Venâncio (2007)

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PARA A HISTÓRIA DO

PORTUGUÊS BRASILEIRO
___________________________

Volume V: ESTUDOS SOBRE MUDANÇA LINGÜÍSTICA E


HISTÓRIA SOCIAL
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Reitor: Ronaldo Tadêu Pena
Vice-Reitora: Profa. Dra. Heloísa Starling

FACULDADE DE LETRAS
Diretor: Prof. Dr. Jacyntho José Lins Brandão
Vice-Diretor: Prof. Dr. Wander Emediato de Souza

Comissão Editorial Compras

Câmara de Pesquisa Faculdade de Letras - UFMG


Faculdade de Letras – UFMG Av.Antônio Carlos, 6627.
Av. Antônio Carlos, 6627. 31270-901 Belo Horizonte
31270-901 Belo Horizonte MG- Brasil MG -Brasil
Fone: 55(31)3409-5123
[email protected]
Jânia M. Ramos e Mônica A. Alkmim
(Organizadoras)

PARA A HISTÓRIA DO
PORTUGUÊS BRASILEIRO
___________________________

Volume V: ESTUDOS SOBRE MUDANÇA LINGÜÍSTICA E


HISTÓRIA SOCIAL

Editora FALE/UFMG

Belo Horizonte
2007
Ficha catalográfica elaborada pelas Bibliotecárias da Biblioteca FALE/UFMG

Para a história do português brasileiro / Jânia M. Ramos e Mônica A.


P221 Alkmim (organizadoras.) – Belo Horizonte : Faculdade de Letras
da UFMG, 2007.
v.

Vários autores.

Inclui bibliografia.

. Conteúdo: v. 1. Primeiras idéias – v. 2. t. 1 – t. 2 Primeiros


estudos – v. 3. Novos estudos – v. 4. Notícias de corpora e outros
estudos – v. 5. Estudos sobre mudança lingüística e história social –
v. 6. Novos dados, novas análises.

ISBN: 978-85-7758-034-7

1. Língua portuguesa – Brasil – História. 2. Língua portuguesa –


Português escrito – Brasil. 3. Língua portuguesa – Aspectos sociais –
Brasil. 4. Gramática gerativa. 5. Funcionalismo (Lingüística). 6. Língua
portuguesa – Gramática. 7. Mudanças lingüísticas. 8. História social.
9. Lingüística histórica. I. Ramos, Jânia Martins. II. Alkmim, Mônica A.

CDD :
469.798

Editor Responsável
Profa. Dra. Jânia M. Ramos

Projeto de Capa
Editora Humanitas/USP
SUMÁRIO

Apresentação......................................................................................................6

Estudos de Mudança Lingüística

Existe um ciclo de gramaticalização do artigo na România?


Johannes Kabatek ........................................................................................11

Análise multissistêmica das preposições do eixo transversal no


português brasileiro: espaço /anterior/ ~ /posterior/
Ataliba T. de Castilho ................................................................................34

Considerações acerca de mudanças semânticas da preposição “até” no


português do século XIX
Mário Eduardo Viaro....................................................................................78

Gramaticalização da preposição “com” no português brasileiro do


século XIX
Nanci Romero................................................................................................90

A gramaticalização da preposição “entre” no português brasileiro do


século XIX
Verena Kewitz................................................................................................98

Gramaticalização da preposição “de”, introdutora do segundo


elemento do par correlativo comparativo
Marcelo Módolo...........................................................................................106
Complementos verbais introduzidos pela preposição ‘a’
Marilza de Oliveira......................................................................................115

Advérbios qualitativos e modalizadores em –mente: do português


arcaico ao português do século XIX
Mário Eduardo Martelotta e Afrânio Gonçalves Barbosa... ................136

Para o estudo do artigo definido antes de pronome possessivo no


português brasileiro: algumas observações
Ane Schei.....................................................................................................153

O objeto nulo nas cartas de leitores publicadas na imprensa brasileira


do século XIX
Sonia Maria Lazzarini Cyrino....................................................................163

Algumas diretrizes para uma abordagem formal da gramaticalização


Lorenzo Vitral e Jânia Ramos ..................................................................183

