Albert Durrer

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Esboços para A Introdução do Livro sobre As Proporções

Humanas (planejado em 1512-1513)

Albrecht Dürer1

Tradução: Daniela Kern

Notas de rodapé: Rafael Machado Costa

Salus

O pequeno livro a seguir é chamado “Alimento para Jovens Pintores”.

É extremamente necessário para um homem ser competente em


alguma coisa em função da utilidade que disso resulta. Portanto devemos
todos alegremente aprender, pois quanto mais soubermos tanto mais iremos
nos parecer à semelhança de Deus, que verdadeiramente conhece todas as
coisas. Você encontra artes de todos os tipos; escolha então você mesmo
aquela que possa prestar o maior serviço a você. Aprenda-a; não deixe a
dificuldade de isso atormentar você até que tenha realizado algo com o que
possa ficar satisfeito. Através da instrução nós podemos nos tornar
competentes em muitas coisas, e não cansaremos disso, porque a natureza
implantou em nós o desejo de conhecer todas as coisas, desse modo
discernindo uma verdade de todas as coisas. Mas nossa fraca sagacidade não
pode atingir a mesma perfeição de toda arte, verdade e sabedoria. Ainda
assim, nós não somos, portanto, completamente excluídos de todas as artes.

1
Traduzido a partir de DÜRER, Albrecht. Drafts for the introduction to the Book on human
proportions (planned in 1512-1513). In: HOLT. Elizabeth. A documentary history of art, volume
I: The Middle Ages and the Renaissance. Princeton, New Jersey: Princeton University Press,
1981. p. 311-318. Albrecht Dürer (1471-1528). Pintor, gravador, humanista, escritor e
matemático, foi o maior exemplo de Homo universalis do Norte da Europa durante o
Renascimento. Filho do ourives Albrecht Dürer, O Velho, (c. 1427-1502), Dürer cresceu tendo
ao seu redor vários humanistas e artistas que contribuíram para sua formação e,
posteriormente, viajou à Península Itálica, onde teve acesso aos grandes mestres do
Renascimento. Considerado por muitos o maior artista do Norte e único equiparável a
Leonardo da Vinci (1452-1519).
Se queremos aguçar nossa razão por meio do estudo e nos exercitarmos
nisso, uma vez que encontramos o caminho correto, podemos, passo a passo,
procurar, aprender, compreender, e finalmente alcançar e obter algo da
verdade. Por conseguinte, aquele que compreende como aprender algo em
seu tempo livre, pelo meio em que se encontre mais apto, em honra a Deus, e
para vantagem tanto de si mesmo como dos outros — esse homem age bem.
Sabemos que muitos homens que obtiveram experiência em diversas artes
deram a conhecer a verdade por eles descoberta, o que nos beneficia agora. É
correto, portanto, para um homem ensinar outro. Aquele que alegremente o
faz, a ele muito deve ser concedido por Deus, de quem nós recebemos todas
as coisas. Possa Ele ter o mais alto elogio. Muito estudo não é um mal para o
homem, ainda que alguns se coloquem rigidamente contra isso, dizendo que a
arte torna arrogante. Sendo assim, não haveria ninguém mais orgulhoso do
que Deus, Que criou todas as artes. Mas isso não pode ser, pois Deus é o
Summum Bonum. Quanto mais, portanto, um homem aprende, tanto mais se
torna melhor e tanto mais deve mais amor ganhar pelas artes e pelas coisas
glorificadas. Por conseguinte, um homem não deve se fazer de bruto, mas
precisa aprender na época certa. Pode-se encontrar alguns que nada sabem e
nada aprendem. Eles desprezam o estudo e dizem que muito mal vem das
artes e que algumas são completamente vis. Eu, pelo contrário, garanto que
nenhuma arte é vil e que todas são boas. Uma espada é uma espada, e pode
ser usada tanto para matar quanto para fazer justiça. As artes, portanto, são
em si mesmas boas. O que Deus criou, isso é bom, ainda que muitos possam
disso fazer mau uso. Se o homem artístico é piedoso e bom por natureza, ele
se abstém do mal e faz o bem; e para isso servem as artes, pois elas dão o
discernimento do bem e do mal. Alguns podem aprender algo de todas as
artes, mas isso não é dado a todos os homens. Não obstante, não há homem
racional tão fraco que não possa aprender aquilo a que sua imaginação o
incline mais fortemente. Portanto nenhum homem tem desculpas para não
aprender algo.

