Pedagogia filosófica: Cercanias de um diálogo
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Pedagogia filosófica - Cláudio Almir Dalbosco
Cláudio Almir Dalbosco
Pedagogia filosófica: cercanias de um diálogo
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Dalbosco, Cláudio Almir
Pedagogia filosófica [livro eletrônico] : cercanias de um diálogo / Cláudio Almir Dalbosco – São Paulo : Paulinas, 2012. – (Coleção educação em foco)
1235 Kb ; ePub
Bibliografia.
ISBN 978-85-356-3336-8
1. Filosofia 2. Pedagogia I. Título. II. Série.
12-11326
CDD-370.1
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia e pedagogia 370.1
2. Pedagogia filosófica 370.1
1ª edição – 2007
Direção-geral: Flávia Reginatto
Conselho editorial: Dr. Afonso M. L. Soares Dr. Antonio Francisco Lelo Dr. Francisco Camil Catão Luzia Maria de Oliveira Sena Dra. Maria Alexandre de Oliveira Dr. Matthias Grenzer Dra. Vera Ivanise Bombonatto
Editora responsável: Maria Alexandre de Oliveira
Assistente de edição: Rosane Aparecida da Silva
Copidesque: Leonilda Menossi
Coordenação de revisão: Marina Mendonça
Revisão: Ana Cecilia Mari e Ruth Mitzuie Kluska
Direção de arte: Irma Cipriani
Gerente de produção: Felício Calegaro Neto
Capa: Manuel Rebelato Miramontes
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© Pia Sociedade Filhas de São Paulo – São Paulo, 2007
Dedico este livro a meus alunos e colegas que, de uma forma ou outra, estimularam, por meio do diálogo e do debate, muitas das ideias aqui contidas.
A Ana Katharina, Gabriela e Vera, pelo apoio irrestrito e pela companhia silenciosa e compreensiva.
Prefácio
Não fosse muita pretensão de minha parte resumir em poucas palavras o fio condutor dos polissêmicos e ricos textos que Cláudio A. Dalbosco reuniu neste livro, diria que se trata de diferentes tentativas de elucidar e fundamentar a tese de que é preciso restabelecer e estreitar a relação entre filosofia e pedagogia sobre novas bases. Se na tradição clássica tal relação se dava com base em pressupostos metafísico-essencialistas, na Idade Média, sob orientação dos princípios teológicos e, na modernidade, na perspectiva da epistemologia científico-instrumental, hoje ela se encontra precarizada e fragilizada pelo realismo positivista que domina teórica e praticamente o cotidiano pedagógico. Do conhecimento dessa realidade e insatisfeito com ela, o autor colhe a tarefa de resgatar a ligação entre filosofia e pedagogia assentando-a sobre a base de uma nova epistemologia dialógica.
O leitor pode saber, de início, que não se trata simplesmente da proclamação formal da importância do restabelecimento das relações entre as duas áreas de conhecimento, senão que do esforço de efetivamente recompô-las a partir de várias aproximações, ou seja, a partir da exploração de conceitos extraídos da própria tradição filosófica que, quais fios de um tecido, vão sendo entrelaçados aos poucos para formarem, no final, a tela teórica capaz de religar as rupturas epistêmicas causadas pela disciplinarização do saber. Os conceitos escolhidos não só reforçam, cada qual a seu modo e desde diferentes ângulos teóricos, essa aproximação, mas também constituem, eles mesmos, a tessitura da nova relação. Assim, embora cada texto tenha argumento próprio, distinto dos demais, todos confluem para a crítica da racionalidade científico-instrumental na qual o autor reconhece a origem da fragmentação disciplinar, objeto de sua crítica.
O caráter autoexplicativo dos textos permite que eles sejam acessíveis aos leitores mesmo quando pouco familiarizados com a terminologia filosófica, dispensando, assim, o constante recurso a outras fontes, embora elas sejam prodigamente indicadas. Nesse sentido, é elogiável não só o zelo didático de explicar o significado dos termos filosóficos, designando-lhes com precisão os sentidos em função do contexto da obra e do momento histórico em que foram elaborados, mas também o cuidado de sempre enunciar com clareza cada passo da argumentação.