Notícias sobre o tratamento em cartas escritas no Brasil dos séculos


XVIII e XIX
Célia Regina dos Santos Lopes e Maria Eugênia Lamoglia Duarte....190

Estudos de História Social

Por uma história social do português no Brasil


Renato Pinto Venâncio................................................................................205

Panorama preliminar da história do letramento de negros na Bahia


Rosa Virgínia Mattos e Silva, Klebson Oliveira e Tânia Lobo.............214

Elementos para uma sócio- história do semi- árido baiano (Zenaide


de Oliveira Novais Carneiro e Norma Lúcia F. Almeida)......... ............241

Aspectos da História Demográfica e social do Rio de Janeiro (Dinah Callou


e Carolina Serra).............................................................................................253
Os escravos e a língua: em busca de bases históricas para uma
Reflexão
Tânia Alkmim................................................................................................263

Escravos em anúncios de jornais brasileiros do século XIX: Discurso e ideologia


Helena Nagamine Brandão.........................................................................274
Marcas de interação na correspondência publicada em jornais
Maria Lúcia da Cunha Victório de Oliveira Andrade.............................285

O gênero notícia no Brasil: notas para uma história


Marlos de Barros Pessoa.... ........................................................................323

Registros rurais de tupinismos no Atlas Lingüístico do Paraná e sua


relação com a história social paranaense
Vanderci de Andrade Aguilera, Lídia Albino e Celciane Alves
Vasconcelos..................................................................................................340
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Por uma história social do português no


Brasil
por
Renato Pinto Venâncio
Universidade Federal de Ouro Preto

O Brasil foi colonizado por portugueses. Como


conseqüência disso, a língua portuguesa tornou-se o idioma
nacional. Nenhuma pessoa em sã consciência deixará de
reconhecer a validade dessa afirmação. No entanto, ela pode, de
certo modo, ser relativizada. Por volta de 1500, o atual território
brasileiro era povoado por vários povos indígenas, falantes de
idiomas distintos. Como se não bastasse isso, a adoção da
escravidão implicou a transferência de milhões de africanos – em
90% dos casos provenientes da África Atlântica, compreendida
grosso modo entre Angola e Senegâmbia.

Portanto, não só a língua portuguesa, mas também


indígenas e africanas estiveram presentes no processo de
formação da sociedade brasileira. No entanto, a primeira foi a que
criou raízes, afirmação ainda mais surpreendente tendo em vista a
situação minoritária da população européia no Brasil até fins do
século XIX.

Vejamos essa questão em mais detalhes. O leitor deve se


lembrar que, no século XVI, foi dado início ao povoamento do
Novo Mundo. Nessa época, porém, o interesse comercial
português voltava-se para as regiões asiáticas; procurava-se então
o acesso direto aos mercados de especiarias, como pimenta, cravo,
canela e noz-moscada.

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Pouca gente tinha interesse em vir para as terras


americanas, preferindo aventurar-se nas feitorias portuguesas,
estabelecidas principalmente na Índia. Com o passar do tempo, a
situação começou a ficar delicada. Se pelo menos parte do
território recém-descoberto não fosse povoado, haveria chance de
os rivais de Portugal, como era o caso da França, apossarem-se
dele. Ciente desse risco, a Coroa portuguesa tratou de criar
incentivos à colonização. Que incentivos eram esses? Ora, na
época, eles consistiam em conceder terras a quem tivesse recurso
para ocupá-las; daí a política de doação de capitanias hereditárias,
sesmarias e a formação de fazendas açucareiras ao longo da costa
brasileira.

Infelizmente, porém, sabemos muito pouco a respeito


desse período, a tal ponto de qualquer estimativa de povoamento
ser temerária. Mesmo em relação aos escravos africanos, em geral
bem documentados pelos traficantes e cobradores de impostos, os
dados mais confiáveis começam a surgir apenas em fins do século
XVI. No que diz respeito à migração portuguesa, a situação é
ainda mais delicada. A documentação fundamental para esse
estudo, como a de concessão de passaporte, só aparece na
segunda metade do século XVIII, tornando-se regular apenas nas
primeiras décadas do século XIX. Durante todo o período
colonial são desconhecidos os percentuais de portugueses
retornados, havendo assim o risco de assimilarmos os “viajantes”
aos grupos de colonizadores efetivos.

