APOSTILACRIMINOLOGIA

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INTRODUÇÃO À CRIMINOLOGIA

1. Introdução à Criminologia

Criminology is the body of knowledge regarding


juvenile delinquency and crime as social
phenomena. It includes within it scope the process of
making law, breaking laws and reacting towards the
breaking of law (SUTHERLAND; CRESSEY, 1978,
p. 03).

Geralmente, as introduções ao estudo de uma disciplina acadêmica começam


por apresentar o objeto e o método. No caso da Criminologia, diante de sua específica
configuração disciplinar, não é possível começar deste modo. Por isso, convidamos a
estudante a caminhar conosco pelo intrincado “curso dos discursos criminológicos”,
rumo à compreensão destas questões primordiais.

A prática de atos desaprovados socialmente por certo grupo de pessoas e a


responsabilização socialmente organizada dos autores destes atos é uma invariante
histórica e antropológica. Ou seja, em todas as sociedades até hoje existentes e em todas
as formas de organização social foram (i) criadas regras; (ii) estas regras foram
descumpridas por alguém; e (iii) deste descumprimento resultou algum tipo de
consequência, que podemos considerar punitiva. Estas regras, evidentemente, podem ter
conteúdos os mais variados por possíveis, isto é, podem tratar da forma como a pessoa
deve se portar em certa cerimônia de culto a algum deus ou deusa, das formas
reprodutivas permitidas ou desaprovadas ou da proibição ou permissão de se agredir ou
matar o semelhante.

A maneira pela qual estas regras sociais são criadas e que as consequências
pela sua inobservância são operacionalizadas também já assumiu diversas
características distintas, e outras tantas ainda estão por ser inventadas no decorrer do
tempo histórico. Não entraremos nos detalhes destes apaixonantes assuntos próprios da
História do Direito, mas alguns exemplos nos ajudarão nesta caminhada rumo ao objeto
e o método da Criminologia.

As sociedades outrora chamadas de primitivas, como, por exemplo, as


organizações sociais dos povos originários que habitavam o território que ficou
conhecido por América ou por Brasil após a invasão dos europeus, no século XVI,
embora fossem sociedades “sem Estado”, operavam responsabilizações de pessoas que
descumpriam as regras da comunidade.

No primeiro livro publicado no Brasil e na América Latina com o nome


Criminologia, a obra Criminologia e Direito, de 1896, o conhecido jurista Clóvis
Bevilaqua dedicou-se a compreender “as instituições e os costumes jurídicos dos
indígenas brasileiros à época do descobrimento”. No texto, estudando a temática a partir
dos relatos dos viajantes que tomaram contato com estes indígenas nos primórdios da
colonização, Beviláqua sustenta que nas tribos em que “as relações sexuais ainda se não
haviam submetido à disciplina de um direito costumeiro”, o adultério era um fato
indiferente, ao passo que nas tribos já monogâmicas o ato “provocasse os rigores de
penalidade” e resultasse inclusive em pena de morte ([1896] 2019, p. 218).

Nas sociedades mesopotâmicas encontramos os primeiros registros históricos


de legislações de caráter punitivo. Na famosa lei do Imperador Hamurábi (2003 – 1961
A.C), da Babilônia, constam regras como: “Se alguém arranca o olho a um outro, se lhe
deverá arrancar o olho”.

Confira aqui: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/hamurabi.htm.

No Código da Aliança ou Lei Bíblica, de 900 A.C (aproximadamente), também


constam registros de atos desaprovados e consequência punitivas, constantes no
Pentateuco, o livro de cinco volumes que compõe o Velho Testamento. No Êxodo, 21:
12, por exemplo, consta esta previsão:

“Quem ferir alguém, de modo que este morra, certamente será morto”.

Não é nosso objetivo analisar exaustivamente a dimensão histórica, o que seria


impossível.

Não falamos ainda de uma instituição muito importante: o Estado. É o Estado


que em nossa época define que atos são desaprovados a tal ponto que serão chamados
de crime e então serão passíveis de punição. Aliás, sequer falamos destes conceitos,
próprios do Direito Moderno, de crime e de pena. Chegaremos lá.
O que estamos procurando desenvolver, no “aquecimento” antes de
ingressarmos no campo de jogo da criminologia, é a capacidade de relativização do
estudante, para que seja capaz de perceber o caráter relativo do conceito de crime. Só
depois podemos chegar à Criminologia devidamente equipados intelectualmente.

Retomemos: as sociedades criam regras; a violação de algumas destas regras


constituem o que chamamos de crimes; a pessoa que pratica este ato chamado de crime
é responsabilizada; essa responsabilização resulta em uma consequência que é chamada
de pena; esta responsabilização é operacionalizada por algum tipo de organização
coletiva.

Avancemos: atualmente, o Estado e, especificamente, o Poder Legislativo,


define o que é crime; a consequência de um crime é chamada de pena e a mais comum é
a de prisão, embora existam também as chamadas penas alternativas, como a prestação
de serviços à comunidade; a responsabilização da pessoa que pratica o crime é
operacionalizada pela Polícia e pelo Poder Judiciário.