Agora sei que em nossa nação alemã, no tempo presente, há muitos


pintores que necessitam de instrução, pois carecem de arte real, ainda que, no
entanto, tenham muitas grandes obras a fazer. É então tanto mais necessário,

2
como são tão numerosos, que aprendam a melhorar seu trabalho. Aquele que
trabalha na ignorância trabalha com maior dificuldade do que aquele que
trabalha com entendimento; portanto, deixemos todos aprender a compreender
corretamente. De boa vontade eu vou compartilhar meu ensinamento,
doravante escrito, com o homem que tem pouca competência e que ainda
assim gostaria alegremente de aprender; mas não me importo com o orgulhoso
que, de acordo com suas próprias avaliações de si mesmo, conhece todas as
coisas, e é o melhor, e despreza tudo o mais. Por artistas verdadeiros, no
entanto, como os que podem mostrar seu valor com suas mãos, eu
humildemente desejo ser instruído com muita gratidão. Quem quer que queira,
portanto, que se deixe que ouça e veja o que vejo, faço e ensino, pois espero
que isso possa ser de utilidade e não um obstáculo a artes melhores, nem que
leve você a negligenciar coisas melhores.

Essa arte da pintura é feita para os olhos, pois a visão é o mais


nobre sentido do homem. Alguns que conheço ficarão curiosos sobre essas
matérias porque nunca viram ou ouviram sobre tais coisas em nossa terra
antes. Quem quer que, portanto, se depare com isso, deixe-o escolher o que
ele quer dali e nisso procurar progresso da forma que quiser, pois apenas
assim a verdade irá se conformar a isso. É mais fácil acreditar em uma coisa
que você observa do que em uma que ouve; mas o que quer que seja tanto
ouvido quanto visto entendemos mais firmemente e apreendemos com mais
segurança. Vou, portanto, continuar a palavra com a obra [scil.2 texto e
ilustrações] para que assim eu possa ser mais bem compreendido.

Cada forma trazida diante de nossa visão nela incide como em um


espelho. Por natureza olhamos uma forma e figura com mais prazer do que
outra, ainda que a coisa em si mesma não seja necessariamente melhor ou
pior. Gostamos de observar belas coisas, pois isso nos dá alegria. A
apresentação de julgamentos de beleza é mais crível na fala de um pintor
talentoso do que na de outros. A verdadeira proporção faz uma boa figura não
apenas na pintura, mas também em todas as obras, de qualquer maneira que
seja executada. Não devo trabalhar em vão, se estabeleço o que pode ser útil

2
Abreviação do latim scilicet, que significa “a saber”, “isto é”. N. T.

3
para a pintura. Pois a arte da pintura é empregada a serviço da Igreja e por
isso os sofrimentos de Cristo e muitos outros exemplos proveitosos são
apresentados. Ela preserva também a semelhança dos homens após sua
morte. Com a ajuda do delineamento na pintura, as medidas da terra, as águas
e as estrelas puderam ser entendidas; e muitas coisas ainda vão se tornar
conhecidas pelos homens com o auxílio dela. A obtenção da verdadeira,
artística e adorável execução na pintura é difícil de se atingir; ela precisa de
muito tempo e de uma mão muito livre e experimentada. Quem quer que,
portanto, são seja dotado dessa maneira, não o deixe empreender isso; pois tal
coisa chega por inspiração superior [divina].

A arte da pintura não pode ser verdadeiramente julgada a não ser


por aqueles que são, eles mesmos, bons pintores; de outros ela é
verdadeiramente escondida, como se fosse mesmo uma língua estrangeira. É
uma nobre ocupação para jovens engenhosos, que não trabalham, exercitar-se
nessa arte.

Há muitos séculos atrás a arte da pintura era tida em alta honra por
poderosos reis, e eles tornavam os excelentes artistas ricos e os consideravam
dignos, considerando tal inventividade um poder criativo como o de Deus. Pois
um bom pintor em seu interior está cheio de figuras, e se fosse possível para
ele viver para sempre, sempre teria em seu interior “ideias”, sobre as quais
Platão3 escreve, algo novo para exteriorizar através da obra de sua mão.

