O Afeto Que Não Se Encerra
O Afeto Que Não Se Encerra
O Afeto Que Não Se Encerra
Editora CRV
Curitiba – Brasil
2023
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Revisão: Os Autores
O afeto que não se encerra: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e políticas sobre
os processos afetivos / Eduardo Augusto Tomanik (organizador). Curitiba : CRV, 2023.
248 p.
Bibliografia
ISBN Digital 978-65-251-4733-8
ISBN Físico 978-65-251-4732-1
DOI 10.24824/978652514732.1
2023
Foi feito o depósito legal conf. Lei nº 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 – E-mail: [email protected]
Conheça os nossos lançamentos: www.editoracrv.com.br
Conselho Editorial: Comitê Científico:
Aldira Guimarães Duarte Domínguez (UNB) Andrea Vieira Zanella (UFSC)
Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN) Christiane Carrijo Eckhardt Mouammar (UNESP)
Anselmo Alencar Colares (UFOPA) Edna Lúcia Tinoco Ponciano (UERJ)
Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ) Edson Olivari de Castro (UNESP)
Carlos Alberto Vilar Estêvão (UMINHO – PT) Érico Bruno Viana Campos (UNESP)
Carlos Federico Dominguez Avila (Unieuro) Fauston Negreiros (UFPI)
Carmen Tereza Velanga (UNIR) Francisco Nilton Gomes Oliveira (UFSM)
Celso Conti (UFSCar) Helmuth Krüger (UCP)
Cesar Gerónimo Tello (Univer. Nacional Ilana Mountian (Manchester Metropolitan
Três de Febrero – Argentina) University, MMU, Grã-Bretanha)
Eduardo Fernandes Barbosa (UFMG) Jacqueline de Oliveira Moreira (PUC-SP)
Elione Maria Nogueira Diogenes (UFAL) João Ricardo Lebert Cozac (PUC-SP)
Elizeu Clementino de Souza (UNEB) Marcelo Porto (UEG)
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
APRESENTAÇÃO .......................................................................................... 11
Eduardo Augusto Tomanik
textos que tratavam com maior ênfase de uma especificidade teórica traziam,
também, implicações práticas que se combinavam com reflexões metodo-
lógicas e vice-versa; as preocupações e as possibilidades de reverberações
ético-políticas estavam e estão claramente presentes em todos eles.
Optamos, então, por uma distribuição sequencial, a partir das preocupa-
ções predominantes em cada texto, mas sem tentar delimitar grupos. Como
dissemos, há um texto inicial de apresentação das formulações teóricas que
foram adotadas em todos os demais, ao qual se seguem: textos mais voltados
para reflexões teórico-práticas, outros cujas preocupações são mais centra-
das em aspectos metodológicos e, ao final, alguns cujo foco principal são as
reflexões e proposições ético-estético-políticas.
Com a possível (mas não necessária) exceção do primeiro capítulo, a
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
ordem de leitura dos demais poderá ficar à critério do leitor, como costuma
ocorrer nas coletâneas.
Em tempo, não poderíamos deixar de apresentar nossos agradecimen-
tos a Guilherme Elias da Silva e Marcos Leandro Klipan, pesquisadores e
professores do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
Estadual de Maringá. Mais que colegas e amigos, eles foram cúmplices de
nosso trabalho e suas colaborações nos foram de grande valia.
Até aqui, esta nossa apresentação caminhou do processo de elaboração
ao produto. Cabe agora a você, leitor, a tarefa de transformar esse produto na
base para um ou outros processos.
Fica o convite.
A segunda (ou terceira) intenção que pretendemos que esta apresentação
venha a atingir é a de constituir-se como um grito de revolta e desabafo.
Durante todo o período de idealização e de construção deste conjunto de
textos vivemos assolados por uma pandemia e um pandemônio.
Segundo o Observatório Covid-19, mantido pela Fundação Osvaldo Cruz,
Uma rápida busca pela internet vai nos mostrar que a palavra pande-
mônio serve para designar “confusão, balbúrdia”, mas também e especial-
mente no sentido que mais nos interessa aqui “reunião de indivíduos que se
associam para praticar o mal, promover desordens, etc.”2. Ao mesmo tempo
em que nos víamos como participantes do mundo, assolados por aquela
pandemia, tivemos também que conviver, em nosso país, com um período
de agressiva predominância de ações e de um ideário político de dominação
e de destruição.
Fomos surpreendidos pela persistência, em parte significativa de nossa
população, de ideais de colonialidade, ou seja, de concepções sobre a exis-
tência de um grupo minoritário que é naturalmente ou divinalmente (segundo
suas próprias convicções, claro) dotado de uma superioridade de direitos e
• Por que sentimos? Por que sentimos assim e não de outro modo?
• De onde vêm os nossos sentimentos e emoções? Já nascemos
sabendo sentir ou aprendemos a fazer isto?
• Por que o outro não sente o mesmo que eu, diante das mes-
mas situações?
• Existem diferenças entre sentimentos e emoções?
• Afinal, o que são eles?
É possível que uma ou mais das muitas suposições que lancei até aqui
sejam incorretas e não se apliquem ao que você sabe, mas, de modo geral, as
pessoas vivem seus sentimentos, convivem com eles e os compartilham, mas
não se dedicam muito a compreendê-los. Sabemos que sentimos, sabemos
o que sentimos, mas não sabemos ou não sabemos muito bem o que é sentir.
Se no campo das conversações e pensamentos cotidianos tende a predo-
minar esta tendência de vivenciar muito e pensar pouco sobre os sentimentos,
no universo dos pensamentos sistematizados e formalizados, da Filosofia e
das Ciências, tende a acontecer o contrário. Dos pensadores da Grécia clássica
aos neurocientistas atuais, de filósofos como Baruch Espinosa a naturalistas
como Charles Darwin, passando por provavelmente todas as subdivisões das
chamadas Ciências Sociais ou Humanas, há uma quantidade considerável de
Os afetos
O que são os sentimentos? O que é sentir?
De acordo com Agnes Heller1, que vem sendo nossa principal base de
apoio, “sentir significa estar implicado em algo” (2004).
1 Agnes Heller nasceu na Hungria, em 1929, trabalhou na Austrália e nos Estados Unidos e faleceu, de volta
ao seu país de origem, em 2019.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 19
[...] tudo o que faz do ser humano um humano de fato, quer dizer, todos
os elementos de informação que constituem a existência de nossa espé-
cie estão fora do organismo no momento do nascimento: eles podem ser
20
2 Os textos de Heller trazem as denominações “sentimientos impulsivos” (2004) e “sentimenti della pulsioni
(drive)” (2017).
3 Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Brito; Comida.
4 Os textos de Heller usam, nestes casos, as denominações “afetos” (2004) e “affetti” (2017).
22
[...] sem exceção, pertencem à espécie humana em geral e não são idiossin-
cráticos [específicos] nem social, nem individualmente. Nenhuma cultura
desconhece a expressão do medo (e o medo, mesmo), [...] a expressão de
raiva (e a raiva), a expressão de alegria e de tristeza (nem os sentimentos
Como o nome sugere, eles servem para nos orientar diante de situações
sociais ou de elaborações mentais mais complexas. Atuam como que nos
avisando sobre as consequências positivas ou os riscos prováveis de uma
opção ou evento, especialmente quando não conseguimos formular avaliações
claras e fundamentadas em informações mais detalhadas sobre aquelas pos-
sibilidades: “tenho a impressão de que o professor gostou do que eu disse”;
“o entrevistador foi bastante simpático, mas acho que ele não indicará minha
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
aquele que a experiencia. Uma boa ilustração sobre isto pode ser fornecida
pela frase “eu era feliz e não sabia”7.
Além disso, na medida em que nem sempre é originada a partir de um
evento específico, pode ser muito difícil perceber os limites temporais de um
processo de felicidade.
Raciocínios semelhantes poderiam ser aplicados ao que Heller chama de
dor espiritual, para destacar que se trata de um processo afetivo muito diferente
daqueles causados por uma dor física. A dor espiritual seria aquela produzida,
por exemplo, por uma avaliação muito negativa ou uma preocupação intensa
sobre o futuro das novas gerações, ou de um grupo específico de crianças.
Segundo Heller (2004), as emoções constituem um grupo de afetos muito
diversificado. Características que estão presentes em umas podem não estar
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
por outros campos e profissionais das Ciências, mas não temos qualquer
intenção (nem competência), para discuti-los aqui. Para nossos propósitos,
basta considerar que elas podem ser internas (percebidas apenas pela própria
pessoa) ou externalizadas, tornando-se acessíveis às percepções dos demais.
Podem ser, ainda, sutis ou intensas, localizadas ou difusas pelo corpo.
Elas podem variar desde uma pequena sensação íntima e invisível para
os demais, de satisfação, desconfiança ou medo (aquele famoso friozinho na
barriga), até uma crise intensa de raiva, evidenciada por uma transformação
que abrange, normalmente, o tônus muscular, a postura, a respiração, o modo
de olhar, o tom de voz e a modulação das palavras.
Por mais internas, sutis e localizadas que sejam, cada um dos nossos
afetos sempre envolve algum grau de alterações corporais mesmo que, por
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
muito sutis, com intensidades e profundidades tão baixas que podem sequer
ser percebidos. Todas as manhãs acordo, executo meus rituais de higiene e
de alimentação rotineiros, visto o uniforme e vou para o trabalho. Tudo isto
é tão rotineiro que quase nem me dou conta de que estou executando estas
atividades. Nada disto parece me afetar.
O que não nos damos conta, nestas situações, é que a intensidade e a
profundidade de nossos afetos são muito pequenas e que, além disso, nos
acostumamos a prestar mais atenção às mudanças afetivas que às continui-
dades delas. De qualquer modo, algum grau e modalidade de afeto sempre
estará presente. Mesmo quando dormimos, nosso corpo e nossas lembranças
continuam atuando e nos afetando.
Além disso, na medida em que estamos continuamente em contato com
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
REFERÊNCIAS
Badinter, E. (1985) Um Amor conquistado: o mito do amor materno. Nova
Fronteira.
Universitárias.
Ana
Até os seus 3 anos, Ana1 viveu sob os cuidados de sua mãe e sua avó
paterna. Neste período, seu pai estava preso. Quando ela ainda tinha 3 anos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
sua mãe sumiu. Ana não lembra o que aconteceu e não entende porque
foi abandonada.
Dos 3 aos 6 anos continuou a morar na casa de sua avó paterna e recorda
que ia visitar o pai, que ainda estava preso.
[...] daí meu pai saiu da cadeia quando eu tinha 6 anos. Aí ele casou
com outra mulher e eles tiveram outra filha, a Gabriele. Com 4 meses a
Gabriele morreu. Depois que ela morreu, 2 meses depois, eu fui morar
com meu pai. E minha madrasta não gostava de mim. Aí ela fazia intriga
pro meu pai me bater, aí meu pai me batia, eu fugia de casa, meu pai me
batia, eu fugia de casa [...].
Ir morar com o pai e madrasta não foi uma escolha sua. Se pudesse,
preferiria ter continuado com sua avó, porque tinha medo do pai.
Eu tinha medo dele, até minha vó tinha medo dele. Meu pai batia até na
minha vó. Uma vez meu pai bateu na minha vó, porque ele tinha, guardou
um pedaço de carne na geladeira, aí era natal, aí ele num tinha ido buscar
a carne, aí minha vó fez a carne. Depois de uns dias ele foi lá buscar a
carne e ele bateu na minha vó porque nós comeu a carne... (risos nervo-
sos). Você acredita? Que horror, né?
Ana contou que sofreu muitas agressões físicas do pai e que ele a obri-
gava a ir para a escola na chuva, a pé. Como moravam longe, precisava sair
da casa 2 horas antes do horário das aulas. Sua madrasta também a agredia.
Por volta de seus 15 anos, Ana já havia passado alguns períodos vivendo
pelas ruas, descumprindo as normas da instituição. Os funcionários descon-
fiavam que ela estivesse envolvida com exploração sexual, para garantir o
consumo de drogas que já incluíam, além da maconha, a cocaína. Por isto, e
por considerarem que ela colocava outras crianças e adolescentes em risco,
solicitaram a transferência de Ana para outra instituição.
O local de acolhimento para o qual Ana foi transferida só atende ado-
lescentes, geralmente envolvidos com o uso e o tráfico de drogas, além de
outros atos infracionais.
Mesmo estando formalmente acolhida nesta segunda instituição, Ana
passou a viver períodos em situação de rua ou morando em outros locais.
