TCC VICTORIA RANGEL
TCC VICTORIA RANGEL
TCC VICTORIA RANGEL
Agradeço a minha mãe e meu pai, Jurema e Victor, pelo incentivo aos meus
estudos. À sua maneira.
Ao meu orientador, Ericson Saint Clair, que teve toda a paciência e dedicação para
me indicar os caminhos possíveis.
Ao meu grande amor, Gustavo, que vibrou a cada parágrafo escrito e acreditou
em mim, até mesmo quando eu desacreditava.
Margaret Atwood
RESUMO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 7
CAPÍTULO I - DISTOPIAS E OS CONCEITOS FOUCAULTIANOS ...................... 11
1.1 Distopia e Utopia: entre o presente e o futuro ........................................................ 11
1.2 Distopias e as relações de poder ............................................................................ 13
1.3 Discurso e verdade nas narrativas distópicas.......................................................... 16
CAPÍTULO II – O CONTO DA AIA: RELAÇÕES DE PODER E RESISTÊNCIA ... 20
2.1 Sob o Olho Dele: métodos de poder disciplinar ..................................................... 23
2.2 Nolite te bastardes carborundorum: métodos de resistência ................................... 27
CAPÍTULO III – OS TESTAMENTOS: RELAÇÕES DE PODER, DISCUROS E
RESISTÊNCIA ........................................................................................................... 33
3.1 Estou inchada de poder: Sujeito subjugado ............................................................ 36
3.2 Não há certa liberdade nisso? : Discurso de resistência .......................................... 41
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 47
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 49
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INTRODUÇÃO
a trilogia MaddAddão, com fortes características da ficção científica, que também levanta
significativos questionamentos a respeito da subjetividade e da sociedade atual. Atwood
elucida, através de suas histórias, o impetuoso caminho traçado pelos humanos.
A escolha desses dois romances foi influenciada por diversas questões levantadas
na minha primeira leitura de Os Testamentos. Naquele momento, me questionei: quais
seriam as forças aplicadas em uma sociedade alvo de uma imposição de um governo
autoritário? Como seria possível o manuseio de um corpo para se conviver no novo
regime instaurado de forma mansa? Para um sujeito nascido nessa conjuntura, quais
seriam os efeitos da doutrina difundida em seu íntimo? E a questão, considerada por mim,
mais insistente: Como quebrar essas correntes? Foi através desses questionamentos que
decidi me debruçar de forma mais analítica aos romances de Atwood.
Ao final das narrativas de cada um dos livros, ocorre um simpósio. Na primeira
obra, a última parte do livro é nomeada como “Notas Históricas Sobre O Conto da Aia”,
e nessas Notas Histórias está transcrito o “Décimo Simpósio sobre Estudos de Gilead”,
que se passa em 25 de junho de 2195. O evento tem como propósito debater sobre
artefatos encontrados da época da República de Gilead. O mesmo ocorre na sequência,
Os Testamentos, em cuja última parte há a transcrição do “Décimo Terceiro Simpósio”.
Entretanto, devo assinalar que não exploraremos os simpósios nesta monografia, visto
que procuramos estabelecer um diálogo direto com nas narradoras, e enxergar, através
delas, e não de outros, como ocorre nas conferências, como ocorrem a realização dos
mecanismos de poderes, visto que os congressos são narrados por terceiros.
A escolha das obras literária como objeto desta monografia, em vez da famosa
série de televisão The Handmaid’s Tale, estreada em 2017, não se dá por uma
desconsideração de minha parte a respeito da forte influência do audiovisual no âmbito
social. Contudo, privilegiei neste trabalho o enfoque no setor literário como local de uma
leitura crítica e ponderada. As adaptações audiovisuais de livros passam por diversos
setores antes de chegarem ao público, e, cada setor insere, na obra, seu próprio olhar. São
feitos cortes e acréscimos na história original até ficar como é objetivada, e chega para os
espectadores através de outros olhos. Não ocorre, na série, um canal direto e sem
interferências entre emissor e receptor. Por tal questão, achei mais plausível usar como
meu objeto de estudo obras literárias ao invés de episódios: a ligação entre autor e receptor
permanece mais íntima, tendo no discurso um espaço especial para análise.
Dividiremos o primeiro capítulo deste trabalho de conclusão de curso em três
tópicos. O primeiro possui como finalidade estabelecer as narrativas no gênero literário
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Os Testamentos: “Caros leitores: Tudo o que vocês me perguntaram sobre Gilead e seu
funcionamento interno é a inspiração para este livro. Bem, quase tudo! A outra inspiração
é o mundo em que vivemos”.
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visto com alarme, o resultado geralmente é uma distopia”. Entende-se a partir dessa
afirmação que a distopia parte da utopia, é necessária a utopia para o surgimento da
distopia.
No ensaio The Concept of Utopia, de Fátima Vieira (2010) aborda que,
etimologicamente, a utopia é um não-lugar, constituído simultaneamente por um
movimento de afirmação e negação. Vieira faz essa afirmação baseada em Thomas More,
que em seu livro Utopia (1516), gera a palavra formada por u (prefixo com conotação
negativa) + topos (lugar), lugar nenhum. Se não há nada, existe a possibilidade do
negativo e do positivo, sem se anular, coexistindo entre si. Isto é, a distopia e a utopia não
são opostas, não se anulam, mas há diferença entre elas. Segundo Jacoby (2007), “as
utopias buscam a emancipação ao visualizar um mundo baseado em ideias novas,
negligenciadas ou rejeitadas; as distopias buscam o assombro, ao acentuar tendências
contemporâneas que ameaçam a liberdade”.
A utopia, no âmbito literário, é uma procura por sanar os problemas político-
sociais vigentes, visando uma sociedade vivendo em harmonia. Vieira alude que:
Uma das principais características da utopia como gênero literário é sua relação
com a realidade. Os utopistas partem da observação da sociedade em que
vivem, anotam os aspectos que precisam ser mudados e imaginam um lugar
onde esses problemas foram resolvidos. Muitas vezes, a sociedade imaginada
é o oposto do real, uma espécie de imagem invertida. (VIEIRA, 2010, p.8)
Vemos assim um ponto em comum entre os dois termos: ambos buscam elaborar
diagnóstico para as complicações no presente, a partir da identificação dos geradores.
