Identidade e Ciência
Identidade e Ciência
Identidade e Ciência
TÍTULO
DURAÇÃO
2 anos
PESQUISADOR
PALABRAS CHAVES
RESUMO
O presente projeto, do ponto de vista metodológico, tem por objeto a pesquisa e a elaboração
teórica da figura-tipo do viajante iluminista luso-brasileiro, em oposição ao viajante europeu do
romantismo na construção de imagens dos espaços e moradores deste universo não-europeu.
Trata-se da discussão do estatuto peculiar destes viajantes oriundos dos espaços coloniais e de
como aflora a questão identitária em seus textos, tal qual discutido mais adiante, principalmente à
partir da página 6. Ele insere-se numa proposta de dar continuidade à pesquisa do corpo
documental composto pelas obras e documentação conexa dos cientistas luso-brasileros do final
do século XVIII e início do século XIX, no qual estou envolvido há alguns anos. São duas
gerações de intelectuais, a da década de 1770 e a de 1790, que participaram ativamente na
tentativa de construção de um novo grande Império Português, em moldes que o mesmo
acolhesse esta elite colonial, e, depois, na constituição do Império Brasileiro independente. Apesar
de todos reconhecerem a importância dessas gerações, o seu estudo acabou bastante
obscurecido.
3
APRESENTAÇÃO
No século XVIII, cresce em Portugal, assim como nos demais países da Europa, o
interesse pelas viagens de cunho científico. Tornou-se paradigmático o modelo, estabelecido por
Lineu, de enviar naturalistas-viajantes aos quatro cantos do mundo, os quais lhe enviavam
exemplares de “curiosidades da natureza” para a constituição de um museu de história natural e
jardim botânico, no qual eram estudados e classificados.1 Logo, as principais potências européias
iriam criar os seu centros de estudo e espalhar emissários pelo mundo. 2
Portugal não ficaria alheio ao processo e, um pouco tardiamente, também entraria nesta
“corrida científica”. Estrategicamente, o governo português procurou colocar a ciência a serviço do
reconhecimento das potencialidades econômicas dos seus territórios coloniais e, com esse intuito,
patrocina uma série de expedições exploratórias aos quatro cantos do Império. Muitos dos
protagonistas dessas viagens do século das Luzes foram recrutados junto à intelectualidade
acadêmica de Coimbra, da qual faz parte um número não desprezível de naturalistas brasileiros.
Um certo modismo acadêmico tem trazido à cena da historiografia recente o viajante como
motivo de investigação. É de se observar, entretanto, que o tema tem sido mais caro a autores
estrangeiros, notadamente os de origem francesa e inglesa. Quanto à produção nacional,
concentra-se nos viajantes estrangeiros que por aqui passaram no século XIX. Excluído o caso de
Alexandre Rodrigues Ferreira, que foi alvo de diversos estudos, a grande maioria dos cientistas
que atuaram no Brasil é praticamente desconhecida por nossa historiografia. Em esquecimento
ainda maior ficaram aqueles que atuaram nas colônias outras colônias portuguesas.3
Portugal utilizou a estratégia de impedir a criação de universidades no Brasil, como forma
de atrair a elite colonial brasileira ao seu projeto imperial. Assim, de um lado, tinha-mos uma
camada abastada perfeitamente adaptada à vida na colônia e com recursos suficientes para
buscar na metrópole a educação de nível superior de que a colônia era carente. De outro, os
administradores de um imenso Império em crise que, temendo perder seus domínios no ultramar,
utiliza uma estratégia de ‘parceria’ com a elite colonial, integrando-a nas missões de
reconhecimento e governação.
A grande maioria daqueles brasileiros que se tornariam viajantes naturalistas fez seus
estudos na Coimbra Reformada, já que é a partir do projeto de modernização do ensino em
Portugal que se inicia o interesse pelas viagens de cunho científico. Na listagem de estudantes
brasileiros em Coimbra entre 1772 e 1872, elaborada por Francisco de Morais, constam 1242
nomes, muitos deles optando pela formação em filosofia ou em matemática, cursos que
habilitavam em ciências naturais (zoologia, botânica e geologia) e em topografia e astronomia.4
REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
1
UEBERSCHLAG, Georges. Les disciples de Linne: voyageurs, savants et penseurs. In: ACTES DU COLOQUE INTERNATIONAL
DES LUMIERES; organisé par L’Université Lilloise des Lettres, Sciences Humaines et Arts du 16 au 19 octobre 1973. Lille: Publications
de L’Université de Lille III, 1977. v.1. p.137-151.