Envolveu-se mais ativamente com o tráfico de drogas, indo morar “na casa
lá onde o povo vendia droga”, em um bairro de Londrina. Outras adoles-
centes que frequentavam o mesmo local relatavam histórias de violências
física, sexual e psicológica que sofriam ali. Além disso, no mesmo bairro
havia um ponto rival de venda de drogas. Ana não tardou a ser envolvida por
estas circunstâncias.
É eu tava ameaçada aqui por causa que eu vendia droga prum povo e
depois eu num queria mais vender drogas pra eles [...] Eu num lembro
direito porque, aí eu fui pra lá... MENTIRA! Eu tava grávida de outro cara
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 41
Ana foi encaminhada para uma instituição de Maringá que acolhe gestan-
tes, de qualquer faixa etária, que estão em situação de risco e vulnerabilidade
social. Ela permaneceu ali por cerca de 2 meses. Neste período foram realiza-
dos os encaminhamentos necessários para o acompanhamento de sua gestação,
assim como lhe foram dadas orientações e informações sobre maternidade e
cuidados infantis. Ela mantém boas lembranças sobre o local, principalmente
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Perguntamos, então, sobre o amor. Ana disse não saber o que é isso,
se alguém já sentiu isso por ela e que acredita nunca ter sentido algo assim
por alguém.
Laura: E quando foi pro abrigo, você poderia ter morado com outros
parentes seus?
Ana: Não, ninguém me quis. Ninguém me quer... Num sei, acho que eles
tem trauma de mim...
Laura: E você tem trauma deles?
Ana: Não, nem gosto deles.
Laura: De ninguém?
Ana: Não...
Eu penso que ninguém gosta de mim. Eu fico sem entender algumas coi-
sas: Eu num entendo porque minha mãe me abandonou, porque meu pai
não gosta de mim! Às vezes, até penso em me matar! Aí, às vezes, eu num
entendo porque tem que ser desse jeito [...] Só comigo parece. Aí pra mim
num ficar pensando nessas coisas eu uso droga, pelo menos eu fico na
pira da droga e num fico pensando essas coisas.
Questionada sobre a vida que estava levando, foi breve e incisiva: “isto
não é vida!”
Embora os depoimentos apresentados por Ana sejam breves, parciais
e não contemplem a totalidade do que ela viveu e sentiu, há um elemento
constante, neles, que nos levou a utilizá-lo como ponto de partida para a com-
posição deste capítulo. Ela sente-se abandonada (e provavelmente esta seja
a marca mais dolorida de sua vida), queixa-se de que ninguém gosta dela (e
provavelmente isto também seja um fato), mas parece não se dar conta de que
ela também parece não ter desenvolvido ou mantido qualquer relação afetiva
de cuidado e de carinho, com quem quer que seja.
Em nenhum momento seus relatos incluem uma ou um colega, uma
cuidadora ou cuidador, uma parceira ou parceiro com quem tenha desenvol-
vido uma relação de apego, com quem tenha se preocupado ou a quem tenha
tentado auxiliar ou apoiar, em algum momento.
Dito de modo simples e mesmo correndo algum risco de parecer super-
ficial, parece que Ana não aprendeu a amar.
Seja como substantivo ou como verbo, amor e amar são palavras que vem
sendo utilizadas com uma infinidade de significados, muitas vezes francamente
opostos e inconciliáveis. Neste texto, nos limitaremos a adotar a proposição
de Maturana (1998), segundo a qual o amor é a disposição corporal sob a
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 43
qual uma pessoa realiza ações que constituem o outro como legítimo outro na
existência. Assim, longe de ser um afeto pessoal e eventualmente unilateral,
dirigido a outro ou outros e que pode incluir, desejo, carinho, apego, cuida-
dos, mas também posse e controle, o amor a que estamos tentando nos referir
aqui pode incluir um ou mais desses elementos, mas é fundamentalmente um
processo relacional e igualitário de coexistência respeitosa, onde um aceita
o outro em sua legitimidade de ser o que é. Esta aceitação do outro como
diverso, mas ao mesmo tempo importante e legítimo, é a condição básica do
estabelecimento de situações de compreensão e cooperação que, por sua vez
possibilitam que cada um provoque transformações no outro e, simultanea-
mente, transforme-se.
Estamos nos referindo, então, a um amplo leque de afetos que envol-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Carolina
Ah nós fazia praticamente nada, né? Porque meu pai era usuário de dro-
gas, aí a gente pegou e, como ele foi preso, então minha vó ficou muito
abalada, muito triste, e meus dois irmãos não se ajudava, deixava ela
mais nervosa, deixava ela mais brava e tudo isso [...]. Eu fui ajudando
ela, eu sempre ajudei ela. Onde que ela ia eu ia junto. Até que chegou um
dia, dia num sei que lá do 09, 29/09, alguma coisa assim, que ela morreu.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 45
Segundo ela, seu pai, por ser usuário de drogas perdeu os poderes fami-
liares sobre ela e seus irmãos. Entretanto, não consegue se lembrar sobre
como este processo aconteceu.
Meu pai foi usuário de drogas e o juiz tomou nós dele. Até hoje eu não
sei, até hoje da situação, o que aconteceu mesmo [...]. Algumas pessoas
assim, acasos e casos, inventa uma coisa e outra pessoa inventa outra.
Então num sei que que é isso, é porque num sei o que que é [...].
É, eu achava que era chato, tipo assim, eu fiquei 3 dias chorando, mas
num era tão chato que eu percebi, mas foi difícil pra mim [...] Foi difícil
porque eu era apegada com meus irmão, dormia com meus irmão, foi
muito difícil.
Ah, elas [as mães sociais] me receberam com muito amor, falô assim
que é bom o lugar, que eu vou gostar do lugar, que não se preocupa que
eu estou em boas mãos. E eu sei que eu estou em boas mãos, porque até
46
hoje nunca aconteceu nada comigo, graças a deus e nunca vai acontecer
porque esse povo cuida muito bem, esse povo ajuda, até pra remédio,
essas coisas eles faz, compra, tudo que você pedir eles faz.
Carolina relatou, ainda, que contava com o apoio das mães sociais para
realizar as tarefas do dia a dia, como acordar para ir para a escola, preparar
seus alimentos, marcar consultas médicas. Em seguida, chorando, questionou
se seria capaz de realizar essas tarefas sem o apoio das “tias”.
A família de Carolina a recebia para visitas, ocasionalmente. Relatou
que esses encontros não eram agradáveis para ela, já que sentia medo do pai
e que, por isso, não gostava de pernoitar na casa dele. Reclamou que seu pai
e seu irmão falavam mal do acolhimento e pediam que ela voltasse a residir
Num quero mais voltar pra casa da minha família, porque é um trauma
que eu tenho da minha família toda, exclusive meu pai. Eu num sei se eu
vou vencer esse trauma, mas eu tenho um trauma mesmo, até que eu num
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 47
queria nem falar pras tias, mas eu tenho muito trauma da minha família,
né? Trauma, trauma mesmo.
Segundo ela, sempre que os visita, em algum final de semana, volta para
o acolhimento “muito triste, muito abalada” e, então, faz uso de medicação
controlada. Disse que sente medo do pai, um medo que não consegue controlar.
Acrescentou que este é o único sentimento que nutre pelo pai.
Sente que a família não dava valor a ela, antes. Por isto, mesmo que agora
eles tentem outras formas de relação, querendo que ela retorne ao convívio
familiar e se comportando de maneira que a adolescente avalia como uma
forma de amá-la, é ela quem não dá valor a eles.
As formas como a família demonstra esse amor assumem, para ela, uma
conotação pejorativa: o amor de alguém que já a rejeitou não lhe parece um
amor bem-vindo, que possibilita uma convivência respeitosa e saudável.
Perguntamos à adolescente o que é o amor. Ela respondeu que nunca
sentiu um “amor verdadeiro”. Explicou:
Amor verdadeiro é quando você não briga, quando você conversa com
a pessoa, quando você entende a pessoa ou quando você quer conversar
com a pessoa e falar o que você sente. Não ficar falando mal da vida dos
outro, ficar sei lá onde, falando mal, então isso pra mim num é amor.
Eu amo muito ele! É, vai ser melhor pra mim, vai ser bom pra mim, porque
eu vou ter uma pessoa que fica me perturbando pras coisas. Porque se num
for pra isso, se num for pra ninguém me dar um chacoalhão eu num faço....
Apesar de uma aparente incoerência em suas falas (diz que nunca sentiu
um amor verdadeiro, mas também que ama muito o namorado), Carolina, ao
48
Diana
Na verdade não é eu que lembre. Não é que eu num lembro, mas a maioria
das coisas que eu sei foi tudo minha irmã que me passou. Uhum, porque na
verdade eu não tenho muita lembrança. Nós morava com nossos avós, com
nosso tio e nossa mãe! E as vezes o pai da minha irmã ficava lá também,
é isso aí mesmo, as vezes o pai da minha irmã ficava lá e ia embora no
outro dia. Aí, depois que o pai dela ia embora acontecia isso (apanhar),
porque quando o pai dela tava lá não acontecia nada.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 49
Medo, eu não tinha nenhum medo não, não porque assim, quando a gente
num tá, quando não acontecia essas coisas com nós, a gente brincava,
a gente fazia muitas coisas, muitas vezes a gente brincava e acabava se
machucando e nesse dia que a gente machucou a gente foi lá pro posto e
de lá fomos mandadas para o abrigo. [...] É, a gente tava brincando de
pega-pega com nossos amiguinhos de lá da rua, aí eu fui correr e pisei
em cima do prego, bem no meio, aqui assim [apontando para o meio da
sola do pé], aí a gente foi no posto (de saúde), aí minha irmã foi junto,
meu tio também tava, aí o povo de lá já sabia todos os nossos casos, aí
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Dizem que é abuso, dizem que não cuidava da gente direito. Ah, eu não
me lembro disso não, não me lembro [...] porque se a gente não lembra
é quase a mesma coisa de não ter acontecido. Mas a gente nunca soube
assim a verdade, a verdade mesmo, o porquê. Porque uns dizem uma coisa,
outros dizem outra, como a gente sabe?
Minha infância foi boa, não foi ruim, foi depois que comecei a me envolver
nas coisas que ficou feio [...]. Porque começaram a falar assim, falaram de
um jeito, mas quando eu fui ver era outro [...] Eu já tinha experimentado
cigarro já, né? Aí quando eu fui ver, falaram que era cigarro, mas não
era, quando eu fui ver era outra coisa, fui ver era maconha, aí já acabou,
já era [...]. Ah, sei lá, porque eu ficava o dia inteiro na rua, voltava só de
noite, porque eu tava na droga.
50
Ah, foi muito, muito difícil, porque muitas roubadas que eu me metia, ela
To me sentindo sei lá, esquisita, estranha […]. Sei lá, estranho. De vendo
esse povo ai, que mexe, que usa um monte, crackeiro. Meu ato é de sair
daqui logo. E já tava pensando de ir pra Guarda Mirim e nem voltar, mas
como minhas coisas já tá aí...
adulto para resguardar sua vaga, mas possibilitar que ela passasse os finais
de semana quinzenalmente na casa da irmã, alternando com o acolhimento
infanto-juvenil até que se acostumasse ou conseguisse estabelecer-se em outro
local. Diana não trabalhava e não possuía qualquer fonte de renda.
Ao perguntarmos sobre seus planos para o futuro, respondeu que ainda os
estava criando, que não tinha nada definido. Quando era mais nova imaginava
que quando saísse iria morar com a irmã, mas já não considerava que isto
fosse possível, ao menos no momento, já que sua irmã havia se casado e tinha
uma filha. Também não achava possível residir com outros familiares, devido
às brigas que ocorriam entre eles e o uso abusivo de álcool que costumavam
fazer. Ainda assim, avaliava a possibilidade de ficar por lá, temporariamente.
Dois dias após a entrevista, Diana nos procurou para dizer que não havia
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
voltado mais para o acolhimento adulto e que, por falta de opção, estava
residindo com seus familiares.
No decorrer da primeira entrevista, Diana citou que mantinha uma rela-
ção próxima, de intimidade e confiança com a irmã mais velha, que assumiu
o papel de sua mãe. Brincando, apontou a si mesma como segundo ela, que
se intitulou a primeira filha da irmã. A entrevistada disse amar muito a irmã,
mas não soube explicar o que é o amor.
Amor? Eu não sinto isso não. Ah eu sinto, mas eu não sei dizer, ainda,
não sei. Que tipo de amor que você fala? […] Não, não tem outro tipo de
amor, eu acho, sei lá. Porque eu não tenho muito esse negócio de amor,
esse negócio de amor [risos] [...] É. Amor é apoio. Isso aí mesmo.
