Neoliberalismo e Assistência Social

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS - UNIMONTES

Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social - PPGDS

Calvin Batista Campos

NEOLIBERALISMO E ASSISTÊNCIA SOCIAL: UMA


ANÁLISE DO DISCURSO DE GESTORES DO SUAS

Montes Claros – MG
Julho/2022
Calvin Batista Campos

NEOLIBERALISMO E ASSISTÊNCIA SOCIAL: UMA ANÁLISE DO


DISCURSO DE GESTORES DO SUAS

Dissertação apresentada à Banca Avaliadora do


Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento
Social – PPGDS – da Universidade Estadual de
Montes Claros – UNIMONTES, como requisito
para futura obtenção do título de Mestre em
Desenvolvimento Social.

Membros da Banca:

Dr. Geraldo Antônio dos Reis (Orientador)


Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES

Prof. Dr. Ildenilson Meirelles Barbosa. (Coorientador)


Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES

Dr. Rafael Baioni do Nascimento (Avaliador Interno)


Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES

Dra. Francilene Gomes Fernandes (Avaliadora Externa)


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP

Montes Claros – MG
Julho/2022
À Vó Lela (em memória).
AGRADECIMENTOS

Agradeço à CAPES, pelo financiamento da pesquisa e por torná-la possível.


Agradeço aos colegas da Turma de Mestrado e Doutorado de 2020, por construírem
conjuntamente um ambiente de apoio mútuo. Fazemos ciência! Agradeço especialmente à
minhas amigas da Oficina de Escrita: Mariana Maia, Maryanne Villaboas, Amanda Freitas e
Kristianne Veloso – nossos encontros de leituras fizeram toda a diferença.
Aos professores e professoras do PPGDS, por estimularem reflexões importantes sobre o
desenvolvimento social, com muito cuidado e carinho.
Aos Profsº. Dr. Geraldo Antônio dos Reis e Dr. Ildenilson Meirelles, pela paciência e
segurança transmitida em uma época de desmedida incerteza.
Aos Profº. Dr. Rafael Baioni do Nascimento e à Profª. Dra. Francilene Gomes Fernandes,
pelas excelentes contribuições na qualificação e pelo olhar apurado.
À Melissa Fernandes, Sara Monteiro e Vera Suzart pela fiel amizade, pelo acolhimento
de sempre e por acreditarem em mim.
À Bianca, Mellissa, Leda e Claudeci, por me ensinarem a aprender em cada erro.
À Eros Nascimento, por estar ao meu lado – nos melhores e nos piores momentos.
EPÍGRAFE

[...] E o mesmo medo provocado pelo terror pode ser apaziguado e


ridicularizado pelo riso,
O qual tem a capacidade, desde os clássicos, de desmontar o pavoroso
e reduzir a angústia.
Adriano Messias – Todos os Monstros da Terra (2016, p. 210)
RESUMO

A presente pesquisa analisou se há performance do neoliberalismo no discurso de gestores


do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) atuantes em municípios da microrregião de
Januária, no norte de Minas Gerais. A pesquisa observou se e como o discurso neoliberal se
torna concreto e impacta a gestão da política e o trabalho assistencial. A pesquisa envolveu a
realização de oito entrevistas semiestruturadas. As entrevistas foram transcritas e analisadas
tendo por referência a Análise Institucional do Discurso. Os resultados mostram maior
performance do passado colonial, religioso e caritativo do que da inovação neoliberal na gestão
do SUAS, em municípios de pequeno porte I. Verifica-se que os gestores estão divididos, entre
aqueles que operam pela manutenção de poderes já estabelecidos e aqueles que operam para a
instalação de garantias sociais e constitucionais. Os novos e velhos problemas encontrados
estão longe de serem superados. Urge olhar para a responsabilidade da estrutura administrativa
do Estado de Minas Gerais e da União, bem como é urgente refletir sobre o futuro da proteção
social num contexto maior de intensa neoliberalização.

Palavras-chave: neoliberalismo, assistência social, discursos, gestão.


ABSTRACT

The present research analyzed whether there is a performance of neoliberalism in the


discourse of managers of the Unified Social Assistance System (SUAS) working in
municipalities in the micro-region of Januária, in the north of Minas Gerais. The research
observed if and how the neoliberal discourse becomes concrete and impacts policy management
and care work. The research involved eight semi-structured interviews. The interviews were
transcribed and analyzed with reference to Institutional Discourse Analysis. The results show a
greater performance of the colonial, religious and charitable past than of the neoliberal
innovation in the management of SUAS, in small municipalities I. It is verified that the
managers are divided between those who operate for the maintenance of already established
powers and those that operate for the installation of social and constitutional guarantees. The
new and old problems encountered are far from being overcome. It is urgent to look at the
responsibility of the administrative structure of the State of Minas Gerais and the Union, as well
as it is urgent to reflect on the future of social protection in a greater context of intense
neoliberalization.

Keyword: neoliberalism, social assistance, discourses, management.


LISTA DE SIGLAS

ACESSUAS – Programa Nacional de Acesso ao Mundo do Trabalho


AID – Análise Institucional do Discurso
BPC – Benefício de Prestação Continuada
CNAS – Conselho Nacional de Assistência Social
CRAS – Centro de Referência da Assistência Social
CF – Constituição Federal
GD – Gênero Discursivo
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IDHM – Índice de Desenvolvimento Humano Municipal
IGB – Índice de Gestão Descentralizada
LBA – Legião Brasileira de Assistência Social
LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social
NOBRH– Normas Básicas Operacionais de Recursos Humanos
PBF – Programa Bolsa Família
PNAS – Política Nacional de Assistência Social
PETI – Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
RAIS – Relação Anual de Informações Sociais
SUAS – Sistema Único de Assistência Social
SUDENE – Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste
SUS – Sistema Único de Saúde
ODS – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
ONU – Organizações das Nações Unidas
UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10

1 NEOLIBERALISMO NO BRASIL E NO MUNDO: UMA PALAVRA OCA? ........... 12


1.1 Esfera Econômica ......................................................................................................... 15
1.2 Esfera Ideológica ............................................................................................................ 25
1.3 Esfera Política ................................................................................................................ 34

2 A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL ............................................. 44


2.1 Configurações Atuais ..................................................................................................... 44
2.2 Controle Social, Heranças e Fragilidades. ...................................................................... 52
2.3 Caracterização do Norte de Minas. ................................................................................ 56

3 ASPECTOS METODOLÓGICOS .................................................................................... 59


3.1 A Construção do Objeto .................................................................................................61
3.2 Análise Institucional do Discurso como Método .......................................................... 63
3.3 O Campo ......................................................................................................................... 65

4 RESULTADOS E DISCUSSÕES ...................................................................................... 76


4.1 Qualificação e Comprometimento .................................................................................77
4.2 Convergências e Divergências..........................................................................................81
4.3 Categorias em Disputa......................................................................................................87

CONSIDERAÇÕES ...............................................................................................................90

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 93
10

INTRODUÇÃO

O presente trabalho é fruto da pesquisa de mestrado interdisciplinar em Desenvolvimento


Social e motivado pelas experiências profissionais do autor no âmbito do exercício da
psicologia na Política de Assistência Social.
A pesquisa é mobilizada por questões levantadas por uma diversidade de autores que não
necessariamente dialogam entre si. Analisando as configurações da chamada “nova classe
trabalhadora brasileira”, Jessé de Souza (2010) pontua que está em curso no país uma nova
forma de capitalismo, que se alimenta das próprias críticas que o atingem. Para o sociólogo, o
novo capitalismo financeiro põe em movimento outras dominações, de ordem cultural e
simbólica, expressas pelo culto ao consumismo, ao instantâneo, a retornos rápidos no ritmo de
uma feira de negócios ou de um show de rock. Novas formas de dominações que se exercem
no âmbito dos desejos, dos gostos (em uma dimensão moral) e até mesmo nos “bons modos” e
posições sociais; estas novas formas de dominações, para o autor, são vividas concretamente
pelos dominados, a “ralé”, caracterizada pelo sociólogo.
Souza (2010) está em um campo de discussão bem diferente de Butler (2019), Harvey
(2014) e Behring e Boschetti (2011). O geógrafo David Harvey (2014) analisa a virada
neoliberal que está em curso em todo o globo, em diferentes momentos desde o pós-guerra,
apesar das particularidades nacionais. Aliás, observa como o neoliberalismo se adapta às
políticas locais, sob a roupagem de discursos libertários, conservadores ou até mesmo sob
fórmulas de crescimento econômico. Por outro lado, Behring, Boschetti (2011), Netto (2013) e
Brettas (2017) analisam o contraditório cenário brasileiro que mescla políticas sociais com um
neoliberalismo soft, tal qual se vê durante os vinte anos que decorrem entre as décadas de 1990
e 2010 no Brasil. Para esse grupo de autores, o período dos governos brasileiros neoliberais
(tanto progressistas, quanto conservadores) constituíram entraves para que políticas sociais se
consolidassem como direito e, assim, pudessem enfrentar características históricas, como a
superação do caráter filantrópico de políticas públicas, as ações e apelos clientelistas e uma
forte ênfase compensatória de programas de transferência de renda.
Os referidos teóricos são interlocutores das questões que emergiram ao tomar o
neoliberalismo como tema central. O objetivo da pesquisa é, portanto, analisar discursos de
gestores públicos da política de assistência social em municípios de pequeno porte I, do norte
de Minas Gerais, com o fim de investigar em que medida os discursos reproduzem
características neoliberais.
11

Segue-se um desafio posto por Souza (2010) de que é preciso compreender com
profundidade o que é o neoliberalismo. Tal tarefa é realizada no primeiro capítulo, quando se
busca caracterizar o neoliberalismo nas esferas econômicas, ideológicas e políticas.
O segundo capítulo concretizará o segundo objetivo específico da pesquisa, que consiste
em investigar aspectos históricos da criação da política de assistência social no Brasil como
política pública. A literatura apresenta que o exercício de políticas públicas é permeado por
impasses da administração pública que põem em xeque a efetivação de seus fins, tais como a
prática do patrimonialismo, práticas coronelistas, clientelistas e até mesmo, no caso da política
de assistência social, o primeiro-damismo, que consiste em delegar à esposa do prefeito o cargo
da secretaria ou gestão da assistência social, um efeito nítido do histórico filantrópico e
caritativo da assistência social no Brasil.
Por tratar-se de uma pesquisa empírica, foram realizadas entrevistas com oito gestores
públicos para ouvi-los acerca da gestão da assistência social em seus municípios. O método
escolhido foi a Análise Institucional do Discurso (AID), desenvolvida por Guirado (2009) a
partir de interlocuções feitas pela autora com a filosofia de Michel Foucault, a sociologia de
Guilhon Albuquerque e a psicanálise freudiana. Para Guirado (2009), aquele que fala, o faz
para alguém sob determinadas condições e dentro de um contexto. A AID não pretende
investigar se o que é dito parte de representações infantis inconscientes, mas busca analisar as
condições da formação discursiva.
Partindo do entendimento de que políticas sociais estão em desmonte, sobretudo a
assistência social (MARQUES et al, 2019), o que a pesquisa objetiva não é verificar se os
gestores são ou não neoliberais. Até porque produziria poucos efeitos, considerando outros
desafios já elencados da administração pública local na execução da PNAS. Desafios que
ultrapassam o corte orçamentário e estão relacionados a quadros desfalcados de profissionais
(ocasionado muitas vezes por processos seletivos temporários), a questões políticas locais,
morosidade dos processos administrativos e outros fatores (SÁTYRO; CUNHA, 2019). O que
a AID pretende investigar é se e como os discursos dos gestores performam o neoliberalismo?
Por quais vias? Por quais modos?
O capítulo três busca compreender como funciona o discurso e caracteriza alguns
aspectos metodológicos construídos, que incluem: a construção do objeto científico, o recorte
do quadro de análise e propriamente a Análise Institucional do Discurso como método de
pesquisa.
Por fim, espera-se contribuir teoricamente provendo uma análise empírica de como
conceitos abstratos tornam-se concretos ao serem performados por gestores políticos. Um
12

significativo desafio que se realiza em um contexto de isolamento, em virtude da pandemia do


novo coronavírus, e de esvaziamento da esfera pública.

CAPÍTULO 1 - NEOLIBERALISMO NO BRASIL E NO MUNDO: UMA PALAVRA


OCA?

Pretende-se ao longo deste capítulo compreender os aspectos mais relevantes do


neoliberalismo, de modo a conhecer suas dinâmicas no interior de diferentes setores da
sociedade.
O capítulo se divide em três subcapítulos, nomeados como Esfera Econômica, Esfera
Ideológica e Esfera Política. Esferas porque entende-se que o neoliberalismo atua nesses
campos de modo dinâmico. A divisão entre Economia, Ideologia e Política tem fins analíticos,
visto que tais elementos estão imbricados um no outro. Um esforço foi empregado para
assinalar distinções entre as categorias; espera-se tornar evidente que tais esferas não são
totalmente independentes uma da outra. Uma melhor definição de tais categorias será
apresentada nos próprios subcapítulos. A observação atenta ao interior das categorias
Economia-Ideologia-Política mostra que para além de fatores políticos ou econômicos
preponderantes há atuações conjuntas e combinadas que se articulam pela hegemonia de
políticas neoliberais.
O panorama que se pretendeu construir acerca do neoliberalismo articulou diferentes
autores de campos que vão da filosofia e economia política, até teóricos críticos e geógrafos.
Da psicologia ao serviço social e de correntes teóricas múltiplas que nem sempre se convergem,
a profusão de autores, áreas e campos contribuiu para a reconceituação de um termo sem
consenso.
O termo Neoliberalismo é ambíguo e controverso, de tal forma que alguns autores
consideram mais apropriado usar o termo Pós-Neoliberalismo (PECK, THEODORE,
BRENNER, 2012) ou ainda Ultraneoliberalismo. Para outros, o neoliberalismo não só não
morreu, como se aperfeiçoou e segue em um ritmo acelerado, provocando crises institucionais
e democráticas (ANDRADE, 2019).
Contudo, apesar de ser um termo polêmico entre a esquerda e o meio acadêmico, a
literatura nas ciências sociais reconhece pelo menos duas principais correntes teóricas críticas
do neoliberalismo (ANDRADE, 2019): a corrente marxista e neomarxista, que pensa o
neoliberalismo como uma política de classe, apoiada numa ideologia econômica que visa
expandir a mercadorização. Nesse espectro estão Harvey (2014), Anderson (1995) e outros
13

teóricos que não se aprofundam no conceito de neoliberalismo, mas o compreendem a partir da


perspectiva marxista, como Behring e Boschetti (2011), Netto (2013) e, um pouco distante, mas
não obstante, Bourdieu (2001). E a corrente foucaultiana, que compreende o neoliberalismo
não só como a expansão do mercado em si, mas de seu modelo, difundido pela estimulação da
concorrência, da forma-empresa de ser e de “técnicas econômicas de avaliação e ranqueamento
para esferas da vida fora do mercado” (ANDRADE, 2019, p. 112). As transformações políticas
que se dão pela financeirização e pela normatização institucional das dominações de classe são
vistas mais como efeitos do que causa, de uma racionalidade política neoliberal. Entre os que
pensam assim estão o próprio Foucault (2008a, 2008b, 2005), Dardot e Laval (2016), Brown
(2019), Butler (2019) e Safatle, Silva Junior e Dunker (2021).
Há ainda análises que compreendem o neoliberalismo como articulador de políticas
econômicas globais e da mundialização da cultura ocidental, sendo, portanto, relacionado aos
processos de globalização (IANNI, 1998). Para o autor, a hegemonia do neoliberalismo se dá
de modo sistêmico, tensionado e repleto de contradições, pois envolve essas mesmas atividades
econômicas, políticas e culturais/sociais. “Daí a impressão de que o mundo se transforma no
território de uma vasta e complexa fábrica global e, ao mesmo tempo, em shopping center
global e Disneylândia global” (IANNI, 1998, p. 28)
Também é possível encontrar aqueles que são críticos ao uso do termo neoliberalismo,
sob o argumento de que nunca se explica de fato como o mundo neoliberal se faz “carne e osso”
todos os dias (SOUZA, 2010). Tal perspectiva é a que funda a hipótese deste trabalho, pois
trata-se de um apelo à uma tentativa de compreender, em vias empíricas, como uma abstração,
tal qual o neoliberalismo, se torna concreta e produz efeitos. Souza (2010) parte de uma tradição
nem marxista, nem foucaultiana, mas weberiana, que irá adotar os termos de sua própria
corrente epistemológica.

O que, na verdade, é comum, tanto ao liberalismo econômico dominante quanto ao


marxismo enrijecido dominado, é o fato de que ambos são cegos em relação a
verdadeira “novidade” do mundo no qual vivemos sem compreendê-lo
adequadamente (SOUZA, 2010, p. 21).

De forma que Souza não nega que tenha ocorrido transformações no capitalismo
financeiro brasileiro, mas sugere que é necessário compreender melhor como essas
transformações ocorreram.

Nesse sentido, temos que deixar claro como o “capitalismo financeiro e/ou flexível”
penetra na sociedade brasileira, para além de palavras de ordem abstratas e vazias de
sentido como “neoliberalismo”. Ou se explica como esse “neoliberalismo” se apropria
de práticas institucionais e sociais concretas com o fito de legitimar o acesso
14

injustificadamente desigual a todos os bens e recursos escassos em disputa na


sociedade, ou somos obrigados a perceber a repetição indefinida e oca desse bordão
como um desserviço de uma esquerda incapaz de imaginação e criatividade na crítica
social. Uma pesquisa empírica crítica e bem conduzida serve justamente para mostrar
como regras e princípios sociais abstratos se tornam “carne e osso”, “sofrimento e
sonho” de pessoas comuns que enfrentam dilemas cotidianos. É desse modo que a
ciência crítica pode redimensionar o debate na esfera pública acerca de que tipo de
vida coletiva queremos para nós mesmos (SOUZA, 2010, p. 40).

O argumento de Souza foi disparador para o desenvolvimento desta pesquisa. Isso


porque a postura desta pesquisa se opõe à segunda alternativa do autor, de que o neoliberalismo
é uma palavra oca e vazia.
Ao levar a sério tal categoria, a posição adotada é de que o neoliberalismo ultrapassa a
dimensão política ou ideológica ao abordar todas as esferas da vida, de modo que nada fica fora
do domínio neoliberal1.
Tal pressuposto não significa que as configurações econômicas e políticas presentes na
realidade contemporânea tenham sido objetivadas por teóricos neoliberais clássicos, como
Hayek e Friedman (BROWN, 2019; HARVEY, 2014).
No interior das discussões sobre características da agenda neoliberal, é comum afirmar
a importância e relevância que a economia assume nesse contexto. Mas compreender teses
econômicas não explica suficientemente a ascensão de uma moralidade amparada na
hegemonia branca, masculina e cristã (BROWN, 2019). Sendo assim, não basta analisar o
neoliberalismo a partir unicamente dos fundamentos econômicos, pois, para a autora, “o
neoliberalismo hayekiano é um projeto político-moral que visa proteger as hierarquias
tradicionais negando a própria ideia do social (BROWN, 2019, p. 23).
Dessa forma, os ataques à justiça social e à esfera pública em nome do mercado e do
tradicionalismo moral não se limitam aos chamados “conversadores” ou “direita”. Brown
(2019) observa que as reformas do Welfare promovidas pelo governo de Clinton são um
exemplo ótimo de um certo “neoliberalismo progressista”, ao defender a igualdade de
casamento para pessoas do mesmo sexo e a responsabilidade das famílias (aí não importa mais
a orientação sexual) na manutenção econômica de suas necessidades para prover para si
mesmas saúde, educação, bem-estar e transmissão geracional de riqueza.
De acordo com a definição de Brown, neoliberalismo está geralmente associado a:

Um conjunto de políticas que privatizam a propriedade e os serviços públicos,


reduzem radicalmente o Estado Social, amordaçam o trabalho, desregulam o capital e
produzem um clima de impostos a tarifas amigável para investidores estrangeiros
(BROWN, 2019, p. 29).

1
Esta também é a posição de Brown (2019) e Dardot e Laval (2016).
15

Mas essa não é exatamente a perspectiva que a autora segue em sua análise. A autora
segue tanto a abordagem foucaultiana, quanto a neomarxista. De acordo com Brown (2019) a
abordagem neomarxista está mais associada à análises institucionais, políticas e de relações e
efeitos econômicos, de modo a negligenciar a longo prazo um modo de governar as
racionalidades. A abordagem foucaultiana, por sua vez, enfoca as alterações de princípios,
valores, coordenadas que “conduzem a conduta” nas ordens liberais (BROWN, 2019, p.31).
Não se trata de duas abordagens opostas, nem pelo método, nem pela suposta dicotomia
entre o materialismo versus um ideal do poder (BROWN, 2019). Mas como complementares à
compreensão das transformações neoliberais que se dão de modo sistemático e contraditório. É
em razão disso que foi possível trabalhar com uma confluência de leituras neomarxistas e
foucaultianas, tal como orienta Brown.
Alguns temas, no entanto, foram deliberadamente evitados. Uma vez que, imergir na
discussão a respeito da liberdade, por exemplo, no interior do discurso neoliberal, em
contrapeso com fortes e densos argumentos de autores como Silva et al2 (2021), iria exigir mais
do que um capítulo. Também não foram antecipados alguns temas que serão abordados com
maior destaque em outros capítulos, tais como o próprio discurso e as particularidades da
política social no contexto brasileiro.

1.1- Esfera Econômica

Neste subcapítulo serão observados os fundamentos teóricos e econômicos que formam


o neoliberalismo, bem como os eventos globais que marcam sua trajetória. A compreensão dos
pilares econômicos do neoliberalismo abordará inicialmente o histórico das principais medidas
de proteção social, que posteriormente se configuraram como o chamado Estado de Bem-estar
Social. As primeiras legislações e medidas de proteção social surgiram em países como
Alemanha e Inglaterra no final do século XIX (PEREIRA; SILVA; PATRIOTA, 2006).
Posteriormente, eventos globais como a Segunda Guerra Mundial, abriram espaço para o
surgimento das think tanks, institutos de pesquisa liberal privados que articularam as teses
neoliberais entre acadêmicos, intelectuais, corporações midiáticas, empresas jornalísticas e

2
Ver: SILVA, Daniel Pereira da; PESTANA, Heitor; ANDREONI, Leilane; FERRETTI, Marcelo; FOGAÇA,
Marcia; SENHORINI, Mario; SILVA JUNIOR, Nelson da; AMBRA, Pedro. Matrizes epistemológicas da
episteme neoliberal: a análise do conceito de liberdade. In: SAFATLE, Vladimir; JUNIOR, Nelson da Silva;
DUNKER, Christian [orgs.]. Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. 1ª ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2021.
16

organizações empresariais (GROS, 2008). Também a criação da Sociedade Mont Pelerin, em


1947, é pontuada como o início do neoliberalismo na agenda política internacional (GROS,
2008; ANDERSON, 1995).
Pressupõe-se que o neoliberalismo se constitui como ideologia atual do capitalismo
tardio (NETTO, 2013; BEHRING & BOSCHETTI, 2011), propagado em grande parte pelos
esforços da globalização, estruturando-se por um conjunto sistemático de forças hegemônicas
nos campos econômicos e sociais. No caso brasileiro observa-se a implementação das políticas
sociais na década de 90 em um contexto ambíguo, onde, por um lado, encontra-se amplo avanço
de políticas neoliberais (PEREIRA; SILVA; PATRIOTA, 2006; BEHRING, 2006) e, por outro,
as políticas sociais se sedimentam, sobretudo em virtude da Constituição Federal de 88.

Disputas de Modelos de Bem-Estar Social

Abordar políticas de proteção social ou ainda de bem-estar social (welfare state) torna
necessário um retorno aos princípios que conduzem tais políticas, pois, diferentes teses e teorias
irão determinar os modelos, tipologias e narrativas de desenvolvimento e proteção social.
Grosso modo, políticas de bem-estar social visam melhorar a qualidade de vida de uma
população. Esping-Andersen (1991) aponta que tais medidas incluem serviços de assistência
social, saúde, educação, proteção ao desemprego, programas de previdência pública, entre
outros. Sendo assim, dizem respeito à participação e responsabilidade do Estado na regulação
dos interesses entre mercado e sociedade civil.
Ainda de acordo com Esping-Andersen (1991), políticas de bem-estar social não podem
ser compreendidas suficientemente apenas em termos de garantias e direitos. A reconceituação
que o autor propõe vai além da própria proposição de Marshall, de cidadania social como
fundamento de um estado de bem-estar. Envolve antes disso garantir os direitos sociais e mais:
“desmercadorizar” os indivíduos diante do mercado, de modo que estes possam fazer escolhas
que vão além das relações de mercado.
Em Ensaio sobre o “Bem-Estar Social”, Titmuss (1963) compreende o bem-estar social
como efeito dos processos da industrialização, que promoveu a divisão social do trabalho; as
políticas de proteção social desenvolvem-se no período industrial quando se passa a reconhecer
estados de dependência, tal qual a velhice, a infância e mesmo as doenças provocadas pelo
ritmo industrial. A industrialização fragilizou as formas tradicionais de proteção social
(mediadas pela família e por valores como a ‘solidariedade’ e a ‘caridade’) e promoveu a
competitividade entre os trabalhadores pela promessa de recompensar a produtividade
17

(VAZQUEZ, 2007). Outra importante transformação que ocorre no período industrial diz
respeito à organização social dos próprios trabalhadores que constituem núcleos de disputas
sobre direitos trabalhistas, tal como organizações sindicais.
Pereira, Silva e Patriota (2006) afirmam que a existência de políticas sociais está
condicionada à existência da sociedade burguesa, especificamente do modo capitalista de
produzir e reproduzir-se. As autoras apresentam que as primeiras leis e medidas surgem em
países europeus como Alemanha e Inglaterra no final do século XIX, mas que se consolidam e
se transformam em distintos modelos e abordagens de políticas sociais em outros países no
século XX, especialmente após a II Guerra Mundial.
Titmus (1963) classifica os modelos de proteção social em: 1) modelo residual, de caráter
temporal e limitado, o qual é acionado quando as instituições naturais e tradicionais (família,
vínculos de parentesco, igreja, mercado) não estão em condições de suportar as
necessidades dos indivíduos; 2) modelo institucional redistributivo, de caráter
universalista, que destina-se à produção e distribuição de bens e serviços sociais a toda a
população, de modo a institucionalizar o bem-estar social; e 3) modelo meritocrático, que
parte do princípio de que cada indivíduo deve prover as condições de sanar suas próprias
necessidades, de modo que a política social apenas corrige falhas do mercado (PEREIRA;
SILVA; PATRIOTA, 2006).
Em um estudo comparativo, Esping-Andersen também categoriza três modelos
tipológicos de proteção social no âmbito de um estado de bem-social: 1) o modelo liberal; 2) o
modelo conservador/corporativo e 3) o modelo social-democrata (ANDRADE;
ZIMMERMANN, 2009). O primeiro corresponde ao modelo residual (caracterizado por
Titmuss), no qual o Estado tem função marginal, de modo a garantir apenas um nível mínimo
de bem-estar. O traço principal do modelo liberal é a responsabilidade individual que depende
do “sucesso ou fracasso” do sujeito na sociedade.
Por sua vez, o modelo conservador-corporativo possui forte influência da Igreja e dos
valores tradicionais3 de modo a assegurar lealdade, dependência e a subordinação ao Estado
(VAZQUES, 2007). Também Arretche (2007) enfatiza que este modelo foi predominante em
países com histórico de regimes absolutistas, tais como França, Alemanha, Áustria, Bélgica e
Itália; nesses países a Igreja teve um papel influente nas reformas sociais. A autora também
destaca que “em vários países o legado conservador representou um forte obstáculo às reformas
de orientação social-democrata [...]” (ARRETCHE, 2007, p. 29).

