APOSTILACRIMINOLOGIA
APOSTILACRIMINOLOGIA
APOSTILACRIMINOLOGIA
1. Introdução à Criminologia
A maneira pela qual estas regras sociais são criadas e que as consequências
pela sua inobservância são operacionalizadas também já assumiu diversas
características distintas, e outras tantas ainda estão por ser inventadas no decorrer do
tempo histórico. Não entraremos nos detalhes destes apaixonantes assuntos próprios da
História do Direito, mas alguns exemplos nos ajudarão nesta caminhada rumo ao objeto
e o método da Criminologia.
“Quem ferir alguém, de modo que este morra, certamente será morto”.
Mas o que é crime? O que deve ser crime? Esta pergunta, aparentemente banal,
nos ajuda sensivelmente. O sociólogo francês Émile Durkheim, na obra As regras do
método sociológico, publicada em 1895, ponderou o seguinte:
Quantas vezes, com efeito, o crime não é senão uma antecipação da moral
por vir, um encaminhamento em direção ao que será! De acordo com o
direito ateniense, Sócrates era um criminoso e sua condenação simplesmente
justa. No entanto seu crime, a saber, a independência de seu pensamento, era
útil, não somente à humanidade, mas á sua pátria. Pois ele servia para
preparar uma moral e uma fé novas, das quais os atenienses tinham então
necessidade, porque as tradições segundo as quais tinham vivido até então
não estavam mais em harmonia com suas condições de existência. Ora, o
caso de Sócrates não é isolado; ele se reproduz periodicamente na história. A
liberdade de pensar que desfrutamos atualmente jamais poderia ter sido
proclamada se as regras que a proibiam não tivessem sido violadas antes de
serem solenemente abolidas. Entretanto, naquele momento, essa violação era
um crime, já que era uma ofensa a sentimentos ainda muito fortes na
generalidade das consciências. Todavia esse crime era útil, pois preludiava
transformações que, dia após dia, tornavam-se mais necessárias. A livre
filosofia teve por precursores os heréticos de todo o tipo que o braço secular
justamente perseguiu durante toda a Idade Média, até às vésperas dos tempos
contemporâneos (2014, p. 72).
Vejam o que Durkheim está dizendo: que não fossem os - então chamados -
criminosos, que descumpriram certas leis estatais, não teríamos conquistado, por
exemplo, a liberdade de pensar.
(...) pelas ruas públicas ao lugar da forca e nella morra morte natural para
sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Villa Rica
aonde em o lugar mais publico della será pregada, em um poste alto até o que
tempo a consuma, e o seu corpo será dividido em quatro quartos, e pregados
em postes, pelo caminho de Minas no sítio da Varginha e das Sebolas aonde
o réu teve suas infames praticas, e os mais nos sítios de maiores povoações
até que o tempo as consuma.
As Ordenações Filipinas foram publicadas em 1603, pelo rei Felipe II, durante
o período da união ibérica (entre Espanha e Portugal). Após o fim da união ibérica, o rei
de Portugal, Dom João IV, em 1643, decidiu por “revalidar, confirmar e promulgar” as
Ordenações, de modo que a lei penal tanto de Portugal quanto de sua colônia, o Brasil,
continuou a ser o Livro V. As Ordenações Filipinas podem ser consideradas um
exemplo típico da legislação penal do Estado Absolutista.
Do ponto de vista dos fatos históricos, é preciso mencionar que nesse período,
entre os séculos XVIII e XIX, a prisão está se tornando a pena por excelência, diante do
movimento de humanização do sistema penal, que abandona as penas cruéis e
infamantes, sobretudo de morte e corporais. Além disso, estão surgindo os primeiros
Códigos Penais, já com a estrutura e a forma que são adotadas pelas codificações até
hoje.
Ferri também defendia esta posição, sustentando que o criminoso era resultado
de fatores biológicos ou antropológicos e de fatores sociais ou físicos: “os primeiros são
a constituição orgânica, a psíquica, a raça, a idade, o sexo, etc. Os físicos são o clima, o
solo, as estações, e os sociais são a opinião pública, a densidade da população, a
religião, o alcoolismo, a educação, a justiça penal, etc” (ANÍTUA, 2008, p. 312).
Por outro lado, no que toca às ideias, o final do século dezenove marca o auge
das teorias eugênicas e racistas, que partiam da concepção de que existiam raças
superiores e inferiores. A Criminologia (positivista) brasileira nascerá, então, a partir
destas influências. Vai pensar a questão criminal tendo no horizonte o “medo”
relacionado aos então chamados “homens de cor”, agora libertos e considerados
“vadios”, “perigosos”, e as teorias próprias do racismo científico.