Pelo pai e pela mãe a adolescente disse não ter sentimentos. Disse amar
a assistente social do acolhimento, pessoa a quem chamava de mãe e de
quem recebia “apoio”. Outra pessoa a quem referiu sentir amor foi o tio, que
considerava como pai, já que, com ele mantinha uma relação próxima, de
confiança. Esse tio realizava visitas frequentes a ela no acolhimento, oferecia
conselhos sobre as relações com os outros familiares e esteve presente em
toda a trajetória das sobrinhas, lhes dando suporte. Porém, também mantinha
um interesse diferente por elas:
Um tipo de amor que não podia ser dado [...]. É, pra mim foi um ato de
amor, só que foi diferente, foi diferente, de você chegar e fazer, demons-
trar, quer dizer, demonstrar. Ele demonstrou de uma outra forma, que não
era pra ser demonstrada. Eu não quero falar nisso não, mas é uma coisa
errada, uma coisa errada. Neguei. Infelizmente. [...] Foi a coisa certa, mas
pra ele, ele queria que demonstrasse, também, da mesma forma, só que
não dava certo, demonstrar desse mesmo jeito dele. Porque ele também
tem problema de cabeça, tem lógico, seria muito estranho, não daria certo.
52
não apenas aquilo que é imediato, concreto e de interesse pessoal, mas também
valores coletivos e elaborações abstratas.
Diana relacionava-se muito bem com a irmã; sentia-se como se fosse
sua filha mais velha, antes mesmo dela ter tido uma filha. A irmã a protegia
e, muitas vezes, sofria punições em seu lugar. Depois disso, ficava brava
com Diana, que, por sua vez, compreendia e achava justas as reprimendas
que recebia.
Em contrapartida, quando se viu expulsa do que havia sido o seu lar mais
duradouro, Diana reconheceu as limitações e as dificuldades que a irmã teria
para acolhê-la naquele momento e não manifestou qualquer contrariedade em
relação a isto. Mesmo diante de uma situação tensa e angustiante, foi capaz
de reconhecer e de respeitar a legitimidade do outro, como humano e como
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
que cada uma dessas relações produz em nós. Sabemos que elas são diferentes
em suas composições, nos modos como nos impactam e em como agimos,
em relação a elas. No entanto, ao agrupá-las sob uma mesma denominação,
também reconhecemos que elas mantêm ou devem manter pontos comuns.
Por isto, nos parece mais correto considerar os repertórios afetivos como
compostos por grupos de afetos mais ou menos semelhantes e reconhecíveis
como próximos: Ana, embora conhecesse a denominação “amor”, aparente-
mente era incapaz (ao menos até o momento das entrevistas) de vivenciar inti-
mamente, manifestar e direcionar e até mesmo de reconhecer a expressão, por
outros, de afetos que envolvessem respeito, compartilhamento e reciprocidade.
Parece claro, também, que ela já havia incluído em seu repertório outros
grupos de afetos, como as tristezas, as raivas e os medos, e não apenas uma
4 El concepto de situación social del desarrollo nos evidencia la preocupación de Vigotski por integrar la riqueza
de los procesos internos, constituidos en la historia anterior del sujeto, con las influencias que caracterizan
cada uno de los momentos sociales del desarrollo. [...] Cada nueva situación social que el sujeto enfrenta
se convierte en una via de desarrollo para nuevas formaciones psicológicas...
56
REFERÊNCIAS
González Rey, F. (2000). El lugar de las emociones en la constitución social
de lo psíquico: Educação & Sociedade, ano 21, (70).
Escolho começar estas páginas com uma canção de Renato Russo por três
motivos. Primeiro porque desconheço algo que retrate melhor nossas vivências
afetivas do que a música e a arte em geral. Segundo porque eu, esta canção e o
atual modelo neoliberal nascemos praticamente juntos na realidade brasileira.
Terceiro porque considero que nós cientistas e a ciência somos atravessados
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
1 Dilema das Redes. Direção de Jeff Orlowski. Mundial: Netflix, 26 de janeiro de 2020.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 59
Aqui partimos da ideia de que nossa humanidade não está dada ao nascer,
ou seja, ao nascer temos apenas as condições biológicas para nos tornarmos
humanos. Aquilo que de fato nos humaniza se constitui nas relações com os
outros e nas relações com o mundo.
Ao longo de sua extensa obra, Vygotsky nos lembra da importância do
contato com adultos mais experientes, para a apropriação dos bens culturais
historicamente produzidos.
Partindo destas premissas, entendo que a maternidade e a paternidade
não estão dadas pelo fato biológico que é o nascimento de uma criança. Ou
seja, tornar-se pai e mãe depende das apropriações de cada pessoa ao longo
da vida, as quais lhe darão as condições para exercer estes papéis.
2 Atuo como psicóloga judiciária nas Varas da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo
desde 2014.
60
Assim como nos lembrou Badinter (1985), o amor materno não é inato
às mulheres e, da mesma forma, podemos esperar que o amor paterno também
não seja inato aos homens. Pensando a partir das contribuições de A. Heller
(2005) e L. S. Vygotsky (2005; 2007), cada adulto irá se relacionar com a
criança a partir de relações dialéticas estabelecidas entre suas condições de
vida materiais (sua condição socioeconômica, sua forma de inserção na comu-
nidade, sua rotina de trabalho) e aquilo de que se apropriou ao longo de sua
própria história (suas crenças, sua religião, sua afetividade).
Neste ponto, certamente as relações que estabelecemos com nossos pró-
prios pais são um ponto de partida importante para aquilo que nos tornaremos
ao exercer a maternidade ou a paternidade. Contudo, será que nossa capaci-
dade de exercer a paternidade e a maternidade são determinadas exclusiva-
3 Quando uso a expressão minimamente adequada me remeto às exigências legais que se impõem a partir
do Estatuto da Criança e do Adolescente, segundo o qual os pais ou responsáveis precisam garantir (com
ajuda da sociedade civil e do Estado) alguns direitos fundamentais aos seus filhos (como a educação, a
saúde, a dignidade e a convivência familiar e comunitária).
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 61
necessárias para que acontecesse? Sejam eles tios, vizinhos, padrinhos, avós,
professores, amigos, alguém cuidou deste adulto, que espera e de quem se
espera exercer a maternidade ou a paternidade?
Especialmente em tempos de esfacelamento das relações sociais, infe-
lizmente nem sempre isso é possível, o que resulta em adultos que demons-
tram total incapacidade de proteger e acompanhar o desenvolvimento de uma
criança, sem colocá-la em risco. Vide casos de grande repercussão, como o da
criança de 11 anos que foi presa e acorrentada dentro de um barril na cidade
de Campinas, no Estado de São Paulo (G1 Campinas e Região, 2021).
Podemos dizer que se trata de um caso isolado, eu concordo. Mas a
ideia de uma criança em um barril não é de toda estranha à nossa cultura,
não é mesmo? Ou não podemos dizer que os episódios de Chaves retratavam
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
4 Sabemos, contudo, que aquele aparato biológico é bastante heterogêneo entre os membros da espécie
humana, dada sua infinidade genotípica e fenotípica.
64
chorar até que se canse ou se lhe pegam no colo, se conversam com ela, se
cantam ou gritam, se a inserem em ritos religiosos ou não, se lhe dão remé-
dios ou chás quando está doente. Tantas maneiras de receber e humanizar um
bebê, todas elas marcadas pelo contexto sociocultural e histórico em que ele
está sendo inserido.
Além disso temos que considerar que, mesmo antes da concepção, os
fatores socioeconômicos podem produzir impactos na constituição biológica
de uma criança. O trabalho de Fernandes (2014, pp. 6), por exemplo, indica
que doenças crônicas como a diabetes e a hipertensão podem ser silenciadas
no genoma humano através das ciências omicas. No Brasil, estes conhecimen-
tos já vêm sendo aplicados por médicos e nutricionistas junto a mulheres em
período pré-gestacional e gestacional, com vistas a redução de fatores de risco
c) As expectativas
levando a pensar que mães e pais não estão isentos de vivenciar uma infinidade
de afetos diferentes daqueles que costumam ser aceitos socialmente (como a
raiva, a inveja e o desprezo).
As taxas de depressão pós-parto que, segundo Schmidt, Picolotto &
Müller (2005), são de uma em cada quatro mulheres, possuem etiologia ligada
não apenas às alterações hormonais do puerpério, mas a muitos outros fato-
res como: a) condições socioeconômicas precárias; b) a existência prévia de
quadro depressivo ou vivência anterior de depressão pós-parto; c) o nasci-
mento de um bebê com sexo oposto ao desejado; d) conflitos com o parceiro
ou outros familiares; e) gestação não planejada; f) parto de emergência; g)
atitude negativa do pai em relação à gestação; h) o estado de saúde da criança.
Segundo Maldonado (2010, pp. 289):
Estes cuidados nem sempre são recebidos no seio das famílias biológicas, mas
também no âmbito de famílias extensas, da comunidade ou de instituições.
A história de um sujeito é única e particular, assim como suas interpre-
tações, apropriações e vivências durante sua trajetória. É possível que uma
mãe ofereça cuidados semelhantes aos filhos e, ainda assim, as vivências de
cada um deles e o que aprenderam sobre a maternidade poderão ser muito
diferentes. Tenho a impressão de que isto possa ser identificado por boa parte
das pessoas, em seu cotidiano. Algo que parece passar despercebido é que, da
mesma forma que não existem pessoas idênticas, também não existem relações
idênticas. Cada filho é único e tem um conjunto único de relações com sua
mãe (ou pai, ou irmão), simplesmente porque os fatos que lhe acontecem, os
enredos em que é colocado pela vida jamais poderão ser os mesmos que os
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
A resposta é que não sabemos. Este garoto pode ser visto como um rival e
sofrer retaliação dos irmãos, pode ser visto como substituto do pai (que estava
em situação de encarceramento), pode ser visto como líder, como inimigo,
como amigo/irmão leal. Afinal de contas, a interpretação da mãe sobre ele é
resultado das vivências e afetos dela, que são diferentes das vivências e afetos
entre os irmãos que constroem suas relações de maneira particular.
Uso estas situações para lembrar que os fatos biológicos, econômicos,
situacionais e concretos da vida atravessam nossas relações o tempo todo e é
impossível ser a mesma mãe/pai/irmão, ainda que haja amor, afeto e preocu-
pação em cuidar e proteger. Também não é possível ser o mesmo filho/irmão
enquanto construímos relações tão particulares ao longo da vida.
Considerações finais
REFERÊNCIAS
Assessoria de Comunicação do IBDFAM. Paternidade responsável: mais
de 5,5 milhões de crianças brasileiras não têm o nome do pai na certidão de
nascimento. Instituto Brasileiro de Direito de Família, Brasil, 7 ago. 2019.
https://ibdfam.org.br/noticias/7024/Paternidade+respons%C3%A1vel:+mais+-
de+5,5+milh%C3%B5es+de+crian%C3%A7as+brasileiras+n%C3%A3o+t%-
C3%AAm+o+nome+do+pai+na+certid%C3%A3o+de+nascimento.
brasil-registra-diariamente-233-agressoes-a-criancas-e-adolescentes.
BBC Future. (2019). Christine Ro. Por que tantas pessoas se distanciam
de suas famílias? BBC News Brasil. 26 maio 2019. https://www.bbc.com/
portuguese/vert-fut-48157656.
cada época. Indo além, mesmo que o medo originado por determinado objeto
ou situação seja vivenciado por duas pessoas, no mesmo local e na mesma
época, cada um desses processos afetivos ainda poderá ser diferenciado do
outro, já que ambos provavelmente envolverão diferentes contextos pessoais
imediatos (tudo aquilo com que cada uma das pessoas amedrontadas estava
envolvida naquele momento), históricos distintos de experiências anteriores
e por que serão constituídos nas e das dinâmicas entre aquilo que é pessoal
e o que é social. Em decorrência, para cada sujeito, aquela vivência afetiva
poderá e provavelmente terá sentidos pessoais diferentes.
Como um conjunto de respostas instintivas capazes de auxiliar tentati-
vas de preservação da vida ou da integridade física do organismo diante de
uma ameaça presente ou iminente “[...] não são apenas os seres humanos que
sentem medo. Todos os animais superiores conhecem-no como uma emoção
que indica perigo e é necessária para a sobrevivência” (Tuan, 2005, pp. 8).
No entanto, ao atribuir interpretações humanas a tudo aquilo com o qual
entram em contato, os seres humanos tornam-se capazes, também, de anteci-
par-se ao tempo e aos acontecimentos. Assim, passam a conviver não apenas
com o que está presente no momento e no espaço atuais, mas também com
aquilo que poderá ou que deverá ocorrer. Aprendem a antecipar seus medos e
as defesas contra eles; elaboram e compartilham um imaginário social sobre
os que os ameaça ou poderá vir a fazê-lo e o utilizam para orientar suas ati-
vidades e relações.
