fazia uso de drogas e
a agredia fisicamente, contudo não entende porque esse trauma se estende
aos familiares maternos. Contou que esses familiares assumem uma postura
de cuidado quando ela os visita: tentam protegê-la e a convidam para voltar
ao convívio familiar. Carolina reclama destes comportamentos, pois eles se
comportavam de maneira oposta no passado e tende a rejeitá-los. Relacionou
o “trauma” a sentir medo e raiva de alguém ou algo.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Segundo ela, sempre que os visita, em algum final de semana, volta para
o acolhimento “muito triste, muito abalada” e, então, faz uso de medicação
controlada. Disse que sente medo do pai, um medo que não consegue controlar.
Acrescentou que este é o único sentimento que nutre pelo pai.
Sente que a família não dava valor a ela, antes. Por isto, mesmo que agora
eles tentem outras formas de relação, querendo que ela retorne ao convívio
familiar e se comportando de maneira que a adolescente avalia como uma
forma de amá-la, é ela quem não dá valor a eles.
As formas como a família demonstra esse amor assumem, para ela, uma
conotação pejorativa: o amor de alguém que já a rejeitou não lhe parece um
amor bem-vindo, que possibilita uma convivência respeitosa e saudável.
Perguntamos à adolescente o que é o amor. Ela respondeu que nunca
sentiu um “amor verdadeiro”. Explicou:

Amor verdadeiro é quando você não briga, quando você conversa com
a pessoa, quando você entende a pessoa ou quando você quer conversar
com a pessoa e falar o que você sente. Não ficar falando mal da vida dos
outro, ficar sei lá onde, falando mal, então isso pra mim num é amor.

Ao falar de seu relacionamento com o namorado, Carolina delineia uma


concepção de amor relacionada ao cuidado, ao acolhimento. Disse que o
namorado poderia cuidar dela, ajuda-la nas tarefas do dia-a-dia, estar junto
dela, compartilhar, cobrar que ela cuide bem de si mesma:

Eu amo muito ele! É, vai ser melhor pra mim, vai ser bom pra mim, porque
eu vou ter uma pessoa que fica me perturbando pras coisas. Porque se num
for pra isso, se num for pra ninguém me dar um chacoalhão eu num faço....

Apesar de uma aparente incoerência em suas falas (diz que nunca sentiu
um amor verdadeiro, mas também que ama muito o namorado), Carolina, ao
48

contrário de Ana, parece ter vivenciado experiências afetivas que poderíamos


classificar como tipicamente amorosas: em suas relações com as mães sociais,
no acolhimento; na convivência com os irmãos, ao menos antes de serem
recolhidos e no início de suas permanências na instituição; com o namorado,
no período em que a entrevista foi realizada...
Mesmo que, em seus relatos, ela dê uma ênfase relativamente maior aos
cuidados que recebe e cite pouco o que eventualmente oferece às pessoas das
quais se aproxima, ainda assim sua ligação inicial com os irmãos sugere que
ela seja capaz de estabelecer relações de reciprocidade e respeito.
Talvez, no caso de Carolina, o aspecto mais importante, para as finalida-
des deste texto, sejam os fatos de que ela, além de ter conseguido desenvolver
e vivenciar um repertório do que estamos chamando de afetos amorosos, tor-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


nou-se e evidencia ser capaz, também, de usar aqueles afetos para a orientação
de suas relações interpessoais.
Não nos caberia e nem temos a intenção, aqui, de avaliar ou julgar a
correção das escolhas de Carolina. Importa-nos destacar que ela é capaz e
faz uso daquilo que denominamos, no primeiro capítulo deste livro, como
afetos sociais. Ela os utiliza como o ponto de partida para suas decisões de
manter-se afastada dos parentes e para aproximar-se (mais) do namorado e
tentar construir sua vida futura ao lado dele. São os afetos deste grupo que
orientam a elaboração e as tentativas de efetivação de suas decisões.
Como podemos perceber, especialmente em comparação com os relatos
de Ana, a familiaridade e a capacidade de experienciação de uma gama maior
de afetos não apenas permite a elaboração de percepções e de análises mais
detalhadas e sutis sobre as relações interpessoais, como abre possibilidades
de estabelecimento de relações mais diversificadas e plenas de possibilidades,
inclusive afetivas.

Diana

Diana conviveu com os familiares apenas até os 3 anos de idade. Desse


período, lembra-se muito vagamente de que foi um período difícil para a
irmã e ela, que sofriam muito, passavam constantemente por necessidades,
apanhavam dos familiares.

Na verdade não é eu que lembre. Não é que eu num lembro, mas a maioria
das coisas que eu sei foi tudo minha irmã que me passou. Uhum, porque na
verdade eu não tenho muita lembrança. Nós morava com nossos avós, com
nosso tio e nossa mãe! E as vezes o pai da minha irmã ficava lá também,
é isso aí mesmo, as vezes o pai da minha irmã ficava lá e ia embora no
outro dia. Aí, depois que o pai dela ia embora acontecia isso (apanhar),
porque quando o pai dela tava lá não acontecia nada.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 49

Apesar das vivências de violência, consegue resgatar algumas lembranças


agradáveis, que determinaram mudanças nas vidas dela e da irmã.

Medo, eu não tinha nenhum medo não, não porque assim, quando a gente
num tá, quando não acontecia essas coisas com nós, a gente brincava,
a gente fazia muitas coisas, muitas vezes a gente brincava e acabava se
machucando e nesse dia que a gente machucou a gente foi lá pro posto e
de lá fomos mandadas para o abrigo. [...] É, a gente tava brincando de
pega-pega com nossos amiguinhos de lá da rua, aí eu fui correr e pisei
em cima do prego, bem no meio, aqui assim [apontando para o meio da
sola do pé], aí a gente foi no posto (de saúde), aí minha irmã foi junto,
meu tio também tava, aí o povo de lá já sabia todos os nossos casos, aí
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

a gente foi pro abrigo.

Se o momento do acolhimento é lembrado com pormenores, o motivo


para a ocorrência desse processo permanece como algo obscuro.

Dizem que é abuso, dizem que não cuidava da gente direito. Ah, eu não
me lembro disso não, não me lembro [...] porque se a gente não lembra
é quase a mesma coisa de não ter acontecido. Mas a gente nunca soube
assim a verdade, a verdade mesmo, o porquê. Porque uns dizem uma coisa,
outros dizem outra, como a gente sabe?

Diana guarda boas lembranças da sua infância no acolhimento. Quando


chegou sentiu-se acolhida e cuidada, lhe deram banho, comida e uma cama
para dormir. Contou que teve uma infância boa, mas que faltavam muitas
coisas, diferente de hoje, não tinha muita comida, roupas, brinquedos, assim
faziam orações e jejum “para pedir as coisas, que muitas coisas que a gente
tem agora lá no [nome da instituição] a gente num tinha antes, não tinha”.
Quando era criança, ainda recebia visitas dos familiares, mas isto dei-
xou de acontecer durante sua adolescência. Foi o tio quem mais a visitou.
Durante a adolescência teve autorização para realizar as visitas na residência
dos familiares e, assim, nunca perdeu o contato com eles.
Na adolescência envolveu-se com o uso de drogas:

Minha infância foi boa, não foi ruim, foi depois que comecei a me envolver
nas coisas que ficou feio [...]. Porque começaram a falar assim, falaram de
um jeito, mas quando eu fui ver era outro [...] Eu já tinha experimentado
cigarro já, né? Aí quando eu fui ver, falaram que era cigarro, mas não
era, quando eu fui ver era outra coisa, fui ver era maconha, aí já acabou,
já era [...]. Ah, sei lá, porque eu ficava o dia inteiro na rua, voltava só de
noite, porque eu tava na droga.
50

Por conta desse envolvimento, Diana parou de frequentar a escola e


passava os dias e, às vezes até algumas noites nas ruas. Começou a consumir
drogas ilícitas aproximadamente aos 12 anos e deixou de fazer uso delas
com 15. Frequentou serviços que ofereciam tratamentos para o uso abusivo
de drogas, contou com a ajuda da irmã e das pessoas do acolhimento e com
a ajuda da igreja e dos grupos que frequentava, para conseguir abandonar
aquelas práticas.
Foi também quando tinha 15 anos que sua irmã foi desacolhida, já que
completara a sua maioridade. Diana, que tinha uma relação de cuidado e
confiança com ela, disse que sentiu muito sua saída:

Ah, foi muito, muito difícil, porque muitas roubadas que eu me metia, ela

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


tirava, defendia, não deixava ninguém me bater, ela apanhava por mim,
muitas vezes, daí depois ela descontava tudo em mim [risos!]. Defendia,
eu entendia o lado dela, então, foi muito difícil nesse dia que ela veio pra
cá [referindo-se ao acolhimento de adultos]. Eu me senti fora de mim.
Assim, aquele dia lá foi muito, muito [...]. Mesma coisa de eu, num sei
como que eu posso dizer? Como se eu tivesse morrido!

Nossa primeira entrevista foi realizada nas dependências de uma institui-


ção de acolhimento de adultos, após a adolescente passar sua primeira noite
no local. Diana disse que sempre soube que teria que sair do acolhimento
infanto-juvenil, ao completar 18 anos, mas que não se sentia preparada para
essa mudança, que preferiria ter continuado lá por mais algum tempo, que
havia solicitado isso e que estava muito triste por seu pedido não ter sido
atendido. Segundo ela, os responsáveis pela primeira instituição justificaram
a negativa por que sua permanência iria transgredir as regras do acolhimento.
Diana sentia-se desconfortável na instituição de acolhimento de adultos:

To me sentindo sei lá, esquisita, estranha […]. Sei lá, estranho. De vendo
esse povo ai, que mexe, que usa um monte, crackeiro. Meu ato é de sair
daqui logo. E já tava pensando de ir pra Guarda Mirim e nem voltar, mas
como minhas coisas já tá aí...

A adolescente disse que estava arrependida por não ter aproveitado as


oportunidades de aprendizagem e de desenvolvimento que lhe haviam sido
oferecidas no acolhimento infanto-juvenil. Avaliou que, no momento que
estava vivendo, já seria tarde para iniciar cursos profissionalizantes, por exem-
plo, e assumia a responsabilidade por suas escolhas anteriores: “eu sabia o
que eu tava fazendo. [...] Eu devia ter aproveitado antes, muito antes”.
A estratégia traçada pelas pessoas responsáveis pelo encaminhamento de
Diana, naquele momento, foi a de transferir a adolescente para o acolhimento
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 51

adulto para resguardar sua vaga, mas possibilitar que ela passasse os finais
de semana quinzenalmente na casa da irmã, alternando com o acolhimento
infanto-juvenil até que se acostumasse ou conseguisse estabelecer-se em outro
local. Diana não trabalhava e não possuía qualquer fonte de renda.
Ao perguntarmos sobre seus planos para o futuro, respondeu que ainda os
estava criando, que não tinha nada definido. Quando era mais nova imaginava
que quando saísse iria morar com a irmã, mas já não considerava que isto
fosse possível, ao menos no momento, já que sua irmã havia se casado e tinha
uma filha. Também não achava possível residir com outros familiares, devido
às brigas que ocorriam entre eles e o uso abusivo de álcool que costumavam
fazer. Ainda assim, avaliava a possibilidade de ficar por lá, temporariamente.
Dois dias após a entrevista, Diana nos procurou para dizer que não havia
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

voltado mais para o acolhimento adulto e que, por falta de opção, estava
residindo com seus familiares.
No decorrer da primeira entrevista, Diana citou que mantinha uma rela-
ção próxima, de intimidade e confiança com a irmã mais velha, que assumiu
o papel de sua mãe. Brincando, apontou a si mesma como segundo ela, que
se intitulou a primeira filha da irmã. A entrevistada disse amar muito a irmã,
mas não soube explicar o que é o amor.

Amor? Eu não sinto isso não. Ah eu sinto, mas eu não sei dizer, ainda,
não sei. Que tipo de amor que você fala? […] Não, não tem outro tipo de
amor, eu acho, sei lá. Porque eu não tenho muito esse negócio de amor,
esse negócio de amor [risos] [...] É. Amor é apoio. Isso aí mesmo.

Pelo pai e pela mãe a adolescente disse não ter sentimentos. Disse amar
a assistente social do acolhimento, pessoa a quem chamava de mãe e de
quem recebia “apoio”. Outra pessoa a quem referiu sentir amor foi o tio, que
considerava como pai, já que, com ele mantinha uma relação próxima, de
confiança. Esse tio realizava visitas frequentes a ela no acolhimento, oferecia
conselhos sobre as relações com os outros familiares e esteve presente em
toda a trajetória das sobrinhas, lhes dando suporte. Porém, também mantinha
um interesse diferente por elas:

Um tipo de amor que não podia ser dado [...]. É, pra mim foi um ato de
amor, só que foi diferente, foi diferente, de você chegar e fazer, demons-
trar, quer dizer, demonstrar. Ele demonstrou de uma outra forma, que não
era pra ser demonstrada. Eu não quero falar nisso não, mas é uma coisa
errada, uma coisa errada. Neguei. Infelizmente. [...] Foi a coisa certa, mas
pra ele, ele queria que demonstrasse, também, da mesma forma, só que
não dava certo, demonstrar desse mesmo jeito dele. Porque ele também
tem problema de cabeça, tem lógico, seria muito estranho, não daria certo.
52

Perguntamos: e alguém mais já demonstrou amor dessa forma pra você?


Diana nos respondeu: “sim, mas pra essa outra pessoa dava certo, dava pra
demonstrar, pra receber e dar também, mas o dele não dá, não tem como”.
Através da recapitulação de suas lembranças, Diana nos sugere ter tido
oportunidade e ter sido capaz de assimilar informações e vivências que possi-
bilitaram a ela o desenvolvimento de repertórios afetivos amplos e complexos,
suficientes, entre outras possibilidades, para que a partir deles, ela elaborasse
e exercesse séries complexas de decisões morais.
Isto ocorreu, por exemplo, quando após ter passado a consumir drogas
ilícitas e, ao menos aparentemente, ter se tornado dependente das mesmas,
ela dedicou-se a mobilizar os recursos de que dispunha e a persistir nestas

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


tentativas até recuperar seu controle sobre si mesma e voltar a apresentar
condutas semelhantes às de antes do período de consumo. A disposição e os
esforços envolvidos nesta luta indicam a existência de um forte sentimento
moral de distinção entre alternativas certas e erradas de conduta.
Como veremos mais detalhadamente no Capítulo 5, as decisões morais
não são meros atos de obediência de ordens prontas, exteriores e inques-
tionadas. Elas incluem, sempre, campos de possibilidades. Diana poderia,
como ocorre tantas vezes com pessoas nas mesmas situações que ela (ou em
outras, muito menos angustiantes), às possibilidades anestésicas das drogas,
de fuga da realidade e das dores trazidas por ela, e aos prazeres imediatos e
individuais que elas eventualmente proporcionam, mas lutou para retomar
seu contato, ainda que tenso e angustiante, com o cotidiano e a materialidade
de suas condições de vida.
As decisões morais envolvem também exercícios de autorresponsabili-
zação e é isto o que Diana manifestou ao recusar-se a atribuir sua situação de
fragilidade, dependência e despreparo, no momento em que se viu obrigada a
deixar a instituição de acolhimento onde passou boa parte da sua vida, a qual-
quer outro fator ou pessoa que não fosse ela mesma: “eu sabia o que eu tava
fazendo. [...] eu devia ter aproveitado antes, muito antes” (destaques nossos).
Decisões morais envolvem, ainda, construções pessoais e aqui vale a
pena lembrar outra fala de Diana: questionada sobre seus planos, diante da
situação de desabrigamento, ela afirmou que ainda os estava criando.
A elaboração de alternativas, a autorresponsabilização e os exercícios de
opção que compõem as decisões morais provavelmente decorrem e dependem
da existência de repertórios afetivos que envolvem, além dos afetos sociais,
sentimentos orientativos (capazes de nos auxiliar a perceber as disposições dos
outros com os quais nos relacionamos e a prever os impactos de nossas ações
e decisões sobre eles) e especialmente emoções, afetos que envolvem altos
graus de abstração e complexidade, que nos auxiliam a levar em consideração
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 53

não apenas aquilo que é imediato, concreto e de interesse pessoal, mas também
valores coletivos e elaborações abstratas.
Diana relacionava-se muito bem com a irmã; sentia-se como se fosse
sua filha mais velha, antes mesmo dela ter tido uma filha. A irmã a protegia
e, muitas vezes, sofria punições em seu lugar. Depois disso, ficava brava
com Diana, que, por sua vez, compreendia e achava justas as reprimendas
que recebia.
Em contrapartida, quando se viu expulsa do que havia sido o seu lar mais
duradouro, Diana reconheceu as limitações e as dificuldades que a irmã teria
para acolhê-la naquele momento e não manifestou qualquer contrariedade em
relação a isto. Mesmo diante de uma situação tensa e angustiante, foi capaz
de reconhecer e de respeitar a legitimidade do outro, como humano e como
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

outro, portador de suas próprias limitações e dificuldades.


O repertório afetivo de Diana foi suficiente, inclusive, para sustentar sua
recusa pelo relacionamento erótico (que ela classificava como amor) proposto
pelo único outro parente que sempre a acompanhou, auxiliou e orientou. Um
relacionamento provavelmente prazeroso e desejado, potencialmente gratifi-
cante, mas incestuoso, ou seja, considerado como inadequado pelas normas
de um grupo que é muito mais amplo que o conjunto imediato dos envolvidos.
Por isso, um tipo de amor que até poderia existir como intenção (e ser bem
vindo, dentro deste limite), mas jamais como ato.
Como parte de seu repertório afetivo, Diana portava, dentro de si, “o
olho da comunidade” (Heller, 2003, pp. 1019), e era capaz de guiar-se tam-
bém por ele.

Refletindo sobre os repertórios afetivos

A concepção de repertórios afetivos que estamos propondo aqui passa,


antes de mais nada, pelo reconhecimento de que é muito difícil, se não impos-
sível, delimitar claramente um afeto específico. Continuando a utilizar como
exemplo o amor, fica fácil perceber como usamos esta mesma palavra para
designar uma gama muito grande de modalidades de envolvimentos interpes-
soais, experiências íntimas, alterações corporais e disposições de condutas.
Em um texto acadêmico, como este, tomamos o cuidado de estabelecer
uma definição relativamente precisa e abrangente para aquele termo, mesmo
reconhecendo que a definição que adotamos pode abrir espaço para mais de
uma interpretação e vários questionamentos.
Na multiplicidade dinâmica das relações cotidianas, podemos usar o
mesmo termo para nos referir aos afetos que dedicamos aos nossos pais, com-
panheiros conjugais, amigos, animais de estimação, objetos, partes da natureza,
ao nosso time preferido... Não temos uma palavra específica para os efeitos
54

que cada uma dessas relações produz em nós. Sabemos que elas são diferentes
em suas composições, nos modos como nos impactam e em como agimos,
em relação a elas. No entanto, ao agrupá-las sob uma mesma denominação,
também reconhecemos que elas mantêm ou devem manter pontos comuns.
Por isto, nos parece mais correto considerar os repertórios afetivos como
compostos por grupos de afetos mais ou menos semelhantes e reconhecíveis
como próximos: Ana, embora conhecesse a denominação “amor”, aparente-
mente era incapaz (ao menos até o momento das entrevistas) de vivenciar inti-
mamente, manifestar e direcionar e até mesmo de reconhecer a expressão, por
outros, de afetos que envolvessem respeito, compartilhamento e reciprocidade.
Parece claro, também, que ela já havia incluído em seu repertório outros
grupos de afetos, como as tristezas, as raivas e os medos, e não apenas uma

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


tristeza, raiva ou medo específicos.
Isto nos leva a supor que a experienciação de um afeto específico pode
ser suficiente ou, ao menos, ser importante para o desenvolvimento e a
capacidade de vivência de todo um conjunto de outros afetos, semelhantes
ou aproximados.
Ao mesmo tempo, parece correto supor que o mero conhecimento da
denominação social de um afeto (ou de um conjunto deles) não é suficiente
para que o mesmo seja incluído, plenamente, em nosso repertório afetivo.
O significado da palavra pode ser de grande valia nos momentos em que
tentamos identificar o que estamos sentindo, mas não é suficiente para que
consigamos vivenciar o que ainda não aprendemos.
Talvez nem mesmo os conjuntos de informações que recebemos quando
assistimos, na vida cotidiana ou nas várias manifestações artísticas, uma ou
mais pessoas expressando um processo afetivo, sejam suficientes para habi-
litar-nos a vivenciar aquele mesmo processo. Tanto é assim que há uma série
de cenas literárias, teatrais ou cinematográficas nas quais um personagem
(normalmente vindo de outro planeta) apresenta uma descrição detalhada,
precisa e impessoal sobre o que ocorre quando alguém vivencia um afeto e
que nos parecem divertidas justamente por que percebemos que aquela des-
crição não corresponde exatamente ao que já vivenciamos e identificamos
como sendo o mesmo afeto.
Mesmo o conhecimento de expressões metafóricas (amor é um fogo que
arde sem se ver, é ferida que dói, e não se sente...), por mais interessantes e
belas que elas possam nos parecer, não deve ser suficiente para que vivencie-
mos plenamente o afeto ao qual se referem.
O que falta, então?
Viver. Ter oportunidades e de fato participar de relações que nos permi-
tam ser afetados por aquilo que normalmente desencadeia os processos que
identificamos como sendo típicos daquele afeto.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 55

Uma criança assiste a dois adultos se beijando, apaixonados. Aqueles


gestos devem lhe parecer estranhos, já que ela não vivencia a mesma relação
afetiva que eles (ao menos convencionalmente) exprimem. Quantas vezes já
nos divertimos com as manifestações de deboche que crianças apresentam,
diante de cenas como esta? Será preciso que a criança aprenda a relacionar-se
com outras pessoas, de modos muito diferentes dos que aprendeu até então,
que seja capaz de tornar-se e de sentir necessária, de deliciar-se com a presença
e a atenção do outro, de sentir-se capaz de propiciar ao outro experiências
semelhantes, para que aquele sinal de afeto possa ser compreendido e com-
partilhado com a mesma intensidade e significado afetivos experienciados
pelos que os compartilharam.
Podemos nos preparar cognitivamente para vivenciar um afeto; podemos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

tentar nos antecipar e idealizar aquela vivência. Aprendendo novos nomes de


afetos e recolhendo informações sobre eles podemos nos tornar mais aptos a
vir a experienciá-los, um dia.
Não podemos nos esquecer, porém, que afetos são processos funda-
mentalmente relacionais. É nas relações interpessoais que poderemos obter
tanto as informações que poderíamos chamar de cognitivas (as formulações
coletivas e prévias sobre um afeto determinado), quanto as oportunidades
para sermos afetados.
O aprendizado de repertórios afetivos passa por aquilo que Vigotski já
havia denominado como situação social do desenvolvimento.
O conceito de situação social do desenvolvimento evidencia a preocu-
pação de Vigostski em integrar a riqueza dos processos internos, constituídos
na história anterior do sujeito, com as influências que caracterizam cada um
dos momentos sociais do desenvolvimento. [...] Cada nova situação social
que o sujeito enfrenta se converte em uma via de desenvolvimento para novas
formações psicológicas... (González Rey, 2000, pp. 136, tradução nossa)4.
Assim como o envolvimento com os humanos é que nos torna humanos,
o envolvimento com os afetos nos possibilita desenvolver e viver estas expe-
riências. Assim, se pretendemos enriquecer nossos repertórios afetivos, ou
se temos a intenção de propiciar um enriquecimento desses a outras pessoas,
não será suficiente falarmos ou escrevermos sobre aquele ou aqueles grupos
de afetos. Será preciso criarmos ou abrirmos chances e condições para que
eles sejam compartilhados.
Afirmar que afetos, para serem vivenciados, precisam ser vivenciados,
pode parecer redundante. Mas aprendemos a andar andando, não?

4 El concepto de situación social del desarrollo nos evidencia la preocupación de Vigotski por integrar la riqueza
de los procesos internos, constituidos en la historia anterior del sujeto, con las influencias que caracterizan
cada uno de los momentos sociales del desarrollo. [...] Cada nueva situación social que el sujeto enfrenta
se convierte en una via de desarrollo para nuevas formaciones psicológicas...
56

REFERÊNCIAS
González Rey, F. (2000). El lugar de las emociones en la constitución social
de lo psíquico: Educação & Sociedade, ano 21, (70).

Heller, A. (2003). Five Approaches to the Phenomenon of Shame. Social


Research, 70(4), 1015-1030. 2003. http://www.jstor.org/stable/40971959.

Lago, L. F. (2017). Adolescentes acolhidas: o caminho dos afetos em suas


histórias de vida. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em
Psicologia. Universidade Estadual de Maringá.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Lago, L. F. & Tomanik, E. A. (2018). Adolescentes acolhidas e seus afetos: o
que temos com isso? In J. Del Gobo (Org.). A Psicologia frente ao contexto
contemporâneo 2. Atena Editora [recurso eletrônico].

Maturana, R. H. (1998). Emoções e Linguagem na Educação e na Política.


Editora UFMG.
3. A ATUAÇÃO SOCIAL DOS AFETOS
NA CONSTRUÇÃO DE VÍNCULOS
Mariana Hauser de Castilho

Escolho começar estas páginas com uma canção de Renato Russo por três
motivos. Primeiro porque desconheço algo que retrate melhor nossas vivências
afetivas do que a música e a arte em geral. Segundo porque eu, esta canção e o
atual modelo neoliberal nascemos praticamente juntos na realidade brasileira.
Terceiro porque considero que nós cientistas e a ciência somos atravessados
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

pelo nosso contexto social e histórico e, portanto, me parece honesto deixar


que nosso caro leitor identifique estes atravessamentos.
Então vamos ao trecho...
“Se você quiser alguém em quem confiar, confie em si mesmo.”
Você conhece esta canção? Se não conhece, vale muito a pena. Pare a
leitura e corra às plataformas digitais para ouvir.
Agora que seus ouvidos foram tomados pela afetividade da canção, atre-
vo-me a perguntar: em algum momento se sentiu assim ao longo da vida,
como se não pudesse confiar nas pessoas?

Tem gente que está do mesmo lado que você


Mas deveria estar do lado de lá
Tem gente que machuca os outros
Tem gente que não sabe amar
Tem gente enganando a gente.

Quem são as pessoas que supostamente deveriam ser nossas parceiras e


companheiras, mas, por vezes se mostram inimigas ou rivais? Seriam elas as
pessoas com as quais compartilhamos laços consanguíneos? Seriam elas os
trabalhadores que se engajam em causas que prejudicam sua própria classe?
Seriam eles nossos parceiros amorosos?
Talvez você tenha se identificado com alguma destas situações, ou com
todas elas. Considerando minha vivência cotidiana na clínica psicológica, eu
diria que boa parte das pessoas se sentem assim várias vezes ao longo da vida.
Ou, pior que isso, se sentem assim desde que nasceram. Algumas delas encer-
ram o tratamento sem sequer depositar alguma confiança na profissional que
contrataram. Elas tentam, mas o que nos ensinam é que o outro é perigoso, que
não devemos nos vincular, que não podemos nos prender, que não podemos
demonstrar nossa vulnerabilidade. Quantas vezes precisei dizer às pessoas que
58

não precisavam se desculpar por estarem chorando. Chorar é errado? Chorar


é perigoso? Retratos da vida líquida e do mal-estar pós-moderno muito bem
descritos por Bauman (1998).
Apesar de gravada em 1987, a canção parece refletir o sentimento de mui-
tas pessoas até os dias de hoje, 34 anos depois. Uma solidão e um desamparo
avassaladores e a esperança de vencer os obstáculos da vida apenas com o
esforço individual. Pouco depois da gravação da canção, começa se configu-
rar o modelo neoliberal na realidade brasileira, com o governo de Fernando
Collor de Melo e, com este modelo, o enfraquecimento das responsabilidades
do estado em garantir o bem-estar social, bem como consequências para as
relações sociais, a construção de vínculos e a afetividade.
Pensando neste cenário, podemos nos perguntar: teria se esvaído nossa

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


capacidade de construir vínculos e de reconhecermo-nos em nossas semelhan-
ças e não apenas em nossas diferenças? O que nos faz pensar que algumas
(ou todas as) pessoas deveriam “estar do lado de lá?”
Longe de trazer conclusões, estas indagações servem apenas para indicar
as dificuldades de se escrever sobre a construção de vínculos na atualidade.
Estas páginas datam de tempos de incertezas (Lasch, 1983; Roso & Guareschi,
2007), de esfacelamento dos vínculos sociais, de bolhas algorítmicas (vide o
documentário Dilema das Redes1) e de profundo isolamento social (ensejado
pelo neoliberalismo e agravado pela Pandemia da covid-19 deflagrada no ano
de 2020 no contexto nacional).
Seguindo meu raciocínio, se na atualidade construir vínculos não é a
regra, por qual motivo este tema é importante?

1. Em termos biológicos, porque nós, seres humanos, somos altamente


dependentes dos outros ao nascimento, e, portanto, incapazes de
sobreviver sem que tenhamos uns aos outros.
2. Porque partilho da ideia de grandes teóricos como L. S. Vygotsky e
A. Heller, de que nós, humanos, só constituímos nossa subjetividade
nas relações com os outros. Assim, sem os vínculos que estabele-
cemos ao longo da vida, jamais teríamos construído a pessoa que
somos hoje.
3. Porque o desejo de pertencer ao mundo e de construir laços afetivos
é pauta frequente das sessões de psicoterapia que venho acompa-
nhando desde 2015. Diariamente estas pessoas me levam a crer
que, mesmo que tomados pelas incertezas e inseguranças de nosso
momento histórico, ainda existe em nós o desejo de construir vín-
culos e relações que deem sentido e sabor às nossas vidas.

1 Dilema das Redes. Direção de Jeff Orlowski. Mundial: Netflix, 26 de janeiro de 2020.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 59

4. Porque a construção e a qualidade dos vínculos estão relacionadas


à maior parte das demandas judiciais nas Varas da Infância e da
Família2. Afinal, de que tratam as disputas de guarda dos filhos após
o divórcio? De estabelecer qual relação/vínculo é mais satisfatório e
benéfico ao desenvolvimento da criança. E de que tratam as medidas
de proteção nas Varas da Infância, senão de ações para fortalecer os
vínculos entre as crianças/adolescentes e outros adultos (sejam eles
seus pais biológicos, a família extensa ou substituta)?
5. Por último (se me permitem a ousadia afetiva), porque tenho a
impressão de que assim como nossos companheiros de espécie,
os mamíferos, nós humanos somos muito mais felizes e potentes
quando estamos juntinhos.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Tomada por estes pensamentos e sentimentos, escolhi escrever sobre vín-


culos apesar do caos relacional da atualidade, sobretudo porque acredito que,
se as nossas implicações/afetos (ou as implicações de pessoas mais poderosas
economicamente) nos afastaram e nos impuseram uma vida de desigualdade
e solidão, também os afetos podem nos reaproximar em um futuro (não tão
distante, eu espero), enquanto pessoas, enquanto coletividade e enquanto
espécies que dividem um único planeta.
Na sequência, coloco-me a refletir sobre a atuação social dos afetos
na construção de vínculos, tomando como foco as relações de maternidade,
paternidade e fraternidade.

Maternidade e paternidade: as funções parentais enquanto


construção social

Aqui partimos da ideia de que nossa humanidade não está dada ao nascer,
ou seja, ao nascer temos apenas as condições biológicas para nos tornarmos
humanos. Aquilo que de fato nos humaniza se constitui nas relações com os
outros e nas relações com o mundo.
Ao longo de sua extensa obra, Vygotsky nos lembra da importância do
contato com adultos mais experientes, para a apropriação dos bens culturais
historicamente produzidos.
Partindo destas premissas, entendo que a maternidade e a paternidade
não estão dadas pelo fato biológico que é o nascimento de uma criança. Ou
seja, tornar-se pai e mãe depende das apropriações de cada pessoa ao longo
da vida, as quais lhe darão as condições para exercer estes papéis.

2 Atuo como psicóloga judiciária nas Varas da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo
desde 2014.
60

Assim como nos lembrou Badinter (1985), o amor materno não é inato
às mulheres e, da mesma forma, podemos esperar que o amor paterno também
não seja inato aos homens. Pensando a partir das contribuições de A. Heller
(2005) e L. S. Vygotsky (2005; 2007), cada adulto irá se relacionar com a
criança a partir de relações dialéticas estabelecidas entre suas condições de
vida materiais (sua condição socioeconômica, sua forma de inserção na comu-
nidade, sua rotina de trabalho) e aquilo de que se apropriou ao longo de sua
própria história (suas crenças, sua religião, sua afetividade).
Neste ponto, certamente as relações que estabelecemos com nossos pró-
prios pais são um ponto de partida importante para aquilo que nos tornaremos
ao exercer a maternidade ou a paternidade. Contudo, será que nossa capaci-
dade de exercer a paternidade e a maternidade são determinadas exclusiva-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


mente por aquilo que aprendemos com nossos pais?
Sabemos que nossas figuras parentais são fundamentais para nossa consti-
tuição psíquica, afinal de contas, na maioria das vezes são eles (ou pelo menos
um deles, normalmente a mãe) os anfitriões em nossa chegada ao mundo. São
eles que nos apresentam os primeiros objetos, as primeiras cores, os primeiros
sabores e as primeiras formas de sentir e se relacionar com a vida e com os
outros. Apesar disso, sabemos que nem sempre são os pais biológicos quem
realizam os primeiros cuidados com o bebê. Por vezes esta responsabilidade
é conferida aos avós, tios e tias, padrinhos e madrinhas, instituições de aco-
lhimento ou mesmo a pais adotivos.
Além disso, ainda pensando à luz das contribuições de Heller e Vygotsky,
devemos lembrar que, apesar de muito importante, nossa afetividade e nosso
desenvolvimento, como um todo, não se limitam às nossas vivências e relações
parentais. Nossas capacidades para exercício da paternidade e da materni-
dade não se restringem àquilo que aprendemos com nossas figuras paterna e
materna, mas sim em todas as relações que vivenciamos ao longo da vida até
o nascimento de um filho.
Assim, quando se apresenta uma demanda de avaliação judicial para veri-
ficar se uma pessoa é capaz de exercer, de maneira minimamente adequada3,
a paternidade ou a maternidade, estamos falando de avaliar se o conjunto
total de relações desta pessoa lhe permitiu desenvolver a capacidade de cui-
dar, proteger, ter empatia, respeito e zelo por uma criança. Afinal de contas,
como esperar que uma pessoa exerça a maternidade ou a paternidade se ela
própria não aprendeu sobre cuidados, ao longo da vida? Se isto não foi possí-
vel nas relações com seus pais, outros adultos desempenharam as mediações

3 Quando uso a expressão minimamente adequada me remeto às exigências legais que se impõem a partir
do Estatuto da Criança e do Adolescente, segundo o qual os pais ou responsáveis precisam garantir (com
ajuda da sociedade civil e do Estado) alguns direitos fundamentais aos seus filhos (como a educação, a
saúde, a dignidade e a convivência familiar e comunitária).
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 61

necessárias para que acontecesse? Sejam eles tios, vizinhos, padrinhos, avós,
professores, amigos, alguém cuidou deste adulto, que espera e de quem se
espera exercer a maternidade ou a paternidade?
Especialmente em tempos de esfacelamento das relações sociais, infe-
lizmente nem sempre isso é possível, o que resulta em adultos que demons-
tram total incapacidade de proteger e acompanhar o desenvolvimento de uma
criança, sem colocá-la em risco. Vide casos de grande repercussão, como o da
criança de 11 anos que foi presa e acorrentada dentro de um barril na cidade
de Campinas, no Estado de São Paulo (G1 Campinas e Região, 2021).
Podemos dizer que se trata de um caso isolado, eu concordo. Mas a
ideia de uma criança em um barril não é de toda estranha à nossa cultura,
não é mesmo? Ou não podemos dizer que os episódios de Chaves retratavam
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

a realidade da infância brasileira antes do Estatuto da Criança e do Adoles-


cente, que foi promulgado apenas em 1990? A meu ver não podemos nos
esquecer que as pessoas que assistiram Chaves sem qualquer estranhamento
nos anos 90, hoje são os pais, mães, avós e avôs que temos a oferecer às
próximas gerações na atualidade. Além do mais, esta não era a única forma
de violência apresentada nas cenas do seriado, que coincidem com as cenas
de violência contra crianças e adolescentes no cotidiano das famílias brasi-
leiras. Estão lá a violência física e psicológica também, quando as crianças
eram chamadas de burras e recebiam tapas, chutes e socos umas das outras
e também dos adultos.
Boa parte de nós ainda reproduz a cultura de violência que era apresen-
tada nas cenas de Chaves. Em dezembro de 2019 levantou-se que o Brasil
tem por dia em média 233 notificações e, somente no ano de 2017, ocorreram
85.293 denúncias de violência contra crianças e adolescentes (Agência de
Notícias, 2019).
Falar de paternidade e maternidade na realidade brasileira é falar também
sobre a necessidade de superarmos um longo histórico de violência que já se
registrava no período colonial, especialmente na educação oferecida pelos
jesuítas e pelas práticas de abandono europeias (Chambouleyron, 2016).

Como se constroem vínculos de afeto?

À luz da teoria de Heller (2004), podemos considerar que os vínculos


afetivos são construídos a partir da qualidade das relações que estabelece-
mos com as outras pessoas e, portanto, os vínculos estabelecidos entre pais
e filhos ou entre irmãos também dependem da existência e da qualidade das
relações construídas.
Uso o termo existência pois, não raro, pais e filhos sequer se conhecem,
irmãos são cuidados por pessoas diferentes da família e, por vezes até em
62

cidades muito distantes, o que praticamente impossibilita sua convivência


e, consequentemente, a construção de vínculos. Segundo o Censo Escolar,
realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e divulgado em 2013
(conforme citado por Instituto Brasileiro de Direito de Família, 2019) no
Brasil existiam 5,5 milhões de brasileiros sem registro de paternidade reco-
nhecida. Assim, se nem mesmo os laços consanguíneos são conhecidos para
estas pessoas, possivelmente também não se construíram vínculos de afeto
entre elas e seus genitores.
Uma reportagem da BBC News (2019) nos traz outra face das convivên-
cias familiares, na qual pessoas da mesma família escolhem se afastar umas
das outras. Segundo a reportagem:

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


O distanciamento familiar tem sido definido como o afastamento e a perda
de afeto que ocorrem ao longo de anos ou mesmo décadas em uma famí-
lia. Não está claro se isso está aumentando nos dias de hoje, já que é um
campo de pesquisa relativamente novo.

Conforme apontado pela reportagem, os serviços de amparo social pro-


porcionados pelo Estado parecem ser um fator determinante para maiores
índices de distanciamento familiar.

Um fator de influência parece ser a existência ou não de um forte sistema


público de assistência e apoio à população. Em países com programas de
bem-estar social robustos, as pessoas simplesmente precisam menos de suas
famílias e têm mais flexibilidade para manter ou não esses laços.
Na Europa, por exemplo, pais em idade avançada e filhos adultos tendem a
interagir mais e a viver mais perto uns dos outros em países mais ao sul do
continente, onde a assistência pública é mais limitada (BBC Future, 2019).

A reportagem apresenta ainda alguns elementos que foram considera-


dos como favorecedores da ruptura da convivência entre pessoas da mesma
família. São eles: divergências de valores e crenças religiosas, abusos emo-
cionais por parte dos pais e a necessidade de interromper relações dolorosas
ou tóxicas.
Pensando nesta perspectiva, de que nem sempre os laços consanguíneos
garantem a construção de vínculos afetivos e que, mesmo após anos de con-
vivência, pais, filhos e irmãos podem decidir interromper a convivência entre
si, coloco-me a refletir: afinal, como nossa afetividade interfere na construção
e manutenção de vínculos entre pais, filhos e irmãos? O que nos impulsiona
a querer estar perto, cuidar, proteger uma pessoa e o que nos afasta dela?
Pensemos juntos nas pessoas que nos são caras, nas pessoas que amamos
e com as quais buscamos manter alguma convivência. Como nos sentimos
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 63

nestas relações? Como nos sentimos em relação às pessoas que preferimos


nos afastar? Em minha pesquisa sobre os afetos no apadrinhamento afetivo de
adolescentes em situação de acolhimento institucional (Castilho, 2020), as par-
tes que pretendiam manter a convivência relataram sentimentos de felicidade,
confiança, amor, respeito e segurança e as que interromperam a convivência
relataram sentimentos de tristeza, culpa, rejeição, insegurança, ciúmes e medo.
Assim, podemos dizer que preferimos estar perto e cuidar de pessoas com
as quais experimentamos sentimentos agradáveis e procuramos nos afastar
de pessoas cuja relação nos proporciona sentimentos desagradáveis. Melhor
dizendo, preferimos estar perto de pessoas com as quais experimentamos mais
sentimentos agradáveis do que desagradáveis.
Considerando esta perspectiva, o que nos leva a experimentar sentimentos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

positivos em algumas relações e negativos em outras?


À luz da teoria de Heller (2004), minha pesquisa se encaminhou para
o estabelecimento de alguns fatores que interferem em nossa afetividade e,
consequentemente, na construção de vínculos de parentesco. São eles: as rela-
ções dialéticas entre o aparato fisiológico e o contexto social de cada pessoa,
o contexto social e histórico em que aquelas relações acontecem, a história
particular de cada pessoa, suas vivências e aprendizados anteriores sobre as
relações humanas e as formas de sentir, suas expectativas e o quanto elas são
correspondidas (Castilho, 2020).

a) As relações dialéticas entre o aparato fisiológico e o contexto social


de cada pessoa

Segundo Heller (2004) ao nascer cada pessoa dispõe apenas do aparato


biológico para se tornar humana, o que só irá se consolidar na relação com
outros seres humanos que lhe possibilitem a apropriação cultural e desenvol-
vimento de habilidades e capacidades que distinguem os seres humanos dos
outros animais. Dentre estas capacidades humanas que nos diferenciam dos
animais estão a linguagem, a abstração e os afetos, pois, segundo a autora,
tão logo uma criança nasce e seus impulsos instintivos de sobrevivência
passam a se tornar sentimentos (ou, como adotamos aqui, afetos) propria-
mente humanos4.
Seguindo esta perspectiva, mesmo os impulsos mais primitivos são logo
humanizados conforme o contexto social histórico e cultural em que a criança
nasce: se ao nascer permanece nos braços de sua mãe ou se é encaminhada
para exames e intervenções clínicas, se lhe dão o peito ou a mamadeira, se é
imediatamente afastada da mãe e encaminhada para adoção, se lhe deixam

4 Sabemos, contudo, que aquele aparato biológico é bastante heterogêneo entre os membros da espécie
humana, dada sua infinidade genotípica e fenotípica.
64

chorar até que se canse ou se lhe pegam no colo, se conversam com ela, se
cantam ou gritam, se a inserem em ritos religiosos ou não, se lhe dão remé-
dios ou chás quando está doente. Tantas maneiras de receber e humanizar um
bebê, todas elas marcadas pelo contexto sociocultural e histórico em que ele
está sendo inserido.
Além disso temos que considerar que, mesmo antes da concepção, os
fatores socioeconômicos podem produzir impactos na constituição biológica
de uma criança. O trabalho de Fernandes (2014, pp. 6), por exemplo, indica
que doenças crônicas como a diabetes e a hipertensão podem ser silenciadas
no genoma humano através das ciências omicas. No Brasil, estes conhecimen-
tos já vêm sendo aplicados por médicos e nutricionistas junto a mulheres em
período pré-gestacional e gestacional, com vistas a redução de fatores de risco

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


durante a gestação e à saúde e qualidade de vida dos recém-nascidos e suas
mães. Segundo a autora, “as ciências omicas contribuem com um conjunto
de tecnologias, que permitem desvendar a forma que os nutrientes afetam
o genoma ou o epigenoma e como estas alterações afetam cada indivíduo”.
Ou seja, os fatores socioeconômicos atravessam a constituição humana
desde a fase pré-concepcional, já que as condições nutricionais (Fernandes,
2014), laborais e a rede de apoio de uma mulher (Maldonado, 2010) afetam
diretamente a saúde e a qualidade de vida de seus filhos.
Assim, desde o momento da concepção, todas as etapas do ciclo vital
de um ser humano serão marcadas pela relação dialética entre seu aparato
biológico e o contexto sociocultural em que está inserida, o que irá influenciar
o desenvolvimento de sua afetividade e sua maneira de construir vínculos e
relações de parentesco.

b) O contexto social e histórico em que acontecem

A construção de vínculos entre pais/filhos/irmãos exige tempo de con-


vivência e algum nível de implicação/envolvimento/afeto. Quando pensamos
na primeira infância, devemos considerar que a condição de dependência
absoluta de um bebê exige dos pais um alto nível de implicação/afeto para
garantia de sua sobrevivência e ainda maior para proporcionar aprendizagem
e desenvolvimento.
Levando em consideração o Pacto Nacional pela Primeira Infância, o
Conselho Nacional de Justiça (on-line) sinaliza:

É no período desde a gestação até os primeiros seis anos de vida – conhe-


cido como primeira infância – que se forma a estrutura da arquitetura
cerebral subjacente ao desempenho das competências humanas que se
relacionam ao exercício da cidadania, da aprendizagem, da convivência
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 65

pacífica, dos comportamentos de usufruto dos bens culturais, identidade


cultural, educação ao consumo saudável, relação sustentável com o meio
ambiente, prevenção da violência, entre outros. De fato, há estudiosos
que consideram que a promoção do desenvolvimento integral na primeira
infância seja a melhor estratégia para alcance de todos os Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável (ODS).
No entanto, as condições socioeconômicas e institucionais desfavoráveis
a que se encontram submetidas milhões de crianças de até seis anos de
idade no Brasil constituem fatores de vulnerabilidade e risco ao usufruto
dos direitos previstos na Constituição Federal, em seu art. 227, no Estatuto
da Criança e do Adolescente, no Marco Legal da Primeira Infância – Lei
nº 13.257/2016, entre outros.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Assim, se uma família vive em condições estressantes como a miséria,


o desemprego (ou subemprego), a violência, a falta de segurança, a falta de
condições dignas de habitação e higiene, certamente irá dispor da maior parte
de sua energia buscando a sobrevivência. Diante disso, parece compreensível
que estas famílias disponham de menos energia e disposição para zelar pelas
relações familiares e a atenção às necessidades afetivas de seus membros
e, consequentemente, pode restar prejudicado o exercício da paternidade e
da maternidade.
Em outro extremo, podemos pensar em famílias abastadas, mas cujos pais
terceirizam os cuidados dos filhos. Estas duas situações extremas, são muito
bem ilustradas no filme “Que horas ela volta?”, no qual um jovem demonstra
ter estabelecido uma relação de proximidade e confiança com a babá e não
com os genitores. No mesmo filme, fica claro que a relação estabelecida entre
a babá e o jovem não se estabeleceu entre ela e sua filha biológica, afinal,
precisou se afastar da convivência da filha para trabalhar e obter dinheiro
para garantir o seu sustento. As vivências retratadas no filme, além de denun-
ciarem a condição de desigualdade de acesso aos direitos fundamentais na
infância na realidade brasileira (como a educação, a formação profissional e
a convivência familiar), evidenciam que os vínculos de pai, mãe e filho não
podem se estabelecer sem a convivência cotidiana e que são atravessados
pelas condições socioeconômicas de cada família.
Para além das condições de desigualdade na realidade brasileira, que
certamente atravessam as possibilidades de construção de vínculos e o exer-
cício da maternidade e paternidade, temos ainda que considerar o momento
e o contexto específico em que as relações se estabelecem.
Pensemos, por exemplo, sobre o contexto da Pandemia da covid-19.
Podemos dizer que as relações entre pais e filhos foram sendo construías da
mesma maneira que ocorriam antes deste momento de crise? Certamente não.
A maioria das famílias vivenciou, ao longo daquele contexto, algum tipo de
66

sofrimento em razão do novo cenário (seja pela perda do emprego e renda,


seja pela perda da vida de familiares, seja pela solidão causada pelo isolamento
social, seja pelo medo de se infectar todos os dias quando se sai de casa para
trabalhar e prover o sustento da família) e, certamente, isto dificulta a convi-
vência entre pais e filhos, especialmente pela impossibilidade ou dificuldade
de compartilhar os cuidados da criança com a escola, a família extensa e a
comunidade, algo que é tão importante para o desenvolvimento afetivo da
criança e, ao mesmo tempo, tão importante para que se evite a sobrecarga e
o adoecimento dos pais.
Sobre a maternidade na atualidade, sabemos que muitas vezes ela já era
exercida de maneira solitária, em razão do abandono dos pais em relação aos
filhos e, durante o contexto da Pandemia da covid-19, parece ter se tornado

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


uma tarefa ainda mais árdua e, consequentemente, ainda mais adoecedora
para mães e filhos como bem ilustrou Silva, (2021).
Maldonado (2010) nos alerta que a falta de rede de apoio durante a
gravidez representa um fator de risco à saúde da gestante e seu bebê. Quanto
mais estabelecida é a rede de apoio de uma família (família extensa, vizinhos,
escola, serviços socioassistenciais), maiores serão as chances de que uma
criança e sua mãe se mantenham saudáveis durante a gestação. Para além
da sobrevivência, considero que esta mesma rede de apoio pode colaborar
positiva ou negativamente para construção de vínculos entre pais e filhos e
entre a família e a comunidade.

c) As expectativas

A construção de vínculos é permeada pelos afetos/implicações que cada


pessoa e relacionamento nos proporciona. Alguns relacionamentos nos pro-
porcionam mais sentimentos agradáveis e outros mais desagradáveis e não é
difícil compreender que, exceto em situações de psicopatologias ou de depen-
dências (biológica, material, financeira ou emocional), tendemos a manter
vínculos com as pessoas com as quais experimentamos mais sentimentos
agradáveis do que desagradáveis.
Os afetos vivenciados em uma relação sofrem influência das expectativas
que tínhamos em relação a eles e do quanto estas expectativas se concretizam
ou não ao longo da convivência (Castilho, 2020).
Pensemos em uma viagem. Quanto mais tempo passamos nos preparando
para ela, mais expectativas tendemos a produzir e, consequentemente mais
frustrados podemos ficar, caso algo não saia de acordo com o que idealizamos.
Transferindo esta ideia para as relações de maternidade, paternidade e
fraternidade, podemos nos perguntar: será que a quantidade de frustrações
sobre estes relacionamentos (que abarrotam os consultórios de Psicologia)
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 67

não podem estar relacionadas ao excesso de expectativas que depositamos e


de idealizações que produzimos sobre as vinculações biológicas? Em mais de
6 anos atendendo pessoas, não houve um só dia em que não ouvi algo sobre
expectativas frustradas sobre a família biológica ou sobre a dificuldade de
corresponder às expectativas nestas relações (seja quando se é pai ou mãe,
seja quando se é o filho/irmão, seja expectativas sobre o comportamento dos
outros ou em relação ao seu próprio desempenho como pai/mãe/filho/irmão).
Boa parte destas expectativas gira em torno da concepção de que deve
haver amor incondicional entre pais e filhos. Como bem nos ensinou Freud
(1915), as relações familiares podem ser marcadas pela ambivalência amor
e ódio. Heller (2004) defende que estamos implicados de várias maneiras o
tempo todo e diferentes afetos podem ocupar o centro de nossa atenção, nos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

levando a pensar que mães e pais não estão isentos de vivenciar uma infinidade
de afetos diferentes daqueles que costumam ser aceitos socialmente (como a
raiva, a inveja e o desprezo).
As taxas de depressão pós-parto que, segundo Schmidt, Picolotto &
Müller (2005), são de uma em cada quatro mulheres, possuem etiologia ligada
não apenas às alterações hormonais do puerpério, mas a muitos outros fato-
res como: a) condições socioeconômicas precárias; b) a existência prévia de
quadro depressivo ou vivência anterior de depressão pós-parto; c) o nasci-
mento de um bebê com sexo oposto ao desejado; d) conflitos com o parceiro
ou outros familiares; e) gestação não planejada; f) parto de emergência; g)
atitude negativa do pai em relação à gestação; h) o estado de saúde da criança.
Segundo Maldonado (2010, pp. 289):

A falta de apoio familiar e as lacunas graves do contexto assistencial


também contribuem de modo significativo para o aumento da ansiedade
e do sentimento de desamparo da mulher no ciclo grávido-puerperal. Inú-
meros casos de distocia do trabalho de parto e de inibição da lactação são
desencadeados por um contexto assistencial inadequado ou distorcido.
O abandono ou o descaso do companheiro, a rejeição dos familiares nos
casos de gravidez da adolescente ou da mulher solteira transmitem uma
“falta de chão”. O sentimento de desamparo da mãe deixa-a num estado de
confusão e de perplexidade: o lugar do filho passa a ser o lugar da solidão
e da sobrecarga (Maldonado, 2010, pp. 289).

Considerando os aspectos bem levantados pela revisão bibliográfica de


Schmidt, Picolotto & Müller (2005), percebemos que boa parte dos fatores de
risco para depressão pós-parto diz respeito à não confirmação de expectativas
– um pai que não assume a paternidade, pessoas da família que não colaboram
positivamente para chegada da criança ou mesmo prejudicam o processo, uma
68

gravidez indesejada, um parto fora das circunstâncias previstas, uma criança


com o sexo ou estado de saúde diferente do que se esperava.
Para além dos aspectos levantados pelos autores, entendo que as vivên-
cias frustrantes no pós-parto também se relacionam com o abismo gigantesco
entre o que é a maternidade socialmente idealizada (amor instantâneo e incon-
dicional, felicidade, satisfação) e as vivências reais de se tornar mãe, que nem
sempre correspondem ao que foi idealizado (reação negativa do pai da criança,
privação de sono, falta de tempo para cuidar de si mesma, dores e dificul-
dades para amamentar, luto pelas transformações do corpo, solidão, medo,
desamparo, discriminação e falta de compreensão no ambiente profissional).
Pensando neste sentido, entendo que a construção dos vínculos familiares
está inevitavelmente atravessada pelas expectativas das partes envolvidas.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Mães e pais podem esperar conseguir construir uma relação amorosa e satis-
fatória com seus filhos, mas também podem esperar que o amor seja experi-
mentado instantaneamente, ou que a criança lhes traga o amor que acreditam
não terem recebido em suas relações anteriores. Podem esperar que a criança
concerte seus erros, compense frustrações, alcance o sucesso profissional que
não puderam conquistar, que a criança tenha bom desempenho escolar, que
tenha aptidões artísticas ou de que tenha reconhecimento social por seus fei-
tos. Da mesma maneira os filhos podem esperar que seus pais lhes satisfaçam
todas as vontades, ou podem esperar receber deles apenas o alimento para
sobrevivência, podem esperar amor incondicional ou apenas respeito, podem
esperar obter herança após sua morte ou podem esperar retribuir o cuidado
que receberam quando estiverem idosos.
As expectativas podem ser tão distintas quanto são distintas as pessoas
em suas histórias particulares e singularidades. Certa vez tive a oportunidade
de conversar com uma mãe que dizia, muito animada: “creio que ele irá pelo
mesmo caminho que o pai!” (o qual estava preso por tráfico de drogas). Ou
seja, esta mãe tinha expectativa que seu filho se tornasse um traficante bem
remunerado e isto a deixava feliz, ao contrário do que ficariam boa parte das
outras mães que conhecemos. O quanto estas expectativas são correspondidas
irá colaborar para a vivência de sentimentos positivos e negativos e, conse-
quentemente para construção, manutenção ou ruptura de vínculos.

d) A história particular de cada pessoa, suas vivências e aprendizados


anteriores sobre as formas de sentir

Cada pessoa tem sua história particular de apropriações culturais e apren-


dizados, que se construíram em suas relações com as demais. Assim, as pri-
meiras pessoas a nos ensinarem sobre maternidade, paternidade e fraternidade
são as que se ocuparam de nossos cuidados ao longo da primeira infância.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 69

Estes cuidados nem sempre são recebidos no seio das famílias biológicas, mas
também no âmbito de famílias extensas, da comunidade ou de instituições.
A história de um sujeito é única e particular, assim como suas interpre-
tações, apropriações e vivências durante sua trajetória. É possível que uma
mãe ofereça cuidados semelhantes aos filhos e, ainda assim, as vivências de
cada um deles e o que aprenderam sobre a maternidade poderão ser muito
diferentes. Tenho a impressão de que isto possa ser identificado por boa parte
das pessoas, em seu cotidiano. Algo que parece passar despercebido é que, da
mesma forma que não existem pessoas idênticas, também não existem relações
idênticas. Cada filho é único e tem um conjunto único de relações com sua
mãe (ou pai, ou irmão), simplesmente porque os fatos que lhe acontecem, os
enredos em que é colocado pela vida jamais poderão ser os mesmos que os
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

vividos ou presenciados por outros.


