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Louise Bourgeois por Robert

Mapplethorpe: Sobre Autoria e


Fantasia
R�� L�������1

Louise Bourgeois nasceu dia 25 de dezembro de 1911 em Paris, passando a infância


em Choisy-le-Roi, na periferia da capital francesa, onde seus pais trabalhavam
num ateliê de confecção e restauração de tapeçarias. Em 1919, a família transfere-se
para Antony, às margens do rio Bièvre, cujo tanino era usado para o tingimento
de tecidos. Em 1922, seu pai, Louis Bourgeois, contrata Sadie Gordon Rich-
mond como professora de inglês e tutora de seus ��lhos. No ano seguinte, aos 12
anos de idade, Louise passa a colaborar na tapeçaria da família como desenhista,
onde passa toda a sua adolescência trabalhando, paralelamente ao período esco-
lar. Após uma rápida passagem pela Universidade de Paris em 1932, estudando
��loso��a e matemática, ingressa na École des Beaux-Arts de Paris, que logo aban-
dona, realizando estudos por diversos ateliês da cidade, com Fernand Léger; Paul
Colin; Roger Bissière, na Académie Ranson; Othon Friesz na Académie de la
Grande Chaumière, entre outros. Em 1936, deixa a casa dos pais, alugando um
apartamento em Paris, no mesmo prédio onde André Breton mantinha a galeria
Gradiva, de grande importância na exibição das obras dos artistas próximos ao

1
Graduado, mestre e doutorando em Filoso��a pela FFLCH/USP. Coordenador de pesquisa
da Associação Cultural Videobrasil.

145
146 Rapsódia 12

surrealismo. Nesse período, participa de exposições coletivas, na maioria das vezes


organizadas pelos ateliês frequentados, como a Grande Chaumière. Em 1937,
Bourgeois estuda História da Arte na École du Louvre, além de exercer docência
no museu homônimo. Em 1938, abre uma pequena galeria de desenhos, gravuras
e pinturas, em espaço compartilhado com seu pai, que comercializa tapeçarias. É
ali que conhece Robert Goldwater, historiador e crítico de arte norte-americano,
de passagem por Paris por conta da escrita de sua tese de doutorado. Casam-se em
setembro do mesmo ano e transferem-se para Nova York, onde Bourgeois viverá
até falecer, em 2011.2
Qualquer um que já tenha tido algum contato com sua obra sabe da impor-
tância atribuída à sua vida pregressa não só pela própria artista, mas também, e
sobretudo, por grande parte da fortuna crítica que se debruçou sobre seu trabalho.
No entanto, se em 1998 ela declara que: “Toda a minha obra nos últimos cinquenta
anos, todos os meus temas, foram inspirados em minha infância”,3 quatro anos
mais tarde, em 2002, apresenta um livro bordado artesanalmente intitulado Ode
à l’Oubli (Figura 1). Não bastasse uma de suas últimas obras ser um “louvor ao
esquecimento”, em uma de suas páginas encontra-se a seguinte inscrição: “Tive
um �ashback de algo que nunca existiu” (Figura 2).
Que fazer? Esquecer os escritos e declarações da artista, considerando-os
meros artifícios para uma boa inserção no mercado das artes? Ou entregar-se
a psicobiogra��a, a��rmando ser a obra da artista exercício de cura e autoterapia,
testemunho das resoluções de seus con��itos psíquicos? Em 2011, a exposição
Louise Bourgeois: O Retorno do Desejo Reprimido, que viajou por diversos países,
passando pelo Brasil, optou pela segunda via, editando, além disso, uma coletânea
de escritos inéditos da artista que atestavam seu interesse e seu engajamento em
sessões de análise durante anos, fato até então controverso, já que até fora negado
em entrevista de 1993:
2
Todas as informações cronológicas e biográ��cas foram retiradas de MORRIS, Frances (org).
Louise Bourgeois. Nova York: Rizzoli, 2008, pp. 305-11. Imagens das obras da artista mencionadas
aqui podem ser encontradas facilmente pelos mecanismos de pesquisa disponíveis da internet.
Aqui estão reproduzidas apenas as essenciais.
3
BOURGEOIS, Louise; BERNARDAC, Marie Laure; OBRIST, Hans-Ulrich (org). Louise
Bourgeois: Reconstrução do Pai, destruição do pai – Escritos e Entrevistas. São Paulo: Cosac Naify,
2000, p. 01.
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Fig. 1: Ode à l’Oubli. 28 x 31 x 4.5 cm. Livro de Tecido, ilustrado com trinta e cinco composições.
2002.

Fig. 2: Ode à l’Oubli. 28 x 31 x 4.5 cm. Livro de Tecido, ilustrado com trinta e cinco composições.
2002.
148 Rapsódia 12

Você foi analisada?


Não, mas passei a vida toda numa autoanálise de aperfeiçoamento
pessoal, que é a mesma coisa. Meu marido dizia: “Nós a amamos
quando está trabalhando” — Isso quer dizer que o trabalho é uma
espécie de viagem em direção ao aperfeiçoamento pessoal. Se você
atinge a compaixão, todo mundo vai amá-la, porque você é amável.4

Esta é uma amostra entre muitas das declarações, com sentidos opostos, dada
pela artista, muitas delas reunidas em seu livro de escritos, organizado ainda com
a artista em vida. Muitas vezes o que surge como revelação, é encobrimento. Em
Destruição do Pai, Reconstrução do Pai, há um texto bastante jocoso, uma seleção
de notas de diários, escritos durante a década de 1980, época em que torna-se uma
verdadeira celebridade do mundo das artes. Tais notas antecedem justamente a
fotomontagem Abuso Infantil, notória narrativa sobre seus traços de infância.
Vejamos:

30 de junho de 1986
Os símbolos são apenas garrafas vazias. Funcionam apenas conforme
o que você põe nelas — signos pessoais signi��cam um alfabeto pes-
soal, nossa originalidade é tudo o que temos. A imagem é sagrada e
não deve ser roubada.

