Análise Terminável e Interminável
Análise Terminável e Interminável
Análise Terminável e Interminável
A terapia psicanalítica consome [muito] tempo. [Por isso] desde o começo houve
tentativas de encurtá-la. Tais esforços baseavam-se em [razões de]
conveniências, mas também no desprezo com que a Medicina sempre encarou
as neuroses: deveríamos livrar-nos delas tão rápido quanto possível.
Uma das tentativas [de tornar a análise mais curta] foi a levada a efeito por Otto
Rank em seu livro “O Trauma do Nascimento”. Para ele a fonte da neurose era o
nascimento e a “fixação primeva” à mãe podia persistir como “repressão
primeva”. Rank achava que se lidássemos com esse trauma através da análise,
nos livraríamos da neurose, mas este argumento não suportou o exame crítico.
[Ele] foi concebido no contraste entre a miséria do pós-guerra na Europa e a
“prosperity” dos Estados Unidos e visou adaptar a terapia analítica à pressa da
vida americana. Não sabemos o que o projeto de Rank fez pelas doenças, mas
provavelmente não fez mais do que faria o Corpo de Bombeiros se chamado para
socorrer a uma casa que se incendiara por causa de uma lâmpada a óleo se
contentasse em retira-la do quarto em que o fogo começara. A teoria e a prática
disso são hoje coisas do passado
§ Certo homem que, ele próprio, praticara a análise com grande sucesso,
chegou à conclusão de que suas relações com [outros] homens e mulheres não
eram livres de impedimentos neuróticos e fez-se submeter a uma análise por
parte de outrem e foi bem-sucedido. Casou-se com a mulher que amava e
transformou-se em amigo e mestre de seus supostos rivais. Muitos anos se
passaram dessa maneira, durante os quais suas relações com o antigo analista
permaneceram também desanuviadas. Mas então, sem qualquer razão externa,
surgiram problemas. O homem que fora analisado tornou-se antagonista do
analista e censurou-o por ter falhado em lhe proporcionar uma análise completa.
O analista, dizia ele, devia ter sabido e levado em consideração o fato de uma
relação transferencial nunca poder ser puramente positiva; deveria ter concedido
atenção à possibilidade de uma transferência negativa. O analista defendeu-se
dizendo que à época não havia sinal de transferência negativa. Mas, mesmo que
tivesse falhado em observar sinais débeis dela, era duvidoso se teria tido o poder
de ativar um assunto por apontá-lo, enquanto este não estivesse presentemente
ativo no próprio paciente. Ativá-lo teria certamente exigido, na realidade, um
comportamento inamistoso por parte do analista. Ademais, acrescentou, nem
toda boa relação entre analista e paciente, durante e após a análise, devia ser
entendida em função da transferência; havia também relações amistosas que se
baseavam na realidade e que provavam ser viáveis. [Parece que Freud se refere
a Otto Fenichel, que foi analisado por ele próprio].
§ Segundo exemplo: uma mulher solteira fora cerceada da vida desde a
puberdade por uma incapacidade de andar, devido a severas dores nas pernas.
Seu estado era obviamente de natureza histérica e desafiara muitos tipos de
tratamento. Uma análise que durou nove meses removeu o problema. Nos anos
que se seguiram ela foi sistematicamente desafortunada. Houve desventuras em
sua família, perdas financeiras e, à medida que ficava mais velha, via
desvanecer-se toda esperança de felicidade no amor e no casamento. Mas a ex-
inválida resistiu a tudo isso e constituiu um apoio para a família, nos tempos
difíceis. Doze ou catorze anos após o fim de sua análise ela foi obrigada a
submeter-se a um exame ginecológico. Encontrou-se um mioma que obrigava a
uma histerectomia. A partir dessa operação a mulher mais uma vez caiu doente.
Enamorou-se de seu cirurgião, afundou-se em fantasias masoquistas sobre as
temíveis alterações dentro de si e mostrou-se inacessível a uma nova análise.