Poderíamos acompanhar a questão das fronteiras pelas sendas imemoriais da história do homem e a encontraríamos presente desde os tempos das tribos primitivas, dos povos, dos impérios, dos feudos, mas também das culturas, das religiões, das etnias, dos gêneros e das classes. Em todos esses ambientes criaram-se limites e fronteiras que separavam espaços e pessoas, crenças e conhecimentos. Não só os grupos humanos de culturas ou características distintas como os que mencionamos, mas também os seres humanos individuais estabeleceram limites entre si. Tais fronteiras tiveram, ao longo de toda essa história e em todas essas dimensões, sentidos sempre muito ambíguos. Se, por um lado, a separação do outro servia para assegurar espaços de direitos e liberdades a grupos e indivíduos, por outro, propiciava também o exercício do poder de uns sobre os outros. Confrontam-se, nos subterrâneos dessa história, liberdade e submissão, autonomia e heteronomia, identidade e alteridade. Espaços, tempos, tarefas, funções, direitos, deveres, ideias e objetos, espíritos e corpos foram submetidos a distanciamentos e aproximações sempre na medida e segundo as conveniências, para o bem ou para o mal, das épocas e culturas, das potestades e jugos que acompanharam e acompanham a história da humanidade pelos tempos afora. Os homens estabelecem entre si fronteiras no que são, no que fazem, no que possuem, no que pensam e no que creem com base no entendimento ou no poder. Criar fronteiras significa delimitar territórios ou espaços que incluem uns e excluem outros.
Essa história projeta-se sobre o presente com algumas diferenças significativas. A primeira delas é certamente a circunstância da grande mobilidade de corpos e de ideias que caracteriza o nosso tempo. Os meios de transporte e os mecanismos de comunicação superam as fronteiras do espaço e do tempo, antes intransponíveis. O segundo aspecto de grande relevância é o fato de o estabelecimento de fronteiras ascender à consciência pública e tornar-se objeto de um grande debate mundial levado a termo, sobretudo, sob o impulso das minorias étnicas, religiosas e raciais. O terceiro ponto a ser mencionado são as novas e promissoras leituras que se fazem dos conceitos de diferença e tolerância. O já longo debate sobre a tolerância alcança hoje o momento decisivo de desvendamento do aspecto ideológico da tolerância tout court e do reconhecimento, em contrapartida, da necessidade da intolerância com coisas que não podem nem devem ser toleradas. Algo semelhante, e igualmente promissor, acontece com o termo diferença que, entendido e aceito em sua face inescusável, se enriquece dialeticamente na medida em que reconhece a alteridade como condição necessária da própria identidade.
Parte desse amplo e importante debate que aparece forte no cenário político, ético, sociológico, filosófico e educacional contemporâneo é o tema das fronteiras entre as disciplinas. Sabe-se que a disciplinarização ou especialização, como também se costuma dizer, é mais uma das marcas ambivalentes de nosso tempo. O que, de um lado, fortalece o aprofundamento do recorte, de outro, debilita os sentidos do todo. Este parece ser o esforço em que muitos estão hoje empenhados: depois da verticalização e objetivação dos saberes na modernidade, reconquistar um novo horizonte de aproximação e de integração crítico-produtiva dos recortes epistêmicos desgarrados do todo. Consiste em estabelecer elos e relações, em redescobrir os sentidos que se perderam no sorvedouro do estilhaçamento dos saberes, e não de supor ingenuamente uma possível superação das especialidades ou disciplinas.
Trata-se de um esforço epistemológico que ainda se encontra no seu início, pois, na prática, seguem falando alto as teses de Max Weber, defendidas nos seus famosos estudos sobre a objetividade e neutralidade nas ciências sociais e econômicas, segundo as quais essas ciências devem orientar-se pelo modelo da pesquisa empírica que considera os aspectos axiológicos como fatos, negando à sociologia qualquer capacidade de justificar normas a serem seguidas, embora seus conhecimentos possam, eventualmente, subsidiar decisões morais. Essa posição weberiana foi transcrita para o campo da pedagogia por Wolfgang Brezinka, que sugere uma passagem da pedagogia humanista tradicional para a ciência da educação. Concordando com o sociólogo Weber, o pedagogo Brezinka defende a tese de que a ciência da educação deve ser depurada dos aspectos filosóficos, normativos e éticos, reservando-lhes a exclusiva importância de fatos culturais.