Certa vez tive a oportunidade de conhecer a história gestacional de
gêmeas idênticas. Segundo a mãe, o médico a teria contado que uma das
bebês poderia não sobreviver porque a maior parte dos nutrientes estava sendo
absorvido apenas por uma delas. Aqui se inicia uma história, um enredo dife-
rente, que jamais possibilitaria que esta mãe agisse de maneira exatamente
igual com cada uma das filhas. Atualmente, as gêmeas com 9 anos, apresentam
estatura bastante diferente. A bebê que possivelmente não sobreviveria, hoje
está bem mais crescida que a irmã. Observando o comportamento alimentar
das meninas, a mãe me contou: “ela nasceu esfomeada, é esfomeada até hoje,
come sempre mais do que a irmã!”.
Vamos usar esta história para refletir. É possível ser exatamente a mesma
mãe quando se tem filhas vivendo circunstâncias tão diferentes? Certamente
esta mãe sentia: “agora preciso alimentar mais a menor, preciso compensar
o que lhe faltou na gestação” e, a partir disso, podem surgir outros tantos
desdobramentos, outras tantas interpretações sobre as filhas e, consequente-
mente uma maneira diferente de ser mãe de cada uma delas, embora tenham
aparência física muito semelhante e tenham chegado ao mundo no mesmo
momento histórico e na mesma etapa da vida pessoal de seus pais.
Vamos a um segundo exemplo. Certa vez entrevistei uma mulher com
vários filhos e ela me contou: “O fulano é a cara do pai, esperto, inteligente,
vai ser bandido igual ele”. Vejam a interpretação desta mãe sobre o filho: se
ele tem a mesma aparência física do pai, também tem os mesmos atributos
intelectuais e inevitavelmente vai seguir os seus passos e se tornar um crimi-
noso (o que para ela, não era exatamente algo ruim). É possível ser a mesma
mãe enquanto se tem expectativas tão diferentes em relação aos filhos? É
possível ser o mesmo filho e o mesmo irmão quando você é tratado como
futuro bandido e seus irmãos não o são? Como ficará a relação entre irmãos
neste contexto?
70

A resposta é que não sabemos. Este garoto pode ser visto como um rival e
sofrer retaliação dos irmãos, pode ser visto como substituto do pai (que estava
em situação de encarceramento), pode ser visto como líder, como inimigo,
como amigo/irmão leal. Afinal de contas, a interpretação da mãe sobre ele é
resultado das vivências e afetos dela, que são diferentes das vivências e afetos
entre os irmãos que constroem suas relações de maneira particular.
Uso estas situações para lembrar que os fatos biológicos, econômicos,
situacionais e concretos da vida atravessam nossas relações o tempo todo e é
impossível ser a mesma mãe/pai/irmão, ainda que haja amor, afeto e preocu-
pação em cuidar e proteger. Também não é possível ser o mesmo filho/irmão
enquanto construímos relações tão particulares ao longo da vida.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Então aqui partimos desta premissa: não é possível reproduzir uma rela-
ção, porque é impossível reproduzir uma história, suas vivências e afetos.
Não é possível ser a mesma mãe ou pai para dois filhos, mesmo que sejam
gêmeos, porque as relações se constroem a partir de uma história particular
que só é compartilhada pelas pessoas que a vivenciaram.

Considerações finais

Sem desconsiderar a importância das primeiras experiências infantis com


suas figuras parentais, me parece plausível considerar que as possibilidades
de exercício da paternidade/maternidade/fraternidade não são determinadas/
aprendidas apenas nestas primeiras relações. Pelo contrário, a perspectiva
de Heller (2004) e Vigotski (2005; 2007) nos conduzem à ideia de que os
seres humanos estão sempre em condições de construir novos aprendizados
e de desenvolver/ampliar suas formas de pensar/sentir/agir nas relações e no
mundo. Assim, considero que as possibilidades de exercer a maternidade/pa-
ternidade/fraternidade são construídas a partir do conjunto total das relações
estabelecidas ao longo da vida de cada pessoa, as quais tanto podem colabo-
rar para construção de laços de carinho, proteção e cuidado, quanto podem
favorecer a construção das amarras de violência, negligência e sofrimento.
Nossa maneira de ser pai/mãe/irmã(o) remete à maneira com a qual
fomos recebidos no mundo, como fomos cuidados e acolhidos. Isto não diz
respeito apenas aos nossos pais ou às figuras de cuidado que tivemos ao longo
da infância e adolescência, mas principalmente ao mundo (meio ambiente,
estrutura social, histórica e econômica) em que vivem estas figuras de cuidado,
o quanto se sentem amparadas, o quanto há de dignidade em suas vidas, o
que aprenderam a esperar destas relações e o quanto isto é correspondido.
Nos vemos como semelhantes que partilham o mesmo tempo? Somos
inimigos? Sentimos que podemos partilhar nossas dores e alegrias e que
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 71

podemos viver de maneira colaborativa? Sentimos que devemos competir e


destruir para sobreviver?
Em cada sociedade, em cada cultura, em cada momento histórico, temos
uma maneira de receber as crianças que chegam ao mundo. Já tivemos a roda dos
enjeitados e temos todos os dias atos de violência, sejam produzidos pela ação
ou omissão do Estado, sejam pela ação ou omissão de pessoas comuns ou pela
lógica mercadológica que nos reduziu a competidores em busca de um sucesso
inatingível. Esta é parte da história que contribui para violência, para o afas-
tamento entre as pessoas e para fragilização e ruptura dos vínculos familiares.
Mas também não nos faltam atos de resistência, pessoas e instituições que
ocupam os mais diferentes espaços (concretos, subjetivos e virtuais) com o obje-
tivo de tornar os ciclos da vida e as relações mais humanas e solidárias, de tornar
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

o mundo um lugar mais receptivo às vivências da maternidade, paternidade e


fraternidade que demandam tanto suporte da comunidade.
Penso que escrevemos juntos esta história. Escolher zelar pela construção
e manutenção de vínculos entre as pessoas (sejam pais, filhos e irmãos, seja
entre amigos, vizinhos ou colegas de trabalho) é escolher cuidar de nossa pró-
pria sobrevivência e qualidade de vida. Nascemos todos vulneráveis e depen-
dentes, crescemos com alguma autonomia, mas ainda desamparados frente às
adversidades da vida. Não sobrevivemos na solidão e temos dúvidas (muitas
dúvidas!) e poucas repostas sobre tantos fenômenos, vivências e afetos que
experimentamos ao longo de nossa trajetória. É com o outro e através do outro
que nos constituímos e podemos significar e ressignificar as experiências da
vida, o nascimento e a morte.
Então, refletir sobre e cuidar da construção de vínculos é sobretudo cui-
dar de nós mesmos, do mundo que vivemos e daquilo que deixaremos para
as próximas gerações.
Sendo assim, como contribuir para um legado de solidariedade, amor
e cuidado? Penso que esta contribuição possa ser feita em nossas relações
cotidianas, mas também nos mais diversos âmbitos organizacionais e insti-
tucionais e, especialmente, na proposição de políticas públicas para garantia
de direitos e fortalecimento de vínculos familiares e comunitários.
Muito se avançou na realidade brasileira desde a Constituição Federal de
1988 e tantas outras leis que a seguiram (o Estatuto da Criança e do Adoles-
cente, Estatuto do Idoso e da Pessoa com deficiência, a Lei Maria da Penha)
procurando zelar pelo bem-estar de cada pessoa e, consequentemente, das
relações e vínculos familiares e comunitários. Contudo, ainda há um longo
caminho a trilhar. Um caminho que foi devastado pela Pandemia da covid-19
que nos tornou ainda mais solitários, retirou crianças da escola (principalmente
as de escola pública), tomou o emprego e a dignidade de tantas famílias,
agravou a miséria e a desigualdade socioeconômica, deixou mulheres ainda
72

mais vulneráveis à violência doméstica e desamparou as famílias em suas


tarefas de cuidado.
Mas se em todo caminho há tempos de tempestade e escuridão, há o
tempo da luz e do amanhecer.
Alguns terminarão esta caminhada antes de ver a luz, mas a outros
será concedida a possibilidade de sobrevivê-la. Aos mortos e seus fami-
liares dedico meu pesar e minha solidariedade. Aos sobreviventes desejo
energia e coragem para retomar os caminhos que nos levam a um país da
garantia dos direitos humanos, de menos desigualdade e violência. Que
tenham força e determinação para (re)construir a nação brasileira após a
devastação pandêmica e bolsonarista. Que assumam a responsabilidade de
construir uma nação que receba de maneira digna cada criança que nasce,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


que acolha cada mãe e pai em suas incertezas e angústias, reconhecendo que
não há caminho para um futuro que não passe pela afetividade e os vínculos
entre os seres humanos.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 73

REFERÊNCIAS
Assessoria de Comunicação do IBDFAM. Paternidade responsável: mais
de 5,5 milhões de crianças brasileiras não têm o nome do pai na certidão de
nascimento. Instituto Brasileiro de Direito de Família, Brasil, 7 ago. 2019.
https://ibdfam.org.br/noticias/7024/Paternidade+respons%C3%A1vel:+mais+-
de+5,5+milh%C3%B5es+de+crian%C3%A7as+brasileiras+n%C3%A3o+t%-
C3%AAm+o+nome+do+pai+na+certid%C3%A3o+de+nascimento.

Agência de Notícias. Brasil registra diariamente 233 agressões a crianças e


adolescentes. Veja Abril, Brasil, 16 dez. 2019. https://veja.abril.com.br/brasil/
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

brasil-registra-diariamente-233-agressoes-a-criancas-e-adolescentes.

Bauman, Z. (1998). O mal-estar da pós-modernidade. Jorge Zahar.

BBC Future. (2019). Christine Ro. Por que tantas pessoas se distanciam
de suas famílias? BBC News Brasil. 26 maio 2019. https://www.bbc.com/
portuguese/vert-fut-48157656.

Castilho, M. H. (2020). Apadrinhamento afetivo de crianças e adolescentes


em situação de acolhimento institucional: uma análise sobre as vivências
de atores envolvidos. Dissertação (Mestrado em Psicologia). Universidade
Estadual de Maringá, Maringá-PR.

Chambouleyron, R. (2016). Jesuítas e as crianças no Brasil quinhentista. In


M. D. Priore (Org.). História das crianças no Brasil. Contexto.

Freud, S. Os instintos e suas vicissitudes (1915). In S. Freud. (1996). A história


do movimento psicanalítico: artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos
(1914-1916). Imago.

G1, Campinas e Região. PM resgata criança mantida acorrentada em barril


e prende três por tortura em Campinas. Campinas, 31 de janeiro de 2021.
https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2021/01/31/pm-resgata-
-crianca-mantida-acorrentada-em-barril-e-prende-tres-por-tortura-em-cam-
pinas.ghtml.

Heller, A. (2004). Teoría de los sentimientos. Ediciones Coyaoacán.

Lasch, C. (1983). A personalidade narcisista de nossos dias. In C. A. Lasch. Cul-


tura do Narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em declínio. Imago.
74

Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Nova


Fronteira.

Mancebo, D. (2002). Modernidade e produção de subjetividades: breve per-


curso histórico. Psicol. cienc. prof., 22(1), 100-111, Brasília, DF. http://www.
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932002000100011&lng=
en&nrm=iso.

Maldonado, M. T. (2010). Psicossomática e Obstetrícia. In J. Mello Filho &


M. Burd. Psicossomática hoje. Artes Médicas. https://lotuspsicanalise.com.
br/biblioteca/Julio_de_Mello_Filho_Psicossomatica.pdf.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Fernandes, C. D. S. (2014). Nutrigenómica: da nutrição moderna a Lamark.
Dissertação (Mestrado em Ciências Farmacêuticas). Universidade Fernando
Pessoa, Porto.

Roso, A., & Guareschi, P. (2007). Megagrupos midiáticos e poder: constru-


ção de subjetividades narcisistas. Política & Trabalho Revista de Ciências
Sociais, 26, 37-54. http://periodicos.ufpb.br/index.php/politicaetrabalho/
article/view/6767.

R7 e Thais Travassos. Polícia de SP liberta criança que vivia acorrentada


dentro de tambor. Notícias R7, Brasil, 31 jan. 2021. https://noticias.r7.com/
sao-paulo/policia-de-sp-liberta-crianca-que-vivia-acorrentada-dentro-de-tam-
bor-31012021.

Schmidt, E. B., Piccoloto, N. M., & Müller, M. C. (2005). Depressão pós-


-parto: fatores de risco e repercussões no desenvolvimento infantil. Psico-
-USF, 10(1).

Silva, M. S. L. da. (2021) Um olhar para além da beleza da maternidade:


Burnout materno – exaustão e sobrecarga de mães. 35 f. [Trabalho de Con-
clusão de Curso (TCC), Universidade Federal de Campina Grande]. http://
dspace.sti.ufcg.edu.br:8080/xmlui/handle/riufcg/21342.

Vigotski, L. S. (2004). Teoría de las emociones: estudio histórico-psicológico.


Ediciones Akal.

Vigotski, L. S. (2007). A formação social da mente: o desenvolvimento dos


processos psicológicos superiores. Martins Fontes.
4. LIÇÕES DO MEDO
Thiago Ohara
Eduardo Augusto Tomanik

Um pouco sobre o medo


O medo é habitualmente precedido pelo espanto, e é tão próximo
dele que ambos despertam instantaneamente os sentidos da visão e
da audição. Em ambos os casos a boca e os olhos são bem abertos e
as sobrancelhas erguidas. [...] o coração bate rápida e violentamente
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

de encontro às costelas; mas é duvidoso que ele funcione melhor


do que o habitual, conseguindo bombear uma maior quantidade de
sangue para todo o corpo, pois a pele fica instantaneamente pálida,
como no início de um desmaio. Todavia, essa palidez da superfície
deve-se provavelmente a uma ativação do centro vasomotor, que
o faz contrair as pequenas artérias da pele. [...] também os pelos
sobre a pele se eriçam, e os músculos superficiais tremem. Em
consequência da ação perturbada do coração a respiração se
acelera; a boca fica seca... (Darwin, 2016 [1872], pp. 248-249).

Charles Darwin havia publicado, em 1859, A origem das espécies por


meio da seleção natural ou a preservação das raças favorecidas na luta pela
vida, obra que o tornaria mundialmente reconhecido e que desencadeou inten-
sos debates. Estes debates envolviam (e continuam a envolver, até hoje), de
um lado, aqueles que se mantinham intransigentes na defesa das concepções
religiosas sobre a origem em separado de cada uma das espécies animais e dos
seres humanos e, de outro, os que passaram a aceitar a teoria sobre a existência
de origens comuns e a formação das várias espécies (inclusive a nossa) como
resultado de longos e intrincados processos de evolução.
Quando publicou, em 1872, A expressão das emoções nos homens e nos
animais, obra da qual retiramos a citação inicial deste capítulo, Darwin estava
tentando apresentar argumentos adicionais em favor de sua teoria evolutiva e,
para isto, havia colecionado uma série considerável de evidências e reflexões
que sustentavam que as emoções humanas e suas formas de expressão são
basicamente estruturas herdadas dos antepassados não humanos (Strong-
man, 2004).
Mesmo que isto nos desvie um pouco dos nossos objetivos neste texto,
parece útil refletir brevemente sobre o modo como estas duas formulações
de Darwin vêm sendo repostas, especialmente no momento histórico em que
redigimos este texto, e que envolve a pandemia mundial da covid-19 e o
76

ressurgimento explosivo de manifestações conservadoras e autoritárias no


Brasil e em várias outras partes do mundo.
A teoria sobre a evolução das espécies, mesmo que amplamente aceita
nos meios científicos e até fora deles, provavelmente jamais deixou de ser
combatida desde que foi lançada. No entanto, é interessante estar atento ao
(e preocupar-se com o) modo como as ideias sobre a participação divina na
criação em separado das espécies são sempre retomadas e utilizadas como
base para a sustentação de concepções sobre a existência natural de diferenças
e, portanto, de direitos desiguais entre os seres humanos. Para os defensores
desta teoria, é como se Deus, ao determinar a existência de diferenças entre
os seres vivos em geral, estivesse também autorizando e justificando as dis-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


criminações e os preconceitos humanos.
As concepções sobre os afetos como processos biologicamente deter-
minados e comuns à várias espécies provavelmente também permaneceram
presentes ao longo da história e nos parecem amplamente disseminadas hoje e
aqui, independente das definições ou tendências políticas ou religiosas de seus
aceitadores. Não são poucas as manifestações cotidianas, místicas ou mesmo
nos meios jurídicos nas quais os processos afetivos são vistos e aceitos como
se fossem naturais, incontroláveis ou autodeterminantes.
Como cientistas, partidários dos ideais de igualdade humana e estudiosos
dos afetos, nós (autores do texto) adotamos e admiramos as formulações de
Darwin sobre a origem comum e a evolução das espécies. Ao mesmo tempo,
discordamos frontalmente das suposições que ele elaborou sobre os afetos
como processos geneticamente determinados. No caso específico do medo,
ainda que algumas reações orgânicas que ele observou e descreveu, como
a aceleração dos batimentos cardíacos e da respiração, o empalidecimento
(constrição dos vasos periféricos), o eriçamento dos pelos corporais e as alte-
rações musculares provavelmente envolvam respostas inatas, não podemos
esquecer que aquilo que é capaz de produzir estas reações e mesmo o direcio-
namento das ações decorrentes dependem dos aprendizados e das vivências
do sujeito que vivencia aquele processo e das convenções dos grupos dos
quais ele participa.

As emoções não existem desvinculadas da formação da sensibilidade


que o relacionamento com os outros enseja no seio de uma cultura e num
contexto particular. Elas não têm realidade em si, elas não se fundam
numa fisiologia indiferente às circunstâncias culturais ou sociais: não é
a natureza do homem que se exprime através delas, mas a situação e a
existência social do sujeito. Elas se inscrevem sob uma teia de significados
e de atitudes que prescreve aos indivíduos tanto as formas de descrevê-las
quanto as maneiras de exprimi-las fisicamente. As emoções são, portanto,
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 77

emanações sociais ligadas às circunstâncias morais e à sensibilidade par-


ticular do indivíduo (Le Breton, 2009, pp. 120).

Como vimos no Capítulo 1 deste livro, mesmo os poucos impulsos


biológicos, indispensáveis (ainda que não suficientes, isoladamente) para
a sobrevivência inicial dos seres humanos não tardam a ser transformados
pelas interações dele com seus cuidadores, tornando-se, assim, proces-
sos psicossociais.
Isto também ocorre com o medo, um afeto que provavelmente é conhe-
cido e identificado em qualquer parte do nosso mundo; ele não é um afeto
inato e nem pode ser considerado como universal, já que envolve origens,
manifestações e interpretações diferenciadas, dependendo de cada local e de
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

cada época. Indo além, mesmo que o medo originado por determinado objeto
ou situação seja vivenciado por duas pessoas, no mesmo local e na mesma
época, cada um desses processos afetivos ainda poderá ser diferenciado do
outro, já que ambos provavelmente envolverão diferentes contextos pessoais
imediatos (tudo aquilo com que cada uma das pessoas amedrontadas estava
envolvida naquele momento), históricos distintos de experiências anteriores
e por que serão constituídos nas e das dinâmicas entre aquilo que é pessoal
e o que é social. Em decorrência, para cada sujeito, aquela vivência afetiva
poderá e provavelmente terá sentidos pessoais diferentes.
Como um conjunto de respostas instintivas capazes de auxiliar tentati-
vas de preservação da vida ou da integridade física do organismo diante de
uma ameaça presente ou iminente “[...] não são apenas os seres humanos que
sentem medo. Todos os animais superiores conhecem-no como uma emoção
que indica perigo e é necessária para a sobrevivência” (Tuan, 2005, pp. 8).
No entanto, ao atribuir interpretações humanas a tudo aquilo com o qual
entram em contato, os seres humanos tornam-se capazes, também, de anteci-
par-se ao tempo e aos acontecimentos. Assim, passam a conviver não apenas
com o que está presente no momento e no espaço atuais, mas também com
aquilo que poderá ou que deverá ocorrer. Aprendem a antecipar seus medos e
as defesas contra eles; elaboram e compartilham um imaginário social sobre
os que os ameaça ou poderá vir a fazê-lo e o utilizam para orientar suas ati-
vidades e relações.
Diferentes culturas e, dentro delas, diferentes grupos sociais estabelecem
previamente o que cada pessoa, dependendo do lugar que ocupa nas diversas
dimensões da estrutura social, deve temer e como deve reagir diante das
ameaças previamente definidas. Em nossa sociedade, por exemplo, há medos
diferentes previstos para crianças, adultos e idosos; pessoas que se identificam
com os diferentes gêneros; moradores das regiões rurais ou urbanas e, entre
os últimos, para os que habitam os bairros tidos como nobres ou periféricos.
78

Assim como convivem em diferentes paisagens, os seres humanos com-


partilham e vivenciam diferentes paisagens do medo. “‘Paisagem’, como o
termo tem sido usado desde o século XVII, é uma construção da mente, assim
como uma entidade física mensurável. ‘Paisagens do medo’ diz respeito tanto
aos estados psicológicos como ao meio ambiente real” (Tuan, 2005, pp. 12).
Estas antecipações sobre o medo vêm atuando como a base afetiva para a
maior parte das transformações culturais que os seres humanos vêm empreen-
dendo, ao longo de sua história.

De certa forma, toda construção humana - mental ou material - é um


componente na paisagem do medo, porque existe para controlar o caos.
Consequentemente os contos de fada infantis, bem como as lendas dos

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


adultos, os mitos cosmológicos e certamente os sistemas filosóficos são
refúgios construídos pela mente nos quais os homens podem descansar,
pelo menos temporariamente, do assédio de experiências novas e da
dúvida. Além disso, as paisagens materiais de casas, campos de cultivo
e cidades controlam o caos. Cada moradia é uma fortaleza construída
para defender seus ocupantes humanos dos elementos; é uma lembrança
constante da vulnerabilidade humana (Tuan, 2005, pp. 12).

Temos, então, que o medo é um afeto amplamente conhecido, fundamen-


tal para as sobrevivências individuais e coletivas e determinante para boa parte
das transformações sociais. Por isto, neste texto, pretendemos tomá-lo como
uma espécie de afeto-protótipo para, a partir dele, tecer algumas reflexões a
respeito da complexidade e das sutilezas que se fazem presentes nas tentativas
de compreensão dos processos afetivos.

Os diferentes medos nos lugares de vida

De um modo geral, as fases iniciais dos estudos científicos a respeito


de um objeto específico envolvem duas operações básicas: a) a definição e
delimitação do objeto e b) a elaboração e o detalhamento de taxonomias.
A primeira operação consiste no estabelecimento de respostas a perguntas
como o que é isto (o objeto)? Que características são indispensáveis para que
ele seja reconhecido como tal e quais são aquelas que, se estiverem presentes,
nos levarão a reconhecê-lo como algo diferente? Como exemplo, se pretendo
me dedicar cientificamente a entender os preconceitos preciso saber, antes de
mais nada, em que eles consistem, que caraterísticas os compõem e quais as
que podem diferenciá-los de outras modalidades próximas de pensamentos,
sentimentos e ações sociais.
A segunda operação envolve a distinção de características próprias do
objeto que permitam o reconhecimento de diferentes tipos ou variações do
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 79

mesmo. Poderíamos tomar como exemplo, aqui, as diferentes modalidades de


violências, desde as mais evidentes até aquelas que são tão sutis que tendem
a não ser reconhecidas como violências.
No estudo dos afetos em geral e especialmente no caso do medo,
nenhuma destas duas operações é plena e precisamente efetuada. Ao adotar-
mos as proposições de Heller conseguimos ter uma definição bastante satis-
fatória e clara sobre o que sejam os afetos. Esta definição, no entanto, não
é mesma adotada por outros estudiosos do mesmo tema, como já vimos em
nosso primeiro capítulo. O mesmo pode ser dito a respeito das subdivisões
dos processos afetivos. Tanto é assim que o que alguns autores denominam
como emoção, aparece, em outras obras, classificado como sentimento; em
outros casos, as mesmas palavras são usadas em referência a processos que
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

são muito diferenciados entre si.


Indefinições semelhantes surgem quando nos propomos a estudar o medo.
No primeiro capítulo deste livro, Tomanik sugeriu que nem sempre é
possível saber claramente quando um afeto foi transformado em outro ou
quando vivências, práticas e verbalizações aparentemente diferenciadas cons-
tituem um mesmo afeto.
Em estudo realizado como parte da composição de sua Dissertação de
Mestrado, Ohara (2017) entrevistou moradores de Marilândia do Sul, uma
pequena cidade da região Norte Central do Estado do Paraná, a respeito da pre-
sença, dos fatores desencadeadores e dos papéis do medo em seus cotidianos.
Nesta sessão do texto, pretendemos aproveitar os posicionamentos emi-
tidos por aqueles entrevistados para ilustrar alguns dos diferentes modos de
vivência e de manifestação externa dos medos e sobre a origem coletiva (ainda
que nem sempre evidente), destas implicações.
Ciente da existência de diferentes paisagens do medo, Ohara (2017)
optou por entrevistar homens e mulheres, divididos em faixas etárias próxi-
mas às que são comumente reconhecidas entre os moradores locais, e que
denominou como adultos jovens (com idades entre 20 e 35 anos), pessoas
que estavam na meia-idade (entre 36 e 55 anos) e pessoas idosas, cujas
idades já ultrapassavam os 56 anos. Ao mesmo tempo, visando garantir que
os entrevistados fizessem parte de um grupo mais ou menos homogêneo
em relação às suas vivências, selecionou pessoas que já residissem naquele
munícipio ao menos por 15 anos e que profissionalmente atuassem como
funcionários públicos.
As entrevistas não seguiram um roteiro pré-estabelecido. Foram ini-
ciadas com base em uma mesma indagação ampla (“como é a sua vida
aqui em Marilândia do Sul?”) e, deste ponto em diante, passavam a ser
direcionadas a partir das respostas elaboradas pelos entrevistados e dos
temas sugeridos por elas.
80

Resumindo de modo extremo os depoimentos de cada um, teremos que


Marcia1 (27 anos), destacou a tranquilidade que prevalece nas relações e no
cotidiano da localidade. Segundo ela, existiam ali, sim, algumas manifestações
de violência, mas que não representavam problemas ou ameaças:

[...] tem violência, essas coisinhas que não tem como fugir, mas no geral
é bem tranquila mesmo. Até o ponto de não ter onde ir, de não ter onde
sair, de não ter muito o que fazer, mas é uma cidade boa, bem sossegada.

Por outro lado, preocupava-se com outra característica do local: “as


vezes falta emprego aqui, então tem bastante gente que tem que sair daqui e
ir para Apucarana ou uma outra cidade vizinha para trabalhar, porque aqui

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


não tem emprego para todo mundo”.
A palavra que Marcia adotou para descrever o que sentia em relação à
esta situação foi desconforto.
Marcio (34 anos) também citou, ao longo de suas falas, uma preocupação
semelhante em relação ao desemprego local, mas não a colocou como um
elemento importante. Ele destacou o que considerava como ineficiências da
polícia e do sistema público de segurança.

Eu vejo muita camaradagem da questão. [...]. Entende, eu acho que a


polícia deixa muito por agir, por ser conhecido, por ter amizade, e não
exerce sua função. [...]. Já vi, várias coisas acontecerem e que polícia botou
panos quentes em cima e as coisas não se encaminharam e no futuro aca-
bou acontecendo, por que lá atrás a polícia tentou segurar. Tentou segurar
não, a polícia segurou.

Marcio afirmou, ainda, não saber se não havia violências na cidade ou


se elas ocorriam, mas eram acobertadas por esta postura mais conciliadora e
menos punitiva dos policiais.
Numa linha semelhante de raciocínio, considerou que o estabelecimento
de relações humanos menos rígidas e autoritárias facilitavam as situações
de insegurança.
Diante deste quadro, ele disse preocupar-se especialmente com a situação
de desproteção das mulheres, que podiam sofrer violências e não tinham a
quem recorrer, ao menos no âmbito do município.
Marcio afirmou, ainda, que percebia a existência, na localidade, de um
certo medo relacionado a possibilidades de retaliação contra aqueles que
se dispunham e tentavam promover melhoras, especialmente quando elas
envolviam as políticas de saúde, educação e segurança.

1 Todos os nomes são fictícios.


O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 81

Indagado se sentia algum medo, ele respondeu: “tenho, é claro, você vai
ter medo da questão da segurança acho que todo mundo tem, né. [...]. A inse-
gurança que eu tenho medo e a injustiça que é umas coisas que eu não gosto”.
Andréia (50 anos), tal como os anteriores, destacou a falta de postos de
trabalho e os baixos índices de violência do município, mesmo quando em
comparação com outros municípios vizinhos, igualmente pequenos. Também
reclamou da falta de policiamento.
Destacou que a casa de sua mãe já havia sido furtada e citou um caso de
enfrentamento armado, ocorrido com uma pessoa conhecida da localidade.
Como formas de defesa, citou que sua mãe, embora tivesse sua própria
casa, passava os dias na casa da filha, onde não ficava desacompanhada. Além
disso, a família providenciou a construção de muros altos nas duas residências.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Andréia defendeu a implantação de uma guarda municipal, capaz de


garantir um patrulhamento mais efetivo. Afirmou, ainda, que os furtos e roubos
que ocorriam no município estavam associados ao consumo de drogas e que,
por isso, que via com muita preocupação a falta de atividades complementares
à escola, para as crianças de famílias de baixa renda:

Mas tudo aquela molecadinha, era umas duas horas, três horas, tudo
aqueles jovens tudo correndo para rua, brincando, às vezes se tivesse
algum potencial de ter alguma coisa para eles poderia não ficar ali, né?
Então se querem fazer um curso é só pago, tem que ir fora, poderia ter
um curso de sei lá, de inglês, de espanhol, aula de violão, que eu sei que
muita gente gosta né, é assim... Eu vejo aquela molecadinha correndo
para lá. Infelizmente isso chega, para alguns chega pior né. Uns come-
çam a passar a usuário, viram usuários porque não tem né, os pais têm
que trabalhar, e a criançada chega da escola, fica sozinha em casa, fica
para rua, isso falta.

Andréia afirmou que essa situação a levava a ter medo do futuro, do


envolvimento das crianças com o uso de drogas, e das consequências des-
sas situações.
André (51 anos) também fez referências às faltas de empregos e policia-
mento no município. Ele enfatizou a necessidade de uma atuação mais efetiva
da polícia, mas acrescentou que também seriam necessárias a implantação e
a efetivação de leis menos brandas e mais repressivas.

Antigamente se você visse um carro de polícia, a criança, piá de dez anos,


chegava a mijar na roupa de medo. E agora? Alguém tem medo de polí-
cia? Alguém tem medo de autoridade? De juiz que pode condenar? Não
tem, acabou. Acabou o respeito pela vida também. A vida do ser humano
parece que não vale muita coisa também né.
82

Como tentativas de defesa de si e de seus familiares, André havia adotado


uma série de medidas arquitetônicas, que incluíam a elevação da altura dos
muros de sua casa, a implantação de cercas elétricas, de um portão eletrônico e
a construção de um pequeno cômodo, separado do corpo da casa, para receber
algum hóspede eventual.

Construí esse cômodo pequeno para uma pessoa que vier aqui e quiser
dormir aqui, tem cama aí, tem tudo. [...] E aqui é separado da minha
casa, não tenho medo de colocar, não tenho receio de colocar uma pessoa
dormir ali, mas aqui dentro da minha casa eu não coloco, só se for um
parente, bem conhecido. Não dá né? Não dá para confiar em ninguém.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Apesar destas medidas, ele afirmou não sentir medo: “eu nunca fui muito
medroso, eu sempre achei que a gente tem que ser precavido; medroso não,
precavido sim”.
André afirmou que não havia bandidos na cidade, entre a população que
vivia ali. Segundo ele, a bandidagem vinha de fora, junto com as drogas e as
armas. Por isso, defendeu a liberação da posse e do porte de armas para os
“cidadãos de bem”:

[...] antigamente, quando todo mundo era liberado para andar armado
tinha menos violência que agora. Os homens se respeitavam bem mais.
Depois que veio essa lei do desarmamento ficou mais fácil para os ban-
didos, e mais ruim para os cidadão de bem. Eu acho que se todo mundo
tivesse o direito de se defender, não precisava muita polícia não.

Rafaela (64 anos) também fez coro com os demais, afirmando que con-
siderava Marilândia como um local onde havia muito pouca violência, mas
também poucos empregos e acrescentou a falta de atividades de lazer.
Segundo ela, o conhecimento mútuo e a convivência prolongada entre
os moradores do município serviam como base para a construção de uma
sensação de segurança no local.
Rafaela afirmou que não saberia dizer se tinha medo de algo específico,
mas que se preocupava com a possibilidade de ocorrência de uma má adminis-
tração política da cidade, que colocasse em risco ou que anulasse os avanços
que haviam sido construídos e que incluíam melhoras na assistência à saúde
da população e nos serviços educacionais.
Rafael (78 anos) completou a unanimidade do grupo de entrevistados
a respeito da existência de pouca violência no município, mesmo quando os
acontecimentos dali eram comparados com os de outros municípios, igual-
mente pequenos, do entorno.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 83

Apesar disto, ele provavelmente tenha sido o entrevistado que mani-


festou posições mais veementes em relação ao que considera como riscos à
tranquilidade do lugar: “porque hoje em dia, depois da Nova Constituição,
o país virou uma... Vamos falar o Português certo, virou um país sem lei.
Porque você não pode punir o começo, o negócio é o começo da infração”.
Rafael explicou sua concepção sobre o que seria “o começo da infração”:

[...] porque antigamente era punido, se uma criança roubasse era punida
e aquela criança nunca... A maior parte não roubava mais, porque eles
tinham vergonha. Eles traziam, por exemplo, no delegado e o delegado
dava um chá de cadeira pra ele, ponhava lá e fazia um monte de coisa,
ameaça né, aí ele pegava medo.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

De acordo com sua análise,

[...] hoje tem bandido por quê? Porque não tem a lei para punir a criança
quando faz. Eu dou exemplo de 15, 16 anos em diante tinha de ser punido,
e hoje os pais não podem nem falar alto com um filho.

Rafael ressaltou que a legislação atual traz em si alguns pontos positivos,


ainda que logo tenha voltado a se posicionar em defesa das medidas punitivas:

[...] antigamente tinha pais que não sabiam educar, ao invés de educar
ele queria matar. Essa lei que veio foi boa em um ponto, ruim no outro.
A lei tinha que ser para punir os pais que não soubessem dar educação
para os filhos.

Segundo sua interpretação, antigamente havia menos segurança (referin-


do-se aos aparatos formais, como polícia, tribunais, esforços preventivos) mas
não existiam ladrões nem bandidos. Ele citou dois motivos para a existência
da criminalidade nos dias de hoje. Um deles teria a ver com a organização
econômica, mas também com alguns maus hábitos das pessoas.

Mas hoje em dia os filhos são criados a maior parte na rua. Antigamente,
por exemplo, o pai ganhava o suficiente para dar o sustento da casa.
Hoje não. Hoje já tem que a mulher ajudar a trabalhar, não é tudo, mas
principalmente nessas cidades grandes tem que ser, porque senão não dá
o sustento né. Agora no interior que nem nós estamos aqui é diferente, os
pais até ganham o suficiente, mas não é tudo também, porque o povo de
hoje em dia não economiza.

O outro motivo seria a influência dos meios massivos de comunicação:


84

[...] hoje a comunicação, como a gente vai dizer? Influi a bandidagem.


No caso de drogas. Tudo quanto é coisa a mídia está em cima, a televisão
falando isso, falando aquilo. [...] Influência da mídia, isso não tem outra
coisa. O roubo, por exemplo, o roubo veio por causa que o rádio falava
que lá na frente, por exemplo, lá em cima, que os deputados roubavam,
isso e aquilo, e o povo veio... A mentalização veio vindo. Eu para mim
é isso. [...] Ah é, de tanto escutar e depois a lei não pune né, que depois
dessa nova Constituição aí, a lei mudou, a polícia... Eles não podem punir,
porque a Constituição não deixa.

Em defesa de suas ideias, Rafael chega a apresentar uma versão muito


pessoal sobre o funcionamento do sistema de justiça que teria funcionado no

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Paraguai, durante a ditadura de Alfredo Stroessner.

Aqui por exemplo, se fosse a lei igual o Paraguai... A turma fala que é
negócio de direitos humanos não sei o que, estavam brigando lá. E no
Paraguai, direitos humanos, só que bandidagem lá não existe né, hoje
existe mais, porque já mudou também o Paraguai hein, de Stroessner
para cá mudou muito, ficou cada vez pior. É no caso, por exemplo, a
maconha, hoje no Paraguai planta maconha quem quiser e na época do
Stroessner não, se o cara plantasse maconha lá estava perdido, que o
governo paraguaio descobria.

O medo é mais frequentemente descrito e reconhecido como um processo


que envolve, de um lado, algum evento ou entidade, que surge repentina-
mente ou que pode vir a surgir e que seja potencialmente ou aparentemente
capaz de produzir danos à integridade física ou à sobrevivência do sujeito. Do
outro lado, o medo envolve um organismo que passa por alterações intensas
e claramente perceptíveis, tais como as descritas por Darwin, que preparam
aquele organismo para a emissão de respostas rápidas e amplas de defesa ou
fuga. Em alguns casos, a intensidade (efetiva ou percebida) da ameaça ou
das alterações corporais podem ser extremas a ponto de levar à anulação da
capacidade de reação do organismo ou mesmo de seu contato com a realidade
externa: a pessoa fica imobilizada ou perde os sentidos.
Nenhum dos entrevistados manifestou algo parecido a este modelo básico
e podemos supor que mundialmente reconhecido do medo. No entanto, pro-
cessos que também poderíamos classificar como medos estiveram presentes
nos depoimentos de todos eles a respeito de suas vivências e expectativas.
Todos fizeram menções a diferentes processos de afetação que os faz agir
ou antecipar modalidades de ação capazes ou destinados a manter a salvo
ou a minimizar efeitos nocivos que poderiam ser causados por um ou mais
eventos ou pessoas.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 85

Alguns dos entrevistados por vezes assumiram e expressaram verbal-


mente a presença desses afetos em suas vivências pessoais ou projeções para
o futuro: Andréia, analisando a situação atual das crianças mais pobres da
localidade, disse ter medo do futuro ao qual elas estariam aparentemente des-
tinadas. Outros negaram verbalmente a presença desse afeto em si mesmos,
e preferiram chamá-lo por outros nomes, como preocupação ou insegurança.
Marcia, por exemplo, afirmou:

Ah, nunca conversamos sobre isso. Sobre medo não [...] talvez essa ques-
tão do desemprego. Medo assim de talvez... Eu mesmo não tenho segu-
rança no meu serviço. Então do nosso grupo ninguém tem aquela coisa
certa. Então é isso, insegurança na parte profissional, mas medo não.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

André, igualmente, negou ser uma pessoa medrosa; considerava-se ape-


nas precavido.
As diferenças entre os processos identificados por aquelas denominações,
no entanto, não são claras para eles, como é possível perceber em algumas
das afirmações feitas por Marcio. Em um momento, ele afirmou: “eu tenho,
não que seja medo. Medo eu não tenho, mas tenho raiva da injustiça”. Em
outro trecho de seu depoimento, alterou sua afirmação: “tenho, é claro, você
vai ter medo da questão da segurança acho que todo mundo tem, né. São
esses tipos de coisa. A insegurança que eu tenho medo e a injustiça que é
uma coisa que eu não gosto”.
Por vezes, permanecer na localidade também é uma opção que deriva
da existência de medos. André, em um trecho que não foi incluído em nosso
resumo, afirmou que não tem interesse em ir para uma cidade de maior porte
por que “você vê só notícia ruim na televisão, né. Daí você fica pensando né.
Vai que eu vou lá e sou um dos premiados de levar uma bala perdida lá né”.
De um modo ou de outro, todos os entrevistados citaram práticas pessoais
que claramente eram derivadas de medos e que visavam, de algum modo,
fornecer alguma proteção contra aquilo que os originara.
Um conjunto de afirmações presentes nos depoimentos dos homens traz
uma perspectiva preocupante: a possibilidade e as intenções de gerar medo
no outro, como uma modalidade de defesa contra o medo que ele gera ou
pode vir a gerar em nós. Essa perspectiva aparece de modo mais brando na
cobrança de maior efetividade nas atuações policiais, apresentada por Marcio
e vai ganhando tons cada vez mais agressivos nos depoimentos de André e
de Rafael.
Ela aparece, numa síntese muito clara, em outro trecho dos depoimentos
de André, também não incluído em nosso resumo inicial, em que ele defende
a liberação da posse e do porte de armas de fogo para os ditos “cidadãos de
86

bem”: “se o cara souber que eu tenho uma arma, o cara vai tentar vir aqui
fazer uma surpresa pra mim de noite? Ele não sabe se vai fazer uma surpresa
pra mim ou se ele vai levar uma surpresa...”.
A mesma perspectiva de utilizar o medo como antídoto do medo está
presente nas falas de todos eles, quando louvam um passado e idealizam
um presente de relações mais rígidas e autoritárias, de autoridades policiais
(mas também familiares e educacionais) com poderes muito mais amplos e
ilimitados de coerção e atinge seu ápice na louvação à figura idealizada de
um ditador pretensamente justo e honesto (que, diga-se de passagem, já é
incoerente em sua própria concepção).
Ainda que isto nos leve a um breve desvio de nossos objetivos, parece

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


interessante registrar aqui a possibilidade e a conveniência de passarmos a
considerar as manifestações de defesa e de apego a modelos autoritários de
relações sociais e de controle, que temos visto com tanta frequência e inten-
sidade (as saudades da ditadura, as agressões às minorias...) como derivadas
de um medo: o da perda de uma condição de privilégios.
De volta ao nosso objetivo. Aparentemente, há um medo originado na
situação atual, que se volta para a valorização das condições de segurança e
das relações mais rígidas do passado e outro, também baseado na observação
do presente, mas que tende a ser verbalizado como uma preocupação com
o futuro. O primeiro foi citado praticamente apenas nos depoimentos dos
homens. O segundo surgiu nos depoimentos das mulheres, mas também em
alguns momentos das falas do subgrupo masculino.
Também foram citadas fontes originadoras diferentes para os proces-
sos identificados como de medo, temor ou cautela: alguns poderosos locais
(nunca nomeados, já que todos os entrevistados são ou foram funcionários
públicos e sempre é melhor não correr riscos...), adolescentes consumidores
de drogas, crianças pobres que podem vir a tornar-se consumidoras, os que
vêm de fora da cidade...
As diferenças quanto à fonte e as dimensões cronológicas envolvidas nes-
ses processos afetivos serão suficientes para nos levar a pensar na existência
de afetos distintos? Ou será mais adequado considerar que elas definem tipos
diferentes ou apenas casos específicos de um mesmo tipo de afeto?
Ao que parece, se os entrevistados sentiram dificuldades em precisar o
que, em seus afetos, pode ser considerado como medo e o que deve ser iden-
tificado com outras denominações, os que, como nós se dispõem a refletir, a
partir de perspectivas científicas, sobre os processos afetivos, enfrentam difi-
culdades semelhantes. Seria possível, adequado e produtivo estabelecermos
critérios claros e rígidos de distinção entre medos, preocupações, cautelas,
temores, pânicos etc.?
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 87

Caso optássemos pela elaboração de critérios de delimitação como aque-


les, como poderíamos contornar ou superar a possibilidade de que mani-
festações exteriores (verbais, corporais) muito semelhantes, associadas a
um mesmo evento desencadeador e à uma mesma situação, poderiam estar
relacionadas e ser resultantes de processos íntimos de experienciação e de
interpretação distintos?
A frase de Darwin, com a qual abrimos este capítulo, já cita a associação
entre o medo e o espanto, mas não nos ajuda a distinguir entre eles...
Há, ainda, um outro fator a ser considerado, aqui. Embora os medos
citados ou insinuados sejam vivenciados, interpretados e reconhecidos pelos
entrevistados como processos pessoais, a origem deles é coletiva.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Diferentes paisagens do medo transparecem no conjunto dos depoimen-


tos. Os medos do grupo feminino são mais relacionados a condições coletivas
e amplas: o futuro das crianças (ainda que esteja implícita aí a ameaça que
elas poderão vir a representar), a escassez de postos de trabalho no município,
os equipamentos e a atuação dos serviços públicos... Mesmo Andreia, que
já vivenciou o furto à residência de sua mãe e que tenta diariamente manter
sua genitora à salvo de ameaças, volta suas preocupações principalmente
para o futuro.
Já o grupo masculino, embora também reconheça as condições de traba-
lho no município como algo preocupante, tende a enfatizar a criminalidade
e as formas repressivas de combatê-la. Como homens, em uma sociedade
machista, aprenderam a selecionar, construir, vivenciar, direcionar e expressar
seus medos dos modos que a sociedade prevê que os homens o façam. De
preferência negando que esses medos existam ou que sejam medos...

O(s) lugar(es) do medo na tipologia dos afetos

Se a definição e a delimitação do medo não foram plenamente estabele-


cidas, o que podemos esperar a respeito do seu enquadramento na tipologia
proposta por Heller (1993), para o conjunto dos afetos?
Acompanhado as denominações sugeridas por Tomanik no capítulo ini-
cial deste livro para a classificação dos afetos proposta por Heller (1993),
temos que os afetos impulsivos podem ser considerados como os processos
afetivos iniciais, que servem de base para todos os demais.
Apenas relembrando, os impulsos, que na linha do desenvolvimento
humano antecedem os afetos impulsivos e que têm sua origem no próprio
organismo, são fundamentais para a preservação biológica dos indivíduos e
já se manifestam desde o nascimento da criança. Eles incluem, por exemplo,
o frio, a sede e a fome.
88

O medo é outro desses impulsos básicos. Ele funciona como um sinal


de alerta e promove a mobilização de todo o organismo para tentar evitar ou
afastar um perigo eminente. Tuan (2005) afirma que, como impulso, o medo
está presente em muitas espécies animais, e que as alterações fisiológicas
associadas a ele são especialmente úteis: a dilatação das pupilas produz o
aumento do campo de visão, que pode ser útil para uma ação de fuga ou de
busca de recursos auxiliares no entorno; a aceleração dos batimentos car-
díacos possibilita uma melhor irrigação sanguínea nos membros inferiores e
superiores, o que favorece a execução de movimentos rápidos e intensos de
fuga ou de ataque e assim por diante.
Nos seres humanos, mesmo surgindo como elementos inatos, os impulsos
não tardam a ser incluídos nos processos de interação da criança com seus

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


cuidadores e, assim, passam a ganhar significados e funções sociais cada vez
mais complexos, sendo transformados em afetos impulsivos. Como já vimos
no capítulo inicial, o choro de uma criança que acaba de nascer expressa
apenas uma reação involuntária, é um sinal de um desconforto do organismo
em relação a algo e que é direcionado somente ao próprio organismo, isto
é, que não tem ainda um sentido social. Contudo, não demora para que esse
choro passe a ser interpretado por outras pessoas, o que faz com que passe a
ganhar novos sentidos, entonações e funções, tornando-se uma modalidade
básica de comunicação social.
Tal como acontece com o choro, o medo também não tarda a ser reves-
tido de significados e de conotações sociais. A criança aprende a direcionar
aquelas reações, inicialmente instintivas, a novos objetos, que podem não ser
efetivamente ameaçadores, do ponto de vista das relações físicas, mas que são
considerados como temíveis pelas pessoas com as quais a criança convive,
em seus estágios iniciais de desenvolvimento. O medo-impulso inicial, sem
deixar de existir, passa a manifestar-se também e a ser vivenciado como um
afeto impulsivo.
Pequenos animais não peçonhentos, a escassez de iluminação ou mesmo
pessoas mortas não constituem, em si, ameaças efetivas à integridade física
ou à vida de seres humanos, especialmente no caso de adultos. Como enten-
der, então, as reações de quase pânico de algumas pessoas diante de baratas,
ratos ou morcegos?
Em todos estes casos, os elementos causadores do medo são apenas
convenções sociais, elementos que receberam, provavelmente já nos estágios
iniciais dos aprendizados dos sujeitos, a conotação de ameaçadores e que
passam a desencadear interpretações e reações idênticas ou muito próximas
aos objetos e situações potencialmente danosos, de fato.
Diferentemente dos impulsivos, os afetos sociais não são decorrentes ou
derivados de necessidades biológicas nem se destinam (ao menos diretamente)
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 89

a satisfazê-las. Eles são desencadeados por eventos externos aos organismos


e, desde o início da aprendizagem de cada um, decorrem de suas interações
sociais (Heller, 1993; segundo a renomeação proposta por Tomanik).
Como exemplos dos afetos sociais podemos citar a alegria, a tristeza, o
ódio... Afetos como estes, de modo geral, foram e são reconhecidos em todas
as culturas, existem e são vivenciados e normatizados por todos os grupos
sociais, independente da época. No entanto, carregam sempre as marcas dife-
renciadoras conferidas a eles pelos grupos e suas convenções.
Tuan afirma que “os medos são experimentados por indivíduos e, nesse
sentido são subjetivos; alguns, no entanto, são, sem dúvida, produzidos por
um meio ambiente ameaçador, outros não” (2005, pp. 7). O que é visto como
ameaçador no ambiente físico e nas relações sociais de um grupo pode não
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ter estas mesmas características para outro grupo, que vive em outras condi-
ções e que, por isto, elaborou outras representações sobre os elementos que
compõem seu ambiente. As relações com o espaço amplo, os animais e as
árvores, aprendidas e praticadas por crianças que tenham nascido e crescido
no meio rural, às margens de um igarapé amazônico e no centro de uma
metrópole serão, certamente muito diferenciadas. Os medos aprendidos por
elas seguirão a mesma tendência.
As paisagens do medo, assim como mudam de grupo para grupo, tam-
bém vão sendo alteradas ao longo da vida de cada sujeito, de acordo com as
convenções dos grupos de que ele faz parte.

A natureza do medo vai mudando à medida que a criança cresce, tal como
acontece com uma sociedade que, com o transcorrer do tempo, torna-se
mais complexa e sofisticada. As paisagens do medo não são situações per-
manentes da mente, ligadas a segmentos imutáveis da realidade tangível;
nenhum esquema atemporal pode simplesmente englobá-las. Por isso é
necessário abordar as paisagens do medo tanto da perspectiva do individual
quanto do grupo, e colocá-las, ainda que sob a forma de tentativa, em um
marco histórico (Tuan, 2005, pp. 14-15).

Assim submetido aos ditames sociais, o medo já não pode ser visto como
uma reação puramente instintiva. Inicialmente ele já havia sido direcionado
para objetos ou elementos simples, socialmente interpretados como perigo-
sos, no processo de aprendizado dos afetos impulsivos. Ao longo da vida
do sujeito, e com a diversificação dos aprendizados e da participação social
deste, os medos se estendem a outras esferas e passam a refletir a estrutura
social como um todo.
O temor e a incompreensão gerados pelo final da vida, em algumas cultu-
ras, manifestam-se nos medos causados por pessoas mortas em alguma de suas
várias (e supostas) formas de (re)vivência: como almas penadas, fantasmas,
90

vampiros ou, na modalidade mais atual, zumbis. Para muitas pessoas, os


cemitérios ainda são espaços ameaçadores, especialmente à noite. Em outras
culturas, nas quais a morte é representada apenas como um momento em um
processo contínuo, aqueles mesmos medos provavelmente sequer existem.
Os medos atuam também, e fortemente, como sentimentos orientativos.
Apenas como recapitulação,

[...] tais sentimentos representam posicionamentos positivos ou negati-


vos sobre pessoas, lugares ou fatos e orientam nossas ações na vida em
sociedade, além de nos auxiliarem no reconhecimento do que é ou não é
aceitável. São, então, objetivações construídas socialmente e que comu-
mente estão ligadas a outros sentimentos (Ohara, 2017, pp. 29).

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Como sentimentos orientativos, os medos passam a assumir funções
ostensivamente políticas. Segundo Delumeau (2009), mesmo que de modo
velado, os medos são utilizados intensamente como justificadores e mantene-
dores de situações de desigualdades sociais, políticas e econômicas.
Segundo Chauí (1987) em todo o período compreendido entre a Grécia
clássica e a renascença europeia, o medo era visto como uma postura vergo-
nhosa e reprovável.

[...] O medo corresponderia, então, a uma covardia e estava associada


àquele que não lutava, opondo-se à bravura que estava ligada aos grupos
que tinham privilégios. O corajoso, por sua vez, num primeiro momento
era o guerreiro, jovem e de coração nobre, que representava o herói grego
e, noutro momento, o cristão, que levaria a palavra de Deus a toda a terra
como guerreiro das cruzadas. [...] na Idade Média, durante o período
das Cruzadas, o mal era representado pelos pagãos, considerados figuras
diabólicas e inimigos dos cristãos, pois eram aqueles que exerciam outra
fé (Ohara, 2017, pp. 29-30).

As narrativas ocidentais que destacam a bravura e o valor dos que luta-


vam nas cruzadas, combatendo o mal representado pelo paganismo tendem a
omitir, porém, as atrocidades que poderiam colocar dúvidas sobre as virtudes
desses supostos paladinos do bem: “cavaleiro da fé, o herói cristão pilha,
rapina, estupra e mata ad majorem Dei gloriam”2 (Chauí, 1987, pp. 41).

Em outro momento histórico, já no final da Idade Média e início da Renas-


cença, o protestantismo eclode, trazendo consigo a ética do trabalho como
virtude. Segundo esta ética, aqueles que não produziam acabaram se tor-
nando os representantes do medo sentido pela classe dominante e, então,

2 Expressão latina que significa “para maior glória de Deus”.


O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 91

aqueles que eram considerados ociosos assumem a representação do mal


(Ohara, 2017, pp. 30).

Exemplos como estes já nos servem para evidenciar as afirmações de


Chauí (1987), segundo as quais as construções sociais dos medos não estão
ligadas apenas aos perigos ambientais e às necessidades de sobrevivência
dos sujeitos e dos grupos, mas visam e servem também ao estabelecimento,
manutenção e justificação de modos de relações sociais que envolvem controle
e diferenciações de direitos e de possibilidades de participação.
Estabelecidas e aceitas, aquelas construções fazem com que os medos
passem a atuar como direcionadores de condutas de submissão e de aceitação
das desigualdades sociais.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Já em nossa época, em boa parte do mundo, a organização social, o


desenvolvimento de recursos e os modos de vida auxiliaram muito os seres
humanos em suas tentativas de se verem livres de alguns tipos de ameaças,
como as feras e alguns outros eventos naturais como as secas, os incêndios e a
escassez de alimentos. Por outro lado, aqueles mesmo elementos de proteção
produziram ou auxiliaram a produção de outras modalidades de ameaças,
como o aquecimento global e as poluições ambientais e suas consequências.
Acima de tudo, não foram e não são capazes de livrar os seres humanos do
medo causado por seus semelhantes.

Os temores, que antes eram direcionados aos fenômenos da natureza, aos


deuses, aos monstros foram, no decorrer da história, desmistificados ou
enfrentados, porém acabaram sendo atribuídos ao que é humano. A malig-
nidade do homem, então, não pôde ser enfrentada com a criação de instru-
mentos, de fortalezas ou de pesquisas; ela ainda faz parte do imaginário das
relações e, também, da realidade delas. [...] com o aumento considerável
da concentração de pessoas nas cidades, surge um cenário propício para
que esses medos, enquanto sentimentos orientativos, se enraízem. Embora
a cidade seja a maior representação da civilidade humana, tendo em vista
todas as regras e normas criadas para a convivência e exigidas de todos os
cidadãos, ainda assim é o espaço no qual os velhos medos se apresentam
sob novas aparências (Ohara, 2017, pp. 31-32).

No cotidiano atual das cidades de grande e mesmo de algumas de médio


porte no Brasil e em vários outros países, os medos mais presentes tendem
a ser aqueles associados à aglomeração de grande quantidade de pessoas,
vivendo em condições muito diferentes umas das outras. O agrupamento e
a proximidade de pessoas, que já foram elementos de proteção, hoje são a
fonte de ameaças. A cidade, que já representou uma garantia de proteção aos
grupos e indivíduos, hoje torna-se seu monstro mais temido.
92

Diante deste quadro, crescem o interesse, a construção de novos espaços


fortificados e excludentes, e o desenvolvimento e a utilização de novas tecno-
logias de vigilância e de segregação. Mesmo que isto represente, por sua vez,
uma ameaça ou que produza danos físicos e morais aos demais, não importa.
As novas fortificações existem para proteger alguns contra outros; os que se
vêm como iguais entre si contra os que são vistos, por eles, como diferentes.
O medo hoje, como ao longo da história, orienta decisões, investimentos,
construções, separações de espaços e de grupos...
Segundo a interpretação de Tomanik, em nosso capítulo inicial, Heller
(1993) denomina como emoções um grupo amplo de afetos que envolvem alto
grau de abstração e de elaborações intelectuais. Ao contrário dos demais gru-
pos, as emoções não são relacionadas a objetos ou acontecimentos específicos;

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


elas são direcionadas e envolvem concepções ou conjuntos de elementos muito
amplos: os valores sociais, o futuro, a humanidade como um todo, a nação...
Nem sempre conseguimos estabelecer com clareza o evento desenca-
deador e o momento do surgimento de uma emoção. Por vezes, sequer con-
seguimos identificá-la ou descrevê-la.
Segundo Heller (2004), embora possamos tratá-las como parte de um
mesmo grupo de afetos, as emoções podem ter características muito diversifi-
cadas. Além disso, os nomes pelos quais algumas delas foram identificadas, em
momentos diferentes da história de um mesmo grupo, com frequência fazem
referências a processos distintos, que envolveram ou envolvem objetos, dura-
ções e processos de experienciação e de expressão muito diferentes entre si.
Além disso, elas são integrativas: não é possível separar seu conteúdo
daquilo que as produziu e das interpretações realizadas pelo sujeito que
as vivencia.
Heller (1993) afirma que as emoções possuem um caráter que é multi-
fatorial, heterogêneo e particular a cada indivíduo.
Apesar disto, elas podem estender-se e ser compartilhadas por muitas
pessoas, ainda que sejam vivenciadas individualmente de modos específicos. É
possível identificar, ao longo da história, emoções predominantes em momen-
tos da existência de determinados grupos que são, por vezes, bastante amplos.
De acordo com Moïsi, “[...] as emoções importam. Elas têm impacto
sobre as atitudes, nas relações entre culturas e nos comportamentos das
nações” (2009, pp. 28). Segundo ele, é possível perceber que os países da
Ásia, de modo geral, compartilham hoje uma cultura da esperança, baseada na
superação das condições existentes após sucessivas guerras, no crescimento
econômico acentuado e nas melhoras na qualidade de vida de suas popula-
ções. Os países do Oriente Médio, ou ao menos vários deles, vivenciam uma
cultura da humilhação, já que suas crenças, valores e os modos de relações
sociais, que já foram difundidos e dominantes em espaços geográficos muito
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 93

amplos, e que incluíam, por exemplo, o norte da África e boa parte do sul da
Europa, hoje vem sendo cada vez mais limitados, questionados e invadidos,
graças ao predomínio econômico e cultural do ocidente.
Em contrapartida, mas também em decorrência destas condições, Moïsi
afirma que boa parte dos países da Europa e da América do Norte compar-
tilham, hoje, uma cultura do medo, mesmo que ela assuma configurações
diferentes em cada país.

