Limites Ao Poder Constituinte - Marcus Gouveia Dos Santos

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LIMITES AO PODER CONSTITUINTE

Marcus Gouveia dos Santos


1) INTRODUÇÃO

presente trabalho tem como objetivo analisar a


existência de limites ao poder constituinte. O
tema mantém íntima relação com a teoria do di-
reito, notadamente o positivismo e o jusnatura-
lismo, uma vez que a partir daí se poderá con-
cluir acerca da natureza jurídica do poder constituinte e da
existência de limites.
A questão não é meramente acadêmica, ao contrário do
que se poderia imaginar. Ao longo da história, existem de-
monstrações de verdadeiras atrocidades cometidas a pretexto
de se estar cumprindo a lei. O nazismo e o fascismo são exem-
plos de regimes que, sob o manto do direito, foram autoritários
e discriminatórios1.
De outro ponto, existem exemplos em Constituições
Democráticas recentes de desrespeito ao postulado da justiça e
aos direitos humanos. Nesse sentido, na Constituição Portugue-
sa de 1976, antes da revisão, os artigos 82º, n 2 e artigo 87, n 2,
que tratavam da expropriação sem indenização; e o artigo 309,
que versava sobre a incriminação e julgamento dos agentes e
responsáveis da PIDE/DGS sem prévia lei que definisse o cri-
me e a pena. Como também, na Constituição Brasileira o artigo
5º, inciso LXVII, que permite a prisão civil por dívida do depo-
sitário infiel2. É inquestionável que nos dias atuais não se pode

1
in “História das Idéias Políticas”, Diogo Freitas do Amaral, Volume II, Lisboa
1998, pág. 307-320.
2
“Art. 5º (...) LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável
pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depo-
sitário infiel;”

Ano 1 (2015), nº 2, 1359-1420


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conceber que o Estado interfira no direito de propriedade do


particular sem pagar qualquer indenização para isso; ou que
alguém seja julgado sem prévia lei que defina o crime e a pena;
ou, por fim, que a execução da dívida seja feita sobre o próprio
corpo do devedor. Neste último caso, a possibilidade da execu-
ção de dívida ser imposta à própria pessoa do devedor já havia
sido abolida do processo civil romano pela Lex Poetelia Papi-
ria, já no século V A. C. Antes dessa lei, quando vigia a Legis
Actiones, era facultado ao credor vender o devedor como es-
cravo, matá-lo ou aprisioná-lo. Em que pese a evolução dos
direitos humanos, ainda há tal resquício de injustiça na Consti-
tuição Brasileira, em que se permite a execução de dívida sobre
a pessoa do devedor.
O poder constituinte é expressão máxima da soberania e
esta, em um Estado democrático, deve ser exercida pelo povo.
Portanto, será analisado o processo histórico de formação dos
Estados Nacionais para se chegar a um conceito de soberania e
poder constituinte. Em seguida, serão analisadas as várias clas-
sificações de constituição e de poder constituinte, que terão
importância para a conclusão do trabalho.
Também será realizada uma análise crítica da classifi-
cação dos limites ao poder constituinte levada a cabo por al-
guns autores e será questionado se a constituição, como norma
jurídica fundamental do Estado e produto do poder constituin-
te, deve expressar o consenso da sociedade acerca do justo. Ao
fim, se concluirá sobre a existência de limites ao poder consti-
tuinte.

2) O PROCESSO HISTÓRICO CONSTITUCIONAL E A


SOBERANIA

Para a análise do poder constituinte, torna-se necessário


verificar o processo histórico de formação e evolução dos Es-
tados Nacionais, pois só assim pode-se concluir pelo moderno
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conceito de soberania e de constituição. A definição destas será


importante para o estudo do poder constituinte, já que este é a
manifestação máxima da soberania e a constituição é o seu
produto.
Nesse sentido, foi com a formação dos Estados Nacio-
nais que surgiu o conceito de soberania e de constituição mo-
dernas. A soberania seria a capacidade do Estado de autode-
terminação segundo a sua própria vontade. No plano externo, a
soberania consistiria na independência e igualdade entre os
Estados, traduzida na ausência de sujeição de um Estado a ou-
tro, ao passo que a soberania interna representaria o monopólio
do Estado de editar normas originárias, notadamente na capa-
cidade do poder constituinte elaborar a constituição.3
Na origem da formação dos Estados Nacionais, o Esta-
do era caracterizado como Estamental, no qual o poder político
estatal era exercido pelo monarca juntamente com os estamen-
tos. Estes estamentos representavam corpos organizados rema-
nescentes da Idade Média, consistentes basicamente na Igreja e
nos senhores feudais, entre os quais era diluído o poder político
estatal. A partir do século XIV, com a reunificação dos feudos
e a perda de poder pela Igreja, o poder político foi todo centra-
lizado na figura do rei, dando origem ao Estado Absolutista.
Em um primeiro momento, a legitimidade do poder do rei teve
como fundamento um caráter divino, assim, até a primeira me-
tade do século XVIII, o exercício do poder era justificado pela
religião, na qual o rei seria o escolhido por Deus para governar
a sociedade. Após esta fase, o poder monárquico teve funda-
mentação racionalista, dando origem ao que foi denominado de
despotismo esclarecido.4

3
in “Direito Constitucional e teoria da Constituição”, 7ª Ed., Ed. Almedina, J.J.
Gomes Canotilho, pág. 337-338.
4
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 8-12. Também em “Teoría de la Constitución”, Carl Schmitt, versão espanhola
de Francisco Ayala, Alianza Universidad Textos, Alianza Editorial, 1996, páginas
66-71.
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Nesse período, tem origem a concepção da Constituição


nas chamadas Leis Fundamentais, nas quais eram previstas a
soberania do Estado, a religião adotada, a forma de governo, a
sucessão no reinado e as garantias e representações dos grupos
sociais. Entretanto, as Leis Fundamentais não poderiam ainda
ser equiparadas às Constituições modernas, uma vez que ainda
não regulava toda a relação entre governantes e governados,
nem todo o exercício de poder pelos governantes, bem como
não possuía uma vontade autônoma de refundação da ordem
jurídica e de imposição de normas adequadas ao cumprimento
desses fins5.
Em fins do século XVIII, em decorrência do desenvol-
vimento comercial e industrial, surge uma nova classe social.
Embora detivesse grande poder econômico, a burguesia não
possuía poderes políticos, o que representava empecilho ao seu
crescimento. Em virtude disso, a nova classe burguesa reivin-
dicaria maior participação política e o estabelecimento de limi-
tes ao poder do soberano. O princípio da legalidade surge como
uma forma de limitação de poderes do rei e de reivindicação de
maiores poderes para a recém classe economicamente domi-
nante. Também como conseqüência da aspiração de limitação
dos poderes monárquicos surge o princípio da igualdade, que
tinha uma função meramente formal de igualdade de tratamen-
to perante a lei. Nasce, assim, a concepção de Estado de Direi-
to, no qual o poder político seria exercido com fundamento e
com limites na lei, dessa forma a Constituição surge como fun-
damentadora e limitadora do poder através do direito.6 7
5
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 10-11.
6
Ao longo do processo histórico, pode ser observada uma atitude constitucional
cognoscitiva ou voluntarista. Na atitude cognoscitiva há uma mera declaração de
uma estrutura jurídica política preexistente, típica do Estado Absolutista. Já na vo-
luntarista, através da edição de normas jurídicas, há uma intenção de alteração das
condições políticas e sociais existentes, característica do Estado Liberal. In “Manual
de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II, pág. 12-13.
Nesse sentido também “Lições de Introdução ao Estudo do Direito”, Paulo Otero, I
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O moderno Constitucionalismo surge, então, como for-


ma de fundamentar e estruturar o poder político, bem como
para a garantia de direitos individuais em face do poder esta-
tal8. A revolução francesa e a americana, em fins do século
XVIII, nas quais resultou a produção de Cartas Constitucionais,
representam marcos de evolução para esse moderno constituci-
onalismo9. Nesse sentido, a Declaração dos Direitos do Ho-
mem e do Cidadão de 1789, em seu artigo XVI, dispôs que não
há Constituição caso não seja assegurada a garantia dos direitos
e a separação de poderes10 11.
No Estado Liberal, então, o antigo poder do rei é diluí-
do entre órgãos, como também os indivíduos passam a deter a
qualidade de cidadãos, não meros súditos, com direitos frente
ao Estado. Ao contrário do Estado Absolutista, no qual a legi-
timidade do monarca se apoiava na outorga divina ou em bases
racionais, o constitucionalismo liberal possui embasamento
democrático. Nesse ponto, para que seja caracterizado como
Estado Democrático, o poder político deve ser exercido pelo

volume, 2º Tomo, 1999, Lisboa, página 164.


7
in “Teoría de la Constitución”, Carl Schmitt, versão espanhola de Francisco Ayala,
Alianza Universidad Textos, Alianza Editorial, 1996, páginas 70-74; 45-47; 66; 93-
94.
8
in “História das Idéias Políticas”, Diogo Freitas do Amaral, Volume II, Lisboa
1998, pág. 61-62. Também em “Teoría de la Constitución”, Carl Schmitt, versão
espanhola de Francisco Ayala, Alianza Universidad Textos, Alianza Editorial, 1996,
páginas 164-169.
9
in “História das Idéias Políticas”, Diogo Freitas do Amaral, Volume II, Lisboa
1998, pág. 81-82.
10
Segundo Montesquieu: “Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magis-
tratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade pois
pode-se temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas estabeleçam lei
tirânicas para executá-las tiranicamente. Não haverá também liberdade se o poder de
julgar não estiver separado do poder legislativo e do poder executivo. Se estivesse
ligado ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria
arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado do poder executivo, o juiz
poderia ter a força de um opressor.” In “O espírito das leis”, São Paulo: Difusão
Européia do Livro, 1962, v.1, pág. 181.
11
in “Teoría de la Constitución”, Carl Schmitt, versão espanhola de Francisco Aya-
la, Alianza Universidad Textos, Alianza Editorial, 1996, páginas 189-200.
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povo, de forma direta ou indireta, neste último caso através de


representantes. Portanto, as normas produzidas no Estado De-
mocrático de Direito somente serão legítimas formalmente se
produzidas com base no exercício do poder político pelo povo.
12

De outro ponto, embora a noção de soberania tenha sido


marcada inicialmente como a ilimitação do poder estatal, nota-
damente associado ao poder soberano monárquico, esta carac-
terística perde força no período do pós-guerras do século XX.
A necessária intervenção do Estado na economia, em questões
sociais e na reconstrução da nação, bem como a preocupação
internacional com a defesa e o respeito aos direitos do homem
acarretaram uma alteração da concepção de soberania. Todos
esses fatos ocasionaram uma limitação do poder soberano esta-
tal, uma vez que agora o Estado não seria o único centro de
poder, haveria de compartilhá-lo com entidades privadas e or-
ganismos internacionais. Neste ponto, em prol da dignidade da
pessoa humana, seria justificável a intervenção de Estados e de
organismos internacionais em outros Estados para proteção dos
direitos humanos, nos quais seriam exemplos, a ingerência no
Iraque a favor dos curdos iraquianos, na Sérvia no conflito de
Kosovo ou na instituição de tribunais ad hoc para julgamento
de crimes praticados na ex- Jusgoslávia e em Ruanda.13
Essa nova concepção de soberania repercute na defini-
ção de constituição e na própria limitação do poder constituin-
te, como expressão da soberania interna14. A teoria constitucio-
nal passa a ter como base os direitos humanos, conforme me-
lhor será abordado mais a frente.

12
in “História das Idéias Políticas”, Diogo Freitas do Amaral, Volume II, Lisboa
1998, pág. 49-58; 80- 85. Também em in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge
Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II, pág. 16-17.
13
in “Lições de Introdução ao Estudo do Direito”, Paulo Otero, I volume, 1º Tomo,
1999, Lisboa, página 72.
14
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 101.
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3) CONCEITO E CLASSIFICAÇÃO DA CONSTITUI-


ÇÃO

A Constituição pode ser conceituada como a norma


fundamental responsável pela organização do Estado e garantia
dos direitos aos cidadãos contra abusos do Poder Público, se
impondo em face dos governados e dos governantes. Nesse
sentido, tem a importância de conferir existência ao Estado,
internamente e perante outros Estados, não somente como ex-
pressão de poder, mas também como identidade política de
uma dada comunidade.15
Ao ser abordada a constituição como um ato de sobera-
nia do Estado, torna-se necessária a sua classificação para que
se possa concluir sobre a existência de limites ao poder consti-
tuinte. Não se pretende aqui discorrer sobre todas as classifica-
ções da constituição, mas somente as que podem contribuir
para o tema tratado no presente trabalho.
Segundo a classificação proposta por Karl Loewenstein,
poderia a constituição ser classificada em normativas, nominais
e semânticas. Tal classificação tem como base a relação da
constituição com o poder e como fim a constatação de que a
constituição é aquilo que os detentores de poder fazem dela na
prática. As constituições normativas seriam aquelas em que
suas normas efetivamente regem o processo político e às quais
se submetem os poderes, logo, as normas constitucionais efeti-
vamente limitam o poder político. Já as nominais não conse-
guem adaptar a suas normas ao exercício de poder, pelo que
carecem de existência efetiva; dessa forma, embora não limi-
tem o poder político na realidade, tem a pretensão de fazê-lo.
Por fim, as semânticas seriam as constituições elaboradas tão
somente para formalização do poder político já constituído, em

15
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 7-9.
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benefício dos detentores de poder de fato, assim, serviriam tão


somente para legitimar e estabilizar o exercício do poder pela
classe dominante sobre a sociedade16.
De outro ponto, torna-se necessário diferenciar consti-
tuição material e formal. A Constituição material seria o con-
junto de normas jurídicas que estruturam e limitam o poder
estatal e disciplinam suas competências, bem como prevêem os
direitos do cidadão.17 Já Constituição formal seria o conjunto
de normas expressas no documento constitucional, pelo que
seriam qualificadas como constitucionais, de hierarquia superi-
or às demais normas do ordenamento jurídico e com rito espe-
cial para sua modificação. Como regra, haveria uma constitui-
ção formal como manifestação da constituição material. Entre-
tanto, como exceção, pode ser citada a Grã-Bretanha, que não
dispõe de uma constituição formal18. Há uma constituição ma-
terial e existem leis constitucionais escritas na Grã-Bretanha,
no entanto, a constituição não é produzida por um procedimen-
to específico e é constituída por vários diplomas legislativos
esparsos.
Em nome do princípio da segurança jurídica, tanto para
tornar visíveis as normas constitucionais como para protegê-las
de modificações, entende-se que a constituição formal deve ser
manifestada em documento escrito. Neste ponto, cabe distin-
guir constituição formal de constituição instrumental. Esta seria
o documento onde constam os enunciados normativos da cons-
16
in “Teoria de la Constitución”, Karl Loewenstein, Barcelona, 1964, pág. 216 e
segs.
17
Segundo Jorge Miranda, a Constituição material seria “o acervo de princípios
fundamentais estruturantes e caracterizantes de cada Constituição em sentido mate-
rial positivo; aquilo que lhe confere substância e identidade; a manifestação directa e
imediata de uma idéia de Direito que prevalece em certo tempo e lugar (seja pelo
consentimento, seja pela adesão passiva); a resultante primária do exercício do poder
constituinte material; e, em democracia, a expressão máxima popular livremente
formada.” In “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra,
tomo II, pág. 25-26.
18
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 30-31.
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tituição formal.19 Embora a regra seja a existência de um só


documento para abrigar a constituição, pode haver várias leis
constitucionais. Mesmo neste caso, há somente um poder cons-
tituinte e todas as normas gozam da mesma hierarquia e su-
premacia. Como exemplos, podem ser citadas as três leis cons-
titucionais francesas de 1875, as trinta e cinco leis constitucio-
nais portuguesas de 1974 a 1976 e as duas leis constitucionais
canadenses de 1867 e 198220.
De outro ponto, seria recorrente a existência de normas
constitucionais não materiais na constituição formal21, o que
ocorreria principalmente pela ingerência de grupos políticos no
processo constituinte. Da mesma forma, poderia haver direito
constitucional material não previsto na constituição formal22.
Por fim, também seria possível a previsão de normas não cons-
titucionais na constituição formal, caso assim fosse imposto
pelo legislador constituinte. Seria o fenômeno da autodescons-
titucionalização, o qual seria exemplo o artigo 178 da Consti-
tuição Brasileira de 1824.23 24