2
Sobre a experiência inglesa ver a sempre citada coletânea MILLER, David Philip e REILL, Peter Hanns. (orgs.) Visions of Empire,
voyages, botany, and representations of nature. Cambridge: Cambridge University Press,1996.
3
PEREIRA, Magnus R. de M. e CRUZ, Ana Lúcia R. B. Brasileiros a serviço do Império; a África vista por naturais do Brasil, no século
XVIII. REVISTA PORTUGUESA DE HISTÓRIA, Coimbra, v.33, 1999. p.153-190.
4
MORAIS, Francisco de. Estudantes brasileiros na Universidade de Coimbra. ANAIS DA BIBLIOTECA NACIONAL, v.62, 1940. p.137-
335.
4
onde deveria ser organizado e classificado pelo método de Lineu.5 A segunda etapa, já no
consulado de Souza Coutinho, é caracterizada pelo aproveitamento do pessoal que estava em
campo, exercendo outras funções, para a realização de missões científicas. Nesta fase, muitos
militares e funcionários judiciários e burocráticos foram recrutados para o grande projeto de
recolha de produtos naturais. Outros ex-coimbrões, de volta ao espaço colonial, mesmo estando
fora do aparato de estado, passaram a ser comissionados por Souza Coutinho para a participação
em missões específicas, seja a realização de pequenas expedições, seja a elaboração de
experimentos. Coutinho também se cercou, em Lisboa, de um grande número de intelectuais luso-
brasileiros. Uma das características de seu período foi a importância dada ao texto científico – as
memórias e relações – o que não ocorria com Melo e Castro. 6
Sobre as grandes expedições científicas organizadas por Domingos Vandelli e Martinho de
Mello e Castro, existe apenas uma obra dedicada a estudá-las em conjunto. Nela, é destacanda a
atuação de três brasileiros: Alexandre Rodrigues Ferreira, Manuel Galvão da Silva e Joaquim José
da Silva. Significativamente, o autor, Joel Willian Simon, é americano.7 . Já, sobre o período
Souza Coutinho, o principal estudioso é Oswaldo Munteal Filho, que é responsável por uma
imensa bibliografia sobre o tema.8 Além deste autor, existem outros estudiosos que buscam
caracterizar ou acompanhar em conjunto a atuação dos diversos acadêmico luso-brasileiros
envolvidos.9
As autoridades portuguesas demonstravam preferência por indicar os brasileiros que se
formaram em Filosofia e Matemática para as expedições Philosophicas enviadas aos quatro
cantos do império colonial. Kenneth R. Maxwell tenta explicar esta preferência mostrando que não
teria nada de fortuita. Algumas revoltas coloniais já haviam sinalizado sobre os desejos de
independência.10 Assim, os brasileiros ex-alunos de Vandelli, estariam inscritos na política de
cooptação das elites coloniais, idealizadas pelos Ministros do Ultramar.
O sucesso desta política pode ser percebido quanto notamos que, num curto período de 20
anos, vamos encontrar Alexandre R. Ferreira atuando na Amazônia; Joaquim Vellozo de Miranda
e José Vieira Couto, em Minas Gerais; José Mariano da Conceição Vellozo, no Rio de Janeiro;
José de Sá Bethencourt e Manuel Arruda da Câmara, no sertão nordestino; João da Silva Feijó,
em Cabo Verde e depois no Ceará; Joaquim José da Silva, em Angola; Manuel Galvão da Silva,
na Índia e depois em Moçambique; Hipólito Pereira, nos Estados Unidos, México e Canadá,
apenas para citar alguns desses estudiosos brasileiros, a enviar exemplares botânicos, zoológico
e mineralógicos para Vandelli em Lisboa. Sem esquecer que, dali, muita coisa seguia para a
Suécia, onde Lineu centralizava as recolhas dessa grande aventura exploratória e classificatória.