Mas o que é crime? O que deve ser crime? Esta pergunta, aparentemente banal,
nos ajuda sensivelmente. O sociólogo francês Émile Durkheim, na obra As regras do
método sociológico, publicada em 1895, ponderou o seguinte:

Quantas vezes, com efeito, o crime não é senão uma antecipação da moral
por vir, um encaminhamento em direção ao que será! De acordo com o
direito ateniense, Sócrates era um criminoso e sua condenação simplesmente
justa. No entanto seu crime, a saber, a independência de seu pensamento, era
útil, não somente à humanidade, mas á sua pátria. Pois ele servia para
preparar uma moral e uma fé novas, das quais os atenienses tinham então
necessidade, porque as tradições segundo as quais tinham vivido até então
não estavam mais em harmonia com suas condições de existência. Ora, o
caso de Sócrates não é isolado; ele se reproduz periodicamente na história. A
liberdade de pensar que desfrutamos atualmente jamais poderia ter sido
proclamada se as regras que a proibiam não tivessem sido violadas antes de
serem solenemente abolidas. Entretanto, naquele momento, essa violação era
um crime, já que era uma ofensa a sentimentos ainda muito fortes na
generalidade das consciências. Todavia esse crime era útil, pois preludiava
transformações que, dia após dia, tornavam-se mais necessárias. A livre
filosofia teve por precursores os heréticos de todo o tipo que o braço secular
justamente perseguiu durante toda a Idade Média, até às vésperas dos tempos
contemporâneos (2014, p. 72).
Vejam o que Durkheim está dizendo: que não fossem os - então chamados -
criminosos, que descumpriram certas leis estatais, não teríamos conquistado, por
exemplo, a liberdade de pensar.

Hoje todos nós desfrutamos do feriado de 21 de abril, em homenagem a


Joaquim José da Silva Xavier, mais conhecido por Tiradentes, considerado herói da
pátria. Pois o feriado ocorre na data em que Tiradentes, então considerado criminoso,
sofreu a pena de morte, em razão de acórdão da Relação Extraordinária do Rio de
Janeiro, de 1792, que ordenou que Joaquim José fosse conduzido,

(...) pelas ruas públicas ao lugar da forca e nella morra morte natural para
sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Villa Rica
aonde em o lugar mais publico della será pregada, em um poste alto até o que
tempo a consuma, e o seu corpo será dividido em quatro quartos, e pregados
em postes, pelo caminho de Minas no sítio da Varginha e das Sebolas aonde
o réu teve suas infames praticas, e os mais nos sítios de maiores povoações
até que o tempo as consuma.

Tiradentes é um herói nacional ou um criminoso?

No Código Criminal de 1830, o primeiro código do Brasil, o artigo 113 punia


com a morte o crime praticado por escravizados que se reuniam e se organizavam para
“haverem a liberdade por meio da força”. A ação dos escravizados é um crime ou uma
luta justa contra um regime escravocrata inaceitável?

Confira o Código Criminal de 1830 aqui:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm.

No mesmo Código, o art. 60 estabelecia que a pena dos escravizados que


praticassem algum crime seria a de açoites, isto é, chicotadas nas costas. Quem era o
criminoso, o açoitador ou o açoitado? Ou seja, o agente estatal ou aquele que estava
sendo punido como criminoso?
Gravura de Debret, 1835.

Nas cidades da fronteira do Rio Grande do Sul, no Brasil, com o Uruguai,


estabelece-se a seguinte situação. Do lado brasileiro, consumir Cannabis sativa, planta
conhecida como Maconha, configura a prática do crime previsto no art. 28, da Lei
11343/06. Mas se o sujeito atravessar a rua e consumir a mesma substância, agora em
território uruguaio, não estará praticando crime algum.

Até mesmo a conduta que pode ser considerada universalmente passível de


responsabilização e punição, a de matar alguém, encontra variações em seu sentido e em
sua reprovabilidade. Aquele que mata pode cometer um gravíssimo homicídio e ser
considerado um criminoso. No entanto, aquele soldado que mata seu semelhante
durante uma guerra, pode ser considerado um herói.

Ou seja, as regras criadas pela sociedade e, no período histórico em que


vivemos, pelo Estado, são relativas e mutáveis. São estas regras que configuram os
crimes. Como, então, definir o objeto da Criminologia?

2. A fundação do Direito Penal Moderno e o surgimento da Criminologia

2.1 O crime e a pena pública: “o confisco do conflito”


Aproximemo-nos de nossa disciplina. Para tanto, precisamos começar de um
ponto, cuja escolha será sempre arbitrária. Acreditamos que a forma mais adequada de
auxiliar a estudante a compreender os temas em questão é apresentá-los na forma
concreta em que eles se colocaram historicamente. E mais ainda, na forma em que se
colocaram do ponto de vista da história do Brasil.

A legislação penal que vigorou no Brasil até o Código Criminal de 1830, ou


seja, no período colonial e nos primeiros anos do império, foi aquela prevista nas
chamadas Ordenações Filipinas, mais especificamente no livro V.

Acesse o Livro V das Ordenações Filipinas aqui:


https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/242733.

As Ordenações Filipinas foram publicadas em 1603, pelo rei Felipe II, durante
o período da união ibérica (entre Espanha e Portugal). Após o fim da união ibérica, o rei
de Portugal, Dom João IV, em 1643, decidiu por “revalidar, confirmar e promulgar” as
Ordenações, de modo que a lei penal tanto de Portugal quanto de sua colônia, o Brasil,
continuou a ser o Livro V. As Ordenações Filipinas podem ser consideradas um
exemplo típico da legislação penal do Estado Absolutista.

Vejamos o que diz Zahidé Machado Neto:

O Livro V, chamado pelos historiadores e comentadores de “catálogo de


monstruosidades”, “código bárbaro”, incumbindo-se do direito penal e
respectivo processo, é um bom reflexo do absolutismo colonialista, da justiça
beata, ritualística, da indiferenciação de princípios religiosos, morais e
propriamente jurídicos (1977, p. 33).

