Filosofia Da Ciência

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FILOSOFIA DA CIÊNCIA

CONHECENDO A DISCIPLINA

Prezado aluno, seja bem-vindo a mais uma importante etapa da sua formação como
docente e filósofo. A presente disciplina versa sobre várias dentre as maiores indagações
filosóficas do nosso tempo e da modernidade em geral: o que é a ciência? Como ela opera?
Quais são suas limitações, se é que há alguma? Qual seu impacto na nossa compreensão
basilar de mundo? No que consiste o seu progresso, se há progresso? Qual sua relação
com a filosofia e com outras formas de conhecer? Tais questões mostram-se relevantes
em nosso mundo tomado por diversas tecnologias em toda parte e onde a ciência figura,
em geral, como a forma mais correta de se obter conhecimento sobre a natureza e
realidade.
Ao longo das quatro unidades, veremos como a filosofia e ciência possuem uma relação
estreita, tendo a segunda sua origem na primeira. Conheceremos como a Antiga Filosofia
grega permitiu, séculos depois, o surgimento da ciência moderna, assim como os
percalços, as rupturas e a continuidade neste processo.

Após este percurso, estudaremos sobre como a ciência moderna se desenvolve a partir do
empirismo (tese que afirma que o conhecimento vem dos sentidos) e do racionalismo
(segundo o qual o conhecimento vem apenas da razão) e como isso estruturou o próprio
campo científico. Veremos como a filosofia do século XIX colocou grandes desafios à
ciência, afirmando, por exemplo, que ela só dá acesso ao conhecimento das coisas como
são para nós, e não em si mesmas.

Em seguida, aprenderemos diversos modos de conceber a ciência e sua evolução


histórica. Analisaremos a influente reflexão de Karl Popper, a análise da estrutura das
revoluções científicas de Thomas Kuhn, o anarquismo epistemológico proposto por Paul
Feyrabend, o papel da lógica e da matemática na ciência e a sua relação com a sociedade
na produção de novas tecnologias e da visão de mundo que nos norteia.
Neste sentido, traremos várias indagações pertinentes sobre a ciência e seu impacto social.
Em que medida a ciência moderna, de origem ocidental, é efetivamente um discurso
universal e não apenas uma projeção universalizante da concepção singular dos povos
europeus? Em que medida ela não reforça a dominação e a opressão de povos
marginalizados? Mais ainda, em que medida a ciência se relaciona com a crise climática
que vivemos hoje?

Uma sólida formação em filosofia da ciência é importantíssima para a carreira docente e


acadêmica em filosofia. Tanto em termos de ensino básico e superior quanto em termos
de pós-graduação, é fundamental que os principais conteúdos desta disciplina sejam bem
compreendidos. A interdisciplinaridade proposta no Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) favorece tópicos de filosofia da ciência e, sendo o discurso científico dominante
em nossa sociedade, a atividade de pesquisa filosófica, quase sempre próxima dos
problemas do tempo presente, acaba, muitas vezes, por esbarrar em alguma questão típica
desta área. Assim, a presente unidade oferece conteúdos incontornáveis para sua
formação profissional como docente e pesquisador.

NÃO PODE FALTAR

LOGOS E PHYSIS: AS ORIGENS DA


CIÊNCIA
Ádamo Bouças Escossia da Veiga

CONVITE AO ESTUDO

Prezado aluno, seja bem-vindo a mais esta etapa na sua formação como filósofo e docente.
Nela, começaremos a compreender a filosofia da ciência em suas principais questões e
reflexões. Esta importante área da filosofia versa sobre o papel da ciência na vida social,
os limites e as vantagens do seu método, a sua origem e o seu desenvolvimento, se
perguntando, por exemplo, se a ciência é o único modo de se conhecer verdadeiramente
o mundo ou se ela mesma tem suas limitações. Dado que nossa sociedade, hoje, é
completamente permeada por objetos técnicos produzidos a partir de descobertas
científicas, compreendê-la filosoficamente é uma das tarefas mais importantes do
profissional de filosofia e parte incontornável da sua formação.
Nesta unidade, veremos a origem da ciência a partir da filosofia. A ciência moderna surge
no século XVII, na Europa, e tem sua ancestralidade no pensamento filosófico grego.
Sem filosofia, não haveria ciência e, por conta disso, analisaremos o que na própria
filosofia permitiu o surgimento da prática científica. A filosofia é um dos primeiros
esforços de compreensão do mundo independente da tradição mítica ou religiosa, e a
ciência só se tornou possível a partir deste mesmo esforço. Conheceremos como isso se
passou desde a Grécia Antiga até o Renascimento, analisando filosoficamente o
surgimento da ciência a partir da sua história. Dos gregos até a ciência moderna, de Tales
de Mileto até Galileu Galilei, o pensamento seguiu um longo percurso, lento, gradual e
cheio de inflexões. É este percurso que veremos na presente unidade, a fim de lhe
capacitar a compreender melhor o que é, afinal, a ciência que governa grande parte das
nossas vidas atuais.

Para isso, começaremos na Grécia Antiga, procurando analisar a especificidade da


filosofia que posteriormente permitirá a ciência. Em seguida, veremos a concepção de
mundo grega e, depois, a católica, para, por fim, compreender como, no Renascimento, a
ciência em sua feição moderna se origina a partir deste fundo histórico-filosófico.
Estudaremos sobre como a concepção hierárquica do universo herdado dos gregos e da
tradição cristã é questionada e abandonada na modernidade em prol de uma concepção
do universo infinito e como esta inflexão é sobremaneira importante para a consolidação
da ciência como a conhecemos hoje. Temos, diante de nós, uma empolgante jornada no
pensamento humano.
Após percorrê-la, você será capaz de compreender o movimento próprio de surgimento
da ciência e as suas principais características em sua excepcionalidade, face a face as
outras formas de compreender o mundo. Entenderá melhor o que é esta forma de
pensamento que domina o mundo em que vivemos.

PRATICAR PARA APRENDER

Nesta seção, começaremos nosso percurso no estudo da filosofia da ciência. A ciência


moderna moldou o mundo e a vida humana em todas as suas esferas e em praticamente
todos os lugares do planeta. Ela permitiu ao homem a produção de infinitos objetos
técnicos e ascender até a própria Lua. A partir das descobertas científicas, a humanidade
se viu diante de uma potência única de manipular o mundo natural, seja para o bem – com
o aumento da expectativa de vida por conta da medicina –, seja para o mal – como a
destruição crescente do meio ambiente em escala global bem demonstra. A partir do
século XVII, o modo científico de compreender e analisar os fenômenos do mundo
lentamente foi se consolidando, primeiramente no Ocidente e, depois, em todo o planeta,
seja através da expansão colonial do século XVI-XX, seja através da apropriação por
outros povos das suas ferramentas na resistência a esta mesma colonização. Qual teria
sido a origem desta forma única de pensar que deu ao homem tanto poder? Quais são as
origens da ciência, esta que se mostrou a mais poderosa forma de manipular os fenômenos
da natureza?

A leitura mais disseminada (mas não a única) entre historiadores da ciência e filósofos
afirma que a ciência moderna surge na Europa ao longo do século XVII em diante, tendo
sua origem na filosofia. A ciência seria a filha ou neta da filosofia. De fato, os grandes
cientistas, cujas obras marcaram nossa compreensão de mundo, se autodenominavam
filósofos. Newton, por exemplo, era um “filósofo natural”, e sua obra mais aclamada se
chama Princípios Matemáticos de Filosofia Natural, assim como Francis Bacon,
considerado o inventor do método científico. A separação estrita entre filosofia e ciência
é algo recente, datando do século XIX, e mesmo hoje podemos identificar entre grandes
cientistas um vivo interesse pela filosofia e suas questões. De todo modo, sem a filosofia,
não teríamos ciência. É a partir dela que, posteriormente e por razões complexas, a ciência
se origina.
E qual a razão para esta filiação entre filosofia e ciência? Como a segunda nasceu da
primeira? Para compreender esta questão, temos que ir até a Antiga Grécia e às origens
da própria filosofia, a fim de entender no que ela difere de outras formas de pensamento
e como ela pôde, quase dois milênios depois, dar origem à ciência moderna.

Para contextualizar a sua aprendizagem, imagine a seguinte situação: David é professor


de Filosofia e conferencista, atuando há anos no ensino básico e superior. Tem uma
formação sólida na área e é versado em diversas disciplinas filosóficas. Certo dia, é
convidado por um colega do Departamento de Física para ministrar uma conferência para
seus alunos. O pedido vem após uma acalorada discussão em sala de aula a partir da
afirmação recente do físico Stephen Hawking, de que a “filosofia estava morta”. Hawking
é um cientista proeminente e autor de livros famosos de divulgação científica, e a
afirmação, dita em uma palestra promovida pelo Google, gerou o debate entre seus
alunos. Segundo o professor de Física, alguns discentes argumentavam que as questões
de física básica sobre a natureza última da realidade não podem ser compreendidas sem
o auxílio da filosofia, enquanto outros concordavam com Hawking, afirmando que as
grandes questões sobre a natureza seriam respondidas exclusivamente pela ciência, sendo
a filosofia uma forma ultrapassada de pensamento. Vendo o interesse que o tema
despertou em seus alunos, o professor pede para que David ministre uma conferência
sobre a relação entre filosofia e ciência.

David, na sua prática profissional, sempre valorizou a interdisciplinaridade e fica feliz


com o convite de seu colega. Resolve preparar uma fala interessante e de fácil
compreensão para os alunos de Física, em geral, desabituados à filosofia. Você, no lugar
de David, como prepararia a sua conferência? Quais tópicos traria para contextualizar a
relação entre filosofia e ciência?

Cada nova etapa dos seus estudos traz novos desafios. E diante de cada nova dificuldade,
sua força de vontade só aumenta. Sigamos!

CONCEITO-CHAVE

COSMOLOGIAS E COSMOGONIAS: MYTHOS E LOGOS

A filosofia nasce na Grécia por volta do século VI a.C. A sua principal característica, que
a distingue de tudo que veio antes, é o fato de que, pela primeira vez, as principais
questões acerca da natureza, da origem do universo e das leis que regem o cosmos não
estavam mais submetidas aos imperativos da religião e do mito. Os primeiros filósofos
foram aqueles que, pela primeira vez, procuravam um princípio natural para explicar as
constâncias e mudanças do mundo de forma autônoma e independente das tradições da
sua cultura. Temos, aqui, uma das mais célebres oposições conceituais da história da
filosofia: mythos e logos.
O termo mythos, em seu contexto grego, remete à “narrativa” e é a origem da nossa
palavra “mito”. Na oposição mythos/logos, o mito se reporta às tradições mitológicas
populares, disseminadas e mantidas vivas pelos poetas oralmente. Dentre estes, Hesíodo
é um dos mais notáveis, junto a Homero, o autor de Ilíada e Odisseia. Em sua Teogonia
(2005), Hesíodo narra a criação do mundo e o nascimento dos deuses, os quais, segundo
o imaginário cultural dos gregos, eram responsáveis pelos fenômenos naturais e pelas
inclinações humanas, como o ódio e o amor, a chuva e as marés. Os deuses gregos
intervinham constantemente nos assuntos humanos, como na Guerra de Troia, quando a
deusa Atena iluminou o herói Ulisses, fazendo-o ter a ideia de esconder os soldados no
famoso cavalo de madeira. Por narrar a origem do mundo e dos seus governantes celestes,
a Teogonia, de Hesíodo, é um exemplo notável de uma cosmogonia, nome concedido às
narrativas míticas acerca da origem do mundo.

EXEMPLIFICANDO
A mitologia grega clássica apresenta diversos mitos de importância cultural ímpar. Por
exemplo:
1. Na narrativa de Hesíodo, o universo surge espontaneamente na forma de quatro
entidades divinas: Caos, Gaia (Terra), Tártaros (o submundo) e Eros (desejo). Os demais
deuses e titãs nascem do intercurso entre estes quatro deuses primordiais.
2. As colheitas e a fertilidade do solo eram regidas pela deusa Deméter; as marés e os
oceanos, pelo deus Poseidon; e a caça, pela deusa Ártemis.
3. Cronos, o deus do tempo, é o pai de Zeus. Sabendo que um dia seria destronado por
um de seus filhos, devorava seus rebentos logo que nasciam. Reia, mãe de Zeus, a fim de
salvar o seu próprio filho, oferece a Cronos um amontoado de pedras escondidas sob um
pano, e o deus as devora sem perceber que não se tratava da criança. Posteriormente, Zeus
destrona Cronos e se torna o rei dos deuses.

Em termos de cosmogonia, não há nada de inovador entre os gregos. A totalidade ou, pelo
menos, a imensa maioria dos povos tem seus mitos característicos sobre a origem do
mundo e dos deuses, dos antigos sumérios aos Yanomami amazônicos. Os mitos têm uma
importante função na identidade cultural dos povos, tanto que até hoje podemos ver como
este tipo de narrativa é estruturante em termos de nacionalidade e regionalidade. As
comunidades em geral se agrupam a partir de narrativas míticas compartilhadas, por
exemplo, mitos sobre a origem comum de um povo a partir dos antepassados. Assim, em
termos de mitos, os gregos eram tais como todos os demais povos, e a mitologia tinha
esta mesma função de identificação cultural na sua sociedade. O que os distingue, então,
de todas as outras culturas e civilizações? O que os distingue é precisamente o surgimento
da filosofia enquanto discurso e procura de conhecimento distinta do mythos. O filósofo
surge, na Grécia, enquanto alguém que não toma o conhecimento como algo já dado,
disponível na tradição ou nas práticas religiosas. O conhecimento torna-se algo a ser
buscado ativamente através da razão, de argumentos, e não meramente recebido inteiro
da tradição e da narrativa dos poetas. Deve ser buscado na própria natureza, e não no
sobrenatural divino. Eis o logos em sua oposição ao mito.
O termo logos é a origem de diversos termos da nossa língua, como “lógica”, e os sufixos
de várias ciências, como “antropologia” e “fisiologia”. Logos, em geral, é traduzido como
“razão” ou “conhecimento”, mas o termo é de dificílima tradução. Significa, em grego,
tanto “discurso” quanto “opinião”, “razão”, “palavra” ou “fundamento”. Filosoficamente,
o logos consiste na razão enquanto princípio de conhecimento e, ao mesmo tempo,
princípio e causa da ordem do mundo. Diversos filósofos elaboraram diferentes
concepções acerca do logos. Na tradição cristã posterior, ele é traduzido como “verbo”
na famosa passagem bíblica, na qual se lê que “No princípio era o Verbo”. Apesar da
complexidade do termo, basta reter que logos expressa o ordenamento racional do nosso
conhecimento e da estrutura do mundo. E, assim, a busca por ele é um dos primeiros
esforços de se estabelecer uma compreensão racional da realidade, que não mais é
concebida como sendo regida pelo arbítrio dos deuses, mas pelo próprio logos enquanto
princípio imanente de ordenação do universo (ABBAGNANO, 2007).
Neste ponto, a filosofia inaugura a cosmologia em oposição à cosmogonia. O termo
“cosmologia” vem justamente da fusão do termo grego kósmos, universo, com logos. E,
precisamente, em oposição ao mythos, uma cosmologia que visa ser uma explicação
racional e coerente acerca do universo em sua totalidade. Ela procura um princípio de
inteligibilidade amplo o suficiente e capaz de responder sobre sua origem, seus fins e as
leis que o regem. Na contemporaneidade, a cosmologia é uma área da astrofísica, na qual
se inclui a teoria do “Big Bang”, por exemplo. Na época dos antigos gregos, onde a
ciência e a filosofia têm origem, a cosmologia é precisamente a indagação sistemática e
racional da natureza à procura dos princípios fundamentais que regem todas as
transformações e constâncias da natureza, denominada de phýsis na cultura grega. A
filosofia, assim, procura estabelecer um discurso racional (logos) sobre a phýsis e
o kósmos.
Os princípios, procurados pelos gregos, eram chamados de arché, que também pode ser
traduzido como “fundamento” ou “causa”. O termo foi primariamente introduzido na
filosofia por Anaximandro e, posteriormente, seus significados foram reunidos por
Aristóteles, que os aproxima do termo “causa”. A arché é causa das transformações
(devir) e constâncias observadas no mundo, do movimento e do repouso. Em certo
sentido, o termo também se refere ao elemento constitutivo da realidade enquanto sua
causa. Apesar da plurivocidade do termo, sempre presente em palavras do grego antigo,
o que se deve reter sobre archai, segundo a compreensão de Aristóteles, é que todos eles
remetem ao ponto de partida, seja do ser, do devir ou do conhecer (ABBAGNANO,
2007).
Deste modo, o ponto de partida da filosofia foi a própria procura pelo ponto de partida de
todas as coisas. Tales de Mileto, considerado pela maioria dos historiadores da filosofia
como o primeiro dentre os filósofos, argumentava que o arché de todas as coisas é a água.
A razão para isso é que a água muda constantemente, do estado líquido para o gasoso, do
gasoso para o sólido, e é fundamental para o crescimento e a sustentação da vida.
Anaxímenes, por sua vez, argumenta que o princípio é o ar, e Empédocles, que, na
verdade, são quatro os elementos constituintes da realidade: fogo, água, terra e ar,
combinados e separados pelo amor e pelo ódio, respectivamente (CURD, 2020).
Heráclito de Éfeso, por sua vez, argumentava que o devir é o princípio regendo a physis,
e o fogo é o elemento que o expressa. No universo, não haveria constância alguma, mas
apenas a transformação sucessiva e infinita de todas as coisas. O princípio, por
consequência, seria a própria transformação. Anaximandro, por sua vez, citava o apeiron,
termo grego para indeterminação, indeterminado ou sem limites. Diante da postulação de
diversos princípios diferentes pelos seus antecessores filósofos, Anaximandro concluiu
que o princípio não é um elemento determinado, como fogo ou ar, mas algo distinto, o
indefinido (ou Ilimitado). Demócrito alegava que o elemento último que compunha todas
as coisas era o átomo – elemento indivisível –, em uma antecipação extraordinária do
atomismo vigente na ciência contemporânea (CURD, 2020).
Vemos, assim, como diversos filósofos pensaram diferentes respostas ao problema do
princípio (arché) que rege as transformações do universo. Apesar das diferentes respostas,
todos têm em comum a procura por uma explicação racional capaz de compreender as
transformações e constâncias da natureza, seja o ar, o fogo, o apeiron ou os átomos. São
concepções que atestam os primeiros passos na procura por uma forma de compreensão
do cosmos pautada pela razão, e não pela tradição, mítica ou religiosa. Sem esse
movimento, a ciência não teria encontrado o solo para se desenvolver dois mil anos
depois.

ASSIMILE
Resumindo, os principais conceitos que vimos até aqui:
1. Logos: ordenação do mundo e do conhecimento.
2. Cosmogonia: discurso mítico-religioso sobre a origem do cosmos e dos deuses.
3. Cosmologia: discurso racional sobre a origem do mundo e seus princípios.
4. Arché: princípio, causa e origem do devir, do ser e do conhecimento.
5. Phýsis: natureza.

FOCO NA BNCC
A atual BNCC valoriza muito a transdisciplinaridade, ou seja, a articulação de conteúdos
de mais de uma disciplina. Neste ponto, os conceitos aqui aprendidos têm uma grande
utilidade intelectual para além da filosofia enquanto disciplina acadêmica. A origem
comum das ciências da natureza e das ciências humanas da filosofia, a partir de problemas
por ela propostos – como a procura pela origem racional do kósmos –, permite uma
abordagem interdisciplinar, capaz de ir da filosofia às ciências, e vice-versa. Os físicos
de hoje também se indagam sobre a natureza da realidade e a forma racional de explicar
o kósmos tanto quanto os filósofos da Antiguidade.

A CONSTRUÇÃO DA RAZÃO ATRAVÉS DA PALAVRA

Vimos os primeiros esforços dos pré-socráticos em direção a uma compreensão racional


do kósmos. Este processo se desenvolve sobre um importante fundo político. A própria
possibilidade de elucidação da verdade a partir da razão só foi possível com base no
estatuto da palavra na sociedade grega, estatuto esse derivado da democracia. Na
democracia, as disputas sobre a gestão do Estado eram sujeitas ao debate e ao escrutínio
público. Se a cidade deveria entrar em guerra ou não, se determinada lei ou imposto
deveria ser aprovado ou não, todas estas questões eram resolvidas a partir de uma
deliberação coletiva, da qual participavam todos os cidadãos. A palavra, assim, torna-se
o instrumento de disputa por excelência; é através dela que determinado cidadão
convence os demais sobre que rumo a cidade deve tomar. Diferente das sociedades
despóticas – como o Império Persa, maior inimigo dos gregos –, onde a palavra do rei era
a lei, a palavra entre os gregos teve outro lugar. Não é signo de obediência irrestrita ao
soberano, mas é a arma privilegiada na disputa livre entre todos os cidadãos (VERNANT,
2002).
Por conta deste lugar especial da palavra, os gregos foram capazes de desenvolver a
filosofia. Por quê? Porque, uma vez que as questões políticas eram objeto de debate e
deliberação pública perante iguais, cada cidadão tendo direito igual a apresentar as suas
ideias e os seus argumentos, as grandes questões acerca da vida e da morte, do kósmos e
da physis também se tornaram sujeitas ao escrutínio público. A palavra, ferramenta de
convencimento e deliberação nos assuntos públicos, igualmente se torna ferramenta na
busca pelo conhecimento e pela verdade. Este processo, que, em geral, já está presente
nos pré-socráticos, chega à sua maturidade na dialética socrático-platônica.
Sócrates foi um filósofo ateniense e, infelizmente, não deixou nenhuma obra escrita, de
forma que só temos acesso ao seu pensamento através do trabalho dos seus discípulos,
sendo Platão o maior dentre eles. A grande inovação do método socrático-platônico é a
invenção da dialética. Sócrates, ao receber a revelação do Oráculo de Delfos de que era o
mais sábio dentre os homens, sai pela cidade de Atenas indagando todos os pretensos
sábios acerca do que seria o Belo, o Justo e o Bom. Ao perceber que os interlocutores não
lhe respondiam adequadamente, recorrendo sempre a exemplos de coisas belas, boas e
justas, mas não ao Belo, ao Bem e ao Justo em si, Sócrates conclui que era o mais sábio
dentre os homens precisamente por saber que nada sabe, por saber que desconhece aquilo
que os outros julgam conhecer sem de fato conhecer. O que importa em termos daquilo
que se tornará, séculos mais tarde, a ciência, é o modo próprio pelo qual Sócrates – e
Platão – descobriram ser o mais adequado para responder corretamente às grandes
questões: a dialética.

A dialética, no contexto grego, corresponde à procura pela verdade através do diálogo. A


partir da análise de argumentos e contra-argumentos, verifica-se a validade de
determinado discurso ou conceito. Um filósofo afirma: “o Universo é infinito”, enquanto
o outro responde: o “Universo é finito”. Temos duas teses opostas, então como podemos
decidir entre elas? Na tradição socrático-platônica, devemos julgar detalhadamente as
duas afirmações, procurando ver em que cada uma está correta e no que está errada, de
forma a chegarmos a um resultado satisfatório. Um bom exemplo disto é a síntese que
Platão realiza entre as teses de Heráclito e Parmênides. Se para o primeiro o universo é
regido inteiramente pela transformação, para o segundo todo movimento, devir e
transformação são ilusórios. Platão reúne as duas teses (com modificações significativas)
na sua doutrina das Ideias. O mundo das Ideias seria composto pelas realidades imutáveis,
eternas e alheias a todo devir, enquanto o mundo dos nossos sentidos se constituiria da
perpétua inconstância e transformação.

Para Platão, as Ideias seriam concebíveis de forma próxima (porém, não idênticas) à
realidade matemática. Do mesmo modo que todos os triângulos correspondem à definição
de “polígono de três lados”, as Ideias do Belo, do Bom e do Justo também
corresponderiam a uma definição do tipo. A verdade acerca do mundo sensível estaria,
então, em uma compreensão rigorosa destas definições, apenas possível através do uso
da palavra e da argumentação na dialética. A essência do mundo, deste modo, para Platão,
é completamente racional, sendo regida pelas Ideias enquanto realidades últimas
inteligíveis apenas através da razão dialética. Esta concepção, para além de ser um dos
maiores esforços do pensamento ocidental de oferecer uma chave racional de
compreensão do mundo, mantém-se influente até hoje. No campo da matemática, muitos
defendem o “platonismo matemático”, segundo o qual os objetos matemáticos seriam
realidades extramentais, independentes de toda cognição e responsáveis pelos fenômenos
naturais.
A questão do uso público da palavra mostra-se ainda muito importante na prática
científica contemporânea. Todo cientista deve submeter o resultado da sua pesquisa à
comunidade científica, no processo de “revisão cega por pares”, a partir do qual as suas
descobertas e os seus métodos são avaliados de forma anônima por outros cientistas. Este
processo ecoa a concepção grega da verdade e da filosofia, segundo a qual o
conhecimento não opera na esfera individual, mas na argumentação e no embate público
entre visões diferentes. Apenas diante da aceitação dos resultados da pesquisa pela
comunidade que determinada teoria ou fato científico são considerados válidos.
Aristóteles, discípulo de Platão, tem imensa importância na filosofia e no
desenvolvimento ulterior da ciência. O filósofo defendia uma tese empirista acerca do
conhecimento. O que isto significa? Que, segundo Aristóteles, o nosso conhecimento
começa pelos sentidos. Conhecemos, primeiramente, determinado objeto pelo que dele
apreendemos com base na visão, no tato, no paladar. Em seguida, percebemos
características comuns entre diversos objetos e, racionalmente, subimos até as categorias
mais amplas, capazes de explicar o universo, as substâncias. Diferentemente de Platão,
que via no conhecimento um esforço meramente abstrato, independente dos sentidos, para
Aristóteles, os fenômenos sensíveis são de suma importância. Por conta desta convicção
filosófica, Aristóteles realizou diversos estudos empíricos, procurando classificar e
compreender semelhanças entre diversos tipos de animais e plantas, assim como a
periodicidade e a composição dos movimentos celestes. Muitos consideram os seus
tratados sobre biologia, zoologia e astronomia como uma das primeiras obras
propriamente científicas do mundo.

Por fim, é necessário frisar que a separação entre mythos e logos não foi brusca e súbita.
O pensamento grego não abandonou completamente o recurso aos mitos, tampouco esse
processo foi radical e de uma vez só. Tales, por exemplo, afirmava que havia deuses em
todas as coisas, e Platão recorre a diversos mitos em sua obra, sendo o mais famoso o Mito
da Caverna. Neste sentido, durante a Idade Média e final da Antiga, a filosofia se associou
intimamente à religião cristã, oferendo importantes reflexões e sistematizações em termos
de fé. A própria divisão entre mythos e logos é bastante contestada na filosofia
contemporânea, sendo criticada por muitos filósofos enquanto uma imagem retroativa da
modernidade projetada na antiguidade, a fim de legitimar categorias de pensamento que
só se firmaram verdadeiramente no mundo moderno. Inclusive, o ideal de progresso
contínuo presente na ciência moderna e contemporânea, com seu ideal de conquista do
mundo natural, segundo diversos filósofos, é nada mais que um mito, uma cosmogonia
como outra qualquer (DANOWSKI; CASTRO, 2014).

Ainda neste sentido, precisamos destacar que, apesar de grande parte dos historiadores e
filósofos da ciência reportarem a origem da ciência à filosofia grega, não podemos afirmar
que os gregos faziam ciência no mesmo sentido que os modernos e que ela tem sua origem
exclusiva na filosofia grega. Entre os gregos e a nossa ciência, cujo método e origem
própria datam do século XVII, há grandes diferenças, rupturas e inflexões. Dois milênios
separam a filosofia grega clássica da ciência moderna e, neste período, a filosofia passou
por grandes modificações. O desencantamento do mundo, conceito do célebre sociólogo
Max Weber, que expressa o processo de esvaziamento do mundo de agentes fantásticos
em prol de uma compreensão mecânica e racionalista, só chega ao seu termo no século
XIX – se é que, de fato, chegou.

Neste sentido, temos uma importante diferença entre o conhecimento como concebido na
Antiguidade e na Modernidade. Segundo o grande historiador da ciência e filósofo,
Alexandre Koyré, a filosofia grega era essencialmente contemplativa, ao passo que a
ciência moderna se volta para a prática. Por mais que haja na filosofia antiga
preocupações com a vida prática, por exemplo, sobre a melhor conduta para o indivíduo
e para a cidade, a investigação da natureza não tem como fim melhor controlá-la com a
consequente produção de objetos técnicos. Hoje, uma pesquisa científica se pauta, no
mais das vezes, em algum retorno financeiro ou prático, no desenvolvimento de um novo
produto ou tecnologia. Para os gregos, no entanto, este tipo de atividade (tekné, de onde
vem a palavra técnica) era algo, se necessário, inferior à pura contemplação. A filosofia
deveria conhecer a natureza sem pensar em nenhuma utilidade, sendo a atividade
filosófica concebida como um fim em si mesma.
Igualmente, como nota o grande filósofo Michel Foucault, o modo como os modernos
concebem o conhecimento se distingue do modo como os antigos o concebiam em um
aspecto central. Um grego antigo, no processo de conhecimento, precisava operar uma
transformação interna de si mesmo para se tornar digno deste conhecimento. Conhecer
não era um ato independente daquele que conhece, mas requeria um trabalho do próprio
conhecedor sobre si, de forma a tornar possível a sabedoria. Na modernidade, o
conhecimento está separado daquele que conhece e não se espera nenhum exercício de
transformação pessoal do cientista. Diferentemente de um biólogo que analisa bactérias
em um microscópio, o grego que contemplava os céus concebia-se a si mesmo como
implicado na ordem que ele mesmo queria conhecer (FOUCAULT, 1991).

REFLITA
A narrativa de que a ciência e a filosofia têm sua origem na Grécia tem sido muito
criticada na contemporaneidade. Acusa-se esta concepção de reproduzir o ideal de
superioridade dos ocidentais sobre os demais povos. Apenas eles teriam sido capazes de
apresentar uma concepção racional de mundo sobre a forma da filosofia e da ciência,
enquanto os outros povos teriam ficado todos presos na superstição. Dado que o Ocidente
dominou o mundo através do colonialismo, em que medida esta narrativa sobre a origem
da filosofia não é fruto desta situação política de dominação? Será que os povos africanos,
o Antigo Egito, a China e a Índia não teriam produzido, igualmente, formas não míticas
de compreensão do mundo, e a famosa excepcionalidade grega não seria nada mais do
que um mito, visando perpetuar no imaginário social o ideal de superioridade dos
ocidentais?

Nesta seção, fomos até a Grécia Antiga à procura das raízes da ciência moderna e
contemporânea. Vimos como ela se relaciona com a filosofia enquanto primeira tentativa
de se enfrentar as grandes questões sobre a natureza e o universo sem recurso ao mito.
Longos séculos se passariam dos pré-socráticos até os primeiros grandes cientistas
modernos, como Newton, Copérnico e Galileu. Não obstante, é a partir da filosofia que a
ciência se origina. Após mais esta etapa, sua compreensão sobre a ciência se alargou um
pouco e continuará aumentando cada vez mais. Avante!

FAÇA A VALER A PENA

Questão 1

A origem da ciência moderna remete à origem da filosofia. Tendo a filosofia surgido na


Grécia Antiga (segundo a maior parte das interpretações), a origem mais antiga da ciência
é nesta mesma Grécia. Com base nisso, preencha as lacunas da sentença a seguir:
A filosofia antiga se relaciona com a criação da ciência por ter estabelecido a __________
em oposição à ____________ dominante na sua cultura. Os filósofos começaram, assim,
a procurar _________, que, para Tales, por exemplo, era __________.
Assinale a alternativa com a sequência correta.
a. cosmogonia; cosmologia; o logos; a água.

b. cosmologia; cosmogonia; logos; o fogo.

c. cosmogonia; cosmologia; a arché; o ar.

d. cosmologia; cosmogonia; a arché; a água.

Correto!

A filosofia antiga se relaciona à criação da ciência por ter estabelecido a cosmologia em


oposição à cosmogonia dominante na sua cultura. Os filósofos começaram, assim, a
procurar a arché, que, para Tales, por exemplo, era a água.
Cosmogonias são os discursos míticos sobre a origem do mundo; cosmologias são
discursos racionais sobre estes mesmos tópicos. Os primeiros filósofos inauguram a
cosmologia e procuravam pela arché, o ponto de partida para o ser, o devir e o
conhecimento.

e. cosmologia; o logos; cosmogonia; o ar.

Questão 2

Alegrai, filhas de Zeus, dai ardente canto, gloriai o sagrado ser dos imortais sempre vivos,
os que nasceram da Terra e do Céu constelado, os da Noite trevosa, os que o salgado Mar
criou. Dizei como no começo Deuses e Terra nasceram, os Rios, o Mar infinito impetuoso
de ondas, os Astros brilhantes e o Céu amplo em cima. Os deles nascidos Deuses doadores
de bens como dividiram a opulência e repartiram as honras e como no começo tiveram o
rugoso Olimpo.

HESÍODO, 2005, p. 91.

Esse trecho foi retirado da obra Teogonia, do poeta grego Hesíodo. Na época da origem
da filosofia, a palavra dos poetas Hesíodo e Homero, o maior dentre eles, era o principal
meio de manutenção das tradições culturais e eram tomadas enquanto autoridades em
termos de conhecimento acerca do mundo e do universo. A filosofia nasce em uma
ruptura com essa concepção. Tendo em vista este contexto, avalie as seguintes
afirmativas:
I. A filosofia rompe com a palavra dos poetas após Platão, em sua República, acusá-los
de corromper a juventude.
II. A filosofia inaugura a cosmologia em oposição à cosmogonia narrada pelos poetas,
como Hesíodo.
III. A filosofia surge enquanto um esforço de purificar a tradição mitológica, procurando
sistematizar os mitos trazidos pelos poetas.

Com base neste contexto, é correto o que se afirma em:

a. I, apenas.

b. II, apenas.
Correto!

A filosofia surge em um rompimento – não absoluto, mas ainda assim um rompimento –


com a tradição mítica, procurando uma compreensão racional do mundo independente
das tradições. Deste modo, apenas a afirmativa II é correta. A afirmativa I está incorreta,
pois, por mais que Platão realmente acuse os poetas de corromperem a juventude, ele
escreve décadas depois do surgimento da filosofia que, em sua origem, já se afastara da
poesia. A afirmativa III está incorreta, uma vez que a filosofia não surge como esforço de
sistematização dos mitos – esforço esse, em geral, realizado por poetas como Hesíodo
justamente.

c. III, apenas.

d. I e III, apenas.

e. II e III, apenas.

Questão 3

A filosofia e a ciência estiveram unidas a maior parte da história, tendo se separado de


forma mais ostensiva a partir do século XIX. A ciência, assim, pode ser considerada uma
neta ou filha da filosofia; foi a partir dela que a moderna prática científica surgiu.
Com base neste contexto, julgue as seguintes asserções em verdadeiras (V) ou falsas (F):
( ) A ciência moderna pode ser compreendida enquanto derivada da filosofia, pois esta
representa o primeiro esforço de produção de uma forma de conhecimento independente
da tradição mítica, em um esforço de rompimento absoluto com a religião.
( ) Os primeiros filósofos se dedicaram à procura de uma arché capaz de tornar
racionalmente compreensíveis os mitos da sua tradição cultural.
( ) Um dos elementos fundamentais na constituição da filosofia foi o estatuto privilegiado
da palavra na esfera pública na democracia grega, elemento que permanece até hoje na
prática científica.
Assinale a alternativa que expressa a sequência correta.

a. V – F – F.

b. V – F – V.

c. F – V – F.

d. F – V – V.

e. F – F – V.

Correto!

Sequência correta: F – F – V.
A primeira afirmativa é falsa, pois o rompimento entre mythos e logos não foi absoluto,
mas permeado de idas e vindas e mútuas interpenetrações. A segunda afirmativa é falsa,
pois não se tratava de reformar a tradição mítica, mas de uma outra forma de pensar. A
terceira afirmativa é verdadeira, uma vez que a submissão de todos os assuntos da cidade
à deliberação coletiva através da palavra é o que permitiu que os tópicos sobre o universo
e a natureza fossem igualmente sujeitos ao escrutino.

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.


BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: MEC, 2018.
CURD, P. Presocratic Philosophy. In: ZALTA, E. (Ed.). The Stanford Encyclopedia of
Philosophy. Stanford: Stanford University, 2020. p. 1-21. Disponível
em: https://stanford.io/3hI9w8S. Acesso em: 2 mar. 2021.
DANOWSKI, D.; CASTRO, E. V. de. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os
fins. Florianópolis, SC: Desterro, Cultura e Barbárie e Instituto Socioambiental, 2014.
FOUCAULT, M. Michel Foucault entrevistado por Hubert L. Dreyfuys e Paul Rabinow.
In: RABINOW, P.; DREYFUS, H. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além
do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro; São Paulo: Forense Universitária,
1991.
HESÍODO. Teogonia. Trad. Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2005.
RUSSEL, B. História do Pensamento Ocidental: a aventura dos pré-socráticos a
Wittgenstein. 3. ed. Trad. de Laura Alves e Aurélio Ribeiro. Rio de Janeiro: Ediouro,
2004.
SPINELLI, M. A noção de arché no contexto dos pré-socráticos. Hypnose, São Paulo, v.
7, n. 8, p. 72-85, 2002.
VERNANT, J. P. As Origens do Pensamento Grego. Trad. Ísis Borges da Fonseca. Rio
de Janeiro: Difel, 2002.

FOCO NO MERCADO DE TRABALHO


LOGOS E PHYSIS: AS ORIGENS DA CIÊNCIA
Ádamo Bouças Escossia da Veiga
SEM MEDO DE ERRAR

Você, no lugar do professor David, poderia abordar diversos tópicos sobre a relação entre
filosofia e ciência. Começaria sua fala argumentando contra a afirmação de Hawking de
que a filosofia não está morta, pelo contrário, continua bem viva, sendo estudada em
quase todos os países, oferecendo importantes reflexões sobre nosso mundo e, neste
sentido, sobre a própria ciência.

Em seguida, mostraria para os alunos que a ciência, em sua origem, depende inteiramente
da filosofia. Neste sentido, traria a oposição entre mythos e logos, entre cosmogonias e
cosmologias. A filosofia surge precisamente do esforço de procurar explicações
diferentes para os fenômenos naturais do que aquelas baseadas apenas no mito e na
religiosidade. Desta forma, os primeiros filósofos se afastam das cosmogonias –
narrativas míticas sobre a origem do mundo e dos deuses – em direção às cosmologias,
discursos racionais sobre a natureza baseados no logos, na razão. Assim, mostraria para
os alunos de Física que sua própria disciplina – a qual, dentre as suas subáreas, possui a
cosmologia, precisamente – foi uma invenção da filosofia, uma vez que a procura por
explicações racionais sobre a natureza não existia antes dela. Logo, afirmaria que a
ciência é neta da filosofia, tendo se separado dela muito recentemente, e que os grandes
cientistas admirados por todos os estudantes de Física, como Kepler e Newton, se
autodenominavam filósofos.

Em seguida, argumentaria que a compreensão da ciência, por conta da sua origem


filosófica, é enriquecida pelo estudo de filosofia, e que, hoje, ela se debruça sobre a
ciência, visando compreender no que ela consiste, de onde vem seu poder de manipulação
da realidade e quais são seus limites. Neste ponto, afirmaria para os alunos que a procura
por estas questões em muito ampliaria seus horizontes enquanto cientistas, como diversos
profissionais da ciência afirmam recorrentemente. Por fim, terminaria sua fala mostrando
como não há, na prática, oposição entre ciência e filosofia, mas filiação e
complementaridade. Um cientista tem muito a aprender com um filósofo, e um filósofo,
com os cientistas.

AVANÇANDO NA PRÁTICA

FILOSOFIA, CIÊNCIA E RELIGIÃO: UM DIÁLOGO A TRÊS

Para contextualizar a sua aprendizagem, imagine a seguinte situação: Juliane é professora


de Filosofia em uma importante universidade e tem um currículo excelente, com diversas
publicações e especializações. Para além da sua atividade de pesquisa e docência, a
docente também comunica na internet, visando tornar a filosofia disponível ao público
amplo, para além da universidade e das escolas. Tem, assim, um canal sobre filosofia no
YouTube, com muitos inscritos e milhões de visualizações, no qual posta vídeos
semanalmente, todos voltados à disseminação rigorosa do conhecimento filosófico.
Por conta do sucesso do seu canal, Juliane é convidada para uma mesa-redonda em um
programa televisivo de grande audiência. Estarão com ela um pastor evangélico e um
cientista, ambos bastante conhecidos pelo público. O objetivo é discutir a relação entre
filosofia, ciência e religião, de forma franca e bem embasada. A professora, que sempre
se esforçou pela divulgação ampla da filosofia, vê nisso uma grande oportunidade e aceita
prontamente o convite. O que a inquieta, não obstante, é que o cientista convidado afirma
constantemente que a ciência é o único modo verdadeiro de se conhecer o mundo, e o
pastor, por sua vez, que todas as grandes questões sobre a origem do universo e da vida
estão descritas na Bíblia, sendo desnecessário ir além dela.
No dia da mesa-redonda, o pastor afirma precisamente a redundância de se buscar outras
fontes de conhecimento que não a Bíblia, e o cientista faz uma afirmação idêntica em
relação à ciência, negando todo valor da reflexão filosófica e da religião. Você no lugar
de Juliane, como responderia a esta dupla provocação?

RESOLUÇÃO

Você, no lugar da professora Juliane, pensaria muito bem em como responder ao pastor
e ao cientista, evitando polêmicas e visando apenas à discussão franca e intelectualmente
orientada. Quanto à provocação do cientista, argumentaria que a própria ciência não
existiria se não fosse a filosofia. Neste sentido, traria o contexto do nascimento da
filosofia, quando, pela primeira vez, se concebeu a possibilidade de uma compreensão
racional da natureza de forma independente da religião e da tradição mítica. Ainda neste
sentido, Juliane argumentaria que diversos elementos da prática científica contemporânea
vêm da filosofia. A dialética, enquanto invenção filosófica, está por trás da acepção
científica de que o conhecimento é uma produção pública, apenas válida conforme
referenciada pela comunidade através do processo de revisão pelos pares. Igualmente, o
papel dos sentidos na procura do conhecimento e a matematização dos resultados
científicos ecoam Platão e Aristóteles, de modo que não se pode conceber a ciência em
radical oposição à filosofia, seja em suas origens, seja na prática corrente.
Em resposta ao pastor, Juliane apresentaria o fato de que a filosofia surge a partir da
procura do logos em oposição às narrativas mítico-religiosas do contexto grego.
Prosseguiria argumentando que este movimento produziu, dentre diversos elementos, a
prática científica, que contribuiu para a melhoria de vida de milhões de pessoas ao longo
da história, o que não pode ser negligenciado. Neste sentido, exporia como a ruptura entre
a tradição mítica e a filosofia não foi abrupta, mas um processo contínuo permeado de
idas e voltas, nas quais mito e filosofia se misturavam, como em Platão. Por fim,
concluiria que a filosofia não necessariamente se opõe à religião e que há importantes
reflexões bíblicas e religiosas realizadas por filósofos, desde os tempos antigos até os dias
de hoje.

NÃO PODE FALTAR


OPINIÃO E CIÊNCIA: PRINCÍPIOS DO
DISCURSO CIENTÍFICO: ARGUMENTAR,
DIALOGAR, CONTRADIZER, CLASSIFICAR
Ádamo Bouças Escossia da Veiga
PRATICAR PARA APRENDER

Prezado aluno, seja bem-vindo a mais uma etapa da sua formação. Nesta seção,
continuaremos a investigar a relação entre filosofia e ciência. Aprofundaremos os
vínculos entre ciência e filosofia grega antiga, procurando identificar os elementos do
pensamento clássico que se desdobram, séculos depois, na ciência moderna.
Veremos uma das mais importantes crises do pensamento antigo: a disputa entre jônicos
e eleatas. Estas duas escolas de pensamento chegaram a conclusões opostas sobre a
natureza do mundo e do conhecimento; para os eleatas, como Parmênides, não há devir
algum na natureza, enquanto, para Heráclito, um dos mais importantes filósofos pré-
socráticos, o devir regia toda a natureza. Estudaremos estas duas teses e ao que elas se
opõem.
Em seguida, conheceremos a solução apontada por Platão para este dilema e o famoso
“Parricídio de Parmênides”. A teoria das Ideias de Platão pode ser lida como uma resposta
ao dilema entre jônicos e eleatas, então compreenderemos como isso ocorre. Neste ponto,
aprenderemos sobre a lógica de predicação platônica a partir da sua teoria das Ideias e do
conceito de participação. Veremos, neste sentido, como ele se volta contra a concepção
de Parmênides, afirmando que o não-ser existe.
Por fim, analisaremos pontos importantes da filosofia aristotélica dentro deste mesmo
contexto. Entenderemos como o filósofo desenvolveu importantes ferramentas
intelectuais que pautaram a filosofia e a ciência. A sua lógica e os princípios por ele
descobertos têm uma importância ímpar para o conhecimento e a visão de mundo
ocidental, logo veremos no que eles consistem e sua relevância.

Para contextualizar o seu aprendizado, imagine a seguinte situação: David é professor de


Filosofia e atua no segmento básico e superior. Tem uma trajetória acadêmica de
excelência e livros didáticos publicados e usados em todo país. Escreve artigos sobre
filosofia para revistas acadêmicas e não acadêmicas regularmente e é conhecido pela sua
capacidade de expressar temas complexos com clareza e simplicidade.
Certo dia, após ministrar uma palestra, David recebe um e-mail de um certo Pedro, com
um convite. Pedro é editor da Pluma Editorial, e entrou em contato com o professor após
ter ouvido sua palestra. A editora está organizando uma série de livros articulados sobre
o tema “Crises do Pensamento”. O objetivo é apresentar momentos em que o pensamento
ocidental se viu diante de grandes problemas e disputas acirradas entre escolas distintas,
tanto na filosofia quanto na ciência e na arte. Cada obra contará com a contribuição de
vários professores e pesquisadores, e Pedro gostaria de saber se David teria interesse em
participar do projeto. O editor pensou no seu nome para um artigo sobre crises do
pensamento no contexto filosófico da Grécia Antiga.
David se interessa pelo projeto e aceita participar. A filosofia apresentou, ao longo da sua
longa história, diversas crises, e o pensamento grego clássico, em si mesmo, é bastante
vasto. Como você, no lugar de David, prepararia sua contribuição para a coletânea? Quais
tópicos da filosofia grega traria em seu artigo?
Entramos, agora, em mais uma etapa do nosso percurso na filosofia da ciência. A cada
novo passo, sua vontade de caminhar só aumenta, sua vontade de aprender só cresce e,
assim, com certeza, esta seção só fará aumentar sua curiosidade e seu interesse pela
filosofia da ciência e suas questões.

CONCEITO-CHAVE

ELEATAS VERSUS JÔNICOS

Um momento central na história da filosofia é a passagem dos primeiros filósofos, os pré-


socráticos, para a filosofia de Platão e Aristóteles. Os primeiros filósofos produziram as
primeiras investigações sistemáticas em busca de um princípio (arché) racional capaz de
explicar a estrutura do cosmos de forma independente da mitologia. Este movimento
produziu diversas respostas distintas, que culminam naquilo que é interpretado
historicamente como a crise entre a escola Jônica e Eleata. O que nos interessa aqui,
sobremaneira, é que não só os filósofos se indagavam sobre o ordenamento racional do
mundo, mas, igualmente, sobre a epistemologia. Epistemologia, ou gnosiologia, é o
estudo acerca do próprio conhecimento e trabalha com questões do tipo “como podemos
conhecer?”, “o que é o conhecimento?”, “como podemos garantir que um conhecimento
é válido e seguro?”, etc. No escopo da sua investigação racional sobre o cosmos, os
primeiros filósofos também começaram a se indagar sobre a natureza e a possibilidade do
conhecimento que doravante buscavam, sobretudo, diante das diversas respostas
(contraditórias, muitas vezes) que seus esforços alcançavam na investigação da phýsis.
Escola Jônica é o termo historiográfico que reúne diversos pensadores pré-socráticos,
como Tales, Anaximandro, Anaxímenes e Heráclito. Tais filósofos apresentavam visões
muito diferentes sobre o logos e a phýsis, e não se consideravam como membros de uma
mesma escola. Esta classificação é posterior e visa apenas agrupar estes pensadores a
partir da busca comum por uma arché, por mais distintas que sejam as suas respostas.
Heráclito, o mais importante filósofo deste grupo para nossos propósitos aqui, defendia
que o mundo era pautado pela inconstância e pelo devir entre opostos, como quente e frio,
dia e noite. O logos seria um princípio divino de harmonia a partir deste jogo de opostos,
e a mente humana poderia conhecê-lo apenas parcialmente. O fogo é o signo desta ordem,
uma vez que ele permanece o que é mesmo que mude constantemente. O logos, deste
modo, seria a unidade harmônica do devir do cosmos. O pensamento, junto aos sentidos,
seria capaz de compreender em maior ou menor grau esta ordem cósmica (CURD, 2020).
Escola Eleata surge na cidade grega de Eleia, no quinto século antes de Cristo. Reuniu
pensadores, como Xenófanes, Parmênides e Zenão. Mesmo que haja certa disputa acerca
do seu fundador, em geral, considera-se que foi Parmênides o primeiro filósofo eleata.
Parmênides é um dos maiores filósofos da Antiguidade, cujo pensamento influenciou
grandiosamente o desenvolvimento da filosofia grega. O filósofo argumentava que o
mundo dos sentidos era ilusório e não oferecia conhecimento seguro. Para ele, o que
vemos, ouvimos e degustamos não corresponde à realidade, mas a uma ilusão. A
justificativa para esta postura se encontra no seguinte argumento.
Parmênides afirma que o ser é e o não ser não é. Esta frase, aparentemente óbvia, traz
importantes consequências filosóficas. Afirmar que “não ser não é” significa dizer que
não há algo como o vazio ou o nada; é contraditório afirmar que algo que não existe,
exista, mesmo que exista enquanto não existente. Como seria possível o vazio (o não ser)
se, por definição, aquilo que não é não pode ser? Falar que o vazio existe é afirmar que o
vazio (não ser) existe, o que é contraditório. Deste modo, o nada não existe, e o ser é tudo
que existe. Desta conclusão, o filósofo deduz consequências radicais. Se o vazio não
existe, o devir é impossível. Por quê? No momento em que determinado ente (A) se
transforma em outro ente (B), necessariamente, há a intervenção do não ser, dado que se
transforma em não A, no caso, em B. Dado que o não ser não é, que ele não existe, é
impossível então que A se transforme em B. Assim, todo o devir é ilusório, pois é
logicamente impossível. Isso vale para o movimento. O movimento é uma espécie de não
ser; algo que se move passa de determinado lugar para um outro lugar, ou seja, passa por
um “não ser aqui” para se tornar um “ser em outro lugar”. Note que o verbo grego para
ser, assim como para grande parte das línguas contemporâneas, significa, ao mesmo
tempo, “ser e estar”, e a distinção entre estes dois verbos como temos na língua portuguesa
não existe na língua grega clássica, assim como não existe em inglês e francês. Assim, o
movimento de A para o ponto B implica que A não seja/esteja de forma que possa ir para
B (não A), o que é impossível. Logo, para Parmênides, o movimento é impossível, e todo
movimento que vemos não passa de uma ilusão.

Zenão, discípulo de Parmênides, desenvolveu este argumento formulando um famoso


paradoxo: “O paradoxo de Aquiles”. Aquiles, o famoso herói grego, resolve apostar uma
corrida com uma tartaruga. Ele permite que ela saia na frente, começando a corrida,
digamos, cem metros adiante do herói. Para Zenão, Aquiles jamais conseguiria
ultrapassar a tartaruga. Como não? Vejamos: Aquiles deve percorrer, inicialmente, os
cem metros de vantagem da tartaruga para poder ultrapassá-la; no entanto, no tempo em
que ele percorreu estes cem metros, a tartaruga andou mais um pouco e já está mais à
frente. E, novamente, ele deverá percorrer esta nova distância que o separa da tartaruga
para alcançá-la. Quando tiver percorrido esta nova distância, a tartaruga estará ainda mais
à frente. O ponto do paradoxo é que Aquiles deverá percorrer um infinito de pontos em
um tempo finito. Enquanto uma reta, a distância entre Aquiles e a tartaruga é composta
por infinitos pontos. Como o herói pode, em um tempo finito, percorrer um infinito de
pontos até alcançar a tartaruga? Impossível, conclui Zenão. E como todo movimento de
qualquer ponto para outro ponto enfrentaria o mesmo problema, o movimento só pode
ser uma ilusão. Assim, para os eleatas, o ser é único, homogêneo, perfeito e inalterável.
Esta tese – e outras teses próximas – é denominada monismo. A ideia de que a realidade
é una e que a pluralidade que vemos no mundo é ilusória (RUSSEL, 2004).
Parmênides e os eleatas, neste ponto, inauguraram uma ideia muito importante e influente
no desenvolvimento subsequente da filosofia e da ciência: a compreensão de que o mundo
dos sentidos não nos dá conhecimento verdadeiro, mas apenas a razão. Para Parmênides,
a razão humana é capaz de compreender o ser e, para isso, deve purgar-se dos sentidos e
das suas falsas impressões. A realidade sensível é ilusória, e apenas a realidade conforme
concebida pela razão expressa o mundo verdadeiro. Há, assim, uma imediaticidade do
pensamento ao logos; o mundo é acessível à razão, tese que, neste sentido, se opõe ao
pensamento dos sofistas que defendiam a impossibilidade do discurso de acessar a
realidade. Ser, pensar e falar são uma e mesma coisa.

ASSIMILE
Heráclito: o ser é o devir; tudo muda perpetuamente, e o logos é a unidade harmônica
enquanto princípio ordenador do cosmos.
Parmênides: o ser é uno, inalterável, eterno e homogêneo; o movimento e os sentidos
são apenas ilusões.

Entre Parmênides e Heráclito, temos uma diferença grande que levou a filosofia a uma
crise: o universo é uno, como querem os eleatas, ou é multiplicidade entre opostos, como
afirmava Heráclito? O mundo é pautado pela mudança, como afirmava o segundo, ou
imutável, como argumentavam os primeiros? A resposta para esta crise figura como um
dos maiores momentos da história do pensamento ocidental.

PLATÃO E A SOLUÇÃO PARA A CRISE

Platão reúne, em sua própria filosofia, as duas teses, de Heráclito e Parmênides,


modificando as duas em um novo pensamento. Para o filósofo, há dois mundos: o mundo
das Ideias (ou Formas) e o mundo dos sentidos. O mundo das Formas é como o ser de
Parmênides. Cada Forma é una, imutável e não está sujeita ao devir. O mundo dos
sentidos é pautado pela inconstância, pela mudança, pelo nascer e pelo perecer, como
Heráclito dizia. As Formas são a essência do mundo sensível, ao passo que este não passa
de aparência. Deste modo, para Platão, apenas o conhecimento das Formas é um
conhecimento verdadeiro. A partir da filosofia e da dialética, o pensador consegue
ascender para além da aparência em direção à essência.
É interessante notar que, na concepção platônica, as Formas são concebidas, em certo
sentido, enquanto estrutura matemática. Elas são definições ao mesmo tempo lógicas,
racionais e ontológicas enquanto seres existentes para além da apreensão humana. Uma
definição matemática de triângulo enquanto polígono de três lados é paradigmática em
relação à Ideia. Do mesmo modo que o intelecto chega a esta definição capaz de abarcar
todos os triângulos em todos os lugares e em todos os tempos, a filosofia conseguiria
chegar a uma definição semelhante em relação ao Bom, ao Belo, ao Justo e as demais
Ideias. O conhecimento, assim, para Platão, é sobretudo racional, tendo os sentidos
nenhuma ou quase nenhuma função; apenas a contemplação racional pura da Ideia
configura um conhecimento seguro.
Esta ideia tem um impacto duradouro na visão de mundo ocidental e na ciência posterior.
A concepção de que há uma estrutura puramente lógica, racional e matemática por trás
das transformações sensíveis enquanto sua causa e princípio é uma ideia que influenciou
muito o surgimento da ciência moderna. O esforço de matematização dos fenômenos da
natureza sob a forma de leis e equações deriva, em última instância, desta concepção
platônica. Até hoje a ciência, em diversas de suas áreas, trabalha com a ideia de que a
natureza possui uma estrutura matemática apreensível através da razão. Não obstante, é
necessário notar que:
• A filosofia platônica não se identifica com a ciência moderna e contemporânea, mas
apenas desenvolve elementos que posteriormente influenciarão na formulação do método
científico.
• O caráter de experimentação empírica da ciência moderna é incompatível com a
reflexão de Platão. O que importa, em termos de filosofia da ciência, é que Platão
procurou salvar o conhecimento da aporia entre eleatas e jônicos a partir do recurso da
postulação de uma estrutura lógico-matemática (Formal ou Ideal) enquanto razão da
existência e devir do mundo sensível. Igualmente, a busca pela determinação das
essências e da participação dos entes nas essências norteou a busca filosófica e científica
durante séculos.
Assim, diferentemente de Heráclito, para Platão, o mundo não é regido pelo devir, mas
pelas Ideias enquanto essências que possuem características comuns com a concepção
acerca do ser de Parmênides. O engajamento de Platão com Parmênides traz reflexões
importantes e, por isso, nos deteremos nele. No diálogo O Sofista, Platão, em uma seção
denominada “Parricídio de Parmênides”, argumenta que o não ser existe. Este ponto é
muito importante em termos do desenvolvimento posterior da lógica enquanto disciplina.
Veremos, agora, o argumento de Platão contra Parmênides.
Para Parmênides, a identidade do ser é absoluta, dado que o não ser é excluído de
antemão: o ser é e o não ser não é. Igualmente, como vimos a pouco, o filósofo identifica
o conhecimento verdadeiro ao ser. O pensamento, para Parmênides, consegue apreendê-
lo plenamente. No entanto, Platão identifica nisso o seguinte problema: se o ser é uno e
autoidêntico, ele não pode ser plenamente pensado e conhecido como queria Parmênides.
E por quê? Porque afirmar que o ser é uno, como faz Parmênides, já é afirmar algo além
do ser, a saber, o próprio uno. O ser já não é uno conforme ele se diz uno, uma vez que o
uno é algo diferente do próprio ser. Em segundo lugar, a nomeação do ser já indica que
algo difere dele. O nome do ser, que é distinto do ser, enquanto aquilo que o nomeia de
forma que, mais uma vez, já não temos mais o uno, mas dois, pelo menos. Em terceiro
lugar, as considerações precedentes se desdobram no seguinte problema: a identidade
ontológica absoluta de Parmênides interdita que se façam afirmações descritivas sobre a
essência dos entes. Dizer que um “homem é bom” é impossível nesta lógica. Dizer que o
homem é bom envolve dizer também, no seio desta proposição, aquilo que ele não é: dizer
que ele não é mal. Se a identidade do homem com seu ser é absoluta, só se pode afirmar
que o homem é homem e nada mais, o que não oferece conhecimento discursivo acerca
dele; trata-se de uma simples tautologia. Então, para Platão, no fim, diante do argumento
de Parmênides, temos as seguintes opções: ou o ser não pode ser descrito discursivamente
(seja através da nomeação ou de afirmações como o “ser é uno”) ou deve envolver
também o não ser.