Permaneceu anormal até o fim da vida. O tratamento analítico bem-sucedido
realizara-se há tanto tempo que já não se podia esperar muito dele. A segunda
moléstia da paciente originou-se da mesma fonte que a primeira. Mas estou
inclinado a pensar que se não fosse pelo novo trauma, não teria havido nova
irrupção da neurose.
Esses exemplos bastarão para iniciar um exame dos tópicos que estamos
considerando. Os céticos dirão que está provado que mesmo um tratamento
analítico bem-sucedido não protege o paciente de cair doente mais tarde de outra
neurose. Os otimistas e os ambiciosos considerarão que isso não está provado.
Observarão que os dois exemplos datam dos primeiros dias da análise e que
desde então adquirimos uma compreensão interna (insight) mais profunda e que
nossa técnica se modificou de acordo com novas descobertas. Hoje, dirão,
podemos exigir e esperar que a cura analítica seja permanente.
Minha razão para ter escolhido esses dois exemplos foi o fato de que eles
aconteceram há muito, no passado, porque é óbvio que quanto mais recente
tenha sido o desfecho de uma análise, menos podemos predizer a sua
conseqüência posterior, [a longo prazo]. As expectativas dos otimistas
pressupõem uma série de coisas que não são auto-evidentes. Presumem que há
possibilidade de livrar-se definitivamente de um conflito instintual. Presumem,
também, que enquanto estamos tratando alguém de determinado conflito,
podemos “vaciná-lo” contra quaisquer outros conflitos e, ainda, que temos o
poder de despertar um conflito patogênico que não se está revelando na ocasião
e que é aconselhável faze-lo. Lanço essas questões sem me propor respondê-
las. Talvez atualmente nem mesmo seja possível dar-lhes qualquer resposta.
Talvez se possa lançar alguma luz sobre elas mediante considerações teóricas,
mas um ponto já se tornou claro: se quisermos atender às exigências mais
rigorosas feitas à terapia analítica, nossa estrada não nos conduzirá a um
abreviamento de sua duração, nem passará por ele.
Uma experiência analítica que [já] se estende por diversas décadas e uma
mudança que se efetuou na minha atividade, incentivam-me a tentar responder
as questões apresentadas. Nos últimos anos, dediquei-me principalmente a
análises didáticas, mas um certo número de casos graves permaneceu comigo
para tratamento contínuo, embora interrompidos por breves intervalos. Os
pacientes desejavam ser tratados tão rapidamente quanto possível, mas com os
outros o objetivo terapêutico não era abreviar o tratamento mas exaurir as
possibilidades de doença e levar a uma alteração profunda de sua personalidade.
Dos três fatores que reconhecemos como decisivos para o rumo do tratamento —
(1)- a influência dos traumas, (2)- a força constitucional dos instintos e as (3)-
alterações do ego —, o que nos interessa aqui é apenas o segundo. Uma
reflexão levanta dúvida quanto a saber se o uso restritivo do adjetivo
‘constitucional’ é essencial. Embora seja verdadeiro que o fator constitucional
seja de importância, é concebível que um reforço instintual possa produzir os
mesmos efeitos. Se assim for, teremos de modificar nossa fórmula e dizer ‘a força
dos instintos na ocasião’, em vez de ‘a força constitucional dos instintos’.
Até aqui, nossa teoria. O que tem a dizer nossa experiência? Talvez ela ainda
não seja ampla o bastante para que cheguemos a uma conclusão. Ela confirma
nossas expectativas com bastante freqüência, mas não sempre. Não se deve
ficar surpreso se ela mostrar que a diferença de comportamento entre uma
pessoa não analisada e de uma que tenha sido não é tão radical. A análise às
vezes tem êxito em eliminar a influência de aumento no instinto ou o efeito da
análise se limita a aumentar o poder de resistência das inibições. Não posso
comprometer-me com uma decisão sobre esse ponto nem sei se é possível uma
decisão.