3
Baseados na família e no conservadorismo.
18

O terceiro modelo identificado por Esping-Andersen (1991) é o social-democrata. Neste,


os benefícios, seguros e direitos são garantidos universalmente a todos pelo critério da
equalização, contrário aos critérios meritocratas do modelo residual. Caracteriza-se também
pela não obrigatoriedade de comprovação da necessidade e o Estado atua substituindo o
mercado, com fim de produzir efeitos de desmercadorização, ou seja, emancipar o indivíduo do
mercado (VAZQUEZ, 2007). Vale destacar que este modelo predomina sobre um número
pequeno de países escandinavos, como a Suécia, sendo comum a estes países a busca pela maior
qualidade de vida a todos os cidadãos (ANDRADE; ZIMMERMANN, 2009).
A atitude central dos regimes social-democratas é elevar a responsabilidade pública
acima da dinâmica mercadológica e da tradição familiar na provisão dos bens e
serviços dos seus sistemas de proteção social. Logo, para chegar à seara da
desmercantilização, estes países ofertam uma larga carga de benefícios e serviços
sociais. Há que se destacar que os regimes de proteção social-democratas não se
caracterizam e não se restringem apenas a oferta de serviços universais, mas os
serviços e benefícios são elevados a níveis compatíveis até mesmo com o gasto mais
refinado das novas classes médias (ANDRADE; ZIMMERMANN, 2007, p. 66).

Para Behring e Boschetti (2006; 2011) dois principais processos político-econômicos


enfraqueceram os argumentos liberais entre a segunda metade do século XIX e início do século
XX: 1) o crescimento do movimento operário obrigou a burguesia a reconhecer direitos de
cidadania política e social e 2) a alta concentração e a monopolização do capital ruiu a utopia
liberal do indivíduo empreendedor; cada vez mais o mercado foi liderado por grandes
monopólios e a criação de empresas dependeu de um grande volume de investimento e
empréstimos bancários, orquestrando uma verdadeira fusão entre capital bancário e industrial,
que deu origem ao capital financeiro.
Os ideais liberais prevalecem sobre os democratas, humanistas, reformadores e socialistas
pelo menos até o início do século XX. Os processos político-econômicos elencados por Behring
e Boschetti (2006; 2011) visibilizam as contradições internas do capital e o enfraquecimento
dos ideais liberais. No primeiro, destacam a importância da vitória do movimento socialista
russo em 1917 para o fortalecimento do movimento operário internacional, de modo a
configurar maior poder aos trabalhadores para reivindicarem acordos coletivos diante das novas
formas de produção que surgiram com o advento do fordismo. O segundo processo exponencia
a contradição capitalista: “a concorrência intercapitalista feroz entre grandes empresas de base
nacional ultrapassou as fronteiras e se transformou em confronto aberto e bárbaro nas duas
grandes guerras mundiais” (BEHRING & BOSCHETTI, 2011, p. 68). Mas para além das
guerras, a contradição é sobretudo mediante o reconhecimento das elites sobre as consequências
da autorregulação dos mercados: a Grande Depressão.
19

A Grande Depressão, desencadeada pelo crack da Bolsa de Valores de Nova Iorque em


24 de outubro de 1929 (também conhecido como quinta-feira negra), ocorreu entre 1929 e 1933,
e provocou a maior crise econômica mundial do capitalismo (BEHRING & BOSCHETTI,
2011). A crise de 29 provocou impactos para além dos Estados Unidos, afetando
economicamente a Europa, África, Ásia e América Latina.
No período da Grande Depressão, o economista britânico John M. Keynes contrapôs o
laissez-faire smithiano argumentando que, em períodos de crise, o Estado deveria intervir na
economia. Keynes abalou a crença no Estado mínimo ao advogar que “os controles centrais
necessários para assegurar o pleno emprego exigirão, naturalmente, uma considerável extensão
das funções tradicionais de governo” (1996, p. 346). A resposta keynesiana, incorporada no
programa New Deal do presidente americano Roosevelt, em 1933, estabelece prenúncios para
políticas vindouras de bem-estar social.

O pacto keynesiano se funda na institucionalização das demandas do trabalho,


descolando o conflito para o interior do Estado. Neste espaço, há uma forte tendência
à segmentação das demandas, bem como de tecnocratizar questões econômico-
políticas, despolitizando-as. [...] É possível afirmar que o pacto keynesiano é
viabilizado a partir de uma situação-limite para o movimento operário: o vácuo das
direções nacionais e internacional, com um projeto econômico-político claro e
independente; e o corporativismo que decorre daí e remete o movimento ao
imediatismo dos acordos em torno da produtividade, sobretudo do setor monopolista,
sem nenhuma visão de totalidade e da solidariedade e de classe (BEHRING, 1998, p.
173).

As chamadas Políticas Sociais que surgem na década de 1940 na Inglaterra e integram


um complexo político-institucional, também denominado como Seguridade Social. Pastorini
(1997) chama a atenção para a necessidade de ultrapassar visões binárias que enxergam tais
políticas apenas como concessão capitalista ou conquista dos trabalhadores. A autora descreve
tal dualismo através do que chama de: 1) perspectiva tradicional, e 2) perspectiva marxista das
políticas sociais. Na primeira, as políticas sociais se expressam por conjunto de ações estatais
que visam diminuir as desigualdades sociais e tendem a corrigir falhas do mercado que são
inerentes à lógica capitalista. É nesta perspectiva que muitos enxergam benefícios, serviços ou
programas voltados aos mais pobres, desprovidos ou espoliados, como concessões por parte do
Estado, que tendem a redistribuir os recursos a fim de promover o bem-estar social.
A segunda perspectiva incorpora uma crítica à primeira. Para a autora, a perspectiva
marxista destaca que as políticas sociais não são produtos de relações bipolares, mas múltiplas,
que envolvem no mínimo três agentes, como as classes hegemônicas (ou elite), o Estado
intermediador de caráter hegemônico e as classes trabalhadoras e subalternizadas. Os autores
da perspectiva marxista ressaltam ainda que antes à “concessão” estatal, lutas e conflitos foram
20

travados pela classe trabalhadora, de modo a configurar políticas sociais como conquistas
(PASTORINI, 1997).
Ainda que tecendo críticas à perspectiva marxista, Pastorini observa avanços em relação
à tradicional, como as noções de totalidade e a centralidade e relevância à luta de classes.

Estudar as políticas sociais a partir de uma perspectiva da totalidade implica, por um


lado, apreender conjuntamente os momentos de produção e de distribuição como
elementos constitutivos de uma totalidade, “diferenciação no interior de uma unidade”
(MARX, 1977:217). Mas, por outro, implica, também, considerar os indissolúveis
entrelaçamentos existentes entre economia e política. Desta forma, só poderemos
capturar a complexidade de um fenômeno social se compreendermos os seus vínculos
com a economia e a política; sem descuidar nem de uma nem de outra dimensão da
totalidade social (PASTORINI, 1997:87).

Portanto, a perspectiva marxista observa que as políticas sociais se constituem como uma
unidade contraditória:

pois ao mesmo tempo em que responde positivamente aos interesses dos


representantes do trabalho [...] na sua luta contra o capital, também atende
positivamente aos interesses da acumulação capitalista (PEREIRA; SILVA;
PATRIOTA, 2006).

Hobsbawm (2013) pontua que até o final do século XIX o contexto era de uma classe
média alta extremamente seleta.

Em 1875, mesmo na bem instruída Alemanha, apenas 100 mil crianças frequentavam
o ginásio humanista (ensino médio) e pouquíssimas chegavam ao exame final, o
Abitur. Não mais que 16 mil estudavam nas universidades. Até a véspera da Segunda
Guerra Mundial, a Alemanha, a França e a Grã-Bretanha, três dos países maiores,
mais desenvolvidos e instruídos, com uma população total de 150 milhões, não tinham
mais de 150 mil estudantes universitários, ou um décimo de 1% de sua população
conjunta. A espetacular expansão da educação secundária e universitária depois de
1945 multiplicou o número dos instruídos, ou seja, dos treinados basicamente nas
culturas do século XIX ensinadas nas escolas, mas não necessariamente o número dos
que se sentiam à vontade nessas culturas (HOBSBAWM, 2013, p. 10).

O prevalecimento dos ideais liberais da segunda metade do século XIX até a Grande
Depressão fragilizou a implementação de políticas de proteção social, como relata Behring
(2011), fato observado pela baixa participação do gasto público em política social com base no
PIB. O Gráfico 1, a seguir, mostra que os gastos em políticas sociais nos governos centrais por
volta de 1880, foram irrelevantes não passando de 5%, sendo o maior registrado da Alemanha,
4,82%.
21

Gráfico 1: Gasto Público em Política Social com base no PIB, de 1880 a 2016.

Fonte: Our World in Data: ORTIZ-OSPINA; ROSER, 2016.

O cenário só muda após o pacto keynesiano, que eleva significativamente os gastos em


políticas sociais, entre as quais se encontram políticas de saúde, previdência, habitação, ativação
do mercado de trabalho, combate ao desemprego e outras. Em 1960, o gasto social na
Alemanha, que encabeça o financiamento de políticas sociais, chega a 15,37%. Pereira, Silva e
Patriota (2006) relatam que as medidas de políticas e proteções sociais só são efetivamente
incorporadas como políticas de Estado em meados de 1940-1945 quando passam a ser
reconhecidas como direitos sociais nos países centrais.
Na América Latina, as disparidades são o denominador comum do desenvolvimento
social, visto que se trata de uma das regiões mais desiguais do planeta. Kerstenetzky (2012)
enfatiza o que denomina como a desigualdade nas desigualdades – os países latino-americanos
possuem mais dessemelhanças do que afinidades, constituindo o que chama de “microcosmo
das disparidades”.

Neoliberalismo em Oposição Ao Bem-estar Social


De acordo com Anderson (1995), o texto original da ideologia neoliberal é de Friedrich
Hayek, O Caminho da Servidão (1944). Trata-se de um ataque às políticas sob orientação de
um Estado intervencionista e de bem-estar social, em especial ao Partido Trabalhista Inglês,
que venceria as eleições gerais na Inglaterra em 1945. Enfaticamente, Hayek declara: “apesar
de suas boas intenções, a social-democracia moderada inglesa conduz ao mesmo desastre que
o nazismo alemão – uma servidão moderna” (citado por ANDERSON, 1995, p. 09). Em 1947,
Hayek convoca na Suíça uma reunião com simpatizantes de sua teoria e fortes opositores do
22

New-Deal estadunidense, para fundarem uma instituição altamente dedicada e organizada a


combater o keynesianismo: a Sociedade de Mont Pelerin.
Tem-se aí então o início de um movimento ideológico neoliberal. Com encontros bienais
e convidados internacionais, a Sociedade de Mont Pelerin não mobilizaria sua doutrina sem
instituições de financiamento de pesquisas liberais, as think tanks, e sem a articulação de
intelectuais, acadêmicos, revistas, jornais e organizações empresariais (GROS, 2008).
De acordo com Gros (2008), as think tanks, também conhecidas como banco de ideias,
formularam, a partir de meados de 1940, projetos de políticas públicas com forte orientação
liberal, promoveram estudos liberais e desenvolveram publicações, livros, análises, previsões e
especulações de mercado, bem como panfletos de circulação popular.
As atividades das centenas de think tanks que surgiram depois disso não se restringiram
ao debate exclusivo das teorias econômicas e políticas de Estado. A exemplo, nos anos 1970,
grupos do Partido Republicano nos EUA promoveram eventos em que “exaltavam o
conservadorismo social, o racismo e o patriotismo, como as campanhas sobre questões
específicas, os singles issue movements, contra o aborto, os gays, o controle de armas, etc.”
(GROS, 2008).
Entre as principais think tanks estão: Institute of Economic Affairs, Center for Policy
Studies, Adam Smith Institute, Foundation for Economic Education, Intercollegiate Society of
Individualists, American Enterprise Institute, o Instituto de Estudos Empresariais e o Instituto
Liberal do Brasil, entre outros. Tais instituições foram fundamentais para a internacionalização
da ideologia neoliberal. Nos anos 60, ocorreu um aumento expressivo de think tanks nos EUA
e, atualmente, estima-se que existam no mínimo 1.000 think tanks em operacionalização
(apenas nos Estados Unidos). Muitas dessas instituições são patrocinadas e financiadas por
grandes empresas e outras são sustentadas por fortunas industriais de diversos setores, como
cervejarias, aço e produtos químicos. Uma única fundação destinou U$55 milhões para este
tipo de apoio em 1988 (GROS, 2008).
A princípio, o neoliberalismo nasce como forte oposição a qualquer mecanismo estatal
de controle ou regulação do mercado. Após a crise financeira dos países centrais na década de
70, o alvo dos projetos de governo neoliberais passou a ser os sindicatos e o movimento
operário, que ameaçavam na época as bases da acumulação capitalista (ANDERSON, 1995).
Para Harvey:

o neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas políticas-econômicas


que propõe que o bem-estar humano pode ser mais bem promovido liberando-se
as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma
23

estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos a propriedade privada,


livres mercados e livre comércio (2014, p.3).

Além dos espaços ocupados nestas instituições de pesquisa e ensino, os principais


defensores das teses neoliberais ocuparam desde os anos 70 diferentes posições em campos de
significativa influência, como setores especializados do Estado (ministérios, secretarias, bancos
centrais, Tesouro), órgãos internacionais (FMI, Banco Mundial, OMC), meios de comunicação
e conselhos administrativos de instituições financeiras (HARVEY, 2014)
Como observa Anderson (1995), o programa neoliberal configurou-se de modos muito
distintos ao redor do mundo, tanto em governos reconhecidos como de direita, como em
governos de esquerda. Harvey (2014) também destaca que as teses neoliberais originais
compreendem que o bem-estar social só pode ser maximizado se todas as relações humanas
forem enquadradas no domínio do mercado.
Em um amplo panorama, pode-se destacar que o neoliberalismo, na maior parte das
experiências observadas na literatura, caracteriza-se por: uma taxa significativa e permanente
de desemprego, corte de gastos sociais, programas de privatização (mercadorização de serviços
públicos), repressão sindical, desregulamentação dos direitos sociais, informalização e
desproteção do trabalho, apelo à meritocracia e à competição individual (ANDERSEN, 1995;
GROS, 2008; PEREIRA, SILVA, PATRIOTA, 2006; HARVEY, 2014). Harvey, no entanto,
relata um cenário de completo caos, programas imersos em contradições entre a teoria
neoliberal e a prática no interior das realidades nacionais que derivam de uma “tensão criativa”,
como nomeado pelo autor, pois desprende-se uma verdadeira pressão para que os governos
executem na localidade programas internacionalmente reconhecido como neoliberais.

Primeiras Experiências
No plano político, a ideologia neoliberal penetrou governos antes mesmo de Thatcher
(1979 na Inglaterra) e Reagan (1980 nos Estados Unidos). Embora as principais experiências
de implementação de políticas neoliberais ao redor do mundo contem com significativa
influência da agenda de governos norte-americanos, é equivocado atribuir a hegemonia do
neoliberalismo ao “novo imperialismo norte americano” (HARVEY, 2014).
Com a doutrina Truman tem-se o início da Guerra Fria, de pleno combate entre os
sistemas capitalistas e socialistas, no qual disputas ideológicas são travadas mundialmente entre
1947 até o final do século. O que, a princípio, pretendia combater o keynesianismo, logo
consolidou-se como um movimento conservador de defesa da propriedade privada, da livre-
empresa, do horror ao comunismo e uma tecno-estrutura mundial de poder (IANNI, 1998;
24

GROS, 2008). Neste período, Hayek refuta veemente o ‘caminho do meio’ entre o totalitarismo
e o sistema econômico liberal competitivo como proposta de desenvolvimento (ANDRADE;
ZIMMERMANN, 2009; GROS, 2008) mas, é só a partir dos anos 80 que Thatcher e Reagan
adotarão o programa neoliberal como central em suas agendas políticas
Como destaca Harvey (2014), as experiências de implementação do neoliberalismo
constituem curiosos casos no qual a periferia se torna exemplo para o centro - países capitalistas
avançados. A primeira experiência “exitosa” de implementação do neoliberalismo foi registrada
em 1973 no Chile, quando um golpe de Estado é orquestrado contra o governo
democraticamente eleito de Salvador Allende. Apoiado por corporações estadunidenses, pela
CIA e pelo secretário de Estado Henry Kissinger, o golpe reprimiu as forças sindicais,
organizações de esquerda e movimentos populares (HARVEY, 2014). Mas o que há de
neoliberal na intervenção?
Em uma época de recessão econômica, Pinochet convida parte do grupo de economistas
conhecidos como “the Chicago boys” para seu governo com intuito de negociar empréstimos
com FMI, reestruturando assim a economia do Chile conforme as teorias neoliberais; os
economistas

Reverteram as nacionalizações e privatizaram os ativos públicos, liberaram os


recursos naturais (pesca, extração de madeira etc.) à exploração privada e não regulada
(em muitos casos reprimindo brutalmente as reivindicações das populações
indígenas), privatizaram a seguridade social e facilitaram os investimentos
estrangeiros diretos e o comércio mais livre. [E] O direito de companhias estrangeiras
repatriarem lucros de suas operações chilenas foi garantido (HARVEY, 2014, p. 18).

Posteriormente, observa-se uma série de ondas de privatizações que ocorreram nos


governos do México em 1988-92, da Argentina e Venezuela em 1989 e do Peru em 1990
(ANDERSON, 1995; HARVEY, 2014). Além das já conhecidas com os governos de Thatcher
no Reino Unido em 1979 e de Reagan nos Estados Unidos em 1980.
No caso brasileiro, quais são as marcas que o neoliberalismo deixou em território
nacional? Behring e Boschetti (2011) salientam que estas marcas existem e é possível
identificá-las até os dias atuais, mas que pesa à análise a discussão sobre outros fatores como a
colonização, o escravismo e o desenvolvimento desigual e combinado, tal como defendem
alguns autores do campo das ciências sociais, mas que neste trabalho não serão aprofundadas4.
O liberalismo brasileiro que se desenvolvia na década de 30 não sustentava os direitos sociais

4
Para melhor compreensão acerca destes fatores elencados, recomenda-se os trabalhos do historiador Caio Prado
Jr., Formação do Brasil Contemporâneo, São Paulo: Brasiliense, 1991 e do sociólogo Octavio Ianni, A Ideia de
Brasil Moderno, São Paulo: Brasiliense, 1992.
25

aos moldes que vinham sendo reconhecidos nos países centrais. E como argumentam Filho
(2016) e Netto (2013), o neoliberalismo só será descoberto correndo nas veias das políticas
brasileiras após a Constituição de 88, sobretudo na década de 90 e início dos anos 2000, uma
espécie de neoliberalismo soft.
O que se destaca dessas experiências não são seus resultados para as economias
domésticas, mas o sucesso de mercadorização das relações sociais e um modo de reestruturação
de classe que será abordada no subcapítulo seguinte. Os objetivos do neoliberalismo não são
nunca conquistados como se apresentam, por exemplo: a) na promessa de Hayek de combater
o bem-estar social e recuperar o liberalismo clássico, o que se conquista não está no campo da
economia, mas da ideologia ao conquistar instituições governamentais, acadêmicas, as mídias,
o senso comum, por fim, a esfera social; b) na promessa da doutrina Truman de assumir a
“responsabilidade” de defender a liberdade e propagá-la ao redor do mundo, o que se conquista
é uma nova forma de colonialidade “conquistada” pela vitória do capitalismo na Guerra Fria,
tal como no caso do golpe chileno cujo forças interventoras não foram exclusivamente militares,
mas econômicas (The Chicago Boys); e c) o que se conquistou sobretudo no governo de
Thatcher não foi a liberalização econômica, tal como Thatcher declarava “a economia é o
método, mas o objetivo é transformar o espírito”, alcançou-se com isso muito mais do que se
pretendia ao mercadorizar as relações sociais.
Para compreender isso é indispensável conhecer o fundamento das teses liberais que, para
Bourdieu, se encontra no pressuposto de que os agentes, no capitalismo o homo economicus,
agem mediados pela razão.

As disposições econômicas as mais fundamentais, necessidades, preferências,


propensões [ao trabalho, à poupança, ao investimento], não são exógenas, isto é,
dependentes de uma natureza humana universal, mas endógenas e dependentes de
uma história, que é precisamente a do cosmos econômico, onde são exigidas e
recompensadas (BOURDIEU, 2001, p. 22).

Ou seja, as escolhas econômicas dos agentes, atores ou sujeitos não são universalmente
mediadas por uma razão ou consciência; mas estão imersas e dependem do próprio contexto
sócio-histórico. O que se busca compreender em seguida é: quais são as estratégias táticas-
ideológicas que formam essa suposta racionalidade universal do neoliberalismo?

1.2- Esfera Ideológica

Será tratado neste subcapítulo sobre o aspecto ideológico do neoliberalismo. É sabido


que discorrer sobre o tema é uma tarefa árdua, isso porque o termo ideologia é constantemente
26

usado em discursos políticos e midiáticos em sentidos distantes de conceitos teóricos. Mas


também em virtude do acúmulo teórico de vários autores, escolas e tradições que versam sobre
o tema.
Será feita uma breve incursão no sentido marxista de ideologia, desenvolvido na obra A
Ideologia Alemã, escrito por Marx e Engels entre 1845/1846. Os parágrafos que seguem
introduzem a ideologia em um plano geral; isso porque a obra [A Ideologia Alemã] trata de
uma crítica à filosofia pós-hegeliana e aprofunda vários outros conceitos que estavam à época
sendo elaborados pelo jovem Marx.
De acordo com Bobbio (1998):

Em Marx, Ideologia denotava ideias e teorias que são socialmente determinadas pelas
relações de dominação entre as classes e que determinam tais relações, dando-lhes
uma falsa consciência. Na evolução sucessiva do significado da palavra, perdeu-se
geralmente, salvo na linguagem polêmica da política prática, a conexão entre
Ideologia e poder. Quanto ao mais, o destino deste significado de Ideologia foi
centrado nas relações entre dois dos elementos constitutivos da formulação originária:
o caráter da falsidade da Ideologia e a sua determinação social. De uma parte,
manteve-se e se generalizou o princípio da determinação social do pensamento, com
o resultado de perder de vista o requisito da falsidade: a Ideologia se dissolveu no
conceito geral da sociologia do conhecimento. De outra parte, manteve-se,
generalizou-se e reinterpretou-se o requisito da falsidade, com o resultado de perder
de vista a determinação social da Ideologia: o ponto de chegada é, neste caso, a crítica
neopositivista da Ideologia (p. 585).

De modo resumido, o conceito marxista de ideologia o define como falsa consciência.


A consciência, na ideologia alemã, era marcada pelo distanciamento do mundo real, de modo a
produzir uma consciência iludida ao ser consciente, de algo que ele não é (BALDI, 2019).
Importante salientar que até chegar a essas formulações, muitos outros conceitos foram
elaborados, como as determinações da alienação, o trabalho estranhado e a divisão social do
trabalho. Retornando à consciência, Marx afirma:

Também as formulações nebulosas na cabeça dos homens são sublimações


necessárias de seu processo de vida material, processo empiricamente constatável e
ligado a pressupostos materiais. A moral, a religião, a metafísica e qualquer outra
ideologia, bem como as formas de consciência a elas correspondentes, são privadas,
aqui, da aparência de autonomia que até então possuíam. Não tem história, nem
desenvolvimento; transformam-se também, com esta sua realidade, seu pensar e os
produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que
determina a consciência. No primeiro modo de considerar as coisas, parte-se da
consciência como do indivíduo vivo; no segundo, que corresponde à vida real, parte-
se dos próprios indivíduos reais, vivos, e se considera a consciência apenas como sua
consciência (MARX, 2007, p. 94).

Chaui (2003) também explica que, para Marx, a alienação é a forma inicial da
consciência, quando os homens não se percebem como produtores da sociedade, mas julgam
ser um Outro que define a ordem da vida e da forma social, quer seja um deus, a natureza, uma
27

essência etc. “E porque a alienação é manifestação inicial da consciência, a ideologia será


possível: as ideias são tomadas como anteriores à práxis” (CHAUI, 2003, p. 62).
Marx chega à máxima “eles não sabem disso, mas o fazem” apenas no estágio de
maturidade, ou seja, no livro I do Capital, em 1867, já tendo elaborado a noção do fetichismo
da mercadoria.
Baldi (2019) acrescenta que um debate fundamental se cria em torno da questão de
ideologia, sobre ser compreendida pelo sentido negativo, de mistificação, distorção ou
propriamente falsa consciência tal como formulado na Ideologia Alemã, ou pelo sentido
positivo, expresso no prefácio da Contribuição à Crítica da Economia Política, de 1859, que
se refere às formas jurídicas, políticas, ideológicas, religiosas, artísticas ou filosóficas de
adquirir consciência do conflito. Ambos os caminhos conceituais são marxistas e muitos outros
teóricos marxianos desdobram o conceito da ideologia, defendendo que não é suficiente resumir
a ideologia no sentido negativo “falsa consciência”, ou que seria errônea essa redução.
Também é importante assinalar que, no Capital, conceitos como alienação e ideologia
já se apresentaram de modo “mais acabado”, e assim como o fetichismo e a reificação, outros
importantes conceitos, se tornam maneiras precisas de tratar do problema do estranhamento
(BALDI, 2019). Entre muitos autores que discutem a ideologia marxista, Iasi (2015) afirma

Fica evidente que os autores não tratam a ideologia como mero conjunto de
representações ideais, ou uma visão de mundo, mas como uma inversão. A
consciência só pode ser a expressão ideal dos seres humanos e suas relações, mas na
ideologia eles aparecem invertidos e esta inversão, dado o pressuposto acima
anunciado, só pode expressar uma inversão no campo da vida real e das relações que
a constituem e não um desvio cognitivo (p. 7).

Com visto, já estava presente no sentido marxista a operação de uma inversão da


racionalidade. Realiza-se então um salto até as críticas em relação à própria Teoria Crítica. Tal
salto será necessário para chegar à compreensão que se pretende neste subcapítulo acerca do
cinismo da ideologia neoliberal.

