Tese Renata de Assis 2019
Tese Renata de Assis 2019
Tese Renata de Assis 2019
Faculdade de Direito
2019
III
O progresso é impossível sem mudança; e aqueles
que não conseguem mudar as suas mentes, não
conseguem mudar nada.
George Bernard Shaw
IV
Agradecimentos
Ao Prof. Dr. Pedro Romano Martinez, pela inspiração, sabedoria e gentileza, em nome de
quem agradeço a todos os professores e servidores da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa.
V
Resumo: O presente trabalho, usando o método do direito comparado, analisou a tutela
dos dados pessoais no Brasil e na União Europeia. Partindo de seu conceito, mostrou-se os
riscos que a recolha, uso, tratamento e compartilhamento de dados pessoais trazem para
os direitos humanos fundamentais, e que impulsionaram a criação e aprimoramento de
normas que visam salvaguardar a liberdade de escolha do titular, para que haja maior
simetria na relação jurídica, o que é indispensável na sociedade da informação. Por fim,
foram elencados os elementos institucionais basilares das autoridades de controle, que
têm por missão incentivar os meios de accountability e segurança de dados, e aplicar
penalidades para os casos de incumprimento, visando fomentar, proteger e permitir a
autodeterminação informativa.
Abstract: Using the comparative law method, we have analyzed the protection of
personal data in Brazil and in the European Union, and their legal regimes: RPGD and LGPD.
We have shown the risks to fundamental human rights associated with personal data
processing, which has led to the creation and improvement of norms that aim to safeguard
the freedom of choice of the recipient, ensuring greater information symmetry in the legal
relationship, vital in the information society. Finally, we have shown the basic institutional
elements of the supervisory authorities, whose mission is to encourage accountability and
data security, and to impose penalties for non-compliance in order to foster, protect and
enable informative self-determination.
Key Words: personal data; GDPR; LGPD; data protection authorities; comparative law.
VI
LISTA DE ABREVIATURAS E TERMOS PRÓPRIOS AO TEMA
LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709, de 14/08/2018 - Brasil).
UE – União Europeia
VII
Sumário
Introdução .......................................................................................................................................... 1
Capítulo 1 - Dados Pessoais: o bem a ser protegido .......................................................................... 7
1.1. A sociedade da informação e o avanço tecnológico ............................................................... 7
1.2. Dados pessoais - conceito ....................................................................................................... 9
1.2.1. “Qualquer informação” ................................................................................................. 10
1.2.2. “relativa a” .................................................................................................................... 11
1.2.3. “identificada ou identificável”....................................................................................... 11
1.2.4. “pessoa singular”........................................................................................................... 12
1.3. Necessidade de proteção aos dados pessoais ...................................................................... 13
1.3.1. Os riscos da coleta, uso e armazenamento de dados pessoais ..................................... 13
1.3.2. Liberdade e autonomia .................................................................................................. 17
1.4. Da privacidade à proteção de dados pessoais ...................................................................... 20
1.4.1. Autonomia da proteção de dados pessoais ................................................................... 20
1.4.2. Direitos de Personalidade e proteção de dados pessoais ............................................. 23
1.4.3. Proteção de dados pessoais como direito humano fundamental ................................. 27
Capítulo 2 – Proteção de dados em perspectiva comparada – RGPD e LGPD ................................. 32
2.1. Notas introdutórias, apresentação e entrada em vigor........................................................ 32
2.1.1. Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD)................................................ 32
2.1.2. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).......................................................... 35
2.2. Direitos do titular de dados pessoais .................................................................................... 36
2.2.1. Tratamento lícito e consentimento ............................................................................... 37
2.2.2. Tratamento de categorias especiais de dados pessoais ................................................ 41
2.2.3. Direito de acesso, informação e apagamento de dados ................................................ 44
2.3. Deveres e obrigações dos responsáveis pelo tratamento .................................................... 50
2.3.1. Responsabilidade e medidas de “accountability” .......................................................... 50
2.3.2. Encarregado da proteção de dados ............................................................................... 55
2.3.3. Multas e penalidades ..................................................................................................... 57
Capítulo 3 - Autoridades de proteção de dados e a efetividade do regime jurídico ....................... 61
3.1. Enforcement, compliance e efetividade das normas jurídicas .............................................. 61
3.1.1. Entre o ser e o dever ser: o problema da efetividade das normas jurídicas ................. 61
3.1.2. Compliance e enforcement na proteção de dados ........................................................ 63
3.2. Autoridades europeias de proteção de dados ...................................................................... 65
3.2.1. Autoridade Europeia para a Proteção de Dados (AEPD)................................................ 65
3.2.2. Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) - Portugal ...................................... 69
VIII
3.3. Autoridade brasileira de proteção de dados ........................................................................ 82
3.3.1. Composição e autonomia .............................................................................................. 82
3.3.2. Funções e competências ................................................................................................ 86
3.3.3. Análise comparada e propostas de adequação ............................................................. 89
Conclusão ......................................................................................................................................... 92
Referências bibliográficas ................................................................................................................ 94
IX
Introdução
Apesar dos questionamentos que são levantados, a proteção dos dados pessoais é
importante, pois seu tratamento pode afetar direitos e liberdades fundamentais, entre os
quais a lei brasileira destaca a liberdade, a privacidade e o livre desenvolvimento da
personalidade2.
Por isso, as leis que serão analisadas nesta pesquisa promovem o consentimento
como uma questão de democracia e cidadania, em que o titular volta a ser ouvido e
considerado nas decisões que envolvem os seus dados, seja no uso indiscriminado por
órgãos de governo, seja por empresas privadas para fins econômicos. Procura-se, portanto,
incentivar uma forma de controle individual/social da gestão de dados, que é hoje um
enorme patrimônio.
1
BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
2
Idem, art. 1º.
3
Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à
proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação
desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE - Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), JO
L119 de 4 de maio de 2016
4
CALVÃO, Filipa Urbano. Direito da Proteção de Dados Pessoais: relatório sobre o programa, os conteúdos e
os métodos de ensino da disciplina. Porto: Universidade Católica Editora, p. 41.
5
DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 92.
6
Como, por exemplo, a criação de perfis sociais e de comportamento que podem impedir uma pessoa de
viajar para um país estrangeiro (listas de pessoas perigosas, com associações criminosas ou religiosas
indesejadas), o que acaba afetando não somente sua personalidade, mas o direito de ir e vir.
1
Deve-se equilibrar a assimetria informacional entre titulares e responsáveis, já que
quanto mais aumentam os usos e oportunidades de tratamento de dados, menos o titular
toma conhecimento do que acontece com eles e de como são compartilhados. Como
lembra Alexandre Sousa Pinheiro, apesar do reconhecimento da proteção de dados ter por
base princípios fortes como o da personalidade, da proteção da vida privada e do direito à
autodeterminação7, a verdade é que “o clima sociocultural em que vivemos não favorece
nem a privacy, nem a protecção de dados. Estranha-as”8.
7
PINHEIRO, Alexandre Sousa. Privacy e protecção de dados pessoais: a construção dogmática do direito à
identidade informacional. Lisboa: AAFDL, 2015, p 105.
8
Idem, p. 107.
9
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 37. Citamos in verbis: “O campo dos
direitos do homem — ou, mais precisamente, das normas que declaram, reconhecem, definem, atribuem
direitos ao homem — aparece, certamente, como aquele onde é maior a defasagem entre a posição da norma
e sua efetiva aplicação”.
10
Desde logo, ressaltamos que o objetivo da LGPD e do RGPD não é de garantir sigilo absoluto aos dados
pessoais, mas o controle dos dados por parte do titular, que deve ponderar quando e onde fornecer seus
dados e em troca de quais benefícios.
2
campos, como acesso à informação, desenvolvimento tecnológico/econômico, liberdade
de imprensa, entre outros. Ainda, será ponto central de interpretação de uma lei com
caráter interdisciplinar, onde o Direito precisa de apoio de outras áreas para chegar a
soluções mais razoáveis e efetivas. E, esta função não é restrita à esfera administrativa, já
que sua expertise pode auxiliar o Poder Judiciário a aplicar o normativo de forma mais
estável e adequada.
3
Para desenvolver o tema e problema propostos, a pesquisa teve como objetivos
específicos: investigar o que são dados pessoais e as razões de protegê-los; entender o
caminho legislativo percorrido no âmbito europeu até a entrada em vigor do RGPD; analisar
comparativamente o RGPD e a LGPD; relacionar as características e competências das
autoridades de controle; e propor uma estrutura para a ANPD, a partir da experiência
europeia.
Não queremos com isso dizer que o caminho escolhido é o único que se deva trilhar.
Pelo contrário. Mas é importante que haja caminhos – no plural.
4
elementos que formam o conceito de dados pessoais, as razões pelas quais estes devem
ser protegidos, e o caminho percorrido no âmbito legislativo europeu, passando pelos
remédios civis de reparação de danos à personalidade, até o reconhecimento do status de
direito fundamental.
Dentro do primeiro tópico, destacamos que o RGPD e a LGPD delimitam a base legal
para que o tratamento seja considerado lícito. Como direitos do titular, enfatizamos o
consentimento, que inova ao promover a noção de autodeterminação informativa; o
tratamento de categorias especiais de dados, cuja intervenção do Estado é crucial diante
11
Ronaldo Lemos fala que o RGPD teve um “efeito viral” para outros países, entre os quais está o Brasil. In:
LEMOS, Ronaldo. A GDPR terá um efeito viral. Entrevista concedida à Luiz Gustavo Pacete. Disponível em:
https://www.meioemensagem.com.br/home/midia/2018/05/21/a-gdpr-tera-um-efeito-viral.html, acesso
em 30/09/2019.
5
dos riscos para as liberdades e direitos fundamentais; e o “direito ao esquecimento”, que
não foi trazido de forma explícita pela lei brasileira.
Passamos, então, para a terceira parte do nosso estudo, que analisa os mecanismos
de compliance e enforcement usados para tornar a proteção de dados pessoais mais
efetiva, o que requer a criação, estruturação e bom funcionamento das autoridades de
controle (APD). Usando o método do direito comparado, investigamos a composição
técnica, autonomia e as três principais competências destas autoridades:
consultiva/regulamentar, decisão/controle e promoção/aperfeiçoamento.
Por fim, vamos apontar algumas discussões em torno do modelo escolhido pela
legislação brasileira para a ANPD, e oferecer sugestões de ajuste que ainda podem ser
realizadas, uma vez que a autoridade foi criada, mas ainda não foi estruturada, a partir dos
desafios e perspectivas aprendidos com a experiência europeia.
6
Capítulo 1 - Dados Pessoais: o bem a ser protegido
12
Há quem opine que não se pode falar em sociedade da informação, porque o que circula na internet não é
essencialmente informação, mas comunicação. In: DRUMMOND, Victor. Internet, Privacidade e Dados
Pessoais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, pp. 1 e 2.
13
NEVES, Artur Castro. Como definir a sociedade da informação? pp. 57 a 69. In: COELHO, José Dias. Sociedade
da Informação: o percurso português. Portugal: Edições Sílabo, 2007, p. 58.
14
Idem, p. 68.
15
A título de exemplo, vemos, hoje, aplicações de celular onde se pode contratar produtos ou serviços sem
haver qualquer interação direta entre o contratante e o contratado; órgãos do governo conversando com
cidadãos por meio de chatbots em redes sociais; sistemas de monitoramento automatizados; e inúmeras
informações passando pelo mundo de maneira quase instantânea.
7
De forma simplificada, podemos conceituar sociedade da informação como a
representação de uma estrutura social baseada largamente na geração, processamento e
disseminação de dados16. A centralidade não reside apenas nos conhecimentos, mas na
geração de novos saberes e dispositivos de processamento/comunicação da informação,
“em um ciclo de realimentação cumulativo entre a inovação e o seu uso”17.
16
GUERRA, Sidney. O direito à privacidade na internet: uma discussão da esfera privada no mundo
globalizado. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2004, p. 1.
17
CASTELLS, Manuel. A Sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2000. v. 1, p. 69.
18
PINHEIRO, Alexandre Sousa. op. cit., p. 39.
19
NEVES, Artur Castro. op. cit., p. 57.
20
CASTELLS, Manuel. op. cit., p. 108.
21
NEVES, Artur Castro. op. cit., p. 64.
8
Diante das relações complexas advindas desta nova dinâmica, os problemas
também adquirem caráter multifacetário – podem ocorrer entre Estado e cidadão, cidadão
e poder privado, e entre privados. Ou ainda entre Estados, entre empresas, entre grupos
de pessoas... ao conectar tudo e todos, o alcance da informação (e os problemas que daí
podem advir) é exponencialmente ampliado.
Do conceito se destacam quatro pontos, que são “pilares” para entender que tipo
de informação deve ser considerada como dados pessoais: “qualquer informação”,
“relativa a”, “identificada ou identificável”, “pessoa singular”.
22
COMISSÃO EUROPÉIA. O que são dados pessoais? Acesso em 16/03/2019.
In: https://ec.europa.eu/info/law/law-topic/data-protection/reform/what-personal-data_pt.
23
PINHEIRO, Alexandre Sousa. op. cit., pp. 429 e 430.
24
Artigo 4º/1 do RGPD, op. cit.
9
1.2.1. “Qualquer informação”
O primeiro pilar do conceito de dados pessoais denota sua amplitude, já que ele
abrange dados independentemente de sua natureza ou do conteúdo da informação25,
podendo ser objetivos ou subjetivos, e se apresentar por diversos meios técnicos26. O RGPD
determina, ainda, que a proteção de dados seja neutra em termos tecnológicos e
independente das técnicas utilizadas27 28.
25
Não se requer que a informação seja verdadeira, até porque, por meio do RGPD, é possível pedir a
retificação de dados.
26
GRUPO DE TRABALHO DE PROTEÇÃO DE DADOS DO ARTIGO 29º. Parecer 4/2007 do sobre o conceito de
dados pessoais (01248/07/PT, WP 136), pp. 26 e 27.
Disponível em: https://www.gpdp.gov.mo/uploadfile/others/wp136_pt.pdf, acesso em 30/11/2019.
27
Considerando 15 do RGRP, op. cit.
28
Ou seja, poderá ser considerado dado pessoal a informação em formato alfabético, numérico, gráfico,
fotográfico ou acústico, em papel, armazenada na memória de um computador ou fita cassete. In: GRUPO DE
TRABALHO DE PROTEÇÃO DE DADOS DO ARTIGO 29º, op. cit., p. 8.
29
Idem, p. 4.
30
Ibidem, p. 5.
31
Segundo o Considerando 30 do RGPD, op. cit.: “Estes identificadores podem deixar vestígios que, em
especial quando combinados com identificadores únicos e outras informações recebidas pelos servidores,
podem ser utilizados para a definição de perfis e a identificação das pessoas singulares”.
10
1.2.2. “relativa a”
Um exemplo seria a informação sobre um objeto, como o valor de uma casa, que
aparentemente não diz respeito a uma pessoa, mas que, em alguns casos, pode determinar
a capacidade financeira ou a obrigação do titular de pagar determinados impostos32.
32
GRUPO DE TRABALHO DE PROTEÇÃO DE DADOS DO ARTIGO 29º, op. cit., p. 10.
33
Idem, p. 11.
34
Ibidem, pp. 16 e 17.
35
Ibidem, p. 19.
11
utilizados, levando em conta os custos e o tempo necessário para a identificação, a partir
das tecnologias disponíveis36. Logo, “para que os dados sejam verdadeiramente
anonimizados, a anonimização tem de ser irreversível”37.
Se exclui a proteção a pessoas coletivas39 40, a não ser quando tiverem direta
conexão com dados de pessoas singulares, como no caso de uma empresa ter seu nome
derivado de um nome próprio41, ou correios eletrônicos com dados personalizados, como
([email protected])42.
A proteção dos dados pessoais das pessoas falecidas e dos nascituros43 foi deixada
a critério dos Estados-Membros, seguindo o entendimento de suas legislações internas44.
36
Considerando 26 do RGPD, op. cit.
37
In: https://ec.europa.eu/info/law/law-topic/data-protection/reform/what-personal-data_pt, acesso em
30/11/2019.
38
Considerando 14 do RGPD, op. cit.
39
“Incluindo a denominação, a forma jurídica e os contactos da pessoa coletiva”. In: Considerando 14 do
RGPD, op. cit.
40
Apesar de alguns direitos de personalidade já serem reconhecidos a pessoas coletivas, a interpretação do
TJUE a respeito do artigo 8º/1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia foi no sentido de
restringir às pessoas singulares o direito à proteção de seus dados pessoais. Ressalta-se que alguns Estados-
Membros, antes da entrada em vigor do RGPD, possuíam disposições em seus direitos nacionais em relação
ao tratamento de dados pessoais de pessoas jurídicas, o que tem gerado discussões a respeito de sua
manutenção. Ver mais sobre esta discussão em: CORDEIRO, Antônio Barreto Menezes. O RGPD e a não
proteção de pessoas coletivas. In: Vida Judiciária, maio/junho de 2018, pp. 4 e 5. Também indicamos a leitura
do Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 9 de novembro de 2010, Volker und Markus Schecke
GbR (C-92/09) e Hartmut Eifert (C-93/09) contra Land Hessen.
41
GRUPO DE TRABALHO DE PROTEÇÃO DE DADOS DO ARTIGO 29º, op. cit., p. 25.
42
Outros dados, como o número de registro da empresa ou e-mail genérico (informaçã[email protected]),
não se constituem como dados pessoais.
43
Independentemente da legislação nacional, poderá haver proteção indireta, quando puderem personificar
ou identificar pessoa viva, como no caso de doenças genéticas. Vale também lembrar que a confidencialidade
médica não termina com a morte do paciente.
44
Considerando 27 do RGPD, op. cit.