Aplicando essas observações ao nosso problema, penso que nos esforçamos por
substituir repressões que são inseguras por controles egossintônicos [afinados
com o ego] dignos de confiança, embora nem sempre alcancemos nosso
objetivo. Com freqüência a transformação só é conseguida parcialmente: partes
dos antigos mecanismos permanecem intocadas. É difícil provar que isso é
realmente assim, pois não temos outro modo de ajuizar o que acontece senão
pelo resultado que estamos tentando explicar mas as impressões deixadas pela
psicanálise não contradizem isso. Não devemos tomar a clareza de nossa
compreensão interna (insight) como medida da convicção que produzimos no
paciente. À convicção dele pode faltar ‘profundidade’. Trata-se, como sempre, de
uma questão quantitativa. Se essa for a resposta certa à nossa questão podemos
dizer que a análise está correta na teoria, mas nem sempre na prática. É fácil
descobrir a causa disso. No passado, o fator quantitativo da força instintual opôs-
se aos esforços defensivos do ego. Agora, o mesmo fator estabelece um limite à
eficácia da análise. Se a força do instinto é excessiva o ego maduro fracassa em
sua missão, tal como o ego débil fracassou antes. Nada há de surpreendente
nisso, visto que o poder da análise não é ilimitado e o resultado final [dela]
depende da força relativa dos agentes em luta entre si.
Não há dúvidas de que é desejável abreviar [o tempo de duração da] análise mas
só conseguiremos isso aumentando o poder dela em vir em assistência do ego. A
influência hipnótica [a princípio] pareceu ser um instrumento excelente para
nossos fins, mas as razões por que tivemos de abandoná-la são bem conhecidas.
Ainda não foi encontrado substituto algum para a hipnose. Desse ponto de vista,
podemos compreender como um mestre da análise como Ferenczi veio a dedicar
os últimos anos de sua vida a experimentos terapêuticos, os quais, infelizmente,
se mostraram vãos. [Freud abandonou a hipnose, entre outros motivos, porque(1)
nem todos os pacientes eram hipnotizáveis, porque (2) os sintomas voltavam a
reincidir e porque (3) as resistências eram deixadas intocadas. Ferenczi buscou
conseguir análises mais rápidas. Foi com esse objetivo que postulou a chamada
“técnica ativa”. Suas idéias tiveram seguimento com Franz Alexander, no Instituto
de Chicago].
As duas outras questões — se podemos proteger o paciente de futuros conflitos e
se é viável e conveniente despertar um conflito que não está manifesto na
ocasião — devem ser tratadas em conjunto, pois a primeira tarefa só pode ser
levada a cabo na medida em que a segunda o for. Consideramos [antes] como
nos resguardar contra o retorno do mesmo conflito e estamos considerando
agora como nos proteger contra sua possível substituição. Isso pode soar
ambicioso, mas o que [assim] estamos fazendo é clarear os limites da terapia
analítica.
Por mais que nossa ambição terapêutica possa ficar tentada a empreender tais
tarefas, a experiência mostra que [isso] não é possível. Se o conflito não está
ativo, não podemos influir sobre ele. [No entanto,] a advertência de que devemos
deixa-lo repousar, [por vezes] é despropositada, pois se os instintos estão
provocando distúrbios, isso é prova de que não estão dormindo e [mesmo] se
estivessem, não estaria no nosso poder acordá-los. Essa última afirmação não
parece inteiramente exata e exige debate mais pormenorizado. Que meios temos
para transformar um conflito latente em ativo? (1)- Causar situações em que o
conflito se torne ativo ou (2)- debatê-lo na análise e apontar a possibilidade de ele
despertar. A primeira alternativa pode ser levada a cabo de duas maneiras: na
realidade ou na transferência, expondo o paciente à frustração e ao
represamento da libido. É verdade que já fazemos isso em nosso procedimento
comum, pois qual, senão esse, o significado da regra de que a análise deve ser
levada a cabo ‘num estado de frustração’? Mas essa é uma técnica que
utilizamos ao tratar um conflito ativo. Procuramos leva-lo a um ponto culminante,
desenvolvê-lo ao máximo, a fim de aumentar a força disponível para sua solução.
