TCC VICTORIA RANGEL

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE HUMANIDADES E SAÚDE


CURSO DE GRADUAÇÃO EM PRODUÇÃO CULTURAL

VICTÓRIA RANGEL DA SILVA COSTA

“NÃO PERMITA QUE OS BASTARDOS REDUZAM VOCÊ A CINZAS”: UMA


ANÁLISE FOUCAULTIANA DE “O CONTO DA AIA” E “OS TESTAMENTOS”

RIO DAS OSTRAS


2023
VICTÓRIA RANGEL DA SILVA COSTA

“NÃO PERMITA QUE OS BASTARDOS REDUZAM VOCÊ A CINZAS”:


UMA ANÁLISE FOUCAULTIANA DE “O CONTO DA AIA” E “OS
TESTAMENTOS”

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


Curso de Produção Cultural do Departamento
Artes e Estudos Culturais da Universidade
Federal Fluminense como requisito para a
obtenção do título de Bacharel em Produção
Cultural.

Orientador: Prof. Dr. Ericson Telles Saint Clair

RIO DAS OSTRAS


2023
AGRADECIMENTOS

Primeiramente, gostaria de agradecer a mim. Duvidei mil vezes, e, nas mil,


superei.

Agradeço a minha mãe e meu pai, Jurema e Victor, pelo incentivo aos meus
estudos. À sua maneira.

Ao meu orientador, Ericson Saint Clair, que teve toda a paciência e dedicação para
me indicar os caminhos possíveis.

Ao meu grande amor, Gustavo, que vibrou a cada parágrafo escrito e acreditou
em mim, até mesmo quando eu desacreditava.

Por último, agradeço a Universidade Federal Fluminense, do campus de Rio das


Ostras ao IACS, por se tornarem uma das minhas casas. Minha melhor escolha
acadêmica.
Eu te imagino como uma moça, inteligente, ambiciosa. Você vai
estar tentando encontrar um nicho seu seja lá em que grutas
acadêmicas obscuras e cheias de ecos que ainda persistam na
sua época. Eu te vejo em sua escrivaninha, cabelo enfiado atrás
da orelha, esmalte lascado nas unhas porque o esmalte vai ter
voltado, ele sempre volta. Você está franzindo um pouco a testa,
um hábito que vai piorar com a idade. Eu pairo sobre seus
ombros, espiando: sua musa, sua inspiração invisível, instando-
a a trabalhar.

Margaret Atwood
RESUMO

O presente trabalho constitui-se como uma interpretação foucaultiana das relações de


poder; presentes nas narrativas literárias distópicas. Para isso, buscou-se, como objeto de
estudo, explorar os romances O Conto da Aia (1985) e Os Testamentos (2019) da autora
Margaret Atwood. Para atingir tal objetivo, foi feita uma livre interpretação dos aspectos
das obras distópicas de Atwood, se debruçando sobres os estudos socioculturais acerca
das relações de poder e estratégias de resistência, pautados por Michel Foucault.
Outrossim, de maneira a proporcionar um melhor entendimento a respeito da distopia
como gênero literário, foi traçado, inicialmente, um conciso panorama da distopia
enquanto ferramenta de análise da modernidade, delineando uma comparação com a
utopia, além de ser abordado a maneira como tais obras são influenciadas pela sociedade
moderna.

Palavras-chave: Distopia. Margaret Atwood. Poder. Resistência.


ABSTRACT

This final paper consists in a Foucauldian interpretation of power relations; as seen in


some dystopian literary narratives. To this end, it was sought, as an object of study, to
explore the novels of The Handmaid's Tale (1985) and The Testaments (2019) by the
author Margaret Atwood. To achieve this goal, a free interpretation of Atwood's dystopian
works was made, focusing on sociocultural studies about power relations and resistance
strategies, guided by Michel Foucault. Furthermore, as a way to provide a better
understanding of dystopia as a literary genre, a concise overview of dystopia was initially
written, particularly as a tool for analyzing modernity, outlining a comparison with utopia,
as well as addressing the way in which such works are influenced by modern society.

Keywords: dystopia. Margaret Atwood. Power. Resistance.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 7
CAPÍTULO I - DISTOPIAS E OS CONCEITOS FOUCAULTIANOS ...................... 11
1.1 Distopia e Utopia: entre o presente e o futuro ........................................................ 11
1.2 Distopias e as relações de poder ............................................................................ 13
1.3 Discurso e verdade nas narrativas distópicas.......................................................... 16
CAPÍTULO II – O CONTO DA AIA: RELAÇÕES DE PODER E RESISTÊNCIA ... 20
2.1 Sob o Olho Dele: métodos de poder disciplinar ..................................................... 23
2.2 Nolite te bastardes carborundorum: métodos de resistência ................................... 27
CAPÍTULO III – OS TESTAMENTOS: RELAÇÕES DE PODER, DISCUROS E
RESISTÊNCIA ........................................................................................................... 33
3.1 Estou inchada de poder: Sujeito subjugado ............................................................ 36
3.2 Não há certa liberdade nisso? : Discurso de resistência .......................................... 41
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 47
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 49
7

INTRODUÇÃO

Há uma dança entre a arte e a vida. De guerras aterrorizantes a romances secretos,


obras artísticas podem atuar como um instrumento crítico-social. É através de quadros,
esculturas, filmes, músicas e livros que as representações culturais são refletidas. Dentre
suas inúmeras possibilidades, arte possui um papel facilitador para a compreensão de
acontecimentos e movimentos que contribuíram para a constante formação social. As
obras artísticas, em questão, são obras culturais, e atuam como meios de construção,
expressão e transformação de uma cultura. É através da arte que o passado e o futuro se
encontram.
Esta monografia tem como objeto de estudo a duologia distópica da autora
Margaret Atwood, O Conto da Aia (2017) e Os Testamentos (2019). A primeira obra em
questão, O Conto da Aia, publicada em 1985, atua como uma resposta literária às políticas
conservadoras da época. É considerado o romance mais famoso da autora, sendo
traduzido em dezenas de línguas e adaptado para filme em 1990, e para série em 2017,
que tomou grande proporção. Narrado por Offred, uma Aia que tem como função a
procriação, o romance se passa em um futuro que tem como cenário uma ditadura
teocêntrica, a República de Gilead, na qual mulheres são anuladas por uma opressão
extrema conservadora, e cidadãos considerados criminosos são fuzilados como exemplo
e pendurados mortos à vista de todos.
A sequência, Os Testamentos, chegou nas prateleiras em 2019, novamente em um
contexto de fortes ideais conservadores. Os eventos do segundo livro ocorrem quinze
anos após o primeiro, e, apesar das tentativas de desmantelamento, a ditadura de Gilead
permanece, porém sorrateiramente os caminhos para sua derrubada estão sendo traçados.
A narrativa é dividida por três mulheres distintas, duas delas tendo nascido em lados
opostos: Agnes nasceu em Gilead e Daisy no Canadá. Os testamentos das duas são
entrelaçados pela terceira narradora, através de um manuscrito, uma mulher de forte
importância para o regime da República de Gilead.
A canadense Margaret Eleanor Atwood é autora de dezenas de livros, dos mais
diferentes estilos, entre eles poesia, ensaios, ficção e não ficção. Atwood explora a
subjetividade e a verdade, ou a falta dela, em obras como Vulgo Grace, adaptada para
minissérie pela Netflix. O romance que deu origem à minissérie lhe rendo o Prêmio Giller
no Canadá. Ademais, a duologia em questão não é sua única narrativa distópica. Há ainda
8

a trilogia MaddAddão, com fortes características da ficção científica, que também levanta
significativos questionamentos a respeito da subjetividade e da sociedade atual. Atwood
elucida, através de suas histórias, o impetuoso caminho traçado pelos humanos.
A escolha desses dois romances foi influenciada por diversas questões levantadas
na minha primeira leitura de Os Testamentos. Naquele momento, me questionei: quais
seriam as forças aplicadas em uma sociedade alvo de uma imposição de um governo
autoritário? Como seria possível o manuseio de um corpo para se conviver no novo
regime instaurado de forma mansa? Para um sujeito nascido nessa conjuntura, quais
seriam os efeitos da doutrina difundida em seu íntimo? E a questão, considerada por mim,
mais insistente: Como quebrar essas correntes? Foi através desses questionamentos que
decidi me debruçar de forma mais analítica aos romances de Atwood.
Ao final das narrativas de cada um dos livros, ocorre um simpósio. Na primeira
obra, a última parte do livro é nomeada como “Notas Históricas Sobre O Conto da Aia”,
e nessas Notas Histórias está transcrito o “Décimo Simpósio sobre Estudos de Gilead”,
que se passa em 25 de junho de 2195. O evento tem como propósito debater sobre
artefatos encontrados da época da República de Gilead. O mesmo ocorre na sequência,
Os Testamentos, em cuja última parte há a transcrição do “Décimo Terceiro Simpósio”.
Entretanto, devo assinalar que não exploraremos os simpósios nesta monografia, visto
que procuramos estabelecer um diálogo direto com nas narradoras, e enxergar, através
delas, e não de outros, como ocorre nas conferências, como ocorrem a realização dos
mecanismos de poderes, visto que os congressos são narrados por terceiros.
A escolha das obras literária como objeto desta monografia, em vez da famosa
série de televisão The Handmaid’s Tale, estreada em 2017, não se dá por uma
desconsideração de minha parte a respeito da forte influência do audiovisual no âmbito
social. Contudo, privilegiei neste trabalho o enfoque no setor literário como local de uma
leitura crítica e ponderada. As adaptações audiovisuais de livros passam por diversos
setores antes de chegarem ao público, e, cada setor insere, na obra, seu próprio olhar. São
feitos cortes e acréscimos na história original até ficar como é objetivada, e chega para os
espectadores através de outros olhos. Não ocorre, na série, um canal direto e sem
interferências entre emissor e receptor. Por tal questão, achei mais plausível usar como
meu objeto de estudo obras literárias ao invés de episódios: a ligação entre autor e receptor
permanece mais íntima, tendo no discurso um espaço especial para análise.
Dividiremos o primeiro capítulo deste trabalho de conclusão de curso em três
tópicos. O primeiro possui como finalidade estabelecer as narrativas no gênero literário
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distópico, e para isso trabalharemos os conceitos de utopia e distopia através Leomir


Hilário (2013), Fátima Vieira (2010) e Jacoby (2007). No segundo tópico, apresentaremos
as noções de Michel Foucault a respeito das técnicas de controle da sociedade, e, para
isso usaremos como base a obra Vigiar e Punir (1987). No tópico seguinte, abordaremos
as dinâmicas do saber e da verdade, utilizando como respaldo o livro A Arqueologia do
Saber (2008) e A Ordem do Discurso (1996), de Foucault. Evidenciaremos, de forma
breve, as noções foucaultianas em outras obras distópicas dispostas.
Discorreremos, no segundo capítulo, especificamente, a respeito do primeiro
objeto de estudo, O Conto da Aia (2017). Iniciaremos por uma apresentação estrutural da
sociedade, percorrendo as supostas causas e justificativas que apoiam a doutrina
teocêntrica de Gilead. Faremos uma identificação das castas, explicando as vestimentas
e quais são as funções sociais dos integrantes. Em seguida, dividiremos o capítulo em
dois tópicos. Na análise de ambos, iremos recorrer ao filósofo Michel Foucault em seus
notórios estudos socais. No primeiro, trataremos a respeito de métodos de poder
disciplinar para vislumbrar, na narrativa de Atwood, os processos disciplinadores
aplicados em e por seus personagens, e, para isso, voltaremos a Vigiar e Punir (1987). No
segundo tópico, pautaremos os dos métodos de resistência utilizados pela personagem,
fazendo uso dos estudos de Foucault para nossa interpretação.
No terceiro capítulo, analisaremos estritamente o segundo objeto de estudo, Os
Testamentos (2019). Faremos uma apresentação individual das narradoras da obra, além
das alternâncias da narrativa e da organização social de Gilead. Posteriormente,
separaremos o capítulo e dois tópicos. No primeiro tópico, discorreremos sobre o sujeito
subjugado presente na narrativa de Atwood, e traremos as ideias de Foucault como
sustentação. No tópico seguinte, abordaremos sobre o discurso e os movimentos de
resistências praticados pelas personagens da obra distópica, dispondo novamente das
noções foucaultianas.
Inspirada pelas reflexões variadas de Foucault acerca das relações de poder, e
através de uma interpretação livre das obras distópicas, teremos condições de enriquecer
hipóteses para tocar as questões levantadas: Quais forças são aplicadas em uma sociedade
durante um governo absoluto? Como um corpo deve ser manipulado para se tornar dócil?
Como se dá a doutrina inserida no íntimo de um sujeito? E, como tais relações de poder
podem ser alteradas? Entenderemos como tais feitos ocorrem da duologia de Margaret
Atwood, e, partindo da ideia de que há uma dança entre a arte e a vida, como sucedem na
atualidade. Afirma Atwood, em um comunicado divulgado por sua editora, ao anunciar
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Os Testamentos: “Caros leitores: Tudo o que vocês me perguntaram sobre Gilead e seu
funcionamento interno é a inspiração para este livro. Bem, quase tudo! A outra inspiração
é o mundo em que vivemos”.
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CAPÍTULO I - DISTOPIAS E OS CONCEITOS FOUCAULTIANOS


“Qual é o pouco da distopia escondido dentro de tais visões utópicas do corpo humano e mente
aperfeiçoada? O tempo vai dizer”
(Margaret Atwood, em Cartografias horrendas)

Neste primeiro capítulo trabalharemos os conceitos de utopia e distopia com o


propósito de compreender funções das narrativas no gênero literário distópico, realizando
sua contextualização. Seguidamente apontaremos as teorias as quais serão usadas para
pautar a análise literária e apresentaremos os conceitos de Foucault a respeito das relações
de poder e suas estratégias. Também abordaremos sobre a função e utilização do discurso
e da verdade para o filósofo, e como tais teorias podem ser observadas em obras literárias
distópicas.