12
1.3. Necessidade de proteção aos dados pessoais
Até o ano de 2020, estima-se que o valor econômico dos dados dobrará, alcançando
a cifra de 739 mil milhões de euros, o que corresponde a 4% do PIB total da União
45
PINHEIRO, Alexandre Sousa. op. cit., p. 529.
46
COMISSÃO EUROPEIA: Um Mercado Único Digital conectado para todos. Acesso em 8/6/2019.
In: http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:52017DC0228&from=PT.
47
PINHEIRO, Alexandre Sousa. op. cit., p. 126.
13
Europeia48. Estima-se também que o número de profissionais no setor passará de 6 milhões
em 2016, para mais de 10 milhões até 202049.
Podemos dizer que os dados pessoais têm um valor intrínseco (que estudaremos no
tópico a seguir), e um valor econômico, que pode ser obtido tanto pelo uso do dado em si,
como por sua combinação e tratamento. São usados programas que vão “conhecendo” a
pessoa e criando seu perfil para antecipar gostos, como músicas, produtos, serviços e
lugares a frequentar. Seria a “robotização associada à inteligência artificial para controlo
do comportamento humano”53.
Os algoritmos ampliam a capacidade de uso dos dados pessoais, fazendo com que
as empresas tenham maior eficiência na conversão da compra de produtos e serviços que
oferecem, o que acaba criando um círculo virtuoso/vicioso, em que “quem tiver mais
clientes – acumula mais dados – obtém os melhores modelos algoritmos – e conquista o
maior número de novos clientes”54.
48
COMISSÃO EUROPEIA: Um Mercado Único Digital conectado para todos, op. cit.
49
Idem.
50
Por exemplo, câmeras de prédios públicos, pagamentos de pedágios/portagens, estacionamentos/parques,
redes de Wi-Fi e etc.
51
CALVÃO, Filipa Urbano, op. cit., p. 15.
52
A tecnologia de cookies envia dados das páginas navegadas na Internet diretamente para o navegador,
registrando dados como carrinhos de compras, cliques e identificação pessoal, especialmente em redes
sociais. A tecnologia é tão intrusiva que, além de coletar dados a partir do site que a pessoa está visitando,
muitas vezes, ainda coleta dados para terceiros (third party cookies). Em: MEIRELES, Adriana Veloso.
Autonomia e privacidade no ambiente digital. In: Revista Eletrônica de Ciência Política. nº 7, 2016, p. 15.
53
CALVÃO, Filipa Urbano. op. cit., p. 14.
54
DOMINGOS, Pedro. O Algoritmo Mestre: Como a Busca Pelo Algoritmo de Machine Learning Definitivo
Recriará Nosso Mundo. São Paulo: Novatec, 2017, p. 36.
14
Explicando melhor, os dados coletados alimentam o mercado publicitário que, a
partir do acesso aos dados pessoais, constrói perfis e segmentos que posteriormente são
vendidos de acordo com o que a empresa busca. As preferências permitem que os anúncios
sejam específicos, com base nos dados coletados55.
É certo que a recolha de dados pode ser uma troca entre empresas e seus clientes,
como entre um website e seus utilizadores. Quem faz uma busca no Google sabe que alguns
resultados serão anúncios pagos, e que as buscas serão gravadas. Ao usar o sistema, o
usuário decide se vale a troca dos seus dados pela infraestrutura de pesquisa que utiliza59.
55
MEIRELES, Adriana Veloso. op. cit., p. 16.
56
DOMINGOS, Pedro. op. cit.
57
Apesar de o RGPD prever a não sujeição a decisões tomadas exclusivamente com base no tratamento
automatizado de dados (art. 22.º), o que inclui a definição de perfis, estamos diante de questões muito sutis
e de difícil comprovação, ou até mesmo percepção por parte do titular.
58
SILVEIRA, Alessandra e FROUFE, Pedro. From the Internal Market to the citizenship of rights: the protection
of personal data as the jus-fundamental identity question of our times. In: UNIO - EU Law Journal, vol. 4, nº 2,
julho de 2018, p. 10.
59
Idem, p. 11.
60
Ibidem.
61
“São eleitores os brasileiros maiores de 18 anos que se alistarem na forma da lei”. In: BRASIL. Código
Eleitoral - Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965, artigo 4º.
62
As sanções estão previstas no Código Eleitoral Brasileiro op. cit., artigo 7º. Atentamos para o fato de que
existem diferentes decisões judiciais e leis especiais que, de alguma forma, alteram o artigo.
15
O acordo de cooperação técnica63, por meio do qual seriam compartilhados os
nomes dos eleitores, número e situação da inscrição eleitoral, óbitos, nome da mãe e data
de nascimento, ainda permitia à Serasa retransmiti-los a seus clientes – bancos, lojas,
empresas financeiras, entre outros. Assim, poder-se-ia conhecer a situação do devedor,
identificando-o corretamente (caso de duas ou mais pessoas que tenham o mesmo nome,
por exemplo) e facilitando as ações de cobrança, além de evitar fraudes na realização de
negócios ou na concessão de créditos em nome de pessoas já falecidas.
63
Acordo publicado em 23 de julho de 2013, no Diário Oficial da União.
64
Apenas a título de curiosidade, a contrapartida oferecida pela Serasa ao TSE era de 1000 certificados digitais
(segundo informação contida na notícia http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/08/tse-firma-acordo-
para-repassar-dados-de-eleitores-serasa.html), o que nos dias de hoje – 06/05/2019 – equivaleria a algo
como 90 mil euros, por uma base cadastral de 140 milhões de pessoas.
65
In:https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,justica-eleitoral-repassa-dados-de-141-milhoes-de-
brasileiros-para-a-serasa,1061255. Acesso em 30/09/2019.
66
In: https://exame.abril.com.br/tecnologia/tse-anula-repasse-dos-dados-de-eleitores-a-serasa/. Acesso em
30/09/2019.
67
In:www.valor.com.br/politica/3228492/tse-anula-acordo-com-serasa-para-fornecer-dados-de-eleitores.
Acesso em 30/11/2019.
16
Outro exemplo é o da empresa Cambridge Analytica, que foi acusada de utilizar
dados coletados por meio de um teste de personalidade no Facebook para auxiliar
candidatos em processos eleitorais a se comunicar de forma estratégica 68, tanto nas
eleições americanas de 2016, como no referendo sobre a saída da Grã-Bretanha da União
Europeia69. Acontece que o usuário, ao consentir a participar do jogo, só foi informado
sobre o uso de seus dados para estudos acadêmicos e científicos. Assim, se houve ou não
dano, o fato é que a mera suspeita de influência já afeta a confiança e abala a democracia.
68
Até a presente data, os fatos continuam sob investigação, mas o CEO do Facebook compareceu perante o
Congresso americano assumindo a responsabilidade pelo “vazamento” dos dados.
In:https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/entenda-o-escandalo-de-uso-politico-de-dados-que-
derrubou-valor-do-facebook-e-o-colocou-na-mira-de-autoridades.ghtml. Acesso em 30/11/2019.
69
Em 2018, importantes jornais de notícias, como o “The London Observer” e o “The New York Times”
publicaram reportagens alegando que a empresa usou dados de 87 milhões de perfis para criar um programa
a partir de preferências obtidas pela mineração de dados, sem consentimento.
In:https://tek.sapo.pt/noticias/internet/artigos/as-perguntas-e-respostas-mais-importantes-sobre-o-caso-
cambridge-analyticafacebook. Acesso em 30/11/2019.
70
Por exemplo, se existe recolha de dados de um consumidor quando efetua uma compra online, para
aprender seus gostos, é devido a ele o conhecimento deste processo, para que possa escolher utilizar outro
serviço caso não concorde com seus termos.
71
BAKSHY, Eytan; MESSING, Solomon; ADAMIC, Lada A. Exposure to ideologically diverse news and opinion
on Facebook. In: Science, volume 348, nº 6239, 2015, pp. 1130-1132.
17
dos múltiplos tratamentos de dados72, que podem afetar a capacidade dos indivíduos de
guiar sua vida de acordo com suas escolhas, e de como quer ser conhecido pela sociedade.
Essa complexidade, todavia, faz com que o exercício da autonomia deva ser
analisado também a partir de como se formam suas preferências, por meio de quais
influências e relações de poder/hierarquia, já que as escolhas são resultantes da relação
entre preferências pessoais e o contexto em que ocorrem73.
Como parte do núcleo humano que diferencia os indivíduos, os dados pessoais são
meios de se garantir a autonomia pessoal, o que se mostra extremamente relevante nos
dias atuais, em que informações sobre a identidade das pessoas, sua residência, estado de
saúde, orientações sexuais, religiosas e políticas estão passíveis de serem conhecidas e
cruzadas com outras informações - próprias e de seus contatos – para a criação de
72
CALVÃO, Filipa Urbano. op. cit., p. 21.
73
MEIRELES, Adriana Veloso, op. cit., pp. 9 e 10.
74
HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1997, pp. 113-116.
75
COHEN, Jean. Repensando a privacidade: autonomia, identidade e a controvérsia sobre o aborto. Revista
Brasileira de Ciência Política, nº 7, 2012, p. 188.
76
Idem.
77
Ibidem.
18
“perfis”78 ou “uma personalidade para os seus titulares”79, com grande potencial
discriminatório.
Desta forma, Alexandre Sousa Pinheiro, sugere que o termo “proteção de dados
pessoais” está superado, pois o que se quer promover é a “autodeterminação
informacional”87, examinando o tratamento quanto à “adequação” e “pertinência”, e não
78
CALVÃO, Filipa Urbano. op. cit., p. 14. A professora cita exemplos de perfis como “provável ou potencial
criminoso”, “potencial evadido fiscal”, “perfil de consumidor de bens do tipo x e Y”, “potencial atleta de
competição” e “condutor perigoso”.
79
DRUMMOND, Victor. op. cit., p. 36.
80
Idem, p. 37.
81
Explicando melhor, a atual dinâmica social está estruturada no uso de informações do cidadão para
classificá-lo, categorizá-lo (social sorting), e decidir se ele terá acesso a vantagens, como um benefício de
assistência social, bens de consumo e até acesso ao mercado de trabalho.
82
CALVÃO, Filipa Urbano. op. cit., p. 15.
83
Idem, p. 17.
84
DRUMMOND, Victor. op. cit., p. 32.
85
PINHEIRO, Alexandre Sousa. op. cit., p. 797.
86
Idem, p. 799.
87
Ibidem, p. 805.
19
apenas pela fórmula casuística “dado-finalidade”88. Se garantiria a identidade, o livre
exercício da personalidade, a proteção de dados, e a necessidade de intervenção pública
para que haja um exercício seguro e isento das comunicações eletrônicas, em um ambiente
que prima pela confiança e permite aos indivíduos explorar todos os recursos da sociedade
da informação89.
Vários doutrinadores trazem como uma das possíveis origens da proteção de dados
pessoais o conceito de privacy, introduzido nos EUA em 1890, pelo artigo “The right to
privacy” de Samuel Warren e Louis Brandeis, onde se buscou solucionar o problema da
intrusão de tecnologias, como a máquina fotográfica, na esfera privada dos indivíduos, sob
o fundamento do right to be left alone91.
88
Ibidem, pp. 810 e 811.
89
Ibidem, pp. 818 e 819.
90
Como salientamos na introdução, não buscaremos ser exaustivos na reconstrução histórica, mas apenas
demonstrar a diferença da origem da lei europeia e da brasileira.
91
WARREN, Samuel e BRANDEIS, Louis. The right to privacy, pp. 193-220. In: Harvard Law Review, Vol. 4, Nº
5, dezembro de 1890, p. 196.
92
DONEDA, Danilo, op. cit., p. 91.
93
Idem.
94
Ibidem.
20
A semelhança dos conceitos de privacy e proteção de dados pessoais provoca
discussão acadêmica considerável95, tendo os que acreditam que há conexão ou
equivalência96, e outros que entendem que não se fundem dogmaticamente97.
95
A confusão é gerada por suas raízes em comum, pela dificuldade terminológica e de tradução, e pela
“sobreposição” de conceitos e termos em textos acadêmicos, propostas legislativas e estudos
governamentais.
96
Ver, entre outros: GONZALES FUSTER, Gloria. The Emergence of Personal Data Protection as a Fundamental
Right of the EU. Suíça: Springer International Publishing, capítulo 5; GALLERT, Raphael e GUTWIRTH, Serge.
The Legal Construction of Privacy and Data Protection. In: Computer Law and Security Review 522, 2013;
KOKOTT, Juliane e SOBOTTA, Christoph. The distinction between privacy and data protection in the
jurisprudence of the CJEU and the ECtHR. In: International Data Privacy Law, 2013, Vol. 3, Nº. 4.
97
Destacamos, neste sentido, o professor Alexandre Sousa Pinheiro, que dedicou sua tese de doutoramento
ao tema. In: PINHEIRO, Alexandre Sousa. op. cit., p. 39 e 267. Esclarece, contudo, que ambas têm origem nos
direitos de personalidade.
98
DONEDA, Danilo. op. cit., p. 91.
99
WESTIN, Alan F. Privacy and Freedom. New York: Athenum. 1967, p. 7. Do original: “…claim of individuals,
groups or institutions to determine for themselves when, how and to what extent information about them is
communicated to others”.
100
DONEDA, Danilo. op. cit., p. 91
101
PINHEIRO, Alexandre Sousa. op. cit., p. 432.
21
No direito francês, usa-se o conceito de “droit à la vie privée”, previsto no artigo 9.1
do código civil: “todos tem o direito a ter sua vida privada respeitada”102. A partir da
introdução do citado artigo pela reforma de 1970, o Conselho Constitucional francês
definiu diferentes teses relacionadas com a privacidade e proteção de dados, como o sigilo
de informações de saúde e a defesa da intimidade no tocante às relações e preferências
sexuais103.
Enquanto não se tem essa resposta, é válido destacar que a Carta de Direitos
Fundamentais da UE dissociou a proteção de dados pessoais (artigo 8º) do respeito pela
vida privada e familiar (artigo 7º)106. Uma recente publicação do Parlamento Europeu
colocou entre os principais instrumentos legislativos em matéria de proteção de dados os
supracitados artigos, dizendo que trazem direitos fundamentais estreitamente
relacionados, mas distintos107.
102
Tradução livre. Do original : « Chacun a droit au respect de sa vie privée. » In: FRANÇA. Code civil, versão
consolidada de 21 de julho de 2019.
103
Não se trata de proteção absoluta, pois existem exceções, como no caso da imagem de pessoas públicas,
ou da possibilidade de cumprir mandados judiciais em residências. Acesso em 30/06/2019.
In:https://www.vie-publique.fr/decouverte-institutions/citoyen/citoyennete/definition/droits/chaque-
citoyen-t-il-droit-au-respect-vie-privee.html.
104
LEONARDI, Marcel. Tutela e privacidade na internet. São Paulo: Saraiva, 2012. pp. 52-76.
105
KOKOTT, Juliane e SOBOTTA, Christoph, op. cit. pp. 222 e 228.
106
KULHARI, Shraddha. Building-Blocks of a Data Protection Revolution: the uneasy case for blockchain
technology to secure privacy and identity. Alemanha: Nomos Verlagsgesellschaft mbH, 2018, p.24. In:
https://www.jstor.org/stable/j.ctv941qz6.7. Acesso em 30/06/2019.
107
MILT, Kristiina. Proteção dos dados pessoais: Fichas técnicas sobre a União Europeia, 2019, p.1. Acesso em
15/05/2019, in:http://www.europarl.europa.eu/factsheets/pt/sheet/157/protecao-dos-dados-pessoais.
22
A partir do reconhecimento da jusfundamentalidade da proteção de dados, Filipa
Calvão defende sua “emancipação” científica, por apresentar características de direito
público (consagração como direitos fundamentais e estrutura administrativa, como as
autoridades de controle), de direito civil (v.g., a subcontratação), de direito internacional
(transferência de dados) e de direito criminal (tipificação de certas violações de dados
como ilícitos)108.
Seguindo esta linha, neste trabalho, trataremos a proteção de dados como ramo
emancipado para fins acadêmicos109. Entretanto, entendemos que a autonomização do
conceito não põe fim às discussões, especialmente por acreditarmos que se deva
desenvolver proteção mais ampla, como a proposta de “identidade informacional” exposta
no tópico anterior110.
108
CALVÃO, Filipa. op. cit., pp. 32 e 33.
109
O RGPD e a LGPD não mencionam ou fazem referência ao conceito de privacy. Contudo, a lei brasileira
menciona a privacidade em vários artigos, mas nunca os utiliza como sinônimos. Pela leitura da lei, pode-se
argumentar que a proteção de dados tem uma simbiose com a privacidade, mas não confusão terminológica.
110
Proposta de PINHEIRO, Alexandre Sousa, op. cit.
111
PINHEIRO, Alexandre Sousa, op. cit., p. 39.
112
WARREN, Samuel e BRANDEIS, Louis, op. cit., p. 196.
113
TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. In:
TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 23.
23
questões anteriormente resolvidas em outras instâncias, como no âmbito familiar ou
religioso114.
114
DONEDA, Danilo. Os direitos da personalidade no código civil, pp. 71 – 79. In: Revista da Faculdade de
Direito de Campos, Ano VI, nº 6, junho de 2005, p. 75.
115
BEVERLEY-SMITH, Huw; OHLY, Ansgar e LUCAS-SCHLOETTER. Privacy, property and personality: civil law
perspectives on commercial appropriation. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 52.
116
DONEDA, Danilo. Os direitos da personalidade no código civil, op. cit., p. 75.
117
BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. São Paulo: Saraiva, 2015, capítulo I.
118
DRUMMOND, Victor. op. cit., pp. 15 e 16.
119
JABUR, Gilberto Haddad. Liberdade de pensamento e direito à vida privada. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000, p. 28.
120
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: parte geral, vol. 1, 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 151.
121
GODINHO, Adriano Marteleto. Pessoa, personalidade e direitos da personalidade, pp. 9-40. In: PHRONESIS:
Revista do Curso de Direito da FEAD, nº 5, 2009, p. 19.