A resposta de Platão é que o não ser existe e o ser envolve o não ser. Este ponto, apesar
de um tanto controverso, indica uma lógica de predicação na filosofia platônica. Vejamos
no que consiste esta lógica. Para Platão, a identidade entre um ente e o ser não é absoluta;
é sempre relativa e envolve uma diferença. A identidade absoluta de Parmênides é
substituída por uma relação de participação. A proposição “o homem é bom” indica que
o homem participa do Bem, mas não esgota o que o homem é. O homem é bom, mas
também é diversas outras coisas, de modo que a identidade entre o homem e o Bem é
parcial e relativa. Cada identidade, assim, envolve a participação em mais de um outro
ser (SOUZA, 1998).

Mais ainda: este caráter de identidade relativa requer a intervenção do não ser. Dizer que
o homem é bom é dizer que o homem não é mal; o não ser aqui tem a função de determinar
o que homem é. Determinado ente “A” é determinado não só pela participação na essência
de A, mas, igualmente, por tudo que incide enquanto “não A”. Ser homem é não ser uma
vaca, uma planta, uma pedra; o não ser, deste modo, funciona como um limite que
determina o homem enquanto algo. Ser homem é não ser tudo que não é homem, e esta
dimensão é importante conquanto determina o ser do homem. Dizer que “Pedro não é
mulher” é tão informativo quanto dizer que “Pedro é homem”. Esta discussão configura-
se enquanto uma lógica de predicação, porque determinar o que algo consiste – o homem
(sujeito) é bom (predicado) – passa pela participação do sujeito no predicado mediada
pela intervenção do não ser (SOUZA, 1998). Assim, podemos ver como, para Platão, não
há imediaticidade do pensamento ao ser. O ser pode ser pensado através da filosofia, mas,
diferentemente de Parmênides, ser e pensar não são uma e mesma coisa.

ARISTÓTELES E A LÓGICA

Aristóteles, discípulo de Platão, rompeu com o mestre e em seu pensamento próprio


desenvolveu diversas concepções fundamentais para o desenvolvimento da lógica
enquanto ciência. A lógica aristotélica dominou todo o cenário intelectual ocidental até
meados do século XIX e até hoje é muito estudada.
Aristóteles, apesar da sua ruptura com a filosofia platônica, mantém a mesma
preocupação com as essências. A filosofia deve procurá-las através da razão e da
argumentação. Para o filósofo, a essência não corresponde mais à Ideia, mas, sim, à
Forma. Diferentemente da concepção platônica, as Formas não estão separadas dos entes
em um mundo à parte, mas são imanentes aos entes que se compõem na junção entre elas
e uma matéria. Aristóteles, neste sentido, oferece uma resposta própria à disputa entre
jônicos e eleatas: o devir está na matéria – que é definida como potência de vir-a-ser –,
ao passo que a imutabilidade está na Forma que atualiza a potência em um ente concreto.
Aristóteles, diferentemente de Platão, não desprezava os sentidos. O filósofo
argumentava que o conhecimento começa pelos dados sensíveis. Para ele, é através da
observação atenta da experiência que conseguimos intuir intelectualmente as Formas (não
confundir com as Ideias platônicas) que respondem pela existência dos entes. Por conta
desta concepção, Aristóteles é um dos primeiros a tomar a classificação enquanto projeto
epistemológico. Visando identificar a Forma na multiplicidade dos seres, Aristóteles
organizou diversos compêndios comparando as formas dos animais, das plantas e das
constituições dos Estados de seu tempo.
Para além da sua metafísica ou filosofia primeira, Aristóteles trouxe contribuições
centrais para a lógica. A lógica, para o filósofo, é um instrumento que serve ao
pensamento, visando auxiliar na apreensão racional das Formas. A ciência, até os dias de
hoje, se pauta pela lógica e pela matemática e, neste sentido, se as contribuições de
Aristóteles nesta área foram, em muitos pontos superadas, ainda assim elas foram centrais
para o desenvolvimento científico. Vamos ver, agora, os principais conceitos da lógica
aristotélica.
Neste sentido, Aristóteles, em uma afirmação célebre, escreve que “O Ser se diz em
múltiplos significados, mas sempre em referência a uma unidade e a uma realidade
determinada” (ARISTÓTELES, 2015, p.131/1003a35). As consequências desta
afirmação são imensas e muito debatidas. O que importa aqui é que o filósofo sempre
demonstra uma grande preocupação com a linguagem. Ele analisa os diversos sentidos e
significados de um termo filosófico à procura da unidade que subjaz a todos eles. Como
no caso do verbo ser, que pode ser entendido como identidade (como na afirmação 2 + 2
= 4), como existência (como na frase “Deus existe”) ou como atributo (“o cavalo é
branco” ou “um cavalo é um mamífero”). Isso evita a aporia pré-socrática apresentada
anteriormente e que o mundo empírico seja apenas aparência e nunca verdade, como em
Platão. O último tipo de enunciado é o que permitirá a ciência. No caso da metafísica, ou
ciência primeira, a substância é esta “unidade e realidade determinada”. Nas outras áreas
analisadas pelo filósofo, outros conceitos operam neste sentido, mas todos tendo sempre
a substância como referente último.
O primeiro ponto importante da lógica aristotélica é que ela se dá através de termos
(horos) e suas relações. Para Aristóteles, toda proposição se estrutura entre um termo que
figura como sujeito e o outro enquanto predicado. O predicado pode ser verdadeiro ou
falso enquanto atributo de certo sujeito. Se eu afirmo “o homem é um mamífero”, o
predicado mamífero se diz do sujeito homem e se trata de uma proposição verdadeira
(lembre-se de que a verdade ou a falsidade de uma proposição depende apenas de sua
adequação com o que se observa nos fatos). Se eu afirmo “o homem é um réptil”, o
atributo “réptil” se aplica ao sujeito “homem” em uma proposição falsa.
Neste sentido, há predicados essenciais e acidentais. Predicados essenciais são aqueles
que definem determinado ente, enquanto os acidentais, se verdadeiros, não são
necessários para que este ente seja o que é. A proposição “um cavalo é um mamífero”
expressa um predicado essencial, dado que não há cavalo que não seja mamífero. Já na
proposição “o cavalo é branco”, o termo “branco” é um atributo acidental do cavalo, dado
que não é necessário ser branco para ser cavalo (há cavalos que não são brancos) (SMITH,
2020).
Em segundo lugar, temos três grandes leis do pensamento na lógica de Aristóteles. A
primeira, dentre elas, ficou conhecida como “Princípio da Identidade”. Ele afirma que
todo ente é idêntico a si mesmo de forma que toda proposição sob a forma “A = A” é
verdadeira.

REFLITA
O princípio de identidade, de imediato, parece óbvio e, por esta razão, ele é considerado
axiomático. No entanto, a ciência do século XX descobriu fenômenos naturais, nos quais
o princípio de identidade não parece se aplicar bem, como na mecânica quântica, na qual
um elétron é ao mesmo tempo uma partícula e uma onda. Por outro lado, em que medida
podemos dizer que uma pessoa é idêntica a si mesma? Segundo a psicanálise e algumas
áreas da psicologia, nosso “eu” é perpassado por impulsos inconscientes que não são
idênticos a ele. Reflita sobre estas questões e pense em que medida o princípio da
identidade se aplicaria, de fato, a todos os campos da experiência.

Do “Princípio de Identidade” deriva-se o famoso “Princípio de não contradição”. Ele


prescreve que dois predicados contraditórios não podem ser afirmados do mesmo sujeito.
Assim, não se pode afirmar de Sócrates que ele é um homem e um não-homem. Sócrates
pode ser um homem e branco, pois “branco” não contradiz o predicado “homem”. No
entanto, o predicado “não-homem” contradiz o predicado “homem” e, deste modo,
Sócrates é homem ou não homem, necessariamente. É importante sublinhar a diferença
entre contradição e contrariedade. A contradição é exclusão absoluta entre dois termos
sem qualquer intermediário possível, por exemplo, entre homem e não homem, branco e
não branco. Não há entre estes termos, conforme expressos na proposição, um meio
termo. Já a contrariedade é quando há, efetivamente, um meio termo. Por exemplo: branco
e preto não são contraditórios, mas contrários, dado que há o cinza enquanto termo
intermediário.
Em seguida, temos a “lei do terceiro excluído”, a qual é outra grande contribuição de
Aristóteles à lógica, derivada do princípio de não contradição. Ela prescreve que ou uma
afirmação é verdadeira, ou sua negação é verdadeira. Por exemplo, vejamos as duas
proposições: “Sócrates é mortal” (A) e “Sócrates não é mortal” (B). É possível que
Sócrates seja imortal e mortal ao mesmo tempo? Não, naturalmente. Então, ou a
proposição A é verdadeira, ou a B é verdadeira, jamais as duas ao mesmo tempo.
Por fim, o silogismo foi o principal método de raciocínio empregado na história, perdendo
sua hegemonia apenas no século XIX. O que é um silogismo? Vejamos a definição do
próprio Aristóteles:

O silogismo é um argumento em que, dadas certas proposições, algo distinto delas resulta
necessariamente, pela simples presença das proposições aduzidas. O silogismo é uma
demonstração quando parte de premissas evidentes e primeiras ou de premissas tais que,
o conhecimento que delas temos, radica nas premissas primeiras e evidentes.

ARISTÓTELES, 1987, p. 10/100a

O silogismo é uma forma de raciocínio que parte de duas premissas em direção a uma
conclusão necessária. É necessário que haja um termo em comum entre as duas premissas
– chamado, por conta disso, de termo médio –, de forma a permitir a passagem para a
conclusão do raciocínio. O termo que é predicado da conclusão é dito o termo maior, e o
seu sujeito, o termo menor. Por consequência, a premissa que detém o termo maior é
chamada de premissa maior, e a outra, de premissa menor. Utiliza-se o qualificativo
“maior”, pois este termo abrange um universo maior de seres que o sujeito, onde,
inclusive, se encontra o próprio sujeito.

Uma importante descoberta aristotélica, neste sentido, é o da relação de consequência.


Isto significa que o valor de verdade das premissas é preservado na conclusão. De forma
simplificada, pode-se dizer que a verdade das premissas se desdobra na verdade das
conclusões, de modo que, se elas são verdadeiras, aquilo que se conclui delas também
será verdadeiro. Se são falsas, a conclusão será falsa, por sua vez. É neste sentido que se
fala em “preservação do valor de verdade”.

EXEMPLIFICANDO
Vamos ver, agora, um exemplo de silogismo:

Premissa maior: todo homem (termo médio) é mortal (termo maior).


Premissa menor: Sócrates (termo menor) é um homem (termo médio).
Conclusão: Sócrates (termo menor) é mortal (termo maior).
Perceba como a conclusão deriva necessariamente das premissas e como o termo
“homem” é o elemento comum entre as duas.

Até o surgimento da lógica formal contemporânea, de inspiração matemática, o silogismo


era considerado o único modo de se desenvolver um raciocínio lógico correto. Toda a
história da filosofia foi permeada por esta concepção. A ciência, igualmente, conforme
surge da filosofia, também se pautou por este modo de raciocinar, e os princípios
aristotélicos que vimos a nortearam durante séculos. Assim, é importante conhecê-los
bem.
FOCO NO BNCC
A BNCC, assim como a matriz curricular do ENEM, apresenta uma abordagem
eminentemente multidisciplinar. Neste sentido, é comum que, nos vestibulares, as
questões de filosofia venham misturadas a questões de outras disciplinas. O estudo da
lógica envolve uma multidisciplinaridade que pode ser sempre explorada com seus
futuros alunos. A lógica é ao mesmo tempo filosofia, matemática, linguagem e a base das
ciências da natureza. Esta característica ampla tem muito a acrescentar no processo de
aprendizado, se devidamente explorada pelo professor.

Prezado aluno, terminamos mais uma etapa da sua formação como docente e filósofo.
Nesta seção, estudamos a crise entre eleatas e jônicos e a influente ideia platônica de que
há uma realidade subjacente a nossa realidade sensível. Também estudamos os principais
pontos da lógica aristotélica, esta que dominou durante tantos séculos o pensamento e a
ciência. Sigamos nesta viagem pelo conhecimento!

FAÇA A VALER A PENA

Questão 1

Aristóteles foi um dos principais pensadores da lógica. Sua compreensão sobre o tema foi
hegemônica no Ocidente durante dois milênios. As principais formulações do pensador
contribuíram muito para a filosofia e para a ciência, e os seus princípios lógicos são
fundamentais até hoje.
Assinale a alternativa que expressa corretamente um destes princípios e sua descrição.

a O Princípio do Terceiro Excluído afirma que todo ente é idêntico a si mesmo.

b O Princípio da Não Contradição afirma que proposições contraditórias são verdadeiras ao mesmo tempo.

c O Princípio do Terceiro Excluído afirma que dois predicados contraditórios não podem ser atribuídos ao
mesmo sujeito.

d O Princípio da Identidade afirma que ou uma premissa é verdadeira, ou sua negação é verdadeira.

e O Princípio do Terceiro Excluído afirma que ou uma premissa é verdadeira, ou sua negação é verdadeira.

Correto!

O Princípio da Identidade afirma que um ente é idêntico a si mesmo; o da Não


Contradição, que dois predicados contraditórios não podem ser atribuídos ao mesmo
sujeito; o do Terceiro Excluído, que ou uma proposição é verdadeira, ou sua negativa é
verdadeira.

Questão 2

O único meio de expressar discursivamente o ser uno é transformá-lo em nome de si


mesmo. Só assim a unidade é preservada. Mas deste modo, tampouco há conhecimento
discursivo do ser. O ser é apenas um nome vazio. Em suma, a via escolhida por
Parmênides não pode ser expressa e legitimada discursivamente.

SOUZA, 1998, p. 31.

Esse trecho expressa uma das críticas de Platão a Parmênides em seu famoso “Parricídio”.
Com base neste contexto, julgue as seguintes asserções em verdadeiras (V) ou falsas (F):
( ) Platão argumenta que, se o ser não possui nenhum não ser, ele não é acessível ao
discurso e se torna uma palavra vazia.
( ) Platão critica Parmênides afirmando que o não ser efetivamente não é, sendo
inexistente e, por conta disso, todo ente tem uma relação de identidade absoluta com seu
ser enquanto Ideia.
( ) Platão, contra Parmênides, afirma que o não ser existe enquanto limite ou
determinação de um ente a partir dos outros predicados que o definem negativamente.

Assinale a sequência correta.

a V – V – V.

b V – F – V.

Correto!

Sequência correta: V – F – V.
Platão argumenta que a plena identidade do ser a si mesmo interdita que se predique dele
qualquer coisa, pois este predicado já seria outra coisa que não o ser. Neste ponto, a
primeira afirmação é verdadeira. A segunda afirmação é falsa, por apresentar o argumento
de Parmênides no lugar da crítica platônica, falando de Ideia em uma formulação
incorreta. A terceira afirmação, por sua vez, é verdadeira: para Platão, o não ser tem uma
função de determinação. Ser um homem é não ser um peixe, uma vaca, etc., e estes outros
predicados funcionam por determinar, junto à participação na Ideia, um ente enquanto
tal.

c F – F – V.

d V – F – F.

e F – F – V.

Questão 3

Em um debate com amigos, Pedro faz a seguinte afirmação: “Zezinho é político do


Partido Z. Ora, todo mundo do Partido Z é corrupto, a gente sabe muito disso. É claro que
Zezinho é corrupto, meus amigos”. De forma informal, Pedro mobilizou uma estrutura
lógico-argumentativa advinda da filosofia clássica.
Tendo este contexto em mente, analise as seguintes afirmativas:
I O tipo de argumento mobilizado por Pedro se chama silogismo e foi primeiro cunhado
por Platão em sua crítica a Parmênides.
II No silogismo mobilizado por Pedro, “ser do Partido Z” é o termo médio.
III “Zezinho”, no silogismo de Pedro, é o termo menor, e “ser corrupto”, o termo maior.
Com base neste contexto, é correto o que se afirma em:

a I e II, apenas.

b II, apenas.

Correto!

Resposta correta: II, apenas. A afirmação I está equivocada, pois foi Aristóteles quem
cunhou o silogismo em sua forma lógica clássica. A afirmação II, por sua vez, está correta.
uma vez que “ser do partido Z” é o termo compartilhado pelas duas proposições. A
afirmativa III está equivocada, pois o termo maior é aquele que é predicado na conclusão
e não sujeito; assim, o termo maior é “ser corrupto”, e o menor “Zezinho”.

c I, II e III.

d I, apenas.

e III, apenas.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Organon: Tópicos V. Trad. Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães


Editora, 1987.
ARISTÓTELES. Metafísica. V. II. Trad. Giovanni Reale e Marcelo Perine. São Paulo:
Edições Loyola, 2015.
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: MEC, 2018.
CURD, P. Presocratic Philosophy. In: ZALTA, E. (Ed.). The Stanford Encyclopedia of
Philosophy. Stanford: Stanford University, 2020. p. 1-21. Disponível
em: https://stanford.io/3hI9w8S. Acesso em: 2 mar. 2021.
RUSSEL, B. História do Pensamento Ocidental: a aventura dos pré-socráticos a
Wittgenstein. Trad. Laura Alves e Aurélio Ribeiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
SMITH, R. Aristotle’s Logic. In: ZALTA, E. (Ed.). The Stanford Encyclopedia of
Philosophy. Stanford: Stanford University, 2020. p. 1-26. Disponível
em: https://stanford.io/3xrZbET. Acesso em: 14 mar. 2021.
SOUZA, E. Platão e Parmênides: notas sobre o parricídio. Letras Clássicas, v. 1, n. 2, p.
27-38, 1998.

FOCO NO MERCADO DE TRABALHO


OPINIÃO E CIÊNCIA: PRINCÍPIOS DO
DISCURSO CIENTÍFICO: ARGUMENTAR,
DIALOGAR, CONTRADIZER, CLASSIFICAR
Ádamo Bouças Escossia da Veiga

SEM MEDO DE ERRAR

Você, no lugar do professor David, após refletir muito sobre as diversas crises do
pensamento na filosofia antiga, resolve que fará seu texto sobre a oposição entre jônicos
e eleatas. Argumenta, de início, que esta crise foi sobremaneira importante,
principalmente, por ter mobilizado a resposta platônica que influenciou como nenhuma
outra o desenvolvimento do pensamento ocidental.

No seu artigo, você começaria contextualizando a procura da arché enquanto busca por
um princípio racional não mítico para o cosmos. Assim, mostraria como os jônicos
postularam diversos princípios, como a água, o ar e os quatro elementos de Empédocles.
Em seguida, frisaria a filosofia de Heráclito, mostrando como o filósofo viu no devir o
princípio de todas as coisas, e no fogo, o elemento primordial. Neste sentido, escreveria
sobre a indagação sistemática dos filósofos acerca dos princípios do próprio
conhecimento, mostrando como, para Heráclito, o logos era o princípio de ordenamento
divino do cosmos.

Em oposição às teses jônicas, você escreveria sobre os eleatas. Parmênides, o nome mais
importante desta escola, afirmava que o ser é e que o não ser não é, em uma tese central
para o desenvolvimento da filosofia grega. Parmênides julgava que a inexistência do não
ser levava, necessariamente, à concepção do ser como uno, idêntico e imutável, sendo
todo devir observado no mundo sensível uma simples ilusão. Você frisaria que se trata de
um dos primeiros momentos na história do pensamento, quando o conhecimento é
concebido como sendo puramente intelectual e independente dos sentidos.
Assim, você apresentou uma crise do pensamento na Grécia Antiga. A título de
conclusão, escreveria sobre a solução platônica para o dilema. Platão, em sua teoria das
Ideias, argumentava que o mundo dos sentidos era dominado pela inconstância e pelo
devir, e que o mundo das Formas ou Ideias era imutável e eterno. Neste sentido, você
falaria do “Parricídio de Parmênides”, apresentando os argumentos de Platão para afirmar
que o não ser é. Para o filósofo, o não ser tem uma função de limitação e determinação
predicativa, dado que todo ente que é algo determinado não é, igualmente, todos os
demais entes com seus outros predicados.

AVANÇANDO NA PRÁTICA

LÓGICA E VIDA PROFISSIONAL

Para contextualizar a sua aprendizagem, imagine-se na seguinte situação: Sandra é


professora de filosofia em um pré-vestibular. A disciplina faz parte da matriz curricular
do ENEM e é comum que haja, na parte das ciências humanas da prova, questões de
filosofia articuladas a questões de outras matérias. Os alunos de Sandra manifestam
grande desejo de serem aprovados e, em geral, são estudiosos e dedicados.
No entanto, Sandra percebe que seus alunos se mostram dispersos durante a aula, muitos
simplesmente dormem durante sua explicação, e outros tantos parecem estar estudando
outras disciplinas. Em uma aula sobre a lógica aristotélica, ela se percebe falando sozinha.
Incomodada com isso, resolve ter uma conversa sincera com a turma.
A professora pede para que os alunos lhe digam sinceramente o que está se passando e
por que demonstram não ter nenhum interesse pela sua aula. Eles lhe respondem que estão
preocupados com a aprovação no vestibular e com o seu futuro profissional e, dado que
a filosofia é uma disciplina com poucas questões no ENEM, acham melhor concentrarem-
se em outras áreas, já que que não viam utilidade no conteúdo da aula para seu futuro.
Sandra fica satisfeita com a sinceridade dos alunos e resolve que precisa motivá-los a se
interessarem pelo conteúdo da aula. Esta e as próximas aulas versam sobre lógica
aristotélica, então a docente pretende demonstrar como este assunto importa para os seus
alunos para além do vestibular. Você, no lugar da professora Sandra, como responderia
aos discentes? Como demonstraria a importância do estudo da lógica aristotélica para
eles?

RESOLUÇÃO

Você, no lugar de Sandra, mostraria para os alunos a importância da filosofia e, dentro


dela, da lógica, da seguinte maneira: em primeiro lugar, poderia mostrar como o ENEM
costuma ter uma abordagem indisciplinar e que os conteúdos de filosofia, muitas vezes,
acompanham temas de outras disciplinas. Mais ainda, a capacidade de pensar para além
de uma disciplina é uma competência importante na vivência profissional, na qual se
espera sempre capacidade de raciocínio crítico e competência na hora de estabelecer
relações entre diversos conhecimentos. A filosofia, enquanto mãe das ciências, humanas
e da natureza, oferece subsídios importantes para uma compreensão multidisciplinar.
Por outro lado, o estudo da lógica é importantíssimo em diversos pontos. Você
argumentaria que a lógica aristotélica pautou a matemática e as ciências da natureza
durante séculos, e que o seu aprendizado facilita a compreensão das demais disciplinas.
Neste sentido, diria que a lógica é um instrumento de pensamento e, enquanto tal, útil
para além do vestibular. O estudo da lógica auxilia em todos os aspectos da vida,
permitindo clarificar seus próprios pensamentos, seja diante de uma escolha pessoal ou
profissional. Em diversos processos seletivos e concursos públicos, o raciocínio lógico é
cobrado. Na sua trajetória universitária, por exemplo, você já se deparou, em provas ou
exercícios, com questões do tipo “asserção-razão”, nas quais se pede que se julgue a
relação lógica entre duas proposições. Ainda, neste sentido, a lógica auxilia na esfera da
argumentação e exposição coerente de ideias, e esta competência é sempre um diferencial
no mercado profissional de todas as carreiras.
Assim, você mostraria para seus alunos a importância da lógica e da filosofia e teria
conseguido motivá-los a participarem e prestarem atenção na aula.

NÃO PODE FALTAR


CIÊNCIA ANTIGA E CIÊNCIA MODERNA: A
LONGA CONSTRUÇÃO DA RAZÃO MODERNA
Ádamo Bouças Escossia da Veiga

PRATICAR PARA APRENDER

Prezado aluno, seja bem-vindo a mais uma etapa da sua formação. Nesta seção,
continuaremos investigando as interessantes questões levantadas pela filosofia da ciência
e aprenderemos mais sobre a origem desta prática que mudou radicalmente o mundo.
Vimos, anteriormente, os elementos da filosofia grega clássica, que séculos depois se
desdobram na ciência moderna. Agora, daremos continuidade ao nosso percurso.
Na presente seção, conheceremos o caso da Antiguidade clássica e a ascensão da visão
de mundo católica na Idade Média. Com o fim do Império Romano Ocidental, diversos
reinos surgem no seu território e, com eles, uma nova concepção do cosmos. O
cristianismo torna-se hegemônico, e a filosofia passa a orbitar ao redor da Igreja Católica.
Compreenderemos como a relação com a natureza muda nesta passagem do mundo
clássico para o medieval. Analisaremos a permanência de uma concepção hierárquica do
cosmos, herdada da Antiguidade, no pensamento católico. Veremos no que consiste tal
visão e no que ela se distingue da ciência moderna e da nossa concepção de mundo
corrente.
Em seguida, entraremos na Renascença, período marcado pela retomada dos textos da
Antiguidade e por mudanças radicais na concepção ocidental de mundo que mudariam
para sempre o rumo da história humana. Neste período, a visão medieval é abandonada
em prol da visão científica moderna. Diversas descobertas importantes nascem neste
movimento, nas artes, na astronomia, na filosofia e em diversos outros campos. Veremos,
assim, o que pensaram os filósofos e cientistas responsáveis pela criação da ciência e o
solo cultural no qual esta criação teve lugar.

Para contextualizar a sua aprendizagem, imagine-se na seguinte situação: David é


professor de uma importante universidade e se engaja em diversos projetos de divulgação
científica. Tem experiência neste setor e, para além da divulgação vinculada à
universidade, também escreve livros didáticos e artigos para revistas não científicas.
Recentemente, David contribuiu para a série “Crises do Pensamento” com um capítulo
sobre a crise intelectual entre jônicos e eleatas na filosofia grega clássica. A série é um
projeto editorial comandado pela Editora Pluma, visando analisar, de forma acessível,
grandes momentos de inflexão no pensamento ocidental. David fez com gosto a sua parte,
e o texto foi publicado alguns meses depois. Ficou ainda mais satisfeito quando soube do
sucesso do empreendimento, tanto em termos de venda dos livros quanto em termos de
impacto acadêmico.

Por conta deste sucesso, Pedro, o editor da série, convida David para contribuir com outro
volume da coletânea. Desta vez, trata-se de um livro dedicado à crise do pensamento
medieval, a emergência do Renascimento e dos impasses que levaram ao surgimento da
ciência moderna. Pedro pede que David elabore um capítulo discorrendo sobre as
mudanças mais importantes da visão de mundo medieval na modernidade, com foco para
o surgimento da ciência. O professor, empolgado com o sucesso do volume anterior,
aceita de pronto e se prepara para começar a redigir o texto. Sabe que se trata de um tópico
complexo, e ele não é cientista, mas filósofo. De todo modo, tem confiança que
conseguirá se sair bem.

Você, no lugar de David, como prepararia o seu texto? Quais tópicos traria, a fim de
discutir a mudança do mundo moderno em comparação com o medieval?
A filosofia é uma grande aventura do pensamento e, nesta seção, você dará mais um passo
nesta jornada. Sigamos!

CONCEITO-CHAVE

A VISÃO DE MUNDO MEDIEVAL

A ciência moderna tem sua origem na filosofia. Como vimos, muitos elementos da
filosofia grega clássica foram importantíssimos para seu desenvolvimento, como a lógica,
a matemática e a busca por essências. No entanto, entre a ciência moderna e a filosofia
grega antiga, temos mais de um milênio de separação e, neste longo período, muita coisa
se passou na história, na política e na filosofia.
A Idade Antiga, segundo a historiografia tradicional, se encerra no século V d. C. com a
queda do Império Romano do Ocidente, tendo início na Idade Média. O declínio e a queda
do Império foi um período muito atribulado, marcado por diversas guerras entre romanos
e os povos ditos bárbaros, e grande parte da sabedoria antiga se perdeu. Em paralelo, a
Igreja Católica consolidou-se, tornando-se hegemônica em toda a Europa ao longo deste
período, em um processo violento e contínuo. Com a ascensão da Igreja, toda vida
intelectual passa a se situar em seu seio. A filosofia e a ciência, agora, estão subordinadas
à visão de mundo católica, e os intelectuais, em sua imensa maioria, durante todo o
período medieval, foram membros do clero católico.
O cristianismo se desenvolveu lentamente a partir do século I. Pequenos centros de
pregação se espalharam pelas principais cidades do Império, e de lá a nova religião foi
crescendo paulatinamente. O cristianismo, diferente das demais religiões do período, se
colocava como uma religião universal. Isto significa que a conversão dos pagãos era uma
obrigação dos fiéis, e que o cristianismo não era uma religião exclusiva de um povo ou
de uma etnia – todos poderiam se tornar cristãos, bastando se converter. Trata-se de uma
grande inovação religiosa e cultural.

No Império Romano, as religiões estavam sempre ligadas a um povo em específico e,


perante os demais, os seus deuses não eram considerados falsos. Os egípcios tinham seus
deuses, assim como os romanos, os gregos e os gauleses. Cada panteão havia se aliado a
um povo, logo não havia sentido em querer converter os seguidores de um outro deus e
de um outro povo ao culto do seu deus.

Com o cristianismo, isso muda. A fé cristã inaugura a conversão, e isto teve imensas
consequências para a história mundial. A concepção de uma religião universal, por mais
que propriamente cristã, apresenta ainda uma forte ligação com o ambiente cultural
romano. Apesar das diferenças culturais e religiosas ao redor do Império, ele estabeleceu
uma língua comum e um ideal universalizante encarnado na própria estrutura imperial. A
partir da disseminação da cultura greco-romana por todo o Mediterrâneo e grande parte
da Europa e da assimilação em maior ou menor grau das diferentes culturas a esta matriz
cultural, o cristianismo encontrou o solo para se desenvolver. O longo processo de
cristianização do mundo romano teve seu auge no ano de 380 d. C., quando o Imperador
Teodósio tornou o cristianismo a religião oficial do Império (MARCONDES, 2007).
No entanto, se temos uma imensa transformação do paganismo greco-romano para o
cristianismo católico, esta transformação também apresentou um esforço de
compatibilização e continuidade entre a antiga visão de mundo e a nova. Dado que o
cristianismo se consolida em um ambiente de matriz greco-romano, diversos esforços
intelectuais foram realizados por filósofos cristãos, no sentido de integrar e compatibilizar
esta matriz com os princípios da nova fé. A “Patrística”, período inicial de consolidação
intelectual e doutrinária católica, caracteriza-se por este esforço. Grandes filósofos, como
Agostinho de Hipona, Tertuliano e Ambrósio, desenvolveram seu pensamento
precisamente neste sentido.

Agostinho de Hipona, por exemplo, influenciado por Platão e os neoplatônicos, defendia


a existência de uma Cidade de Deus, enquanto cidade ideal, em contraste com a cidade
terrena (ou dos homens). A história humana seria a caminhada em direção à Cidade de
Deus, caminhada esta perpassada por inúmeros conflitos, mas que, sob a guia da
Providência divina, rumava incessantemente em direção a ela. A concepção da alma no
catolicismo, como vê-se claramente na obra de Agostinho, possui grande inspiração
platônica. A alma, no cristianismo, é concebida como imortal e dotada de razão, como
inteligível em contraste com o corpo material e, sendo veículo para a salvação, deve
controlar os impulsos corporais. Platão concebia a alma de forma muito próxima,
enquanto algo separado do corpo, racional e detentora do dever de subjugar os desejos da
carne. Neste espírito, Fílon de Alexandria começa a desenvolver o pensamento que as
Ideias platônicas, antes de serem realidades separadas em um mundo próprio, estavam
presentes na mente de Deus, e que, através delas, ele haveria criado todo o cosmos
(MARCONDES, 2007).

ASSIMILE
Assimile Neoplatonismo é a classificação historiográfica de um conjunto de filosofias,
bastante influentes, que marcaram o cenário filosófico ocidental da metade do século III
d. C. até aproximadamente o século VII. Trata-se de um movimento filiado à tradição
platônica, demonstrando preocupação central com o problema da origem do cosmos e
com a busca do princípio unitário subjacente à realidade. Contrasta com o materialismo
de algumas filosofias da sua época, como o atomismo de Epicuro, e exerce grande
influência no cristianismo nascente e, posteriormente, na Renascença.

Sobretudo, uma concepção clássica do pensamento grego se manteria no cristianismo: a


concepção hierárquica do cosmos. O célebre historiador da ciência e filósofo francês,
Alexandre Koyré, situa a origem da ciência moderna precisamente na ruptura com esta
visão de mundo. E o que seria ela? Esta concepção apresenta grande variação entre os
diversos filósofos da Grécia clássica, mas, grosso modo, ela expressa a visão do cosmos
enquanto uma grande cadeia pautada por uma hierarquia que vai dos seres mais
imperfeitos e corruptos aos mais perfeitos. Note que corrupto, neste contexto, expressa
“menos perfeição” e não tem o sentido que usamos rotineiramente. A cosmologia de
Aristóteles, junto ao desenvolvimento teórico das suas teses realizado por Ptolomeu, foi,
sobremaneira, influente ao longo de toda Idade Média. Para Aristóteles, o universo se
compõe de diversas esferas celestes, sendo as mais perfeitas situadas acima da Lua
(mundo supralunar), eternas e imutáveis. A Terra está no centro destas esferas, e os seus
habitantes, sujeitos ao ciclo da morte e do nascimento (mundo sublunar), são inferiores
aos entes celestes e regidos por eles. O cosmos aristotélico apresenta um mundo finito e
fechado, um Todo bem delimitado e organizado segundo uma escala ascendente de
perfeição. O Motor Imóvel aristotélico é o ápice desta escala cósmica. Ele é a causa não
causada do universo, e seu movimento, pura forma sem matéria, eterno e atual. Além de
causar todo movimento, funciona como “fim” do Universo, direcionando todo o cosmos
a partir da sua perfeição. Como coloca Koyré, esta visão cosmológica que domina toda a
Idade Média configura-se enquanto uma

[...] concepção do mundo como um todo finito, fechado e ordenado hierarquicamente (um
todo no qual a hierarquia de valor determinava a hierarquia e a estrutura do ser, erguendo-
se da terra escura, pesada e imperfeita para a perfeição cada vez mais exaltada das estrelas
e das esferas celestes).

KOYRÉ, 2006 p. 6.

A concepção medieval do cosmos, portanto, é herdeira desta concepção hierárquica


aristotélica-ptolomaica, por mais que aporte importantes modificações. Uma delas é a
radicalização de uma postura que, se presente em algumas filosofias greco-romanas, não
era tão substantiva quanto se tornou depois: a separação completa de Deus e da natureza.
O Deus cristão, na concepção medieval, está separado do mundo material. Ele é
plenamente espiritual e transcendente. O Criador existe em separado do mundo criado.
Isto produziu, no pensamento medieval, um afastamento e desprezo pelas questões de
filosofia natural. A natureza passa a ser vista no mesmo sentido que o corpo: lugar de
tentação e desvio. O pecado se associava à matéria, e a natureza, enquanto matéria, passou
a ser vista como um domínio onde o homem poderia se perder. A salvação espiritual, o
que importa ao fiel, não passa por uma compreensão imanente da natureza, mas por uma
purificação de tudo que diz respeito ao mundo material. Naturalmente, há exceções, e esta
visão varia muito através dos mil anos de pensamento medieval. O pensamento de
Francisco de Assis, por exemplo, dá outro papel à natureza enquanto aquilo que manifesta
a beleza e o poder da criação divina. Mas, ainda que haja exceções, o pensamento
medieval pode ser considerado como essencialmente voltado para o Divino transcendente
em detrimento da natureza mundana. Richard Tarnas sintetiza esta diferença entre a
compreensão natural dos antigos e medievais quando escreve que o pensamento
medieval, em comparação com o clássico, fez por “reduzir o valor da observação, análise
ou compreensão do mundo natural e, assim, tirar a ênfase ou negar as faculdades racionais
e empíricas em benefício das emocionais, morais e espirituais” (TARNAS, 2005, p. 187).

O RENASCIMENTO E O PRINCÍPIO DA CIÊNCIA MODERNA

Considera-se que a Idade Média termina com a queda do Império Romano do Oriente,
em 1453. Começa, então, a Idade Moderna. Pouco depois, nos séculos XVI e XVII, temos
uma grande revolução no pensamento ocidental. Este período é denominado
Renascimento e, ao longo dele, o método científico moderno se disseminou e se
consolidou.
O termo Renascimento é utilizado em relação a um ideal de retomada do passado greco-
romano. É neste período, inclusive, que se cunhou o termo “Idade Média” ou “Período
Médio”, a fim de situar a era que separa a Antiguidade clássica deste novo momento de
retomada do seu pensamento e filosofia.
Em termos políticos, o Renascimento se caracteriza pelo enfraquecimento da autoridade
da Igreja Católica a partir da Reforma Protestante e da consolidação do Estado moderno.
Durante a Idade Média, o Estado era pouco centralizado, tanto em termos de burocracia
quanto de forças armadas. Por outro lado, o monarca era dependente do papado para sua
legitimidade, e a Igreja operava enquanto uma autoridade supranacional. Durante o
período da Renascença, os Estados, tal como conhecemos hoje, com sua centralização
política e militar, se consolidam, primeiramente, nas cidades-estado da Itália e,
posteriormente, por toda Europa. Esta consolidação do Estado moderno favoreceu a
proliferação do comércio e, com ele, a urbanização e o intercâmbio cultural.
O Renascimento foi marcado por grandes mudanças tecnológicas. A invenção da bússola
e os avanços importantes na geografia e navegação permitiram a invasão da América
pelos europeus e o saque de suas riquezas. A criação da imprensa permitiu um nível
inaudito de transmissão do conhecimento. Nas artes, observou-se uma valorização da
figura humana e de temas do passado greco-romano, assim como a invenção da
perspectiva. Na arquitetura, imensos avanços permitiram a construção de edifícios
grandiosos, como a Basílica de São Pedro, no Vaticano.
Muito importante, neste sentido, foi a redescoberta de textos da Antiguidade clássica,
indisponíveis durante a Idade Média. Através do intercâmbio cultural com os árabes e
bizantinos e de verdadeiras excursões a mosteiros e bibliotecas de toda a Europa,
realizadas por pensadores do período, textos antigos considerados perdidos tornaram-se
novamente acessíveis. Este fator foi central na concepção de um renascimento do mundo
clássico e fez o ambiente intelectual da Europa entrar em ebulição. Sobretudo, a filosofia
de Platão, dos neoplatônicos e de Pitágoras, com a sua defesa de uma realidade
matemática subjacente ao cosmos, impactou na nova visão de mundo. O humanismo
tornou-se, por esta via, uma característica central do pensamento renascentista. A visão
medieval, direcionada para Deus, se volta, mais uma vez, para o humano e seus assuntos.
Passa-se a valorizar novamente o estudo das atividades e potencialidades do homem.
Esta reorientação na era renascentista levou, gradativamente, ao abandono da visão
hierárquica do cosmos dominante no pensamento medieval em prol da visão científica
moderna. Houve conflitos e tensões bastante conhecidos entre a Igreja e os novos
pensadores. O caso de Giordano Bruno, filósofo queimado vivo pela Igreja, é um exemplo
dramático. No entanto, as tentativas do catolicismo de impedir a nova visão de mundo
não se sucederam, e ela se firmou. Veremos, agora, a contribuição de importantes
pensadores do período.
Francis Bacon é considerado um dos primeiros inventores da metodologia científica
moderna. Seu objetivo era desenvolver um novo método que permite o conhecimento
seguro da natureza e a extirpação de preconceitos herdados da tradição filosófica. Bacon
nega o raciocínio por silogismos da filosofia aristotélica e o excesso de abstração dos seus
antecessores. Defende uma metodologia empirista, ou seja, que supõe que o
conhecimento advém dos sentidos, da observação e da experimentação. O seu método é
indutivo, pois parte do particular, conforme manifesto aos sentidos, em direção a axiomas
de alcance geral. Contra a dedução, que parte do geral para o particular, Bacon argumenta
que as suas hipóteses de partida, muitas vezes, podem ser meramente fantasiosas e
inadequadas, condenando o pensador a distorcer sua percepção para adequar a realidade
do particular a elas, como teria acontecido diversas vezes no pensamento medieval. A
partir da indução, pelo contrário, o investigador coloca-se sem preconceitos diante da
natureza, procurando observar nela as suas regularidades e constâncias em direção à
compreensão de seus mecanismos (TARNAS, 2005).

No seu pensamento, temos uma importante consideração que permeia a prática científica
até hoje: a associação entre controle da natureza e poder. O homem, segundo o filósofo,
através do conhecimento, se veria diante de um progresso contínuo em direção à maestria
do mundo natural. Compreender a natureza deixa de ser uma tarefa contemplativa e
desinteressada, para se tornar algo prático, voltado a potencializar a ação humana. Bacon,
assim, propõe a integração entre conhecimento da natureza e desenvolvimento
tecnológico. Neste sentido, concede grande importância à experimentação e aos
instrumentos que a tornam possível (JURGEN; GIGLIONI, 2020).

Outra importante contribuição de Bacon foi a concepção de uma ciência revisável, sujeita
a modificações e revisões mediante novas descobertas e novos dados. Esta postura
contrasta com a visão medieval, firmada na Revelação, e, do mesmo modo, no papel que
a obra dos clássicos tinha na sua época e na Idade Média – Aristóteles e Platão eram
considerados autoridades, e a refutação ou rejeição de suas posições esbarrava em uma
postura dogmática de clérigos e filósofos. A concepção de que a ciência é um método
aberto e em progresso, assim, é uma importante inovação do pensamento renascentista.

REFLITA
Reflita A ideia de um controle da natureza e do aumento do poder humano a partir deste
controle foi altamente influente na filosofia, na ciência e na política. No entanto, no século
XX, este ideal começou a ser fortemente criticado. A bomba de hidrogênio, como coloca
Gunther Anders, nos fez verdadeiros titãs. Temos, agora, o poder de destruir toda a vida
na Terra. Em que medida termos alcançado este poder é algo benigno ou, pelo contrário,
como coloca Anders, apenas nos colocou diante de um perigo nunca visto? Em que
medida o aperfeiçoamento do controle e da manipulação do mundo natural nos traz,
verdadeiramente, a emancipação sonhada por Bacon?

A visão hierárquica do cosmos sofreu um duro abalo com as investigações de Nicolau


Copérnico, Johannes Kepler e Galileu Galilei. Copérnico foi o primeiro a propor a tese
do heliocentrismo, segundo o qual a Terra gira ao redor do Sol, que, por sua vez, está no
centro do universo. Esta tese se mostrou altamente controversa, por ir contra o
geocentrismo de Aristóteles e algumas passagens da Bíblia. A sua motivação e o seu
sucesso foram a simplificação matemática do movimento dos planetas e das estrelas. O
modelo aristotélico-ptolomaico, com suas esferas fixas, apresentava grandes dificuldades
de previsão dos movimentos celestes – que, inclusive, impactavam nos calendários –, e a
tese de uma terra orbitando ao redor do Sol oferecia um modelo mais simples de
compreensão e cálculo.
Kepler, por sua vez, descobriu que as órbitas planetárias não eram esféricas, mas elípticas.
A esfera foi, desde a Antiguidade, considerada a forma mais perfeita e, por isso, sempre
reportada aos movimentos celestes. Demonstrar que os planetas, na verdade, não
obedeciam a um movimento circular perfeito, mas a elipses matematicamente
descritíveis, é um movimento de ruptura radical com o pensamento medieval e clássico.
Kepler concluiu pelas elipses a partir da comparação, em tabelas, de observações
empíricas realizadas por seu mestre, Tycho Brahe, e por ele mesmo e outros astrônomos
da época. O Sol estaria no centro de um dos focos da elipse, e os planetas, nos outros. O
conceito de perfeição enquanto critério cosmológico, se não abandonado pelo próprio
Kepler, foi abalado por sua descoberta.

Galileu Galilei foi um dos principais fundadores da atual metodologia científica e um


pensador de importância ímpar. Galileu foi o inventor do telescópio, um aparelho capaz
de nos fazer observar objetos antes nunca vistos nos céus. Com ele, Galileu observou as
crateras na Lua, as manchas solares, uma infinidade de estrelas nunca observadas na Via
Láctea, as luas de Júpiter, dentre outras descobertas. Com elas, a antiga concepção
aristotélica de que os corpos acima da Lua eram imutáveis caiu por terra. O mundo
supralunar se movia e se modificava, assim como os corpos terrenos. Galileu também
descobriu a inércia, segundo a qual os corpos tendem a se manter em movimento ou
repouso e, assim, ofereceu uma resposta a uma objeção clássica dos aristotélicos ao
movimento da Terra – se a Terra se move, como tudo não sai voando pelos ares? Através
da inércia, Galileu demonstrou que a Terra transmitia para os corpos o seu movimento
inercial, de forma a torná-lo imperceptível.

Uma imensa contribuição de Galileu foi a sua defesa da matematização da natureza. A


partir de uma inspiração pitagórica e neoplatônica, característica do Renascimento,
Galileu defendia que a natureza era um livro escrito em linguagem matemática. Para ele,
o conhecimento advém da avaliação quantitativa dos fenômenos, único método seguro
para a testagem de hipóteses sobre o mundo natural. Perceba que, diferentemente de
Platão, que desprezava todo conhecimento vindo dos sentidos, Galileu via na matemática
a chave de inteligibilidade para os fenômenos sensíveis de forma bem concreta. Trata-se
de matematizar, quantificar, os dados dos sentidos – e não de desprezá-los ao modo de
Platão. Diferentemente do empirismo aristotélico, por sua vez, Galileu julgava as
qualidades (cheiros, sons, cores) efêmeras demais para nos dar conhecimento seguro,
sendo necessário chegar até as relações matemáticas responsáveis por estas mesmas
qualidades.
Isaac Newton, considerado como um dos maiores cientistas de todos os tempos, reúne em
um sistema claro e harmonioso grande parte das ideias de seus antecessores. Newton
formula três leis que se mostraram capazes de explicar praticamente todos os fenômenos
celestes e terrenos conhecidos até então. A sua teoria da gravitação universal afirma que
todos os corpos se atraem mutuamente, assim, Newton conseguiu explicar e predizer o
movimento das marés, dos planetas e da Terra ao redor do Sol. Esta teoria se manteve
inconteste até o início do século XX, quando Einstein a aperfeiçoou. O mais importante,
neste ponto, é que as leis formuladas por Newton permitiram grande capacidade de
predição de eventos naturais, logo tornaram-se paradigmáticas do sucesso da
compreensão matemática dos fenômenos da natureza.

É importante frisar que as Leis de Newton têm um caráter eminentemente matemático e


teórico. São formulações abstratas. Não obstante, em termos metodológicos, Newton
sempre valorizou o fator empírico. As hipóteses abstratas devem ser desenvolvidas
indutivamente a partir dos fenômenos naturais, de forma a, posteriormente, serem testadas
e utilizadas na predição destes mesmos fenômenos. A partir da observação, o investigador
desenvolve hipóteses abstratas e matemáticas que subsequentemente serão testadas na
natureza, a fim de confirmá-las e permitir a sua utilização como parâmetro de explicação
e predição do mundo natural.

A física de Newton pode ser compreendida como o ápice do pensamento de seus


antecessores, tendo conseguido subsumir o mundo sensível a um conjunto simples e
elegante de leis matemáticas. Para além do sucesso específico da sua obra, Newton
consolidou o que seria a prática científica: compreensão matemática dos fenômenos
naturais.

EXEMPLIFICANDO
Exemplificando
A Segunda Lei de Newton, ou “Princípio Fundamental da Dinâmica”, se expressa em
uma equação matemática simples: F = m. a
Essa equação significa que a força iguala a massa multiplicada pela aceleração. Ela
permite prever a aceleração de qualquer corpo a partir da sua massa ou a força resultante
da aceleração de certo corpo com determinada massa. É um exemplo claro de
matematização bem-sucedida de fenômenos naturais.

O processo que vimos até agora tende ir em direção a uma concepção mecânica do
cosmos, distinta da concepção medieval e antiga. Esta concepção foi extremamente
influente no desenvolvimento da ciência moderna e, até hoje, informa grande parte da
prática científica e da nossa vida cotidiana. O que significa esta concepção? Significa que
o universo é concebido enquanto regido por princípios imanentes e deriva sua ordem da
interação entre suas partes a partir de leis, como a gravidade de Newton. O mundo é um
grande sistema ou relógio, no qual a harmonia do todo deriva da interação bem regida das
partes. O universo passa a ser concebido como uma máquina que opera independente de
intervenções suprassensíveis ou sobrenaturais e passa a ser compreendido sem recurso a
noções como “perfeição” e “corrupção”.
FOCO NO BNCC
Foco no BNCC A Base Nacional Comum Curricular valoriza a interdisciplinaridade e a
capacidade do aluno de estabelecer relações entre conteúdos de diversas disciplinas. Este
elemento também está presente no ENEM. Os conteúdos da seção permitem uma ponte
interessante entre tópicos de física e astronomia com filosofia e história, ao mostrar a
interseção histórico-filosófica destas diferentes áreas do saber humano.

Nesta seção, você se aprofundou na compreensão da origem da ciência e da sua filosofia.


Vimos a ascensão e queda da visão de mundo católico e o surgimento do mundo moderno.
Você conheceu o pensamento de Galileu, Bacon, Newton, Copérnico e Kepler, grandes
pensadores e cientistas. Mais uma etapa, assim, é concluída na sua formação como
filósofo e docente.

FAÇA A VALER A PENA

Questão 1

Pode-se dizer que a influência global da cristandade na cultura greco-romana foi a


seguinte: estabelecer uma hierarquia monoteísta no cosmos, através do reconhecimento
de um Deus supremo, Criador trino e Senhor da História, absorvendo e negando assim o
politeísmo da religião pagão e, ao mesmo tempo, depreciando a metafísica das Formas
arquetípicas, sem eliminá-las.

TARNAS, 2005, p. 186.

Para determinar a alternativa correta, deve-se alterar a ordem dos itens. Ex: se a
alternativa correta for a C, o diagramador deverá ir no Overview e colocar o item
"alternativa correta" em terceiro.

a. A visão cristã de mundo rompe radicalmente com a Antiguidade greco-romano, sem a manutenção de
nenhum elemento importante da filosofia deste período.

b. Agostinho de Hipona e a Patrística, em geral, expressam um movimento sistemático no seio do


catolicismo de refutação e desprezo da filosofia grega.

c. A visão hierárquica do cosmos é um elemento que foi completamente recusado a partir da ascensão do
cristianismo, que pregava, precisamente, a igualdade de todos perante Deus.

d. A teoria das Ideias de Platão foi, logo no início do cristianismo, considerada herética, e os pensadores
neoplatônicos foram perseguidos pela Igreja.

e. O início do catolicismo foi um período em que se procurou compatibilizar a nova fé à filosofia greco-
romana. Neste sentido, a concepção de um cosmos hierárquico foi mantida pela Igreja ao longo da Idade
Média.

Correto!

Com a ascensão do catolicismo, elementos da filosofia grega entraram em simbiose com


a nova fé através do esforço intelectual de homens, como Agostinho, Tertuliano e Fílon
de Alexandria. A visão de um cosmos hierárquico foi absorvida pela cristandade medieval
e perdurou até a Renascença.
Questão 2

O Renascimento foi um período histórico dos mais importantes. Para sempre o


pensamento ocidental seria modificado, com relevantes consequências para toda a
humanidade. A ciência moderna se origina ao longo deste período, fazendo cair por terra
as antigas concepções medievais e o modelo astronômico aristotélico. Com este contexto
em mente, analise as seguintes afirmativas:
I. Durante a Renascença, reforçou-se, a partir de experimentações empíricas, a
concepção hierárquica do cosmos, com a confirmação da existência das esferas celestes.
II. Francis Bacon, importante pensador renascentista, foi responsável pela descoberta das
órbitas elípticas dos planetas, o que enfraqueceu a concepção cosmológica aristotélica.
III. Galileu defendia a matematização dos fenômenos empíricos como via segura para se
obter conhecimento acerca do mundo, noção muito importante e posteriormente
amadurecida na física de Newton.

Com base neste contexto, é correto o que se afirma em:

a. I, apenas.

b. III, apenas.

Correto!

O Renascimento não reforçou, com dados empíricos, a visão medieval e antiga de um


cosmos hierárquico, pelo contrário, levou ao seu abandono. A afirmativa II está incorreta,
pois a descoberta da órbita elíptica foi realizada por Kepler, e não por Bacon. A afirmativa
III está correta, pois as Leis de Newton configuram um esforço bem-sucedido de
matematização da natureza empírica.

c. II e III, apenas.

d. I, II e III.

e. II, apenas.

Questão 3

O método científico se desenvolve ao longo do período da Renascença, assim, a ciência


como conhecemos hoje tem sua origem. Elementos da filosofia grega são mantidos,
outros são descartados. De todo modo, é inegável que o solo em que ciência surge é
filosófico.
Tendo este contexto em mente, julgue as alternativas a seguir em verdadeiras (V) ou falsas
(F):
( ) Galileu defende a matemática enquanto linguagem da natureza, visão idêntica à de
Platão, na sua Teoria das Ideias.
( ) Francis Bacon argumenta que saber é poder, defendendo a emancipação do homem
através do controle do mundo natural.
( ) A invenção do telescópio, por Galileu, permitiu a identificação das órbitas elípticas
dos planetas, o que invalidou a concepção aristotélica de um cosmo supralunar estático.

Assinale a sequência correta.

a. V – F – F.

b. V – V – V.

c. F – F – F.

d. F – V – F.

Correto!

A primeira afirmativa é falsa, pois Galileu não está reproduzindo o platonismo


matemático. A análise quantitativa dos fenômenos naturais proposta por Galileu não é a
mesma coisa que a teoria das Ideias de Platão. A segunda afirmativa está correta, dado
que Bacon defende a emancipação humana através do controle do mundo natural. A
terceira afirmativa está equivocada, pois a descoberta das órbitas elípticas é mérito de
Kepler, não de Galileu.

e. V – V – F.

REFERÊNCIAS

AMARAL, E. História da ciência e interdisciplinaridade: alguns exemplos. Khronos -


Revista História das Ciências, n. 5, p. 89-111, 2018. Disponível
em: https://bit.ly/3xta0q8. Acesso em: 31 mar. 2021.
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: MEC, 2018.
JURGEN, K.; GLIGIONI, G. Francis Bacon. In: ZALTA, E. (Ed.). The Stanford
Encylopedia of Philosophy. Stanford: Stanford University, 2020. Disponível
em: https://bit.ly/3AK6h9y. Acesso em: 19 mar. 2021.
KOYRÉ, A. Do mundo fechado ao universo infinito. Trad. Donaldson M. Garshagen.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
MARCONDES, D. Iniciação a História da Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein.
Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
SILVA, L. H. S. Primeira Lei de Kepler. InfoEscola, 2011. Disponível
em: https://bit.ly/2UtuzEe. Acesso em: 2 abr. 2021.
TARNAS, R. A epopeia do pensamento ocidental. Trad. Beatriz Sidou. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2005.
FOCO NO MERCADO DE TRABALHO
CIÊNCIA ANTIGA E CIÊNCIA MODERNA: A
LONGA CONSTRUÇÃO DA RAZÃO MODERNA
Ádamo Bouças Escossia da Veiga

SEM MEDO DE ERRAR

Você, no lugar de David, estudaria de forma dedicada o tema, pesquisando em livros,


artigos, teses e dissertações. Para além da preocupação teórica com o rigor, também se
esforçaria ao máximo para tornar o texto o mais claro e simples possível, favorecendo a
dimensão didática e pedagógica.

Inicialmente, começaria seu capítulo contextualizando a emergência do pensamento


medieval a partir da crise instaurada pelo fim do Império Romano do Ocidente e da
ascensão da Igreja Católica enquanto potência hegemônica no cenário cultural e religioso
da Europa. Em seguida, mostraria como este processo não foi súbito e como foi uma
preocupação central dos primeiros intelectuais medievais a compatibilização da verdade
revelada cristã com a tradição filosófica de matriz grega. Traria, brevemente, o
pensamento de Agostinho e Fílon de Alexandria como exemplos.

