Cadernos Do NEHCPED - Vol. 02

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APRESENTAÇÃO

É com grande satisfação que lançamos o segundo volume do nosso


Caderno de Pesquisas em História, Cultura Política, Educação e Diferenças,
uma publicação oriunda das ações e apoios que o NEHCPED, ao longo dos
anos de 2021 e 2022, fomentou sejam eles através de eventos a exemplo do
ocorrido no ano de 2021, que constituiu-se numa ação do NEHCPED junto ao
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, fazendo com que o nosso evento,
realizado de maneira remota, estivesse inserido na Jornada Universitária em
defesa da Reforma Agrária, em memória aos 25 anos do massacre de
Eldorado dos Carajás, que ocorreu durante os dias 27 a 29 de maio de 2021, e
reuniu a apresentação de trabalhos e mesas de debates preocupados em
refletir sobre os movimentos sociais e a educação em diferentes contextos.
Tivemos a apresentação de diversas comunicações que foram fruto da
inquietação de vários pesquisadores, do campo da educação e da História,
constituindo-se, assim, num momento frutífero para o nosso Núcleo, o Centro
de Ensino Superior de Arcoverde e a Autarquia de Ensino Superior de
Arcoverde.
Um outro conjunto de texto relaciona-se de maneira direta a atividades
que foram desenvolvidas pelo curso de História com o apoio institucional do
NEHCPED, através da promoção no ano de 2022, do VI Simpósio de História
que teve como temática central o bicentenário da Independência, preocupando-
se em pensar essa efeméride dentro de uma perspectiva crítica. Naquele
momento, recebemos algumas comunicações científicas preocupadas em
pensar a dimensão dos povos indígenas frente ao processo, bem como refletir
sobre as possibilidades do estudo da História e do seu ensino. Um terceiro
conjunto de artigos vinculam-se diretamente da atuação de alguns dos nossos
membros em pesquisas que foram frutos das suas reflexões de estudos,
encaminhadas com os seus orientandos e, como já destacamos, preocupadas,
em colaborar com reflexões críticas a respeito do Ensino da História e da
Educação, além da política e sua relação com os movimentos sociais.
Em vista disso, a diversidade de temas que compõe o segundo volume
do nosso Caderno de Pesquisa de História, Cultura Política, Educação e
Diferenças (NEHCPED) expressam as orientações e eventos nos quais os
nossos membros tem participado. A publicação possui a pretensão de integrar
as diversas produções dos integrantes do núcleo e parceiros que
encaminharam discussões inseridas nas áreas temáticas sob as quais ele se
propõe a pensar.
Observando a diversidade e a relação com as áreas de interesse do
NEHCPED, temos a primeira parte desta coletânea de estudos, que tematizam
o campo da História, a partir dos seguintes trabalhos: o professor Edson Silva
intitulado, o indígena na construção da nacionalidade no brasil pós
independência, que procura pensar como os povos indígenas foram ao longo
do século XIX, pensados como símbolos de nacionalidade, ainda relacionado
aos indígenas como personagens centrais de reflexão. O artigo do professor
João Paulo Peixoto Costa, intitulado Independência e cidadania: povos
indígenas e o advento do liberalismo no Ceará, procurou tendo como pano de
fundo, o processo de independência e formação do Estado Nacional, observar
como as transformações jurídicas, administrativas e sociais promovidas no país
impactaram sob as antigas prerrogativas que lutavam os indígenas para
consolidar. Esse artigo analisa as disputas entre índios e autoridades políticas
na sociedade liberal que se construía no Ceará e as diferentes
operacionalizações do conceito de cidadania.
Ainda, tendo como área temática o ensino de História vinculado às
possibilidades de pensar a temática afro-brasileira, é possível contemplar
através dos capítulos de José Luiz Xavier Filho uma reflexão sobre as Práticas
e ensino de história inclusiva: visibilidades da cultura afro-brasileira, de
Edmilson Manoel Izidoro Lira da Silva, Izaac Miqueias Viana e do professor
Jaelson Gomes de Andrade Pereira, intitulado os quadrinhos como ferramenta
para o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira: uma análise da
obra de Marcelo D’Salete e dos autores Alvanir Ivaneide Alves da Silva e
Augusto César Acioly Paz Silva, que tem por titulo, A virtualidade museal
atrelada ao ensino de história: pensando os possiveis usos do museu afro
brasil. Cada um dentro de uma perspectiva procurou probelmatizar as
possibilidades de uso do ensino de História e a interação com a temática afro-
brasileira.
Outro texto preocupado em analisar a importância do ensino de história,
como ferramenta para a construção de um pensamento histórico mais crítico a
respeito da identidade, pode ser explorado no artigo de Wellington Ricardo
Felix dos Santos, que discute o enfoque da memória e identidade no ensino de
história. Finalizando as contribuições no campo da reflexão da História e do
seu ensino, o texto de Lécio Cordeiro Souza, que versa sobre o processo de
decadência do ofício da cantaria no Recife (1845-1850), procurou lançar luzes
sobre as transformações ocorridas no interior do mundo do trabalho no qual os
profissionais artesãos, responsáveis por essa prática importante no cenário
arquitetônico e histórico da cidade do Recife. Esse texto, além de lançar luzes
sobre o campo da História das profissões, pensa também as questões
relacionadas à História e ao Patrimônio.
Na segunda parte do nosso caderno de Pesquisas do NEHCPED,
encontraremos um conjunto de discussões que se filiam mais diretamente, ao
campo da educação e de suas diversas possibilidades, sejam na área da
educação do Campo, da questão estética para pensar os negros e negras e as
suas formas de resistência das possibilidades de recursos musicais como o Hip
Hop para pensar as questões da educação e decolonialidade, a dimensão dos
corpos como construção histórica, social e educacional e as possibilidades das
pedagogias e experiências em espaços formais e não formais, e como a
educação pode ser vivenciada, trabalhada e pensada pelos movimentos
sociais.
Dentro desse conjunto temático, é possível observar nos capítulos
organizados por Meyre James Silva Santos, Rafaella Silva Freire, Simone
Salvador de Carvalho, intitulado a educação do campo e a construção de
pedagogias de humanização, resistência e libertação: esperançar é preciso!; o
artigo de Mislânia Barros Oliveira e Erika de Sousa Mendonça, Entre o
branqueamento estético e as estratégias de resistência negra: reflexões
teóricas, o texto intitulado “Os ventos do Norte não movem moinho”: corpos
outros pensados a partir de África, de autoria de José Diêgo Leite Santana,
Dayvison Herbety Araújo Amaral e Emanuelle Cristina da Silva Fernandes, o
texto o Movimento Hip hop: resistência, politização e decolonialidade escrito
por Alfonso Heinrich Altmicks e Edmeire Oliveira Pires. Para finalizar a nossa
coletânea o texto Pedagogias outras da educação vivenciada pelo MST no
assentamento Santa Maria da Boa Vista – PE: olhares insurgentes de Ana
Cristina Moura dos Santos, Jaine Almeida Silva e Katya Carvalho Alexandre
Almeida, colaboraram para que possamos perceber a importância e os debates
que serão suscitados, pelas temáticas e olhares que se encontram dispostos
ao longo do nosso segundo volume do Caderno de Pesquisas do NEHCPED.
A construção desta obra é um esforço coletivo do integrantes do núcleo,
dos professores colaboradores que participaram da JURA, do Simpósio de
História e de pesquisadores que aceitaram o nosso convite, no sentido de
compartilhar as suas reflexões para que elas sejam conhecidas por um público
maior e inspirem na discussão e proposição de questões. Por isso, o nosso
objetivo, a partir desta coletânea, é divulgar conhecimento que colabore para
problematizar e mudar a realidade.
É importante registrar que este livro é fruto do apoio institucional da
AESA-CESA e, de maneira muito diligente, da Associação do Docentes da
AESA (ADESA), que, através de um patrocinio cultural dos seus associados, foi
responsável pela concretização do segundo volume dos cadernos do
NEHCPED, na certeza de que a reflexão e produção dos saberes é uma
ferramenta potente na transformação do mundo e das pessoas.
Boa leitura a todos!

Arcoverde, 16 de junho de 2023

Profª Msª. Simone Salvador de Carvalho.


Prof. Dr. Augusto César Acioly Paz Silva

O INDÍGENA NA CONSTRUÇÃO DA NACIONALIDADE


NO BRASIL PÓS INDEPENDÊNCIA
Edson Silva

O lugar do indígena na construção do Brasil no século XIX

Discutiremos as imagens sobre os indígenas na construção do Brasil


enquanto Nação após Independência e ao longo de boa do século XIX. As
imagens e discursos durante os debates a respeito da ideia do que seria Brasil
e a nacionalidade, expressadas por autoridades púbicas, intelectuais,
pesquisadores, escritores. Uma diversidade e pluralidade de imagens a
respeito dos indígenas, correspondendo aos diferentes momentos com as
mudanças sociopolíticas ocorridas no país, evidenciando as oposições entre o
Tupi como símbolo da nacionalidade e o Tapuia como bárbaro, selvagem.
Entre o índio supostamente dócil, catequizado, mestiçado integrado a
civilização e o índio degenerado, feroz, sem sentimentos, a ameaçar a
civilização. Ideias sobre os indígenas influenciando concepções sobre os povos
nativos e permeando o senso comum quando genericamente foram citados os
“índios”. Contrariando essas imagens, nas últimas décadas os indígenas
reivindicam o reconhecimento de direitos, sobretudo aos territórios esbulhados,
invadidos ou ameaçados. As mobilizações evidenciam os protagonismos
sociopolíticos dos povos indígenas, exigindo o repensar sobre os indígenas na
História, o repensar da História do Brasil construída após a Independência.
Com a Independência do Brasil, após 1822 as elites a frente daquele
movimento iniciaram as discussões sobre a construção das bases de um
Estado Nacional. Esse momento foi marcado pelo nacionalismo e afirmação da
soberania política, onde o jovem país espelhava-se nas consideradas grandes
nações civilizadas da Europa. Na busca de afirmação da identidade para nova
nação independente, a busca de uma representação simbólica expressando a
participação das raças na formação histórica do país, o branco por ser de
origens portuguesa foi rejeitado, pois significava a manifestação da antiga
dominação da qual o Brasil há pouco se libertara. O negro, nunca fora
prestigiado, pois a condição de escravizado trazidos da África e de coisificação


Professor Titular de História da UFPE. Doutor em História Social pela UNICAMP. Leciona História no
Centro de Educação/Col, de Aplicação. Docente no PROFHISTÓRIA/UFPE e no PPGH/UFRPE.
imposta não permitia pensá-lo como representação da nacionalidade. Restava
o indígena, que embora combatido no passado e no presente, era o filho
originário da terra e assim como ninguém um elegível e legítimo representante
simbólico da nacionalidade.
O ambiente posterior à proclamação da Independência contribuiu para a
inspiração de uma produção literária e outras expressões artísticas
marcadamente nacionalistas. Em 1825, uma gravura representava D. Pedro
recebendo nos braços o Brasil liberto de grilhões, sob a forma de um indígena.
“O modelo teria sido a Viscondessa de Santos”! (CÂNDIDO, 1975, p.18).
Coube ao Romantismo, movimento literário originário da Europa em muito
influenciado pelas ideias de Jean Jacques Rousseau, introduzidas no Brasil por
volta de 1830, explicitar essa representação da nacionalidade, por meio de
uma conjugação de elementos estéticos e épicos, com uma mentalidade
nativista e politicamente conservadora.
Em muitas imagens, comumente encontradas nos livros didáticos no
Brasil, os indígenas foram representadas por pintores e artistas-viajantes que
percorreram as várias regiões do país a partir das primeiras décadas do Século
XIX. Muitas das imagens eram dos chamados “Botocudos”, nome genérico com
o qual foram denominados diversos grupos indígenas considerados bravios,
habitantes nas fronteiras entre a Bahia, Minas Gerais, Espírito Santo e o Rio de
Janeiro. Combatidos com “guerra justa” de extermínio, escravizados “enquanto
durasse sua ferocidade” por determinação de D. João VI pelas Cartas Régias
de 1808 e 1809 (MARCATO, 1979), esses indígenas foram objeto de
curiosidades e estudos por naturalistas que estiveram visitando-os em
expedições promovidas entre 1817 e 1825.
As publicações, os relatos dessas expedições, reproduzem em grande
parte, as informações e até mesmo as estampas são cópias litográficas
baseadas no livro intitulado Viagem ao Brasil de Maximiliano de Wied-Newied,
o primeiro a realizar uma viagem às citadas regiões entre 1815-1817. Um livro
do conhecido pintor Rugendas foi incluído dentre os baseados na publicação
de Maximiliano. (HARTMANN, 1975). Nas pinturas de Rugendas, percebe-se a
diversidade bem como a pluralidade de imagens sobre os indígenas no Brasil
oitocentista. Além de imagens épicas cultivadas pelo Romantismo europeu do
indígena como dócil (o civilizado) foi sobreposta outra imagem de barbárie,
existiram outras imagens da inferioridade, da “degeneração”, da extinção do
indígena.
As imagens do artista-viajante Rugendas que esteve no Brasil nos
primeiros anos logo após a Independência, reproduzidas em sua obra Viagem
pitoresca através do Brasil, foram imagens de “tribos selvagens” espalhadas
pelo interior do país as quais o desenhista diferenciando-as entre Tupis e
Tapuias, de acordo com as línguas faladas, acentuaram, todavia, “as
diferenças de organização física são menos sensíveis” e que “os Tupis e os
Tapuias têm caracteres comuns pronunciados”. (HARTMANN, 1975, p. 81-85).
Quando comparou os indígenas com a cor e o crânio da raça mongólica da
Ásia, escreveu o que os distinguia principalmente, “é o fato dos Tapuias terem
membros mais robustos, estatura mais elevada e um aspecto, até certo ponto,
mais humano”. (RUGENDAS, 1979, p.100). Nas considerações históricas e as
várias descrições de “Usos e costumes dos índios”, acompanhando as
estampas coloridas publicadas por Rugendas, estão expressas outras imagens
do autor sobre os indígenas: “os índios não são homens em estado natural e
não são selvagens, mas sim que retrocederam ao estado de selvageria,
porque, foram rechaçados violentamente do ponto a que haviam chegado”.
(RUGENDAS, 1979, p. 104) Para Rugendas os indígenas estavam reduzidos a
uma imagem de brutalidade, resultado das violentas guerras da colonização.
Na estampa “Índios em sua cabana” foi apresentada uma imagem de
brutalidade indígena, para o artista, a cena neutralizava a capacidade de
civilização do índio. O pintor alemão pôs em dúvidas o estado de
desenvolvimento físico e intelectual dos indígenas considerando-os depravados
sem noção de de moral e direitos, afirmando que, “A exceção de suas
necessidades, sua vida pouco difere das dos animais selvagens, com os quais
partilham das florestas primitivas”. (RUGENDAS, 1979, p.159). Nas imagens de
indígenas nas estampas pintadas por Rugendas, observa-se uma uniformidade
nos traços físicos dos rostos desenhados, além de que as figuras dos
indígenas nus representadas seguem a uma “concepção rousseuniana de
homem primitivo” e segundo os padrões de perfeição de beleza estética greco-
romana. (HARTMANN, 1975, p. 81-85).
As observações dos quadros produzidos por Rugendas onde os
indígenas foram pintados de formas assemelhadas com tipos da época de Luiz
XIV, evidenciam a projeção a partir do horizonte europeu das imagens como o
artista-viajante retratou os indígenas descrevendo-os em sua obra. Significativa
foi à declaração do próprio Rugendas: “Mais de uma vez acontece ao viajante,
por na boca do índio a resposta que deseja obter, ou explicá-la de acordo com
suas ideias próprias” (RUGENDAS, 1979, p. 160), demonstrando, os
condicionamentos, as imagens pré-concebidas acerca dos indígenas,
expressadas pelos viajantes que estiveram no Brasil no Século XIX.

O indígena como símbolo da nacionalidade

Eleito como símbolo da nacionalidade, expressão do patriotismo, o


indígena foi representado na Literatura, nas Artes Plásticas, nos discursos
políticos e de intelectuais. A História do Brasil foi relida epicamente, onde o
indígena Tupi era o personagem principal. Estava representado nos painéis
das casas nobres e nas estátuas dos seus jardins, nas fachadas e arquitetura
dos edifícios, na pinacoteca nacional a Escola de Belas Artes. Celebrados e
exaltados, os indígenas tiveram as línguas faladas estudadas até pelo
Imperador Pedro II e foram objetos de pesquisas etnográficas, sendo
pesquisado o folclore, as fábulas, “Imaginou-se confundir brasileirismo, a nação
histórica com antepassados aborígenes”. (SODRÉ, 1988, p.273).
O próprio manto do Imperador era um trabalho indígena, confeccionado
com penas de papos de tucanos. (AMOROSO; SÀEZ, 1995, p. 251). A elite
política da época encarnou o espírito indianista. Os participantes na Maçonaria
eram conhecidos por cognomes indígenas, como José Bonifácio nas reuniões
do Apostolado Maçônico chamado por “Tibiriçá”, proprietário do jornal O
Tamoio, opositor a Dom Pedro I como Grão-Mestre maçônico, intitulado
“Guatimozin”, homenagem ao líder indígena da resistência ao colonialismo na
América Espanhola.
Por todo o Brasil o “grande furor nativista” motivou nomes indígenas
também incorporados aos próprios nomes de famílias nobres da época. E
assim surgiu os Buriti, os Muriti, os Jurema, os Jutaí, os Araripe, e em
Pernambuco além da família Carapeba, seguindo a tendência nativista, outras
famílias adotaram os sobrenomes Brasileiro, Pernambucano, Maranhão.
(FREYRE, 1984, p.452). Na Literatura o ocorria o cultivo de uma imagem
simbólica para o novo Estado-Nação, onde a marginalização imposta aos
indígenas na época foi um tanto desconsiderada. O Romantismo dedicou-se a
reler tom épico o passado histórico do Brasil. Quanto à violência imposta aos
indígenas pelos colonizadores, o Romantismo deixando-a de lado, exaltou a
bravura indígena, a resistência e a morte heroica, como expressou Gonsalves
Dias em poemas.
Todavia, a diversidade do movimento romântico, provocou formas
diferenciadas de abordagens pelos vários autores. A exemplo de uma polêmica
entre o poeta Gonsalves Magalhães e o escritor José de Alencar, acerca das
fontes para a inspiração literária. Essa polêmica evidenciou além das
compreensões no período sobre a história, as estreitas relações entre o
Romantismo e a política, sobre as imagens indígenas cultivadas no movimento
romântico e os reflexos posteriores sobre a política indigenista oficial. 1
O poeta Magalhães foi duramente criticado por meio de cartas
publicadas no Diário do Rio de Janeiro com o pseudônimo “Ig”, cuja autoria era
José de Alencar. Autor do livro “Confederação dos Tamoios” publicada em
1856, Magalhães escreveu uma epopeia da nacionalidade onde aparecia “uma
galeria inteira de personagens históricos indígenas, portugueses e franceses”,
(AMOROSO; SÀEZ, 1995, p. 244), criticado pelo jovem Alencar sob a
acusação de inspirar-se em relatos de cronistas dos séculos XVI e XVII,
desconhecendo a situação histórica do país.
Intelectuais românticos abrigados no Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB), fundado em 1838 e com participação ativa de D. Pedro II,
com o próprio, defenderam Gonsalves Magalhães. Acorrendo o conflito entre
duas gerações de escritores românticos, “o jovem Alencar anunciava o seu
desejo de produzir uma nova concepção de brasilidade”, recusando assim “o
modelo classicista de Magalhães que procedia a aclimatação das musas
europeias para contar a epopeia nacional”. (ALONSO, 1995, p. 247). Tratava-
se de diferentes concepções de discursos e imagens acerca dos indígenas no
Século XIX.
O maranhense e poeta Gonçalves Dias autor na época da celebrizada
“Canção do Exílio”, foi recebido triunfalmente no Rio de Janeiro e acolhido no
1
Política indigenista oficial, as ações organizadas pelos governos para os indígenas.
IHGB, tornando-se estudioso da História do Brasil. O exercício do emprego
público possibilitou ao poeta afastar-se da inspiração romântica francesa e
aproximar-se dos indígenas concretos. Como funcionário do Governo Imperial,
realizou viagens em 1859 e 1861 às chamadas Províncias do Norte, onde
conheceu mais de perto os indígenas, resultando na produção do seu poema
mais conhecido “Y-Juca Pirama”. Viajou também a Europa, capacitando-se
para pesquisas etnográficas, estudando craniologia, galvanoplastia, fotografa,
Física e Fisiologia. Conhecimentos para estudos sobre os indígenas quando
retornou ao Brasil, (AMOROSO; SAÈZ, p. 245-246) elaborando relatórios
etnográficos lidos em sessões do IHGB.
Aliás, foi no IHGB onde ocorreu em meados do Século XIX, um “acirrado
debate” entre aqueles advogando a História e os defensores da Literatura,
quando discutiram sobre a viabilidade do indígena representar a nacionalidade
brasileira. Em 1852, o historiador Adolfo Varnhagen escreveu solicitando ao
Imperador tomar uma atitude diante do indianismo de Gonçalves Dias, por este
possuir “ideias que acabam por ser subversivas”, em uma literatura exprimindo
a imagem do indígena como representante da “brasilidade”. (GUIMARÃES,
1988, p.12-14).
A produção literária do Romantismo atingiu maior vigor entre as décadas
de 1840 e 1860, tendo em Gonsalves Dias e José de Alencar como os maiores
representantes. As obras alencarianas O guarani publicado em 1857 nos
folhetins do Jornal Correio Mercantil do Rio de Janeiro, Iracema (1865) e
Ubirajara (1874), alcançaram grande sucesso junto ao público. A oposição
entre a imagem do indígena supostamente domesticado (integrado), manso, e
a imagem do “bárbaro” (feroz), está presente nas obras desse período. Alencar
representou essa dualidade entre o Tupi como imagem do índio assimilado e o
bárbaro simbolizado pelos Aimorés, no romance O guarani.
O autor justificava a imagem, pois no romance o selvagem era um ideia
que Alencar buscou poetizar, “despindo-o da crosta grosseira de que o
envolveram os cronistas, e arrancando-o ao ridículo que sobre ele projetam os
restos embrutecidos de quase extinta raça”. (NICOLA, 1994, p. XV). O Tupi
(Guarani) representado no romance é a imagem do indígena dócil, sem
oferecer perigo, enfim submisso, em oposição aos chamados de
“embrutecidos”, o indígena bárbaro, simbolizando os “Tapuia”, inimigo
habitante nos sertões. O indígena também foi representado tanto como
imagem heroica, de bravura na luta contra o colonizador português, servindo
para nomear jornais de oposição, quanto como releitura histórica idílica para
favorecer aos grupos políticos hegemônicos.
A revista Semana Illustarada publicada no Rio de Janeiro em fevereiro
de 1865, apresenta uma charge com a imagem de um indígena com cocar e
saiote de penas sentado no Trono Imperial,2 tendo à frente soldados armados
para um combate. Abaixo da imagem, como se fosse a fala do indígena, em
letras maiúsculas a legenda “BRASILEIROS! ÀS ARMAS!”, e em letras
menores o convite para marchar em defesa da pátria e estímulos ao combate.
Uma explicita referência a guerra contra o Paraguai (1865-1870), ressaltando o
indígena como representação do Brasil Como símbolo da nacionalidade, a
imagem do indígena, mais precisamente do Tupi expressada pelo Romantismo
apareceu como representação do Brasil nas diversas caricaturas políticas em
muitos jornais e revistas ao longo do Século XIX. Nomeando também vários
jornais publicados no país, como alguns no Recife (Pernambuco): O tupinambá
(1832), O indígena (1836), O indígena (1843-1844), Iracema (1882), O tamoyo
(1890-1893).
Na mesma perspectiva as obras de José de Alencar, expressaram uma
idealização e mitologização da História do Brasil, onde o horizonte era a
civilização (branca) e suas instituições. As relações dos personagens Peri e
Iracema com o agente colonizador português na obra alencariana, foram
estabelecidas em uma releitura idílica da colonização, para exaltação heroica
de imagens a serem perpetuadas na memória coletiva da nacionalidade
brasileira. A imagem do indígena assimilado porque assimilando a civilização
(colonização). (BOSI, 1992, p. 177-179).
O cearense José de Alencar tornou-se o maior romancista do período.
Por meio de suas obras indianistas publicadas em meados do Século XIX, o
escritor consolidava seu projeto de descrever a formação da identidade
nacional. As imagens de ambientes indígenas pautavam-se por uma
preocupação com a “verossimilhança histórica”, por meio da caracterização dos
lugares, hábitos e da própria história do país, em um esforço de“recontar a
própria história, buscando no passado traços da nossa civilização”, (ALONSO,
2
Revista Semana Illustarada. Rio de Janeiro, 16/92/1865, p.1749.
1995, p. 248) como por exemplo no romance Iracema, estabelecendo uma
estreita relação entre imagem indígena e nacionalidade. A idealização das
imagens indígenas compreendeu as necessidades do nacionalismo e do
nativismo da época: o Brasil Independente que emergia de um contexto
colonial. E existiram também estreitas relações entre os adeptos do
Romantismo e a política conservadora.
Por outro lado, houve ainda uma correlação entre indianismo e
sertanismo, estilos literários que se sucederam. O sertanismo procurava
descrever o Brasil verdadeiro, original e puro do interior, transferindo ao
sertanejo, ao habitante do interior, ao trabalhador da terra, o dom de exprimir o
Brasil. (SODRÉ, 1988, p. 323. No livro O sertanejo, publicado por José de
Alencar em 1875, o personagem principal do enredo é Arnaldo apresentado
como homem arredio, bom, simples e servidor, primeiro vaqueiro de uma
fazenda. Uma figura excepcional e misteriosa, com o pleno conhecimento e
domínio da Natureza, tendo hábito de dormir no alto de árvores na mata,
cercado de animais selvagens, sabendo distingui-los como ninguém. Ao final
deste romance, em um diálogo significativo. Arnaldo conversava com o
fazendeiro, seu patrão:
— E para si, Arnaldo, que deseja?
Insistiu Campelo.
— Que o Sr. Capitão-mor me deixe beijar sua mão: basta-me isso.
— Tu és um homem, e de hoje em diante quero que te chames
Arnaldo Louredo Campelo.

Pelas características de Arnaldo descritas por Alencar, perece ser um


indígena com as peculiaridades de sua condição, convivendo no mundo social
da fazenda onde trabalhava. Arnaldo era apresentado como submisso ao
senhor e patrão. A submissão era o preço do reconhecimento: “Tu és um
homem”. Todavia, para sê-lo em plenitude, Arnaldo devia aceitar incorporar ao
seu nome, o nome do Capitão-mor, o patrão e senhor. Tanto estas imagens
acerca dos indígenas, como as expressadas por intelectuais, literatos e
pintores no Século XIX, foram incorporadas ao imaginário coletivo do país na
época e posteriormente sendo reproduzidas nos manuais didáticos. Ora visões
românticas de indígenas belos e heroicos vinculados a Natureza, ora indígenas
bárbaros, selvagens hostis ou em degeneração, desparecidos, integrados a
colonização.
Degenerados, extintos e mestiçados

No Século XIX coexistiram vários discursos e imagens sobre os


indígenas no Brasil. A imagem do indígena em “um estado secundário”
(MARTIUS, 1992, p.11) foi defendida pelo naturalista alemão Carl Friedrich von
Martius que esteve viajando pelo Brasil entre 1817 a 1820. Martius mesmo
residindo na Alemanha, tornou-se sócio honorário do IHGB, ocupando um lugar
entre os “homens de sciencia” (SCHWARCZ, 1993, p.23) no Brasil do século
XIX. Com a Dissertação “Como se deve escrever a História do Brasil”, em 1843
o naturalista alemão conquistou o primeiro lugar em concurso instituído pelo
IHGB na apresentação do melhor plano para escrever a História do país. No
texto premiado, Martius afirmava serem os indígenas “ruínas de povos”
(MARTIUS, 1992, p. 93, grifado no original), estimulando as pesquisas
etnográficas e linguísticas para conhecimentos sobre os indígenas.
As ideias do naturalista alemão e os critérios propostos para a escrita
histórica, influenciou decisivamente a intelectualidade da época e posterior, nos
estudos a respeito da História do Brasil. Assim, Francisco Varnhagen, sócio e
Secretário do IHGB, foi um dos seguidores do pensamento do naturalista
alemão, adotando na elaboração de sua “História do Brasil”, as propostas
metodológicas contidas na dissertação premiada de Martius. O historiador
Varnhagen publicou estudos sobre Linguística, Arqueologia, Etnografia e
mitologias indígenas, levando ao extremo as ideias de Martius sobre a
degeneração dos indígenas, ao defender o emprego da violência no trato com
os nativos, afirmando “longe de condenarmos o emprego da força para civilizar
os índios, é forçoso convir que não havia outro algum meio para isso” (apud,
LISBOA, 1984, p.237).
Na polêmica com João Francisco Lisboa a respeito das referências
sobre os indígenas na obra “História do Brasil”, o pesquisador Varnhagen
publicou em 1867 o texto “Os índios bravos e o Sr. Lisboa”, onde transcreveu
trechos de um discurso do Senador Dantas Barros Leite, conhecido na época
por posições anti-indígenas extremadas. O Senador alagoano discursando em
plenário, declarava o desejo de reviver uma “guerra aos índios”, afirmava ser
contrário aos aldeamentos, pois estes significavam “colônias de ladrões e
assassinos” e “o barbarismo armado” contra a civilização, de “selvagens” a
“perturbarem a sociedade com suas inclinações ferozes”. O Senador via a
“organização physica” dos indígenas impedida de “progredir no meio da
civilização” e assim condenada a desaparecerem (apud, MOREIRA NETO,
1988, p.335-338).
Às imagens de degeneração foram vinculadas ao desaparecimento dos
indígenas, servindo ambas como argumentos para a negação da identidade
étnica e a afirmação da mestiçagem das populações indígenas. Essas
afirmações após a Lei de Terras de 1850 legitimavam as tradicionais invasões
nas terras habitadas pelos indígenas, esbulhos ampliados, por particulares ou o
Estado. Ou seja, nos aldeamentos principalmente aqueles localizados nas
áreas mais antigas da colonização portuguesa, a exemplo da região Nordeste
do Brasil, os esbulhos foram amparados pela legislação em vigor.
Nessa perspectiva, em 1861, o Governo Imperial solicitou através de
circular às Diretorias das Terras Públicas e Colonização nas Províncias,
informações sobre a situação dos indígenas. No questionário enviado as
províncias, dentre outros itens a serem averiguados, constava os costumes
característicos de cada “tribo”, o “desenvolvimento intelectual e moral”, as
relações dos aldeamentos com as populações circunvizinhas e quais os índios
que poderiam ser dispensados da tutela dos diretores para demarcação de
parte das terras em lotes destinados às famílias indígenas e outra parte a ser
vendida em hasta (leilão) pública. (SILVA, 2021).
Portanto, o discurso oficial e a legislação no período justificava a
medição, demarcação e loteamento das terras indígenas, como forma de
solucionar conflitos entre os nativos e os invasores, legitimando os
arrendatários tradicionais que paulatinamente tinham se apossado das terras
dos aldeamentos. Sistematicamente, era afirmado pela autoridades que os
indígenas estavam “confundidos com a massa da população” e somava-se à
negação da identidade dos indígenas, muitos pedidos de autoridades e
invasores nos territórios indígenas, para declaração legal da extinção dos
aldeamentos, pois ocorrera o suposto desaparecimento dos indígenas.
A imagem do indígena como trabalhador foi evidenciada nas discussões
sobre a abolição do trabalho escravizado negro e a viabilidade de colonos
imigrantes como mão de obra para a lavoura. O jurista Perdigão Malheiro
afirmava que o Governo para promover a substituição do trabalho escravo pelo
trabalho livre, “não deixasse de insistir em aproveitar também os destroços da
raça indígena”, diante das dimensões dos país a escassez e necessidade de
braços (MALHEIRO, 1976, p.243), declarando também que se devia “facilitar”
de forma a “mais breve possível que eles (os indígenas) se confundissem na
massa da população” (MALHEIRO, 1976, p. 247). Os debates a respeito da
mão-de-obra para a lavoura e o futuro do país, ocorria desde os anos 1840 no
interior do IHGB, entre os defensores da imigração dos colonos europeus e os
favoráveis a utilização dos indígenas como força de trabalho em substituição a
negra escravizada (GUIMARÃES, 1988, p. 21).
Uma imagem acerca do indígena também de caráter integracionista foi
propagada pelo General Couto de Magalhães, um dos maiores, senão o maior
promotor dessa ideia no período. Em 1876, Couto Magalhães cumprindo
determinação de D. Pedro II, realizou um estudo científico sobre “a língua Tupi
e a descrição das origens, costumes e religião dos selvagens”, elaborado “para
figurar na biblioteca americana da Exposição Universal da Filadélfia”, foi
publicado posteriormente com o título O selvagem. No estudo, o General citou
os indígenas como imagem de “raça bárbara” em oposição a raça civilizada,
obviamente e naturalmente representada por Couto Magalhães. O militar no
texto, defendeu a imagem do indígena civilizado, pacífico e cristão.
Reconhecendo “o imenso poder do homem bárbaro” e a “selvageira”, advogou
a catequese indígena e o investimento no aproveitamento da mão-de-obra
nativa para o país, “mais um milhão de braços aclimatados e utilíssimos na
indústrias pastoris, extrativas e de transportes internos, únicas possíveis por
muitos anos no interior”.
O General construía a imagem do índio trabalhador, do indígena
potencializador do progresso econômico nacional e além do nativo habitando
espaços disponíveis para a colonização, possibilitando “conquistar duas terças
partes do nosso território, que ainda não pôde ser pacificamente povoado por
causa dos selvagens” (MAGALHÃES, 1975, p.13-17). As várias imagens
acerca dos indígenas a partir de meados do século XIX estavam relacionadas
com os subterfúgios utilizados para legitimação de esbulhos das terras
indígenas. E também, diante das pressões e restrições crescentes ao uso da
mão-de-obra negra escravizada na grande lavoura, os indígenas foram
pensados como uma possibilidade de substituição para o trabalho livre.
Nos anos 1870 ocorreram mudanças significativas no Brasil. Com a
grande virada antirromântica e a recepção de novos pressupostos científicos-
filosóficos em voga na Europa, e estes influenciaram decisivamente nas ideias
debatidas nos centros culturais, acadêmicos e círculos intelectuais no país
(SKIDMORE, 1976; VENTURA, 1991; SCHWARCZ, 1993). As imagens ora
afirmaram a felicidade, a ingenuidade natural indígena, ora enfatizaram a
degeneração indígena, nas representações de Rugendas e von Martius, em
uma tensão entre a “idealização e a desilusão”, do desencanto europeu com as
imagens utópicas sobre o mundo selvagem, na busca de uma imagem, um
conceito objetivo do homem e da Natureza na América (VENTURA, 1991,
p.32).
Talvez as mudanças que ocorriam no país foram simbolizadas na
polêmica entre José de Alencar e Joaquim Nabuco. Este publicamente em
1875 atacou o Romantismo de Alencar. A crítica de Nabuco representava os
confrontos de duas gerações, de diferentes projetos políticos das elites para o
Brasil. O autor de “Iracema” concebia a nacionalidade como resultado da
formação histórica do país, constituindo uma civilização enraizada nas
diferentes matizes culturais, onde o indígena era a expressão ímpar das
origens americanas. Joaquim Nabuco por sua vez, defendia uma vinculação
entre progresso e civilização, com país inserido no movimento mundial,
configurado no novo contexto das relações capitalistas, onde o Brasil deveria
superar uma “consciência de atraso”, frente ao mundo civilizado europeu
“democrático e capitalista” (ALONSO, 1995, p. 242).
As imagens indígenas cultuadas pelo Romantismo passaram a
simbolizar o atraso do país. O Brasil ainda era “terra de botocudos e aimorés”
(apud, FONSECA, 1994, p.86), como afirmava o abolicionista, monarquista e
engenheiro negro André Rebouças em carta ao amigo o compositor Antonio
Carlos Gomes, que mesmo após ter estreado com grande sucesso no Rio de
Janeiro a ópera “O Guarani”, desejava retornar a Itália, onde morava e
continuaria a trabalhar. Apesar das teorias racistas chegarem no Brasil com
atraso, a partir de 1870, quando estavam em descrédito na Europa
(SCHWARCZ, 1993, p.41), foram porém dominantes em nosso país até os
primeiros trinta anos do século XX, na busca de uma resposta explicativa para
uma identidade nacional, nas concepções das imagens indígenas. Apoiadas
nos argumentos científicos-filosóficos, baseados na hereditariedade e nas
influências do meio para justificar a superioridade da raça branca europeia
sobre os outros povos, foram introduzidas no Brasil na corrente das novas
ideias do Liberalismo, da ciência e do progresso da civilização, empolgando a
intelectualidade brasileira.
A recepção das teorias raciais e dos pressupostos para explicações das
diferenças e desigualdades entre as raças, constituiu-se todavia, em um
problema para os pensadores brasileiros. Frente aos paradigmas das teorias
raciais, como explicar a participação histórica e a inegável presença das
chamadas raças indígenas e negras na formação social do Brasil? Além do
mais e, sobretudo, como advogar uma superioridade de uma pretensa pureza
racial no Brasil, onde quase nenhum membro das famílias tradicionais - 38 - de
uma suposta elite ariana, podia negar na ascendência familiar a miscigenação
negra e indígena? Os modelos deterministas raciais embora muito aceitos no
Brasil, foram adaptados e não simplesmente copiados pela intelectualidade do
país, às peculiaridades da realidade multirracial local. As teorias raciais
encontraram acolhida em diferentes centros de pesquisas e instituições de
ensino, bem como no universo dos museus, nas revistas e outras publicações
científicas.
Os estudos de Etnologia e de Antropologia estabeleceram as relações
entre barbárie, criminalidade, degeneração, doença e inferioridade racial das
“sub-raças” negra e indígena. Foi afirmada a imagem de barbárie associada ao
“índio botocudo”, intensificou-se as pesquisas científicas oficiais sobre os
índios: a imagem do índio “botocudo” como paradigma explicativo para as
origens e desenvolvimento da espécie humana. Reafirmou-se a imagem do
“botocudos” atribuída a todos os povos indígenas, habitantes nas matas, no
interior do país, chamados de selvagens ao resistirem as frentes colonizadoras
invasoras nos territórios onde habitavam. Como “índios da ciência”, foram
examinados muitos crânios de “botocudos” em estudos no Museu Nacional.
A defesa da mestiçagem, fusão das raças negra e indígena com a raça
branca, como caminho para o branqueamento da raça, foi a solução
encontrada com a adoção das teorias raciais deterministas diante da realidade
multirracial no país. Com a proposta da miscigenação, reafirmou-se o indígena
e o negro com imagens de raças inferiores. No campo das ideias literárias, a
partir da década de 1870 com a virada antirromântica, um dos maiores
expoentes foi Sílvio Romero, crítico vinculado a Faculdade de Direito de Recife,
um dos grandes centros de debates das teorias raciais, frente a realidade
multirracial e na defesa da mestiçagem para explicar o país.
Com a ascensão da literatura realista e naturalista influenciada pelos
pressupostos raciais deterministas, em oposição ao Romantismo e ao
Indianismo, ocorreu a exaltação das imagens do mestiço e portanto, as
imagens negras e indígenas foram deixadas de lado nos escritos literários: “O
mestiço é o produto fisiológico, étnico e histórico do Brasil; é a forma nova de
nossa diferenciação nacional” (ROMERO, 1980, p.120). Ao longo do século
XIX existiu uma diversidade e pluralidade de imagens a respeito dos indígenas,
essas imagens corresponderam aos diferentes momentos políticos e as
mudanças sociopolíticas ocorridas no país, expressando as oposições entre o
Tupi como símbolo da nacionalidade e o Tapuia como bárbaro, selvagem.
Entre o índio dócil, catequizado, mestiçado integrado a civilização e o índio
feroz, hostil, sem sentimentos, a ameaçar a civilização. Oposição entre o
aldeamento e a selva, entre o ócio, a liberdade e a disciplina, o trabalho; entre
o atraso e o progresso, entre a degeneração e a civilização.

Considerações finais

Ao longo do Século XIX, foram afirmada várias imagens sobre os


indígenas expressando o etnocentrismo nos diversos discursos construídos, a
partir da suposta supremacia da raça branca, representante da obra redentora
da civilização. Imagens a respeito dos indígenas, justificadas com os
pressupostos científicos-filosóficos, através das teorias explicativas das
diferenças e desigualdades raciais, para legitimaram a ordem social vigente, as
violências, as antigas práticas das invasões territoriais, a negação dos direitos
históricos dos nativos e a dispersão de povos indígenas.
O Censo realizado no Brasil em 2010 contabilizou cerca de 900 mil
indígenas, sendo 305 povos, falantes de 274 línguas. (IBGE, 2010). Os
resultados preliminares do Censo IBGE/2023, apontaram mais de 1.652.000
indígenas no pais.3 Para além dos números, as informações censitárias
provocam reflexões para repensar as construções de imagens sobre os
indígenas no século XIX e discursos ainda advogando o desparecimento dos
povos nativos, omitindo, negando os direitos dos povos indígenas. Porém, na
atualidade os povos nativos afirmam as sociodiversidades indígenas para ser
reconhecer um Brasil pluriétnico e os indígenas como cidadãos brasileiros, mas
com especificidades socioculturais. Como escreveu o indígena Gersem
Baniwa:
A cidadania é a pertença passiva e ativa de indivíduos em um estado-
nação específico, com determinados direitos e obrigações universais
igualmente distribuídos. Pessoas e coletividades podem possuir os
próprios imperativos morais, costumes ou mesmo direitos específicos,
que se tornarão um direito atrelado à cidadania, se forem aplicados e
garantidos pelo Estado. A questão fundamental para avançar na
cidadania indígena é superar a noção limitada e etnocêntrica que a
entende como direitos e deveres comuns de indivíduos que partilham
os mesmos símbolos e valores nacionais. Ora, os povos indígenas
não partilham a mesma língua, a mesma história, os mesmos
símbolos, a mesma estrutura social e, muito menos, a mesma
estrutura política e jurídica da sociedade brasileira dominante, uma
vez que possuem símbolos, valores, histórias e sistemas sociais,
políticos, econômicos e jurídicos próprios (LUCIANO, 2013, p.183)

Reconhecido intelectual e ativista pelos direitos indígenas, Doutor em


Antropologia, ex professor na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e
atualmente professor na Universidade de Brsailia (UnB), com muitos textos e
livros publicados, para Gersem Baniwa os indígenas nos territórios onde
habitam seguem normas próprias, contrárias até ao Estado brasileiro, em uma
contradição exigindo muitas vezes deixar de ser índio para a aquisição da
cidadania, como perda da identidade indígena. E para superar essa relação de
contradição,
Para que a cidadania diferenciada dos povos indígenas se consolide,
é necessário incorporar à noção o reconhecimento do direito de
diferenciação, garantindo-se a igualdade de condições não pela
semelhança, e sim pela equivalência. Em outras palavras, é preciso
criar novos campos sociais e políticos em que os índios sejam
cidadãos do Brasil e, ao mesmo tempo, membros plenos das
respectivas sociedades étnicas a que pertencem. A concepção do
Brasil como um país pluriétnico é uma porta de entrada para isso,
mas não se mostrará suficiente, enquanto o exercício da
multiculturalidade não for incorporado a vida prática da sociedade
nacional. Apenas a convivência intercultural efetiva é capaz de tornar

3
Com a coleta concluída na TI Yanomami, Censo já registra 1.652.876 pessoas indígenas em todo o país.
https://www.ibge.gov.br/novo-portal-destaques.html?destaque=36595 Acesso em: 05 mai. 2023.
possível a coexistência entre a lógica da etnia e a lógica da cidadania
(LUCIANO, 2013, p.184).

Nas últimas décadas os povos indígenas afirmam direitos, sobretudo aos


territórios esbulhados, invadidos ou ameaçados. Nessa perspectiva, as
mobilizações evidenciam os protagonismos sociopolíticos dos indígenas no
Brasil, uma vez que
Os povos indígenas alcançaram avanços importantes em seus
processos de autonomia, protagonismo e empoderamento
etnopolítico. Tais avanços podem ser exemplificados por meio da
construção de uma complexa e ampla rede de organizações
indígenas, que na atualidade exerce papel vital de guardiã dos
direitos indígenas e da autenticidade do Brasil real em todos os níveis
locais, regionais e nacional (BANIWA, 2019, p.18).

Cerca de 6.000 indígenas com lideranças e caravanas, vindos de todas as


regiões do Brasil, participaram do 19º Acampamento Terra Livre (ATL),
realizado de 24 a 28 de abril/2023 em Brasília/DF, promovido pela Articulação
dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e as organizações de base regionais. Na
Capital Federal os indígenas realizaram várias discussões e mobilizações,
afirmando e reivindicando a garantia de direitos.
N Carta final do ATL,4 destinada ao Presidente Lula, escreveram:
A nossa principal força está na união da nossa diversidade de povos
e é justamente essa diversidade que garante a preservação dos
nossos biomas. Nossas Terras estão na Mata Atlântica, no Cerrado,
na Amazônia, nos Pampas, na Caatinga e no Pantanal. Cada área
demarcada é um fôlego a mais para o Planeta.
Precisamos enfrentar de frente o racismo ambiental, pois são as
populações que protegem e defendem o meio ambiente são as que
pagam o preço mais alto da crise climática. Nós povos indígenas não
somos responsáveis pela crise climática, mas nos colocamos à frente
para defender o planeta e convocamos nossos aliados para partilhar
a luta. Por esse motivo, decidimos decretar EMERGÊNCIA
CLIMÁTICA durante o 19º Acampamento Terra Livre (ATL), pois
somos nós, povos e Terras indígenas, a reserva para a vida no
planeta.

E após enfatizarem os avanços das políticas públicas nos primeiros


meses com o novo Governo Federal, reivindicaram: “A retomada da política de
demarcação e proteção das terras indígenas, com um cronograma é
fundamental. Precisamos pôr um fim aos conflitos e toda violência que nos
atinge em decorrência da paralisia dos processos de demarcação”. E
concluíram:

4
Carta ATL 2023: sem demarcação, não há democracia. https://cimi.org.br/2023/05/carta-atl-2023-sem-
demarcacao-nao-ha-democracia/ Acesso em : 05 mai. 2023.
Certos de seu compromisso com o Brasil; certos de sua ética e
caráter forjados na esteira da linha de produção metalúrgica; certos
da sua capacidade de governar este país para todos os povos que o
ergueram sobre o derramamento de sangue e suor, firmamos aqui
este compromisso mútuo de retomar a direção da nossa democracia
e demarcar a trilha que nos levará à pátria dos trabalhadores e
trabalhadoras, à nação pluriétnica do BEM VIVER.

No governo passado, foram estimuladas invasões nos territórios


indígenas, com a conivência e omissão de conhecidas autoridades públicas.
Diante daquele contexto de retrocessos sociopolíticos no país, os indígenas
denunciaram as violências reafirmando os protagonismos, questionando assim
as muitas imagens, ideias e discursos ainda equivocados sobre os povos
indígenas, no Bicentenário da Independência do Brasil

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Independência e cidadania: povos indígenas e o advento


do liberalismo no Ceará

João Paulo Peixoto Costa5

5
Doutor em História pela UNICAMP e Professor do Instituto Federal do Piauí, campus Floriano,
do Mestrado Profissional em Ensino de História - PROFHISTÓRIA - da Universidade Estadual
do Piauí em Parnaíba e do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Sociedade e
Cultura da Universidade Estadual do Piauí em Teresina.
Introdução

A população indígena no Brasil no início do século XIX era bastante


diversa, não apenas em termos culturais e linguísticos, mas também social e
juridicamente. Alguns grupos classificados como bugres e botocutos sofriam
com o genocídio brutal de uma guerra “justa” promovida por dom João VI pelas
Cartas Régias de 1808 e 1811, em nome da expansão de áreas produtivas e
da consolidação de seu poder (SOUZA, 2012, p. 34-257. MOREL 2018, p. 109-
220). Outros eram sujeitos à Carta Régia de 1798, que teoricamente restaurava
a liberdade integral dos índios extinguindo a tutela, mas submetia-os na prática
a trabalhos forçados, ao ingresso em corpos militares e suprimindo garantias
políticas (MACHADO, 2006, p. 61-72. MOREIRA, 2019, p. 305-348). Outros,
talvez em condições menos precárias, viviam sob o Diretório dos Índios, lei
setecentista ainda vigente em regiões como o Ceará. 6
O Diretório foi promulgado em 1757 para o Grão-Pará e expandido ao
restante do Brasil em 1758, durante o reinado de dom José I e pela atuação do
poderoso ministro marquês de Pombal. Seu objetivo era integrar os indígenas à
sociedade colonial portuguesa por meio do trabalho e pela mudança dos
costumes, igualando-os aos demais súditos mas submetendo-os à tutela de um
diretor. Por ele foi decretada aos índios a liberdade, a propriedade das terras e
o direito a cargos de vereação nas câmaras municipais das vilas, eretas das
antigas aldeias religiosas (SILVA, 2005). A lei foi extinta pela Carta Régia de
1798 em algumas regiões e, após a independência, abolida pelo Conselho de
Estado na sessão n.º 16 de 23 de setembro de 1822 (SAMPAIO, 2009, p. 182-
183),7 mas seguiu vigente em capitanias e províncias longe de fronteiras
internacionais, sem áreas de expansão agrícola e extrativista e altamente
dependentes da força de trabalho indígena oriunda das vilas e povoações de
índios (COSTA, 2018, p. 47-56). Com as transformações provocadas pelo
constitucionalismo em Portugal a partir de 1820 e a chegada de ideias liberais
6
Havia ainda muitas outras realidades de indígena oitocentista passíveis de análise hoje, como
os que buscavam ser atraídos aos domínios portugueses em regiões de fronteira interna e
externa, os que viviam fora de sua vila de origem e eram registrados como brancos nos
mapeamentos populacionais, os que passaram a empregados em fazendas ou os escravizados
ilegalmente.
7
Sessão n.º 16 do Conselho de Estado do Império do Brasil. Rio de Janeiro, 16 de setembro de
1822. ATA do Conselho de Estado. Brasília: Senado Federal/Arquivo Nacional, 1973, p. 53.
na América, os índios que viviam sob a “liberdade tutelada” do Diretório
passaram a ter expectativas de ampliação de sua autonomia.
No Ceará, o contato dos povos indígenas com o liberalismo foi marcado
por velozes e intensas transformações. Em menos de 10 anos muita coisa
aconteceu: participaram da formação de um novo Estado nacional em 1822,
atuaram em batalhas militares, se envolveram em movimentos contestatórios,
mas em 1831 viram suas antigas garantias políticas serem desmanteladas. A
perda de direitos se originou com a promulgação da Constituição de 1824 e as
posteriores interpretações legislativas de seus artigos no que tangia aos índios.
Passaram à condição de cidadãos, visto que eram livres e nascidos no Brasil,
e, como iguais aos outros em uma sociedade liberal, não poderiam estar
sujeitos a ordenamentos legais do Antigo Regime, como era o caso do Diretório
dos Índios. Como consequência dessa percepção, foram desfeitos dos
assentos nas câmaras municipais das vilas de índios e as patentes militares
em corpos de ordenança (XAVIER, 2015, p. 79-133. COSTA, 2018, p. 83-99,
137-164, 279-355).
Essa história turbulenta pode ser dividida em duas fases. A primeira, que
vai de 1821 e a 1825, foi marcada principalmente pelo antilusitanismo e luta
indígena em torno da manutenção das garantias do Antigo Regime. A segunda,
de 1825 a 1831, foi quando os índios passaram a ser classificados como
“cidadãos” pelas autoridades provinciais para justificar seu “desaldeamento” e a
extinção dos direitos originados no período colonial, em consonância com as
transformações processadas pelo legislativo nacional nas estruturas jurídicas e
administrativas do Brasil.

