153441-Texto Do Artigo-328409-2-10-20190110
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Graduado, mestre e doutorando em Filoso��a pela FFLCH/USP. Coordenador de pesquisa
da Associação Cultural Videobrasil.
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Fig. 1: Ode à l’Oubli. 28 x 31 x 4.5 cm. Livro de Tecido, ilustrado com trinta e cinco composições.
2002.
Fig. 2: Ode à l’Oubli. 28 x 31 x 4.5 cm. Livro de Tecido, ilustrado com trinta e cinco composições.
2002.
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Esta é uma amostra entre muitas das declarações, com sentidos opostos, dada
pela artista, muitas delas reunidas em seu livro de escritos, organizado ainda com
a artista em vida. Muitas vezes o que surge como revelação, é encobrimento. Em
Destruição do Pai, Reconstrução do Pai, há um texto bastante jocoso, uma seleção
de notas de diários, escritos durante a década de 1980, época em que torna-se uma
verdadeira celebridade do mundo das artes. Tais notas antecedem justamente a
fotomontagem Abuso Infantil, notória narrativa sobre seus traços de infância.
Vejamos:
30 de junho de 1986
Os símbolos são apenas garrafas vazias. Funcionam apenas conforme
o que você põe nelas — signos pessoais signi��cam um alfabeto pes-
soal, nossa originalidade é tudo o que temos. A imagem é sagrada e
não deve ser roubada.
Até aqui, a artista con��rma, então, preencher seus trabalhos com temas de sua
própria vida, atestando sua obra como um trabalho expressivo. Porém, logo em
seguida, a re��exão sobre a relação entre vida e obra é abruptamente interrompida
por uma sentença a��rmativa: “12 de agosto de 1986
A pornogra��a tem um valor terapêutico e deveria ser permitida como tal."5
Ora, simultaneamente, tem-se a a��rmação da sacralidade da imagem, ou seja,
de sua propriedade aurática, capaz de con��gurar-se como indício de algo além de
si própria, e a admissão da imagem que revela tudo, da imagem profanada, aberta.
Em qual dos dois polos se encontraria seu trabalho? Seria ele alfabeto íntimo
4
Op. Cit. p. 245.
5
Op. Cit. p. 132.
Louise Bourgeois por Robert Mapplethorpe | R�� L������� 149
ato a objeto cuja propriedade pertenceria a alguém.7 Mas a questão não se esgota
em seus aspectos jurídico-políticos. O nome do autor não pode ser confundido
com o nome próprio do signatário da obra, pois:
Obra, quando nela não vemos uma autoria concebida não como função, mas de
forma realista.
Não se trata aqui de tentar avançar as teses de Foucault. Porém, é notável como
em Louise Bourgeois a função-autor se in��a, e como esta in��ação é inversamente
proporcional à abdicação da assinatura. Seu conhecido livro Destruição do pai,
reconstrução do pai, que veio a público nos anos 90, foi organizado por dois
críticos, Hans Ulrich Olbrist e Marie Laure Bernardac. Trata-se de fragmentos de
diário, anotações, cartas, entrevistas e textos publicados esparsamente em revistas
e periódicos.
O espectador de seu trabalho igualmente não tem como se manter imune
aos diversos retratos da artista posando juntamente com suas obras, cujo exem-
plar mais notável talvez seja o ensaio fotográ��co que realizou com Robert Map-
plethorpe, a conhecida série de retratos da artista com sua escultura Fillette, de
1968 (Figura 3). Seriam eles partes da obra de Bourgeois ou de Mapplethorpe? A
assinatura é certamente do fotógrafo. Foi ele quem disparou a máquina. Mas não
seriam eles igualmente de autoria de Bourgeois, uma vez que tais retratos, ao co-
locar lado a lado artista e obra, erigem o imaginário existente em torno da artista?
É signi��cativo que estes retratos sejam de 1982,10 mesmo ano da retrospectiva no
MoMA e da publicação de Abuso infantil.
Abdicando da assinatura, os retratos de Mapplethorpe fundem autora e obra,
artí��ce e artifício, escultora e escultura. A autoria enquanto função é levada
ao paroxismo, já que se trata de uma fotogra��a da artista, mas igualmente de
uma fotogra��a de uma de suas obras, que poderia perfeitamente ��gurar em um
dos inúmeros catálogos dedicados a ela, não fosse, talvez, o inconveniente da
imagem da velha senhora em casaco felpudo, que sorri, carregando o falo no colo,
como uma criança recém-nascida. O sorriso adquire uma malícia ainda maior. A
incômoda semelhança entre as rugosidades da parte superior da escultura com as
rugosidades do rosto de Bourgeois levam o observador a analogias obscenas. Cabe
notar que a posição em que a artista coloca Fillette põe em evidência a dimensão
��gurativa da obra, a representação de um pênis. Mas usualmente, Fillette é exibida
em suspensão, participando da série de esculturas suspensas do ��nal dos anos 60,
10
MORRIS, Frances. “Robert Mapplethorpe” In: MORRIS, Frances (org.). Louise Bourgeois.