Até aqui, a artista con��rma, então, preencher seus trabalhos com temas de sua
própria vida, atestando sua obra como um trabalho expressivo. Porém, logo em
seguida, a re��exão sobre a relação entre vida e obra é abruptamente interrompida
por uma sentença a��rmativa: “12 de agosto de 1986
A pornogra��a tem um valor terapêutico e deveria ser permitida como tal."5
Ora, simultaneamente, tem-se a a��rmação da sacralidade da imagem, ou seja,
de sua propriedade aurática, capaz de con��gurar-se como indício de algo além de
si própria, e a admissão da imagem que revela tudo, da imagem profanada, aberta.
Em qual dos dois polos se encontraria seu trabalho? Seria ele alfabeto íntimo
4
Op. Cit. p. 245.
5
Op. Cit. p. 132.
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ou letreiro publicitário em néon? E a quem serviria esse valor terapêutico? Ao


pornógrafo ou ao espectador? Mesmo se se admitisse a obra de Bourgeois como
forma de autoterapia, as aporias não cessariam. É que a aporia, nos trabalhos
em questão, é companheira do drama, da cena, elementos essenciais às operações
estéticas de sua arte.

Mas seriam os escritos de Bourgeois explicações de sua


obra?
Michel Foucault, na célebre conferência “O que é um autor?”, estabelece de
forma precisa a distinção entre assinatura e autoria. Foucault não parte de certezas
lógicas evidentes a partir das quais se deduziriam conceitos claros de autoria e
de assinatura. A precisão do ��lósofo encontra-se justamente em partir de um
determinado estado da questão posto como consequência do desenvolvimento
da arte moderna. Quem realiza a pergunta-título, no texto de Foucault, é Beckett:
“Que importa quem fala? Alguém disse que importa quem fala?”.6 Segundo o
francês, na arte moderna, sobretudo na literatura, o autor tende a dissolver-se na
obra. É com o ��m do gesto expressivo, da marca indelével da subjetividade do
autor na obra, que o modernismo subverteria a tradição ocidental da epopeia (que
imortaliza os grandes feitos). Ao contrário, o modernismo teria se empenhado
em entrelaçar obra de arte e morte. Mas o óbito ao qual aqui se assiste é duplo.
Por um lado, morre o autor na obra, não há mais nela nenhuma marca que possa
ser legitimada a partir de uma subjetividade autônoma, livre, transparente a si
mesma. Por outro lado, morre ou é posta francamente em questão a instância que
atribui lugar, que dá autoridade ao autor: “Quem disse que importa quem fala?”.
É a esta segunda questão que Foucault dará maior importância, pois é ela que
permitirá compreender como a autoria surge num determinado momento e lugar:
para Foucault, na virada do século XVIII para o XIX na Europa, quando passa a
haver a necessidade de imputar responsabilidade à escrita, transformando-a de
6
Samuel Beckett, citado por Foucault em FOUCAULT, Michel. “O que é um autor?”. In:
Ditos e Escritos Volume 3: Estética – Literatura e Pintura, Música e Cinema. São Paulo: Forense
universitária, 2007, p. 267-8.
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ato a objeto cuja propriedade pertenceria a alguém.7 Mas a questão não se esgota
em seus aspectos jurídico-políticos. O nome do autor não pode ser confundido
com o nome próprio do signatário da obra, pois:

(...) o nome do autor funciona para caracterizar um certo modo


de ser do discurso: para um discurso, o fato de haver um nome de
autor, o fato de que se possa dizer "isso foi escrito por tal pessoa",
ou "tal pessoa é o autor disso", indica que esse discurso não é uma
palavra cotidiana, indiferente, uma palavra que se afasta, que ��utua
e passa, uma palavra imediatamente consumível, mas que se trata de
uma palavra que deve ser recebida de uma certa maneira e que deve,
em uma dada cultura, receber um certo status.8