Um paciente que teve escarlatina está imune à doença, no entanto jamais ocorre
a um médico pegar uma pessoa sadia e infectá-la com esta, a fim de torná-la
imune à mesma. Na profilaxia analítica contra conflitos, pois, os únicos métodos
que entram em consideração são os outros dois: a produção artificial de novos
conflitos na transferência e o despertar deles na imaginação do paciente.
Quanto ao terceiro fator - a alteração do ego -, ainda não dissemos nada, embora
haja muito a perguntar e a responder. A análise consiste em nos aliarmos com o
ego, a fim de controlar partes do id. Isto é, incluí-las na síntese do ego. O fato de
uma tal cooperação fracassar com os psicóticos, fornece-nos uma primeira pista.
O ego [inteiramente] normal não existe, mas o anormal infelizmente não é ficção.
Na verdade, toda pessoa “normal” o é apenas na média. Em algum lugar, seu
ego aproxima-se do psicótico e o maior ou menor desvio fornece-nos a medida
do que denominamos ‘alteração do ego’.
Se a analogia for estritamente seguida, podemos dizer que a repressão tem com
os outros métodos de defesa a mesma relação que a omissão tem com a
deformação do texto. Pode-se fazer objeção à analogia dizendo que a
deformação do texto é obra de uma censura tendenciosa. Mas a força do
princípio de prazer também é tendenciosa. O aparelho psíquico não tolera o
desprazer e se a percepção da realidade o acarreta, é sacrificada. Dos perigos
externos o indivíduo pode fugir, mas não dos internos. Por essa razão os
mecanismos de defesa do ego falsificam nossa percepção interna e nos dão uma
representação imperfeita do id. Em suas relações com o id o ego é paralisado por
suas restrições ou cegado por seus erros e o resultado disso só pode ser
comparado a caminhar num país que não se conhece, sem dispor de um bom par
de pernas.
O efeito ocasionado pelas defesas pode ser descrito como uma ‘alteração do ego’
e o resultado de um tratamento analítico depende da profundidade dessas
alterações. [Mais uma vez] temos ai a importância do fator quantitativo. A análise
só pode valer-se de quantidades definidas e limitadas de energia que têm de ser
medidas contra as forças hostis.
[Como dissemos,] a alteração do ego é adquirida nos primeiros anos de vida,
mas ele tem [também] características inatas, [como é] atestado pelo fato de que
cada pessoa sempre utiliza as mesmas defesas. Isso parece indicar que o ego
está dotado com disposições individuais, embora não possamos especificar o que
as determina. Contudo, não devemos exagerar a diferença entre o herdado e o
adquirido. O que foi adquirido no passado [remoto] forma parte importante do que
herdamos. As peculiaridades psicológicas de famílias, raças e nações não têm
outra explicação [se não esta]. Mais que isso, a experiência analítica mostra que
até os simbolismos são herdados e pesquisas antropológicas evidenciam que
mesmo os precipitados do desenvolvimento humano [também] o são. Quando
falamos de ‘herança arcaica’ [geralmente] pensamos apenas no id e presumimos
que no começo da vida do indivíduo ainda não existe ego, mas não devemos
desprezar o fato de que id e ego são originalmente uma única e mesma coisa.
[Na concepção freudiana o ego não é senão uma diferenciação do id em sua
relação com a realidade].
Em outros casos certas características do ego devem ser tidas como fontes de
resistências, podendo originar-se de camadas mais profundas: o comportamento
dos dois instintos primevos [de vida e de morte], sua distribuição, mistura e
desfusão. Nenhuma impressão das resistências é mais forte do que a de existir
uma força que se defende contra o restabelecimento. Parte dessa força é
[constituída pelo] sentimento de culpa e necessidade de punição, mas essa é
apenas a parte ligada ao superego. Outras cotas [de energia psíquica], quer
presas, quer livres, podem estar em ação em outros lugares. Se levarmos em
conta o fenômeno do masoquismo, da reação terapêutica negativa e do
sentimento de culpa, não podemos mais acreditar que os eventos mentais são
governados só pelo desejo de prazer mas esses fenômenos constituem
indicações da presença do poder que chamamos de agressividade, que
remontamos ao instinto de morte. Não se trata de antítese entre uma teoria
pessimista e outra otimista. Somente pela ação concorrente dos dois instintos —
Eros e instinto de morte — [é que] podemos explicar os fenômenos da vida.