Essa crise pode ser descrita nos seguintes termos: “O que está aconte-
cendo conosco? Costumávamos estar no controle de nossa vida coletiva
e de nossas identidades. Costumávamos ser encarregados do restante do
mundo. Mesmo que, no século XX, tenhamos nos conduzido à autodes-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

truição [Primeira Guerra Mundial] ou ao suicídio/assassinato [Segunda


Guerra mundial e o Holocausto], pelo menos fizemos isto a nós mesmos.
Essas foram nossas loucuras. Agora parece que estamos sendo vitimados
por forças além de nosso controle. A Ásia está prestes a nos superar eco-
nomicamente. Os fundamentalistas do mundo islâmico têm a intenção de
nos destruir. Os imigrantes das nações do sul estão prestes a nos subjugar.
Existe alguma forma de recuperar o controle de nosso próprio destino?”
(Moïsi, 2009, pp. 87-88).

Infelizmente, tudo nos indica que as tentativas de superação destas con-


dições pelos países econômica e militarmente mais poderosos, é muito seme-
lhante às que foram citadas e pelos homens entrevistados em Marilândia do
Sul, provavelmente porque estes aprenderam a ser (e o que é ser) o que são
com base nos ideais traçados e nas ações empreendidas por aqueles países,
mesmo que em outros momentos históricos. As opções preferenciais de todos
envolvem produzir paisagens do medo para tentar não sentir medo.
Podemos não saber exatamente o que o medo é ou quantas faces distintas
ele pode assumir. Parece que isto não importa, já que sabemos muito bem
como produzi-lo.
94

REFERÊNCIAS
Dahl, H. (1977). Considerations for a Theory of Emotions. In J. De Rivera.
A structural theory of the emotions. International Universities Press.

Darwin, C. (2016 [1872]). A expressão das emoções no homem e nos animais.


Companhia das Letras.

Heller, A. (1993). Teoria de los sentimentos. Coyoacán.

Ohara, T. (2017). Do cotidiano do medo ao medo do cotidiano: as repre-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


sentações sociais do medo em um município de pequeno porte. Dissertação
(Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Esta-
dual de Maringá.

Strongman, K. T. (2004). A Psicologia da Emoção. Climepsi.

Tuan, Y. F. (2005). Paisagens do Medo. Editora Unesp.


5. “EU NÃO PRETENDIA TER FEITO
O QUE FIZ”: os afetos na construção
das opções morais contemporâneas
Bethânia Cabrera de Souza Bortolato
Eduardo Augusto Tomanik

A sequência de acontecimentos, embora brutal, já não nos surpreende,


tantas são as vezes que dela tomamos conhecimento: alguém bebe (muito), sai
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

dirigindo de modo (muito) imprudente e causa a morte de uma ou mais pes-


soas. Dias depois, identificada e detida, a pessoa responsável por aqueles atos
apresenta um depoimento choroso, no qual afirma que não tinha intenção de
matar quem quer que seja e que espera que as famílias das vítimas a perdoem.
Outra sequência de acontecimentos, felizmente não tão frequente, mas tão
abominável que sequer deveria ter ocorrido: uma pessoa fica insatisfeita com
o atendimento que havia recebido em um estabelecimento comercial. Ela vai
até onde seu veículo estava estacionado, dirige o mesmo até detê-lo diante do
estabelecimento, realiza vários disparos de uma arma de fogo, ferindo algumas
pessoas, matando um dos muitos clientes que estavam no local e foge para
esconder-se. Depois de identificada, localizada e detida, vem a público, pede
as desculpas de praxe e diz que não pretendia ter atingido alguém.
Por que acontecimentos lamentáveis e evitáveis como esses servem como
abertura para este texto? Sobre o que pretendemos que eles nos auxiliem
a refletir?
Nossos temas centrais, aqui, serão a moral, a ética e alguns dos afetos
associados a elas e que sustentam suas aplicações. Também buscaremos com-
preender os afetos denominados como vergonha e culpa enquanto processos
complexos, para estabelecermos algumas análises sobre como vêm se dando
as relações entre eles e as decisões e os agires morais, em nosso contexto.
Neste ponto é que exemplos como aqueles poderão nos ser úteis.
Nosso raciocínio central parte da aceitação de que a) a moral é um ele-
mento essencial para a regulação das relações sociais e b) afetos como os
de vergonha e culpa, que derivam das concepções morais e que, uma vez
desenvolvidos, passam também a orientar as decisões neste campo, podem
ser indicadores importantes para a compreensão da composição daquele ele-
mento de regulação.
Tentando tornar claras estas afirmações, vamos procurar compreender
cada um daqueles conceitos.
96

Antes disso, queremos apenas destacar que a partir do sentimento de


vergonha as nossas escolhas passam a se dar em decorrência da nossa própria
preservação. Uma vez experienciado esse sentimento, o assumimos e nos
responsabilizamos pelo que possa tê-lo originado; assim ele interfere nas
nossas possibilidades de escolhas futuras e na maneira como nos relacionamos
conosco e com tudo e todos a nossa volta.

Tentando definir (e entender) Moral e Ética

É bastante comum que ouçamos ou que participemos de conversas nas


quais circulam reclamações e cobranças sobre a necessidade de mais ética na
política, nas relações comerciais ou sociais ou de mais rigor na aplicação dos

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


códigos de ética profissionais. Vez ou outra também ouvimos reclamações
sobre a necessidade ou a escassez de respeito à moral.
Os dois termos, ética e moral, parecem ser associados. Por vezes, são
tratados mesmo como sinônimos.
No entanto, se perguntarmos a nós mesmos ou aos nossos interlocutores,
o que aqueles termos significam, exatamente, teremos boas respostas?
Provavelmente não, e por uma série de razões. Antes de mais, aqueles
termos são usados, no campo das ciências e da filosofia, para designar pro-
cessos de difícil compreensão, cheios de sutilezas e de relações com outros,
por vezes tão complicados quanto eles.
Além disso, os significados atribuídos a eles vêm sendo alterados, ao
longo da História e, mesmo no presente, diferem segundo a concepção deste
ou daquele grupo de autores.
Por isto, sem pretender encerrar estas discussões, vamos tentar construir
alguns entendimentos básicos sobre eles, que nos auxiliem a desenvolver as
discussões sobre os nossos objetivos.
Em boa parte das obras sobre os temas, a moral é definida como uma
direcionadora das nossas condutas, e, portanto, como um elemento útil e neces-
sário. Tanto é assim que, quanto utilizamos o termo “moral” como adjetivo,
ele vem revestido de um significado positivo (Abbagnano, 2007).
No entanto, a moral não pode ser confundida com outros conjuntos de
regras, como as leis, normas ou regulamentos tantos existentes. Na maioria
das vezes, estes conjuntos nos são impostos pela sociedade ou por fragmen-
tos dela. Normalmente não participamos da elaboração deles, mas temos
que obedecê-los, concordando ou não com eles, desejando ou não fazer isto.
Além disso, cada um deles vem acompanhado por previsões de recompensas
ou de punições diante do cumprimento ou não de cada regra ou dos conjuntos
delas. São estas possibilidades de consequências posteriores que garantem ou
incentivam a obediência.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 97

A moral, ao contrário, envolve conjuntos de regras que optamos pessoal-


mente por seguir; são opções que assumimos, independentemente de imposi-
ções, recompensas ou ameaças externas a nós. Ao menos em princípio, nossas
decisões morais são elaboradas e colocadas em prática com base apenas na
convicção interna, pessoal, de que aquilo é o que devemos fazer.

Assim, a moral pressupõe liberdade, sendo esta entendida como a auto-


nomia de escolha frente a uma situação. Somos seres livres, escolhemos,
agimos, refletimos e julgamos o nosso próprio agir. Se na vida e em nossas
relações sociais todas as condutas fossem padronizadas e nos coubesse
apenas a função de seguir padrões pré-existentes, não exerceríamos a
liberdade e nem vivenciaríamos a angústia que ela nos proporciona diante
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

da complexidade das escolhas e das responsabilidades sobre as mesmas


(Bortolato, 2018, pp. 18).

A moral representa não um conjunto de injunções ou mandamentos exter-


nos a nós, que nos condena à obediência; ela constitui campos de possibilida-
des (podemos optar por esta ou por outras decisões), de construções pessoais
(nem todas as decisões já estão prontas, antes de refletirmos sobre elas) e um
exercício permanente de autorresponsabilização (ao decidir, assumimos os
riscos e as consequências de nossas decisões).
As decisões morais fazem parte de nossos cotidianos; elas constituem
nossos posicionamentos pessoais diante das possibilidades e das impossibi-
lidades que enfrentamos e que, embora possam envolver muitos de nossos
semelhantes, nos atingem e afetam de modos que são, também, apenas nos-
sos, pessoais.
Segundo Vásquez (2007, pp. 19) uma primeira distinção entre a moral
e a ética reside em que “os problemas éticos caracterizam-se pela sua gene-
ralidade e isto os distingue dos problemas morais da vida cotidiana, que são
os que se nos apresentam nas situações concretas”.
O mesmo autor define a ética como “[...] a teoria ou ciência do compor-
tamento moral dos homens em sociedade. Ou seja, é a ciência de uma forma
específica de comportamento humano” (Vázquez, 2007, pp. 23). Logo em
seguida, ele detalha:

Na definição antes enunciada, ética e moral se relacionam, pois, como


uma ciência específica e seu objeto. Ambas as palavras mantêm assim
uma relação que não tinham propriamente em suas origens etimológicas.
Certamente, moral vem do latim mos ou mores, “costume” ou “costumes”
no sentido de conjunto de normas ou regras adquiridas por hábito. A moral
se refere, assim, ao comportamento adquirido ou modo de ser conquis-
tado pelo homem. Ética vem do grego ethos, que significa analogamente
98

“modo de ser” ou “caráter” enquanto forma de vida também adquirida


ou conquistada pelo homem. Assim, portanto, originariamente, ethos e
mos, “caráter” e “costume”, assentam-se num modo de comportamento
que não corresponde a uma disposição natural, mas que é adquirido ou
conquistado por hábito (Vázquez, 2007, pp. 24).

Embora tanto as decisões morais quanto as éticas impliquem em e


decorram de processos pessoais, elas não são criadas ou desenvolvidas pelos
indivíduos, isoladamente. Nascemos amorais e aéticos e, ao longo de nossas
vivências e aprendizados sociais, vamos adquirindo e assimilando as bases
sobre as quais poderemos, mais adiante, elaborar e exercer aquelas nossas
opções: “nosso mundo, nossa vida e nosso presente formam um campo de

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


condições e circunstâncias que não foram escolhidas e nem determinadas por
nós e em cujo interior nos movemos” (Chauí, 2000, pp. 467).
Isto nos sugere, já de início, que não existem preceitos ou direciona-
mentos éticos universais e atemporais. As classificações e as discussões sobre
o certo e o errado, o necessário e o inconveniente, o louvável e o desprezí-
vel carregam sempre, em si, as marcas das sociedades e das épocas em que
foram criadas e adotadas. Isto pode se tornar claro, por exemplo, quando
refletimos sobre

[...] o que os gregos pensavam da pederastia, ou os casos em que os roma-


nos podiam abandonar uma criança recém-nascida, ou as relações entre o
direito de propriedade e o “não cobiçar a mulher do próximo” dos judeus
antigos, ou a escala de valores que transparece nos livros penitenciais da
Idade Média, quando o casamento com uma prima em quinto grau cons-
tituía uma culpa mais grave do que o abuso sexual de uma empregada do
castelo, ou quando o concubinato, mesmo dos padres, era uma forma de
regular eficazmente o direito da herança [...] (Valls, 2008, pp. 13).

Qualquer que seja o contexto, porém, refletir sobre a ética e a moral


implica em considerar, também, as relações destes conceitos e das práticas
deles decorrentes com os conceitos de liberdade e responsabilidade.

Se algo nos diz como devemos agir, é porque obviamente poderíamos


(se assim desejássemos), agir contrariamente. Sem liberdade, não há moral
nem ética. É igualmente verdade que sem liberdade também não há res-
ponsabilidade (Bortolato, 2018, pp. 21).

Sartre (2011) nos ensina que a liberdade é sempre situada; ela existe e
apenas pode existir como parte de contextos que envolvem múltiplas possibili-
dades. Ao mesmo tempo, ela implica na responsabilização dos que a exercem
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 99

e mesmo daqueles que supõem que não a exercem, já que não decidir e não
agir são, também, exercícios de liberdade.
De acordo com Vásquez (2007), “para que se possa falar de respon-
sabilidade moral, é preciso que o indivíduo disponha de certa liberdade de
decisão e de ação; ou seja, é necessário que intervenha conscientemente na
sua realização” (pp. 126-127). Em outras palavras, é preciso que aquele que
decide agir desta ou daquela forma esteja ciente dos acontecimentos dos quais
está participando e sobre os quais pretende atuar; que seja capaz de prever,
através do uso da razão, possíveis implicações de suas decisões e, ainda,
assumir-se como um legislador de si mesmo. Dito de modo mais sintético: é
possível responsabilizar somente aquele que sabe o que faz, compreende as
causas e os fins de sua ação e consegue assumir-se como autor das mesmas.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Nada disto pode existir independente das vivências sociais. Ainda que
livres, como propõe Sartre (2011), “somos e nos constituímos nas relações
sociais que estabelecemos cotidianamente, pois ao mesmo tempo que nos consti-
tuímos pelo outro, ele também nos constitui. Essa relação eu-outro é fundamen-
tal para a vida social, pois não somos seres isolados” (Bortolato, 2018, pp. 22).
Chauí (2000) também apresenta a importância do outro quando fala de
liberdade e responsabilidade ética e moral e propõe alguns requisitos como
essenciais para que possamos nos considerar sujeitos éticos e morais, cientes
das responsabilidades que isso implica.
O sujeito ético ou moral só pode existir se preencher as seguin-
tes condições:

• ser consciente de si e dos outros, isto é, ser capaz de reflexão e de


reconhecer a existência dos outros como sujeitos éticos iguais a ele;
• ser dotado de vontade, isto é, de capacidade para controlar e orientar
desejos, impulsos, tendências, sentimentos (para que estejam em
conformidade com a consciência) e de capacidade para deliberar e
decidir entre várias alternativas possíveis;
• ser responsável, isto é, reconhecer-se como autor da ação, avaliar
os efeitos e consequências dela sobre si e sobre os outros, assumi-la
bem como às suas consequências, respondendo por elas;
• ser livre, isto é, ser capaz de oferecer-se como causa interna de seus
sentimentos, atitudes e ações, por não estar submetido a poderes
externos que o forcem e o constranjam a sentir, a querer e a fazer
alguma coisa.

A liberdade não é tanto o poder para escolher entre vários possíveis,


mas o poder para autodeterminar-se, dando a si mesmo as regras de conduta
(pp. 434).
100

Tentando definir (e entender) vergonha e culpa

Como já vimos, especialmente no Capítulo 1, mas também ao longo dos


seguintes, de acordo com as formulações de Heller (1993), os afetos são os
efeitos produzidos em nós por nossos contatos com o mundo. Também eles,
assim como nossa própria constituição como sujeitos humanos, são cons-
truídos e aprendidos a partir de nossas relações interpessoais e através delas.
Ainda segundo com a mesma autora:

Tudo o que faz do homem homem de fato, quer dizer, todos os elementos
de informação que constituem a existência da nossa espécie, são toda-
via externos ao organismo no momento de nosso nascimento: podem ser

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


encontrados nas relações interpessoais nas quais nos vemos envolvidos
(Heller, 1993, pp. 29).

Estabelecer os limites de um afeto e especialmente distingui-lo de outro,


normalmente considerado como próximo a ele não são tarefas fáceis e prova-
velmente jamais serão cumpridas de modo pleno e definitivo. Muitos motivos
podem contribuir para que uma tarefa como aquela permaneça imperfeita.
Entre eles, podemos citar as variações das denominações: tanto pode ocorrer
que afetos diferentes sejam reconhecidos a partir do mesmo nome como, ao
contrário, que o mesmo afeto seja conhecido por nomes diferentes.
Podemos exemplificar estas duas possibilidades usando as quase infinitas
variações sobre o afeto conhecido como amor. Em relação à primeira delas:
a denominação amor vem sendo utilizada como explicação para a origem e o
desenvolvimento de relações tão diferentes como um conjunto de ações que
envolvem a preocupação e a busca da promoção do bem estar do ser tido como
amado (cuido por que amo) e agressões, violações e mesmo a eliminação
física do outro (destruo por que amo).
Em relação à segunda possibilidade, podemos nos questionar sobre as
diferenças entre gostar, amar, adorar, estar apaixonado... Nos diálogos tidos
como amorosos, todas estas denominações (e mais uma boa porção de outras)
podem ser usadas para designar o mesmo afeto, sem que os envolvidos tenham
condições de saber se aquelas palavras descrevem as mesmas experiências
íntimas para si e para o outro (ou outros).
Tal como ocorre a respeito das discussões teóricas sobre a moral e a ética,
quando recorremos aos textos sobre os afetos de vergonha e culpa, percebemos
que as definições podem não ser as mesmas e que, eventualmente, o que um
autor propõe como sendo uma delimitação ou um conjunto de características
de um desses afetos corresponde, parcial ou plenamente, ao que um segundo
teórico propõe para o outro afeto.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 101

Diante deste quadro, vamos adotar duas opções teórico-metodológicas e


didáticas complementares. A primeira delas consiste em escolher um conjunto
de denominação, definição e delineamento teórico para cada um daqueles
afetos, mesmo sabendo que isto nos colocará em oposição às perspectivas
adotadas por outros autores. Não temos como fugir disto, já que, diante da
pluralidade de definições, esta oposição ocorreria inevitavelmente.
A segunda, um pouco mais complexa, consiste em aceitarmos trabalhar
não com os afetos, tal como eles ocorrem e em toda a sua possível multipli-
cidade de manifestações e vivências, mas com algo próximo ao que Weber
denominou como tipos ideais.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

[...] o conceito do tipo ideal propõe-se formar o juízo de atribuição.


Não é uma “hipótese”, mas pretende apontar o caminho para a forma-
ção de hipóteses. Embora não constitua uma exposição da realidade,
pretende conferir à ela meios expressivos unívocos. [...] obtém-se um
tipo ideal mediante a acentuação unilateral de um ou vários pontos de
vista, e mediante o encadeamento de grande quantidade de fenômenos
isoladamente dados, difusos e discretos, que se podem dar em maior
ou menor número ou mesmo faltar por completo, e que se ordenam
segundo os pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de se
formar um quadro homogêneo de pensamento (Weber, 2003 [1904],
pp. 106, destaques no original).

Cientes dos riscos e das implicações desta nossa escolha, o que pretende-
mos fazer é destacar algumas características que nos permitam compor tipos
ideais do que escolhemos tratar como vergonha e culpa, que nos permitam
elaborar reflexões sobre estes afetos (ainda que em suas formas idealizadas)
e suas participações nas decisões e nas atuações morais que vemos ocorrer
em nosso entorno, nos dias de hoje.
Vamos aos afetos, então.
De modo geral, podemos considerar a vergonha como “... uma reação
a estímulos socioculturais específicos que toma todo o corpo do indivíduo
[...], lançando-o em uma situação de impotência, humilhação e inferioridade”
(Barbosa, 2013, pp. 2).
Os estímulos capazes de promover o surgimento da vergonha são todos
os que informam ao sujeito que ele sentiu, pensou ou agiu de modos que não
deveria, que suas disposições e ações não foram conformes às expectativas e
prescrições adotadas por seus grupos sociais de referência. Sentimos vergo-
nha quando sabemos que fizemos algo que não deveríamos ter feito, quando
nos damos conta de que o que fizemos, tentamos ou pensamos em fazer “não
era o certo”.
102

Tal como ocorre com todos os demais afetos, este também não é inato.
Passamos a vivenciar a vergonha apenas a partir do momento em que nos
tornamos capazes de trazer, sobre nós mesmos, o que Heller (2003, pp. 1019)
denomina como “o olho da comunidade”, ou seja, quando atingimos um
grau de socialização capaz de nos levar a conhecer, compreender e passar a
compartilhar as noções coletivas de certo e errado e a ser capazes de avaliar
nossas próprias condutas, disposições ou desejos, com base nestas noções.
Atingido este grau de socialização, não é mais necessário que alguém
testemunhe ou fique sabendo de nossos atos ou intenções reprováveis ou
inadequados; nós sabemos, e isto basta para que nos sintamos desconfortá-
veis por nossas inadequações: “se alguém pode sentir vergonha apenas pela

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


‘fantasia’ de estar exposto, é que a vergonha foi internalizada” (La Taille,
2002, pp. 134).
Ainda de acordo com o mesmo autor,

Fosse a vergonha puramente de origem externa, sentir-se-ia vergonha


perante qualquer olhar. Mas não é o caso: sente-se vergonha para certas
coisas e frente certas pessoas. E isso porque sentir vergonha não decorre
apenas do ser julgado por alguém, mas do julgar-se a si próprio. É por
essa razão, aliás, que se pode sentir vergonha sozinho, sem testemunhas
(La Taille, 2002, pp. 89).

Heller (1993), enfatiza que “a vergonha é um afeto social por excelência:


é o que deriva de nossa relação com as prescrições sociais [...]” (pp. 105).
Em sentido contrário, mas complementar, na medida em que a vergonha
passa a participar do direcionamento e da regulação de nossas relações com
os demais, ela “[...] é sempre um instrumento de socialização” (pp. 106):
lembra-nos que fazemos parte de um ou mais grupos e orienta nossas ações,
para que continuemos a ser aceitos pelos demais e a aceitá-los como nos-
sos semelhantes.
A vergonha é uma velha e permanente conhecida dos seres huma-
nos. Ela é um dos afetos que estiveram presentes em praticamente todas
as culturas e épocas da existência humana sobre as quais existem regis-
tros detalhados. Heller (2003) afirma que a manifestação ou expressão
da vergonha é empiricamente universal e envolve o rosto corado, o olhar
rebaixado, a cabeça curvada, entre outros sinais: “todos reconhecemos a
vergonha elementar quando a vemos. Olhemos para a pintura de Masac-
cio ‘Expulsão do Jardim do Éden’ (1424-1428). Vemos Adão abaixando a
cabeça; Adão e Eva desviando o olhar enquanto cobriam a sua nudez com
vergonha”. (pp. 1015).
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 103

Imagem 1 – Masaccio: Expulsão do Paraíso1


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

De fato, mesmo passados cerca de 600 anos de sua composição, a obra


que reproduzimos aqui apenas em tons de cinza nos leva facilmente a perceber
os dois personagens humanos como estando envergonhados e sofrendo pelo
que teriam feito, segundo a tradição cristã.
Entretanto, a familiaridade com estas expressões e o reconhecimento das
mesmas, mesmo após decorrido tanto tempo, não pode nos levar a supor que
o afeto de vergonha permaneça inalterado, após tanto tempo e em outros con-
textos culturais. A nudez, hoje e em muitos contextos, já não é mais vista como
algo pecaminoso ou degradante; a desobediência, seja à uma divindade, seja
à algumas das normas sociais, é frequentemente incentivada e até valorizada.
Isto indica que os acontecimentos capazes de promover a aparição deste
afeto ou as formas de vivência e de expressão do mesmo não tenham sido ou
sejam sempre os mesmos.
Apenas como um exemplo, de acordo com Anolli (2003), no Japão, a
perda do emprego é considerada, muitas vezes, como um fato vergonhoso, pro-
dutor de desonra e capaz de causar danos à imagem social tanto do sujeito que
1 Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Expulsão_do_Paraíso_(Masaccio)
104

foi despedido quanto de seu grupo familiar mais próximo. Diante desta con-
dição aviltante, o suicídio “[...] constitui uma maneira de eliminar a si mesmo
como obstáculo e como impedimento para o sucesso do grupo” (pp. 131).
Num quadro como este, vergonha e honra são afetos complementares: “a
pessoa desonrada (seja porque agiu mal, seja porque não reagiu a agressões)
sente vergonha; e a pessoa honrada tem a capacidade de sentir vergonha” (La
Taille, 2002, pp. 161).
Num país como o nosso, em que as relações jurídicas e as elaborações
culturais sobre o trabalho assalariado são totalmente diferentes, a perda do
vínculo de emprego está longe de produzir os mesmos efeitos e afetos. Embora
as manifestações da vergonha pessoal possam ser próximas, os desencadea-
dores da mesma costumam ser outros.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Embora, no calor das nossas conversas cotidianas, vergonha e culpa
sejam frequentemente associadas e até mesmo confundidas, no campo frio
das definições as diferenças entre elas tendem a ser realçadas.
No dicionário encontramos culpa

originariamente [como um] termo jurídico para indicar a infração de uma


norma cometida ‘involuntariamente’, sem pré meditação, em contraposição
a delito (dolus), que é a transgressão premeditada. Eis como Kant exprime
a questão: “Uma transgressão involuntária mas imputável chama-se culpa;
uma transgressão voluntária (unida à consciência de que se trata realmente
de uma transgressão) chama-se delito [...]” (Abbagnano, 2007, pp. 224).

Este é o significado principal que pretendemos atribuir ao conceito: a


de um processo dependente de uma atribuição externa; uma avaliação sobre
uma ou mais condutas do sujeito, feita por outros. O sujeito pode concordar
ou não com a avaliação, sentir-se ou não responsável pelo que sucedeu. O
“olhar da comunidade” será o fator decisivo, quer o sujeito assuma ou não
como sua esta interpretação coletiva e exterior.
Podemos tomar os julgamentos jurídicos como um protótipo dos proces-
sos de atribuição de culpa. Nesses julgamentos, a culpa é imputada a alguém
por outra ou outras pessoas (um juiz ou um corpo de julgadores reconhecidos
como capazes para tal), a partir de critérios estandartizados e do cumprimento
de rituais igualmente previstos e padronizados. Nestes rituais, o acusado pode
e deve ser ouvido; ele tem a oportunidade de expor suas versões sobre o
que teria (ou não) ocorrido, sua participação (ou não) nos acontecimentos,
intenções e demais justificativas. Os avaliadores podem aceitar ou não estas
alegações, considerá-las como verdadeiras ou falsas, importantes ou não. A
imputação da culpa é independente do reconhecimento, da aceitação e do
posicionamento afetivo daquele que foi considerado culpado.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 105

Nos demais processos de interação social os rituais de avaliação e impo-


sição não são preestabelecidos e nem necessários, mas prevalece o fato de
que a consideração de culpa pode existir como imposição alheia, sem precisar
existir também como aceitação ou outro afeto pessoal.
Em termos culturais, a culpa sempre implica em conferir a alguém uma
responsabilidade sobre algo tido como negativo ou reprovável. Provavelmente
jamais iremos atribuir culpa a alguém quando se tratar de algo positivo. Parece
correto dizer que um atleta é culpado por ter apresentado um desempenho
ruim, mas não por ter conquistado o primeiro lugar.
De modo geral podemos caracterizar a culpa como um processo externo
de atribuição de causalidade acompanhado de uma forte conotação afetiva
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

negativa, que podem ser aceitas e assumidas pelo sujeito ou existirem de modo
externo e independente da concordância dele.
A vergonha pode ser e frequentemente é externalizada, por vezes sem
que o sujeito que a experiencia deseje fazer isto. Também pode permanecer
oculta. Isto não a torna mais suave ou menos presente, já que o que podería-
mos considerar como seu componente mais forte é a porção interna, íntima,
de sua vivenciação.
Além disso, ela surge das avaliações que o sujeito elabora sobre suas
condutas. O envergonhado é, ao mesmo tempo, seu próprio juiz e algoz. Não
importa se outros percebem ou não sua vergonha, que estejam cientes ou
não do que a produziu; ele sabe o que fez ou pretendeu fazer e sofre por isto.
A culpa, ao contrário, é produzida essencialmente a partir da avaliação
–e dos afetos – de outros (ao atribuir a culpa, os julgadores não estão apenas
avaliando racionalmente os acontecimentos; estão também afetados por eles
e pelo sujeito avaliado).
Como dissemos, é possível que o sujeito culpado se sinta responsável
por seus atos e pelos efeitos produzidos por eles, mas também pode ocorrer
o contrário. A imputação externa de uma culpa pode não produzir uma expe-
riência íntima, pessoal, correspondente. Posso ser considerado culpado por
algo, mas não aceitar esta avaliação e não me sentir assim. Poderíamos propor
que o componente mais forte da culpa (a atribuição) é exterior ao sujeito.
Socialmente, é esperado que, uma vez imputada uma culpa, o sujeito
evidencie sinais de que se assumiu como culpado, de que concorda com
aquela imputação e submeteu-se a ela, efetiva e afetivamente: ele deve passar
a agir e a sentir-se como culpado. Caso não o faça sofrerá, provavelmente,
novas avaliações negativas e poderá receber novas modalidades de punições
simbólicas ou físicas: um criminoso que não se mostre arrependido por seus
crimes terá uma chance menor (ou quase nula) de obter redução de sua pena;
o filho que destratou os pais e não demonstrou sofrimento por ter feito isto
106

provavelmente receberá doses menores de carinhos e de cuidados (ao menos


por algum tempo).
No entanto, não é suficiente que esta concordância com a culpabiliza-
ção seja apresentada. Ela tem que parecer sincera. É preciso que o culpado
apresente aos seus avaliadores sinais claros e convincentes de que concorda
com a imputação da culpa e, mais que isto, que sofre pelo que fez, assume a
responsabilidade e o peso íntimo da consequência de seu ato ou atos.
Por isto, uma das consequências destas expectativas de internalização
da culpa pode ser a externalização de simulações, de falsas manifestações
de aceitação e de sofrimento. Através delas, se não consegue livrar-se total-
mente da culpabilização principal, ao menos o sujeito tido como culpado pode

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


escapar de sofrer aquelas punições secundárias e, eventualmente, abrandar
também a avaliação inicial.
Calligaris (2006) buscou apoio na obra O Crisântemo e a Espada, de
Ruth Benedict (1946), para afirmar que em algumas sociedades, como o Japão,
as decisões morais são predominantemente direcionadas a partir do afeto da
vergonha, ao passo que nas sociedades ocidentais modernas tende a ocorrer
um predomínio da culpa, como elemento regulador.
Segundo o mesmo autor, de modo geral a construção das decisões morais,
nos dois casos, pode parecer semelhante. Porém, sob o controle da vergonha,
agir ou deixar de fazê-lo são escolhas que levam em consideração, basica-
mente, a preservação do próprio sujeito, de sua auto imagem e de todas as
suas demais relações consigo. Ele é o olho da comunidade voltado para si.
No outro caso, o sujeito decide e age para não ser avaliado negativamente
pelos demais.
Também tomando como ponto de partida a obra de Ruth Benedict, La
Taille (2002) aponta que a consideração de que alguém é culpado implica em
que seja conferida a esta pessoa a responsabilidade pela ocorrência de algo
tido como negativo. Isto não implica, porém, que a pessoa responsabilizada
se sinta, necessariamente, culpada. Ao contrário, alguém que esteja envergo-
nhado terá, necessariamente, assumido aquela responsabilidade.
Por isto, a superação de uma vergonha exige processos internos de reava-
liação e reorganização de condutas, disposições e de outros afetos. O sujeito
envergonhado sente-se obrigado a reparar ou a tentar diminuir, de alguma
forma, os efeitos de seus atos anteriores; precisa buscar modos de assegurar-se
de que não tornará a repeti-los. Precisa, ainda, reconstruir sua autoidentidade,
voltar a ver-se como alguém correto, confiável, digno de fazer parte e de ser
aceito pelos membros de seus grupos sociais de referência.
Pode ser que outros saibam o que ocorreu e como o sujeito vem sendo
afetado por isto. Mesmo que eles considerem o que ocorreu como pouco
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 107

relevante e os afetos resultantes como desnecessários ou injustificáveis, apenas


o próprio sujeito pode superar ou diminuir sua vergonha.
O culpado pode até passar por processos semelhantes, naqueles casos
em que aceita e compartilha a atribuição de sua culpa. Nos casos em que
a culpa permanece sendo apenas uma imposição externa, nada disso será
necessário; ela permanecerá apenas como um fato social, não ou muito pouco
como um afeto.
Em ambos os casos, porém, a superação da culpa dependerá sempre de
uma reavaliação externa. Por isto, é necessário pedir desculpas ao outro ou
outros e é frequente que isto ocorra.
Apenas para ressaltar esta diferença, não faz qualquer sentido, em nosso
idioma, pedir que alguém nos livre de nossa vergonha. O verbo desenver-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

gonhar pode até ser conjugado, mas não é utilizado e causaria estranheza
se o fosse.

Iniciando um retorno

De posse dessas definições e reflexões, podemos voltar a tratar dos exem-


plos com os quais iniciamos este texto. Ambos envolvem a execução de ações
evitáveis e voluntárias que causam mortes. Além disso incluem a fuga e as
tentativas de ocultação de seus autores, a identificação, a detenção dos mesmos
e, só após isto, os seus pedidos de desculpas, acompanhados das alegações
de não intencionalidade.
Vimos que, como partes de nossas convenções culturais, os pedidos de
desculpas são condutas socialmente previstas e esperadas. Juridicamente,
são convenientes. Nada há de errado, então, que tenham sido apresentadas.
No entanto, em ambos os casos, aqueles pedidos são ou, ao menos nos
parecem, nada convincentes. Nos dois exemplos (lembrando que o primeiro
envolve vários acontecimentos semelhantes) as pretensas e alegadas ausências
de intenções de causar mortes aparecem associadas a tentativas ou intenções
de obter diminuições das responsabilizações: causei as mortes, mas não pre-
tendia ter feito isso; portanto, minha responsabilidade ou minha culpa devem
ser bem menores. Não foi por querer...
Alegações como estas, em casos como estes, serão sustentáveis?
Serão aceitáveis?
Ao dirigir embriagado o sujeito assume uma série de riscos: em relação à
sua vida ou integridade física, em relação ao seu patrimônio, aos patrimônios
públicos e de outras pessoas, à integridade física e à vida de outros... Ninguém
pode alegar que não sabe disso.
Ao embriagar-se o sujeito sabe o que está fazendo. Também sabe que
quanto mais consumir de bebidas alcoólicas (ou de outros produtos que
108

produzem efeitos assemelhados) menos será capaz de avaliar eficazmente suas


próprias condições de raciocínio, decisão e desempenho físico. Isto também
é sabido (embora nem sempre seja reconhecido).
Assim, parece pouco convincente que alguém procure diminuir suas
responsabilidades alegando que só dirigiu embriagado por que estava embria-
gado (e, portanto, que não estava em condições de reconhecer isto) e muito
menos que, embora sabedor dos riscos de suas decisões e ações, não teve a
pretensão de fazer com que aqueles riscos fossem efetivados.
Pior ainda, se disparo uma arma de fogo, sei e pretendo que o projétil
atinja algo (em algum momento de sua trajetória ele vai fazer isto); se atiro
com a arma apontada na direção em que se encontra um grupo de pessoas, sei
que tenho grande probabilidade de atingir uma ou várias delas. Em qualquer

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


situação, se disparo uma arma de fogo, sei que meu ato causará consequências:
danos, ferimentos, morte... Para isto as armas de fogo foram elaboradas e são
construídas. Por serem capazes de produzir isto é que elas são adquiridas e
portadas. Que outras intenções podem ter quem faz uso de uma delas, dispa-
rando-a em direção a outras pessoas?
Tentando associá-los aos afetos que escolhemos abordar, nos dois exem-
plos as alegações de ausência de intenções parecem sinalizar a existência de
reações pessoais à culpabilização externa, e muito pouco de vergonha (ainda
que os dois processos afetivos possam ocorrer simultaneamente). Parece
correto esperar que alguém envergonhado procurasse, antes de mais nada,
responsabilizar-se plenamente por seus atos e pelos danos decorrentes, que se
apresentasse voluntária e publicamente como responsável e disposto a arcar
com as consequências, já que não seria possível reverter aqueles danos. Em
última hipótese, teria dificuldades ou seria incapaz de mostrar-se e de ser
visto dizendo absurdos (o que já seria mais um comportamento vergonhoso).
Para nossos objetivos neste texto, elaborar, apresentar e sustentar a afir-
mação de que aquelas pessoas foram movidas pela culpa e não pela vergonha
não é uma conclusão. Apresentar aquela classificação (ainda que ela apareça
quase ao final do texto) é quase como um início, já que o que pretendemos é
explorar algumas das suas implicações.
Uma destas implicações é que a predominância de decisões morais orien-
tadas pela culpa, ou seja, pelo julgamento alheio e pelas contingências pos-
teriores sugere a existência de processos incompletos de aprendizado social.
Como vimos, a orientação moral a partir da vergonha envolve, entre
outras, capacidades e disposições de previsão e avaliação de consequências,
de autorresponsabilização e, acima de tudo, de reconhecimento e respeito
ao outro, que é a base para todas as demais condições. A orientação a partir
da culpa prescinde dessas condições e sinaliza a ausência das mesmas ou a
presença delas em graus muito frágeis.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 109

Nos dois exemplos podemos ver pessoas que foram incapazes ou não
estavam dispostas a refletir previamente sobre suas escolhas e as possíveis
consequências delas e a responsabilizar-se, de fato, pelas consequências de
seus atos. Buscaram não ser punidas ou sofrer punições mais brandas, mas não
foram capazes ou não se dispuseram a agir de modo a evitar a produção de
danos a outros. Pessoas que, ao optar por uma modalidade de ação, parecem
não considerar o outro ou os outros como semelhantes, e continuam a pensar,
a sentir e a agir de modo idêntico, mesmo após ter causado mortes.
Podemos supor que a existência do que denominamos como processos
incompletos de aprendizado social seja devida a falhas ou insuficiências nas
várias modalidades de socialização, ou seja, de inserção dos sujeitos nos
vários grupos sociais? Famílias, escolas e outros grupos estariam falhando ou
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

negligenciando a formação de sujeitos e a transmissão das exigências básicas


para a participação social?
Pode até ser que sim, mas se adotarmos estas possibilidades como con-
clusivas, corremos o risco de ignorar outras implicações da predominância
de decisões morais orientadas pela culpa.
Seria simples e cômodo tratar as ocorrências descritas naqueles exemplos
e os atores principais dos mesmos como casos isolados e sujeitos desviantes,
moralmente incapazes ou despreparados. Assim, bastaria que eles fossem
punidos exemplarmente e poderíamos continuar a manter nossa crença na
existência de uma organização social justa, igualitária e formada majorita-
riamente por “cidadãos de bem” (termo tão em moda, no período em que
redigimos este texto).
Também seria simples, ainda que pouco cômodo, creditar a existência de
pessoas como aquelas, sejam elas minoria ou maioria na sociedade, apenas
a falhas ou descuidos nos processos de aprendizado e desenvolvimento de
modos e regras adequados de relacionamentos sociais.
Não devemos nos esquecer, porém,

[...] para que haja conduta ética é preciso que exista o agente consciente,
isto é, aquele que conhece a diferença entre bem e mal, certo e errado,
permitido e proibido, virtude e vício. A consciência moral não só conhece
tais diferenças, mas também reconhece-se como capaz de julgar o valor
dos atos e das condutas e de agir em conformidade com os valores morais,
sendo por isso responsável por suas ações e seus sentimentos e pelas
conseqüências do que faz e sente (Chaui, 2000, pp. 433, destaque nosso).

Destacamos, na frase anterior, a conformidade com os valores morais


para lembrar que as noções básicas de bem e mal, certo ou errado, louvável
ou condenável não são naturais ou universais. Cada sociedade e cada grupo
110

dentro delas, em cada época, elabora, seleciona, adota e defende seus con-
juntos de valores.
Heller (1987) retrata a centralidade do indivíduo no processo histórico a
partir de sua cotidianidade. Para essa autora, torna-se impossível a separação
entre emoções e a vida humana: “assim a vida cotidiana, a forma imediata da
genericidade do homem, aparece como a base de todas as reações espontâneas
dos homens ao seu ambiente social [...]” (pp. 12).
Aqui chegamos ao ponto de convergência das reflexões que vimos apre-
sentando: quais são os valores morais com os quais nos deparamos em nossos
cotidianos, quais são as formulações não ditas e talvez não pensadas, mas que
se evidenciam em nossas práticas e em nossas relações:

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


• A preocupação permanente e incessante com o equilíbrio e a com-
plementariedade dos interesses pessoais e coletivos?
• A compreensão de que a vida em comum envolve e depende da
capacidade e da disposição de renúncia ou adiamento da satisfação
de alguns desejos individuais, em função do respeito e dos cuidados
com os outros ou com o próprio ambiente?
• A construção e a manutenção de relações sociais das quais o outro
participa como e nas quais é considerado um semelhante, portador
das mesmas capacidades, direitos e possibilidades?
• A consideração de cada um dos quase incontáveis elementos natu-
rais ou culturais, físicos, biológicos e humanos como portador de
um valor que lhe é próprio e único, mas igualmente fundamental e
indispensável, como parte de um ambiente que é coletivo?

A resposta às quatro últimas indagações parece ser a mesma: não.


Nossas relações cotidianas vêm sendo marcadas pela presença massiva de
manifestações de individualismo, que se sobrepõem e parecem tornar ingênuas
e desnecessárias as reflexões e os cuidados que envolvam conceitos como
coletividade, alteridade, diversidade, igualdade...
Naquelas relações, o outro aparece muito mais como um instrumento,
um recurso a mais, entre tantos outros e tão pouco importante quanto eles,
para o alcance dos desejos e interesses individuais.
O valor de tudo e de cada elemento é unificado em uma única e onipre-
sente escala: a das moedas. Nada vale por si, nenhuma outra modalidade de
valor é aceita ou levada em consideração: é o mercado que define e permeia
todas as avaliações e relações. Tudo se resume a quanto e este termo faz refe-
rência apenas a valores monetários. Isto parece valer, cada vez mais, também
para os valores morais: pagando bem, que mal tem?
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 111

Como parte do mesmo conjunto de direcionamentos, temos ainda as bus-


cas incontidas pela satisfação urgente dos desejos a qualquer custo e a eleição,
filha do individualismo, de cada um como o modelo perfeito e irretocável de
ser humano. Esta última característica gera, com frequência, a incapacidade
de distinguir entre o que é apenas uma opção do sujeito (eu prefiro assim) e
o que seria um modelo universal de conduta (isto é o certo).
Em resumo, individualismo, instrumentalização das relações e das pes-
soas, monetarização dos valores, egoísmo e imediatismo da satisfação dos
desejos, autoritarismo. Esta listagem provavelmente não esgota o conjunto dos
direcionamentos principais de nossas relações cotidianas, mas já é suficiente
para direcionar nossas conclusões.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

As condutas dos atores principais daqueles nossos exemplos embora


possam, à primeira vista, parecer bárbaras e absurdas (e seria ótimo que
continuássemos a avaliá-las com estes critérios) não são desviantes e estra-
nhas às normas e valores vigentes em nosso tempo e em nossos espaços
de convivência.
O surto mundial da covid-19 vem mostrando isto à exaustão: quantas
mortes serão necessárias e suficientes para justificar a parada das atividades
de trabalho? As defesas em prol da necessidade de subsistência dos trabalha-
dores e de suas famílias são válidas e devem ser levadas em consideração,
especialmente se considerarmos os países e os trabalhadores mais pobres. No
entanto, é difícil deixar de perceber a existência da palavra lucro esgueirando-
-se, sorrateira, por entre as letras e sons da palavra subsistência. Em resumo:
quanto vale uma vida? Pior ainda: quanto vale uma vida de quem?
No mesmo período em que redigimos este texto, o Presidente da Repú-
blica descumpre ostensivamente uma série de regras de trânsito, de proteção
ambiental e da saúde pública (e incentiva que outros façam o mesmo). Além
disso, defende, incentiva e facilita a aquisição e o porte de armas de fogo.
Não satisfeito, recorre ao Supremo Tribunal Federal para tentar garantir que
os direitos de livre circulação e reunião sejam mantidos, mesmo sabendo que
as restrições destes direitos vêm sendo adotadas, pelos governos estaduais e
municipais, como medidas de proteção da saúde e da vida das pessoas, quer
das que circulam e se aglomeram, quer das demais. Não são poucos os que
concordam, entusiasmados, com posturas como estas.
Exemplos como estes e outros tantos com os quais nos deparamos em
nossos cotidianos tem nos mostrado que, com certeza, as vidas humanas e
especialmente as vidas de pobres, negros, participantes de grupos tidos como
sexualmente desviantes, migrantes e outros tantos não valem o suficiente para
obrigar um “cidadão de bem” a abrir mão dos seus direitos quase infinitos e
a deixar de satisfazer, de imediato, qualquer um dos seus desejos.
112

Tampouco há por que envergonhar-se, já que todas estas decisões, ações


e afetos são plenamente conformes aos valores morais vigentes. Não aqueles
presentes nos livros, nos códigos de condutas e nas reflexões dos pensadores
(meras abstrações inúteis), mas os que são adotados, evidenciados e louvados
nas relações cotidianas: é assim que as coisas são, portanto é assim que elas
devem ser.
Depois é só pedir desculpas (e ter um bom advogado, talvez alguns
bons contatos...).

Algumas reflexões finais

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


A construção e utilização de tipos ideais é um recurso metodológico que
abre amplas possibilidades de compreensão e de reflexão sobre os fenômenos
ou processos que se pretende estudar. É preciso não esquecer, porém, que eles
não constituem uma reprodução fiel e plena daqueles fenômenos. Como a pró-
pria denominação indica, são idealizações, construções mentais e linguísticas.
No caso dos afetos, o que acabamos de dizer é especialmente verdadeiro:
é impossível definir clara e inequivocamente a composição e os limites de
um afeto específico; na dinâmica da vida afetiva, também é frequentemente
impossível delimitar quando termina um afeto e se inicia outro, claramente
diferente do primeiro. Não há afetos puros, isolados e distintos dos demais; o
mais provável é que cada momento de nossas experiências afetivas envolva o
que, na teoria, consideraríamos como afetos diferentes e que podem até nos
parecer incoerentes.
A vergonha pode coexistir com a culpa e provavelmente jamais conse-
guiremos definir os graus da participação de cada uma na vivência afetiva de
cada sujeito, em cada momento em que ele experienciar afetos daquele tipo.
Apenas como ilustração: se voltarmos a olhar atentamente aquela pintura
de Masaccio pode ser que passemos a considerar que as expressões dos per-
sonagens principais podem sugerir também a presença de culpa (afinal eles
foram julgados e sentenciados), de medo diante das incertezas da nova vida,
talvez de revolta... É claro que aqui estamos falando de uma obra de arte, e isto
nos obrigaria a tratar não do que os personagens estão sentindo, mas do que
o autor pretendeu retratar. De qualquer modo, o retorno aquela imagem pode
servir para nos auxiliar a vislumbrar a complexidade dos processos afetivos.
No campo das ciências esta complexidade e as perspectivas de inter-
conexão entre afetos vem sendo reconhecida e destacada. Sauvagnat (2018)
aponta que os estudos tanto da Antropologia quanto da Psicanálise vêm ten-
tando superar a distinção clássica entre culturas nas quais as decisões morais
são centradas na vergonha ou na culpa e reconhecendo que a vergonha se faz
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 113

presente e é importante nas sociedades ocidentais, ao mesmo tempo em que


a culpa exerce afeitos semelhantes nas sociedades não ocidentais.
De volta ao nosso contexto, também não podemos afirmar que os per-
sonagens principais dos eventos que temos usado como apoio para nossas
reflexões tenham vivenciado apenas culpas e não vergonhas e outros afetos.
Isso não importa. O que poderá ser importante é compreendermos a
importância da formação de pessoas autonomamente capazes de orientar suas
decisões e ações a partir da adoção de princípios básicos como o respeito,
o cuidado com o outro e com o mundo, o reconhecimento de que a vida
envolve a conexão de infinitos elementos e que cada um deles é importante e
necessário. Não precisamos voltar a sentir vergonha. Precisamos ser capazes
de vivenciá-la e de agir de modo a não precisar senti-la.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

É necessário, ainda, que deixemos de nos relacionar com as pessoas com


base em prismas semelhantes ao dos tipos idealizados: o “cidadão de bem”
(que tudo pode), o pobre (que nada tem, nada pode e é culpado por isto), o
diferente (que não poderia nem deveria existir), o inferior (que tem que fazer,
mas não precisa ter nem poder) e assim por diante.
Estas diferenciações existem e temos que estar atentos aos efeitos associa-
dos e pretensamente justificados por elas. Mas não precisamos e nem devemos
adotá-las e sustentá-las.
Em síntese, temos que estar permanentemente atentos a como o mundo
que construímos nos afeta e à que mundo estes afetos nos conduzem.
114

REFERÊNCIAS
Abbagnano, N. (2007). Dicionário de Filosofia. Martins Fontes.

Anolli, L. (2003). A vergonha: surge quando nossa auto imagem faz-se em


pedaços e o que mais queremos é desaparecer. Paulinas, Edições Loyola.

Barbosa, R. B. (2013). Uma aproximação do conceito de Vergonha em Heller,


Simmel, Scheff e Elias. In XXIX Congreso Alas Chile, Santiago del Chile.
Acta Científica XXIX Congreso de la Asociación Latinoamericana de Socio-
logía 2013. v. 1.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Bortolato, B. C. de S. (2018). A vergonha na contemporaneidade: a moral na
constituição das relações humanas no ambiente virtual. Dissertação (Mestrado).
Programa de Pós Graduação em Psicologia. Universidade Estadual de Maringá.

Calligaris, C. (2006). Culpa e Vergonha (Moralidade 1). Folha de São Paulo.


http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0202200622.htm.

Chauí, M. (2000). Convite à filosofia. Ática.

Heller, A. (1987). Sociología de la Vida Cotidiana. Ediciones Península.

Heller, A. (1993). Teoria de los sentimientos. Coyoacán.

Heller, A. (2003). Five Approaches to the Phenomenon of Shame. Social


Research, 70(4), 1015-1030. http://www.jstor.org/stable/40971959.

La Taille, Y. de. (2002). Vergonha, a ferida moral. Vozes.

Sartre, J. P. (2011). O Ser e o Nada – Ensaio de ontologia fenomenológica. Vozes.

Sauvagnat, F. (2018). Notes on the Evolution of the Relationship between


Guilt and Shame in Psychoanalysis and Anthropology. Revista Latinoameri-
cana de Psicopatologia Fundamental, 21(4).

Valls, A. L. M. (2008). O que é Ética. Brasiliense.

Vásquez, A. S. (2007). Ética. Civilização Brasileira.

Weber, M. (2003 [1904]). A “objetividade” do conhecimento nas Ciências


Socais. In G. Cohn. (Org.). Max Weber – Sociologia. Ática.
6. IDENTIDADES, AFETOS, MEMÓRIA:
registros de nós e de nossas construções
Ana Céli Pavão Guerchmann
Eduardo Augusto Tomanik

Pois vivemos do que perdura, não do que fomos


(Cecília Meireles: 5º Motivo da Rosa)

Um pouco do que somos e de como vamos nos tornando


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Cada ser humano chega ao mundo inacabado e incompleto, mas aberto,


em formação e com potencial para se desenvolver em sua individualidade
e humanidade.
Porém, essa potencialidade esbarra, se apequena ou amplia nos limites e
alcances sociais, nas crenças, costumes e normas que estruturam o mundo do
qual esse ser humano vai se tornando parte integrante. Este mundo, que vai
sendo apresentado ao novo membro no movimento do cotidiano, no espaço-
-tempo em que a materialidade da vida vai acontecendo (Heller, 1972), se torna
o palco da construção da sua realidade, cuja interação é guiada e compartilhada
pelos outros, seus iguais, que antes dele já atuavam como construtores nessa
empreitada e que agora serão seus coparticipantes.
Todo esse percurso social de construção da realidade e, simultaneamente,
do desenvolvimento humano, é chamado por Berger e Luckmann (2011) de
processos de socialização, os quais se referem à introdução de cada novo ser
no universo de pensamentos, práticas e afetos que constituem uma cultura
e que se desdobram e multiplicam em cada grupo social dentro da mesma.
Esses processos ocorrem em dois momentos específicos e complementares:
a socialização primária, que é aquela que cada ser humano vivencia a partir
de sua chegada ao mundo, em suas interações com a família ou pessoas
cuidadoras, e que envolve uma grande carga de identificações afetivas, e
as secundárias, que são as socializações subsequentes, que ampliam seus
repertórios de aprendizados, e da qual os espaços da escola e do trabalho são
exemplos bem claros.
Por meio da socialização primária o sujeito humano aprende a ser e a
fazer parte do mundo dos humanos; através das diversas socializações secun-
dárias, vai aprendendo a participar e a sentir-se parte de parcelas distintas
daquele mundo.
Todavia, engana-se quem pensar que o ser humano se apropria pas-
sivamente de todo o acervo social e cultural que está ao seu redor, apenas
116

aprendendo e reproduzindo as convenções e os modos de agir esperados


pelos grupos dos quais passa a fazer parte. Esse movimento se traduz em uma
espiral: ao mesmo tempo em que cada pessoa vai capturando e internalizando
as características próprias de sua coletividade, tornando-as parte de seu ser
individual, vai também, enquanto constituinte ativo dessa sociedade, exterio-
rizando nela aquilo que é do seu próprio ser. Cada um de nós, portanto, vai
sendo transformado à medida em que transforma o meio social onde vive, o
que nos torna agentes de nossa própria transformação, das pessoas de nosso
convívio e das circunstâncias vividas.
Acreditando nisso é que Vigotski (1934/1998; 1930/2007) afirma que a
partir da apropriação dos elementos socioculturais é que vão sendo edificadas
operações fundamentais para o desenvolvimento humano, denominadas por ele

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


como funções psicológicas superiores, comportamentos superiores ou, ainda,
funções psíquicas, que são habilidades complexas como a fala, o pensamento,
a atenção, a memória, as capacidades de inventar, planejar, fantasiar.
Cada um de nós, em nossas vivências cotidianas, recebe e apreende os
componentes e eventos do mundo, não de maneira pura, concreta e linear, mas
a partir de e através de interpretações e elaborações mentais que direcionamos
a todo e qualquer elemento com o qual entramos em contato, tornando-o
humanizado, o que significa que o recriamos a partir de nossa singularidade
e de nossos aprendizados sociais. A partir daí, e do compartilhamento dessas
elaborações, é que nos sentimos pertencentes a um mundo que também é
nosso, familiar (Berger & Luckmann, 2011).
Todo esse intercâmbio do homem com seu meio e a construção da rea-
lidade, segundo Vygotsky (1930; 2007), ocorre de forma mediada.
A mediação é a ligação indireta do homem com as coisas do mundo, ou
seja, ela não é imediata e retilínea; nela há um elo intermediador, algo que se
interpõe entre o homem e o mundo.
A mediação se dá pela combinação entre o uso de instrumentos e signos.
Instrumentos, nas proposições de Vigotski (1930; 2007), podem ser defi-
nidos como elementos materiais que os seres humanos utilizam como recursos
em suas tentativas de agir sobre o mundo. Ao utilizar, por exemplo, uma pedra
para abater um animal, um antepassado nosso transformou aquele elemento
natural (a pedra) em algo diferente do que era, originalmente. A pedra, rein-
terpretada pelo ser humano, passou a ser uma ferramenta, um meio auxiliar
de ação que era, ao mesmo tempo uma extensão do corpo e uma testemunha
da capacidade de criação daquele ser.
Instrumentos podem ser elementos naturais, ressignificados, ou mesmo
criações elaboradas especificamente para isto. O papel ou a tela nos quais
lemos este texto, o alfabeto que usamos para redigi-lo e os óculos que alguns de
nós utilizamos para enxergar melhor as letras que o compõe são outros exem-
plos de instrumentos. Olhando à sua volta, você verá uma infinidade deles.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 117

Já os signos são a representação interna de algo do plano concreto, mate-


rial ou mesmo de algo que existe apenas em nossa imaginação. Posso pensar,
por exemplo, na existência de uma sereia. Este ser mítico já constitui um
signo, uma imagem mental, que é formada pela combinação de pelo menos
mais dois signos: uma imagem mental de uma mulher cujo corpo é dividido
ao meio, mais ou menos na linha da cintura e outra de um peixe, cujo tamanho
e formato fazem com se encaixe com precisão naquele semicorpo de mulher,
formando um outro ser. Para este exercício de imaginação não utilizamos
corpos materiais de mulher ou de peixe, mas recriações mentais sobre eles.
Quando pensamos, por exemplo, numa árvore ou em um carro de corrida,
estamos igualmente nos relacionando com uma imagem mental, um signo ou
sinal que os representa em nossas operações mentais.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Os signos funcionam como uma interposição entre nossos mundos inter-


nos e externo, atuando como auxiliadores na resolução de problemas, nas
avaliações que fazemos sobre o mundo e nós mesmos, e em atividades como
recordar uma tarefa que precisa ser feita ou um acontecimento, refletir sobre
algo, tomar uma decisão etc.