4) PODER CONSTITUINTE

Primeiramente, deve ser esclarecida uma questão termi-


nológica. Alguns autores utilizam somente a expressão poder

19
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 30-31.
20
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 32.
21
Exemplo seria o artigo Art. 242, § 2º - “O Colégio Pedro II, localizado na cidade
do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal.”
22
in “Normas Constitucionais Inconstitucionais?”, Otto Bachof, Traduzido por José
Manuel M. Cardozo da Costa, Ed. Atlântida, 1951, página 40.
23
“Art. 178. É só Constitucional o que diz respeito aos limites, e attribuições res-
pectivas dos Poderes Politicos, e aos Direitos Politicos, e individuaes dos Cidadãos.
Tudo, o que não é Constitucional, póde ser alterado sem as formalidades referidas,
pelas Legislaturas ordinarias.”
24
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 36-38.
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constituinte, uma vez que este seria o responsável pela criação


da constituição e, por isso, seria necessariamente originário. Já
outros autores, preferem a designação de poder constituinte
originário, principalmente para o diferenciar do poder constitu-
inte de revisão. No presente trabalho será utilizado o termo
poder constituinte, uma vez que parece ser tecnicamente mais
adequado.
Historicamente, na origem da formação dos Estados
Nacionais, o poder constituinte inicialmente teria fundamento
divino, notadamente na era medieval. Já na época monárquica,
o poder constituinte era exercido pelo rei, sendo que somente
com a revolução francesa o mesmo foi concebido como sendo
exercido pela nação25. Para tanto teve fundamental importância
os estudos de Sieyés, em sua obra “Que é o Terceiro Estado?”.
Tal manifesto foi produzido nas vésperas da Revolução Fran-
cesa e questionava a falta de representatividade política do
Terceiro Estado nos Estados Gerais. Sieyés sustentava que o
poder constituinte (denominado por ele de volunté constituan-
te) é responsável pela organização dos poderes do Estado, sen-
do estes caracterizados como constituídos e submetidos àquele.
Propôs ainda uma nova legitimação do poder, não mais basea-
do na tradição das dinastias reais, mas com fundamento na de-
cisão originária da nação, que seria o Terceiro Estado e daria
início à ordem jurídica da sociedade. Assim, a nação seria so-
berana para escolher seu próprio destino e a constituição seria a
forma de expressão desta decisão. Quanto à titularidade, Sieyés
defendia a nação como titular do poder constituinte. 26
25
in “Teoría de la Constitución”, Carl Schmitt, versão espanhola de Francisco Aya-
la, Alianza Universidad Textos, Alianza Editorial, 1996, páginas 95-98.
26
Sieyés propõe que os representantes do terceiro estado tivessem representação
política, bem como que a soma desses representantes fosse igual a dos representan-
tes do clero e da nobreza e que a votações fossem realizadas por cabeça. Ademais,
segundo Seyés, a nação seria o terceiro estado. In “O que é o Terceiro Estado?”,
Emmanuel Joseph Sieyés, Rio de Janeiro, Liber Juris, 1988. Também em “História
das Idéias Políticas”, Diogo Freitas do Amaral, Volume II, Lisboa 1998, pág. 81-85.
Também em “Curso de Direito Constitucional”, Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio
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Atualmente se entende que a titularidade seria do povo,


este compreendido em sua totalidade e em cada um de seus
membros. O povo delegaria ao seu representante a tarefa de
elaborar a constituição, entretanto sempre deteria o poder cons-
tituinte. Ressalte-se que o conceito de povo deve ser o de “po-
vo real”, pois embora as decisões políticas sejam tomadas pela
maioria não se deve esquecer a minoria que também faz parte
do processo político. Além da minoria, também as pessoas ali-
jadas do processo político devem fazer parte da definição de
“povo real”.27
Por fim, a concepção de poder constituído ou de revisão
surgiu da diferenciação entre normal politics e constitutional
politics, em que Madison e Hamilton, em “O Federalista”28,
discutem a tensão entre a força obrigatória da constituição e a
sua permanência na sociedade, o que permitiria ao poder cons-
tituído de revisão modificá-la de acordo com os limites por ela
traçados.29

4.1) PODER CONSTITUINTE MATERIAL

O poder constituinte material é responsável pela con-


cepção da nova idéia de direito que será concretizada em um
estatuto jurídico, sendo a expressão máxima da soberania do
Estado no seu âmbito interno. Através dele são adotados valo-
res sociais e culturais, opções políticas e econômicas que nor-

Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, 4ª Edição, Saraiva, 2009, página
231.
27
in “Direito Constitucional e teoria da Constituição”, 7ª Ed., Ed. Almedina, J.J.
Gomes Canotilho, pág. 337-338.
28
in “The Federalist Papers”, Hamilton, Madison e Jay, A Penn State Eletronic
Classic series publication, The Pennsylvania State University, 2001, pagina 180-
186; 387- 394.
29
in “Direito Constitucional e teoria da Constituição”, J.J. Gomes Canotilho, Ed.
Almedina, 7ª Ed., pág. 74. Nesse sentido, o autor informa que, em sua fase conser-
vadora, Sieyés também compreendia que o poder constituinte revolucionário equiva-
lia a um momento de instabilidade social, que deveria ser evitado através de um
poder de revisão.
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teiam a nova idéia de direito.30


O poder constituinte material se manifesta em momen-
tos esporádicos da história da sociedade, sempre que existir
discrepância entre a idéia de direito e a constituição formal.
Embora ocorra a manifestação do poder constituinte material
na formação, na restauração ou na transformação de um Esta-
do, é mais comum sua ocorrência na mudança de regime políti-
co, uma vez que com esta ficaria mais assente a nova idéia de
direito a ser proposta. As formas de implementação dessa mu-
dança de regime político são a revolução e a transição constitu-
cional.31
Durante os séculos XVII e XVIII, a revolução era con-
siderada uma manifestação extremada de exercício do direito
de resistência, na qual sucedia a substituição de um governo
por outro. A partir da Revolução Francesa, a revolução passa a
ser encarada como um fenômeno constituinte, na qual seria
estabelecida uma nova ordem jurídica. Embora a revolução
pudesse ser taxada de inconstitucional frente à anterior ordem
jurídica estatal, não poderia ser conceituada como antijurídica
uma vez que amparada na nova concepção de direito, sendo
certo que o iminente poder constituinte material legitima a re-
volução de acordo com os novos valores sociais adotados. Nes-
tes termos, como espécie de revolução pode ser citado o golpe
de estado e a revolução estrito senso. O primeiro seria levado a
cabo pelo titular de um dos órgãos do poder constituído, com a
usurpação do poder constituinte; ao passo que a revolução es-
trito senso seria liderada por pessoas de fora do poder constitu-
ído.32
30
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 24-27.
31
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 100- 101; 103.
32
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 106-107; 109. Também em “Teoría de la Constitución”, Carl Schmitt, versão
espanhola de Francisco Ayala, Alianza Universidad Textos, Alianza Editorial, 1996,
páginas 45-47; 66; 93;94.
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De outro ponto, também poderia ocorrer a denominada


transição constitucional, caso em que não haveria ruptura drás-
tica da ordem jurídica anterior. Enquanto se prepara a nova
constituição formal, a anterior permanece em vigor a termo
resolutivo. Seriam os casos de transição dos regimes militares
para regimes democráticos nos países da América Latina, como
são exemplos, a Constituição Brasileira de 1988, a Constituição
Argentina de 1983 e a Constituição Chilena de 1990.33

4.2) PODER CONSTITUINTE FORMAL

O poder constituinte formal é posterior ao poder consti-


tuinte material, uma vez que somente após a consagração da
nova idéia de Direito poderá esta ser formalizada na Constitui-
ção formal, ocasião em que o novo direito será qualificado co-
mo norma constitucional. O poder constituinte formal confere
estabilidade, garantia de permanência e supremacia hierárquica
a idéia de direito manifestada pelo poder constituinte materi-
al.34
Para o desempenho de sua tarefa de positivação das
normas constitucionais, o poder constituinte formal deve adotar
um procedimento e ser constituído de um órgão competente.
Tal decisão cabe ao poder constituinte material e depende de
fatores jurídicos e políticos, como a forma de Estado, a legiti-
midade do poder e a participação social. Assim, geralmente a
constituição formal é produzida após um processo de elabora-
ção e redação de suas normas, entretanto se observam exce-
ções, como são exemplos as constituições outorgadas por mo-
narcas ou por golpe de estado, como a constituição brasileira
de 1824 e de 1937, bem como a portuguesa de 1826.35 Daí po-
33
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 110-114.
34
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 99.
35
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
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de-se diferenciar a constituição outorgada, que seria aquela


imposta por uma pessoa ou grupo de pessoas, sem representa-
ção popular; e a constituição promulgada na qual seria consti-
tuída uma Assembléia de representantes do povo responsável
por sua elaboração36.
Nos regimes democráticos as constituições são legiti-
madas formalmente na vontade popular. Assim, como forma de
exercício do poder político pelo povo para a elaboração da Car-
ta Constitucional, esta é promulgada pela Assembléia Constitu-
inte que seria eleita pelo sistema do sufrágio universal. Na As-
sembléia Nacional soberana, esta elabora o texto constitucional
e este vigora sem qualquer consulta popular prévia. Já na As-
sembléia Nacional não soberana, a constituição somente tem
vigência após a aprovação pelos cidadãos com direito a voto.
Na Convenção é elaborada a constituição, que posteriormente é
sujeita ao ato de aprovação dos cidadãos dos diferentes Estados
federados. Por fim, o Plebiscito Geral subordina a proposta de
constituição a uma consulta popular37.

4.3) NATUREZA JURÍDICA E LIMITES AO PODER


CONSTITUINTE

O positivismo jurídico tem como objeto de dogmática


as normas jurídicas vigentes em determinado Estado e em um
período específico. Segundo essa concepção, as relações jurídi-
cas e os direitos somente seriam reconhecidos a partir da for-
mação do Estado e de sua positivação no ordenamento jurídico,
na medida em que seria baseado no direito decidido e não teria

pág. 117-121.
36
in “Curso de Direito Constitucional”, Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires
Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, 4ª Edição, Saraiva, 2009, página 236-237.
37
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 116.Também em “Teoría de la Constitución”, Carl Schmitt, versão espanhola
de Francisco Ayala, Alianza Universidad Textos, Alianza Editorial, 1996, páginas
101-103.
RJLB, Ano 1 (2015), nº 2 | 1373

compromisso com ideais moralistas, éticos ou filosóficos.38


Nesse sentido, o poder constituinte teria natureza pré-
jurídica e não lhe seriam impostas limitações jurídicas, uma
vez que não se trataria de um fenômeno jurídico a ser estudado
pelo Direito, mas sim de um fato a ser compreendido pela soci-
ologia. Este fenômeno social decorreria de um ato de força, que
poderia ser proveniente de um movimento político pacífico ou
de atos de guerra. Logo, como decorre de um fato social, o po-
der constituinte seria ilimitado juridicamente para decidir sobre
o conteúdo da constituição39. A não equivalência entre aquilo
que foi positivado pelo poder constituinte e os ideais sociais
seria resolvido no plano da efetividade. Assim, o poder consti-
tuinte seria ilimitado quanto à criação do direito, entretanto as
normas constitucionais poderiam não gozar de eficácia social
por não atenderem aos anseios da sociedade40. Dessa forma,
embora o positivismo admita a existência de limites fáticos ao
poder constituinte, decorrentes da ideologia política- social
dominante, não haveria restrições jurídicas41.
De outro ponto, para o jusnaturalismo os homens seri-
am livres e abdicariam dessa liberdade em favor do pacto soci-
al formador do poder político estatal, consubstanciado no Esta-
38
in “Curso de Direito Constitucional”, Carlos Blanco de Morais, Tomo 1, Editora
Coimbra, 2ª Ed, pág. 17; 155. Também em “Manual de Direito Constitucional”,
Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II, pág. 69. Segundo normativismo de Kelsen, a
Grundnorm “não é uma norma posta através de um acto jurídico, mas (...) uma
norma pressuposta, pressuposta sempre que o acto em questão seja de entender
como acto constituinte, como acto criador da Constituição, e os actos postos com
fundamento nesta Constituição como actos jurídicos”. In “Teoria Pura do Direito”,
Hans Kelsen, colecção studium, 1962, páginas 88-89. Também a concepção decisio-
nista de Carl Smichtt. In “Teoría de la Constitución”, Carl Schmitt, versão espanhola
de Francisco Ayala, Alianza Universidad Textos, Alianza Editorial, 1996, páginas
95-98.
39
in “Teoría de la Constitución”, Carl Schmitt, versão espanhola de Francisco Aya-
la, Alianza Universidad Textos, Alianza Editorial, 1996, páginas 45- 47; 66; 93-94.
40
in “O Conceito de Direito”, Hebert L. A. Hart, 6ª Ed., Ed. Fundação Calouste
Gulbenkian, Tradução de A. Ribeiro Mendes, pós- escrito, pág. 222-228; 332.
41
in “Curso de Direito Constitucional”, Carlos Blanco de Morais, Tomo 1, Editora
Coimbra, 2ª Ed, pág. 17; 31; 155.
1374 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 2

do. Em contrapartida, esse Estado reconheceria a existência de


direitos naturais e inatos, embora com limitações decorrentes
do pacto social, ou seja, a função do Estado seria de tornar es-
táveis as relações jurídicas em seu estado natural, suprindo
incertezas e preservando a harmonia e a paz social.42Esses di-
reitos naturais seriam preexistentes ao ato constituinte, assim o
poder constituinte se limitaria a reconhecê-los e positivá-los na
constituição material. Isto significa dizer que a atuação do po-
der constituinte somente será legitima caso obedeça aos parâ-
metros predefinidos por um direito supra- estatal. Portanto, o
poder constituinte teria natureza jurídica e estaria limitado por
esse direito supra- estatal.
Adiante será analisada a teoria de Otto Bachof sobre a
possibilidade de normas constitucionais inconstitucionais, uma
vez que a conclusão pela sua existência seria decorrência lógi-
ca da limitação do poder constituinte. Também será abordada a
classificação sugerida por Carlos Blanco de Morais, que dife-
rencia poder constituinte soberano e não soberano, mencionan-
do a existência de quatro espécies de limitação ao poder consti-
tuinte não soberano. No entanto, como referência para o pre-
sente estudo, será adotada a classificação levada a cabo por
Jorge Miranda, o qual entende pela existência de três espécies
de limites ao poder constituinte: transcendentes, imanentes e
heterônomos.