Existem alguns artigos clássicos em nossa historiografia a chamar a atenção sobre a
amplitude deste fenômeno.11 Apesar disto, o tema das viagens científicas luso-brasileiras não
seduziu nossos historiadores, que preferiram concentrar-se nos viajantes europeu que circularam
pelo país, no século XIX. Apenas na última década, percebe-se um aumento de interesse pelo
tema, tanto no Brasil como em Portugal. O exclusivismo do estudo dos viajantes europeus que por
aqui passaram, tão característico da historiografia das décadas de 1970 e 1980, passa, a partir de
meados da década de 1990, a dar algum espaço aos luso-brasileiros ilustrados. O fenômeno é
perceptível tanto através da constituição de novos grupos de pesquisa quanto pela difusão da
temática entre os pesquisadores de instituições consolidadas.
5
Aparentemente, este tratamento acabou não ocorrendo e o material permaneceu encaixotado por anos seguidos.
6
Ver PEREIRA, Magnus R. de M.. Um jovem naturalista num ninho de cobras, a trajetória de João da silva Feijó em Cabo Verde em
finais do século XVIII. HISTÓRIA QUESTÕES E DEBATES, n.36, 2002. p.29-60.
7
SIMON, Willian Joel. Scientific expeditions in the portuguese overseas territories. 1783-1808. Lisboa: Instituto de Investigação
Tropical, 1983.
8
Ver, especialmente, sua tese de doutorado: MUNTEAL FILHO, Oswaldo. Uma sinfonia para o novo mundo: a Academia Real das
Ciências de Lisboa e os caminhos da Ilustração luso-brasileira na crise do Antigo Sistema Colonial. Rio de Janeiro: Departamento de
História da UFRJ ( Tese de Doutorado ), 1998. Os demais trabalhos do autor podem ser vistos na bibliografia.
9
Ver, por exemplo, SILVA, M. B. Nizza da. A cultura luso-brasileira: da reforma da Universidade à Independência do Brasil. Lisboa:
Editorial Estampa, 1999. e _____. O pensamento científico no Brasil na segunda metade do século XVIII. CIÊNCIA E CULTURA, v.40,
n.9,1988. p.859-868.
10
MAXWELL, Kenneth R. The generation of the 1790s and the idea of Luso-Brazilian Empire. In: DAURIL, Alden. Colonial roots of
modern Brazil. Berkley: University of California Press, 1973. p.107-144.
11
DIAS, Maria Odila da Silva. Aspectos da ilustração no Brasil. RIHGB, v.278, 1968. p.105-70. MOTA, Carlos Guilherme. Atitudes de
inovação no Brasil. 1789-1801. Lisboa: Livros Horizonte, 1972. NOVAIS, Fernando A. O reformismo ilustrado luso-brasileiro: alguns
aspectos. REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA, n.7, 1984. p.105-118.
5
No Rio de Janeiro, alguns estudiosos ligados à Casa de Oswaldo Cruz vêm transitando da
temática dos viajantes europeus do século XIX para a dos cientistas luso brasileiros do período
colonial, desenvolvendo interessantes abordagens.12 Ainda no mesmo estado, temos o trabalho
pioneiro do prof. Ronald Raminelli referente à viagem filosófica de Alexandre Rodrigues
Ferreira,.13 Devemos, também, mencionar a produção de Carlos Filgueiras, da UFRJ, sobre a
história da química.14
Em São Paulo, no Instituto de Geociências da Unicamp, os pesquisadores que se dedicam
espacialmente à história da geologia têm uma atitude militante de defesa e propagação de seus
temas de estudo, participado ativamente de eventos científicos em diversos países.15 Muitos dos
ex-alunos, oriundos daquele programa de pós-graduação, acabaram por dar continuidade ao
estudo de sua temática em outras instituições de ensino superior.16 Já na capital paulista, a
temática é explorada por diversos pesquisadores reunidos no Centro Simão Mathias de Estudos