Independência: antilusitanismo e liberdade

Na primeira metade dos anos 1820, a partir do constitucionalismo


português, os índios do Ceará lutavam pela manutenção das prerrogativas que
haviam adquirido desde o reinado de dom José I e a promulgação do Diretório,
ou seja: a confirmação de seu direito a terra, os cargos políticos nas câmaras
de suas vilas, a condição de súditos “iguais” aos outros e – consequentemente
e o mais importante – sua liberdade. O movimento liberal e constitucional dos
portugueses da Europa ameaçava diretamente os direitos indígenas por
subjugar o rei, de quem emanavam as mercês, e que acabou transladado para
o outro lado do oceano. O monarca era tradicionalmente a entidade protetora
por excelência dos índios diante das autoridades locais, ambiciosas de suas
terras e na exploração violenta e barata de sua força de trabalho. Por isso, a
recém formada “identidade brasileira”, que rompia com as Cortes de Lisboa e
que era encabeçada por dom Pedro I – o rei que ficou – representava a
permanência da relação dos índios com a monarquia consolidada desde o
século XVIII, de suas prerrogativas e da condição de vassalos livres.
Além disso, as escolhas indígenas diante desses grandes dilemas se
concatenavam com as dissensões políticas provinciais. As elites do entorno da
capital, Fortaleza, foram acérrimas inimigas dos índios por serem as mais
interessadas no usufruto de sua mão de obra, por se posicionarem fiéis às
Cortes de Lisboa e porque eram formadas por portugueses europeus (XAVIER,
2015, p. 81-82. COSTA, 2018, p. 139-142). Foram elas quem obrigaram o
então governador Francisco Alberto Rubim a jurar a Constituição que se fazia
em Portugal em 14 de abril 1821 e depuseram-no em 3 de novembro para a
formação de uma Junta Governativa (ARAÚJO, 2018, p. 63-88). De acordo
com os vereadores da câmara municipal de Fortaleza, se opunham a ele, entre
outros motivos, por verem a agricultura

... privada dos braços dos índios, que até então o Diretório lhes
facultava, o qual foi logo pelo dito governador derrogado, sem
haver ordem régia para isso: subcarregada de uma dívida
enorme pelos prejuízos que sofreu de perder quase toda a sua
colheita por aquela proibição de não facultar-se-lhe os índios, a
quem oferecendo-lhes o jornal como a qualquer outro jornaleiro
jamais queriam trabalhar pela licenciosidade própria de sua
conduta.8

Na sua perspectiva sobre a lógica jurídica portuguesa, a falta de “ordem


régia” para que o Diretório tivesse sido derrogado pelo governador mostra que
a Carta Régia de 1798, que aboliu a lei indigenista pombalina no Pará, não foi
automaticamente direcionada para todo o Brasil. É interessante perceber que o
mesmo grupo político-econômico que apoiava a adesão cearense à revolução

8
Da câmara de Fortaleza a dom João VI. Fortaleza, 17 de novembro de 1821. Arquivo
Nacional (AN), série Interior – Negócios de Províncias (AA), códice IJJ9 513.
liberal lusitana também exigia a permanência de uma lei do Antigo Regime
justamente pelo que tocava no trabalho forçado indígena. Da forma como se
referiram aos índios, tratados como ingratos preguiçosos ainda que
supostamente remunerados de forma correta, esconderam a própria autoria
das explorações corriqueiras e deixaram transparecer seu desprezo e
rivalidade.
A postura indígena durante o período constitucional português era bem
diferente, como se evidencia em um memorial produzido pela câmara municipal
da vila de índios de Messejana juntamente com os “demais cidadãos” da
povoação. Escrito em janeiro de 1822, foi assinada pelos vereadores Joaquim
Lopes de Abreu Lage, Lourenço Soares da Costa, Antônio Francisco Pereira e
Francisco Pereira Correa Lima, os dois últimos indígenas. No texto
encaminhado ao governo da província pediram, entre outras coisas, que o
território do município fosse protegido “sem que as justiças das vilas da
Fortaleza e Aquiraz se intrometam nela”, a abolição do Diretório para que
pudessem vender bebidas alcoólicas e o fim da tutela dos diretores para que
fossem “administrados debaixo da inspeção do seu respectivo capitão-mor”. 9
Atentos aos ventos liberais que sopravam o território português, os índio
de Messejana perceberam no momento a oportunidade de ampliação de suas
prerrogativas garantidas desde o Antigo Regime. Ou seja, não queriam apenas
o cumprimento das determinações do Diretório como o direito de propriedade,
mas buscavam ultrapassar a lei que ainda os considerava incapazes e
necessitados de tutela. Nesse contexto de redefinição da ordem política e de
possibilidades em aberto, se utilizaram de um consolidado espaço
administrativo da ação indígena – a câmara municipal – para se inserir na
igualdade perante a lei prevista pelo liberalismo por meio da condição de
cidadãos (SOUZA, 1999, p. 118. SLEMIAN, 2009, p. 73. SANTOS, 2013, p. 63-
67, 80. DANTAS, 2018, p. 169-170).
Em setembro de 1822, durante os acontecimentos que levaram à
separação do Brasil do Reino Unido com Portugal, a oposição entre os índios e
a elite da capital cearense se manifestou de forma tensa no levante ocorrido
em Maranguape, próximo a Fortaleza. De acordo com o governo da agora

9
MESSEJANA. Ofício da câmara de Messejana ao Governo Provisório. Messejana, 15 de
janeiro de 1822. Biblioteca Nacional (BN), códice II-32, 24, 9.
província do Ceará, já ocupado pela elite fortalezense, cerca de 600 índios se
dirigiram “às fazendas do diretor geral, o sargento-mor José Agostinho, e o juiz
de fora pela lei Joaquim Lopes com ânimo de assassiná-los, e sempre
roubaram as casas, dando gritos contra os europeus, e a favor da liberdade
dos escravos".10 Os dois eram naturais de Portugal, e o segundo conhecido
usurpador de terras indígenas na serra de Maranguape: ou seja, ao afrontá-los,
os índios também ameaçavam boa parte dos membros do governo provincial.
Além disso, bradar pelo fim da escravidão era confrontar todo um sistema
econômico e uma tradição absolutamente cara às elites da América portuguesa
(XAVIER, 2015, p. 82-85. COSTA, 2018, p. 143-150).
As acusações eram fortes o suficiente para a exigir uma repressão
exemplar aos índios rebeldes. Em poucos dias os envolvidos na rebelião foram
todos capturados, presos e severamente castigados. Só foram soltos em
fevereiro de 1823 pela nova Junta de Governo formada por autoridades do
interior do Ceará que depuseram a elite de Fortaleza em janeiro. A nova
composição governativa, tendo à frente nomes como José Pereira Filgueiras e
Tristão Gonçalves, era contrária à concentração do poder na capital e alinhada
a dom Pedro I. Desde o início do mandato contou com a aliança dos indígenas,
selada com a intermediação junto ao imperador em prol do perdão régio aos
presos de Maranguape por meio de um relato escrito acerca dos
acontecimentos que contou com um abaixo-assinado de 21 envolvidos. Para o
governo, os índios deveriam ser inocentados "visto que o seu único crime era
defender a independência”.11 A versão indígena, produzida em conjunto com os
novos mandantes da província, é bem diferente daquela feita pelo antigo
governo:

Aparecendo nos princípios de setembro do ano passado [1822]


proclamações de sua Majestade Imperial, então príncipe
regente do reino do Brasil, nessas tratava aos europeus por
inimigos da nação brasileira e às tropas anunciava que ao
longe se forjavam grilhões para nos prender, e afirmando seu
reverendo pároco a estação da missa conventual que dentro

10
Do Conselho Consultivo do governo do Ceará à câmara da vila de Arronches. Fortaleza, 23
de setembro de 1822, Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), fundo Governo da
Capitania (GC), livro 32, p. 29. Grifo meu.
11
Sessão da Junta Provisória de Governo do Ceará. Fortaleza, 13 de fevereiro de 1823. APEC,
GC, livro 32, p. 63V.
em três meses seriam escravos. Os índios alvoroçados,
lembrados dos seus ferros antigos, pegarão dos seus arcos e
das suas flechas na noite do dia 22 de setembro, convida[ram]
os habitantes a vingar a sua liberdade debaixo dos auspícios
d’El Rei [?] Defensor do Brasil. [Fizeram] retumbar nos ares
seus Nomes Augustos, a sua independência política.
Corre[ram] à casa de José Agostinho Pinheiro para saber se
assinava a causa, assim como já tinham feito aos demais
europeus da povoação. Não derrama[ram] uma só gota de
sangue, e nem maltrata[ram] a pessoa alguma; e se
arromba[ram] as portas de seu diretor foi somente para saber-
se do seu partido. Concorreu o povo em massa [?] para a casa
de Joaquim Lopes de Abreu, não para ofendê-lo, sim para
expulsá-lo para fora das suas usurpações. Foi então que
apareceu um indigno e leve furto.

Logo de início, a postura dos índios acerca das notícias que lhes
chegaram foi apresentada como fiel ao monarca, devota à religião católica e
horrorizada diante da possibilidade de reescravização, o que revela que a
atuação indígena no contexto de independência não rompeu com a cultura
política do Antigo Regime (ALMEIDA, 2007, p. 204-205). Segundo eles, o
intuito de suas ações tinham a ver com a consolidação da causa do Brasil, o
que justificava o arrombamento e o leve furto. Passaram longe da violência e,
ao convocar outros habitantes e inquirir os europeus do lugar, mostravam-se os
mais prestimosos brasileiros ao retumbarem sua independência política
(XAVIER, 2015, 85-98. COSTA, 2018, p. 151-157).
A partir daí, a associação entre independência, antilusitanismo e luta por
liberdade marcou a atuação política indígena no Ceará nos primeiros anos do
Brasil emancipado. Em abril de 1823, uma tropa de índios de Vila Viçosa foi
mobilizada para proteger algumas localidades na província do Piauí, que ainda
era palco de conflitos sangrentos com agrupamentos armados fiéis às Cortes
de Lisboa. Acerca da estadia em solo piauiense, registrou-se a participação
indígena em atos de insubordinação militar, saques e ataques a quem fosse
acusado de ser lusitano. De acordo com o juiz José Marques Freire

... aos povos só lhes serviam o nome (grito) de “morra, é


corcunda”. [...] Depois foram muitos roubados pelos índios, que
não deixaram em casa vidros, e nem coisa alguma. [...] Nesta
vila ficaram todas as casas abertas por as tombarem as portas;
e roubarem tudo; assim estavam fazendo por fora a quem
possuía alguns bens; bastava ter alguma coisa para ser
chamado “corcunda”, e ser logo roubado.12

A guerra de independência no Piauí é indício de que o papel do povo


talvez tenha sido bem mais decisivo no interior do país e em províncias
distantes do Rio de Janeiro do que supõe José Murilo de Carvalho (2014, p.
33). Além disso, aqui importa mais destacar que fúria indígena em solo
piauiense, juntamente com a de outros pobres que atuavam na causa brasileira
contra os corcundas, extrapolou os que meramente havia nascido na Europa
para seus reais inimigos de sempre: a elite proprietária (COSTA, 2018, p. 296-
314). Contrariando Carvalho, o que unia todos esses grupos era a “luta popular
pela liberdade” (2014, p. 34), que ainda que não fosse o único, era componente
crucial para a adesão de províncias como Ceará e Piauí à independência do
Brasil.
No ano seguinte, a aliança dos povos indígenas do Ceará com o grupo
do interior que governava a província continuou com a adesão cearense à
Confederação do Equador. Foi a primeira vez que os índios se posicionaram no
espectro abertamente liberal e contrários ao rei, acusado de mancomunação
com uma possível recolonização portuguesa e de despotismo após a violenta
dissolução da Assembleia Constituinte em 1823, a promulgação da
Constituição de 1824 e o famigerado “poder moderador”. Tais questões são
expressas no seguinte ofício de Tristão Gonçalves à câmara da vila de índios
de Arronches:

Agradeço aos meus patrícios as expressões de amizade no


ofício de 15 do presente. Fiquem V. Ss. certos que ou nós
salvamos a pátria, ou havemos de acabar de baixo das suas
ruínas; e persuadam-se que nos últimos bocejos da vida
conservarei os mesmos sentimentos sem duvidar jamais da
probidade dos valorosos brasileiros da vila de Arronches.
Assaz me tenho explicado com V. Ss. não só em papéis
públicos, mas nos particulares. Se querem ser escravos,
sigam, e jurem o projeto; enquanto a mim e aos liberais,
responderemos com as armas na mão até mil vezes
morrermos do que assinarmos uma só vez o selo abominável
do servilismo.13
12
De José Marques Freire à junta governativa do Piauí. Campo Maior, 7 de maio de 1823.
Arquivo Público do Estado do Piauí, série Independência, livro 4.
13
De Tristão Gonçalves de Alencar Araripe à câmara de Arronches. Fortaleza, 21 de julho de
1824. Diário do Governo do Ceará. Fortaleza, 30 de julho de 1824, nº. 15, p. 1V. AN, fundo
Mesmo sem conhecer o conteúdo do texto enviado pelos membros do
senado de Arronches, percebe-se que também partia dos índios a iniciativa de
consolidar a aliança com o governo. Além da estratégia de estreitamento da
amizade por parte das lideranças rebeldes, a mudança de rumo político
indígena se deu porque novamente foi colocada em cheque sua liberdade. Os
índios viam na Constituição o retorno ao servilismo, e nos liberais de então o
reconhecimento de serem “valorosos brasileiros”, tratamento radicalmente
diferente do recebido pelas lideranças provinciais de outrora. A abominação à
escravidão era uma forte marca de sua cultura política originada no Antigo
Regime.
Para os índios, portanto, a consolidação da independência significava a
luta constante pela manutenção da liberdade. Por isso, lideranças das
diferentes vilas e povoações de índios estiveram presentes na sessão que
proclamou a adesão do Ceará à Confederação do Equador, em 26 de agosto
de 1824. Dentre elas, o “capitão-mor e eleitor” de Arroches Vitorino Correia da
Silva Parangaba,14 que, a exemplo de muitos patriotas brancos do período,
registrou-se como “eleitor” para demarcar sua posição de brasileiro e adicionou
um nome indígena ao seu em português – que correspondia justamente à
antiga toponímia da sua vila de origem – como forma de posicionar-se contra
as ameaças vindas da Europa (COSTA, 2018, p. 329-350).
Com a morte de Tristão Gonçalves, a prisão de Pereira Filgueiras e a
tomada de Fortaleza por lorde Cochrane em 18 de outubro, os índios foram
convencidos a voltar ao lado de dom Pedro I. De acordo com o mercenário
inglês,

Os chefes indianos [sic], assim como a gente que deles


dependia, foram de grande préstimo na restauração da ordem,
combinando robustez corporal superior com atividade, energia,
docilidade, e força de aturar que nunca falhava – formando,
com efeito, os melhores padrões da raça nativa que eu vira na
América do Sul (COCHRANE, 1856, p. 184-185).

Confederação do Equador (IN), caixa 742, pacote 4.


14
ATA da sessão extraordinária e grande conselho provincial. Fortaleza, 27 de agosto de 1824.
Apud. Confederação do Equador. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva,
tomo XXV, 1911, p. 295-299. Grifo meu.
Salta aos olhos a importância dada por Cochrane aos soldados
indígenas e seus oficiais, destacando sua importância militar e a necessidade
de se ter com eles aliança para qualquer um dos lados do conflito. Para os
indígenas, a mudança de espectro foi um reconhecimento de que não havia
mais condições para resistência diante da morte e prisão das principais
lideranças confederadas e da rendição da capital da província. A oferta de uma
nova aliança por parte dos vencedores representantes do rei dom Pedro I era a
única saída para preservar suas prerrogativas.
Com a derrocada da Confederação do Equador e o reconhecimento do
soberano do império do Brasil no Ceará, as manifestações políticas indígenas e
de outro grupos subalternos se expressaram de forma semelhante ao contexto
anterior à rebelião. Há relatos de ações violentas protagonizadas por pobres
contra “patriotas” e “brancos”, demonstrando que a definição de inimigo para
esses grupos agregava tanto a fidelidade ao monarca – ainda entendido como
a entidade protetora – quanto um forte fator racial (COSTA, 2018, p. 350-352.
CÂNDIDO, 2018, p. 211-213).
Os índios de Viçosa, por sua vez, foram mobilizados pelo governo da
província em janeiro de 1825 para capturar o liberal João de Andrade Pessoa
Anta na vila de Granja. Por lá, de acordo com as memórias registradas por
João Brígido, os indígenas “se dispersaram pelas ruas e cometeram toda sorte
de violências, saqueando e açoitando homens e mulheres, até de famílias
importantes. Dezenove pessoas sofreram esse vilipêndio” (BRÍGIDO, 1889, p.
66). No mês de setembro, o comandante das armas Conrado Jacob de
Niemeyer relatou ao presidente Azevedo e Sá “que os índios de Vila Viçosa
[eram] insolentes, que os anarquistas da Granja não sossega[vam] e [estavam]
em contínua rivalidade com os ditos índios”. 15 Neste contexto de
reestabelecimento da ordem imperial no Ceará após a Confederação do
Equador, a cultura política dos índios de Viçosa se expressava
semelhantemente à de outros grupos subalternos e ao que fizeram no Piauí
dois anos antes. Ricos e patriotas, liberais e membros de “famílias
importantes”: todos eram potencialmente inimigos do rei e ameaças às suas
garantias políticas.

15
De Conrado Jacob de Niemeyer a José Felix de Azevedo e Sá. Fortaleza, 20 de setembro de
1825. AN, IN, caixa 742, pacotes 4 e 5.
Cidadania, igualdade e subalternização

Até o período que analisamos, só encontrei uma menção ao conceito de


cidadania associado aos povos indígenas no Ceará, como vimos no memorial
de Messejana escrito antes da independência. Termo mais comum era
brasileiro, que representava a obstinação dos índios em participar da formação
do novo país emancipado. O Brasil, nascido da oposição a um Portugal
potencialmente recolonizador e reescravizador, era a garantia de liberdade e
da manutenção de mercês conseguidas desde o tempo dos reis lusitanos,
particularmente dom José I com a promulgação do Diretório. Ou seja, a luta
dos índios por direitos por meio da consolidação do Estado liberal ainda seguia
uma lógica corporativa de sociedade, na qual os povos indígenas eram corpos
sociais que recebiam mercês em troca da fidelidade ao rei.
Todavia, com a Constituição de 1824, a percepção corporativa foi
gradativamente desmantelada, especialmente com as discussões e decisões
tomadas nos legislativos nacional e provinciais. Consolidava-se uma visão
individualista, com uma sociedade formada por cidadãos, ainda que divididos
em categorias diferentes no que dizia respeito à participação eleitoral
(SLEMIAN, 2009, p. 97-140. CARVALHO, 2014, p. 35-44). A Carta Magna não
cita os índios nominalmente, o que fez parte da historiografia acreditar que a
cidadania não os alcançaria (CUNHA, 1987, p. 63. SLEMIAN, 2005, p. 843.
SPOSITO). Mas seu artigo 6º definia os cidadãos brasileiros como os homens
livres nascidos no Brasil: tudo isso eram os índios que ainda viviam sob a
vigência do Diretório (MACHADO, 2015, p. 439-458).
Os do Ceará só começam a ser denominados de cidadãos por
autoridades políticas na segunda metade dos anos 1820, e, em todas as vezes,
a condição era argumento para a dissolução de seus direitos do Antigo
Regime. A primeira ocorrência que encontrei foi em 1826 no parecer emitido
sobre os indígenas em 22 de setembro pelo Conselho do Governo cearense
em resposta à ordem do Ministério do Império, também dirigida a outras
províncias, para confeccionar o Plano Geral de Civilização dos Índios. Segundo
os conselheiros do Ceará, o melhor meio para civilizar os indígenas era
... a dispersão geral da aldeação deles, queremos dizer, suspender o
Diretório, ficando os mesmos índios sujeitos à polícia como os demais
cidadãos do Império, por isso mesmo que se unindo em parentesco por
afinidade franca, e livremente com quem lhe aprouver, por isso mesmo
que tratando e sociando[sic] com os mais mudarão de conduta, como a
experiência tem mostrado com aqueles que, apartados da aldeia, são
mui diferentes do que eram: uteis a si e à sociedade, principalmente
caindo sobre si o rigor da polícia, que tanto temem e respeitam.
Fazemos mais lembrar não ser hoje dificultosa a separação dos índios
aldeados, porque grassando a terribilíssima seca do ano próximo
passado 1825, a peste, o recrutamento, absorveram quase toda essa
desgraçada gente, digna por certo de melhor sorte. Aos índios, somos
de parecer, se lhes concederão com justiça e equidade os antigos
direitos de suas propriedades, datas e sesmarias de terras para a sua
cultura, não pagando rendimento delas, e mesmo preferindo aos mais
concidadãos. Quando pois se mande que os índios se dispersem de
suas aldeias e vivam onde muito quiserem, parece-nos que estas datas
devem passar ao domínio direto das câmaras respectivas para aforá-las
a quem quiser ser útil à província pela sua cultura, não ficando deste
modo incultas como tem sucedido no poder dos índios, que nem
cultivam todas e nem deixavam os extranaturais cultivar, sem
precedência de choques e contestações. No caso, porém, de não
parecer conveniente a dispersão de poucos índios que hoje existem na
província, [...] os índios de Monte-mor Novo, Monte-mor Velho, e os de
Messejana e Arronches deverão ser aldeados na vila de Soure [...].
Quando aconteça serem abolidas ou suprimidas as vilas de Messejana
e Arronches, neste caso as terras que se deram aos índios que delas se
desaldearem deveram ser incorporadas nos próprios reais, e as da vila
de Monte-mor Novo incorporarem-se ao domínio direto da câmara, por
que ainda mesmo sendo dos índios aldeados, a mesma câmara sempre
aforou-as, quando os índios não precisavam de todas para seu
patrimônio.16

Para os conselheiros, era a supressão do Diretório, com os direitos e


deveres dela concernentes, que faria com que os índios se enquadrassem
plenamente como cidadãos do império. As consequências disso também foram
antevista pelos autores do parecer: sua dispersão e miscigenação não apenas
ajudaria na civilização, como também diluiria sua condição étnica e,
principalmente, duas importantes prerrogativas: as terras e os cargos de
câmara. A sugestão de supressão das vilas de Messejana e Arronches e do
deslocamento de seus habitantes indígenas, juntamente com os de Monte-mor
Velho e Monte-mor Novo, seria facilitado pelos efeitos mortíferos da seca de
1825 na demografia dessas populações (XAVIER, 2015, p. 108-110).

16
PARECER do Conselho de Governo da Província do Ceará, 22 de setembro de 1826. In:
Documentos sobre os nossos indígenas. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Editora
"Instituto do Ceará", tomo LXXVII, 1963, p. 323-324.
De posse dos senados de algumas vilas de índios ou da incorporação de
outras extintas, abria-se caminho para a dominação das terras de seus termos.
Enquanto a discussão de outros Conselhos Gerais de Província sobre a
população indígena e sua cidadania tinha como principal objeto o controle da
força de trabalho (MACHADO, 2015, p. 464), no Ceará desse período a
prioridade inicial era a usurpação de suas terras. 17 O Conselho produziu uma
descarada torção jurídica no ancestral direito civil indígena à propriedade, pois
ainda que não deixassem de reconhece-lo, sublimaram-no. Para isso, criaram
os argumentos da subutilização da terra e da “necessidade” de incentivar a
diluição étnica e comunitária como se tais projetos governativos tivessem
respaldo constitucional. O incentivo a miscigenação e dispersão, os
deslocamentos forçados e o despojamento dos cargos políticos nas câmaras
anulariam as defesas aguerridas da terra tradicionalmente empreendidas por
vereadores e lideranças indígenas, como registraram os membros do
Conselho.
O Plano Geral de Civilização dos Índios projetado pela Corte não foi
concluído, mas as ideias dos conselheiros cearenses eram compartilhadas por
outras autoridades da província. Antes da emissão do parecer do Conselho de
Governo do Ceará, os membros da câmara de Aquiraz já haviam emitido em
dezembro de 1825 e abril de 1826 duas petições ao rei para que os índios de
Monte-mor Velho, povoação pertencente ao termo do município, fossem
removidos para uma das vilas próximas a Fortaleza. 18 Baseados no argumento
de que a povoação estava quase deserta e que os índios seriam melhor
vigiados em outra vila, o pedido foi autorizado em agosto 19 e a remoção
efetivada em janeiro de 1827 para Messejana 20 (XAVIER, 2015, p. 119-120).
Em janeiro de 1828 foi a vez dos vereadores de Monte-mor Novo
pedirem a remoção dos indígenas do lugar, que até então era uma vila de
17
Como veremos em seguida, a escassez de mão-de-obra fez surgir a necessidade de
reagrupar os índios e reativar o Diretório na província em 1843, excluídas as prerrogativas
indígenas nele previstas (COSTA, 2018, p. 113-115).
18
Da câmara de Aquiraz a dom Pedro I. Aquiraz, 12 de dezembro de 1825. BN, códice II-32,
23, 83, nº1. Da câmara de Aquiraz a dom Pedro I. Aquiraz, 24 de abril de 1826. BN, códice II-
32, 23, 83, nº1.
19
De José Feliciano Fernandes Pinheiro a Antônio de Sales Nunes Berford. Rio de Janeiro, 18
de agosto de 1826. APEC, fundo Ministérios (MN), série Ministério do Império (MI), livro 89.
20
De Antônio de Sales Nunes Berford a João da Cunha Pereira. Fortaleza, 18 de janeiro de
1827. APEC, fundo Governo da Província (GP), série Correspondências Expedidas (CO EX),
livro 4, p. 178V-179.
índios, mas cuja população passara a minoria pela intensa migração de
colonos nos últimos anos (COSTA, 2020, p. 34-35). Seguindo o exemplo de
Aquiraz e pondo em prática as sugestões do Conselho de Governo, os
senadores de Monte-mor Novo produziram um requerimento abaixo-assinado
com outros moradores, argumentando que a população indígena decrescera
assustadoramente pelos efeitos devastadores da seca de 1825 e que as terras
seriam melhor aproveitadas se passassem à gestão da câmara. 21 A
transferência foi ordenada pela Secretaria de Estado e Negócios do Império em
julho também para Messejana22 (XAVIER, 2015, p. 124-128. COSTA, 2020, p.
35-45). Em sessão do dia 29 de março de 1830, a câmara de Monte-mor Novo
leu “um ofício do presidente da província datado de 17 do corrente participando
a esta câmara ter deixado esta vila de ter o título de vila de índios” (CATÃO,
1939, p. 157).
O fim do estatuto de vila de índios em Monte-mor Novo foi o início do
processo de abolição do Diretório no Ceará. No final de 1830 começaram as
discussões no Conselho Geral da Província que propunham a extinção da lei
pela incompatibilidade com a Constituição e a cidadania dos índios. A primeira
consideração a este respeito foi a proposta de José Ferreira Lima Sucupira:

Nenhuma razão há para que, em uma associação que tem por


objetivo a igualdade perante a lei, sejam alguns dos membros,
em contravenção ao pacto fundamental de sua regeneração
política, forçados a obedecer leis bárbaras ditadas em tempos
prestigiosos pelo capricho de um conquistador. São os nativos
índios nossos patrícios e concidadãos, obrigados ainda
obedecer a dureza e barbárie de seu Diretório, com manifesta
infração da Constituição do Império que os declara cidadãos
brasileiros, os que, pela péssima educação e dura escravidão
de mais de 300 anos, nem ao menos conhecem seus direitos
para reclamá-los: vivendo sem garantia do direito de
propriedade, da qual os seus diretores dispõem como bem lhes
apraz, arrancando-os muitas vezes do serviço de um lavrador,
que lhes paga por mais, para manda-los trabalhar a outros que
lhes paga por menos.

21
Abaixo-assinado da câmara e povos da vila de Monte-mor Novo, 7 de janeiro de 1828. Anexo
ao ofício de José Lino Coutinho, sem destinatário. Rio de Janeiro, 20 de agosto de 1831. BN,
códice II-32, 24, 15.
22
De Manoel Joaquim Pereira da Silva à câmara de Monte-mor Novo. Fortaleza, 19 de junho
de 1829. APEC, GP, CO EX, livro 13, p. 55V-56.
Ao final, propôs que se cumprisse “o Diretório unicamente naquela parte
que não despuser a Constituição e leis constitucionais”. 23 A sociedade
compreendida por Sucupira já não era mais corporativa como no Antigo
Regime, período associado por ele a barbárie, conquista e escravidão. Por
utopia ou cinismo, entendia que viviam um tempo baseado na igualdade dos
cidadãos, e, já que assim a Constituição declarava os índios (mesmo sem citá-
los), não faria mais sentido o Diretório – que garantia muito mais os direitos de
propriedade indígenas do que os novos arranjos jurídicos e institucionais. É
curiosa sua leitura do artigo 6º da Carta Magna, mas também o quanto não
reconhecia as prerrogativas garantidas pela lei pombalina e como ignorava a
atuação política dos índios pela terra, de posse do conhecimento que tinham
da legislação. O que deixou sem explicação era em que partes o Diretório não
conflitaria com a Constituição e de que maneira tal arranjo protegeria mais
eficazmente os índios e suas propriedades.
Outras propostas sugeriram a abolição do Diretório em 7 de janeiro de
1831, por conta da já pequena quantidade de índios e do pouco trabalho dos
diretores, o que indica um provável processo avançado de dispersão da
população indígena provocado após o fim da Confederação do Equador, a
seca de 1825 e o estabelecimento de políticas abertamente anti-indigenistas na
província.24 Em abril, dom Pedro I abdicou do trono, deixando os índios e
outros grupos subalternos sem um monarca protetor e abrindo caminho para a
ampliação do poder das elites provinciais.
No mês de julho de 1831 foi a vez de indígenas se utilizarem da
condição de cidadãos em prol de seus interesses. Sem dom Pedro pai, os
índios de Monte-mor Velho viram no filho uma oportunidade de atualizar sua
relação de proximidade e afeição com o monarca e reivindicar o retorno à terra
natal. Liderados pelos indígenas José Francisco do Monte, Manuel Batista dos
Santos, Policarpo Pereira de Freitas, Manoel Batista de Oliveira, Anselmo
Pereira Lopes, Estevão Pinheiro da Rocha e João Francisco Pereira,
produziram um requerimento por meio do qual denunciaram a dom Pedro II

23
Proposta de José Ferreira Lima Sucupira. Fortaleza, 6 de dezembro de 1830. ATAS do
Conselho Geral da Província do Ceará: 1829-1835. Fortaleza: INESP, 1997, p. 165-166.
24
Proposta de Castro e Menezes. Fortaleza, 7 de janeiro de 1831. ATAS..., p. 171. Proposta de
Ângelo José da Expectação Mendonça. Fortaleza, 7 de janeiro de 1831. ATAS..., p. 171.
... que foram arrancados pelo despotismo das suas casas e
terras e mandados morar em Messejana, com manifesta
infração da Constituição do império, que no título 2º, artigo 6º,
os declara cidadãos sem a menor sombra de dúvida, porque
são nascidos no Brasil, e são ingênuos: logo assim devem
gozar todos os direitos que a Constituição garante aos
cidadãos. É garantido pelo §6 do artigo 179 do título 8º a
conservação ou saída do Brasil, guardados os regulamentos
policiais, e salvo o prejuízo de terceiro: está claro que nenhum
cidadão brasileiro pode ser obrigado a morar em certos e
determinados lugares. No §2 do citado artigo e título é
garantido o direito de propriedade em toda a sua plenitude.
Jamais podiam os suplente serem forçados a largarem as suas
casas, os seus sítios e as suas terras para serem exilados sem
processo, sem sentença, despótica e arbitrariamente.25

É impressionante o conhecimento indígena sobre os artigos da


Constituição, por meio da qual se basearam para provar que a situação de
exílio feria a lei e agredia aquilo que eram sem a menor sombra de dúvida:
cidadãos brasileiros! Também chama atenção a linguagem liberal utilizada ao
acusarem os articuladores da remoção de despóticos, termo comumente
empregado pelos defensores da independência para qualificar o império
português. Da mesma forma, é curioso que, mesmo adequados ao novo
contexto, defendiam um direito de propriedade originado como prerrogativa no
Antigo Regime e confirmado pelo próprio Conselho de Governo do Ceará, que
corroborou a petição dos vereadores de Aquiraz ao sugerir os deslocamentos
forçados de comunidades indígenas. De posse da fluência na escrita,
escancararam a ilegalidade da artimanha ambiciosa do mesmo Conselho e da
câmara da vila vizinha.
Mas as operacionalizações indígenas da condição de cidadãos não
conseguiram conter o processo de desagregação de direitos e exclusão de
espaços políticos executado pelas autoridades nacionais e provinciais. 26 Em

25
De José Francisco do Monte e demais índios de Monte-mor Velho a dom Pedro II.
Messejana, sem data [julho de 1831]. BN, códice C-750, 29. Grifo meu. Um ofício do vice-
presidente do Ceará José de Castro Silva ao ministro da Justiça Manoel José de Souza França
faz referência ao requerimento dos índios de Monte-mor Velho em 28 de julho de 1831. Cf.
APEC, GP, CO EX, livro 14. BN, códice II-32, 24, 9.
26
Os índios de Monte-mor Novo conseguiram autorização para retornar às suas terras em 20
de agosto de 1831 e os de Monte-mor Velho em 20 de dezembro do mesmo ano, mas já
destituídos de todos os antigos direitos políticos. De José Lino Coutinho ao vice-presidente do
Ceará. Rio de Janeiro, 26 de agosto de 1831. AN, AA, códice IJJ9 56. De José Marciano de
Albuquerque Cavalcante a José Antônio dos Santos Silva. Fortaleza, 6 de outubro de 1832.
APEC, GP, CO EX, livro 20, p. 10V-11.
agosto de 1831 a criação da Guarda Nacional extinguiu os corpos de
ordenança, abolindo o modelo militar corporativo do Antigo Regime e as
patentes de oficiais para lideranças indígenas (COSTA, 2018, p. 218-226). Em
dezembro, o Diretório já não estava mais em vigor no Ceará. No dia 13, o
Conselho Geral da Província respondeu à câmara de Messejana (até então vila
de índios) negando o pagamento de foro pelos indígenas,

... porque, posto que o Diretório esteja em desuso, e que os


índios sejam considerados cidadãos brasileiros pela
constituição do império, contudo a lei da criação das vilas lhes
garante a cultura das terras do mesmo patrimônio extinto de
foro, ou arrendamento em atenção ao que os seus progenitores
foram os legítimos possuidores do país, e só por outra lei
podem ser privados dessa garantia.27

Mais uma vez, a cidadania indígena era apresentada como uma garantia
constitucional e o motivo da inadequação e definitiva abolição do Diretório,
associada à opressão pelos conselheiros. Se contarmos a partir da seca de
1825, em cerca de 6 anos quase tudo se acabou para os índios no Ceará,
agora integrantes de uma sociedade de cidadãos iguais perante a lei, mas
despossuídos de todas as posições políticas que lhes possibilitavam atuar em
defesa de seus patrimônios. Depois disso, as vilas de índios de Soure e
Arronches foram suprimidas pela lei nº 2 de 13 de maio de 1835, com seus
termos anexos ao da capital.28 Em 1839 foi a vez de Messejana, pela lei nº 188
de 22 de dezembro, ficando seu território dividido entre Fortaleza e Aquiraz. 29

Considerações Finais

27
Parecer do Conselho Geral da Província do Ceará. Fortaleza, 13 de dezembro de 1831.
ATAS do Conselho Geral da Província do Ceará: 1829-1835. Fortaleza: INESP, 1997, p. 176-
177.
28
Lei nº 2 de 13 de maio de 1835. In: OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone Cordeiro
(Org.). Leis provinciais: estado e cidadania (1835-1861). Compilação das leis provinciais do
Ceará - compreendendo os anos de 1835 e 1861 pelo Dr. Liberato Barroso. Ed. Fac-similada.
Fortaleza: INESP, 2009 [1862], tomo I, p. 50.
29
Lei nº 188 de 22 de dezembro de 1839. In: OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone
Cordeiro (Org.). Leis provinciais: estado e cidadania (1835-1861). Compilação das leis
provinciais do Ceará - compreendendo os anos de 1835 e 1861 pelo Dr. Liberato Barroso. Ed.
Fac-similada. Fortaleza: INESP, 2009 [1862], tomo I, p. 266.
Com a gestão da terra nas mãos das elites econômicas, antigas
inimigas, a desagregação das comunidades se acentuou, provocando
dispersões e quedas populacionais. Em 1840, por meio de relatório à
Assembleia Legislativa Provincial, o presidente Francisco de Souza Martins
apresentou sucintamente a história dos índios do Ceará nos últimos anos e os
efeitos para a província das transformações trágicas que enfrentaram:

Esta província era uma da mais ricas em aldeias de índios,


mas estes vão pouco a pouco desaparecendo, de sorte que a
raça dos primeiros habitantes do Brasil parece condenada à
completa aniquilação pelos imperscrutáveis decretos da
providência. Talvez, porém, senhores, que os erros da nossa
legislação vão não pouco contribuindo para este funestíssimo
resultado, cuja maléfica influência reverte em grande parte
sobre nós mesmos, que faltos de braços para auxiliar a
agricultura, e desenvolver a indústria, não sabemos aproveitar
aqueles que possuímos, e que tão profícuos poderão ser. [...]
Jurada a Constituição, porém, entendeu-se nesta província
abolido o Diretório dos Índios, porque a lei devia ser igual para
todos os cidadãos brasileiros, em cujo número com razão
compreendem os índios, mas esta inteligência nem foi
razoável, nem conveniente ao país. [...] Por outra parte nossas
leis de eleições excluíram os índios de todos os empregos
públicos, pois que nelas preponderam a influência e cabala dos
brancos, mais hábeis e cavilosos. Abandonados os indígenas a
si mesmos, desconsiderados os indígenas de suas aldeias,
opressos e sempre lesados em seus contratos pela maior
esperteza dos de nossa raça, estão desgostosos de sua
posição social e suspiram pelo antigo regime...30

A dispersão indígena, que se fez sentir na economia cearense, era


resultado drástico e o mais visível de uma das mais importantes ações anti-
indigenistas do início do império: a exclusão dos índios dos empregos públicos,
como bem resumiu Martins. O menosprezo à capacidade indígena, bastante
perceptível no relatório, foi motivação fundamental para que se buscasse a
abolição dos cargos indígenas nas câmaras. Com a Constituição, as
interpretações e leis dela decorrentes – como a abolição do Diretório e a
promulgação da lei de reformas das câmaras de 1º de outubro de 1828 –
deixaram os índios à própria sorte. Agora eram cidadãos, mas, despossuídos

30
MARTINS, Francisco de Souza. Relatório que apresentou o Exm. Sr. Doutor Francisco de
Souza Martins, presidente desta província, na ocasião da abertura da assembleia legislativa
provincial no dia 1º de agosto de 1840. Fortaleza, Tipografia Constitucional, 1840, p. 10-13.
de tudo, só lhes restava suspirar pelo antigo regime, tempo que ainda
saudosamente lembravam.
Pelo menos no Ceará, nunca se questionou se a Constituição de 1824
garantia ou não a condição de cidadania aos índios. Com o fim da concepção
corporativa de sociedade, o “ser indígena”, antes um corpo social, tendia a ser
diluído na unidade de cidadãos brasileiros por meio da Carta Magna. Além de
identidade étnica, “ser índio” no Antigo Regime correspondia a um conjunto de
deveres e benefícios que não fariam mais sentido na nova sociedade liberal. As
reformas administrativas empreendidas no legislativo nacional entre as
décadas de 1820 e 1830 caminharam também no sentido de abolir as
concepções corporativas. As câmaras municipais no Brasil perderam o poder
político que tinham, se submetendo aos governos provinciais, ao mesmo tempo
em que deram força aos Conselhos Gerais, balanceando o poder dos
presidentes.
No Ceará, foi o Conselho que compreendeu que a Constituição abolia o
Diretório ao declarar os índios “cidadãos”, termo que não aparece nem durante
os conflitos militares da independência e nem na Confederação do Equador,
último evento militar em que os índios foram recrutados na condição de
soldados de ordenanças. A cidadania indígena só passou a ser uma questão a
partir da discussão do Plano Geral de Civilização dos Índios em 1826, quando
foi sugerida sua dispersão das aldeias ficando "sujeitos à polícia com os
demais cidadãos do império".
Com isso, os privilégios indígenas – patentes militares nas ordenanças e
os cargos nas câmaras municipais – foram extintos e pilhados pelas elites
provinciais e municipais, e muitas comunidades dispersaram, definharam ou
foram expulsas. Prova desse processo é que as fontes que se referem à
cidadania dos índios no Ceará sempre tem como tema ou a inadequação da
permanência do Diretório – e consequentemente das câmaras indígenas – ou a
expulsão de comunidades de suas povoações de origem, ações que facilitaram
a usurpação de suas terras a partir da década de 1830.
Tratavam-se, portanto, de cidadãos incompletos, na definição de José
Murilo de Carvalho (2014, p. 14-15). Primeiro, porque os direitos indígenas à
propriedade foram fragilizados, o que resultou em deslocamentos forçados em
Monte-mor Novo e Monte-mor Velho, mesmo que posteriormente “reparados”,
mas que não impediram as dispersões e desagregações comunitárias. Em
segundo lugar, porque perderam direitos políticos que exerciam havia cerca de
70 anos nas câmaras municipais, além das também extintas patentes de
ordenanças. Ou seja, os povos indígenas que até então viviam sob o Diretório
não se encaixavam nos grupos listados por Carvalho, analfabetos e sem
experiência nos trâmites administrativos (2014, p. 37), como prova o
requerimento dos índios que reivindicaram seus direitos de cidadãos.
As imposições censitárias para acesso ao voto, ainda que baixas para a
população brasileira da época (CARVALHO, 2014, p. 35-36), afetaram
profundamente os índios recém-saídos de um contexto de conflitos armados,
vivendo uma seca brutal e naturalmente pobres pelas obrigações do Diretório
que inviabilizava seu acúmulo material. Foram subalternizados, excluídos dos
espaços políticos com as novos ordenamentos legais e, assim como os outros,
desfeitos das garantias a direitos sociais. Processo semelhante ao que
aconteceu em 1798 nas regiões que aplicaram a Carta Régia que abolira o
Diretório (MOREIRA, 2019, p. 305-306), mas no Ceará de 1831, o contexto
possibilitou a justificativa de supressão da lei pombalina por conta da
Constituição e da cidadania. A base argumentativa desse processo
orquestrado pelas autoridades provinciais do Ceará era a “igualdade perante a
lei”, levantada pelo conselheiro José Ferreira Lima Sucupira em 1830 e
reconhecida 10 anos depois pelo presidente Francisco de Souza Martins.
Depois de tantas lutas na independência em nome de sua liberdade, os índios
foram reconhecidos cidadãos por meio da “igualdade”, falácia jurídica
escandalosa em um Estado nação notoriamente escravista e que já nos
primeiros anos se formava cada vez mais excludente.

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PRÁTICAS E ENSINO DE HISTÓRIA INCLUSIVO:


VISIBILIDADES DA CULTURA AFRO-BRASILEIRA

José Luiz Xavier Filho31

Introdução

Os currículos escolares, tem ainda insistido trabalhar a História


tradicional do Ocidente, limitados por uma visão eurocentrista, e quase sempre
trata como não relevante a história de outras regiões do mundo a exemplo da
África. Esse olhar, que tem subordinado e diminuído a importância de outros
povos apresenta a Europa como eixo do movimento evolutivo, impulsionado
desde a Antiguidade, época em que a região mediterrânea era definida como o
centro do mundo.
A África desde então, passou a ser vista como distante, como a região
dos “homens de faces queimadas” (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2004, p. 56).
Daquele período até o final da Idade Média, especialmente com a religiosidade
cristã medieval, ganhou impulso a associação da cor negra ao pecado e ao
demônio, firmando a visão preconceituosa em relação aos povos africanos.
Para confirmar essa “inferiorização” da África, apontada como a região do mal,
havia ainda uma passagem bíblica do Gênesis, a qual os referidos autores
fazem menção:
Cã, segundo filho de Noé, exibiu-se diante de seus irmãos,
gabando-se de ter visto o sexo de seu pai, quando esse se
encontrava bêbado. Para castigá-lo, o patriarca amaldiçoou
Canaã, filho de Cã; ele e sua descendência se tornariam
servidores de seus irmãos e sua descendência. Eles migraram
para o sul e para a cidade das sexualidades malditas: Sodoma.
Depois atingiram Gomorra. Lendas contam que os filhos dos
filhos dos amaldiçoados foram viver em terras iluminadas por
um sol que os queimava, tornando-os negros. (DEL PRIORE &
VENANCIO,2004, p. 59).

A ideia de supremacia europeia trouxe ideologicamente a inferioridade


de outras culturas, especialmente as africanas, consolidou-se durante a Idade
Moderna, quando a Europa passou a centralizar o poder econômico, político e
31
Graduado em História (UPE), graduando em Sociologia (FAVENI), especialista em Ensino de
História (FAVENI), e em História e Cultura Afro-Brasileira (IPEMIG), mestrando em Culturas
Africanas, da Diáspora, e dos Povos Indígenas (UPE), professor de História do quadro efetivo
da rede municipal de ensino do município da Lagoa dos Gatos – PE, ID Lattes:
http://lattes.cnpq.br/4762429040202808, ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9088-8610, E-
mail: [email protected].
militar mundial. Por séculos prevaleceu a mentalidade de enquadrar os
africanos num grau inferior da escala evolutiva, a mesma que classificava os
vários povos em avançados e atrasados ou civilizados e primitivos, a exemplo
do que foi disseminado sobre os africanos no imaginário de muitos brasileiros.
Comerciantes, conquistadores e teóricos ressaltavam uma suposta
selvageria dos povos da África, característica quase sempre relacionada à
natureza do continente, fundamentando assim a crença de que a identidade
daqueles seria determinada meramente por traços físicos e biológicos, e não
por sua história. Impunham essa versão forçada de que o homem africano era
incapaz de produzir cultura e história, quadro que serviu aos escravagistas e
também aos imperialistas do século XIX, os mesmos que utilizaram o discurso
justificador de “civilizar” a África como afirmou Marc Ferro acerca do que era
pensado pelos ingleses que somente haveria civilização pelos europeus.
(FERRO, 2004).
Os africanos que vieram para as Américas, em condição de
escravizados, embora no mesmo período colonial tenha havido uma pequena
imigração de africanos livres, provinham de diferentes povos que pertenciam a
variadas culturas. As suas práticas religiosas eram, em alguns casos,
assemelhadas e, em outros, bastante diferenciadas.
Um grande número de africanos e seus descendentes, porém, buscaram
recriar as suas religiões de origem, formando grupos para a prática religiosa
dos rituais e para a transmissão das tradições. Estes grupos se
autodenominaram nações e os nomes adotados se referem às etnias, cujas
culturas são predominantes entre eles.
Tais recriações foram crescentes nos locais de maior concentração de
escravizados e seus descendentes, especialmente nas cidades portuárias que
mantiveram atividades comerciais com os países da África até as primeiras
décadas do século XX. Tendo em vista esse breve histórico da gênese da
história, cultura afro-brasileira e o preconceito em torno dessas temáticas,
trabalhar e abordar esses conteúdos dentro da sala de aula do Ensino
Fundamental do Anos Finais, que é o campo dessa pesquisa, é de profunda
importância, pois tende a apreciar os seus valores de vida e do
desconhecimento sobre o assunto, combatendo, assim, o aumento da
discriminação racial na escola.
A presente pesquisa é documental (fontes primárias - documentos,
escritos ou não - ou secundárias – bibliográficas) e descritiva, recorrendo ao
método observacional e do tipo exploratória, pois foi sujeita a entrevistas junto
aos alunos e professores, adeptos, ou não, do Candomblé. Para a elaboração
desse trabalho foi aplicado questionários com professores, gestores, e alunos
da Escola Municipal Cordeiro Filho, da cidade da Lagoa dos Gatos, município
de Pernambuco. Também foi significativo a visita em terreiros de Candomblé
para perceber o envolvimento de crianças e adolescentes na religião e que
estejam cursando o Ensino Fundamental do Anos Finais, tendo em vista que
alguns alunos são praticantes dessa religião.
Distribuídos os questionários e realizadas as entrevistas, a intenção foi
chegar o mais próximo da realidade e fazer com que o estudo seja útil aos
docentes e ao meio acadêmico de uma maneira geral e alinhar junto ao que é
proposto pelo livro didático. Destacamos que a identificação das pessoas foi
mantida em sigilo, que, nesse caso, foi assinado um acordo entre as partes.
Neste artigo, objetivou-se analisar a partir da visão do conteúdo
programático do livro didático, as possibilidades do professor trabalhar a cultura
africana e afro-brasileira na sala de aula do Ensino Fundamental dos Anos
Finais, reforçando assim a importância da laicidade como instrumento
necessário para defender os espaços públicos da intolerância religiosa e
analisar a Lei n. 10.639/2003, que versa sobre o ensino da história e da cultura
afro-brasileira e africana, enquanto efetivação em sala de aula.

Desenvolvimento
O ensino de História nas escolas de Ensino Fundamental não se limita a
uma mera submissão ao conhecimento produzido pelos historiadores. Nas
escolas, alunos e professores geralmente dialogam com os conhecimentos
eruditos da História, produzem e (re)produzem conhecimentos históricos. Os
professores, então, não são meros reprodutores de conhecimentos produzidos
por pensadores que se encontram fora do ambiente escolar. A velha noção de
divisão do trabalho entre os que pensam e os que executam o pensado não se
enquadra nesse caso.
Os professores, então, cumprem um significativo papel de (re)produzir
conhecimentos eruditos importantes para a sociedade, ao mesmo tempo, são
pensadores que produzem conhecimentos no espaço escolar. Por isso mesmo,
ainda tem sido recorrente a valorização de uma qualificada formação e uma
vez bem formados serão para desempenhar as inúmeras tarefas que lhe são
atribuídas. Contudo, o ambiente escolar apresenta-se desafiador ao professor
para a abrangência de novos conhecimentos face ao que se demanda da
própria sociedade representada pelos alunos para ampliação e/ou aquisição
de novas aprendizagens.
Nessa base do contexto vivenciado pelos estudantes, o professor
desafia, e pode se propor com novas possibilidades para que se redirecionem,
ampliem-se ou desenvolvam novos enfoques sobre o conhecimento., como o
que se constitui o foco desse trabalho. De forma dialógica, o professor pode se
propõem a novas aprendizagens dos alunos que exigem formação com
orientações especiais para atuações individuais e coletivas. Nesse processo,
os alunos são envolvidos a buscar, a selecionar informações, a construir
hipóteses e a tomar decisões reorganizando e dando sentido e significado ao
conhecimento. É importante que sejam incentivados e orientados a refletir
criticamente sobre o que lhes é apresentado e a transcender, isto é, ir além das
informações obtidas, distinguindo os dados mais importantes dos secundários,
buscando relacionar o aprendido com outras informações e situações.
Rüssen (2006) afirma que o aprendizado da História não deve se limitar
à aquisição do conhecimento histórico como uma série de fatos objetivos. Para
além dessa perspectiva, o conhecimento histórico deve atuar como regra nos
arranjos mentais tornando-se, de forma dinâmica, parte integrante da vida do
sujeito. Em outras palavras, o conhecimento histórico não significa
simplesmente o acúmulo de uma quantidade de informações relacionadas a
fatos do passado.
Na perspectiva da consciência histórica, o conhecimento histórico deve
servir como uma ferramenta de orientação temporal que levaria a uma leitura
do mundo no presente e embasaria uma avaliação quanto às perspectivas de
futuro alicerçadas nas experiências humanas do passado. Desse modo,
aqueles que desenvolveram a consciência histórica não conheceriam apenas o
passado, mas utilizariam esse conhecimento como meio para auxiliar a
compreensão do presente e/ou “antecipar”, no plano mental, o futuro em forma
de previsão pertinente (MEDEIROS, 2006; BARCA, 2006).
Não obstante as dificuldades do dia a dia nas escolas as narrativas
históricas estão presentes por toda a parte e o sujeito historicamente letrado
não se limita apenas a somar um novo conhecimento à quantidade de outros
tantos que já possui. O letramento em História possibilita ao sujeito estabelecer
uma interação mental durante as leituras das narrativas históricas com o
conhecimento histórico já acumulado, estabelecendo, assim, uma orientação
temporal e permitindo a construção de novos significados. É importante
ressaltar que o indivíduo pode utilizar-se de seus conhecimentos históricos
para melhor compreender o mundo em que vive e não apenas nas situações
em que as narrativas históricas são evidentes.
É sob essa perspectiva, que nos debruçamos sobre a relevância da
abordagem do nosso objeto de estudo. Tendo a consciência de que as
religiões afro-brasileiras podem ser construídas em sala de aula, através e
inclusive, a partir das narrativas de alunos e professores, não se atendo
apenas ao livro didático. E neste sentido, diagnosticaremos as discriminações
históricas a respeito.
Por outro lado, as mudanças exigem novas possibilidades que se tornam
inseridas no cotidiano dos estudantes do Ensino Fundamental dos Anos Finais.
Neste sentido busca-se na escola o conhecimento sobre as religiões de origem
africana por serem questionadas até por professores ao desconhecerem o
conhecimento, não somente como responsáveis, por falta mesmo de Formação
atualizada. É o que se espera no cotidiano escolar.