A autoria é, portanto, uma função que condiciona o modo de circulação e de


recepção de um certo número de discursos no interior de uma sociedade. Ela se
diferencia da assinatura, pois esta não confere à escrita nenhuma forma, nenhum
modo de recepção. A assinatura é, em certa medida, apenas uma contingência
da escrita, enquanto a autoria confere ao texto uma estrutura dentro da qual o
receptor deve estar a ��m de compreendê-lo. É a autoria, portanto, que confere
a um grupo de discursos esparsos a unidade e o estatuto de Obra. E sob este
aspecto ela se descola da existência empírica de um sujeito. A título meramente
exempli��cativo, pode-se pensar que a obra de Shakespeare continuará a ser a obra
de Shakespeare mesmo que esta tenha sido escrita pelo ��lósofo seiscentista Francis
Bacon. E a obra de Bacon não se mesclaria à obra do dramaturgo, mesmo que se
houvesse comprovado que se tratasse do mesmo indivíduo a escrever ambas. Não
seria possível confundi-los enquanto “seres de razão”,9 na expressão de Foucault.
Mas por alguma razão, a��rma o francês, o anonimato, depois do século XVII,
tornou-se insuportável nas sociedades ocidentais. Não conseguimos ser receptivos
a um discurso senão sob a forma de Obra, e não somos capazes de conferir unidade
a uma Obra senão a partir da autoria. Pior, nos furtamos ao contato com uma
7
Op. Cit. p. 275.
8
Op. Cit. pp 273-4.
9
Op. Cit. p. 276.
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Obra, quando nela não vemos uma autoria concebida não como função, mas de
forma realista.
Não se trata aqui de tentar avançar as teses de Foucault. Porém, é notável como
em Louise Bourgeois a função-autor se in��a, e como esta in��ação é inversamente
proporcional à abdicação da assinatura. Seu conhecido livro Destruição do pai,
reconstrução do pai, que veio a público nos anos 90, foi organizado por dois
críticos, Hans Ulrich Olbrist e Marie Laure Bernardac. Trata-se de fragmentos de
diário, anotações, cartas, entrevistas e textos publicados esparsamente em revistas
e periódicos.
O espectador de seu trabalho igualmente não tem como se manter imune
aos diversos retratos da artista posando juntamente com suas obras, cujo exem-
plar mais notável talvez seja o ensaio fotográ��co que realizou com Robert Map-
plethorpe, a conhecida série de retratos da artista com sua escultura Fillette, de
1968 (Figura 3). Seriam eles partes da obra de Bourgeois ou de Mapplethorpe? A
assinatura é certamente do fotógrafo. Foi ele quem disparou a máquina. Mas não
seriam eles igualmente de autoria de Bourgeois, uma vez que tais retratos, ao co-
locar lado a lado artista e obra, erigem o imaginário existente em torno da artista?
É signi��cativo que estes retratos sejam de 1982,10 mesmo ano da retrospectiva no
MoMA e da publicação de Abuso infantil.
Abdicando da assinatura, os retratos de Mapplethorpe fundem autora e obra,
artí��ce e artifício, escultora e escultura. A autoria enquanto função é levada
ao paroxismo, já que se trata de uma fotogra��a da artista, mas igualmente de
uma fotogra��a de uma de suas obras, que poderia perfeitamente ��gurar em um
dos inúmeros catálogos dedicados a ela, não fosse, talvez, o inconveniente da
imagem da velha senhora em casaco felpudo, que sorri, carregando o falo no colo,
como uma criança recém-nascida. O sorriso adquire uma malícia ainda maior. A
incômoda semelhança entre as rugosidades da parte superior da escultura com as
rugosidades do rosto de Bourgeois levam o observador a analogias obscenas. Cabe
notar que a posição em que a artista coloca Fillette põe em evidência a dimensão
��gurativa da obra, a representação de um pênis. Mas usualmente, Fillette é exibida
em suspensão, participando da série de esculturas suspensas do ��nal dos anos 60,
10
MORRIS, Frances. “Robert Mapplethorpe” In: MORRIS, Frances (org.). Louise Bourgeois.
Nova York: Rizzoli, 2008, p. 172.
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Fig. 3: Robert Mapplethorpe. Louise Bourgeois. 1982.

a qual pertence também Janus Fleuri. A suspensão, em ambas as obras, acentua


a ambiguidade do referente, levando o observador a se mover incessantemente
entre múltiplas possibilidades de signi��cação, operando no registro do ��gural.
Em Fillette, a forma fálica se metamorfoseia em silhueta feminina, bem como
em órgão reprodutor feminino (vagina, trompas, útero) na medida em que o
espectador em torno dela circula.
Nestes retratos, no entanto, a dimensão ��gurativa posta em evidência resulta
em ironia provocada pelo título da escultura, Fillette (Garotinha, em francês) e
pela acolhida carinhosa a ela dada pela senhora que posa para a foto. Há, portanto,
menos ��utuação de sentido em comparação com a exibição da mesma obra em
suspensão, Figura 4. Ao posar com Fillette nos braços, é como se a modelo Louise
Bourgeois quisesse de fato agarrá-la, ��xá-la. Por outro lado, a obra quali��ca seu
retrato e seu rosto; adjetiva-a em jocosidade e ironia, confere sarcasmo e lascívia,
bem como o humor resultante da obscenidade atribuída ao sexo dos idosos. A
��gura torna-se personagem. Assim, Filette incita o observador a conferir à ��gura
da fotogra��a uma suposta realidade empírica de antemão já perdida pela deserção
da assinatura. Como explica Roland Barthes:
Louise Bourgeois por Robert Mapplethorpe | R�� L������� 153

Fig. 4: Robert Mapplethorpe. Louise Bourgeois. 1982.

(...) a imobilidade da foto é como o resultado de uma confusão


perversa entre dois conceitos: o Real e o Vivo: ao atestar que o
objeto foi real, ela induz sub-repticiamente a acreditar que ele está
vivo, por causa desse logro que nos faz atribuir ao Real um valor
absolutamente superior, como que eterno; mas ao deportar esse real
para o passado (“isso foi”), ela sugere que ele já está morto. Assim,
vale dizer que o traço inimitável da Fotogra��a (seu noema) é que
alguém viu o referente (mesmo que se trate de objetos) em carne e
osso, ou ainda, em pessoa.11

Os signos autobiográ��cos mobilizados por Bourgeois em Abuso Infantil„


apresentados em fotogra��as são, portanto, algo do passado já morto e imóvel, de
11
BARTHES, Roland. A Câmara Clara. São Paulo: Nova Fronteira, 1984, p. 118.
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contato direto impossível. Ali, na mesma fotomontagem, está também Filette.