1.1 Distopia e Utopia: entre o presente e o futuro

Caminhando entre as arenas de Jogos Vorazes, ou as cidades abandonadas de


Oryx e Crake, as literaturas distópicas se moldam não apenas a inúmeros leitores, sendo
eles dos jovens adolescentes aos ávidos pesquisadores, mas também se adéquam ao hoje.
Na última década, o gênero distopia tomou também as telas de cinemas com as sagas
Jogos Vorazes e Divergente. Apesar de seu sucesso mercadológico nos últimos anos, a
temática não é atual. Por exemplo, temos como grandes obras distópicas os livros:
Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley e 1984 (1987), de George Orwell que,
apesar de não serem os primeiros com características distópicas, são frequentemente
citados como os modelos mais influentes do gênero.
Em seu artigo, Teoria Crítica e Literatura, Leomir Hilário (2013) destaca que a
palavra distopia etimologicamente é formada pelo prefixo dis (anormal, doente,
dificuldade ou mau funcionamento) mais topos (lugar). Ou seja, um lugar que possui mau
funcionamento, de uma forma mais informal, é tomado como um futuro que deu errado.
Esse entendimento faz supor que a distopia seria o antônimo de utopia, uma
incompreensão inicial. Hilário (2013) afirma que “a distopia não é contrária de utopia,
não se configura enquanto antiutopia”. Há uma relação entre utopia e distopia, de acordo
com Buchweitz (2020 apud Sargent, 2010): “O utópico vê a humanidade e seu futuro com
esperança ou alarme. Se visto com esperança, o resultado geralmente é uma utopia. Se
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visto com alarme, o resultado geralmente é uma distopia”. Entende-se a partir dessa
afirmação que a distopia parte da utopia, é necessária a utopia para o surgimento da
distopia.
No ensaio The Concept of Utopia, de Fátima Vieira (2010) aborda que,
etimologicamente, a utopia é um não-lugar, constituído simultaneamente por um
movimento de afirmação e negação. Vieira faz essa afirmação baseada em Thomas More,
que em seu livro Utopia (1516), gera a palavra formada por u (prefixo com conotação
negativa) + topos (lugar), lugar nenhum. Se não há nada, existe a possibilidade do
negativo e do positivo, sem se anular, coexistindo entre si. Isto é, a distopia e a utopia não
são opostas, não se anulam, mas há diferença entre elas. Segundo Jacoby (2007), “as
utopias buscam a emancipação ao visualizar um mundo baseado em ideias novas,
negligenciadas ou rejeitadas; as distopias buscam o assombro, ao acentuar tendências
contemporâneas que ameaçam a liberdade”.
A utopia, no âmbito literário, é uma procura por sanar os problemas político-
sociais vigentes, visando uma sociedade vivendo em harmonia. Vieira alude que:

Uma das principais características da utopia como gênero literário é sua relação
com a realidade. Os utopistas partem da observação da sociedade em que
vivem, anotam os aspectos que precisam ser mudados e imaginam um lugar
onde esses problemas foram resolvidos. Muitas vezes, a sociedade imaginada
é o oposto do real, uma espécie de imagem invertida. (VIEIRA, 2010, p.8)

Vemos assim um ponto em comum entre os dois termos: ambos buscam elaborar
diagnóstico para as complicações no presente, a partir da identificação dos geradores.
Enquanto a utopia apresenta uma alternativa visando a um modelo de sociedade a ser
alcançado, esperançoso, partindo do presente para o futuro, a distopia faz o movimento
ao contrário, utilizando a abordagem sugestiva, um avisamento, partindo do futuro para
o presente. A distopia não procura a solução no futuro, e sim na atualidade. A literatura
distópica possui como objetivo avisar dos grandes perigos existentes que rodeiam as
sociedades contemporâneas, baseado nos acontecimentos atuais. Para Hilário (2013), “o
romance distópico pode então ser compreendido enquanto aviso de incêndio, o qual busca
chamar a atenção para que o acontecimento perigoso seja controlado, e seus efeitos,
embora já em curso, sejam inibidos”.
Esse movimento de alerta é resultante de um contexto histórico. Por mais que o
termo tenha surgido anteriormente ao século XX, foi durante esse século que as grandes
obras literárias distópicas foram produzidas, algumas já citadas anteriormente, como:
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Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley; 1984 (1949), de George Orwell,
Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury e O Conto da Aia (1985), de Atwood. Inseridos
em uma conjuntura de regimes políticos autoritários, em que consequentemente há
genocídios, guerras, violência estatal, a literatura distópica surge da compreensão do
mundo através das narrativas, inspirada por uma sociedade marcada por violência e
desiludida com a humanidade. “Com a primeira e a segunda Guerra Mundial, a epidemia
de gripe, a Depressão, a Guerra da Coréia, a guerra no Vietnã e outros eventos do século
XX, as distopias se tornaram a forma dominante de literatura utópica” (BUCHWEITZ,
2020 apud SARGENT, 2010).
As obras literárias utópicas também surgiram dentro de um cenário histórico,
durante o século XVI. Thomas More, o criador do termo, foi influenciado pelas
transformações sociais oriundas das grandes navegações. Entretanto, o sonho social com
a ideia de um lugar feliz, embasada pelo sentimento de esperança, existia antes, como,
por exemplo, A República (século IV a.C), de Platão, na qual a ideia trabalhada é a de
polis perfeita, uma convivência de harmonia entre os habitantes. Vieira (2010) ressalta
que Platão e More imaginaram caminhos alternativos para organizar a sociedade, eles
recorreram à ficção para estudar as possibilidades. A utopia vem sendo construída e
reconstruída em outros períodos históricos, no decurso de movimentos como Epicurismo
ou Renascimento, que antecederam o Iluminismo.

1.2 Distopias e as relações de poder

Retomando a definição na qual a distopia parte de um espaço futuro para alertar


sobre as problemáticas no presente, é compreensível o aumento de obras distópicas
durante o século XX. Fundamentado de uma época com forte repreensão estatal, 1984 de
Orwell atua como um espelho assustador do que estaria logo adiante. Margaret Atwood
expõe em O Conto da Aia avisos sobre as consequências das guerras químicas, mas,
principalmente, sobre para onde, ainda hoje, a sociedade patriarcal está se encaminhando.
Não à toa que a sequência de O Conto da Aia, Os Testamentos, foi lançada em 2019. Em
suma, as obras distópicas têm como função criar um alerta para temas que atravessam a
sociedade, tais como poder, subjetividade e cultura.
Segundo Hilário (2013), “a narrativa literária é uma forma a partir da qual a
cultura pode pensar a si mesma”. Além da literatura refletir a sociedade, e de ser também
um convite para a reflexão, ela auxilia na construção social. É por meio de obras literárias
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que se pode fazer uma análise crítica da sociedade em questão e suas transformações, e
com base nessa análise identificar suas situações e refletir a respeito das suas finalidades.
“A obra literária é capaz de produzir efeitos de análise acerca das mutações sociais e suas
incidências sobre o campo da subjetividade, da política e da ética” (HILÁRIO, 2013).
Uma das características mais significativas das distopias e que sempre aparecem
nas obras refere-se ao poder de um sistema, de um estado, sobre os indivíduos. Esse poder
acontece mediante violência ou manipulação, que tem o objetivo de fazer a população
crer que o estado responsável está atuando para o melhor. “Nas distopias, o indivíduo é
anulado de tal maneira que sua vida se torna regulada desde o nascimento até a morte,
sempre em nome da felicidade coletiva que nunca se percebe, de fato” (KOPP, 2011).
Percebe-se que o objetivo exposto é uma sociedade utópica, no que seria às custas de uma
sociedade oprimida.
As técnicas de controle da sociedade, nas narrativas distópicas, se dão por diversos
meios, como o medo através de tecnologias e seus meios de comunicação. O indivíduo é
doutrinado e condicionado a ter um determinado comportamento ou até ideologia.
Consoante Foucault, em seu trabalho histórico a respeito do surgimento das técnicas
disciplinares na Modernidade, em Vigiar e Punir (1987, p. 117): “Ao corpo que se
manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se
multiplicam”. Para Foucault, a disciplina torna o corpo dócil, e um corpo dócil e submisso
torna-se mais fácil de ser manipulado, e tal conversão pode ser observada em muitas
literaturas distópicas surgidas na Modernidade.
Foucault aborda a técnica do quadriculamento, que seria a possibilidade duma
localização imediata de um determinador indivíduo em uma instituição disciplinar. O
autor apresenta essas técnicas de prática do poder sobre o espaço disciplinar. Corresponde
a uma distribuição de espaços e corpos, em que esses indivíduos são separados e
organizados, com o objetivo de facilitarem sua localização e vigilância. Foucault, em sua
obra, discorre sobre essas técnicas sendo aplicadas em escolas, prisões e hospícios.
Porém, nas obras distópicas, essas técnicas estão presentes em hierarquias sociais bem
definidas: “Estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os
indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante
vigiar o comportamento, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos”
(FOUCAULT, 1987, p. 123).
O indivíduo sabe que está sendo vigiado, sabe que tudo o que fazer e pensar, está
sobre o vigiar disciplinar desse estado autoritário, ou seja, está sob domínio do outro,
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submisso, tornando-se objeto manipulável do sistema vigente. Segundo Foucault (1987,


p 143), “a disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma
os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício”.
Essa técnica fixaria o poder não apenas no corpo, mas também na mente.
Como citado anteriormente, as formas de controle sociais se dão pelo medo por
intervenção de tecnologias, uma das tecnologias em questão é o Panóptico, elaborado
pelo filósofo utilitarista Jeremy Bentham, retratado por Foucault como um modelo para
a sociedade disciplinar, no qual seria um sistema prisional em que o detento é vigiado
sem nunca ver, e com isso, permanecendo em alerta e temor. Segundo Foucault:
Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado
consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do
poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é
descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de
seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma
relação de poder independente daquele que o exerce; enfim, que os detentos se encontrem
presos numa situação de poder de que eles mesmos são os portadores (FOUCAULT,
1987, p. 166).
Nas narrativas distópicas isso se dá de diversas maneiras. Na obra distópica
juvenil Jogos Vorazes (2008) de Suzanne Collins, a protagonista Katniss Everdeen vive
em um país chamado Panem, que está inserido em um governo autoritário dividido por
treze distritos, separados por cercas e florestas densas, e a Capital. Vê-se nessa divisão a
técnica do quadriculamento apresentada por Foucault, já abordada anteriormente. Os
meios de comunicações também são usados como estratégia de controle, todas as
informações passadas para os distritos são oriundas da Capital, havendo apenas um canal,
possuindo como objetivo o isolamento e por conseguinte, a doutrinação.
A Capital também utiliza como técnica de submissão a violência por meio de um
torneio macabro nomeado Jogos Vorazes, onde crianças, uma menina e um menino cada,
são retirados de seus distritos através de sorteio para irem a uma arena e lutarem entre si
até a morte. Essa carnificina é tratada como um espetáculo pela Capital, um
entretenimento, e é transmitida pelo único canal para todos os distritos. Dessa forma, os
residentes dos distritos se sentem constantemente sob o comtemplar da Capital, tendo
suas crianças sendo mortas na televisão e suas dores tratadas como diversão.
Os distritos, nas narrativas de Collins, são guardados por Pacificadores, e estes
respondem à Capital. Eles são responsáveis por manter a ordem, impedindo que as
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pessoas saiam dos distritos ou se sintam livres para questionar. Há também câmeras
espalhadas pelas cidades, essas presenças têm como efeito a sensação de persistente
vigilância, não há liberdade para se dizer o que sente. Em um trecho do livro, Katniss
narra:

‘Distrito 12, onde você pode morrer de fome em segurança’, murmuro. Então,
olho de relance por cima de meu ombro. Mesmo aqui, no meio do nada, você
fica preocupado de alguém estar te ouvindo. [...] Então, aprendi a controlar a
língua e mascarar minhas feições de modo que ninguém pudesse jamais ler
meus pensamentos (COLLINS, 2008, p. 12)

Destacado pela autora, por intermédio de Katniss, o poder fixado não apenas no
corpo, mas na mente, tão inserido ao ponto mudar suas feições para não se trair. Para
Foucault (1999, p. 35), “o poder transita pelo indivíduo que ele constituiu”. O poder
internalizado nas sociedades disciplinares garantia a coerção do corpo, e este garante a
coesão social. As regras impostas são naturalizadas, e desse modo penetram nas relações
sociais e consequentemente no corpo do sujeito, assim se dão as técnicas de sujeição. O
indivíduo é arquitetado a partir da produção de poder sobre ele, fazendo uso da vigilância,
do controle e da disciplina.
Na narrativa distópica de Collins, a criação dos indivíduos como produtos de
relações de poder e alvos de assujeitamento é exposta pelo silêncio dos distritos frente ao
horror dos Jogos Vorazes. Os habitantes dos distritos se encontram tão amedrontados por
causa do olhar vigilante invisível, e enfraquecidos pela fome e pela punição que detêm
dentro de si o poder do estado. Decorrente da disciplina tornam-se corpos dóceis e estão
tão enclausurados pelas cercas físicas e mentais que não conseguem resistir, são corpos-
objetos oriundo das técnicas de poder.