Em seguida, caracterizaria a dimensão da natureza no pensamento medieval. Neste


sentido, a investigação sistemática do mundo natural se torna secundária a partir da
concepção de fundo religioso de que a única preocupação real se diz do outro mundo e
do espírito, jamais da carne e da matéria. Quanto à cosmologia medieval, mostraria que
o universo era concebido de forma hierárquica a partir da herança filosófica de
Aristóteles, enquanto um todo bem ordenado e finito, regido em uma escala ascendente
de perfeição.

Por fim, apresentaria como, a partir da Renascença, esta concepção muda radicalmente.
Conceitos como perfeição são eliminados em direção a uma concepção mecânica do
cosmos, na qual não há lugar para valores e hierarquias. Mostraria a descoberta de
Galileu, que revelou que os astros superiores, diferentemente do que imagina Aristóteles,
eram passíveis de mudança e movimento. Traria, ainda, a descoberta das órbitas elípticas
de Kepler, que abalou a concepção antiga de que a esfera era a forma mais perfeita e, por
consequência, a única possível para os movimentos celestes. A filosofia de Francis
Bacon, com sua equalização entre conhecimento e poder, foi bastante importante na
imagem da prática científica da modernidade em diante, e você poderia, no seu texto,
trazê-la igualmente.

Com certeza, você conseguiu elaborar um excelente capítulo. Do mesmo modo que o
primeiro volume da coletânea “Crises do Pensamento” foi um sucesso, este também será!

AVANÇANDO NA PRÁTICA

PROVA DIDÁTICA

Para contextualizar a sua aprendizagem, imagine a seguinte situação: Carol é recém-


formada em Filosofia e sempre sonhou em ser professora. Tem amor pela docência desde
seus anos de escola e, ao longo da graduação, dedicou-se muito, ao ponto de ser
considerada uma das melhores alunas do seu curso pela maioria dos professores.
Após se formar, ela resolve prestar concurso para a Secretaria de Educação do seu estado.
Sempre quis ser docente da rede pública por julgar que ali seu trabalho teria maior
impacto na vida dos alunos. Acredita no poder transformador da educação e, por isso,
resolve que esta vaga é para ela. O concurso público se revela bastante concorrido com
dezenas de candidatos, mas Carol não desanima. O processo consiste em duas etapas:
prova discursiva e prova didática. A primeira requer a elaboração de respostas a uma série
de perguntas sobre tópicos filosóficos, e Carol tira uma boa nota.
Assim, vai para a segunda fase. A prova didática consiste em uma aula a ser ministrada
para a banca avaliadora, com tema selecionado por sorteio na véspera da prova. Espera-
se que o candidato demonstre proficiência no tema, didática e familiaridade com os
conteúdos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). O tema sorteado foi “A origem
da ciência moderna: Bacon, Kepler, Galileu e Newton”.
Você, no lugar de Carol, como prepararia a sua aula? Como desenvolveria o tema
sorteado e como o articularia à BNCC?

RESOLUÇÃO

Você, no lugar de Carol, certamente realizaria uma excelente prova didática. Tendo sido
uma excelente aluna, teria na ponta da língua os conhecimentos necessários para tirar uma
nota alta.
Assim, começaria a sua aula contextualizando a origem da ciência moderna no
Renascimento. Em primeiro lugar, traria a concepção católica medieval e a noção de um
cosmos hierárquico e regido em uma escala ascendente de perfeição. Em seguida, falaria
das mudanças políticas em curso no Renascimento, como o surgimento do Estado
Moderno, a intensificação do comércio e a redescoberta de textos da Antiguidade
Clássica. Analisaria estas mudanças em direção à exposição da radical ruptura que se
opera com a visão medieval.
Depois, falaria de Bacon e a sua concepção de que o conhecimento se iguala ao poder e
de como isso influenciou o direcionamento da prática científica ao controle da natureza.
Explicaria como o filósofo reavivou o empirismo e defendeu a importância dos
experimentos no progresso contínuo do conhecimento. Em seguida, citaria Kepler e a
descoberta das órbitas elípticas dos planetas e como isso impactou na visão de mundo
ocidental. Quanto a Galileu, falaria sobre como o ideal de matematização dos fenômenos
naturais foi determinante na concepção científica dali em diante. Por fim, mencionaria
como as Leis de Newton demonstraram na prática o poder de predição dos movimentos
celestes e terrenos a partir da descoberta de equações matemáticas simples, coroando o
progresso dos seus antecessores.
Em termos de BNCC, você frisaria a interdisciplinaridade e a competência presentes no
documento, de compreensão das tecnologias e saberes em seu contexto histórico. Falando
do surgimento da ciência moderna, este ponto está presente em todos os conteúdos
trazidos na aula.
Deste modo, você, no lugar de Carol, teria ministrado uma excelente aula e, certamente,
obtido uma nota alta o suficiente para garantir a sua aprovação.

NÃO PODE FALTAR


A DESCOBERTA DO MÉTODO CIENTÍFICO:
CIÊNCIA E MÉTODO
Tiago Eurico de Lacerda

CONVITE AO ESTUDO

Caro estudante, esta unidade está organizada em três seções. Nelas abordaremos a
importância da descoberta do método científico. Aprofundaremos nossa discussão sobre
a ciência e o método e compreenderemos como conseguimos, através dos caminhos da
ciência, entregar para a humanidade respostas que facilitam a vida, tornando-a mais longa
e, ao mesmo tempo, mais saudável. Nem tudo o que ouvimos falar sobre a ciência é
verdade. Há muitas pessoas que ainda não compreenderam que nesse processo não há
espaço para a subjetividade, mas, sim, para a objetividade e a responsabilidade. Por isso,
ainda é comum nos depararmos com as diversas fake news sobre os procedimentos
científicos.
No Brasil, especialmente no momento em que estamos passando pela pandemia da Covid-
19, a ciência começou a ser desacreditada por uma parte da população. Muitos acreditam
que há medicamentos capazes de solucionar o problema da pandemia, mas não há testes
seguros que nos garantem essa proposição. Por outro lado, o mundo inteiro está
trabalhando dia e noite para desenvolver uma vacina capaz de nos curar de vez dessa
doença. Diante disso, a crença de alguns diz que não é possível desenvolver uma vacina
em tão pouco tempo, pois temos outras doenças que ainda não possuem uma cura, por
exemplo, a Aids, o câncer, etc. Essa justificativa não pode ser levada em consideração,
pois a proporção do avanço da Covid-19 no mundo e a quantidade de pessoas que
morreram por essa doença são muito distintas de outros males que há décadas estão entre
nós, cuja existência de certa forma “naturalizamos”. Dessa forma, a urgência da cura não
passou a ser um interesse global e urgente, tal como aconteceu com a Covid-19.
Quanto à Covid-19, os cientistas do mundo inteiro receberam incentivos e investimentos
para desenvolverem o mais rápido possível uma vacina, e já podemos perceber que ela se
espraia pelo mundo todo, apresentando resultados positivos, o que fortalece cada vez mais
a ideia dos métodos que a ciência utiliza para se chegar a algum resultado. Utilizaremos,
nesta unidade, o panorama da pandemia atual para explicitar os conteúdos de forma
dialógica e muito prática. Com isso, colocaremos a ciência e os seus procedimentos em
evidência para discutirmos tanto a formulação de uma dúvida metódica quanto as
hipóteses resultantes dela. Depois disso, poderemos perceber o que é verdadeiro e
evidente e o que é simplesmente um argumento do senso comum, fruto de poucas leituras
e muitas informações equivocadas.

Apresentaremos também a diferença entre os métodos indutivo e dedutivo e como as


correntes racionalistas e empiristas trabalham. Ao final, perceberemos que a ciência não
pode ser tida como inimiga da sociedade, mas, sim, como um instrumento de colaboração
na construção de uma sociedade cada vez mais humana e que utiliza as diversas
tecnologias para ampliar e melhorar a vida sobre o planeta. A Covid-19 está aí, mas não
nos ameaçará para sempre, pois em algum momento conseguiremos pelos métodos
científicos dirimir esse problema da melhor maneira possível. E não teria oportunidade
melhor para refletir sobre tudo isso do que nessa unidade da descoberta do método
científico: ciência e método dentro da disciplina de Filosofia da Ciência.

PRATICAR PARA APRENDER

Olá, caro estudante! Chegou o momento de colocar a mão na massa e iniciarmos o


desenvolvimento dos principais conceitos dessa seção. Nós sabemos que a ciência é
extremamente considerada na modernidade, especialmente pelos seus métodos e
resultados. Sempre que ouvimos alguém dizer que algo é fruto da ciência, isso nos causa
conforto ou credibilidade. É tão verdade isso que, quando estamos com alguma doença,
não hesitamos em procurar um médico que nos receitará algum medicamento baseado na
sua experiência profissional, fruto de muito estudo e dedicação.
Nessa seção, estudaremos os métodos científicos e associaremos com um caso a ser
estudado: a pandemia da Covid-19. Dentro desse emblemático problema, teremos
material suficiente para debater sobre o método científico e sua confiabilidade.
Elucidaremos também as diversas tentativas de muitos que, na utilização de fake news,
tentam derrubar os resultados científicos. Mostraremos que as crenças ainda ocupam
bastante espaço no senso comum. Por isso, antes de qualquer decisão, é importante
observarmos o que a ciência diz (ou não) sobre determinados comportamentos. Por mais
que as pessoas tenham fé em suas religiões, os métodos utilizados pela ciência não podem
se submeter aos métodos religiosos. A ciência não trabalha com a fé, mas com métodos
objetivos. Ela pode errar? Talvez errar não seja a melhor palavra para descrever os desvios
ocorridos na ciência, pois ela levanta muitas hipóteses de resolução de um problema e
deve continuar elaborando novas hipóteses continuamente, até encontrar um caminho
seguro para encaminhar a resolução de uma questão.

O papel da filosofia da ciência é justamente questionar os métodos da ciência para mostrar


que, mesmo diante de evidências claras, precisamos nos atentar aos procedimentos
científicos em busca de aperfeiçoamento e superação dos pressupostos anteriores. O que
não podemos aceitar é uma verdade com características de infalibilidade que encerraria o
assunto. Por isso, o papel da filosofia é crucial para o bom desenvolvimento da ciência e
para manter uma reflexão rigorosa e objetiva dos métodos utilizados pela ciência.

Você se recorda dos caminhos utilizados até agora para desenvolvermos a ideia de ciência
e de método científico? Lembra-se de que a ciência busca constantemente a verdade e
que não há apenas um caminho para se alcançar a certeza sobre algo? Pois bem, chegou
o momento de praticar para aprender, ou seja, de percebermos se essas ideias foram bem
assimiladas. Assim, a situação-problema que temos aqui é a seguinte: a ciência apresenta
suas verdades como absolutas. Ou pelo menos a população em geral acredita nas verdades
científicas como sendo corretas e sérias e, ao mesmo tempo, alguns levantam muitas
dúvidas ou se apresentam muito céticos diante da ciência, seja por não compreenderem
os métodos da ciência, seja por algum tipo de crença que impossibilita tal reflexão.
Imagine-se como professor de Filosofia em um colégio público. Como você se
comportaria em sala de aula diante de alunos que acreditam, por exemplo, que a vacina
para a Covid-19, além de não ter eficácia, modifica o nosso DNA? Como deveria ser o
debate para possibilitar o esclarecimento sem que haja uma doutrinação ou politização do
discurso? Sabendo que estamos tratando sobre métodos científicos, não seria interessante
uma pesquisa sobre as principais descobertas dos últimos séculos e a segurança que a
experimentação pode nos possibilitar diante de uma crença sem resultados concretos?
Essas reflexões são os primeiros degraus para nossa trajetória dentro dos estudos da
ciência. E é muito importante sempre distinguir os métodos das diversas ciências, da
filosofia e de outras formas de conhecimento, como religião e arte. Pense bem em sua
postura e nas respostas que você levaria sua turma inteira a discutir. Lembre-se de que
em uma sala há os que apoiam a ciência e alguns possíveis negacionistas. É importante
lembrar que eles estão em uma fase de elaboração de suas ideias e opiniões sobre o
mundo, assim, é importante que a aula seja elaborada de tal forma que não fique a
impressão de que a ideia do professor seja a única correta. Os alunos, por mais que sejam
muito novos, são espertos. Eles sabem quando um professor quer somente doutrinar e
quando ele está aberto ao debate de uma forma imparcial e científica. Então, agora é o
momento oportuno para apresentar proposições diferentes, não para fazê-los mudar de
ideia, mas para proporcioná-los um momento para pensar por outras perspectivas.
Se você chegou até aqui, é porque seus objetivos estão no caminho certo, ou seja,
contrastar as ideias do senso comum e poder conhecer as alternativas científicas que são
capazes de nos ofertar muitos caminhos para a solução dos nossos problemas. Continue
seus estudos, procure sobre cada tema que aparecer por aqui e faça dele uma oportunidade
para crescimento. Bons estudos!

CONCEITO-CHAVE

DÚVIDA METÓDICA E FORMULAÇÃO DE HIPÓTESES

Em O discurso do Método, René Descartes menciona um pouco de sua angústia em meio


as muitas dúvidas que lhe cercavam. Ele queria se instruir num caminho que levasse à
verdade, mas de tal modo que essa verdade não deixasse nenhum tipo de dúvida. Quanto
mais investigava e estudava, mais reconhecia sua impotência e ignorância. Ele continuou
seu caminho de desconstrução daquilo que não lhe parecia claro e distinto o suficiente. O
que ele queria era construir um caminho seguro, encontrar um método que fosse capaz de
orientá-lo em sua própria vida sem que necessitasse ficar se comparando com as demais
pessoas. De modo algum ele queria, ao descobrir esse caminho, apontá-lo como único e
seguro para todos, mas apenas mostrar de que modo ele procurou e conduziu a sua vida.
Na elaboração de sua obra, Descartes nos adverte que poderemos nos enganar quanto aos
outros ou até mesmo pensar em quão suspeito podem ser os juízos dos nossos amigos,
principalmente quando não são a nosso favor, por isso ele diz: “ficarei contente em
mostrar neste discurso quais são os caminhos que segui e nele representar a minha vida
como um quadro, para que cada qual possa julgá-la. [...] Assim, a minha intenção não é
ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir a sua razão” (2008,
p. 16). Com isso, o filósofo apenas nos mostra como conduziu sua vida e que não gostaria
de ser visto como alguém que apresenta um imperativo, pois ele ainda pensa que “os que
se aventuram a dar conselhos devem considerar-se mais hábeis do que aqueles a quem
dão” (2008, p. 16) e, se esses erram, mesmo que minimamente, deverão ser censurados.
Mesmo que todos os conhecimentos que ele pudesse aprender lhe parecessem muito
seguros, não era suficiente para que não pudessem ser discutidos, ou simplesmente
colocados em dúvida. Sua paixão pela matemática era notória e, mesmo acreditando em
sua certeza e evidência diante da razão, questionava a análise dos antigos e a álgebra dos
modernos. Para ele, “além de só se aplicarem a matérias muito abstratas e que pareçam
de nenhuma utilidade, a primeira é sempre tão restrita à consideração das figuras [...], e
os cultores da última tanto se sujeitaram a certas regras e a certas cifras que a
transformaram numa arte confusa e obscura” (DESCARTES, 2008, p. 25). A razão
precisa ser conduzida por um caminho que nos leve a solucionar os nossos problemas.

EXEMPLIFICANDO
No ano de 2020, ficamos cercados por um inimigo invisível que desafiou a ciência, os
métodos e o mundo inteiro. O que adianta ter muito conhecimento ou dinheiro se isso não
pode nos ajudar a nos livrar de um vírus que penetra a sociedade e leva ao óbito milhares
de pessoas diariamente? No início, muitos duvidaram que a pandemia poderia chegar a
nós, que seriam casos isolados ou que, no máximo, trariam sintomas de uma gripe. A
dúvida pairou no ar. Essa dúvida levou muitos a desrespeitarem as normas de segurança
e saúde pública. Outros, em nome de suas crenças, resistiram a usar máscaras e álcool em
gel, mas a conta chegou. Pessoas conhecidas e próximas começaram a se infectar e
morrer, mas nem isso foi capaz de sensibilizar toda a sociedade, que, mergulhada numa
onda negacionista, não aceitava que esse perigo pudesse ser tão real e próximo. Essa
dúvida não é a dúvida filosófica de que trataremos aqui nessa seção. Conheceremos a
dúvida metódica e entenderemos o valor da ciência e da filosofia na atual sociedade.

Antes de explicitarmos a dúvida metódica, é importante mostrar o caminho do método


cartesiano que Descartes utilizou para, posteriormente, chegar à elaboração de seu “cogito
ergo sum” (“penso, logo existo”). Segundo Reale e Antiseri (2004, p. 288), “Descartes
quer primeiramente oferecer regras certas e fáceis que, corretamente observadas, levarão
ao conhecimento verdadeiro de tudo aquilo que se pode conhecer”. E nós podemos
resumir tais regras do método da seguinte maneira:

1. Evidência: só podemos aceitar como verdadeiro aquilo que se apresenta a nós como
claro e distinto, ou seja, evidente.

2. Análise: é preciso, diante do problema, dividi-lo em partes, em quantas forem


necessárias, para melhor compreender cada uma delas individualmente.

3. Síntese: nessa etapa, é preciso ordenar o pensamento, começando pelos mais simples
até chegar aos mais complexos.

4. Controle: para impedir que nos precipitemos em algum dos passos, é preciso
enumeração completa do processo e revisões, para ter segurança que não deixamos nada
de importante para trás.

Com esses quatro passos teremos plena consciência de que nosso conhecimento passa por
um caminho rigoroso, a fim de nos trazer clareza e distinção sobre as coisas. Por isso, a
dúvida metódica não poderia ser a dúvida que as pessoas negacionistas apresentavam
sobre a vacina. Essa dúvida não possui um caminho científico para alcançar clareza, mas
se fundamenta nas diversas informações expressas pelas redes sociais. Enquanto isso, a
dúvida metódica é fundamentada para o encontro de uma certeza fundamental, de uma
primeira verdade da filosofia de Descartes. Podemos duvidar de tudo o que está a nossa
volta, ou seja, tudo pode ser debatido e colocado em dúvida, mas não podemos duvidar
que somos um ser pensante, que estamos pensando nesse momento.
Reale e Antiseri (2004, p. 291) ressaltam que “a condição que se precisa respeitar nessa
operação é que não é lícito aceitar como verdadeira a afirmação que esteja maculada pela
dúvida ou por qualquer possível perplexidade”. Para alcançarmos esse ponto, precisamos
observar os princípios utilizados pelo saber tradicional e perceber que, se eles caírem, as
consequências também não poderão ser mantidas. Por exemplo: a ciência trabalha a partir
de dados empíricos, mas como considerar algo baseado na certeza sensível? Será que
podemos confiar de forma segura em nossos sentidos? Como um racionalista, Descartes
não apoiará sua confiança racional em um método empírico. Por isso, ele buscará na
matemática uma luz para uma resposta que seja válida em qualquer circunstância.
Ao mesmo tempo que ele pensa que pode chegar a um conhecimento seguro pelo
resultado da matemática, questiona-se se todas essas verdades não seriam fruto de ilusões
ou resultado de seus sonhos. Para isso, postula a existência de um gênio maligno que
pretendesse nos enganar, confundir nossa razão com os encantos das certezas. Assim,
desmoronariam todas as possibilidades de encontrar uma resposta segura, clara e
evidente. A dúvida de Descartes não era simples, mas algo que incomoda o espírito para
que ele busque uma verdade que fosse indubitável. Nesse caminho, colocamos como
incerta a tradição filosófica, científica e, ao mesmo tempo, a atitude cética de duvidar de
tudo, pois a dúvida metódica não deve simplesmente desconstruir sem querer propor
alguma solução.

Após esse trajeto de colocar tudo em dúvida e perceber que tudo era falso, ele chega à
conclusão de que ele existe, e essa verdade (penso, logo existo) se mostrou tão sólida que
nenhuma outra hipótese era capaz de destruí-la. Inclusive, a hipótese de existir um gênio
maligno não anularia a verdade de que até mesmo para ser enganado por alguém eu
deveria existir. E devo existir como alguma coisa pensante.
Dessa forma, é preciso admitir que todas as hipóteses que levantamos para sanar alguma
dúvida devem ser dirigidas à razão e apresentar a ela clareza e distinção, para que não
caiamos nas armadilhas de uma fundamentação científica ou pseudocientífica baseadas
apenas em fatos isolados ou lançados de qualquer forma pelas redes sociais.

NOVAS FORMAS DE PROVAR E DEMOSTRAR

Nós podemos provar alguma ideia quando tomamos os caminhos seguros para se chegar
a ela. Para isso, é preciso definir o significado preciso do ato de conhecer: o sujeito se
apropria do objeto e, assim, podemos distinguir o ato em si de conhecer, do próprio
produto do nosso ato, o qual podemos demonstrar de alguma forma. Segundo Aranha e
Martins (2016, p. 75), há dois modos de conhecer: por um lado temos a intuição, “que é
um conhecimento imediato – alcançado sem intermediários, uma espécie de pensamento
direto ou de visão súbita”; do outro lado, podemos falar sobre o conhecimento discursivo,
que é “mediato, isto é, aquele que se dá por intermediação”. Esse último se dá por etapas,
nas quais concatenamos nossas ideias e nossos conceitos para demonstrar e concluir sobre
alguma coisa.

Se por um lado Descartes teve uma intuição intelectual do cogito, pois captou diretamente
a essência do objeto sem intermédio de nada que possa existir fora dele, por outro, o
conhecimento discursivo nos leva a articular nossos juízos para formar um raciocínio cada
vez mais claro. A diferença é que aqui utilizamos a palavra, a linguagem, para construir
uma ideia de algo que pode existir apenas de forma abstrata. E para que não caiamos em
erro, precisamos examinar os atos de nosso entendimento, e somente há dois caminhos
para isso: “a saber, a intuição e a dedução” (DESCARTES, 1989, p. 20). É importante
ressaltar que, para Descartes, a intuição não é aquele tipo de convicção que recebemos
pelos sentidos, “mas o conceito da mente pura e atenta tão fácil e distinto que nenhuma
dúvida nos fica acerca do que compreendemos”. Esse conceito puro e atento só pode
nascer à luz da razão, e pela sua simplicidade é até mais certo que a própria dedução.
Assim, a “intuição intelectual” é o que nos possibilitará ver claramente que existimos,
que pensamos (DESCARTES, 1989, p. 20).

Contudo, o conceito de intuição utilizado por Descartes não pode ser confundido com a
significação vulgar da palavra. E tanto a evidência quanto a certeza da intuição são
exigidas para qualquer raciocínio. Exemplo: quando digo que a soma de 2 + 2 é igual a
4, não somente minha intuição sabe que o resultado dessas proposições está correto, mas
sabe também que dessas duas proposições só poderia resultar tal conclusão. Assim
conhecemos, com certeza, a maior parte das coisas, não porque elas sejam evidentes em
si mesmas, mas porque a dedução que fazemos de princípios verdadeiros já é em si um
movimento do pensamento que intui cada coisa em particular. Depois, basta um exame
minucioso para percebermos os elos através da dedução que possibilitam uma espécie de
sucessão das ideias concatenadas.

Esse é um dos caminhos das ciências que se baseiam em abstrações para construírem as
leis. Posso até provar pela experiência que os corpos se dilatam no calor, mas não poderia
compreender a aplicação dessa lei na prática sem entender o processo pelo qual a ciência
chegou a essa proposição.

REFLITA
Vamos pensar no pano de fundo dessa seção? Nosso problema filosófico e científico aqui
é a Covid-19. Como funciona uma vacina? Sabemos que há vários tipos de vacina para
essa doença, mas, em geral, a ciência trabalha para estimular o nosso corpo a produzir
anticorpos contra a doença que está em nós ou nos proteger contra ela, caso algum dia
nos contaminemos. Naturalmente, nosso organismo já tenta produzir anticorpos quando
adoecemos, porém, se a pessoa não está com a imunidade boa, precisará de ajuda. Assim,
apresentamos ao organismo o vírus para que ele possa reconhecer e produzir anticorpos.
Essa apresentação do vírus ao organismo por meio da vacina não é perigosa, pois é testada
muito antes de colocarmos vidas humanas em contato com ela.

Se conseguimos provar em um laboratório que a vacina ajuda o organismo a construir


uma defesa melhor contra a doença, ou poupa as pessoas de complicações, por que o
senso comum insiste em dizer que a ciência está tentando inserir no organismo das
pessoas mudanças na estrutura genética, interferindo diretamente na vida da população?
O que está acontecendo no processo do ato de conhecer? Percebemos que há um problema
claro na relação do sujeito com o objeto, ou seja, os cientistas falam alguma coisa, mas
parte da população entende outra. Seria ignorância ou mau-caratismo? O que acontece é
que, nem sequer observando o resultado da eficácia de uma vacina, algumas pessoas se
convencem. Há um obscurantismo, por vezes religioso, que impede uma reflexão por
parte das pessoas.

Quanto aos governantes não aderirem à ideia de vacinação, é possível entender que há
um jogo político e econômico por trás disso. Por isso, podemos perguntar sobre a verdade.
Como saberemos se o que estamos ouvindo da ciência e da política corresponde à
realidade? Se perguntarmos se há realmente a doença da Covid-19 entre nós, não
poderíamos ter dúvidas diante das evidências, dos testes, das mortes e da produção
mundial de vacinas. Ou seja, a doença é real, existe. Agora, se perguntarmos pela eficácia
da vacina, não poderíamos manter a realidade como resposta, mas, sim, pensar em questão
de verdade ou não. Real é o que existe, e verdadeiro é quando corresponde ao real. A
vacina existe, mas a porcentagem de cura é diferente em cada marca e pode variar também
em cada pessoa que a recebe.
Contudo, não podemos afirmar e provar que as vacinas não tenham alguma eficácia, pois
os resultados já estão publicados. O número de mortes em países que aceleraram a
vacinação diminuiu, ou seja, de alguma forma, contiveram a doença. Até quando? Não
podemos dar essa resposta, mas sabemos que essas vacinas que temos até agora têm a
eficácia vigente para a doença que está aí. Se novas variações aparecerem, novos
caminhos precisarão ser procurados para dirimir novos problemas.

INDUÇÃO E DEDUÇÃO

Ao falarmos sobre o conhecimento científico, estamos falando de um conhecimento que


é provado, testado, cujos resultados podem ser apresentados em qualquer lugar do mundo
inteiro e devem seguir os mesmos parâmetros de rigor. Segundo Chalmers (1993, p. 22),
“a ciência é baseada no que podemos ver, ouvir, tocar etc. Opiniões ou preferências
pessoais e suposições especulativas não têm lugar na ciência”, pois ela é objetiva. E
precisa continuar assim para garantir a confiabilidade de algo que é provado
objetivamente.
É comum pensarmos o método indutivo pelos caminhos aristotélicos, mas há muitas
críticas sobre a forma que Aristóteles pensa a indução. Para uma melhor compreensão da
natureza, o filósofo Francis Bacon dirá que é melhor observar a natureza, e não os escritos
de Aristóteles. “Conforme diz Bacon, a indução aristotélica é uma indução por simples
enumeração de casos particulares, passando muito rapidamente pela experiência e sobre
os particulares.” (REALE; ANTISERI, 2004, p. 274). O problema disso é induzir, de
poucas experiências, os princípios abstratos e gerais. Ao mesmo tempo em que não nos
revela a verdade, é também uma atitude inútil. Seria apenas uma forma de deslizar sobre
os fatos e não se ater a eles.

A verdadeira indução científica, que faz ‘uso de muitas coisas às quais até o momento
nenhum mortal jamais pensou’, deve ao contrário analisar os fenômenos da natureza a
partir dos experimentos, mediante as devidas eliminações e exclusões dos casos em que
o fenômeno em questão está ausente ou não está presente de modo pleno, para chegar às
causas e aos axiomas sempre mais gerais que expressamente a ele se referem. A indução
por eliminação é a ‘própria chave da interpretação”, e nela “sem dúvida é depositada a
maior esperança’.

(REALE; ANTISERI, 2004, p. 275)

O que Bacon pensa sobre a indução é que apenas poucas parcelas de observações não são
suficientes para se chegar a alguma generalização. E que, se quisermos analisar a própria
natureza do calor, por exemplo, é preciso que sejam feitos tantos registros quantos
puderem ser observados, ou seja, calor do sol em vários momentos do dia, calor sob uma
árvore ou no campo aberto, calor refletido da pedra aquecida, do próprio fogo, etc. A
esses registros Bacon chama de tábua da presença. Da mesma forma, podemos registrar
a tábua das ausências, onde não conseguimos observar o fenômeno do calor e, por fim, a
tábua dos graus, onde registramos a intensidade das observações em maior e menor grau.
Não podemos nos ater a uma explicação indutivista ingênua como popularmente é
difundida pelo senso comum sobre a ideia de ciência. Ingenuamente, pensamos que a
ciência primeiro observa para registrar fielmente os fenômenos da natureza, e que, ao
fazer isso, o cientista não deixa que suas opiniões sejam consideradas para não incorrer
em erros, mesmo assim poderemos ter observações equivocadas ou pouco estimulantes.
Uma observação equivocada, segundo Chalmers (1993, p. 24), pode ser exemplificada
com a proposição: “essa vara, parcialmente imersa na água, parece dobrada”, mas tal
observação, se ignorada sua explicação física, perde o sentido de um simples registro,
pois, para a física, “quando um raio de luz passa de um meio para outro, muda de direção
de tal forma que o seno do ângulo de incidência dividido pelo seno do ângulo de refração
é uma característica constante do par em média”. Se a ciência se baseia em experiências,
então como uma observação singular pode chegar a ser um tipo de conhecimento
científico?
Para responder a essa questão, precisamos ressaltar que para o indutivista há legitimidade
na generalização quando certas condições da observação são satisfeitas ou observadas.
Para isso acontecer, não podem ser poucas as observações, mas o maior número possível.
Depois, é preciso testar tal observação em circunstâncias diferentes e em muitas
condições. Por fim, as observações não podem ter nenhum tipo de conflito com as leis
universais.
Quanto ao conhecimento lógico dedutivo, os cientistas, diante das leis universais, derivam
as diversas consequências, que servem tanto para explicar quanto para realizar as
previsões. Chalmers (1993, p. 27) cita o exemplo da lei geral, a qual diz que os metais se
expandem quando aquecidos, “é possível derivar o fato de que trilhos contínuos de
ferrovias não interrompidos por pequenos espaços se alterarão sob o calor do sol”. Esse
é o tipo de raciocínio que chamamos de dedutivo. Essas formas de raciocínio são muito
utilizadas na disciplina de lógica, especialmente quando se desenvolvem os silogismos.

EXEMPLIFICANDO
Silogismo, dedução lógica:

1. Todo animal é mortal.

2. Meu cachorro é uma animal.

3. Logo, meu cachorro é mortal.

É evidente que as premissas (1) e (2) são verdadeiras, então a conclusão (3) é obrigada a
ser verdadeira. Partimos de uma ideia geral, de uma lei que temos sobre a ideia da
mortalidade, e chegamos à conclusão particular de que, se meu cachorro é um animal,
também carrega em si a mortalidade.

A dedução é um raciocínio que parte, como regra, de pelo menos uma premissa geral,
mas cuja conclusão pode ser tanto geral quanto particular. Segundo Aranha e Martins
(2016, p. 98), “a dedução é um modelo de rigor, mas é estéril, na medida em que não nos
ensina nada de novo, apenas organiza o conhecimento já adquirido”. No entanto, não
acrescentar algo novo não significa que não tenha validade, pois fazemos deduções para
chegar às consequências, e essas devem ser investigadas para sabermos se são válidas ou
não.
EVIDÊNCIA E VERDADE

Ao analisar um argumento, é preciso distinguir se ele pretende dizer a verdade, se suas


evidências são como foram dadas ou se foi elaborado com a finalidade de enganar. Por
isso, é importante analisar bem os tipos de raciocínios para se verificar se estão corretos
e em quais circunstâncias eles serão ou não válidos e verdadeiros. Uma proposição será
verdadeira quando ela corresponder ao fato que deseja expressar, por exemplo: todo
homem é mortal. Essa proposição é verdadeira, pois corresponde ao fato de que não
conhecemos homem algum imortal.

Quando tratamos de um argumento, devemos extrair dele se é válido ou não. Ele será
válido quando sua conclusão for consequência lógica das premissas. No caso, todo animal
é mortal, e meu cachorro é animal. Ambas as premissas são verdadeiras, pois
correspondem ao fato que desejam expressar, logo a conclusão só pode ser uma: meu
cachorro é mortal, ou seja, é um argumento válido. Podemos encontrar também premissas
verdadeiras e extrair uma conclusão falsa, por exemplo: todos os homens são mamíferos
e todos os gatos são mamíferos. Ambas são verdadeiras, mas, ao extrairmos delas uma
conclusão, perceberemos que essa será falsa (todos os gatos são homens), portanto é um
argumento inválido.

É possível, então, alcançarmos a verdade? Para isso, é preciso entender que, se a


afirmação ou a proposição corresponder aos fatos, à realidade, se já foi comprovada, se é
digna de crédito, seguimos acreditando na verdade da afirmação. Mas, uma coisa é saber
que algo diz respeito às coisas existentes, e não é porque existem, ou seja, são reais, que
sejam também verdadeiras. Um tênis de marca é algo que imprime uma realidade, porém,
se o referido tênis é realmente original, ou seja, verdadeiro daquela marca, é outro
problema que precisamos nos deter. Assim, se o tênis é original ou não, verdadeiro ou
falso, isso não estará no tênis em si, mas no juízo que fazemos de tal afirmação. Por ele
não ter sido feito na mesma fábrica onde a marca opera, mas utilizando os mesmos
materiais e, possivelmente, a mesma técnica, será falso?

Quem nos garante que os tênis que compramos nas lojas oficiais não sejam também fruto
de falsificação? Somente por comprar numa loja no shopping já nos certifica que estamos
com a peça original? Atribuímos a verdade ao tênis que temos ou ao espaço onde o
compramos? Por mais que todas as evidências sejam claras e encaminhem para uma
certeza, ainda não podemos bater o martelo e confirmar a verdade somente por isso.
Voltemos ao exemplo da Covid-19: uma pessoa utiliza transporte público lotado todos os
dias e, mesmo com máscara e o uso do álcool em gel constante, foi contaminada. Quem
nos garante que tal contaminação foi no ônibus? Por que ela não poderia ter se
contaminado no supermercado vazio no instante que realizou o pagamento ao caixa? É
mais fácil admitir as evidências quando essas são mais fortes – ônibus lotado –, mas não
corresponde à verdade somente por ter uma boa evidência. O caixa do supermercado
poderia ser assintomático e em seu atendimento transmitir a doença sem ao menos saber
que está contaminado.

Assim, precisamos distinguir as proposições que são evidentes em si, anunciando uma
verdade, das que fazem parte do mundo contingencial, apresentando o mundo das
probabilidades. Uma coisa verdadeira é quando apresenta essa verdade em todos os
mundos possíveis, ou seja, de forma necessária. Para encontrar um juízo que seja
verdadeiro, precisamos perceber sua correspondência com a coisa, conhecer a sua
essência por intuição ou até mesmo por dedução, como já vimos nessa seção. Por isso, as
probabilidades estão no campo do erro, pois não podemos atribuir a essas questões a
necessidade de serem de tal forma se elas podem mudar a qualquer instante. Um tênis,
mesmo comprado no shopping, não garante a verdade, pois sua realidade não pode ser
confirmada de forma universal como correspondente à verdade.
As verdades são tipos de adesão às crenças que tomamos por verdadeiras. Por isso, ao
longo da história da filosofia, é comum percebermos que os filósofos se dividiram entre
dogmáticos e céticos, justamente para discutirem o problema da verdade e do que
podemos ou não conhecer.

RACIONALISMO VERSUS EMPIRISMO

Como essa seção é sobre o método científico e já abordamos conceitos importantes para
chegar até aqui, podemos pensar essas duas teorias como formas de compreensão da
própria filosofia moderna. Para Chalmers (1993, p. 137), “o racionalista acha a distinção
entre a ciência e a não-ciência fácil de compreender. São científicas apenas aquelas teorias
capazes de ser claramente avaliadas no critério universal e que sobrevivem ao teste”. Do
mesmo modo, um indutivista, que trabalha a partir dos frutos de um processo empírico
de observações, só aceitará como verdade o que passou pelo crivo da sua observação e
testes. Segundo esses, a astrologia, por exemplo, não poderia ser uma ciência por falta de
critérios empíricos.

Abbagnano (2007, p. 967) ressalta que, “em geral, a atitude de quem confia nos
procedimentos da razão para a determinação de crenças ou de técnicas em determinado
campo” é considerada racionalista. Assim, o racionalista não apoia sua tomada de decisão,
sua razão em experiências sensíveis, pois essas são frutos de possíveis erros dos sentidos.
Os modernos buscam fundamentos da verdade. Esse empenho tem como seus
precursores, no século XVII, Francis Bacon e René Descartes, ao passo que foi John
Locke quem propôs uma teoria do conhecimento propriamente dita.
Bacon elaborou sua teoria conhecida como crítica dos ídolos para mostrar que temos
algumas opiniões que nos impedem de alcançarmos a verdade. Tais opiniões são frutos
de nossos sentidos (ídolos da caverna) ou erros que acumulamos em nossas relações e
linguagem que adquirimos (ídolos do fórum). Podemos também formar ideias falsas em
decorrência das autoridades que nos cercam, que nos impõem regras, as quais podemos
tomar como verdadeiras, mas que encobrem os pontos de vista de seus legisladores
(ídolos do teatro). Por fim, aqueles erros que são frutos da própria natureza humana, por
terem a mesma origem e o mesmo agrupamento (ídolos da tribo). Para alcançar a verdade,
é necessária, então, a demolição desses ídolos, o que, para Bacon, se dá no processo de
aplicar a razão a partir das experiências; para o autor, é preciso aplicar o pensamento
lógico aos dados que temos, frutos das observações de nossos sentidos, conhecimentos
sensíveis.
Por outro lado, René Descartes não confiava à razão os frutos dos sentidos. Como
racionalista, ele se empenha em orientar o espírito a não confiar nas opiniões e ideias dos
outros, como podemos ver em sua obra Discurso do Método. Tudo o que recebemos de
fora precisa passar pelo crivo da razão, pois as opiniões podem cristalizar em nós um
impedimento para reconhecer a falsidade ou veracidade das informações. Para não
errarmos, é preciso não se precipitar em analisar qualquer proposição. Assim, o erro está
no conhecimento sensível, e o conhecimento verdadeiro é puramente intelectual e parte
de algumas ideias inatas que já nasceram conosco, em nossa alma.
Nessa seção, aprendemos um pouco sobre a forma que elaboramos em nossa mente o
método científico e as diversas possibilidades de se pensar a verdade e a evidência e como
elas se correspondem. Diante do mundo científico, é possível que não tenhamos a certeza
de que uma teoria seja a verdadeira de forma absoluta, mas temos a tranquilidade de saber
que, mesmo assim, as poucas certezas que podemos ter são frutos de experimentos
comprovados pela ciência. Entre um conhecimento provável e um conhecimento testado,
é preferível que o testado dirija os nossos passos. Vimos também a questão sobre a forma
que René Descartes elabora seu cogito e nos encaminha à intuição e à dedução para
encontrarmos a verdade, a qual, muitas vezes, não podemos testar no mundo empírico,
mas que não há dúvidas quanto a sua confirmação e veracidade.

FAÇA A VALER A PENA

Questão 1

Segundo Reale e Antiseri (2004, p. 288), “Descartes quer primeiramente oferecer regras
certas e fáceis que corretamente observadas, levarão ao conhecimento verdadeiro de tudo
aquilo que se pode conhecer”. Podemos resumir tais regras do método da seguinte
maneira:
1. Evidência: pois só podemos aceitar como verdadeiro aquilo que se apresenta a nós
como claro e distinto, ou seja, evidente.
2. Análise: é preciso, diante do problema, dividi-lo em partes, em quantas forem
necessárias, para melhor compreender cada uma delas individualmente.
3. Síntese: nessa etapa, é preciso ordenar o pensamento, começando pelo mais simples
até chegar ao mais complexo.
4. Controle: para impedir que nos precipitemos em algum dos passos, é preciso uma
enumeração completa do processo e revisões, para ter segurança que não deixamos nada
de importante para trás.

De acordo com o método cartesiano, chegamos à conclusão de que para alcançar o


conhecimento precisamos:

a. Nos fundamentar nas ideias da tradição científica, pois os antigos mantiveram sempre uma forma correta
de dizer sobre o mundo.

b. Constantemente, questionar toda a tradição com suas ideias antigas, pois é necessário esse processo de
dúvida para alcançar a verdade.

Correto!

É preciso questionar as ideias antigas da tradição. Questionar significa colocá-las em


questão, e não as excluir sem antes submetê-las à razão.
c. Apoiar nossas investigações confiando nos sentidos, pois o que eles nos revelam é a mais pura verdade
da razão.

d. Eliminar por inteiro todo o conhecimento da tradição antiga, pois nada desse conhecimento subsiste na
modernidade.

e. Encontrar evidências e clareza em nossas ideias, de tal forma que não precisam ser investigados ou
questionados.

Questão 2

Uma observação equivocada, segundo Chalmers (1993, p. 24), pode ser exemplificada
com a proposição: “essa vara, parcialmente imersa na água, parece dobrada”, mas tal
observação, se ignorada sua explicação física, perde o sentido de um simples registro,
pois, para a física, “quando um raio de luz passa de um meio para outro, muda de direção
de tal forma que o seno do ângulo de incidência dividido pelo seno do ângulo de refração
é uma característica constante do par em média”.

A ideia contida no texto-base ressalta a necessidade de observarmos criteriosamente a


forma que algumas pessoas realizam suas conclusões. Chalmers fala de um tipo de
indutivismo ingênuo para nos ensinar que:

a. Uma explicação indutivista ingênua é aquela popularmente difundida pelo senso comum, que acredita
que a ciência seja imparcial e inequívoca.

Correto!

É muito improvável que em algum momento o cientista ou qualquer pessoa que esteja no
mundo da pesquisa não se equivoque por suas crenças, por mais que se afaste do seu
objeto de estudo. Por isso, a importância de a ciência ser imparcial e não permitir que as
opiniões do pesquisador influenciem no resultado. Observar fielmente o fenômeno é um
desafio da imparcialidade.

b. Uma explicação indutivista ingênua é aquela popularmente difundida pela comunidade científica, que
sabe que seu trabalho é imparcial.

c. Ingenuamente, pensamos que a ciência registra fielmente os fenômenos da natureza e que o cientista
deixa que sua subjetividade apareça.

d. Ingenuamente, pensamos que a ciência registra fielmente os fenômenos da natureza, mas que o cientista
não deixa sua subjetividade aparecer.

e. O cientista deixa que sua subjetividade seja considerada para não incorrer em erros ou observações
equivocadas ou pouco estimulantes.

Questão 3

Bacon elaborou sua teoria conhecida como crítica dos ídolos para mostrar que temos
algumas opiniões que nos impedem de alcançarmos a verdade. Tais opiniões são frutos
de nossos sentidos (ídolos da caverna) ou dos erros que acumulamos em nossas relações
e linguagem que adquirimos (ídolos do fórum). Podemos também formar ideias falsas em
decorrência das autoridades que nos cercam, que nos impõem regras, as quais podemos
tomar como verdadeiras, mas que encobrem os pontos de vista de seus legisladores
(ídolos do teatro). Por fim, aqueles erros que são frutos da própria natureza humana, por
terem a mesma origem e o mesmo agrupamento (ídolos da tribo). Para alcançar a verdade,
é necessária, então, a demolição desses ídolos, o que, para Bacon, se dá no processo de
aplicar a razão a partir das experiências. Para o autor, é preciso aplicar o pensamento
lógico aos dados que temos, frutos das observações de nossos sentidos, conhecimentos
sensíveis.
Assinale a alternativa que apresenta uma ideia contrária àquela apresentada no texto-base
sobre Bacon.

a. A verdade é fruto de uma constante necessidade de verificação das proposições a partir das confirmações
das respostas que nossos sentidos podem captar.

b. Tudo o que recebemos de fora precisa passar pelo crivo da razão, pois as opiniões podem cristalizar em
nós um impedimento para reconhecer a falsidade ou a veracidade.

Correto!

Se eu tenho um comentário sobre Bacon, presume-se que todos saibam que ele seja
empirista e que a observação dos fenômenos a partir dos métodos científicos pode nos
levar à verdade. Mas, a ideia contrária à de Bacon é uma ideia de um racionalista, então,
a alternativa que apresenta essa ideia trata da razão como o único caminho que nos conduz
à verdade.

c. O erro está no conhecimento sensível, pois o conhecimento verdadeiro é puramente intelectual, mas não
faz parte das ideias inatas. Intelectual, aqui, é empirismo.

d. Uma ideia contrária à de Bacon é a de René Descartes, que confiava à razão os frutos dos sentidos. Só
assim podemos chegar à verdade.

e. É preciso orientar o espírito a confiar nas opiniões e ideias dos outros se elas são frutos de observações,
pois esse é o caminho para se alcançar a verdade.

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.


ARANHA, M. L. de A.; MARTINS, M. H. P. Filosofando: introdução à filosofia. 6. ed.
São Paulo: Moderna, 2016.
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: MEC, 2018.
CHALMERS, A. F. O que é ciência afinal?. São Paulo: Brasiliense, 1993.
DESCARTES, R. Discurso do Método. Sumaré, SP: Martin Claret, 2008.
DESCARTES, R. Regras para a direcção do espírito. Lisboa: Edições 70, 1989.
RACIONALISMO, EMPIRISMO, REALISMO E IDEALISMO. [S. l.: s. n.], 2020. 1
vídeo (7min14s). Publicado pelo canal Mateus Salvadori. Disponível
em: https://bit.ly/2UX93rU. Acesso em: 15 mar. 2021.
REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia: do humanismo a Descartes. v. 3. São
Paulo: Paulus, 2004.
ZASLAVSKY, A. Da dúvida metódica ao princípio da descrença: para uma ciência da
autoconsciência. Interparadigmas, ano 1, n. 1, 2013. Disponível
em: https://bit.ly/3y9Tg7x. Acesso em: 15 mar. 2021.

FOCO NO MERCADO DE TRABALHO


A DESCOBERTA DO MÉTODO CIENTÍFICO:
CIÊNCIA E MÉTODO
Tiago Eurico de Lacerda

SEM MEDO DE ERRAR

Caro aluno, se o problema de se pensar a ciência parecia muito simples, nessa seção
percebemos que há mais complexidade do que pensamos, não porque é difícil pensar a
ciência, mas porque há muitas formas de interpretar os fenômenos naturais. E nesse
caminho interpretativo há os que vão ao encontro da ciência, enquanto outros seguem de
encontro com ela. Trabalhar a filosofia com certa imparcialidade é um desafio, ao mesmo
tempo que também é o próprio método que se desenvolve e aparece para distanciar a
filosofia de outras interpretações.

Não há problemas em acreditar ou não na ciência, mas, sim, naqueles que não acreditam,
pois se duvidam deveriam mostrar o porquê da dúvida, ou seja, as razões para isso, porém
não possuem nada para oferecer. Dessa forma, deve-se apresentar os possíveis erros
cometidos pelos cientistas e convencer por um caminho também científico de que há uma
resposta melhor. Até aqui estaríamos no limite do respeito e diálogo científico, mas há,
na sociedade, pessoas que tentam retirar o crédito da ciência, no entanto não possuem
nada para apresentar, são crenças vazias, derivadas de notícias falsas circuladas pelas
redes sociais.

Quando nos deparamos com um grupo de negacionistas da ciência em prol de uma fé, é
importante termos em mente que o papel do filósofo não é mudar nenhuma ideia, mas
fazer que nosso interlocutor tenha a possibilidade de visualizar o problema por muitos
vieses diferentes. Nesse aspecto, já conquistamos nosso interlocutor para um debate
saudável, pois ninguém gosta de discutir com outro que não sabe escutar. Assim, é
importante realizarmos uma epoché, ou seja, deixar de lado nossas crenças e opiniões
para entrar de forma racional no debate, buscando uma resposta que seja melhor que a
que tivemos até então. Se a nossa resposta resistir, tudo bem, estávamos com o melhor
argumento, mas, se no debate percebermos que nos falta consistência nas argumentações,
precisamos melhorá-las ou até mesmo modificá-las. É o caso do geocentrismo, o qual
teve que ficar para trás diante da nova resposta, o heliocentrismo. Nesse caso, o orgulho
em manter a opinião passa a ser ignorância diante de um tema que a comunidade científica
em geral já decretou resolvida.

Hoje em dia, o autoritarismo dentro de sala de aula não é mais bem aceito. Sabemos que
por trás de um professor que não se abre ao diálogo com seus alunos habita um medo de
ser colocado contra a parede, de ter que discutir assuntos que não domina, logo é comum
certo receio de não ter respostas. Por outro lado, não precisamos ter respostas para tudo
e, nessa oportunidade, podemos apresentar a sabedoria socrática em assumir não saber
para aprender mais. A pesquisa deve ser motivada nesse instante para mostrar aos alunos
que, diante de algo que não sabemos, podemos procurar a resposta no lugar de emitir uma
opinião fundamentada em achismos ou de conhecimento raso obtido nas redes sociais.
Você é o professor! O aluno quer saber os motivos de muitos acreditarem numa vacina
produzida em pouco tempo, pois há neles o hábito de observar que a produção de uma
vacina leva anos, então, quando nos deparamos com uma vacina produzida em menos de
um ano, isso assusta. O docente não pode nem desdenhar a dúvida, tampouco ceder a ela.
Ele precisa aproveitar a filosofia e apresentar os caminhos próprios para se chegar ao
conhecimento.
Quanto à produção de uma vacina, é importante mostrar que, em épocas mais distantes,
o poder tecnológico que estava ao nosso dispor era muito diferente. Esse é um dos
primeiros argumentos. Outra ideia é fazer perceber que a pandemia assolou não apenas
uma parte ou grupo social, não são só os pobres, por exemplo, que estão sofrendo, e não
é apenas o Haiti ou a Venezuela que passa dificuldade, mas, sim, toda a população
mundial. Isso levou o mundo inteiro a disputar, na melhor concepção da palavra, a busca
pela cura da Covid-19. Seria muito provável que, se fosse a África apenas a sofrer tal
pandemia, mais fácil seria isolá-la até que ela mesma resolvesse o problema com pouca
ou nenhuma ajuda externa. Mas, como o problema chegou em todos os países, ele passou
a ter uma urgência diferenciada.

Alguns ainda podem dizer que a vacina não garante a cura para todos. Mas. o que garante?
A ciência e seus métodos. O professor precisa levar a ideia da experimentação à exaustão
para não parecer que estamos vacinando o povo sem uma comprovação, pois essa existe.
Cada país que desenvolveu sua vacina apresentou um percentual de cura diferente diante
das diversas circunstâncias e dos tipos de pacientes, de leves a graves, mas isso não retira
a eficácia de cada uma delas diante dos testes realizados. É possível que, para algumas
pessoas, certa vacina não produza o efeito esperado, pois cada indivíduo se adapta melhor
a uma fórmula diferente, mas isso também ocorre com outros tipos de medicamentos que
estamos acostumados a tomar.

Um dos problemas que enfrentamos com a circulação de muitas notícias falsas é a


disseminação de uma ideia de ineficácia, não da vacina em si, mas de toda a ciência. Isso
ocorre porque há um componente político da questão, e a crença na vacina deve-se a uma
disputa política que prejudica também a valorização da educação e do conhecimento em
geral. Sempre tivemos lutas muito significativas para uma educação de qualidade, pública
e gratuita, e muito do esforço para encontrar uma resposta para a cura da Covid-19 deu-
se graças aos pesquisadores das muitas universidades públicas brasileiras. Igualmente, a
vacina foi desprestigiada por uma crença num tratamento preventivo, sobre o qual se
percebeu não possuir a efetividade que alguns atribuíam.

Contudo, não é impossível criar um pensamento crítico, mas é muito desafiador, pois o
professor luta não somente com os teóricos de suas respectivas disciplinas, mas com uma
onda de pseudoespecialistas que acham que podem opinar sobre qualquer assunto melhor
do que alguém que estudou anos com pesquisas sobre o assunto. O primeiro passo que
podemos tomar no processo de conhecer é partir da ideia socrática de assumir nossa
ignorância para aprendermos com quem sabe o que está falando. Quando assumimos
nossa ignorância, ou seja, reconhecemos que não podemos opinar em tudo, deixamos
lugar para acolhermos a sabedoria, um ponto de vista diferente, um ponto de vista
científico, ou seja, olhamos para o todo depois de compreendermos as partes de maneira
mais clara. Descartes já nos diz em discurso sobre o método que a pressa em saber o todo
pode comprometer o resultado, por isso, é importante um método que não permita cairmos
em erros epistemológicos. Nossa paciência e constante revisão do que aprendemos são
vitais para a construção de uma ciência cada vez mais sólida e valorizada por seus
métodos.

AVANÇANDO NA PRÁTICA

DESCOBERTA DE VACINA

Em uma aula de filosofia da ciência, o professor coloca a seguinte proposição: “a ciência


utiliza um método experimental e a testa exaustivamente antes de anunciar a sua
descoberta”. E segue explicando métodos, passando por Descartes, Bacon, Hume, Locke,
etc. Na aula seguinte, um aluno levanta a mão após todas as explanações do docente e
pergunta: “a ciência sempre faz assim suas descobertas?”. “Assim, como?”, interveio o
professor. O aluno continuou: “assim, com testes e testes, e somente depois de muito
tempo apresenta o resultado”. O professor pensou em dizer que não, mas, para facilitar,
respondeu: “exatamente, sempre há um método rigoroso para a descoberta”. Era
exatamente isso que o aluno queria ouvir para indagar: “se isso que o professor está
dizendo é verdade, como explicar, por exemplo, a descoberta da penicilina? Alexander
Fleming disse ter descoberto por acaso o antibiótico quando, ao analisar certo tipo de
bactéria, percebeu que sua amostra tinha sido contaminada por um fungo e somente a
partir daí descobriu que ele era capaz de inibir o crescimento da bactéria”. O professor
engoliu em seco e, olhando para o discente, disse: “você tem razão, eu dei uma resposta
precipitada ao dizer que sempre acontece assim, mas reconheço meu equívoco e volto às
ideias de Hume que vimos em aulas anteriores para dizer que o hábito de observar os
fenômenos não passa de uma má observação quando levamos em conta a contingência de
todas as coisas. Obrigado pela sua observação!”.

Seria maravilhoso que todo professor tivesse em sala alunos que conseguem fazer pontes
entre os conhecimentos da disciplina com outros conhecimentos para uma melhor
compreensão do todo.

Após esse episódio, o que você, como estudante, poderia concluir a partir da ação do
professor para que a sua aula não caísse no mesmo “erro” ou equívoco em dizer algo
apressadamente?

RESOLUÇÃO

Após reconhecer o equívoco de uma resposta rápida, o professor, em seguida, trouxe uma
nova informação para aquele caso que, para aquela turma, era uma revisão: o pensamento
sobre a necessidade versus contingência para Hume. Esse evento da pergunta do aluno
até a resposta do professor fez com que o ensinamento do conteúdo da disciplina fosse
melhor assimilado na perspectiva de que, ao se fazer ciência, precisamos levar em
consideração que essa não possui uma verdade absoluta, mas uma verdade vigente até
que outra argumentação melhor tome o lugar da anterior. É certo que o professor sabia
que não poderia ter respondido em filosofia que a ciência sempre age da mesma forma,
mas naquele instante ele quis amenizar o debate. Vimos aqui que, inclusive, as aulas não
possuem um padrão retilíneo uniforme, por isso o docente deve estar sempre preparado
para ser colocado contra a parede e demonstrar seus conhecimentos técnicos ou métodos
para alcançá-los. É muito importante que o aluno tenha voz. Mesmo que o que ele diz
pareça não ter sentido no momento, tem sentido para ele, então é salutar que, ao dar
atenção ao aluno, o professor colabora na construção de um conhecimento mais
respeitável. Se descobrimos o antibiótico dessa forma, significa que muitas outras
descobertas também seguiram um padrão semelhante. Seria muito interessante que, a
partir de um problema como esse, o professor instigasse a turma a pensar em teorias ou
relatos científicos que foram apresentados a partir de uma quebra de padrão, ou seja,
tentando descobrir X, o cientista chegou a Y e Z. Você conhece outro relato científico
como esse? Vamos pensar?

NÃO PODE FALTAR


A CIÊNCIA DA NATUREZA: O MUNDO COMO
PRODUÇÃO DA RAZÃO
Tiago Eurico de Lacerda
PRATICAR PARA APRENDER

Caro estudante, seja bem-vindo! Nessa seção, teremos a oportunidade de explorar


algumas temáticas sobre a ciência ao mesmo tempo que analisaremos alguns
acontecimentos em que o poder da técnica e da tecnologia precisa ser levado em
consideração, tanto para o desenvolvimento da sociedade quanto para uma postura ética
na utilização dele. Nos últimos anos, vimos como a sociedade brasileira tem se
modificado graças ao uso e ao progresso da técnica. Temos uma sociedade cada vez mais
confortável para se viver, porém nos preocupa como a técnica está sendo desenvolvida e
utilizada. Ignorar o seu poder é ignorar a própria vida humana sobre a terra. Por isso,
precisamos estudar filosofia e nos concentrarmos, especialmente, na forma que ela pensa
a vida e a ciência.