O Cinismo Da Ideologia Neoliberal

Avança-se a concepção de ideologia que será adotada neste trabalho, presente no


pensamento dos autores Slavoj Zizek, Vladimir Safatle e Peter Sloterdijk. Tal escolha é
mediada por um ponto de intersecção entre estes autores e este trabalho: o cinismo como
modalidade-fórmula ideológica. As justificativas de nomeação da estratégia ideológica do
neoliberalismo como cínica se encontrarão ao longo do tópico.
28

Na obra Crítica da Razão Cínica, mediante retorno a temas centrais da filosofia no século
XX, Sloterdijk estabelece sobretudo uma crítica à própria teoria crítica e, em últimas
circunstâncias, à razão pura. Questionando a função da crítica, o autor busca tratar dos limites
sociais e existenciais do Esclarecimento na modernidade. Para Sloterdijk (2012), o
Esclarecimento, de intelectuais que pretendem desvelar a verdade aos não-iniciados (supostos
alienados), não é mais suficiente. Nesse sentido, a teoria crítica clássica5 teria falido ao vestir a
“peruca séria do cinismo” (p.45) para conferir respeitabilidade burguesa; ou seja, ao realizar a
crítica pela teoria, se distancia do objeto-causa da crítica (a ideologia). Por isso, de acordo com
Sloterdijk (2012), o cinismo é, paradoxalmente, “a falsa consciência esclarecida”; a frase mesma
é um “cinismo em estado cristalino” (p. 34):

[...] essa fórmula não se quer episódica, mas um ponto de partida sistemático, como
modelo diagnóstico. Assim, ela se obriga a revisar o Esclarecimento; deve demonstrar
claramente sua relação com o que a tradição chama de “falsa consciência”; mais ainda,
deve reconsiderar a trajetória do Esclarecimento e o trabalho da crítica ideológica em
cujo decurso foi possível que a “falsa consciência” absorvesse o Esclarecimento
(SLOTERDIJK, 2012, p. 34).

A principal crítica do autor à teoria crítica clássica do Esclarecimento se encontra no


seguinte trecho:

Não é apenas na modernidade que o Esclarecimento passa a ter algo em comum com
uma consciência hostil, entrincheirada em posições firmemente esclarecidas. Em
princípio, o front pode ser perseguido retroativamente até os dias da Inquisição. Se é
verdade que saber é poder, tal como nos ensinou o movimento dos trabalhadores,
então também é verdadeiro que nem todo saber é saudado com boas-vindas. Como
não há em parte alguma verdade das quais possamos nos apossar sem luta e como todo
conhecimento tem de escolher o seu lugar na estrutura de poderes hegemônicos e de
contrapotências, os meios de criar validade para os conhecimentos parecem ser mais
importantes do que os próprios conhecimentos. Na modernidade, o Esclarecimento se
mostra como um complexo tático. A exigência de que seja possível uma
universalização racional o atrai para a esteira da política, da pedagogia, da
propaganda. Com isso, o Esclarecimento reprime conscientemente o realismo cru de
doutrinas mais antigas sobre a sabedoria, para as quais não estava fora de questão a
massa ser tola e a razão ser apenas para poucos. Um elitismo moderno precisa se cifrar
democraticamente (SLOTERDIJK, 2012, p. 39).

Em muito o cinismo na perspectiva de Sloterdijk ultrapassa o arquétipo kynykos, da


Antiguidade: um excêntrico desafectado na polis, um clássico naturalista, um manifestante do
conhecimento desclassificado e plebeu e que assumia francamente a crítica à moral

5
Vale assinalar que a ‘teoria crítica clássica’ está sendo referida de um modo amplo e genérico, muito mais
próximo à teoria crítica marxista do que à Escola de Frankfurt.
29

convencional (SLOTERDIJK, 2012; SAFATLE, 2008). Mas o novo tipo de cinismo vai além
da ironia desvanecida; tem mais a ver com um mecanismo invertido de perversão. Portanto, a
razão cínica altera a fórmula da consciência falsa expressa em mentira, erro, ideologia ao se
incluir nela. Portanto, não mais “eles não sabem disso, mas o fazem” e sim “eles sabem o que
fazem, e continuam a fazê-lo”.
Como ressalta Safatle:

o cinismo aparece assim como elemento maior do diagnóstico de uma época na qual
o poder não teme a crítica que desvela o mecanismo ideológico [...] até porque [...] o
poder aprendeu a rir de si mesmo, o que lhe permitiu “revelar o segredo de seu
funcionamento e continuar a funcionar como tal” (ZIZEK, 2003, p. 100; SAFATLE,
2008, p. 69).

A ideologia naquele sentido clássico que mascara interesses obscuros se tornou obsoleta
para a contemporaneidade; tal obsolescência só indica que “as promessas de racionalização e
de modernização da realidade social já foram realizadas pela dinâmica do capitalismo [...] de
maneira cínica; o que significa que, de uma forma ou de outra, elas foram realizadas”
(SAFATLE, 2008, p. 69). Conforme Sloterdijk e Safatle, este é o potencial de perversão do
neoliberalismo como ideologia do capitalismo contemporâneo, que se realiza ao inverter o
discurso.
Zizek opera a mesma digressão à perspectiva marxista. Mas o ponto de redefinição
radical é precisamente na marcação do vazio ideológico, como se apresenta no seguinte trecho

Ora, se concebemos o campo social como uma estrutura que se articula em torno de
sua própria impossibilidade, somos obrigados a definir a ideologia como um edifício
simbólico que mascara, não uma essência social oculta, mas o vazio, o impossível ao
redor do qual se estrutura o campo social (ZIZEK, 1991, p. 151).

O curso “natural” da alienação ocorreria pela discordância entre o que se sabe e o que
se faz, de modo a chegar no clássico “não sabemos o que fazemos”. Essa falsa representação é
ela mesma uma inversão ideológica; tomemos como exemplo o “fetichismo do dinheiro”: as
relações sociais são suprimidas pela propriedade do dinheiro como coisa. Mas o que propõem
Zizek (1990), Sloterdijk (2012) e Safatle (2008) é que a ideologia não só dissimula a realidade
social, mas paradoxalmente mantém a realidade social pela captura das subjetividades, de modo
a alterar a fórmula: “eles sabem muito bem o que fazem, mesmo assim, continuam a fazê-lo”.
Em uma anedota, a ideologia máscara tanto quanto a água no aquário do peixe. Ou, para
usar um exemplo mais elaborado do próprio Zizek, a ideologia é como o invólucro vazio do
Kinder Ovo: “a surpresa do Kinder Ovo é que o objeto de excesso que causa o desejo está
materializado na forma de um objeto que preenche o vazio interno do chocolate” (ZIZEK,
30

2012). O autor disseca duas dimensões desse exemplo: a) da exterioridade, ou o que


compramos, o ovo de chocolate e b) da interioridade, o próprio vazio acrescido “gratuitamente”
de um brinde. Para Zizek, o Kinder Ovo não é feito para alcançarmos o brinde, mas para
produzir o desejo do objeto maior, no meio do próprio objeto, para então desfrutarmos
precisamente da superfície.

Estratégia Discursiva de Reestruturação de Classe

Há uma dificuldade de ordem prática em afirmar que o neoliberalismo obteve sucesso ao


redistribuir o poder de classe pois o conceito de “classe” transmuta-se constantemente. Ainda
sim, Harvey (2014) destaca que um dos objetivos centrais dos projetos neoliberais foi a
reestruturação do poder de classe ainda que na modernidade, classe não possua o mesmo
significado que possuía nas sociedades tradicionais.
Uma das figuras que expressam a ideologia neoliberal é a primeira-ministra Margareth
Thatcher. Eleita em 1979 por um forte impulso das classes dominantes de reestruturar políticas
fiscais e sociais, Thatcher atacou diretamente políticas sociais-democráticas sobretudo por
influências de pesquisadores vinculados ao Institute of Economic Affairs.

Isso envolvia enfrentar o poder sindical, atacar as formas de solidariedade social que
prejudicassem a flexibilidade competitiva [...], desmantelar ou reverter os
compromissos do Estado de bem-estar social, privatizar empresas públicas (incluindo
às dedicadas à moradia popular), reduzir impostos, promover a iniciativa dos
empreendedores e criar um clima de negócio favorável para induzir um forte fluxo de
investimento interno (HARVEY, 2014, p. 32).

É significativo que sua frase mais famosa tenha sido “a sociedade não existe, apenas
homens e mulheres individuais” (THATCHER apud HARVEY, 2014). De certo, é a expressão
exata da ética neoliberal e nos auxilia a compreender ainda mais os sucessos do projeto
neoliberal, que ultrapassa os resultados de economias nacionais, enraizando-se em uma nova
ética, a ética do indivíduo neoliberal.
Na década de 80 tem-se a efetivação prática de políticas econômicas neoliberais. Após a
vitória de Reagan nos Estados Unidos, a greve dos controladores de voo foi derrotada em 1981
por uma resistência violenta à organização de trabalhadores, num contexto de aumento do
desemprego (a mais de 10% nos Estados Unidos). No entanto, o PATCO (Professional Air
Traffic Controllers Organization), que liderou a greve, era mais que um sindicato comum de
trabalhadores: era a organização de profissionais especializados que representava uma classe
média, diferente do sindicalismo da classe trabalhadora da época. Tem-se então o início do
31

movimento de reestruturação de classe e de reconcentração de poder à classe mais alta


(HARVEY, 2014). As medidas aplicadas pela neoliberalização para reestruturação de classe,
de acordo com Harvey, foram:
i) Nos Estados Unidos, uma redução do aumento real dos salários na década
de 1980 ao aumento crescente e contínuo dos níveis de produtividade; em
1973, o salário real em dólar por hora era de US$15,72 e o índice de
produtividade nacional era de 60, e em 2000, o salário real decresceu a
US$14.15 e este índice de produtividade nacional superou a 100;
ii) No Reino Unido, Thatcher rompeu com a aristocracia (em geral militares, e
parte de elites judiciárias e comerciais) para apoiar novos empreendedores
(hoje bilionários), como George Soros, Richard Branson e Lord Hanson,
enfurecendo assim o próprio partido;
iii) A financeirização da vida cotidiana, nucleada pela ascensão dos CEOs que
acumularam enormes fortunas em curto período pelo investimento
especulativo em setores recém-criados, como os de biotecnologia e
tecnologias da informação – sendo os principais nomes dessa alta classe que
emerge Bill Gates e Paul Allen;
iv) Em diferentes países, outros grupos de empresários enriquecem
exponencialmente de modo a exercer influência nos processos políticos
locais e globais, a exemplo: o império global da News Corp. empresa de
telecomunicações fundada por Rupert Murdoch, se beneficiou de aparatos
estatais na Austrália, Grã-Bretanha e Estados Unidos, mas também orientou
todos os 247 editores de jornais a apoiarem a invasão do Iraque pelos Estados
Unidos em 2003 (HARVEY, 2014).

Embora esse grupo diversificado de indivíduos incrustado nos mundos corporativo,


financeiro, comercial e de desenvolvimento não conspire necessariamente como
classe, e embora possa haver frequentes tensões entre eles, ainda assim há entre todos
certa convergência de interesses que de modo geral reconhece as vantagens [...] a ser
obtidas da neoliberalização. E eles também dispõem, mediante organizações como o
Fórum Econômico Mundial de Davos, de meios para trocar ideias, firmar associações
com líderes políticos e fazer consultas a esses líderes políticos. Eles exercem uma
imensa influência sobre os assuntos globais e dispõem de uma liberdade de ação que
nem passa perto da que possui qualquer cidadão comum (HARVEY, 2014, p.44).
32

Por mais que haja particularidades nacionais de classe, observa-se que ainda assim
capitalistas neoliberais agem mediados por interesses corporativistas, que nutrem o Estado
neoliberal e são nutridos por eles.
Os mais de trinta anos de políticas neoliberais envernizadas pelo nome das liberdades
individuais restauram e reconfiguram um poder de classe, mediante imensas concentrações aos
setores energéticos, meios de comunicação, indústria farmacêutica, transportes e mesmo no
setor varejista. Netto (2013) concorda com Harvey quando afirma que o “mercado de trabalho”
também tem sido reestruturado neste sentido, dado as recentes “inovações” que conduzem à
precarização, a desregulações trabalhistas e ao desemprego,
Tal estratégia do discurso neoliberal realiza-se pelo cinismo ideológico dos grupos
corporativistas por uma lógica semelhante a “Smith abroad, Keynes at home” e que na prática
impõe acumulação primitiva para política externa e intervencionismo à economia doméstica.
Na respectiva lógica, o Estado não é inconcebível com um sistema neoliberal, mas existe nas
medidas mínimas de sustentação dos mercados.

Neoliberalismo e Impossibilidades Éticas

Ao tomar o Colóquio Walter Lippmann (que ocorreu em Paris em agosto de 1938) como
o evento inaugural do neoliberalismo, Dardot e Laval (2016) assinalam que os novos liberais
não rompem completamente com o intervencionismo estatal, mas o defendem a fim de
assegurar as condições de competição do livre mercado. Ou seja, “deve existir um Estado de
tamanho razoável capaz de auxiliar o mercado. O objetivo [...] não é a privatização completa,
mas a expansão da mentalidade neoliberal” (JESUS, 2018, p. 214).
Para Dardot e Laval (2016), o neoliberalismo não representa apenas um conjunto de
regras econômicas de austeridade social e maximização dos lucros privados, mas sobretudo
uma racionalidade, uma mentalidade que produz sujeitos e subjetividades que funcionam sobre
sua lógica.
Concordando com tal perspectiva, Butler (2019) observa que a nova mentalidade que
emerge do neoliberalismo é a racionalidade da responsabilização individual. Para a autora, a
racionalidade neoliberal produz uma contradição paradoxal e impossível, pois nega todas as
formas de dependência e interdependência coletiva entre os sujeitos e as instituições:

Embora “responsabilidade” seja uma palavra que circule bastante entre os que
defendem o neoliberalismo e concepções renovadas do individualismo político e
econômico, vou procurar reverter e renovar seu significado [...] Porque se, de acordo
com os que valorizam a destruição dos serviços sociais, somos responsáveis apenas
33

por nós mesmos e certamente não pelos outros, e se a responsabilidade é em primeiro


lugar e acima de tudo uma responsabilidade de se tornar economicamente
autossuficiente em condições que minam todas as perspectivas de autossuficiência,
então estamos nos confrontando com uma contradição que pode facilmente levar uma
pessoa à loucura: somos moralmente pressionados a nos tornar precisamente o tipo de
indivíduo que está estruturalmente impedido de concretizar essa norma (BUTLER,
2019, p.20).

É um paradoxo pois ao mesmo tempo que culpabiliza a pobreza, por um discurso que
responsabiliza o pobre pela sua própria desgraça e “fracasso”, atua para minar qualquer
possibilidade de ação coletiva, extinguir qualquer noção de solidariedade ao passo que
desenvolve políticas de estado de orientação caritativa, assistencialista e pressiona os
trabalhadores a aumentarem a produtividade enquanto enxuga os ganhos salariais reais
(FILHO, 2020).
Contudo, apesar de ganhar contraste atualmente o desequilíbrio do discurso neoliberal
com princípios sociais-democratas e dos direitos humanos, a narrativa moral de
responsabilização dos mais pobres já estava presente desde Malthus. O pensamento
malthusiano era inerentemente moralista, ao considerar que o desejo sexual dos mais pobres
mantinha-se numa constante, enquanto suas capacidades de subsistência eram variáveis
intermitentes (HALL; KIRDINA-CHANDLER, 2017; MALTHUS, 1986). Os argumentos
malthusianos tiveram tamanha influência que afetaram até quadros conceituais da teoria
darwiniana da seleção natural. Em outras palavras, o pensamento do economista expressava
que o problema da distribuição (de renda, de alimentos etc.) era mais nascem do que
sobrevivem. Não se busca aqui discutir os equívocos de seu cálculo, mas assinalar que a retórica
evolucionista não é uma novidade do neoliberalismo e apontar que aqui se encontra o
pensamento de uma nova roupagem político-moral (BROWN, 2019).
Com isso, a ética neoliberal sobrevive por afirmar-se como não-ideológica, quando é. A
título de exemplo, o discurso bolsonarista, tal como analisa Guirado (2019), opera uma
perversão ideológica como estratégia discursiva. Através da análise institucional do discurso, a
autora analisa em quatro pontos o discurso de posse do presidente eleito em meio a falas
ambíguas e indeterminadas que se autodenominam não-ideológicas. Observa-se o último ponto
analisado por Guirado

4. E, finalmente, a reboque desse discurso de armamento e segurança, entram em cena


os personagens da burocracia e das propostas de governo. São falas rápidas e
genéricas que os definem. Não sem demarcar, a cada instante, as divisões que
confirmam o grupo de brasileiros a que se dedicam essas iniciativas (o cidadão de
bem), isto é, para quem se governa. Apenas enumeramos os protagonistas: uma equipe
técnica (que “montamos sem o tradicional viés político que tornou o Estado ineficiente
34

e corrupto”), o Parlamento, o livre mercado, as reformas estruturantes, o comércio


internacional (“sem viés ideológico”), o setor produtivo (“com menos
regulamentação e burocracia”), um pacto nacional (“entre a sociedade e os poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário, na busca de novos caminhos para um novo
Brasil”) (GUIRADO, 2019, p. 6)

Afirmar que o discurso bolsonarista é neoliberal aparenta ser incorreto, porque é mais
do que isso. Contudo, o que se observa por meio da análise de Guirado (2019) são suas
estratégias discursivas de perversão, que em atos de fala excluem e discriminam, quer parte da
população brasileira que não são seus votantes, quer parte de si mesma, de seu próprio discurso,
cuja ideologia é toda ejetada6. A perversão discursiva se encontra em excluir a ideologia de si.
Exemplo primo do cinismo ideológico.
Tendo visto a compreensão que aqui se adota da ideologia, há concordância com a
posição de Souza (2010). Apesar de todo aparato político-econômico, jurídico e institucional
acompanhado neste capítulo, há de se concordar que o neoliberalismo é sim um fenômeno
abstrato, mas não vazio de sentido. Muito pelo contrário, o neoliberalismo tem em sua
embalagem o excedente do sentido. Para concordar com Souza acerca do neoliberalismo uma
correção precisa ser feita: contraditoriamente o neoliberalismo só é oco na aparência.

1.3- Esfera Política

Por último, mas não menos importante, pretende-se demonstrar alguns aspectos
políticos do neoliberalismo que se configuram como modo de gestão do sofrimento. Antes de
prosseguir a leituras mais atuais e críticas do neoliberalismo como modo de gestão, retorna-se
à matriz pela qual será possível pensar política, poder e sociedade.

Uma Retrospectiva Do Poder


Ao longo dos séculos, a história classificou diferentes regimes de política e do poder.
As palavras “político” e “política” são polissêmicas; disputam diferentes significados a
depender do contexto, do tempo e do espaço. Para evitar digressões, neste subcapítulo o termo
político é compreendido como um jogo de forças, tal qual orientado pelo pensamento
foucaultiano acerca das relações de poder.

6
“Cada um dos brasileiros é o quarto personagem. Factualmente, ao convocá-lo, coloca-o como constituinte dos
milhões de seus eleitores. Com isso, mais uma exclusão: não convoca como brasileiros que também são, seus não
votantes. Ora, outra não transparência da fala desse sujeito que ejeta de si o ideológico. A convocação, Sr.
Presidente, não foi a todos os brasileiros, como sugere o vocativo “cada um ...”, e seu discurso, mais uma vez,
carrega nas omissões e nos equívocos!” (GUIRADO, 2019, p.5).
35

No conjunto das obras de Foucault (2008a; 2005) entende-se que o poder é algo
constitutivo da subjetividade moderna. No curso Em Defesa da Sociedade, Foucault (2005)
retoma seu objeto de estudo desde o início da década de 1970; em resumo, a pergunta: como se
operam os mecanismos triangulares Poder-Direito-Verdade? Na época, o que encontrou foi a
formulação de que regras de Direito delimitam formalmente o Poder que produz efeitos de
Verdade e que reconduzem o próprio Poder. Com isso, chega à pergunta seguinte: como o
discurso da verdade, da filosofia política fixa os limites de direito do poder? Em outras palavras,
quais regras de direito lançam mão às relações de poder e produzem discursos de verdade?
Nas sociedades ocidentais medievais, a elaboração do edifício jurídico se dava por
intermédio do poder do Rei (ou poder régio). Tal dispositivo jurídico foi construído com o
passar dos séculos para instrumentalização e justificação do poder do Rei. Quando nos séculos
seguintes, o edifício do Direito volta-se contra o poder régio, o que é então questionado são os
limites desse poder e suas prerrogativas, pois a figura do Rei é a centralidade do poder e do
próprio instrumento jurídico (FOUCAULT, 2005).
O destino do sistema jurídico da época era inteiramente voltado à evicção (evitação da
perda) do domínio do Rei e de suas consequências. O Rei detinha o poder em si: em seus atos,
falas, corpo, em sua completa existência. Foucault (2005) relata que é somente na passagem do
século XVII para o XVIII que uma nova mecânica de poder se erige, contrário a este regime
absoluto do poder feudal. Trata-se de uma estratégia disciplinar do poder que extrai mais do
que bens e riquezas, mas tempo e trabalho dos corpos. Que se exerce por contínua vigilância e
se torna instrumento fundamental para a implantação do capitalismo industrial.
Ao proceder neste curso, Foucault inverte a ordem de análise: de um modo geral, como
o Direito, ao conceber a dominação como um fato, a instrumentaliza? E mais: como veicula e
aplica relações, não de soberania, mas de dominação? Não de um sobre outro, ou de um grupo
sobre outro grupo, nem mesmo do Rei em relação aos súditos, mas sim dos súditos em relações
recíprocas, de “múltiplas sujeições que ocorreram e funcionam no interior do corpo social”
(FOUCAULT, 2005, p. 32).
Talvez o ponto mais importante seja justamente uma precaução de método, como
denomina Foucault (2005), não pensar o poder como algo que se detém, mas como um verbo
que se exerce em relação.

Não se trata de analisar as formas regulamentadas e legítimas do poder em seu centro,


no que podem ser seus mecanismos gerais ou seus efeitos de conjunto. Trata-se de
apreender, ao contrário, o poder em suas extremidades, em seus últimos lineamentos,
onde ele se toma capilar; ou seja: tomar o poder em suas formas e em suas instituições
mais regionais, mais locais, sobretudo no ponto em que esse poder, indo além das
36

regras de direito que o organizam e o delimitam, se prolonga, em consequência, mais


além dessas regras, investe-se em instituições, consolida-se nas técnicas e fornece
instrumentos de intervenção material, eventualmente até violentos (FOUCAULT,
2005, p.32).

Na conclusão do curso, Foucault aponta para uma transformação que inverte o poder
soberano – não mais “fazer morrer e deixar viver” para “fazer viver e deixar morrer”. Para o
filósofo, as disputas que ocorrem em torno dos direitos políticos no século XIX não são mais
apoiadas em um poder régio, mas agora disciplinar: deixam de aniquilar e executar, mas
aplicam técnicas de controle, treino, nascimento, produção etc. A noção de população como um
corpo múltiplo nasce disso que se nomeia como biopolítica (FONSECA, 2000); uma nova
tecnologia disciplinar que concebe uma população (dados estatísticos sobre natalidade,
mortalidade, a vigilância, o controle, a clínica etc.) como problema político.

Ora, agora que o poder é cada vez menos o direito de fazer morrer e cada vez mais o
direito de intervir para fazer viver, e na maneira de viver, e no "como" da vida, a partir
do momento em que, portanto, o poder intervém sobretudo nesse nível para aumentar
a vida, para controlar seus acidentes, suas eventualidades, suas deficiências, daí por
diante a morte, como termo da vida, e evidentemente o termo, o limite, a extremidade
do poder. Ela está do lado de fora, em relação ao poder: é o que cai fora de seu
domínio, e sobre o que o poder só terá domínio de modo geral, global, estatístico. Isso
sobre o que o poder tem domínio não é a morte, é a mortalidade. E, nessa medida, é
normal que a morte, agora, passe para o âmbito do privado e do que há de mais
privado. Enquanto, no direito de soberania, a morte era o ponto em que mais brilhava,
da forma mais manifesta, o absoluto poder do soberano, agora a morte vai ser, ao
contrário, o momento em que o indivíduo escapa a qualquer poder, volta a si mesma
e se ensimesma, de certo modo, em sua parte mais privada. O poder já não conhece a
morte. No sentido estrito, o poder deixa a morte de lado (FOUCAULT, 2008a, p. 295-
296).

O título do curso indica que é em defesa da sociedade que o discurso do biopoder


normatiza mecanismos e procedimentos de governamentalidade (FOUCAULT, 2005;
FONSECA, 2000), que na perspectiva desta pesquisa correspondem à estratégia política do
neoliberalismo. Na corrente do pensamento foucaultiano, a noção de governamentalidade
corresponde a técnicas de governo de si, e não propriamente ao exercício do governo estatal e
institucional. No interior do pensamento de Foucault (2008b) a crítica liberal não se exerce
porque governa-se pouco, mas sim porque se governa em demasia; assim, as duas principais
escolas neoliberais estruturam-se entre o ordoliberalismo alemão e o anarcocapitalismo
americano, e ambas constituem a “crítica da irracionalidade própria do excesso de governo”
(FOUCAULT, 2008b, p. 437-9)
Procedimentos de vigilância e controle contínuo, então, constituem esse modo de gestão
do neoliberalismo: tecnologias do controle de si que não se exercem mais hierarquicamente,
mas capilarmente, entre os pares.
37

Como visto nos aspectos econômicos (1.1), no decorrer do século XX ocorrem diversas
disputas em torno de políticas públicas. As políticas e programas orientadas pela social-
democracia do bem-estar social malograram e a cada dia, mais nitidamente, observa-se a
escalada de uma agenda global e neoliberal. É precisamente isso que será tratado em seguida:
como a biopolítica permanece atual?