122
Idem, p. 11.
123
TEPEDINO, Gustavo. op. cit.
124
Artigos 11 a 21. In: BRASIL. Código Civil, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
24
Constituição de 1988, que garante a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e
imagem125. São considerados como direitos intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo
sofrer limitação voluntária126.
125
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988.
126
BRASIL. Código Civil, op. cit.
127
PORTUGAL/ASSEMBLEIA CONSTITUINTE. Constituição da República Portuguesa de 1976, VII Revisão
Constitucional, artigo 26.
128
Tribunal Constitucional Português, Acórdão nº 6/84 de 18 de janeiro.
In: https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19840006.html, acesso em 19/11/2019.
129
PORTUGAL. Código Civil, DL n.º 47344/66, de 25 de novembro.
130
SOUSA, Rabindranath Capelo. O Direito Geral de Personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 106.
25
menos parcialmente) em disponibilidade131. Deve-se partir da noção de autonomia, que
confere poder de auto-regulamentação dos interesses privados. A regra é a impossibilidade
de limitação voluntária, mas exceções são concedidas para preservar o livre
desenvolvimento132.
Ademais, por serem direitos afetos às condições existenciais humanas, nem sempre
sua violação terá repercussões econômicas ou patrimoniais. Logo, outras formas de
reparação, como o direito de resposta ou a indenização pelo dano não-patrimonial (ou
moral) se mostram compulsórias134. Ou seja, a amplitude dos direitos da personalidade
projeta sua tutela para além da visão da responsabilidade civil.
Sem embargo, estes remédios civis, que preveem tutela apenas em termos
negativos, no sentido de repelir ingerências externas à livre determinação do sujeito, não
são suficientes136. Não se pode conter em setores estanques os direitos humanos
131
CORDEIRO, António Menezes. Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo III, 2ª ed. Lisboa:
Almedina, 2007, p. 115.
132
GODINHO, Adriano Marteleto. op. cit., p. 22.
133
Idem.
134
BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade: critérios de
ponderação. In: Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, janeiro/março de 2004, p. 12.
135
BRASIL. Código Civil, op. cit.
136
TEPEDINO, Gustavo, op. cit.
26
fundamentais137 e as situações jurídicas de direito privado, pois a pessoa requer proteção
integrada, que supere esta dicotomia e promova verdadeira dignidade138.
Por mais que se fale de tutela geral da personalidade, diferentes projeções ou riscos
específicos de lesões faz com que se procure autonomizar direitos que requerem defesa
autônoma139. À título de exemplo, a fotografia motivou a formação da privacy, enquanto o
computador, a internet, e os perigos de “objectualização” da pessoa levaram à criação do
direito de proteção dos dados pessoais140.
137
Escolhemos usar o termo “Direitos Humanos fundamentais”, tal como preconizado por Perez Luño
(Derechos Humanos, Estado de Derechos y Constitución, 10. ed. Madrid: Tecnos, 2010) e Herrera Flores
(Reinvención Derechos Humanos. Madrid: Atrapasuenos, 2008), por entendermos que o ser humano deve ser
protegido e promovido onde quer que esteja, estabelecendo-se uma doutrina que aceita o uso das
expressões – direitos humanos e direitos fundamentais - como similares, já que tem a mesma pretensão de
proteção dos bens mais caros aos indivíduos e à sociedade.
138
TEPEDINO, Gustavo, op. cit.
139
GUIMARÃES, Maria Raquel. A tutela da pessoa e da sua personalidade: algumas questões relativas aos
direitos à imagem, à reserva da vida privada e à reserva da pessoa íntima ou direito ao carácter. In: CENTRO
DE ESTUDOS JUDICIÁRIOS. A tutela geral e especial da personalidade humana, Lisboa: Centro de Estudos
Judiciários, 2017, p. 26
140
PINHEIRO, Alexandre Sousa. op. cit., p. 823.
141
LINDEN RUARO, Regina e RODRIGUES, Daniel Piñeiro. O direito à proteção de dados pessoais e a
privacidade. In: Revista da Faculdade de Direito – UFPR, Curitiba, nº 53, 2011, p. 55.
142
Em decisões posteriores, se utilizou o argumento de que o indivíduo poderia escolher como se representar
na sociedade, abrangendo o direito à imagem. In: RUARO, Regina L. e RODRIGUES, Daniel P., op. cit.
27
de cunho pessoal, incluindo práticas religiosas e políticas. A Corte decidiu pela
inconstitucionalidade da medida, tendo como um dos seus argumentos a divergência de
finalidade. Foi, então, reconhecido o direito à autodeterminação como a faculdade dos
indivíduos de decidir, por eles mesmos, quando e dentro de quais limites seus dados
pessoais poderiam ser utilizados143.
Este artigo foi usado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) para
defender a proteção de dados pessoais146, se diferenciando da solução germânica que
partiu do princípio da dignidade147. A Jurisprudência do TEDH foi importante para ampliar
a visão do que é vida privada, nela enquadrando, ou a partir dela evoluindo, para as
informações pessoais. Além disso, previu não somente a obrigação dos Estados de se
absterem de praticar violações aos direitos previstos no artigo 8.º, mas também impôs, em
certos casos, a obrigação de assegurá-los148.
143
Idem.
144
PINHEIRO, Alexandre Sousa, op. cit., p. 827.
145
In: https://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf, acesso em 30/09/2019.
146
CONSELHO DA EUROPA. Manual da Legislação Europeia sobre Proteção de Dados.
In: https://www.echr.coe.int/Documents/Handbook_data_protection_POR.pdf. Acesso em 30/6/2019, p. 15.
147
PINHEIRO, Alexandre Sousa. op. cit., p. 546.
148
Ver, por exemplo, TEDH, acórdão I. c. Finlândia, de 17 de julho de 2008, petição n.º 20511/03; TEDH,
acórdão K.U. c. Finlândia, de 2 de dezembro de 2008, petição n.º 2872/02.
28
“convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada
e origem étnica”149.
Contudo, apesar de ter sido um grande avanço a previsão constitucional ainda nos
anos de 1970, a proteção de dados pessoais ficou condicionada à legislação ordinária, que
só foi completada em 1991 (Lei nº 10/91, revogada pela Lei n.º 67/98), quando foram
definidos dados pessoais e as condições em que eles poderiam ser tratados 152.
149
Artigo 35 da Constituição portuguesa, op. cit. Estes dados, que hoje chamamos de sensíveis, afora o
consentimento, poderiam receber tratamento com autorização dada por lei, desde que houvesse garantias
de não discriminação, ou anonimização dos dados.
150
TEIXEIRA, Guilherme da Fonseca. Identidade e autodeterminação informacional no novo Regulamento
Geral de Proteção de Dados: a inevitável privatização dos deveres estaduais de proteção, pp. 11-38. In:
Católica Law Review, VOLUME II, nº 1, janeiro 2018, p. 20.
151
Idem, p. 21.
152
Segundo o ortigo 35.2 da Constituição portuguesa, op. cit.: “A lei define o conceito de dados pessoais, bem
como as condições aplicáveis ao seu tratamento automatizado, conexão, transmissão e utilização, e garante
a sua protecção, designadamente através de entidade administrativa independente”.
153
Ver referências em: CONSELHO DA EUROPA. Manual da Legislação Europeia sobre Proteção de Dados. op.
cit., p.16.
154
CONSELHO DA EUROPA. Convenção para a Proteção das Pessoas relativamente ao Tratamento
Automatizado de Dados de Caráter Pessoal, STCE n.º 108, 1981. Vale lembrar que a Convenção se aplica ao
tratamento realizado pelo setor público e privado, além do fluxo transfronteiriço de dados pessoais.
155
Em 15 de junho de 1999, a Convenção foi alterada para permitir a adesão da UE – CdE (STCE n.º 108):
artigo 23.º, n.º 2, na redação em vigor. Em 2001, foi adotado um protocolo adicional à Convenção que
estabelece disposições sobre fluxos transfronteiriços de dados para Estados não signatários, os chamados
países terceiros, e sobre a criação obrigatória de autoridades nacionais de controle de proteção de dados.
156
PARLAMENTO EUROPEU. Fichas técnicas sobre a União Europeia, 2019, acesso em 30/09/2019.
In:http://www.europarl.europa.eu/factsheets/pt/sheet/157/protecao-dos-dados-pessoais.
29
Fala-se também em adequação, pertinência, proporcionalidade e exatidão de dados, além
do direito do titular a informações e retificação.
Todavia, vale lembrar que nem mesmo os direitos humanos são absolutos, já que
vivemos em um mundo plural e diverso, de relações complexas, em que a conciliação se
torna necessária162. No caso dos dados pessoais, temos um claro jogo de interesses entre
os titulares e as empresas privadas e órgãos públicos, em diferentes atividades, como
comércio, controle policial e fiscal e monitoramento de serviços públicos.
Neste sentido, o TJUE já decidiu que a proteção assegurada pelo artigo 8.º da Carta
“não é uma prerrogativa absoluta, mas deve ser tomada em consideração relativamente à
sua função na sociedade”163. O artigo 52.1 do mesmo texto legal permite restrições ao
157
Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, JO de 18 de dezembro de 2000, C 326, 2012.
158
Ver artigo 6.º/1, do Tratado da União Europeia, JO de 7 de junho de 2016, C 202/13.
159
CONSELHO DA EUROPA. Manual da Legislação Europeia sobre Proteção de Dados. op. cit, p. 21.
160
Artigo 8.3 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, op. cit., in verbis: “(...) O cumprimento
destas regras fica sujeito a fiscalização por parte de uma autoridade independente”.
161
Um direito humano fundamental tem características próprias que os distinguem de outros direitos:
universalidade; fundamentalidade; abstração; moralidade; e prioridade. In: ALEXY, Robert. Teoria Discursiva
do Direito. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014, p. 111.
162
Idem.
163
Ver, por exemplo: TJUE, Acórdão de 9/11/2010 nos processos apensos C-92/09 e C-93/09, Volker und
Markus Schecke GbR e Hartmut Eifert/Land Hessen, n. 48. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-
content/PT/ALL/?uri=CELEX:62009CJ0092. Acesso em 29/09/2019.
30
exercício de direitos, desde que sejam proporcionais e previstas em lei, e não subtraiam ou
desvirtuem seu conteúdo essencial164.
164
CONSELHO DA EUROPA. Manual da Legislação Europeia sobre Proteção de Dados, op. cit., p. 23.
31
Capítulo 2 – Proteção de dados em perspectiva comparada – RGPD e LGPD
Tanto o RGPD como a LGPD são bastante complexos, e, por esta razão, este estudo
não terá como objetivo esgotar a discussão a respeito deles, mas se disporá a oferecer
subsídios para a compreensão de seus principais pontos, com ênfase nos temas
relacionados à atuação da autoridade de controle. Para que a análise comparada possa ser
mais precisa e útil, serão apreciados os mesmos tópicos em relação aos dois normativos:
considerações introdutórias (2.1); direitos assegurados ao titular (2.2); e deveres e
obrigações dos responsáveis pelo tratamento (2.3).
165
Convenção 108 para a Proteção das Pessoas relativamente ao Tratamento Automatizado de Dados de
Caráter Pessoal, op. cit.
32
Ou ainda, diante de uma linguagem mais fluida e abrangente, que é comum em um
tratado, cujos signatários têm diferentes sistemas jurídicos, pode haver diferenças
pronunciadas de execução166. E, foi isso que aconteceu com a Convenção 108, já que nem
todos os membros tinham legislação específica sobre proteção de dados pessoais, ou,
tendo, ofereciam graus de tutela deficiente em comparação aos objetivos do acordo.
Para resolver a questão, foi adotada a Diretiva 95/46/CE relativa à proteção das
pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação
desses dados – “Diretiva de Proteção de Dados” (JO L 281, 1995), cujo objetivo era
harmonizar e promover igualdade no tratamento de dados pessoais no âmbito europeu.
Acontece que, mesmo após sua adoção, a proteção de dados pessoais e a aplicação
da Convenção 108 mantiveram-se irregular entre os Estados-membros, o que penalizava o
mercado interno e gerava insegurança jurídica168. Um instrumento jurídico mais cogente
166
WEISS, Edith Brown e JACOBSON, Harold K. Engaging Countries: strengthening Compliance with
international environmental accords. Cambridge: MIT Press, 2000, pp. 1 e 2.
167
Outros normativos foram aprovados ao longo dos danos, sobre questões específicas, como a Decisão
2000/520/CE, de 26 de Julho, relativa ao nível de proteção assegurado pelos princípios de «porto seguro»,
para compatibilizar a legislação setorial e a auto regulação norte-americanas com a legislação europeia; o
Regulamento (CE) n.º 45/2001 relativo ao tratamento de dados pessoais pelas instituições e pelos órgãos
comunitários e à livre circulação desses dados; a Diretiva 2002/58/CE relativa ao tratamento de dados
pessoais no setor das comunicações electrónicas (alterada pela Diretiva 2006/24/CE e Diretiva 2009/136/CE);
e a Decisão-Quadro 2008/977/JAI do Conselho, relativa à proteção dos dados pessoais no âmbito da
cooperação policial e judiciária em matéria penal.
168
EUROPEAN DATA PROTECTION SUPERVISOR. The History of the General Data Protection Regulation. In:
https://edps.europa.eu/data-protection/data-protection/legislation/history-general-data-protection-
regulation-en, acesso em 21/10/2019.
33
era necessário, e, em 2016, foi aprovado o Regulamento Geral sobre a Proteção de
Dados169, que entrou em vigor em maio de 2018170.
Pode-se dizer que p RGPD é uma evolução da Diretiva 95/46/CE, fruto de um longo
processo democrático, o que faz com que parte de suas disposições já estive prevista na
Diretiva revogada. Traz, sem embargo, inovações, como conceitos e garantias
fundamentais (artigos 1 - 11); e definições172, especialmente com o uso dos considerandos
como guias de interpretação173.
169
Neste tópico vamos focar a atenção ao RGPD. Contudo, cumpre assinalar que também existem duas
diretivas europeias sobre aspectos específicos da proteção de dados, que são: Diretiva (UE) 2016/680, que
diz respeito ao tratamento de dados pessoais pelas autoridades competentes para efeitos de prevenção,
investigação, detecção ou repressão de infrações penais ou execução de sanções penais; e a Diretiva (UE)
2016/681 que delimita a utilização dos dados dos registos de identificação dos passageiros [PNR] para
repressão das infrações terroristas e da criminalidade grave.
170
É possível visualizar os normativos que antecederam o RGPD em forma de gráfico, associados a milestones
do desenvolvimento tecnológico, o que facilita a visão e entendimento do leitor, acesso em 21/10/2019, in:
https://iapp.org/resources/article/a-brief-history-of-the-general-data-protection-regulation.
171
PINHEIRO, Alexandre Sousa (coord.). Comentário ao Regulamento Geral de Protecção de Dados. Coimbra:
Edições Almedina, 2018, p. 21.
172
Os conceitos-chave são definidos principalmente no artigo 4º. Alguns já estavam na Diretiva 95/46/CE, e
outros foram aprimorados pelo novo regulamento. A Diretiva tinha 8 definições em seu artigo 2º, e o RGPD
tem 26, entre elas, a de autoridade de controle.
173
Os considerandos são muito úteis para a interpretação e compreensão do RGPD, ajudando a explicar e
contextualizar seus elementos. Mais sobre em: FAZENDEIRO, Ana. Regulamento Geral sobre a proteção de
dados. Portugal: Almedina, 2 ed., 2018, p. 10.
174
POLIDO, Fabrício B. Pasquot et al. GDPR e suas repercussões no direito brasileiro: Primeiras impressões
de análise comparativa. Brasil: IRIS, 2018, p. 8.
34
2.1.2. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD)
Diferentemente do regime europeu que, como vimos, foi sendo moldado ao longo
do tempo, por convenções e pela Diretiva 95/46/CE, a LGPD representa inovação no direito
brasileiro, que apenas mencionava a tutela de informações pessoais na lei de habeas
data176 e em alguns aspectos da legislação consumerista177.
O termo “dados pessoais” foi utilizado pela Lei 12.965, de 23 de abril de 2014, que
estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet178, tendo como
um dos seus princípios a proteção dos dados pessoais, “na forma da lei”. Logo, a eficácia
desta proteção ficou condicionada à positivação de um novo instrumento jurídico.
175
A LGPD foi discutida durante 8 anos no Brasil, mas não de forma ininterrupta. Foram realizadas 2 consultas
e 13 audiências públicas para aprofundar as discussões de dois projetos de lei (PLs 4060/12 e 5276/16) que
tramitavam na Câmara Legislativa Federal. Durante o mesmo período tramitava outro Projeto no Senado, o
PLS 330/13, que contou com 2 audiências públicas e acabou sendo arquivado. Ver mais sobre o histórico
legislativo em: MONTEIRO, Renato Leite et al. Lei Geral de Proteção de Dados e GDPR: histórico, análise e
impactos, acesso em 04/11/2019.
In:https://www.academia.edu/38940887/Lei_Geral_de_Prote%C3%A7%C3%A3o_de_Dados_e_GDPR_hist%
C3%B3rico_an%C3%A1lise_e_impactos.
176
A garantia do habeas data está presente na Constituição brasileira de 1988, op. cit., artigo 5º, LXXII. Esta
ação constitucional tem o propósito de garantir ao cidadão o acesso e retificação de seus dados que estejam
armazenados em registros governamentais e bancos de dados de caráter público. Tem, contudo, âmbito de
aplicação bastante restrito. Foi regulamentado pela Lei nº 9.507/1997.
177
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 - Código de Defesa do Consumidor. Em seu artigo 43,
disciplina os bancos de dados e cadastro de consumidores, especialmente no que tange à coleta de
informações sobre inadimplemento para fins de concessão de crédito. Garante acesso a informações
existentes em cadastros, fichas, registros e dados de consumo, bem como sobre as suas fontes. Os dados
devem ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil compreensão, podendo haver retificação.