O mundo alcançou um conhecimento científico jamais visto, mas o homem, diante desse
conhecimento, se vê como o detentor do poder por imaginar que basta conhecer. Será que
essa audácia em querer conhecer e saber cada vez mais não seria um tipo de ilusão? O
que podemos conhecer de verdade? Qual é a segurança que temos em relação ao
conhecimento que está estabelecido na sociedade? No Brasil, há poucos anos, assistimos
ao rompimento das barragens das cidades de Mariana e Brumadinho. A crença que
tínhamos é que toda empresa estava pautada na segurança, inclusive científica, com
atestados de profissionais da engenharia, por exemplo. Mas, do que vale toda essa
pseudossegurança diante das consequências que presenciamos? A ilusão de conhecer nos
levou ao patamar do poder em relação à natureza em que nos encontramos agora e nos
fez acreditar em tudo o que ouvimos em detrimento de uma verdade pautada na
verificação dos fatos. Se falsificam-se fatos hoje, como confiar? O ceticismo poderá nos
possibilitar uma resposta e um caminho, pelo menos para não cairemos de vez na crença
da verdade.

Imagine que você é professor da rede pública de educação e está numa aula de filosofia
da ciência, discutindo com os seus alunos sobre a neutralidade da ciência. Sabemos que
ela não deveria atender a nenhum outro objetivo que não seja acadêmico e intelectual,
mas você entregou um texto aos alunos que apontava as características da ciência, e
justamente a neutralidade foi a característica que mais incomodou a turma. Um aluno
questionou o porquê de a ciência ainda não ter revelado a cura para o câncer ou para a
aids, pois há décadas a população vem morrendo desses males e só temos medicamentos
para controlar a situação. Outros ainda levantaram a seguinte questão: por que a Covid-
19, em menos de um ano, já recebeu uma vacina, e outras doenças ainda não? A aula foi
tão provocativa que todas as indagações levantadas precisariam de muito tempo para
serem respondidas. E você, como professor, não pode apontar respostas vagas, assim
como não pode responder em nome da ciência, dizendo ser o detentor da verdade
absoluta. Então, o que você faria?

Nessa seção, analisaremos alguns caminhos que preparam o aluno para essas indagações.
Eles viram as questões das leis, as regras, os fatos e as consequências dos avanços
tecnológicos. É normal que eles queiram aprofundar o problema. Se não bastassem tantas
indagações, o ceticismo está presente na seção, orientando o estudante nos caminhos da
dúvida. Assim, a postura do professor é algo que eles aguardam, pois querem um
posicionamento. Também, anseiam poder contrastar o que sabem ou o que os outros
professores pensam a respeito. Na verdade, eles querem testar a todo instante os
conhecimentos dos seus professores. Logo, é preciso planejar uma resposta que seja
didática e muito formativa, para que seja assimilada e leve os alunos ao encontro da
verdadeira ciência e filosofia.

Você, como professor, qual metodologia utilizaria para propor uma reflexão sobre esse
problema aos seus alunos? Será que um seminário preparado com antecedência seria
suficiente para provocar e instigar a curiosidade deles sobre o assunto? Como seriam
selecionados os textos para tal atividade?

Esperamos que você consiga mergulhar nessa seção com a mente aberta para explorar
algumas possibilidades do conhecimento a respeito do pensamento científico. Tenha bons
estudos!

CONCEITO-CHAVE

PRINCÍPIOS, LEIS, REGRAS E FATOS

Para iniciarmos uma boa conversa sobre ciência, é importante ressaltar alguns conceitos
básicos, para que haja um diálogo eficaz com o texto. Antes de tudo, é preciso delimitar
tais conceitos à luz da ciência e dos autores consagrados pela comunidade científica. Por
exemplo, quando pensamos em uma teoria do conhecimento, como a de Descartes, vimos,
na história, que ela foi muito valorizada por Newton, pelos princípios que desenvolvia.
Mas, mesmo assim, “a teoria de Newton entrava em conflito com essa concepção de
ciência e com os padrões científicos da época” (CHALMERS, 1993, p. 35), pois sua física
não tinha como ser demostrada apenas baseada em princípios, mesmo que esses fossem
muito evidentes. Sendo assim, os próprios cartesianos precisaram compreender que,
mesmo que muito evidente, um princípio não era suficiente para uma demonstração
científica. Estamos discutindo as mudanças de padrões da forma de elaborar uma crítica
ou uma demonstração, de acordo com a teoria do conhecimento.
Assim, temos que, diante das demonstrações e experimentações científicas, não basta ter
em mente que um princípio será sempre o norte para se chegar às conclusões corretas,
pois as experiências não podem proporcionar os princípios de qualquer assunto. Ao
mesmo tempo, a partir da lógica aristotélica, precisamos admitir que a experiência
também não é capaz de levar ao conhecimento das causas necessárias e não garante uma
distinção do que é essencial e acidental. Segundo Chauí (2013, p. 25), “como
fundamentação teórica e crítica, a filosofia ocupa-se com os princípios, causas e
condições do conhecimento que pretenda ser racional e verdadeiro”, por isso,
fundamentar será o papel que nos possibilitará encontrar racionalmente os princípios.
Mesmo assim, a razão deve ser cônscia de que os princípios (como o da causalidade, que
diz que todo efeito tem uma causa) podem não responder corretamente às relações
internas das coisas. Não é porque se planta milho em terra boa, aguando no tempo certo
e colhendo bons frutos, que tal princípio se aplique de forma necessária e que possamos
crer que haja nesses fenômenos uma relação causal necessária. O milho pode morrer
dentro da terra e não brotar. Dessa maneira, precisamos compreender e distinguir a
diferença entre causalidade e anterioridade, pois nem sempre é verdade que o que
aconteceu antes seja sempre causa ou consequência do que veio depois. Mesmo que a
razão procure uma causa para cada fenômeno, ela ainda deverá admitir o acaso e as
circunstâncias acidentais.

Então, compreendemos como princípio o “ponto de partida e fundamento de um processo


qualquer” (ABBAGNANO, 2007, p. 792). Como fundamento, podemos pensar em causa,
fundamento da demonstração, algo que facilita aprender alguma coisa, enquanto lei é uma
“regra dotada de necessidade” (ABBAGNANO, 2007, p. 601), ou seja, por necessidade
compreendemos algo que não pode ser diferente do que é, algo que tenha garantia que
siga a regra como previsto. Regra pode ser compreendida de uma forma generalista, pois
ela está isenta de necessidade, por exemplo, as leis naturais, jurídicas, da arte, da técnica,
etc.. As normas, assim como as regras, não possuem um ato necessário, mas são regras,
pois são sempre referentes às ações humanas.

Foi Hume quem nos fez refletir sobre as leis naturais como concepção de uma relação
constante entre os fenômenos naturais. Isso nos permite analisar os acontecimentos e
prever o futuro das ações, excluindo a ideia de milagres. Essa ideia foi muito utilizada
por Comte quando pensava os fenômenos sujeitos às leis naturais invariáveis. Não há uma
necessidade de mostrar as causas, mas, sim, apontar as relações que ligam os fenômenos
diante de uma circunstância de reiterada semelhança.

Ao apontar os fenômenos como eles realmente acontecem, estamos nos referindo aos
fatos que podemos observar. Diante de tais fatos, não podemos atribuir que sua reiterada
observação gerará necessariamente uma lei para que todo fato analisado na mesma
perspectiva seja também fruto da semelhança que ocorrerá sempre. Por isso, é importante
separar os juízos de fatos das observações subjetivas e de generalizações apressadas, que
levam ao erro frequentemente.

CIÊNCIA E CONTROLE DA NATUREZA


A ciência pretende ser uma resposta para o mundo desvinculada de subjetividade e juízos
de valor para alcançar uma explicação objetiva, com previsibilidade do futuro e controle
da própria natureza. Para uma melhor compreensão de ciência, evocamos o filósofo
Francis Bacon. O inglês nos dirá que “a meta verdadeira e legítima das ciências não é
outra senão dotar a vida humana de novas tentativas e recursos” (BACON, 2003, p. 125;
I, LXXXI). A ciência deve proporcionar ao homem e à sociedade uma melhora na
qualidade de vida, no sentido de que sua produção agregue melhorias para a sociedade.
Portanto, a importância de uma ciência útil para a compreensão e interpretação da
natureza humana. Tal interpretação deve anunciar uma libertação dos pensamentos
supersticiosos, ou seja, dos ídolos que o filósofo menciona em seu Novum Organum.
Bacon nos encaminha para uma reflexão que visa a uma recusa em aceitar as especulações
metafísicas como ciência e, por isso, apresenta seu método indutivo, o qual, segundo
Frondizzi (2003, p. 17), “consiste no exame dos obstáculos que impedem ou perturbam a
busca pela verdade”. Aqui, fazemos referência à doutrina dos ídolos de Bacon. Tal
doutrina nos leva a pensar que a confusão que o homem faz aceitando que seus sentidos
são a medida das coisas não os permite ver que é, na verdade, o contrário, pois “o
entendimento humano é como um espelho desigual em relação aos raios do objeto e
mistura sua própria natureza com a deles, contrariando-a e deformando-a” (BACON,
2003, p. 87; I, XLI). Assim, os homens não se preocuparam em examinar a natureza das
deformações, sejam elas inatas ou adquiridas pela experiência, do intelecto, mas
preferiram exaltar as suas qualidades. Logo, é importante o exame das falsas noções de
que o espírito humano se apoderou, para revelar, por um procedimento científico seguro,
a própria natureza humana.

Para Bacon (2003, p. 74; II, III), a “ciência e o poder humano se coincidem, posto que a
ignorância da causa frusta o efeito”. Podemos sintetizar essa expressão na famosa frase
“saber é poder”. Não que o poder se equivale ao saber, mas podemos entender que há
uma submissão do conhecimento à ação da forma mais pragmática possível. Quando
sabemos que a ação humana se sobrepõe ao conhecimento, temos também as perspectivas
do perigo que isso pode acarretar para a sociedade, seja no âmbito da natureza humana,
social ou política. Temos os casos das cidades de Mariana e Brumadinho, em que as
observações técnicas sobre a segurança das barragens apontaram necessidade de
interferência para evitar um dano maior. O problema está em não dar ouvidos aos laudos
técnicos e privilegiar o poder da ação humana com intenções escondidas de construir um
mundo melhor.

O resultado imprudente desse desastre ambiental já conhecemos: centenas de mortes e


milhares de desabrigados. O homem entra em meio à natureza se esquecendo de um
detalhe muito importante, que ele é também parte da própria natureza. Mas sua ambição
em conquistar e controlar o faz acreditar nessa hierarquia. Por isso, Bacon preconiza que
saber é poder (na perspectiva do controle da natureza), e que o saber instrumental deve
ser valorizado em detrimento de toda filosofia medieval, a qual ele considerava
desinteressada e contemplativa. Não há uma implicação desinteressada do homem diante
na natureza, ele quer ver obras, e não apenas discursos sobre a própria natureza. A
consequência disso é vista na forma que o homem assimilou tal poder e empreendeu uma
grande devastação da natureza. Segundo Aranha e Martins (2009, p. 199), “no entanto,
quando a valorização dos meios se sobrepõe aos fins humanos, esvanece a ideia de que a
ciência e a técnica seriam condição de emancipação social”. Essa discussão, entretanto,
será a pauta dos frankfurtianos, na primeira metade do século XX, ao criticar a razão de
dominação e o controle da natureza, que procura somente um domínio no lugar de uma
compreensão da natureza.

AVANÇO TÉCNICO E PROGRESSO CIENTÍFICO

Na medida em que a técnica avança junto à ciência, temos um panorama inteiramente


paradoxal para nós. De um lado, uma visão otimista de uma conquista de melhoria para
a vida humana sobre a terra (aos moldes baconianos, como vimos no tópico anterior); por
outro lado, a mesma técnica que se desenvolve sem nenhum tipo de freio pode surgir
como uma ameaça que nos deixa sem saídas. Ou melhor, a única saída seria pensar uma
estratégia para conter o poder da técnica em nome da manutenção da vida sobre o planeta.
Nesse caso, esse poder seria a ética, e uma ética da responsabilidade aos moldes
jonasianos.

ASSIMILE
Hans Jonas é um filósofo alemão e judeu que nasceu em 10 de maio de 1903. Ele teve
aulas com Husserl e Heidegger e começou a ficar conhecido em 1964, a partir de sua
conferência Heidegger e a Teologia. Segundo Jelson Oliveira, um de seus principais
estudiosos no Brasil, foi em 1979 que ele publica sua obra magna “O princípio
responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica [...] analisando o
que ele chama de ‘natureza modificada do agir humano’, isto é, as transformações da ação
humana no contexto tecnológico que trouxeram novos e importantes desafios ao campo
da ética” (OLIVEIRA, 2015, p. 123). Assim, reconhecemos que a técnica representa um
novo poder de ação, por isso, a importância de uma discussão ética a respeito do agir
humano diante do poder da técnica.

A nova noção (moral) de responsabilidade não pode ser mais restrita às relações
interpessoais, como pensadas por Kant, que privilegiava uma solução para o presente e,
especificamente, para as relações humanas. Primeiro, porque não podemos pensar que a
condição humana é algo fixo, senão poderíamos definir o que seria bom para todos e, ao
mesmo passo, definir uma responsabilidade rigorosa para os atos humanos. Segundo a
perspectiva de Jonas, esse tipo de pressuposto ético perdeu a validade, o que nos leva a
pensar uma nova ética. Isso não significa que os modelos éticos tradicionais, como o de
Kant, não sejam mais válidos, mas, sim, que não são suficientes para enfrentar os novos
desafios de nosso tempo diante do novo cenário tecnológico. Se estamos analisando tais
ações humanas na perspectiva dos séculos XVII e XVIII, manteremos, no primeiro
instante, o raciocínio tradicional, para, depois, inserirmos Hans Jonas para fechar nosso
raciocínio.
O progresso das ciências deve-se muito aos estudos, por exemplo, de Comte, que
procurou sistematizar e clarear a compreensão do estado positivo alcançado pelas
ciências. Quando nos referimos à palavra positiva no sentido da filosofia de Comte,
estamos nos referindo ao real em detrimento de toda quimera, ao que é preciso em
detrimento de uma ideia vaga, todavia como crítica de um pensamento científico
medieval, o qual, aos olhos de Comte, precisaria ser superado. Era necessário que, para o
desenvolvimento da ciência, o pensamento metafísico e o espírito teológico caminhassem
para um declínio.
As grandes mudanças científicas que chegaram ao nosso tempo são, todavia, frutos da
aliança entre a ciência e a técnica, especialmente após a Revolução Industrial. A produção
de energia a vapor foi crucial para os avanços tecnológicos, quando o cientificismo pode
ser coroado. Por isso, a importância do papel de Comte para o estudo do progresso da
ciência, mas, para isso, o homem precisou abandonar algumas crenças, ou seja, perpassar,
segundo o positivismo de Comte, por alguns estados históricos, a saber, o teológico e o
metafísico, até chegar ao científico. Essa reflexão foi importante para que o homem
refletisse sobre as crenças que possuam, por exemplo, a causalidade sobrenatural. Não há
espaço para que os deuses coordenem o mundo conforme sua vontade ou como
acreditavam os medievais.

Não bastava que questões abstratas substituíssem o pensamento teológico dando espaço
a um estado metafísico. O estudo e as observações das relações invariáveis dos fatos na
modernidade foram tão fortes que o homem no estado positivo corresponderia à
maturidade do espírito humano. Portanto, era necessário que o homem se desfizesse de
pensamentos míticos, porque, assim, os fenômenos naturais poderiam ser estudados como
organismos, mas essa forma de pensamento não seria para todos, muitos ainda viveriam
movidos pela afetividade, o que causaria uma instabilidade social e dificuldade de garantir
que a sociedade progrida cientificamente.

Dessa forma, a ciência caminha não por preocupações morais, mas preocupada com o
desenvolvimento intelectual e acadêmico, por isso, desde o início deste tópico,
ressaltamos que os avanços tecnológicos são um bem que a sociedade recebeu. No
entanto, se não for guiada com ética, poderá ser a causa da destruição ou das
consequências dos males sociais. Na mesma perspectiva, não podemos deixar de
mencionar Bacon e sua preocupação em alcançar um saber instrumental para que lograsse
o controle da natureza. Nesse sentido, Comte pode ser considerado um crítico do
pensamento medieval. Sua ideia de saber associada ao poder ainda ecoa em benefício do
progresso científico, mas não podemos nos esquecer de que o progresso deve, sim, ser
buscado, mas não a qualquer custo, portanto a extrema importância do pensamento de
Hans Jonas para se pensar, na modernidade, os avanços da técnica e suas consequências
quando utilizada fora do âmbito de uma ética da responsabilidade.
Se tivemos no passado uma preocupação com a natureza humana e suas relações,
precisamos nos preocupar agora com o problema central que os avanços da técnica e o
progresso científico trouxeram para nossas vidas. Primeiro, precisamos levar em
consideração que a pseudoneutralidade da ciência, tal como pensada no passado, torna-
se preocupante agora. Antes, não tínhamos condições de medir as consequências da ação
humana em relação ao futuro, não porque não tínhamos conhecimento para isso, mas
porque não era parte do escopo da filosofia da época. Hoje, compreendemos que, para
Jonas, “a técnica não é neutra e nem é um destino nesse sentido delimitado: para o autor
ela é um poder. [...] Poderíamos dizer que Jonas pretende, nesse sentido, uma
humanização da técnica, que passa pela recusa de uma visão fatalista” (OLIVEIRA, 2015,
p. 148). Tal perspectiva não é uma mera posição tecnofóbica, não é intenção de falar sobre
como a técnica pode controlar a vida do ser humano, mas fazer um aporte a uma ideia de
autonomia e neutralidade marcada pela fatalidade. Por isso, a importância de uma nova
ética para ser pensada como um poder capaz de controlar o poder da técnica, não para
impedir o progresso científico, mas para proporcionar uma permanência autêntica da vida
sobre a terra no futuro.

NOVAMENTE, A DÚVIDA: CETICISMO E A POSSIBILIDADE DE


CONHECER

O que nos garante o conhecimento verdadeiro sobre as coisas? Alguns nos apontarão os
caminhos científicos e os métodos que a ciência utiliza para nos revelar a verdade. Mas,
mesmo com a verdade dada, não podemos nos satisfazer com respostas prontas, é preciso
uma pré-disposição à dúvida. Não há uma dúvida que simplesmente nega o conhecimento
por negar, mas uma dúvida que está fundamentada na ideia de que não haja verdade que
nos garanta algum tipo de veracidade e segurança. Essa é a posição do cético, aquele que
não crendo na possibilidade da verdade suspende seus juízos para encontrar um caminho
rumo à ataraxia.

Se o pensamento de Francis Bacon foi extremamente importante para chegarmos aqui,


lançamos mão agora do pensamento de David Hume, que levou adiante a questão sobre
o empirismo. Enquanto o pensamento de Bacon, Galileu e Newton impulsionou a
compreensão da natureza física, agora era preciso aplicar essa ideia, esse método, à
natureza humana. Da mesma forma que teve suas grandes influências, Hume também foi
de extrema importância para o pensamento kantiano, pois foi justamente ao ler o filósofo
que Kant chegou a dizer que tal pensamento foi precípuo para que ele se despertasse de
um profundo sono dogmático.

Hume toma a metafísica para desconstruir sua ideia de causalidade. Assim, é impossível
admitir o pensamento racional a partir de uma conexão a priori, pois isso exigiria a
necessidade, ou seja, que as coisas já estariam dadas dessa forma, o que, segundo o autor,
não passa de uma crença. A razão não tem, portanto, a faculdade de pensar tais conexões
e os conhecimentos que julgamos serem a priori não passariam de experiências comuns
obtidas a partir de uma má observação dos fenômenos naturais. Hume não excluía o
conceito de causa, o seu problema era que não podia aceitar que em tal causa residisse
uma verdade indubitável.

Nos casos mais radicais de dúvida, o cético dirá que é impossível alcançar qualquer
verdade, qualquer conhecimento. Para outros, no entanto, mesmo que não seja possível
alcançar a certeza, a busca pela verdade deve ser um caminho a ser trilhado. A verdade
que é criticada é aquela que se revela de forma evidente, a aletheia grega, como se fosse
possível um desvelamento da verdade.

EXEMPLIFICANDO
Em Platão, a verdade (aletheia) significa desvelamento do ser, isto é. descobrimento
daquilo que estava oculto, retirada do véu. Na metafisica de Heidegger, o desvelamento
significa a ideia segundo a qual o ser da coisa se desvela, manifesta-se nas condições
mesmas de seu aparecer, de seu “fenômeno”, a verdade nada mais sendo que a
manifestação do ente, enquanto ele deixa de ser ocultado pelas preocupações da vida
cotidiana e do caráter aberto do ser (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006).

Assim, o conhecimento do real para o cético é impossível à razão humana, logo o


indivíduo renuncia à verdade ou às certezas e vive uma dúvida constante. O ceticismo de
Hume situava-se no âmbito da metafísica justamente por não acreditar que seria possível
uma ciência sobre o homem que fosse além das experiências. Junto às ideias do ceticismo,
há uma gama de outras possibilidades, por exemplo, na modernidade, o ceticismo já não
segue mais a radical posição de seus idealizadores, como Pirro de Élida (365-270 a.C.),
mas há uma adoção de um conhecimento possível, relativo. Outros ainda percorrerão um
caminho do ceticismo que compreendem não ser possível alcançar a verdade pela razão,
mas que podem apelar para a fé como uma fonte de verdade; esse seria um ceticismo
fideísta. Mesmo que Hume não tenha caminhado por esse lado, seu ceticismo é de raiz
aristotélica, ao pensar que só pensamos em algo que tenha percorrido nossa experiência,
o que já descaracterizaria qualquer tipo de ceticismo que busque algum tipo de resposta
metafísica.

ASSIMILE
Você sabe o motivo de os céticos, como Pirro de Élida, não acreditarem em uma verdade?
A resposta a essa questão tem um fundamento epistemológico e ético sobre a busca da
verdade. A emissão do juízo leva a pessoa a se comprometer com algo verdadeiro ou falso
e, consequentemente, esse comprometimento retira a paz dela, ou seja, ela está fadada à
infelicidade. Então, para alcançar o estado de ataraxia (tranquilidade, paz) e felicidade, é
bom que não se emita nenhum juízo sobre nada, pois nada é tão importante que valha
nossa paz.

E o que é possível conhecer então? A certeza é fruto de nossa adesão a alguma verdade,
e não, necessariamente, de uma descoberta científica. Mesmo que a certeza não possa ser
alcançada, a busca pela verdade não deve ser deixada de lado. Segundo Aranha e Martins
(2009, p. 133), “Montaigne retoma o ceticismo ao contrapor-se às certezas da escolástica
e à intolerância, atitude que mascara o período de lutas religiosas”. Ele percebe que, na
formação de opiniões, há uma grande influência de fatores pessoais e sociais, e que tudo
isso possibilita muita instabilidade, ao mesmo tempo que apregoa pluralidade e
diversidade. Com isso, é importante perceber que a valorização dessa pluralidade é uma
forma de reagir a uma imposição cega de uma verdade da tradição, dessa forma, a nossa
consciência prefere o caminho da dúvida às certezas impostas como absolutas.
Com essa postura, Montaigne nos ensina que nossos julgamentos são sempre baseados
em nossa cultura e que a verdade é sempre uma prática de certos grupos que se impõe
sobre outros de forma tão reiterada que chega a se concretizar em uma verdade difícil de
ser combatida. Na mesma perspectiva, Hume aponta para o hábito. Esse nos orienta a
reconhecer a verdade pela reiterada observação que fazemos dos fenômenos. No entanto,
estamos subjugados pela má observação de nossos sentidos e pelo hábito de sempre ver
as coisas acontecerem da mesma forma. A crença, apesar de não poder ser comprovada
racionalmente, se encontra no mundo das probabilidades para Hume. O que não podemos
fazer é confundir a fé que temos em algo, por exemplo, que amanhã teremos dia e noite
com uma crença em Deus, revelação sem nenhum tipo de possibilidade de ser contestada.

O A PRIORI E O EMPÍRICO
Há um embate filosófico entre os empiristas e os racionalistas. Enquanto os primeiros
acreditam que o que temos em nossa mente vem de fora, ou seja, da experiência, portanto
a posteriori, o segundo grupo acredita que o conhecimento já existe em nós antes da
experiência, ou seja, a priori. Temos em Kant uma teoria para superar essa contradição.
Fica mais fácil estudá-la na teoria kantiana do que simplesmente expor cada uma
separadamente. Hume, todavia, concebe uma crítica sobre o alcance do conhecimento a
partir de uma ideia com natureza antropológica, pois não admitia que seria possível se
pensar fora da experiência humana pautada em uma racionalidade pura, apriorística,
como Kant ressaltou em sua filosofia. Para Hume, nós só podemos compreender quase
todas as ciências pela ciência da natureza humana.

Em primeiro lugar, precisamos entender como se dá a superação proposta por Kant, de


racionalismo, empirismo e ceticismo. Kant chega à conclusão de que o conteúdo do
conhecimento, que é sua matéria, vem de fora de nós, ou seja, é pelos sentidos que
alcançamos tal conteúdo no mundo. Essa ideia é típica do empirismo. Por outro lado,
nascemos com alguma coisa em nós, algum conhecimento? Os racionalistas dirão que
sim, mas Kant os supera, mostrando que há em nós uma estrutura da razão, sem forma e
vazia, mas que está preparada para receber o conteúdo do conhecimento, o qual
alcançamos pelos sentidos. Assim, a razão não pode ser como uma tábula rasa, pois há
uma forma inata. Tal forma é o que chamamos em nós de a priori.
A novidade de Kant é dizer que matéria e forma atuam juntas. Não podemos conhecer as
coisas sem a matéria, que vem da experiência, mas não adiantaria também coletar essa
matéria se não tivesse algo, a forma, para organizar em nós os dados da experiência. Essa
ideia de Kant é conhecida também como a “revolução copernicana na filosofia”. O
filósofo afirma que o conhecimento científico e filosófico deve se efetivar apenas com
juízos a priori. Mas, o que significa isso? O nosso juízo é o que estabelece a relação entre
as coisas no mundo, um ato mental, uma expressão de uma proposição.
Dentre os juízos, os analíticos são aqueles nos quais seus predicados nada mais dizem
além do que já está dito. É o mesmo que dizer que os gatos são felinos e os cachorros são
da espécie dos caninos. Agora, se eu tenho uma informação nova no predicado,
chamamos esse juízo de sintético, pois ele estabelece uma síntese entre predicado e
sujeito, ele aumenta nosso conhecimento. Kant dirá que a experiência é uma
oportunidade, ocasião para o conhecimento, mas não a causa do conhecimento. Ou seja,
não conhecemos porque captamos do mundo a matéria. Para que o conhecimento seja
efetivado, ele precisa das estruturas a priori da sensibilidade, que são o espaço e o tempo,
e das estruturas do entendimento, que são as categorias e os conceitos. Assim, Kant
responde às objeções humanas à necessidade, que estará presente na ciência moderna.
É daí que o filósofo formulará a ideia de juízos sintéticos a priori. Logo, para acontecer o
conhecimento, é preciso que a síntese da relação do sujeito com o predicado (em um
juízo) dependa da estrutura universal de nossa razão, por isso, matéria (da sensibilidade)
e forma (o jogo das faculdades) trabalham juntas. Se dependêssemos somente da coleta
da matéria e pudéssemos interpretar de qualquer forma tal matéria, o resultado seria fruto
de uma subjetividade incomensurável. Agora, perpassando pelo processo estabelecido
por Kant, chegamos à conclusão de que a própria causalidade é fruto da síntese a priori
que nosso entendimento estabelece, independentemente do hábito das observações que
fazemos.
A ideia de Kant é que houvesse uma garantia de um conhecimento que fosse universal e
necessário. Nessa busca é que num primeiro momento nosso conhecimento se restringe
aos sentidos, ou melhor, aos fenômenos, àquilo que nossos sentidos podem captar, mas,
se há algo além disso, mesmo que Hume não tenha dado nenhum tipo de consentimento
filosófico para essa possibilidade, Kant faz a pergunta dessa possibilidade. Podemos
conhecer a essência de algo, ter o alcance da coisa em si? Traduzindo a pergunta, podemos
conhecer as ideias da razão que não seriam frutos da experiência, mas que já estariam ali,
de forma inata, no homem? A conclusão é que nós podemos pensar tais ideias. Conhecer
é um verbo que não se aplicaria nessa ocasião, pois, como humanos, nos limitamos a
conhecer o que está no âmbito das experiências, do fenômeno. Será apenas em Crítica da
Razão Prática que Kant, numa análise da ética, repensa a natureza humana para as
questões metafísicas, como a existência de Deus, justificando que encontrou aí o lugar
para a fé, que só pode ser encontrado ao se suprimir o saber. A fé aqui não é a mesma que
se pratica nas igrejas em geral, é uma fé filosófica, aquilo que nos garante uma ideia do
suporte que carregamos sobre nossa vida moral.

O que podemos concluir nessa seção? Desde a elaboração e observação dos fatos, a
ciência se preocupa em conscientemente apresentar a nós um caminho metodológico
seguro para o desenvolvimento do nosso senso crítico. Como Comte ressalta em sua
filosofia, o homem só alcançará a maturidade quando ele se desprender de conceitos e
ideias que o mantém preso em um pensamento, numa crença religiosa. Vimos que a
crença, para Hume, faz parte da vida, mas não uma crença metafísica, e sim uma crença
que temos pela observação dos fenômenos naturais, mas que pela regularidade de seus
acontecimentos nos leva a crer na necessidade. Por isso, a importância do pensamento do
ceticismo para nos ajudar a equilibrar os ânimos e chegar ao pensamento kantiano,
podendo ponderar as ideias advindas da experiência com as formas inatas. Desse modo,
percebemos que a ciência surge ao elaborarmos paulatinamente o percurso metodológico
para alcançarmos uma verdade e poder debater até que ponto temos algo que realmente é
verdadeiro ou fruto de impressões e crenças infundadas.

FAÇA A VALER A PENA

Questão 1

A razão deve ser cônscia de que os princípios, por exemplo, o da causalidade, o qual diz
que toda coisa tem uma causa, podem não responder corretamente às relações internas
das coisas. Não é porque se planta milho em terra boa, aguando no tempo certo e colhendo
bons frutos, é que tal princípio se aplique de forma necessária, levando-nos a crer que há
uma relação causal necessária. O milho pode morrer dentro da terra e não brotar. Por isso,
precisamos compreender e distinguir a diferença entre causalidade e anterioridade. Como
se tudo o que aconteceu antes fosse causa ou consequência do que veio depois.

De acordo com o texto-base, a causalidade não pode ser levada em consideração de uma
forma necessária, porque:

a. Mesmo que a razão procure uma causa para cada fenômeno, ela ainda deverá admitir o acaso e as
circunstâncias acidentais.

Correto!
Segundo Hume, a causalidade é fruto de uma má-observação dos fenômenos naturais,
pois com ela queremos admitir que tudo possui uma causa necessariamente, mas
precisamos contar com o acaso que está na natureza.

b. Mesmo que a razão procure uma causalidade na natureza, essa já é determinada pela causalidade natural
da vida.

c. A causalidade pode ser levada em consideração de uma forma necessária, pois é a única regra válida da
natureza.

d. Somente um filósofo pode observar a causalidade existente no mundo natural. O que as outras pessoas
observam é a anterioridade.

e. A maioria das pessoas procura uma causalidade na natureza, mas essa só existe no âmbito metafísico, e
não natural.

Questão 2

À medida que a técnica avança com todo o desenvolvimento científico, temos para nós
um panorama inteiramente paradoxal. De um lado, uma visão otimista de uma conquista
de melhoria para a vida humana sobre a terra; por outro, a mesma técnica que se
desenvolve sem nenhum tipo de freio pode surgir como uma ameaça que nos deixa sem
saídas, ou melhor, a única saída seria pensar uma estratégia para conter o poder da técnica
em nome da manutenção da vida sobre o planeta. Nesse caso, esse poder seria a ética, e
uma ética da responsabilidade aos moldes jonasianos.

Quando falamos que Hans Jonas proporciona uma nova ética, a da responsabilidade, a
comparamos com a ética de Kant. Como podemos comparar a ética de Jonas e Kant sobre
a discussão da ciência?

a. Jonas apresenta uma ética que trata com preocupação do futuro da humanidade, enquanto Kant trata de
uma ética interpessoal.

Correto!

Ambas as éticas são importantes. A de Kant fala sobre as relações interpessoais, enquanto
Jonas pensa o futuro das próximas gerações, o que nos leva a pensar o papel da ciência e
da técnica.

b. Ambas as éticas são idênticas e se diferem apenas pelo tempo em que foram concebidas, pois ambos os
filósofos são alemães.

c. Hans Jonas pensa uma ética interpessoal, enquanto Kant pensa uma ética mais abrangente ao mundo da
tecnologia.

d. Kant proporciona com sua ética uma discussão a respeito dos animais, do meio ambiente e do planeta
em detrimento de uma deontologia.

e. A ética da responsabilidade exclui a ética kantiana, porque é mais completa ontologicamente.


Questão 3

O conhecimento do real para o cético é impossível à razão humana, por isso ele renuncia
à verdade ou às certezas e vive uma dúvida constante. O oposto ao pensamento cético é
o dogmatismo, o qual não somente acredita numa verdade, mas que ela é inquestionável.
Sobre um dos objetivos de os céticos suspenderem os juízos, podemos afirmar que:

a. Buscam esconder das demais pessoas seu verdadeiro pensamento, pois não é bom que todos falem o que
pensam.

Correto!

A verdade não é possível de ser alcançada, assim, é melhor não opinar, isso garante uma
paz na alma, ataraxia, que pode nos levar ao encontro da felicidade.

b. Não sendo possível afirmar a verdade sobre algo, a suspensão dos juízos passa a ser um caminho para a
felicidade.

c. Só é possível afirmar algo no âmbito metafísico, pois poucos têm acesso para comprovar, por isso
garante-se a felicidade.

d. Comprometer-se com a verdade é algo que pode retirar a paz de alguns, por isso o cético se compromete
com a falsidade.

e. Eles não querem ser comparados aos dogmáticos, pois esses duvidam da verdade científica, e os céticos,
não.

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.


ABREU, E. L. de; LACERDA, T. E. de; MARTINI, A. Hans Jonas e a técnica: uma
reflexão sobre o (des)controle da vida. In: LACERDA, T. E. de; MARTINI,
A. Tecnologia e responsabilidade: reflexões éticas, jurídicas e educacionais. Curitiba,
PR: Bagai, 2021.
ARANHA, M. L. de A.; MARTINS, M. H. P. Filosofando: introdução à filosofia. São
Paulo: Moderna, 2009.
BACON, F. Novum Organum. Buenos Aires: Maestras del Pensamiento, 2003.
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: MEC, 2018.
CHALMERS. A. F. O que é ciência afinal?. São Paulo: Brasiliense, 1993.
FRONDIZI, R. Significado y contenido del Novum Organum. In: BACON, F. Novum
Organum. Buenos Aires: Maestras del Pensamiento, 2003. p. 9-35.
JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. Desvelamento. In: JAPIASSÚ, H.; MARCONDES,
D. Dicionário Básico de filosofia. 4. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
OLIVEIRA, J. A técnica como poder e o poder da técnica: entre Hans Jonas e Andrew
Feenberg. Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 27, n. 40, p. 143-166, jan./abr. 2015.
Disponível em: https://bit.ly/3yb70ip. Acesso em: 30 abr. 2021.
SMITH, P. J. Ciência, experimento e história em Bacon. Revista de Filosofia Moderna
e Contemporânea, Brasília, v. 5, n. 1, p. 7-35, jul. 2017. Disponível
em: https://bit.ly/374sQZ6. Acesso em: 28 mar. 2021.

FOCO NO MERCADO DE TRABALHO


A CIÊNCIA DA NATUREZA: O MUNDO COMO
PRODUÇÃO DA RAZÃO
Tiago Eurico de Lacerda

SEM MEDO DE ERRAR

Se os avanços científicos nos possibilitaram, em menos de um ano, uma resposta para a


Covid-19, por que ainda não temos uma resposta para o câncer e a aids? Com essa
questão, os alunos deixaram o professor diante de um embate sobre a ciência e suas
ideologias. É importante ressaltar que, como docente, a resposta não é a opinião pessoal
necessariamente, mas sempre baseada em fatos. Isso é de extrema importância para
afastar o senso comum de qualquer resposta e possibilitar que o aluno pense por si,
alcançando cada vez mais sua autonomia como estudante.

Dentro dessa problemática, outra questão importante é: será que a ciência trabalha com
fins éticos, intelectuais ou ambos? Sabemos que ela trabalha com patrocínios e depende
de muito dinheiro para encontrar respostas mais satisfatórias para o nosso tempo. Isso
interferiria em suas descobertas de alguma forma? A Covid-19 foi uma exceção
pandêmica mundial, mas o câncer e a aids, por mais que sejam controlados e as pessoas
consigam prolongar a expectativa de vida, ainda são causas de muitas mortes. Todas essas
questões são extremamente importantes de serem pesquisadas e debatidas em um
seminário, por exemplo, se for a atividade proposta pelo professor.
A sugestão é elaborar um seminário (mas pode-se utilizar qualquer outra atividade que o
professor tenha mais habilidade), no qual a turma dividida possa apresentar seus
argumentos a partir da pesquisa que o professor orientará. A questão não é perceber quem
ganha, mas quem consegue elaborar os melhores argumentos. Um grupo poderia defender
que existe uma cura para doenças citadas, mas que ela não é interessante pela questão
financeira. Enquanto isso, do outro lado, outro grupo defenderá que não há cura ainda e
que tudo o que se diz é um tipo de teoria conspiratória contra a ciência.
É importante o professor indicar os caminhos, para que seus alunos encontrem bons
argumentos e os apresentem na aula seguinte. Ele deverá ser o mediador, pois toda
argumentação deve ter um equilíbrio na sua formulação. Mesmo que os alunos estejam
tratando de casos específicos, devem procurar em livros e revistas científicas as respostas,
pois elas não podem ser frutos de achismos. Os argumentos que eles deverão elaborar
devem apresentar sempre a perspectiva de algum pensador ou autoridade no assunto. É
importante que desde já os alunos percebam que as opiniões que cada um possui não têm
relevância para a ciência e não ajudam ninguém a sair do lugar. Nossas opiniões devem
dar lugar a um raciocínio científico, com uma argumentação sólida reconhecida pela
comunidade acadêmica.

As dúvidas são muito importantes no percurso da descoberta de alguma ideia. Ninguém


é obrigado a acreditar em algo que a maioria acredita, mas esse duvidar deve ser metódico,
não pode simplesmente falar que não acredita sem ter um argumento plausível para tal.
Sempre que concordarmos ou discordarmos de algo, deveremos estar amparados por boas
referências, assim eliminaremos as inúmeras fake news distribuídas aleatoriamente pelas
redes sociais. Logo, quando o estudante ouvir algo que não goste, não basta apenas refutar
sem uma posição contrária e clara, é sempre preciso argumentos racionais. Se o professor
ajudar os discentes a encontrarem esse caminho, terá feito um grande bem, mostrando
que o caminho da ciência, mesmo que não acreditemos, deve ser pautado pela
neutralidade e imparcialidade em vista do bem de todos.

AVANÇANDO NA PRÁTICA

O ROMPIMENTO DAS BARRAGENS DE MARIANA E BRUMADINHO

É muito fácil elaborarmos um argumento e dar a ele um status de verdade. Dizemos que
a coisa está óbvia para todos, mas nem todos conseguem ver assim. Por que isso acontece?
Porque cada um de nós está suscetível a crer em certo argumento pela conveniência, pelo
dinheiro, pela má-fé e por outras questões. É assim que nasce a verdade, e mesmo que ela
seja construída no corpo de um argumento falso, as provas e argumentações, de tanto
reincidirem, a tornam aceitável. Quando falamos do rompimento das barragens das
cidades de Mariana e Brumadinho, queremos saber somente uma coisa: houve ou não
imprudência, imperícia ou negligência da empresa quanto aos riscos reais?
Independentemente da resposta, como estão as famílias daquela região? Elas foram
esquecidas e ficaram somente na história? Muitos sabem as respostas para essas questões,
as quais não foram respondidas até hoje. Por quê? Porque a justiça não recebe as
informações da mesma forma que nós as recebemos. Ela analisa e escuta uma parte e
outra, porém há uma demora para solucionar o que não é vantajoso resolver rápido, pois,
assim, pode dar espaço para outros acontecimentos, outras narrativas, outros fatos, enfim,
quem não vive no lugar esquece com o tempo.
Diante da instrumentalização do conteúdo sobre o ceticismo e o progresso científico, o
que podemos pensar sobre esses eventos dos rompimentos das barragens? A técnica
utilizada para construir tal empreendimento não foi suficiente para prever as
consequências? Não seria essa a vantagem de utilização das técnicas, da ciência e da
tecnologia? O que está por trás do descaso às famílias?

RESOLUÇÃO

A criação de uma verdade deveria ser algo que correspondesse somente ao real, ou seja,
conforme os fatos. Quanto ao caso das barragens, há muitos indícios de que a empresa foi
comunicada dos riscos da barragem por alteamento a montante, ou seja, quando barreiras
de rejeitos se apoiam em barreiras de rejeito como um jogo de cartas, sujeitas a cair a
qualquer instante. Se algum profissional fizesse o laudo, chegaria a essa conclusão, mas
somente isso não garantiria a proteção de ninguém. Assim, afasta-se a reponsabilidade da
empresa responsável, que vive da exploração da natureza e da mão de obra humana, que
foram devastadas, mas alega ser inocente. Esse exemplo é para nos fazer pensar que a
construção de um argumento leva a muitas questões, inclusive interesses financeiros
gigantes, que podem estar por trás, inclusive, de decisões judiciais. Qual é a verdade?
Estamos diante de duas possibilidades de respostas. Para trabalharmos com a verdade
conforme os moldes científicos, devemos analisar as duas possibilidades com muita
calma, afastando nossos pré-julgamentos e sentimentos em relação às desgraças causadas
por esse desastre ambiental. Pode-se utilizar a ideia do desenvolvimento e avanço
tecnológico, ao passo que não são observadas as consequências, o que nos levaria a pensar
em uma ética da responsabilidade aos moldes jonasianos.

NÃO PODE FALTAR


A CIÊNCIA NOS LIMITES DA PURA RAZÃO
Tiago Eurico de Lacerda

PRATICAR PARA APRENDER


Olá, caro estudante! Vamos começar mais uma seção e com ela mergulhar nas
possibilidades que temos para discutir a nossa fé na ciência. Precisamos compreender
que, por mais que nossa observação acerca dos métodos científicos não tenha o respaldo
da experiência pessoal, pois acreditamos no que os cientistas nos relatam, não podemos
permitir que o ceticismo quanto a isso nos afaste desse projeto científico de pensar a vida
e a sociedade em que estamos inseridos. Enquanto a ciência experimenta o mundo para
nos dar respostas plausíveis e possíveis sobre o funcionamento dos fenômenos
observados, há também uma outra possibilidade de falar sobre alguns assuntos que não
temos sequer o fenômeno para analisar, por exemplo, problemas metafísicos. Muitos
recorrem à metafísica para buscar um consolo ou uma resposta que não encontrou no
mundo dos fenômenos. Assim, não é porque não podemos trabalhar através da empiria
que necessariamente temos que excluir as outras possibilidades de conhecimento. É
verdade que só encontramos nas coisas o que colocamos nelas, ou seja, sempre queremos
nos voltar à concretude de nossas ações e construímos um sentido se a coisa estudada
possui os predicativos que já esperamos que ela tenha. Mas, nesta seção, refletiremos
sobre a ciência nos limites da pura razão e como podemos conciliar essas perspectivas de
uma ciência teórica e as provas que possuímos pelo viés da empiria.

Em todas as épocas, a ciência sempre foi a detentora de respeito da sociedade em geral.


Contudo, há muitos pensadores da ciência e muitos métodos distintos utilizados para se
chegar, ou pelo menos tentar levantar as hipóteses de resolução dos problemas de nossa
época.
Quando falamos de uma ciência a partir dos limites da pura razão, encontramos alguns
embates interessantes, logo, nessa seção, apresentaremos algumas ideias de Kant para nos
ajudar a compreender essa estratégia filosófica. A ciência sempre foi evocada para nos
responder às questões de nosso tempo, para nos nortear diante da sociedade que vivemos
a partir de todo conhecimento que conseguimos assimilar até aqui. Quando a ciência não
consegue ser esse lugar de refúgio para nós, ou o lugar de respostas para os problemas do
mundo, nós podemos cair em alguma contradição e até mesmo nos extremos entre confiar
na ciência ou rechaçá-la de vez. Para que isso não aconteça, é importante acompanhar,
através da história da ciência e da filosofia, o que já conquistamos de reflexões, para não
ficamos tentando descobrir o que já foi descoberto. Como diz o ditado popular: chover
no molhado.

O que precisamos fazer é justamente perceber que nem a ciência nem a religião ou outras
áreas do conhecimento podem nos dar as certezas que muitas vezes queremos.
Todos devem lembrar do acontecimento nos Estados Unidos referente ao ataque às torres
gêmeas. A ciência, hoje, está tão avançada que, com o auxílio da tecnologia, podemos
obter informações muito precisas e rápidas, mas nem tudo isso foi capaz de impedir tal
evento. Qual foi a consequência disso? No lugar de um estudo mais aprofundado sobre
as falhas de segurança e confiança nos avanços da tecnologia, as pessoas, em geral,
procuraram respostas no mundo metafísico, uma resposta para o medo, a insegurança e a
proteção do país. Igrejas, mesquitas e sinagogas nunca estiveram tão cheias após esse dia.
O mundo metafísico ainda é uma possibilidade que muitos procuram para acalmar o
coração.
Nessa seção, veremos o esforço de Kant para compreender a metafísica tradicional e
reelaborar um estudo sobre a metafísica, para que ela pudesse ser considerada como uma
ciência, tal como a matemática e a física.
Imagine-se como um professor de Filosofia e se coloque em reflexão com seus alunos
sobre os limites do conhecimento a partir da filosofia de Kant. Tentem elaborar um
argumento que responda, ao mesmo tempo, ao porquê de as pessoas ainda recorrerem a
uma elaboração metafísica tradicional e como seria se elas conseguissem refletir sobre a
metafísica na perspectiva kantiana. Boa reflexão!

Você está preparado para continuar nessa trajetória? Então, seja bem-vindo e saiba que o
caminho que você escolheu é o melhor de todos para nos possibilitar o conhecimento,
pois com ele saberemos caminhar sem preconceitos nas sendas da ciência, em busca de
respostas cada vez melhores.

CONCEITO-CHAVE

SALVANDO NOVAMENTE A CIÊNCIA: CONTRA O CETICISMO

Para iniciarmos nossa conversa sobre o papel da ciência e chegarmos ao ponto de


apresentarmos os argumentos contrários ao ceticismo, precisamos retomar algumas ideias
importantes sobre o papel do cético dentro da ciência. O filósofo Hume se definiu como
cético moderado, pois ele acreditava que esse pensamento poderia ser muito benéfico para
o gênero humano, pois limitaríamos as investigações científicas às temáticas que temos
capacidade de investigar. Não porque algumas temáticas não podem ser investigadas, mas
porque a capacidade do intelecto humano se adapta melhor a um caminho investigativo,
ou seja, daquele que pode ser experimentado.

Para compreender, num primeiro momento, a importância do ceticismo para nos livrar de
crenças que relativizam a verdade, Aranha e Martins (2016, p. 79) relatam a posição de
Montaigne, que “assumiu posições céticas ao se opor ao pensamento medieval. Fez
críticas às crenças arraigadas que se apresentavam como certezas e refletiu sobre as
influências sociais e pessoais que relativizavam a verdade”. As crenças e opiniões
pessoais são elementos influenciáveis por uma série de fatores sociais e culturais, que são
instáveis e muito diversos. Assim, é preferível não crer ou não admitir que tal
conhecimento seja seguro do que acreditar em uma certeza da tradição por causa de uma
crença medieval.

O problema é que, para Hume, quando pensamos nas ciências abstratas, não nos resta
mais que a matemática como possiblidade de conhecer em contraponto todas as outras
formas de investigação que são feitas a partir de dados e fatos que podemos constatar. O
que predomina, na verdade, é a experiência, e não o raciocínio. Enquanto as ciências
empíricas se baseiam na experiência, outras áreas do conhecimento possuem outras
pautas, por exemplo, a religião se baseia na fé; a moral, no sentimento; e a estética, no
gosto. Sendo assim, se uma ciência não nos aponta o caminho claro e quantificado sobre
as coisas, não passaria de engano.
Não são todos os filósofos que pensam assim. Para corroborar com nossa reflexão, é de
suma importância o pensamento de Kant para estabelecer que, mesmo que Hume seja um
pensador importante para a ciência, nós não podemos admitir que as outras formas de
conhecimento sejam colocadas de lado simplesmente por uma crença de que o intelecto
humano não seja capaz de estabelecer conexões com questões que não são empíricas. Por
esse caminho nos livramos do ceticismo para salvar a ciência e abrir um leque de
possibilidades para discutirmos sobre o princípio do intelecto puro, o que Hume não
admitia em sua filosofia. Kant, porém, em sua filosofia, quer deixar clara a diferença entre
o conhecimento sensível e o conhecimento inteligível.

Segundo Reale e Antiseri (2004, p. 351), o conhecimento sensível para Kant “é


constituído pela ‘receptividade’ do sujeito, o qual sofre certa afecção pela presença do
objeto”, enquanto o conhecimento inteligível ou intelectivo “é, ao contrário, a faculdade
de representar os aspectos das coisas que, por sua própria natureza, não são captadas pelo
sentido”. Assim, não é o sujeito que se adequa ao objeto, mas é o objeto que se adequa
ao sujeito do conhecimento. Para isso, precisamos ir ao pensamento que levou Kant à
Crítica da razão pura para compreender a síntese a priori, sua natureza e seu fundamento,
assim, poderemos saber se é ou não possível uma metafísica como ciência.
Se no início da modernidade o esforço era encontrar um fundamento para as ciências
naturais, Kant não poderia ficar de fora. Contudo, ele buscou a compreensão para uma
ciência que fosse capaz de pensar a própria natureza e uma compreensão além dela. Se
tomarmos a etimologia da palavra metafísica, chegaremos àquilo que está além da
natureza. Segundo Wood (2008, p. 42), “‘metafísica’ é a ciência demarcada não pelo
conjunto de objetos dos quais trata, mas pelo status epistêmico a priori dos seus
princípios”. Sendo assim, há uma necessidade de tratar a crise de legitimação da própria
metafísica. Kant, em sua Crítica, sabia bem que a metafísica tinha um lugar especial no
mundo da ciência, mas que suas regras se apresentavam como decadentes, por isso, era
muito atacada, tanto pelos céticos quanto pelos empiristas por razões lógicas.
Segundo o raciocínio de Wood (2008, p. 43), a Crítica de Kant seria uma espécie de
tribunal de justiça, que determinaria os poderes da metafísica sob as leis naturais da razão,
ou seja, o empreendimento de Kant “é uma crítica da razão pura em um sentido objetivo
e subjetivo: ela é realizada pela razão pura sobre as pretensões da razão pura. Nesse
sentido, ela é também, como Kant afirma, um empreendimento socrático”. Assim,
podemos pensar que a busca do conhecimento para Sócrates seria, nessa visão, uma das
vãs pretensões de conhecer quando não se conhece.

Enquanto alguns filósofos, como Hume, pensam que o conhecimento a priori deve ser
algo aplicado somente às questões extremamente implícitas, que não poderíamos sequer
negar para não cair em contradição, Kant elabora esse raciocínio como uma proposição
analítica, pois precisamos analisar e separar o conceito para compreendê-lo. Isso não quer
dizer que precisamos negar que a análise e a experiência são necessárias para o
conhecimento, mas podemos concluir que a própria função epistêmica das proposições
analíticas apenas explicam o conceito das coisas que já usamos ou sabemos como são
pela experiência, a saber, todo corpo é extenso. Dessa forma, não podemos utilizar, apesar
de sua importância, uma proposição analítica para fundamentar uma ciência empírica. Os
conhecimentos a priori podem ser conhecidos pela própria análise dos conceitos quando
compreendemos que uma parte ou o processo do conhecimento já está contido nas
observações e análises empíricas do conceito.

No próximo tópico, abordaremos uma discussão para continuarmos essa reflexão sobre
ciência e metafísica. Não podemos perder o rumo que guia Kant sobre a metafísica ser
considerada uma forma de conhecimentos sintéticos a priori que alcançamos através dos
conceitos. O problema da razão pura seria pensar a possibilidade dos juízos sintéticos a
priori, pois, num primeiro instante, não poderíamos ultrapassar os limites da experiência
possível. Kant (2001, p. 48; BXX ), no entanto, apresenta que a contraprova da
experiência nos leva ao fato “desse conhecimento apenas se referir a fenômenos e não às
coisas em si que, embora em si mesmas reais, se mantém para nós incognoscíveis”, e que
a experiência não seria capaz de nos fornecer o conteúdo necessário, por exemplo, as
ideias de Deus, alma e liberdade. Sendo assim, não sendo capaz de conhecer tais
realidades como são em si mesmas, constata-se a inviabilidade do conhecimento
metafísico, que nos leva a uma abstenção de negar ou afirmar tais realidades.

CIÊNCIA E METAFÍSICA: SEPARANDO MUNDOS

O caminho que fizemos até aqui nos permite a compreensão da complexidade da história
da ciência e a possibilidade de se pensar por muitos caminhos. É exatamente nessa
perspectiva que Kant, ao examinar as ideias metafísicas, se depara com as antinomias que
lhe permitem concluir a não possibilidade de afirmar ou negar algo sobre um pensamento
metafísico. Todavia, podemos acompanhar o raciocínio de Kant para entender que tal
conhecimento sintético a priori é possível. O conteúdo dos objetos a priori não
dependeriam deles especificamente, mas de nossa própria faculdade de conhecer.
Kant (2001; B2) sugere uma reflexão a partir do exemplo de alguém que, ao minar os
alicerces de sua casa, já poderia saber a priori que ela ruiria, ou seja, a pessoa não
precisaria esperar a execução da experiência para saber sobre o real desmoronamento. A
pessoa, porém, não poderia saber totalmente a priori sem que uma fonte de experiência
lhe tivesse revelado anteriormente tal conhecimento de que os corpos são pesados e,
quando retiramos seu sustentáculo, no caso da casa, ela cairia.

Por isso, os juízos a priori são aqueles considerados independentes de qualquer


experiência. Segundo Kant (2001, p. 63; B2), “dos conhecimentos a priori, são puros
aqueles em que nada de empírico se mistura”. A própria ideia de que tudo tenha uma
causa é uma ideia a priori, mas não é pura, porque, quando presumimos mudanças, essas
só podem advir da experiência. Mas, então, o que podemos pensar como uma ideia a
priori pura? A resposta é simples, a princípio: algo que não necessite de nenhuma
experiência, que possa ser pensado com rigorosa universalidade e que não se admita
nenhuma exceção. Um dos exemplos possíveis é a matemática. Tal fundamentação
conceitual da metafísica é fruto da herança de Platão e Aristóteles, mas a reflexão que
fazemos não é uma análise ou um aprendizado do que esses filósofos nos deixaram, pois
sua filosofia e questão acerca da metafísica são, ainda, para nós, um problema aberto.
Heidegger (1996, p. 18) nos orienta na compreensão do conceito dogmático que temos de
metafísica. A primeira coisa que ele nos aponta é que “o conteúdo da metafísica se deriva
da interpretação cristã do mundo” que nós temos, e que essa interpretação nos leva à ideia
de que todo ente não divino é criado, ou seja, o universo. O homem se coloca numa
posição superior por acreditar que possui uma alma e que será salvo de alguma maneira.
Abrimos, assim, uma senda para contemplarmos o mundo metafísico como uma realidade
possível. Um segundo motivo se refere ao “modo e método de seu conhecimento (da
metafísica)” (HEIDEGGER, 1996, p. 18), que coloca como objeto ao ente e ao sumo ente,
o que desperta um grande interesse.

Um dos objetivos do estudo e da fundamentação da metafísica é justamente o traspassar


a realidade física, pois, ultrapassando o sensível, poderemos apreender o suprassensível.
No entanto, ela deveria possuir um método rigoroso para nos fornecer essa passagem,
mas ainda carece desse método. Por isso, Kant falará sobre o conhecimento
transcendental, a partir do qual estabelece a síntese dessas problemáticas. “Chamo
transcendental a todo o conhecimento que em geral se ocupa menos dos objetos, que do
nosso modo de os conhecer, na medida em que este deve ser possível a priori.” (KANT,
2001, p. 79; B 25). Apesar de encontrar tal caminho, o filósofo acredita que tal filosofia
é demasiada ambiciosa para ser o início dessa ciência, que conteria tanto o conhecimento
analítico quanto o sintético a priori. Por isso, ele prefere não chamar esse pensamento de
uma doutrina, mas apenas de uma crítica transcendental.

Pensar a possibilidade de uma ontologia à categoria de um problema é o mesmo que fazer


a pergunta pela possibilidade, ou seja, pela essência dessa transcendência da compreensão
do ser, e é justamente isso que Kant chamará de filosofia transcendental, para não dizer
metafísica. Pela crítica de Kant, porém, podemos dizer que essa representa mais um
tratado do método do que propriamente um sistema, como ele mesmo disse não querer
denominar. Heidegger (1996, p. 24) diz que “isso não significa uma doutrina da técnica
do procedimento que pode ser empregado”, mas uma estruturação de uma interna de uma
ontologia, pois, ainda na ideia de Heidegger, a obra de Kant não pode ser tida como uma
teoria da experiência ou uma teoria das ciências positivas, e quem pensa assim
desconhece a verdadeira intenção de Kant.