A invenção e o uso de signos como meios auxiliares para solucionar um


dado problema psicológico (lembrar, comparar coisas, relatar, escolher,
etc.) é análoga à invenção e uso de instrumentos, só que agora no campo
psicológico. O signo age como um instrumento da atividade psicológica
de maneira análoga ao papel de um instrumento no trabalho (Vigotski,
1930; 2007, pp. 52).

O veículo principal de todos esses processos de humanização, que são


mediados, é a linguagem, definida por Berger e Luckmann (2011, pp. 55)
como “[...] sistema de sinais vocais...”, o mais importante da humanidade,
sendo a fala a ferramenta básica de representação simbólica.
Sem a linguagem, como poderíamos saber o que é cada componente ao
nosso redor? Como poderíamos associar e relacionar esses componentes entre
si e com as nossas experiências? Como atribuir a eles funções e significados?
Como poderíamos dar nomes e expressar aquilo que pensamos, sentimentos,
fazemos? Como compartilhar tudo isso?
Para Vigotski (1934/1998), a linguagem não serve apenas para nomear as
coisas e nos comunicarmos, transmitir, receber e compreender mensagens; ela
também cumpre o papel de organizadora das funções psicológicas superiores
a partir do momento em que dela vamos nos apropriando naqueles processos
de socialização.
Grosso modo, num primeiro estágio do desenvolvimento humano, a fala
é exteriorizada, sua função é apenas comunicativa: falamos para os outros ou
para nós mesmos. Porém, a partir de uma etapa desse desenvolvimento, fala
118

e pensamento se unem constituindo uma espécie de fala interior, isto é, um


processo em que ocorre a interiorização da fala em forma de pensamento.
A partir daí, a criança consegue relacionar-se não apenas com o que está
fisicamente ao seu redor, acessível aos seus órgãos dos sentidos, mas pode
fazer usos muito mais amplos da imaginação e, gradativamente, ir criando
suas próprias reflexões. Isto possibilita que o pequeno ser humano não apenas
recorra a um adulto e aos objetos que estão à sua volta, para lidar com os
problemas e desafios que enfrenta, mas também a si mesmo, internamente
(Vigotski, 1934/1998; 1930/2007).
Por meio da linguagem, que é produzida e compartilhada nas interações
sociais, se estabelece uma relação proporcional entre aquilo que faz parte do
mundo exterior e tudo aquilo que vai adentrando no mundo interior, facili-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


tando o trânsito em ambos os mundos e edificando como realidade tudo aquilo
que é elaborado e compartilhado pelo sujeito humano e os participantes de
cada um dos grupos dos quais ele participa. Uma crença religiosa, um modo
de agir diante de uma situação, as convicções sobre as funções e o valor
social de um objeto ou de uma prática passam a ser vistos e sentidos como
se fossem tão naturais quanto a própria existência material daquele objeto
ou acontecimento.
É todo esse movimento que proporciona a contínua confirmação daquele
que sou e vou me tornando, do mundo onde habito e das pessoas que comigo
dele partilham.

Sobre Identidades

Quem é você?
Diante de uma pergunta como esta, costumamos apresentar respostas
prontas, como dizer nosso nome, idade, onde moramos, o trabalho e ou a
atividade de ensino a que nos dedicamos... Ainda que essas informações
constituam alguma apresentação sobre nós mesmos, enquadrando-nos em
alguns grupos socialmente estabelecidos e identificáveis, conseguiremos, no
máximo, formular uma breve representação de nós, o que poderá convencer
aquele que pergunta, dependendo da situação e contexto em que ambos esti-
verem, mas que, sem dúvidas, é insuficiente para responder totalmente àquela
questão. O pior é que talvez não haja mesmo respostas suficientes para isto.
A formação de quem somos, ou melhor, de quem vamos nos tornando,
traduzida no conceito de Identidade, perpassa o movimento ininterrupto de
socialização-individuação, que ocorre na dinâmica vivida nos processos de
socialização, em que, a todo instante, vamos produzindo o mundo em que vive-
mos e sendo produzidos como sujeitos singulares na interação com os demais
e com o mundo à nossa volta. Nossa construção e nossas transformações como
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 119

sujeitos humanos só são possíveis na convivência com o outro, no reflexo


devolvido pelo espelho do reconhecimento social.
Nesses processos de construção e reconstrução de nossa identidade, que
se dão em todo o percurso da vida, vamos experimentando diversos eus: sou
filha, ao mesmo tempo esposa, também fui aluna, agora sou professora, sou
a amiga que dá conselhos e também a tia que cuida e ensina... A composição
da minha identidade abarca tudo aquilo que sou, mas também o que deixei
de ser para poder ser ou me tornar outras.
Dessa maneira, ao responder quem eu sou, estou também afirmando quem
eu não sou, isto é, “dizer quem alguém é, significa dizer de quais grupos faz
parte: familiar, religioso, étnico, profissional, etário, sexual etc. Ao mesmo
tempo, dizer quem alguém é, é dizer que ele é ele, e não outro” (Neto e Lima,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

2010, pp. 93). Isso tudo abre um circuito ainda maior: denuncia a realidade
na qual estamos inseridos, indicando que nada é isolado, que fazemos parte
de uma totalidade que é o gênero humano e, em menor escala, a estrutura
social que nos enquadra (em mim, por exemplo, está contida toda mulher,
professora, que trabalha e também cuida dos afazeres domésticos, que deseja
ascender profissionalmente...); estamos todos unidos a uma trama de contra-
dições recíprocas.
Essas ideias, defendidas por Ciampa (1987; 1999), revelam que aquelas
representações de identidade, embora pareçam fixas e imutáveis (eu-filha,
eu-esposa, eu-professora) jamais devem ser vistas como algo dado ou produto
pronto e acabado, mas como produção, algo que vai se dando, se formando,
como o próprio processo de identificação.
Somos, portanto, uma totalidade e as partes que a formam não são incom-
pletas, mas cada uma delas funciona como uma unidade consistente, um
representante desse todo que se manifesta de acordo com os mais variados
contextos sociais dos quais participamos: quando estamos diante dos nossos
pais, expressamos o filho ou a filha que somos, mas carregamos em nós todas
as outras unidades que também compõem essa multiplicidade (ainda sou a
criança que fui um dia, sou o amigo, o professor, o conselheiro... e até o pro-
fissional que eu ainda não sou, mas que venho me esforçando para me tornar).
Diante de cada circunstância da vida social, segundo Ciampa (1987),
nossas identidades vão se compondo por meio da dinâmica entre papéis e
personagens. Provavelmente, em algum momento de sua trajetória de vida,
você experimentou (ou está experimentando) a condição de ser aluno. Ser
aluno é exercer um papel instituído em nossa sociedade. Isto significa que
existem previsões acerca das regras e dos comportamentos que deverão ser
cumpridos por todos aqueles que estiverem sendo alunos. Os papéis são a
realização de um conjunto de ações padronizadas e previamente definidas,
que normatizam as relações entre as pessoas que os exercem e entre estas e as
120

demais, que se relacionam com elas. Ao exercer um papel, cada um se iguala


aos demais, que também o estão exercendo.
No entanto, é justamente na concretização de cada papel social, na adoção
das normas que estão previstas para ele, que nascerão as personagens. Voltando
ao exemplo anterior: ao exercer o papel de aluno, cada um de nós vai imprimir
nele o seu próprio modo de sentir, pensar, agir, ser, assumindo formas diversas
e peculiares de desempenhar esse papel: são as personagens, ou em outras
palavras, as múltiplas unidades que representamos como parte do todo que
somos e simultaneamente vamos construindo. Cada um vai desenvolvendo e
imprimindo suas marcas particulares no modo como cumpre as normas (ou
como, sutilmente, passa a cumpri-las apenas em parte).
Com isso, afirmamos, em concordância com Lima (2010, pp. 143-144),

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


que “[...] a identidade passa a ser vista, expressa empiricamente, por meio
de personagens, e que é a articulação dessas personagens que vai constituir
a identidade”.
Isto nos faz enxergar o quanto a relação construída e cultivada com o
outro é essencial na (e para a) formação, manutenção e transformação de
nossas personagens, ou ao contrário, sua cristalização e dominação.
Para cumprir o papel de aluno, retomando nosso exemplo, e manifestar
as diversas personagens que construo em torno dele, é preciso que existam
o professor, os colegas, o diretor, o zelador... É nessa trama de interações
que as minhas personagens vão sendo criadas, interpretadas e reconheci-
das, ao mesmo tempo em que devolvo elementos para o reconhecimento das
personagens de outros, e com isso nossas identidades vão se confirmando e
se sustentando. Ao existir e atuar como aluno, apoio e sustento a existência
daqueles outros papéis e os desempenhos das pessoas que os exercem. Cada
uma destas faz o mesmo em relação a mim e aos demais.
Cada uma delas compõe também um ou vários personagens. Assim, o
jogo entre a padronização, promovida pelos papéis sociais e a individuação,
que ocorre pela construção e atuação das personagens, é multiplicado cons-
tantemente. Com isto, embora aparentemente cada um seja ele mesmo, uma
unidade pronta e estática, todos estão em transformação. Somo processos,
não fatos.
Por isto, nossa identidade é, sobretudo, transformação, é metamorfose
(Ciampa, 1987; 1999), é um constante vir-a-ser, “uma porta abrindo-se em
mais saídas” (Ciampa, 1987, pp. 36). É justamente a autonomia de (re)viver
e (re)inventar personagens, no jogo mútuo do reconhecimento, que enseja
o meu (auto)(re)conhecimento como humano singular e sincronicamente
coletivo, pertencente à comunidade social e histórica com outros humanos.
O que faz com que nossas identidades estejam em constante movimento,
embora continuemos sendo nós mesmos, é a atividade que realizamos: ao
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 121

fazermos algo, a gente também se faz, e é justamente no fazer que somos


reconhecidos. Além do mais, “[...] o fazer é sempre atividade no mundo, em
relação com outros” (Ciampa, 1987, pp. 137).
Minha identidade se manifesta nas ações que desempenho em interativi-
dade com os outros e com o mundo à minha volta, materializando as diversas
personagens que vou engendrando e que traduzem dinamicamente aquilo que
sou, incorporando também aquilo que fui e que pretendo ser.

O papel da memória na (con)formação das identidades

Sem o recurso da memória todo aquele complexo, dinâmico e contínuo


processo identitário que discutimos há pouco seria inviável.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Se não houvesse a possibilidade do resgate dos registros da memória,


dos aprendizados e das experiências vividas, as diferentes performances de
nossas personagens passariam a ser atuações desconexas, como que recor-
tadas de nós mesmos e apartadas do tempo, do contexto e das relações nas
quais foram sendo tecidas e que, consequentemente, produziriam elaborações
mentais igualmente desconexas.
Sem a memória, como ser reconhecido e legitimado pelas comunidades
das quais fazemos parte? Como seria possível nos abastecer das convivências
com os outros e do arsenal de conteúdos histórico-culturais de que vamos nos
apropriando, para deixar as nossas marcas no mundo onde vivemos?
Vigotski (1930/2007) propõe a diferenciação de dois tipos de memória: a
chamada por ele de natural (ou não mediada), caracterizada pelo imediatismo,
“[...] uma vez que surge como consequência da influência direta dos estímulos
externos sobre os seres humanos” (Vigotski, 1930/2007, pp. 32), e a memória
indireta (ou mediada), que tem na função dos signos “a verdadeira essência
da memória humana” (pp. 50).
Os signos, como vimos, são as representações mentais de tudo aquilo
que acessamos, seja no mundo material ou no plano imaginário. Por meio
deles é que foi possível ao homem superar as limitações da sua condição
biológica comum às outras espécies, revolucionando seu próprio processo de
desenvolvimento (Tuleski, 2009). Assim, a capacidade humana de memorizar
e recordar conteúdos se dá com o auxílio dos signos, possibilitando ao sujeito
usar estes recursos de maneira ativa e proposital, para o controle de si mesmo,
de seus próprios comportamentos.
Luria (apud Martins, 2011), utiliza ainda as denominações memória
involuntária ou imediata e memória voluntária, que correspondem às expli-
cações sobre a memória natural e a mediada, respectivamente. No mecanismo
de memorização vinculado a uma atividade, o primeiro tipo de memória (a
involuntária ou natural) ocorre de modo indiferente à intenção daquele que
122

realiza a ação, mas não indiferente ao ato que é realizado; ela parece ser auto-
mática, direta, mecânica. Podemos citar aqui o exemplo de dirigir um veículo,
para aqueles cujas ações já estejam tão naturalizadas que conseguem realizar
todos os procedimentos automaticamente, como que sem pensar.
Já a memória voluntária ou mediada requer intenção. Isto implica em que
a fixação voluntária de algum conteúdo na memória exige esforço, sendo esse
um processo altamente complexo, já que “o ato de memorização consciente
desponta apenas quando o indivíduo compreende que a retenção de determi-
nado conteúdo é necessária à sua atividade prática ou teórica” (Martins, 2011,
pp. 126). Esta retenção não se dá como ato isolado, mas como elemento que
integra a estrutura dessa atividade. Em outras palavras, o ato de memorizar
deve se inserir na cadeia de ações e sentidos que configura a atividade humana.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Vigotski (1930/2007, pp. 32-33, grifo do autor) já havia esclarecido que
mesmo aquelas operações mais simples, em que as pessoas lançam mão de
elementos externos, como, por exemplo, atar um nó no dedo ou desenhar uma
marca qualquer na palma da mão para lembrar que precisa fazer uma ligação
importante “[...] estendem a operação de memória para além das dimensões
biológicas do sistema nervoso humano, permitindo incorporar a ele estímulos
artificiais, ou autogerados, que chamamos de signos”.
Amparando-se em Luria, Martins (2011) explica que a memória per-
mite o registro, a conservação e a reprodução (ou evocação) de informações
obtidas por meio das experiências vivenciadas, possibilitando trazer à lem-
brança aquilo que estava armazenado, o que confirma ser esse mecanismo
imprescindível para o desenvolvimento das outras funções psicológicas supe-
riores. No mesmo sentido, Vigotski (1930/2007) destaca que a memória é a
função psicológica superior em torno da qual vão sendo construídas todas as
outras funções.
Martins (2011) destaca o fato de que a memória é capaz de operar com
os vestígios da experiência anterior, resgatando os rastros das vivências,
mesmo sem a presença concreta do fenômeno que provocou o aparecimento
desses vestígios.
A memória não é uma habilidade inata e nem apresenta as mesmas pro-
priedades e extensão para todos os seres humanos. Ao contrário, seu desen-
volvimento é decorrente tanto das influências do universo sociocultural,
quanto das vivências e experiências individuais. Desde o início de sua vida
a criança vai interagindo de maneira mediada com o outro e com o mundo e,
por meio dessas interações vai assimilando palavras, reconhecendo pessoas,
classificando objetos, percebendo e interpretando tudo ao seu redor e, por-
tanto, memorizando e resgatando esses registros de modo sofisticado e único
(Martins, 2011; Tuleski, 2009; Vigotski, 1930/2007).
Diante disso, é fundamental que a função da memória,
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 123

[…] assim como qualquer outra função humana, não seja compreendida, de
partida, como manifestação pura de propriedades do cérebro – abstraindo-o
da atividade engendrada na relação sujeito-objeto, ou seja, perdendo-se de
vista a própria condicionalidade histórico-social da organização cerebral.
A memória é, pois, um processo complexo e ativo cujo desenvolvimento
… compreende a superação de formas naturais, involuntárias, em direção
a formas voluntárias, culturalmente desenvolvidas (Martins, 2011, pp.
127, grifos da autora).

O bom funcionamento da memória para o desenvolvimento da vida


humana singular e coletiva e para a formação das identidades é fundamental.
Scheibe (1985, pp. 41) destaca o “[…] papel funcional feito pela memória
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

em todo o comportamento inteligente – a produção da fala e a compreensão,


tomada de decisão, resolução de problemas e o desempenho de atividades
motoras complexas”. Para sustentar esta afirmação, o autor apresenta registros
da vida de pessoas idosas, duas delas que tiveram o funcionamento de suas
memórias deteriorado.
No primeiro caso relatado por Scheibe (1985), o sujeito idoso apresentava
perda progressiva da memória, mas não acompanhada de deterioração física e
motora; condição típica da doença de Alzheimer. Os lapsos de memória foram
se tornando cada vez mais visíveis, especialmente na orientação espacial,
como nos momentos em que o sujeito, após sair de casa, era incapaz de dizer
para aqueles que o encontravam onde ele morava. Paralelo à desorientação
espacial, houve a perda de memória de nomes e fisionomias, bem como da
sua história de vida, até culminar no esquecimento de seu próprio nome e no
não reconhecimento de pessoas mais próximas (esposa, filhos, netos). Casos
como esse demonstram que as próprias representações de identidade, assim
como a percepção das identidades daqueles que foram centrais na vida de
uma pessoa, são seriamente prejudicadas pelo gradativo desaparecimento
da memória.
Já o segundo caso dizia respeito a outro sujeito idoso que, tendo sido
alcoólatra, demonstrou apresentar sintomas da síndrome de Korsakov, uma
perturbação neurológica por amnésia e desorientação mental causada especial-
mente pela falta de vitamina B1 no organismo e alcoolismo. Ele precisou ser
internado e, após esse episódio, sua memória voltou ao passado e ali perma-
neceu, no tempo em que tinha dezenove anos: ele se lembrava de pormenores
de sua vida até essa idade, mas não daí em diante. Seu quadro incluía ainda
a limitação de não perceber sua própria perda de memória (Scheibe, 1985).
Este sujeito, conforme explica Scheibe (1985), havia perdido a capaci-
dade de manter informações na memória permanente, isto é, de suprir com
novos conteúdos sua memória de longo prazo, como no momento em que
reconheceu seu irmão, com quem convivia antes dos dezenove anos, mas após
124

tê-lo deixado, logo se esqueceu completamente desse encontro, da mesma


maneira que não se lembrava do médico com quem conversara minutos atrás.
Essa condição afetou também sua capacidade narrativa, impossibilitando-o
de compor sua própria história após esse período fatídico, com efeitos avas-
saladores à sua aptidão de integrar-se ao mundo atual.
Do mesmo modo que a formação e a manutenção de nossas identidades
seriam impossíveis sem a operação do sistema de memória,

a experiência histórica da humanidade seria impossível na ausência de uma


propriedade psíquica cuja função central fosse o registro e o armazena-
mento dos traços que resultam dela, ou seja, seria impossível na ausência
da memória (Martins, 2011, pp. 122).

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


De acordo com Scheibe (1985, pp. 46), “tanto a memória como a identi-
dade são em grande parte sociais. A memória se torna viva no ato da narração
e a identidade é percebida quando o próprio eu é apresentado a outro”.
Recorrendo mais uma vez aos estudos de Scheibe (1985), ele resgata as
contribuições de Tulving (1972), o qual elaborou uma distinção entre o que
denomina memória episódica e memória semântica. De modo simplificado
e como recurso didático, vamos tentar explicar essa diferenciação: aquela
última, a memória semântica, está conectada ao reconhecimento de padrões
de significados convencionalizados, que assimilamos através de todo o ades-
tramento cultural pelo qual passamos nos processos de socialização. Ela é
indiferente ao aspecto temporal e nos permite, mesmo desligados do tempo,
lidar com a realidade palpável e imediata do presente. Um exemplo poderia
ser a memória de usar talheres para comer durante as refeições ou a escova
de dentes para a higiene bucal.
Já a memória episódica se localiza no tempo e é representada pela lem-
brança de eventos próprios a um contexto histórico específico. Ela é “[...] um
meio pelo qual o eu se liga à história e à particularidade da circunstância. Esse
processo é criativo, original, construtivo e nem sempre sujeito às relações do
realismo” (Scheibe, 1985, pp. 53). Seria essa memória que permitiria a con-
servação de uma identidade coerente, historicamente construída, que poderia
nos dar a impressão (apenas a impressão) de não mudança e de continuidade.
Sem esse tipo de memória, as relações que prendem as pessoas aos seus laços
sociais e históricos, como momentos com a família e amigos, casamento, for-
matura, religião, interações no trabalho etc., seriam perdidas e os processos
identitários seriamente prejudicados.
Os estudos de Bosi (1994) também caminham nessa direção. Ela se
propôs a investigar memórias de pessoas com idade superior a setenta anos
que, em suas narrativas, manifestaram registros de memória que além de
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 125

pessoais, eram também familiares, grupais e sociais. Para a autora, esses


sujeitos, as pessoas velhas, passariam a ativar mais frequentemente a memó-
ria episódica, uma vez que sua condição psíquica atual já estaria bem presa
a hábitos adquiridos e conservados, pois já se tornaram involuntários. Como
eternizou o romancista: “[...] a saudade é isto mesmo; é o passar e repassar
das memórias antigas”1.
Diante disso, podemos afirmar que é na dinâmica ininterrupta de relações
humanas que a memória vai sendo preenchida, de modo que “[...] muitas
de nossas lembranças, ou mesmo de nossas ideias, não são originais: foram
inspiradas nas conversas com os outros” (Bosi, 1994, pp. 407).
Não podemos deixar de mencionar, por outro lado, que existem diferen-
tes modalidades de interação, tanto diretas (no contato face a face) quanto
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

indiretas (as mediadas pela tecnologia, como é o caso da participação em


redes sociais, ou mesmo as consultas a arquivos), entre tantas outras. O que
queremos sublinhar, contudo, é que o primeiro modelo de interação, que
ocorre na relação direta entre os sujeitos, tende a possibilitar trocas sociais
mais duradouras e munidas de significados, o que é diretamente proporcional
ao registro de conteúdos perduráveis na memória. Assim, aquilo que é mais
individual em nós, representando a parte singular de nossas identidades, nasce
de um oceano de convivências e interações. “Pois não se diz que é ‘novo’
aquilo diante do qual procuramos referências na memória e não encontramos?
E, no instante seguinte àquele em que é percebido, o novo pertence ao passado
e ao domínio da Memória” (Rosário, 2002, s/p).

A participação dos afetos nos processos de memória e na (trans)


formação de identidades

“As coisas tangíveis/ tornam-se insensíveis/ à palma da mão/ Mas as


coisas findas,/ muito mais que lindas,/ essas ficarão”2. Nem tudo o que presen-
ciamos, vivenciamos ou de que tomamos conhecimento fica retido em nossas
memórias. O que fica, então? O que pode fazer com que alguns acontecimentos
e experiências permaneçam como que armazenados em nossas lembranças e
outros não? O que seriam essas marcas que ficam e que vão preenchendo o
território da nossa memória, desenhando a história de nossas vidas, tornando
como que inapagáveis momentos vividos, pessoas com quem convivemos,
lições aprendidas?
Segundo Heller (1993), são os afetos que cumprem três funções impres-
cindíveis nas operações da memória. A primeira dessas funções é a de

1 Machado de Assis; Dom Casmurro.


2 Carlos Drummond de Andrade; Memória.
126

selecionar, entre tudo o que vivenciamos ou com o que entramos em contato


aquilo que é mais relevante para nós, que nos afeta de alguma maneira. Este
será, em princípio, o material que será retido em nossas memórias. Tudo
aquilo com que entramos em contato, mas que nos afeta muito pouco tende a
ser descartado imediatamente, quase como se não tivesse existido. O que fica
retido na memória é o que foi capaz de nos afetar, nos envolver com algum
grau maior de intensidade.
A segunda função envolve uma espécie de processo de classificação de
tudo aquilo que foi pré-selecionado, ou com o qual nos afetamos mais. Hel-
ler propõe uma distinção entre a memória de curto prazo, na qual mantemos
armazenadas informações que até são necessárias para as nossas atividades

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


e resoluções imediatas, mas que podem ser descartadas uma vez que tenham
cumprido suas funções, e a memória de longo prazo, que armazena os con-
teúdos que nos afetam ou afetaram mais intensamente.
Vamos usar uma metáfora para facilitar nossa compreensão: imaginemos
que a nossa memória seja uma casa. Todas as experiências e aprendizados que
vamos vivendo e adquirindo ao longo da nossa existência se convertem em
conteúdos que vão preenchendo a nossa casa-memória; nessa dinâmica são os
afetos que vão atribuindo forma e função a cada um dos conteúdos, operando
como que os cômodos dessa casa, dispondo neles os móveis e assentando-os.
Aquilo que nos afeta ou afetou intensamente tende a ser alocado no
cômodo mais bem posicionado de nossa casa-memória, ocupando um espaço
amplo e privilegiado. Isto é o que ocorre com as lembranças que envolvem
conteúdos repletos de significados e que vão permear nossos cotidianos. Já
aquelas experiências com as quais tenhamos nos implicado pouco, mas das
quais precisamos fazer algum uso, provavelmente, serão encaminhadas para
os locais de armazenamento menores, onde permanecerão apenas o tempo
necessário para serem usadas e depois descartadas.
A terceira função dos afetos nos processos de memória envolve a res-
significação das lembranças que evocamos. De acordo com Heller (1993),
toda experiência, percepção, pensamento, ação... são armazenados em nossa
memória junto com as implicações específicas correspondentes. Ao evocarmos
uma lembrança, seja ela agradável ou não, evocamos simultaneamente todos
os afetos (positivos ou negativos) associados a essas recordações.
No momento em que aprendemos, assistimos ou participamos do que
ficou retido em nossa memória vivíamos uma situação, estávamos envolvidos
com ela de um modo específico, tínhamos alguns interesses. Ao evocar, ou
seja, em buscar as lembranças que retivemos sobre aquele mesmo aprendi-
zado, acontecimento ou experiência provavelmente estaremos envolvidos com
outros acontecimentos, interesses e afetos. Por isto, ao recordar, revestimos
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 127

nossas lembranças com nossas implicações de hoje e não mais com as que
vivenciávamos no instante inicial.
Nas palavras de Heller (1993, pp. 60):

[...] evocamos a implicação que tínhamos no momento dos fatos, mas a


pessoa que evoca não vive no passado; vive no presente: relaciona-se de
forma diferente com a implicação evocada daquela experiência ou, ao
menos, pode relacionar-se com ela de forma distinta.

No primeiro capítulo, Tomanik assinala, referendando-se em Heller,


o quanto momentos aprazíveis tendam a parecer breves quando vividos e,
no entanto, preenchem significativamente nossas casa-memórias; na mesma
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

proporção em que situações sem importância podem parecer intermináveis


quando as experimentamos, mas tendem a ser armazenadas na memória com
pouco ou quase nenhum detalhe, ou talvez nem sejam armazenadas.
Logo, concordamos com Gondar (2016, pp. 38) que

[...] não existem [...] memórias fora de um contexto afetivo. Se, como
artifício explicativo, desdobrarmos o processo de produção da memória
em algumas etapas, deveremos considerar o afeto como a primeira. De
todas as experiências que nós vivemos no aqui e no agora, selecionamos,
como impressões ou lembranças, aquelas que nos afetam em um campo
de relações. Todavia, o que nos afeta é o que rompe com a mesmidade em
que vivemos; a mesmidade não nos impressiona ou nos marca. O que nos
afeta é antes um encontro, uma palavra nova, uma experiência singular.

Retomando os estudos de Bosi, Chauí (1994, pp. 31, grifos nossos) des-
taca a união das dimensões pessoal e social no ato de recordar, confirmando
que os vestígios que emergem são aqueles repletos de afetos, que marcam e
dão significados a toda uma existência. Em suas palavras,

[...] o modo de lembrar é individual tanto quanto social: o grupo transmite,


retém e reforça as lembranças, mas o recordador, ao trabalhá-las, vai pau-
latinamente individualizando a memória comunitária e, no que lembra e
como lembra, faz com que fique o que signifique.

Bosi (1994, pp. 415) já havia elucidado que é por meio das interações
humanas que a memória vai sendo marcada por etapas significativas da vida,
por “[...] pontos onde a significação da vida se concentra...” e que tem a capa-
cidade de gerar implicações que vão arquitetando os arranjos afetivos dentro
de nossa casa-memória. Um exemplo pode ser o primeiro amor, o nascimento
de um filho, ou a morte de uma pessoa amada.
128

Esses pontos de significação, de acordo com a autora, vão sendo delinea-


dos nas conjunturas basilares da vida humana em sociedade, entre as quais
podemos citar os vínculos com o grupo doméstico do qual fazemos parte -
cujas lembranças comportam até mesmo cenas de eventos ocorridos antes do
nosso nascimento que nos foram contados; a casa materna ou aquela que foi
o palco de momentos singulares da nossa infância; os objetos que nos dão a
impressão de continuidade e, para além disso, “mais que um sentimento esté-
tico ou de utilidade, os objetos nos dão um assentimento à nossa posição no
mundo, à nossa identidade” (Bosi, 1994, pp. 441, grifo nosso) – e o trabalho,
o lugar da ação (do pensamento e dos afetos) cuja memória “[...] é o sentido,
é a justificação de toda uma biografia” (pp. 481).
Assim como Bosi (1994) ressalta a casa materna como um lugar signifi-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


cativo, que certamente imprime marcas afetivas em nossas memórias, também
Pollak (1992) cita como um dos elementos que compõem e dispõem os móveis
nos cômodos da nossa casa-memória, os lugares onde habitamos e por onde
passamos. “Existem lugares da memória, lugares particularmente ligados a
uma lembrança, que pode ser uma lembrança pessoal, mas também pode não
ter apoio no tempo cronológico” (Pollak, 1992, pp. 202).
Em uma análise complementar, Ponte, Bomfim e Pascual (2009, pp.
349) afirmam que a conexão de cada pessoa com o lugar habitado não é uma
simples ocupação corporal, mas deve ser considerada “[...] como significação/
apropriação ativa dos espaços físicos que passam a ter o caráter semiótico
de lugar”, o que quer dizer que o lugar se converte em signo, nos termos
vigotskianos, assumindo assim um papel mediador e decisivo na concepção
do sujeito e de suas representações de identidade.
É importante destacar, segundo os mesmos autores, que o sujeito não é
passivo nesses processos, mas se engaja de maneira implicada, consolidando
elos com os lugares relevantes de sua história.
Assim, a memória não é um mero receptor e armazenador passivo de
informações. Se assim fosse, ao trazer à tona uma lembrança do passado, esta
seria expressa da mesma maneira ou de modo muito semelhante ao momento
em que foi vivida e armazenada.
Ao contrário, a memória é uma construção ativa e pujante. Dito de outra
forma, não registramos e conservamos nossas vivências tal como acontecem,
mas as selecionamos, construindo narrativas sobre o que nos aconteceu e
sobre como nós operamos diante delas (Scheibe, 1985), isto é, elaboramos
interpretações e elas são conduzidas pelos afetos.
Acompanhando esse raciocínio, Bosi (1994) apresenta-nos Halbwachs,
que compreende a memória como fenômeno construído social e coletivamente,
enfatizando não a memória em si, mas os “quadros sociais da memória”
(pp. 54), o que dá relevo às instituições sociais que moldam a realidade de
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 129

cada sujeito (família, classe social, escola, igreja, trabalho). A memória, ao ser
evocada, se manifestaria com os recursos e representações do aqui-agora, isto
é, “por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a
mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os
mesmos de então...” (pp. 55) e, portanto, essa lembrança emergida não fugiria
às determinações do presente, estando atrelada à memória do grupo social.
A partir dessa perspectiva de seleção dos conteúdos acionados na memó-
ria, deparamo-nos com dois de seus componentes aparentemente opostos: a
lembrança e o esquecimento.
Estamos diante de mais uma função desempenhada pelos afetos: “[...] ser
capaz de esquecer é tão importante quanto recordar” (Heller, 1993, pp. 58).
Lavorati (2015) também observa que a memória é o espaço das falhas, lap-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

sos, deslocamentos, esquecimentos, tomando esse duplo papel – lembrar e


esquecer – como a “[...] ocorrência de um jogo de forças que tanto serve para
regularizar e estabilizar como desestabilizar sentidos” (pp. 52).
Sob essa ótica, o esquecimento natural (diferentemente do esquecimento
causado por lesões neurológicas, como nos dois casos ilustrados no início do
capítulo) que para nós, muitas vezes, apresenta uma conotação negativa e que é
preciso combater, exerce uma força niveladora no funcionamento da memória.

Pois esquecer é um ato que se encontra invariavelmente presente em


qualquer construção mnemônica. Para que uma memória se configure
e se delimite, coloca-se, antes de mais nada, o problema da seleção ou
da escolha: a cada vez que escolhemos transformar determinadas ideias,
percepções ou acontecimentos em lembranças, relegamos muitos outros
ao esquecimento. Isso faz da memória o resultado de uma relação com-
plexa e paradoxal entre processos de lembrar e de esquecer, que deixam
de ser vistos como polaridades opostas e passam a integrar um vínculo
de coexistência paradoxal (Gondar, 2016, pp. 29).

Em uma leitura psicanalítica das potências da memória, Trevizan (2014)


aponta que também para Freud os atos de lembrar e de esquecer desempenham
uma função comum, que é a de produzir uma história coerente e suportável
ao sujeito, uma vez que tanto o que é lembrado quanto o que é esquecido são
partes de uma história sobre si que ele mesmo escolheu, embora nem sempre
de modo intencional, contar para si e para os outros.
Cada um de nós vive em contínuos movimentos de lembrar e esquecer, e
os arranjos e direções desses movimentos são determinados pelos afetos. Isto
indica que a memória é processual, está em constante (re)criação, além de que
o próprio ato de evocar uma lembrança, e consequentemente rejeitar outras já
é, também, implicação, ou seja, ao lembrar estamos afetivamente envolvidos,
tanto com aquilo que recordamos quanto com o próprio processo de recordar.
130

Tentando, agora, ir um pouco além: nossas vivências, interpretadas, orga-


nizadas e armazenadas em nossa casa-memória com base nos afetos, e cujos
conteúdos vão sendo evocados para se tornarem narrativas de nossas histórias
de vida, são insumo para as representações daquilo que somos e que vamos
nos tornando; de nossas identidades.
Assim os afetos, através dos processos de memória, contribuem para a
constituição das identidades, mas esta constituição também contribui para a
elaboração e a seleção de (novos) afetos.
Sobre isso, Heller (1993) explica que as nossas inserções nos mais varia-
dos contextos sociais, em que vamos desempenhando os papéis a eles corres-
pondentes e expressando-nos por meio de nossas personagens (Ciampa, 1987),
fazem com que cada um de nós passe a organizar e a praticar o que a autora

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


denominou de “gestão doméstica dos sentimentos” (Heller, 1993, pp. 255).
Ainda que os afetos não pareçam ser totalmente ou facilmente controláveis ou
previsíveis, cada um de nós elabora, mesmo sem se dar conta, hierarquias de
afetos, que funcionam como escalas sobre o quê, como e com qual prioridade
devemos e podemos sentir, diante das conjunturas vividas.
O lugar que ocupamos em cada cena do enredo social e os modos como
o fazemos determinam nossas possibilidades de gestão afetiva e, portanto,
de hierarquização de afetos, envolvendo variados deles ou o seu conjunto:
quais afetos podem ou não ser manifestados, em que objetos podem ou não
ser investidos, quais podem ou não ser combinados, com que intensidades...
Estas hierarquias não são elaboradas livremente ou de modo puramente indi-
vidual. Há hierarquias e conjuntos delas diferentes, previamente estabelecidos
e intensamente esperados para homens e mulheres; profissionais e estudantes;
jovens, adultos e idosos; proprietários e proletários e assim por diante.
Nossas ações e experiências no mundo, em conexão com os outros, vão
nos informando e desenhando nossa hierarquização de afetos, tendo nos pro-
cessos de memória sua operacionalização. As vivências e manifestações de
nossos afetos, coerentes ou divergentes destas hierarquizações previstas, por
sua vez, participam da composição das múltiplas representações de identidades
que vamos externalizando, possibilitando ou dificultando, assim, a criação e
a seleção de (novos conjuntos de) afetos.
Tentando encaminhar a finalização das discussões que propusemos, vale
sublinhar que o recurso possibilitado pela memória, o de recordar, não é
simplesmente a capacidade de visitar mentalmente as experiências do pas-
sado, mas, em certa medida, revivê-las e senti-las, o que é fundamental na
identificação de nós mesmos como pessoas singulares e simultaneamente
como partes de um coletivo. “É graças à faculdade de recordar que, de algum
modo, escapamos da morte que aqui, mais que uma realidade física, deve ser
entendida como [...] realidade simbólica [...]” (Rosário, 2002, [s. p.]).
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 131

Além disso é por meio da memória dos outros, especialmente dos idosos,
como destacou Bosi (1994), transformada em narrativas de vida, que cada
ser humano recebe as contribuições necessárias para o seu próprio desenvol-
vimento e para a construção de representações de identidades que sejam, ao
mesmo tempo, coerentes, contínuas e potencialmente transformáveis. Esse
efeito pode ser sentido até mesmo quando as pessoas morrem, pois, a memória
trata de torná-las imortais.
É por essa via que Bosi (1994, pp. 443) considera a valorização do vín-
culo com o passado como a raiz da formação das identidades e alerta para
a existência de um processo oposto, o desenraizamento, uma condição de
desagregação da memória cuja causa é “[...] o predomínio das relações de
dinheiro sobre outros vínculos sociais. Ter um passado, eis outro direito da
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

pessoa que deriva de seu enraizamento”.


Isto nos possibilita mais uma reflexão: na sociedade capitalista atual, em
que têm imperado valores como flexibilidade, imediatismo e efemeridade, ao
que tudo indica, o desenraizamento tem sido fortalecido.
Sobre o vínculo com o passado, Gondar (2016) também faz um alerta
sobre os cuidados que precisamos ter ao utilizarmos os recursos da memória,
como o ato de recordar, para fins direcionados, já que recordar, como dissemos,
é reviver e sentir, e a escolha sobre o que é trazido à memória tem implicações
no futuro: “o conceito de memória, produzido no presente, é uma maneira de
pensar o passado em função do futuro que se almeja” (pp. 25).
A casa de nossa memória vai sendo edificada no cotidiano onde se rea-
liza a aventura da existência humana. O agora é vivido sempre na companhia
daquilo que já se foi e do que poderá ser, e o que permanece são os conteúdos
convertidos em afetos que nascem das lições aprendidas, dos vínculos (re)
(trans)formados, das experiências concretizadas...Vivemos do que perdura:
composições para as possibilidades de sermos e nos tornarmos a cada dia.
132

REFERÊNCIAS
Berger, P. L. & Luckmann, T. (2011). A construção social da realidade: tra-
tado de sociologia do conhecimento. Vozes.

Bosi, E. (1994). Memória e sociedade: lembrança dos velhos. Companhia


das Letras.

Chauí (1994). Apresentação: os trabalhos da memória. In E. Bosi. Memória


e sociedade: lembrança dos velhos. Companhia das Letras.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Ciampa, A. C. (1987). A estória do Severino e a história da Severina: um
ensaio de Psicologia Social. Editora Brasiliense.

Ciampa, A. C. (1999). Identidade. In S. T. M. Lane, W. Codo. (Org.). Psico-


logia social: o homem em movimento. Editora Brasiliense.

Gondar, J. (2016). Cinco proposições sobre memória social. In V. Dodebei, F.


R. Farias, J. Gondar (Org.). Por que memória social? Rio de Janeiro: Híbrida.
Revista Morpheus: estudos interdisciplinares em Memória Social: edição
especial; 9(15). https://bit.ly/3eCOJAT.

Heller, A. (1972). O cotidiano e a história. Paz e Terra.

Heller, A. (1993). Teoria de los sentimientos. Coyoacán.

Laplanche, J. & Pontalis, J. B. (1998). Vocabulário da psicanálise. Mar-


tins Fontes.

Lavorati, C. (2015). Entre palavras e imagens: desdobramentos da memória.


In W. G. Sebald, N. C. R. B. Teixeira & H. W, Camargo. (Org.). Identidade,
memória e subjetividade. 48-62. Syntagma Editores. https://bit.ly/2B4FQle.

Lima, A. F. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso:


a identidade na perspectiva da psicologia social crítica. FAPESP, EDUC.

Martins, L. M. (2011). O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar:


contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia históri-
co-crítica. Tese apresentada ao concurso público para obtenção de título de
Livre-Docente em Psicologia da Educação Não-Publicada, Departamento
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 133

de Psicologia da Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista,


Bauru, São Paulo. https://bit.ly/2ZgHS9R.

Neto, J. U. G. & Lima, A. F. (2010). Reconhecimento social, identidade e


linguagem: primeiros fragmentos de uma pesquisa sobre perspectivas teóri-
cas atuais no contexto da psicologia social. Revista Psicologia e Saúde, 2(1),
90-97. https://bit.ly/3cSuuR6.

Pollak, M. (1992). Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de


Janeiro, 5(10), 200-212. https://bit.ly/2ZaYr77.

Ponte, A. Q., Bomfim, Z. A. C., & Pascual, J. G. (2009). Considerações teó-


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ricas sobre identidade de lugar à luz da abordagem histórico-cultural. Psicol.


Argum., 27(59), 345-354. https://bit.ly/3ghJAOY.

Rosário, C. C. do (2002). O lugar mítico da memória. Morpheus – Revista


Eletrônica de Ciências Humanas. 1(1): [s. p.]. https://bit.ly/2ZeOCoI.

Scheibe, K. E. (1985). Memória, identidade e história. In Bassit, A. Z.;


Ciampa, A. C. & Costa, M. R. Identidade: teoria e pesquisa. EDUC.

Trevizan, R. D. (2014). As potências da memória: experiência, trauma e


contemporaneidade. Dissertação de Mestrado Não-Publicada, Programa
de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Estadual de Maringá,
Maringá, Paraná.

Tuleski, S. C. (2009). Poderia ser a subjetividade, objetivada? Em busca da


superação da dualidade em psicologia. In Tomanik, E. A.; Caniato, A. M. P.
& Facci, M. G. D. (Org.). A constituição do sujeito e a historicidade. Edi-
tora Alínea.

Vigotski, L. S. (1934/1998). Pensamento e linguagem (2ª ed.). Martins Fontes.

Vigotski, L. S. (1930/2007). A formação social da mente: o desenvolvimento


dos processos psicológicos superiores. Martins Fontes.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
7. A PARTICIPAÇÃO DOS AFETOS
NAS VIOLÊNCIAS DOMÉSTICAS
VIVIDAS POR MULHERES
Aline Daniele Hoepers
Eduardo Augusto Tomanik

“Eu não sei dizer, ainda, como eu me sinto; eu me sinto ainda presa...”.
Vitória1, a autora da frase anterior, era uma mulher que vivia em situa-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ção de violências domésticas. No período em que nos apresentou aquele


depoimento, ela participava de um grupo formado por mulheres que viviam
situações semelhantes e que tentavam coletivamente construir novos cami-
nhos, novas formas de vida e de convivências, inclusive e especialmente
consigo mesmas.
Naquele momento de sua vida, Vitória era

[...] amasiada há 9 anos e relatou sofrer violência psicológica de modo


recorrente durante todo relacionamento, através de xingamentos, isola-
mento de familiares e depreciações, bem como mencionou já ter sofrido
violência física, em algumas circunstâncias (Hoepers, 2018, pp. 86).

Embora já tivesse manifestado algumas vezes sua disposição em aban-


donar o relacionamento com seu companheiro, ela ainda não havia feito isso.
Uma história aparentemente igual a tantas outras, lamentável, mas tão
frequente que chega a nos parecer familiar (e para muitas pessoas é, mesmo).
Diariamente, muitas mulheres são violentadas e mortas, na maioria das vezes
por seus companheiros ou ex-companheiros, no âmbito doméstico. Em nosso
país, de acordo com Bueno, Bohnenberger e Sobral (2021), comparações entre
as últimas versões do Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontam que o
número de feminicídios no Brasil vem crescendo a cada ano. Particularmente
em 2020 foram registrados 1.350 feminicídios, dentre os 3.913 homicídios
de mulheres.
Segundo o Art. 1º da Lei Federal nº 13.104/2015 (Brasil, 2015), feminicí-
dios são os homicídios de mulheres motivados “por razões da condição de sexo
feminino”, que envolvem “violência doméstica e familiar” e/ou “menosprezo
ou discriminação à condição de mulher”. Provavelmente tanto os números de
homicídios de mulheres quanto os de feminicídio sejam menores que os que

1 Todos os nomes citados são fictícios.


136

realmente ocorreram, seja por falhas na notificação, seja por divergências nos
critérios de classificação dos casos.
De qualquer modo, tal como já nos vêm alertando autoras como Mor-
gado (2011, pp. 257), “[...] o lar tem sido um local extremamente perigoso
para as mulheres”.
Situações de violência doméstica envolvendo as mulheres, ainda que não
resultem em morte das mesmas, de tão frequentes e próximas, acabam por
levar muitos de nós a acreditar na existência de uma série de características
que seriam comuns a todas aquelas situações e capazes de explicar porque elas
existem. Quantos já não ouvimos alguém falar (ou mesmo já não pensamos
a respeito) de que:

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


• a existência de atos de violência caracteriza e evidencia a ausência
de afetos naquelas relações (“aí já não existe amor, respeito, nem
nada [...]”);
• existe uma inferioridade natural da mulher, que faz com que ela se
torne vítima da situação de violência e incapaz de enfrentá-la ou de
livrar-se dela (“ah, ela é mulher, coitada [...]”).

Neste capítulo, pretendemos tomar os processos afetivos como eixos


condutores de algumas reflexões sobre as situações de violências domésticas,
especialmente sobre aquelas que são dirigidas às mulheres, não apenas para
tentar mostrar a fragilidade de crenças e de explicações como as que acabamos
de citar, mas para evidenciar que aquelas situações envolvem tramas bastante
complexas de afetos, modos de vivências e de relações sociais.
Basicamente, pretendemos orientar nossas reflexões ao redor de
três proposições:

a) violências e afetos não são dimensões compartimentadas, arranjam-


-se, (re)combinam-se e interdeterminam-se;
b) uma profusão de afetos integra os espaços de ocorrência das vio-
lências que estamos abordando;
c) os afetos participam não somente das vivências das pessoas dire-
tamente envolvidas nestas situações, mas também dos dispositivos
sociais que as (re)produzem.

Antes de iniciar a discussão destas proposições, e por que esta é uma


base importante para aquelas discussões, será interessante lançarmos algumas
reflexões sobre o próprio problema que vem sendo o nosso objeto de estudo.
É comum encontrarmos textos acadêmicos, reportagens, campanhas e
depoimentos que fazem referência à violência doméstica contra a mulher.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 137

Que fique claro: nada temos contra a existência de preocupações, reflexões e


muito menos contra as tentativas de superação daquele problema. Apenas nos
parece que aquela denominação já traz, em si, possibilidades de produção de
entendimentos pouco adequados sobre aquele processo social.
O emprego do termo violência, no singular, pode sutilmente servir para
aumentar a impressão, já amplamente difundida e aceita, de que o problema
fica restrito aos casos de agressões físicas, de práticas capazes de ou destina-
das a produzir danos diretamente ao corpo das pessoas agredidas, podendo
chegar a causar a morte das mesmas. De novo, não é que esta modalidade
de violência não seja preocupante ou não deva ser combatida ou evitada. O
problema é que ela não é a única.
Sob uma perspectiva jurídica, no Brasil, segundo a Lei nº 11.340/2006,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

conhecida como Lei Maria da Penha, pode e deve ser considerada violência
doméstica contra as mulheres “[...] qualquer ação ou omissão baseada no
gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico
e dano moral ou patrimonial”.
Temos, então, ao menos cinco modalidades diferentes de expressão de
violências domésticas contra as mulheres: físicas, psicológicas, sexuais, patri-
moniais e morais. Infelizmente, as informações disponíveis nos sugerem que
raramente qualquer uma delas ocorre isoladamente, ainda que algumas muitas
vezes sequer sejam reconhecidas como violências.
Por isto, temos optado (Hoepers, 2022; Hoepers & Tomanik, 2022) por
utilizar e recomendar a utilização dos termos violências, no plural.
Por um raciocínio semelhante, consideramos também que a utilização
do termo mulher pode dar margem a uma espécie de homogeneização das
pessoas que são envolvidas naqueles processos. Cada uma delas é única,
viveu uma trajetória que, embora possa apresentar semelhanças, jamais será
idêntica a qualquer outra. Além disso, o que é mais importante, a violência
não é produzida e aplicada pelo fato biológico de que cada uma e todas elas
são mulheres. Como veremos adiante, são as construções e convenções sociais
que determinam os modos de ação dos sujeitos humanos e os direcionam a
viver aquilo que, aparentemente, seria um destino ou uma condenação.
Assim, entendemos que a utilização do termo mulheres, no plural, não é
apenas uma escolha estilística do campo da escrita, mas um posicionamento
ético-político comprometido com o não apagamento da diversidade que com-
põe aquelas pessoas, vivências e vidas.
A utilização do termo contra igualmente pode contribuir para a elabora-
ção e a transmissão de uma concepção simplificadora, mas falsa sobre aquelas
manifestações, seja por sugerir que os envolvidos são adversários entre si (a
contra b), seja por indicar que aqueles são processos exclusivamente unidi-
recionais (b é alvo de a). Por isto, temos optado pela substituição do termo
138

contra, convencionalmente usado, pela expressão vividas por, por entendermos


que, assim, provocamos um deslocamento na compreensão destas violências
como vivências e não mais como condições de mulheres vitimadas por algo
(um crime, um ato, um ciclo, uma escalada) ou por alguém (o “agressor”,
o culpado).
Em nossa compreensão, a partir de experiências cotidianas com elas e
eles, nas pesquisas e na atuação profissional, deparamo-nos com a pluralidade
e o intercruzamento das maneiras possíveis de estas violências serem viven-
ciadas, bem como com a multiplicidade que caracteriza a existência destas
pessoas e, por isso, optamos pela terminologia violências domésticas vividas
por mulheres, em contraponto à comumente utilizada (violência doméstica
contra a mulher).

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Optamos por preservar o uso do adjetivo domésticas para situar que é nas
relações domésticas – que envolvam coabitação ou não, mas que tenham como
eixo comum a existência de relacionamentos familiares ou de outras formas
de vinculação íntima – que estas mulheres vivenciam tais experiências opres-
sivas, que se manifestam de modos variados e usualmente combinado, ou, até
mesmo, atingem sua forma mais trágica, o feminicídio. É claro que estas não
são vivências encerradas no âmbito doméstico; sua construção e expressão,
envolvem um processo social mais amplo, sobre o qual trataremos adiante.
Em outra publicação, já vínhamos refletindo que,

o lar, usualmente idealizado por nós como espaço de trocas afetivas agra-
dáveis, segurança e cooperação, passa a ser, nesses casos, cenário de
graves violências. Algumas sutis e silenciosas, outras escancaradas, sem
quaisquer disfarces. Os laços afetivos se transmutam num emaranhado de
conteúdos ambíguos, de nós aparentemente indesvencilháveis (Hoepers
& Tomanik, 2021, pp. 19).

É sobre este conjunto de conteúdos ambíguos que passamos a tra-


tar a seguir.

Eu não sei dizer, ainda, como eu me sinto

Tal como abordado por Tomanik, no capítulo 1 deste livro, não raro,
no senso comum e até mesmo no campo científico, afetos são tratados como
conteúdos relativos a cuidado, carinho ou qualquer espécie de vinculação
significada como positiva. Uma pessoa é considerada afetuosa quando é
gentil, atenciosa, carinhosa. Mais uma vez, nada há de errado com a utiliza-
ção do termo afeto, com este significado, especialmente em nossas conver-
sas cotidianas.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 139

A partir desta forma de compreensão e de quase definição, torna-se


mesmo difícil supor que possam existir afetos em relações permeadas por
práticas de violências.
No entanto, especialmente quando passamos a definir os afetos como os
conjuntos de efeitos produzidos em nós por nossas interações, aquela suposi-
ção de que as manifestações de violência seriam contrárias e mesmo incompa-
tíveis com a presença de afetos deixa de fazer sentido. Afetos estão presentes
e participam da composição de quaisquer reflexões, ações ou intenções huma-
nas. Manifestações de violência, desprezo ou rejeição; de carinho, cuidado e
compartilhamento são igualmente permeadas, influenciadas e produtoras de
afetos. Apenas envolvem afetos diferentes.
Mesmo se deixarmos de lado, momentaneamente, a definição proposta
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

por Heller (1993) e Tomanik, no início deste livro, e voltarmos a considerar


como afetos apenas aqueles processos que poderíamos chamar de positivos
ou que tendem a colaborar para a aproximação entre as pessoas, ainda é
importante passarmos a perceber que as relações domésticas que costumam
ser permeadas por manifestações de agressão e de desrespeito não envolvem
apenas afetos que possam ser considerados como negativos, ou seja, que
envolvam diferentes graus de aversão, rejeição ou destrutividade em relação
ao outro, mesmo que este seja aquele que tradicionalmente agride. As rela-
ções de violência doméstica não são opostas ou separadas do que poderíamos
chamar, ao modo popular, de “bons sentimentos”.
Num estudo recente (Hoepers, 2022; Hoepers & Tomanik, 2022), que
envolveu levantamento e análise de publicações brasileiras sobre o tema,
encontramos uma série de trabalhos que caracterizam as violências domésticas
vividas por mulheres como um fenômeno cíclico, composto por fases suces-
sivas de tensão, violência e reconciliação, que se repetem ritualisticamente,
numa circularidade pré-definida.
De modo geral, naquele grupo de trabalhos, os processos afetivos tendem a
ser discutidos ou citados exclusivamente nas fases de reconciliação, como se nos
momentos de tensão e/ou violências, os afetos (indicados por esta ou por outras
denominações) não estivessem presentes ou não merecessem ser considerados.
Talvez, ainda, por estarem sendo tomamos como sinônimo de carinho e cuidado.
De modo diverso, entendemos, a partir das contribuições de Heller
(1993), que nas relações que envolvem manifestações de violências domés-
ticas há uma diversidade praticamente infinita de afetos que podem estar e
que provavelmente estarão presentes; eles podem envolver elementos cons-
trutivos, de aproximação, mas também podem abarcar elementos contrários a
isto. Mesmo que aparentemente sejam conflitantes, estes conjuntos de afetos,
integram-se continuamente, o que pode colaborar para que se torne difícil
distingui-los e mesmo identificá-los.
140

Nessa direção e na contramão daquelas tendências ou tentativas


de simplificação,

[...] pensamos que dicotomizá-los [os afetos] enquanto parte positiva em


contraponto a uma outra parte tomada como negativa, em que pesem as
justificativas de que esse modelo explicativo tem fins didáticos, não auxilia
na compreensão destas experiências, que, aliás, são altamente dinâmicas
e compostas por profusão de afetos que podem ser – e frequentemente
são – paradoxais: atração e repulsa, medo e carinho, desilusão e esperança
[...] (Hoepers & Tomanik, 2022, pp. 99).

As discussões tecidas até aqui permitem-nos perceber que afetos e vio-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


lências se arranjam e que, neste encontro, uma diversidade imensurável de
afetos pode compor tais experiências permeadas por violências. Em outras
modalidades de relações humanas, não caracterizadas pela presença de vio-
lências, tal diversidade é marca habitual. Não seria diferente nas relações
domésticas permeadas por violências.
No entanto, é importante considerar que a existência de arranjos afetivos-
-relacionais diferentes torna as experiências vividas também diferenciadas e,
mesmo que aparentemente idênticas a tantas outras, únicas. Cada uma delas
pode percorrer trajetórias e possibilitar a existência de momentos vivenciais
também diferenciados. Por isto, é preciso e conveniente tomar muito cuidado
com a elaboração ou a adoção de esquemas genéricos e reducionistas de com-
preensão e de direcionamento de tentativas de intervenção frente a estas relações.
Em outros depoimentos que recolhemos (Hoepers, 2018), uma de nossas
entrevistadas mostrou estar vivenciando um desses arranjos quase paradoxais,
que envolviam tanto a representação que ela mantinha, naquele momento,
sobre seu companheiro quanto a forma como percebia seu próprio envolvi-
mento na situação.

E ele era bonzinho, [...] é trabalhador, mas alcoólatra infelizmente.


Ele acordava cedo, tava desempregado, tomava café e já ia pro bar, né.
Quando voltava, já voltava bêbado e já me xingava de tudo quanto é
nome né, então... é... biscate, vagabunda, prostituta [...]. Então hoje, com
relação a ele, eu vejo [...] que eu consigo sim viver sem ele, na época eu
achava que não. Confesso que ainda amo, mas não é mais aquele amor
que eu sentia antes. Hoje eu sinto ele assim... como uma pessoa assim...
estranha pra mim, sabe? Eu já aprendi a conviver sem ele (Eduarda).

As vivências afetivas paradoxais e mesmo as representações compostas


de conteúdos conflitantes trazidas por Eduarda e por outras tantas mulheres
evidenciam experiências fundamentalmente dinâmicas e, portanto, não lineares
e compartimentadas.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 141

Além desses arranjos afetivos, autoras como Schraiber, D’Oliveira e


Couto (2009) assinalam que não é incomum que as mulheres relatem sentir
vergonha ou humilhação em razão das situações que vivenciam; culpa ou
medo de serem apontadas como provocadoras da violência; assim como, em
muitos casos, insegurança afetiva e financeira, quanto a si e às/aos filhas/os.
Tudo isto intercruzado com esperança de que o companheiro mude, em face do
que ele promete. Morgado (2011) também apontou que estes relacionamentos
envolvem um conjunto complexo e ambivalente de elementos, difícil de ser
categorizado em um único modo de vivência de violência.
Contribuindo para tornar estas situações ainda mais complexas, temos
percebido (Hoepers, 2022; Hoepers & Tomanik, 2022) que além das mulheres
envolvidas nesses processos relacionais violentos experienciarem múltiplos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

afetos nem sempre ou muito raramente elas conseguem compreender o que


estão sentindo ou ser capazes de identificar e de descrever cada um de seus
afetos para outra pessoa. Há situações em que acionam um ou mais termos
específicos, buscando definir o que sentem ou mesmo afirmam não saber o
que sentem ou que nada sentem, dada a complexidade do que vivenciam.
No primeiro caso, não necessariamente ela conseguirá comunicar todos
ou mesmo parte substancial dos afetos envolvidos em sua experiência. Na
segunda situação, ela sente, embora não consiga identificar quais afetos são
estes. A narrativa de Vitória, na abertura deste capítulo, serve como uma boa
ilustração sobre este aparente não saber, que provavelmente é muito mais uma
dificuldade de interpretar ou traduzir a complexidade do que é sentido. Enre-
dada em tal emaranhado de fatos, relações, expectativas, afetos, interpretações
e dificuldades de elaboração e refinamento das mesmas, não é estranho que
Vitória sintetize sua situação através da imagem de uma prisão, um espaço
físico ou uma condição subjetiva de enclausuramento.
Heller (1993) destacou que os afetos não são vivenciados isoladamente,
o que pode dificultar seu entendimento por quem os vivencia. A pessoa pode
não saber o que sente; não conseguir, naquela circunstância, nomear seus
afetos ou descrevê-los para outros. A situação se complexifica quando nos
deparamos com a possibilidade de que o sentido atribuído àquela vivência
pode ser variável, a depender de cada pessoa e das circunstâncias envolvidas,
porque a identificação dos afetos envolve também a interpretação/compreensão
deles, que é um processo singular.
Não saber dizer o que se sente não significa, portanto, não sentir.