Há muitas centenas de anos havia vários pintores famosos, como


aqueles que se chamavam Fídias4, Praxíteles5, Apeles6, Policleto7, Parrásio8,

3
Pláton (424/423 a. C.-348/347 a.C.). Filósofo ateniense discípulo de Sokrátes, seu sistema
filosófico pregava a existência de um plano superior perfeito conceitual independente do mundo
físico material, que, por sua vez, se realizava e existia como uma forma corrompida e inferior
aos conceitos do seu “mundo das ideias”. Quando Dürer invoca aqui sua “ideia”, refere-se à
postura dos pintores renascentistas de que, para criarem representações mais próximas da
perfeição, não deveriam observar e copiar diretamente os elementos do mundo através de
seus sentidos, mas antes tentar acessar as formas ideais elaboradas mentalmente e a partir
delas criar as formas a serem representadas.
4
Pheidías (c. 490 a.C.?-c. 432 a.C.). O mais renomado escultor heleno do período Clássico,
tendo conquistado esta fama ainda vivo, embora poucas obras suas tenham sido preservados
até a atualidade. A maioria das informações sobre sua vida foram escritas por historiadores
romanos a partir do século I, e muito do que se conhece de seu trabalho é através de
reproduções e descrições. Entre seus trabalhos mais destacáveis, quem envolviam escultura

4
Lisipo9, Protógenes10, e o resto, alguns dos quais escreveram sobre sua arte e
muito engenhosamente a descreveram e a trouxeram plenamente à luz; mas

em mármore, gesso e metal, estão a estátua de Athena no Parthenon — realizada enquanto