178
BRASIL. Lei 12.965, de 23 de abril de 2014 – Marco Civil da Internet.
179
Em relação à coleta, guarda, armazenamento e tratamento de dados pessoais, foi determinado que os
provedores e aplicações de internet deverão prestar informações acerca do cumprimento legal, e que na
provisão de aplicações de internet, é vedada a guarda dos registros de acesso a outras aplicações sem que
consentimento do titular, bem como a guarda de dados pessoais que sejam excessivos em relação à
finalidade.
35
dados, a requerimento, ou mediante término da relação entre as partes, ressalvadas as
hipóteses de guarda obrigatória previstas na Lei180.
180
A Seção II da lei estabeleceu que os dados pessoais e as comunicações privadas devem atender à
preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem, sendo necessária ordem judicial para a
quebra de seu sigilo. Contudo, dados como qualificação pessoal, filiação e endereço podem ser requisitados
por autoridades administrativas com competência legal.
181
Lei nº 13.709, op. cit., artigo 3°.
182
O Direito à privacidade está previsto na Constituição brasileira, op. cit., artigo 5º, incisos X e XI.
183
Lei nº 13.709, op. cit., artigo 1°.
184
O procedimento de emenda constitucional está previsto no artigo 60 da Constituição brasileira, op. cit., e
requer que a proposta seja discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, sendo
aprovada por três quintos dos votos dos respectivos membros.
185
Existe um capítulo adicional dedicado à alteração pontuais da Lei nº 12.965, op. cit.
36
que os recolhem e tratam. São dois pilares em sintonia: um de componente econômico,
outro de proteção de direitos e liberdades fundamentais186.
Dentre eles, o consentimento se destaca por trazer o titular de volta para o centro
da relação jurídica, ampliando o respeito pela vontade da pessoa natural, lhe delegando a
ponderação de valores entre a necessidade, adequação e proporcionalidade do
tratamento,189 e os benefícios que ele recebe em troca.
186
PINHEIRO, Alexandre Sousa (coord.), op. cit., p. 11.
187
TEIXEIRA, Guilherme da Fonseca, op. cit., p. 21.
188
Artigo 6.1 do RGPD, op. cit.
189
PINHEIRO, Alexandre Sousa (coord.), op. cit., pp. 244 e 245.
37
inequívoco, que os dados pessoais que lhe dizem respeito sejam objeto de
tratamento.
Finalmente, cumpre salientar que, por ser uma manifestação de vontade livre, o
consentimento pode ser retirado a qualquer momento pelo titular, o que não compromete
a licitude do uso anterior194. O importante é que “o consentimento deve ser tão fácil de
retirar quanto de dar”195, para que não se criem situações onde a burocracia e dificuldade
de acesso acabem legitimando tratamento com o qual o titular deixou de concordar.
190
Artigo 7.1 do RGPD, op. cit.
191
PINHEIRO, Alexandre Sousa (coord.), op. cit., p. 167.
192
Vide artigo 7.4 do RGPD, op. cit.
193
MARTINEZ, Pedro Romano. Apresentação proferida em palestra.
194
Artigo 7.3 do RGPD, op. cit.
195
Idem.
38
b. Tratamento Lícito e consentimento na LGPD
A LGPD traz quatro hipóteses de tratamento lícito a mais do que RGPD, sendo as
demais bastante semelhantes. Em comum, tem-se: consentimento; execução de contrato
ou de procedimentos preliminares, a pedido do titular; cumprimento de obrigação legal ou
regulatória; proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiros; para
atender interesses legítimos196, exceto quando prevalecerem direitos e liberdades
fundamentais do titular197.
196
A LGPD adicionou a hipótese legal de tratamento para o exercício regular de direitos em processo judicial,
administrativo ou arbitral. Não destacaremos a análise desta questão porque, apesar de ser hipótese não
prevista nominalmente no artigo 6º do RGPD, ela aparece em seu texto, especialmente como exceção à
proibição de tratamento dos dados sensíveis e em derrogações, como o direito a ser esquecido e a limitação
de tratamento. Ainda, a autorização para o uso de dados em processos no RGPD pode ser entendida dentro
da permissiva de uso para fins de interesses legítimos.
197
Lei nº 13.709, op. cit., artigo 7º.
198
Artigo 9 do RGPD, op. cit.
39
de saúde”, e se entre eles poder-se-ia incluir as seguradoras ou entidades que controlam
os planos de saúde privados, o que poderia ter imenso impacto em direitos fundamentais.
Outro ponto que chama atenção é a inclusão da “proteção do crédito” dentro dos
tipos lícitos de tratamento de dados pessoais, em razão do lobby efetuado pelas entidades
privadas que atuam na área199.
199
São exemplos de entidades de proteção ao crédito: Boa Vista Serviços, administradora do SCPC, que
fornece informações de restrição cadastral através do seu banco de dados e calcula a pontuação do tipo
“score de crédito”. Estes dados são utilizados largamente em processos de análise e de concessão de crédito
aos consumidores e como restrição ao uso de cheques; CCF– Cadastro de Emitentes de Cheques sem Fundos
do Banco Central, cujo banco de dados contém nomes das pessoas que emitem cheques sem ter saldo em
sua conta para o pagamento; SERASA Experian, empresa privada que possui um dos maiores bancos de dados
do mundo e que presta serviços de interesse geral informações de dívidas vencidas e não pagas, registros de
protesto de título, ações judiciais, etc.; SPC Brasil, que é um banco de dados privado de informações de
crédito, alimentado por associações comerciais e câmaras de dirigentes lojistas do país que são filiadas à
Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas.
200
Lei nº 13.709, op. cit., artigo 5º/XII.
201
Apesar de não se mencionar no conceito que o consentimento é uma manifestação “de vontade”, o que
entendemos fortalecer a ideia de aceitação voluntária, tal atributo foi definido no princípio da finalidade,
aplicável ao consentimento, segundo o qual o tratamento deve ter propósitos legítimos, específicos,
explícitos e informados ao titular, sem possibilidade de uso posterior de forma incompatível com essas
finalidades. In: Lei nº 13.709, op. cit., artigo 6º/I.
202
Lei nº 13.709, op. cit., artigo 6º/II: “Artigo 6º As atividades de tratamento de dados pessoais deverão
observar a boa-fé e os seguintes princípios: (...) II: adequação: compatibilidade do tratamento com as
finalidades informadas ao titular, de acordo com o contexto do tratamento”.
203
Lei nº 13.709, op. cit., artigo 6º/III: “Artigo 6º As atividades de tratamento de dados pessoais deverão
observar a boa-fé e os seguintes princípios: (...) III: necessidade: limitação do tratamento ao mínimo
necessário para a realização de suas finalidades, com abrangência dos dados pertinentes, proporcionais e
não excessivos em relação às finalidades do tratamento de dados”.
204
Lei nº 13.709, op. cit., artigo 9º, §1º.
205
Lei nº 13.709, op. cit., artigo 8º, §5º.
40
2.2.2. Tratamento de categorias especiais de dados pessoais
O RGPD destaca uma categoria especial de dados pessoais, que são mais conhecidos
como “dados sensíveis”206. Vejamos:
A derrogação cuja categoria é a mais ampla e que pode gerar dúvidas no caso
concreto é a do interesse público relevante, que pode abranger questões sociais como
206
Ver também artigo 4.º, nº 13, 14 e 15 e considerandos 51 a 56 do RGPD, op. cit.
207
Em relação aos dados genéticos, por exemplo, nem mesmo dizem respeito somente ao titular, abrangendo
também a família consanguínea. In: PINHEIRO, Alexandre Sousa (coord.), op. cit., p. 237.
208
Artigo 9.º do RGPD, op. cit.
209
PINHEIRO, Alexandre Sousa (coord.), op. cit., p. 238.
210
Esta possibilidade pode ser excluída por direito da União ou de um Estado-Membro. In: artigo 9.2, a, do
RGPD, op. cit.
211
Dentre elas, medidas de medicina preventiva ou avaliação da capacidade de trabalho do empregado.
212
Inclui contrato com profissional de saúde.
213
Considerando 51 do RGPD, op. cit.
214
MARTINEZ, Pedro Martinez, op. cit.
41
pensões, segurança pública, e saúde (prevenção ou controle de doenças transmissíveis e
outras ameaças graves à saúde215)216.
Especificamente neste último caso, o Regulamento prevê que não deverão ser
utilizados dados de saúde para outros fins por terceiros, como empregadores, companhias
de seguros e entidades bancárias217. Se aplica aqui o princípio da finalidade em acepção
estrita, limitando o tratamento à objetivos adequados, pertinentes e estritamente
vinculados aos fins da recolha («minimização dos dados»)218.
Em outro parecer220, o mesmo órgão afirmou que os dados médicos obtidos pela
realização de exames de trabalhadores ou candidatos a emprego mantém a relação de
confidencialidade entre médico e paciente221, devendo ser franqueada ao empregador
somente a aptidão ou não para exercício da atividade222.
Ainda assim, o tratamento deve ser limitado ao estritamente necessário para os fins
perseguidos, não podendo ser exigido exames e testes sem vínculo com a função exercida.
215
Segundo o considerando 54 do RGPD, op. cit., a noção de «saúde pública» deverá ser interpretada de
acordo com a definição constante do Regulamento (CE) n° 1338/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho.
216
Considerando 52 do RGPD, op. cit.
217
Considerando 56 do RGPD, op. cit.
218
Artigo 5.º/1/c do RGPD, op. cit.
219
Deliberação n.º 1704/2015, aplicável aos tratamentos de dados pessoais efetuados no âmbito de
Investigação Clínica, acesso em 21/10/2019.
In: https://www.cnpd.pt/bin/orientacoes/DEL_2015_InvestClinica.pdf.
220
Deliberação n.º 890 /2010, aplicável aos tratamentos de dados pessoais com a finalidade de medicina
preventiva e curativa no âmbito dos controlos de substâncias psicoactivas efectuados a trabalhadores. In:
https://www.cnpd.pt/bin/orientacoes/20_890_2010.pdf. Acesso em 21/10/2019.
221
Segundo o artigo 17/1/b do Código do Trabalho de Portugal (Lei n.º 7/2009, publicada no Diário da
República n.º 30/2009, Série I de 2009-02-12), é proibido exigir informações relativas à vida privada, saúde
ou estado de gravidez, com exceção da realização ou apresentação de testes ou exames médicos para
proteger a segurança do trabalhador ou de terceiros, em atividades que os justifiquem.
222
podendo ainda o titular controlar os dados que forneceu (conhecê-los e saber os fins da recolha).
42
Como exemplo, a CNPD já decidiu que o tratamento de dados como raça e/ou origem
étnica é excessivo, inadequado e não pertinente no âmbito da medicina do trabalho223.
Isto posto, a proteção dos dados sensíveis abrange também as situações em que
houve negativa de consentimento por parte do titular, não podendo haver discriminação
em razão dela (negativa), a não ser que situação excepcional justifique o tratamento224.
Artigo 5º. II - dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou
étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a
organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à
saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a
uma pessoa natural.
Caso especial é o relacionado aos dados de saúde. No Brasil, a saúde pública não é
capaz de atender a contento toda a população, o que faz com que um número expressivo
de cidadãos recorra à contratação de serviços de saúde complementar. Por isso, a
possibilidade de tratamento de dados de saúde pelas empresas que prestam este serviço
causou grande discussão, pelo potencial dano discriminatório (análises de risco e exclusão
de beneficiários).
223
Deliberação n.º 840/2010, aplicável aos tratamentos de dados no âmbito da gestão da informação dos
serviços de segurança e saúde no trabalho, acesso em 21/10/2019.
In: https://www.cnpd.pt/bin/orientacoes/DEL_840_2010_MED_trabalho_actualizada.pdf.
224
PINHEIRO, Alexandre Sousa (coord.), op. cit., p. 240.
225
Artigo 9º do RGPD, op. cit.
43
Como já mencionamos, a LGPD passou por duas alterações antes de chegar na
versão atual. Inicialmente, permitia a comunicação de dados de saúde com objetivo de
obter vantagem econômica caso houvesse aquiescência do titular no pedido de
portabilidade. Na primeira revisão da norma, ocorrida em 2018, adicionou-se à essa
possibilidade o tratamento diante da “necessidade de comunicação para a adequada
prestação de serviços de saúde suplementar”226.
226
Redação dada pela Medida Provisória nº 869, de 2018.
227
Tanto no caso de portabilidade solicitada pelo titular, como para permitir compartilhamento de transações
financeiras e administrativas resultantes do uso e da prestação dos serviços de saúde e assistência
farmacêutica, incluídos os serviços auxiliares de diagnose e terapia.
228
Lei nº 13.709, op. cit., artigo 11, § 5º.
44
solicitar a retificação, apagamento ou limitação do tratamento, cabendo reclamação à
autoridade de controle se houver descumprimento229.
Esse dever de comunicação entre as partes é forçoso para o exercício dos demais
direitos do titular, já que estamos diante de uma relação onde não há paridade de forças230.
Por isso, as informações devem ser oferecidas de forma concisa e inteligível231, “sem
demora injustificada”232, no prazo de um mês, prorrogável em razão da complexidade e/ou
volume de pedidos.
Além disso, o titular deve ser informado dos seus direitos de retificação e
apagamento de dados, além da limitação e/ou oposição ao tratamento.
229
Artigo 15.1 do RGPD, op. cit.
230
PINHEIRO, Alexandre Sousa (coord.), op. cit., p. 359.
231
Artigo 12.1 do RGPD, op. cit.
232
Artigo 12.3 do RGPD, op. cit.
233
Artigo 12.5 do RGPD, op. cit.
234
Artigo 12.6 do RGPD, op. cit.
45
ou, no caso da oposição, ser ouvido quando o tratamento se basear no interesse público,
ou visar a comercialização direta, incluindo a definição de perfis235 236.
Neste viés, o direito a ser esquecido foi mencionado em diferentes decisões judiciais
na União Europeia, como no caso Google SL e Google Inc versus Agencia Española de
Protección de Datos e Mario Costeja González, de 2014. Nele, se discutiu a possibilidade
de o titular exigir a não associação de seu nome, nos motores de busca, com matérias
jornalísticas prejudiciais à sua imagem.
235
Artigos 18 e 21 do RGPD, op. cit.
236
Segundo o artigo 4.4 do RGPD, pode ser considerado como definição de perfil: “qualquer forma de
tratamento automatizado de dados pessoais que consista em utilizar esses dados pessoais para avaliar certos
aspetos pessoais de uma pessoa singular, nomeadamente para analisar ou prever aspetos relacionados com
o seu desempenho profissional, a sua situação económica, saúde, preferências pessoais, interesses,
fiabilidade, comportamento, localização ou deslocações”. Lembramos que existem restrições a decisões
automatizadas, que usam “perfis” para decidir, o acesso do titular a bens, produtos ou serviços sem que se
tenha uma ponderação ética. São exceções à sua proibição: necessidade para celebração ou execução de um
contrato; presença de interesses legítimos e salvaguarda de direitos e liberdades; consentimento. Nestes
casos, por exemplo, poderia haver a não contratação de uma pessoa pelo software/algoritmo ter previsto
desempenho profissional abaixo da média, ou negativa de acesso à um seguro pela análise de risco de saúde
totalmente automatizada.
237
Inclui os casos onde o tratamento deixou de ser necessário para a finalidade de recolha e no caso de não
mais se justificarem os interesses legítimos prevalecentes do responsável, ou ainda nos casos de oferta de
serviços da sociedade da informação a crianças. In: Artigo 17.1 do RGPD, op. cit.
238
Por exemplo, exercício da autoridade pública, saúde pública e arquivo de interesse público.
239
Artigo 17.3 do RGPD, op. cit.
240
Seriam dois conflitos de direitos com características próprias: no âmbito analógico, a ponderação entre
direitos individuais e a liberdade de imprensa; no direito ao esquecimento digital, pondera-se os direitos do
titular face aos direitos dos buscadores.
46
A agência espanhola de proteção de dados entendeu que o jornal estava em seu
direito de publicar a matéria, mas que o Google era abrangido pela Diretiva 95/46, e deveria
deixar de indexar a notícia. Questionada no judiciário (espanhol, inicialmente, mas
remetido ao TJUE), foi sentenciado que os motores de busca tratam dados pessoais,
mesmo que de forma automática, quando indexam conteúdos disponíveis na internet.
Em setembro de 2019, outro caso foi apreciado pelo tribunal de Justiça Europeu,
novamente tendo como parte o Google. Desta vez, participou da contenda a agência
francesa de proteção de dados - Commission nationale de l'informatique et des libertés,
que em 2015 ingressou contra o mecanismo de busca para deixar de veicular resultados de
determinadas pessoas. O Google havia suprimido o link para as páginas/pessoas solicitadas,
mas somente quando a busca se iniciava nas versões/extensões europeias, o que levou à
agência francesa a multar a empresa.
O TJUE afirmou que a legislação europeia de proteção de dados não tem alcance
sobre todas as versões do buscador, mesmo que sede e filiais estejam indissociavelmente
ligadas. Contudo, afirmou que o Google deve prevenir ou desencorajar, seriamente, os
internautas a efetuarem buscas prejudiciais aos direitos fundamentais242.
241
Destacamos parte da decisão, in verbis “(...) tendo em conta o caráter sensível, para a vida privada dessa
pessoa, das informações contidas nesses anúncios e o facto de a sua publicação inicial remontar há 16 anos,
a pessoa em causa tem comprovadamente direito a que essas informações já não sejam associadas ao seu
nome através dessa lista. Por conseguinte, na medida em que, no caso em apreço, não parece haver razões
especiais que justifiquem um interesse preponderante do público em ter acesso a essas informações”. In:
Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 13 de maio de 2014, processo C-131/12, Google Spain SL,
Google Inc. contra Agencia Española de Protección de Datos (AEPD) e Mario Costeja González.