Vemos, portanto, que a questão das fronteiras entre filosofia e pedagogia já vem de longe. Atualmente, porém, no contexto das renovadas críticas à racionalidade cartesiana moderna e ao positivismo, o tema do estatuto epistemológico da pedagogia assume nova relevância, sobretudo no referente ao campo objetual (próprio) da pedagogia e aos procedimentos teórico-metodológicos adequados à exploração de seu objeto. E é este o enfoque crítico dos estudos de Dalbosco reunidos neste volume, visto que, no tocante ao objeto, a pedagogia opera mediante o recurso a ciências como a sociologia, a psicologia e a história e, no tocante ao método, se vale da filosofia.
Os vários textos, embora partam de temáticas específicas que têm sentido e relevância internas, representam esforços parciais que confluem para a importante tarefa, tanto filosófica quanto pedagógica, de elucidar crítico-interativamente essas duas áreas do conhecimento. Com rigor conceitual e lógico, o autor avança pacientemente expondo, desdobrando e elucidando as diferentes facetas dessa relação. Merece particular menção o cuidadoso tratamento didático dado a conceitos e temas complexos, como, por exemplo, a relação entre o fazer e o agir pedagógicos, entre a parte e o todo, entre o individualismo e a solidariedade, entre a metódica reflexão teórica e o espontaneísmo, sem incorrer, em nenhum momento, em simplificações ou banalizações.
Tais temas são tratados em diálogo constante com os clássicos da filosofia e da pedagogia, buscando mediante aproximações conceituais variadas clarear a riqueza da transposição de fronteiras entre filosofia e pedagogia. Este recurso aos clássicos de diferentes épocas e contextos teórico-culturais reforça o sentido histórico e dialético do próprio agir pedagógico. Lembrando autores como Sócrates, Platão, Aristóteles, Agostinho, Rousseau, Kant, Nietzsche, Husserl, Mead, Habermas, Apel, constitui uma tessitura estimulante entre o pensamento filosófico e pedagógico clássicos, fazendo surgir, a partir daí, não só a pertinência e a riqueza do diálogo entre as duas áreas de conhecimento, mas também o sentido e a fecundidade do recurso apropriado aos clássicos para o entendimento da teoria e prática presentes e o descortínio de novos horizontes.
Desse diálogo com o passado emergem temas de grande atualidade e urgência para o agir pedagógico, como, por exemplo, a relação entre a crescente implementação da racionalidade técnico-instrumental e a incapacidade para o diálogo. Sem dizê-lo explicitamente, o texto sugere que talvez seja hora de ampliarmos o debate em torno das novas tecnologias, em particular daquelas da informática, uma vez que esse debate continua até hoje predominantemente restrito ao aspecto da eficiência em termos de ensino e aprendizagem, sinalizando a descompensação entre a capacidade dialógica e a capacidade técnico-instrumental, em favor desta última.
Nesse sentido, por exemplo, o olhar mais amplo lançado por Gadamer sobre essa questão parece sugestivo tanto para o entendimento da realidade escolar no contexto do todo social, quanto para a compreensão de cada modelo de paideia predominante em determinado período histórico. Tal como se mostra no passado, também hoje os condicionantes históricos, econômicos e culturais e a presença de enfoques epistemológicos e éticos, referenciados à educação, conferem ao processo pedagógico determinadas características que a análise histórica facilita detectar.
Se a realidade socioeconômica representa o chão de onde emerge qualquer manifestação cultural, o enfoque epistemológico referenda o predomínio de certa racionalidade teórica no interior da qual se estabelecem procedimentos e critérios de validade no campo do conhecimento, bem como o enfoque ético dá sustentação à racionalidade prática, ou seja, fornece os critérios que orientam o agir humano. Em termos simples, pode-se dizer que os sucessivos modelos pedagógicos se sustentam sobre a tríplice aliança entre a realidade econômico-cultural, o enfoque epistemológico, que permite decidir entre o que é verdadeiro e falso, e o enfoque ético, que estabelece princípios que legitimam o julgamento entre o certo e o errado. Isso significa que a redução do agir pedagógico ao domínio técnico-instrumental representa um olhar reducionista e empobrecido não só daquilo que, bem ou mal, o agir pedagógico sempre foi e é, mas, sobretudo, daquilo que ele deveria ser. Torna-se, portanto, urgente incluir na agenda do agir pedagógico uma nova tarefa, que é a de ampliar o olhar para as faces perdidas da educação numa sociedade em que predomina a racionalidade técnico-instrumental. Nesse contexto, não fica claro se podemos falar de um resgate do diálogo entre a epistemologia, a ética e a técnica, como se no passado esse diálogo sempre tivesse orientado a prática pedagógica, ou se seria melhor falar da implementação do diálogo como uma propositura inovadora e original ante e contra a tese hoje hegemônica das relações científico-instrumentais.