Eu me sinto ainda presa

Além de nos contar que não conseguia, ainda, dizer o que sentia quanto
as suas vivências, caracterizadas por violências domésticas, Vitória também
142

compartilhou conosco que se sentia ainda presa naquela relação. Não havia
conseguido ainda liberar-se. Mais uma vez, afetos, pensamentos e atos mos-
tram-se como partes complementares das atividades humanas, faces de uma
mesma figura. Sem saber bem o que sente, ela não consegue encerrar a relação,
mesmo insatisfeita; ao não encerrar a relação, obriga-se a manter dúvidas
sobre o que sente e até mesmo, talvez, sobre quem é.
Prisioneira de seus conflitos e carcereira de si mesma, Vitória tem difi-
culdade de perceber que não está sozinha. Não estamos nos referindo, aqui,
ao fato de que há muitas outras Vitórias, vivendo situações e provavelmente
conflitos semelhantes (ainda que provavelmente não idênticos). Estamos
tentando destacar que há todo um contexto social, que é muito mais amplo
que cada uma e que todas estas relações e que determinam a existência e a

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


permanência de todas elas.
Passar a fazer parte de uma relação doméstica violenta, transformar esta
relação ou, nos casos em que isto não é possível, libertar-se ou permanecer
fazendo parte dela, diferentemente do que é afirmado por tantos discursos
intimistas e culpabilizantes, não é mera escolha individual.
Quantas dessas frases ou de outras, semelhantes a elas, você já ouviu?

• “Ela fica com ele porque quer”.


• “Se ela ainda está com ele é porque gosta de apanhar”.
• “Deus disse que o casamento é prá vida toda. Não pode ser desfeito”.
• “Você deve perdoá-lo, em nome da sua família”.
• “Será uma vergonha ter uma filha divorciada”.
• “Casamento é isto mesmo, filha. Eu suportei seu pai tantos anos,
agora é a sua vez”.
• “Você quer mesmo denunciá-lo por isso? Mas ele é seu marido”.

Essas e outras frases são exemplos de verbalizações que circulam em


muitas conversas cotidianas e que são tomadas como verdades. A maioria delas
condena as mulheres a permanecerem ligadas às suas relações de conjugali-
dade, mesmo que estas relações se afastem consideravelmente do que seria
esperado ou idealizado. As duas primeiras frases culpabilizam as mulheres
por cumprirem aquela condenação.
Muito já vem sendo escrito sobre as quase onipresentes modalidades
de inferiorização social das mulheres. As numerosas (e corajosas) tentativas
de superação dessas condições, ao mesmo tempo em que são importantes e
necessárias, também atuam como denúncias da persistência daquelas con-
dições. Não pretendemos nos aprofundar, aqui, nestas discussões. Apenas
queremos destacar que as violências domésticas vividas por mulheres são
parte integrante e coerente com um modo de organização social que prima
por inferiorizá-las e violentá-las cotidianamente e em muitos outros espaços.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 143

Envolvidas por esta trama social de convicções, não é surpresa que,


muitas vezes, mulheres pensem e ajam de modo a contribuir para a constru-
ção e a perpetuação de relações conjugais permeadas por violências contra
si mesmas ou contra outras, que dependeriam ou contam com elas para não
vivenciarem situações semelhantes.
Em síntese, longe de ser apenas um grande número de casos isolados
entre si e produzidos, cada um, por condições pessoais inadequadas, as situa-
ções que envolvem violências domésticas são uma produção social, uma
modalidade de relações prevista, permitida e até mesmo incentivada por um
modo de vida que é, todo ele, baseado na existência de diferenças de condi-
ções, possibilidades e direitos, ainda que procure ocultar tudo isto sob um
discurso de igualdades.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Por isto, tentar agir ao avesso, é bastante difícil e complicado: romper


com aquelas relações violentas demanda apoio familiar, comunitário e insti-
tucional, nem sempre ofertados.
A (re)produção das condições sociais não protetivas – ausência ou pre-
cariedade de políticas públicas, redes de apoio fragilizadas e naturalização
social das violências, fundamentam e estruturam o que poderíamos denomi-
nar como prisões afetivas. Heller (1993) não nos deixa esquecer que regras
sociais, normas religiosas, preceitos normativos que internalizamos, dentre
outras tantas prescrições quanto aos modos de agir ou pensar, oriundas dos
mais diversos campos, incidem nas nossas maneiras de sentir.
Vitória e outras tantas mulheres não estão presas, apenas, às amarras
das dinâmicas relacionais abusivas em si, mas também às estruturas sociais,
econômicas e políticas que sustentam e movimentam as relações hierárquicas,
desiguais, favorecedoras de opressões e violências, nem sempre percebi-
das como tal.

A violência se disfarça. Ora surge como não violência, ora como aconte-
cimento banal, como acidente, como processo natural: as coisas são assim
mesmo, não há o que se possa fazer [...]. Ora tinge-se como necessária,
ainda que indesejada. Ora chega a travestir-se como benéfica e, portanto,
desejável. Além disso, é insidiosa. Atua com mais eficiência, ou seja, com
mais destrutividade, quanto menos é identificada. Expande-se, quando
desejada, e impõe-se, quando desmascarada. Desdobra-se. Faz-se de nova
para manter-se a mesma (Tomanik, 2017, pp. 11).

Pensando nisso, quando lançamos o olhar para as particularidades das


violências domésticas vividas pelas mulheres, não podemos deixar de destacar
alguns dispositivos que auxiliam a sua reprodução sutil ou escancarada, mas
repetidamente banalizada. Entre estes dispositivos podemos citar a modali-
dade de gestão afetiva que nos é ensinada desde a infância, que propõe ou
144

mesmo determina modos de sentir (e simultaneamente de ser, pensar, agir e


se relacionar) femininos e masculinos e, por meio da qual, invariavelmente
o recurso da violência é legitimado e normalizado como conduta masculina.
Aquela modalidade de gestão diferenciada dos afetos serve como base,
por exemplo, para justificar que os acessos aos mais diversos espaços sociais
– de trabalho, de poder, de participação política, dentre outros, todos estru-
turados sobre os fundamentos de uma sociedade machista, classista e racista
– sejam facilitados ou dificultados de acordo com o gênero, a posição social,
a cor da pele de cada um...
Ela também repercute sobre a banalização das violências, que é funda-
mentada, não raro, em justificativas naturalizantes e individualizantes, como
“homem é assim mesmo” e “ah, isso não passa de ‘briga’ de marido e mulher”.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Esses e outros aspectos sustentam a naturalização das violências domésticas
vividas por mulheres (Hoepers, 2022; Hoepers & Tomanik, 2022).
Nas falas a seguir podemos perceber alguns impactos deste processo
de naturalização nas vidas dessas mulheres, que nos informam a respeito de
uma espécie de (sobre)vivência naqueles espaços de enclausuramento. “Eu fui
convivendo com isso. E achando que eu tinha que aguentar aquilo até o final
ou da minha vida ou da vida dele, porque minha mãe aguentou né” (Renata).

Ele sempre tacou na minha cara que tudo ele fazia, que eu não tinha capa-
cidade de ter minha vida própria [...]. Eu tive que sair desse casamento
pra resgatar a Alice que eu... que tava assim totalmente a milhares de
distância de mim, ela ficou longe... ela desapareceu (Alice).

A partir dessas ilustrações e de outras expressões com as quais nos depa-


ramos cotidianamente, notamos que um conjunto de fatores microssociais,
como redes comunitárias frágeis, políticas públicas precárias, desarticuladas
ou insuficientes, somam-se aos impactos afetivos mais variados, gerados
pelas violências na vida de cada mulher. Esses impactos são influenciados
também, por outros marcadores sociais, além do gênero, como os de raça,
classe e espaço geográfico.
Assim, nas situações de violências domésticas vividas por mulheres,
mesclam-se as vivências e os afetos pessoais, fatores microssociais como os
que já citamos, mas também conjuntos de fatores macrossociais, que edificam
sistemas opressivos, como o capitalismo, o sexismo e o racismo.
O conjunto destes fatores e as interações deles compõem e mantém em
movimento constante um contexto de amarras e fluxos que operam justamente
para manter as mulheres enclausuradas, inibindo, assim, a emergência de
cargas afetivas contrárias às opressões vividas e de alternativas pessoais ou
coletivas de combate ou de superação das mesmas.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 145

Acreditamos, todavia, que tal configuração não é um processo estático


e imutável. Pelo contrário, a criação ou o restabelecimento das redes sociais
formais e informais destas mulheres podem e devem cooperar com a construção
e/ou o fortalecimento de cargas afetivas que favoreçam o rompimento com
relacionamentos violentos. Apostamos que esse processo ocorra por meio do
encontro com outras/os, em trocas, nas redes cooperativas, de interdependência.
Contudo, este não é um movimento unidirecional, a ser operado espon-
taneamente por elas. Um passo importante seria assumirmos, como pessoas
e como membros da sociedade, nossa participação na construção e dissemi-
nação das violências.

Não temos como escapar de nós mesmos e de nossas responsabilidades:


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

criamos, praticamos, apoiamos e compartilhamos violências. Produzimos


justificativas para elas ou meios para ocultá-las. Nós as ignoramos, ou nos
esforçamos para fazê-lo. Nossa omissão diante das violências é também
uma forma de violência por conivência. A omissão é a sombra protetora
sob cujo abrigo todas as outras formas de violência podem prosperar
(Tomanik, 2017, pp. 15).

Assumir essa responsabilidade se desdobra em cooperar para que outros


mundos sejam possíveis, o que passa por criar, fortalecer ou resgatar a força
coletiva, em detrimento dos modos de vida individualizantes, tão bem aceitos
na sociedade contemporânea.

É urgente, por conseguinte, o investimento e fortalecimento de espaços


coletivos, de resistência e criação conjunta, de sensibilização para um
mundo sem violência. Enfrentar esse problema, que não é individual-inti-
mista, mas sim social, passa necessariamente pela construção de estratégias
que valorizem, resgatem e fortaleçam a potência coletiva que existe ou
pode existir em nós (Hoepers & Tomanik, 2022, pp. 139).

Essas estratégias devem envolver nossas relações pessoais cotidianas,


familiares, comunitárias, laborais, institucionais e outras possíveis. A desnatu-
ralização das violências é um processo complexo, que demanda uma série de
estratégias coletivas e multidirecionais, que tenham como eixo fundamental
a superação das desigualdades e opressões normalizadas. Toda desigualdade
já é, em si, uma violência.
A (co)criação de estratégias se estabelece pela via dos afetos. Eles não
somente participam das vivências das pessoas diretamente envolvidas nos
relacionamentos caracterizados por violências domésticas e dos dispositivos
sociais que as (re)produzem, mas também podem e devem, enquanto processos
relacionais, ser empregados como ferramentas de enfrentamento e superação
de encontros humanos destrutivos.
146

REFERÊNCIAS
Brasil. (2006). Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 – Lei Maria da Penha.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm.

Brasil. (2015). Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. http://www.planalto.


gov.br/ccivil_3/_ato2015-2018/2015/lei/l13104.htm.

Bueno, S; Bohnenberger, M. & Sobral, I. (2021). A violência contra meni-


nas e mulheres no ano pandêmico. In S. Bueno & R. S. Lima (Org.).
Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021. Fórum Brasileiro

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


de Segurança Pública, ano 15, 93-109. https://forumseguranca.org.br/
anuario-brasileiro-seguranca-publica/.

Cerqueira, D.; Ferreira, H. & Bueno, S (coord.). (2021). Atlas da Violên-


cia 2021. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública. https://www.
ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/1375-atlasdaviolencia2021com-
pleto.pdf.

Heller, A. (1993). Teoria de los Sentimientos. México: Coyoacán.

Hoepers, A. D. & Tomanik, E. A. (2022). Pode não ser assim: outras trilhas,
afetos e sentidos sobre as violências domésticas vividas por mulheres. Edi-
tora CRV.

Hoepers, A. D. (2018). Afetos de mulheres em situação de violência doméstica:


(re)construindo sentidos. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação
em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR, Brasil.

Hoepers, A. D. (2022). Violências domésticas vividas por mulheres: outras


trilhas, afetos e sentidos. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, Maringá-PR, Brasil.

Hoepers. A. D. & Tomanik, E. A. (2021). Violência doméstica contra mulheres:


um olhar pela via dos afetos. Psicologia em Revista, 27(1), Minas Gerais.

Morgado, R. (2011). Mulheres em situação de violência doméstica: limites


e possibilidades de enfrentamento. In H. S. Gonçalves & E. P. Brandão. Psi-
cologia Jurídica no Brasil. Editora Nau.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 147

Schraiber, L. B., Oliveira, A. F. P. L. & Couto, M. T. (2009). Violência e


saúde: contribuições teóricas, metodológicas e éticas de estudos da violên-
cia contra a mulher. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, (25), supl.
2, 205-216. https://www.scielo.br/j/csp/a/jt5yff5hHH5cXCHr6Bwzw9p/
abstract/?lang=pt.

Tomanik, E. A. (2017). Prefácio: A violência, nossa companheira. In A. M.


P. Caniato. Violências, Indústria Cultural e Subjetividade: os impactos nas
identidades individuais. s./l: ALFEPSI Editorial. https://www.alfepsi.org/
libro-violencias-industria-cultural-e-subjetividade-os-impactos-nas-identi-
dades-individuais/.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
8. PSICOLOGIA ORGANIZACIONAL
E DO TRABALHO: um pouco do
campo de atuação e muito dos afetos
Ana Céli Pavão Guerchmann
Regiane Cristina de Souza Fukui

Sobre o trabalho, sobre nós


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

O que você quer ser quando crescer?


Provavelmente você ouviu essa pergunta quando era pequeno e já a
utilizou para interagir com alguma criança.
Ainda que aquela pergunta pareça simples e banal, ela pode render refle-
xões interessantes, para iniciarmos nossa conversa.
Ao respondê-la, ainda que o(a) interlocutor(a) seja uma criança, ele(a)
possivelmente abordará algo que especifique uma atuação profissional: quero
ser médico(a), professor(a), artista, astronauta etc. Isto já pode nos levar a
pensar o quanto nossa sociedade está estruturada em torno do trabalho a
ponto de esse tema estar presente nas brincadeiras e nas reflexões infantis
desde muito cedo.
Podemos nos aprofundar um pouco mais nesta linha de raciocínio e tomar
como pontos de reflexão os dois verbos contidos em nossa pergunta: ser e
crescer. O primeiro verbo pode indicar que a construção daquilo que somos
e vamos nos tornando passa necessariamente pela atividade do trabalho, que
centraliza a expressividade de um eu e demarca nosso lugar no mundo.
Já o verbo crescer pode ser pensando aqui em duas vertentes: a primeira
é a de que o trabalho se concretiza (ou deveria se concretizar) quando se
alcança a condição de adulto ou adulta, alguém que chegou à maioridade,
tendo atingido a plenitude de suas funções biológicas. Infelizmente, nossa
história revela que nem sempre foi assim, e as denúncias de trabalhos infantis
persistem, ainda, atualmente. A outra vertente (a que nos mais interessa aqui)
é a de que o verbo crescer remete à ideia de processo, movimento, de um vir a
ser. Tendemos a estar em constante processo de crescimento e transformação,
ao mesmo tempo em que contribuímos para o crescimento e transformação
do espaço e das pessoas do nosso convívio.
Além do mais, os verbos ser e crescer estão intimamente ligados a outro
verbo: sentir. Tudo aquilo com que entramos em contato física ou mentalmente
– sejam pessoas, coisas, situações, imagens, sons, paisagens [...] – nos afeta,
150

já que nos implicamos com tudo que nos rodeia, e sentir é estar implicado
(Heller, 1993).
Nessa espiral ininterrupta da vida humana, o trabalho vem sendo, a tem-
pos, a forma privilegiada de nos implicar e manifestar a nossa humanização.
Um dos campos do conhecimento científico que se apropria do fenô-
meno do trabalho como objeto de investigação é a Psicologia, em especial a
chamada Psicologia Organizacional e do Trabalho. É nesse campo de estudos
e práticas que nós (as autoras desse texto) viemos enveredando, compondo
nossos interesses profissionais e de pesquisa desde o período da formação
em Psicologia.
Hoje, somos docentes no ensino superior, em cursos de graduação em
Psicologia e Gestão, em cursos de especialização e residência multiprofissio-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


nal, percorrendo uma trajetória de atuação em grupos de estudos e pesquisas
e continuamos buscando nosso aperfeiçoamento profissional nos cursos de
mestrado e doutorado.
Faz parte do nosso cotidiano ministrar disciplinas, orientar trabalhos de
iniciação científica, produzir materiais didáticos, entre outras atribuições, cujas
vivências e interações diversas com a comunidade acadêmica e organizacional
produziram em nós algumas inquietações, e são elas que nos impulsionaram
à construção desse texto.
Não é incomum experienciarmos situações nas quais alunos e alunas nos
questionam acerca do papel do(a) profissional da Psicologia inserido(a) no
contexto das organizações e do trabalho. Além desses questionamentos mas
não apartado deles, durante as aulas temos observado a pouca adesão daquele
público aos conteúdos e assuntos referentes ao tema que são levados para
debates em sala, e as noções que se tem sobre esse campo de atuação, ainda
muito presentes, são as de que o(a) psicólogo(a) organizacional e do trabalho
está à serviço do capital, ou que a atuação desse profissional é exclusivamente
tecnicista ou, ainda, que sua função é a de adaptar o homem/mulher ao trabalho
e à máquina, e não o contrário, fazendo valer aquela velha máxima: “colocar
o homem certo no lugar certo”. Todas estas noções contribuem para que o
Psicólogo que atua nas relações de trabalho seja visto, muitas vezes, com
um profissional cuja função é contribuir para várias formas de exploração
do trabalhador.
Seria a missão da Psicologia voltada ao mundo do trabalho e das organi-
zações reduzida a essas práticas? O que pode o(a) psicólogo(a) organizacional
e do trabalho fazer e transformar?
Diante dessas primeiras ponderações e indagações, neste capítulo obje-
tivamos problematizar a atuação do(a) psicólogo(a) no contexto das organi-
zações e do trabalho, tecendo considerações sobre a necessidade de produzir
reflexões críticas acerca desse papel e expondo a participação das implicações
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 151

que vão sendo produzidas nesse contexto, portanto, dos afetos, podendo chegar
a outras (novas) possibilidades de reflexão e atuação para esse campo.
Não conseguiremos atingir nosso objetivo se não estivermos dispostas
a descontruir alguns mitos que foram criados em torno da atuação do(a) pro-
fissional de Psicologia no panorama do trabalho e das organizações. Come-
çaremos resgatando um pouco dessa história e esperamos que você, leitor(a),
siga conosco nessa caminhada.

O trabalho, o trabalhador e a Psicologia: um pouco da história

Compreendemos o trabalho como meio essencial para a (re)produção


da humanidade, o que vem garantindo, até os dias de hoje, a existência,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

sobrevivência e manutenção da vida das pessoas e dos grupos sociais. Pode-


mos chamá-lo de atividade vital, da mesma forma que Faria (2017, pp. 187)
o classificou inspirando-se em Marx, isto é, trabalho como “[...] atividade
eminentemente humana que produz vida”.
Isto significa dizer que o trabalho, muito mais do que suprir necessidades
básicas e materiais, cumpre uma função psicossocial: coloca os seres humanos
em coletividade, ensejando a construção de relações e o fortalecimento de
vínculos afetivos, ao mesmo tempo em que nos constitui como seres singula-
res, na medida em que possibilita o reconhecimento de nós mesmos, do outro
e do mundo, e dá abertura para criar e aperfeiçoar nossas capacidades. Pelo
trabalho somos criadores e criaturas, concomitantemente.
Se concordamos que o trabalho é um fenômeno social, também estare-
mos de acordo que seus formatos de produção, organização e gestão foram
se modificando ao longo da história, buscando acompanhar e se conformar às
construções e transformações das sociedades. Nessa perspectiva, concordamos
com Malvezzi (2014) que o trabalho não ocorre no vácuo, mas se submete a
uma lógica constituída por condições econômicas, políticas, socioculturais,
tecnológicas, sendo balizadas por valores e relações de poder, compondo,
assim, a sua institucionalização, em especial a partir da supremacia do capi-
talismo – sistema econômico que tem no lucro seu principal objetivo.
Com isso, destacamos aqui um dos marcos da institucionalização do
trabalho que foi a emergência do processo de industrialização ocorrida nos
séculos XVIII e XIX, fazendo surgir uma nova relação social: o dono do
capital (da fábrica e das máquinas) versus o trabalhador (o operário), promo-
vendo um deslocamento do lugar e do significado do trabalho (Guareschi,
2006; Magalhães & Bendassolli, 2013).
A partir daí nascem, nos Estados Unidos, os modelos de administração
científica do trabalho que tanto foram difundidos pelo mundo, o taylorismo e
o fordismo, em menção aos seus respectivos proponentes, Frederick Taylor
152

(1856-1915) e Henry Ford (1863-1947), cujos propósitos, em linhas gerais,


eram baseados na racionalização, no controle de tempos e gestos em prol da
máxima agilidade e produtividade, estas alcançadas através da nítida divisão
entre planejamento (atribuído aos gerentes) e execução do trabalho (feita pelos
operários). No fordismo houve o acréscimo da linha de montagem sobre a esteira
rolante, imobilizando o trabalhador em seu posto de trabalho, tornando-o prati-
camente um apêndice da máquina (Borges & Yamamoto, 2014; Heloani, 2006).
É nesse cenário capitalista que a Psicologia enquanto área do conheci-
mento situada no contexto do trabalho surgiu, tendo na conjuntura americana
espaço e condições privilegiadas para o seu nascimento. Mediante o ideário
taylorista-fordista, estruturou-se a concepção de que o recrutamento e seleção
de pessoal eram um princípio básico para a suposta adequação do humano ao

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


ritmo e formas impostos pelo trabalho industrial (Borges & Yamamoto, 2014;
Sampaio, 1998; Zanelli, Bastos & Rodrigues, 2014).
Assim, foram os(as) psicólogos(as) os(as) responsáveis pela elaboração e
desenvolvimento dos perfis profissiográficos, isto é, das características supos-
tamente necessárias para que o trabalhador atendesse aos requisitos impostos
pelos cargos e funções das fábricas e que, além disso, faziam o recrutamento
e a seleção daqueles trabalhadores.
Com as pesquisas de Elton Mayo (1880-1949) acerca das Relações
Humanas, que versava sobre a influência das relações sociais no ambiente
de trabalho e com a alteração do foco nas indústrias da época, o que culminou
na transição entre as discussões centradas nos postos de trabalho (como o
processo de recrutamento e seleção) para uma análise dos contextos organi-
zacionais diversos (entre eles, o desenvolvimento dos trabalhadores), os(as)
psicólogos(as) também tiveram suas atividades ampliadas, exigindo atua-
ções mais complexas: treinamento e desenvolvimento humano; avaliação
do desempenho dos trabalhadores; investigações sobre a cultura e o clima
organizacionais, entre outras, que tiveram seu início e difusão em meados do
século passado. Assim, segundo Sampaio (1998), a Psicologia Industrial foi
paulatinamente sendo transformada em Psicologia Organizacional.
Há que se considerar que este breve (muito breve) panorama acerca das
duas primeiras faces da Psicologia aplicada às relações de trabalho reme-
te-nos particularmente à sua história em solo estadunidense. Já em nossas
terras, a industrialização aconteceu em descompasso com os Estados Unidos:
enquanto lá os princípios da engenharia e organização/administração cien-
tíficas estavam a todo vapor, aqui ainda tínhamos o trabalho escravo (o que,
infelizmente, podemos ainda encontrar nos dias atuais), no contexto de um
país essencialmente agrícola.
Considerando França (2015), os primeiros subsistemas de recursos huma-
nos, ou seja, os departamentos situados nas organizações formais de trabalho
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 153

cuja finalidade é se ocupar dos interesses trabalhistas, tanto dos empregados


quanto dos empregadores, surgiram nas décadas entre 1960 e 1980 no Brasil,
aproximadamente trinta anos depois da legislação trabalhista, e por conse-
guinte, da formalização de um documento oficial que designaria a condição
de trabalhador: a carteira de trabalho.
Dando um salto no tempo, hoje estamos vivenciando um novo estágio do
sistema capitalista, em grande parte representado pela globalização da econo-
mia; um mundo no qual o capital circula livremente, não havendo fronteiras
para as transações econômico-financeiras e no qual os limites territoriais foram
superados pelas tecnologias da informação e comunicação (TICs).
Para Heloani (2003), as fusões, aquisições e privatizações são algumas
facetas desse mundo globalizado. A vida do trabalhador que atua em uma
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

organização que foi “incorporada” à outra, ficou submetida à lógica da maxi-


mização de lucros e, consequentemente, à minimização dos custos, assujeitada
a uma análise absolutamente mercadológica.
Nessas e em outras circunstâncias, diversos foram e tem sido os efeitos
na rotina dos trabalhadores. Muitos deles foram demitidos e aqueles que
continuaram em seus postos de trabalho, invariavelmente tiveram suas fun-
ções alteradas, passando a desenvolver atividades múltiplas, que requerem
competências cada vez mais flexíveis e elaboradas, por vezes atravessadas
por estilos de gestão perversos e pelo medo da demissão que foi propalada a
partir das práticas de reestruturações administrativas que visam reduzir cargos
e eliminar hierarquias.
Além de tudo isso, atualmente enfrentamos um cenário de pandemia, a
partir do qual o mundo em geral tem sido ameaçado pela presença do corona-
vírus (vírus da covid-19), o que provocou dentre tantos impactos no terreno
do trabalho, a diminuição no número de empregos e outros tipos de serviços,
o fechamento de estabelecimentos comerciais, ou restrições nos horários de
funcionamento, determinados por decretos estaduais e municipais em fun-
ção da imperiosa necessidade de contenção do vírus, as drásticas mudanças
nas formas de exercer o trabalho/emprego, como a implantação de práticas
rigorosas de higiene, a alternância de turnos de trabalho, a instauração do
trabalho em modelo home-office (realizado no espaço doméstico por meio
da tecnologia), entre outras modificações.
É evidente que o campo da Psicologia associado às organizações e ao
trabalho não ficou imune a todas essas transformações ocorridas, em especial a
partir dos anos de 1980-1990, o que resultou em sua terceira face, a Psicologia
do Trabalho ou Psicologia Organizacional e do Trabalho (POT), até hoje assim
denominada (Gondim, Borges-Andrade & Bastos, 2018; Sampaio, 1998).
A mudança de nomenclatura não significa, contudo, que uma fase
tenha se encerrado por completo para que outra passasse a existir, ou ainda
154

que os profissionais deixaram de atuar nos postos de trabalho mais ope-


racionais e específicos, como nas atividades de recrutamento e seleção ou
treinamento e desenvolvimento humano. Significa que houve a ampliação e
a complexificação do objeto de estudo: inicialmente, o foco eram as indús-
trias e as organizações resumidas aos postos de trabalho e à manutenção
das atividades neles executadas, cuja direção teórica era proveniente da
administração científica. Posteriormente, com os avanços no cenário social
e profissional, além das organizações, o trabalhador, enquanto ser humano
que vive, produz e sente o e no trabalho, passou a ser o ponto central de
interesse desse campo do conhecimento, sendo enriquecido pelo surgimento
de alguns direcionamentos teóricos (e ampliação de outros) provenientes
da própria Psicologia em diálogos construídos com outras áreas, como as

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Ciências Sociais.
Diante dessa breve retomada histórica do nascimento da área da Psi-
cologia Organizacional e do Trabalho, queremos lançar luz a alguns ques-
tionamentos: a Psicologia voltada ao mundo do trabalho e das organizações
estaria condenada a se manter ao lado dos interesses capitalistas? Embora a
área tenha passado por alterações que modificaram seu olhar sobre o traba-
lho e o trabalhador, seria a sua atuação reduzida ao ambiente exclusivo das
organizações? Mais ainda, nesse contexto comumente visto como racional e
calculista das organizações de trabalho, há espaço para os afetos? O que pode
o(a) psicólogo(a) organizacional e do trabalho (ainda) construir?
Talvez seja necessário primeiro desconstruir...

Desconstruir para construir: desfazendo alguns mitos em torno


da atuação da Psicologia Organizacional e do Trabalho

Talvez uma das visões mais comuns sobre a área da Psicologia Orga-
nizacional e do Trabalho é a de que ela esteja submetida aos ditames do
sistema capitalista. E ela está. Mas, não é só ela. Aqui apresentamos uma
primeira desconstrução.
O modo de produção capitalista não define e impõe uma modalidade
específica de relações sociais apenas nos ambientes de trabalho. Ao contrário,
ele se sustenta graças ao engendramento de relações, valores e de mentalidades
capitalistamente determinadas que se estendem a todos os campos e instan-
tes das vidas humanas submetidas a ele. Toda e qualquer atuação de um(a)
profissional das ciências humanas (e não só delas) se fará como parte dessas
cosmovisões, ainda que favorável ou contrário à sua manutenção.
Sendo assim, como declara Faria (2017, pp. 193, grifo do autor), dentro
da “[...] relação capital x trabalho, a intervenção do psicólogo, como profis-
são, está necessariamente marcada por uma relação de capital. Não, não me
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 155

refiro ao campo estrito da Psicologia organizacional, mas a qualquer campo,


dentro e fora da Psicologia”.
Talvez o campo da Psicologia Organizacional e do Trabalho apresente
mais abertamente esse viés pelo fato de que, normalmente, nele o contratante
é o empresário e os objetivos visados por este sejam explicitamente associados
à produtividade e ao lucro. Pode ser. No entanto, não nos esqueçamos que a
administração pública hoje também é calcada nos modelos empresariais de
gestão e que, de um modo geral, as cúpulas dos setores públicos são formadas
por pessoas que ou são também empresários ou são ligados a eles.
Outro fator complementar que sublinha o funcionamento da sociedade
atual nos moldes capitalistas é o de que todo processo produtivo se transforma
em produto e está submetido às leis do mercado. Um exemplo disso, que
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

perpassa o terreno das ciências e profissões, está “[...] nas escolhas para os
cursos de graduação, nas publicidades para vendê-los, nos fomentos em pes-
quisa para as áreas que geram menos tecnologias, menos produtos tangíveis,
concretos, para serem tocados, admirados e vendidos” (Faria, 2017, pp. 194).
Assim como qualquer outro produto, os cursos de graduação e as profissões
derivadas deles precisam criar necessidades para atender ao mercado globa-
lizado e manter sua soberania.
É preciso deixar claro, nessa discussão, que nosso propósito não é uma
defesa cega em favor da Psicologia Organizacional e do Trabalho. Reco-
nhecemos que essa prática profissional não está fora do âmbito capitalista
(como nenhuma outra prática está), mas criticá-la de modo vazio, sem buscar
conhecer suas possibilidades de ação e transformação, é uma postura que
contribui, talvez de maneira mais veemente, para a manutenção do estado
atual das coisas. Concordamos com Codo (1984, pp. 197) que “[...] a crítica
que produz a não intervenção é uma crítica caolha, covarde, que lava as mãos
e se recusa em inverter o papel da ciência, que não se submete a correr os
riscos do poder para tentar subvertê-lo”.
Outra ideia que queremos tentar descontruir é aquela que envolve a
concepção de organização como sendo um espaço de trabalho predominante-
mente formal e lógico, edificado em uma estrutura enrijecida, sob um sistema
definido, estável e regulamentador, o que estampa as noções tecnicista e ins-
trumental muitas vezes atribuídas às práticas do(a) profissional de Psicologia
dentro desses ambientes.
Antes de mais nada, organizações são constructos sociais e, portanto,
formadas por pessoas que convivem, interagem e juntas produzem algo para
si mesmas e para a sociedade, satisfazendo necessidades mútuas.

Ao examinarmos o cotidiano das pessoas, em diferentes contextos e cultu-


ras, notamos que todas estão sempre ligadas às organizações, de diversas
156

naturezas, em todas as fases da vida. Nos processos de socialização fun-


damentais, é fácil ver como muitos dos nossos vínculos de amizade são
construídos a partir de convívios em escolas formais ou escolas de artes,
esportes, línguas, etc., nos condomínios, nas igrejas, nas universidades,
nos asilos e nas organizações ou empresas em que trabalhamos (Zanelli,
Bastos & Rodrigues, 2014, pp. 549).

A partir daí podemos identificar que organização e trabalho são dois


lados de uma mesma moeda: o funcionamento das organizações depende do
trabalho, da produção humana, que, por sua vez, vem dependendo cada vez
mais das organizações, à medida que a complexidade e a demanda por recur-
sos aumentam. Se isso é verdadeiro, então o(a) psicólogo organizacional e do

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


trabalho pode transitar em qualquer esfera organizacional, sendo o fenômeno
trabalho-organização seu objeto de estudo e práticas, uma vez que “para com-
preendermos integralmente o ser humano, precisamos também entender sua
inserção no mundo do trabalho e as relações que são criadas no interior das
organizações em que se insere” (Zanelli, Bastos & Rodrigues, 2014, pp. 550).
Para ilustrar, Bastos, Yamamoto e Rodrigues (2013) destacam a expansão
da atuação da área da Psicologia Organizacional e do Trabalho para diver-
sificados tipos de organizações, contribuindo para superar aquela imagem
de profissional restrito ao segmento industrial que tanto marcou o início da
profissão. Hoje, os(as) psicólogos(as) organizacionais e do trabalho atuam
sobre processos organizativos e condições laborais em escolas, hospitais,
instituições públicas, cooperativas, ONGs (organizações não governamentais),
entre outros. Além disso, suas práticas vêm extrapolando os muros (físicos)
das organizações, passando a se ocupar de categorias mais amplas de traba-
lhadores, como pessoas que buscam mudar os rumos de sua carreira, aqueles
que já se aposentaram ou estão em vias de se aposentar, ou ainda pessoas que
estão desempregadas, auxiliando-as em sua reinserção ao universo do trabalho,
vislumbrando novas alternativas de geração de trabalho e renda.
Com isso, partimos da premissa de que a área da Psicologia Organizacio-
nal e do Trabalho, assim como as outras áreas da Psicologia e demais ciências,
é atravessada por limitações, contradições e desafios dos tempos atuais, muitos
deles impostos por relações assimétricas que marcam o modelo socioeconô-
mico ao qual estamos submetidos, mas que procura, no compromisso com as
demandas sociais, construir seus novos alicerces.

A atuação da psicologia organizacional e do trabalho tem a ver


com os afetos?

Chegamos aqui ao ponto nevrálgico do objetivo que conduz esse capítulo.


O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 157

Ao retomarmos aquela imagem de organização enquanto um lugar for-


malmente estruturado, dotado de regras e regido pela racionalidade, parece
coerente pensarmos que não há espaço para os afetos e, mais ainda, que, no
desempenho do trabalho, eles desviam a pessoa de seu foco e atrapalham o
bom andamento das atividades, prejudicando o alcance dos resultados orga-
nizacionais. Eis mais uma ideia que queremos desconstruir.
Para começar, o trabalho é fonte por excelência de estados afetivos os
mais diversificados e, por vezes, contraditórios. Aliás, é impossível conceber
qualquer dimensão da vida humana sem a participação dos afetos. Sendo
assim, por mais lógico e racional que qualquer desempenho humano no tra-
balho ou fora dele possa parecer, aquele desempenho estará sob a influência
inerente dos afetos, inclusive em se tratando da atuação do(a) psicólogo(a),
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

inserido ou não em contextos de trabalho.


Retomando a rápida introdução que fizemos ao tema dos afetos no iní-
cio desse texto, e de acordo com a explanação mais completa sobre o tema
no primeiro capítulo desse livro, apoiamo-nos em Heller (1993) que explica
que, ao nos relacionarmos com o que quer que seja, estamos necessaria-
mente implicados.
Isto significa, segundo a autora, que afetos são implicações, ou melhor,
são os efeitos produzidos em nós por qualquer interação com o mundo à
nossa volta, seja de maneira concreta ou imaginária: com as pessoas, objetos,
lugares, situações, vontades, fantasias, trabalho... Isto implica também em
que os afetos são experienciados por nós, mas não de modo linear e sequen-
cial. Se estamos em contato com alguém, apresentamos um tipo de afeto, em
seguida nossa atenção nos desvia para outra direção e o afeto passa a ser de
outro tipo, substituindo o anterior? Não! Sempre estamos vivenciando vários
afetos, simultaneamente, o tempo todo, porque sempre estamos envolvidos
com tudo aquilo que nos circunda.
Um ponto fundamental nas proposições de Heller (1993) é o de que os
afetos não são reações instintivas dos seres humanos, reduzidos a instâncias
exclusivamente biológicas; eles são desenvolvidos a partir dos relacionamen-
tos que vivenciamos e, portanto, são aprendidos. Aprendemos a sentir, o que
sentir e como sentir, a depender do convívio social ao qual estamos integra-
dos. Isto não quer dizer, contudo, que somos meros assimiladores passivos
de todos esses aprendizados: nós também, e ao mesmo tempo, participamos
das suas elaborações e transmissões, conferindo a esses aprendizados nossas
interpretações singulares.
Com tudo isso, reforçamos a noção de que a vivência no e com o trabalho
é fonte de possibilidades diversas de sentir.
Indo um pouco além desse raciocínio, Heller (1993) utiliza o termo tarefa
para designar as nossas ocupações, ou seja, aquilo que produzimos dentro
158

dos espaços e grupos sociais dos quais participamos, o que abarca também
aquelas atividades não reconhecidas formalmente como trabalho (estudar,
cuidar da casa e dos filhos, pintar, desenhar...), ainda que elas dependam, de
algum modo, da estruturação dos modelos de trabalho vigentes.
Para Heller (1993) é a tarefa, preferimos dizer o trabalho, que vai direcio-
nar a vivência do que a autora chama de gestão dos afetos, um gerenciamento
pessoal de tudo aquilo que sentimos a partir de uma hierarquia de valores, isto
é, uma escala do que sentir, como sentir e com qual prioridade e intensidade.
Todo esse gerenciamento afetivo passa pelas nossas interpretações pessoais,
ao passo que também é influenciado pelo contexto sociocultural.
Como no mundo atual a tendência é exercermos várias ocupações em
uma ou mais organizações sociais, cada uma dessas modalidades envolve

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


diversas tarefas, das quais decorrem vários (conjuntos de) afetos (que podem
ser até divergentes entre si), fazendo com que a gestão afetiva seja composta
por uma hierarquia de afetos a partir da hierarquia de tarefas, podendo ambas
as hierarquias se influenciarem mutuamente. Em suma, a inserção de cada
um de nós no mundo do trabalho e as experiências que vivemos em torno
dele delimitam nossas possibilidades de gestão afetiva, centralizando nossos
repertórios de afetos (Heller, 1993).
Sendo assim, em concordância com Heller (1993), a qualidade de nossas
experiências acerca do trabalho – das ocupações que desempenhamos, das
relações que a partir daí construímos e das possibilidades de harmonização
com outras tarefas sociais, promovendo uma dinâmica saudável de gestão
afetiva – será decisiva para nossas satisfações pessoais e para a construção
daquilo que somos e vamos nos tornando.
No entanto, se todo esse mecanismo falhar, seja por situações degradan-
tes, de opressões ou abusos, causando sofrimento intenso, seja pela ausência
de trabalho que signifique ausência de uma ocupação socialmente necessária
(o que não quer dizer apenas desemprego), tornando as pessoas meros ajustes
de uma pirâmide econômico-financeira, daí então a condição básica para a
gestão dos afetos estará ameaçada e as consequências para a vida humana
singular e coletiva podem ser bem prejudiciais (Heller, 1993), como é o caso
de tantos exemplos de doenças que vem se manifestando nos ambientes de
trabalho, inclusive no plano do sofrimento psíquico e das patologias, que hoje
têm se tornado alvos de investigações da área da Psicologia Organizacional
e do Trabalho.
Esperamos já ter deixado claro que o exercício do trabalho, dentro ou
fora dos lugares que comumente chamamos de organizações é movido pela
dinâmica dos afetos, ainda que haja normas, políticas e diretrizes a serem
meticulosamente cumpridas. Portanto, a atuação do(a) psicólogo(a) que se
insere nesse cenário também tem a ver com os afetos. Sempre.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 159

Aliás, se pensarmos no trabalho da era Taylor-Ford, talvez possamos


sugerir que aquele recurso utilizado de separar as funções de planejar e exe-
cutar, restando ao operário apenas o fazer por meio da mera repetição de
movimentos, não passou de uma tentativa de suprimir sua espontaneidade,
com intuito de não deixar brechas para o sentir; o que, sabemos, é impossível
(Pavão, 2015; Souza, 2010).
Para ilustrar essa impossibilidade, recordemos o famoso filme de Charles
Chaplin, Tempos Modernos (1936), a propósito muito utilizado nas aulas da
disciplina de Psicologia Organizacional e do Trabalho para retratar justamente
a figura do operário do começo da era industrial, cuja atuação se resumia a um
único movimento durante todo o tempo de trabalho. A célebre cena em que
o personagem de Chaplin parece estar vivenciando uma espécie de colapso
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

mental, quando sai de sua posição fixa e começa a repetir o movimento de


apertar parafusos em qualquer coisa e pessoa que encontra pelo caminho, não
poderia ser interpretada como uma maneira de vazão dos afetos resistindo à
supressão de sua livre manifestação?
Nos modelos atuais de gestão, em especial dentro das empresas, o que
se apresenta ao psicólogo(a) organizacional e do trabalho não é mais (ou não
é mais tão frequente) aquele enredo das antigas fábricas. Hoje, as empresas
sabem o quanto a mobilização da capacidade criativa e afetiva do trabalhador é
essencial para o êxito dos seus negócios, reconhecendo, inclusive, a satisfação
e o bem-estar como requisitos para a produtividade e qualidade do trabalho.
A busca dos gestores não é mais por estratégias de eliminação dos afetos
para alcançar resultados efetivos na produção; agora o foco é a apropriação
e modelação dos afetos em prol da máxima produtividade.
Não é à toa que temos à nossa disposição uma oferta praticamente incon-
tável de produtos, facilmente veiculados pela internet – muitos deles ofereci-
dos por profissionais de Psicologia, como é o caso dos testes de perfil e das
formações em inteligência emocional – que prometem desenvolver habilidades
comportamentais que garantem o sucesso nos vários aspectos da vida, não
só o profissional: autoconhecer-se, ser um líder eficaz, trabalhar em equipe,
ter foco na carreira, aprender a gerenciar o tempo, falar em público, atender
bem o cliente, ser empreendedor... “soluções” estas, de articulação afetiva,
que atraem pelo discurso de tornar a pessoa única, diferenciada, mas que, na
verdade, a tornam padronizada, igual a todo mundo.
Recuperemos aqui toda aquela dinâmica de gestão dos afetos elucidada
por Heller (1993). Segundo a autora, uma das vias que resta para o sujeito
quando ele vivencia uma gestão afetiva deficitária é a “imitação de modelos
de sentimento” (pp. 295). Talvez esteja aí o motivo daquelas propostas de
desenvolvimento estarem tão arraigadas em nossa sociedade, hoje, e serem
tão procuradas, o que justifica também, e infelizmente, a presença (e até o
160

aumento) de quadros de sofrimento e adoecimento devido à precarização


na gestão dos afetos e ao distanciamento da pessoa de seu próprio projeto
de realização.
O que então pode (ainda) fazer o(a) profissional de Psicologia Organizacio-
nal e do Trabalho no vasto e complexo mundo do trabalho e das organizações?
Resolver tudo não é possível, muito menos desfazer sozinho(a) o cená-
rio capitalista ao qual todas as áreas estão subordinadas, o que não é motivo
para julgá-lo(a) como alguém anulado(a) de reflexão crítica e de potência de
transformação. Há muito o que fazer.
Em um primeiro momento é fundamental reconhecer que o(a) profissional
de psicologia tem muito mais possibilidades de ação no interior das relações

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


de trabalho do que fora ou distante dele. Nesse ponto, concordamos com Faria
(2017, pp. 197-198) que

[...] o psicólogo é uma força necessária para a saúde da organização,


considerando ser ele um especialista em pessoas e ser a organização uma
empresa viva. A contradição das organizações são justamente a manipu-
lação das pessoas. Há uma tensão entre o grau de humanização neces-
sário do trabalhador (como por exemplo, sua dedicação, sua adesão, sua
criatividade no trabalho etc.) e sua desumanização (como por exemplo,
a subserviência, a falta de iniciativa, assertividade em relação à opressão
vivida, as expectativas de fatalismo, o desempoderamento...). É nesse
interstício que o psicólogo crítico pode se intrometer. Tocar na humani-
zação mais que fazer valer a desumanização.

Não podemos negar que há uma intencionalidade que permeia a pro-


dução dos saberes (incluindo os científicos), bem como a utilização desses
saberes, além de instrumentos e técnicas, para fins determinados. Isso pode
ser um problema sério quando lidamos com as teorias e instrumentos da área
da Psicologia Organizacional e do Trabalho. No entanto, há também uma
intencionalidade na apropriação e utilização das proposições teóricas e dos
recursos técnicos que pode ser igual ou divergente da primeira intenciona-
lidade (tanto para o bem quanto para o mal). Dito de outra forma, teorias e
instrumentos criados para a submissão podem ser úteis para movimentos de
conscientização e humanização (e vice-versa).
A luta diária do(a) psicólogo(a) organizacional e do trabalho em contri-
buir para a criação de ambientes saudáveis, propiciando o crescimento das
pessoas e o estabelecimento de relações solidárias não elimina os velhos e os
novos problemas que cercam tanto as empresas como qualquer outra organi-
zação e empreendimento coletivo. Contudo,
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 161

Um psicólogo que trabalha em uma organização, lidando cotidianamente


com a saúde do trabalhador, pode encontrar um ponto intermediário que
garanta melhores condições de trabalho, estendendo os limites negativos
para a acumulação do capital até níveis negociáveis (Bastos, Yamamoto
& Rodrigues, 2013, pp. 48).

Para finalizar (o que talvez esteja apenas começando), queremos resgatar


aquela velha máxima que diz que ninguém faz nada sozinho. É verdade. Por
acreditarmos na potência afetiva dos encontros e na construção de diálo-
gos transformadores é que convidamos você, leitor(a), a continuar seguindo
conosco por esse caminho.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
162

REFERÊNCIAS
Bastos, A. V. B.; Yamamoto, O. H.; & Rodrigues, A. C. A. (2013). Compro-
misso social e ético: desafios para a atuação em psicologia organizacional e
do trabalho. In L. O. Borges; L. Morão. (Org.). O trabalho e as organizações:
atuações a partir da psicologia. Artmed.

Borges, L. O.; & Yamamoto, O. H. (2014). O mundo do trabalho: construções


históricas e desafios contemporâneos. In J. C. Zanelli; J. E. B. Andrade; & A.
V. B. Bastos. (Org.). Psicologia, organizações e trabalho no Brasil. Artmed.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Codo, W. (1984). O papel do psicólogo na organização industrial (notas sobre
o “lobo mau” em psicologia). In S. T. M. Lane, & W. Codo. (org.). Psicologia
social: o homem em movimento. Brasiliense.

Faria, L. R. P. (2017). Psicologia Organizacional e do Trabalho crítica? Pro-


curando a criticidade numa atividade tradicionalmente conservadora. In A.
E. Filho, (Org.). Psicologia(s) para além do consultório. Juruá.

França, A. C. L. (2015). Práticas de recursos humanos: conceitos, ferramentas


e procedimentos. Atlas.

Gondim, S. M. G.; Borges-Andrade, J. E.; & Bastos, A. V. B. (2018). Desenvol-


vimento científico e desafios da Psicologia do Trabalho e das Organizações no
Brasil. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 18(4), 2018. https://bit.ly/3katZpK.

Guareschi, P. A. (2006). Pressupostos psicossociais da exclusão: competiti-


vidade e culpabilização. In: B. B. Sawaia (Org.). As artimanhas da exclusão:
análise psicossocial e ética da desigualdade social. Vozes.

Heller, A. (1993). Teoria de los sentimientos. Coyoacán.

Heloani, J. R. (2003). Gestão e organização no capitalismo globalizado:


história da manipulação psicológica no mundo do trabalho. Atlas.

Heloani, J. R. (2006). Organização do trabalho e administração: uma visão


multidisciplinar. Cortez.

Magalhães, M. O.; & Bendassolli, P. F. (2013). Desenvolvimento de carreiras


nas organizações. In: L. O. Borges, L. Morão (Org.). O trabalho e as orga-
nizações: atuações a partir da psicologia. Artmed.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 163

Malvezzi, S. (2014). Prefácio. In J. C. Zanelli, J. E. B., & A. V. B. Andrade,


Bastos (Org.). Psicologia, organizações e trabalho no Brasil. Artmed.

Pavão, A. C. (2015). Muito além da ação: um estudo sobre emoções no mundo


do trabalho. [Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psi-
cologia da Universidade Estadual de Maringá]. https://bit.ly/3a21ulM.

Pinto, G. A. (2007). A Organização do Trabalho no Século 20: Taylorismo,


Fordismo, Toyotismo. Expressão Popular.

Sampaio, J. R. (1998). Psicologia do trabalho em três faces. In I. B. Gou-


lart, & J. R. Sampaio (Org.). Psicologia do Trabalho e Gestão dos Recursos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Humanos: estudos contemporâneos. Casa do Psicólogo.

Souza, R. C. (2010). Representações Sociais: a inclusão/exclusão das pessoas


com necessidades especiais no mercado de trabalho. [Dissertação de Mes-
trado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual
de Maringá]. https://bit.ly/36ALQhs.

Zanelli, J. C.; Bastos, A. V. B.; & Rodrigues, A. C. A. (2014). Campo profis-


sional do Psicólogo em organizações e no trabalho. In J. C. Zanelli, J. E. B.
Andrade & A. V. B. Bastos. (Org.). Psicologia, organizações e trabalho no
Brasil. Artmed.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
9. LIÇÕES DO CAMPO DE ESTUDOS:
os afetos nos artigos nacionais da Psicologia
Ana Céli Pavão Guerchmann
Letícia Bottura Calvoso
Eduardo Augusto Tomanik

Em 2013, idealizamos e colocamos em ação o Hera – Grupo de Estudos


em Psicologia Social dos Afetos. Naquele ano, além dos encontros iniciais para
o estabelecimento de nossas pretensões, compartilhamentos e discussões das
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

leituras já realizadas, elaboração de listagens bibliográficas, optamos, como é


quase de praxe, por buscar informações sobre as realizações e os rumos das
pesquisas nacionais sobre o tema dos afetos que pudessem auxiliar a definir
nossa participação nestes esforços de produção de conhecimentos.
Nossa intenção, naquele momento, não foi a de realizar estudos com-
pletos, minuciosos e voltados para um objetivo específico sobre o estado
da arte das pesquisas nacionais sobre o tema, mas obter informações que
nos permitissem perceber (e não necessariamente mensurar) e desenvolver
alguma familiaridade com os desafios e problemas específicos escolhidos, os
direcionamentos teórico-metodológicos adotados e os efeitos psicossociais
buscados com a realização daquelas investigações.
Para concretizar essa tarefa, no início do mês de abril daquele ano obti-
vemos a listagem e os conteúdos dos textos catalogados no Portal de Perió-
dicos da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior). Para isso, utilizamos como expressão de busca para a pesquisa a
palavra emoções.
Embora, como já dissemos no Capítulo 1, tenhamos optado por adotar
o termo afetos para designar o conjunto amplo dos processos que vem sendo
denominados, por diferentes autores e pela população nacional em geral como
emoções, sentimentos e outras denominações, consideramos, no momento
do início da pesquisa que a palavra emoções parece ser utilizada com mais
frequência e aceitamos a suposição que a sua utilização como expressão de
busca já seria suficiente para o alcance de nossas intenções. Pareceu-nos que
a repetição do levantamento com base nos demais termos apenas nos con-
duziria à percepção da existência das mesmas tendências, ou de tendências
muito semelhantes de agrupamentos dos estudos.
Padronizamos as informações básicas e organizamos os textos e, a partir
de uma leitura inicial, passamos a eleger categorias e critérios de análises do
material, num processo que se estendeu de abril a junho de 2013 (Tomanik,
166

Pavão & Coelho, 2013). Mais adiante voltaremos a apresentar alguns dos
agrupamentos e reflexões que obtivemos a partir deste estudo.
Mais recentemente, durante as discussões que precederam a redação dos
capítulos que compõem este livro, consideramos que seria interessante reto-
mar aquele conjunto de informações como base para a elaboração de novos
agrupamentos e análises que nos permitissem não apenas novos detalhamen-
tos dos objetivos iniciais mas, especialmente, o aprofundamento de algumas
reflexões que nos aproximassem de discussões sobre as funções sócio-políticas
propostas, ainda que não explicitamente, nos estudos nacionais, na utilização
do conceito e das teorias sobre os afetos e na escolha dos instrumentos e dos
procedimentos de pesquisas sobre aqueles temas.
Consideramos, ainda, que estas reflexões poderiam servir como base para

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


discutirmos as concepções sobre a Psicologia e a Ciência em geral, subjacentes
e que fornecem a sustentação básica àqueles estudos.
Estamos cientes de que há uma forte tendência, nos meios editoriais
científicos, a considerar como válidas (ou valiosas) apenas informações que
tenham sido obtidas no decorrer dos 5 anos anteriores à publicação. De acordo
com esta tendência (já praticamente hegemônica), nossa opção deveria ter
sido a de repetir aquele levantamento, para que nossas análises fossem con-
sideradas como referentes a informações atualizadas.
Mesmo reconhecendo o valor das atualizações, neste caso específico
optamos por nos servir, ainda, das informações que recolhemos já há mais
de uma década, e por algumas razões.
A primeira delas é por considerarmos que, digamos, o prazo de validade
de uma informação não é nem pode ser único e universal. Ele é variável
e decorrente, entre outros fatores, mas especialmente, das intenções que
norteiam o processo de pesquisa. Como dissemos, nossa pretensão, tanto
neste estudo quanto no que utilizou anteriormente as mesmas informações,
não é nem foi a de traçar uma descrição ampla, precisa e objetiva das ten-
dências dos textos científicos nacionais sobre os afetos. Ao contrário: nossas
intenções eram apenas a de obter uma base aproximada que nos permitisse
pensar sobre a Psicologia ou a Ciência nacionais sobre os afetos, seus rumos
e intenções.
Como participantes e leitores destes estudos, não temos motivos para
considerar que, no decorrer dos aproximadamente 10 anos que separam nos-
sos dois textos, tenham ocorrido mudanças consideráveis nas tendências de
agrupamento daqueles estudos. Ao contrário, a operacionalização das políticas
nacionais de direcionamento institucional das pesquisas no país vem sendo
denunciada seguidamente por incentivar e, por vezes, tornar quase obriga-
tória a adesão dos pesquisadores ao chamado produtivismo acadêmico. Esta
denominação vem sendo utilizada para identificar o “fenômeno em geral
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 167

derivado dos processos oficiais ou não de regulação e controle, supostamente


de avaliação, que se caracteriza pela excessiva valorização da quantidade da
produção científico-acadêmica, tendendo a desconsiderar a sua qualidade”
(Sguissardi, [s. d.], [s. p.]).
A adoção da quantidade de publicações como critério privilegiado para a
avaliação da produção científica faz parte do mesmo conjunto de considerações
sobre a realidade e a ciência que propõe a matematização dos fenômenos como
um procedimento capaz de –e necessário para – a produção de conhecimentos
objetivos, ou seja, que não dependam ou que dependam o mínimo possível
das intenções e posicionamentos pessoais e políticos de seus elaboradores.
Por isso, a existência daquela pressão institucional e os contatos profis-
sionais com a mesma – e com os efeitos gerados por ela – nos sugerem que,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

caso tenham ocorrido mudanças perceptíveis nos agrupamentos dos estudos,


elas apontariam provavelmente para uma ampliação das tendências que já
eram majoritárias, no momento de nossas análises iniciais, e que apresenta-
remos a seguir.
Assim, aceitamos a suposição de que realização de um novo levanta-
mento, atualizado, envolveria apenas desgastes consideráveis de tempo e de
esforço, sem qualquer alteração ou, ao menos, sem alterações importantes
nas discussões e reflexões pretendidas.
Vamos a estas tendências e discussões, então.