Enquanto a utopia apresenta uma alternativa visando a um modelo de sociedade a ser
alcançado, esperançoso, partindo do presente para o futuro, a distopia faz o movimento
ao contrário, utilizando a abordagem sugestiva, um avisamento, partindo do futuro para
o presente. A distopia não procura a solução no futuro, e sim na atualidade. A literatura
distópica possui como objetivo avisar dos grandes perigos existentes que rodeiam as
sociedades contemporâneas, baseado nos acontecimentos atuais. Para Hilário (2013), “o
romance distópico pode então ser compreendido enquanto aviso de incêndio, o qual busca
chamar a atenção para que o acontecimento perigoso seja controlado, e seus efeitos,
embora já em curso, sejam inibidos”.
Esse movimento de alerta é resultante de um contexto histórico. Por mais que o
termo tenha surgido anteriormente ao século XX, foi durante esse século que as grandes
obras literárias distópicas foram produzidas, algumas já citadas anteriormente, como:
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Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley; 1984 (1949), de George Orwell,
Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury e O Conto da Aia (1985), de Atwood. Inseridos
em uma conjuntura de regimes políticos autoritários, em que consequentemente há
genocídios, guerras, violência estatal, a literatura distópica surge da compreensão do
mundo através das narrativas, inspirada por uma sociedade marcada por violência e
desiludida com a humanidade. “Com a primeira e a segunda Guerra Mundial, a epidemia
de gripe, a Depressão, a Guerra da Coréia, a guerra no Vietnã e outros eventos do século
XX, as distopias se tornaram a forma dominante de literatura utópica” (BUCHWEITZ,
2020 apud SARGENT, 2010).
As obras literárias utópicas também surgiram dentro de um cenário histórico,
durante o século XVI. Thomas More, o criador do termo, foi influenciado pelas
transformações sociais oriundas das grandes navegações. Entretanto, o sonho social com
a ideia de um lugar feliz, embasada pelo sentimento de esperança, existia antes, como,
por exemplo, A República (século IV a.C), de Platão, na qual a ideia trabalhada é a de
polis perfeita, uma convivência de harmonia entre os habitantes. Vieira (2010) ressalta
que Platão e More imaginaram caminhos alternativos para organizar a sociedade, eles
recorreram à ficção para estudar as possibilidades. A utopia vem sendo construída e
reconstruída em outros períodos históricos, no decurso de movimentos como Epicurismo
ou Renascimento, que antecederam o Iluminismo.
que se pode fazer uma análise crítica da sociedade em questão e suas transformações, e
com base nessa análise identificar suas situações e refletir a respeito das suas finalidades.
“A obra literária é capaz de produzir efeitos de análise acerca das mutações sociais e suas
incidências sobre o campo da subjetividade, da política e da ética” (HILÁRIO, 2013).
Uma das características mais significativas das distopias e que sempre aparecem
nas obras refere-se ao poder de um sistema, de um estado, sobre os indivíduos. Esse poder
acontece mediante violência ou manipulação, que tem o objetivo de fazer a população
crer que o estado responsável está atuando para o melhor. “Nas distopias, o indivíduo é
anulado de tal maneira que sua vida se torna regulada desde o nascimento até a morte,
sempre em nome da felicidade coletiva que nunca se percebe, de fato” (KOPP, 2011).
Percebe-se que o objetivo exposto é uma sociedade utópica, no que seria às custas de uma
sociedade oprimida.
As técnicas de controle da sociedade, nas narrativas distópicas, se dão por diversos
meios, como o medo através de tecnologias e seus meios de comunicação. O indivíduo é
doutrinado e condicionado a ter um determinado comportamento ou até ideologia.
Consoante Foucault, em seu trabalho histórico a respeito do surgimento das técnicas
disciplinares na Modernidade, em Vigiar e Punir (1987, p. 117): “Ao corpo que se
manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se
multiplicam”. Para Foucault, a disciplina torna o corpo dócil, e um corpo dócil e submisso
torna-se mais fácil de ser manipulado, e tal conversão pode ser observada em muitas
literaturas distópicas surgidas na Modernidade.
Foucault aborda a técnica do quadriculamento, que seria a possibilidade duma
localização imediata de um determinador indivíduo em uma instituição disciplinar. O
autor apresenta essas técnicas de prática do poder sobre o espaço disciplinar. Corresponde
a uma distribuição de espaços e corpos, em que esses indivíduos são separados e
organizados, com o objetivo de facilitarem sua localização e vigilância. Foucault, em sua
obra, discorre sobre essas técnicas sendo aplicadas em escolas, prisões e hospícios.
Porém, nas obras distópicas, essas técnicas estão presentes em hierarquias sociais bem
definidas: “Estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os
indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante
vigiar o comportamento, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos”
(FOUCAULT, 1987, p. 123).
O indivíduo sabe que está sendo vigiado, sabe que tudo o que fazer e pensar, está
sobre o vigiar disciplinar desse estado autoritário, ou seja, está sob domínio do outro,
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pessoas saiam dos distritos ou se sintam livres para questionar. Há também câmeras
espalhadas pelas cidades, essas presenças têm como efeito a sensação de persistente
vigilância, não há liberdade para se dizer o que sente. Em um trecho do livro, Katniss
narra:
‘Distrito 12, onde você pode morrer de fome em segurança’, murmuro. Então,
olho de relance por cima de meu ombro. Mesmo aqui, no meio do nada, você
fica preocupado de alguém estar te ouvindo. [...] Então, aprendi a controlar a
língua e mascarar minhas feições de modo que ninguém pudesse jamais ler
meus pensamentos (COLLINS, 2008, p. 12)
Destacado pela autora, por intermédio de Katniss, o poder fixado não apenas no
corpo, mas na mente, tão inserido ao ponto mudar suas feições para não se trair. Para
Foucault (1999, p. 35), “o poder transita pelo indivíduo que ele constituiu”. O poder
internalizado nas sociedades disciplinares garantia a coerção do corpo, e este garante a
coesão social. As regras impostas são naturalizadas, e desse modo penetram nas relações
sociais e consequentemente no corpo do sujeito, assim se dão as técnicas de sujeição. O
indivíduo é arquitetado a partir da produção de poder sobre ele, fazendo uso da vigilância,
do controle e da disciplina.