Trata-se de implementar o diálogo como práxis social em contraposição à epistemologia cientificizada que prevalece em todas as áreas do conhecimento. O maior perigo de tal predomínio reside no risco de contaminação que pode se estender a outras áreas do conhecimento, aparentemente avessas a tal tendência. Vertentes teóricas alternativas como as de corte dialético, teórico-crítico ou dialógico podem cair na armadilha do reducionismo epistemológico moderno, como, por exemplo, pela via do dualismo e esquematismo cartesianos que se traduzem e disfarçam na dicotomia sujeito-objeto. Do ponto de vista pedagógico, ou seja, da relação entre pessoas, a contaminação pelo modelo epistêmico sujeito- -objeto pode ser fatal. A divisa de suspeição crítica a respeito de tal risco deveria ser o fio condutor para as leituras de Piaget e do behaviorismo, que enfatizam o princípio da causalidade no estudo e na compreensão da ação humana. A aceitação do princípio da causalidade como suposto epistemológico para o entendimento da ação humana pode implicar o enquadramento da dimensão ética na dimensão epistemológica, sugerindo, no limite, a desresponsabilização do ser humano como parece ocorrer no estruturalismo e na teoria dos sistemas. Transferindo tal esquema para a compreensão e explicação das relações humanas que tanto podem ser cuidadosas, tolerantes, dialógicas, quanto, em sentido inverso, agressivas, violentas e excludentes, podemos estar diante de um destino ou de um fatalismo imobilizante que enfraquece ou anula qualquer apelo à responsabilidade ou à tolerância do indivíduo ante o outro, o diferente, o fraco. Se o agir humano é interpretado exclusivamente à base da reação aos estímulos do meio e seus condicionantes genéticos, pouco espaço resta ao ser humano para a livre decisão sobre seus gestos e seus atos. Do ponto de vista do agir educacional ou, mais precisamente, do agir pedagógico, tal determinismo teria implicações tão profundas que tornariam supérflua e ilusória grande parte do discurso e do agir pedagógicos que visam à constituição do sujeito moral.
A partir de semelhantes incursões, Dalbosco faz insistentes tentativas não só de evidenciar e fundamentar a possibilidade e a necessidade do diálogo entre filosofia e pedagogia, mas também de mostrar a fecundidade dessa transposição de fronteiras. Com persistência conduz o leitor a reconhecer, mediante a exploração de conceitos de diferentes discursos filosóficos, o diálogo entre as duas áreas não só como possível, mas também como profícuo para ambas as partes. Um dos elementos centrais dessas reflexões parece ser o reconhecimento de que a pedagogia incide no mesmo erro
da incorporação da tendência objetivante que marca toda a filosofia clássica e, de modo mais explícito, a filosofia moderna até, pelo menos, seus grandes críticos Nietzsche, Wittgenstein e Heidegger. A par desse reconhecimento e como sua consequência, sugere-se, então, que se repense a pedagogia à luz de uma nova epistemologia que tenha como fio condutor não mais o cientificismo objetivante e vertical da relação corpo-alma ou sujeito-objeto, mas a relação horizontal e dialógica entre seres que se reconhecem como iguais, embora sejam diferentes.
Um dos elementos característicos da pedagogia que atesta sua inserção inconsciente e inercial no contexto da filosofia clássica é a aceitação e incorporação do ontologismo filosófico que, em termos pedagógicos, se manifesta no pensamento essencialista de ser humano, de natureza, de humanidade etc. em prejuízo de um ponto de partida fundado na realidade e na historicidade do indivíduo. Feita a crítica ao ontologismo tradicional e tiradas daí as consequências para a pedagogia, a filosofia dita novos supostos que, por sua vez, representam um novo enredamento do pensamento e agir pedagógicos quando o diapasão filosófico-ontológico passa a vibrar no modo do procedimento metódico-experimental, inspirado nas inovações da ciência moderna. A episteme de base positivista passa a ser o novo horizonte de validação também do discurso pedagógico e é precisamente nisso que reside o risco do qual falava antes.