Ao realizar a leitura, ainda que por um breve período, do Livro V das


Ordenações Filipinas, a estudante terá a oportunidade de compreender diversos pontos.
O primeiro é que o poder punitivo, outrora descentralizado, isto é, aplicado localmente
pelos senhores feudais que controlavam suas terras, já está unificado e é monopólio do
Estado, na forma da Monarquia Absolutista.

Portanto, a análise das Ordenações Filipinas permite enxergar o sistema penal


moderno já constituído, em suas bases. Temos aqui construída a noção de crime, como
uma violação da lei estatal. E a pena pública, isto é, uma resposta que é promovida e
executada pelo Estado e pelos seus agentes burocráticos (o incipiente Poder Judiciário),
e não mais pela própria vítima, em contextos de vingança privada.

Seguindo a leitura, a estudante também perceberá outras questões relevantes.


Em primeiro lugar, a crueldade das penas, quase sempre de morte, podendo a pena
capital ser executada das mais variadas maneiras, segundo a gravidade do crime: morte
natural, morte natural cruelmente, morte natural para sempre, morte pela forca, morte
pelo fogo, etc. Nessa mesma toada, o uso da tortura enquanto instrumento processual
para obtenção da confissão e a inexistência da responsabilidade individual, já que a pena
podia atingir os familiares do autor do crime. Em segundo lugar, a indiferenciação entre
o direito, a religião e a moral, já que eram punidas as condutas daqueles que não
professavam a religião oficial do Estado, bem como ações que atentavam à moralidade,
sobretudo na esfera das práticas sexuais, além da punibilidade de meros pensamentos.
Em terceiro lugar, a inexistência da igualdade formal, já que as penas variavam segundo
a condição das pessoas que a praticavam os delitos e da condição das vítimas dos
crimes. E, por fim, as Ordenações ainda não apresentavam uma técnica legislativa, que
permitisse uma análise sistemática, tanto por parte dos doutrinadores quanto dos juízes.

2.2 O Direito Penal Moderno

Como afirmamos, o Livro V das Ordenações Filipinas, legislação hispânico-


portuguesa que também vigorava no Brasil-colônia, representa um exemplo das
legislações penais das Monarquias Absolutistas. As legislações dos demais países
europeus eram muito semelhantes. Foi contra este estado de coisas que diversos
pensadores levantaram-se à época do Iluminismo e da transição ao Estado de Direito. E
destas críticas brotou o direito penal moderno.

A obra mais representativa desta perspectiva fundadora do moderno controle


penal é Dos delitos e das penas, do italiano Cesare Beccaria (1738 – 1794), publicada
em 1764. No primeiro parágrafo de Dos Delitos e Das Penas, Beccaria nos informa que
sua crítica será dirigida à desorganização legislativa, a “esse código sem forma, produto
monstruoso de séculos mais bárbaros”, em verdade “fragmentos da legislação do antigo
povo conquistador, reunidos por ordem de um príncipe que reinou, em Constantinopla,
há doze séculos, juntados depois aos costumes dos lombardos e amortalhados em
volumoso calhamaço de comentários pouco inteligíveis”, que conformam o “acervo de
opiniões que uma grande parte da Europa prestigiou com o nome de leis” (1983, p. 07).
Conforme Gabriel Ignacio Anítua, Beccaria defendia “uma modernização das
penas que levasse em conta, mais uma vez, sua eficácia”, pois acreditava que “os
castigos cruéis são excessivos e contraproducentes, tornam-se insensíveis aos homens e
por isso devem ser substituídos por outros que sejam eficientes na hora de prevenir os
delitos” (2008, p. 163).

Beccaria e outros juristas que, como veremos a seguir, foram chamados de


“clássicos” pelos seus opositores mais jovens, foram os responsáveis pela formulação
dos novos fundamentos do poder punitivo e da justiça criminal: a concepção de crime
como ente jurídico (princípio da legalidade), a responsabilidade penal fundada na
responsabilidade moral derivada do livre arbítrio; as concepções retributivas e utilitárias
(prevenção geral negativa) da função da pena; o processo penal liberal, no qual se
garante ao réu o direito a um julgamento justo, baseado nos princípios da ampla defesa,
do contraditório, do devido processo legal e da presunção de inocência. Ou seja, o que
vislumbramos aqui é a preocupação em limitar o poder punitivo e o arbítrio dos
soberanos, por meio da criação de um sistema de justiça criminal que respeitasse os
direitos e as liberdades do indivíduo.

Do ponto de vista dos fatos históricos, é preciso mencionar que nesse período,
entre os séculos XVIII e XIX, a prisão está se tornando a pena por excelência, diante do
movimento de humanização do sistema penal, que abandona as penas cruéis e
infamantes, sobretudo de morte e corporais. Além disso, estão surgindo os primeiros
Códigos Penais, já com a estrutura e a forma que são adotadas pelas codificações até
hoje.

Retornemos ao caso brasileiro, a partir do qual estamos nos aproximando do


nascimento da Criminologia. Após a independência, ocorrida em 1822, e diante das
novas concepções sobre o Estado e os indivíduos, provenientes as ideais do Iluminismo
que se concretizaram na Revolução Francesa e nas primeiras Declarações de Direitos
dos Homens, as Ordenações Filipinas representavam um evidente anacronismo. Nesse
sentido, a própria Constituição de 1824, a primeira constituição brasileira, programava a
organização de um Código Criminal “fundado nas sólidas bases da justiça e da
equidade”. De maneira que elaborar um Código Criminal foi uma das primeiras tarefas
dos parlamentares brasileiros. A eles cabia o desafio de construir o Estado brasileiro e
sua respectiva legislação criminal sob as bases da tradição iluminista – reconhecimento
dos direitos civis, das liberdades públicas e administração racional da justiça.