Na narrativa distópica de Collins, a criação dos indivíduos como produtos de
relações de poder e alvos de assujeitamento é exposta pelo silêncio dos distritos frente ao
horror dos Jogos Vorazes. Os habitantes dos distritos se encontram tão amedrontados por
causa do olhar vigilante invisível, e enfraquecidos pela fome e pela punição que detêm
dentro de si o poder do estado. Decorrente da disciplina tornam-se corpos dóceis e estão
tão enclausurados pelas cercas físicas e mentais que não conseguem resistir, são corpos-
objetos oriundo das técnicas de poder.
Para Foucault o saber e o poder são interligados. “O poder produz saber, não há
relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não
supunha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder” (FOUCAULT, 1987, p. 27).
Isto é, não há como exercer relações de poder sem o saber, e o saber prontamente exerce
uma relação de poder. Para o entendimento de como isso ocorre nas narrativas distópicas
se faz necessário brevemente entender o que é saber para o filósofo. Em A Arqueologia
do Saber (2008) Foucault afirma que:
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Vendo, pois, Raquel que não dava filhos a Jacob, teve Raquel inveja da sua
irmã, e disse a Jacob: Dá-me filhos, ou senão eu morro. Então se acendeu
a ira de Jacob contra Raquel e disse: Estou eu no lugar de Deus, que te
impediu o fruto de teu ventre? E ela lhe disse: Eis aqui a minha serva, Bilha;
Entra nela para que tenha filhos sobre os meus joelhos, e eu, assim, receba
filhos por ela. (GÊNESIS, 30:1-3 apud ATWOOD, 2017, p. 3)
dar uns tabefes na cara. Eles podem bater em nós, existe precedente nas Escrituras
determinando isso. Mas não com qualquer instrumento. Somente com suas mãos”
(ATWOOD, 2017, p. 26).
As Marthas usam roupas verdes, e são mulheres que já passaram da idade
reprodutiva. Fazem parte de uma casta responsável pelo trabalho domésticos nas casas
dos Comandantes e suas Esposas, fazem a comida, limpam, cuidam das crianças e servem
os convidados e os moradores. Elas moram na casa do Comandante, isto é, elas não
possuem bens próprios, o que se assemelha aos Guardiões. Os Guardiões fazem parte de
uma casta responsável pela segurança. Eles usam uniformes verde escuro, patrulham as
ruas e servem na casa dos Comandantes, onde moram, trabalham como motorista e
contribuem para o trabalho pesado na casa.
As Econopessoas fazem parte da casta mais pobre. As Econoesposas são esposas
de homens considerados de baixa importância em Gilead, elas não possuem Aias e nem
Marthas. Ou seja, elas são consideráveis férteis, mas não impuras aos olhos do
teocentrismo implantado. Como são de baixa patente, também não são consideradas
Esposas. Então, elas usam vestidos listrados de azul, vermelho e verde. São responsáveis
pelo bem estar de seus maridos, pela casa e pela reprodução. “Essas mulheres não são
divididas segundo função a desempenhar. Elas têm que fazer tudo; se puderem”
(ATWOOD, 2017, p. 35).
As Tias são mulheres que possuem a responsabilidade de adestrarem outras
mulheres. Seu uniforme são roupas marrons, e usam cintos com bastão de choque. “Tia
Sara e tia Elizabeth patrulhavam; tinham aguilhões elétricos de tocar gado suspensos por
tiras de seus cintos de couro” (ATWOOD, 2017, p. 12). A função mais conhecida de uma
Tia é a de treinar uma mulher para ser uma Aia. As Tias1 também possuem a
responsabilidade sobre a educação das meninas que crescem dentro do regime de Gilead.
São as únicas mulheres que possuem permissão para ler e escrever, detendo, de certa
forma, o poder sobre o discurso.
Os Olhos são homens que agem como os olhos de Deus e como os olhos do
Estado. Eles são espiões da própria sociedade, observando e esperando os deslizes.
Qualquer homem pode ser um Olho. Eles também atuam na luz do dia, prendendo os
traidores e os levando para serem torturados. Os Olhos são como uma polícia secreta e
inteligente da República de Gilead, não operam no patrulhamento das ruas como os
1
No decorrer desse capítulo, abordaremos de forma mais detalhada o treinamento.
23
Guardiões, eles trabalham pelos cantos, sem serem vistos, mas vendo. “Talvez tenha sido
um teste, para ver o que eu iria fazer. Talvez ele seja um Olho.” (ATWOOD, 2017, p. 28).
Toda essa hierarquização entre castas e cores imposta em Gilead desempenham
um método de quadriculamento, discorrido por Foucault, apresentado no primeiro
capítulo. Ocorre, nessa divisão de corpos por castas e sua marcação por cores bem
definidas, e também de espaço geográfico das cidades da República, uma facilitação para
a localização dos sujeitos:
Para se exercer, esse poder deve adquirir o instrumento para uma vigilância
permanente, exaustiva, onipresente, capaz de tornar tudo visível, mas com a
condição de se tornar ela mesma invisível. Deve ser como um olhar sem rosto
que transforme todo o corpo social em um campo de percepção: milhares de
olhos postados em toda parte, atenções móveis e sempre alerta, uma longa rede
hierarquizada [...] (FOUCAULT, 1987, p. 176)
p. 57). Nessa frase, o Olho Dele se refere a um dos dois tipos de olhos trabalhados na
obra, o olho de Deus, um Deus onipresente que tudo vê. Outro método de vigilância
ocorre através de um lembrete visual é espalhado por toda a cidade o desenho de um olho,
recordando assim a todos que estão sendo observados. “Na semiescuridão olho fixamente
para o olho cego de gesso no meio do teto, que me devolve o olhar, ainda que eu não
possa ver” (ATWOOD, 2017, p. 119). Nesse trecho, June expõe que não consegue ver o
olhar, mas que o sente, ela está consciente dele, e assim a leva a uma disciplina forçada e
à subjugação. Foucault (1987, p. 166) alude que o efeito mais importante do Panóptico é
“induzir no detento um estado de consciente e permanente visibilidade que assegura o
funcionamento automático do poder”. A população de Gilead está presa dentro dessa
relação de poder de que eles mesmo são portadores, visto que esse poder já está dentro
deles, e assim eles se mantêm como corpos dóceis.