Diferentes culturas e, dentro delas, diferentes grupos sociais estabelecem
previamente o que cada pessoa, dependendo do lugar que ocupa nas diversas
dimensões da estrutura social, deve temer e como deve reagir diante das
ameaças previamente definidas. Em nossa sociedade, por exemplo, há medos
diferentes previstos para crianças, adultos e idosos; pessoas que se identificam
com os diferentes gêneros; moradores das regiões rurais ou urbanas e, entre
os últimos, para os que habitam os bairros tidos como nobres ou periféricos.
78
[...] tem violência, essas coisinhas que não tem como fugir, mas no geral
é bem tranquila mesmo. Até o ponto de não ter onde ir, de não ter onde
sair, de não ter muito o que fazer, mas é uma cidade boa, bem sossegada.
Indagado se sentia algum medo, ele respondeu: “tenho, é claro, você vai
ter medo da questão da segurança acho que todo mundo tem, né. [...]. A inse-
gurança que eu tenho medo e a injustiça que é umas coisas que eu não gosto”.
Andréia (50 anos), tal como os anteriores, destacou a falta de postos de
trabalho e os baixos índices de violência do município, mesmo quando em
comparação com outros municípios vizinhos, igualmente pequenos. Também
reclamou da falta de policiamento.
Destacou que a casa de sua mãe já havia sido furtada e citou um caso de
enfrentamento armado, ocorrido com uma pessoa conhecida da localidade.
Como formas de defesa, citou que sua mãe, embora tivesse sua própria
casa, passava os dias na casa da filha, onde não ficava desacompanhada. Além
disso, a família providenciou a construção de muros altos nas duas residências.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Mas tudo aquela molecadinha, era umas duas horas, três horas, tudo
aqueles jovens tudo correndo para rua, brincando, às vezes se tivesse
algum potencial de ter alguma coisa para eles poderia não ficar ali, né?
Então se querem fazer um curso é só pago, tem que ir fora, poderia ter
um curso de sei lá, de inglês, de espanhol, aula de violão, que eu sei que
muita gente gosta né, é assim... Eu vejo aquela molecadinha correndo
para lá. Infelizmente isso chega, para alguns chega pior né. Uns come-
çam a passar a usuário, viram usuários porque não tem né, os pais têm
que trabalhar, e a criançada chega da escola, fica sozinha em casa, fica
para rua, isso falta.
Construí esse cômodo pequeno para uma pessoa que vier aqui e quiser
dormir aqui, tem cama aí, tem tudo. [...] E aqui é separado da minha
casa, não tenho medo de colocar, não tenho receio de colocar uma pessoa
dormir ali, mas aqui dentro da minha casa eu não coloco, só se for um
parente, bem conhecido. Não dá né? Não dá para confiar em ninguém.
[...] antigamente, quando todo mundo era liberado para andar armado
tinha menos violência que agora. Os homens se respeitavam bem mais.
Depois que veio essa lei do desarmamento ficou mais fácil para os ban-
didos, e mais ruim para os cidadão de bem. Eu acho que se todo mundo
tivesse o direito de se defender, não precisava muita polícia não.
Rafaela (64 anos) também fez coro com os demais, afirmando que con-
siderava Marilândia como um local onde havia muito pouca violência, mas
também poucos empregos e acrescentou a falta de atividades de lazer.
Segundo ela, o conhecimento mútuo e a convivência prolongada entre
os moradores do município serviam como base para a construção de uma
sensação de segurança no local.
Rafaela afirmou que não saberia dizer se tinha medo de algo específico,
mas que se preocupava com a possibilidade de ocorrência de uma má adminis-
tração política da cidade, que colocasse em risco ou que anulasse os avanços
que haviam sido construídos e que incluíam melhoras na assistência à saúde
da população e nos serviços educacionais.
Rafael (78 anos) completou a unanimidade do grupo de entrevistados
a respeito da existência de pouca violência no município, mesmo quando os
acontecimentos dali eram comparados com os de outros municípios, igual-
mente pequenos, do entorno.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 83
[...] porque antigamente era punido, se uma criança roubasse era punida
e aquela criança nunca... A maior parte não roubava mais, porque eles
tinham vergonha. Eles traziam, por exemplo, no delegado e o delegado
dava um chá de cadeira pra ele, ponhava lá e fazia um monte de coisa,
ameaça né, aí ele pegava medo.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
[...] hoje tem bandido por quê? Porque não tem a lei para punir a criança
quando faz. Eu dou exemplo de 15, 16 anos em diante tinha de ser punido,
e hoje os pais não podem nem falar alto com um filho.
[...] antigamente tinha pais que não sabiam educar, ao invés de educar
ele queria matar. Essa lei que veio foi boa em um ponto, ruim no outro.
A lei tinha que ser para punir os pais que não soubessem dar educação
para os filhos.
Mas hoje em dia os filhos são criados a maior parte na rua. Antigamente,
por exemplo, o pai ganhava o suficiente para dar o sustento da casa.
Hoje não. Hoje já tem que a mulher ajudar a trabalhar, não é tudo, mas
principalmente nessas cidades grandes tem que ser, porque senão não dá
o sustento né. Agora no interior que nem nós estamos aqui é diferente, os
pais até ganham o suficiente, mas não é tudo também, porque o povo de
hoje em dia não economiza.
Aqui por exemplo, se fosse a lei igual o Paraguai... A turma fala que é
negócio de direitos humanos não sei o que, estavam brigando lá. E no
Paraguai, direitos humanos, só que bandidagem lá não existe né, hoje
existe mais, porque já mudou também o Paraguai hein, de Stroessner
para cá mudou muito, ficou cada vez pior. É no caso, por exemplo, a
maconha, hoje no Paraguai planta maconha quem quiser e na época do
Stroessner não, se o cara plantasse maconha lá estava perdido, que o
governo paraguaio descobria.
Ah, nunca conversamos sobre isso. Sobre medo não [...] talvez essa ques-
tão do desemprego. Medo assim de talvez... Eu mesmo não tenho segu-
rança no meu serviço. Então do nosso grupo ninguém tem aquela coisa
certa. Então é isso, insegurança na parte profissional, mas medo não.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
bem”: “se o cara souber que eu tenho uma arma, o cara vai tentar vir aqui
fazer uma surpresa pra mim de noite? Ele não sabe se vai fazer uma surpresa
pra mim ou se ele vai levar uma surpresa...”.
A mesma perspectiva de utilizar o medo como antídoto do medo está
presente nas falas de todos eles, quando louvam um passado e idealizam
um presente de relações mais rígidas e autoritárias, de autoridades policiais
(mas também familiares e educacionais) com poderes muito mais amplos e
ilimitados de coerção e atinge seu ápice na louvação à figura idealizada de
um ditador pretensamente justo e honesto (que, diga-se de passagem, já é
incoerente em sua própria concepção).
Ainda que isto nos leve a um breve desvio de nossos objetivos, parece
ter estas mesmas características para outro grupo, que vive em outras condi-
ções e que, por isto, elaborou outras representações sobre os elementos que
compõem seu ambiente. As relações com o espaço amplo, os animais e as
árvores, aprendidas e praticadas por crianças que tenham nascido e crescido
no meio rural, às margens de um igarapé amazônico e no centro de uma
metrópole serão, certamente muito diferenciadas. Os medos aprendidos por
elas seguirão a mesma tendência.
As paisagens do medo, assim como mudam de grupo para grupo, tam-
bém vão sendo alteradas ao longo da vida de cada sujeito, de acordo com as
convenções dos grupos de que ele faz parte.
A natureza do medo vai mudando à medida que a criança cresce, tal como
acontece com uma sociedade que, com o transcorrer do tempo, torna-se
mais complexa e sofisticada. As paisagens do medo não são situações per-
manentes da mente, ligadas a segmentos imutáveis da realidade tangível;
nenhum esquema atemporal pode simplesmente englobá-las. Por isso é
necessário abordar as paisagens do medo tanto da perspectiva do individual
quanto do grupo, e colocá-las, ainda que sob a forma de tentativa, em um
marco histórico (Tuan, 2005, pp. 14-15).
Assim submetido aos ditames sociais, o medo já não pode ser visto como
uma reação puramente instintiva. Inicialmente ele já havia sido direcionado
para objetos ou elementos simples, socialmente interpretados como perigo-
sos, no processo de aprendizado dos afetos impulsivos. Ao longo da vida
do sujeito, e com a diversificação dos aprendizados e da participação social
deste, os medos se estendem a outras esferas e passam a refletir a estrutura
social como um todo.
O temor e a incompreensão gerados pelo final da vida, em algumas cultu-
ras, manifestam-se nos medos causados por pessoas mortas em alguma de suas
várias (e supostas) formas de (re)vivência: como almas penadas, fantasmas,
90
amplos, e que incluíam, por exemplo, o norte da África e boa parte do sul da
Europa, hoje vem sendo cada vez mais limitados, questionados e invadidos,
graças ao predomínio econômico e cultural do ocidente.
Em contrapartida, mas também em decorrência destas condições, Moïsi
afirma que boa parte dos países da Europa e da América do Norte compar-
tilham, hoje, uma cultura do medo, mesmo que ela assuma configurações
diferentes em cada país.
Essa crise pode ser descrita nos seguintes termos: “O que está aconte-
cendo conosco? Costumávamos estar no controle de nossa vida coletiva
e de nossas identidades. Costumávamos ser encarregados do restante do
mundo. Mesmo que, no século XX, tenhamos nos conduzido à autodes-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
REFERÊNCIAS
Dahl, H. (1977). Considerations for a Theory of Emotions. In J. De Rivera.
A structural theory of the emotions. International Universities Press.
Sartre (2011) nos ensina que a liberdade é sempre situada; ela existe e
apenas pode existir como parte de contextos que envolvem múltiplas possibili-
dades. Ao mesmo tempo, ela implica na responsabilização dos que a exercem
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 99
e mesmo daqueles que supõem que não a exercem, já que não decidir e não
agir são, também, exercícios de liberdade.
De acordo com Vásquez (2007), “para que se possa falar de respon-
sabilidade moral, é preciso que o indivíduo disponha de certa liberdade de
decisão e de ação; ou seja, é necessário que intervenha conscientemente na
sua realização” (pp. 126-127). Em outras palavras, é preciso que aquele que
decide agir desta ou daquela forma esteja ciente dos acontecimentos dos quais
está participando e sobre os quais pretende atuar; que seja capaz de prever,
através do uso da razão, possíveis implicações de suas decisões e, ainda,
assumir-se como um legislador de si mesmo. Dito de modo mais sintético: é
possível responsabilizar somente aquele que sabe o que faz, compreende as
causas e os fins de sua ação e consegue assumir-se como autor das mesmas.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Nada disto pode existir independente das vivências sociais. Ainda que
livres, como propõe Sartre (2011), “somos e nos constituímos nas relações
sociais que estabelecemos cotidianamente, pois ao mesmo tempo que nos consti-
tuímos pelo outro, ele também nos constitui. Essa relação eu-outro é fundamen-
tal para a vida social, pois não somos seres isolados” (Bortolato, 2018, pp. 22).
Chauí (2000) também apresenta a importância do outro quando fala de
liberdade e responsabilidade ética e moral e propõe alguns requisitos como
essenciais para que possamos nos considerar sujeitos éticos e morais, cientes
das responsabilidades que isso implica.
O sujeito ético ou moral só pode existir se preencher as seguin-
tes condições:
Tudo o que faz do homem homem de fato, quer dizer, todos os elementos
de informação que constituem a existência da nossa espécie, são toda-
via externos ao organismo no momento de nosso nascimento: podem ser
Cientes dos riscos e das implicações desta nossa escolha, o que pretende-
mos fazer é destacar algumas características que nos permitam compor tipos
ideais do que escolhemos tratar como vergonha e culpa, que nos permitam
elaborar reflexões sobre estes afetos (ainda que em suas formas idealizadas)
e suas participações nas decisões e nas atuações morais que vemos ocorrer
em nosso entorno, nos dias de hoje.
Vamos aos afetos, então.
De modo geral, podemos considerar a vergonha como “... uma reação
a estímulos socioculturais específicos que toma todo o corpo do indivíduo
[...], lançando-o em uma situação de impotência, humilhação e inferioridade”
(Barbosa, 2013, pp. 2).