em História da Ciência, da PUC/SP, sob a orientação de Ana Maria Alfonso-Goldfarb.17 No que diz
respeito à história das ciências naturais em geral sobressai o trabalho de Maria E. B PRESTES.18
Específicamente em relação à história da química notabilizam-se as pesquisas da profª Márcia
FERRAZ.19
Outro viés importante da questão têm sido tematizado em São Paulo por um conjunto de
pesquisadores influenciados pelo prof. István Jancsó. Trata-se do estudo do vínculo destas elites
intelectuais com a questão da formação da identidade nacional. Neste grupo, pode-se incluir,
entre outros, os professores João Paulo Pimenta, Íris Kantor e Iara Schiavinatto.20
Fora do eixo Rio-São Paulo, devemos mencionar a produção do CEDOPE, em Curitiba, na
qual eu e alguns orientandos estamos envolvidos.21 Por último, é preciso incluir neste
levantamento, o trabalho da profª Maria de Fátima COSTA, da UFMT, que tem dedicado atenção
ao estudo da ação dos integrantes das expedições que estiveram em Mato Grosso e da
iconografia resultante das missões exploratórias em geral.22
Em Portugal, apenas recentemente, houve uma retomada do estudo da história das ex-
colônias .23 Todavia, até onde consigo alcançar, existem apenas dois pesquisadores que têm se
12
KURY, Lorelai. Homens da ciência no Brasil: impérios coloniais e circulação de informações (1780-1810). HISTÓRIA, CIÊNCIAS,
SAÚDE, v.8.(suplemento), 2001. _____. Viajantes-naturalistas no Brasil oitocentistas: experiência, relato e imagem. HISTÓRIA,
CIÊNCIAS, SAÚDE, v.11.(suplemento 1), 2004. WEGNER, Robert. Livros do Arco do Cego no Brasil colonial. HISTÓRIA, CIÊNCIAS,
SAÚDE, v.11.(suplemento 1), 2004.
13
RAMINELLI, Ronald. Viagens e inventários. História, questões e debates, Curitiba, v. 17, n. 32, p. 27-46, 2000. _____. Do
conhecimento físico e moral dos povos: iconografia e taxionomia na Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira. HISTÓRIA,
CIÊNCIAS, SAÚDE, v.8.(suplemento), 2001. p.969-992. _____. Ciência e colonização; Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues
Ferreira. TEMPO, v.3, n.6., 1998. p.157-182. )
14
FILGUEIRAS, Carlos A. A química de José Bonifácio. QUÍMICA NOVA, n.9, out.1986. p.263-8. ______. João Manso Pereira, químico
empírico do Brasil colonial. QUÍMICA NOVA, n.16, 1993. p.155-160.
15
Ver, por exemplo, na bibliografia a produção de Silva FIGUERÔA e de M. Margarete LOPES.
16
Em especial Clarete P. SILVA e Alex VARELA, que se especializaram respectivamente em João da Silva Feijó e na produção
científica de José Bonifácio de Andrada.
17
ALFONSO-GOLDFARB, Ana Maria ; FERRAZ, M. H. M. . A recepção da Química moderna no Brasil. Quipu Revista Latinoamericana
de Historia de Las Ciencias y La Tecnología, México, DF, v. 7, n. 1, p. 73-91, 1990.
18
PRESTES, Maria Elice Brzezinski. A investigação da natureza no Brasil colônia. São Paulo: Annablume, 2000.Ver na bibliografia
outros textos de sua autoria.
19
Sua principal obra de divulgação é FERRAZ, Márcia Helena Mendes. As ciências em Portugal e no Brasil (1772-1822); o texto
conflituoso da química. São Paulo: Educ, 1997. Ver na bibliografia a sua extensa produção sobre o tema.
20
JANCSO, István. (Org.). Brasil: Formação do Estado e da Nação. São Paulo, 2003.
JANCSO, István e PIMENTA, João Paulo G. Peças de um mosaico; ou apontamentos para a emergência da identidade nacional
brasileira. REVISTA DE HISTÓRIA DAS IDÉIAS, v.21, 2000. p.398-440.