A estudante poderá então comparar o Livro V das Ordenações Filipinas


(legislação penal pré-moderna), com o Código Criminal de 1830 (legislação penal
moderna). Neste Código, já estarão consagradas as ideias que sintetizamos acima. Nele
pode-se encontrar consagrado o princípio da legalidade, a noção de proporcionalidade
entre pena e delito, a responsabilidade penal pessoal (ou seja, que só pode ser atribuída
a quem praticou o fato delitivo e a mais ninguém), a suavização das penas, a
diferenciação entre delito consumado e tentado, etc.

Temos, então, constituído, um dos pilares do controle penal moderno: o direito


penal do fato, fundado no princípio da legalidade: crime é aquela conduta prevista em
lei como tal. A pena, que deve ter tempo determinado, deve resultar da prática de um
crime e a responsabilização penal deve ocorrer no contexto de um processo justo,
respeitador dos direitos e garantias do indivíduo. Mas e aquele que pratica o crime, o
criminoso? Ele nascerá juntamente com a Criminologia.

2.3 A fundação da Criminologia – o positivismo criminológico

Até ha pouco, os criminalistas não estudavam o criminoso: concentravam


toda a sua attenção e todo seu esforço dos seus syllogismos no estudo do
crime – por elles considerado, não como episodio revelador d’um modo
de existência, mas simplesmente como uma infração às leis. Não viam do
delicto mais que a sua face jurídica e nem pensavam em procurar-lhe as
raizes profundas no terreno pathologico da degenerescência individual e
social (Enrico Ferri, 1916, p. 23).

A Criminologia inventou o criminoso. O que estamos querendo dizer?


Evidentemente não se trata de afirmar que pessoas não mataram, roubaram,
violentaram, ou que não violaram as mais diversas normas estatais consideradas leis
penais, ao longo da história. Mas até o nascimento da Criminologia, no século XIX,
aqueles que praticavam delitos não eram considerados essencialmente distintos, como
uma variedade de tipo humano, dos honestos cumpridores da lei.

No século XIX, no qual nasce a Criminologia, o direito penal moderno já


estava constituído, conforme vimos. Ou seja, a problemática da limitação do poder
punitivo estatal tendo em vista a tutela das liberdades individuais já tinha sido objeto da
atenção dos legisladores, juízes e juristas.

Contudo, agora a preocupação era outra. Como defender a sociedade das


pessoas que praticam crimes? Vale lembrar que este foi um período de intensas
desordens e de aumento nas estatísticas criminais, fato derivado do crescimento das
cidades e da dinâmica societária gestada pela revolução industrial.

Então, desenha-se a crítica constante no trecho acima epigrafado, escrito pelo


italiano Enrico Ferri, um dos fundadores da Criminologia. Os criminalistas não
estudavam o criminoso, mas apenas o crime. A prática de um crime, por seu turno, não
era considerada um indício do modo de existência do autor do fato, mas uma mera
violação da lei estatal. Os juristas criticados pelo criminólogo preocupavam-se apenas
com a face jurídica do delito, e não estavam interessados em compreender as suas
causas, que deveriam ser procuradas, em primeiro lugar, na própria constituição
biológica e psíquica do – agora – criminoso, e, em segundo lugar, no meio que o cerca.

Nasce, então, o criminoso: um tipo humano específico, anormal. E a


Criminologia, como a ciência que estuda o criminoso, para investigar esta anormalidade
e indicar meios de neutralizá-la, com vistas à defesa da sociedade.

O positivismo criminológico, perspectiva fundadora da Criminologia, foi


elaborado no contexto de um movimento protagonizado por antropólogos, biólogos,
psiquiatras, médicos-legistas, sociólogos, juristas que se interessaram em estudar o
homem criminoso, concebido como uma variedade anormal da espécie humana. E é por
tal motivo, por receber discursos científicos de todas estas áreas, que a Criminologia
também será conhecida por outras denominações, como Biologia Criminal,
Antropologia Criminal ou Sociologia Criminal.

Do ponto de vista da história das ideias, a Criminologia surge embebida pelo


cientificismo próprio do Século XIX, fortemente marcada pelas seguintes perspectivas:

a) O positivismo científico – e seus correlatos, como a


observação e a experimentação.
b) O evolucionismo, que naquele período trabalhava a
partir do o conceito de raça e as noções de
superioridade/inferioridade humana.

c) As ideias de progresso e de controle da natureza por


meio do avanço da ciência.

d) O etnocentrismo europeu neocolonialista, que partia


das noções do racismo científico.

Tratava-se, portanto, de estudar o homem criminoso. Como?

O médico italiano Césare Lombroso foi o precursor. Homem de seu tempo,


Lombroso era herdeiro da chamada frenologia, prática científica que estava interessada
em descobrir relações entre “o desenvolvimento intelectual e a estrutura da caixa
craniana” (DARMON, 1991, p. 19). Tratava-se de estudar o corpo do criminoso, para
nele encontrar marcas de sua condição anormal.