Para Foucault (1987, p. 118): “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode
ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”. Em O Conto da Aia os corpos
residentes de Gilead foram transformados ao serem retirados da sua antiga estrutura social
e aperfeiçoados para exercitar suas novas funções. Como, por exemplo uma Martha, que
era dona de sua casa e, após a imposição do novo governo, foi transferida para servir a
um Comandante e sua Esposa. De acordo com Foucault (1987, p 118), “os métodos que
permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante
de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos
chamar de ‘disciplinas’”. Na obra, isso é apresentado de forma nítida por meio dos
treinamentos das Aias no Centro Raquel e Lia.
As Tias, ao empreenderem seu poder disciplinar sobre as mulheres escolhidas,
com o objetivo de as transformarem em Aias, utilizam diversos recursos. Tal como a
sanção normalizadora, apresentada por Foucault, que possui como objetivo penalizar para
corrigir um desvio de controle, objetivando assim a melhoria dos corpos. Nessa
penalização “é utilizada, a título de punição, toda uma série de processos sutis, que vão
do castigo físico leve a privação ligeiras e pequenas humilhações” (FOUCAULT, 1987,
p. 149). Vejamos um exemplo do método de sanção normalizadora na obra de Atwood:
Mas de quem foi a culpa?, diz tia Helena, levantando um dedo roliço.
Dela, foi dela, foi dela, foi dela, entoamos em uníssono.
Quem os seduziu? Tia Helena sorri radiante, satisfeita conosco.
Ela seduziu. Ela seduziu. Ela seduziu.
Por que Deus permitiu que uma coisa tão terrível acontecesse?
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Para lhe ensinar uma lição. Para lhe ensinar uma lição. Para lhe ensinar uma
lição.
Na semana passada, Janine explodiu em lágrimas. Tia Helena a fez se
ajoelhar na frente da turma, com as mãos atrás das costas, onde todas podíamos
vê-la, o rosto vermelho e o nariz pingando. O cabelo de um louro opaco, os
cílios tão claros que pareciam não estar lá, os cílios perdidos de alguém que
esteve num incêndio. Olhos queimados. Ela tinha uma aparência repugnante:
fraca, se retorcendo toda agitada, manchada, avermelhada, rosada como um
camundongo recém-nascido. (ATWOOD, 2017, p.88)
Contudo, para Foucault, o poder não se restringe apenas a uma ação negativa e
corretiva, vinculado a uma estrutura política, a um governo ou classe social dominantes.
O poder é relacional, e decorre das relações que se estabelecem entre as forças que
produzem uma sociedade. Foucault, em Microfísica do Poder (2000), no capítulo Poder-
Corpo, aborda que “se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio
da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à maneira de um grande
superego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil”. Para o
filósofo, o poder não está centralizado, agindo de cima para baixo, mas há “micro
poderes” que surgem através de hábitos reproduzidos.
Conforme salienta, “o domínio, a consciência de seu próprio corpo só pôde ser
adquirida pelo efeito do investimento do corpo pelo poder”. Porém “a partir do momento
em que o poder produziu este efeito, como consequência direta de suas conquistas,
emerge inevitavelmente a reivindicação de seu próprio corpo contra o poder”
(FOUCAULT, 2000, p. 82). Em O Conto da Aia, essa requisição do próprio corpo em
oposição ao poder está presente, por exemplo no trecho abaixo:
Esfrego a manteiga sobre meu rosto, espalho na pele de minhas mãos. [...]
Enquanto fizermos isso, passar manteiga em nossa pele para mantê-la macia,
podemos acreditar que algum dia sairemos, que seremos tocadas de novo, com
amor ou com desejo. Temos nossas próprias cerimônias, cerimônias privadas
(ATWOOD, 2017, p. 118)
O poder é requestado, ele recua, ele se desloca. O poder que penetrou no corpo de
Offred este sendo disputado por ela mesma, June, o nome verdadeiro de Offred, o poder
batalha para ressurgir. Ao passar manteiga em seu corpo, ela está tomando consciência de
si, ela está reivindicando o domínio de seu corpo dócil de volta através da expectativa do
toque, do prazer. Tal corpo disciplinado produz efeito contra o próprio poder
disciplinador. Visto que “o que tornava forte o poder passar a ser aquilo por que ele é
atacado” (FOUCAULT, 2000, p. 83).
28
Tenho um presentinho para você. Ele sorriu um pouco. Então abriu a primeira
gaveta da escrivaninha e tirou alguma coisa. Ele a segurou por um momento,
de maneira bastante casual, entre o polegar e o indicador, como se decidindo
se daria ou não para mim. [...] Olhando fixamente para a revista, enquanto ele
a levantava e balançava diante de mim como uma isca para peixe, eu a quis.
(ATWOOD, 2017, p. 187)
Pegar na pena entre meus dedos é sensual, parece quase viva, posso sentir seu
poder, o poder que as palavras contêm. Querer Ter a Pena É Inveja, diria tia
Lydia, citando mais um dos lemas do Centro, advertindo-nos a nos manter
longe de tais objetos. E elas estavam certas, é inveja. Só tê-la na mão é inveja.
Eu invejo a pena do Comandante. É mais uma coisa que gostaria de roubar.
(ATWODD, 2017, p. 222-223)
99). Tomar coisa de seus dominantes a faria se sentir brevemente no controle de si própria.
Seria um ato de resistência a todo poder disciplinador que mantem seu corpo “preso no
interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou
obrigações” (FOUCAULT, 1987, p. 116). Quando June contraria tais limitações e
proibições impostas pelos poderes hierárquicos, ela briga pelo poder.