21
PEREIRA, Magnus R. de M. e CRUZ, Ana Lúcia R. B. Brasileiros a serviço do Império; a África vista por naturais do Brasil, no século
XVIII. REVISTA PORTUGUESA DE HISTÓRIA, Coimbra, v.33, 1999. p.153-190. PEREIRA, Magnus R. de M.. Um jovem naturalista
num ninho de cobras, a trajetória de João da silva Feijó em Cabo Verde em finais do século XVIII. HISTÓRIA QUESTÕES E
DEBATES, n.36, 2002. p.29-60. _____. Verdades por mim vistas e observadas, oxalá foram fábulas sonhadas. Cientistas brasileiros do
setecentos, uma leitura auto-etnográfica. Curitiba: UFPR, 2004. (tese de doutorado policopiada)
22
COSTA, Maria de Fátima. História de um país inexistente; o pantanal entre os séculos XVI e XVIII. São Paulo: Livraria Kosmos
Editora, 1999. _____. Alexandre Rodrigues Ferreira e a capitania de Mato Grosso: imagens do interior. HISTÓRIA, CIÊNCIAS, SAÚDE,
v.8.(suplemento), 2001. p.993-1014.
23
DOMINGUES, Ângela. Viagens de exploração geográfica na amazónia em finais do século XVIII; política, ciência e aventura.
Funchal: Centro de Estudos de História do Atlântico, 1991. _____. Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais: a
constituição de redes de informaçã no Império português em finais do Setecentos. HISTÓRIA, CIÊNCIAS, SAÚDE, v.8.(suplemento),
2001. p.823-838.
6
dedicado ao tema das viagens científicas do período. São eles Ângela Domingues24, do IICT, que
vem estudando basicamente a viagem filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira, e Miguel Faria,
especialista na iconografia do período 25 Além deles, existe um conjunto de estudiosos que se
dedicam a temas afins, cujos estudos acabam por abordar a produção intelectual dos ilustrados
luso brasileiros do período. Na área de história do pensamento econômico, os professores José
Luís Cardoso e António Almodóvar investigam a difusão da economia política e a produção de
memórias econômicas, muitas delas de autoria de luso-brasileiros.26 João Carlos Brigola, se
dedica ao estudo do colecionismo no século XVIII e Isabel Gouveia, à popularização das ciências
no período.27 Em todos esses casos a presença dos luso-brasileiros no ambiente científico
português torna-se evidente.
Apesar do crescimento do estudo da temática das viagens científicas e do memorialismo
acadêmico, tenho chamado a atenção para um detalhe que tem escapado à maior parte dos
autores. É o fato de que estes cientistas eram oriundos dos espaços coloniais. Isto pode, à
primeira vista, parecer apenas um detalhe desimportante. Todavia, tal detalhe tem conseqüências
metodológicas e epistemológicas que não podem ser deixadas de lado. Em primeiro lugar, é
preciso lembrar que o grosso da literatura sobre o tema foi produzido na França e nos países
anglo-saxões, os quais não conheceram o fenômeno do colono viajante. Nesta literatura, a
exploração científica da natureza aparece em mão única: o viajante europeu em terras até então
“desconhecidas”. Este acabou sendo o pressuposto metodológico de fundo para quase toda a
historiografia sobre viagens. Mais recentemente, difundiram-se nesses países correntes
revisionistas, quase sempre com vínculo políticos com as ditas “minorias”.28 Outros núcleos de
estudos revisionistas são as áreas de lingüística e de estudos literários.29 A antropologia também
produziu importantes estudos de revisão sobre encontros civilizacionais e a “descoberta do
outro”.30
Contudo, nem sequer essas vertentes revisionistas conseguem dar conta da singularidade
das questões que tratamos. Assim, autores representativos desses vieses analíticos como Pratt,
Todorov ou Sahlins podem apontar algumas correções de caminhos mas não dão conta da
complexidade de nossa problemática. Eles simplesmente não conseguem se afastar dos
referenciais teóricos ingleses e franceses. Sabemos nós que portugueses e espanhóis haviam
“inventado o mundo” desde o século XVI. Ao menos parte significativa desse mundo que os
naturalistas franceses e ingleses estão visitando e divulgando nos séculos XVIII e XIX. Quando
eles viajavam pelo “desconhecido”, freqüentemente estavam fazendo incursões pelas colônias e
ex-colônias “do outro”, no caso espanholas e portuguesas. Este simples fato escapa a tais
autores que, apesar de se proporem a revisões, continuam a pensar que a América Latina era
praticamente desconhecida até 1850. Desconhecida para quem? É a pergunta que não tem sido
feita.