Apesar desses problemas, vários historiadores avançaram


estimativas de população para as primeiras épocas da colonização.
A Tabela 1 indica alguns dos valores relativos ao mundo indígena.
Conforme é possível perceber, os dados demográficos
corroboram com a noção de que as línguas indígenas declinaram
em razão do avanço do processo colonizador. Por volta de 1500,
tal população correspondia à totalidade dos habitantes do atual
território brasileiro. Mesmo cem anos após o início da
colonização, portugueses e africanos, frente aos índios,
representavam menos de 5%. Na época da Independência, a

360
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

situação era inversa. Os povos indígenas haviam se tornado


minoritários. Quando é proclamada a República, a população
indígena passou a ser residual.

Tabela 1: Estimativas de população no Brasil

% de
População popula
População População
Período européia e ção
indígena Total
africana indíge
na
c.1500 4.000.000 – 4.000.000 100,0
c.1822 800.000 3.596.132 4.396.132 18,1
13.948.91
c.1889 215.000 13.733.915 1,5
5

Fonte: MARCILIO, 1986, p. 11-27; KENNEDY &


PERZ , p. 306; e IBGE, 1990, p. 32.

Nesse sentido, é possível afirmar que o processo de


colonização foi uma invasão, uma invasão de povos europeus e
uma invasão forçada de povos africanos. Quanto a isso, as
estimativas minimamente confiáveis datam de meados do século
XVII. Em relação ao período anterior, podemos apenas fazer
suposições. Os dados mostram que inicialmente o Brasil atraiu
poucos colonizadores portugueses.

Até o século XVIII, tal situação permanece pouco alterada.


A exploração do ouro em Minas Gerais reverte abruptamente essa
tendência. Pelo menos em seus primeiros tempos, tal atividade
não exigia grandes investimentos. O mais importante deles
consistia na compra da passagem de navio para o Rio de Janeiro.
Uma vez no Novo Mundo, o português rico seguia em direção às
minas; os que não tinham recursos se tornavam mascates, e, após
conseguir algum dinheiro, partiam para a Capitania do Ouro.

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Tabela 2: Estimativas de Migração para o Brasil

Período Portugueses Africanos


1651-1700 100.000 360.000
1701-1800 800.000 1.700.300
TOTAL 900.000 2.060.300

Fontes: ALENCASTRO, 2000, p. 69; SERRÃO, 1982, p.


105-115; e GODINHO, 1975, p. 57.

O aumento do número de imigrantes chegou a ser tão


abrupto que preocupou as autoridades metropolitanas. Leis foram
feitas no sentido de controlar ou até mesmo impedir o fluxo
desordenado de portugueses (Serrão, 1982, p. 110). Temia-se que
o reino se despovoasse, temia-se mais ainda que tal povoamento
estimulasse o contrabando do ouro, e que, dessa forma,
diminuísse o valor dos impostos enviados para Portugal.

No entanto, o esforço de conter a onda migratória teve


fraco efeito. A produção de ouro, por sua vez, permitiu que fosse
intensificada a compra de escravos africanos. Assim, durante o
século XVIII, as duas correntes migratórias aumentaram
intensamente, embora a proveniente do continente negro tenha
predominado sobre a portuguesa. Na Tabela 2 comparamos esses
dois fluxos migratórios. O resultado é revelador: mesmo se
dobrássemos as estimativas relativas à imigração branca, ela
continuaria sendo inferior ao número de africanos para aqui
enviados. Do ponto de vista da formação da população colonial, a
América portuguesa deveria se chamar América africana. E não pense
o leitor que isso se tratava de uma experiência restrita aos
primeiros tempos de nossa história; o contrário, aliás, seria mais
acertado afirmar.

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Conforme é sabido, nossa independência política coincide


com a expansão da lavoura cafeeira. Primeiramente nos arredores
do Rio de Janeiro, depois pelo Vale do Paraíba fluminense, em
seguida nas províncias de São Paulo e Minas Gerais, o café se
alastra, levando à multiplicação de fazendas que utilizavam a mão-
de-obra escrava. O efeito disso sobre o tráfico foi intenso,
ampliando-o ainda mais.