cordenava os trabalhos escultóricos na construção de todo o templo — e a estátua de Zeus de
Olímpia, considerada uma das Sete Maravilhas do Mundo citadas por Antípatros Sidonios (c.
século II a.C.). Tendo sido mantido por um longo tempo por Perikles (c. 495/492 a.C.- 429 a.C.)
como escultor oficial da polis, quando o tirano foi deposto, Pheidías foi acusado de ser seu
colaborador e acabou preso. Lucius Mestrius Plutarchus (c. 46-120) relata que Pheidías teria
morrido na prisão em Atenas, mas outras versões, sustentadas pelos indícios arqueológicos,
afirmam que ele teria fugido para Olímpia e então confeccionado a escultura de Zeus para o
templo local.
5
Praksitéles (c. 395 a.C.-330 a.C.). Foi um dos escultores atenienses responsáveis pela
transição do estilo Clássico para o Helenístico, discípulo — e provavelmente filho — de
Kephisódotos, O Velho, (?-c. 360 a.C. ) e pai dos também escultores Kephisódotos, O Jovem,
e Timarkho. Também foi através de seu trabalho e mármore que o mineral na época preterido
pelo bronze, voltou a ser considerado como a matéria escultórica mais nobre. Acredita-se que
Praksitéles pertencia a uma família abastada de Atenas e que herdou a oficina, bem como a
clientela, de Kephisódotos após sua morte. Pouco de seu trabalho sobreviveu e pode ser
creditado com precisão à sua autoria, mas conhecem-se vários textos que descrevem suas
esculturas, bem como cópias posteriores romanas que permitem ter-se uma noção de seu
estilo. Entre suas obras mais relevantes está a Afrodite de Cnido, primeira estátua nua de um
corpo feminino em tamanho real exibido em toda Hélade, muito elogiada e controversa em seu
tempo.
6
Apelles de Kos (século IV a.C.). Filho do arquiteto Pítias, irmão do também pintor Ktesiokhos
e discípulo de Pámphilos, foi considerado pelos historiadores e biógrafos romanos como o
maior pintor do período Clássico, mas sem que nenhuma de suas obras tenha chegado aos
dias atuais. Plínio, O Velho, (23-79) o cita em seu Naturalis Historia e alega que o próprio
Cônsul Gaius Julius Caesar (100 a.C.-44 a.C.) possuía uma obra da autoria de Apelles em sua
coleção. Foi o pintor oficial do rei macedônico Phílippos II (382 a.C.-336 a.C.) e depois de seu
filho Alexandre (356-323 a.C.), sendo o único autorizado e pintar seu retrato. Conta-se que
recebeu de Alexandre sua amante Pankaspe quanto ficou apaixonado por ela após pintá-la
nua. A Apelles também é atribuído a escrita do Tratado de Arte, um texto que teria influenciado
pintores futuros. Em relação a essas influências, era considerado a grande referência a qual os
pintores do Renascimento deveriam tentar alcançar, mesmo sem nunca terem visto alguma de
suas pinturas. Vários dos pintores, inclusive, tentaram replicar obras de Apelles através de
suas descrições em textos clássicos, como Sandro Botticelli (1444/1445-1510), Andrea
Mantegna (1431-1506) e Tiziano Vecellio (c. 1458-1576).
7
Polýkletos de Argos (ativo c. 460 a.C.-c. 410 a.C.), também conhecido como Policlito,
Policleto de Sicião e Policleto, O Velho. Escultor heleno do período clássico cujas obras foram
todas perdidas, mas se conhecem diversas cópias romanas. É citado em vários textos antigos,
sendo que Plínio, O Velho, (23-79) afirma que ele havia derrotado Pheidías em uma
competição de escultores. A sua obra conhecida como Doriforo teria estabelecido o chamado
“Cânone de Policleto”, em que, através do equilíbrio entre a representação da tensão e
repouso do corpo, formou o padrão de beleza buscado na produção do período Clássico.
8
Parrásios de Efeso (c. século V a.C.-c. século IV a.C.). Um dos grandes pintores helenos do
seu período e filho do também pintor Eúénor. Nnão restaram obras de sua autoria, seu renome
se deve principalmente à citação feita por Plínio, O Velho, (23-79) no Naturalis Historia de sua
disputa com o pintor Zeuksis de Heracleia. Segundo Plínio, Zeuksis teria pintado uma parreira
carregada de uvas que fizera com que um pássaro, confuso com a semelhança que a pintura
tinha com o que representava, chocara-se contra a parede acreditando ser a imagem real.
Então Zeuksis desafiara Parrásios a abria a cortina que cobria sua pintura e revelá-la. Para a
surpresa de Zeuksis, Parrásios lhe revelara que não havia cortina, mas sim uma pintura que
representava uma cortina. Então Zeuksis teria admitido a superioridade de Parrásius, pois, se
sua obra havia confundido a visão de um pássaro, a do rival havia confundido a de um pintor.
9
Lýsippos (ativo c. 360 a.C.-c. 305 a.C.). Foi um dos grandes escultores helenos do final do
Período Clássico. Plínio, O Velho, (23-79) afirma que ele fez mais de mil e quinhentas
esculturas em bronze, mas nenhum de seus trabalhos originais é conhecido. Apenas se
encontram reproduções romanas de suas obras. Conta-se que foi o escultor oficial de

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seus elogiáveis livros são, agora, desconhecidos para nós, e talvez tenham
sido completamente perdidos pela guerra, pela expulsão dos povos, e
alterações de leis e de costumes — uma perda que deve ser muito lamentada
por todo homem sábio. Frequentemente ocorreu que a nobre Ingenia fosse
destruída pelos bárbaros opressores da arte; pois se eles viam figuras traçadas
em linha pensavam que se tratasse de pura magia negra. E [ao destruí-las]
tentavam honrar a Deus através de algo que O desagradava; pois, para usar a
linguagem dos homens, Deus está furioso com todos os destruidores das obras
de grande maestria, que apenas são obtidas por meio de muita labuta, trabalho
e dispêndio de tempo, e são concedidas apenas por Deus. Frequentemente
lamento que eu tenha sido privado dos já mencionados livros da arte dos
mestres; mas os inimigos da arte desprezam essas coisas.

No entanto, nada ouvi sobre um escritor, em tempos recentes, que


tenha escrito e tornado conhecida qualquer coisa que eu possa ler para meu
aperfeiçoamento. Pois ainda que haja alguns, eles escondem sua arte em
segredo, e outros escrevem sobre as coisas das quais nada conhecem. Isso,
então, é tudo mero ruído, pois suas palavras são o melhor [que eles podem
fazer], como aquele que conhece algo rapidamente descobre. Eu, portanto, irei
escrever com a ajuda de Deus o pouco que aprendi. Ainda que muitos venham
a desprezar isso, não me perturbo, porque sei que é mais fácil reclamar de algo
do que fazer algo melhor. Além do mais, vou expor o que quero dizer tão clara
e simplesmente quanto conseguir; e, quando possível, vou alegremente trazer
à luz tudo o que sei, para o bem de astutos estudantes que valorizam tal arte
em mais alto grau do que ouro ou prata. Eu, além disso, peço a todos aqueles