242
Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 29 de setembro de 2019, Processo C-507/17, Google
Inc. contra Commission nationale de l'informatique et des libertés (CNIL - França).
47
deveria ser complementado para incluir o período de guarda, origem, categoria,
tratamentos automatizados e definição de perfis.
Entre os aspectos que diferenciam os dois regimes, no Brasil, não foi prevista
qualquer cobrança, mesmo que a título administrativo. Os dados devem ser entregues de
“maneira imediata” (e não sem demora injustificada) e no prazo de até 15 dias243.
243
Segundo o artigo 18, § 4º Lei nº 13.709, op. cit., “Em caso de impossibilidade de adoção imediata da
providência de que trata o § 3º deste artigo, o controlador enviará ao titular resposta em que poderá: I -
comunicar que não é agente de tratamento dos dados e indicar, sempre que possível, o agente; ou II - indicar
as razões de fato ou de direito que impedem a adoção imediata da providência”.
244
Artigo 6º, incisos IV e V da Lei nº 13.709, op. cit.
48
Mais especificamente em relação à indexação de dados pessoais, temos decisão
recente (2018) do Superior Tribunal de Justiça (STJ) 245 que alterou o posicionamento da
Corte de afastar a responsabilidade dos buscadores, pela impossibilidade de lhes atribuir
função de “censor”, demandando ao prejudicado que direcionasse sua pretensão aos
provedores de conteúdo.
Todavia, neste caso, em que o nome do autor era associado a suspeitas de fraude
em concurso público que foi julgada inexiste, haviam circunstâncias “excepcionalíssimas”
que demandavam intervenção judicial, já que o vínculo criado nos bancos de dados não
guardam relevância para o interesse público, “seja pelo conteúdo eminentemente privado,
seja pelo decurso do tempo”246.
245
STJ. REsp nº 1.660.168-RJ, acórdão publicado em 05.06.2018. Acesso em 26/11/2019. In:
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1628798&nu
m_registro=201402917771&data=20180605&formato=PDF
246
Idem.
247
Ibidem.
49
correção, a eliminação, a anonimização ou o bloqueio dos dados, para que repitam idêntico
procedimento”248.
248
Artigo 18, §6º da Lei nº 13.709, op. cit.
249
MARTINEZ, Pedro Romano, op. cit.
250
Artigo 4.12 do RGPD, op. cit.
251
Artigo 24 do RGPD, op. cit.
252
Considerando 74 do RGPD, op. cit.
253
Resolução do Conselho de Ministros n.º 41/2018, publicada no Diário da República n.º 62/2018, Série I de
2018-03-28, pp. 1424 – 1430. In: https://data.dre.pt/eli/resolconsmin/41/2018/03/28/p/dre/pt/html
50
A proteção de dados desde a concepção (by design) visa assegurar que o projeto
seja pensado com base na segurança da informação, ou seja, que ela exista desde a criação
de um novo produto ou serviço, mediante análise das técnicas disponíveis e seu custo, em
relação à natureza, âmbito, contexto e finalidades do tratamento254. As medidas de
segurança passam a ser, portanto, parte do processo criativo, e não somente formas de
solucionar problemas.
A ideia é “abarcar não apenas a arquitetura das plataformas físicas (...), mas
também todos os procedimentos”256, devendo o responsável ponderar o custo-benefício
durante todo o ciclo de vida do tratamento257, demonstrando que agiu com lealdade,
licitude, transparência, integridade e confidencialidade.
Para as empresas com mais de 250 trabalhadores, ou aquelas que tratam dados
sensíveis, e as que permanentemente realizem operações de tratamento (nomeadamente
em razão do tipo de atividade empresarial), é exigido registo escrito e atualizado de
operações. Ele deve ser mantido em segurança, evitando-se riscos de utilização indevida
ou vazamento, e registrar: finalidades; categorias; destinatários; prazo de guarda e, quando
possível, medidas técnicas e de segurança258.
254
Artigo 25 do RGPD, op. cit.
255
Idem.
256
PINHEIRO, Alexandre Sousa (coord.), op. cit., p. 400.
257
Idem, p. 401.
258
Artigo 30 do RGPD, op. cit.
259
No âmbito do RGPD, ‘accountability’ poderia ser vista como a exigência de implementação de “um
programa capaz de monitorizar a conformidade em toda a organização, e demonstrar às autoridades e aos
titulares que as informações pessoais que tratam estão seguras. In:http://www.openlimits.pt/pt/thinking-
ahead-blog/glossario-rgpd-regulamento-europeu-protecao-dados/?all=1.
51
Enquanto o registro facilita a fiscalização e comprovação de cumprimento da Lei, a
avaliação prévia busca identificar e minimizar riscos, sendo realizada antes do início da
atividade. Será útil, em especial, quando o tratamento utilizar novas tecnologias ou
apresentar potencial restrição de direitos e liberdades fundamentais260, como no uso de
dados sensíveis.
260
Artigo 35.1 do RGPD, op. cit.
261
Considerando 77 do RGPD, op. cit.
262
Esse tema foi abordado na Seção 5 do RGPD “Códigos de conduta e certificação”, entre os artigos 40 e 43.
O tópico não será extensamente trabalhado porque, como veremos, não está presente da mesma forma na
LGPD e não fará, portanto, parte importante da atuação da autoridade brasileira, objetivo deste trabalho.
263
Artigo 6º, inciso X da Lei nº 13.709, op. cit. Outros princípios visando a segurança das atividades foram
normatizados nos incisos VII e VIII do mesmo artigo, como o da necessidade de “adoção de medidas para
prevenir a ocorrência de danos em virtude do tratamento de dados pessoais”, e o princípio da segurança,
que requer “utilização de medidas técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos
não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou
difusão”.
52
O conceito de privacy by design está no artigo 46 da Lei, que requer que a adoção
das medidas de segurança seja observada “desde a fase de concepção do produto ou do
serviço até a sua execução”264. O conceito de privacy by default está entremeado em dois
princípios: adequação e necessidade, que exigem tratamento compatível com, e limitado
às finalidades informadas ao titular, além do uso de dados pertinentes, proporcionais e não
excessivos.
264
Artigo 46, § 2º da Lei nº 13.709, op. cit.
265
Artigo 37 da Lei nº 13.709, op. cit.
266
No Brasil existe a figura de micro e pequenas empresas, além de microempreendedores individuais. Eles
somam 6,4 milhões de estabelecimentos e respondem por 52% dos empregos formais no setor privado. In:
http://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/ufs/sp/sebraeaz/pequenos-negocios-em-
numeros,12e8794363447510VgnVCM1000004c00210aRCRD.
267
Como dissemos anteriormente, o RGPD requer um registro com o nome e os contatos do responsável pelo
tratamento e do encarregado da proteção de dados, além das finalidades do tratamento e a descrição das
categorias de titulares e de dados pessoais, dos destinatários a quem foram ou serão divulgados e as
transferências. Adicionalmente, se possível, os prazos previstos para o apagamento das diferentes categorias
de dados e das medidas técnicas e organizativas no domínio da segurança para prevenir violações.
268
Este “relatório deverá conter, no mínimo, a descrição dos tipos de dados coletados, a metodologia
utilizada para a coleta e para a garantia da segurança das informações e a análise do controlador com relação
a medidas, salvaguardas e mecanismos de mitigação de risco adotados”. In: Artigo 38, § único, da Lei nº
13.709, op. cit.
53
reconhecidas e divulgadas pela autoridade de controle269. Ou seja, poderá haver códigos
estruturados pelos controladores, individualmente ou por meio de associações, sem que
haja aval ou mesmo conhecimento da ANPD270.
Nos parece que, no caso brasileiro, diferentemente do RGPD, o que se previu foram
códigos internos, à exemplo dos programas de compliance, que foram introduzidos pela Lei
nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e
civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou
estrangeira271.
269
Outro peso tem esta prática no âmbito europeu, uma vez que os códigos de conduta são elaborados pelos
Estados-Membros, autoridades de controle, Comité e Comissão, ou ainda por associações e outros
organismos representantes de setores específicos.
270
O programa de governança em privacidade deve, no mínimo: demonstrar o comprometimento do
controlador em adotar processos de proteção, sendo aplicável a todo o conjunto de dados pessoais que
estejam sob seu controle; estar de acordo com sua estrutura, escala, tipo e volume de operações; estabelecer
políticas de avaliação sistemática de impactos e riscos à privacidade; estar integrado a sua estrutura geral de
governança e estabelecer relação de confiança com o titular dos dados; dispor de planos de resposta a
incidentes e remediação e estar sempre atualizado. In: Artigo 50, I, da Lei nº 13.709, op. cit.
271
BRASIL. Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013.
272
O artigo 7º, inciso VIII da Lei nº 12.846, op. cit., fala da “existência de mecanismos e procedimentos
internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos
de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica”.
273
Artigo 83, 2, j, do RGPD, op. cit.
54
2.3.2. Encarregado da proteção de dados
Isso não quer dizer, contudo, que tenha poderes de direção ou comando. À título
de exemplo, ele deve dar, obrigatoriamente, parecer nas avaliações de impacto realizadas
pela entidade, mas suas fundamentações e conclusões não são vinculantes283.
Para garantir sua independência, não poderá ser destituído ou penalizado por
exercer suas atribuições, se reportando diretamente a direção de mais alto nível da
274
Previsto no artigo 37 do RGPD, op. cit.
275
POLIDO, Fabrício B. Pasquot et al. op. cit., p. 19.
276
Com exceção dos tribunais no exercício da sua função jurisdicional. Porém, estes mesmos tribunais
precisam nomear um encarregado para o exercício de outras funções. In: artigo 32.1 do RGPD, op. cit.
277
Considerando 97 do RGPD, op. cit.
278
com base num contrato de prestação de serviços.
279
Artigo 37 do RGPD, op. cit.
280
Artigo 37.5 do RGPD, op. cit.
281
Artigo 38.3 do RGPD, op. cit.
282
Artigo 38.1 do RGPD, op. cit.
283
Artigo 35.2 do RGPD, op. cit.
55
entidade. Deve guardar sigilo e confidencialidade, se preservando de conflitos de
interesses284.
O papel reduzido dado ao encarregado pela lei brasileira pode representar mais
custos para a empresa do que benefícios a direitos dos titulares. Ademais, a LGPD deixou
para a ANPD estabelecer as “hipóteses de dispensa da necessidade de sua indicação,
conforme a natureza e o porte da entidade ou o volume de operações de tratamento”290.
284
Artigo 38 do RGPD, op. cit.
285
Artigo 39 do RGPD, op. cit.
286
PINHEIRO, Alexandre Sousa (coord.), op. cit., p. 472.
287
Idem, p. 477.
288
O texto original da LGPD requeria que o encarregado fosse uma pessoa natural, sendo esta exigência
excluída pela redação dada pela Medida Provisória nº 869, de 2018. Tal alteração facilita o processo de
contratação, mas também retira o caráter personalíssimo deste encarregado, o que pode ter reflexos tanto
no contato com a autoridade nacional, como em processos de responsabilização.
289
Artigo 41, § 2º da Lei nº 12.846, op. cit.
290
Artigo 41, § 3º da Lei nº 12.846, op. cit.
56
Deveria tal regulamento ser um dos primeiros atos da ANPD, a fim de se evitar que
pequenas empresas que tratam dados com pouca frequência tenham que incorrer nos
custos de contratação de um encarregado, que deveria ser um profissional altamente
especializado291. Neste ponto, acreditamos que essa mesma normativa também poderia, a
exemplo do RGPD, elencar requisitos ou conhecimentos que deve ter o encarregado para
exercer suas funções.
291
Pela extensão continental do Brasil e pela pouca especialização no tema, acredita-se ainda que a medida
seria salutar no caso de pequenas empresas localizadas em estados de menor porte, onde um profissional
com os requisitos necessários deverá ser escasso, ao menos nos primeiros anos da entrada em vigor da Lei.
292
POLIDO, Fabrício B. Pasquot et al. op. cit., p. 11.
293
Diz o citado artigo que: “Qualquer pessoa que tenha sofrido danos materiais ou imateriais devido a uma
violação do presente regulamento tem direito a receber uma indemnização do responsável pelo tratamento
ou do subcontratante pelos danos sofridos”.
294
O artigo 84 do RGPD prevê que os Estados-Membros podem estabelecer outras sanções aplicáveis aos
casos de violação do regulamento, nomeadamente às violações que não são sujeitas a coimas.
295
Artigo 83.1 do RGPD, op. cit.
296
Artigo 58 do RGPD, op. cit.
57
Em relação às multas, na apreciação do caso individual, deve-se considerar: a
natureza, a gravidade e a duração da infração; a natureza, objetivo e número de titulares
afetados pelo tratamento; o dolo ou culpa; as medidas de atenuação ou suspensão de
danos e as medidas de segurança adotadas; além da reincidência e grau de cooperação
com a autoridade de controle297.
Em relação ao valor das sanções, serão quantificadas cada violação realizada, mas
o montante é limitado ao especificado para a violação mais grave dentro do âmbito das
mesmas operações de tratamento ou de operações ligadas entre si299.
O teto valorativo foi dividido em dois blocos: o primeiro prevê coimas de até €10
milhões ou 2% do total do faturamento anual global no exercício financeiro anterior, o que
se aplica para os atos de descumprimento considerados menos gravosos, como a violação
de medidas técnicas e a não designação de um encarregado300. O segundo impõe a
penalização em até €20 milhões ou 4% do total do faturamento anual mundial no exercício
anterior, por violações aos princípios básicos do tratamento, incluindo o consentimento, e
direitos do titular (estabelecidos nos artigos 5º, 6º, 7º, 9º, 12 a 22, 44 a 49 do RGPD)301.
297
Artigo 83.2 do RGPD, op. cit.
298
Idem.
299
As multas menos gravosas poderão ser aplicadas aos organismos de certificação e supervisão, no caso de
descumprimento das regras pertinentes a si, e as multas mais gravosas poderão incidir quando há violação
das obrigações do capítulo IX, relativo a situações específicas, como o tratamento de dados laborais, que
poderão ser reguladas pelos Estados-Membros. Estas também poderão abranger o incumprimento de uma
ordem de limitação ou suspensão emitida pela autoridade de controle.
300
O patamar é aplicável para a efetiva ou potencial violação dos direitos estabelecidos nos artigos 8º, 11,
25, 39, 42 e 43 do RGPD. Ver: Artigo 83.4 do RGPD, op. cit.
301
Artigo 83.5 do RGPD, op. cit.
302
Artigo 83.8 do RGPD, op. cit.
58
b. Multas e penalidades na LGPD
A LGPD não define “violação de dados pessoais”, mas traz conceito parecido ao do
RGPD no princípio da segurança, que decreta a “utilização de medidas técnicas e
administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de
situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou difusão”303.
303
Artigo 6º, caput e inciso VII, da Lei nº 12.846, op. cit.
304
Artigo 44 da Lei nº 12.846, op. cit.
305
Artigo 43 da Lei nº 12.846, op. cit.
306
Qualquer sanção deve ser precedida de procedimento administrativo que possibilite a oportunidade da
ampla defesa. Os procedimentos se basearão em critérios de: I - gravidade e a natureza das infrações e dos
direitos pessoais afetados; II - boa-fé do infrator; III - vantagem auferida ou pretendida pelo infrator; IV - a
condição econômica do infrator; V - reincidência; VI - grau do dano; VII - cooperação; VIII - adoção reiterada
e demonstrada de mecanismos e procedimentos internos capazes de minimizar o dano; IX - adoção de política
de boas práticas e governança; X - pronta adoção de medidas corretivas; e XI - proporcionalidade entre a
gravidade da falta e a intensidade da sanção.
307
Artigo 52 da Lei nº 12.846, op. cit. O mesmo artigo, em seu § 2º, dispõe que estas penalidades não
substituem a aplicação de sanções administrativas, civis ou penais definidas em legislação específica.
308
Diferente é o caso do RGPD que fala especificamente em “advertências sobre a suscetibilidade de um
tratamento violar o RGPD”.
59
cessar a atividade de violação, devendo descrever a “obrigação imposta, o prazo razoável
e estipulado pelo órgão para o seu cumprimento e o valor da multa”309.
Ademais, na sua última revisão, ocorrida em 2019, foi acrescido o §7º ao artigo 52
da LGPD, que passou a admitir conciliação direta entre controlador e titular em casos de
vazamento individual ou acessos não autorizados, excluindo outras penalidades caso haja
acordo.
Em outro, no Brasil, existe apenas um teto de valor para as multas, que corresponde
à menor faixa do RGPD em termos percentuais. Também se determinou que a ANPD crie
um regulamento, que deverá ser objeto de consulta pública, explicando as metodologias
que orientarão o cálculo do valor-base das multas310, de forma objetiva e com dosimetria
de cálculo311.
309
Artigo 54, § único, da Lei nº 12.846, op. cit.
310
Artigo 53 da Lei nº 12.846, op. cit.
311
Artigo 53, § 1º da Lei nº 12.846, op. cit.
60
Capítulo 3 - Autoridades de proteção de dados e a efetividade do regime
jurídico
Neste capítulo, vamos, primeiro, traçar uma discussão conceitual sobre a estrutura
da norma jurídica e os mecanismos de enforcement e compliance que tratam do problema
da efetividade (3.1), para depois analisar o papel das autoridades de controle europeias,
com foco em sua constituição, autonomia e funções (3.2). A partir dos exemplos
examinados, vamos traçar um perfil da autoridade brasileira, já criada, mas ainda não
constituída, sugerindo alterações legislativas que permitam melhor desempenho, e a
conformidade com os parâmetros postos pelo Comité Europeu de Proteção de Dados
(CEPD) para autorizar o intercâmbio internacional de dados (3.3).