As experiências no sentido de reverter a africanização, pelo


menos durante os trinta anos posteriores à Independência,
resultaram quase sempre em tremendos fracassos. Os sobrenomes
italianos, espanhóis e alemães, comuns a muitos brasileiros de
nossos dias, só começaram a ser generalizados nas décadas de
1870 e 1880. Na época de consolidação do Estado nacional, o
contrário aconteceu: paralelamente ao aumento da migração
forçada de africanos, registrou-se o declínio da vinda de
portugueses e demais europeus.

Quanto a essa última corrente migratória, o leitor deve se


lembrar que, em 1808, a Abertura dos Portos não foi somente em
relação aos produtos importados, mas também frente aos povos
amigos. Tratava-se de uma mudança profunda. Até então as
pessoas não provenientes de áreas de domínio português eram
proibidas de desembarcar no Brasil. Independente da
nacionalidade, o estrangeiro era visto como um inimigo em
potencial, um espião ou contrabandista. Os raríssimos relatos de
ingleses ou franceses do período colonial quase sempre são
referentes às cidades portuárias, onde, para abastecerem os navios,
comandantes conseguiam autorizações especiais de governadores
locais.

Eventualmente, a metrópole portuguesa também concedia


licenças para comerciantes estrangeiros atuarem na Colônia, mas,
quase sempre, não era permitido que os mesmos adquirissem
terras, transformando-se em colonizadores efetivos. A partir de
1808, vale repetir, essa situação muda radicalmente. É autorizada a
abertura de consulados e de representações diplomáticas. Mais

363
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

ainda. Novas leis possibilitaram a concessão de lotes de terras a


estrangeiros. O Estado tolera a presença desses grupos e, em
determinadas áreas, a incentiva.

Ao longo da primeira metade do século XIX, os emigrantes


europeus foram dirigidos para São Paulo, Minas Gerais, Espírito
Santo e Bahia. A geografia da imigração era ampla. E não era para
menos, pois tratados diplomáticos então firmados com a
Inglaterra previam a restrição e, a médio prazo, o fim da
importação de escravos africanos. Embora na prática nem sempre
aplicados, esses acordos mostravam a necessidade de se criar
alternativas em termos de mão-de-obra. Os núcleos coloniais da
década anterior à independência procuravam dar os primeiros
passos nesse sentido. Eles seriam, por assim dizer, viveiros de
trabalhadores livres. Também esperava-se que a forma camponesa
em que se organizavam favorecesse a produção de alimentos mais
baratos e de melhor qualidade do que os das fazendas escravistas.

As experiências, realizadas no período colonial com


açorianos, são estendidas a suíços e alemães. Antes mesmo da
Independência criam-se colônias em Ilhéus e Friburgo. Após a
Independência, núcleos semelhantes a esses se multiplicam. Entre
1824 e 1878, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Minas
Gerais e Espírito Santo recebem povoadores alemães (Gregory,
2000, p. 143-145) Os imigrantes eram seduzidos por promessas do
governo. Além do apoio no pagamento de passagens, ofereciam-
se a eles recursos financeiros, terras, gado e sementes.

Porém, as primeiras experiências não deram certo. As terras


ofertadas, em geral, eram pouco férteis. A promessa de auxílio
financeiro, de sementes e gado em pouco tempo deixava de ser
cumprida. Além disso, a falta de experiência dos funcionários
encarregados de organizar as colônias acabava gerando problemas
suplementares. Um desses expedientes consistia, conforme J. J.
Tschudi registrou para o caso de Friburgo, em criar “famílias
artificiais”. Tal procedimento resumia-se em conceder lotes a
grupos de mais ou menos duas dezenas de indivíduos; agrupavam-

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

se dessa maneira, na mesma terra, famílias distintas ou mesmo


indivíduos vinculados por laços de amizade ou proteção.