Suspensa, em sua volúpia sensual e ambiguidade ��gural. Não haveria mais contato
direto possível, nem com o passado das obras, tal como foram expostas, nem com
a artista e sua pessoa. Igualmente perdido estaria o sentido originário de sua obra
e igualmente latente a ânsia por uma sensação de realidade. Vê-se que a presença
da fotogra��a em sua obra a partir dos anos 1980 é prenhe de consequências. A
identidade, em fotogra��a, a��rma Barthes, é imaginária, “a ponto de eu continuar
a falar de ‘semelhança’ sem jamais ter visto o modelo”.12 Tal seria o signi��cado
da presença desta linguagem, a fotogra��a, e de todos esses gestos de Bourgeois
partir dos anos 80. Não há, portanto, propriamente uma biogra��a ou uma au-
tobiogra��a da artista que é apresentada em seus trabalhos. Para decepção dos
psicanalistas, não há um “Caso Louise Bourgeois”. O que nos é apresentado são
biografemas: fragmentos da história de vida da artista que ao observador parecem
encantadores, objetos parciais, portanto, objetos de satisfação do desejo do ob-
servador, de sua pulsão (de morte, talvez?) que tem como meta uma experiência
real, completa, talvez redentora e reconciliadora.13 No entanto, os biografemas
são cacos impossíveis de serem reconstituídos em sua totalidade.
Mas seria possível, então, voltar à psicanálise, sem com isso ter a ilusão de
que ao examinar as obras da artista (e a essa altura já se tem maior clareza de
que sua obra é um corpus bastante expandido de esculturas, pinturas, desenhos e
fotogra��as), se estará realizando uma anamnese de sua pessoa? Como coloca de
forma pertinente e provocadora Hal Foster, nas relações entre arte e psicanálise “a
questão é saber quem ocupa a posição do paciente: a obra, o artista, o observador,
o crítico ou alguma relação ou combinação entre todos os anteriores”. No caso da
obra de Louise Bourgeois, é lugar comum em sua fortuna crítica que o crítico de
arte se coloque no lugar do analista (isto quando ele próprio não o é, como no caso
da maior parte dos autores da coletânea de ensaios sobre sua obra Louise Bourgeois:
o retorno do desejo reprimido, organizada por Philip Larratt-Smith) e a artista, no
lugar do paciente, sendo sua obra um conjunto de sintomas. Mas a autoria, como
se viu, é menos um sujeito empírico do que uma função organizadora da obra.
Em Bourgeois, a autoria surge no interior da obra apresentada, a partir dos
12
Op. Cit. p. 150.
13
Op. Cit. p. 51.
Louise Bourgeois por Robert Mapplethorpe | R�� L������� 155

anos 80, por signos autobiogr�cos, por biografemas. Os psicanalistas tendem,


evidentemente, a cair em tentação. Esta talvez não seja uma particularidade da
obra de Bourgeois. Após o já citado Roland Barthes anunciar nos anos 60 a morte
do Autor,14 (curiosamente no mesmo ano em que Bourgeois realiza Filette),
fazendo eco a quase cem anos de Arte Moderna (como notou Foucault em sua
conferência), a Autoria retorna com toda a força nos anos 70 e 80,15 seja misturada
com a questão da imagem de si, como em Cindy Sherman, seja espetacularizada
como em Je�f Koons ou questionada como em Richard Prince. Todos esses, sem
exceção, se valem da fotogra��a. Mas ela retorna igualmente em certa concepção
de expressão, como nas pinceladas enérgicas de Georg Basilitz. O próprio Barthes,
em 1980, mais de vinte anos após ter anunciado a morte do Autor, a��rma que
o artista não se coloca mais atrás das obras, mas que se torna “mera superfície
das mesmas”.16 Porém, trata-se, evidentemente, de uma outra forma de morte
do Autor. Trazê-lo ao primeiro plano, torná-lo mera superfície, reduzi-lo a uma
imagem autorreferencial é esvaziá-lo de todo o conteúdo psicológico, é evadi-lo
de toda subjetividade, pois esta é extrovertida a tal ponto que se torna quase
impossível diferenciá-la de um objeto. Como percebe Barthes, o retorno da
Autoria é paradoxal: o artista converte-se em forma estética sob o preço de sua
auto implosão, esta, por sua vez, tende a ��xá-lo como imagem. Neste contexto, os
biografemas de Bourgeois são o canto da sereia dos psicanalistas, que costumam
ver sua obra como lugar privilegiado para discussões que, ao ��m e ao cabo, visam
mais a construção de uma clínica do que o exame das obras.
Na série de retratos de Mapplethorpe, Bourgeois parece dramatizar a referên-
cia recíproca entre sua pessoa e sua obra. Ela o faz através da encenação de uma
relação entre mãe e bebê. A maternidade surge como metáfora de uma concep-
ção altamente romântica, poder-se-ia dizer, de criação enquanto auto-expressão,
sendo a forma estética o rebento nascido das entranhas do criador. Mas há tam-
bém outra ideia sendo encenada, já que a relação parental é também um dos
exemplos clássicos de Sigmund Freud para o narcisismo:

14
BARTHES, Roland. “A Morte do Autor”. In: O Rumor da Língua. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2012, p. 64.
15
FOSTER, Hal. The Return of the Real. Cambridge: The MIT Press, 1996, p. 168.
16
Citado por FOSTER, Hal. Op. Cit., p. 128.
156 Rapsódia 12