3.1.1. Entre o ser e o dever ser: o problema da efetividade das normas jurídicas
312
Apesar deste tópico trazer uma visão mais positivista do Direito, de base kelseniana, entendemos que
existem outras concepções jurídicas importantes, que questionam fundamentos do Direito procurando
aproximá-lo de soluções mais justas. Esperamos ter mostrado, ao longo desta tese, que nos apoiamos
largamente nestas discussões, sobretudo, na linha do exposto por José de Oliveira Ascensão, de que os
princípios são orientações das quais se depreendem, não apenas o complexo legal, mas toda a ordem jurídica.
Ou seja, eles estruturam o ordenamento, gerando consequências concretas, tendo marcada função para a
sociedade, de promover o Direito com base na dignidade da pessoa, que é o seu fim último. (In: ASCENSÃO,
José de Oliveira. Introdução à ciência do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 3ª Edição, 2005, p. 404). Esperamos
também ter demonstrado, que os princípios constitucionais e os direitos humanos fundamentais são sempre
os parâmetros primeiros a serem utilizados na análise de qualquer caso concreto, uma vez que eles sustentam
a integridade da ordem jurídica, e por isso um trabalho sistemático de interpretação é fundamental, para
“reencontramos a realidade do sistema” e enquadrar situações buscando um resultado mais justo. (ver mais
sobre esta análise e sobre críticas e proposições a respeito do direito alternativo em: ASCENSÃO, José de
Oliveira. Direito alternativo. Acesso em 27/11/2019.
In:http://www.fd.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2014/12/Ascensao-Jose-Oliveira-DIREITO-
ALTERNATIVO.pdf
313
MELLO, Marcos Bernardes. Teoria do Fato Jurídico: plano da existência. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 13.
61
fático se concretiza. Assim, ela, normalmente, dita regras que devem ser ou acontecer314,
e é sobre esse tipo normativo que vamos discorrer nas próximas páginas.
O verbo “dever” traz ato programado para ser executado, sendo o dever ser uma
norma válida e vigente, que vincula os destinatários315. O ato de vontade que a satisfaz é,
representando o ser. Vale, entretanto, ressaltar que as normas são hipotéticas, porque só
se aplicam quando se produz um facto que corresponda à previsão. Explica-se: se for
instituído que determinado ato constitui um crime, a regra não se aplica automaticamente,
tendo que haver a ação humana ali descrita para que a incidência da norma ocorra. Isso
significa que a aplicação de uma regra está sempre dependente da verificação de certos
pressupostos316.
O Direito é, neste viés, um sistema de normas ideais, de princípios-guia para a ação
social317, não limitado à descrição da realidade. “Se assim não fosse, seria desnecessária a
regra, pois não haveria sentido algum em impor-se, por via legal, algo que ordinária e
invariavelmente já ocorre”318.
Mas, a intenção do legislador é sempre ver a norma aplicada, concretizando os
objetivos pretendidos quando de sua criação. Consequentemente, a efetividade ou eficácia
social pode ser conceituada como a coincidência do comportamento social com os modelos
e padrões traçados pelas normas jurídicas319, sendo um mínimo de efetividade requisito
forçoso para que o conjunto seja válido320.
Acontece que, nem sempre, há consenso entre a norma e os valores sociais, o que
é agravado em temas novos ou polêmicos, uma vez que a comunidade é formada de
indivíduos e grupos com enormes diferenças culturais, físicas, políticas, sociais e jurídicas.
314
José de Oliveira Ascensão pondera que a maior parte das regras tem função orientadora de condutas
humanas, mas há casos em que esse escopo está completamente ausente, como quando as regras produzem
efeitos jurídicos automáticos, são retroativas ou tratam de outras normas, revogando-as ou suspendendo-as.
In: ASCENSÃO, José de oliveira. O Direito. Introdução e Teoria Geral. Uma perspectiva Luso-Brasileira. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, pp. 181 e 182.
315
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, pp. 5 a 9.
316
ASCENSÃO, José de oliveira. O Direito. Introdução e Teoria Geral. Uma perspectiva Luso-Brasileira, op.
cit., p. 185.
317
A elaboração de normas do dever-ser, mesmo que não cheguem a se concretizar, tem a sua função de
orientação, de coordenação dos valores que são esperados da sociedade. In: BARROSO, Luís Roberto. O
direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira. Rio
de Janeiro: Renovar, 2003, p. 75.
318
KELSEN, Hans, op. cit., p. 174.
319
MELLO, Marcos Bernardes. op. cit., pp. 13 e 14; e KELSEN, Hans. op. cit., pp. 11, 29 e 30.
320
KELSEN, Hans. op. cit., p. 174.
62
Não faltam exemplos de leis ou tratados que, embora em vigor, não se concretizam,
permanecendo, por assim dizer, “no limbo da normatividade abstrata”321.
Em razão deste antagonismo, são previstas as sanções322, que buscam reforçar a
exigência do comando legal. Junto a elas, deve o Direito buscar outros meios ou
mecanismos de efetividade, como a criação de normas com limites razoáveis de alcance e
execução; que se coadunem com as regras e valores de ao menos parte da sociedade; com
proposições claras e objetivos bem definidos323.
A força não é o fim do Direito, apesar de poder aumentar sua eficácia social em
determinados casos324, desde que seja acompanhada de instituições, políticas públicas,
ações e procedimentos capazes de fazer atuar concretamente os comandos normativos325.
Ou seja, é necessário que o jogo real de poder permita que suas disposições sejam
cumpridas, não dependendo de situações ótimas para se concretizarem326. É importante,
pois, que se combinem mecanismos de compliance327 e enforcement para dar maior
efetividade ao regime.
321
REALE, Miguel. Lições Preliminares do Direito. São Paulo: Bushatsky, 1974, p. 125.
322
Pensar em um regime sendo válido somente na condição de ele ser totalmente efetivo é incorrer no erro
de confundir a validade de uma norma com a sua eficácia social, ou, como diz Kelsen, descrever o Direito
como um enunciado do ser e não do dever ser.
323
Não sendo necessário, contudo, a sanção em sua acepção tradicional. O fato de a norma prever uma
sanção ou consequência para o seu descumprimento não dá a ela um caráter de alternativa, ou seja, de opção
entre a adimplência ou inadimplência. Muito pelo contrário, “a hipoteticidade da norma expressa a
objetividade de um valor a ser atingido, e, ao mesmo tempo, se salvaguarda o valor da liberdade do
destinatário, ainda que para a prática de um ato de violação”. In: BARROSO, Luís Roberto. op. cit., p. 89.
324
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento jurídico. Brasília: UNB, 1997, pp. 65 e 66.
325
BARROSO, Luís Roberto. op. cit., p. 280.
326
SILVA NETO, Manoel Jorge E. O princípio da máxima efetividade e a interpretação constitucional. São Paulo:
LTR, 1999, p. 18.
327
Sobre a “compliance”, cumpre ressaltar, desde logo, conforme ponderação de Pedro Romano Martinez,
que alude mais a diretrizes de conduta, a “boas práticas”, do que a condutas jurídicas devidas. Para que essas
medidas sejam devidas, se faz necessária sua juridificação. Contudo, a razão de tratamos do tema, repousa
em nosso entendimento de que as APDs não devem somente impor sanções, mas também, e principalmente,
promover meios de cumprimento das regras de proteção de dados. Por ser um direito humano fundamental,
o mais importante é que as liberdades do titular sejam conquistadas, e seus dados preservados, e não que
haja sanções ou penalizações ao controlador.
63
uma regra suscitada através do cumprimento”328. Dessa maneira, a efetividade não será
somente o meio pela qual são executadas as leis, mas também a sua correspondência com
a finalidade para a qual foram cunhadas.
O conceito de compliance vem ganhando espaço no mundo jurídico para indicar as
medidas necessárias para o cumprimento de uma lei por uma empresa ou Estado (no caso
de um tratado)329. Ele define a conformidade para com o regime normativo, ou seja, a
aplicabilidade das condutas impostas pela norma, o que geralmente requer medidas
econômicas e administrativas330.
Por vezes, as medidas de compliance são definidas em lei, quando se detalham
ações que promovem melhor cumprimento da regra, ou seja, quando se delimita um
conjunto de práticas que pode levar à execução a contento dos objetivos legais. Esta é a
razão pela qual a ideia tem ganhando espaço no âmbito de grandes empresas e em regimes
normativos que envolvem corporate risks.
As principais causas de não-compliance são a falta de comprometimento ou
concordância com as regras, a falta de diligência na aplicação e a falta de recursos. O
comprometimento pode ser reforçado pela pressão da sociedade civil e dos Estados. A
diligência, normalmente relacionada à complexidade da lei e a novidade das medidas que
impõe, pode ser direcionada por códigos de conduta e boas práticas. Já o impacto
financeiro, sopesado pelo agente na análise custo-benefício de cumprir a lei, tem como
remédio a imposição de sanções.
Assim, os mecanismos de compliance laboram como um modelo de gerenciamento
de atividades para cumprir as regras e evitar ou reduzir as penalizações. Já os mecanismos
de enforcement, podem ser vistos como a capacidade do Estado de monitorar os casos de
desconformidade e punir os responsáveis. Ou seja, são medidas com poder de “compelir”
a execução normativa331, ou ao menos, tentar aprimorar sua efetividade. As sanções nem
sempre são necessárias, ou bem-vindas, mas entendemos que, quando existirem, devem
328
Para Reale, em uma comparação com a sua teoria tridimensional do direito, a vigência representa a norma,
a eficácia social representa o fato e o fundamento da norma representa o seu valor. In: REALE, Miguel. op.
cit., p. 126.
329
WEISS, Edith Brown e JACOBSON, Harold K. op. cit., p. 4 e 5.
330
WOLFRUM, Rudiger. Recueil des Cours : Collected Courses. Volume 272, Hague Academy of International
Law, 1998, p. 29.
331
SHELTON, Dinah. Techniques and Procedures in International Environment Law. Geneva: UNITAR – United
Nations Institute for Training and Research, Course 3, 2. ed., 2004, p. 105.
64
estar acompanhadas de medidas de incentivo, para fomentar que o cumprimento da lei
seja mais interessante do que o risco de seu incumprimento. Um bom sistema de controle
administrativo pode também reduzir as disputas judiciais e promover maior segurança
jurídica aos atores.
No campo da proteção de dados, as autoridades de controle têm essa dupla função:
incentivar os mecanismos de compliance e aplicar medidas de enforcement. Destarte, os
membros das APDs devem ser capazes e independentes. E a autoridade ser concebida para
se adaptar às mudanças econômicas, tecnológicas e científicas, mantendo agenda flexível
e compreensiva de ações, servindo como fórum especializado na interpretação das regras,
para torná-las mais objetivas e realizáveis, mas sempre com foco na promoção de direitos
e liberdades fundamentais, pois a dignidade é a base que sustenta o regime.
Nesta tese, iremos analisar duas APDs com o objetivo de conhecer suas
características essenciais, e poder sugerir adequações à autoridade de controle brasileira.
Escolhemos analisar a Autoridade Europeia para a Proteção de Dados (3.2.1) e a autoridade
portuguesa (3.2.2). A primeira, em razão de sua atuação não depender de estruturas e
políticas internas de um Estado; a segunda, pela proximidade do direito brasileiro e
português, e por ser o país de realização deste pós-doutoramento.
332
FAZENDEIRO, Ana, op. cit., p. 10.
65
(CEPD)333, constituído pelas autoridades de controle dos Estados e pela AEPD, e que tem
por missão contribuir para a aplicação coerente do RGPD entre eles334.
a) composição e autonomia
333
O CEPD era anteriormente conhecido como Grupo de Trabalho do artigo 29. Tem estatuto de organismo
da UE dotado de personalidade jurídica e possui secretariado independente. Dispõe de poderes para decidir
litígios entre as autoridades de controle nacionais e prestar aconselhamento e orientação sobre o RGPD.
334
Mais especificamente, são atribuições do CEPD: emitir guidelines, recomendações e boas práticas para
clarear o escopo do RGPD; servir de conselheiro para a Comissão Europeia no que tange à proteção de dados
pessoais, podendo propor legislações; adotar consistency findings para casos transnacionais; promover
cooperação e compartilhamento de informações e boas práticas entre as APDs; criar relatar suas atividades
para o público e para o Parlamento, Conselho e Comissão Europeia.
335
In:https://europa.eu/european-union/about-eu/institutions-bodies/european-data-protection-
supervisor-pt. Acesso em 11/11/2019.
336
Regulamento UE 2018/1725, do Parlamento Europeu e do Conselho de 23 de outubro de 2018 relativo à
proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais pelas instituições e
pelos órgãos e organismos da União e à livre circulação desses dados, e que revoga o Regulamento (CE) n.
45/2001 e a Decisão n. 1247/2002/CE.
337
São Instituições da UE: Parlamento; Conselho Europeu; Conselho da União Europeia; Comissão Europeia;
Tribunal de Justiça da União Europeia; Banco Central Europeu; Tribunal de Contas; Serviço Europeu para a
Ação Externa; Comité Económico e Social; Comité das Regiões; Banco Europeu de Investimento; Provedor de
Justiça; AEPD, in: https://europa.eu/european-union/about-eu/institutions-bodies-pt.
338
In: https://edps.europa.eu/about-edps-en. Acesso em 11/11/2019.
339
Um aspecto importante a se destacar é a necessidade de independência das autoridades de controle,
prevista nos artigos 16.2 do Tratado de funcionamento da UE (TFEU), no artigo 8.3 da Carta de Direitos
Fundamentais e capítulo VI do RGPD. Para ser independente, deve preservar sua capacidade decisória sem
que haja influência externa direta ou indireta.
340
In:https://europa.eu/european-union/about-eu/institutions-bodies/european-data-protection-
supervisor-pt. Acesso em 11/11/2019.
66
As instituições europeias devem apontar um encarregado da proteção de dados341
que assegure, de maneira independente, que o órgão cumpra as disposições legais342. Os
desafios para sua independência são apontados pela AEPD: estrutura hierárquica e clima
organizacional da instituição; expectativas de colegas de trabalho, especialmente os mais
sensíveis ao tema; e capacidade de propor soluções que sirvam como benchmark para
outras instituições, já que deve haver uma aplicação coesa do regulamento 343.
b) Função consultiva
Ela pode aconselhar, sob demanda ou por iniciativa própria, as instituições e órgãos
da UE, que devem-na informar sobre a elaboração de medidas administrativas e regras
internas relativas ao tratamento de dados pessoais que queiram adotar346. Também
responde a consultas da Comissão Europeia sobre propostas legislativas347 e execução de
341
A AEPD tem o seu encarregado, que colabora com as demais intuições sob a égide do Regulamento UE
2018/1725.In:https://edps.europa.eu/about/data-protection-within-edps/data-protection-officer-edps_en
342
As instituições são responsáveis por manter registro das atividades de tratamento, devendo os
encarregados serem consultados sobre ele. Um estudo interessante traz guidelines sobre o perfil do
encarregado em órgãos públicos, acesso em 11/11/2019.
In: https://edps.europa.eu/sites/edp/files/publication/10-10-14_dpo_standards_en.pdf.
343
As funções dos encarregados serão tratadas por normativo da AEPD, que está sendo construído com base
em estudos sobre o tema.
Destaca-se: https://edps.europa.eu/sites/edp/files/publication/18-09-30_dpo_position_paper_en.pdf.
344
In:https://edps.europa.eu/about/data-protection-within-edps/data-protection-officer-edps_en, acesso
em 11/11/2019.
345
Outros setores que compõe o órgão são: setor de comunicação e informação; recursos humanos e
administração; setor de arquivo e suporte técnico.
346
Artigo 41 do Regulamento UE 2018/1725, op. cit.
347
As opiniões formais são publicadas em seu website e nos jornais oficiais europeus, além de enviadas aos
órgãos legislativos competentes. In: https://edps.europa.eu/data-protection/our-role-advisor-en
67
outros normativos348. Pode atuar perante a Corte de Justiça como interveniente349 e dar
indicações sobre a interpretação dos normativos de proteção de dados350.
c) Função de supervisão
348
Caso a normativa em análise possa ter grande impacto sobre direitos pessoais, a Autoridade Europeia e o
Comité Europeu para a Proteção de Dados devem se coordenar e emitir parecer comum em até oito semanas.
In: Art. 42.2do Regulamento UE 2018/1725, op. cit.
349
Em 17 de março de 2005, na decisão conhecida como “PNR-cases”, a CJUE reconheceu o direito da AEDP
de intervir em todos os casos relativos ao processamento de dados pessoais, não sendo ela limitada aos casos
em que o uso de dados se deu por órgãos europeus. Acesso em 11/11/2019, In: https://edps.europa.eu/data-
protection/data-protection/case-law-and-guidance_en.
350
In: https://edps.europa.eu/data-protection_en. Acesso em 11/11/2019.
351
In: https://edps.europa.eu/data-protection/our-role-supervisor_en. Acesso em 11/11/2019.
352
Idem.
353
A decisão poderá ser contestada judicialmente no Tribunal de Justiça da UE.
354
Desde 12/12/2018, quando houver riscos elevados, as violações devem ser notificadas dentro de 72 horas
para a AEDP e para os titulares.
68
atividade de tratamento de dados específica. Em casos mais graves, poderá impor multa,
ou referir o caso para o TJUE.
d) Função de promoção/aperfeiçoamento
355
In: https://edps.europa.eu/data-protection_en, acesso em 11/11/2019.
356
A agenda de treinamentos da AEPD é bem extensa e pode ser conferida aqui:
https://edps.europa.eu/about-edps/members-mission/agenda_en. Acesso em 11/11/2019.
357
"EDPS Strategy 2015-2019", discurso de Giovanni Buttarelli, proferido em Bruxelas em 2/32015, in:
https://edps.europa.eu/node/334, acesso em 11/11/2019.