5) LIMITES AO PODER CONSTITUINTE NÃO SOBE-


RANO

Ensina Carlos Blanco de Morais que não é característica


fundamental do poder constituinte ser ilimitado. Após a segun-
da guerra mundial, haveria casos de heteronomia constituinte,
que seria uma constrição ao poder constituinte. Dessa forma, o

42
in “História das Idéias Políticas”, Diogo Freitas do Amaral, Volume II, Lisboa
1998, pág. 45- 49.
RJLB, Ano 1 (2015), nº 2 | 1375

autor menciona que deveria ser diferenciado poder constituinte


estadual soberano e poder constituinte estadual não soberano43.
O poder constituinte soberano pressupõe a inexistência
de qualquer subordinação a uma norma jurídica pré-
estabelecida, seja esta norma interna ou externa. Seria a regra e
ocorreria quando houvesse uma ruptura com a ordem jurídica
anterior e com a própria idéia de direito preexistente, caso em
que o poder constituinte seria ilimitado juridicamente. De outro
ponto, o poder constituinte não soberano encontraria limitações
no exercício de sua tarefa de elaboração da Lei Fundamental.
Segundo Carlos Blanco de Morais, seriam quatro as hipóte-
ses44.
A primeira hipótese ocorreria nas federações imperfei-
tas, quando os Estados unitários se transformassem em uma
federação. Neste caso, os Estados federados deteriam o poder
constituinte derivado, que teriam como fonte de legitimidade a
Constituição do ente central e, por isso, seriam limitados, como
são exemplos o Brasil e a Argentina45.
A segunda ocorreria quando o Estado não pudesse exer-
cer sua soberania de forma plena no momento do processo
constituinte. Tal fato aconteceu no segundo pós-guerra, quando
Itália e Alemanha tiveram suas soberanias restringidas pelas
forças aliadas, acarretando a limitação do poder constituinte na
Constituição Italiana de 1947 e na Constituição Alemã de
194946.
A terceira seria a hipótese de um Estado ter sua Consti-
tuição elaborada por outro Estado ou organismo internacional.
Como exemplo, pode ser citada a Constituição do Japão de
43
in “Curso de Direito Constitucional”, Carlos Blanco de Morais, Tomo 1, Editora
Coimbra, 2ª Ed, pág. 16-27.
44
in “Curso de Direito Constitucional”, Carlos Blanco de Morais, Tomo 1, Editora
Coimbra, 2ª Ed, pág. 17.
45
in “Curso de Direito Constitucional”, Carlos Blanco de Morais, Tomo 1, Editora
Coimbra, 2ª Ed, pág. 16-27.
46
in “Curso de Direito Constitucional”, Carlos Blanco de Morais, Tomo 1, Editora
Coimbra, 2ª Ed, pág. 16-27.
1376 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 2

1946 que foi resultado da elaboração de peritos nomeados pela


força aliada; também a Constituição da Áustria de 1920, condi-
cionada pelo Tratado de Saint Germain de 1919; bem como a
Constituição da Bósnia-Herzegovina, imposta pelo Acordo de
Dayton de 199547.
A quarta aconteceria na transição de uma ordem consti-
tucional para outra, sem que para isso tenha ocorrido qualquer
ruptura formal. Neste caso, haveria obediência ao processo de
transição ditado pela ordem anterior e o controle político ou
judicial deveria ser realizado antes da entrada em vigor da nova
Constituição. Caso argüida a desobediência às referidas normas
antes da entrada em vigor da nova constituição, ocasionaria tão
somente a paralisação do processo constituinte. Já quando ale-
gada tal violação após a entrada em vigor da nova constituição,
não haveria qualquer conseqüência uma vez que a vigência da
nova Carta faz cessar a eficácia jurídica das normas anteriores.
Com a vigência da nova Carta estaria sanado eventual vício,
uma vez que deixaria de subsistir a norma que lhe impunha
invalidade. Desta feita, haveria limitação ao poder constituinte
somente no processo de elaboração da nova Constituição48.
Embora o Ilustre professor mencione a existência de li-
mites ao poder constituinte, na verdade não se trata de limites.
O próprio autor menciona que tais limites somente incidiriam
na ausência de soberania, entretanto o poder constituinte é ex-
pressão de soberania, da qual resulta a constituição. Dessa for-
ma, como não se trata de poder constituinte por inexistir sobe-
rania, não se deve falar em limites ao seu exercício. Nos casos
de heteroconstituição haveria uma novação do ato constituinte,
tendo em vista que, antes de adquirir soberania, a Constituição
tinha como fundamento de validade a ordem jurídica de onde
proveio. Com a soberania, o fundamento de validade transfere-
47
in “Curso de Direito Constitucional”, Carlos Blanco de Morais, Tomo 1, Editora
Coimbra, 2ª Ed, pág. 16-27.
48
in “Curso de Direito Constitucional”, Carlos Blanco de Morais, Tomo 1, Editora
Coimbra, 2ª Ed, pág. 16-27.
RJLB, Ano 1 (2015), nº 2 | 1377

se para a ordem jurídica local49, na qual a vontade desse novo


Estado seria o poder constituinte. No mesmo sentido, nas fede-
rações imperfeitas não haveria exercício de poder constituinte
pelos Estados, mas sim de poder constituído, uma vez que teri-
am abdicado da soberania em favor da formação da federação.
Logo, o exercício do poder constituinte somente pode ser con-
cebido como manifestação de um ato de soberania50.

6) LIMITES AO PODER CONSTITUINTE: TRANS-


CENDENTE; IMANENTE E HETERÔNOMO

Na classificação elaborada por Jorge Miranda haveria


três espécies de limites ao poder constituinte: transcendentes,
imanentes e heterônomos. O primeiro incidiria sobre o poder
constituinte material e, por conseqüência, sobre o poder consti-
tuinte formal. O segundo sobre o poder constituinte formal e o
último sobre ambos.51

6.1) LIMITES TRANSCENDENTES: LEGITIMIDADE DA


CONSTITUIÇÃO E NORMAS SUPRACONSTITUCIONAIS

Os limites transcendentes como restringem o poder


constituinte material também limitam o poder constituinte for-
mal, uma vez que este é corolário daquele. Segundo Jorge Mi-
randa, tais limites são provenientes do direito natural, de valo-
res éticos superiores e de uma consciência jurídica coletiva,
como na democracia o poder político é exercido pelo povo,
esses limites também gravariam a vontade do mesmo.52
49
in “O Conceito de Direito”, Hebert L. A. Hart, 6ª Ed., Ed. Fundação Calouste
Gulbenkian, Tradução de A. Ribeiro Mendes, pág. 129-133.
50
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 101; 104-106.
51
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 134.
52
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 134-135.
1378 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 2

Em nível infraconstitucional, a validade da norma se


reduz a conformidade da norma hierarquicamente inferior com
a norma superior, sendo certo que esta seria responsável por
conferir validade de forma e de fundo. Já a nível constitucional,
a questão transcende ao nível de direito positivo uma vez que
deve ser dada relevância ao conceito de legitimidade ao invés
de legalidade. A legitimidade seria o reconhecimento de um
domínio como justo por parte dos indivíduos que a ele se sub-
metem, portanto não seria a mera legitimidade formal que con-
feriria legitimidade à nova constituição. Uma constituição so-
mente será legítima quando, além de observância do órgão le-
gitimado e do procedimento adequado, também incorpore os
valores dominantes da consciência social. Seria a consonância
entre aquilo que a comunidade considera justo e a constituição
que conferiria adesão social à idéia constituinte e continuidade
à ordem jurídica, nestes termos a vinculação dos destinatários
ao que foi ordenado na constituição constitui a sua obrigatorie-
dade e sua fonte de legitimação.53
Já no início do Século XX, Max Weber, de vertente po-
sitivista, propõe uma definição reducionista de legitimidade, na
qual esta estaria conectada com dominação, uma vez que todas
as formas de dominação procuram fomentar uma crença em
sua legitimidade. O autor propõe três formas de dominação:
carismática, a tradicional e a racional, sendo que esta última
seria a crença da legalidade nas ordenações estatuídas. Por se
tratar de um ato de crença (questão de fato), a legitimidade não

53
in “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, J. J. Gomes Canotilho, Ed.
Almedina, 7ª Ed., página 66; 81-82. Também em “Direito e Democracia – entre
facticidade e validade”, Jürgen Habermas, v. II, Tradução Flávio Beno Siebeneich-
ler, Ed. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1997, páginas 25- 41; 181-187. Também
em “Introdução à Filosofia do Direito”, Gustav Radbruch, tradução Jacy de Souza
Mendonça, 3ª Ed. 1965, pág. 20- 37; 34- 35; 39-41; 94-95. Também em “Pensamen-
to Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito”, Claus- Wilhem Cana-
ris, 5ª Ed., Editora Fundação Calouste Gulbenkian, tradução A. Menezes Cordeiro,
págs.190-196.Também em “O Império do Direito”, Ronald Dworkin, tradução
Jefferson Luiz Camargo, Martins Fontes, 1999, São Paulo, pág. 231- 232.
RJLB, Ano 1 (2015), nº 2 | 1379

necessitaria da incorporação de um ideal de justiça. 54 55


De outro ponto, Kelsen não nega a correlação da justiça
com o direito, mas somente a da justiça com a verdade, uma
vez que poderia haver várias idéias de justiça igualmente justi-
ficáveis, pelo que os critérios de valoração teriam um caráter
relativo. O direito poderia se apropriar de qualquer dessas me-
didas de justiça, logo a Grundnorm legitimaria qualquer regi-
me.56 A doutrina do positivismo jurídico normativista de Kel-
sen subdividiu-se em várias vertentes. Dentre estas pode ser
citado o positivismo exclusivista, na qual há a defesa de abso-
luta exclusão da influência da moral no direito. Nesse sentido,
criticam a estrutura de Kelsen baseada em uma norma hipotéti-
ca pressuposta, uma vez que esta seria uma norma não positi-
vada e derivada da aceitação de um ato de crença, o que signi-
fica que tal concepção de Kelsen seria contrária a neutralidade
axiológica que caracteriza o positivismo. Segundo os positivis-
tas exclusivistas, o qual o seu maior expoente seria Joseph
Raz57, a existência e o conteúdo da norma jurídica dependem
de fatos sociais, mas não dos juízos de ordem moral. Assim, a
moral teria um valor extrajurídico e não poderia constituir refe-
rência de validade ou constitucionalidade.58 De outro ponto, o
54
in “Economia y Sociedade – esbozo de sociología compresiva”, Max Weber,
tradução José Medina Echavarría e outros, Fondo de Cultura Economica, Mexico,
1996, 2ª Ed, 10ª reimpressão, páginas 170- 173.
55
in “Os limites do poder constituinte e a legitimidade material da Constituição”,
Luzia Marques da Silva Cabral Pinto, Boletim da Faculdade de Direito, STVDIA
IVRIDICA 7, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1994, páginas 23. Se-
gundo a autora, a legitimidade na concepção de Weber deixaria de ser uma questão
de direito para se tornar uma questão de fato.
56
Ensina Kelsen que “A validade do direito positivo é independente da sua relação
com uma norma de justiça: esta afirmação constitui a diferença essencial entre a
teoria do direito natural e o positivismo jurídico” (pág. 33). In “Justicia y derecho
natural”, “Critica del derecho natural”, Taurus, Madrid, 1966, página 33; 101; 103.
57
in “Incorporation by Law”, Joseph Raz, Legal Theory, vol. 10, publicado pela
Universidade de Cambridge, 2004, páginas 1-17. O autor critica a concepção do
positivismo inclusivo, defendido por Hart, Jules Coleman e S. Shapiro, de que a
moral poderia ser incorporada pela lei e constituir referência de validade.
58
in “Curso de Direito Constitucional”, Carlos Blanco de Morais, Tomo 1, Editora
1380 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 2

positivismo inclusivo resultou de uma aproximação do positi-


vismo normativo com o institucionalismo. Por construção prin-
cipalmente de Hebert Hart, passou-se a admitir que a ordem
jurídica pudesse ter como fundamento de validade não somente
elementos de ordem fática, mas também princípios de justiça e
valores de ordem moral, desde que fossem incorporados pela
Constituição. Hart parte da distinção entre o conceito de direito
restrito (no qual as normas moralmente iníquas não seriam di-
reito) e de direito amplo (no qual as normas moralmente iní-
quas seriam direito, mas poderiam não ser aplicadas), para ado-
tar esse último conceito e concluir que mesmo a norma moral-
mente iníqua seria válida. Logo, embora houvesse uma cone-
xão entre direito e moral, esta não deveria servir como parâme-
tro de validade, salvo quando fosse incorporada na constituição
através de princípios jurídicos de justiça59.
O positivismo decisionista de Carl Schmitt critica a no-
ção de norma hipotética pressuposta, estabelecendo que a deci-
são política constituinte seria a fonte de todo o ordenamento
jurídico. Desta maneira, o fundamento do direito seria uma
decisão política fundamental fundada no exercício da sobera-
nia60. Seguindo a linha decisionista de Carl Schimitt e a con-
cepção de Weber, para Luhmann o direito é posto e é aquilo
que seria escolhido por uma decisão, na qual a constituição não
deveria ser compreendida como ideal de justiça, mas como
uma norma que regeria as demais normas no sistema jurídico.
Segundo a teoria dos sistemas de Luhmann, seria desnecessária
qualquer legitimação material da constituição, uma vez que
bastaria a legitimidade procedimental consubstanciada em um
processo eleitoral, o que o poder político fará dessa legitimida-

Coimbra, 2ª Ed, pág. 157-159.


59
in “O Conceito de Direito”, Hebert L. A. Hart, 6ª Ed., Ed. Fundação Calouste
Gulbenkian, Tradução de A. Ribeiro Mendes, pós- escrito, pág. 222-228; 309; 332.
60
in “Teoría de la Constitución”, Carl Schmitt, versão espanhola de Francisco Aya-
la, Alianza Universidad Textos, Alianza Editorial, 1996, páginas 45-47; 66; 93-94.
RJLB, Ano 1 (2015), nº 2 | 1381

de não é tarefa do direito regular61. Ao contrário de Kelsen que


nega a relação da justiça com a verdade, Luhmann nega a pró-
pria relação do direito com a justiça62.
Em conclusão, o positivismo jurídico entende desneces-
sária qualquer legitimidade material da constituição, uma vez
que bastaria a elaboração de normas por uma autoridade legi-
timada para que passem a integrar o direito. Tal compreensão
decorre da irracionalidade de juízos morais, uma vez que so-
mente juízos de fato poderiam ser empiricamente comprova-
dos; ao passo que os juízos valorativos não poderiam ser verifi-
cados empiricamente e, portanto, seriam pseudoproposições,
pelo que não se poderia julgar a legitimidade material com base
em critérios racionais e objetivos, uma vez que ideologias polí-
ticas, religiosas e morais seriam questões de moral, não de di-
reito63. Segundo A. J. Ayer, a função da linguagem ética seria
somente de exprimir sentimentos morais, que poderia ser vari-
ável de indivíduo para indivíduo, portanto as escolhas morais
seriam relativas e subjetivas.64
Nesse sentido, pronunciando-se expressamente contrá-
61
Nesse sentido, Niklas Luhmann aduz que a legitimidade seria baseada na crença
na legalidade das ordenações estabelecidas, que se daria através de um sistema
político. Assim, segundo o autor, “Agora o direito já não pode ser verdadeiro ou
falso, mas apenas válido”. In “Legitimação pelo procedimento” (pág. 122), Ed.
Universidade de Brasília, Tradução Maria da Conceição Côrte- Real, páginas 30-32;
139-143; 122-125.
62
in “Os limites do poder constituinte e a legitimidade material da Constituição”,
Luzia Marques da Silva Cabral Pinto, Boletim da Faculdade de Direito, STVDIA
IVRIDICA 7, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1994, página 52.
63
in “Os limites do poder constituinte e a legitimidade material da Constituição”,
Luzia Marques da Silva Cabral Pinto, Boletim da Faculdade de Direito, STVDIA
IVRIDICA 7, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1994, páginas 22-29; 39-
40.
64
Nesse sentido, A. J. Ayer: “Exprimo simplesmente certos sentimentos. E o ho-
mem que abertamente me contradiga exprime também, e apenas, os seus sentimen-
tos morais. Assim não faz sentido discutir qual de nós terá razão porque nenhum de
nós emite uma proposição genuína. A função da linguagem ética é, portanto, emoti-
va, no sentido de estimular emoções e de conduzir á ação, mas é impossível encon-
trar um critério para determinar a validade dos juízos éticos”. In “Language, verdad
y logica”, Ed. Martinez Roca, Barcelona, 1971, pagina 125.
1382 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 2

rio a existência de limites transcendentes, Carlos Blanco de


Morais entende que não haveria consenso geral sobre esses
direitos naturais como garantias de bens jurídicos inquestioná-
veis. Aduz que o direito natural, como produto de uma ordem
divina, somente pode ser aceito por uma comunidade que creia
na existência de Deus e em virtude desse caráter teológico, não
poderia ser invocado perante a Justiça Constitucional de um
Estado laico. Mesmo quanto à superioridade de valores éticos,
entende o autor que não haveria consenso quanto a estes valo-
res e que seria fruto de um subjetivismo baseado na concepção
do justo. Prossegue o Ilustre autor, aduzindo que haveria uma
variável axiológica na caracterização do direito natural, de que
o mesmo não gozaria de consenso quanto aos bens a serem
protegidos e de que não seria dotado de coercibilidade. Por ter
mero caráter ético- político, não seria capaz de vincular juridi-
camente o poder constituinte. Segundo o autor, mesmo os
adeptos da tese dos limites transcendentes não aceitam a in-
constitucionalidade das normas constitucionais originárias, o
que demonstra a ausência de vinculação jurídica. Além disso,
alega que a prática constitucional apresentaria casos de ordens
constitucionais válidas que não acolhem certos bens jurídicos
de valor inquestionável para um Estado Democrático de Direi-
to, como seria o exemplo da República da China65.
Em que pese a crítica positivista, o ideal de justiça sem-
pre deve ser a finalidade do direito, seja na elaboração da nor-
ma pelo Poder Legislativo, seja na sua aplicação pelo Poder
Executivo e pelo Poder Judiciário. Não é por outro motivo que
as Constituições Portuguesa (artigo 1º) e Brasileira (artigo 3º,
inciso I) fazem referência expressa ao ideal de justiça ao men-
cionar o objetivo de uma “sociedade livre, justa e solidária.”
Sendo certo que ambas as Cartas ainda trazem o postulado de
justiça em seus preâmbulos.