O estudo de 2013

Nosso levantamento inicial resultou em 1.297 títulos de textos variados


(artigos científicos e não científicos, teses, dissertações, atas de congressos
etc.). Após a eliminação de duplicidades, o número total foi reduzido para 865.
Após um primeiro contato rápido com o material, optamos por analisar
unicamente os artigos científicos, por ser esta a forma privilegiada de publi-
cação entre as agências de fomento. Assim, o número de textos foi novamente
reduzido e passamos a trabalhar com 641 títulos, cujos anos de publicação
variavam entre 1987 a 2013.
Procuramos classificar estes artigos entre as diferentes divisões das ciên-
cias e aqui nem sempre conseguimos chegar a uma separação clara e precisa.
De um modo geral, os textos trazem informações sobre as áreas de formação
dos autores, mas estas informações nem sempre coincidem com a área dentro
da qual o texto foi elaborado; há textos elaborados por autores de diferentes
áreas, outros que parecem enquadrar-se melhor em uma área diferente da que
é apontada como a de formação do autor. Em alguns casos, a formação dos
autores não é coincidente com a área de estudos eleita como principal pelo
periódico no qual o texto foi publicado; em outros o periódico adota uma
168

postura multidisciplinar e a própria composição dos textos aproxima-se desta


modalidade de estudos.
Assumindo esta imprecisão, consideramos que o maior agrupamento dos
artigos que analisamos (189, ou cerca de 29,5% deles) guardava relação mais
direta com a área da Psicologia. A área ampla das Ciências da Saúde abrangeu
o segundo maior agrupamento (164 artigos, ou 25,6% do total). Dentro desta
área ampla foi bastante difícil distinguir as áreas disciplinares específicas res-
ponsáveis pela elaboração dos artigos, já que a grande maioria deles havia sido
publicada em revistas multidisciplinares. No entanto, pela temática e pelas preo-
cupações centrais dos textos, ficamos com a impressão de que a maior parcela
deste grupo era constituída por artigos provenientes da área da Enfermagem.
Tendência semelhante envolveu os textos que classificamos, de modo

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


amplo, como provenientes das Ciências Sociais (63 artigos), com a ressalva
de que, neste caso, não conseguimos perceber o predomínio de uma área
disciplinar específica.
Numa sequência decrescente de número de títulos, classificamos os tex-
tos provenientes de áreas tão díspares como Administração, Comunicação,
Letras e Artes, Educação, Estudos Multidisciplinares, Linguística, Geografia,
Sistemas de Informação, Turismo, Etologia, Economia, Zootecnia e Veteri-
nária, e Filosofia.
Nossa preocupação seguinte foi a de tentar definir o papel atribuído às
emoções em cada um dos artigos que citavam aquele conceito. Considerando a
quantidade de textos que teríamos que analisar, optamos, a partir deste ponto,
por trabalhar apenas com os resumos dos artigos, deixando para realizar a lei-
tura completa ou mais detalhada dos corpos dos textos naquelas situações em
que os resumos não nos fornecessem as informações de que necessitávamos.
Realizamos uma rodada de leituras dos resumos, para nos familiarizar-
mos com seus conteúdos. Após isto, definimos 3 categorias operacionais de
distinção sobre o papel das emoções na composição de cada texto.
Decidimos considerar que as emoções ocupavam um papel central
quando o termo referente a elas (emoção ou emoções) fosse citado no título,
nas palavras-chave, como parte dos objetivos do trabalho ou que fosse citado
no resumo, mas associado a tentativas de definições, aprimoramento teórico
ou de compreensão de sua relação com outros temas e processos.
A classificação de papel secundário era aplicada para aqueles textos que
apresentassem o termo apenas em seu resumo, mencionando-o de maneira
breve e superficial, sem as associações citadas no critério anterior.
Já aqueles textos nos quais os termos emoção ou emoções fossem citados
fora das condições anteriores, sem o estabelecimento de quaisquer relações
com outros assuntos ou tentativas de compreensão, seriam enquadrados na
classificação de papel ocasional.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 169

Entre estas 3 possibilidades, a dos textos nos quais as emoções desempe-


nhavam um mero papel ocasional foi majoritária: cerca de 42,5% do total de
artigos foram aí incluídos. Entre as áreas que agruparam os maiores números
de textos, esta tendência apareceu invertida na Psicologia (onde cerca de 49%
dos artigos traziam as emoções ocupando um papel central) e nas Ciências da
Saúde (onde a mesma concentração atingiu cerca de 38,5%). Já nas Ciências
Sociais a primeira tendência foi fortemente presente: os trabalhos nas quais
as emoções eram apenas citadas de passagem compreendiam 53,4% e aqueles
nos quais elas ocupavam um papel central equivaliam apenas a 27,0 %.
A combinação entre a diversidade das grandes áreas e das áreas espe-
cíficas das Ciências que utilizam conceitos como emoções e a importância
relativamente pequena dada a estes conceitos nos estudos realizados parecem
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

confirmar a existência de duas tendências que podemos facilmente perceber,


tanto em nossas experiências acadêmicas quanto nas vivências cotidianas:
somos praticamente unânimes em reconhecer a existência e a importância
dos processos afetivos mas, ao mesmo tempo, nos dedicamos muito pouco a
tentar entender em que consistem os afetos, como atuam e como participam
de nossas vidas e dos processos que estudamos.
Na fase seguinte daquele trabalho nos concentramos nos estudos reali-
zados especificamente pela Psicologia. A leitura mais minuciosa destes textos
nos permitiu perceber que, apesar da tendência da Psicologia em se aprofundar
nos estudos referentes aos processos afetivos, na maioria dos artigos nos quais
as emoções apareciam exercendo o que consideramos como um papel central,
elas não eram tratadas como o objeto principal de estudo, estando apenas
associadas a outros fenômenos como trabalho, gravidez, família, dificuldade
de aprendizagem, contexto escolar e outros.
Este papel praticamente paralelo ou complementar atribuído às emoções
já vem sendo destacado, por exemplo, por autores como González Rey (2000),
segundo o qual, mesmo pela Psicologia, as emoções nunca deixaram de ser
vistas como uma espécie de epifenômeno de outros processos humanos.
A seguir nos concentramos na classificação e análise das alternativas meto-
dológicas adotadas para a realização dos estudos empíricos sobre as emoções.
Embora aparentemente a diversidade de alternativas fosse grande, constatamos
um número bem maior de pesquisas de cunho mais quantitativo, em contraste
com as que adotavam procedimentos que poderiam (ainda que com alguma
reserva) ser tidos como qualitativos. De acordo com nossa classificação, predo-
minaram as pesquisas baseadas na aplicação ou na validação de exames e testes
psicométricos, seguidas por aquelas nas quais era solicitado aos participantes
que, a partir de uma escala previamente definida pelos pesquisadores, atribuís-
sem valores numéricos a uma emoção específica, que estariam experienciando
ou que supostamente experienciariam diante de determinada situação.
170

Outras pesquisas, ainda, consideravam as emoções como manifestações


meramente corporais ou reações fisiológicas, algumas delas enfatizando a
expressão facial como via privilegiada para sua exteriorização (Tomanik,
Pavão & Coelho, 2013).

Um novo olhar sobre (quase) as mesmas informações

Para a elaboração deste texto, retomamos os artigos que havíamos iden-


tificado como sendo elaborados como parte da área da Psicologia e nos quais
os processos afetivos ocupavam um papel central e realizamos uma leitura
minuciosa dos mesmos. Após esta, optamos por excluir alguns, seja por que,
embora apresentados como artigos científicos, não correspondiam a este tipo

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


de publicação, seja por trazerem resumos em português (o que nos levou a con-
siderá-los como parte da amostra do primeiro estudo) mas serem redigidos em
outro idioma, seja por outras irregularidades em relação aos nossos critérios.
Após esta nova filtragem, passamos a efetivar novas análises sobre um
conjunto de 81 artigos, procurando captar informações sobre as finalidades
manifestas para estes estudos e os tratamentos dados, neles, aos proces-
sos afetivos.

Modalidades dos estudos

Utilizamos a denominação Modalidades em referência às intenções prin-


cipais dos trabalhos que deram origem aos textos, que se refletem nos tipos
amplos de procedimentos gerais adotados e declarados nos mesmos.
No conjunto de 81 artigos que analisamos, classificamos 37 (cerca de
45%) como derivados de Pesquisas de Campo. Exemplificando, enquadramos
neste grupo textos que apresentavam intenções como: “este estudo investigou
os lugares favoritos, os lugares evitados e os afetos a eles relacionados como
exemplos de estratégias de regulação das emoções”1 ou “o estudo investigou
a compreensão das crianças sobre a influência de crenças e emoções no com-
portamento”2. Eram trabalhos que haviam buscado junto a outras pessoas e
graças a posicionamentos apresentados por elas, as informações mais originais
e necessárias para sua efetivação.
Consideramos outros 19 artigos como derivados de Discussões Teóricas,
já que baseavam suas conclusões e contribuições em avanços elaborados a par-
tir de estudos e aprofundamentos de produções de cunho teórico já disponíveis

1 Macedo, D.; Oliveira, C. V.; Günther, I. de A.; Alves, S. M.; Nóbrega, T. S. (2008). O lugar do afeto, o afeto
pelo lugar: o que dizem os idosos? Psicologia: Teoria e Pesquisa, 24(4).
2 Santana, S. de M. e Roazi, A. (2006). Cognição social em crianças: descobrindo a influência de crenças
falsas e emoções no comportamento humano. Psicologia: Reflexão e Crítica, 19.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 171

sobre a área ou sobre tópicos específicos dentro da mesma. Trabalhos classi-


ficados neste grupo apresentavam intenções como: “o objetivo deste ensaio
é apresentar uma base conceitual para diferenciar emoções de sentimentos,
a partir das ideias de LeDoux e Damásio, e usar essa base numa abordagem
sobre o conceito e as origens da alexitimia”3.
Também tomando como seu material básico as produções científicas já
disponíveis, mas visando elaborar, a partir delas, sínteses, classificações ou
outras modalidades de informações que já estivessem ali presentes, ainda que
não evidenciadas, os processos de revisão de literatura estiveram presentes,
de acordo com nossas análises, em 8 artigos. Alguns exemplos das intenções
assumidas por estes trabalhos: “objetivou-se empreender uma revisão sistemá-
tica da literatura cientifica dedicada especificamente ao papel da personalidade
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

na evolução da condição clínica e emocional de mulheres acometidas por


câncer de mama”4; “é objetivo deste artigo revisar os trabalhos científicos
sobre as diferentes estratégias de regulação da emoção e os circuitos cere-
brais subjacentes”5.
É praticamente certo que discussões teóricas estejam presentes, em esca-
las reduzidas, em todos os artigos classificados nos demais grupos, mas que
participem, ali, como recursos necessários, mas não como parte dos objeti-
vos principais.
Num quarto e último grupo, classificamos 17 trabalhos que a) relata-
vam processos de desenvolvimento, adaptação ou validação de instrumentos
padronizados para a obtenção de informações ou a efetivação de classifica-
ções de pessoas ou grupos ou b) que faziam uso destes mesmos instrumentos
visando o enquadramento de pessoas ou de suas manifestações em categorias
previamente estabelecidas. Foram enquadrados neste grupo trabalhamos que
assumiam, por exemplo, objetivos como “[...] adaptar a Escala de Contá-
gio Emocional para o contexto brasileiro. Especificamente, pretendeu-se (1)
conhecer sua estrutura fatorial e consistência interna, (2) testar diferentes
modelos teóricos (uni e multifatoriais) e (3) comprovar se as pontuações nos
fatores de contágio emocional variam em função do sexo dos participantes”6
ou que afirmavam: “relações entre emoções e saúde de alunos com e sem
dificuldade de aprendizagem foram analisadas por indicadores de ansiedade,
depressão, stress, doenças físicas, queixas somáticas, faltas escolares, peso e

3 Freire, L. (2010). Alexitimia: dificuldade de expressão ou ausência de sentimento? Uma análise teórica.
Psicologia: Teoria e Pesquisa, 26.
4 Sanches-Peres, R.; Santos, M. A. dos (2009). Personalidade e câncer de mama: produção cientifica em
Psico-Oncologia. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 25(4).
5 Mocaiber, I.; Oliveira, L. de; Pereira, M. G.; Machado-Pinheiro, W.; Ventura, P. R.; Figueira, I. V.; Volchan,
E. (2008). Neurobiologia da regulação emocional: implicações para a terapia cognitivo-comportamental.
Psicologia em Estudo, 13.
6 Gouveia, V. V. et al. (2007). Escala de contágio emocional: adaptação ao contexto Brasileiro. Psico, 38(1).
172

altura. Responderam ao Inventário de Ansiedade Traço-Estado para Criança e


à Escala de Stress Infantil 60 alunos (8-14 anos) da 3ª e 4ª série, divididos em
G1 (desempenho inferior no Teste de Desempenho Escolar) e G2 (desempenho
superior no Teste de Desempenho Escolar)”7.
Optamos por não classificar trabalhos como este último no rol das pes-
quisas de campo por considerarmos que a adoção de instrumentos padroniza-
dos de mensuração e classificação indica, por si só, a adoção de concepções
sobre a possibilidade e a conveniência de abordagem dos processos afeti-
vos como fenômenos possíveis de ser conhecidos através de sua tradução
em unidades numéricas que permitiriam estabelecer equivalências entre as
manifestações, as interpretações e as vivências de sujeitos diferentes, em
diferentes momentos.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Esta opção nos permitiu supor, logo de início, que cerca de 1 em cada
4 dos artigos analisados assume uma perspectiva bastante próxima de uma
concepção que poderíamos chamar de naturalista sobre os afetos, na medida
em que adota, para os estudos dos mesmos, tipos de ações semelhantes às
que são consideradas eficazes para as investigações sobre outros fenômenos
biológicos ou naturais.

Objetivos dos projetos de pesquisas

A segunda categoria buscou identificar e analisar as intenções dos traba-


lhos que deram origem a cada um dos textos, focalizando o verbo principal
dos objetivos gerais apresentado pelos autores: analisar, apresentar, avaliar,
caracterizar, comparar, investigar, verificar, entre outros.
Encontramos 39 verbos diferentes, que foram citados isoladamente ou
em conjunto com outros, em cada um dos textos analisados. A quantidade de
verbos utilizados não coincide com a de textos analisados, seja por que alguns
verbos foram utilizados em mais de um texto, seja por que, inversamente,
alguns textos incluíram, em seus objetivos gerais, mais de um verbo.
Aqui nos pareceu que seria útil ir além da mera contagem das frequências
de utilização de cada um dos verbos. Considerando a existência de relações
entre os objetivos de um processo de pesquisa ou de construção de conheci-
mentos e as alternativas metodológicas escolhidas para sua realização, opta-
mos por aglutinar os trabalhos classificados nas modalidades descritas acima
em dois grupos: um deles composto pelos textos originados de processos de
pesquisa ou elaboração de cunho mais empírico, o outro englobando os arti-
gos derivados de processos de cunho mais teórico. No primeiro, reunimos os

7 Enumo, S. R. F.; Ferrão, E. da S.; Ribeiro, M. P. L. (2006). Crianças com dificuldade de aprendizagem e a
escola: emoções e saúde em foco. Estudos de Psicologia, 23.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 173

textos derivados de Pesquisas de Campo e de projetos de Desenvolvimento


de Instrumentos; no segundo, incluímos os artigos originados de Revisões de
Literatura e de Discussões Teóricas.
A partir desta aglutinação, o grupo dos textos derivados de trabalhos de
cunho mais empírico ficou composto por 53 artigos, e o grupo dos trabalhos
de cunho mais didático ficou constituído por 28 textos.
Nossa intenção, naquele momento, foi a de agrupar e discutir os verbos
presentes e mais frequentes em cada um dos grupos mais amplos. A efetiva-
ção da classificação dos verbos nestes grupos, porém, revelou a existência de
alguns verbos que haviam sido utilizados em artigos classificados em grupos
diferentes. Por isso, passamos a considerar também a existência de um ter-
ceiro conjunto de verbos, citados tanto em trabalhos mais empíricos, quanto
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

em trabalhos mais teóricos e que passamos a denominar, para simplificação,


como grupo híbrido.
Nos trabalhos de cunho mais empíricos foram citados 23 verbos, que
apresentamos a seguir, em ordem de frequência.

Tabela 1a – Verbos utilizados nos objetivos principais


dos trabalhos de cunho empírico
Des.
Verbos Pesq. Campo Disc. Teóricas Rev. Literatura Totais
Instrumentos
Investigar 4 13 17
Testar 3 1 4
Verificar 1 3 4
Avaliar 3 3
Correlacionar 3 3
Adaptar 1 1 2
Comparar 1 1 2
Estudar 2 2
Relacionar 2 2
Associar 1 1
Compreender 1 1
Comprovar 1 1
Conhecer 1 1
Construir 1 1
Criar 1 1
Explorar 1 1
Focalizar 1 1
continua...
174

continuação

Des.
Verbos Pesq. Campo Disc. Teóricas Rev. Literatura Totais
Instrumentos
Identificar 1 1
Relatar 1 1
Replicar 1 1
Rever 1 1
Situar 1 1
Validar 1 1
Totais 17 33 0 0 53

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


O verbo investigar foi citado, isoladamente ou em conjunto com outros,
em aproximadamente um terço dos textos que enquadramos nesta categoria,
e isto favorece algumas reflexões.
Investigar significa, de um modo geral, procurar extrair conclusões a
partir de vestígios, ou seja, de marcas existentes, deixadas ou causadas por
algo. Este é um verbo de uso bastante disseminado nos trabalhos científicos
e não podemos afirmar que os autores dos trabalhos que deram origem aos
textos que analisamos tomaram como base os significados mais originais
dos termos, mas a adoção dos mesmos, quer tenha sido feita de modo
refletido, tomando como base estes significados ou meramente ritualís-
tica, por força da adesão às tradições acadêmicas, sugere a aceitação de
alguns pressupostos.
No campo das teorias, a escolha daquele verbo reforça, a nosso ver, a
existência de uma concepção que poderíamos denominar como naturalista, a
respeito dos afetos. É como se estes processos ocorressem de modo indepen-
dente dos sujeitos que os vivenciam, das interpretações, interesses, experiên-
cias anteriores e momentos atuais vividos pelos mesmos. Os afetos, a partir
destes verbos, aparecem como se fossem fatos, acontecimentos claramente
delimitados e plenamente reconhecíveis tantos pelos investigadores quanto
pelos sujeitos, verdades publicamente constatáveis.
Já no campo das reflexões metodológicas, a escolha de um verbo como
aquele traz consigo a aceitação (ainda que não necessariamente conhecida ou
reconhecida) de uma série de outros pressupostos.
Um: de que o fenômeno ou acontecimento estudado ocorreu previamente,
existe ou existiu independente do processo de pesquisa e da participação dos
pesquisadores. Dois: que estes devem ter os saberes necessários para definir
quais são os vestígios capazes de possibilitar a obtenção de informações
significativas para a produção de conhecimentos sobre aqueles fenômenos
ou acontecimento e as habilidades e recursos suficientes para a localização e
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 175

registro adequados desses vestígios. Três: que os pesquisadores devem possuir,


ainda, capacitações teóricas que os tornem capazes de extrair, dos conjuntos
de vestígios, conclusões capazes de realimentar ou, eventualmente, levan-
tar questionamentos às formulações teóricas aceitas até então em relação ao
fenômeno ou acontecimento estudado.
Assim, além das considerações sobre a existência independente do fenô-
meno estudado, a proposição de uma investigação sugere a manutenção (ou a
intenção de manutenção) de uma separação clara entre aquilo ou aqueles que
serão estudados e os que decidem, planejam e realizam o estudo.
A proposição de uma investigação, ao menos de modo geral, faz com
que os pesquisadores da área da Psicologia assumam uma postura bastante
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

próxima das de seus colegas da área da Biologia, por exemplo, que estabe-
lecem claras distinções entre eles próprios e os espécimes ou espécies sobre
os quais pretendem obter conhecimentos.
Tendências semelhantes podem ser supostas também a partir da adoção
de um dos segundos verbos mais frequente naquela distribuição: verificar
significa avaliar a aceitabilidade, demonstrar ou atestar algo como vero,
ou seja, como verdadeiro ou real. Assim, a suposição básica sobre a exis-
tência do fenômeno ou acontecimento a ser estudado como algo anterior
ou independente do planejamento e da efetivação do processo de pesquisa
permanece presente.
Suposições bastante próximas a estas podem ser elaboradas e defendidas
a partir da adoção de outros verbos, como testar, avaliar, comparar, comprovar,
conhecer, correlacionar, identificar, relacionar, relatar ou replicar.
Parece correto, então, sustentar que os estudos basicamente empíri-
cos da Psicologia nacional tendem, fortemente, a adotar posicionamentos
de naturalização dos processos afetivos, que são associadas a concepções,
posturas e procedimentos que implicam em tentativas de separação entre os
pesquisadores, suas decisões e ações, por um lado, e os pesquisados, suas
vivências, manifestações e elaborações, de outro. Isto não deve ser visto com
surpresa uma vez que, por exemplo, a construção, validação ou aplicação de
instrumentos padronizados para a obtenção ou avaliação de informações só
se justifica com base na adoção de pressupostos teórico-metodológicos como
os que apontamos.
O conjunto dos verbos utilizados exclusivamente nos trabalhos de cunho
mais teórico foi bastante reduzido e esparso. Ainda assim, tanto isoladamente
quanto considerados no todo, eles tendem a sinalizar a adoção de objetivos
que parecem depender muito mais da participação criativa dos autores na
construção das conclusões de seus trabalhos que da mera obtenção, tratamento
e análise de informações prévia e externamente existentes.
176

Tabela 1b – Verbos utilizados nos objetivos principais


dos trabalhos de cunho teórico
Des.
Verbos Pesq. Campo Disc. Teóricas Rev. Literatura Totais
Instrumentos
Apontar 1 1
Caracterizar 1 1
Conceitualizar 1 1
Demonstrar 1 1
Descrever 1 1
Informar 1 1

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Refletir 1 1
Reler 1 1
Totais 0 0 7 1 8

Demonstrar, descrever e informar podem ser, com alguma cautela, con-


siderados como verbos que indicam uma relação de maior distanciamento
entre o pesquisador e seu objeto de estudo, mas esta consideração depende-
ria da análise conjunta de outros elementos dos projetos dos quais os textos
foram derivados.
Assim, nos parece persistir alguma ambiguidade, em relação às nossas
intenções de análise, nos verbos classificados neste grupo.
Em compensação, os verbos encontrados nos textos classificados no
grupo seguinte sugerem uma tendência bastante clara e oposta à que atribuí-
mos aos verbos dos trabalhos do primeiro grupo.

Tabela 1c – Verbos utilizados nos objetivos principais tanto dos


trabalhos de cunho empírico quanto dos de cunho teórico
Des.
Verbos Pesq. Campo Disc. Teóricas Rev. Literatura Totais
Instrumentos
Analisar 4 5 1 1 11
Apresentar 1 7 2 10
Discutir 1 4 1 6
Revisar 1 1 4 6
Mostrar 1 1 1 3
Corroborar 1 1 2
Desenvolver 1 1 2
Ilustrar 1 1 2
Totais 5 11 16 10 42
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 177

Analisar sugere a elaboração de conclusões a partir de comparações entre


um conjunto de informações selecionadas e um modelo teórico, previamente
conhecido e escolhido. Apresentar indica a existência de um trabalho anterior
de construção ou elaboração que atingiu um estágio capaz de permitir sua
divulgação pública. A mesma consideração pode ser aplicada à adoção do
verbo mostrar. Discutir e revisar, igualmente, são modalidades de ação que
exigem a participação pessoal e decisiva dos pesquisadores para a elaboração
dos resultados finais dos projetos.
Verbos como estes podem ser vinculados à pressupostos como os de que
os afetos não são eventos que podem ser apenas sensorialmente constatados,
para serem adequadamente compreendidos e que os cientistas não são apenas
coletores de informações já prontas e disponíveis.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Tratamento dos afetos

Uma outra categoria de análise nos conduziu a obter informações sobre


os tipos principais de operações gerais efetivadas para a realização daque-
les estudos.

Tabela 2 – Tipos de operações para a obtenção de informações,


de acordo com as modalidades dos estudos
Des.
Procedimentos Pesq. Campo Disc. Teóricas Rev. Literatura Totais
Instrumentos
Elaboração e
1 14 2 17
verbalização
Instrumentos
15 21 36
padronizados
Leitura e síntese/
1 2 17 8 28
análise
Totais 17 37 19 8 81

Denominamos como de Elaboração e Verbalização aqueles estudos nos


quais era solicitado que os pesquisados construíssem e apresentassem res-
postas ou depoimentos que, posteriormente, seriam utilizados pelos pesqui-
sadores, para suas análises e elaboração de conclusões. Nos estudos cujos
procedimentos básicos envolviam a aplicação de Instrumentos Padronizados,
os pesquisados também eram convidados a apresentar suas respostas, mas a
partir de opções já fornecidas pelos pesquisadores. Já nos trabalhos classifi-
cados no terceiro grupo, os pesquisadores eram os responsáveis pela seleção,
elaboração ou pela construção das informações que serviriam como base para
as análises e conclusões.
178

Com base nestes critérios de classificação, não causa qualquer surpresa


que os procedimentos de leitura e elaboração de sínteses ou análises este-
jam presentes na totalidade dos estudos cujos objetivos principais envolviam
revisões de literatura e na grande maioria dos que visavam a promoção de
discussões teóricas.
Por outro lado, chamou-nos a atenção, na mesma distribuição, a ampla
utilização de instrumentos padronizados também nos textos que havíamos
classificado como derivados de estudos de campo. Aquele tipo de instrumentos
esteve presente em mais da metade (56,7%) dos trabalhos de campo e em
quase a metade (44,4%) do total dos textos que analisamos.
Estas proporções, mais uma vez, nos sugerem o predomínio de con-
cepções teóricas naturalizantes nas produções científicas nacionais sobre os

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


processos afetivos.

Tratamento das informações

Por último, buscamos definir e classificar as operações gerais de análi-


ses aplicadas, pelos autores, às informações que serviram como bases para a
elaboração de seus textos

Tabela 3 – Tipos de tratamento metodológico das informações,


de acordo com as modalidades dos estudos
Tratamento Des.
Pesq. Campo Disc. Teóricas Rev. Literatura Totais
dos Afetos Instrumentos
Análise qualitativa 2 15 1 1 19
Análise
2 2
quanti-qualitativa
Análise
15 19 1 35
quantitativa
Análise teórica 1 17 7 25
Totais 17 37 19 8 81

A estrutura metodológica de um projeto de pesquisa é associada e deriva


das formulações teóricas sobre o objeto de estudo e também das considerações
dos autores sobre a demarcação da ciência. Por extensão, são associadas e
derivadas também das concepções sobre a realidade que os mesmos com-
partilham. Assim, seria esperado que as distribuições dos textos analisados
segundo este critério de análise e o anterior fossem muito próximas entre si.
Os tratamentos quantitativos aparecem em quantidades maiores que
os qualitativos no conjunto dos textos analisados. Em princípio esta ten-
dência poderia ser atribuída à predominância de textos derivados do que
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 179

denominamos como trabalhos de cunho mais empírico, mas esta consideração


seria pouco sustentável, uma vez que as consideradas pesquisas de campo
poderiam ser efetivadas a partir não apenas da utilização de técnicas, mas
também da adoção de lógicas qualitativas de raciocínio.
Assim, mais uma vez, nossas análises tendem a evidenciar a forte pre-
sença de uma tendência naturalizante nos estudos nacionais sobre os afetos.
É hora de começarmos a refletir sobre isso.

Lições do estudo dos estudos

No primeiro capítulo de nosso livro apresentamos e detalhamos as con-


cepções que vimos adotando sobre os afetos. Elas estão e estarão presentes, é
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

claro, nas análises que apresentamos até aqui e nas reflexões que tentaremos
expor a seguir. No entanto, nossas intenções neste capítulo não foram nem
serão as de defender aquelas concepções ou de tentar mostrar uma suposta
superioridade das mesmas sobre todas ou algumas das demais. Pretendemos
refletir sobre as implicações teóricas, metodológicas e sociopolíticas da adoção
dos direcionamentos metodológicos que conseguimos detectar neste nosso
estudo sobre outros estudos.
Vamos tentar entender, de início, o que estamos chamando
de naturalização.
Pensemos, por exemplo, em um peixe. Ele é um ser vivo, possui um
corpo, move-se, age. Transforma-se, de acordo com as tendências de desen-
volvimento de sua espécie e das condições do meio onde vive. Todas essas
suas características, ações e transformações evidenciam-se, são acessíveis
aos sistemas sensoriais de outros animais, da sua espécie ou não e, no caso
que mais nos interessa, aos eventuais humanos que resolvem adotá-los como
objetos de seus estudos.
Embora esta eleição como objeto de estudo e a própria classificação
daquele ser vivo como peixe (e até como ser vivo) sejam resultantes das
capacidades criativas e do desenvolvimento humano de conhecimentos, a
materialidade do peixe torna possível que o estudo de muitas de suas carac-
terísticas seja feito através de observações padronizadas e especialmente da
aplicação de instrumentos de mensuração. A classificação do peixe em um
quadro de descrição de espécies, as constatações de seu peso, sexo, o estágio
de desenvolvimento de suas gônadas e suas condições alimentares podem ser
feitas com graus consideráveis de precisão. Os resultados de várias dessas
operações podem ser adequadamente expressos em escalas numéricas.
Dependendo do treinamento e da utilização padronizada dos instrumen-
tos apropriados, diferentes pesquisadores chegarão a resultados idênticos ou
aceitavelmente semelhantes, estudando o mesmo espécime. Nestes casos
180

– se levarmos em consideração especificamente este momento do processo


de pesquisa – os resultados serão independentes das convicções e mesmo da
pessoa do pesquisador.
Considerações muito próximas a essas poderiam ser feitas em relação a
outros processos, como o ritmo dos batimentos cardíacos ou as variações da
temperatura corporal dos seres humanos. Em todos esses casos, o estudo ou
o acompanhamento dos processos podem ser efetivados de modo impessoal,
a partir da utilização de instrumentos padronizados e seus resultados podem
ser adequadamente expressos em escalas numéricas.
O mesmo não pode ser dito em relação aos afetos humanos. Como vimos,
especialmente em nosso primeiro capítulo, embora eles envolvam amplamente
os corpos e incluam alterações neuroquímicas, não são processos puramente

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


biológicos. São construções humanas e refletem toda a complexidade das
vivências socioculturais e pessoais. Incluem elementos de interpretação indi-
vidual, avaliação situacional, histórias de vida e de aprendizagens anteriores,
por exemplo. Acima de tudo, sua identificação, por parte de quem os vivencia,
e sua exteriorização (sua exibição para o outro), seja através da linguagem
corporal, seja através de verbalizações, serão sempre limitadas e incertas.
Vimos que há uma possibilidade quase infinita de existência de diferentes
afetos e, de modo geral, repertórios bastante limitados de palavras disponíveis,
em cada idioma, para a identificação e a comunicação dos mesmos. Assim, não
poderemos ter certeza de que, ao descrever seus afetos através de uma mesma
palavra, pessoas diferentes estejam fazendo referência a experiências afetivas
idênticas. Podemos pensar, por exemplo, na imensa gama de comportamentos,
disposições, posturas e expectativas que vêm sendo associadas, identificadas
e explicadas, em nosso país, como manifestações de um afeto chamado amor.
Além disso, devemos considerar que uma mesma palavra pode ser usada,
em diferentes grupos dos falantes de um mesmo idioma, em referência a pro-
cessos afetivos distintos ou apenas relativamente semelhantes.
Tudo isso nos leva a considerar a possibilidade de que estudos que
trabalhem apenas com a identificação verbal de afetos acabem por classi-
ficar, num mesmo grupo, pessoas que disseram, escreveram ou escolheram
a mesma palavra, mas vivenciaram ou estão fazendo referência a processos
afetivos distintos.
Esta possibilidade aumenta consideravelmente naqueles estudos que
são realizados com base em instrumentos de coleta de informações fechados,
nos quais as possibilidades de respostas são previamente definidas e limita-
das pelos pesquisadores. Diante das alternativas apresentadas, o respondente
poderá ser obrigado a escolher a que lhe parece socialmente mais esperada,
mas não a mais adequada para descrever aquilo que vivencia ou vivenciou.
O mesmo risco pode ser ainda maior no caso daqueles estudos nos quais
se solicita que o respondente enquadre seus afetos ou um afeto específico
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 181

diante de uma situação numa escala matemática (0, 1, 2...) ou quase matemá-
tica de intensidade (nada, pouco, médio, muito) ou de frequência (nunca, rara-
mente, sempre...). Nestes casos, somam-se duas incertezas para a classificação
das respostas: sobre o afeto que foi citado, identificado ou escolhido pelo res-
pondente e sobre o significado, para ele, do número ou advérbio selecionado.
Imaginemos, como exemplo, que duas pessoas declaram ao pesquisador
que raramente sentem raiva diante de determinada situação. Podemos ter cer-
teza de que a palavra raiva designa, para as duas, o mesmo afeto? Ou ela pode
ser usada para nomear experiências íntimas e reações públicas tão diferencia-
das que nem deveriam ser reconhecidas através do mesmo vocábulo? Além
disso, como podemos saber se uma pessoa vivencia a tal situação inúmeras
vezes, mas não se enraivece diante dela e se a outra quase nunca vivencia a
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

mesma situação e, por isso, tem muito poucas oportunidades de enraivecer-se?


Outro exemplo, talvez mais simples: declarações idênticas de que estão
vivendo um amor de grau 5, numa escala em que 5 é o máximo, não nos per-
mitem afirmar que amor e 5 tenham os mesmos significados para respondentes
de gêneros, idades, vivências e grupos sociais diferentes, que direcionem
aquele afeto para pessoas também diferenciadas e com as quais estabeleçam
relacionamentos distintos dos demais.
Em outra linha de raciocínio, devemos nos lembrar que, num processo
de pesquisa, a interpretação e as manifestações das pessoas respondentes a
respeito dos seus afetos serão sempre dependentes da qualidade das intera-
ções estabelecidas entre elas e o pesquisador ou pesquisadores, e que estas
respostas podem ser diferentes das que ela apresentaria em outro momento,
diante de outras pessoas.
Afetos não existem independentes das pessoas que os vivenciam e de
suas relações. Eles envolvem, sempre, interpretações. Por isso, não podem
ser tratados como entidades corporificadas, direta e plenamente acessíveis
aos órgãos dos sentidos dos demais (e, em grande parte, nem aos dos que
os vivenciam).
Por isso, nos parece que não podem ser adequadamente estudados e
compreendidos por meio dos mesmos procedimentos e de instrumentos seme-
lhantes aos utilizados (e úteis) para a obtenção de informações a respeito de
fenômenos biológicos.
Nosso receio é o de que tentativas de tratamento naturalísticos dos pro-
cessos afetivos resultem, ao final, na produção de conhecimentos minuciosos
e bem organizados, estatisticamente validados, cuidadosa e esperançosamente
generalizados, mas desprovidos de objeto, ou melhor (ou pior), constituídos
por aquilo que os afetos não são.
Indo além, consideramos importante ampliar nossas reflexões e incluir,
nelas, três possíveis funções sociopolíticas complementares e presentes
182

nas formas como vimos os afetos serem tratados pela ciência, e não apenas
pela Psicologia.
A primeira delas seria uma função normatizadora. Observamos que a
produção nacional apresenta uma prevalência de estudos sobre os afetos na
Psicologia, seguida pelas Ciências da Saúde. Essa prevalência aponta para um
reconhecimento científico de que os afetos estão intimamente relacionados
à saúde e que, portanto, (re)conhecer seus processos de desenvolvimento e
suas relações com outros fenômenos psicológicos e aspectos da vida humana
pode trazer contribuições significativas para este campo. Os objetivos deste
conhecimento poderiam se voltar para o desenvolvimento de tratamentos
com maior nível de complexidade, integralidade e eficácia, ou mesmo para a
promoção de saúde e, em especial, da saúde mental. Entretanto, a tendência

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


naturalizante, quantificadora e padronizadora dos processos afetivos apre-
sentada, ao menos nos estudos da Psicologia, sugere o predomínio de uma
função normatizadora (e potencialmente classificatória e estigmatizante) em
detrimento de preocupações com a compreensão, o cuidado e o acolhimento,
nos conhecimentos produzidos sobre os afetos.
As tentativas de medir, construir escalas e instrumentos padronizados
para abordar os afetos estão fundadas e reproduzem a noção de que existe um
espectro das formas de sentir, interpretar e expressar as emoções, no qual se
destacam e devem ser acatadas aquelas definidas como normais ou aceitáveis.
Ao definir o campo do aceitável, aquela noção define também o campo do não
aceitável, do desviante, ou, como será chamado na linguagem científica, do
patológico. As produções partem de e contribuem para uma noção de ciência
que, investida de si mesma, de seus métodos, rigor e suposta neutralidade,
assume a prerrogativa de estabelecer o que é certo e errado, o que é aceitável
ou desviante, inclusive no campo da afetividade. Em última instância, de
definir modos de sentir, relacionar-se e existir.
Considerando que, ainda hoje, as condições de acesso e permanência no
ensino superior, no Brasil, são bastante desiguais e limitantes para a maior
parte da população, abismo que se aprofunda ainda mais quando se trata da
continuidade dos estudos em nível de mestrado e doutorado, não podemos
ignorar que apenas uma pequeníssima parcela privilegiada da população com-
põe o grupo que chamamos de cientistas no país. Assumindo esse ponto de
vista, podemos nos questionar sobre a função normatizadora presente nos
estudos, levantando a hipótese de que há nela um exercício de poder, controle
e dominação, uma vez que tais padronizações e classificações não incluem
perspectivas plurais de viver e sentir.
A segunda seria uma função fragmentadora. Ainda ao olhar para os cam-
pos de estudos que se debruçam sobre os afetos, observamos a discrepância
entre a Psicologia e as Ciências Sociais no número de produções que trazem
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 183

os afetos como tema central, sendo este número muito superior na Psicologia.
Este é o retrato de uma concepção de ciência fragmentária, que nos aponta
alguns pressupostos. Primeiro: indivíduo e sociedade são compreendidos como
entes isolados e autônomos que apenas se relacionam, produzindo algumas
influências entre si. Segundo: partindo deste binômio, a Sociologia passa a
ser definida como o campo responsável pelo estudo da sociedade, enquanto
a Psicologia deve ter o indivíduo como objeto. Terceiro, a visão que se tem
sobre os afetos é também fragmentada, uma vez que eles são compreendidos
como processos individuais dos quais, em acordo com os pressupostos ante-
riores, a Psicologia deve se ocupar.
Não estamos dizendo com isso que as especificidades de cada área das
Ciências Humanas são supérfluas ou que um único campo de estudos daria
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

conta de toda a complexidade das relações humanas, seus processos históricos,


sociais, culturais, políticos e pessoais. Entendemos que existe uma necessidade
prática, didática e metodológica nestas subdivisões, que nos permitem pro-
duzir conhecimentos aprofundados em cada um desses aspectos. Entretanto,
queremos destacar aqui a não superação do binômio indivíduo-sociedade,
evidenciada tanto na tendência naturalizante das produções em Psicologia,
quanto na atribuição de um papel secundário para os processos afetivos pre-
sente nas produções em Ciências Sociais.
Essa visão fragmentária já sofreu uma série de críticas, em especial a
partir da década de 1970, quando se iniciou o processo de construção de uma
Psicologia Social Crítica no Brasil. Porém, o estudo aqui realizado mostra
que a proposta de uma Psicologia mais atenta e vinculada às condições
sociomateriais da população e que compreenda sujeitos e sociedade como
construídos mutuamente, formando uma unidade em que um não pode ser
compreendido sem o outro, ainda tem um longo caminho a percorrer para
a sua efetivação.
A última, mas não menos preocupante, seria uma função alienante
quanto à própria produção dos conhecimentos aceitos como científicos. A
postura predominante que os pesquisadores em Psicologia têm adotado para
o estudo dos afetos, muito próxima aos objetivos e métodos da Biologia,
aponta para a manutenção de uma perspectiva tradicional de ciência. Se os
estudos apresentam, em sua maioria, pesquisas de natureza quantitativa, com
uso de instrumentos padronizados e escalas, desempenhando uma função
normatizadora e que enxerga os afetos a partir de uma visão fragmentada,
estamos vendo, nos trabalhos da Psicologia nacional sobre a afetividade,
os três grandes pilares da ciência tradicional: racionalidade, objetividade
e neutralidade.
Entretanto, será que essa visão tradicional se aplica adequadamente
à Psicologia? Em Psicologia, assim como em outros campos das Ciências
184

Humanas, sujeito e objeto do conhecimento coincidi: temos o ser humano


lançando um olhar sobre si mesmo. Como questiona Chauí (2000, pp. 346),
“ora, o humano é justamente o subjetivo, o sensível, o afetivo, o valorativo,
o opinativo. Como transformá-lo em objetividade, sem destruir sua principal
característica, a subjetividade?”. Indo além, como fazer uma Psicologia dos
afetos se, neste processo de produção de conhecimentos, pretendemos negá-
-los ou suprimi-los?
A construção de conhecimentos sobre os afetos em Psicologia demanda
a revolução de alguns paradigmas científicos para ser capaz de apreender o
caráter singular e ao mesmo tempo social dos processos afetivos, atingir a
crítica necessária ao viés classificatório, normatizador e dominador da sua
produção e compreender que estudar e produzir sobre os afetos não é uma

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


atividade neutra. Ao contrário, exige que o pesquisador esteja sensível à plu-
ralidade da vida e do sentir, para não reproduzir uma perspectiva de ciência
alienada e alienante.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 185

REFERÊNCIAS
Sguissardi, W. (s. d.). Produtivismo Acadêmico. https://gestrado.net.br/ver-
betes/ produtivismo-academico.

González Rey, F. L. (2000). El lugar de las emociones en la constitución social


de lo psíquico: el aporte de Vigotski. Educação & Sociedade, ano XXI, n. 70.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
10. TRANSGREDIR A CIÊNCIA,
TRANSGREDIR NA CIÊNCIA: articulando
feminismos, afetos e decolonialidade
Letícia Bottura Calvoso

Introdução
Como é difícil para nós pensar que podemos escolher tornar-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

nos escritoras, muito mais sentir e acreditar que podemos!


O que temos para contribuir, para dar? Nossas próprias
expectativas nos condicionam. Não nos dizem a nossa classe,
a nossa cultura e também o homem branco, que escrever não
é para mulheres como nós? (Anzaldúa, 2000, pp. 230).

No texto “Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do


terceiro mundo”, Glória Anzaldúa faz um chamado às mulheres de terceiro
mundo para que não deixem de escrever e, através desse exercício, contem
suas histórias, que por tantas vezes foram – e ainda são – silenciadas, apaga-
das, invalidadas e aniquiladas. Se, para além da escrita pessoal ou da escrita
literária, adicionarmos a este trecho o empreendimento científico (para o qual
a escrita é também fundamental), tanto o chamado como os questionamentos
de Glória ganham ainda mais efeito, validade e relevância.
Quantas mulheres já se questionaram sobre o que têm a oferecer para
a ciência? Quantas duvidam ou duvidaram de suas capacidades de produzir
conhecimentos, pelo fato de serem mulheres? Quantas, ainda que desfrutem
de privilégios e oportunidades acadêmicas, são interpeladas por um espaço
predominantemente masculino, ou ainda, pelas dificuldades em conciliar o
pesquisar com as demandas dos papéis sociais atribuídos a nós? Ou em romper
com esses papéis? Quantas abandonaram o desejo de ser pesquisadoras ou
sequer se permitiram desejar isto, por suas condições femininas?
Essas indagações, se não circunscritas a um espaço e tempo históricos,
podem ser perguntas sem respostas em um sentido estrito, matemático, mas
não é necessária hesitação para afirmar que foram/são inúmeras mulheres. Tal-
vez perguntar quantas mulheres vivenciam isso atualmente dentro do espaço
universitário, por exemplo, poderia ser mais plausível. Entretanto, para as
nossas discussões interessa mais perguntar: quem somos essas mulheres? Por
que vivenciamos essas situações? Elas são vividas igualmente por todas as
mulheres? Podemos pensar em alternativas para mudar este cenário?
188

Naquele pequeno trecho, Glória Anzaldúa nos dá pistas importantes para


caminhos possíveis na tentativa de construir algumas respostas.
Além da racionalidade, a autora ressalta a importância do sentir para a
escolha de ser/assumir-se/construir-se como uma escritora, ou, como estou
propondo, uma cientista. Para mulheres, é difícil sentir que podemos. Isso
nos indica que a afetividade constitui uma via fundamental para a construção
das condições opressivas que visam despotencializar e afastar mulheres da
produção de conhecimentos.
Ao questionar o que temos a oferecer e como nossas próprias expectativas
nos condicionam, ela lança um olhar crítico sobre a cultura e a nossa educação
(formal e informal), que são atravessadas pelas desigualdades de gênero desde
a primeira infância, produzindo impactos profundos nas nossas subjetividades.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Por fim, na última frase, ela indica que a escrita – assim como a produ-
ção de conhecimentos – é um exercício de poder que hegemonicamente foi
construída e se sustenta na manutenção das desigualdades e das opressões
de classe, gênero e raça que estão na base da cultura colonizada dos povos
do terceiro mundo.
Considerando que:

a) se por um lado, os afetos fazem parte da construção das condi-


ções estruturais que silenciam ou dificultam às mulheres o acesso
e reconhecimento como produtoras de conhecimentos, por outro,
é possível pensar que eles também podem se tornar ferramentas
potentes para a sua desconstrução;
b) a análise dos impactos subjetivos das relações desiguais de gênero,
bem como grandes contribuições para reflexões críticas acerca da
história, epistemologia e metodologia da ciência são temas aos quais
os estudos feministas têm se dedicado há anos;
c) a desconstrução e transformação amplas nas diversas estruturas de
opressão e hierarquias de poder (incluindo a produção de conhe-
cimentos) impostas aos países de terceiro mundo através de um
violento, racializado, gendrado e classista processo colonizador são
objetivos centrais para os estudos decoloniais.

Pretendo estabelecer um diálogo entre estes três campos de estudos – dos


afetos, dos feminismos e decoloniais – para refletir sobre o papel da afetividade
na construção de propostas feministas que contribuam para a decolonização
do conhecimento científico através do desenvolvimento de epistemologias e
metodologias alternativas à ciência tradicional.
Antes de iniciar nossa viagem por esses campos de estudos e algumas
possíveis relações entre eles, tomarei emprestado de Conceição Evaristo
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 189

(2020) o conceito de “Escrevivências”, escritas gestadas e concebidas no


cotidiano, nas memórias ancestrais, nas experiências particulares que refletem
experiências coletivas de ser mulheres. Sim, ser mulheres, porque não somos
uma, una; somos diversas, plurais, diferentes.
A experiência de uma mulher não reflete a experiência de todas as mulhe-
res e, por isso, não podem(os) nos representar no singular ou em uma única
imagem, geralmente da mulher branca, classe média-alta, cisheterossexual.
Por outro lado, podemos e devemos nos aproximar das experiências de outras
mulheres, negras, periféricas, pobres, lésbicas, transexuais... para elaborar uma
compreensão muito mais ampla sobre o que é ser mulheres. Para compreender
amplamente é preciso (re)conhecer e integrar a particularidade, assim como
para nos unir respeitando as diferenças.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Em minhas “Escrevivências”, especialmente a partir do contato com os


estudos decoloniais e com os estudos feministas, aprendi que localizar minha
narrativa é me posicionar ética, política e afetivamente, porque cada vivência/
narrativa diz não somente sobre o lugar social a partir do qual produzo minhas
reflexões, mas também sobre os efeitos que almejo produzir.
Meu lugar é de mulher branca, classe média, cis, heterossexual, bastante
privilegiada em muitos aspectos, uma vez que me encaixo no padrão hege-
monicamente reconhecido quando se faz referência à imagem de mulher.
Tenho me colocado em processo de reconhecimento e questionamento desses
privilégios, me convidado a entrar em contato com outras produções e expe-
riências, não hegemônicas, e me desafiado a empreender uma crítica feminista
decolonial, o que me leva a um reencontro comigo mesma e à construção de
outros lugares para mim.
Hoje me (re)conheço também como mulher terceiro-mundista, como
um corpo colonizado, e, reconhecendo meus privilégios, tento cotidiana-
mente exercitar a não-reprodução e a transgressão dessas hierarquias. Busco
ir além do feminismo branco e estabelecer encontros com as vozes potentes
das mulheres de cor, termo usado por María Lugones (2020) que se refere
às mulheres negras, latinas, indígenas... ou seja, mulheres que ocupam luga-
res distintos daqueles definidos pela branquitude e pelo feminismo branco,
mulheres advindas de lugares subalternizados, cujos corpos e subjetividades
foram e são atravessados pela colonialidade do poder.
Por isso, e por me dedicar a contribuir para a construção de um olhar crítico
para e dentro da ciência, falo também de um não-lugar, assim como afirma Vívian
dos Santos (2018, pp. 2): “[...] meu lugar de pensamento e escrita é também o não
lugar produzido pelo confronto com os cânones na ciência e nos feminismos”.
Portanto, estou em plena jornada de ser mulheres. Não ando só, trago
comigo minhas irmãs e quero com elas caminhar. Neste texto estarei acom-
panhada, não somente, mas especialmente por mulheres, autoras feministas,
190

brasileiras, latino-americanas, africanas... essas e tantas outras que não tenho


como nomear, mas que se fazem presentes em minha formação, em minhas
discussões e nos meus desejos por transformações.
Faço coro com Vívian dos Santos (2018) na tentativa de fazer do pesquisar
um movimento de insubmissão. Movimento que se faz necessário na medida
em que a ciência, em conjunto com outras instituições sociais, pode servir não
apenas para nos formar, mas também para nos conformar: tentar nos disciplinar,
subordinar, silenciar. Mas como isso acontece? A ciência não é neutra?

Decolonizando a história única da ciência

“É assim que se cria uma história única: mostre um povo como uma

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


coisa, uma coisa só, sem parar, e é isso que esse povo se torna” (Adichie,
2019, pp. 22). Em “O perigo de uma história única” Chimamanda Ngozi
Adichie tenciona, a partir de uma narrativa autobiográfica, o entrecruzamento
de diversos fatores para a produção de uma visão única sobre a África, como
um lugar e povo miserável, carente, enfermo e que precisa da intervenção dos
homens brancos de países desenvolvidos para ser salvo. Uma história única
que impacta profundamente na subjetividade dos africanos, bem como nas
relações que eles estabelecem com o restante do mundo.
Neste livro, a autora compartilha suas “Escrevivências”. Parte de um
lugar particular para refletir sobre as experiências de um coletivo e como elas
são (re)produzidas por estruturas sociais ao redor do mundo, mantendo viva a
história única sobre a África e silenciando outras perspectivas. Isso significa
que aquilo que predominantemente conhecemos como história da África nada
mais é que um conhecimento produzido sobre a África e não por africanos,
ou seja, é um conhecimento que tem os africanos como objeto e não como
sujeitos, como já denunciado pelo filósofo beninense Hountondji (2009).
Para compreender como a história única se constitui, Chimamanda Ngozi
Adichie (2019, pp. 22-24) alerta:

É impossível falar sobre a história única sem falar sobre poder. Existe uma
palavra em igbo na qual sempre penso quando considero as estruturas de
poder no mundo: nkali. É um substantivo que, em tradução livre, quer
dizer “ser maior do que outro”. Assim como o mundo econômico e polí-
tico, as histórias também são definidas pelo princípio de nkali: como elas
são contadas, quem as conta, quando são contadas e quantas são contadas
depende muito de poder.
O poder é a habilidade não apenas de contar a história de outra pessoa,
mas de fazer que ela seja sua história definitiva. [...] se você quiser espo-
liar um povo, a maneira mais simples é contar a história dele e começar
com “em segundo lugar”. Comece a história com as flechas dos indígenas
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 191

americanos, e não com a chegada dos britânicos, e a história será comple-


tamente diferente. Comece a história com o fracasso do Estado africano,
e não com a criação colonial do Estado africano, e a história será com-
pletamente diferente.

Falamos, portanto, sobre a possibilidade de construir narrativas muito


diferentes sobre a história, ou seja, falamos sobre a existência de diversas
histórias, que se inserem e se (re)produzem de acordo com as estruturas de
poder. Mas o que a ciência tem a ver com isso? A ciência, sendo uma produ-
ção humana e, portanto, necessariamente ligada ao contexto social, político
e econômico, não está isenta das hierarquias de poder, muito pelo contrário,
ela também as integra e conta sua própria narrativa que se pretende única.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Nas universidades ocidentais a história da ciência que aprendemos (e


geralmente recontamos) traz como protagonistas homens europeus que, a
partir do século XVIII, especialmente da teoria Cartesiana, deram um “salto
qualitativo na evolução da humanidade” a partir do desenvolvimento do pen-
samento científico, inaugurando a Idade Moderna.
Junto com o “Ego conquiro” (eu conquisto) do processo colonizador, o
“Ego cogito” (eu penso) de Descartes deposita no homem (branco europeu),
na racionalidade (ocidental) e no método científico (moderno, experimental,
quantitativo) a capacidade de produzir conhecimentos universais e verdadeiros
acerca dos fenômenos naturais e sociais, transferindo para o homem a supe-
rioridade divina que fundava a teopolítica do conhecimento anteriormente
observada na Idade Média (Grosfoguel, 2011).
Como consequência, observamos uma reconfiguração da história mundial
a partir da centralidade europeia e a defesa do conhecimento científico como
o único tipo de conhecimento válido. Este conhecimento seria sustentado
pelo tripé racionalidade, objetividade e neutralidade e deveria seguir métodos
rígidos e utilizar preferencialmente a linguagem matemática a fim de anular
possíveis influências subjetivas, políticas e sociais que pudessem “contaminar”
a produção de conhecimentos universais e verdadeiros.
O que observamos, entretanto, é que, encoberta por um discurso da neu-
tralidade, está a visão de mundo de um sujeito/ grupo particular autodeclarado
como superior e que, portanto, difunde e impõe aos demais grupos e povos
os seus interesses e os seus modos de produzir conhecimentos como sendo
universais ou os únicos válidos: homens, brancos (europeus), advindos de
classes sociais privilegiadas. Conforme alerta Grosfoguel (2016), essa impo-
sição se deu através de processos de genocídio e epistemicídio1 que atingiram
1 Com base nos estudos de Grosfoguel (2016) e Santos e Meneses (2009), “Epistemicídio é a denominação
do processo por meio do qual práticas sociais e de produção de conhecimentos que, de alguma forma, se
posicionaram contrárias aos interesses dominantes foram suprimidas, ao longo da história, para dar lugar
à epistemologia dominante” (Calvoso, 2020).
192

especialmente negros, indígenas e mulheres, violentados, silenciados e supri-


midos da produção de conhecimentos considerada válida e da sua história.
A história única da ciência, ou história “oficial” da ciência tradicional,
e a forma como ela foi difundida, especialmente nos países ocidentais, é um
tema ao qual os estudos decoloniais têm se dedicado. O pensamento decolonial
surge no chamado Sul global2 como um movimento crítico e propositivo em
relação à modernidade/colonialidade e às estruturas de poder que constituem
a sua fundação (Santos, 2018).
Para compreender a proposta decolonial, é necessário, primeiro, com-
preender dois conceitos: colonialismo e colonialidade do poder.
Segundo Quijano (2009, pp. 73), o colonialismo refere-se:

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


[...] a uma estrutura de dominação/exploração onde o controle da autori-
dade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma população
determinada domina outra de diferente identidade e cujas sedes centrais
estão, além disso, localizadas noutra jurisdição territorial.

Em outras palavras, o colonialismo refere-se ao processo colonizador,


de conquista e exploração de povos e territórios que ganhou força a partir da
Europa do século XVI.
Entretanto, o processo colonizador gerou impactos tão profundos nas
sociedades colonizadas que mesmo a independência administrativa conquis-
tada por alguns desses povos, não deu fim à colonialidade do poder. Conforme
Grosfoguel (2009), a colonialidade do poder pode ser definida como

[...] um enredamento, ou, para usar o conceito das feministas [...] de Ter-
ceiro Mundo, como uma interseccionalidade3 [...] de múltiplas e hete-
rogéneas hierarquias globais (“heterarquias”) de formas de dominação e
exploração sexual, política, epistémica, econômica, espiritual, linguística
e racial, em que a hierarquia étnico-racial do fosso cavado entre o europeu
e o não-europeu reconfigura transversalmente todas as restantes estruturas
globais de poder (pp. 392).

A partir do processo colonizador, portanto, uma série de hierarquias foram


impostas aos territórios e corpos colonizados, definindo privilégios de classe,
gênero, raça, sexualidade, espiritualidade e na produção de conhecimentos

2 Esta é uma definição essencialmente política e não geográfica. O Sul global refere-se aos povos e territórios
que não fazem parte do bloco hegemônico de poder, composto principalmente por Europa e Estados Unidos,
que exercem grande influência econômica, cultural e científica no restante do mundo. Ou seja, o Sul global
não se define simplesmente pelo não pertencimento ao Norte global, mas sim pelos grandes impactos
gerados nesses territórios a partir do colonialismo e da colonialidade do poder.
3 Falaremos mais sobre o conceito de Interseccionalidade no item “Para uma ciência feminista decolonial:
movimentos insurgentes”.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 193

que difundiram, como sendo única, neutra e universal, uma visão particu-
lar de mundo.
Essa visão se mantém, mesmo com o fim do colonialismo, através da
reprodução das relações de dominação e exploração de grupos sociais subal-
ternizados por grupos dominantes no Sul global. Isso significa que a coloniali-
dade do poder exerce impactos muito amplos sobre os corpos colonizados, não
somente pela influência que os países do Norte global exercem sobre o resto
do mundo, mas também pela reprodução interna dessas estruturas de poder.
Conforme sinaliza Grosfoguel (2011, par. 8) “[...] o sucesso do sistema-global
do mundo moderno/colonial consiste em fazer com que os sujeitos que estão
localizados no lado oprimido da diferença colonial, pensem epistemicamente
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

como aqueles nas posições dominantes”.