Nova York: Rizzoli, 2008, p. 172.
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14
BARTHES, Roland. “A Morte do Autor”. In: O Rumor da Língua. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2012, p. 64.
15
FOSTER, Hal. The Return of the Real. Cambridge: The MIT Press, 1996, p. 168.
16
Citado por FOSTER, Hal. Op. Cit., p. 128.
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Quando vemos a atitude terna de muitos pais para com seus ��lhos,
temos de reconhecê-la como revivescência e reprodução de seu pró-
prio narcisismo há muito abandonado. Como todos sabem, a nítida
marca da superestimação, que já na escolha de objeto apreciamos
como estigma narcísico, domina essa relação afetiva [...] Doença,
morte, renúncia à fruição, restrição da própria vontade não devem
vigorar para a criança, tanto as leis da natureza como as da sociedade
serão revogadas para ela, que novamente será centro e âmago da Cri-
ação. His Majesty the Baby, como um dia pensamos nós mesmos
[...] No ponto mais delicado do sistema narcísico, a imortalidade
do Eu, tão duramente acossada pela realidade, a segurança é obtida
refugiando-se na criança. O amor dos pais, comovente e no fundo
tão infantil não é outra coisa senão o narcisismo dos pais renascido,
que na sua transformação em amor objetal revela inconfundivel-
mente a sua natureza de outrora.17
a cabeça maior parece brotar da base inferior de madeira, mas tem de disputar
o espaço exíguo do pescoço que a sustenta com mais dois rostos menores que
parecem com ela concorrer. Já em Cell XXIII, uma única cabeça é posta solitária
em meio à estrutura de metal em cima de uma mesa, tendo sua dimensão de
fragmento do corpo confundida com a de objeto. Retratos cujos olhares são
inapreensíveis, cujos semblantes são obscurecidos pelos grossos tecidos, os rostos
aqui “retratados” são indiscerníveis de máscaras.
Mas caberia a pergunta, por ��m, sobre o propósito deste jogo e, mais ainda,
pelo propósito do desvelamento da estrutura fantasística que Bourgeois conferiu
ao seu trabalho em certa altura de seu percurso, a partir do recurso a esta autoria
en abîme.32 Não se trata simplesmente de se colocar na posição de “desmancha-
prazeres”, deslegitimando toda e qualquer interpretação possível de sua obra,
tomando-a como simplesmente aporética. Não importa tanto, para lembrarmos
agora sim um caso analítico de Freud, se a fantasia originária do Homem dos
Lobos era a recuperação do momento em que viu o desejo de três lobos apoiados
nas patas traseiras, se a visão de dois cães copulando, ou se uma elaboração da visão
de seus pais mantendo relações sexuais. O que importa é que a função primordial
da fantasia é encenação do desejo, onde o sujeito muitas vezes encontra a si próprio
de forma dessubjetivada, em meio a uma narração na terceira pessoa, como que
dissolvido em meio à narração imaginária; não se trata de simples exercício de fuga,
já que é a fantasia (ao contrário do que talvez se pudesse esperar) que permite ao
indivíduo tomar contato com a realidade, não tanto com a realidade empírica,
evidente, mas com sua realidade psíquica.33
Assim, a obra de Bourgeois converte-se em um roteiro de múltiplas entradas,
cuja narração, urdida no contato com o espectador, sempre o devolve às suas
próprias angústias. Trata-se, portanto, de uma obra sem consolação na qual,
em seus melhores momentos, espelhos convertem-se em abismos, e abismos se
revelam apenas espelhos.
32
Esta é expressão é empregada por Raul Antelo a respeito do pseudônimo de Marcel Du-
champ, Rrose Sélavy, que se apropria de um texto que não é de sua autoria e o assina em carta
endereçada para Maria Martin. ANTELO, Raul. Maria com Marcel: Duchamp nos Trópicos.
Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010, p 98.
33
LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, J. B. Fantasia Originária, Fantasias das Origens, Origens
da Fantasia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 84.
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Referências bibliográ��cas
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: A Palavra e o Fantasma na Cultural Ocidental.
Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007
ANTELO, Raul. Maria com Marcel: Duchamp nos Trópicos. Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 2010
BARTHES, Roland. A Câmara Clara. São Paulo: Nova Fronteira, 1984
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BOURGEOIS, Louise; BERNARDAC, Marie Laure; OBRIST, Hans-Ulrich
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