65
in “Curso de Direito Constitucional”, Carlos Blanco de Morais, Tomo 1, Editora
Coimbra, 2ª Ed, pág. 32- 34.
RJLB, Ano 1 (2015), nº 2 | 1383

Além disso, embora o direito natural não seja dotado de


coercibilidade, não significa que o mesmo não deva ser aplica-
do como norma jurídica que é. O Estado detém o monopólio do
poder de coerção, que somente será exercido para assegurar o
cumprimento do direito estatal. O direito não estatal, em regra,
não possui coercibilidade, caracterizando as denominadas ius
imperfectum, que seriam as normas nas quais não se poderia
fazer uso da força para o seu cumprimento, como seria exem-
plo o direito natural, o costume e os princípios gerais do direito
não positivados. De outro ponto, também existem normas esta-
tais não dotadas de coerção, das quais são exemplo as obriga-
ções naturais consistentes em dívida de jogo e dívidas prescri-
tas (artigos 1245 e 304, n 1, do Código Civil Português e arti-
gos 815 e 882 do Código Civil Brasileiro) e nem por isso se
discute que são normas jurídicas66.
Ademais, mesmo que o Estado tente impor o direito po-
sitivado pela força, como no regime totalitário chinês, a ausên-
cia de consenso social sobre a justiça da norma lhe retira a
obrigatoriedade, pelo que poderia deixar de ser aplicado no
caso concreto.67
Dessa forma, participação do povo no processo consti-
tuinte constitui uma exigência da concepção democrática mo-
derna, entretanto somente a sua participação, com a criação de
um órgão legitimado e o estabelecimento de um procedimento
adequado, não é suficiente para caracterizar a ordem constitu-
cional como legítima, uma vez que seria somente um aspecto
da legitimidade. Tal constatação acarreta ao questionamento
sobre a identidade entre justo e legal, no sentido de que tudo

66
in “Lições de Introdução ao Estudo do Direito”, Paulo Otero, I volume, 2º Tomo,
1999, Lisboa, página 70-71.
67
in “Normas Constitucionais Inconstitucionais?”, Otto Bachof, Traduzido por José
Manuel M. Cardozo da Costa, Ed. Atlântida, 1951, página 2. Também em “Lições
de Introdução ao Estudo do Direito”, Paulo Otero, I volume, 1º Tomo, 1998, Lisboa,
página 176-186.
1384 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 2

que a lei ordena seria justo e tudo que proíbe seria injusto. 68
As teorias do contrato social deram início ao processo
de justificação do poder, uma vez que o procedimento demo-
crático por si só não serve para legitimar a norma. O conteúdo
da norma, que seria resultado de uma decisão, também deve ser
legítimo. Segundo os defensores do jusnaturalismo, a redução
da legitimidade ao seu conceito meramente formal teria sido a
justificativa de Hitler para concentrar em si os poderes esta-
tais69. Em virtude disso, no pós-guerra, ressurge o direito natu-
ral, particularmente na Alemanha recém saída do nacional-
socialismo. Segundo Radbruch70, contra as posições positivis-
tas que defendera, haveria necessidade de um direito supra-
estatal (origem em Deus ou baseado na razão humana) que
permitisse avaliar a justiça ou injustiça das leis estatais. Nesse
sentido, após a queda do nacional-socialismo na Alemanha, a
maioria das constituições dos Estados federados e a própria Lei
Fundamental de Bona passam a adotar em seus preâmbulos a
referência a Deus como última fonte do direito71. Esses valores
68
in “Direito e Democracia – entre facticidade e validade”, Jürgen Habermas, v. II,
Tradução Flávio Beno Siebeneichler, Ed. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1997,
páginas 25- 41; 181-187. Também em “Direito Constitucional e Teoria da Constitui-
ção”, J. J. Gomes Canotilho, Ed. Almedina, 7ª Ed., página 66. Também em “Os
limites do poder constituinte e a legitimidade material da Constituição”, Luzia Mar-
ques da Silva Cabral Pinto, Boletim da Faculdade de Direito, STVDIA IVRIDICA
7, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1994, páginas 37-50. Também em
“O Império do Direito”, Ronald Dworkin, tradução Jefferson Luiz Camargo, Mar-
tins Fontes, 1999, São Paulo, pág. 217. Ronald Dworkin entende que “cada ponto de
vista deve ter voz no processo de deliberação, mas a decisão coletiva deve, não
obstante, tentar fundamentar-se em algum princípio coerente cuja influência se
estenda então aos limites naturais de sua autoridade.” (pág. 217).
69
in “Introdução à Filosofia do Direito”, Gustav Radbruch, tradução Jacy de Souza
Mendonça, 3ª Ed. 1965, pág. 94-95.
70
in “Introdução à Filosofia do Direito”, Gustav Radbruch, tradução Jacy de Souza
Mendonça, 3ª Ed. 1965, pág. 20- 37; 34- 35; 39-41; 94-95. Também citado em “Os
limites do poder constituinte e a legitimidade material da Constituição”, Luzia Mar-
ques da Silva Cabral Pinto, Boletim da Faculdade de Direito, STVDIA IVRIDICA
7, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1994, páginas 67, nota de rodapé.
71
in “Os limites do poder constituinte e a legitimidade material da Constituição”,
Luzia Marques da Silva Cabral Pinto, Boletim da Faculdade de Direito, STVDIA
RJLB, Ano 1 (2015), nº 2 | 1385

superiores seriam preexistentes ao ato constituinte, assim o


poder constituinte se limitaria a reconhecê-los e positivá-los na
constituição material.72 73
No entanto, esse pretenso direito natural baseado em
valores teológicos universais e inquestionáveis não poderia se
impor em uma sociedade democrática laica e em um mundo
com tamanha diversidade cultural e religiosa.74Dessa forma,
Peter Häberle propõe que a teoria da constituição deveria se
relacionar mais com os direitos humanos, fruto de um processo
histórico, e com o desenvolvimento do princípio da soberania
popular75. Portanto, a partir da concepção de Hans George Ga-

IVRIDICA 7, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1994, páginas 37-62.


72
in “Lições de Introdução ao Estudo do Direito”, Paulo Otero, I volume, 1º Tomo,
1998, Lisboa, pág. 169- 186.
73
Em sua obra “Que é o Terceiro Estado?”, Sieyés já defendia que o poder constitu-
inte seria limitado pelo direito natural. In “A Constituição burguesa: qu’est-ce que
Le Tier État”, Rio de Janeiro: Liber Juris, 1986, página 70 e segs.
74
Nesse sentido, Hesse menciona que “a idéia de ordem objetiva de valores suscita
mais interrogações do que aquelas a que responde”. In “Escritos de Derecho Consti-
tucional”, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1883, página 6. Também
em “Direito e Democracia – entre facticidade e validade”, Jürgen Habermas, v. II,
Tradução Flávio Beno Siebeneichler, Ed. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1997,
página 241.
Na mesma direção, Antonio Enrique Perez Luño alega que “é difícil universalizar
esta fundamentação relativamente àqueles que não crêem na transcendência ou, que,
sem excluí-la, preferem uma justificação racional e imanente para uma realidade
radicalmente humana como são os direitos humanos”. In “Derechos Humanos,
Estado de Derecho y Constituición”, Tecnus, 6ª Ed., 1999, Madrid, página 140.
Também Alexandro Passerin d’Entreves Courmayeur: “Plantear la noción del Dere-
cho Natural como estrechamente ligada a una creencia religiosa significa condenarla
por antecipado a ser rechazada por todos aquellos que no aceptan esta creencia;
significa imponer a los juristas y a los filósofos políticos una profesión de fe metafí-
sica que pueden con razón encontrar difícil (...)”. In “Critica del Derecho Natural”,
obra coletiva, Taurus, Madrid, 1966, página 198.
In “Os limites do poder constituinte e a legitimidade material da Constituição”,
Luzia Marques da Silva Cabral Pinto, Boletim da Faculdade de Direito, STVDIA
IVRIDICA 7, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1994, páginas 75-80.
In “Direito e Democracia – entre facticidade e validade”, Jürgen Habermas, v. II,
Tradução Flávio Beno Siebeneichler, Ed. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1997,
páginas 240 -242.
75
Para o autor, a concepção de direito natural conferida pelo jusnaturalismo seria
1386 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 2

damer, há uma alteração da percepção de direito natural, dife-


rente do jusnaturalismo. Segundo Gadamer, a hermenêutica
jurídica seria uma interpretação- aplicação do direito baseado
em uma pré-compreensão, sendo esta última resultado de uma
relação do intérprete com o processo histórico do qual faz par-
te76. Desta feita, o direito natural seria produto de um processo
histórico, social e cultural da humanidade. Não mais seria uma
lei moral prefixada por Deus ou pela natureza humana, em uma
ordem de valores que o homem tivesse que aceitar, como de-
fendiam os jusnaturalistas. O direito natural passaria a ser cria-
do pelo próprio homem, de acordo com sua interação com o
mundo, pelo que o constituinte tão somente concretizaria prin-
cípios preexistentes e ordenadores da prática comunitária.77De

plúrima e contraditória. Nesse sentido, “a teoria e a prática constitucionais de uma


comunidade política devem, para justificar determinada posição, desenvolver, sem
recurso ao direito natural, autonomamente, argumentos, fundamentos, princípios
materiais e processuais, princípios constitucionais”. Citado em “Os limites do poder
constituinte e a legitimidade material da Constituição”, Luzia Marques da Silva
Cabral Pinto, Boletim da Faculdade de Direito, STVDIA IVRIDICA 7, Universida-
de de Coimbra, Coimbra Editora, 1994, página 80. Também em “De la soberanía al
derecho constitucional común: palabras clave para un diálogo europeo-
latinoamericano”, Peter Haberle, tradução Héctor Fix- Fierro, Universidad Nacional
Autónoma de México, 2011, série Ensayos Jurídicos - núm 12.
Nesse sentido, Peter Haberle: “A democracia do cidadão está muito próxima da idéia
que concebe a democracia a partir dos direitos fundamentais e não a partir da con-
cepção segundo o qual o povo soberano limita-se apenas a assumir o lugar do mo-
narca.” (página 38). In “Hermenêutica Constitucional – A sociedade aberta dos
intérpretes da Constituição: contribuição para interpretação pluralista e ‘procedimen-
tal’ da Constituição”, Peter Haberle, Tradução Gilmar Ferreira Mendes, Sergio
Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2002, páginas 36- 40.
76
Nesse sentido o autor menciona que “A forma lingüistica e o conteúdo da tradição
não podem ser separados na experiência hermenêutica.” (página 640). In “Verdade e
Método – traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica”, Hans- Georg Ga-
damer, Tradução Flávio Paulo Meurer e Ênio Paulo Giachini, Ed. Vozes, 3ª Ed.,
Petrópolis, 1999, páginas 123- 131; 636-662.
77
in “Direito e Democracia – entre facticidade e validade”, Jürgen Habermas, v. II,
Tradução Flávio Beno Siebeneichler, Ed. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1997,
páginas 193- 247. Também em “Os limites do poder constituinte e a legitimidade
material da Constituição”, Luzia Marques da Silva Cabral Pinto, Boletim da Facul-
dade de Direito, STVDIA IVRIDICA 7, Universidade de Coimbra, Coimbra Edito-
ra, 1994, páginas 81-86. Também em “Normas Constitucionais Inconstitucionais?”,
RJLB, Ano 1 (2015), nº 2 | 1387

outro ponto, partindo-se da sua teoria de direito como integri-


dade e de que toda norma seria reconduzida a um fundamento
moral, Dworkin defende que essa ordem objetiva de valores
seria decorrente de tradição democrática americana78.
Decorrente ainda da concepção de Gadamer surge a ju-
risprudência de valorações, que seria uma interpretação ou atu-
alização do texto do passado nas condições do presente. Não
haveria uma realidade de sentido definitivamente dada, haveria
uma constante mobilidade da história humana. Em desfavor do
positivismo encamparia a dimensão axiológica do jurídico, ao
passo que ao jusnaturalismo oporia a dimensão histórica, carac-
terizada como a história institucional, cultural e normativa de
uma dada comunidade. Segundo Karl Larenz, algumas normas
de direito natural resistiriam ao tempo e seriam indiferentes às
culturas, como o pacta sunt servanda; já outras estão em cons-
tante modificação, de acordo com o momento histórico e a cul-
tura da sociedade, podendo- se caracterizar como um direito
natural de conteúdo variável.79

Otto Bachof, Traduzido por José Manuel M. Cardozo da Costa, Ed. Atlântida, 1951,
página 40-48. Nesse sentido em “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, J.
J. Gomes Canotilho, Ed. Almedina, 7ª Ed., página 66; 81-82. Também em “Direitos
Fundamentais: introdução geral”, José Melo Alexandrino, 2º Ed, Principia, pág.16.
Também em “Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, José
Carlos Vieira Andrade, 5ª Ed., Ed. Almedina, 2012, pág. 49. Também em “Pensa-
mento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito”, Claus- Wilhem
Canaris, 5ª Ed., Editora Fundação Calouste Gulbenkian, tradução A. Menezes Cor-
deiro, págs.196.
78
Dworkin entende que: “Segundo o direito como integridade, as proposições jurí-
dicas são verdadeiras se constam, ou se derivam, dos princípios de justiça, equidade
e do devido processo legal que oferecem a melhor interpretação construtiva da práti-
ca jurídica da comunidade.” (pág. 272). Ainda segundo Dworkin, “A história é
importante porque esse sistema de princípios deve justificar tanto o status quanto o
conteúdo das decisões anteriores” (pág. 274). In “O império do direito”, Ronald
Dworkin, tradução Jefferson Luiz Camargo, Martins Fontes, São Paulo, 1999, pág.
272-275.
79
Conforme Karl Larenz, a jurisprudência de valoração estaria baseada “nas insti-
tuições e nas formas de vida em comum”. Nesse sentido, haveria uma aproximação
com o institucionalismo. In “Metodologia da Ciência do Direito”, Fundação Calous-
te Gulbenkian, Lisboa, página 153 e segs. Também em “Os limites do poder consti-
1388 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 2