Para sinalizar a forma de evitar tal risco e representar metaforicamente a intenção subjacente aos textos de Dalbosco, parece-me interessante, ao final desses comentários, lembrar a conhecida frase de Hegel: A coruja de Minerva levanta voo somente ao entardecer
. Minerva era uma deusa romana cuja correspondente grega era Athena, filha de Zeus que, em decorrência de sua grande sabedoria prática, tinha como função, além de proteger os artesãos, ser conselheira e orientadora dos cidadãos atenienses na observação das leis de sua cidade e na parcimônia em momentos de decisões e conflitos. Conta ainda o mito que Athena foi um dia desafiada por Arachne, uma artesã que dizia tecer melhor que ninguém; melhor, até mesmo, que a própria deusa. Arachne era uma mulher do povo que dominava maravilhosamente a arte de tecer e, que, assim, desafiou Athena. A deusa, então, transformou-se numa velha e resolveu, como era seu ofício, aconselhá-la a não se atrever a enfrentar uma deusa. Arachne não se deu por vencida e insistiu no desafio. No confronto, ambas teceram com grande habilidade e maestria: Athena, figuras de deuses imponentes, mas desgostosos com a presunção humana; Arachne, erros de deuses em tom de deboche. Athena não suportou o insulto e decidiu eliminá-la. No último instante, porém, sentiu piedade e resolveu não matar Arachne, mas transformá-la numa aranha.
Na história da filosofia, Athena tornou-se a deusa preocupada com a sabedoria prática, com a habilidade de articular o saber especulativo com o uso das mãos. Por isso, Hegel ligou-a à filosofia mediante seu símbolo, que é a coruja. Daí a famosa frase a coruja de Minerva levanta voo somente ao entardecer
. Somente ao entardecer porque, para Hegel, a filosofia é uma razão que se refere ao já acontecido. O papel da filosofia não é prever, como queria o espírito cientificista de Comte, mas debruçar-se reflexivamente sobre a realidade para desvendar-lhe os segredos, os mistérios e sentidos. Essa postura, simbolizada pela coruja, é distinta da postura científico-instrumental. A coruja é um pássaro que enxerga no escuro, em condições em que poucos conseguem enxergar, e que não tem um olhar unidirecional. Girando a cabeça para todos os lados, ela pode ver as diferentes dimensões da realidade. Esta metáfora, simbolizando o olhar perscrutador e multidimensional, parece sugestiva para representar a relação entre filosofia e pedagogia, uma relação em que não compete à filosofia agregar à pedagogia uma sabedoria que esta não possui, mas sim que amplia o olhar de ambas na soma dialógica de duas perspectivas epistêmicas distintas, cujo sentido é um só: a formação do ser humano.
Pedro Goergen
Campinas, janeiro de 2007
Introdução
Pedagogia filosófica: cercanias de um diálogo é resultado do esforço empreendido, nestes últimos três anos, através de aulas, conferências e debates com colegas, alunos e professores, para pensar a imbricação do exercício da reflexão filosófica com o do agir pedagógico. De uma parte, a expressão pedagogia filosófica
, além de apontar para esta imbricação, contém também um sentido mais enfático, talvez, aos olhos de muitos filósofos e pedagogos, visto como inadequado, pela mútua dependência entre filosofia e pedagogia: parafraseando a metáfora kantiana da relação entre intuição e conceito, poderíamos afirmar que, sem a pretensão de vir a ser pedagógica, a filosofia permaneceria completamente vazia e que, sem o propósito de querer tornar-se filosófica, a pedagogia permaneceria cega. Isto é, sem o contato com os problemas e os desafios que se põem histórica e cotidianamente ao processo formativo-educacional do ser humano, a filosofia corre o risco de perder-se em puras especulações
; mas sem o confronto com a dimensão reflexiva e a constante busca pela universalidade, que são inerentes ao discurso filosófico, a pedagogia se afogaria na mecanicidade e instrumentalidade da lógica inerente ao fazer pedagógico
cotidiano. No entanto, como uma não pode transformar-se inteiramente na outra, sob pena de ser totalmente aniquilada, mantém-se uma tensão insuperável entre ambas; e o desafio, neste contexto, uma vez existindo a disposição, consiste em assumir tal tensão, em torná-la produtiva. De outra parte, a expressão cercanias de um diálogo
denota, por um lado, o estágio inicial e ainda muito assistemático no qual se encontram minhas pesquisas sobre a relação entre filosofia e pedagogia; e, por outro, o caráter aproximativo de fronteira, e jamais exato, no sentido de uma total pertença, entre filosofia e pedagogia; ela revela também o estágio pouco desenvolvido em que se encontram, no Brasil, as pesquisas sobre tal relação. No que diz respeito, especificamente, à filosofia da educação, por exemplo, carecemos de projetos coletivos de investigação que possam desenvolver interpretações sistemáticas de grandes obras filosófico-pedagógicas. Sob esse aspecto, a pesquisa em outros países, como na Alemanha, está muito à frente.