Aqui temos um exemplo: em todos os períodos houve pessoas que tiveram como
objetos sexuais, membros do próprio sexo e do sexo oposto, sem que uma das
inclinações interfira na outra. Todo ser humano é bissexual no sentido de que sua
libido se distribui, de maneira manifesta ou latente, por objetos de ambos os
sexos. Mas enquanto que na primeira classe de pessoas [aquelas em que a libido
está dirigida a pessoas do mesmo sexo] as duas tendências prosseguem juntas,
na segunda [aquelas em que a libido está dirigida a pessoas do sexo oposto] elas
encontram-se em conflito. A heterossexualidade não combina com nenhum grau
de homossexualidade e vice-versa. Se a primeira é a mais forte ela mantém a
segunda latente e a afasta da realidade. Por outro lado, não existe maior perigo
para a função heterossexual do que o de ser perturbada pela homossexualidade
latente. Poderíamos tentar explicar isso dizendo que cada pessoa só possui à
[sua] disposição uma certa cota de libido, pela qual as duas inclinações têm de
lutar. Mas não é claro por que elas nem sempre dividem essa cota entre si já que
podem fazer isso em certos casos.
Se reconhecermos esse caso como manifestação do instinto destrutivo, surge a
questão de saber se essa visão não deve ser estendida a outros conflitos e de
saber se o que conhecemos sobre o conflito não deveria ser revisto a partir desse
novo ângulo. Afinal, presumimos que no decurso do desenvolvimento de um
estado primitivo para um civilizado a agressividade experimenta um grau
considerável de internalização. Se assim for, os conflitos internos são o
equivalente das lutas internas que cessaram. Estou cônscio de que a teoria
dualista - instinto de morte e libido -, encontrou pouca simpatia e não foi bem
aceita. Fiquei satisfeito quando me deparei com idêntica teoria nos escritos de um
dos maiores pensadores da Grécia antiga. Nunca pude ter certeza se aquilo que
tomei por uma criação não constituía um efeito da criptomnésia.
Empédocles, (cerca de 495 a.C.) foi uma das maiores figuras da civilização
grega. Nascido numa época em que o reino da ciência ainda não estava dividido
em tantas províncias, algumas de suas teorias foram, deveras, impressionantes.
Explicava as coisas pela mistura terra-ar-fogo-água, sustentava que a natureza
era animada e acreditava na transmigração das almas. Também [já] incluía no
seu conhecimento, idéias modernas como a evolução dos seres vivos, a
sobrevivência dos mais aptos e o papel do acaso na evolução.
Mas há uma teoria de Empédocles que se aproxima tanto da nossa teoria dos
instintos, que pareceriam idênticas, não fosse pelo fato de a teoria do filósofo
grego ser uma fantasia cósmica, ao passo que a nossa se contenta em
reivindicar validade biológica.
O filósofo ensinou que os eventos no universo são dirigidos por dois princípios e
que na mente e que eles estão sempre em guerra um com o outro. Chamou-os
de amor e discórdia e deles disse que são ‘forças naturais que operam como
instintos e de maneira alguma inteligências com um intuito consciente’. Um deles
esforça-se por aglomerar partículas dos quatro elementos numa unidade, ao
passo que o outro, procura desfazer essas fusões. Empédocles imaginou o
universo como alternância de períodos, em que uma ou outra das forças leva
vantagens.