Os estímulos capazes de promover o surgimento da vergonha são todos
os que informam ao sujeito que ele sentiu, pensou ou agiu de modos que não
deveria, que suas disposições e ações não foram conformes às expectativas e
prescrições adotadas por seus grupos sociais de referência. Sentimos vergo-
nha quando sabemos que fizemos algo que não deveríamos ter feito, quando
nos damos conta de que o que fizemos, tentamos ou pensamos em fazer “não
era o certo”.
102
Tal como ocorre com todos os demais afetos, este também não é inato.
Passamos a vivenciar a vergonha apenas a partir do momento em que nos
tornamos capazes de trazer, sobre nós mesmos, o que Heller (2003, pp. 1019)
denomina como “o olho da comunidade”, ou seja, quando atingimos um
grau de socialização capaz de nos levar a conhecer, compreender e passar a
compartilhar as noções coletivas de certo e errado e a ser capazes de avaliar
nossas próprias condutas, disposições ou desejos, com base nestas noções.
Atingido este grau de socialização, não é mais necessário que alguém
testemunhe ou fique sabendo de nossos atos ou intenções reprováveis ou
inadequados; nós sabemos, e isto basta para que nos sintamos desconfortá-
veis por nossas inadequações: “se alguém pode sentir vergonha apenas pela
foi despedido quanto de seu grupo familiar mais próximo. Diante desta con-
dição aviltante, o suicídio “[...] constitui uma maneira de eliminar a si mesmo
como obstáculo e como impedimento para o sucesso do grupo” (pp. 131).
Num quadro como este, vergonha e honra são afetos complementares: “a
pessoa desonrada (seja porque agiu mal, seja porque não reagiu a agressões)
sente vergonha; e a pessoa honrada tem a capacidade de sentir vergonha” (La
Taille, 2002, pp. 161).
Num país como o nosso, em que as relações jurídicas e as elaborações
culturais sobre o trabalho assalariado são totalmente diferentes, a perda do
vínculo de emprego está longe de produzir os mesmos efeitos e afetos. Embora
as manifestações da vergonha pessoal possam ser próximas, os desencadea-
dores da mesma costumam ser outros.
negativa, que podem ser aceitas e assumidas pelo sujeito ou existirem de modo
externo e independente da concordância dele.
A vergonha pode ser e frequentemente é externalizada, por vezes sem
que o sujeito que a experiencia deseje fazer isto. Também pode permanecer
oculta. Isto não a torna mais suave ou menos presente, já que o que podería-
mos considerar como seu componente mais forte é a porção interna, íntima,
de sua vivenciação.
Além disso, ela surge das avaliações que o sujeito elabora sobre suas
condutas. O envergonhado é, ao mesmo tempo, seu próprio juiz e algoz. Não
importa se outros percebem ou não sua vergonha, que estejam cientes ou
não do que a produziu; ele sabe o que fez ou pretendeu fazer e sofre por isto.
A culpa, ao contrário, é produzida essencialmente a partir da avaliação
–e dos afetos – de outros (ao atribuir a culpa, os julgadores não estão apenas
avaliando racionalmente os acontecimentos; estão também afetados por eles
e pelo sujeito avaliado).
Como dissemos, é possível que o sujeito culpado se sinta responsável
por seus atos e pelos efeitos produzidos por eles, mas também pode ocorrer
o contrário. A imputação externa de uma culpa pode não produzir uma expe-
riência íntima, pessoal, correspondente. Posso ser considerado culpado por
algo, mas não aceitar esta avaliação e não me sentir assim. Poderíamos propor
que o componente mais forte da culpa (a atribuição) é exterior ao sujeito.
Socialmente, é esperado que, uma vez imputada uma culpa, o sujeito
evidencie sinais de que se assumiu como culpado, de que concorda com
aquela imputação e submeteu-se a ela, efetiva e afetivamente: ele deve passar
a agir e a sentir-se como culpado. Caso não o faça sofrerá, provavelmente,
novas avaliações negativas e poderá receber novas modalidades de punições
simbólicas ou físicas: um criminoso que não se mostre arrependido por seus
crimes terá uma chance menor (ou quase nula) de obter redução de sua pena;
o filho que destratou os pais e não demonstrou sofrimento por ter feito isto
106
gonhar pode até ser conjugado, mas não é utilizado e causaria estranheza
se o fosse.
Iniciando um retorno
Nos dois exemplos podemos ver pessoas que foram incapazes ou não
estavam dispostas a refletir previamente sobre suas escolhas e as possíveis
consequências delas e a responsabilizar-se, de fato, pelas consequências de
seus atos. Buscaram não ser punidas ou sofrer punições mais brandas, mas não
foram capazes ou não se dispuseram a agir de modo a evitar a produção de
danos a outros. Pessoas que, ao optar por uma modalidade de ação, parecem
não considerar o outro ou os outros como semelhantes, e continuam a pensar,
a sentir e a agir de modo idêntico, mesmo após ter causado mortes.
Podemos supor que a existência do que denominamos como processos
incompletos de aprendizado social seja devida a falhas ou insuficiências nas
várias modalidades de socialização, ou seja, de inserção dos sujeitos nos
vários grupos sociais? Famílias, escolas e outros grupos estariam falhando ou
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
[...] para que haja conduta ética é preciso que exista o agente consciente,
isto é, aquele que conhece a diferença entre bem e mal, certo e errado,
permitido e proibido, virtude e vício. A consciência moral não só conhece
tais diferenças, mas também reconhece-se como capaz de julgar o valor
dos atos e das condutas e de agir em conformidade com os valores morais,
sendo por isso responsável por suas ações e seus sentimentos e pelas
conseqüências do que faz e sente (Chaui, 2000, pp. 433, destaque nosso).
dentro delas, em cada época, elabora, seleciona, adota e defende seus con-
juntos de valores.
Heller (1987) retrata a centralidade do indivíduo no processo histórico a
partir de sua cotidianidade. Para essa autora, torna-se impossível a separação
entre emoções e a vida humana: “assim a vida cotidiana, a forma imediata da
genericidade do homem, aparece como a base de todas as reações espontâneas
dos homens ao seu ambiente social [...]” (pp. 12).
Aqui chegamos ao ponto de convergência das reflexões que vimos apre-
sentando: quais são os valores morais com os quais nos deparamos em nossos
cotidianos, quais são as formulações não ditas e talvez não pensadas, mas que
se evidenciam em nossas práticas e em nossas relações:
REFERÊNCIAS
Abbagnano, N. (2007). Dicionário de Filosofia. Martins Fontes.
Sobre Identidades
Quem é você?
Diante de uma pergunta como esta, costumamos apresentar respostas
prontas, como dizer nosso nome, idade, onde moramos, o trabalho e ou a
atividade de ensino a que nos dedicamos... Ainda que essas informações
constituam alguma apresentação sobre nós mesmos, enquadrando-nos em
alguns grupos socialmente estabelecidos e identificáveis, conseguiremos, no
máximo, formular uma breve representação de nós, o que poderá convencer
aquele que pergunta, dependendo da situação e contexto em que ambos esti-
verem, mas que, sem dúvidas, é insuficiente para responder totalmente àquela
questão. O pior é que talvez não haja mesmo respostas suficientes para isto.
A formação de quem somos, ou melhor, de quem vamos nos tornando,
traduzida no conceito de Identidade, perpassa o movimento ininterrupto de
socialização-individuação, que ocorre na dinâmica vivida nos processos de
socialização, em que, a todo instante, vamos produzindo o mundo em que vive-
mos e sendo produzidos como sujeitos singulares na interação com os demais
e com o mundo à nossa volta. Nossa construção e nossas transformações como
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 119
2010, pp. 93). Isso tudo abre um circuito ainda maior: denuncia a realidade
na qual estamos inseridos, indicando que nada é isolado, que fazemos parte
de uma totalidade que é o gênero humano e, em menor escala, a estrutura
social que nos enquadra (em mim, por exemplo, está contida toda mulher,
professora, que trabalha e também cuida dos afazeres domésticos, que deseja
ascender profissionalmente...); estamos todos unidos a uma trama de contra-
dições recíprocas.
Essas ideias, defendidas por Ciampa (1987; 1999), revelam que aquelas
representações de identidade, embora pareçam fixas e imutáveis (eu-filha,
eu-esposa, eu-professora) jamais devem ser vistas como algo dado ou produto
pronto e acabado, mas como produção, algo que vai se dando, se formando,
como o próprio processo de identificação.
Somos, portanto, uma totalidade e as partes que a formam não são incom-
pletas, mas cada uma delas funciona como uma unidade consistente, um
representante desse todo que se manifesta de acordo com os mais variados
contextos sociais dos quais participamos: quando estamos diante dos nossos
pais, expressamos o filho ou a filha que somos, mas carregamos em nós todas
as outras unidades que também compõem essa multiplicidade (ainda sou a
criança que fui um dia, sou o amigo, o professor, o conselheiro... e até o pro-
fissional que eu ainda não sou, mas que venho me esforçando para me tornar).
Diante de cada circunstância da vida social, segundo Ciampa (1987),
nossas identidades vão se compondo por meio da dinâmica entre papéis e
personagens. Provavelmente, em algum momento de sua trajetória de vida,
você experimentou (ou está experimentando) a condição de ser aluno. Ser
aluno é exercer um papel instituído em nossa sociedade. Isto significa que
existem previsões acerca das regras e dos comportamentos que deverão ser
cumpridos por todos aqueles que estiverem sendo alunos. Os papéis são a
realização de um conjunto de ações padronizadas e previamente definidas,
que normatizam as relações entre as pessoas que os exercem e entre estas e as
120
realiza a ação, mas não indiferente ao ato que é realizado; ela parece ser auto-
mática, direta, mecânica. Podemos citar aqui o exemplo de dirigir um veículo,
para aqueles cujas ações já estejam tão naturalizadas que conseguem realizar
todos os procedimentos automaticamente, como que sem pensar.
Já a memória voluntária ou mediada requer intenção. Isto implica em que
a fixação voluntária de algum conteúdo na memória exige esforço, sendo esse
um processo altamente complexo, já que “o ato de memorização consciente
desponta apenas quando o indivíduo compreende que a retenção de determi-
nado conteúdo é necessária à sua atividade prática ou teórica” (Martins, 2011,
pp. 126). Esta retenção não se dá como ato isolado, mas como elemento que
integra a estrutura dessa atividade. Em outras palavras, o ato de memorizar
deve se inserir na cadeia de ações e sentidos que configura a atividade humana.
[…] assim como qualquer outra função humana, não seja compreendida, de
partida, como manifestação pura de propriedades do cérebro – abstraindo-o
da atividade engendrada na relação sujeito-objeto, ou seja, perdendo-se de
vista a própria condicionalidade histórico-social da organização cerebral.
A memória é, pois, um processo complexo e ativo cujo desenvolvimento
… compreende a superação de formas naturais, involuntárias, em direção
a formas voluntárias, culturalmente desenvolvidas (Martins, 2011, pp.
127, grifos da autora).
nossas lembranças com nossas implicações de hoje e não mais com as que
vivenciávamos no instante inicial.
Nas palavras de Heller (1993, pp. 60):
[...] não existem [...] memórias fora de um contexto afetivo. Se, como
artifício explicativo, desdobrarmos o processo de produção da memória
em algumas etapas, deveremos considerar o afeto como a primeira. De
todas as experiências que nós vivemos no aqui e no agora, selecionamos,
como impressões ou lembranças, aquelas que nos afetam em um campo
de relações. Todavia, o que nos afeta é o que rompe com a mesmidade em
que vivemos; a mesmidade não nos impressiona ou nos marca. O que nos
afeta é antes um encontro, uma palavra nova, uma experiência singular.
Retomando os estudos de Bosi, Chauí (1994, pp. 31, grifos nossos) des-
taca a união das dimensões pessoal e social no ato de recordar, confirmando
que os vestígios que emergem são aqueles repletos de afetos, que marcam e
dão significados a toda uma existência. Em suas palavras,
Bosi (1994, pp. 415) já havia elucidado que é por meio das interações
humanas que a memória vai sendo marcada por etapas significativas da vida,
por “[...] pontos onde a significação da vida se concentra...” e que tem a capa-
cidade de gerar implicações que vão arquitetando os arranjos afetivos dentro
de nossa casa-memória. Um exemplo pode ser o primeiro amor, o nascimento
de um filho, ou a morte de uma pessoa amada.
128
cada sujeito (família, classe social, escola, igreja, trabalho). A memória, ao ser
evocada, se manifestaria com os recursos e representações do aqui-agora, isto
é, “por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a
mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os
mesmos de então...” (pp. 55) e, portanto, essa lembrança emergida não fugiria
às determinações do presente, estando atrelada à memória do grupo social.