Os perigos de uma história única da ciência são diversos: a) a definição,
por grupos dominantes, do que é considerado conhecimento válido ou não,
como ele deve ser produzido e praticado e a consequente desvalorização
de outros tipos ou formas de produzir conhecimentos; b) a separação entre
aqueles que são considerados como sujeitos produtores de conhecimento
e aqueles que são considerados como objetos; c) a ampla difusão de uma
única perspectiva, encoberta por um discurso da neutralidade, objetividade e
universalidade; d) a dicotomia racionalidade versus afetividade, que está na
base da defesa de uma suposta neutralidade e que prejudica o exercício ético
na produção de conhecimentos; e) a manutenção de hierarquias de poder
através de um discurso científico que as justifica e naturaliza; f) a reprodução
de violências diversas praticadas contra aquelas(es) que foram e continuam
sendo subalternizadas(os), silenciadas(os), aniquiladas(os) para que toda a
estrutura se mantenha.
Nas palavras de Chimamanda Ngozi Adichie (2019, pp. 27-28): “A con-
sequência da história única é esta: ela rouba a dignidade das pessoas. Torna
difícil o reconhecimento da nossa humanidade em comum. Enfatiza como
somos diferentes e não como somos parecidos”.
A proposta dos estudos decoloniais pretende contribuir para uma
mudança ampla que contempla desde a produção de conhecimentos até as
práticas sociais, partindo da compreensão de que indivíduo e sociedade se
produzem mutuamente e, portanto, não é possível promover transformações
sem agir simultaneamente nos níveis micro e macropolítico, sem considerar
o indivíduo no conjunto de suas relações. Isso se expressa, entre outras for-
mas, na compreensão de que a colonialidade do poder não se resume a uma
dominação econômica, mas sim atravessa todas as dimensões da existência
dos povos colonizados.
Conforme destaca Vivian dos Santos (2018, pp. 3):
194

o “giro decolonial”, assim, não deve ser compreendido apenas como uma
proposta teórica, mas como “movimento de resistência teórico e prático,
político e epistemológico, à lógica da modernidade/colonialidade” (Mig-
nolo, 2008, pp. 249). Como movimento, a genealogia do pensamento
decolonial é planetária, não se confundindo com uma abordagem res-
trita a indivíduos, ao contrário, encontra sentido em articulação com os
movimentos sociais, especificamente nas resistências afros e indígenas [e
feministas, como pretendemos abordar neste capítulo].

Para tanto, os estudos decoloniais nos convidam ao exercício de nos


aproximar de outros olhares, histórias e saberes de grupos e povos que foram
suprimidos da história única da ciência e contribuir para que eles possam

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


se reapropriar do lugar que historicamente lhes foi negado. Nos convidam
também a elaborar novos métodos e a repensar os objetivos das ciências a
partir da reflexão crítica acerca das hierarquias de poder que vêm sendo (re)
produzidas por uma ciência que se diz neutra, objetiva e universal enquanto
reproduz os interesses de uma camada dominante.
Este exercício, conforme pretendemos demonstrar, é um exercício essen-
cialmente afetivo, de nos colocarmos em movimento, nos permitirmos ser
afetados e afetar. Muitas discussões poderiam ser realizadas a partir dessa
proposição, porém neste capítulo estamos nos convidando a dialogar sobre
de que forma esse exercício afetivo se dá na construção de propostas femi-
nistas para a decolonização do conhecimento científico. Para isso, primeiro
precisamos compreender como, tradicionalmente, os processos afetivos têm
sido utilizados como ferramentas para o controle e silenciamento de mulheres,
depois, como isso se reflete no afastamento delas da produção do conheci-
mento científico, para finalmente explorarmos as possibilidades alternativas
que temos construído para a transformação desse cenário.

Ciência, feminismos e afetividade

Em nosso percurso até aqui, já sugerimos que os afetos constituem uma


via fundamental para a opressão e afastamento das mulheres da produção de
conhecimentos. Por outro lado, ao tensionar as contradições e os jogos de
poder que permeiam a defesa de uma suposta neutralidade, objetividade e
universalidade, propomos que eles podem se tornar ferramentas potentes na
construção de um conhecimento crítico e transformador.
Além disso, indicamos também que existe uma relação entre afetividade e
ética, sinalizando, inclusive, que o dualismo racionalidade versus afetividade,
um dos pilares da ciência tradicional, pode trazer prejuízos ao exercício ético
na produção de conhecimentos científicos.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 195

Vamos aprofundar essas discussões, articulando-as com o campo dos


estudos feministas.

Pedagogia dos afetos e papéis sociais de gênero

No capítulo que abre este livro, nos posicionamos em relação à escolha


pelo termo “afetos” para nos referir ao conjunto das nossas possibilidades de
sentir, uma vez que este termo assinala que as nossas relações nos afetam de
alguma(s) forma(s), ou seja, produzem transformações em nós.
Esta escolha, que, à primeira vista, pode parecer apenas uma opção ter-
minológica, indica também outros posicionamentos relativos à forma como
compreendemos os processos afetivos. Considerando que um aprofundamento
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

sobre a teoria dos afetos já foi realizado no primeiro capítulo deste livro, neste
momento quero ressaltar apenas alguns pontos que serão mais importantes
para as nossas discussões.
Tomar como ponto de partida o entendimento de que nossas relações
nos afetam nos posiciona na contramão do que frequentemente pensamos
sobre os afetos, reduzidos a processos biológicos ou individuais. Com isso,
destacamos o caráter social da afetividade, como processos que se constituem
nas relações que estabelecemos com as pessoas e com o mundo, ou seja, nós
desenvolvemos afetos, aprendemos a sentir, e o(s) outro(s), a cultura, a polí-
tica, o momento histórico, são elementos essenciais para isso.
Lançar um olhar sobre o caráter social dos afetos nos permite com-
preender que aquilo que sentimos, como sentimos, as expressões e interpre-
tações dos afetos não podem ser descolados da estrutura social, que prevê
diferentes papéis a serem desempenhados de acordo com os grupos sociais
aos quais pertencemos.
Entre esses estão os papéis de gênero, que, de forma simplificada, podem
ser compreendidos como a construção histórica de um conjunto de normas
e práticas sociais que delimitam o que é ser mulher e o que é ser homem em
uma determinada sociedade. Segundo Valeska Zanello (2018), esses papéis
estão organizados em torno de dispositivos: uma série de discursos – incluindo
o discurso científico – práticas, instituições, organizações, leis etc., que com-
põem uma rede sistematizada nas estruturas de poder e atravessam os pro-
cessos de subjetivação do ser homem e do ser mulher. Para as mulheres, os
dispositivos centrais são o amoroso e o materno, enquanto para os homens é
o dispositivo da eficácia.
Faremos uma breve digressão histórica para compreender melhor esses
dispositivos, como eles se constituem e os seus impactos para os processos
de subjetivação de mulheres e homens.
Como ressaltamos acima, os afetos são construções sociais e com o amor
não seria diferente. Isso significa que o amor não é um fato natural ou algo
196

fixo e universal que independe da cultura, território ou momento histórico.


Ao contrário, como destaca a autora, “o amor é específico para cada gênero,
classe social, idade e povo” (Zanello, 2018, pp. 62).
No mundo ocidental, uma série de condições sociais se entrelaçaram para
o desenvolvimento do que entendemos por amor na atualidade. Entre elas, as
influências religiosas, econômicas, políticas e científicas contribuíram para
que as relações conjugais passassem de “negócios” entre famílias para a ideia
do amor romântico que cultivamos hoje.
Com a expansão do catolicismo pela Europa a partir do século XII, o
discurso religioso institui o casamento como sacramento e a monogamia como
o seu principal fundamento. O controle sobre a sexualidade e os prazeres, bem
como a associação da imagem da “mulher ideal” à figura da Virgem Maria,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


reforçou a autoridade dos maridos (anteriormente já existia uma autoridade
jurídica) e a submissão das esposas. Difunde-se a ideia de que as mulheres
devem ser recatadas, obedientes, generosas, fiéis e assexuadas, enquanto para
os homens o zelo pelo nome da família e pelos bens materiais era mais valori-
zado, consentindo, inclusive, a satisfação de seus desejos sexuais com outras
mulheres fora do casamento (Zanello, 2018).
O surgimento da classe burguesa a partir do século XV e o desenvolvi-
mento do sistema capitalista nos séculos subsequentes trouxe para os papéis
de gênero a valorização da propriedade privada, dando novos contornos à
relação conjugal. O controle sexual e reprodutivo da mulher se intensifica a
partir da necessidade de se manter a propriedade no seio familiar, que deveria
ser passada de geração em geração de pai para filho, exigindo a garantia dos
laços sanguíneos paternos sobre os herdeiros.
Além disso, outra mudança importante trazida pelo contexto econômico
foi a separação entre os âmbitos público e privado, sendo que o público se
constituiu como o espaço predominantemente masculino, enquanto o privado
se tornou o espaço feminino. Essa divisão público-privado é um fator fun-
dante também, e não por acaso, do dualismo entre racionalidade e afetividade.
Segundo Heller (2004) esse dualismo é tipicamente burguês, pois concretizou
na vida prática das pessoas uma separação entre o mundo do trabalho, como
o campo privilegiado da razão, e o mundo do lar, como o espaço para os
sentimentos. Assim, observamos uma clara divisão entre o papel da mulher,
voltado para o lar, a família e o desenvolvimento afetivo, e o papel do homem,
privilegiando o trabalho e a racionalidade.
María Lugones (2020) e Oyèrónké Oyěwùmí (2020) salientam que, por
meio do colonialismo e da colonialidade do poder, essas e outras caracterís-
ticas da sociedade europeia foram trazidas para as terras colonizadas, como
é o caso do Brasil e da África, impondo uma reestruturação ampla na cul-
tura e nas práticas sociais. Além de uma reorganização econômica e política,
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 197

observamos também um rearranjo espiritual, pedagógico, epistêmico, de raça,


sexualidade e gênero.
O processo colonial impôs o gênero como um princípio organizador aos
povos originários da América Latina e às sociedades africanas, onde anterior-
mente não havia hierarquias estabelecidas entre homens e mulheres e todos
participavam ativamente das decisões e tarefas comunitárias. Não é à toa
que um dos principais temas explorados no Brasil colonial foi a educação
de mulheres, como nos alerta Mitsuko Antunes (2014). Com a colonização
e o posterior processo de globalização, veremos muitas semelhanças (ainda
que não reflitam a totalidade) entre os países do chamado Terceiro Mundo
em relação à imposição – e suas consequências – da cultura europeia sobre
os povos colonizados.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Entre essas consequências, conforme aponta Zanello (2018), o moralismo


imposto pelo discurso religioso ganha novos contornos entre os séculos XVIII
e XIX ao ser apropriado pelo discurso científico, especialmente pela medicina
higienista, que passou a psiquiatrizar/patologizar, de um lado, e naturalizar as
construções sociais dos papéis de gênero, de outro. Enquanto para as mulheres
a monogamia era compulsória, a permissividade em relação à infidelidade
masculina foi justificada a partir de um discurso naturalizante, que dizia que
os homens tinham uma necessidade sexual naturalmente mais intensa e ina-
diável, estimulando a virilidade, a performance sexual e o comportamento
de “caça” às mulheres.
Estas, por outro lado, caso expressassem seus desejos sexuais ou se
negassem à submissão, eram consideradas loucas, desajustadas. Muitas foram
enclausuradas nos antigos manicômios e, para as demais, se difundia a ideia
do casamento e da maternidade como um tratamento para a alma e para
o corpo, instituindo uma verdadeira política de adestramento e docilização
do pensar, do agir e do sentir das mulheres, encoberta sob a justificativa de
proteger a sua saúde.
Com o processo de urbanização e industrialização, bem como o desen-
volvimento da imprensa e novas tecnologias da informação, observamos o
crescimento do individualismo, que também influenciou de maneiras diferen-
tes homens e mulheres no que diz respeito às relações conjugais. Se, por um
lado, a sexualidade começou a ser mais valorizada entre os casais, bem como
a ideia do casamento por amor, por outro, a livre escolha por uma parceira
se estabeleceu como um direito para os homens e uma competição entre as
mulheres, uma vez que estas deveriam se fazer escolhíveis.
A autora destaca que, a partir do final do século XIX e início do século
XX, além da conduta, a aparência das mulheres ganha cada vez mais desta-
que como atributo importante para serem escolhidas. As revistas e literatura
direcionadas ao público feminino aconselhavam as mulheres sobre o jogo
198

da conquista, como cuidar da casa, da beleza, dos filhos e como manter um


relacionamento, enquanto as revistas e literatura direcionadas ao público mas-
culino incentivavam a virilidade, os conteúdos sexuais e o trabalho. “Vê-se
claramente aqui a afirmação do homem como centro da vida da mulher, bem
como da mulher como ser-para-o-outro [...] como função [...] e cuidado. [...]
Era ele quem deveria ser colocado em primeiro lugar” (Zanello, 2018, pp. 77).
Paralelamente à construção da ideia do amor romântico e às diferentes
formas como ela incidiu sobre homens e mulheres, houve mudanças também
em relação à maternidade. Valeska Zanello (2018) aponta que, especialmente
a partir do desenvolvimento do sistema capitalista, as concepções de infância
e de maternidade sofrem transformações. Junto da defesa de que as crianças
devem ser cuidadas para que se garanta não somente a sua sobrevivência, mas

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


a sua saúde física, mental e sua capacitação para que se tornem mão-de-obra
no futuro, surge a noção de maternagem, também apropriada pelo discurso
científico, difundindo normas do que é ser uma “mãe boa” ou “suficiente-
mente boa”.
Isso faz com que não só o cuidado dos filhos seja imposto como respon-
sabilidade exclusiva da mulher, como também torna a culpa o afeto central da
maternidade, uma vez que a mãe será responsabilizada por qualquer evento
negativo que venha a acontecer com os filhos em termos físicos, psicológicos
ou sociais. A maternidade e o amor romântico se tornam a centralidade da
vida da mulher, a sua razão de ser: ela só pode se realizar plenamente como
mulher se for casada (com um homem) e tiver filhos. Dentro do casamento,
é depositada sobre a mulher a responsabilidade pela maternagem, pela casa
e o marido.
Para os homens, por outro lado, o dispositivo da eficácia está relacionado
a aspectos sexuais e laborais. Essa noção de virilidade, de potência sexual
e laboral está muito associada a ideias misóginas e homofóbicas: o homem
deve ser o dominador e se afastar de qualquer coisa que o ligue à mulher ou
às características entendidas como femininas, exercendo uma dominação
não só sobre elas, mas também sobre outros homens vistos como frágeis
ou submissos. Além disso, se afirma a ideia do homem como provedor da
família, aquele que deve assumir o compromisso com o trabalho e a renda.
O reconhecimento financeiro e o sucesso profissional são elementos centrais
para eles, em detrimento da sua relação/participação familiar (Zanello, 2018).
Em síntese,

Em nossa cultura, [...] o modelo de amor atual é herdeiro do amor burguês


e romântico [...] cuja moral sexual se apoia na afirmação da heterosse-
xualidade como amor “natural”, bem como configura o matrimônio a via
legítima para a realização do amor-paixão/eros entre homens e mulheres.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 199

Essa moral defende a monogamia e a dedicação intensa para elas; enquanto


para eles, permite a poligamia e o baixo investimento. Nesse modelo se
encerra, portanto, laços de domínio que geram desigualdades, dependência
e propriedade sobre mulheres e privilégios para os homens. O amor, mais
do que o parto, é o pivô da opressão das mulheres... Para as mulheres, o
amor diz respeito à sua identidade, como uma experiência vital. O amor,
em nossa cultura, se apresenta como a maior forma (e a mais invisível) de
apropriação e desempoderamento das mulheres (Zanello, 2018, pp. 83).

Observamos que historicamente se construiu uma hierarquia entre


homens e mulheres, mas, como sinalizamos na introdução deste capítulo,
existem diferentes experiências de ser mulher, portanto, não podemos dei-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

xar de destacar que se estabeleceu também uma hierarquia entre mulheres.


O controle sobre o corpo e a sexualidade femininos foi uma imposição que
atingiu de maneiras muito diferentes mulheres brancas e mulheres negras.
Enquanto as mulheres brancas deviam buscar se ajustar aos padrões da
mulher ideal, as mulheres negras e, posteriormente, as indígenas e caboclas,
sofreram intensa exploração da sua força de trabalho e dos seus corpos. Con-
forme aponta Ângela Davis (2016, pp. 174),

A escravidão se sustentava tanto na rotina do abuso sexual quanto no


tronco e no açoite. Impulsos sexuais excessivos, existentes ou não entre
os homens brancos como indivíduos, não tinham nenhuma relação com
essa verdadeira institucionalização do estupro. A coerção sexual, em vez
disso, era uma dimensão essencial das relações sociais entre o senhor e a
escrava. Em outras palavras, o direito alegado pelos proprietários e seus
agentes sobre o corpo das escravas era uma expressão direta de seu suposto
direito de propriedade sobre pessoas negras como um todo. A licença para
estuprar emanava da cruel dominação econômica e era por ela facilitada,
como marca grotesca da escravidão.

As formas e práticas de violências que atingem mulheres negras dife-


rentemente de mulheres brancas sobreviveram à abolição da escravatura e
persistem até hoje, mostrando o quanto as estruturas de dominação estão
institucionalizadas sob uma intersecção entre raça, classe e gênero em que
não é possível compreender as diferentes experiências de ser mulheres sem
considerar a interrelação entre esses marcadores sociais.
O padrão se manteve ao longo do tempo, forjando uma representação
sobre as mulheres negras de uma forma hipersexualizada, como promíscuas,
“mulheres fáceis”, “putas”. Elas deveriam se submeter aos assédios dos
homens brancos que as procuravam para a satisfação dos desejos sexuais fora
do casamento. Conforme aponta Maior (1980 apud Zanello, 2018, pp. 66), se
200

popularizou o seguinte ditado: “branca para casar, mulata para foder e negra
para trabalhar”.
Isso nos mostra que os papéis de gênero, para as mulheres, foram cons-
truídos conforme a conveniência: para umas a imposição da imagem da santa,
para outras a sujeição à alegoria da “puta”; para algumas a limitação ao tra-
balho doméstico e ao ambiente privado, para outras o trabalho escravo; ora
o controle sobre seus corpos como garantia da manutenção da propriedade
privada, ora elas próprias como propriedade dos homens brancos.
O que observamos, portanto, é uma verdadeira pedagogia dos afetos em
que, para as mulheres brancas, o amor romântico, a culpa, o doar-se e abrir
mão de si e a obediência e, para as mulheres negras, a servidão, o assujeita-
mento, mas também a resistência à dor, parecem ser processos afetivos centrais

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


a serem desenvolvidos. Para os homens observamos o contrário: a dominação,
agressividade, o vigor sexual e laboral e a restrição do contato e expressão de
afetos relacionados ao cuidado ou carinho devem ser privilegiados.
Essa breve digressão histórica mostra como fatores históricos, sociais e
políticos incidem diretamente sobre a construção do nosso mundo afetivo e
como o desenvolvimento afetivo diferenciado para homens e mulheres está
nas bases da reprodução das relações hierárquicas, misóginas e racistas que
privilegiam homens e subordinam mulheres, criando, inclusive, uma ou várias
outras hierarquias entre elas.

Mulheres na ciência: desafios e potência transformadora

Partindo da ideia de que nosso mundo afetivo se constrói a partir das


relações que estabelecemos com os outros e com o mundo, das discussões
acerca dos papéis de gênero e dos dispositivos amoroso e materno, bem como
das intersecções entre raça, classe e gênero como elementos centrais para esta
pedagogia dos afetos, vamos agora nos debruçar sobre alguns dos impactos
que esse conjunto de fatores promove nas relações entre mulheres e a ciência.
Quando nos dedicamos a investigar a participação das mulheres nas
ciências ao longo da história, observamos que a efetivação desta participação
é bastante desafiadora. Dentro do leque amplo desses desafios gostaria de
destacar, para a nossa discussão, três dimensões: 1) a transposição do espaço
privado em direção ao público; 2) a exclusão ou negação, no campo de produ-
ção de conhecimentos, de aspectos tradicionalmente associados às mulheres;
3) a necessidade de promover mudanças profundas na ciência.
Em relação à primeira dimensão, podemos destacar que nas últimas décadas
as mulheres têm conquistado cada vez mais espaço dentro do campo acadêmico,
inclusive superando os homens em quantidade entre os mais jovens, conforme
aponta Nadia Lima (2002). Entretanto, este quantitativo crescente de mulheres
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 201

nas ciências expressa também uma mudança qualitativa? Significa que superamos
a centralidade masculina no campo acadêmico? As experiências de mulheres
cientistas nos mostram, infelizmente, que ainda estamos muito distantes disso.
Conforme demonstra Londa Schiebinger (2001), historicamente as
mulheres foram excluídas dos espaços formais de educação, especialmente
das universidades, que se constituíram como o campo privilegiado da produção
de conhecimentos. Nas palavras da autora:

A despeito de raça, credo, identidade sexual ou mérito, todas as mulheres


- por nenhuma razão outra que seu sexo - foram proibidas de estudar nas
universidades européias desde a fundação das universidades no século
XI até o fim do século XIX. De modo semelhante, todas as mulheres,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

mesmo grandes proprietárias, foram excluídas dos direitos de cidadania


nas democracias do mundo ocidental até o século XX (pp. 47-48).

O desenvolvimento do capitalismo e do modelo de ciência moderna apro-


fundaram o abismo educacional entre homens e mulheres quando da separação
entre os âmbitos público e privado. Conforme salientamos anteriormente,
o público (trabalho), tornou-se o espaço privilegiado dos homens e para os
homens, enquanto o espaço privado (doméstico) passou a ser direcionado
para e por mulheres. Segundo a autora, ao mesmo tempo em que as atividades
domésticas eram privatizadas, a ciência se profissionalizava e se institucio-
nalizava nas universidades, afastando as mulheres que antes conseguiam ter
algum acesso à atividade científica, ainda que limitado e de maneira informal.
Ainda hoje, uma das grandes dificuldades encontradas pelas mulheres
em relação à vida pública é a divisão sexual do trabalho, que faz com que elas
tenham duplas ou até triplas jornadas: as responsabilidades pela família, filhos
e o lar continuam ainda hegemonicamente depositadas sobre as mulheres,
com uma inserção ainda pouco significativa dos homens no âmbito privado
e na divisão do trabalho doméstico. Nesse cenário, torna-se muito difícil para
as mulheres combinar as exigências da carreira com as exigências da vida
doméstica, fazendo com que “a sua trajetória profissional seja condicionada
às demandas familiares” (Lima, 2002, pp. 56).
Nadia Lima (2002, pp. 52-53) traz alguns dados que ilustram esse cenário:

As universidades continuam a reproduzir o androcentrismo e a representar


seus espaços como masculinos, principalmente em se tratando da pes-
quisa, da direção e administração institucional dos centros acadêmicos.
Uma ilustração desse fato nos é informado através de dados da FINEP4,
que indicam como “[...] a proporção de mulheres entre os pesquisadores

4 Financiadora de Estudos e Projetos, é uma agência pública brasileira de fomento à pesquisa, ciência,
tecnologia e inovação, desde 1967.
202

produzindo ciência com financiamento da FINEP é maior que a proporção


de mulheres entre os cientistas que decidem sobre a aprovação de projetos
nesta mesma instituição” (Azevedo et al., 1989, pp. 279).
Na Suécia, país considerado pela ONU como o de maior igualdade sexual
no mundo, uma mulher cientista tem que ser 2,5 vezes mais produtiva
do que seu colega homem, para ser avaliada igualmente a este e receber
financiamento para projetos de pesquisa; no Brasil, outrossim, através do
“Ranking da ciência” realizado em 1999, constatou-se o quanto a produção
da cientista estava aquém da de seus colegas homens.

Você pode pensar que estes dados são antigos e que o cenário atual pode
ser muito diferente. Entretanto, se realizarmos uma busca rápida sobre a

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


produção acadêmica de mulheres durante a pandemia do novo Coronavírus,
popularmente conhecido como covid-19, que assolou o mundo inteiro entre os
anos de 2020 e 20215, veremos que a divisão sexual do trabalho se mantém
ainda como um fator determinante para a participação das mulheres no campo
acadêmico (podemos dizer em toda a sua inserção no mercado de trabalho).
Um estudo realizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS)6 colheu informações com quase 15 mil voluntários, entre docentes,
pós-doutorandos e estudantes de pós-graduação, que mostraram que a produ-
ção acadêmica de mulheres negras (com ou sem filhos) e de mulheres brancas
com filhos pequenos é a mais impactada no contexto pandêmico, enquanto a
produção de homens brancos sem filhos é a que sofre menos impactos. Além
disso, o grupo de pesquisa enfatizou que editores de diversas revistas ao redor
do mundo afirmam nunca antes terem assistido a uma queda tão abrupta na
submissão de artigos científicos por mulheres como agora.
Esses dados remetem à imposição, para as mulheres, do cuidado com a
casa e com os filhos, uma vez que o isolamento social necessário para pre-
venir o contágio pelo vírus fez com que toda a família (uma realidade que
não foi possível para todos, especialmente para as camadas mais pobres da
população) passasse a trabalhar/estudar de casa, colocando uma sobrecarga
ainda maior sobre as mulheres.
O conjunto dessas informações escancara o quanto a ciência está orga-
nizada sobre e reproduz as hierarquias de gênero, classe, raça/etnia, des-
construindo a ideia de uma ciência neutra, isolada dos elementos sociais e
das estruturas de poder. Em suma, os papéis sociais atribuídos às mulheres
no campo privado, em geral, limitam não só a sua inserção, mas também a
sua produtividade (e, consequentemente, suas possibilidades de ascensão e

5 Ainda não sabemos a extensão da duração da pandemia, muito menos de seus impactos.
6 Para mais informações, acessar: https://www.ufrgs.br/ciencia/pesquisa-da-ufrgs-revela-impacto-das-desi-
gualdades-de-genero-e-raca-no-mundo-academico-durante-a-pandemia/.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 203

estabilidade) e a sua permanência no campo científico, que ainda prevalece


como esfera pública masculina.
Como consequência, Nadia Lima (2002, pp. 60) salienta:

As cientistas estão vivenciando momentos conflituosos, seja de ordem


intra-subjetiva (com elas mesmas), seja nas relações interpessoais com os
companheiros, os filhos, a família mais ampla, amizades, em suma, o palco
da vida social onde os valores culturais estão postos como norteadores da
vida humana. Como fiação mestra, a relação entre o privado e o público,
em que, como num campo de forças em tensão, elas se sentem divididas:
de um lado, como mulheres, mães, esposas, donas-de-casa, tentando res-
ponder às prescrições do tradicionalmente esperado para elas; do outro, a
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

cientista, profissional inserida num espaço de trabalho, cujas regras pas-


sam pelo crivo da hegemonia masculina. É uma situação de conflito, com
culpas e cobranças se presentificando no cotidiano pessoal e profissional.

Isso nos conduz para a segunda dimensão desta discussão acerca de


alguns desafios para a efetivação da participação das mulheres nas ciências:
a exclusão ou negação no campo de produção de conhecimentos de aspectos
tradicionalmente associados às mulheres.
Conforme assinalamos anteriormente, as condições sociais e históricas
produzem impactos profundos nos processos de subjetivação de mulheres
e homens através, dentre outros fatores, de uma verdadeira pedagogia dos
afetos que, associada à separação dos âmbitos público e privado, promovem
uma cisão entre a afetividade, entendida como característica associada ao
feminino, e a racionalidade, como característica tradicionalmente associada
ao masculino. Além do dualismo que considera afetividade e racionalidade
como elementos descolados um do outro, observamos que os papéis do que
é ser homem e ser mulher estão fundamentados também em uma lógica opo-
sitiva e que naturaliza a construção social das relações de gênero, negando
todas as condições sócio-históricas que compõem essas estruturas, sobre as
quais temos falado aqui.
A partir dessas informações, quero nos convidar a retomar e aprofundar
nossa compreensão sobre a citação que abre este capítulo, especialmente em
relação ao seguinte trecho: “Como é difícil para nós [mulheres] pensar que
podemos escolher tornar-nos escritoras [e cientistas, como estamos propondo],
muito mais sentir e acreditar que podemos!” (Anzaldúa, 2000, pp. 230, gri-
fos nossos).
Além do histórico afastamento das mulheres do campo formal de edu-
cação, especialmente das universidades, da divisão sexual do trabalho e dos
dispositivos amoroso e materno, observamos que, através de uma pedagogia
dos afetos que atravessa os processos de subjetivação de mulheres, se cria a
204

ideia de que as mulheres devem ser submissas e de que a sua realização só


pode ser atingida através do casamento (heterossexual) e da maternidade,
não do trabalho.
As mulheres são cerceadas na sua participação nos espaços e atividades
públicas e são educadas (até hoje) para absorver o trabalho com o lar e a
família. Isso faz com que o seu desenvolvimento afetivo esteja muito ligado
ao cuidado, à submissão e à culpa, processos afetivos que, como vimos nos
exemplos anteriores, atuam como ferramentas de controle e repressão das
mulheres. Esta pedagogia dos afetos cria obstáculos para que as mulheres
identifiquem suas potencialidades e se reconheçam como seres capazes de
contribuir para o desenvolvimento científico assim como para promover
transformações sociais. Através da pedagogia dos afetos, os mecanismos de

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


controle transpõem o campo das normas sociais e atingem outra dimensão,
gerando conflitos de ordem intrassubjetiva, como destaca Nadia Lima (2002).
Ademais, o dualismo racionalidade versus afetividade, defendido pelo
modelo de ciência moderna, entre outros efeitos, acentua a exclusão das
mulheres em relação às ciências, uma vez que, tradicionalmente, os homens
são vistos como seres racionais enquanto as mulheres são vistas como seres
passionais e, portanto, inaptas ao exercício científico. Entretanto, essa visão
ignora a dimensão histórica e social que produz, tanto a ideia de que racio-
nalidade e afetividade são separadas e opostas, quanto a associação de uma
com o masculino e da outra com o feminino.
Conforme Heller (2004), não existe tal separação: sentimentos, pensa-
mentos e ações, ainda que desempenhem funções distintas, compõem uma
unidade em que um não acontece sem o outro. Se “sentir significa estar impli-
cado em algo” (Heller, 2004, pp. 15) e a implicação pode ser entendida, de
forma simplificada, como envolvimento, como o efeito produzido em nós ao
nos colocarmos em contato com algo, então mesmo aquelas atividades que
geralmente consideramos como esvaziadas de sentimentos, como o pensa-
mento lógico, por exemplo, não existem sem implicação.
Isso significa que a atividade científica, ainda que nas ciências hard,
sempre envolve, implica quem produz o conhecimento de alguma forma. A
afetividade está presente desde a escolha de um tema de pesquisa, passando
pelas expectativas e desafios gerados pelo pesquisar, até a apresentação dos
resultados, o que, como, onde será publicado e quais efeitos se pretende pro-
duzir com isso. Ou seja, ainda que os cientistas não reconheçam, o exercício
científico envolve uma série de escolhas que são necessariamente atravessadas
por processos afetivos.
Seguindo a mesma linha de argumentação, somada à elucidação anterior
sobre aspectos históricos e sociais na construção dos papéis de gênero, pode-
mos concluir que homens não são puramente racionais assim como mulheres
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 205

não são puramente passionais. Falamos bastante sobre os impactos para as


mulheres, mas o dualismo racionalidade versus afetividade também impacta
os homens na medida em que produz direcionamentos e restrições ao contato
e expressão dos seus afetos, a partir de um padrão de masculinidade possível
e aceitável socialmente.
Em geral, esse padrão se constrói em oposição àquilo que se considera
como características femininas, que, em tese, expressariam vulnerabilidade,
fragilidade ou subordinação, fazendo com que os homens reprimam expressões
de tristeza, dor, sofrimento, cuidado, carinho, entre outros. Por outro lado,
são incentivados o desenvolvimento e expressão de agressividade, dureza,
coragem, iniciativa, entre outros. Em outras palavras, o dualismo não foi
capaz de excluir a afetividade masculina e as performances de masculinidade
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

também são permeadas por afetos.


Em conjunto com os impactos subjetivos, podemos observar que essa
visão dualista reflete também na forma ainda dicotomizada com que os avan-
ços na inserção de mulheres no campo científico vêm acontecendo. Conforme
alerta Nadia Lima (2002), ainda que exista um crescimento expressivo na
quantidade de mulheres cientistas, observamos que há uma divisão signifi-
cativa em relação às áreas, considerando que os homens permanecem como
a grande maioria entre as ciências hard, enquanto a inserção mais expressiva
das mulheres é em áreas ligadas ao que se considera tradicionalmente como
características femininas, como o cuidado (áreas da saúde: psicologia, enfer-
magem, alguns campos da medicina, entre outras) e a educação (pedagogia,
letras e artes, por exemplo), as quais são historicamente desvalorizadas (social-
mente, financeiramente e em incentivo à pesquisa) em relação às primeiras.
Segundo Londa Schiebinger (2001, pp. 11), “os valores geralmente atri-
buídos às mulheres têm sido excluídos do saber científico e [...] as desigual-
dades entre homens e mulheres foram incorporadas à produção e à estrutura
do conhecimento”. As instituições acadêmicas foram construídas com base
na ideia de que os cientistas seriam homens e que teriam uma mulher para
cuidar da casa e da família enquanto eles se dedicavam à vida profissional.
Não podemos deixar de destacar que, além da hierarquia entre homens e
mulheres, há também uma hierarquização entre as mulheres muito importante
para a compreensão deste contexto. Para que as mulheres brancas de classe
média/alta (que predominam entre as que têm acesso à formação universitária)
possam desbravar os espaços públicos, acadêmicos e do mercado de trabalho
em geral, há uma outra população de mulheres, especialmente negras e perifé-
ricas, que passou a ocupar o lugar das primeiras no espaço doméstico, muitas
vezes sem seus direitos trabalhistas reconhecidos e garantidos. Isso significa
que, mesmo com os avanços em relação ao crescente número de mulheres
cientistas, a estrutura misógina e racista que está na base da organização da
206

produção de conhecimentos científicos e das instituições acadêmicas ainda


está bastante distante de ser superada.
Esses dados se tornam mais alarmantes ainda quando percebemos que,
ainda nestas áreas onde a participação das mulheres é mais expressiva, como
é o caso da Psicologia, por exemplo, as grandes referências utilizadas nos
cursos de graduação e pós-graduação permanecem, ainda hoje, como homens,
brancos, europeus, de classes mais abastadas.
Chegamos, então, ao terceiro ponto da nossa discussão sobre os desa-
fios para a participação das mulheres no campo acadêmico: a necessidade de
promover mudanças profundas na ciência.
Conforme Londa Schiebinger (2001), é um engano pensar que as mulhe-
res devem simplesmente se adaptar ao modelo tradicional de ciência. Isso

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


significaria ignorar ou mesmo negar as diferenças existentes no viver, pensar
e agir de mulheres e homens. Significaria, ao mesmo tempo, reafirmar a ciên-
cia tradicional e dizer que as mulheres devem pensar e agir como os homens
fizeram ao longo da história. Não é este o ponto de vista que defendemos
aqui: “a incorporação das mulheres à ciência não pode e não deve ocorrer sem
conturbações na ordem vigente, pois demanda profundas mudanças estruturais
na cultura, nos métodos e no conteúdo da ciência” (pp. 37).
Para isso, é necessário recuperar qualidades que a sociedade ocidental
desvalorizou, uma vez que eram (ainda são) associadas ao feminino, como a
subjetividade, a afetividade e a cooperação. Mas a autora questiona: somente
recuperar essas qualidades resolveria o problema? Não.
Para ela, em primeiro lugar, é necessária uma mudança mais ampla, que
transponha o campo individual e também os limites grupais dos coletivos de
mulheres, uma mudança que se expresse na reformulação de currículos, na
condução das aulas, na elaboração de teorias e conceitos, no financiamento
de programas e incentivo à pesquisa, entre outras possibilidades.
Além disso, é importante abolir a ideia de uma “mulher universal”, uma
vez que, como ressaltamos, aquela ideia desconsidera a diversidade de expe-
riências de ser mulheres e as interseccionalidades classe-raça/etnia-gênero-se-
xualidade. Por fim, não podemos cair em uma supervalorização simplista das
características tradicionalmente associadas às mulheres e nos furtar a realizar
uma reflexão mais ampla e profunda sobre as estruturas que formam os este-
reótipos de feminino e masculino e posicionam o masculino como dominante.
As reflexões da autora nos convidam a pensar que a inserção das mulhe-
res na ciência não deve ser uma simples soma de um quantitativo de mulheres
a uma racionalidade e modo de produção já existentes, mas sim o tensiona-
mento das formas como concebemos, produzimos e praticamos ciência e quais
são seus objetivos, para que(m) servem. A inserção das mulheres nas ciências
deve promover um entendimento crítico sobre as intersecções gênero-raça/
etnia-classe e como elas estão nas bases das estruturas sociais e científicas.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 207

Além do mais, é necessário ampliar o olhar para a construção e respon-


sabilização social não só sobre a reprodução e manutenção dessas estrutu-
ras, bem como pela sua transformação. Provocar movimento, não depositar
exclusivamente sobre as mulheres a responsabilidade pela transformação,
não fazer de nós as únicas agentes dessa mudança. Nas palavras de Londa
Schiebinger (2001, pp. 31),

É tempo de voltar-se [...] para instrumentos de análise pelos quais a pes-


quisa científica possa ser desenvolvida, bem como criticada em linhas
feministas. Eu não proponho esses instrumentos para criar alguma ciência
“feminista” especial, esotérica, mas sim para incorporar uma consciência
crítica de gênero na formação básica de jovens cientistas e no mundo
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

rotineiro da ciência.

Considerando as discussões realizadas até aqui, destacamos que analisar


a potencialidade que os afetos trazem para a reflexão crítica e ética da ciência
é uma proposta que caminha na contramão de uma simples romantização
de aspectos considerados como femininos na ciência. Compreendemos os
afetos como processos não individuais, mas sociais, ou seja, que só podem
ser compreendidos em conjunto com e a partir das relações sujeito-mundo/
individual-social. Portanto, visamos a ampliação do nosso olhar, compreen-
dendo que uma mudança ou transformação afetiva não se resume somente ao
campo individual, mas inclui necessariamente uma reflexão sobre as estruturas
sociais, culturais, econômicas e de poder que estão nas bases da construção
dos papéis de gênero e os seus impactos para os processos de subjetivação
de mulheres e homens.

Para uma ciência feminista decolonial: movimentos insurgentes

“[...] as ferramentas do senhor nunca vão desmantelar a casa-grande. Elas


podem nos permitir a temporariamente vencê-lo no seu próprio jogo, mas elas
nunca nos permitirão trazer à tona mudança genuína” (Lorde, 1984, par. 8).
Nesta frase, Audre Lorde (1984) mostra a urgência de repensar os conceitos,
métodos e visão de mundo produzidos pela ciência tradicional nos diversos
espaços (acadêmicos e não acadêmicos), de problematizá-los, identificar os
jogos de poder e os projetos de sociedade que eles carregam e elaborar meto-
dologias, recursos, concepções de ciência alternativas, contra-hegemônicas.
A construção dessas alternativas, assim como defendem os estudos
decoloniais e feministas, exige de nós um esforço em problematizar e res-
significar as estruturas de poder sobre as quais a ciência tradicional e os seus
conhecimentos foram fundados. Uma estrutura colonial, eurocêntrica, racista,
208

classista, sexista, heteronormativa, entre outras formas de opressão que divi-


dem o mundo entre aqueles que produzem conhecimento (sujeitos) e aqueles
sobre os quais o conhecimento é produzido (objetos).
Ressignificar essas estruturas é empreender o enfrentamento amplo às
diversas formas de opressão que atravessam a construção da nossa subjetivi-
dade, das nossas relações sociais e das formas como concebemos, produzi-
mos e praticamos nossos conhecimentos. Isso significa que temos que criar
espaços para que outras vozes, colonizadas, subalternizadas e, muitas vezes,
desumanizadas, ecoem; para que possam produzir, compartilhar, ensinar seus
conhecimentos, cultura e modos de se relacionar.
Há muitas propostas dentro dos estudos feministas que caminham nessa
direção através da construção de metodologias/epistemologias alternativas

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


à ciência tradicional. Abordaremos algumas delas, a fim de debater o papel
da afetividade na construção de propostas feministas que contribuam para a
decolonização do conhecimento científico. Em outras palavras, falaremos sobre
propostas que, dentre tantas outras, fortalecem o entendimento de que uma
efetiva inserção das mulheres nas ciências deve vir acompanhada de transfor-
mações amplas em relação à cultura, métodos, conteúdo e objetivos da ciência.
Não podemos falar sobre a construção de metodologias/epistemologias
feministas alternativas à ciência tradicional sem falar do protagonismo das
mulheres de cor, latino-americanas e do feminismo negro neste processo.
Um conceito fundamental para isto é o de interseccionalidade, que dá nome
a um livro de Carla Akotirene (2019), em que ela apresenta as raízes políti-
cas, fundamentos e contrapontos a este conceito, que surge a partir de uma
sensibilidade analítica de feministas negras: suas reivindicações e condições
particulares de existência não eram reconhecidas nem pelas pautas do femi-
nismo branco, que reproduzia o racismo, nem pelo movimento antirracista,
que reproduzia o machismo, uma vez que se voltava para os homens negros.
Assim, ela faz um movimento de denúncia, mostrando como o con-
ceito de interseccionalidade nasce da história, da carne, das experiências das
mulheres negras, agentes que frequentemente são invisibilizadas pelo uso do
termo “feminismo interseccional”, uma repetição do histórico apagamento
colonial racista.
O termo “interseccionalidade” foi originalmente utilizado em 1989 por
Kimberlé Crenshaw, denunciando a condição do racismo estrutural e como
ele é atravessado pelo gendramento. É somente a partir de 2001, após a “Con-
ferência mundial contra o Racismo, Discriminação racial, xenofobia e for-
mas conexas de intolerância”, ocorrida na África do Sul, que o termo ganha
popularidade nos espaços acadêmicos. A autora alerta que, se por um lado,
essa popularização mostra a potência e importância de incluir este debate nos
mais diversos espaços, incluindo a academia, por outro, é necessário cuidado
para que não haja um esvaziamento do conceito.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 209

O conceito de interseccionalidade se refere à valorização de uma igual-


dade analítica entre raça, classe e gênero, defendendo que não há uma hie-
rarquia entre eles, mas sim um sistema de opressão interligado. Nas palavras
da autora,

A interseccionalidade visa dar instrumentalidade teórico-metodológica à


inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado
– produtores de avenidas identitárias onde mulheres negras são repetidas
vezes atingidas pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe,
modernos aparatos coloniais (Akotirene, 2019, pp. 14).

Porém, ao contrário do que se pode pensar, a interseccionalidade não


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

reflete uma simples soma de identidades (por exemplo: mulher + negra +


periférica + lésbica e assim por diante), mas sim a construção de um lugar
e uma experiência de existência que atravessa diferentes corpos a partir das
condições estruturais e das matrizes de opressão sob a forma de identidade.
Uma identidade marcada por múltiplos fatores que a atravessam e que não
podem ser desconsiderados ou descolados, uma vez que incidirão sobre a sua
formação subjetiva, sua perspectiva de mundo e sua ação política.
Trazer o conceito de interseccionalidade para o campo científico significa
necessariamente adotar uma posição questionadora em relação à epistemo-
logia dominante. Ele nos convida não somente a uma nova metodologia de
análise das desigualdades sociais, mas também a uma revolução no processo
de pesquisar, uma vez que demanda de nós elementos que têm sistematica-
mente sido desvalorizados, negligenciados ou suprimidos neste processo: a
experiência, a ação política e os afetos.
Conforme sinaliza Akotirene (2019, pp. 19-20),

O Feminismo Negro está interessado em socorrer considerando os senti-


dos: se a pessoa está responsiva aos estímulos lésbicos, se sofreu “asfixia
racial”, se foi tocada pela polícia, se está escutando articulações terceiro
mundistas. A única cosmovisão a usar apenas os olhos é a ocidental e esses
olhos nos dizem que somos pessoas de cor, que somos Outros. A concepção
de mundo que interessa ao Feminismo Negro utiliza de todos os sentidos.

Este trecho, bastante simbólico, traz uma crítica à suposta objetividade


científica, que, em tese, seria garantida pela utilização de métodos rígidos e
controlados, pela exclusão de fatores subjetivos, políticos, sociais e uma super-
valorização da racionalidade em detrimento da afetividade. Aqui, podemos
identificar que esse método e a suposta “neutralidade” científica, na verdade,
localizam as mulheres negras e outros corpos e grupos sociais às margens, em
um lugar de subalternidade. Portanto, para uma mudança ampla nos modos
210

como o conhecimento científico é produzido, precisamos não só reconhecer


o papel, mas acionar todos esses elementos que tradicionalmente tem sido
excluídos (ou encobertos).
Isso não significa pender para um outro extremo e tornar a ciência um
conjunto de depoimentos sobre vivências individuais e isoladas, mas sim
reconhecer que as experiências humanas e, portanto, a construção de conhe-
cimentos sobre elas, é muito mais ampla e complexa do que um sujeito do
conhecimento fragmentado (que se quer apenas racional) pode compreender;
que a ciência não é neutra e, mais que isso, deve ser posicionada no combate
a preconceitos, desigualdades, violências, opressões. E isso não se faz sem
sensibilidade, sem afetos.
Se os afetos são a nossa implicação com o mundo, são o nosso envol-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


vimento, é somente a partir da afetividade que podemos nos aproximar do
outro, entrar em contato com perspectivas diferentes e reconhecer o outro
como sujeito. Isso significa que a afetividade é um elemento chave para que a
ciência possa superar a postura colonialista de dividir o mundo entre sujeitos e
objetos do conhecimento. Através da afetividade, entendida como construção
intersubjetiva, cultural e histórica, desenvolvemos a capacidade de estabelecer
relações de identificação, de pertença e de coletividade.
Quando reconhecemos que nossa ação no mundo e nossas relações são
fundamentalmente relações de afetação (eu afeto o outro e o outro me afeta),
podemos transpor a ideia de neutralidade e caminhar para uma outra dimen-
são de análise acerca da validação das formas e objetivos de se produzir o
conhecimento científico: a dimensão ético-política.
De forma simplificada, conforme sinaliza Lane (2002), ao contrário da
moral, que se refere a um conjunto de normatizações para a conduta social, a
ética é essencialmente um exercício de questionamento sobre a natureza valo-
rativa dessas normatizações. Em outras palavras, enquanto a moral determina
“isto é correto, isto é errado”, “podemos ou não podemos fazer tal coisa”,
a ética questiona: “por que isto é certo, por que aquilo é errado? Por que
podemos ou não fazer determinadas coisas? Pode ser feito de outra forma?”.
O exercício ético é essencialmente político, uma vez que nos coloca em
movimento constante de questionamento acerca das normatizações sociais e
nos permite construir possibilidades alternativas para a nossa ação no mundo;
e fundamentalmente afetivo, uma vez que nos convida ao envolvimento com
o(s) outro(s), ao exercício crítico de nos questionar de que forma queremos
afetar, o que desejamos construir coletivamente.
Em diálogo com essas reflexões, podemos destacar também a proposta de
Ângela Figueiredo (2020) acerca da construção de uma “Epistemologia insub-
missa feminista negra decolonial”. Partindo das propostas de autoras como
Donna Haraway e Patrícia Hill Collins, Ângela Figueiredo (2020) discute
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 211

que o questionamento sobre o lugar político, social, histórico ocupado por


aquele/a que produz conhecimento é uma das grandes contribuições dos femi-
nismos à ciência, posicionando-se na contramão da episteme hegemônica que
omite o sujeito em defesa de uma neutralidade científica. Posição que, como
discutimos anteriormente, é bastante contraditória, uma vez que encobre a
visão de mundo particular de um grupo dominante, distanciando-se dessa
suposta neutralidade.
Enquanto Donna Haraway (1988) defende os conhecimentos situados,
argumentando que sempre produzimos a partir de um lugar determinado dentro
das relações de poder, Patricia Hill Collins, em sua teoria do ponto de vista,
amplia as reflexões para além do gênero, trazendo as implicações raciais
para a constituição do sujeito produtor de conhecimento. Conforme Ângela
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Figueiredo (2020, pp. 8),

O aspecto prioritário presente no debate sobre posicionalidade, e sobre o


lugar do sujeit@ na produção do conhecimento, é o lugar da enunciação,
isto é, a localização de nacionalidade, étnica ou racial, de classe e de
gênero do sujeito que enuncia. Nas epistemologias ocidentais, o sujeito
que falava estava sempre encoberto, pois isso assegurava o suposto mito
da neutralidade.

Ao contrário disso, na epistemologia feminista negra, a experiência ganha


centralidade ao estabelecer o vínculo necessário entre as dimensões individual,
grupal e coletiva. A compreensão de que “o pessoal é político” permite não só
o compartilhamento de diferentes vivências, como também o aprofundamento
analítico sobre as desigualdades sociais, aquilo que as sustenta e, portanto, as
possibilidades de transforma-las através de um diálogo mais horizontal entre
os diferentes atores sociais e, especialmente, do favorecimento de uma (re)
organização coletiva.
Partindo da experiência como eixo fundamental, as epistemologias femi-
nistas negras buscam construir também novas propostas metodológicas que
possam efetivar essa postura essencialmente questionadora e transformadora
através da proposição de novos conceitos (como da Interseccionalidade),
novas formas de expressão (superar uma linguagem academicista e distante
da população em geral) e de mobilização (especialmente no contato com os
movimentos sociais).
Essa transposição dos muros acadêmicos permite uma aproximação ao
“cotidiano da comunidade; conhecer para intervir, assim como a busca pelo
estabelecimento de relações mais horizontais na pesquisa” (Figueiredo, 2020,
pp. 20). Isso exigirá de nós uma transformação ampla do espaço acadêmico
que dê lugar ao “fazer com” ao invés do “produzir sobre”, que possibilite
212

formular novas teorias e metodologias direcionadas por um compromisso


com a superação de um olhar excludente, opressor, violento.

Nesse sentido, uma epistemologia insubmissa feminista negra decolonial é


aquela que se rebela frente às normas previamente estabelecidas, rompendo
fronteiras e colocando os sujeitos que historicamente estiveram à margem
no centro da produção do conhecimento, no nosso caso em especial, colo-
cando as mulheres negras no centro da produção. Essa proposta está em
perfeita consonância com outras levadas a cabo pela perspectiva teórica
decolonial e epistemologias outras (Figueiredo, 2020, pp. 20).

Repare que os termos destacados, “transformadora”, “mobilização” e

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


“compromisso”, convergem para uma crítica à suposta neutralidade científica,
defendendo, ao contrário, a explicitação do lugar social ocupado por aque-
la(e) que produz o conhecimento, bem como a defesa de um posicionamento.
Não um posicionamento qualquer, já que a ciência é sempre política, mas
um posicionamento crítico e combativo à ordem social vigente, fundada em
desigualdades, violências e opressões.
Trazer este comprometimento com a transformação social para dentro
da ciência exige, de um lado, a construção de novas práticas de pesquisa e, de
outro, de “novas formas de expressão”. Nas palavras de Ângela Figueiredo
(2020, pp. 10-11):

A nossa realidade desafia qualquer perspectiva de ciência conservadora


e neutra. Como pensar na existência de um conhecimento que não esteja
voltado para a compreensão de dinâmicas sociais que perpetuam as desi-
gualdades e asseguram privilégios para uma minoria? Como aceitar e,
de certo modo, reproduzir conceitos e teorias que em nada nos ajudam
em termos de construir uma ciência comprometida com a transformação
social? Então, foi exatamente a partir desses desafios, resultantes de uma
realidade que se impõe e desafia a estagnação dos conceitos e teorias que
essa geração de feministas negras tem reagido, criado um constante diálogo
dentro e fora da academia.

Falar sobre novas práticas de pesquisa, construção de novos conceitos e


metodologias é falar de um processo de sensibilização acerca das condições
desiguais de vida das pessoas, das particularidades dos diferentes grupos
sociais e, também, do reconhecimento das limitações da ciência tradicional
para lidar com elas, oportunizando a construção de epistemologias que favo-
reçam a construção coletiva. Além de um processo de sensibilização, falamos
também de um processo de implicação com a construção de uma ciência que
se debruce sobre a nossa realidade social, que é tão desigual, e que tenha como
um dos seus objetivos centrais a sua transformação.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 213

Esse conjunto de “novidades” só pode se efetivar na ciência se acom-


panhado por “novas formas de expressão”. De nada adianta fazer todo este
processo de sensibilização se a fala, a ação e a escrita também não se transfor-
marem. Defendemos, então, a construção de uma nova estética para a ciência,
que não vise conformar as pessoas em caixinhas, classificá-las e assujeitá-las,
mas que tenha o lugar social ocupado por nós como ponto de partida, não
como linha de chegada.
O processo de construção de uma nova estética dispõe também de recur-
sos afetivos, uma vez que reconhece e se envolve não só com experiências
e perspectivas de mundo que se distanciam da visão tradicional da ciência,
mas também com o compromisso de mobilizar/afetar mais pessoas e campos
da ciência para essa realidade. Tensionando a contradição de uma crítica que
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

se pretenda exclusivamente racional, defendemos a promoção de uma crítica


também afetiva à racionalidade (Calvoso, 2020).
O compromisso com a construção de uma ciência transformadora é um
dos pontos centrais defendidos pelo feminismo decolonial. Como exemplo,
abordaremos o conceito da “pesquisadora encarnada”, proposto por Sueli
Aldir Messeder (2020). Ela se lança e nos convida ao desafio de nos alinhar
a uma outra concepção de ciência e, com isso, repensar os seus métodos, a
sua forma, apostar em uma nova estética de escrita para a construção do que
ela está chamando de um saber e de uma escrita encarnada.
Essa escrita encarnada, se colocando como alternativa e enfrentamento do
paradigma tradicional (e por isso ela chama também de blasfêmica), dá lugar
aos elementos sociais e subjetivos que nos atravessam como corpos produtores
de relações e de saberes. Ela busca trazer para a escrita as heranças da cultura,
as marcas de gênero, classe, raça, colonialidade e sexualidade e os saberes
subalternizados para compor o projeto de decolonização do conhecimento.
Nas palavras da autora,

vejo que o conhecimento produzido no espaço acadêmico, o conhecimento


produzido sobre os saberes e os saberes propriamente ditos precisam criar
novos horizontes de aberturas, de encontros para além das moralidades
que os cercam e, por isso, é necessário que possamos não desprezá-los,
mas sim pensar num processo alquímico que desmantele os tentáculos
dos enclausuramentos (Messeder, 2020, pp. 159).

Uma das reflexões críticas que ela nos traz é de que os corpos coloniza-
dos e subalternizados, historicamente, foram destituídos da sua humanidade,
do seu lugar como sujeitos desejantes, agentes da história e produtores de
saberes. A academia, ao tratá-los somente como objetos do conhecimento,
reproduz essas violências e atua na manutenção de uma estrutura excludente.
214

Por isso, ela nos alerta para o cuidado e a responsabilidade envolvidas


no pesquisar, nos convidando a um olhar crítico sobre as diferentes formas de
opressão, o papel da ciência e a importância de buscarmos ativamente acessar
o que está sendo produzido nas margens, uma vez que este conhecimento não
chega facilmente até nós. Ela sinaliza a urgência de “implodir o mapa epistê-
mico” (pp. 165), questionando a aparência naturalizada com que os espaços de
privilégios e os fluxos de produção de conhecimentos se constroem do Norte
global para o Sul global, bem como a reprodução dessa mesma lógica, das
regiões Sudeste e Sul para o Norte, Nordeste e Centro-Oeste no caso brasileiro.
O conceito de pesquisadora encarnada,

desmantela qualquer pretensão de um trabalho científico cuja orientação

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


seria a de que nós cientistas não deveríamos ser afetados pelos nossos
‘objetos de pesquisa’... provoca questionamentos sobre quais os princípios
de que devemos nos apropriar como subalternizados/a em nossa produ-
ção do conhecimento intercambiada com outros saberes, portanto, como
atuaríamos com nossos atos cognitivos encarnados, longe da razão pura
até mesmo criticada por Kant (Messeder, 2020, pp. 155, grifos nossos).

Sua proposta defende a superação dos dualismos corpo/mente, racio-


nalidade/afetividade, argumentando que a efetivação do projeto decolonial
demanda o reconhecimento de que os atos cognitivos são encarnados, eles só
existem em uma corporeidade. É este reconhecimento que, inclusive, pode
restituir a nossa humanidade ao processo de produção de conhecimentos.
Conforme pontuamos anteriormente, Agnes Heller (2004) também
defende esta unidade entre pensamentos, afetos e ações, colocando-se na
contramão da ideia de que os afetos seriam somente fenômenos secundários
aos processos cognitivos. Essa inseparabilidade entre afetos e razão nos diz
que a produção de conhecimentos científicos não é esvaziada de afetividade.
Reconhecer isso nos permite questionar de que forma queremos afetar, o
que temos (re)produzido e o que podemos transformar a partir do conheci-
mento científico.
Segundo Vivian dos Santos (2018, pp. 2),

o olhar decolonial, ao questionar o projeto moderno, eurocêntrico e oci-


dentalizante de ciência, tem se colocado como lente capaz de denunciar
e questionar de modo complexo a sofisticação discriminatória das bases
epistêmicas na ciência de forma geral e, também, pode lançar uma atenção
aos alicerces discriminatórios nas disputas teóricas feministas que acabam
por construir não somente hegemonias, mas silenciamentos, apagamentos.