A Atualidade Do Biopoder

O biopoder não é uma resposta final sobre os regimes atuais do poder; diversos outros
autores avançaram esse conceito. Mbembe (2018), por exemplo, assinala que o biopoder se
tornou insuficiente para dar conta das formas altamente precisas de subjugar a vida sob a morte,
criando os conceitos de necropoder e necropolítica. Preciado (2018), por outro lado, argumenta
que, no tecnocapitalismo, o poder assume as formas biomoleculares e semiótico-técnicas, que
constituem uma era, não mais soberana, nem disciplinar, e sim farmacopornográfica. Apesar de
trabalharem com a noção de biopoder, é importante assinalar que ambos os autores
desenvolvem pesquisas em campos distintos. Para esta pesquisa, no entanto, é suficiente pensar
o biopoder como uma estratégia política do neoliberalismo, de se inserir como método de
vigilância e controle de si.
O biopoder neoliberal exerce uma dupla função de “fazer viver” as vidas precárias, se e
quando lucrativo, e “deixar morrer” quando não houver mais o que explorar (MEIRELES,
2019), nos níveis materiais, produtivos, simbólicos e discursivos.
A noção de precariedade, para Butler (2018), é constitutiva de toda forma de vida, isto
porque, toda vida é passível de ser, proposital ou acidentalmente, eliminada. Mas, “a condição
precária designa a condição politicamente induzida na qual certas populações sofrem com redes
sociais e econômicas de apoio deficientes” (BUTLER, 2018, p. 46), de modo a ficarem expostas
à doença, pobreza, violência, fome e inclusive à morte.
Nas sociedades neoliberais, uma forte tendência de privatização sucedeu aos setores de
saúde, educação, habitação e previdência; em partes, com grande êxito, mas não sem
resistências. No Brasil, após aprovação da nova Constituição Federal em 1988, seguridade
social passa a ser caracterizada pelo tripé saúde, previdência e assistência social.
Foi visto por meio de Gros (2008) que a expansão das think tanks internacionalizou as
teses econômicas neoliberais através da formação intelectual de políticos, ideólogos e
profissionais que ocuparam cargos técnicos em organismos multilaterais. Em grande parte, isso
38

levou ao fortalecimento dessa agenda que buscou (e conseguiu!) mercadorizar serviços de


saúde, educação, habitação e previdência.
No Brasil, por exemplo, a proposta de integrar recursos do FUNDEB (Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica) à distribuição de vouchers educacionais
à famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família (PBF; POMPEU, 2020) remonta a mesma
proposta desenvolvida pelo Institute of Economic Affairs, em 1963, que pretendeu instituir um
modelo de voucher system como forma de privatização da educação pública (GROS, 2008).
Também no Brasil, Osvaldo de Meira Penna foi escritor, diplomata e embaixador
brasileiro que foi membro da Sociedade Mont Pelerin; fundou, em 1986, com Ricardo Velez
Rodrigues7, a Sociedade Tocqueville - que, posteriormente, originou o Instituto Mises Brasil
(DUNKER et al, 2021). O caso de Meira Penna demonstra uma estratégia que ultrapassa
escritos ideológicos, mas que consiste em atos políticos. Penna contribuiu significativamente
para a expansão da racionalidade neoliberal e criação de uma episteme psicológica que
assujeitou sujeitos a uma ordem individualizante, moralista e neoliberal.
Quanto aos sistemas de saúde, na América Latina, países como Brasil, México, Peru,
Colômbia, Argentina e Chile tiveram seus sistemas de saúde significativamente afetados por
recomendações do Relatório do Banco Mundial, que incentivou a implantação de mecanismos
de privatização, copagamento, descentralização e fragmentação dos sistemas (GOTTEMS &
MOLO, 2020). Mais recentemente, entre 2017 e início de 2020, se insere uma nova política de
financiamento (Previne Brasil) que acelera a agenda de privatização do sistema de saúde em
nome do aumento da eficiência e efetividade da alocação dos recursos públicos, numa
perspectiva produtivista da gestão do trabalho em detrimento de processos participativos
(MOROSINI, FONSECA & BAPTISTA, 2020).
Também a previdência é, desde a CFB/1988, reformada e desmantelada.
Contrarreformas foram implantadas em 1998 e 2003 sob um forte discurso paradoxal de crise
financeira previdenciária que objetivou a desresponsabilização do Estado, a restrição do acesso
e a desvinculação do fundo da seguridade para outros setores econômicos, bem como o
pagamento da dívida pública (ALMEIDA, ALVES & MAGRO, 2020). O cenário de alta do
desemprego, da informalidade e baixa cobertura previdenciária são argumentos centrais das
justificativas dessas contrarreformas, que amparadas em relatórios e recomendações de órgãos
internacionais, como o Banco Mundial, adquirem validação “técnica” em favor da liberação
dos mercados.

7
Que se tornou Ministro da Educação no governo Bolsonaro, em 2019.
39

Sabe-se que contrarreformas aprofundam a desigualdade de gênero ao aumentar o


tempo de contribuição para mulheres, isso porque desconsidera jornadas duplas, e às vezes
triplas, que muitas mulheres brasileiras enfrentam (ALMEIDA, ALVES & MAGRO, 2020).
Mesmo assim não deixou de agradar empresários, ainda que estes sejam mulheres, como no
caso de Luiza Trajano, empresária conhecida por se opor à violência doméstica e de gênero,
mas que apoiou as reformas previdenciárias e trabalhistas sob os argumentos de que “o
trabalhador já sabe se defender” e “não tem jeito de não fazer [a reforma da previdência]” (BBC,
2017).
A assistência social, por sua vez, tem sido constantemente reformada, reconfigurada e
desmontada. Quais têm sido os significados que políticas de assistência social assumem no
contexto do Estado Neoliberal? Tendo em vista que o público-alvo não corresponde a grupos
que atendam a interesses de mercado, pressupõe-se que a assistência social exerce uma
manutenção da precariedade da vida para exponenciar a exploração.
A reconfiguração de classe impulsionada pelo neoliberalismo na década de 70, como
apresentado nos aspectos ideológicos, chegou ao Brasil apenas recentemente. O milagre
brasileiro (DUNKER et al, 2021), um crescimento econômico em grande parte impulsionado
pelos programas de erradicação da pobreza e de transferência de renda, apesar de reduzir
significativamente a miséria e elevar o padrão de consumo de grande parte das classes baixas,
durou pouco. Do ponto de vista sociológico, Souza (2010) alerta que associar classe à renda é
uma forma de esquecer e invisibilizar processos de transmissão de valores, certos “modos” que
operam como chaves de acesso para as elites, tais como modos de falar, de se comportar, em
suma, valores que são naturalizados e legitimados.
Nas políticas educacionais, de saúde, habitação, previdência e outras, tem se verificado
desfinanciamento, desmonte, redução de cobertura e demais processos de privatização de
serviços públicos. E ainda que neste jogo de forças haja resistência, como manifestações em
praças públicas, e que estas sejam dispersadas e reprimidas pela força policial em muitos casos,
o objetivo central é justamente a captura do espaço público, tanto nas privatizações quanto pela
repressão policial (BUTLER, 2019).
Para Butler (2019), a discussão sobre a demarcação de um povo implica em operações
de poder que ocorrem em quatro grupos: i) aqueles que buscam definir quem é “o povo”; ii)
aqueles que são propriamente demarcados discursivamente como “o povo”; iii) aqueles que
estão fora dessa demarcação e iv) aqueles que tentam (lutam e resistem) para incluir os
anteriores na demarcação do “povo”. A autora segue afirmando que, apesar de muitos autores
terem explorado a questão discursiva sobre quem é “o povo” (tais como Jacques Derrida,
40

Bonnie Honig, Ernesto Laclau e outros), a definição “do povo” atua por meio de uma
delimitação que configura os termos de inclusão e exclusão. Sendo assim, em uma
manifestação, por exemplo, não basta confiar num registro fotográfico aéreo policial para
definir quantos realmente querem tal coisa.

Mais zoom ou menos zoom não vão nos ajudar, uma vez que são justamente maneiras
de editar e selecionar o que e quem vai contar, o que significa que não podemos
separar a questão de quem é o povo da tecnologia que estabelece quais pessoas contam
ou não como o povo (BUTLER, 2019, p. 182).

Quando se avança no estudo crítico da segurança, por exemplo, o que se observa no


regime do biopoder não é a busca pela garantia da segurança para todos (ainda que “todos” seja
um termo muito amplo), mas a preocupação apenas em “manter um tipo de criminalidade [...]
dentro dos limites que sejam social e economicamente aceitáveis e em torno de uma média que
vai ser considerada [...] ótima para um funcionamento social dado” (FOUCAULT, 2008a, p.8)
– e no contexto neoliberal isso se aplica ao que quer que seja, como segurança, desemprego,
fome etc. Nesse sentido, as recentes reorganizações de políticas de segurança pública, como o
Complexo de Ribeirão das Neves, a única penitenciária brasileira firmada em parceria público
privada, reproduzem o modelo estadunidense de rentabilizar a criminalização da pobreza. Lá,
os presos produzem mercadorias sem qualquer reconhecimento de uma relação trabalhista, em
condições análogas à escravidão, em nome do discurso da ressocialização. A arte neoliberal de
governar maximiza as técnicas de exploração, tanto materialmente, quanto imaterialmente, em
vias discursivas (KILDUFF; SILVA, 2019; MEIRELES, 2019) e trata a “questão social” de
forma minimalista (NETTO, 2013).

A Gestão Do Sofrimento: Tecnologias de Controle


Apesar de diversos processos de desmonte da política de assistência social e que vem
sendo denunciados por profissionais técnicos, acadêmicos e pesquisadores, a assistência social
não parece ser de grande interesse para o mercado, visto que seu público de abrangência são
justamente as vidas precárias mais expostas à espoliação e exclusão.
A estratégia política do neoliberalismo não privatiza a assistência social à esfera privada
do mercado8, mas à individualidade dos sujeitos. A detêm sob a ética da responsabilidade

8
Desconsideram-se consórcios de prestação de serviço na política de assistência social brasileira, tal como ocorre
na alta complexidade (acolhimento institucional) e eventualmente com SCFV. Isso porque os consórcios são
firmados com instituições sem fins lucrativos. Na literatura, diversas pesquisas abordam a filantropização da
assistência através da análise destas instituições.
41

individual e autossuficiência. E isso não significa ignorar as esferas públicas ou qualquer noção
de comunidade ou solidariedade, ao contrário, preserva para si (instituições privadas, altas
classes sociais, grandes empresas) o direito de escolher como falar, as técnicas de edição e
enquadramentos.
Em “A economia é a continuação da psicologia por outros meios [...]”, Safatle (2021)
argumenta que a hegemonia do neoliberalismo reitera uma estratégia discursiva baseada na
psicologização e moralização, que se dão ora no campo político, ora no campo econômico. Para
o autor, o entendimento de que o neoliberalismo é solidário a uma sociedade com a menor
intervenção estatal possível é equivocada; isto porque o entendimento está implícito apenas a
intervenção na coordenação da atividade econômica. Deve-se considerar que desde o Colóquio
Walter Lippmann, o que se defende no âmbito do neoliberalismo são “intervenções diretas na
configuração dos conflitos sociais e estrutura psíquica dos indivíduos. Mais do que um modelo
econômico, o neoliberalismo era uma engenharia social” (SAFATLE, 2021, p. 24-5).
O autor prossegue explicando que para que essa noção de liberdade possa ser alcançada
(liberdade de livre mercado, livre iniciativa, aí incluso o empreendedorismo e a
competitividade) era preciso despolitizar toda a sociedade para que as medidas econômicas
fossem tomadas. É aí que o neoliberalismo atua na transformação da gramática do conflito; na
emergência de uma nova gramática social que transfere o que há no social para o psíquico.
Tem-se então o delineamento de uma nova forma de subjetividade, toda uma nova sociedade
(DARDOT; LAVAL, 2016), da qual se recusar participar, ou mesmo criticar, pode ser visto
como uma falta moral, expressão de irracionalidade ou psicopatologia (SAFATLE, 2021). A
forma-empresa que se expande do mercado a todos os meandros da vida é uma forma de
violência.

A competição empresarial não é um jogo de críquete, mas um processo de relação


fundado na ausência de solidariedade (vista como entrave para o funcionamento da
capacidade seletiva do progresso), no cinismo da competição que não é competição
alguma (pois baseada na flexibilização contínua das normas, nos usos de toda forma
de suborno, corrupção e cartel), na exploração colonial dos desfavorecidos, na
destruição ambiental e no objetivo monopolista final. Essa violência pede uma
justificação política, ela precisa se consolidar em uma vida social na qual toda figura
de solidariedade genérica seja destruída, no qual o medo do outro como invasor
potencial seja elevado a afeto central, na qual a exploração colonial seja a regra
(SAFATLE, 2021, p. 32).

Safatle segue com essa questão analisando as transformações que se dão no âmbito da
clínica (médica, psicológica, psiquiátrica) a partir da terceira edição do Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-III) que ocorreu no final de década de 70. De certo,
a questão foge ao escopo do atual trabalho; basta assinalar que os efeitos de tais transformações
42

não são categorizações dos modos de sofrer “dentro e fora do neoliberalismo”, mas que este
retira do sofrimento a consciência da violência.
Dunker et al (2021) analisam a partir de Meira Penna, na década de 60, como se
desenvolve no Brasil uma certa razão psicológica que posteriormente vêm a consolidar o
discurso neoliberal em diversas áreas e campos, quer na divisão do campo psicológico, na
divisão social do trabalho, ou mesmo no neopentecostalismo emergente de 1977. No primeiro
momento, os autores observam a relevância de Meira Penna na construção de uma psicologia
liberal que buscou compreender a matriz psicológica brasileira à luz da doutrina conservadora
de direita do período do regime militar. Posteriormente, este chega a ser aclamado e
homenageado por Olavo de Carvalho e Rodrigo Constantino. Outro aspecto que se conecta ao
neoliberalismo é o neopentecostalismo que se distingue do catolicismo eclesiástico de base,
como pode ser visto no Quadro 1:

QUADRO 1: Distinções do neopentecostalismo e catolicismo.

NEOPENTECOSTALISMO CATOLICISMO

Salvação individual. Salvação coletiva.

Milagre acontece aqui e agora. Salvação post-mortem.

Teologia da prosperidade. Teologia da liberdade.

Baixa institucionalidade para abrir uma igreja. Alta institucionalidade (seminários, autorizações,
votos e designações).

Igrejas gestadas como empresas, por pastores Comunidades eclesiais de base pregam um modelo
milionários e retórica semelhante à de CEOs e de amor baseado na renúncia.
administradores.

Pastor como gestor de testemunhos; dispensa de Padre intérprete do texto sagrado; formação
formação. qualificada em seminários e escolas teológicas.

Fonte: DUNKER et al, 2021. Elaborada para esta pesquisa.

Nesta gramática, o sofrimento é associado à falta de fé e fracasso; a fé, por sua vez, deve
ser provada pelos “milagres e bênçãos alcançadas” (prosperidade). Novas filiais de igrejas
podem ser abertas associadas às já existentes para cumprir o chamado da evangelização, bem
semelhante ao sistema de franchising. As igrejas neopentecostais organizam uma forma de vida
e, na perspectiva de Dunker et al, “conseguiu reformular a unidade perdida entre linguagem,
desejo e trabalho, colocando em seu centro um mandamento e uma promessa: ‘Pare de sofrer!’”
(2021, p. 242), deslocando o sofrimento para a esfera da escolha subjetiva individual. O estudo
43

de Nascimento (2017) observa uma aliança entre igrejas neopentecostais e sistema político, pois
nota, com significância estatística, que em localidades próximas a um templo da IURD (Igreja
Universal do Reino de Deus) há incremento de votos no PRB (Partidos Republicano Brasileiro).
A autora argumenta que o PRB não é o partido da IURD,

mas sim um instrumento de sua ambição política. Este argumento parte do princípio
de que a igreja é o próprio partido, e o PRB seria uma estrutura oca de organização
partidária, chefiada por dirigentes da igreja e da Rede Record, utilizado
predominantemente para concentrar seus candidatos em um só partido o que reduz
custos de transação e aumenta o poder de barganha política da IURD
(NASCIMENTO, 2017, p. 116).

O último aspecto analisado por Dunker et at (2021) diz respeito a transformações


recentes que ocorrem na divisão do trabalho. Para os autores, se na Constituição de 1988 a
proteção era definida ao trabalhador, no contexto de intensificação das políticas neoliberais a
proteção é definida ao mercado contra a preguiça e falta de iniciativa do trabalhador, ou melhor,
desempregado (SILVA JUNIOR, 2021). O próprio termo “trabalhador” é constantemente
omitido, ocultado e substituído por “colaborador”, “empreendedor” ou “associado”.
A gramática neoliberal individualiza responsabilidades: se no caso da fome fica
implícito a transferência da responsabilidade ao indivíduo, também em relação ao trabalho, “só
fica desempregado quem não quer trabalhar”, porque o desemprego é um convite ao
empreendedorismo, à essas iniciativas quase mágicas de superação, que vão do coaching à
autoajuda (SILVA JUNIOR, 2021).
O conjunto do trabalho de Safatle, Dunker e Silva Jr. (2021) sugere que o neoliberalismo
pressupõe uma psicologia própria para a administração do sofrimento, ou seja, não só
intensifica o sofrimento, mas determina sobre o sujeito como este deve reagir.
Ao longo do capítulo foram abordadas as dimensões econômicas, ideológicas e políticas
do neoliberalismo, como uma estratégia de tentar responder à questão de Souza sobre como o
neoliberalismo se torna “carne e osso”. Na primeira parte (1.1), foi mostrado como diferentes
teses e modelos de proteção social influenciaram a intervenção estatal em momentos de
instabilidade econômica. Foram pontuados os eventos que deram início ao movimento
neoliberal e as técnicas utilizadas para disseminação de ideias e projetos neoliberais pelo globo,
como as Think Tanks. Em seguida (1.2), há um retorno teórico ao sentido marxista de ideologia
até se chegar à forma do cinismo. Entende-se que o neoliberalismo funciona por meio de uma
ideologia cínica, apoiada em estratégias discursivas de classe e de reconfiguração de poder. Na
terceira e última parte (1.3), as técnicas de controle da vida, tal como a biopolítica e o biopoder,
se revelaram de extrema importância para compreender as estratégias políticas do
44

neoliberalismo, seguindo a tradição foucaultiana. O capítulo não buscou esgotar o tema, mas
fundamentou teoricamente a hipótese da pesquisa e contribuiu para se pensar como o
neoliberalismo surge nos discursos da gestão pública.

CAPÍTULO 2 - A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL

A política de assistência social está imersa em complexidades e contradições no âmbito


da teoria e da prática, de modo que, os debates em torno da temática requerem que se
compreenda alguns processos históricos.
O segundo capítulo busca-se: (I) compreender a configuração atual da política de
assistência social, partindo do paradigma vigente como dever do Estado e direito do cidadão.
Para tanto, foi feita uma breve abordagem do paradigma liberal assistencial, de modo a elucidar
a importância representada pela Constituição Federal de 1988. (II) As heranças históricas que
afetam o controle social, tanto na versão liberal assistencial, quanto na versão do paradigma de
direitos. E por fim, o capítulo se encerra apresentando (III) uma caracterização do Norte de
Minas.
Almeja-se prosseguir com os objetivos da pesquisa, que se aprofunda na política de
assistência social no contexto brasileiro. Os diálogos promovidos envolvem autores do Serviço
Social, da Sociologia, bem como da Historiografia e da Etnografia norte mineira.

2.1 Configurações Atuais


Como visto no primeiro capítulo, o século XX foi marcado por eventos que impactaram
significativamente a relação Estado e sociedade civil, a saber: duas grandes Guerras Mundiais,
a Grande Depressão, a formulação das teses neoliberais com a Sociedade de Mont Pelerin e o
Colóquio Walter Lippman, o fenômeno da globalização, entre outras transformações
socioculturais.
O Estado de bem-estar social que se promove após a Segunda Guerra nos países
desenvolvidos só chega ao Brasil e na América Latina próximo ao final do século XX. É
necessário então restringir a análise às particularidades do caso brasileiro, pois, de acordo com
Sposati (2005), as políticas sociais se desenvolveram no solo nacional de modo tardio e frágil
tendo em vista a efetivação dos direitos sociais.
A Constituição Federal de 1988 foi um importante ponto de virada para a política de
assistência social e aos direitos sociais como um todo (SANTANA; SILVA & SILVA, 2013).
Foi na Constituição Federal que a Seguridade Social foi estruturada tripé Assistência,
45

Previdência e Saúde. No art. 203 foi definido que “a assistência social será prestada a quem
dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social” (CRFB, 1988), com
vistas à

I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II - o


amparo às crianças e adolescentes carentes; III - a promoção da integração ao mercado
de trabalho; IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a
promoção de sua integração à vida comunitária; V - a garantia de um salário mínimo
de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não
possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família,
conforme dispuser a lei (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988).

Foi a Constituição Federal, portanto, que definiu a assistência social como política pública
de Estado. Posteriormente, a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), sancionada em 7 de
dezembro de 1993, declarou que a assistência social é direito do cidadão e dever do Estado, e
provê os mínimos sociais por meio de um conjunto de ações integradas que incluem o poder
público e a sociedade. A Constituição abriu espaço para uma mudança de paradigmas que
ocorreu no âmbito da gestão da assistência (SPOSATI, 2005) e se efetivam pelo sexto artigo da
LOAS:

Art. 6º A gestão das ações na área de assistência social fica organizada sob a forma
de sistema descentralizado e participativo, denominado Sistema Único de Assistência
Social (SUAS), com os seguintes objetivos:
I – Consolidar a gestão compartilhada, o cofinanciamento e a cooperação técnica entre
os entes federativos que, de modo articulado, operam a proteção social não
contributiva;
II – Integrar a rede pública e privada de serviços, programas, projetos e benefícios de
assistência social [...];
III - Estabelecer as responsabilidades dos entes federativos na organização, regulação,
manutenção e expansão das ações de assistência social;
IV – Definir os níveis de gestão, respeitadas as diversidades regionais e municipais;
V – Implementar a gestão do trabalho e a educação permanente na assistência social;
VI – Estabelecer a gestão integrada de serviços e benefícios; e
VII – Afiançar a vigilância socioassistencial e a garantia de direitos.

O artigo 6-A caracteriza diferentes níveis de proteção, a saber, a proteção social básica e
a especial. Em síntese, as ofertas da política de assistência social consistem em um conjunto de
serviços, programas, projetos e benefícios que tem como objetivo a prevenção de situações de
vulnerabilidade e risco social, a reconstrução e o fortalecimento de vínculos familiares e
comunitários, a defesa de direitos e proteção de indivíduos e famílias frente a situações de
violação de direito (LOAS, 1993). A Lei também inova ao instituir o Conselho Nacional de
Assistência Social (CNAS) como instância máxima de deliberação da assistência social como
política pública (SANTANA; SILVA & SILVA, 2013).
46

Sposati afirma que a mudança de paradigmas no campo da política de assistência social


ocorreu em fases, sendo que a primeira corresponde aos dez anos seguintes à aprovação da
LOAS (1993-2003). A instalação do CNAS ocorreu no ano seguinte, 1994, e a primeira
Conferência Nacional, em 1995, marcando o processo democrático de debates sobre a
assistência social e precedido pelas conferências estaduais e municipais (SPOSATI, 2005).
Os programas de transferência de renda são o carro chefe da política de assistência social
no Brasil. Dando sequência às orientações de Relatórios do Banco Mundial (1990, 1991 e
1992), que orientavam a centralidade no combate à pobreza, foi criado, em abril de 2001, na
gestão de FHC, o Programa de Garantia de Renda Mínima, antecessor do Bolsa Escola
(KILDUFF; SILVA, 2019).
A segunda fase mencionada pela autora corresponde a um processo de municipalização
da gestão. Em 2004, foi aprovada a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) em
conjunto com a Norma Operacional Básica (NOB/SUAS, 2004) que caracterizam “a
materialidade do conteúdo da assistência social como um pilar do Sistema de Proteção Social
Brasileiro no âmbito da Seguridade Social” (PNAS, 2004, p. 11). A PNAS representa um
significativo passo em direção à sistematização, estruturação e organização da assistência social
como política pública que se insere no seio da questão social. É nessa fase que o braço
assistencial do Estado ganhará densidade, com a implementação do Sistema Único de
Assistência Social (SUAS) e do Programa Bolsa Família (PBF) (KILDUFF; SILVA, 2019).
Brettas (2017) destaca que o Programa Bolsa Família é responsável por bancarizar milhões de
pessoas que não estavam incluídas no sistema bancário.
A municipalização a qual se refere Sposati (2005) diz respeito à transferência de
responsabilidades de gerenciamento e execução da assistência social da União e dos estados
para os municípios. As principais mudanças elencadas pela PNAS são:

o financiamento com base no território, considerando os portes dos municípios e a


complexidade dos serviços, pensados de maneira hierarquizada e complementar; a
não exigibilidade da Certidão Negativa de Débitos junto ao INSS como condição para
os repasses desta política; a não descontinuidade do financiamento a cada início de
exercício financeiro; o repasse automático de recursos do Fundo Nacional para os
Estaduais, do Distrito Federal e Municipais para o co-financiamento das ações afetas
a esta política; o estabelecimento de pisos de atenção, entre outros (PNAS, 2004, p.
50).

É na segunda fase que o financiamento se opera fundo a fundo e, para isto, se exige que
o município tenha aderido a condição de gestão plena. No período também se implanta um novo
processo de inscrição das entidades de assistência social, por meio dos conselhos municipais
(SPOSATI, 2005).
47

A PNAS trouxe ainda materialidade à proteção social básica e especial ao caracterizar o


Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) como a unidade pública estatal que executa
os serviços da proteção básica, organiza e coordena os serviços socioassistenciais. Os CRAS
conferem capilaridade à PNAS ao se inserirem nos territórios onde moram os indivíduos e suas
famílias (SNAS, 2009). Tais unidades constituem importante “porta de entrada” dos usuários à
Política e estabelece “uma nova relação intergovernamental, ao partir do princípio da
territorialização da política” (BOSCARI; SILVA, 2015, p. 120).
Em 2004, no ano de publicação da PNAS, 901 CRAS foram registrados. Ao longo da
década de 2000, o número cresceu expressivamente para 5.812 unidades do Centro de
Referência, de acordo com dados da Consolidação do SUAS, da Secretaria Nacional de
Assistência Social (2009).

Gráfico 2 – Número de CRAS de 2004 a 2009.


Número de Centro de Referência da Assistência Social
(CRAS) de 2004 a 2009.
7000

6000

5000

4000

3000

2000

1000

0
2004 2005 2006 2007 2008 2009

Nº Cras

Fonte: 1 SNAS, 2009.

A atual redação da LOAS recebeu significativas alterações pela Lei nº 12.435/11, como
a incorporação do SUAS no capítulo de Organização e Gestão e a inclusão do Índice de Gestão
Descentralizada (IGD) como alternativa de cofinanciamento.
Apesar da Constituição Federal, de 1988, da LOAS, de 1993, e da PNAS, de 2004,
representarem expressões concretas da garantia do direito social, as versões conservadoras e
religiosas da política social não desapareceram (YAZBEK, 2020). Sposati (2005) salienta que
a proposta da assistência social como política de Direito enfrenta inúmeros percalços, de modo
48

que não se consolida uma única vez, mas pertence a processos históricos em disputas. A essas
disputas, a autora nomeia como mudança de paradigmas políticos.