Ao desconsiderar a experiência portuguesa, automaticamente, a literatura inglesa e
francesa ignora a ação dos naturalistas nascidos no Brasil. Ou seja, enquanto tivemos J. Cook e
Bougainville travando seu primeiro contato com os desconhecidos “mares do sul”, e mesmo um
Mungo Park, na última década do século XVIII, adentrando o território africano, viajantes
brasileiros estavam fazendo viagens filosóficas pela sua terra natal e esquadrinham, como
naturalistas, o continente africano, onde a administração portuguesa já se encontrava
secularmente assentada.31 Uma porção expressiva do mundo que será visitado por esses
representantes do iluminismo e, mais tarde, pelos cientistas do romantismo europeu, já fora
24
Sua principal obra na área é DOMINGUES, Ângela. Viagens de exploração geográfica na amazónia em finais do século XVIII;
política, ciência e aventura. Funchal: Centro de Estudos de História do Atlântico, 1991.
25
FARIA, Miguel Figueira. A imagem útil. Lisboa: Universidade Autônoma de Lisboa, 2001.
26
Ver, em especial, ALMODOVAR, António. A institucionalização da economia política clássica. Porto: Edições Afrontamento, 1995. e
CARDOSO, José Luís. O pensamento económico em Portugal nos finais do século XVIII, 1780-1808. Lisboa: Editorial Estampa, 1989.
27
BRIGOLA, João Carlos Pires. Colecções, Gabinetes e Museus em Portugal no século XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2003. GOUVEIA, Isabel de Barros Amaral Marques. Fantasia, ciência e espetáculo em Portugal no século XVIII. Coimbra: Universidade
de Coimbra, 2000. s.p.
28
PRATT, Mary Louise. Os olhos do império; relatos de viagem e transculturação. Bauru: Edusc, 1999.
29
TODOROV, Tzvetan. As morais da história. Lisboa: Publicações Europa-América, s.d.
30
SAHLINS, Marshall. Ilhas da História, Rio de Janeiro, Zahar, 1988.
31
Não há, portanto, em suas narrativas, o estranhamento que aparece nos relatos europeus.
7
intelectualmente elaborada por gerações de estudiosos oriundos das elites coloniais locais, muitos
deles mestiços.
A perspectiva historiográfica amplamente disseminada32 que leva os estudiosos a
eleger as viagens exploratórias do século XIX como ponto de partida das iniciativas de caráter
científico no Brasil levou o falecido historiador Francisco Moraes Paz a dizer que “excluída a
expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira à Amazônia (1783-92) e outras de menor relevância”,
a América portuguesa teria compartilhado do mesmo espírito científico (da Espanha que autorizou
missões científicas em seus territórios coloniais) “unicamente após a transferência da Corte para o
Rio de Janeiro”.33 Do período anterior, ele registraria as viagens de Georg Marcgrave e Wilhelm
Piso, que expedicionaram pelo Pernambuco holandês, deixando um grande vazio a ocupar o
tempo entre as explorações do governo Nassau e a vinda da missão francesa, em 1816.
Refletindo sobre a tradição da viagem no processo de constituição da cultura ocidental,
Francisco PAZ indicou o contributo de algumas narrativas. “Quanto às impressões ocidentais
sobre a África”, o autor lembrou o escocês Mungo Park, e os ingleses Livingstone e sir Richard
Burton. Se os diários da atribulada e fatal viagem do brasileiro Francisco José de Lacerda e
Almeida34, iniciada em 1797, ao interior africano tivesse tido a mesma divulgação (e atenção
historiográfica) que as narrativas dos citados viajantes estrangeiros, certamente Paz teria tido a
oportunidade de valorizar a experiência vivida e as impressões desse colono viajante sobre a
África.