Podemos concluir que um dos objetivos principais de Kant era estabelecer de que modo
a metafísica em comparação com outras ciências, como matemática e física, poderia
encontrar um caminho seguro pelo percurso da ciência. Assim, o conhecimento científico
é síntese a priori, que é garantido tanto pelos fenômenos, isto é, pelo objeto que aparece,
quanto pelo transcendental, isto é, o que o sujeito coloca nos objetos ao experimentá-los
e conhecê-los. Então, o conhecimento é possível por meio das estruturas transcendentais
presentes em nós, seja pela forma de captar os fenômenos no mundo, seja pela via do
intelecto, conceitos puros. Assim, dividimos o mundo, e a ciência e as teorias admitiriam
a possibilidade de um conhecimento puro. A metafísica jamais poderia ser uma ciência
aos moldes que pensamos a ciência enquanto o homem desejar pensar o absoluto e
incondicionado em detrimento do condicionado, que nos fornece respostas evidentes e
possíveis de serem pensadas e experimentadas.

SÓ ENCONTRAMOS NAS COISAS AQUILO QUE NÓS MESMOS


COLOCAMOS NELAS
Já dissemos, nessa seção, que Kant chama de transcendental todo tipo de conhecimento
que não se relaciona com objetos, mas com o modo que nós possuímos para conhecê-lo.
Tais modos podem ser definidos como a sensibilidade e o intelecto, e tais estruturas são
a priori no sujeito, porque são próprias a ele, e não aos objetos. Enquanto na metafísica
tradicional os transcendentais eram tidos como condições do ser, de tal forma que, se o
objeto não tiver tais condições, ele deixa de existir, em Kant veremos que há uma
reviravolta e que não há sentido falar de algum objeto sem que este esteja em relação ao
sujeito, por isso, Kant, na Crítica da Razão Pura, diz que isso significa “uma magnífica
pedra de toque daquilo que consideramos ser a mudança de método na maneira de pensar,
a saber, que só conhecemos a priori das coisas o que nós mesmos nelas pomos” (2001, p.
47; BXVIII).

Kant acompanhou o raciocínio de outras formas de conhecimento para compreender sua


estrutura, por exemplo, a matemática e a geometria, e ele percebe o mesmo que aconteceu
com a física, ou seja, revoluções no modo de pensar para que essas ciências se
estruturassem de tal forma que o caminho após elas não poderia ser mais perdido. Essa
revolução foi possível graças ao deslocamento da pesquisa física dos objetos para a razão
humana e, posteriormente, pela descoberta de que a razão encontra no mundo natural
aquilo que ela mesma coloca na natureza. Assim, a física e outras ciências alcançaram
status seguro de ciência.

Ao perceber que a física e outras ciências deixaram de fazer tentativas a palpadelas para
encontrar seu método, Kant quer pensar o mesmo para a metafísica, pois essa ainda se
mostra confusa. Poderíamos dizer que ela ainda permanece numa etapa de pré-ciência.
Mas, por que isso acontece? Por que a natureza concedeu ao homem uma tendência a
pensar problemas metafísicos? Será que o caminho à metafísica como ciência é possível?
As respostas para essas indagações podemos encontrar na própria formulação que Kant
define como Revolução Copernicana. Para ele, “até hoje admitia-se que o nosso
conhecimento se devia regular pelos objetos” (KANT, 2001, p. 45; BVI), mas as
tentativas a partir desse pressuposto não forneciam o conhecimento a priori mediante os
conceitos. A tentativa, então, se pautava em experimentar um método contrário para
verificar se as questões metafísicas se resolveriam melhor dessa maneira. Dessa forma,
os objetos deveriam regular pelo nosso conhecimento.

Kant (2001, p. 46; BVI) aponta que “trata-se aqui de uma semelhança com a primeira
ideia de Copérnico”. Se Copérnico não conseguia explicar os movimentos celestes ao
mesmo tempo em que admitia que toda a multidão de estrelas também fazia um
movimento em torno do espectador, tentou fazer girar o espectador, deixando os astros
imóveis. A mesma ideia pode ser empregada pela metafísica sobre a intuição dos objetos.
E chega-se à conclusão:

Se a intuição tivesse de se guiar pela natureza dos objetos, não vejo como deles se poderia
conhecer algo a priori; se, pelo contrário, o objeto (enquanto objeto dos sentidos) se guiar
pela natureza da nossa faculdade de intuição, posso perfeitamente representar essa
possibilidade.

(KANT, 2001, p. 46; BVII)


Para sair desse embaraço, Kant começa a pensar nas possibilidades, pois como ela não
poderia se deter nessas intuições, a reportaria como representação a qualquer coisa que
seja seu objeto. Assim, admitiria que os conceitos se regulam também pelo objeto para
saber por meio dele algo a priori. Ou poderia, ainda, pensar nos objetos, como nós os
conhecemos deveria regular por esses conceitos. De qualquer forma, para a experiência,
é preciso o uso do entendimento que tenho já em mim antes mesmo da experiência com
algum objeto. Aqui, Kant visualiza a própria mudança de método na forma de pensar, o
que o leva à compreensão de que o a priori é algo que nós mesmos colocamos nas coisas.
Por isso, o objeto é o que deveria girar em torno do sujeito, pois não é o sujeito
cognoscente que descobre as leis do objeto, mas ao contrário, o objeto cognoscível é o
que se adapta às leis do sujeito que o recebe. Segundo Reale e Antiseri (2004, p. 358),
essa ideia “coaduna melhor com a desejada possibilidade de um conhecimento a priori,
que estabeleça alguma coisa em relação aos objetos antes que eles nos sejam dados”.
Visualiza-se, então, a primeira de ideia de Copérnico e sua inversão do papel do
observador, deixando os astros em repouso. O mesmo Kant estabelece com a posição do
sujeito e do objeto.

CIÊNCIA TEÓRICA E PROVA PELA EXPERIÊNCIA SENSÍVEL

Para continuarmos nossa conversa a partir da filosofia de Kant e abordar especificamente


sobre a ciência teórica, precisamos ter em consideração que não pretendemos tratar da
metafísica dos costumes, mas somente daquela filosofia que se vale de elementos a priori,
ou seja, uma metafísica da natureza. Segundo Caimi (1989, p. 35), “esta ciência teórica é
a que em sentido estrito leva o nome de ‘metafísica’. Consiste em uma parte formal (que
se identifica com a filosofia transcendental ou ontologia) e uma parte material: a
‘fisiologia racional’”. A filosofia transcendental se refere aos objetos em geral, sem,
contudo, atender aos objetos dados, enquanto a fisiologia da razão pura se refere
diretamente à natureza como um conjunto dos objetos dados.

Tal fisiologia racional pode se encontrar tanto no campo da imanência quanto da


transcendência. A primeira considera a natureza na medida em que ela se revela a nós e
possui dois objetos: uma natureza corpórea sobre os objetos dos sentidos externos (física
racional) e uma natureza pensante (psicologia racional), que seria um objeto do sentido
interno. A segunda (fisiologia racional transcendente) considera uma conexão interna a
partir de uma totalidade, o que chamaríamos de conhecimento transcendente do mundo.
Quando tal conexão for externa, ligando a totalidade da natureza a um ser superior,
sobrenatural, poderemos dizer que seria esse o conhecimento transcendental de Deus.
Aqui, no entanto, interessa-nos que o progresso da ciência não seja meramente analítico,
mas sintético, pois o juízo analítico que formulamos a priori não recorre à experiência,
assim, é universal e necessário, mas não amplifica nosso conhecimento. Apesar de a
ciência utilizar esse tipo de juízo, não se baseia nele, ou seja, o juízo que a ciência deve
utilizar tipicamente não poderia ser o analítico a priori, mas um juízo sintético. Este, ao
contrário, sempre possibilita uma ampliação do nosso conhecimento, pois sempre nos diz
algo novo em relação ao sujeito e que tal conteúdo não estava implícito nele. Conforme
Reale e Antiseri (2004, p. 356), “os juízos experimentais, portanto, são todos sintéticos e,
como tais, ‘ampliadores do conhecer’. Entretanto, a ciência não pode se basear neles
porque, precisamente por dependerem da experiência, são todos a posteriori e, como tais,
não podem ser universais e necessários”. No máximo, o que podemos fazer com tais
juízos é extrair algumas generalizações, mas de forma alguma a universalidade ou a
necessidade.
Por isso, está claro para nós que a ciência tem como base um outro tipo de juízo. Este tipo
de juízo que “a um só tempo une a aprioridade, ou seja, a universalidade e a necessidade,
com fecundidade, e portanto a ‘sinteticidade’. Os juízos constitutivos da ciência são juízos
‘sintéticos a priori’” (REALE; ANTISERI, 2004, p. 357). Se tomamos o exemplo das
operações aritméticas, percebemos que são sínteses a priori, pois o juízo 2 + 2 = 4 não
pode ser analítico, mas é sintético. Mesmo quando recorremos aos dedos das mãos para
efetuar a conta, recorremos à intuição pela qual vemos nascer de forma sintética o novo
número, resultado da soma.

A Crítica da Razão Pura, então, ocupou-se do aspecto cognoscível da razão humana, ou


seja, a faculdade teórica, que chegava à análise denominada pela experiência dos
fenômenos. Seria o intelecto, ao impor aos fenômenos a sua lei, que os constituiria
natureza. Enquanto isso, na Crítica da Razão Prática, o movimento é ao contrário, pautado
pela liberdade, o que não pode ser explicado no âmbito da teoria, mas da prática. Assim,
o domínio prático pode nos representar as coisas em si mesmas, enquanto o domínio
teórico, que é o que nos interessa aqui, só pode nos representar as coisas enquanto
fenômenos trilhados pelo conhecimento sensível.

Nessa seção, vimos a respeito da ciência nos limites da pura razão a partir de ideias
especificamente de Kant sobre como elaborar um raciocínio para a fundamentação da
ciência contra o ceticismo. Também, como esse pensador alemão define e compreende o
papel da metafísica, que divide as opiniões desde a tradição. Por essa investigação de uma
filosofia teórica, chegamos à conclusão de que somente por esse caminho podemos fazer
valer a máxima de que só encontramos nas coisas aquilo que nós mesmos colocamos
nelas. Por fim, chegamos à ciência teórica para compreender os caminhos que Kant
trilhou para compor sua crítica à razão pura e preparar os caminhos para uma crítica da
razão prática.

FAÇA A VALER A PENA

Questão 1

Segundo Reale e Antiseri (2004, p. 351), o conhecimento sensível para Kant “é


constituído pela ‘receptividade’ do sujeito, o qual sofre certa afecção pela presença do
objeto”, enquanto o conhecimento inteligível ou intelectivo “é, ao contrário, a faculdade
de representar os aspectos das coisas que, por sua própria natureza, não são captadas pelo
sentido”.

A citação do texto de Reale e Antisseri se refere à(ao):

a. Revolução copernicana na filosofia implementada por Kant.

Correto!
A partir dessa citação, podemos compreender que não é o sujeito que se adequa ao objeto,
mas o objeto que se adequa ao sujeito do conhecimento. Por isso, nos referimos à
Revolução copernicana que Kant implementa na filosofia.

b. Crítica à metafísica, a qual, para Kant, não é possível ser ciência.

c. Forma que o sujeito deve se adequar ao objeto para alcançar conhecimento.

d. Certeza de Kant de que a metafísica pode ser uma ciência.

e. Momento em que Kant se desperta de seu sono dogmático.

Questão 2

Kant (2001) sugere uma reflexão a partir do exemplo de alguém que, ao minar os alicerces
de sua casa, já poderia saber a priori que ela ruiria, ou seja, a pessoa não precisaria esperar
a execução da experiência para saber sobre o real desmoronamento. Mas, a pessoa não
poderia saber totalmente a priori sem que uma fonte de experiência lhe tivesse revelado
anteriormente tal conhecimento de que os corpos são pesados e, quando retiramos seu
sustentáculo, no caso da casa, ela cairia.
À qual tipo de juízo Kant se refere nesse texto?

a. Aos juízos a priori puros, pois não poderíamos nos recorrer à experiência para saber sobre isso, já está
em nossa razão tal conhecimento.

b. Aos juízos a priori não puros, pois só existe a possibilidade de se pensar algo sem a interferência da
experiência.

c. Aos juízos a posteriori, pois alguém só pode saber alguma coisa a partir do momento que vivenciou a
experiência concreta.

d. Aos juízos a posteriori, pois ninguém tem uma estrutura racional a priori para receber os conteúdos da
experiência.

e. Aos juízos a priori, mas não em sua forma pura, pois, quando presumimos a ruina da casa, essa só pode
advir da experiência.

Correto!

Os juízos a priori são aqueles considerados independentes de qualquer experiência.


Segundo Kant (2001, p. 63; B2), “dos conhecimentos a priori, são puros aqueles em que
nada de empírico se mistura”. Mas, no caso, é preciso considerar que tal conhecimento a
priori não seja puro, pois necessita da experiência para saber que a casa ruiria.

Questão 3
A Crítica da razão pura ocupou-se do aspecto cognoscível da razão humana, ou seja, a
faculdade teórica, que chegava à análise denominada pela experiência dos fenômenos.
Seria o intelecto, ao impor aos fenômenos a sua lei, que os constituiriam natureza.
Enquanto isso, na Crítica da razão prática, o movimento é ao contrário, pautado pela
liberdade, o que não pode ser explicada no âmbito da teoria, mas da prática.

A partir do texto-base, podemos afirmar que a consequência dessa ideia é:

a. Pensar que o domínio prático não pode representar as coisas em si.

b. Pensar que o domínio prático só pode representar as coisas enquanto fenômeno.

c. Pensar que o domínio teórico só pode representar as coisas pelo conhecimento sensível.

Correto!

O domínio prático pode representar as coisas em si mesmas, enquanto o domínio teórico


só pode representar as coisas enquanto fenômenos trilhados pelo conhecimento sensível.

d. Pensar que o domínio teórico só pode representar as coisas enquanto coisa em si.

e. Pensar que tanto o domínio prático quanto o teórico utilizam o conhecimento sensível.

REFERÊNCIAS

ARANHA, M. L. de A.; MARTINS, M. H. P. Filosofando: introdução à filosofia. 6. ed.


São Paulo: Moderna, 2016.
CAIMI, M. P. M. La metafísica de Kant. Buenos Aires: Eudeba, 1989.
DANOWSKI, D. David Hume, o começo e o fim. Kriterion: Revista de Filosofia, Belo
Horizonte, v. 52, n. 124. p. 293-305, dez. 2011. Disponível em: https://bit.ly/3BK0HEF.
Acesso em: 3 jul. 2021.
HEIDEGGER, M. Kant y el problema de la metafísica. México: Fondo de Cultura
Económica, 1996.
KANT, I. Crítica da razão pura. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia: de Spinoza a Kant. v. 4. São Paulo:
Paulus, 2004.
WOOD, A. W. Kant. Porto Alegre: Artmed, 2008.

FOCO NO MERCADO DE TRABALHO


A CIÊNCIA NOS LIMITES DA PURA RAZÃO
Tiago Eurico de Lacerda
SEM MEDO DE ERRAR

Num primeiro momento, é importante voltar ao texto da seção e rever a elaboração do


percurso da ciência nos limites da pura razão. Retome as ideias de ciência, ceticismo e
metafísica. Depois, seria interessante dar espaço a uma abordagem que trouxesse o senso
comum dos alunos sobre as questões metafísicas e confrontasse tais ideias com a própria
noção de metafísica levantada por Kant. Aproveite Platão e Aristóteles para relembrar
uma fundamentação da metafísica e como depois, na Idade Média, reforçamos tal
conceito a partir da fundamentação dos valores cristãos.

Após esse percurso, a pergunta sobre o comportamento das pessoas nos Estados Unidos
é cabível aqui. Primeiro, deve-se enaltecer a imagem que o próprio país tem de si, uma
potência mundial com uma ciência extremamente avançada e recursos tecnológicos de
ponta. Contudo, se o professor quiser, pode, inclusive, tocar no assunto do país, imagem
do capitalismo, e exaltar uma imagem cristã, quiçá por uma ética protestante, assim
perceberíamos que no ápice da ciência não se exclui a religiosidade (é um conceito de
Habermas, em Fé e Saber, sobre a engenharia genética e a coexistência na sociedade
secular do poder científico e religioso, ambos devem coexistir e conviver sem que um se
sobreponha ao outro).

Após essas possibilidades, fica mais fácil trazer a pergunta: por que, na modernidade,
com tantas respostas científicas disponíveis, as pessoas ainda se voltam aos pensamentos
metafísicos? É importante deixar os alunos anotarem essas respostas e em grupo
discutirem para perceberem se há entre eles uma compreensão do papel da metafísica na
atual sociedade, ou se apenas conseguem visualizá-la a partir de uma concepção dos
antigos e medievais. Ao final, retomar os conceitos kantianos para fechar a atividade.
Cada parte dessa proposta pode ser feita em uma aula separada, para que os alunos tenham
tempo de pesquisar e elaborar melhor suas respostas, pois, se for em uma aula apenas, o
professor já deve ter a resposta pronta para apresentar.

AVANÇANDO NA PRÁTICA
APROVAÇÃO DE VACINA E A CIÊNCIA NO BRASIL

O mundo vive em meio a uma pandemia. As diversas hipóteses levantadas pela ciência
para encontrar um caminho para a cura resultou em dezenas de vacinas advindas de
diversas partes do mundo. O Brasil, no entanto, enfrentou alguns obstáculos para a
aprovação de algumas dessas vacinas. Você é, agora, o encarregado de justificar os
motivos de tal demora na aprovação. Aproveite o caso da CPI da Covid no caso da vacina
Sputnik, de origem russa, ou da Coronavac, do Instituto Butantan.
O senso comum acredita que a demora tem apenas elementos políticos, enquanto há
outros científicos envolvidos nesse processo. Como você responderia ou julgaria essa
demora baseado nessa seção que estudamos?

RESOLUÇÃO

Uma primeira tentativa de respostas para essa questão seria levantar quais são os
eventuais problemas gerados pelo atraso das vacinas. A segunda coisa a se fazer é separar
o senso comum do que realmente é ciência e, assim, afastar o pensamento cético quanto
aos procedimentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), para poder
conversar de uma forma mais racional sobre os procedimentos necessários para se aprovar
uma vacina.
Vimos que Ricardo Lewandowski, na época, estipulou o prazo de até o final do mês de
abril de 2021 para a Anvisa dar sua decisão quanto à importação excepcional e temporária
da Sputnik. Tal vacina já tinha negociações avançadas no Brasil, mas o órgão federal
pediu mais tempo, a fim de avaliar melhor alguns pontos, como segurança, eficácia e
qualidade. Em meio a esse processo, geraram-se discursões sobre se as análises do
procedimento científico de avaliação eram mesmo verídicas ou se o governo queria
apenas negociar antes os medicamentos paliativos, como a hidroxicloroquina. As
respostas podem ser elaboradas de forma que as argumentações girem em torno do debate
sobre a importância da ciência e as tentativas políticas que podem impedir tal progresso
de ser eficaz.

NÃO PODE FALTAR


PROVAS E DEMONSTRAÇÕES CIENTÍFICAS:
DA LÓGICA ARITMÉTICA À LÓGICA DA
PESQUISA
Ádamo Bouças Escossia da Veiga
CONVITE AO ESTUDO

Caro aluno, seja bem-vindo a mais uma unidade. Continuamos nosso percurso pela
filosofia da ciência e, agora, abordaremos novos conteúdos que lhe farão mais apto a
compreender a própria ciência e sua prática.
Nesta unidade, começaremos por estudar o positivismo novecentista e o positivismo (ou
empirismo) lógico. São duas importantes filosofias que marcaram profundamente a
concepção filosófica da ciência no séc. XIX e XX. Tanto um quanto o outro mobilizaram
grande fé no potencial transformador na ciência e na adequação do seu método de
investigação do mundo natural. A concepção de progresso, notável no positivismo
novecentista, marcou em muito nosso imaginário social e o positivismo lógico, por sua
vez, levou a importantes desenvolvimentos na compreensão da linguagem e da lógica.
Em seguida, veremos as críticas que o ideal de progresso científico sofreu ao longo do
século passado. Analisaremos a influente crítica de Thomas Kuhn à noção de progresso
cumulativo nas ciências. Neste sentido, veremos o construtivismo em filosofia da ciência,
uma concepção muito influente e bastante difundida no pensamento contemporâneo. A
importância do contexto da prática científica, a sua historicidade, as suas revoluções e
paradigmas, serão por nós analisadas neste percurso.

Após essa etapa, veremos desdobramentos dessa crítica ao lugar da ciência, conforme
herdado do positivismo. Os problemas da relação entre ciência e sociedade, como os
apontados por Paul Feyerabend, serão estudados ao longo da unidade. Também veremos
o importante conceito de “jogos de linguagem”, de Ludwig Wittgenstein, e o papel central
da noção de reflexividade na filosofia da ciência – papel bastante discutido no pensamento
contemporâneo. No lugar do ideal de progresso, o pensamento filosófico sobre a ciência
no mundo atual tem se pautado por uma compreensão reflexiva e construtivista da prática
científica e, por isso, é muito importante dominar bem esses conteúdos.
A filosofia da ciência é uma das áreas da filosofia mais relevantes e, por isso, em termos
profissionais, é necessário compreender bem os seus principais conceitos. Ela tem um
apelo interdisciplinar imediato com as ciências sociais e exatas, e a interdisciplinaridade
é cada vez mais valorizada, seja em termos de Matriz Curricular do Enem e da Base
Nacional Comum Curricular, seja no mercado de trabalho de forma ampla. Relacionar os
diversos campos do saber é uma habilidade essencial, e o estudo da filosofia da ciência
vai lhe dar importantes ferramentas nesse sentido.
Mais uma unidade descortina-se diante de você. Mais uma etapa dos seus estudos. Siga
com a mesma perseverança que tem demonstrado até agora, a mesma motivação e amor
pelo conhecimento, e verá, ao fim deste percurso, que terá valido a pena.

PRATICAR PARA APRENDER

Caro aluno, seja bem-vindo a mais uma seção, a mais uma etapa neste interessante
percurso pela filosofia da ciência. Continuaremos a investigar e analisar no que consiste
a ciência, seu método e sua importância central na nossa vida.
Nesta seção, vamos estudar o positivismo. Trata-se de um importante movimento
filosófico do séc. XIX. O positivismo é herdeiro das grandes filosofias da história deste
século e argumenta pelo contínuo progresso humano mobilizado pela ciência. No Brasil,
nossa República foi proclamada sob a influência dessa filosofia e o “Ordem e Progresso”
da nossa bandeira é uma marca dos ideais positivistas. Esse tipo de convicção no
progresso humano, não obstante, caiu em franco desuso no pensamento filosófico
contemporâneo, por mais que, na sociedade em geral, seja um dos elementos estruturantes
da nossa visão de mundo. Veremos, nesta seção, o que foi o positivismo e a sua crítica.
Em seguida, analisaremos o positivismo ou empirismo lógico. Trata-se de um movimento
inspirado no positivismo do séc. XIX, que demonstrou grande preocupação com o papel
da filosofia em relação à ciência e com a linguagem lógica e científica. O positivismo
lógico influenciou de forma bastante central o desenvolvimento da filosofia no séc. XX,
sobretudo nos países de língua inglesa. Nascido em Viena – e, por isso, conhecido como
“Círculo de Viena” –, influenciou toda a filosofia Ocidental. Veremos a importância, para
esse movimento, dos conceitos de analiticidade e verificabilidade e a sua relação com a
ciência.
Veremos também o importante pensamento de Karl Popper, filósofo ligado ao Círculo de
Viena. Popper, ao investigar o que separa a ciência dos demais campos, chegou à
conclusão de que é a falseabilidade, ou seja, um discurso científico é aquele que pode se
mostrar falso mediante evidências. Vamos ver no que isso consiste e como esse conceito
é útil na precisão da especificidade do saber científico em relação aos demais. A
influência de Popper foi muito significativa na filosofia da ciência e, por isso, é
importante conhecê-la bem.

Para contextualizar a sua aprendizagem, imagine a seguinte situação: Thiago é um


professor de filosofia, especialista na área de filosofia da ciência. Sua pós-graduação foi
nesse campo e sua atuação profissional igualmente. Dedica-se à docência de matérias
sobre o tema, conferências e palestras, e também à divulgação científica. Quanto a este
último ponto, conseguiu certo renome e, por conta disso, foi convidado para um programa
de entrevistas.

O programa é em um canal de televisão voltado a assuntos culturais, e o professor vê


nisso uma boa oportunidade de divulgar a filosofia. Thiago foi convidado para um painel
no qual participará de um debate com um escritor conhecido, Marcelo Silva. O escritor
acabou de lançar um livro de sucesso comercial significativo, defendendo o papel da
astrologia na autoajuda. Nessa obra, Silva defende que a astrologia é uma ciência, tal
como a física ou a biologia e, para tal, baseia-se no caráter matemático dos cálculos
astrológicos e na antiguidade da disciplina. O apresentador pede que Thiago comente
precisamente esse ponto, mobilizando seus conhecimentos de filosofia da ciência, a fim
de responder se a astrologia pode ou não ser considerada uma ciência.
Thiago aceita o convite. No entanto, logo vê que não poderia se alinhar à defesa de Silva
acerca da cientificidade da astrologia. Na sua formação intelectual, não encontra
subsídios capazes de sustentar a posição de Silva e, após ler o livro do autor, não é
convencido pelos seus argumentos. Assim, Thiago terá que argumentar no painel que a
astrologia não é uma ciência. No lugar de Thiago, como você argumentaria? Que
elementos da filosofia da ciência ele poderia expor para demonstrar que a astrologia não
é científica?

Começamos, assim, mais uma etapa na sua formação, mais um passo em uma longa
caminhada que, certamente, renderá seus devidos frutos. Vamos nos aprofundar mais um
pouco na filosofia da ciência e, a cada nova seção, você se torna mais apto na
compreensão acerca do que é a ciência. Vamos lá?

CONCEITO-CHAVE

O POSITIVISMO

O positivismo foi uma doutrina filosófica muito importante e influente no séc. XIX e
meados do XX. Seu fundador e proponente, Auguste Comte (1798-1857), foi um dos pais
fundadores da sociologia enquanto ciência. Apesar de, no pensamento contemporâneo, o
positivismo ser, em geral, considerado ingênuo e defasado, sua importância no passado
foi bastante considerável. No Brasil, a nossa República foi proclamada sob a influência
de intelectuais positivistas que mantiveram grande influência nos seus primeiros anos. O
lema da bandeira nacional, “Ordem e Progresso”, deriva do positivismo e é uma
adaptação do lema formulado por Comte, que afirma "O Amor por princípio e a Ordem
por base; o Progresso por fim". Benjamin Constant (1836-1891), por exemplo, intelectual
e militar brasileiro, era adepto do positivismo e teve um papel significativo na
Proclamação da República. Até hoje, ainda funciona no bairro da Glória, Rio de Janeiro,
a Igreja Positivista do Brasil, fundada no início do séc. XX por filósofos positivistas
brasileiros.
O principal elemento filosófico do positivismo é a sua crença no progresso científico e
humano a partir de uma lei histórica. Esse ideal é herdeiro das grandes filosofias da
história do séc. XIX. Georg Hegel, eminente filósofo germânico, defendia que a história
avançava em um processo dialético de tese, antítese e síntese; Karl Marx, um dos mais
influentes pensadores da história, a partir de Hegel, argumenta que o motor da história é
a luta de classes e que, pelo menos nos seus textos de juventude, ela termina em uma
sociedade comunista sem divisão em classes sociais. O positivismo, se distinto dessas
duas filosofias, herda delas a concepção de um desenvolvimento histórico regido por leis,
com um propósito e um fim.

Comte, em seu famoso Curso de filosofia positiva (1978), identifica três estágios no
desenvolvimento humano. O primeiro, o estágio teológico, seria dominado por
explicações sobrenaturais, míticas e religiosas, para os fenômenos naturais. Seria, grosso
modo, o estágio dominado pelo mythos antes do logos. Em seguida, teríamos o estágio
metafísico, no qual os entes sobrenaturais são substituídos por entidades abstratas, como
ideias, substâncias, essências, causas finais etc. Por fim, teríamos o estágio positivo no
qual, finalmente, se chegaria a uma compreensão adequada dos fenômenos a partir da
ciência. Nesse estágio, o foco está apenas na determinação das leis governando o mundo
natural, sem recurso a verdades dogmáticas e princípios transcendentes, e com esse
pensamento formaram-se as sociedades industriais modernas.

O positivismo mobiliza uma fé bastante considerável no progresso científico e na


capacidade humana de conhecer o universo através dele. Se não chega a afirmar que a
ciência nos dá um conhecimento imediato da verdade, Comte afirma que ela apresenta
uma aproximação permanente, dando-nos, cada vez mais, informações seguras sobre o
mundo. A verdade é aproximada, gradativamente, pela ciência, e o caminho até ela, se
longo, segue sempre reto.

Por conta desse otimismo e fé no método científico, ao longo do séc. XX, o positivismo
caiu em desuso. A razão mais imediata para isso foram as grandes guerras que fizeram
com que a maior parte dos intelectuais ocidentais revisassem a crença dominante no séc.
XIX, de que a humanidade progredia incessantemente. Ao verem a utilização da ciência
para a destruição em larga escala, tornou-se difícil defender o progresso contínuo. Nesse
sentido, a filosofia contemporânea rejeita, de forma quase unânime, toda concepção
teleológica da história, seja ela a positivista ou mesmo a hegeliana e marxista. De todo
modo, na sociedade ampla, o mito do progresso ainda retém grande influência, de forma
que se pode afirmar, com certa cautela, que ainda pensamos e imaginamos a história
humana sob essa perspectiva. A literatura do gênero ficção científica, por exemplo,
expressa bem a pregnância desse ideal na nossa cultura. Surgida no séc. XIX, em geral,
ela imagina um futuro mais tecnologicamente desenvolvido que o presente, expressando
uma noção de progresso bastante característica das grandes filosofias da história.

ASSIMILE
Teleologia: do grego telos (fim ou finalidade), concepção que toma a razão dos
fenômenos a partir da sua finalidade. Aristóteles, por exemplo, mobiliza uma forte
teleologia em sua teoria das causas finais e do motor imóvel. Na modernidade, a história
passa a ser concebida como orientada a fins, como em Hegel e Marx. Essa concepção está
em desuso e, nesse sentido, identificamos vastos esforços de interpretação, tanto de Marx
quanto de Hegel, visando diminuir ou mesmo rejeitar a dimensão teleológica do seu
pensamento. Em relação a Hegel, temos na obra de Slavoj Zizek, uma grande referência
e, quanto a Marx, temos na obra de Alain Badiou, Michael Löwy, dentre outros, um
esforço em igual sentido.

FOCO NA BNCC
A BNCC, coloca entre as competências esperadas do aluno ao término da sua formação
básica, “Analisar processos políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais nos
diversos âmbitos em diferentes tempos, a partir da pluralidade de procedimentos
epistemológicos, científicos e tecnológicos, de modo a compreender e posicionar-se
criticamente em relação a eles”.
O positivismo se insere no desenvolvimento desta competência. A ideia do progresso
contínuo é uma constitutiva histórica da nossa visão de mundo Ocidental. Mais, ainda,
por ser Comte um dos fundadores da sociologia, o conteúdo tem caráter interdisciplinar,
o que é valorizado pela BNCC.

O POSITIVISMO LÓGICO E O CÍRCULO DE VIENA

O positivismo lógico ou empirismo lógico consiste em um amplo conjunto de debates e


posições, muitas vezes contraditórias entre si. O Círculo de Viena, grupo de pensadores
que se reuniam nessa cidade no início do séc. XX, é estreitamente ligado ao empirismo
lógico e, mesmo que depois o movimento tenha se expandido para outras partes da Europa
e para os Estados Unidos, é, em geral, referenciado enquanto “Círculo de Viena”. Entre
os pensadores ligados ao Círculo, temos Rudolf Carnap, Moritz Schilick, Wilfrid Sellars,
Karl Popper, Ludwig Wittgenstein e diversos outros. Dentre as preocupações gerais
desses pensadores, temos, sobretudo, a do estatuto da filosofia em relação à ciência e a
questão da linguagem. Igualmente, o Círculo caracterizou-se por uma ampla rejeição à
metafísica, como veremos posteriormente (CREATH, 2017).
A separação profissional e acadêmica entre filosofia e demais ciências (física, biologia,
sociologia, psicologia etc.), ao longo do séc. XIX, revelou-se problemática para os
filósofos do início do XX: qual o lugar da filosofia, se ela ainda tinha algum, diante das
ciências? A resposta do Ciclo de Viena é a de procurar estabelecer uma filosofia
científica; e, nesse sentido, a filosofia deveria se pautar pelo estudo, compreensão e
análise da lógica e da matemática.

A relação entre lógica e ciência não é imediatamente clara, como pode parecer. A lógica
e a matemática são disciplinas abstratas. Nós não vemos, na natureza, um triângulo ou
quadrado enquanto figuras geométricas; tampouco vemos a realidade a partir de um plano
cartesiano. Essas questões, se suscitaram desde sempre grandes questões filosóficas, no
início do séc. XX, tornaram-se mais agudas, conforme se descobriu a pertinência
matemática de espaços não-euclidianos (espaços com mais de três dimensões), e quando
Einstein, utilizando-se desses espaços, prova cientificamente a validade da sua hipótese
da teoria da relatividade, segundo a qual, o espaço-tempo é curvo e relativo ao observador.
Com base nesses problemas que os filósofos associados ao Círculo de Viena começaram
a refletir em que consistiria uma filosofia científica, em que consiste a própria ciência e
qual a sua relação com a filosofia (CREATH, 2017).

Nesse sentido, temos uma preocupação central com a linguagem. Mobilizou-se grandes
esforços no sentido da produção de uma linguagem lógica ideal, sem equívocos. O cálculo
de predicados, desenvolvido por Gottlob Frege e Charles Pierce, é um marco nesse
sentido e influenciou o Círculo de Viena. Tratava-se de reduzir a linguagem a uma
dimensão lógica formal e, assim, passível de significação clara e sem equívocos.
O pensamento de Wittgenstein é uma influência central no Círculo de Viena. Para o
filósofo, as antigas questões metafísicas – qual a origem do Universo? qual o elemento
fundamental da existência? – não passam de efeitos da linguagem. Essas perguntas
mantêm-se insolúveis por não terem sido formuladas adequadamente. Bertrand Russel,
discorrendo sobre o pensamento de Wittgenstein, traz um exemplo simples e muito
ilustrativo. Em termos metafísicos, pode-se indagar: “qual o começo de todas as coisas?”
Seguindo Wittgenstein, devemos antes nos perguntar: qual o sentido da palavra “começo”
nessa pergunta? Nós falamos de começo e fim, a fim de marcar um ponto determinado
no tempo, por exemplo, para dizer que o filme a que assistiremos no cinema começa às
19 horas. Nesse contexto, faz sentido falar de um “começo”: ele tem um sentido bem
determinado, um antes e um depois. Já na pergunta pelo “começo” de tudo, a mesma
palavra não tem esse sentido e nem pode ter. Se usamos o termo “começo” para marcar
um ponto determinado no tempo, como podemos falar de começo de todas as coisas, sem
que haja algo antes? “Perguntar por um início sem nada antes é como perguntar por um
quadrado redondo” (RUSSEL, 2003, p. 494-495). Assim, a partir desse exemplo,
podemos ver como, para Wittgenstein, grandes questões metafísicas derivam, em grande
parte, de confusões na linguagem. Nesse espírito, o Círculo de Viena afasta-se desse tipo
de questão, argumentando, precisamente, que não passam de falsos problemas, sempre
respondidos por uma verborragia inútil e sem sentido.
Dois elementos centrais das preocupações do Círculo de Viena precisam ser destacados:
o verificacionismo e a analiticidade.

Verificacionismo. Trata-se de um princípio que afirma que “o significado de uma


proposição é o seu método de verificação” (RUSSEL, 2003, p. 491). Sua primeira
formulação robusta foi realizada por A. J. Ayer, um dos principais nomes do Círculo de
Viena. O princípio de verificabilidade afirma, basicamente, que (1) enunciados só têm
sentido se forem passíveis de serem verificados empiricamente ou, (2) se são analíticos,
ou seja, verdadeiros em função da sua definição – veremos em detalhe este segundo
aspecto, quando tratarmos da noção de analiticidade. Ayer argumenta que enunciados que
não podem ser verificados empiricamente não são verdadeiros nem falsos: simplesmente
não têm sentido. Discursos míticos e religiosos, para o filósofo, entram nessa categoria,
assim como, no espírito do Círculo, os discursos metafísicos. O enunciado “Deus existe”,
por não ser passível de verificação na experiência, para Ayer, seria completamente
desprovido de sentido. Já o enunciado “está chovendo agora na cidade do Rio de Janeiro”
é um enunciado factual de verificação empírica possível e bastante simples: basta ir para
a rua na cidade em questão para ver se chove ou não. Note que, aqui, temos uma defesa
forte e bem clara do empirismo – os sentidos, a observação, é o que lastreia o sentido de
um enunciado (CREATH, 2017).

Ayer argumenta que a verificação, não obstante, só vale para enunciados sintéticos. Um
enunciado desse tipo é aquele em que o predicado não está contido ou não deriva
necessariamente do sujeito. Por exemplo: “esta casa é verde”. “Ser verde” é um predicado
que não deriva da definição de casa (o sujeito da proposição). Por conta disso, é um
enunciado que só pode ser verificado empiricamente – ou seja, vendo se a casa é verde
ou não. No entanto, para além dos enunciados sintéticos passíveis de verificação empírica,
existe outra ordem de enunciados que, mesmo que não verificáveis, são verdadeiros. São
os enunciados analíticos. Veremos como o conceito de analiticidade foi central para o
positivismo lógico e além.

Analiticidade. O conceito de “análise” foi central para o positivismo lógico e, para além
dele, para toda a filosofia do séc. XX em diante. Ele remonta a filosofia crítica de
Immanuel Kant. Para o filósofo, um juízo é analítico quando o predicado está contido no
sujeito. Na proposição, “todo corpo é extenso”, o predicado “extenso” está contido no
conceito de “corpo” que, enquanto sujeito, envolve o predicado. A definição de “corpo”
envolve a extensão – é contraditório e impossível pensar em um corpo não extenso. Para
o positivismo lógico, a partir da notável influência do pensamento de Wittgenstein, a
analiticidade passa a se referir a todo juízo universalmente válido. Proposições analíticas
são aquelas verdadeiras em função da própria definição dos termos e cuja contradição é
sempre, por si mesma, contraditória. Na proposição, por exemplo, “todo homem solteiro
não é casado”, pode-se ver como ela é imediatamente e necessariamente verdadeira, dado
que, pela própria definição de “homem solteiro”, está contido o predicado “não ser
casado” (ABBAGNANO, 2007).

ASSIMILE
Sintético: o predicado não está contido no sujeito.

Analítico: o predicado está contido no sujeito.

Esses enunciados são tautológicos: são enunciados sempre verdadeiros, a partir da


definição dos seus termos. Para Wittgenstein, a matemática seria uma ciência não
verificável, cuja validade deriva do seu caráter tautológico. Tomando um exemplo muito
simplificado, quando afirmamos “Um triângulo tem três lados”, este enunciado é válido
a partir da própria definição de triângulo enquanto figura geométrica de três lados. É
importante notar que sua validade independe da verificação. A matemática e a lógica
seriam ciências tautológicas, pois partem de definições básicas deduzindo consequências
necessárias a partir delas, sem que, para isso, seja necessário se reportar ao mundo
sensível (ABBAGNANO, 2007).

EXEMPLIFICANDO

1. Enunciado sintético:
o Pedro é alto.
o O prédio tem três andares.
o A Terra orbita ao redor do Sol.
2. Enunciados analíticos:
o Todo triângulo tem três lados.
o O corpo é extenso.
o O ser humano não é um cachorro.

POPPER E A FALSEABILIDADE: DEMARCANDO AS FRONTEIRAS DA


CIÊNCIA

Karl Popper é considerado um dos maiores filósofos da ciência e seu pensamento teve
notável influência. Popper desenvolveu seu pensamento em profícuo diálogo com o
Círculo de Viena, influenciando e sendo influenciado pelo pensamento dos seus
pensadores. Vimos há pouco que, para o Círculo, a separação entre filosofia e ciência foi
uma questão importante. Popper, por sua vez, indaga sobre o que separa a ciência das
demais áreas, da pseudociência e da não ciência. O que difere a astrologia da astronomia,
da metafísica, da física?

Para Popper, a resposta está na falseabilidade. Esse critério é formulado a partir de uma
crítica à indução enquanto método científico. Grande parte da filosofia da ciência de sua
época defendia que a ciência partia do particular para o universal. A partir da observação
de dados empíricos, chega-se a leis universais sobre a natureza. Popper, por sua vez,
identifica nisso o seguinte problema: a prática científica não é imediatamente neutra, no
sentido de observar de forma pura os fatos a partir dos quais induz as leis; há sempre
algum viés, dado por certa disposição teórica do cientista ou mesmo pelos instrumentos
de medição. Mais ainda é possível encontrar evidências empíricas para quase toda
proposição universal (THORTON, 2021). Thomas Kuhn (2017), outro importante
filósofo da ciência, demonstra historicamente como diversas teorias científicas que se
mostraram equivocadas conseguiam levantar amplas evidências empíricas em seu favor.
Desse modo, a indução apresenta sérios problemas se tomada como base do pensamento
científico: 1) os dados singulares apreendidos não o são de forma pura, sem intervenção
de preconcepções teóricas; 2) há dados singulares capazes de corroborar praticamente
qualquer hipótese universal. Assim, para além da indução, como demarcar o que separa
ciência da não ciência?

Para Popper, uma teoria é científica se é possível ser falseada, contradita por algum
elemento da experiência sensível. É interessante notar que Popper está oferecendo um
critério negativo enquanto definidor da ciência. A ciência se define, não como se poderia
esperar, pela sua verdade propriamente, mas pelo fato das suas teses poderem ser
refutadas. Uma hipótese científica, por exemplo, a da forma redonda do planeta Terra, é
passível de ser refutada se, porventura, um astronauta em órbita a visse como plana. A
hipótese pode ser contradita pela experiência. Popper utiliza como exemplos de hipóteses
não falseáveis o marxismo e a psicanálise freudiana; não obstante, para fins didáticos,
tomemos a seguinte hipótese, mais simples: “Zeus é o criador de todo o Universo”. Essa
hipótese não é científica, precisamente porque não pode ser contradita por nenhum evento
empírico – que dado sensível seria capaz de mostrar que Zeus não é criador do Universo?
O mesmo vale, por exemplo, para a astrologia. Que dado poderia mostrar que os astros
não afetam nossa personalidade e comportamento? Nenhum. Dessa forma, a astrologia,
para Popper, também não é uma ciência.

Popper considera que um enunciado universal só tem estatuto científico se puder ser
apresentado como incorreto por um “enunciado básico” (basic statement). Esse tipo de
enunciado tem duas características: deve ser singular e existencial e deve ser passível de
testes intersubjetivos. O primeiro aspecto expressa que a instância que falseia a teoria
universal não pode ser ela mesma universal. Logicamente, o que contradiz uma afirmação
universal é uma sentença singular; por exemplo, se digo que à noite todos os gatos são
pardos, para contradizer essa afirmação basta afirmar que existe um gato que não é pardo
à noite Se eu digo que todos os homens são mamíferos, bastaria eu encontrar um homem
que não é mamífero para falsear essa hipótese.

O segundo aspecto, por sua vez, afirma que, mesmo a evidência empírica, tem que ser
submetida a testes, não podendo ser simplesmente aceita. Essa testagem requer uma
comunidade intersubjetiva, o que significa que deve ser passível de publicidade e de
reiteração pela comunidade científica (THORTON, 2021).

REFLITA
Na atualidade, muito se fala em teorias da conspiração. A teoria chamada “QAnon”, por
exemplo, defende que uma grande organização de satanistas pedófilos controla o governo
mundial e que o ex-presidente americano, Donald Trump, seria o grande líder capaz de
desmascará-los. Essa teoria, bastante curiosa, mobilizou a invasão do Capitólio
americano, em janeiro de 2021, demonstrando o perigo político desse tipo de discurso. O
terraplanismo – que defende a forma plana da Terra e a existência de uma conspiração
para ocultar esse fato – também é uma teoria da conspiração bastante em evidência hoje
em dia. O problema com conspirações é que, a partir da teoria, os seus adeptos conseguem
encontrar elementos factuais capazes de justificá-la, por mais disparatados que sejam.
Nesse sentido, será que a demarcação de Popper não é útil para compreender o fenômeno?
Uma teoria da conspiração não seria justamente um discurso que não pode ser contradito
por nenhum fato empírico e, assim, oposto à ciência?

Para mais informações sobre o QAnon, recomendamos o programa Greg News que
discorre sobre o assunto. Disponível na plataforma YouTube. Sobre o terraplanismo,
recomendamos o excelente documentário A Terra é Plana, de Daniel J. Clarck,
disponível na plataforma de streaming Netflix.

Chegamos, por fim, ao término de mais uma seção. Nela, vimos o positivismo, o
positivismo lógico do Círculo de Viena e o influente pensamento de Karl Popper.
Avançamos na compreensão da filosofia da ciência e, ao longo da seção, você adquiriu
novos conhecimentos na sua formação enquanto pesquisador, filósofo e docente.

FAÇA VALER A PENA

Questão 1

Auguste Comte foi um dos fundadores da sociologia e proponente do positivismo. Essa


doutrina filosófica se insere no campo das grandes filosofias da história do século XIX.
Foi muito influente na Europa e no resto do mundo, inclusive na Proclamação da
República brasileira.
Assinale a alternativa que expressa a razão do positivismo ser herdeiro das grandes
filosofias da história do século XIX:

a. O positivismo é herdeiro das grandes filosofias da história do século XIX por reproduzir uma visão
desconfiada em relação à ciência.

b. O positivismo é herdeiro das grandes filosofias da história do século XIX pela filiação de Comte à
tradição marxista.

c. O positivismo é herdeiro das grandes filosofias da história do século XIX pela filiação de Comte à
tradição hegeliana.
d. O positivismo é herdeiro das grandes filosofias da história do século XIX, na medida em que propõe
uma concepção teleológica da história.

Correto!

O positivismo é herdeiro das grandes filosofias da história do século XIX, na medida em


que propõe uma concepção teleológica da história. Para o positivismo, a história tem um
fim e um progresso contínuo em direção a esse fim, como demonstra a lei dos três estágios
de Comte. Não obstante, Comte não era marxista ou hegeliano, apesar de compartilhar
com esses dois sistemas a concepção teleológica.

e. O positivismo é herdeiro das grandes filosofias da história do século XIX pela crítica ao papel da ciência
na sociedade.

Questão 2

A diferença entre enunciados ou juízos sintéticos e analíticos é muito importante para a


filosofia moderna e contemporânea. No contexto do Círculo de Viena, é central para a
maior parte dos pensadores envolvidos. Com base nesse contexto, analise as seguintes
afirmativas:

I. O enunciado “o homem solteiro não tem esposa” é sintético.


II. O enunciado “A mulher tem olhos azuis” é sintético.
III. O enunciado “todo quadrado tem quadro lados” é analítico.

Com base nesse contexto, é correto o que se afirma em:

a. I, apenas.

b. II e III, apenas.

Correto!

Um enunciado analítico é aquele em que o predicado está contido logicamente no sujeito,


ao passo que um sintético é aquele em que isso não ocorre. Por definição, um homem
solteiro não tem cônjuge, logo, o enunciado de I é analítico. O de II é sintético, pois do
conceito de mulher não se deriva que ela tenha olhos azuis. O de III é analítico uma vez
que ter quatro lados deriva logicamente da definição de quadrado.

c. I e II, apenas.

d. I e III, apenas.

e. III, apenas.

Questão 3
Karl Popper foi um eminente filósofo da ciência e seu conceito de falseabilidade é muito
importante. Com base nesse conceito, analise as seguintes asserções e a relação proposta
entre elas:

I. Para Popper, uma hipótese científica caracteriza-se pela possibilidade de ser tomada
como falsa mediante evidência determinada em contrário.

PORQUE

II. A ciência trabalha exclusivamente com enunciados analíticos, de forma que uma
evidência empírica, necessariamente sintética, a refuta.

A respeito dessas asserções, assinale a alternativa CORRETA:

a. As asserções I e II são proposições verdadeiras, mas a II não justifica a I.

b. As asserções I e II são proposições verdadeiras, e a II é uma justificativa da I.

c. A asserção I é uma proposição verdadeira e a II, falsa.

Correto!

A asserção I expressa corretamente o conceito de falseabilidade de Popper. Para o


filósofo, ser passível de refutação é o que faz um discurso científico. A asserção II, por
sua vez, é falsa. A ciência não trabalha exclusivamente com enunciados analíticos e o
argumento de Popper não passa pela distinção analítico/sintético.

d. A asserção I é uma proposição falsa e a II, verdadeira.

e. As asserções I e II são proposições falsas.

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.


COMTE, A. Curso de filosofia positiva. São Paulo: Abril cultural, 1978.
CREATH, R. Logical positivism. In: ZALTA, E. The Stanford Encyclopedia of
Philosophy, 2017. Disponível em: https://stanford.io/3lN7Azt. Acesso em 15 abr. 2021.
GREG NEWS. QAnon. Disponível em: https://bit.ly/3s45P1Y. Acesso em: 27 abr. 2021.
KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2017.
RUSSEL, B. História do Pensamento Ocidental: a aventura dos pré-socráticos a
Wittgenstein. 3. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
TORTHON, S. Karl Popper. In: ZALTA, E. The Stanford Encyclopedia of Philosophy.
2020. Disponível em: https://stanford.io/2VD4yD0. Acesso em: 20 abr. 2021.
FOCO NO MERCADO DE TRABALHO
PROVAS E DEMONSTRAÇÕES CIENTÍFICAS:
DA LÓGICA ARITMÉTICA À LÓGICA DA
PESQUISA
Ádamo Bouças Escossia da Veiga

SEM MEDO DE ERRAR

Você, no lugar de Thiago, prepararia muito bem a sua argumentação. A filosofia da


ciência é uma área complexa e, na hora de falar para o grande público, é sempre
importante ser didático e enfatizar a clareza argumentativa. Sabendo que, muitas vezes, é
uma situação delicada criticar uma tese de um outro autor, você, no lugar de Thiago, daria
grande ênfase à polidez no momento de argumentar contra Marcelo Silva que a astrologia
não é uma ciência.

No dia do painel, você, no lugar do professor, poderia trazer o pensamento de Karl


Popper. Poderia, assim, falar que, para o eminente filósofo da ciência, o saber científico
distingue-se dos demais pela sua falseabilidade. Popper não distingue a ciência,
propriamente, pelo seu maior poder explicativo ou pela verdade privilegiada dos seus
argumentos, mas pelo fato de toda tese científica poder se mostrar falsa mediante certa
evidência. O fato de poder ser contradita pelo mundo empírico é o que dá o caráter
científico a uma hipótese sobre o mundo natural. Prosseguindo, você poderia mostrar
como a astrologia não pode ser desmentida por nenhum fato empírico. Que evidência de
que os planetas não influenciam nas nossas vidas poderia ser inequivocamente
demonstrada? Por não apresentar o que poderia demonstrar a falsidade da astrologia, é
que ela não pode ser considerada ciência. A utilização da matemática e a antiguidade da
prática astrológica, não são argumentos que a validem enquanto científica, como
argumenta Silva. Diversos outros pensadores ao longo da história conseguiram coletar
dados empíricos a fim de verificar hipóteses que se revelaram falsas posteriormente.
Assim, mesmo que determinada observação – por exemplo, alguém do signo de câncer é
emotivo – pareça confirmar a astrologia, não é suficiente para tomá-la como ciência.
Por fim, você poderia argumentar que o fato de a astrologia não ser ciência não quer dizer
que ela seja perniciosa ou inútil. Mesmo não sendo científica, ela pode ter valor para seus
praticantes e interessados.

AVANÇANDO NA PRÁTICA

POSITIVISMO E FICÇÃO CIENTÍFICA

Para contextualizar a sua aprendizagem, imagine a seguinte situação: Caio é professor de


filosofia, com doutorado na área de filosofia da ciência. Trabalha em uma importante
instituição de nível superior e tem diversas publicações acadêmicas sobre o tema. Em
paralelo à sua atividade docente e de pesquisa, o professor mantém um blog no qual
analisa e discute obras de ficção científica a partir da filosofia. Trata-se de uma paixão
desde a infância e, ao longo de alguns meses, o blog acabou por se tornar conhecido dos
aficionados pelo gênero.

Por conta do sucesso do seu blog, Caio é convidado para ministrar uma conferência no
“IV Encontro Nacional de Ficção Científica e História em Quadrinhos”. Ele aceita de
pronto, muito satisfeito com a oportunidade. Os organizadores, sabendo que Caio é
professor de filosofia da ciência, solicitam uma fala sobre o assunto. Nos posts do seu
blog, o professor, diversas vezes, associou o positivismo e suas vertentes ao gênero da
ficção científica. Assim, resolve que abordará o tema solicitado por esse ângulo. Você,
no lugar de Caio, como organizaria sua palestra? O que traria e como argumentaria?

RESOLUÇÃO

Você, no lugar do professor Caio, poderia organizar sua fala da seguinte maneira: em
primeiro lugar, deveria ter em mente que se trata de um evento sobre ficção científica, de
um público leigo, não familiarizado com filosofia, tampouco filosofia da ciência. Assim,
a didática e a clareza expositiva seriam preocupações centrais para a sua fala e, nesse
sentido, poderia utilizar recursos pedagógicos, como slides, imagens etc.
Quanto à sua fala, você, no lugar de Caio, poderia trazer o positivismo, explicando, de
forma clara, no que consistiu esse importante movimento filosófico do séc. XIX. Poderia
falar da lei dos três estágios de Auguste Comte em sua filosofia da história: o primeiro,
teológico, pautado pela crença em entidades sobrenaturais; o segundo, metafísico,
dominado pela crença em entidades abstratas; o terceiro, por fim, estágio positivo,
definido pela compreensão científica do cosmos. Você, assim, poderia falar que o
positivismo mobilizou uma grande crença no progresso da humanidade, fé justificada
pelo desenvolvimento técnico e científico do século XIX.
Você, desse modo, poderia prosseguir argumentando que a mesma compreensão
histórica, pautada pela fé no progresso contínuo e no esclarecimento científico, relaciona-
se com o surgimento da ficção científica enquanto gênero literário. Poderia, nesse sentido,
argumentar que, em geral, o gênero se pauta por uma visão progressiva do
desenvolvimento tecnológico, imaginando no futuro um estágio mais elevado, científico
e tecnicamente. Esse tipo de visão está intimamente associada ao impacto do positivismo
e das grandes filosofias da história no nosso imaginário social. Você, no lugar de Caio,
poderia prosseguir mostrando como, a partir do século XX, com as duas grandes guerras
mundiais, esse ideal de progresso começou a ser abandonado pelo pensamento filosófico
– não obstante, ele se manteve forte para além da filosofia e o sucesso e pertinência da
ficção científica atestam isso.

Desse modo, você, no lugar de Caio, teria realizado uma excelente apresentação e levado
o conhecimento filosófico para o grande público.

NÃO PODE FALTAR


EVOLUÇÃO, PROGRESSO, REVOLUÇÕES, CAMPO?
HISTORICIDADE, CONTEXTUALIDADE E CIÊNCIA
Ádamo Bouças Escossia da Veiga

PRATICAR PARA APRENDER

Caro aluno, seja bem-vindo a mais uma seção. Continuaremos o nosso percurso pela
filosofia da ciência. Agora, veremos como o ideal positivista de uma ciência em progresso
contínuo, como a própria noção de um esclarecimento crescente da humanidade através
da ciência, entrou em crise e foi contestado por diversos pensadores.
Em geral, nós, ocidentais, no “senso comum”, ainda estamos presos ao antigo ideal de
progresso científico. Concebemos a história humana como uma linha reta em direção a
um futuro cada vez mais iluminado por novas descobertas e invenções científicas. Esse
imaginário, ainda amplamente difundido na sociedade, foi fortemente contestado pela
filosofia do séc. XX e pode-se dizer que foi quase que unanimemente rejeitado pelo
pensamento contemporâneo. Nesta seção, veremos a razão dessa rejeição e as críticas
colocadas contra o ideal positivista, sobretudo no pensamento de Theodor Adorno e Max
Horkheimer, dois pensadores altamente influentes. Vamos ver como, para os autores, o
progresso científico trouxe, junto de si, um potencial inaudito de destruição e opressão
humana.
Vamos igualmente estudar o pensamento de Thomas Kuhn, um dos mais influentes
filósofos da ciência. Kuhn, contra o ideário do progresso cumulativo das ciências, defende
que ela avança a partir de sucessivas crises que culminam em verdadeiras revoluções, nas
quais o modo dominante de se conceber determinada área científica muda radicalmente.
Analisaremos os seus importantes conceitos de paradigma, ciência normal e revolução
científica. Sobretudo, o conceito de paradigma mostrou-se muito relevante no
pensamento científico e filosófico, tendo sido amplamente referenciado e utilizado por
diversos pensadores. Um paradigma, para Kuhn, é o conjunto de crenças e valores
compartilhados por certa comunidade de cientistas, que constituem o seu olhar e
concedem o enquadramento através do qual os cientistas colocam suas perguntas de
pesquisas. A tese de Kuhn é uma das pioneiras do que se chama “construtivismo”,
veremos a razão disso.