Metodologia

Neste trabalho os livros didáticos escolhidos fazem parte de uma série


publicada pela editora FTD e foi adotado numa escola da rede pública. A
diversidade cultural pontuada nos livros pode ser percebida a partir de suas
capas. Vejamos:

Figura 01: Sequência de imagens de livros didáticos


Fonte: Editora Saraiva. (Disponível em: <https://www.saraiva.com.br/historia-sociedade-
cidadania.html>). Acesso em maio de 2021.

Nas observações da professora que trabalha em escola pública no


município da Lagoa dos Gatos, alunos do 6º ao 9º ano, as capas dos livros
causaram grande impacto às crianças, principalmente do livro do 7º ano que
traz a imagem de uma criança africana. Foi necessário abordar em sala de aula
a cultura diferente de alguns países e a forma como as pessoas se vestem, se
cuidam e se embelezam. Dentre as capas, a mais criticada e observada pelos
alunos foi esta. Frases como: “Que criança feia” ou “Parece que passou cocô
no cabelo” foram ditas. Ao longo do ano, a professora aproveitou alguns
momentos para elogiar, “despretensiosamente”, a criança da capa, na tentativa
da mudança de olhar diferente o belo. Sobre essa questão do belo, também foi
trabalhado em outra disciplina, a de Língua Portuguesa, para desmitificar o
padrão de beleza que as crianças acreditam que exista. A imagem da capa do
9º ano, última série do Fundamental Anos Finais, já leva aos alunos a
perceberem a união entre nossas diferenças, exemplificando a necessidade da
paz entre nós, com a simbologia de uma pomba branca. Passemos ao
conteúdo das obras: no livro do 6º ano são abordados os seguintes temas
sobre África e cultura afro-brasileira:

 A valorização das matrizes africana e indígena (uma página com imagens


citando o Tambor de Crioula do Maranhão);
 Patrimônio cultural (uma página com atividade sobre a capoeira);
 Patrimônio cultural (uma página com atividade sobre o frevo, enfatizando a
origem da dança na capoeira);
 Os primeiros hominídeos (uma página a qual faz referência à origem da
humanidade no continente africano);
 Da África para outros continentes (quatro páginas que abordam a origem do
homem e como ocorreu a povoação dos continentes com suas hipóteses de
rota a partir da África);
 O Egito Antigo e o Reino de Kush (um capítulo abordando esses dois
impérios, contendo duas páginas e meia falando sobre a religiosidade
egípcia);
Percebe-se, portanto, que o livro do 6º ano aborda muito superficialmente
sobre a influência da cultura afro-brasileira, apenas quando se trata de patrimônio
cultural, mas em nenhum momento fala-se sobre religiosidade afro-brasileira. Apesar
de abordar a mitologia egípcia, essa não faz parte de nossas influências. Aqui, neste
espaço, cabe ao professor ou professora, abrir espaço para o debate sobre a mitologia
dos orixás, para que os estudantes entendam que existem várias mitologias, a
exemplo da egípcia, grega, germana e iorubá.

No livro do 7º ano analisado, temos:


 A unidade 1 inicia com o tema diversidade e discriminação religiosa,
no entanto, dá ênfase à tríade islamismo-judaísmo-cristianismo. A
ideia é introduzir o conteúdo da Europa Medieval a partir do
entendimento da intolerância religiosa, visto que o capítulo se
encerra com o tema das cruzadas, guerra religiosa a qual envolvia
essas três religiões.
No entanto, nesse início de unidade, a professora pode discutir sobre o
atual contexto que vivemos no Brasil, onde as religiões de matriz africana são
duramente perseguidas por religiões cristãs.
 Povos e culturas africanas: malineses, bantos e iorubas (um capítulo
que aborda esses reinos africanos e as influências culturais que eles
trouxeram para o Brasil).
Apesar de toda a influência religiosa que esses povos nos trouxeram, o
livro perde até novo programa a oportunidade de aprofundar o assunto e não
fala em Candomblé, por exemplo. Porém, o debate pode ser sugerido em sala
para que possam ser abordados o Candomblé e Umbanda, Jurema, por
exemplo. Na ocasião pode ser feita uma investigação para descobrir se
existem adeptos dessas religiões em sala de aula.
 A economia açucareira (seis páginas abordando sobre a mão de obra
escrava no Brasil colonial);
Esse tema já é muito usual nos livros didáticos de uma maneira geral. A
novidade seria aprofundar o conteúdo fazendo uma relação da mão de obra
nos tempos do Brasil Colonial com os dias atuais. Pode-se trabalhar, neste
caso, o mercado de trabalho para negros e negras do Brasil, o índice de
escolaridade, de presidiários e a situação atual do negro no Brasil. Neste
capítulo não há nenhuma menção sobre a dimensão religiosa afro-brasileiras e
suas dificuldades ao serem trabalhadas nas escolas. Há um silêncio nesse
aspecto. Também seria uma oportunidade de estudar sobre este tema.
O livro do 8º ano aborda as seguintes questões relacionadas aos negros
e à África:
 Africanos no Brasil: dominação e resistência (um capítulo que trata
da escravidão, do tráfico de escravizados, do trabalho, da violência,
da resistência e dos quilombos).
O momento em que se fala em resistência poderia ser abordado sobre a
resistência religiosa, que apesar de proibições e perseguições, as religiões de
matriz africana resistem até os dias atuais. Como o livro deixa a desejar neste
sentido, a professora pode levantar o debate em sala de aula.
 A sociedade mineradora (uma página que aborda os escravizados da
região das minas).
Nesse trecho de capítulo, pouco se fala sobre a religião, as festas e a
resistência. Apenas uma breve menção sobre a congada.

 Conjuração Baiana (duas páginas que abordam brevemente sobre a


presença da população afrodescendente em Salvador).
 Revolta dos Malês (duas páginas que tratam da revolta escrava
considerada a mais importante do Brasil). A seção esclarece o motivo pelo
qual a revolta fica conhecida como Revolta dos Malês e traz algumas
imagens de africanos e afro-brasileiros.
 A pressão inglesa e o fim do tráfico (três páginas abordando o tráfico de
escravizados e a pressão que os ingleses passam a fazer à coroa
portuguesa para que o mesmo fosse extinto).
 A abolição (oito páginas que fazem um percurso histórico sobre o
movimento abolicionista, as leis que foram instituídas e a realidade que
acontecia à época).
Por fim, no livro do 9º ano, os conteúdos abordados sobre nosso objeto
de estudo são:

 Teorias racistas do século XX (uma página com atividade de interpretação


de texto).
 O imperialismo na África (três páginas que tratam da exploração sofrida em
regiões do continente africano. Esse trecho também aborda brevemente a
resistência dos africanos através de rebeliões. As questões trabalhadas são
mais políticas).
 A Revolta da Chibata (uma página e meia que trata desse episódio de
resistência, face à permanência de condutas escravagistas. Aqui não há
espaço para falar-se em questões religiosas).
 O nazismo na Alemanha (seis páginas que abordam esse momento
histórico. Inserido nesse contexto, brevemente a seção trata da
superioridade da raça ariana).
 Independências: África e Ásia (um capítulo sobre o tema, sendo que sobre
África são seis páginas com atividades). Nesta seção, os aspectos
trabalhados são o econômico e político, sem espaço para as questões
religiosas.
Observamos que em todos os livros da série, os aspectos religiosos são
deixados de lado. Quando abordados, são abordados muito superficialmente.
Das possíveis oportunidades, dentro do conteúdo, o professor ou a professora
deve levantar debates, fazer pesquisas, expor o tema, independentemente do
livro.

Resultados e Discussão

Por seu lado o estudo das religiões afro-brasileiras há muito se rejeitava


de modo que se expandiram nos processos de discriminação e associação a
uma cultura inferior, quando não ao próprio mal, ao demônio, de modo que não
conhece sobre tais religiões que em sua matriz africana não se identifica essa
representação.
Já nas primeiras pesquisas sobre a cultura afro-brasileira, ou sobre o
negro no Brasil, realizadas por Nina Rodrigues (2010) e Arthur Ramos (2001),
ambos médicos, mas que se empenharam em investigar as raízes do povo
negro no Brasil, percebe-se o tom pejorativo ou negativo dado à cultura dos
africanos. Exemplo disso é quando Nina Rodrigues (2010, p. 242) refere-se a
Olorum, criador do mundo, conforme a mitologia dos Orixás, como uma
“concepção da minoria inteligente”. Ao mesmo tempo em que os autores
referem-se a fé africana como fetichismo. Em nota, Adriana Lima (2016, p. 80)
atribui que:
O termo é utilizado tanto na obra de Arthur Ramos quanto na
de Nina Rodrigues. Origina da palavra feitiço, o que nos remete
a utilização do termo na Idade Média, que estava ligada à
bruxaria, que se relaciona mais com o demônio que com a fé,
dando a entender que as tradições religiosas de origem
africana estão relacionadas ao mal. Na África, a conotação da
palavra está relacionada aos deuses particulares.

Neste sentido Nina Rodrigues e Arthur Ramos, irão embasar com as


suas ideias um discurso preconceituoso e discriminatório, que reflete a
sociedade do final do século XIX e início do século XX, mas que perpassam até
nossos dias. Mesmo com uma mudança no contexto referencial histórico de
autores mais contemporâneos que tratam sobre as raízes africanas nos
brasileiros a exemplo de Roger Bastide (1971; 2001), José Beniste (2014) e
Reginaldo Prandi (2001), os quais dão ênfase à mitologia dos orixás, a
explicarem sobre este panteão, e outros tantos que debatem sobre racismo,
como o clássico Oracy Nogueira (1954-1985), vivenciamos em pequenos ou
grandes espaços, as práticas de intolerância religiosa e os discursos de ódio
das mais diferentes maneiras. Assim busca-se que o livro didático venha
contribuir com a formação dos estudantes, mediados pelo professor ou
professora.
Assim visto nas pesquisas há algumas décadas o livro didático não é um
instrumento moderno, estudos comprovam que, na metade do século XVI, já
existia uma preocupação em adotar livros adequados para a prática de
transmissão de conhecimentos. No Brasil, o livro didático é controlado pelo
Estado através da legislação desde 1938, pelo Decreto n. 8.469.
Não obstante os livros tem mudado no século atual, assim estes
instrumentos didáticos só podem ser adotados com a autorização do Ministério
da Educação. Ou seja, o livro deve cumprir o papel de estimulador da
cidadania, produzindo efeito contrário a todo e qualquer tipo de preconceito e
discriminação dentro ou fora da escola com se tem registro de imagens de
livros didáticos dos anos 1940 (BITTENCOURT, 1993) onde o índio era visto
como passivo , inferior , Por sua vez os negros eram apresentados sempre em
trabalhos “pesados” no campo, disseminados a indicar dificuldades na
aprendizagem quando as pesquisas dos anos 1940 e 1950 já mostravam
visões, se bem que isoladas ideologicamente, de grandes destaques na
sociedade brasileira quer seja na arte, no teatro, nas grandes obras, na
literatura, e outros campos (NASCIMENTO, 2017).
Isto quer dizer que, está presente na maioria dos livros didáticos, formas
de discriminação ao negro, além da presença de estereótipos, que equivalem a
uma espécie de rótulo utilizado para qualificar de maneira conveniente grupos
étnicos, raciais ou, até mesmo, sexos diferentes, estimulando preconceitos,
produzindo assim influências negativas, baixa autoestima às pessoas
pertencentes ao grupo do qual foram associadas tais "características
distorcidas". Por ser o principal portador de conhecimentos básicos das
variadas disciplinas que compõem o currículo dentro das escolas, o livro
didático torna-se um dos recursos mais usados em sala de aula, e um
instrumento pedagógico bastante difundido, por isso facilita à ação da classe
dominante de registrar como quer e como lhe convém a imagem do negro na
sociedade brasileira.
Caberá ao professor ter a preocupação com a forma pela qual o
conteúdo histórico é exposto nos livros didáticos, na medida em que possam
contribuir para combater as abordagens incompletas e estereotipadas das
imagens dos afrodescendentes. A Lei n. 10.639/2003 versa sobre a inserção
do estudo da História da África e cultura afro-brasileira e as resistências que
percebemos em nossa prática, na abordagem sobre o que se refere ao
continente. Ora por estranheza, desconhecimento e discriminação, em sala de
aula observa-se uma recusa constante, uma negação por este conteúdo e esse
diagnóstico é visível, vindo de professores ou estudantes.
O conteúdo exige que o professor tenha conhecimento e formação
específica, o que ainda não observamos na prática essa realidade. Na prática,
a discriminação racial é retratada nos conteúdos que são abordados nos livros
didáticos, a exemplo do que apresentamos com a série História: sociedade &
cidadania. A série se atém ao passado escravocrata e apenas aborda muito
brevemente alguns aspectos e heranças da cultura afro-brasileira. Neste
contexto, questões religiosas são deixadas de lado e o candomblé, sequer é
mencionado nos livros.

Em geral, em nossas escolas os conteúdos de história


brasileira contam apenas uma versão dos fatos históricos,
pautada numa visão eurocentrista da descoberta de nosso país
e do desenrolar da economia daquela época, apresentando a
história do negro apenas por meio do negro escravo, do tráfico
negreiro, um pouco das senzalas e muito pouco ou quase nada
do modo de vida e da ascendência africana (COUTINHO et al,
2008, p. 76).

É preciso entender que a história dos afrodescendentes vai além de um


passado escravocrata. É preciso que se apresente em temas e textos, o
protagonismo, valorizando aspectos históricos, culturais, religiosos,
econômicos, sociais, intelectuais. E isso ainda está muito aquém do ideal.
Primeiramente, é necessário que os profissionais da educação superem o
racismo e o preconceito para abordarem o tema da religiosidade afro-brasileira,
visto que ainda se percebe no dia a dia a permanência de discursos
discriminatórios que foram perpassados ao longo de nossa história cristã.
Essa característica faz com que muitos da área da educação ainda
considerem a religião africana uma prática demoníaca e profana,
desconsiderando o seu verdadeiro valor de relações de permanências,
resistências, mudanças, históricas. A implementação da lei teve seu fator
positivo, pois despertou em nós a importância de se levar para sala de aula
conteúdos não abordados. Também detectou a dificuldade dos professores
para abordar o tema e a necessidade de investimentos na formação desses
profissionais.

Considerações Finais

As religiões de matriz africana foram incorporadas a cultura brasileira


desde há muito, quando os primeiros escravizados desembarcaram no país e
encontraram em sua religiosidade uma forma de preservar suas tradições,
idiomas, conhecimentos e valores trazidos da África. E assim como tudo que
fazia parte deste universo, tais religiões, apesar de sua influência e importância
na construção da cultura nacional, também foram perseguidas e, em
determinados momentos históricos, até proibidas. Atualmente, os ataques mais
expressivos às religiões de matriz africana vêm das chamadas religiões
“neopentecostais”, que comumente as rotulam de “culto aos demônios”,
“crendices” e “feitiçarias”.
Paralelo a esse debate, também analisamos a lei n. 10.639/2003, que
versa sobre a inserção do estudo da História da África e Cultura Afro-brasileira
e as resistências que foram percebidas em nossa prática, na abordagem sobre
o que se refere ao continente. Ora por estranheza, desconhecimento e
discriminação, em sala de aula observou-se uma recusa constante, uma
negação por esse conteúdo e esse diagnóstico foi visível, vindo muito mais dos
professores do que os estudantes.
Toda essa ignorância com relação a essas culturas gera um ambiente
propício para intolerância, proporcionando sofrimento aos praticantes e a todos
aqueles/as que fazem parte da população negra, que tem o seu direito de
pertença e identidade racial muitas vezes negado em função do racismo.

Em meio a tamanho projeto de dominação orquestrado pelas


elites econômicas, e amparado por um grupo de poder
retrógrado e conservador representado na figura do então
presidente Jair Bolsonaro e sua família envolvida com milícias
(sendo colocada na mídia como “familícia”, é imprescindível
construirmos coletivamente o nosso projeto de fazer educação.
Por uma educação pública, gratuita e de qualidade (SOUZA;
PEREIRA, 2020, p. 4).

Espera-se que a leitura deste artigo seja útil e ajudado os leitores a


perceber a mistura de etnias existente no Brasil e que a maioria das crenças
são frutos dessa mistura. Que possam reconhecer e valorizar a diversidade
humana, partindo de um processo de conhecimento e respeito de nossas
identidades culturais, com o intuito de resgatar e fomentar atitudes individuais e
coletivas contra o preconceito e a favor do respeito às diferenças.

Referências Bibliográficas

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112. Editora UFPR. Curitiba, 2006.
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Fortaleza, v. 2, n. 2, p. 1-18, 2020. Disponível em:
https://revistas.uece.br/index.php/revpemo/article/view/3755. Acesso em: 15 de
set. de 2020.

OS QUADRINHOS COMO FERRAMENTA PARA O ENSINO


DE HISTÓRIA E CULTURA AFRICANA E AFRO-
BRASILEIRA: Uma análise da obra de Marcelo D’Salete

Edmilson Manoel Izidoro Lira da Silva32


Izaac Miqueias Viana 33
Jaelson Gomes de Andrade Pereira34

32
Graduado em História do Centro de Ensino Superior de Arcoverde – CESA. Email:
[email protected]
33
Graduado em História do Centro de Ensino Superior de Arcoverde – CESA. Email:
[email protected]
34
Mestre em Culturas Africanas, da Diáspora e dos Povos Indígenas – UPE. Email:
[email protected]
1. INTRODUÇÃO

Refletir sobre o ensino de história é antes de tudo pensar as


possibilidades metodológicas para seu processo de ensino-aprendizagem, e
nessa perspectiva ferramentas como as HQs tornam-se fundamentais, haja
vista sua dinâmica, muitas vezes traduzindo conteúdos históricos de maneira
lúdica, acessível e facilitadora da compreensão de seus leitores, em primeira
instancia e considerados aqui, os estudantes da educação básica.
Nessa vereda procuramos pensar o quanto os quadrinhos podem
colaborar para a efetivação da Lei 10639/03, através de obras de artistas
africanos, afro-brasileiros que em suas criações atendem o que orienta a
legislação. Entre eles as HQs de Marcelo de D’Salete, artista brasileiro
destaque na produção de histórias em quadrinho críticos-histórico-sociais.
Nosso objetivo geral com esse trabalho é apresentar os quadrinhos
como possibilidade metodológica para o ensino de história e para efetivação da
Lei 10.639/03 a partir da obra de Marcelo D’Salete. Para isso num primeiro
momento buscamos analisar as HQs como ferramenta metodológica para o
ensino de história, ao passo em que refletimos estes para o que orienta a Lei
10639/03. Apresentamos um pouco de quem é, e qual é a obra de D’Salete,
para analisamos o quanto essas HQs podem colabora para o ensino de história
e cultural africana e afro-brasileira.
Fizemos uso da analise de conteúdo, na perspectiva de Bardin, quando
ela propõem que “[...] a análise de conteúdo, enquanto método, como um
conjunto de técnicas de análise das comunicações que utiliza procedimentos
sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens.“ (BARDIN,
2011, p229), além de um considerável aparato bibliográfico a luz de autores e
autoras que discutem a a temática como CARVALHO (2006), BITTENCOURT
(2011), SANTOS e VERGUEIRO (2012), entre outros.
O texto está orientado em três seções onde no primeiro momento
tratamos dos quadrinhos para o ensino de história, sua trajetória critica e
aceitação enquanto possibilidade metodológica. Bem como da sua relevância
para o ensino de história e cultural africana e afro-brasileira na leitura da Lei
10639/03. Na segunda parte apresentamos Marcelo D’Salete pessoa e obra, a
riqueza e temática de seus traços nas HQs. Para na última seção cruzamos o
que produziu D’Salete em duas de suas principais obras, “Cumbe” e “Angola
Janga” para a representatividade histórica afro-brasileira.

2. OS QUADRINHOS COMO METODOLOGIA DO ENSINO


DE HISTÓRIA
Com essa era tecnológica, o conhecimento e a informação estão cada
vez mais acessíveis, o papel do docente enquanto mediador desses
conhecimentos e informações fica cada vez mais determinado. O quadro e o
livro didático não dão mais conta da demanda e outros mecanismos precisam
ser pensado e tornassem ferramentas para o ensino de história.
Nesse contexto pensamos os quadrinhos, considerando que estes não
foram/são devidamente apreciados e ou utilizados nos na pratica docente em
sala de aula. Pensando maneiras de tornar a aula mais dinâmica e atrativa
para os estudantes, os quadrinhos podem ser uma alternativa viável e atrativa
para o trato com essa nova geração de estudantes.
Como as historietas/quadrinhos estão presentes em nossas vidas, seja
em jornais, charges, e livros didáticos, paradidáticos e mesmo nas HQs. Elas
são de fácil acesso e podem contribuir com o processo de ensino-
aprendizagem, pois atraem os jovens de tal maneira, que abrem as portas do
desejo e gosto pela leitura, como afirma Roberto Santos apontando que as
HQs [...] Possibilitam entre outras coisas, o incentivo à leitura, o aprendizado
de línguas estrangeiras, a instigação ao debate e reflexão sobre determinado
tema, ou mesmo a realização de atividades lúdicas, como a dramatização a
partir de uma história em quadrinhos. (SANTOS, 2001 Apud VERGUEIRO,
2012 p. 84)
É importante destaca que apesar do quadrinho ser uma importante
ferramenta de ensino, e inclusive para o ensino de história, no Brasil houve um
tempo em que ele foi rejeitado por se caracterizar como cultural antipatriota, o
que dica evidenciado quando analisamos o trabalho do professor Djota
Carvalho (2006) sobre a relação histórica do quadrinho com a educação,
argumentou que:
Aqui no Brasil, já em 1928, surgiram as primeiras críticas
formais contra as historinhas: a Associação Brasileira de
Educadores (ABE) fez um protesto contra os quadrinhos,
porque eles “incutiam hábitos estrangeiros nas crianças”. Na
década seguinte, em 1939, diversos bispos reunidos na cidade
de São Carlos (SP) deram continuidade à xenofobia, propondo
até mesmo a censura aos quadrinhos, porque eles traziam
“temas estrangeiros prejudiciais às crianças. (CARVALHO,
2006, p. 32)
O autor evidencia a perseguição as HQs por parte dos governos, mas
também das instituições religiosas da época.Todavia, é importante destaca,
ainda apoiado na obra de Djota Carvalho, que em todo o território nacional,
artistas nativos já produziam tiras e charges, desde o final do século XIX.
(CARVALHO, 2006).
A insistência em perseguir as HQs não parou, por outro lado, se
intensificou ainda mais quando no ano de 1944 foi publicado um estudo pelo
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP)
em 3 edições, o estudo concluiu que os quadrinhos eram um objeto que
deixava as crianças com ‘’preguiça intelectual’’ pois viciavam as crianças e
jovens. Justificava-se que neles haviam poucas falas escritas e muitas
imagens. Essa publicação teve consequências catastróficas segundo Djota
Carvalho, pois na época pais e professores se juntaram para queimar histórias
em quadrinhos. (CARVALHO, 2006)
Essa visão equivocada das HQs como ferramentas pedagógicas,
somente mudaram quando da aprovação da LDB – Lei de Diretrizes e Bases
da Educação de 1996 (BRASIL, 1996) e dos PCNS – Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino de História, que incentivavam para temáticas
transversais, bem como do uso de recursos pedagógicos diversos. (BRASIL,
2000)
Nessa linha apresentamos alguns HQs que estão diretamente ligadas a
possibilidades para ensino de história como as de Marcelo D´Salete
apresentadas mais especificamente nesse texto. Maus35(2005) uma obra de Art
Spielgeman36, quadrinista americano, que narra a história de Vladek
Spielgeman pai de Art, que relata ao seu filho sua vida em plena 2ª Guerra
mundial, chegando em Auschwitz. Na HQ os judeus são ratos e os alemães
gatos.
Outra HQ no contexto da 2º Guerra é uma Coreana chamada de
“Grama”, com autoria de Keum Suk Gendry-Kim37, narrando a vida de Ok-Sun
Lee, uma sul Coreana que foi feita escrava sexual durante a Guerra. Sendo
2020 indicada ao prêmio Eisner 38, a narrativa se desenvolve na infância de Ok-
Sun, é narrada pela mesma contando que seus pais a vendem para trabalhar,
seus patrões a levam para o exército Japonês, e lá é feita de mulher de
conforto39.
Essas são exemplos das inúmeras possibilidades de HQs de base
históricas ou ficcionais que podem ser utilizadas para o trabalho com o ensino
de história, cabendo somente ao professor analisar e construir as
transposições didáticas necessárias. Segundo Marco Túlio Vilela o uso das
HQs pode ser feito de diferentes maneiras, podendo ajudar no entendimento
histórico, partindo da análise de aspectos da vida social onde ele está inserido,

35
Significa rato em alemão, os nazistas em suas propagandas durante a segunda guerra
mundial associavam muito os Judeus a ratos, pois para os nazistas os judeus eram como uma
praga de ratos, que se infiltraram na sociedade alemã e só trouxeram desgraça, por isso
deveriam ser exterminados.
36
Art Spielgeman é autor de histórias em quadrinhos norte-americano, nascido na Suécia,
ganhou fama produzindo charges para jornais.
37
Autora de quadrinhos sul-coreanos, estudou pintura em universidades francesas, suas obras
tem um caráter calcado na realidade.
38
Prêmio de quadrinhos mais aclamado dos Estados Unidos. Ganhou esse nome em
homenagem a um grande quadrinista estadunidense conhecido como Will Eisner. O prêmio é
concorrido em várias categorias. O prêmio para os quadrinhos tem a mesma relevância que o
Oscar para o cinema.
39
Se designa as mulheres que durante a segunda guerra mundial foram feitas de escravas
sexuais pelo exército japonês.
podendo fornecer uma visão sobre temas e épocas abordadas na banda
desenhada. (VILELA, 2004 Apud VERGUEIRO, 2012).

2.1. OS QUADRINHOS E A LEI 11.645/08

A lei 11.645/08 uma atualização da 10.639/03 põe em evidência algo


que foi e ainda é muito negligenciada, a história e cultura afro-brasileira,
africana e dos povos indígenas. O povo africano, indígena e afro-brasileiro em
toda sua pluralidade, principalmente religiosa, foram sempre negligenciados,
demonizados, deixado a margem pela sociedade e pela história. Essa leis
dispõem sobre a obrigatoriedade da educação básica, da escola, de trabalhar a
história e cultural desses povos, em todos os componente curriculares, porem
evidenciando Literatura, Artes e História.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE 54% da
população brasileira é negra, um número que alerta ainda mais para a
importância da representatividade, de que suas histórias não podem ser
negligenciadas. Mas colocadas como parte fundamental da formação do Brasil.
Nessa linha pensamos o uso dos quadrinhos em sala de aula,
considerando esse uma ferramenta relevante para a propagação e afirmação
da cultura e história afro-brasileira, africana e dos povos indígenas, muitos
artistas trabalham essas temáticas, seja com base na realidade ou ficcional, e
muitos usam de pesquisas científicas para produzi-las, fundamentando o que
constroem e garantido a qualidade de suas HQs. Além dos quadrinistas que
falam sobre África, porem de fora, precisamos apresentar alguns autores
africanos, de do seu lugar de falar apresentam as histórias do continente, dos
seus países, com maior qualidade.
Nesse rol de artistas, podemos citar Marguerite Abouet 40 (1971) uma
escritora e roteirista de quadrinhos da Costa do Marfim, que já ganhou o
Angoulême41. Suas obras retratam situações cotidianas, como gravidez e
infância. Outro é Anton Kannemeyer 42(1967) um artista de quadrinhos sul
africano, com uma peculiaridade, ele se apropria de velhos estereótipos dos
negros nos quadrinhos e os subverte. Citamos ainda Didier Kassai 43, nascido
em 1974 em Sibut (República Centro-Africana), autor de quadrinhos, e
cartunista. Já expos suas obras em países como Estados Unidos, Japão.

40
Você pode saber mais sobre a autora e suas obras no seguinte link:
https://www.lpm.com.br/site/default.asp?
TroncoID=805134&SecaoID=948848&SubsecaoID=0&Template=../livros/
layout_autor.asp&AutorID=845093
41
Uma das mais importantes premiações europeias de quadrinhos, ocorre na cidade de mesmo
nome na França, o prêmio tem várias categorias e desde 1972 o prêmio está na ativa.
42
Você pode saber mais sobre o autor e suas obras no seguinte link:
https://www.artprintsa.com/anton-kannemeyer.html
43
Você pode saber mais sobre o autor e suas obras no seguinte link: https://www.la-boite-a-
bulles.com/profilId/928
Vencedor do Angoulême em 2006. A maioria de suas obras retrata o continente
africano contemporâneo.
Uma contraposição importante para combater estereótipos presentes no
imaginário popular, que retratavam o negro com lábios grandes, sem saber
falar de acordo com a norma culta. Artistas como Hergé 44, na sua história de
Tintim45 no Congo.
Podemos destacar ainda outros trabalhos que abordam a temática afro,
como a obra dos franceses Sybille Titeux de La Croix 46 e Amazing Ameziane47.
Com uma biografia em quadrinhos sobre Angela Davis 48, chamada de “Miss
Davis”, contam a história da militante afro-americana da infância até sua saída
da prisão em 1972.
Os trabalhos de André Diniz49, como “O Quilombo Orum Aiê”, que narra
uma história sobre um menino escravizado, chamado Capivara, que imaginava
a existência de um quilombo dos sonhos, onde tudo era perfeito, e, após uma
revolta dos escravizados em Salvador, resolve ir em busca do tal quilombo
imaginário. Ou ainda a obra “Carolina50”, sobre a escritora Carolina Maria de
Jesus, dos autores João Pinheiro51 e Sirlene Barbosa. 52
Já com a temática indígena brasileira, podemos destacar, dentre outros,
o autor de quadrinhos, historiador e antropólogo brasileiro, André Toral 53. Em
suas obras mostra o indígena em seus primeiros contatos com a colonização,
retratando seu cotidiano e vida antes e durante o período colonial.
44
Autor de quadrinhos Belga, conhecido por criar as aventuras de Tintim. Você pode saber
mais sobre o autor e suas obras no seguinte link:
https://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=02240
45
Personagem mais notório de Hergé, é um repórter fictício, de espirito curioso e aventureiro,
que protagoniza as aventura de Tintim viajando pelo mundo.
46
Autora Francesa, nascida em 1971, se formou na Escola Nacional de Artes Decorativas,
onde estudou desenho, escultura, fotografia, vídeo e até gravura. Apaixonada por literatura,
escrever é sua principal atividade. Você pode encontrar a obra em: https://amzn.to/3s6pgXL
47
É escritor, ilustrador, diretor artístico e professor de mangá, atualmente divide seu tempo
entre seus roteiros de cinema e de quadrinhos. Você pode encontrar a obra em:
https://amzn.to/3s6pgXL
48
Angela Yvonne Davis é uma professora e filósofa estadunidense, que alcançou notoriedade
mundial na década de 1970 como integrante do Partido Comunista dos Estados Unidos, dos
Panteras Negras, por sua militância pelos direitos das mulheres e contra a discriminação social
e racial nos Estados Unidos. Você pode encontrar suas obras em: https://amzn.to/3q6HpCL
49
É roteirista e ilustrador de histórias em quadrinhos brasileiro, com mais de 30 títulos de sua
autoria. Já recebeu 19 prêmios, entre eles três troféus HQ Mix de melhor roteirista. A algumas
obras suas foram selecionados pelo PNBE – Programa Nacional Biblioteca na Escola e
distribuídos para todas as bibliotecas de escolas públicas do Brasil.
50
É uma biografia em quadrinhos, de autoria de João Pinheiro e Sirlene Barbosa. Que conta a
história de Carolina Maria de Jesus. Negra, pobre, moradora da favela do Canindé, zona norte
de São Paulo. O livro narra sua infância pobre em Minas Gerais, sua vida sofrida em São
Paulo, a sua fama, as ilusões, as decepções e o esquecimento. É possível adquirir a obra pelo
link: https://amzn.to/3oDmPda
51
Você pode saber mais sobre o autor no seguinte link: https://veneta.com.br/autores/joao-
pinheiro/
52
Você pode saber mais sobre a autora no seguinte link:https://veneta.com.br/autores/sirlene-
barbosa/
53
Você pode saber mais sobre o autor e suas obras no seguinte site:
https://veneta.com.br/autores/andre-toral/
Percebemos a partir desses autores e obras, que é possível o uso das
HQs como colaboradora para efetivação da Lei 11.645/08, principalmente
quando pensamos os jovens e as crianças que demonstram mais apreço e
vislumbre diante de uma banda desenhada.

3. Os traços de Salete
Marcelo D´Salete, nasceu em 1979, na cidade de São Paulo, é autor de
histórias em quadrinhos e professor, é técnico em designe gráfico, graduado, e
mestre em artes plásticas. Quando na infância, influenciado por seu irmão, se
apaixonou pelos quadrinhos, lia HQs da turma da Mônica e de super heróis
estadunidenses, posteriormente, no curso de designe gráfico conheceu outras
narrativas e tipos de gibis. Conforme o próprio autor, sempre pensou, em trazer
narrativas negras para o mercado de quadrinhos brasileiros, logo, várias de
suas obras trazem, a ótica e perspectiva dos negros e suas histórias diante de
tanto preconceito e negligência que essas perspectivas sofreram e sofrem.
(D’Salete, 2020)
Entre suas obras destacamos “Encruzilhada” publicada pela editora
Leya em 2011, e republicada em 2016 pela editora Veneta, nela há uma
composição de vários contos em forma de quadrinhos, a vida de jovens negros
nas grandes cidades brasileiras, a violência, discriminação e preconceitos
sofridos pelos mesmos. Outra obra importante é “Angola Janga” (2017)
também pela editora Veneta. Uma obra que demandou 11 anos de pesquisa do
autor. Angola Janga ou pequena Angola, nos remete a Serra da Barriga, hoje
pertencente a Alagoas, no período colonial onde se localizava o Quilombo dos
Palmares.
Nessa obra ele faz um apanhado histórico e transforma sua investigação
em uma novela gráfica, com vários personagens de Palmares, como Zumbi,
Ganga Zumba, Soares, Domingos Jorge Velho. A obra foi agraciada com os
prêmios: Grampo de Ouro 2018, troféu HQ MIX 2018, 60º Prêmio Jabuti e por
fim o prêmio Rudolph Dirks Award 2019. E foi publicada em outros países,
como França, Estados Unidos e Espanha.
Apontamos ainda a HQ “Cumbe”, que nos transporta para a era colonial
e o cenário escravagista. A edição da Veneta em 2014, conta causos diferentes
em cada capitulo, são mostrados alguns episódios de luta e resistência negra
contra o trabalho forçado. Nela, como em Angola Janga, quem ganha voz é o
escravizado, e diferentemente de outras obras que recontam a história dos
quilombos. Construindo uma ótica histórica onde o escravizado é colocado de
maneira humanizada, como pessoas que amam, choram e socializam,
quebrando o paradigma da escravização onde somente eram visto, e
colocados historicamente, como animais para serviço braçal, objetos de uso
descartável.
Marcelo, por ser negro, viu diversas cenas, como também sofreu
racismo, o seu contato com a cultura negra se dá na adolescência, entre as
décadas de 1980 e 1990, através do hip-hop, no entanto nos revelou, que um
fato crucial na sua tomada de consciência política a respeito de sua negritude,
e mais ainda do seu papel enquanto preto nesta sociedade foi seu ingresso em
um curso pré-vestibular, do núcleo de Consciência Negra, da universidade
Federal de São Paulo (USP), local considerado como seu embrião na vida
acadêmica. (D’Salete, 2020)
Outro fator relevante, não só para o Brasil, mas em particular na vida do
quadrinista, foi a criação do museu Afro-brasileiro, na cidade de São Paulo, em
2004, local onde existe uma grande quantidade de obras, de vários artistas e
de variadas épocas, com o foco na diáspora negra, as quais o autor passou a
ter mais conhecimento e contato com sua ancestralidade.
D’Salete vê as HQs como uma ferramenta importantíssima para o
ensino, o autor ressalta que o formato dos quadrinhos em relação aos métodos
de educação tradicionais, possibilita o despertar da curiosidade, e assim,
instiga os alunos para um mergulho mais profundo. Para Marcelo, se o ensino
através dos quadrinhos é importante, para a temática Afro-brasileira ele é
fundamental, dada a ausência de uma narrativa do ponto de vista dos
escravizados nos livros didáticos comuns, enquanto que nos quadrinhos
brasileiros, existe um leque de obras que trabalham com essa possibilidade.
(D’Salete, 2020b54)

4. Os quadrinhos de Marcelo D’Salete para o ensino da


História Afro-brasileira

Considerar a dimensão da história e cultura afro-brasileira é colocar


além da perspectiva dos conteúdos sobre, mas criar espaços para construção
de representatividade, de pertença histórica, nessa linha a ferramenta que se
constitui com as HQs é solida, e as obras de Marcelo D’Salete aparecem como
alternativa de relevante importância ao que se propõem a Lei 10639/03.
Marcelo D´Salete, em suas obras coloca o negro como protagonista e
não como mero coadjuvante de sua própria história. Nas HQs como “Cumbe” e
“Angola Janga”, são mostrados o começo e a resistência dos escravizados no
período colonial, principalmente o que diz respeito às vivências nos engenhos e
quilombos. A mesmo tempo constrói sobre a atualidade dos pretos nas grandes
cidades, mostrando que sua luta não acabou com a abolição, que a
necessidade de batalhar por respeito e dignidade para o povo preto se
perpetua.
Em Angola Janga apresenta uma mescla de documentos
historiográficos, mapas com uma pitada de ficção. Embora não seja historiador,
nos apresenta uma narrativa totalmente diferente do que é tratado por outros
54
Conversa aberta com Marcelo D'Salete, Youtube, Out. 2020. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=cxrt3Uepr5g, acesso em: 16 Dezembro 2020.
quadrinhos da mesma temática, ou em filmes sobre Palmares, uma visão de
pessoas na condição de escravizado somente. Como podemos verificar no
trecho:
Negro de singular valor, grande animo e constância rara; este é
o espectador dos mais, porque a sua indústria, juízo e fortaleza
anos nossos serve de embaraço, aos seus de exemplo.
(Observação sobre Zumbi em Relação das guerras feitas aos
Palmares de Pernambuco no tempo do Governador D. Pedro
de Almeida, de 1675 a 1678)
Um dos fatores da resistência palmarina era a “pratica militar,
aguerrida na disciplina do se capitão e general Zumbi, que os
fez destríssimos no uso de todas as armas, de que têm muitas
quantidades, assim de fogo, como de espadas, lanças e
flechas”.( Documento atribuído a João Fernandes Vieira em
1677 e citado por Décio Freitas em Palmares – a guerra dos
escravos) (D’SALETE, 2017, p. 108)
Em vários espaços da obra de D’Salete percebemos a preocupação do
autor com a questão dos dados históricos corretos e embasado, transformando
o que se propõem em parte como ficção em ferramenta fundamental para o
ensino de história afro-brasileira.
Nessa obra também nos deparamos com um mapa de estimativas, que
destaca os locais de embarque e desembarque de escravizados africanos,
entre os anos de 1514 e 1866; e nos quadros de estimativas do número destes
escravizados, a partir de cada local de embarque e desembarque 55.
(D’SALETE, 2017, Pág. 427)

55
Banco de Dados do Tráfico de Escravos Transatlântico (Trans-Atlantic Slave Trade Database
– TSTD), disponível em http://www.slavevoyages.org/ Acesso em 20 de Novembro de 2021.
Percebemos a riqueza apresenta por a HQ do autor, que além dos
diálogos referentes a história afro-brasileira especifica ainda nos oferece
alternativas informacionais como infográficos, mapas, tabelas entre outros, o
que facilita a aprendizagem sobre determinada temática o que corrobora com o
apontado por Circe Bittencourt quando postula que
“cabe ao professor ensinar o aluno a levantar problemas e a
reintegrá-los num conjunto mais vasto de outros problemas,
procurando transformar, em cada aula de História, temas em
problemáticas. Ensinar História passa a ser, então, dar
condições para que o aluno possa participar do processo do
fazer, do construir a História. O aluno deve entender que o
conhecimento histórico não é adquirido como um dom –
comumente ouvimos os alunos afirmarem: ‘eu não dou para
aprender História’ -, nem, mesmo como uma mercadoria que
se comprar bem ou mal” (BITTENCOURT, 2011 p. 57).

O conjunto pesando de informações, orientadas por um professor


preparado para aquela intervenção se torna fundamental para o processo de
aprendizagem do estudante na disciplina de história, e principalmente sobre a
africana e afro-brasileira. Alguns diálogos de Angola Janga e Cumbe ilustram o
que apresentamos aqui:

O dialogo construído, bem como os traços do autor promovem uma leitura de


representatividade a história do povo negro, especificamente a história do Quilombo
dos Palmares. Como confirma Barbosa (2009):

Angola Janga – Marcelo D’Salete. 2017, p. 205


O autor dos quadrinhos – principalmente aquele que trabalha com os
chamados quadrinhos históricos – remete o leitor a documentos que
são tidos como verdadeiros, por uma visão subjetiva, que é aquela
dada pelo artista; dessa forma, ele constrói a cada momento uma
nova história, com um olhar cotidiano, influenciado pelos novos
estereótipos ou por novos ícones da cultura de massa. (Barbosa,
2009, p.106)

No quadrinho Cumbe, vemos interpretação de D’Salete, tanto na parte


da narração visual, quanto na escrita. A narrativa aborda o período colonial e a
resistência negra contra a escravidão no Brasil, porém em sua fase inicial,
antes de Palmares, com as primeiras fugas e a formação dos primeiros
mocambos. O livro é composto por 4 capítulos (Calunga, Sumidouro, Cumbe e
Malungo). Destacamos aqui alguns trechos:

Cumbe - D’SALETE, 2017, p. 124

Diálogo entre Ganzo e um de seus guerreiros, enquanto observavam o


ataque sofrido por um grupo de escravizados fugidos. A imagem atrelada a
informa histórica constrói no leitor além da consciência da história de
resistência dos povos africanos trazidos para o Brasil na condição de cativos,
desmistificando a ideia da conformidade com a escravização estabelecida por a
historiografia tradicional, mas também, quando coloca guerreiros, heróis,
nomes, cria a possibilidade, pela representatividade, do nascimento de
imaginários positivos, principalmente para o leitor criança, o estudante na sala
de aula. Barbosa nos explica que uma HQ mesmo ficcional consegue construir
o sentimento do fato histórico por o conjunto de ferramentas presentes nas
tiras, afirma que “em um determinado momento histórico, a ficção histórica
também pode nos mostrar muito mais do sentimento de um grupo ou grupos do
que o registro de um chamado ‘documento oficial’” (Barbosa, 2009, p.107).
As obras de D’Salete são complementares ou respostas positivas ao que
orienta a Lei 10639/03, seu uso consciente em sala de aula colabora para
efetivação da lei, evidente que com o devido cuidado, próprio do educador, em
analisar os textos previamente e construir as pontes, as transposições
necessárias para que o conhecimento chegue aos estudante de maneira
efetiva, como orienta SANTOS e VERGUEIRO (2012) o uso dos quadrinhos
como material didático nas aulas, requer cuidado. Ao usá-los de forma
indiscriminada, é bom lembrar que os quadrinhos são feitos para públicos
distintos (infantil, adolescente, adulto). Sendo assim é preciso que professores
indiquem e usem quadrinhos de acordo com a faixa etária da turma, portanto
fazendo uma aula mais dinâmica e que aumente o interesse dos estudantes.

Considerações Finais
Partindo do exposto nessa pesquisa e respondendo aos nossos
objetivos percebemos num primeiro momento o quanto as HQs podem ser
utilizadas como ferramentas para o ensino de história e que essas se
constituem como possibilitadoras de uma melhor compreensão dos conteúdos
históricos, haja vista, sua dinâmica imagem, texto, ficção.
Percebemos também que para o atendimento do que orienta a lei
10.639/03 os quadrinhos se tornam alternativa de grande valia. O que nos
remete a obra de Marcelo D’Salete que traz em suas criações elementos que
ajudam o leitor a imergir, na cultura africana e afro-brasileira. Que nas suas
HQs além das histórias incrementadas com ficção, possuem um glossário, para
explicação das palavras de origens africanas usadas nas obras. O autor
também denuncia todas as mazelas da sociedade. Não só do passado, mas do
presente em suas obras. Marcelo D´Salete tem um trabalho de grande
relevância e reconhecimento no mundo dos quadrinhos, e por tratar de pautas
como racismo, colonialismo e escravidão, suas obras devem serem usadas no
âmbito escolar, na aula de história afro-brasileira.
Por fim confirmamos nossos anseios, quando confirmamos o potencial
dos quadrinhos para o ensino de história, bem como da obra de D’Salete para
história e cultura africana e afro-brasileira em sala de aula.

Referências Bibliográficas
BARBOSA, Alexandre. História e Quadrinhos: a coexistência da ficção e da
realidade. In: VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo (Org.) Muito além dos
quadrinhos: análise e reflexões sobre a 9ª arte. São Paulo: Devir, 2009.
p.103-112.

BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70. 2011


BITTENCOURT, Circe. Ensino de história: fundamentos e métodos. 4. ed.
São Paulo: Cortez, 2011.

CARVALHO, Djota. A educação está no Gibi, Papirus, Campinas-SP, 2006.

CASTILHO, Suely Dulce de. A Representação do Negro na Literatura


Brasileira: Novas Perspectivas. Olhar de Professor, Ponta Grossa, v. 7, n. 1.
p. 103-113, 2004.

SALETE, Marcelo`D. Angola Janga, Veneta, São Paulo(SP), 2017.

________________. Cumbe, Veneta, São Paulo(SP), 2014.

________________. Encruzilhada, Veneta, São Paulo(SP), 2016.


________________. dsalete art br, 2020, Disponível em:
https://www.dsalete.art.br/bio.html . Acesso em 13/09/2020.

________________. “Não precisamos de heróis, precisamos de boas


histórias”, Brasil El País, 2019. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/02/cultura/1554208356_198750.html .
Acesso em 13/09/2020.

SANTOS, R. E. VERGUEIRO, W. Histórias em quadrinhos no processo de


aprendizado: da teoria à prática. EccoS, São Paulo, n. 27, p. 81-95. jan./abr.
2012.

O ENFOQUE DA MEMÓRIA E IDENTIDADE NO ENSINO DE


HISTÓRIA

Wellington Ricardo Felix dos Santos56


56
SANTOS. Wellington Ricardo F. dos. Mestrando do Programa de Mestrado Profissional em
Culturas Africanas, da Diáspora, e dos Povos Indígenas – PROCADI, pela Universidade de
Introdução

O ensino da História tem sofrido modificações ao longo das décadas,


nessa perspectiva, novos conceitos, foram sendo entendidos como de
fundamental importância para o entendimento da história, como: a memória
que é fundamental, para a concepção da identidade de um grupo social. Sendo
assim analisar como são percebidos esses conceitos por parte dos professores
do ensino fundamental é coerente, pois a oralidade que é um instrumento
utilizado pela memória está presente em vários momentos na sala de aula.
Nesse sentido, este estudo poderá contribuir para que os docentes de
História ampliem seus conhecimentos sobre memória e identidade,
possibilitando-lhes o domínio de tais conceitos. Outro ponto de destaque se
refere ao desenvolvimento em sala de aula do trabalho pedagógico associado
à memória social, que enriquecerá as aulas de História, possibilitando ao aluno
a oportunidade de se sentir parte do processo histórico, e não simplesmente
vê-la como algo construído pelos heróis que estão presentes nos livros
didáticos. Partindo dessa explanação, surge a indagação: Como os conceitos
memória e identidade são abordados no processo ensino aprendizagem na
disciplina de história na Escola? Uma vez que a História enquanto ciência e
disciplina escolar têm sofrido modificações ao longo das décadas, nessa
perspectiva, novos conceitos foram sendo entendidos como de fundamental
importância para o estudo da história e para o entendimento da sociedade
onde o aluno está inserido, percebendo que a história,

[...] em primeiro lugar não seria mais entendida como uma


“ciência do passado”, uma vez que, segundo Bloch, “passado
não é objeto de ciência”. Ao contrário, era no jogo entre a
importância do presente para a compreensão do passado e
vice-versa que a partida era, de fato jogada (BLOCH, 2001, p.
7).

Sendo assim a memória é uma categoria que auxilia no processo de


identidade e de saber de cada geração, pois:

Pernambuco – UPE / Campus Garanhuns – PE. E-mail: [email protected]. Orcid ID:


https://orcid.org/0000-0002-8948-0893. Contato: (87)99633-6733.
[...] a memória dos velhos pode ser trabalhada como um
mediador entre a nossa geração e as testemunhas do passado.
Ela é o intermediário informal da cultura, visto que existem
mediadores formalizados constituídos pelas instituições (a
escola, a igreja, o partido político etc.) e que existe a
transmissão de valores, de conteúdo, de atitudes, enfim, os
constituintes da cultura (BOSI, 2003, p. 15).

Discernindo sobre o tema abordado nota-se que o educador pode ser


auxiliado pelas experiências dos velhos (lembranças, contos e
parafraseamentos) para trabalhar com a história, não de uma forma
conteudista ou positivista, possibilitando assim um maior significado da história
local. Perfazendo com que o aluno passe a sentir-se parte integrante da
realidade vivenciada para o crescimento do processo histórico da sociedade a
qual ele está inserido, onde o mesmo perceba que o local interfere no processo
histórico da sociedade de um modo geral.
Através do objetivo geral busca analisar como os conceitos memória e
identidade são abordados no processo ensino aprendizagem na disciplina de
história com os alunos. Já nos objetivos específicos buscamos averiguar como
está sendo estudada a memória e a identidade no ensino de História; Verificar
como os docentes trabalham com questões relacionadas a memória e a
identidade; Investigar o conhecimento que o professor detém sobre a
importância da memória e da identidade no Ensino da História.
Uma vez que o desenvolvimento deste estudo será oportuno, visto que
os conceitos abordados, Memória e Identidade, estão intrinsecamente ligados e
analisados por acadêmicos em diversas universidades. Com este trabalho se
poderá questionar a importância do estudo da memória, no Ensino de História,
rompendo com a ideia conteudista da História.