Cerca de meio século antes de Livingstone, o nosso “viajante-herói” encontraria a morte
ao tentar realizar o almejado projeto português de fazer a viagem à contracosta, partindo de
Moçambique em direção à Angola. Lacerda e Almeida foi menos anônimo no século XIX e na
primeira metade do século XX do que é atualmente. Sir Richard Burton, viajante inglês
novecentista que costumamos exaltar, reconheceria o papel e a precedência de seu antecessor
paulista. Dizia ele que “Until Dr. Livingstone shall have returned from his third expedition, the
writings of Dc. Lacerda must continue to be our principal authority, and only from them the reader
can at present learn where the English traveller is said to have been detained”.35
A escolha deste texto de Francisco PAZ não tem por objetivo apontar supostos “erros”
do autor mas se deve ao fato de que não era um especialista do tema das viagens, da Ilustração
ou da história das ciências. Nada disto era o assunto principal de seus estudos. Assim, ele apenas
coligiu e reproduziu noções recorrentes na tradição historiográfica brasileira, reafirmando idéias de
ampla aceitação. Como se percebe neste exemplo, colono-viajante-naturalista-ilustrado é uma
figura tipo que precisa ser teoricamente elaborada. No entanto, se nem os estudiosos brasileiros
conseguem perceber a peculiaridade e, em alguns casos, sequer a existência dessas
personagens, não adianta chamar a historiografia européia e norte-americana em nosso socorro.
A única perspectiva similar à nossa, é o caso do universo Ibérico e Hispano-americano. Em
relação a ele, vem sendo desenvolvido a tema do “científico-criollo” que começa o produzir
importantes efeitos historiográficos. 36 Aqui no Brasil, o estatuto e a questão identitária dessas
figuras mal começaram a ser explorados. Os únicos textos importantes sobre o tema são já do
século XXI. 37
32
Note-se, por exemplo, que o sempre citado dossiê Brasil dos Viajantes, publicado pela REVISTA USP, tinha por objetivo primário
“debater sob prisma interdisciplinar a construção de imagens do Brasil e da América por artistas, cronistas e cientistas estrangeiros que
percorreram o continente desde o século XVI” DOSSIÊ BRASIL DOS VIAJANTES. REVISTA USP, n.30, 1996. p.10
33
PAZ, Francisco de M. Na poética da história; Realização da utopia nacional oitocentista. Curitiba : Editora da UFPR, 1996.
34
O conjunto dos diários de viagem de Francisco José de Lacerda e Almeida, que inclui os diários relativos aos dez anos de viagem do
matemático pelos sertões do Brasil, foi publicado em 1944, com nota-prefácio de Sergio Buarque de Holanda. ALMEIDA, Francisco
José de Lacerda e. Diários de viagem de Francisco José de Almeida. Rio de Janeiro : Instituto Nacional do Livro, 1944.
35
BURTON, R. F.(ed.). Lacerda’s Journey to Cazembe in 1798. In _____. The lands of Cazembe. London: John Murray, 1873. p.11.
36
Ver, por exemplo: SOTO ARANGO, Diana, PUIG-SAMPER, Miguel A., GONZÁLES-Ripoll, Maria D. Científicos criollos e ilustración.
Madrid:1999. SOTO ARANGO, Diana, PUIG-SAMPER, Miguel A , ARBOLEDA, Luis Carlos. La ilustracion en América colonial.
Madrid:Doce Calles.
Quero lembrar, no entanto, que estes autores ainda não chegaram a caracterizar satisfatoriamente o personagem em questão, uma
vez que eles não a consideram um problema historiográfico.
37
JANCSO, István e PIMENTA, João Paulo G. Peças de um mosaico; ou apontamentos para a emergência da identidade nacional
brasileira. REVISTA DE HISTÓRIA DAS IDÉIAS, v.21, 2000. p.398-440. CRUZ, Ana Lúcia Rocha Barbalho da. As viagens são os
viajantes; dimensões identitárias dos viajantes naturalistas brasileiros do século XVIII. HISTÓRIA QUESTÕES E DEBATES, n.36,
2002. p.61-98.
8
OBJETIVOS
• Elaborar revisão teórica, através da escrita de artigos e outros textos, com base na
documentação e na historiografia brasileira e portuguesa sobre a temática, com vistas à
construção da figura do colono-viajante-naturalista-ilustrado.
• Organizar publicação comentada das fontes como forma de estimular a produção teórica sobre o
tema.