1.3 Discurso e verdade nas narrativas distópicas

Para Foucault o saber e o poder são interligados. “O poder produz saber, não há
relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não
supunha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder” (FOUCAULT, 1987, p. 27).
Isto é, não há como exercer relações de poder sem o saber, e o saber prontamente exerce
uma relação de poder. Para o entendimento de como isso ocorre nas narrativas distópicas
se faz necessário brevemente entender o que é saber para o filósofo. Em A Arqueologia
do Saber (2008) Foucault afirma que:
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Um saber é aquilo de que podemos falar em uma prática discursiva que se


encontra assim especificada: o domínio constituído pelos diferentes objetos que irão
adquirir ou não um status científico; [...] um saber é, também, o espaço em que o sujeito
pode tomar posição para falar dos objetos de que se ocupa em seu discurso; [...] um saber
é também o campo de coordenação e de subordinação dos enunciados em que os conceitos
aparecem, se definem, se aplicam e se transformam; [...] finalmente, um saber se define
por possibilidades de utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso (FOUCAULT,
1987, p. 204)
A definição de saber passa pela prática discursiva definida, e essas práticas podem
ser definidas pelo saber que ela figura. O indivíduo que detém o saber determina os
comportamentos de certos grupos, limitando o que é aceitável ou não, essa determinação
é uma relação de poder transpassada por ele através do discurso. O saber, por questão de
institucionalização, está na mão de poucos, e esse poucos detém o poder sobre o discurso.
O discurso sofre e aplica coerção para se adequar. Em A Ordem do Discurso
(1996, p. 8-9), Foucault ressalta que “em toda sociedade a produção do discurso é ao
mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um número de
procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos”. Há um controle na
produção e aplicação do discurso, e esses procedimentos de controle, conforme Foucault
(1996), exercem de certo modo no exterior; funcionam como sistema de exclusão;
concernem à parte do discurso que põe em jogo o poder e o desejo.
Um dos procedimentos externos abordado pelo filósofo é a interdição, impedindo
o indivíduo de seu discurso. Isso se dá pelo tabu, de rituais de circunstância, mas também
pelo privilégio ou exclusividade. O domínio do discurso é restrito nesse âmbito, e isso
está presente de forma incessante nas narrativas distópicas, clássicas ou atuais. Expor
qualquer tipo de opinião dentro de um governo autoritário em literaturas distópicas, e fora
delas também, é vedado. Não é bem visto por questões de tabu e circunstância, mas
também por questão de sobrevivência, já que essa fala é exclusiva.
Há também a separação, uma rejeição do discurso. Foucault exemplifica
utilizando o exemplo do louco, que tem a materialidade de sua fala separada e rejeitada
das demais por meio de instituições que retiram dele o poder, silenciando-o. Os
procedimentos de interdição e de separação estão ligados. O indivíduo que quebra a regra
do privilégio tem a si e a alocução omitida. Nas narrativas distópicas, como por exemplo
o grande clássico de George Orwell, 1984, o protagonista Winston expressa seu discurso
18

mediante a escrita, enfrentando o Estado, em um ato de resistência, desafiando a


exclusividade. Porém, quando Winston é descoberto ele é segregado dos demais.
Entretanto, esses procedimentos de exclusão são alvos de coerção exercita por
outro procedimento de controle do discurso, o da vontade de verdade. Foucault (1996)
alude que a vontade de verdade, vista de fora, se mostra como um procedimento de
exclusão: histórico, arbítrio e institucionalmente apoiado aplica o saber, e essa ação se dá
através da valorização ou não de um objeto, das maneiras de atribuição e distribuição.
Relembrado que saber é poder, e toda relação de poder é baseada no saber.
Em Microfísica do Poder (2000), Michel Foucault define a verdade como um
conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e
o funcionamento dos enunciados. A verdade está essencialmente ligada ao poder, esse
sistema de poder produz a verdade e a sustenta, e a verdade fornece produtos de poder.
Há então um regime de verdade que possui como função definir e indicar, e isso é feito
por aparelhos de produção e difusão de verdades. Nas narrativas distópicas tais aparelhos
de difusão são espelhos dos aparelhos da realidade, como por exemplo os meios de
comunicação e o exército, esses dois fortemente presentes em um cenário distópico.
Por fim, o filósofo apresenta a verdade como um objeto de debate político e
confronto social, como as lutas ideológicas. Com isso, é compreensível que a verdade é
objeto de disputa, a partir do raciocínio que a vontade da verdade é um procedimento de
controle de discurso, e que discurso é uma prática por onde passa o saber, se conclui que
o que está sendo disputado é o saber, e portando, o poder. Tal cenário pode ser
considerado no macro e no micro. No campo distópico, essa disputa pelo poder se dá nos
movimentos de resistências externos e internos.
Tomamos como exemplo uma disputa interna quando, na obra já citada
anteriormente, 1984, Winston tenta se esconder das câmeras e escreve seus pensamentos.
Nesse ato, ele está lutando pelo poder das suas palavras, ele está tomando para si as
palavras, os pensamentos que seriam do estado, mesmo subjugado pela disciplina e sob
forte coerção da vigilância, ele disputa pelo discurso, por mais breve que seja. Quando há
esse confronto pela verdade, ele está excluindo, em certo grau, o poder do governo sobre
ele.
Como disputas externas, há as grandes revoluções, manifestações, greves, porém,
toda disputa externa, visível, necessita da disputa no ambiente micropolítico, ou seja, das
forças que movimentam as subjetividades. A saga Jogos Vorazes inicia por Katniss
tentando disfarçar sua expressão para não entregar seus pensamentos, mas tem como
19

final, no livro A Esperança (2012), a queda do governo autoritário, e a protagonista se


transforma no símbolo da revolução. Esse confronto social obteve como resultado o
silenciamento da verdade do estado. Houve uma mudança nas instituições que definem e
propagam a verdade, nessa obra distópica, o discurso, dos que eram considerados
rebeldes, sobrepôs-se ao discurso do estado autoritário.
Diante disso, se faz necessário uma breve retomada nas definições dos métodos
de poder por Foucault (1999, p. 34), que adverte para “não tomar o poder como um
fenômeno de cominação maciço e homogêneo”. O autor acrescenta que “o poder deve ser
analisado como uma coisa que circula, uma coisa que só funciona em cadeia, que jamais
é apossado como uma riqueza ou um bem” (FOUCAULT, 1999, p. 35). Assim dizendo,
o poder está sempre em disputa e se desempenha em rede, havendo sempre uma troca
para exercê-lo e para ser submetido por ele. Partindo da ideia de que o poder trespassa
pelos indivíduos, é possível afirmar que poder da origem ao sujeito.
As narrativas distópicas entrelaçam, de forma notória, a subjetividade com o
social. Hilário (2013) evidencia que “os sujeitos não apenas se inscrevem no tecido social
através de práticas culturais, mas também são produzidos a partir de determinada
sociedade de maneira dialética”. Desse modo, determinada sociedade, em um cenário
distópico, condicionada pelo poder, pois a produção do sujeito pelo poder torna possível
seu condicionamento, elabora arquiteta os sujeitos. Tal movimento é cíclico, que não se
quebra, mas se transforma.
Nesse sentido, as narrativas distópicas, com o objetivo de alerta, abordam de
diferentes formas esse transitar do poder por entre sujeitos. Servindo como um convite
para, a partir das obras literárias, uma observação mais atenta e mais crítica da atualidade.
As distopias são um chamado para olhar mais atentamente as instituições de poderes que
possuem a exclusividade da disseminação do discurso e suas verdades.
No segundo capítulo, analisaremos, a partir das reflexões de Foucault, a primeira
obra de Margaret Atwood, O Conto da Aia. Primeiramente apresentaremos a estruturação
social da República de Gilead, o país no qual se passa a histórica, e faremos uma breve
contextualização das razões que impulsionaram o surgimento de um recém governo
teocêntrico. Faremos o uso de uma leitura interpretativa dos trechos da narrativa baseada
nas concepções foucaultianas.
20

CAPÍTULO II – O CONTO DA AIA: RELAÇÕES DE PODER E


RESISTÊNCIA
“E assim eu entro, embarco na escuridão ali dentro; ou então na luz”

(June, em O Conto de Aia)

Neste capítulo, trataremos da primeira obra da duologia de Margaret Atwood, O


Conto da Aia, publicado em 1985, e realizaremos uma análise da narrativa distópica
inspirada nas reflexões de Michel Foucault. Partimos do capítulo anterior, em que
características da distopia e alguns conceitos foucaultianos já foram introduzidos. O
segundo capítulo iniciará por uma breve apresentação da estrutura ficcional do livro, da
separação em castas e organização da sociedade e, em seguida, faremos uma leitura
interpretativa da narrativa de Atwood com base em conceitos de Foucault.
O romance distópico em questão se passa em um Estados Unidos pós golpe
teocrático. Diferente de algumas narrativas distópicas em que a sociedade se reconstruiu
em um contexto pós apocalíptico, O Conto da Aia explicita estados lutando para o fim do
mundo não acontecer. Atwood descreve, de forma indireta, as crises ambientais e sociais
que estão em curso na narrativa. A principal premissa é a baixa de natalidade mundial.
Nascimentos saudáveis foram se tornando cada vez mais raros, e os motivos são ligados
às crises ambientais, como poluição e alimentos infestados com agrotóxicos, o que
consequentemente impacta a saúde pública. A queda do governo democrático dos Estados
Unidos e sua transição para o governo totalitário da República de Gilead são retratadas
por June (Offred) como uma transformação gradativa. Inicialmente, o governo deteve o
dinheiro das mulheres, e em seguida anulou casamentos homoafetivos. Como expresso
em um trecho significativo do livro: “Nada muda instantaneamente: numa banheira que
se aquece gradualmente você seria fervida até a morte sem se dar conta” (ATWOOD,
2017, p. 71).
Após a suspensão da Constituição causada pelos assassinatos de líderes políticos
e a fundação de um novo governo, todas as mulheres foram perdendo seus direitos.
Algumas mulheres férteis, as consideradas pecadoras por já terem abortado ou terem se
casado novamente, foram separadas de suas famílias, e as que já eram mãe tiveram seus
filhos dados a famílias de alto escalão na nova estrutura social. Primeiramente, essas
mulheres foram separadas de toda a comunidade em construção e foram levadas para um
centro de treinamento, o Centro Raquel e Lia (nome bíblico que faz referência a duas
21

esposas de Jacó). Nesse centro de treinamento as mulheres, através de métodos punitivos


como medidas educativas, foram adestradas para servirem como barriga de aluguel por
meio de abuso sexual, ou seja, elas se tornaram escravas sexuais.
Essas mulheres são transformadas em Aias, elas usam uma bata vermelha e um
chapéu branco modo cabresto com o objetivo de diminuir sua visão. Sua roupa chamativa
as torna facilmente localizáveis por todos. Ao saírem do Centro Raquel e Lia, ou também
nomeado Centro Vermelho (por causa do uniforme vermelho das Aias) elas são levadas
para morar com um Comandante e sua Esposa infértil. As Aias têm como
responsabilidade gerar filhos para esse casal. A recusa dessa “benção”, como é sempre
relembrado pelas Tias, quem as treinam, têm como consequência a punição física ou a
morte lenta nas Colônias, campos cobertos de lixo radioativo para onde são enviadas Aias
que não podem mais gerar e mulheres rebeldes de qualquer outra casta.
Tal violação sexual é justificada pela bíblia. A história de Jacó, suas duas esposas
Raquel e Lia (nome dado ao Centro, e a serva Bilha) é lida durante as cerimônias que
ocorrem nas casas que possuem uma Aia. No dia da cerimônia, o que seria o período fértil
das Aias, todos os integrantes das casas se reúnem na sala onde o Comandante lê um
trecho da bíblia e, em seguida, comete o abuso, com sua Esposa segurando a Aia pelos
braços. Atwood apresenta a passagem em questão na epígrafe do livro:

Vendo, pois, Raquel que não dava filhos a Jacob, teve Raquel inveja da sua
irmã, e disse a Jacob: Dá-me filhos, ou senão eu morro. Então se acendeu
a ira de Jacob contra Raquel e disse: Estou eu no lugar de Deus, que te
impediu o fruto de teu ventre? E ela lhe disse: Eis aqui a minha serva, Bilha;
Entra nela para que tenha filhos sobre os meus joelhos, e eu, assim, receba
filhos por ela. (GÊNESIS, 30:1-3 apud ATWOOD, 2017, p. 3)