[...] que em 1928 com a edição dos Annales, publicação que


daria origem a todo um processo de renovação na
historiografia francesa e que está na base do que hoje é
chamado de “História Nova", tratava-se de uma espécie de
guerra de “trincheiras” contra a história exclusivamente política
e militar; uma história até então segura e tranquila diante dos
eventos e da realidade que buscava anunciar (BLOCH, 2001,
p. 8).

Esse tipo de visão crítica – oposta aos modelos mais tradicionais de


historiografia, que acreditavam naquilo que Le Goff chamou de “imperialismo
dos documentos” – marcou Marc Bloch e toda a primeira geração dos Annales.
(BLOCH, 2001, p. 8-9)
Bem como elevar a autoestima dos alunos, já que estes poderão se
sentir agentes da história, visto que todos têm memória e que esta pode ser
ampliada, com a história contada pelos velhos que fazem parte do entorno
social que estes jovens estão inseridos e que a história “oficial” não valorizava,
por exemplo:

[...] os velhos, as mulheres, os negros, os trabalhadores


manuais, camada da população excluída da história ensinada
na escola, tomam a palavra. A história, que se apoia
unicamente em documentos oficiais, não pode dar conta das
paixões individuais que se escondem atrás dos episódios. A
literatura conhecia já esta prática pelo menos desde o
Romantismo: Victor Hugo faz surgir Notre Dame de Paris num
quadro popular medieval que a história oficial havia desprezado
[...] (BOSI, 2003, p. 15).

Esse estudo poderá contribuir para que os docentes de História ampliem


seus conhecimentos sobre memória e identidade, possibilitando-lhes o domínio
de tais conceitos, bem como vislumbrar uma pedagogia associada à memória
social que poderá ser trabalhada em sala de aula, para o enriquecimento das
aulas de história, além do aluno se sentir parte do processo histórico, não
vendo a história como sendo apenas construída pelos heróis que estão
presentes nos livros didáticos.
Além de corroborar para que os velhos sejam vistos como autores e/ou
protagonistas de uma sociedade mais historicamente formada, se
transformaram em agentes contribuidores da História do seu entorno social,
bem como elevar a sua importância para a educação na escola, onde seus
filhos e netos, são estudantes; ampliando, portanto a importância dos conceitos
memória e identidade. E a necessidade de um estudo que reflexione os
conceitos que a sociedade capitalista exclui das suas discussões,
demonstrando que o jovem e o novo são pautas permanentes nos discursos do
capital tem relevância no entender da relação entre os velhos e o discurso
imposto pelo capitalismo.

Diálogo no ensino sobre o contexto histórico


As concepções de ensino de História têm mudado devido ao modo de
vida da contemporaneidade, sendo necessário a compreensão do mundo em
que se vive, não ensinando uma história “positivista”, cheia de dados e datas,
que não é atrativa para o alunado que deverá apenas absorver o que o
professor diz, mas ensinar a fazer história. Sendo assim os Parâmetros
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, aponta que: [...] a produção
historiográfica, no momento busca estabelecer diálogos com o seu tempo,
reafirmando o diálogo que “toda história é filha do seu tempo” (BRASIL, 1997,
p.300)
Neste direcionamento, a produção neste campo tem sido renovada e se
revisa, na tentativa de encontrar novas abordagens, novos rumos e novos
problemas, portanto novos pontos para investigação. Este tema que até então
não era privilegiado pela historiografia tornou-se objetivo de reflexão dos
historiadores das demais ciências sociais, imprimindo mudanças na
compreensão do que seja história.
Assim, a introdução de estudos que buscam desvendar as múltiplas
relações dialógicas, incorporadas às obras humanas ampliando a oportunidade
dos alunos no contexto histórico complexo de se expandir em ressonância no
tempo, deixando-se escapar de explicações causais e simplistas, indo de
encontro à construção de olhares substâncias, recheados de referências
culturais e contextos históricos, investindo em estudos que abordam uma
concepção de tempo não linear, já que a busca dessa construção viabiliza
localizar as vozes que falam, orientando-se em fundamentações e contextos
que emergem de muitos recantos; de muitas gerações, que ressoam, ainda no
presente, já que é no presente que os alunos estão falando dialogando,
construindo uma nova obra.
Neste sentido o entendimento de mundo que o jovem necessita deverá
estar sendo trabalhado nos conteúdos e discursos que o professor aborda em
sala de aula para que o mesmo possa compreender as linguagens e formas de
expressões, que a sociedade lhe mostra ao longo do tempo.

Identidade social do educando na relação com a História


Na atualidade, a História tem contribuído para uma abordagem de certas
indagações sobre a realidade atual, que em outros momentos poderiam até
existir. Entretanto, não eram discutidos como hoje, refletindo sobre o
funcionamento da sociedade, na análise do tempo, da economia e da cultura.
Atualmente o ensino de História desempenha importante papel na identidade
dos educandos ao refletir sobre a atuação dos indivíduos nas relações de
grupo que vivem, que viviam seus antepassados e viverão seus descendentes.

Há uma inevitável necessidade de pensar, em nossos dias, a


própria condição da história, Isto implica em indagar a forma
pela qual ela estabelece e produz seus conceitos e,
simultaneamente, como trata e discute o evento. Inquere-se
como a história produz uma explicação e disciplina o
acontecimento. Em si, nossa atualidade vem atravessada por
um esgotamento e abandono de um conjunto de certezas e/ou
conceitos que, durante bom tempo, pautaram a história:
origem, unidade, finalidade, consciência, natureza humana,
totalização e outros mais. Logo, nesse “esgotamento surgiria
ou a anulação impreterível da história ou a necessidade
premente de pensar a sua formulação de modo que
provisoriedade, indeterminismo e diferença não constituam a
negação do conhecimento histórico (SCHIAVINATTO, 1993, p.
105).

Nas suas emoções e em suas participações no coletivo, valorizando


gerações do passado e do futuro Ricardo Oriá faz a seguinte afirmação:

A inovação do passado constitui uma das estratégias mais


comuns nas interpretações do presente. O que inspira tais
apelos não é apenas a divergência quanto ao que ocorreu no
passado e o que teria sido esse passado, mas também a
incerteza se o passado é de fato passado, morto e enterrado,
ou se persiste, mesmo que talvez sob outras formas
(BITTENCOURT, 2003, p. 28).

Então, o passado pode estar resistindo na identificação que cada aluno


tem ao refletir sobre esse passado e a participação de grupos que vivem em
outros estágios diferenciados de acordo com avanços tecnológicos que o
capitalismo pode influenciar nas transformações sociais apesar das
resistências que alguns grupos humanos persistem até os dias atuais.
A percepção do outro, hoje em dia, e do eu, está relacionada à
possibilidade de identificação das diferenças e das semelhanças, sendo
necessário entender e enfrentar a heterogeneidade e seus valores de
identidade, questionando estes valores. Portanto, têm que se tomar cuidado
para não criar uma barreira e preconceitos de dominação entre grupos sociais,
auxiliando na construção e valorização de ambos sem perda, e sim ganhos de
contatos e trocas de conhecimentos de grupos humanos que possam ter
singulares formas de analisar e entender o mundo, sem perder a identidade do
grupo à qual pertence cada ser humano.

A memória no ensino de História

É inegável o valor da memória para o entendimento da História nas


novas perspectivas do estudo enquanto ciência em construção, pois, “a
memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade,
individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos
indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia” (LE GOFF, 1990;
BITTENCOURT, 2003).
A preservação da memória histórica é um fenômeno que vem se
caracterizando neste final de século, com numerosas instituições e segmentos
sociais estão cada vez mais se preocupando com este campo de estudo. A
cada momento se ouve falar da criação de bancos de dados acerca deste
assunto como; criação de bancos de memória; programas de história oral;
elaboração de vídeos e documentários.
Apesar de falar que o Brasil é um país sem memória, já é possível
perceber que os livros didáticos estão dando um enfoque maior a este assunto,
como também, percebe-se um interesse crescente por parte do alunado que
tem o interesse de investigar o passado dos seus familiares mais idosos, não
só acerca da sua família, mas também em relação à cidade a qual se vive,
sendo trabalhado neste sentido a História de vida e a História local.
Não deixar de ser bem verdade que o tema da memória está em alta,
hoje mais que nunca, fala-se da memória da cidade, do bairro, da família,
sendo apoiado por forças políticas tendo reconhecimento público. Entre a
década de 70 e 80, foram percebidos movimentos sócias de caráter popular,
protagonizado por negros, mulheres, homossexuais, índios, que reivindicam o
direito à cidadania, sendo necessário fazer o resgate da memória desses
grupos que lutam pela afirmação da sua identidade étnico-cultural, que era
reprimida, sobretudo neste momento em que o pais estava passando por uma
repressão, devido ao Regime Militar, que foi instaurado em meados da década
de 60 e foi abolido em meados da década de 80.
É necessário discutir em sala de aula questões relacionadas com a
possibilidade de se trabalhar com bens culturais históricos no processo de
ensino e de aprendizagem, com fins de estimular, nos alunos, o senso de
preservação da memória social coletiva, como condições indispensáveis à
construção de uma nova cidadania e identidade nacional plural, considerando
que a História tem um papel fundamental nesse processo de construção do
entendimento acerca do referido assunto.

A visão dos professores de História na relação com a


memória e a identidade

O espaço de professores na sala de aula nos faz revelar “locus” de


excelência para o estudo de memória e identidade no ensino e aprendizagem.
Apontando a Memória, direta ou indireta como, questão trabalhada e que por
ventura é percebido nas entrelinhas da fala dos alunos adolescentes ou jovens,
em sala de aula de diferentes grupos, pois existe:

[...] uma memória estruturada com suas hierarquias e


classificações, uma memória também que, ao definir o que é
comum a um grupo e o que o diferencia dos outros. Neste
sentido os professores sentem na sala de aula o
distanciamento dos grupos que se identifica como os “iguais”
(POLLAK, 1989, p. 8-10).

O que muitas vezes, na contradição pode como decorreu neste trabalho,


revelar espaço novo ao processo de ensino, ser desafiador à prática do
professor como iremos perceber com a análise das entrevistas.
Com a construção da História e produção de novos contextos aos quais
os alunos estão inseridos, vai-se percebendo que a categoria Identidade ao
sugerir nessas vozes, que estão fincados nos lugares, pois segundo Bosi
(2001, p. 13), está interrelacionado à memória, está reforça identidade, pois a
identidade está relacionada na cultura a qual a memória também existe.
Todavia, o professor coloca em seus ensinamentos, conceitos que nos dão
margem a indagar o papel de mediador na construção e reflexão da memória e
identidade, isto é bem perceptível, mas pouco discernido entre os teóricos.
O professor por ser um mediador como trata Vygotsky (BITTENCORUT,
2003, p. 96), “no espaço de cultura é que ele encontra sentido para a
aprendizagem”. Observa-se que a problemática é bem complexa podendo o
docente e o discente, compreender mudanças e permanências, já que o
processo depende de cada ser que o recebe e pratica, a partir de sua cultura,
sem perder de vista memória locais ou distantes.
Percebendo não apenas os problemas políticos e sociais, mas também
problemas que ultrapassa estes poderes como a memória coletiva e individual
e a identidade, o professor se permite ampliar a dimensão de aprendizagem e
de ensino, até porque o professor aprende bem mais sobre a cultura do aluno.
Em relação à pergunta sobre a memória, que os alunos trazem da História.
O que se percebe sobre a vontade de conhecer está vinculada a História
que precede ao aluno. O ser humano por si já é um agente histórico além de
não podermos confundir memória histórica com a memória coletiva como
afirma Verdum (1994, p. 146): “[...] se, por memória histórica, entendermos a
sequência dos acontecimentos dos quais a história nacional conserva a
lembrança, não é ela, não são seus os quadros que representam o essencial
daquilo que chamamos memória coletiva”. Em outras palavras, as diferenças
fazem perceber que apesar das discussões teóricas que se multiplicam, pode-
se entender que falta maior aprofundamento teórico-prático.

Metodologia

O levantamento exploratório existentes nas pesquisas realizadas entre


os professores, pois através destes resultados poder-se-á realizar um estudo e
direcionar a formação conceitual necessária para que os objetivos deste estudo
sejam alcançados de forma linear e consensual, deixando em evidência a
necessidade ou não de transformações necessárias aos futuros planos
curriculares na disciplina História, está voltada a prática do conceito de
memória e identidade.
Tendo esta formulação conceitual, esta pesquisa fez uma abordagem se
utilizando de entrevista e questionário semiestruturado a 05 (cinco) docentes
de Escola pública da rede Estadual de Ensino, onde com o discernimento
relacionado a pesquisa objetivar a construção do perfil e analises dos conceitos
memória, identidade e Ensino de História.
O suporte teórico deu-se através de leituras acerca do assunto a ser
pesquisado, como também de fontes documentais oficiais e não-oficiais. Pôr a
pesquisa estar articulada a História Nova, a conceitos como a Memória e a
Identidade, ela é qualitativa, visto que:

[...] a história é uma arte, história é literatura. Frisa: a história é


uma ciência, mas uma ciência que tem como uma de suas
características, o que pode significar sua fraqueza, mas
também sua virtude, ser poética, pois não pode ser reduzida a
abstrações, a leis, a estruturas (BLOCH, 2001, p. 19).

É importante destacar que o processo quantitativo também faz parte


deste trabalho, pois mesmo com um número total de integrantes existentes no
ambiente da pesquisa, pôde-se identificar resultados contraditórios aos
condizentes a este tipo de investigação.
Esta pesquisa caracteriza-se dentro de uma abordagem qualitativa e
quantitativa, em que se trabalha a Metodologia Interativa de Oliveira (2008, p.
124) e que a define como sendo: “um processo hermenêutico-dialético que
facilita entender e interpretar a fala e depoimentos dos atores sociais em seu
contexto [...] em direção a uma visão sistêmica da temática em estudo”
Por se tratar de um processo dialético e sistêmico, se aplica a qualquer
área de conhecimento e pode ser trabalhada com os mais variados e
complexos temas de pesquisa.

Resultados e Discussão

Entre muitos aspectos que ocorreram no desenvolvimento da pesquisa


foram encontrados conflitos ideológicos, como também confrontos entre a
realidade e os conceitos existentes sobre o tema abordado.
No levantamento exploratório de campo ocorreram eventuais
acontecimentos, onde as indagações que persistiram em não serem
solucionadas demonstraram a cada momento uma maior preocupação sobre o
entendimento do professor(a) de História no que refere-se à Memória e
Identidade dos aspectos históricos no ensino da História.
O entendimento sobre o tema abordado demonstrou, em particular, a
cada situação no desenvolvimento das questões abertas que o público não
atingia o objetivo desta pesquisa, e que por mais fossem argumentados
sempre falhavam em discernir o significado e/ou valor do papel da Memória e
Identidade no espaço da sala de aula.
A estatística sobre a forma quantitativa que se apresentou no decorrer
da pesquisa encontraram-se a demonstração de individualismo, tal como o
corporativismo desenvolvendo-se de forma particular, mas que embora o tema
abordado seja memória e identidade, os respaldos deixados no levantamento
fazem introduzir uma linha de pensamento onde o papel quantitativo deve ser
aberto para outros trabalhos, pois a questão delimitada por alguns professores
trouxe à toma reflexões que de certa forma somente poderiam ser visíveis na
forma e no decorrer das particularidades de cada um, ou seja, há caso de
professores que demonstram uma maior base teórica, mas demonstram pouco
interesse na relação do conjunto das ações necessárias para encontrar
respostas da prática da memória e identidade no espaço da sala de aula.
É importante lembrar que cada situação, a partir dos dados descritos
trouxeram os resultados para assim identificar e relacionar as causas e efeitos
da aplicação ou não do tema memória e identidade no espaço de sala de aula.
Ressalta, que o processo para a integração entre a temática disciplinar está
voltada em transformar o processo de ensino objetivando a identidade do
indivíduo, embora que ainda exista nos professores que lecionam História uma
enorme contradição a este respeito.

Considerações Finais

O desenvolvimento para o processo de ensino pressupõe uma linha de


pensamento onde os conteúdos devem estar relacionados com a vida cotidiana
de cada um dos envolvidos no processo ensino aprendizagem, seja como
educador, ou seja como educando, mas o que se pode encontrar com o
levantamento exploratório sobre os objetivos desejados para este estudo são
as reflexões, ainda em crescimento filosófico de que os momentos de
transições existentes – a melhora da qualidade do ensino.
Especificamente este estudo demonstra que há dificuldade por parte dos
professores para trabalhar a memória e identidade como também a evolução
da praticidade relacionada à história de mundo e a de particularidades
existentes no processo de ensino de história, concluindo assim, que os
objetivos específicos previamente relacionados neste estudo ficam a margem
para que o processo de interação entre a História e os conceitos de memória e
identidade possam intervir na realidade social.
Além de estar objetivando e direcionando o universo acadêmico a
solução das questões no que refere-se a ciência e aos questionamentos
sociais que ainda encontram-se sem um discernimento coerente e coeso na
desenvoltura do ensino de história que contenham a necessidade da busca dos
conhecimentos sociais de cada educando, os conteúdos não aplicados a estes
não dão transparência por parte dos professores, que embora muito
preocupados com a necessidade de trabalhar com os seus alunos valores, não
conseguem a essência da memória e identidade conforme a qual é necessário
para o processo ensino e aprendizagem.
A objetividade dos resultados, como também o confronto entre teoria e
prática, no que se refere a prática dos conceitos de memória e identidade é
determinante ao processo da evolução do homem, entretanto os pressupostos
apresentados com o estudo pode-se dizer que a grande tarefa do professor
ainda está em proporcionar aos seus alunos a possibilidade de produzir
soluções para problemas, e os que foram resolvidos possam ecoar no lugar
onde estes vivem, passando o professor a ser mediador, entre o estudante e o
conhecimento, um grande problematizador do desafio intelectual, visto que a
ausência de situações percebidas pelos alunos pode ser também para
educadores, para melhorar as condições, na prática do ensino.
Tendo a consciência, de que os professores da Escola pesquisada
utilizam os conhecimentos culturais que os alunos trazem da sua realidade
vivida, nas suas aulas e em conversas durante a exposição de suas aulas, e
apesar que em alguns momentos do estudo interpessoal se nota esta
particularidade, alguns professores da escola não dominam os conceitos que
permeiam esse trabalho.
Concluindo, portanto, que existem professores na escola campo de
pesquisa, por mais tradicionais, na tentativa de lecionar História se
preocupando apenas com o fato, se dispõem sem notar de um verdadeiro
patrimônio material e imaterial. Mas em evidência demonstram uma falta de
didática em trabalhar os conceitos de memória e identidade. Relacionando os
dados e conceitos adquiridos até então, enquanto educadores bem formados e
conhecedores das novas práticas no Ensino de História poderiam, com o
material tradicional trabalhar e reelaborar o conhecimento histórico do seu
alunado.

Referências Bibliográficas

BITTENCOURT, Circe (Org.). O saber histórico na sala de aula. São Paulo:


Contexto, 2003.

BITTENCOURT, Circe (Org.). Ensino de História: fundamentos e métodos.


São Paulo, Cortez, 2003.

BLOCH, Marc. Apologia da história: ou o ofício de historiador. Trad. André


Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

BOSSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São


Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

BRASIL, Ministério da Educação e Desporto do. Parâmetros Curriculares


Nacionais: ensino médio. Secretaria de Educação Média e Tecnológica.
Brasília: MEC/SEF, 1997.

LE GOLF, Jacques. História e memória. Trad. Bernardo Leitão [et al].


Campinas-SP; Editora da Unicamp, 1990.

OLIVEIRA, Maria Marly de. Como fazer pesquisa qualitativa. 2. Ed


Petrópolis: Vozes, 2008.

POLLAK, Michael. Memórias, esquecimento, silêncio: Estudos históricos.


Rio de Janeiro. Vo. 2, n.3, 1989.

SCHIAVINATTO, Iara. Henri Berr: a história como vida e valor. IN REVISTA


BRASILEIRA DE HISTÓRIA, n. 25/26. São Paulo: Editora Marco Zero/ SCT –
CNPq – FINEP, setembro/92/agosto 1993.
VERDUM, Ricardo. Refletindo sobre a memória com Maurice Halbwachs.
Ciências Humanas em Revista, jul/dez, 1994.

A VIRTUALIDADE MUSEAL ATRELADA AO ENSINO DE


HISTÓRIA: PENSANDO OS POSSIVEIS USOS DO MUSEU
AFRO BRASIL
Alvanir Ivaneide Alves da Silva57
Augusto Cesar Acioly Paz Silva58

INTRODUÇÃO

Neste texto serão abordadas as concepções desenvolvidas a partir da


nossa pesquisa de Mestrado em História Social da Cultura Regional
vinculada a linha de Ensino de História, da Universidade Federal Rural de
Pernambuco (UFRPE), cuja investigação procura analisar o uso dos
museus virtuais como método ativo de aprendizagem, atrelado ao ensino de
História na educação básica, de maneira mais precisa nos anos finais do
ensino fundamental.
A História enquanto ciência e de maneira mais especifica na condição
de disciplina escolar, possui a partir das contribuições de metodologias ativas
possibilidades que colaboram de maneira importante no processo de

estimulo dentro do processo de disseminação do conhecimento histórico,


contribuindo assim no processo de formação social, cultural e histórica do
aluno. Assim sendo, segundo Gohn (2021) é possível realizar interligações
entre a sala de aula com ambientes não formais de ensino, possibilitando
conexões no processo de ensinar e aprender diante dos desafios sociais
existentes. Dessa forma, a produção de conhecimento ocorre através do
saber produzido por meio da vivência e ligação de tempos e espaços.
É possível desenvolver a educação por diferentes meios e
instituições, sendo assim, segundo Costa (2015), os espaços de
comunicação possibilitam uma ampliação dos saberes produzidos em sala,
pois com a incorporação das tecnologias digitais e das linguagens virtuais à
prática pedagógica, desencadeia um ambiente com metodologias ativas
capazes de relacionar espaços profissionais, culturais e educativos, a partir

57
Alvanir Ivaneide Alves da Silva. Licenciada em História e mestranda em história pela UFRPE.
E-mail: [email protected]
58
Augusto Cesar Acioly Paz Silva. Doutor em História pela UFPE e professor do Centro de
Ensino Superior de Arcoverde (AESA-CESA), professor permanente do Profhistória UFPE e do
Programa de Pós Graduação em História da UFRPE, no ProfHistória da UFPE e coordenador
do curso de História na AESA-CESA. E-mail: [email protected].
de contextos válidos de aprendizagem midiatizados pelo ciberespaço.
Assim sendo, dentre os espaços não formais de ensino é possível
destacar os museus como produtores de conhecimentos culturais e
patrimoniais, que contribuem significativamente para a aprendizagem
histórica, “assim, o papel social dos museus é definido, na atualidade, por
sua função educativa” (ABUD; SILVA; ALVES, 2010, p.127), e compreender
algumas questões relacionadas a esta dimensão, constitui-se assim, um dos
enfoques possíveis neste artigo, já que pensamos as mídias digitais como
auxiliadoras na produção do conhecimento.
Haja visto que a modalidade virtual dos museus os torna espaço de
mediação que podem ser acessados por meio da internet. A utilização
dessas plataformas de museus contribui significativamente na produção de
conhecimento e de aulas inovadoras, que segundo Schmidt (2014), ocorrem
a partir da interligação do uso das tecnologias digitais pelos espaços
educativos e pluriculturais.
Os museus virtuais segundo Henriques (2018), podem ser
representados em duas modalidades: uma seria um museu essencialmente
virtual existente apenas em rede, já a outra versão seria uma modalidade
complementar dos museus físicos, existindo tanto presencialmente quanto
virtualmente. Dessa forma, é possibilitado que o público acesse de qualquer
lugar e espaço, já que “o museu virtual é um verdadeiro laboratório de
experimentação que se manifesta especificamente na maneira como a
tecnologia determina a própria forma da experiência” (MUCHACHO, 2015, p.
1546).
Henriques (2018), também destaca que “o museu virtual é um
espaço virtual de mediação e de relação do patrimônio com o seu público.
[...] paralelo e complementar que privilegia a comunicação como forma de
envolver e dar a conhecer determinado patrimônio” (HENRIQUES, 2004, p.
67).
Com aulas utilizando metodologias ativas como a visitação a museus
virtuais que abordem a temática histórica que esteja trabalhando em classe,
o educador pode conseguir desenvolver aulas propositivas, utilizando o apoio
tecnológico para mediar diferentes espaços, ao mesmo tempo em que
desenvolve práticas pedagógicas mais diversificadas, estimuladas por trocas
de experiências de aprendizagens vivas e ativas.
Nesse contexto, nosso objetivo visamos caracterizar o uso dos
museus virtuais no ensino de História na educação básica, mais preciso em
anos finais do ensino fundamental, como mais uma ferramenta inovadora de
contribuição para a continuidade da compreensão histórica e cultural pelos
alunos. Além disso, pretendemos dar foco as tecnologias digitais como
espaços mediadores de aprendizagens.

Os museus virtuais, educação e tecnologia como


espaço para construção do saber

Segundo Araújo (2018), durante o século XXI discussões têm sido


tecidas diante da interrelação entre educação e tecnologia, tendo em vista
que o mundo globalizado tem se relacionado e desenvolvido a partir da
partilha de informações cada vez mais rápida. Sendo assim, essas ações
tecnológicas tornaram-se necessárias frente as novas condições de trabalho
que ao mundo tem apresentado, uma vez que inovações se ampliam e
disseminam ao longo do contexto temporal.
Além disso, se faz necessário salientar que a disponibilidade de
recursos tecnológicos digitais pode ser amplamente favorável ao
desenvolvimento da disciplina História no âmbito escolar, já que pode
desencadear potencialidades no processo do fazer e do ensinar História na
sala de aula.
Segundo Fochi (2015), as possibilidades de uso das tecnologias em
sala de aula estão diante de nós como uma demanda de nosso presente,
sendo necessário pensarmos e refletirmos a respeito. Pois, tal incorporação
sensibiliza tanto a cultura histórica como a cultura escolar, proporcionando
ampliações na oferta e partilha do conhecimento histórico ensinado na
educação básica.

Assim sendo, também torna o docente mais apto no uso das


tecnologias digitais de forma que as integre ao currículo e as aulas,
possibilitando um ambiente significativo para uma ampliação de abordagens
que resulte melhores feitos na aprendizagem dos alunos.
Dessa maneira, as mídias digitais possibilitam relacionar os
diferentes espaços produtores de saberes com uma prática pedagógica ativa
e construtiva, já que compreendemos que o ensino deve ser propício a uma
interação mútua, tanto diante das inovações, quanto por meio do trabalho
docente em História, haja visto que a utilização de elementos diversos
ocasiona uma forma interdisciplinar e sociável de produzir conhecimento,
mesmo diante de um mundo cada vez mais digital, que desencadeia
alterações educacionais de forma inevitável, apto a “assegurar uma
aprendizagem efetiva e coerente” (BITTENCOURT, 2008, p. 140).
Assim sendo, Pereira, Gil, Seffner e Pacievitch (2020), evidenciam a
importância do ensino de história em ajudar o educando a perceber as
mudanças no mundo a qual estão inseridos, e ao mesmo tempo, captar
ações que continuam se propagando, mas que necessitam ser repensadas,
pois é necessário realizar o ligamento dos sujeitos e temas históricos com a
realidade social dos alunos para expandir uma visão e compreensão crítica
reflexiva, assim a “história problematiza o presente e abre-se aos futuros”
(PEREIRA et al., 2020, p. 18).
Como espaço propício a fazer mediações de tempos e espaços
históricos, Bittencourt (2008) destaca que os museus compõem uma cultura
material, sendo carregados de objetos que possuem informações sobre
costumes, culturas, ritos, etc. Esses objetos desencadeiam uma leitura
visual nos discentes, podendo ser uma percepção também desenvolvida
em sala de aula.
A potencialidade educativa dos museus pode proporcionar práticas
educativas diversas, se tornando um recurso acessível para as aulas de
História, porém a historiadora Bittencourt (2008) também destaca a
necessidade de esclarecer para os alunos o que realmente é um museu, o
que ele abriga e sua importância na constituição de memória social e
histórica, para que seja possível realizar uma mediação de saberes.
E através da disponibilidade de recursos tecnológicos digitais que
são amplamente favoráveis ao desenvolvimento da disciplina História no
âmbito escolar, é possível interligar a sala de aula com espaços museais
virtuais, pois eles podem permitir uma maior potencialização, rapidez e
praticidade ao acesso de acervos, possibilitando conhecê-los sem a
exclusividade da presença física no ambiente. Haja visto que, a
experiência digital pode desencadear motivação nos alunos e a vontade de
acessar outros museus virtuais em espaços extraclasse.
Dessa maneira, a utilização de museus virtuais como método ativo
na prática de ensino, dando enfoque ao de História, é útil quando aplicada
adequadamente, tornando-se meios para o avanço educacional, como
defendido por Bacich e Moran (2018), que evidenciam que o docente na
posição de mediador, necessita realizar um planejamento prévio que também
esteja apto a adaptação, possibilitando que os alunos construam sua
aprendizagem na prática, mas atuando de acordo com o seu próprio tempo.
O museu, por ser um meio de comunicação que expõe e partilha
conhecimentos de temas diversos, tem utilizado os espaços tecnológicos
como forma de se relacionar com seu público. “Quando se passa para o
campo virtual, o campo de ação alarga-se dando origem a múltiplos
percursos interativos.” (MUCHACHO, 2015, p. 1542).
O virtual possibilita que o visitante tenha uma interatividade mais
dinâmica com o espaço, seguindo o percurso expositivo com liberdade de
fruição, de visualização e de análise. “O visitante deixa de ser um sujeito
passivo, que apenas reage à mensagem transmitida, passando a ser
incentivado a participar e interagir com o espaço.” (MUCHACHO, 2015, p.
1543).
Medeiros e Surya (2009), também destacam que a utilização
dos museus como espaços não formais de ensino, possibilita que seja
despertado nos alunos acerca da educação patrimonial que “trata-se de um
processo permanente e sistemático de trabalho educacional centrado no
patrimônio cultural como fonte primária de conhecimento e enriquecimento
individual e coletivo” (MEDEIROS, SURYA, 2009, p. 6).
Ao considerar a alfabetização patrimonial na sala de aula como
ferramenta teórico- prática que proporciona ao visualizador (re) fazer a
interpretação do mundo que o rodeia, desencadeia uma ampliação da
compreensão de mundo do estudante, do universo sociocultural e da
trajetória histórico-temporal em que está inserido.
A cultura histórica se estende na dimensão pública do museu, da
escola, da sala de aula, das mídias, e de todas as outras instituições culturais
que produzem memória coletiva. Nesse sentido, a função didática da
memória histórica é o compartilhamento do conhecimento histórico produzido
em determinada sociedade relacionadas às dimensões estética, cognitiva,
política e ética da cultura histórica de um povo.
Nesse ponto, os museus são ótimas oportunidades para que seja
desenvolvida uma prática pedagógica interativa e uma consciência histórica
na sala de aula, pelo fato de serem lugares da memória que expressam a
cultura histórica de uma sociedade. Além disso, os museus históricos são
meios de percepções fundamentais para a construção da identidade histórica
dos sujeitos e da compreensão do outro no meio social (CERRI, 2011).

Os museus virtuais e as possibilidades de usos no ensino


de História
Em linhas gerais, nossa pesquisa de Mestrado tem fundamentado
para este trabalho os museus virtuais como espaços de experiências que
podem relatar e partilhar conteúdos históricos diversos, contribuindo com a
educação e com a cultura, sendo então um recurso importante na construção
das aulas e do saber em História.
Tal realidade colabora no processo de ampliar as possibilidades e
discussões da escola, desafiando-a a relacionar-se e produzir possibilidades
de diálogo e produção de conhecimento com as mídias digitais, realidade
inerente a dinâmica do mundo globalizado na qual estamos inseridos,
colaborando assim para que a sala de aula ocupe o papel de um ambiente de
experiências de aprendizagem mais vivo e relevante para os alunos da
cultura digital.
Através do Google Arts and Culture ou sites de museus, o professor
pode ter acesso aos mais variados tipos de plataformas para melhor utiliza-
las e sugeri-las para os alunos, a fim de dar prosseguimento de forma lúdica
e educativa a temática que esteja trabalhando, assim como, desencadeando
neles a visão de valorização e de relevância que o patrimônio tem na nossa
sociedade, pois “a identificação com o conhecimento provoca uma
alteração no modo de ver e perceber as coisas e o mundo” (MEDEIROS,
SURYA, 2009, p. 7).
Com isso, as coleções, os objetos materiais, as imagens, as
fotografias, os depoimentos orais e os acervos de músicas expostos nos
museus, transmitem mensagens e significados históricos que permitem
análises, interpretações e (re) construções de narrativas nas aulas de
História, com isso os saberes expostos nos museus se tornam variadas
alternativas para compartilhar informações em relação aos temas, eventos e
situações históricas.
Nesse sentido, é importante pensar se a prática docente em História
no ensino escolar tem utilizado a contribuição das plataformas digitais à
utilização de metodologias ativas, tendo em vista que essa interação pode
criar meios que venham dar continuidade ao processo de ensino e a
colaboração de um ambiente educacional produtivo, que compartilha
tanto saberes históricos, quanto contribui para a formação cultural dos
alunos, desenvolvendo uma visão crítica e reflexiva da nossa realidade
(BACICH; MORAN, 2018).
Tendo em vista que de acordo com Rüsen (2006):

o ensino de história afeta o aprendizado de história e o


aprendizado de história configura a habilidade de se orientar na
vida e de formar uma identidade histórica coerente e estável. [...] a
ênfase sobre o aprendizado de história pode reanimar o ensino e
o aprendizado de história enfatizando o fato de que a história é a
uma matéria de experiência e interpretação. (RÜSEN, 2006, p. 16)

Sendo assim, a realização de aulas interligando diferentes espaços no


ensino de História de acordo com Martins, Barbosa e Gabriel (2020),
expressam uma relação de passado e presente aos seus alunos, mesmo em
espaços digitais, e se tratando da disciplina e ciência História que aborda
fatos históricos, podem contribuir para a desconstrução de estereótipos e
preconceitos do passado que acabaram sendo disseminados, e colaborar
para a construção de uma aprendizagem histórica.

Reflexões sobre o museu Afrobrasil

O Museu Afro Brasil é um desdobramento virtual do Museu Físico,


está vinculado à Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São
Paulo, administrado pela Associação Museu Afro Brasil - Organização Social
de Cultura. A plataforma virtual está disponível no site Google Arts and
Culture, o acervo possui diversos aspectos dos universos culturais africanos
e afro-brasileiros, abordando temas como a religião, o trabalho, a arte, a
escravidão, entre outros temas que marcam e registram a trajetória histórica
e as influências africanas na construção da nossa cultura.
O museu em seu acervo virtual conta com a exposição de coleções
na área de antropologia, escultura, tecido têxtil, tradição, trajes, escrita,
dentre outros. Além disso, apresenta histórias que representam a infância
negra inspirada pela ancestralidade africana, a resistência e
empreendedorismo feminino no século XIX, as festividades afro-brasileiras
como o Maracatu que é uma criação negra pernambucana, os estilos e
técnicas advindas dos povos africanos, arte e adorno no tempo da
escravidão, entre outras.
Ele também conta com 402 itens, todos expostos, separados por
temáticas e possíveis de serem trabalhados e apresentados em sala.
Também possibilita uma visitação paralela e complementar a realidade, pois
conta com a visualização 360º graus do prédio físico, proporcionando
mesmo de forma remota a contemplação de um espaço que por
consequência de espaço tempo talvez não fosse possível de realizar
presencialmente.
Podendo ser acessado no link <
https://artsandculture.google.com/partner/museu- afro-brasil >
Imagem 1 – Página do Tour Virtual do Museu
Afro Brasil Fonte:
https://artsandculture.google.com/partner/museu-
afro-brasil

Imagem 2 – Página do Tour Virtual do Museu


Afro Brasil Fonte:
https://artsandculture.google.com/partner/museu-
afro-brasil

Imagem 3 – Página do Tour Virtual do Museu


Afro Brasil Fonte:
https://artsandculture.google.com/partner/museu-
afro-brasil
Levando em consideração a importância da Lei nº 10.639/2003 que
instituiu a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira nas
escolas, com o Museu Afro Brasil é possível então trabalhar a temática
cultural em sala de aula e sua contribuição na construção de nossa
sociedade.
De acordo com a Base Nacional Comum Curricular, no que tange os
anos finais do ensino fundamental, é possível relacionar o Museu Afro Brasil
com a temática O Brasil no século XIX, presente na unidade temática do 8º
ano, a qual objetiva trabalhar “O escravismo no Brasil do século XIX:
plantations e revoltas de escravizados, abolicionismo e políticas migratórias
no Brasil Imperial” (BRASIL, 2017, p. 422). Cuja sua vigésima habilidade foca
em “(EF08HI20) Identificar e relacionar aspectos das estruturas sociais da
atualidade com os legados da escravidão no Brasil e discutir a importância
de ações afirmativas” (BRASIL, 2017, p. 423).
Também é possível utilizá-lo nas aulas do 9º ano que abordem a
temática O nascimento da República no Brasil e os processos históricos até a
metade do século XX, cujos alguns de seus objetivos de conhecimento é
discutir “a questão da inserção dos negros no período republicano do pós-
abolição. Os movimentos sociais e a imprensa negra; a cultura afro-brasileira
como elemento de resistência e superação das discriminações” (BRASIL,
2017, p. 424). E sua quarta habilidade enfoca em “(EF09HI04) Discutir a
importância da participação da população negra na formação econômica,
política e social do Brasil” (BRASIL, 2017, p. 425).
Sendo assim, os acervos virtuais do Museu Afro Brasil, se tornam
uma ferramenta possível de ser interligada com as aulas de história, tendo
em vista que o mesmo salvaguarda a memória cultural de elementos que
refletem e revelam valores civilizatórios dos povos africanos na formação do
Brasil e da cultura brasileira.

Considerações Finais

Sendo nosso objetivo: caracterizar a virtualidade museal atrelada ao


ensino de História na educação básica, mais preciso anos finais do ensino
fundamental, como mais uma ferramenta inovadora de contribuição para a
continuidade da compreensão histórica e cultural pelos alunos.
É perceptível que no percurso do ensino de História, faz-se
necessário uma interligação com diversos espaços educativos de produção
de saberes, seja ele formal ou não formal. Sendo assim, as tecnologias
digitais tem nos auxiliado a realizar mediações possíveis desses espaços, de
forma prática e facilitadora.
É fundamental utilizar as plataformas virtuais nessa nova etapa da
educação, mas atreladas a uma metodologia ativa digital, que possibilite a
constituição de uma prática docente de qualidade, que media e contribui
com um aprendizado transformador e que estimula o desenvolvimento de
competências próprias dos alunos.
Dessa maneira, a utilização de museus virtuais como método ativo
na prática de ensino, dando enfoque ao de História, é útil quando aplicada
adequadamente, tornando-se meios para uma interdisciplinaridade
educacional, pois o docente como mediador carece realizar de forma
imprescindível um planejamento que leve em consideração o uso das
ferramentas digitais em suas aulas, proporcionando que os alunos
desenvolvam aprendizagens na prática.
Por meio dos museus virtuais, através do contato com os objetos
museológicos é possível que narrativas possam ser formadas e debatidas, já
que estará sendo realizada uma interatividade entre a temática histórica e o
espaço museal de memória. E destacando o Museu Afro Brasil, ele se torna
uma ferramenta propicia para debater-se a contribuição cultural advinda dos
povos africanos, mesmo diante de uma perspectiva desumana que se deu o
processo de escravidão.

Referências Bibliográficas

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Melo. Ensino de História. São Paulo: Cengage Learning, 2010.

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A DECADÊNCIA DO OFÍCIO DA CANTARIA NO RECIFE
(1845-1850)

Lécio Cordeiro de Souza59


59
Universidade Católica de Pernambuco. E-mail: [email protected].
Introdução

Tecnicamente, cantaria é a arte de lavrar pedras com vista à


estruturação e ornamentação das fachadas e elementos internos de
edificações. Trate-se de uma das mais antigas técnicas de construção.
Utilizada por diversas civilizações desde a Pré-História, foi introduzida em
Pernambuco no início da dominação Portuguesa e largamente utilizada nas
construções até meados do Oitocentos. Data desse período a construção do
Teatro Municipal, mais tarde denominado Teatro de Santa Isabel (1841-1850),
o teatro monumento no qual se utilizaram pedras de cantaria importadas de
Portugal, as quais foram causa de inúmeros embates travados no canteiro de
obras e na cena política recifense dos anos que antecederam a Revolução
Praieira (1848-1849).

A historiografia do trabalho no Recife Oitocentista é consensual em


afirmar que, durante os anos da presidência de Francisco do Rego Barros
(1837-1844), os artífices mecânicos atravessaram um período de intensa
atividade, decorrente das obras de modernização da cidade e da imposição
das Posturas Adicionais promulgadas em outubro de 1839, as quais tratavam
“Da Architectura, Regularidade, e Aformoseamento da Cidade” 60. A partir daí, o
emprego das pedras de cantaria nas soleiras e cercaduras de portas e janelas
passou a ser obrigatório, impondo-se sanções àqueles que não respeitassem
as normas impostas.

No entanto, mesmo depois da promulgação dessa lei, muitas


residências, prédios públicos e monumentos construídos no Recife substituíram
as pedras de cantaria por molduras feitas de argamassa ou mesmo pelas
chamadas “pedras artificiais”. A pergunta é: o que estava por trás dessa
substituição? Mais ainda: esse dado seria indício do declínio do ofício da
cantaria? Neste artigo, portanto, refletiremos sobre questões atreladas ao uso
da pedra de cantaria e ao ofício no Recife do final da primeira metade do
século XIX.

60
HEMEROTECA DIGITAL. Diario de Pernambuco. Recife, 31 de outubro de 1839.
Na nossa análise, vimos que o declínio da cantaria está intimamente
relacionado à desaceleração das obras públicas. Dessa forma, o objetivo é
compreender como se deu essa decadência entre o início do governo liberal
(1845) e a inauguração do Teatro de Santa Isabel (1850), a última grande obra
pública da primeira metade daquele século em que se utilizou largamente
pedras de cantaria importadas.

Metodologia

Ao estudar o ofício da cantaria e os artífices canteiros, um grupo restrito,


esta investigação se caracteriza, como diriam Ginzburg e Poni “pela análise
extremamente próxima de fenômenos circunscritos” (1989, p. 172). Assim,
sendo a cantaria e os canteiros nosso objeto, empreendemos uma busca por
eles nos arquivos dos Diario de Pernambuco e no Diario Novo, disponibilizados
na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. A opção por esses jornais se
deve ao fato de serem os principais periódicos em circulação no Recife entre
1842 e 1849, período que compreendeu o chamado Movimento da Praieira,
quando esses jornais foram utilizados como verdadeiros instrumentos de luta
político-partidária. Martins (2013) ressalta que, naquele contexto, liberais e
conservadores possuíam tipografias próprias, nas quais imprimiam uma folha
principal diária que eventualmente se desdobrava em publicações de menor
porte que ora eram suspensas, ora eram reativadas. A Tipografia Imparcial,
que imprimia o Diario Novo (1842-1849), representava o grupo liberal e fazia
forte oposição ao governo conservador de Rego Barros. Já a Tipografia de
Manuel Figueiroa de Faria, mais tarde Tipografia União, produzia o Diario de
Pernambuco, órgão oficial do Partido Conservador.
Um dado importante é que os jornais nos mostram os indivíduos
enquanto alvos de contendas, principalmente no caso dos artigos de opinião,
em geral publicados de maneira anônima. Mostram, também, os indivíduos
como vendedores de produtos e serviços, funcionários da administração
pública, trabalhadores inseridos nos canteiros de obras, importadores de
cargas oriundas do estrangeiro. Uma das grandes questões ao utilizar os
jornais como fonte é não correr o risco de “perder a complexidade das relações
que ligam um indivíduo a uma sociedade determinada” (GINZBURG E PONI,
1989, p. 173).
A busca pela cantaria e pelos artífices canteiros nos arquivos nos
revelou diversos dados importantes, como os registros das importações de
pedra feitos na Alfândega. Cercando nosso objeto para um pouco além do
recorte temporal, foi possível fazer uma análise serial dos registros de
importação de pedras de 1825 a 1859, o que nos permitiu inferir que os anos
de governo de Rego Barros (1837-1844) marcaram o apogeu do emprego da
cantaria exótica no Recife, pois foi o período de importação de pedras mais
intenso. Ou seja, a aplicação do método onomástico “não fecha
necessariamente a porta à indagação serial. Serve-se dela” (ibid., p. 175).

No entanto, considerando que o âmbito da nossa investigação é


bastante circunscrito, “as séries documentais podem sobrepor-se no tempo e
no espaço de modo a permitir-nos encontrar o mesmo indivíduo ou grupos de
indivíduos em contextos sociais diversos” (ibid., p. 173-174). O ponto de partida
é sempre o nome. Mas o nome não precisa se restringir aos indivíduos.
Ginzburg e Poni alertam para o fato de que o método pode ser estendido para
além das fontes puramente demográficas. Nesse sentido, a partir dos registros
de importação de pedras de cantaria encontramos o nome dos consignatários
das cargas. Aqui, vimos a história “por cima”, na perspectiva da elite. Com esse
nome, foi possível encontrar seu inventário, o registro de suas propriedades,
seu círculo familiar mais próximo, as estratégias matrimoniais nas quais se
envolveu, selando compromissos de diferentes ordens com famílias aliadas ou
afins. Nos jornais, os indivíduos que tiveram uma vida publicamente exposta,
como políticos, comerciantes de grosso trato, capitalistas, encarregados de
obras públicas, revelam-se com facilidade. O nome se destaca, de fato, como
uma “bússola preciosa”, e aos poucos revela as biografias e as redes de
relações que as circunscrevem (ibid., p. 176). Assim, encontramos Francisco
Antônio de Oliveira, o Barão de Beberibe, político influente, ex-cunhado de
Angelo Francisco Carneiro, este um conhecido traficante de cativos, um dos
homens mais ricos da província naquele tempo. Ambos eram envolvidos com
diversas obras públicas, como o Teatro de Santa Isabel, de cuja comissão de
obras fizeram parte, juntamente com José Ramos de Oliveira, outro político
cuja fortuna vinha do comércio de gente. Ou seja, “encontramos dados seriais
(em geral de período curto, mas nem sempre) com os quais é possível
reconstruir o entrelaçado de diversas conjunturas” (ibid. p. 174).

Referencial teórico

Dada a especificidade do tema e sua ausência na historiografia, boa


parte das informações que trazemos sobre a cantaria têm como base o
paradigma indiciário (GINZBURG, 1994), isto é, inferências feitas a partir de
dados levantados sobre outros ofícios mecânicos. Na prática, esbarramos nas
mesmas dificuldades de todos aqueles que se dispuseram a adotar o ponto de
vista dos vencidos, a história vista de baixo (history from below, como diria
Thompson), trazendo “ao centro da cena a experiência de grupos e camadas
sociais antes ignorados” (LUCA, 2008, p. 113). Seguimos na esteira das
mudanças historiográficas que, a partir das duas últimas décadas do século
XX, modificaram a percepção dos historiadores a respeito das experiências dos
escravizados, dos libertos e livres pobres que compartilharam os mesmos
locais de trabalho ao longo da escravidão. As pesquisas realizadas nessa
perspectiva trouxeram uma nova abordagem, a história social do trabalho, e
possibilitaram a renovação dos estudos a respeito do trabalho no Brasil
Oitocentista, refletindo sobre a experiência individual e coletiva desse universo
de trabalhadores e trabalhadoras. Ou seja, a história social do trabalho é uma
das possibilidades de fazer história a partir do ponto de vista desses agentes.
Assim, saímos das fábricas, das instituições e entramos no universo cultural
deles, a rua como local de trabalho e sociabilidades, o canteiro de obras, entre
outras abordagens possíveis (ALVES, 2021, p. 19).

Roberto Dantas de Araújo (2003) apontou na sua justificativa a


negligência historiográfica sobre os artífices mecânicos e a natureza das
técnicas construtivas e dos materiais utilizados nas construções feitas em
Igarassu, Olinda e Recife durante o Período Colonial. Além de dados
específicos sobre as pedras utilizadas nessas cidades, o autor aborda os
métodos construtivos e o uso precoce do tijolo nessas cidades, particularidade
apontada, também, por José Antônio Gonsalves de Mello (1987). Nesta tese,
portanto, o autor procura compreender a organização dos artífices mecânicos
envolvidos na construção da Capitania de Pernambuco e a “evolução” dos
métodos e materiais construtivos empregados por eles. Na busca pela
reconstrução desse passado, o autor traz importantes dados sobre uma das
irmandades de artífices mecânicos mais importantes no Setecentos: a
Irmandade de São José do Ribamar, confraria leiga que reuniu artífices que
labutavam nos quatro ofícios anexos (pedreiro, carpinteiro, marceneiro e
tanoeiro). 

Privilegiando a fase oitocentista dessa irmandade, nesse período


reconfigurada como Sociedade de Artes Mecânicas, Cord (2005, 2009 e 2012)
reflete sobre a condição social dos artífices, sobretudo sobre sua necessidade
de se autoafirmarem profissionalmente. Por outro lado, nos trabalhos de 2013,
2014 e 2020, lança luz sobre como era ser artífice mecânico no Recife
Oitocentista a partir da trajetória de personagens de relevo, como o escultor
Antonio Benvenuto Cellini, o mestre pedreiro Francisco José Gomes de Santa
Rosa e os mestres alemães Theodoro Rampk (mestre de obras) e Remigio
Kneip (marceneiro).

Já Alves (2021) desenvolveu um estudo aprofundado sobre a Repartição


de Obras Públicas entre os anos de 1837 e 1850. Seu foco é a estrutura
administrativa da repartição, o projeto de modernização empreendido por Rego
Barros e a complexidade que envolvia os canteiros de obras, marcados pela
presença massiva de diversas “categorias” de trabalhadores, como cativos,
nacionais livres, libertos, presos ferropeados e estrangeiros. Segundo ele, a
repartição foi o órgão público que recebeu maior investimento governamental
durante a presidência de Rego Barros, sendo por isso alvo constante de
denúncias de corrupção e exclusivismo feitas no Diario Novo pelos opositores. 

Considerando que todas essas pesquisas mergulharam fundo na


história do trabalho manual no Recife dos séculos XVI ao XIX, cada uma a seu
modo e conforme seus objetivos nos serviram como fonte para
compreendermos melhor o contexto social, político e econômico em que
viviam os artífices mecânicos. Adicionalmente, consultamos outros estudos a
fim de enriquecer nosso banco de dados, como os trabalhos de Rita de Cássia
Araújo (2007), Raimundo Arrais (2004), Bruno Câmara (2005) e Marcus de
Carvalho (2014), entre outros.

Resultados
Desde meados do século XVIII já existiam no Recife muitos empreiteiros
dedicados ao ramo das edificações. Estavam envolvidos com obras privadas,
públicas e religiosas, lucrando bastante e angariando influência política. Ao
longo do século XIX, esse envolvimento se intensificou, sobretudo após 1831,
quando, em decorrência da Lei Feijó, que proibiu o tráfico de cativos para o
Brasil, muitos comerciantes de “grosso trato”, “capitalistas”, como os traficantes
normalmente preferiam ser vistos, direcionaram parte de seus capitais para
projetos de melhoramentos urbanos espalhados pelo Império (ALVES, 2021, p.
40). Alguns deles aparecem na documentação da Alfândega como
consignatários de pedras de cantaria importadas de Portugal, como detalha o
Apêndice disponibilizado no final deste livro. É o caso de Angelo Francisco
Carneiro e José Ramos de Oliveira, membros da comissão de obras do Teatro
Municipal, da qual participava, também, Francisco Antônio de Oliveira, que foi
cunhado de Angelo61. Para Marson (1987, p. 311-312), o pequeno número de
investidores facilitava a promoção de obras caras e maiores, o que se
coadunava com a desejada grandiosidade buscada pelo projeto de
modernização almejado pelos conservadores. Nesse contexto, esses poucos
financiadores lucravam bastante com loterias, juros, pedágios, bilheterias, etc.,
o que deixava insatisfeitos os pequenos e médios proprietários, que lutavam
desde 1842 junto aos praieiros para se inserir no lucrativo ramo das obras
públicas.