Alexandre da Macedônia (356-323 a.C.) e o único a que era permitido representar sua imagem.
Influenciou vários escultores de seu tempo com suas novas regras de proporção que competia
com as de Polýkletos.
10
Protogénes (c. século IV a.C.). Foi um pintor heleno do período Clássico que viveu em
Rhodes e foi rival de Apelles. Plínio, O Velho, (23-79) narra em seu Naturalis Historia uma
disputa entre os dois pintores. Apelles teria ido fazer uma visita à oficina de Protogénes, de
quem havia ouvido falar, para conhecê-lo, mas, ao chegar lá, estava apenas uma mulher,
guardando uma pintura, que lhe contou que Protogénes saíra. Quando a mulher questionou
quem era, Apelles respondeu pintando uma linha extremamente fina e delicada com uma cor
diferente sobre uma linha já pintada cortando-a longitudinalmente em duas. Quando
Protogénes retornou, reconheceu que, pela delicadeza e precisão da linha, o visitante só
poderia ter sido Apelles e pintou uma segunda linha ainda mais precisa e fina, caso o outro
pintor retornasse eu sua ausência. Em uma segunda visita, Apelles mais uma vez não
encontrou Protogénes, mas apenas a linha perfeita traçada por ele. Então pintou uma nova
linha ainda mais precisa que corria pelo centro das anteriores e tão fina que não permitia
espaço para uma nova linha, a qual Protogénes teve de reconhecer como imbatível.

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que têm qualquer conhecimento nessas matérias que o escrevam. Façam isso
de modo verdadeiro e simples, não laborioso; e não conduzam aqueles que
procuram e que gostariam de aprender por caminhos tortuosos, para grande
honra de Deus e para sua própria glória.

Se eu então estabeleço algo ardente e vocês todos nisso colaboram


com habilidoso favorecimento, uma fogueira pode com o tempo dali surgir, que
irá brilhar por todo o mundo. Item. A visão de uma bela figura humana é, acima
de todas as coisas, agradável a nós, razão pela qual irei primeiro construir as
corretas proporções de um homem. Depois disso, conforme Deus me der
tempo, irei escrever sobre e apresentar outras matérias. Estou certo de que os
invejosos não irão guardar seu veneno para si mesmos; mas nada irá de modo
algum me impedir, pois mesmo os grandes homens tiveram de passar pelo
mesmo. Vemos figuras humanas de muitos tipos surgindo a partir dos quatro
temperamentos; ainda assim, se temos de fazer uma figura, e se isso é
deixado a nosso arbítrio, devemos fazê-la tão bela quanto pudermos de acordo
com a tarefa, de modo adequado. Não pouca arte, no entanto, é necessária
para fazer muitos tipos variados de figuras de homens. A deformidade irá
continuamente de sua própria vontade se emaranhar em nossa obra. Nem um
único homem pode ser tomado como modelo para uma figura perfeita, pois não
vive na terra nenhum homem que seja dotado de uma beleza completa; ele
deve ainda ser muito mais belo. Também não vive homem algum sobre a terra
que possa dar um julgamento final sobre qual deve ser o mais belo formato de
um homem; apenas Deus conhece isso. O quanto a beleza deve ser julgada é
uma questão de deliberação. Devemos levá-la a cada coisa, de acordo com as
circunstâncias, pois em algumas coisas consideramos como belo aquilo que
em outra parte careceria de beleza. “Bom” e “melhor” a respeito da beleza não
são fáceis de distinguir, pois seria bastante possível fazer duas figuras
diferentes, nenhuma delas parecida com a outra, uma mais robusta e outra
mais magra, e ainda assim dificilmente estaríamos aptos a julgar qual das duas
poderia exceder em beleza. O que a Beleza é eu não sei, ainda que ela adira a
muitas coisas. Quando queremos colocá-la em nosso trabalho achamos isso
difícil. Devemos reuni-la por toda a parte, e especialmente no caso da figura
humana através de todos os seus membros [vistos] pela frente e por trás.