Quando vemos a atitude terna de muitos pais para com seus ��lhos,
temos de reconhecê-la como revivescência e reprodução de seu pró-
prio narcisismo há muito abandonado. Como todos sabem, a nítida
marca da superestimação, que já na escolha de objeto apreciamos
como estigma narcísico, domina essa relação afetiva [...] Doença,
morte, renúncia à fruição, restrição da própria vontade não devem
vigorar para a criança, tanto as leis da natureza como as da sociedade
serão revogadas para ela, que novamente será centro e âmago da Cri-
ação. His Majesty the Baby, como um dia pensamos nós mesmos
[...] No ponto mais delicado do sistema narcísico, a imortalidade
do Eu, tão duramente acossada pela realidade, a segurança é obtida
refugiando-se na criança. O amor dos pais, comovente e no fundo
tão infantil não é outra coisa senão o narcisismo dos pais renascido,
que na sua transformação em amor objetal revela inconfundivel-
mente a sua natureza de outrora.17

Protegendo e acarinhando Filette, abrigando-a em seu casaco felpudo, Bourge-


ois dramatiza uma relação narcísica com sua própria a obra. Abraçada à escultura,
é como se a artista protestasse ou resistisse contra sua própria desaparição, à sua
dissolução em mera imagem pelicular. Por outro lado, mirando serenamente para
o observador, expressando sorriso discreto, ela toma também distância da cena
em que se insere, consentindo não sem ironia com sua metamorfose em signo
que passa a circular e a assombrar cerca de quarenta anos de produção artística
(tomando-se em conta que Bourgeois inicia seus trabalhos da década de quarenta),
bem como todas as suas obras a partir de então.
Sua obra, por outro lado, se converte em Texto, em Trama de onde é possível
se remeter tanto da Imagem ao Texto, quanto do Texto à Imagem.18 Daí não
FREUD, Sigmund. “Introdução ao Narcisismo”. In: Obras Completas Vol. 12. São Paulo:
17

Companhia das Letras, 2010, pp. 36-7.


18
Para Roland Barthes, a obra é “a cauda imaginária do Texto”, é uma parcela deste, “a obra
é um fragmento de substância, ocupa alguma porção do espaço dos livros (por exemplo, numa
biblioteca)”, no caso das artes visuais, uma obra pode ocupar uma parcela de espaço da sala de
exposições em um museu ou em sua reserva técnica. “Já a obra”, continua Barthes, “é um campo
metodológico. A oposição poderia lembrar (mas de modo algum reproduzir termo a termo) a
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haver em seu trabalho uma narrativa anterior à fruição da obra. A narrativa é


tecida a partir do instante em que é vista pelo observador da obra. Este é sem
dúvida um dos sentidos das enormes Aranhas, a série de esculturas em larga escala
realizadas pela artista. É justamente a aranha o signo mobilizado por Bourgeois
para ocupar a posição de face mais pública de seu trabalho, já que pelo seu tamanho
ela é muitas vezes exposta no exterior dos museus, convidando os espectadores
a percorrerem a trama de sua teia. Geralmente intituladas Maman, mamãe,
gigantescas aranhas indiciam ao espectador a tarefa da construção do sentido. No
imaginário psicanalítico, a aranha também ocupa lugar de destaque, simbolizando
a mãe fálica, construção fantasística de reação contra o horror da genitália feminina
e do medo da castração.19 Ela é, portanto, igualmente representante da fantasia
do sentido pleno, da paci��cação da libido, profundamente aparentada com a
fantasia de onipotência do narcisista. Sempre ameaçada pela realidade, a aranha
é, assim, trabalhadora incansável, cuja tarefa jamais cessa. A trama jamais está
completa. Como observa Sarah Kofman a respeito desta imagem em psicanálise:

Enigmática, a mulher assim é porque lhe falta um pênis. Freud


lembra que é ela a inventora da tecelagem para velar sua nudez, quer
dizer, para velar que ela não tem nada a esconder: para esconder um
buraco. A aranha que tece é para Freud um símbolo da mãe fálica.
Ora, o texto só o é porque tecido que dissimula, vestimenta que
esconde, por medo da castração.20

Metaforizada em mãe fálica nos retratos de Mapplethorpe, Bourgeois torna-


se ela também uma de suas aranhas. Ao espectador de sua obra, as Aranhas
distinção proposta por Lacan: a ‘realidade’, se mostra, o ‘real’ se demonstra; da mesma forma,
a obra se vê (nas livrarias, nos ��chários, nos programas de exame), o texto se demonstra, se fala
segundo certas regras (ou contra certas regras); a obra segura-se na mão, o texto mantém-se na
linguagem: ele só existe tomado num discurso (ou melhor, é Texto pelo fato mesmo de o saber)”.
BARTHES, Roland. Da Obra ao Texto. In: O rumor da língua. São Paulo: WMF Martins
Fontes, p. 67.
19
FREUD, Sigmund. “29ª Nova Conferência Introdutória à Psicanálise”. In: Obras Completas
Vol.18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 149.
20
KOFMAN, Sarah. L’Enfance de L’art: Une Interprétation de l’Esthétique freudienne. Paris:
Galilé, 1985, p. 90.
158 Rapsódia 12

apresentam-se igualmente de forma ambivalente, já que possui um duplo papel:


Por um lado, ela é signi��cado (da mãe da artista, da maternidade, da narrativa
autobiográ��ca), por outro, ela também é uma espécie de emblema, de divisa em
sua obra, ao revelar seu trabalho como sentido sempre a ser construído. Assim,
o texto que perpassa a obra de Bourgeois é tanto uma autoironia da artista em
relação a seu próprio narcisismo, à fantasia de onipotência, quanto uma provoca-
ção à relação narcísica do observador em relação a sua obra, quiçá em relação às
obras de arte em geral. “Sheherazade falava para adiar a castração (assassinato)”
a��rma Bourgeois em uma nota de diário datada de 1984, publicada em Destruição
do pai, reconstrução do pai, “Ela fala como última defesa. É um motivo bastante
miserável, inútil e perigoso, o silêncio é maravilhoso”.21
Ao postular estar o signi��cado de sua obra em um passado, os trabalhos
adentram o espectador para o terreno da fantasia, uma vez que signi��car em sua
obra seria equivalente a recordar. Mas “a lembrança é uma construção substitutiva
originária que visa suprir a falta de sentido da experiência passada. A memória
é desde sempre imaginação. O sentido não se dá pela presença, ele é construído
posteriormente”.22 Assim, o passado só ganha sentido ao ser atualizado pela
experiência presente do indivíduo, ou seja, pelo observador que se coloca diante
das obras da artista, do leitor que se põe a ler seus escritos e entrevistas, que examina
suas fotogra��as. Mas esta atualização só é possível através de uma deformação,
num terreno onde se desdiferenciam imaginação e memória.
Ora, em Freud, a arte funciona como uma memória especí��ca que permite a
reconstrução das fantasias do autor. A fantasia é uma narrativa dada posterior-
mente que pode se fazer da história do artista, graças a sua estruturação simbólica
dada em uma obra.23 Porém, em Bourgeois, a estrutura simbólica é dada num
gesto deliberado da artista. Sua obra se constitui como um campo no qual os
papéis de intérprete e de interpretado são revezados entre o observador e sua obra.
Nas análises freudianas as fantasias dos artistas são tidas como o material a partir
do qual eles constroem sua obra, seja ela plástica ou escrita. Mas em Bourgeois a
fantasia não é simplesmente o material da obra, ela é a própria obra, uma vez que
21
BOURGEOIS; BERNARDAC; OBRIST. Op. Cit., p. 131.
22
KOFMAN, Sarah. Op. Cit., p. 97.
23
Op. Cit. p. 116.
Louise Bourgeois por Robert Mapplethorpe | R�� L������� 159

a autoria, aqui tratada como marca expressiva indelével da biogra��a do artista na


obra, é, ela mesma, fantasia. Não se trata aqui de uma exploração das fantasias
do autor, mas de uma fantasia da autoria. Assim, a fantasia não está por trás da
obra, mas a estrutura, colocando o crítico de arte na posição difícil de ter que lidar
com esta condição paradoxal em que Louise Bourgeois se coloca: uma espécie de
Andy Warhol sentimental.
O observador que percorre a miríade de objetos dispostos nas Cells os fantasia
em símbolos, reconstrói as possíveis associações entre os objetos a sua frente e as
declarações de caráter autobiográ��co da artista: evoca seu pai, sua mãe, a amante;
a casa da infância parisiense à beira do rio Bièvre. Mas há sempre gozo na fantasia,
pois esta é o terreno do psiquismo não submetido ao princípio de realidade. E
de que gozo se está falando aqui? O observador pode muito bem fantasiar a
satisfação da artista sublimando seu passado, e entender sua obra como retorno
do reprimido.24 Ele goza, assim, com sua revolta. Tal seria, talvez, a força de
atração que a obra de Bourgeois exerce sobre psicanalistas, feministas, sobre os
chamados “pós-modernos” que acusam de elitismo o alto modernismo. Para
todos estes, Louis Bourgeois, o pai, converte-se em Duchamp, em Breton; a mãe,
Josephine Bourgeois, em Dora Maar, em Meret Oppeinhem, em Claude Cahun,
e em todas as talentosas artistas, como a própria Bourgeois, para as quais certa
História da Arte usou reservar as notas de rodapé. A própria artista parece colocar
as regras deste jogo em entrevista concedida a Bill Beckley, encontrada a certa
altura de seu Destruição do pai, reconstrução do pai:

A respeito de observar, em oposição a criar, experimento a beleza de


maneira oscilante. Primeiro vejo a beleza nas operações intelectuais
da mente — a perfeição da lógica, em aprender, compreender e
convencer. Segundo, o princípio de prazer beleza por meio do corpo,
do coração e dos cinco sentidos. Por exemplo, o olhar de ��erte ou o
24
Interpretação que poderia ser corroborada por declarações como esta: “Em minha escultura
não é uma imagem que busco, não é uma ideia. Meu objetivo é reviver uma antiga emoção.
Minha arte é um exorcismo [...] A escultura me permite reexperimentar o medo, dar-lhe um
caráter físico, a �m de poder atacá-lo. Hoje digo em minha escultura o que antes não compreendia.
Ela me permite reviver o passado, vê-lo em suas proporções realistas e objetivas”. BOURGEOIS;
BERNARDAC; OBRIST. Op. Cit., p. 357.
160 Rapsódia 12

toque na pele podem gerar quase uma corrente elétrica. Há também


o cheiro do jardim sob a chuva. Na música ou na voz de alguém
um eco pode reviver a emoção de um passado distante. Essas raras
recordações também podem ser beleza. [...] Seduzir é uma fusão
harmoniosa das duas, e é a maior de todas as artes. A escultura,
minha raison d’être, é motivada por minhas obsessivas e fracassadas
tentativas de seduzir.
Há uma beleza incontrolável na tentativa de seduzir alguém valendo-
se de minha escultura. É le désir de plaire. A arte vem da incapaci-
dade de seduzir. Sou incapaz de me fazer amada. Ainda sou motivada
por uma atração pelo “outro”, que é uma beleza misteriosa. A se-
dução é uma forma de convencer. Sou uma sedutora incansável. A
beleza é a busca do "outro".25