Tão logo os conflitos surgiam, muitos resolviam abandonar


as terras, engrossando a lista dos que assim tinham agido em razão
da pobreza e falta de apoio. Mas não só o lado brasileiro foi
responsável pelo fracasso dos núcleos. A origem urbana de muitos
colonos contribuía para dificultar a adaptação ao meio rural. Havia
emigrantes inexperientes no trabalho agrícola: desempregados
urbanos, ex-soldados e até mesmo criminosos.

Uma experiência limite quanto a isso foi a que envolveu os


mercenários, principalmente alemães e irlandeses. Vindos após a
Independência, em pouco tempo eles haviam se transformado em
um fator de instabilidade no interior do exército e até mesmo de
conspiração contra o Império. Em 1830, quando esses batalhões
são dissolvidos, muitos rumam para o Sul, procurando se
estabelecer na colônia de São Leopoldo. No entanto, sua
inadaptação ao trabalho agrícola acabou transformando-os em
salteadores e bandoleiros na região da Bacia do Prata (Lemos,
1996, p. 469).

Assim, de agentes civilizadores, os novos povoadores


passaram a ser vistos como elementos de instabilidade e de
desordem. Talvez por isso mesmo, em 1830, uma lei proíba gastos
públicos com o financiamento da emigração européia (Ribeiro,
2002, p. 160 passim). Durante um largo período, a vinda
“espontânea” – ou seja, com recursos próprios – ou então a vinda
financiada por fazendeiros e comerciantes tornam-se as únicas
fontes de europeização da população brasileira.

Além dos portugueses, observou-se a chegada espontânea


de italianos, ingleses, franceses, holandeses, belgas, austríacos,
russos, dinamarqueses, poloneses, húngaros, romenos – somente
para mencionarmos os principais grupos. Contudo, seria arriscado
considerar esses imigrantes como povoadores. Muitos deles
vinham em missões artísticas ou científicas devendo ser, por isso

365
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

mesmo, considerados como viajantes, que permaneciam na


maioria das vezes por curtos períodos ou alguns anos, para em
seguida retornarem a Europa.

Suspeita semelhante pesa sobre os portugueses que para


aqui migraram após a independência. Consistia em prática comum
a vinda deles, bastante jovens, para se empregarem como caixeiros
– ou seja, como empregados em casas de comércio ou balconistas.
Não raras vezes, vendiam-se os serviços pessoais em troca do
pagamento da passagem atlântica. Após vários anos de trabalho,
os que conseguiam enriquecer, ou pelo menos reunir alguns
recursos, tratavam de retornar à terra natal. Em algumas regiões
portuguesas, esses retornados tornam-se bastante comuns, quase
um tipo social, sendo denominados como brasileiros.

Aos poucos, porém, a colonização européia ganha outros


estímulos. Associa-se, cada vez mais, a presença de homens
brancos e livres à constituição de uma nação civilizada. Assim, em
fins dos anos 1830 e, principalmente na década seguinte, surgem
companhias de imigração. Nesse caso, o responsável pelo
empreendimento reunia recursos de acionistas, que eram
investidos no transporte marítimo e terrestre, assim como na
compra de alimentos e de ferramentas (Stolcke, 1986, p. 20
passim). Os trabalhadores contratados podiam ser destinados tanto
a núcleos coloniais isolados como ao trabalho em fazendas;
também era permitido montar empresas de “colonização” para
outros fins, tais como aquelas encaminhadas às obras e
melhoramentos urbanos ou à abertura de estradas.

Em todos esses casos, nenhum fator contribuiu mais para o


fracasso das experiências de colonização européia do que a
existência da escravidão. Ao longo de séculos, nas regiões mais
prósperas da sociedade brasileira, foi cristalizado o conceito de
que o trabalho manual era ocupação de escravos. Se em algumas
experiências – como eram os casos das registradas no Sul do país
– o isolamento criava condições para a reprodução do

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

campesinato e do trabalho livre europeus, tudo se alterava quando


o imigrante e o escravo eram colocados lado a lado.