Os Comandantes fazem parte da classe mais alta de República de Gilead. Foram


eles que idealizaram o novo governo, produziram e apoiaram o golpe. Eles são o governo
de Gilead, eles produzem as leis e são responsáveis por acordos e desacordos. Quanto
mais influente e importante é um Comandante, maior é sua casa e maior é a quantidade
de Marthas que trabalham nela. Apenas Comandantes podem possuir Aias, mas nem todo
Comandante necessita de uma, apenas aqueles que não possuem filhos com as Esposas.
As Esposas são casadas com os Comandantes e usam vestidos azuis, o que
também as tornam facilmente reconhecíveis. Elas são mulheres que não podem ler e nem
escrever, e possuem como única responsabilidade a gestão doméstica. Algumas Esposas
podem engravidar, o que faz desnecessário a presença de uma Aia e ela também podem
bater nas Aias, como expressa o trecho: “Ela provavelmente estava com vontade de me
22

dar uns tabefes na cara. Eles podem bater em nós, existe precedente nas Escrituras
determinando isso. Mas não com qualquer instrumento. Somente com suas mãos”
(ATWOOD, 2017, p. 26).
As Marthas usam roupas verdes, e são mulheres que já passaram da idade
reprodutiva. Fazem parte de uma casta responsável pelo trabalho domésticos nas casas
dos Comandantes e suas Esposas, fazem a comida, limpam, cuidam das crianças e servem
os convidados e os moradores. Elas moram na casa do Comandante, isto é, elas não
possuem bens próprios, o que se assemelha aos Guardiões. Os Guardiões fazem parte de
uma casta responsável pela segurança. Eles usam uniformes verde escuro, patrulham as
ruas e servem na casa dos Comandantes, onde moram, trabalham como motorista e
contribuem para o trabalho pesado na casa.
As Econopessoas fazem parte da casta mais pobre. As Econoesposas são esposas
de homens considerados de baixa importância em Gilead, elas não possuem Aias e nem
Marthas. Ou seja, elas são consideráveis férteis, mas não impuras aos olhos do
teocentrismo implantado. Como são de baixa patente, também não são consideradas
Esposas. Então, elas usam vestidos listrados de azul, vermelho e verde. São responsáveis
pelo bem estar de seus maridos, pela casa e pela reprodução. “Essas mulheres não são
divididas segundo função a desempenhar. Elas têm que fazer tudo; se puderem”
(ATWOOD, 2017, p. 35).
As Tias são mulheres que possuem a responsabilidade de adestrarem outras
mulheres. Seu uniforme são roupas marrons, e usam cintos com bastão de choque. “Tia
Sara e tia Elizabeth patrulhavam; tinham aguilhões elétricos de tocar gado suspensos por
tiras de seus cintos de couro” (ATWOOD, 2017, p. 12). A função mais conhecida de uma
Tia é a de treinar uma mulher para ser uma Aia. As Tias1 também possuem a
responsabilidade sobre a educação das meninas que crescem dentro do regime de Gilead.
São as únicas mulheres que possuem permissão para ler e escrever, detendo, de certa
forma, o poder sobre o discurso.
Os Olhos são homens que agem como os olhos de Deus e como os olhos do
Estado. Eles são espiões da própria sociedade, observando e esperando os deslizes.
Qualquer homem pode ser um Olho. Eles também atuam na luz do dia, prendendo os
traidores e os levando para serem torturados. Os Olhos são como uma polícia secreta e
inteligente da República de Gilead, não operam no patrulhamento das ruas como os

1
No decorrer desse capítulo, abordaremos de forma mais detalhada o treinamento.
23

Guardiões, eles trabalham pelos cantos, sem serem vistos, mas vendo. “Talvez tenha sido
um teste, para ver o que eu iria fazer. Talvez ele seja um Olho.” (ATWOOD, 2017, p. 28).
Toda essa hierarquização entre castas e cores imposta em Gilead desempenham
um método de quadriculamento, discorrido por Foucault, apresentado no primeiro
capítulo. Ocorre, nessa divisão de corpos por castas e sua marcação por cores bem
definidas, e também de espaço geográfico das cidades da República, uma facilitação para
a localização dos sujeitos:

Ocupamos nossos lugares na ordem padrão: Esposas e filhas nas cadeiras


dobráveis de madeira posicionadas mais para trás, Econoesposas e Marthas ao
redor das beiras e nos degraus da escadaria da biblioteca, e Aias na frente, onde
todo mundo pode nos vigiar. Não nos sentamos em cadeira e sim nos
ajoelhamos [...] (ATWOOD, 2017, p. 322)

Essa arte das distribuições se soma à vigilância hierárquica, onde, segundo


Foucault (1987), “os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se
aplicam”. Há um jogo do olhar, de cima para baixo e de baixo para cima, onde todos
vigiam todos através de uma rede de visibilidade, mantendo os corpos fiscalizados e
controlados: “Baixo a minha cabeça e viro de modo que as abas brancas me escondam o
rosto, e continuo a andar. Ele acabou de se arriscar, mas para quê? E se eu o denunciasse?”
(ATWOOD, 2017, p. 28). Tais técnicas exercem um pode disciplinador sobre os sujeitos,
que sabem que são facilmente localizáveis, e que podem ser denunciados por qualquer
um. Tornaram-se sujeitos marcados que têm seus corpos sobre controle do Estado.

2.1 Sob o Olho Dele: métodos de poder disciplinar

A escolha de uma ideologia teocêntrica para a República de Gilead é baseada no


fundamentalismo religioso extremista e atua como um poder disciplinar. Os Filho de Jacó,
os homens que fazem parte do governo fundador, e se auto nomeiam assim, uniram as
ideias de um puritanismo protestante com os valores tradicionais da extrema direita a um
ideal patriarcal do Velho Testamento. Visto que: “essa união de valores é então utilizada
para reforçar os papéis de gênero, garantindo a hegemonia masculina sobre os corpos das
mulheres, às reduzindo ao biológico, e estabelece como normas os costumes
heteronormativos” (MOURA, 2020 apud MICELI, 2018).
Em Gilead, a religião exerce a função não apenas de controle, mas de manutenção
dos corpos ali presentes. O governo teocêntrico usa a força punitiva e proibitiva do Velho
24

Testamento para justificar as novas normas e as relações de poder. A imposição da


propagação de ethos religiosos atua como gerenciamento da sociedade de Gilead. Isso se
dá através das expressões usadas no dia a dia, e imposições mais diretas pelas Tias ou
pelos Salvamentos, execuções públicas em que ocorre um discurso religioso antes da
execução. Foucault (1987, p. 43), ao abordar os modos de exercício de poder das
sociedades de soberania, anteriores à instalação do poder disciplinar indica que “execução
pública mais uma manifestação de força do que uma obra de justiça; ou antes, é a justiça
como força física, material e temível do soberano que é exibida”. Ou seja, as execuções
públicas são usadas para demonstração do poder e manutenção de dogmas religiosos. Os
condenados foram executados pelo poder de Gilead, um poder sagrado, que vem de Deus,
um Deus que tudo vê, mas que não pode ser visto. Gilead está sobre o Olho Dele, uma
das expressões mais usadas pela população. Curiosamente, portanto, Gilead mescla
técnicas tanto do poder soberano como do poder disciplinar.
Na República de Gilead, o discurso, restrito e manipulado, é usado como
justificativa de toda estrutura da sociedade. Todas as mulheres residentes, exceto as Tias,
são estritamente proibidas de ler e escrever. A crença implantada que justifica essa
exclusão é que mulheres possuem a mente franca, e por causa dessa fraqueza, elas
pararam de cuidar da casa e da família, e assim surgiu a crise de infertilidade. O Estado,
composto por homens, ao impedirem as mulheres de lerem, impede-as de questionarem,
de se sentirem pertencentes, de se sentirem capaz. Um corpo que não se sente capaz não
age, não resiste.
Outro poder que opera sobre os corpos, não somente os das mulheres de Gilead,
é o poder invisível. No Panóptico de Bentham os prisioneiros sabiam que a vigilância
ocorria, mesmo não tendo certeza de quando ocorria e nem por quem. Foucault, em Vigiar
e Punir (1987) afirma que:

Para se exercer, esse poder deve adquirir o instrumento para uma vigilância
permanente, exaustiva, onipresente, capaz de tornar tudo visível, mas com a
condição de se tornar ela mesma invisível. Deve ser como um olhar sem rosto
que transforme todo o corpo social em um campo de percepção: milhares de
olhos postados em toda parte, atenções móveis e sempre alerta, uma longa rede
hierarquizada [...] (FOUCAULT, 1987, p. 176)

Essa rede de vigilância interrupta ocorre em O conto da Aia em razão de diversos


mecanismos. O equipamento do discurso ocorre como uma constante lembrança em
forma de cumprimento entre as pessoas, de que a população está sempre sendo vigiada.
“’Sob o Olho Dele’ diz ela. A despedida correta. ‘Sob o Olho Dele’” (ATWOOD, 2017,
25

p. 57). Nessa frase, o Olho Dele se refere a um dos dois tipos de olhos trabalhados na
obra, o olho de Deus, um Deus onipresente que tudo vê. Outro método de vigilância
ocorre através de um lembrete visual é espalhado por toda a cidade o desenho de um olho,
recordando assim a todos que estão sendo observados. “Na semiescuridão olho fixamente
para o olho cego de gesso no meio do teto, que me devolve o olhar, ainda que eu não
possa ver” (ATWOOD, 2017, p. 119). Nesse trecho, June expõe que não consegue ver o
olhar, mas que o sente, ela está consciente dele, e assim a leva a uma disciplina forçada e
à subjugação. Foucault (1987, p. 166) alude que o efeito mais importante do Panóptico é
“induzir no detento um estado de consciente e permanente visibilidade que assegura o
funcionamento automático do poder”. A população de Gilead está presa dentro dessa
relação de poder de que eles mesmo são portadores, visto que esse poder já está dentro
deles, e assim eles se mantêm como corpos dóceis.
Para Foucault (1987, p. 118): “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode
ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”. Em O Conto da Aia os corpos
residentes de Gilead foram transformados ao serem retirados da sua antiga estrutura social
e aperfeiçoados para exercitar suas novas funções. Como, por exemplo uma Martha, que
era dona de sua casa e, após a imposição do novo governo, foi transferida para servir a
um Comandante e sua Esposa. De acordo com Foucault (1987, p 118), “os métodos que
permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante
de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos
chamar de ‘disciplinas’”. Na obra, isso é apresentado de forma nítida por meio dos
treinamentos das Aias no Centro Raquel e Lia.
As Tias, ao empreenderem seu poder disciplinar sobre as mulheres escolhidas,
com o objetivo de as transformarem em Aias, utilizam diversos recursos. Tal como a
sanção normalizadora, apresentada por Foucault, que possui como objetivo penalizar para
corrigir um desvio de controle, objetivando assim a melhoria dos corpos. Nessa
penalização “é utilizada, a título de punição, toda uma série de processos sutis, que vão
do castigo físico leve a privação ligeiras e pequenas humilhações” (FOUCAULT, 1987,
p. 149). Vejamos um exemplo do método de sanção normalizadora na obra de Atwood:

Mas de quem foi a culpa?, diz tia Helena, levantando um dedo roliço.
Dela, foi dela, foi dela, foi dela, entoamos em uníssono.
Quem os seduziu? Tia Helena sorri radiante, satisfeita conosco.
Ela seduziu. Ela seduziu. Ela seduziu.
Por que Deus permitiu que uma coisa tão terrível acontecesse?
26

Para lhe ensinar uma lição. Para lhe ensinar uma lição. Para lhe ensinar uma
lição.
Na semana passada, Janine explodiu em lágrimas. Tia Helena a fez se
ajoelhar na frente da turma, com as mãos atrás das costas, onde todas podíamos
vê-la, o rosto vermelho e o nariz pingando. O cabelo de um louro opaco, os
cílios tão claros que pareciam não estar lá, os cílios perdidos de alguém que
esteve num incêndio. Olhos queimados. Ela tinha uma aparência repugnante:
fraca, se retorcendo toda agitada, manchada, avermelhada, rosada como um
camundongo recém-nascido. (ATWOOD, 2017, p.88)

O trecho apresentado ocorre dentro do Centro Vermelho, durante um Testemunho,


onde as mulheres, dentro do processo da transformação em Aias, sentam-se em círculos
e compartilham um pecado cometido. Nesse caso, “é Janine, contando como foi currada
por uma gangue aos catorze anos e fez um aborto” (ATWOOD, 2017, p. 88). Pode-se
notar que as Tias atuam de forma repressora, punindo-as por algo que lhe aconteceu antes,
fazendo todas as outras mulheres participarem do círculo de humilhação, e assim servindo
de exemplo. A condenação possui como objetivo normalizar, enquadrar os corpos,
qualquer desvio se torna passível de sanção, “eram nos pés que batiam, em caso de
primeira ofensa. Usavam cabos de fios de aço, com as pontas destorcidas. Depois disso
eram as mãos” (ATWOOD, 2017, p. 112). O desvio cometido é corrigido, a penalidade
atua como ensinamento e exemplo para os outros sujeitos e, com isso, “cada indivíduo se
encontra preso numa universalidade punível-punidora” (FOUCAULT, 1987, p. 149).
O Estado, através das Tias, aplica os métodos de coerção nos corpos das futuras
Aias até elas se tornarem corpos dóceis, obedientes e disciplinados. Elas têm seu nome
apagado, “meu nome não é Offred, tenho outro nome que ninguém usa porque é proibido”
(ATOWOOD, 2017, p. 103). Elas ganham como novo nome a junção do termo em inglês
of (de) mais o nome do comandante, no caso da protagonista (Of + Fred) Offred. Ou seja,
elas pertencem ao Comandante, não a si mesmas. Tais corpos não são mais de mulheres,
e sim de Aias, que são levadas para sempre abusadas sexualmente. Assim dizendo, o
poder disciplinar não opera no exterior, mas atua no interior do sujeito.
Foucault (1987, p. 119) evidência que “o corpo humano entra numa maquinaria
de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe”. E que essa dinâmica de poder
“define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não apenas para que façam o
que se quer, mas para que operem como se quer”. Esse mecanismo de poder diminui as
forças do sujeito com o propósito de obediência e docilidade. “Renuncio a meu corpo
voluntariamente, para submetê-lo ao uso de outros. Eles podem fazer o que quiserem
comigo. Sou abjeta. Sinto, pela primeira vez, o verdadeiro poder deles” (ATWOOD, 2017
p. 337-338). Nesse trecho, pode-se notar que ocorreu uma dominação rigorosa sobre o
27

sujeito, ao ponto da narradora se abster de si mesma, visto que a disciplina “dissocia o


poder do corpo, faz dele por um lado aptidão, uma capacidade, e inverte por outro lado a
energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita”
(FOUCAULT, 1987, p. 119).