O fato é que havia entre esses investidores vínculos como parentesco,


amizade, clientela que transcendiam a vida particular e atravessavam a
política, formando uma verdadeira rede de relações pautadas por favores,
apadrinhamentos, corrupção, etc. Essas relações, que marcaram a elite

61
PREFEITURA MUNICIPAL DO RECIFE. Teatro Santa Isabel: Documentos para sua
História, v. 1 (1838-1850). Departamento de Documentação e Cultura, 1950, p. 43; p. 49; p. 59.
recifense na primeira metade do século XIX (e transcendem o tempo) foram
estudadas em detalhes por Albuquerque (2016) e Gomes (2016), entre outros
historiadores. Um bom exemplo dessa rede é a Companhia do Beberibe —
uma empresa criada em 1838 para promover o saneamento e abastecimento
da cidade. Angelo Francisco Carneiro era um dos acionistas da companhia,
seu ex-cunhado — Francisco Antonio de Oliveira — era vice-diretor e José
Ramos de Oliveira, o diretor. Nas obras de encanamento, Angelo ocupava o
cargo de diretor fiscal (ALBUQUERQUE, 2016, p. 91).

O estudo dos registros de importação pela Alfândega publicados no


Diario de Pernambuco entre os anos de 1830 e 1849 é bastante significativo
para mapear a atuação desses agentes, mas também a ascensão e o declínio
da utilização da pedra de cantaria portuguesa nas construções recifenses da
primeira metade do século. Para se ter uma ideia, no período de janeiro de
1830 a setembro de 1839, a alfândega registrou 22 cargas de pedras de
cantaria oriundas de Portugal, somando 843 pedras. Excluímos desse total a
carga de três importações cuja quantidade de itens não foi informada pela
Alfândega. Essas cargas foram declaradas nas edições do Diario de
Pernambuco dos dias 10 de setembro de 1832, 4 de janeiro de 1836, e 23 de
agosto de 1839. No entanto, no final de 1839, com a Lei de Regularidade e
Aformoseamento da Cidade do Recife, promulgada em 31 de outubro de 1839,
a Alfândega passou a registrar uma importação de pedras mais intensa,
certamente consequência do artigo primeiro das Posturas Adicionais, que,
entre outras disposições, determinou que “as frentes das cazas serão
guarnecidas de cordão na altura das soleiras, e tanto estas, como o cordão,
vergas, e ombreiras, serão de pedra de cantaria” 62. Tal lei vinha na esteira das
aspirações modernizadoras ventiladas pelo presidente, que tencionava dar
ares europeus à capital da província.

Nesse sentido, nos primeiros anos posteriores à promulgação da Lei


verificamos um volume de importação de pedras mais significativo que nos
anos anteriores, a maior parte delas pedra lioz, todas oriundas de Lisboa. A
análise das declarações feitas à Alfândega e publicadas no Diario de
Pernambuco e no Diario Novo mostrou que, de 5 de novembro de 1839 a 12 de

62
HEMEROTECA DIGITAL. Diario de Pernambuco. Recife, 31 de outubro de 1839.
dezembro de 1849 foram registradas oficialmente 68 cargas, totalizando 4.519
pedras lavradas — 3.676 a mais que na década anterior.

Assim, a partir de 1839, encontramos diversos anúncios nos quais se


ofereciam pedras de cantaria para venda, como vimos no capítulo 1. As
pedras, então, tinham grande valor comercial, sendo ofertadas comumente
como valor agregado aos imóveis, inclusive distinguindo-se as pedras de
cantaria de Lisboa e as da terra (do paiz), sendo aquelas aparentemente mais
valorizadas. Nesse contexto, é importante notar que, sendo valorizadas
comercialmente, as pedras de cantaria eram vistas como bens e, desse modo,
eram oferecidas em leilões particulares e comumente adquiridas por
encomenda em hasta pública, pela Repartição de Obras Públicas, outro órgão
que, conforme apontou Alves (2021), era alvo constante do jogo de interesses
políticos e corrupção.

Ao longo da década de 1840, dois traficantes figuram como os principais


consignatários das pedras importadas: são os comendadores José Ramos de
Oliveira e Angelo Francisco Carneiro. Entre o dia 29 de novembro de 1843 e
13 de janeiro de 1846, José Ramos de Oliveira recebeu 613 pedras de
cantaria, todas empregadas, provavelmente, nas obras do Teatro de Santa
Isabel, do qual era diretor. Após sua morte, no dia 7 de julho de 1846,
encontramos Angelo Francisco Carneiro como principal consignatário das
pedras de cantaria importadas. Entre 14 de maio de 1847 e 12 de março de
1849, ele recebeu, ao todo, 190 pedras. Como também era membro da
comissão de obras do Teatro, é provável que essas pedras tenham sido
empregadas na construção, que foi concluída em maio de 1850.

Discussão

Na visão dos oposicionistas, a campanha modernizadora empreendida


por Rego Barros tinha dois calcanhares frágeis: a forte presença de
estrangeiros envolvidos com as obras públicas e o exclusivismo que o
presidente deu aos grandes financiadores. Assim, a partir de 1842, quando os
liberais criaram o próprio partido, a Repartição de Obras Públicas passou a ser
ainda mais atacada como reduto de corrupção. Para Marson (2013, p. 195), se
até então os conservadores conseguiam lidar bem com a oposição liberal, a
partir daí uma conciliação se tornou praticamente impossível.

De acordo com a análise de Alves (2021, p. 56), com a nomeação de


Antonio Pinto Chichorro da Gama para a presidência da província em 1845, as
prioridades “do governo do barão, especialmente no que concerne às obras
públicas, foram eliminadas”. Os artífices, particularmente, esperavam que o
liberal cumprisse a promessa de desarticular a preferência pelos estrangeiros e
acreditavam que teriam certo protecionismo do novo governo (MARSON, 2013,
p. 270-271). De fato, o protecionismo seria uma forma de se evitar a
proletarização do trabalho e do trabalhador, mas, para os praieiros, havia
problemas mais urgentes a se resolver, como a posse da terra e a
nacionalização do comércio a retalho, pautas alheias à demanda dos artífices.

Uma das primeiras ações implementadas pelos praieiros foi a


desarticulação da Repartição de Obras Públicas, um dos órgãos mais
importantes para a administração baronista. Começaram paralisando as obras,
depois demitiram vários funcionários. Daí em diante, a ROP e os artífices
mecânicos envolvidos nas obras públicas foram invisibilizados. Com a
interrupção das obras, veio o desemprego. “Muitos mestres, pedreiros,
carpinas, marceneiros, pintores e toda sorte de trabalhadores empregados nos
melhoramentos da cidade ganharam o caminho da rua” (CÂMARA, 2005, p.
100). O desmantelo foi tão intenso que Antônio Pedro de Figueiredo, o maior
pensador daquela época, chegou a afirmar que em menos de cinco anos, a
administração praieira extinguiu todas as fontes de trabalho popular existentes
na cidade.
Além da mudança de governo e da consequente desarticulação da ROP,
outra mudança que impactou diretamente no ofício da cantaria foi a instituição
do Decreto imperial nº 376, de 12 de agosto de 1844 63, que mandou executar o
regulamento e a tarifa para as alfândegas do império. Conforme o artigo 3º, as
63
HEMEROTECA DIGITAL. Diario de Pernambuco. Recife, 11 de setembro de 1844.
pedras de cantaria importadas passaram a pagar 50% de imposto, valor que
praticamente inviabilizou a importação. Por esse motivo, após a aplicação da
lei, das 632 pedras importadas que foram registradas na alfândega até
dezembro de 1849, 154 foram consignadas a diferentes compradores, 70 foram
consignadas à Matriz da Boa Vista e 408 tiveram como destino o Teatro de
Santa Isabel. Ou seja, a maior parte das importações teve como destino a
principal obra pública que estava em andamento naquele período.

Nesse contexto, podemos inferir que o decreto nº 376 contribuiu


decisivamente para a queda das importações de pedra. Por outro lado, com a
desarticulação da ROP e, consequentemente, o afrouxamento da fiscalização
das obras, é provável que a utilização de pedras de cantaria tenha dado lugar a
artifícios que visavam à sua substituição, como queria o mestre alemão André
Wilmer64. Essa substituição é evidenciada, por exemplo, em um artigo anônimo
publicado pelo Diário Novo no final de 1847. No texto, o autor questiona, entre
outros pontos, a utilização da pedra de cantaria como revestimento, e não
como elemento estrutural, na reforma do Cais do Ramos. Segundo ele, o
arrematante da obra “assenta as pedras de cantaria da frente, sem amarração,
sem argamassa hydraulica e sem ter a grossura media de dous palmos
marcados no orçamento; e reboca a obra logo para tapar a vista dos curiosos e
a boca dos falladores”65. Repare que, ao utilizar pedras “sem ter a grossura
media”, o arrematante estava, na verdade, utilizando-as apenas esteticamente,
o que comprimia os custos da obra.

Poucos meses antes, encontramos o mestre André Wilmer construindo


um chafariz de “pedra artificial” encomendado pela Companhia do Beberibe
para o largo da Boa Vista. Na ata da sessão dos acionistas da Companhia
realizada no dia 28 de maio de 1847, Francisco Antônio de Oliveira, então vice-
presidente da Companhia, defendeu que o valor de 4.971$000 era “sem duvida
muito inferior ao custo provavel de um chafariz de mármore que guardasse as
proporções devidas com o referido largo” e que “a pedra artificial composta
pelo mestre Wilmer, que se diz ter igual consistencia, e offerecer a mesma

64
HEMEROTECA DIGITAL. Diario de Pernambuco. Recife, 1 de junho de 1847.
65
HEMEROTECA DIGITAL. Diario Novo. Recife, em 29 de novembro de 1847.
duração que o marmore, merecia a preferencia, porque, sendo feita no paiz,
reverte em favor deste todo o valor da mão d’obra” 66.

Por fim, precisamos observar que a vinda dos artífices germânicos


contratados por Rego Barros, entre eles André Wilmer, foi prejudicial para o
ofício da cantaria. Na prática, os artífices estrangeiros deveriam executar as
Posturas Adicionais, mas, no que se refere à cantaria, não seguiram a
imposição que determinava o uso da pedra em soleiras, cordões, vergas e
ombreiras. No seu meticuloso Estudo histórico-retrospectivo sôbre as artes em
Pernambuco, publicado em 1901 na Revista do Instituto Arqueológico e
Geográfico Pernambucano, Pereira da Costa argumenta que, por meio deles,

“as pesadas cornijas vagarosamente feitas a mão


desapareceram e deram lugar às novas, que se vulgarizam,
elegantes e rapidamente construídas a molde; e as vergas das
portas e janelas dos prédios, feitas de pedra, em toda a largura
da parede, deram lugar às novas, que dispensavam aquele
material, construídas de alvenaria, por meio de símplices, quer
fossem retas ou abatidas, semicirculares ou ogivais; além de
outros melhoramentos, como a ornamentação arquitetônica, as
maiores dimensões às portas e janelas, encimadas por
cornijas, que deram um tom agradável e belo às nossas
construções; e fato digno de nota, as obras de construção
tornaram-se mais baratas, porque desapareceu o trabalho de
canteiro do material de pedra [...]” PEREIRA DA COSTA, 1959,
p. 6). 
 

Considerações finais

O movimento do auge ao declínio da cantaria foi marcado por uma


confluência de fatos históricos. A taxação de 50% para as pedras importadas
poderia até desencadear a valorização das pedras brasileiras, mas não foi o
que aconteceu. Como vimos, a partir de 1840, após a promulgação das
Posturas Adicionais, as importações de pedras se acentuaram. Mas a partir de
1845, com a ascensão do governo liberal, as obras públicas ficaram
praticamente paralisadas, o que repercutiu diretamente no ofício da cantaria.
Na intenção de apagar o legado do governo de Rego Barros, os liberais
trataram de desmantelar a Repartição de Obras Públicas. Com isso, a

66
HEMEROTECA DIGITAL. Diario de Pernambuco. Recife, 1 de junho de 1847.
fiscalização da lei foi inviabilizada, o que abriu caminho para o ofuscamento
das pedras de cantaria. Gradativamente elas deram lugar a réplicas de
alvenaria e às “pedras artificiais”, como as chamava André Wilmer — e até se
tornaram frágeis peças de revestimento estético que simulavam cercaduras de
portas e janelas.

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A EDUCAÇÃO DO CAMPO E A CONSTRUÇÃO DE
PEDAGOGIAS DE HUMANIZAÇÃO, RESISTÊNCIA E
LIBERTAÇÃO: ESPERANÇAR É PRECISO!

Meyre James Silva Santos67


Rafaella Silva Freire68
Simone Salvador de Carvalho69
Introdução

[...] E quem nos ajudará


A não ser a própria gente
Pois hoje não se consente esperar.
Somente a rosa e o punhal.
Somente o punhal e a rosa
Poderão fazer a luz do sol brilhar.
E diga sim...
A quem nos quer acolher,
Mas se for pra nos prender
Diga não.
(Trecho da letra da música Oração Latina,
César Teixeira)

A história do Brasil é marcada por inúmeros conflitos que começam a


partir da chegada dos portugueses, em 1500 e vão se consolidando ao longo
do tempo por meio de processos de dominação e opressão, de negação do
direito a ter sua humanidade reconhecida, como foram tratados povos
indígenas e africanos, do desrespeito aos conhecimentos, cultura, religiosidade
e territórios tradicionais destes grupos. Processos que se perpetuam ao longo
do tempo, naturalizando questões que fortalecem o preconceito e a
discriminação.

67
Licenciada em Pedagogia pelo Centro de Ensino Superior de Arcoverde – CESA. Membro do
Núcleo de Estudos e Pesquisas em História e Cultura Política, Educação e Diferenças
(NEPHCPED - AESA). E-mail: [email protected]
68
Licenciada em Pedagogia pelo Centro de Ensino Superior de Arcoverde – CESA. Membro do
Núcleo de Estudos e Pesquisas em História e Cultura Política, Educação e Diferenças
(NEPHCPED - AESA). E-mail: [email protected]
69
Professora orientadora. Mestra e doutoranda em Educação Contemporânea na UFPE/ CAA.
Membro da Coordenação Colegiada do Núcleo de Estudos e Pesquisas em História e Cultura
Política, Educação e Diferenças (NEPHCPED - AESA), membro do Grupo de Pesquisas
Movimentos Sociais, Educação e Diversidade na América Latina (UFPE/ CAA). E-mail:
[email protected]
Neste contexto, a luta para garantir o direito à uma educação específica
e de qualidade, torna-se um dos elementos centrais por parte daqueles (as)
que almejam mudar esta realidade. No que diz respeito à Educação do Campo,
tais lutas são evidenciadas por marcos históricos que competem não só a um
determinado grupo que busca seu território, mas, ao direito de incluir os povos
do campo na construção de uma educação que parte do pressuposto da
necessidade de valorização da identidade e história de coletivos
subalternizados, frente a opressão e ao abismo que se fora formado entre o
conhecimento popular e o conhecimento científico.

Faz-se necessário, portanto, resgatar desde a historicidade da Educação


do Campo, trazendo à tona alguns dos elementos que propõem outras
possibilidades, no sentido de romper com o paradigma da Educação Rural,
que, comprometida com os interesses do agronegócio, apresenta um campo
enquanto espaço-mercadoria, desprovido de vida, cultura e riquezas; seus
sujeitos enquanto pessoas ignorantes, rudes, mão de obra barata, cuja escola
serve para assegurar-lhes uma formação desqualificada, para a inserção
subordinada no mercado de trabalho. Assim, o paradigma da Educação do
Campo, ao propor uma construção contra hegemônica, coloca-se numa
posição de enfrentamento ao modelo educativo até então ofertado a estes
grupos.

Para Freire (1987): “Quando a educação não é libertadora, o sonho do


oprimido é ser opressor.” Assim, um processo educativo que almeja a
transformação da realidade e a luta por justiça social, precisa assegurar a
compreensão e incorporação de elementos que fortaleçam a humanização, a
emancipação e a libertação. É diante deste cenário, que o presente trabalho se
propõe a investigar: Como a Educação do Campo contribui na construção de
pedagogias de humanização, resistência e libertação?

O objetivo geral é: Compreender como a Educação do Campo favorece


a construção de pedagogias de humanização, resistência e libertação que
contribuam no enfrentamento das colonialidades do saber, do poder, do ser, da
natureza e dos gêneros. Como objetivos específicos, foram elencados: Analisar
as consequências das colonialidades nos processos de opressão contra os(as)
sujeitos(as) do campo; Historicizar o Movimento da Educação do Campo,
identificando seu potencial de humanização, resistência, emancipação e
libertação; Investigar quais pedagogias propostas pela Educação do Campo
contribuem na superação da colonialidade.

Para o desenvolvimento desta pesquisa, utilizou-se a abordagem


qualitativa. Segundo Denzin e Lincoln (2006, p.17):

[...] a pesquisa qualitativa envolve uma abordagem


interpretativa do mundo, o que significa que seus
pesquisadores estudam as coisas em seus cenários naturais,
tentando entender os fenômenos em termos dos significados
que as pessoas a eles conferem.

O trabalho foi realizado por meio de pesquisas bibliográfica e


documental. A pesquisa bibliográfica. Segundo Gil (2008, p.44), “[...] a pesquisa
bibliográfica é desenvolvida com base em material já elaborado, constituído
principalmente de livros e artigos científicos”. Assim, foram selecionadas e
fichadas obras de grandes teóricos(as) que agregam reflexões conceituais
pertinentes ao objeto de estudo, fazendo com que o(a) pesquisador(a), o(a)
leitor(a) se familiarizem com o tema escolhido, obtendo através da veracidade
dos fatos ocorridos ao longo da história, e transcritos por grandes autores(as),
a junção entre teoria e realidade, favorecendo um trabalho de precisão e
qualidade.

Em relação à pesquisa documental, Pádua (1997, p. 62) afirma que [...]


é aquela realizada a partir de documentos, contemporâneos ou retrospectivos,
considerados cientificamente autênticos (não fraudados). Para Gil (2008, p.62-
63), a pesquisa documental apresenta algumas vantagens por ser “fonte rica e
estável de dados”. Nesta fase, foram analisadas as legislações que orientam as
práticas de Educação do Campo: Resolução CNE/CEB Nº 1, de 03 de Abril de
2002 - Diretrizes Operacionais para Educação Básica nas Escolas do Campo
(BRASIL, 2002) e o Decreto 7.352/ 2010 (BRASIL, 2010).

A pesquisa configura-se, ainda, como exploratória e descritiva. A


pesquisa exploratória tem por objetivo “proporcionar maior familiaridade com o
problema, com vistas a torná-lo mais explícito ou a construir hipóteses” (Gil,
2008, p.41). Na fase exploratória, serão identificadas quais metodologias
propostas na Educação do Campo evidenciam pedagogias decoloniais que
contribuam para humanização, resistência, emancipação e libertação.

De acordo com Silva e Menezes (2000, p.21), “a pesquisa descritiva visa


descrever as características de determinada população ou fenômeno ou o
estabelecimento de relações entre variáveis”. Na fase descritiva, podemos ter
uma compreensão real dos fatos e acontecimentos, diante de debates com a
temática em estudo e exposição da mesma, na qual iremos apontar falhas no
sistema de construção de identidade e identificação do sujeito como pessoa,
desde o período colonial.

Este estudo busca contribuir e apresentar elementos que foram e são


essenciais na busca de uma pedagogia humanizada, mesmo que de forma
subjetiva, não para mudar o que passou, mas para que a partir desta leitura,
possamos refletir sobre novas perspectivas educacionais que fujam dos
padrões que enraízam os preceitos que tanto fere moralmente todo um povo .

1. A HISTÓRIA DOS POVOS DO CAMPO E AS MARCAS DA COLONIALIDADE:


ESTRATÉGIAS DE DESUMANIZAÇÃO, DOMINAÇÃO E OPRESSÃO

A história do Brasil evidencia dois processos de dominação de povos


tradicionais: a colonização e a colonialidade. A primeira, encerra-se
oficialmente em 07 de setembro de 1822, quando D. Pedro declarou a suposta
“independência do Brasil.” Entretanto, o período imperial não trouxe consigo a
ideia de igualdade de direito a todos(as) que aqui estavam. Em relação a
abolição da escravatura, por exemplo, esta só veio a consolidar-se em 1822
por meio da Lei da Lei Áurea. Na prática, os processos de escravidão foram se
reorganizando e, alguns deles, ainda permanecem até a atualidade. A ideia de
posse, de desumanização e de subalternização de outros grupos, prova que a
colonialidade permanece presente em nossa sociedade.

A colonialidade carrega consigo uma essência que evidencia e


naturaliza o poder de outro, desumanizando, segregando e oprimindo
diferentes sujeitos, seja na moral, cultural, étnica, epistêmica ou de gênero.
Para Quijano (2007, p. 93):
A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos
do padrão mundial do poder capitalista. Se funda na imposição
de uma classificação racial/étnica da população mundial como
pedra angular deste padrão de poder (QUIJANO, 2007, p. 93).

Assim, diante de sua complexidade, tratar essa temática requer tempo


para pesquisa e estudo, ressaltando a necessidade de decolonizar o
pensamento que subalterna o outro em sua singularidade. Para Quijano (2007),
a colonialidade está presente em três bases principais: poder, saber e ser.
Entretanto, também se materializa nos gêneros (LUGONES, 2008).

A colonialidade do poder foi elaborada por Aníbal Quijano. Pode ser


entendida como política, tendo sua expressão no domínio político, territorial e
no controle das matérias primas. Faz deste modo a articulação de todas as
formas históricas de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos,
em torno do capital e do mercado mundial (QUIJANO, 2005, p. 117).
Explorando territórios e dizimando suas populações. Aos que resistem, resta-
lhes ainda a condição de mão de obra barata.

Assim, a colonialidade do poder está diretamente relacionada à


globalização. Principalmente, no processo de constituição da América e da
propagação do capitalismo eurocentrado, tendo como padrão de poder a
classificação com base na ideia de raça (QUIJANO, 2005). Desta forma criou-
se uma dependência da América Latina diante do poder imposto pelo
pensamento ocidental. Cria-se, portanto, uma nova forma de oprimir os povos
latino-americanos, levando em consideração três elementos: a dominação, a
exploração e o conflito. Mesmo diante de avanços e da modernidade, a lógica
da desigualdade social associada à superioridade europeia está diretamente
ligada aos pobres, que são classificados em humanos e não humanos.

É essa lógica que transforma a ideia de “raça” em instrumento de


dominação, influenciando a constituição de outros aspectos, como: o gênero, a
sexualidade, o conhecimento, as relações políticas, ambientais e econômicas
(QUIJANO, 2005).

Para Lugones (2019, pp. 346-347):


A ‘missão civilizatória’ colonial era a máscara eufemística do
acesso brutal aos corpos das pessoas através de uma
exploração inimaginável, violação sexual, controle da
reprodução e terror sistemático (por exemplo, alimentando
cachorros com pessoas vivas e fazendo algibeiras e chapéus
das vaginas de mulheres indígenas brutalmente assassinadas).

As consequências deste comportamento podem ser percebidas nas


práticas de racismo, machismo, patriarcado, entre outras que ainda perduram
no atual cenário político e estrutural da sociedade brasileira. Seja de forma
escancarada ou dissimulada, situações cotidianas colocam determinados
grupos no alvo de processos violentos e desumanos. Muitas vezes, para ser
aceito, é preciso esconder ou negar suas raízes.

A ideia de colonialidade está voltada também para a apropriação da


natureza, por meio da qual os recursos naturais são vistos apenas na
dimensão do lucro, tornando-se mercadorias que, exploradas, beneficiam o
capitalismo e aumentam a apropriação territorial. Por meio do uso de
tecnologias avançadas, exploram-se os recursos naturais e criam-se outros
produtos, como no caso dos transgênicos, que passam por um processo de
modificação genética, sem nenhuma preocupação com os impactos que os
mesmos podem causar na saúde humana. Para Escobar apud Coronil (2005),
a natureza passa a ser transformada numa "tecnonatureza". O que era natural
e cultural se transforma em fonte de mercado, na qual a exploração ambiental
privilegia as indústrias, cujo lucro advém da exploração da mão de obra barata
e dos danos ambientais que afetam toda a população e o próprio meio
ambiente.

A colonialidade do saber, segundo Lander (2005), é derivada do


pensamento moderno, que estabeleceu e naturalizou um padrão de
conhecimento global, hegemônico e superior. Assim, cotidianamente, grupos
subalternizados são submetidos a situações que negam a compreensão do
conhecimento por eles produzidos. A partir de uma visão eurocentrada de
validação de conhecimentos, ocorre a marginalização de saberes e de sujeitos
tidos como ignorantes e incapazes. Nesse sentido, destaca Santos (2002, p.
72) que:
O conhecimento implica uma trajetória, uma progressão de um
ponto ou estado A, designado ignorância, para um ponto ou
estado B, designado saber. As formas de conhecimento
distinguem-se pelo modo como caracterizam os dois pontos e a
trajetória que conduz de um ao outro. Não há, pois, nem
ignorância geral e nem saber em geral. Cada forma de
conhecimento reconhece-se num tipo de saber que contrapõe
um certo tipo de ignorância, a qual, por sua vez, é reconhecida
como tal quando em confronto com esse tipo de saber. Todo
saber é saber sobre uma ignorância e, vice-versa, toda
ignorância é ignorância de um certo saber.

Numa sociedade formada a partir da miscigenação, é fundamental


considerar as especificidades e a riqueza presentes na cultura, na linguagem e
nos conhecimentos de cada grupo. Para Bourdieu (1995, 2007) o que nos
difere uns dos outros é a própria ignorância humana, que leva os indivíduos a
se posicionarem no espaço social, seguindo critérios e padrões do discurso
dominante.

A diferença entre os dominantes e os dominados encontra-se,


principalmente, no acesso privilegiado ao sistema simbólico que possibilita à
classe hegemônica impor ou legitimar aquilo que lhe é próprio e caro,
distinguindo-se dos demais. Nesse contexto, a violência simbólica faz parte de
um campo social hierárquico, vitimizando grupos e classes que são
enquadradas por meio de estereótipos e preconceitos.

Dentro dessas dimensões culturais nota-se uma estrutura de poder que


viabiliza o domínio da linguagem como instrumento de dominação e opressão.
Assim, surge a colonialidade do ser, que se configura, entre outras questões,
por meio de “experiência vivida da colonização e o seu impacto na linguagem”
(MALDONATO-TORRES apud ÁVILA, 2021). A colonialidade do ser está
diretamente relacionada à inferiorização atribuída aos povos subalternizados,
ou seja, aos grupos que foram tratados como não-humanos (inicialmente as
populações indígena e afrodescendente) e que ao longo da história do Brasil,
vem sendo silenciados, oprimidos e colocados à margem da sociedade,
somando-se aos primeiros, as mulheres, os mestiços, os povos do campo e da
floresta, a população LGBTQIA+ e todas as demais minorias.
A partir da definição da colonialidade do ser, Maria Lugones, filósofa
feminista argentina, desenvolveu o conceito de colonialidade de gênero ou dos
gêneros. Pautando-se na construção e luta de um feminismo de resistência,
Lugones (2008) afirma que o sistema colonial de gênero é marcado pela
combinação entre raça, gênero, sexualidade e classe. Desta forma, verifica-se
que os processos de dominação e opressão se tornam ainda mais violentos em
relação as mulheres, principalmente, negras, indígenas, não excluindo as
brancas.

Grosfoguel (2016) afirma que as populações indígenas, negras,


mulçumanas e mulheres (que transmitiam, de geração para geração, o
conhecimento indo-europeu nos territórios europeus) foram brutalmente
massacradas em nome do projeto colonial global de poder. Em relação aos
povos do campo, Silva e Torres (2013) destacam que em sua trajetória
histórica, estes, outrora força motriz do Brasil colonial-agrário, trazem as
marcas da violência, exploração e exclusão, consequências de um processo
moderno/colonial daqueles que enxergam o campo enquanto espaço de poder
político e econômico para dominação e enriquecimento, sem nenhum
compromisso com os grupos que lá se encontram.

É diante deste cenário que os diferentes sujeitos coletivos do campo se


organizam e resistem, buscando estratégias para enfrentamento a dominação
capitalista, por meio do agronegócio. Reconhecendo a força da educação,
lutam para ressignificar as práticas educativas no âmbito formal e não-formal,
surgindo, a partir da década de 1980 e consolidando-se em 1990 o projeto da
Educação do campo, conforme apresentaremos a seguir.

Educação do campo e pedagogias decoloniais: a luta por processos de


humanização, resistência, emancipação e libertação desde a escola

Fundamentos históricos, teóricos e metodológicos da educação do campo

A Educação do Campo propõe uma estrutura pautada na tríade: campo


– políticas públicas – educação, entendo que “o campo é lugar de vida e,
sobretudo de educação” (FERNANDES, 2011, p.137). Assim, considerando as
especificidades de cada grupo/ comunidade, busca-se construir uma educação
significativa e de qualidade.

Nesse percurso, existiram e existem, movimentos que lutam diariamente


para que os povos do campo sejam protagonistas de sua própria história e dos
processos que dizem respeito a sua existência. Para uma melhor
compreensão, é importante a ressalva sobre a diferença entre Educação Rural
e Educação do Campo. Sendo a primeira, voltada a atender os interesses do
agronegócio e a segunda, voltada aos anseios da classe trabalhadora que vive
no e do campo.

O movimento da Educação Rural surge a partir da década de 1930,


fundamentado no Ruralismo Pedagógico. Para Bezerra Neto (2013, p. 11):

O termo ruralismo pedagógico foi cunhado para definir uma


proposta de educação do trabalhador rural que tinha como
fundamento básico a ideia de fixação do homem do campo por
meio da pedagogia. Ou seja, um grupo de intelectuais,
pedagogos ou livres pensadores defendiam que deveria haver
uma pedagogia que ajudasse a fixar o homem no campo, ou,
pelo menos, dificultasse, quando não impedisse, sua saída
desse habitat, considerado natural para as populações que o
habitaram ao longo de muito tempo.

Ao longo do tempo, este foi se aperfeiçoando, sem perder a finalidade


de assegurar uma formação humana voltada a inserção subordinada e
hierarquizada no mercado de trabalho, centrada na competição, na eficiência
produtiva, na integração ao sistema e no individualismo (MENEZES NETO,
2011).

Em relação a Educação do Campo, Molina (2015, p. 381) afirma que:

[...] Falar de Educação do Campo, de acordo com sua


materialidade de origem, significa falar da questão agrária; da
Reforma Agrária; da desconcentração fundiária; da
necessidade de enfrentamento e de superação da lógica de
organização da sociedade capitalista, que tudo transforma em
mercadoria: a terra; o trabalho; os alimentos; a água, a vida...
Assim, desde a sua origem, ela surge vinculada a necessidade de
ressignificar o papel da escola, uma vez que, para Silva, Torres (2012) a
educação escolar até então ofertada ao campo brasileiro, teve e ainda tem um
caráter desumanizador, urbano e instrumental.

Apesar da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), em seu Artigo


6° apresentar como direitos sociais: a educação, a saúde, a alimentação, o
trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na
prática, os povos do campo ainda sofrem com a ausência do Estado na
garantia destes direitos. De acordo com Molina e Freitas (2011, p. 20):

O Movimento da Educação do Campo põe em questão o


abandono das escolas rurais pelo Estado. A partir de suas
práticas e suas lutas, vai construindo, simultaneamente ao seu
desenvolvimento, uma nova concepção de escola. O
movimento desencadeado pelos sujeitos coletivos de direito do
campo interroga a tradicional escola rural na sua forma de
ensinar, de lidar com o conhecimento, de tratar as relações
sociais que dentro dela ocorrem, de recusar vínculos com a
comunidade que está ao seu redor.

Por meio de conferências, seminários, e diversos encontros estaduais,


regionais e nacionais, a Educação do Campo, vem se estruturando enquanto
movimento. Em 1998 ocorreu a I Conferência Nacional por uma Educação
Básica do Campo, organizada pelo MST, a UnB, a CNBB, a UNESCO e o
UNICEF. De acordo com Caldart (2004, p. 13), “[...] foi o momento de batismo
coletivo de um novo jeito de pensar a educação para o povo brasileiro que vive
no e do campo”.
A II Conferência Nacional Por Uma Educação do Campo, realizada em
Luziânia – GO, em 2004, representou um importante espaço para construção
de proposições na legitimação das Diretrizes Operacionais para Educação
Básica nas Escolas do Campo (BRASIL, 2002). Em 2010, instituições e
organizações que formavam o Movimento Nacional da Educação do Campo
fundaram o Fórum Nacional de Educação do Campo (FONEC).

O objetivo precípuo do FONEC é o exercício da análise crítica


constante, severa e independente acerca de políticas públicas
de Educação do Campo; bem como a correspondente ação
política com vistas à implantação, à consolidação e, mesmo, à
elaboração de proposições de políticas públicas de Educação
do Campo (FONEC, 2010).

Carvalho (2015), destaca a luta pela ampliação da oferta de formação


específica para profissionais que atuam em escolas do campo, inicialmente em
cursos de magistério para o campo, depois com as conquistas em nível
superior por meio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
(PRONERA), com os cursos de Pedagogia da Terra e outras licenciaturas, os
Cursos de Licenciatura em Educação do Campo, de Especialização e mais
recentemente de Mestrado têm contribuído para formar professoras(es) a partir
das especificidades desse projeto.
Em relação aos marcos normativos, o Movimento vem alcançando
conquistas significativas como a aprovação de legislações específicas, tais
como: a Resolução Nº 01/2002 (BRASIL, 2002) que institui Diretrizes
Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo.
Em 2006 foi homologado o Parecer Nº 01/2006 (BRASIL, 2006),
homologado pelo Conselho de Educação Básica, que reconhece os dias letivos
para a aplicação da Pedagogia de Alternância nos Centros Familiares de
Formação por Alternância (CEFFA). Em 2008 ocorre a provação da Resolução
02/2008 (BRASIL, 2008) que estabelece diretrizes complementares, normas e
princípios para o desenvolvimento de políticas públicas de atendimento da
Educação Básica do Campo.
O Decreto Nº 7.352/2010 dispõe sobre a política de educação do campo
e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA
(BRASIL, 2010); eleva a Educação do Campo ao patamar de política de
Estado. O Decreto destaca como princípios da Educação do Campo:
Nele, destacamos o Art. 2º que apresenta os princípios da Educação do
Campo:
I - respeito à diversidade do campo em seus aspectos sociais,
culturais, ambientais, políticos, econômicos, de gênero,
geracional e de raça e etnia;
II - incentivo à formulação de projetos político-pedagógicos
específicos para as escolas do campo, estimulando o
desenvolvimento das unidades escolares como espaços
públicos de investigação e articulação de experiências e
estudos direcionados para o desenvolvimento social,
economicamente justo e ambientalmente sustentável, em
articulação com o mundo do trabalho;
III - desenvolvimento de políticas de formação de profissionais
da educação para o atendimento da especificidade das escolas
do campo, considerando-se as condições concretas da
produção e reprodução social da vida no campo;
IV – valorização da identidade da escola do campo por meio de
projetos pedagógicos com conteúdos curriculares e
metodologias adequadas às reais necessidades dos alunos do
campo, bem como flexibilidade na organização escolar,
incluindo adequação do calendário escolar às fases do ciclo
agrícola e às condições climáticas; e
V - controle social da qualidade da educação escolar, mediante
a efetiva participação da comunidade e dos movimentos sociais
do campo (BRASIL, 2010, pp. 01-02).

Estes princípios trazem importantes elementos a serem consideração na


estruturação didático-pedagógica de ações no âmbito da Educação do Campo,
que possam assegurar um processo formativo voltado a valorização do campo
e de seus sujeitos. Trata-se de um processo, resultado da organização dos
trabalhadores e trabalhadoras do campo na luta pelo direito à educação
pública, gratuita e de qualidade, sinalizando possibilidade de humanização,
resistência e libertação destes sujeitos.

A educação do campo e as pedagogias decoloniais: caminhos


possíveis?

Para os movimentos sociais do campo, a escola é um espaço


estratégico para construção de conhecimentos, atitudes e comportamentos
essenciais aos processos de luta por justiça social. Entretanto, historicamente,
ela vem sendo usada para negar a identidade da classe trabalhadora e
fortalecer o projeto de dominação e expansão do capitalismo no campo, por
meio do agronegócio.

Para Arroyo (2012), o processo de tomada consciência dessas


populações mantidas por séculos sem direito a ter direitos, são presenças
incomodas que geram processo tensos e que interrogam o Estado, à docência,
o pensamento pedagógico, as práticas de educação popular e escolar. Assim,
a educação e a escola tornam-se espaços de disputa político-ideológica. Para
Arroyo (2012, p. 29):
A diversidade de movimentos sociais aponta que não podemos
falar de uma única pedagogia nem estática nem em
movimento, mas de pedagogias antagônicas construídas nas
tensas relações políticas, sociais e culturais de dominação/
subordinação e de resistência/ afirmação de que eles
participam. Todas as pedagogias fazem parte dessas relações
políticas conflitivas de dominação/ reação/ libertação.

Assim, a luta pelo direito a terra, a reforma agrária e a vida digna,


articula-se ao direito ao conhecimento e a educação escolar desde a educação
básica até a universidade (ARROYO, 2012).

Com base em seus princípios, a Educação do Campo possibilita a


vivência de pedagogias decoloniais, que possam superar processos de
opressão, dominação, subalternização. Propõe, dentre tantas questões, a
construção de práticas que favoreçam a humanização, libertação e
emancipação dos povos do campo.

Ao propor práticas que respeitem à diversidade do campo em seus


aspectos sociais, culturais, ambientais, políticos, econômicos, de gênero,
geracional e de raça e etnia (BRASIL, 2010), a escola do campo passa a ser o
lócus de construção de conhecimentos a partir daquilo que Mignolo (2003, p.
10) chama de diferença colonial. Para o autor:

A diferença colonial é o espaço onde as histórias locais que


estão inventando e implementando os projetos globais
encontram aquelas histórias locais que os recebem; é o espaço
onde os projetos globais são forçados a adaptar-se, integrar-se
ou onde são adotados, rejeitados ou ignorados.

Esse processo de adaptação permite emergir conhecimentos


construídos a partir da história e da cultura de grupos até então silenciados.
Para Caldart (2002) é preciso “converter a ação transformadora em
conhecimento e converter o conhecimento em ação transformadora.” Nesse
sentido, a escola estará pensando um currículo que respeito a realidade local e
os diferentes grupos que a construíram a partir de tensas relações de luta pela
terra e pela vida. Que conheçam os processos de opressão e libertação, que
se envolvam na transformação da realidade, superando as tentativas de
subalternizá-los e invisibilizá-los.
Ao valorizar a identidade da escola do campo por meio de projetos
pedagógicos com conteúdos curriculares e metodologias adequadas às reais
necessidades dos(as) estudantes do campo, bem como flexibilidade na
organização escolar, incluindo adequação do calendário escolar às fases do
ciclo agrícola e às condições climáticas; (BRASIL, 2010), a escola estará
dialogando com a realidade local e respeitando a dinâmica de vida e trabalho
dos diferentes sujeitos.

Ao incentivar à formulação de projetos político-pedagógicos específicos,


estimulando o desenvolvimento das unidades escolares como espaços
públicos de investigação e articulação de experiências e estudos direcionados
para o desenvolvimento social, economicamente justo e ambientalmente
sustentável, em articulação com o mundo do trabalho (BRASIL, 2010), a escola
do campo passa a assumir-se enquanto espaço de construção de
conhecimentos e saberes que contribuirão para o desenvolvimento das
comunidades, considerando, inclusive, os diferentes saberes e vivências ali
presentes.

Ao defender o desenvolvimento de políticas de formação de profissionais


da educação para o atendimento da especificidade das escolas do campo,
considerando-se as condições concretas da produção e reprodução social da
vida no campo (BRASIL, 2010), favorecerá uma maior contribuição por parte
dos(as) profissionais da educação, no sentido de conhecerem e contribuírem
com o projeto de campo, de sociedade e de educação almejado pela classe
trabalhadora e pelos movimentos sociais do campo. Como destaca Arroyo
(2012, p. 14)

Os coletivos sociais em suas presenças nos movimentos ou


nas escolas trazem Outras Pedagogias. Vítimas de processos
históricos de dominação/subalternização trazem suas
pedagogias de resistência. Trazem os contextos históricos, as
relações políticas, em que foram produzidos subalternos, mas
também trazem, com maior destaque, as resistências a esses
contextos e a essas relações sociais, econômicas, políticas e
pedagógicas.
Ao reafirmar o controle social da qualidade da educação escolar,
mediante a efetiva participação da comunidade e dos movimentos sociais do
campo (BRASIL, 2010), considera a importância dos diferentes sujeitos ao
longo do processo educativo, superando perspectivas discriminatórias em
relação a estes grupos. Para Arroyo (2012), é preciso repensar as
desigualdades sociais que levam a exclusão. Os sujeitos do campo, na defesa
do direito ao reconhecimento humano e epistêmico, lutam não apenas por
melhores condições de vida, mas, fazem dessa luta o sentido de sua
existência, sua história, seu viver.

O acesso aos conhecimentos historicamente acumulados, em diálogo


com os conhecimentos de vida, implica a construção de práticas educativas
capazes de ampliar a visão de mundo e de cidadania, bem como, as
possibilidades de organização e luta por direitos. Faz-se necessário, portanto,
ter conhecimento e embasamento histórico para resistir a qualquer tipo de
preconceito estabelecido por meio de uma educação eurocêntrica/
urbanocêntrica, buscando caminhos para equidade e justiça social.

Não podemos desconsiderar as diferentes vertentes que nos remetem à


Educação no Campo e como a mesma vem sendo construída por aqueles(as)
que trazem as marcas históricas de uma longa caminhada de superação.
Apesar de existirem leis que asseguram a oferta de uma educação específica e
diferenciada às populações campesinas, a realidade atual, por meio da
perseguição e criminalização da luta dos movimentos sociais, evidencia o
quanto este direito vem sendo ameaçado. Para Arroyo (2012), faz-se
necessário o fortalecimento da educação, pensada a partir de outros sujeitos e
outras pedagogias. Portanto, cada vez mais, é preciso fortalecer as
possibilidades de uma educação humanizadora, emancipatória e de
resistência.
Considerações finais

A presente pesquisa buscou investigar: como a Educação do Campo


contribui na construção de pedagogias de humanização, resistência e
libertação. Percebe-se que esta surge da luta dos movimentos sociais, como
uma forma de assegurar uma formação que considere o papel estratégico da
escola do campo, na consolidação de um projeto de campo, de sociedade, de
sujeitos e educação em consonância com os anseios da classe trabalhadora.

Destaca-se a importância dos movimentos sociais do campo, que por


meio de suas lutas, colocaram em pauta a necessidade de um outro projeto de
educação, que tenha as populações do campo como protagonistas, com direito
a voz, visibilidade, reconhecimento e valorização de sua história e saberes na
busca de uma melhor qualidade de vida.

Ao analisar o cenário da educação para as populações campesinas, é


notório que em termos legais ocorreram avanços significativos. Por outro lado,
as tensões entre projetos antagônicos trazem à tona os conflitos nos âmbitos
legal e político, para que políticas públicas não sejam efetivadas e
consolidadas.
Por fim, com base nas palavras de Freire (1967, p.28), ao afirmar que
“somente os oprimidos, libertando-se, podem libertar os opressores. Estes,
enquanto classe que oprime, nem libertam, nem se libertam”, destacamos o
papel fundamental da organização social e política da classe trabalhadora do
campo e da cidade, em parceria com os(as) profissionais da educação e os
sistemas de ensino, para que as estruturas históricas e violentas de dominação
possam vir a serem superadas, por meio de pedagogias de libertação,
resistência, humanização e libertação.

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ENTRE O BRANQUEAMENTO ESTÉTICO E AS
ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA NEGRA: REFLEXÕES
TEÓRICAS

Mislânia Barros Oliveira


Mestra em Culturas Africanas, da Diáspora e dos Povos Indígenas – UPE/PE
Erika de Sousa Mendonça
Professora Doutora do Mestrado em Culturas Africanas, da Diáspora e dos
Povos Indígenas – UPE/PE

Introdução

O artigo se alicerça numa reflexão sociopolítica que busca compreender


os efeitos do racismo na produção cultural e subjetiva da população brasileira.
Configura-se como uma pesquisa bibliográfica, comprometida com o
estabelecimento de diálogos entre a perspectiva de “branqueamento” de Maria
Aparecida Bento (2002), de sofrimento e transtornos psíquicos de Frantz Fanon
(2008), de “entre-lugar” de Homi Bhabha (1998) e de identidade de Stuart Hall
(2006), além de transitar entre outros autores que ampliam o referido debate.
Foram realizadas reflexões sobre a dinâmica das transformações sociais e
culturais por meio da diáspora dos povos negros, indígenas e brancos, em um
contexto de estabelecimento de normas e modos de existência coletiva que
prevaleceram no período colonial, mas cujas consequências permanecem e
são sentidas até os dias atuais, sobretudo pela população afrodescendente.
Partindo-se desta discussão mais abrangente, o artigo, contudo, tem o
propósito de construir debates focados na noção do branqueamento da estética
dos povos africanos, indígenas e afrodescendentes.
Como elemento associado à formação da sociedade brasileira,
observam-se os juízos de valor sobre o branqueamento racial de cor, este que
continua sendo apreciado e estimulado cotidianamente. Nessa conjuntura,
também a concepção de que há ações e comportamentos próprios de negros,
indígenas e brancos ainda está arraigada na sociedade brasileira, o que faz
com que grupos invisibilizados busquem distintas linguagens para expressar
sua identidade enquanto equânime, e não - inferior ou superior às demais.
Nesse viés, considera-se a vestimenta como representativa de identidades,
impressa como forma de resistência a atitudes que desvalorizam e/ou
inferiorizam negros, afro-brasileiros e indígenas.
Diante deste cenário, Bento (2002, p. 8) afirma: “Os culpados potenciais,
sobre os quais voltou-se a agressividade coletiva, foram os considerados
estrangeiros, os viajantes, os marginais e todos aqueles que não estavam bem
integrados a uma comunidade e, por esse motivo, eram, em alguma medida,
suspeitos”. As repercussões a tais posicionamentos continuam sendo sentidas
neste tempo que hoje se define como colonialidade, ou seja, com vivências que
se atualizam a partir das marcas do processo de colonização e sua
subsequente subtração de originalidades culturais dos povos africanos e
indígenas, e a instauração do racismo e de ditaduras de branquitude – aquelas
que mantêm os privilégios dos brancos.
Partindo dessas proposições, o texto foi delimitado em duas seções de
revisão de literatura. Na primeira parte, são apresentadas concepções para
entender o branqueamento dos padrões estéticos e como esse fator está
relacionado ao racismo e ao colonialismo. Na segunda parte, busca-se abordar
o vestuário como linguagem não verbal que mostra, por um lado, o processo de
aculturação e submissão a transformações socioeconômicas, políticas e
culturais nas sociedades contemporâneas e, do outro lado, no contraponto, o
desejo e a capacidade de resistir às determinações dos sistemas político e
econômico, no qual a população está inserida.

A lógica do branqueamento e a compreensão do racismo


no Brasil

Quando se estudam as relações raciais no Brasil, são perceptíveis


ações com fins de contribuir com a luta para a mitigação da visão racista
constituída na sociedade brasileira por conta do regime escravista, uma vez
que a população escrava, sobretudo negros, foi vista no período colonial pelo
sujeito coletivo como símbolo de ininteligência, anticriatividade e anticultura.
Sob essa ótica, o europeu foi acionado como personificação de poder,
civilização e referência para outras culturas, embora tenham necessitado da
força bruta e da aptidão intelectual dos negros para o seu crescimento e
dominação econômica.
Nesta relação conflituosa que se estabelece entre negros e vivências
subalternizadas, de um lado, e brancos e vivências de poder e auto referência,
de outro, é válido que reportem as seguintes considerações, tecidas por Bento
(2002, p. 01): “No Brasil, o branqueamento é frequentemente considerado
como um problema do negro que, descontente e desconfortável com sua
condição de negro, procura identificar-se como branco, miscigenar-se com ele
para diluir suas características raciais”. Assim, o corpo negro, para ser aceito
nos espaços sociais, culturais e laborais, foi influenciado pelo padrão estético
dominante, ou seja, aquele que mais se assemelhava à estética branca,
buscando a miscigenação. Isso porque negros eram(são) vítimas de exclusão
social, preconceito e relações sociais que consideravam a diversidade étnico-
racial um problema, ao passo em que, para brancos, persistem os privilégios.

Na verdade, quando se estuda o branqueamento


constata-se que foi um processo inventado e mantido
pela elite branca brasileira, embora apontado por essa
mesma elite como um problema do negro brasileiro.
Considerando (ou quiçá inventando) seu grupo como
padrão de referência de toda uma espécie, a elite fez
uma apropriação simbólica crucial que vem fortalecendo
a autoestima e o autoconceito do grupo branco em
detrimento dos demais, e essa apropriação acaba
legitimando sua supremacia econômica, política e social.
O outro lado dessa moeda é o investimento na
construção de um imaginário extremamente negativo
sobre o negro, que solapa sua identidade racial, danifica
sua autoestima, culpa-o pela discriminação que sofre e,
por fim, justifica as desigualdades raciais. (BENTO, 2002,
p. 1-2)

Na segunda metade do século XIX e na primeira metade do século XX, a


miscigenação brasileira foi apresentada na História brasileira como algo
positivo em teses eugenistas, as quais defendiam um padrão estético em
relação ao fenótipo, trazendo a raça branca como superior em relação às raças
negra e indígena. Tal contexto corrobora até os dias atuais para a construção
da imagem inferiorizada desses povos na cultura brasileira e em outros países.
Conforme Fanon (2008, p. 161), “na Europa, o preto tem uma função:
representar os sentimentos inferiores, as más tendências, o lado obscuro da
alma. No inconsciente coletivo do homo occidentalis, o preto, ou melhor, a cor
negra, simboliza o mal, o pecado, a miséria, a morte, a guerra, a fome”
(destaques do autor).
Na direção de uma exclusão dos povos não-brancos, até o século XIX,
práticas culturais dos africanos escravizados eram reprimidas. Tal situação
está interligada ao imaginário africano, ora visto como fabuloso ora como
espantoso, por ser associado às religiões africanas, as quais, eram(são)
oprimidas. Isso proporcionava aos brancos o pensamento sobre quais atitudes
os africanos seriam capazes de realizar. Por esse imaginário não fazer parte da
cultura europeia sobre os africanos foi constituída e, na atualidade ainda, é
repleta de estereótipos, com resquícios dessa figuração na sociedade, cultura e
literatura brasileira.
Com a abolição da escravatura no Brasil no final do século XIX, livros
começaram a trazer o negro como personagem, já desde aí privilegiando-se o
negro mestiço:
Surge a primeira heroína escrava, na obra A escrava
Isaura, do escritor romântico Bernardo Guimarães.
Entretanto, o escritor mineiro, provavelmente, para não
chocar as elites - o público leitor, embranqueceu-a
(SILVA, Luciana; SILVA, Kátia, 2011, p. 5).