Um exemplo desse convívio problemático foram as colônias


de parceria que surgiram em São Paulo. A primeira experiência
ocorreu em 1847, por iniciativa do Senador Vergueiro, rico
proprietário paulista. O empreendimento consistia em fundar uma
companhia, cujo objetivo era recrutar famílias de suíços e alemães
para trabalharem na lavoura de café. Os interessados financiavam
o transporte do imigrante, tanto em relação à viagem marítima,
quanto no deslocamento do porto até a fazenda. Os recém-
chegados também recebiam instrumentos de trabalho e alimentos,
além de uma casa para residirem, devendo, ao longo do tempo,
pagar as dívidas contraídas.

De imediato pôde-se perceber um dos problemas desse


sistema: os imigrantes, antes mesmo de começarem a trabalhar, já
estavam endividados. Esse pagamento era feito com trabalho.
Homens, mulheres e crianças cuidavam de um determinado
número de pés de café, parte do rendimento era destinada a eles e
ao pagamento ao proprietário da fazenda. O mesmo critério era
empregado em relação às pequenas criações ou as plantações – as
roças – que os trabalhadores fizessem por conta própria.

Como as dívidas estavam submetidas a juros e o imigrante


não tinha direito a vender livremente o café produzido, com o
tempo sua condição foi se aproximando à de um escravo, um
escravo branco, como se dizia na época. Assim, não só o fato de
trabalharem ao lado de cativos africanos, mas também o de não
poderem deixar a fazenda, fazia com que eles se afastassem da
condição de homem livre. Eis o testemunho de Thomas Davatz,
suíço que conheceu de perto essa situação:

Os colonos que emigraram, recebendo dinheiro adiantado


tornaram-se, pois, desde o começo, uma simples
propriedade de Vergueiro & Cia. E em virtude do espírito
de ganância, para não dizer mais, que anima numerosos

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

senhores de escravos, e também da ausência de direitos em


que costumam viver esses colonos na província de São
Paulo, só lhes resta conformarem-se com a idéia de que são
tratados como simples mercadorias, ou como escravos.

Apesar de mal-sucedidas, essas experiências revelam um


aspecto importante das mudanças que estavam se processando na
sociedade local. Ao longo da primeira metade do século XIX, a
pressão inglesa pelo fim do tráfico só fez dificultá-lo, até, por fim,
suprimi-lo. Ora, à medida que as leis restringido o tráfico
internacional de escravos eram promulgadas, o preço dos escravos
aumentava, atingindo valores elevadíssimos. Tal situação
estimulou constantemente experiências de migração internacional
destinadas ao Brasil.

Por outro lado, o aumento do preço dos cativos também


implicou a transferência de muitos deles da cidade para o campo.
Dessa forma, o número de trabalhadores urbanos foi diminuindo.
Onde era possível, procurava-se sanar o problema da falta de
mão-de-obra através da utilização de prisioneiros. Porém, os então
denominados galés quase sempre consistiam em trabalhadores não
especializados e que, na primeira oportunidade, tratavam de fugir.

Nesse contexto, criava-se espaço para a contratação de


pedreiros e carpinteiros de procedência européia. Apesar dos
esforços feitos, na maioria dos casos, a história desses
empreendimentos é uma crônica de fracassos. E isso não diz
respeito somente às experiências nas fazendas de café ou no meio
urbano. Houve casos, como o da região mineira do Vale do
Mucuri, em que o núcleo colonial foi instalado no meio rural
isolado, em região de mata virgem, mesmo assim os resultados
foram negativos: distribuídos em áreas insalubres, infestada por
doenças endêmicas e animais selvagens, tendo de enfrentar grupos
indígenas resistentes à ocupação, os alemães e suíços do Mucuri
faleceram ou abandonaram o empreendimento colonial (Otoni,
1858).

368
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Assim, dependendo da região, o imigrante podia ser


atacado por animais selvagens, morrer de malária, ser vitimado em
conflitos indígenas ou se tornar escravo de fazendeiros.
Convenhamos, o quadro não era muito animador. Não demorou
muito para essas informações começarem a circular no mundo
europeu, através de livros de memórias ou de depoimentos e
denúncias publicados em jornais. Por influência da opinião pública
dos países de origem, comissões são criadas para avaliar as
condições de vida dos trabalhadores no Brasil. Quase sempre
essas avaliações eram as piores possíveis, levando, como fez a
Alemanha, a não autorizar, por alguns anos, a vinda de novos
imigrantes.

