027 Arcodo Medo
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especificamente sobre o corpo negro e gay. Nosso
objetivo é acompanhar as transformações e as Capítulo II – Cinema – Cinema
narrativas do protagonista e problematizar a arte
cinematográfica como mecanismo de alteração
corresponde ao cinema experimental/vídeo-arte.
dos padrões hegemônicos. O curta-metragem
Isso é importante pois, nos ajuda a compreender a
apresenta o corpo como simbologia de resistência às
utilização de determinados recursos de linguagem.
representações de gênero e raça; decodifica algumas
Como afirma Ivana Bentes:
das experiências do homem negro e suas constantes
buscas pela libertação das amarras impostas pelos A vídeo-arte também recriaria e canibalizaria
padrões da sociedade heteronormativa. procedimentos de linguagem que remontam às
As representações de masculino e feminino vanguardas históricas e ao cinema experimental dos
disseminadas pelos meios de comunicação, anos 60 e 70 em todo o mundo — a flicagem, as
contribuem para formular a maneira como as cine-colagens, as superposições e fotomontagens,
pessoas vivem o seu cotidiano. Desse modo, como já grafismos, imagens simultâneas no quadro, tripticos,
afirmamos acima, esta análise é guiada a partir dos telas duplas — iriam reaparecer com o vídeo. Certos
questionamentos produzidos no filme, que questiona os efeitos das primeiras ilhas de edição, tornados
padrões de gênero e raça, que propõe a necessidade programas e de experimentação fácil, invadiram o
vídeo nos seus primórdios (2003, 125).
de se conceber o cinema como representação e que,
possibilite o surgimento de múltiplos discursos, e, por
Esses recursos são utilizados ao longo do filme e
conseguinte, dê espaço a grupos que estão política,
serão os mediadores entre o emissor e o receptor das
social e economicamente à margem. O curta mobiliza
formações discursivas existentes. Isto é importante
uma série de aparatos para demonstrar a resistência
para que não ocorra falhas de comunicação. Estar
do corpo negro gay.
atento a forma como esses recursos são trabalhados
A Análise do Discurso Francesa (AD) é a
é um ponto crucial para o analista, visto que há, como
perspectiva teórica que usamos como referencial.
salienta Fabris; “uma materialidade fílmica (visível,
Essa escolha se justifica pela proposta da AD em
dizível e de silêncios) criada pela linguagem própria
estabelecer a relação que os enunciados possuem
desse artefato, utilizados na operação de transformar
com o período histórico no qual foram produzidos.
as imagens em histórias que nos capturam e seduzem”
Dessa forma, concebemos a materialidade histórica
(2008, p.126).
como um fator fundamental na formulação dos
O conceito de Cinema Negro é importante para
discursos; portanto, para compreendê-los,
a análise do curta, pois permite compreendê-lo,
necessitamos de estar atentos aos fatores sociais
não apenas, como uma produção de cinema com a
que estão imbrincados em suas formações.
temática negra, mas o insere dentro de um conjunto
Para chegar as matrizes discursivas
de trabalhos de cineastas que forjam o conceito de
construídas pelo filme, realizamos uma análise de
Cinema Negro como um cinema produzido por negros,
como o discurso se constrói a partir de
com temáticas sobre a população negra e reiteram
elementos da linguagem cinematográfica, como a
uma epistemologia possível para criação do cinema
decupagem das cenas, a montagem, a fotografia, o
negro brasileiro.
som, os enquadramentos, as falas, os textos, a
O trabalho dos cineastas negros, conforme afirma
cenografia, o figurino, as inserções e a linguagem
a historiadora Edileuza Penha de Souza (2013), tem
corporal.
possibilitado uma nova visão de mundo, uma nova
forma de mostrar a vivência de negros e negras no
2 - Metodologia - as expressões de Brasil. Desde que assumiram o controle das câmeras,
masculinidade em “O arco do medo” eles têm criado um cinema de produção, autoria e
cosmovisão negra; seus filmes são veículos de combate
Para compreender a construção do discurso no curta-
ao racismo e aos preconceitos; suas produções
metragem O Arco do Medo, adotamos como
promovem e ampliam a história e a cultura negra,
perspectiva metodológica a análise dos elementos
criam espaços formativos de políticas cinematográficas
que compõem a linguagem cinematográfica: os
para cineastas, produtores e realizadores negros, e
detalhes de cenário e figurino, o enquadramento, a
fortalecem as produções negras.
iluminação, os sons, a interpretação, as falas, a
Para análise do curta-metragem o dividimos
movimentação da câmera. Todo esse aparato
em três partes: a primeira mostra os padrões de
cinematográfico é analisado para compreender as
masculinidade e sexualidade que circulam pela
matrizes discursivas desenvolvidas pelo filme.