Sob esse olhar, a personagem Isaura, protagonista da referida obra


literário, por ser filha de mãe negra escravizada e pai português, branco e
pertencente à elite de sua época e em período abolicionista, representa, na
literatura, a superação de humilhações através do branqueamento.
Tal pensamento proporciona reflexão em torno do que é ser “negro”,
“mestiço” ou “branco”, uma vez que a mestiçagem não deve ser vista somente
como um fenômeno biológico, mas também, e principalmente, político-
ideológico.
A ideologia colorista, construída na segunda metade do século XVIII em
relação aos não brancos, deu origem a um “sub-racismo” das pessoas de cor,
que deveria ser denominado de “racismo derivado”, na medida em que se trata
de uma interiorização e de um reflexo do racismo construído sob uma ótica
capitalista e elitista, na época com cor de pele branca. É toda uma cascata de
menosprezo que se instalou, indo do mais claro ao mais sombrio, descendo
toda a graduação das nuanças descritas (MUNANGA, 2019, p. 39).
Tal contexto também encontra notoriedade no filme Vênus Negra, de
Abdellatif Kechiche, no qual a personagem Saartjes Baartman, ex-empregada
doméstica africana, vendida, que desejava ser artista na Europa, é comparada
a um animal selvagem, ratificando socialmente a inferioridade da raça. Em
Londres, ela se tornou uma atração famosa, trajada com peça de roupa justa e
de cor que se aproximava da cor de sua pele, o que contribuía para mostrar
suas curvas e partes do corpo avantajadas, apresentada de modo enjaulado,
em sinal de sua suposta periculosidade. Já em Paris, a personagem foi tocada
por mulheres brancas que admiravam suas nádegas proeminentes,
acreditando que Baartman gostava da situação, enquanto ela sofria com as
ocorrências. Todavia, não deixava de praticar os números e seguir ordens de
seu senhor. Tanto o racismo quanto a escravidão já estavam instauradas nos
personagens que, afinal, evidenciavam um recorte da realidade vivida.
Desde o período colonial, a imagem pejorativa da negra africana foi
trazida ao Brasil, não por meio desta ilustração, uma vez que a citada escrava
era ficcional, mas pela atuação do branco europeu, que construiu, a partir da
formação da sociedade brasileira, um imaginário sobre o negro como ser de
pouco valor, capaz de causar o mal, reforçando estereótipos que contribuem
para a ascensão e sustentação do racismo e ocasionam sofrimentos a esses
povos.
Tal sofrimento de humilhação social ficou impresso no
psiquismo dos afro-brasileiros e tem sido passado de
geração em geração por meio de valores da ideologia do
branqueamento, desdobrada em crenças e valores e
expressada em frases, tais como: o negro sabe qual é o
seu lugar; isto é serviço de preto; ou atitudes que
mostram a estereotipia, o racismo (ANDRE, 2007, p.
154).

Com base nesses vieses, compreende-se que a mestiçagem associada


à cultura afro-brasileira perpassa como um ideal e, ao mesmo tempo,
apresenta uma posição de raça politicamente inferior.
Nessa direção, pode-se considerar que “o branqueamento moral e/ou
social estava fundado na aquisição ou assimilação pelo negro de atitudes e
comportamentos presumivelmente ‘positivos’ do branco”, como reflete
DOMINGUES (2001, p. 6). Essa apropriação proporcionou, por sua feita, mas
apenas em certa medida, a aceitação desses povos na sociedade em que
estão inseridos, embora haja a denúncia evidente e contundente quanto à
ausência de equidade de oportunidades entre brancos e negros.
A colonização atuou, enfim, para que homens negros e mulheres
negras, por meio de sua aparência fenotípica, fossem rotulados como feios,
sujos, inferiores, sexualizados e violentos, considerando-os desarmônicos no
que se refere a um padrão estético eugenista.
[...] políticas higienistas e eugenistas embasaram várias
medidas de segregação racial. Uma delas, por exemplo,
se efetivou através da estruturação do espaço geográfico,
limitando as áreas de confluência entre os corpos
considerados belos e saudáveis e a plebe rude, com seus
corpos maltrapilhos e doentes (MATTOS, 2009, p. 46).

Foi dessa maneira que o Brasil se desenvolveu em relação ao corpo


negro, uma vez que para ser aceito nos espaços sociais, culturais e laborais,
era influenciado pelo padrão estético que mais se assemelhava à estética
branca. Isso porque negros eram vítimas de preconceito e exclusão, com
relações sociais que consideravam a diversidade étnico-racial um problema.
Historicamente, para os traficantes, o negro foi considerado peça de troca e
fonte de renda (RODRIGUES, 2006); as mulheres negras, para os senhores,
eram consideradas objetos sexuais (PEREGALLI, 2009); para o sistema
escravista, o corpo, o intelecto e o espírito do negro eram aceitavelmente
castigáveis (MAESTRI, 1987; PEREGALLI, 2009). Nesse sentido, todas as
imagens juntas representam uma mesma base: sujeito estigmatizado.
Desse modo, estereótipos concebidos desde o período colonial sobre o
corpo preto fizeram com que negros(as), para se sentirem incluídos na
sociedade, buscassem o modelo de brancura estipulado, acreditando que a
branquidade possibilitaria ascensão social. Com esse modelo de referência,
negros(as) foram chamados de morenos(as), um rótulo criado como forma de
esconder a negritude, visto que ser negro(a), em uma sociedade racista, era
expressão característica de desvantagem, subalternidade, marginalidade e
animalidade.
Nos primeiros registros sobre o Brasil, construções imagéticas sobre os
corpos negros já são evidenciadas mesmo na Carta de Pero Vaz de Caminha,
a qual destaca os encantos dos corpos nativos, ao mesmo tempo que
desconstrói essa imagem, uma vez que os costumes dos nativos são relatados
como incompreensíveis pelo modo de exposição social, com destaque à nudez
e sensualidade (PACHECO, 2004).
Com base nesses vieses, fica evidente que os corpos, sobretudo de
mulheres negras e indígenas, foram associados à sexualidade como ato
pejorativo, resultando em sofrimentos psicológicos e violações físicas para
ambas as raças.
Dado o exposto nota-se que, pelas portuguesas, à época, vestirem-se
com mais peças de roupas, há depreciação de Caminha em relação à cultura
indígena, em consequência da prática de vivência europeia, que é vista no
mundo como uma cultura que influenciou e influencia muitas outras, em razão
dos acontecimentos históricos marcados por deslocamentos políticos,
econômicos e culturais, sendo, por essas questões, uma cultura identificada
como privilegiada e superior às demais. Desse modo, é relevante citar que: “No
campo da teoria da discriminação como interesse, a noção de privilégio é
essencial. A discriminação racial teria como motor a manutenção e a conquista
de privilégios de um grupo sobre outro, independentemente do fato de ser
intencional ou apoiada em preconceito” (BENTO, 2002, p. 3-4).
Com esse raciocínio é possível identificar, ainda, nos registros da
literatura brasileira, que a vestimenta utilizada por personagens negros é tida e
vista socialmente – até os dias atuais – como símbolo de inferioridade, uma vez
que trajes, por exemplo, como o da personagem Tia Nastácia do autor
Monteiro Lobato são relacionados a profissões desvalorizadas. Além disso, em
obras como Histórias de Tia Nastácia, também do mesmo autor, identificam-se
narrativas que ridicularizam a aparência física do sujeito negro, com destaque
aos lábios grossos da boca. A partir dessa perspectiva, são muitas as obras
literárias identificadas para a formação cultural brasileira que perpetuam
estereótipos de mulheres negras e indígenas, que são erotizadas,
animalizadas, subalternizadas como serviçais e inferiorizadas pela cor de pele,
traços faciais como os do nariz e da boca, cabelos crespos ou cacheados de
cor preta, capazes de superar essas questões apenas por meio do
branqueamento. Fomentando essa reflexão, Fanon cita:
Mayotte ama um branco do qual aceita tudo. Ele é o seu
senhor. Dele ela não reclama nada, não exige nada,
senão um pouco de brancura na vida. E quando,
perguntando-se se ele é bonito ou feio, responde: “Tudo
o que sei é que tinha olhos azuis, que tinha os cabelos
louros, a pele clara e que eu o amava” (FANON, 2008, p.
54).
Nesse trecho narrativo, observa-se o sentimento de humilhação de si e
valorização do branco, que é construído no negro e no indígena, mas não
apenas, uma vez que outros leitores e ouvintes desses contextos, acabam
concebendo em seu imaginário o símbolo dessas populações como inferiores.
Para um melhor entendimento da construção de sentimentos que
oprimem o outro, torna-se imprescindível, pois, compreender o eurocentrismo
presente no processo de branqueamento, ressaltando-se o seguinte
pensamento:
O eurocentrismo não é exclusivamente, portanto, a
perspectiva cognitiva dos europeus, ou apenas dos
dominantes do capitalismo mundial, mas também do
conjunto dos educados sob a sua hegemonia. E embora
isso implique um componente etnocêntrico, este não o
explica, nem é a sua fonte principal de sentido. Trata-se
da perspectiva cognitiva durante o longo tempo do
conjunto do mundo eurocentrado do capitalismo
colonial/moderno e que naturaliza a experiência dos
indivíduos neste padrão de poder. Ou seja, fá-las
entender como naturais, consequentemente como dadas,
não susceptíveis de ser questionadas (QUIJANO, 2009,
p. 74-75).

Sob esse prisma, o eurocentrismo manifesta-se também na estética,


orientando padrões: pessoas magras, pele branca e cabelos lisos, trajando
roupas que representam modelos clássicos europeus, como um espelho de
graciosidade e/ou formalidade. Ou seja: quem não se adequar a essas regras,
não terá beleza e aceitação. Tal demanda é solicitada aos povos indígenas,
africanos e afrodescendentes, ao passo que os brancos – com sua estética
naturalmente aceita, ao menos sob o viés da cor da pele – têm, em sua
maioria, silenciado sobre a desigualdade racial.
Com base nisso, o medo assola as culturas de outros povos, os quais,
para não serem vistos como objetos de exploração, animais irracionais e seres
que infringem as leis, se submetem a processos de aculturação e
branqueamento. Consolidando essas reflexões, é importante referenciar Bento
(2002) quando, analisando as relações raciais, afirma a existência de: uma
faceta complexa, eurocentrada, que tem por finalidade “legitimar a ideia de
superioridade de um grupo sobre o outro e, consequentemente, as
desigualdades, a apropriação indébita de bens concretos e simbólicos, e a
manutenção de privilégios” (p. 7).
O outro – o não-branco – inicia, desse modo, a adaptação ao contexto
externo, no qual se destacam as desafiadoras linguagem e cultura europeia.
Há dificuldades pelo hibridismo e choque entre os costumes, pelas relações
que se estabelecem, pela escravização imposta. Na maior parte das vezes, o
outro está em situação de afastamento de si, de seus familiares e de suas
tradições, com a adoção de atitudes que o colocam em processo de negação
de identidade.
De acordo Bhabha (1998, p. 195): “Em qualquer discurso colonial
específico, as posições metafórica/narcisista e metonímica/agressiva
funcionarão simultaneamente, mas sempre colocar-se-ão em locais
estratégicos em relação à outra”. Ou seja, mesmo sabendo que o outro não
possui características determinantes, agem como se ele as tivesse.
Concordante a essa ideia: “O que se entende por discurso colonial como
aparato do poder emergirá mais completamente como crítica a textos
específicos e históricos” (BHABHA, 1998, p. 184). Sob esse viés, o corpo negro
torna-se linguagem que refabrica símbolos e imaginários diante de discursos
coloniais e do branqueamento da estética física. O corpo torna-se um arquivo
de memória, o qual entrelaça ancestralidade, crenças, culturas, sociedades e
pretensões de povos, concebendo não apenas símbolos, mas posição política,
o corpo torna-se “um lugar de fala”.
Diante dessa perspectiva, ter pele preta, cabelo crespo, usar
determinadas vestimentas e acessórios, até os dias de hoje recai sobre negros
e indígenas como símbolos negativos, configurando instrumentos pelos quais a
população “justifica” graus de discriminação, uma vez que são vistos como o
que precisa ser adequado a locais, tempo e culturas, a fim de não serem
identificados como seres ruins. Nesse sentido, destaca-se a eugenia, que
buscava uma “sociedade perfeita”, mas defendia uma sociedade menos preta e
mais mestiça, peles pardas e cabelos menos crespos, o que contribui para a
construção de uma relação de poder, configurando a raça branca como
superior, e a raça negra como inferior e subalterna:
A eugenia foi uma tentativa científica de “aperfeiçoar” a
população humana por meio do aprimoramento de traços
hereditários — noção popular por toda a Europa e
Américas no período entre guerras [...] Uma eugenia
“pesada” baseada na remoção do acervo reprodutivo de
indivíduos que possuíam traços indesejados por meio da
esterilização ou do genocídio foi aplicada em diversos
graus em países como a Alemanha Nazista, a Grã-
Bretanha e os Estados Unidos. Essa variedade de
eugenia combinava bem com as ideias sobre raça
defendidas pelas elites brasileiras que admitiam a
inferioridade dos pobres e não-brancos e ainda assim
buscavam a possibilidade de recuperar essa população e,
consequentemente, a nação (DÁVILA, 2006, p. 31-32).

Sob esse olhar, a ideologia do branqueamento racial, que por muito


tempo foi absorvida pela população negra e pelos povos indígenas, passa ao
declínio na contemporaneidade, mesmo que as raízes ainda se façam
presentes, uma vez que os sujeitos não possuem uma identidade
institucionalizada, retificada e unificada, mas em constante transformação.
Sobre a identidade, Hall (2006, p. 7) afirma: “As velhas identidades, que
por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo
surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto
como um sujeito unificado”.
Essa mudança ocorre, possivelmente, devido ao “entre-lugar” que
Bhabha defende, o qual compreende novas maneiras de povos invisibilizados
afirmarem suas tradições culturais, resgatar e fortalecer vivências e
características coibidas, independente do espaço-tempo sociocultural. Para o
autor, “esses ‘entre-lugares’ fornecem o terreno para a elaboração de
estratégias de subjetivação singular ou plural que dão início a novos signos de
identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir
a própria ideia de sociedade” (BHABHA, 1998, p. 20).
Essa perspectiva de transformação de sujeitos se dá, sobretudo, por
meio de questões multiculturais de alteridade e solidariedade, o que justifica o
crescimento de compreensões multiculturais relacionadas à diferença,
construída por meio de símbolos entre superior e inferior, branco e negro e
indígena, por exemplo. Nessa relação, o movimento diaspórico proporciona
que a diferença seja acolhida, o que possibilita o hibridismo cultural e explica o
processo de ressignificação sobre o conceito de cultura nacional homogênea,
cenário esse atribuído à África, especialmente entre a população brasileira,
uma vez que se falava em África como espaço de uma única cultura.

O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com


"o novo" que não seja parte do continuum de passado e
presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente
de tradição cultural. Essa arte não apenas retoma o
passado como causa social ou precedente estético; ela
renova o passado, refigurando-o como um "entre-lugar"
contingente, que inova e interrompe a atuação do
presente (BHABHA, 1998, p. 27).

Fanon (2008) é outro pensador que reconhece a necessidade de povos


subordinados afirmarem suas tradições culturais. Tal ação contribuiria a que
populações invisibilizadas deixassem de ser objetos de observação e
passassem a ser sujeitos de narrativas isoladas, personagens principais de
suas próprias histórias, atenuando sofrimentos psíquicos provocados por
estereótipos de uma formação nacional sem sentido de “comunidade”. O
processo migratório seria, desse modo, um passo para a libertação do
anonimato de povos subordinados, bem como do reconhecimento e
valorização das culturas desses povos.
Nesse sentido, a aparência física do negro, principalmente a cor da pele,
o cabelo crespo, o uso de turbantes e vestimentas com cores vibrantes,
repletas de símbolos, são essenciais para o mundo compreender a presença
de identidades afirmativas. O mesmo pode ser atribuído aos povos indígenas,
em relação à utilização de poucas peças de roupas, a depender do “entre-
lugar”. Porém, é essencial que sociedades aceitem o uso desses recursos
como linguagem identitária, mas não limitem a identidade do negro e do
indígena a esses elementos.
Sob esse ponto de vista, negando o ideal de branqueamento, negros e
indígenas vêm buscado ações de identificação social, construção de uma
sociedade plurirracial e pluricultural, ressignificando estratégias e assumindo
símbolos que rompem com padrões estéticos, fortalecendo expressões
identitárias híbridas.
A vestimenta como espaço de resistência à ideologia do
branqueamento

Construções sociais que definem valorações morais são dinâmicas e


oscilam de acordo com o seu contexto de produção (contexto temporal,
cultural, político, econômico). Nessa direção, também são as valorações
referentes à moda, à estética, às vestimentas, tendo sido estas últimas
inseridas na cultura indígena pelos colonizadores. A partir do primeiro ato de
desbravar o Brasil, as roupas dos europeus foram impostas pelos que aqui
habitavam. Para os indígenas brasileiros, porém, trajes não estavam
relacionados a aspectos morais, mas como expressão de sua cultura, seus
ritos e sua identidade.
Essa característica também é percebida nos povos africanos e afro-
brasileiros que, na contemporaneidade, no Brasil, vêm aderindo a vestes e
adereços como instrumentos de afirmação, edificação, cuidado e preservação
da identidade negra. Vestuário e adornos que referenciam a estética da África
são, assim, utilizados como símbolos políticos de resistência e luta contra o
racismo, e representam o discurso das comunidades indígenas e negras. É um
outro modo de se expressar e de se reafirmar. Para autores como Fanon,
“Falar é (...) sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma
civilização” (FANON, 2008, p. 33).
No Brasil e no mundo as pessoas, para saírem de suas casas, escolhem
indumentos, de acordo com as opções que são disponibilizadas pelo seu
próprio guarda-roupa, a depender da etnia, raça, cultura e classe
socioeconômica, com as quais o indivíduo se identifica e está inserido. As
combinações das peças de roupa e acessórios são diversas e são muitos os
fatores que contribuem para isso clima, tempo, acesso financeiro, local e
situação aos quais se dirigem, além do desejo de pertencimento e
identificação. Porém, por trás de uma ação tão corriqueira, a seleção de
determinadas peças apresenta, além das características funcionais, o anseio
do indivíduo mostrar a personalidade ou como deseja ser notado pela
sociedade em que está inserido. Fatores como raça, etnia e cidadania são
determinantes para esse diálogo, sobretudo, para que a sociedade consiga
resistir a forças opressoras diante de um posicionamento de “superioridade” de
outras culturas, especialmente, de brancos.
Nessa conjuntura, é cabível conceituar vestuário como uma linguagem
não verbal e, por muitas vezes, híbrida, que evidencia gostos, classe social,
raça, etnia, gênero, identidades, profissão e tipo de trabalho, além de poder ser
utilizado para agradar um grupo social, seja porque pertence a ele, ou por
desejar fazer parte dele. Além disso, a utilização das roupas vai além da
individualidade, configurando representação e afirmação de identidades
coletivas, visto que o sentir é materializado no corpo trajado como forma de
ação, no reflexo de cores, formas e pensamentos. Assim, a estética negra
valoriza a identidade negra e sua cultura.
Com base nessas ponderações, Bento (2002, p. 5) reflete:

A explicação desses vieses diz respeito à necessidade do


pertencimento social: a forte ligação emocional com o
grupo ao qual pertencemos leva-nos a investir nele nossa
própria identidade. A imagem que temos de nós próprios
encontra-se vinculada à imagem que temos do nosso
grupo, o que nos induz a defendermos os seus valores.
Assim, protegemos o "nosso grupo" e excluímos aqueles
que não pertencem a ele.

Aqui, é cabível estabelecer uma contextualização com o tecido capulana


que é objeto de identidade de Moçambique, configurando-se como um
documento vivo para a compreensão do país, visto que, além de ser utilizado
por questões estéticas, é símbolo de poder e intenções políticas. Há capulanas
com imagens que relatam histórias moçambicanas importantes para os povos
de lá, por exemplo. Ademais, carrega uma forte representação simbólica para
as mulheres, porque são dadas por homens que as amaram, seja em uma
relação de amor eros ou filial. Em relação ao Brasil nota-se, sobretudo em
cidades litorâneas, a comercialização de diversas peças de vestuário feitas da
capulana, por exemplo, as cangas usadas na praia.
Para o sujeito que produz trajes utilizando o tecido capulana, o vestuário
emerge, pois, como imagem simbólica que permite a representação de seus
desejos, uma afirmação do lugar de pertencimento, o ser e estar, por exemplo,
no Brasil, país marcado por processos de lutas e busca de direitos individuais e
sociais. Para os brasileiros e brasileiras que utilizam vestes produzidas em
capulana, a energia representada pelas estampas pode influenciar nas formas
de viver e estar no mundo, pois corrobora com o resgate da cultura dos
ancestrais e da estética, e contribui para a afirmação de identidades raciais,
não as classificando como superior ou inferior, mas como híbridas. Assim, sob
a perspectiva de Durand, citado por Pitta (1995, p. 4): “O conhecimento, muitas
vezes através das artes, de outras maneiras de organizar o mundo, permite
‘temperar’ a própria”. Também Braga (2012, p. 2) contribui à reflexão:

Sem os folguedos populares como maracatu, reisado e


bumba meu boi (surgidos nessa “periferia do Brasil” que é
o Nordeste e que ocupou as periferias da cidade de São
Paulo, com migração), sem a congada, sem o jongo ou a
capoeira ou o candomblé, ou seja, sem as manifestações
culturais negras das periferias simbólicas porque à
margem das elites autocentradas - e reais -, às margens
dos riscos cartográficos que delimitam as cidades -, hoje,
periferias-cêntricas (lá e cá, em todo lugar), não veríamos
surgir repente, embolada, literatura de cordel ou a rica
dramaturgia de grupos ativos atualmente, como Teatro
Popular Solano Trindade (continuado pela família do
poeta e dramaturgo na cidade que o escritor “adotou”,
Embu das Artes), Nós do Morro, Cia. Os crespos,
Capulana e outros que, aos poucos, vão ocupando os
palcos, os ouvidos e outros sentidos para além dos
espaços periféricos (ambos com igual importância de
serem ocupados!).

A diversidade cultural que o autor aborda, expressa o hibridismo e a


comunicação dos recursos que afirmam não somente a identidade de
africanos, mas de afro-brasileiros. Porém, é importante não tratar povos,
africanos e afro-brasileiros como influenciadores de moda, artes, dança,
música, língua (embora tenham o potencial de ser, se assim o desejarem); mas
como sujeitos constituintes do Brasil, que utilizam tais artefatos como
dispositivos de constituição e afirmação de si e da sua negritude.
Por muito tempo, os panos estampados foram considerados, na África,
símbolos de poder. A capulana, por exemplo, era tecido utilizado pela elite
africana. Já subordinados, silenciados, usavam panos brancos e lisos -
imagens que podem ser identificadas em livros literários, didáticos, revistas e
representava o período da escravidão. Com isso, é perceptível uma afirmação
social de poder, mas não uma afirmação identitária dos povos tradicionais. A
escravidão e a opressão demarcaram espaços, acessos, objetos como sendo
de direito de povos específicos, estabelecendo locais e produtos “de negro”,
bem como locais e produtos “de branco”, enfatizando mundos distintos e
realidades distantes, como se tal contexto não pudesse ser transformado.
Essa conjuntura tem modificado, e o tecido tradição da África tem estado
presente como manifestação em diversos locais do mundo, inclusive no Brasil,
concebendo uma narrativa de resistência, e um espaço de abertura a discursos
críticos, desconstruindo fronteiras culturais pré-estabelecidas como superiores.

Falar sobre margem como um lugar de criatividade pode,


sem dúvida, dar vasão ao perigo de romantizar a
opressão. Em que medida estamos idealizando posições
periféricas e, ao fazê-lo, minando a violência do centro?
No entanto, Bell Hooks argumenta que este não é um
exercício romântico, mas o simples reconhecimento da
margem como uma posição complexa que incorpora mais
de um local. A margem é tanto um local de repressão
quanto um local de resistência (Hooks, 1990). Ambos os
locais estão sempre presentes porque onde há opressão,
há resistência. (KILOMBA, 2008, p. 68-69).

Do exposto, quando o/a negro/a é limitado a ações de trabalho, de


comportamento, de exposição de si, através de um corpo individual e social
manipulado por imposições de poder que denotam uma suposta racialidade
superior, determinada pela cor de pele branca, urge a resistência cultural e
social, valorizando a história, a cultura e a estética dos antepassados. Há um
século, essa resistência se dava em espaços específicos, em guetos, através
da formação de quilombos. Mais recentemente, por meio do trajar, o corpo
negro torna-se linguagem que refabrica símbolos e imaginários diante de
discursos coloniais e do branqueamento da estética, tornando-se um arquivo
de memória, o qual entrelaça ancestralidade, crenças, culturas, sociedades e
pretensões, concebendo não apenas símbolos, mas posição política e
ideológica.
No entanto, vale ponderar, em relação à utilização de peças de roupas e
acessórios que denotam uma referência à identidade negra originária, que nem
sempre o uso da vestimenta revela estratégia política, havendo também uma
parcela da população que as utiliza pela massificação de suas características.
Nesse cenário, as pessoas usam algo ou não usam, de modo despretensioso,
ou ainda – provocativamente pela imagem de aceitação ou ridicularização que
constroem diante do sujeito coletivo (e isso vale para pessoas negras e
também brancas). Quando não se firma essa relação de assimilação e
incorporação política, sujeitos podem construir imagens ambíguas, permitindo
uma homogeneidade na representação. Como afirma Durand (1975, p. 67): “O
símbolo seria sempre o produto dos imperativos bio-psíquicos provenientes das
intimações do meio”.
Sob esse olhar, é de conhecimento amplo que o Brasil é um país
formado a partir da diáspora dos povos indígenas, africanos e europeus. Logo,
para que essa relação seja compreendida, é importante que se reconheçam o
local, a posição e a expectativa social, cultural e econômica que cada um
ocupou e ocupa, possuiu e possui, até o momento, no país. Nesse ínterim, é
notável que povos indígenas, africanos e afro-brasileiros sofreram e sofrem
uma regulamentação de poder desde o período colonial. Quanto mais próximos
estiverem das “normas” impostas, maior será a construção de subalternidade e
assujeitamento às ações e aos comportamentos a que estão submetidos.
Dessa forma, é o procedimento de “regulação e um controle do olhar que
define quem são e como são os Outros. Visibilidade e invisibilidade constituem,
nesta época, mecanismos de produção da alteridade e atuam simultaneamente
com o nomear e/ou deixar de nomear” (DUSCHATZKY; SKLIAR, 2001, p. 04).
Contrariando pensamentos coloniais, os negros africanos, por exemplo,
não chegaram ao Brasil sem trazer consigo a cultura do seu povo. Outrossim,
trouxeram nuances, artefatos e mesmo concepções culturais, as quais foram
construídas a partir da complexidade de várias etnias, o que repercute na
presença de diversas línguas, religiosidades e costumes, configurando
heterogeneidade cultural.
Tal multiculturalidade permite que, por vezes, pessoas sofram nas
relações interpessoais ao se sentirem intimidadas diante do diferente, do
desconhecido, ou de assumirem traços identitários num contexto adverso.
De acordo com as considerações realizadas, o que fica evidente, por
meio deste artigo, é a luta e resistência de negros e indígenas diante das
atitudes concretas, como a imposição da escravidão ao negro, e abstratas,
como a construção da imagem do negro e do indígena como ser inferior a
europeus brancos, aos quais devem se adequar. Nesse sentido, como luta
política e afirmação ideológica, essa parcela da população busca vestir-se,
utilizando tecidos e adereços semelhantes aos usados por seus ancestrais,
como um movimento de visibilidade e representatividade politicamente
estratégica.

Considerações finais

Reconhece-se que o racismo, bem como a ideologia e prática instituídas


de branqueamento racial, produzem tanto subjetividades subalternizadas
quanto resistentes. Ademais, também produzem sofrimentos naquelas
populações alijadas de direitos e oportunidades, com exposição cotidiana a
situações de discriminação racial. Tais vivências são amparadas pela lógica da
supremacia branca, que evidencia privilégios e relações de poder, o que
contribui à invisibilidade ou negação das populações negras e indígenas,
considerando espaços, períodos históricos, aspectos políticos, econômicos,
culturais e socioculturais, além das demandas psicossociais de reparação e
inclusão.
Sob tal prisma, o vestuário, assim como outras linguagens culturais, tem
papel importante na afirmação da identidade de grupos sociais, a qual, ao
longo do tempo pode ser transformada, pois a evolução da humanidade
permitiu caracterizar a identidade como dinâmica, móvel, descentralizada.
No caso da identidade negra, volta-se o olhar, também, às vestes, estas
que são constituídas de ideias e simbologias que proporcionam e possibilitam
ao negro e ao indígena o reconhecimento, o sentimento de fazer parte, de ser
sujeito pertencente à multiculturalidade brasileira.
Sobressaem-se, nesse cenário, características da vestimenta afro-
brasileira, que incluem afirmação, comunicação, resistência e ruptura de
padrões pré-estabelecidos firmados e naturalizados por meio de livros, filmes,
revistas, resgates históricos enviesados e narrados, muitas vezes, sob a
perspectiva do colonizador europeu.
O artigo pretendeu observar como a vestimenta comunica emoção,
posicionamento, ação política, por ser uma linguagem cultural e uma estratégia
de afirmação e resistência identitária em negros e indígenas. Ainda, pretendeu-
se, neste estudo, destacar a necessidade da mudança do olhar social sobre
estas populações, bem como do autoposicionamento crítico, político e
afirmativo de seus próprios membros, mediante construções (e por que não
falar em imposições) sociais provocadas pela branquitude e pelo processo de
branqueamento estético.
Com isso, defende-se que paradigmas sociais como o racismo, possam
ser transformados em relação à aceitação e ao respeito entre povos situados
numa sociedade plurirracial e pluricultural, atenuando efeitos psíquicos de
sofrimento e subserviência, quando a igualdade e a equidade persistem em
estado de sufocamento cultural e racial. Que a democracia racial possa, de
fato, existir, e que outros dispositivos como roupas e acessórios estéticos
possam ser acionados e se presentificar como instrumento de reconhecimento
e valorização racial.

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São Paulo: Moderna, 1999.

VÊNUS NEGRA. Direção: Abdellatif Kechiche. Produção: Charles Gillibert,


Marin Karmitz, Nathanaël Karmitz. Intérpretes: Andre Jacobs, Elina Löwensohn,
Oliver Gourmet, Yahima Torres. Roteiro: Abdellatif Kechiche, Ghalya Lacroix.
Imovision: Brasil. 2011 (159 min), Netflix.
“Os ventos do Norte não movem moinho”: corpos outros
pensados a partir de África.

José Diêgo Leite Santana70


Dayvison Herbety Araújo Amaral71
Emanuelle Cristina da Silva Fernandes72

Introdução

A relação entre poder, corpo e educação é uma das necessidades


contemporâneas de enfrentamento epistemológico contra-hegemônico e se
constitui como uma produção de conhecimento que suleia 73 novas formas de
ser e estar no mundo, assim como de visibilidade histórica e de
desocultamento de saberes e conhecimentos subalternizados. O corpo como
fonte elementar do Ser produz pedagogias de libertação ou reproduz
pedagogias de silenciamento e opressão. As pedagogias agem no corpo como
forma de poder. Entretanto, quais são essas pedagogias que tratam de corpos
insubmissos? Quais pedagogias se engajam na libertação do corpo e do
sujeito?

Os corpos colonizados são pensados na perspectiva dos conhecimentos


do Norte global, na tentativa de exercer poder sobre esses corpos. Os corpos
silenciados e invisibilizados historicamente são corpos movidos pelo
colonizador. Contudo, outros corpos, movidos por pedagogias insubmissas,
começam a romper com a colonialidade e lutam pelo poder sobre si mesmo.
São os corpos do Sul, metáfora originada a partir das Epistemologias do Sul
que compreendem modos outros de produção do conhecimento, assim como

70
Mestre em Educação Contemporânea pelo Programa de Pós-Graduação em Educação
Contemporânea da Universidade Federal de Pernambuco/Centro Acadêmico do Agreste –
UFPE/CAA.
71
Mestrando em Educação Profissional e Tecnológica pelo Programa de Pós-Graduação em
Educação Profissional e Tecnológica do Instituto Federal de Educação.
72
Especialista em Direitos da Criança e do Adolescente pela Universidade Federal Rural de
Pernambuco – UFRPE.
73
Ao invés de nortear, sulear. O sul como posição geopolítica do conhecimento. A variação e
posição do termo é possível graças à gramática social e epistêmica que pretende criar outros
centros de produção do conhecimento.
outros centros dessa produção. É a formação de uma outra geopolítica do
conhecimento que não aquela eurocêntrica.

Comprometida com a liberdade, as pedagogias insubmissas e de lutas


acabam por produzir corpos que compreendem uma nova forma de se
relacionar consigo, com o outro e com o mundo. Entretanto, essas pedagogias,
assim como esses outros corpos, foram produzidas como invisíveis. Isso
porque foram narradas na perspectiva do colonizador. É preciso outro
enfrentamento epistêmico e metodológico: um saber-com ao invés de um
saber-sobre essas pedagogias. Em África, a história de luta e de liberdade
acabou por forjar pedagogias que pensam um corpo livre, um corpo
movimento, um corpo insubmisso.

Assim, a questão que norteia esta pesquisa é: como repensar outros


corpos e formas de enfrentamento ao silenciamento histórico a partir das
pedagogias africanas? O objetivo geral é refletir sobre como outros corpos
podem ser concebidos a partir das pedagogias africanas. Como objetivos
específicos, o artigo apresenta: analisar as pedagogias africanas como
proposta contra-hegemônica e pensar as corporalidades africanas como
enfrentamento ao silenciamento histórico.

MARCO TEÓRICO
Pedagogias africanas: da luta à liberdade

A visão negativa sobre a África e suas produções de conhecimento que


vigorou muito tempo na sociedade brasileira foi fruto das fontes bibliográficas
carregadas do racismo epistemológico. Wedderburn (2005) fala da
retroalimentação, onde se reinsere nas produções acadêmicas
contemporâneas as teorias desacreditadas. Não é incomum que a maioria dos
estudos sobre a África esteja fundamentado em profundos preconceitos sobre
a África e seus povos e civilizações.
As ideias eurocêntricas sobre o continente africano têm sido produzidas
no sentido de defender uma África onde suas sociedades não possuem
história. Hegel apud Oliva (2003, p. 439) diz que “aquilo que entendemos
precisamente sobre África é o espírito a-histórico, o espírito não desenvolvido,
ainda envolto em condições de natural e que deve ser aqui apresentado
apenas como no limiar da história do mundo”. De igual modo, Trevor-Hoper
(apud OLIVA, 2003, p. 438) afirmou que “pode ser que, no futuro, haja uma
história de África para ser ensinada. No presente, porém, ela não existe; o que
existe é a história dos europeus na África. O resto são trevas [...] e as trevas
não constituem tema de história”.
A Europa passa a ser então, o centro de produção de conhecimento
sobre África. Desse modo, há um deslocamento epistêmico, onde a África seria
incapaz de produzir sua própria história e seus conhecimentos. Nas produções
europeias, África é a ausência de história, é a natureza em seu estado mais
primitivo, diferente dos territórios civilizados, evoluídos e guiados pela
racionalidade.
Oliva (2003) mostra que a suposta superioridade europeia sobre o
mundo é exercida tomando-se o caso africano. O homem branco europeu entra
para a história como o grande sacrifício humanitário; ele passa a ser o herói
das narrativas que colocam a Europa como responsável por levar a civilização
aos povos atrasados do mundo. É assim que a anterioridade branco-europeia é
posta como paradigma epistêmico. Essa ideia diz que a cultura material e
imaterial africana advém de culturas externas, de modo que África não fora
produtora de suas criações.
A educação em África também fora produzida a partir da compreensão
europeia, sendo que o pensamento pedagógico africano é posto como
inexistente, recebendo, quando existe, influência europeia. Trata-se, portanto,
da colonialidade (QUIJANO, 2010), pensada como a negação da humanidade
dos sujeitos subalternizados. A colonialidade é a grande razão para o
escravismo, sendo o eurocentrismo

[...] uma metáfora para descrever a colonialidade do poder, na


perspectiva da subalternidade. Da perspectiva epistemológica, o
saber e as histórias locais europeias foram vistos como projetos
globais, desde o sonho de um Orbis universalis christianus até a
crença de Hegel em uma história universal, narrada de uma
perspectiva que situa a Europa como ponto de referência e de
chegada (MIGNOLO, 2003, p. 41).

É assim que as produções de conhecimento e as epistemologias


africanas ligadas ao pensamento pedagógico são postos como inexistentes.
Para superar a colonialidade e suas graves consequências, o próprio
pensamento pedagógico africano tornou-se fundamentado em propostas de
enfrentamento aos projetos epistêmicos europeus.
A coexistência de diferentes epistemes que se desdobram no movimento
da emancipação de todos e todas é uma centralidade do pensamento
pedagógico africano, denunciando a colonialidade do saber e, ao conhecer as
produções epistêmicas que foram invisibilizadas e hierarquizadas, coloca a
colonialidade do poder em ponto de discussão na perspectiva dos (as)
subalternizados (as).
O pensamento pedagógico africano atravessa as experiências e as
narrativas de colonialidade como um território discursivo europeu, mas agora é
ocupado pelas experiências e sentir africano. Nesta perspectiva, as
epistemologias hegemônicas são enfrentadas através do sentir, pois é esta
dimensão que consegue afetar o mundo e as realidades postas. Oyèrónkẹ́
Oyěwùmí (2004) propõe uma leitura do mundo a partir das sensações e
percepções, de um corpo que é capaz de produzir os sentidos da realidade e
de descrever as variadas concepções de mundo.
Torna-se fundamental o papel das lutas dos povos subalternizados em
África para a construção de narrativas outras que não sejam sobre África, mas
que compreenda desde África. Esta inversão e deslocamento epistemológico
possibilitar outras formas de pensar o outro, assim como outras formas de se
relacionar com o outro. Pensando a partir das lutas, o que se pretende é o
engajamento político e filosófico contra a não existência, tanto quanto a
abertura às novas narrativas e construção de outras relações que objetivem a
emancipação e a liberdade humanas.

Corporalidades africanas

Sztompka (2005) orienta que para a compreensão dos fenômenos


contemporâneos é necessário pesquisar as origens e os processos de
formação do fenômeno. Aqui, portanto, se busca compreender como o corpo é
concebido em África e, seguindo a recomendação do sociólogo, a discussão
inicia-se pelos processos que envolvem este fenômeno – corpo – em África.
Na contemporaneidade, a objetificação dos sujeitos é uma das
premissas da modernidade e de seu projeto colonialista. Todo sujeito é
disputado nos processos de objetificação, pois é renegado a interesses
escusos. O corpo é o meio pelo qual a objetificação alcança um sentido mais
amplo e complexo; é no corpo que a realidade se faz presente e é nele onde os
horrores são inscritos e a alienação é posta à matéria (FOUCAULT, 1987).
No corpo, o grotesco é posto tornando a abjeção um dos principais
traços para a corporalidade submissa. Pode-se dizer que o corpo é mesmo um
cadáver que ambiciona sua própria morte. Godínez (2017, p. 58)
categoricamente afirma: “ante nós se mostra o cadáver enfrentado a seu devir
como objeto, como um duplo de uma sociedade que o abjeta e, ao mesmo
tempo, o requer como a evidência forense que exercerá como depoimento das
atrocidades infringidas nele”. O destino do corpo é traçado em rota inalterada,
nele se exerce a mais feroz das evidências: seu não movimento. Ao seu lado
não resta nenhuma testemunha que o alerte sobre sua mudez. O corpo torna-
se objetificado, morto, mudo, sem movimento (BUTLER, 2013).
A tendência ao corpo objetificado e à sua abjeção oferece resistência ao
esquecimento. Por mais que o esquecimento insista em calar o corpo e
emudecer suas formas e suas vozes, o espanto do esquecimento oferece
pistas para um contragolpe: inconscientemente, o homem não esquece sua dor
original, mesmo com o golpe do esquecimento (HUBERMANNN, 2009). O
corpo funciona então como uma contradição, uma tensão entre o golpe do
esquecimento e o contragolpe do não esquecimento inconsciente.
No corpo persistem a realidade e a experiência da rejeição, do grotesco
e da mortificação (HUBERMAN, 2009). Contraditoriamente, no mesmo corpo
resiste a pulsão, a potência do movimento, a vivacidade do corpo mortuário
que atesta sua proximidade com a realidade transcendente. A corporalidade
insubmissa pretende quebrar os sentidos impostos, romper com o
adormecimento social, o despertar por meio do choque, da surpresa.
O corpo colonial (FANON, 2008), constituído pelo colonialismo e suas
performances, é visível mesmo no momento pós-colonial. Ele denuncia a
existência da ação política colonial mesmo com a ausência do colonialismo, de
modo que é nele que o abjeto e a objetificação se materializaram. Dito de outra
forma, o corpo colonial é performance da herança do colonialismo, subalterno
em suas expressões e potencialmente insurgente e insubmisso em seu devir
histórico e existencial.
O corpo colonial não é aquele afirmado colonial apenas, mas aquele
que se insere e se inscreve no espaço colonial, deslocado em si mesmo e que
tece relações com as políticas e poéticas de mobilizações insurgentes – e se
são insurgentes, é que o não movimento fora posto no corpo objetificado. Os
itinerários desse corpo colonial apontam para as perspectivas políticas de uma
transnacionalidade e para interferências nos territórios contemporâneos
embranquecidos e eurocêntricos, produzindo novas relações simbólicas em
torno da mestiçagem. Contribui López (2015, p. 305):
Nesse sentido, as questões ligadas ao corpo ganham dimensão de
luta política, e aparecem como uma arena privilegiada para tornar
visível o “corpo colonial” como resistência na esfera pública, a partir
de sujeitos que afirmam sua humanidade frente a opressões que os
desumanizam.

As corporalidades africanas são marcadas por essa dimensão de luta


política, demarcando territórios para a discussão dos corpos e redimensionado
as tensões entre os processos coloniais e insurgentes. Nessas corporalidades,
os discursos constituem a personificação do corpo colonial e também do corpo
insurgente. Nos conflitos, as relações de poder são transpassadas pelas
subjetividades, criando e reelaborando sentidos das relações com o mundo. O
corpo colonial é construído como identidade da opressão.
Como uma realidade social, as corporalidades africanas são forjadas em
condições culturais de opressão, ao mesmo tempo em que elas criam
resistência à opressão. Da relação entre corpo e poder nasce os usos políticos
do corpo. É assim que não somente as situações assimétricas de poder e do
colonialismo são inscritas nos corpos, como também a historicidade, marcando
os corpos com transcrições objetivas e subjetivas (LÓPEZ, 2015, p. 306):
De um lado, trata-se da incorporação das estruturas sociais com
continuidade no tempo (tais como o racismo, a pobreza, a violência).
De outro, é a incorporação da memória dos sofrimentos, das
desconfianças do passado. A vida e o corpo são também constituídos
pelas memórias e as narrativas, elas inscrevem o sentido do que é
vivido simultaneamente nos corpos e nas palavras.

Pode-se compreender as corporalidades africanas atravessadas pelo


conceito de corpo colonial e transpassando o corpo limitado à dimensão
espaço-temporal, sendo o corpo maneiras diversas de mediar a história. O
discurso ganha potência de determinação sobre como deve ser o corpo e como
são construídos nas suas relações de conhecimento consigo e com o outro. A
interação imagética do corpo com o outro promove outros sistemas de
originalidade, reinventando eventos de gênero, sexo e corpo, e reorganizando
novas produções discursivas (SALES, PROENÇA E PERES, 2016).
O corpo colonial e seu uso político realiza um deslocamento que vai do
plano colonial ao decolonial, por isso mesmo ele abriga contradições e tensões
que se desdobram na dicotomia colonialismo/colonialidade e
insurgência/insubmissão. As intervenções no corpo colonial produzem novas
relações sociais porque abrem espaço para formas outras de pensar as
resistências dos sujeitos.
Pensadas por opções periféricas, as corporalidades africanas carregam
consigo as experiências de luta e liberdade. Tais experiências também
expressam a história colonial que instaura um imaginário movido pelo passado
colonial, mas também pelo futuro antecipado pelas conquistas e lutas como
manifestações de autonomia e reinvindicação de liberdades.

Metodologia

A metodologia utilizada foi a afrocentricidade analítica. A


afrocentricidade analítica indica maneiras de inquirir as questões sociais,
culturais, econômicas, políticas, estéticas, filosóficas e epistêmicas por meio do
protagonismo do povo africano. Asante (2009, p. 93) diz que a afrocentricidade
é uma “proposta epistemológica do lugar.”. Explica o teórico que os africanos
foram deslocados, excluídos dos lugares de produção de conhecimento. Assim,
a afrocentricidade vem a ser “um tipo de pensamento, prática e perspectiva que
percebe os africanos como sujeitos e agentes de fenômenos atuando sobre
sua própria imagem cultural e de acordo com seus próprios interesses
humanos” (ASANTE, 2009, p. 93).

Análise
Corpos do Sul
Um dos instrumentos de controle do corpo foi o epistemicídio.
Deslegitimando as produções de conhecimento e inferiorizando os grupos
sociais e humanos que não europeus, justificando-se na criação do conceito de
raça, conceito que se liga essencialmente ao corpo, o epistemicídio destitui a
racionalidade, a cultura e civilização do outro; é a morte simbólica do próprio
corpo e sua ocupação. Ao desqualificar os conhecimentos dos povos
subalternizados, intenta-se a impossibilidade de percebê-los como seres
cognoscentes (SANTOS; MENESES 2010).
Esse movimento pretende a retirada da racionalidade do povo
subalternizado. Ao assim proceder, os conhecimentos produzidos não são
legitimados porque são distantes do conceito de razão criado na Europa. A
razão é o crivo para a classificação do outro como humano. Não tendo
racionalidade, o outro é um tipo diferente do humano e, portanto, tem o dever
moral de ser humanizado. Tal lógica nega a humanidade do outro, outorgando
a “natural” hegemonia da Europa frente ao mundo. Para construção do sujeito,
a racionalidade europeia exigia a construção do outro como não-ser. Este é
reduzido apenas à coisa que fala ou reproduz a fala.
Boaventura de Sousa Santos (2010) propõe a ideia de epistemologias
do Sul como condição para que o corpo subalternizado e os grupos produzidos
como inexistentes e invisíveis possam ter seus conhecimentos validados. O
colonialismo, capitalismo e sexismo produz o outro como invisível. Entretanto,
essa invisibilidade é intencional, pois ao invisibilizar o outro, tudo que faz dele é
apagado, não interfere no cotidiano e não constrói outras narrativas sobre a
vida. Tornar visível o que foi produzido como invisível ou como não existente é
objetivo da sociologia das ausências. É assim que o autor propõe a ecologia de
saberes74 como possibilidade crítica para romper com a produção de
conhecimento hegemônica e como criação de um novo paradigma da
emancipação e liberdade social.
Os saberes do Sul, porquanto ainda não reconhecidos como
conhecimentos pelo Norte do sistema-mundo, conseguem ampliar,
simbolicamente, os pensamentos sobre as epistemologias existentes, pois é
território dos sujeitos produzidos como não-ser e como invisíveis. Essa
perspectiva descontrói os espaços de conhecimentos legitimados como únicos,

74
A ecologia de saberes baseia-se na ideia do reconhecimento da pluralidade humana e dos
conhecimentos, rompendo com a lógica hegemônica e propondo interações sustentáveis entre
os diversos tipos de conhecimentos. A proposta ainda traz o conhecimento como
interconhecimento.
provocando a anunciação de intelectuais, histórias e linguagens periféricas que
passam a assumir também o centro das produções de conhecimento.
Neste caminho, as ontologias e epistemologias se tornam possíveis pela
produção do corpo presente, afetado que sente o mundo. Podemos dizer que
este corpo afetado, que sente o mundo e a partir das sensações produz seus
conhecimentos é o corpo do Sul, carregado em si das epistemologias do Sul.
Pode-se dizer mesmo que o corpo do Sul é uma epistemologia do Sul
(OYÈRÓNKẸ́ OYĚWÙMÍ, 2004).
Que propõe o corpo do Sul senão a liberdade e emancipação que
nascem do reconhecimento da pluralidade humana e de suas produções de
conhecimento? É a própria ruptura com paradigmas hegemônicos e é a
insubmissão epistêmica; dito de outra forma, o corpo do Sul é resistência e
enfrentamento às opressões, é carne sensível e racional produtora dos
sentidos do mundo. Esse corpo é um pensamento do Sul, é solidário com
saberes e conhecimentos, é o conhecimento ausente. Sua proposta
epistemológica é a aspiração de concepções alargadas da realidade, onde as
realidades silenciadas e subalternizadas se tornem emergentes, imaginadas e
possíveis. O corpo do Sul irá compreender, como propõe Boaventura de Sousa
Santos (2002), a epistemologia dos conhecimentos ausentes, onde as práticas
de conhecimentos vão além das práticas assentes na ciência. Não há,
portanto, razões e sensibilidades superiores, mas solidárias, apontando para a
formação de constelações de conhecimentos.
É no corpo onde a existência acontece. O corpo é memória onde se
inscrevem as sociedades, as culturas e onde as transformações sociais
começam a surgir, sendo mesmo um espelho da história da humanidade. Os
atravessamentos políticos, sociais, culturais, econômicos e espirituais, colocam
o corpo como um centro epistêmico e ontológico da diversidade humana.
Nessa compreensão, o corpo do Sul é a recuperação desta dimensão que fora
colonizada e produzida como subalterna, colocando-o em posição de
possibilitar liberdades e de representar e produzir os conhecimentos
invisibilizados pelo colonialismo, capitalismo, sexismo, patriarcado e todas as
formas modernas de sujeição do outro.
Ao romper com o norte hegemônico, o corpo do Sul aponta para
múltiplas direções e possibilidades de se interpretar o conhecimento. Se antes
o norte é a rumo que deveria ser seguido, agora todos os lados são direções
que criam suas narrativas e se solidariza com as epistemologias invisibilizadas.
Como proposta de ecologia de saberes e das epistemologias do Sul, o corpo
do Sul transgride o modelo totalitário de existência, opondo-se às certezas
universais.
É assim que o corpo do Sul é mesmo uma condição poética e
epistêmica da divergência, da insubmissão e do enfrentamento às imposições
hegemônicas do norte. As condições plurais representadas no corpo do Sul
dizem respeito à condição humana, principalmente a condição humana que
fora silenciada e produzida como não existente. É no sul que a sensibilidade e
espiritualidade dialogam com a racionalidade, sem necessidade de hierarquizar
uma ou outra. O corpo do sul é, portanto, contraprodutor da condição humana.
Boaventura de Sousa Santos (2002, p. 372) diz que “para se aprender a partir
do sul, devemos, antes de mais nada, deixar falar o sul, pois o que melhor
identifica o sul é o fato de ter sido silenciado”. Ao falar, o corpo do Sul enfrenta
as opressões impostas e cria novas realidades solidárias.

Transgredindo o projeto colonial sobre os corpos: um


caminho de liberdade

Partindo dessas constatações, é evidente que as produções de


conhecimento em África são narradas como inexistentes antes do período
Colonial. No que se refere aos conhecimentos africanos, eles nem são
discutidos. Os delírios coloniais colocam a educação africana em sentido de
subcivilidade, barbárie e primitivismo. Mondlane (2011a, p. 309) diz que “quase
todos os regimes imperiais tentaram apresentar as suas actividades em termos
morais favoráveis para consumo da opinião pública”. É desse modo que o
colonialismo é um conduto, um dispositivo carregado de virtudes que legitimam
ações nefastas de invisibilizar e subalternizar o outro colonizado.