358
As atividades de cooperação estão previstas nos artigos 61 e 62 do Regulamento UE 2018/1725, que traz
a necessidade de partilhar informações relevantes e de cooperar ativamente para “assegurar uma supervisão
eficaz dos sistemas informáticos de grande escala e dos órgãos e organismos da União”.
359
In: https://edps.europa.eu/data-protection/supervision-coordination_en, acesso em 11/11/2019.
360
Artigo 62 do Regulamento UE 2018/1725, op. cit.
69
abril, que sofreu alterações com a publicação da Lei 28/94 de 29 de agosto361. Foi somente
então, em 7 de janeiro de 1994, que teve início o mandato da Comissão Nacional de
Proteção de Dados Pessoais Informatizados – CNPDPI, cuja independência administrativa
foi consagrada pela revisão constitucional de 1997362.
a) Composição e autonomia
361
In: https://www.cnpd.pt/bin/cnpd/historia.htm. Acesso em 11/11/2019.
362
Idem.
363
A Lei 67/98 de 26 de outubro (PORTUGAL. Lei 67/98, de 26 de outubro. Publicada no Diário da República
n.º 247/1998, Série I-A de 1998-10-26) revogou as leis 10/91 e 28/94.
364
Novas atribuições foram dadas à CNPD com a publicação de leis específicas, como a Lei 69/98
(Posteriormente revogada pela Lei 41/2004, de 18 de Agosto) que transpôs a Diretiva de telecomunicações
(Diretiva 97/66/CE) e Lei 2/94 de 19 de Fevereiro (dados pessoais relativas ao espaço Schengen) e Lei 68/98,
de 26 de Outubro (Europol). In: https://www.cnpd.pt/bin/cnpd/historia.htm. Acesso em 11/11/2019.
365
PORTUGAL. Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto, publicada no Diário da República n.º 151/2019, Série I de
2019-08-08.
366
Artigo 4.1 da Lei n.º 58/2019, op. cit.
367
O artigo 5.º da Lei 58/2019 deixa em aberto a composição e funcionamento da CNDP: “A composição, o
modo de designação e o estatuto remuneratório dos membros da CNPD, bem como a respetiva orgânica e
quadro de pessoal, são aprovados por lei da Assembleia da República”.
368
Considerando 117 do RGPD, op. cit.
369
53.4 do RGPD, op. cit.
70
Os membros da CNPD são inamovíveis, exercendo mandatos a termo fixo, que serão
perdidos apenas em razão de incapacidade370 ou incompatibilidade371. São faltas graves a
ausência, no mesmo ano civil, a três reuniões consecutivas ou seis interpoladas sem motivo
justificado, ou a não observância do sigilo profissional372. Deles se requer que não
pratiquem atividades, remuneradas ou não, incompatíveis com o mandato assumido, com
exceção da atividade de docência no ensino superior e de investigação373.
370
Além das hipóteses de perda, é previsto o término precoce do mandato em caso de morte ou
impossibilidade física permanente ou que ultrapasse o termo do mandato, e a renúncia. In: Artigo 5º da Lei
43/2004, op. cit.
371
Artigo 5.4 da Lei n.º 58/2019, op. cit., assim dispõe: “Os membros da CNPD ficam sujeitos ao regime de
incompatibilidades estabelecido para os titulares de altos cargos públicos, não podendo, durante o seu
mandato, desempenhar outra atividade, remunerada ou não, com exceção da atividade de docência no
ensino superior e de investigação”.
372
Artigo 7 e 8º da Lei 43/2004, op. cit.
373
Artigo 4.4 da Lei n.º 58/2019, op. cit. Alexandre de Sousa Pinheiro acredita que a disposição também deve
se aplicar a atividades desenvolvidas em associações ou outro tipo de pessoas coletivas. In: PINHEIRO,
Alexandre Sousa (coord.). op. cit., p.538.
374
artigo 5.º da Lei n.º 58/2019, op. cit.
375
Idem.
376
Considerando 121 do RGPD, op. cit.
377
Artigo 53 do RGPD, op. cit.
378
Para ser membros da CNPD, deve o cidadão se encontrar em pleno gozo dos seus direitos civis e políticos.
Dados sobre e a atual composição da CNPD pode ser encontra no link:
https://www.cnpd.pt/bin/cnpd/composicao.htm
71
relação ao seu próprio pessoal, que deve ficar sob sua “direção exclusiva”379. O quadro de
pessoal da CNPD conta com 32 funções previstas em lei380, sendo divididas em serviços de
apoio administrativo, Informação e Relações Internacionais, Informática e Inspeção, e setor
de processos381, além de um gabinete de Atendimento ao Público382.
Suas deliberações são tomadas pela maioria dos membros presentes, tendo o
presidente voto de qualidade384. Individualmente, poderá o membro da Comissão arquivar
as reclamações, queixas e petições manifestamente infundadas que lhe tenham sido
distribuídas385.
b) Função consultiva
379
Artigo 52 do RGPD, op. cit.
380
In: https://www.cnpd.pt/bin/cnpd/QuadroCNPD.pdf. Acesso em 10/07/2019.
381
O considerando 120 do RGPD afirma que “Deverão ser dados às autoridades de controlo os recursos
financeiros e humanos, as instalações e as infraestruturas necessárias ao desempenho eficaz das suas
atribuições, incluindo as relacionadas com a assistência e a cooperação mútuas com outras autoridades de
controlo da União”.
382
Segundo o artigo 22 da Lei 43/2004: “1- A CNPD dispõe de serviços de apoio próprios. 2 — Os serviços de
apoio compreendem: Serviço Jurídico (SJ); b) Serviço de Informação e Relações Internacionais (SIRI); c)
Serviço de Informática e Inspecção (SII); d) Serviço de Apoio Administrativo e Financeiro (SAAF)”.
383
Artigo 13º da Lei 43/2004, op. cit.
384
Artigo 15º da Lei 43/2004, op. cit.
385
Artigo 17.4 da Lei 43/2004, op. cit.
386
Art. 57.1 – c, do RGPD, op. cit., e artigo 6.1 da Lei n.º 58/2019, op. cit.
387
Art. 58: 3, d, do RGPD, op. cit.
388
Art. 57.1, e, do RGPD, op. cit.
72
A Lei 58/2019 conferiu à CNPD a atribuição de se pronunciar, a título não
vinculativo, sobre as medidas legais e demais instrumentos jurídicos relativos à proteção
de dados pessoais389. Uma análise numérica aponta a importância desta função, já que
foram 59 pareceres emitidos em 2018390 e 56 até o dia 13 de novembro de 2019391. Como
a proteção de dados é um tema relativamente novo e de contornos, por vezes, não tão
bem definidos, esta função de orientação sobre a compatibilidade de lei, projeto de lei ou
política pública é indispensável para o sucesso do regime.
Nota-se que a função consultiva pode e deve ser exercida de forma simples e direta.
A CNPD utiliza recurso já conhecido, mas bastante eficaz: “perguntas frequentes”. É uma
389
Tanto no nível interno, como no europeu e internacional. Artigo 6.º, 1, a da Lei 58/2019, op. cit.
390
In:https://www.cnpd.pt/bin/decisoes/decisoes.asp?primeira_escolha=2018&segunda_escolha=40.
Acesso em 10/07/2019.
391
In:https://www.cnpd.pt/bin/decisoes/decisoes.asp?primeira_escolha=2019&segunda_escolha=40.
Acesso em 13/11/2019.
392
Estas cláusulas são utilizadas nos casos de subcontratação e transferência de dados para um país terceiro
ou organização internacional. In: Art. 57.1, j, do RGPD, op. cit.
393
Art. 57.1, k, do RGPD, op. cit.
394
Art. 57.1 – I do RGPD, op. cit. Prevê o artigo 36 do mesmo Regulamento que deve o responsável pelo
tratamento consultar a autoridade de controle antes de proceder ao tratamento quando a avaliação de
impacto indicar elevado risco. Quando a autoridade considerar que o responsável pelo tratamento não tiver
identificado ou atenuado suficientemente os riscos, deverá dar orientações, por escrito, ao responsável.
395
O que não impede sua realização por iniciativa dos responsáveis. In: art. 7 da Lei 58/2019, op. cit.
396
Artigo 6.1, c, da Lei 58/2019, op. cit.
397
Lei 67/98, op. cit., artigo 22.
398
artigo 13º do RGPD, op. cit.
73
ferramenta que permite consulta rápida dos interessados, ajudando a prevenir casos de
descumprimento da Lei por desconhecimento ou dúvidas. Uma das respostas da CNPD
deixa claro que é dispensado o consentimento dos trabalhadores no âmbito da gestão
administrativa ou de processamento de remunerações, já que se trata de execução do
contrato de trabalho399.
Nesta feita, a CNPD emitiu orientação, em 2016, para que estes dados fossem
armazenados em áreas reservadas, e as informações separadas de acordo com a
finalidade402. Asseverou que o consentimento era necessário para recolha de imagens, e
mesmo assim, deveria ser avaliado os riscos/impactos de sua disponibilização403.
399
Sobre este ponto, lembra a Comissão que “o consentimento dos trabalhadores não é de uma maneira
geral considerado válido, pois raramente poderá ser dado em condições de liberdade, atendendo ao
desequilíbrio entre as partes”. https://www.cnpd.pt/bin/faqs/faqs.htm. Acesso em 10/07/2019.
400
A CNPD tem importante papel no que tange a orientar ao púbico sobre o tratamento de dados pessoais,
sejam os titulares deste direito ou as entidades que tratam estes dados. Até 2017, ou seja, anteriormente à
entrada em vigor do RPGD, emitiu orientações sobre: Saúde; Trabalho; Acesso a dados pessoais; Educação;
Informação de crédito; Fluxos internacionais; Videovigilância; Marketing político e eleitores; Novas
tecnologias; Dados Manuais e Telecomunicações.
401
In: www.cnpd.pt/bin/orientacoes/DEL_1495_2016_dados_alunos_Internet.pdf, acesso em 10/07/2019.
402
Políticas como: mecanismos de autenticação; gestão de utilizadores e de atribuição de perfis que garantam
a confidencialidade das transmissões de dados e o registo dos acessos (logs).
403
Lembrando que se deve aplicar sempre o princípio do interesse superior das crianças.
In: https://www.cnpd.pt/bin/orientacoes/DEL_1495_2016_dados_alunos_Internet.pdf
404
In:https://www.cnpd.pt/bin/decisoes/Diretrizes/Diretriz_1_2018_disponibilizacao_dados_on-
line_instituicoes_ensino_superior.pdf. Acesso em 10/07/2019.
405
Diante da Lei de Acesso à Informação brasileira, e da política adotada desde então de ampla
disponibilização dos dados pessoais de servidores e daqueles que, de alguma forma, recebem recursos
públicos, o tema se apresenta de especial interesse para o nosso objeto de pesquisa.
74
Inicialmente, aponta a CNPD que se trata de um equilíbrio de interesses entre o
princípio da transparência e da minimização de dados pessoais406, cuja conciliação impõe
a opção “pela divulgação agregada ou anonimizada”407. Ou seja, não se deve deixar de
promover ampla transparência, especialmente quando há recursos públicos envolvidos,
pois a gestão financeira do Estado deve passar pelo controle social, mas ela deve ser
executada de forma a minimizar riscos e restrições de direitos dos titulares.
Pelo mesmo argumento, expõe que as decisões sancionatórias não devem ser
tornadas públicas, já que nem a função punitiva, nem a função pedagógica/preventiva da
medida disciplinar parecem exigir mais do que a aplicação da sanção e a sua notificação ao
destinatário, sendo certo que a divulgação implicaria em restrição desnecessária e
excessiva do direito à proteção de dados pessoais409.
406
Foi promovida ampla consulta pública para entender os diferentes pontos de vista sob as questões
expostas no parecer.
407
In:https://www.cnpd.pt/bin/decisoes/Diretrizes/Diretriz_1_2018_disponibilizacao_dados_on-
line_instituicoes_ensino_superior.pdf
408
Idem.
409
Ibidem.
410
In: https://www.cnpd.pt/bin/orientacoes/DEL_923_2016.pdf. Acesso em 10/07/2019.
411
Idem.
75
legal, mas na ponderação de direitos, somente sendo informados os dados relevantes para
o objetivo perseguido.
A segunda, bastante polêmica, mas determinante para que o RGPD cumpra sua
função de salvaguardar os direitos do titular e assegurar o primado do direito da União
Europeia, trata-se da decisão de não aplicar algumas disposições da Lei 58/2019, que,
segundo entende a CNPD, manifestamente restringem, contrariam ou comprometem o
efeito útil e a plena efetividade do RGPD414.
c) Função de supervisão
412
Artigo 44.2 da Lei 58/2019, op. cit.
413
In: https://www.cnpd.pt/bin/decisoes/Delib/DEL_2019_495.pdf. Acesso em 13/11/2019.
414
São elas: Artigo 2.º, nº 1 e 2; Artigo 20.º, nº 1; Artigo 23.º; Artigo 28.º, nº 3, alínea a; Artigo 37.º, nº 1,
alíneas a), h) e k), e n.º 2; Artigo 38.º, nº 1, alínea b), e nº 2; Artigo 39.º, nº 1 e 3; Artigo 61.º, nº 2 e Artigo
62.º, nº 2. In: https://www.cnpd.pt/bin/decisoes/Delib/DEL_2019_494.pdf. Acesso em 13/11/2019.
415
Artigo 5.4 e 6.1 b. da Lei 58/2019, op. cit.
416
Considerando 122 do RGPD, op. cit.
417
Artigo 34.º da Lei 58/2019, op. cit.
76
Em Portugal, o titular pode fazer cumprir os seus direitos na esfera
administrativa418, sem prejuízo de apresentação de queixa à CNPD419, por meio de tutela
petitória ou impugnatória, ou por meio da responsabilidade civil que decorre do
tratamento ilícito de dados ou outras violações ao RGPD e à lei 58/2019420.
A empresa alegou que não havia conseguido identificar o solicitante como titular
no tempo oportuno, mas, durante a instrução processual, a CNPD teve acesso a cópia de
um e-mail do encarregado em que o responsável instruía a que cópias de ligação telefônica
somente fossem oferecidas mediante ordem judicial ou pedido de um organismo oficial.
Uma multa de 20.000 euros foi aplicada pela violação do artigo 15º, nº 1422.
418
Diz o artigo 32 da Lei 58/2019: “Sem prejuízo do direito de apresentação de queixa à CNPD, qualquer
pessoa pode recorrer a meios de tutela administrativa, designadamente de cariz petitório ou impugnatório,
para garantir o cumprimento das disposições legais em matéria de proteção de dados pessoais, nos termos
previstos no Código do Procedimento Administrativo”.
419
Artigo 35 da Lei 58/2019: “Sem prejuízo da observância das regras relativas ao patrocínio judiciário, o
titular dos dados tem o direito de mandatar um organismo, uma organização ou uma associação sem fins
lucrativos constituída em conformidade com o direito nacional, cujos fins estatutários sejam de interesse
público e cuja atividade abranja a defesa dos direitos, liberdades e garantias do titular dos dados quanto à
proteção de dados pessoais para, em seu nome, exercer os direitos previstos nos artigos 77.º, 78.º, 79.º e
82.º do RGPD”.
420
Artigo 33.º da Lei 58/2019, op. cit.
421
Processo 2018/10778, cuja decisão está disponível em:
https://www.cnpd.pt/bin/decisoes/decisoes.asp?primeira_escolha=2019&segunda_escolha=20.
422
Artigo 15º do RGPD, op. cit.: “Direito de acesso do titular dos dados: 1. O titular dos dados tem o direito
de obter do responsável pelo tratamento a confirmação de que os dados pessoais que lhe digam respeito são
ou não objeto de tratamento e, se for esse o caso, o direito de aceder aos seus dados pessoais (...)”.
423
Artigo 56 da Lei 58/2019, op. cit.
77
Assim como no RGPD424, a lei portuguesa dividiu as violações em duas categorias. O
artigo 37º trata das contraordenações muito graves425, como a não observância dolosa dos
princípios do RGDP e tratamentos sem consentimento ou outra base legal. O artigo 38º
trata das contraordenações graves, que são aplicadas para violações de medidas técnicas
e organizativas426.
Em todos os três casos, entende a CNPD que não poderia o legislador nacional
modificar o RGPD, que pretende uniformizar as regras de proteção de dados no âmbito
europeu, não podendo a lei nacional reduzir ou mudar sua aplicabilidade428.
424
O artigo 83 do RGPD estabelece duas categorias de violação, sujeitas a multas de até 10 milhões de euros
ou 2% do volume de negócios anual a nível mundial para os casos considerados menos graves e até 20 milhões
de euros ou 4% do volume de negócios na categoria considerada mais gravosa.
425
São elas: inobservância dolosa dos princípios do artigo 5.º do RGDP ; tratamentos sem base em
consentimento ou outra condição de legitimidade (artigo 6.º do RGPD); incumprimento das regras de
consentimento (artigo 7.º do RGPD) , de dados sensíveis (artigo 9.º do RGPD) ou relacionados com
condenações penais e infrações (artigo 10.º do RGPD); que exijam pagamento (à exceção dos infundados ou
excessivos, nomeadamente de caráter repetitivo, em que o responsável pode cobrar taxa razoável para cobrir
custos administrativos ); não prestação de informação sobre as finalidades, destinatários ou direito de retirar
o consentimento (artigos 13.º e 14.º do RGPD); não permitir, não assegurar ou dificultar o exercício de direitos
(artigos 15.º a 18.º e 19.º a 22.º do RGPD); violação dos requisitos de transferência internacional (artigos 44.º
a 49.º do RGPD); incumprimento das decisões da autoridade de controlo ou recusa da colaboração e violação
das regras de pessoal da CNPD.
426
Como a proteção de dados desde a conceção e por defeito; violações nos casos de subcontratação;
designação e garantias do encarregado de proteção de dados e questões relativas a códigos de conduta e
utilização de selos ou marcas. In: Artigo 38 da Lei 58/2019, op. cit.