Voltamos, então, à ética. Assumir a não neutralidade científica e o papel


da afetividade na produção de conhecimentos torna-se um exercício ético:
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 215

localizar o lugar particular a partir de onde se produz o conhecimento nos


permite identificar os jogos de poder que dele fazem parte. Além disso, nos
permite também promover reflexões críticas no sentido de compreender os
impactos subjetivos das estruturas de dominação, de que forma experiências
individuais refletem modos coletivos de existência e como, através da organi-
zação coletiva, podemos construir conhecimentos e práticas transformadores.
Podemos, conforme sinaliza Sueli Messeder (2020), restituir a nossa huma-
nidade ao processo de construção de conhecimentos.

Muito mais que fechamentos, um convite a novas aberturas...

Neste capítulo, nos debruçamos sobre alguns exemplos de propostas


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

feministas para ilustrar a participação dos afetos na construção de epistemo-


logias decoloniais, alternativas à ciência tradicional. Muitas outras teóricas,
seus conceitos e propostas ficaram de fora de nossas análises, mas a intenção
aqui não era realizar uma jornada exaustiva por todas as propostas feminis-
tas. O objetivo, como não poderia ser diferente, era muito mais de promover
inquietações/mobilizações que proporcionem a continuidade do debate do
que encerrar esta temática, mesmo porque ela é muito ampla e complexa e
requer mais discussões e aprofundamentos.
Entretanto, algo está claro: não era para as mulheres estarem na aca-
demia, muito menos escrevendo contra ela ou fora dos seus moldes! Esta
é, certamente, uma empreitada desafiadora que temos encarado em todas
as dimensões possíveis: na busca por reconhecimento e financiamento de
nossas pesquisas; na mobilização social pelo acesso e permanência de todas
as mulheres à educação e à formação continuada; na inserção de mais produ-
ções de mulheres nas grades curriculares; no combate à ideia de um sujeito
universal e o reconhecimento das experiências diversas de ser mulheres; no
enfrentamento ao assédio moral e sexual nos espaços de trabalho; na constru-
ção de novas teorias, conceitos e metodologias que contemplem um projeto
emancipatório; na luta diária pela transformação social, respeito e equidade.
Se os afetos são o nosso envolvimento com os outros e com o mundo,
isso significa que as nossas relações, aquilo que fazemos e o que produzimos,
são também reguladas pelos afetos. Em outras palavras, os afetos contribuem
para que nos tornemos agentes da história, à qual não somente respondemos,
mas criamos ativamente, construindo novos conceitos, objetos e significados,
ou seja, produzindo transformações.
Conforme destacamos, a ciência, junto com outros discursos, têm sido
um dispositivo normatizador dos processos afetivos de homens e mulheres,
contribuindo para nos (con)formar dentro dos papéis de gênero. Um projeto
que vise à desconstrução desses papéis e a emancipação de mulheres deve
216

levar em conta a importância dos processos afetivos: historicamente eles têm


sido utilizados para o assujeitamento, mas podem ser e também já têm sido
utilizados para a promoção de liberdade e autonomia das mulheres.
Este é um exercício ético, de questionamento das normas sociais e de
reflexão sobre outras possibilidades do sentir e colocar-se no mundo. As pres-
crições sociais naturalizam aquilo que devemos fazer e o que devemos sentir
e o exercício ético nos permite questionar o instituído e desnaturalizar uma
pedagogia afetiva que há séculos vem subjugando as mulheres, por um lado,
e supervalorizando os homens, de outro.
É deste processo de desnaturalização que as propostas feministas aqui
estudadas partem, ao se dedicarem à decolonização do conhecimento científico
e nos mostram que as estruturas de dominação e hierarquização entre homens

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


e mulheres e entre as próprias mulheres se mantém e se reproduz também a
partir de processos de controle e dominação afetivos, conforme discutimos
acerca da pedagogia dos afetos.
Um ponto importante a ser reconhecido neste processo de decolonização
da ciência, e que parece ocupar lugar central nas teorias feministas aqui abor-
dadas, é o reconhecimento de que os afetos sempre estiveram e sempre estarão
presentes na produção do conhecimento. Portanto, a nossa preocupação não
deve ser em encobri-los e nos juntar à defesa de uma suposta neutralidade,
mas sim destacar quais e as formas como eles serão acionados neste processo:
com o que estamos implicados na produção de conhecimentos?
Defendemos que os processos afetivos podem se tornar ferramentas
potentes para que as formas como concebemos, produzimos e praticamos o
conhecimento científico sejam avaliadas não meramente por sua consistência
interna ou aplicabilidade, mas especialmente por um critério ético-político,
que caminhe na contramão da reprodução de condições de vida alienantes,
excludentes e violentas.
Temos grandes desafios pela frente e ainda muitos conflitos virão para
a efetiva participação das mulheres na ciência, mas estamos em pleno movi-
mento de insubmissão: não só denunciar, mas esperançar; não só resistir, mas
decolonizar; não só desconstruir, mas revolucionar.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 217

REFERÊNCIAS
Adichie, C. N. (2019). O perigo de uma história única. Companhia
das Letras.

Akotirene, C. (2019). Interseccionalidade. Pólen.

Antunes, M. A. M. (2014). A Psicologia no Brasil: leitura histórica sobre


sua constituição. Educ.

Anzaldúa, G. (2000). Falando em línguas: uma carta para as mulheres escri-


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

toras do terceiro mundo. Estudos Feministas, 1.

Calvoso, L. B. (2020). Por uma ciência sensível: um olhar ético-político


sobre os afetos na produção científica da Psicologia. (Dissertação de mes-
trado), Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Estadual
de Maringá – PPI/UEM, Maringá, PR, Brasil.

Davis, A. (2016). Mulheres, raça e classe. Boitempo.

Evaristo, C. (2020, fevereiro 6). Escrevivência [Arquivo de vídeo]. https://


www.youtube.com/watch?v=QXopKuvxevY.

Figueiredo, A. (2020). Epistemologia insubmissa feminista negra decolonial.


Tempo e Argumento, 12(29).

Grosfoguel, R. (2016). A estrutura do conhecimento nas universidades ociden-


talizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios
do longo século VI. Revista Sociedade e Estado, 31(1).

Grosfoguel, R. (2011). Decolonizing post-colonial studies and paradigms on


political- economy: transmodernity, decolonial thinking, and global colonia-
lity. Journal of Peripheral Cultural Production of the Luso-Hispanic World.
School of Social Sciences, Humanities and Arts, UC Merced.

Grosfoguel, R. (2009). Para descolonizar os estudos de economia política e


os estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colo-
nialidade global. In B. de S. Santos & M. P. Meneses (Org.). Epistemologias
do Sul. Edições Almedina.
218

Haraway, D. (1988). Situated Knowledges: the science question in feminism


and the privilege of partial perspective. Feminist Studies, 14(3).

Heller, A. (2004). Teoría de los sentimentos. Coyoacán.

Hountondji, P. J. (2009). Conhecimento de África, conhecimentos de africa-


nos: duas perspectivas sobre os estudos africanos. In B. de S. Santos & M. P.
Meneses. (2009). Epistemologias do Sul. Edições Almedina.

Lane, S. T. M. (2002). A psicologia social na América Latina: por uma ética do


conhecimento. In R. H. de F. Campos & Guareschi, P. A. (Org.). Paradigmas

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


em psicologia social: a perspectiva Latino-Americana. Vozes.

Lima, N. R. L. de B. (2002). As mulheres nas ciências: o desafio de uma


passagem... a passagem do privado para o público. In A. A. A Costa & C. M.
B. Sardenberg (Org.). Feminismo, Ciência e Tecnologia. Salvador: REDOR/
NEIM-FFCH/UFBA.

Lorde, A. (1984). Comentários sobre “The Personal and the Political Panel”.
Second Sex Conference, New York, 29 set. 1979. http://niltonluz.blogspot.
com/2012/02/o-texto-abaixo-e-uma-fala-de-audre.html.

Lugones, M. (2020). Colonialidade e gênero. In Hollanda, H. B. de (Org.).


Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Bazar do Tempo.

Messeder, S. A. (2020). A pesquisadora encarnada: uma trajetória decolonial


na construção do saber científico blasfêmico. In H. B. de. Hollanda (Org.).
Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Bazar do Tempo.

Oyèrónké, O. (2020). Conceituando o gênero: os fundamentos eurocêntricos


dos conceitos feministas e o desafio das epistemologias africanas. In H. B.
de Hollanda, (Org.). Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais.
Bazar do Tempo.

Quijano, A. (2009). Colonialidade do Poder e Classificação Social. In B.


de S. Santos & M. P. Meneses (2009). Epistemologias do Sul. Edições
Almedina.

Santos, V. M. dos (2018). Notas desobedientes: decolonialidade e a contribui-


ção para a crítica feminista à ciência. Psicologia & Sociedade, 30(e200112).
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 219

Santos, B. de S., & Meneses, M. P. (2009). Epistemologias do Sul. Edições


Almedina.

Schiebinger, L. (2001). O feminismo mudou a ciência? EDUSC.

Zanello, V. (2018). Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos


de subjetivação. Appris.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
11. SOBRE AFETOS, COM AFETO:
manifesto por uma ciência afetiva
Karen Eduarda Alves Venâncio

No início da graduação em Psicologia, participei de um projeto de


extensão que tinha como público alvo um grupo de idosos. A proposta era
construirmos ações para a promoção da saúde deles, por meio de encontros
semanais em que conversávamos sobre os mais diversos temas, escolhidos
com antecedência pelos integrantes.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

O registro dos encontros ficava a cargo dos veteranos do curso, alunos


que estavam nas séries mais avançadas e, portanto, já mais familiarizados
com os relatórios. Após alguns meses de andamento do projeto, foi proposto
um rodízio da incumbência das anotações, para que nós, alunos iniciantes,
pudéssemos nos familiarizar com a linguagem científica.
Eis que chegou o meu dia. Caneta, caderno e mãos suando frio. Eu seria
a única responsável pelo registro naquela tarde. Seria importante anotar todos
os acontecimentos do encontro? E se eu não ouvisse alguma fala? O que era
importante registrar?
Tive o cuidado de anotar o máximo de informações possíveis naquela
tarde, como quem escreve a mais relevante das atas. Ao final do relatório,
escrito com precaução, lembrei das sensações que ele havia me despertado.
Os aprendizados com os mais velhos, as divergências entre gerações, o com-
partilhamento de sentidos. Imediatamente me veio a letra da música Oração
ao tempo1, de Caetano Veloso. No último parágrafo do relatório, quase que
pedindo licença, resolvi inserir um trecho da letra, expressando o fascínio
pelo tempo que o encontro me despertou. Achei lindo.
Tomei minha primeira bronca acadêmica quando disseram que era neces-
sário retirar o tal parágrafo, pois tratava-se de um relatório científico. Depois
dessa experiência, pensei ter entendido a recomendação: não pode haver afe-
tividade na ciência.
Ao relembrar esse episódio recentemente, recordei que adorava escre-
ver na infância e adolescência. Quando criança tive vários diários em que
registrava as atividades cotidianas. No ensino médio tive aulas de redação
e elas estavam entre as minhas favoritas. Adorava ler e escrever contos. Na
época do vestibular consegui uma boa nota em um artigo de opinião, que me
auxiliou a conseguir a vaga.
1 VELOSO, C. Oração ao tempo. Cinema transcendental. Rio de Janeiro: Universal, 1979.
222

Durante a graduação a escrita foi, aos poucos, deixando de ser prazerosa.


Escrever tornou-se atividade obrigatória e cansativa, entretanto, necessária
para o cumprimento das disciplinas e estágios. Sentia que a “boa escrita” aca-
dêmica deveria obedecer às fórmulas pré-estabelecidas, capazes de garantir
a objetividade e imparcialidade.
Somente no início do mestrado tive contato com discussões que eviden-
ciavam problemáticas nos discursos de neutralidade científica. Tal processo
propiciou que eu redescobrisse minha escrita e o prazer em criar sem tentar
me esconder nas linhas e entrelinhas. Os afetos ultrapassam a dimensão de
serem apenas o objeto de estudo do Hera – Grupo de Estudos em Psicologia
Social dos Afetos, são também o modo como construímos nossas pesquisas.
Em outras palavras: nossas pesquisas são sobre os afetos e a afetividade está

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


presente em nossos trabalhos.
Diante de tais reflexões, este capítulo discute a presença da afetividade na
ciência. Inicialmente apresento o entendimento da escrita científica como ato
político-afetivo e, posteriormente trago experiências metodológicas obtidas
durante o processo de escrita da minha dissertação de mestrado em Psicologia
na Universidade Estadual de Maringá, Paraná.

Pesquisar é um ato político

O conceito de política deriva do termo pólis que, para os gregos, além


de ser a cidade construída era o espaço em que aconteciam as relações públi-
cas. Entende-se, portanto, que política não se limita aos partidos políticos
ou o exercício de cargos do poder executivo ou legislativo, pois refere-se a
diferentes “relações incessantes de poder e de forças que são exercidas a todo
momento nos espaços sociais e que têm como finalidade a gestão da vida”
(Hur & Lacerda Jr., 2017, s/p).
Diante desta perspectiva, pesquisar é uma ação social e, portanto, um
ato político. Quando exercitamos as relações sociais, nós estamos fazendo
política. Escrever este texto sobre a afetividade na ciência, é uma ação política.
As apreensões estabelecidas por você, ao lê-lo, também são.
Seguindo esta linha de raciocínio, as concepções sobre a neutralidade cientí-
fica supõem a existência de um sujeito neutro, seja pesquisador e/ou participantes,
capaz de garantir a imparcialidade na produção do conhecimento. Ao tentar atin-
gir esta neutralidade a Ciência, ou, melhor dizendo, o cientista abstrai os sujeitos
de suas realidades sociais, oculta interesses e contribui para a manutenção das
desigualdades. Ao tentar ou ao pretender ser politicamente neutro, ele exerce
uma clara opção política: a de contribuir para que tudo se mantenha como está.
Não há ciência neutra. Toda ação humana é permeada por interesses
e disputas. A teoria, os métodos utilizados e os resultados obtidos em uma
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 223

pesquisa, assim como assinalam Narvaz e Koller (2006) não estão isentos de
aspectos epistemológicos, ideológicos e éticos. Ciência é feita por gente, com
nome, cor, classe social, diferentes concepções sobre o mundo e, portanto,
permeada por afetos.
O conceito de afeto aqui utilizado baseia-se na concepção de Heller
(1999), de que sentir é estar implicada em algo. A implicação é o afeto. Desse
modo, implicar-se com o pesquisar é ao mesmo tempo, afetar-se. Na obra da
autora, ação, pensamento e sentimento constituem um processo unificado, o
que questiona a oposição entre razão e emoção, ou seja, a racionalidade cientí-
fica antagônica à afetividade, proposta tradicionalmente pela ciência moderna.
Reconhecer a afetividade no discurso científico não é apenas um recurso
ou opção metodológica, refere-se também à forma como compreendemos o
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

que é ciência e como ela é produzida, possibilitando mudanças estruturais.


Ao ser compreendida como atividade humana, produzida por pessoas, nas
relações estabelecidas ao longo do processo de pesquisar, fazer ciência é
também assumir responsabilidades sobre o que é pesquisado.
De acordo com Zanella (2013), a atividade de pesquisar é ética, esté-
tica e política. Ética por ser inevitavelmente atrelada a visões de mundo que
conduzirão o processo da investigação e os resultados, e de forma implícita
ou explicita, trarão (im)possibilidades para a existência humana. Trata-se
também de uma prática estética2, pois fundamenta-se em relações sensíveis
do sujeito com os outros, consigo e com o mundo, que mostram a potência
criadora do ser humano como humanidade. Em último, é política porque
contempla perspectivas de vida que queremos (re)produzir, sinalizando “a
condição axiológica do pesquisador, sua responsabilidade perante o outro e
afirma a vida na sua potência de diferir” (Zanella, 2013, pp. 32). Diante dessas
três dimensões, pesquisar não é explicitar a realidade, mas sim reinventá-la.
Para o registro das nossas reinvenções do mundo através da pesquisa
a escrita torna-se nossa grande aliada. A escolha das palavras, expressões,
pontuações e notas de rodapé são exemplos de como a afetividade é parte do
discurso científico. Traçamos estratégias para apresentação dos itinerários
percorridos. Podemos optar por inserir o leitor nos infortúnios ocorridos ou
nos fixarmos apenas nos êxitos. Qualquer uma dessas escolhas é afetiva.
A afetividade não está presente somente na escrita, mas também no leitor
que percorre nossas produções. Escrever é também dirigir-se ao outro. As
diferenças e aproximações entre palavra falada e palavra escrita sinalizam que
as duas são discursos dirigidos a alguém, contudo a palavra falada presume
um outro próximo, mesmo que fisicamente distante. Já a escrita, e isto vale
também para as imagens, é exercida na ausência deste outro; entretanto ele
2 O termo estética é utilizado por Zanella (2006) como o campo que abrange as relações estabelecidas entre
o sujeito consigo mesmo, com os outros e com o mundo e que ultrapassam a dimensão prático-utilitária.
224

está constantemente sendo suposto e/ou pretendido. O processo de escrita é


elaboração de discursos dirigidos ao outro, seja real ou imaginário, que pode
ou não compartilhar das mesmas perspectivas. A escrita e leitura são atividades
em que nos implicamos ao elaborarmos e/ou acessarmos a ciência, sendo,
portanto, afeto capaz de criar, reformular e transformar.

Os afetos de quem estuda afetos: subjetividades de uma


pesquisadora em campo

No mestrado em Psicologia pesquisei afetos3 envolvidos nos processos


de abrigamento na Casa Abrigo Edna Rodrigues de Souza, no município de

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Maringá-PR, responsável por ofertar acolhimento institucional às mulheres
em situações de violências. Realizei duas visitas à instituição e a partir de con-
versas informais4, busquei compreender afetos vivenciados pelas mulheres,
partindo de categorias operadas pelos seus discursos e também identificando
e nomeando possíveis sentimentos.
Estudar os afetos das mulheres que estavam na instituição foi também
dispor-me a estudar meus afetos, gerando impactos também na metodologia
utilizada para a investigação e é são estas experiências, ou parte delas, que
aqui compartilho.
Eu e meu orientador resolvemos tratar a minha primeira visita à Casa
Abrigo como um “pré-teste”, pois o principal objetivo daquele momento
seria familiarizar-me com a instituição, pois era minha primeira experiência
dentro dela. Como medidas de proteção às pessoas abrigadas, o acesso e até
mesmo a obtenção de informações sobre a localização das Casas Abrigo são
muito restritos. Daí termos previsto um primeiro momento voltado apenas
para minha inserção no local e para o estabelecimento de conhecimentos
pessoais mútuos.
Entrei com os sentidos abertos e fiz um diário de campo, registrando as
impressões que o ambiente e as pessoas me causavam, as relações estabele-
cidas entre as mulheres, com as/os funcionárias/os e também comigo.
Resolvemos não delimitar anteriormente a forma como realizaríamos a
pesquisa, justamente pelo fato de eu não conhecer anteriormente a institui-
ção e as pessoas. Fiquei cerca de vinte quatro horas na Casa, participando
de várias das atividades e interagindo com as pessoas sem me preocupar em
atingir qualquer objetivo mais formal ou detalhado.

3 O conceito de afeto na dissertação Violências contra as mulheres: afetos envolvidos nos processos de
abrigamento (2019) teve como embasamento teórico as contribuições de Agnes Heller (1999).
4 Conversas estabelecidas com as mulheres em situação de abrigamento e funcionárias/os durante minha
permanência na Casa Abrigo, realizadas no decorrer das atividades cotidianas na instituição.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 225

Ao sair, percebemos que aquilo não fora, de fato, apenas um pré-teste para
a pesquisa e sim já parte de nosso processo de investigação, pois os afetos, que
pretendíamos estudar futuramente, já estavam em cena, de maneira informal.
Minha segunda visita na Casa foi planejada de modo semelhante,
tendo como foco as conversas informais que aconteceriam espontaneamente
enquanto eu estivesse na instituição. Segui a rotina e as regras estabelecidas,
fiz em conjunto as atividades pelas quais as pessoas abrigadas ficam responsá-
veis, como o almoço e o jantar. Brincamos com as crianças, lavamos a louça,
assistimos televisão, cochilamos após o almoço e dividimos experiências
enquanto algumas fumavam um cigarro na área externa.
Antes de iniciar a pesquisa, eu tinha a expectativa de realizar entrevistas
individuais, contudo, no decorrer do percurso, passei a questionar a obrigato-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

riedade de fazê-las. No campo da Psicologia – e também em outras áreas das


Ciências Humanas – com frequência recorremos às entrevistas individuais
ao realizarmos uma pesquisa com participantes. A imagem de uma psicóloga
em campo é frequentemente associada à existência de uma sala reservada
e gravador.
Por que recorremos tanto às entrevistas formais na tentativa de obter
dados significativos das/os participantes de nossas pesquisas? As possíveis
respostas à esta questão são múltiplas, mas a história da Psicologia como
ciência e profissão certamente está atrelada a elas. A área clínica e individual
tradicionalmente é a principal forma de atuação de psicólogos/as, tanto que
o divã se tornou objeto símbolo do nosso ofício. A expectativa de descobrir o
que está encoberto, ou seja, aquilo que aparentemente apresenta-se escondido
na vida cotidiana, transpassa para nossas pesquisas.
O fetiche da/o psicóloga/o pela entrevista faz com que esta técnica seja
apreendida como algo rígido, definido a priori da pesquisa, impossibilitando
reformulações nos transcursos das investigações. Em uma metáfora ao ato
de navegar, Zanella (2013) define o método como uma carta de navegação,
capaz de nos guiar até a ilha desejada, sem nos desviarmos dos caminhos a
partir dos cantos e encantos de sereias/palavras, capazes de nos levar a tantos
outros portos. Entretanto, as rotas podem ser reconfiguradas ao longo do tra-
jeto, tendo como norte os referenciais teóricos-epistemológicos que embasam
as investigações. Em suma, o rigor metodológico é fundamental. Contudo
os trajetos trilhados neste percurso podem ser modificados, pois pesquisar e
escrever é também re(criar).
A Psicologia Social, no intercâmbio com outros saberes, permite aproxi-
mações de outras possibilidades metodológicas. A etnografia, método utilizado
frequentemente na Antropologia, por exemplo, proporciona diferentes ângulos
para o exercício de pesquisar. No livro Entre Saias Justas e Jogos de Cin-
tura, Aline Bonetti e Soraya Fleischer (2007) sinalizam que fazer etnografia
226

é sobretudo formular perguntas e, a partir delas, ensaiar caminhos, ou seja,


trata-se de um processo contínuo de questionamentos e vivências inesperadas.
Se em minhas visitas à Casa, convidasse as mulheres para participar de
uma entrevista e reservasse uma sala específica para realizarmos as conver-
sas, certamente nossos diálogos seriam diferentes. Quando uma mulher em
situação de violência está na rede de atendimento é comum que as ações e
conversas tenham como foco apenas as violências que elas vivenciaram. As
conversas informais e minha apresentação não como uma participante formal
da rede, mas como estudante, nos possibilitaram trocas que abordaram as
situações do contexto de abrigamento, mas também as ultrapassaram.
Optei por vivenciar a instituição e isto não ocorreu apenas através da
quantidade de tempo em que fiquei na casa, mas também pela forma que

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


escolhi permanecer. Estar de chinelo, com roupas confortáveis, tais como
as que eu fico em minha casa, obedecer às normativas da instituição, tais
como horário de acordar e dormir, realizar as tarefas atribuídas à todas, como
cozinhar o almoço e lavar a louça após as refeições, são também formas de
comunicação, que possibilitaram que elas me vissem de outra forma, assim
como eu também as vi. Lembro que uma das crianças que estava com a mãe
na instituição me perguntou ao anoitecer se eu iria embora. Quando respondi
que dormiria na instituição ela me questionou: como uma abrigada?
Essa pergunta ecoou diversas vezes para mim nas reflexões sobre o que
me aproximava e me distanciava das mulheres participantes da pesquisa. Estava
como pesquisadora em campo, contudo a sensibilidade no estudo sobre os
afetos nas conversas informais nos possibilitou (pesquisadora e participantes)
outras formas de construção da investigação e de transformação de nós mesmas.
Propor-me a estudar afetos considerando as potencialidades da presença
da afetividade no fazer ciência possibilitou reformulações metodológicas sig-
nificativas na investigação, evidenciando que a pesquisa não resulta apenas
em um produto final a ser publicado, pois contempla processos permeado por
indagações, análises, trocas e transformações.
A afetividade, para além de nosso objeto de estudo, foi a força motriz
do processo de investigação. Ela não foi retirada de cena, pelo contrário,
assentou-se como protagonista e abriu caminhos para a recriação da pesquisa
e de mim, como pesquisadora. A arte de escrever, compor, permitir-se, no
processo de formulação de uma pesquisa é transformadora. Zanella (2013)
assinala que escrevemos em um tempo para um tempo outro, e esse discurso
está aberto a infinitas possibilidades de discursos e novos tempos. Tempo
rei, que nos coloca sempre em movimento, “és um dos deuses mais lindos.
Tempo, tempo, tempo, tempo5[...]”.

5 VELOSO, C. Oração ao tempo. Cinema transcendental. Rio de Janeiro: Universal, 1979.


O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 227

REFERÊNCIAS
Bonetti, A., & Fleischer, S. (2007). Entre saias justas e jogos de cintura.
Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC.

Heller, A. (1999). Teoría de los sentimientos. Coyoacán.

Hur. D. U., & Lacerda Jr., F. (2017). Psicologia e Democracia: da ditadura


civil-militar às lutas pela democratização do presente. Psicol. cienc. prof.
(37 spe).
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Zanella, A. V. et al. (2006). Relações estéticas, atividade criadora e consti-


tuição do sujeito: algumas reflexões sobre a formação de professores(as).
Cadernos de psicopedagogia, 6(10).

Zanella, A. V. (2013). Perguntar, registrar, escrever: inquietações metodo-


lógicas. Sulina.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
12. NAS TESSITURAS RELACIONAIS:
os afetos em sua dimensão ético-política
Aline Daniele Hoepers

Para começo de conversa...

Certa vez, ao ser provocado a lançar reflexões sobre a questão “por que
pensarmos?”, Boaventura Souza Santos (2001) disse que formular pergun-
tas como essa, embora pareça um ato simples, lança-nos, paradoxalmente, a
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

uma teia complexa de tantas possíveis respostas nada descomplicadas. Disse,


ainda, que “o curioso é que a complexidade, para ser desvelada, tem de ser
interpelada de maneira simples” (pp. 13).
Não só concordo com ele, como também acredito que, ao lançamos mão
de modos de interrogações aparentemente simples para refletir sobre algo,
favorecemos a abertura para olhar – por outros ângulos – vidas, fenômenos
e realidades nem sempre reconhecidos e visibilizados.
Nessa direção, desafio-me à indagação: para que estamos nos relacionando?
É claro, a proposta deste capítulo não é elencar uma ou mais resposta(s)
frente à uma suposta pergunta simples, como que numa rota linear e esperada,
mas entretecer e construir algumas reflexões sobre para quais fins as relações
humanas têm servido, provocando aberturas rumo a outras inquietações.
Antes de adentrarmos propriamente nesta discussão, proponho algumas
reflexões que buscam situar estas relações humanas como condição necessária
à própria constituição do sujeito.

Somos seres da e na relação

Contexto social e sujeitos humanos se entrelaçam e se constituem dina-


micamente. As dimensões que compõem o primeiro não se conjugam apenas
como pano de fundo ou cenário imóvel no qual vivemos. Os modos de relação,
os aspectos políticos, econômicos, geográficos e culturais nele presentes inter-
ferem permanentemente em nossa existência, assim como, simultaneamente,
imprimimos transformações nele.
Guareschi (2008) diz que somos seres da e para a convivência, consti-
tuídos a partir das múltiplas relações que estabelecemos e, por isso, estamos
em permanente construção. Bonin (2012) aponta que é por meio desta rede de
inter-relações que somos capazes de apreender os aspectos de nosso contexto.
230

Na condição de seres sociais, assinala Lane (1989), dialeticamente, ao


atuarmos no mundo, produzimos relações, transformamos a natureza e nos
tornamos produtores não apenas de nossa história particular, mas também da
história da sociedade.
O movimento constante e dinâmico de criação de quem somos só é possí-
vel, fundamentalmente, por meio das trocas, das aprendizagens mediadas, das
permanentes interações com os mais diversos aspectos que se amalgamam no e
com o contexto social. Nesse processo, enquanto sujeitos ativos e relacionais,
também (co)construímos possibilidade de modificar e criar realidades, história.
A partir das contribuições de Agnes Heller (1993)1, como vimos no Capí-
tulo 1, através do nosso envolvimento com os aspectos mais diversos que com-
põem o mundo – isto é, sentindo –, criamos efeitos e somos também afetados.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Essa forma de conceber o processo de sentir possibilita-nos refletir sobre
as relações como o que eu chamaria de vias afetivas por meio das quais cir-
culam efeitos – os afetos2 – os quais, em face de sua plurifacetada compo-
sição e maneira de atuação, abordadas no capítulo inicial, dimensionam-se
em arranjos afetivos.
A proposta de pensar sobre os afetos como arranjos se justifica, ao menos,
por dois motivos. Primeiro que não sentimos exclusivamente um afeto, de
modo isolado. Nossa experiência afetiva é caracterizada pela presença de
variados afetos, ainda que, em uma dada circunstância, um deles possa figurar
com maior intensidade, fazendo-nos crer que estamos vivenciando apenas
ele. Se eu sinto raiva, não significa que outros afetos estejam ausentes e que
a raiva tome integralmente o meu eu, como se ela (ou qualquer outro afeto)
fosse pura, encapsulada.
A segunda razão está relacionada ao fato de que os afetos podem ser
experienciados de forma muito particular por cada sujeito, em virtude de uma
série de questões pessoais, grupais, sociais e culturais, o que permite que, entre
os próprios afetos disponíveis, sejam criadas relações também singulares.
Podemos pensar, então, que essa composição de afetos cria modos de sentir
não universais. O que é vivido como medo por mim, não necessariamente
corresponderá a sua experiência de sentir medo, ainda que façamos parte de
uma mesma cultura, na qual este afeto seja significado a partir de uma série
de características próprias. É claro, não podemos esquecer que, embora eu
diga que estou sentindo medo, outros afetos possivelmente também estarão
presentes nesta composição, que consigo interpretar e nomear como medo.
Heller (1993) já havia dito que, de fato, somos capazes de experienciar
uma infinidade de afetos, os quais se “[...] se entrelaçam e fundem [...]”
1 Nesse capítulo, lanço mão da tradução espanhola (em sua terceira edição).
2 As razões da escolha pelo uso do termo afetos e não pela denominação original sentimentos foram abordadas
no Capítulo 1.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 231

(pp. 81)3 de modo específico. A ideia é que, visando aprofundar essa noção, os
afetos sejam entendidos não como tendências isoladas e/ou que possam mera-
mente ser somadas. Compreendê-los como arranjos vai justamente na contra-
mão de tomá-los como uma mera justaposição (a + b + c + [...]). Os arranjos
afetivos são, portanto, relacionais, em sua elaboração, composição e atuação.
A política dos afetos está em ação desde a sua própria dinâmica fundacional.
Nas tessituras das relações humanas – sentindo – nós elaboramos, descons-
truímos e reconstruímos arranjos afetivos. Como vias afetivas, nossas relações
se compõem como campo subjetivo potencial para afetarmos e sermos afetados
dinamicamente e a partir de infinitas composições. Mesmo naquelas experiên-
cias afetivas mais íntimas, nas quais possa parecer que estamos em envolvimento
apenas conosco mesmo, com uma lembrança ou com um pensamento inacessí-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

vel ao outro, ainda assim, as relações estão presentes, como veremos adiante.

Na complexa teia das relações

Ao longo da obra de Heller (1993), especialmente na Parte II, notamos


que não há como pensarmos nos arranjos afetivos desarticulados do contexto,
das interações sociais, das possibilidades de inserção no mundo por meio das
tarefas que desempenhamos em nosso dia a dia.
As múltiplas prescrições – próprias ao nosso momento histórico e ao
contexto social – que nos atravessam designam os afetos e suas composições
possíveis, dominantes para determinadas circunstâncias, classes sociais e
gêneros. Segundo ela, “quanto mais fixa e constante é uma estrutura social,
classe ou estrato, mais constantes são os papéis desempenhados pelos gêneros
e mais constante é seu mundo sentimental” (Heller, 1993, pp. 229)4.
Vivemos – e sentimos – a partir de uma série de imposições anunciadas
ou veladas. Heller cita que são múltiplos os apelos para o sentir: normas reli-
giosas, regras e ritos sociais e culturais, recomendações sobre agir e pensar
que implicam também em ditames ao sentir, dentre outros.
Esses inúmeros atravessamentos do contexto devem ser, portanto, con-
siderados como (co)construtores de nossos arranjos afetivos. Isso não afasta
de sua construção e expressão a nossa própria participação.
Participamos de envolvimentos variados em razão das inúmeras cir-
cunstâncias que experienciamos. Estabelecemos relações por meio das quais
circulam arranjos afetivos benéficos, construtivos ou não... e, por vezes, até
mesmo ambíguos de sentidos.

3 “[...] se entrelazan y funden [...]”.


4 “Cuanto más fijada y constante es una estructura social, clase o estrato, más constantes son los papeles
desempeñados por los sexos y más constante es su mundo sentimental. Más aún, la naturaleza constante o
dinámica de una sociedad siempre influye en las posibilidades de elaborar un mundo individual del sentimiento”.
232

Inclusive, no capítulo 1, Tomanik nos lembra que é comum as pessoas, ao


usarem termos como afeto ou afetivo, fazerem-no para se referir a aspectos que
envolvem a dimensão do cuidado, como se eles fossem apenas positivos. O
autor nos alerta a não reproduzirmos tal reducionismo em nossas proposições.
Nas nossas interações podem estar presentes, também, arranjos afetivos
destrutivos. Heller argumenta que, ao nos relacionarmos, por vezes, comete-
mos faltas ou falhas e produzimos dor, objetiva ou subjetivamente. Podemos
agir ou nos omitir, intencionalmente, com o propósito de provocar dor nas
outras pessoas ou em nós mesmas/os.
Distintamente, o sofrimento, de acordo com a autora, dimensiona-se
como um tipo de dor cujos efeitos não são provenientes de nossas decisões
diretas, depende de um conjunto externo de fatores. Ele é intermediado por

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


fenômenos sociais mais amplos, como exclusões, opressões. Nas palavras
dela: “[...] como seres sociais estamos sujeitos ao sofrimento. Estamos sujei-
tos à fome, às guerras, à opressão. A maioria da humanidade sofre” (Heller,
1993, pp. 314)5.
Não obstante, cabe aqui um questionamento: na condição de seres sociais,
entrelaçados por dimensões micro e macrossociais de existência, não partici-
pamos, também, da construção direta ou indireta de sofrimentos humanos? Os
seus fundamentos são inteiramente externos a nós e independentes de nossas
intenções, ações ou omissões?
Os sofrimentos se assentam em opressões, desigualdades, exclusões, vio-
lações de direitos. Tais estruturas se constroem a partir de complexas relações
entre fatores múltiplos (econômicos, históricos, sociais, políticos, culturais,
midiáticos, representacionais e ideológicos6), os quais não são meros subs-
tratos que compõem um pano de fundo, alheio a nós. São geridos, articulados,
reproduzidos e até modificados, em última instância, por grupos, por pessoas.
Propositalmente ou não, podemos contribuir com a propagação daquelas estru-
turas ou, até mesmo, portarmo-nos de modo supostamente neutro em certas
circunstâncias, colaborando, em alguma medida, com sua manutenção.
As mulheres em situações de violências, as pessoas em situação de rua,
a juventude periférica negra, a classe trabalhadora esmagada pela exploração
capitalista, dentre outras tantas populações que vivem sob condições desiguais,
são algumas das inúmeras ilustrações possíveis de efeitos de “relações de
dominação” (Guareschi, 2007).

5 “Como seres naturales, estamos expuestos inevitavelmente al sufrimiento, porque estamos expuestos a la
muerte. (...). Pero como seres sociales no estamos sometidos inevitablemente al sufrimiento. Y sin embargo,
como seres sociales, estamos sometidos al sufrimiento. Estamos sometidos al hambre, las guerras, la
opresión. La mayoría de la humanidad sufre”.
6 O conceito de ideologia vem sendo usado sob inúmeros enfoques teóricos, sendo passível de diversas
significações. Optamos, aqui, pela compreensão do fenômeno como um conjunto de aspectos simbólicos
que servem para estabelecer e manter relações de dominação (Guareschi, 2007, 2012).
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 233

Sawaia (2006) qualifica o sofrimento como ético-político, partindo das


contribuições de Heller, mas também de Espinosa e Vigotski. Embora não
seja nosso objetivo aprofundar discussões específicas realizadas por esses
dois últimos autores, vale o destaque de que, assim como Heller, propuseram
discussões sobre os afetos, que rompem com os debates mais comuns, seja
em discussões científicas ou mesmo no senso comum, que os situam de modo
antagônico à razão, como empecilho, inclusive, ao pensamento ou ação ditos
adequados, ou mesmo como um elemento biológico, que se manifesta do
interior do sujeito, diante de um estímulo externo.
Sawaia trabalha com a compreensão da natureza ético-política dos afetos,
dando destaque justamente à maneira como o sentir está intimamente relacio-
nado à vida social. Ela nos convida a pensar, por exemplo, sobre a pobreza
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

para além da precarização de condições materiais, chamando atenção para a


importância de, em nossas reflexões e atuações, incorporarmos indagações
sobre a vida afetiva e relacional dos sujeitos da exclusão, dando centralidade
a ideia de humanidade, não se restringindo apenas às contradições de ordem
econômica ou material. O sofrimento ético-político se caracteriza, então, como
provocado ou, ao menos, potencializado nas/pelas disparidades sociais. Ele

[...] retrata a vivência cotidiana das questões sociais dominantes em cada


época história, especialmente a dor que surge da situação social de ser
tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade.
Ele revela a tonalidade ética da vivência cotidiana da desigualdade social,
da negação imposta socialmente às possibilidades da maioria apropriar-se
da produção material, cultural e social de sua época, de se movimentar no
espaço público e de expressar desejo e afeto (Sawaia, 2006, pp. 104-105).

As reflexões da autora nos provocam a olhar para a vida social reconhe-


cendo a intersubjetividade ali presente, comumente tomada como dimensão
menos importante, imperceptível ou mesmo desprezível, em razão dos meca-
nismos de silenciamento impostos aos afetos nestes espaços.
Também nos sensibiliza a pensar que as relações não servem apenas
para provocar dor ou para propagar sofrimentos. São vias afetivas pelas quais
podem circular efeitos construtivos. Por meio delas, conexões podem ser
geradas favorecendo movimentos de resistência, de enfrentamento, de cria-
ção de novos sentidos. Nessas vias, os arranjos afetivos podem e devem ser
empregados como ferramentas de ação e transformação.
Quais arranjos afetivos estamos construindo, aprendendo, ensinando,
expressando? Para que eles têm servido? Quais deles não são valorizados e
quais são proclamados? Dentre as infinitas respostas que nós, sujeito relacionais,
somos capazes de emitir frente a essas questões, podemos chegar, ao menos, a
seguinte consideração: os arranjos afetivos podem ser tanto alienantes e servir à
234

dominação, às opressões, à destruição, como também se colocam como recursos


indispensáveis às construções potencialmente agregadoras, inventivas.
Heller (1993) nos convida a assumir a noção de humanidade como um
princípio que nos constitua e não como uma ideia distante ou abstrata. Tor-
namo-nos seres ricos em afetos na medida em que nos envolvemos com
expressões de sofrimentos, as quais nem sempre nos afetam diretamente, mas
atingem outras tantas pessoas. Problemáticas múltiplas que não nos causam
dor podem ser, portanto, ressignificadas como problemas com os quais estamos
dispostas/os a nos indignar e engajar.
A abertura coletiva de estar-com pela via dos afetos (da dor), enquanto
dispositivo coletivo de enfrentamento às formas múltiplas de sofrimentos,
desloca-nos a pensar não mais apenas sobre “para que estamos nos relacio-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


nando?”, mas também “para que podemos, ainda, nos relacionar?”.
Guattari (2001), ao trabalhar a noção dos três registros ecológicos,
contempla a tríade subjetividade, relações e meio ambiente, apontando para
a necessidade de que cuidemos delas enquanto dimensões integradas. Sua
proposta envolve uma revisão de nossas relações. Consiste em criarmos e
experimentarmos formas outras de se relacionar, “[...] reconstruir o conjunto
das modalidades do ser-em-grupo” (pp. 66).
Sua proposição suscita que não nos limitemos a modos universalizantes
de buscar alternativas relacionais, mas sim aproveitemos a riqueza existente
desde o contexto microssocial até cenários mais amplos. Simultaneamente,
a revisão também deve ocorrer na dimensão subjetiva humana, na direção
de transformar a relação que temos com nós mesmos, com nossos corpos,
capturados pelos ditames sociais contemporâneos, disseminados via mídia,
moda, propaganda, consumo, etc.
Guattari nos inspira a pensar na necessidade de transformação, não como
um salto para um outro modo unívoco de relação com as outras pessoas, com o
mundo, com a natureza e conosco mesmo, mas como reinvenção permanente,
dinâmica e implicada.
Ele propõe, então, que as lutas sociais mais diversas reformulem seus
propósitos e incluam aquelas três dimensões. Isto envolve, por exemplo,
abarcar (e articular) nas pautas relacionadas ao meio ambiente e às questões
sociais mais diversas, a subjetividade, os impactos na realidade cotidiana
dos sujeitos envolvidos, na sua vida real e singular. Essa seria uma direção
possível para que, na prática social, atuemos na e para a humanidade e não
em prol da manutenção de modos de relação opressivos e desiguais vigentes.
Nessa direção, ele diz que

[...] é exatamente na articulação: da subjetividade em estado nascente, do


socius em estado mutante, do meio ambiente no ponto em que pode ser
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 235

reinventado, que estará em jogo a saída das crises maiores de nossa época.
Concluindo, as três ecologias deveriam ser concebidas como sendo da
alçada de uma disciplina comum ético-estética e, ao mesmo tempo, como
distintas uma das outras do ponto de vista das práticas que as caracterizam
(Guattari, 2001, pp. 55).

Partindo dessas provocações, acredito na necessidade de que busquemos


identificar ou criar estratégias que rompam ou ao menos desestabilizem cir-
cuitos predefinidos e naturalizados, aqui e ali. Arejar e recompor os espaços
sociais diversos, nos quais desigualdades ainda se sustentam, através do acio-
namento dos arranjos afetivos como instrumentos de transformação, parece-me
uma alternativa desafiadora, mas possível de ser empenhada.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Aposto na compreensão de que na complexa rede de relações podem


ecoar efeitos ético-políticos criativos, emancipatórios. A propósito, com quais
canais de apoio e de cuidado já existentes podemos contribuir para que sejam
amplificados? Quais conexões outras podemos criar (co)(labor)ativamente?
Podemos, juntos/as, (re)construir horizontes?
Essas indagações, assim como a que justificou o texto, muito mais do que
demandar resposta(s), desenham-se como um convite a movimentos possíveis.
236

REFERÊNCIAS
Bonin, L. F. R. (2012). Indivíduo, Cultura e Sociedade. In M. G. C. Jacques
et al. (Org.). Psicologia Social Contemporânea. Vozes.

Guareschi, P. A. (2007). Relações comunitárias, relações de dominação. In


H. F. Campos (Org.). Psicologia Social Comunitária: da solidariedade à
autonomia. Vozes.

Guareschi, P. A. (2008). Ética e relações sociais entre o existente e o possível.


In M. G. C. Jacques, M. L. T. Nunes, N. M. G. Bernardes & P. A. Guareschi

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


(Org.). Relações Sociais e Ética. Centro Edelstein de Pesquisas Sociais.

Guareschi, P. A. (2012). Ideologia. In M. G. C. Jacques et al. (Org.). Psicologia


Social Contemporânea. Vozes.

Guattari, F. (2001). As três ecologias. Papirus.

Heller, A. (1993). Teoria de los Sentimientos. Coyoacán.

Jacques, M. G. C. et al. (2012). Introdução. In M. G. C. Jacques et al. (Org.).


Psicologia Social Contemporânea. Vozes.

Lane, S. (1989). A Psicologia Social e uma nova concepção do homem para a


Psicologia. In Lane, S. T. M.; & Codo, W. (Org). Psicologia Social: o homem
em movimento. Brasiliense.

Santos, B. S. (2001). Seis razões para pensar. Lua Nova, (54), São Paulo.
https://www.scielo.br/pdf/ln/n54/a03n54.pdf.

Sawaia, B. (2006). O sofrimento ético-político como categoria de análise da


dialética exclusão/inclusão. In B. Sawaia (Org.). As artimanhas da exclusão:
análise psicossocial e ética da desigualdade social. Vozes.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

“E, antes de aprender a ser livre, tudo eu


aguentava, só para não ser livre”
(Clarice Lispector: Medo da libertação).
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
ÍNDICE REMISSIVO
A
Afetividade 37, 57, 58, 60, 62, 63, 64, 72, 182, 183, 188, 193, 194, 195, 196,
203, 204, 205, 206, 208, 209, 210, 214, 221, 222, 223, 226
Afetos impulsivos 21, 22, 25, 87, 88, 89
Análise psicossocial 162, 236
Aparato fisiológico 63
Ato político 222
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Atuação social 57, 59

C
Ciência afetiva 221
Colonialidade do poder 189, 192, 193, 196, 218
Composição dos afetos 26
Construção de vínculos 57, 58, 59, 62, 63, 64, 65, 66, 71
Culpa 63, 95, 98, 100, 101, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 112, 113, 114, 141,
198, 200, 204

D
Decolonialidade 187, 218
Decolonização 188, 194, 208, 213, 216
Desigualdade social 13, 162, 233

E
Ética 13, 37, 90, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 109, 114, 162, 189, 194, 207, 210,
214, 218, 223, 233, 236
Ética da desigualdade 13, 162

F
Feminismo 189, 208, 209, 213, 218, 219
Fraternidade 59, 66, 68, 70, 71
Funções parentais 59
240

M
Manutenção de vínculos 62, 71
Maternidade 41, 59, 60, 61, 65, 66, 68, 69, 70, 71, 74, 197, 198, 204
Medo 14, 17, 21, 22, 27, 30, 39, 41, 43, 46, 47, 49, 54, 63, 66, 68, 75, 76,
77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 112, 140,
141, 153, 229, 230
Memória 34, 37, 115, 116, 121, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 130,
131, 132, 133
Mulheres nas ciências 200, 201, 203, 206, 208, 218

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Opções morais 95

P
Papéis de gênero 195, 196, 197, 200, 204, 207, 215
Paternidade 59, 60, 61, 62, 65, 66, 67, 68, 70, 71, 73
Pedagogia dos afetos 195, 200, 203, 204, 216
Política 23, 56, 74, 82, 96, 144, 189, 192, 195, 197, 209, 210, 212, 217, 222,
223, 229, 231, 233
Processos psicológicos 74, 133
Propostas feministas 188, 194, 208, 215, 216
Psicologia organizacional 149, 150, 152, 153, 154, 155, 156, 158, 159,
160, 162
Psicologia social 11, 12, 37, 132, 133, 162, 165, 183, 218, 222, 225, 236

R
Racionalidade 157, 183, 188, 191, 193, 194, 196, 203, 204, 205, 206, 209,
213, 214, 223
Relações interpessoais 20, 48, 55, 100, 203

S
Situação de risco 41
Subjetivação de mulheres 195, 203, 204, 207

T
Teoria de los sentimientos 114, 132, 146, 162, 236
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 241

Tipologia dos afetos 20, 87


Tratamento dos afetos 177, 178

V
Vergonha 29, 83, 95, 96, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 112,
113, 114, 141, 142
Vínculos de afeto 61, 62
Violência doméstica 72, 135, 136, 137, 138, 139, 146
Vulnerabilidade 41, 57, 65, 78, 205
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
SOBRE OS AUTORES

Aline Daniele Hoepers


Graduada em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Mestra e Doutora em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psico-
logia da mesma Universidade (UEM), na área de concentração Constituição
do Sujeito e Historicidade e na linha de pesquisa Subjetividade e Práticas
Sociais na Contemporaneidade. Possui Especialização lato sensu em Proteção
Social pela Faculdade Estadual de Educação, Ciências e Letras de Paranavaí
(FAFIPA/UNESPAR). Exerce função de psicóloga judiciária no Tribunal
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP). Docente no curso de Psicologia


da Toledo Prudente Centro Universitário, onde também coordena o Grupo
de Estudos e Pesquisas em Psicologia Social. Foi professora substituta no
Departamento de Psicologia Social da UNESP, Campus Assis (2021). Pos-
sui histórico de atuação profissional no Sistema Único de Assistência Social
(SUAS) e na Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR). Associada
da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO). Membro do grupo
de pesquisa Psicologia Social dos Afetos, vinculado ao Departamento de Psi-
cologia (UEM). Atua como parecerista “ad hoc” em periódicos científicos.
Dedica-se a pesquisas relacionadas a violências domésticas, psicologia social,
afetos, gênero e interseccionalidade. Atualmente, realiza estágio pós-doutoral
no Programa de Pós-Graduação em Psicologia (UEM), onde desenvolve a
pesquisa intitulada “Confluências utópico-insurgentes: do universo dos sis-
temas opressivos que perpetuam violências domésticas vividas por mulheres
a um pluriverso comprometido com a justiça social”.

Ana Céli Pavão Guerchmann


Doutora em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá/PR - UEM
(2020). Mestre em Psicologia pela mesma instituição (2015). Especialista em
Gestão e Práticas de Recursos Humanos pela Pontifícia Universidade Católica
de Londrina/PR – PUC (2009). Graduada em Psicologia pelo Centro Univer-
sitário Filadélfia de Londrina/PR - UNIFIL (2004). Atua como Docente da
Kroton Educacional, na Universidade Pitágoras UNOPAR de Londrina/PR,
e na Anhanguera Educacional, ambas nas modalidades Ensino à Distância e
presencial. Atualmente, está como Professora Colaboradora na Universidade
Estadual de Londrina – UEL, alocada no departamento de Psicologia Social
e Institucional, supervisionando estudantes dos últimos anos do curso no
estágio com ênfase em institucional, voltado à Psicologia Organizacional e
do Trabalho. Participa como Professora convidada do projeto Perspectivação
244

– modelo educacional do Instituto Superior de Administração e Economia


–ISAE de Londrina/PR, em parceria com a Fundação Getúlio Vargas – FGV.
Atuou como Docente do Instituto de Ensino Superior de Londrina/PR – INE-
SUL, onde ministrou aulas para o curso de MBA em Gestão de Pessoas, bem
como exerceu a função de coordenadora do curso em determinado período.
Atualmente é convidada a ministrar treinamentos organizacionais. Atuou na
área de Gestão de Pessoas em organizações. Apresenta experiência e interesse
na área acadêmica, com ênfase em Psicologia do Trabalho e Organizacional,
Psicologia Social, Gestão de Pessoas, Comportamento Organizacional. Apre-
senta interesse de pesquisa em Psicologia do Trabalho e em Organizações,
Psicologia Social, Identidade, Subjetividade, Trabalho e Afetos.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Bethânia Cabrera de Souza Bortolato
Possui Graduação em Tecnologia em Gestão Estratégica de Organizações pela
Universidade Paranaense (2008) com Pós-Graduação em Administração com
Ênfase em Marketing e Finanças pela Universidade Paranaense (2010) e Gra-
duação em Psicologia pela Universidade Paranaense (2014) em Umuarama/
PR. Atualmente é Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da Universidade Estadual de Maringá – UEM, na área de Psicologia Social
das Emoções.

Eduardo Augusto Tomanik


Licenciado e Bacharel em Psicologia, Mestre em Psicologia Comunitária
e Doutor em Psicologia Social. Foi professor associado da Universidade
Estadual de Maringá, atuando no curso de Graduação em Psicologia e nos
Programas de Pós-Graduação em Administração, Enfermagem e Psicologia
(Mestrados) e Ecologia (Mestrado e Doutorado). Atuou principalmente nas
áreas de Psicologia Social e de Metodologia Científica e com temas como
Representações Sociais, Ambiente e Processos Sociais. Aposentou-se em
outubro de 2011. Atualmente é Professor Voluntário no Programa de Pós-
-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (Mestrado
e Doutorado), desenvolvendo estudos e orientando trabalhos na área da Psi-
cologia Social dos Afetos.

Karen Eduarda Alves Venâncio


Doutoranda e Mestra em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá,
linha de pesquisa Subjetividade e Práticas Sociais na Contemporaneidade.
Graduada em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá. Coordena-
dora e docente do curso de Psicologia da UMFG (antes denominada FACEC
– Faculdade de Administração e Ciências Econômicas). Membra do grupo de
pesquisa Hera: grupo de estudos em Psicologia Social dos Afetos. Atuou como
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 245

representante suplente do Conselho Regional de Psicologia/PR no Conselho


Estadual dos Direitos da Mulher do Paraná (2019-2021), Coordenadora da
Diretoria Municipal de Políticas Públicas para as Mulheres no município de
Paiçandu/PR (2020-2021) e docente no curso de graduação em Psicologia na
Faculdade de Tecnologia e Ciências do Norte do Paraná – UniFatecie (2020-
2023). Realiza pesquisas que abarcam as temáticas da Psicologia Social do
Afetos, Violências contra mulheres, Gênero, Raça e Trabalho Doméstico.

Laura Ferreira Lago


Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá, possui gra-
duação em psicologia pela Universidade Estadual de Londrina (2008). É
especialista em Gestão de Políticas Públicas para criança e adolescente e em
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Psicanálise. Atua profissionalmente como psicóloga no Tribunal de Justiça do


Paraná no Núcleo de Atendimento Especializado à Criança e ao Adolescente.
Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia Social.
Trabalha com teatro e outros fazeres culturais.

Letícia Bottura Calvoso


Doutoranda e Mestra em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá,
área de concentração: Constituição do Sujeito e historicidade. Pós-graduada
em Gestão de Pessoas e Psicologia Organizacional pela UniFCV (Facul-
dade Cidade Verde) e graduada em Psicologia pela Universidade Estadual
de Maringá. Coordenadora e docente do curso de Psicologia da Faculdade
UMFG (antes denominada FACEC – Faculdade de Administração e Ciências
Econômicas), em Cianorte-PR. Coordenadora do Núcleo Regional Noroeste
Paraná da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO). Membra
do grupo de pesquisa Hera: grupo de estudos em Psicologia Social dos Afe-
tos. Membra da Comissão de Saúde Mental e do Conselho de Promoção da
Igualdade Racial do município de Cianorte-PR. Atuou como docente no curso
de Psicologia da Faculdade de Presidente Prudente (FAPEPE) entre 2020 e
2021. Atuou no ano de 2020 como membra da Comissão de Direitos Huma-
nos do Conselho Regional de Psicologia – Maringá/PR. Trabalha com temas
relacionados à Psicologia Social, Psicologia Social dos Afetos, Metodologia
e Epistemologia da Psicologia, Feminismos e Estudos Decoloniais.

Mariana Hauser de Castilho


Possui graduação em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá
(2009), Pós-Graduação em Gestão de Pessoas pela Faculdade Cidade Verde
(2012), Mestrado em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá
(2019). Atualmente é Psicóloga clínica – M. V. H. F. Clínica de Psicologia e
Psicóloga judiciária – Tribunal de Justiça de São Paulo.
246

Regiane Cristina de Souza Fukui


Doutora pelo programa de Pós-Graduação em Psicologia (UEM) com está-
gio de Doutorado no exterior (viabilizado pela CAPES), na Università Degli
Studi di Ferrara, Ferrara – Emilia Romagna – Itália. Mestre e Graduada em
Psicologia. Professora Adjunta do Departamento de Psicologia - DPI - UEM;
orientadora de Estágio em Formação Profissional, Práticas de Pesquisa em
Psicologia I e II, projetos de iniciação científica – PIC, PIBIC e PIBIC – EM.
Líder do Grupo de Pesquisa GERS – Grupo de Estudos e Pesquisas sobre as
Representações Sociais: teoria, método(s) e práticas; devidamente inscrito no
CNPq e certificado pela UEM. Pesquisadora do GIPEEF – Grupo Interdisci-
plinar de Pesquisa sobre Saúde, Educação e Educação Física da Universidade
Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF. Membro do comitê gestor da

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


UEM sobre a política institucional para refugiados e imigrantes. Autora de
capítulos de livros e artigos científicos em periódicos especializados. Atual-
mente os temas de pesquisa e interesse são: movimentos migratórios; políticas
públicas e institucionais sobre migrações e refúgio; representações sociais,
cultura e migrações; psicologia e trabalho.

Thiago Ohara
Possui graduação em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá
(2010). Pós-graduado em Psicanálise pela Unicesumar (2011) e em Proteção
Social pela UNESPAR (2013). Mestrado em Psicologia Social pela Universi-
dade Estadual de Maringá (2017). Doutorando do Programa de Pós-graduação
em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá. Pesquisa principalmente
os seguintes temas: representações sociais – emoções – medo – pós-moder-
nidade. Atua como psicólogo da Prefeitura Municipal de Londrina no cargo
de promotor de saúde pública.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

SOBRE O LIVRO
Tiragem não comercializada
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 x 19,3 cm
Tipologia: Times New Roman 10,5 | 11,5 | 13 | 16 | 18
Arial 8 | 8,5
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal | Supremo 250 g (capa)

Você também pode gostar