A partir dessa perspectiva de seleção dos conteúdos acionados na memó-
ria, deparamo-nos com dois de seus componentes aparentemente opostos: a
lembrança e o esquecimento.
Estamos diante de mais uma função desempenhada pelos afetos: “[...] ser
capaz de esquecer é tão importante quanto recordar” (Heller, 1993, pp. 58).
Lavorati (2015) também observa que a memória é o espaço das falhas, lap-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Além disso é por meio da memória dos outros, especialmente dos idosos,
como destacou Bosi (1994), transformada em narrativas de vida, que cada
ser humano recebe as contribuições necessárias para o seu próprio desenvol-
vimento e para a construção de representações de identidades que sejam, ao
mesmo tempo, coerentes, contínuas e potencialmente transformáveis. Esse
efeito pode ser sentido até mesmo quando as pessoas morrem, pois, a memória
trata de torná-las imortais.
É por essa via que Bosi (1994, pp. 443) considera a valorização do vín-
culo com o passado como a raiz da formação das identidades e alerta para
a existência de um processo oposto, o desenraizamento, uma condição de
desagregação da memória cuja causa é “[...] o predomínio das relações de
dinheiro sobre outros vínculos sociais. Ter um passado, eis outro direito da
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
REFERÊNCIAS
Berger, P. L. & Luckmann, T. (2011). A construção social da realidade: tra-
tado de sociologia do conhecimento. Vozes.
“Eu não sei dizer, ainda, como eu me sinto; eu me sinto ainda presa...”.
Vitória1, a autora da frase anterior, era uma mulher que vivia em situa-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
realmente ocorreram, seja por falhas na notificação, seja por divergências nos
critérios de classificação dos casos.
De qualquer modo, tal como já nos vêm alertando autoras como Mor-
gado (2011, pp. 257), “[...] o lar tem sido um local extremamente perigoso
para as mulheres”.
Situações de violência doméstica envolvendo as mulheres, ainda que não
resultem em morte das mesmas, de tão frequentes e próximas, acabam por
levar muitos de nós a acreditar na existência de uma série de características
que seriam comuns a todas aquelas situações e capazes de explicar porque elas
existem. Quantos já não ouvimos alguém falar (ou mesmo já não pensamos
a respeito) de que:
conhecida como Lei Maria da Penha, pode e deve ser considerada violência
doméstica contra as mulheres “[...] qualquer ação ou omissão baseada no
gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico
e dano moral ou patrimonial”.
Temos, então, ao menos cinco modalidades diferentes de expressão de
violências domésticas contra as mulheres: físicas, psicológicas, sexuais, patri-
moniais e morais. Infelizmente, as informações disponíveis nos sugerem que
raramente qualquer uma delas ocorre isoladamente, ainda que algumas muitas
vezes sequer sejam reconhecidas como violências.
Por isto, temos optado (Hoepers, 2022; Hoepers & Tomanik, 2022) por
utilizar e recomendar a utilização dos termos violências, no plural.
Por um raciocínio semelhante, consideramos também que a utilização
do termo mulher pode dar margem a uma espécie de homogeneização das
pessoas que são envolvidas naqueles processos. Cada uma delas é única,
viveu uma trajetória que, embora possa apresentar semelhanças, jamais será
idêntica a qualquer outra. Além disso, o que é mais importante, a violência
não é produzida e aplicada pelo fato biológico de que cada uma e todas elas
são mulheres. Como veremos adiante, são as construções e convenções sociais
que determinam os modos de ação dos sujeitos humanos e os direcionam a
viver aquilo que, aparentemente, seria um destino ou uma condenação.
Assim, entendemos que a utilização do termo mulheres, no plural, não é
apenas uma escolha estilística do campo da escrita, mas um posicionamento
ético-político comprometido com o não apagamento da diversidade que com-
põe aquelas pessoas, vivências e vidas.
A utilização do termo contra igualmente pode contribuir para a elabora-
ção e a transmissão de uma concepção simplificadora, mas falsa sobre aquelas
manifestações, seja por sugerir que os envolvidos são adversários entre si (a
contra b), seja por indicar que aqueles são processos exclusivamente unidi-
recionais (b é alvo de a). Por isto, temos optado pela substituição do termo
138
o lar, usualmente idealizado por nós como espaço de trocas afetivas agra-
dáveis, segurança e cooperação, passa a ser, nesses casos, cenário de
graves violências. Algumas sutis e silenciosas, outras escancaradas, sem
quaisquer disfarces. Os laços afetivos se transmutam num emaranhado de
conteúdos ambíguos, de nós aparentemente indesvencilháveis (Hoepers
& Tomanik, 2021, pp. 19).
Tal como abordado por Tomanik, no capítulo 1 deste livro, não raro,
no senso comum e até mesmo no campo científico, afetos são tratados como
conteúdos relativos a cuidado, carinho ou qualquer espécie de vinculação
significada como positiva. Uma pessoa é considerada afetuosa quando é
gentil, atenciosa, carinhosa. Mais uma vez, nada há de errado com a utiliza-
ção do termo afeto, com este significado, especialmente em nossas conver-
sas cotidianas.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 139
Além de nos contar que não conseguia, ainda, dizer o que sentia quanto
as suas vivências, caracterizadas por violências domésticas, Vitória também
142
compartilhou conosco que se sentia ainda presa naquela relação. Não havia
conseguido ainda liberar-se. Mais uma vez, afetos, pensamentos e atos mos-
tram-se como partes complementares das atividades humanas, faces de uma
mesma figura. Sem saber bem o que sente, ela não consegue encerrar a relação,
mesmo insatisfeita; ao não encerrar a relação, obriga-se a manter dúvidas
sobre o que sente e até mesmo, talvez, sobre quem é.
Prisioneira de seus conflitos e carcereira de si mesma, Vitória tem difi-
culdade de perceber que não está sozinha. Não estamos nos referindo, aqui,
ao fato de que há muitas outras Vitórias, vivendo situações e provavelmente
conflitos semelhantes (ainda que provavelmente não idênticos). Estamos
tentando destacar que há todo um contexto social, que é muito mais amplo
que cada uma e que todas estas relações e que determinam a existência e a
A violência se disfarça. Ora surge como não violência, ora como aconte-
cimento banal, como acidente, como processo natural: as coisas são assim
mesmo, não há o que se possa fazer [...]. Ora tinge-se como necessária,
ainda que indesejada. Ora chega a travestir-se como benéfica e, portanto,
desejável. Além disso, é insidiosa. Atua com mais eficiência, ou seja, com
mais destrutividade, quanto menos é identificada. Expande-se, quando
desejada, e impõe-se, quando desmascarada. Desdobra-se. Faz-se de nova
para manter-se a mesma (Tomanik, 2017, pp. 11).
Ele sempre tacou na minha cara que tudo ele fazia, que eu não tinha capa-
cidade de ter minha vida própria [...]. Eu tive que sair desse casamento
pra resgatar a Alice que eu... que tava assim totalmente a milhares de
distância de mim, ela ficou longe... ela desapareceu (Alice).
REFERÊNCIAS
Brasil. (2006). Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 – Lei Maria da Penha.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm.
Hoepers, A. D. & Tomanik, E. A. (2022). Pode não ser assim: outras trilhas,
afetos e sentidos sobre as violências domésticas vividas por mulheres. Edi-
tora CRV.
já que nos implicamos com tudo que nos rodeia, e sentir é estar implicado
(Heller, 1993).
Nessa espiral ininterrupta da vida humana, o trabalho vem sendo, a tem-
pos, a forma privilegiada de nos implicar e manifestar a nossa humanização.
Um dos campos do conhecimento científico que se apropria do fenô-
meno do trabalho como objeto de investigação é a Psicologia, em especial a
chamada Psicologia Organizacional e do Trabalho. É nesse campo de estudos
e práticas que nós (as autoras desse texto) viemos enveredando, compondo
nossos interesses profissionais e de pesquisa desde o período da formação
em Psicologia.
Hoje, somos docentes no ensino superior, em cursos de graduação em
Psicologia e Gestão, em cursos de especialização e residência multiprofissio-
que vão sendo produzidas nesse contexto, portanto, dos afetos, podendo chegar
a outras (novas) possibilidades de reflexão e atuação para esse campo.
Não conseguiremos atingir nosso objetivo se não estivermos dispostas
a descontruir alguns mitos que foram criados em torno da atuação do(a) pro-
fissional de Psicologia no panorama do trabalho e das organizações. Come-
çaremos resgatando um pouco dessa história e esperamos que você, leitor(a),
siga conosco nessa caminhada.
Talvez uma das visões mais comuns sobre a área da Psicologia Orga-
nizacional e do Trabalho é a de que ela esteja submetida aos ditames do
sistema capitalista. E ela está. Mas, não é só ela. Aqui apresentamos uma
primeira desconstrução.
O modo de produção capitalista não define e impõe uma modalidade
específica de relações sociais apenas nos ambientes de trabalho. Ao contrário,
ele se sustenta graças ao engendramento de relações, valores e de mentalidades
capitalistamente determinadas que se estendem a todos os campos e instan-
tes das vidas humanas submetidas a ele. Toda e qualquer atuação de um(a)
profissional das ciências humanas (e não só delas) se fará como parte dessas
cosmovisões, ainda que favorável ou contrário à sua manutenção.
Sendo assim, como declara Faria (2017, pp. 193, grifo do autor), dentro
da “[...] relação capital x trabalho, a intervenção do psicólogo, como profis-
são, está necessariamente marcada por uma relação de capital. Não, não me
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 155
perpassa o terreno das ciências e profissões, está “[...] nas escolhas para os
cursos de graduação, nas publicidades para vendê-los, nos fomentos em pes-
quisa para as áreas que geram menos tecnologias, menos produtos tangíveis,
concretos, para serem tocados, admirados e vendidos” (Faria, 2017, pp. 194).
Assim como qualquer outro produto, os cursos de graduação e as profissões
derivadas deles precisam criar necessidades para atender ao mercado globa-
lizado e manter sua soberania.
É preciso deixar claro, nessa discussão, que nosso propósito não é uma
defesa cega em favor da Psicologia Organizacional e do Trabalho. Reco-
nhecemos que essa prática profissional não está fora do âmbito capitalista
(como nenhuma outra prática está), mas criticá-la de modo vazio, sem buscar
conhecer suas possibilidades de ação e transformação, é uma postura que
contribui, talvez de maneira mais veemente, para a manutenção do estado
atual das coisas. Concordamos com Codo (1984, pp. 197) que “[...] a crítica
que produz a não intervenção é uma crítica caolha, covarde, que lava as mãos
e se recusa em inverter o papel da ciência, que não se submete a correr os
riscos do poder para tentar subvertê-lo”.
Outra ideia que queremos tentar descontruir é aquela que envolve a
concepção de organização como sendo um espaço de trabalho predominante-
mente formal e lógico, edificado em uma estrutura enrijecida, sob um sistema
definido, estável e regulamentador, o que estampa as noções tecnicista e ins-
trumental muitas vezes atribuídas às práticas do(a) profissional de Psicologia
dentro desses ambientes.
Antes de mais nada, organizações são constructos sociais e, portanto,
formadas por pessoas que convivem, interagem e juntas produzem algo para
si mesmas e para a sociedade, satisfazendo necessidades mútuas.
dos espaços e grupos sociais dos quais participamos, o que abarca também
aquelas atividades não reconhecidas formalmente como trabalho (estudar,
cuidar da casa e dos filhos, pintar, desenhar...), ainda que elas dependam, de
algum modo, da estruturação dos modelos de trabalho vigentes.
Para Heller (1993) é a tarefa, preferimos dizer o trabalho, que vai direcio-
nar a vivência do que a autora chama de gestão dos afetos, um gerenciamento
pessoal de tudo aquilo que sentimos a partir de uma hierarquia de valores, isto
é, uma escala do que sentir, como sentir e com qual prioridade e intensidade.
Todo esse gerenciamento afetivo passa pelas nossas interpretações pessoais,
ao passo que também é influenciado pelo contexto sociocultural.
Como no mundo atual a tendência é exercermos várias ocupações em
uma ou mais organizações sociais, cada uma dessas modalidades envolve
REFERÊNCIAS
Bastos, A. V. B.; Yamamoto, O. H.; & Rodrigues, A. C. A. (2013). Compro-
misso social e ético: desafios para a atuação em psicologia organizacional e
do trabalho. In L. O. Borges; L. Morão. (Org.). O trabalho e as organizações:
atuações a partir da psicologia. Artmed.
Pavão & Coelho, 2013). Mais adiante voltaremos a apresentar alguns dos
agrupamentos e reflexões que obtivemos a partir deste estudo.