427
Para as contraordenações mais graves, o artigo 37.2 cria o seguinte parâmetro para as sanções: grandes
empresas - entre € 5.000 a € 20 milhões ou 4% do volume de negócios anual; PME - de € 2.000 a € 2 milhões
ou 4% do volume de negócios anual; e entre € 1.000 a € 500.000 no caso de pessoas singulares. Para as
contraordenações graves, o artigo 38.2 prevê: de €2500 a € 10 000 000 ou 2% do volume de negócios anual
para grandes empresas; de € 1000 a € 1 000 000 ou 2% do volume de negócios para PME e entre € 500 a €
250 000, no caso de pessoas singulares. In: Lei 58/2019, op. cit.
428
A não ser em casos em que o próprio RGPD disponha que poderá o Estado-Membro editais tais regras.
78
Como regra geral, deve a CNPD utilizar os critérios do artigo 83º, 1, a-k do RGPD
para avaliar a gravidade da infração e determinar o valor das sanções de forma
individualizada429. Vejamos um caso concreto apreciado em 9 de outubro de 2018, que
tratou de falha na concepção de sistemas de informação em estabelecimentos médico-
hospitalares.
Valorados os critérios, aplicou duas penalidades de 150.000 euros pela prática das
contraordenações do artigo 5º, 1, al. c e f; e uma de 100.000 euros pela violação dos artigos
32º, 1, b e d, e artigo 83º, 4, a.3, totalizando uma coima de 400.000 euros. Cada violação
foi avaliada em relação aos critérios do artigo 83 (atenuantes e agravantes), mas recebeu
sanção individualizada, que ficou aquém do limite máximo estabelecido pelo RGPD.
429
In: https://www.cnpd.pt/bin/decisoes/Delib/20_984_2018.pdf. Acesso em 5/10/2019.
430
Deliberação 2019/207: www.cnpd.pt/bin/decisoes/Delib/DEL_2019_207.pdf.
Deliberação 2019/222: www.cnpd.pt/bin/decisoes/Delib/DEL_2019_222.pdf.
79
Assim, apesar de ser infração punível com a moldura mais grave prevista no RGPD,
e não ter havido notificação da própria arguida, as multas em ambos os casos foram fixadas
em 2.000 euros. Como a empresa que alegou estar em situação econômica precária não
ofereceu qualquer prova a este respeito, não houve atenuação do valor da coima.
Em relação ao destino das multas, a Lei 58/2019 fixou que 40% seja revertida para
CNPD e os outros 60% para o Estado431. No Brasil, se discute se isto poderia representar
um incentivo à aplicação de penalidades, já que o órgão poderia, caso necessitasse de
maior financiamento, comprometer, em alguma medida, sua imparcialidade.
Por fim, um dos pontos mais críticos em relação à nova Lei portuguesa foi a opção
de que o processamento de fato que for, ao mesmo tempo, crime e contraordenação, seja
realizado pela autoridade criminal - Ministério Público. Se trata de um possível
esvaziamento das competências da CNPD, uma vez que constitui crime diferentes atos de
violação previstos no RGPD, como o uso incompatível com a finalidade da recolha; o acesso
indevido e o desvio, a viciação, inserção falsa e a destruição de dados; além do dever de
sigilo432.
Entendemos que a disposição contraria o RGPD, já que ele afirma que nos casos de
violação caberá reclamação à autoridade de controle, cuja atuação será independente.
Ainda, parece-nos que uma entidade especializada na proteção de dados pode estar mais
apta a responder aos desafios tecnológicos que perpassam a questão, e fornecer resposta
mais rápida do que um procedimento criminal.
431
Artigo 42.º da Lei 58/2019, op. cit.
432
Os crimes estão elencados na Seção III da Lei 58/2019, op. cit.
80
O melhor seria manter os dois órgãos atuando de forma harmônica, segundo o
princípio da independência das instâncias. Caberia à CNPD investigar as violações e atuar
dentro de suas competências administrativas, enviando sua análise, conclusões e provas
obtidas ao Ministério Público, quando haja suspeita de atividade criminosa 433.
d) Função de promoção/aperfeiçoamento
Contudo, gostaríamos de ressaltar que a Lei 58/2019 previu, em seu artigo 8º, um
dever de colaboração das entidades públicas e privadas para com a CNPD, facultando-lhe
as informações solicitadas no exercício das suas atribuições e competências, especialmente
em relação ao exame de sistemas informáticos e ficheiros de dados pessoais, bem como
toda a documentação relativa ao tratamento e transmissão de dados437.
433
A Lei 58/2019, manteve como atribuições da CNPD intervir em processos judiciais no caso de violações à
proteção de dados e denunciar ao Ministério Público as infrações penais de que tiver conhecimento no
exercício de suas funções, bem como praticar atos cautelares para assegurar os meios de prova.
434
Considerando 122 do RGPD, op. cit.
435
Nos termos do artigo 40.5 do RGPD, op. cit.
436
A lei 58/2019, op. cit., definiu como autoridade competente para a acreditação dos organismos de
certificação em matéria de proteção de dados é o Instituto Português de Acreditação - IPAC, I.P. (art. 14,1).
437
Artigo 8.2 da Lei 58/2019, op. cit.
81
organiza, desde 2015, a Revista Fórum, que busca ampliar conhecimentos sobre
privacidade e proteção de dados.
Antes mesmo de sua entrada em vigor, a LGPD já passou por duas revisões,
majoritariamente baseadas no arranjo institucional da Autoridade Nacional de Proteção de
Dados (ANPD). A versão aprovada inicialmente no Congresso Nacional, criava uma entidade
com natureza de autarquia especial, vinculada ao Ministério da Justiça, que gozaria de
independência administrativa e técnica, com mandato a termo fixo para os dirigentes e
autonomia financeira.
A versão atual da LGPD dispõe que a ANPD será criada sem aumento de despesas441,
e integrará a Presidência da República. Sua natureza jurídica é transitória, pois poderá ser
submetida ao regime autárquico especial em até dois anos da entrada em vigor de sua
estrutura regimental. Por enquanto, o órgão máximo da Autoridade é o Conselho Diretor,
438
Em 14 de agosto de 2018, foram vetados os artigos 55 a 59 da LGPD, que organizavam a ANPD e o Conselho
Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade.
439
A título de informação, uma medida provisória tem aplicação imediata, mas depende de aprovação do
Congresso Nacional para se transformar definitivamente em lei.
440
Redação dada pela Lei nº 13.853, de 2019, op. cit.
441
Segundo o artigo 55, § 3º da Lei 13.709/2018, op. cit., o provimento dos cargos e das funções necessários
à criação e à atuação da ANPD está condicionado à expressa autorização física e financeira na lei orçamentária
anual e à permissão na lei de diretrizes orçamentárias.
82
com 5 integrantes, sendo um diretor-presidente442. Os membros serão escolhidos pelo
Presidente da República e nomeados após aprovação do Senado Federal.
442
Os diretores ocuparão cargo em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores - DAS, no
mínimo, de nível 5, nomeando eles mesmos os demais cargos.
443
Artigo 55 D, §2º, da Lei 13.709/2018, op. cit.
444
Artigo 55 D, § 3º e 4º, da Lei 13.709/2018, op. cit.
445
Excepcionalmente, a prestação do serviço pode ser autorizada pela Comissão de Ética Pública ou pela
Controladoria-Geral da União.
446
BRASIL. Lei nº 12.813, de 16 de maio de 2013.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12813.htm.
447
As unidades especializadas são: assessoramento jurídico próprio, corregedoria, ouvidoria, unidade
administrativa e unidades especializadas a serem definidas.
448
Até que o remanejamento de cargos seja efetivado, a APD receberá apoio técnico e administrativo da Casa
Civil. In: Artigo 55 G, §1º, da Lei 13.709/2018, op. cit.
83
um do Conselho Nacional de Justiça e outro do Conselho Nacional do Ministério Público;
um do Comitê Gestor da Internet; três de entidades da sociedade civil; três de instituições
científicas, tecnológicas e de inovação; três de confederações sindicais representativas das
categorias econômicas do setor produtivo; dois de entidades representativas do setor
empresarial relacionado à área de tratamento de dados pessoais; e dois de entidades
representativas do setor laboral.
Sob nosso ponto de vista, a criação do Conselho foi uma escolha infeliz do legislador,
já que a interação entre poder público e sociedade pode ser pensada de forma mais
democrática e aberta, como por meio de consultas e audiências públicas, pesquisas de
opinião, atividades de ouvidoria e demais mecanismos de controle social.
449
Seriam 10 representantes do governo contra 12 da sociedade civil, além do integrante do Comitê Gestor
da Internet no Brasil, que poderá ou não ser um membro do governo. Ainda, nada impede que o governo
indique pessoas que atuam na iniciativa privada, o que já ocorreu em uma nomeação do Poder Legislativo
(que se antecipou à entrada em vigor do Conselho).
84
econômicos acima do que seria viável no mercado privado”450. Sugerem, pois, que a
composição seja alterada para equilibrar interesses451.
Ademais, a burocracia necessária para reunir um grupo tão eclético deve ser
considerada. Por fim, não se previu sujeição dos conselheiros à lei de conflito de interesses,
o que reforça que a plataforma seja usada para negociação de contratos e serviços (barreira
de mercado), além do perigo de vazamento de informações sensíveis452. Melhor seria,
portanto, a extinção do CNPDP, a fim de garantir isenção e independência da ANPD.
450
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Nota técnica n.º 4/2019/gab-senacon/senacon/mj,
Processo nº 08012.001058/2019-61.
451
Eis a sugestão da nota: O CNPDP será composto por 23 representantes, titulares suplentes, dos seguintes
órgãos: I - seis do Poder Executivo federal, sendo dois representantes obrigatoriamente do Ministério da
Justiça e Segurança Pública; II - um do Senado Federal; III - um da Câmara dos Deputados; IV - um do Conselho
Nacional de Justiça; V - um do Conselho Nacional do Ministério Público; VI - um do Comitê Gestor da Internet
no Brasil; VII – quatro três de entidades da sociedade civil com atuação comprovada em proteção de dados
pessoais; VIII - quatro de instituições científicas, tecnológicas e de inovação; e IX - quatro três de entidades
representativas do setor empresarial relacionado à área de tratamento de dados pessoais; X - dois de
entidades de defesa do consumidor.”
452
Sem citar fontes ou nomes, sob pena de incorrer em exposição indevida de dados pessoais, há advogados
utilizando o apontamento de um sócio/parceiro para compor o Conselho como validação de seus serviços
advocatícios e expertise da sociedade empresarial. Confirma-se, portanto, o receio de que o CNPDP seja
usado para fins indevidos, onde os riscos ultrapassam os possíveis benefícios.
85
3.3.2. Funções e competências
a) Função consultiva
Vale mencionar que quaisquer normas editadas pela ANPD devem ser precedidas
de consulta e/ou audiência públicas, bem como de análises de impacto regulatório. Duas
questões podem ser levantadas: a primeira diz respeito a função do CNPDP, que nos parece
dispensável diante da obrigatoriedade de a Autoridade realizar consultas e audiências
públicas, já que esta seria uma das principais competências do Conselho455. Segundo, não
453
Como já mencionado, a LGPD tem preocupação especial com os segredos comercial e industrial, que são
mencionados 11 vezes em seu texto, sendo 3 delas no artigo que trata das funções da ANPD.
454
Artigo 55 J, XX, da Lei 13.709/2018, op. cit.
455
A duplicidade da realização destes eventos aumentaria custos e tempo para a publicação de normas.
86
acreditamos que todas as normativas a serem criadas pela ANPD carecem destas atividades
de consulta, como no caso de simples regulamentos para o funcionamento interno da
entidade.
b) Função de supervisão
Lembramos que não há sanções financeiras aos órgãos públicos, o que poderia ser
contraproducente no Brasil, já que eles são mantidos pelo Estado. Na prática, o dinheiro
sairia de uma conta da União para possivelmente retornar a essa mesma conta. Por isso, o
456
Artigo 55 J, IV, da Lei 13.709/2018, op. cit.
457
Artigo 55 J, V, da Lei 13.709/2018, op. cit.
458
Artigo 55 J, §6º, da Lei 13.709/2018, op. cit.
459
Artigo 55 J, da Lei 13.709/2018, op. cit.
460
Mais especificamente, fala dos seguintes princípios: soberania nacional; propriedade privada; função
social da propriedade; livre concorrência; defesa do consumidor e do meio ambiente; redução das
desigualdades regionais e sociais; busca do pleno emprego; e tratamento favorecido para as empresas
brasileiras de capital nacional de pequeno porte.
87
ideal seria a responsabilização dos servidores, especialmente no caso de dolo, por meio de
processo administrativo disciplinar, devendo alcançar o dirigente máximo da Instituição, a
fim de abranger toda a cadeia de comando.
c) Função de promoção/aperfeiçoamento
Entendemos que o período de vacatio legis de dois anos foi antevisto exatamente
para que se promovam estudos sobre práticas nacionais e internacionais sobre padrões de
segurança e técnicas de anonimização, visando orientar os controladores a planejar suas
atividades; e para disseminar informações aos titulares, para que exerçam melhor controle
sobre seus próprios dados.
Interessante notar que o RGPD obriga que o tratamento de dados de crianças seja
realizado de forma especial, enquanto na LGPD caberá à ANPD garantir o acesso claro,
simples, acessível e adequado ao tratamento de dados de idosos, demonstrando
preocupação com a pouca habilidade desta parcela da população brasileira com inovações
tecnológicas e instrumentos informáticos.
88
Ainda dentro das atividades da ANPD, está a de se articular com autoridades
reguladoras para exercer suas competências em setores específicos da atividade
econômica e governamental de forma coordenada com as autoridades setoriais. Essa
cooperação entre órgãos e agências deve promover maior eficiência e adequação da LGPD
com os setores que observam legislação específica.
Analisadas as três APDs escolhidas para compor este trabalho, vemos, primeiro,
uma diferença no âmbito de atuação, uma vez que a Autoridade Europeia para a Proteção
de Dados tem mandato sobre as instituições e órgãos da UE, enquanto a CNPD e ANPD tem
competência estatal. A influência deste fato na composição e atribuições é incerta, mas
observa-se que a AEPD apresenta características diferentes das autoridades nacionais.
Por outro lado, a CNPD e a ANPD centralizam sua estrutura nos membros que
compõe a entidade – 7 em Portugal e 5 no Brasil - onde prevalecem atributos de
independência para os titulares, cujo método de escolha lusitano é plural, enquanto no
caso brasileiro a decisão cabe ao Presidente da República, carecendo de aval do senado.
461
Artigo 55 J, §4º, da Lei 13.709/2018, op. cit.
89
Poder-se-ia, contudo, ser fortalecida a equipe técnica, em ambos os casos. Na
CNPD, nos parece que falta assessoria especializada, a exemplo dos institutos da AEPD. No
Brasil, o modelo também seria bem-vindo, mas acreditamos que o método de escolha dos
membros poderia ser mais próximo ao de Portugal, favorecendo a pluralidade e mantendo
na composição magistrados e membros do Ministério Público. Esta também seria uma
opção para garantir mais diversidade na formação da Autoridade, já que sugerimos que a
criação do CNPDP seja revisada.
É, portanto, um centro de referência, o que deveria ser almejado por toda as APDs
nacionais, visando, conforme estratégia da AEPD, alterar o paradigma de controle para
consolidar a cultura de accountability para com os direitos fundamentais.
462
In: https://edps.europa.eu/data-protection/our-work/our-work-by-type/opinions_en, acesso em
27/11/2019.
90
legislativas. As posições adotadas são sempre muito técnicas, comedidas, e baseadas nos
direitos dos titulares.
Posto que a estrutura atual da ANPD poderá ser revisada em até dois anos de sua
entrada em vigor, acreditamos que seja salutar que estas falhas sejam repensadas no
momento presente. O modelo de autarquia especial, com personalidade jurídica de direito
público, proposta pelo Congresso Nacional, é mais favorável à independência técnica,
financeira e de pessoal do que a proposta do Poder Executivo, que a subordinada
diretamente ao governo, reforçando o poder de vigilância do Estado.
463
PINHEIRO, Alexandre Sousa. op. cit., p. 732.
464
Idem.
465
Em 2019 (até 10/11), o CADE julgou 508 processos, com total de multas aplicadas de R$ 781.669.920.In:
http://cadenumeros.cade.gov.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=Painel%2FCADE%20em%20N%C3%B
Ameros.qvw&host=QVS%40srv004q6774&anonymous=true. Acesso em 10/11/2019.
91
Conclusão
Assim, para que a proteção de dados pessoais possa ser eficiente, é importante
valorar cada dado isolado, porque o tratamento permite organizar diferentes informações
para obter um perfil pessoal. Ainda, como são danos de difícil reparação, se fazem
necessários mecanismos preventivos e dissuasivos.
Este é um dos aspectos principiais trazidos pelo RGPD e pela LGPD, que visam criar
contornos concretos de proteção aos dados pessoais, tanto na esfera privada como pública,
para que haja reequilíbrio na relação jurídica e se evitem potenciais danos pelo tratamento
não autorizado ou realizado fora dos patamares de segurança. Tem-se, por conseguinte,
uma estrutura dupla de responsabilidade, onde o titular participa e tem acesso a
92
informações sobre o uso de seus dados, e onde os responsáveis pelo tratamento são
investidos em mecanismos de controle para evitar o pagamento de altas multas.
466
RODATÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância. Tradução: Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda.
Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 17.
467
NISSENBAUM, Helen. Privacy in context. Stanford: Stanford Law Books, 2009, p. 119.
468
BENNET, Colin e RAAB, Charles. The Governance of Privacy. Michigan: The MIT Press, 2006. Ideia contida
no capítulo 8, que discorre sobre os regimes de privacidade.
93
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