Poucas páginas à frente, Bourgeois parece dizer praticamente o oposto o que


a��rma na entrevista com o crítico de arte. Em uma nota seleta de seu diário, datada
de 8 de janeiro de 1992, a��rma: “A escultura fala por si e não precisa de explicação.
Minhas intenções não são o tema. O objeto é o tema. Nem uma palavra minha é
necessária”.26
A artista fala de suas obras sob dois pontos de vista. No primeiro, trata-se
de um discurso na primeira pessoa, que beira a con��ssão. No segundo, trata-se de
uma fala que nega ou toma por supér��uo todo o discurso existente sobre sua obra,
nega a importância da narração. Ela é ainda menos sutil em uma nota de diário
publicada em sua coletânea de escritos. Curiosamente, tal nota encontra-se duas
páginas antes da fotomontagem autobiográ��ca Abuso Infantil. Nela, Bourgeois
enuncia simpaticamente que “O público é merda, desnecessário”.27 Há, portanto,
um jogo de aparição e desaparição da autora Louise Bourgeois— tal jogo leva o
observador a um prazer indireto, tal como o jogo do Fort-da descrito por Freud
25
“Sobre a Beleza: uma conversa com Bill Beckley”. In: BOURGEOIS; BERNARDAC;
OBRIST. Op. Cit. p. 357-8.
26
Notas seletas de diário 1991 – 97. In: BOURGEOIS; BERNARDAC; OBRIST. Op. Cit. p.
364.
27
Op. Cit. p. 131.
Louise Bourgeois por Robert Mapplethorpe | R�� L������� 161

em Além do princípio do prazer.28 Tal como o entretenimento infantil, esta in-


venção simbólica permite a fantasia da autoria de Bourgeois se estruturar. Em suas
Cells, o observador é confrontado em certos momentos com obras cujos signos
parecem claramente metafóricos e simbólicos como roupas, cadeiras, casas etc.
Em outras, há linguagem bastante formal, até mesmo de aspecto anódino, onde
os objetos carregam poucos vestígios de manipulação. Mas todos estes elementos
fazem com que o espectador seja levado de representação em representação, sem
jamais chegar a um sentido original. Com efeito, há menos representação e mais
uma pluralidade de representantes nestes trabalhos de Bourgeois. O signi��cado
original apenas pode ser fantasiado pelo desejo do observador.29 Tal fantasia da
origem é, sem dúvida, a autoria fantasmática da artista, fantasia da expressão auto-
biográ��ca, do valor terapêutico de sua arte. Os momentos nos quais os trabalhos
de Bourgeois surgem como con��ssão, sobretudo como elaboração de eventos
traumáticos anteriores, muitas vezes dirigindo-se na primeira pessoa do singular a
um interlocutor que se quer o público, são os mesmos nos quais seu espectador
frui sua arte como “continuação do jogo infantil” da “inconfessada, mas nunca
abandonada prática fantasmática do adulto”30 A autora Louise Bourgeois tor-
nada fantasia induz seu observador a uma relação de fetiche ao colocar-se em
frente às suas obras. O bordado realizado em pano de prato gasto, com manchas
de gordura e outros resquícios de aparência orgânica que denunciam uso e um
manuseio cotidiano realizado aquém da atividade artística, tem como inscrição:
“Eu estive no inferno e voltei/ E deixe-me contar, foi maravilhoso”. Ouve-se aqui
a voz da ausência. A artista não está ali, não há nada. Apenas as letras bordadas de
caráter ambíguo, pois, se por um lado o bordado remete a ao artesanal, manual;
por outro, os tipos utilizados para estas letras frustram o observador, incitado
pelas manchas de gordura a buscar traços pessoais, caligrá��cos, como que os sinais
mais humanos de um uso anterior ao da inserção deste objeto, o pano de prato,
num contexto artístico. Com efeito, incita-o a buscar literalmente a assinatura da
28
FREUD, Sigmund. Além do Princípio de Prazer. In: Obras Completas Vol. 14. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010, pp. 172-3.
29
Aproximando-se bastante da concepção freudiana de representação como representante,
tal como exposta por KOFMAN, Sarah. Op. Cit. p. 118.
30
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: A Palavra e o Fantasma na Cultural Ocidental. Belo
Horizonte: Editora da UFMG, 2007, p 53.
162 Rapsódia 12

artista, mas logo se confrontam com o paradoxo de uma pessoalidade anônima.


O lenço torna-se, pois, fetiche, uma vez que presença de uma ausência. Torna-se
também fetiche na medida em que seu material, um lenço bordado, é banal e
cotidiano, pré-fabricado e talvez industrial. Será ele único? Ou haverá outros?
Astutamente, Bourgeois produziu um sem-número de desenhos, anotações, diá-
rios, escritos, guaches; sempre de traço, pincelada ou sintaxe, apressadas; mesmo a
série Cells foi realizada ininterruptamente até o ��m de sua vida, não há uma Cell
de fechamento, como num ciclo. Seu observador, ávido por encontrá-la em suas
obras, depara-se com um labirinto. Como a��rma Agamben:

Precisamente por ser negação e sinal de uma ausência, o fetiche não


é um unicum irrepetível, mas, pelo contrário, é algo substituível ao
in��nito, sem que nenhuma de suas sucessivas encarnações possa
algum dia esgotar completamente o nada de que é cifra. Por mais
que o fetichista multiplique as provas de sua existência e acumule
um harém de objetos, o fetiche lhe foge fatalmente entre as mãos
e, em cada uma de suas aparições, celebra sempre e unicamente a
própria mística fantasmagórica. 31