Breve histórico do paradigma liberal assistencial


Os paradigmas da assistência social partem de conceitos distintos sobre o fazer
assistencial. Os paradigmas em disputas referidos por Sposati (2005) dizem respeito às
concepções liberais, conservadoras e tradicionalistas, em oposição à concepção democrática do
Estado de Direito, dos direitos sociais e do entendimento constitucional mais recente.
Os paradigmas da assistência são mediados por eixos em conflito, representados pela
responsabilidade individual versus a responsabilidade estatal, que podem ou não mobilizar
outras categorias. A título de exemplo, Sposati (2005) ressalta a caridade religiosa, que pode
ser ou não expressão do paternalismo estatal.
Ainda que a Constituição Cidadã dê significativos passos em direção a efetivação do
paradigma da garantia de direitos, esta não reverte as versões conservadoras e liberais dos
serviços socioassistenciais. A versão liberal da assistência social transmuta direitos e garantias
em ajudas e doações (YASBEK, 2020; SPOSATI, 2005). Para as autoras, uma das conquistas
da Constituição é a superação da abordagem socorrista da atenção eventual, que concebe a fome
como a doença do corpo, como único sintoma a ser “tratado”. Pelo estatuto de política pública
da assistência conferido pela Constituição Cidadã, a questão social deve ser tratada de modo
racional, programático e planejado (SPOSATI, 2005). A questão social exige mais do que o
provimento material; sua gestão depende menos de comportamentos e ação voluntária e mais
de planejamento e ação permanente. De acordo com a pesquisadora, a própria LOAS é vaga em
determinados momentos quando não especifica quais direitos ou deveres estão inclusos.
Entre acadêmicos e profissionais no campo das esquerdas há resistência em afirmar que
o paradigma de direitos representa uma conquista. Também na década de 80, a assistência era
negada como objeto de estudo por simbolizar signos paternais, como a tutela, o favor, o
voluntariado e mesmo o assistencialismo. Um bom exemplo é dado por Sposati, em nota sobre
como esses signos e discursos estão carregados de significados:

Dito de outro modo, ela [a assistência social como objeto de estudo] tem sido mais
incorporada como uma atitude do doador, uma pessoa de bem que pratica um dom,
do que a garantia de um resultado real e pleno para quem “recebe o dom”. Este modo
de pensar, e agir, embora elogiável, desde a analogia com o “bom samaritano”, não se
compromete com “a viagem” do viajante, isto é, o porquê e o para quê o viajante que
chegou ao samaritano faz seu trânsito em tão precárias condições. Não se compromete
também com medidas para evitar que continuem a ocorrer “viagens” em condições
tão precárias, quer para aquele viajante específico quer para outros em situação
49

similar. Alguns contrapõem à analogia do “bom samaritano”, a do velho e sempre


lembrado ditado chinês: “Não dê o peixe, mas ensine a pescar”. O eventual conteúdo
educativo da premissa sem dúvida supera a noção individual do dom e do valor do
doador e se desloca para a aquisição de uma nova qualidade do outro, o pescador que
usa inabilmente a técnica de pescar ou não dispõe da ferramenta para pescar. No caso,
o resultado real esperado para o “pescador faminto” vai além do “matar a fome
imediata”, o que já seria um novo avanço. Todavia, o componente elitista do
imaginário social tem vulgarmente traduzido o famoso ditado como a demonstração
de condição de ignorante do pescador faminto por não saber pescar. Sua fome é
resultado de sua ignorância. Com certeza, o “pescador faminto” tem muitas
capacidades a desenvolver — e deve ter oportunidades para isso —, todavia nem os
rios são fartos de peixes e nem são acessíveis a todos que deles querem se acercar.
Suas margens não são propriedade coletiva para que qualquer um deles se acerque
sem antes passar, ou ser autorizado a passar, pelas terras do proprietário, falso ou
verdadeiro, que geralmente não é um pescador, pois tem quem lhe traga e prepare o
peixe. Ambas as imagens são fundadas em relações pessoais, no modo de relacionar-
se entre um mais forte, que não tem necessidade, e outro, que no caso é o faminto e o
necessitado, o mais fraco. Ambas as imagens do mundo do privado não se prestam
para ilustrar a natureza do compromisso social e público do Estado. Para esta relação
é preciso outra fábula que não seja a da bondade do rei ou da rainha, do príncipe ou
da princesa, do samaritano ou do vizinho e sim da responsabilidade pública com o
social. Esta responsabilidade exige o alargamento do contrato social entre Estado-
sociedade-mercado-cidadania (SPOSATI, 2005, p. 515).

Na década de 80, os serviços assistenciais foram vistos por duas óticas análogas ao campo
da saúde: ações curativas e ações preventivas, de modo que “a população busca o curativo e o
técnico valoriza o preventivo, terminando por se desenvolverem os especialistas em uma outra
modalidade de ação [...]” (SPOSATI et al, 2010, p. 67). É nesse sentido que algumas práticas
foram lidas como remediadoras de necessidades imediatas, mas não produzem transformações
significativas em relação ao elemento causador das necessidades. Os técnicos - assistentes
sociais e psicólogos - acabam por desenvolver uma prática considerada paternalista e
burocrática, assumindo uma imagem paternal que reproduz dominações e repassam aos
usuários (denominados “carentes”) os “benefícios” que o Estado “concedeu”.
Desde sua formulação, o próprio SUAS foi marcado pela contradição de valores e
tendências, ora conservadoras, ora emancipatórias (YASBEK, 2020). Sabe-se a partir de
Sposati et al (2010) que as políticas sociais brasileiras têm sua gênese na relação capital-
trabalho. O paradigma liberal da assistência pertence à década de 1930. Foi neste período que
a revolução direcionou o Estado brasileiro para o atendimento de direitos sociais da classe
trabalhadora.
A relação capital-trabalho foi o disparador das políticas sociais no início do século XX,
dado um contexto de uma “abstinência quase que completa de iniciativas de regulação das
relações entre capital e trabalho na indústria e no comércio e nas condições de trabalho e
remuneração do mesmo no campo” (KERSTENETZKY, 2012, p. 179).
50

Do ponto de vista da economia política, Kerstenetzky (2012) identifica três ondas de


institucionalização das políticas sociais no Brasil: I) os anos de bem-estar corporativo, referente
ao período de 1930 a 1964, caracterizados principalmente pelas primeiras legislações
trabalhistas e previdenciárias; II) o período de universalismo básico, entre 1964 e 1984,
marcado pela expansão das coberturas previdenciárias a grupos sociais tradicionalmente
excluídos e III) o universalismo estendido, pós-88, quando se institucionaliza e consolida a
Seguridade Social, a fixação dos mínimos sociais e políticas de valorização do salário mínimo.
Ao longo da década de 1930 foi estabelecido o limite para as jornadas de trabalho a oito
horas, o repouso remunerado, a regulação do trabalho de mulheres, proibição e fiscalização do
trabalho infantil, a definição de um salário-mínimo e outras normas trabalhistas
(KERSTENETZKY, 2012). Também em relação ao direito político, o sufrágio eleitoral incluiu
o voto das mulheres em 1932, mas ainda excluía mendigos e analfabetos, que em 1940
constituíam 56% da população. As políticas sociais que surgiram a partir da chamada
“Revolução de 1930” expressam a contradição de atender demandas da classe trabalhadora por
melhores condições de vida e trabalho ao mesmo tempo que preservam interesses do capital,
ao amenizar conflitos de classe (BRETTAS, 2017).
Apesar das importantes legislações sociais que surgiram no período, elas eram ainda
limitadas e de baixa cobertura, visto que 70% da população em 1940 era camponesa ou vivia
em áreas rurais. Nas décadas de 1950 e 1960 houve um intenso processo de urbanização
desigual, criando fluxos migratórios para os centros urbanos. Em 1960, 40% da população se
encontrava nas cidades; cinco anos depois a população rural e urbana se equilibrou
(KERSTENETZKY, 2012).
Na segunda onda, houve uma despolitização da previdência e exclusão da participação
social. Se trata, portanto, de um período de retrocessos, no qual Kerstenetzky (2012) assinala o
fim da estabilidade no emprego e o aumento da informalidade. No período, os maiores
beneficiários foram as classes médias e altas, desenvolvendo um padrão de consumo
equiparável ao dos países desenvolvidos.
Com a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, em 1930, o Estado
brasileiro passou a fiscalizar, ordenar e controlar as forças produtivas e incorporar questões
sociais como questões políticas sob sua gerência. Eventos importantes da era Vargas passam a
ser vistos como conquista para os trabalhadores, como a Consolidação das Leis Trabalhistas
(CLT), em 1943 (SPOSATI et al, 2010). Nesse período histórico brasileiro, a CLT, o salário-
mínimo e outras medidas de cunho controlador, assistencial e paternalista tencionaram
interesses de distintas classes sociais (YASBEK, 2020).
51

Em 1942, o governo brasileiro criou a Legião Brasileira de Assistência Social (LBA),


com o objetivo de prestar assistência aos familiares de expedicionários. Após o término da
Segunda Guerra, os objetivos da LBA se voltaram à infância e à maternidade (YASBEK, 2020).
A LBA ocupou espaço, na época, de um importante órgão público na área assistencial.
A concessão estatal de políticas sociais, à época denominado como mecanismo
assistencial, é excludente pois configura os trabalhadores unicamente como assistidos,
beneficiários ou favorecidos, mas é também inclusiva pois atende suas necessidades básicas
para a participação na sociedade capitalista, por meio do consumo. Até 1988, foi o mecanismo
assistencial tecnocrático que selecionou quais “carências” seriam consideradas para o
atendimento, quer seja o financeiro, nutricional, quer seja o físico, para então incluir/excluir das
ofertas e serviços dos programas assistenciais (SPOSATI et al, 2010).
Muitas vezes, o assistencialismo é identificado pelo ato de dar cestas básicas à família
como forma de ajuda diante de uma necessidade. De fato, o benefício eventual é um direito, e
não uma ajuda voluntária. De acordo com as pesquisadoras Sposati, Bonetti, Yazbek e Falcão,
o assistencialismo é definido não somente pela oferta do benefício assistencial, mas quando a
oferta termina em si mesmo. Ou seja, quando se reduz a assistência à condição de objeto,
fetichizada, simplesmente como o ato de dar a cesta básica, por exemplo. Vale assinalar que
essa é a análise de uma leitura marxista da assistência como política social (SPOSATI, 2005;
SPOSATI et al, 2010; YAZBEK, 2020).
Diante do exposto, a mudança de paradigmas que se inicia com a consolidação da
Constituição, a LOAS e a PNAS não significa uma mudança definitiva. Mas avança ao propor
alterações conceituais, programáticas e planejadas para a relação Estado-sociedade civil. A
efetivação do paradigma Dever do Estado e Direito do Cidadão também requer um pacto social
e uma cultura, para que possa romper com heranças exclusivistas, discriminatórias e com os
mecanismos de apartação social (SPOSATI, 2005).

2.2 Controle Social, Heranças e Fragilidades

O controle social é um instrumento de participação e exercício dos direitos políticos na


gestão dos Estados democráticos modernos. Pressupõe a participação da população, no âmbito
da política de assistência social, por meio dos conselhos municipais e esferas deliberativas.
Contudo, a literatura especializada nos estudos sociológicos e técnicos referentes ao tema da
assistência social apresenta diversos pontos de fragilidade do controle social.
52

Entre os principais mecanismos de desvio da participação social estão: I) o


assistencialismo, que desvirtua a ação assistencial da perspectiva da garantia e do direito; II) o
primeiro-damismo e a filantropia, que são desdobramentos do patrimonialismo e baseiam-se
num modo de gestão da esfera pública tendo como referência a vida privada (seja por meio de
interesses pessoais ou de preservação patrimonial) e por fim III), o coronelismo, símbolo
histórico de um modo soberano de controle populacional.
A descentralização político-administrativa instituída como diretriz da política de
assistência social pela Constituição Cidadã (art. 204-I) e reafirmada pela LOAS, teve como
objetivo a ruptura da centralização das decisões políticas.
A pré-história das políticas sociais remonta ao período da Primeira República (1889-
1930). No período da Primeira República, o contexto era de desregulamentação do mundo do
trabalho. As jornadas de trabalho ultrapassavam as 10 horas diárias, não havia distinção do
trabalho entre homens e mulheres e sequer regulação do trabalho infantil. “Não havia
praticamente nada que protegesse o trabalhador e sua família dos riscos do mundo fabril e [...]
da urbanização acelerada [...]” (KERSTENETZKY, 2012, p. 184). De acordo com a autora, as
leis promulgadas não eram aplicadas ou levadas a sério.
Ao final do século XIX, as primeiras iniciativas de proteção social no Brasil eram
direcionadas a servidores do Estado e militares, ao passo que, nas primeiras décadas do século
XX, as políticas de proteção social foram expandidas a trabalhadores da indústria e do comércio
e, por extensão, suas famílias (KERNSTENETZKY, 2012).
O primeiro-damismo, por exemplo, é uma prática muito observada na gestão pública
brasileira, especialmente no órgão gestor da assistência social. Algo que corresponde à
formação social brasileira e aos aspectos culturais da administração pública. Um importante
avanço do paradigma de direitos é precisamente a presença da sociedade civil no controle
social. O primeiro-damismo está intrinsecamente relacionado com a preservação do patrimônio
privado sobre a esfera pública; daí advém a cultura patrimonialista que se perpetua pela
repetição. Pereira (2002) e Pimenta (2016) observam como o papel político da mulher em
meados do século XX era permeado pela contradição de ocupar o lugar de manutenção do poder
patrimonial, que repetia relações de dominação por meio da filantropia e da caridade, ao mesmo
tempo que o papel da primeira-dama representava a oportunidade da inserção da mulher na vida
pública e política da época.
A literatura que se aprofunda no tema do coronelismo é permeada por discussões
divergentes quanto a suas origens históricas e sociais. No entanto, Pereira (2002) assinala que
há um consenso em verificar o auge do coronelismo no período da Primeira República (1889-
53

1930). A tese de Leal, publicada pela primeira vez em 1948, opera uma profunda análise sobre
o tema investigando fatores que perpassam o coronelismo: as atribuições do executivo
municipal, o processo eletivo, as receitas municipais, a organização policial e judiciária,
considerando o período do Brasil Colônia até 1946.
Para Leal (2012), o coronelismo representa uma aliança entre o poder público estatal e
o poder privado. Leal concebe o coronelismo como:

Resultado da superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a uma


estrutura econômica e social inadequada. Não é, pois, mera sobrevivência do poder
privado, cuja hipertrofia constituiu fenômeno típico de nossa história colonial. É antes
uma forma peculiar de manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação em
virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado tem
conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa. [...] O
coronelismo é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder
público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes
locais, notadamente dos senhores de terra (LEAL, 2012, p. 23).

No período de 1891 a 1934, o representante do poder público municipal era eleito pelo
processo eletivo público e nomeado pelos governadores estaduais. As oposições políticas
sofriam uma intensa e violenta perseguição, provocada pela centralização do poder do coronel
nos municípios (COUTINHO, 2014).
A falta de autonomia legal do município era compensada por elevada autonomia
extralegal, não oficial, concedida pelos governos estaduais ao mandonismo local (FORJAZ,
1978; LEAL, 2012). A autoridade coronelista, então, recebia prestígio pela complacência do
poder público, que contribuía para a manutenção do poder coronelista. Daí a relação de
dependência mútua, a um tempo determinante e determinada.
A análise de Leal (2012) destaca que estava implícita uma ideologia no processo
eleitoral municipal, cuja peça central eram as campanhas eleitorais. O mandonismo se fortalecia
durante as campanhas eleitorais, pois era o momento em que chefes locais controlavam
rigidamente o exercício do poder político, por meio do voto. Diante da carestia da população
rural paupérrima, os coronéis expandiram seu poder pela benfeitoria e doação de bens, pois:

Há ainda as despesas eleitorais. A maioria do eleitorado brasileiro reside e vota nos


municípios do interior. E no interior o elemento rural predomina sobre o urbano. Esse
elemento rural, como já notamos, é paupérrimo. São, pois, os fazendeiros e chefes
locais que custeiam as despesas do alistamento e da eleição. Sem dinheiro e sem
interesse direto, o roceiro não faria o menor sacrifício nesse sentido. Documentos,
transporte, alojamento, refeições, dias de trabalho perdidos e até roupa, calçado,
chapéu para o dia da eleição, tudo é pago pelos mentores políticos empenhados na sua
qualificação e comparecimento. Como os próprios chefes locais são em regra somente
“remediados”, o suprimento de dinheiro para essas despesas apresenta certas
particularidades [...]. O velho processo do bico de pena reduzia muito as despesas
eleitorais. Os novos códigos, ampliando o corpo eleitoral e reclamando a presença
efetiva dos votantes, aumentam os gastos. É, portanto, perfeitamente compreensível
54

que o eleitor da roça obedeça à orientação de quem tudo lhe paga, e com insistência,
para praticar um ato que lhe é completamente indiferente (LEAL, 2012, p.30 -31).

A análise de Pereira (2002) trata do contexto do Norte de Minas em meados dos anos 50,
de intenso crescimento populacional concomitante à agudização dos problemas sociais. Entre
os atores institucionais que atuavam sobre a questão social, o autor destaca a Associação das
Damas da Caridade, dirigida pelas esposas das principais lideranças políticas. Os achados do
historiador corroboram com os modos de participação da mulher na vida política local descritos
por Pimenta (2016, p. 58):

A entrada da mulher na vida política [...] acontece através de duas grandes vias: por
meio das relações familiares, quando o capital político foi acumulado por meio do
reconhecimento da família pertencente na figura dos pais, maridos ou irmãos; ou ainda
quando a mulher já possuía uma trajetória de participação política. O primeiro-
damismo é claro exemplo da entrada feminina na política por via familiar, entretanto
reflete a lógica do capital político que tem a função de manter o poder em detrimento
do interesse privado. Desse modo o poder simbólico consolidado nessa função política
mantém a hierarquia de gênero e a relação de dominação masculina ao passo que se
constitui uma função intimamente ligada e subordinada à figura masculina no poder
executivo.

O coronelismo, portanto, remonta à questão dos estudos do desenvolvimento brasileiro e


do sistema federalista desde a Proclamação da República, em 1889 (COUTINHO, 2014). Diz
respeito também a aspectos culturais brasileiros, pois possuem traços marcantes do período
mercantil-escravagista que atualizam tais práticas nomeadas como coronelistas, patrimoniais,
paternalistas e baseiam-se na subordinação do capitalismo central dominante (YASBEK, 2020).
Coutinho (2014) ressalta que o sistema federalista implantado no Brasil foi diretamente
copiado do modelo norte-americano, ignorando as particularidades brasileiras, quer sejam elas
históricas, sociais ou culturais. De tal forma que a estrutura política brasileira determinada pela
Constituição de 1891 estabeleceu legalmente autonomia aos municípios, mas não rompeu com
a cultura centralizada que favorecia o poder coronelista.
A autonomia municipal estabelecida não foi efetivamente implementada nos quarenta
anos de duração da Constituição de 1891 (MEIRELES, 1993; FORJAZ, 1978). O centralismo
político-administrativo que se manteve concedeu poder local aos coronéis, que faziam uso de
forças coercitivas e violentas. De acordo com Pereira (2002), o ponto de maior divergência
teórica na literatura especializada no tema do coronelismo é acerca de sua suposta dissolução.
O historiador observa uma consideração importante de João Morais de Souza quanto ao
“coronelismo em mutação”, que se transmuta durante o período de 1930 até 1992, mas não
desaparece. A tese de Souza é de que os elementos que compõem o coronelismo se integram
no que chamou de “política assistencialista-paternalista''.
55

Vale salientar que a posição de Pereira demonstra preocupação em relação a busca de um


único elemento determinante do coronelismo. Para o historiador, analisando Montes Claros em
meados do século XX, é mais expressivo a integração de elementos diversos, a saber a dinâmica
política, o assistencialismo, a violência, ideologia, além dos tradicionais aspectos como o
carisma e a honra e o latifúndio.
O fenômeno do coronelismo não é uma novidade no começo no século XX. Faoro (2001)
identifica o coronel não apenas como líder político local, mas também um líder econômico, que
domina riquezas e meios de produção.

Se a riqueza é substancial à construção da pirâmide, não é fator necessário, o que


significa que pode haver coronéis remediados, não senhores de terras, embora seja
impossível a corporificação no pobre ou no dependente, destituível de sua posição a
arbítrio alheio. Ocorre que o coronel não manda porque tem riqueza, mas manda
porque se lhe reconhece esse poder, num pacto não escrito (FAORO, 2001, p. 700).

O coronel é, portanto, a figura indissociável do que se denomina como coronelismo.


Pereira (2002, p. 24) conceitua o coronelismo como “uma relação de dependência que se
manifesta através de favores e se perpetua por meio de compromissos que mantém a dominação
política das elites econômicas sobre a população”. Trata-se então de uma relação de poder que
favorece o coronel (um fazendeiro, proprietário, líder local, uma pessoa de elevada estima) com
base no favor instrumental.
Mas a análise histórica vai além. Não se restringe a uma relação de dominação econômica
unidirecional do coronel sobre a população, mas enfatiza sua reciprocidade. De acordo com o
Pereira (2002), o binômio subordinação-dominação que marca a relação entre eleitor e liderança
é dinâmico, construído e reconstruído nas relações cotidianas e modificada socialmente. Em
sua obra, analisa ainda relatos de indivíduos e coletivos que articulavam estratégias políticas
para serem ouvidos e atendidos em suas demandas, o que contraria diametralmente o estereótipo
ideológico de “preguiçoso” e “ignorante” que a mídia propagava do sertanejo.
As categorias sociais apresentadas até aqui são de extrema relevância para se
compreender alguns dos desafios atuais que a Política Nacional de Assistência Social ainda
enfrenta. Em sua caracterização, pode-se observar a importância do controle social e as questões
sócio-históricas que ela abarca. Não se pretendeu, no entanto, esgotar os sentidos do controle
social, mas ressaltar o caráter histórico-dialético que o controle social mobiliza.

2.3 Caracterização do Norte de Minas


56

Este capítulo começou trazendo definições, informações técnicas, legais e


cronológicas sobre a PNAS, o SUAS e a LOAS. Em seguida, foi feito um regresso a uma
mudança conceitual de paradigmas que se concretizou pela Constituição Federal de 1988. A
mudança paradigmática ocorreu entre a concepção liberal e assistencial versus a perspectiva de
direito. Contudo, verificou-se que não se tratou de uma mudança definitiva, mas que está em
curso e vivencia diversos retrocessos. Os tensionamentos provocados pela mudança
paradigmática reviveu - neste trabalho - características de períodos anteriores, como da Era
Vargas (1930-1945), da República Nova (1945-1964), do Regime Militar (1964-1985) e que se
atualizam até o presente.
Investigou-se também algumas questões relativas à participação política e ao controle
social. Tendo em vista que o assistencialismo foi abordado durante o item 2.1, foram
desenvolvidas apenas outras duas categorias: o patrimonialismo, como no caso do primeiro-
damismo e da filantropia; e o coronelismo. Vale salientar que não se pretendeu vulgarizar tais
categorias abordando-as tão rapidamente, mas que outros conceitos importantes foram
necessários para que agora se desenvolvam as particularidades do Norte de Minas Gerais.
Nesse momento, o Norte de Minas será caracterizado por meio de dois níveis diferentes
de análise: do ponto de vista histórico e antropológico. De acordo com o historiador Pereira
(2006), a região norte mineira só se caracteriza como uma unidade político-administrativa em
1720. Por incluir na análise as relações institucionais entre sociedade civil e Estado, cuja
unidade administrativa é criada nacionalmente apenas em 1822, o foco da pesquisa de Pereira
é a partir da década de 1830, quando se reconhece a formação das vilas dotadas de certa
autonomia política-administrativa.
Localiza-se, então, representações sociais no discurso por meio dos elementos do
pragmatismo, governismo, do “abandono” e ausência do Estado desde 1854 (PEREIRA, 2006).
Nesse período, as relações econômicas entre as elites norte-mineiras e do sul da Bahia se
estreitam (PEREIRA, 2007). Na década de 30, sobretudo entre os anos de 1937 e 1945, o
regionalismo esteve fragilizado em virtude da centralização política e do autoritarismo.

O momento símbolo da negação, por parte do poder central, das expressões


regionalistas, durante o Estado Novo, ocorreu em dezembro de 1937, ocasião em que
o Presidente Vargas promoveu a cerimônia de queima de todas as bandeiras estaduais,
sob o argumento de que a unidade da nação não comportava interesses particularistas
e provincianos (p. 50).

Para Pereira (2006), durante a República Nova o regionalismo ganhou um novo fôlego.
Nesse período, de predominância das ideias desenvolvimentistas, os projetos estatais de
industrialização confluíram com as demandas dos grupos regionais. Diante disso, os grupos
57

regionais fizeram uso do discurso da pobreza, da seca, da identificação nordestina/baianeira em


detrimento da identificação mineira como modo de justificar a inclusão da região na área do
Polígono das Secas durante a Era da SUDENE. No grupo “nordestinador” encontravam-se
lideranças políticas, jornalistas, intelectuais e entidades de classe (PEREIRA, 2006; ABREU;
PEREIRA; JÚNIOR, 2015). São essas relações sociais e institucionais que expressam, nas
palavras de Pereira, o caso em que “o regionalismo cria a região”.
Conforme Pereira (2002, p. 104), a partir da análise da ideologia regionalista dos anos
40-50, “o Nordeste rural e ‘atrasado’, seria o local de permanência do coronelismo, enquanto
Centro-Sul, urbano e ‘moderno’” teria superado a tradição coronelista anterior ao tornar-se
democrática. As pesquisas de Pereira (2002; 2006; 2007) contribuem com esta pesquisa ao
identificar a produção ideológica de uma certa representação do Norte de Minas. O autor
localizou diversas pesquisas que participaram da produção intelectual da “nordestinação” e
investigaram as origens baianas da região norte mineira.
Por outro lado, da análise das representações culturais, o Norte de Minas é
particularizado, possuindo uma identidade própria regional que se assemelha mais, no sentido
cultural, com características nordestinas do que propriamente com a mineira (CARNEIRO,
2005). Trata-se de uma região liminar, de gente e povos liminares, que estão entre o Brasil
úmido e o semiárido; entre as áreas de vegetação aberta e a região florestal; entre o montanhoso
e o aplainado; entre territórios de alta densidade populacional e o de esparsa; entre o urbano-
industrial e o agrário (COSTA, 2021; CARNEIRO, 2005).
Por meio da análise das configurações sociais do sertão sãofranciscano, Costa (2019)
assinala que o território historiografado do norte de Minas remonta a meados do século XVII,
quando, conforme documentos da Era Colonial, foram registradas dezesseis sociedades
indígenas. Foi em meados de 1660 que o bandeirante Mathias Cardoso de Almeida iniciou a
ocupação de parte do território indígena. Nesse período, o território foi marcado por uma série
de conflitos violentos e complexos, em grande parte liderados por bandeirantes da Capitania de
São Paulo e da Bahia.
No século XVIII, a atividade econômica agrícola e pastoril ganha significância, de modo
que o território passa a produzir e exportar algodão e látex para Inglaterra. De acordo com o
antropólogo João Batista Costa de Almeida, “a vida social era organizada em torno do possuidor
de terra e, enquanto chefe de família, a autoridade absoluta com exército particular em seus
domínios” (2019, p.213).
A expansão capitalista na década de 1960 foi impulsionada pela chegada da SUDENE
e acarretou mudanças estruturais na configuração social da Sociedade do Curral, como
58

denomina Costa (2019). Como efeitos da expansão capitalista, o autor assinala um processo de
modernização do campo, com vistas a reprodução do capital na região e a emergência de um
tipo de sociedade cosmopolita (COSTA, 2019; CARNEIRO, 2005).