Assim, vamos estudar como a imagem dominante da ciência, o imaginário do progresso


e do esclarecimento contínuo, entrou em crise, dando luz a concepções outras da prática
científica. Entender bem essa crítica é fundamental na sua formação e no estudo da
filosofia da ciência, tanto em termos de docência quanto de pesquisa acadêmica. Mais
ainda, perceber como o alardeado progresso humano pode ser problematizado e entendido
de outro modo lhe dará ferramentas muito úteis na compreensão do mundo que o cerca.
Para contextualizar a sua aprendizagem, imagine a seguinte situação: Lucas é um recém-
formado em filosofia. Sempre sonhou em ser professor no Ensino Básico e, durante a sua
formação, dedicou-se muito, tanto nas matérias da licenciatura, quanto nas do
bacharelado.
Ao se formar, resolve que necessita, o mais rápido possível, iniciar na docência e começa
a procurar emprego na área. Sua preferência é o ensino público, pois acredita que
ministrando aula para aqueles menos privilegiados o seu trabalho terá maior impacto
social. Assim, fica muito satisfeito quando descobre que o seu Estado está para abrir um
concurso público para provimento de professores de filosofia.

O processo seletivo consiste em duas etapas. Na primeira, o candidato deve realizar uma
prova de múltipla escolha com conhecimentos de legislação e específicos da área. Tendo
sido um aluno muito dedicado, Lucas não vê grandes dificuldades nessa etapa e é
aprovado com uma boa nota. Agora, na segunda etapa, deve realizar uma prova didática.
Lucas deverá ministrar uma aula sobre um tema a ser sorteado para uma banca de três
professores. Tendo pouca experiência docente, ele está nervoso e redobra seus estudos.
O tema sorteado para Lucas foi: “Crítica à concepção de progresso científico”. Você, no
lugar de Lucas, como prepararia a sua aula?

Entramos em mais uma etapa e, tenho certeza, de que sua motivação só aumenta. Cada
seção é um pequeno mundo de novos conhecimentos a serem adquiridos. Vamos lá?

CONCEITO-CHAVE

A RAZÃO INSTRUMENTAL
A concepção que, em geral, herdamos da modernidade sobre a ciência é aquela do
progresso contínuo e cumulativo, uma linha reta que vai da vida nas cavernas aos grandes
edifícios metropolitanos, das grandes navegações ao pouso na Lua. Esse imaginário é
herdeiro das grandes filosofias da história, como de Marx e Hegel, e também aquela do
positivismo novecentista. Nesse sentido, ainda herdamos a concepção do antigo
Iluminismo, que via a si mesmo, na ciência, na técnica e nas artes, como uma era em que
o homem saía da sua minoridade – como colocou Immanuel Kant – e se tornava
esclarecido, autônomo e capaz de governar a si e ao mundo. Somos filhos das luzes e
vemos a nós mesmo sob as suas lentes.

Esse ideal, ao longo do século XX, não obstante, foi bastante contestado em diversas
frentes filosóficas. A razão mais imediata para essa contestação foram as grandes guerras
mundiais, gigantescos conflitos que levaram centenas de milhões à morte, viu-se a
utilização de toda racionalidade científica, não em prol do progresso ou da emancipação
humana, mas da mais irrestrita destruição. A bomba atômica e os campos de concentração
nazistas expressam todo o horror da organização racional e sistemática da morte. Diante
disso, muitos filósofos viram que não se tratava mais de supor um progresso contínuo que
vinha dos antigos gregos e terminaria na colonização de Marte ou ideia parecida. Adorno
e Horkheimer expressam muito bem esse ponto em um texto crítico à filosofia da história:

A capacidade de destruição do homem ameaça tornar-se tão grande que, quando vier a se
esgotar, esta espécie terá feito tabula rasa da natureza. Ou bem há de se dilacerar a si
mesma, ou bem arrastará consigo para a destruição da fauna e a flora inteiras da terra, e
se a terra ainda for bastante jovem, a coisa toda [...] deve começar de novo a um nível
muito mais baixo.

(ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 185)

A crítica de Adorno e Horkheimer ao ideal de progresso é uma das mais influentes e


interessantes já realizadas. Os autores identificam no progresso científico
uma regressão lado a lado do progresso técnico. O que isto significa? Para Adorno e
Horkheimer, o progresso técnico científico, conforme concebido no Esclarecimento, tem
como finalidade a subsunção do mundo natural à forma objetivada da coisa, cujo modelo
paradigmático é a física-matemática. Antes do advento da ciência moderna, reinava uma
concepção do mundo natural animista – a natureza era animada, tinha agência, era
povoada de espíritos e forças. A modernidade científica substitui essa visão por uma
concepção da natureza enquanto inerte e passiva: coisas nas quais, antes, se via forças
ativas. Essa subsunção foi pensada em relação ao desenvolvimento técnico; a
compreensão dos fenômenos naturais a partir da sua concepção enquanto entes inertes e
objetivos visava ao controle e manipulação em direção à realização humana, como
esclarece, por exemplo, o pensamento do renascentista Francis Bacon. Dever-se-ia,
assim, dominar a natureza, sendo essa dominação inserida no projeto de emancipação
humana. Através da manipulação e do controle, o humano se elevaria de uma vida
marcada pelo medo e fragilidade diante da natureza, para um estado de Esclarecimento
no qual ele se torna, crescentemente, senhor do meio natural. Torna-se sujeito ativo do
seu próprio desenvolvimento histórico – tema central em todas as grandes filosofias da
história do Esclarecimento. Temos aqui o desenvolvimento da razão instrumental: a
concepção que torna a racionalidade como algo que concebe o mundo natural, como
um meio visando fins em um paradigma de controle. “O Esclarecimento comporta-se com
as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este conhece-os na medida em que
pode manipulá-los. O homem de ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-
las” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 21).

Adorno e Horkheimer identificam um paradoxo ou aporia neste movimento de ascensão


da razão instrumental enquanto figura da racionalidade em si mesmo. No mesmo
movimento em que se propõe a tornar o homem sujeito e a emancipá-lo, ele também o
subsume enquanto objeto. A psicologia, enquanto ciência, expressa isso muito bem; trata-
se de reduzir o humano, enquanto sujeito, ao estatuto de coisa, tal como outra qualquer e,
assim, passível de descrição objetiva como os demais objetos do mundo. Esse ponto se
desdobra na percepção, em Adorno e Horkheimer, de que a razão instrumental não apenas
serviu para o domínio do mundo natural, mas opera na dominação do homem pelo próprio
homem. O homem aliena-se através da razão instrumental no mesmo movimento em que
ela lhe dá os meios de controlar o mundo natural. Passa a se ver e ser visto como peça em
um sistema, no qual deve funcionar tal como uma máquina. Paradigmática, nesse aspecto,
é a concepção social dos Estados totalitários, nazista e fascista, que viam na sociedade
um todo orgânico, uma máquina hierarquicamente organizada na qual cada um deveria
exercer o papel que lhe era determinado. Nesse sentido, esses mesmos Estados utilizaram-
se da razão instrumental em uma engenharia social extensa que, longe de produzir a
emancipação e a promoção da autonomia do sujeito e cidadão, colocaram todos no
estatuto de meros objetos e coisas. Para além dos Estados totalitários, onde essa questão
se revela mais dramaticamente, o mesmo, para Adorno e Horkheimer, opera nas
sociedades democráticas. A manipulação pelo marketing na mídia de massas (que os
autores denominam “indústria cultural”), a disciplina laboral nas empresas e fábricas,
seriam modos de subsumir o homem, através da razão instrumental, à forma da coisa.
Desse modo, a razão instrumental não apenas permitiu ao homem conquistar a natureza,
mas também a dominar o próprio homem: aquilo que deveria o emancipar, acabou se
tornando mais uma corrente a lhe prender. O Esclarecimento, na sua representação
enquanto aquilo que faz o homem progredir, também o faz regredir ao estatuto de coisa
(ADORNO; HORKHEIMER, 2006).

REFLITA
O documentário o “Dilema das Redes”, dirigido Jeff Orlowski e escrito por Orlowski,
Davis Coombe e Vickie Curtis, para a plataforma de streaming Netflix, demonstra como
tecnologias de ponta em inteligência artificial são utilizadas nas redes sociais a fim de
direcionar, formar e moldar opiniões e gostos dos usuários. Através de anúncios
setorizados, da seleção através de algoritmos acerca de que tipo de conteúdo mostrar, as
redes produziriam em seus usuários determinados padrões de comportamento e aptidões.
Em que sentido podemos compreender esse uso de tecnologias poderosas na manipulação
de milhões de pessoas, a partir da crítica de Adorno e Horkheimer à razão instrumental?

A ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS

Para além da crítica do progresso científico com base nos trágicos efeitos do racionalismo
tecnológico, como a de Adorno e Horkheimer, temos outra linha contestatória à
concepção positivista da ciência, igualmente influente. Thomas Kuhn (1922-1996) foi um
físico e importante filósofo da ciência que contribuiu, em muito, para o abandono do ideal
positivista de progresso. O cerne do argumento de Kuhn é histórico. O pensador, após se
debruçar longos anos no estudo sistemático sobre a história da ciência, concluiu que não
havia ali um progresso linear e acúmulo progressivo de conhecimentos. Pelo contrário:
Kuhn identificou um desenvolvimento a partir de rupturas, de mudanças bruscas e de
crises. Em (2017), Kuhn apresenta uma visão do avanço da ciência que rompe com a
concepção positivista da ciência. Essa obra, certamente, pode ser considerada uma das
mais influentes em toda a filosofia da ciência. Vamos vê-la agora.
Primeiramente, Kuhn inaugura o conceito de paradigma científico. Um paradigma é um
conjunto de valores, práticas, teorias e concepções compartilhadas por uma comunidade
científica durante certo período de tempo, que estrutura o seu fazer científico. Nesse
sentido, o paradigma apresenta modelos e exemplos privilegiados – do tipo que consta
em manuais e livros didáticos – a partir do qual os cientistas tocam sua prática. Kuhn
indica dois sentidos para o paradigma: “de um lado todo conjunto de crenças, valores,
técnicas e etc. partilhadas pelos membros de uma comunidade determinada” (KUHN,
2017, p. 280-291). E, em um segundo sentido, “denota um tipo de elemento desta
constelação [de crenças, valores, técnicas]: as soluções concretas de quebra-cabeças que,
empregadas como modelos ou exemplos, podem substituir regras explícitas como base
para a solução dos restantes quebra-cabeças da ciência normal” (KUHN, 2017, p. 280,
grifo nosso).

Os paradigmas são matrizes disciplinares e orientam o modo como determinada


comunidade científica coloca-se diante da realidade sensível. O paradigma oferece um
olhar específico sobre certo conjunto de fenômenos. Para Kuhn, a prática da ciência não
se trata de apreender um dado empírico bruto e não mediado, pois sempre, quando o
cientista coloca-se diante da natureza, ele já tem algo em vista. Perante o mundo, o
cientista sempre coloca determinada pergunta a ser respondida pela sua pesquisa, e essa
pergunta ou conjuntos de perguntas possíveis estão dadas, precisamente, pelo paradigma.
E ele é sempre histórico: não se trata de verdades universais ou teorias absolutas, mas de
formações históricas determinadas, sujeitas a revisão, abandono, aperfeiçoamento ou
superação. O contexto histórico, assim, é determinante: a ciência não paira sobre ou por
fora da história, mas seus avanços se dão sempre no interior dela, em um certo contexto
que configura o próprio horizonte de investigação científica. O paradigma é a lente pela
qual o cientista observa a natureza.

Os paradigmas também apresentam exemplos e modelos, que são casos ideais que
mobilizam o ensino de ciências e, consequentemente, a prática do cientista quando se
entrega à pesquisa. Mesmo no ensino básico, nas aulas de química, física etc., o conteúdo
geralmente é ensinado a partir de exemplos ideais e modelares. Para Kuhn, essa dimensão
é importante na formação do cientista. O profissional da ciência, nos seus anos de estudo,
raramente estuda a ciência a partir do seu contexto e evolução histórica. Não aprende o
surgimento da física newtoniana, por exemplo, a partir do abandono da visão de mundo
greco-romano-católica na Renascença, mas a partir de casos modelares da aplicação da
mecânica newtoniana como, por exemplo, o do choque de dois corpos em aceleração.
Esse modo de formar cientistas, para Kuhn, acaba por reforçar e fazer perdurar o
paradigma científico (KUHN, 2017, p. 76).

Para Kuhn, a maior parte da prática científica opera a partir da solução de quebra-cabeças
no interior do paradigma. Não se trata de grandiosas descobertas, mas de investigar
problemas colocados em relação a ele. Trata-se de organizar os elementos da experiência
observada e observável em relação às descobertas e teorias paradigmáticas anteriores e
consolidadas. Podemos observá-las nas teses e dissertações de mestrado e doutorado nas
diversas ciências – e é na pós-graduação que a maior parte da ciência no Brasil é feita.
Parte-se de determinado problema observado e procura-se encaixar as “peças”, assim
encontradas no “quadro” de certa teoria científica. Kuhn nos mostra, nesse sentido, como
grande parte da ciência do séc. XVIII consistiu na aplicação sistemática da mecânica de
Newton a um número crescente de fenômenos não analisados pelo próprio Newton. A
ciência, enquanto solução de quebra-cabeças, é aquela que Kuhn denomina ciência
normal, resolução de quebra cabeças no qual os elementos empíricos observados vão
sendo encaixados na moldura de um paradigma. No seio da ciência normal, temos um
progresso cumulativo: cada vez mais problemas são respondidos pelos cientistas no
interior do paradigma, cada vez mais fenômenos são explicados por ele e, assim, temos
realmente um progresso (KUHN, 2017, p. 71).

Para Kuhn, o progresso científico se deve precisamente ao seu caráter paradigmático. O


autor nos fala de um período pré-paradigmático no qual o saber e a pesquisa eram
pulverizados em diversas escolas com pouco ou nada em comum. Sem um paradigma
comum, as comunidades de sábios e filósofos não conseguiam avançar, justamente, por
lhes faltar a base dada pelo paradigma, que é indispensável para o progressivo acúmulo
de conhecimentos. É como se cada escola dispersa tivesse sua própria imagem para
montar o quebra-cabeça tornando impossível uma montagem progressiva de um quebra-
cabeça mais amplo. A consolidação da ciência moderna, para Kuhn, no final do
Renascimento, expressa precisamente o momento de consolidação de uma prática
paradigmática da pesquisa científica. A partir de então, a ciência normal desenvolve-se
como acúmulo progressivo de soluções e descobertas no enquadramento dado pelo
paradigma.
Para Kuhn, no entanto, a ciência não se dá apenas a partir da subscrição a um certo
paradigma e no desenvolvimento da ciência normal. Há momentos de crise em que o
paradigma começa a ser contestado pelos praticantes da ciência. No seio da ciência
normal, identificam-se anomalias, fenômenos que não conseguem ser enquadrados no
paradigma, como se, ao montar um quebra-cabeças, os cientistas descobrissem que uma
peça não se encaixa em lugar algum. Inicialmente, a comunidade científica tenta a todo
custo encaixar a peça anômala. Gira-se e gira-se a peça, apara-se um pouquinho um dos
lados, tentando fazê-la encaixar. Por vezes, pode-se simplesmente deixar de lado o dado
anômalo, julgando que futuras gerações irão resolvê-lo; outras vezes, pode simplesmente
ir se acrescentando soluções locais a fim de torná-lo compatível com o paradigma. Por
fim, vai se desenvolvendo, gradativamente, a percepção na comunidade científica de que
a anomalia simplesmente não pode ser enquadrada no paradigma em vigor. Está
instaurada a crise. Em dado momento, algum cientista começa a contestar o próprio
paradigma. Ao invés de tentar encaixar a peça anômala no quebra-cabeça do paradigma
em questão, ele propõe um novo quebra cabeça: um novo paradigma.

A transição de um paradigma em crise para um novo, do qual pode surgir uma nova
tradição de ciência normal, está longe de ser um processo cumulativo obtido por meio de
uma articulação do novo paradigma. É antes a reconstrução de uma nova área de estudos
a partir de novos princípios, reconstrução que altera algumas das generalizações teóricas
mais elementares, do paradigma, bem como muitos dos seus métodos e aplicações.
(KUHN, 2017, p. 169)

É a este movimento que Kuhn denomina revolução científica: o processo de surgimento


e consolidação de um novo paradigma a partir da crise. Um novo olhar sobre a natureza,
uma nova constelação de valores, crenças e modelos desenvolve-se em resposta à
percepção crescente de que o antigo paradigma não mais se adequava. Trata-se de uma
revolução na medida em que instaura uma ruptura: o paradigma novo é incompatível com
o paradigma antigo. Não se trata, na revolução científica, de uma mera adição de fatos
novos ou de princípios complementares a uma teoria antiga; mas de uma ruptura que
instaura um novo horizonte prático de pesquisa científica. A forma de olhar a natureza
muda; as perguntas a serem colocadas pelo pesquisador, também mudam.

EXEMPLIFICANDO
Um exemplo trazido por Kuhn é particularmente ilustrativo: a revolução copernicana.
Nela, o paradigma ptolomaico geocêntrico foi substituído pelo heliocentrismo. Ao longo
do tempo, foi-se percebendo que uma série de fenômenos celestes não se adequavam ao
paradigma. As previsões de equinócios não seguiam o paradigma, o próprio calendário
baseado nele apresentava problemas. Gradativamente, foi-se consolidando a percepção
de que havia algo de errado naquele modelo. Diversas tentativas foram feitas, sem
sucesso, de adequar os dados observados ao paradigma. Instalou-se uma crise que
produziu, na obra de Copérnico, um novo paradigma com a Terra orbitando ao redor do
Sol. Começava uma revolução científica particularmente importante, que mudou a
compreensão do mundo e serviu para consolidar o próprio modelo paradigmático na
ciência. O novo paradigma de Copérnico, de início, gerou grande resistência e
contestação, mas, por fim, consolidou-se como dominante.

ASSIMILE
Paradigma: conjunto de valores, práticas e modelos compartilhados por uma comunidade
científica durante certo tempo.

Ciência normal: solução e quebra-cabeças no interior do paradigma

Crise: momento em que determinada anomalia leva, gradativamente, à percepção da


inadequação do paradigma.

Revolução científica: momento de abandono de um paradigma antigo e consolidação de


um novo.

A filosofia da ciência de Kuhn é, em geral, interpretada como um construtivismo. O


construtivismo, em filosofia da ciência, é uma corrente que afirma que a ciência é
construída; os fatos e teorias não são meramente descobertos, como se estivessem lá
sempre prontos à espera do cientista, mas que são ativamente construídos a partir de um
horizonte histórico e cultural. Na concepção de Kuhn, a ciência é uma prática construtiva
e articulada em torno de paradigmas, suas crises e superações. É importante notar que o
construtivismo não nega a verdade ou validade da ciência, mas apenas o ideário
positivista de progresso científico linear. Como coloca Bruno Latour (2004), célebre
pensador construtivista, não se trata, ao demonstrar a importância do contexto e da
história na prática científica, de lhe subtrair a realidade ou contestar seus resultados; pelo
contrário, ao analisar o impacto desses fatores, trata-se de adicionar mais realidade à
ciência. Mostrar como a ciência se articula a valores e modelos reconhecidos na prática
científica não a enfraquece, mas a fortifica.

POR DENTRO DA BNCC


A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) determina que os alunos saiam do Ensino
Médio sendo capazes de se posicionar criticamente acerca dos diferentes saberes em
variadas matrizes epistemológicas e em seu contexto histórico e cultural. O
construtivismo de Kuhn ajuda sobremaneira no desenvolvimento dessa competência ao
colocar o contexto histórico no seio do desenvolvimento científico.

Chegamos ao fim de mais uma seção. Nela, vimos como o paradigma do progresso
científico foi contestado por Adorno e Horkheimer e também por Thomas Kuhn.
Aprendemos, desse modo, duas importantes reflexões na filosofia da ciência que,
certamente, alargaram a sua compreensão sobre o tema.

FAÇA VALER A PENA

Questão 1

O termo paradigma é uma das maiores contribuições de Thomas Kuhn à filosofia da


ciência. Tornou-se, inclusive, termo de uso comum na linguagem corrente, o que
demonstra a sua relevância.
Assinale a sentença que demonstra corretamente o sentido do termo paradigma para
Kuhn:

a. Um paradigma científico é o conjunto de valores religiosos que desviam o cientista da compreensão


adequada dos fenômenos.

b. Um paradigma científico consiste nos valores e práticas eternos que devem sempre nortear o cientista.

c. Um paradigma científico consiste na solução de quebra-cabeças.

d. Um paradigma científico expressa os dogmas da prática científica.

e. Um paradigma científico expressa o conjunto de modelos, exemplos, valores e crenças que norteiam
certa comunidade científica.

Correto!

Um paradigma científico expressa o conjunto de modelos, exemplos, valores e crenças


que norteiam certa comunidade científica. Distingue-se da ciência normal, enquanto
solução de quebra-cabeças; não é dogmático, nem eterno, mas sujeito a abandono e
aperfeiçoamento.

Questão 2
A crítica ao ideal do progresso unilinear das ciências motivou diversos filósofos ao longo
do séc. XX. Dentre eles, temos Adorno, Horkheimer e Thomas Kuhn. Tendo em mente
esse contexto, avalie as seguintes afirmativas:

I. Para Thomas Kuhn, uma revolução científica configura o momento de superação de um


paradigma e estabelecimento de um novo.
II. Para Adorno e Horkheimer, o progresso técnico é uma ilusão, sem respaldo na
realidade.
III. Para Thomas Kuhn, a maior parte da prática científica é a da ciência normal.

Com base neste contexto, é correto o que se afirma em:

a. I e II, apenas.

b. I, apenas.

c. I e III, apenas.

Correto!

A afirmativa I está correta: para Kuhn, a revolução científica se dá na mudança de


paradigma. A II está incorreta; para Adorno e Horkheimer, há progresso técnico, a
questão é que ele não trouxe a emancipação humana. A III afirmativa também está
correta; para Kuhn, a ciência, na maior parte do tempo, está na solução de um quebra-
cabeça dentro de um paradigma.

d. II, apenas.

e. I, II e III.

Questão 3

“No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido


sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores.
Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal”
(ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 1).
Para Adorno e Horkheimer, o Esclarecimento não cumpriu suas promessas de
emancipação humana. Tendo isso em mente, avalie as seguintes asserções e a relação
proposta entre elas:

I. O conceito de razão instrumental visa demonstrar determinada concepção da


racionalidade que tem, por consequência, ao lado do progresso técnico, a subordinação
do homem.

PORQUE

II. A razão instrumental visa tornar o próprio homem como um fim subordinado aos fins
da natureza, fazendo-o se ver como uma peça mecânica no mundo natural, assim,
subordinando sua potência aos limites postos pelo mundo natural.
Assinale a alternativa que expressa corretamente a relação entre as asserções:

a. A asserção I é verdadeira e a II, falsa.

Correto!

A asserção I é verdadeira e a II é falsa. A primeira expressa corretamente a razão


instrumental em Adorno. Não obstante, a II é falsa: a razão instrumental coloca a natureza
como subordinada aos fins humanos e, nesse sentido, acaba por tomar o próprio homem
como objeto de dominação e manipulação, enquanto ele se vê como ente natural ou coisa.

b. As asserções I e II são verdadeiras, e a II é uma justificativa da I.

c. As asserções I e II são verdadeiras, mas a II não é uma justificativa da I.

d. As asserções I e II são proposições falsas.

e. A asserção I é uma proposição falsa e a II, verdadeira.

REFERÊNCIAS

ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Trad. de Guido


Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
KUHN. T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2017.
LATOUR, B. Why Has Critique Run out of Steam? From Matters of Fact to Matters of
Concern. In: Critical Inquiry, École des Mines in Paris, v. 30, 2004. Disponível
em: https://bit.ly/3s47WmD. Acesso em: 22 jul. 2021.
SILVA, F. Conhecimento e Razão Instrumental. Psicologia USP, São Paulo, v. 8, n. 1, p.
11-31, 1997. Disponível em: https://bit.ly/2VGraCL. Acesso em: 5 maio 2021.

FOCO NO MERCADO DE TRABALHO


EVOLUÇÃO, PROGRESSO, REVOLUÇÕES, CAMPO?
HISTORICIDADE, CONTEXTUALIDADE E CIÊNCIA
Ádamo Bouças Escossia da Veiga
SEM MEDO DE ERRAR

Para resolver a situação-problema, você, no lugar de Lucas, teria estudado o máximo


possível o assunto a ser exposto e, tendo se dedicado nos seus anos de formação, já
chegaria para a prova didática com uma boa base. Primeiramente, deveria se preocupar
com a clareza expositiva e com o encadeamento adequado dos temas a serem expostos.
Deveria estar com tudo isso bem preparado em anotações de aula e, se possível, teria
ensaiado antes a sua aula para amigos ou familiares.

Dentre os assuntos que você poderia trazer sobre a crítica de Adorno e Horkheimer ao
ideal de progresso herdado do Esclarecimento (ou Iluminismo), poderia explicar que, para
os autores, a razão instrumental consiste na concepção da natureza enquanto coisa, objeto
inerte, que deve ser controlada para a emancipação humana. O problema identificado por
eles é que esse mesmo ideal se logrou em muito controlar os processos naturais e acabou,
antes de trazer ao homem a sua emancipação, por subsumi-lo, igualmente, ao estatuto de
uma coisa. A razão que deu ao homem tanto poder sobre a natureza também se viu
utilizado pelo homem no domínio de outros homens. Nesse ponto, você, no lugar de
Lucas, poderia trazer como exemplos os Estados totalitários com seu ideal de engenharia
social, que visava controlar todos os cidadãos enquanto partes de uma engrenagem
Também poderia trazer as técnicas psicológicas de manipulação de massas na grande
mídia e mesmo na internet, altamente influentes nas nossas sociedades democráticas
Sobretudo, ao longo da exposição, você deveria se ater à Base Nacional Comum
Curricular, fator altamente valorizado nas seleções docentes. Nela, encontramos, entre as
competências dos alunos egressos do Ensino Médio, a capacidade crítica de analisar o
papel do conhecimento em diversos contextos. Em termos da crítica à razão instrumental
realizada por Adorno e Horkheimer, você poderia facilmente estabelecer diversos pontos
de contato com essa competência.

Assim, temos certeza de que você, no lugar de Lucas, teria se saído muito bem.

AVANÇANDO NA PRÁTICA

O PROGRESSO DAS CIÊNCIAS E SEUS CRÍTICOS


Para contextualizar a sua aprendizagem, imagine a seguinte situação: Norma é professora
de filosofia e também já atuou como jornalista. Sua especialização é em filosofia da
ciência, tendo publicado alguns artigos sobre o tema, com bom fator de impacto.
Certo dia, Norma foi convidada pelo Editor Chefe de uma revista de grande circulação
para escrever uma coluna de opinião. Norma deve comentar uma exposição de grande
sucesso na sua cidade, no recém-inaugurado Museu de História das Ciências. A
exposição, dentro da temática geral da instituição, apresenta o panorama do progresso
científico do séc. XVII aos dias de hoje. A professora visitou a exposição e identificou o
ideal positivista de emancipação humana progressiva em toda a mostra. Norma, assim, vê
na oportunidade de escrever essa coluna um modo de oferecer novas perspectivas e visões
em relação ao desenvolvimento da ciência, distinta da narrativa padrão, conforme, por
exemplo, expressa na própria exposição.

Você, no lugar de Nora, o que escreveria na sua coluna de forma a apresentar uma outra
visão sobre o desenvolvimento científico?

RESOLUÇÃO

Você, no lugar de Nora, poderia trazer diversos tópicos e concepções filosóficas distintas
do ideal de progresso herdado do Iluminismo e do positivismo novecentista. Poderia
começar argumentando como o choque das guerras mundiais no séc. XX abalou a crença
no progresso e como diversos filósofos argumentaram e expressaram em suas obras.
Tratando-se de uma mostra em Museu de História das Ciências, você, no lugar de Nora,
poderia trazer o pensamento de Thomas Kuhn para a discussão. Kuhn, importantíssimo
filósofo da ciência, argumentou, em A estrutura das revoluções científicas, que a
evolução da ciência não se dá por acúmulo de teorias e descobertas, mas por rupturas
paradigmáticas importantes. O argumento de Kuhn baseia-se em uma análise minuciosa
da história das ciências, e esse elemento poderia ser frisado na sua coluna. Poderia trazer
o importante conceito de paradigma científico – o conjunto de valores, normas e técnicas
que norteiam a investigação de determinada comunidade científica em certo espaço de
tempo. Poderia, igualmente, falar das crises que abalam os paradigmas, levando,
gradativamente, ao abandono do paradigma antigo e à introdução de um novo paradigma.
Trazendo esses assuntos, você conseguiria levar para o grande público uma visão outra
do desenvolvimento científico, que não aquela que herdamos do Iluminismo.

NÃO PODE FALTAR


LINGUAGENS, CONTEXTOS, JOGOS: NOVAS
CIÊNCIAS, NOVOS CRITÉRIOS CIENTÍFICOS
Ádamo Bouças Escossia da Veiga
PRATICAR PARA APRENDER

Caro aluno, seja bem-vindo a mais uma seção. Continuaremos nossa aventura em meio à
filosofia da ciência. Vamos alargar mais ainda nosso horizonte de compreensão da prática
científica, aprofundando-nos na crítica ao ideal positivista de progresso.
Nesta seção, estudaremos o importante conceito de Ludwig Wittgenstein. Trata-se de um
dos maiores pensadores do séc. XX, considerado um dos fundadores da ”Virada
Linguística”, movimento que reorientou a pesquisa filosófica para o papel da linguagem
e sua função na estruturação da nossa compreensão. Para Wittgenstein, o sentido das
palavras é determinado pelo seu uso e pelo seu contexto; não são invariáveis, nem
dependentes de uma estrutura lógica universal. Veremos no que consistem os jogos de
linguagem analisados pelo filósofo diante dessa questão.

Vamos analisar também o influente pensamento de Paul Feyerabend. O pensador defende


que não há metodologia universal nas ciências, mas uma pluralidade de métodos para
cada uso. A sua tese do “anarquismo epistemológico” é muito influente, veremos no que
ela consiste. Também vamos estudar a sua crítica ao imperialismo científico ocidental e
ao papel opressor da ciência na sociedade.

Para contextualizar a sua aprendizagem, imagine a seguinte situação: Pedro é recém-


formado em Filosofia. É um apaixonado pela área e, durante sua graduação, realizou
diversas atividades de pesquisa, como participação de grupos de estudo e apresentação de
trabalhos e seminários. Por conta do seu esforço, foi contemplado com uma bolsa de
Iniciação Científica pela sua universidade. Seu principal foco de interesse é a filosofia da
ciência.
Quando se forma, Pedro resolve que irá cursar um mestrado em filosofia a fim de dar
prosseguimento a suas atividades de pesquisa e também para ter um currículo mais
competitivo para o mercado de trabalho. Após pesquisar os diversos programas de pós-
graduação no país, resolve-se por um competitivo programa de mestrado em filosofia da
ciência. Sabendo que a aprovação será difícil, Pedro não se desanima e segue em frente
com o processo seletivo.

A primeira fase do processo consiste em uma prova sobre filosofia da ciência. Os


candidatos recebem dez pontos de estudo sobre o tema. No dia da prova, um desses pontos
será selecionado por sorteio, e os candidatos terão três horas para escrever um pequeno
texto dissertativo sobre ele. Pedro estuda cada um dos pontos com afinco e, no dia da
prova, sente-se preparado e confiante. O ponto sorteado é: “O anarquismo epistemológico
de Feyerabend.”

Você, no lugar de Pedro, como responderia a sua prova?


Começamos mais uma etapa da sua formação. Temos certeza de que aproveitará ao
máximo esta oportunidade de se aprofundar na filosofia da ciência. Vamos lá?

CONCEITO-CHAVE

WITTGENSTEIN E OS JOGOS DE LINGUAGEM

Ludwig Wittgenstein (1889-1951) foi um dos mais importantes filósofos do séc. XX. Sua
obra é estudada assiduamente em departamentos de filosofia nos mais diversos países.
Nascido na Áustria, de uma família de ricos industriais, Wittgenstein teve amplo contato
com os mais altos círculos culturais daquele país. Lutou na Primeira Guerra Mundial –
experiência muito marcante em sua vida – e se dedicou a diversas atividades além da
filosofia. Nela, no entanto, adquiriu grande renome.
O seu pensamento filosófico é, em geral, dividido em duas fases que se referem a duas
obras de grande importância: Tractatus Logico Philosophicus, de 1921, e Investigações
Filosóficas, publicada postumamente, em 1953. Há amplas discussões sobre a relação
entre as duas fases, as continuidades e a ruptura, mas não vamos nos ater a isso.
O Tractatus tem uma preocupação acentuada com a lógica, foi influenciado pelas
discussões do Círculo de Viena (que vimos anteriormente) e pressupunha uma relação de
isomorfia (igualdade de formas) entre a estrutura lógica e a realidade. Veremos, nesta
seção, sobretudo, as considerações de Wittgenstein em Investigações Filosóficas e o
importante conceito de jogos de linguagem.

Wittgenstein é considerado um dos pais da “Virada Linguística”. A Virada foi um


movimento filosófico desenvolvido ao longo do séc. XX pautado por uma reorientação
da pesquisa filosófica para a linguagem e seus problemas. Dentre seus principais nomes,
temos W. V. O. Quine, Ferdinand Saussure, Jacques Derrida e muitos outros. Em
Wittgenstein, a importância da linguagem é defendida, sobretudo, nas Investigações
Filosóficas. Primeiramente, para o filósofo, não há imediaticidade da linguagem em
relação às coisas. A linguagem não é uma expressão unívoca do mundo real, nem a
“verdade” pode ser compreendida enquanto mera adequação entre conceito, teoria ou
palavra, com a realidade. Para Wittgenstein, a linguagem possui autonomia frente aos
fenômenos e possui uma dinâmica própria que influencia nossa visão de mundo e nossa
relação com ele (BILETZSKI; MATAR, 2020).

Nesse sentido, para Wittgenstein, a maior parte dos problemas filosóficos se dão apenas
por conta dos usos da linguagem. Disputas filosóficas intensas seriam meros efeitos
linguísticos. Pode-se tomar como exemplo o termo “substância”, conforme conceituado
por Aristóteles. A filosofia medieval e moderna passou por imensos debates sobre o que
seria a substância, se Deus era ou não uma substância, se haveria apenas uma substância
(Spinoza) ou uma infinidade delas (Leibniz). Para Wittgenstein, essas disputas seriam
efeitos linguísticos orbitando ao redor da compreensão diversa do termo “substância”,
não um problema real. Diante disso, cabe ao filósofo apenas melhor precisar o seu
significado e uso de forma a não incorrer (ou incorrer o mínimo possível) nesse tipo de
questão. Note que não estamos considerando o sentido específico de substância trazido
por Wittgenstein no Tractatus.

Para Wittgenstein, o significado de um termo não é invariável, mas depende do seu


contexto. O significado é determinado pelo seu uso. Trata-se de um critério prático ou
pragmático. O significado de um termo não derivaria de nenhuma propriedade intrínseca
a ele, mas do seu uso por pessoas, culturas e comunidades. A concepção positivista da
ciência, contrariamente, argumentaria o significado independe do seu uso ou contexto.
Para o positivismo, a proposição “Massa = energia multiplicada pela velocidade da luz
(E = mc²) tem seu significado dado pela referência e conformidade ao mundo real. Para
Wittgenstein, por sua vez, essa proposição depende estritamente do contexto em que ela
se encontra no presente. No caso, esse contexto seria o do discurso científico, a física
relativística etc. (BILETZSKI; MATAR, 2020).

EXEMPLIFICANDO
Vejamos um exemplo de significado instanciado pelo uso:

I. Pedro, após o jantar, pede para sua irmã: “Você pode pegar aquela manga na geladeira
para mim, por favor?”
II. Pedro pede ao seu alfaiate: “O senhor poderia diminuir a manga do terno, por
gentileza?”

O significado do termo “manga” variou de uma situação para outra. No primeiro, refere-
se à fruta; no segundo, a parte de um terno. Vemos, assim, como o significado se deu a
partir do uso e do contexto.

Nesse ponto, Wittgenstein inaugura o importante conceito de jogo de linguagem. Um


jogo de linguagem é um conjunto de regras pragmáticas que oferecem um quadro a partir
do qual as palavras e a relação de palavras entre si têm significado. Wittgenstein visa
demonstrar com esse conceito que o “significado não é mais estabelecido pela forma da
proposição, nem pelo sentido de seus componentes, nem por sua relação com fatos, mas
pelo uso que fazemos das expressões linguísticas nos diferentes contextos ou situações
em que as empregamos” (MARCONDES, 2002, p. 304). O termo “jogo”, aqui, frisa que
esse uso é dado através de regras, que constituem o horizonte a partir do qual o discurso
tem sentido.

As regras nos diversos jogos de linguagem, não obstante, não são extrínsecas em relação
ao próprio jogo. São regras que, igualmente, constituem-se pelo uso, pela prática e são,
assim, contingentes, dinâmicas e convencionais. Contingentes, pois não obedecem a um
critério absoluto e necessário como, por exemplo, a estrutura lógica da proposição;
dinâmicas, pois podem variar, a linguagem muda constantemente e novos jogos de
linguagem sempre podem substituir os antigos; convencionais, dado que se estabelecem,
permanecem e mudam através do uso.
É importante frisar que as regras do jogo de linguagem não são dadas subjetivamente.
Elas são sempre instanciadas de forma coletiva e comunitária. O significado de um termo
só funciona mediante o compartilhamento de um jogo de linguagem por uma
comunidade. Os jogos de linguagem não são privados, mas se relacionam às formas de
vida. Esse conceito apresenta grandes dificuldades interpretativas; podemos, no entanto,
entender “formas de vida” como sendo o contexto sociológico, cultural e histórico a partir
do qual o uso e as regras dos jogos de linguagem existem e operam. Uma forma de vida
é, assim, uma “visão de mundo” compartilhada, que estrutura e se estrutura por um jogo
de linguagem que dá às palavras e conceitos o seu significado (MARCONDES, 2004).
Podemos ver, assim, como o conceito de jogo linguagem se distingue fortemente da
imagem positivista da ciência. Os termos do discurso científico não seriam verdadeiros
por conta da sua conformidade com a realidade ou por conta da estrutura lógica dos seus
enunciados. As proposições da ciência, como todo discurso, só têm significado a partir
de um jogo de linguagem.

A ANARQUIA EPISTEMOLÓGICA DE PAUL FEYERABEND

Paul Feyerabend (1924-1994) foi um dos mais influentes filósofos da ciência e o seu
trabalho é, até hoje, um dos mais lidos e comentados na área. Nascido na Áustria, lutou
na Segunda Guerra Mundial do lado alemão, saindo do front após ser ferido na mão e na
espinha. Após a guerra, dedicou-se ao estudo da física e da astronomia, mudando para a
filosofia no seu doutorado. A sua trajetória intelectual é bastante profícua e curiosa.
Inicialmente, próximo do Círculo de Viena, Feyerabend trabalhou com Karl Popper e
outros membros influentes do Círculo, tendo produzido diversos artigos desenvolvendo
as teses do grupo. Nesse período de sua vida, publicou artigos importantes que
impactaram, por exemplo, no desenvolvimento contemporâneo do “materialismo
eliminativo”.

ASSIMILE
O materialismo eliminativo é o conjunto de reflexões e teses filosóficas que defende que
nossos estados mentais e a nossa compreensão basilar de nós mesmos, enquanto sujeitos,
está eminentemente equivocada. Para os materialistas eliminativos, como Paul e Patricia
Churchland, compreendemos a nós mesmos como possuidores de uma mente imaterial
perpassada por estados e sensações. Essa compreensão, como supostamente demonstra o
avanço na neurociência, estaria equivocada; na realidade, tudo que há são as alterações
físico-químicas no nosso cérebro e toda gramática que usamos rotineiramente para falar
de nós mesmos enquanto sujeitos dotados de um mundo íntimo estaria errada.

Apesar de Feyerabend ter se consolidado academicamente com seus trabalhos


relacionados ao positivismo lógico e a falseabilidade de Popper, o seu pensamento afasta-
se deste campo radicalmente ao final da sua vida. São as suas obras desse período –
sobretudo, Contra o método e Adeus à razão – que teriam um impacto mais significativo
na filosofia da ciência e pautariam a apropriação da sua filosofia no pensamento
contemporâneo.
Uma das preocupações fundamentais da filosofia da ciência é a de identificar no que
consiste o método científico. Qual método é compartilhado por todas as ciências, física,
química, sociologia, astronomia etc., de modo a torná-las efetivamente ciências e, assim,
com poder explicativo em relação ao mundo? A resposta de Feyerabend para essa
pergunta é surpreendente: não há método. Para o filósofo, a crença na existência de um
método racional, universal e único para as ciências é um mito. Não haveria uma
metodologia compartilhada entre cientistas de diferentes áreas ou mesmo no interior de
uma mesma área. De forma polêmica, o filósofo afirma que, na pesquisa científica, tudo
vale (everything goes); ou seja, na prática de pesquisa, o cientista não se pauta por
princípios universais, mas muda e viola regras e padrões diante do fenômeno que encontra
e diante das necessidades da sua própria pesquisa.

Essa sua tese chama-se anarquismo epistemológico. O anarquismo é uma doutrina


política, originada no século XIX, que se insurge contra a existência do Estado e de toda
autoridade em geral. Epistemologia é a área da filosofia que estuda a natureza do
conhecimento, seus limites, métodos e possibilidades de desenvolvimento. Assim, o
anarquismo epistemológico de Feyerabend, propõe justamente que não há uma autoridade
metodológica última expressa em um racionalismo universal; a ciência não tem regras e
normas absolutas que comandam toda e qualquer pesquisa científica. As regras e
princípios são usados localmente, ajustados, abandonados e transformados pelo cientista
na sua prática, e não leis universais irrecorríveis. É nesse sentido que se trata de
um anarquismo: Feyerabend está negando a autoridade universal de um método científico
em prol da utilização específica de métodos referentes aos objetos e fenômenos a serem
utilizados pelo cientista.

REFLITA
O movimento antivacina tem crescido nos últimos anos em diversos países ocidentais. Os
seus proponentes argumentam, sem base científica, que as vacinas são danosas à saúde,
sendo responsáveis, por exemplo, pelo desenvolvimento de autismo em crianças. Alguns
cientistas, inclusive, creditam a esse movimento o ressurgimento de doenças erradicadas
por campanhas de vacinação no passado, como o sarampo. Em que medida o anarquismo
epistemológico de Feyerabend responderia a esse problema?

A tese do anarquismo metodológico desdobra-se em um pluralismo metodológico.


“Pluralismo”, em filosofia, refere-se a um conjunto amplo de teses que sustentam a
impossibilidade de um princípio único. Para Feyerabend, no escopo da filosofia da
ciência, o pluralismo significa que, na ausência de um método universal, diversos
métodos e princípios postos em prática por diferentes cientistas são igualmente válidos.
Disso advém, ainda, uma outra consideração: a proliferação de ideias. Para o pensador, o
racionalismo universalista visaria impor uma metodologia única e uniforme que
delimitaria estritamente o campo científico em relação ao não científico, o que pode ser
considerado ciência e o que não pode. Isto, para o filósofo, é problemático, pois limita e
enfraquece a criatividade necessária ao processo científico: “A proliferação de teorias é
benéfica para a ciência, ao passo que a uniformidade lhe debilita o poder crítico. A
uniformidade, além disso, ameaça o livre desenvolvimento do indivíduo”
(FEYERABEND, 1977, p. 45). Assim, Feyerabend propõe que o cientista mantenha-se
sempre aberto a toda e qualquer ideia, mesmo àquelas que pareçam estranhas à ciência,
como dogmas religiosos ou poemas, música e literatura. A pluralidade de ideias favorece
a ciência, muito mais do que a subscrição estrita ao que pode ou não ser considerado
científico.
Um elemento muito importante da filosofia da ciência de Feyerabend é a sua defesa
do relativismo. O relativismo afirma que uma verdade para determinado indivíduo ou
grupo pode ser verdadeira para ele sem que o seja universalmente ou para outro grupo; o
que é verdadeiro para A, não é verdadeiro para B. Nesse sentido, o filósofo crítica a noção
de objetividade: a utilização de um critério único para determinar o que é objetivo e o que
é subjetivo, não expressaria algo do mundo realmente existente, mas seria,
contrariamente, um mito, uma vez que não há, efetivamente, método único capaz de
garantir que determinada hipótese científica seja objetiva e outras não. Esse mito teria
logrado tamanho sucesso, pois é indissociável de um projeto imperialista ocidental: supor
na compreensão científica do mundo a única compreensão verdadeira é, para Feyerabend,
um movimento de silenciamento das culturas não-ocidentais que seriam, assim, vistas
como falsas, primitivas e atrasadas.

O filósofo identifica como fatores completamente alheios à verdade ou falsidade de uma


teoria científica mostraram-se determinantes para uma teoria ser considerada válida.
Feyerabend mostra como interesses políticos, propaganda e mesmo a apreciação estética,
impactaram na vinculação de uma teoria como verdadeira em detrimento de outras. O
pensamento de Feyerabend, por conta dessa argumentação, foi importantemente
associado ao multiculturalismo e às filosofias pós-coloniais.

ASSIMILE
Multiculturalismo: é a tese de que cada cultura codificaria e compreenderia, ao seu
próprio modo, a realidade, sendo ilegítimo afirmar a superioridade de determinada
codificação sobre outras. Para o multiculturalista, por exemplo, não podemos afirmar que
a obrigação de mulheres de usar burca em alguns países islâmicos é “retrógrada” ou
“atrasada” em relação à cultura ocidental, na qual mulheres podem exibir seus corpos sem
problema.
Pós-colonialismo: é a reflexão crítica sobre os efeitos políticos e epistemológicos do
imperialismo e do colonialismo sobre os povos colonizados (e, em menor medida, sobre
os colonizadores). Esses efeitos são analisados a partir de diversos âmbitos, da literatura
à psicologia.

Um conceito muito importante trazido por Feyerabend é o de incomensurabilidade. O


filósofo utiliza o termo em sentido próximo ao de Thomas Kuhn, e é bastante clara a
influência de Kuhn sobre seu pensamento. A incomensurabilidade de Feyerabend – e
neste ponto podemos também identificar a influência de Wittgenstein – significa que os
termos de um discurso têm seu sentido dado pelo contexto. Os termos elementares de
uma teoria científica não seriam invariantes, dotados de um sentido próprio independente
da sua utilização ou do contexto em que são empregados. Para Feyerabend, isso se
desdobra na compreensão de que, se os termos em determinada teoria têm seu sentido
dado por ela própria, os mesmos termos em outra teoria apresentarão outro sentido
incomensurável com o primeiro, em última instância, não possuindo sentido algum.
Assim, em casos de incomensurabilidade, uma teoria simplesmente não fará sentido para
outra: não se mostrará propriamente verdadeira ou falsa, mas simplesmente sem sentido
(LEAL, 2016).

Feyerabend apresenta, assim, três teses relativas à incomensurabilidade. A primeira


identifica esquemas de pensamento incomensuráveis. Por exemplo, a visão de mundo dos
ianomâmi não seria mensurável com a da ciência ocidental. Em segundo lugar, no próprio
indivíduo em seu desenvolvimento pessoal, haveria esquemas incomensuráveis entre si
que mudariam com o tempo, mesmo a nível da estrutura perceptiva dos sentidos. Em
terceiro lugar, a prática científica apresenta concepções ontológicas subjacentes e
informadas pelo seu contexto histórico e social que faz com que os conceitos empregados
sejam radicalmente divergentes e não possam ser mensurados. No caso das ciências, isso
se manifesta nas concepções que guiam a pesquisa: cada teoria interroga os fenômenos
de certo modo e não de outro, estruturando o que será visto e o que não será, o que contará
como resposta para o problema de pesquisa e o que não contará etc. Desse modo, podemos
ver como a incomensurabilidade é indissociável do relativismo e do anarquismo
epistemológico. Sendo impossível a redução das diversas teorias e sentidos a uma única
teoria ou método ou princípio capaz de torná-las todas mensuráveis, o que resta é uma
pluralidade de visões distintas sem critério capaz de decidir qual a mais verdadeira e
melhor.
A tese do anarquismo epistemológico de Feyerabend tem consequências políticas, por
mais que elas não se identifiquem ao anarquismo propriamente dito. Feyerabend
apresenta importantes críticas ao papel das ciências na sociedade contemporânea. Para o
pensador, não há controle democrático sobre a prática científica. No escopo do ideal de
racionalidade universal, o discurso científico assume a figura de uma verdade que deve
ser seguida, enquanto verdadeira, e ponto final: ir contra ela é ir contra os fatos, e ir contra
os fatos é apenas loucura, ignorância ou primitivismo. Dado que, para Feyerabend, não
há um ponto de vista privilegiado, plenamente objetivo, a ciência, enquanto uma
cosmovisão dentre outras, não tem por mérito próprio o direito de determinar o curso da
sociedade. Se, em uma comunidade nacional, há outras concepções da realidade que não
a científica, não se pode simplesmente descartá-las como “primitivas” e “atrasadas”.
Também vale indagar em que medida as pesquisas científicas são realizadas para além de
qualquer deliberação pública e democrática. O que pauta, por exemplo, o investimento
em certas pesquisas em detrimento de outras não é a vontade coletiva, mas os interesses
de Estados e grandes empresas. Mais ainda, será que determinados desenvolvimentos
científicos, se sujeitos ao escrutínio público, seriam tolerados pela população? Pode-se
pensar, nesse sentido, em pesquisas que visam tornar possível “ler pensamentos” ou a
manipulação genética de fetos para que apresentem certas características, como cor de
pele e dos olhos, mais inteligência etc. O que propõe Feyerabend é precisamente que se
estabeleçam mecanismos de controle social para a prática científica.

FOCO NA BNCC
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) coloca com uma das competências
obrigatórias para o aluno egresso do Ensino Médio a compreensão pluralista e adequada
dos diversos saberes. O pluralismo metodológico e o anarquismo epistemológico de
Feyerabend são recursos muito significativos nesse aspecto. O mesmo vale para os jogos
de linguagem de Wittgenstein.

Nesta seção, vimos o importante conceito de jogos de linguagem de Wittgenstein e a


interessante e influente crítica de Feyerabend ao lugar da ciência e ao ideal de um
racionalismo universal. Com base nessas reflexões, sua compreensão sobre a prática
científica foi ampliada e você avança cada vez mais na filosofia da ciência!

FAÇA VALER A PENA

Questão 1
Os jogos de linguagem se constituem a partir de regras de uso – de caráter convencional,
pragmático – que determinam nos contextos dados o significado que as expressões
linguísticas têm (§§ 224, 372). A linguagem não é privada; não é a subjetividade, a
estrutura de nossa mente, que constitui o significado, mas as práticas, as formas de vida
(MARCONDES, 2002, p. 305).
Sobre o conceito de jogos de linguagem na filosofia de Wittgenstein, assinale a alternativa
correta.

a. Os jogos de linguagem correspondem às estruturas lógico-universais da ciência.

b. Os jogos de linguagem são individuais e subjetivos.

c. As regras que determinam os jogos de linguagem são imutáveis.

d. Os jogos de linguagem são o quadro dentro do qual as palavras têm significado.

Correto!

Jogos de linguagem são estruturas práticas que oferecem um quadro dentro do qual os
termos e palavras adquirem significado. Eles são contingentes e mudam com o tempo; as
regras que os norteiam são constituídas pelo uso. Não são subjetivos, no sentido de uma
linguagem privada, mas são públicos, coletivos e comunitários.

e. Os jogos de linguagem não possuem regras em absoluto, mas apenas indicações práticas.

Questão 2

O pensamento de Paul Feyerabend teve grande impacto na filosofia da ciência.


Considerado polêmico e provocativo, alimentou e alimenta vivas discussões. Tendo esse
contexto em vista, avalie as seguintes afirmativas:

I. O anarquismo epistemológico de Feyerabend tem por consequência a necessidade de


destruição do Estado e criação de uma sociedade livre.
II. O anarquismo epistemológico de Feyerabend é formulado em resposta à contestação
de que não há método único na prática científica.
III. O relativismo de Feyerabend afirma que não existe modo de compreensão privilegiado
em relação à realidade.

Com base nesse contexto, é correto o que se afirma em:

a. I, apenas.

b. I, II e III.

c. II e III, apenas.

Correto!

A afirmativa I está errada, pois o anarquismo epistemológico de Feyerabend não é o


mesmo que o anarquismo político. A afirmativa II está correta: é diante da percepção de
que não há método universal que o pensador conclui pela anarquia epistemológica. A
afirmação III expressa corretamente o relativismo do filósofo, que não julga uma
compreensão de mundo como superior a todas as demais.

d. II, apenas.

e. I e II, apenas.

Questão 3

“Em última análise, o anarquismo epistemológico, ideia fundamental de Contra o


método e que, por muitos críticos, identifica Feyerabend como um inimigo da ciência, é
um anarquismo que sustenta a atitude do cientista de agir de acordo com as circunstâncias
que se apresentam a ele, procurando rejeitar qualquer tipo de universalização de padrões
e princípios. Isto não implica a defesa de uma situação caótica no âmbito científico, mas,
antes, o esclarecimento das limitações e contextos de aplicação de regras em pesquisas e
empreendimentos na ciência, respeitando o pluralismo de concepções” (LEAL, 2016, p.
10).
Tendo em vista esse conceito, avalie as seguintes asserções e a relação proposta entre
elas:

I. Feyerabend afirma que diversos povos, em contextos sociais e históricos distintos,


apresentaram seus modos próprios de compreender o mundo, e que a racionalidade
ocidental não é superior a outros modos.

PORQUE

II. II. Na ausência de uma metodologia universalmente válida, ausente na própria prática
científica ocidental, Feyerabend identifica na ideia de uma racionalidade universal um
mito cuja disseminação é tributária do imperialismo.

Considerando o contexto apresentado, avalie as seguintes asserções e a relação proposta


entre elas.

a. As asserções I e II são proposições verdadeiras, mas a II não justifica a I.

b. As asserções I e II são proposições verdadeiras e a II justifica a I.

Correto!

A asserção I apresenta corretamente o relativismo de Feyerabend. Para o filósofo, não há


compreensão superior a todas as demais, nem critérios objetivos últimos. A asserção II,
por sua vez, apresenta de modo correto a justificativa para esse relativismo: a ausência de
critério metodológico universal na própria prática científica.

c. A asserção I é uma proposição verdadeira e a II, falsa.

d. A asserção I é uma proposição falsa e a II, verdadeira.


e. As asserções I e II são proposições falsas.

REFERÊNCIAS

FEYERABEND, P. Contra o Método. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora,


1977.
MARCONDES, D. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein.
Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
BILETZSKI, A; MATAR; A. Ludwig Wittgenstein. In: The Stanford Encyclopedia of
Philosophy, 2020. Disponível em: https://stanford.io/37BgJCX. Acesso em: 14 maio
2020.
LEAL, H. Paul Feyerabend e Contra o Método: Quarenta anos do início de uma
provocação. In: Cadernos IHU Ideias, v. 14, n. 237, p. 1-7, 2016. Disponível
em: https://bit.ly/3s8UA8F. Acesso em: 1 maio 2021.

FOCO NO MERCADO DE TRABALHO


LINGUAGENS, CONTEXTOS, JOGOS: NOVAS
CIÊNCIAS, NOVOS CRITÉRIOS CIENTÍFICOS
Ádamo Bouças Escossia da Veiga

SEM MEDO DE ERRAR

Você, no lugar de Pedro, teria se preparado muito bem para a prova e saberia
perfeitamente o que responder. Você poderia começar sua prova mostrando como
Feyerabend possui uma obra ampla e que, inicialmente, seu pensamento foi fortemente
influenciado pelo positivismo do Círculo de Viena. Poderia trazer a sua influência em
relação ao materialismo eliminativo e, em seguida, mostrar como o filósofo muda
radicalmente de pensamento em seus últimos livros e artigos.

Continuando com seu argumento, você explicaria o anarquismo metodológico de


Feyerabend. Para o pensador, o cientista não pesquisa com base em princípios e leis
universais. A prática científica real é pautada por uma pluralidade de método tão radical
que o filósofo afirma que, na ciência, “tudo vale.” Cada pesquisa mobiliza os métodos
específicos necessários à sua persecução; a noção de um método universal é nada mais
que um mito.

Poderia, assim, continuar argumentando que, para Feyerabend, na ausência de um método


racional universal, a verdade torna-se relativa. Diversos povos e culturas teriam seu
próprio modo de conceber a realidade e seria impossível estabelecer um critério
universalmente válido capaz de selecionar o mais verdadeiro ou melhor entre eles. A ideia
contrária, de uma racionalidade universal, para Feyerabend, seria resultado de um projeto
imperialista ocidental visando anular o valor de outras concepções de mundo.
Nesse sentido, poderia ainda trazer como, para o filósofo, fatores extra científicos
impactam sobremaneira na aceitação de uma teoria como verdadeira. Poderia falar de
questões políticas e econômicas, como o interesse dos Estados e grandes corporações.
Ainda poderia mostrar como, para Feyerabend, a ciência não é democraticamente
controlada; as pesquisas científicas são realizadas por conta de interesses estatais e
empresariais. Como devemos, diante disso, procurar mecanismos de controle público em
relação à ciência?

Assim, teria feito uma ótima prova e, com certeza, seria aprovado.

AVANÇANDO NA PRÁTICA

JOGOS DE LINGUAGEM

Para contextualizar a sua aprendizagem, imagine a seguinte situação: Isabel é professora


de filosofia. Atua no Ensino Básico e tem grande paixão pela docência. No ano de 2020,
Isabel se viu diante de um grande desafio como educadora; diante da pandemia de
COVID-19, as aulas tiveram que passar para o formato remoto, de forma súbita. Isabel
não tinha treinamento em EaD, mas diante das circunstâncias, resolve dar o seu melhor
para manter seus alunos estudando.