Em 1927 Ferenczi escreveu um artigo sobre o término das análises. Ele garantiu
que ‘a análise não é um processo sem fim, mas um processo que pode receber
um fim natural, com perícia e paciência suficientes por parte do analista’. O artigo,
contudo, parece-me ser uma advertência para que não se visasse abreviar a
análise, mas a aprofundá-la. Ele demonstra ainda o fato de que o êxito depende
de o analista ter aprendido com seus próprios ‘erros e equívocos’ e de ter
superado ‘os pontos fracos de sua própria personalidade’. Isso fornece um
suplemento ao nosso tema porque entre os fatores que influenciam o tratamento
analítico deve-se levar em conta, também, a individualidade do analista.
Não se pode negar que os analistas nem sempre estiveram à altura do padrão
que querem para os pacientes. Os opositores da análise quase sempre apontam
esse fato para demonstrar a inutilidade dos esforços analíticos, mas podemos
rejeitar essa crítica alegando que ela faz [aos analistas,] exigências injustificáveis.
Os analistas são seres humanos como quaisquer outros e afinal, ninguém
sustenta que um médico é incapaz de tratar doenças se ele próprio não for sadio.
Ao contrário, pode-se até argumentar que há certas vantagens no fato de um
homem que foi ameaçado pela tuberculose se especializar no tratamento de
pessoas que sofrem dessa doença. Os casos, porém, não são idênticos: um
médico que sofre de doença dos pulmões ou do coração não está em
desvantagem para tratar queixas internas, ao passo que o trabalho analítico faz
com que os defeitos do analista interfiram na avaliação correta do paciente. É,
portanto, razoável esperar de um analista um considerável grau de normalidade.
Além disso, ele deve possuir algum tipo de superioridade, de maneira que, em
certas situações, possa agir como modelo para seu paciente e, em outras, como
professor. E, finalmente, não devemos esquecer que a relação analítica baseia-
se no amor à verdade e que isso exclui qualquer tipo de impostura ou engano.
O analista conta com nossa simpatia nas exigências rigorosas a que tem de
atender no desempenho de suas atividades. É como se a análise fosse a terceira
daquelas profissões ‘impossíveis’, quanto às quais se pode estar seguro de
chegar a resultados insatisfatórios. [As outras duas “profissões impossíveis”
seriam governar e educar.] Não podemos exigir que o analista em perspectiva
seja um ser perfeito antes que passe por uma análise ou que somente pessoas
de alta perfeição ingressem na profissão. Mas onde e como pode adquirir as
qualificações de que necessitará em sua profissão? A resposta é: na própria
análise, com a qual deve começar sua preparação para a futura atividade. Essa
análise tem de ser breve e incompleta. Seu objetivo é possibilitar ao professor
julgar se o candidato pode ser aceito para formação. Se fornecer ao candidato a
analista uma convicção firme da existência do inconsciente, se o capacitar a
perceber em si coisas que seriam inacreditáveis para ele e se lhe mostrar um
primeiro exemplo da técnica que provou ser a única eficaz no trabalho analítico,
essa análise terá cumprido seu intuito. Só isso não bastaria, mas contamos com
que a sua análise não cesse quando termina, que os processos de
remodelamento do ego prossigam e que faça uso das experiências subseqüentes
nesse recém-adquirido sentido. [O Analista ideal talvez seja aquele
moderadamente neurótico que tenha sido melhorado por sua análise pessoal.
Dificilmente algo mais poderia produzir nele uma maior convicção sobre as
virtudes da prática que iniciará]. Isso de fato acontece e qualifica o indivíduo
analisado para ser analista. Infelizmente, algo mais acontece também. A
hostilidade e o partidarismo originam uma atmosfera desfavorável à investigação
objetiva. Certo número de analistas aprende a usar mecanismos defensivos que
lhes permitem desviar de si próprios as exigências da análise, dirigindo-as para
outras pessoas, de maneira que permanecem como são e afastam-se da
influência crítica e corretiva da análise. [É por isso que muitas pessoas se tornam
analistas como maneira de procurar análise para si próprias]. Somos levados a
traçar uma analogia com o efeito dos raios X nas pessoas que os manejam sem
tomar precauções. Uma ocupação constante com material reprimido desperta
exigências instintuais suprimidas, no analista. São ‘perigos da análise’, que
ameaçam o parceiro ativo da situação [,isto é, o analista]. Todo analista deveria,
com intervalos de aproximadamente cinco anos, submeter-se mais uma vez à
análise. Não seria apenas a análise dos pacientes, mas sua própria análise que
se transformaria de terminável em interminável.