A Sociedade de Curral norte mineira se complexificava [...] tanto no processo de


implantação da estrada de ferro com a presença de engenheiros, trabalhadores braçais,
comerciante de madeira que articulou um número considerável de trabalhadores para
a derrubada da mata [...] O vínculo entre as cidades norte mineiras com as capitais
baiana, por um lado, mineira e fluminense por outro, tornou-se mais dinâmico. As
sociedades locais norte mineiras, principalmente Montes Claros, passam por um
processo de modernização de suas infraestruturas urbanas com a implantação de
pavimentação das ruas, energia elétrica, abastecimento de água, telefonia, clubes
sociais e empresas de lazer e entretenimento. Amplia-se o processo civilizador, via
refinamento do comportamento da população por meio da implantação de
conservatório de artes. Ao mesmo tempo em que as colunas sociais nos jornais locais
enunciaram continuamente que a alta elite deveria afastar de seus círculos de
convívio festivos, aqueles que passaram a ser denominados como penetras,
notadamente a classe média E, ao mesmo tempo, manifestavam a necessidade de
homens mal vestidos e brutos da high society comportassem como suas mulheres,
bem vestidas e educadas, para maior deleite de todos nos acontecimentos sociais
(COSTA, 2019, p. 221, grifos do autor).

Os achados de Costa corroboram com a versão do “homem cordial”, de Sérgio Buarque


de Hollanda e caracteriza a cultura sertaneja pela

“cordialidade, a hospitalidade e generosidade, sendo uma realidade presente na


vivência do sertanejo, como atestam diversos estrangeiros que passaram pelo território
norte mineiro, entre eles Auguste Saint-Hilaire, Richard Burton, George Gardner e
James Wells (COSTA, 1997).

Mas essa é apenas a superfície das relações sociais norte-mineiras, pois Costa conclui
que sua estrutura social é organizada como uma pirâmide, onde no topo está o coronel e sob ele
os agregados, vizinhos e compadres. Para Costa (1997), a relação produtiva do sertanejo com a
terra, os animais e o território adquirem significados próprios.
Os achados de Pereira (2002) contradizem a ideia de cordialidade e harmonia social na
vida cotidiana de Montes Claros no século XX. De acordo com a pesquisa de Pereira,
verificava-se insatisfação na vida cotidiana, muito mobilizada pelo aumento de preços,
desemprego, condições insalubres de trabalho, greves, protestos, abaixo-assinados entre
coletivos, entidades associativas, sindicatos e outros atores. O ápice da pauperização em Montes
Claros se deu no final dos anos 50 e a resposta dada aos problemas sociais pelos grupos
dominantes foi o favor, a ajuda individual e medidas paliativas, que correspondem com os
traços do coronelismo (PEREIRA, 2002).
59

Portanto, fundamentar as bases históricas e sociais para contextualizar as políticas


sociais no Norte de Minas foi o objetivo final deste capítulo. Prossegue-se com os aspectos
metodológicos da pesquisa, a construção do objeto de estudo e dados sobre o campo.

CAPÍTULO 3 - ASPECTOS METODOLÓGICOS

O que é um método? Uma simples pergunta que não prescinde a todo trabalho acadêmico,
sobretudo na pós-graduação. É comum ouvir dizer que um método é indispensável para se
realizar qualquer análise, interpretação, intervenção ou tratamento de um objeto científico.
Tanto que o método corriqueiramente se tornou compreensível pelo bordão “uma maneira de
se chegar à”. Mas no contexto da vigente pesquisa, o retorno à pergunta de base se faz
necessário.
No segundo capítulo da parte IV da História da Sexualidade I, Foucault (1985) manifesta
que o método, além do entendimento comum, é uma estratégia de pensamento, ou seja, um jeito
de pensar um conceito. No contexto da pesquisa de Foucault, quando este se põe a pensar sobre
um certo tipo de saber sobre o sexo, a estratégia utilizada não foi pensar sexo em termos de
repressão, mas nos termos da categoria “poder”. Portanto para Foucault, o método é uma
estratégia para se pensar as relações de poder. Isso não é precisamente explícito, visto que
método só é citado uma única vez no texto além do título, mas é o que se entende, conforme
Guirado (2009), quando a estratégia conceitual organiza um modo de análise.
Por definição, é o método que caracteriza os termos de uma pesquisa: o que vai ser
entendido como sujeito, objeto, campo, quais serão os recursos analíticos, as estratégias, os
pontos de vistas e a teoria. É também o método que classifica a ordem dos textos e
acontecimentos, de tal modo que diferentes métodos podem significar resultados
completamente opostos.
Como afirma Bourdieu (1989), o objeto não é dado, mas construído. E isso significa
colocar em causa as partes pré-construídas do objeto, ou seja, não tomar o objeto por completo,
pronto ou já devidamente constituído por suas partes, mas submetê-lo ao processo de
desconstrução e reconstrução.
Semelhante à Foucault, Bourdieu (1989) também sugere que se pense o objeto
relacionalmente, mas aqui diante de uma falsa oposição que gira em torno de uma “teoria” em
oposição à “metodologia”. Para o sociólogo “as opções técnicas mais empíricas são
inseparáveis das opções mais teóricas de construção do objeto” (p. 24).
60

Diante disto, importante pontuar que nessa pesquisa as questões metodológicas não se
iniciam aqui, mas desde o início do trabalho, quando se opta por abrir a pesquisa abordando o
neoliberalismo nas esferas econômicas, ideológicas e políticas. Abordar teoricamente o
neoliberalismo, delineando limites e acentuando as apostas que aqui se fazem, assenta o
caminho para responder à pergunta originária da pesquisa e consequentemente a respectiva
hipótese: de que maneira os discursos de gestores da política de assistência social no norte de
Minas performam o neoliberalismo?
As palavras escolhidas, a ordem dos capítulos, dos textos que são escritos em momentos
diferentes de um processo contínuo, as bibliografias consultadas e referenciadas, estas e outras
são todas questões metodológicas das quais Bourdieu (1989) alerta vigilância epistemológica.
O autor chama atenção aos vícios da tradição da sociologia americana que, baseada numa
espécie de “fetichismo da evidência” (p. 24), muito influenciada pelo positivismo, só toma
como concreto dados empíricos observáveis.
Acredita-se aqui que se o neoliberalismo existe, em qualquer esfera que queira, só existe
como resultado de algo produzido socialmente. Negar sua construção já é em si uma construção,
pois como Bourdieu (1989) assinala, é um registro, uma confirmação de algo já pré-construído.
Ao tratar acerca do neoliberalismo e das políticas sociais realiza-se também uma outra
sugestão bourdiesiana, que é realizar a história social da emergência desses problemas (aqui
relativos aos efeitos do neoliberalismo), ou seja, para além de responder “o que é o
neoliberalismo” traçar um percurso sobre seus modos, agentes, histórias, processos sociais,
sobre o quê incide e como? Necessários apontamentos que ilustram a importância de pensar
relacionamente “teoria” e “método”.
Contudo, ao tomar o neoliberalismo como um produto social aproxima-se do objeto: os
agentes que o produzem. No contexto de políticas sociais, em específico de políticas de
assistência social busca-se ouvir àqueles que a produzem e reproduzem no maior cargo
executivo municipal (em termos da hierarquia administrativa): os gestores.

3.1 A CONSTRUÇÃO DO OBJETO

Partindo do pensamento foucaultiano, discursos não são meramente falas ou narrativas,


mas também atos, dispositivos e acontecimentos. Em suma, conjuntos de procedimentos que se
põe em ato, de modo que o discurso se constitui sempre aquém e além da palavra (GUIRADO,
2019).
61

Em A Ordem do Discurso, Foucault (1996) teatralmente monta um diálogo entre o desejo


e a instituição. Nesse diálogo o desejo diz: “eu não queria ter de entrar nessa ordem arriscada
do discurso; não queria ter de me haver com o que tem de categórico e decisivo [...]” (1996, p.
7) e a instituição prontamente lhe responde: “você não tem porque temer começar; estamos
todos aí pra lhe mostrar que o discurso está na ordem das leis; que a muito tempo se cuida de
sua aparição [...]” (1996, p. 7). Certamente, o diálogo fictício foi a maneira introdutória que
Foucault encontrou para assinalar uma inquietação tanto do desejo quanto da instituição e
adentrar a complexas problematizações sobre as armadilhas do discurso.
Posteriormente, Foucault (1996) elenca procedimentos internos e externos que ordenam
o discurso, a saber I) a interdição, que barra o indizível quer pelo tabu, pelos rituais ou ainda
pelo direito exclusivo daquele que fala de silenciar; II) separação/rejeição, oposição que ordena
o discurso da razão sobre o louco, mas também separa o verdadeiro do falso; III) repetição, que
mantém e conservam narrativas discursivas em determinados contextos, sob determinados
saberes, quer culturais, jurídicos, científicos ou religiosos; IV) expansão/criação, discursos que
se expandem mediante autoria para além da repetição. E destaca princípios de rarefação do
discurso como os comentários, que ocorrem mediante repetição ao se referir a um texto ou
autoria outra, a própria autoria, que não se resume a uma identidade específica, mas a uma
unidade primeira de significação e por fim a organização das disciplinas, que “emblocam”
conhecimentos e com isso disciplinam os próprios discursos.
Em ato, se reproduz aqui alguns dos procedimentos discursivos que Foucault apresenta,
como os comentários mediante a repetição em contraponto ao discurso disciplinado e
organizado que o autor produz no texto. O que se pretende com isso é demonstrar que o discurso
pertence a um ordenamento, que participa de um jogo de forças, tensionado por regras e leis
internas e externas, que ora se complementam, ora se opõem.
Nota-se que os discursos se produzem em ato: de falar, manter, transmitir, articular ideias,
mas também de silenciar, omitir, ocultar, censurar etc. A ideia de discurso que aqui se adota
materializa-se também em dispositivos e acontecimentos. Em outros termos, um discurso se
produz em uma determinada cena, num contexto, num quadro analítico, mediante rituais e
procedimentos já vistos.
A abordagem escolhida para tratar do objeto – os discursos - é a Análise Institucional do
Discurso (AID), que será apresentada no item 3.2. Cabe aqui salientar que é uma abordagem
metodológica que se constitui no campo da psicologia através de interfaces com a psicanálise,
a linguística, a filosofia e a sociologia. Do ponto de vista da linguística, a análise é pragmática
porque não visa interpretar o sujeito que fala, como faz a psicanálise. Isto é, não se busca
62

analisar a “interioridade” do falante, ou interpretar o que o sujeito fala em correspondência com


acontecimentos anteriores. De acordo com a análise pragmática do discurso de Maingueneau,
um discurso se produz no interior de determinados contextos e isso direciona a produção de
sentidos.
Ao apostar em uma análise pragmática, Guirado (2009) se distingue em relação uma
análise hermenêutica/interpretativa. Como pode-se observar conforme a autora, a análise
pragmática marca uma reviravolta no modo de se fazer análise, de compreender o objeto e na
própria extensão do que se analisa:

Não se separa a linguagem da realidade sobre quê a linguagem fala; ao se examinar a


linguagem, de alguma forma já se está examinando a realidade, necessariamente; falar
não é descrever uma realidade observada/observável; é sim, um modo de agir; a
linguagem comum, ordinária, é o horizonte último em que se constitui a experiência;
e ela é sempre ponto de partida da análise, sem exigir ponto de chegada ou, ainda,
visar a produzir uma linguagem mais perfeita ou mais rigorosa. Dessa maneira, pode-
se dizer que se a análise tem como objeto a caracterização dos elementos envolvidos
em seu uso, será sempre incompleta, com resultados provisórios; será sempre parcial,
e não definitiva, apesar de detalhada e minuciosa (GUIRADO, 2009, p. 207).

No trecho acima não está explicito, mas Guirado está falando da Filosofia Analítica de
John L. Austin, que desenvolveu a Teoria dos Atos de Fala. Resumidamente, no interior da
Teoria de Austin, os atos de fala podem ser caracterizados como constatativos e performáticos,
sendo os constatativos aqueles que constatam uma realidade dentro dos registros
“verdadeiro/falso”, e os performáticos aqueles que não se submetem ao registro de verificação
da verdade (Rodrigues, 2012).
O que diferencia a análise pragmática da interpretação é “a consideração do contexto para
a produção do sentido” (GUIRADO, 2009, p. 209). Para Guirado, a análise é pragmática porque
não se atém estritamente e exclusivamente ao que o falante diz, mas ao todo. Ao contexto, à
cena, às condições enunciativas, situações e atuações. Suspendendo uma vontade de saber e
podendo lançar inclusive suspeitas à pessoa que analisa. A análise é institucional porque o
recorte é institucional, de modo que não se pode partir de todas as dimensões possíveis, mas é
necessário operar um recorte.

3.2 ANÁLISE INSTITUCIONAL DO DISCURSO COMO MÉTODO

Como já mencionado, a AID constitui-se como método de pesquisa para a psicologia a


partir de interlocuções que Guirado faz com outras áreas do saber. Na AID, o pensamento de
Michel Foucault é a linha mestra que dá “liga” aos conceitos de discurso e instituição.
63

A ideia de Instituição proposta não a entende apenas como edifícios de personalidade


jurídica ou social (movimento sociais, ONGs, instituições comerciais, empresas, departamentos
governamentais etc.), mas vai além. Para Albuquerque (1978), Instituições são um “conjunto
de relações sociais que se repetem e, nessa repetição, legitimam-se” (GUIRADO, 2009, p. 36).
Trata-se, portanto, de um conceito sociológico. Tal legitimação ocorre por efeitos de
reconhecimento que as relações naturalizam ou tomam como óbvias.
É um apontamento sobre a importância do conceito de instituição que chama atenção para
a AID como método de análise para a atual pesquisa:

O mais importante nessa compreensão de instituição é que ela nos coloca, na


qualidade de agentes ou de cliente, como atores em cena. É a nossa ação que faz a
instituição. Que a reproduz e legitima. Inclusive, no que diz respeito aos efeitos de
reconhecimento e desconhecimento. Assim, não há porque se referir à instituição
como um corpo estranho, acima de nossas cabeças, com vida própria e independente
de nós. Nós a fazemos. E, mesmo que à revelia de nossa consciência, reconhecemos
como natural e legítimo esse fazer (GUIRADO, 2009, p. 36-7).

Por mais que se entenda que, por exemplo, o ato de dar cesta básica a um usuário da
assistência social está relacionado com toda uma prática assistencialista, filantrópica e
caritativa, de um ponto de vista crítico, o reconhecimento disso vai depender diretamente do
contexto, das legitimações que se dão nas relações sociais, das instituições que se formam.
Assim, dar a cesta básica pode ou não ser uma prática assistencialista. E isso não vai depender
unicamente da repetição, mas de todo o jogo de forças e poder tensionados na relação de
clientela, entre os agentes e os clientes da instituição.
Outros importantes conceitos mobilizados por Maingueneau, como Gênero Discursivo
(GD) e cena genérica, consideram também atores institucionais. A cena é o quadro que vai
definir os papéis ativados nas relações (GUIRADO, 2009). Em obra anterior Maingueneau
(GUIRADO, 2000) apresenta um exemplo: quando se vai comprar um carro, o que se espera é
uma relação entre vendedor e comprador; contudo, se o vendedor for uma mulher e o comprador
um homem pode-se estabelecer uma espécie de “conflito entre os papeis de gênero discursivo
e os ‘sujeitos reais’” (MAINGUENEAU em GUIRADO, 2000, p. 97), de modo que o homem
pode tentar seduzir a vendedora para seus fins, criando uma tensão que extrapola as expectativas
da relação vendedor-comprador. O GD, por sua vez, “apara as arestas” das expectativas que
surgem da relação social.
Por fim, conforme Guirado (2009) é preciso definir um recorte do quadro para que se
possa operar uma análise. O quadro analítico da pesquisa consiste no recorte do Norte de Minas,
64

da Política Nacional de Assistência Social e suas correlatas, dos recursos e do Gênero


Discursivo (GD).

Quadro 1: Quadro Analítico.

Norte de Minas Gênero Discursivo

Análise
Institucional
do Discurso

Política Nacional de Recursos (financeiros,


Assistência Social humanos, infraestrutura)

É com esse recorte que se busca compreender o que está em jogo nos discursos. Como
visto no capítulo anterior, é a PNAS que organiza as direções do trabalho do gestor; é o Gênero
Discursivo que permite analisar as condições de enunciação do discurso; e a partir do
entendimento de que o trabalho é mediado por recursos diversos, dos quais, sobretudo, o
financeiro vem sendo esvaziado por um contexto neoliberal maior, que será analisado o que
fazem estes gestores.

3.3 O CAMPO

Os discursos dos gestores foram coletados mediante entrevistas semiestruturadas. Tais


gestores ocupam o cargo de secretários/as do órgão responsável por gerir a política de
assistência social em seu município. É esperado, de acordo com a Norma Operacional Básica
de Recursos Humanos (NOB-RH/SUAS, 2011), que tal gestor seja formado nos cursos
superiores de: Direito, Administração, Antropologia, Serviço Social, Contabilidade, Economia,
Pedagogia, Psicologia, Sociologia ou Terapia Ocupacional. Também se deseja que tal gestor
65

compreenda as atribuições e responsabilidades dos entes federados, ou seja, da União, dos


Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, conforme recomenda a NOB/SUAS (2012).
Sátyro e Cunha (2019) apresentam as classificações de burocratas de alto e médio escalão
e os de nível de rua. Burocratas de alto e médio escalão são considerados profissionais de elite
e situam-se em posições estratégicas, atuando diretamente no processo de formulação de
políticas públicas. Por outro lado, os burocratas de nível de rua são intermediários e gerenciam
a política executada pelos profissionais da linha de frente (SÁTYRO; CUNHA, 2019).
Os gestores ocupam a gestão da Assistência Social em seus respectivos municípios. Os
municípios são caracterizados conforme a Política Nacional de Assistência Social - PNAS
(2004) como de pequeno porte I, ou seja, não ultrapassam 20.000 habitantes. É a menor
classificação administrativa dos municípios no Brasil.
De acordo com a estimativa da população para o ano de 2020, feita pelo IBGE, 67%
(3.773) dos municípios brasileiros são de pequeno porte, ao passo que neste universo 30 deles
são extremamente pequenos, com uma população inferior à 1.500 habitantes. Em contrapartida,
17 municípios do país possuem mais de 1 milhão de habitantes, totalizando 21,9% da população
nacional. Desses 17, apenas 3 não são capitais.
Os municípios do campo de pesquisa estão localizados na microrregião de Januária e na
macrorregião do Norte de Minas Gerais. O Estado é o maior em número de municípios,
somando 853, situadas em 12 regiões intermediárias. A microrregião de Januária contém 16
municípios, sendo desses 14 de pequeno porte I. A figura 1 contém um mapa com a localização
dos municípios da microrregião de Januária, no âmbito do Norte de Minas e do estado de Minas
Gerais.
66

Figura 1 – Municípios da Microrregião de Januária - MG

Fonte: IBGE
Elaboração: CAMPOS, C. B. (2022)

A Tabela 1 apresenta características gerais dos municípios da microrregião de Januária,


de acordo com os dados do IBGE e da RAIS (Relação Anual de Informações Sociais). A tabela
apresenta população estimada de 2021, o PIB per capita, IDHM, quantitativo de beneficiários
de programas sociais e razão entre pessoas elegíveis ao Auxílio Emergencial e pessoas
empregadas com empregos formais em 2020.

Tabela 1 – Características Gerais dos Municípios da Microrregião de Januária.


Município População PIB per capita IDHM Quantidade de Razão entre pessoas
pessoas elegíveis ao Aux.
estimada (2019) (2010)
beneficiadas por Emergencial / pessoas
(2021) programas empregadas com
sociais (2021) emprego formal (%)
(2020)
Bonito de Minas 11.502 R$ 7.204,87 0.537 4.105 238,4
Chapada Gaúcha 14.217 R$ 16.487,26 0.635 5.098 230,4
Cônego Marinho 7.730 R$ 7.082,62 0.621 3.207 307,6
Icaraí de Minas 12.200 R$ 7.086,46 0.624 4.959 458,0
Itacarambi 18.175 R$ 11.565,49 0.641 11.987 184,6
Januária 67.958 R$ 10.446,04 0.658 41.525 250,5
67

Juvenília 5.705 R$ 8.777,22 0.592 2.644 332,9


Manga 18.051 R$ 11.657,15 0.642 12.205 223,2
Matias Cardoso 11.360 R$ 11.127,51 0.616 4.050 154,3
Miravânia 4.939 R$ 8.079,67 0.593 1.812 282,2
Montalvânia 14.621 R$ 9.351,30 0.613 8.216 256,7
Pedras de Maria 12.313 R$ 7.600,06 0.614 4.215 325,0
da Cruz
Pintópolis 7.540 R$ 8.125,49 0.594 3.544 322,5
São Francisco 56.625 R$ 9.445,53 0.638 32.874 303,6
São João das 13.232 R$ 6.428,57 0.529 4.938 409,6
Missões
Urucuia 17.470 R$ 7.949,17 0.619 4.743 257,7
Fonte: IBGE Cidades (2021), RAIS (2021).
Elaboração: Campos, C. B. (2022).

O mapa abaixo mostra a carência, a vulnerabilidade e o desamparo que os municípios


Microrregião de Januária enfrentam em comparação com o Norte de Minas e o estado de Minas
Gerais. O IDHM de 2010, apresentado na figura 2, é calculado com base nos indicadores de
Renda, Educação e Longevidade, tendo por referência os dados do Censo 2010, com pesos
iguais. Na microrregião, 5 municípios possuem baixo IDHM (0,529 – 0,599) e 11 possuem
médio IDHM. Inexistem municípios com IDHM considerado alto ou muito alto na região.
68

Figura 2 – Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) 2010.

Fonte: IBGE (Censo 2010)


Elaboração: CAMPOS, C. B. (2022)

A partir do Censo de 2010, o atlas do IDHM 2013 calculou a proporção de vulneráveis à


pobreza (PPOB). O mapa 3 mostra que o Norte de Minas possui municípios com população
predominantemente vulnerável à pobreza. O mapa mostra cinco grupos de municípios:
proporção muito baixa (10,8 – 19,9) – 64; proporção baixa (20,0 – 39,9) – 364; média proporção
(40,0 – 49,9) – 151; alta proporção (50,0 – 60,9) – 177 e proporção muito alta (61,0 – 78,4) –
97. Ao todo, 274 municípios possuem alta/muito alta proporção de indivíduos vulneráveis à
pobreza. Isso representa 32,1% de todos os municípios mineiros. Na microrregião de Januária,
todos os municípios apresentam alta/muito alta proporção de indivíduos vulneráveis à pobreza.
Ou seja, em toda a microrregião de Januária, 50% da população, ou mais, vivia em 2010 com
meio salário-mínimo per capita. Há poucos indícios de que a situação tenha melhorado em
termos econômicos nos últimos 10 anos.
69

Figura 3 – Proporção de vulneráveis à pobreza em 2010 (Proporção dos indivíduos com


renda domiciliar per capita igual ou inferior à R$255,00 mensais, em reais de agosto de 2010,
equivalente a ½ salário-mínimo nesta data).

Fonte: IBGE (Censo 2010)


Elaboração: CAMPOS, C. B. (2022)

O mapa acima ilustra o grau de vulnerabilidade e dependência econômica de


transferências de renda que as famílias da microrregião vivem, por meio de aposentadores,
pensões, Bolsa-Família, Auxílio Emergencial, BPC e outro. Sobretudo quando comparada com
a região central, o Sul de Minas e/ou o Triângulo Mineiro.
Dados mais recentes do Ministério de Cidadania mostram a razão entre quantidade de
pessoas beneficiárias do Programa Bolsa Família em 2021 e a população do município. Na
figura 4 abaixo verifica-se o município de Urucuia em azul. Urucuia se destaca como o
município com a menor razão de beneficiários em relação à população na microrregião (23,4%).
Em Montes Claros, município de referência, a razão é de 11,2%, em Belo Horizonte, capital
estadual, 8,8%. Ao todo, 37,6% da população da microrregião de Januária é beneficiária do
Bolsa Família, enquanto no Norte de Minas o percentual é de 30,3%.
70

Figura 4 – Razão entre quantidade de pessoas beneficiadas com o Bolsa Família em


outubro 2021 e a população do município (em %)

Fonte: Ministério da Cidadania


Elaboração: CAMPOS, C. B. (2022)

Na figura 5, encontra-se o mapa com a razão entre as famílias beneficiárias do Bolsa


Família em 2021 e a quantidade de trabalhadores com emprego formal em 2020. Em São João
das Missões, existiam 5,30 famílias recebendo Bolsa Família para cada pessoa empregada com
carteira assinada. Na microrregião de Januária, a proporção era de 1,91 famílias recebendo bolsa
família para cada pessoa ocupada com carteira assinada, índice muito superior ao observado
para o Norte de Minas (0,80) e Minas Gerais (0,24).
71

Figura 5 – Razão entre a quantidade de famílias beneficiadas com o Bolsa Família em


outubro 2021 e pessoas empregadas com emprego formal em 2020 (em %)

Fonte: Ministério da Cidadania


Elaboração: CAMPOS, C. B. (2022)

O mapa seguinte (figura 6) apresenta a razão entre pessoas elegíveis para receber o
Auxílio Emergencial em 2021 quando comparado com a população municipal. No mapa mostra
uma baixa elegibilidade da população da microrregião, o que provoca dúvidas quanto ao
alcance do Auxílio Emergencial. Há de se investigar se a carência seria dos próprios
equipamentos públicos em manter os dados do CadÚnico atualizados ou se há dificuldade de
acesso da população aos sítios eletrônicos disponibilizados pelo Governo Federal. Na
microrregião, apenas Juvenília apresenta elegibilidade superior a 20%, ou seja, a cada 10
habitantes do município, apenas dois seriam elegíveis ao Auxílio Emergencial.
72

Figura 6 – Razão entre as pessoas elegíveis para receber o Auxílio Emergencial em


2021 e a população do município (em %).

Fonte: Ministério da Cidadania


Elaboração: CAMPOS, C. B. (2022)

A figura 7 mostra o mapa com a razão entre a população elegível ao Auxílio Emergencial
e pessoas empregadas com emprego formal. Todos os municípios apresentam percentual
superior a 200%, com exceção de Matias Cardoso (154,3%) e Itacarambi (184,6%). Em Icaraí
de Minas, por exemplo, havia 4,58 pessoas recebendo Auxílio Emergencial para cada pessoa
com emprego formal. Na microrregião de Januária, eram 2,60 pessoas recebendo Auxílio
Emergencial para cada pessoa com emprego formal, índice superior ao observado no Norte de
Minas (1,46) e no Estado de Minas Gerais (0,74). O padrão apresentado pela região é de maior
demanda por benefícios do que contribuição previdenciária.
73

Figura 7 – Razão entre pessoas elegíveis para receber o Auxílio Emergencial em 2021 e
pessoas empregadas com emprego formal em 2020(em %).