A comparação entre os dados de povoamento é reveladora


do fracasso dos primeiros projetos de europeização da população
brasileira. Se, durante o período colonial, os escravos africanos
vieram em uma proporção duas vezes mais intensa do que a dos
homens livres portugueses; após a Independência, essa
desproporção – mesmo se adicionarmos a ela imigrantes de
diversas nacionalidades –, havia se tornado três vezes mais
elevada.

Tabela 3: Estimativas de Migração para o Brasil

Procedência do
Período Total
imigrante
Européia 1820-1876 350.117
Africana 1821-1860 1.150.500
TOTAL 1.500.617

Fontes: ALENCASTRO, 2000, p. 69; KLEIN, 1989, p. 20.

Dessa forma, ao longo dos quatro primeiros séculos de


nossa formação, assiste-se a um declínio acentuado dos grupos
indígenas paralelamente a uma africanização crescente da

369
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

população brasileira. Em fins do século XIX, registra-se uma


reversão desse processo, não em função do crescimento da
população nativa, mas sim pela intensa chegada de povos
europeus e asiáticos. O levantamento dos dados dessa migração
revela, porém, um quadro surpreendente: entre 1887 e 1930, os
portugueses não foram o grupo de imigrante predominante,
representando bem menos do que a metade dos imigrantes
europeus que no período vieram para o Brasil.

Tabela 4: Principais grupos de imigrantes estrangeiros


vindos para ao Brasil, 1887-1930

Nacionalidade N. Abs.
Italiana 1.341.649
Portuguesa 1.097.809
Espanhola 560.539
Japonesa 100.653
TOTAL 3.100.650

Fonte: KLEIN, 1989, p. 20.

Como se vê, desde o início da formação da atual sociedade


brasileira, a língua portuguesa teve de conviver com outras rivais.
No século XVI conviveu com diversas línguas indígenas, que
contavam com um número bem mais elevado de falantes se
comparadas ao idioma metropolitano. Do século XVII ao XIX,
foi a vez do imigrante forçado africano, que em terras coloniais
disseminou novas formas de falar. No século XX, assiste-se à
chegada em massa de europeus e asiáticos, com predominância do
italiano.

Diante desse contexto, como foi possível o português ter se


tornado a língua dominante? Ora, os dados apresentados sugerem
que a representatividade social – do ponto de vista demográfico -
não é o elemento determinante na expansão de um idioma. Caso
fosse assim, a língua portuguesa nunca teria conseguindo atingir a
importância que efetivamente atingiu na sociedade brasileira. Isso

370
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

só foi possível pelo fato de este idioma refletir simbolicamente as


hierarquias econômicas, sociais e políticas. O português foi a
língua do poder e como tal garantiu sua hegemonia mesmo em
situações que aparentemente lhes eram desfavoráveis.

Referências
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil
no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
DAVATZ, Thomas. Memórias de um colono no Brasil (1850). São
Paulo:Edusp; Belo Horizonte:Itatiaia, 1980.
GODINHO, Vitorino Magalhães. Estrutura da antiga sociedade portuguesa. 2.
ed. Lisboa: Arcádia, 1975.
GREGORY, Valdir. Imigração Alemã: a formação de uma comunidade
teuto-brasileira. In: IBGE. (Org.) Brasil: 500 anos de povoamento.Rio de
Janeiro: IBGE, 2000.
IBGE. Estatísticas históricas do Brasil: séries econômicas, demográficas e
sociais de 1550 a 1988. 2. ed. Rio de Janeiro, 1990.
KENNEDY, David P. e PERZ, Stephen G. Who are Brazil's indigenas?
Contributions of census data analysis to anthropological demography of
indigenous populations. Human Organization, Vol 59 (3), 2000.
KLEIN, Herbert S. A integração social e econômica dos imigrantes
portugueses no Brasil no fim do século XIX e no século XX. Revista
Brasileira de Estudos de População, v. 6, n. 2, 1989.
LEMOS, Juvêncio Saldanha. Os mercenários do imperador: a primeira
corrente migratória alemã no Brasil (1824-1830). Rio de Janeiro:
Biblioteca do Exército, 1996.
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