2.2 Nolite te bastardes carborundorum: métodos de resistência

Contudo, para Foucault, o poder não se restringe apenas a uma ação negativa e
corretiva, vinculado a uma estrutura política, a um governo ou classe social dominantes.
O poder é relacional, e decorre das relações que se estabelecem entre as forças que
produzem uma sociedade. Foucault, em Microfísica do Poder (2000), no capítulo Poder-
Corpo, aborda que “se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio
da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à maneira de um grande
superego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil”. Para o
filósofo, o poder não está centralizado, agindo de cima para baixo, mas há “micro
poderes” que surgem através de hábitos reproduzidos.
Conforme salienta, “o domínio, a consciência de seu próprio corpo só pôde ser
adquirida pelo efeito do investimento do corpo pelo poder”. Porém “a partir do momento
em que o poder produziu este efeito, como consequência direta de suas conquistas,
emerge inevitavelmente a reivindicação de seu próprio corpo contra o poder”
(FOUCAULT, 2000, p. 82). Em O Conto da Aia, essa requisição do próprio corpo em
oposição ao poder está presente, por exemplo no trecho abaixo:

Esfrego a manteiga sobre meu rosto, espalho na pele de minhas mãos. [...]
Enquanto fizermos isso, passar manteiga em nossa pele para mantê-la macia,
podemos acreditar que algum dia sairemos, que seremos tocadas de novo, com
amor ou com desejo. Temos nossas próprias cerimônias, cerimônias privadas
(ATWOOD, 2017, p. 118)

O poder é requestado, ele recua, ele se desloca. O poder que penetrou no corpo de
Offred este sendo disputado por ela mesma, June, o nome verdadeiro de Offred, o poder
batalha para ressurgir. Ao passar manteiga em seu corpo, ela está tomando consciência de
si, ela está reivindicando o domínio de seu corpo dócil de volta através da expectativa do
toque, do prazer. Tal corpo disciplinado produz efeito contra o próprio poder
disciplinador. Visto que “o que tornava forte o poder passar a ser aquilo por que ele é
atacado” (FOUCAULT, 2000, p. 83).
28

Foucault, em Ética, Sexualidade, Política alude que “nas relações humanas, o


poder está sempre presente: a relação no qual um procura dirigir a conduta do outro”
(2006a, p. 276). Em O Conto da Aia, June luta pelo poder não somente tomando
consciência de seu corpo, mas também nas relações sociais com o Comandante. O
Comandante envia um convite para June ir ao gabinete dele, localizado dentro da casa,
durante a noite. “Minha presença aqui é ilegal. É proibido para nós estarmos sozinhas
com os Comandantes” (ATWOOD, 2017, p. 165). Porém, enquanto ela se esgueira no
silêncio noturno até o gabinete dele, June está disputando o poder. “Além disso: eu agora
tinha poder sobre ela, inferior, mas poder, embora ela não soubesse. E gostava disso. Por
que fingir? Eu gostava muito disso” (ATWOOD, 2017, p. 194).
As relações de poder se encontram em formas distintas, elas são móveis e se
modificam, não são entregues de uma vez, elas estão constantemente em jogo. Vejamos
o trecho abaixo:

Tenho um presentinho para você. Ele sorriu um pouco. Então abriu a primeira
gaveta da escrivaninha e tirou alguma coisa. Ele a segurou por um momento,
de maneira bastante casual, entre o polegar e o indicador, como se decidindo
se daria ou não para mim. [...] Olhando fixamente para a revista, enquanto ele
a levantava e balançava diante de mim como uma isca para peixe, eu a quis.
(ATWOOD, 2017, p. 187)

Nesse trecho, o Comandantes está demostrando seu poder. Ele já o exerceu


quando a convidou para seu escritório, contrariando a regra do Estado, e agora o
desempenha e o expõe enquanto provoca June com uma revista. Fred, o Comandante, está
em um conflito de poderes com o governo, entregando a leitura proibida para uma mulher,
mas também efetivando seu poder sobre ela não entregando a leitura imediatamente, a
fazendo desejar e esperar. Já June, mesmo compreendendo que seu poder é tênue, batalha
por ele e o toma, o quanto der, para si:

Pegar na pena entre meus dedos é sensual, parece quase viva, posso sentir seu
poder, o poder que as palavras contêm. Querer Ter a Pena É Inveja, diria tia
Lydia, citando mais um dos lemas do Centro, advertindo-nos a nos manter
longe de tais objetos. E elas estavam certas, é inveja. Só tê-la na mão é inveja.
Eu invejo a pena do Comandante. É mais uma coisa que gostaria de roubar.
(ATWODD, 2017, p. 222-223)

A protagonista da obra, durante a narrativa, expõe uma necessidade de roubar


objetos da casa. Essa vontade é fruto da demanda de resistir dentro de tais relações
esmagadoras. “Eu gostaria de roubar alguma coisa deste aposento. [...] De vez em quando
eu a tiraria e olharia para ela. Isso me faria sentir que tenho poder” (ATWOOD, 2017, p.
29

99). Tomar coisa de seus dominantes a faria se sentir brevemente no controle de si própria.
Seria um ato de resistência a todo poder disciplinador que mantem seu corpo “preso no
interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou
obrigações” (FOUCAULT, 1987, p. 116). Quando June contraria tais limitações e
proibições impostas pelos poderes hierárquicos, ela briga pelo poder.
Diante disso, se faz necessário “enfatizar também que só é possível haver relações
de poder quando os sujeitos forem livres” (FOUCAULT, 2006a, p.276). Ou seja, não há
relação de poder se um dos dois for integralmente do outro, tal como um objeto no qual
se possa aplicar uma violência. No meio de todas as forças disciplinares, há ânsia pela
busca de saídas, e esse desejo é o que move a relação de poder. Foucault acrescenta que:

Portanto, para que se exerça uma relação de poder, é preciso que haja sempre,
dos dois lados, pelo menos uma certa forma de Liberdade. Mesmo quando a
relação de poder é completamente desequilibrada, quando verdadeiramente se
pode dizer que um tem todo o poder sobre o outro, um poder só pode se exercer
sobre outro à medida que ainda reste a esse último a possibilidade de se matar,
de pular pela janela ou de matar o outro (FOUCAULT, 2006a, p. 276-277)

Em O Conto da Aia, as janelas só abrem parcialmente e o vidro nelas é


inquebrável, facas não são dadas a Aias durante suas refeições, os banhos na banheira são
vigiados por Marthas. Todas essas peculiaridades têm como objetivo impedir as “fugas,
aquelas que você pode abrir em si mesma, se tiver um instrumento cortante” (ATWOOD,
2017, p. 16). Não havendo nenhuma maneira de liberdade, um dos dois, na relação, estaria
completamente a disposição do outro. Como o poder é móvel o objetivo da República de
Gilead não é que haja relação de poder, e sim relação de extrema submissão. Entretanto,
as possibilidades de escapes estão presentes na obra:

Assim eu poderia guardar o fósforo. Poderia fazer um pequeno furo, no


colchão, enfiá-lo para dentro cuidadosamente. Estaria lá, à noite, debaixo de
mim enquanto estou na cama. Adiando a decisão. Eu poderia incendiar a casa.
Um pensamento tão maravilhoso que me dá arrepios. Uma via de escape,
rápida e rasteira (ATWOOD, 2017, p 248)

É apresentado nesse trecho June considerando uma saída de sua vinculação, um


caminho do que seria um certo tipo de liberdade. Há existência de possibilidade de
resistência: apenas o fato de ela a ter considerado, por mais ligeiro que tenha sido, é um
sinal de perspectiva. Em qualquer reação de poder, necessariamente, haverá alternativas
presentes, haverá micro resistências. O pensamento de June, que a deixa maravilhada e
30

arrepiada, a move e a sustenta a resistir os pesos e as limitações que o poder que seus
controladores aplicam sobre ela.
A protagonista também encontrou sustento na leitura proibida, antes mesmo da
leitura feita no escritório de Fred. June encontrou, em seu quarto na casa do Comandante,
uma frase escrita em latim, escondida no armário. Ela logo chega à conclusão que a frase
foi escrita por outra Aia, partindo da ideia de que aquele quarto é resignado a Aias. “Eu
me ajoelhei para examinar o piso do armário e lá estava, escrito em letras minúsculas,
bem recentes, parecia, riscadas com um alfinete ou talvez apenas uma unha, no canto
onde caía a sombra mais escura: Nolite te bastardes carborundorum” (ATWOOD, 2017,
p. 65).
June encontra na frase um mantra para sobreviver e resistir, mesmo sem entender
o que estava escrito. O que a encanta é que era uma frase escrita, mesmo a escrita sendo
proibida para mulheres. É um dos primeiros sinais de possibilidade que June encontra.
Ajoelhada no quarto, ela é apresentada à oportunidade de resistência, por menores que
fossem:

Não sabia o que significava e nem sequer em que língua estava escrito. Pensei
que talvez fosse latim, mas eu não sabia nada de latim. Apesar disso, era uma
mensagem, e a mensagem era por escrito, proibida exatamente por esse fato, e
não tinha sido descoberta. Exceto por mim, para quem era destinada. Era
destinada a quem quer que viesse a seguir. (ATWOOD, 2017, p. 65-66)

Diante dessa luta silenciosa pelo poder, escondida na parede de um armário, June
busca naquelas palavras conforto, uma força para adentrar nas relações de poder e
ressurgir. E, durante toda a narrativa, June repete a frase em sua mente, como um mantra,
uma promessa. Quando então ela é chamada para reencontrar com Fred na sala, ela
pergunta a tradução da frase: “Ah. Significava: ‘Não permita que os bastardos reduzam
você a cinzas. [...] Eu forço um sorriso, mas está tudo diante de mim agora. Posso ver por
que ela escreveu aquilo na parede do armário’” (ATWOOD, 2017, p. 224). Na sequência,
lemos:

Agrada-me refletir sobre essa mensagem. Agrada-me pensar que estou em


comunhão com ela, essa mulher desconhecida. Pois ela é desconhecida; ou se
é conhecida, nunca foi mencionada para mim. Agrada-me saber que sua
mensagem tabu conseguiu chegar a pelo menos outra pessoa, que se fez
carregar por si mesma, deixada sobre a parede de meu armário, foi aberta e lida
por mim. Por vezes repito as palavras para mim mesma. Elas me dão uma
pequena alegria. (ATWOOD, 2017, p. 66)
31

Essa repetição das palavras para si, por June, com o intuito de trazer alegria para
ela pode ser considerada – guardadas as diferenças históricas e conceituais - como uma
prática de cuidado de si. As resistências e as práticas de si criam uma descontinuação nos
poderes dominantes. O cuidado de si é um instrumento de resistência. Em A
Hermenêutica do Sujeito, Foucault (2006b) apresenta que “o cuidado de si implica uma
certa maneira de estar atento ao que se pensa e ao que se passa no pensamento”. Atwood
expõe esse estar atento ao pensamento através de June: “[...]os pensamentos têm que ser
racionados. Há muita coisa em que não é produtivo pensar. Pensar pode prejudicar suas
chances, e eu pretendo durar” (ATWOOD, 2017, p 16). Nesse trecho, June evite voltar ao
passado, evita lembrar da sua vida passada com o marido e a filha, ela se mantém vigilante
na sua própria mente para poder seguir.
No trecho a seguir é um outro exemplo da protagonista separando o passado do
presente e o real do irreal. “Invisto um enorme esforço para fazer essas distinções. Preciso
fazê-las. Preciso ter uma compreensão muito clara em minha própria mente”
(ATWOOD, 2017, p. 46). Ela converte o olha do exterior, da força disciplinadora, das
suas obrigações e limitações e o direciona a si mesmo, lutando para tal força não a
dominar.
Para Foucault, a prática de si:

[...]trata-se, independentemente de qualquer especificação profissional, de


formá-lo para que possa suportar, como convém, todos os eventuais acidentes,
todos os infortúnios possíveis, todas as desgraças e todos os reveses que
possam atingi-lo. Trata-se, consequentemente, de montar um mecanismo de
segurança. (FOUCAULT, 2006b, p.115)

O cuidado de si, nesse sentido, atua na dimensão corretiva, no sentido para que
haja uma transformação de si. Há uma expulsão de maus hábitos e vínculos de
dependências:

A prática de si impõe-se sobre o fundo de erros, de maus hábitos, de


deformação e de dependência estabelecidas e incrustadas, e que se trata de
abalar. Correção-liberação, bem mais que formação-saber: é neste eixo que se
desenvolverá a prática de si, o que, evidentemente, é fundamental.
(FOUCAULT, 2006b, p. 116)

June, através da prática de si, corrige dentro de si os elos impostos pelo poder
disciplinador colocados aplicados pelas Tias. Ela corrige, encontra saídas e, com isso,
constrói um mecanismo de segurança: “a sanidade é um bem valioso; eu a amealho e
guardo escondida como as pessoas antigamente amealhavam e escondiam dinheiro.
32

Economizo sanidade, de maneira a vir a ter o suficiente, quando chegar a hora”