Em algumas de suas últimas Cells, intituladas signi��cativamente Retrato, Bour-


geois parece por sua vez encenar a própria relação entre sua obra e o público. O
retrato, gênero pictórico no qual se pretende justamente dar forma a uma subjeti-
vidade singular, tradicionalmente ligado à ideia de indivíduo, é apresentado como
uma ��gura de três cabeças, ou como uma cabeça sem corpo, pousada horizon-
talmente sobre uma superfície de madeira. De tamanho reduzido com relação
às outras assemblages da série, estes trabalhos permitem uma maior proximidade
do público para consigo. Ele pode, efetivamente, ��tar os rostos da ��gura, como
é típico neste gênero. No entanto, em Cell XI, à cabeça colocada em formato
vertical, como tradicionalmente estaria num retrato, subjaz duas outras cabeças,
cada qual voltada para um lado. Estas, por sua vez, são re��etidas pelos espelhos
colocados na parte inferior da estrutura de metal, fazendo com que o observador
perca de vista e encontre novamente seus rostos sucessivamente. Em Cell XIV,
31
Op. Cit. p. 62.
Louise Bourgeois por Robert Mapplethorpe | R�� L������� 163

a cabeça maior parece brotar da base inferior de madeira, mas tem de disputar
o espaço exíguo do pescoço que a sustenta com mais dois rostos menores que
parecem com ela concorrer. Já em Cell XXIII, uma única cabeça é posta solitária
em meio à estrutura de metal em cima de uma mesa, tendo sua dimensão de
fragmento do corpo confundida com a de objeto. Retratos cujos olhares são
inapreensíveis, cujos semblantes são obscurecidos pelos grossos tecidos, os rostos
aqui “retratados” são indiscerníveis de máscaras.
Mas caberia a pergunta, por ��m, sobre o propósito deste jogo e, mais ainda,
pelo propósito do desvelamento da estrutura fantasística que Bourgeois conferiu
ao seu trabalho em certa altura de seu percurso, a partir do recurso a esta autoria
en abîme.32 Não se trata simplesmente de se colocar na posição de “desmancha-
prazeres”, deslegitimando toda e qualquer interpretação possível de sua obra,
tomando-a como simplesmente aporética. Não importa tanto, para lembrarmos
agora sim um caso analítico de Freud, se a fantasia originária do Homem dos
Lobos era a recuperação do momento em que viu o desejo de três lobos apoiados
nas patas traseiras, se a visão de dois cães copulando, ou se uma elaboração da visão
de seus pais mantendo relações sexuais. O que importa é que a função primordial
da fantasia é encenação do desejo, onde o sujeito muitas vezes encontra a si próprio
de forma dessubjetivada, em meio a uma narração na terceira pessoa, como que
dissolvido em meio à narração imaginária; não se trata de simples exercício de fuga,
já que é a fantasia (ao contrário do que talvez se pudesse esperar) que permite ao
indivíduo tomar contato com a realidade, não tanto com a realidade empírica,
evidente, mas com sua realidade psíquica.33
Assim, a obra de Bourgeois converte-se em um roteiro de múltiplas entradas,
cuja narração, urdida no contato com o espectador, sempre o devolve às suas
próprias angústias. Trata-se, portanto, de uma obra sem consolação na qual,
em seus melhores momentos, espelhos convertem-se em abismos, e abismos se
revelam apenas espelhos.
32
Esta é expressão é empregada por Raul Antelo a respeito do pseudônimo de Marcel Du-
champ, Rrose Sélavy, que se apropria de um texto que não é de sua autoria e o assina em carta
endereçada para Maria Martin. ANTELO, Raul. Maria com Marcel: Duchamp nos Trópicos.
Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010, p 98.
33
LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, J. B. Fantasia Originária, Fantasias das Origens, Origens
da Fantasia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 84.
164 Rapsódia 12

Referências bibliográ��cas
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: A Palavra e o Fantasma na Cultural Ocidental.
Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007
ANTELO, Raul. Maria com Marcel: Duchamp nos Trópicos. Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 2010
BARTHES, Roland. A Câmara Clara. São Paulo: Nova Fronteira, 1984
___. O Rumor da Língua. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012
BOURGEOIS, Louise; BERNARDAC, Marie Laure; OBRIST, Hans-Ulrich
(org). Louise Bourgeois: Reconstrução do Pai, destruição do pai – Escritos e
Entrevistas. São Paulo: Cosac Naify, 2000
FOSTER, Hal. The Return of the Real. Cambridge: The MIT Press, 1996
FOUCAULT, Michel. “O que é um autor?”. In: Ditos e Escritos Volume 3: Esté-
tica – Literatura e Pintura, Música e Cinema. São Paulo: Forense universitária,
2007
FREUD, Sigmund. “29ª Nova Conferência Introdutória à Psicanálise”. In: Obras
Completas Vol.18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
___. "Além do Princípio do Prazer. n: Obras Completas Vol.14. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2010.
___. “Introdução ao Narcisismo”. In: Obras Completas Vol. 12. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010
KOFMAN, Sarah. L’Enfance de L’art: Une Interprétation de l’Esthétique Freu-
dienne. Paris: Galilé, 1985
LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, J. B. Fantasia Originária, Fantasias das Ori-
gens, Origens da Fantasia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988
MORRIS, Frances (org). Louise Bourgeois. Nova York: Rizzoli, 2008

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