Diante disso, se faz necessário “enfatizar também que só é possível haver relações
de poder quando os sujeitos forem livres” (FOUCAULT, 2006a, p.276). Ou seja, não há
relação de poder se um dos dois for integralmente do outro, tal como um objeto no qual
se possa aplicar uma violência. No meio de todas as forças disciplinares, há ânsia pela
busca de saídas, e esse desejo é o que move a relação de poder. Foucault acrescenta que:
Portanto, para que se exerça uma relação de poder, é preciso que haja sempre,
dos dois lados, pelo menos uma certa forma de Liberdade. Mesmo quando a
relação de poder é completamente desequilibrada, quando verdadeiramente se
pode dizer que um tem todo o poder sobre o outro, um poder só pode se exercer
sobre outro à medida que ainda reste a esse último a possibilidade de se matar,
de pular pela janela ou de matar o outro (FOUCAULT, 2006a, p. 276-277)
arrepiada, a move e a sustenta a resistir os pesos e as limitações que o poder que seus
controladores aplicam sobre ela.
A protagonista também encontrou sustento na leitura proibida, antes mesmo da
leitura feita no escritório de Fred. June encontrou, em seu quarto na casa do Comandante,
uma frase escrita em latim, escondida no armário. Ela logo chega à conclusão que a frase
foi escrita por outra Aia, partindo da ideia de que aquele quarto é resignado a Aias. “Eu
me ajoelhei para examinar o piso do armário e lá estava, escrito em letras minúsculas,
bem recentes, parecia, riscadas com um alfinete ou talvez apenas uma unha, no canto
onde caía a sombra mais escura: Nolite te bastardes carborundorum” (ATWOOD, 2017,
p. 65).
June encontra na frase um mantra para sobreviver e resistir, mesmo sem entender
o que estava escrito. O que a encanta é que era uma frase escrita, mesmo a escrita sendo
proibida para mulheres. É um dos primeiros sinais de possibilidade que June encontra.
Ajoelhada no quarto, ela é apresentada à oportunidade de resistência, por menores que
fossem:
Não sabia o que significava e nem sequer em que língua estava escrito. Pensei
que talvez fosse latim, mas eu não sabia nada de latim. Apesar disso, era uma
mensagem, e a mensagem era por escrito, proibida exatamente por esse fato, e
não tinha sido descoberta. Exceto por mim, para quem era destinada. Era
destinada a quem quer que viesse a seguir. (ATWOOD, 2017, p. 65-66)
Diante dessa luta silenciosa pelo poder, escondida na parede de um armário, June
busca naquelas palavras conforto, uma força para adentrar nas relações de poder e
ressurgir. E, durante toda a narrativa, June repete a frase em sua mente, como um mantra,
uma promessa. Quando então ela é chamada para reencontrar com Fred na sala, ela
pergunta a tradução da frase: “Ah. Significava: ‘Não permita que os bastardos reduzam
você a cinzas. [...] Eu forço um sorriso, mas está tudo diante de mim agora. Posso ver por
que ela escreveu aquilo na parede do armário’” (ATWOOD, 2017, p. 224). Na sequência,
lemos:
Essa repetição das palavras para si, por June, com o intuito de trazer alegria para
ela pode ser considerada – guardadas as diferenças históricas e conceituais - como uma
prática de cuidado de si. As resistências e as práticas de si criam uma descontinuação nos
poderes dominantes. O cuidado de si é um instrumento de resistência. Em A
Hermenêutica do Sujeito, Foucault (2006b) apresenta que “o cuidado de si implica uma
certa maneira de estar atento ao que se pensa e ao que se passa no pensamento”. Atwood
expõe esse estar atento ao pensamento através de June: “[...]os pensamentos têm que ser
racionados. Há muita coisa em que não é produtivo pensar. Pensar pode prejudicar suas
chances, e eu pretendo durar” (ATWOOD, 2017, p 16). Nesse trecho, June evite voltar ao
passado, evita lembrar da sua vida passada com o marido e a filha, ela se mantém vigilante
na sua própria mente para poder seguir.
No trecho a seguir é um outro exemplo da protagonista separando o passado do
presente e o real do irreal. “Invisto um enorme esforço para fazer essas distinções. Preciso
fazê-las. Preciso ter uma compreensão muito clara em minha própria mente”
(ATWOOD, 2017, p. 46). Ela converte o olha do exterior, da força disciplinadora, das
suas obrigações e limitações e o direciona a si mesmo, lutando para tal força não a
dominar.
Para Foucault, a prática de si:
O cuidado de si, nesse sentido, atua na dimensão corretiva, no sentido para que
haja uma transformação de si. Há uma expulsão de maus hábitos e vínculos de
dependências:
June, através da prática de si, corrige dentro de si os elos impostos pelo poder
disciplinador colocados aplicados pelas Tias. Ela corrige, encontra saídas e, com isso,
constrói um mecanismo de segurança: “a sanidade é um bem valioso; eu a amealho e
guardo escondida como as pessoas antigamente amealhavam e escondiam dinheiro.
32
Tia Lydia aceitou fazer parte da gestão após uma sequência de privações e depois
de assistir a muitas outras mulheres morrerem por não concordarem com o governo que
estava sendo introduzido. Ela foi se destacando, até das outras Tias, e se tornou uma lenda
viva na República de Gilead. Tia Lydia foi se infiltrando nos poderes de Gilead e
influenciava para quais caminhos a nova doutrina iria. Ela deu a ideia da criação das
Pérolas, meninas que estavam no decurso para se tornarem Tias, e viajavam para outros
países com o objetivo de divulgar a ideologia teocêntrica. Tia Lydia foi responsável por
muitos mecanismos internos da República: ela e outras Tias foram consideradas as
fundadoras.