Diante dessa situação, a pergunta que se coloca é a de saber quais os esforços que precisam ser desenvolvidos para tornar produtiva a tensão entre filosofia e pedagogia. Um procedimento geral consiste em aprender com outras experiências, pondo-se em diálogo crítico com o saber acumulado pelo trabalho de pesquisa já empreendido por outros. Concomitantemente, os esforços precisam ir numa dupla direção: na crítica aos obstáculos e às dificuldades que se põem ao diálogo entre filosofia e pedagogia, e na construção de um fio condutor teórico que possa balizar tal diálogo.
Os obstáculos compreendem aqui desde empecilhos burocráticos e legais, passando por cerceamentos corporativistas de proteção de nichos acadêmicos, com seu empenho respectivo de monopolizar verbas de pesquisa, de preservar cargos e funções, até alcançar questões de natureza teórica. Sobre esta última vale a pena nos atermos aqui por um instante. Enquanto questões educacionais e pedagógicas foram discutidas por filósofos, ocupando, de modo geral, uma pequena parte de seu sistema filosófico, ou até mesmo tratadas à margem de tal sistema, não houve maiores conflitos. Uma vez que a filosofia se voltava para o todo, discursando sobre todos os temas, também podia tranquilamente tratar de questões educacionais. No entanto, com a institucionalização crescente do processo educativo e com a independização progressiva da nascente pedagogia, enquanto saber reflexivo sobre a prática educativa e a organização do sistema educacional, surge o problema de delimitação deste saber em relação a outros saberes, entre eles, à filosofia e, depois, às emergentes ciências humanas e sociais.
Um obstáculo principal, do ponto de vista teórico, que bloqueou o diálogo entre filosofia e pedagogia, consistiu no preconceito ou na arrogância de ambas as partes, provindos, inicialmente, daquela longa tradição na qual a filosofia ocupou, durante muitos séculos, a posição de primeira ciência e na qual questões educacionais eram discutidas, na maioria dos casos, como uma ponta periférica do sistema; depois, com o desenvolvimento da ciência moderna, quando a pedagogia se distanciou da filosofia e se aproximou cada vez mais das ciências particulares. Diante disso, constatam-se facilmente, na atualidade, conflitos entre filósofos e pedagogos e, para confirmar isso, basta apenas observar como se dá a relação entre os institutos ou faculdades de pedagogia e filosofia no interior das universidades. Este não é, no entanto, só um fenômeno brasileiro, mas também mundial.
A superação deste obstáculo exige a crítica da postura arrogante e autoritária subjacente às posturas filosóficas que preservam certa nostalgia em relação àqueles tempos nos quais a filosofia guardava para si a condição de primeira ciência. A atitude de arrogância e autoritarismo não é, no entanto, obra exclusiva de filósofos, passando a ser assumida também por aqueles pedagogos que, com a hegemonia da ciência moderna, esforçam-se para manter a pedagogia no âmbito da objetividade factual
, pretendendo, com isso, distanciá-la do caráter especulativo
da filosofia. Ora, o que pode passar desapercebido, neste contexto, é a situação de que a arrogância presente na ideia da filosofia como primeira ciência migrou, sorrateiramente, para dentro daquela pureza factual
adotada como critério restrito da objetividade do conhecimento científico. Livrando-se das garras
da filosofia, a pedagogia torna-se prisioneira
das ciências e, nesta nova condição, fica ainda mais acentuada a necessidade de ela se repensar como um saber independente. Neste contexto, sem um diálogo crítico com a filosofia, a pedagogia não consegue se repensar inteiramente.
Sendo assim, qual é o fio condutor para tornar produtiva a tensão entre filosofia e pedagogia? Ele consiste — e esta