Os juristas que foram responsáveis pela formulação das premissas do direito


penal moderno eram agora chamados de “antigos” ou de “clássicos”, por seus
opositores mais jovens, os criminólogos positivistas. Se a arma dos juristas clássicos, na
crítica ao sistema penal das Monarquias Absolutistas, era as concepções fundadas na
racionalidade das luzes (Iluminismo), a dos positivistas é a concepção de ciência, o
método positivo, que relegava a “metafísica” dos clássicos à condição de ultrapassada.
Sessão de medição antropométrica

Onde encontrar o criminoso, para estudá-lo? Na prisão, evidentemente,


segundo as concepções da época. Lombroso engaja-se no trabalho antropométrico, de
medição do corpo do apenado, para procurar sua especificidade biológica. Vale a pena
acompanhar o que ele contou sobre seu processo de pesquisa, que resultou na
“descoberta” do criminoso nato, conceito formulado pelo médico italiano:

Em 1870, eu prosseguia há vários meses nas prisões e nos hospícios de Pavia,


em cadáveres e em vivos, pesquisas que visavam fixar as diferenças
substanciais entre os loucos criminosos, sem chegar a um resultado: de
repente, numa triste manhã de dezembro, encontro no crânio de um malfeitor
toda uma longa série de anomalias atávicas, sobretudo uma enorme fosseta
occipital média [abertura situada no nível da parte inferior da caixa craniana
que dá passagem ao eixo cérebro-espinal] e uma hipertrofia da fosseta
verminiana [região mediana do cerebelo] análogas às encontradas nos
vertebrados inferiores. À vista dessas estranhas anomalias, como se tivesse
surgido uma grande planície sob um horizonte em chamas, o problema da
natureza a da origem do criminoso pareceu-me resolvido: os caracteres dos
homens primitivos e dos animais deviam reproduzir-se em nosso tempo
(LOMBROSO apud DARMON, 1991, p. 35).
Estava “descoberto” o homem criminoso ou o criminoso nato. Ele era um
“indivíduo meio-homem meio-animal, marcado pelos estigmas atávicos” (DARMON,
1991, p. 35). Em suma, um ser inferior, um resquício do homem primitivo, do
selvagem, que atavicamente ainda habitava o território europeu.

Em torno da “descoberta” do criminoso nato, o eixo da discussão criminal é


deslocado. O que interessa agora não é mais o crime, ente jurídico, abstrato, mas o
criminoso concreto: nele está localizada a causa do crime; ele deve ser curado ou
neutralizado por meio de medidas estatais; ele deve ser o objeto da atenção dos
estudiosos. A prática do crime não resulta da vontade livre daquele que decide se
comportar de modo contrário à lei (livre-arbítrio), mas resulta inexoravelmente de
determinismos, biológicos ou sociais.

Outro importante fundador da Criminologia foi o italiano Enrico Ferri. Ele


dizia que os juristas da agora chamada Escola Clássica, como Beccaria, ocuparam-se
exclusivamente dos crimes e assim deixaram os autores dos crimes, os criminosos, “na
sombra, atribuindo-lhes um typo único e médio de homem como todos os outros”
(1916, p. 24). Contudo, a partir da ação dos criminologistas positivistas, esta situação
estava mudando, pois a “opinião publica começa a considerar os mais célebres
criminosos como creaturas anti-sociaes e perigosas, cuja segregação e cujo tratamento
se impõe, e não como creaturas dotadas somente de uma vontade livre e má” (1916, p.
09).

Em um primeiro momento, a criminologia positivista procurou descobrir as


causas dos crimes na condição biológica do criminoso. Contudo, logo essa perspectiva
unilateral foi criticada, por outros estudiosos que diziam que era preciso levar em conta
aspectos sociais, relativos ao meio em que vivia o criminoso, para a compreensão das
causas dos crimes.

Alexandre Lacassagne, por exemplo, médico-legista de Lyon, na França,


refutou as ideias de Lombroso, já no primeiro Congresso de Antropologia Criminal,
ocorrido em Roma, em 1885. Para Lacassagne não seria possível trabalhar apenas com a
ideia de que a tendência ao crime derivava de características genéticas que o sujeito já
portava ao nascer – o criminoso nato, nascido criminoso. Ele dizia que a “etiologia do
crime teria dois fatores, um individual e outro, mais relevante, que tinha origem social”.
Ou seja, o crime seria causado por fatores endógenos e exógenos.

Ferri também defendia esta posição, sustentando que o criminoso era resultado
de fatores biológicos ou antropológicos e de fatores sociais ou físicos: “os primeiros são
a constituição orgânica, a psíquica, a raça, a idade, o sexo, etc. Os físicos são o clima, o
solo, as estações, e os sociais são a opinião pública, a densidade da população, a
religião, o alcoolismo, a educação, a justiça penal, etc” (ANÍTUA, 2008, p. 312).

Deste debate resulta a síntese: as causas dos crimes derivam de aspectos


exógenos e endógenos, ou, em outras palavras, bioantropológicos e sociais. Trata-se da
chamada concepção biopsicossocial da Criminologia.

2.4 O positivismo criminológico no Brasil: origens da criminologia


brasileira

Portanto, vimos que a Criminologia surge juntamente com o conceito de


criminoso: um sujeito essencialmente distinto dos demais, por motivos biológicos ou
sociais. E mais: o criminoso ou o homem delinquente não apenas é diferente, anormal.
É também inferior.

Estes saberes que estavam em desenvolvimento em território no último quarto


do século dezenove não tardam a chegar ao Brasil.

Se no contexto europeu a problemática criminal estava relacionada com as


desordens produzidas pelo crescimento da cidade e pelas consequências societárias da
revolução industrial, por aqui o problema era outro. Pois estamos falando do período em
que a escravidão estava sendo abolida e estava em curso à transição ao trabalho baseado
na mão de obra assalariada. E então o ponto discutido pelos intelectuais (juristas,
médicos, etc) e pelos políticos era: como reconfigurar o controle social para dar conta
da massa de ex-escravizados, que outrora era controlada pelo chicote, no regime da
escravidão?