Fonte: Ministério da Cidadania e Ministério do Trabalho e Previdência


Elaboração: CAMPOS, C. B. (2022)

Os dados revelam que a grande vulnerabilidade enfrentada pela microrregião de Januária


é reflexo do atraso econômico, e o padrão se repete quase uniformemente por todo o Norte de
Minas. A fragilidade econômica implica em baixíssima capacidade de inclusão produtiva para
uma parcela significativa da população, à medida que os setores mais importantes da economia
dos municípios são a administração pública e a agropecuária de subsistência. Por essa razão, as
transferências de renda realizadas por meio das políticas sociais são importantes para garantir
o sustento das famílias e, ao mesmo tempo, impulsionar a economia local, especialmente o
comércio.
A Tabela 2 traz informações sobre os municípios participantes da pesquisa. De acordo
com a Rede Suas (2021), todos os municípios selecionados ofertam o programa Criança Feliz,
o Benefício de Prestação Continuada (BPC), cinco ofertam o ACESSUAS Trabalho e apenas
dois desenvolvem o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI).
74

Tabela 2– Informações sobre Municípios e Gestores Entrevistados


MUNIC. MUNIC. MUNIC. MUNI MUNIC. MUNIC. MUNIC. MUNIC.
I II III C. IV V VI VII VIII
População ¹ 11.502 12.200 11.360 14.217 7.730 12.313 13.232 18.175
IDHM¹ 0,537 0,624 0,616 0,635 0,621 0,614 0,529 0,641
Oferta BPC BPC BPC BPC BPC BPC BPC BPC
Socioassiste Escola, Escola, Escola, Escola, Escola, Escola, Escola, Escola,
ncial² Criança Criança Criança Criança Criança Criança Criança Criança
Feliz, Feliz, Feliz, Feliz, Feliz Feliz, Feliz Feliz,
Acessuas PETI Acessuas Acessu Acessuas Acessuas
Trabalho Trabalho as Trabalho Trabalho
Trabalh
o, PETI
Recursos R$ R$ R$ R$ R$ R$ R$ R$
em Fundo² 236.776,5 15.920,45 55.739,94 78.130,27 36.434,19 37.714,58 254.538,0 130.120,5
(Ref. 5 7 3
12/2021)
Escolaridad ES. EM. ES. ES. ES. ES. ES. ES.
e Gestor/a³ Completo Completo Completo Completo Completo Completo Incomplet Completo
o
Formação³ Serviço - Serviço Serviço Ed. Serviço Serviço Pedagogi
Social Social Social Física Social Social a
Regime³ Comissio Comissio Comissio Concursa Comissio Comissio Comissio Comissio
nada nada nada do nada nada nada nada
Tempo <1 ano <1 ano >10 anos 1a3 1a3 5 anos <1 ano <1 ano
Experiência
anos anos
³
Fonte:¹ IBGE Cidades (2021), ²Rede SUAS (2021), ³Resultados de Pesquisa de Campo.

Os municípios analisados possuem população entre 7.000 e 18.000 habitantes (IBGE,


2020). Em relação ao Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) a mínima é de
0.529, e a máxima, 0.641 (ATLAS, 2021).
Quanto aos recursos financeiros, no mês de dezembro de 2021, os municípios contavam
uma média de R$105.671,82 em conta no Fundo de Assistência Social (REDE SUAS, 2021).
O financiamento do SUAS é realizado fundo-a-fundo, portanto, os repasses são realizados da
União diretamente aos municípios. O órgão gestor com menor saldo em conta no mês de
dezembro possuía R$15.920,45, já o com maior saldo possuía R$254.538,07. Observar a
diferença de saldo em conta é relevante pois diz respeito especificamente a gestão dos recursos,
haja visto que os municípios possuem características muito semelhantes.
As entrevistas com os gestores abordaram os mesmos temas: a experiência no SUAS, os
principais desafios, quadro de funcionários/equipe multidisciplinar, funcionamento dos
conselhos municipais (assistência social, criança e adolescente, juventude, idoso) e capacidade
de trabalho intersetorial.
75

Além dos discursos, foram analisados quatro relatórios da Pesquisa de Informações


Básicas Municipais do IBGE, referentes aos anos 2013, 2018, 2019 e 2020. Entre os arquivos
analisados, o relatório mais completo foi do ano de 2013, por possuir um suplemento específico
para a política de Assistência Social.
Conforme dados do IBGE de 2013, apenas um município não possui estrutura
administrativa exclusiva para a assistência social. Tanto o Norte de Minas quanto a
microrregião de Januária possuem mais estrutura administrativa exclusiva para a gestão do
SUAS do que o acumulado da região Sudeste (88,76%) e do Brasil (75,4%).

TABELA 3 – Percentual de Municípios com Estrutura Administrativa Exclusiva para Assistência Social
Com estrutura na área de Assistência Social (%)
TOTAL Total Secretaria Secretaria Setor Setor Fundação
BRUTO Exclusiva de Associada a subordinado subordinad Pública
Assistência outras a Chefia do o a outra
Social Políticas Executivo secretaria
Setoriais
Microrregião 16 100 93,75 6,25 0 0 0
de Januária
Norte de 89 100 88,76 7,86 0 3,37 0
Minas
Sudeste 1668 100 78,2 13,4 5,9 2,3 0,1
Brasil 5570 99,9 75,4 20,4 2,5 1,6 0,2
Fonte: Pesquisa de Informações Básicas Municipais – Suplemento Assistência Social, 2014.

A pesquisa Perfil dos Municípios Brasileiros - Assistência Social de 2013 é a mais


completa dos últimos 10 anos pois inclui na avaliação indicadores relativos à gestão,
infraestrutura do órgão gestor, recursos humanos, legislação e instrumentos de gestão,
institucionalização do conselho municipal, gestão financeira, convênios e serviços
socioassistenciais.
Posteriormente, no ano de 2018, a mesma pesquisa não fornece relatórios específicos para
cada política social, mas comprime diversas políticas públicas em um único relatório. A
pesquisa atualiza dados referentes a estrutura administrativa da assistência social, apresenta
perfil dos gestores, instrumentos de gestão e os serviços socioassistenciais. Apesar de não
investigar os mesmos itens da edição de 2013, as informações da MUNIC 2018 ainda são de
extrema relevância. O gráfico 3 abaixo ilustra a informação do relatório de que 99% dos
municípios brasileiros ofertavam algum serviço socioassistencial, em todas as classes de
tamanho populacional e em todas as Grandes Regiões. A única alteração significativa
encontrada foi acerca da oferta de serviços da proteção social especial, que, em 2013, era de
76,2% e, em 2018 elevou-se a 84,4% a oferta de serviços de proteção social especial nos
municípios brasileiros (IBGE, 2018).
76

Gráfico 3 - Percentual de municípios que executam serviços socioassistenciais (%) - Brasil 2013/2018.
100

80

60

40

20

0
Executam serviços Serviço de Proteção Serviço de Proteção
Social Básica Social Especial
2013 2018

Fonte: IBGE – Pesquisa de Informações Básicas Municipais, 2018.


Elaboração: CAMPOS, C. B. (2022)

Os dois últimos relatórios, referente às pesquisas de 2019 e 2020, não incluem a


assistência social como tópico. O que se observa é que se suprime a assistência social como
política pública, em detrimento de tópicos que não se via antes, como Comunicação e
Informática, Governança, Segurança Pública e Direitos Humanos.
A análise dos relatórios da Pesquisa MUNIC do IBGE apresenta uma agenda de
fragmentação das políticas sociais, em especial o desmonte da política de assistência social. Os
achados corroboram com extensas produções que vem denunciando o desmonte das políticas
sociais no Brasil, em especial no SUS e do SUAS (FILHO, 2020; MARQUES et al, 2019;
PEREIRA; SILVA; PATRIOTA, 2006).

CAPÍTULO 4 – RESULTADOS E DISCUSSÕES

Foram realizadas oito entrevistas, sendo seis virtuais por meio da plataforma Google Meet
e duas presenciais na sede das secretarias de assistência social de dois municípios. Todas as
entrevistas foram gravadas e transcritas. Os participantes foram numerados com o objetivo de
impossibilitar a identificação, conforme o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Em relação aos gestores entrevistados, três são homens e cinco são mulheres. Suas
formações são em Serviço Social (4), Educação Física (1), Pedagogia (1), Enfermagem (1) e
Administração (1). Entre eles, um gestor possui duas graduações e um gestor não possui ensino
superior. Dos 8 entrevistados, 6 estão na primeira gestão, 1 na segunda e outro na terceira. 7
77

gestores assumiram o cargo por contratação temporária e apenas 1 possui vínculo por meio de
concurso público.
Os resultados serão apresentados em três partes: I) classificação dos discursos em a)
Gestor qualificado e comprometido, b) Gestor não qualificado, mas comprometido e c) Gestor
não qualificado e não comprometido; II) identificação de convergências e divergências nos
discursos e, por fim, III) uma análise das categorias mobilizadas pelos discursos.

4.1 QUALIFICAÇÃO E COMPROMETIMENTO

Entende-se como qualificado quando se encontra no discurso uma postura crítica sobre o
trabalho que se exerce, postura que parte de conhecimento técnicos e os ultrapassa,
problematizando-os.
O comprometimento se verifica quando o gestor ou a gestora demonstra no conjunto do
seu discurso implicação com o que diz. Ou seja, há uma tomada de responsabilidade no discurso
que é perceptível, tangenciável. Com isso, o comprometimento está para uma experiência assim
como a qualificação está para o conhecimento.
O conjunto do discurso de três gestores se apresenta no contexto dessa pesquisa como
qualificado e comprometido. Dois se classificaram como não qualificado, mas comprometido.
E três foram classificados como não qualificado e não comprometido.

TABELA 4 – Classificações dos Discursos.


QUALIFICADO E NÃO QUALIFICADO, NÃO QUALIFICADO E NÃO
COMPROMETIDO MAS COMPROMETIDO
COMPROMETIDO
Gestora III: conhecimento técnico Gestor II: não apresentou Gestora I: não apresenta
e teórico da AS; experiência e conhecimento técnico e conhecimento técnico e teórico,
comprometimento ético-político. teórico, mas há nem é comprometida com o
comprometimento paradigma democrático.
religioso
Gestor IV: conhecimento técnico e Gestor V: não apresenta Gestora VI: não apresenta
teórico da AS; experiência e conhecimento técnico e conhecimento técnico e teórico,
comprometimento ético-político. teórico, mas há nem é comprometida com o
compromisso com a paradigma democrático.
política social.
Gestora VII: conhecimento Gestora VIII: não apresenta
técnico, teórico e conhecimento técnico e teórico
comprometimento em garantir nem é comprometida com o
Documentação Civil Básica. paradigma democrático.

Encontra-se como indicativo de discursos qualificados e comprometidos os trechos


seguintes, extraído das entrevistas:
78

“nós não atuamos assim, nessa perspectiva de fiscalização, porque nosso público
realmente nos traz demandas muito simples e urgentes, sabe? É diferente dos
municípios maiores que você tem que fazer uma busca mais detalhada do perfil de
renda né, então até por conta dessa carência, o acesso a emprego aqui é um pouco
restrito. O maior empregador hoje ou é a prefeitura, ou o projeto Jaíba que está a,
mais ou menos, quarenta quilômetros. Então o perfil social do nosso município,
infelizmente, é um perfil de poder aquisitivo bem baixo, então não se faz necessário
essa busca de materializar, de fiscalizar... Acaba que a gente tem que trabalhar muito
mais... Fortalecer a autonomia, no desligamento, porque faltaria justificativa para
manter as famílias, é um município pequeno, né... Então a questão social se faz muito
presente” (Gestora III).

“[...] nós não temos a proteção social especial, [...] eu não tenho os equipamentos,
mas eu tenho uma extrema demanda. Eu atendo. É aquela questão: você não tem um
médico cirurgião - nós não temos um médico cirurgião, mas nós temos que fazer pelo
menos umas suturas, algumas cirurgias para poder alguns pacientes não morrer,
senão você fica numa situação muito complicada. Ou você atende mesmo não sendo
especialista na área, mesmo não tendo o equipamento, ou você deixa aquele paciente
morrer. Assim é a assistência social” (Gestor IV).

“[...] o ponto de partida hoje, eu vejo que não seria o recurso pouco, dependeria uma
certa quantidade de recurso para a primeira sanação (sic) do município, a questão
da documentação civil básica. Hoje eu falo que ele é o marco do município, devido a
isso... Nos dificulta em diversas situações quanto à área da saúde, quando aquele
usuário precisa, ele não tem a documentação civil básica. Então assim, e isso a gente
sabe que não é com pouco recurso. Nós temos a aldeia [...], a gente pagou a foto para
poder emitir a identidade porque a pessoa não tem condições, e assim, foi para a
comunidade toda, não foi só para uma pessoa. Então é onde que falta, essa
documentação deveria ser gratuita em casos específicos” (Gestora VII).

O contexto do primeiro trecho é a resposta de uma pergunta feita sobre o caráter


fiscalizador de algumas práticas na assistência social. A gestora recusa a abordagem
fiscalizadora por compreender a dimensão da questão social no seu território de atuação, ou
seja, sendo a principal atividade econômica do município o funcionalismo público, a gestora
compreende que não há motivos para policiar as ofertas da política de assistência.
O segundo trecho é uma resposta sobre os principais desafios enfrentados na gestão do
SUAS. O gestor está ciente das limitações que o trabalho da gestão está inserido - limitações
orçamentárias, de recursos humanos, infraestrutura – e faz uso da metáfora médica para se
referir ao ritmo emergencial de seu trabalho. Ao longo da entrevista, houve diversas referências
à importância do planejamento na gestão do SUAS, como será apresentado posteriormente.
E o terceiro é a resposta de uma gestora referente às contrapartidas municipais. Durante
a entrevista, houve uma descrição das ações em prol da garantia da Documentação Civil Básica
para comunidades indígenas.
Os gestores entrevistados demonstram conhecimento da complexidade no qual a
assistência social está inserida e conhecimento da contradição que é o exercício da política
social. Mesmo assim, não incorrem sobre práticas consideradas como assistencialistas, mas
resistem a essa abordagem e defendem a perspectiva democrática e crítica da assistência social.
79

Por outro lado, dois discursos foram classificados como não qualificado, mas
comprometido. Os indicativos se encontram nos trechos abaixo:

“É uma experiência nova. Aprendendo bastante, tendo a oportunidade de colocar em


prática aquilo que eu aprendi em família né, que é bom partilhar. Que é dever da
gente, dentro da minha religiosidade, tá partilhando com aqueles menos favorecidos,
não só no financeiro mas na disponibilidade né de tempo, de conversa, de orientação.
Então está sendo uma experiência muito boa, estou tendo a oportunidade de
realmente colocar em prática aquilo que a gente deve valorizar acima de qualquer
uma outra situação que é a proximidade com o próximo né, com o irmão. Então está
sendo muito bom” (Gestor II).

“O município tem a questão do assistencialismo, quanto menor ele é, ele acaba tendo
a questão do assistencialismo e eu querendo ou não também sou um pouco
assistencialista por ter vindo do serviço voluntário a gente tem dificuldade de dividir
essas coisas: a parte técnica e o assistencialismo. Então, dessa forma, logo no início
eu vi a necessidade de alimentação, de buscar, de fazer parcerias... Conseguimos aí,
acho que foi, duas carretas de alimentos de Jaíba e, enfim, aí foi cestas básicas,
alimentos... Alguns programas que estavam parados dentro do SUAS que é o Criança
feliz que estava parado, hoje tem um ponto do Criança Feliz mas o pessoal está
concentrado aqui e as reuniões fazem lá no salão. Hoje está funcionando” (Gestor
V).

O primeiro trecho, consiste numa resposta de um gestor frente a uma pergunta sobre sua
experiência. Este gestor não possui conhecimento técnico referente à assistência social, não
possui formação superior conforme recomenda a NOBSUAS-RH, e o único comprometimento
é com seu “dever religioso”. Essa entrevista levantou questões que vão além dos objetivos da
pesquisa, por exemplo: como estabelecer um parâmetro de comprometimento para culturas
diversas, muitas vezes de base religiosa?
Sabe-se que o “dever religioso” não é compatível com o paradigma democrático do final
do século XX, mas é compatível com o pensamento social do século XVIII. Sendo assim, se o
público-alvo possui a expectativa do “dever religioso”, o comprometimento desse gestor deve
ser reconhecido? Para os fins da atual investigação, o comprometimento religioso foi
considerado pois envolve o gestor em um papel, mas a questão está longe de ser resolvida e
pode ser trabalhada em futuras pesquisas.
O segundo fragmento adentra à questão histórica do assistencialismo na política de
assistência social. O gestor elabora uma autocrítica sobre as reproduções que faz do
assistencialismo, como um modo de manter-se alerta a algo que não deve se repetir. É notório
o comprometimento quando no decorrer da entrevista ressalta esforços para a garantia dos
mínimos sociais, bem como a execução dos programas de acompanhamento familiar, alimentar
e de desenvolvimento humano.
Por fim, três discursos foram classificados como não qualificados/não comprometidos.
Os indicativos são os trechos:
80

“E aqui não pára. É 24 horas. Esse cargo de secretária é 24 horas, o telefone não
pára, toda hora, não tem feriado, sábado e domingo. Toda hora pedindo, pedin...
[RISOS]. E a assistência social eu falo o seguinte [...] é um lugar... as pessoas vem
na esperança de ser resolvido os seus problemas, porque é onde ... é o último recurso
que eles chegam aqui falando, porque às vezes ela vai na saúde procurando uma
coisa que não é da saúde, que a saúde resolve. Ela vai na secretaria de obras, não é
obras. Na educação, não é educação. Então ela vem, as vezes vai na prefeitura, ela
vem... a referência é a assistência social. Porque as pessoas têm a referência de que
aqui é o lugar que a gente costuma dar as coisas, dar cesta básica, dar telha [RISOS]
a gente não dá telha, óbvio. Mas as pessoas vêm com esse pensamento na cabeça, que
a gente faz isso. E na verdade é um pouco de mito. Como falar “ah, a assistência
social é pra todos”, como eu falei, não é pra todos. É pra aqueles que estão em
situação de vulnerabilidade. O SUS, saúde, é pra todos. Mas o SUAS não é pra todos,
é pra aquelas famílias que estão em situação de vulnerabilidade” (Gestora 1).

“[...] faço atendimento direto com as pessoas, os mais necessitados. Porque muitas
coisas que chegam até o CRAS só eu mesmo pra poder ver se tem como ou não, porque
a gente que tem acesso às contas dos programas. Muitas vezes a pessoa quer uma
coisa que o programa não pode pagar” (Gestora VI).

“O papel do órgão gestor no município além de .... de ... ele tem que realizar,
monitorar, avaliar, ter resultados, mostrar resultados. Ele precisa ser uma pessoa
que ele fica além da cadeira da secretaria. Ele precisa ser uma pessoa que
compreenda toda essa dinâmica de serviços, programas, projetos. Ligado a todos os
equipamentos e ter uma compreensão maior disso. Acho que o órgão gestor não é só
a ... o local só sentado, só de cadeira. Ele precisa conhecer o território no qual ele
trabalha e qual é a demanda desse território, pra depois daí ele agir sobre isso. E
fazer esse monitoramento, acompanhamento pra que o município saia dessa
condição, desse estado de vulnerabilidade. de necessidade .... aqui os usuários são
muito dependentes da assistência, são muito assistencialistas. Eles... tudo é
assistência social, tudo é assistência social, e isso é muito ruim.
[...] Sei que vai ter pessoas que não vão conseguir saí (sic) desse estado, dessa
condição. Mas, acredito que a gente consegue uma proporção grande, uma maioria
de usuários que saia dessa condição só de ... ser mantido pela assistência. Ele precisa
ter outro recurso, ter uma mão de obra que ele tenha um recurso, que ele possa se
garantir, se manter, além da assistência” (Gestora VIII).

Os dois primeiros trechos são respostas a uma pergunta sobre o cotidiano do trabalho
dos gestores. É possível observar na primeira resposta o tom de reclamação em relação às
demandas do público. A gestora fala sobre seu papel como a responsável por selecionar quem
possui o direito do benefício eventual ou não. Na tentativa de mostrar-se coerente ao Art. 203
da CF88, a gestora enfatiza o contrário do que o artigo prevê – destaca o aspecto excludente
(“não é para todos”) contrariamente à “a assistência social será prestada a quem dela necessitar
[...]” (CF, 88). São em situações como esta que se tem sinal do cinismo ideológico apresentado
no primeiro capítulo.
A segunda resposta, de outra gestora, condiciona o papel da gestão ao papel da
fiscalização e afirma “só eu mesmo posso atender”, devido o acesso às contas da secretaria. O
que se observa dessas duas respostas é que as gestoras atuam reativamente, apenas em função
da resposta a um pedido de benefício eventual.
81

Quanto ao último relato, também se observa uma queixa em relação a postura do público
atendido e uma tentativa de mostrar-se à par das exigências técnicas e normativas da política
de assistência social. Destaca-se dessa resposta a reprodução de preconceitos e que o caráter do
assistencialismo é atribuído à população
Em geral, verificou-se pela análise dos discursos que há mais gestores não qualificados
(5) do que qualificados (3) em atuação nos municípios pequenos do norte de Minas. No entanto,
esses mesmos gestores podem ou não estar comprometidos com sua atuação, de diversas
maneiras, ainda que possa haver maior comprometimento com o dever religioso do que com o
exercício da gestão democrática do SUAS.

4.2 CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS

Em quatro discursos analisados, foram feitas referências positivas ao Programa Criança


Feliz. Trata-se de um programa federal instituído em 20169, de adesão municipal, que tem por
objetivo promover o desenvolvimento integral de crianças de zero a três anos de famílias
cadastradas no programa Bolsa Família e de zero a seis que sejam beneficiárias do BPC ou que
estejam afastadas do convívio familiar. Entre a comunidade profissional e científica, diversas
críticas foram feitas ao programa por representar um retrocesso histórico, um retorno ao
paradigma liberal assistencial (GOMES et al, 2018; CAMPOS, 2020). Contudo, foi relatado
que o programa “surpreendeu positivamente” pela continuidade de repasses financeiros. Como
pode-se notar na resposta de uma das participantes:
“Apesar de ter sido muito comum no estado de Minas algumas críticas né, a esse
programa, ele me surpreendeu positivamente em termos de regularidade de repasse
e da proposta também, o suporte de material... E nós aderimos e funciona... Está indo.
[...] Nossa equipe entendeu melhor a colocá-lo na zona rural, porque na sede tem ali
outros atendimentos, né. Na zona rural aqui nós temos uma extensão de território
grande, só pra você ter ideia, a gente tem aqui um distrito que chama “Gado bravo”
e está a 50km da sede.
E aí nós, o programa Criança Feliz, ele possibilitou acompanhar melhor as famílias,
né. A maioria delas que, inclusive, tinha criança no outro serviço, que é o serviço de
convivência. Então a gente conseguiu estreitar mais o laço com a família da área
rural que a gente já tinha ali um trabalho, porém com a criança maior, com o
adolescente, às vezes com o idoso... E o Criança Feliz eu gostei muito do suporte
material, de orientação, o sistema de acompanhamento, ele é bastante... Como eu vou
dizer... Cobrado, acompanhado... Então você consegue fazer uma gestão melhor de
como que é feita essas visitas, e o principal, a orientação dos temas é muito bacana,
né... Então aqui no nosso município, na área rural, é um programa bem interessante
que nos trouxe, assim, um retorno, uma aproximação bacana com as famílias”
(Gestora III).

9
Pelo Decreto nº 8.869, no dia 5 de outubro de 2016 no governo de Michel Temer.
82

O que se observa é que o programa Criança Feliz surpreende pela continuidade dos
repasses, visto que o contexto é de redução do orçamento no nível federal para a Assistência
Social. Esse, inclusive, é o ponto de maior convergência no discurso dos gestores:

“meu maior desafio hoje é, sem dúvidas, a redução do orçamento, né... A nível
Governo Federal. Estamos num momento onde a assistência teve aí uma drástica
redução dos recursos, né... Federais... E foi num momento muito complicado porque
né... Pandemia! A área social, apesar de não ser reconhecida num primeiro momento
como linha de frente, a demanda social, ela veio assim, de maneira avassaladora,
né... Então meu maior desafio, realmente, é a discrepância entre o aumento de
demandas e a redução dos recursos. Então isso ficou muito claro, a importância do
gestor, que no nosso caso, por exemplo, ele precisou investir muito mais no social,
mas ainda assim, eu acredito que a maior dificuldade, o desafio, é realmente a
redução dos recursos que a gente teve a nível federal” (Gestora III).

“A dificuldade mesmo é recurso na verdade. A dificuldade é o recurso, porque a


partir do momento que você tem recurso você consegue andar, você tem um norte.
Então a dificuldade é o recurso mesmo. Um exemplo, o recurso mineiro ... que cai
aqui, o recurso mineiro. É um absurdo. R$3.600,00 pra você pagar um auxílio funeral
no valor de dois mil, três mil reais, que vem uma vez por mês. E fora os benefício
eventual (sic), os recursos são poucos” (Gestora I).

“A gente tem... recebe pouco recurso né. Nós não conseguimos mesmo agora nessa
questão de pandemia que a gente tá vivendo, foram distribuídos alguns outros
recursos é... devido o covid, para a gente tá assistindo melhor as famílias. Porém
ainda assim, é muito pouco pra demanda que a gente tem, que é muito grande. E na
área de moradia também, a gente praticamente nem tem recurso para essa área. A
gente tem que ta tendo o apoio da gestão municipal em relação a moradia, porque a
gente não tem recursos para essa área. Então é mais ou menos por aí. A gente
precisaria ter um pouco mais de recursos. O piso mineiro, por exemplo, que é muito
pouco que a gente recebe e é o recurso que a gente pode estar atuando nessa área né,
de um aluguel social ... de um levantamento, de um socorro de um vento, um
destelhamento de alguma residência. Mas assim, a atenção mesmo como um todo na
área de moradia é muito carente porque a gente não tem recursos para essa área”
(Gestor II).

“Então um dos principais [DESAFIOS], que possivelmente vai ser quase que
unânimes, um dos maiores desafio (sic) é a gente fazer gestão e fazer serviço social
sem uma rubrica orçamentária específica que te dão um crivo fixo de um
planejamento. Então a assistência social quase que em sua totalidade, ela tem sido
uma pauta não prioritária, e aqui essa pauta não prioritária se dá nas instâncias
estadual, federal principalmente e muitas vezes municipal. Aqui no meu município a
gente ainda tem conseguido muito uma questão de um aporte do financeiro da gestão
municipal que é o que mantém hoje toda a estrutura e todo os serviços da assistência
social” (Gestor IV).

“Então assim, o desafio é muito grande, quando tem da assistência né?! A gente tem
esse desafio por conta de recurso. A gente tem as demandas, tem o trabalho a ser
feito, mas a gente tem que desenhar tudo, tem que programar tudo para não
ultrapassar o que a gente tem. Mas, infelizmente, mesmo assim a gente não consegue.
Se não vir o apoio da administração, da fonte saindo lá pra gente [...]” (Gestora V).