RESULTADOS ESPERADOS
Textos
Publicação de 1 capítulo de livro nos EUA
Publicação de 1 coletânea no Brasil
Publicação de 2 artigos em periódicos internacionais
Publicação de 2 artigos em periódicos nacionais
Acervo
Ampliação do acervo do CEDOPE
Orientação
Defesa de 1 tese de doutoramento
Defesa de 2 monografias de Graduação
Conclusão de dois projetos de Iniciação Científica
Catálogo
Organização de um catálogo do acervo do CEDOPE sobre o tema em questão.
38
Todas as obras aqui mencionadas estão em andamento, algumas em fase ainda de recolha de fontes, outras em processo de
transcrição, outras, de revisão e outras, ainda, restando escrever as respectivas apresentações.
9
Este projeto não foi feito especificamente para ser apresentado à ao CNPQ. Ele já vem sendo
desenvolvido há alguns anos, por mim e por alguns de meus orientandos e ex-orientandos.
Estudos sobre diversos aspectos das colônias portuguesas da África, no século XVIII, estão em
desenvolvimento no CEDOPE - Centro de Documentação e Pesquisa de História dos Domínios
Portugueses, grupo de pesquisa registrado no CNPQ, atualmente sob minha coordenação.
Trata-se de trabalho reconhecido nacionalmente, uma vez que contou com apoio de nossas
agências nacionais de fomento da atividade científica, e também internacionalmente, pois contou
com apoios provenientes da Espanha e de Portugal.
O CEDOPE, Centro de Documentação e Pesquisa do Departamento de História da UFPR, dispõe
hoje de um riquíssimo acervo de fotocópias, microfilmes e imagens digitalizadas de documentação
sobre cientistas e viajantes luso-brasileiros do final do século XVIII e início do XIX. Este acervo é,
provavelmente, um dos mais completos existente entre as universidades brasileiras. O material
disponível tem origem em diversos arquivos portugueses, como o Arquivo Histórico Ultramarino,
Biblioteca Nacional de Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Museu da Ajuda, Museu
Bocage, Biblioteca Municipal do Porto e de Évora, Academia das Ciências de Lisboa, Casa da
Moeda, além de documentação da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Arquivo Nacional,
Arquivo Público de São Paulo e do Instituto Histórico e Geográfico.39 Seu conteúdo básico é
composto pela correspondência oficial, pelas memórias científicas e acadêmicas e pelos relatos
de viagem desses autores do final do século XVIII e início do XIX. Existem, também, cópias das
instruções de viagem elaboradas por Vandelli, pela Academia de Ciência de Lisboa, além de
outras menos conhecidas. Os documentos reproduzidos cobrem a atuação dos cientistas luso-
brasileiros no conjunto do Império Colonial Português, de Portugal ao Brasil, da África à Ásia.
A recolha de todo este material foi feita por diversos integrantes de nosso Centro de Estudos
durante pesquisas realizadas em arquivos do Brasil, da Europa, da África e da Ásia. Estas viagens
de investigação foram feitas com apoio do CNPq, da CAPES. A FUNDACIÓN CAROLINA, da
Espanha, vinha financiando a ida anual à Europa para levantamento e reprodução das fontes.
Todavia, este apoio encerrou em 2005 e não é regimentalmente renovável.
O riquíssimo acervo até o momento reunido já está servindo de base ao desenvolvimento de
Teses de Doutorado, Dissertações de Mestrado e alguns trabalhos Iniciação Científica no curso
de graduação em História da UFPr. Com o apoio ao projeto, este acervo será ampliado, além de
ocorrer uma potencialização nos produtos dele oriundos.
PEREIRA, M. R. M. João da Silva Feijó; A brazilian scientist in the Portuguese Overseas Empire. In: MAMIGONIAN, Beatriz G. e
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indivíduo In. VIII ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA, 2002, Curitiba Programas e Resumos, Curitiba ANPUH-Pr,
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39
É bom que se esclareça que, sobre o tema em questão, a maior parte da documentação disponível nesses arquivos brasileiros são
cópias manuscritas feitas no século XIX à parir dos originais existentes em Portugal, dos quais temos microfilmes.
10
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459-470.
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textual iluminista sobre Moçambique, na segunda metade do Século XVIII - Doutorado
SANTOS, Marcelo de Souza - A África setecentista vista por viajantes naturais do Brasil – Iniciação Científica
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Orientações em andamento
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