sociedade e, dessa forma, influenciam o modo
Considerar esses detalhes, ao analisar uma produção
como os indivíduos devem agir; a segunda revela-se
cinematográfica, torna-se imprescindível, porque de
momento de transição entre a opressão e a liberdade
acordo com Elí Henn Fabris: “Analisar uma produção
de expressar o seu ser; a terceira corresponde ao
como o cinema, que rompe com as formas mais
momento de ressignificar sua vida, reconstruir-se a
comuns de representação, em que a materialidade é a
partir de novos referenciais. É importante salientar, no
imagem em movimento, é ingressar em uma outra
filme, a constante experiência corporal demonstrada
dimensão do conhecimento” (2008, p.125).
pela personagem. Corroboramos, com Neusa Santos
A cena englobante do curta- metragem
Souza, a concepção de que a construção da identidade
corresponde ao tipo de discurso que podemos situá-
está ligada a nossas experiências corporais e aos
lo, ou seja, o cinematográfico. A cena genérica,
significados que atribuímos a elas. Segundo afirma
está conceituada como o gênero do discurso,
Jurandir Freire Costa, na introdução a obra da autora:
que neste caso,
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A identidade do sujeito depende, em grande medida, No imaginário ocidental, um homem negro não é
da relação que ele cria com o corpo. A imagem ou um homem, antes ele é um negro e como tal não
enunciado identificatório que o sujeito tem de si tem sexualidade, tem sexo, um sexo que desde
estão baseados na experiência de dor, prazer ou muito cedo foi descrito no Brasil com atributo
desprazer que o corpo obriga-lhe a sentir e pensar. que o emasculava ao mesmo tempo em que o
(...) Para que o sujeito construa enunciados sobre assemelhava a um animal em contraste com o
a sua identidade de modo a criar uma estrutura homem branco (2014, p.100).
psíquica harmoniosa, é necessário que o corpo seja
predominantemente vivido e pensado como local e Para Alex Ratts (2007), é importante reconhecer
fonte de vida e prazer. (1983, 06). a questão racial como estrutural e combiná-la a
outras dimensões — como gênero e classe — para,
Isso tende a ser uma experiência mais complexa assim, compreender a pluralidade de experiências
quando se relaciona ao corpo negro, pois este vive homossexuais negros. A sexualização do homem
imerso numa sociedade construída sob referenciais negro foi algo mitifica, tornando-se um fator que o
brancos. Ressignificar a experiência corporal de um dota de poder. Nesse caso, o homossexual negro
jovem negro e gay, significa reconstruir, praticamente, apresenta-se como uma ameaça a hierarquia social,
todo o seu referencial de sociedade. visto que sua performance de gênero questiona a
A cenografia do filme traz um jovem negro e gay, estrutura hegemônica dentro da comunidade negra.
morador da periferia de um centro urbano, envolto às Ao tratar de homossexuais negros, o assistente
pressões sociais sobre a forma como deve portar-se social Joilson Santana Marques Júnior, afirma que
diante da vida. O filme remete à experiência de vida de essa concepção é desconfigurada, pois “observa-se,
muitos jovens negros e gays das cidades brasileiras, assim, que para além da traição da masculinidade
que passam pela experiência da repressão à sua heterossexual, é uma traição à qualidade mais bem
sexualidade e estão suscetíveis a outras formas de positivada do homem negro: a sua possante virilidade”
preconceito. (MARQUES JÚNIOR, 2012, p. 186).
O discurso apresentado no curta-metragem
2.1 - Masculinidade Compulsória - “Tempo, está pautado na narrativa da masculinidade negra
medo e liberdade o assombravam” heteronormativa construída ao longo da história
brasileira. A agressividade existente nas falas denota
O filme inicia com uma personagem imersa nos a tentativa de esconder essas outras masculinidades e
dilemas de um jovem em relação a sua sexualidade, oprimir distintas formas de expressão, a fim de manter
rodeado de coisas que impõem comportamentos o status quo.
ditos masculinos. A personagem usa um figurino que Uma fala que corrobora a mesma ideia aparece
remetem à esse universo: boné, camiseta e short. um pouco mais a diante no filme: “Eu sou macho, eu
A câmera o acompanha num processo de despir-se sou negão, dar o cú é errado”. Essa fala expressa,
desses padrões, enquanto uma voz off apresenta a assim como as outras, a concepção de que o negro
personagem e remete às determinações de como um está ligado ao falo; portanto não pode estar na posição
homem deve se portar, em especial, um homem negro: passiva em um relacionamento homossexual, visto
que o homem negro não assume essa posição na
“Havia um garoto negrinho em uma caixa. Em casa, hierarquia social. Assim insere-se um letreiro em letras
no morro, janela fechada. Tempo, medo e liberdade garrafais para que não haja dúvidas.
o assombravam.”
“Filho gay é falta de porrada.”
“Braço quebrado, mainha gritava:
— Homem não desmunheca!”
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