Agnes, outra narradora, é uma jovem que nasceu no núcleo de Gilead. Ela cresceu
como filha de um Comandante e de uma Esposa. Além disso, possuía três Marthas em
sua casa, o que era indício de que seu pai era de grande influência no governo. Desde
cedo, ela frequentava a Escola Vidala, uma escola de elite apenas para filhas de
comandantes, onde tinham aula de religião, de bordado, de desenho e sobre quais eram
os papeis e os deveres das mulheres. A vestimentas das meninas, como já discorrido
anteriormente, serviam para as diferenciar, com a intenção de fácil localização e
hierarquização:
as mulheres não podiam trabalhar fora nem dirigir, e onde as Aias eram forçadas a
engravidar como se fossem vacas, sendo que as vacas ainda tinham mais vantagens”
(ATWOOD, 2019, p. 54).
A divisão social em castas na República de Gilead permanecia, na base, a mesma.
Atwood se aprofunda, em Os Testamentos, a respeito das castas das meninas que
cresceram em Gilead, e sobre o surgimento de novas Tias, as Pérolas, que eram moças de
vestido comprido prateado, chapéu branco e que usavam colares de pérolas. As Pérolas
se diziam missionárias a serviço de Deus por Gilead. Elas visitavam outros países, sob
ordem de Tia Lydia, e distribuíam folhetos tentando converter outras meninas. Como
expressa o trecho: “Uma moça que alegasse ter sido convertida à fé de Gilead pelas
Pérolas missionárias poderia ingressar facilmente em Gilead” (ATWOOD, 2019, p. 215-
216).
Tia Lydia foi quem teve a ideia das Pérolas, que tinha como objetivo ter
missionárias, não apenas para divulgar a República com uma ideia sonhadora e converter
pessoas, mas também para recolher informações. Ela as escolhia entre algumas Pérolas,
para serem suas espiãs e trocar informações com grupos de resistência em outros países.
Essas informações eram trocadas pelos folhetos que deixavam através de uma tecnologia
chamada microponto. Entretando, para as meninas que eram fruto de Gilead, as Pérolas
eram apenas parte da iniciação para se tornarem uma Tia plena.
A história das duas meninas se cruza quando Tia Lydia tem como objetivo
derrubar a República de Gilead. Agnes decide passar pelo processo para se transformar
em uma Tia, e Daysi, no Canadá, acaba perdendo quem ela achava que eram seus pais.
Ela descobre que eles eram na verdade do Mayday (um grupo de resistência contra
Gilead), e que ela, na verdade, tinha nascido em Gilead e foi retirada de lá pela sua mãe,
que tinha sido uma Aia, e conseguiu fugir para o Canadá. Agnes também descobre que
sua mãe, uma Esposa, também não era sua mãe, e sua mãe verdadeira foi uma Aia. Através
das informações escondidas nos folhetos, Tia Lydia faz Daisy ir para a República de
Gilead, fingindo ser uma Pérola, e em Gilead ela conta para as meninas que elas são irmãs.
Tia Lydia une diversos segredos pessoais, infames de muitos oficiais de alto
escalão em uma espécie de chip (microponto) e o coloca no braço de Daisy: “Ela pegou
uma lâmina e fez um cortezinho na minha tatuagem, na base do O. Depois, usando uma
lupa e um minúsculo par de pinças, ela inseriu algo muito diminuto no meu braço”
(ATWOOD, 2019, p. 355). As duas irmãs, então, fogem da República de Gilead, se
passando por Pérolas e se abrigam no Canadá. Tais informações contrabandeadas pelas
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Sou uma foto pendurada no alto das salas de aula, de meninas bem-nascidas o
suficiente para frequentarem salas de aula – sorrindo com severidade,
censurando em silêncio. Sou um bicho-papão que as Marthas usam para
assustar crianças pequenas[...]. Também sou um modelo de perfeição moral a
ser imitado [...] e uma juíza ou árbitra na inquisição nebulosa da
imaginação[...].
Estou inchada de tanto poder, é verdade, mas ele também me torna
nebulosa – amorfa, mutável. Estou em toda parte e em lugar nenhum: até nas
cabeças dos Comandantes projeto uma sombra perturbadora” (ATWOOD,
2019, p. 40)
Nesse trecho, Tia Lydia relata que a imagem de sua pessoa envolve não somente
as paredes das escolas, mas também os imaginários dos moradores de Gilead. Ela os
assombrava, fazendo-os refletir e hesitar antes de tomar uma atitude, sendo usada pelas
Marthas para disciplinar as crianças, e, com isso, tendo interiorizado nos sujeitos o seu
poder disciplinador. Seu retrato visível reforça sua presença sentinela, constantemente
presente, as observando, como exemplificado no trecho narrado por Agnes: “A
Shunammite dizia que os olhos do retrato da Tia Lydia te seguiam pela sala e que ele
conseguia ouvir o que a gente dizia” (ATWOOD, 2019, p. 89).
A criação dessa imagem onipresente e poderosa da Tia Lydia baseia-se no efeito
primordial no Panóptico, já apresentado no capítulo anterior, que induz aos corpos um
estado consciente de vigilância exaustiva e onipresente, e que, através disso, assegura o
funcionamento espontâneo do poder. Segundo Foucault (1987, p. 166), o efeito no
Panóptico faz com que: “esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar
uma relação de poder independente daquele que o exerce; enfim, que os detentos se
encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos são os portadores”.
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Pensei em fugir de casa, mas como eu faria isso e aonde eu poderia ir? Eu não
tinha noção de geografia: não a estudávamos na escola[...]. E se eu fugisse,
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Deus iria me odiar? Eu não seria perseguida com toda certeza? Eu faria muita
gente sofrer, como na história da Concubina Cortada em Doze Pedaços?
O mundo estava infestado de homens que com certeza achariam tentadora uma
menina desencaminhada: essas meninas seriam vistas como mulheres de moral
dúbia. Talvez eu não chegasse nem ao outro quarteirão antes de ser
estraçalhada, conspurcada e reduzida a uma pilha de pétalas verdes murchas
(ATWOOD, 2019, p. 242)
Agnes, nesse trecho, tem seu impulso de fuga silenciado antes mesmo de o efetuar.