Mais recentemente, durante as discussões que precederam a redação dos
capítulos que compõem este livro, consideramos que seria interessante reto-
mar aquele conjunto de informações como base para a elaboração de novos
agrupamentos e análises que nos permitissem não apenas novos detalhamen-
tos dos objetivos iniciais mas, especialmente, o aprofundamento de algumas
reflexões que nos aproximassem de discussões sobre as funções sócio-políticas
propostas, ainda que não explicitamente, nos estudos nacionais, na utilização
do conceito e das teorias sobre os afetos e na escolha dos instrumentos e dos
procedimentos de pesquisas sobre aqueles temas.
Consideramos, ainda, que estas reflexões poderiam servir como base para
O estudo de 2013
1 Macedo, D.; Oliveira, C. V.; Günther, I. de A.; Alves, S. M.; Nóbrega, T. S. (2008). O lugar do afeto, o afeto
pelo lugar: o que dizem os idosos? Psicologia: Teoria e Pesquisa, 24(4).
2 Santana, S. de M. e Roazi, A. (2006). Cognição social em crianças: descobrindo a influência de crenças
falsas e emoções no comportamento humano. Psicologia: Reflexão e Crítica, 19.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 171
3 Freire, L. (2010). Alexitimia: dificuldade de expressão ou ausência de sentimento? Uma análise teórica.
Psicologia: Teoria e Pesquisa, 26.
4 Sanches-Peres, R.; Santos, M. A. dos (2009). Personalidade e câncer de mama: produção cientifica em
Psico-Oncologia. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 25(4).
5 Mocaiber, I.; Oliveira, L. de; Pereira, M. G.; Machado-Pinheiro, W.; Ventura, P. R.; Figueira, I. V.; Volchan,
E. (2008). Neurobiologia da regulação emocional: implicações para a terapia cognitivo-comportamental.
Psicologia em Estudo, 13.
6 Gouveia, V. V. et al. (2007). Escala de contágio emocional: adaptação ao contexto Brasileiro. Psico, 38(1).
172
7 Enumo, S. R. F.; Ferrão, E. da S.; Ribeiro, M. P. L. (2006). Crianças com dificuldade de aprendizagem e a
escola: emoções e saúde em foco. Estudos de Psicologia, 23.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 173
continuação
Des.
Verbos Pesq. Campo Disc. Teóricas Rev. Literatura Totais
Instrumentos
Identificar 1 1
Relatar 1 1
Replicar 1 1
Rever 1 1
Situar 1 1
Validar 1 1
Totais 17 33 0 0 53
próxima das de seus colegas da área da Biologia, por exemplo, que estabe-
lecem claras distinções entre eles próprios e os espécimes ou espécies sobre
os quais pretendem obter conhecimentos.
Tendências semelhantes podem ser supostas também a partir da adoção
de um dos segundos verbos mais frequente naquela distribuição: verificar
significa avaliar a aceitabilidade, demonstrar ou atestar algo como vero,
ou seja, como verdadeiro ou real. Assim, a suposição básica sobre a exis-
tência do fenômeno ou acontecimento a ser estudado como algo anterior
ou independente do planejamento e da efetivação do processo de pesquisa
permanece presente.
Suposições bastante próximas a estas podem ser elaboradas e defendidas
a partir da adoção de outros verbos, como testar, avaliar, comparar, comprovar,
conhecer, correlacionar, identificar, relacionar, relatar ou replicar.
Parece correto, então, sustentar que os estudos basicamente empíri-
cos da Psicologia nacional tendem, fortemente, a adotar posicionamentos
de naturalização dos processos afetivos, que são associadas a concepções,
posturas e procedimentos que implicam em tentativas de separação entre os
pesquisadores, suas decisões e ações, por um lado, e os pesquisados, suas
vivências, manifestações e elaborações, de outro. Isto não deve ser visto com
surpresa uma vez que, por exemplo, a construção, validação ou aplicação de
instrumentos padronizados para a obtenção ou avaliação de informações só
se justifica com base na adoção de pressupostos teórico-metodológicos como
os que apontamos.
O conjunto dos verbos utilizados exclusivamente nos trabalhos de cunho
mais teórico foi bastante reduzido e esparso. Ainda assim, tanto isoladamente
quanto considerados no todo, eles tendem a sinalizar a adoção de objetivos
que parecem depender muito mais da participação criativa dos autores na
construção das conclusões de seus trabalhos que da mera obtenção, tratamento
e análise de informações prévia e externamente existentes.
176
claro, nas análises que apresentamos até aqui e nas reflexões que tentaremos
expor a seguir. No entanto, nossas intenções neste capítulo não foram nem
serão as de defender aquelas concepções ou de tentar mostrar uma suposta
superioridade das mesmas sobre todas ou algumas das demais. Pretendemos
refletir sobre as implicações teóricas, metodológicas e sociopolíticas da adoção
dos direcionamentos metodológicos que conseguimos detectar neste nosso
estudo sobre outros estudos.
Vamos tentar entender, de início, o que estamos chamando
de naturalização.
Pensemos, por exemplo, em um peixe. Ele é um ser vivo, possui um
corpo, move-se, age. Transforma-se, de acordo com as tendências de desen-
volvimento de sua espécie e das condições do meio onde vive. Todas essas
suas características, ações e transformações evidenciam-se, são acessíveis
aos sistemas sensoriais de outros animais, da sua espécie ou não e, no caso
que mais nos interessa, aos eventuais humanos que resolvem adotá-los como
objetos de seus estudos.
Embora esta eleição como objeto de estudo e a própria classificação
daquele ser vivo como peixe (e até como ser vivo) sejam resultantes das
capacidades criativas e do desenvolvimento humano de conhecimentos, a
materialidade do peixe torna possível que o estudo de muitas de suas carac-
terísticas seja feito através de observações padronizadas e especialmente da
aplicação de instrumentos de mensuração. A classificação do peixe em um
quadro de descrição de espécies, as constatações de seu peso, sexo, o estágio
de desenvolvimento de suas gônadas e suas condições alimentares podem ser
feitas com graus consideráveis de precisão. Os resultados de várias dessas
operações podem ser adequadamente expressos em escalas numéricas.
Dependendo do treinamento e da utilização padronizada dos instrumen-
tos apropriados, diferentes pesquisadores chegarão a resultados idênticos ou
aceitavelmente semelhantes, estudando o mesmo espécime. Nestes casos
180
diante de uma situação numa escala matemática (0, 1, 2...) ou quase matemá-
tica de intensidade (nada, pouco, médio, muito) ou de frequência (nunca, rara-
mente, sempre...). Nestes casos, somam-se duas incertezas para a classificação
das respostas: sobre o afeto que foi citado, identificado ou escolhido pelo res-
pondente e sobre o significado, para ele, do número ou advérbio selecionado.
Imaginemos, como exemplo, que duas pessoas declaram ao pesquisador
que raramente sentem raiva diante de determinada situação. Podemos ter cer-
teza de que a palavra raiva designa, para as duas, o mesmo afeto? Ou ela pode
ser usada para nomear experiências íntimas e reações públicas tão diferencia-
das que nem deveriam ser reconhecidas através do mesmo vocábulo? Além
disso, como podemos saber se uma pessoa vivencia a tal situação inúmeras
vezes, mas não se enraivece diante dela e se a outra quase nunca vivencia a
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
nas formas como vimos os afetos serem tratados pela ciência, e não apenas
pela Psicologia.
A primeira delas seria uma função normatizadora. Observamos que a
produção nacional apresenta uma prevalência de estudos sobre os afetos na
Psicologia, seguida pelas Ciências da Saúde. Essa prevalência aponta para um
reconhecimento científico de que os afetos estão intimamente relacionados
à saúde e que, portanto, (re)conhecer seus processos de desenvolvimento e
suas relações com outros fenômenos psicológicos e aspectos da vida humana
pode trazer contribuições significativas para este campo. Os objetivos deste
conhecimento poderiam se voltar para o desenvolvimento de tratamentos
com maior nível de complexidade, integralidade e eficácia, ou mesmo para a
promoção de saúde e, em especial, da saúde mental. Entretanto, a tendência
os afetos como tema central, sendo este número muito superior na Psicologia.
Este é o retrato de uma concepção de ciência fragmentária, que nos aponta
alguns pressupostos. Primeiro: indivíduo e sociedade são compreendidos como
entes isolados e autônomos que apenas se relacionam, produzindo algumas
influências entre si. Segundo: partindo deste binômio, a Sociologia passa a
ser definida como o campo responsável pelo estudo da sociedade, enquanto
a Psicologia deve ter o indivíduo como objeto. Terceiro, a visão que se tem
sobre os afetos é também fragmentada, uma vez que eles são compreendidos
como processos individuais dos quais, em acordo com os pressupostos ante-
riores, a Psicologia deve se ocupar.
Não estamos dizendo com isso que as especificidades de cada área das
Ciências Humanas são supérfluas ou que um único campo de estudos daria
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
REFERÊNCIAS
Sguissardi, W. (s. d.). Produtivismo Acadêmico. https://gestrado.net.br/ver-
betes/ produtivismo-academico.
Introdução
Como é difícil para nós pensar que podemos escolher tornar-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
“É assim que se cria uma história única: mostre um povo como uma
É impossível falar sobre a história única sem falar sobre poder. Existe uma
palavra em igbo na qual sempre penso quando considero as estruturas de
poder no mundo: nkali. É um substantivo que, em tradução livre, quer
dizer “ser maior do que outro”. Assim como o mundo econômico e polí-
tico, as histórias também são definidas pelo princípio de nkali: como elas
são contadas, quem as conta, quando são contadas e quantas são contadas
depende muito de poder.
O poder é a habilidade não apenas de contar a história de outra pessoa,
mas de fazer que ela seja sua história definitiva. [...] se você quiser espo-
liar um povo, a maneira mais simples é contar a história dele e começar
com “em segundo lugar”. Comece a história com as flechas dos indígenas
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 191
[...] um enredamento, ou, para usar o conceito das feministas [...] de Ter-
ceiro Mundo, como uma interseccionalidade3 [...] de múltiplas e hete-
rogéneas hierarquias globais (“heterarquias”) de formas de dominação e
exploração sexual, política, epistémica, econômica, espiritual, linguística
e racial, em que a hierarquia étnico-racial do fosso cavado entre o europeu
e o não-europeu reconfigura transversalmente todas as restantes estruturas
globais de poder (pp. 392).
2 Esta é uma definição essencialmente política e não geográfica. O Sul global refere-se aos povos e territórios
que não fazem parte do bloco hegemônico de poder, composto principalmente por Europa e Estados Unidos,
que exercem grande influência econômica, cultural e científica no restante do mundo. Ou seja, o Sul global
não se define simplesmente pelo não pertencimento ao Norte global, mas sim pelos grandes impactos
gerados nesses territórios a partir do colonialismo e da colonialidade do poder.
3 Falaremos mais sobre o conceito de Interseccionalidade no item “Para uma ciência feminista decolonial:
movimentos insurgentes”.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 193
que difundiram, como sendo única, neutra e universal, uma visão particu-
lar de mundo.
Essa visão se mantém, mesmo com o fim do colonialismo, através da
reprodução das relações de dominação e exploração de grupos sociais subal-
ternizados por grupos dominantes no Sul global. Isso significa que a coloniali-
dade do poder exerce impactos muito amplos sobre os corpos colonizados, não
somente pela influência que os países do Norte global exercem sobre o resto
do mundo, mas também pela reprodução interna dessas estruturas de poder.
Conforme sinaliza Grosfoguel (2011, par. 8) “[...] o sucesso do sistema-global
do mundo moderno/colonial consiste em fazer com que os sujeitos que estão
localizados no lado oprimido da diferença colonial, pensem epistemicamente
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
o “giro decolonial”, assim, não deve ser compreendido apenas como uma
proposta teórica, mas como “movimento de resistência teórico e prático,
político e epistemológico, à lógica da modernidade/colonialidade” (Mig-
nolo, 2008, pp. 249). Como movimento, a genealogia do pensamento
decolonial é planetária, não se confundindo com uma abordagem res-
trita a indivíduos, ao contrário, encontra sentido em articulação com os
movimentos sociais, especificamente nas resistências afros e indígenas [e
feministas, como pretendemos abordar neste capítulo].
sobre a teoria dos afetos já foi realizado no primeiro capítulo deste livro, neste
momento quero ressaltar apenas alguns pontos que serão mais importantes
para as nossas discussões.