Por outro lado, no que toca às ideias, o final do século dezenove marca o auge
das teorias eugênicas e racistas, que partiam da concepção de que existiam raças
superiores e inferiores. A Criminologia (positivista) brasileira nascerá, então, a partir
destas influências. Vai pensar a questão criminal tendo no horizonte o “medo”
relacionado aos então chamados “homens de cor”, agora libertos e considerados
“vadios”, “perigosos”, e as teorias próprias do racismo científico.

O criminólogo mais representativo desta perspectiva foi Raymundo Nina


Rodrigues. Nascido no Maranhão, no ano de 1862, Nina Rodrigues formou-se médico
na Bahia e no Rio de Janeiro, tornando-se, logo após, o professor da cadeira de
medicina-legal da Faculdade de Medicina da Bahia.

Sua principal obra, publicada em 1894, intitulou-se As Raças Humanas e a


Responsabilidade Penal no Brasil, e era dedicada justamente aos criminólogos europeus
de quem falamos no tópico anterior, “chefes da nova escola criminalista”, como Cesare
Lombroso e Enrico Ferri.

No livro, Nina Rodrigues defendia que a população brasileira era formada pela
“raça superior”, os brancos, descendentes de europeus, e as “raças inferiores”, os
indígenas e os negros. E que, ademais, do cruzamento destas “raças” surgiu o mestiço,
que seria também um tipo humano inferior, marcado pela degenerescência. Diante
disso, Nina Rodrigues sustentava que não seria viável que o Brasil tivesse apenas um
Código Penal, válido para todo o território. Seria necessário levar em conta as
diferenças raciais, para que fossem previstas medidas adequadas à cada uma das raças,
que estariam em “distintos estágios do desenvolvimento”. Vejamos o que dizia Nina:

Pode-se exigir que todas estas raças distintas respondam por seus atos perante
a lei com igual plenitude de responsabilidade penal? Acaso, no célebre
postulado da escola clássica e mesmo abstraindo do livre arbítrio
incondicional dos metafísicos, se pode admitir que os selvagens americanos e
os negros africanos, bem como os seus mestiços, já tenham adquirido o
desenvolvimento físico e a soma das faculdade psíquicas, suficientes para
reconhecer, num caso dado, o valor legal do seu ato (discernimento) e para se
decidir livremente a cometê-lo ou não (livre-arbítrio)? Porventura pode-se
conceber que a consciência do direito e do dever que têm essas raças
inferiores, seja a mesma que possui a raça branca civilizada? Ou que pela
simples convivência e submissão, possam aquelas adquirir , de um momento
para outro, essa consciência, a ponto de se adotar para elas conceito de
responsabilidade penal idêntico ao dos italianos, a quem fomos copiar nosso
código? (1894, p. 106).

A partir destas premissas, Nina Rodrigues acreditava que “a civilização ariana


está representada no Brasil por uma fraca minoria de raça branca a quem ficou ao
encargo de defendê-la” (1894, p. 162). As “raças inferiores” representavam um “perigo”
a ser combativo.
Foi neste contexto – o da transição ao “trabalho livre” e de domínio do racismo
científico, no campo das ideias – que surgiu a Criminologia no Brasil. Dentro deste
quadro é que os primeiros criminologistas brasileiros começaram a trabalhar em seus
laboratórios de antropologia criminal, estudando, medindo e observando os supostos
“criminosos” que acabavam por cair em nossas prisões.

2.5 Consequências penais e político-criminais do positivismo criminológico

Então, vestidos com o “uniforme da ciência” e munidos de um “imponente


aparato de números, medições e gráficos”, bem como de crânios, esqueletos e
fotografias de criminosos exemplares, os criminologistas positivistas levaram a cabo
uma “cruzada contra a justiça mística”, que resultou num “violento questionamento do
direito penal clássico” (DARMOM, 1991, p. 140).

A justiça mística era aquela agora chamada de “clássica”, baseada na punição


ao crime praticado, de modo proporcional ao dano gerado, e não baseada nas
características do criminoso. Em síntese, o nascimento da Criminologia produziu os
seguintes deslocamentos na questão criminal:

a) Quanto ao crime: do fato-crime ao homem delinquente

b) Quanto à pena – da responsabilidade moral fundada no livre arbítrio à


responsabilidade social fundada no determinismo. Por consequência, da
punição proporcional ao dano gerado pelo crime ao
tratamento/eliminação baseado na periculosidade do criminoso.

c) Quanto ao método: do método jurídico (silogismo abstrato) ao método


experimental (medição, objetividade e causalidade).

Vejamos mais de perto quais foram as consequências penais e político-


criminais do surgimento da Criminologia, a partir da ascensão das ideias e das práticas
do positivismo criminológico?

Certamente a categoria mais importante formulada pelo positivismo


criminológico foi a de periculosidade/temibilidade. Nesta teoria, o sistema penal não
devia simplesmente punir os crimes de modo abstrato, condenando o autor do ato à pena
prevista em lei para cada tipo de ação. Tratava-se de defender a sociedade do criminoso
e para tanto o crime não era um critério tão importante, a não ser como signo de que por
trás do crime havia um criminoso, potencialmente perigoso. E este criminoso devia ser
tratado ou neutralizado (preso ou morto), segundo as exigências derivadas do seu grau
de periculosidade.