O que a impede de fazer é o fato de ela ter se tornado a portadora do poder disciplinador
que age sobre ela. Quando se pergunta se Deus iria odiá-la, entende-se esse temor baseado
no Deus punitivo difundido pela doutrina teocêntrica de Gilead, que faz uso da figura de
Deus como um regulador dos corpos. Outro pavor introduzido é o pavor do desconhecido,
nesse caso, no âmbito geográfico e no âmbito social. As Tias, nas escolas, promovem e
moldam esse medo através de histórias, como a história da Concubina Cortada em Doze
Pedaços, que assombra Agnes e contribui para impedir a sua fuga:
A Tia Vidala estava sentada sobre o tampo de sua escrivaninha enorme. Ela
gostava de ter um bom panorama da gente [...]. Aí ela disse que já tínhamos
idade para ouvir uma das histórias mais importantes de toda a Bíblia [...] Era a
história da Concubina Cortada em Doze Pedaços.
A concubina de um homem – uma espécie de Aia – fugiu de seu dono, voltando
para a casa do pai. Foi uma grande desobediência da parte dela. [...] o homem
generoso e o viajante colocaram a concubina fora de casa em vez dele.
– Bem que ela mereceu, não foi? – disse Tia Vidala. – Ela não devia ter
fugido. Pensem só no sofrimento que causou aos outros! (ATWOOD, 2019, p.
89-90).
aumentada: “a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão
aumentada e uma dominação acentuada” (FOUCAULT, 1987, p. 119). Ou seja, as jovens
tinham suas habilidades aperfeiçoadas para servirem ao Estado enquanto eram
subjugadas: “essa escola também era gerida pelas Tias [...] supostamente, seu trabalho era
nos ensinar como atuar enquanto donas de casa competentes em lares de alta patente.
Digo ‘atuação’ com duplo sentido: devíamos ser atrizes no palco de nosso futuro lar”
(ATWOOD, 2019, p. 179).
Conforme Foucault, o disciplinamento não tem como objetivo apenas aumentar
as habilidades do sujeito, ou apenas o manter sob sujeição. O poder disciplinador
estabelece um mecanismo que torna o sujeito quanto mais obediente, mais útil. Ou seja,
essa utilidade oriunda da melhoria de suas habilidades só é possível por causa da sua
docilização. Foucault aborda que:
Outra força útil produtiva e submissa são as Tias da República de Gilead. Durante
a implementação do novo Regime, essas mulheres foram sequestradas, pois os Filhos de
Jacó, planejadores de Gilead, cooptavam mulheres fora da idade reprodutiva para
servirem como ferramenta de controle para outras. Essas mulheres escolhidas eram
professoras, advogadas, assistentes sociais, juízas etc. Ou seja, mulheres que tinham
experiência em influenciar outras pessoas. Tais mulheres foram levadas para um campo
de concentração em um ginásio, sem higiene: “Não permitiram que nenhuma de nós fosse
ao banheiro. Surgiram fios de urina, escorrendo das arquibancadas em direção ao campo
esportivo. Esse tratamento tinha o objetivo de nos humilhar, de baixar nossa resistência”
(ATWOOD, 2019, p. 131).
As Tias passaram por um processo de desumanização: “Eles estavam nos
reduzindo a bichos – bichos de cativeiro –, à nossa natureza animal. Estavam esfregando
a nossa natureza animal na nossa cara. Para que nos considerássemos sub-humanas”
(ATWOOD, 2019, p. 156). Elas eram obrigadas a assistir a outras mulheres sendo
fuziladas; essas mulheres que eram assassinadas tinham desaparecido no ginásio dias
antes durante a noite. Os homicídios, no início, eram cometidos apenas por homens, mas
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E foi assim que fui parar no Thank Tank. Era uma solitária em uma delegacia
adaptada, de aproximadamente quatro passos por quatro. Tinha uma cama
embutida, ainda que sem colchão. [..] A cela já tivera iluminação, mas não
mais: agora tinha apenas um soquete, e sem energia. (É claro que eu meti o
dedo lá dentro depois de algum tempo. Você teria feito o mesmo.) Toda luz
disponível viria do corredor lá fora, pelo buraco pelos quais os inevitáveis
sanduíches logo chegariam. (ATWOOD, 2019, p. 164)
Certo dia, se é que era dia, três homens entraram na minha cela sem aviso,
mirando uma lanterna ofuscante nos meus olhos ceguetas, me atirando ao chão,
e ministrando uma precisa surra de pontapés, além de outros cuidados. Emiti
ruídos que me pareceram familiares: já os ouvira ali por perto. Não entrarei em
mais detalhes, exceto para dizer que armas de choque também foram usadas.
O procedimento de chutes e choques foi repetido mais duas vezes. Três é um
número mágico (ATWOOD, 219, p. 165)
No trecho acima, podemos perceber que Tia Lydia foi marcada fisicamente,
porém, além das cicatrizes deixadas em seu corpo, ela, como um sujeito condenado, foi
marcada no seu íntimo. “Era como uma receita para preparar carne dura: primeiro
marteladas, depois marinar e amaciar. [...] eu sentei por vontade própria.” (ATWOOD,
2019, p. 188). O suplício penal é uma manifestação de poder punitivo: “Nos ‘excessos’
dos suplícios, se investe toda a economia de poder” (FOUCAULT, 1987, p. 32).
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modos de agir e falar em Gilead são ditados pelo governo, porém não compreende de
início que se tornou algo natural para os moradores da República:
Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições
que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o
poder. O discurso [...] não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o
desejo; é também, aquilo que é o objeto do desejo [...] o discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas
aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos ponderar
(FOUCAULT, 1996, p. 10)
inserido nas relações de poder também como meio de resistência. Isto é, a resistência
também está presente na ordem do discurso. Em A Arqueologia do Saber (2008), Foucault
afirma que os discursos são formados por signos, porém tais signos fazem mais do que
designar coisas: “É esse mais que os torra irredutíveis à língua e ao ato de fala. É esse
‘mais’ que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever” (FOUCAULT, 2008, p. 60).