Portanto, a constituição nasce da vontade popular, no


entanto não se pode admitir que dessa vontade seja elaborada
qualquer norma jurídica. Ao ser conferido um mandado ao re-
presentante do povo para elaboração da constituição, esse po-
der exercido pela Assembléia Constituinte não pode ser utiliza-
do contra o mandante (povo), tendo em vista que no exercício
do poder constituinte delegado pelo povo deve ser respeitada a
pessoa humana. Assim, torna-se necessária a legitimação mate-
rial do direito tendo como embasamento o próprio ser humano,
cujo processo histórico cultural, social e político não pode ser
desconsiderados pelo direito. 80
A constituição ideal seria aquela em que fosse assegu-
rado um procedimento político justo com a aprovação de nor-
mas igualmente justas. Para tanto, Habermas propõe uma teoria
de legitimidade baseada no consenso racional em torno de inte-
resses universalizáveis. Esse consenso seria o critério de ver-
dade e de justiça, assim, os valores universais seriam fruto de
um processo histórico consistente nos direitos humanos, sendo

tuinte e a legitimidade material da Constituição”, Luzia Marques da Silva Cabral


Pinto, Boletim da Faculdade de Direito, STVDIA IVRIDICA 7, Universidade de
Coimbra, Coimbra Editora, 1994, páginas 81-97.
80
in “Direito e Democracia – entre facticidade e validade”, Jürgen Habermas, v. II,
Tradução Flávio Beno Siebeneichler, Ed. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1997,
páginas 193- 247. Também em “Os limites do poder constituinte e a legitimidade
material da Constituição”, Luzia Marques da Silva Cabral Pinto, Boletim da Facul-
dade de Direito, STVDIA IVRIDICA 7, Universidade de Coimbra, Coimbra Edito-
ra, 1994, páginas 81-97. Também em “Normas Constitucionais Inconstitucionais?”,
Otto Bachof, Traduzido por José Manuel M. Cardozo da Costa, Ed. Atlântida, 1951,
página 40-48. Nesse sentido em “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, J.
J. Gomes Canotilho, Ed. Almedina, 7ª Ed., página 66; 81-82. Também em “Teoria
dos direitos fundamentais”, Robert Alexy, tradução Virgílio Afonso da Silva, Ed.
Melheiros, 2008, página 144- 179; 543-544. Também em “Direitos Fundamentais:
introdução geral”, José Melo Alexandrino, 2º Ed, Principia, pág. 16-20. Também em
“Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, José Carlos Vieira
Andrade, 5ª Ed., Ed. Almedina, 2012, pág. 49. Também em “A Recepção da Decla-
ração dos Direitos do Homem pela Constituição Portuguesa. Um fenômeno de con-
jugação de direito internacional e direito constitucional”, Jorge Miranda, Revista de
Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 199, págs. 1-20, jan./mar, 1995.
RJLB, Ano 1 (2015), nº 2 | 1389

estes a fonte de inspiração e medida de todas as instituições


jurídico-políticas81 82. Os direitos humanos, então, seriam o
fundamento de legitimidade do Estado no exercício de seu po-
der, nos termos dos artigos 4º e 5º da Declaração e Programa
de Ação de Viena.
Com efeito, o poder constituinte legítimo deve estar ba-
seado nos direitos da pessoa humana, uma vez que são os indi-
víduos a causa e a finalidade de toda a organização política. Os
direitos humanos seriam valores que teriam uma comprovação
histórica social da humanidade, sem a pretensão de serem eter-
nos e absolutos, como no jusnaturalismo. De outro ponto, os
direitos humanos conferem uma universalidade e objetividade
aos valores, nos termos dos artigos 1º e 32 da Declaração e
Programa de Ação de Viena. Logo, a ordem constitucional será
mais legítima na medida em que for fonte de maior garantia
dos direitos humanos, consubstanciados no princípio da digni-
dade da pessoa humana.83Um Estado certamente poderá des-
respeitar tais postulados de justiça e impor o desrespeito pelo
uso da força, no entanto, a ausência de consenso social retira

81
in “Direito e Democracia – entre facticidade e validade”, Jürgen Habermas, v. II,
Tradução Flávio Beno Siebeneichler, Ed. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1997,
páginas 193- 247. Também em “Teoria dos direitos fundamentais”, Robert Alexy,
tradução Virgílio Afonso da Silva, Ed. Melheiros, 2008, página 144- 179; 543-544.
Também em “Os limites do poder constituinte e a legitimidade material da Consti-
tuição”, Luzia Marques da Silva Cabral Pinto, Boletim da Faculdade de Direito,
STVDIA IVRIDICA 7, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1994, páginas
139-152. Também em “Una metateoría del positivismo jurídico”, Roberto M. Jimé-
nez Cano, Ed. Marcial Pons, Madrid, 2008, pág. 95.
82
Não se pode negar que existe um consenso sobre os direitos humanos, notadamen-
te a dignidade do homem, da proteção da vida humana, a proibição da degradação
do homem, do livre desenvolvimento da personalidade e da proibição do arbítrio. In
“Normas Constitucionais Inconstitucionais?”, Otto Bachof, Traduzido por José
Manuel M. Cardozo da Costa, Ed. Atlântida, 1951, página 2.
83
in “Teoria dos direitos fundamentais”, Robert Alexy, tradução Virgílio Afonso da
Silva, Ed. Melheiros, 2008, página 144- 179; 543-544. Também em “Os limites do
poder constituinte e a legitimidade material da Constituição”, Luzia Marques da
Silva Cabral Pinto, Boletim da Faculdade de Direito, STVDIA IVRIDICA 7, Uni-
versidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1994, páginas 139-152.
1390 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 2

toda a legitimidade do direito positivado e, por conseqüência,


sua obrigatoriedade.84
Nesse sentido, a democracia e o respeito aos direitos
humanos são interdependentes e reforçam-se mutuamente, con-
forme prevê o artigo 8º da Declaração e Programa de Ação de
Viena85. Ressalte-se, no entanto, que democracia tem como
fonte a dignidade da pessoa humana (artigo 1º da CFP e artigo
1º da CFRB), disto resulta que não seria possível à maioria
violar direitos de minoria sob o fundamento de se estar cum-
prindo a vontade popular.86O princípio da dignidade da pessoa
humana confere sentido à idéia de direito justo e confere limi-
tes a própria vontade popular. O critério da maioria legitima o
poder para tomar decisões políticas, entretanto existem áreas
do Direito que estão imunes às opções políticas, assim as deci-
sões pela maioria são uma forma legítima de decisão, mas não
um fundamento de justiça.87 Disso resulta que, embora a de-
mocracia seja essencial à legitimidade formal da Constituição,
somente com a obediência aos direitos humanos se estará ga-
rantida a legitimidade material constitucional. Em conclusão,
os valores consubstanciados nos direitos humanos constituem
limites ao poder constituinte, denominados por Jorge Miranda
de limites transcendentes.
84
in “Normas Constitucionais Inconstitucionais?”, Otto Bachof, Traduzido por José
Manuel M. Cardozo da Costa, Ed. Atlântida, 1951, página 2.
85
“8. A democracia, o desenvolvimento e o respeito pelos Direitos Humanos e pelas
liberdades fundamentais são interdependentes e reforçam-se mutuamente. A demo-
cracia assenta no desejo livremente expresso dos povos em determinar os seus pró-
prios sistemas políticos, econômicos, sociais e culturais e a sua participação plena
em todos os aspectos das suas vidas. Neste contexto, a promoção e a proteção dos
Direitos Humanos e das liberdades fundamentais, a nível nacional e internacional,
devem ser universais e conduzidas sem restrições adicionais. A comunidade interna-
cional deverá apoiar o reforço e a promoção da democracia, do desenvolvimento e
do respeito pelos Direitos Humanos e pelas liberdades fundamentais no mundo
inteiro.”
86
in “Direitos fundamentais e Justiça Constitucional em Estado de Direito Democrá-
tico”, Jorge Reis Novais, Coimbra Editora, 2012, páginas 37-64.
87
in “Lições de Introdução ao Estudo do Direito”, Paulo Otero, I volume, 1º Tomo,
1999, Lisboa, página 112-113.
RJLB, Ano 1 (2015), nº 2 | 1391

6.2) LIMITES HETERÔNOMOS

Os limites heterônomos constituem imposições de ou-


tros ordenamentos jurídicos, internos ou externos. Dessa forma,
configurariam três espécies: o direito internacional de caráter
geral e obrigatório; o direito internacional de caráter especial; e
o de direito interno. Incidiria sobre o poder constituinte formal
e poder constituinte material88.

6.2.1) LIMITES HETERÔNOMOS IMPOSTOS PELO DI-


REITO INTERNACIONAL

Os limites impostos pelo direito internacional de caráter


geral seriam aqueles consubstanciados no jus cogens. Nos ter-
mos do artigo 53 da Convenção de Viena, o jus cogens seria o
conjunto de normas cogentes e gerais, responsáveis pela estru-
turação, funcionamento e subsistência da ordem pública inter-
nacional e, sendo reconhecidas pelos Estados, assumiria uma
posição hierárquica superior em relação às demais normas de
direito internacional público. Seriam constituídos por princí-
pios, costumes e tratados internacionais, que seriam padrão de
validade para as demais normas internacionais. Exemplos de
jus congens teriam previsão na Carta das Nações Unidas, na
Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Convenção
de Viena sobre Direito dos Tratados; nestes Diplomas Interna-
cionais estariam consagrados os direitos humanos, a dignidade
da pessoa humana, a igualdade entre os povos, a igualdade so-
berana e independência dos Estados, a não ingerência em as-
suntos internos e a proibição do emprego da força89.
Segundo Jorge Miranda, os princípios de jus cogens ex-
88
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 137-138.
89
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 58.
1392 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 2

primem uma “consciência jurídica universal no presente perío-


do histórico”. Através deles, os Estados estariam vinculados
externa e internamente. A vinculação interna, prossegue o Ilus-
tre Professor, condicionaria a legitimidade da constituição90,
mas nunca sua inconstitucionalidade91. Assim, a observância
do jus cogens não poderia ser afastada pelo Estado que deseje
integrar a comunidade internacional.
Já os limites de direito internacional de caráter especial
seriam imposições de normas internacionais, as quais o Estado
voluntariamente aderiu. Haveria limitação do poder constituin-
te em função de obrigações assumidas pelo Estado perante ou-
tros Estados ou organismos internacionais. São exemplos: ga-
rantias de direitos de minorias nacionais e lingüísticas impostas
a certos Estados nos tratados elaborados após as duas grandes
guerras; o Tratado de Saint Germain que obrigou a Áustria de
se abster de qualquer ato que pudesse afetar sua independência;
proibição de restauração dos Habsburgos na Hungria, após
1918; Tratado celebrado na Suécia que impôs à Finlândia o
dever de garantia dos direitos da população da ilhas de Alân-
dia; estatuto de neutralidade da Áustria desde 1955; Acordos
de Zurique de 1960 sobre a dupla garantia dos direitos das co-
munidades grega e turca em Chipre.92
Nestes termos, o artigo 27 da Convenção de Viena so-
bre Direito de Tratados, ao dispor sobre o pacta sunt servanda,
dispõe que o Estado não poderia descumprir suas obrigações
firmadas em tratados internacionais sob a justificativa de que
as mesmas estariam em desacordo com sua ordem jurídica in-
terna. Da mesma forma, o artigo 26 da mencionada Convenção
prevê o princípio da boa-fé, impondo ao Estado o dever de in-

90
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 58.
91
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 3 ed. Coimbra, tomo IV,
pág. 160-162.
92
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 137-138.
RJLB, Ano 1 (2015), nº 2 | 1393

corporar o tratado a sua ordem jurídica interna quando o subs-


crever. Portanto, poderia se concluir que o poder constituinte
estaria limitado pelas obrigações assumidas pelo Estado no
plano internacional.
Entretanto, não se pode admitir a existência de limites
baseados em normas internacionais, uma vez que estas somente
seriam dirigidas a ordem jurídica externa, pelo que não estabe-
leceria limitações à Constituição do Estado. Tais normas seri-
am parâmetro de validade somente em âmbito internacional e
internamente estariam sujeitas ao controle de constitucionali-
dade, assim, haveria somente efeitos jurídicos externos, como a
sanção política ao Estado pelo descumprimento do Tratado
Internacional e sua responsabilização internacional93.
Segundo Paulo Otero, os Tratados Internacionais seriam
espécie de normas ius imperfectum numa dupla qualidade, uma
vez não seriam dotados de coerção a nível interno nem perante
a comunidade internacional. O ius imperfectum não decorre da
imperfeição da norma, mas da força do seu cumprimento. As-
sim, o descumprimento pelo Estado de uma norma de direito
internacional não acarretaria maiores conseqüências jurídicas,
uma vez que o Estado deteria o monopólio do uso da coerção
em âmbito interno, não havendo meios de se obrigar o Estado
ao cumprimento da norma internacional dentro do seu territó-
rio.94
Somente quando os Tratados Internacionais refletirem
direitos supraconstitucionais, consubstanciados em valores
relativos aos direitos humanos, haveria a imposição de limites
ao poder constituinte. Tais direitos supraconstitucionais pode-
93
in “Curso de Direito Constitucional”, Carlos Blanco de Morais, Tomo 1, Editora
Coimbra, 2ª Ed, pág. 37-39.
94
in “Lições de Introdução ao Estudo do Direito”, Paulo Otero, I volume, 2º Tomo,
1999, Lisboa, página 72-75. Nesse sentido já defendia Max Weber: “al derecho
internacional se le ha disputado renovadamente su calidad de derecho por carecer de
um poder coativo supraestatal”. In “Economia y Sociedade – esbozo de sociología
compresiva”, Max Weber, tradução José Medina Echavarría e outros, Fondo de
Cultura Economica, Mexico, 1996, 2ª Ed, 10ª reimpressão, página 28.
1394 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 2

riam estar previstos em normas jus cogens e limitariam o poder


constituinte não por se tratar de norma internacional, mas por
serem correspondentes a valores superiores decorrentes da
consciência jurídica universal.