O criminólogo, este novo agente que passa a fazer parte do sistema de justiça
criminal, é justamente aquele capacitado para investigar – biopsicosocialmente – o
criminoso, e com isso medir o seu grau de periculosidade. É por isso que brotaram
inúmeras “classificações dos criminosos”, como a de Enrico Ferri, que os agrupou em
criminoso-nato, criminoso louco, criminoso por hábito adquirido, criminoso passional e
criminoso acidental, possuindo cada um deles características específicas, que devem ser
descobertas para a definição da melhor solução do caso concreto, com vistas à defesa da
sociedade. Outra classificação, mais simples, elaborada neste contexto foi a de
criminosos corrigíveis e incorrigíveis.

Neste modelo, o juiz e a forma tradicional de julgamento – apuração da


responsabilidade pela via de um processo justo – são substituídos por uma técnica
classificatória, protagonizada pela Criminologia. Se as perguntas eram: houve um
crime? Quem praticou o crime? É possível responsabilizá-lo? Qual a pena prevista em
lei para tal crime? Agora passam a ser: houve um crime? Quem praticou o crime? Quem
é este criminoso? Este criminoso é perigoso? Qual a melhor medida para defender a
sociedade deste criminoso?

É claro que estas novas ideias alcançam repercussão penal e político-criminal.


Os criminólogos positivistas chegaram a propor as chamadas medidas pré-delituais, ou
seja, medidas de repressão destinadas a pessoas que ainda não praticaram crime
nenhum, mas que são potencialmente perigosas: melhor encarcera-las antes que
cometam o delito. Do ponto de vista do processo penal, os positivistas defendiam que o
réu deve responder ao processo preso, sempre que for considerado perigoso. No que
toca às penas, os criminólogos da escola positiva formularam a noção de pena
indeterminada ou medida de segurança. Para eles, o criminoso deveria ficar privado de
liberdade enquanto fosse necessário, dada a sua periculosidade potencial. O sujeito
deixa de ser punido pelo que fez e passa a ser reprimido pelo que possa, eventualmente,
fazer no futuro. Além disso, na hipótese do criminoso ser um “corrigível”, os
criminólogos positivistas defendiam o tratamento e a ressocialização.
2.6 Direito Penal e Criminologia

A estudante já deve ter percebido que as premissas da Criminologia Positivista


provocavam uma verdadeira revolução na forma pela qual a justiça criminal era
operada. Como já dissemos, o principal é que a noção de julgamento, baseado na lei e
no caso concreto, e levado a cabo por juristas (juízes, promotores e advogados), era
substituída pelas técnicas de classificação dos criminosos e pela adoção de medidas (e
não penas) adotadas segundo as características de cada delinquente. O criminólogo
substitui o juiz, a criminologia substitui o direito penal.

É neste contexto, no final do século dezenove e início do século vinte, que


ocorre a chamada disputa entre as Escolas Penais, quais sejam a clássica e a positivista.
Ela começa com o ataque dos positivistas, da qual deriva a reação dos clássicos. Pois,
“como se poderia pedir aos magistrados que abdicassem em favor de uma doutrina que
solapava sua razão de ser?” (DARMON, 1991, p. 157). Ou seja, o controle penal
deveria ser gerido pelo direito penal ou pela criminologia? Pelos juristas ou pelos
criminólogos?

Para nossos fins, é suficiente dizer que esta disputa terminou com uma
conciliação. Formulou-se a noção de ciências criminais integradas ou de ciência
conjunta do direito penal, que garantiu a cada uma das disciplinas o seu devido espaço.

Diante desta formulação conciliatória, a Criminologia tornou-se uma ciência


auxiliar do Direito Penal. A questão criminal continuaria a ser operacionalizada segundo
as premissas do Direito Penal, quais sejam a responsabilização punitiva proporcional ao
crime. No entanto, à Criminologia caberia o papel de conselheira da pena, ou seja, ela
seria a responsável por indicar quais as medidas punitivas que deveriam ser adotadas
tendo em vista as características dos criminosos.

Conforme Vera Andrade, no modelo integrado de ciências criminais, então


formulado (conciliação entre as escolas clássica e positivista), “haverá uma divisão
metodológica, cabendo à Criminologia desempenhar uma função auxiliar”, segundo a
dicotomia do ser/dever ser (2013, p. 180). Assim, ao passo que o Direito Penal –
compreendido aqui com ciência do Direito Penal ou Dogmática Penal - será definido
“como Ciência normativa”, que tem por objeto as “normais penais e por método o
técnico-jurídico, de natureza lógico-abstrata, interpretando e sistematizando o Direito
Penal positivo (mundo do dever-ser), para instrumentalizar sua aplicação com segurança
jurídica”, a Criminologia, “definida como Ciência causal-explicativa, terá por objeto o
fenômeno da criminalidade (legalmente definido e delimitado pelo Direito Penal),
investigando suas causas segundo o método experimental (mundo do ser)”, a partir dos
resultados empíricos provenientes dos estudos biopsicossociais acerca dos criminosos
(2013, p. 180).

Retornando à forma de abordagem que utilizamos anteriormente, cabe analisar


de que maneira esta conciliação se concretizou na legislação penal brasileira. No
Código Penal de 1940, que foi o primeiro elaborado após o nascimento da
Criminologia, fica nítida a maneira pela qual Direito Penal e Criminologia se
organizaram no contexto do controle estatal do crime.

Para conferir a versão original do Código Penal de 1940, clique aqui:


https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-
dezembro-1940-412868-publicacaooriginal-1-pe.html.