Tomar como ponto de partida o entendimento de que nossas relações
nos afetam nos posiciona na contramão do que frequentemente pensamos
sobre os afetos, reduzidos a processos biológicos ou individuais. Com isso,
destacamos o caráter social da afetividade, como processos que se constituem
nas relações que estabelecemos com as pessoas e com o mundo, ou seja, nós
desenvolvemos afetos, aprendemos a sentir, e o(s) outro(s), a cultura, a polí-
tica, o momento histórico, são elementos essenciais para isso.
Lançar um olhar sobre o caráter social dos afetos nos permite com-
preender que aquilo que sentimos, como sentimos, as expressões e interpre-
tações dos afetos não podem ser descolados da estrutura social, que prevê
diferentes papéis a serem desempenhados de acordo com os grupos sociais
aos quais pertencemos.
Entre esses estão os papéis de gênero, que, de forma simplificada, podem
ser compreendidos como a construção histórica de um conjunto de normas
e práticas sociais que delimitam o que é ser mulher e o que é ser homem em
uma determinada sociedade. Segundo Valeska Zanello (2018), esses papéis
estão organizados em torno de dispositivos: uma série de discursos – incluindo
o discurso científico – práticas, instituições, organizações, leis etc., que com-
põem uma rede sistematizada nas estruturas de poder e atravessam os pro-
cessos de subjetivação do ser homem e do ser mulher. Para as mulheres, os
dispositivos centrais são o amoroso e o materno, enquanto para os homens é
o dispositivo da eficácia.
Faremos uma breve digressão histórica para compreender melhor esses
dispositivos, como eles se constituem e os seus impactos para os processos
de subjetivação de mulheres e homens.
Como ressaltamos acima, os afetos são construções sociais e com o amor
não seria diferente. Isso significa que o amor não é um fato natural ou algo
196
popularizou o seguinte ditado: “branca para casar, mulata para foder e negra
para trabalhar”.
Isso nos mostra que os papéis de gênero, para as mulheres, foram cons-
truídos conforme a conveniência: para umas a imposição da imagem da santa,
para outras a sujeição à alegoria da “puta”; para algumas a limitação ao tra-
balho doméstico e ao ambiente privado, para outras o trabalho escravo; ora
o controle sobre seus corpos como garantia da manutenção da propriedade
privada, ora elas próprias como propriedade dos homens brancos.
O que observamos, portanto, é uma verdadeira pedagogia dos afetos em
que, para as mulheres brancas, o amor romântico, a culpa, o doar-se e abrir
mão de si e a obediência e, para as mulheres negras, a servidão, o assujeita-
mento, mas também a resistência à dor, parecem ser processos afetivos centrais
nas ciências expressa também uma mudança qualitativa? Significa que superamos
a centralidade masculina no campo acadêmico? As experiências de mulheres
cientistas nos mostram, infelizmente, que ainda estamos muito distantes disso.
Conforme demonstra Londa Schiebinger (2001), historicamente as
mulheres foram excluídas dos espaços formais de educação, especialmente
das universidades, que se constituíram como o campo privilegiado da produção
de conhecimentos. Nas palavras da autora:
4 Financiadora de Estudos e Projetos, é uma agência pública brasileira de fomento à pesquisa, ciência,
tecnologia e inovação, desde 1967.
202
Você pode pensar que estes dados são antigos e que o cenário atual pode
ser muito diferente. Entretanto, se realizarmos uma busca rápida sobre a
5 Ainda não sabemos a extensão da duração da pandemia, muito menos de seus impactos.
6 Para mais informações, acessar: https://www.ufrgs.br/ciencia/pesquisa-da-ufrgs-revela-impacto-das-desi-
gualdades-de-genero-e-raca-no-mundo-academico-durante-a-pandemia/.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 203
rotineiro da ciência.
Uma das reflexões críticas que ela nos traz é de que os corpos coloniza-
dos e subalternizados, historicamente, foram destituídos da sua humanidade,
do seu lugar como sujeitos desejantes, agentes da história e produtores de
saberes. A academia, ao tratá-los somente como objetos do conhecimento,
reproduz essas violências e atua na manutenção de uma estrutura excludente.
214
REFERÊNCIAS
Adichie, C. N. (2019). O perigo de uma história única. Companhia
das Letras.
Lorde, A. (1984). Comentários sobre “The Personal and the Political Panel”.
Second Sex Conference, New York, 29 set. 1979. http://niltonluz.blogspot.
com/2012/02/o-texto-abaixo-e-uma-fala-de-audre.html.
pesquisa, assim como assinalam Narvaz e Koller (2006) não estão isentos de
aspectos epistemológicos, ideológicos e éticos. Ciência é feita por gente, com
nome, cor, classe social, diferentes concepções sobre o mundo e, portanto,
permeada por afetos.
O conceito de afeto aqui utilizado baseia-se na concepção de Heller
(1999), de que sentir é estar implicada em algo. A implicação é o afeto. Desse
modo, implicar-se com o pesquisar é ao mesmo tempo, afetar-se. Na obra da
autora, ação, pensamento e sentimento constituem um processo unificado, o
que questiona a oposição entre razão e emoção, ou seja, a racionalidade cientí-
fica antagônica à afetividade, proposta tradicionalmente pela ciência moderna.
Reconhecer a afetividade no discurso científico não é apenas um recurso
ou opção metodológica, refere-se também à forma como compreendemos o
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
3 O conceito de afeto na dissertação Violências contra as mulheres: afetos envolvidos nos processos de
abrigamento (2019) teve como embasamento teórico as contribuições de Agnes Heller (1999).
4 Conversas estabelecidas com as mulheres em situação de abrigamento e funcionárias/os durante minha
permanência na Casa Abrigo, realizadas no decorrer das atividades cotidianas na instituição.
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 225
Ao sair, percebemos que aquilo não fora, de fato, apenas um pré-teste para
a pesquisa e sim já parte de nosso processo de investigação, pois os afetos, que
pretendíamos estudar futuramente, já estavam em cena, de maneira informal.
Minha segunda visita na Casa foi planejada de modo semelhante,
tendo como foco as conversas informais que aconteceriam espontaneamente
enquanto eu estivesse na instituição. Segui a rotina e as regras estabelecidas,
fiz em conjunto as atividades pelas quais as pessoas abrigadas ficam responsá-
veis, como o almoço e o jantar. Brincamos com as crianças, lavamos a louça,
assistimos televisão, cochilamos após o almoço e dividimos experiências
enquanto algumas fumavam um cigarro na área externa.
Antes de iniciar a pesquisa, eu tinha a expectativa de realizar entrevistas
individuais, contudo, no decorrer do percurso, passei a questionar a obrigato-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
REFERÊNCIAS
Bonetti, A., & Fleischer, S. (2007). Entre saias justas e jogos de cintura.
Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC.
Certa vez, ao ser provocado a lançar reflexões sobre a questão “por que
pensarmos?”, Boaventura Souza Santos (2001) disse que formular pergun-
tas como essa, embora pareça um ato simples, lança-nos, paradoxalmente, a
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
(pp. 81)3 de modo específico. A ideia é que, visando aprofundar essa noção, os
afetos sejam entendidos não como tendências isoladas e/ou que possam mera-
mente ser somadas. Compreendê-los como arranjos vai justamente na contra-
mão de tomá-los como uma mera justaposição (a + b + c + [...]). Os arranjos
afetivos são, portanto, relacionais, em sua elaboração, composição e atuação.
A política dos afetos está em ação desde a sua própria dinâmica fundacional.
Nas tessituras das relações humanas – sentindo – nós elaboramos, descons-
truímos e reconstruímos arranjos afetivos. Como vias afetivas, nossas relações
se compõem como campo subjetivo potencial para afetarmos e sermos afetados
dinamicamente e a partir de infinitas composições. Mesmo naquelas experiên-
cias afetivas mais íntimas, nas quais possa parecer que estamos em envolvimento
apenas conosco mesmo, com uma lembrança ou com um pensamento inacessí-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
vel ao outro, ainda assim, as relações estão presentes, como veremos adiante.
5 “Como seres naturales, estamos expuestos inevitavelmente al sufrimiento, porque estamos expuestos a la
muerte. (...). Pero como seres sociales no estamos sometidos inevitablemente al sufrimiento. Y sin embargo,
como seres sociales, estamos sometidos al sufrimiento. Estamos sometidos al hambre, las guerras, la
opresión. La mayoría de la humanidad sufre”.
6 O conceito de ideologia vem sendo usado sob inúmeros enfoques teóricos, sendo passível de diversas
significações. Optamos, aqui, pela compreensão do fenômeno como um conjunto de aspectos simbólicos
que servem para estabelecer e manter relações de dominação (Guareschi, 2007, 2012).
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 233
reinventado, que estará em jogo a saída das crises maiores de nossa época.
Concluindo, as três ecologias deveriam ser concebidas como sendo da
alçada de uma disciplina comum ético-estética e, ao mesmo tempo, como
distintas uma das outras do ponto de vista das práticas que as caracterizam
(Guattari, 2001, pp. 55).
REFERÊNCIAS
Bonin, L. F. R. (2012). Indivíduo, Cultura e Sociedade. In M. G. C. Jacques
et al. (Org.). Psicologia Social Contemporânea. Vozes.
Santos, B. S. (2001). Seis razões para pensar. Lua Nova, (54), São Paulo.
https://www.scielo.br/pdf/ln/n54/a03n54.pdf.
C
Ciência afetiva 221
Colonialidade do poder 189, 192, 193, 196, 218
Composição dos afetos 26
Construção de vínculos 57, 58, 59, 62, 63, 64, 65, 66, 71
Culpa 63, 95, 98, 100, 101, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 112, 113, 114, 141,
198, 200, 204
D
Decolonialidade 187, 218
Decolonização 188, 194, 208, 213, 216
Desigualdade social 13, 162, 233
E
Ética 13, 37, 90, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 109, 114, 162, 189, 194, 207, 210,
214, 218, 223, 233, 236
Ética da desigualdade 13, 162
F
Feminismo 189, 208, 209, 213, 218, 219
Fraternidade 59, 66, 68, 70, 71
Funções parentais 59
240
M
Manutenção de vínculos 62, 71
Maternidade 41, 59, 60, 61, 65, 66, 68, 69, 70, 71, 74, 197, 198, 204
Medo 14, 17, 21, 22, 27, 30, 39, 41, 43, 46, 47, 49, 54, 63, 66, 68, 75, 76,
77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 112, 140,
141, 153, 229, 230
Memória 34, 37, 115, 116, 121, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 130,
131, 132, 133
Mulheres nas ciências 200, 201, 203, 206, 208, 218
P
Papéis de gênero 195, 196, 197, 200, 204, 207, 215
Paternidade 59, 60, 61, 62, 65, 66, 67, 68, 70, 71, 73
Pedagogia dos afetos 195, 200, 203, 204, 216
Política 23, 56, 74, 82, 96, 144, 189, 192, 195, 197, 209, 210, 212, 217, 222,
223, 229, 231, 233
Processos psicológicos 74, 133
Propostas feministas 188, 194, 208, 215, 216
Psicologia organizacional 149, 150, 152, 153, 154, 155, 156, 158, 159,
160, 162
Psicologia social 11, 12, 37, 132, 133, 162, 165, 183, 218, 222, 225, 236
R
Racionalidade 157, 183, 188, 191, 193, 194, 196, 203, 204, 205, 206, 209,
213, 214, 223
Relações interpessoais 20, 48, 55, 100, 203
S
Situação de risco 41
Subjetivação de mulheres 195, 203, 204, 207
T
Teoria de los sentimientos 114, 132, 146, 162, 236
O AFETO QUE NÃO SE ENCERRA: contribuições teóricas, metodológicas, éticas e
políticas sobre os processos afetivos 241
V
Vergonha 29, 83, 95, 96, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 112,
113, 114, 141, 142
Vínculos de afeto 61, 62
Violência doméstica 72, 135, 136, 137, 138, 139, 146
Vulnerabilidade 41, 57, 65, 78, 205
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
SOBRE OS AUTORES
Thiago Ohara
Possui graduação em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá
(2010). Pós-graduado em Psicanálise pela Unicesumar (2011) e em Proteção
Social pela UNESPAR (2013). Mestrado em Psicologia Social pela Universi-
dade Estadual de Maringá (2017). Doutorando do Programa de Pós-graduação
em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá. Pesquisa principalmente
os seguintes temas: representações sociais – emoções – medo – pós-moder-
nidade. Atua como psicólogo da Prefeitura Municipal de Londrina no cargo
de promotor de saúde pública.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
SOBRE O LIVRO
Tiragem não comercializada
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 x 19,3 cm
Tipologia: Times New Roman 10,5 | 11,5 | 13 | 16 | 18
Arial 8 | 8,5
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal | Supremo 250 g (capa)