6.2.2) TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS


HUMANOS

No âmbito do direito internacional, muito se debate so-


bre a incorporação dos Tratados Internacionais no ordenamento
jurídico interno de cada Estado. Haveria uma vertente denomi-
nada monista que pregaria a existência de uma só ordem jurídi-
ca, no qual os tratados seriam incorporados automaticamente
ao direito interno, sem necessidade de procedimento de incor-
poração. A teoria monista se subdivide em monismo com pri-
mazia no direito interno e monismo com prevalência do direito
internacional. De outro lado, o dualismo defende a existência
de duas ordens jurídicas diversas, uma interna e outra externa,
na qual a incorporação do tratado internacional na ordem inter-
na depende de um procedimento de incorporação legislativo ou
de ratificação da norma internacional.
Embora haja esta discussão no âmbito do direito inter-
nacional, a opção pelo monismo, pelo dualismo ou por um sis-
tema misto fica a cargo da Constituição de cada Estado. A
Constituição portuguesa prevê a incorporação automática do
direito internacional geral ou comum (artigo 8º, item 1), ao
passo que o direito internacional particular, qual seja, o con-
vencional, a incorporação seria de forma automática condicio-
nada sua eficácia interna à publicação oficial (artigo 8º, item
2). Por fim, a Constituição Portuguesa incorporou expressa-
mente a Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo
16, n 2) ao seu ordenamento jurídico. No Brasil, a Constituição
Federal dispõe que a incorporação dos tratados internacionais
na ordem jurídica interna depende da autorização do Congresso
RJLB, Ano 1 (2015), nº 2 | 1395

Nacional (artigo 49, inciso I); salvo quanto aos tratados sobre
direitos humanos, em que a incorporação seria automática em
razão da cláusula de abertura prevista no artigo 5º, parágrafo
2º.
Quanto à posição hierárquica ocupada pelos tratados in-
ternacionais na ordem jurídica interna, também deverá a solu-
ção ser dada pela Constituição de cada Estado. Sendo silente a
constituição, haveria quatro posições quanto à hierarquia dos
tratados internacionais na ordem interna: mesmo valor das
normas constitucionais; natureza supralegal do tratado, na qual
estaria hierarquicamente abaixo da constituição mas acima das
leis ordinárias; mesma hierarquia das leis ordinárias; por fim,
natureza supraconstitucional.95
A constituição alemã, em seu artigo 25º, dispõe sobre a
incorporação automática dos tratados de direito internacional
geral, aduzindo que teriam natureza supralegal. Já a constitui-
ção da Holanda prevê a natureza supraconstitucional de normas
de direito internacional, pelo que seria superior hierarquica-
mente à constituição.96 No Brasil, a jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal entende que os Tratados Internacionais de
Direitos Humanos teriam hierarquia normativa supralegal. Já
quando fosse observado o procedimento previsto no artigo 5º,
parágrafo 3º da Constituição, teriam natureza de norma consti-
tucional97. Por fim, quando se tratasse de Tratados Internacio-
nais que não versassem sobre direitos humanos, estes teriam o
mesmo valor das leis ordinárias.
Em Portugal, em virtude da norma do artigo 16, item 2,
da Constituição, há divergência quanto à hierarquia interna da
Declaração Universal dos Direitos do Homem. Tal artigo teria
a função de clarificar e alargar o catálogo dos direitos funda-
95
in “Direito Constitucional e teoria da Constituição”, 7ª Ed., Ed. Almedina, J.J.
Gomes Canotilho, pág. 820
96
in “Direito Constitucional e teoria da Constituição”, 7ª Ed., Ed. Almedina, J.J.
Gomes Canotilho, pág. 820.
97
in HC n 96772/SP, julgado em 09/06/1999, relator Ministro Celso de Mello.
1396 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 2

mentais, reforçando sua tutela e o universalismo dos direitos


humanos. A referida norma impõe que os preceitos constituci-
onais e legais relativos a direitos fundamentais sejam interpre-
tados em consonância com a Declaração Universal dos Direitos
do Homem98. Assim, em matéria de direitos fundamentais ha-
veria uma auto- subordinação da Constituição Portuguesa, na
qual o referido Diploma Internacional integraria a própria cons-
tituição formal99.
Afonso Queiró e Paulo Otero possuem o entendimento
de que a mencionada norma internacional teria status de impe-
dir a aplicação das normas constitucionais que lhe fossem con-
trárias. Afonso Queiró entende que seria uma auto- limitação
do poder constituinte.100 O entendimento de Paulo Otero seria
de que a Declaração Universal dos Direitos do Homem teria
valor supraconstitucional. Admitindo a existência de hierarquia
entre normas constitucionais, Paulo Otero entende que o confli-
to entre normas da Declaração Universal dos Direitos do Ho-
mem e a constituição formal deveria se resolver em favor do
primeiro, que teria valor supraconstitucional. Segundo o autor,
o princípio da unidade normativa da constituição não seria
aplicável, uma vez que este somente incidiria entre normas de
igual hierarquia, mas não entre normas de hierarquia distinta
como seria o caso da Declaração Universal dos Direitos do
Homem e a constituição formal. Conclui, dessa forma, que
98
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 3 ed. Coimbra, tomo IV,
pág. 160-162.
99
in “Declaração Universal dos Direitos do Homem e Constituição: a inconstitucio-
nalidade de normas constitucionais”, Paulo Otero, O Direito, 1990, III-IV, p. 613-
614.
100
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6ª ed. Coimbra, tomo II,
pág. 40-41. Também em “Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Consti-
tuição: A Inconstitucionalidade das Normas Constitucionais”, Paulo Otero, O Direi-
to, Lisboa, jul- dez 1990, ano 122º III-IV, página 603-619. Também em “A Recep-
ção da Declaração dos Direitos do Homem pela Constituição Portuguesa. Um
fenômeno de conjugação de direito internacional e direito constitucional”, Jorge
Miranda, Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 199, p. 1-20,
jan./mar.
RJLB, Ano 1 (2015), nº 2 | 1397

haveria a possibilidade da existência de normas constitucionais


inconstitucionais101.
Em contrapartida, Jorge Miranda ensina que deve ser
interpretado sistematicamente o artigo 16º, n 2 da Constituição
Portuguesa. Dessa forma, deveria se diferenciar se seria norma
constitucional originária ou derivada, bem como se seria jus
cogens ou não. Caso se tratasse de jus cogens, haveria determi-
nação da ilegitimidade da norma constitucional contrária. No
caso de colisão com norma que não seja jus cogens, deve ser
entendido a norma constitucional como norma excepcional,
pelo que haveria uma não aplicação da Declaração Universal
dos Direitos do Homem nessa parte. Prossegue o autor afir-
mando que, em se tratando de norma proveniente de revisão,
haveria a pecha de inconstitucionalidade, pois o poder constitu-
ído deveria se submeter aos princípios constitucionais, con-
substanciados na Declaração Universal dos Direitos do Ho-
mem, nos termos do artigo 16, n 2 da Constituição Portuguesa.
Nesse sentido a Declaração Universal dos Direitos do Homem
poderia determinar a inconstitucionalidade das normas consti-
tucionais de revisão, mas não das normas constitucionais origi-
nárias.102
Frente ao princípio da unidade hierárquico normativa da
constituição, não seria possível acolher a tese da inconstitucio-
nalidade de norma constitucional originária contrária à Decla-
ração Universal do Direito dos Homens. Não se trata de nor-
mas de hierarquia diferentes, como defende Paulo Otero, uma
vez que seria o artigo 16, n 2 que conferiria status constitucio-
nal a referida norma internacional. Assim, o artigo 16, n 2, de-
101
in “Declaração Universal dos Direitos do Homem e Constituição: a inconstituci-
onalidade de normas constitucionais”, Paulo Otero, O Direito, 1990, III-IV, p. 613-
614.
102
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 3ª ed. Coimbra, tomo IV,
pág. 160-162. Também em “A Recepção da Declaração dos Direitos do Homem
pela Constituição Portuguesa. Um fenômeno de conjugação de direito internacional
e direito constitucional”, Jorge Miranda, Revista de Direito Administrativo. Rio de
Janeiro, n. 199, p. 1-20, jan./mar.
1398 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 2

ve ser interpretado sistematicamente com as demais normas


constitucionais, de forma a conferir harmonia ao sistema jurí-
dico. A ilegitimidade da norma constitucional ocorreria desde
que a norma prevista na Declaração Universal do Direito dos
Homens correspondesse a algum valor ético superior decorren-
te da consciência universal, caso em que seria aplicada a tese
dos limites transcendentes. 103

6.2.3) DIREITO COMUNITÁRIO

O artigo 7º, n 6, da Constituição Portuguesa permite,


observada determinadas condições previstas na norma, apro-
fundar o pacto da união européia. Trata-se de norma constitu-
cional autorizativa que permite a pactuação desses acordos
internacionais. Assim, se submetem ao mesmo regime de re-
cepção de todas as convenções internacionais, previsto no arti-
go 8º, n 2, e estão sujeitos ao Juízo de Constitucionalidade.104
Em sentido contrário, Gomes Canotilho possui enten-
dimento pela prevalência do direito comunitário sobre o direito
interno, inclusive sobre a Constituição. Sustenta o autor que a
formulação dos tratados e a maior associação dos Estados
constituiria um processo constituinte com repercussão na or-
dem interna. Esse processo constituinte obrigaria a modifica-
ções formais e a revisões não convencionais na Constituição do
Estado membro. O Ilustre Professor alega que essa primazia do
direito comunitário não implicaria a nulidade da norma consti-
tucional, mas sim sua inaplicabilidade no caso concreto.105
103
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 3ª ed. Coimbra, tomo IV,
pág. 160-162.
105
in “Direito Constitucional e teoria da Constituição”, 7ª Ed., Ed. Almedina, J.J.
Gomes Canotilho, pág. 826. Segundo o autor desde o caso van Gen en Loos, julgado
em 5 de fevereiro de 1963, o Tribunal de Justiça das Comunidades reconheceu a
aplicabilidade direta dos tratados comunitários na ordem jurídica dos Estados mem-
bros. Nos casos Costa/Enel de julho de 1964, Internacionale Handelsgesellschaft de
dezembro de 1970, Simmenthal de março de 1978 e Foto – Frost de outubro de
RJLB, Ano 1 (2015), nº 2 | 1399

A Corte de Justiça das Comunidades Européias tem o


mesmo entendimento de que as normas comunitárias teriam
primazia frente às constituições dos Estados. Assim, o julgador
deveria deixar de aplicar a legislação interna que estivesse em
confronto com a norma comunitária.106 Tal supremacia não
resultaria de nenhum tratado, mas da interpretação conferida
pelo Tribunal Comunitário, em que este considera a Comuni-
dade Européia como um Estado Federal em processo de forma-
ção e os Tratados Comunitários como uma Constituição. Dessa
forma, o Tribunal Comunitário poderia analisar a legitimidade
das normas do ordenamento interno com base nas normas co-
munitárias.107
Tal entendimento ganhou força com a elaboração do
Tratado Constitucional Europeu. Tal tratado prevê a suprema-
cia do direito da União Européia sobre o direito dos Estados
(artigo I-6º); a criação de órgãos típicos de uma federação; e a
divisão de competências legislativas como se tratasse de um
Estado Federal. Tal entendimento pressuporia a existência de
um poder constituinte europeu e a limitação do poder constitu-
inte a ser exercido nos Estados membros. O poder constituinte
dos Estados Membros deixaria de ser soberano e seria asseme-
lhado ao poder constituinte derivado, próprio dos Estados que
compõe uma Federação. No entanto, com a rejeição do Tratado
pela França e pela Holanda, há um bloqueio desse processo.108
Não merece acolhimento o entendimento da supremacia
dos tratados comunitários sobre as normas internas. Primeiro, a
natureza jurídica das normas comunitárias seria de Tratado
Internacional, que em muito se diferenciaria de uma Constitui-

1987, a referida corte tem sustentado a supremacia do direito comunitário sobre o


direito interno.
106
in “Direito Constitucional e teoria da Constituição”, 7ª Ed., Ed. Almedina, J.J.
Gomes Canotilho, pág. 828.
107
in “Curso de Direito Constitucional”, Carlos Blanco de Morais, Tomo 1, Editora
Coimbra, 2ª Ed, pág. 41.
108
in “Curso de Direito Constitucional”, Carlos Blanco de Morais, Tomo 1, Editora
Coimbra, 2ª Ed, pág. 42.
1400 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 2

ção. Aquele tem por finalidade fundar e regular relação jurídica


entre Estados, já a constituição tem como objetivo regular as
estruturas de poder e os direitos dos cidadãos.109
Segundo, todas as normas do direito comunitário neces-
sitam do consentimento do Estado para ter vigência interna.
Caso se tratasse de uma constituição, não haveria necessidade
de manifestação de consentimento. Não há soberania da comu-
nidade, mas tão somente delegação de poder pelos Estados
membros, que podem revogá-la ou modificá-la a qualquer
momento.110
Terceiro, a idéia de constituição traz ínsita a idéia de
território e de povo, com identidade cultural, ausentes na co-
munidade européia. Exemplos de não unidade cultural podem
ser lembrados com a existência de diferentes moedas na Dina-
marca e no Reino Unido. A constituição constitui o exercício
do poder constituinte pelo povo, sendo certo que a Comunidade
Européia não possui povo, mas tão somente é formada por vá-
rias Nações.111
Dessa forma, os Tratados Comunitários não possuem
natureza constitucional e não constituem limites ao poder cons-
tituinte dos Estados que fazem parte da União Européia.

6.2.4) LIMITES HETERÔNOMOS DE DIREITO INTERNO

Os limites de direito interno seriam típicos de unidades


federativas. Através do pacto federativo seria formada a fede-
ração, na qual acarretaria direitos e obrigações recíprocas entre
o ente central e os Estados federados. Entre estas obrigações,
deve ser assegurada a existência do Estado federado e sua par-

109
in “Curso de Direito Constitucional”, Carlos Blanco de Morais, Tomo 1, Editora
Coimbra, 2ª Ed, pág. 44.
110
in “Curso de Direito Constitucional”, Carlos Blanco de Morais, Tomo 1, Editora
Coimbra, 2ª Ed, pág. 45.
111
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 62-64.
RJLB, Ano 1 (2015), nº 2 | 1401

ticipação na formação de vontade da unidade federada. De ou-


tro ponto, deve o Estado federado reconhecer e subordinar-se
ao poder central. Portanto, o poder constituinte deve obediência
aos imperativos do pacto federativo. 112
Entretanto, na verdade, não se trata de um limite ao po-
der constituinte, uma vez que é um efeito que decorre da deci-
são política de se adotar um modelo Federal de Estado. O po-
der constituinte poderia optar por qualquer forma de Estado e,
sendo adotada uma forma de organização do Estado, efeitos
decorreriam naturalmente dessa escolha.

6.3) LIMITES IMANENTES

Esses limites incidem somente sobre o poder constituin-


te formal e são representados pela própria identidade e configu-
ração do Estado, segundo o momento histórico e a concepção
proposta pelo constituinte material. Nesse sentido, o poder
constituinte formal deve se ater a sua origem e sua finalidade
ao decretar normas com forma e força jurídicas constitucionais,
ou seja, o poder constituinte não poderia desrespeitar as reali-
dades inseparáveis do Estado de onde provém. Tais limites
estariam ligados à soberania do Estado, à forma de Estado e à
legitimação política.113
Segundo Jorge Miranda, não se concebe que um Estado
soberano, que deseja continuar a sê-lo, tenha sua soberania
eliminada por força do poder constituinte formal. Da mesma
forma, um Estado Federal não poderia ser transformado em um
Estado Unitário por obra do poder constituinte formal, sem que
essa fosse a concepção proposta pelo poder constituinte materi-
al. Ademais, um Estado democrático não poderia transformar-
se em autoritário. Seria a necessária correspondência do poder
112
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 138.
113
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 136.
1402 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 2

constituinte formal com o poder constituinte material, em um


dado momento e em um Estado em concreto.114
Carlos Blanco de Morais critica a existência desse limi-
te sob o fundamento de que a prática constitucional estaria re-
pleta de casos em que o poder constituinte teria contrariado a
identidade primitiva do Estado. Como exemplo, cita a extinção
da antiga RDA (Alemanha Oriental) e a sua fusão na República
Federal da Alemanha115. Ademais, na medida em que tais prin-
cípios constitutivos do Estado não tenham caráter supraconsti-
tucional, restaria á livre disposição do poder constituinte, so-
mente poderia se impor ao poder constituído. Citando o exem-
plo da transformação do Estado Federal em Estado unitário,
Otto Bachof aduz que não constituiria limite ao poder constitu-
inte116.