No livro, Nina Rodrigues defendia que a população brasileira era formada pela
“raça superior”, os brancos, descendentes de europeus, e as “raças inferiores”, os
indígenas e os negros. E que, ademais, do cruzamento destas “raças” surgiu o mestiço,
que seria também um tipo humano inferior, marcado pela degenerescência. Diante
disso, Nina Rodrigues sustentava que não seria viável que o Brasil tivesse apenas um
Código Penal, válido para todo o território. Seria necessário levar em conta as
diferenças raciais, para que fossem previstas medidas adequadas à cada uma das raças,
que estariam em “distintos estágios do desenvolvimento”. Vejamos o que dizia Nina:
Pode-se exigir que todas estas raças distintas respondam por seus atos perante
a lei com igual plenitude de responsabilidade penal? Acaso, no célebre
postulado da escola clássica e mesmo abstraindo do livre arbítrio
incondicional dos metafísicos, se pode admitir que os selvagens americanos e
os negros africanos, bem como os seus mestiços, já tenham adquirido o
desenvolvimento físico e a soma das faculdade psíquicas, suficientes para
reconhecer, num caso dado, o valor legal do seu ato (discernimento) e para se
decidir livremente a cometê-lo ou não (livre-arbítrio)? Porventura pode-se
conceber que a consciência do direito e do dever que têm essas raças
inferiores, seja a mesma que possui a raça branca civilizada? Ou que pela
simples convivência e submissão, possam aquelas adquirir , de um momento
para outro, essa consciência, a ponto de se adotar para elas conceito de
responsabilidade penal idêntico ao dos italianos, a quem fomos copiar nosso
código? (1894, p. 106).
O criminólogo, este novo agente que passa a fazer parte do sistema de justiça
criminal, é justamente aquele capacitado para investigar – biopsicosocialmente – o
criminoso, e com isso medir o seu grau de periculosidade. É por isso que brotaram
inúmeras “classificações dos criminosos”, como a de Enrico Ferri, que os agrupou em
criminoso-nato, criminoso louco, criminoso por hábito adquirido, criminoso passional e
criminoso acidental, possuindo cada um deles características específicas, que devem ser
descobertas para a definição da melhor solução do caso concreto, com vistas à defesa da
sociedade. Outra classificação, mais simples, elaborada neste contexto foi a de
criminosos corrigíveis e incorrigíveis.
Para nossos fins, é suficiente dizer que esta disputa terminou com uma
conciliação. Formulou-se a noção de ciências criminais integradas ou de ciência
conjunta do direito penal, que garantiu a cada uma das disciplinas o seu devido espaço.
A estudante que analisar o Código Penal de 1940 vai notar que, em primeiro
lugar, temos a conceituação jurídica do crime, as penas e os crimes em espécie, com
penas fixadas na lei (tempo máximo e mínimo de reclusão). Contudo, seguindo a leitura
e chegando aos artigos 75 e seguintes, notará que as penas (própria do direito penal
moderno), conviviam com as medidas de segurança (propostas da Criminologia
positivista).
Este sistema vigorou até a reforma da parte geral do Código Penal, ocorrida em
1984. A partir de então, a medida de segurança pode ser aplicada apenas a inimputáveis.
No entanto, o conceito de periculosidade, o mais importante da Criminologia
positivista, segue a fundamentar decisões judiciais que provocam o encarceramento de
pessoas, já que uma significativa parte das prisões preventivas no Brasil – lembremos
que em nosso país aproximadamente metade das pessoas que estão presas ainda não
foram julgadas – é decretada com base na noção de periculosidade e na presunção de
reincidência.
Mas será que é possível estudar o “criminoso”? O que aconteceria com uma
ciência que tem por objeto o criminoso, na hipótese de uma conduta ser
descriminalizada? Além disso, como saber quem são os criminosos? Não existem
inúmeras pessoas que praticam crimes e jamais são descobertas? Como elas poderiam
ser objeto de estudo de uma ciência? E se uma pessoa estiver presa, mas for inocente,
ela é uma criminosa? O que é crime ou não depende de um ato político-estatal, a
criminalização. Se alguém será considerado criminoso ou não depende de outro ato
político-estatal, que é essa pessoa ser descoberta pelo Estado – quer dizer, que seja
criminalizada. Por isso, a questão sobre o objeto da Criminologia permanecerá em
aberto.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima:
códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2003a.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Hemus, 1983.
DARMON, Pierre. Médicos e assassinos na Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1991.
MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 8. ed. rev.,
atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.