A educação colonial em África vem como uma salvação para os povos


africanos do primitivismo e do estado de selvageria. É assim que o projeto
colonial pressupõe e fundamenta as pedagogias que entraram no continente
por meio dos povos colonizadores.
Esse projeto colonial de invisibilizar os conhecimentos africanos é uma
tentativa de ocultamento do Ser africano e de suas constituições, bem como
uma forma de hierarquizar as produções de África. Ao colocar os
conhecimentos africanos no curso silencioso da história, o que acontece é o
distanciamento com essas formas de conhecer e sentir o mundo.

Há um distanciamento da identidade de luta e de formas de


enfrentamento às opressões, visto que as pedagogias servientes ao projeto
colonial são disciplinadoras de corpos moribundos, de corpos ausentes de si
mesmo. Há uma ausência de identificação com os africanos e suas lutas.

Ao realizar esta denúncia, Mondlane (2011b) contextualiza as formas de


distanciamento identitário com os/as africanos/as e suas lutas, visto que são
narrados sempre na perspectiva do dominador. São histórias postas ao serviço
da colonialidade que descreve o continente e seus povos como primitivos e
necessitantes de uma intervenção civilizatória.

Quando, no bem dos casos há um rompimento com essa forma de


colonialidade, o que se objetiva são formas de enfrentamento individuais que
visem a exclusivamente a própria liberdade, sem necessariamente se
preocupar com o outro. Contudo, o Ser africano é construído com o outro,
implicando ser livre quando os outros também o são.

Maria Paula Meneses (2016) traz a justiça social global como uma
conquista que deve ser precedida da justiça cognitiva. Ao possibilitar este
projeto de enfrentamento e este trajeto insubmisso, a autora pretende
denunciar as opressões e violências historicamente ocorridas em África e que
deturpou a imagem real do continente, assim como desumanizou o africano/a
africana. A antropóloga dirá que é preciso

Restituir a humanidade ao ‘homem negro’, ultrapassar a exclusão


epistémica e a negação ontológica a que tem estado sujeito, é uma
das dimensões fundamentais de qualquer projeto de justiça.
Enquanto desafio ético, a justiça cognitiva é uma condição para a
mudança radical da injustiça trazida pelo projeto colonial-capitalista,
onde a epistemologia, em lugar de ser singular, é vista como
processo de negociação e diálogo entre saberes (MENESES, 2016,
p. 179).

Invisibilizados na construção do conhecimento de mundo, os


africanos/as africanas foram postos como subalternos e suas lutas são
desconsideradas. Nada há – nas propostas e narrativas coloniais – que
aprender com África e com os seus povos. Mas é preciso compreender que a
apropriação e violência contra o africano/a africana foram formas de dominação
europeia e que acabou por produzi-los como um não-ser. Portanto, a justiça
cognitiva é o caminho para visibilizar o trajeto africano na história e suas
construções de mundo.

Por justiça cognitiva, Meneses (2016, p. 201) entende: “A justiça


cognitiva, enquanto nova gramática global, contra-hegemónica, reclama, acima
de tudo, a urgência da visibilidade de distintas formas de conhecer e
experimentar o mundo[...]”. Assim, as pedagogias africanas são formas de
conceber novos enfrentamentos contra as opressões.

Essas pedagogias são centros das epistemologias do Sul (SANTOS,


2006). Podem irradiar outros centros de conhecimento, convidando à
convivência radial e a produzir novas narrativas em contextos pós-coloniais.
Elas nascem da experiência do sofrimento, da violência, da opressão.
Mondlane (2011b, p. 333) mostra que “A fonte de unidade nacional é o
sofrimento comum durante os últimos cinquenta anos sob o domínio
português”.

Essa insubmissão ao poder colonial é um sentimento de resistência


africano que paz parte das pedagogias africanas. É mesmo um movimento
estético, afetivo e político de opor-se radicalmente às formas de opressão.

Em toda a parte onde o poder colonial se fez sentir houve algum tipo
de resistência, assumindo diversas formas, desde a insurreição
armada até ao êxodo maciço. Mas em qualquer momento, foi sempre
uma comunidade limitada, pequena em relação a toda a sociedade,
que se levantou contra o colonizador, enquanto que a própria
oposição era também limitada, porque dirigida contra um só aspecto
da dominação, a realidade concreta vivida por uma determinada
comunidade num determinado momento. (MONDLANE, 2011b, p.
334).

Resistir é uma das formas das pedagogias africanas. Pode-se dizer que
é mesmo um dos fundamentos dessas pedagogias que procurar compreender
que a força colonial reside nas fraquezas do colonizado. O trabalho como
forma de organização da resistência permite ocupar territórios culturais,
econômicos e sociais.
Assim, o corpo colonizado resiste nas pedagogias africanas na
construção de sua identidade e no trabalho como alternativa de fortalecimento
do que se considera como fraqueza. Modlane (2011, p. 337) diz que foi preciso
ver “[...] Moçambique como a terra de todos os Moçambicanos, e [...]
compreender a força da unidade”. Da mesma forma, é preciso compreender o
corpo como esse território que é próprio e exclusivo do Ser e do sujeito.

Amílcar Cabral (1978, p. 225) diz: “[...] o fundamento da libertação


nacional reside no direito inalienável que tem qualquer povo, sejam quais forem
as formas adoptadas ao nível do direito internacional, de ter a sua própria
história”. A criação da sua própria história pressupõe, portanto, um dos
fundamentos dentro das pedagogias africanas.

Esse processo de criar a própria história e sobre ela ter poder,


conjectura a imagem e os valores do colonizador. As pedagogias africanas
permitem a negação da submissão e o expurgo do espírito do colonizador que
há dentro do colonizado após séculos de dominação. É uma batalha para
eliminar quaisquer traços do colonizador e afirmar os valores, as visões e as
crenças africanas.

Esse posicionamento do subalternizado é uma construção pedagógica e


política. Passa pela paixão, como diz Memmi (1967). É na paixão, no
movimento e na reivindicação de si mesmo que se territorializa e se ocupa
aquele/aquela que foi silenciado/silenciada. Esse sujeito negado, invisibilizados
e silenciado, é disputado nas pedagogias africanas como um corpo paixão, um
corpo rebelde e insubmisso. De tantas margens, agora ele cria múltiplos
centros de narração do mundo. De tanto silêncio, é um corpo que usa as
palavras como instrumentos criadores e mantenedores das relações sociais. É,
pois, um corpo também linguístico que cria uma gramática social de rebeldia
contra opressões postas e justificadas simplesmente pela sua existência.

Através dos discursos, as pedagogias africanas põem no mundo como


possibilidades de visibilidade. Esses discursos são diversos em sua natureza
porque variadas foram as formas de oprimir e colonizar. Um discurso de um
corpo silenciado não é mera articulação da linguagem, mas é uma maneira
outra e possível ocupar os territórios colonizados, incluindo o próprio corpo.
Desses discursos, Santos, Meneses e Nunes (2006, p. 50) diz: “Os discursos
alternativos produzidos por actores subalternos são eles próprios parte dessa
rede, dentro da qual circulam com grande visibilidade e impacto”.

Ora, são discursos que se intercruzam e realizam atravessamentos e


insubmissões porque não são produzidos pelo outro, mas por si mesmo e para
si mesmo em um processo de conscientização e de luta; discursos que
produzem conhecimento. Esse conhecimento é libertador na medida em que se
propõe e se compromete com a libertação de todos e todas, inclusive daquele
que estava a dominar.

Nas palavras de Santos, Meneses e Nunes (2006, p. 51): “[...]o


conhecimento por elas produzido tem sido também usado de forma
“subversiva”, através da sua apropriação por movimentos sociais do Sul e
pelos seus aliados e da sua reinscrição noutras constelações de saber-poder”.
Não se trata, portanto, de assumir a posição do colonizador, mas de viabilizar
constelações de saber-poder. Sendo múltiplo o mundo e seus povos, assim
também é a forma de conhecer o mundo e com ele realizar narrativas sobre a
realidade.

O sentido espiritual do mundo é uma das preocupações das pedagogias


africanas. Du Bois (2011, p. 49) declara: “Entre mim e o outro mundo existe
sempre uma pergunta por fazer: por fazer, por parte de alguns, por sentimentos
de delicadeza; por parte de outros, devido à dificuldade em a enquadrar
correctamente.”. O estar no mundo se confunde com o ser com o outro. Essa
relação é pautada na descoberta mútua, na posição de indagar, de sentir o
mundo e construir narrativas temporais, locais e não universais. Faz parte
mesmo de uma espiritualidade que não capitaliza as pessoas, nem
subalterniza o Ser, pois é na descoberta das coisas do mundo que uma postura
de cuidado nasce.

Essa perspectiva espiritual nas pedagogias africanas fez Du Bois (2011,


p. 51) questionar: “Porque me fez Deus um pária e um estrangeiro em minha
própria casa?”. A espiritualidade como inegável dimensão do Ser africano leva
o corpo a indagar a estranheza do mundo e ganha sentido que aquele corpo
está sendo habitado pelos perversos poderes coloniais.
A emancipação espiritual do Ser africano é uma questão de
enfrentamento colonial, visto que a natureza humana dos africanos/das
africanas, assim como suas capacidades, foram desumanizadas, inferiorizadas
e assemelhadas às bestas, motivo legitimado para a escravização dos povos
africanos e para as violências e processos de colonização em África.

O racismo deixa profundas marcas no sujeito, fazendo com que a


autopercepção seja sempre ancorada na visão do colonizador, do racista.
Propõe as pedagogias africanas o movimento espiritual como libertação das
amarras do racismo e como condição de outras formas de autoconhecimento e
autopercepção. Negando as compreensões coloniais, a espiritualidade nas
pedagoias africanas inscrevem novos modos de se repensar. Os modelos e
dispositivos usados para oprimir não servem para que o sujeito se perceba. Ele
passa a se compreender a partir de si mesmo. Isso é libertador! O respeito por
suas criações e constituições é um dos primeiros atos de liberdade.

Por isso mesmo a liberdade começa sempre pelo corpo e passa pelo
crivo da espiritualidade. Ben Salāh (1980 apud KI-ZERBO et al, 2010, p. 581) já
ponderava que seria necessária uma revolução “nos espíritos muito mais que
nas estruturas”. É nesse caminho que as pedagogias africanas vão
inscrevendo nos sujeitos os símbolos de resistência.

Considerações finais

Corpo é poder, de modo que a liberdade é sempre iniciada pelo corpo.


Quem domina um corpo, detém poder sobre o Ser do outro. Não interessa ao
colonizador formas de liberdade pelo corpo, pois assim ele não exercerá poder
sobre a existência do outro. Para exercer controle sobre o corpo, é preciso
também invisibilizar as criações do corpo e as formas de ser e estar no mundo,
bem como as produções de conhecimento a partir do corpo, de modo que o
corpo colonial é movido pelas criações do Norte global.
Diante do que fora apresentado, a questão norteadora é agora
retomada: como repensar outros corpos e formas de enfrentamento ao
silenciamento histórico a partir das pedagogias africanas? Sabe-se que há um
silenciamento sobre as produções de África. Isso acontece como justificativa
para que o colonizador fosse legitimado como herói civilizador que levou o
progresso, desenvolvimento e civilização para África. A história de África passa
a ser apagada, assim como suas produções pré-colonial.
As lutas e conquistas de liberdade em África produziram um
engajamento com a educação e com pedagogias comprometidas com o corpo
e com a liberdade pelo corpo. Esse corpo não é mais movido pelos ventos
coloniais, pelos conhecimentos que não são autênticos e originais em África.
São corpos que produzem outras narrativas sobre si e sobre o mundo. É
preciso compreender o corpo a partir de uma perspectiva de saber-com.

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MOVIMENTO HIP HOP: RESITÊNCIA, POLITIZAÇÃO E


DECOLONIALIDADE
Alfons Heinrich Altmicks75
Edmeire Oliveira Pires76
Introdução

Hey Rap, há quanto tempo a gente se mantem


Fiel no front, independente do que vem
Eu vejo um monte, se perder por nota de cem
Nois não sabe, irmão, a missão é bem mais
Hip-hop, há quanto tempo a gente se mantem
Abrindo a mente fazendo a favela ir além (Emicida, 2009).

A história do hip hop é consolidada principalmente no continente


americano, pois, a partir de raízes latinas, sul-americanas, jamaicanas,
caribenhas e estadunidenses, o gênero tornou-se um sucesso mundial. O estilo
musical surgiu por volta dos anos 70 sob forte influência dos subúrbios e locais
segregados dos Estados Unidos e Inglaterra. Espalhou-se através da diáspora
negra que evidenciava ritmos subculturais, sob a perspectiva de uma cultura
transnacional e globalizada, assim como ocorria com o rock e o reggae.
Criador, e ao mesmo tempo, amparador de uma subcultura própria, referente a
um conjunto de particularidades culturais artísticas e estéticas (roupas,
indumentárias, postura, grafite, dança), que se distanciam do modo de vida
comum, geralmente refletindo sobre questões sociais, o ritmo conquistou a
juventude da época e segue conquistando a juventude contemporânea.
O termo “hip” é usado no inglês, vernáculo afro-americano desde 1898
e significa algo atual, que está acontecendo no momento, e “hop”, significa
movimento de dança. Para Andrade (1999 p.86): “a origem do hip hop (...)
sempre teve em sua proposta inicial a Paz. Ele foi criado e continua com
mesmo proposito: canalizar energias que poderiam estar voltadas à
criminalidade, centralizando-as na produção artística”.

75
Doutorando em difusão do conhecimento UFBA. Mestre em planejamento territorial e
desenvolvimento Social. Graduado em Comunicação Social e Pedagogia. Professor da
Universidade Católica de Salvador (UCSAL).
76
Edmeire Oliveira Pires, Mestranda em Gerência e Administração de Políticas Culturais e
Educacionais do Instituto de Educação Superior Kyre’y Sãso. Graduada em Licenciatura em
História (FTC), pós-graduada em História e Cultura Afro-brasileira (Pró- Saber) e Professora
Rede Municipal e Estadual de Ensino de Souto Soares-Ba.
Em agosto de 1973, o DJ jamaicano Kool Herc comandou uma festa no
Bronx em Nova Iorque, utilizando apenas instrumental e breaks das músicas de
funk e soul da época, como James Brown e James Clinton, marcando o
advento de um dos principais gêneros da música e dessa cultura, que chegou
ao Brasil na década de 80, abraçada pela periferia de São Paulo, berço do hip-
hop no Brasil, onde os grupos se reuniam na Galeria 24 de Maio e na estação
de metrô São Bento para ouvir as músicas vindas do Bronx e dançar o break.
Em 2021, o movimento hip-hop completa 48 anos de história e atuação na
cultura brasileira.
O hip hop também ganhou repercussão com o filme Beat Street (Na
onda do Break) em 1984 e o primeiro show no Brasil do grupo norte-americano
Puclic Enemy, através dos quais, muitos jovens conheceram a cultura, que se
difundiu rapidamente pelas periferias da cidade. Na década de 90, o rap ganha
as rádios e a indústria da música começa a dar mais atenção ao estilo, artistas
como Pavilhão 9, Detentos do Rap, Câmbio Negro, Xis e Dentinho e MV Bill, o
álbum Juventude de Atitude de 1995, retrata a violência, crime, pobreza e
repressão policial nas favelas de São Paulo. Em 1993, os Racionais MC’s
lançam Raio X do Brasil que projeta o grupo, e em 1997, Sobrevivendo no
Inferno, um dos maiores clássicos do rap nacional até hoje.
O movimento é historicamente associado a uma arte voltada para
segmentos excluídos no espaço urbano, como jovens periféricos, imigrantes,
negros, mulheres, entre outros desvalidos e destituídos de voz. Grada Kilomba
afirma que, para esses sujeitos:
Falar torna-se, assim, virtualmente impossível, pois, quando
falamos, nosso discurso é frequentemente interpretado como
uma versão dúbia da realidade, não imperativa o suficiente
para ser dita nem tampouco ouvida. Tal impossibilidade ilustra
como o falar e o silenciar emergem como um projeto análogo.
[...] Ouvir é, nesse sentido, o ato de autorização em direção
à/ao falante. Alguém pode falar (somente) quando sua voz é
ouvida. Nessa dialética, aquelas/es que são ouvidas/os são
também aquelas/es que “pertencem”. E aquelas/es que não
são ouvidas/os se tornam aquelas/es que “não pertencem”.
(KILOMBA, 2019, p. 42-43).
Tais segmentos, veiculam, através do rap, a construção de um lugar de
fala, de uma consciência política que dá voz a uma geração estigmatizada, o
que propicia a emergência de uma consciência social sob nova ótica
relacionada a gênero, raça e classe. Para Weller (2010) este movimento
contribui para definição de um sentimento de pertencimento coletivo em
contraposição a uma espacialidade injusta materializada na periferia urbana.
O hip hop também foi fundamental no resgate da história e
cultura dos afrodescendentes de uma forma crítica, uma vez
que os currículos escolares segundo os rappers, reproduzem a
história da população negra somente a partir do “processo da
escravidão”, negando a existência de uma história e cultura
negra anterior ao processo da escravidão e de um
desenvolvimento posterior nas Américas. Através do rap
produzido por grupos como Public Enemy, NWA, De La Soul os
jovens negros paulistanos começaram a conhecer a história de
luta contra o racismo dos negros norte-americanos e a partir
daí passaram a pesquisar e encontrar referenciais semelhantes
na história da resistência da população negra no Brasil.
(WERLER, 2000, p.218)

A partir dessa ótica, o ritmo redesenha questões geracionais


estabelecendo semelhanças e contrastes em relação ao seu envolvimento com
os grupos de rap, bem como ao enfrentamento de situações discriminatórias, a
partir de uma dialogicidade onde, segundo Paulo Freire:

O eu dialógico [...] sabe que é exatamente o tu que o constitui.


Sabe também que constituído por um tu — um não-eu —, esse
tu que o constitui se constitui, por sua vez, como eu, ao ter no
seu eu um tu. Desta forma, o eu e o tu, passam a ser, na
dialética destas relações constitutivas, dois tu que se fazem
dois eu. (FREIRE, 2007, p. 192).

Partindo desse pressuposto, o rap se apresenta como o que, Freire


(2007) e Hooks (2013) definem como uma pedagogia de resistência,
progressista, holística, engajada, revolucionária e emancipatória. A educação
transgressora, é, portanto, a educação politizada, a qual se faz necessária para
autora, como forma de desconstruir as hierarquias erigidas. Segundo Hooks
essa teoria se tornou um local de cura:

Cheguei na teoria porque estava machucada- a dor dentro de


mim era tão intensa que eu não conseguiria continuar vivendo.
Cheguei à teoria desesperada, querendo compreender-
aprender o que estava acontecendo ao redor e dentro de mim.
Mais importante, queria fazer a dor ir embora. Vi na teoria, na
época, um local de cura. (HOOKS, 2013, p. 83).

Diante disso, o movimento hip hop constitui, para a juventude negra e


periférica, uma contranarrativa, um “local de cura”, um espaço seguro de
indignação diante das injustiças e ao mesmo tempo celebração da negritude
como sentimento e do poder negro.
Atualmente o rap está incorporado ao cenário musical brasileiro.
Vencendo os preconceitos, saiu da periferia e ganhou um público maior.
Apesar da incorporação de novos gêneros e musicalidades da música popular
brasileira e dos novos hibridismos musicais, o ritmo não perdeu sua essência
crítica de denúncia das questões sociais, resistência aos preconceitos e
violências que atingem principalmente a população negra periférica. Segundo
Stuart Hall:

Os fluxos culturais, entre as nações, e o consumismo global


criam possibilidades de “identidades partilhadas” – como
“consumidores” para os mesmos bens, “clientes” para os
mesmos serviços, “públicos” para as mesmas mensagens e
imagens – entre pessoas que estão bastantes distantes umas
das outras nos espaço e no tempo (...) Quanto mais a vida
social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares
e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da
mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente
interligados, mais as identidades e tornam desvinculadas –
desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições
específicos e parecem “flutuar livremente”. (HALL, 2006, p. 74-
75)

Tais fluxos aludidos por Hall como consequência da globalização, tem


como resultado, as identidades flutuantes referenciadas pelo sociólogo
Zygmunt Bauman (1999) em Modernidade Líquida. No entanto, para Hall, a
reafirmação da etnia se apresenta em contraposição e essa globalização
homogeneizante. O autor afirma que muitas vezes essas etnias se constituem
de formas mais hibridas, outras ainda, de forma essencialista. Em
conformidade, Bauman sugere:

O "ressurgimento da etnia" ... traz para a linha de frente o


florescimento não-antecipado de lealdades étnicas no interior
das minorias nacionais. Da mesma forma, ele coloca em
questão aquilo que parece ser a causa profunda do fenômeno:
a crescente separação entre o pertencimento ao corpo político
e o pertencimento étnico (ou mais geralmente, a conformidade
cultural) que elimina grande parte da atração original do
programa de assimilação cultural ... A etnia tem-se tornado
uma das muitas categorias, símbolos ou totens, em torno dos
quais comunidades flexíveis e livres de sanção são formadas e
em relação às quais identidades individuais são construídas e
afirmadas. Existe agora, portanto, um número muito menor
daquelas forças centrífugas que uma vez enfraqueceram a
integridade étnica: Há, em vez disso, uma poderosa demanda·
por uma distintividade étnica pronunciada (embora simbólica) e
não por uma distintividade étnica institucionalizada. (BAUMAN,
1999 apud: Hall, 2006, p.96).

Para Hall (2006) e Bauman (1999), o esforço de resistência do local em


relação ao global, gera uma relação dialética das identidades, num dinamismo
de desintegração- reafirmação das etnias, culminando na emergência de novas
identidades, através da sobreposição/mutacão em identidades hibridas,
dobradiças ou fluidas, características do mundo de incertezas. Assim:
Naquilo que diz respeito às identidades, essa oscilação entre
Tradição e Tradução (que foi rapidamente descrita antes, em
relação à GrãBretanha) está se tornando mais evidente num
quadro global. Em toda parte, estão emergindo identidades
culturais que não são fixas, mas que estão suspensas, em
transição, entre diferentes posições; que retiram seus recursos,
ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais; e que são o
produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais
que são cada vez mais comuns num mundo globalizado. Pode
ser tentador pensar na identidade, na era da globalização,
como estando destinada a acabar num lugar ou noutro: ou
retornando a suas ''raízes'' ou desaparecendo através da
assimilação e da homogeneização. Mas esse pode ser um
falso dilema. (HALL, 2006, p. 88).

O discurso estabelecido pelo rap no cenário brasileiro é de orgulho


negro, crítica e denúncia ao racismo e a todas as formas de exclusão,
discriminações, desigualdades e revolta contra a ordem separatista
estabelecida, diferentemente dos outros gêneros de música popular de
identidade negra, como o samba, o pagode, o axé, que frequentemente se
isentam de questões políticas e sociais. Os Racionais MC’s e o Dj Emicida, são
exemplos de expoentes que potencializaram e democratizaram o alcance dos
debates sobre periferia, espaço urbano, raça, racismo, desigualdades e
violência de Estado no contexto nacional.
De fato, o estilo musical elevou a autoestima do jovem negro periférico
que buscava integração na sociedade e juventude da época através de sua
identificação com a identidade cultural do movimento, na sociedade
preconceituosa, racista e machista da ditadura militar, que considerava o rap
uma música violenta e periférica, combatida e perseguida pela polícia, assim
como as demais manifestações culturais do povo negro diaspórico e periférico,
marginalizado pelo sistema.
Hip-Hop: Resistência, Politização e Decolonialidade

Resistência, irmãos e irmãs


Resistência pela Terra e pelo pão
Resistência por toda a periferia
Resistência construiremos rebeldia
(Rap Resistência. Levante Popular da Juventude, 2017)

Os movimentos sociais de determinada época são fontes de


conhecimento sobre os anseios do jovem de seu tempo, pois apontam o
imaginário, as aspirações e lutas dessa juventude, a partir de sua conduta.
Dessa forma, se constituindo em elementos de auto-organização social, a partir
do contexto histórico, político e da geração, que reflete e define seu papel em
estilos de vida, organizados em condicionantes como raça, gênero e classe,
que se interrelacionam. No Brasil, a atuação dos movimentos sociais, é
fundamental para a garantia de direitos, desde os constitucionais até as novas
demandas, conquistadas através das lutas de mulheres, negros,
homossexuais, idosos, indígenas, ambientalistas e demais minorias
subalternizadas. Betânia Ávila afirma que:

A pluralidade de sujeitos políticos, instituída pela ação dos


movimentos sociais contemporâneos, revela que a construção
da igualdade, passa, justamente pela desestruturação da
ordem social, que hierarquiza as diferenças transformando-as
em desigualdade. (ÁVILA, 2009, p.6).

No caso do hip-hop, através do rap, há um processo de inserção política


e conscientização de uma juventude excluída, em busca de reconhecimento
para seus dilemas, espaço e oportunidades de inclusão da classe trabalhadora
e periférica. Através de uma postura crítica e questionadora do sistema,
apresentada estética e cosmologicamente como construção de um imaginário
periférico, a partir da perspectiva racial e também relacionado à ótica de
gênero, o hip-hop busca por afirmação das identidades destituídas destes
sujeitos pobres, negros e negras periféricos, marginalizados pela lógica
sistêmica da branquitude e pelas dinâmicas violentas, simbólicas e concretas
da colonialidade, do racismo e do sexismo. Essas dinâmicas apagam e
silenciam as vidas e histórias dos subalternizados, através do epistemícidio:
estratégia definida por Boaventura de Sousa Santos (1995) como a destruição
de conhecimentos, saberes e culturas não assimiladas pela cultura
branca/ocidental. Para a autora negra Sueli Carneiro:

O epistemicídio.- Dinâmica e produção que tem se feito pelo


rebaixamento da auto-estima que compromete a capacidade
cognitiva e a confiança intelectual, pela negação aos negros da
condição de sujeitos de conhecimento, nos instrumentos
pedagógicos ou nas relações sociais no cotidiano escolar, pela
deslegitimação dos saberes dos negros sobre si mesmos e
sobre o mundo, pela desvalorização, ou negação ou
ocultamento das contribuições do Continente Africano ao
patrimônio cultural da humanidade, pela indução ou promoção
do embranquecimento cultural, etc. A esses processos
denominamos, nesta tese, de epistemicídio. (CARNEIRO,
2005, p. 324).

Neste sentido, o hip hop se coloca como uma contranarrativa, permitindo


a circulação em termos globais do discurso de uma identidade racial como
manifestação da diáspora africana. Reinterpretada sob as categorias de classe,
gênero e sexualidade, o estilo forja a reconstrução e valorização da identidade
negra, a partir da ótica interna, inerente a estes próprios povos.
Essas narrativas provindas dos guetos suburbanos das
periferias paulistanas, deram visibilidade ao discurso do RAP e
seus autores, assim sendo, esses representantes das “classes
perigosas” agora “roubam a cena” através dessa poesia crua
que retoma a fala das ruas. Manifestando e esclarecendo seu
“lugar”, essa poesia com seu tom pedagógico e realista, mostra
idiossincrasias encobertas pelos discursos oficiais em suas
falas “pelo” outro. Porém, agora esse outro é dono da palavra
e, apoderada, a palavra poética vem redesenhar cartografias,
inverte olhares e demonstra uma autenticidade constrangedora
para os ouvidos desatentos que percebem tal palavra como
ameaçadora, vingativa e incitante a uma guerra que seria
inexistente, ou, para alguns, parece distante. (NASCIMENTO,
2011, p.220).

Dentro deste contexto, o lugar, a cidade (espaço urbano) e seu discurso,


estética, simbolismo, legado histórico e manifestações culturais possuem
imensa importância para o movimento, sendo percebido pelo mesmo como o
centro do sistema, local de produção e reprodução do capital, constituindo-se
como “um mal moderno”, palco de disputas, inquietudes, desventuras,
gentrificações, sofrimentos e antagonismos dessa geração envolvida em
diversos conflitos, que vão desde a violência policial e urbana, desemprego,
drogas, ao racismo, machismo, misoginia e falta de perspectivas no futuro.
Paul Gilroy (2001), intelectual negro inglês, utiliza a categoria diáspora
como ferramenta para os estudos culturais, a fim de compreender a formação
da cultura do Atlântico Negro. Deste modo, o autor reflete sobre mecanismos
de diversidade cultural adaptados e, manifestações que atuam, ao mesmo
tempo, divergente e convergentemente.
A rede que a análise da diáspora nos ajudar a fazer pode
estabelecer novas compreensões sobre o self, a semelhança e
a solidariedade. No entanto, os pontos ou nós que compõem
esta nova constelação não são estágios sucessivos num relato
genealógico de relação de parentesco-ramos de uma única
árvore familiar. Não se produz o futuro a partir de uma
sequencias de teleologia étnica. Nem tampouco são eles
pontos de uma trajetória linear em direção ao destino que a
identidade afinal representa. Eles sugerem um modo de ser
entre as formas de agenciamento micro-político exercitado nas
culturas e movimentos de resistência e de transformação e
outros processos que são visíveis em escala maior. Juntas, sua
pluralidade, regionalidade e ligação transversa promovem algo
mais que uma condição adiada de lamentação social diante as
rupturas do exilio, da perda, da brutalidade, do stress e da
separação forçada. Eles iluminam um clima mais
indeterminado, e alguns diriam, mais modernista, no qual a
alienação natal e o estranhamento cultural são capazes de
conferir criatividade e de gerar prazer, assim como, de acabar
com a ansiedade em relação à raça ou nação e à estabilidade
de uma imaginária base étnica. (GILROY, 2001, p.20).

Para Gilroy, essas experiencias são maneiras de os povos diaspóricos


se recriarem e reinventarem suas etnias. Deste modo, o poder negro foi
desvinculado apenas de seus marcadores étnicos para abarcar toda condição
de opressão, exploração, exclusão na e redefinição de projetos sociais,
advindos das necessidades locais, políticas e de luta por reconhecimento.
Ainda segundo o autor, elas se conjugam em:
Um fundo comum de experiências urbanas, pelo efeito de
formas similares – mas de modo algum idênticas – de
segregação racial, bem como pela memória da escravidão, um
legado de africanismos e um estoque de experiências
religiosas definidas por ambos. Deslocadas de suas condições
originais de existência, as trilhas sonoras dessa irradiação
cultural africano americana alimentaram uma nova metafísica
da negritude elaborada e instituída na Europa e em outros
lugares dentro dos espaços clandestinos, alternativos e
públicos constituídos em torno de uma cultura expressiva que
era dominada pela música. (Ibidem, p. 175).
A partir dessa lógica, Gilroy sugere que a música é concebida como um
“lugar comum” de constituição e compartilhamento de memórias, experiencias
e constituição do sentimento de pertencimento e identidade.
O pesquisador indiano Homi Bhaba (2013) em conformidade com Hall
(2003) e Paul Giroy (2001), fundamentados pelos estudos descoloniais,
abarcam no conceito de diáspora, em substituição a raça, o movimento de um
povo marcado pelo deslocamento, exílio, fuga ou migração forçada em busca
de reconstituição de sua identidade.
O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a
necessidade de passar além das narrativas das subjetividades
originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou
processos que são produzidos na articulação das diferenças
culturais. Esses “entre-lugares” fornecem o terreno para a
elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou
coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos
inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a
própria ideia de sociedade (BHABHA, 2013, p. 20).

Assim, para Bhaba, o povo negro estabeleceu novas linguagens


políticas de cidadania, voltadas para a justiça racial e a igualdade, que
justificam a ligação entre o hip hop e os jovens negros periféricos, atingidos
pelas desigualdades sociais, geracionais, espaciais e de raça. Tais construções
ultrapassaram a esfera da tradicional luta pelo trabalho e passaram também a
se articular através do lazer. O movimento diaspórico proporcionou a
propagação cultural também do sentimento de pertencimento e de mística
como mecanismos de inserção. De acordo com Hall (2006) as modificações
trazidas pela globalização nem sempre suplantam as diferenças locais e por
isso, buscam explorá-las, articulando-se a elas:

A globalização produz novas identificações globais e novas


identificações locais (ela tem intensificado o interesse pela
diferença). (...) a globalização não parece estar produzindo
nem o triunfo do “global” nem a persistência, em sua velha
forma, do “local”. Os deslocamentos ou os desvios da
globalização mostram-se, afinal, mais variados e mais
contraditórios do que sugerem seus protagonistas ou seus
oponentes (...) a globalização pode acabar sendo parte
daquele lento e desigual, mas continuado, descentramento do
Ocidente.” (HALL, 2006, P. 97).

Nessa amálgama, a formação de geração não ocorre simplesmente num


processo de assimilação de novos valores numa perspectiva de centro e
periferia, mas também através da influência da combinação de diversos
elementos musicais advindos de outros estilos já existentes e consumidos
pelos jovens, processo denominado por Homi Bhabha como hibridismo.

O hibridismo é a reavaliação do pressuposto da identidade


colonial pela repetição de efeitos de identidade
discriminatórios. Ele expõe a deformação e o deslocamento
inerentes a todos os espaços de discriminação e dominação.
Ele desestabiliza as demandas miméticas e narcísicas do
poder colonial, mas confere novas implicações estratégicas de
subversão que fazem o olhar do discriminado voltar-se para o
olho do poder (...) (BHABHA, p. 185).

Nessa perspectiva, a manutenção de vínculos dos povos diaspóricos


com sua terra natal e suas tradições, é uma forma de resistência dos grupos
subalternizados à violência colonial, às elites dominantes e ao processo de
exclusão, marginalização, pobreza, tortura e morte gerados pelo racismo e pela
xenofobia. Tal movimento promove a ascensão das identidades e culturas
locais, seja por meio de sua reconstrução, seja pela constituição de
contraculturas.
De acordo com Sansone (2004), jovens negros afrolatinos e brasileiros,
através de movimentos migratórios e acesso a bens culturais simbólicos do hip-
hop e do rap norte-americano, estabeleceram outros elementos fundantes de
sua identidade nas grandes metrópoles brasileiras.

Símbolos negros globais são seletivamente reinterpretados nos


contextos nacionais, cada qual impregnado da classe, da
idade, do sexo e das situações locais, e aquilo que não pode
ser combinado com a situação do próprio indivíduo é
descartado. Embora os ícones associados à música e aos
estilos jovens tendam a convergir (como aconteceu com a
parafernália do reggae e do hip-hop), as preferências musicais
e as reinterpretações concretas desses ícones são locais e
específicas. (SEASONE, 2004, p.130-131).

Dessa maneira, O hip-hop produzido nas grandes periferias urbanas,


como em regiões da América Latina, aparece através da recriação de estilos,
pensamento e estratégias de ação simbólicas, políticas e econômicas, que
consistem no que Quijano compreende como processo de resistência e
enfrentamento à subalternidade imposta pela colonialidade do poder:

A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos


do padrão mundial de poder capitalista. Se funda na imposição
de uma classificação racial/étnica da população do mundo
como pedra angular do dito padrão de poder e opera em cada
um dos planos, âmbitos e dimensões materiais e subjetivas, da
existência social cotidiana e da escala social. Origina-se e
mundializa-se a partir da América (Quijano, 2000, p. 342).

Tal conceito denuncia o prosseguimento das relações político-


econômicas de colonialidade entre metrópole e colônia. As quais não
desapareceram após o fim das relações comerciais do colonialismo, mas
permanecem em escalas materiais e subjetivas, reafirmando a modernidade
ocidental eurocêntrica, como único valor positivo e verdadeiro da racionalidade
técnica universal, a qual influenciou e subjugou através de um sistema mundial
toda cultura existente:

De acordo com essa perspectiva, a modernidade e a


racionalidade foram imaginadas como experiências e produtos
exclusivamente europeus. Desse ponto de vista, as relações
intersubjetivas e culturais entre a Europa, ou, melhor dizendo, a
Europa Ocidental, e o restante do mundo, foram codificadas
num jogo inteiro de novas categorias: Oriente-Ocidente,
primitivo-civilizado, mágico/mítico/científico, irracional-racional,
tradicional-moderno. Em suma, Europa e não-Europa. Mesmo
assim, a única categoria com a devida honra de ser
reconhecida como o Outro da Europa ou “Ocidente”, foi
“Oriente”. Não os “índios” da América, tampouco os “negros” da
África. Estes eram simplesmente “primitivos”. Sob essa
codificação das relações entre europeu/não-europeu, raça é,
sem dúvida, a categoria básica. (QUIJANO, 2000, p.122).

A colonialidade do poder hierarquiza as relações do mundo globalizado


entre periferia e centro, através dimensões do poder, do saber e do ser, da
divisão internacional do trabalho, e dos marcadores de raça. Para Quijano, a
luta anticolonial da sociedade latino-americana, em contraposição ao status
estabelecido, prescinde de uma democratização e redistribuição do poder.

A dominação é o requisito da exploração, e a raça é o mais


eficaz instrumento de dominação que, associado à exploração,
serve como o classificador universal no atual padrão mundial
de poder capitalista. Nos termos da questão nacional, só
através desse processo de democratização da sociedade pode
ser possível e finalmente exitosa a construção de um Estado-
nação moderno, com todas as suas implicações, incluindo a
cidadania e a representação política. (QUIJANO, 2000, p. 138).
É nessa conjuntura que o hip hop aparece como contranarrativa ao
projeto da modernidade ocidental, causador de guerras e genocídio, incapaz de
compreender as diversas cosmologias e epistemologias, e aos seus valores de
superioridade em relação aos demais povos. Essa contraproposta ao projeto
monolítico, segundo Wilson Roberto de Mattos:

Não se trata simplesmente de contrapor de forma maniqueísta


e ingênua, à memória social herdada, uma outra memória
social e racial positiva e supostamente superior. Trata-se, sim,
de ativar a possibilidade de dar expressão e significado a
conteúdos históricos concretos silenciados pelas memórias
dominantes, trazer à cena e positivar os conteúdos não
codificados pelas linguagens convencionais, ressignificar as
sociabilidades não-hegemônicas e as múltiplas temporalidades
do viver cotidiano. Em palavras mais ousadas, trata-se de
construir e divulgar concepções e pressupostos capazes de
reorientar a nossa compreensão do nosso próprio passado - e,
se preciso, mudá-lo na forma como ele nos mostra - à luz
consciente de um projeto político e civilizacional
contemporâneo, ao mesmo tempo emancipador e antirracista.
(MATTOS, 2003, p.30).

Assim, Mattos referencia a necessidade de se contemplar a diversidade


das dimensões éticas e estéticas cotidianas, numa práxis que se contraponha à
história única aludida por Chimamanda Ngozi Adiche em sua palestra “O perigo
de uma história única”.

É impossível falar sobre única história sem falar sobre poder.


Há uma palavra, uma palavra da tribo Igbo, que eu lembro
sempre que penso sobre as estruturas de poder do mundo, e a
palavra é nkali. É um substantivo, que livremente se traduz:
‘ser maior do que o outro.’ Como nossos mundos econômicos e
políticos, histórias também são definidas pelo princípio do nkali.
Como são contadas, quem as conta, quando e quantas
histórias são contadas, tudo realmente depende do poder.
(ADICHE, 2009).

Na contramão da história única, Maldonado Torres (2005) convoca os


sujeitos subalternizados à insurreição contra o pensamento hierarquizante e à
subversão e desconstrução de suas convicções éticas e estéticas através do
chamado “giro decolonial”. De acordo com Torres, o projeto de descolonização:

Aspira romper com a lógica monológica da modernidade.


Pretende fomentar a transmodernidade: um conceito que
também deve-se entender como um convite ao diálogo e não
como um novo universal abstrato imperial. A transmodernidade
é um convide a pensar a modernidade/colonialidade de forma
crítica, desde posições e de acordo com as múltiplas
experiencias de sujeitos que sofrem de distintas formas a
colonialidade do poder, do saber e do ser. A transmodernidade
envolve, pois, uma ética dialógica e radical e um
cosmopolitismo de-colonial crítico. (TORRES, 2007, p.162).

Nesse sentido, o pensamento decolonial aparece como uma opção


teórico-metodológica e política para abarcar e operar num contexto do sistema-
mundo demarcado pela continuidade da colonialidade nas diversas formas de
existência subjetiva, individual, coletiva e prática, num contexto onde classe,
raça, gênero e diáspora são categorias basilares para compreensão da
racionalidade colonial.
Conforme Dussel (2008), o conjunto de práticas aqui referidas,
construídas pela juventude contemporânea do hip hop referencia uma forma de
pensamento fronteiriço, a partir de um não lugar, que é atravessado pelas
condições materiais e simbólicas de opressão estruturadas historicamente a
partir do mito da modernidade. Entretanto, essa mesma situação de outsider
within, (estrangeiro de dentro), para Collins (2016) permite a reflexão e criação
de novas estratégias de lutas por libertação e redefinição do sentido de (des)
humanidade, construído a partir da hierarquização das categorias de gênero,
raça e classe. Em conformidade, hooks (1984:vii) afirma: “ao viver como
vivíamos, na margem, acabamos desenvolvendo uma forma particular de ver a
realidade. Olhávamos tanto de fora para dentro quanto de dentro para fora...
compreendíamos ambos.”
Com efeito, o hip-hop reúne em suas manifestações alguns aspectos
que o aproximam daquilo que passou a se definir como "novos movimentos
sociais". Esses movimentos "mais soltos", a que se refere Gohn (2004), são
flexíveis, abertos em termos de valores e ideologias. A autora observa que os
movimentos sociais na atualidade se articulam mediante redes estabelecidas
por pequenos grupos, que, numa relação de compreensão mútua, constroem
suas demandas na vida cotidiana, em que a afetividade e a identificação
pessoal passam a ser a base para práticas inovadoras da cultura.

O paradigma dos Novos Movimentos Sociais parte de


explicações mais conjunturais, localizadas em âmbito político
ou dos microprocessos da vida cotidiana, fazendo recortes na
realidade para observar a política dos novos atores sociais. As
categorias básicas deste paradigma são: cultura, identidade,
autonomia, subjetividade, atores sociais, cotidiano,
representações, interação política etc. (GONH, 2007, p.15).

Exemplos de tais redes de solidariedade podem ser encontrados em


algumas organizações sócio- políticas independentes como o Movimento dos
Sem- Terra (MST), Movimento dos Sem- Teto (MTST), a Juventude Pátria
Livre, o Levante Popular da Juventude, a rede de cursinhos Emancipa e
Podemos Mais, a Central Única das Favelas (CUFA), que se estruturam em
coletivos militantes e ativistas, promovendo diversas campanhas sociais,
assistenciais, educacionais artísticas e culturais, ligadas à juventude periférica.
Por meio de mobilizações, ocupações, cursos, encontros, arrecadação e
distribuição de alimentos, remédios, roupas e produtos de higiene, esses
coletivos promovem ações educativas de conscientização política e
engajamento social. A frase da canção “Principia” do rapper Emicida (2019)
“tudo que nós tem, é nós” representa de forma emblemática os valores de
colaboração e solidariedade e ao mesmo tempo de revolta vivenciado por estes
movimentos e tem sido usada como slogan para as mais diversas ações neste
sentido.
Nestes movimentos, a arte cumpre um papel fundamental de
humanização e compreensão do que se convém chamar de “batalha das
ideias”, sendo o rap uma ferramenta essencial dessa “batalha” que visa a
unidade da classe trabalhadora do campo e da cidade na luta contra a
opressão colonialista. Nessa perspectiva, a música, a dança, o grafite, o estilo
e o lúdico em geral, funcionam como novas formas simbólicas de sociabilidade
que, articuladas a memória, são potentes ferramentas capazes de conferir
sentido ao sofrimento e à resistência da juventude periférica no enfrentamento
à violência capitalista. Através de sua capacidade de acessar mais
profundamente as emoções, a arte favorece a reflexão e facilita a compreensão
das ideias. A arte abolicionista, o grafite engajado nas questões
socioambientais, as canções da capoeira, as canções de resistência à ditadura
militar no Brasil são exemplos de tais potencialidades, que são retratadas
também no trecho do rap “Pedagogia da Pandemia” lançado pelo MST em abril
de 2020:
Desigualdade social gritando de atroz
Gerada para sustentar riqueza de alguns
Já dizia que o sistema não é motor de sonhos
Eles escravizaram pra ser todos por um
Um ciclo que detém a riqueza mundial
Que oprime, perpetua regime colonial
Transforma tudo que é coletivo em individual
E promove cruelmente extermínio global
Mata quilombola, sem-terra, índio,
Corta da educação, violenta, constrói presídio
E o papel do Estado não seria dar o subsídio?
É secundário, a prioridade é causar genocídio
(MULLER; ZAMURA, 2020)

Apesar do discurso anticolonialista e anti-imperialista, a narrativa da


emancipação racial negra tem entrado em certas ocasiões em dissonância
devido à construção conflitante gênero-sexualidade. Se apresenta cada vez
menos possível a separação entre questões raciais e de gênero nas
estratégias de enfrentamento, presentes nos repertórios do rap, deste modo, as
questões de gênero, machismo, homofobia, violência e misoginia, presentes
em relações desiguais da juventude, propõe novas frentes de mobilização que
contemplem demandas de atores sociais antissexistas. Nesse sentido, o
pensamento feminista se coloca como projeto político e ferramenta capaz de
promover a ruptura da hierarquia nas relações entre homens e mulheres, e, a
partir da relação dialógica entre teoria e prática, estabelecer um equilibro entre
o feminino e o masculino, promovendo a superação das desigualdades entre
os sexos. Para Rodrigo Gomes (2008) no hip hop:

Percebemos que as mulheres, em especial mulheres negras,


estão encontrando um significativo espaço para fomentar
discussões sobre as causas femininas, provendo através das
letras das canções, a conscientização das mulheres sobre os
temas como aborto, cuidado com o corpo, uso de
anticoncepcionais. Ele também é um lócus para divulgação de
seus direitos civis, como por exemplo, licença-maternidade,
aposentadoria para as donas de casa e domésticas, denúncia
à violência contra mulheres, etc. (GOMES, 2008, p.144).

A perspectiva multicultural que desconstrói a análise apenas a partir da


categoria classe e sugere uma análise interseccional, é também atravessada
pelo conflito entre os sexos no movimento, dando visibilidade à problemática do
gênero. De acordo com bell hooks:

Quando a maioria dos negros pensa em “grandes mentes”,


quase sempre invoca mensagens masculinas. (...) Na verdade,
dentro do patriarcado capitalista com supremacia branca, toda
a cultura atua para negar às mulheres a oportunidade de seguir
uma vida da mente, torna o domínio intelectual um lugar
“interdito” (hooks, 1995, pp.467-468).
Gilroy afirma que "o gênero é a modalidade na qual a raça é vivida"
(GILROY, 2001, p. 180). Para o autor, corpo é o lugar perpassado por todas as
questões, logo, ignorar a categoria gênero, é cair numa outra universalidade,
onde se imagina todos estes corpos, enfrentando suas lutas, a partir de uma
perspectiva patriarcal e heteronormativa. Apesar disso, seus estudos pós-
coloniais (2001), entre outros, ratificam a misoginia e o machismo constantes
nas letras do rap contemporâneo, os quais retratam o conflito entre homens e
mulheres presentes também na sociedade periférica. Endossando tal
pensamento, Inácio (2019) afirma que:

Essa forma necessariamente combatente, de lidar com a


própria sobrevivência, num estado de alerta constante, onde as
violências vêm em todas as nuances da existência de um ser
(social, psicológica, física, espiritual, cultural, etc.) são atingidas.
Há a necessidade de aguentar, de criar crosta, de ser firme, de
ser homem. Homem, num sentido comum necessário ser
quebrado, de sexo masculino, forte, provedor, defensor, bronco,
duro, inabalável, foda. Para ser sobreviver, há de ser forte; para
ser forte, há de ser másculo; para ser másculo, há de ser
machista. (INÁCIO, 2019. s/p).

Segundo o escritor e psicólogo Inácio, a masculinidade machista


opressiva e violenta, à qual se refere como hipermasculinidade e machismo,
que constitui as demais instancias sociais, também se reflete no rap e, apesar
do hip-hop, enquanto estilo de vida, perseguir a construção de uma narrativa
sobre expectativas de futuro, amor e sexualidade, o sexismo ainda é um
desafio desse movimento. Este processo sendo combatido nos últimos anos
pelo reconhecimento da atuação feminina, com a entrada em cena de
personagens como Vera Verônica, Atitude Feminina, BsB Girls, entre outras,
que tematizam a questão da mulher no hip-hop, denunciando a violência
misoginia que atravessa a relação entre essa juventude. Como se pode
observar na letra do rap “Rosas” do grupo Atitude Feminina:

A cada quinze segundos uma mulher é agredida no Brasil


E a realidade não é nem um pouco cor-de-rosa
A cada ano, dois milhões de mulheres são espancadas
Por maridos ou namorados
Hoje meu amor veio me visitar e trouxe rosas para me alegrar
E com lágrimas pede pra eu voltar, hoje o perfume eu não sinto
mais
Meu amor já não me bate mais. Infelizmente eu descanso em
paz!
(Atitude Feminina, 2016).

O rap feminista se apresenta como estratégia de empoderamento das


mulheres e de suas ações, através da inserção de pautas contestadoras das
convenções sociais, geradoras de espaços dicotomizados, vinculados aos
papeis de gêneros e sociais no movimento hip hop e na sociedade em geral.
Nesse sentido, o pensamento feminista negro constitui uma proposta de
avanço na compreensão da pluralidade e diversidade feminina a partir de uma
espécie de pedagogia de engajamento que leve em consideração a
interseccionalidade entre raça, gênero, classe, sexualidade, geração.
… uma conceituação do problema que busca capturar as
consequências estruturais e dinâmicas da interação entre
dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata
especificamente da forma pela qual o racismo, o
patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas
discriminatórios criam desigualdades básicas que
estruturam as posições relativas de mulheres, raças,
etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade
trata da forma como ações e políticas específicas geram
opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo
aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento.
(CRENSHAW,2002 s/p).

Carla Akotirene (2019), professora e autora, a partir da espistemologia


feminista negra, concebe a interseccionalidade por um “sistema de opressão
interligado que envolve a vida das mulheres negras em avenidas identitárias”.
Além disso, para a autora, o cuidado com a autoestima, a partir da valorização
da pluralidade e da desconstrução de estereótipos, é uma questão essencial do
pensamento feminista negro. O que também aparece no movimento hip hop
feminista, através do combate à rivalidade feminina e da promoção e estímulo
à sororidade/dororidade e fomento à construção de relações consistentes de
solidariedade em prol da coletividade.