7) NORMAS CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIO-


NAIS E LIMITES AO PODER CONSTITUINTE

Uma questão que suscita discussão seria a existência de


normas constitucionais originárias taxadas de inconstitucionais.
Embora a quase unanimidade da doutrina entenda pela impos-
sibilidade da existência de normas constitucionais inconstituci-
onais, frente ao princípio da unidade hierárquico- normativa
constitucional, o ensinamento de Otto Bachof mostra-se de
fundamental importância para o presente estudo. Ao afirmar a
existência de normas constitucionais inconstitucionais, indire-
tamente o autor admite a existência de limites ao poder consti-
tuinte.
Segundo Otto Bachof, a validade de uma Constituição

114
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 137.
115
in “Curso de Direito Constitucional”, Carlos Blanco de Morais, Tomo 1, Editora
Coimbra, 2ª Ed, pág. 35.
116
in “Normas Constitucionais Inconstitucionais?”, Otto Bachof, Traduzido por José
Manuel M. Cardozo da Costa, Ed. Atlântida, 1951, página 64.
RJLB, Ano 1 (2015), nº 2 | 1403

compreenderia a legitimidade no aspecto de positividade (exis-


tência como plano e expressão de um poder efetivo) e obrigato-
riedade (vinculação dos destinatários da norma). Assim, con-
clui que a violação do direito supra- estatal pelo poder constitu-
inte acarretaria a falta de legitimidade e, como conseqüência, a
invalidade de normas constitucionais originárias117. Para tanto,
parte da distinção entre constituição formal e constituição ma-
terial para fundamentar a inconstitucionalidade de normas
constitucionais originárias. O autor defende a inconstituciona-
lidade de normas constitucionais tendo como parâmetro a cons-
tituição escrita, como também tendo como referência a consti-
tuição material não escrita.
Tendo como base a violação da constituição material
não escrita, o autor discorre sobre a possibilidade de três tipos
de inconstitucionalidade: por infração de direito supraconstitu-
cional não positivado; por infração de direito constitucional
consuetudinário; e por violação dos princípios constitutivos
não escritos do sentido da constituição. Nestes dois últimos
casos, conclui que não haveria ou que seria de difícil ocorrên-
cia a inconstitucionalidade de normas constitucionais. No en-
tanto, quanto ao direito supraconstitucional não escrito, o juris-
ta admite a possibilidade de ser utilizado como parâmetro de
validade para as normas constitucionais, sob o argumento de
que o direito supraconstitucional seria imanente a toda ordem
constitucional que se pretenda vinculativa e de que a sua viola-
ção acarretaria a ausência de obrigatoriedade jurídica.118
Já tendo como parâmetro a constituição escrita, Bachof
disserta sobre cinco hipóteses. A primeira seria da inconstituci-
onalidade de normas constitucionais ilegais, na qual a referên-
cia de inconstitucionalidade seria a constituição anterior. En-
tende de difícil ocorrência, salvo no caso de leis pré-
117
in “Normas Constitucionais Inconstitucionais?”, Otto Bachof, Traduzido por José
Manuel M. Cardozo da Costa, Ed. Atlântida, 1951, página 42-44; 62-64; 67-68.
118
in “Normas Constitucionais Inconstitucionais?”, Otto Bachof, Traduzido por José
Manuel M. Cardozo da Costa, Ed. Atlântida, 1951, página 67-69.
1404 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 2

constitucionais que ordenassem a observância de um procedi-


mento como condição de validade da nova Constituição. Em
princípio, essas leis somente obrigariam o poder constituído,
não o constituinte. No entanto, caso estas leis sejam ratificadas
pelo poder constituinte, poderia ocasionar a inconstitucionali-
dade formal da nova constituição pela inobservância do proce-
dimento para sua elaboração.119 Neste caso, haveria uma auto-
limitação do poder constituinte.
O segundo seria a inconstitucionalidade de normas que
alterem a constituição. Seria a impossibilidade do poder de
revisão elaborar normas que violem a constituição120.
Já o terceiro seria a contradição de norma constitucional
com outra de nível hierárquico superior, seria a infração de
uma norma da constituição formal a uma norma da constituição
material121, mesmo quando esta não se refira a direito supra-
constitucional.
O autor analisa a quarta hipótese, sem, entretanto, de-
fender a inconstitucionalidade. Ocorreria com a mudança de
natureza de uma norma constitucional, caso em que uma norma
transitória passasse a ser permanente. Aqui, conforme mencio-
na o próprio autor, não se trataria de inconstitucionalidade, mas
de perda de vigência da norma constitucional122.
Por fim, a quinta espécie seria o caso de violação de
norma supraconstitucional positivada na constituição. A norma
da constituição que viole direito natural positivado na mesma
constituição será taxada de ilegítima e inconstitucional. A ilegi-
timidade decorre da perda de obrigatoriedade, uma vez que o
direito supraconstitucional seria preexistente e somente reco-
119
in “Normas Constitucionais Inconstitucionais?”, Otto Bachof, Traduzido por José
Manuel M. Cardozo da Costa, Ed. Atlântida, 1951, página 48-64.
120
in “Normas Constitucionais Inconstitucionais?”, Otto Bachof, Traduzido por José
Manuel M. Cardozo da Costa, Ed. Atlântida, 1951, página 48-64.
121
in “Normas Constitucionais Inconstitucionais?”, Otto Bachof, Traduzido por José
Manuel M. Cardozo da Costa, Ed. Atlântida, 1951, página 48-64.
122
in “Normas Constitucionais Inconstitucionais?”, Otto Bachof, Traduzido por José
Manuel M. Cardozo da Costa, Ed. Atlântida, 1951, página 48-64.
RJLB, Ano 1 (2015), nº 2 | 1405

nhecido (não constituído) pelo poder constituinte. Já a inconsti-


tucionalidade deriva da positivação do direito supraconstituci-
onal. 123
Em Portugal, durante algum tempo foi questionada a
constitucionalidade de alguns artigos da Constituição Portu-
guesa de 1976, antes das revisões. São eles: os artigos 82º, n 2
e artigo 87, n 2 (tratava da expropriação sem indenização); ar-
tigo 308 (incapacidades cívicas); artigo 309 (incriminação e
julgamento dos agentes e responsáveis da PIDE/DGS) e o arti-
go 310 (saneamento da função pública). Através da caducidade
ou da revisão, tais normas foram extirpadas da constituição.
O artigo 294 da Constituição Portuguesa conferia cará-
ter constitucional a leis incriminadoras de preceito retroativo
(Lei 8/75, Lei 16/75 e Lei 18/75). Entende Paulo Otero que se
trataria de norma constitucional inconstitucional, uma vez que
haveria conflito da norma do artigo 294 com a norma do artigo
29 e com o artigo 11º, n 2 da Declaração Universal dos Direitos
do Homem (artigo 16, n 2 da Constituição Portuguesa), que
dispõem que não há crime nem pena sem anterior lei que os
prevejam. Como este Diploma Internacional teria valor supra-
constitucional e hierarquia superior às demais normas da cons-
tituição instrumental, conclui o autor que o artigo 294 seria
inconstitucional e, portanto, haveria inconstitucionalidade de
norma originária da constituição124. Inobstante, segundo Paulo
Otero, o Tribunal Constitucional não teria competência para
declarar a inconstitucionalidade de norma constitucional origi-
nária, uma vez que se trataria de poder constituído125.
No entanto, o entendimento de Paulo Otero viola o
123
in “Normas Constitucionais Inconstitucionais?”, Otto Bachof, Traduzido por José
Manuel M. Cardozo da Costa, Ed. Atlântida, 1951, página 48-64.
124
in “Declaração Universal dos Direitos do Homem e Constituição: a inconstituci-
onalidade de normas constitucionais”, Paulo Otero, O Direito, 1990, III-IV, p. 618-
619.
125
in “Declaração Universal dos Direitos do Homem e Constituição: a inconstituci-
onalidade de normas constitucionais”, Paulo Otero, O Direito, 1990, III-IV, p. 618-
619.
1406 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 2

princípio da unidade hierárquico-normativa da constituição126.


Eventual contradição aparente deve ser compreendida como
uma exceção a regra, uma vez que as normas constitucionais
devem ser interpretadas como um todo harmônico. Nesse sen-
tido, Jorge Miranda entende que o conflito deve se resolver
pelo critério da excepcionalidade, sendo o artigo 294 norma de
exceção à norma geral do artigo 29127.
Embora seja quase unânime a opinião sobre a impossi-
bilidade de normas constitucionais originárias serem inconsti-
tucionais, a obra de Otto Bachof é importante para constatação
de certos limites ao poder constituinte. Devido ao princípio da
unidade hierárquico normativa da constituição não se concorda
com o resultado proposto pelo autor de considerar inconstituci-
onal uma norma constitucional originária. Este ponto será ana-
lisado no tópico sobre o controle dos limites, onde será tomada
uma posição. No entanto, não se pode desprezar que o autor
traça limites ao poder constituinte. Esses limites estariam ca-
racterizados no direito supraconstitucional, na possibilidade do
próprio poder constituinte autolimitar- se ratificando um pro-
cedimento previsto em leis pré-constitucionais e a divergência
entre normas da constituição material e da constituição formal.
No caso de divergência entre normas da constituição
formal e da constituição material, tendo em vista o princípio da
unidade hierárquico normativa das normas constitucionais,
eventual discordância entre tais normas deveria ser resolvida
pelo critério da excepcionalidade. Já no tocante a possibilidade
de autolimitação do poder constituinte pela ratificação de um
procedimento previsto em leis pré- constitucionais, também
não representaria um verdadeiro limite. Neste caso, não seria
um limite ao poder constituinte, uma vez que a autolimitação
126
in “Direito Constitucional e teoria da Constituição”, 7ª Ed., Ed. Almedina, J.J.
Gomes Canotilho, pág. 1183-1184.
127
in “Declaração Universal dos Direitos do Homem e Constituição: a inconstituci-
onalidade de normas constitucionais”, Paulo Otero, O Direito, 1990, III-IV, p. 617-
619.
RJLB, Ano 1 (2015), nº 2 | 1407

decorreria de um ato de vontade desse mesmo poder. Dessa


forma, somente o direito supraconstitucional representaria um
limite ao poder constituinte.

8) CONTROLE DO PODER CONSTITUINTE

Embora se admita a existência de limites ao poder cons-


tituinte, devem ser verificadas as formas de controle, inclusive
a possibilidade de tal questão ser analisada pelo Poder Judiciá-
rio. Aqui, torna-se necessário relembrar a distinção entre legi-
timidade e a inconstitucionalidade. A legitimidade do poder
acarreta um senso comum de obrigatoriedade, consistente na
vinculação jurídica dos destinatários da norma ao que foi orde-
nado por ela. Seria a qualidade que justifica a imposição de
poder sobre os governados, na qual seria gerado um senso geral
de respeito e vinculação para com as normas expedidas pelos
governantes. Já a inconstitucionalidade ocasiona a nulidade de
uma norma hierarquicamente inferior por desrespeito a uma
norma superior.
Embora Paulo Otero possua o entendimento de que o
Tribunal Constitucional não teria competência para declarar a
inconstitucionalidade da norma constitucional que violasse
princípios de justiça, o autor entende que tal norma constituci-
onal seria inválida por se traduzir em não direito, destituídas de
caráter jurídico (leges corruptae). Nesse sentido, conclui que as
normas constitucionais seriam inválidas caso transgredissem os
valores transcendentes.128 Em sentido contrário, Carlos Blanco
de Morais, adotando tese positivista, entende que a legitimida-
de seria um fenômeno político, mas não um fenômeno jurídico,
que tornaria a constituição nominal e, consequentemente, lhe
128
in “Lições de Introdução ao Estudo do Direito”, Paulo Otero, I volume, 1º Tomo,
1998, Lisboa, página 181. Também em “Introdução à Filosofia do Direito”, Gustav
Radbruch, tradução Jacy de Souza Mendonça, 3ª Ed. 1965, pág. 20- 37; 34- 35; 39-
41; 94-95. Também em “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed.
Coimbra, tomo II, pág. 135.
1408 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 2

faria perder a eficácia social129.


Analisando a incompatibilidade de uma norma constitu-
cional com preceitos supraconstitucionais, Otto Bachof entende
que o Poder Judiciário deveria realizar a justiça, não somente
aplicar a lei, nos termos do artigo 20, n 3 da Lei Fundamental
Alemã. Segundo o autor, a questão acerca da obrigatoriedade
jurídica de um dispositivo normativo não terá qualquer rele-
vância prática caso não possa ser conhecida pelo Poder Judiciá-
rio. Nesse sentido, o autor admite o controle de constituciona-
lidade de normas da Constituição, a ser exercido pelo Tribunal
Constitucional, no qual se poderia recusar efeito a norma cons-
titucional e declarar sua invalidade.130Nesse sentido, a Corte
Constitucional da Baviera já admitiu a possibilidade de um
direito suprapositivo ser utilizado como parâmetro para o reco-
nhecimento de invalidade de normas constitucionais. O Tribu-
nal se afastou do conceito de Constituição formal e encampou
o direito suprapositivo na Constituição material, conferindo a
este uma referência para o controle de constitucionalidade.131
Na própria Alemanha, a decisão do Tribunal da Baviera
foi duramente criticada. Willibalt Apelt alega que não pode o
Poder Judiciário tomar para si a tarefa de elaboração da Consti-
tuição, uma vez que tal função seria do Poder Legislativo, co-
mo representante do povo e em um regime democrático132.

129
In “Curso de Direito Constitucional”, Carlos Blanco de Morais, Tomo 1, Editora
Coimbra, 2ª Ed, pág. 173-174
130
Segundo Otto Bachof, a validade de uma Constituição compreenderia a legitimi-
dade no aspecto de positividade (existência como plano e expressão de um poder
efetivo) e obrigatoriedade (vinculação dos destinatários da norma). In “Normas
Constitucionais Inconstitucionais?”, Otto Bachof, Traduzido por José Manuel M.
Cardozo da Costa, Ed. Atlântida, 1951, páginas 77-79; 86.
131
in “Normas Constitucionais Inconstitucionais?”, Otto Bachof, Traduzido por José
Manuel M. Cardozo da Costa, Ed. Atlântida, 1951, páginas 23-24. Segundo a deci-
são do Tribunal, “há princípios constitucionais tão elementares, e expressão tão
evidente de um direito anterior mesmo à Constituição, que obrigam o próprio legis-
lador constitucional e que, por infração deles, outras disposições da Constituição
sem a mesma dignidade podem ser nulas”.
132
in “Normas Constitucionais Inconstitucionais?”, Otto Bachof, Traduzido por José
RJLB, Ano 1 (2015), nº 2 | 1409

Suscitando os ensinamentos de Kelsen, Hans Spanner sustenta


que seria tarefa precípua do Tribunal Constitucional a analise
de compatibilidade da legislação infraconstitucional somente
em face da Constituição. Assim, o conflito a ser decidido pelo
Tribunal Constitucional seria sobre a interpretação e aplicação
de normas da Constituição, não com base em direito supraposi-
tivo. Tal opinião é compartilhada por Arndt, para quem o Tri-
bunal Constitucional não seria o fórum para discussão sobre
direito natural, uma vez que o juiz não poderia exercer seu ofí-
cio baseado em diretivas de uma justiça perpétua, contrapondo-
as às decisões democráticas do parlamento133.
A doutrina americana também não se mostra favorável
a tese de controle de constitucionalidade de normas constituci-
onais originárias pelo Poder Judiciário, uma vez que, segundo
Kauper, o povo teria o poder pleno de estabelecer o sistema
constitucional, pelo que uma norma da constituição não pode-
ria ficar sujeita ao controle judicial134.
No Brasil, o Supremo Tribunal Constitucional já en-
frentou a questão. Trata-se da ação direta de inconstitucionali-
dade 815-3, proposta pelo Governo do Rio Grande do Sul, na
qual pleiteava a declaração de inconstitucionalidade de norma
constitucional originária (artigo 45, parágrafos 1º e 2º), uma
vez que violaria valores morais superiores positivados na pró-
pria Constituição135. O Supremo Tribunal Federal não conhe-

Manuel M. Cardozo da Costa, Ed. Atlântida, 1951, páginas 26-27.