Em conformidade com Michel Foucault (2008, p. 107), encontra-se nos discursos:
“um lugar determinado e vazio que pode ser ocupado por indivíduos diferentes; mas esse
lugar [...] é variável o bastante para poder continuar, idêntico a si mesmo através de várias
frases, bem como para se modificar a cada uma”. Uma frase, um conjunto de signos, para
o autor, só puderam ser considerados enunciados porque houve um espaço que foi
ocupado por um sujeito. Dessa maneira, “descrever uma formulação enquanto enunciado
não consiste em analisar as relações entre o autor e o que ele disse [...], mas em determinar
qual é a posição que pode e deve ocupar todo indivíduo para ser seu sujeito”
(FOUCAULT, 2008, p. 108).
É a partir dessa perspectiva que se entende a escrita de Tia Lydia, não a escrita das
Tias, mas a escrita no modelo de correspondência para o leitor, como um ato de
resistência. É por meio dessa escrita que a personagem estabelece um diálogo interno, e
consequentemente toma consciência de seu próprio corpo como sujeito. Enquanto
escreve, Tia Lydia está reivindicando o domínio de seu corpo em objeção ao poder de
Gilead. Em Ditos e Escritos - Ética, sexualidade, politica (2006a), na parte A escrita de
si, Foucault apresenta que o texto por definição destinado a outrem dá também exercício
pessoal. Vejamos um exemplo de tal exercício pessoal mediante a escrita:
Ao me preparar para dormir, noite passada, soltei meu cabelo, o pouco que
sobrou dele. [...] Eu já tive cabelo suficiente para um coque alto, na época dos
coques altos; para um coque baixo, na era dos coques baixos. Mas agora meu
cabelo é feito as nossas refeições aqui no Ardua Hall: esparso e curto. A chama
da minha vida está se abreviando, com mais vagar do que certas pessoas ao
redor talvez desejem, mas mais rápido do que talvez percebam.
Contemplei meu reflexo. O inventor do espelho não foi gentil com a maioria
de nós: devíamos ser mais felizes antes de conhecer nossa própria aparência.
Podia ser pior, disse a mim mesma: meu rosto não dá sinais de fraqueza
(ATWOOD, 2019, p. 39)
Nesse trecho, podemos notar Tia Lydia refletindo sobre seu corpo físico, sua
aparência, os aspectos de seus cabelos e uma breve recordação de como ela já fora no
passado. Ao fazer tal reflexão, ela está tomando consciência de si pela escrita. Para
Foucault (2006a, p. 155-156), a escrita constitui: “uma certa maneira de cada de se
manifestar para si e para os outros”. Ao estar tomando consciência de si própria, ela está,
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só pode ser exercido sobre o outro se este tiver a possibilidade de uma saída. Em Os
Testamentos, essa perspectiva de liberdade é abordada pela Tia Lydia: “Nesse momento
sei que ainda tenho algum poder de escolha nesta questão. Não se morro ou não, mas sim
quando e como. Não há certa liberdade nisso?” (ATWOOD, 2019, p. 40).
No trecho acima, é notável que a personagem toma a liberdade através da morte
como poder. O poder de escolha, de permanecer ou não, é um certo tipo de poder dentro
daquela relação, é o que permite a relação. Analisaremos outro trecho, narrado por Agnes:
“Por que eu estava pensando no meu corpo como frio feito uma lápide? me perguntei.
Logo percebi: ficaria frio feito lápide porque eu estaria morta. [...] Havia um certo poder
naquilo, naquele silêncio e imobilidade” (ATWOOD, 2019, p. 241). A personagem, ao se
encontrar presa em vínculos de poderes sufocadores, enxerga a morte como saída. Ela usa
a visualização de seu corpo inerte e pacífico para resistir, e tal pensamento faz insurgir
dentro dela o poder. As alternativas vigentes contribuem para as micro resistências, para
a disputa pelo poder de si.
A personagem Daisy, quando entra infiltrada na República de Gilead, se vê
colocada em um encadeamento de poder baseado no desconhecido. Apesar da
personagem já conhecer a respeito da doutrina, como foi apresentado na escola, e já pré-
estabelecer sua resistência moral, ela é surpreendida com o poder empreendido pelo
regime. “Eu tinha conseguido entrar em Gilead. Eu pensava que sabia muito sobre o país,
mas viver a coisa é sempre diferente, e com Gilead, era muito diferente. Gilead era
escorregadio feito gelo: eu vivia sentindo que estava perdendo o equilíbrio” (ATWOOD,
2019, p. 341). Diane desse contexto, Daisy busca, no controle das suas emoções, no
atentamento aos seus pensamentos, um meio de resistir: “Quando parava para pensar na
situação, eu sentia medo, mas tentei não deixar o medo me dominar. Eu também estava
me sentindo muito sozinha” (ATWOOD, 2019, p. 346).
De acordo com Foucault (1988, p. 91), “onde há poder há resistência, no entanto
(ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterioridade em
relação ao poder”. As correlações de poder só são existentes em função de múltiplos
pontos de resistências, e tais pontos de resistências podem ser, de acordo com Foucault,
improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, violentas, interessadas ou
fadadas ao sacrifício. Podemos observar, em cada uma da personagem, meios de
resistências que se distinguem e se assemelham.
Os movimentos de resistências, explica Foucault, são distribuídos de maneira
irregular. Esses pontos de resistência se espalham com intensidade variadas, e podem
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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2017.
______. Os Testamentos. Tradução de Simone Campos. Rio de Janeiro: Rocco, 2019.
______. Dire Cartographies: The Roads to Ustopia. In: ATWOOD, Margaret. In Other
Worlds: SF and the Human Imagination. Londres: Hachette, 2011. p. 65-96.
BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451: a temperatura na qual o papel do livro pega fogo e
queima. São Paulo: Globo, 2007.
BUCHWEITZ, Wendel W. Sob o olho d’Ele(s): o legado das vozes femininas em O Conto
da Aia e Os Testamentos, de Margaret Atwood. Orientador: Eduardo Marks de Marques.
2020. 96 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras,
Centro de Letras e Comunicação, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2020.
COLLINS, Suzanne. Jogos Vorazes. Tradução de Alexandre D’Elia. Rio de Janeiro:
Rocco, 2008.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel
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______. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da
Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988.
______.. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo:
Editora Loyola,1996
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