Por outro lado, apesar das convergências sobre a redução orçamentária, não significa que
impossibilita um trabalho qualificado. Como visto na primeira parte, três gestores relataram
experiências consideradas como qualificadas e comprometidas, do ponto de vista da análise
83

institucional. Isso porque há uma tomada de consciência da contradição no qual a política de


assistência social está inserida e resistência à repetição de práticas fiscalizadoras e
assistencialistas.
Outro ponto de convergência nos discursos de duas gestoras é a alta rotatividade de
gestores e profissionais do SUAS, que provoca a descontinuidade dos serviços.

“chega dezembro os contratados são mandados embora, aí foram chamados


ontem10” (Gestora VI).

“Só pra você tem noção, o programa Criança Feliz, nós pegamos e a gestão não
deixou pra nós nem a senha, nem acesso, nem cadastro do usuário. Então nós tivemos
muita dificuldade, inclusive a gente entrou em contato com o pessoal da SEDESE
colocando essa situação. Nós tivemos que começar do zero aqui o que não é do zero,
porque as crianças que estão cadastradas não estão excluídas, e quando a gente
iniciou o programa, começou o acesso” (Gestora VII).

A descontinuidade e a alta rotatividade é preocupante pois revela um deslocamento de


questões políticas locais para a execução da política de assistência social, impactando
negativamente famílias e comunidades.
Apesar da Política de Assistência incluir na sua oferta programas, projetos, serviços e
benefícios, os gestores relatam que o principal são os benefícios eventuais. Os benefícios
eventuais foram previstos no art. 22 da LOAS (1994) e incluem: pagamento de auxílio por
natalidade ou morte, situações de vulnerabilidade temporária e calamidade pública. O benefício
eventual é também o de maior controvérsia na assistência social, pois é por meio dele que é
possível o fornecimento de cestas básicas a famílias economicamente hipossuficientes. Os
discursos convergem em relação a esta demanda, mas divergem sobre a aplicação.
Outro ponto importante de convergência é sobre o papel de planejamento do órgão gestor.
Três dos discursos analisados concordam que o planejamento é fundamental para uma boa
gestão.

“Eu tenho reuniões constantes com os conselhos municipais, com equipe técnica...
Também atuo na parte de organização e planejamento financeiro né, e pra isso é
necessário essas reuniões com os conselhos, com os técnicos, com a gestão, as outras
secretarias também, a gente tem essa necessidade... As principais são: saúde,
educação, finanças, o jurídico, né. E assim a gente vai planejando, executando... A
rotina é basicamente essa” (Gestora III).

“[...] Fora as questões que nós temos aqui dentro de um cronograma de trabalho,
algumas pautas que já são específicas. Geralmente já são trabalhadas no início de
mês. Geralmente no início de mês eu reúno com os coordenadores, as coordenações,
para a gente estabelecer quais que são as metas e as ações que serão trabalhadas
durante o mês vindouro né. Baseado nessas metas a gente já tem um cronograma de

10
Novos profissionais foram contratados no dia anterior à data da entrevista.
84

trabalho e esse trabalho se dá com essa equipe. Então todos trabalham com essas
metas, pré-estabelecidas né” (Gestor IV).

“[...] E assim, quando foge do assistencialismo, um programa que caminha bem é o


programa Criança Feliz, faz seu papel. Elas fazem o planejamento, desenvolve a
questão da coordenação motora das crianças, que é o público que eles trabalham,
crianças de 0 a 3 anos... Então assim, é um programa que tem feito um diferencial
dentro da secretaria. Hoje eu pretendo... Ficou parado aí, a gente fez de forma remota
o serviço de convivência, com PAIF e tudo. Hoje pretendo... Esse ano já a gente
começar a estruturar isso daí, começar a trabalhar e desenvolver. Colocar em prática
isso aí. As demandas que chegam é isso aqui. Auxílio, benefícios. Só benefícios, né?
O pessoal vem muito atrás disso” (Gestor V).

De acordo com estes gestores, os cortes orçamentários e a alta rotatividade de


profissionais impactam diretamente o planejamento dos serviços da assistência, afetando a
continuidade dos serviços e o atendimento à população. De acordo com a terceira resposta, e
contrariando os achados na literatura, o programa que foge ao assistencialismo é o Criança
Feliz, por possibilitar um planejamento. Vale ressaltar que III e IV foram classificados como
qualificados e comprometidos, V apenas como comprometido, e que o mesmo destaque ao
planejamento não se verificou nas outras cinco respostas.
O planejamento é o contrário do atendimento espontâneo, como verificado nesse caso:

“O atendimento ao público, às demandas que chegam, a gente tenta ajudar


espontaneamente. Aquelas que a gente não consegue de imediato a gente anota todas
as reivindicações do usuário pra a gente estar vendo a possibilidade de estar
ajudando posteriormente. É basicamente isso. As visitas também né a gente tem
agendamento de visitas em domicílios [...] “(Gestor II).

O que se nota é um condicionamento do papel do(a) gestor(a) à oferta dos benefícios


eventuais. Como apontado na primeira parte, o exemplo do gestor IV - do médico cirurgião -
não configura atendimento espontâneo porque não o institucionaliza. Ou seja, considerando a
institucionalização como aquilo que se repete, e na repetição se mantém, há um esforço
considerável em não repetir o atendimento eventual, se possível. É a posição contrária desse
caso acima. O exemplo do médico cirurgião possui caráter mais descritivo do que programático,
em relação ao modo de funcionamento da instituição.
Também outras respostas foram evasivas quando questionadas sobre a intersetorialidade.
As experiências do trabalho intersetorial analisadas eram “bem tranquilas” (V), “boa demais”
(VI), enquanto outros gestores relatam uma dificuldade compreensível, considerando que a
sobrecarga de demandas que ocorre na assistência, concomitante aos cortes orçamentários,
também ocorre em outras políticas sociais, tais como a educação, saúde, habitação etc. Portanto,
é esperado que o trabalho intersetorial seja difícil, árduo, complexo e muitas vezes, incompleto.
85

O trabalho intersetorial não é “OK”, e se é dito de tal forma então vale lançar dúvidas sobre sua
existência.
Também relacionado ao trabalho intersetorial, dois gestores relataram que as ações
propostas pelo Selo UNICEF promovem o trabalho intersetorial. O Selo UNICEF é um selo de
reconhecimento oferecido pelo Fundo das Nações Unidas para a Primeira Infância (UNICEF)
aos municípios que aderirem e cumprirem com determinados requisitos.

“Nós estamos com um trabalho agora, que é um trabalho em rede, nós fizemos adesão
ao Selo Unicef, que é uma forma do Selo que também traz a tona a questão desse
trabalho em rede. Ele é bem sensível nessa questão do trabalho da rede. E esse
trabalho faz com que todos, saúde, educação e assistência social consiga fazer um
trabalho voltado para jovens e adolescentes de, salvo engano de 10 a 17 anos. Então
a gente conseguiu avançar bastante nessas aí. Mas ainda tem alguns passos
importantes, mas é um caminho longo ainda a trilhar, até ter um trabalho de
excelência em rede mesmo” (Gestor IV).

“[...] hoje a gente tá concorrendo com o Selo UNICEF e conselho CMDCA tem um
papel fundamental dos foros que vai acontecer agora feito pelo CMDCA... Então
assim, por não estar alinhado, a gente tem essa dificuldade, sabe? De fazer no papel
mesmo” (Gestor V).

As ações do Selo Unicef contemplam 8 dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável


(ODS) e visam melhorar indicadores de políticas setoriais, como oriundas da Saúde, Educação,
Desenvolvimento Social, Justiça e Direitos Humanos (UNICEF, 2021). Os ditos “Objetivos do
Milênio” foram estabelecidos em 2000 pela ONU e tinham como objetivo principal a redução
da extrema pobreza pela metade nos próximos quinze anos (2000-2015). Netto trata a proposta
como um “espantoso minimalismo frente a uma ‘questão social’ maximizada” (2013, p. 29).
Não foram encontrados mais detalhes sobre quais ações são desenvolvidas para aquisição
do Selo. Considerando as hipóteses da pesquisa, é preocupante que uma instituição
transgovernamental exerça com maior frequência o papel de acompanhamento e
monitoramento de políticas sociais do que órgãos nacionais ou estaduais. Também não se sabe
a que ponto e de que modo as ações do Selo de fato contribuem para o fortalecimento do
trabalho intersetorial. A questão da influência transgovernamental precisa avançar e ser
investigada com maior profundidade.
Ainda em relação a intersetorialidade, observou-se nos discursos dos gestores
convergências em relação a intensificação de questões sociais relacionadas à hipossuficiência
econômica. Além da demanda por benefícios eventuais, foi relatado o aparecimento de outras
demandas, como rompimento de vínculos familiares, depressão (relacionada também ao
isolamento provocado pela pandemia da Covid 19), ideação suicida, violência física contra
idosos, desabrigamentos e abuso sexual infantil.
86

“Então na verdade, ultimamente nós temos tido muitas [DEMANDAS]... aumentado


muito, algumas que a gente já tem. E tem algumas que nos preocupa, tem algumas
demandas que têm surgido bastante que é o rompimento de vínculos familiares. Esse
rompimento de vínculos familiares ... nós temos uma população e a desestrutura
familiar ela tem que trago muitas questões sociais. Esse rompimento de vínculos
dentro da família, quando ela ocorre lá na família, por essa falta de afetividade, essa
falta de ... os cuidados básicos lá da família, ela tem trago vários problemas. Porque
aí houve esse rompimento, as famílias se dividem, parte deles não conseguem ...
chegar na sociedade, aonde devia ter um acolhimento e acaba se tornando um
problema. Tem outras demandas espontâneas por benefícios eventuais, que é uma
questão que as famílias ... o empobrecimento das famílias tem trago muitas questões
sociais de solicitação de benefícios eventuais. Que é muito grande né. Hoje nós temos
então no nosso município a um número muito alto de famílias que sobrevivem com
R$400, agora do Auxílio Brasil, que era Bolsa Família. R$400 ... as contas de luz
deles tá vindo (sic) 180, 200 reais, a conta de luz. A conta de água vem 80, 90. Sobra...
não chega a R$100 para alimentar uma família com 4 pessoas. Então, grande parte
das famílias, os pais estão desempregados, têm crianças ... então esse
empobrecimento, isso leva as famílias a começar a procurar benefícios eventuais.
Não tem acesso tão grande ou ainda que a gente consiga atender ele é eventual
mesmo não vai conseguir resolver o problema dessa família pelo longo período e isso
tem trado outras problemáticas. E aí essa população fica ociosa, algumas se
desesperam. Nós temos um outro problema no nosso município que ocorreu bastante,
o suicídio nós trabalhamos aqui no mês de setembro a prevenção do suicídio, que é o
setembro amarelo. E para nós foi bastante chocante porque nós tivemos durante um
mês que a gente estava trabalhando em anterior, nos tivemos com salvo engano uns
quatros suicídio. Agora nesse início de semana, na segunda-feira, nós tivemos um
outro suicídio. Pelo fato de ser um município de pequeno porte, quando isso acontece
isso dá uma conotação muito grande para o município de forma que todos tenham
conhecimento. E impacta todos né, e quando a gente aprofunda um pouco mais a
temática a gente percebe que o problema ele tava lá na raiz. A gente percebe também
que a assistência social não consegue muito resolver o problema, até porque isso é
um trabalho em rede, muito mais amplo ... muito mais, muito mais complexo de se
trabalhar. A assistência social sozinha ela não consegue passar muito em algumas
pautas. E com essa situação das famílias, eu acredito, com esse período de pandemia
intensificou mais isso porque as famílias parecem ficaram mais depressivas, ficaram
mais ... esse distanciamento social, isolamento social, ainda que necessário, trouxe
alguns traumas com as famílias” (Gestor IV).

“[...] A dificuldade aqui é muito grande. Você vê, estamos implantando o conselho
do idoso, nesse momento nós temos demanda de 5 idosos sendo espancados. A
promotora entra em contato e diz assim “mas vocês têm que acionar o ministério
público”, em uma reunião online com ela eu coloquei “sim, doutora, mas qual a nossa
preocupação? Você vai, faz a denúncia, o idoso volta pro mesmo teto. Ele está
correndo muito mais risco do que antes.” A gente foi junto à GRS Januária solicitar
apoio e suporte para que a gente pudesse criar a casa do idoso [...]” (Gestora VII).

Por outro lado, o relato de um dos gestores diz o contrário:

“Não temos essas denúncias. As vezes a gente até estranha não ter essa demanda,
porque bom seria se fosse porque não está tendo, não está acontecendo. Eu vejo que
falta um trabalho com as famílias, com as comunidades, alertar o que é a violação de
direito. Porque as vezes eles acham que a violação de direitos é só o ato, né? Falo
quanto a questão do abuso sexual, as vezes eles acham que é só o ato. Eles não sabem
que acariciar ou alguma outra coisa do tipo, violação no sentido de violência física
mesmo, questão do trabalho infantil... Então assim, precisa mostrar pras
comunidades que essas também são violações de direitos. E as vezes por a
comunidade não conhecer, não surge, não chegam as demandas. Mas acontece, tem
tido uns casos aí” (Gestor V).
87

O relato do gestor é queixoso em relação à falta de trabalho educativo sobre violação de


direito às famílias e às comunidades. Porém, é precisamente esse o trabalho da proteção social
básica – a prevenção dos riscos sociais. Este é também um indicativo de uma gestão não
qualificada.

4.3 CATEGORIAS EM DISPUTA

Nessa última parte serão postas em diálogo os discursos analisados com a construção
teórica deste trabalho. Em linhas gerais, pode-se observar que os gestores legitimam mais os
benefícios eventuais do que programas e serviços, de modo que os benefícios eventuais
constituem o carro chefe da assistência social. Ao longo dos primeiros capítulos desse trabalho,
encontrou-se outras categorias além do neoliberalismo, como o coronelismo e o
assistencialismo. Será verificado adiante quais categorias são disputadas discursivamente. Ou
seja, não se trata de uma separação territorial ou individual, mas que se opera no âmbito do
discurso.
A princípio, três gestores (III, IV e VII) correspondem à expectativa do paradigma
democrático da política de assistência social. Do ponto de vista técnico, apenas VII mostrou
limitações técnicas e, ainda assim, no decorrer do discurso foi possível identificar um esforço
significativo em garantir o direito à Documentação Civil Básica para o público majoritário –
povos indígenas e comunidades tradicionais. Os gestores III e IV, considerando as limitações
que foram previstas no Quadro Analítico (PNAS, recursos financeiros e humanos, o contexto
norte-mineiro e os gêneros discursivos), executam uma gestão exemplar na medida do que é
possível.
Dois gestores (I e II) reproduziram aspectos do paradigma liberal assistencial, como
caracterizado no capítulo dois. Os achados confirmam a versão conservadora e religiosa da
política de assistência social, que não deixou de existir com a mudança paradigmática descrita
por Sposati (2005; 2010) e Yazbek (2020). Duas gestoras (VI e VIII) não só mantêm
características do paradigma liberal assistencial, como também reproduzem características do
coronelismo em seu discurso. É sabido que o coronelismo não está estritamente relacionado a
uma figura estereotipada do coronel, mas constitui-se pela integração de diversos elementos
que mantém uma relação de poder com base no favor e na caridade (PEREIRA, 2002). Portanto,
quando foi dito
88

“A maioria busca mais assistência social, precisando de dinheiro para comprar um


remédio, precisando de dinheiro para pagar um mês de aluguel, pagar uma água,
pagar uma luz, e essas coisas a gente não mexe. O que nós podemos fazer é auxílio
vulnerabilidade. A gente vê, a assistente social vai lá faz a visita domiciliar, vê a real
situação da pessoa” (Gestora VI)

Não houve somente uma descrição das situações que envolvem o benefício eventual, ou
o encaminhamento dado às principais demandas. O relato não foi queixoso, mas reforçou a
preferência pelo atendimento direto à população (algo que não é esperado para o papel da
gestora) e que condiciona o “favor” do atendimento à fiscalização da necessidade. Conferir a
“real situação da pessoa” nunca foi o objetivo da política de assistência, e é precisamente a
falta de delimitação sobre o trabalho assistencial que abre margens para o favor, o “jeitinho” e
a ajuda não qualificada. O achado confirma uma divergência teórica descrita por Pereira (2002),
de que o coronelismo não se dissolveu, nem com a Constituição de 34, nem com a de 88. A
pesquisa encontra a manutenção do coronelismo, uma atualização, agora em uma nova era.
Quanto a gestão da política pública, os achados desta pesquisa corroboram com os de
Sátyro e Cunha (2019), de que o “desconhecimento” dos gestores se soma a outros fatores
dominantes, como baixa qualificação, alta rotatividade de profissionais e questões políticas
locais que contribuem para a ingerência da política pública.
Também um único gestor (V) evidenciou aspectos neoliberais no discurso, sobretudo
por defender que o público atendido não tem “a questão do empreendedorismo”. O gestor
complexifica o trabalho socioassistencial por trazer uma suposta crítica ao assistencialismo:

“O município tem a questão do assistencialismo, quanto menor ele é, ele acaba tendo
a questão do assistencialismo e eu querendo ou não também sou um pouco
assistencialista [...].
É mais a questão do público, né? Eles acham que é dever. Assim, é claro que é dever
da assistência, né... Ajudar nesse sentido. Mas só que eles acham que é dever,
obrigação todo mês a gente dar esse suporte, esse apoio. Tanto financeiro [...] O
benefício, né ... Auxílio funeral, a questão da cesta básica, você está entendendo? E
aí eu acho que é mais isso, o pessoal eles não têm assim a questão do
empreendedorismo, de trabalhar, de plantar uma horta... Aí eles ficam esperando da
gente nesse sentido, esse apoio, sabe? E a gente sabe que não é assim, um papel da
gente. É uma das outras coisas que a gente tem tentado estimular as pessoas a
levantar a autoestima das mulheres, levantar a autoestima da comunidade pra
trabalhar, pra desenvolver o seu pão de cada dia, pra fazer acontecer, você entendeu?
Porque a gente vê que tem famílias que tem condição de fazer alguma coisa, que tem
um terreno, tem um quintal, pode criar uma galinha... Então a gente precisa fazer
isso, né... Em vez de dar o alimento, em vez de dar o recurso.
Porque senão, “ah, cortou minha luz”, vai lá na assistência, “dá um jeito pra mim,
vê o que pode ser feito?” A gente resolve. Aí depois, corta de novo... Então assim, tem
que quebrar isso “(Gestor V).

O gestor se aprofunda na contradição dos benefícios eventuais. Contudo, a saída


apresentada esbarra na armadilha neoliberal da autorresponsabilização. Quando questionado
89

se acredita de fato que tais “iniciativas empreendedoras” são capazes de superar as


vulnerabilidades obteve-se a seguinte resposta:

“[...] eu creio que minimiza, sabe? Igual quando eu falo mesmo de empreender, ou
construir, ou plantar o seu alimento, você planta ali uma batata doce, né, muito
forte... As pessoas vão conseguir se manter com aquilo ali, pelo menos minimizar a
fome, né? Que a gente sabe que o povo passa fome. E enfim, é complicado, extensão
territorial que é muito grande... Muito difícil, área rural é muito grande, né” (Gestor
V).

Apesar de se mostrar solidário à insegurança alimentar do público atendido, a resposta


não incluiu a procura por programas de segurança alimentar. A “questão do
empreendedorismo” que o gestor relata é efeito direto da subjetivação neoliberal (FILHO,
2020; DARDOT; LAVAL, 2016) e encontra ecos na resposta da Gestora VIII, que se queixa:
“tudo é assistência, tudo é assistência e isso é muito ruim”.
De acordo com tais gestores, o assistencialismo é um problema causado pelos usuários
que demandam, mediados por uma necessidade que não é eventual, mas uma constante. Os
achados ilustram a razão cínica, uma vez que tais gestores sabem que a causa do
assistencialismo não é a demanda dos usuários. “Eles sabem muito bem o que estão fazendo,
mesmo assim o fazem”, tal como postula Zizek (1990, p. 59).
Apesar dos gestores conhecerem os problemas nos níveis econômicos, políticos e sociais
da gestão do SUAS e que “falta recurso”, ainda assim tais gestores culpabilizam os indivíduos
e suas famílias. Encontra-se então uma confluência da ideologia neoliberal com o coronelismo.
A análise dos discursos observa que os gestores põem em cena categorias que estão além
e aquém dos próprios gestores: “a real situação da pessoa” é acionada para legitimar o
benefício eventual – que do ponto de vista da política, é uma das diversas ofertas possíveis, mas
não a principal. “Os mais necessitados” aparecem como justificativa para a benfeitoria dos
gestores e vem de uma maneira de pensar que hierarquiza as necessidades. E mesmo o “dever
religioso” vem antes da garantia democrática dos mínimos sociais. Portanto, performa-se muito
mais elementos históricos do passado colonial, religioso e caritativo, do que da “inovação”
neoliberal.
90

CONSIDERAÇÕES

A presente pesquisa, realizada durante o mestrado em Desenvolvimento Social, partiu de


inquietações do pesquisador no exercício da psicologia no Sistema Único de Assistência Social
no Norte de Minas. Como visto no âmbito da prática e da teoria, que caminham juntas, o
neoliberalismo é uma política econômica e ideológica que surge em meados do século XX.
O primeiro capítulo tratou de investigar o tema do neoliberalismo no Brasil e no mundo.
No Brasil, a entrada do neoliberalismo destaca ainda mais a contradição em que está inserida
as políticas sociais. O final do século XX foi um período de importantes avanços da política
social, em especial para a política de assistência, ainda que concomitante a este neoliberalismo
soft.
O segundo capítulo analisou a configuração atual da política de assistência social desde
a Constituição Federal até recentes alterações na LOAS. Foram exploradas outras categoriais
de análise para além do neoliberalismo, a saber: o assistencialismo, o primeiro-damismo, a
filantropia e o coronelismo. Por fim, características do norte de Minas foram observadas à luz
da história e da antropologia norte mineira.
Esta pesquisa, portanto, investigou se gestores da política de assistência social
reproduzem a ideologia neoliberal no contexto do Norte de Minas. O campo de análise foi a
microrregião de Januária. Foram analisados 8 municípios de pequeno porte I. Os resultados
foram tratados à luz da Análise Institucional do Discurso, um método interdisciplinar que nasce
no campo da psicologia.
O campo foi analisado no terceiro capítulo com base em dados quantitativos do IBGE, da
RAIS e da Rede Suas. Foram produzidos sete mapas, que mostraram a microrregião de Januária
em comparação com o Norte de Minas e Minas Gerais. Verificou-se os reflexos da baixa
diversidade de atividade econômica regional, resumida à agropecuária de subsistência e à
administração pública. Os programas de transferência de renda são importantes para a
manutenção da subsistência familiar e para movimentar outras formas de atividade econômica,
como o comércio.
Os mapas também mostraram que a microrregião de Januária apresenta uma
vulnerabilidade extrema, constituindo-se como um dos bolsões de pobreza do estado de Minas
Gerais. Os resultados evidenciam que os municípios se encontram em um Estado proto-
capitalista, uma fase anterior ao capitalismo industrial.
91

A análise institucional dos discursos trouxe à tona a persistência do coronelismo e de


práticas assistencialistas por parte dos gestores. Nesse sentido, não se verifica no território a
completa garantia dos direitos constitucionais, sobretudo aqueles promulgados pós-88, no
campo da política de assistência social.
É possível destacar apelos à produção de uma mentalidade que busca instituir a chamada
nova racionalidade neoliberal. Verificou-se processos de desmontagem da política social, no
nível orçamentário, burocrático e administrativo, tal como sugere a literatura (FILHO, 2020;
MARQUES et al, 2019; PEREIRA; SILVA; PATRIOTA, 2006; MOROSINI, FONSECA &
BAPTISTA, 2020). No entanto, a desmontagem é, sobretudo, dos processos de subjetivação,
resultando em um pleno processo de abandono da vida humana, projetado, aferido, testado e
implementado. Abandono de todas as esferas da vida, desde o mais subjetivo até o mais
concreto. Entende-se que a noção de responsabilidade está posta em questão, em suspeição. E
quando essa noção de responsabilidade é recuperada, é apenas em função da individualidade e
da culpabilização individual.
As narrativas de desenvolvimento promovidas por alguns dos gestores sugerem que a
responsabilidade pela miséria é da própria população e que, se há uma alternativa, esta passa
pela via da neoliberalização. Em face do desenvolvimento desigual neoliberal, Harvey
considera que “precisamos de um arcabouço teórico mais abrangente para interpretar os
caminhos complicados e geograficamente desiguais da neoliberalização” (2014, p. 125).
A precarização das condições de sobrevivência de população vulnerabilizada é o mote da
batalha neoliberal. O espaço público vem sendo exterminado, e com isso se vão também as
políticas sociais, do qual a política de assistência faz parte. Sendo assim, como superar a
racionalidade neoliberal? Como pode uma região ser caracterizada como protocapitalista e ao
mesmo tempo ter interferências discursivas do neoliberalismo? São estas questões de ordem
teórica, prática e política que se avistam.
Os resultados da pesquisa apresentam conflitos no interior dos próprios discursos.
Contudo, a “inovação neoliberal” não é o centro das mobilizações discursivas. É evidente que
a manutenção do poder patriarcal, colonial e privado se mantém e se atualiza, com as novas
técnicas de poder.
Por outro lado, há resistências. Encontram-se também práticas de resistência à tradição
assistencialista e (neo)liberal. Em determinados discursos, é possível observar que alguns
gestores recusam práticas assistencialistas, batalham pela garantia de direitos civis que desde
1988, com a Constituição Federal, ainda estão em implementação.
92

Os resultados analisados mostram que os gestores estão divididos, entre aqueles que
operam pela manutenção de poderes já estabelecidos e aqueles que operam para a instalação de
garantias sociais e constitucionais. A principal marcação que diferencia os gestores
qualificados dos não-qualificados é a formação profissional, os anos de experiência e o
comprometimento ético-político com a gestão do SUAS. Apesar dos demais gestores operarem
pela manutenção do coronelismo, do assistencialismo ou do neoliberalismo, não significa que
as práticas discursivas ocorrem deliberadamente. Há de se realizar outras pesquisas focadas em
compreender o processo formativo destes gestores.
É notável o empenho de forças paradigmáticas, como sugere Sposati. A mudança
paradigmática não está concluída, mesmo após mais de 30 anos da Constituição. De um lado,
se encontra uma tendência de reprodução do poder colonial, liberal, patriarcal e assistencialista.
De outro, um ideal democrático republicano, de garantias sociais, que compreende a
dependência do social à vida humana. Tais forças, por vezes, entram em conflito em um tempo.
Em um mesmo ato discursivo, entre diversos atores institucionais. A pesquisa considera que
tais resistências são importantes e necessárias.
Portanto, investigar as fissuras, as dissidências e os conflitos foi a estratégia que
possibilitou encontrar os resultados. Os novos e velhos problemas encontrados estão longe de
serem superados. Urge olhar para a responsabilidade da estrutura administrativa do Estado de
Minas Gerais e da União, bem como é urgente refletir sobre o futuro da proteção social num
contexto de intensa neoliberalização.
Em vistas ao término, assinala-se a importância da interdisciplinaridade, mesmo diante
de todos os desafios, para futuras pesquisas científicas, como também para a prática profissional
dos atores do SUAS.
93

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