133
in “Normas Constitucionais Inconstitucionais?”, Otto Bachof, Traduzido por José
Manuel M. Cardozo da Costa, Ed. Atlântida, 1951, página 26-36.
134
in “O art. 45 da Constituição Federal e a Inconstitucionalidade de Normas Cons-
titucionais”, Paulo Bonavides, Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, 1995, vol.
XXXVI, página 9.
135
O artigo 45 da Constituição fixa limites de representação mínima e máxima à
Câmara dos Deputados. O Estado do Rio Grande do Sul questionava a constitucio-
nalidade do parágrafo 2º (“para que nenhuma daquelas unidades tenha menos que
oito ou mais de setenta Deputados”) e do parágrafo 3º (“quatro”) em face de valores
superiores correspondentes aos princípios da igualdade (artigo 5º), igualdade do voto
(artigo 14), exercício do poder pelo povo e da cidadania (artigo 1º, inciso II), da
democracia (artigo 1º) e da ordem constitucional (artigo 1º). Segundo a causa de
1410 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 2

ceu do pedido por impossibilidade jurídica, uma vez que não


poderia apreciar constitucionalidade de norma constitucional
originária. Tal entendimento se mostra correto, uma vez que
não poderia o Supremo Tribunal Federal, como poder constitu-
ído, reconhecer a nulidade da manifestação do seu poder insti-
tuidor. Não poderia o Tribunal constitucional declarar a nuli-
dade de norma constitucional originária sob pena de usurpar o
poder atribuído ao povo, como titular do poder constituin-
te.136Ademais, o Tribunal Constitucional se transformaria de
fiscalizador da constitucionalidade em verdadeiro poder consti-
tuinte, como também ficaria esvaziada a função do poder revi-
sor137.
O Tribunal Constitucional Português também já anali-
sou a questão no Acórdão 480/89, na qual foi analisada a cons-
titucionalidade do artigo 58º, item 3 da Constituição (proibição
do lock out) em face do artigo 13, item 1, da mesma Carta. O
Tribunal Constitucional Português julgou a questão. Embora
não tenha declarado a inconstitucionalidade da norma constitu-
cional, reconheceu sua competência e implicitamente esta pos-
sibilidade, segundo Paulo Otero. No entanto, o próprio autor,
apesar de reconhecer a possibilidade de inconstitucionalidade
de normas constitucionais originárias, entende que o Tribunal

pedir da ação, o voto de um eleitor em uma grande unidade federativa teria menos
valor que de um eleitor de um Estado pequeno. Isto porque as regiões Sul e Sudeste
do Brasil concentrariam 57% da população brasileira e teriam apenas 45% das ca-
deiras reservadas aos Deputados; enquanto as regiões Norte, Nordeste e Centro –
Oeste teriam 43% da população brasileira e 53% dos assentos na Câmara dos Depu-
tados.
136
Nesse sentido é a opinião de Willibalt Apelt, citado por Otto Bachof em “Normas
Constitucionais Inconstitucionais?”, Otto Bachof, Traduzido por José Manuel M.
Cardozo da Costa, Ed. Atlântida, 1951, páginas 27.
137
in “O art. 45 da Constituição Federal e a Inconstitucionalidade de Normas Cons-
titucionais”, Paulo Bonavides, Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, 1995, vol.
XXXVI, páginas 5 -35. Jeremy Waldron também defende a impossibilidade do
Poder Judiciário invalidar as decisões da maioria. In “The core of the case against
Judicial Review”, Jeremy Waldron, The Yale Law Journal, 2006, páginas 1348-
1406.
RJLB, Ano 1 (2015), nº 2 | 1411

não teria competência para o julgamento da questão.138


A incompatibilidade do direito suprapositivo com as
normas constitucionais originárias não se trataria de uma ques-
tão de validade constitucional, mas sim de legitimidade. Embo-
ra os tribunais não pudessem declarar a inconstitucionalidade
dessas normas originárias, poderiam deixar de aplicá-las, no
exercício de sua tarefa de dizer o direito ao caso concreto.139
Em virtude da falta de legitimidade, deixaria a norma constitu-
cional de vincular juridicamente o destinatário, acarretando a
perda de obrigatoriedade e da própria validade140 141.
Embora a desobediência do direito suprapositivo não
acarrete a inconstitucionalidade da norma, não significa que o
mesmo deva ser aplicado e sua violação não seja apreciada
pelo Poder Judiciário. Quando o Estado tente impor o direito
positivado pela força, a ausência de consenso social sobre a
justiça da norma lhe retira a obrigatoriedade, pelo que poderia
deixar de ser aplicado no caso concreto142. Assim, no caso de
violação de preceitos suprapositivos pelo poder constituinte,
poderia o Poder Judiciário deixar de aplicar a norma constitu-
cional violadora, decidindo contra constitutionem143. Segundo

138
in “Declaração Universal dos Direitos do Homem e Constituição: a inconstituci-
onalidade de normas constitucionais”, Paulo Otero, O Direito, 1990, III-IV, p. 618-
619.
139
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 135.
140
Neste ponto, vale a pena citar Otto Bachof no sentido de que “o recurso ao direito
supraconstitucional será sempre apenas a ultima ratio do Estado de Direito; mas
justamente por isso ‘não’ devemos ‘tapar esta saída de recurso’”. In “Normas Cons-
titucionais Inconstitucionais?”, Otto Bachof, Traduzido por José Manuel M. Cardo-
zo da Costa, Ed. Atlântida, 1951, página 79.
141
in “Manual de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II,
pág. 135.
142
in “Normas Constitucionais Inconstitucionais?”, Otto Bachof, Traduzido por José
Manuel M. Cardozo da Costa, Ed. Atlântida, 1951, página 2. Também em “Manual
de Direito Constitucional”, Jorge Miranda, 6 ed. Coimbra, tomo II, pág. 135.
143
Segundo Paulo Otero não seria possível realizar uma ponderação de valores para
excluir a aplicação da norma constitucional injusta, uma vez que esta seria destituída
de valor. Citação em “Lições de Introdução ao Estudo do Direito”, Paulo Otero, I
1412 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 2

Paulo Otero, seria um direito fundamental dos particulares a


recusa de praticar ou participar de atos injustos. Nesse sentido,
embora o Tribunal Constitucional não pudesse declarar a in-
constitucionalidade da norma constitucional, haveria uma regra
implícita que conferiria competência a todas as autoridades
judiciais e administrativas para decidirem contra constitutio-
nem144.
Nestes termos, o Supremo Tribunal Federal já deixou
de aplicar norma constitucional com fundamento em valores
consubstanciados nos direitos humanos previstos em Tratado
Internacional. Trata-se do HC n 87.585-8, no qual se discutia a
prisão do depositário infiel. A Constituição Brasileira, no seu
artigo 5º, inciso LXVII, permite a prisão do depositário infiel,
ao passo que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos
– Pacto San José da Costa Rica (artigo 7º, 7) e o Pacto Interna-
cional de Direitos Civis e Políticos (artigo 11), não permitem
esta espécie de prisão. O Brasil ratificou o mencionado tratado
internacional, em que pese a norma do Diploma Internacional
ser incompatível com a norma constitucional.
O voto do Ministro Menezes Direito consta a expressa
manifestação quanto à natureza supra- estatal dos direitos hu-
manos, nos quais seriam somente reconhecidos pelo poder
constituinte (não constituídos). No voto do Ministro Celso de
Mello, embora sustente a natureza constitucional dos tratados,
menciona os direitos humanos como valor fundante e condici-
onante da própria ordem jurídica do Estado. Já o Ministro Gil-
mar Mendes defendeu a natureza supralegal do Tratado Inter-
nacional, sob o fundamento de que o reconhecimento da natu-
reza supraconstitucional ou da natureza constitucional poderia
acarretar incoerência no ordenamento constitucional, princi-

volume, 2º Tomo, 1999, Lisboa, página 345.


144
in “Lições de Introdução ao Estudo do Direito”, Paulo Otero, I volume, 1º Tomo,
1998, Lisboa, página 185. O autor menciona que haveria o direito dos povos à insur-
reição contra todas as formas de opressão (artigo 7º, n 3 da Constituição Portugue-
sa).
RJLB, Ano 1 (2015), nº 2 | 1413

palmente frente ao artigo 5º, parágrafo 3º; no entanto, reconhe-


ceu que “A prisão do depositário infiel não mais se compatibi-
liza com os valores supremos assegurados pelo Estado Consti-
tucional (...)”.
No referido julgamento, o Supremo Tribunal Federal
acabou por reconhecer a natureza supralegal do referido Trata-
do Internacional, considerando que o artigo 5º, inciso LXVII,
não seria auto- aplicável e de que estaria paralisada a legislação
infraconstitucional que previa a prisão do depositário infiel. Na
verdade, a decisão do STF privou de qualquer eficácia e apli-
cabilidade o preceito do artigo 5º, inciso LXVII, quando se
sabe que mesmo as normas programáticas têm o efeito de im-
pedir legislação que seja contrária aos seus preceitos. Dessa
forma, mesmo que o artigo 5º, inciso LXVII, fosse norma pro-
gramática, o artigo 7º, 7 do Pacto de San José da Costa Rica
não poderia ter validade e eficácia por contrariar a dita norma
constitucional. Na verdade, o Supremo Tribunal Federal deixou
de conferir aplicabilidade a norma constitucional por conside-
rá-la incompatível com outros valores dignos de proteção. Por-
tanto, o julgado configura exemplo de não aplicação de norma
constitucional violadora de valores consubstanciados em um
ideal de justiça.
Por fim, além do controle exercido pelo Poder Judiciá-
rio, também existe um controle social do resultado da tarefa
desempenhada pelo poder constituinte. A contradição entre o
ideal de justiça cristalizado na consciência social e a constitui-
ção poderia acarretar a perda de eficácia social desta última.
Neste caso, a constituição poderia ser caracterizada como no-
minal, na qual não teria força normativa para regular a relação
entre o poder público e os cidadãos. Outrossim, diante de nor-
mas injustas e do exercício ilegítimo do Poder, poderia ocorrer
uma nova ruptura constitucional, caso em que seria legítimo o
exercício de um direito de resistência contra o tirano ou um
direito de insurreição contra todas as formas de repressão, re-
1414 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 2

conhecido inclusive pela ordem constitucional portuguesa (ar-


tigo 7º, n 3) e pela ordem jurídica internacional (artigo 2º da
Declaração e Programa de Ação de Viena)145. Segundo esta
última norma, a autodeterminação seria um direito humano dos
indivíduos que compõem o povo, o qual caberia escolher li-
vremente seu estatuto político146 147.

9) CONCLUSÃO

O conceito de poder constituinte está intimamente liga-


do à concepção de soberania, uma vez que é a soberania interna
que confere fundamento para o exercício do poder constituinte.
Historicamente, tem- se observado uma crescente limitação da
soberania dos Estados. Nesse sentido, notadamente no período
pós- guerras do século XX, frente à preocupação internacional
com a defesa e o respeito aos direitos do homem, a soberania
não poderia mais ser caracterizada como ilimitada. O Estado
não seria mais o único centro de poder, pois haveria de com-
partilhá-lo com entidades privadas e organismos internacionais,
sendo certo que em favor da proteção dos direitos humanos
seria justificável a intervenção da comunidade internacional em
assuntos internos do Estado.
De outro ponto, como resultado da tarefa levada a cabo
pelo poder constituinte, a Constituição deve ser legítima for-
malmente e materialmente. O exercício da soberania pelo povo,
através do poder constituinte, não legitima a Constituição tão
somente pela criação de um órgão representativo e pela obser-
vância de um procedimento adequado. Como é o povo o desti-

145
in “Lições de Introdução ao Estudo do Direito”, Paulo Otero, I volume, 1º Tomo,
1999, Lisboa, página 185.
146
“2. Todos os povos têm direito à auto-determinação. Por força desse direito,
escolhem livremente o seu estatuto político e prosseguem livremente o seu desen-
volvimento económico, social e cultural.(...)”
147
Nesse sentido já era a Declaração de Independência dos EUA de 1776. In “Histó-
ria das Idéias Políticas”, Diogo Freitas do Amaral, Volume II, Lisboa 1998, pág. 71.
RJLB, Ano 1 (2015), nº 2 | 1415

natário da constituição e o titular do poder, não se pode conce-


ber que o conteúdo da Lei Fundamental seja contrário aos an-
seios de justiça da sociedade.
O poder constituinte não pode ser caracterizado tão so-
mente como um ato de força, que fundaria uma nova ordem
jurídica. Desde o início do seu exercício, através da revolução,
é necessário o consenso social acerca da nova idéia de direito,
sob pena de restar frustrado o ato revolucionário e ser caracte-
rizado como simples ato de insurreição sancionado pelo direito.
Dessa forma, os anseios da sociedade devem ser levados em
conta não só na formulação da nova idéia de direito pelo poder
constituinte material, como também no momento de exercício
do poder constituinte formal.
Esses anseios da sociedade representam os valores éti-
cos universais, que poderiam ser resumidos em um ideal de
justiça. Esse ideal de justiça representa um postulado do direito
natural, entretanto não se deve conceber o direito natural como
uma gama de valores teológicos ou de índole subjetiva. Atual-
mente, o direito natural deve ser embasado nos direito huma-
nos, uma vez que o processo histórico do qual resultou e o pró-
prio consenso universal sobre seu conteúdo, retiram qualquer
pretensão de caracterizá-los como um valor perpétuo, subjetivo
e relativo.
A idéia de direito não deve ser afastada da concepção
de justo, o direito deve ser o instrumento pelo qual a justiça
deve ser concretizada148. No caso da elaboração da constituição
não poderia ser de outra forma, uma vez que também constitui
espécie de norma jurídica. A constituição, como produto do
poder constituinte, também sofre influência dos postulados de

148
Vale a pena citar a reflexão de Carlos Moreira: “Pergunto aos juízes do meu País;
o que faríeis perante uma lei que, invocando supostas razões de Estado, instituísse a
prostituição obrigatória de nossas filhas e de nossas mulheres, ou que, em nome de
pretensos motivos eugênicos, decretasse a mutilação de nossos filhos?”. In “Do
Direito, do Estado e das suas relações”, Carlos Moreira, Boletim da Faculdade de
Direito, 1958, Vol. XXXIV, página 2 e segs.
1416 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 2

justiça, seja na sua elaboração seja na sua aplicação. No mo-


mento da elaboração, o postulado da justiça serviria como pa-
râmetro ao poder constituinte na sua tarefa de elaboração da
constituição, já na aplicação das normas constitucionais, os
valores correspondentes ao justo serviriam de norte para a in-
terpretação. Dessa forma, o poder constituinte estaria limitado
pelos valores universais consubstanciados nos direitos huma-
nos.
O controle sobre o poder constituinte poderia ser tanto
social como judicial. Quanto ao controle social, a desconside-
ração dos valores éticos da comunidade poderia ocasionar a
perda da efetividade da norma e também uma nova ruptura
constitucional. De outro ponto, também seria possível o contro-
le judicial sobre a norma constitucional injusta. Frente ao prin-
cípio da unidade hierárquico normativa da constituição, o Po-
der Judiciário não poderia declarar a inconstitucionalidade da
norma constitucional por suposta violação a direito supracons-
titucional uma vez que não poderia subverter o poder que o
criou, sob pena de se transformar em um verdadeiro poder
constituinte e se sobrepor aos demais poderes constituídos.
Entretanto, diante de uma norma constitucional flagran-
temente injusta, o Poder Judiciário deve afastar sua aplicação
ao caso concreto. A idéia de justiça encontra consenso em tor-
no dos direitos humanos, sendo certo que o desrespeito da dig-
nidade da pessoa humana não pode ser tolerada pela sociedade
atual, muito menos ser abrigada pela constituição. Portanto,
embora a constituição seja fruto da vontade popular, o princí-
pio da democracia deve ter como fundamento a dignidade da
pessoa humana.


RJLB, Ano 1 (2015), nº 2 | 1417

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