Para piorar, Isabel percebe que seus alunos têm dificuldade no acesso à internet. Muitos
moram em regiões carentes, sem fibra óptica, e apenas pelos 3G dos seus celulares
conseguem se conectar. Assim, Isabel opta por gravar vídeos curtos e cria um grupo no
WhatsApp para sanar as dúvidas dos alunos.

No grupo, Isabel percebe que não entende muito do que escrevem seus alunos.
Abreviações e expressões lhe causam estranhamento e ela acaba por não entender o que
eles estão perguntando. Alguns alunos acham engraçado a professora não compreender a
“linguagem da internet”. Ao invés de desanimar, Isabel vê nessa situação uma forma de
introduzir, didaticamente, tópicos de filosofia da linguagem. Pensa em Wittgenstein e nos
jogos de linguagem.
Você, no lugar de Isabel, como se aproveitaria da incompreensão da linguagem usada
pelos seus alunos para introduzir o conceito de jogos de linguagem de Wittgenstein?

RESOLUÇÃO

Você, no lugar de Isabel, veria na sua incompreensão da linguagem virtual dos alunos
uma oportunidade de ensino. Primeiramente, poderia aprender os principais termos que
eles utilizam, visando facilitar a comunicação. Em seguida, gravaria sua próxima aula
sobre Wittgenstein. A incompreensão da linguagem dos alunos, antes de ser algo
meramente engraçado, aponta para um fator fundamental da filosofia da linguagem de
Wittgenstein: a dependência do significado em relação ao uso e ao contexto.
Poderia, assim, começar sua aula mostrando como as palavras não têm significado
garantido por elas mesmas, nem sentido invariável. Poderia falar que o que lhe dá o seu
significado é o uso que as pessoas fazem dela e o contexto no qual é utilizada. Por não
estar familiarizada com o contexto dos alunos, com o seu uso de certos termos, ela não
compreendeu o que diziam. Prosseguindo, você, no lugar da professora, poderia trazer o
conceito de jogo de linguagem. Um jogo de linguagem é o conjunto de regras práticas
que estruturam determinado campo de sentido; é a partir dessas regras que as palavras em
suas relações mútuas adquirem significado. Novamente, poderia mostrar que, por não
partilhar do jogo de linguagem dos seus alunos, não entendeu o que diziam.
Assim, você, no lugar de Isabel, teria aproveitado a situação para apresentar um
importante ponto de filosofia da linguagem.

NÃO PODE FALTAR


RAZÃO, EVOLUÇÃO, TECNOLOGIA
Ádamo Bouças Escossia da Veiga

CONVITE AO ESTUDO

Prezado aluno, seja bem-vindo à nossa última unidade. Tivemos um longo percurso até
aqui e esperamos que tenha sido bastante proveitoso. Ao longo das últimas unidades, você
descobriu a filosofia da ciência, em suas ideias, problemas e métodos. Finalizaremos este
percurso, agora, trazendo os principais pontos de debate na filosofia da ciência
contemporânea.
Na primeira seção, veremos a questão da técnica, da tecnologia e sua relação com a
ciência. Vivemos em um contexto histórico marcado pela interação tecnológica em todas
as esferas das nossas vidas. Esta dimensão foi, certamente, estudada pela filosofia da
ciência e veremos como Heidegger, grande filósofo do século passado, pensou a questão,
assim como a relação entre técnica e capitalismo, conforme tematizada pelo pensamento
marxista.
Em seguida, na segunda seção, refletiremos sobre as ciências humanas, principalmente a
partir da célebre análise de Michel Foucault sobre o tema. Ainda nesta seção, veremos o
problema do etnocentrismo e do antropocentrismo, dois conceitos muito debatidos na
filosofia da ciência contemporânea.

Na nossa terceira seção, veremos um dos tópicos mais importantes da reflexão filosófica
sobre a ciência nos dias de hoje: a ética da prática científica e a questão ambiental.
Vivemos em uma era marcada pela ascensão do ser humano – a partir da tecnologia – a
agente geológico, e este momento inaudito na história planetária tem dado muito em que
pensar.
Assim, concluímos nosso percurso. Após percorrer cada etapa, você terminará a
disciplina com uma boa base conceitual, que vai qualificá-lo para o exercício docente e
de pesquisa. Além disso, ao final de nossa aprendizagem, você verá que compreender a
ciência é compreender o mundo em que vivemos e, deste modo, estará mais preparado
para a vida e seus desafios.

PRATICAR PARA APRENDER

Caro aluno, bem-vindo à primeira seção da nossa última unidade. Nela, daremos
prosseguimento às reflexões que nos mobilizaram até agora e você aprenderá mais sobre
os principais tópicos da relação entre ciência e tecnologia.
Nesta seção, veremos duas abordagens diferentes em relação à tecnologia e à ciência.
Vamos começar estudando o importante pensamento de Martin Heidegger sobre a técnica
e a sua influente crítica. Para o filósofo alemão, a técnica configura-se, para nós, como
um modo de ser no mundo e como uma visão determinada sobre a totalidade dos entes
que nos cercam. Vamos ver o que isto significa e os problemas desta abordagem.
Heidegger situa-se plenamente no contexto de crítica ao ideal moderno do progresso e
você vai entender a razão disto.

Em seguida, veremos como a tradição do pensamento marxista considera a relação entre


capitalismo, técnica e ciência. Neste sentido, ponderaremos sobre o importante problema
contemporâneo do desemprego, causado pela automação da produção industrial, e
refletiremos em que medida o capitalismo pode ser relacionado com o desenvolvimento
tecnológico.
Após estes estudos, sua visão de mundo sairá alargada por duas diferentes concepções
sobre tecnologia e ciência, que, se distintas, em muito enriquecem o nosso olhar sobre a
vida cercada de tecnologia que todos nós temos hoje.
Para contextualizar a sua aprendizagem, imagine a seguinte situação: Aline é professora
de filosofia e militante da ecologia. Sua atuação, em ambas as áreas, lhe garantiu certo
destaque nos últimos anos, e, por conta disso, ela é chamada para escrever um artigo de
opinião em uma revista de ampla circulação acerca da situação que descreveremos na
sequência.
Uma gigantesca hidrelétrica está para ser construída, pelo governo federal, na região
amazônica, e tem encontrado ampla resistência das populações locais, ribeirinhos e
indígenas, assim como de organizações da sociedade civil ligadas à defesa do meio
ambiente. O projeto da hidrelétrica alagaria uma imensa área de floresta amazônica e
levaria à remoção de diversas aldeias e comunidades originárias. O governo federal
justifica a necessidade da obra afirmando a necessidade do progresso e do aumento da
produção elétrica nacional. O Ministro das Minas e Energia, neste sentido, afirmou em
entrevista coletiva: “Do que adianta termos a maior bacia hidrográfica do planeta se não
podemos usá-la?”.

Após esta afirmação, que gerou grande debate social, os editores da revista solicitam que
Aline, em seu artigo, comente filosoficamente a frase do ministro.
Como você, no lugar de Aline, comentaria a afirmação?
Compreender a técnica, algo tão próximo de nós e, ao mesmo tempo, um tanto misterioso,
é um grande desafio. Diante dele, temos certeza de que você seguirá com a mesma
perseverança de antes. Vamos lá?

CONCEITO-CHAVE

SEPARAÇÃO ENTRE CIÊNCIA E TECNOLOGIA

Uma questão muito importante – e sempre amplamente discutida – em filosofia da ciência


é a relação entre ciência e tecnologia. É muito comum, no nosso imaginário ocidental,
vermos estas duas dimensões como sendo a mesma coisa: o progresso científico como
progresso tecnológico ou o progresso tecnológico como razão do progresso científico.
Imagina-se, em geral, a tecnologia enquanto ciência aplicada. O físico, em seu
laboratório, descobre leis da natureza, cria equações para expressá-las, e este material é,
posteriormente, utilizado pelo engenheiro na produção de um novo produto. Neste ponto,
concebe-se a ciência como voltada exclusivamente à produção de novas tecnologias,
visando, em última instância, ao progresso humano. Aqui, a problemática do ideal do
progresso científico retorna: dentro deste ideal, o progresso científico produz o progresso
técnico como seu correlato necessário em direção ao crescente bem-estar e à emancipação
da humanidade. Esta questão, no entanto, não é simples como parece, e tampouco o é a
relação entre conhecimento científico e progresso tecnológico. Seria a tecnologia
meramente uma ciência aplicada e, assim, relativamente independente? A tecnologia, por
si mesma, produziria bem-estar e conforto para a humanidade?
O vínculo entre ciência e tecnologia torna-se uma concepção estruturante do nosso
pensamento ocidental a partir do Renascimento. Francis Bacon é um dos primeiros a
afirmar que o progresso do conhecimento científico se expressa em um maior controle da
natureza e, assim, leva à emancipação humana frente ao mundo natural. Esta concepção,
não obstante, sofreu grandes críticas – como vimos anteriormente – e, hoje em dia, revela-
se bastante problemática diante da mudança do regime climático do planeta por
consequência da ação humana e da trágica experiência do século passado, com suas
grandes guerras e extermínios. Continuando o que vimos antes, entenderemos como a
crítica ao progresso científico desdobra-se em uma crítica à própria tecnologia e à relação
entre ciência e tecnologia.

A QUESTÃO DA TÉCNICA

Martin Heidegger (1880-1976) foi um dos mais importantes filósofos do século XX. De
nacionalidade alemã, foi próximo ao partido nazista, renegando-o após o fim da guerra.
Sua filosofia recobre diversas áreas e seu pensamento sobre a técnica é altamente
influente até os dias de hoje. Para Heidegger, em a Questão da técnica (2007), a técnica
não é apenas uma aplicação da ciência natural à produção de produtos, é, antes, um modo
de existir, um modo de se relacionar com o mundo. Para além da produção industrial e
das inovações em termos de produtos, a técnica é um modo de engajamento específico
com os entes que nos cercam.

O filósofo, ao refletir sobre a essência da técnica, visa, em primeiro lugar, a afastar uma
concepção antropológica e meramente instrumental. Quanto ao primeiro aspecto, o alvo
é a concepção da técnica como sendo um produto humano; a técnica, para Heidegger,
determina o homem tanto quanto é produzida por ele: “sem perceber, o homem se
encontra em grande medida ele próprio tecnicamente determinado em seu ser,
perpetuamente convocado a aperfeiçoar-se tecnicamente” (LYRA, 2017, p. 3) Quanto ao
segundo aspecto, não se trata propriamente de negar o caráter instrumental da tecnologia,
mas de mostrar como a técnica vai além da simples instrumentalidade em direção a um
horizonte de compreensão total dos entes mundanos. Neste sentido, é importante notar
que, para Heidegger, não se trata de dizer que as concepções antropológica e instrumental
estão erradas ou são falsas; para o filósofo, o ponto é que esta abordagem é insuficiente,
pois deixar passar a essência da técnica (LYRA, 2017).
O termo que Heidegger usa para expressar a essência da técnica é Gestell. É uma palavra
alemã de difícil tradução. Traduz-se, muitas vezes como “armação”, mas também é
traduzida como enquadramento ou composição – além de outras traduções. Edgar Lyra,
um dos maiores especialistas do tema no país, define o sentido de Gestell como “um
projeto de disposição conjunta e ordenada dos diversos entes em escaninhos, prateleiras,
gavetas, compartimentos, arquivos ou arranjos de quaisquer naturezas, de modo a serem
localizados e sacados tão segura e imediatamente quanto possível” (LYRA, 2017, p. 4-
5). Trata-se de um enquadramento dos entes do mundo sob um modelo de estocagem e
disponibilidade em que eles são concebidos como sempre à mão, como um escaninho,
onde encontramos tudo disposto de forma ordenada, com fichas e etiquetas tornando fácil
o acesso ao que quer que seja. A técnica, para Heiddeger, é esta estrutura de compreensão
do mundo, a qual toma os entes como objetos em um armazém ou almoxarifado: cada um
no seu devido lugar, facilmente disponíveis ao almoxarife. O mundo é visto, assim, como
uma série de objetos dispostos de forma precisa, ordenada e disponível ao nosso uso. É
importante notar que, para Heidegger, esta concepção mobiliza toda uma forma de “ver”,
de trazer à luz os entes que nos cercam, e não apenas uma ideia filosófica; é sob a chave
do armazém que se encara a realidade sob a técnica (LYRA, 2017).
Sob a técnica, o ser revela-se ao homem como recurso e como estoque. O mundo é um
recurso a ser apropriado, algo indigno de qualquer referência, espanto ou admiração. O
exemplo mais célebre, trazido por Heidegger, é de uma hidrelétrica no rio Reno. O rio é,
neste sentido, visto como mera disponibilidade energética para as turbinas que deveriam
produzir eletricidade para o uso humano:

A central hidroelétrica não está construída no rio Reno como a antiga ponte de madeira,
que há séculos une uma margem à outra. Pelo contrário, é o rio que está construído na
central elétrica. Ele é o que ele agora é como rio; a saber, a partir da essência da central
elétrica, o rio que tem a pressão da água.

(HEIDEGGER, 2007, p. 382)

O rio não é objeto de contemplação ou admiração, não tem valor em si, mas é desvelado
a nós apenas sob a forma de um recurso passível de apropriação e uso. A ponte não visava
a tomar o rio como recurso a ser apropriado; era apenas um modo de transpô-lo. Já a
hidrelétrica subordina o rio ao seu uso, tomando-o como energia para a turbina e nada
além.
Neste sentido, um ponto importante é que o próprio homem se vê tomado como recurso.
Bastante ilustrativa, neste aspecto, é a utilização do termo “recursos humanos” para o
setor de contratação de uma empresa: o ser humano como recurso para a empresa. Assim,
podemos ver como a técnica não pode ser, como vimos há pouco, entendida como uma
mera ferramenta para o uso senhorial do homem, uma vez que ele próprio torna-se uma
peça no armazém, ou, tal como um rio, mero recurso para apropriação.
Para Heidegger, a instrumentalidade da técnica, ou seja, seu caráter de meio visando a
fins, é uma consequência deste modo de “ver” que toma os entes como recursos. A ciência
moderna, para o autor, seria constituída precisamente a partir desta concepção, e a técnica,
com sua instrumentalidade, manifestaria posteriormente, e de forma explícita, a visão já
ali subjacente. Para o filósofo alemão, a ciência concebe o mundo a partir do cálculo,
entendendo o universo como conjunto de forças a serem mensuradas, comparadas e
compreendidas matematicamente. A técnica desdobra-se disso, uma vez que passa a
conceber a totalidade da natureza a partir da sua disponibilidade, e esta concepção, por
sua vez, culmina na concepção dos demais entes como recursos a serem explorados. O
mundo calculável é um mundo disponível ao nosso uso, um mundo passível de ser
controlado. Como coloca, muito bem, Leopoldo Silva:

(...), a técnica está profundamente entranhada na própria essência da ciência moderna


como seu destino. Assim, o que se manifesta posteriormente é, na verdade, primordial. A
técnica não deve, pois, ser vista como uma aplicação eventual da ciência; à natureza como
complexo de forças passível de ser calculado corresponde a disponibilidade do ente para
a dominação e a utilização.

(SILVA, 2007, p. 371)

Neste sentido, podemos ver como o pensamento de Heidegger insere-se nitidamente nas
críticas ao ideal de progresso científico que vimos anteriormente. Para o filósofo, não se
trata de um progresso rumo ao esclarecimento e à emancipação, tampouco a tecnologia
pode ser compreendida como chave infalível a destrancar as portas do paraíso de
liberdade e abundância. O homem é enredado na técnica e o movimento de conquista do
mundo natural é correlato ao movimento de conquista do homem pelo próprio homem.
Conforme todos os entes são vistos como recursos sob a técnica, o próprio homem torna-
se recurso disponível, estocado, disponível para a exploração.
ASSIMILE
Um dos temas centrais do pensamento de Heidegger é a reflexão sobre o Dasein, termo
traduzido, em geral, como “presença” ou “ser-aí”. O conceito de Dasein é uma figura
analítica para se pensar a indeterminabilidade imediata da experiência: o Dasein é
concebido enquanto “núcleo” experiencial desprovido de significação intrínseca, que se
determina a partir de uma comunidade em seu contexto histórico. O Dasein é uma
abertura; diferentemente dos outros entes, o Dasein humano indaga-se sobre si mesmo e
sobre o mundo. A questão da significação dos outros entes, para ele, é uma pergunta em
aberto. A técnica contemporânea, neste sentido, é uma forma do Dasein significar e dar
sentido aos demais entes.

Heidegger não utiliza o termo “capitalismo” para referir-se ao movimento de


manifestação da técnica enquanto destino da ciência moderna no mundo contemporâneo.
O filósofo prefere o termo “americanismo” para referir-se à subsunção do homem ao
modo da Gestell. O termo refere-se, naturalmente, aos Estados Unidos e ao seu modo de
vida, marcado pelo consumo e pelo progresso tecnológico. Não obstante, o
“americanismo’ – no contexto de Guerra Fria em que Heidegger escreve – pode ser, com
bastante cautela, aproximado ao conceito de capitalismo. Vamos ver, agora, a relação da
técnica com o capitalismo.

CIÊNCIA E SOCIEDADES CAPITALISTAS

A ciência moderna desenvolve-se paralelamente ao desenvolvimento do modo de


produção capitalista, e a relação entre os dois tem sido objeto de análises e debates. É um
tema recorrente na filosofia da ciência contemporânea e cada vez mais urgente. As
mudanças climáticas, trazidas pelo desenvolvimento técnico durante os séculos de
hegemonia capitalista, assim como a crescente automação do trabalho, que vem
aumentando significativamente o desemprego no mundo, tornam crescentemente
necessário compreender a relação entre tecnologia, ciência e capitalismo.
Em primeiro lugar: o que é o capitalismo? O capitalismo, na tradição marxista, é um modo
de produção. O conceito de modo de produção expressa a forma e as relações a partir das
quais as sociedades organizam a produção de objetos e recursos necessários para a sua
sobrevivência e perseveração no tempo. Um modo de produção tem dois componentes
centrais: o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de produção. O
conceito de força produtiva compreende o estágio de desenvolvimento tecnológico e as
ferramentas e máquinas disponíveis, em suma, aquilo que permite que o trabalho produza,
mais ou menos, em determinado período de tempo. Quanto maior a produção com menor
esforço, maior é o desenvolvimento das forças produtivas. As relações sociais de
produção, por sua vez, são os ordenamentos, códigos, processos, regimes e modos de
organização social nos quais a interação humana articula-se no interior de determinado
modo de produção. Por exemplo: no modo de produção feudal, a vassalagem era uma
relação social de produção; os camponeses, subordinados aos nobres, deveriam dar parte
da sua produção agrícola em troca de proteção.
O modo de produção capitalista é caracterizado por Marx a partir de alguns fatores
centrais. Em primeiro lugar, há a divisão da sociedade em duas classes principais e
antagônicas: a burguesia e o proletariado. A burguesia é a classe que detém a propriedade
privada dos meios de produção – aqueles que possuem o dinheiro, os bancos, as fábricas,
máquinas e terras, sem as quais não há como o trabalho humano produzir o que for. O
proletariado é a massa dos despossuídos, que, por não terem os meios necessários
(precisamente, as máquinas, terras, etc.) para produzir aquilo que necessitam para o seu
sustento, vendem sua mão de obra para a burguesia. O burguês tem as máquinas e
ferramentas para a produção; o proletariado, apenas o seu próprio corpo e, assim, não há
outra opção para ele senão vender o seu trabalho para o burguês em troca de salário. Na
sociedade contemporânea, o burguês é o empresário ou dono de terras, às vezes também
chamado de empreendedor. Neste sentido, Marx identifica dois tipos de capital em jogo
na produção capitalista: o capital constante (as máquinas, terras, meios de produção) e o
capital variável (o proletariado e sua força de trabalho).
Em segundo lugar, o modo de produção capitalista caracteriza-se pela extração da mais-
valia. A mais-valia (também traduzida do alemão por “mais valor”) é o trabalho não pago
pelo burguês (aquele que detém o capital) ao trabalhador. Como isso se dá? Para Marx, o
valor de uma mercadoria é dado, essencialmente, pelo trabalho socialmente determinado
nela investido. Quanto mais trabalho, maior o valor. No capitalismo, o proletário produz,
com seu trabalho, determinado valor ao longo da sua jornada trabalhista; no entanto,
apenas uma parte ínfima deste valor retorna até ele na forma do salário. A maior parte
fica com o burguês que, assim, expropria seu trabalho. O valor que o trabalho de um
proletário produz é superior àquele que ele recebe sob a forma de salário da empresa
(MARX, 2019).

EXEMPLIFICANDO
Imagine um trabalhador de uma indústria de sapatos que ganhe 1000 reais por mês e que
trabalhe oito horas por dia. A cada dia de trabalho, este trabalhador produz sapatos no
valor de 1000 reais. Ao longo do mês, supondo que trabalhe cinco vezes na semana, terá
produzido 20 mil reais em sapatos para o dono da indústria. E, em troca, recebeu apenas
1000 reais de salário; assim, a mais-valia extraída do seu trabalho foi de 20.000 - 1000
reais; ou seja, 19 mil reais. O ganho do capitalista vem, precisamente, da apropriação
desta diferença.

A forma que acabamos de descrever é a da mais-valia absoluta. Há ainda, para Marx, a


mais-valia relativa, essencial para compreendermos o papel da técnica no modo de
produção capitalista. Com o desenvolvimento das forças produtivas sob o capitalismo, o
trabalho passa a produzir mais em menos tempo. Surgem máquinas melhores e a
organização do trabalho torna-se mais racional; se o trabalhador, por exemplo, demorava
uma hora para fazer um sapato, com novas máquinas, passa a produzir dez sapatos em
uma hora. No entanto, se, a princípio, produzir mais em menos tempo deveria produzir
abundância, para Marx, é o contrário que efetivamente acontece: o desenvolvimento
tecnológico produz um aumento da apropriação do trabalho pelo capitalista. Como isso
se dá? Se o trabalhador produz dez sapatos em metade do tempo por conta de uma
máquina tecnologicamente mais evoluída e continua recebendo o mesmo salário, a
produtividade do seu trabalho aumentou significativamente, enquanto a parte que ele
recebe do seu trabalho sob a forma de salário permaneceu a mesma; logo, a extração de
mais-valia (a parte do seu trabalho não pago) aumentou. Este modo de apropriação é a
mais-valia relativa.

EXEMPLIFICANDO
Imagine o mesmo trabalhador da fábrica de sapatos do exemplo anterior. Suponha que
uma nova máquina permita a ele produzir não mais 1000 reais em sapatos durante um dia
de trabalho, mas, agora, 3000 reais em sapatos. Mantendo-se o seu salário constante (1000
reais por mês), a massa de mais-valia apropriada só cresceu.
ASSIMILE
Capital constante: máquinas, terras, meios de produção.

Capital variável: trabalho humano.

Mais-valia absoluta: diferença entre o trabalho pago ao trabalhador sob a forma de salário
e o valor do produto do seu trabalho.

Mais-valia relativa: aumento da mais-valia apropriada a partir do ganho de produtividade


do trabalho por meio do progresso técnico.

Este fenômeno de desenvolvimento técnico sem ganho para o trabalhador, para a tradição
marxista, é próximo à tensão entre capital constante (meios de produção) e capital
variável (mão de obra). O aumento da produtividade não gera melhoras ao trabalhador –
seja sob a forma de aumento salarial ou redução da jornada –, mas apenas acentua a sua
exploração. Neste sentido, ainda, o desenvolvimento tecnológico tende a tornar grande
parte da mão de obra simplesmente desnecessária, produzindo uma ampla massa de
desempregados. Se antes uma empresa precisava de X funcionários para operar, com
novas tecnologias pode reduzir este contingente para X/2. Esta massa de desempregados
é chamada por Marx de “exército de mão de obra de reserva”. Na leitura marxista, essa
massa de desocupados acaba por pressionar o valor do salário do trabalhador para baixo.
Quanto maior o número de desempregados, ou seja, quanto maior a oferta de mão de obra,
menor o seu custo. A ameaça do desemprego, neste sentido, pressiona os trabalhadores a
aceitarem uma remuneração menor (MARX, 2019).

Aplicando este referencial teórico ao mundo contemporâneo, Srnicek e Williams (2015)


mostram como a automação da indústria ao longo do século XX produz um crescente
número de desempregados sem possibilidade de reinserção no mercado de trabalho. A
robotização, a internet, e diversas outras grandes transformações tecnológicas,
erradicaram diversas profissões e reduziram em muito o número de trabalhadores
necessários nas indústrias e empresas. Prognósticos diversos apontam que esta tendência
continuará a se desenvolver no século XXI, aumentando ainda mais o desemprego. Neste
ponto, seguindo os autores, é contraditório que a capacidade de produzir mais produtos
em menos tempo, longe de aumentar o tempo livre e a abundância de produtos para todos,
gere, pelo contrário, miséria, desemprego e privação.

REFLITA
Diante deste diagnóstico, Srnicek e Williams (2015) propõem uma renda mínima
universal. O tema tem sido muito debatido em diversos países por ambos os lados do
espectro político, direita e esquerda. Para os autores, trata-se de uma renda mínima
garantida a todo cidadão, independentemente de qualquer fator. A justificativa para a sua
necessidade é que, a partir de uma renda mínima universal, o progresso tecnológico não
pressionaria os salários para baixo por conta do desemprego, protegendo, também,
aqueles que, por conta da automação, não são passíveis de serem empregados.
O que você acha desta proposta? Reflita sobre isso.
Apesar desta crítica ao papel do desenvolvimento tecnológico da ciência no capitalismo,
Marx e Engels, no famoso Manifesto do Partido Comunista (2018) afirmam, de forma
entusiasmada, que o capitalismo levou mais longe do qualquer outro modo de produção
o desenvolvimento técnico e científico, levando as forças de produção a um nível nunca
antes visto: “Durante sua dominação, que ainda não completou um século, a burguesia
desenvolveu forças produtivas mais maciças e colossais que todas as gerações anteriores”
(MARX; ENGELS, 2008, p. 18). O marxismo não é crítico em relação ao ideal de
progresso; é, antes, um dos seus principais representantes. O problema, para o marxismo,
não está no desenvolvimento tecnológico per se, mas na organização do modo de
produção capitalista, que produz escassez onde só há abundância. A ciência e a
tecnologia, para o marxismo, são libertadoras; a sua apropriação no modo de produção
capitalista é que faz delas causas de miséria e desemprego.

Na abordagem marxista, em uma sociedade pós-capitalista, a técnica não teria como


correlatos estes efeitos, mas seria veículo de emancipação humana. Para os autores, o
desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo entra em contradição com as
relações sociais de produção, o que levaria a um novo modo de produção: o socialismo e,
em seguida, o comunismo. Para além da contradição entre desenvolvimento técnico, em
termos de capital constante e capital variável, há, igualmente, a contradição entre a
tendência cooperativa do capitalismo e a apropriação individualista do produto do
trabalho pela classe burguesa. A grande indústria reuniu centenas de pessoas em uma
tarefa comum, em um trabalho comum, o que entra em direta contradição com a
apropriação deste trabalho pela figura do burguês. Deste modo, para a tradição marxista,
em determinado momento estas contradições levariam à superação do capitalismo por um
outro sistema de produção, mais justo, equitativo e racional. Para Marx, este processo
requer determinado nível de desenvolvimento técnico para ocorrer; apenas a partir de um
alto nível de desenvolvimento das forças produtivas pode haver transição para o
socialismo e o comunismo. Por conta disso, Marx julgava que a revolução social
ocorreria, primeiramente, em países tecnologicamente avançados e possuidores de uma
indústria robusta, como a Inglaterra e a Alemanha, e não em nações subdesenvolvidas,
como a China e a Rússia, o que, como sabemos, ocorreu de modo contrário ao que Marx
imaginava.
Neste ponto, podemos ver que a abordagem marxista é bastante distinta da de Heidegger.
Para Heidegger, a ciência e a técnica são essencialmente problemáticas, conforme
subsumem os entes à forma da disponibilidade para a apropriação; para a tradição
marxista, no entanto, o desenvolvimento técnico é libertador em si mesmo, permitindo ao
homem a sua emancipação e a vida abundante, o que não ocorre, apenas, por conta da
apropriação capitalista.

ASSIMILE
A Escola de Frankfurt foi um grupo de pesquisa e produção teórica inaugurado na cidade
deste mesmo nome, cuja reflexão filosófica visava a desenvolver o pensamento marxista
a partir do contexto do século XX. Theodor Adorno é um dos seus principais
representantes e a crítica à razão instrumental, que vimos antes, insere-se neste contexto.
Outros nomes de peso da Escola de Frankfurt são Walter Benjamin e Jurgen Habermas.
A análise marxista da técnica na escola de Frankfurt, como o caso de Adorno deixa claro,
não apresenta o otimismo com o desenvolvimento técnico do marxismo tradicional. A
partir do trauma das guerras mundiais, o progresso de esclarecimento e emancipação a
partir da técnica foi enfraquecido e a dimensão teleológica do pensamento marxista
crescentemente abandonada.

FOCO NA BNCC
Na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), temos a competência de compreensão das
tecnologias em seu contexto histórico epistemológico. Nosso contexto social atual é
fortemente marcado pela presença da tecnologia e, assim, esta seção contribui
significativamente para sua atividade docente futura.

Nesta seção, vimos duas importantes concepções acerca da técnica. Para Heidegger, a
ciência moderna toma tudo como recurso e estoque, sob a imagem de um grande
armazém. Para Marx e o marxismo, a ciência e o desenvolvimento tecnológico são
veículos de emancipação, sendo a produção do desemprego e a exploração a partir da
tecnologia uma consequência da relação entre técnica e modo de produção capitalista.

FAÇA A VALER A PENA

Questão 1

A relação entre técnica e ciência é um tópico central nos debates recentes em filosofia da
ciência. A visão de Heidegger sobre o tema é uma das mais comentadas e debatidas. O
filósofo tem uma concepção ampla da técnica, que não a restringe a uma mera aplicação
da ciência.
Sobre o conceito de técnica para Heidegger, assinale a alternativa correta:

a. Para Heidegger, o progresso técnico emancipa o homem, por mais que possa ser danoso para os demais
entes da natureza.

b. Na filosofia de Heidegger, temos uma concepção instrumental e antropológica da técnica.

c. Para Heidegger, a técnica é uma aplicação da ciência que, no entanto, a expande para além da teoria.

d. Para Heidegger, a técnica é um modo de existir que enquadra o mundo sob a figura do estoque e da
reserva.

Correto!

Para Heidegger, a técnica é um modo de existir e de se relacionar com os entes do mundo


que os toma como disponíveis, sob a figura do estoque e da reserva. Ele rejeita uma
concepção instrumental e antropológica da técnica e a relaciona à ciência moderna.

e. Para Heidegger, a técnica é totalmente independente, em termos analíticos, da ciência moderna.

Questão 2

Uma nova tecnologia permite a um empresário industrial do setor têxtil uma produção
três vezes mais rápida de tecidos em suas fábricas. Esta nova tecnologia logo é
incorporada às principais fábricas do setor, gerando, nacionalmente, um aumento geral
da produtividade do trabalho nesta área da indústria. Com base na concepção marxista da
relação entre técnica e capitalismo, avalie as seguintes afirmativas:
I. Para Marx, o avanço tecnológico traz, necessariamente, vantagens aos trabalhadores
envolvidos na indústria têxtil, dado que aumenta a sua produtividade geral.
II. Para Marx, uma das consequências possíveis é o aumento do desemprego por conta da
nova tecnologia, o que gera um aumento salarial para os trabalhadores empregados.
III. Para Marx, a inovação técnica em questão traz aumento da mais-valia relativa para o
empresário têxtil, aumentando a exploração dos seus trabalhadores.
Com base neste contexto, é correto o que se afirma em:

a. I e II, apenas.

b. I, apenas.

c. II, apenas.

d. III, apenas.

Correto!

A afirmativa I está incorreta, pois, apesar do entusiasmo pelo desenvolvimento


tecnológico, Marx não via nele, sob o modo de produção capitalista, um ganho para o
trabalhador, mas apenas para o capitalista.
A afirmativa II está incorreta, pois o aumento do desemprego pressiona os salários para
baixo, e não para cima.
A afirmativa III está correta, pois a mais-valia relativa é aquela obtida pelo ganho de
produtividade, o que gera, no capitalismo, um aumento da expropriação do produto do
trabalho.

e. I, II e III.

Questão 3

Karl Marx e Martin Heidegger são filósofos de tempos diferentes e têm um pensamento
bastante dissonante entre si. Não obstante, ambos refletirão sobre a técnica no mundo
moderno. Tendo em vista a relação entre estes dois pensadores, julgue as afirmativas a
seguir:
I. Para Heidegger, em consonância com Marx, o modo de produção capitalista é o que
impede a técnica de ser libertadora.
II. Para Marx, diferentemente de Heidegger, o problema não está na técnica em si mesma,
mas na sua feição no modo de produção capitalista.
III. Para Heidegger e Marx, a técnica é um modo de desvelamento do ser e, enquanto tal,
serve para a opressão do homem pelo homem.
Com base neste contexto, é correto o que se afirma em:

a. II, apenas.

Correto!
A afirmativa I está incorreta, pois, para Marx, é o modo de produção capitalista que
interdita o potencial libertador da técnica, e não ela em si mesma.
A afirmativa II está correta, pois, em contraste com Heidegger, o marxismo pensa a
tecnologia como libertadora do homem, e se ela não o é no presente, é por conta do
capitalismo.
A afirmativa III está incorreta, pois o tema do desvelamento do ser e a opressão do homem
pelo do homem a partir da técnica estão apenas no pensamento de Heidegger.

b. III, apenas.

c. I, apenas.

d. II e III, apenas.

e. I e III, apenas.

REFERÊNCIAS

HEIDEGGER, M. A questão da técnica. Scientiae Studia, São Paulo, v. 5, n. 3, p. 375-


398, 2007. Disponível em: https://bit.ly/3lV0ysC. Acesso em: 3 ago. 2021.
LYRA, E. A Atualidade da Gestell heideggeriana ou a alegoria do armazém. Clareira,
2017. Disponível em: https://bit.ly/3xDcEZE. Acesso em: 14 jun. 2021.
MARX, K. O Capital: Livro I. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Editora
Boitempo, 2019.
MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Expressão
Popular, 2008.
SILVA. F. Martin Heidegger e a questão da técnica. Scientiae Studia, São Paulo, v. 5, n.
3, p. 369-374, 2007.
SNRICEK, N.; WILLIAMS, A. Inventing the future: postcapitalism and a world
without work. Londres/Nova York: Verso, 2015.

FOCO NO MERCADO DE TRABALHO


RAZÃO, EVOLUÇÃO, TECNOLOGIA
Ádamo Bouças Escossia da Veiga
SEM MEDO DE ERRAR

Você, no lugar da professora Aline, poderia trazer o importante conceito de Gestell, de


Martin Heidegger, para comentar a frase do ministro. Para além do seu conhecimento
filosófico, a sua experiência como militante da causa ambiental lhe dá amplas credenciais
para discutir o tema.

No lugar da professora, você poderia começar por apresentar a reflexão de Heidegger


sobre a questão da técnica. Para o filósofo alemão, a técnica toma a totalidade dos entes
sob a forma de um estoque, de um armazém, de uma reserva, sempre disponível à
apropriação. O próprio Heidegger utiliza-se da imagem de uma hidrelétrica no rio Reno,
e você poderia trazer este elemento em seu texto. A natureza e seus entes, sob a técnica,
deixam de ter valor: tornam-se apenas recursos a serem explorados, o que se manifesta
na afirmação do ministro, que, nitidamente, não vê na floresta amazônica nada além de
uma reserva de energia a ser apropriada.

Por fim, poderia prosseguir mostrando como o mundo sob a técnica leva, igualmente, a
uma exploração do homem pelo próprio homem, que se vê como recurso. Em relação à
situação em questão, vê-se claramente como as comunidades originárias não têm valor,
não estão disponíveis enquanto recurso e, dessa maneira, a sua expulsão dos seus lares
ancestrais parece nada problemática ao ministro.
A partir destes elementos, temos certeza de que é possível produzir um artigo interessante,
contribuindo, assim, para o debate público.

AVANÇANDO NA PRÁTICA

O PROBLEMA DA AUTOMAÇÃO EM SALA DE AULA

Imagine que você é professor do Ensino de Jovens e Adultos (EJA). Normalmente, os


alunos do EJA costumam estar em situação de maior vulnerabilidade social, não tendo,
por conta disso, concluído o ensino básico na idade esperada. A maioria trabalha e muitos
já têm filhos e família constituída.
Você, enquanto professor de filosofia, percebe que um grupo de alunos que, no início das
aulas, estava muito motivado a aprender, subitamente começa a não comparecer às aulas
e, quando aparecem, estão muito desmotivados. Você, então, resolve se inteirar sobre o
que está acontecendo com eles e, após conversar com um aluno, descobre que o grupo foi
recentemente demitido. Esses alunos trabalhavam em uma central de teleatendimento e,
mesmo sendo trabalhadores exemplares, foram dispensados por causa da adoção de robôs
no atendimento ao cliente. Desempregados, desmotivaram-se em relação ao
prosseguimento nos estudos.

Você, como professor, percebe a situação como uma oportunidade de trazer algum
conteúdo relacionado a esse tema para a sala de aula, podendo, assim, motivar novamente
seus alunos. Mostrar como um conteúdo da matéria pode ajudá-los a compreender uma
situação difícil da própria vida pode ser um grande motivador para fazê-los persistirem
nos estudos. Assim, qual conteúdo filosófico você poderia trazer para este grupo de
alunos?

RESOLUÇÃO

Você poderia trazer a reflexão sobre o desenvolvimento técnico nas sociedades


capitalistas. Este tópico insere-se nas competências da BNCC e seria uma forma de
aproximar o conteúdo da vida dos estudantes, motivando-os, por consequência.
Para a tradição marxista, o capitalismo desenvolveu as forças produtivas – técnicas,
máquinas – a um nível nunca antes visto. No entanto, este desenvolvimento não gera
abundância para todos. As máquinas substituem os trabalhadores, levando a um aumento
do desemprego e, por consequência, a uma baixa dos salários. Neste sentido, você poderia
introduzir o conceito de mais-valia. A mais-valia é a apropriação do trabalho que não é
pago sob a forma de salário. Em sua forma relativa, expressa o ganho do capitalista
mediante o aprimoramento da produtividade em detrimento do trabalhador.
Poderia, após apresentar o conceito, mostrar como o que os alunos passaram na sua
demissão recente é exemplo disto. A empresa em que trabalharam substituiu a sua mão
de obra pela de robôs, visando a aumentar seu lucro. Com isso, aumentou o desemprego.
A longo prazo, conforme mais e mais profissões forem suprimidas por máquinas, a
tendência é a redução de salário e desemprego massivos.
Deste modo, você teria aproximado um conceito filosófico da realidade dos alunos,
motivando-os a perceber no estudo um meio importante de compreensão da realidade.

NÃO PODE FALTAR


A CIÊNCIA E AS CIÊNCIAS: NOVOS OBJETOS,
NOVOS MÉTODOS
Ádamo Bouças Escossia da Veiga
PRATICAR PARA APRENDER

Prezado aluno, seja bem-vindo a mais uma seção. Vamos prosseguir nossos estudos em
filosofia da ciência, adentrando mais profundamente nos importantes debates que
mobilizam a disciplina na nossa época. Vamos ver questões centrais muito discutidas nos
dias de hoje, assim como o pensamento de importantes filósofos contemporâneos sobre o
tema.
Em primeiro lugar, vamos estudar a questão das ciências humanas. O que vimos, até
agora, dizia respeito, mais diretamente, às ciências da natureza, e não às do homem. O
que, hoje, chamamos de ciências humanas, surge no século XIX. Veremos como o
filósofo Michel Foucault analisa o surgimento das ciências do homem neste período,
conceituando o que seria o “homem” por detrás destas ciências. A sua noção de um “duplo
empírico-transcendental” como instância nuclear nas formações das ciências humanas é
um conceito riquíssimo e muito estudado nas humanidades, em geral. A reflexão de
Foucault impactou o pensamento filosófico, e sua obra, em geral, foi rapidamente
absorvida pelas demais humanidades, de modo que podemos afirmar que seu nome figura
entre os mais influentes pensadores do século passado.
Em seguida, vamos analisar duas importantes questões da filosofia da ciência
contemporânea: meio ambiente e mudanças climáticas. A concepção que herdamos da
modernidade vê a natureza como inerte, simples recurso a ser apropriado pelo homem em
sua trajetória histórica. Vimos, em outras seções, como esta dimensão se expressa na
filosofia de Francis Bacon, por exemplo, que defendia a emancipação humana pelo
controle da natureza. A crítica a esta concepção, como presente em Heidegger, Adorno e
outros, hoje torna-se ainda mais necessária e urgente. O que vemos na atualidade, a partir
de dados científicos, é que a concepção moderna de uma natureza inerte não se revela
capaz de compreender o impacto gigantesco da ação do homem sobre o planeta. As
mudanças que estamos vivenciando no clima, em termos globais, nos devem fazer
reconsiderar aquilo que, em termos de pensamento, herdamos da modernidade. Na Era
do Antropoceno, em que o homem é agente de transformação geológica, nos vemos diante
da possibilidade de extinção radical da vida humana e não humana na Terra e, diante deste
desafio inédito na história da nossa espécie, a reflexão filosófica sobre o tema faz-se
central.

Prezado aluno, para contextualizar a sua aprendizagem, imagine-se na seguinte situação:


Victor é professor de filosofia em uma escola no interior do Estado, em uma região rural
e carente. Por conta disso, enfrenta dificuldades variadas, infelizmente muito típicas em
nosso país: a escola tem uma estrutura material precária, a evasão escolar é alta e há pouco
suporte da família na vida do estudante. Victor percebe, sobretudo, a dificuldade de
manter os alunos engajados com os conteúdos, dado que muitos já trabalham, e a filosofia
parece distante do seu contexto imediato, marcado, sobretudo, pelo trabalho braçal na
produção rural em pequenas fazendas da região. Por conta disso, Victor procura sempre
trazer os conteúdos da disciplina para o mais próximo da vivência dos seus discentes,
tarefa nada fácil. Trata-se de um problema que você, prezado aluno, enquanto futuro
docente, provavelmente encontrará ao longo de sua trajetória como professor,
principalmente trabalhando em regiões menos privilegiadas, sejam urbanas ou rurais.
Em dado momento, um grande problema se abate sobre a cidade: recentemente, uma
mineradora de grande porte desmatou a maior parte da floresta circundante à pequena
cidade. Inicialmente, os munícipes alegraram-se com a instalação da empresa, que gerou
empregos e aumentou a arrecadação da cidade. Não obstante, passados dois anos, a
agricultura local começou a enfrentar problemas. Os resíduos de mineração envenenaram
a água do riacho da região e o ciclo pluvial começou a se comportar de forma nunca antes
vista, com secas prolongadas e chuvas fora de época. Isto afetou profundamente a
pequena agricultura do local, levando muitos fazendeiros a perderem seu gado e produção
e a se endividarem por conta disso, vendo-se sem alternativas, senão vender as terras. A
mineradora, quando processada pelos locais, ganhou todas as ações judiciais, o que, para
muitos, só pode ter acontecido a partir de propinas.

Victor, enquanto professor, percebe, imediatamente, as consequências desta crise em sala


de aula. Os alunos, filhos de fazendeiros da região, estão passando dificuldades, e a
evasão escolar só aumenta. Victor gostaria de ajudar seus alunos e tudo o que pode fazer
é aquilo que se preparou durante boa parte da vida para realizar: transmitir conhecimento
e ensinar a pensar. Deste modo, prepara uma aula especial para os alunos, na qual
pretende demonstrar como a filosofia pode ajudá-los a compreender o momento crítico
que a cidade está passando.

No lugar de Victor, quais reflexões você levaria para a sua aula?


Continuaremos, assim, nossa trajetória pela filosofia da ciência, nos aproximando cada
vez mais dos dilemas do nosso tempo. Cada nova seção é um pequeno mundo de ideias e
reflexões que se revela diante de você, caro estudante, então, é importante abrir a própria
mente a cada novo pensamento que se descortina. Vamos lá?

CONCEITO-CHAVE

A QUESTÃO DAS CIÊNCIAS HUMANAS

A cientificidade das ciências humanas – Psicologia, Sociologia, Pedagogia, dentre outras


– é um ponto sempre debatido desde o seu surgimento. Muitos, hoje, tendem a não ver,
nas humanida-des, ciências de verdade, dado que esse tipo de ciência não consegue, tal
como as ciências da natureza, alcançar verdades e leis imutáveis, com grande capacidade
de previsão empírica. As ciências humanas surgem ao longo do século XIX, em um
esforço consciente de consolidação sistemática de um método de investigação capaz de
transpor a metodologia científica para a compreensão do próprio humano. Durkheim, um
dos fundadores da Sociologia, argumenta, pre-cisamente, em torno da cientificidade da
Sociologia enquanto um campo regido por fatos sociais – elementos de coerção do
coletivo social sobre o indivíduo –, que seriam passíveis de descri-ção científica. Auguste
Comte, outro fundador da Sociologia, defendia uma ideia parecida sobre o estatuto
científico desta ciência, algo que também, com as devidas diferenças, encontramos no
marxismo, que via, no seu materialismo histórico dialético, um método científico de
compre-ensão da sociedade.

Michel Foucault, um dos maiores pensadores do século XX, debruçou-se, em As palavras


e as coisas (2010), sobre a questão do surgimento das ciências humanas. O pensamento
de Foucault é bastante amplo e complexo, cobrindo uma grande gama de assuntos e
debates filosóficos. Em primeiro lugar, Foucault aplica a crítica ao progresso científico,
característica do século XX, a uma análise histórica rigorosa sobre o surgimento dos
diversos saberes. Uma vez que não há, no escopo desta crítica, uma progressão orientada,
de forma teleológica, na ciência, o próprio surgimento e consolidação dos saberes são
historicamente determinados. Para Foucault, neste sentido, há um “enquadramento”
histórico, que dá as coordenadas para a emergência de um saber: o a priori, o dado e
evidente, que é histórico e não universal e eterno. O conceito foucaultiano
de espitémé expressa este enquadramento segundo o qual, em certo tempo e espaço, algo
é pensável como dado.

Em As palavras e as coisas (2010), Foucault procura mostrar como surgem as ciências


humanas a partir desta concepção metodológica. As ciências humanas são ciências do
homem e, assim, entender a condição de possibilidade do pensamento do homem
enquanto conceito, e, deste modo, enquanto condição, por sua vez, do surgimento das
próprias ciências humanas, torna-se fundamental. O que é o homem, na concepção
moderna que gestou as ciências humanas? Para Foucault, trata-se do duplo empírico-
transcendental.
Foucault vê em Kant o principal formulador desta concepção. Para Kant, a realidade
sensível, empírica, é instanciada pelo sujeito transcendental. Segundo a sua filosofia –
denominada filosofia crítica ou transcendental –, os dados sensíveis são um caos, um
emaranhado sem ordem ou coesão. O sujeito ordena o caos sensorial por meio das formas
puras da intuição (tempo-espaço) e das categorias puras do entendimento. A ordem do
mundo empírico é instaurada pelo sujeito que, assim, recebe a alcunha de sujeito
transcendental. O sujeito transcendental não somos nós, nem nenhuma pessoa humana
em específico (que seria, deste modo, empírica), mas uma estrutura universal
compartilhada por todos os seres dotados de razão. O transcendental, assim, é a condição
de possibilidade do empírico; e o empírico é aquilo que é condicionado pelo
transcendental. O homem moderno, aquele que está subjacente às ciências humanas,
seria, assim, um duplo empírico-transcendental: empírico, pois tem uma natureza
sensível; transcendental, pois é a condição de possibilidade de manifestação de todo
fenômeno empírico. O empírico é aquilo que é condicionado; o transcendental, a
condição. Assim, o homem na modernidade, é “um estranho duplo empírico-
transcendental, porquanto é um ser tal que nele se tomará conhecimento do que torna
possível todo conhecimento” (FOUCAULT, 2010, p. 439). O homem é a condição do
conhecimento e, ao mesmo tempo, aquele que conhece – conhecer o homem é conhecer
aquele que conhece e, deste modo, temos já um importante complicador no seio das
ciências humanas.

ASSIMILE
Transcendental: condição.

Empírico: condicionado.

Sujeito transcendental: condição de manifestação de toda experiência sensível.

Sujeito empírico: uma pessoa corporificada, com sua trajetória singular e traços
particulares.

E como surgem as ciências humanas a partir deste quadro? Em primeiro lugar, para
Foucault, a epistémé moderna, a partir do século XVIII, caracteriza-se por dois tipos de
saberes: os lógicos dedutivos e as ciências positivas empíricas (Biologia, Economia e
Filologia – o estudo das línguas). O saber das ciências humanas é constituído à margem
destes últimos e torna-se possível a partir da ambiguidade entre empírico e transcendental.
A Biologia estuda, em termos empíricos, a vida humana e a dos demais seres viventes; a
Economia estuda as relações de troca e o trabalho; a Filologia estuda a estrutura das
línguas em sua evolução e mutação. Estes três saberes já apontam para a constituição do
homem enquanto duplo empírico-transcendental, o que se desdobrará, em seguida, nas
ciências humanas correlatas a cada uma destas áreas, em seus intercruzamentos e
interpenetrações. Psicologia, Sociologia e Literatura (e estudo dos mitos) são,
respectivamente, dadas a partir da Biologia, da Economia e da Filologia. A Biologia,
enquanto aquilo que estuda a vida, o faz enquanto manifestação empírica, ao mesmo
tempo em que também a estuda enquanto condição da vida (as funções e normas do
vivente); a Economia estrutura as trocas humanas e o seu trabalho, e, simultaneamente, a
existência humana enquanto condicionada pelo trabalho e pela troca; e a Filologia estuda
a língua enquanto fala e enquanto condição da própria fala. Temos sempre dois níveis: o
da condição e o do condicionado, que são duplicados um sobre o outro (FOUCAULT,
2010).
As ciências humanas, ao derivarem desta torção entre empírico e transcendental,
apresentam, assim, uma opacidade à positividade empírica do homem. Ele figura como
duplo, conforme é condicionado pela vida, trabalho e fala e, ao mesmo tempo, é condição
da vida, trabalho e fala. Neste ponto, temos um circuito entre empírico e transcendental:
o homem como condicionado e como condição, e as ciências humanas como os saberes
que florescem neste interstício.

EXEMPLIFICANDO
A psicologia, segundo análise de Foucault, tomaria da biologia o “modelo” das normas e
funções. Norma, no sentido de adequação funcional a um parâmetro tido como típico;
função, no sentido de conceber a consciência e a cognição como operando a partir de
funções, tais como as dos órgãos. Em termos de norma, aquilo que se desvia da norma
torna-se uma patologia – como a depressão, em relação à tristeza. Em termos de função,
como na linha psicológica do behaviorismo, há a repetição de comportamentos diante de
estímulos favoráveis, como função adaptativa.
A originalidade da interpretação de Foucault sobre as ciências humanas, neste aspecto, é
a de recusar ver as dificuldades inerentes à questão da cientificidade das ciências humanas
a partir da complexidade do seu objeto, o homem, que seria irredutível a um conjunto de
leis e princípios descritíveis de modo matemático ou semimatemático. A questão está,
justamente, neste circuito entre transcendental e empírico, e não na complexidade humana
propriamente dita – afirmar que o homem, por natureza, é complexo, seria já afirmá-lo
enquanto universal, e não como construído no seio de uma epistémé. Temos, neste
sentido, na construção do homem enquanto dado, como algo evidente ao pensamento,
uma alienação constitutiva do homem em relação a si próprio: uma espécie de curto-
circuito entre sua dimensão empírica e transcendental. Ao mesmo tempo em que o homem
se manifesta enquanto algo empírico, nesta manifestação mesma, algo necessariamente
escapa a ela própria. O homem, enquanto descrito sob o aspecto empírico-condicionado,
sempre se elude naquilo que ele tem de condição desta descrição em si mesma. A
descrição do condicionado, conforme é concomitante à condição, escapa à própria
descrição positiva do condicionado.

O homem, enquanto aquele que conhece e, ao mesmo tempo, aquilo que é conhecido, está
sempre em uma situação de deslocamento em relação ao conteúdo conhecido e à condição
do próprio conhecimento (ele mesmo). Neste sentido, pode-se sempre fazer uma
psicologia da psicologia, ou uma sociologia da sociologia; pode-se sempre procurar o
nível da condição na manifestação condicionada, mas esta manifestação apontará para
um nível suplementar – a todo o momento em deslocamento – em que temos a dimensão
transcendental como condição da descrição daquilo que se manifesta em sua positividade
empírica (FOUCAULT, 2010). Este espaço, impreenchível, é o que torna, para Foucault,
impossível a redução das ciências humanas a uma pura positividade empírica e, ao mesmo
tempo, a uma forma última de descrição no nível transcendental. Como coloca Noto
(2011, p. 82) “Assim, ser alguma coisa que me escapa não será somente a marca daquilo
que sou empiricamente, mas também da minha própria condição transcendental de
existência: sou constitutivamente um ser alienado de mim mesmo”.

FILOSOFIA E MEIO AMBIENTE

O surgimento das ciências humanas, no século XIX, expressa uma concepção subjacente
da modernidade que, crescentemente, tem se revelado altamente problemática. Trata-se
da divisão natureza/cultura. Esta divisão é fundacional em relação à Antropologia,
Sociologia e diversas outras ciências humanas – por mais que, na análise de Foucault,
vista há pouco, não seja este o elemento central analisado. Em que ela consiste? Esta
divisão supõe uma natureza unívoca e objetiva e uma dimensão complementar reportada
à nossa apreensão.

A distinção natureza/cultura, tal como pensada nos moldes cientificistas dos séculos
XVIII e XIX, supõe que, de um lado, há um mundo objetivo, passível de descrição
científica, e, do outro, há diversas culturas que codificariam e interpretariam este mundo
objetivo de forma variável. No primeiro campo, temos a natureza; no segundo, a cultura.
A natureza corresponde aos fatos objetivos e, mais ainda, à própria materialidade física
do humano, com seus instintos animais, anatomia e fisiologia. Neste ponto, a natureza é
una e é a mesma para os diferentes povos humanos: invariável e unívoca. A cultura, por
sua vez, é altamente variável. Os povos árabes têm uma cultura, os chineses outra, os
alemães ainda outra… Do lado da natureza, enquanto objetividade, temos os fatos; do
lado da cultura, os valores. A tese de que, diante da natureza, todas as culturas são
igualmente equivalentes, ou seja, de que não há cultura superior ou inferior, é o
multiculturalismo. O relativismo cultural, tese próxima, afirma que, em termos de
valores, não há escala ou hierarquia entre diferentes culturas.
Um ponto importante desta distinção moderna entre natureza e cultura é o mito
prometeico. Prometeu, na mitologia grega, foi um titã que roubou o fogo dos deuses e o
entregou aos homens; após ser descoberto, foi condenado por Zeus, o rei dos deuses, a ter
seu fígado eternamente devorado. O fogo simboliza a razão, a técnica e a superioridade
dos homens em relação aos animais; apenas nós controlamos o fogo. O mito prometeico
expressa exatamente isto: o humano como sendo aquele a quem é destinada a maestria do
mundo natural. O homem seria uma exceção cósmica absoluta: alguém que salta para fora
da natureza, constituindo um reino soberano próprio e que tem o direito de submeter todo
o resto. A natureza, assim, é tomada como palco inerte para a história humana – inerte,
pois não tem agência e/ou intencionalidade (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO,
2015). O mundo é visto como mera mobília sem vida, onde os móveis estão lá dispostos
para o nosso uso. A crítica de Heidegger à técnica, assim como a de Adorno e
Horkheimer, certamente ressoam muito bem aqui: a natureza como grande armazém.
Podemos ver esta concepção acerca da natureza na filosofia moderna e em diversos
pensadores do período. Francis Bacon, no Renascimento, afirmava que a natureza deveria
ser dominada pelo homem em sua história rumo à emancipação. Alguns séculos depois,
encontramos, na filosofia iluminista de Immanuel Kant, o pai do duplo empírico-
transcendental, um dos exemplos mais explícitos deste pensamento na modernidade. Para
Kant, a natureza é palco da história humana e deve ser submetida ao homem.
Esta concepção moderna é eminentemente antropocêntrica. Antropocentrismo é um
termo que vem de antropos (homem) e indica as filosofias ou posturas que afirmam a
centralidade e superioridade do humano em relação aos demais entes. .Nossa visão de
mundo ocidental é profundamente antropocêntrica. Todos nós, mesmo que não tenhamos
consciência disso, somos antropocêntricos. Pensemos nossa relação com os demais
animais. A produção industrial de carne de frango e de gado só é aceita e estimulada
conforme tomamos estes animais – capazes de sentir dor – como meras coisas. Nas
grandes indústrias, vacas, por exemplo, são criadas em espaços minúsculos à espera do
abate; galinhas são amontoadas aos milhares e têm hormônios injetados para torná-las
mais apropriadas ao nosso consumo. A nossa tolerância para que outros seres sejam
torturados e mortos atesta o quão embrenhado está o antropocentrismo na nossa visão de
mundo. É por nos vermos como radicalmente superiores aos demais animais que não
vemos problema em sua morte e tortura massiva.