Considerações Finais
Estudos realizados sobre o pensamento decolonial, tornaram possível
compreender essa teoria como uma postura crítica e combativa de
enfrentamento à imposição da epistemologia eurocêntrica pelo imperialismo,
como universal e verdadeira. A postura decolonial reivindica uma autonomia de
conhecimento, particularmente a partir da experiência latino-americana, através
do questionamento das estruturas hierárquicas de raça, classe, gênero e
geracional, presentes nos espaços de poder e sociabilidade e nas relações
sociais objetivas e subjetivas em geral. Propondo então, novas éticas, estéticas
e cosmologias, concebidas a partir da pluralidade, da multirracialidade, do
respeito e valorização da diversidade de modos de viver e pensar e da inserção
e visibilidade dos sujeitos silenciados pela hegemonia dominante, como o
negro, a mulher, a classe trabalhadora, os lgbt, imigrantes e outros grupos
historicamente marginalizados, denominados por Richard Santos (2020) como
“maioria minorizada”.
Não se trata, portanto, de a partir de uma análise reducionista, reverter a
ordem dos processos de dominação, ou de substituição de uma hegemonia por
outra, mas sim de reconhecer a multiplicidade de saberes e fazeres gerados
pelas diversas sociedades existentes no sistema-mundo. A decolonialidade
propõe a coragem de desconstrução do sistema de opressões e mascaramento
instalado a partir da perspectiva luso-tropical do homem cordial de Chico
Buarque de Holanda, presentes no discurso pedagógico oficial da escola
brasileira, o qual seja colonialista, patriarcal, heteronormativo, de moral cristã e
gerador de estereótipos em relação às populações subalternizadas e
marginalizadas, cunhadas como passivas, infantis, incapazes, irresponsáveis e
preguiçosas, entre outros estereótipos. É necessário combater essa práxis
irracional de violência, guerra e genocídio, constantes nas relações coloniais e
pós-coloniais, por meio de um contradiscurso que evoque o respeito à
soberania nacional e às populações dos países periféricos.
Em conformidade com essa tônica, o hip hop corrobora com a luta
antirracista, por meio da promoção de conhecimentos e saberes descentrados,
afetados pelo que Bhaba (2010) define como “tradução”, contra hegemônicos e
coletivos, por meio da valorização e visibilidade da cultura periférica, como um
campo fecundo do saber, que capilariza as demandas desses sujeitos
insurgentes, agregando valor à cultura e aos artistas de rua. Ademais, possui
forte potencial transformador da realidade, por meio do processo educativo
popular que, em seus aspectos fundamentais, visa superar a consciência
intransitiva e a transitividade ingênua por meio da elevação e ampliação da
consciência e da autoestima das populações negras, periféricas e diaspóricas,
desterritorializadas pela colonialidade que solapa suas existências e suprime
suas demandas ancorada no pensamento separatista, estruturador das
sociedades.
Nesse sentido, o movimento hip hop é atravessado pela reflexão dos
movimentos sociais em escala global, que, como a teoria decolonial, as
epistemologias do Sul e transmodernidade, se encaixam no chamado
pensamento fronteiriço, o qual não se subjuga à modernidade e busca
afirmação do espaço por ela negado, resistindo às ideologias modernas,
buscando ressurgimento das alteridades alijadas e libertação dessas
humanidades. A frase da escritora negra Conceição Evaristo: “eles
combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer”, consegue
exprimir de forma artística e até mesmo poética a dimensão das resistências
contidas nestas teorias contra hegemônicas.
Diante desse panorama, percebe-se a relação entre o movimento hip
hop e o pensamento decolonial, sendo ambos convergentes numa mesma
direção: a busca pela construção de uma sociedade mais inclusiva, justa,
diversa, tolerante e democrática, focada no bem-viver coletivo em detrimento
da perversidade estabelecida pela lógica individualista e predatória capitalista.
Onde o respeito e a valorização do ser humano sejam materializados em forma
de oportunidades iguais de educação, saúde, emprego, moradia, mobilidade,
inclusão, acesso, valorização e reconhecimento. Uma nova sociedade em que
a meritocracia seja substituída pela equidade, e haja perspectivas de um futuro
próspero e de uma vida digna. No qual a união, a solidariedade, a empatia, a
dialogicidade, o respeito à natureza, ao meio-ambiente e às populações
originárias, sejam valores considerados essenciais para a sobrevivência do
planeta e da espécie humana.

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PEDAGOGIAS OUTRAS DA EDUCAÇÃO VIVENCIADA
PELO MST NO ASSENTAMENTO SANTA MARIA DA BOA
VISTA – PE: OLHARES INSURGENTES

Ana cristina moura dos santos77


Jaine almeida silva78
77
Aluna Licencianda em Pedagogia pelo Centro de Educação Superior de Arcoverde (CESA).
Contato: [email protected].
78
Aluna Licencianda em Pedagogia pelo Centro de Educação Superior de Arcoverde (CESA).
Contato: [email protected].
Katya Carvalho Alexandre Almeida79

Introdução

O movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) é um


movimento de ativismo político e social brasileiro. O MST busca
fundamentalmente a redistribuição das terras improdutivas. Este estudo fará
uma análise pós crítica sobre a educação desenvolvida dentro do
Assentamento Santa Maria da Boa Vista 80, em Pernambuco, enfatizando as
lutas sociais e políticas em relação ao espaço escolar, bem como as
pedagogias outras vivenciadas dentro do assentamento.

A educação para o MST é mais que um direito, é a garantia de formação


humana, onde crianças, jovens e adultos são preparados para o enfrentamento
de suas lutas e para potencializar as possibilidades de trabalho no campo,
tornando-os acima de tudo os cidadãos que lutam ativamente por melhorias na
saúde, educação, alimentação e por igualdade na distribuição de terra. Para o
MST, investir em educação “é tão importante quanto o gesto de ocupar a terra,
aliás, que se encontra no cerne da pedagogia do movimento. Aqui, educar é o
aprendizado coletivo das possibilidades da vida. As dores e as vitórias são face
e contraface do mesmo processo” (PEDRO TIERRA, apud CALDART, 2000, p.
23). O movimento dos trabalhadores rurais sem terra vê na educação uma
porta de entrada, onde eles terão chances de ir em busca de conhecimento, e
em busca de seus direitos. Nesta perspectiva, os aspectos educativos os quais
mobilizam as reflexões e ações do MST estão intrinsecamente ligados a luta

79
Professora do CESA, Cientista Social, Pedagoga e Mestre em Sociologia pela UFPE.
Orientadora do artigo. Contato: [email protected].
80
O município de Santa Maria da Boa Vista é o segundo em números de Assentamentos do
Nordeste. Mais de 5000 mil famílias, com a presença de quatro movimentos sociais, MST,
Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores/as do Estado de Pernambuco (FETAPE),
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e Quilombolas.
pela terra e sobretudo, ao enfrentamento político pela democratização da
educação.

Para estudar sobre o assunto este projeto busca questionar como


Problema de Pesquisa: “Quais são as pedagogias outras vivenciadas nas
escolas do Movimento Sem Terra no assentamento Santa Maria da Boa Vista –
PE?”

Diante dessa problemática esse artigo levanta como Objetivo Geral:


Analisar como ocorre um ensino nas escolas do assentamento Santa Maria da
Boa Vista – PE levando em consideração as pedagogias outras e as Cirandas
Infantis.

E traz os seguintes objetivos específicos: conceituar a história do MST e


sua luta pelo direito à Educação, enfatizando a história do assentamento Santa
Maria da Boa Vista; compreender as pedagogias outras vivenciadas no
assentamento Santa Maria da Boa Vista, considerando a metodologia do
coletivo de escolas; compreender como se efetiva a pedagogia do movimento,
considerando as cirandas infantis no trabalho pedagógico com os sem
terrinhas dentro do assentamento; analisar os relatos de experiência de
professoras do assentamento, considerando seus projetos pedagógico e
vivências pessoais.

A escolha do tema se deve ao fato de ser necessário pensarmos de


forma pós crítica sobre as pedagogias outras, vivenciadas dentro dos
movimentos sociais e que são atualmente tão criminalizados por um governo
conservador e baseado na necropolítica81.

Mostrar pois, o fazer pedagógico dentro desse movimento é algo


insurgente, necessário e desafiador. Logo, a partir do contexto de luta esse
movimento, se faz necessário o aprofundamento de estudos sobre as
atividades pedagógicas desenvolvidas na escola do assentamento Santa Maria
da Boa Vista – PE. Desse modo este estudo importa científica e
81
O ensaio “Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte”, de
Achille Mbembe (2018) apresenta uma reflexão sobre o conceito de necropolítica efetuada pelo
Estado como: “o poder e a capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”
(MBEMBE, 2018, p. 5). Assim, entende-se que violência está ligada à estrutura que organiza as
relações sociais, reproduzindo-se no cotidiano da criminalização, violência simbólica e física e
até assassinato dos integrantes do MST.
pedagogicamente por quebrar tabus, estereótipos e preconceitos sobre a
Educação do MST, mostrando que se trata de uma pedagogia social, popular e
emancipadora.

Este artigo se baseou em uma pesquisa qualitativa descritiva, de caráter


bibliográfico baseada em um recorte epistemológico decolonial, nos quais se
destacam entre outros, autores como: Freire, (1992); Caldart (1997,2000,
2007, 2013); Arroyo (2014); Lage (2013); Rosseto (2010); Santos (2016),
Dossiê MST (2005); dentre outros.

Também foram colhidos relatos de experiências de quatro (04)


professoras que atuam no Assentamento Santa Maria da Boa Vista - PE, cujas
falas foram dialogadas com as teorias utilizadas a fim de dar mais veracidade
científica a pesquisa. Esses relatos foram serviram como uma colaboração à
práxis metodológica da área educacional e contém falas sobre a história do
assentamento, os projetos lá desenvolvidos e a visão sobre o fazer docência
nas escolas do assentamento. Eles foram essenciais para a construção
fidedigna desta pesquisa e nos possibilitou aproximar a teoria da realidade
prática através desses relevantes relatos.

Breve História da Educação no MST e no assentamento Santa Maria da


Boa Vista

O movimento dos Trabalhadores Rurais sem-terra (MST) emerge


oficialmente em 1984 dentro do encontro nacional dos trabalhadores Sem
Terra, no Paraná. É importante observar que esse movimento surgiu ainda no
período da ditadura militar, período em que aprofundou as desigualdades
sociais no país. Além disso, em 1984 estava em curso o processo de abertura
para a redemocratização do país que deu a possibilidade desenvolver
movimentos sociais, muito reprimidos nas décadas anteriores. A formalização
do movimento possibilitou inúmeros Congressos Nacionais. O primeiro deles
ocorreu em janeiro de 1985, se tornando um marco histórico.
[...] o movimento teve origem em vários Estados da região
Centro Sul. Consideramos, porém, janeiro de 1984 a data de
fundação do MST, quando se formalizou como um movimento
nacional. De 21 a 24 de janeiro daquele ano, na cidade de
Cascavel (PR), realizamos o I Encontro Nacional do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, com 80 representantes
de 13 Estados. Definimos, nessa ocasião, os princípios, quais
as formas de organização, nossas reivindicações, estrutura e
formas de luta do movimento. Já estavam presentes algumas
ideias fortes nessa organização (STEDILE; FERNANDES,
2012, p. 46).

No Brasil os movimentos por terra não era uma novidade. Eles existem
desde o início do século XX como forma de manifestação popular e combate às
desigualdades na distribuição de terra, característica histórica do país em
relação à estrutura latifundiária. Ao longo do tempo esses movimentos
tornaram-se mais unificados, originando o MST. Além da luta política, os
movimentos foram, paulatinamente, tornando-se visibilizados e empoderando-
se de seus aspectos culturais e experiências de educação outras que os
impulsionavam e, contemporaneamente, ainda os movem (GOHN, 2008;
RIBEIRO 2013; CALDART 2012).

Durante os primeiros anos de luta, os Sem-Terra reunidos sobre a


bandeira do MST tinham como prioridade era a conquista de terra. Mas ao
longo do tempo puderam perceber que isso não era bastante. A terra
representava a possibilidade de trabalhar, produzir e viver dignamente, mas
faltava estruturamento fundamental para a luta da comunidade. Para dar
continuidade a luta eram necessários conhecimentos tanto para lidar com
assuntos práticos como entender a conjuntura política econômica e social a
partir daí a educação tornou-se a prioridade do movimento. Lage (2013), nos
lembra que que “a historicidade construída nos lugares de luta política
transforma trajetórias silenciadas em novos marcos políticos, na medida em
que seus protagonistas podem se enxergar como sujeitos nos mais variados
campos da cidadania” (LAGE, 2013, p. 40).

A educação se torna um dos principais objetivos do Movimento Sem


Terra. Segundo Caldart (2000, p.56) “é preciso educar cada família sem-terra
quem não se esqueça também de suas raízes camponesas, de sua cultura, de
como as raízes participam da formação do povo brasileiro”.

Em 1998 foi realizada a I Conferência Nacional por uma Educação


Básica do Campo, organizada pelo MST, a UnB, a CNBB, a UNESCO e o
UNICEF. Significou, para Caldart (2000, p. 13), “[...] o momento de batismo
coletivo de um novo jeito de pensar a educação para o povo brasileiro que vive
no e do campo”. Essa conferência é um marco histórico na Educação do
Campo, pois nela ficou definido o uso do termo campo em contraposição à
zona rural. Diversas outras surgiram posteriormente. Mas, dentre as diversas
políticas educacionais historicamente conquistadas a partir de luta e sangue
derramado, destacamos a do período o Decreto nº 7.352/2010 que dispõe
sobre a política de educação do campo e o Programa Nacional de Educação
na Reforma Agrária – PRONERA (BRASIL, 2010) que eleva a Educação do
Campo ao patamar de política de Estado. Nele, destaca-se o Art. 2º que
apresenta os princípios da Educação do Campo:

I – respeito à diversidade do campo em seus aspectos sociais,


culturais, ambientais, políticos, econômicos, de gênero,
geracional e de raça e etnia;
II - incentivo à formulação de projetos político-pedagógicos
específicos para as escolas do campo, estimulando o
desenvolvimento das unidades escolares como espaços
públicos de investigação e articulação de experiências e
estudos direcionados para o desenvolvimento social,
economicamente justo e ambientalmente sustentável, em
articulação com o mundo do trabalho;
III - desenvolvimento de políticas de formação de profissionais
da educação para o atendimento da especificidade das escolas
do campo, considerando-se as condições concretas da
produção e reprodução social da vida no campo;
IV – valorização da identidade da escola do campo por meio de
projetos pedagógicos com conteúdos curriculares e
metodologias adequadas às reais necessidades dos alunos do
campo, bem como flexibilidade na organização escolar,
incluindo adequação do calendário escolar às fases do ciclo
agrícola e às condições climáticas; e
V - controle social da qualidade da educação escolar, mediante
a participação da comunidade e dos movimentos sociais do
campo (BRASIL, 2010, pp. 01-02).
No que se refere especificamente ao município de Santa Maria da Boa
Vista82, pode-se fazer o seguinte apanhado histórico, segundo Cruz (2019, p.
27):

Sua história tem início no final do século XVI, no povoado da


Igreja Nova entre a Serra e o Rio. Como fruto da colonização
das Ilhas do Rio São Francisco, região povoado pelos Índios
Cariris que foram catequizados pelos missionários
Franciscanos. Essas são os primeiros registros da região do
Submédio do Vale do São Francisco, sendo por dois séculos
(XVI a XVIII), o principal núcleo urbano do lado de
Pernambuco. No que tange ao aspecto administrativo, o
território de Santa Maria da Boa Vista foi parte da sesmaria,
concedida pelo reino à Casa da Torre, da família Garcia
D'Ávila, sediada no Estado da Bahia à beira-mar, e que
estendeu seus domínios pelos sertões, constituindo fazendas e
currais, para exploração e comércio de gado bovino, tornando-
se proprietária de grandes áreas que ultrapassaram o rio São
Francisco. O desbravador do Sertão Garcia D’Ávila, nascido
nessa região, chamou a vila de ‘Caminho do Gado’, no final do
século XVIII. Com a sua restauração recebeu o nome de
Coripós, denominação dada pelos índios Kiripós, Caripós e
Coripós que aqui habitavam. O nome Coripós refere-se ao
peixe extraído das locas das pedras submersas nas águas
turvas do Velho Chico. Nos meados do século XIX, foi criada a
vila de Boa Vista e desmembrada a freguesia de Ouricuri.
Nesse mesmo período, consta de um livro de registros que a
comarca de Boa Vista tinha cerca de mil pessoas, não obstante
a sua imensidão territorial, que ultrapassava uma área de mais
de 10.000 Km². Nesse período, a freguesia de Petrolina
também foi desmembrada da vila de Santa Maria da Boa Vista.
Foi em meados do século XX, mais precisamente no dia 31 de
dezembro de 1943, pelo Decreto Lei Estadual n° 952, que a
Vila de Boa Vista passou a ser município e a se chamar Santa
Maria da Boa Vista. A sua área territorial foi desmembrada em
outros municípios tais como: Petrolina, Orocó e Lagoa Grande.
Situado no semiárido Brasileiro conhecido como Sertão
Pernambucano na região denominada Submédio do Vale do
São Francisco.

Apenas em 1996, após anos de lutas, ocorre o primeiro reconhecimento


do assentamento rural do município e da região pelo Instituto Nacional da

82
Santa Maria da Boa Vista é um dos municípios mais antigos do Estado de Pernambuco e, de
acordo com dados do IBGE 2014, tem uma população estimada em 41.103 habitantes,
distribuída em um território que compreende 3.001,79 km2. É considerado um dos municípios
de maior extensão territorial do Estado. Estima-se que 60% de sua população viva no campo,
distribuída em regiões: sede, região Ribeirinha (que concentra 3 comunidades quilombolas);
região de Sequeiro; Projeto Fulgêncio (reassentamento de pessoas atingidas com a construção
da Barragem de Itaparica); Região MST – Assentamentos (concentra o maior número de
assentamentos do MST no município) (SANTOS, 2016).
Colonização e Reforma Agrária - INCRA, chamado de assentamento SAFRA
(primeiro assentamento a ser reconhecido no município de Santa Maria da Boa
Vista – PE, em 08 de maio de 1995). Isso levou os trabalhadores rurais a se
fortalecerem e resistirem em outros acampamentos. Nos anos seguintes,
ocorreram outras conquistas e reconhecimentos de projetos de assentamentos
rurais, entre eles, o Projeto de Assentamento Rural Nossa Senhora da
Conceição (CRUZ, 2019).

No que concerne à educação, segundo relatos de professores locais, a


partir do Assentamento Safra, que se principiou a luta pelo processo do direito
por uma Educação dentro do acampamento, onde iniciou-se com professores
voluntárias. Inicialmente, só tinha o Assentamento Safra e depois foi se
montando acampamento em todo o município. O município iniciou timidamente,
colocando um professor para várias turmas (multisseriadas), de manhã e à
tarde, para tentar garantir aulas para os estudantes. E esse processo de luta é
algo permanente e constante dentro do movimento.

Esse processo de luta acontece até hoje porque a maioria dos


prefeitos não querem colocar escola dentro dos acampamentos
porque é provisório demais. Só que, como Santa Maria da Boa
Vista é um município que nós temos uma caminhada e um
processo de luta muito forte, a gente hoje já consegue
facilmente colocar escolas em todos os acampamentos e
assentamentos do MST. Então, essa história de luta pelo
direito à educação, tem se dado em todos momentos, desde o
acampamento até o momento de assentamento. Quando
entramos na comunidade, uma das primeiras coisas que
buscamos depois do processo de construção de barracos, de
se organizar em grupos, é o processo de educação, é ir atrás
do professor, do município, para garantia desse direito
(RELATO DA PROFESSORA 2 SMBV, 2020).

A organização da Educação em Santa Maria da Boa Vista se deu a


partir de muitas lutas, enfrentamentos e conquistas, porém, a educação
conseguiu se diferenciar em sua organização em relação a muitos outros
assentamentos brasileiros que continuam em luta ainda maior. O Coletivo de
escolas de assentamentos de Reforma Agrária é uma instância auto
organizada das escolas públicas de assentamentos do MST, em Santa Maria
da Boa Vista (SMBV), que tem o propósito a construção de uma pauta comum
e a condução do trabalho coletivo nas escolas.

Apesar de enfrentar inúmeras dificuldades, o MST possibilita às famílias


assentadas uma formação diversificada, pois o próprio Movimento tem sua
pedagogia, que acompanha e fortalece os processos escolares. Ele oportuniza
aos seus participantes uma formação intra Movimento que se constitui em
formações políticas, sociais, econômicas, críticas, coletivas, emancipatórias,
para que os/as educandos/as estejam conscientes das estruturas sociais e da
luta de classe que deve acontecer todos os dias. Faz-se mister compreender o
MST como um sujeito coletivo e aprendente que entende o seu lugar e o lugar
dos outros na sociedade na marcha cotidiana pela transformação social
(FIGUEIREDO, 2020).

As pedagogias outras no assentameto Santa Maria da Boa


Vista – PE: coletivo de escolas

A pedagogia desenvolvida pelo MST é crítica, reflexiva, politizada e


bastante diferenciada da pedagogia tradicional, conservadora, neotecnicista e
neoliberal imposta pelo governo atual. Segundo Arroyo (2000, p. 15), “a
pedagogia do MST contribui para a formação humana dos seus educandos/as
de modo a empoderá-los da consciência crítica, da autonomia e da
necessidade de se lutar para conquistar direitos humanos, sociais, civis e
políticos”. É importante, pois se perceber o caráter pedagógico no MST como
propostas metodológicas e epistemológica contra hegemônicas. Os
professores do movimento acreditam também na luta pela terra e pela reforma
agrária, buscando uma sociedade mais justa. A partir desses (con)textos, cabe-
nos perguntar pela educação reflexiva, dialógica, problematizadora,
humanística e que tem como eixo central o sujeito em processo de Ser Mais
(FREIRE, 1994).

É importante destacar que para o MST, a escolarização é


importante, mas a educação não se limita a ela. A educação é
vista como um processo mais amplo da formação humana e,
portanto, se dá em espaços educativos para além da escola e
é direito de todos. A educação é politização, que se faz com
práxis nas experiências cotidianas da luta pela terra e na
resistência nela. Nestes termos, a noção de educação do
Movimento vincula-se à ideia de formação de crianças e jovens
para o trabalho no campo, que, ao se constituírem
trabalhadores, participem ativamente da luta pela reforma
agrária, contra o capital e pela democratização das relações de
poder (SCHREINER, 2009, p. 239).
Dessa forma, é preciso se pensar em uma pedagogia diferenciada para
pensar sobre os movimentos socioculturais, ou seja, se pensar em “pedagogias
outras”. Neste aspecto, Miguel Arroyo em “Outros Sujeitos, Outras Pedagogias”
fala da necessidade de se pensar sobre uma ação pedagógica capaz de
perceber “os oprimidos como sujeitos de sua educação, de construção de
saberes, conhecimentos, valores e cultura” (ARROYO, 2014, p.27). Nesse
panorama:

Na riqueza de ações coletivas estão sendo construídos outros


conhecimentos, outras formas de pensar os Outros e o Nós e
outras pedagogias de conformação de Outros sujeitos sociais,
políticos, humanos. Diante dessa rica diversidade de saberes e
de práticas, de sentidos e de intenções transformadoras e,
sobretudo, de sujeitos coletivos em movimento reinventando
outras pedagogias, a tradução intercultural pedagógica poderá
ajudar a construir a inteligibilidade recíproca, a busca de
convergências e de superações (ARROYO, 2014, p. 27).

Ainda podemos destacar nesse cenário contra hegemônico das


pedagogias outras o pensamento do Boaventura Souza Santos (2009) que
propõe uma educação baseada na “Ecologia dos Saberes”, que é o diálogo do
conhecimento científico com outros conhecimentos (interconhecimentos) que
estão presentes nas práticas sociais desenvolvida dentro do movimento,
construindo uma nova relação entre conhecimento científico, conhecimentos
populares, conhecimento artístico, conhecimento dos cidadãos. Trata-se de
uma forma de valorizar os saberes locais. Neste sentido, Paulo Freire pode ser
percebido a partir da perspectiva de pensamento decolonial, pois refletia a
partir de uma “pedagogia que [fizesse] da opressão e de suas causas objeto de
reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta
por sua libertação em que essa pedagogia se fará e refará” (FREIRE, 1994,
p.34).
É importante frisar que apesar de o currículo seguido pelas escolas do
assentamento precisarem seguir o modelo do currículo de Pernambuco, devido
as especificidades que cabem ao movimento e a educação do campo, existe
em santa Maria o trabalho com o currículo oculto, que informalmente, é
trabalhado e que fica claro na fala de uma professora local:

O currículo que nós seguimos é o currículo de PE, que agora


foi reformulado e é baseado na BNCC. Santa Maria da Boa
Vista não tem sistema próprio. Agora dentro do currículo
existem as especificidades de cada município. Esse
município é extremamente diverso em povos do campo.
Santa Maria da Boa Vista tem índios, tem quilombola, tem
reassentados do Projeto Fulgêncio, tem a Região de
Sequeiro e tem a Região do MST. Então com isso existe as
especificidades de cada povo. Mas o currículo das Escolas
do Campo e da Região do MST é o mesmo currículo de
Pernambuco. Mas se diferencia, por exemplo: O MST tem
suas especificidades do ponto de vista da pedagogia do
MST, da dinâmica voltada às lutas, aos princípios de
Educação do MST. Só que ele não entra diretamente no
currículo. Tratamos essas especificidades dentro do PPP da
escola, mas o currículo que seguimos, é o de Pernambuco
(RELATO PROFESSORA 1, SMBV, 2020).

É importante frisar que a concepção de Educação do Campo 83 aponta


para uma educação pautada em conteúdos e metodologia pedagógica
diferenciada para o campo. Propícia por isso um amplo horizonte de temáticas
que devem ser recuperadas em unidades escolares e nas suas respectivas
comunidades, temas como: “esperança, cidadania, justiça, liberdade,
igualdade, cooperação, diversidade, terra, trabalho, identidade [...]”
(NASCIMENTO, 2006, p. 9).

Segundo explica Santos (2016), o Coletivo de Escolas de


assentamentos é uma instância auto organizada das escolas públicas de
assentamentos do MST, que, no caso de Santa Maria da Boa Vista (SMBV)
83
Educação do Campo “nasceu como crítica à realidade da educação brasileira,
particularmente à situação educacional do povo brasileiro que trabalha e vive no e do campo.
Esta crítica nunca foi à educação em si, mesmo porque seu objeto é a realidade dos
trabalhadores do campo, o que necessariamente a remete ao trabalho e ao embate entre
projetos de campo que têm consequências sobre a realidade educacional e o projeto de país”
(CALDART, 2008, p.4).
visa a construção de uma pauta comum e a condução do trabalho coletivo nas
escolas, possibilitando um espaço de integração, consonância de um trabalho
pedagógico entre todas as escolas que expõem suas pautas e demandas e no
momento do planejamento, as ações pensadas retornam ao coletivo de
educadores de cada escola onde são debatidas e transformadas em ações.
Assim, compreendem que o Coletivo de Escolas oportuniza tecer diálogos e
deflagra ações em direção à transformação da escola na medida em que se
constrói com diversos sujeitos por meio de espaço organizativo coletivo. Isso
pode ser melhor esclarecido no relato de mais um professor do Assentamento
SMBV:

Nós temos um plano municipal de ação para Educação do


Campo. Esse é um dos poucos municípios onde a maioria das
escolas estão no Campo, sendo 42 escolas e 3 escolas na
cidade. Temos as especificidades por região e na região do
MST. Seguimos as orientações desse plano de ação que é
construído por quatro anos que indica várias atividades que
realizamos, desde o processo de organização. Nesse plano
tem três eixos: Eixo pedagógico, eixo de organicidade e eixo de
infraestrutura. Então, dentro desses eixos entram várias
questões. Por exemplo, da parte pedagógica temos a questão
da construção do material de estudo, apoio pedagógico,
construção e reconstrução/remodelação do PPP. No eixo de
organicidade temos as reuniões de gestores que são feitas
mensalmente, reunião com os educadores por bimestre, que
chamamos de coletivo de Educadores. E nesse coletivo
participam todos o corpo escolar, desde o vigilante, a
merendeira, o gestor, o professor, toda equipe escolar.
Também temos o coletivo dos estudantes. Nesse município
não conseguimos com tanta força os coletivos, somente em
algumas escolas, mas estamos trabalhando para essa
construção. Dentro do eixo de infraestrutura, trazemos a
questão das hortas escolares, construção de parque infantis,
embelezamento das escolas, a questão artística-trazer os
grupos culturais, etc. O trabalho com projetos pedagógicos é
muito importante porque existem muitos questionamentos
dizendo não faz parte da pedagogia, mas acreditamos que todo
processo da formação da pessoa humana é um processo
pedagógico e tem ajudado muito no desenvolvimento político
pedagógico da escola, por isso que nós mantemos (RELATO
PROFESSORA 3, SMBV, 2020).

É perceptível que a luta dos professores no assentamento SMBV é


histórica e passou por processos de lutas contra a exclusão social capitalista e
opressora e a colonialidade do ser 84.para que se tornasse efetiva. Mas ainda é
notória a continuidade da luta por direitos de cidadania, mais políticas públicas
e respeito. Porém fica nítido que no que tange aos alunos a pedagogia busca
ser emancipadora, dando-lhes autonomia, tornando-os protagonistas sociais. O
“educador do campo é aquele que contribui com o processo de organização do
povo que vive no campo” (MOLINA, 2002, p.38). Essa ideia tem consonância
com estudos pós críticos, uma vez que os mesmos defendem que é preciso
dialogar horizontalmente, ouvindo as vozes e os conhecimentos dos que
historicamente foram silenciados.

Pedagogia do movimento, intinerância e cirandas infantis:


os sem terrinhas no assentamento santa maria da boa
vista – PE

A luta da pedagogia do movimento é uma luta não só por uma educação


de qualidade, popular e emancipadora, mas também é uma luta contra a
opressão advinda do neoliberalismo que alimenta o agronegócio, que promove
teorias educacionais baseadas no eurocentrismo, o nordocentrismo e seu
dogmatismo científico hegemônico, que pressupõe a negação dos saberes dos
povos campesinos do MST, criminalizando o movimento através da mídia
elitista e silenciado os benefícios de seu plantio saudável e em sua pedagogia
diferenciada.

Essa pedagogia busca ensinar considerando os saberes que os alunos


(as) trazem de suas vivências. A troca de saberes nos espaços é essencial
para não se impor o conhecimento, mas se fazê-lo um ato reflexivo e crítico.
Freire (1987) já havia argumentado que o ato de ensinar e aprender depende
da mediação com o mundo, com as experiências dos e entre os sujeitos.

Os movimentos sociais em suas marchas, místicas, músicas e em seus


encontros e símbolos se têm mostrado educadores da cultura reinventando
pedagogias e artes culturais de extrema densidade pedagógica. Mas como
84
A Colonialidade do Ser se faz fortemente presente nesse aspecto, pois se trata para Mignolo
(2007, p. 100), do processo de “aceitação de viver na Colonialidade do ser adormecido na
ferida colonial”. Assim, ao internalizarem os estereótipos que os discriminam, os povos
campesinos do MST caso não tenham uma educação diferenciada correm o risco de crerem na
condição de inferioridade que a colonialidade lhe impõe.
incorporar essas pedagogias nas práticas escolares? (ARROYO; CALDART;
MOLINA, 2004, p. 59). É neste cenário de luta que as chamadas Cirandas
infantis foram criadas, com o intuito de proporcionar a troca de saberes e
experiências. A iniciativa surgiu em 1987 durante o 1º encontro nacional de
educadores/as da reforma agrária (ENERA) que tinha a função de dar
possibilidades a participações dos pais e das mães nos espaços políticos do
movimento.

Assim, com o passar dos anos a pedagogia focou na formação de


crianças com a finalidade de levar os conhecimentos dos movimentos através
de atividades lúdicas e culturais (interculturais), trabalhando as várias
dimensões de ser criança Sem Terrinha, como sujeitos de direitos, com
valores, com imaginação, fantasias vinculadas ao cotidiano as relações de
gênero, a cooperação, a criatividade e autonomia. São espaços educativos
onde as crianças aprendem em movimento a ocupar seu lugar na organização
a qual fazem parte, trazendo em seu currículo um ensino contextualizado
agregando valores sociais, culturais históricos.

Isso é vivenciado tanto nas escolas formais dos movimentos, quanto nas
chamadas ‘Escolas Itinerantes”, que desempenham um importante papel para
todos que fazem parte do MST, pois ela vem garantir o direito à educação, para
crianças, jovens e adultos que vivem nos acampamentos em situação de
itinerancia, algo que no caso de Santa Maria já foi vivenciado porque já vivem
em situação de assentamento, mas que já passaram por isso e possuem essa
histórica experiência.

Assim, as escolas do MST surgiram a partir da necessidade dos filhos


dos militantes que se autodenominam Sem Terrinhas e das mulheres/mães
que precisavam participar de reuniões, marchas e congressos terem um lugar
confiável para deixar seus filhos. Segundo relatos de uma professora do
acampamento de Santa Maria da Boa Vista ocorre durante as viagens.

A Pedagogia Itinerante e popular vivenciada nas escolas do


assentamento Santa Maria da Boa Vista, hoje, não se dá o processo
fortemente. Exemplo: Quando nós estamos no acampamento, se dá o
processo de inerência mais vezes. É mais comum porque estamos
numa localidade, vamos para outra, ocupamos a casa grande, vamos
para a beira do rio, estudamos em barracos, estudamos embaixo de
árvores, etc. Quando estamos nos Assentamentos, esse processo
não se dá com tanta frequência, porque se nos acampamentos
demorarem muito para serem construídos, geralmente temos um local
para escola: é uma casa grande, algo nesse tipo. Quando passamos
a ser Assentamento, ou remodela aquela escola, ou deixa ela maior
ou o município constrói uma escola aí acontece a inerência nesse
sentido, mas é mais comum, pelo menos nesse município, o processo
de inerência nos acampamentos e não nos Assentamentos (RELATO
PROFESSORA 4, SMBV, 2020).

O movimento das cirandas infantis relaciona teoria e prática, com a


valorização e formação dos discentes por meio de valores humanistas e
socialistas fazendo com que essas crianças sem terras se tornem militantes de
fato.

Na definição do MST (2004), a Ciranda Infantil constitui:

Um espaço educativo organizado, com objetivo de trabalhar as várias


dimensões de ser criança sem terrinha, como sujeito de direitos, com
valores, imaginação, fantasia e personalidade em formação,
vinculando as vivências com a criatividade, as relações de gênero, a
cooperação, a criticidade, a autonomia o trabalho educativo, a saúde,
e a luta pela dignidade de concretizar a conquista da terra, a reforma
agrária, as mudanças sociais [...]. São espaços educativos
intencionalmente planejados, nos quais as crianças aprendem, em
movimento, a ocupar o seu lugar na organização de que fazem parte,
promovendo trocas, aprendizados e vivências coletivas. É muito mais
que espaços físicos, são espaços de trocas, aprendizados e vivências
coletivas (MST, 2004, p. 37).

Sempre será priorizado na aprendizagem dos Sem Terrinhas o estudo


da história, da economia e da política e também da participação dos
Trabalhadores do MST em lutas sociais e de outras categorias. Segundo
Rosseto (2006, p 52) “a experiência da Ciranda infantil surge lado a lado com o
debate de temas importantes como gênero, trabalho e coletividade”. Na
organização do MST, há dois tipos de Cirandas, a Ciranda Itinerante e a
Ciranda Permanente. A Itinerante é aquela que acontece em cursos, marchas,
reuniões, congressos e reuniões diversas, não possui um local fixo. “Já a
Ciranda Permanente é um espaço educativo organizado nos assentamentos,
acampamentos, nas escolas e nos centros de formação, com período
permanente.” (ROSSETTO, 2016).
Com as cirandas infantis implantadas nos assentamentos os alunos
passam a ter acesso a cuidados básicos como, alimentação, higiene, sono,
segurança e afeto. Outro ponto é que desde pequenos são estimulados a dar
continuidade à luta dos seus pais, por melhores condições de vida. As cirandas
infantis estimulam as crianças a se tornarem sujeitos ativos levando-as a
conhecerem toda sua história de luta por igualdade, todos os seus direitos e
deveres sobre o papel e a importância como cidadão militante. Porém, essa
realidade é mais forte nos movimentos do Sul do que do Nordeste.

Segundo relato da professora do movimento, as cirandas infantis em


Santa Maria:

As cirandas infantis em Santa Maria da Boa Vista têm se dado mais


no período de acampamentos porque tem as assembleias, tem
algumas atividades que precisamos ter um espaço pedagógica para
nossas crianças. Nesse espaço pedagógico, geralmente quando vai
se ter assembleia, quando vai ter cursos, reuniões, momentos de
formação, criamos o espaço pedagógico da ciranda infantil para
deixar nossas crianças. Porém nessa cidade, isso foi vivenciado
muito nos acampamentos e em alguns cursos. Geralmente todos os
cursos que são feitos tanto em acampamentos como em
assentamentos criamos o espaço da ciranda infantil. Mas não foi uma
ação que se tornou fortemente nesse município. Agora, no início
trabalhávamos muito com a ciranda infantil porque precisávamos dar
formação às pessoas e tinha que ter um espaço para deixar as
crianças. Então, nesse sentido, as cirandas tiveram muita força. E
em todos os cursos de formação do MST de forma geral tem a
ciranda infantil. Inclusive no Centro de Formação Paulo Freire tem um
espaço exclusivo para criança, para ciranda infantil, onde tem
educadores infantis que cuidam. No momento de acampamento
nesse município era bem interessante. Nós pegávamos essas
crianças e pessoas da própria comunidade. Nós fazíamos formação
antes pra que essas pessoas cuidassem dos Sem Terrinhas. Tinha
todas as atividades pedagógicas possíveis: brincadeiras, jogos,
ornamentação do ambiente alfabetizador pedagógico, toda uma
estrutura pedagógica e uma matriz curricular para essas cirandas
infantis (RELATO PROFESSORA 1, SMBV, 2020).

Portanto, as cirandas infantis têm um papel fundamental na vida das


Crianças que fazem parte do MST pois, através dela a criança é estimulada a
participar das diversas atividades pedagógicas que permitem desenvolver sua
autonomia, criticidade criatividade e espírito de cooperação como cidadã, além
da reflexão sobre a sua história e seu autoconhecimento, tornando-os sujeito
capaz de agir e modificar a sua realidade.

1. ANÁLISE DOS RELATOS DE EXPERIÊNCIA DE PROFESORAS DO


ASSENTAMENTO SANTA MARIA DA BOA VISTA

Realizada os levantamentos bibliográficos, esta pesquisa sentiu a


necessidade de ouvir também relatos de experiências de professores que
atuam no assentamento Santa Maria da Boa Vista – PE com o intuito de dar
voz aos sujeitos pesquisados e tirá-lo da invisibilidade social, porém,
atendendo ao preceito ético da pesquisa que oculta nomes e preserva a
identidade dos autores dos relatos. Tais relatos foram realizados com quatro
professoras e posteriormente organizados e analisados a partir de um diálogo
com autores especialistas nas temáticas em questão.

Partindo da análise dos relatos observa-se a presença de diversos


projetos pedagógicos que são vivenciados tanto no ambiente escolar quanto no
ambiente coletivo. Os projetos se expandem por todo o território do
assentamento dando ênfase ao saber comum, mostrando a importância desses
projetos academicamente e na formação humana onde todos serão
beneficiados e poderão dar continuidade aos projetos.

Vejamos os relatos referentes aos projetos pedagógicos do


assentamento SMBV:

Nós temos um plano municipal de ação para Educação do Campo.


Esse é um dos poucos municípios onde a maioria das escolas estão
no Campo, sendo 42 escolas e 3 escolas na cidade. Como já falei,
temos as especificidades por região e na região do MST. Seguimos
as orientações desse plano de ação que é construído por quatro anos
que indica várias atividades que realizamos, desde o processo de
organização. Nesse plano tem três eixos: Eixo pedagógico, eixo de
organicidade e eixo de infraestrutura. Então, dentro desses eixos
entram várias questões. Por exemplo, da parte pedagógica temos a
questão da construção do material de estudo, apoio pedagógico,
construção e reconstrução/remodelação do PPP. No eixo de
organicidade temos as reuniões de gestores que são feitas
mensalmente, reunião com os educadores por bimestre, que
chamamos de coletivo de Educadores. E nesse coletivo participam
todos o corpo escolar, desde o vigilante, a merendeira, o gestor, o
professor, toda equipe escolar. Também temos o coletivo dos
estudantes. Nesse município não conseguimos com tanta força os
coletivos, somente em algumas escolas, mas estamos trabalhando
para essa construção. Dentro do eixo de infraestrutura, trazemos a
questão das hortas escolares, construção de parque infantis,
embelezamento das escolas, a questão artística-trazer os grupos
culturais, etc. O trabalho com projetos pedagógicos é muito
importante porque existem muitos questionamentos dizendo não faz
parte da pedagogia, mas acreditamos que todo processo da formação
da pessoa humana é um processo pedagógico e tem ajudado muito
no desenvolvimento político pedagógico da escola, por isso que nós
mantemos (RELATO PROFESSORA 1, SMBV, 2020).

Quando se fala em coletivos pedagógicos existem várias situações


diferenciadas em que eles se encaixam. Partindo dessa ideia se dá a criação
de equipes ou núcleos de educação, formado por um grupo de pessoas com o
intuito de argumentar sobre as práticas educacionais existentes no
acampamento/assentamento com objetivo de que a educação estabelecida no
local chegue a todos e com qualidade. Sendo assim, a formação dos coletivos
se torna uma ferramenta importante no ambiente educacional e a partir dele
pode-se haver um maior planejamento e controle do que desenvolver no
ambiente escolar.

A Construção do Saber coletivo se dá de maneira articulada com as


vivências da comunidade (assentamento). Vale lembrar que os coletivos atuam
com divisão de tarefas e estabelece ligação com ambientes fora do espaço
escolar envolvendo as crianças vírgulas jovens e adultos na construção
conjunta de saber compreender a importância do outro para o coletivo,
valorizando os seus membros e suas conquistas.

O princípio do trabalho de educação através de coletivos pedagógicos


está ligado a outro princípio que é igualmente importante: quem
educa também precisa se educar continuamente. Os coletivos
pedagógicos podem ser o espaço privilegiado de autoformação
permanente, através da reflexão sobre a prática, do estudo, das
discussões e da própria preparação para outras atividades de
formação promovidas pelo MST, pelos órgãos públicos, por outras
entidades. Além de qualificar o trabalho, o coletivo tem ainda outra
dimensão formativa: ele mais facilmente alimenta o nosso direito de
sonhar, de criar, de ousar fazer coisas novas. Um direito que, no
nosso caso, é também um dever! (MST, 2005, p. 175).
No relato 2 observa-se o seguinte depoimento:

Tem alguns projetos que são pensados através do coletivo de


gestores que nossas escolas, nosso munícipio tem. Nesse coletivo de
gestores pensamos as atividades para serem realizadas. Então, tem
embelezamento nos assentamentos, nas escolas, tem horta escolar,
tem o torneio da integração (onde todas as escolas juntas fazem esse
torneio, divisão de tarefas). Nesse torneio, faz arrecadação de
recursos para um objetivo comum. Então, essa construção coletiva é
com esse objetivo dos nossos alunos irem pra ação, mas depois que
vivenciar tudo isso, fazer essa junção de ação/sistematização, e
prática/teoria, aprimorando assim o conhecimento (RELATO
PROFESSORA 3, SMBV, 2020).

O trabalho realizado no coletivo possibilita a troca de experiências e


conhecimentos, além de desenvolver a capacidade de ouvir e respeitar as
diferenças opiniões permitindo assim um trabalho de qualidade e produtivo com
a participação e o envolvimento de todos diante das atividades propostas.
Dessa forma “A relação entre conhecimento e ação existe, tanto no campo do
agir, quanto no campo do fazer e, entre as formas de raciocínio, existem
analogias entre as estruturas do conhecer para agir e do conhecer para fazer”
(THIOLLENT, 2005, p 13).

E no relato 3 o professor explana:

Os projetos vivenciados são formação as construções das hortas,


embelezamentos das escolas do assentamentos, parques infantis,
reuniões de gestores, as datas comemorativas, aniversário do
assentamentos, torneio da reforma agraria. [...] Desenvolvemos
Gincanas, jogos escolares, projetos de leitura, projetos para as datas
comemorativas, horta na escola, desfile temático no aniversário do
assentamento e aniversário da cidade. [...] Semana da família na
escola; Semana do Livro Infantil; Semana do Folclore brasileiro;
Semana da criança; Semana da consciência negra (RELATO
PROFESSORA 4, SMBV, 2020).

Todos esses projetos vivenciados dentro do assentamento importa na


medida em que proporcionam estratégias de organização dos conhecimentos
lá vivenciados e relacionam aos diferentes tipos de conteúdos curriculares,
facilitando a construção do trabalho em equipe. “No caso do projeto educativo
empreendido pelo Movimento, não poderia ser diferente e a construção do
processo educativo acontece de maneira coletiva e articulada (SANTOS, 2016,
p.125). Neste panorama, é relevante frisar que, segundo o documento “Por
uma educação do campo: declaração” (KOLLING, CERIOLI, CALDART, 2002,
p. 19):

Quando dizemos por uma educação do campo, estamos afirmando a


necessidade de duas lutas combinadas: pela ampliação do direito à
educação e à escolarização no campo; e pela construção de uma
escola que esteja no campo, mas que também seja do campo: uma
escola política e pedagogicamente vinculada à história, à cultura e às
causas sociais e humanas dos sujeitos do campo, e não um mero
apêndice da escola pensada na cidade; uma escola enraizada
também na práxis da educação popular e da pedagogia do oprimido.

No que diz respeito as experiências docentes no acampamento, temos


os seguintes Relatos de Experiência das professoras do assentamento
pesquisado:

O MST traz uma importante forma de pensar a sociedade, pois possui


uma ideologia diferenciada onde os indivíduos que dele faz parte
tomam consciência do seu papel como cidadão autônomo, capaz de
assumir uma postura reflexiva da luta de classes. Neste sentido
trabalhar numa escola de assentamento do MST me possibilitou
conhecer novos caminhos para formação do sujeito em uma
sociedade desigual onde os alunos do campo precisam se empoderar
do conhecimento para que lute por uma vida melhor, A pedagogia
popular e a educação do campo fizeram com que eu pudesse
trabalhar metodologias interessantes e diversificadas com meus
alunos (RELATO PROFESSORA 1, SMBV, 2020).

A ressignificação dos povos do campo se deu a partir de muita luta e


resistência para transformar a ideia estereotipada do povo campesino. O MST
traz nessa perspectiva a valorização dos povos do campo como cidadãos não
só de direitos básicos como educação e saúde, mas também traz o direito à
terra, aos conhecimentos necessários para não mais serem deixados à
margem da sociedade e serem autônomos e protagonistas de suas lutas. “[...]
vinculam com a educação e a escola com a memória e a identidade coletiva,
com as lutas por direito e os valores democráticos por igualdade e diversidade,
por liberdade e justiça, pela terra e a cultura, pelo trabalho e a dignidade”.
(CALDART,2000, p.10).

No segundo relato, a professora destaca seu relato subjetivo destacando


que:

As propostas educativas do MST para mim como professora na


área de história, possibilita a manifestação de uma identidade
que fortalece a nossa experiência cotidiana, possibilitando o
desenvolvimento de uma consciência orgulhosa da pratica
docente, um envolvimento que gera experiências diferenciadas
que reflete o fazer pedagógico da escola do campo. Enquanto
professora, acumulam saberes que vão além dos
conhecimentos formais, esses saberes trazidos do dia a dia do
camponês, dos significados da luta social, no qual constitui
ingredientes fundamentais para aprendizagem no ambiente
escolar (RELATO PROFESSORA 2, SMBV, 2020).

Essas propostas promovem o desenvolvimento e a troca de


experiências, possibilitando a luta pelo direito da inclusão social, além de
trabalhar a identidade cultural que vai além das disciplinas formais. “A nossa
escola coloca no centro das preocupações a realidade de nossas
comunidades. Seus desafios, suas necessidades, seus problemas, suas
conquistas. (MST, 2005, p.60). Parafraseando Freire (1994, p. 52): “Ninguém
liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: Os homens se libertam em
comunhão”. Assim, a educação não formal, a pedagogia social e a pedagogia
popular se efetivam a partir do saber trazidos da realidade, são o saberes
contra hegemônicos, pautados na Ecologia dos Saberes 85, como bem lembrara
Souza Santos (2006).

No terceiro relato, é exposto a seguinte experiência docente:

85
A ecologia de saberes assenta na ideia pragmática de que é necessária uma reavaliação das
intervenções e relações concretas na sociedade e na natureza que os diferentes
conhecimentos proporcionam. Centra-se, pois, nas relações entre saberes, nas hierarquias que
se geram entre eles, uma vez que nenhuma prática concreta seria possível sem estas
hierarquias. Contudo, em lugar de subscrever uma hierarquia única, universal e abstracta entre
os saberes, a ecologia de saberes favorece hierarquias dependentes do contexto, à luz dos
resultados concretos pretendidos ou atingidos pelas diferentes formas de saber (SANTOS,
2006).
Minha prática docente depois que fui trabalhar em escolas do
MST tem sido muito mais significativa e proveitosa, nos
encontros de educadores e educadoras aprendi muito a
trabalhar de maneira contextualizada, inter-relacionando a
teoria com a prática e os saberes vividos pelos meus alunos e
suas famílias. Trabalhar formando militantes e construtores de
sua própria história aprendi nas formações do MST e assim, as
aulas deixam de ser meras repetições e tornam se debates de
conhecimentos e práticas compartilhadas por todos nós
(RELATO PROFESSORA 3, SMBV, 2020).

Na fala acima mencionada, nota-se que é fato que a criança não


aprende apenas em sala de aula, ela aprende brincando, planejando, militando
e aprendendo a resolver seus próprios problemas. É perceptível que a criança
aprende mais rápido praticando do que apenas ouvindo eu ando as formas de
fazer com que a criança tem essa interação com a realidade em que ela vive é
necessário um currículo pensado a partir da realidade em que esses alunos
vivem. “O importante mesmo é garantir que os temas sejam abordados e que
se engatem um ao outro. É assim que vai acontecer o conhecimento da
realidade, e a ligação entre teoria e prática. ” (MST, 2000, p.57)

Por fim, o quarto e último relato no adverte que:

Trabalhar nas áreas de assentamentos é precisam ser estar


vigilante estudiosos amante da vida do assentamento,
planejarem muito bem suas aulas a partir da vida cotidiana ali
vivida e partilhada. (RELATO PROFESSORA 4, SMBV, 2020).

Os processos educacionais buscam promover uma formação


humanizadora a partir da realidade de cada assentamento. Trata-se de ir além
do que a escola oferece formação acadêmica, existe a preocupação em
entender os processos históricos do movimento, dar ao aluno a ideia de
pertencimento ao movimento as suas lutas e conquistas tornando assim
conhecedor e protagonista de sua história. “Olhar para o movimento social
como sujeito pedagógico significa retornar uma vez mais a reflexão sobre a
educação como formação humana e suas relações com a dinâmica social em
que se insere” (CALDART,2000, p.200).

Considerações Finais
O tema estudado mostra a importância de um olhar diferenciado sobre o
ensino da cultura do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra,
enfatizando suas lutas e conquistas por melhores condições de vida e de
respeito perante a sociedade, trazendo ainda suas lutas por um espaço escolar
voltado para formação de cidadãos militantes, além de lutas pela terra o MST
bravamente lutou pelo direito à educação que traz a escola Itinerante como
aliada no desenvolvimento da educação, a cultura, a formação de cidadãos
militantes bem como é trabalhado a agroecologia, dando meios para que as
crianças que participam do movimento familiarize-se com o ambiente e as lutas
iniciadas desde a infância.

Não podemos deixar de reconhecer que esse movimento social é


marcado por lutas e conquistas, mas que também existe a necessidade de
valorização desses movimentos e a necessidade de valorizar a cultura e a
educação que fazem parte desses locais. Portanto, fica evidente a importância
deste movimento, a importância de reconhecimento de todos os membros que
dele fazem parte, desde o agricultor, criança, o jovem e o professor são esses
os elementos capazes de mudar a realidade que vivem.

Evidenciou-se nesta pesquisa que a formação acadêmica e humanista


tem tanta importância para o movimento quanto a luta por terra. Desse modo, é
necessário refletir sobre a forma de ensinar e aprender de acordo com a
realidade dos povos e suas vivências coletivas e individuais que se produzem a
partir de cada família, cada pessoa, os históricos de luta social, das
dificuldades e conquistas, sendo a escola um ambiente de principal formação
dos alunos pertencentes ao Movimento Sem Terra, cujos relatos dos
professores abordaram as possibilidades e os desafios de ser membro de um
movimento social desta magnitude. Pudemos conhecer neste trabalho a
história, a memória e a Mística desses sujeitos, cidadãos que lutam na
organização coletiva de cada movimento através de outras pedagogias.

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