A estudante que analisar o Código Penal de 1940 vai notar que, em primeiro
lugar, temos a conceituação jurídica do crime, as penas e os crimes em espécie, com
penas fixadas na lei (tempo máximo e mínimo de reclusão). Contudo, seguindo a leitura
e chegando aos artigos 75 e seguintes, notará que as penas (própria do direito penal
moderno), conviviam com as medidas de segurança (propostas da Criminologia
positivista).

As medidas de segurança não eram aplicadas, como acontece hoje, apenas em


relação aos inimputáveis, mas também aos imputáveis que eram considerados
perigosos, mesmo que tivessem sido absolvidos ou já tivessem cumprido a pena. O art.
77 estabelecia que: “Quando a periculosidade não é presumida por lei, deve ser
reconhecido perigoso o indivíduo, se a sua personalidade e antecedentes, bem como os
motivos e circunstâncias do crime autorizam a suposição de que venha ou torne a
delinquir”. O art. 79 estabelecia que a medida de segurança poderia ser imposta na
sentença condenatória ou absolutória. E o art. 81 estabelecia que a medida de segurança
só poderia ser revogada quando da cessação da periculosidade do agente, a ser atestada
por “exame do indivíduo”.

Ou seja, aqui estão consagradas as propostas do positivismo criminológico: a


duração indeterminada da reprimenda estatal, baseada não no crime, mas na
periculosidade do agente e na presunção de que este voltará a delinquir. Nesse sentido,
até mesmo indivíduos absolvidos, mas considerados perigosos, nos termos de exames
criminológicos, poderiam ser submetidos a medidas de segurança.

Este sistema vigorou até a reforma da parte geral do Código Penal, ocorrida em
1984. A partir de então, a medida de segurança pode ser aplicada apenas a inimputáveis.
No entanto, o conceito de periculosidade, o mais importante da Criminologia
positivista, segue a fundamentar decisões judiciais que provocam o encarceramento de
pessoas, já que uma significativa parte das prisões preventivas no Brasil – lembremos
que em nosso país aproximadamente metade das pessoas que estão presas ainda não
foram julgadas – é decretada com base na noção de periculosidade e na presunção de
reincidência.

3. O objeto e o método da Criminologia

Podemos então retornar ao ponto que colocamos no início do capítulo. Qual o


objeto e o método da Criminologia?

Esta pergunta, por enquanto, só poderá ser respondida parcialmente. É que o


objeto e o método da Criminologia foram mudando ao longo do tempo, de modo que o
ponto voltará a entrar em pauta no próximo capítulo, quando conhecermos um pouco
mais o que ocorreu no século XX, no que toca às teorias criminológicas.

Em sua fundação, como vimos, a Criminologia tem por objeto o criminoso e a


criminalidade. Por meio do estudo empírico do criminoso e da criminalidade, fundado
em métodos provenientes da biologia, da antropologia (criminal) e da sociologia, tem
por objetivo descobrir as causas dos crimes e, com isso, formular os melhores meios
para combatê-los.

Segundo Vera Regina Pereira de Andrade, esta forma de entender a questão


criminal constituiu um paradigma, o paradigma etiológico:
Na base deste paradigma, a Criminologia (por isso mesmo positivista) é
definida como uma Ciência causal-explicativa da criminalidade; ou seja, que
tendo por objeto a criminalidade concebida como um fenômeno natural,
causalmente determinado, assume a tarefa de explicar as suas causas segundo
o método científico ou experimental e o auxílio das estatísticas criminais
oficiais e de prever os remédios para combatê-la. Ela indaga,
fundamentalmente, o que o homem (criminoso) faz e por que o faz (2003, p.
35).

Mas será que é possível estudar o “criminoso”? O que aconteceria com uma
ciência que tem por objeto o criminoso, na hipótese de uma conduta ser
descriminalizada? Além disso, como saber quem são os criminosos? Não existem
inúmeras pessoas que praticam crimes e jamais são descobertas? Como elas poderiam
ser objeto de estudo de uma ciência? E se uma pessoa estiver presa, mas for inocente,
ela é uma criminosa? O que é crime ou não depende de um ato político-estatal, a
criminalização. Se alguém será considerado criminoso ou não depende de outro ato
político-estatal, que é essa pessoa ser descoberta pelo Estado – quer dizer, que seja
criminalizada. Por isso, a questão sobre o objeto da Criminologia permanecerá em
aberto.

REFERÊNCIAS

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códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2003a.

______________________________. Por que a Criminologia (e qual Criminologia)


é importante no ensino jurídico? In Revista Jurídica da Universidade do Sul de Santa
Catarina, v. 3, n. 6, 2013.

ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de


Janeiro: Revan/ICC, 2008.
BATISTA, Nilo. Práticas Penais no Direito Indígena. In: Revista Brasileira de Direito
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BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Hemus, 1983.

BEVILAQUA, Clovis. Criminologia e Direito. Rio de Janeiro: Revan, 2019.

DARMON, Pierre. Médicos e assassinos na Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
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DURKHEIM, Emile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes,


2014.

FERRI, Enrico. Os criminosos na arte e na literatura. Lisboa: Livraria Clássica


Editora de A. M. Teixeira, 1916.

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Vozes, 2001.

MACHADO NETO, Zahidé. Direito Penal e estrutura social: comentário sociológico


ao Código criminal de 1830. São Paulo: Saraiva/Editora da Universidade de São
Paulo, 1977.

MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 8. ed. rev.,
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NINA RODRIGUES, Raimundo. As raças humanas e a responsabilidade penal no


Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Progresso Editora, 1894.

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