Não pretendo afirmar que a análise é um assunto sem fim. O término de uma
análise é uma questão prática. Todo analista conhece casos em que deu a seu
paciente um adeus definitivo. Naquilo que é conhecido como análise de caráter
há menor discrepância entre teoria e prática. Aqui não é fácil prever um fim
natural, ainda que se evitem expectativas exageradas e não se estabeleçam
tarefas excessivas. Nosso objetivo não é dissipar todas as peculiaridades do
caráter humano em benefício de uma ‘normalidade’ esquemática, nem exigir que
a pessoa que tenha sido ‘completamente analisada’ deixe de sentir paixões nem
desenvolva conflitos. A missão da análise é garantir as melhores condições
psicológicas possíveis para as funções do ego. Com isso, ela se desincumbe de
sua tarefa.
Em análises terapêuticas e em análises de caráter observamos que há dois
temas que têm preeminência e vêm a dar muito trabalho, ambos ligados à
distinção entre os sexos. Um deles é característico dos homens, o outro, das
mulheres.
Os dois temas são, na mulher, a inveja do pênis e, no homem, a luta contra uma
atitude passiva ou feminina para com outro homem. O que é comum nos dois
temas é um complexo de castração. Alfred Adler usou o termo ‘protesto
masculino’ [que parece] ajustar-se perfeitamente aos homens. No entanto,
‘repúdio da feminilidade’ teria sido a descrição correta dessa característica
psíquica dos seres humanos.
Esse fator não ocupa a mesma posição em ambos os sexos. Nos homens, o
esforço por ser masculino é egossintônico e a atitude passiva é energicamente
reprimida e amiúde sua presença só é indicada por supercompensações. Nas
mulheres, também, o esforço por serem masculinas é egossintônico na fase
fálica. Depois, porém, ele sucumbe à repressão cujo desfecho determina a sorte
da feminilidade da mulher. Muita coisa depende de que partes de seu complexo
de masculinidade escape à repressão e influencie seu caráter. Normalmente,
grandes partes dele se transformam e contribuem para a construção de sua
feminilidade. O desejo de um pênis destina-se a ser convertido no desejo de um
bebê e de um marido, que possui um pênis. Mas o desejo de masculinidade pode
ter sido retido no inconsciente e, a partir de lá, exercer uma influência
perturbadora.
Em ambos os casos a atitude própria ao sexo oposto que sucumbiu à repressão.
Foi W. Fliess que chamou minha atenção para esse ponto. Ele encarava a
antítese entre os sexos como a verdadeira causa da repressão. Estou apenas
repetindo o que disse antes ao discordar de sua opinião, quando declino de
sexualizar a repressão dessa maneira — isto é, explicá-la em fundamentos
biológicos, em vez de puramente psicológicos.
Aprendemos com isso que não é importante sob que forma a resistência aparece,
seja como transferência ou não. O decisivo é que a resistência impede a
ocorrência de qualquer mudança. Às vezes temos a impressão de que o desejo
de um pênis penetrou através de todos os estratos psicológicos e alcançou o
fundo e que, assim, nossas atividades encontram um fim. Isso é verdadeiro, já
que, para o campo psíquico, o campo biológico desempenha realmente o papel
de fundo subjacente. O repúdio da feminilidade pode ser um fato biológico, uma
parte do grande enigma do sexo. Seria difícil dizer se e quando conseguimos
êxito em dominar esse fator num tratamento analítico. Só podemos consolar-nos
com a certeza de que demos à pessoa analisada todo incentivo possível para
reexaminar e alterar sua atitude para com ele.