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Pode-se muitas vezes procurar em meio a duzentos ou trezentos homens sem
encontrar entre eles mais do que um ou dois pontos de beleza que possam ser
úteis. Você, portanto, se deseja compor uma excelente figura, deve tomar a
cabeça de alguém e o peito, braço, perna, mão e pé de outros, e, do mesmo
modo, procurar por todos os membros de cada tipo. Pois de muitas belas
coisas algo bom pode ser colhido, assim como o mel é colhido de muitas flores.
Há uma medida correta entre o demasiado e o muito pouco; lute para atingir
isso em suas obras. Ao chamar algo de “belo”, devo aplicar aqui o mesmo
padrão que é aplicado a “correto”. Pois como tudo o que o mundo valoriza
como correto nós supomos ser correto, do mesmo modo tudo o que o mundo
estima como belo nós também teremos por belo e lutaremos para produzir.

Item. Eu não exalto em alto grau as proporções que estabeleço aqui,


ainda que não acredite que sejam as piores. Eu não as apresento como sendo
assim e não de outra maneira. Você pode procurar e descobrir algum método
melhor com a ajuda dessas “medidas”, pois todos devem procurar por
aperfeiçoamento em sua obra. Seja como for, deixe-o aceitar isso como bom
até que ele seja verdadeiramente instruído com algo melhor; pois um chega
mais próximo à verdade do que outro de acordo com ser seu entendimento
mais forte, e com os modelos a partir dos quais ele se inspira serem superiores
em beleza. Muitos seguem apenas seu gosto; eles incorrem em erro. Portanto,
deixe que cada um tome conta para que sua inclinação não cegue seu
julgamento. Pois toda mãe gosta muito de seu próprio filho, e assim também
ocorre que muitos pintores pintem figuras que se pareçam consigo mesmos.
Há muitas variedades e causas para a beleza; aquele que mais seja capaz de
revelá-las é o que mais deve merecer confiança. Quanto mais a imperfeição é
excluída, mais beleza permanece na obra.

Não deixe homem algum colocar demasiada confiança em si mesmo,


pois muitos vêem melhor do que um. Mesmo que seja possível para um
homem compreender mais do que uma centena, isso ainda ocorre, raramente
[aquele] supera [estes]. Utilidade é uma parte importante da beleza; o que quer,
portanto, que seja inútil em um homem não é belo. Resguarde-se da
superficialidade. A harmonia de uma coisa com a outra é bela, logo a
instabilidade não é bela. [Mas] há também uma grande harmonia na

8
diversidade. Muito irá ora em diante ser escrito sobre os problemas e artifícios
da pintura. Pois estou certo de que muitos notáveis homens irão surgir, todos
eles irão escrever e ensinar tanto bem como melhor sobre essa arte. Pois eu
mesmo mantenho minha arte em um valor muito medíocre, pois conheço
minhas deficiências. Deixe cada homem, portanto, lutar para melhorar minhas
deficiências de acordo com suas forças. Quisesse Deus, se fosse possível, que
eu conseguisse ver a obra e a arte dos poderosos mestres por vir, que ainda
não nasceram, pois acredito que eu poderia ser melhorado desse modo. Ah!
quantas vezes em meu sonho eu contemplava grandes obras de arte e belas
coisas, as quais nunca me aparecem quando estou acordado; mas tão logo
acordo minha memória perde controle sobre isso. Não deixe ninguém ter
vergonha de aprender, pois bom conselho nos ajuda em uma boa obra. Não
obstante, quem quer que se aconselhe nas artes, que possa tomá-lo de alguém
completamente versado nessas matérias e que possa prová-lo com sua mão.
Mesmo que qualquer um possa fazer isso, é bom [fazer assim]: quando você
tiver feito uma obra que agrade a si próprio, mostre-a para homens rudes, de
pouco julgamento, para que eles possam dar sua opinião sobre ela. Como
regra eles escolhem os pontos mais defeituosos, ainda que não tenham
entendimento sobre os bons. Se você acha que eles dizem algo de verdadeiro,
você pode melhorar sua obra. Resta muito a ser escrito sobre essas matérias,
mas em nome da brevidade eu vou colocar um ponto final, e vou entrar na
tarefa de construir as figuras do homem e da mulher.

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