Lado a lado com o antropocentrismo, temos o etnocentrismo. Trata-se da afirmação de


uma cultura, civilização, povo ou visão de mundo enquanto superior ou mais verdadeira
em relação às demais. A modernidade europeia, segundo diversas críticas – como a de
Feyerabend, que vimos – é essencialmente etnocêntrica. Os europeus veem, segundo esta
chave, a sua compreensão da realidade como verdadeira e objetiva, ao passo que os
demais povos teriam apenas uma compreensão rudimentar, primitiva e atrasada da
realidade. Muitos pensadores, como Feyerabend, mas não só ele, veem na afirmação da
superioridade da ciência europeia em relação aos outros modos de compreender e se
engajar com a realidade uma expressão do etnocentrismo europeu.
Importante, neste aspecto, é o lugar do universal. A cultura europeia negaria, na sua
autocompreensão, a sua parcialidade, o seu contexto histórico e geográfico, e se colocaria
como universal e objetiva. Neste sentido, muito foi criticado o lugar do “homem” nos
direitos humanos. Os direitos humanos são um fruto direto do Iluminismo e da Revolução
Francesa e afirmam direitos inalienáveis a todos os homens, independentemente de
qualquer outro fator, como classe e posição social. Não obstante, o momento histórico de
consolidação dos direitos humanos na Europa (século XIX) foi, igualmente, o momento
de expansão imperialista das potências europeias. Neste período, os grandes estados
europeus, movidos pelos interesses econômicos das suas grandes empresas capitalistas,
invadiram e conquistaram a maior parte da África e da Ásia, saqueando suas riquezas e
massacrando suas populações. Inclusive, como coloca o importante filósofo Frantz Fanon
(1968), os campos de concentração e demais expedientes da morte, posteriormente
utilizados pela Alemanha nazista, foram desenvolvidos e aplicados nas populações
africanas durante este período. Neste sentido, o “humano” dos direitos humanos em
questão não seria a totalidade dos humanos, mas apenas o homem branco, europeu e
proprietário; apenas ele teria direitos inalienáveis, conforme ocupa o lugar universal do
que é ser homem. Os demais humanos seriam relegados a uma categoria inferior, sub-
humana – e, não à toa, neste período, o racismo, enquanto doutrina “científica”, começa
a se desenvolver e a se consolidar.

Segundo o grande antropólogo Claude Lévi-Strauss, o etnocentrismo e o


antropocentrismo fazem parte de um mesmo movimento. Ao separar os entes em uma
hierarquia, ao erguer uma cerca que coloca uns em cima e outros embaixo, fazendo do
homem o ser superior, de forma concomitante, restringe-se o que é ser homem a um grupo
restrito em meio aos humanos, fazendo, assim, este grupo, superior aos demais. A
seguinte passagem explicita este elemento de forma muito clara:

Começou-se por cortar o homem da natureza e constituí-lo como um reino supremo.


Supunha-se apagar desse modo seu caráter mais irrecusável, qual seja, ele é primeiro um
ser vivo. E permanecendo cegos a essa propriedade comum, deixou-se o campo livre para
todos os abusos. Nunca antes do termo destes últimos quatro séculos de sua história, o
homem ocidental percebeu tão bem que, ao arrogar-se o direito de separar radicalmente
a humanidade da animalidade, concedendo a uma tudo o que tirava da outra, abria um
ciclo maldito. E que a mesma fronteira, constantemente empurrada, serviria para separar
homens de outros homens, e reivindicar em prol de minorias cada vez mais restritas o
privilégio de um humanismo, corrompido de nascença por ter feito do amor-próprio seu
princípio e noção.

(LÉVI-STRAUSS, 2013, p. 53)

REFLITA
No pensamento filosófico contemporâneo, simplificadamente, podemos identificar duas
possíveis respostas a este dilema do lugar do universal humano. Em primeiro lugar, há
aqueles que negam este universal, em prol de uma dispersão de singularidades
incomensuráveis entre si, como o multiculturalismo. Em segundo lugar, há aqueles que
procuram reafirmar o lugar universal dos direitos humanos, incluindo, no seio do
“humano”, povos outros que não os europeus brancos. O que você pensa disso?

A divisão moderna entre natureza e cultura entra em crise conforme a ciência do clima
demonstra, claramente, que a natureza não é palco inerte para as ações humanas. A
natureza tem agência. Vivemos, hoje, em uma nova era geológica, denominada
Antropoceno e marcada pela transformação da ação humana em uma força de escala
geológica. Quatro séculos depois da Revolução Científica e dois depois da Revolução
Industrial, a ação humana impactou todos os ciclos constitutivos do regime climático do
planeta Terra. O aquecimento global e, com ele, as mudanças climáticas, são os maiores
desafios postos ao gênero humano hoje e, por isso, têm levado diversos pensadores,
filósofos e cientistas a repensar as categorias que herdamos da humanidade e que
utilizamos na nossa compreensão de mundo.

O aquecimento global é o aumento da temperatura média do planeta como consequência


da ação humana. A emissão de gás carbônico na atmosfera, desde a Revolução Industrial,
aumenta o efeito estufa, que retém mais calor na atmosfera. Desde a Revolução Industrial,
a média da temperatura planetária subiu 1,5 grau, e a perspectiva é que suba mais 3,5 até
o fim desta década. A princípio, pode parecer pouco, mas não é: a quantidade de carbono
na atmosfera é a maior em 4 milhões de anos. O aumento da temperatura média significa,
neste sentido, uma desregulação geral do clima terrestre; alguns lugares ficarão mais frios,
outros, muito mais quentes, de modo que a média seja alterada para cima. Isto significa
que o clima está sendo transformado e, com ele, os ciclos biológicos que dele dependem.
Secas tornam-se cada vez mais frequentes e, consequentemente, é cada vez maior a
possibilidade de fome em massa. O derretimento das geleiras promete o alagamento de
amplas regiões costeiras, onde moram milhões de pessoas, produzindo uma crise de
refugiados nunca antes vista – estima-se que teremos cerca de cem milhões de refugiados
climáticos até o fim deste século. O próprio oceano está mudando sua composição
química; com mais carbono na atmosfera, maior é a absorção de carbono no mar e, com
isto, há uma mudança do nível de pH, o que é denominado acidificação dos oceanos
(COSTA, 2019). Esta alteração já está levando milhares de espécies à extinção, e espera-
se, por exemplo, o fim da maior parte dos corais nos próximos cinco anos. Vivemos, hoje,
a quinta grande extinção em massa: o aquecimento global e seus efeitos, no presente
momento, já estão levando milhões de espécies ao desaparecimento, de insetos a animais,
de espécies de crustáceos a espécies de pássaros. Com isso, milhões de ecossistemas e de
cadeias alimentares estão entrando (e entrarão mais ainda) em colapso. Vivemos, como
colocam Deborah Danowksi e Eduardo Viveiros de Castro (2015, p. 25), “em um devir-
louco generalizado das qualidades extensivas e intensivas que expressam o sistema
biogeofísico da Terra”.

Diante deste cenário, pensadores como Bruno Latour, Isabelle Stengers e Eduardo
Viveiros de Castro propõem que abandonemos as categorias modernas que tomam a Terra
como palco inerte para a história humana. A Terra não seria um palco, dado que, agora,
ela está agindo sobre a humanidade e sua civilização, mas uma miríade de agências
integradas, em graus variados, agindo umas sobre as outras. Ver na Terra um grande
armazém, depósito de recursos, teria levado, junto de outras razões, à sua espoliação
irrestrita e ao cenário caótico em que vivemos. Antes, deveríamos enxergar o planeta
como uma composição complexa de diversas agências: tudo age no mundo e não apenas
o homem. O homem, assim, seria deslocado de seu lugar de privilégio em relação aos
demais seres, tornando-se apenas uma agência entre diversas outras agências. O
antropocentrismo, deste modo, não é apenas uma concepção muito parcial da natureza,
mas um perigo à própria sobrevivência do homem. Ao ver-se ultrapassado pela crise
climática, pela intrusão brutal da Terra na sua história, o homem deveria, por bem,
abandonar o seu mito prometeico e procurar compor-se com as demais agências em jogo
no planeta.
Em termos de etnocentrismo, pode-se ver como a pretensa superioridade da ciência
europeia em relação aos demais povos relaciona-se com o contexto em questão. A
concepção moderna toma, no enquadramento científico, a natureza como armazém e
afirma nisto a sua superioridade em relação aos outros modos de compreensão do cosmos.
Neste sentido, Danowski e Viveiros de Castro (2015), junto de diversos outros filósofos,
têm sublinhado como pensamentos não europeus – vistos, no seio da modernidade, como
primitivos – podem ser mobilizados na revisão e eventual superação da concepção
moderna de mundo. Por exemplo, os ameríndios têm uma concepção do cosmos
radicalmente diferente da que têm os ocidentais modernos. Para a maior parte dos povos
amazônicos, a natureza não é um palco inerte, composto de unidades discretas, de objetos
sem agência, pelo contrário: para eles, o mundo está cheio de gente. O perspectivismo
ameríndio, que tem sido bastante discutido na atualidade, expressa a compreensão dos
povos amazônicos de que os demais entes existem no interior de determinada perspectiva.
Ser é ocupar um ponto em uma perspectiva. Neste aspecto, para os povos amazônicos,
uma anta se vê como humana tal como nós nos vemos como humanos; um jaguar se vê
como humano ao mesmo tempo em que nos vê como uma presa não humana. Ao tomar,
assim, o mundo como repleto de perspectivas, os ameríndios estão em um campo oposto
ao da concepção moderna: o mundo cheio de gente dos indígenas opõe-se ao mundo inerte
dos modernos. Assim, a reativação de saberes outros, que não o ocidental e científico,
pode ser de grande utilidade para que possamos pensar além das categorias que herdamos
da Modernidade, tanto em termos do seu antropocentrismo, quanto de seu etnocentrismo.

ASSIMILE
O pensador indígena Ailton Krenak tornou-se, nos últimos anos, uma voz importante,
capaz de atualizar o pensamento tradicional do seu povo diante do desafio climático. Mais
ainda, o pensamento de Krenak, alguém que domina a tradição ocidental e, ao mesmo
tempo, está “fora” dela enquanto indígena, tem se revelado uma excelente fonte de
reflexão sobre a destrutividade do nosso modo de vida capitalista contemporâneo.

FOCO NA BNCC
A contextualização dos saberes é um dos elementos presentes na Base Nacional Comum
Curricular (BNCC). Tanto Foucault quanto os conteúdos vistos na relação entre filosofia
e mudanças climáticas ajudam muito neste ponto. A emergência das ciências humanas é
uma forma de contextualização epistemológica explicitamente expressa pelo conceito de
espitémé. Em termos da questão ambiental, trata-se de um conteúdo cada vez mais
presente em seleções de todo o tipo, e também no vestibular, de forma que você, como
futuro professor, com certeza terá de trabalhá-la com seus alunos futuramente.

Nesta seção, prezado aluno, continuamos nosso percurso pela filosofia da ciência. Você
foi apresentado à importante análise de Michel Foucault sobre a origem das ciências
humanas. Vimos o duplo empírico-transcendental, um dos conceitos mais discutidos
neste sentido. Depois, você foi introduzido aos problemas da mudança ambiental e do
antropocentrismo e etnocentrismo, elementos centrais para se pensar o papel da ciência
no mundo contemporâneo. A partir destes conteúdos, sua formação está cada vez mais
robusta e sua compreensão de mundo mais rica e consistente.

FAÇA A VALER A PENA


Questão 1

A distinção entre empírico e transcendental, da filosofia crítica de Kant, é muito


importante para todo pensamento moderno e contemporâneo. Michel Foucault, um dos
maiores filósofos do século XX, identifica, nesta distinção, elemento central no
surgimento das ciências do homem.
Assinale a alternativa que mostra corretamente a relação da distinção entre empírico e
transcendental e o surgimento das ciências humanas para Foucault:

a. Para Foucault, o homem é um ser apenas empírico, e o abandono da dimensão transcendental é a origem
do estudo do homem enquanto ciência.

b. Para Foucault, o homem é um ser apenas transcendental, e o abandono da dimensão empírica é a origem
do estudo do homem enquanto ciência.

c. Para Foucault, as ciências humanas surgem da ideia do homem como duplo empírico e transcendental,
enquanto condição de conhecimento e daquilo que é conhecido.

Correto!

Para Foucault, as ciências humanas surgem da torção entre o empírico e o transcendental


no homem enquanto duplo. O homem é condição de conhecimento (aquele que conhece)
e, ao mesmo tempo, objeto de conhecimento (aquilo que é conhecido). As ciências
humanas surgem da torção constante entre as duas dimensões.

d. Para Foucault, as ciências humanas surgem abruptamente, sem relação com os demais saberes que lhes
antecederam.

e. Para Foucault, as ciências humanas certamente conseguirão alcançar o nível de formalização matemática
das ciências da natureza.

Questão 2

O antropocentrismo e o etnocentrismo são dois conceitos muitos discutidos no


pensamento contemporâneo. Estes dois conceitos possuem relações possíveis entre si,
apesar de não serem redutíveis um ao outro. Com base neste contexto, julgue as seguintes
afirmativas:
I. O antropocentrismo relaciona-se ao etnocentrismo no contexto do colonialismo e
imperialismo europeus, quando o antropocentrismo foi veiculado amplamente como a
única visão verdadeira sobre o mundo.
II. O etnocentrismo, ao afirmar a superioridade do humano sobre todos os demais seres,
é uma forma de antropocentrismo, conforme afirma a superioridade da “etnia” humana.
III. O antropocentrismo e o etnocentrismo são característicos da visão moderna ocidental
e podem ser identificados, historicamente, na sua disseminação global, durante o período
da expansão europeia na modernidade.
Com base neste contexto, é correto o que se afirma em:

a. I, apenas.

b. I e III, apenas.
Correto!

A afirmativa I está correta, pois a visão de mundo ocidental, ao ver-se como


superior às demais, impôs-se, durante o imperialismo, sobre todos os povos e,
nesse contexto, adveio o antropocentrismo.
A afirmativa II está equivocada, pois confunde o sentido de antropocentrismo e
etnocentrismo.
A afirmativa III está correta, pois a modernidade espalhou, via imperialismo, a
concepção de si mesma como verdadeira (etnocentrismo), assim como o
antropocentrismo, ausente em diversos outros povos.

c. II, apenas.

d. I, II e III.

e. III, apenas.

Questão 3

A equivocamente denominada revolução copernicana de Kant e, como se sabe, a origem


oficial da concepção moderna do Homem (guardemos a forma masculina) como poder
constituinte, legislador autônomo e soberano da natureza, único ente capaz de elevar-se
para além da ordem fenomenal da causalidade que seu próprio entendimento condiciona:
"excepcionalismo humano" e um autêntico estado de exceção ontológico, fundado na
separação autofundante entre Natureza e História.

(DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 43)

Com base no texto, julgue as seguintes asserções e a relação proposta entre elas.
I. A noção moderna do homem, enquanto um ser separado e destacado da natureza, é um
dos elementos da modernidade tornados bastante problemáticos a partir das mudanças
climáticas.

PORQUE

II. O homem, enquanto duplo empírico-transcendental, ao constituir-se enquanto objeto


do saber no século XIX (segundo Foucault), constitui-se sempre enquanto alienado de si
mesmo.

Assinale a alternativa correta:

a. A asserção I é uma proposição verdadeira e a II, uma proposição falsa.

b. A asserção II é uma proposição verdadeira e a I, uma proposição falsa.

c. As asserções I e II são verdadeiras, mas a II não justifica a I.

Correto!
As asserções I e II são verdadeiras, mas a II não justifica a I.
A excepcionalidade suposta do humano, conforme trata a asserção I, é
problemática por conta do antropocentrismo, que faz o homem desconsiderar,
para seu próprio prejuízo, os demais viventes e seres do planeta terra.
A asserção II expressa corretamente o duplo empírico-transcendental, mas este
conceito não justifica o problema do antropocentrismo e da mudança climática.

d. As asserções I e II são verdadeiras e a II justifica a I.

e. As asserções I e II são falsas.

REFERÊNCIAS

COSTA, A. Cosmopolíticas da Terra: modos de existência e resistência no


Antropoceno. 2019. 303 f. Tese (Doutorado em Filosofia) - Departamento de Filosofia,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. Disponível
em: https://bit.ly/3gcYZTp. Acesso em: 3 ago. 2021.
DANOWSKI, D.; VIVEIROS DE CASTRO, E. Há mundo por vir? Ensaio sobre os
medos e os fins. Florianópolis: Desterro/Cultura e Barbárie/Instituto socioambiental,
2015.
FANON, F. Os condenados da Terra. Tradução José Laurêncio. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1968.
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.
Tradução de Salma Tannus. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
KANT, I. Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuel Pintos dos Santos e Alexandre
Mourão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia Estrutural dois. São Paulo: CosacNaify, 2013.
LOVELOCK, J. Gaia: alerta final. Tradução de Jesus de Paula Assis e Vera de Paula
Assis. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2010.
NOTO, C. Da ilusão transcendental à ilusão antropológica: Foucault em defesa de
Kant. Cadernos de Ética e Filosofia Política, São Paulo, v. 1, n. 18, p. 73-88, 2011.
Disponível em: https://bit.ly/2U7gA78. Acesso em: 22 jun. 2021.

FOCO NO MERCADO DE TRABALHO


A CIÊNCIA E AS CIÊNCIAS: NOVOS OBJETOS,
NOVOS MÉTODOS
Ádamo Bouças Escossia da Veiga
SEM MEDO DE ERRAR

Você, no lugar do professor Victor, poderia mostrar aos seus alunos que, em um momento
de dificuldade, podem voltar-se para a reflexão, para o estudo e para a filosofia, como
forma de se empoderarem diante das dificuldades do presente. Seria interessante, então,
levar para a aula uma reflexão recente na filosofia, sobre meio ambiente e mudanças
climáticas.
O professor poderia falar que a mineradora, assim como todas as grandes corporações,
toma a natureza dentro de um paradigma eminentemente moderno, de acordo com o qual
ela não tem agência e é como um armazém repleto de recursos para a apropriação irrestrita
e sem consequências. O homem moderno concebe-se como senhor do mundo natural e,
assim, vive a partir de um antropocentrismo radical. Caberia explicar para os alunos que
o antropocentrismo é uma concepção moderna que moldou bastante nossa visão de
mundo; hoje, todos nós nos vemos superiores em relação aos demais entes, ao ponto de
não nos importarmos com o sofrimento massivo que impomos aos demais seres vivos.
Neste sentido, poderia demonstrar como a crise climática que a cidade está passando
demonstra, justamente, como a natureza não é um palco inerte para a apropriação humana.
O meio ambiente local agiu sobre a produção agrícola, de forma a produzir os prejuízos
que todos estão vivendo. A apropriação da mineradora dos recursos locais não foi sem
consequências, o que demonstra a limitação da concepção moderna antropocêntrica. Seria
interessante, assim, mostrar para os alunos como aquilo que a cidade está vivendo em
microescala é para onde o planeta inteiro está caminhando: a destruição do meio ambiente
pelo homem é uma realidade em curso que, tendendo a piorar radicalmente, tornará
situações como essa cada vez mais comuns.

AVANÇANDO NA PRÁTICA

CONFERÊNCIA NO CICLO DE HUMANIDADES

Imagine a seguinte situação: José é recém-doutor em filosofia, tendo se dedicado na pós-


graduação a estudar a relação entre Filosofia e Ciências Humanas. Sempre sonhou em ser
professor universitário e, desde os seus primeiros anos na faculdade, dedica-se com afinco
à vida acadêmica.
Após concluir o doutorado, José tem dificuldades de conseguir uma posição profissional.
O mercado de trabalho está em crise e as universidades têm recebido constantes cortes de
verbas que dificultam a contratação de novos docentes. No entanto, ele não desiste e
continua estudando, pesquisando e publicando, visando a estar preparado para quando a
oportunidade correta chegar.

Cerca de um ano depois da sua defesa de doutorado, José vê que uma grande universidade
da região está com processo seletivo aberto para professor de Filosofia das Ciências
Humanas. É a oportunidade que ele estava esperando.

O processo seletivo consiste em uma prova dissertativa sobre um tema a ser sorteado no
dia. Tendo se preparado ao máximo, José está ansioso diante do sorteio. O tema sorteado
é: As Ciências Humanas a partir de Foucault.

O que você, no lugar de José, escreveria na sua prova?

RESOLUÇÃO

Como José teve uma trajetória acadêmica de excelência, não terá problema algum em
resolver a questão da prova. É possível dissertar sobre o importante conceito de duplo
empírico-transcendental. Para Foucault, Kant inaugura esta dimensão da modernidade ao
formular a dupla dimensão do homem, como aquele que é condição de todo conhecimento
(o conhecedor) e aquilo que é conhecido (o objeto de conhecimento). Enquanto condição
transcendental, o homem é, ele mesmo, também empírico.
Na sequência da resposta, seria oportuno falar do triedro dos saberes positivos da
modernidade: a Biologia, a Economia e a Filologia. As ciências humanas, para Foucault,
surgem deste triedro, conforme ele replica a distinção transcendental/empírico, fazendo
um circuito entre estes níveis. A vida, por exemplo, é aquilo que é o homem e, ao mesmo
tempo, a sua condição. A economia, que analisa o trabalho, é o homem em sua atividade
e, ao mesmo tempo, condição da existência social humana. Neste sentido, há um circuito
entre o transcendental e o empírico, no qual o transcendental sempre se elude, na medida
em que, sendo condição, é constantemente reinscrito no empírico que, enquanto
condicionado, retoma a sua condição em um círculo no qual o homem, conquanto
conceito, vê-se alienado de si mesmo. Por isso, as ciências humanas, para Foucault, não
alcançam nunca a forma das ciências naturais, nas quais os objetos estudados, objetos
empíricos, são descritos sob a forma de leis e equações.
Com base nisso, teria sido possível fazer uma excelente prova, estando qualificado a se
tornar professor desta importante universidade.

NÃO PODE FALTAR


OS LIMITES DA RAZÃO CIENTÍFICA
Ádamo Bouças Escossia da Veiga
PRATICAR PARA APRENDER

Prezado aluno, chegamos à última seção do nosso livro. Esperamos que este percurso
tenha alargado os seus horizontes, trazendo ideias novas e modos inéditos de refletir sobre
a ciência e o mundo.

Nesta seção, vamos estudar alguns pontos da bioética e da ética científica em geral. No
mundo de hoje, marcado pela promessa de tecnologias disruptivas no campo da vida, é
fundamental indagar-se sobre os limites que devem (ou não) ser postos pela sociedade à
técnica e à ciência. Devemos permitir o surgimento de tecnologias que permitam, por
exemplo, a leitura de pensamentos? Este tipo de questionamento configura a disciplina
filosófica e interdisciplinar da bioética e veremos alguns dos seus pontos mais
importantes.
Em segundo lugar, veremos a relação entre ciência e sociedade no pensamento de Donna
Haraway, uma das mais importantes filósofas contemporâneas da ciência. Haraway,
contra o universalismo tradicional que herdamos do século XIX, propõe que a
objetividade é da ordem do saber local, situado e, assim, responsável perante a sociedade.
Em consonância com Haraway, também trataremos sobre o importante trabalho de Sandra
Harding. Vamos compreender, ao longo da seção, a reflexão destas duas grandes
pensadoras.
Por fim, você estará preparado para discutir, debater e dialogar de forma proficiente sobre
os principais pontos da filosofia da ciência, histórica e contemporaneamente, além disso,
você terá os elementos necessários para ensinar aos alunos as competências prescritas
pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Caro aluno, para contextualizar a sua aprendizagem, imagine a seguinte situação: Vera é
professora da filosofia em uma importante universidade e costuma ministrar conferências
e palestras sobre bioética em diversos meios, de congressos empresariais a eventos
universitários. No ano de 2020, Vera é convidada para falar em um importante programa
de televisão sobre o fato que será descrito a seguir.
A pandemia de Covid-19 colocou um dos maiores desafios à humanidade no século XXI.
Tão logo o vírus espalhou-se pelo mundo, deixando um rastro de morte e sofrimento,
diversos Estados e empresas privadas entregaram-se a uma busca desenfreada pela
vacina, capaz de produzir a imunidade necessária para a superação da pandemia.
Uma empresa americana, no seu processo de desenvolvimento da vacina, durante a fase
3, dedicada aos testes em humanos, tomou certa atitude que, quando disseminada para o
público, a partir de um vazamento para a imprensa, gerou grande polêmica. Os cientistas,
a fim de adiantar o procedimento, expuseram os voluntários do experimento ao
coronavírus de forma deliberada, ao invés de esperarem que, na sua vida cotidiana, eles
pegassem o vírus eventualmente. Após o vazamento do procedimento, alguns voluntários
afirmaram não ter ciência de que estavam sendo inoculados com o vírus, enquanto outros
disseram saber sobre o fato, tendo concordado com isso. Em sua defesa, a empresa
afirmou que os benefícios da uma vacina superariam, em muito, o risco ao qual os
voluntários foram expostos, com o potencial de salvar milhares de vidas. Ainda
argumentou que nenhum dos participantes do experimento era do grupo de risco e que
todos estavam sendo monitorados de perto, de forma a terem o menor risco de internação
e óbito possível.

Diante da polêmica envolvendo este caso, Vera é convidada a comentá-lo por conta da
sua experiência em bioética. O que você, no lugar da professora, pontuaria em sua fala?
Prezado aluno, chegamos, assim, ao fim de mais uma importante etapa da sua formação
como pesquisador e docente. Esperamos que, nesta seção, você demonstre a mesma força
de vontade e abertura ao pensamento que certamente lhes motivaram até aqui. Vamos lá!

CONCEITO-CHAVE

ÉTICA E PRÁTICA CIENTÍFICA

A ciência, enquanto prática, é regida por princípios éticos e suscita, ainda, questões que,
no presente momento, não se consolidaram em um consenso significativo. Sobretudo, nas
ciências da vida – medicina, biologia, biotecnologia – estas questões mostram-se mais
espinhosas e de difícil trato.

O século XX foi um ponto de inflexão neste aspecto. A Alemanha nazista utilizou de


prisioneiros em campos de concentração para todo tipo de experimentação, realizando
procedimentos bárbaros, posteriormente julgados e condenados no Tribunal de
Nuremberg. Neste sentido, a teoria racial que pautou as barbáries do nazismo dizia-se
propriamente científica. O racismo, hoje universalmente condenado e esvaziado de
qualquer conteúdo científico, nos dois últimos séculos era considerado uma teoria válida
e muito estudada. Não só na Alemanha, mas nos Estados Unidos, e mesmo no Brasil –
como na obra de Nina Rodrigues –, o racismo apresentava-se sob as vestes de uma ciência
verdadeira. Com o tempo, todas as teses racistas foram cientificamente refutadas, no
entanto, esta questão deixou profundas marcas na reflexão da prática científica que, desde
então, vê-se às voltas com princípios éticos, que devem regular suas práticas e pesquisas.
A bioética surge enquanto disciplina filosófica e interdisciplinar justamente no seio destes
problemas. Trata-se da reflexão sobre os princípios norteadores da prática científica nas
ciências da vida. Do grego bios (vida) e ethos (caráter, comportamento), a bioética é uma
das disciplinas mais relevantes e abertas ao debate na contemporaneidade. Diversas
questões que inflamam sobremaneira o debate público passam por ela: a eutanásia deve
ser legalizada? O aborto é uma forma de assassinato ou um direito inalienável da mulher
sobre seu próprio corpo? Pesquisas com células-tronco devem ser permitidas?
Os avanços recentes na biotecnologia tornam estas questões ainda mais urgentes. A
tecnologia de CRISPR/Cas9 permite a edição do DNA, por meio da identificação e
recorte de uma parte específica de uma cadeia genética, e é considerada a mais avançada
técnica de manipulação genética disponível. Este tecnologia abre caminho para a futura
manipulação genética de embriões humanos. Diversos estudos ao redor do planeta têm
procurado desenvolver tecnologias diversas para a leitura de pensamentos, cujo potencial
disruptivo gera apreensão. Por mais que a bioética preocupe-se, principalmente, com
problemas da prática médica, também relaciona-se com a ética ambiental, levando em
conta a discussão sobre a relação do ser humano com os demais seres que compartilham
o planeta conosco (CAPLAN; ARP, 2014).

Em resposta aos crimes nazistas citados, em 1947 foi promulgado o Código de


Nuremberg. O Tribunal de Nuremberg foi o responsável por julgar e condenar os
responsáveis pelos crimes cometidos pela Alemanha Nacional-socialista e, em relação à
ética dos seus experimentos humanos, foi proposto o Código, a fim de regular a prática
científica a partir de então. Foi um marco no campo da bioética, e sua importância
continua incontornável. Entre os dez pontos elencados, encontramos a necessidade de que
o sujeito submetido ao experimento científico esteja plenamente a par dos procedimentos,
que tenha consentido em submeter-se e que não tenha sido manipulado ou forçado, de
modo algum. O Código também prescreve que o experimento científico deve ser pensado
visando a algum benefício para a sociedade, que se evite ao máximo qualquer dano físico,
psíquico ou material aos sujeitos envolvidos e, neste sentido, que não se devem submeter
humanos a procedimentos passíveis de morte ou invalidez permanente. Igualmente, o
sujeito da experiência deve ter a liberdade de abandoná-la quando quiser, e o Código
também comanda que apenas pessoas qualificadas podem ministrar experimentos
(CAPLAN; ARP, 2014).

O Código de Nuremberg é um dos primeiros esforços sistemáticos de positivação


normativa de protocolos para a experimentação em humanos. Na atualidade, temos,
igualmente, o Código Belmont. Promulgado pela Comissão Nacional para a Proteção de
Sujeitos Humanos na Pesquisa Biomédica e Comportamental dos Estados Unidos,
mobiliza três princípios para a pesquisa em humanos: o da autonomia, o da beneficência
e o da justiça. O primeiro envolve a necessidade de se tratar o sujeito do experimento
como um ser autônomo e dotado de uma dignidade inalienável. Ele tem que entrar no
experimento de forma consentida e livre e deve ter sua privacidade e segurança
devidamente respeitadas. O segundo afirma que um experimento científico não pode ser
feito visando ao mal, mas apenas à promoção de um bem para a sociedade. Este ponto é
interessante, pois coloca, a princípio, como antiéticas pesquisas que objetivam
desenvolver armas biológicas, como bactérias e vírus utilizados em guerras contra
populações civis. O terceiro ponto, a justiça, prescreve um tratamento igualitário entre os
participantes do experimento, visando a uma distribuição justa dos seus benefícios e
eventuais problemas, sem privilégio.

Tanto o Código de Nuremberg quanto o de Belmont representam normativos éticos


colocados à ciência pela sociedade. Hoje, tais princípios são quase que unanimemente
acatados e informam grande parte dos normativos em Comissões de Ética em centro de
pesquisas no mundo. No entanto, há ainda diversas outras questões éticas ligadas à ciência
e cada vez mais discutidas na atualidade. Observa-se, sobretudo, um movimento na
filosofia da ciência contemporânea, que se desdobra em uma crítica epistemológica, ética
e política do fazer científico, segundo sua imagem corrente herdada do cientificismo
novecentista.

CIÊNCIA, POLÍTICA E SOCIEDADE

A concepção tipicamente moderna da ciência e do conhecimento estrutura-se, em suas


variadas formulações, a partir da relação entre sujeito e objeto. O sujeito moderno é
concebido como uma forma universal e autoidêntica, invariável e abstrata; o sujeito de
conhecimento é ele mesmo neutro, independentemente do seu contexto histórico,
geográfico, cultural. O conhecimento, nesta concepção, obtém-se a partir da purgação dos
atributos locais da pessoa que conhece, em direção ao universal objetivo em sua
manifestação sensível. De um lado, há o sujeito em sua identidade abstrata e, do outro, há
o ponto de vista de lugar nenhum, ao qual este sujeito deve ascender. O conhecimento,
assim, é aquilo que obtém o universal a partir do apagamento sistemático das variações
locais; o sujeito do conhecimento desencarna-se no mesmo movimento em que atinge a
objetividade. Na concepção moderna, o cientista não é uma pessoa que carrega, por conta
do seu gênero, cor, nacionalidade, nenhum viés; antes, é alguém que se depurou de toda
preconcepção e, assim, conseguiu alcançar um ponto de vista privilegiado, no qual o
objeto de estudo manifesta-se em sua objetividade translúcida. Como coloca Sandra
Hardings:

Em abordagens [epistemológicas] convencionais, as crenças socialmente situadas apenas


contam como opiniões. Para alcançarem o estatuto de conhecimento, as crenças devem
supostamente se libertar – para transcender – os seus vínculos originais, interesses
históricos, valores e agendas locais.

(HARDINGS, 1993, p. 50)

O problema desta concepção, como colocam Linda Alcoff, Lorraine Code e Sandra
Harding, dentre outras filósofas, é que essa universalidade desencarnada do sujeito não
existe – é uma ficção instanciada por determinada configuração histórica contingente.
Mais ainda, esta concepção do sujeito tem marcadores de gênero, de cor, de localidade: é
o homem branco ocidental que vê a si mesmo enquanto universal. Nas ciências da
natureza, esta dimensão, naturalmente, é menos relevante – não há tanto problema nos
vieses do cientista na avaliação da forma da Terra, por exemplo –, no entanto, em termos
de pesquisa em ciências humanas, isto se torna algo possivelmente problemático. Um
sociólogo, por exemplo, por conta de preconcepções disseminadas na sua cultura, pode
desenvolver uma pesquisa a partir delas, e estas podem ter efeitos negativos relevantes,
conforme eventualmente informem uma política pública. O caso do racismo, no início do
século XX, é terrivelmente paradigmático neste aspecto. As pesquisas em biologia,
sociologia e antropologia, neste período, partiam do pressuposto – tido como científico –
de que havia algo como a “raça negra” e desenvolveram estudos variados a fim de provar,
dentre outros absurdos, que negros eram menos inteligentes e mais propensos a crimes.
Este caso expressa, radicalmente, algo que também perpassa diversas outras pesquisas,
nas quais determinadas preconcepções, disseminadas historicamente, adentram na prática
científica de forma irrefletida, como “meros dados” a serem estudados.
Diante deste tipo de prática científica, a primeira reação pode muito bem ser a de afirmar
que se trata, apenas, de um enviesamento extracientífico, que deve ser purgado; assim, o
racismo, por exemplo, seria um caso de intromissão ilegítima de preconceitos sociais na
devida prática científica. Neste sentido, a questão seria, antes, a de purificar, ainda mais,
o sujeito do conhecimento dos seus vieses locais, em prol, agora, da verdadeira
objetividade. Esta noção, de fato, é facilmente aplicável ao caso do racismo, dado que a
ciência, hoje, descobriu que, objetivamente, a categoria de raça é desprovida de
fundamentação empírica. No entanto, diversos filósofos e filósofas, motivados por estas
questões, têm argumentado que o problema é mais profundo: a própria postulação de um
ponto de vista absoluto, ao qual o cientista ascenderia, já seria um mecanismo
problemático, que não só facilitaria a introdução sub-reptícia de vieses, mas, igualmente,
não seria filosoficamente fundado e politicamente produtivo.

Esta crítica ao ideal universal da ciência é um dos pontos mais debatidos na filosofia da
ciência contemporânea. Já vimos, em seções anteriores, como Kuhn e Feyerabend
contribuíram, cada um ao seu modo, neste aspecto. Agora, vamos estudar a importante e
altamente influente reflexão de Donna Haraway sobre o tema. Haraway é uma bióloga e
filósofa da ciência norte-americana, sendo uma das mais influentes estudiosas no campo.
Seu pensamento enquadra-se na “epistemologia feminista” e, além disso, é fonte de
constantes reflexões sobre como podemos combater a imagem universalista da ciência
sem abandonar todo e qualquer critério na prática científica.

ASSIMILE
Epistemologia feminista é o nome dado a um movimento filosófico de estudo e
investigação que visa a analisar e questionar as intersecções entre a construção do
conhecimento e a divisão entre gêneros. O feminismo é o movimento que procura
promover a igualdade entre homens e mulheres, e que, para isso, investiga a opressão e
subalternização da mulher em todas as esferas. Em termos de filosofia da ciência, a
epistemologia feminista investiga o quanto marcadores de exclusão estão presentes na
prática científica, na representação que temos da ciência, assim como no papel e efeitos
da histórica exclusão da mulher no campo da ciência. Seus principais nomes são Donna
Haraway, Linda Alcoff e Sandra Hardings.

Para Donna Haraway, no movimento de se deslocar do seu embebimento histórico, a


prática científica torna-se irresponsável. Irresponsável, aqui, tem um sentido diferente do
que usamos rotineiramente: significa um saber que não responde e cujo praticante não é
responsabilizado. Como coloca Haraway: “Irresponsável significa incapaz de ser
chamado a prestar contas” (HARAWAY, 1995, p. 16). A ciência, sob a armadura da
universalidade, torna-se capaz de não prestar contas aos sujeitos e sociedades envolvidas
e afetadas por sua prática e seus efeitos. Se a teoria ou a pesquisa científica coloca-se
como essencialmente descorporificada e universal, ela se apaga naquilo que tem de
concreto e, assim, deixa de responder às demandas locais e sociais. Isto se manifesta no
nosso imaginário do cientista enquanto alguém desinteressado, à procura da verdade e
somente da verdade. Há um componente forte de poder nesta apresentação da ciência: se
ela afirma a verdade de algo, devemos apenas obedecer ao que ela diz, sem questionar ou
exigir dela qualquer coisa, senão este mandamento.
EXEMPLIFICANDO
A Revolta da Vacina ocorreu no Rio de Janeiro, no início do século XX, após o congresso
decretar a obrigatoriedade da vacina contra a varíola, proposta por Oswaldo Cruz. Os
populares, por não compreenderem como operava a vacina, tinham resistência a ela e,
mais ainda, a obrigação de vacinar levou agentes a invadirem as casas das pessoas para
vaciná-las. Neste caso, temos um exemplo da efetivação prática de uma determinação
científica objetiva: sem consideração pelo contexto de vida das pessoas, impôs-se de cima
para baixo uma medida fundamentada na ciência.

Em contraste com esta concepção, Haraway argumenta que todo saber é localizado e que
isto consiste em uma forma de objetividade: a objetividade é o saber localizado. A
proposta é, a partir da elucidação crítica da permanência dos paradigmas masculinistas e
demais marcadores de exclusão, desenvolver um novo conceito de objetividade, no qual
esta não figure como a visão de lugar nenhum. A objetividade de determinado
conhecimento é aportada pelo seu caráter local e situado; na impossibilidade de um
discurso universal, a validade decorre do campo singular, histórico, determinado e parcial
no qual este saber se aplica.

Neste sentido, há interesses na prática científica que informam a pesquisa em seus mais
diversos níveis. Interesses políticos e econômicos são os mais visíveis, com as respectivas
alocações de verbas para pesquisas cujo retorno econômico é mais promissor em
detrimento de outras. Mas há, também, um esforço de apagamento de outros saberes que,
pela sua posição periférica, podem lançar luz sobre os elementos de segregação que
pautam a pesquisa científica. Podemos ver isso em nossa realidade social brasileira: os
saberes tradicionais dos povos originários, que vêm junto de uma cosmovisão que toma
a natureza como agente a ser respeitado, são apagados, de modo que, diante da
objetividade plena do saber científico na sua roupagem cientificista, figuram apenas como
uma etapa superada, relegada ao passado, mero primitivismo, ou pura utopia.
À medida que se subtrai da prática científica o seu lugar de universalidade, mais ela se
torna responsiva. Embebida em seu contexto – sem que ele se oculte no universal – vê-se
a quem serve a ciência, vê-se em que ela pode servir, vê-se sobre que ponto de vista ela
se desenvolve efetivamente. Situada, a ciência torna-se responsável e responsabilizável
perante os coletivos variados nos quais a sua prática incide.

Em termos de objetividade, quanto mais perspectivo for o conhecimento, quanto mais


situado, quanto mais levar em consideração a variedade de atores e sujeitos implicados
na sua construção, mais objetivo o conhecimento torna-se. Não se trata de relativismo,
não é que todas as concepções se equivalem, mas os saberes que não se colocam como
situados perdem poder de inteligibilidade, em termos de explicação da experiência
empírica, precisamente por não levarem em conta o seu caráter local e as agências
variadas que perpassam a sua construção. A afirmação de que determinado saber, por se
colocar como parcial e restrito, detenha validade precisamente por ser situado, só causa
estranhamento a partir da preconcepção de que o saber identifica-se à sua universalidade
– ao romper com essa concepção normativa e cientificista, conclui-se
pelo perspectivismo enquanto epistemologia.

Este ponto é muito relevante. O relativismo pode ser compreendido em oposição ao


universalismo e também ao perspectivismo (pelo menos, conforme entendido nas obras
de Haraway, Viveiros de Castro, entre outros). Diante do embebimento histórico dos
praticantes da ciência, pode-se concluir pela inexistência da dimensão objetiva e cair em
um subjetivismo generalizado: não há verdade, não há objetividade, só interpretações
singulares e equivalentes. Este relativismo, por vezes identificado ao construtivismo
social radical, retira da ciência seu valor privilegiado enquanto descrição da realidade, em
prol da sua contingência histórica e geográfica. Os saberes da ciência seriam socialmente
construídos e, assim, não teriam nenhum valor epistemológico singular.
Haraway, neste sentido, pretende, precisamente, trabalhar uma noção de ciência que fuja
do universalismo sem cair no relativismo. No relativismo, todas as perspectivas se
equivaleriam; não haveria critério possível capaz de selecionar ou julgar a pertinência de
determinado conhecimento em relação aos demais. O construtivismo social radical, que
apregoa que o conhecimento é produzido pela configuração social, sem que haja qualquer
parâmetro de avaliação externo à própria sociedade em que determinado conhecimento é
construído, desemboca naturalmente no relativismo generalizado, no vale tudo
epistemológico. Nesta perspectiva, teríamos o completo simétrico oposto da abordagem
totalizante da epistemologia moderna tradicional: como coloca Haraway, o relativismo
pretende estar em lugar nenhum e em toda parte, isto significa, grosso modo, que o
relativismo tem a pretensão de ser um discurso universal sobre a não universalidade de
todo discurso, ou seja, coloca no lugar do universal o seu simétrico oposto, a não
universalidade enquanto universal. Pretende, assim, estar em toda parte, conforme aplica-
se a todo o discurso, e, ao mesmo tempo, em parte alguma, conforme coloca-se,
precisamente, ainda que de forma implícita, como universal. O relativismo, deste modo,
inscreve-se dentro do mesmo horizonte daquilo que pretende contestar. A concepção do
saber localizado, proposta por Haraway, é oposta, assim, ao universalismo e ao
relativismo e, neste sentido, podemos compreender em que medida a filósofa reivindica
a noção de objetividade. Ser objetivo é ser situado, local e responsável em relação às
agências variadas – humanas e não humanas – que são postas em jogo na prática
científica. Como coloca Haraway:

A preferência por tal posicionamento é tão hostil às várias formas de relativismo quanto
às versões mais explicitamente totalizantes das alegações de autoridade científica. Mas a
alternativa ao relativismo não é a totalização e a visão única que, finalmente, é sempre a
categoria não marcada cujo poder depende de um sistemático estreitamento e
obscurecimento. A alternativa ao relativismo são saberes parciais, localizáveis, críticos,
apoiados na possibilidade de redes de conexão, chamadas de solidariedade em política e
de conversas compartilhadas em epistemologia.

(HARAWAY, 1995, p. 17)

Sandra Hardings (1993), de forma próxima à Haraway, propõe um conceito de


objetividade pautado pela reflexibilidade radical. O termo significa que o sujeito que
conhece situa-se no mesmo plano do objeto do conhecimento; ou seja, no processo
investigativo, aquele que investiga coloca-se sempre como implicado e objeto de
compreensão crítica. Neste sentido, a objetividade não é alcançada a partir da purgação
de todo valor em direção a uma neutralidade apolítica, mas a partir da consciência crítica
e adjunção do máximo de valores implicados na prática científica. Não se trata de subtrair
e purgar, mas de construir de forma multifocal. Bruno Latour (2004), de forma próxima
a esse projeto, argumenta que mostrar o processo de construção do saber não é, de modo
algum, criticar a ciência em seu valor e realidade, mas é conceder mais realidade à ciência,
conforme explicita-se o que ela tem de implícito, assim como as agências que eram
ignoradas e deixadas de lado em prol do ideal moderno de objetividade. O que propõe
Hardings coaduna-se perfeitamente com esse ponto: a radical autorreflexibilidade é levar
em conta todas as variáveis contextuais na constituição de algo como um fato, não para
negar a possibilidade de conhecimento seguro, mas para enriquecer o conhecimento a
partir do máximo possível de perspectivas situadas (HARDINGS, 1993). Trata-se, como
prescreve Haraway, de ser responsável, de prestar contas aos sujeitos implicados e
implicantes no movimento científico. A objetividade, assim, deixa de tornar-se algo
garantido, sempre lá, para tornar-se um ideal nunca totalmente completo de adjunção
perspectiva.
A reflexibilidade proposta no que Hardings chama de “objetividade forte” tem uma
dimensão política, coletiva e epistemológica. Uma dimensão política, conforme visa a
tornar a ciência responsiva para aqueles que nela se veem implicados, dando voz a grupos
marginalizados que, muitas vezes, foram vítimas de preconcepções socialmente
instanciadas; uma dimensão coletiva, pois trata-se de um movimento que envolve as
comunidades científicas e a sociedade, com vistas a tornar visível, de forma crítica, estas
mesmas pressuposições; e uma dimensão epistemológica, por fim, pois trata de
estabelecer um critério de construção de conhecimento, e não do abandono, ao modo do
relativismo, de toda pretensão de objetividade.

Por exemplo, uma pesquisa sociológica, visando a identificar determinada característica


em certo grupo de mulheres, não pode se pautar em preconcepções acerca do que é ser
mulher, mas deve levar em conta, neste processo, a concepção própria das mulheres
estudadas sobre si mesmas, e deve ter, em termos institucionais, mecanismos capazes de
identificar os possíveis vieses com base em preconceitos de gênero. Neste sentido, trata-
se de utilizar a reflexibilidade como norte epistemológico.

REFLITA
Na atualidade, o movimento antivacina tem ganhado força. Os seus militantes negam a
utilização das vacinas como prevenção de doenças com base em argumentos variados,
que vão do autismo em crianças à implantação de chips de monitoramento a partir da
vacinação. O movimento enquadra-se no que se denomina negacionismo, a negação de
fatos científicos bem consolidados. Este movimento, no contexto da pandemia de Covid-
19, tem se mostrado ainda mais problemático, dado que leva pessoas a não se vacinarem
e, sem a maior parte da população devidamente vacinada, a pandemia não tem fim. Diante
deste quadro, em que medida podemos entender a crítica ao universalismo científico? As
reflexões de Haraway seriam aplicáveis neste contexto? Reflita sobre isso.

FOCO NA BNCC
A contextualização dos saberes é um dos elementos presentes na BNCC. Neste ponto, a
filosofia da ciência de Haraway é um recurso muito interessante. Ao conceber a ciência
e seus saberes como sendo localizados, o pensamento de Haraway permite uma
compreensão contextual da produção epistemológica do conhecimento científico. Deste
modo, essa reflexão lhe dá ferramentas interessantes para sua futura atuação como
docente.

Chegamos ao fim de mais uma etapa. Nesta seção, conhecemos importantes elementos
da bioética e o pensamento influente de Donna Haraway. A concepção da objetividade
enquanto saber localizado é um dos marcos conceituais mais influentes no pensamento
contemporâneo, e você saberá utilizar este e outros conhecimentos que vimos até agora
em sua prática docente e de pesquisa. O conceito de reflexibilidade, em filosofia da
ciência, a fim de tornar visíveis as práticas de marginalização e exclusão na atividade
científica, também é algo muito importante no debate contemporâneo, e, assim, você está,
agora, mais preparado para prosseguir com seus estudos.

FAÇA A VALER A PENA

Questão 1

A bioética é o campo de estudos que visa a compreender as implicações éticas da pesquisa


científica e da prática médica no campo da vida. É uma área relativamente recente de
estudo, que vai ganhando mais evidência conforme surgem novas tecnologias, como a
edição de DNA. Sobre o Código de Nuremberg e o Código Belmont, classifique as
seguintes afirmativas em Verdadeiras (V) ou Falsas (F):
( ) O Código de Nuremberg surge em resposta à utilização de armas biológicas na Guerra
do Vietnã, como o Napalm.
( ) Ambos os Códigos prescrevem como fundamental que o sujeito do experimento
científico participe do procedimento de forma consensual.
( ) Os princípios da autonomia, da beneficência e da justiça são definidos no Código
Belmont.
Assinale a sequência correta:

a. V – V – F.

b. F – V – V.

Correto!

O Código de Nuremberg surge em resposta à utilização de armas biológicas na Guerra do


Vietnã, como o Napalm. FALSA, pois o Código de Nuremberg foi promulgado em
resposta aos crimes nazistas na Segunda Guerra, e não em relação à Guerra do Vietnã.
Ambos os Códigos prescrevem como fundamental que o sujeito de experimento científico
participe do procedimento de forma consensual. VERDADEIRA, os dois códigos
prescrevem o consenso dos participantes do experimento como fundamental.
Os princípios da autonomia, da beneficência e da justiça são definidos no Código
Belmont. VERDADEIRA, esses princípios, de fato, norteiam o Código Belmont.

c. F – F – V.

d. V – V – V.

e. F – V – F.

Questão 2

Queríamos uma maneira de ir além da denúncia da ciência enviesada (o que, aliás, era
muito fácil), e além da separação das boas ovelhas científicas dos maus bodes do viés e
do abuso. Parecia promissor alcançar isso através do argumento construcionista o mais
forte possível, que não deixava frestas para a redução das questões à oposição entre viés
versus objetividade, uso versus abuso, ciência versus pseudo-ciência. Desmascaramos as
doutrinas de objetividade porque elas ameaçavam.

(HARAWAY, 1995, p. 7)

Sobre a filosofia da ciência de Donna Haraway, assinale a alternativa correta:.

a. Donna Haraway defende um ideal relativista, segundo o qual não há como decidir entre visões científicas
e não científicas de mundo.

b. Donna Haraway defende uma epistemologia subjetivista, na qual o ideal de objetividade da modernidade
é deslocado e superado.

c. Donna Haraway defende um ideal perspectivista, no qual a adjunção de perspectivas consiste em um


critério de objetividade alargado.

Correto!

Donna Haraway critica o relativismo e o construtivismo radical por figurarem como o


simétrico oposto do universalismo. Do mesmo modo, crítica o subjetivismo. A autora
defende, neste sentido, e em consonância com Hardings, uma visão perspectivista do
conhecimento, a qual considera que quanto mais perspectivas forem levadas em conta,
melhor e mais objetivo é um conhecimento.

d. Donna Haraway defende um construtivismo radical, no qual as ciências são construtos sociais
contingentes e equivalentes a todos os demais.

e. Donna Haraway, divergindo de Sandra Hardings, afirma que o saber é sempre localizado e que isto
permite desenvolver um conceito alargado de objetividade.

Questão 3

O relativismo, como defendido por Paul Feyerabend, por exemplo, é uma tese que
defende a inexistência de uma perspectiva única e prega a equivalência das visões de
mundo. Donna Haraway, apesar de não se referir a Feyerabend, critica o relativismo
enquanto simétrico oposto do universalismo. Com base neste contexto, julgue as
asserções a seguir e a relação proposta entre elas:
I. O universalismo moderno prescreve que o saber é objetivo e universal, desprovido de
contexto histórico, geográfico e local, afirmando um ponto de vista de lugar nenhum
enquanto correlato da verdadeira objetividade. O relativismo, para Haraway, é o oposto
disso.

PORQUE

II. O relativismo afirma que não há verdade absoluta, em um movimento que afirma estar
em lugar nenhum e, ao mesmo tempo, em toda parte, trazendo o mesmo caráter não
situado do universalismo.

Assinale a alternativa correta:

a. A asserção I é uma proposição verdadeira e a II é uma justificativa da I.


Correto!

A asserção I é uma proposição verdadeira e a II é uma justificativa da I. Donna Haraway,


efetivamente, critica o relativismo como simétrico oposto do universalismo. O vale tudo
do relativismo seria, ainda, um efeito do universal, dado que não toma o saber como
situado.

b. A asserção I é uma proposição verdadeira e a II, uma proposição falsa.

c. As asserções I e II são verdadeiras, mas a II não justifica a I.

d. As asserções I e II são falsas.

e. A asserção II é uma proposição verdadeira e a I, uma proposição falsa.

REFERÊNCIAS

CAPLAN, A.; ARP, R. General Introduction. In: CAPLAN, A.; ARP, R. (Eds.). Contemporary debates
in bioethics. Oxford: Blackwell, 2014.
HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva
parcial. Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p. 7-41, 1995. Disponível em: https://bit.ly/2U9FdjD. Acesso em:
3 ago. 2021.
HARDINGS, S. Rethinking Standpoint Epistemology: “What Is Strong Objectivity”? In: ALCOFF, L.;
POTTER, E. (Eds.). Feminist Epistemologies. Nova York/Londres: Routledge, 1993. p. 49-83.
LATOUR, B. Why Has Critique Run out of Steam? From Matters of Fact to Matters of Concern. Critical
Inquiry, [S. l.], v. 30, 2004. Disponível em: https://bit.ly/37B0TII. Acesso em: 3 ago. 2021.

FOCO NO MERCADO DE TRABALHO


OS LIMITES DA RAZÃO CIENTÍFICA
Ádamo Bouças Escossia da Veiga

SEM MEDO DE ERRAR


A professora Vera, sendo conhecedora dos principais temas da bioética, estaria apta a
comentar o caso, vendo, nessa circunstância, uma oportunidade de tornar o debate público
mais qualificado e de divulgar a filosofia para fora das universidades.
Em relação ao caso em questão, seria possível falar do contexto de emergência da bioética
e dos princípios reguladores que pautam a pesquisa em seres humanos. É oportuno tratar
do Código de Nuremberg, que foi criado como reposta aos crimes cometidos pelos
nazistas nos experimentos que realizaram com prisioneiros em campos de concentração.
Neste ponto, seria interessante mostrar como o experimento realizado pela empresa no
desenvolvimento da vacina viola alguns princípios elencados no Código. Em primeiro
lugar, se a empresa não informou a todos os pacientes da inoculação do vírus, temos ali
violado um dos principais pontos do código: de que não se pode usar de logro com os
sujeitos de um experimento científico. Em segundo lugar, temos também a exposição dos
sujeitos a um risco de morte pelo vírus ou de invalidez permanente, violando, mais uma
vez, os princípios éticos do código.

Ainda neste sentido, seria válido trazer o Código Belmont, que deveria reger legalmente
a prática da empresa em questão, norte-americana, mesmo país de origem do Código. O
princípio da autonomia foi violado, pois os pacientes não sabiam que estavam sendo
inoculados com o vírus; violou-se também o princípio da justiça, dado que, pelo visto,
uns pacientes sabiam que estavam sendo inoculados e outros não, levando a uma
distribuição não equitativa dos ganhos e prejuízos possíveis do experimento.
Deste modo, a professora Vera poderia ter feito uma excelente fala, mostrando para o
público em geral como a atitude da empresa viola princípios de bioética.

AVANÇANDO NA PRÁTICA

SELETIVO PARA MESTRADO

Imagine a seguinte situação: Rafael é licenciado em filosofia e, recém-formado, está


procurando inserção profissional na área. Sempre foi um aluno dedicado e ser professor
é o seu maior sonho. No entanto, tem encontrado dificuldades variadas em conseguir uma
vaga de docente, sobretudo pelas demandas cada vez maiores do mercado de trabalho
nacional.
Deste modo, resolve realizar um mestrado em uma boa universidade, visando a uma maior
qualificação, a fim de ter mais chances de inserção profissional. Rafael estuda muito e
prepara-se para um processo seletivo concorrido na mais renomada universidade da sua
cidade. Ele precisa não só ser aprovado, mas obter uma das primeiras colocações para
conseguir uma bolsa de pesquisa, capaz de lhe dar os meios materiais de realizar o
mestrado a contento.

O processo seletivo consiste em uma prova, na qual um tema será sorteado, e o candidato
deverá escrever um texto dissertativo sobre ele. No dia da prova, o tema sorteado
é: Ciência, objetividade e crítica ao universalismo.

Como você, no lugar de Rafael, elaboraria sua prova?


RESOLUÇÃO

Rafael, tendo se preparado para o processo seletivo, dissertaria com facilidade sobre a
questão proposta. Seria possível trazer a importante reflexão sobre ciência de Donna
Haraway na elaboração da resposta.
A crítica ao universalismo, herdado da tradição Iluminista, toma o sujeito de
conhecimento como universal e abstrato, como purgado da sua localidade, dos seus
vieses, como correlato perfeito de uma pura objetividade a ser analisada pela ciência. A
crítica de Haraway a este ideal visa a não descartar toda objetividade em prol de um
subjetivismo generalizado, mas a construir outro ideal de objetividade. Este ideal toma o
conhecimento como sendo sempre instanciado e local. A objetividade, para Haraway, não
está na afirmação ou negação de um possível conhecimento universal, mas na
circunscrição do saber produzido pela ciência ao seu contexto. Neste sentido, quanto mais
perspectivas determinado conhecimento levar em conta, mais ele será objetivo. É
importante, assim, levar em consideração os agentes humanos e não humanos envolvidos
na elaboração do conhecimento. Durante a resposta, caberia, neste sentido, argumentar
que a abstração desencarnada do ideal moderno sobre a ciência faz dela irresponsável em
relação ao seu contexto e aos sujeitos envolvidos em sua prática, o que traz problemas
políticos. Ao situar o conhecimento, abre-se a uma nova prática, a qual torna a ciência
responsável perante os que nela encontram-se envolvidos.
A partir destes argumentos, seria possível realizar uma ótima prova, conseguindo uma
boa colocação no processo seletivo.

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