(ATWOOD, 2017, p. 133). June observa seus pensamentos, abriga sua sanidade e com
isso enfraquece o elo dominador imposto dentro de si.
A resistência, para Foucault, se apresenta como um poder da força. Resistir é a
capacidade de adentrar nas relações desse campo em disputa e a modificar, no micro e no
macro. A técnica de resistência cria possibilidades de existências: “repito meu nome
antigo, recordo a mim mesma do que outrora eu podia fazer, de como os outros me viam”
(ATWOOD, 2017, p. 119). Tais possibilidades de existências surgem a partir de produção
de forças alternativas. Resistir é poder, e “se ele é forte, é porque produz efeitos positivos
a nível do desejo e também a nível do saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz”
(FOUCAULT, 2000, p. 84). June usa esse desejo, produzido pelo poder e para não
permitir que os bastardos a reduzam a cinzas.
No próximo capítulo, abordaremos, ainda na trilha de uma interpretação baseada
em Foucault, a segunda obra da duologia de Margaret Atwood, a sequência de O Conto
da Aia, Os Testamentos (2019). Faremos uso da mesma metodologia deste capítulo,
expondo trechos da narrativa de Atwood a partir de uma reflexão inspirada pelas análises
de Foucault. Partimos notoriamente da ideia de que a literatura reflete a sociedade, e serve
também como um chamado para reflexão.
33

CAPÍTULO III – OS TESTAMENTOS: RELAÇÕES DE PODER, DISCUROS


E RESISTÊNCIA
“Aproximam-se os passos, uma bota após a outra. Num intervalo entre o inspirar e o expirar,
alguém vai bater à minha porta”
(Tia Lydia, em Os Testamentos)

Neste capítulo, analisaremos o segundo romance da duologia que está sendo


trabalhada neste trabalho de conclusão de curso, Os Testamentos, de Margaret Atwood,
publicado em 2019. Iniciaremos apresentando as mudanças na narrativa e na estrutura
social presentes entre O Conto da Aia e Os Testamentos. Posteriormente será seguida a
mesma metodologia usada no capítulo anterior: interpretaremos livremente os aspectos
da obra distópica de Atwood com base em conceitos foucaultianos a respeito de relações
de poder e estratégias de resistência.
Os Testamentos foi publicado quase 30 anos após seu precedente. Foi inspirado
no fortalecimento de ideias conservadoras, que vem intimidando a liberdade de expressão
e a democracia na atualidade. O romance distópico em questão se passa por volta de 15
anos após o fim da narrativa de June (Offred) em O Conto da Aia. O segundo romance se
diferencia por ter sua narrativa dividida a partir da participação de três personagens,
enquanto na primeira obra a única voz era a de June. O primeiro ponto de vista é nomeado
como “O hológrafo de Ardua Hall”, narrado por Tia Lydia, personagem já conhecido
nesse universo distópico. O Segundo, denominado “Transcrição do Depoimento da
Testemunha 369A”, é apresentado por Agnes, uma menina que cresceu dentro do governo
teocêntrico de Gilead. E o terceiro ponto de vista, “Transcrição do Depoimento da
Testemunha 369B”, é vivido por Daisy, uma jovem que cresceu no Canadá, país vizinho
da República.
Tia Lydia foi previamente apresentada em O Conto da Aia, através dos olhos de
Offred, como sendo uma das Tias que mais atuou na docilização dos corpos das Aias.
Entretanto, cerca de 15 anos depois, através de um diário clandestino, ela conta sua
história. Antes de o regime ser imposto, Tia Lydia era juíza, e foi raptada pela força militar
dos Filhos de Jacó durante seu expediente, foi mantida junto a muitas outras mulheres por
dias, em condições sub-humanas, em um ginásio. Muitas mulheres continuaram sendo
levadas para o local, e as que lá já estavam antes eram retiradas para decidirem se iriam
contribuir para a construção do novo governo ou se morreriam.
34

Tia Lydia aceitou fazer parte da gestão após uma sequência de privações e depois
de assistir a muitas outras mulheres morrerem por não concordarem com o governo que
estava sendo introduzido. Ela foi se destacando, até das outras Tias, e se tornou uma lenda
viva na República de Gilead. Tia Lydia foi se infiltrando nos poderes de Gilead e
influenciava para quais caminhos a nova doutrina iria. Ela deu a ideia da criação das
Pérolas, meninas que estavam no decurso para se tornarem Tias, e viajavam para outros
países com o objetivo de divulgar a ideologia teocêntrica. Tia Lydia foi responsável por
muitos mecanismos internos da República: ela e outras Tias foram consideradas as
fundadoras.
Agnes, outra narradora, é uma jovem que nasceu no núcleo de Gilead. Ela cresceu
como filha de um Comandante e de uma Esposa. Além disso, possuía três Marthas em
sua casa, o que era indício de que seu pai era de grande influência no governo. Desde
cedo, ela frequentava a Escola Vidala, uma escola de elite apenas para filhas de
comandantes, onde tinham aula de religião, de bordado, de desenho e sobre quais eram
os papeis e os deveres das mulheres. A vestimentas das meninas, como já discorrido
anteriormente, serviam para as diferenciar, com a intenção de fácil localização e
hierarquização:

Em nossa escola, rosa era a cor da primavera e do verão, violeta a do outono e


do inverno, branco a dos dias especiais: domingos e comemorações. Braços
cobertos, cabelos cobertos, saias até o joelho antes dos cinco anos e no máximo
dois dedos acima da canela a partir de então, porque os impulsos dos homens
eram terríveis e esses impulsos precisavam ser coibidos (ATWOOD, 2019, p.
17)

Havia também outra escola, para quando as meninas já estavam entrando na


puberdade - a Escola Preparatória Pré-Nupcial Rubis - uma escola para moças de boa
família que precisavam estudar para o casamento. Seu nome vinha da Bíblia, diferente da
Escola Vidala, que tinha o nome de uma Tia fundadora. A Escola Rubi também era
gerenciada pelas Tias, e elas tinham como trabalho ensinar as meninas como atuar
enquanto donas de casa em lares de alta patente. As jovens aprendiam jardinagem básica,
etiqueta e boas maneiras, como servir o chá e gerenciar as Marthas, além de como lidarem
com Aias, caso fosse necessário.
A terceira narradora, Daisy, cresceu fora da República de Gilead, no Canadá. Ela
foi criada como uma criança livre, frequentando uma escola particular e aprendendo a
escrever e a ler. Os jovens no Canadá eram ensinados sobre como era a vida em Gilead:
“Tínhamos tido três módulos sobre Gilead na escola: era um lugar péssimo, terrível, onde
35

as mulheres não podiam trabalhar fora nem dirigir, e onde as Aias eram forçadas a
engravidar como se fossem vacas, sendo que as vacas ainda tinham mais vantagens”
(ATWOOD, 2019, p. 54).
A divisão social em castas na República de Gilead permanecia, na base, a mesma.
Atwood se aprofunda, em Os Testamentos, a respeito das castas das meninas que
cresceram em Gilead, e sobre o surgimento de novas Tias, as Pérolas, que eram moças de
vestido comprido prateado, chapéu branco e que usavam colares de pérolas. As Pérolas
se diziam missionárias a serviço de Deus por Gilead. Elas visitavam outros países, sob
ordem de Tia Lydia, e distribuíam folhetos tentando converter outras meninas. Como
expressa o trecho: “Uma moça que alegasse ter sido convertida à fé de Gilead pelas
Pérolas missionárias poderia ingressar facilmente em Gilead” (ATWOOD, 2019, p. 215-
216).
Tia Lydia foi quem teve a ideia das Pérolas, que tinha como objetivo ter
missionárias, não apenas para divulgar a República com uma ideia sonhadora e converter
pessoas, mas também para recolher informações. Ela as escolhia entre algumas Pérolas,
para serem suas espiãs e trocar informações com grupos de resistência em outros países.
Essas informações eram trocadas pelos folhetos que deixavam através de uma tecnologia
chamada microponto. Entretando, para as meninas que eram fruto de Gilead, as Pérolas
eram apenas parte da iniciação para se tornarem uma Tia plena.
A história das duas meninas se cruza quando Tia Lydia tem como objetivo
derrubar a República de Gilead. Agnes decide passar pelo processo para se transformar
em uma Tia, e Daysi, no Canadá, acaba perdendo quem ela achava que eram seus pais.
Ela descobre que eles eram na verdade do Mayday (um grupo de resistência contra
Gilead), e que ela, na verdade, tinha nascido em Gilead e foi retirada de lá pela sua mãe,
que tinha sido uma Aia, e conseguiu fugir para o Canadá. Agnes também descobre que
sua mãe, uma Esposa, também não era sua mãe, e sua mãe verdadeira foi uma Aia. Através
das informações escondidas nos folhetos, Tia Lydia faz Daisy ir para a República de
Gilead, fingindo ser uma Pérola, e em Gilead ela conta para as meninas que elas são irmãs.
Tia Lydia une diversos segredos pessoais, infames de muitos oficiais de alto
escalão em uma espécie de chip (microponto) e o coloca no braço de Daisy: “Ela pegou
uma lâmina e fez um cortezinho na minha tatuagem, na base do O. Depois, usando uma
lupa e um minúsculo par de pinças, ela inseriu algo muito diminuto no meu braço”
(ATWOOD, 2019, p. 355). As duas irmãs, então, fogem da República de Gilead, se
passando por Pérolas e se abrigam no Canadá. Tais informações contrabandeadas pelas
36

meninas foram fundamentais para a derrota de Gilead, desfalcando a elite, enfraquecendo


o regime e instigando um golpe militar e revolta popular.

3.1 Estou inchada de poder: Sujeito subjugado

Como já apresentado no capítulo anterior, a religião exerce na República de


Gilead um papel de controle e manutenção em seus cidadãos. A disseminação de ethos
religiosos gerenciam os corpos ali presentes, o olho invisível de Deus segue vigilante,
observando e empreendendo o poder disciplinador. Entretanto, a vigilância onipresente
não se restringe apenas aos Olhos Dele, ela é ampliada para a personagem da Tia Lydia,
como expresso em um trecho significativo do livro:

Sou uma foto pendurada no alto das salas de aula, de meninas bem-nascidas o
suficiente para frequentarem salas de aula – sorrindo com severidade,
censurando em silêncio. Sou um bicho-papão que as Marthas usam para
assustar crianças pequenas[...]. Também sou um modelo de perfeição moral a
ser imitado [...] e uma juíza ou árbitra na inquisição nebulosa da
imaginação[...].
Estou inchada de tanto poder, é verdade, mas ele também me torna
nebulosa – amorfa, mutável. Estou em toda parte e em lugar nenhum: até nas
cabeças dos Comandantes projeto uma sombra perturbadora” (ATWOOD,
2019, p. 40)

Nesse trecho, Tia Lydia relata que a imagem de sua pessoa envolve não somente
as paredes das escolas, mas também os imaginários dos moradores de Gilead. Ela os
assombrava, fazendo-os refletir e hesitar antes de tomar uma atitude, sendo usada pelas
Marthas para disciplinar as crianças, e, com isso, tendo interiorizado nos sujeitos o seu
poder disciplinador. Seu retrato visível reforça sua presença sentinela, constantemente
presente, as observando, como exemplificado no trecho narrado por Agnes: “A
Shunammite dizia que os olhos do retrato da Tia Lydia te seguiam pela sala e que ele
conseguia ouvir o que a gente dizia” (ATWOOD, 2019, p. 89).
A criação dessa imagem onipresente e poderosa da Tia Lydia baseia-se no efeito
primordial no Panóptico, já apresentado no capítulo anterior, que induz aos corpos um
estado consciente de vigilância exaustiva e onipresente, e que, através disso, assegura o
funcionamento espontâneo do poder. Segundo Foucault (1987, p. 166), o efeito no
Panóptico faz com que: “esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar
uma relação de poder independente daquele que o exerce; enfim, que os detentos se
encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos são os portadores”.
37

A relação de poder, já estabelecida e difundida no interior desses sujeitos, não


torna mais necessária a presença real da Tia Lydia o exercendo no ambiente, pois: “há
uma maquinaria que assegura a dissimetria, o desequilíbrio, a diferença. Pouco importa,
consequentemente, quem exerce o poder” (FOUCAULT, 1987, p. 167). Para isso, se faz
necessário compreender que o poder, como dominação de um elemento ou grupo, está
em sua forma terminal.
Michel Foucault, em História da Sexualidade I: A vontade de Saber (1988), no
capítulo Dispositivo da sexualidade, indica que o poder deve ser assimilado como
correlação múltipla de forças referentes ao domínio onde se efetuam e compõem. Para o
filósofo, a onipresença do poder “se produz a cada instante, em todos os pontos, ou
melhor, em toda relação entre um ponto e outro. O poder está em toda parte, não porque
englobe tudo e sim porque provém de todos os lugares” (FOUCAULT, 1988 p. 89). Ou
seja, ainda sobre o predomínio disciplinador de Tia Lydia e sua onipresença, o que
possibilita as relações de poder estabelecidas baseadas na imagem da Tia é a mobilidade
do poder nas relações de força, e que, através das desigualdades nas relações, influenciam
incessantemente estados de domínio, que são detectáveis por tomarem corpo nas
soberanias estatais. No caso do panóptico, como o poder emana de todas as partes, não se
faz necessário um sujeito exercendo-o, visto que os indivíduos são, eles mesmos,
elementos das redes de poder-saber.
Esse poder, que provém a partir de inúmeros pontos, age sobre os sujeitos
residentes da República de Gilead e os retém sob controle e sujeição. Não que o poder
seja sinônimo de assujeitamento, mas porque, nessa relação desigual, o poder tomou
corpo nos aparelhos estatais de Gilead. De acordo com Foucault, a sujeição surge
mecanicamente de uma relação ilusória:

De modo que não é necessário recorrer à força para obrigar o condenado ao


bom comportamento [...]. Quem está submetido a um campo de visibilidade, e
sabe disso, retoma por sua conta as limitações do poder; fá-las funcionar
espontaneamente sobre si mesmo; inscreve em si a relação de poder na qual
ele desempenha simultaneamente os dois papéis; torna-se o princípio de sua
própria sujeição (FOUCAULT, 1987, p. 167-168)

A personagem Agnes, em Os Testamentos, ao ser obrigada a se casar, entra em


desespero e reflete sobre fugir de casa:

Pensei em fugir de casa, mas como eu faria isso e aonde eu poderia ir? Eu não
tinha noção de geografia: não a estudávamos na escola[...]. E se eu fugisse,
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Deus iria me odiar? Eu não seria perseguida com toda certeza? Eu faria muita
gente sofrer, como na história da Concubina Cortada em Doze Pedaços?
O mundo estava infestado de homens que com certeza achariam tentadora uma
menina desencaminhada: essas meninas seriam vistas como mulheres de moral
dúbia. Talvez eu não chegasse nem ao outro quarteirão antes de ser
estraçalhada, conspurcada e reduzida a uma pilha de pétalas verdes murchas
(ATWOOD, 2019, p. 242)

Agnes, nesse trecho, tem seu impulso de fuga silenciado antes mesmo de o efetuar.
O que a impede de fazer é o fato de ela ter se tornado a portadora do poder disciplinador
que age sobre ela. Quando se pergunta se Deus iria odiá-la, entende-se esse temor baseado
no Deus punitivo difundido pela doutrina teocêntrica de Gilead, que faz uso da figura de
Deus como um regulador dos corpos. Outro pavor introduzido é o pavor do desconhecido,
nesse caso, no âmbito geográfico e no âmbito social. As Tias, nas escolas, promovem e
moldam esse medo através de histórias, como a história da Concubina Cortada em Doze
Pedaços, que assombra Agnes e contribui para impedir a sua fuga:

A Tia Vidala estava sentada sobre o tampo de sua escrivaninha enorme. Ela
gostava de ter um bom panorama da gente [...]. Aí ela disse que já tínhamos
idade para ouvir uma das histórias mais importantes de toda a Bíblia [...] Era a
história da Concubina Cortada em Doze Pedaços.
A concubina de um homem – uma espécie de Aia – fugiu de seu dono, voltando
para a casa do pai. Foi uma grande desobediência da parte dela. [...] o homem
generoso e o viajante colocaram a concubina fora de casa em vez dele.
– Bem que ela mereceu, não foi? – disse Tia Vidala. – Ela não devia ter
fugido. Pensem só no sofrimento que causou aos outros! (ATWOOD, 2019, p.
89-90).

A história da Concubina que fugiu, foi apanhada de volta, e, em seguida,


sacrificada, contada às meninas de Gilead, e, principalmente, em nome de Deus e obtendo
o reforço das Tias, promove tal medo que aniquila os micros movimentos de resistência.
Esse pavor, inserido no interior do sujeito através da escola, pelas Tias, faz parte da
fabricação de corpos dóceis. Segundo Michel Foucault, um corpo que pode ser
submetido, transformado e aperfeiçoado é um corpo dócil. Para o filósofo, o processo de
docilização dos corpos “implica numa coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os
processos da atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma
codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos”
(FOUCAULT, 1987, p. 118).
Os corpos dóceis das meninas nascidas na República estão sendo submetidos à
coerção sem folga através de dispositivos disciplinadores. Elas estão sendo treinadas e
aperfeiçoadas para se tornarem Esposas exemplares da doutrina de Gilead. De acordo
com Foucault, o poder disciplinador faz do corpo uma capacidade que precisa ser
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aumentada: “a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão
aumentada e uma dominação acentuada” (FOUCAULT, 1987, p. 119). Ou seja, as jovens
tinham suas habilidades aperfeiçoadas para servirem ao Estado enquanto eram
subjugadas: “essa escola também era gerida pelas Tias [...] supostamente, seu trabalho era
nos ensinar como atuar enquanto donas de casa competentes em lares de alta patente.
Digo ‘atuação’ com duplo sentido: devíamos ser atrizes no palco de nosso futuro lar”
(ATWOOD, 2019, p. 179).
Conforme Foucault, o disciplinamento não tem como objetivo apenas aumentar
as habilidades do sujeito, ou apenas o manter sob sujeição. O poder disciplinador
estabelece um mecanismo que torna o sujeito quanto mais obediente, mais útil. Ou seja,
essa utilidade oriunda da melhoria de suas habilidades só é possível por causa da sua
docilização. Foucault aborda que:

O corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações


de poder têm alcance imediato sobre ele; elas se investem, o marcam, o
dirigem, o suplicam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias,
exigem-lhe sinais. [...] é, numa boa proporção, como força de produção que o
corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação
sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num
sistema de sujeição [...] o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo
corpo produtivo e corpo submisso (FOUCAULT, 1987, p. 25)

Outra força útil produtiva e submissa são as Tias da República de Gilead. Durante
a implementação do novo Regime, essas mulheres foram sequestradas, pois os Filhos de
Jacó, planejadores de Gilead, cooptavam mulheres fora da idade reprodutiva para
servirem como ferramenta de controle para outras. Essas mulheres escolhidas eram
professoras, advogadas, assistentes sociais, juízas etc. Ou seja, mulheres que tinham
experiência em influenciar outras pessoas. Tais mulheres foram levadas para um campo
de concentração em um ginásio, sem higiene: “Não permitiram que nenhuma de nós fosse
ao banheiro. Surgiram fios de urina, escorrendo das arquibancadas em direção ao campo
esportivo. Esse tratamento tinha o objetivo de nos humilhar, de baixar nossa resistência”
(ATWOOD, 2019, p. 131).
As Tias passaram por um processo de desumanização: “Eles estavam nos
reduzindo a bichos – bichos de cativeiro –, à nossa natureza animal. Estavam esfregando
a nossa natureza animal na nossa cara. Para que nos considerássemos sub-humanas”
(ATWOOD, 2019, p. 156). Elas eram obrigadas a assistir a outras mulheres sendo
fuziladas; essas mulheres que eram assassinadas tinham desaparecido no ginásio dias
antes durante a noite. Os homicídios, no início, eram cometidos apenas por homens, mas
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depois, as mulheres que se dobravam ao novo regime fuzilavam as que se recusavam:


“No quarto dia, uma variação: três dos atiradores eram mulheres. Não estavam com
roupas de trabalho, mas sim com vestes compridas marrons que mais pareciam roupões
de banho, com echarpes amarradas na garganta” (ATWOOD, 2019, p. 161).
As mulheres que desapareciam durante a noite eram levadas para conhecer o
principal idealizador da República de Gilead. Lá, elas eram convidadas a participar da
construção das novas normas sociais, ou eram levadas para o Thank Tank (em tradução
livre: Tanque da gratidão):

E foi assim que fui parar no Thank Tank. Era uma solitária em uma delegacia
adaptada, de aproximadamente quatro passos por quatro. Tinha uma cama
embutida, ainda que sem colchão. [..] A cela já tivera iluminação, mas não
mais: agora tinha apenas um soquete, e sem energia. (É claro que eu meti o
dedo lá dentro depois de algum tempo. Você teria feito o mesmo.) Toda luz
disponível viria do corredor lá fora, pelo buraco pelos quais os inevitáveis
sanduíches logo chegariam. (ATWOOD, 2019, p. 164)

Foucault afirma, em Vigiar e Punir, que o suplício, nas sociedades de soberania


que historicamente antecederam as sociedades disciplinares, repousa na arte quantitativa
do sofrimento: “faz correlacionar o tipo de ferimento físico, a qualidade, a intensidade, o
tempo dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social
de suas vítimas” (FOUCAULT, 1987, p. 31). O suplício, para o filósofo, traçava sobre o
corpo do condenado sinais que não eram apagados. Os condenados guardavam, na
memória, as lembranças da tortura e do sofrimento. Como é exemplificado por Tia Lydia
relatando, em um manuscrito após anos, o que ela experienciou:

Certo dia, se é que era dia, três homens entraram na minha cela sem aviso,
mirando uma lanterna ofuscante nos meus olhos ceguetas, me atirando ao chão,
e ministrando uma precisa surra de pontapés, além de outros cuidados. Emiti
ruídos que me pareceram familiares: já os ouvira ali por perto. Não entrarei em
mais detalhes, exceto para dizer que armas de choque também foram usadas.
O procedimento de chutes e choques foi repetido mais duas vezes. Três é um
número mágico (ATWOOD, 219, p. 165)

No trecho acima, podemos perceber que Tia Lydia foi marcada fisicamente,
porém, além das cicatrizes deixadas em seu corpo, ela, como um sujeito condenado, foi
marcada no seu íntimo. “Era como uma receita para preparar carne dura: primeiro
marteladas, depois marinar e amaciar. [...] eu sentei por vontade própria.” (ATWOOD,
2019, p. 188). O suplício penal é uma manifestação de poder punitivo: “Nos ‘excessos’
dos suplícios, se investe toda a economia de poder” (FOUCAULT, 1987, p. 32).
41

Esse grupo de mulheres, ao serem mantidas dentro de um sistema de sujeição e se


tornarem corpos dóceis, para serem utilizados pelos Filhos de Jacó na manutenção do
novo governo, foram sistematicamente torturadas. Parto da leitura de Foucault (1987, p.
42), “o suplício não restabelecia a justiça; reativava o poder”. Era através da prática de
torturas que os idealizadores estabeleceram uma relação de poder, sustentada na política
do terror, e, com isso, sujeitar os corpos dessas mulheres, fazendo retornar a presença do
tirano aos corpos condenados. Isto é, os martírios eram empregados para o
estabelecimento de uma autoridade e domínio, partindo do conceito de que “o suplício
tem uma função jurídico-política. É um cerimonial para reconstruir a soberania lesada por
um instante” (FOUCAULT, 1987, p. 42).

3.2 Não há certa liberdade nisso? : Discurso de resistência

Todavia, o poder, segundo Foucault, não possui apenas a função negativa de


reprimir, visto que, se assim fosse ele seria inútil. O poder não está concentrado, uma
vez que ele surge nas relações e essas relações de poder são móveis e mutáveis pois
estão constantemente em disputas. E essas lutas de poder são traçadas por diversas
maneiras, como através do discurso. Partindo do princípio que a aplicação do discurso
é controlada por quem detêm, o dominante do discurso exerce poder sobre os sujeitos
dentro das relações estabelecidas.
Conforme Foucault, o discurso sofre processos de exclusão: “Sabe-se bem que
não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer
circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT
1996, p. 9). Essa interdição pode ser vista em Os Testamentos, quando Agnes é vítima de
assédio sexual pelo dentista: “Ela sabia. Ou no mínimo suspeitava. Estava me alertando
para não dizer nada. Era essa a linguagem em código que utilizavam” (ATWOOD, 2019,
p. 111). Nesse trecho, Agnes percebe que não encontrará apoio para falar sobre o que
aconteceu por não ser compatível com a ideologia hipócrita de Gilead.
A inibição do dizer também é exemplificada quando posta em contraste com
Daisy, crescida no Canadá, e que possuiu a liberdade de aprender a ler, escrever e a
expressar sua opinião até em passeatas: “Então nosso grupo do colégio começou a gritar
coisas e levantar nossos cartazes bem alto, e outras pessoas exibiam cartazes diferentes”.
(ATWOOD, 2019, p. 59). Quando Daisy convive com Agnes, ela reconhece que os
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modos de agir e falar em Gilead são ditados pelo governo, porém não compreende de
início que se tornou algo natural para os moradores da República:

– Eu também dou graças – falei. E isso foi o fim da conversa. Pensei em


perguntar a ela por quanto tempo tínhamos que continuar com aquilo, com
aquele jeito de falar de Gilead – já não dava para pararmos e agirmos
naturalmente, agora que estávamos fugindo? Mas, por outro lado, talvez para
ela aquele fosse o natural. Talvez ela não conhecesse nenhum outro jeito
(ATWOOD, 2019, p. 386)

É evidenciado no trecho acima que o discurso sofre coerção para se adequar às


circunstâncias, às quais até Daisy teve que adaptar. A abordagem de Foucault acerca do
direito privilegiado ou exclusivo de quem fala, que integra a interdição do discurso sofre,
faz parte do poder exercido sobre os corpos no regime de Gilead. Daisy, no Canadá,
possuía a liberdade de falar o que pensava e até defender seus ideais; ao contrário de
Agnes, inserida em meio distinto, que tinha que restringir seu dizer para si mesma por
causa do intenso controle do discurso empreendido pela ditadura teocêntrica da República
de Gilead.
Michel Foucault afirma que:

Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições
que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o
poder. O discurso [...] não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o
desejo; é também, aquilo que é o objeto do desejo [...] o discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas
aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos ponderar
(FOUCAULT, 1996, p. 10)

Através do discurso, o sujeito desempenha e torna ostensível o poder. Na obra de


Atwood, Os Testamentos, é explícita a proibição que mulheres sofrem quanto à escrita e
à leitura. Entretanto, as únicas mulheres que recebem essa permissão são as Tias. Ou seja,
devido à institucionalização, o saber está centralizado. Esse ato exclusivo, no meio
feminino, é usado para sua manifestação de poder sobre os corpos que as Tias devem
disciplinar. O discurso, nesse caso, sofre, pelas Tias, limitações para adestrarem as Aias e
as jovens de Gilead: “Ela estava anotando coisas em uma prancheta. Observei admirada
ela mexendo os dedos, que seguravam um lápis. Que símbolos poderosos estariam
escrevendo” (ATWOOD, 2019. p. 172). Ocorre uma convergência do discurso, e quem o
detêm molda-se a uma imagem soberana sobre aqueles que não o possuem.
O poder possui sua articulação possibilitada por meio do discurso, e só se torna
possível a partir da possibilidade de resistência. Com isso, entende-se que o discurso está
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inserido nas relações de poder também como meio de resistência. Isto é, a resistência
também está presente na ordem do discurso. Em A Arqueologia do Saber (2008), Foucault
afirma que os discursos são formados por signos, porém tais signos fazem mais do que
designar coisas: “É esse mais que os torra irredutíveis à língua e ao ato de fala. É esse
‘mais’ que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever” (FOUCAULT, 2008, p. 60).
Em conformidade com Michel Foucault (2008, p. 107), encontra-se nos discursos:
“um lugar determinado e vazio que pode ser ocupado por indivíduos diferentes; mas esse
lugar [...] é variável o bastante para poder continuar, idêntico a si mesmo através de várias
frases, bem como para se modificar a cada uma”. Uma frase, um conjunto de signos, para
o autor, só puderam ser considerados enunciados porque houve um espaço que foi
ocupado por um sujeito. Dessa maneira, “descrever uma formulação enquanto enunciado
não consiste em analisar as relações entre o autor e o que ele disse [...], mas em determinar
qual é a posição que pode e deve ocupar todo indivíduo para ser seu sujeito”
(FOUCAULT, 2008, p. 108).
É a partir dessa perspectiva que se entende a escrita de Tia Lydia, não a escrita das
Tias, mas a escrita no modelo de correspondência para o leitor, como um ato de
resistência. É por meio dessa escrita que a personagem estabelece um diálogo interno, e
consequentemente toma consciência de seu próprio corpo como sujeito. Enquanto
escreve, Tia Lydia está reivindicando o domínio de seu corpo em objeção ao poder de
Gilead. Em Ditos e Escritos - Ética, sexualidade, politica (2006a), na parte A escrita de
si, Foucault apresenta que o texto por definição destinado a outrem dá também exercício
pessoal. Vejamos um exemplo de tal exercício pessoal mediante a escrita:

Ao me preparar para dormir, noite passada, soltei meu cabelo, o pouco que
sobrou dele. [...] Eu já tive cabelo suficiente para um coque alto, na época dos
coques altos; para um coque baixo, na era dos coques baixos. Mas agora meu
cabelo é feito as nossas refeições aqui no Ardua Hall: esparso e curto. A chama
da minha vida está se abreviando, com mais vagar do que certas pessoas ao
redor talvez desejem, mas mais rápido do que talvez percebam.
Contemplei meu reflexo. O inventor do espelho não foi gentil com a maioria
de nós: devíamos ser mais felizes antes de conhecer nossa própria aparência.
Podia ser pior, disse a mim mesma: meu rosto não dá sinais de fraqueza
(ATWOOD, 2019, p. 39)

Nesse trecho, podemos notar Tia Lydia refletindo sobre seu corpo físico, sua
aparência, os aspectos de seus cabelos e uma breve recordação de como ela já fora no
passado. Ao fazer tal reflexão, ela está tomando consciência de si pela escrita. Para
Foucault (2006a, p. 155-156), a escrita constitui: “uma certa maneira de cada de se
manifestar para si e para os outros”. Ao estar tomando consciência de si própria, ela está,
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consequentemente, atentando aos seus pensamentos, o que vem a ser um instrumento de


resistência. A respeito da prática de si, Foucault (2006b, p. 116) expressa que “na prática
de nós mesmos, devemos trabalhar para expulsar, expurgar, dominar este mal que nos é
interior, nos liberar e nos desembraçar dele”.
Em Os Testamentos, Tia Lydia busca corrigir, por meio da escrita, o mal que ela
cometeu: “Mas entre estas digitais sangrentas estão as que nós mesmos deixamos, e estas
não são tão fáceis de apagar. Com o passar dos anos enterrei muitos ossos; agora minha
vontade é de exumá-los – nem que seja só para te edificar, meu leitor desconhecido”
(ATWOOD, 2019, p. 12-13). A personagem, ao cuidar de si, buscar retificar não só seus
atos punitivos, mas também expirar as conexões impostas pelo poder disciplinador que
foi exercido sobre ela. “Estou bem ciente de quanto você deve estar me julgando, meu
leitor” (ATWOOD, 2019, p. 40).
O ato de escrever o manuscrito para um leitor desconhecido é, igualmente, um ato
de escrever para si e de si: “escrever é, portanto, ‘se mostrar’, se expor, fazer aparecer seu
próprio rosto perto do outro” (FOUCAULT, 2006ª, p. 156). Tia Lydia, em seu discurso,
no decorrer do livro, se expõe e se enxerga, medita sobre seu passado, presente e futuro.
“Mas agora é preciso encerrar nossa conversa. Adeus, meu leitor. Tente não pensar mal
demais de mim, ou ao menos não mais do que eu mesma penso” (ATWOOD, 2019, p.
432). Tia Lydia se expurga, visto que o cuidado de si atua como uma transformação de
si. Consoante Foucault (2006b, p. 116), “mesmo se nos enrijecemos, há meios de nos
endireitarmos, de nos corrigirmos, de nos tornarmos o que poderíamos ter sido e nunca
fomos”.
Além da escrita reflexiva, o anotar da personagem é uma demonstração de poder,
mesmo que silenciosa, frente aos seus dominadores. Quando Tia Lydia quebra as regras
do Estado, ocorre uma disputa pelo poder. “Apesar dessas precauções, estou ciente do
risco que corro: escrever pode ser perigoso. Que traições, e então que acusações, podem
estar à minha espera? Há muita gente em Ardua Hall que adoraria se apoderar dessas
páginas” (ATWOOD, 2019, p. 13). Ao dar continuidade àquela escrita proibida, ela está
desafiando a governo de Gilead, batalhando pelo poder e o tomando para si. Isso ocorre
dado que o poder não é monopolizado, ele está sempre em disputa nas relações.
Tais relações de poder só se tornam possíveis enquanto os sujeitos forem livres.
Foucault apresenta que “se um dos dois estiver completamente a disposição do outro e se
tornar sua coisa, um objeto sobre o qual ele possa exercer uma violência infinita e
ilimitada não haverá relações de poder” (FOUCAULT, 2006a, p. 276). Ou seja, o poder
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só pode ser exercido sobre o outro se este tiver a possibilidade de uma saída. Em Os
Testamentos, essa perspectiva de liberdade é abordada pela Tia Lydia: “Nesse momento
sei que ainda tenho algum poder de escolha nesta questão. Não se morro ou não, mas sim
quando e como. Não há certa liberdade nisso?” (ATWOOD, 2019, p. 40).
No trecho acima, é notável que a personagem toma a liberdade através da morte
como poder. O poder de escolha, de permanecer ou não, é um certo tipo de poder dentro
daquela relação, é o que permite a relação. Analisaremos outro trecho, narrado por Agnes:
“Por que eu estava pensando no meu corpo como frio feito uma lápide? me perguntei.
Logo percebi: ficaria frio feito lápide porque eu estaria morta. [...] Havia um certo poder
naquilo, naquele silêncio e imobilidade” (ATWOOD, 2019, p. 241). A personagem, ao se
encontrar presa em vínculos de poderes sufocadores, enxerga a morte como saída. Ela usa
a visualização de seu corpo inerte e pacífico para resistir, e tal pensamento faz insurgir
dentro dela o poder. As alternativas vigentes contribuem para as micro resistências, para
a disputa pelo poder de si.
A personagem Daisy, quando entra infiltrada na República de Gilead, se vê
colocada em um encadeamento de poder baseado no desconhecido. Apesar da
personagem já conhecer a respeito da doutrina, como foi apresentado na escola, e já pré-
estabelecer sua resistência moral, ela é surpreendida com o poder empreendido pelo
regime. “Eu tinha conseguido entrar em Gilead. Eu pensava que sabia muito sobre o país,
mas viver a coisa é sempre diferente, e com Gilead, era muito diferente. Gilead era
escorregadio feito gelo: eu vivia sentindo que estava perdendo o equilíbrio” (ATWOOD,
2019, p. 341). Diane desse contexto, Daisy busca, no controle das suas emoções, no
atentamento aos seus pensamentos, um meio de resistir: “Quando parava para pensar na
situação, eu sentia medo, mas tentei não deixar o medo me dominar. Eu também estava
me sentindo muito sozinha” (ATWOOD, 2019, p. 346).
De acordo com Foucault (1988, p. 91), “onde há poder há resistência, no entanto
(ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterioridade em
relação ao poder”. As correlações de poder só são existentes em função de múltiplos
pontos de resistências, e tais pontos de resistências podem ser, de acordo com Foucault,
improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, violentas, interessadas ou
fadadas ao sacrifício. Podemos observar, em cada uma da personagem, meios de
resistências que se distinguem e se assemelham.
Os movimentos de resistências, explica Foucault, são distribuídos de maneira
irregular. Esses pontos de resistência se espalham com intensidade variadas, e podem
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provocar levante em grupos, como o Mayday, ou em indivíduos de maneira definitiva.


Tais levantes inflam certos pontos dos corpos, momentos de vida, tipos de
comportamento. Segundo Foucault (1988, p. 92), pontos de resistência “percorrem os
próprios indivíduos, recortando-os e os remodelando, traçando neles, em seus corpos e
almas, regiões irredutíveis”.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho de conclusão de curso, teve, como seu principal objetivo, a


apresentação e a observação das práticas comportamentais das personagens presentes em
O conto da Aia (2017) e Os testamentos (2019), assim como as distintas estratégias
exercidas no campo de disputa inseridos nas relações de poder. Ademais, esta monografia
também buscou refletir sobre a distopia como gênero literário e sua similaridade com a
utopia, e como tais gêneros espelham, em certa medida, a sociedade atual.
Buscamos, em primeiro momento, traçar um breve panorama da distopia em obras
literárias. Foi exposto que a distopia e utopia não são ideias opostas, mas que coexistem
sem se anularem, e que, para o surgimento da distopia, é necessária a utopia. Também
abordamos a respeito do movimento de alerta de tais gêneros, e traçamos um contexto
histórico de seus surgimentos, com a intenção de contribuir para que o leitor pudesse ter
um entendimento mais amplo a respeito do gênero distópico, com o propósito de facilitar
a compreensão da influência dos romances de Atwood.
Em seguida, construímos uma base teórica e analítica a partir dos estudos
levantados por Michel Foucault a respeito dos mecanismos de poder. Observamos como
as relações de poder são estabelecidas em obras distópicas, e, para isso, levantamos
trechos de distopias para exemplificar, vinculando-os a os conceitos foucaultianos. Para
esse fim, tratamos sobre as técnicas disciplinares, presentes em Vigiar e Punir (1987), e
visualizamos como um corpo passa por tais processos para permanecer dócil, como no
caso das personagens Aias. Vimos ainda que essa docilidade permanece através do
controle de corpos pelo medo de tecnologias, como a localização imediata pela
distribuição de espaços e corpos, marcados por cores, partir das quais o sujeito sabe que
está sendo vigiado e, consequentemente, possui esse poder fixado no seu corpo e em sua
mente.
Além disso, estudamos como o poder não é algo fixo, e sim móvel e transitório,
dentro das relações sociais, em que um procura direcionar a conduta do outro. Indicamos
essa luta por controle nas obras de Atwood e nos embasamos nas teorias levantadas em
Microfísica do Poder (2000) e Ética, Sexualidade, Política (2006a), elaboradas por
Foucault. Analisamos também que só é possível haver relações de poder enquanto os
sujeitos forem livres, e que esse meio de liberdade pode se dar de diversas formas, como
a possibilidade de escolha, a qual por mais efêmera que pareça, funciona como uma tática
de resistências às relações opressoras.
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Posteriormente, analisamos as estratégias de resistência presentes nos livros.


Vimos que elas podem ser exercidas através do cuidado de si, ilustrado por June, ao cuidar
de sua pele. Entendemos, por meio dos conceitos de Foucault em Hermenêutica do Sujeito
(2006b), que o cuidado de si vem de um atentamento ao que se passa no pensamento, e
que, com essa prática, há uma transformação de si, pois os maus hábitos e vínculos de
dependências são expurgados. Observamos nas obras de Atwood que essa prática também
se dá pela escrita, como a escrita furtiva de Tia Lydia, que medita sobre sua existência.
E, com isso, por fim, compreendemos que onde há poder há resistência, e que tais
movimentos de resistências são distribuídos de forma irregular e insurgem de diversas
formas, como vimos exemplados em muitos trechos dos livros.
Sendo assim, se faz necessário afirmar que as pesquisas feita nos romances estão
longe de se esgotarem. Há muito ainda para ser analisado e pensado criticamente sobre
as obras, não apenas através das concepções de Michel Foucault. Entretanto, o intuito
dessa monografia, foi, logo, contribuir minimamente com um número reduzido de leituras
críticas acerca das obras distópicas. Compreende-se que O Conto da Aia e Os
Testamentos, como objetos culturais que atuam como expressão da sociedade, visam,
através das características presentes no gênero literário distópico, a chamar a atenção para
os acontecimentos perigosos na atualidade. As obras de Atwood narram no futuro as
consequências políticas do hoje, nos convidando a refletir não apenas sobre o futuro que
almejamos, mas sobre o presente que enfrentamos.
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REFERÊNCIAS

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2017.
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2020. 96 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras,
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Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense
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50

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